Aula 18
Aula 18
Aula 18
Personagens:
Um casal de velhos
Uma criada jovem
Um homem
Figurantes-maquinistas
(Sala de estar da casa dos velhos. Uma janela dando para o exterior. Uma porta
fechada que se supõe dar para fora e outra dando para as dependências da
casa. Uma poltrona rodeada de embrulhos pequenos e grandes e de caixas com
papel e barbantes. Uma cesta cheia de pequenos objetos. Uma mesa ao centro,
cheia de papéis para embrulho. Uma escrivaninha com pequenos embrulhos e
alguns livros. Um telefone)
(Quando abre o pano, o Velho está terminando de colar alguns selos num álbum.
Ouve-se o barulho de um trator. O Velho para e olha a janela. Depois guarda
todos os selos dentro do álbum e começa a embrulhá-lo. Ouve-se o telefone
tocar. Cessa o ruído do trator. O Velho olha o telefone em desafio. Chega a Velha
com uma caixa cheia de barbantes. Para e interroga, com os olhos, se deve
atender. O velho faz que sim)
Velha (Ao telefone) - Pronto! Sim...sim... (Faz sinal para o Velho) Mas o que é
que nós temos com isso? Não, ele não atende mais.
(Ouve, espantada) Recebemos muitas, mas não abrimos nenhuma.
(Olhar triunfante para o Velho)
Velho - A primeira!
Velha - Só abrimos a primeira. (Escuta. Fica muito espantada e aflita. Depois,
tapando o telefone) Hiii...ele está falando tanta coisa! (Ouve) O que? Ah, isto eu
não sei. Um momento. (Deixa o fone e se dirige ao Velho) Nós temos alguma
coisa a ver com a estrada nova que vai passar por aqui, Neguinho?
Velho (Pegando o telefone) - A estrada nova que arranje outro lugar para passar.
Se estão tão impacientes que arranjem outro lugar para passar essa estrada.
Já...já recebemos muitas sim, mas não abrimos nenhuma. Não abro nada que
venha desse departamento. (Ouve) Pois que venham. Venham para ver. E
querem saber de uma coisa? (Para. A Velha, que tinha se afastado rindo, volta
muito alegre com uma caixa cheia de cartas) Alô! Alô! (Desliga. A Velha joga as
cartas para o ar) Não se meta com estas cartas, Neguinha. Isto não são assuntos
que te interessam. (Começa a apanhar as cartas)
Velho - Me dá...me dá... (Finalmente ela entrega a carta ao Velho, que olha o
carimbo) O carimbo é de trasanteontem. Já sei o que está escrito! (Triunfante)
Velho - Arrebentam tudo. Vi um trator passar por cima da casa dos Peixoto!
(Barulho do trator) É uma coisa horrorosa. Dói ver destruir assim as coisas. As
coisas que...(Trator)
Velha - Ah! Já sei! Tive uma ideia. A gente bota tudo num engradado, bem
embrulhadinho, não estraga nada e levamos tudo conosco. (Pausa) Será que
passa pela porta?
Velha - Ah! Mas para sair, hum? Quando ela era toda verde, você se lembra?
Tinha ali um vidro que era bonito. Mas fazia vasar muita luz, então você mandou
botar tinta preta para a luz não entrar com tanta força. Depois, quebraram o vidro.
Você colocou outro vidro mais forte. E também mais caro, você se lembra! O
primeiro era cheio de florinhas pintadas. Não sei se de miosótis ou de
crisântemos. Eu não me lembro mais... (Como em segredo) Dizem que ele
passou por cima da casa dos Almeida também.
Velho - Eu vi.
Velha - Venho ouvindo muitos barulhos. Fico muito assustada. Muito mesmo,
mas não sabia que era barulho de acabar com a casa dos Almeida.
Velha - Uma vez, há muito tempo, quando comecei a coleção. (Pega a boneca)
Você deixou cair a bonequinha menor...vou embrulhar. (Embrulha a boneca com
carinho)
Velho - Mas nada se quebrou, não foi? (Ouve-se a voz da criada cantando na
cozinha)
Velho (Sai e volta com um embrulho) - Que sol horrível, hoje, Neguinha!
Velha (Espiando pela fresta) - E aquela poeira fedorenta que sai da casa dos
Peixoto?
Velho - Então, cuidado! Deixa bem fechada. Ontem a criada deixou aberta e o
sol ia queimando a coleção.
Velha (Suspira) - Eles querem todos acabar com nossas coisas. (Apanha um
objeto e começa a embrulhar) Não acho muito decente o governo despejar assim
um casal de velhos que nunca fez mal a ninguém.
Velha - Não combinamos levar tudo, Neguinho? (O Velho sai) Traz mais jornal,
Neguinho, que este aqui é pouco. (Terminado o embrulho que fazia, torna a
embrulhá-lo. Barulho do trator) 0 que será que as pessoas procuram tanto nas
estradas? Não sei para onde vão, e isso me deixa muito aflita. Às vezes sinto
até palpitações, só de pensar para onde vão as pessoas nessas estradas...
Velho (Que vinha chegando) - Você não deve se afligir à toa, Neguinha.
Velho (Sai e volta com algumas fotografias) - Como estão cheios de poeira, veja,
Neguinha, os álbuns!
Velho - Morreu. Que retrato bem tirado! (Apanha na estante uma máquina
fotográfica antiga) Com esta máquina aqui, lembra? (O Velho sobe na cadeira,
faz que vai bater uma foto. Há um segundo de imobilidade, enquanto a Velha
cobriu o rosto, rindo, atrás do álbum)
Velha - Embrulha bem ela, senão estraga a lente. (O Velho embrulha a máquina,
enquanto a Velha folheia o álbum. Subitamente, arranca uma foto do álbum e
joga ao chão) Você deixou isto aqui de propósito, só para me fazer maldade.
Velha - Agora importo. Importo muito. (Pega uma jarrinha) Ah, a jarrinha
vermelha! Vou embrulhar ela com papel azul e cordão branco! (O Velho volta
com um engradado, contendo pássaros)
Velha - Ora, eles estão muito bem assim. Tudo quietinho e quente. Ainda bem
que já foram empalhados, senão teriam muito medo do trator.
Velho - Que bobagem você está falando aí? Que trator? Fomos despejados,
mas temos os nossos direitos. Só sairemos daqui levando tudo o que nos
pertence e depois que tudo já estiver bem embrulhado. E só quando eu resolver.
Se resolver...
Velha - Sonhei que esse trator era mentira, invenção da empregada para tirar
nossa casa. Acho que ela quer a nossa casa.
Velho - Você sabe o que eu vou fazer? Vou embrulhar os papéis da casa. (Vai
à escrivaninha)
Velha - Mas ela quer assim mesmo. Ontem vi ela na cozinha conversando com
um homem...
Velha - Ela contava para ele do despejo e do trator, que já passou em cima da
casa do lado. Contou também da estrada.
Velha - Que a estrada é do governo e que vai passar por aqui. Depois ela riu.
Velho - Riu?
Velha - Muito!
Velho - Então, como é que você sabe que ela quer a nossa casa? Ela disse?
Velha - Não disse nada. Mas riu tanto que só pode ser.
Velho - É, é nossa.
Velha - Não disse nada. Mas ela, sempre rindo à toa, de inveja, pensou que não
tinha ninguém olhando, porque eu estava escondida atrás do guarda-comida,
então...ela tirou um pedaço de pão-de-ló e deu para ele comer.
Velho - E aí?
Velha - Aí eu apareci e perguntei a ela por que estava dando nosso pão-de-ló
para ele, e ela disse...disse assim mesmo: “É meu amigo, dona Neguinha, dei
um pedacinho de pão-de-ló a ele...
Velha - Não disse nada, eu não sabia o que dizer. O que é que eu tinha que
dizer, hein, Neguinho?
Velho - Você tinha que dizer que o pão-de-ló não era dela para estar distribuindo
assim a torto e a direito para os que aparecem. (O Velho sai)
Velha - Nunca sei o que dizer numa hora dessas. (O Velho vai trazendo
embrulhos de dentro do quarto, alguns maiores. A Velha começa a embrulhar
uma árvore de Natal artificial, enquanto cantarola “Noite Feliz”). Não sei porque
querem fazer essa estrada. Tudo já está tão parado, ordenado e em paz como
está!
(Trator)
Velho - Mania...
Velha - Ou então podiam abrir noutro sítio, e não derrubar a nossa casa. O
mundo não é grande, Neguinho? Por que não abrem as estradas no mundo
desses comunistas que andam por aí querendo tirar as casas dos outros? (A
Criada começa a cantar) Se a gente não guarda os bolos e o pão-de-ló a sete
chaves, ela abusa sempre. (O Velho ri) Você está rindo, Neguinho?
Velha - E o pior é que estragaram meu xale, você ri porque o xale não era seu.
Velha - Se eu tivesse deixado os bolinhos na cozinha, ela teria dado tudo para
esse homem, igualzinho como o pão-de-ló.
Velha - Não quero mais essa empregada. (Ele não responde) Já disse que não
quero mais essa empregada...
Velha - É por isso que tinha tão pouco pão-de-ló na mesa, antes do café. Só
pude ganhar um pedacinho. Você percebeu?
Velho - Você pensa que eu sou surdo? (Empurra a Velha) Você tem mania de
pensar que sou surdo. Já ouvi. (A Velha começa a chorar. O Velho atende). Sim.
Por que insistem? Não li nada não, já disse. Ameaças, ameaças, ameaças. Onde
é que nós estamos? Quero saber se pago imposto para ser protegido ou para
ser despejado? Já disse que não aceito, pronto. (Desliga. Depois, procura uma
carta na escrivaninha, fita o envelope)
Velho (Rasgando a carta) - Pensam que me metem medo com palavras... (Pega
um livro preto e o folheia) Preciso ensinar essa gente a cumprir as leis. Posso
provar a eles que isso é violação de domicílio. Uma agressão contra o cidadão.
Não sei mais onde é isso... (Impaciente) Neguinha, embrulha o meu código civil,
junto com os outros livros. Não, é melhor você colocar os livros de direito num
embrulho e os outros num outro. É!
Velho - Não disse para pôr os livros de direito num embrulho e os outros num
outro?
Velha - Não precisa ficar tão zangado. Eu só queria saber, porque a Bíblia
também é preta e eu ia pôr os pretos todos num embrulho, os vermelhos num
outro...
Velha - E a culpa é minha, é? Não finja que não está ouvindo. Sei muito bem
que você só é surdo quando quer. Você sabe muito bem que eu não gosto de
comprar nada naquela loja.
Velho - Pode.
Velha (Da porta, vendo a Criada) - Embrulho o remédio das traças com os outros
vidrinhos, Neguinho?
Velho - Pode embrulhar, mas cuidado com as rolhas, senão derrama tudo.
Velha - As rolhas! (A Velha sai. A Criada tenta ligar de novo. Fica impaciente. O
Velho continua a fazer os embrulhos. A Velha volta da cozinha, fita a Criada) -
Não sei onde está a caixinha de rolhas.
Os dois - Podre!?
Criada (Ao telefone) - Alô! De onde fala? Quer fazer o favor de chamar o Alfredo
aí ao lado...Botei fora também aquela outra caixinha de cacarecos. A gente não
foi despejado? Boa hora para fazer uma faxina nesta casa. (Os velhos estão
como que fascinados com a audácia da Criada) Alfredo? Não está? Pois diga
àquele safado que eu liguei para ele, e que já sei de tudo do negócio dele com
aquela puta. Tchau! (Desliga e sai)
Velha - Ela não tinha nada que botar a caixa de rolhas no lixo. Agora não sei
como vou tapar os vidrinhos.
Velho - Não fique nervosa, Neguinha. Tenho outras rolhas guardadas aqui. (Tira
um embrulho de rolhas)
Velha - Você pensa em tudo, Neguinho. Agora todos os vidrinhos vão ter rolhas
novas.
Criada (Chegando com uma caixa) - Isso também vou botar no lixo, patrão, não
serve mais.
Velho - Você...você...você não pode botar nada no lixo sem pedir licença, está
ouvindo? Nada disso te pertence. (Toma a caixa da criada)
Criada - Deus me livre de fazer coleção de porcaria. Não tô aqui para discutir.
Se o senhor não quer que ponha no lixo, então tira da cozinha, porque trabalhar
assim não dá pé! (Sai)
Velha - Não disse, Neguinho, que ela não serve? Não quer cuidar das nossas
coisas e ainda por cima fica espalhando por aí a história do trator e da casa dos
Peixoto. E que o trator passou por cima...e dizendo que a nossa casa também...
(O Velho se enfurece e bate com a caixa na mesa, espalhando as rolhas no
chão. Aflita, a Velha começa a catá-las) Se você não tivesse guardado as rolhas
novas, não teríamos uma só rolha para os vidrinhos.
Velho - Neguinha, vou falar com você pela última vez. Não toque mais nesse
assunto de trator. Isso me põe nervoso.
Velho - Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe.
Velha - Também não sei e tenho raiva de quem sabe. (O Velho sai) Acho que a
criada sabe para onde vai a estrada. E o homem também sabe. (A Velha começa
a arrumar os cacarecos que a Criada deixou. O Velho volta arrastando um
enorme embrulho, que continua a empilhar junto à porta de entrada).
Velho - Pensam que têm direitos sobre nós. Ninguém entra nesta casa. (Traz
outro embrulho) A propriedade é minha. Aqui estão todos os papéis. Pensam
que sou covarde! Que tenho medo de cartinhas ameaçadoras. Se não acreditam
que a casa me pertence, aqui estão todos os papéis. (Agredindo o telefone) Claro
que nesta hora ninguém vem em minha defesa. Aqui estão todos os papéis.
(Mostra à Velha, que não entende nada e olha os papéis com o olhar vazio)
Ninguém quer se meter com a vida dos outros. Incomoda, eu sei... (Voltando à
Velha, que segura os papéis, medrosa) Aqui está. A certidão lavrada no 23º
Ofício de Notas, Tabelião Avelar, em 12 de outubro de 1923. O papel do Registro
de Imóveis com a escritura definitiva. A promessa de venda! Cláusula
irrevogável! Olhe! (Depois toma os papéis da Velha, vai até a janela e começa a
berrar) Ninguém quer se meter com a vida dos outros. Aporrinha, eu sei. Todos
estão vendo que querem destruir nossa casa. (Barulho de trator) O trator está aí
para provar, olhem! Mas quem quer se meter? O que adiantam tabeliães, firmas
reconhecidas, certidões...todos sabem que vou ser despejado e ninguém quer
tomar partido. Por quê? Porque também têm medo de serem despejados. Fazem
este barulho todo para celebrarem o meu infortúnio e verem o trator passar por
cima de nossas coisas. De nossos embrulhos. Estão loucos de vontade de ver
tudo se desmoronar em nossas cabeças. Mas se querem ver o nosso infortúnio
é bom irem procurar outro lugar para infernar a vida do alheio, porque aqui nada
acontecerá. Neguinha, traz outros embrulhos para empilharmos na janela
também. Eles são capazes de querer entrar pela janela. (A Velha sai. Barulho de
trator) E digo mais uma coisa: tratem de ir logo fazendo seus embrulhinhos
também...
Voz da criada - Porcaria de pia entupida, que não vale mais nada!
Velho (Furioso) - Jogou fora as rolhas e disse que jogou porque estavam podres.
O que é que ela sabe disso? (A Velha entra com enormes embrulhos, que
entrega ao Velho, que continua a empilhá-los junto à janela. Depois o Velho se
senta, furioso) Como pode se permitir de jogar fora coisas que são minhas.
Minhas. Recolhidas numa vida toda? Estas coisas me pertencem! Me
pertencem!
Velho (Observando a estampa) - Já está muito rasgada. Não dá mais para pôr
no quadro.
Velha - Ah! Então eu vou embrulhar direitinho, junto com as outras estampas.
(Sai e torna a voltar) Boto papel de seda em cada estampa?
Velha - Estou com tanta raiva do Menino Jesus...acho que não vou embrulhar
ele não.
Velha - Eu disse a ele, quando embarcou, para ele levar tudo que era dele. Não
tinha nada que deixar aqui o Menino Jesus.
Velha - Longe da mãe dele e do pai dele. (Entra no quarto) A mãe dele e o pai
dele eu vou embrulhar em papel de seda com cordão dourado.
Velho - E ele?
Velha - Eu esqueço quase tudo, você sabe disso. Sabe? Esqueci de regar as
plantinhas e elas morreram todas.
Velho - Morreram?
Velho - Agora quero ver se eles podem soltar palavreados em cima de mim.
(Depois de muito rir e gritar, olha com desprezo o aparelho) Não nos amolam
mais.
Velha (Pegando o fone) - Alô! Alô! Ficou mudo, mudinho. Sempre disse a você
que isso aí só ia nos trazer aborrecimentos. E trouxe mesmo.
Velho (Segurando o fone, dando tapas e fazendo caretas) - Vamos, vamos! Grite
agora, se tem força, que vai nos despejar! Conta essa história de estradas
passando por cima de minha casa, de direitos do governo! Direitos! Quem são
vocês? Quem são vocês contra mim? (Bate no telefone) Viu como é fácil? É só
não permitir que ninguém se meta com a sua vida. (Enrola o fio no pescoço) É
só arrancar o fio. (Torna a arrancar o fio com força e começa a puxar. Mas o fio
tem mais de 20 metros e o Velho vai se cansando de tanto puxar. A Velha vem
ajudar e ambos continuam a puxar. Finalmente, a Velha se cansa e dorme em
sua cadeirinha, sempre com o fio na mão. O Velho continua, agora mais
cansado, e já sentado também em sua cadeira. Finalmente, na ponta do fio
aparece um bebê ligado a ele como a um cordão umbilical. O Velho levanta o
bebê, tira uma tesoura da gaveta e corta o fio. Depois embrulha calmamente o
bebê e volta ao telefone. Começa a falar como se estivesse livre das velhas
ameaças) Alô, parou de xingar? Então o senhor não consegue falar mais?
Responda agora se pode. (Faz caretas, dá tapas no telefone) Me explique
direitinho agora porque querem adiar minhas férias. (A Velha acorda e pega a
ponta do fio) Ah! Não responde? Necessidade de serviço. Que serviço? E os
meus quinquênios? Não saíram? Ah, agora está caladinho, hein, seu covarde!
Seu covarde! E o navio? Vai me dizer que ele vai mesmo partir às 3 horas?
(Nesse momento ouve-se um apito de navio. A Velha, que estava fingindo ouvir
tudo na outra extremidade do fio, começa a puxar o Velho, que está enrolado
pelo pescoço no fio. Há quase um enforcamento, enquanto se ouvem os apitos
do navio. A Velha, num acesso de raiva, começa a puxar até que o Velho, quase
estrangulado, consegue falar) Neguinha!
Velha (Como que acordando) - Eu não quero que isto continue a falar, já disse
que não quero. Isso não pode mais gritar. (Pega o telefone e começa a embrulhá-
lo. Quando já está passando o barbante, ouve-se de novo o apito. Assustada,
ela aperta o barbante até cessar completamente o som do navio. O Velho
descobre um chapéu velho na sua escrivaninha. Coloca na cabeça. Depois tira
um espelho e começa a mirar-se nele)
Criada - O fogareiro? (Pausa) Mas o gás, o senhor vai reclamar, não vai?
Velha - Ela é bem desaforada. Parece que nunca viu um fogareiro. (Pausa) Por
que será que acabou o gás?
Velho - Governo.
Velha - Sabe o que eu estava pensando, Neguinho?
Velha - Se os passarinhos não fossem empalhados, eles iam sentir muita falta
de ar dentro desse engradado.
Velha - Ainda bem, senão eles iam sentir muita falta de ar.
Passarinho empalhado tem vantagens: não suja a gaiola, não tem vontade de
voar pelas árvores. Porque passarinho foi feito, primeiro, para voar nas árvores,
nas nuvens, nos navios. (Sons de pássaros e de navio apitando) Só depois é
que ele resolveu ser passarinho de gaiola. (Enquanto ela fala, descansa a mão
sobre a mesa e o Velho, distraidamente, começa a embrulhar seu braço. A
Velha, ao ver que ele está embrulhando sua mão, a princípio fica muito
espantada, mas depois dá um risinho) Está me fazendo cosquinha... (A Velha
vai se deixando embrulhar até o braço. O Velho, cada vez mais animado,
continua embrulhando a Velha, e chega ao rosto. A Velha ri, como se isso fosse
uma brincadeira) Quero só ver o barbante que você vai escolher para mim...
Velha - Não ligo. Só quero que você não aperte demais, está bem? Ah, isso eu
não gosto.
Criada (De fora) - Porcaria de fogareiro enferrujado que não dá mais nada!
Velha - Nunca fui muito com essa gente do governo. Lembra do dia em que eles
não deixaram você trabalhar mais?
Velho - Me aposentaram.
Velha - Eles podem, sem mais nem menos, aposentar assim as pessoas?
Velha - Por isso é que eu não vou muito com essa gente do governo.
Velho - Disse, mas não precisa ficar repetindo tudo o que eu disse. E tira esse
papel da cara que você está parecendo uma palhaça. (Rindo)
Velho - Tira esse papel da cara, que você está parecendo uma palhaça! (Sai)
Velha - Foi você mesmo que fez eu ficar com esta cara de palhaça. (Chora)
Velho (Traz outro embrulho) - Se a gente conseguir pôr todos os embrulhos aqui
na porta...
Velha - O despejo não pode entrar! Você sempre tem ideias ótimas, hein,
Neguinho?
Velha - E também você tem mais força porque é homem. (Ouve-se um bate-
boca vindo da cozinha. É a Criada com o Homem. Os velhos ouvem, atentos)
Criada - Digo e torno a dizer que você é um safado. Pensa que me faz de boba,
é?
Homem - Não enche o saco! Você não tinha nada que me mandar recado pelo
Alcides. Você sabe muito bem que ele vive me gozando. Tá ouvindo?
Homem - Deixa de frescura, que vim aqui foi para pedir satisfação e não quero
ouvir desaforo de mulher à toa! (A Criada entra, empurrada pelo Homem e quase
cai sobre os embrulhos)
Criada - Olha aqui, seu filho da mãe, ou você me deixa em paz, ou ponho a boca
no mundo! (O homem a empurra novamente e a Criada se esconde atrás dos
embrulhos. Ele dá um pontapé em vários embrulhos, que se espalham)
Velho - Oh!
Velha - Este é o mesmo homem do pão-de-ló.
Homem - Puta de uma figa! (Dá-lhe um puxão e se agarra com ela, num beijo
demorado. Ela se debate, mas finalmente cede. Enquanto eles se beijam, ouve-
se um enorme desmoronamento. Mas os velhos só olham o casal)
Velha - Espia, espia Neguinho, senão ela é capaz de dar a ele todo o nosso
almoço. Não fico mais sem sobremesa hoje, já disse.
(Espiando)
Velho - O gás acabou, ela ainda não cozinhou nada, nem vai cozinhar.
Velha - Já disse a você que não quero mais essa criada. Ou então você compra
um guarda-comida novo...
Velha - Ela deve estar contando a ele sobre a estrada nova. Fica espiando bem,
Neguinho, senão ela é capaz de dar todos os nossos mantimentos a ele.
Velho - Vou mandar embora essa criada. (De novo chegam gargalhadas da
cozinha. Os velhos se fitam em silêncio)
Velha - Ela tirou todo o nosso pão-de-ló, Neguinho, manda ela embora. Gosto
tanto de pão-de-ló! (Ao espiar pela porta, a Velha deixa cair um embrulhinho,
que se quebra. A Criada, atraída pelo barulho, vem até a porta e fica olhando. O
Homem, por trás do ombro dela. Os velhos ficam envergonhados de estarem
espiando) O embrulho caiu e quebrou...
Criada - Vou.
Velho (Apanhando os cacos) - A gente só vai aproveitar o papel, para fazer outro
embrulho.
Velho - Para de falar nessa estrada, já disse! Não quero ninguém nesta casa
falando mais nessa estrada! (A Velha chora) E para de chorar!
Velha - E dava o nosso pão-de-ló para ele. E falava coisas que ninguém
entendia. Eu tenho muita pena de ver jarrinhas tão bonitinhas se quebrarem.
Principalmente as que têm florezinhas pintadas à mão. Neguinho, estou com um
pouquinho de fome. Seria bom a gente almoçar.
Velho - Seria.
Velha - Sabe, Neguinho, deixei cair o embrulho da jarrinha por causa dela. Foi
ela a culpada me assustando daquele jeito. Era uma criada má.
Velho - Era.
Velho - Ria.
Velha - Na certa ia também comer o nosso almoço. Ainda bem que foram
embora.
Velho - Quem falou em despejo? Já disse que não quero ouvir mais você falar
nesse assunto. Não quero, está ouvindo?
Velha - Não falo mais...não falo mais...não falo mais... (Começa a chorar) Estou
me sentindo muito mal. E também, com uma fome esquisita...
Velho - Oh, Neguinha, sente-se. Você está se abaixando demais, isso é ruim
para o seu coração. Fica aqui neste banquinho que vou buscar fitinhas de todas
as cores para você embrulhar os bibelôs. (Senta a Velha no meio da cena, perto
do monte de embrulhos e sai. A Velha começa a embrulhar os bibelôs. O Velho
volta com fitinhas) Verdes, azuis, amarelas...qual você prefere?
2º Maquinista - Mais para a direita, mais para a direita etc. etc. (Os dois vão
tirando o cenário, enquanto se avista o fundo do palco, com escadas etc. Tiram
algum material de cena e, junto, carregam também os velhos, estáticos, em suas
cadeiras, como se fossem objetos de cena)