8 - Escrito Com Sangue Do Meu Próprio Coração - Diana Gabaldon
8 - Escrito Com Sangue Do Meu Próprio Coração - Diana Gabaldon
8 - Escrito Com Sangue Do Meu Próprio Coração - Diana Gabaldon
Próprio Coração
Diana Gabaldon
A tradução deste livro foi feita meramente com o intuito de divulgação da obra, e não possui fins lucrativos.
PRÓLOGO
01 – UM QUINTAL DE PEDRAS
16 de junho de 1778
A floresta entre Filadélfia e Valey Forge
Ian Murray estava em pé com uma pedra na mão, olhando para o local que ele escolhera. A
pequena clareira, fora do caminho, localizada entre uma dispersão de grandes pedregulhos e
líquens, sob a sombra de pinheiros e ao pé de um grande cedro vermelho; um lugar aonde
nenhum transeunte ocasional iria, mas que não era inacessível. Queria trazê-los para cá — a
família.
Fergus, para começar. Talvez apenas o próprio Fergus. Mamãe criara Fergus desde que
ele tinha dez anos, e antes disso ele não tivera mãe. Fergus conhecera sua mãe há mais tempo
do que o próprio Ian, e a amava tanto quanto ele. Talvez mais, ele pensou, seu luto agravado
pelo sentimento de culpa. Fergus ficara com ela em Lallybroch, ajudara a cuidar dela e do lugar,
ele não ficara. Engoliu em seco e caminhou rumo à pequena clareira, posicionando sua pedra
no meio, então recuou para olhar.
Mesmo depois de fazer isso, ele se viu sacudindo a cabeça. Não, tinham que ser dois
marcos. Sua mãe e seu tio Jamie eram irmãos, e a família poderia pranteá-los juntos ali — mas
havia outros que ele podia trazer, talvez, para lembrar e prestar suas homenagens. E eram as
pessoas que tinham conhecido e amado Jamie Fraser, mas não tinham conhecido Jenny Murray
de dentro de um buraco no...
A imagem de sua mãe dentro de um buraco no chão o espetou como um garfo, seguida da
lembrança de que ela não estava, no fim das contas, em uma cova, o que aumentou a sensação
de ser cutucado. Ele realmente não podia suportar a visão deles se afogando, talvez agarrados
um ao outro, lutando para permanecerem...
— A Dhia! — Disse violentamente, e deixou que a pedra caísse, virando-se para encontrar
mais. Ele já vira pessoas se afogarem.
Lágrimas corriam por seu rosto com o suor do dia de verão, ele não se importava, só
parando de vez em quando para limpar o nariz na manga. Amarrou um lenço enrolado em volta
de sua cabeça para manter o cabelo e o suor fora de seus olhos; estava encharcado antes que
adicionasse mais de vinte pedras para cada um dos monumentos. Ele e seus irmãos haviam
construído um belo marco para o seu pai, no alto da pedra esculpida que levava o seu nome, —
todos os seus nomes, não importando quantos fossem — no local dos sepultamentos em
Lallybroch. E então mais tarde, no funeral, os membros da família, seguidos pelos inquilinos e
servos, vieram um por um para adicionar uma pedra pelo peso da lembrança.
Fergus, então. Ou... Não, o que ele estava pensando? Tia Claire devia ser a primeira que
levaria até ali. Ela não era escocesa, mas sabia bem o que um monte de pedras significava, e
talvez se consolasse um pouco, ao ver as de tio Jamie. Sim, certo. Tia Claire, em seguida Fergus.
Tio Jamie era pai adotivo de Fergus, ele tinha o direito. E então talvez Marsali e as crianças. Mas
talvez Germain, fosse velho o suficiente para vir com Fergus? Estava com quase dez, perto o
suficiente de ser reconhecido como um homem, de ser tratado como um homem. E tio Jamie era
seu avô, era adequado.
Afastou-se de novo e enxugou o rosto, respirando pesadamente. Insetos gemiam e
zumbiam por seus ouvidos e pairavam sobre ele, querendo seu sangue, mas ele despiu-se e
besuntou-se com gordura de urso e hortelã à moda dos Mohawks; eles não o tocaram.
— Zele por eles, Espírito do Cedro Vermelho ― ele disse suavemente em Mohawk, olhando
para os galhos perfumados da árvore. ― Guarde suas almas e mantenha sua presença aqui,
fresca como seus ramos.
Ele se benzeu e se inclinou para cavar ao redor do molde macio de folhas. Um pouco mais
de pedras, pensou. Para o caso de que fossem espalhadas por algum animal que passasse.
Espalhadas como seus pensamentos, que vagavam inquietos para lá e para cá entre os rostos
de sua família, o povo de Ridge — Deus, ele poderia alguma vez voltar para lá? Brianna... Oh,
Jesus, Brianna...
Ele mordeu o lábio e sentiu o sabor do sal, lambeu-o e seguiu em frente, forrageando. Ela
estava segura com Roger Mac e as crianças. Mas Jesus, ele poderia ter aproveitado os seus
conselhos — ainda mais os de Roger Mac.
Quem mais havia permanecido para que ele consultasse, caso precisasse de ajuda para
tomar conta de todos?
O pensamento em Rachel veio a ele, e o aperto em seu peito diminuiu um pouco. Sim, se
ele tivesse Rachel... ela era mais nova que ele, não tinha mais do que dezenove anos, e sendo
uma Quaker, tinha noções muito estranhas de como as coisas deveriam ser, mas se a tivesse, ele
teria uma rocha sólida debaixo de seus pés. Ele esperava poder tê-la, mas ainda havia coisas
que devia dizer a ela, e o pensamento dessa conversa fez o aperto no peito voltar.
A imagem de sua prima Brianna voltou, também, e permaneceu em sua mente: alta, de
nariz comprido e de ossos fortes como o pai... e com ela veio à imagem de seu outro primo, o
meio irmão de Bree. Santo Deus, William. E o que deveria fazer com William? Duvidava que o
homem soubesse a verdade, que soubesse que era filho de Jamie Fraser — seria
responsabilidade de Ian contar? Trazê-lo aqui e explicar o que ele havia perdido?
Deve ter gemido com o pensamento, por que seu cão Rollo levantou a enorme cabeça e
olhou para ele com preocupação.
— Não, não sei disso, também — Ian disse a ele. — Vamos esperar, sim? — Rollo colocou
a cabeça para trás de suas patas, estremeceu seu couro peludo contra as moscas e relaxou em
paz.
Ian trabalhou um pouco mais, e deixou os pensamentos escorrerem com o seu suor e suas
lágrimas. Ele finalmente parou quando o sol poente tocou o topo das pedras, sentindo-se
cansado, mas em paz. As pedras subiam à altura do joelho, lado a lado, pequenas, mas sólidas.
Ele parou um pouco, não pensando mais, apenas ouvindo a agitação das pequenas aves na
grama e a respiração do vento entre as árvores. Então ele suspirou profundamente, agachou e
tocou um dos marcos.
— Tha gaol agam oirbh, a Mhàthair — ele disse suavemente. Meu amor está em você, mãe.
Fechou os olhos e pousou a mão arranhada na outra pilha de pedras. O chão de terra em
sua pele fez com que seus dedos parecessem estranhos, como se talvez ele pudesse atravessar
a terra e tocar o que ele precisava.
Permaneceu quieto, respirando, depois abriu os olhos.
— Ajude-me com isso, tio Jamie — disse. — Eu não acho que posso lidar com tudo sozinho.
02 – O BASTARDO SUJO
William Ransom, nono conde de Ellesmere, Visconde de Ashness, Barão de Derwent, abriu
caminho aos empurrões em meio à multidão na Market Street, obviamente ignorando as
queixas daqueles que se recuperavam do impacto.
Ele não sabia para onde estava indo, ou o que deveria fazer quando chegasse lá. Tudo o
que sabia era que explodiria se ficasse parado.
Sua cabeça latejava como um furúnculo inflamado. Tudo latejava. Sua mão —
provavelmente quebrara alguma coisa, mas não se importava. Seu coração batia dolorido
dentro de seu peito. Seu pé, pelo amor de Deus — o quê? Ele chutara alguma coisa? Atacou
violentamente um paralelepípedo solto, e o mandou vertiginosamente por uma multidão de
gansos, que grasnaram furiosos e saltaram em sua direção, assobiando e batendo em suas
canelas com suas asas.
Penas e merda de ganso voavam longe, e a multidão dispersou em todas as direções.
— Bastardo! — Gritou a menina que cuidava dos gansos, e partiu para cima dele com seu
cajado, dando-lhe uma astuta pancada na orelha. — O Diabo que te carregue bastardo dreckiger!
Este sentimento foi ecoado por uma série de outras vozes iradas, e ele virou em um beco,
perseguido por gritos e buzinas de agitação.
Ele esfregou a orelha latejando, cambaleando por entre as construções pelas quais
passava, alheio a tudo, a não ser à única palavra pulsando cada vez mais alta em sua cabeça.
Bastardo.
— Bastardo! — Disse em voz alta, e gritou: — Bastardo, bastardo, bastardo! — A plenos
pulmões, batendo na parede de tijolos ao lado dele com o punho fechado.
— Quem é bastardo? — Disse uma voz curiosa por trás dele. Ele virou para ver uma jovem
mulher olhando para ele com algum interesse. Seus olhos moveram-se lentamente por sua
estrutura, tomando nota do peito arfante, das manchas de sangue na lapela do casaco de seu
uniforme e das manchas verdes da merda de ganso em suas calças, chegando aos sapatos de
fivela de prata, e voltaram ao seu rosto com mais interesse.
— Eu sou — disse rouco e amargo.
— Ah, é mesmo? — Ela deixou o abrigo da soleira em que estava apoiada, e atravessou o
beco para ficar bem na frente dele.
Era alta e magra, e tinha um belíssimo par de seios jovens e empinados — que estavam
claramente visíveis sob a fina musselina de sua roupa, porque, mesmo com uma saia de seda,
ela não usava anáguas. Não possuía uma touca também — seu cabelo caía solto sobre os
ombros. Uma prostituta.
— Eu mesma sou meio bastarda — disse e tocou de leve no braço. — De que tipo é você?
Um travesso? Um malvado?
— Um desgraçado — disse, e fez uma careta quando ela riu. Ela viu a carranca, mas não
recuou.
— Entre —, ela disse, e pegou sua mão. — Parece estar precisando de uma bebida. — Ele
a viu olhar para os nós de seus dedos, dilacerados e sangrando, e ela capturou o lábio inferior
com seus pequenos dentes brancos. No entanto, ela não parecia ter medo, e ele se viu tragado
sem protestos, para dentro da entrada sombria atrás dela.
O que isso importava?, pensou, com um cansaço súbito selvagem. O que qualquer coisa
importava?
03 – E AS MULHERES, COMO DE COSTUME, JUNTAM OS PEDAÇOS.
William deixara a casa como um trovão e o lugar parecia como tivesse sido atingido por um
raio. Eu certamente me sentia como a sobrevivente de uma enorme tempestade elétrica;
cabelos e terminações nervosas em riste, movendo-se em agitação.
Jenny Murray entrou na casa na rabeira da saída de William, e mesmo que a visão dela
fosse um choque menor de qualquer um dos outros até agora, ainda me deixava sem palavras.
Arregalei os olhos para minha antiga cunhada — embora viesse à minha mente que ela ainda
era minha cunhada... porque Jamie estava vivo. Vivo.
Ele estivera em meus braços há não mais de dez minutos atrás, e a memória de seu toque
faiscava por mim como luzes em uma garrafa. Estava vagamente consciente de estar sorrindo
como uma louca, apesar da destruição em massa, das cenas horríveis, da angústia de William
— se é que se poderia chamar tamanha explosão como aquela de angústia — o perigo para
Jamie, e um assombro fraco, com o que Jenny ou a Sra. Figg, a cozinheira de John e dona da casa,
poderiam estar prestes a dizer.
Sra. Figg era suavemente esférica, preta reluzente, e inclinada a deslizar silenciosamente
por trás dos outros, como um rolo compressor.
— O que é isso? — Ela rosnou, manifestando-se de repente por trás de Jenny.
— Santa Mãe de Deus! — Jenny girou, com olhos redondos e a mão apertada contra o
peito. — Quem em nome de Deus é você?
— Esta é a Sra. Figg — eu disse, sentindo uma vontade surreal de rir, apesar (ou talvez
por causa) dos recentes eventos. — Ela é a cozinheira de Lord John Grey. E, Sra. Figg, esta é a
senhora Murray. Minha, hum... minha...
— Sua cunhada — Jenny disse com firmeza. Ela levantou uma sobrancelha preta. — Se
você ainda me quiser? — Seu olhar era direto e aberto, e a vontade de rir mudou abruptamente
para um desejo igualmente forte de chorar.
De todas as fontes de socorro improváveis que eu poderia ter imaginado... Eu respirei
fundo e estiquei minha mão. — Vou querer.
Nós não tínhamos nos despedido em bons termos na Escócia, mas eu a tinha amado muito,
um dia, e não estava disposta a perder a oportunidade de consertar as coisas.
Seus pequenos dedos entrelaçaram-se com os meus, e apertaram firmemente, e simples
assim, tudo estava feito. Sem necessidade de desculpas ou pedidos de perdão. Ela nunca teve
que usar a máscara que Jamie usava. O que ela pensava e sentia estava lá em seus olhos, aqueles
olhos azuis e rasgados como os de um gato, que ela compartilhava com seu irmão. Ela agora
conhecia a verdade do que eu era, e ela sabia que eu amava — que sempre amara — seu irmão
com todo meu coração e alma —, apesar das complicações menores de estar atualmente casada
com outra pessoa.
Ela soltou um suspiro, fechando os olhos por um instante, depois os abriu e sorriu para
mim, a boca tremendo só um pouco.
— Bem, não poderia ser melhor — disse a Sra. Figg, imediatamente. Ela estreitou os olhos
e girou suavemente em seu eixo, para ter um panorama da destruição. O corrimão no topo da
escada tinha sido arrancado e estava quebrado, as paredes estavam rachadas, e manchas de
sangue marcavam o caminho da descida de William. Os vidros quebrados do candelabro se
espalhavam pelo chão, brilhando festivamente na luz que se derramava pela porta da frente
aberta, pendurada meio bêbada em uma dobradiça.
— Brinde de Merde — Murmurou a Sra. Figg. Ela virou-se abruptamente para mim, seus
pequenos olhos como groselhas negras ainda estreitando-se. — Onde está sua senhoria?
— Ah — eu disse. Isso ia ser um pouco complicado, eu percebi. Embora desaprovasse
profundamente a maioria das pessoas, a Sra. Figg era dedicada a John. Ela não ficaria nada
satisfeita ao ouvir que ele fora sequestrado por...
— A propósito, onde está meu irmão? — Jenny perguntou, olhando ao redor como se
esperasse que Jamie de repente aparecesse debaixo do sofá.
— Oh —, eu disse. — Hum. Bem... — Possivelmente pior do que complicado. Porque...
— E onde está o meu querido William? — A Sra. Figg exigiu, farejando o ar. — Ele esteve
aqui, sinto o cheiro daquela colônia fedorenta que ele coloca em sua roupa. — Ela cutucou um
pedaço de gesso descolado em desaprovação com a biqueira do sapato.
Eu respirei longa e profundamente, e tentei assumir o controle sobre o que restava da
minha sanidade.
— Sra. Figg — Eu disse —, talvez a senhora pudesse ser tão gentil para fazer para todas
nós uma xícara de chá?
Sentamos na sala, enquanto a Sra. Figg ia e vinha da cozinha, mantendo um olho em seu guisado
de tartaruga de água doce.
— Você não quer queimar a tartaruga, não, você não quer — ela nos disse severamente,
posicionando o bule de chá em seu acolchoado amarelo quando voltou. — Não com o tanto de
xerez que sua senhoria gosta que se coloque nisso. Quase uma garrafa inteira... É um terrível
desperdício de bom licor, isso sim.
Minhas entranhas prontamente deram voltas. Sopa de tartaruga — com muito xerez —
tinha certas associações fortes e particulares para mim, sendo estas relacionadas com Jamie,
delírio febril, e a maneira em que a ondulação de um navio auxiliava na relação sexual.
Uma contemplação que, no mínimo, não ajudaria na discussão iminente. Eu esfreguei um
dedo entre minhas sobrancelhas, na esperança de dissipar o zumbido da nuvem de confusão se
formando ali. O ar da casa ainda parecia elétrico.
— Por falar em xerez — eu disse. — Ou qualquer outro tipo de fortalecedor de espíritos,
poderia ser que os ache convenientes, Sra. Figg...
Ela me olhou pensativa, assentiu, e pegou a garrafa no aparador.
— Conhaque é mais forte — disse, e o colocou à minha frente.
Jenny olhou para mim com a mesma preocupação, e estendendo a mão, derramou uma
dose de bom tamanho do conhaque no meu copo, em seguida, uma similar em seu próprio.
— Apenas para garantir — disse, levantando uma sobrancelha, e bebemos por alguns
momentos.
Achei que deveria ter algo mais forte do que conhaque dentro do chá para lidar com o
efeito dos acontecimentos recentes nos meus nervos — láudano, digamos, ou uma grande dose
de uísque escocês, — mas inegavelmente o chá ajudava, quente e aromático, estabelecendo um
suave calor entre minhas amídalas.
— Bem, então. Estamos animadas, não estamos? — Jenny pousou o próprio copo e olhou
em expectativa.
— É um começo. — Respirei fundo e dei um resumo dos acontecimentos da manhã.
Os olhos de Jenny eram perturbadoramente como os de Jamie. Ela piscou para mim uma
vez, em seguida, duas vezes, e balançou a cabeça como que para limpá-la, aceitando o que eu
havia acabado de dizer a ela.
— Então Jamie foi embora com seu Lord John, e o exército britânico está atrás deles, o
rapaz jovem que eu encontrei na varanda soltando vapor pelas orelhas é o filho de Jamie... Bem,
é claro que ele é; um homem cego poderia vê-lo e os soldados da cidade verão. É isso, então?
— Ele não é exatamente o meu Lord John — eu disse. — Mas, sim, essa é essencialmente
a situação. Presumo que Jamie contou sobre William, então?
— Sim, ele contou. — Ela sorriu para mim por cima da borda de sua xícara de chá. — Estou
tão feliz por ele. Mas o que está incomodando o rapaz, então? Ele parecia estar a caminho de
caçar um urso.
— O que disse? — A voz da Sra. Figg cortou de forma abrupta. Ela baixou a bandeja que
acabara de trazer, a jarra de prata com leite e o pote de açúcar chacoalharam como castanholas.
— William é filho de quem?
Tomei um gole fortificante de chá. A Sra. Figg sabia que eu fora casada — e teoricamente
era viúva — de um James Fraser. Mas isso era tudo que ela sabia.
— Bem — eu disse, e fiz uma pausa para limpar a minha garganta. — O cavalheiro, alto
com o cabelo vermelho que estava bem aqui, você o viu?
— Vi. — A Sra. Figg me olhou de forma aguçada.
— Deu uma boa olhada nele?
— Não prestei muita atenção ao seu rosto quando ele veio até a porta e perguntou onde
você estava, mas eu vi sua parte traseira bastante bem, quando ele me empurrou e correu até
as escadas.
— Possivelmente a semelhança é menos acentuada a partir desse ângulo. ― Tomei outro
gole de chá. — Hum... aquele cavalheiro é James Fraser, meu... er... meu... — “Primeiro marido”
não era muito correto, e nem meu “último marido”, ou mesmo, infelizmente, o “marido mais
recente”. Eu me conformei com a alternativa mais simples. — Meu marido. E o... pai de William.
A boca da Sra. Figg se abriu, silenciosa por um instante. Ela apoiou-se lentamente e sentou
em um pufe bordado com um suave phumph.
— William sabe disso? — ela perguntou, depois de um momento de contemplação.
— Agora, sabe — eu disse com um breve gesto em direção à devastação na escada,
claramente visível através da porta da sala onde estávamos sentadas.
— Merde... Quero dizer, Cordeiro Santo de Deus nos preserve. — O segundo marido da Sra.
Figg era um pregador metodista, e ela se esforçava para dar crédito a ele, mas seu primeiro
marido fora um jogador francês. Seus olhos fixos em mim como a mira de uma arma. — Você é
mãe dele?
Engasguei com meu chá.
— Não — eu disse, limpando o meu queixo com um guardanapo de linho. — Isso não é
assim, tão complicado.
Na verdade, era mais complicado, mas eu não explicaria como Willie nasceu, nem para
Sra. Figg e nem para Jenny. Jamie tinha que ter dito a Jenny quem era a mãe de William, mas eu
duvidava que ele dissesse à sua irmã que a mãe de William, Geneva Dunsany, o forçara à sua
cama, ameaçando a família de Jenny. Nenhum homem de espírito gostaria de admitir que fora
efetivamente chantageado por uma menina de dezoito anos de idade.
— Lord John tornou-se o tutor legal de William, quando o avô de William morreu, e nesse
ponto, Lord John também se casou com Lady Isobel Dunsany, irmã da mãe de Willie. Ela cuidou
de Willie desde a morte de sua mãe durante o parto, e ela e Lord John foram essencialmente os
pais de Willie já que ele era muito jovem. Isobel morreu quando ele tinha onze anos ou algo
assim.
A Sra. Figg aceitou esta explicação no tranco, mas não estava disposta a se distrair do
ponto principal em questão.
— James Fraser — ela disse, batendo um par de dedos largos em seu joelho e olhando
acusadoramente para Jenny. — Como ele não está morto? A notícia era que ele tinha se afogado.
— Ela lançou os olhos para mim. — Achei que sua senhoria se jogaria no porto, também, quando
ouviu isso.
Fechei meus olhos com um estremecimento súbito, o horror gelado e salgado daquilo
derramando-se sobre mim numa onda de memória. Até mesmo com o toque de Jamie ainda
alegrando minha pele e a consciência dele brilhando em meu coração, eu revivia a dor
esmagadora de ouvir que ele estava morto.
— Bem, eu posso esclarecer vocês sobre esse ponto, pelo menos.
Abri meus olhos para ver Jenny deixar cair um torrão de açúcar em seu chá fresco e acenar
para a Sra. Figg.
— Estávamos para comprar uma passagem em um navio chamado Euterpe, meu irmão e
eu, saindo de Brest. Mas o bandido de coração negro que era o capitão navegou sem nós. Muito
bom que ele tenha feito isso — acrescentou ela, franzindo o cenho.
Muito bom, de fato. O Euterpe afundara em uma tempestade no Atlântico, perdido
completamente. Como fora dito — tanto para mim quanto para John Grey.
— Jamie encontrou outro navio para nós, mas desembarcamos na Virginia, e tivemos que
fazer o nosso caminho até a costa, em parte em carroças, em parte em paquetes, ficando fora do
caminho dos soldados. Aquelas agulhinhas que você deu a Jamie contra o enjoo funcionaram
maravilhosamente — disse, virando-se para mim com aprovação. — Ele me mostrou como
colocá-las nele. Mas quando chegamos a Filadélfia ontem — continuou ela, voltando para sua
história, ― entramos sorrateiramente na cidade durante a noite, como um par de ladrões, e
chegamos à gráfica de Fergus. Senhor, eu pensei que meu coração iria parar uma dúzia de vezes!
Ela sorriu ante a lembrança, e fiquei impressionada com a mudança nela. A sombra de
tristeza ainda estava em seu rosto, e ela estava magra e cansada pela viagem, mas a terrível
tensão da longa morte de seu marido Ian desfizera-se. Havia cor em suas bochechas novamente
e um brilho em seus olhos que eu não vi desde que a encontrei pela primeira vez trinta anos
antes. Encontrou a sua paz, eu pensei, e senti uma gratidão que aliviou minha própria alma.
— ... assim Jamie bate na porta na parte de trás, e não há nenhuma resposta, embora
pudéssemos ver a luz de um fogo vindo através das persianas. Ele bate de novo, fazendo uma
pequena melodia...
Ela bateu seus dedos levemente sobre a mesa, bump-ba-da-bump-ba-da-bump-bump-
bump, e meu coração deu uma cambalhota, reconhecendo o tema do The Lone Ranger, que
Brianna lhe ensinara.
— E depois de um momento — Jenny continuou —, uma voz de mulher grita ferozmente
“Quem está aí?”, e Jamie diz em gaélico “É seu pai, minha filha, e ele é um homem gelado,
molhado e com fome também”. Porque a chuva estava martelando e espetando, e nós estávamos
molhados até os ossos.
Ela se balançou um pouco, apreciando a narração.
— A porta se abriu, então, apenas uma fresta, e ali estava Marsali com uma pistola cavalar
em sua mão, e suas duas mocinhas atrás dela, ferozes como arcanjos, cada uma com um porrete
de madeira, prontas para quebrar um ladrão em suas canelas. Elas viram o brilho do fogo no
rosto de Jamie, então, e as três soltaram gritos felizes que acordariam os mortos e caíram sobre
ele, arrastando-o para dentro, e tudo são conversas de uma vez e gritos, perguntando se ele era
um fantasma e por isso ele não se afogara. E foi aí a primeira vez que ouvimos que o Euterpe
afundara. — Ela se benzeu. — Deus lhes dê descanso, pobres almas — disse, balançando a
cabeça.
Benzi-me, também, e vi a Sra. Figg olhar de soslaio para mim; ela não sabia que eu era
papista.
— Eu entrei, também, é claro — Jenny continuou —, mas todo mundo estava falando junto
e havia uma correria para lá e para cá em busca de roupas secas e bebidas quentes e eu fiquei
apenas olhando para o lugar, porque nunca estivera dentro de uma tipografia antes, e o cheiro
da tinta e do papel e chumbo era uma maravilha para mim, e, subitamente, senti um puxão em
minha saia e um menino pequenino de rosto doce me disse “E quem é você, madame? Gostaria
de um pouco de cidra?”.
— Henri-Christian — eu murmurei, sorrindo ante o pensamento do mais novo de Marsali,
e Jenny assentiu.
— “Eu sou sua vovó Janet, filho”, eu disse e seus olhos giraram, e ele soltou um grito e me
agarrou pela volta das pernas e me deu tamanho abraço, que me fez perder o equilíbrio e cair
no chão. Tenho um hematoma na minha bunda do tamanho da sua mão ― acrescentou ela com
o canto da boca para mim.
Senti o pequeno nó de tensão que eu não percebera que estava lá, relaxar. Jenny
naturalmente sabia que Henri-Christian nascera um anão, mas saber das coisas e vê-las às vezes
é diferente. É claro que não eram por Jenny.
Sra. Figg estava seguindo a história com interesse, mas manteve sua reserva. Ante a
menção da gráfica, no entanto, esta reserva endureceu um pouco.
— Esta moça... Marsali é a sua filha, então, senhora? — Eu poderia dizer o que ela estava
pensando. Toda a cidade de Filadélfia sabia que Jamie era um rebelde — e, por consequência,
eu também era. Foi a ameaça de minha prisão iminente que fez com que John insistisse que nos
casássemos, durante o tumulto que se sucedeu à suposta morte de Jamie. A menção dos
impressos sobre a ocupação da Filadélfia pelos Britânicos, estava ligada às questões levantadas
sobre o que estava sendo impresso e por quem.
— Não, seu marido é filho adotivo do meu irmão — explicou Jenny. — Mas eu cuidei de
Fergus desde que era um rapazinho, então ele é meu filho adotivo, pela forma como é
reconhecido nas Highlands.
A Sra. Figg piscou. Ela estava corajosamente tentando apegar-se à gama de personagens
em algum tipo de ordem a este ponto, mas agora acenou com a cabeça, o que fez as fitas cor de
rosa em sua touca parecerem como antenas.
— Bem, onde diabos... Quero dizer, para onde na terra seu irmão foi com sua senhoria? —
Ela exigiu. — Para esta tipografia, você acha?
Jenny e eu trocamos olhares.
— Duvido — eu disse — O mais provável é que ele foi para fora da cidade, usando John...
Sua senhoria, quer dizer, como um refém para passar pelos piquetes, se necessário.
Provavelmente o deixará logo que eles estejam longe o suficiente e em segurança.
A Sra. Figg fez um zumbido profundo de desaprovação. — E talvez ele vá para Valley Forge
e o entregue aos Rebeldes ao invés disso.
— Oh, eu não pensaria assim — disse Jenny, suavemente. — O que iriam querer com ele,
afinal de contas?
Sra. Figg piscou novamente, surpresa com a ideia de que qualquer pessoa poderia não
valorizar sua senhoria com a mesma intensidade que ela, mas depois de morder o lábio por um
momento, admitiu que pudesse ser assim.
— Ele não estava de uniforme, não é, senhora? — Ela me perguntou, a testa franzida. Eu
balancei minha cabeça. John não detinha uma comissão ativa. Ele era um diplomata, embora
tecnicamente ainda tenente-coronel do regimento de seu irmão, e, portanto, usava seu
uniforme para fins de cerimônia ou de intimidação, mas ele estava oficialmente aposentado do
exército, não era um combatente e, à paisana, ele seria tomado como cidadão em vez de soldado,
portanto, de nenhum interesse particular para as tropas do general Washington em Valley
Forge.
Eu não achava que Jamie estivesse indo para Valley Forge de qualquer maneira. Eu sabia
que, com absoluta certeza, ele voltaria. Para cá. Para mim.
O pensamento floresceu em minha barriga e se espalhou em uma onda de calor que me
fez enterrar o nariz na minha xícara de chá para esconder o rubor resultante.
Vivo. Eu acariciava a palavra, embalando-a no centro do meu coração. Jamie estava vivo.
Tão feliz quanto estava em ver Jenny — e mais feliz por vê-la estender um ramo de oliveira em
minha direção — o que eu realmente queria era ir para o meu quarto, fechar a porta, e me
apertar contra a parede com os olhos fechados, revivendo os segundos após ele entrar na sala,
quando ele me segurou em seus braços e me apertou contra a parede, me beijando, o simples e
sólido fato quente de sua presença tão grande que eu poderia ter caído no chão sem o apoio da
parede.
Vivo, eu repeti silenciosamente para mim mesma. Ele está vivo.
Nada mais importava. Apesar de eu rapidamente imaginar o que ele faria com John.
04 – NÃO FAÇA PERGUNTAS PARA AS QUAIS NÃO QUER OUVIR AS RESPOSTAS
John Grey estivera bastante resignado a morrer. Esperara por isso desde o momento em que
deixara escapar: “Tive conhecimento carnal de sua esposa”. — A única questão em sua mente
seria se Fraser atiraria nele, o esfaquearia, ou o estriparia com as próprias mãos.
Ter o marido lesado contemplando-o calmamente e dizendo apenas “Ah? Por quê?”, não
era apenas inesperado, mas... infame. Absolutamente infame.
— Por quê? — John Grey repetiu incrédulo. — Você disse, “Por quê”?
— Disse. E eu apreciaria uma resposta.
Agora que Grey tinha os dois olhos abertos, ele podia ver que a calma exterior de Fraser
não era tão impermeável quanto ele supôs primeiramente. Havia uma veia pulsando na
têmpora de Fraser, e ele mudou o peso de uma perna para outra, como um homem faria à
proximidade de uma briga de taverna: não completamente pronto para cometer a violência,
mas preparando-se para enfrentá-la. Perversamente, Grey achou a visão harmoniosa.
— O que no inferno quer dizer com “por quê”? — Disse, de repente, irritado. — E por que
você não está morto?
— Muitas vezes me pergunto isso — Fraser respondeu educadamente. — Entendo que
pensou que eu estivesse?
— Sim, bem como a sua esposa! Você tem a mais vaga ideia do que o conhecimento de sua
morte fez a ela?
Os olhos azul-escuros se estreitaram só um pouco.
— Está dizendo que a notícia da minha morte a desequilibrou a tal ponto que ela o levou
à força para cama? Porque — continuou ele, ordenadamente cortando a resposta aquecida de
Grey —, a menos que tenha estado seriamente enganado a respeito de sua própria natureza,
seria preciso força substancial para obrigá-lo a tal ação. Ou estou errado?
Os olhos ficaram estreitos. Grey olhou para eles. Então fechou os olhos por um instante e
esfregou as duas mãos sobre o rosto duro, como um homem acordando de um pesadelo. Deixou
as mãos caírem e abriu os olhos de novo.
— Não está enganado — disse, com os dentes cerrados. — E você está errado.
As sobrancelhas avermelhadas de Fraser dispararam em espanto genuíno, Grey pensou.
— Foi para ela por que sentiu desejo? — Sua voz se elevou, também. — E ela permitiu?
Não acredito nisso.
A cor foi subindo pelo pescoço bronzeado de Fraser, vívida como uma rosa. Grey já vira
isso acontecer antes, e decidiu de forma imprudente que a melhor — a única — defesa era
liberar o próprio temperamento primeiro. Foi um alívio.
— Nós achávamos que estava morto, seu maldito idiota! — ele disse, furioso. — Nós dois!
Morto! E nós ... nós... bebemos demais uma noite muito, muito... falamos de você... e... Maldição,
nenhum de nós estava fazendo amor um com o outro — estávamos fodendo você!
O rosto de Fraser ficou abruptamente inexpressivo e seu queixo caiu. Grey desfrutou de
uma fração de segundo de satisfação ante a visão, antes que um pesado punho viesse duro
debaixo de suas costelas e ele fosse arremessado para trás, cambaleasse alguns passos mais, e
caísse. Ele caiu sobre as folhagens, completamente sem fôlego, a boca se abrindo e fechando
automaticamente.
Tudo bem, então, pensou vagamente. Será com as próprias mãos.
As mãos se enrolaram em sua camisa e o levantaram. Ele conseguiu ficar de pé, e um
punhado de ar penetrou em seus pulmões. O rosto de Fraser estava a uma polegada do seu.
Fraser estava de fato tão perto que ele não podia ver a expressão do homem — apenas uma
visão absurdamente próxima de dois olhos vermelhos e azuis, ambos frenéticos. Isso era o
suficiente. Ele se sentiu bastante calmo agora. Não levaria muito tempo.
— Você vai me dizer exatamente o que aconteceu, seu pervertidozinho imundo — Fraser
sussurrou, sua respiração quente no rosto de Grey cheirando a cerveja. Ele balançou Grey um
pouco. — Cada palavra. Cada movimento. Tudo.
Grey tinha fôlego suficiente para responder.
— Não — disse definitivamente. — Vá em frente e me mate.
Fraser o sacudiu violentamente, de modo que seus dentes batiam dolorosamente e ele
mordeu a língua. Ele fez um ruído estrangulado, e um golpe que ele não viu chegando atingiu
seu olho esquerdo. Ele caiu de novo, com a cabeça repleta de cores e pontos pretos, o cheiro
pungente de folhas mofadas em seu nariz. Fraser, num safanão, o colocou em pé mais uma vez,
mas depois parou, provavelmente decidindo a melhor forma de continuar o processo de
vivissecção.
Com o sangue latejando em seus ouvidos e o ruído áspero da respiração de Fraser, Grey
não ouviu nada, mas quando ele cautelosamente abriu o olho bom para ver de onde o próximo
golpe estava vindo, ele viu o homem. Um bandido de aparência rude e suja, com uma camisa de
caça com franjas, de boca aberta estupidamente debaixo de uma árvore.
— Jethro! — O homem gritou, com um dedo apertado sobre a arma que ele carregava.
Alguns homens saíram dos arbustos. Um ou dois usavam os rudimentos de um uniforme,
mas a maioria deles estava vestida à paisana, mas com a adição dos bizarros gorros da
“liberdade” enterrados em suas cabeças e orelhas, o que, através do olho lacrimejante de Jonh,
conferia aos homens o aspecto francamente ameaçador de bombas animadas.
As esposas que presumivelmente costuraram essas peças de vestuário, tricotaram os
lemas LIBERDADE ou INDEPENDÊNCIA nos laterais, embora alguma Abigail sanguinária tenha
tricotado MORTE! no chapéu de seu marido. O marido em questão era, Grey observou, um
espécime pequeno e magricela usando óculos com uma lente quebrada.
Fraser parou ao som dos homens se aproximando e então se virou para eles como um urso
acuado por cães. Os cães pararam abruptamente, a uma distância segura.
Grey pressionou uma mão sobre o fígado, o qual ele achava que provavelmente tinha se
rompido, e arquejou. Ele precisaria de todo o ar que pudesse conseguir.
— Quem é você? — Um dos homens perguntou, apontando belicosamente para Jamie com
o fim de uma longa vara.
— Coronel James Fraser, da artilharia de Morgan — Fraser respondeu friamente,
ignorando a vara. — E você?
O homem parecia um pouco desconcertado, mas coberto com arrogância. — Cabo Jethro
Woodbine, patrulheiro de Dunning — disse, muito áspero. Ele sacudiu a cabeça em direção a
seus companheiros, que ao mesmo tempo se espalharam de forma eficiente, em torno da
clareira.
— Quem é seu prisioneiro, então?
Grey sentiu seu estômago apertar, o que, dada à condição de seu fígado, doía. Ele
respondeu com os dentes cerrados, sem esperar por Jamie.
— Sou Lord John Grey. Se for de algum interesse para vocês. — Sua mente estava pulando
como uma pulga, tentando calcular se suas chances de sobrevivência eram melhores com Jamie
Fraser, ou com esse bando de brutamontes. Alguns momentos antes, ele estaria conformado
com a ideia da morte pelas mãos de Jamie, mas, como muitas ideias, essa era mais atraente em
termos de conceito do que na execução.
A revelação de sua identidade pareceu confundir os homens, que apertaram os olhos e
murmuraram, olhando-o com ar de dúvida.
— Ele não está de uniforme — um deles observou para o outro em voz baixa. — Seria um
soldado de fato? Não temos nenhum negócio com ele se ele não for, temos?
— Sim, temos — declarou Woodbine, recuperando um pouco de sua autoconfiança. — E
se o coronel Fraser o tomou como prisioneiro, eu acho que ele tem alguma razão? — Sua voz
subiu, relutantemente interrogatória. Jamie não respondeu, com os olhos fixos em Grey.
— Ele é um soldado. — Cabeças se viraram para ver quem havia falado. Era o homenzinho
com os óculos quebrados, que os ajustava com uma mão, para melhor espiar Grey através do
que restava de suas lentes. Um olho azul lacrimejante inspecionava Grey, em seguida, o homem
assentiu com a cabeça, com mais certeza. — Ele é um soldado — repetiu o homem. — Eu o vi
na Filadélfia, sentado na varanda de uma casa na Chestnut Street em seu uniforme, grande como
a vida. Ele é um oficial — acrescentou, desnecessariamente.
— Ele não é um soldado — disse Fraser, e virou a cabeça para fixar o homem de óculos
com um olhar firme.
— Eu o vi — resmungou o homem. — Claro como o dia. Tinha uma trança de ouro — ele
murmurou de forma quase inaudível, baixando os olhos.
— Huh. — Jethro Woodbine aproximou-se de Grey, examinando-o com cuidado. — Bem,
você tem algo a dizer a seu favor, Lord Grey?
— Lord John — disse Grey, irritado, e afastou um fragmento de folha esmagada de sua
língua. — Não sou nobre... Meu irmão mais velho é. Grey é meu nome de família, quanto a ser
um soldado, fui colocado dentro do meu regimento, mas a minha comissão não está ativa. Isso
é suficiente, ou você quer saber o que eu comi no café da manhã?
Ele os estava contrariando propositadamente, uma parte dele decidiu que preferia ir com
Woodbine e suportar a inspeção dos Continentais do que permanecer aqui para enfrentar as
novas inspeções de Jamie Fraser. Fraser olhava para ele com os olhos apertados. Ele lutou
contra a vontade de desviar o olhar.
É a verdade, ele pensou em tom desafiador. O que eu disse é a verdade. E agora você sabe.
Sim, disse o olhar escuro de Fraser. Você acha que eu vou viver tranquilamente com isso?
— Ele não é um soldado — Fraser repetiu, virando as costas deliberadamente para Grey,
alternando sua atenção para Woodbine. — Ele é meu prisioneiro porque quero interrogá-lo.
— Sobre o quê?
— Isso não é da sua conta, Sr. Woodbine — disse Jamie, de voz suave, mas profunda e
afiada como aço. Jethro Woodbine, no entanto, não era tolo e fez questão de deixar isso claro.
— Eu vou ser juiz do que é da minha conta. Senhor — acrescentou, com uma pausa
notável. — Como é que nós sabemos que você é quem você diz que é, hein? Você não está de
uniforme. Qualquer um de vocês companheiros conhece este homem?
Os companheiros, assim se dirigiram, parecendo surpresos. Eles olharam de um para o
outro, incertos; uma ou duas cabeças balançando negativamente.
— Bem, então — disse Woodbine, encorajado. — Se você não pode provar quem é, então
eu acho que nós vamos levar esse homem ao acampamento para interrogatório. — Ele sorriu
desagradavelmente, outro pensamento, evidentemente, lhe ocorrendo. — Acho que
deveríamos levá-lo, também?
Fraser ficou imóvel por um momento, respirando lentamente e contemplando Woodbine
como um tigre pode contemplar um ouriço: sim, ele poderia comê-lo, mas valeria à pena o
inconveniente de engoli-lo?
— Leve-o, então — ele disse abruptamente, dando um passo para trás de Grey. — Tenho
negócios em outro lugar.
Woodbine esperava argumentos; e ele piscou, desconcertado, e meio que levantou a vara,
mas não disse nada enquanto Fraser seguiu em direção à borda da clareira. Apenas sob as
árvores, Fraser virou-se e deu a Grey um olhar direto, escuro.
— Nós não terminamos, senhor — disse.
Grey colocou-se de pé, ignorando tanto a dor em seu fígado quanto as lágrimas que
escapavam de seu olho danificado.
— Às suas ordens, senhor — ele retrucou. Fraser olhou para ele e moveu-se em direção
às tremeluzentes sombras verdes, ignorando completamente Woodbine e seus homens. Um ou
dois deles olharam para o cabo, cujo rosto mostrava sua indecisão. Grey não compartilhou.
Pouco antes de a silhueta alta de Fraser desaparecer de vez, ele segurou as mãos à boca.
— Não lamento nem um pouco! — Ele gritou.
05 – AS PAIXÕES DOS HOMENS JOVENS
Apesar de fascinada em ouvir sobre William e as circunstâncias dramáticas sob as quais ele
tinha descoberto sua paternidade, a verdadeira preocupação de Jenny era por outro jovem
homem.
— Sabe onde o Jovem Ian está? — Ela perguntou ansiosamente — E ele encontrou sua
jovem mulher, a moça Quaker da qual me falou?
Eu relaxei um pouco com isso; Jovem Ian e Rachel Hunter — graças a Deus — não estavam
na lista das situações tensas. Pelo menos não naquele momento.
— Ele encontrou — eu disse, sorrindo — Quanto a onde ele está... Eu não o vejo há muitos
dias, mas ele já desapareceu por muito mais tempo. Ele trabalha como batedor para o Exército
Continental algumas vezes, mas como eles estão em seus quartéis de inverno em Valley Forge
há bastante tempo, há menos necessidade de batedores agora. Ele passa boa parte do seu tempo
lá, entretanto, porque Rachel está lá.
Jenny piscou ao ouvir isso.
— Ele está? Por quê? Os Quakers não têm horror à guerra e tal?
— Bem, mais ou menos. Mas seu irmão, Denzell, é um médico do exército, embora seja um
verdadeiro médico e não o costumeiro sanguessuga de cavalo ou charlatão que o exército
costuma usar. Ele está em Valley Forge desde Novembro. Rachel vem e vai da Filadélfia (ela
consegue passar pelos piquetes, então leva comida e suprimentos), mas trabalha com Denny,
então ela está lá, ajudando com os pacientes, muito mais do que quando está aqui.
— Conte-me sobre ela — disse Jenny, inclinando-se atentamente — É uma boa moça? E
você acha que ela ama o Jovem Ian? Pelo que Ian me disse, o rapaz está desesperadamente
apaixonado por ela, mas ainda não se declarou, por não saber como ela reagiria. Ele não tinha
certeza se ela seria capaz de lidar com o fato de ele ser... o que é — Seu gesto rápido abrangeu
a história e o caráter do Jovem Ian, desde o garoto das Highlands até o guerreiro Mohawk. —
Deus sabe que ele nunca será um Quaker decente, e eu espero que o Jovem Ian saiba disso
também.
Eu ri ante esse pensamento, embora esse problema pudesse ser realmente sério; eu não
sabia o que os Quakers poderiam pensar de tal casal, mas eu imaginava que eles veriam a
perspectiva com atenção. Entretanto, eu não sabia nada sobre casamento Quaker.
— Ela é uma ótima garota — eu garanti a Jenny — Extremamente sensível, muito capaz...
E plenamente apaixonada por Ian, mesmo que eu não ache que ela tenha admitido, também.
— Ah. Você conhece os pais dela?
— Não, ambos morreram quando ela era uma criança. Ela foi criada principalmente por
uma viúva Quaker e depois veio para cuidar da casa de seu irmão quando tinha dezesseis anos
aproximadamente.
— Aquela garotinha Quaker? — a Sra. Figg entrou com um vaso de rosas de verão,
cheirando a mirra e açúcar. Jenny inalou profundamente e se empertigou — Mercy Woodcock
tem grande consideração por ela. Ela vai à casa dela toda vez que está na cidade, para visitar
aquele jovem.
— Jovem? — Jenny perguntou, as sobrancelhas escuras juntando-se.
— O primo de William, Henry — Eu me apressei a explicar — Denzell e eu realizamos uma
cirurgia muito séria nele durante o inverno. Rachel conhece tanto William quanto Henry e tem
a gentileza de visitá-lo para ver como ele está. Sra. Woodcock é a senhoria.
Ocorreu a mim que eu deveria ter ido visitar Henry naquele dia. Havia rumores de retirada
Britânica na cidade, e eu precisava saber se ele já estava bem o suficiente para viajar. Ele estava
indo muito bem quando eu tinha parado em sua casa na semana anterior, mas estava
conseguindo apenas dar alguns passos, nos braços de Mercy Woodcock.
E o que dizer de Mercy Woodcock? Eu me perguntava, com um pequeno choque na boca
do estômago. Era claro pra mim, assim como para John, que havia um sério — e profundo —
afeto entre a negra livre e o jovem aristocrata. Eu havia conhecido o marido de Mercy,
gravemente ferido, durante o êxodo do Forte Ticonderoga um ano antes — e, sem qualquer
informação sobre ele, pensava que era muito provável que ele tivesse morrido antes de ser
levado como prisioneiro pelos ingleses.
Ainda assim, a possibilidade de Walter Woodcock retornar milagrosamente dos mortos
— as pessoas faziam isso, afinal de contas, e a bolha fresca de alegria cresceu em meu coração
ante esse pensamento — era o que mais importava. Eu não podia imaginar que o irmão de John,
o rígido Duque de Pardloe, ficaria encantado em ouvir que seu filho mais jovem pretendia se
casar com a viúva de um carpinteiro, independentemente de sua cor.
E então havia sua filha, Dottie. Falando dos Quakers: ela estava noiva de Denzell Hunter,
e eu me perguntava o que o Duque pensaria disso. John, que gostava de apostar, não me dera
nada melhor do que as mesmas probabilidades entre Dottie e seu pai.
Eu balancei minha cabeça, dispensando a dezena de coisas pelas quais eu não podia fazer
nada. Durante aquele pequeno devaneio, Jenny e a Sra. Figg aparentemente estavam discutindo
sobre William e sua partida abrupta da cena.
— Para onde ele teria ido, eu me pergunto — a Sra. Figg olhou preocupada em direção à
parede da escada, crivada com manchas de sangue deixadas pelo punho de William.
— Saiu para encontrar uma garrafa, uma briga ou uma mulher — disse Jenny, com a
autoridade de uma esposa, uma irmã e uma mãe de vários filhos — Talvez todos os três.
Beco de Elfreth
Passava do meio-dia, e as únicas vozes na casa eram as conversas distantes das mulheres. Não
havia ninguém visível na sala enquanto eles passavam, e ninguém apareceu quando a menina
levou William até uma escada para o seu quarto. Isso deu a ele um estranho sentimento, como
se ele pudesse ser invisível. Ele achou essa ideia confortante; ele não podia suportar a si mesmo.
Ela entrou antes dele e abriu as persianas. Ele queria pedir a ela para fechá-las; sentia-se
miseravelmente exposto sob a luz do sol. Mas era verão; o quarto estava quente e sem ar, e ele
já estava suando muito. O ar circulava ali dentro, com o cheiro pesado da ceiva das árvores e da
chuva recente, e o sol brilhava brevemente no topo suave da cabeça dela, como o brilho de uma
castanha fresca. Ela se virou e sorriu para ele.
— Vamos começar do começo — ela anunciou rapidamente — Tire seu casaco e colete
antes de sufocar — Sem esperar para ver se ele seguiria sua sugestão, ela se virou para pegar a
bacia e o jarro. Ela encheu a bacia e recuou, apontando para o lavatório, onde uma toalha e uma
lasca muito usada de sabão estava colocada na madeira gasta.
— Vou buscar uma bebida para nós, certo? — E com isso, ela saiu, os pés descalços
tamborilando fortemente nas escadas.
Mecanicamente, ele começou a se despir. Ele piscou estupidamente para a bacia, mas
depois se lembrou de que, nas melhores casas, algumas vezes os homens tinham que lavar as
suas partes primeiro. Ele já tinha passado por isso uma vez, mas naquela ocasião a prostituta
tinha feito a ablução para ele — brincando com o sabão até que o primeiro encontro tivesse
terminado ali mesmo no lavatório.
A memória disso fez com que o sangue subisse à sua face de novo, e ele arrancou o botão
da braguilha, fazendo-o voar. Ele ainda estava tremendo todo, mas a sensação estava
começando a se tornar mais centralizada.
Suas mãos estavam instáveis, e ele soltou uma maldição em voz baixa, percebendo a pele
dilacerada de seus dedos e se lembrando de sua saída precipitada da casa de seu pai — não da
casa do seu pai de sangue. Da casa de Lord John.
— Seu desgraçado maldito! — ele disse em voz baixa — Você sabia, você sabia o tempo
todo! — Aquilo o enfureceu quase mais do que a revelação de sua paternidade. Seu padrasto, a
quem ele amava, em quem ele confiava mais do que qualquer pessoa na Terra, Lord John Grey,
tinha mentido para ele a vida toda!
Todos haviam mentido para ele.
Todos.
Sentia-se de repente como se tivesse atravessado uma crosta de neve congelada e
mergulhado diretamente para baixo de um rio desconhecido. Empurrado para dentro de um
negrume sem ar debaixo do gelo, impotente, sem voz, um calafrio feral arranhando seu coração.
Um som baixo veio por trás dele e ele se virou por instinto, ciente, somente quando viu o
rosto pálido da jovem prostituta, de que estava chorando selvagemente, as lágrimas rolando
pelo rosto, e seu pênis molhado, meio duro, aparecendo para fora da calça.
— Vá embora — ele resmungou, fazendo um esforço frenético para se vestir.
Ela não saiu. Em vez disso, veio em direção a ele, a garrafa em uma mão e um par de copos
de estanho na outra.
— Você está bem? — ela perguntou, olhando-o de soslaio — Aqui, deixe-me servir uma
bebida para você. Você pode me contar tudo sobre isso.
— Não!
Ela veio em sua direção, mas mais devagar. Através dos olhos molhados, ele viu a
contração de sua boca quando ela viu seu pênis.
— Eu te dei a água para lavar suas pobres mãos — ela disse, claramente tentando não rir
— Digo que você é um verdadeiro cavalheiro, entretanto.
— Eu não sou!
Ela piscou.
— É um insulto chamá-lo de cavalheiro?
Tomado pela fúria com a palavra, ele atacou cegamente, derrubando a garrafa de sua mão.
Ela explodiu numa chuva de vidros e vinho barato, e ela gritou quando o vermelho penetrou
por sua saia.
— Seu bastardo! — Ela gritou, e, afastando-lhe com o braço, jogou os copos em sua cabeça.
Ela não o acertou, e eles tiniram e rolaram pelo chão. Ela estava se virando em direção à porta,
berrando — Ned! Ned! —, quando ele pulou e a segurou.
— Eu sinto muito, eu sinto muito! — ele ficava dizendo — Eu não queria... Eu não queria...
Oh, inferno! — Ela bateu no nariz dele abruptamente com o cotovelo e ele a soltou, afastando-
se com uma mão no rosto, sangue escorrendo por entre seus dedos.
Ele só queria impedir sua histeria, evitar que ela trouxesse à cena todos os empregados
masculinos da casa. Ele colocou uma mão em sua boca, afastando-a da porta, lutando com uma
mão numa tentativa de controlar seus braços agitados.
O rosto dela estava marcado de vermelho onde ele a havia segurado, e seus olhos estavam
arregalados. Ela se afastou, esfregando a boca com a costa das mãos.
— Vá... embora! — Ela ofegou.
Ele não precisava que ela falasse de novo. Ele passou rapidamente por ela, abriu caminho
por um homem corpulento que estava subindo as escadas, e correu para o beco, percebendo
apenas quando chegou à rua que estava em mangas de camisa, tendo deixado o casaco e o colete
para trás, e que as suas calças estavam abertas.
— Ellesmere! — Disse uma voz horrorizada nas proximidades. Ele olhou para cima
horrorizado para se encontrar no centro das atenções de vários oficiais Ingleses, incluindo
Alexander Lindsay.
— Cristo, Ellesmere, o que aconteceu? — Sandy era o mais próximo de um amigo e já
estava puxando um volumoso lenço branco de sua manga. Colocou-o no nariz de William,
beliscando as narinas e insistindo que ele inclinasse a cabeça para trás.
— Você foi atacado e roubado? — Um dos outros exigiu — Deus! Este lugar imundo!
— Foi isso? Um assalto? — Outro disse, olhando em volta ansiosamente — Vamos
encontrar os bastardos que fizeram isso, por minha honra que vamos! Vamos recuperar as suas
coisas e ensinar uma lição a quem fez isso!
Sangue escorria para sua garganta, o gosto intenso de ferro, e ele tossiu mas fez o melhor
para assentir e acenar simultaneamente. Ele tinha sido roubado. Mas ninguém nunca poderia
devolver o que ele tinha perdido naquele dia.
06 – SOB MINHA PROTEÇÃO
O sino da igreja presbiteriana a dois quarteirões de distância tocou anunciando dez e meia, e
meu estômago ecoou, lembrando-me de que — entre uma coisa e outra — eu ainda não tinha
tomado o meu chá.
Jenny tinha comido um pouco com Marsali e as crianças, mas declarou que poderia comer
um ovo, se houvesse um, então eu mandei a Sra. Figg verificar se havia, e dentro de vinte
minutos nós estávamos atoladas — em uma elegante porção — de ovos cozidos, sardinhas fritas
e — na falta de bolo — pãezinhos com aveia e mel, que Jenny nunca tinha visto antes, mas comeu
com o maior entusiasmo.
— Veja como ele absorve a doçura! — Exclamou, pressionando o pequeno bolo esponjoso
com um garfo, depois soltando — Nada como pão de aveia no fim das contas! — Ela olhou por
cima do ombro, depois se inclinou em minha direção, abaixando a voz — Você acha que a
cozinheira pode me passar a receita se eu pedir?
Um tímido barulho na porta da frente danificada a interrompeu e, quando eu me virei para
olhar, ela foi aberta com um empurrão e uma grande sombra apareceu sobre o tapete
estampado, precedida pelo seu proprietário. Um jovem subalterno britânico olhou para a sala,
parecendo desconcertado com os destroços no hall de entrada.
— Tenente Coronel Grey? — Ele perguntou esperançosamente, olhando para mim e para
Jenny.
— Sua senhoria não está nesse momento — eu disse, tentando soar confiante. Eu imaginei
quantas vezes mais eu teria que dizer aquilo... E para quem.
— Oh! — O jovem homem pareceu ainda mais desconcertado — Você pode me dizer onde
ele está, senhora? O Coronel Graves enviou uma mensagem mais cedo, pedindo que o Tenente
Coronel Grey comparecesse a uma reunião com o General Clinton, e o general, é... Estava se
perguntando porque o tenente coronel ainda não chegou.
— Ah — Eu disse, com um olhar de soslaio para Jenny — Bem. Eu receio que sua senhoria
foi chamada com muita urgência antes de receber a mensagem do general — Devia ser aquele
papel que John recebera momentos antes do reaparecimento dramático de Jamie de sua
sepultura molhada. Ele tinha dado uma olhada para o bilhete, mas depois colocado no bolso da
calça sem ler.
O soldado deu um pequeno suspiro, mas não se intimidou.
— Sim, senhora. Se você me disser onde sua senhoria está, eu vou buscá-lo. Eu realmente
não posso voltar sem ele, sabe? — Ele me deu um olhar de desculpas, porém com um toque de
um sorriso encantador. Eu sorri de volta, com um toque de pânico em minhas entranhas.
— Eu sinto muito, mas eu realmente não sei onde ele está agora — eu disse, ficando de pé
na esperança de levá-lo em direção à porta.
— Bem, senhora, se você apenas me disser para onde ele estava indo, eu posso ir até lá e
procurá-lo — ele disse, obstinadamente permanecendo em sua posição.
— Ele não me disse.
Eu dei um passo em sua direção, mas ele não recuou. Isso estava atingindo uma escala
além do absurdo para algo mais sério. Eu tinha conhecido o General Clinton brevemente no
baile da Mischianza poucas semanas antes — Deus, tinham sido apenas algumas semanas?
Parecia uma vida toda — e mesmo que ele tenha sido muito cordial comigo, eu não achei que
poderia receber um nolle prosequi com qualquer tipo de complacência. Generais tendiam a se
achar muito importantes.
— Você sabe, sua senhoria não possui uma comissão ativa — eu disse, na vaga esperança
de colocar o jovem para fora. Ele pareceu surpreso.
— Sim, ele possui, senhora. O coronel mandou uma notificação disso junto com a
mensagem nesta manhã.
— O quê? Ele não pode fazer isso... É... Pode? — Eu perguntei, um pavor súbito subindo
pela minha espinha dorsal.
— Fazer o quê, senhora?
— Apenas... Apenas informar à sua senhoria que sua comissão está ativa?
— Oh, não, senhora — ele me assegurou — O coronel do regimento do tenente-coronel
Grey o convocou. O Duque de Pardloe.
— Jesus H. Roosevelt Cristo — eu disse, sentando-me.
Jenny pegou o guardanapo para abafar o que era claramente uma risada; fazia vinte e
cinco anos desde que ela me ouvira dizer aquilo. Eu lancei um olhar a ela, mas não era o
momento de retomar o assunto.
— Muito bem — eu disse, virando-me para encarar o jovem de novo e inspirando
profundamente — É melhor eu ir com você para ver o general — Eu me levantei e apenas nesse
momento percebi que, depois de ser surpreendida enquanto me trocava, eu ainda não estava
vestindo nada além de minha camisola e um roupão.
— Eu a ajudarei a se vestir — Jenny disse, levantando-se apressadamente. Ela deu ao
soldado um sorriso charmoso e gesticulou para a mesa, agora cheia de torrada, geleia e um
prato fumegante de arenque — Como um pouco enquanto espera, rapaz. Não se pode
desperdiçar boa comida.
Jenny enfiou a cabeça para fora no corredor e escutou, mas o som fraco de um garfo na
porcelana chinesa e a voz da Sra. Figg lá embaixo, indicavam que o soldado tinha aceito sua
sugestão. Ela fechou a porta.
— Eu vou com você — ela disse — A cidade está cheia de soldados; você não deve ir
sozinha.
— Eu irei... — Comecei, mas depois parei, sem ter certeza.
A maioria dos oficiais britânicos na Filadélfia me conhecia como a Lady John Grey, mas
isso não significava que os soldados rasos compartilhassem do conhecimento ou do senso de
respeito que normalmente era inerente a isso. Eu também me sentia como uma impostora, mas
era irrelevante, e eu não me importei.
— Obrigada — eu disse abruptamente — Ficaria feliz com sua companhia — Incerta de
como eu me sentia em relação a tudo a não ser à minha convicção de que Jamie estava vindo, eu
estava feliz por ter apoio moral, embora eu imaginasse se eu precisaria alertar Jenny da
necessidade de certa circunspecção quando eu falasse com o General Clinton.
— Eu não vou dizer nada — ela me garantiu, grunhindo ligeiramente enquanto puxava
meus laços, apertando-os — Você acha que deve dizer a ele o que aconteceu com Lord John?
— Não. Definitivamente, não — Eu disse, exalando fortemente — Está... Apertado o
suficiente.
— Mmm — Ela já estava dentro do meu armário, procurando entre meus vestidos — O
que acha desse? Tem um decote profundo e seus peitos ainda estão bons.
— Eu não estou querendo seduzir o homem!
— Oh, sim, você quer — ela disse com naturalidade — Ou pelo menos distraí-lo. Se você
não for dizer a verdade a ele, quero dizer — Uma sobrancelha preta elevou-se elegantemente
— Se eu fosse um general britânico e me dissessem que o meu coronel tinha sido raptado por
um homem grande e mau das Highlands, acho que não aceitaria isso muito bem.
Eu não podia contradizer esse raciocínio e, com um breve encolher de ombros, me
contorci para dentro da seda âmbar, que tinha costuras cor de creme e fitas da mesma cor
pregueadas que delineavam a borda do corpete.
— Oh, sim, está ótimo — Jenny disse, atando os laços e dando um passo para trás para
olhar o efeito com aprovação — O laço tem quase a mesma cor de sua pele, então o pescoço
parece ainda mais longo do que é.
— Alguém poderia pensar que você passou os últimos trinta anos trabalhando em um
salão de costura ou em um bordel, ao invés de lidando com uma fazenda — comentei,
nervosamente passando por ela.
Ela bufou. — Eu tenho três filhas, nove netas, e dezesseis sobrinhas e sobrinhas netas do
lado da irmã de Ian. É praticamente o mesmo tipo de coisa.
Aquilo me fez rir, e ela sorriu para mim. Então eu estava piscando para tentar conter as
lágrimas, bem como ela — o pensamento de Brianna e Ian, nossas perdas, vindo de repente —
e então nós estávamos nos abraçando, apertando-nos uma contra a outra para tentar manter a
dor sob controle.
— Está tudo bem — ela sussurrou, abraçando-me com força — Você não perdeu sua
menina. Ela ainda está viva. E Ian ainda está comigo. Ele nunca sairá do meu lado.
— Eu sei — Eu disse, chocada — Eu sei — Eu deixei tudo ir e me endireitei, limpando as
lágrimas com um dedo e fungando — Você tem um lenço?
Ela tinha um em sua mão, de fato, mas colocou a mão no bolso em sua cintura e puxou
outro, recém-lavado e dobrado, que me entregou.
— Eu sou uma avó — ela disse, e assoou o nariz vigorosamente — Eu sempre tenho um
lenço a mais. Ou três. Agora, e o seu cabelo? Vai sair na rua desse jeito?
Quando o meu cabelo foi arrumado em algo parecido com ordem, controlado por um laço e
respeitavelmente preso sob um chapéu de palha com abas largas, eu tinha pelo menos uma
noção aproximada do que dizer ao General Clinton. Atenha-se à verdade, tanto quanto possível.
Aquele era o primeiro princípio de uma mentira de sucesso, apesar de fazer algum tempo desde
que eu tivera que usá-lo da primeira vez.
Bem, então. Um mensageiro tinha procurado Lord John — tinha mesmo — trazendo um
bilhete — isso era verdade. Eu não tinha ideia do que estava escrito no bilhete — totalmente
verdade. Lord John tinha saído com o mensageiro sem dizer para onde estava indo. Ainda era
tecnicamente verdade, a única variação era que tinha sido uma mensagem diferente. Não, eu
não tinha visto a direção que eles tinham tomado; não, eu não sabia se eles tinham ido a pé ou
galopando — o cavalo de Lord John era mantido no estábulo de Devison na Fifth Street, a dois
quarteirões de distância.
Aquilo soava bom. Se o General Clinton escolhesse fazer perguntas, eu estava
razoavelmente certa de que ele descobriria que o cavalo ainda estava no estábulo e, assim,
concluiria que que John estava em algum lugar na cidade. Ele também presumivelmente
perderia o interesse em mim como uma fonte de informação e mandaria soldados para
assombrar qualquer homem que Lord John Grey supostamente pudesse estar visitando.
E com um pouco de sorte, quando chegasse o momento que o General tivesse esgotado
todas as possibilidades que a Filadélfia oferecia, John estaria de volta e poderia responder às
suas próprias malditas perguntas.
— E quanto a Jamie? — Jenny perguntou, seu rosto mostrando pequenos sinais de
ansiedade — Ele não voltará a cidade, não é?
— Eu espero que não — Eu mal podia respirar, e não somente por causa do espartilho
apertado. Eu podia sentir as batidas do meu coração contra as barbatanas do corpete.
Jenny me lançou um olhar longo e considerativo, os olhos estreitos, e balançou sua cabeça.
— Não, você não espera — ela disse — Você acha que ele virá diretamente até aqui. Por
você. E você está certa. Ele virá — Ela pensou por um longo tempo, com o cenho franzido — É
melhor eu ficar aqui — ela disse abruptamente — Ele pode voltar enquanto você estiver com o
general, e precisará saber qual é o estado das coisas. E eu acho que não podemos confiar que a
cozinheira não vai espetá-lo com um garfo, se ele aparecer em sua porta sem aviso prévio.
Eu ri, muito facilmente prevendo a resposta da Sra. Figg à súbita aparição de um homem
das Highlands em seus domínios.
— Além disso — ela adicionou — alguém tem que limpar a bagunça, e eu tenho uma boa
prática com isso também.
O jovem soldado recebeu minha reaparição tardia com alívio e, embora não tenha realmente
agarrado meu braço e me apressado para sair à calçada, ofereceu-me o próprio braço e
caminhou de tal forma que eu fui forçada a praticamente trotar para me mantar junto a ele. Não
estávamos longe da mansão onde Clinton havia feito o seu quartel-general, mas o dia estava
quente e eu cheguei úmida e ofegante, com mechas de cabelo escapando de meu chapéu de
palha e grudando em meu pescoço e minhas bochechas, e trilhas de suor serpenteando e
fazendo cócegas dentro de meu espartilho.
Minha escolta me entregou — com um audível suspiro de alívio — a outro soldado no
espaçoso hall de entrada com piso de parquet, e eu tive um momento para tirar a poeira de
minhas saias, endireitar o meu chapéu, e secar meu rosto e meu pescoço discretamente com um
lenço de renda. Estava suficientemente ocupada com isso para não perceber o homem sentado
em uma das pequenas cadeiras douradas do outro lado do hall de entrada.
— Lady John — ele disse, ficando em pé quando percebeu que eu o notara — Seu criado,
madame — Ele sorriu levemente, embora sem demonstrar calor algum nos olhos.
— Capitão Richardson — Eu disse, sem rodeios — É bom vê-lo.
Eu não lhe ofereci minha mão e ele não se curvou. Não fazia sentido tentar fingir que nós
éramos qualquer coisa além de inimigos — e não dos muito cordiais, também. Ele havia
precipitado o meu casamento com Lord John ao inquirir se John tinha algum interesse pessoal
em mim, já que ele estava pensando em minha prisão imediata por espionagem e por divulgação
de material revolucionário. Ambas as acusações eram verdadeiras, e como John não sabia disso,
ele disse educadamente a Richardson que não, não havia nenhum interesse pessoal — o que
também era verdade, na medida do possível — e duas horas depois eu estava em pé em seu
salão, atordoada pelo choque e pelo pesar e dizendo mecanicamente “aceito”, em resposta à
pergunta que eu não tinha ouvido e nem compreendido.
Eu mal tinha ouvido falar no nome de Richardson na época, e não o conhecia de vista. John
havia me apresentado — com uma formalidade fria — quando Richardson veio até nós na
Mischianza, a bomba das mulheres legalistas da Filadélfia lançada aos oficiais britânicos um
mês antes. E só então ele havia me dito sobre as ameaças de Richardson, com uma breve
advertência para que eu o evitasse.
— Você está esperando para ver o General Clinton? — Eu perguntei educadamente. Se ele
estivesse, eu tinha que aproveitar o tempo para executar uma tranquila espreita pela casa, de
modo a sair pela porta dos fundos enquanto ele estivesse se acomodando com o general.
— Eu estou — ele replicou, adicionando graciosamente —, mas você deve certamente ir
antes de mim, Lady John. Meus negócios podem esperar.
Aquilo soava de forma sinistra, mas eu meramente inclinei a minha cabeça educadamente,
com um reservado “hmm”.
Aquilo me atingiu, como um caso incipiente de indigestão, e eu percebi que minha posição
em relação ao exército britânico em geral, e em particular ao Capitão Richardson, estava à beira
de uma reavaliação marcada. Uma vez que viesse ao conhecimento de todos que Jamie não
estava morto — eu já não seria mais Lady John Grey. Eu era a Sra. James Fraser mais uma vez,
e mesmo que isso certamente fosse motivo de regozijo, também eliminava qualquer restrição
que o Capitão Richardson tivesse ao meu respeito.
Antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa útil para dizer ao homem, um jovem e
magro tenente apareceu para me conduzir à presença do general. A sala, que fora convertida na
sede de Clinton, estava agora num estado de desordem organizada, com caixas de embalagem
revestindo uma parede e mastros nus amarrados como um feixe de lenha, as bandeiras
militares que eles costumavam exibir, sendo dobradas meticulosamente por um cabo próximo
à janela. Eu tinha ouvido — provavelmente a cidade toda tinha — que o exército britânico
estava se retirando da Filadélfia. Evidentemente eles estavam fazendo isso com considerável
presteza.
Havia muitos outros soldados carregando coisas de um lado para outro, mas dois homens
estavam sentados, cada um de lado de uma mesa.
— Lady John — Clinton disse, parecendo surpreso, mas levantando-se de sua cadeira e
vindo até mim para beijar minha mão — Seu mais obediente servo, senhora.
— Ótimo dia para você, senhor — Eu disse. Meu coração já estava batendo disparado; os
batimentos se aceleraram ainda mais ao ver o homem que se levantou da cadeira e estava
parado atrás do general. Ele estava usando uniforme e parecia estranhamente familiar, mas eu
tinha certeza de que nunca o vira antes. Quem...?
— Eu sinto muito pelo incômodo, Lady John. Eu esperava surpreender o seu marido — o
general disse —, mas eu entendo que ele não estava em casa?
— É... Não. Ele não está.
O estranho — um coronel de infantaria, embora seu uniforme parecesse ostentar ainda
mais ouro do que de costume — levantou uma sobrancelha à minha resposta. A repentina
familiaridade do gesto me deu a ligeira sensação de que minha cabeça estava girando.
— Você é parente de Lord John Grey — Eu soltei, olhando para ele.
Ele tinha que ser. O homem tinha seu próprio cabelo, assim como John, embora o dele
fosse escuro abaixo do talco. O formato da cabeça — ossos finos e longos — era o mesmo de
John, bem como o conjunto de seus ombros. Seus traços também eram muito parecidos aos de
John, mas seu rosto estava profundamente desgastado e magro, marcado com duras linhas
esculpidas pelo pesado fardo e estresse do comando. Eu não precisava do uniforme para me
dizer que ele tinha sido um soldado por toda a vida.
Ele sorriu, e seu rosto repentinamente se transformou. Aparentemente, ele tinha o charme
de John também.
— Você é muito perspicaz, madame — ele disse, e, dando um passo à frente, suavemente
pegou minha mão, afastando-a do general, e a beijou rapidamente na forma continental antes
de se empertigar e olhar para mim com interesse. — General Clinton me informou que você é a
esposa de meu irmão.
— Oh — eu disse, lutando para recuperar os meus pensamentos — Então você deve ser
Hal! É... Eu peço desculpas. Eu quero dizer, você é... Eu sinto muito, eu sei que é um duque, mas
eu receio não me lembrar do seu título, Sua Graça.
— Pardloe — ele disse, ainda segurando minha mão e sorrindo para mim — Mas o meu
nome cristão é Harold; use-o, por favor, se preferir. E bem-vinda à família, minha querida. Eu
não fazia ideia que John havia se casado. Imagino que seja um evento recente, não? — Ele falou
com muita cordialidade, mas eu percebi sua intensa curiosidade por trás de suas boas maneiras.
— Ah — eu disse, sem expressão — Sim, bastante recente.
Não me ocorrera nem por um instante perguntar se John escrevera para contar à família
sobre mim e, se tivesse contado, eles mal teriam tido tempo de receber a carta ainda. Eu nem
mesmo sabia quais eram os membros de sua família — mesmo que eu tivesse ouvido sobre Hal,
ele sendo o pai do sobrinho de John, Henry, que...
— Oh, é claro, você veio para ver Henry! — Eu exclamei — Ele ficará tão feliz em lhe ver.
Ele está se curando muito bem — Eu assegurei a ele.
— Eu já vi Henry — o duque me assegurou, por sua vez — Ele fala com muita admiração
de sua habilidade de remover pedaços de seu intestino e reunir os remanescentes. Por mais
ansioso que eu estivesse para ver meu filho, e a minha filha — seus lábios se comprimiram por
um momento; aparentemente Dottie havia informado seus pais sobre o noivado — e por mais
encantado que eu esteja em encontrar meu irmão de novo, é na verdade o dever que me chamou
para a América. Meu regimento acabou de desembarcar em Nova York.
— Oh — eu disse — É... Que bom! — John claramente não sabia que o seu irmão estava
vindo, e muito menos o seu regimento. Ocorreu a mim que eu deveria estar fazendo perguntas
para descobrir o que podia sobre os planos do general, mas aquele não parecia o local e o
momento adequados.
O general tossiu educadamente.
— Lady John... Por acaso você sabe o paradeiro do seu marido neste momento?
O choque de conhecer Harold, Duque de Pardloe, tinha praticamente me feito esquecer a
razão da minha presença ali, mas tudo voltou num fluxo.
— Não. Eu receio que não — Eu disse, o mais calmamente possível — Eu disse ao seu cabo.
Um mensageiro chegou algumas horas atrás, com um bilhete, e Lord John saiu com ele. Ele não
disse para onde estava indo, entretanto.
Os lábios do general se contraíram.
— Na verdade — ele disse, ainda educado — ele não o fez. O Coronel Graves enviou o
mensageiro, com uma nota informando Lord John que sua comissão estava novamente ativa e
ordenando que ele viesse até aqui imediatamente. Ele não veio.
— Oh — eu disse, soando tão tola como me sentia. Devido às circunstâncias, pareceu tudo
bem deixar isso transparecer, e eu o fiz — Como sou boba. Neste caso... Ele realmente saiu com
alguém.
— Mas você não sabe com quem?
— Eu não o vi saindo — eu disse, evitando a questão — Receio que ele não tenha dito uma
palavra para onde iria.
General Clinton parecia discordar dessa opinião, mas, com um breve olhar para mim, não
disse nada. Ele claramente não tinha tempo a perder, entretanto, e inclinando-se
educadamente, desejou-me um bom dia.
Despedi-me com entusiasmo, mal parando para garantir ao duque que era um prazer tê-
lo conhecido e para perguntar onde seu irmão poderia achá-lo.
— Eu estou instalado no King’s Arms — Pardloe disse — Devo...?
— Não, não — eu disse rapidamente, para evitar sua oferta de me levar para casa — Está
tudo bem. Obrigada, senhor — Eu me inclinei para o general, depois para Hal, e me dirigi à porta
em um turbilhão de saias e emoções.
Capitão Richardson não estava mais no hall de entrada, mas eu não tive tempo para
imaginar onde ele poderia ter ido. Eu assenti e sorri rapidamente para o soldado na porta e
então saí ao ar livre, respirando como se tivesse acabado de escapar de um submarino.
E agora? Eu me perguntava, desviando para evitar dois meninos com um aro, que estava
rolando pela rua, deslizando entre as pernas dos soldados que carregavam pacotes e móveis
para uma grande carroça. Os meninos deviam ser de um dos oficiais de Clinton, já que os
soldados os toleravam.
John havia falado com bastante frequência de seu irmão e comentara sobre a tendência
de Hal ter uma inclinação implacável à prepotência. Tudo o que a situação precisava era de um
bisbilhoteiro com gosto para a autoridade se intrometendo. Eu me perguntava brevemente se
William estava em bons termos com seu tio; se assim fosse, talvez Hal pudesse ser desviado e
bem aproveitado em incutir um pouco de bom senso — não, não, claro que não. Hal não devia
saber — pelo menos não por enquanto — sobre Jamie, e ele não poderia trocar duas palavras
com William sem descobrir — se William fosse comentar sobre isso, mas então...
— Lady John — Uma voz atrás de mim me fez parar, apenas momentaneamente, mas por
tempo suficiente para que o Duque de Pardloe viesse para o meu lado. Ele me pegou pelo braço,
detendo-me — Você é uma péssima mentirosa — ele observou com interesse — Sobre o que
você está mentindo, porém, eu me pergunto.
— Sou melhor com advertências — rebati — No entanto, eu não estou mentindo no
momento.
Isso o fez rir. Ele se inclinou para mais perto, examinando meu rosto atentamente. Seus
olhos eram de um azul pálido, assim como os de John, mas suas sobrancelhas e cílios escuros
conferiam-lhe uma aparência particularmente intensa.
— Talvez não — ele disse, ainda parecendo divertido — Mas se você não estava mentindo,
também não estava me contando toda a verdade.
— Eu não sou obrigada a lhe contar nada que eu saiba — eu disse com dignidade, tentando
puxar o meu braço — Solte-me.
Ele me soltou, com relutância.
— Eu peço o seu perdão, Lady John.
— Certamente — eu disse rapidamente e dei uma volta ao redor dele. Ele se moveu
inteligentemente para bloquear o meu caminho.
— Eu quero saber onde o meu irmão está — ele disse.
— Eu também gostaria de saber — repliquei, tentando desviar pelos lados dele.
— Para onde está indo, se eu posso perguntar?
— Para casa — Isso me causou uma estranha sensação, por chamar a casa de Lord John
de “casa”. Ainda assim, eu não tinha outra. Sim, você tem, uma pequena voz disse em meu
coração. Você tem Jamie.
— Por que está rindo? — Perguntou Pardloe, soando assustado.
— Pelo pensamento de chegar à minha casa e tirar esses sapatos — eu disse,
apressadamente apagando o sorriso — Eles estão me matando.
Sua boca de contorceu um pouco.
— Permita-me oferecer o uso de minha liteira, Lady John.
— Oh, não, eu realmente não...
Mas ele tirara um apito de madeira de seu bolsa e já o soprava com um som afiado que
convocou dois homens atarracados e musculosos — que tinham que ser irmãos, tal era a
semelhança entre si —, trotando na esquina, uma liteira suspensa entre eles.
— Não, não, isso não é necessário — eu protestei — Além do mais, John disse que você
sofre de gota; você precisará da cadeira para si mesmo.
Ele não gostou disso; seus olhos se estreitaram e seus lábios se comprimiram.
— Eu posso lidar com isso, madame — ele disse rapidamente, e, agarrando-me pelo braço
de novo, arrastou-me para a cadeira e me empurrou para dentro dela, derrubando o meu
chapéu sobre os meus olhos enquanto o fazia — A senhora está sob minha proteção. Leve-a
para King’s Arms — ele instruiu Tweedledum e Tweedledee, fechando a porta. E antes que eu
pudesse dizer “cortem a cabeça dele”, estávamos sacudindo pela High Street em um ritmo
fantástico.
Eu agarrei a maçaneta da porta, na intenção de pular para fora, mesmo à custa de cortes
e contusões, mas o desgraçado tinha colocado o trinco, e eu não conseguia alcançá-lo de dentro.
Eu gritei para que os brutamontes parassem, mas eles me ignoraram completamente,
marchando ao longo do caminho de pedras como se levassem notícias de Ghent para Aix.
Eu me sentei, ofegante e furiosa, e arranquei o chapéu. O que Pardloe achava que estava
fazendo? Pelo que John havia dito, e pelas observações feitas pelos seus filhos, estava claro para
mim que ele estava acostumado a fazer as coisas de seu jeito.
— Bem, vamos ver quem vai ganhar — eu murmurei, batendo na cabeça de pérola do
alfinete que prendia a aba de meu chapéu. O coque que segurava meus cabelos tinha se soltado
junto com o chapéu; eu o empurrei para dentro e deixei que as mechas soltas pairassem sobre
os meus ombros.
Viramos na Fourth Street, que era pavimentada com tijolos em vez de pedras, e os
solavancos pareceram diminuir. Eu fui capaz de liberar as mãos dos assentos e remexer na
janela. Se eu pudesse abri-la, eu poderia alcançar a trava, e mesmo que a porta se abrisse e me
derrubasse na rua, isso seria o suficiente para parar as maquinações do duque.
A janela funcionava em um arranjo de painel deslizante, mas não tinha nenhum tipo de
trava que a controlava; a única forma de abri-la era inserindo as pontas dos dedos em uma
ranhura superficial de um lado e empurrando-as. Eu estava severamente tentando fazer isso,
apesar do sacolejo da liteira, quando ouvi a voz do duque direcionada para os caras da cadeira.
— Pa... Pare. Eu... Não posso — Suas palavras se perderam, os brutamontes vacilaram
hesitantes, e eu pressionei meu rosto contra a janela repentinamente imóvel. O duque estava
parado no meio da rua, um punho pressionado no peito, lutando para respirar. Seu rosto estava
profundamente vermelho, mas seus lábios estavam tingidos de azul.
— Ponham-me no chão e abram essa maldita porta agora! — Eu gritei pelo vidro para um
dos homens, que estava olhando por cima do seu ombro, com uma expressão preocupada em
seu rosto. Eles fizeram o que eu ordenei e eu emergi da cadeira numa explosão de saias,
colocando o alfinete por dentro do meu corpete enquanto fazia isso. Eu ainda poderia precisar
dele.
— Sente-se — Eu disse, esticando a mão para Pardloe. Ele balançou a cabeça mas me
deixou levá-lo até a cadeira, onde eu o forcei a se sentar, meu sentimento de satisfação com a
inversão das posições de alguma forma temperado com o medo de que ele poderia estar prestes
a morrer.
Meu primeiro pensamento — de que ele estava tendo um infarto — desapareceu no
momento em que o ouvi respirar — ou tentar respirar. O suspiro ofegante de alguém que estava
no meio de um ataque de asma era inegável, mas eu agarrei seu pulso e chequei seus batimentos
para garantir. Estava disparado, mas estável, e mesmo que ele estivesse suando, era uma
transpiração normal causada pelo tempo quente e não a exsudação pegajosa que geralmente
acompanha um infarto do miocárdio.
Eu toquei seu punho, ainda enfiado em seu peito.
— Sente dor aqui?
Ele balançou a cabeça, tossiu forte, e tirou a mão.
— Preciso... da pílula... — ele tentou dizer, e eu vi que havia uma pequena bolsa em seu
colete que ele estava tentando alcançar. Com dois dedos, eu alcancei uma pequena caixa
esmaltada que continha um pequeno frasco arrolhado.
— O que é... Não importa — Tirei a rolha, inalando, e ofeguei quando o cheiro repentino
de amônio chegou ao meu nariz. — Não — eu disse definitivamente, colocando a rolha e
empurrando o frasco e a caixa de volta ao seu bolso — Isso não vai ajudar. Comprima os lábios
e assopre.
Seus olhos se arregalaram um pouco, mas ele fez como eu havia pedido; eu podia sentir o
movimento sutil do ar em meu próprio rosto suado.
— Muito bem. Agora, relaxe, não lute pelo ar, apenas deixe-o vir. Assopre, na contagem de
quatro. Um... Dois... Três... Quatro. Na contagem de dois, com o mesmo ritmo... Sim. Assopre,
conta até quatro... Deixe o ar entrar, conte até dois. Sim, bom. Agora, não se preocupe; você não
vai sufocar, continue fazendo isso durante o dia — Eu sorri de forma encorajadora para ele, e
ele tentou assentir.
Eu fiquei em pé e olhei em volta; estávamos perto da Locust Street, e a taverna de
Peterman não estava a mais do que um quarteirão de distância.
— Você — eu disse para um dos brutamontes — Corra até a taverna e traga uma jarra de
café forte. Ele pagará por isso — Eu adicionei, com um movimento de mão em direção ao duque.
Estávamos começando a reunir uma multidão. Mantive um olhar atento; estávamos
próximos o suficiente do Dr. Hebdy para que ele conseguisse ver o problema, e a última coisa
que eu precisava era de um charlatão se materializando ali, com uma lanceta pronta.
— Você tem asma — eu disse, retornando minha atenção ao duque. Eu me ajoelhei para
poder olhar em seu rosto enquanto monitorava seu pulso. Estava melhor, notavelmente mais
lento, mas eu pensei ter percebido aquela condição ímpar chamada de “pulso paradoxal”, um
fenômeno que às vezes era observado em asmáticos, quando o ritmo cardíaco se acelera muito
durante a exalação e cai durante a inalação. Não que eu estivesse em dúvida — Você já sabia
disso?
Ele assentiu, ainda franzindo os lábios e assoprando.
— Sim — ele arquejou, antes de inspirar novamente.
— Você tem um médico para isso? — Um assentimento — E ele realmente recomendou
sal volátil para o problema? — Eu gesticulei em direção ao frasco em meu bolso. Ele balançou a
cabeça.
— Para o des... maio — ele tentou dizer — Tudo o que... eu tinha.
— Certo — Eu coloquei a mão embaixo de seu queixo e inclinei sua cabeça para trás,
examinando suas pupilas, que estavam bastante normais. Eu podia sentir o espasmo
melhorando, assim como ele; seus ombros estavam começando a se abaixar, e a coloração azul
tinha desaparecido de seus lábios — Você não deve usar aquilo quando tiver um ataque de
asma; a tosse e o lacrimejamento dos olhos se tornarão ainda piores pela formação de catarro.
— Que diabos você está fazendo aí parado, seu preguiçoso? Vá correndo buscar o médico,
rapaz! — Eu ouvi a voz aguda de uma mulher dizer na multidão atrás de mim. Fiz uma careta e
o duque percebeu; ele levantou as sobrancelhas em um questionamento.
— Você não quer esse médico, acredite em mim — Eu me levantei e encarei a multidão,
pensando.
— Não, nós não precisamos de um médico, muito obrigada — eu disse, com o máximo de
charme que consegui — Ele só foi acometido por uma indigestão... Algo que ele comeu. Está
muito bem agora.
— Ele não parece muito bem para mim, senhora — outra voz disse, em dúvida — Eu acho
que é melhor chamarmos o médico.
— Deixe-o morrer! — Veio um grito do fundo da multidão — Maldita lagosta do caralho!
Um estranho tipo de brilho percorreu a multidão, e eu senti um nó de pavor se formar em
meu estômago. Eles não tinham pensado nele como um soldado britânico, apenas como um
espetáculo. Mas agora...
— Vou chamar o médico, Lady John! — Para o meu horror, o Sr. Caulfield, um proeminente
Tory, tinha forçado a passagem até a frente, razoavelmente livre com sua bengala com cabeça
de ouro — Afaste-se, seu piolho!
Ele se inclinou para perscrutar a liteira, levantando seu chapéu para Hal.
— Seu criado, senhor. A ajuda estará aqui daqui a pouco, pode ter certeza.
Eu o agarrei pela manga. A multidão estava, graças a Deus, dividida. Embora vaias e
insultos fossem direcionados para Pardloe e para mim, havia vozes discordantes também, dos
legalistas (ou talvez meramente de pessoas mais sensatas que eram contra o ataque a um
homem doente na rua, independentemente de sua filosofia política), berrando, com razão, seus
próprios protestos — e não poucos insultos.
— Não, não — eu disse — Deixe que outra pessoa procure o médico, por favor. Não
devemos deixar Sua Graça aqui sem proteção.
— Sua Graça? — Caulfield piscou, e ele retirou os seus pince-nez de ouro cuidadosamente
dobrados de dentro de uma caixa, colocando-os em seu nariz e inclinando-se para olhar para
Pardloe na liteira, que lhe deu um pequeno e digno aceno, embora continuasse assiduamente
realizando o exercício de respiração.
— O Duque de Pardloe — eu disse às pressas, ainda mantendo um aperto na manga de Sr.
Caulfield — Sua Graça, permita-me apresentar o Sr. Phineas Graham Caulfield?
Eu gesticulei com a mão livre entre eles, depois notando que o brutamontes estava
voltando com um jarro. Eu corri em sua direção, na esperança de chegar até ele antes que ele
estivesse ao alcance da voz da multidão.
— Obrigada — eu disse, ofegante ao pegar o jarro de sua mão — Temos que tirá-lo daqui
antes que a multidão se torne desagradável... Ainda mais desagradável — eu emendei, ouvindo
um forte “crack” quando uma pedra ricocheteou no teto da liteira. O Sr. Caulfield se abaixou.
— Ei! — gritou o brutamontes, furioso com o ataque sobre o seu ganha-pão — Caiam fora!
— Ele começou a caminhar em direção à multidão, com os punhos cerrados, e eu o agarrei pela
manga com a mão livre.
— Leve o duque, e sua cadeira, para longe daqui! — Eu disse, com tanta força quanto foi
possível — Leve-o para...
Não King’s Arms; que era um conhecido reduto legalista e serviria apenas para inflamar
quem nos seguisse. E eu também não queria estar à mercê do duque, uma vez que entrasse no
local.
— Levem-nos para a Chestnut Street, número dezessete — eu disse apressadamente e,
enfiando uma mão no meu bolso, eu peguei uma moeda e a coloquei em sua mão — Agora! —
Ele não parou para pensar, mas pegou a moeda e rumou para a cadeira com rapidez, os punhos
ainda cerrados, enquanto eu trotava atrás dele o mais rapidamente que os meus saltos
vermelhos pudessem me levar, segurando o café. Seu número estava costurado em uma faixa
em volta da manga: Trinta e Nove.
Uma chuva de pedras foi despejada dos lados da cadeira, e o segundo brutamontes —
número Quarenta — estava espantando-as como se fossem um enxame de abelhas, e gritando
“Fodam-se!” para a multidão, de forma eficiente e repetitiva. Sr. Caulfield o apoiava mais
calmamente, gritando “Vão embora!” e “Saiam daqui de uma vez”, pontuando com cutucões de
bengala nas crianças mais ousadas que estavam se arremessando para frente para ver a
diversão.
— Aqui — eu ofeguei, inclinando-me na cadeira. Hal ainda estava vivo, ainda respirando.
Ele levantou uma sobrancelha para mim e assentiu em direção à multidão lá fora. Eu balancei
minha cabeça e coloquei o café em suas mãos. — Beba... isso — eu tentei dizer — e continue
respirando.
Fechando a porta da liteira, eu fechei o pino de travamento da fechadura com satisfação e
me endireitei para encontrar o filho mais velho de Fergus, Germain, parado ao meu lado.
— Mais um problema, Grandmère? — ele perguntou, imperturbável pelas pedras, que
agora eram acompanhadas de estrume fresco, que passavam por nossas cabeças.
— Pode-se dizer que sim — eu disse — Não...
Mas antes que eu pudesse continuar, ele se virou e gritou para a multidão, em uma voz
surpreendentemente alta — Esta é a minha avó. Se tocarem num cabelo de sua cabeça... —
Muitas pessoas na multidão riram e eu coloquei a mão em minha cabeça.
Eu tinha me esquecido completamente da perda do meu chapéu, e meus cabelos estavam
parecendo uma nuvem em formato de cogumelo ao redor da minha cabeça — aqueles que não
estavam presos em meu rosto e pescoço suados.
— E eu vou torrar você! — Germain gritou — Sim, eu quis dizer você, Shecky Loew! E você
também, Joe Grume!
Dois meninos adolescentes hesitaram, as mãos cheias de lixo. Evidentemente eles
conheciam Germain.
— E minha avó vai contar aos seus pais o que vocês fizeram, também! — Aquilo fez com
que os meninos decidissem parar. Eles deram um passo para trás, deixando cair seus torrões
de terra e tentando parecer como se não tivessem ideia do que estava acontecendo.
— Vamos lá, Grandmère — Germain disse, pegando minha mão. Os condutores da cadeira
não perderam tempo, e já haviam amarrado os postes e hasteado a cadeira. Eu nunca
conseguiria acompanhá-los usando saltos. Quando estava tirando-os, vi o Dr. Hebdy ofegando
no fim da rua, na esteira da mulher prepotente que sugeriu chamá-lo e que agora vinha em
nossa direção na brisa de seu heroísmo, o rosto cheio de triunfo.
— Obrigada, Sr. Caulfield — eu disse afobada, e, com os sapatos em uma das mãos, segui
a cadeira, incapaz de impedir que a minha saia se arrastasse pelas pedras sujas, mas não muito
preocupada com isso. Germain recuou um pouco, fazendo gestos ameaçadores para
desencorajar a perseguição, mas eu podia dizer a partir do som que vinha da multidão que sua
hostilidade momentânea tinha se transformado em diversão e, apesar das muitas vaias que nos
seguiram, nenhum míssil veio em seu rastro.
Os condutores desaceleraram um pouco quando viramos na esquina, e eu fui capaz de
progredir no calçamento plano da Chestnut Street, ficando ao lado da liteira. Hal estava
espiando pela janela lateral, parecendo consideravelmente melhor. A jarra de café estava ao seu
lado no assento, evidentemente vazia.
— Para onde estamos... indo, senhora? — ele gritou pela janela quando me viu. Pelo que
eu podia ouvir sobre a batida constante dos sapatos dos condutores e através dos vidros da
janela, ele soava muito melhor também.
— Não se preocupa, Sua Graça — eu gritei de volta — Você está sob a minha proteção.
07 – CONSEQUÊNCIAS NÃO INTENCIONAIS DE AÇÕES SEM REFLEXÃO
Jamie andou no meio do mato, sem se importar com os arranhões dos arbustos e com os galhos
que batiam contra seu corpo. Qualquer coisa que entrasse em seu caminho deveria sair ou seria
pisoteada.
Ele hesitou apenas por um instante quando alcançou os dois cavalos pastando. Ele
desamarrou os dois e, batendo na égua, mandou-a bufando para o mato. Mesmo que ninguém
pegasse o cavalo extra antes que a milícia liberasse John Grey, Jamie não queria tornar mais
fácil para o homem chegar à Filadélfia. Qualquer que fosse o acordo ali, seria feito com muito
mais facilidade sem a complicação da presença de sua senhoria.
E o que deveria ser feito?, ele pensou, fincando os calcanhares nos flancos de seu cavalo e
conduzindo-o de volta à estrada. Ele notou com alguma surpresa que suas mãos estavam
tremendo, e apertou o couro com força para fazê-las parar.
Os nós de sua mão direita latejavam, e uma dor aguda se espalhava pelo seu dedo perdido
e subia por sua mão, fazendo-o silvar por entre os dentes.
— Por que diabos você foi me dizer, seu pequeno idiota? — ele disse baixinho, instigando
seu cavalo a galopar — O que achava que eu iria fazer?
Exatamente o que você fez, foi a resposta. John não tinha resistido, e nem lutado. “Vá em
frente e me mate”, o pequeno pederasta tinha dito. Um novo surto de raiva passou pelas mãos
de Jamie quando ele se imaginou fazendo aquilo. Ele teria ido em frente se o maldito Woodbine
e sua milícia não aparecessem?
Não. Não, ele não faria. Mesmo que desejasse momentaneamente voltar e sufocar Grey até
a morte, ele estava começando a responder sua própria pergunta, a razão lutando para
encontrar seu caminho através da névoa de fúria. Por que Grey havia dito a ele? Isso era óbvio
— a razão pela qual ele atacara o homem por puro reflexo, a razão pela qual ele estava tremendo
agora. Porque Grey dissera a verdade.
“Nós dois estávamos fodendo você”, ele respirou pesada e profundamente, rápido o
suficiente para ficar com tontura, mas parou de tremer e desacelerou um pouco; as orelhas de
seu cavalo estavam voltadas para trás, contraindo a agitação.
— Está tudo bem, a bhalaich — ele disse, ainda respirando pesadamente, mas lentamente
agora — Está tudo bem.
Ele pensou por um momento que poderia vomitar, mas conseguiu evitar, e recostou-se na
sela, mas estável.
Ele ainda podia acessá-lo, aquele local bruto que Jack Randall deixara em sua alma. Ele
pensara que estava cicatrizado, que estava a salvo agora, mas não! O maldito John Grey o
escancarara com cinco palavras. Nós dois estávamos fodendo você. E ele não poderia culpá-lo
por isso — não deveria de qualquer maneira, ele pensou, a razão obstinadamente empurrando
a fúria para trás, embora ele soubesse muito bem o quanto a razão era uma arma fraca contra
esse espectro. Grey não poderia saber o que aquelas palavras fariam a ele.
A razão tinha sua utilidade, entretanto. Foi a razão que o lembrou de seu segundo golpe.
O primeiro tinha sido um reflexo cego; o segundo não. Pensar nisso trouxe de volta sua raiva,
também, e dor, mas de um tipo diferente.
Tive conhecimento carnal de sua esposa.
— Seu sodomita — ele sussurrou, segurando as rédeas com uma violência reflexiva que
fez o cavalo sacudir a cabeça, assustado — Por quê? Por que você me disse isso, seu sodomita?
E a segunda resposta veio tardiamente, mas tão clara quanto a primeira: porque ela me
contaria, no minuto em que tivesse a chance. E ele sabia muito bem disso. Ele pensou que se eu
fosse partir para a violência quando ficasse sabendo, seria melhor que fosse com ele.
Sim, ela teria contado a ele. Ele engoliu. E ela vai me dizer. O que ele deveria dizer — ou
fazer — quando ela contasse?
Ele estava tremendo de novo e se abrandou inadvertidamente, até que o cavalo estivesse
praticamente caminhando, a cabeça virando de um lado para o outro como se estivesse
cheirando o ar.
Isso não é culpa dela. Eu sei disso. Não era culpa dela. Eles tinham achado que ele estava
morto. Ele sabia como era aquele abismo; ele tinha vivido nele por um longo tempo. E ele
compreendia o que o desespero e uma grande bebedeira podiam ocasionar. Mas a visão — ou
a falta de visão... Como aquilo tinha acontecido? Onde? Saber que tinha acontecido já era ruim o
bastante; não saber como e nem o porquê era quase insuportável.
O cavalo parou; as rédeas estavam penduradas com folga. Jamie estava sentado no meio
da estrada, os olhos fechados, apenas respirando, tentando não imaginar, tentando rezar.
A razão tinha limites; a prece não. Demorou um tempo até que sua mente relaxasse o
aperto, a curiosidade perversa, a necessidade de saber. Mas, depois de um tempo, ele sentiu que
conseguiria continuar e recolheu as rédeas mais uma vez.
Tudo aquilo podia esperar. Mas ele precisava ver Claire antes de fazer qualquer outra
coisa. Ele não tinha ideia o que diria — ou faria — quando a visse, mas precisava vê-la, com o
mesmo tipo de necessidade que um homem podia sentir quando era lançado ao mar,
abandonado sem comida ou água por semanas a fio.
O sangue de John Grey estava vibrando em suas orelhas de forma tão intensa que ele mal
conseguia ouvir a discussão entre seus captores, que — tendo tomado as precauções
necessárias de revistá-lo e atar suas mãos — tinham se reunido em círculo a alguns metros de
distância e sibilavam calorosamente uns para os outros como gansos em um curral, lançando
olhares ocasionais em sua direção.
Ele não se importava. Ele não conseguia enxergar com o olho esquerdo e tinha bastante
certeza de que seu fígado se rompera, mas também não se importava com isso. Ele tinha
contado a verdade a Jamie Fraser — toda a maldita verdade — e sentia a mesma constelação
feroz de sentimentos que acompanhava a vitória numa batalha: o profundo alívio por estar vivo,
o aumento vertiginoso da emoção que o leva em uma onda parecida com a embriaguez, e então
te deixa tonto na praia — e uma absoluta inabilidade para entender o que isso custaria mais
tarde.
Seus joelhos experimentavam muitas das mesmas sensações pós-batalha e cederam. Ele
se sentou sem cerimônia nas folhas e fechou o olho bom.
Depois de um pequeno intervalo em que ele não estava ciente de nada além da
desaceleração gradual de seu coração, o barulho vibrante de seu sangue começou a diminuir, e
ele percebeu que alguém chamava seu nome.
— Lord Grey — a voz disse de novo, mais alta, e perto o suficiente para que ele sentisse a
rajada de ar fétida e quente de tabaco em seu rosto.
— Meu nome não é Lord Grey — ele disse, mal humorado, abrindo seu olho — Eu já disse.
— Você disse que era Lord John Grey — seu interlocutor falou, franzindo o cenho em meio
ao tapete grisalho de pelos faciais. Era o homem grande e imundo com camisa de caça que
primeiramente o encontrara com Fraser.
— Eu sou. E se você malditamente tiver que falar comigo, chame-me de “meu senhor” ou
simplesmente “senhor”, se preferir. O que você quer?
O homem recuou um pouco, parecendo indignado.
— Bem, já que você pergunta... senhor, em primeiro lugar, nós queremos saber se o seu
irmão mais velho é o Major-General Charles Grey.
— Não.
— Não? — As sobrancelhas despenteadas do homem se juntaram — Você conhece o
Major-General Charles Grey? Ele é um parente seu?
— Sim, ele é. Ele é... — Grey tentou calcular o grau preciso, mas desistiu e levantou a mão
— Um primo de algum tipo.
Houve um estrondo satisfeito vindo dos donos das faces que o olhavam. O homem que
chamava Woodbine agachou-se ao lado dele, um quadrado de papel dobrado em sua mão.
— Lord John — ele disse, mais ou menos educadamente — Você disse que não tem uma
comissão ativa no exército de Vossa Majestade no presente?
— Correto — Grey lutou contra uma vontade súbita de bocejar. A excitação em seu sangue
estava se desvanecendo e ele queria deitar.
— Então, você se importaria em explicar esses documentos, meu senhor? Nós os
encontramos em seus bolsos — Ele desdobrou os papeis cuidadosamente e os colocou sob o
nariz de Grey.
John olhou para eles com o olho bom. O bilhete de cima era do ajudante do General
Clinton: uma breve requisição para que ele comparecesse à sede o mais rápido possível. Sim,
ele tinha visto aquilo, embora mal tenha terminado de ler antes da chegada cataclísmica de
Jamie Fraser, levantando dos mortos, o que tinha apagado tudo de sua mente. Apesar do que
tinha acontecido em todo aquele meio tempo, ele não conseguia evitar sorrir. Vivo. O desgraçado
estava vivo.
Então, Woodbine retirou aquele bilhete, revelando o papel que estava abaixo: o
documento que tinha sido anexado ao bilhete de Clinton. Era um pequeno pedaço de papel,
carregando um selo de cera vermelha e instantaneamente identificável; era um mandado de um
oficial, sua identificação de comissão, para ser carregada junto a si o tempo todo. Grey piscou
para o papel em simples descrença, a escrita arranhada do funcionário vacilando diante de seus
olhos. Mas no final, abaixo da assinatura de King, havia uma outra, esta executada em um
rabisco corajoso e preto, absolutamente reconhecível.
— Hal! — Ele exclamou — Seu desgraçado!
— Eu disse que ele era um soldado — o pequeno homem com os óculos rachados disse, olhando
para Grey sob a borda da palavra MORTE! tricotada em seu gorro com uma avidez que Grey
achou muito desagradável — Não apenas um soldado, aliás; é um espião! Pelo que nós
poderíamos enforcá-lo neste mesmo instante!
Houve uma notável explosão de entusiasmo por essa possibilidade de ação, reprimida
com alguma dificuldade pelo Cabo Woodbine, que levantou e gritou mais alto do que os
proponentes da execução imediata, até que eles recuassem relutantemente, resmungando. Grey
sentou segurando a nota amassada em suas mãos atadas, seu coração martelando.
Eles bem que poderiam enforcá-lo. Howe fizera exatamente isso com um Capitão
Continental chamado Hale, há menos de dois anos, quando Hale foi pego coletando informações
de inteligência vestido como um civil, e os Rebeldes não teriam uma chance melhor de
retaliação. William tinha estado presente, tanto na prisão quanto na execução de Hale, e tinha
dado a Grey um breve relato sobre o assunto, chocado com sua aridez.
William. Jesus, William! Levado pelo imediatismo da situação, Grey mal tivera um
pensamento dedicado a seu filho. Ele e Fraser haviam fugido como ladrões pelo telhado e por
um cano de esgoto, deixando William, claramente recuperando-se do choque da revelação,
sozinho no corredor do andar de cima.
Não. Não, não sozinho. Claire estava lá, e o pensamento nela o estabilizou um pouco. Ela
teria sido capaz de conversar com William, acalmá-lo, explicar... Bem, possivelmente não
explicar, e possivelmente não acalmar, também — mas pelo menos se Grey fosse enforcado nos
próximos minutos, William não seria deixado para enfrentar as coisas inteiramente sozinho.
— Vamos levá-lo de volta ao acampamento — Woodbine dizia obstinadamente, não pela
primeira vez — Que bem faria enforcá-lo aqui?
— Um casaca vermelha a menos? Parece uma boa coisa para mim! — Replicou o bandido
corpulento com a camisa de caça.
— Mas, Gershon, eu não estou dizendo que não deveríamos enforcá-lo. Eu disse que não
devemos fazer isso aqui e agora — Woodbine, com o mosquete seguro por ambas as mãos,
olhou lentamente ao redor do círculo de homens, fixando cada um deles com seu olhar — Não
aqui e não agora — ele repetiu.
Grey admirou a força de caráter de Woodbine e por pouco conseguiu impedir de assentir
em concordância.
— Vamos levá-lo de volta ao acampamento. Vocês todos ouviram o que ele disse; o Major-
General Charles Grey é seu parente. Pode ser que o Coronel Smith queira enforcá-lo no
acampamento, ou pode até ser que ele queira enviar este homem para o General Wayne.
Lembrem-se de Paoli!
— Lembrem-se de Paoli! — Gritos irados ecoaram ao chamado, e Grey esfregou o olho
inchado com a manga da camisa, lágrimas estavam escorrendo dele e irritando seu rosto. Paoli?
Quem diabos era Paoli? E o que isso tinha a ver com onde, quando e se ele deveria ser enforcado?
Ele decidiu não perguntar naquele momento e, quando se levantou, foi junto com eles sem
reclamar.
08 – HOMO EST OBLIGAMUS AEROBE1
Jamie não estava sozinho na estrada. Ele estava vagamente consciente dos cavalos passando,
ouvia a conversa distante de homens a pé, mas agora que tinha saído de sua névoa vermelha de
raiva, ficou surpreso ao ver quantos eram. Ele viu o que era claramente uma companhia de
milícia — não estavam marchando, mas se movimentavam como um só corpo, nós e
aglomerações de homens, cavalariços solitários — e alguns vagões provenientes da cidade,
empilhados com bens, mulheres e crianças a pé ao lado deles.
Ele tinha visto alguns poucos deixando a Filadélfia quando tinha chegado no dia anterior
— Deus, tinha sido apenas no dia anterior? — e pensou em perguntar a Fergus sobre isso, mas
na excitação da chegada e das complicações subsequentes, tinha se esquecido completamente.
Seu senso de perturbação aumentou e ele chutou, incitando seu cavalo a um ritmo mais
rápido. Não eram mais de dez léguas da cidade; ele estaria lá muito antes do anoitecer.
Talvez fosse ainda melhor se estivesse escuro, ele pensou sombriamente. Seria mais fácil
resolver as coisas com Claire sozinho e sem perturbações — e quer isso os levasse a uma briga
ou à cama, ele não queria interferências.
O pensamento era como o acender de um dos fósforos de Brianna. Só de pensar na palavra
“cama”, ele se acendeu com uma nova onda de raiva.
— Ifrinn — ele disse em voz alta, e bateu com o punho contra o cabeçote da sela. Todo o
esforço para se acalmar, e tudo perdido em um instante! Maldição! Maldito, maldita. John Grey,
maldito!
— Sr. Fraser!
Ele chacoalhou como se tivesse levado um tiro nas costas, e o cavalo reduziu o ritmo,
bufando.
— Sr. Fraser! — Veio a voz alta e ofegante de novo, e Daniel Morgan veio trotando para
seu lado em um pequeno e resistente cavalo baio, o sorriso se espalhando em todo seu grande
rosto coberto de cicatrizes — Sabia que era você, sabia! Não há outro patife desse tamanho com
essa cor de cabelo, e se houver outro, não quero conhecê-lo.
— Coronel Morgan — ele disse, notando o uniforme inabitual de Dan com insígnias novas
no colarinho — Está a caminho de um casamento? — ele fez o seu melhor para sorrir, embora
o tumulto dentro dele fosse como redemoinhos nas rochas de Stroma.
— O quê? Oh, isso — disse Dan, tentando olhar para baixo para seu próprio pescoço —
Não é nada. Washington é um maldito defensor de uma roupa adequada. O Exército Continental
tem mais generais do que soldados, nos dias de hoje. Um oficial que sobrevive a mais de duas
batalhas, é transformado em general no ato. Agora, receber qualquer pagamento por isso, é uma
questão diferente.
Ele inclinou seu chapéu e olhou para Jamie de cima a baixo.
— Acabou de voltar da Escócia? Ouvi que você tinha ido levar o corpo de Brigadeiro
Fraser, seu parente eu suponho? — ele balançou a cabeça com pesar — Uma pena. Ótimo
soldado, bom homem.
— Sim, ele realmente era. Nós o enterramos em sua casa em Balnain.
Eles continuaram juntos, o velho Dan fazendo perguntas e Jamie respondendo tão
brevemente quanto as boas maneiras — e sua verdadeira afeição por Morgan — permitiam.
Eles não se encontravam desde Saratoga, onde ele havia servido a Morgan como um oficial de
sua Divisão de Rifles, e tinha sido uma grande coisa. Ainda assim, ele estava feliz pela
companhia, e até mesmo pelas perguntas; elas o distraíam e evitavam que sua mente o
induzisse de novo a uma infrutífera fúria e confusão.
— Eu suponho que nós devemos nos separar aqui — Jamie disse, depois de um tempo.
Eles estavam se aproximando de uma encruzilhada, e Dan tinha reduzido um pouco o ritmo —
Tenho que ir à cidade.
— Para quê? — Morgan perguntou, um pouco surpreso.
— Eu... Para ver minha esposa — sua voz quis tremer com a palavra “esposa”.
— Oh, sim? Poderia, talvez, esperar uns quinze minutos? — Dan estava dando a ele uma
espécie de olhar avaliador que fez Jamie se sentir instantaneamente desconfortável. Mas o sol
estava alto; ele não queria entrar na Filadélfia antes de escurecer.
— Sim, talvez — ele replicou cuidadosamente — Para quê?
— Eu estou a caminho de encontrar um amigo e quero que você o conheça. Está bem
próximo, não vai demorar nada. Vamos! — Morgan desviou para a direita, acenando para que
Jamie o seguisse, e ele, xingando a si mesmo por ser um tolo, o fez.
Os negócios de Dan Morgan estavam nas proximidades: uma cabana em ruínas situada num
pequeno bosque de olmo, numa pequena entrada de terra na saída da estrada principal. Havia
um grande cavalo cinza que mancava e pastava nas proximidades, suas rédeas descansando na
varanda; ele olhou para cima rapidamente e relinchou aos recém-chegados.
Jamie se abaixou sob o lintel depois de Dan e se encontrou num cômodo escuro e pobre,
que cheirava a água de repolho, sujeira e a um odor acentuado de urina. Havia uma janela, suas
persianas abertas, e a luz do sol entrando por elas delineava a silhueta do crânio de um grande
homem sentado à mesa, que levantou sua cabeça para a porta aberta.
— Coronel Morgan — ele disse, com uma voz suave e um leve sotaque da Virgínia —
Trouxe-me boas notícias?
— É exatamente o que eu trouxe, General — o velho Dan disse, e empurrou Jamie para
frente em direção à mesa — Eu encontrei este patife na estrada e o convidei para vir junto. Este
é o Coronel Fraser, de quem eu já falei antes. Acabou de voltar da Escócia, e é o homem certo
para assumir o comando das tropas de Taylor.
O grande homem levantou-se da mesa e estendeu a mão, sorrindo — embora sorrisse com
os lábios pressionados firmemente um ao outro, como se temesse que alguma coisa pudesse
escapar. O homem era tão alto quanto Jamie, e Jamie se viu olhando diretamente para afiados
olhos azul-acinzentados, que o mediam durante o aperto de mãos.
— George Washington — o homem disse — Seu criado, senhor.
— James Fraser — Jamie disse, sentindo-se levemente atordoado — Seu... mais obediente
servo. Senhor.
— Sente-se comigo, Coronel Fraser — O grande virginiano gesticulou em direção a um
dos bancos rústicos sob a mesa — Meu cavalo está coxo, e meu escravo saiu para encontrar
outro. Não tenho ideia de quanto tempo isso vai demorar, já que eu preciso de um animal bom
o suficiente para aguentar o meu peso, e a maioria dos cavalos é magra e fraca ultimamente —
Ele olhou para Jamie de cima a baixo em uma franca avaliação; eles tinham quase o mesmo
tamanho — Suponho que você não tenha um cavalo decente com você, não é senhor?
— Sim, eu tenho — Era claro o que Washington esperava, e Jamie cedeu graciosamente
— O senhor me daria a honra de aceitá-lo, General?
O velho Dan fez um barulho descontente e mudou o peso de um pé para outro, claramente
querendo protestar, mas Jamie deu a ele um breve aceno com a cabeça. Não era tão longe até a
Filadélfia; ele podia caminhar.
Washington pareceu satisfeito e agradeceu Jamie com graça, por sua vez, dizendo que o
cavalo seria devolvido a ele assim que outro adequado pudesse ser adquirido.
— Mas de alguma forma é necessário que eu seja ágil neste momento, Coronel —
Washington comentou, com um ar de desculpas — Você sabe, não? Que Clinton está se
retirando da Filadélfia?
O choque passou pela expressão de Jamie.
— Isso... ele... não, senhor. Eu não sabia.
— Eu estava prestes a chegar a isso — Dan disse irritado — Mas eu digo que ninguém me
passa a palavra.
— Bem, agora você pode falar — Washington disse, divertido — Pode contar sobre outra
coisa se for rápido o bastante para falar antes que Lee chegue aqui. Sentem-se, cavalheiros, se
desejarem. Eu estou esperando... Ah, ali estão eles — Sons da porta se abrindo indicaram um
número de cavalheiros que chegavam, e dentro de alguns momentos a cabine estava cheia com
oficiais Continentais.
Eles eram bastante enrugados e velhos, em sua maioria, vestidos com uniformes
despedaçados, que se complementavam com camisas de caça ou calças simples. Mesmo as
vestimentas que estavam completas eram sujas de barro e tinham marcas de muito uso, além
do cheiro de homens que estavam vivendo em situações difíceis, o que sobrepunha os cheiros
domésticos e suaves da cabana.
Entre os barulhos e saudações animadas, Jamie encontrou a fonte do cheiro de urina: uma
mulher de rosto magro estava em pé com as costas encostadas no canto do cômodo, segurando
um bebê enrolado num xale rasgado contra o seu peito, seus olhos dardejando de um lado para
o outro entre os intrusos. Uma mancha escura aparecia no xale, mas estava claro que a mulher
estava com medo de sair de seu lugar para trocar a criança e, em vez disso, trocava o peso de
um pé para o outro mecanicamente, acariciando a criança e acalmando-a.
— Coronel Fraser! Que bom encontrá-lo! Que bom encontrá-lo! — A voz levou sua atenção
para longe, e, para sua surpresa, ele viu que sua mão estava sendo chacoalhada com entusiasmo
por Anthony Wayne, conhecido abertamente como “Anthony Louco”, que ele tinha visto pela
última vez semanas antes da queda de Ticonderoga.
— Sua esposa está bem, senhor, e o seu sobrinho índio? — Wayne perguntou, sorrindo
para Jamie. Anthony era baixo e atarracado, com as bochechas cheias como as de um esquilo,
mas também possuía uma espécie de nariz afiado, sobre o qual seus olhos de vez em quando
pareciam brilhar com fogo. Naquele momento, Jamie estava aliviado por vê-los brilhando
apenas com um interesse amigável.
— Tudo bem, senhor, eu agradeço. E...
— Diga-me, a sua mulher está aqui perto? — Wayne se aproximou e baixou um pouco a
voz — Eu estou tendo os mais amaldiçoados dos dias por causa da gota em meu pé, e ela fez
maravilhas com o abcesso na base da minha espinha enquanto estávamos em Ti...
— Coronel Fraser, permita-me apresentá-lo ao Major-General Charles Lee e ao General
Nathanael Greene — A voz de George Washington lançou um suave sotaque da Virgínia entre
ele e a base da espinha de Anthony Louco, para o alívio de Jamie.
Além do próprio Washington, Charles Lee era o mais equipado do grupo, usando um
uniforme completo desde as botas polidas. Jamie não o conhecera antes, mas poderia tê-lo
escolhido no meio de uma multidão como um soldado profissional, não importava como ele
estivesse vestido. Um inglês do tipo que parecia sempre estar cheirando a alguma coisa
duvidosa, mas ele estendeu a mão com cordialidade o suficiente, com um “Seu criado, senhor”.
Jamie sabia exatamente duas coisas sobre Charles Lee, ambas ditas a ele pelo Jovem Ian: ele era
tão sagaz que tinha uma esposa Mohawk, e os Mohawk o chamavam de “Ounewaterika”. Ian
disse que significava “Água Fervente”.
Entre Anthony Louco e Água Fervente, Jamie estava começando a sentir que ele deveria
ter engendrado uma corrida quando encontrou Dan Morgan na estrada, mas era tarde demais
para arrependimentos.
— Sentem-se, cavalheiros, nós não temos tempo a perder — Washington se virou para a
mulher no canto — Você tem alguma coisa para beber, Sra. Hardman?
Jamie viu sua garganta se mover enquanto ela engolia, apertando o bebê com tanta força
que ele gritou como um leitão e começou a chorar. Ele sentiu vários homens, pais sem dúvida,
estremecerem ao som.
— Não, Amigo — ela disse, e ele percebeu que ela era uma Quaker — Nada além de água
do poço. Devo buscar um balde?
— Não se preocupe, Amiga Hardman — Nathanael Greene disse, com a voz suave — Eu
tenho duas garrafas no meu alforje que servirão para nós — Ele se moveu lentamente em
direção à mulher, para não assustá-la, e a pegou gentilmente pelo braço — Venha para fora. Não
há necessidade de ser perturbada por esses negócios — Ele era um homem pesado e imponente,
que andava mancando perceptivelmente, mas ela pareceu tranquilizada por seu discurso
simples e foi com ele, embora tenha olhado para trás ansiosamente, como se temesse que os
homens pudessem colocar fogo na casa.
Quinze minutos mais tarde, Jamie não tinha certeza de que eles não pudessem inflamar a
cabana pela pura força de sua excitação. Washington e suas tropas tinham ficado retidos em
Valley Forge pelos últimos seis meses, treinando e se preparando, e os generais estavam em
chamas para enfrentar o inimigo.
Muita conversa, propostas de planos, discussões a respeito destes, rejeições e retorno a
eles. Jamie ouviu com apenas metade de sua concentração; a outra metade estava na Filadélfia.
Ele tinha ouvido o suficiente de Fergus para saber que a cidade estava dividida, com confrontos
regulares entre os Patriotas e os Legalistas, mantidos sob controle apenas pela presença dos
soldados britânicos — mas os Legalistas eram a minoria. No momento em que a proteção do
exército fosse retirada, os Legalistas ficariam à mercê dos Rebeldes — e os Rebeldes que tinham
sido reprimidos por meses não eram suscetíveis à misericórdia.
E Claire... Sua boca ficou seca. Claire era, até onde todos na Filadélfia sabiam, esposa de
Lord John Grey, que era visivelmente um Legalista. E o próprio Jamie tinha removido a proteção
de John Grey dela, deixando-a sozinha e indefesa numa cidade que estava prestes a explodir.
Quanto tempo ele tinha até os britânicos deixarem a cidade? Ninguém na mesa sabia.
Ele participou o mínimo possível da conversa, tanto porque ele estava estimando em
quanto tempo ele poderia chegar à Filadélfia a pé — contra a possibilidade de ir ao alpendre e
roubar de volta o cavalo que ele tinha acabado de ceder ao Washington —, quanto porque ele
não esquecera o que o velho Dan dissera ao General Washington quando arrastara Jamie até ali.
A última coisa que ele queria era...
— E você, Coronel Fraser? — Washington disse. Jamie fechou os olhos e encomendou sua
alma a Deus — Aceitará fazer o serviço de sinal do comando do batalhão de Henry Taylor? O
General Taylor ficou doente e morreu há dois dias.
— Eu... estou honrado, senhor — Jamie começou, pensando freneticamente — Mas eu
tenho alguns negócios muito urgentes... na Filadélfia. Ficaria feliz em atendê-lo, tão logo meu
negócio esteja realizado. E eu poderia, é claro, trazer um panorama de como estão as coisas com
as forças do General Clinton — Washington olhava severamente durante a primeira parte do
discurso, mas a última frase fez com que Greene e Morgan murmurassem com aprovação e
Wayne assentiu sua pequena cabeça de esquilo.
— Você pode lidar com os seus negócios em três dias, Coronel?
— Sim, senhor! — Não eram mais do que dez milhas até a cidade; ele poderia vencê-las
em duas ou três horas. E não demoraria mais do que trinta segundos tirar Claire da casa, uma
vez que ele chegasse até lá.
— Muito bem, então. Você está nomeado para o posto de campo temporário de General
do Exército. Que...
— Ifrinn!
— Perdoe-me, Coronel? — Washington pareceu confuso. Dan Morgan, que já tinha ouvido
Jamie dizer “Inferno” em gaélico antes, balançou silenciosamente ao lado dele.
— Eu... Obrigado, senhor — Ele engoliu, sentindo uma onda de tontura passar por dentro
de si.
— Acho que o Congresso ainda tem que aprovar a sua nomeação — Washington
continuou, franzindo um pouco o cenho — e não há nenhuma garantia quanto ao que esses
filhos da puta lojistas vão fazer.
— Eu entendo, senhor — Jamie assegurou a ele. Ele podia apenas esperar. Dan Morgan
passou uma garrafa a ele, e ele bebeu, mal notando o que havia nela. Suando profusamente, ele
afundou no banco, esperando evitar qualquer outra notícia.
Jesus, e agora? Sua intenção era escapar tranquilamente pela cidade com Claire, e então
rumar para o sul para reaver sua máquina de impressão, talvez estabelecer um pequeno
negócio em Charleston ou Savannah até que a guerra acabasse e eles pudessem voltar para
Ridge. Mas ele sabia que havia um risco; qualquer homem com menos de sessenta anos podia
ser convocado para o serviço militar, e se chegasse a isso, ele tinha mais chance de ficar seguro
sendo um General do que um comandante de milícia. Talvez. E um general podia renunciar;
aquele era um pensamento reconfortante.
Apesar de toda a conversa e as preocupantes perspectivas do futuro imediato, Jamie se
encontrou prestando mais atenção ao rosto de Washington do que ao que ele dizia, tomando
nota de como o homem falava e se portava para dizer à Claire. Ele gostaria de poder dizer à
Brianna; ela e Roger Mac algumas vezes especulavam sobre como seria conhecer alguém como
Washington — embora tendo conhecido um grande número de pessoas famosas, ele pudesse
dizer que a experiência provavelmente seria uma decepção.
Ele tinha que admitir que Washington sabia o que estava fazendo, entretanto; ele ouvia
mais do que falava, e quando dizia alguma coisa, ia direto ao ponto. E ele realmente exalava um
ar de autoridade relaxada, embora fosse muito claro que a perspectiva atual o entusiasmava
muito. Seu rosto era cheio de sulcos, muito marcado, e ele estava longe de ser bonito, mas tinha
um bocado de dignidade e presença.
Sua expressão tinha se tornado animada, e ele foi longe ao ponto de rir de vez em quando,
mostrando seus dentes ruins e manchados. Jamie estava fascinado; Brianna havia dito a ele que
eram dentes falsos, feitos de madeira ou marfim de hipopótamo, e ele tinha uma súbita
lembrança de seu avô: a Velha Raposa tinha um conjunto de dentes feitos de madeira de faia.
Jamie os tinha jogado ao fogo durante uma discussão no Castelo de Beaufort — e apenas por
um instante ele estava lá de novo, cheirando a fumaça de turfa e a carne de veado assada, todos
os pelos de seu corpo arrepiados pelo alarme, rodeado por parentes que poderiam
simplesmente matá-lo.
E, de repente, ele estava de volta, pressionado entre Lee e o velho Dan, cheirando a suor e
alegria e, apesar de tudo, sentindo a excitação crescente entre eles começar a se infiltrar em seu
sangue.
Isso deu a ele uma sensação estranha em seu abdômen, sentar não mais do que alguns
centímetros longe de um homem do qual ele não sabia tudo, mas talvez soubesse mais do que
o próprio homem sobre si mesmo.
Verdade, ele tinha sentado com Charles Stuart durante muitas noites, sabendo — e
acreditando — o que Claire disse que aconteceria a ele. Mas ainda assim... Cristo disse ao
incrédulo Tomé: “Abençoados aqueles que não viram e, ainda assim, acreditam”. Jamie pensou
como deveria chamar aqueles que viram e foram obrigados e viver com o resultado de seu
conhecimento. Ele pensou que “bem-aventurados” não deveria ser a palavra.
Passou mais de uma hora antes de Washington e os outros se despedirem — uma hora durante
a qual Jamie pensou repetidamente que ele devia apenas se levantar, virar a mesa e sair
correndo pela porta, deixando o Exército Continental para fazer os seus negócios sem ele.
Ele sabia perfeitamente bem que os exércitos se moviam lentamente, a não ser durante a
luta. E claramente Washington esperava que demoraria uma semana ou mais até que o exército
britânico realmente deixasse a Filadélfia. Mas não adiantava tentar colocar bom senso em seu
corpo, que geralmente tinha suas próprias medidas de importância. Ele podia ignorar ou
suprimir a fome, a sede, a fadiga e a injúria. Ele não podia reprimir a vontade de ver Claire.
Provavelmente era o que ela e Brianna chamavam de envenenamento por testosterona,
ele pensou preguiçosamente — seu termo para as coisas óbvias que os homens faziam e que as
mulheres não entendiam. Algum dia ele perguntaria a ela o que era testosterona. Ele moveu-se
desconfortavelmente no banco estreito, forçando sua mente de volta ao que Washington estava
dizendo.
Finalmente, houve uma batida na porta, e um homem negro colocou a cabeça por ela e
assentiu para Washington.
— Pronto, senhor — ele disse, no mesmo suave sotaque de Virginia que o seu mestre.
— Obrigado, Caesar — Washington assentiu de volta, então colocou suas mãos na mesa e
se levantou rapidamente — Estamos de acordo, então, cavalheiros? Você virá comigo, General
Lee. Verei o restante de vocês no devido tempo, na fazenda de Sutfin, até segunda ordem.
O coração de Jamie saltou e ele se levantou, também, mas o velho Dan puxou sua manga.
— Fique mais um pouco, Jamie — ele disse — Você precisará saber algumas coisas sobre
o seu novo comando, não?
— Eu... — ele começou, mas não havia como evitar. Ele se sentou e esperou enquanto
Nathanael Greene agradecia à Sra. Hardman pela hospitalidade e implorava que ela aceitasse
uma pequena recompensa do exército pela sua recepção. Jamie podia apostar que as moedas
que ele tirou da bolsa eram dele mesmo e não do exército, mas a mulher as pegou, uma aceitação
muito sutil para que o prazer aparecesse em seu rosto desgastado pelo tempo. Ele viu seus
ombros se abaixarem com o alívio quando as portas se fecharam atrás dos generais e percebeu
que sua presença havia colocado a ela e ao seu filho em perigo considerável, se as pessoas
erradas vissem oficiais Continentais visitando sua casa.
Ela olhou pensativamente para ele e Dan, mas eles pareciam incomodá-la muito menos,
vestindo roupas civis. Dan tinha tirado o casaco de seu uniforme e o dobrado, colocando-o no
banco ao lado de si.
— Sente línguas de fogo lambendo sua cabeça agora, Jamie? — Dan perguntou, vendo seu
olhar.
— O quê?
— “Então, no mesmo dia, à noite, sendo o primeiro dia da semana, quando as portas foram
fechadas onde os discípulos estavam reunidos por medo dos judeus, veio Jesus, pôs-se no meio
deles e disse-lhes: A paz esteja convosco” — Dan citou, e sorriu abertamente ante o olhar de
espanto de Jamie. — Minha Abigail é uma mulher de leitura, e ela lê os versículos da Bíblia para
mim regularmente, na esperança de que vá me trazer algo de bom, mesmo que ainda não tenha
tido muita sorte neste sentido.
Ele pegou a bolsa que trouxera e, procurando dentro dela, retirou um maço de papeis
surrados e dobrados, um tinteiro e duas penas esfarrapadas.
— Bem, agora que o Pai, o Filho e o Espírito Santo saíram para tratar de seus próprios
negócios, deixe-me escrever os nomes dos comandantes de sua companhia, tudo o que você
tem em sua milícia, e onde eles estão, porque eles não estão todos em barracas, ou mesmo numa
mesma aldeia. Senhora Hardman, posso te incomodar, madame, para pedir um pouco de água
para minha tinta?
Jamie inclinou a cabeça com dificuldade para o negócio que tinha em mãos, era melhor
resolver tudo rapidamente, e dentro de uns quinze minutos, ele estava reunindo as listas, feitas
lentamente pelas mãos de caranguejo de Dan. Duas horas até a Filadélfia... talvez três...
— Você tem algum dinheiro consigo, por falar nisso? — Dan perguntou, parando na porta.
— Nem um centavo — Jamie admitiu, com um olhar ao ponto de seu cinto onde a bolsa
geralmente ficava pendurada. Ele a tinha deixado com Jenny para continuar a viagem, quando
ela desejara fazer algumas compras. E nesta manhã ele tinha ficado tão animado em ver Claire
que deixara a tipografia sem nada além das roupas e dos papeis para Fergus. Ele parou um
instante para pensar se as coisas seriam diferentes agora, se ele não tivesse sido visto
entregando os panfletos de Fergus e seguido para a casa de Lord John sem ser seguido pelos
soldados — e por William — mas não havia sentido em se arrepender.
Dan apalpou novamente sua bolsa e tirou dela um saco menor e tilintante, que jogou para
Jamie.
— Um pouco de comida para sua viagem, e um adiantamento no pagamento como general
— ele disse, e riu com diversão de sua própria perspicácia — Você terá que pagar em dinheiro
vivo pelo uniforme; não existe alfaiate na Filadélfia para um Continental. E ai de você se
apresentar-se ao seu adorado George Washington sem estar vestido adequadamente. Ele é um
defensor do uso de uniformes adequados, dizendo que você não pode esperar o respeito pelo
seu comando se não parecer que você o merece. Mas eu acho que você sabe tudo sobre isso.
Dan, que tinha lutado em Saratoga com uma camisa de caça, deixando o casaco de seu
uniforme sobre um toco de árvore por causa do calor, sorriu abertamente para Jamie, a cicatriz
em seu lábio superior onde uma bala tinha atravessado seu rosto esbranquiçada contra a pele
bronzeada pelo sol.
— Adeus, General Fraser!
Jamie bufou, mas sorriu, enquanto apertava a mão de Dan. Então, ele se virou para as
coisas sobre a mesa, arrumou os papéis e a bolsa — e uma pena perdida que Dan abandonara,
esquecida, dentro do saco. Ele estava grato pela comida; o cheiro de carne defumada e de bolo
flutuou das profundezas da lona, e ele podia sentir a forma dura de maçãs no fundo. Ele tinha
saído da tipografia sem tomar o café da manhã, também.
Ele se endireitou, e uma dor como um raio começou no meio de sua coluna e desceu pela
parte de trás de sua perna até a sola do pé. Ele engasgou e desabou no banco, a parte inferior
das costas e a nádega direita apertadas com a cãibra.
— Jesus, Maria e Santa Brígida... Agora não! — ele disse, entre os dentes, de uma forma
entre uma prece e uma imprecação.
Sentira uma pequena pontada ou rasgo nas costas quando bateu em John Grey, mas no
calor do momento, aquilo não tinha parecido importante. Não o tinha perturbado muito no
caminho — ele mal notara, com tudo o que passava em sua mente —, mas agora que ele tinha
ficado sentado por um tempo e os músculos tinham esfriado...
Ele tentou levantar, cuidadosamente, mas caiu de novo. Curvou-se sobre a mesa com os
punhos cerrados, disse um grande número de coisas em gaélico que não eram absolutamente
uma oração.
— Está tudo bem, Amigo? — A mulher da casa se inclinou perto dele, olhando para ele
com preocupação.
— Um... Momento — ele disse, tentando fazer como Claire o havia ensinado e respirando
entre os espasmos. Como a dor do parto, ela disse a ele, divertida. Ele não tinha pensado que
aquilo era divertido na primeira vez, e nem agora.
A dor amenizou. Ele estendeu a perna, depois flexionou de volta, com muito cuidado. Por
enquanto, tudo bem. Mas quando ele tentou se levantar de novo, a parte inferior de suas costas
estava travada, e uma dor que o fez prender a respiração o esfaqueava na nádega.
— Você tem... alguma coisa como... uísque? Rum? — Se ele apenas conseguisse ficar de
pé... Mas a mulher estava sacudindo a cabeça.
— Eu sinto muito, Amigo. Eu não tenho nem um pouco de cerveja. Nem mesmo o leite para
a criança — Ela adicionou com certa amargura — O exército levou minhas cabras embora.
Ela não disse qual exército, mas ele supunha que não importava para ela. Ele fez um som
de desculpas, apenas para o caso de serem as milícias continentais, e se abaixou, respirando
pesadamente. Isso já tinha acontecido três vezes antes — aquela mesma dor forte e repentina,
a inabilidade de se mover. Uma vez, demorou quatro dias até ele poder caminhar mancando;
das outras duas vezes, ele conseguiu levantar em dois dias, e mesmo mancando
esporadicamente por semanas, ele conseguiu caminhar, mesmo que devagar.
— Está doente? Eu poderia lhe dar xarope de ruibarbo — ela ofereceu.
Ele tentou sorrir para isso, balançando a cabeça.
— Eu agradeço, senhora. Não é nada além de um aperto em minhas costas. Quando passar,
ficará tudo bem.
O problema era que, até aliviar, ele estava indefeso, e perceber aquilo o fez ficar em pânico.
— Oh — A mulher hesitou por um momento, pairando, mas então o bebê começou a
chorar e ela se virou para pegá-lo.
Uma menininha — de cinco ou seis anos, ele pensou, olhando para a pequena e mirrada
criatura — rastejou de baixo da cama e olhou para ele com curiosidade.
— Vai ficar para o jantar? — ela perguntou, em uma voz alta e precisa. Lançou a ele uma
carranca avaliadora — Parece que ele comeria muito.
Ele reavaliou a estimativa de idade da criança para oito ou nove anos e sorriu para ela. Ele
ainda estava suando por causa da dor, mas estava melhorando.
— Eu não vou pegar sua comida, a nighean — ele assegurou a ela — De fato, há um bom
pão e um pouco de carne defumada em minha bolsa; e é seu — Seus olhos ficaram redondos
como moedas — De sua família, quero dizer.
Ela olhou ansiosamente para a bolsa, engolindo dolorosamente quando sua boca se
encheu de saliva; ele podia ouvi-la engolindo seco e aquilo cortou seu coração.
— Pru! — ela sussurrou, virando-se urgentemente em direção à mesa — Comida!
Outra menina pequena se arrastou para fora da cama e ficou ao lado de sua irmã. Ambas
eram magras como postes, embora, por outro lado, não se parecessem muito com postes.
— Eu ouvi — a recém-chegada disse à irmã, e virou solenemente o olhar para Jamie —
Não deixe a mamãe te dar o xarope de ruibarbo — ela o advertiu — Ele faz com que a merda
pareça como chamas, e se você não tiver tempo para chegar até a latrina, ela...
— Prudence!
Prudence obedientemente fechou a boca, mas continuou a olhar com interesse para Jamie.
Sua irmã tinha se ajoelhado e procurava alguma coisa embaixo da cama, saindo de lá com um
utensílio familiar, um objeto caseiro de louça marrom que ela apresentou gravemente para sua
inspeção.
— Nós vamos ficar de costas, senhor, se precisar...
— Patience!
Com o rosto vermelho, a Sra. Hardman pegou o penico de mijo de sua filha e enxotou as
meninas para a mesa, onde — com um olhar para Jamie para se certificar de que ele realmente
falava sério — pegou o pão, a carne a as maçãs de sua bolsa, dividindo a comida
escrupulosamente em três partes: duas grandes porções para as garotas, e uma menor para si
mesma, deixada de lado para mais tarde.
Ela deixou o penico no chão ao lado da cama, e quando ela o colocou cuidadosamente ao
lado do colchão de casca de milho, Jamie avistou as letras pintadas de branco na parte inferior.
Ele estreitou os olhos para enxergar na penumbra, e então sorriu. Era um lema em latim,
circulando uma abelha vividamente executada com expressão jovial e uma piscadela
pronunciada. Iam apis potanda fineo ne.
Ela já vira a brincadeira antes — o bordel em Edimburgo, onde ele tinha um quarto
durante certa época, era equipado com muitos utensílios esportivos que continham uma grande
variedade de frases em latim, a maioria delas lasciva, mas algumas eram meros trocadilhos,
como essa. Era uma frase em latim, meio tola... “Não beba a abelha agora”, mas se fosse lida
foneticamente em inglês, ignorando o espaçamento, dizia “sou um bêbado idiota”.
Ele olhou para a Sra. Hardman em especulação, mas achou que isso não era trabalho dela.
O ausente Sr. Hardman deve ser — ou ter sido, ele pensou, dada à óbvia pobreza da casa, e ele
se benzeu discretamente ante o pensamento — um homem educado.
O bebê tinha acordado e estava se mexendo no berço, dando pequenos gritos cortantes,
como uma raposa. A Sra. Hardman pegou a criança, puxando uma cadeira de amamentação para
perto do fogo com um pé. Ela colocou o bebê momentaneamente na cama ao lado de Jamie,
abrindo a blusa com apenas uma mão, a outra se esticando automaticamente para salvar uma
maçã que estava rolando em direção à borda da mesa, cutucada pelo cotovelo de uma das
meninas.
O bebê fazia barulhos com os lábios, faminto como suas irmãs — E esta deve ser a pequena
Chastity, ou estou errado? — ele disse.
A Sra. Hardman olhou boquiaberta para ele — Como você sabia o nome da criança?
Ele olhou para Prudence e Patience, que estavam silenciosamente enchendo a boca com
pão e carne o mais rapidamente que podiam — Bem, eu nunca conheci uma moça chamada
Sobriety ou Fortitude — ele disse suavemente — O bebê está encharcado; tem uma roupa limpa
para trocá-lo?
Havia dois retalhos gastos pendurados para secar diante do fogo; ela pegou um deles, e
descobriu que Jamie já retirava a fralda encharcada do bebê — que é como Claire as chamava
—, e limpava as fezes de seu traseiro, segurando suas pequenas pernas com uma das mãos.
— Você tem filhos, eu imagino — Com as sobrancelhas levantadas, a Sra. Hardman pegou
a roupa suja dele com um aceno de agradecimento e a deixou cair em um balde de vinagre com
água que ficava no canto mais distante.
— E netos — ele disse, balançando o dedo na frente do pequenino nariz de Chastity. Ela
balbuciava e ficava vesga, balançando as pernas entusiasmadamente — Para não dizer os seis
sobrinhos e sobrinhas — E onde estavam Jem e a pequena Mandy? Será que ela está conseguindo
respirar mais facilmente agora, a pobrezinha?
Ele fez cócegas gentilmente no pé cor de rosa do bebê, lembrando-se da estranhamente
bela coloração azulada que cortava seu coração ao ver os pés perfeitos de Mandy, longos e
articulados, graciosos como os de um sapo.
São iguais aos seus, Claire havia dito, passando a unha levemente pela sola do pé de Mandy,
fazendo com que o dedão se separasse repentinamente dos outros. Como ela o havia chamado?
Ele tentou fazer a mesma coisa, delicadamente, e sorriu com prazer ao ver acontecer a
mesma coisa com os dedos gordinhos de Chastity.
— Babinski — ele disse à Sra. Hardman, com um senso de profunda satisfação ao se
lembrar do nome — É como é chamado quando o dedão do bebê faz isso. Um reflexo de
Babinski.
A Sra. Hardman parecia atônita — embora ficasse ainda mais quando ele colocou a nova
fralda em Chastity e a enrolou novamente em seu cobertor. Ela pegou o bebê dele e, com uma
expressão incerta, afundou-se na cadeira e puxou o xale surrado sobre a cabeça do bebê.
Incapaz de desviar os olhos, Jamie os fechou, para permitir a ela privacidade, tanto quanto
possível.
11 – RELEMBRANDO PAOLI!
Era difícil enxugar o suor do rosto com suas mãos amarradas e impossível afastar a ardência do
sal para longe de seu olho machucado, uma fenda tão inchada que ele mal conseguia fechá-lo
adequadamente. A água escorria por seu rosto num fluxo constante, pingando de seu queixo.
Piscando numa vã tentativa de clarear a visão, John Grey não percebeu um galho caído em seu
caminho e caiu pesadamente.
Aqueles que estavam atrás dele na trilha estreita pararam abruptamente, com sons de
colisões suaves, cantis e armas tilintando, confusão e impaciência. Mãos ásperas o agarraram e
o levantaram novamente, mas o homem alto e ossudo encarregado de acompanhá-lo apenas
disse em um suave tom de voz — Olhe por onde anda, senhor — e deu uma cotovelada nele,
seguida de um empurrão.
Encorajado por esta evidência de consideração, ele agradeceu ao homem e perguntou o
seu nome.
— Eu? — O homem pareceu surpreso — Oh. Bumppo. Natty Bumppo — Acrescentando
após um momento — Porém, a maioria das pessoas me chama de Hawkeye.
— Não estou surpreso — Grey disse, baixinho. Ele inclinou-se tanto quanto podia em meio
à caminhada e mexeu a cabeça em direção ao longo rifle que balançava como um estilingue nas
costas do homem — Seu criado, senhor. Eu posso deduzir que você é um bom atirador, não?
— Esta seria uma boa dedução, meu senhor — A voz de Bumppo soava divertida — Por
quê? Quer que eu atire em alguma coisa? Ou em alguém?
— Estou fazendo uma lista — Grey disse a ele — Eu o avisarei quando estiver pronta.
Ele sentiu, mais do que ouviu, a risada do outro — o divertimento era palpável, mas ele
não fez nenhum som.
— Deixe-me adivinhar quem é o primeiro de sua lista: o grande escocês que te nocauteou?
— Ele estaria perto do topo da lista, sim — Na verdade, ele não conseguia decidir em quem
ele queria atirar primeiro: Jamie Fraser ou seu próprio irmão. Provavelmente em Hal,
considerando todas as coisas. Bastante irônico, se Hal conseguisse que ele fosse baleado.
Embora seus captores parecessem convictos de que enforcá-lo seria um método preferível.
Aquilo o fez lembrar da conversa desconfortável que havia precedido seu infortúnio pela
floresta em uma trilha de veados generosamente equipada com arbustos, galhos baixos,
carrapatos e moscas do tamanho da ponta de seu polegar.
— Você por acaso sabe o que, ou possivelmente quem, é Paoli, Sr. Bumppo? — Ele
perguntou educadamente, chutando um cone de abeto de seu caminho.
— O que é Paoli? — A voz do homem estava cheia de espanto — Por que, homem? Você
acabou de chegar aqui?
— Bastante recentemente — Grey replicou cautelosamente.
— Oh — Bumppo considerou, cuidadosamente combinando seu longo passo com o mais
curto de Grey — É que houve um infame ataque, pode ter certeza. Seu parente, o Major-General
Grey, como eles dizem, e suas tropas se esgueiraram de noite onde os homens do General
Wayne estavam acampados. Grey não queria arriscar perder sua munição, atirando, então ele
deu a ordem para que os homens tirassem todas as balas de suas armas e usassem baionetas.
Eles caíram sobre os homens e baionetaram centenas de homens em suas camas, a sangue frio!
— Sério? — Grey tentou reconciliar esse acontecimento com qualquer batalha recente
que ele conhecesse, e falhou — E... Paoli?
— Oh. Esse é o nome de uma taverna próxima: a Taverna de Paoli.
— Ah. Onde fica? Geograficamente, eu quero dizer. E quando, exatamente, essa batalha
ocorreu?
Os lábios prensados de Bumppo se abriram enquanto ele pensava, e depois ele falou.
— Perto de Malvern, no último mês de Setembro. O Massacre de Paoli, eles o chamam —
ele adicionou com certa dubiedade.
— Massacre? — Grey ecoou. A ação ocorrera antes de sua chegada, mas ouvira falar
brevemente sobre o assunto, e não em termos de massacre, certamente. Mas então, as
perspectivas de um evento eram diferentes dependendo de sua posição num assunto. William
Howe havia falado disso com aprovação — como uma intervenção de sucesso: com um mínimo
número de soldados das tropas britânicas, eles tinham dizimado uma divisão inteira de
americanos, com a perda de apenas sete homens.
Bumppo pareceu disposto a compartilhar a opinião de Grey da natureza retórica do nome,
embora a partir de uma terceira perspectiva.
— Bem, você sabe como o povo fala — ele disse, levantando um ombro — Não foi o que
eu chamaria propriamente de massacre, mas muitos nunca viram um massacre, e eu já vi.
— Você já viu? — Olhando para cima, para o rufião alto e barbudo, Grey pensou que muito
provavelmente sim.
— Eu fui criado como um índio — Bumppo disse, com visível orgulho — Pelos Mohican,
já que minha família morreu quando eu era apenas um garoto. Sim, eu já vi um massacre ou
dois.
— É mesmo? — Grey disse, a cortesia inata obrigando-o a convidar o homem a elaborar a
narrativa se quisesse. Além do mais, isso iria ajudar a fazer o tempo passar; eles pareciam estar
caminhando há horas, e não havia final à vista, não que ele estivesse esperando ansiosamente
pelo fim...
Como era de se esperar, as reminiscências do Sr. Bumppo fizeram com que o tempo
passasse tão bem que Grey ficou surpreso quando o Cabo Woodbine, na liderança, ordenou que
todo o regimento parasse na beira de um acampamento bastante considerável. Ele estava feliz
o suficiente por parar, entretanto; estava usando sapatos de cidade, nem um pouco adequados
para esse tipo de terreno, e eles haviam desgastado suas meias a abrasado seus pés até que
sangrassem e se enchessem de bolhas.
— Soldado Bumppo — Woodbine disse, com um pequeno aceno ao acompanhante de
Grey — Leve o regimento para onde Zeke Bowen está. Eu vou entregar o prisioneiro ao Coronel
Smith.
Esta declaração deu origem à verbalização de um descontentamento, a partir da qual Grey
concluiu que o regimento desejava muito acompanhar Woodbine, a fim de não perder a
execução de Grey, que eles esperavam confiantemente que aconteceria no momento em que ele
fosse entregue ao Coronel Smith. Woodbine foi firme em relação a isso, entretanto, e com
democráticos murmúrios e execrações, a milícia se moveu relutantemente para longe, sob a
orientação de Natty Bumppo.
Woodbine os observou sumirem de vista, então se levantou, espantando uma lagarta que
tinha caído no peito de seu casaco rasgado e endireitou o infame chapéu.
— Bem, Tenente-Coronel Grey. Podemos ir?
Smith se levantou e se aproximou de Grey, inclinando-se para examinar o seu rosto. Grey podia
sentir o cheiro de seu suor, intenso e almiscarado.
— Você precisa de um médico? — ele perguntou friamente, mas sem hostilidade.
— Não — Grey disse. Tanto sua cabeça quanto as laterais de seu corpo doíam
profundamente, e ele se sentia tonto, mas duvidava que houvesse qualquer coisa que um
médico pudesse fazer para qualquer uma destas condições.
E ele pensou que, depois do contato prolongado com Claire e suas opiniões, ele confiava
muito menos nos médicos do que antes — e ele nem tinha tanta confiança antes, para começar.
Smith assentiu e, endireitando-se, foi até um baú de campanha desgastado e cavou dois
copos de estanho amassados e uma garrafa cinza que provou ser aguardente de maçã. Serviu
duas generosas doses e eles se sentaram em silêncio por um tempo, bebendo.
Tão perto do Dia de São João, ainda havia muita luz lá fora, mesmo que Grey conseguisse
ouvir o barulho e a confusão de um acampamento prestes a iniciar a rotina noturna. Uma mula
zurrava em voz alta, e muitas outras respondiam em um coro estridente. Carroças, então...
talvez artilharia? Ele respirou fundo, as narinas dilatadas; uma companhia de artilharia tinha
um cheiro distinto, uma espécie de destilação de suor, pólvora e metal quente, muito mais
pungente do que o cheiro de uma companhia de infantaria com seus mosquetes — o cheiro de
ferro queimado se infiltrava nas roupas dos artilheiros, bem como em sua alma.
O que veio até ele não era o fedor de armas, mas o cheiro de carne assada. Ele flutuava
através da tenda, e seu estômago roncou alto; ele não comia nada desde a cerveja que tinha sido
a preliminar de uma refeição apropriada. Ele pensou que a boca de Smith tinha se torcido um
pouco com o barulho, mas o coronel educadamente ignorou.
Smith terminou sua bebida, encheu ambos os copos, e limpou a garganta.
— Não o atormentarei com perguntas, já que não deseja respondê-las — ele disse
cuidadosamente —, mas no interesse de uma conversa civilizada, se você desejar me perguntar
algo, não tomarei como ofensa.
Grey sorriu ironicamente.
— Muito gentil de sua parte, senhor. Deseja justificar sua presente dedicação a mim? Eu
lhe asseguro que é desnecessário.
Pequenas manchas vermelhas surgiram imediatamente nas maçãs do rosto de Smith.
— Essa não foi a minha intenção, senhor — disse rigidamente.
— Então, eu peço perdão — Grey disse, e tomou outro gole. A cidra forte e doce estava
saciando as dores da fome, bem como as dores das laterais de seu corpo, embora não estivesse
fazendo muito pela tontura — Que tipo de pergunta você achou que eu faria? Qual é o estado
atual do Exército Continental? Eu poderia deduzir isso facilmente, eu acho, pelo estado do
cavalheiro que me capturou, e... por outras evidências — Ele deixou que os olhos vagassem ao
redor da tenda, absorvendo o penico de cerâmica lascado sob a cama torta e os indícios de roupa
suja saindo de uma maleta no canto; evidentemente Smith não tinha um ordenança, ou o que
tinha era incompetente. Por um instante, Grey sentiu uma pontada de nostalgia por Tom Byrd,
o melhor ordenança que já tivera.
O rubor de Smith tinha desaparecido; ele deu uma risadinha irônica — Eu imagino que
você pudesse. Não é exatamente um segredo. Não, eu pensei que você poderia estar curioso
com o que eu pretendo fazer com você.
— Oh, isso — Grey pousou o seu copo e esfregou delicadamente a testa, tentando não
tocar a área inchada ao redor do olho — Francamente, eu tinha me esquecido, diante da
surpresa de vê-lo. E do prazer de sua gentil hospitalidade — ele completou, levantando o copo
sem nenhuma ironia — O Cabo Woodbine e os seus homens parecem pensar que devo ser
prontamente enforcado, tanto pela acusação de espionagem quanto pelo fato mais sério de eu
ser parente do Major-General Charles Grey, a quem eu presumo que tenha sido atribuída algum
tipo de atrocidade em um lugar chamado Paoli.
A sobrancelha de Smith se elevou.
— Você nega ser um espião?
— Não seja ridículo, Smith. Eu sou um Tenente-Coronel. O que diabos eu estaria fazendo
espionando em uma floresta deserta? Bem, deserta até que Woodbine e seus alegres homens
apareceram — ele adicionou.
Seu copo estava vazio; ele olhou para ele, imaginando como aquilo tinha acontecido. Com
um pequeno suspiro, Smith o completou.
— Além do mais, eu não estava carregando nenhum documento com informações,
nenhum segredo escrito ou qualquer evidência de espionagem.
— Sem dúvida você gravou na memória qualquer informação que tenha descoberto —
Smith disse, soando cinicamente divertido — Eu me recordo de que você tem uma memória
prodigiosa — Ele deu um pequeno bufo que poderia talvez ser chamado de risinho — Assim
disse Sally, com os dedos ágeis, enquanto o aperto sobre seu pau se prolongava...
De fato, a memória de Grey era muito boa. Boa o suficiente para se lembrar de um jantar
em que um número de oficiais de diferentes regimentos tinha sido convidado. Quando os
senhores já haviam tomado os seus Portos, Grey tinha — atendendo a convites e sob
estrondosos aplausos — recitado inteiramente de memória uma das odes mais longas e
escabrosas de Harry Quary, do infame Certos Versos Sobre o Assunto de Eros, cópias das quais
ainda eram avidamente procuradas e secretamente passavam em torno dos círculos da
sociedade, ainda que o livro tivesse sido publicado quase vinte anos atrás.
— O que diabos há ali para se espionar? — ele perguntou, percebendo a armadilha lógica
tarde demais. A boca de Smith se virou num dos cantos.
— Você espera que eu te diga?
Porque a resposta, é claro, era que toda a força de Washington provavelmente estava se
movendo em sua vizinhança imediata, posicionando-se para entrar na Filadélfia — e, muito
possivelmente, para atacar na retirada das tropas de Clinton.
Grey rejeitou a questão de Smith como uma retórica e tomou outro rumo — embora fosse
um rumo perigoso.
— Woodbine deu a você uma correta avaliação das circunstâncias nas quais ele me
descobriu — ele disse — Claramente não fui pego em flagrante pelo Coronel Fraser, já que ele
simplesmente teria feito o que o Cabo Woodbine fez e me prendido.
— Você está afirmando que o Coronel Fraser combinou de encontrá-lo para passar
informações?
Jesus Cristo. Ele sabia que esse caminho era perigoso, mas não tinha previsto a
possibilidade — que Jamie Fraser poderia ser suspeito de ser o seu cúmplice. Mas é claro que
Smith seria particularmente sensível a esta possibilidade, dada a sua própria mudança de
lealdade.
— Certamente não — Grey disse, permitindo uma certa aspereza à fluência em seu tom
— O encontro que o Cabo Woodbine testemunhou foi de natureza puramente pessoal.
Smith, que claramente sabia uma coisa ou outra sobre interrogatórios, levantou uma
sobrancelha para ele, também, e se sentou de volta, bebericando sua aguardente de forma
despreocupada, como se a certeza de sua declaração resolvesse as questões.
— Eles provavelmente vão enforcá-lo, você sabe — Smith disse depois de uma súbita
pausa. Ele falou quase casualmente, com os olhos no fluxo âmbar quando encheu os dois copos
novamente — Depois do que Howe fez ao Capitão Hale? Ainda mais, depois de Paoli. Charles
Grey é o seu primo, não é?
— De segundo ou terceiro grau, sim.
Grey conhecia o homem, embora não pertencessem aos mesmos círculos, tanto sociais
quanto militares. Charles Grey era um assassino profissional com cara de porco, em vez de um
soldado, e mesmo que ele duvidasse que o Massacre de Paoli tinha sido inteiramente como
descrito — que tipo de idiotas ficariam deitados no chão esperando ser baionetados? Porque
ele não pensaria nem por um instante que um regimento de infantaria conseguiria esgueirar-
se no escuro do terreno acidentado a uma distância em que fosse possível cutucar o inimigo
sem que ninguém notasse sua presença — ele sabia das táticas impiedosas de Charles com a
baioneta em Colloden.
— Bobagem — Grey disse, com tanta confiança quanto conseguiu reunir — O que quer
que pensem sobre o alto comando americano, eu duvido que ele seja composto inteiramente de
tolos. Minha execução não serviria para nada, enquanto a minha troca poderia ser valiosa. Meu
irmão tem alguma influência.
Smith sorriu, não sem simpatia.
— Um excelente argumento, Lord John, e um argumento que certamente encontraria
apoio do General Washington. Infelizmente, o Congresso e o Rei permanecem em desacordo
sobre a questão de troca; no momento, não existe nenhum mecanismo para permitir a troca de
prisioneiros.
Aquele golpe o atingiu na boca do estômago. Ele sabia muito bem que não havia canais
oficiais de troca; ele tinha tentado promover a troca de William por meses.
Smith levantou a garrafa, deixando que a última gota âmbar caísse no copo de Grey.
— Você é um leitor da Bíblia, Coronel Grey?
Grey olhou para ele sem expressão.
— Não habitualmente. Eu já li, entretanto. Um pouco dela. Bem... Versículos. Por quê?
— Eu imaginei se você estava familiarizado com o conceito de um bode expiatório.
Smith balançou um pouco para trás em sua cadeira, olhando para Grey com seus
encantadores e profundos olhos, que pareciam carregar certa simpatia — embora fosse apenas
por causa da aguardente.
— Porque eu receio que seja onde os seus principais valores estão, Coronel. Não é segredo
algum que o Exército Continental está em condições difíceis, com falta de dinheiro, desilusão e
deserção. Nada poderia animar e unificar mais as tropas, ou enviar uma mensagem mais
potente ao General Clinton, do que o julgamento e a execução pública de um oficial britânico de
alta patente, um espião condenado e com relação estreita com o infame Grey sem Pederneiras.
Ele arrotou baixinho e piscou, os olhos ainda fixos em Grey.
— Você perguntou o que eu pretendo fazer com você.
— Não, eu não perguntei.
Smith ignorou isso, apontando um dedo longo e esticado para ele.
— Eu vou enviá-lo ao General Wayne, que, acredite em mim, tem “Paoli” esculpido em seu
coração.
— Deve ser muito doloroso para ele — Grey disse educadamente, e esvaziou o seu copo.
12 – EINE KLEINE NACHTMUSIK2
3 Como um padrão
Não havendo nenhum outro abrigo além dos restos de lona e das cabanas que os milicianos
manipulavam perto de suas fogueiras, ele foi escoltado de volta à grande tenda puída de Smith,
recebeu o jantar — que ele se forçou a engolir, sem notar muito bem o que estava comendo —
e depois foi preso ao pau da barraca com uma longa e fina corda amarrada através da cadeira
de seus ferros, com folga suficiente para permitir-lhe se deitar ou usar o penico.
Por insistência de Smith, ele tomou o catre e se deitou com um leve gemido de alívio. Suas
têmporas latejavam com cada batimento cardíaco, bem como toda a lateral esquerda de sua
face, que agora irradiava pequenos choques em seus dentes superiores, de forma muito
desagradável. A dor na lateral de seu corpo tinha adquirido o torpor das dores profundas, quase
insignificante por comparação. Por sorte, ele estava tão cansado que o sono sobrepujou o
desconforto e ele adormeceu com um sentimento de profunda gratidão.
Ele acordou na completa escuridão algum tempo depois, coberto de suor, o coração
batendo por causa de um sonho desesperado. Ele levantou a mão para empurrar o cabelo
encharcado de seu rosto e sentiu o pesado atrito dos grilhões, dos quais havia se esquecido. Eles
chiaram, e a figura escura da silhueta de uma sentinela que estava no brilho de fogo na entrada
da tenda se virou bruscamente em sua direção, mas depois relaxou quando ele se virou na cama,
fazendo mais barulho.
Pederasta, ele pensou, ainda grogue de sono. Não poderia nem se masturbar se quisesse. O
pensamento o fez rir, embora felizmente tenha saído como um mero sopro de som.
Outro corpo se virou, farfalhando, movendo-se muito perto dele. Smith, ele supôs,
dormindo em um saco de lona recheado com grama; Grey podia sentir o cheiro de feno seco do
prado, levemente mofado no ar úmido. O saco era padrão para o exército britânico; Smith devia
ter mantido isso, junto com sua tenda e outros equipamentos, mudando apenas o uniforme.
Por que ele tinha virado a casaca? Grey perguntou-se vagamente, olhando para a forma
corcunda de Smith, apenas visível contra a tela pálida. Avanço na carreira? Famintos como
estavam de soldados profissionais, os Continentais ofereciam patentes como incentivo; um
capitão em qualquer exército europeu poderia se tornar qualquer coisa, desde um Major até
um General num piscar de olhos, enquanto o único meio de alcançar postos mais altos na
Inglaterra era encontrando dinheiro para comprá-los.
O que era uma carreira sem pagamento, entretanto? Grey não era mais um espião, mas
tinha sido, uma vez — e ainda conhecia homens que trabalhavam naquele campo escuro. Pelo
que ele tinha ouvido, o Congresso Americano não tinha nenhum dinheiro e dependia de
empréstimos — estes imprevisíveis em quantidade e erráticos na ocorrência. Alguns eram
feitos de fontes francesas ou espanholas, embora os franceses não admitissem, é claro. Um
pouco vinha de agiotas Judeus, um de seus correspondentes havia dito. Salomon, Solomon...
Algum nome parecido.
Estas reflexões aleatórias foram interrompidas por um som que o fez endurecer. Uma
risada de mulher.
Havia mulheres no acampamento, esposas que foram para a guerra junto com seus
maridos. Ele tinha visto algumas quando fora transportado pelo terreno, e uma delas o trouxera
o jantar, olhando desconfiada para ele de baixo de sua touca. Mas ele achava que conhecia
aquela risada — profunda, borbulhante e totalmente consciente.
— Jesus! — ele sussurrou baixinho — Dottie?
Não era impossível. Ele engoliu seco, tentando clarear seu ouvido esquerdo, para ouvir
através da multiplicidade de pequenos sons externos. Denzell Hunter era um cirurgião
Continental, e Dottie tinha — para o horror de seu irmão, primo e tio — se juntado aos
seguidores do acampamento em Valley Forge a fim de ajudar o seu noivo, embora voltasse para
a Filadélfia regularmente para visitar seu irmão Henry. Se as forças de Washington estavam se
movendo — e muito claramente estavam — era perfeitamente possível que um cirurgião
pudesse estar em qualquer lugar no meio deles.
Uma voz alta e clara se elevou numa pergunta. Uma voz inglesa e não comum. Ele se
esforçou para ouvir, mas não conseguia distinguir as palavras. Ele gostaria que ela risse de novo.
Se fosse Dottie... Respirou fundo, tentando pensar. Não podia chamar por ela; havia
sentido a ávida hostilidade direcionada a ela de cada homem do acampamento — deixar que o
relacionamento fosse conhecido seria perigoso para ela e para Denzell, e certamente não
ajudaria Grey. E ainda assim ele tinha que arriscar — eles o transportariam no dia seguinte.
Por pura incapacidade de pensar em alguma coisa melhor, ele se sentou na cama e
começou a cantar “Die Sommernacht”. Baixinho no início, mas ganhando força e volume com o
tempo. Quando chegou ao “In den Kulungen wehn” no ápice de sua voz ressonante de tenor,
Smith sentou-se como um boneco saindo da caixa e disse — O quê? — em tom de espanto.
— So umschatten mich Gedanken na das Grab / Meiner Geliebten, und ich seh’im Walde /
Nur es dämmern, und es weht mir / Von der Blüte nicht her.
Grey continuou, reduzindo o volume em algum momento. Ele não queria que Dottie — se
fosse Dottie — viesse para olhar, só queria que ela soubesse que ele estava ali. Ele havia
ensinado aquela letra a ela quando tinha quatorze anos; ela a cantava frequentemente em
musicais.
— Ich genoß einst, o ihr Toten, es mit euch! / Wie umwehten uns der Duft und die Kühlung
/ Wie verschönt warst von dem Monde, / Du, o schöne Natur!
Ele parou, tossiu um pouco, e falou no silêncio marcante diante dele, pronunciando as
palavras, como se ainda estivesse bêbado. De fato, ele descobriu, estava.
— Posso beber um pouco de água, Coronel?
— Você vai cantar mais se eu der a você? — Smith perguntou, profundamente
desconfiado.
— Não, eu acho que acabei agora — Grey assegurou a ele — Não conseguia dormir, sabe?
Muita bebida... Mas descobri que a música acalma a mente ad-admiravelmente.
— Oh, é mesmo? — Smith respirou pesadamente por um momento, mas pôs-se de pé e
pegou a jarra de sua bacia. Grey podia senti-lo reprimindo o desejo de virar todo o conteúdo
sobre seu prisioneiro, mas Smith era um homem de caráter forte e meramente segurou o jarro
para que ele bebesse, e depois o colocou de volta no lugar, voltando para sua própria cama com
não mais do que alguns barulhos de irritação.
A canção tinha causado alguns comentários no acampamento, e algumas poucas almas
musicais se inspiraram e começaram a cantar tudo, desde “Greensleeves” — uma rendição
muito pungente e terna — até “Chester”. Grey realmente apreciou a cantoria, e foi apenas com
o exercício de seu próprio caráter forte que ele se absteve de sacudir os grilhões no final de:
Deixem que os tiranos agitem suas barras de ferro. E os escravos batam suas irritantes correntes.
Eles ainda estavam cantando quando ele adormeceu de novo, para sonhar em fragmentos
ansiosos, os vapores da aguardente à deriva nos espaços vazios de sua cabeça.
Chestnut Street, 17
O sino da Igreja Presbiteriana bateu meia-noite, mas a cidade não estava dormindo. Os sons
eram mais furtivos agora, abafados pela escuridão, mas as ruas ainda estavam vivas com pés
apressados e o som das carroças se movendo — e, à distância, eu ouvi um leve grito de “Fogo”
sendo iniciado.
Eu estava em pé na janela aberta, farejando o ar à procura de fumaça e observando se
havia algum sinal de chamas que poderiam se espalhar em nossa direção. Eu nunca tinha ouvido
falar que a Filadélfia havia sido incendiada em algum momento, como Londres e Chicago, mas
um fogo que meramente engolfasse toda a vizinhança seria tão ruim quanto isso do meu ponto
de vista.
Não havia nenhum vento; isso já era alguma coisa. O ar de verão pairava pesado, úmido
como uma esponja. Eu esperei um pouco, mas os gritos pararam, e eu não vi nenhum reflexo
vermelho de chamas contra o céu parcialmente nublado. Nenhum traço de fogo além das faíscas
verdes dos vagalumes, à deriva entre as folhas sombreadas do jardim da frente.
Fiquei ali um pouco, deixando meus ombros caírem, deixando de lado os meus planos
meio formados de uma evacuação de emergência. Eu estava exausta, mas não conseguia dormir.
Além da necessidade de manter vigilância sobre meu inquieto paciente e da atmosfera inquieta
além daquele cômodo silencioso, eu também estava inquieta. Estivera ouvindo durante o dia
todo, constantemente alerta a passos familiares, ao som da voz de Jamie. Mas ele não tinha
aparecido.
E se ele tivesse descoberto por John que eu tinha compartilhado sua cama naquela noite
de bebedeira? Será que o choque daquilo, contado sem a preparação ou a explicação adequada,
seria o suficiente para fazê-lo ir embora — por vontade própria?
Eu senti lágrimas repentinas chegando aos meus olhos e os fechei, com força, para conter
o fluxo, segurando o peitoril da janela com ambas as mãos.
Não seja ridícula. Ele virá o mais rápido possível, não importa o que tenha acontecido. Você
sabe que ele virá. Eu sabia. Mas o alegre choque de vê-lo vivo tinha despertado nervos que
estavam dormentes há muito tempo e, mesmo que eu pudesse parecer calma externamente,
dentro de mim as emoções estavam fervendo. O vapor estava tomando forma, e eu não tinha
uma forma de liberar a pressão — além das lágrimas inúteis, e eu não me renderia a elas.
Se começasse, eu poderia não ser capaz de parar. Pressionei a manga do meu roupão
brevemente em meus olhos, depois voltei resolutamente para a escuridão do quarto.
Um pequeno braseiro brilhava perto da cama sob um pano molhado estendido, lançando
uma luz vermelha e tremeluzente no rosto afiado de Pardloe. Ele estava respirando com audível
rouquidão e eu podia ouvir seus pulmões chacoalhando com cada expiração, mas era uma
respiração profunda e regular. Ocorreu a mim que eu poderia não ser capaz de sentir o cheiro
de fumaça lá de fora, se houvesse: a atmosfera do cômodo estava pesada com óleo de menta,
eucalipto... e maconha. Apesar da roupa úmida, fumaça suficiente tinha escapado do braseiro e
formava uma nuvem pairando em um redemoinho de tufos, movendo-se pálida como um
fantasma no ar escurecido.
Polvilhei mais água na tenda de musselina e me sentei na pequena poltrona ao lado da
cama, respirando a atmosfera saturada com cautela, mas com uma pequena sensação agradável
de prazer ilícito. Hal havia me dito que ele tinha o hábito de fumar cânhamo para relaxar os
seus pulmões e isso pareceu ser eficaz. Ele dissera “cânhamo”, e isso era, sem dúvida, o que ele
estava fumando; a forma psicoativa da planta não crescia na Inglaterra e não era comumente
importante.
Eu não tinha quaisquer folhas de cânhamo em meus suprimentos médicos, mas tinha um
bocado de ganja, que John tinha adquirido de um mercador da Filadélfia que possuía dois índios.
Era útil no tratamento de glaucoma, como pude perceber ao tratar a tia de Jamie, Jocasta, e
aliviava náusea e ansiedade — e também tinha usos não medicinais, como John me informou,
para meu divertimento particular.
Pensar em John me deu um pequeno remorso, para adicionar à minha ansiedade em
relação a Jamie, e eu deliberadamente respirei fundo, o ar doce e picante. Onde ele estava? O que
Jamie havia feito a ele?
— Você já fez barganhas com Deus? — a voz de Hal chegou até mim, baixa do meio da
escuridão.
Eu devia inconscientemente saber que ele não estava dormindo, porque não me assustei.
— Todos fazem isso — eu disse — Até mesmo pessoas que não acreditam em Deus. Você
faz?
Ele soltou uma risadinha, seguida de tosse, mas parou rapidamente. Talvez a fumaça
estivesse ajudando.
— Você tem alguma barganha em mente? — Perguntei, tanto por curiosidade real quanto
para manter uma conversa — Você não vai morrer, sabe? Eu não vou deixar.
— Sim, você disse isso — Ele replicou secamente. Depois de um momento de hesitação,
ele virou seu rosto para mim — Eu acredito em você — ele disse mais formalmente — E...
Agradeço.
— Não há de que. Eu não posso deixá-lo morrer na casa de John, sabe? Ele ficaria chateado.
Ele sorriu para isso, seu rosto visível no brilho do braseiro. Nós não falamos por um
tempo, mas ficamos olhando um para o outro, sem nenhum senso particular de
constrangimento, ambos calmos pela fumaça e pelo canto sonolento dos grilos lá fora. O som
das rodas de carroça tinha cessado, mas ainda havia pessoas passando. Certamente eu
conheceria os passos de Jamie, seria capaz de distingui-los, mesmo entre tantos...
— Você está preocupada com ele, não está? — ele perguntou — John.
— Não — eu disse rapidamente, mas vi uma sobrancelha escura se erguendo e me lembrei
de que ele já me conhecia como uma mentirosa ruim — Quer dizer... Eu tenho certeza de que
ele está bem. Mas eu esperava que ele estivesse em casa agora. E com tanta comoção na cidade...
— Eu gesticulei com a mão em direção à janela — Você não sabe o que pode acontecer, sabe?
Eu o ouvi respirar, o peito sacudindo fracamente, e limpar a garganta.
— E você ainda se recusa a me dizer onde ele está.
Eu levantei o ombro e o deixei cair; parecia inútil repetir que eu não sabia, mesmo que
fosse verdade. Em vez disso, peguei um pente da mesa e comecei a lidar com o meu cabelo,
desembaraçando e alisando a massa desalinhada, apreciando a sensação fresca em minhas
mãos. Depois de termos dado banho em Hal e o colocado na cama, levei quinze minutos para
lavar o meu próprio suor e tirar a poeira de meus cabelos, mesmo sabendo que demoraria horas
para secar naquele ar úmido.
— A barganha que eu tinha em mente não era pela minha própria vida — ele disse após
um tempo — Como pode ter parecido.
— Tenho certeza de que John não vai morrer, também, se é isso que você está...
— Não John. Meu filho. Minha filha. E meu neto. Você tem netos, eu imagino. Eu acredito
ter ouvido aquele robusto jovem chamando-a de Vovó esta tarde, não? — Sua voz continha um
traço de divertimento.
— Ouviu, e eu tenho. Quer dizer Dorothea? Aconteceu alguma coisa a ela? — Uma pontada
de alarme fez com que eu pousasse o pente. Eu tinha visto Dottie alguns dias antes, na casa onde
seu irmão Henry estava hospedado.
— Além do fato de que ela parece estar à beira de se casar com um Rebelde e declara seu
intento de acompanhar o homem nos campos de batalha e viver com ele sob as condições mais
insalubres imagináveis?
Ele se sentou na cama e falou com evidente paixão, mas eu não consegui evitar o sorriso
pelo seu modo de expressão; evidentemente os irmãos Grey compartilhavam o mesmo hábito
de expressão. Eu tossi para esconder o sorriso, entretanto, e repliquei com mais tato que eu
consegui.
— Hum... Você viu Dottie, então?
— Sim, eu vi — ele disse brevemente — Ela estava com Henry quando eu cheguei ontem,
e usava a roupa mais extraordinária. Evidentemente o homem por quem se considera
apaixonada é um Quaker, e ela declara que se tornou uma também!
— Então eu entendo que... — eu murmurei — você... é... não sabia disso?
— Não, eu não sabia! E eu tenho algumas coisas para dizer a John a respeito, tanto de sua
covardia ao não me dizer nada sobre isso, quanto às maqui... maquinações imperdoáveis de seu
filho — A cólera neste discurso literalmente o sufocou, e ele teve que parar e tossir, envolvendo
o joelho com os braços para se firmar contra os espasmos desgastantes.
Peguei o abanador que havia deixado em cima da mesa mais cedo e levei um pouco da
fumaça do braseiro para seu rosto. Ele engasgou, tossiu com mais força por um momento, e
depois melhorou, pigarreando.
— Eu diria que é melhor você não se exaltar, se pensasse que haveria a mínima chance de
você me ouvir — comentei, entregando-lhe uma xícara de tintura fervida de Efedrina com café
— Beba isso. Devagar. Quanto a John — eu continuei, observando-o fazer caretas pelo gosto
amargo — ele considerou escrever para você quando descobriu o que Dottie pretendia. Ele não
o fez, porque naquele momento ele pensou que aquilo poderia ser nada mais do que um
capricho passageiro e que, uma vez que ela visse a realidade de Denny... (é... esse é o seu noivo,
Dr. Hunter) de sua vida, ela poderia repensar tudo. E, se ela fizesse isso, não havia necessidade
de alarmar a você e à sua esposa. Ele nunca esperava que você aparecesse aqui.
Hal tossiu uma vez, depois respirou de forma hesitante.
— Nem eu — ele disse, e, colocando a xícara de lado, tossiu de novo e se inclinou contra
os travesseiros empilhados — O Ministério de Guerra decidiu enviar meu regimento para
apoiar Clinton quando a nova estratégia foi decidida; não houve tempo de escrever.
— Que nova estratégia é esta? — Eu perguntei, apenas levemente interessada.
— Separar as colônias do sul e do norte, suprimir a rebelião ali, e depois exaurir as
colônias do norte até a sua submissão. Manter os malditos franceses longe das Índias
Ocidentais, também — ele adicionou com uma reflexão tardia — Você acha que Dottie pode
mudar de ideia? — ele soava descrente, mas esperançoso.
— Na verdade, não — eu disse. Estiquei-me e corri os dedos pelo meu cabelo úmido, que
tinha se assentado suavemente sobre o meu pescoço e os meus ombros, levemente cacheado e
fazendo cócegas ao redor de meu rosto — Eu me perguntava se foi de você ou de sua esposa
que ela herdou os traços de teimosia, mas no instante em que te conheci, ficou claro para mim.
Ele estreitou os olhos para mim, mas teve a graça de sorrir.
— Ela herdou — ele admitiu — Bem como Benjamin, meu filho mais velho. Henry e Adam
são ambos parecidos com minha esposa em termos de temperamento. O que não significa que
eles não são capazes de encontrar o próprio caminho — ele adicionou pensativamente —, mas
apenas que são mais diplomáticos em relação a isso.
— Eu gostaria de conhecer a sua esposa — eu disse, sorrindo, também — Seu nome é
Minnie, John disse.
— Minerva — ele disse, seu sorriso crescendo mais genuinamente — Minerva
Cunnegunda, para ser exato. Não poderia chamá-la de “Cunny”, não é?
— Provavelmente não em público.
— Não tentaria experimentar em particular, também — ele me assegurou — Ela é muito
recatada, aparentemente.
Eu ri, e lancei um olhar para o braseiro. Eu não pensei que o princípio ativo da granja seria
tão forte, queimado no ar ao invés de diretamente fumado. Ainda assim, estava tendo um efeito
obviamente benéfico no humor de Hal, bem como em sua asma, e eu estava consciente de uma
ligeira sensação de bem-estar começando a rastejar em minha própria perspectiva. Eu ainda
estava preocupada com Jamie — e com John —, mas a preocupação tinha sido tirada de meus
ombros e parecia flutuar um pouco acima de minha cabeça: ainda visível, e de uma cor roxa-
acinzentada, mas flutuando. Como um balão de chumbo, eu pensei, e dei um pequeno e divertido
bufo.
Hal estava deitado de costas, olhos semicerrados, observando-me com uma espécie de
desligado interesse.
— Você é uma mulher bonita — ele disse, soando ligeiramente surpreso — Não é recatada,
porém — ele completou, e fez um ruído baixo de risada — No que John poderia estar pensando?
Eu sabia no que John estava pensando, mas não queria falar sobre aquilo — por inúmeras
razões.
— O que você quis dizer mais cedo? — Perguntei com curiosidade — Sobre fazer
barganhas com Deus...
— Ah — Suas pálpebras se fecharam lentamente — Quando eu cheguei ao escritório do
General Clinton... Deus, isso aconteceu nesta manhã mesmo? Ele tinha uma má notícia para
mim, e uma carta. Enviada algumas semanas antes de New Jersey, eventualmente encaminhada
a ele pelo correio do exército. Meu filho mais velho, Benjamin, tinha sido capturado pelos
rebeldes em Brandywine — ele disse, quase desapaixonadamente. Quase; havia luz suficiente
para que eu pudesse ver o músculo contraído em sua mandíbula — Até o momento, não há
nenhum acordo com os americanos, envolvendo a troca de prisioneiros, então ele permanece
em cativeiro.
— Onde? — eu perguntei, perturbada com a notícia.
— Eu não sei — ele disse brevemente — Ainda. Mas eu devo descobrir onde ele está o
mais rapidamente possível.
— Se Deus quiser — eu disse com sinceridade — A carta era de Benjamin?
— Não — Sua mandíbula se apertou ainda mais.
A carta era de uma jovem mulher chamada Amaranthus Cowden, que informava à Sua
Graça, o Duque de Pardloe, que ela era a esposa de seu filho Benjamin — e a mãe do filho de
Benjamin, Trevor Wattiswade Grey, que tinha três meses. Nascido depois de Benjamin ser
capturado, eu pensei, e imaginei se Benjamin saberia sobre o bebê.
A jovem Sra. Grey se encontrava em circunstâncias difíceis, escreveu ela, devido à triste
ausência do marido e, portanto, estava disposta a ir para a casa de seus parentes em Charleston.
Sentia-se um tanto constrangida em abordar Sua Graça por assistência, mas seu estado era tal
que ela sentia ter pouca escolha no assunto e esperava que ele perdoasse a sua petulância e
olhasse com bondade para o seu pedido. Ela anexou uma mecha de cabelo do seu filho, sentindo
que Sua Graça poderia apreciar ter tal lembrança de seu neto.
— Meu Deus! — Eu disse. Hesitei por um momento, mas o mesmo pensamento
certamente ocorrera a ele — Você acha que ela está dizendo a verdade?
Ele suspirou, um misto de ansiedade e agravamento.
— É quase certo que esteja. O nome de solteira de minha esposa era Wattiswade, mas
ninguém fora da minha família saberia disso — ele apontou para o guarda-roupa onde a Sra.
Figg pendurara o seu uniforme — A carta está em meu casaco, caso deseje ler.
Acenei a mão com uma educada negativa.
— Entendo o que quis dizer sobre fazer barganhas com Deus. Você gostaria de viver para
conhecer o seu neto... E para ver o seu filho, é claro.
Ele suspirou de novo, seu corpo magro parecendo diminuir ligeiramente. A Sra. Figg tinha
desmanchado a sua trança — contra a sua vontade —, escovado os seus cabelos, e os amarrado
em um rabo solto que agora caía sobre seus ombros, um amontoado macio marrom escuro com
mechas brancas, que agora cintilava em tons de vermelho e dourado com o brilho do fogo.
— Não necessariamente. Eu quero isso, é claro, mas... — Ele procurou pelas palavras,
diferente de sua elegante loquacidade anterior — Você morreria por eles, com felicidade. Sua
família. Mas ao mesmo tempo você pensa: Cristo, eu não posso morrer! O que poderia acontecer
a eles se eu não estiver mais aqui? — Ele me deu um sorriso irônico e triste — E você sabe muito
bem que não pode ajudá-los de qualquer forma; eles têm que fazer as coisas, ou não fazê-las,
por conta própria.
— Infelizmente, sim — Uma corrente de ar movimentou as cortinas de musselina e agitou
a mortalha de fumaça que pairava. — Não os netos, entretanto. Você pode ajudá-los.
E eu repentinamente senti falta do peso de Henri-Christian, sua cabeça sólida contra o
meu ombro; eu havia salvado sua vida ao remover suas amídalas e adenoides, e eu agradecia a
Deus por ter tido tempo de fazer isso. E Mandy... Deus, cuide dela, eu rezei intensamente. Eu
tinha sido capaz de dizer a Bree o que estava errado e que aquilo poderia ser consertado — mas
que eu não poderia consertar o defeito de seu coração, e eu lamentava a sua perda todos os dias
de minha vida. Se eu pudesse ter feito a cirurgia necessária, todos eles estariam aqui...
As cortinas se movimentaram de novo, e a atmosfera pesada recebeu uma limpa e
repentina brisa. Eu inalei profundamente, capturando o perfume fraco e afiado de ozônio.
— Chuva — eu disse — A chuva está vindo.
O duque não replicou, mas virou-se, levantando o rosto em direção à janela. Eu me
levantei e ergui um pouco a janela, deixando a brisa fresca entrar, com gratidão. Eu olhei para
a noite de novo; nuvens estavam passando rapidamente em frente à lua, e a luz parecia pulsar
ao invés de cintilar, como a batida de um coração. As ruas estavam escuras, nada mais do que o
ocasional brilho de uma lanterna para marcar a agitação silenciada da cidade.
A chuva podia aplacar o movimento, tanto dos Legalistas em fuga quando do exército se
preparando para partir. Será que a tempestade tornaria mais fácil para Jamie vir à cidade? Uma
tempestade muito intensa poderia dificultar, transformando as estradas em lama. Quão longe
ele estava?
O balão de chumbo desceu sobre a minha cabeça. Meu humor tinha dado um mergulho, se
de fadiga, se pela tempestade prestes a chegar ou se meramente como um efeito natural do
canabinol, eu não sabia. Eu tremi, embora o ar ainda estivesse quente, incapaz de impedir que
meu cérebro projetasse vívidas imagens de todas as possibilidades terríveis que podiam
acontecer a um homem preso entre dois exércitos, sozinho no meio da noite.
Talvez sozinho. O que ele tinha feito a John? Certamente ele não teria...
— Eu tinha vinte e um anos quando meu pai morreu — Hal comentou subitamente —
Adulto. Tinha minha própria vida, tinha uma esposa... — Ele parou abruptamente, sua boca
tremendo — Não pensei que precisava dele até ele não estar mais lá.
— O que ele poderia ter feito por você? — Eu perguntei, sentando-me novamente. Eu
estava curiosa, mas também ansiosa para evitar meus próprios pensamentos.
Hal levantou um ombro delgado. O colarinho da camisa de dormir estava desabotoado,
tanto por causa do calor quanto para que eu pudesse ver com mais facilidade o pulso em seu
pescoço. Estava aberto, o tecido pesado com a umidade, e sua clavícula aparente, limpa e
arqueada, sombreada contra sua pele.
— Ele ficaria lá — ele disse simplesmente — Ouvindo. Talvez... aprovando o que eu estava
fazendo — As últimas poucas palavras vieram baixas, quase inaudíveis — Ou talvez não. Mas...
Teria estado lá.
— Eu sei o que você quer dizer — eu disse, mais para mim mesmo do que para ele. Eu
tinha sido sortuda; eu era muito jovem quando meus pais morreram, e o meu tio tinha se
prontificado imediatamente a cuidar de mim, sempre esteve lá por mim. Mesmo com toda a
casualidade de sua vida, ele sempre esteve lá. Eu senti a sua perda duramente quando ele
morreu, mas já estava casada, então — um espasmo de culpa se apoderou de mim, do nada, ao
pensar em Frank. E outro, ainda pior, ante o pensamento de Brianna. Eu a tinha deixado, uma
vez, e em seguida ela me deixou.
Aquilo desencadeou uma confusão de pensamentos mórbidos: de Laoghaire, abandonada
por ambas as filhas, e que provavelmente nunca veria os seus netos, que agora eram meus. De
Jem e Mandy... E de Jamie.
Onde ele estava? E por que ele não estava aqui? Com certeza, independente do que John
houvesse dito a ele...
— Oh, Deus! — Eu disse, desesperadamente, sob a minha respiração. Eu podia sentir as
lágrimas arderem e se pressionarem contra a barreira de minha determinação.
— Sabe? Eu estou absolutamente faminto — Hal disse, soando surpreso — Tem alguma
comida na casa?
O estômago de Jamie grunhiu, e ele tossiu para cobrir o som, mas não havia necessidade. As
menininhas estavam enroladas como um par de ouriços sob uma colcha esfarrapada ao lado da
lareira, de costas uma para a outra e roncando como abelhas bêbadas.
A Sra. Hardman estava sentada na cadeira, cantando baixinho para o bebê. Ele não
conseguia ouvir as palavras, então não poderia dizer qual música era, mas imaginou que fosse
uma cantiga de ninar. Por outro lado, ele já tinha ouvido as mulheres das Highlands cantarem
para seus bebês adormecidos muitas vezes coisas como “Nighean Nan Geug”, que tratava de
cabeças decepadas e terra encharcada de sangue. Mas a Sra. Hardman era uma Amiga;
presumivelmente ela não teria esse tipo de canção em seu repertório. Talvez “The Great Silkie
of Sule Skerry”, ele pensou, começando a relaxar. Claramente Amigos não tinham objeção a
relações carnais, pelo que parecia...
Isso o fez se lembrar do maldito John Grey, e ele fez uma careta, e então reprimiu um
grunhido quando suas costas enviaram uma pontada em aviso até sua perna, indicando que até
mesmo aquele movimento não seria tolerado.
A canção não era mais música para ele do que o ronco, mas ambos eram sons suaves, e ele
foi se soltando aos poucos, checou se a faca e a pistola estavam perto de sua mão, e fechou os
olhos. Ele estava cansado até os ossos, mas duvidava que conseguiria dormir. Ele não podia nem
mesmo se virar na cama sem que facadas de dor o espetassem no traseiro como o tridente do
diabo.
Fazia anos desde que suas costas haviam feito isso a ele. Doíam frequentemente, vez ou
outra ficavam travadas pela manhã, mas não faziam aquilo há... dez anos? Ele se lembrava
vividamente. Foi logo depois de eles irem para Ridge, logo após ele e Ian construírem a cabana.
Ele tinha saído para caçar, saltou sobre um banco em busca de um alce que fugia, e se encontrou
deitado com a cara próxima ao banco, sem conseguir se mexer.
Claire, graças a Deus, tinha ido procurá-lo — ele sorriu ironicamente ao pensar nisso; ela
tinha ficado tão orgulhosa por ter conseguido rastreá-lo pela floresta. Se ela não o tivesse
encontrado... bem, teria sido uma questão de sorte se um leão da montanha, um urso, um lobo
ou um veado aparecessem antes que suas costas melhorarem. Ele supôs que não teria morrido
de frio, embora pudesse muito bem ter perdido alguns dedos congelados.
Ela...
Um som fez com que ele levantasse a cabeça, rapidamente. Suas costas doeram
violentamente, mas ele trincou os dentes, ignorando a dor, e puxou a pistola de baixo do
travesseiro.
A cabeça da Sra. Hardman se ergueu em sem movimento. Ela olhou para ele, com os olhos
arregalados, e depois ouviu o que ele tinha ouvido e se levantou apressadamente. Passos na
porta de entrada, mais do que um par. Ela se virou, olhando para o berço, mas ele balançou a
cabeça.
— Mantenha o bairnie com você — ele disse, com a voz baixa — Responda se eles baterem,
abra se eles pedirem.
Ele a viu engolir, mas ela fez o que ele tinha dito. Havia três ou quatro, ele pensou, mas
não pareciam inclinados à maldade. Havia passos na varanda, murmúrios baixos e um pouco de
risadas. Uma batida, e a Sra. Hardman atendeu — Quem está aí?
— Amigos, senhora — disse uma voz de homem, arrastada pela bebida — Deixe-nos
entrar.
Ela lançou um olhar aterrorizado para Jamie, mas ele assentiu, e ela levantou o trinco,
abrindo a porta para a noite. O primeiro homem começou a entrar, mas então viu Jamie na cama
e parou, boquiaberto.
— Boa noite para você — Jamie disse, educado, mas segurando o olhar do outro homem
com o seu. A pistola estava à vista de todos, debaixo de sua mão.
— Oh — disse o outro homem, desconcertado. Ele era jovem e bastante corpulento,
vestido com traje de caça, mas com um crachá de milícia; ele olhou sobre seu ombro para seus
companheiros, que tinham parado na soleira — Eu... é... Boa noite pra você, senhor. Nós não...
é... nós pensamos... — Ele limpou a garganta.
Jamie sorriu para ele, bem ciente do que ele tinha pensado. Mantendo o homem em sua
vista pelo canto do olho, ele virou para a Sra. Hardman e gesticulou para que ela se sentasse.
Ela fez isso e inclinou a cabeça sobre a criança, roçando os lábios sobre a pequena touca de
Chastity.
— Nós não temos nada a oferecer a vocês, senhores — Jamie disse — Mas há água fria do
poço, e uma cama no galpão, caso precisem.
Os outros dois homens ficaram lá fora, trocando o peso do corpo desajeitadamente. Havia
um forte cheiro de bebida alcoólica vindo deles, mas não pareciam estar com o humor para criar
problemas.
— Está tudo bem — o jovem disse, voltando para junto de seus amigos. Sua cara redonda
estava corada, tanto de vergonha quanto pela bebida — Nós vamos apenas... Perdão pelo
incômodo. Senhor.
Os outros balançaram a cabeça, e os três recuaram, arrastando-se e batendo um no outro
em sua pressa para sair. O último encostou a porta, mas não até o fim. A Sra. Hardman levantou-
se e a empurrou com um pequeno estrondo, então se inclinou contra ela, os olhos fechados, a
criança apertada contra o peito.
— Obrigada — ela sussurrou.
— Está tudo bem — ele disse — Eles não irão voltar. Coloque o bebê na cama e tranque a
porta, sim?
Ela fez como ele disse, e então se virou e se inclinou contra a porta, suas mãos
pressionadas contra ela. Ela olhou para o chão entre seus pés, respirando audivelmente por um
momento, e então lentamente se endireitou.
Seu casaco estava cheio de alfinetes — ele não sabia se era para evitar a vaidade dos
botões, como os Morávios faziam, ou se ela era simplesmente pobre demais para tê-los. Seus
dedos brincavam nervosamente com o alfinete superior; em seguida, ela o puxou
repentinamente para fora e colocou-o brilhando na prateleira. Ela olhou diretamente para ele,
então, os dedos segurando a cabeça do próximo alfinete. Seu longo lábio superior estava
pressionado e um suor de nervoso brilhava acima dele.
— Nem sequer pense sobre isso — ele disse, sem rodeios — Em minha atual situação, eu
não poderia me deitar nem com uma ovelha morta. Para não falar que eu sou velho o suficiente
para ser o seu pai, moça... E eu sou um homem casado, de qualquer maneira.
Sua boa tremia um pouco, embora ele não soubesse dizer se era por decepção ou alívio.
Seus dedos relaxaram, entretanto, e sua mão caiu ao lado do corpo.
— Você não precisa pagar pela comida, moça — ele disse — Foi um presente.
— Eu... sim, eu sei. Eu agradeço, Amigo — ela olhou de lado, engolindo um pouco — Eu
só... Eu esperava que talvez... você pudesse ficar. Por um tempo.
— Sou um homem casado, moça — ele repetiu gentilmente, e, depois de uma pausa
desconfortável, sentiu-se compelido a perguntar — Você recebe esse tipo de visitas muito
frequentemente?
Tinha ficado claro para ele que os homens eram desconhecidos para ela — mas que ela
não era desconhecida para eles. Eles já tinham ouvido falar da mulher Quaker que vivia sozinha
com suas três filhas.
— Eu os levo para o galpão — ela deixou escapar, seu rosto ficando mais vermelho do que
as chamas — Depois que as garotas estão dormindo.
— Mmphm — ele disse, depois de outra pausa que durou muito mais. Seus olhos foram
para o berço, mas, em seguida, se desviaram. Ele imaginou há quanto tempo o Sr. Hardman
tinha saído de casa, mas não era problema seu. Também não era problema seu como ela
alimentava as filhas — Durma, moça — ele disse — Eu vou ficar de guarda.
13 – AR DA MANHÃ REPLETO DE ANJOS
No dia seguinte
Jamie acordou com o cheiro de carne frita e se endireitou na cama, esquecendo-se das costas.
— Deus tenha misericórdia — disse a Sra. Hardman, olhando sobre o ombro — Não escuto
um som assim desde a última vez em que o meu marido, Gabriel, matou um porco — ela
balançou a cabeça e voltou a cozinhar, despejando a massa em uma panela de ferro fundido
oleada que, ao ser colocada na brasa, soltou fumaça e cuspiu de forma maléfica.
— Perdão, senhora...
— Silvia é o meu nome, Amigo. E o seu? — ela perguntou, levantando uma sobrancelha
para ele.
— Amiga Silvia — ele disse pelos dentes cerrados — Meu nome é Jamie. Jamie Fraser.
Ele levantou os joelhos com um empurrão involuntário que o colocou de pé, e agora ele
passava os braços ao redor deles, e encostava o rosto suado na colcha desgastada que o cobria,
tentando esticar as costas recalcitrantes. O esforço criou uma dor que desceu pela sua perna
direita e causou uma pontada instantânea no músculo da panturrilha esquerda, o que o fez
grunhir e gemer até que passasse.
— Fico feliz em vê-lo sentado, Amigo Jamie — Silvia Hardman comentou, trazendo para
ele um prato cheio de salsichas, cebolas fritas e um pouco de pão — Suas costas estão um pouco
melhores, eu imagino?
— Um pouco — ele conseguiu dizer, e sorriu de volta o tanto quanto pôde, tentando não
gemer — Você... tem comida fresca, eu vejo.
— Sim, graças a Deus — ela disse com fervor — Mandei Pru e Patience para a estrada
principal de madrugada para verem as carroças chegando para ir ao mercado da Filadélfia, e
elas voltaram com um quilo de linguiça, dois quilos de farinha de milho, um saco de aveia e uma
dúzia de ovos. Coma! — Ela colocou o prato de madeira na cama ao lado dele, junto com uma
colher de madeira.
Jamie podia ver Prudence e Patience atrás de sua mãe, diligentemente limpando a gordura
da linguiça de seus pratos vazios com pedaços de pão. Movendo-se cuidadosamente de modo a
colocar as costas contra a parede, ele esticou as pernas, pegou o prato e seguiu o exemplo.
A comida o encheu com uma surpreendente sensação de bem-estar, e ele baixou o prato
vazio de forma determinada, apesar do esforço.
— Eu pretendo visitar a sua latrina, Amiga Silvia. Mas eu posso precisar de um pouco de
ajuda para me levantar.
Uma vez em pé, ele pensou que poderia se mexer e caminhar poucos centímetros de cada
vez, e Prudence e Patience correram ao mesmo tempo para ampará-lo em seus cotovelos, como
pequenos apoios flutuantes.
— Não se preocupe — Prudence o aconselhou, enquadrando os ombros franzinos e
olhando com confiança para ele — Não o deixaremos cair.
— Tenho certeza de que não deixarão — ele disse gravemente.
De fato, as garotinhas tinham uma força rija que desmentia sua aparência frágil, e ele
achou que sua presença realmente ajudava, já que elas proviam algo em que se segurar para
manter o equilíbrio quando era necessário parar, como acontecia a cada poucos passos.
— Contem-me sobre as carroças que vão para a Filadélfia — ele disse em uma parada,
tanto para conversar quando porque realmente queria a informação — Elas chegam apenas no
começo da manhã?
— Na maioria das vezes — Patience disse — Elas voltam vazias uma hora ou duas antes
do pôr do sol — ela separou mais os pés, abraçando a si mesma — Está tudo bem — assegurou
a ele — Incline-se em mim. Você parece muito instável.
Ele apertou o seu ombro gentilmente em agradecimento e deixou que ela carregasse bem
pouco do seu peso. Instável, de fato. Era quase um quilômetro até a estrada principal; demoraria
cerca de uma hora para cambalear até lá, mesmo com a ajuda das garotas, e a probabilidade de
suas costas congelarem e ele encalhar no meio do caminho ainda era alta demais para arriscar.
Para não falar no risco de chegar à Filadélfia completamente incapaz de se mover. Amanhã, no
entanto...
— E vocês viram soldados na estrada? — ele perguntou, ensaiando um passo enérgico que
lançou uma dor lancinante de seus quadris até seu pé — Ai!
— Nós vimos — Patience disse, aumentando a força em seu cotovelo — Coragem, Amigo.
Você prevalecerá. Vimos duas companhias de milícia, e um oficial Continental em uma mula.
— Nós vimos soldados britânicos também, entretanto — Prudence adicionou, ansiosa
para não se esquecer — Eles estavam com uma fileira de carroças, indo para outra direção.
— Outra... Para longe da Filadélfia? — Jamie perguntou, seu coração pulando. A evacuação
do exército britânico já havia começado? — Você conseguiu ver o que havia nas carroças?
Prudence encolheu de ombros — Móveis. Baús e cestas. Havia senhoras montadas em
algumas das carroças, embora a maioria caminhasse ao lado delas. Não havia espaço — ela
esclareceu — Cuidado com a fralda de sua camisa, Amigo, ou sua modéstia estará em risco.
A manhã estava fria e ventosa, e uma rajada de vento errante havia levantado a barra de
sua camisa, o que foi maravilhoso para o seu corpo suado, mas definitivamente um risco para
os olhos de uma donzela.
— Quer que eu dê um nó entre as suas pernas — Patience perguntou — Eu posso fazer
um nó de vovó, um nó transpassado ou um nó quadrado. Meu pai me ensinou!
— Não seja boba, Patience — sua irmã disse irritada — Se você der um nó em sua camisa,
como ele vai levantá-la para evacuar? Ninguém pode desfazer os nós que ela faz — ela
confidenciou a Jamie — Ela sempre os faz muito apertados.
— Oh, eu não faço, mentirosa!
— Fale sobre si mesmo, irmã! Eu direi à mamãe o que você disse!
— Onde está o seu pai? — Jamie interrompeu, querendo parar a acrimônia antes que elas
começassem a puxar o cabelo uma da outra. Elas realmente pararam e trocaram olhares antes
de responderem.
— Nós não sabemos — Prudente disse, sua voz baixa e triste — Ele foi caçar um dia um
ano atrás e não voltou.
— Pode ser que os índios o tenham capturado — Patience disse, tentando soar
esperançosa — Se assim for, pode ser que ele escape um dia e volte para casa.
Prudente suspirou.
— Talvez — ela disse, sem rodeiros — Mamãe acha que a milícia atirou nele.
— Por quê? — Jamie perguntou, olhando para ela — Por que eles atirariam nele?
— Por ser um Amigo — Patience explicou — Ele não lutaria, e então eles pensaram que
ele era um Legalista.
— Entendo. Ele era... é... Quero dizer, ele é?
Prudente olhou para ele, grata pelo “é”.
— Eu acho que não. Mas a mamãe disse na reunião anual da Filadélfia que todos os Amigos
deveriam ser fieis ao Rei, já que o Rei manteria a paz e os Rebeldes estavam tentando acabar
com ela. Então — ela deu de ombros — as pessoas pensam que os Amigos são Legalistas.
— O papai não era... não é — Patience disse — Ele costumava dizer todo tipo de coisas
sobre o Rei, e a mamãe ficava preocupada e implorava para que ele segurasse a língua. Aqui
está a latrina — ela anunciou desnecessariamente, soltando o cotovelo de Jamie para abrir a
porta — Não se limpe com a toalha; ela é para as mãos. Há espigas de milho na cesta.
John Grey acordou febril e com os membros pesados, com uma dor de cabeça latejante, e uma
dor aguda em seu olho esquerdo quando tentou abri-lo. Ambos os olhos estavam cobertos de
crosta e remela. Tivera um sonho vívido, com trechos dispersos, uma confusão de imagens,
vozes, emoções... Jamie Fraser estava gritando com ele, o rosto escuro com paixão, mas então
alguma coisa mudou, algum tipo de perseguição começou, e ele caiu de costas em um pesadelo
nauseante. Eles estavam correndo juntos através de um pântano, um lamaçal que os sugava
puxando seus passos, e Fraser estava lutando na sua frente, preso, gritando para que ele
voltasse, mas ele não podia, seus pés estavam atolando rapidamente e ele estava afundando,
debatendo-se loucamente, mas não era possível se apoiar em alguma coisa...
— Gaah! — Uma mão apertou-lhe no ombro, arrancando-o para fora do pântano. Ele abriu
o olho bom e viu a forma oscilante de um jovem bem apessoado com um casaco escuro e óculos,
olhando para ele de uma forma estranhamente familiar.
— John Grey? — disse o jovem.
— Sou eu — ele disse. Ele engoliu dolorosamente — Eu tenho... a honra de conhecê-lo,
senhor?
O jovem corou um pouco.
— Você tem, Amigo Grey — ele disse, em voz baixa — Eu sou...
— Oh! — Grey disse, sentando-se repentinamente — É claro, você... Oh! Oh, Jesus — sua
cabeça perturbada pela mudança abrupta de postura, aparentemente tinha decidido voar para
fora de seus ombros e bater na parede mais próxima. O jovem... Hunter, ele pensou,
encontrando o nome com um asseio estranho entre o caos dentro de seu crânio. Dr. Hunter. O
Quaker de Dottie.
— Eu acho que é melhor se deitar, Amigo.
— Eu acho que é melhor vomitar antes.
Hunter pegou o penico de debaixo da cama na hora certa. Quando ele já estava
administrando água a ele — Beba lentamente, Amigo, se quiser mantê-la — e posicionava Grey
de volta ao catre, o Coronel Smith estava aparecendo atrás dele.
— O que acha, Doutor? — Smith estava franzindo o cenho e parecia preocupado — Ele
está em seu juízo perfeito? Ele estava cantando na noite passada, e agora estava gemendo e
dizendo coisas estranhas, e a aparência dele... — Smith fez uma careta de uma forma que fez
Grey pensar como diabos ele estava.
— Ele está terrivelmente febril — Hunter disse, com um olhar penetrante através de seus
óculos quando se inclinou para tomar o seu pulso — E veja a condição de seu olho. Seria
perigoso transportá-lo. Pode ocorrer extravasamento de sangue para o cérebro...
Smith fez um barulho descontente e comprimiu os lábios. Ele puxou Hunter de lado e se
inclinou sobre Grey.
— Você pode me ouvir, Coronel? — ele perguntou, falando da maneira lenta e distinta que
se usava para falar com idiotas e estrangeiros.
— Ich bin ein Fisch... — Grey murmurou beatificamente, e fechou os olhos.
— Seu pulso está muito desordenado — Hunter disse em advertência, seu polegar
pressionando o pulso de Grey. Sua mão era fria e firme; Grey achou o seu toque reconfortante
— Eu realmente não posso dizer as consequências de transportá-lo abruptamente.
— Entendo. — Smith ficou parado por um momento; Grey podia ouvir sua respiração
pesada, mas absteve-se de abrir os olhos — Muito bem, então. — Ele deu uma risada curta e
sem humor — Se Maomé não pode ir à montanha, a montanha virá alegremente até aqui. Eu
vou enviar um bilhete para o General Wayne. Faça o que puder, por favor, para que ele esteja
coerente, doutor.
Ele podia ver Denzell Hunter pelo seu olho danificado; aquilo era reconfortante: ele não estava
cego. Ainda. Hunter tinha removido seus óculos para observar mais claramente o órgão
machucado; ele tinha olhos muito bonitos, Grey pensou — as írises eram castanho-claras, da
cor de uma azeitona madura, com pequenas manchas de um verde muito profundo.
— Olhe para cima, por favor — Hunter murmurou.
Grey tentou atendê-lo.
— Ai!
— Não? Olhe para baixo — Esta tentativa não foi mais bem sucedida, e ele também não
podia mover o olho para a direita ou para a esquerda. Ele parecia ter se solidificado em sua
cavidade, como um ovo cozido. Ele contou sua teoria a Hunter, que sorriu, embora de uma forma
bastante preocupada.
— Há uma grande quantidade de inchaço, certamente. Seja o que for que o atingiu, o fez
com uma boa dose de força — Os dedos de Hunter se moveram gentilmente sobre a face de
Grey, cutucando aqui e ali de maneira questionadora — Isso aqui...
— Sim, dói. Não fique me perguntando se dói; tudo do meu couro cabeludo até o meu
queixo dói, incluindo a minha orelha esquerda. O que você disse sobre o sangue extravasar para
o cérebro... É verdade?
— É possível — Hunter sorriu, entretanto — Mas como você não mostrou disposição para
convulsões ou desmaios, salvo aquela devido ao álcool, e como você aparentemente caminhou
por muitas horas depois do ferimento, eu acho que talvez a probabilidade seja menor. Todavia,
há sangue ao redor da esclera — Seus dedos frios roçaram o inchaço — O globo ocular está
vermelho, bem como o revestimento da pálpebra. É bastante... dramático — Havia um distinto
tom de diversão em sua voz, que Grey achou reconfortante.
— Oh, bom — ele disse secamente — Quanto tempo vai demorar para melhorar.
Aquilo fez com que o Quaker fizesse uma careta e balançasse a cabeça.
— O sangue vai levar de uma semana a um mês para desaparecer; é essencialmente a
mesma coisa que acontece com contusões ou quando pequenos vasos sanguíneos estouram sob
a pele. O que me preocupa é a incapacidade de mover o olho. Eu acho que você teve uma fratura
da órbita óssea; o que está, de alguma forma, prendendo o músculo orbicular. Eu realmente
gostaria que sua esposa estivesse aqui; ela tem uma maior...
— Minha esposa — Grey disse, sem expressão — Oh! — Memória e realização colidiram,
e ele sentiu um salto repentino de espírito — Ela não é a minha esposa! Não mais! — ele
adicionou e se encontrou sorrindo. Ele se inclinou para frente para sussurrar no ouvido atônito
de Hunter — Jamie Fraser não está morto!
Hunter olhou para ele, piscou, colocou seus óculos de volta, e voltou a olhar, obviamente
repensando sua avaliação do cérebro de Grey.
— Foi ele que me bateu — Grey disse prestativo — Está tudo bem — ele acrescentou para
a careta de Hunter — Eu pedi por isso.
— Deus seja louvado! — Hunter sussurrou, abrindo um grande sorriso, aparentemente
com a notícia da sobrevivência de Fraser e não com a moralidade das ações de Grey — Ian
ficará... — Ele parou com um gesto indicando a sua incapacidade de descrever as prováveis
emoções de Ian Murray. — E a Amiga Claire! — ele exclamou, olhos grandes entre seus óculos
— Ela já sabe?
— Sim, mas... — Passos que se aproximavam fizeram com que Grey se lançasse de volta à
cama, com uma exclamação de dor completamente autêntica. Ele fechou os olhos e virou a
cabeça para um lado, gemendo.
— A montanha parece estar com o General Washington — Smith disse, claramente
desencantado. Grey sentiu que ele parou no catre, batendo-o com as pernas — Faça o que puder
para que ele seja capaz de viajar amanhã, Doutor... Nós o colocaremos em uma das carroças, se
necessário.
Chestnut Street, 17
Sua Graça acordou na manhã seguinte com os olhos vermelhos como um furão e
aproximadamente com o mesmo temperamento de um texugo nervoso. Se eu tivesse um dardo
tranquilizante, teria atirado nele sem hesitar por um instante. Na minha atual situação, eu
prescrevi a ele uma dose de conhaque a ser colocada no café em seu desjejum e — depois de
uma breve luta com minha consciência Hipocrática — adicionei uma pequena quantidade de
láudano.
Não podia dar muito a ele; o láudano diminuía a respiração, entre outras coisas. Ainda
assim, eu raciocinei, contando as aromáticas gotas marrom-avermelhadas na medida em que
elas pingavam no conhaque, era uma forma mais humana de lidar com ele do que coroá-lo com
o penico ou chamar a Sra. Figg para se sentar sobre ele enquanto eu o amordaçava e o amarrava
ao leito.
E eu realmente havia solicitado que ele ficasse tanto imóvel quanto calado por um tempo.
A Sra. Figg, uma pregadora da Sociedade Metodista, estava trazendo dois jovens da sociedade
que eram carpinteiros para consertarem a porta da frente e os arranhões sobre as persianas
das janelas do andar de baixo, para o caso de ataques itinerantes. Eu disse à Sra. Figg que ela
naturalmente podia confiar as nossas circunstâncias ao marido — eu não podia exatamente
impedi-la —, mas talvez ela pudesse ser persuadida a não mencionar a presença de Sua Graça,
com o intuito de proteger a segurança e a propriedade de Lord John — para não falar da
segurança de Sua Graça, que era, acima de tudo, presumivelmente o amado irmão de Lord John.
A Sra. Figg entregaria alegremente o duque para que fosse coberto com alcatrão e penas,
mas um apelo em nome de Lord John sempre teria importância para ela, e ela assentiu em sóbria
concordância. Contanto que Sua Graça não chamasse atenção para si mesmo gritando da janela
do andar superior ou arremessando coisas nos trabalhadores, ela pensou que sua presença
poderia ser ocultada.
— O que você pretende fazer com ele, entretanto, Lady John? — ela perguntou, olhando
cautelosamente em direção ao teto. Estávamos na sala de estar, conferindo, em voz baixa,
enquanto Jenny administrava o desjejum de Hal e fazia com que todo o café cheio de conhaque
fosse bebido — E se o exército enviar alguém para perguntar por ele?
Fiz um gesto de impotência.
— Eu não tenho ideia — confessei. — Apenas preciso mantê-lo aqui até que Lord John ou
meu... é... o Sr. Fraser... chegue. Eles saberão o que fazer com ele. Em relação ao exército, se
alguém vier para perguntar de Sua Graça, eu... bem... falarei com essa pessoa.
Ela me lançou um olhar que indicava que já tinha ouvido planos melhores, mas assentiu
relutantemente e saiu para pegar a cesta de mercado. A primeira coisa que acontece em uma
cidade recentemente ocupada é a escassez de alimento, e com o exército Continental prestes a
descer sobre a Filadélfia como uma praga de gafanhotos, as carroças que normalmente traziam
os produtos do campo seriam esparsas. Se cada exército já estivesse na estrada, eles estariam
aproveitando toda comida que passasse por eles.
À porta, entretanto, a Sra. Figg parou e se virou.
— E William? — ela exigiu — Se ele voltar... — Ela estava obviamente dividida entre a
esperança que ele voltasse, já que estava preocupada com ele, e a consternação pelo que
poderia acontecer se ele encontrasse seu tio em cativeiro.
— Falarei com ele — repeti firmemente, e acenei com a mão em direção à porta.
Correndo escada acima, eu encontrei Hal bocejando sobre uma bandeja quase vazia de
café da manhã e Jenny meticulosamente limpando a gema de ovo do canto de sua boca. Ela tinha
passado a noite na tipografia, mas voltara para ajudar, trazendo com ela uma maleta surrada
cheia de itens que poderiam ser úteis.
— Sua Graça tomou um bom café da manhã — ela relatou, dando um passo para trás para
examinar seu trabalho criticamente — E seus intestinos funcionaram. Eu o fiz tentar antes que
tomasse o café, só para garantir. Não tinha certeza quão rápido seria.
Hal franziu o cenho para ela, embora eu não pudesse dizer se era de perplexidade ou
ofensa. Suas pupilas já estavam notavelmente constritas, o que lhe conferia um olhar sonolento.
Ele olhou para mim e balançou a cabeça, como se tentasse clareá-la.
— Deixe-me fazer uma rápida verificação de seus sinais vitais, Sua Graça — eu disse,
sorrindo e me sentindo como Judas. Ele era meu paciente, mas Jamie era meu marido, e eu
endureci a minha determinação.
Seu pulso era lento e bastante regular, o que me tranquilizou. Peguei meu estetoscópio,
desabotoei a sua camisa de dormir e auscultei: batimentos cardíacos bons e estáveis, sem
palpitações, mas os pulmões estavam borbulhando como uma cisterna com vazamento, e sua
respiração era interrompida por pequenos suspiros.
— Seria melhor que ele tomasse um pouco de tintura de Efedrina — eu disse,
endireitando-me. Era um estimulante e antagonizaria com o ópio em seu sistema, mas eu não
podia arriscar uma parada respiratória enquanto ele dormia — Ficarei com ele; você poderia
descer e pegar uma xícara... Não se importe em esquentar, ele pode tomá-la fria mesmo — Eu
não tinha certeza de que ele se manteria consciente o suficiente até que a tintura fosse aquecida.
— Eu realmente preciso ir ver o General Clinton nesta manhã — Pardloe disse, com uma
surpreendente firmeza, considerando seu estado mental nebuloso. Ele limpou a garganta e
tossiu — Há acertos para fazer... Meu regimento...
— Ah... É... Onde está o seu regimento agora? — Perguntei cuidadosamente. Se eles
estivessem na Filadélfia, o ajudante de Hal começaria a procurar por ele seriamente a qualquer
momento. Ele poderia ter passado a noite com seu filho ou com sua filha, mas agora... E eu não
sabia precisamente quanta distração minhas notas falsas poderiam criar.
— Nova York — ele replicou — Ou, pelo menos, eu espero sinceramente que estejam lá
— Ele fechou os olhos, balançou-se sutilmente, e depois endireitou as costas com um sacolejo
— Acamparam lá. Eu vim para a Filadélfia... para ver Henry... Dottie — Seu rosto se contorceu
de dor — Com intenção... de voltar com Clinton.
— É claro — eu disse suavemente, tentando pensar. Quando, exatamente, Clinton e suas
tropas partiriam? Assumindo que Pardloe estivesse suficientemente recuperado para não
morrer sem minha assistência, eu poderia devolvê-lo assim que o êxodo estivesse a caminho.
Nesse ponto, ele não teria como iniciar uma busca por John e não colocaria Jamie em risco. Mas
certamente Jamie, com ou sem John, já estaria de volta nesse momento, não?
Quem voltou foi Jenny, com a tintura de Efedrina — e um martelo no bolso do avental,
juntamente com três robustas ripas debaixo do braço. Ela me estendeu a xícara sem tecer
comentários e começou a pregar as ripas sobre a janela, de uma forma surpreendentemente
rápida e competente.
Hal sorveu a Efedrina lentamente, observando Jenny com estupefação.
— Por que ela está fazendo isso? — ele perguntou, embora não parecesse se importar
muito com a resposta.
— Furacões, Sua Graça — ela disse com o rosto sério, e continuou martelando as madeiras,
com um barulho alegre que soava como um batalhão de pica-paus atacando a casa.
— Oh — Hal disse. Ele estava olhando vagamente ao redor da sala, possivelmente em
busca de suas calças, que a Sra. Figg tinha cuidadosamente levado e escondido na cozinha. Seus
olhos repousaram na pequena pilha de livros de Willie que eu tinha colocado em cima da mesa.
Evidentemente, ele reconheceu um ou outro, porque disse — Oh. William. Onde está William?
— Tenho certeza de que Willie está muito ocupado hoje — eu disse, e peguei seu pulso de
novo — Talvez possamos vê-lo mais tarde — Seu batimento cardíaco estava lento, mas ainda
forte. Assim que seu aperto afrouxou, eu peguei a xícara vazia e a coloquei na mesa. Sua cabeça
pendia, e eu o posicionei cuidadosamente de volta em seu travesseiro, de uma forma que a
respiração ficasse mais fácil.
Se ele voltar... — A Sra. Figg havia dito sobre Willie, com a óbvia implicação. — E depois?
De fato, o que aconteceria?
Colenso não tinha voltado, então presumivelmente ele tinha encontrado William; aquilo
era reconfortante. Mas o que William estava fazendo — ou pensando...
14 – TROVÃO INCIPIENTE
— Uma tarefa condizente com a sua situação peculiar — Major Findlay disse. Findlay não sabia
da missa a metade, William refletiu amargamente. Não que a sua situação não fosse peculiar,
mesmo sem as suas recentes descobertas.
Ele tinha se rendido em Saratoga, com o restante do exército de Burgoyne, em Outubro de
1777. Os soltados britânicos e seus aliados alemães tinham sido obrigados a ceder suas armas,
mas não foram mantidos prisioneiros; a Convenção de Saratoga, assinada por Burgoyne e pelo
general do Exército Continental, Gates, declarava que todas as tropas seriam autorizadas a
voltar para a Europa, uma vez que dessem a sua palavra de que não pegariam em armas
novamente no conflito americano.
Mas os navios não podiam navegar durante as tempestades de inverno, e alguma coisa
tinha que ser feita aos soldados capturados. Conhecido como o Exército da Convenção, eles
tinham marchado em massa para Cambridge, Massachussetts, para aguardar a primavera e a
repatriação. Todos, com exceção de William e alguns outros como ele, que tinham conexões
influentes na América, ou conexões com Sir Henry, que tinha sucedido Howe como comandante
chefe da campanha americana.
William, camarada de sorte, tinha ambos; ele tinha servido na equipe pessoal de Howe,
seu tio era coronel de um regimento, e seu pai era um influente diplomata, principalmente na
Filadélfia. Ele tinha sido solto sob uma excepcional concessão de liberdade condicional, como
um favor ao General Lord Howe, e enviado para Lord John. Ele, entretanto, ainda fazia parte do
exército britânico, meramente não podendo lutar. E o exército tinha um bom número de tarefas
desagradáveis que não envolviam combate; o General Clinton estava encantado em poder fazer
uso dele.
Profundamente preso por sua situação, William tinha implorado ao seu pai que tentasse
transferi-lo; isso removeria as restrições de sua liberdade condicional e permitiria que ele
retomasse os deveres militares. Lord John estava bastante disposto a fazer isso, mas em Janeiro
de 1778 tinha havido um desentendimento entre o General Burgoyne e o Congresso Continental
sobre a recusa do primeiro em fornecer uma lista de soldados rendidos. A Convenção de
Saratoga tinha sido repudiada pelo Congresso, que depois declarou que deteria o exército
inteiro até que a convenção e a lista exigida fossem ratificadas pelo Rei George — o Congresso
sabendo muito bem que o Rei não faria algo assim, já que tal ato equivaleria a reconhecer a
independência das colônias. O resultado disso era que não havia, no momento, nenhum
mecanismo em absoluto para a troca de prisioneiros. Qualquer prisioneiro.
O que deixava William em uma posição profundamente ambígua. Tecnicamente, ele era
um prisioneiro foragido, e no caso altamente improvável de ele ser capturado novamente pelos
americanos e descoberto pelos oficiais de Saratoga, ele prontamente teria que marchar para
Massachussets e definhar pelo resto da guerra. Ao mesmo tempo, ninguém estava muito certo
se era apropriado para ele pegar em armas novamente, já que, mesmo que a convenção tenha
sido repudiada, William ainda tinha recebido uma liberdade condicional.
O que conduzia à atual desagradável situação de William, no comando das tropas que
auxiliavam a evacuação dos ricos Legalistas da Filadélfia. A única coisa que ele acharia pior que
isso seria conduzir um rebanho de suínos pelo buraco de uma agulha.
Enquanto os cidadãos mais pobres que se sentiam ameaçados pela proximidade das
milícias do General Washington eram obrigados a enfrentar os perigos das estradas, fazendo o
seu êxodo por carroças, carrinhos de mão, e a pé, os Legalistas mais ricos tinham autorização a
uma remoção mais segura, e teoricamente mais luxuosa, por navio. E nenhum deles poderia ser
levado a compreender que não havia mais de um navio atualmente disponível — o próprio
navio do General Howe — e espaço muito limitado a bordo dele.
— Não, senhora, eu sinto muito, mas é quase impossível acomodar...
— Bobagem, meu jovem, o avô de meu marido comprou aquele relógio de coluna na
Holanda, em 1670. Ele mostra não apenas as horas, mas também as fases da lua e uma tabela
completa das marés para a Baía de Nápoles! Certamente você não espera que eu permita que
tal instrumento caia nas garras dos Rebeldes?
— Sim, minha senhora, receio que sim. Não, senhor, sem os servos; apenas os membros
da sua família imediata e uma pequena quantidade de bagagem. Tenho certeza de que os seus
servos ficarão perfeitamente seguros...
— Mas elas morrerão de fome! — Exclamou um senhor com aparência cadavérica que
estava relutante em se separar de sua talentosa cozinheira e de sua voluptuosa empregada
doméstica, que, se não fosse talentosa para arrumar a casa, obviamente tinha outras
habilidades desejáveis, claramente visíveis — Ou podem ser capturadas. Elas são minha
responsabilidade! Certamente você não pode...
— Eu posso — disse William firmemente, com um olhar de soslaio apreciativo para a
empregada doméstica — e eu devo. Cabo Higgins, por favor conduza as servas do Sr. Hennings
em segurança para fora do cais. Não, madame. Eu concordo que as poltronas gêmeas são muito
valiosas, assim como a vida das pessoas que se afogarão se o navio afundar. Você pode levar o
seu relógio carrilhão, sim — Ele elevou a voz e gritou — Tenente Rendill!
Rendill, com o rosto vermelho e suado, abriu caminho através da multidão de evacuadores
empurrando, xingando, arfando e gritando. Chegando à frente de Willian, que estava em cima
de uma caixa para evitar ser pisoteado ou empurrado para a água pela multidão, o tenente
saudou, mas foi rudemente empurrado por várias pessoas que tentavam ganhar a atenção de
William e terminou com sua peruca caindo nos olhos.
— Sim, senhor? — ele disse corajosamente, colocando a peruca de volta no lugar e
acotovelando um senhor para fora do caminho o mais educadamente possível.
— Aqui está uma lista dos conhecidos pessoais do General Howe, Rendill. Vá a bordo e
veja se todos eles já embarcaram. Se não tiverem embarcado... — Ele lançou um olhar eloquente
sobre a multidão que afluía das docas, rodeadas de montanhas de posses semiabandonados e
bagagens pisoteadas, e empurrou a lista sem a menor cerimônia na mão do tenente —
Encontre-os.
— Oh, Deus — disse Rendill — Eu quero dizer... sim, senhor. Agora mesmo, senhor — E,
com um ar desesperado, ele se virou e começou a nadar por entre a multidão, fazendo uma
forma modificada, mas vigorosa, de nado de peito.
— Rendill!
Rendill obedientemente se virou e voltou resignadamente ao alcance de sua voz, um boto
vermelho abrindo o caminho através de cardumes de arenque histéricos.
— Senhor?
William inclinou para baixo e abaixou a voz a um volume inaudível para a turba de pessoas
ao redor deles, então acenou em direção à pilha de móveis e bagagens amontoadas por toda a
doca — muitas delas perigosamente perto da borda.
— Enquanto você estiver passando, diga aos companheiros na doca que eles não devem
fazer muito esforço para impedir que essas coisas caiam no rio, ok?
O rosto suado de Rendill iluminou-se surpreendentemente.
— Sim, senhor! — Ele bateu continência e voltou a nadar entre as pessoas, irradiando um
renovado entusiasmo, e William, com a alma um pouco aliviada, virou-se cortesmente para
atender às reclamações de um pai alemão atormentado com seis filhas, todas carregando o que
parecia ser os seus roupeiros inteiros, rostos redondos ansiosos espiando por entre as abas
largas de seus chapéus de palha e as pilhas de seda e renda em seus braços.
Paradoxalmente, o calor e os trovões incipientes adequavam-se ao seu humor, e a absoluta
impossibilidade de sua tarefa o relaxou. Uma vez que ele percebera a futilidade de satisfazer
todas estas pessoas — ou até mesmo uma a cada dez delas —, ele parou de se preocupar com
isso, tomou os passos que podia para preservar a ordem, e deixou que sua mente vagasse para
outro lugar enquanto se inclinava com cortesia e fazia ruídos tranquilizadores para a falange
de rostos prementes que pairavam sobre ele.
Se ele estivesse com humor voltado à ironia, ele refletiu, haveria muito para contornar. Ele
não era nem peixe, nem frango e nem um bom corte de carne vermelha, como os camponeses
diziam de um corte de carne duvidoso. Não era completamente um soldado, nem um civil. E,
evidentemente, não era um inglês, nem um conde... e, ainda assim... como ele poderia não ser
um inglês, pelo amor de Deus?
Uma vez que ele tinha recuperado seu temperamento o suficiente para pensar, havia
percebido que ainda era legalmente o Nono Conde de Ellesmere, independentemente de sua
paternidade. Seus pais — seus pais verdadeiros — seus pais teoricamente verdadeiros —
tinham inegavelmente se casado no momento de seu nascimento. No momento, porém, aquilo
pareceu tornar a situação ainda pior: como ele poderia deixar que as pessoas pensassem e
agissem com se ele fosse o herdeiro de sangue de Ellesmere quando ele sabia muito bem que,
na realidade, era filho de...
Ele engasgou diante daquele pensamento, empurrando-o violentamente para o fundo de
sua mente. “Filho de” trouxe Lord John de forma vívida à sua mente, entretanto. Ele respirou
fundo, no ar quente e cheirando a peixe, tentando acabar com a angústia que lhe sobreveio de
repente ao pensar em Papai.
Ele não queria admitir para si mesmo, mas tinha passado o dia todo olhando pela
multidão, examinando os rostos à procura de seu pa... sim, droga, seu pai! John Grey era tanto
seu pai agora como sempre havia sido. Sendo um maldito mentiroso ou não. E William estava
ficando preocupado com ele. Colenso havia relatado naquela manhã que Lord John não tinha
voltado para casa — e Lord John já devia ter voltado. E se ele tivesse, ele teria vindo procurar
William, ele tinha certeza disso. A menos que Fraser o tivesse matado.
Ele engoliu bile com o pensamento. Por que ele faria isso? Eles tinham sido amigos, um
dia. Bons amigos.
É verdade que a guerra cortava tais laços. Mas, mesmo assim...
Por causa da Mãe Claire? Ele recuou ante este pensamento, também, mas se obrigou a
voltar para ele. Ele ainda podia ver o seu rosto, brilhando apesar de todo o tumulto, feroz como
a chama com a alegria de ver Jamie Fraser, e sentiu uma pontada de ciúme em nome de seu pai.
Se Fraser sentia uma paixão similar, pode ser que... Mas aquilo não fazia sentido! Certamente
ele perceberia que Lord John apenas a tinha colocado sob sua proteção — e feito isso pelo bem
de seu bom amigo!
Mas, então, eles estavam casados... e seu pai sempre tinha sido muito aberto nas questões do
sexo... Seu rosto ficou ainda mais quente, com o constrangimento da visão de seu pai deitando-
se com entusiasmo com a quase ex-Sra. Fraser. E se Fraser descobrisse isso...
— Não, senhor! — ele disse bruscamente para o comerciante inoportuno que, ele
percebeu tardiamente, tentara suborná-lo para ser admitido, junto com sua família, no navio de
Howe. — Como ousa? Vá embora, e considere-se afortunado por eu não ter tempo de lidar com
você como deveria!
O homem arrastou-se desconsolado para longe e William sentiu uma pequena pontada de
remorso, mas havia, de fato, pouca coisa que ele pudesse fazer. Mesmo que ele fosse capaz de
fazer um favor ao mercador, uma vez que o suborno fora oferecido, ele não teve escolha.
Mesmo que fosse verdade, como Fraser havia descoberto? Certamente Lord John não teria
sido tolo o bastante para dizer a ele. Não, devia haver outra coisa que estava atrasando o retorno
de Papai — sem dúvida, com a confusão de pessoas deixando a Filadélfia, as estradas deviam
estar lotadas...
— Sim, senhora. Eu acho que temos lugar pra você e sua filha — ele disse para uma jovem
mãe, que parecia muito aterrorizada, com um bebê agarrado em seu ombro. Ele esticou a mão
e tocou a bochecha da criança; ela estava acordada, mas não estava se importando com a
multidão, e olhou-o com olhos castanho-claros e de cílios longos — Olá, querida. Quer viajar
num barco com a sua mamãe?
A mãe soltou um soluço abafado de alívio.
— Oh, obrigada, Lord... É Lord Ellesmere, não?
— É — ele disse automaticamente, e depois sentiu como se alguém o tivesse socado na
barriga. Ele engoliu e seu rosto queimou.
— Meu marido é o Tenente Beaman Gardner — ela disse, oferecendo o nome como uma
justificativa ansiosa de sua misericórdia, e fez uma pequena cortesia — Nós já nos conhecemos.
Na Mischianza?
— Sim, claro! — ele disse, curvando-se, embora não se lembrasse da Sra. Gardner — Fico
honrado em prestar um serviço para a esposa de um oficial irmão, minha senhora. Teria a
gentileza de subir a bordo diretamente, por favor? Cabo Anderson? Escolte a Sra. Gardner e a
Senhorita Gardner ao barco.
Ele se curvou mais uma vez e se virou, sentindo-se como se as suas entranhas tivessem
sido lançadas para fora. Oficial irmão. Meu senhor. E o que a Sra. Gardner pensaria se soubesse?
O que o próprio Tenente pensaria?
Ele suspirou profundamente, fechando os olhos por um instante de fuga. Quando os abriu,
encontrou-se cara a cara com o Capitão Ezekiel Richardson.
— Stercus! — ele exclamou, adotando o hábito de Hal de amaldiçoar em latim nos
momentos de estresse.
— De fato — Richardson comentou educadamente — Posso ter uma palavra com você?
Sim, apenas... Tenente! — Ele acenou para Rendill nas proximidades, que estava encarando uma
mulher idosa de roupa preta com nada menos do que quatro cães pequenos latindo em seus
calcanhares, seguros por um menino negro muito sofrido. Rendill fez um movimento para ela e
se virou para Richardson.
— Senhor?
— Substitua o Capitão Lord Ellesmere, por favor. Eu preciso de um pouco do tempo dele.
Antes que William pudesse decidir se iria se opor ou não, Richardson o tinha pegado pelo
cotovelo e o rebocava para fora da confusão e para dentro de uma pequena casa de barcos azul-
celeste que ficava na beira do rio.
William respirou fundo com o alívio quando a sombra caiu sobre ele, mas já tinha
recuperado o juízo neste momento. Seu primeiro impulso tinha sido falar bruscamente com
Richardson — talvez jogá-lo no rio —, mas a sabedoria falou em seus ouvidos, advertindo-o.
Era por incentivo de Richardson que William tinha se tornando em pouco tempo um
agente da inteligência para o exército, coletando informações no contexto de várias viagens e
entregando-as a Richardson. Na última destas missões, entretanto, uma viagem para o Grande
Pântano Sombrio da Virgínia, William tivera a infelicidade de se perder, ser ferido e sofrer uma
febre que o teria matado se Ian Murray não o tivesse encontrado e resgatado — e no meio do
resgate, informado a William que ele quase certamente fora enganado e enviado, não ao seio
dos aliados britânicos, mas para o ninho dos rebeldes, que o enforcariam se descobrissem quem
ele era.
William tinha a mente dividida entre acreditar ou não em Murray — particularmente
depois da chegada de Jamie Fraser, que tornara patentemente claro que Murray era seu primo,
mas não sentira necessidade de informá-lo do fato. Mas uma profunda suspeita de Richardson
e seus motivos permaneciam, e não foi um rosto amigável que ele lançou para o homem.
— O que você quer? — Ele disse abruptamente.
— Seu pai — Richardson replicou, fazendo com que o coração de William desse um salto
que ele pensou ser audível pelo outro homem — Onde está Lord John?
— Não tenho a menor ideia — William disse brevemente — Eu não o vejo desde ontem
— O dia em que minha maldita vida acabou — O que você quer com ele? — Ele perguntou, não
se importando em manter qualquer aparência de cortesia.
Richardson estreitou os olhos para ele, mas não correspondeu ao seu tom.
— Seu irmão, o Duque de Pardloe, está desaparecido.
— O quê? — William olhou para ele por um momento, sem compreender — Seu irmão?
Desapareceu... de onde? Quando?
— Evidentemente da casa de seu pai. Quanto ao momento: Lady John disse que ele saiu
da casa logo após o chá ontem à tarde, presumivelmente procurando por seu pai. Você o viu
desde então?
— Eu não o vi em momento algum — William sentiu um sino distinto em seus ouvidos,
provavelmente seu cérebro tentando sair através deles — O que... Quero dizer, eu não tinha
ideia que ele estava na Filadélfia. Nem nas colônias, aliás. Quando ele chegou? — Jesus, ele tinha
vindo para lidar com Dottie e seu Quaker? Não, ele não teria vindo para isso, ele não poderia ter
tempo para... Poderia?
Richardson contraiu uma sobrancelha para ele, provavelmente tentando determinar se
ele estava dizendo a verdade.
— Eu não vi nenhum deles — William disse categoricamente — Agora, se você me der
licença, Capitão... — Houve um tremendo barulho vindo da direção das docas e um alto coro de
choque e consternação da multidão — Com licença — William repetiu, e se virou para ir
embora.
Richardson o agarrou pelo braço e fez um esforço para prender William com seu olhar.
William olhou deliberadamente na direção de seu dever negligenciado.
— Quando vir qualquer um deles, Capitão Ransom, envie uma nota para mim. Seria de
grande ajuda, para muitas pessoas.
William libertou seu braço e saiu sem responder. Richardson tinha usado o seu nome de
família em vez do seu título — aquilo significava alguma coisa além de mera grosseria? Naquele
momento, ele não se importava. Ele não podia lutar, ele não podia ajudar ninguém, ele não podia
dizer a verdade, e ele não viveria uma mentira. Puta que pariu, ele estava preso como um porto,
atolado até os jarretes.
Ele limpou o suor de seu rosto com a manga, endireitou os ombros, e caminhou de volta
para a balbúrdia. Tudo o que havia a fazer era o seu dever.
15 – UM EXÉRCITO EM MOVIMENTO
Estávamos exatamente dentro do horário. Assim que fechei a porta do quarto sobre o ronco
suave de Pardloe, uma batida soou na recém-instalada porta da frente. Corri para baixo para
encontrar Jenny face a face com um soldado britânico, desta vez um tenente. General Clinton
estava escalando seus inquiridores.
— Ora, não, rapaz — ela estava dizendo, em um tom de leve surpresa — o coronel não
está aqui. Ele tomou chá com Lady John ontem, mas depois saiu para procurar pelo irmão. Sua
senhoria ainda não voltou e — eu a vi se inclinar mais para perto, sua voz abaixando
dramaticamente — a senhora está preocupada. Você não tem notícias dele, eu suponho?
Esta era a minha deixa, e eu apareci no andar térreo, bastante surpresa ao descobrir que
eu estava, de fato, preocupada. Cuidar de Hal tinha me distraído da situação temporariamente,
mas agora não havia como negar que alguma coisa estava indo terrivelmente mal.
— Lady John. Tenente Roswell, seu criado, senhora — O tenente se inclinou, com um
sorriso profissional que não escondia o ligeiro franzido em sua testa. O exército também estava
ficando preocupado, e isso era muito perigoso — Seu servo, senhora. Você realmente não tem
notícias de Lord John ou de Lord Melton... Oh, perdão, senhora, eu quis dizer... de Sua Graça?
— Acha que eu sou uma mentirosa, rapaz? — Jenny disse sarcasticamente.
— Oh! Não, senhora, de forma alguma — ele disse, corando — Mas o general vai querer
saber que eu falei com sua senhoria.
— É claro — eu disse suavemente, embora meu coração estivesse batendo na garganta.
— Diga ao general que eu não ouvi nada sobre meu marido. — nenhum deles — Estou muito
perturbada. — Eu não era uma boa mentirosa, mas não estava mentindo em relação a isso.
Ele fez uma careta.
— O fato é, senhora, que o exército começou a se retirar da Filadélfia, e todos os Legalistas
que sobraram na cidade estão sendo advertidos que... é... devem fazer suas preparações — Seus
lábios se comprimiram por um momento enquanto ele olhava para as escadas, com seu
corrimão em ruínas e as marcas de sangue — Eu... Vejo que já experimentou alguma...
dificuldade?
— Oh, não — Jenny disse, e com um olhar depreciativo para mim, deu um passo para mais
perto do tenente e colocou a mão em seu braço, levando-o gentilmente em direção à porta. Ele
automaticamente se moveu junto com ela, e eu a ouvi murmurar — ... não foi nada além de uma
briga familiar... sua senhoria...
O tenente me lançou um rápido olhar, no qual surpresa se mesclava a uma certa simpatia.
Mas as linhas de sua testa diminuíram. Ele teria uma explicação para levar de volta a Clinton.
Sangue fluiu para as minhas bochechas com o seu olhar — como se realmente tivesse
ocorrido uma briga de família, durante a qual Lord John saíra de casa, deixando em seu encalço
os destroços e uma esposa à mercê dos rebeldes. É verdade que houvera uma briga de família,
mas as circunstâncias eram mais complicadas do que uma mera questão de escândalo comum.
O Coelho Branco fechou a nossa nova porta firmemente sobre o Tenente Roswell e depois
se virou para mim, as costas pressionadas na porta.
— Lord Melton? — ela perguntou, uma sobrancelha negra levantada.
— É um dos títulos do duque, que ele usava antes de se tornar o Duque de Pardloe. O
Tenente Roswell deve tê-lo conhecido alguns anos atrás — eu expliquei.
— Oh, sim. Bem, lorde ou duque, por quanto tempo podemos mantê-lo dormindo? — ela
perguntou.
— O láudano vai mantê-lo apagado por duas ou três horas — repliquei, olhando para o
relógio de carrilhão dourado sobre a lareira, que de alguma forma havia escapado da carnificina
—, mas ele teve um dia muito difícil ontem e uma noite bastante conturbada; ele pode muito
bem dormir naturalmente quando a droga perder o efeito. Se ninguém colocar a casa abaixo e
acordá-lo — eu adicionei, estremecendo com os sons de uma altercação violenta em algum
lugar próximo.
Jenny assentiu — Sim. É melhor que eu vá à tipografia agora, então, para saber quais são
as notícias da cidade. E talvez Jamie apareça por lá — ela adicionou esperançosamente —,
pensando que não é seguro vir até aqui, quero dizer, com as ruas cheias de soldados.
Uma centelha de esperança brilhou com essa sugestão, como um fósforo. Entretanto,
mesmo que eu imaginasse essa possibilidade, eu sabia que, se Jamie estivesse a cidade, ele
estaria parado na minha frente neste momento. Possivelmente enfurecido, possivelmente
perturbado, mas na minha frente.
Com o exército começando a se retirar, e os distúrbios públicos concomitantes, ninguém
teria tempo ou inclinação para notar — e muito menos prender — um escocês alto e suspeito
de nada mais do que distribuir material insidioso. Não era como se houvesse um boletim de
todos os pontos do que ele já tinha feito — pelo menos, eu esperava que não. William era o
único soldado que sabia que Jamie tinha levado Lord John como refém, e pela maneira como ele
havia partido, eu imaginava que a última coisa que William teria feito seria dar um relatório
completo da situação aos seus superiores.
Disse isso a Jenny, embora concordássemos que ela deveria ir à tipografia, para verificar
o bem-estar da família de Fergus e Marsali, bem como para descobrir o que estava acontecendo
entre os Rebeldes da cidade.
— Você ficará segura nas ruas? — perguntei, desdobrando seu casaco e segurando-o para
que ela vestisse.
— Oh, eu espero que sim — ela disse rapidamente — Ninguém tem muito o que pensar
ao olhar para uma mulher velha. Mas eu suponho que seja melhor eu não exibir as minhas
pequenas riquezas.
A riqueza em questão era um pequeno relógio de prata, coberto delicadamente com
filigranas, que ela usava pendurado no decote do vestido.
— Jamie comprou para mim em Brest — ela explicou, vendo-me olhar para ela enquanto
o tirava do decote — Eu disse a ele que era tolice; eu não precisava de uma tolice dessas para
saber as horas, não mais do que ele. Mas ele disse que não, eu deveria tê-lo, porque saber as
horas dava a ilusão de que eu teria controle sobre as circunstâncias. Sabe como ele é — ela
adicionou, colocando o relógio cuidadosamente em seu bolso —, sempre explicando as coisas
para si mesmo. Embora eu deva admitir que, em geral, ele não está errado. E agora — ela
continuou, virando-se para mim enquanto abria a porta — Eu voltarei antes que aquele que
está dormindo lá em cima acorde, a menos que não consiga. E, se eu não conseguir, vou pedir
para que Germain avise.
— Por que você não poderia? — perguntei, com alguma surpresa.
— O Jovem Ian — ela disse, igualmente surpresa por eu não ter adivinhado seus
pensamentos — Com o exército deixando a cidade, pode ser que ele volte de Valley Forge. E
você sabe que o pobre rapaz pensa que eu estou morta.
16 – QUARTO DE SEGREDOS
Grey teve outro interminável — embora menos agitado — dia, quebrado apenas por ver o
Coronel Smith escrevendo despachos, o que ele fazia num ritmo furioso, a pena arranhando o
papel com o mesmo som de uma barata sendo esmagada. Imaginar isso não foi bom para a
digestão de Grey, que, após a intoxicação pelo álcool, não tinha lidado muito bem como o bolo
frio endurecido de gordura e o café de milho queimado que havia sido dado a ele no desjejum.
Apesar da infelicidade física e da incerteza do futuro, entretanto, ele se encontrava
surpreendentemente alegre. Jamie Fraser estava vivo, e ele, John, não estava mais casado. Com
aqueles dois maravilhosos fatos, as perspectivas duvidosas de que ele poderia escapar e a
probabilidade ainda maior de ser enforcado, pareciam apenas um pouco preocupantes. Ele se
sentou para esperar com a maior graça que podia, dormindo o máximo que sua cabeça permitia,
ou cantando suavemente para si mesmo — uma prática que fazia Smith curvar os ombros até
as orelhas e riscar o papel ainda mais rapidamente.
Mensageiros chegavam e partiam com grande frequência. Se ele já não soubesse que os
Continentais estavam, não apenas se movendo, mas se preparando para a luta, ficaria claro para
ele dentro de apenas uma hora. O ar quente estava sobrecarregado com o cheiro de chumbo
derretido, e o acampamento tinha um senso de urgência crescente que qualquer soldado
notaria.
Smith não tentou evitar que ele ouvisse o que era dito para e pelos mensageiros e
subalternos; claramente ele não esperava que a informação obtida seria de qualquer utilidade
para Grey. Bem... Nem Grey, para ser honesto.
Quando estava escurecendo, a porta da tenda foi escurecida por uma esguia forma
feminina, entretanto, e Grey se ajeitou numa posição sentada, tomando cuidado com a cabeça,
porque seu coração tinha começado a bater fortemente de novo e isso fazia seu olho latejar.
Sua sobrinha Dottie usava sóbrios trajes Quaker, mas o azul suave do índigo muito lavado
era surpreendentemente lisonjeiro para sua coloração tipicamente inglesa — e ela estava
incrível. Ela assentiu com a cabeça para Coronel Smith e pousou a bandeja sobre a mesa, antes
de olhar por cima do ombro para o prisioneiro. Seus olhos azuis se ampliaram com o choque, e
Grey riu para ela. Denzell devia tê-la advertido, mas ele supôs que deveria estar realmente
terrível, com um rosto grotescamente inchado e um olho parado e vermelho.
Ela piscou e engoliu, depois disse alguma coisa em voz baixa para Smith, com um breve
gesto de questionamento em direção a Grey. Ele assentiu impacientemente, já pegando sua
própria colher, e ela colocou um pano grosso em torno das latas fumegantes na bandeja e foi
até o catre de Grey.
— Meu Deus, Amigo! — Ela disse suavemente — Você parece muito ferido. Dr. Hunter
disse que você deve comer o máximo que puder, e ele virá atende-lo depois, para colocar um
curativo em seu olho.
— Obrigada, jovem — ele disse gravemente, e, olhando sobre o ombro para se certificar
de que Smith estava de costas, assentiu para ela — É ensopado de esquilo?
— Gambá, Amigo — ela disse. — Aqui, eu trouxe uma colher. O cozido está muito quente,
tenha cuidado — Colocando-se cuidadosamente entre ele e Smith, ela colocou a lata envolta em
pano entre os joelhos dele e rapidamente tocou os seus trapos, e depois as correntes de seus
grilhões, suas sobrancelhas levantadas. Uma colher de chifre estava presa no bolso em sua
cintura, e uma faca junto com ela, que tinha deslizado para baixo de seu travesseiro, mais rápido
do que qualquer mágico poderia ter feito.
Seu pulso estava batendo rapidamente na garganta, e o suor escorria de suas têmporas.
Ele tocou a sua mão uma vez, suavemente, e pegou a colher.
— Obrigado — ele disse de novo — Diga ao Dr. Hunter que eu espero ansioso por ele.
A corda era como uma crina de cavalo e a faca era cega, e foi muito tarde e com inúmeros
pequenos cortes ardendo em suas mãos e dedos que Grey se levantou cuidadosamente do catre.
Seu coração estava batendo forte; ele podia senti-lo pulsar rapidamente atrás de seu olho
machucado e ele esperava que o olho não explodisse com o impacto.
Ele se inclinou e pegou o penico para usá-lo; Smith era muito barulhento quando dormia,
graças a Deus; se ele despertasse, ouviria o barulho familiar, se tranquilizaria e —
presumivelmente — voltaria a dormir, subconscientemente ignorando qualquer pequeno
ruído, como se John estivesse se ajeitando na cama.
A respiração de Smith não se alterou. Ele emitia um pequeno zumbido como uma abelha
trabalhando numa flor, um som limpo que Grey achou levemente cômico. Ele se abaixou de
joelhos, lentamente, entre o catre e o colchão de Smith, lutando contra um momentâneo e
insano impulso de beijar Smith na orelha — ele tinha orelhas muito bonitas, pequenas e
rosadas. Esse impulso desapareceu em um instante, e ele rastejou sobre as mãos e joelhos para
a borda da tenda. Enfiou os trapos e a gaze com que Denzell Hunter tinha envolvido seu olho
através dos grilhões, mas ainda se movia com extremo cuidado. Ser pego seria ruim para ele;
mas seria desastroso para Hunter e Dottie.
Ele estivera ouvindo atentamente as sentinelas por horas. Havia dois guardas na tenda do
coronel, mas ele estava quase certo de que ambos estavam atualmente perto da aba frontal,
aquecendo-se no fogo; mesmo com o dia quente, a noite na floresta era muito fria. Assim como
o seu sangue.
Ele se deitou e se contorceu o mais rapidamente possível sob a borda da tenda, agarrando-
se à lona para minimizar qualquer agitação na própria tenda — embora ele tenha se esforçado
para puxar sua corda durante toda a noite, para que qualquer mudança na estrutura pudesse
ser abatida com seus movimentos normais.
Fora! Ele se permitiu inspirar profundamente o ar — fresco, frio e com cheiro de folhas —
e então se levantou, agarrando os grilhões acolchoados contra o seu corpo, e caminhou tão
silenciosamente quanto era possível para longe da tenda. Ele não devia correr.
Tivera uma discussão curta, áspera e sussurrada com Hunter durante a última visita da
noite, aproveitando o breve momento quando Smith tinha saído da tenda para visitar a latrina.
Hunter havia insistido que Grey se escondesse em sua carroça; ele iria para a Filadélfia, todos
sabiam disso, e não haveria suspeita alguma, e Grey estaria a salvo das patrulhas. Grey apreciou
o desejo de Hunter de resgatá-lo, mas não podia possivelmente colocar o médico — bem como
Dottie — em risco. E seria arriscado. No lugar de Smith, a primeira coisa que ele faria seria
impedir que alguém partisse; a segunda seria procurar pelo acampamento.
— Não há tempo — Hunter havia dito, rapidamente terminando a bandagem que ele tinha
envolvido na cabeça de Grey — e pode ser que você esteja certo — Ele olhou sobre o ombro;
Smith estaria de volta a qualquer minuto — Deixarei um pacote de alimento e roupas em minha
carroça para você. Se escolher fazer uso dela, ficarei feliz. Se não, que Deus esteja com você!
— Espere! — Grey prendeu Hunter pela manga, fazendo seus grilhões chacoalharem —
Como eu saberei qual é a sua carroça?
— Oh — Hunter tossiu, parecendo embaraçado — Ela... tem um... hã... sinal pintado atrás.
Dottie o comprou de... Agora, você deve tomar cuidado, Amigo — ele disse, abruptamente
levantando a voz — Coma generosamente, mas devagar, não beba álcool, e tenha cuidado com
os movimentos. Não se levante muito rápido.
Coronel Smith entrou e, vendo que o médico estava presente, veio inspecionar o paciente.
— Está se sentindo melhor, Coronel? — ele inquiriu educadamente. — Ou ainda está
sofrendo da necessidade de começar a cantar? Se assim for, posso sugerir que você faça isso
agora e tire essa necessidade de seu sistema antes que eu vá dormir?
Hunter — que obviamente tinha ouvido “Die Sommernacht” na noite anterior — fez um
pequeno ruído com sua garganta, mas conseguiu sair sem perder o controle.
Grey riu para si mesmo, lembrando-se do olhar furioso de Smith — e imaginando como o
coronel pareceria daqui a algumas horas, quando ele acordasse e descobrisse que o seu pássaro
canoro tinha voado. Ele caminhou até a borda do acampamento, evitando os piquetes de mulas
e cavalos — facilmente identificáveis pelo cheiro de estrume. As carroças estavam estacionadas
nas proximidades: sem artilharia, observou.
O céu estava nublado, uma lua como foice brilhando inquieta entra as nuvens que corriam,
e o ar carregava o cheiro de uma chuva iminente. Bom. Havia coisas piores do que ficar molhado
e frio, e a chuva prejudicaria a perseguição, se alguém descobrisse sua ausência antes de o dia
nascer.
Nenhum som anormal vindo do acampamento atrás dele; nenhum que ele pudesse ouvir
acima do barulho de seu próprio coração e da sua respiração. A carroça de Hunter era fácil de
encontrar, até mesmo no escuro. Ele pensou por “sinal” que o médico se referia a um nome, mas
era um dos sinais de celeiro que os imigrantes alemães pintavam em suas casas e galpões. Ele
sorriu quando as nuvens se abriram, revelando-o claramente, e ele pôde compreender por que
Dottie o escolhera: era um círculo grande, no qual dois pássaros se encontravam com os bicos
abertos como se estivessem enamorados. Distlefink. A palavra flutuou por sua cabeça; alguém,
em algum lugar, havia dito a ele que este era o nome para esse tipo de pássaro, dizendo que era
um símbolo de boa sorte.
— Bom — ele disse baixinho, subindo na carroça — Precisarei disso.
Ele encontrou o pacote debaixo do assento, onde Hunter havia dito que estaria, e demorou
um momento para remover as fivelas de prata de seus sapatos, atando as abas juntas com um
laço de couro que, evidentemente, se destinava aos seus cabelos. Ele deixou as fivelas debaixo
do assento, colocando o casaco rasgado, que cheirava fortemente a cerveja velha e o que ele
pensava que era sangue seco, e olhou para a touca de malha, que envolvia dois pedaços de pão,
uma maçã, e um pequeno cantil de água. Virando a aba do chapéu, ele leu através da lua
irregular, LIBERDADE OU MORTE, em letras grandes e brancas.
Ele não estava indo para uma direção em particular; mesmo quando o céu ficou mais limpo, ele
não estava suficientemente familiarizado com o local para ser capaz de traçar seu caminho
pelas estrelas. Seu único objetivo era ir para o mais longe de Smith que fosse possível, sem cair
nas mãos de outra milícia ou de uma patrulha dos Continentais. Uma vez que o sol surgiu, ele
foi capaz de se orientar; Hunter havia dito a ele que a estrada principal ficava a sul ou sudoeste
do acampamento, a cerca de quatro milhas de distância.
O que as pessoas poderiam fazer com um homem passeando pela estrada principal com
grilhões era outra questão, mas ele não precisava responder àquela pergunta no momento.
Depois de caminhar por uma hora ou mais, ele encontrou um local abrigado entre as raízes de
uma árvore de pinho e, pegando sua faca, cortou o cabelo o melhor que conseguiu. Ele enfiou as
mechas tosquiadas bem atrás de uma raiz, esfregou suas mãos na terra e, em seguida, passou
as mãos sujas nos cabelos e no rosto antes de vestir seu gorro.
Assim, devidamente disfarçado, ele empilhou um cobertor grosso de agulhas secas caídas
da árvore sobre si mesmo, enrolou-se e foi dormir ao som da chuva tamborilando nas árvores
acima, mais uma vez um homem livre.
18 – SEM NOME, SEM ABRIGO, INDIGENTE E MUITO BÊBADO DE FATO
Quente, desgrenhado, e ainda completamente fora do temperamento por seu encontro com
Richardson, William fez o seu caminho de volta pelas ruas apinhadas. Mais uma noite em uma
cama decente, pelo menos. No dia seguinte, ele deixaria a Filadélfia com as últimas companhias
do exército, seguindo Clinton para o norte — e deixando os Legalistas restantes para se
defenderem sozinhos. Ele estava dividido entre o alívio e a culpa por esse pensamento, mas
tinha pouca energia sobrando para considerá-lo.
Chegou ao seu quarto para descobrir que seu ordenança tinha desertado e tinha levado
com ele o melhor casaco de William, dois pares de meias de seda, meia garrafa de conhaque, e
a pérola incrustada que abrigava um retrato duplo em miniatura da mãe de William, Geneva, e
sua outra mãe, a irmã de Geneva, Isobel.
Isso estava tão acima do maldito limite do que ele poderia suportar que ele nem mesmo
blasfemou, meramente mergulhou na borda de sua cama, fechou os olhos, e respirou pelos
dentes cerrados até que a dor de seu estômago diminuísse. Ela deixou um buraco oco em seu
lugar. Ele tinha aquela miniatura desde que nascera, estava acostumado a dar boa noite a ela
antes de dormir, mesmo que, desde que saíra de casa, fizesse isso silenciosamente.
Ele disse a si mesmo que não importava; ele não poderia esquecer como eram as suas
mãos — havia outras pinturas, em casa em Helwater. Ele se lembrava de Mamãe Isobel. E podia
ver os traços de sua mãe verdadeira em sua própria face... Involuntariamente, ele olhou para o
espelho de barbear que estava pendurado na parede — o ordenança tinha, de alguma forma, se
esquecido do espelho em seu voo — e sentiu o buraco dentro dele se encher com piche quente.
Ele não via mais a curva da boca de sua mãe, seus cabelos castanho-escuros e ondulados; em
vez disso, ele via o nariz longo e de ponta fina, os olhos puxados e as maçãs do rosto largas.
Ele olhou fixamente para esta prova contundente de traição por um instante, depois se
virou e saiu.
— Foda-se a semelhança! — ele disse, e bateu a porta atrás de si.
Ele não se importava para onde estava indo, mas depois de algumas ruas, caiu na Lindsay
e encontrou vários conhecidos, todos com a intenção de aproveitar a última noite numa cidade
praticamente civilizada.
— Venha conosco, jovem Ellesmere — Sandy disse, segurando-o com firmeza e
empurrando-o pela rua — Vamos criar algumas lembranças para termos em nossas longas
noites de inverno no norte, hein?
Algumas horas depois, vendo o mundo através do fundo de um copo de cerveja, William
imaginou, com olhos turvos, se as memórias contavam quando você não se lembrava delas. Ele
tinha perdido a conta há muito tempo do que — e quanto — ele tinha bebido. Ele achava que
tinha perdido um ou dois ou três dos companheiros com quem tinha começado a noite, também,
mas não podia jurar.
Sandy ainda estava lá, balançando na frente dele, dizendo alguma coisa, instando-o a ficar
de pé. William sorriu vagamente para a garçonete, procurou no bolso, e colocou sua última
moeda na mesa. Estava tudo bem, ele tinha mais em seu baú, enrolado no par sobressalente de
meias.
Ele seguiu Sandy para fora, rumo à noite que o capturava e o agarrava, o ar quente tão
espesso que era difícil de respirar, entupido com o cheiro de excrementos de cavalo, fezes
humanas, escamas de peixe, legumes murchos e carne recém-abatida. Era tarde, e estava
escuro; a lua ainda não tinha aparecido, e ele tropeçou nas pedras, cambaleando para cima de
Sandy, uma mancha mais escura na noite diante dele.
Então havia uma porta, um borrão de luz, e um envolvente cheiro quente de bebidas
alcoólicas e mulheres — sua carne, seu perfume, o cheiro mais atordoante do que a luz
repentina. Uma mulher com um gorro cheio de fitas sorria para ele, cumprimentando-o, muito
velha para ser uma prostituta. Ele assentiu amigavelmente para ela e abriu sua boca, apenas
para descobrir com surpresa que ele tinha se esquecido como falar. Ele fechou a boca e
continuou assentindo; a mulher riu e o guiou até uma cadeira velha, onde o depositou como se
fosse uma encomenda que poderia ser solicitada posteriormente.
Ele se sentou em transe por algum tempo, o suor escorrendo por seu pescoço sob a gola e
ensopando sua camisa. Havia um fogo queimando na lareira próxima às suas pernas, um
pequeno caldeirão de ponche de rum acima do fogo, e o cheiro o deixou enjoado. Ele sentia que
poderia se derreter como uma vela, mas não conseguiria se mover sem passar mal. Fechou os
olhos.
Algum tempo depois, ele lentamente se tornou consciente de vozes perto de si. Ele
escutou, incapaz de compreender o sentido de qualquer palavra, mas sentindo o fluxo
vagamente calmante, como as ondas do oceano. Seu estômago tinha se estabilizado, e com as
pálpebras semi-abertas, ele olhou placidamente para a teia de luz e sombra, salpicada por cores
berrantes como as dos pássaros tropicais.
Ele piscou algumas vezes, e as cores tremeluziram para adquirir coerência: os cabelos e
as fitas e as combinações brancas das mulheres, os casacos vermelhos da infantaria, o azul de
um artilheiro se movendo entre eles. Suas vozes tinham dado a ele a impressão de pássaros,
altas e trinadas, gritando de vez em quando, ou repreendendo como os sabiás que viviam no
grande carvalho perto da casa em Mount Josiah. Mas não foram as vozes das mulheres que
chamaram a sua atenção.
Dois dragões da cavalaria estavam descansando num sofá próximo, bebendo rum e
olhando para as mulheres. Ele pensou que estavam falando há um bom tempo, mas agora ele
conseguia distinguir as palavras.
— Já sodomizou uma garota? — Um dos dragões estava dizendo para seu amigo.
O amigo riu e corou, balançou a cabeça, murmurou alguma coisa que soou como — Muito
caro para o meu bolso.
— O que você quer é uma garota que odeie isso — o dragão não tinha tirado o olho das
mulheres do outro lado da sala. Ele levantou sua voz, apenas um pouco — Elas o rejeitam,
tentando se livrar de você. Mas não podem.
William virou sua cabeça e olhou para o homem, com repulsa, e deixando que o seu
desgosto ficasse evidente. O homem o ignorou. Ele parecia vagamente familiar, com traços
escuros e pesados, mas não era alguém que William conhecesse por nome.
— Então você pega sua mão e a faz sentir você. Deus, os apertos... Elas te ordenham como
uma vaca leiteira — O homem riu alto, ainda olhando do outro lado da sala, e pela primeira vez
William olhou para ver o alvo daquela brutalidade. Havia três mulheres em pé num grupo, duas
em anáguas, o tecido fino moldando seus corpos, e uma usando uma saia bordada, mas era fácil
saber para quem eram direcionadas as insinuações do dragão: a mais alta de saia bordada, que
estava ali em pé com os punhos fechados, olhando na direção do dragão como se pudesse abrir
um buraco em sua testa.
A senhora estava um pouco distante, franzindo o cenho para o dragão. Sandy tinha
desaparecido. Os outros homens presentes estavam bebendo e falando com quatro garotas na
outra extremidade da sala; eles não tinham ouvido aquela impertinência vulgar. O amigo do
dragão estava escarlate dentro de seu casaco, por causa da bebida, da diversão e do
constrangimento.
O dragão mais escuro também estava corado, uma linha lívida através de suas bochechas
cheias e pesadas onde pressionava contra o couro do colarinho. Uma mão pousada de forma
ausente na mancha de suor de suas calças de fustão. Ele estava se divertindo muito com a sua
presa para cortar a ligação, entretanto.
— Pense, você não quer uma que está acostumada a isso. Você a quer apertada — Ele se
inclinou um pouco para a frente em seus joelhos, os olhos atentos na menina alta — Mas você
também não quer uma que nunca tenha feito antes. É melhor que ela saiba o que está prestes a
acontecer, né?
Seu amigo murmurou alguma coisa indistinta, olhou para a garota e depois desviou o
olhar rapidamente. William olhou mais uma vez para a garota, também, e quando ela fez um
pequeno movimento involuntário — não exatamente um tremor — a luz da vela brilhou por
um instante na coroa lisa em sua cabeça: de um suave marrom, com o brilho de castanhas
frescas. Jesus Cristo.
Antes que se desse conta, ele estava de pé. Ele deu dois passos cambaleantes até o lado da
madame, tocou seu ombro educadamente e, quando ela se virou com uma expressão surpresa
para ela — toda a sua atenção tinha estado sobre o dragão, uma linha de preocupação entre
suas sobrancelhas —, ele disse lentamente, de modo a não atropelar as palavras:
— Eu vou ficar com aquela, por favor. A... A moça alta. Que está usando a saia bordada. A
noite toda.
As sobrancelhas cheias de falhas da madame se elevaram até desaparecerem em sua toca.
Ela olhou rapidamente para o dragão, que ainda estava tão fixo em sua presa que não tinham
nem notado William. Seu amigo tinha, entretanto; ele cutucou o dragão e murmurou em seu
ouvido.
— Hã? O quê? — O homem já estava se movendo, lutando para ficar em pé. William tateou
apressadamente em seu bolso, lembrando-se, tarde demais, que estava sem um tostão.
— O que é isso, Madge? — O dragão estava junto a eles, dividindo uma carranca entre a
madame e William.
William se endireitou instintivamente — ele tinha uns quinze centímetros a mais do que
o homem — e aprumou-se.
O dragão avaliou o seu tamanho e a sua idade e levantou o canto superior do lábio para
mostrar o canino — Arabella é minha, senhor. Eu tenho certeza de que Madge encontrará outra
jovem senhora para acomodá-lo.
— Cheguei na sua frente, senhor — William disse, e fez uma reverência, inclinando sua
cabeça alguns centímetros, mantendo um olhar atento e rude no outro homem. Não ficaria
surpreso se aquele verme imundo tentasse chutá-lo nas bolas... Pelo olhar em seu rosto, ele não
pararia por aí.
— Ele está na frente, Capitão Harkness — a madame disse rapidamente, colocando-se
entre os homens — Ele já tinha se oferecido para a menina e, como você ainda não havia se
decidido... — Ela não estava olhando para Harkness; ela levantou o queixo apontando com
urgência para uma das meninas, que parecia alarmada, mas rapidamente desapareceu por uma
porta na parte de trás do recinto. Foi atrás de Ned, William pensou automaticamente, e se
perguntou vagamente por um instante como ele sabia o nome do porteiro.
— Ainda não viu a cor do dinheiro dele, no entanto, não é? — Harkness enfiou a mão no
peito e tirou uma carteira bem recheada, da qual ele retirou um maço descuidado de dinheiro
— Eu a terei — Ele sorriu desagradavelmente para William — a noite toda.
William prontamente tirou o gorjal de prata, pegou a mão da madame, e o pressionou nela.
— A noite toda — ele repetiu educadamente e, sem mais delongas, virou-se e atravessou
a sala, embora o chão parecesse ondular ligeiramente aos seus pés.
Ele pegou Arabella — Arabella? — pelo braço e a conduziu até a porta dos fundos. Ela
parecia ultrajada — claramente o tinha reconhecido —, mas um rápido olhar para o Capitão
Harkness fez com que ela decidisse que William era o menor de dos males, como ela ouvira um
amigo marinheiro de seu pai dizer.
Ele podia ouvir Harkness gritando atrás deles, mas então a porta se abriu e um homem
muito grande e de aparência dura entrou. Ele só tinha um olho, mas ele focou instantaneamente
em Harkness. O homem avançou para o capitão, andando levemente na ponta dos pés, com os
punhos meio fechados. Ex-boxeador, William pensou, satisfeito. Ponha isso no seu cachimbo e
fume, Harkness!
Então, com uma mão na parede da escada para impedi-lo de tropeçar, ele se encontrou
subindo a escadaria redonda e com cheiro de lixívia que ele havia subido no dia anterior,
perguntando-se o que diabos diria a ela quando chegasse ao topo.
Estivera vagamente esperançoso de que não seria o mesmo quarto, mas era. Era noite agora,
entretanto, e as janelas estava abertas. O calor do dia permanecia nas paredes e no chão, mas
havia uma brisa, picante com a seiva das árvores e com o hálito do rio, que fez a única vela
tremeluzir e se dobrar. A garota esperou que ele entrasse, e então fechou a porta, colocando as
costas contra ela, sua mão ainda na maçaneta.
— Não vou machucá-la — ele desabafou — Eu não queria fazer isso, na última vez.
Sua mão relaxou um pouco, embora ela tenha continuado a olhar estreitamente para ele.
Estava escuro onde ela estava, e ele mal podia ver o brilho de seus olhos. Ela não parecia
amigável.
— Você não me machucou — ela disse — Estragou a minha melhor saia, entretanto, e uma
garrafa de vinho. Isso me custou uma surra e o salário de uma semana.
— Eu sinto muito — ele disse — De verdade. Eu... Eu vou pagar pelo vinho e pela saia.
Usando o quê?, ele pensou. Tardiamente lhe ocorreu que as peças de meia sobressalentes
em que ele mantinha o dinheiro, tinham desaparecido com seu ordenança, e sem dúvida o
dinheiro também tinha ido. Bem, ele penhoraria alguma coisa se fosse preciso, ou pediria um
pouco emprestado.
— Não posso fazer muita coisa em relação à surra. Mas eu sinto muito.
Ela fez um pequeno ruído pelo nariz, mas pareceu aceitar. Ela tirou a mão da maçaneta e
entrou um pouco mais no cômodo, para que ele pudesse ver o seu rosto com a luz das velas. Ela
era muito bonita, apesar do olhar de suspeita e desconfiança, e ele sentiu uma suave agitação
dentro de si.
— Bem — ela olhou para ele de cima a baixo, assim como tinha feito quando o conhecera
no beco — William, você disse que era o seu nome, não é?
— Sim — O silêncio se prolongou uma batida de coração além do que seria confortável, e
ele perguntou, quase aleatoriamente — O seu nome é realmente Arabella?
Aquilo a surpreendeu, e sua boca se contraiu, mas ela não riu.
— Não. Eu sou uma parte da fantasia, entretanto, e Madge acha que as fantasias devem ter
nomes como... como a de senhoras? — Ela levantou uma sobrancelha, e ele não tinha certeza se
ela estava questionando se as senhoras tinham nomes como Arabella ou o que ele pensava da
filosofia de Madge.
— Eu realmente conheço algumas Arabellas — ele ofereceu — Uma delas tem seis anos e
a outra tem oitenta e dois.
— Elas são senhoras? — Ela acenou com uma mão, dispensando a questão assim que ela
fora feita — É claro que são. Você não as conheceria de outra forma. Você quer que eu peça um
vinho? Ou ponche? — Ela lhe lançou um olhar avaliador — Embora, se você quiser fazer alguma
coisa, eu realmente ache melhor que fique longe da bebida. É sua escolha, entretanto. — Ela
colocou uma mão no laço de sua saia em um tépido convite, mas não a tirou. Claramente, ela
não fazia questão de induzi-lo a “fazer nada”.
Ele esfregou o rosto suado com uma das mãos, imaginou o cheiro de álcool que devia estar
saindo de seus poros, e limpou-a em seu calção.
— Eu não quero vinho, não. E nem quero... fazer... bem, isso não é verdade — ele admitiu
— Eu quero fazer... muito — ele adicionou apressadamente, para que ela não pensasse que a
estava insultando —, mas não vou.
Ela olhou para ele boquiaberta.
— Por que não? — ela disse, por fim — Você pagou acima do que precisava para qualquer
coisa que queira. Incluindo sodomia, se desejar — Seu lábio se curvou um pouco.
Ele corou até o couro cabeludo.
— Você acha que eu a teria salvo daquilo... apenas para eu mesmo fazê-lo?
— Sim. Frequentemente os homens não pensam em alguma coisa até que outros
mencionem essa possibilidade, e ficam todos ansiosos para tentar eles mesmos.
Ele estava indignado.
— Você deve ter a opinião mais insignificante em relação aos cavalheiros, senhora!
Sua boca se contraiu de novo e ela lhe lançou um olhar de diversão velada que fez o sangue
queimar em sua face e em suas orelhas.
— Certo — ele disse secamente — Entendi o seu ponto.
— Bem, isso é uma novidade — ela disse, a contração dos lábios se quebrando em um
sorriso malicioso — Em geral, acontece o contrário.
Ele respirou profundamente pelo nariz.
— Eu... Entenda como um pedido de desculpas, se você quiser — Foi difícil manter o olhar
fixo ao dela — Pelo que aconteceu da última vez.
Uma leve brisa entrou pela janela, despenteando os cabelos sobre seus ombros e
levantando o tecido de sua roupa até que ele inflasse um pouco, o que lhe proporcionou um
vislumbre de seu mamilo, como uma rosa escura à luz de velas. Ele engoliu seco e olhou para o
outro lado.
— Meu... hum... meu padrasto... me contou que uma vez uma senhora que ele conhece
disse que uma noite de sono é o maior presente que você pode dar a uma prostituta.
— Isso vem de família, não? Frequentar bordeis? — Ela não parou para que eu
respondesse — Ele está certo, entretanto. Você realmente quer dizer que tem a intenção que
eu... durma?
Pelo seu tom de incredulidade, parecia que ele tinha pedido a ela que se engajasse em
alguma perversão pior do que sodomia. Ele manteve o temperamento com alguma dificuldade.
— Você pode cantar ou ficar refletindo se quiser, senhora — ele disse — Eu não pretendo...
é... molestá-la. Suas ações serão de sua escolha.
Ela olhou para ele, um pequeno franzido entre as sobrancelhas, e ela podia ver que ele não
acreditava nela.
— Eu... sairia — ele disse, sentindo-se constrangido de novo — mas eu me preocupo que
o Capitão Harkness ainda possa estar no recinto, e se ele souber que você está sozinha...
E, de alguma forma, ele não conseguiria encarar o seu quarto escuro e vazio. Não esta
noite.
— Eu imagino que Ned já o tenha dispensado — ela disse, e então limpou a garganta —
Mas não vá. Se você for, Madge mandará outra pessoa — Ela tirou sua saia, sem se exibir ou
fazer qualquer artifício com o movimento. Havia um biombo no canto; ela foi para trás dele, e
ele a ouviu usando o penico.
Ela saiu, olhou para ele, e com um breve aceno para o biombo, disse — Está ali. Caso você...
— Hã... obrigado — Ele de fato precisava muito urinar, mas o pensamento de usar o seu
penico, logo depois de ela tê-lo usado, fez com que ele ficasse altamente embaraçado — Eu vou
ficar bem — Ele olhou em volta, encontrou uma cadeira, e se sentou, ostensivamente
empurrando suas botas para fora de seus pés e inclinando-se para trás numa atitude de
relaxamento. Ele fechou os seus olhos, quase completamente.
Pelas pálpebras semicerradas, ele o viu observá-lo atentamente por um momento, então
ela se inclinou e assoprou a vela. Como um fantasma na escuridão, ela subiu na cama — as
cordas rangeram com o seu peso — e se cobriu. Um fraco suspiro veio até ele sobre os sons do
bordel abaixo.
— É... Arabella? — Ele não esperava que ela o agradecesse, exatamente, mas queria
alguma coisa dela.
— O quê? — Ela soou resignada, obviamente esperando que ele dissesse que havia
mudado de ideia sobre a sodomia.
— Qual é o seu verdadeiro nome?
Houve silêncio por um minuto, enquanto ela pensava. Não havia nada de hesitante por
parte da jovem mulher, entretanto, e quando ela respondeu, não foi com relutância.
— Jane.
— Oh. Apenas... mais uma coisa. Meu casaco...
— Eu o vendi.
— Oh. É... boa noite, então.
Houve um momento prolongado, cheio de pensamentos não falados entre duas pessoas,
depois um suspiro profundo e exasperado.
— Venha para a cama, seu idiota.
Ele não poderia deitar de uniforme. Ele manteve sua camisa, com uma ideia de preservar sua
modéstia e sua intenção original. Ele se deitou rigidamente ao lado dela, tentando imaginar a si
mesmo como uma figura em um túmulo: um monumento de mármore ao comportamento
nobre, jurado pela castidade forçada de seu corpo de pedra.
Infelizmente, era uma cama pequena e William era um homem grande. E Arabella — Jane
— não estava evitando tocá-lo. Felizmente, ela também não estava tentando despertá-lo, mas
sua mera presença fazia isso sem que ela tentasse.
Ele estava intensamente consciente de cada centímetro de seu corpo e qual parte dele
estava em contato com o dela. Ele podia sentir o cheiro de seus cabelos, um cheiro suave de
sabão misturado com a doçura da fumaça de tabaco. Seu hálito estava doce, também, com o
cheiro de rum queimado, e ele queria prová-lo em sua boca, compartilhar sua permanência
resistente. Ele fechou os olhos e engoliu em seco.
Apenas o fato de que ele precisava desesperadamente mijar tornou possível que ele
mantivesse suas mãos longe dela. Ele estava no estado de embriaguez onde podia perceber um
problema, mas não conseguiria analisar uma solução para ele, e sua inabilidade de pensar em
duas coisas ao mesmo tempo impediu que ele falasse com ela ou a tocasse.
— Qual é o problema? — ela sussurrou com a voz rouca — Você está se mexendo como se
tivesse girinos em suas calças. Só que você não está usando nenhuma calça, está?
Ela riu, e seu hálito fez cócegas em sua orelha. Ele gemeu baixinho.
— Aqui, agora... — Sua voz assumiu um tom de alarme, e ela se sentou na cama, virando-
se para olhar para ele — Você não vai passar mal na minha cama! Levante-se! Levante-se neste
minuto! — Ela o empurrou com mãos pequenas e urgentes, e ele tropeçou para fora da cama,
cambaleando e agarrando-se à mobília para não cair.
A janela se abriu diante dele, para a noite, uma adorável lua de foice pálida logo acima.
Tomando isso como o convite celestial que certamente era, ele levantou a camisa, agarrou a
moldura da janela, e mijou em uma corrida majestosa, com uma cega felicidade.
A sensação de alívio foi tão intensa que ele não notou nada, até que Arabella — Jane — o
puxou pelo braço e o empurrou para longe da janela.
— Saia do campo de visão, pelo amor de Deus! — Ela arriscou um olhar apressado para
baixo, então esquivou para trás, sacudindo a cabeça — Oh, bem... Não é como se o Capitão
Harkness fosse em algum momento te chamar para ser membro de seu clube, não é?
— Harkness? — William balançou em direção à janela, piscando. Havia uma notável
quantidade de gritos e abusos vindo de baixo, mas ele estava com problemas para focar os seus
olhos e não percebeu nada além de uniformes vermelhos, mais vermelhos ainda à luz da
lanterna sobre a porta do estabelecimento.
— Não importa. Ele provavelmente vai pensar que eu fiz isso — Arabella-Jane disse, uma
nota escura em sua voz.
— Você é uma garota — William apontou logicamente — Você não poderia mijar por uma
janela.
— Sem fazer um espetáculo sobre mim mesma, não — ela concordou — Mas não é
desconhecido que uma prostituta possa jogar o conteúdo de seu pinico em alguém,
acidentalmente de propósito. Bem.
Ela deu de ombros, foi para trás do biombo, e emergiu com o receptáculo mencionado
anteriormente, que ela prontamente derrubou pela janela aberta. Em resposta aos novos uivos
de lá de baixo, ela se inclinou e gritou vários insultos que um sargento de regimento ficaria
orgulhoso de proferir, antes de esquivar-se de volta e fechar as janelas com uma batida.
— Poderia muito bem ser enforcada, ou sodomizada, tanto por uma ovelha quanto por
um cordeiro — ela comentou, pegando-o pelo braço de novo — Volte para a cama.
— É apenas na Escócia que eles sodomizam ovelhas — William disse, obedientemente
seguindo-a — E talvez em parte de Yorkshire. Northumbria, também, talvez.
— Oh, sério? O Capitão Harkness é de um desses lugares, então?
— Oh, ele? — William se sentou na cama tão rapidamente que o quarto começou a girar
ao redor dele — Não. Eu diria que talvez de Devon, pela... pela forma como ele fala — ele
concluiu, satisfeito por ter encontrado a palavra.
— Então eles têm ovelhas em Devon, também, eu suponho — Arabella-Jane estava
desabotoando sua camisa. Ele levantou uma mão para pará-la, imaginou por que faria isso, e
deixou a mão pairando no ar.
— Muitas ovelhas — ele disse — Muitas ovelhas em todos os lugares na Inglaterra.
— Deus salve a Rainha, então — ela murmurou, concentrada em sua tarefa. O último botão
se abriu, e uma suave lufada de ar agitou os cabelos no peito de William.
Ele se lembrou por que deveria tê-la parado, mas ela colocou a cabeça dentro da camisa
aberta e lambeu seu mamilo antes que ele pudesse levar sua mão para impedir o momento, e
quando ele o fez, ela meramente se assentou de forma gentil em sua cabeça, que era
surpreendentemente quente. Assim como seu hálito. Bem como a sua mão, que havia envolvido
seu pênis de um jeito possessivo.
— Não — ele disse, depois do que pareceu um tempo muito longo, mas que poderia ser
não mais do que alguns segundos. Sua mão desceu e fechou-se, pesarosamente, sobre a dela que
o agarrava — Eu... Eu falei sério. Não vou incomodá-la.
Ela não o soltou, mas sentou-se e considerou com um ar de impaciência perplexa, apenas
visível à luz da lanterna que atravessava as persianas.
— Se você me incomodar, eu pedirei para parar; o que acha? — Ela ofereceu.
— Não — ele repetiu. Ele estava se concentrando firmemente agora; parecia
extremamente importante que ela entendesse — Honra. É a minha honra.
Ela fez um pequeno ruído que poderia ser impaciência ou divertimento.
— Talvez você devesse ter considerado a sua honra antes de entrar num prostíbulo. Ou
alguém o trouxe até aqui à força?
— Eu vim com um amigo — ele disse com dignidade. Ela ainda não o tinha soltado, mas
não movia a mão, não com a dele agarrada firmemente ao seu redor — Não... não foi o que eu
quis dizer. Eu quis dizer que...
As palavras que tinham vindo facilmente um momento antes, tinham se perdido agora,
deixando-o em branco.
— Você pode me dizer mais tarde, uma vez que tenha algo bom para dizer — ela sugeriu,
e ele ficou surpreso ao descobrir que ela tinha duas mãos e sabia o que fazer com a outra
também.
— Solte o meu... — Droga! Qual era a maldita palavra? — Solte meus testículos se puder,
madame.
— Como quiser — ela respondeu secamente e, ao fazer isso, colocou a cabeça de volta
dentro de sua camisa úmida e fedida, pegou um dos mamilos entre os dentes, e o sugou com
tanta força que a última palavra foi arrancada de sua cabeça.
As coisas depois disso foram instáveis, mas muito prazerosas, embora em algum
momento ele tenha se encontrado pairando sobre ela, o suor de seu rosto pingando nos seios
dela, murmurando — Eu sou um bastardo, eu sou um bastardo, eu sou um bastardo, você não
entende?
Ela não respondeu a isso, mas estendeu um longo braço branco, envolveu sua mão na
parte de trás de sua cabeça, e o puxou para baixo outra vez.
— É por isso — Ele voltou gradualmente a si, consciente de que estava falando e
evidentemente estivera por um bom tempo, embora sua cabeça estivesse embalada na curva
de seu ombro, seus sentidos imersos em seu almíscar (como uma flor transpirando, ele pensou
sonhadoramente), e seu mamilo uma doce coisa escura apenas a centímetros de seu nariz — A
única honra que eu tenho é a minha palavra. Eu tenho que mantê-la — Então, as lágrimas vieram
repentinamente para seus olhos, com uma retomada dos momentos passados — Por que você
me fez quebrar minha promessa?
Ela não respondeu por algum tempo, e ele teria pensado que ela estava dormindo, se não
fosse pela mão que alisava suas costas nuas, gentis como um sussurro.
— Você já pensou que uma prostituta também tem um senso de honra? — ela disse por
fim.
Francamente, ele não tinha pensado, e abriu sua boca para dizer, mas outra vez suas
palavras desapareceram. Ele fechou os seus olhos e adormeceu em seu peito.
19 – MEDIDAS DESESPERADAS
Silvia Hardman estava em pé, encarando Jamie com uma sobrancelha curvada, seus lábios
franzidos em concentração. Finalmente, ela sacudiu a cabeça, suspirou, e se endireitou.
— Você está falando sério, eu suponho?
— Eu estou, Amiga Silvia. Eu devo estar na Filadélfia o mais rapidamente possível. E, para
fazer isso, eu preciso chegar até a estrada. Eu devo ser capaz de caminhar amanhã de manhã,
ainda que hesitantemente.
— Bem, então. Patience, traga-me o frasco especial de seu pai. E, Prudence, vá moer uma
boa quantidade de semente de mostarda... — Ela se aproximou mais da cama, olhando sem foco
para as costas de Jamie, como se para avaliar a área a ser cultivada — Um bom punhado... Não,
dois punhados; suas mãos são pequenas — Ela pegou uma vara de escavação da prateleira perto
da porta, mas hesitou antes de abri-la — Não toque os seus olhos ou o seu rosto, Pru. E, de forma
alguma, toque Chastity sem antes lavar as suas mãos. Deixe que Patience lide com ela caso ela
chore.
Chastity estava fazendo barulhos irritados, embora recém-alimentada e trocada. Patience,
entretanto, já tinha corrido para a porta, fazendo com que Jamie imaginasse onde o frasco
especial de seu pai poderia estar. Escondido, aparentemente.
— Coloque o bebê ao meu lado — ele sugeriu — Posso cuidar dela um pouco.
Silvia o fez sem hesitação, o que o agradou, e ele ficou deitado cara a cara com a pequena
Chastity, divertindo a ambos ao fazer caretas para ela. Ela riu — assim como Prudence,
enquanto socava o pilão e o cheiro quente de mostarda engrossava o ar. Ele colocou a língua
para fora e a balançou; Chastity se balançava como uma pequena geleia e colocou para fora a
pequena língua rosada em retorno, o que o fez rir.
— Do que vocês estão rindo? — Patience exigiu, abrindo a porta. Ela franziu o cenho
censurando as duas irmãs, fazendo-as rir ainda mais. Quando a Sra. Hardman voltou alguns
minutos depois com uma grande raiz suja nas mãos, eles tinham chegado ao ponto de rir para
absolutamente nada, e ela piscou em confusão, mas em seguida balançou a cabeça e sorriu.
— Bem, eles realmente dizem que rir é o melhor remédio — ela apontou, quando as
risadas diminuíram, deixando as garotas com as faces rosadas e Jamie se sentindo suavemente
melhor, para a sua surpresa — Posso emprestar a sua faca, Amigo James? É mais apropriada ao
propósito do que a minha.
Isso era claramente verdadeiro; sua faca era uma lâmina de ferro bruto, mal afiada, o
punho amarrado com uma corda. Jamie tinha uma boa faca com cabo de marfim, comprada em
Brest, de aço temperado, com uma afiação capaz de raspar os pelos de seu antebraço. Ele a viu
sorrir com prazer involuntário ao sentir a faca nas mãos e teve um momentâneo lampejo de
memória — Brianna, delicadamente desdobrando uma lâmina de seu canivete suíço, um ar de
prazerosa satisfação estampado no rosto.
Claire apreciava boas ferramentas, também. Mas ela tocava as ferramentas com o
pensamento imediato do que ela deveria fazer com elas, em vez da simples admiração pela sua
elegância e sua função. Uma lâmina em sua mão não era mais uma ferramenta, mas uma
extensão de sua mão. Sua própria mão estava fechada, o polegar esfregando suavemente contra
as pontas dos dedos, lembrando-se da faca que tinha feito para ela, o cabo cuidadosamente
lixado e sulcado para caber em sua mão, para combinar exatamente com sua empunhadura.
Então, ele fechou o pulso com força, não querendo pensar nela com tanta intimidade.
Simplesmente não agora.
Incitando as meninas a recuarem e a saírem do caminho, Silvia cuidadosamente descascou
a raiz e a ralou em uma tigela pequena de madeira, mantendo o rosto, tanto quanto possível,
longe da fumaça saindo do rábano fresco, mas ainda assim com as lágrimas escorrendo de seu
rosto. Então, enxugando os olhos no avental e pegando o “frasco especial” — sendo este uma
garrafa de grés castanho-escuro manchado com terra (a moça o tinha enterrado?) —, ela
cuidadosamente derramou uma pequena quantidade do conteúdo muito alcoólico. O que era
aquilo? Jamie imaginava, farejando com cautela. Uma aguardente muito velha? Conhaque de
ameixa duplamente fermentado? Aquilo provavelmente começara a vida como algum tipo de
fruta, mas já fazia um tempo desde que aquela fruta estivera pendurada em uma árvore.
A Sra. Hardman relaxou, colocando a rolha de volta na garrafa como que aliviada pelo
conteúdo não ter explodido ao ser decantado.
— Bem, então — ela disse, vindo pegar Chastity, que gritou preocupada ao seu removida
de perto de Jamie, a quem ela claramente considerava um grande brinquedo — Isso deve
assentar por algumas horas. Você deve dormir, se puder. Sei que passou uma noite de vigília e
hoje não vai ser muito melhor.
Jamie tinha se preparado ante a perspectiva de beber licor de rábano com uma mistura de medo
e curiosidade. A primeira destas emoções foi momentaneamente aliviada quando descobriu
que a Sra. Hardman não queria que ele a bebesse, mas retornou com força total quando ele
descobriu, um momento depois, com a cara na cama e sua camisa puxada para cima, com a sua
anfitriã esfregando vigorosamente aquela coisa nas suas costas e na sua bunda.
— Tenha cuidado, Amiga Silvia — ele lutou para dizer, tentando virar a cabeça o suficiente
para que a boca não ficasse no travesseiro, mas sem torcer as costas ou levantar o traseiro —
Se isso escorrer para o meu rego, posso ser curado com uma súbita vontade de violência.
Um pequeno bufo de diversão fez cócegas nos pequenos pelos de suas costas, onde a carne
ainda estava sofrendo e formigando pelas suas administrações.
— Minha avó dizia que esta receita poderia ressuscitar os mortos — ela disse, sua voz
baixa de modo a não perturbar as meninas, que estavam enroladas na frente da lareira em seus
cobertores, como lagartas — Talvez ela fosse menos cuidadosa em suas aplicações.
— Você precisa de calor — ela havia dito. Entre o linimento de rábano e o emplastro de
mostarda descansando na base de suas costas, ele pensou que poderia sofrer combustão
espontânea a qualquer momento. Ele tinha certeza que sua pele estava com bolhas. Sei que
passou uma noite de vigília, e esta noite não vai ser muito melhor. Ela estava certa.
Ele se mexeu, tentando mover-se furtivamente para o lado sem fazer barulho ou deslocar
o emplastro que ela havia colocado em sua região lombar por meio de tiras de flanela rasgadas
amarradas em volta de seu corpo, mas elas tendiam a escorregar. A dor ao se virar estava, de
fato, muito menor, o que o animou muito. Por outro lado, ele sentia como se alguém estivesse
repetidamente passando um ramo de pinheiro a poucos centímetros de seu corpo. E, embora
ela tenha sido muito cuidadosa ao trabalhar o linimento nele, desde as costelas até os joelhos,
um pouco do líquido feroz tinha tocado suas bolas, dando a ele uma sensação nada agradável
de calor entre as pernas, mas também um desejo incontrolável de se contorcer.
Ele não o tinha feito, enquanto ela estava trabalhando nele, e nem tinha dito uma palavra.
Não depois de ver o estado de suas mãos: vermelhas como uma carapaça de lagosta, e uma
bolha leitosa que se erguia de seu polegar. Ela não havia dito uma palavra, também. Apenas
abaixou sua camisa ao terminar e bateu nele gentilmente nas costas antes de sair para lavar as
mãos e depois passar nelas, delicadamente, um pouco de gordura.
Ela estava dormindo agora, também, uma forma enrolada no canto da cadeira, a pequena
Chastity num berço aos seus pés, a uma distância segura do fogo. Ocasionalmente, um dos
brilhantes pedaços de madeira se rompia num estalo alto em uma pequena fonte de faíscas.
Ele se alongou suavemente, experimentando a sensação. Melhor. Mas, estivesse ele curado
ou não pela manhã, teria que partir — mesmo que tivesse que se arrastar de cotovelos pela
estrada. Os Hardmans precisavam ter sua cama de volta — e ele precisava da sua. A cama de
Claire.
O pensamento fez o calor em sua carne crescer através de sua barriga, e ele realmente se
contorceu. Seus pensamentos se contorceram, também, pensando nela, e ele se ateve a um,
prendendo-o em sua cabeça como um cachorro desobediente.
Não é culpa dela, ele pensou ferozmente. Ela não fez nada de errado. Eles pensaram que
ele estava morto — Marsali havia dito a ela e dito que Lord John tinha se casado com Claire às
pressas após receber as notícias da morte de Jamie, de modo a proteger não apenas a ela, mas
a Fergus e Marsali também, de uma prisão iminente.
Sim, e depois ele a levou para a cama! Os nós dos dedos de sua mão esquerda se torceram
quando ele curvou o punho. Nunca bata na cara, rapaz. Dougal havia dito a ele uma vida atrás,
enquanto eles observavam uma briga entre dois homens de Colum no pátio de Leoch. Bata nas
partes macias.
Ele tinha batido nas partes macias.
— Não é culpa dela — ele murmurou baixinho, virando-se inquietamente em seu
travesseiro. Que diabos tinha acontecido, entretanto? Como eles tinham chegado àquilo? E por
quê?
Ele se sentia como se estivesse com febre, sua mente atordoada com as ondas de calor que
pulsavam sobre o seu corpo. E como os vislumbres de sonhos febris, ele a viu completamente
nua, pálida e brilhante de suor na noite úmida, escorregadia sob a mão de John Grey...
Nós dois estávamos fodendo você!
Parecia que alguém tinha colocado um cinto quente em suas costas. Com um profundo
grunhido de exasperação, ele se virou de lado novamente e se atrapalhou com as ataduras que
seguravam o emplastro escaldante em sua pele, finalmente se libertando de seu tórrido abraço.
Ele o lançou ao chão e se cobriu novamente com a colcha, procurando pelo alívio de ar fresco
em seu corpo e em sua mente.
Mas a cabana estava cheia até o teto com o calor abafado do fogo e de corpos adormecidos,
e o calor que o inflamava parecia ter se enraizado entre suas pernas. Ele cerrou os punhos nas
roupas de cama, tentando não se contorcer, tentando acalmar sua mente.
— Senhor, permita-me passar por isso — ele sussurrou em gaélico — Conceda-me a
misericórdia e o perdão. Conceda-me o entendimento!
O que a sua mente lhe deu de presente, entretanto, foi um sentimento fugaz, uma memória
do frio, tão surpreendente quanto refrescante. Foi embora num piscar de olhos, mas deixou em
sua mão o formigamento da pedra fria, da terra fria, e ele se agarrou à memória, fechando seus
olhos, na imaginação de pressionar sua bochecha quente contra a parede da caverna.
Porque era a sua caverna. O local onde ele havia ficado escondido, onde ele havia vivido,
nos anos após Culloden. Ele tinha palpitado lá também, pulsando com calor e dor, raiva e febre,
desolação e a breve doce consolação dos sonhos onde ele se encontrava com sua esposa de
novo. E ele sentira na mente a frieza, o gelo escuro que ele pensou que poderia matá-lo,
encontrando agora o alívio no deserto de seus pensamentos. Ele visualizou a si mesmo
pressionando suas costas nuas e escaldadas na umidade áspera da parede, permitindo que o
frio passasse à sua carne, aplacando o fogo.
Seu corpo rígido se aliviou um pouco, e ele respirou devagar, teimosamente ignorando os
cheiros maduros da cabana, os vapores de rábano e conhaque de ameixa e mostarda, de comida
e de corpos que não eram lavados com frequência. Tentando respirar a limpeza aguda do vento
norte, os aromas de giestas e urze.
E o que ele sentiu foi...
— Mary — ele sussurrou, e seus olhos se abriram, em choque.
O cheiro de cebolas verdes e cerejas, não muito maduras. A ave fria cozida. E o cheiro
quente do corpo de mulher, ligeiramente acre pelo suor em suas roupas, sobreposto pelo cheiro
suave de gordura do sabão de sua irmã.
Ele inspirou profundamente, como se pudesse capturar mais do cheiro, mas o ar frio das
Highlands evadira-se, e ele inalou um grosso gole de mostarda, e tossiu.
— Sim, tudo bem — ele murmurou de forma ingrata para Deus — Você mostrou o seu
ponto.
Ele não procurara uma mulher, até mesmo em sua solidão mais extrema, vivendo na
caverna. Mas quando Mary McNab tinha vindo até ele, na véspera de sua partida para uma
prisão inglesa, ele tinha encontrado a consolação para sua dor em seus braços. Não como uma
substituta para Claire, nunca seria isso — mas apenas precisando desesperadamente, e
aceitando com gratidão, o presente do toque, o fato de não estar sozinho por um tempo. Como
ele poderia achar errado que Claire tenha feito o mesmo?
Ele suspirou, contorcendo-se para encontrar uma posição mais confortável. A pequena
Chastity emitiu um choro suave, e Silvia Hardman sentou-se imediatamente, com um farfalhar
de suas roupas, curvando-se no berço com um murmúrio sonolento.
Pela primeira vez, o nome da criança lhe deu um aperto. O bebê tinha, talvez, três ou
quatro meses. Há quanto tempo Gabriel Hardman havia partido? Mais de um ano, ele pensou,
pelo que as garotas haviam dito. Castidade, de fato. O nome era meramente o acompanhamento
natural de Prudence e Patience — ou para saciar a amargura pungente da Sra. Hardman, pela
sensação de vergonha por seu marido desaparecido?
Ele fechou os olhos e procurou pela sensação de frescor no escuro. Achava que já tinha
queimado o suficiente.
20 – DE REPOLHOS E REIS
Ele caminhou até a estrada pouco antes do amanhecer, recusando a ajuda de Prudence e
Patience, embora elas tenham insistido em acompanhá-lo, para o caso de ele cair de cara no
chão, ser acometido por uma paralisia súbita, ou cair num buraco de esquilo e torcer o
tornozelo. Elas não tinham uma opinião muito boa de suas forças, mas eram bem educadas o
suficiente para manter uma distância de alguns centímetros de cada lado, suas mãos pairando
como pequenas borboletas brancas perto de seus cotovelos, pálidas na semiescuridão.
— Não há muitas carroças vindo para cá nos últimos dias — Patience observou, em um
tom entre ansiedade e esperança — Você pode não encontrar um transporte adequado.
— Eu ficaria satisfeito com um carrinho de mão ou uma carroça cheia de repolhos — ele
assegurou, já olhando pela estrada — Os negócios de que tenho que tratar são urgentes.
— Nós sabemos — Prudence lembrou a ele — Estávamos embaixo da cama quando
Washington nomeou você — Ela falou com certa reserva, como uma Quaker oposta à prática da
guerra, e ele sorriu para sua face pequena e séria, com lábios cheios e olhos doces como a de
sua mãe.
— Washington não é a minha maior preocupação — ele disse — Eu tenho que ver minha
esposa, antes... Antes de qualquer outra coisa.
— Você não a vê há algum tempo? — Prudence perguntou, surpresa — Por quê?
— Eu estava preso em um negócio na Escócia — ele disse, decidindo não observar que a
tinha visto dois dias atrás — É uma carroça vindo ali, vocês acham?
Era um tropeiro com uma manada de porcos, de fato, e eles foram obrigados a voltar para
a beira da estrada com certa pressa, de modo a evitar serem mordidos ou pisoteados. Quando
o sol tinha nascido completamente, entretanto, o tráfego regular começou a fluir pela estrada.
A maior parte dele estava vindo da Filadélfia, como as garotas haviam dito: famílias
Legalistas que não puderam se retirar de navio, deixando a cidade com o que conseguissem
carregar, alguns com carroças e carrinhos de mão, muitos com não mais do que podiam levar
nas costas ou nos braços. Havia também soldados britânicos em grupos e colunas,
presumivelmente assistindo ao êxodo e protegendo os Legalistas de serem atacados ou
saqueados, se as milícias rebeldes aparecessem de repente do meio da floresta.
Aquele pensamento o fez se lembrar de John Grey — que felizmente estivera ausente de
sua mente por várias horas. Jamie brutalmente o empurrou para fora outra vez, murmurando
baixinho “sim, fique longe”. Mas um segundo pensamento relutante lhe ocorreu — e se Grey
tivesse sido solto pela milícia e já tivesse voltado para a Filadélfia? Por um lado, ele cuidaria da
segurança de Claire; ele poderia confiar no homem para fazer aquilo. Mas, por outro lado...
Sim, bem. Se ele entrasse na casa e encontrasse Grey ali com ela, ele apenas a levaria
embora sem dizer nada. A menos que...
— Você ainda está sofrendo com a raiz de rábano, Amigo Jamie? — Patience perguntou
educadamente — Esses bufos dão muito medo. Talvez seja melhor pegar o meu lenço.
Grey acordou abruptamente em plena luz do dia e a ponta de um mosquete o espetou na barriga.
— Saia daí com as mãos para cima — disse uma voz fria.
Ele abriu o olho bom o suficiente para ver que seu interlocutor usava o casaco esfarrapado
de um oficial Continental sobre calças simples e uma camisa com colarinho aberto, coberto por
um chapéu desmantelado que carregava uma pena de peru na aba. Milícia rebelde. Com o
coração na garganta, ele rastejou com dificuldade para fora de seu refúgio e se levantou, com as
mãos para cima.
Seu captor piscou ante o rosto machucado de Grey, e então para os grilhões, para as tiras
de musselina das bandagens que se penduravam das correntes enferrujadas. Ele afastou um
pouco o mosquete, mas não o abaixou. Agora que Grey estava de pé, ele podia ver vários outros
homens, também, todos o encarando com extremo interesse.
— Ah... De onde você escapou? — o oficial com o mosquete perguntou cuidadosamente.
Havia duas respostas possíveis, e ele escolheu a opção mais arriscada. Dizer “prisão”
provavelmente faria com que eles o deixassem sozinho ou, na pior das hipóteses, ele seria
levado com eles, mas mantido aprisionado; de qualquer forma, ele ainda estaria usando os
grilhões.
— Eu fui feito prisioneiro por um oficial britânico que me capturou como espião — ele
disse corajosamente. Era inteiramente verdade, ele refletiu, até certo ponto.
Um profundo zumbido de interesse correu entre os homens, que se pressionaram para
chegar mais perto, e a ponta do mosquete foi carregada junto com eles.
— De fato — disse o seu captor, que tinha uma educada voz inglesa, com uma ponta do
sotaque de Dorset — E qual é o seu nome, senhor?
— Bertram Armstrong — ele replicou abruptamente, usando dois dos seus nomes do
meio — E posso ter o prazer de saber o seu nome, senhor?
O homem comprimiu os lábios um pouco, mas respondeu prontamente.
— Eu sou o Reverendo Peleg Woodsworth, Capitão do Décimo Sexto Regimento da
Pensilvânia, senhor. E a sua companhia? — Grey viu que os olhos de Woodsworth foram em
direção ao lema da Liberdade bordado em seu capuz.
— Eu ainda não me juntei a uma companhia, senhor — ele disse, amenizando um pouco o
próprio sotaque — Eu estava em vias de fazê-lo, na realidade, quando entrei em conflito com a
patrulha britânica e logo depois fiquei preso como pode ver.
Ele levantou os pulsos um pouco, fazendo barulho. O zumbido de interesse voltou, desta
vez com uma distinta nota de aprovação.
— Bem, então — Woodsworth disse, e levantou seu mosquete para o ombro — Venha
conosco, Sr. Armstrong, e eu acho que nós poderemos ser capazes de aliviar suas angústias.
21 – MALDITOS HOMENS
Assim que alcançaram a trilha, havia cavalos, mulas e carroças, bem como companhias de
milícia. Rachel conseguiu uma carona numa carroça cheia de sacos de cevada, Ian e Rollo
trotando ao seu lado, até Matson Ford, onde eles deveriam encontrar Denzell e Dottie. Eles
esperaram no vau até o meio da manhã, mas não havia sinal da carroça de Denzell, e nenhum
dos grupos de milícia que passaram, tinha visto os dois.
— Ele deve ter tido uma emergência — Rachel disse, levantando um ombro em resignação
— É melhor irmos sozinhos; talvez possamos encontrar uma carroça na estrada principal que
nos leve até a cidade.
Ela não estava preocupada; a família de qualquer médico estava acostumada a se ver
sozinha inesperadamente. E ela amava estar a sós com Ian, conversando e olhando para o seu
rosto.
Ian concordou que aquilo fazia sentido, e eles chapinharam ao redor de onde estavam,
com os sapatos nas mãos, a água fria sendo um alívio. Até mesmo na floresta, o ar era fechado
e quente, inquieto com os trovões que nunca chegavam perto o suficiente para servir de alguma
coisa.
— Aqui — ele disse para Rachel, e entregou os mocassins para ela, seu rifle, seu cinto, com
o chifre em pó, seu saco de munição e o seu punhal — Afaste-se um pouco, sim?
Ele podia ver ondulações no leito do rio, onde um redemoinho persistente tinha cavado
um buraco profundo, uma sombra escura e convidativa no riacho. Ele saltou de pedra em pedra
e pulou da última, caindo no buraco com um “plunk” como uma pedra. Rollo, com a barriga no
vau e imerso até os ombros, latiu e espirrou água em Rachel ao abanar rapidamente a cauda.
A cabeça de Ian voltou a ficar visível, espirrando água, e ele colocou o longo e magro braço
em sua perna, convidando-a para se juntar a ele. Ela não recuou, mas segurou o rifle esticado
no comprimento de seu braço e levantou uma sobrancelha, e ele desistiu do convite, escalando
para sair do buraco, com as mãos e os joelhos. Ele ficou de pé no vau e se balançou como Rollo,
salpicando-a com gotas geladas.
— Quer entrar? — ele perguntou, rindo quando pegou suas armas de volta. Ele enxugou
a água de suas sobrancelhas e queixo com as costas da mão — Vai esfriá-la.
— Eu entraria — ela disse, espalhando as gotas frias sobre seu rosto suado com uma das
mãos — se as minhas roupas fossem tão impermeáveis aos elementos como as suas coisas são
— Ele vestia calças de camurça gastas e colete com uma camisa de chita, de modo que as flores
desbotadas estavam quase da mesma cor do fundo castanho. Nem a água e nem o sol fariam
alguma diferença, e ele pareceria da mesma forma, tanto seco quanto molhado, enquanto ela
pareceria um rato afogado por todo o dia, e um rato afogado imodesto, já que a combinação e o
vestido ficariam parcialmente transparentes com a água e se aderindo ao corpo.
O pensamento casual coincidiu com Ian se curvando sobre seu cinto, e o movimento
capturou sua atenção para a aba da tanga — ou melhor, para onde estava a aba antes de ele
levantá-la para colocar o cinto.
Ela inspirou audivelmente e ele olhou para ela, surpreso.
— Hã?
— Não importa — ela disse, seu rosto queimando apesar da água fria. Mas ele olhou para
baixo, seguindo a direção de seu olhar, e depois voltou a olhar para ela, dentro de seus olhos, e
ela teve um forte impulso de pular diretamente para dentro da água, esquecendo-se dos danos
ao seu guarda-roupa.
— Está incomodada? — ele disse, as sobrancelhas levantadas, enquanto ele puxava o pano
molhado de sua tanga e depois deixava que a aba caísse.
— Não — ela disse com dignidade — Eu já vi isso antes, você sabe. Muitos deles. Apenas
não... — Não um com o qual eu estou prestes a estar intimamente familiarizada — Apenas não...
o seu.
— Eu não acho que seja nada fora do comum — ele assegurou a ela gravemente — Mas
você pode olhar, se quiser. Apenas para o caso de... Eu não iria querer que você ficasse
assustada, quero dizer.
— Assustada — ela repetiu, dando a ele um olhar — Se você acha que eu tenho qualquer
ilusão sobre o objeto ou o processo, depois de viver por meses em um acampamento militar...
Eu duvido que posso ficar chocada, quando... — Ela parou, um momento tarde demais.
— Crescer — ele terminou para ela, rindo — Acho que ficarei muito desapontado se você
não ficar, sabe?
Apesar da coloração vermelha e quente, que parecia ir de seu couro cabeludo até suas regiões
mais baixas, ela não se chateou por ele se divertir às suas custas. Qualquer coisa que o fizesse
rir daquela forma era um bálsamo para o seu próprio espírito.
Ele tinha ficado profundamente oprimido, desde a terrível notícia do naufrágio do navio,
e mesmo que ele tivesse assumido um estoicismo que ela pensava ser natural tanto dos
Highlanders quanto dos índios, dizendo muito pouco sobre isso, ele não tinha tentado esconder
sua desolação dela, também. Ela estava feliz por isso, apesar de sua própria tristeza pelo Sr.
Fraser, por quem ela nutria profundo respeito e afeição.
Ela também pensou sobre a mãe de Ian e se ela teria se dado bem com ela. Na melhor das
hipóteses, ela poderia ter tido uma mãe novamente — e aquilo seria uma grande bênção. Ela
não estava esperando o melhor, entretanto; ela duvidava que Jenny Murray ficaria mais
satisfeita com a ideia de seu filho se casar com uma Amiga do que os Quakers ficariam ao saber
da intenção de Rachel de casar com um homem violento — e católico ainda por cima. Ela não
tinha certeza qual seria a causa de maior consternação, mas tinha certeza de que as tatuagens
de Ian se tornariam pálidas em contraste à sua afiliação com o Papa.
— Como devemos nos casar, você acha? — Ian, que estivera andando à sua frente para
tirar os galhos do caminho, parou e se virou para esperar que ela chegasse ao seu lado, o
caminho sendo amplo o suficiente para que eles caminhassem lado a lado.
— Eu não sei — ela disse a ele francamente — Eu acho que não posso, em sã consciência,
ser batizada como Católica, não mais do que você poderia viver como um Amigo.
— Os Amigos só se casam com outros Amigos, então? — Um lado de sua boca se curvou
— Acho que a escolha pode ser um pouco esparsa. Ou todos vocês acabam se casando com os
próprios primos?
— Eles se casam com outros Amigos ou são colocados para fora do grupo — ela disse a
ele, ignorando o escárnio sobre os primos — Com raras exceções. Um casamento entre um
Amigo e um não-Amigo pode ser permitido em um caso de circunstância extrema, depois que
um comitê esclarece e confere com a noiva e o noivo, mas isso é raro. Eu temo que até mesmo
Dorothea tenha alguma dificuldade, apesar de sua sinceridade e de sua muito evidente
conversão.
Ian riu ao pensar na noiva de Denny. Lady Dorothea Jacqueline Benedicta Grey não era a
imagem que alguém teria de uma Quaker — embora, para falar a verdade, Rachel pensasse que
qualquer um que desse por certo que as Amigas eram absolutamente recatadas, não tinha
conhecido nenhuma.
— Você já perguntou a Denny o que eles vão fazer?
— Não — ela admitiu — Para dizer a verdade, estou um pouco receosa de perguntar.
As sobrancelhas de Ian se elevaram.
— Receosa? Por quê?
— Tanto por conta da situação deles quanto pela nossa. Você sabe que nós fomos expulsos
da nossa sociedade na Virgínia... Ou melhor, ele foi, e eu saí com ele. Isso o afetou muito, e eu sei
que ele quer, acima de todas as coisas, se casar com Dottie corretamente, diante de uma
sociedade a que os dois pertençam.
Ian lançou a ela um rápido olhar, e ela sabia que ele estava prestes a perguntar se ela
sentia o mesmo. Ela se apressou, para evitar a pergunta.
— Há outros Amigos na mesma situação, entretanto: homens que não suportam a ideia de
capitulação do Rei e que se sentem obrigados a assistir ao Exército Continental. “Quakers
Guerreiros”, eles se chamam — ela não conseguiu evitar o sorriso com o nome; ele conjurava
imagens incongruentes — Alguns deles realizam reuniões ocasionalmente em Valley Forge,
mas não são aceitos pela Sociedade Anual da Filadélfia. Denny tem falado com eles, mas ainda
não se juntou.
— É? — A trilha tinha se estreitado novamente e Ian seguiu em frente, virando sua cabeça
para falar sobre o ombro para que ela soubesse que ele estava prestando atenção. Ela estava
um pouco distraída; a pele de veado estava secando lentamente, moldando-se às longas pernas
vigorosas de Ian, e lembrando-a de sua tanga.
— Sim — ela disse, recuperando a linha de pensamento — A questão é... Você está
familiarizado com as disputas religiosas, Ian?
Aquilo o fez rir de novo.
— Pensei que não — ela disse secamente — Eu estou. E a questão é que, quando um grupo
de... de... pessoas que discordam de um ensinamento central...
— Hereges? — ele ofereceu de forma prestativa — Quakers não queimariam as pessoas,
não é?
— Aqueles que são guiados pelo espírito para seguir um caminho diferente, digamos —
ela disse, um pouco tensa — E, não, eles não queimariam. Mas o que eu quero dizer é que,
quando esses grupos discordam de algum ponto da doutrina, eles tendem a se apegar ainda
mais rigorosamente ao restante de suas crenças e a tornarem-se mais fortes ainda do que o
grupo original.
A cabeça de Ian levantou; assim como a de Rollo. Ambos os caçadores viraram-se de um
lado para o outro, as narinas dilatadas, mas, em seguida, sacudiram-se suavemente e
continuaram caminhando — Sim. E daí? — Ian disse, lembrando-a do que estava falando.
— Então, mesmo que Denny se convença de que ele deve pertencer à Sociedade dos
Quakers Guerreiros, eles podem ser muito mais relutantes em aceitar um membro como Dottie.
Embora, por outro lado, eles devem estar dispostos a fazê-lo, o que pode significar que eles pelo
menos considerariam o nosso casamento...
Ela tentou soar esperançosa sobre a perspectiva, mas na realidade era mais fácil os porcos
voares do que a Sociedade dos Amigos aceitar Ian Murray, ou vice-versa.
— Está me acompanhando, Ian? — Ela perguntou um pouco bruscamente, já que o homem
e o cachorro estavam se movendo, mas com ainda mais cautela. As orelhas de Rollo se
inclinaram em alerta e Ian mudou o rifle do ombro para sua mão. Depois de poucos passos, ela
ouviu o que eles tinham ouvido, o som distante de rodas de carroça e pés marchando. Um
exército em movimento, e o pensamento fez com que os pelos finos de seus braços se
arrepiassem, apesar do calor.
— O quê? — Ian se virou com a expressão em branco na sua direção, depois voltou a si e
sorriu — Bem, não. Eu estava pensando o que uma circunstância extrema poderia ser. Para
Amigos.
Rachel também pensara nisso, mesmo que apenas brevemente — Bem... — ela começou
em dúvida. Na verdade, ela não tinha ideia de tipo de circunstância extrema poderia fazer com
que aquele casamento fosse discutível, quanto mais aceitável.
— Eu só estava pensando — ele continuou, antes que ela pudesse pensar em qualquer
coisa — Tio Jamie me contou como foi o casamento de seus pais. Seu pai roubou a sua mãe dos
irmãos, e eles foram obrigados a se esconder onde puderam, já que não queriam encarar os
MacKenzie de Leoch quando descobrissem.
Seu rosto se animou ao contar a história.
— Eles não poderiam se casar numa igreja, porque os proclamas não poderiam ser
anunciados, e eles seriam descobertos no momento em que saíssem do esconderijo para falar
com um padre. Então eles permaneceram escondidos até que Ellen — a minha avó, sim? —
estivesse enorme pela gravidez de seu primeiro filho, e depois saíram. Seus irmãos não podiam
ser contra o casamento neste ponto, e então eles se casaram.
Ele deu de ombros.
— Então, eu estava apenas pensando: os Amigos pensariam que uma criança prestes a
nascer é uma circunstância extrema?
Rachel olhou para ele.
— Se você acha que eu vou me deitar com você sem estar casada, Ian Murray — ela disse,
em tom comedido — não tem noção de como suas próprias circunstâncias podem se tornar
calamitosas.
Quando eles chegaram à estrada principal que levava à Filadélfia, os ruídos cresceram
espantosamente — bem como o tráfego. Normalmente uma estrada cheia, carregando viajantes
e carroças cheias de produtos da zona rural próxima, estava quase atravancada agora, mulas
zurrando, crianças gritando, pais atormentados chamando por seus rebentos, empurrando
carrinhos de mão cheios de suas posses ao longo da estrada, frequentemente com um porco
ressentido caminhando ao lado, com uma corda em volta de seu pescoço, ou um cesto de
galinhas balançando no topo da pilha.
E dentro, ao redor e em meio à luta dos civis para fugir a pé, estava o exército. Colunas
marchando, duas a duas, tiras e polainas de couro rangendo enquanto suavam em seus casacos,
enfrentando o calor em seus uniformes desgastados. Pequenos pelotões de cavalaria, ainda
parecendo muito bem em seus cavalos, nós de hessianos verde-folheados e, aqui e ali,
companhias de infantaria estacionadas na beira da estrada, provendo suporte para os oficiais
que estavam parando as carroças, algumas vezes ordenando-os e algumas vezes mandando-os
seguir.
Ian parou nas sombras das árvores, julgando a situação. O sol estava quase a pino —
tinham muito tempo. E eles não tinham nada que o exército pudesse querer; ninguém os
pararia.
Ele estava ciente das companhias de milícia também. Eles tinham encontrado várias,
passando pela floresta. Elas ficavam, em sua maioria, longe das estradas, passando
cuidadosamente entre as margens em grupos de, no máximo, três pessoas, sem se esconder,
mas sem chamar a atenção para si mesmos também.
— Olhe! — Rachel exclamou, sua mão apertando o braço de Ian — É William! — Ela
apontou para o oficial alto do outro lado da estrada e olhou para Ian, seu rosto iluminando-se
como a água ao sol — Temos que falar com ele!
A mão de Ian apertou o ombro dela em resposta, e ele sentiu a urgência de sua carne —
mas também a terrível fragilidade dos ossos sobre ela.
— Não você — ele disse, e levantou o queixo na direção das fileiras de soldados
descontentes que se arrastavam, suados e sujos de poeira — Eu não quero que você fique na
vista de qualquer um deles.
Seus olhos se estreitaram apenas um pouco — mas Ian já tinha sido casado uma vez e
tirou a mão de seu ombro prontamente.
— Quero dizer — ele disse apressadamente — Eu vou falar com William. Vou trazê-lo aqui
para você.
Rachel abriu a boca para responder, mas ele já caminhava apressadamente por entre os
arbustos antes que ela pudesse falar.
— Fique — ele disse com firmeza para Rollo, virando-se por um instante. O cachorro, que
não tinha saído do seu lugar confortável aos pés de Rachel, torceu uma das orelhas.
William estava parado na beira da estrada, parecendo quente, cansado, descabelado e
completamente infeliz. Bem como devia parecer, Ian pensou com alguma simpatia. Ele sabia
que William tinha se rendido em Saratoga; ele provavelmente estava indo para a Inglaterra —
se tivesse sorte — ou teria uma longa liberdade condicional a cumprir em um alojamento
áspero em algum lugar distante ao norte. Em ambos os casos, seu papel ativo como soldado
tinha acabado por algum tempo.
Seu rosto mudou abruptamente ao ver Ian. Surpresa, começo de indignação, depois um
olhar ao redor, a decisão se fixando em suas feições. Ian ficou surpreso por um momento por
ter conseguido ler o rosto de William tão facilmente, mas depois se lembrou do motivo. Tio
Jamie disfarçava as próprias expressões na frente dos outros — mas não com Ian. O rosto de
Ian não mostrou essa compreensão, entretanto, não mais do que o rosto de William, que agora
mostrava mais do que um reconhecimento irritado.
— Soldado — William disse, com um breve aceno de cabeça.
O cabo com quem ele estava falando deu uma olhada breve e indiferente a Ian, depois
bateu continência para William e mergulhou de volta, marchando na corrente.
— O que diabos você quer? — William passou a luva suja por seu rosto suado. Ian ficou
levemente surpreso com essa evidente hostilidade; eles haviam se despedido em bons termos
na última vez em que tinham se visto; embora tenha havido pouca conversa naquele momento,
com William colocando uma bala de pistola no cérebro do cara louco que estava tentando matar
Rachel, Ian, ou ambos, com um machado. O braço esquerdo de Ian tinha se curado por tempo o
suficiente para usar um arco, mas ainda estava rígido.
— Há uma senhora que deseja falar com você — ele disse, ignorando os olhos estreitos de
William. Os olhos relaxaram um pouco.
— Senhorita Hunter? — Um pequeno brilho de prazer se acentuou nos olhos de William,
e os olhos de Ian se estreitaram sutilmente. Sim, bem, ele pensou, deixe que ela conte a ele, então.
William acenou para outro cabo no fim da fila, que acenou de volta, e então deu um passo
para fora da estrada atrás de Ian. Alguns poucos soldados olharam para Ian, mas ele era um
homem comum, a linha dupla pontilhada que estava tatuada em suas bochechas, seus calções
de camurça, e sua pele bronzeada pelo sol o tornavam um mero índio batedor — um bom
número destes tinha desertado do exército britânico, mas ainda tinham sobrado muitos, a
maioria Legalista, como Joseph Brant, que tinha terras na Pensilvânia e em Nova York; também
havia alguns iroqueses que tinham descido para lutar em Saratoga.
— William! — Rachel voou pela pequena clareira e apertou as mãos do alto capitão,
sorrindo para ele com tanta alegria que ele sorriu de volta, toda irritabilidade desaparecendo.
Ian ficou um pouco para trás, para dar tempo a ela. Não tinha havido nenhum tempo, realmente,
com Rollo rugindo e rosnando e destruindo a carcaça velha de Arch Bug, Rachel esparramada
no chão, congelada de terror, ele mesmo deitado no chão e jorrando sangue, e metade da rua lá
fora gritando “assassino maldito”.
William tinha puxado Rachel para ficar em pé e a colocado nos braços da primeira mulher
disponível, que, por acaso, era Marsali.
— Tire-a daqui! — William tinha dito.
Mas Rachel, a noiva de cabelos castanhos de Ian — que estavam bem menos castanhos
por causa do sangue — tinha se recomposto em um instante e, rangendo seus dentes — Ian a
tinha visto fazer isso, perplexo pelo choque enquanto estava estatelado no chão, observando as
coisas acontecerem como num sonho —, tinha passado por cima do corpo velho de Arch, caído
de joelhos na bagunça de cérebro e sangue, e apertado o avental em volta do braço ferido de
Ian, amarrando-o com um lenço, e então, com Marsali, ela o tinha arrastado para fora da
tipografia, até a rua, onde prontamente desmaiou, acordando apenas quando Tia Claire
começou a costurar seu braço.
Ian não tivera tempo de agradecer a William, mesmo que ele fosse capaz de falar, e ele
queria agradecê-lo o mais breve possível. Mas claramente Rachel queria falar com ele primeiro,
e ele esperou, pensando em como ela estava bonita, seus olhos cor de avelã mesclados com
fortes traços de verde, o rosto inteligente e rápido como uma chama.
— Mas você parece cansado, Willie, e magro — ela estava dizendo, passando o dedo de
forma desaprovadora pela lateral de seu rosto — Eles não te alimentam? Achei que eram
apenas os Continentais que não tinham ração.
— Oh. Eu... Eu ainda não tive tempo recentemente — A felicidade que tinha se acendido
no rosto de William enquanto ele falava com Rachel desapareceu notavelmente — Nós... Bem,
você entende.
Ele acenou com o braço em direção à estrada invisível, onde os cânticos roucos dos
sargentos soaram como a convocação de corvos descontentes acima do arrastar de pés.
— Eu entendo. Para onde estão indo?
William esfregou as costas de sua mão na boca, e olhou para Ian.
— Eu suponho que ele não deve dizer — Ian disse, aproximando-se e tocando o braço de
Rachel, sorrindo para William de forma apologética — Nós somos o inimigo, mo nighean donn.
William olhou atentamente para Ian, captando o tom em sua voz, depois olhou de volta
para Rachel, cuja mão ele ainda estava segurando.
— Nós estamos noivos, William... Ian e eu — ela disse, gentilmente retirando a mão da de
William e colocando na de Ian.
O rosto de William mudou abruptamente, perdendo por completo o aspecto de felicidade.
Ele olhou para Ian com algo notavelmente perto de desgosto.
— Estão? — ele disse categoricamente — Suponho que devo desejar toda a felicidade a
vocês, então. Tenham um bom dia.
Ele se virou para ir embora e Ian, surpreso, ergueu o braço para o puxar de volta.
— Espere... — ele disse, e depois William se virou e lhe deu um soco na boca.
Ele estava deitado de costas nas folhas, piscando em descrença, enquanto Rollo passava
por cima dele e cravava os dentes em alguma parte macia de William, a julgar pelo grito e o
breve choro de espanto de Rachel.
— Rollo! Cachorro mau... E você também é um cachorro mau, William Ramson! O que
diabos você pretendia com isso?
Ian se sentou, tocando suavemente o lábio, que estava sangrando. Rollo tinha recuado um
pouco ante a repreensão de Rachel, mas mantinha um olho amarelo fixo em William e um lábio
curvado sobre os dentes arreganhados, o rosnado baixo saindo de seu peito.
— Fuirich — Ian disse a ele brevemente, e se levantou. William tinha se sentado e
examinava a panturrilha, que estava sangrando através da meia de seda rasgada, embora não
muito. Quando viu Ian, ficou de pé. Seu rosto estava brilhando em vermelho e ele parecia como
se estivesse pronto a assassinar Ian ou se quebrar em lágrimas. Talvez ambos, Ian pensou
surpreso.
Ele foi cuidadoso para não tocar William de novo, mas se afastou um pouco — na frente
de Rachel, apenas para o caso de o homem querer atingi-lo de novo. Ele estava armado, afinal
de contas; havia uma pistola e uma faca em seu cinto.
— Você está bem, homem? — Ian perguntou, no mesmo tom de leve preocupação que ele
ouvira seu pai usar ao falar com sua mãe ou com seu Tio Jamie. Evidentemente era, de fato, o
tom certo para se usar com um Fraser prestes a perder as estribeiras, já que William respirou
como uma orca por um momento, depois conseguiu se controlar.
— Eu peço o seu perdão, senhor — ele disse, as costas retas como uma vara de bambu —
Isso foi imperdoável. Eu devo... deixá-los. Eu... Senhorita Hunter... Eu — Ele se virou, tropeçando
um pouco, e isso deu a Rachel tempo o suficiente para se colocar na frente de Ian.
— William! — Seu rosto estava cheio de aflição — O que foi? Eu fiz...
Ele olhou para ela, seu rosto contorcido, mas balançou a cabeça.
— Você não fez nada — ele disse, com um óbvio esforço — Você... Você nunca poderia
fazer qualquer coisa — Ele se virou na direção de Ian, com o punho fechado em sua espada —
Mas você, seu maldito filho da puta! Primo!
— Oh — Ian disse estupidamente — Você sabe, então.
— Sim, eu sei, idiota! Você poderia ter me dito, merda!
— Sabe do quê?
Rachel olhou dele para William e voltou a olhar para Ian.
— Não ouse dizer a ela! — William estalou.
— Não seja tolo! — Rachel disse razoavelmente — É claro que ele vai me dizer, no minuto
em que estivermos sozinhos. Não prefere me dizer você mesmo? Eu acho que talvez você possa
não confiar que Ian diga corretamente.
Seu olhar recaiu no lábio de Ian, e sua própria boca se contorceu. Ian deveria ter se sentido
ofendido, mas a angústia de William era muito aparente.
— Não é realmente uma desgraça... — ele começou, mas depois se afastou rapidamente
quando o punho cerrado de William recuou.
— Você acha que não? — William estava tão furioso, sua voz era quase inaudível —
Descobrir que eu sou... sou... a cria de um criminoso escocês? Que eu sou um maldito bastardo?
Apesar de sua resolução em ser paciente, Ian sentiu o próprio punho começar a levantar.
— Criminoso, imagine! — ele estalou — Qualquer homem deveria ter orgulho em ser o
filho de Jamie Fraser!
— Oh — Rachel disse, prevenindo o próximo comentário aquecido de William — Isso.
— O quê? — Ele olhou para ela — O que diabos você quer dizer com “isso”?
— Nós pensamos que poderia ser o caso, Denny e eu — Ela levantou um ombro, embora
mantivesse o olhar atento em William, que parecia como se estivesse prestes a explodir como
um morteiro de vinte quilos — Mas nós achamos que você não iria querer falar sobre o assunto.
Eu não sabia que você... Como você podia não saber? — Ela perguntou curiosamente — A
semelhança...
— Para o inferno com a semelhança!
Ian se esqueceu de Rachel e bateu na cabeça de William com um baque duplo do punho
que o fez cair de joelhos e, em seguida, o chutou no estômago. Se o chute tivesse pegado onde
ele gostaria, a discussão acabaria naquele momento, mas William era mais rápido do que Ian
esperava. Ele se esquivou para o lado, pegou o pé de Ian e o puxou. Ian atingiu o chão com o
cotovelo, rolou, e pegou a orelha de William. Ele estava vagamente consciente de Rachel
gritando e ficou momentaneamente triste por isso, mas o alívio da briga era muito bom para
pensar em qualquer outra coisa, e ela desapareceu à medida que sua fúria aumentava.
Havia sangue em sua boca e suas orelhas estava zunindo, mas ele tinha uma mão na
garganta de William e a outra o atacava nos olhos, quando mãos o agarraram pelos ombros e o
arrancaram do corpo de seu primo que se contorcia.
Ele balançou a cabeça para clareá-la, ofegante e empurrando a quem quer que o estivesse
segurando — havia dois canalhas. Isso lhe valeu uma pancada nas costelas que arrancou o
pouco ar que ele tinha.
William não estava muito melhor. Ele se levantou, passando as costas das mãos abaixo do
nariz, que sangrava profusamente. Ele olhou para o resultado e fez uma careta de desgosto,
limpando a mão no casaco.
— Leve-o — ele disse, meio sem fôlego, mas no controle de si mesmo. Um de seus olhos
estava inchado e fechado, mas o outro deu a Ian um olhar com sede de sangue e, apesar das
circunstâncias, Ian estava ainda mais surpreso ao ver uma das expressões de Tio Jaime em outro
rosto.
Houve um grunhido semelhante a um trovão de Rollo. Rachel segurava a nuca do cão com
força, mas Ian sabia bem o suficiente que ela não poderia segurá-lo se ele decidisse atacar
William.
— Fuirich, a cu! — ele disse, com toda a autoridade que conseguiu reunir. Os soldados
matariam Rollo sem um segundo de hesitação se ele se arremessasse para a garganta de
William. O cachorro recuou sobre as patas traseiras, mas continuou tenso, seus lábios puxados
para trás e os dentes pingando saliva, além de um rosnado constante e profundo que ecoava
por todo seu corpo.
William olhou para Rollo, depois virou de costas para o cachorro. Ele espirrou, se afogou
e espirrou sangue para o lado, depois continuou, ainda respirando pesadamente — Leve-o para
frente da coluna, para o Coronel Prescott. Ele está preso por agredir um oficial; lidaremos com
ele no acampamento esta noite.
— O que isso significa? Lidaremos com ele? — Rachel exigiu, passando pelos dois soldados
e segurando Ian — E como você ousa, William Ransom? Como... Como... Como você ousa?
Ela estava com o rosto pálido pela fúria, os punhos pequenos fechados e balançando nas
laterais de seu corpo, e Ian riu para ela, lambendo o sangue fresco de seu lábio partido. Ela não
estava prestando atenção nele, entretanto, toda a sua ira focada em William, que se endireitou
em toda a sua estatura e olhou para baixo, da ponte íngreme de seu nariz.
— Isso não é mais preocupação sua, senhora — ele disse, tão friamente como um homem
que estava vermelho como um pedaço de flanela e soltando faíscas pela orelha, poderia dizer.
Ian pensou que Rachel poderia realmente chutar William nas canelas, e pagaria um bom
dinheiro para ver isso, mas seus princípios Quakers levaram a melhor na situação e ela
endireitou-se também em sua altura que não era insignificante — ela era tão alta quanto Tia
Claire — e empurrou o queixo para cima de forma belicosa para William.
— Você é um covarde e um bruto — ela declarou no topo de sua voz. Virando-se para os
homens que seguravam Ian, ela acrescentou — E vocês são ainda mais brutos e covardes, por
seguirem uma ordem tão injusta!
Um dos soldados riu, então tossiu quando viu que o olhar injetado de sangue recaiu sobre
ele.
— Leve-o — William repetiu — Agora.
E, virando-se, se afastou. Havia uma larga faixa de poeira da estrada nas costas de seu
casaco e uma boa dose dela em seus cabelos.
— É melhor ficar fora disso, senhora — um dos soldados advertiu a Rachel, sem maldade
— Você não vai querer ficar entre as tropas. Quero dizer, não sozinha.
— Eu não vou ficar de fora — Rachel disse, estreitando seus olhos para o homem de uma
forma que fazia Ian se lembrar de uma pantera prestes a saltar sobre a presa — O que
pretendem fazer a este homem? — Ela gesticulou para Ian, que estava recuperando o fôlego
neste momento.
— Rachel — ele começou, mas foi interrompido pelo outro soldado.
— Por agredir um oficial? Provavelmente umas quinhentas chicotadas. Não o
enforcariam, pelo menos eu acho que não — o homem adicionou desapaixonadamente —, já
que o jovem Galahad não está aleijado, quero dizer.
Rachel ficou ainda mais pálida ao ouvir isso, e Ian se sacudiu duramente nos braços dele,
fincando os pés solidamente abaixo de si.
— Vai ficar tudo bem, a nighean — ele disse, esperando reconfortá-la — Rollo! Sheas! Mas
ele está certo... O acampamento não é lugar para você, e você não vai poder me ajudar vindo
comigo. Volte para a cidade, sim? Diga à Tia Claire o que aconteceu... Ela pode falar com L... Ugh!
— Um terceiro soldado, vindo de lugar algum, bateu na boca de seu estômago com a parte de
trás do mosquete.
— Do que vocês tanto falam? Vamos! E vocês... — O soldado se virou para Rachel e o
cachorro, carrancudo — Xô! — Ele empurrou a cabeça na direção dos captores de Ian e
firmemente em direção à estrada.
Ian cambaleou pelo caminho, preferindo isso a ser arrastado, pensando furiosamente. Tia
Claire era sua melhor chance — provavelmente a sua única chance. Se ela pudesse fazer com que
Lord John desse uma mãozinha, ou falando com Willie ou diretamente com esse Coronel Prescott...
Ele olhou para o sol. Meio-dia, mais ou menos. E os britânicos em marcha costumavam realizar
as flagelações rotineiras e outras punições após a refeição, à noite; ele já tinha visto aquilo
algumas vezes, e também vira as costas de seu tio. Um frio rastejou pela sua barriga dolorida.
Seis horas. Talvez.
Ele arriscou um outro olhar para trás. Rachel estava correndo, Rollo galopando ao seu
lado.
William limpou o rosto com o que restava de seu lenço. Suas feições pareciam estranhas a ele,
aglomeradas e inchadas, e ele explorou o interior de sua boca suavemente com a língua:
nenhum dente faltando, alguns talvez um pouco moles, e um corte coçando dentro de sua
bochecha. Nada mal. Ele pensou que tinha feito pior a Murray e estava feliz por isso.
Ele ainda estava tremendo — não por causa do choque, mas com a necessidade de rasgar
alguém membro a membro. Ao mesmo tempo, ele estava começando a sentir o choque, embora
os pensamentos conscientes ainda chegassem em fragmentos fugazes. O que diabos ele havia
feito?
Uma curta coluna de soldados passou marchando, alguns deles olhando abertamente para
ele. Ele lançou um olhar feroz a eles, e suas cabeças viraram para frente tão rápido que ele
conseguiu ouvir o couro de seus uniformes ranger.
Ele não tinha feito nada. Murray o havia atacado. Onde Rachel havia se perdido, chamando-
o de covarde e bruto? Ele sentiu as cócegas do sangue rastejando por uma narina e o estancou,
assoando o nariz no pano imundo. Viu que alguém se aproximava, vindo para a estrada,
acompanhada de um grande cachorro. Ele se endireitou, enfiando o lenço no bolso.
— Falando da maldita diaba — ele murmurou, e tossiu, sua garganta em carne viva e com
gosto ferroso de sangue.
Rachel Hunter estava pálida de raiva. Aparentemente, ela não tinha vindo pedir desculpas
pelos insultos. Ela arrancara a touca e a segurava apertadamente em sua mão — ela tinha a
intenção de jogá-la nele?, pensou com um espanto enevoado.
— Senhora Hunter... — ele começou com uma voz rouca, e teria feito uma reverência se
não estivesse com medo que a ação faria seu nariz sangrar mais uma vez.
— Não pode querer dizer isso, William!
— Querer dizer o quê? — ele disse, e ela deu a ele um olhar que poderia ter chamuscado
os pequenos pelos de seu corpo, se ele já não estivesse se sentindo tão quente.
— Não seja obtuso! — ela replicou — O que o possuiu para...
— O que possuiu... o seu noivo? — ele estalou de volta — Eu o ataquei? Não!
— Sim, você o fez! Você o socou na boca, sem a mínima provocação...
— E ele me bateu na cabeça, sem o mínimo aviso! Se alguém é um covarde...
— Não se atreva a chamar Ian Murray de covarde, seu... seu...
— Eu o chamarei malditamente do que eu quiser, porque ele é um maldito. Assim como o
seu maldito tio, maldito escocês bastardo... quero dizer...
— O tio dele? Seu pai?
— Cale a boca! — ele gritou, e sentiu o sangue surgir em seu rosto, picando em todos os
lugares — Não o chame de “meu pai”!
Ela respirou de forma entrecortada pelo nariz por um momento, olhando para ele.
— Se você permitir que isso seja feito, William Ramson, eu vou... eu vou...
William podia sentir a poça de sangue em sua barriga e pensou que poderia desmaiar, mas
não por causa de suas ameaças.
— Você vai fazer o quê? — ele perguntou, meio sem fôlego — Você é uma Quaker. Você
não acredita na violência. Quer dizer, você não pode, ou pelo menos não vai — ele corrigiu a si
mesmo, vendo o olhar perigoso que ela lançava a ele — me apunhalar. Você provavelmente nem
mesmo bateria em mim. Então o que você tinha em mente?
Ela realmente bateu nele. Sua mão se ondulou como uma cobra e bateu em sua face com
força o suficiente para fazê-lo cambalear.
— Então, você condenou o seu parente, repudiou ao seu pai e me fez trair os meus
princípios. O que vem a seguir?
— Oh, inferno! — ele disse, e pegou seus braços, puxou-a rudemente para si e a beijou. Ele
a soltou e deu um passo para trás rapidamente, deixando-a de olhos arregalados e ofegante.
O cachorro rosnou para ele. Ela o encarou, cuspiu no chão aos seus pés, em seguida limpou
os lábios com a manga e, virando-se, marchou para longe, o cachorro aos seus calcanhares
lançando um olhar de olhos vermelhos para William.
— Cuspir nas pessoas é parte dos seus malditos princípios? — ele gritou para ela.
Ela se virou, os punhos cerrados ao lado do corpo.
— Agredir mulheres é parte dos seus? — ela gritou de volta, para a diversão dos soldados
de infantaria que estavam parados na estrada, inclinando suas armas e rindo pelo show que
estava se desenrolando.
Arremessando a touca no chão aos seus pés, ela girou nos calcanhares e marchou para
longe, antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa.
No café da manhã da quinta-feira, eu chegara à firme conclusão de que era o Duque de Pardloe
ou eu. Se eu permanecesse na casa, apenas um de nós ficaria vivo até o pôr do sol.
Denzell Hunter já devia ter chegado à cidade essa hora, eu deduzi; ele ia diariamente à
casa da Sra. Woodcock, onde Henry Grey estava convalescendo. Um médico muito gentil e
capaz, ele poderia facilmente lidar com a recuperação de Hal — e talvez seu futuro sogro fosse
grato pela sua atenção profissional. O pensamento me fez rir em voz alta, apesar de minha
ansiedade crescente.
Fui convocada a ir para Kingsessing para passar o dia. Entrego Sua Graça, o Duque de
Pardloe aos seus mais competentes cuidados, com a feliz confiança de que os seus escrúpulos
religiosos vão evitar que você bata na cabeça dele com um machado.
Sinceramente,
C.
Post-Postscriptum: Sugiro fortemente que você não traga Dottie, a menos que você possua um par
de algemas. Preferivelmente dois.
Eu selei a missiva, dei a Colenso para que ele entregasse na casa da Sra. Woodcock, e executei
uma saída discreta pela porta da frente antes que Jenny ou a Sra. Figg aparecessem e exigissem
saber onde eu estava indo.
Não eram nem sete horas da manhã, mas o ar já estava quente, gradualmente esquentando
a cidade. Ao meio-dia, a pungente mistura de animais, humanos, esgoto, vegetais em
decomposição, resina de árvore, lama do rio e tijolo quente seria sufocante, mas no momento,
o cheio suave emprestava um toque picante ao ar ameno. Eu estava tentada a caminhar, mas
até mesmo os meus sapatos mais confortáveis não resistiriam a uma hora de caminhada pelas
estradas da cidade — e se eu esperasse pelo pôr-do-sol e o frescor da noite para voltar, ficaria
irremediavelmente atrasada.
Também não era uma boa ideia para uma mulher ficar sozinha nas estradas, a pé. De dia
ou de noite.
Pensei que eu conseguiria caminhar os três quarteirões até o estábulo sem incidentes,
mas, na esquina da Walnut, fui saudada por uma voz familiar pela janela de uma carruagem.
— Sra. Fraser? Sra. Fraser?
Olhei para cima, assustada, ao ver o rosto com nariz de falcão de Benedict Arnold me
encarando. Suas feições geralmente vistosas estavam ossudas e sulcadas, e sua compleição
normalmente corada, tinha sucumbido a uma palidez de quando a pessoa só fica em locais
fechados. Porém, sem dúvida, era ele.
— Oh — eu disse, e lhe dei um pequeno aceno — É bom vê-lo, General.
Meu coração estava acelerado. Eu tinha ouvido de Denny Hunter que Arnold tinha sido
nomeado governador militar da Filadélfia, mas não esperava vê-lo tão cedo — de forma alguma.
Deveria ter deixado passar, mas não consegui evitar a pergunta — Como está a perna?
Eu sabia que ele havia sido ferido gravemente em Saratoga — levado um tiro na mesma
perna que já tinha sido ferida pouco tempo antes, e depois esmagada por seu cavalo, que caiu
com ele na emboscada de Breymann Redoubt —, mas eu não o tinha tratado. Os cirurgiões do
exército o tinham atendido, e pelo que eu sabia de seu trabalho, fiquei surpresa não somente
por ele estar vivo, mas por ter as duas pernas.
Seu rosto se obscureceu um pouco, mas ele continuou a sorrir.
— Ainda presente, Sra. Fraser. Porém, dois centímetros mais curta do que a outra. Onde
está indo nesta manhã?
Ele olhou automaticamente para trás de mim, registrando a ausência de uma dama ou
companhia, mas não pareceu perturbado por isso. Ele havia me conhecido no campo de batalha
e me conhecia — e apreciava — como eu era.
Eu sabia o que ele era, também — e o que ele se tornaria.
O inferno era que eu gostava do homem.
— Ah... Eu estou a caminho de Kingsessing.
— A pé? — Sua boca se contorceu.
— Na verdade, eu tinha em mente contratar um coche no estábulo — Assenti em direção
ao estábulo de Davison — É logo ali na esquina. Foi muito bom vê-lo, General!
— Espere um pouco, Sra. Fraser, se puder... — Ele virou a cabeça em direção ao seu
assessor, que estava se inclinando sobre seu ombro, assentindo em direção a mim, e dizendo
alguma coisa inaudível. A próxima coisa que eu sei é que a porta da carruagem se abriu e o
assessor pulou por ela, me oferecendo um braço.
— Suba, minha senhora.
— Mas...
— O capitão Evans aqui disse que o aluguel de coches está fechado, Sra. Fraser. Permita-
me colocar minha carruagem aos seus serviços.
— Mas... — Antes que eu pudesse pensar em alguma coisa para completar este protesto,
fui conduzida ao lado oposto do general, a porta foi firmemente fechada e o Capitão Evans pulou
agilmente ao lado do motorista.
— Imagino que o Sr. Davison era um Legalista — General Arnold disse, olhando para mim.
— Era? — eu disse, alarmada — O que aconteceu com ele?
— O Capitão Evans disse que Davison e sua família deixaram a cidade.
Eles haviam partido. A carruagem tinha virado na Fifth Street, e eu podia ver o estábulo,
suas portas escancaradas — uma delas completamente arrancada e jogada na rua. O estábulo
estava vazio, bem como a área das baias — as carroças, os cocheiros, e os pequenos cochos
tinham ido com os cavalos. Vendidos, ou roubados. Da casa de Davison, perto do estábulo, os
farrapos das cortinas da Sra. Davison vibravam em uma janela quebrada.
— Oh — eu disse, e engoli. Arrisquei um rápido olhar ao General Arnold. Ele tinha me
chamado de “Sra. Fraser”. Obviamente ele não sabia qual era a minha situação atual, e eu não
conseguia me decidir se deveria contar a ele. Por impulso, decidi não dizer. Quanto menos os
oficiais perguntassem sobre os eventos na Chestnut Street, número 17, melhor,
independentemente de serem perguntas dos britânicos ou dos americanos.
— Ouvi dizer que os britânicos mantêm uma espécie de cerco sobre os Whigs da cidade
— ele continuou, olhando para mim com interesse — Espero que vocês não tenham tido muitos
problemas, você e o coronel?
— Oh, não — eu disse — Não realmente. — Inspirei profundamente, tateando em busca
de um meio de desviar a conversa — Mas tenho tido poucas notícias... é, notícias americanas,
eu quero dizer. Houve algum... desenvolvimento notável ultimamente?
Ele riu com aquilo, mas ironicamente.
— Por onde devo começar, senhora?
Apesar de meu desconforto ao encontrar Benedict Arnold mais uma vez, eu estava feliz
por sua cortesia em me oferecer carona; o ar estava pesado com a umidade e o céu estava
branco como uma toalha de musselina. Minha anágua estava úmida de suor após aquela breve
caminhada; eu estaria completamente encharcada — e provavelmente à beira de uma insolação
— quando chegasse em Kingsessing.
O general estava animado, tanto por seu novo compromisso quanto pelos
desenvolvimentos militares iminentes. Ele não tinha a liberdade para me contar quais eram, ele
disse — mas Washington estava se movendo. Ainda assim, eu podia ver que sua excitação era
temperada com arrependimento; ele era um guerreiro natural, e ficar sentado atrás de uma
escrivaninha, não importava quão importante e ornamentada fosse, não era uma boa
substituição à emoção que ia até os ossos de liderar os homens em uma guerra.
Observando-o se mover em seu assento, as mãos se abrindo e se fechando nas coxas
enquanto falava, senti meu desconforto se aprofundar. Não apenas por causa dele, mas por
causa de Jamie. Eles eram tipos de homens bem diferentes — mas o sangue de Jamie se aquecia
ao sentir o cheiro de uma batalha, também. Eu só podia esperar que ele não estivesse em um
lugar próximo a uma batalha iminente.
O general me deixou na balsa; Kingsessing era do outro lado de Schuylkill. Ele saiu da
carruagem para me ajudar a descer, apesar da perna defeituosa, e pressionou minha mão na
despedida.
— Devo mandar a carruagem para buscá-la, Sra. Fraser? — ele perguntou, olhando para
o céu nebuloso — O céu parece indigno de confiança.
— Oh, não — Assegurei a ele — Eu não devo demorar mais do que uma ou duas horas;
não choverá antes das quatro da tarde... nunca acontece nesta época do ano. Ou foi assim que
meu filho me assegurou.
— Seu filho? Eu conheço seu filho? — Sua testa se enrugou; ele se orgulhava de sua
memória, Jamie havia me dito.
— Não acho que conheça. Fergus Fraser, é o nome dele; ele é o filho adotivo de meu
marido, na realidade. Ele e sua esposa são donos da tipografia da Market Street.
— É mesmo? — Seu rosto se iluminou com interesse, e ele sorriu — Um jornal chamado...
“The Onion”? Ouvi uma menção superficial a respeito dele onde tomei o desjejum esta manhã.
O periódico Patriota, suponho, e um pouco dado à sátira?
— L’Oignon — eu concordei, rindo — Fergus é francês, e sua esposa tem muito senso de
humor. Eles também imprimem outras coisas, entretanto. E eles vendem livros, é claro.
— Falarei com eles — Arnold declarou — Estou meio sem livros, tendo deixado meus
pertences para que viessem depois de mim. Mas sério, minha querida, como você vai voltar para
Filadélfia?
— Tenho certeza de que posso emprestar algum tipo de transporte dos Bartrams —
assegurei a ele — Fui aos seus jardins diversas vezes; eles me conhecem — Na verdade, eu tinha
a intenção de andar. Eu não tinha pressa de voltar para a Chestnut Street e para o meu
prisioneiro rabugento (o que diabos eu faria com ele? Particularmente agora que os britânicos
haviam partido...), e não era mais do que uma hora a pé, mas eu sabia que não poderia lhe dizer
isso, e nós nos despedimos com expressões mútuas de estima.
Era uma caminhada de apenas quinze minutos da balsa até o jardim dos Bartram, mas eu
levei um tempo para fazer isso, tanto porque minha mente ainda estava no General Arnold
quanto por causa do calor.
Quando?, eu imaginava inquietamente. Quando começaria a acontecer? Ainda não; eu tinha
quase certeza disso. O que era, o que aconteceria, para tornar esse homem galante e honrado de
patriota para traidor? Com quem ele falaria? O que plantaria a semente mortal?
Deus, eu pensei num momento de oração horrorizada, por favor! Não deixe que seja por
alguma coisa que eu disse a ele!
A mera ideia me fez tremer, apesar do calor opressivo. Quanto mais eu via como as coisas
funcionavam, menos eu sabia. Roger se preocupava muito com isso, eu sabia: o motivo de tudo.
Por que algumas pessoas eram capazes de fazer aquilo? Qual efeito — consciente ou
inconsciente — os viajantes causavam? E o que deveria ser feito com o que eles — nós —
provocavam?
Saber o que iria acontecer com Charles Stuart e a Resistência não tinha sido o suficiente
para impedi-lo e nem de impedir que nós fôssemos tragados pela tragédia. Mas tinha — talvez
— salvo a vida de um grande número de homens que Jamie tinha liderado para Culloden antes
da batalha. Tinha salvo a vida de Frank, ou foi o que eu pensei. Eu teria dito a Jamie, entretanto,
se eu soubesse qual seria o custo para ele e para mim? E se eu não tivesse dito a ele, teríamos sido
tragados para isso de qualquer forma?
Bem, eu não tinha as malditas respostas, não mais do que nas centenas de outras vezes
que eu tinha me perguntado as mesmas malditas coisas, e eu dei um suspiro de alívio quando o
portão do Jardim dos Bartram apareceu. Uma hora no meio de hectares de vegetação era
exatamente o que eu precisava.
23 – QUANDO A SRA. FIGG INTERVÉM
A respiração de Jamie ficou curta, e ele percebeu que estava abrindo e fechando os punhos
quando virou para a Chestnut Street. Não como um meio de controlar seu temperamento — ele
o tinha bem controlado e continuaria assim —, mas apenas para deixar com que a energia se
esvaísse de dentro dele.
Ele estava tremendo, com a necessidade de vê-la, tocá-la, tê-la apertada contra seu corpo.
Nada mais importava. Haveria conversas, tinha que haver conversas — mas elas poderiam
esperar. Tudo poderia esperar.
Ele havia deixado Rachel e Ian na esquina entre a Market e a Second Street, para irem à
tipografia encontrar Jenny, e elevou uma rápida oração para que sua irmã e a pequena Quaker
pudessem se dar bem juntas, mas aquilo se desvaneceu como fumaça.
Havia uma queimação abaixo de suas costelas que se espalhava por seu peito e pulsava
em seus dedos inquietos. A cidade cheirava a queimado, também; a fumaça pairava sob um céu
sombrio. Ele notou automaticamente os sinais de saques e violência — uma parede meio
queimada, a mancha de fuligem como uma impressão digital gigantesca no gesso, janelas
quebradas, uma touca feminina presa num arbusto e esvoaçando no ar pesado — e as ruas ao
seu redor estavam cheias de pessoas, mas não aquelas que tratavam de seus próprios negócios.
A maioria era de homens, muitos deles armados, metade deles caminhando com cautela,
olhando em volta, e o restante parado em grupos soltos de conversas animadas.
Ele não se importava com o que estava acontecendo, contanto que não estivesse
acontecendo a Claire.
Ali estava, Número 17; a casa de três andares de tijolos onde ele tinha entrado
apressadamente — e depois saído — três dias antes. A visão daquilo o atingiu na boca do
estômago. Ele tinha ficado lá dentro por, talvez, cinco minutos e se recordava de cada segundo.
Os cabelos de Claire, meio escovados e pairando ao redor de seu rosto quando ele se inclinou
para ela, cheirando a bergamota, baunilha, e seu próprio cheiro herbal. Seu calor e solidez em
seus braços, suas mãos; ele a tinha agarrado pelo traseiro, seu lindo traseiro redondo tão macio
e firme sob a fina combinação, e suas palmas formigavam com a memória de luxúria
instantânea. E não mais do que um instante depois...
Ele empurrou a visão de William para fora de sua mente. William poderia esperar
também.
Sua batida na porta foi atendida pela rotunda mulher negra que ele tinha visto em sua
primeira chegada, e ele a cumprimentou praticamente da mesma forma, mesmo que não com
as mesmas palavras.
— Bom dia para você, senhora. Eu vim para ver minha esposa — Ele deu um passo para
dentro, passando por ela, boquiaberta e de sobrancelhas levantadas, e parou, piscando para a
bagunça.
— O que aconteceu? — ele exigiu, rondando a governanta — Ela está bem?
— Espero que esteja, se você está falando de Lady John — a mulher disse, com uma pesada
ênfase no nome. — Quanto a isso tudo — ela girou suavemente sobre seu eixo, gesticulando em
direção à parede manchada de sangue, ao corrimão quebrado e ao esqueleto de ferro de um
lustre, deitado num canto do hall de entrada —, foi o Capitão Lord Ellesmere. O filho de Lord
John — Ela estreitou os olhos e olhou para Jamie de uma forma que tornou aparente a ele que
ela sabia muito bem o que tinha acontecido no corredor de cima quando ele havia encarado
William, e ela não estava nada satisfeita.
Ele não tinha tempo para se preocupar com os sentimentos dela e passou por ela o mais
educadamente possível, subindo as escadas tão rápido quanto os músculos doloridos de suas
costas permitiram.
Quando alcançou o topo das escadas, ele ouviu uma voz de mulher — mas não a voz de
Claire. Para seu espanto, era a voz de sua irmã, e ele se aproximou do quarto mais distante para
vê-la bloqueando a entrada de uma porta. E sobre seu ombro...
Ele se sentia irreal desde sua conversa com William ao lado da estrada. Agora ele estava
convencido de que estava alucinando, porque o que ele pensou que viu foi o Duque de Pardloe,
o rosto contorcido em aborrecimento, levantando-se de uma cadeira, vestido com nada além de
uma camisola.
— Sente-se — As palavras foram ditas em voz baixa, mas seu efeito em Pardloe foi
instantâneo. Ele congelou, e tudo em seu rosto com exceção dos seus olhos ficou em branco.
Inclinando-se para frente, Jamie olhou sobre o ombro de Jenny para ver uma grande
pistola das Highlands na mão dela, seu cano de quarenta e cinco centímetros pressionado
firmemente contra o peito do duque. O que ele podia ver de seu rosto estava branco e duro
como o mármore.
— Você me ouviu — ela disse, sua voz nada mais do que um sussurro.
Muito lentamente, Pardloe — sim, era realmente ele, os olhos de Jamie informaram sua
mente confusa — deu dois passos para trás e se sentou em uma cadeira. Jamie podia sentir o
cheiro de pólvora na bandeja e pensou que o duque provavelmente poderia também.
— Lord Melton — Jenny disse, movendo-se sutilmente para que a silhueta dele ficasse
recortada contra a luz fraca filtrada através das persianas — Minha cunhada disse que você é
Lord Melton, ou era. É verdade?
— Sim — Pardloe disse. Ele não estava se mexendo, mas Jamie viu que ele tinha se sentado
com as pernas flexionadas sobre si; poderia sair da cadeira em questão de segundos, se
quisesse. Muito calmamente, Jamie se deslocou para o lado. Ele estava perto o suficiente para
que Jenny o sentisse atrás de si, mas ele podia perceber porque ela não havia sentido; suas
omoplatas estavam pressionadas juntas em concentração, afiadas sob a roupa como um par de
asas de gavião.
— São os seus homens que foram até minha casa — ela disse, sua voz baixa — Foram mais
de uma vez, para saquear e destruir, para tirar a comida de nossas bocas. Que levaram o meu
marido para longe — por um instante, o cano tremeu, mas ela o estabilizou novamente —, para
a prisão onde ele adquiriu a doença que o matou. Mova-se um centímetro, meu senhor, e eu vou
atirar em seus intestinos. Você vai morrer mais rápido do que ele, mas ouso dizer que não vai
achar que foi rápido o suficiente.
Pardloe não disse uma palavra, mas moveu a cabeça uma fração de centímetro para
indicar que tinha compreendido. Suas mãos, que estavam agarradas nos braços da cadeira,
relaxaram. Seus olhos deixaram a pistola — e ele viu Jamie. Sua boca se abriu, seus olhos
saltaram, e os dedos de Jenny apertaram o gatilho.
Jamie colocou uma mão sob a arma assim que o gatilho foi apertado e a fumaça escura
apareceu, o barulho do disparo simultâneo com o de explosão de uma figura de porcelana
chinesa sobre a lareira.
Pardloe sentou-se congelado por um momento, depois — muito cuidadosamente —
levantou a mão e removeu um grande pedaço de porcelana de seu cabelo.
— Sr. Fraser — ele disse, em uma voz quase estável — Seu criado, senhor.
— Seu mais obediente servo, Sua Graça — Jamie respondeu, sofrendo de um desejo insano
de rir e evitando fazer isso apenas pelo conhecimento de que sua irmã iria recarregar a arma
imediatamente e atiraria à queima-roupa, se ele fizesse isso — Vejo que está familiarizado com
a minha irmã, Sra. Murray.
— Sua... querido Deus, ela é — Os olhos de Pardloe se alternavam entre os seus rostos, e
agora ele inspirava longa e profundamente — Toda a sua família é dada à irascibilidade?
— Nós somos, Sua Graça, e eu agradeço pelo elogio — Jamie disse, e descansou uma mão
nas costas de Jenny. Ele podia sentir o coração dela acelerado como um martelo, e sua
respiração vinha em fôlegos rasos.
Colocando a pistola de lado, ele pegou a mão dela em ambas as suas mãos. Estava fria
como gelo apesar da temperatura do cômodo, que era sutilmente mais quente do que Hades,
com a janela fechada e abafando o local.
— O senhor seria tão amável para me servir um trago do que quer que tenha nessa garrafa,
Sua Graça?
Pardloe o fez e se aproximou com cautela, segurando o copo; era conhaque, Jamie podia
sentir o cheiro quente.
— Não o deixe sair — Jenny disse, recompondo-se. Ela olhou para Pardloe e pegou o
conhaque, depois olhou para Jamie — E onde, em nome de Santa Maria Madalena, você esteve
durante estes três dias?
Antes que ele pudesse responder, passos pesados vieram apressados pelo corredor e a
governanta negra apareceu na porta, respirando de forma audível e segurando uma pistola de
prata incrustada de uma maneira que sugeria que sabia o que fazer com ela.
— Vocês dois podem apenas se aquietar neste momento — ela disse, movendo o cano da
arma entre Pardloe e Jamie de uma forma profissional — Se acham que vão tirar este homem
daqui, vocês...
— Eu já disse a você... Perdão, senhora, mas me daria a honra de dizer o seu nome?
— Você... O quê? — A governanta piscou, desconcertada — Eu... Sra. Mortimer Figg, se é
que isso é da sua conta, e eu duvido.
— Assim como eu — Jamie assegurou a ela, sem se sentar. O duque, ele viu, havia se
sentado — Sra. Figg, como eu disse lá embaixo, eu vim para ver minha esposa e nada mais. Se
você me disser onde ela está, vou deixá-la cuidar dos seus negócios. Quaisquer que sejam — ele
adicionou, com um olhar para Pardloe.
— Sua esposa — a Sra. Figg repetiu, e o cano da pistola apontou em sua direção — Bem,
então. Eu acho que talvez você deva apenas se sentar e esperar até que sua senhoria chegue e
nós veremos o que ele tem a dizer sobre tudo isso.
— Não seja idiota, Jerusha — Jenny disse, mais impacientemente — Você sabia que Claire
é a esposa de meu irmão; ela mesma lhe disse.
— Claire? — exclamou Pardloe levantando-se de novo. Ele estava bebendo da garrafa e
ainda a tinha em sua mão — A esposa de meu irmão?
— Ela não é tal coisa — Jamie disse irritado — Ela é minha, e eu vou agradecer se alguém
me disser onde diabos ela está.
— Ela foi para um lugar chamado Kingsessing — Jenny disse prontamente — Para coletar
ervas e afins. Estivemos medicando este mac na galladh — Ela fez uma careta para Pardloe —
Se eu soubesse quem você é, a mh’ic na diabhail, teria colocado vidro moído em sua comida.
— Ouso dizer que sim — Pardloe murmurou, e tomou outro gole da garrafa. Ele virou sua
atenção para Jamie — Eu suponho que você não sabe onde meu irmão está neste momento?
Jamie olhou para ele, uma súbita sensação de mal-estar agarrando-se à parte de trás de
seu pescoço — Ele não está aqui?
Pardloe fez um gesto largo ao redor da sala, convidando Jamie, sem palavras, para olhar.
Jamie o ignorou e se virou para a governanta — Quando você o viu pela última vez,
senhora?
— Pouco antes de ele e você saírem pela janela do sótão — ela replicou brevemente, e o
cutucou nas costelas com o cano da pistola — O que você fez com ele, fils de salope?
Jamie desviou o cano da arma para o lado com cautela, usando um dedo. A arma estava
pronta, mas ainda não engatilhada.
— Eu o deixei na floresta fora da cidade, dois dias atrás — ele disse, uma súbita sensação
de inquietação apertando os músculos da base de sua espinha. Ele se encostou contra uma
parede, discretamente pressionando seu quadril para amenizar a dor nas costas — Eu esperava
encontrá-lo aqui, com minha esposa. Posso te perguntar como veio parar aqui, Vossa Graça?
— Claire o sequestrou — Jenny disse, antes que Pardloe pudesse falar. Os olhos do duque
se arregalaram um pouco, embora Jamie não soubesse se isso se devia à observação ou ao fato
de que Jenny estava recarregando sua pistola.
— Oh, sim? O que ela quer que ele faça? Ela disse?
Sua irmã lhe lançou um olhar.
— Ela estava com medo que ele revirasse a cidade para procurar por seu irmão e você
fosse capturado no tumulto.
— Sim, bem, eu acho que estou seguro o suficiente — ele assegurou a Jenny — Deveríamos
soltá-lo, vocês acham?
— Não — ela disse prontamente, martelando a bala e a emenda. Ela colocou a mão no
avental e retirou dele um pequeno chifre de pólvora — Nós não podemos fazer isso; ele pode
morrer.
— Oh — Ele considerou por um momento, observando o duque, cujo rosto tinha assumido
uma ligeira coloração roxa — Por quê?
— Ele não consegue respirar corretamente, e ela estava com medo de que, se nós o
soltássemos antes de ele se recuperar, ele iria morrer na rua, e sua consciência não a deixaria
fazer isso.
— Entendo — A vontade de rir tinha voltado, mas ele a controlou corajosamente — Então,
você estava prestes a atirar nele dentro da casa, para que ele não morresse na rua.
Seus olhos azul-escuros se estreitaram, embora ela tenha mantido o olhar fixo na pólvora
que derrubava na arma.
— Eu não iria realmente atirar no intestino dele — ela disse, embora, pela forma como
pressionava os lábios, aparentemente ela não quisesse fazer nada além disso — Teria apenas
atirado em sua perna. Ou talvez disparado em alguns dedos dos pés.
Pardloe fez um som que poderia ser ultraje, mas, conhecendo o homem como conhecia,
Jamie reconheceu como um riso abafado. Ele esperava que sua irmã não percebesse. Ele abriu
a boca para perguntar a Pardloe há quanto tempo ele estava em cativeiro, mas antes que
pudesse falar, houve uma batida na porta abaixo. Ele olhou para a Sra. Figg, mas a governanta
ainda o observava com os olhos apertados e não se moveu, nem para abaixar a arma, e nem
para descer e atender à porta.
— Entre! — Jamie gritou, colocando a cabeça no corredor, e depois se empurrando de
volta para o quarto antes que a Sra. Figg colocasse na cabeça que ele estava tentando escapar e
descarregasse uma carga de chumbo grosso em seu traseiro.
A porta se abriu, fechou, e houve uma pausa enquanto o visitante aparentemente olhava
ao redor da entrada devastada, e depois passos leves e rápidos subindo as escadas.
— Lord John! — exalou a Sra. Figg, seu rosto austero se iluminando.
— Aqui! — chamou o duque, à medida que os passos chegaram ao patamar. Um instante
depois, a forma ligeira e de óculos de Denzell Hunter apareceu na porta.
— Merde! — disse a Sra. Figg, apontando o cano da arma para o recém-chegado — Quero
dizer, Pastor de Judeia! Quem, em nome da Santa Trindade, é você?
Hunter estava quase tão pálido quanto Jenny, Jamie pensou. No entanto, ele não piscou e nem
fez uma pausa, apenas caminhou até Pardloe e disse — Eu sou Denzell Hunter, Amigo Grey. Eu
sou médico, e vim a pedido de Claire Fraser para atendê-lo.
O duque derrubou a garrafa, que caiu e derramou as gotas que ainda continha no tapete
de fibras trançadas.
— Você! — ele disse, elevando-se abruptamente para sua altura máxima. Ele não era de
fato mais alto que Hunter, mas era óbvio que ele tinha o hábito do comando — Você é o covarde
que teve a ousadia de seduzir a minha filha, e se atreve a vir aqui para oferecer seus serviços
médicos? Saia da minha frente, antes que eu...
Neste momento, ocorreu a Pardloe que ele estava usando pijamas e desarmado. Nada
intimidado, ele pegou a garrafa do chão e a usou para tentar bater na cabeça de Denzell.
Denzell se esquivou, e Jamie agarrou o pulso de Pardloe antes que ele pudesse tentar de
novo. Denny endireitou-se, o fogo brilhando atrás de seus óculos.
— Eu discordo tanto de sua descrição do meu comportamento quanto da calúnia em
relação à reputação de sua filha — ele disse bruscamente — Eu posso apenas conceber que a
sua mente está perturbada pela doença ou pelos medicamentos, pois certamente o homem que
gerou e criou uma pessoa como Dorothea não poderia falar tão mal dela, ou ter tão pouca fé na
força de seu caráter e de sua virtude, de modo a pensar que qualquer um poderia seduzi-la.
— Tenho certeza de que Sua Graça não se referiu à sedução física — Jamie disse
apressadamente, torcendo o pulso de Pardloe para que ele soltasse a garrafa.
— É o ato de um cavalheiro, senhor, induzir uma jovem mulher a fugir com ele? Ai! Solte-
me, maldito! — ele disse, deixando a garrafa cair quando Jamie colocou os braços dele atrás de
suas costas. Ela caiu na lareira e explodiu em uma chuva de vidro, mas o duque desconsiderou
o fato completamente. — Um cavalheiro teria procurado a aprovação do pai da jovem, senhor,
antes até mesmo de se aventurar a falar com ela!
— Eu fiz isso — Denzell disse mais suavemente — Ou melhor, eu escrevi para você,
desculpando-me por ter sido incapaz de falar pessoalmente antes, e explicando que Dorothea e
eu desejávamos ficar noivos e esperávamos por sua bênção. Duvido que tenha recebido minha
carta antes de embarcar para a América, entretanto.
— Oh, escreveu, não escreveu? Seu desejo? — Pardloe bufou, arrancando uma mecha de
cabelos soltos da frente do rosto — Solte-me, maldito escocês! O que acha que eu vou fazer?
Estrangulá-lo com sua própria gravata?
— Você poderia — Jamie disse, aliviando o aperto, mas mantendo os pulsos de Pardloe
em suas mãos — Jenny, você poderia colocar essa pistola fora do alcance de Sua Graça?
Jenny prontamente entregou a pistola recém-carregada para Denzell, que a pegou por
reflexo e depois olhou espantado para a coisa em sua mão — Você precisa dela mais do que eu
— ela disse, e olhou sombriamente para o duque — Se você atirar nele, todos nós juraremos
que foi por legítima defesa.
— Nós não faremos isso — disse a Sra. Figg indignada — Se você acha que eu vou dizer a
sua senhoria que deixei seu irmão ser assassinado a sangue frio...
— Amigo Jamie — Denny interrompeu, segurando a pistola — Eu me sentiria mais feliz
se liberasse o pai de Dorothea e assumisse o controle desta arma. Acho que isso iria aumentar
a civilidade de nossa conversa.
— Pode ser que sim — Jamie disse em dúvida, mas soltou Pardloe e pegou a pistola.
Denny se aproximou do duque, afastando os cacos de vidro do caminho, e olhou
cuidadosamente em seu rosto.
— Terei prazer em conversar e me aconselhar com você, Amigo, e oferecer todas as
garantias que se encontram em meu poder em relação à sua filha. Mas sua respiração está me
deixando alarmado e eu devo examiná-lo primeiro.
O duque estava de fato fazendo um ruído chiado, e Jamie notou que a cor roxa de seu rosto
tinha se tornado mais pronunciada. Com a observação de Denzell, ela foi se agravando até
adquirir uma coloração vermelha.
— Não me toque, seu... quacker charlatão!
Denzell olhou em volta e aproveitou-se de Jenny como a fonte mais provável de
informações.
— O que a Amiga Claire diz a respeito dele, em relação à doença e ao tratamento?
— Asma, e abeto fermentado no café. Ela a chama de Efedrina — Jenny replicou
prontamente, virando-se para adicionar a Pardloe — Você sabe, eu não precisava ter dito isso
a ele. Poderia deixá-lo estrangulando, mas suponho que esta não é a maneira cristã de levar a
situação. Os Quakers são cristãos, aliás? — ela perguntou a Denny com curiosidade.
— Sim — ele replicou, avançando cautelosamente para Pardloe, a quem Jamie tinha
obrigado a se sentar, pressionando seu ombro — Nós acreditamos que a luz de Cristo está
presente nos homens, mesmo que em alguns casos seja difícil de percebê-la — ele adicionou,
baixinho, mas alto o suficiente para que Jamie, e o duque, ouvissem.
Pardloe parecia estar tentando assobiar, soprando os lábios franzidos, entretanto olhava
para Denzell. Ele engasgou com o ar e conseguiu falar algumas palavras.
— Eu não... vou ser... medicado... por você, senhor — Outra pausa para assoprar e arquejar.
Jamie notou que a Sra. Figg se agitava inquieta na direção da porta — Eu não vou... deixar
minha... filha em suas... garras — Assopro. Arquejo. — Se você me matar — Assopro. Arquejo.
— Não há risco... de salv... salvar a minha vida... e me colocar... em débito.
O esforço envolvido para falar aquilo fez com que ele adquirisse uma coloração cinza
medonha, e Jamie ficou seriamente alarmado.
— Será que ele precisa do remédio, Jenny? — Ele perguntou urgentemente. Sua irmã
comprimiu seus lábios, mas assentiu, e, com um olhar final para o duque, correu para fora do
cômodo.
Com um movimento ágil de alguém que iria abraçar um crocodilo, Denzell Hunter abaixou,
pegou o pulso do duque, e olhou atentamente em seus olhos, estes órgãos retribuindo a
inspeção estreitando-se da forma mais ameaçadora possível para um homem que estava
morrendo de asfixia. Não pela primeira vez, Jamie sofreu de uma relutante admiração pela força
de caráter de Pardloe — embora ele fosse, por outro lado, obrigado a admitir que Hunter
estivesse quase parelho.
Sua concentração no quadro à sua frente foi quebrada pelo som de um punho animado
batendo na porta da frente. A porta se abriu e ele ouviu seu sobrinho Ian gritar — Mãe! — em
uma voz rouca, concomitante com a surpresa de sua irmã, que exclamou “Ian!”.
Jamie saiu do quarto e, alcançando o corrimão quebrado em poucos passos, viu sua irmã
ser engolida e quase escondida pelo abraço de seu filho.
Os olhos de Ian estavam fechados e suas bochechas estavam úmidas, os braços atados ao
redor de sua pequena mãe, e Jamie sentiu um repentino nó em sua própria garganta. O que ele
não daria para abraçar a sua filha daquela forma mais uma vez?
Um leve movimento chamou sua atenção, e ele viu Rachel Hunter de pé timidamente atrás,
sorrindo para mão e filho, seus próprios olhos cheios de lágrimas. Ela enxugou o nariz com um
lenço e, então, subitamente olhou para cima, viu Jamie e piscou.
— Senhorita Rachel — ele disse, sorrindo para ela. Ele apontou para um jarro sobre a
mesa de apoio, para o que ele assumiu que fosse o remédio de Pardloe — Poderia trazer esse
jarro pequeno aqui para cima? Rapidamente? — Ele podia ouvir a respiração pesada de Pardloe
no quarto atrás dele; não parecia estar piorando, mas ainda estava preocupante.
Os arquejos foram momentaneamente abafados pelos passos da Sra. Figg, aparecendo
atrás dele com a espingarda de caça. Ela olhou sobre o corrimão para a cena tocante que
acontecia abaixo, depois para Rachel Hunter, trotando escada acima com o jarro nas mãos.
— E quem é essa? — ela exigiu de Jamie, quase sem brandir a arma abaixo de seu nariz.
— A irmã de Dr. Hunter — ele disse a ela, interpondo seu corpo entre Rachel, que pareceu
surpresa, e a agitada governanta — Seu irmão quer o material do jarro, senhorita Rachel.
A Sra. Figg soltou um baixo ruído gutural, mas recuou e permitiu que Rachel passasse.
Com um sombrio olhar para Jenny e Ian, que agora haviam se separado o suficiente para
conversar e estavam agitando as mãos e interrompendo um ao outro num animado gaélico, ela
desapareceu de volta ao quarto atrás de Rachel. Jamie hesitou, querendo correr para a porta da
frente em direção à Kingsessing, mas um senso de mórbida responsabilidade o obrigou a segui-
la.
Denny tinha puxado o banquinho da penteadeira e ainda estava segurando o pulso de
Pardloe, dirigindo-se a ele em tons calmos.
— Não está em perigo imediato, como você provavelmente sabe. Seu pulso está forte e
regular, e embora sua respiração esteja claramente comprometida, eu acho... Ah, essa é a tintura
que a escocesa mencionou? Eu a agradeço, Rachel; coloque...
Mas Rachel, acostumada às situações médicas, já estava decantando a mistura castanho-
escura, que parecia o conteúdo de uma escarradeira, num copo de conhaque.
— Posso...?
A tentativa de Denzell de segurar o copo para o duque foi interrompida por Pardloe
pegando o copo e tomando um gole que o fez engasgar. Hunter calmamente o observou tossindo
e cuspindo e, em seguida, entregou-lhe um lenço.
— Ouvi dizer que a teoria para estes cataclismos de respiração como você está
experimentando, podem ser precipitados por exercícios violentos, por mudanças bruscas de
temperatura, pela exposição à fumaça ou à poeira, ou, em alguns casos, por uma onda de
emoção muito intensa. No presente caso, imagino que posso ter causado esta crise pela minha
aparição, e se for o caso, eu peço perdão.
Denny pegou o lenço e devolveu o copo para Pardloe, sábio o bastante para não dizer a
ele para sorver o conteúdo.
— Talvez eu possa recompensá-lo por esse dano, entretanto — ele disse — Percebi que
seu irmão não está em casa, já que eu não poderia imaginar que ele estaria ausente numa
reunião como essa, a menos que estivesse morto no porão, e eu espero que não seja o caso. Você
o viu recentemente?
— Não o... vi — A respiração de Pardloe estava de fato ficando mais suave e seu rosto
estava adquirindo uma coloração mais normal, embora a expressão nela ainda fosse selvagem
— Você o viu?
Hunter tirou os óculos e sorriu, e Jamie ficou impressionado pela bondade de seus olhos.
Ele olhou para Rachel; seus olhos eram castanhos, em vez da suave cor marrom-esverdeada dos
olhos do seu irmão, e, mesmo que ainda demonstrassem bondade, eram muito mais cautelosos.
Jamie pensou que a cautela era uma coisa boa para uma mulher.
— Eu vi, Amigo. Sua filha e eu o descobrimos em um acampamento de milícia há alguns
quilômetros da cidade. Ele tinha sido levado como prisioneiro, e... — A exclamação de Pardloe
colidiu com a de Jamie, e Hunter estapeou o ar com a mão, pedindo a atenção de ambos — Nós
conseguimos ajudá-lo a escapar, e, como ele ficou ferido durante sua captura, eu cuidei dele;
seus ferimentos não eram intrinsecamente sérios.
— Quando? — Jamie perguntou — Quando você o viu? — Seu coração tinha dado um
pequeno solavanco, inquietantemente feliz com a notícia de que John Grey não estava morto.
— Na noite passada — Denny disse a ele — Soubemos de sua fuga nesta manhã e não
ouvimos nada sobre ele ter sido recapturado enquanto vínhamos para Filadélfia, embora eu
tenha perguntado a cada grupo de reguladores ou de milícias que encontramos. Ele precisará
ter cuidado, porque tanto as estradas quanto as florestas estão cheias de homens, mas eu
imagino que ele estará de volta em breve.
Pardloe respirou longa e profundamente. — Oh, Deus — ele disse, e fechou os olhos.
24 – FRESCOR BEM-VINDO AO CALOR, CONFORTO EM MEIO AO DESGOSTO
Havia muitos vegetais verdes e frescos disponíveis; os jardins cobriam a maior parte de uma
centena de hectares, com árvores, arbustos, azaleias, videiras, e flores de todas as descrições —
e curiosos e exóticos fungos que se espalhavam ocasionalmente. John Bartram tinha gasto a
maior parte de uma longa vida revirando a América em busca de espécimes botânicas, a maioria
das quais ele tinha rebocado para casa e induzido a crescer. Eu lamentava não ter conhecido o
velho cavalheiro; ele havia morrido um ano antes, deixando seu famoso jardim nas mãos
capazes de seus filhos.
Eu encontrara o Jovem Sr. Bartram — ele tinha cerca de quarenta anos, mas eu o chamava
assim para distingui-lo de seu irmão mais velho — no centro do jardim, sentado sob a sombra
de uma imensa trepadeira que cobria metade da varanda de sua casa, um caderno aberto sobre
a mesa diante dele, fazendo cuidadosos desenhos de um punhado de raízes pálidas e retorcidas
que descansavam num guardanapo.
— Ginseng? — Perguntei, inclinando-me para olhar para elas.
— Sim — ele disse, sem tirar os olhos da linha delicada de sua pena — Bom dia, Lady John.
Está familiarizada com a raiz, pelo que posso perceber.
— É bastante comum nas montanhas da Carolina do Norte, onde eu... costumava viver.
A sentença casual ficou presa em minha garganta com uma espantosa surpresa. Do nada,
eu senti o cheiro da floresta de Fraser’s Ridge, pungente com bálsamo de pinheiro e sua seiva,
pesado com o cheiro de mofo das orelhas de pau e dos musgos selvagens.
— Sim, de fato — Chegando ao fim do seu desenho, ele colocou a pena na mesa, removeu
os óculos e olhou para mim com o rosto iluminado de um homem que vive para as plantas e
espera absolutamente que o mundo compartilhe a sua obsessão — Estes são ginseng chineses;
eu quero saber se serei capaz de fazê-los crescer aqui. — Ele ondulou a mão em direção aos
hectares do exuberante jardim — A variedade da Carolina definha, e o ginseng canadense se
recusa teimosamente até mesmo a tentar!
— Que perverso. Embora eu imagine que aqui seja muito quente — Observei, pegando a
ferramenta que ele tinha apontado pra mim e colocando a cesta no chão. Minhas roupas
estavam grudadas na pele, e eu podia sentir uma grande mancha de umidade que se espalhava
entre minhas omoplatas, onde meus cabelos pingavam nas costas — Eles gostam de climas
frios.
A memória vívida das florestas tinha se transformado num desejo visceral de estar em
Ridge, tão imediato que eu senti o fantasma de minha casa desaparecida erguer-se à minha
volta, o vento frio da montanha tamborilando contra suas paredes, e eu pensei que, se me
abaixasse, poderia sentir a pele macia de Adso entre meus dedos. Eu engoli seco.
— Aqui é quente — ele disse, embora ele parecesse tão seco quanto uma das raízes na
mesa, salpicadas pela sombra de sua videira — Posso oferecer-lhe algum refresco, Lady John?
Eu tenho alguns Negus gelados na casa.
— Adoraria — Eu disse, seriamente —, mas... gelados?
— Oh, nós temos uma grande câmara fria no rio, Sissy e eu — ele disse orgulhosamente
— Deixe-me apenas dizer a ela...
Eu havia tido bom senso o suficiente para trazer um leque comigo e agora o tirei de meu
cesto. A sensação nostálgica tinha se transformado repentinamente em uma nova — e
maravilhosa — percepção. Nós podíamos ir para casa. Jamie tinha sido dispensado do exército
Continental para despachar o corpo de seu primo na Escócia. Ele tinha a intenção, quando
voltássemos, de ir para a Carolina do Norte, recuperar sua prensa, e usar como arma em nome
da revolução, a caneta em vez da espada.
Aquele plano tinha se desvanecido, assim como o restante da minha vida, quando recebi
a notícia de que ele havia se afogado. Mas agora... Um arrepio de excitação correu através de
mim e deve ter aparecido em meu rosto, porque o Sr. e a Sra. Bartram piscaram para mim
quando saíram pela varanda. Eles eram gêmeos, e embora seus rostos mostrassem apenas uma
sutil similaridade, ambos compartilhavam a mesma expressão, e era o que faziam agora,
parecendo perplexos, mas satisfeitos.
Eu mal podia me impedir de compartilhar meus maravilhosos pensamentos com eles, mas
não o faria, e tentei sorver o Negus — vinho do porto misturado com água quente, açúcar e
especiarias, e então refrigerado até gelar, e estava realmente gelado! —, envolvida em
admiração pelas melhorias contínuas do Jardim dos Bartram, ele já sendo famoso por sua
beleza e variedade. O Velho Sr. Bartram tinha planejado e plantado e o ampliado por cinquenta
anos, e seus filhos tinham evidentemente herdado a mania de família, bem como o jardim.
— ... e nós melhoramos o trajeto do rio, e acabamos de colocar um envasamento muito
maior — Sissy Bartram estava dizendo ansiosamente — Muitos clientes querem plantar
videiras e flores em suas salas de estar e solários! Embora eu não saiba... — Seu entusiasmo
diminuiu um pouco, e ela fez uma careta de dúvida — Com todo esse tumulto... A guerra é muito
ruim para os negócios!
O Sr. Bartram tossiu um pouco — Isso depende do tipo de negócio — ele disse suavemente
— Eu receio que nós teremos um aumento de demanda para as ervas medicinais.
— Mas se o exército está partindo... — a Senhorita Bartram começou esperançosamente,
mas seu irmão balançou a cabeça, seu rosto ficando sóbrio.
— Você não sente no ar, Sissy? — ele disse suavemente — Alguma coisa está vindo — Ele
levantou o rosto, embora sentisse alguma coisa pesada no ar, e ela chegou a colocar a mão em
seu braço, em silêncio, ouvindo com ele o som da violência distante.
— Eu não havia percebido que vocês eram Amigos, Sr. Bartram — eu disse, para quebrar
o silêncio sinistro. Ambos piscaram e sorriram para mim.
— Oh — disse a Senhorita Bartram — Papai foi expulso da sociedade alguns anos atrás.
Mas algumas vezes os hábitos da infância voltam quando menos esperamos — Ela levantou um
ombro rechonchudo, sorrindo, mas com algum arrependimento — Vejo que tem uma lista, Lady
John.
Aquilo me fez lembrar abruptamente de meus negócios, e a próxima hora foi gasta numa
exploração primorosa, na discussão dos méritos e das desvantagens de diversas ervas
medicinais, na seleção de ervas secas dos vastos galpões de secagem, e no corte das plantas
frescas de seus canteiros. Com a minha repentina percepção de que poderíamos voltar para
Ridge em breve, e com a observação aguda do Sr. Bartram sobre a demanda iminente por
plantas medicinais, comprei muito mais do que eu tinha intenção originalmente, repondo não
apenas o meu estoque usual (incluindo uma libra de abeto chinês desidratado, apenas para um
caso de necessidade. O que eu iria fazer com o maldito homem?), mas também uma boa
quantidade de casca jesuíta, helênio, e até mesmo lobélia, mais a assa-fétida e o ginseng que eu
havia prometido para Denny.
No final, era coisa demais para o meu cesto, e a Senhorita Bartram disse que colocaria num
pacote e mandaria um dos assistentes de jardinagem que viviam na Filadélfia levar para a
cidade quando fosse para casa naquela noite.
— Gostaria de ver o trajeto do rio antes de ir? — ela me perguntou, com um rápido olhar
para o céu — Não está terminado ainda, é claro, mas nós temos algumas coisas surpreendentes
já colocadas e é maravilhosamente fresco nesta hora do dia.
— Oh, obrigada. Eu realmente... espere. Você não teria ponta de seta lá embaixo, não é? —
Eu não tinha pensado em colocá-la na minha lista, mas se estivesse disponível...
— Oh, sim! — ela respondeu, radiante — Muitas delas!
Estávamos de pé no maior dos galpões de secagem, e a luz do final da tarde caía através
das placas, deixando as paredes listradas com barras de ouro líquido, iluminando a constante
chuva de grãos de pólen das flores que estavam secando. Havia muitas ferramentas dispersas
na mesa, e ela pegou uma espátula de madeira e uma faca atarracada sem hesitação.
— Você gostaria de colher?
Eu ri com prazer. A oportunidade de fuçar na lama molhada não era uma oferta que a
maioria das mulheres teria feito — especialmente para outra mulher vestida com musselina
azul clara. Mas a Senhorita Bartram falava a minha língua. Eu não colocava as mãos na terra há
meses, e a mera sugestão fez com que meus dedos formigassem.
O trajeto do rio era adorável, ladeado por salgueiros e vidoeiros prateados que lançavam uma
sombra bruxuleante sobre os bancos de capuchinha e azaleia e as massas flutuantes de agrião
verde-escuro. Eu senti a minha pressão arterial cair enquanto passeávamos, conversando sobre
amenidades.
— Você se importa de eu perguntar uma coisa sobre os Amigos? — perguntei. — Eu tenho
um colega que foi expulso da sociedade, ele e sua irmã, porque ele se voluntariou como
cirurgião do exército Continental. Já que você mencionou que o seu pai... Eu imaginei quão
importante é isso? Pertencer a uma associação, eu quero dizer.
— Oh! — Ela riu, para a minha surpresa — Eu imagino que isso depende da pessoa. Tudo
é importante, realmente, quando você é um Amigo. Meu pai, por exemplo: ele foi expulso da
Sociedade por se recusar a reconhecer a divindade de Jesus Cristo, mas continuou indo aos
encontros; aquilo não fazia diferença para ele.
— Oh! — Aquilo era bastante tranquilizador — E quanto... Como é um casamento Quaker?
Um deles tem que pertencer a uma Sociedade para poder se casar?
Ela achou aquilo interessante e fez um zumbido baixo por alguns momentos.
— Bem, um casamento para os Amigos é... entre os Amigos. Não existe um clérigo, eu
quero dizer, e não existe uma oração ou serviço específico. Os dois Amigos se casam, e isso não
é considerado um sacramento administrado por um padre ou algo parecido. Mas ele precisa ser
feito na frente de testemunhas, outros Amigos, quero dizer — ela adicionou, uma pequena ruga
se formando entre as sobrancelhas — E eu acho que pode ter uma objeção considerável se os
Amigos envolvidos, ou um deles, foi formalmente expulso.
— Que interessante! Obrigada — Eu me perguntava como isso poderia afetar Denzell e
Dorothea; ainda mais, como isso afetaria Rachel e Ian — Um Amigo pode casar com um... é...
não-Amigo?
— Oh, sim, claro. Entretanto, eu acho que eles são expulsos da sociedade — ela adicionou
em dúvida — Mas pode haver consideração especial por circunstâncias extremas. A sociedade
nomearia uma comissão para esclarecer a situação, eu suponho.
Eu não tinha até agora me preocupado com circunstâncias extremas, mas agradeci a ela,
e a conversa voltou para as plantas.
Ela estava certa sobre a ponta de seta: havia muitas delas. Ela sorriu com felicidade para
o meu espanto, mas depois me deixou escavando, assegurando-me de que eu poderia tirar um
pouco de lótus e dos rizomas de Bandeira Doce também, se eu quisesse — E agrião fresco, é
claro! — ela adicionou sobre o ombro, acenando com a mão jovial para a água — Tudo o que
você quiser.
Ela havia inteligentemente trazido um saco de estopa para eu me ajoelhar; eu o abri com
cuidado para não esmagar nada, e recolhi minhas saias o melhor que pude. Havia uma leve
brisa; sempre há, sobre as águas que se movem, e eu suspirei de alívio, tanto pelo frescor quanto
pela repentina sensação de solidão. A companhia das plantas é sempre reconfortante, e após a
incessante — bem, você não poderia chamar isso de sociabilidade, exatamente, mas pelo menos
da incessante presença de pessoas com quem eu tinha que conversar, direcionar, intimar,
repreender, persuadir, mentir — que eu tinha experimentado nos últimos dias, eu achei o
silêncio enraizado, a correnteza do córrego e o farfalhar das folhas um bálsamo para o espírito.
Francamente, eu pensei, meu espírito poderia se acostumar a um pouco de bálsamo. Entre
— ou, melhor, em meio a — Jamie, John, Hal, William, Ian, Denny Hunter e Benedict Arnold
(para não falar de Capitão Richardson, General Clinton, Colenso, e todo o exército Continental),
os machos da espécie tinham desgastado os meus nervos ultimamente.
Cavei lenta e pacificamente, levantando as raízes para o meu cesto e embalando cada
camada entre esteiras de agrião. O suor estava escorrendo de meu rosto e entre os meus seios,
mas eu nem notei; eu estava derretendo em silêncio com a paisagem, a respiração e os músculos
conectados ao vento, à terra e à água.
Cigarras zumbiam pesadamente nas árvores próximas, e mosquitos e pernilongos
estavam começando a juntar-se em nuvens inquietas acima de mim. Felizmente eles eram
apenas um incômodo quando voavam pelo meu nariz ou pairavam muito próximos de meu
rosto; aparentemente meu sangue do século vinte não era atraente para os insetos do século
dezoito, e eu quase nunca tomava uma picada — uma grande bênção para uma jardineira.
Embalada em meus devaneios, eu quase perdi a noção do tempo e do lugar onde estava, e
quando um par de grandes e desgastados sapatos apareceu no meu campo de visão, eu
meramente pisquei para eles por um momento, como eu faria com a súbita aparição de um sapo.
Então, olhei para cima.
— Oh — eu disse, um pouco sem expressão. Depois — Aí está você! — Eu disse, deixando minha
faca cair e lutando para me levantar em uma onda de alívio e alegria — Onde diabos você
estava?
Um sorriso cintilou brevemente no rosto de Jamie, e ele pegou minhas mãos, úmidas e
sujas de barro como estavam. As dele eram grandes e quentes e sólidas.
— Em uma carroça cheia de repolhos, mais recentemente — ele disse, e o sorriso se
manteve enquanto ele olhava para mim — Você parece bem, Sassenach. Muito bem.
— Você não — eu disse francamente. Ele estava sujo, muito magro, e ele claramente não
estava dormindo bem; ele tinha se barbeado, mas seu rosto estava magro e sombrio — O que
aconteceu?
Ele abriu sua boca para responder mais depois pareceu pensar melhor. Ele soltou minhas
mãos, limpou a garganta com um baixo ruído escocês, e fixou os olhos nos meus. O sorriso tinha
ido embora.
— Você foi para a cama com John Grey, sim?
Suas sobrancelhas levantaram.
— Ele me disse que sim.
— Foi isso que ele disse? — eu perguntei, surpresa.
— Mmphm — Agora era a sua vez de franzir o cenho — Ele me disse que tinha tido
conhecimento carnal de você. Por que ele iria mentir sobre uma coisa assim?
— Oh — eu disse — Não, isso está certo. Conhecimento carnal é uma descrição muito
razoável do que aconteceu.
— Mas...
— Ir para a cama, entretanto... É uma coisa que nós não fizemos. Começou em uma
penteadeira e terminou, se bem me lembro, no chão — Os olhos de Jamie se ampliaram
notavelmente, e eu me apressei a corrigir a impressão que ele obviamente estava formando em
sua mente — Além do mais, essa frase implica que nós decidimos fazer amor um com o outro e
caminhamos de mãos dadas para isso, e não foi o que aconteceu. Hum... Talvez nós devêssemos
nos sentar? — Gesticulei em direção a um banco rústico, enterrado em ranúnculos errantes.
Eu não tinha pensado uma única vez naquela noite desde que descobri que Jamie estava
vivo, mas estava começando a perceber que poderia possivelmente parecer importante para
Jamie — e que explicar o que tinha acontecido poderia ser um pouco complicado.
Ele assentiu, rigidamente, e se virou para o banco. Eu o segui, notando com alguma
preocupação o conjunto dos seus ombros.
— Você machucou as suas costas? — Perguntei, franzindo o cenho quando vi o cuidado
com que ele se sentou.
— O que aconteceu? — ele perguntou, ignorando a pergunta. Educadamente, mas com
inegável impaciência.
Eu inspirei profundamente, depois soprei as bochechas num gesto de impotência.
Ele rosnou. Eu olhei para ele, surpresa, nunca tendo ouvido ele fazer aquele barulho antes
— pelo menos, não direcionado para mim. Aparentemente, isso era de alguma forma mais do
que importante.
— É... — eu disse cuidadosamente, sentando-me ao lado dele — O que John disse,
exatamente? Após dizer sobre o conhecimento carnal, eu quero dizer.
— Ele queria que eu o matasse. E se você me disser que quer que eu te mate em vez de
dizer o que aconteceu, eu advirto, não serei responsável pelos meus próximos atos.
Eu olhei para ele com os olhos estreitos. Ele parecia seguro de si, mas havia uma tensão
inegável em sua postura.
— Bem... Eu me lembro como começou, pelo menos...
— Comece aí — ele sugeriu, a rigidez mais pronunciada.
— Eu estava sentada em meu quarto, bebendo aguardente de ameixa e tentando justificar
o meu suicídio, se você quer saber — eu disse, rispidamente também.
Olhei para ele, desafiando-o a dizer alguma coisa, mas ele meramente inclinou a cabeça
para mim, em um gesto para que eu continuasse.
— Eu terminei a minha aguardente e estava tentando decidir se podia descer as escadas
para pegar mais sem quebrar meu pescoço, ou se eu teria bebido o suficiente para não me sentir
culpada por beber toda a garrafa de láudano em vez disso. E então John entrou.
Eu engoli, minha boca de repente seca e grudenta, como tinha ficado naquela noite.
— Ele realmente disse que houve bebida envolvida — Jamie observou.
— Muita. Ele parecia quase tão bêbado quanto eu, mas ele ainda estava de pé — Eu podia
ver o rosto de John na memória, branco como osso com exceção dos seus olhos, que estavam
tão vermelhos e inchados que poderiam ter sido lixados com areia. E a expressão naqueles
olhos... — Ele parecia como um homem que se jogaria de um penhasco — eu disse em voz baixa,
olhos nas minhas mãos cruzadas.
Inspirei novamente.
— Ele tinha uma nova garrafa em sua mão. Ele a colocou na penteadeira ao meu lado,
olhou para mim, e disse “eu não vou pranteá-lo sozinho esta noite”.
Um tremor profundo percorreu-me com a lembrança destas palavras.
— E...?
— E ele não o fez — eu disse, um pouco bruscamente — Eu disse a ele para se sentar e ele
o fez, e colocou mais aguardente para mim e nós bebemos, e eu não tenho a mínima noção do
que nós dissemos, mas nós estávamos falando sobre você. E então ele se levantou, e eu me
levantei. E... Eu não podia suportar ficar sozinha e nem podia suportar que ele ficasse sozinho e
eu meio que me joguei para cima dele porque eu precisava muito que alguém me tocasse.
— E ele a obrigou, eu suponho.
O tom de sua voz foi distintamente cínico, a eu senti um rubor chegar às minhas
bochechas, não de vergonha, mas de raiva.
— Ele sodomizou você?
Eu olhei para ele por um longo minuto. Ele realmente queria saber.
— Seu bastardo — eu disse, tanto de espanto quanto de raiva. Então um pensamento
ocorreu a mim — Você disse que ele queria que você o matasse — eu disse lentamente — Você...
não fez isso, não é?
Ele segurou o meu olhar, o seu firme como o cano de um rifle.
— Você se importaria se eu o tivesse feito? — ele perguntou suavemente.
— Sim, eu certamente me importaria. — eu disse, com a vivacidade que pude convocar
em meio à crescente confusão dos meus sentimentos — Mas você não o matou, eu sei que não.
— Não — ele disse, ainda mais suavemente — Você não sabe.
Apesar da minha convicção de que ele estava blefando, um pequeno calafrio arrepiou os
pelos do meu antebraço.
— Eu estaria em meu direito — ele disse.
— Não estaria — eu disse, o calafrio sumindo — Você não tinha nenhum direito. Você
estava morto! — Apesar do meu mau humor, minha voz se quebrou um pouco com a palavra
“morto”, e seu rosto mudou de uma só vez. — O quê? — eu disse, virando o meu rosto para o
outro lado — Você achou que isso não importava?
— Não — ele disse, e tomou minhas mãos sujas de barro entre as dele — Mas eu não sabia
que importava tanto assim.
Sua própria voz estava rouca agora, e quando eu me virei para ele, vi as lágrimas em seus
olhos. Com um barulho incoerente, eu me joguei nos seus braços e me agarrei a ele, soluçando
tolamente.
Ele me segurou com força, seu hálito quente no topo de minha cabeça, e quando eu parei,
ele me afastou um pouco e segurou meu rosto entre suas mãos.
— Eu a amo desde a primeira vez em que te vi, Sassenach — ele disse baixinho, segurando
meus olhos nos dele, injetados e cheios de linhas de cansaço, mas muito azuis — Eu vou te amar
para sempre. Não importa se você dormir com todo o exército inglês... bem, não — ele se
corrigiu — isso iria importar, mas eu não deixaria de te amar.
— Eu não acho que deixaria — Funguei e ele puxou um lenço de sua manga e me entregou.
Era de cambraia branca e tinha a inicial P bordada desajeitadamente em um canto na linha azul.
Eu não podia imaginar onde ele tinha conseguido aquela coisa, mas não me importei em
perguntar, dadas às circunstâncias.
O banco não era muito grande, e seu joelho estava a centímetros dos meus. Ele não me
tocou de novo, entretanto, e meu ritmo cardíaco estava começando a acelerar sensivelmente.
Ele realmente falava sério, sobre me amar, mas isso não significava que a sequência da conversa
seria agradável.
— Eu tive a impressão de que ele me contou porque tinha certeza de que você me contaria
— ele disse cuidadosamente.
— Eu contaria — eu disse prontamente, limpando meu nariz —, embora eu possivelmente
esperasse até que você tivesse chegado em casa, tomado um banho e jantado. Se tem uma coisa
que eu sei sobre os homens, é que não se lança coisas como essa para eles quando estão com o
estômago vazio. Quando foi a última vez que você comeu?
— Esta manhã. Salsichas. Não mude de assunto — Sua voz estava controlada, mas havia
uma boa dose de sentimento borbulhando sob ela; ele poderia muito bem ser confundido com
uma panela de leite fervendo. Um grau a mais de calor e haveria uma erupção e leite queimado
por todo o fogão — Eu entendo, mas eu quero... eu preciso saber o que aconteceu.
— Você entende? — Eu ecoei, soando surpresa até mesmo para minhas próprias orelhas.
Eu esperava que ele entendesse, mas suas maneiras estavam um pouco em desacordo com as
suas palavras. Minhas mãos não estavam mais frias; estavam começando a suar, e eu segurei a
saia em meus joelhos, sem me importar com as manchas de lama.
— Bem, eu não gosto disso — ele disse, mais ou menos com os dentes cerrados — Mas
posso compreender.
— Você pode?
— Posso — ele disse, olhando para mim — Vocês dois pensaram que eu estava morto. E
eu sei como é quando você está bêbada, Sassenach.
Eu lhe dei um tapa, tão rapidamente e tão forte que ele nem teve tempo de se abaixar e
pulou para trás com o impacto.
— Seu... seu... — eu disse, incapaz de articular qualquer coisa ruim o suficiente para
atender à violência de meus sentimentos — Como diabos você se atreve?
Ele tocou sua bochecha suavemente. Sua boca estava se mexendo.
— Eu... hã... não quis dizer o que pareceu, Sassenach — ele disse — Além do mais, não sou
eu a parte prejudicada aqui?
— Não, você não é! — Repliquei — Você saiu e se... se afogou, e me deixou sozinha no meio
de espiões e soldados e com crianças... você e Fergus, seus bastardos! Deixaram a mim e a
Marsali para... para... — Eu estava tão chocada com a emoção que não conseguia continuar. Eu
estaria condenada se chorasse, embora, mais condenada ainda se chorasse na frente dele.
Ele estendeu a mão cuidadosamente e pegou minha mão de novo. Eu permiti, e o deixei
me puxar para mais perto, perto o suficiente para ver a sombra fraca de sua barba, para cheirar
a poeira da estrada e o suor seco em suas roupas, para sentir o calor radiante de seu corpo.
Eu me sentei tremendo, fazendo pequenos bufos em vez de falar. Ele ignorou isso,
esticando os meus dedos entre os seus, gentilmente apertando a palma da minha mão com um
polegar grande e caloso.
— Eu não quis insinuar que você é uma bêbada, Sassenach — ele disse, fazendo um óbvio
esforço para ser conciliatório — É só que você pensa com o seu corpo, Claire; sempre foi assim.
Com um tremendo esforço próprio, encontrei as palavras.
— Então eu sou uma... uma... do que você está me chamando agora? Uma mulher perdida?
Uma rameira? Uma prostituta? E você acha que isso é melhor do que me chamar de bêbada?
Ele deu um pequeno bufo no que poderia ter sido diversão. Eu puxei a minha mão, mas
ele não me soltou.
— Eu disse o que disse, Sassenach — ele disse, intensificando o aperto em minha mão e
aumentando-o com a outra mão em meu antebraço, impedindo-me de levantar — Você pensa
com o seu corpo. É isso que a torna uma cirurgiã, não?
— Eu... Oh! — Superando a minha indignação momentaneamente, eu fui obrigada a
admitir que havia verdade em sua observação. — Possivelmente — eu disse com firmeza,
olhando para o outro lado —, mas eu não acho que foi o que você quis dizer.
— Não inteiramente — Havia uma ligeira aspereza em sua voz novamente, mas eu não
queria encontrar os seus olhos — Escute-me.
Eu me sentei teimosamente silenciosa por um momento, mas ele simplesmente esperou,
e eu sabia que ele era, por natureza, mais teimoso do que eu poderia ser se trabalhasse nisso
por cem anos. Eu teria que ouvir o que ele tinha a dizer — e eu teria que dizer a ele o que ele
queria ouvir — eu gostasse disso ou não.
— Estou ouvindo — eu disse. Ele inspirou e relaxou um pouco, mas não diminuiu o aperto
em minha mão.
— Eu a levei para a cama milhares de vezes, pelo menos, Sassenach — ele disse
suavemente — Você acha que eu não estava prestando atenção?
— Dois ou três mil vezes, pelo menos — eu disse, no interesse da exatidão rigorosa,
olhando para a faca de escavação que eu tinha derrubado no chão — E não.
— Bem, então. Eu sei como você é na cama. E eu entendo... tudo muito bem — ele
adicionou, sua boca se comprimindo por um momento — como isso provavelmente foi.
— Não, você não sabe — eu disse calorosamente.
Ele fez outro ruído escocês, este indicando hesitação.
— Eu sei — ele disse, mas cuidadosamente — Quando eu perdi você, após Culloden, eu
sabia que você não estava morta, mas isso tornou tudo pior, se quer saber, sim?
Eu também tinha feito um ruído, mas gesticulei brevemente para que ele continuasse.
— Eu disse a você sobre Mary MacNab, não? Como ela veio para mim, na caverna?
— Muitos anos após o fato — eu disse friamente — Mas, sim, você fala sobre isso
eventualmente — Dei a ele um olhar — Eu certamente não o culpo por isso, e eu não perguntei
pelos detalhes sórdidos, também.
— Não, você não perguntou — ele admitiu. Ele esfregou a ponta do nariz com uma junta
do dedo — Talvez você não tenha sentido ciúmes. Mas eu sinto — ele hesitou — Eu diria a você,
entretanto, como foi... se você quisesse saber.
Olhei para ele, mordendo meu lábio em dúvida. Eu queria saber? Se eu não quisesse — e eu
não tinha certeza se queria ou não — ele tomaria isso como uma evidência de que eu não me
importava? E eu estava consciente daquele breve “mas eu sinto”.
Inspirei profundamente, aceitando a barganha implícita.
— Diga-me — eu disse. — Como foi.
Agora ele realmente olhou para longe, e eu vi sua garganta se mover quando ele engoliu.
— Foi... afetuoso — ele disse baixinho, depois de um momento — Triste.
— Triste — eu ecoei — Como?
Ele não olhou para cima, mas manteve os olhos fixos nas flores, seguindo os movimentos
de uma grande abelha negra entre os botões enrolados.
— Nós dois lamentávamos coisas que perdemos — ele disse lentamente, sobrancelhas
para baixo em reflexão — Ela disse que queria mantê-la viva para mim, que ela me deixaria...
me deixaria imaginar que era você, eu imagino que ela quis dizer.
— Não funcionou exatamente assim?
— Não — Ele olhou para cima, então, em frente, e seus olhos passaram por mim como um
florete por um espantalho — Não poderia haver outra pessoa como você.
Não foi dito como um elogio, mas de forma monótona, ou talvez com um pouco de
ressentimento.
Eu levantei um ombro brevemente. Não havia muita resposta para aquilo.
— E?
Ele suspirou e olhou para suas mãos atadas no colo. Ele estava apertando os dedos de sua
mão direita com os da mão esquerda, como se fosse para lembrar a si mesmo do dedo que
faltava.
— Foi tranquilo — ele disse para o polegar — Nós não conversamos, na verdade, não uma
vez que tínhamos... começado.
Ele fechou os olhos, e eu pensei, com uma pequena pontada de curiosidade, o que ele
estava vendo. Fiquei surpresa ao perceber que curiosidade foi tudo o que eu senti — com,
talvez, piedade por ele. Eu tinha visto a caverna na qual eles tinham feito amor, um túmulo de
granito frio, e eu sabia quão desesperado o estado das coisas era nas Highlands naquele
momento. Apenas a promessa de um pouco de calor humano...
— Nós dois lamentávamos coisas que perdemos — ele disse — Foi apenas uma vez. Não
durou muito; eu... fazia muito tempo — ele disse, e um suave rubor apareceu em suas bochechas
— Mas... eu precisava daquilo, muito. Ela me abraçou depois, e... eu precisava ainda mais
daquilo. Eu adormeci em seus braços; ela tinha partido quando eu acordei. Mas eu carreguei o
seu calor comigo. Por muito tempo — ele disse muito suavemente.
Aquilo me provocou uma inesperada pontada de ciúmes, e eu me endireitei um pouco,
lutando contra ele com as mãos fechadas. Ele sentiu e virou a cabeça na minha direção. Ele
sentira a chama se acender — uma que combinava com a dele.
— E você? — ele disse, dando-me um olhar duro e direto.
— Não foi afetuoso — eu disse asperamente — E não foi triste. Deveria ter sido. Quando
ele veio até o meu quarto e disse que não iria pranteá-lo sozinho, e nós conversamos, eu me
levantei e fui até ele, esperando... se é que eu tinha expectativas; eu não acho que estava
pensando conscientemente...
— Não? — Ele combinou a minha rispidez com a dele — Vocês estavam cegos de bêbados?
— Sim, eu certamente estava, bem como ele.
Eu sabia o que ele estava pensando; ele não estava fazendo nenhum esforço para
esconder, e eu tive uma súbita e vívida lembrança de me sentar na taverna em Cross Creek, ele
pegando meu rosto entre as mãos e me beijando, e a quentura doce do vinho passando de sua
boca para a minha. Eu me levantei a bati a mão no banco.
— Sim, eu estava! — eu disse, de novo, furiosa — Eu estava bêbada todo maldito dia desde
que ouvi de sua morte.
Ele inspirou profundamente, e eu vi seus olhos se fixarem em suas mãos, fechadas em
punhos sobre os joelhos. Ele as abriu lentamente.
— E o que ele deu a você, então?
— Algo em que bater — eu disse — Pelo menos para começar.
Ele olhou para mim, assustado.
— Você bateu nele?
— Não, eu bati em você — retruquei.
Meu punho se enrolou, sem que eu percebesse, apertado contra minha coxa. Eu me
lembrei do primeiro golpe, um golpe cego e frenético na carne, toda a força de minha dor por
trás dele. O recuo flexível que afastou a sensação de calor por um instante, trazido de volta com
uma força que me jogou na penteadeira, sob o peso de um homem, seu aperto em meus pulsos,
e eu gritando de fúria. Eu não me lembrava das especificidades do que veio depois — ou melhor,
eu me lembrava de algumas coisas muito vividamente, mas não tinha ideia da ordem em que
elas tinham acontecido.
“Foi um borrão”, as pessoas diriam. O que elas realmente querem dizer com isso é que é
impossível de alguém entrar nesta experiência estando de fora, a futilidade de explicar.
— Mary MacNab — eu disse abruptamente — Ela lhe deu... afeto, você disse. Deve haver
uma palavra para o que aquilo foi, para o que John me deu, mas eu ainda não pensei nisso — eu
precisava de uma palavra que pudesse transmitir, resumir tudo. — Violência — eu disse — Foi
parte disso.
Jamie endureceu e me lançou um olhar afiado. Eu sabia o que ele estava pensando e
balancei minha cabeça.
— Não é isso. Eu estava entorpecida... deliberadamente entorpecida, porque eu não podia
suportar sentir. Ele podia; ele tinha mais coragem do que eu. E ele me fez sentir, também. Foi
por isso que eu bati nele.
Eu estivera entorpecida, e John havia arrancando a máscara da negação, os invólucros das
pequenas necessidades diárias que me mantinham em pé e funcionando; sua presença física
tinha arrancado as bandagens do luto e exibido o que havia embaixo: eu mesma, sangrando e
machucada.
Eu senti o ar espesso em minha garganta, úmido e quente e coçando em minha pele. E
finalmente eu encontrei a palavra.
— Triagem — eu disse abruptamente — Abaixo do entorpecimento, eu estava... em carne
viva. Sangrando. Sem pele. Você faz a triagem, você... para o sangramento primeiro. Você para.
Você para ou o paciente morre. Ele fez com que parasse.
Ele fez com que parasse ao descarregar o seu próprio luto, sua própria fúria, sobre o
sangue que jorrava de mim. Duas feridas, pressionadas juntas, o sangue ainda fluindo
livremente — mas não mais perdido e drenando; em vez disso, fluindo no corpo de outra
pessoa, e o sangue da outra pessoa fluindo no meu, quente, escaldante, não bem-vindo, mas
vivo.
Jamie disse algo baixinho em gaélico. Eu não entendi a maioria das palavras. Ele ficou
sentado com a cabeça baixa, os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça nas mãos, e respirou
audivelmente.
Depois de um momento, eu me sentei de volta ao seu lado e respirei também. As cigarras
cantavam mais alto, um zumbido urgente que abafava a pressa da água e o farfalhar das folhas,
cantarolando em meus ossos.
— Maldito — Jamie murmurou por fim, e se sentou. Ele parecia perturbado, bravo, mas
não bravo comigo.
— John, hã, está bem, não está? — Perguntei hesitantemente. Para a minha surpresa, e um
ligeiro desconforto, os lábios de Jamie se torceram levemente.
— Sim. Bem. Tenho certeza de que ele está — ele disse, em um tom que admitia certa
dúvida, que eu achei alarmante.
— O que diabos você fez com ele? — eu disse, sentando-me reta.
Seus lábios se comprimiram por um instante.
— Eu bati nele — ele disse — Duas vezes — ele adicionou, olhando para o outro lado.
— Duas vezes? — ecoei, em choque — Ele lutou com você?
— Não — ele disse brevemente.
— Realmente — Eu balancei um pouco para trás, olhando-o. Agora que eu tinha me
acalmado o suficiente para tomar conhecimento, eu pensei que ele estava exibindo... o quê?
Preocupação? Culpa? — Por que você bateu nele? — eu perguntei, lutando para criar um tom
de leve curiosidade, mais do que de acusação. Evidentemente eu não tive sucesso com isso, já
que ele se virou como um urso picado no traseiro por uma abelha.
— Por quê? Você ousa me perguntar por quê?
— Certamente, sim — eu disse, descartando o tom suave — O que ele fez para que você o
batesse? E duas vezes?
Jamie não tinha problema algum com o caos, mas normalmente ele o fazia por algum
motivo. Ele fez um ruído escocês completamente descontente, mas ele havia me prometido
honestidade há muito tempo e não parecia querer quebrar essa promessa ainda. Ele endireitou
os ombros e olhou diretamente para mim.
— O primeiro foi entre mim e ele; foi um golpe que eu devia a ele há muito tempo.
— E você só aproveitou a oportunidade para socá-lo, porque era conveniente? —
Perguntei, um pouco receosa de perguntar diretamente o que diabos ele quis dizer com “entre
mim e ele”.
— Eu não pude evitar — ele disse, irritado — Ele disse uma coisa e eu bati nele.
Eu não disse nada, mas inalei pelo nariz, querendo que ele ouvisse. Houve um longo
momento de silêncio, pesado com a expectativa e quebrado apenas pelo som do rio.
— Ele disse que vocês não estavam fazendo amor um com o outro — ele finalmente
murmurou, olhando para baixo.
— Não, nós não estávamos — eu disse, um pouco surpresa — Eu disse a você. Nós dois
estávamos... Oh!
Ele olhou para mim, então, encarando-me.
— Oh — ele disse, a palavra cheia de sarcasmo — Vocês dois estavam fodendo comigo —
ele disse.
— Oh, entendo — murmurei — Bem. Hum. Sim, isso é verdade — Esfreguei a ponte de
meu nariz — Entendo — Eu disse de novo, e pensei que provavelmente entendia.
Havia uma profunda amizade de muitos anos entre Jamie e John, mas eu estava ciente de
que um dos pilares sobre o qual essa amizade se apoiava era uma rigorosa evasão de qualquer
referência à atração sexual que John tinha em relação a Jamie. Se John tinha perdido a
compostura o suficiente para chutar esse pilar de baixo deles...
— E a segunda vez? — Perguntei, escolhendo não pedir que ele elaborasse mais sobre o
primeiro.
— Sim, bem, o segundo foi por sua causa — ele disse, tanto a voz quanto o rosto relaxando
um pouco.
— Sinto-me lisonjeada — eu disse, o mais secamente possível —, mas você realmente não
devia ter feito isso.
— Bem, eu sei disso agora — ele admitiu, corando —, mas eu já tinha perdido minha
paciência e não consegui encontrá-la de novo. Ifrinn — ele murmurou, e, parando, pegou a faca
de escavação descartada e a enfiou com força no banco ao lado dele.
Ele fechou os olhos, então, pressionou os lábios com força, e ficou batendo os dedos de
sua mão direita contra a perna. Ele não tinha feito isso desde que eu amputara os restos de seu
quarto dedo imóvel, e eu fiquei surpresa ao vê-lo fazer aquilo agora. Pela primeira vez, eu
comecei a apreciar as verdadeiras complexidades da situação.
— Diga-me — eu disse, em uma voz não muito mais alta do que as cigarras — Diga-me o
que você está pensando.
— Sobre John Grey. Sobre Helwater — Ele inspirou profunda e exasperadamente e abriu
os olhos, embora não tenha olhado para mim — Eu consegui lá. Fiquei entorpecido, como você
disse. Suponho que poderia ter ficado bêbado também, se pudesse ter a bebida.
Sua boca se torceu, e ele dobrou a mão direita em um punho, e então olhou para ela com
surpresa; ele não tinha sido capaz de fazer aquilo por trinta anos. Ele abriu a mão e a colocou
aberta no joelho.
— Eu tentei — ele repetiu — Mas, então, houve Geneva, e eu disse como foi, também, não?
— Você disse.
Ele suspirou — E então havia William. Quando Geneva morreu e foi minha culpa, foi como
uma faca em meu coração... e depois William... — Sua boca se suavizou — O garoto me
destroçou, Sassenach. Ele colocou as minhas tripas em minhas mãos.
Eu coloquei minha mão na dele, e ele se virou, seus dedos se curvando sobre os meus.
— E aquele inglês sodomita me enfaixou — ele disse, tão baixinho que eu mal podia ouvi-
lo sobre o som do rio — com sua amizade.
Ele inspirou profundamente de novo e exalou explosivamente.
— Não, eu não o matei. Eu não sei se estou contente por isso ou não, mas não o matei.
Eu soltei o ar em um profundo suspiro e me inclinei contra ele.
— Eu sabia disso. Fico feliz.
A neblina tinha se engrossado em nuvens cinza, propositalmente vindo sobre o rio,
murmurando com os trovões. Eu tomei uma profunda lufada de ar, enchendo os meus pulmões
com o ozônio, e depois com o cheiro de sua pele. Eu detectava o cheiro básico de um macho,
muito apetitoso em si, mas parecia que ele tinha adquirido um aroma um tanto incomum —
ainda que saboroso — para completar: um leve cheiro de salsicha, o forte cheiro amargo de
repolho, e... sim, mostarda, com mais alguma coisa extremamente picante. Eu cheirei
novamente, reprimindo a vontade de lambê-lo.
— Você cheira como...
— Eu cheiro como um grande prato de choucroute garnie — ele interrompeu, com uma
ligeira careta — Dê-me um momento; vou me lavar.
Ele se moveu como se fosse se levantar e entrar no rio, e eu estiquei a mão e o peguei pelo
braço. Ele olhou para mim por um momento, depois inspirou profundamente e, esticando
lentamente o próprio braço, puxou-me em sua direção. Eu não resisti. Na verdade, meus
próprios braços o circularam por reflexo, e nós suspiramos em uníssono, no puro alívio do
abraço.
Eu seria feliz em ficar sentada ali para sempre, respirando o cheiro almiscarado,
empoeirado e de repolho que se desprendia dele, e ouvindo as batidas de seu coração sob minha
orelha. Todas as coisas que havíamos dito — tudo o que tinha acontecido — pairavam no ar ao
nosso redor como a nuvem de problemas da caixa de Pandora —, mas naquele momento, não
havia nada além de nós dois.
Depois de um tempo, sua mão se moveu, alisando os cachos úmidos e soltos atrás de
minha orelha. Ele limpou a garganta e mudou o peso do corpo, levantando-se, e eu
relutantemente o deixei ir, embora tenha deixado a mão em sua coxa.
— Eu queria dizer uma coisa — ele disse, no tom de alguém que faria uma declaração
formal perante um tribunal. Meu coração se acalmara enquanto ele me segurava; agora ele
vibrou com renovada agitação.
— O quê? — Eu soei tão apreensiva que ele riu. Apenas um bufo, mas ele riu, e eu fui capaz
de respirar de novo. Ele pegou minha mão firmemente e a segurou, olhando dentro de meus
olhos.
— Eu não vou dizer que não me importo com isso, porque me importo. E eu não vou dizer
que não posso fazer um alvoroço sobre isso mais tarde, porque eu provavelmente vou. Mas o
que eu quero dizer é que não há nada neste mundo ou no outro que possa me tirar de você, ou
tirar você de mim — Ele levantou uma sobrancelha — Você discorda?
— Oh, não — eu disse com fervor.
Ele respirou de novo, e seus ombros se abaixaram por alguns centímetros.
— Bem, isso é bom, porque não seria nada bom se você discordasse. Apenas uma pergunta
— ele disse — Você é a minha esposa?
— É claro que eu sou — eu disse, espantada — Como eu poderia não ser?
Seu rosto mudou, então; ele tragou uma grande quantidade de ar e me pegou em seus
braços. Eu o abracei, forte, e juntos nós soltamos um grande suspiro, nos acalmando, sua cabeça
se inclinando sobre a minha, beijando meu cabelo, meu rosto virado em seu ombro, com a boca
aberta no colarinho aberto de sua camisa, nossos joelhos lentamente cedendo em alívio mútuo,
para que nos ajoelhássemos na terra fresca e revirada, agarrando-nos, enraizados como uma
árvore, sem folhas e com muitos galhos, mas compartilhando um único tronco sólido.
As primeiras gotas de chuva começaram a cair.
Seu rosto estava aberto agora e seus olhos estavam azul-claros e livres de preocupação —
naquele momento, pelo menos.
— Onde tem uma cama? Eu preciso ficar nu com você.
Eu estava totalmente a favor de sua proposta, mas a pergunta me pegou de surpresa.
Obviamente não poderíamos ir para a casa de John — ou, pelo menos, não com a intenção de ir
para a cama juntos. Mesmo que John não estivesse em posição de objetar, o pensamento do que
a Sra. Figg iria dizer se eu entrasse na casa com um grande escocês e imediatamente ascendesse
as escadas até o meu quarto com ele... e então havia Jenny... Por outro lado, ansiosa como eu
estava, eu realmente não queria ficar nua com ele entre os ranúnculos, onde poderíamos ser
interrompidos a qualquer momento pelos Bartrams, pelas abelhas ou pela chuva.
— Uma pousada? — Eu sugeri.
— Há alguma onde o povo não conhece você? Uma decente, quero dizer?
Juntei as sobrancelhas, tentando pensar em uma. Não King’s Arms, definitivamente não.
Por outro lado... Eu só conhecia duas ou três pessoas onde Marsali comprava cerveja ou pão —
e as pessoas certamente me conheciam lá — como Lady John Grey.
Não é que Jamie por si mesmo precisasse evitar ser visto — mas sua suposta morte e meu
casamento com John tinham sido assunto de uma tremenda quantidade de interesse público,
pelo motivo de toda a tragédia. Sendo assim, quando se tornasse amplamente conhecido que o
presumivelmente falecido Coronel Fraser tinha repentinamente reaparecido dos mortos para
reclamar sua esposa, isso se tornaria motivo de conversa e superaria a retirada do exército
britânico da cidade. Eu tive um rápido flash de memória — a nossa noite de núpcias,
testemunhada de perto por uma multidão de ruidosos bêbados das Highlands — e imaginei
uma reprise dessa experiência, com comentários interessados dos cidadãos comuns.
Olhei para o rio, pensando se, afinal de contas, haveria um bom abrigo entre os arbustos
— mas era final de tarde, estava nublado, e os mosquitos estavam pendurados em pequenas
nuvens carnívoras nas árvores. Jamie se inclinou de repente e me pegou nos braços.
— Vou encontrar um lugar.
Houve um baque na madeira quando ele chutou a porta para abrir o novo galpão de
envasamento, e de repente nós estávamos em uma escuridão com listras de luz que cheirava a
placas aquecidas pelo sol, terra, água, barro úmido e plantas.
— O quê? Aqui?
Estava abundantemente claro que ele não estava procurando privacidade com o objetivo
de fazer mais perguntas, discutir ou censurar. Sendo assim, a minha pergunta era, em grande
parte, retórica.
Ele me colocou de pé, me virou e começou a desamarrar os meus laços. Eu podia sentir
seu hálito na pele nua de meu pescoço, e os pequenos cabelos ali se arrepiaram.
— Você... — eu comecei, apenas para ser interrompida por um lacônico “shhh”.
Eu fiz silêncio. Podia ouvir agora o que ele ouvira: os Bartram, conversando um com o
outro. Eles estavam a alguma distância, entretanto — na varanda de trás da casa, eu pensei, que
se projetava no trajeto do rio em uma espessa coluna de teixo inglês.
— Eu não acho que eles podem nos ouvir — eu disse, embora tenha falado em voz baixa.
— Já cansei das conversas — ele sussurrou, e, inclinando-se para frente, fechou os dentes
gentilmente sobre a minha nuca exposta — Shhh — ele disse, de novo, porém mais suavemente.
Eu não tinha dito nada, e o ruído que eu havia feito era muito estridente para chamar a atenção
de qualquer coisa, a não ser de um morcego. Exalei fortemente pelo nariz e o ouvi rir do fundo
de sua garganta.
Meus laços se soltaram, e o ar frio inundou a musselina úmida da minha roupa. Ele parou,
uma mão nas fitas de minha anágua, para alcançar ao redor de mim com a outra mão e levantar
cuidadosamente um seio, pesado e livre, o polegar esfregando o mamilo duro e redondo como
uma pedra cereja. Eu fiz outro ruído, este de baixa frequência.
Eu pensei vagamente que era uma sorte ele ser canhoto, quando sua mão ágil se ocupava
em desfazer as fitas de minhas saias. Ela caiu em uma pilha sibilante ao redor de meus pés, e eu
tive uma repentina visão — quando sua mão deixou meu seio e se moveu para perto de minhas
orelhas — do Jovem Sr. Bartram repentinamente percebendo a extrema necessidade de um
vaso com um lote de mudas de alecrim. O choque provavelmente não o mataria, mas...
— Posso ser enforcado tanto pelas ovelhas quanto pelos cordeiros — Jamie disse, tendo
evidentemente adivinhado meus pensamentos pelo fato de eu ter me virado e estar escondendo
as minhas partes íntimas à maneira da Vênus de Botticelli — E eu a quero nua.
Ele riu para mim, arrancou sua própria camisa manchada de sujeira — ele já tinha jogado
fora o casaco quando me colocara no chão — e puxou para baixo suas calças sem parar de
desfazer os laços. Ele estava magro o suficiente para que isso fosse possível; as calças
penduravam-se em seus quadris, mal conseguindo se manter ali, e eu vi a sombra de suas
costelas abaixo da pele enquanto ele se inclinava para tirar as meias.
Ele se endireitou e eu coloquei uma mão em seu peito. Estava úmido e quente, e os pelos
avermelhados se arrepiaram ao meu toque. Eu podia sentir o cheiro do calor e da ansiedade
dele, até mesmo sobre o cheiro agrícola do galpão e através do cheiro persistente do repolho.
— Não tão rápido — eu sussurrei.
Ele fez um ruído escocês de interrogação, estendendo as mãos para mim, e eu enfiei meus
dedos nos músculos de seu peito.
— Quero um beijo antes.
Ele colocou sua boca contra minha orelha e ambas as mãos firmemente em minha bunda.
— Você acha que está em posição de fazer exigências? — ele sussurrou, aumentando o
aperto. Eu me irritei um pouco com isso.
— Sim, eu certamente estou — eu disse, e ajustei meu próprio aperto um pouco mais
abaixo. Ele não atrairia nenhum morcego, eu pensei.
Estávamos nos encarando, respirando a respiração um do outro, próximos o bastante
para vermos a menor nuance de expressão, até mesmo na penumbra. Eu via a seriedade que se
sobrepunha ao riso — e a dúvida entre a bravata.
— Eu sou sua esposa — sussurrei, meus lábios esfregando os dele.
— Eu sei disso — ele disse, muito suavemente, e me beijou. Suavemente. Depois fechou
seus olhos e esfregou os lábios pelo meu rosto, não tanto beijando, mas sentindo os contornos
das maçãs do rosto e da testa, da mandíbula e da pele macia abaixo da orelha, procurando me
conhecer novamente além da pele e da respiração, conhecer-me até os sangues e ossos, até o
coração que batia dentro de mim.
Fiz um pequeno ruído e tentei encontrar sua boca com a minha, pressionando-me contra
ele, corpos nus frescos e úmidos, pelos raspando docemente, e a encantadora firmeza dele entre
nós. Ele não me deixaria beijá-lo, entretanto. Sua mão segurava meus cabelos em um rabo desde
a base do meu pescoço, envolvendo minha cabeça, a outra mão fazendo o mesmo jogo de
homem cego.
Houve um baque estrídulo; eu tinha esbarrado em um banco de envasamento, movendo
uma bandeja de pequenos vasos de muda que vibravam, as folhas picantes de manjericão
tremulando em doce agitação. Jamie empurrou a bandeja para o lado com uma mão, depois me
pegou pelos cotovelos e me levantou no banco.
— Agora — ele disse, quase sem fôlego — Eu preciso tê-la agora.
Ele o fez, e eu parei de me importar se havia estilhaços no banco ou não.
Eu passei as minhas pernas ao redor dele e ele me deitou, inclinando-se sobre mim, mãos
apoiadas no banco, com um som entre felicidade e dor. Ele se moveu lentamente em mim e eu
engasguei.
A chuva tinha se intensificado de uma garoa a um estrépito que soava no telhado de zinco
do galpão, cobrindo qualquer som que nós fizéssemos, o que era uma boa coisa, eu pensei
vagamente. O ar tinha esfriado mas estava cheio de umidade; nossas peles estavam
escorregadias, e o calor se espalhava onde a carne tocava outra carne. Ele foi lento, deliberado,
e eu arqueei minhas costas, pedindo mais. Em resposta, ele me pegou pelos ombros, curvando-
se mais para baixo, e me beijou levemente, mal se movendo.
— Eu não vou fazer isso — ele sussurrou, e me segurou com força enquanto eu lutava
contra ele, tentando em vão incitá-lo à resposta violenta que eu desejava... que eu precisava.
— Não vai fazer o quê? — eu estava ofegante.
— Não vou puni-la por isso — ele disse, tão suavemente que eu mal podia ouvi-lo, mesmo
tão perto como ele estava — Não farei isso, entendeu?
— Eu não quero que você me castigue, seu bastardo — Resmunguei com esforço, meus
ombros rangendo nas articulações enquanto eu tentava sair de suas garras — Eu quero que
você... Deus, você sabe o que eu quero!
— Sim, eu sei.
Sua mão deixou meu ombro e envolveu minha nádega, tocando a carne de nossa união,
esticada e escorregadia. Eu fiz um pequeno ruído de rendição, e meus joelhos se afrouxaram.
Ele se afastou, depois voltou para mim, forte o bastante para que eu desse um pequeno
grito agudo de alívio.
— Chame-me para a sua cama — ele disse, sem fôlego, as mãos nos meus braços — e eu
virei para você. Aliás, eu irei, você me chamando ou não. Mas, lembre-se, Sassenach, eu sou o
seu homem; eu a servirei como quiser.
— Faça isso — eu disse — Por favor. Jamie, eu quero que você faça!
Ele agarrou meu quadril com ambas as mãos, forte o suficiente para deixar marcas, e eu
me arqueei contra ele, ofegante, as mãos escorregando em sua pele suada.
— Deus, Claire, eu preciso de você!
A chuva rugia no telhado agora, e os raios estavam próximos, branco-azulados e afiados
com ozônio. Nós cavalgamos juntos, com força e cegos pela luz, sem fôlego, e o trovão
estremeceu por nossos ossos.
25 – DÊ-ME A LIBERDADE
E quando o sol nasceu no terceiro dia após ele deixar sua casa, Lord John William Bertram
Armstrong Grey se encontrava novamente como um homem livre, com a barriga cheia, uma
cabeça girando, um mosquete mal remendado, e pulsos severamente irritados, em pé diante do
Reverendo Peleg Woodsworth, com a mão direita erguida, recitando conforme solicitado:
— Eu, Bertram Armstrong, juro ser fiel aos Estados Unidos da América, e servir honesta e
fielmente contra os inimigos e opositores de qualquer natureza, e observar e obedecer às
ordens dos generais e oficiais que estiverem acima de mim.
Maldição, ele pensou. O que virá a seguir?
PARTE II
ENQUANTO ISSO, DE VOLTA À FAZENDA...
26 – UM PASSO NA ESCURIDÃO
30 de outubro de 1980
Craigh na Dun
Uma mancha de suor escurecia a camisa entre as omoplatas de William Buccleigh; o dia estava
fresco, mas era uma subida íngreme até o topo de Craigh na Dun — e o pensamento do que os
aguardava no topo era o suficiente para fazer qualquer um suar.
— Você não tem que vir — Roger disse nas costas de Buccleigh.
— Não encha — seu tatara-tatara-tatara-tatara-tataravô replicou brevemente. Buck falou
distraidamente, entretanto, toda a sua atenção, como a de Roger, focada no longínquo pico do
morro.
Roger podia ouvir as pedras dali. Um zumbido baixo, mal-humorado, como uma colmeia
de abelhas hostis. Ele sentiu o som se movendo, rastejando sob sua pele, e coçou violentamente
o cotovelo, como se pudesse extirpá-lo.
— Tem as pedras, não é? — Buck parou, agarrando-se com uma mão a uma muda de
bétula enquanto olhava para trás sobre o ombro.
— Tenho — Roger disse brevemente — Quer a sua?
Buck balançou a cabeça e tirou os cabelos louros da testa com as costas da mão livre.
— Há tempo suficiente — ele disse, e começou a escalar novamente.
Roger sabia que os diamantes estavam lá — ele sabia que Buck também estava ciente
disso —, mas colocou a mão dentro do casaco mesmo assim. Duas peças brutas de metal
tilintaram em conjunto, as metades de um broche antigo que Brianna havia cortado com uma
tesoura de cozinha, cada metade com um conjunto de pequenos diamantes, pouco mais do que
lascas. Ele pediu a Deus que elas fossem suficientes. Se não fossem...
O dia estava apenas fresco, mas um profundo arrepio percorreu seus ossos. Ele havia feito
aquilo duas vezes — três vezes, se contasse a primeira tentativa, aquela que quase o matara.
Ficava pior cada vez. Ele pensou que não conseguiria na última vez, voltando para Ocracoke, o
corpo e a mente fragmentando-se naquele lugar que não era nem um lugar e nem uma
passagem. Fora apenas a sensação de Jem em seus braços que o manteve firme e permitiu que
ele concluísse a passagem. E era apenas a sensação de encontrar Jem agora que faria com que
ele atravessasse de novo.
Ele devia estar chegando perto do fim do túnel. Jem poderia dizer pela forma como o ar se
empurrava contra seu rosto. Tudo o que ele podia ver era a luz vermelha no painel do trem —
aquilo era chamado de painel?, ele pensou. Ele não queria parar, porque isso significava que
teria que sair do trem, no escuro. Mas o trem estava fora do trilho, então não havia muito mais
que ele pudesse fazer.
Ele puxou para trás a alavanca que fazia o trem andar, e diminuiu a velocidade. Ainda
mais. Apenas mais um pouco, e a alavanca fez um click de encaixe e o trem parou com um
pequeno solavanco que o fez tropeçar e agarrar a borda da cabine.
Um trem elétrico não fazia ruído de motor, mas as rodas sacudiam na pista e o trem rangia
e se sacudia enquanto se movia. Quando parou, o ruído parou também. Estava tudo silencioso.
— Ei! — ele disse em voz alta, porque não queria ouvir seu coração bater. O som ecoou, e
ele olhou para cima, espantado.
Mamãe tinha dito que o túnel era realmente alto, possuindo mais de nove metros, mas ele
havia se esquecido disso. A ideia de que havia uma grande quantidade de espaço pairando sobre
ele que nem era possível ver o incomodava muito. Ele engoliu e saiu do pequeno vagão,
segurando-se na estrutura com uma mão.
— Ei! — ele gritou para o teto invisível — Há algum morcego aí em cima?
Silêncio. Ele meio que esperava que houvesse morcegos. Ele não tinha medo deles — havia
morcegos na velha torre, e ele gostava de se sentar e observá-los sair para caçar nas noites de
verão. Mas ele estava sozinho agora. Exceto pela escuridão.
Suas mãos estavam suadas. Ele soltou a cabine metálica e esfregou as duas mãos na calça
jeans. Agora ele podia se ouvir respirando também.
— Merda! — ele sussurrou baixinho. Aquilo o fez se sentir melhor, então ele repetiu.
Talvez ele devesse rezar em vez de falar palavrões, mas ele não se sentia no clima para isso,
ainda não.
Havia uma porta, Mamãe disse. No final do túnel. Ela levava até a câmara de serviço, onde
as grandes turbinas podiam ser levantadas das barragens caso precisassem de conserto. A porta
estaria trancada?
De repente ele percebeu que tinha se afastado do trem e não sabia se estava olhando para
o final do túnel ou para o local de onde tinha vindo. Em pânico, ele andou de lá para cá, com as
mãos para a frente, procurando pelo trem. Ele tropeçou no trilho e caiu estatelado. Ficou ali
deitado por um segundo, dizendo — Merda, merda, merda, merda, merda! — porque esfolara
os joelhos e as palmas das mãos, mas estava bem, na verdade, e agora ele sabia onde o trilho
estava, e poderia segui-lo para não se perder.
Ele se levantou, limpou o nariz, e se arrastou lentamente, chutando o trilho a cada poucos
passos para se certificar de que estava nele. Ele imaginou que estivesse em frente ao local onde
o trem tinha parado, então não importava para onde ele estava indo — ou encontraria o trem
ou encontraria o final do túnel. E a porta. Se estivesse fechada, talvez...
Algo parecido com um choque elétrico passou através dele. Ele ofegou e caiu para trás. A
única coisa em mente era a ideia que alguém tinha batido nele com um sabre de luz como o de
Luke Skywalker, e por um minuto ele pensou que, quem quer que fosse, tinha cortado sua
cabeça.
Ele não podia sentir seu corpo, mas podia imaginar em sua mente seu corpo deitado e
sangrando no escuro e sua cabeça parada ali no trilho do trem; e sua cabeça não podia ver o
corpo e nem mesmo saber que não estava mais ligada a ele. Ele fez um ruído parecido com o de
respiração, na tentativa de gritar, mas aquilo fez com que o seu estômago se revirasse e ele
sentiu... sentiu a súbita necessidade de orar.
— Deo... gratias! — ele conseguiu ofegar. Era o que vovô dizia quando falava sobre uma
luta ou quando matava alguma coisa; e sua situação não era exatamente esta, mas pareceu uma
coisa boa a se dizer, de qualquer forma.
Agora ele podia sentir a si mesmo de novo, mas ele se sentou e agarrou o pescoço, apenas
para se certificar de que sua cabeça ainda estava ali. Sua pele estava pulando de uma forma
estranha. Como um cavalo faz quando uma mosca o pica, mas por toda a parte. Ele engoliu e
sentiu gosto de prata açucarada e ofegou de novo, porque agora ele sabia o que o tinha atingido.
Mais ou menos.
Não foi muito parecido com quando todos eles tinham caminhado pelas rochas em
Ocracoke. Em um minuto ele estava nos braços de seu pai, e no minuto seguinte foi como se ele
tivesse se espalhado por toda parte em pequenos pedaços que se ondulavam como o mercúrio
derramado durante uma cirurgia de sua avó. Então ele estava de volta, e seu pai ainda o
segurava apertado o suficiente para que ele não conseguisse respirar, e ele podia ouvir papai
soluçando e aquilo o assustou, e ele sentia um gosto esquisito na boca e pequenas partes dele
ainda estavam se agitando ao redor e tentando fugir, mas estavam presas dentro de sua pele...
Sim. Era isso que fazia sua pele pular agora, e ele respirou com mais facilidade, sabendo o
que era. Estava tudo bem, então; ele estava bem; aquilo iria passar.
Já estava passando, a sensação de inquietação indo embora. Ele ainda se sentia um pouco
trêmulo, mas ficou de pé. Com cuidado, porque ele não sabia onde estava.
Espere... Ele sabia. Ele sabia exatamente onde estava.
— Isso é estranho — ele disse, em voz alta sem realmente perceber, porque ele não estava
mais com medo do escuro; isso não era importante.
Ele não podia ver, não com os seus olhos, não exatamente. Ele apertou os olhos, tentando
pensar como ele estava vendo, mas não havia uma palavra para o que ele estava fazendo. Era
como se estivesse ouvindo ou cheirando ou tocando, mas sem fazer nada disso realmente.
Mas ele sabia onde estava. Estava logo ali, uma espécie de... arrepio... no ar, e quando ele
olhou, teve uma sensação no fundo de sua mente como se alguma coisa muito brilhante, como
o sol no mar e a forma como a chama de uma vela parecia quando o brilho atravessava um rubi,
mas ele sabia que não estava realmente vendo nada daquilo.
Percorreu todo o caminho através do túnel, e até o teto alto, também, ele podia dizer. Mas
não era espesso; era fino como o ar.
Ele imaginou que era porque não fora engolido como aquela coisa nas rochas em
Ocracoke. Pelo menos... ele achou que não tinha e, por um instante, se preocupou se não poderia
ter ido para outro tempo. Mas ele achava que não. O túnel parecia o mesmo, bem como ele, agora
que sua pele tinha parado de pular. Quando eles fizeram aquilo, em Ocracoke, ele percebeu logo
de início que tudo estava diferente.
Ele ficou parado lá por um minuto, apenas olhando e pensando, e depois balançou a
cabeça e se virou, sentindo com os pés o trilho. Ele não voltaria a atravessar aquilo, de forma
alguma. Ele só esperava que a porta não estivesse trancada.
A mão de Brianna se fechou na carta aberta, mas embora calculasse a distância envolvida, o
obstáculo na escrivaninha entre Rob Cameron e si mesma, e a fragilidade da lâmina da madeira,
ela estava relutantemente concluindo que não conseguiria matar aquele bastardo. Ainda não.
— Onde está o meu filho?
— Ele está bem.
Ela se levantou repentinamente, e ele recuou um pouco em reflexo. Seu rosto corou e ele
endureceu a expressão.
— É melhor que ele esteja bem — ela retrucou — Eu perguntei onde ele está.
— Oh, não, mulher — ele disse, balançando um pouco para trás em seus calcanhares,
mostrando indiferença — Não é assim que nós vamos jogar. Não esta noite.
Deus, por que Roger não mantinha um martelo ou um formão ou alguma coisa útil na
gaveta da escrivaninha? Será que ele esperava que ela grampeasse aquele idiota? Ela se
preparou, ambas as mãos sobre a mesa plana, para evitar se inclinar e pegá-lo pelo pescoço.
— Eu não estou jogando — ela disse entre os dentes — Bem como você. Onde está Jemmy?
Ele apontou um longo dedo para ela.
— Você não é mais a chefe, Sra. MacKenzie. Eu dou as cartas agora.
— Oh, você pensa assim, não é? — ela perguntou, tão levemente quanto pôde. Seus
pensamentos deslizavam através dela como grãos de areia em uma ampulheta, uma cascata
deslizante de “e se”, “como”, “será que eu devo”, “não”, “sim”...
— Eu penso, sim — Sua cor, já vermelha, acentuou-se ainda mais, e ele lambeu os lábios
— Você vai descobrir como é estar no fundo, mulher.
Os olhos de Cameron estavam muito brilhantes, e seus cabelos estavam tão curtos que ela
podia ver as gotas de suor brilhando acima das orelhas. Ele estava drogado ou algo assim? Ela
achava que não. Ele estava usando calças de tecido, e seus dedos brincavam inconscientemente
na frente, onde uma protuberância substancial estava começando a aparecer. Seus lábios se
apertaram com a visão.
Não nesta vida, amigo.
Ela ampliou o olhar o máximo possível, para prendê-lo sem deixar que seus olhos se
desviassem de si. Ela não achava que ele estava armado, embora os bolsos de sua jaqueta
estivessem cheios. Ele realmente achava que poderia obrigá-la a fazer sexo com ele, sem um
conjunto de algemas e uma marreta?
Ele girou o dedo, apontando para o chão na frente dele.
— Venha até aqui, mulher — ele disse suavemente — E tire os seus jeans. Talvez seja bom
aprender como é tomar na bunda regularmente. Você faz isso comigo há meses... O que é justo
é justo, não?
Muito lentamente, ela deu a volta na escrivaninha, mas parou bem aquém dele, mantendo-
se fora de alcance. Ela se atrapalhou com os dedos frios sobre o botão de sua calça, evitando
olhar para baixo, evitando tirar os olhos dele. Seu coração estava batendo tão forte em suas
orelhas que ela mal conseguia ouvir a respiração pesada dele.
A ponta da língua dela apareceu brevemente, sem que ela se desse conta, quando abaixou
os jeans em seus quadris, e ele engoliu.
— A calcinha também — ele disse, meio sem fôlego — Tire-a.
— Você não estupra as pessoas com muita frequência, não é? — ela disse bruscamente,
saindo dos jeans amassados — Qual é a pressa?
Ela se inclinou e pegou as calças pesadas, sacudiu as pernas da calça e se virou como se
fosse colocá-las na escrivaninha. Então, chicoteou-as para trás, segurando o jeans no tornozelo,
e bateu tão forte quanto pôde em sua cabeça.
O tecido pesado com o zíper e o botão de bronze atingiu-o em cheio no rosto, e ele
cambaleou para trás com um grunhido de surpresa, agarrando os jeans. Ela os soltou
instantaneamente, pulou em cima da mesa e se jogou para cima dele, com o ombro primeiro.
Eles caíram juntos com um estrondo que sacudiu o piso de madeira, mas ela caiu em cima,
o joelho pressionando duramente a barriga dele, e depois o segurou por ambas as orelhas e
bateu sua cabeça no chão com o máximo de força que podia. Ele soltou um grito de dor, esticou
a mão para seus pulsos, e ela prontamente soltou suas orelhas, inclinou-se para trás, e agarrou
sua virilha.
Se ela conseguisse um aperto decente em suas bolas através do tecido macio, poderia tê-
las esmagado. Do jeito que apertou, conseguiu apenas apertá-las superficialmente, mas com
força suficiente para fazê-lo gritar e convulsionar, quase a desalojando de cima dele.
Ela não conseguiria vencer uma briga. Não podia deixá-lo bater nela. Ela ficou de pé,
olhando freneticamente ao redor do escritório para encontrar alguma coisa pesada para bater
nele, aproveitou a caixa de cartas de madeira e a bateu sobre a cabeça dele quando ele começou
a levantar. Ele não caiu, mas balançou a cabeça, atordoado entre as cascatas de cartas, e ela o
chutou na mandíbula o mais forte que conseguiu, seus próprios dentes cerrados. Foi um
impacto pequeno e suado, mas ela o havia machucado.
Ela tinha se machucado também. Ela o havia chutado com o calcanhar com o máximo de
força que conseguiu reunir, mas sentiu uma pontada de dor no meio de seu pé; ela tinha
distendido ou quebrado alguma coisa, mas não importava.
Cameron balançou a cabeça violentamente, tentando clareá-la. Ele estava com as mãos e
os joelhos no chão agora, rastejando em direção a ela, tentando alcançar sua perna, e ela se
afastou contra a escrivaninha. Com um grito de banshee, ela deu uma joelhada em seu rosto, se
contorceu para fora do seu alcance e correu para o corredor, mancando muito.
Havia armas nas paredes do hall de entrada, algumas pistolas e espadas mantidas como
ornamento, mas todas penduradas no alto, para ficarem fora do alcance das crianças. Havia uma
mais facilmente a mão, entretanto. Ela esticou a mão por trás do cabideiro e pegou o bastão de
críquete de Jem.
Você não pode matá-lo, ele continuava pensando, vagamente surpresa pelo fato de sua
mente ainda estar funcionando. Não o mate. Não ainda. Não até que ele diga onde Jemmy está.
— Maldita... cadela! — Ele estava quase em cima dela, ofegante, meio cego por causa do
sangue que escorria de sua testa, meio soluçando com o sangue que escorria de seu nariz —
Foda-se, eu vou rachá-la ao meio, vou te foder...
— Caisteal DOOON! — Ela gritou e, saindo de trás do cabideiro, movimentou o bastão em
um arco que o atingiu nas costelas. Ele fez um barulho gorgolejante e se dobrou, os braços no
meio do corpo. Ela inspirou profundamente, balançou o bastão o mais alto que conseguia, e o
levou para baixo com toda a força.
O choque vibrou por seus braços até os seus ombros e ela deixou o bastão cair com um
clunk e ficou em pé, ofegando, tremendo e encharcada de suor.
— Mamãe? — disse uma voz baixa e trêmula do pé da escada — Por que você não está
usando calças, Mamãe?
Felizmente o instinto foi o seu primeiro pensamento coerente. Ela cruzou o corredor, pegou
Mandy em seus braços, e estava batendo nas costas dela confortavelmente antes que qualquer
decisão consciente de se mover tivesse sido tomada.
— Calças? — ela disse, olhando para a forma flácida de Rob Cameron. Ele não se mexera
desde que caíra, mas ela não achava que estivesse morto. Ela teria que tomar medidas melhores
para neutralizá-lo, e rápido — Oh, calças. Eu estava me arrumando para dormir quando esse
homem danado apareceu.
— Oh — Mandy se inclinou em seus braços, olhando para Cameron — É o senhô Rob! Ele
é um ladão? Um homem mau?
— Sim, as duas coisas — Brianna disse, deliberadamente casual. A fala de Mandy mostrava
a sibilância de quando ela ficava animada ou chateada, mas a garotinha parecia estar se
recuperando rapidamente do choque de ver sua mãe batendo num bandido no hall de entrada
enquanto usava apenas calcinha e camiseta. O pensamento fez com que ela quisesse bater nas
bolas de Cameron, mas ela recuou. Não havia tempo para aquilo.
Mandy se agarrou ao seu pescoço, mas Brianna a colocou firmemente nas escadas.
— Mamãe quer que você fique aqui, a ghraidh. Eu tenho que colocar o Sr. Rob em algum
lugar seguro, onde ele não possa fazer nada de mal.
— Não!
Mandy chorou, ao ver a mãe indo em direção a Cameron, mas Brianna acenou no que ela
esperava ser uma forma tranquilizadora, pegou o bastão de críquete apenas para garantir, e
cutucou o prisioneiro nas costelas com um dedo cauteloso. Ele vacilou, mas não se mexeu.
Apenas por precaução, ela se moveu para trás dele e o empurrou bruscamente entre as nádegas
com o bastão, o que fez Mandy rir. Ele não se mexeu, e ela inspirou profundamente pela
primeira vez no que pareceram horas.
Voltando para as escadas, ela deu a Mandy o bastão e sorriu para ela. Empurrou uma
mecha de cabelo suado para trás de sua orelha.
— Tudo bem. Nós vamos colocar o Sr. Rob no buraco do padre. Vá na frente e abra a porta
para a mamãe, tudo bem?
— Devo batê nele? — Mandy perguntou esperançosamente, virando o bastão.
— Não, eu acho que você não precisa fazer isso, querida. Apenas abra a porta.
Sua bolsa de trabalho estava pendurada no cabideiro do hall, um grande rolo de fita
adesiva facilmente à mão. Ela atou os tornozelos e os pulsos de Cameron, uma dúzia de voltas
para cada um; em seguida, curvou-se e, segurando-o pelos tornozelos, arrastou-o para a porta
vai-e-vem no final do corredor, que separava a cozinha do restante da casa.
Ele começou a se mexer enquanto eles contornavam a mesa da cozinha, e ela soltou seus
pés.
— Mandy — ela disse, mantendo a voz o mais calma possível — Eu preciso ter uma
conversa de adultos com o Sr. Rob. Dê-me o bastão. Depois vá para o vestíbulo e me espere lá,
ok?
— Mamãe... — Mandy estava se encolhendo contra o armário da pia, olhos enormes e fixos
em Cameron, que gemia.
— Vá, Mandy. Agora. Mamãe estará lá com você antes de conseguir contar até cem.
Comece a contar agora. Um... dois... três... — Ela se moveu entre Cameron e Mandy, apontando
firmemente com sua mão livre.
Relutantemente, Mandy se moveu, murmurando — Quatro... cinco... seis... sete — e
desapareceu pela porta da cozinha. A cozinha estava quente por causa do forno Aga, e apesar
de sua falta de roupas, Bree ainda estava escorrendo com o suor. Ela podia sentir o próprio
cheiro, selvagem e acre, e pensou que aquilo a fazia se sentir mais forte. Ela não tinha certeza
de entender o termo “sede de sangue” antes, mas agora ela entendia.
— Onde está o meu filho? — ela disse para Cameron, mantendo uma distância cautelosa
no caso de ele tentar rolar até ela — Responda-me, pedaço de merda, ou eu vou dar uma surra
em você e depois chamar a polícia.
— É? — Ele rolou lentamente para o lado, gemendo — E dizer o quê, exatamente? Que eu
peguei o seu menino? Que prova você tem? — Suas palavras eram arrastadas; seu lábio estava
inchado em um dos lados, onde ela o havia chutado.
— Tudo bem — ela replicou — Eu só vou dar uma surra em você.
— O quê? Bater em um homem indefeso? Ótimo exemplo para sua garotinha — Ele rolou
de costas com um gemido abafado.
— Quanto à polícia, eu posso dizer a eles que você invadiu minha casa e me agrediu — Ela
apontou um pé para ele, para que ele pudesse ver os arranhões lívidos em sua perna — Você
vai ter as células de minha pele abaixo de suas unhas. E ainda que eu prefira que Mandy não
passe por isso, ela certamente diria a eles o que você estava dizendo no corredor — Ela
realmente faria isso, Bree pensou. Mandy era um gravador muito fiel, especialmente quando os
palavrões estavam envolvidos.
— Nng — Cameron tinha fechado seus olhos, fazendo uma careta contra a luz que vinha
sobre a pia, mas agora os abrira de novo. Ele estava menos confuso; ela podia ver a luz da
reflexão de volta em seus olhos. Como a maioria dos homens, ela pensou, ele era provavelmente
mais esperto quando não estava sexualmente excitado e ela ficou mais cautelosa.
— Sim. E eu vou dizer a eles que foi apenas um joguinho sexual que saiu do controle, e
você vai negar e eles dirão: “Sim, bem, senhora, e onde está o seu marido, então?” — O lado não
machucado de sua boca torceu-se para cima — Você não está tão ágil esta noite, mulher. Mas,
na verdade, você geralmente não é ágil.
A menção de Roger fez com que o sangue subisse até suas orelhas. Ela não respondeu, mas
o agarrou pelos pés e o puxou rudemente através da cozinha e para dentro da passagem. A
grade que cobria o buraco do padre estava escondida por um banco e por várias caixas de
garrafas de leite, e peças de equipamento agrícola que aguardavam reparo, bem com outros
itens que não sairiam dali. Ela soltou os pés de Rob, arrastou o banco e as caixas para o lado, e
puxou a grade. Havia uma escada que levava para o espaço sombrio lá de baixo; ela a puxou e a
deslizou para trás do banco. Aquela pequena amenidade não seria necessária.
— Ei! — Os olhos de Rob se arregalaram. Ou ele não sabia que tinha um buraco de padre
na casa ou ele pensou que ela não faria aquilo. Sem uma palavra, ela o agarrou por baixo dos
braços, arrastou-o para o buraco e o empurrou. Primeiro com os pés, porque se ele quebrasse
o pescoço, não poderia dizer a ela onde Jem estava.
Ele caiu com um grito, que foi cortado por um baque pesado. Antes que ela pudesse se
preocupar que ele tivesse conseguido cair com a cabeça primeiro, ela ouviu o seu gemido e um
som farfalhante quando ele começou a se mexer. Um murmúrio de palavrões a tranquilizou de
que ele ainda estava bem o suficiente para responder a perguntas. Ela foi buscar a grande
lanterna da gaveta da cozinha e a acendeu, iluminando o buraco. O rosto de Cameron,
congestionado e cheio de sangue, olhou para ela. Ele se curvou e, com alguma dificuldade,
conseguiu colocar-se sentado.
— Você quebrou a minha perna, sua puta!
— Bom — ela disse friamente, embora ela duvidasse disso — Quando eu tiver Jem de
volta, vou te levar ao médico.
Ele respirou pesadamente pelo nariz, fungando desagradavelmente, e enxugou o rosto
com as mãos atadas, espalhando o sangue pela bochecha.
— Você o quer de volta? Tire-me daqui, e rápido!
Ela estava considerando — e descartando — diferentes planos de ação, passando por eles
como num jogo de cartas mental, desde que o amarrara com a fita adesiva. E soltá-lo não era
um dos planos que ela considerava. Ela tinha pensado em ir buscar o rifle calibre 22 que a
família usava para caçar ratos e atirar nele em alguns lugares não essenciais, mas havia algum
risco de que isso o desarranjasse demais ou que ela pudesse matá-lo acidentalmente ao acertar
algum órgão vital.
— Pense rápido — ele gritou para ela — Sua garotinha vai chegar no cem e voltará a
qualquer segundo.
Apesar da situação, Brianna sorriu. Mandy tinha sido recentemente introduzida ao
conceito de que os números são infinitos e tinha ficado encantada por essa ideia. Ela não pararia
de contar até que perdesse o fôlego ou alguém a interrompesse. Ainda assim, ela não iria se
envolver em uma conversa inútil com seu prisioneiro.
— Tudo bem — ela disse, e estendeu a mão para a grade — Vamos ver quão falante você
estará após vinte e quatro horas sem comida ou água, ok?
— Sua puta desgraçada! — Ele tentou ficar de pé, mas caiu para o lado, contorcendo-se
impotentemente — Sua... Só pense sobre isso, sim? Se eu ficar sem comida ou água, o seu
rapazinho também vai ficar.
Ela congelou, a ponta de metal da grade cravando entre seus dedos.
— Rob, você não é brilhante — ela disse. Ela ficou espantada por sua voz soar tão casual;
ondas de horror e alívio e horror renovado estavam passando por seus ombros, e alguma coisa
primitiva no fundo de sua mente gritava.
Um silêncio soturno vinha de lá de baixo, enquanto ele tentava descobrir o que receberia
pela declaração.
— Agora eu sei que você não mandou Jem de volta pelas pedras — ela esclareceu para ele.
Ela cuidadosamente não gritou “Mas você fez com que Roger voltasse para procurar por ele! E
ele nunca o encontrará. Seu... seu...” — Ele ainda está aqui, neste tempo.
Outro silêncio.
— Sim — ele disse lentamente — Tudo bem, você sabe disso. Mas você não sabe onde ele
está. E não vai descobrir até que me solte. Eu estou falando sério, mulher... Ele deve estar com
sede a esta altura. E com fome. E estará muito pior pela manhã.
Sua mão apertou ainda mais a grade — É melhor que você esteja mentindo — ela disse
calmamente — Para o seu próprio bem. — Ela colocou a grade no lugar e pisou sobre ela,
fechando-a corretamente. O buraco do padre era literalmente um buraco: um espaço com cerca
de dois metros por dois metros e meio e seis metros de altura. Mesmo que Rob Cameron não
estivesse preso pelas mãos e pelos pés, ele não conseguiria pular alto o suficiente para alcançar
a grade, quanto mais alcançar a trava que a fechava.
Ignorando os gritos furiosos de lá de baixo, Brianna foi recuperar sua filha e sua calça
jeans.
O vestíbulo estava vazio, e por um instante ela entrou em pânico — mas então ela viu o pequeno
pé descalço saindo por baixo do banco, longos dedos relaxados como os de sapos, e seu
batimento cardíaco desacelerou. Um pouco.
Mandy estava enrolada num casaco velho de Roger, o polegar na boca, adormecida. Ela
teve um impulso de levá-la para a cama e deixá-la dormir até amanhecer. Brianna colocou a
mão suavemente nos cabelos pretos e encaracolados de sua filha — pretos como os de Roger
— e seu coração se apertou como um limão. Havia outra criança a considerar.
— Acorde, querida — ela disse, gentilmente balançando a garotinha — Acorde, docinho.
Nós precisamos procurar por Jem.
Foi preciso um pouco de adulação e um copo de Coca-Cola — um deleite raro, e
absolutamente inédito tão tarde da noite, que emocionante! — para conseguir deixar Mandy em
estado de alerta, mas uma vez que ela atingiu esse estado, ficou ansiosa para sair e caçar seu
irmão.
— Mandy — Bree disse, o mais casualmente que pôde, abotoando o casaco rosa de sua
filha —, você consegue sentir Jem? Agora?
— Uh-huh — Mandy replicou com descaso e o coração de Brianna saltou. Duas noites
antes, a criança tinha acordado gritando de um sono profundo, chorando histericamente e
insistindo que Jem tinha partido. Ela tinha ficado inconsolável, lamentando que seu irmão tinha
sido comido por “pedas gandes”, uma afirmação que aterrorizara os seus pais, que conheciam
os horrores daquelas pedras em particular muito bem.
Mas então, alguns minutos depois, Mandy tinha repentinamente se acalmado. Jem estava
lá, ele dissera. Ele estava ali em sua cabeça. E ela voltou a dormir como se nada tivesse
acontecido.
Na consternação que seguira o episódio — a descoberta de que Jem tinha sido levado por
Rob Cameron, um dos empregados de Brianna na hidrelétrica, e presumivelmente através das
pedras para o passado — não houvera tempo para recordar a observação de Mandy de que Jem
estava de volta em sua cabeça, quanto menos para fazer outras perguntas. Mas agora a mente
de Brianna estava se movendo na velocidade da luz, saltando de uma constatação horrorizada
para a próxima, fazendo conexões que poderiam ter levado horas para fazer a sangue frio.
Compreensão Aterrorizante Número 1: Jem não tinha ido para o passado, afinal de contas.
Enquanto que, por si só, isso era inegavelmente uma coisa boa, levava para a Compreensão
Aterrorizante Número 2, que era muito pior: Roger e William Buccleigh tinham
indubitavelmente atravessado as pedras, procurando por Jemmy. Ela esperava que eles
estivessem de fato no passado e não mortos — viajar através do que quer que fosse a coisa que
as pedras eram, era uma proposição muito perigosa —, mas, se eles estivessem vivos, isso a
traria de volta para a Compreensão Aterrorizante Número 1: Jem não estava no passado. E se
ele não estava lá, Roger não o encontraria. E, como Roger nunca deixaria de procurá-lo...
Ela empurrou a Compreensão Aterrorizante Número 3 para o lado com muita força, e
Mandy piscou, surpresa.
— Por que está fazendo caretas, mamãe?
— Estou praticando para o Halloween — Ela se levantou, sorrindo o melhor que podia, e
estendeu a mão para pegar seu próprio casaco.
A testa de Mandy se vincou com o pensamento.
— Quando é o Halloween?
O frio ondulou sobre Brianna, e não apenas por causa da fresta debaixo da porta de trás.
Será que eles tinham conseguido? Eles achavam que o portal ficava mais ativo nos festivais de
sol e nos festivais de fogo — e o Samhain era um importante festival de fogo —, mas eles não
podiam esperar por mais um dia, por medo de que Jem seria levado para muito longe de Craigh
na Dun após passar pelas pedras.
— Amanhã — ela disse. Seus dedos deslizaram e se atrapalharam com os botões, instáveis
por causa da adrenalina.
— Bom, bom, bom! — Mandy disse, pulando de um lado para outro como um grilo —
Posso usar a minha máscara para procurar por Jemmy?
27 – NADA É TÃO DIFÍCIL QUE SE PROCURANDO NÃO ACHE
Ele sentiu os diamantes explodirem. Por algum tempo, aquele era o único pensamento em sua
mente. Ele os sentiu. Um instante, mais breve do que a batida de um coração, e um pulso de luz
e calor em sua mão, e então o pulsar de algo passando através dele, cercando-o e, então...
Não “então”, ele pensou confuso. Não havia “então”. Não havia “e agora”. Havia,
entretanto...
Ele abriu os olhos para descobrir que havia um “agora”. Ele estava deitado nas pedras e
urzes e havia uma vaca respirando — não, não era uma vaca. Ele levantou e virou a cabeça para
o lado apenas alguns centímetros. Era um homem, acocorado no solo. Tomando enormes e
irregulares goles de ar. Quem...?
— Oh — ele disse em voz alta, ou quase — É você — As palavras saíram meio mutiladas,
o que machucou sua garganta, e ele tossiu. Aquilo doeu, também — Você está... bem? — Ele
perguntou com a voz rouca.
— Não — A resposta veio como um grunhido, cheio de dor e, alarmado, Roger se apoiou
em suas mãos e joelhos, a cabeça girando. Ele ofegou um pouco também, mas rastejou o mais
rápido que podia em direção a Buck.
William Buccleigh estava curvado, os braços cruzados no peito, segurando seu braço
esquerdo com a mão direita. Seu rosto estava pálido e pegajoso de suor, lábios pressionados
tão juntos que um anel branco se formara ao redor de sua boca.
— Está machucado? — Roger levantou uma mão, incerto de onde deveria verificar. Ele
não podia ver nenhum sangue.
— Meu... peito — Buck ofegou — Braço.
— Oh, Jesus — Roger disse, os últimos remanescentes de confusão arrancados por uma
explosão de adrenalina — Você está tendo um infarto?
— O quê... — Buck fez uma careta, e então algo pareceu aliviar um pouco. Ele engoliu ar
— Como eu poderia saber?
— É que... Esqueça. Deite-se. Você consegue? — Roger olhou descontroladamente para os
lados, embora, mesmo enquanto fazia isso, tivesse consciência de que era inútil. A área perto de
Craigh na Dun era selvagem e não habitada em seu próprio tempo, imagine naquele. E mesmo
que alguém aparecesse pelas pedras e urzes, as chances de que essa pessoa fosse um médico
eram remotas.
Ele pegou Buck pelos ombros e o empurrou suavemente para baixo, depois se inclinou e
colocou a orelha no peito do homem, sentindo-se como um idiota.
— Você está escutando alguma coisa? — Buck perguntou ansiosamente.
— Não com você falando. Fique quieto — Ele pensou que podia ouvir a batida do coração
dele, mas não tinha ideia se havia alguma coisa de errado com ela. Ele ficou inclinado por mais
um tempo, apenas para se recompor.
Sempre aja como se soubesse o que está fazendo, até mesmo quando não sabe. Ele tinha
recebido aquele conselho de um grande número de pessoas, desde artistas com quem ele tinha
compartilhado um palco até consultores acadêmicos... e, muito mais recentemente, de seus
sogros.
Ele colocou uma mão no peito de Buck e olhou para o rosto do homem. Ele ainda estava
suando e parecia claramente com medo, mas havia mais cor em suas bochechas. Seus lábios não
estavam azuis; aquilo pareceu um bom sinal.
— Apenas continue respirando — ele aconselhou seu ancestral — Devagar, sim?
Ele tentou seguir aquele conselho também; seu coração estava martelando e seu suor
escorria pelas costas, apesar do vento frio que zunia em seus ouvidos.
— Nós conseguimos, não? — O peito de Buck estava se movendo mais devagar sob sua
mão. Ele virou a cabeça para olhar em volta — Está... diferente? Não está?
— Sim — Apesar da situação atual e da preocupação esmagadora por Jem, Roger sentiu
uma onda de júbilo e alívio.
Estava diferente: daqui, ele poderia ver a estrada abaixo — agora não mais do que um
rastro no mato feito pelas carroças, em vez da faixa cinzenta de asfalto. As árvores e os arbustos
estavam diferentes, também — havia pinheiros, os grandes pinheiros da Caledônia que
pareciam como gigantes talos de brócolis. Eles tinham conseguido.
Ele riu para Buck — Nós conseguimos. Não morra agora, seu maldito.
— Farei o meu melhor — Buck ainda estava mal-humorado, mas começava a apresentar
uma aparência melhor — O que acontece se você morrer fora do seu tempo? Você apenas
desaparece, como se nunca estivesse ali?
— Talvez você exploda em pedaços. Eu não sei, e nem quero descobrir. Não enquanto
estou parado perto de você, pelo menos — Roger colocou o pé abaixo de si e lutou contra uma
onda de tontura. Seu próprio coração ainda estava batendo com força o suficiente para que ele
o sentisse no fundo de sua cabeça. Ele respirou o mais profundamente que podia e se levantou.
— Eu vou... pegar um pouco de água pra você. Fique aí, sim?
Roger tinha trazido um pequeno cantil vazio, embora se preocupasse com o que poderia
acontecer ao metal durante a travessia. Evidentemente, o que quer que fosse que vaporizava as
pedras preciosas não se aplicava ao estanho, entretanto; o cantil estava intacto, bem como a
pequena faca e o frasco de bolso de conhaque.
Buck estava sentado quando Roger voltou do riacho mais próximo com água, e depois de
esfregar o rosto com a água e beber metade do conhaque, ele se declarou recuperado.
Roger não tinha muita certeza; a aparência do homem ainda era meio descorada — mas
ele estava muito ansioso em relação a Jem para sugerir que esperassem por mais tempo. Eles
conversaram sobre isso um pouco a caminho de Craigh na Dun, concordando com uma
estratégia básica, pelo menos para começar.
Se Cameron e Jem tivessem conseguido fazer a travessia sem contratempos... — e o
coração de Roger se apertou com o pensamento, lembrando-se da coleção cuidadosa de Geillis
Duncan envolvendo pessoas que eram encontradas perto dos círculos de pedras, a maioria
morta — Eles tinham que ter conseguido. E, embora Jem fosse um menino robusto e capaz de
caminhar por grandes distâncias, ele duvidava que poderiam cobrir mais de dez milhas num
dia sobre o terreno acidentado.
A única estrada era a trilha dos tropeiros que serpenteava a base da colina. Então um deles
tomaria a direção que intersectava uma das estradas boas do General Wade que levavam a
Inverness; e o outro seguiria a trilha oeste em direção ao caminho que levava a Lallybroch e,
além dele, a Cranesmuir.
— Eu acho que Inverness é mais provável — Roger repetiu, provavelmente pela sexta vez
— É o ouro que ele quer, e ele sabe que está nos Estados Unidos. Ele não pode querer andar das
Highlands para Edimburgo para encontrar um navio, não com o inverno fungando em seu
cangote.
— Ele não vai encontrar um navio em lugar algum durante o inverno — Buck objetou —
Nenhum capitão cruzaria o Atlântico em novembro.
— Você acha que ele sabe disso? — Roger perguntou — Ele é um arqueólogo amador, não
um historiador. E a maioria das pessoas do século XX têm dificuldade em pensar nas coisas
diferentes do passado, com exceção das roupas engraçadas e da falta de encanamentos nas
casas. A noção de que o tempo poderia impedi-lo de ir a qualquer lugar que ele quisesse... Ele
pode muito bem pensar que os navios saem o tempo todo, com um calendário regular.
— Mmphm. Bem, talvez ele queira se esconder em Inverness com o rapaz, talvez
encontrar trabalho, e esperar até a primavera. Você quer ir para Inverness, então? — Buck
levantou seu queixo em direção à cidade invisível.
— Não — Roger balançou a cabeça e começou a bater em seus bolsos, checando pelos seus
suprimentos — Jem conhece este lugar — Ele assentiu em direção às pedras acima deles — Eu
o trouxe aqui, mais de uma vez, para me certificar de que ele nunca fosse surpreendido. Isso
quer dizer que ele sabe, pelo menos aproximadamente, como chegar em casa... Como ir até
Lallybroch, quero dizer, daqui. Se ele conseguisse escapar de Cameron, e, Deus, eu espero que
ele tenha conseguido, correria para casa.
Ele não se importou em dizer que, mesmo que Jem não estivesse ali, os parentes de
Brianna estavam, seus primos e sua tia. Ele não os tinha conhecido, mas eles sabiam pelas cartas
de Jamie quem ele era; se Jem não estivesse lá — e, Deus, como ele esperava que estivesse —
eles o ajudariam a procurá-lo. A respeito do que eles poderia dizer a eles... aquilo podia esperar.
— Certo, então — Buck abotoou o casaco e colocou a xale de lã em volta do pescoço contra
o vento — Três dias, talvez, até chegar em Inverness e o tempo de procurar na cidade, dois ou
três dias para voltar. Eu o encontrarei aqui em seis dias. Se você não estiver aqui, seguirei para
Lallybroch.
Roger assentiu — E se eu não encontrá-los, mas ouvir alguma coisa sobre eles, deixarei
uma mensagem em Lallybroch. Se... — Ele hesitou, mas aquilo tinha que ser dito — Se você
encontrar sua esposa, e as coisas piorarem...
Os lábios de Buck se apertaram.
— Elas já pioraram — ele disse — Mas, sim. Se isso acontecer, eu ainda vou voltar.
— Sim, certo — Roger curvou os ombros, ansioso para ir, e constrangido por isso. Buck já
estava se virando, mas repentinamente virou o rosto e apertou com força a mão de Roger.
— Nós o encontraremos — Buck disse, e olhou dentro dos olhos de Roger, com aqueles
olhos cor de musgo brilhantes que eram iguais aos seus — Boa sorte — Ele deu um aperto forte
na mão de Roger e em seguida partiu, braços estendidos para se equilibrar enquanto descia
pelas rochas e pelo tojo. Ele não olhou para trás.
28 – QUENTE, FRIO
A porta não estava trancada. Jem a abriu, o coração batendo aliviado, e então ele bateu com mais
força, quando percebeu que as luzes também não estavam acesas na câmara da turbina.
Havia alguma luz. A pequena janela na parte superior do grande espaço, onde a sala dos
engenheiros ficava: havia luz vindo dali. Apenas o suficiente para que ele pudesse ver os
monstros na sala ampla onde estava.
— São apenas máquinas — ele murmurou, pressionando suas costas fortemente contra a
parede ao lado da porta aberta — Apenasmáquinas-apenasmáquinas-apenasmáquinas! — Ele
sabia os nomes delas, o guincho da polia gigante que corria em cima com os grandes ganchos
balançando, e as turbinas, mamãe havia dito a ele. Mas ele estava lá em cima naquele dia, onde
a luz estava, e era de dia.
O chão sob seu pé vibrava, e ele podia sentir os nós de sua coluna batendo contra a parede
enquanto ela se chocava com o peso da água corrente através da barragem. Toneladas de água,
mamãe havia dito. Toneladas e toneladas e toneladas de água escura, ao redor dele, abaixo
dele... Se a parede ou o chão se quebrasse, ela...
— Cale a boca, bebezão — ele disse ferozmente para si mesmo, e esfregou a mão com força
sobre seu rosto, limpando-a nos jeans — Você tem que se mexer. Vá!
Havia escadas; tinha que haver escadas. E elas estava em algum lugar por ali, entre as
grandes corcovas negras das turbinas barulhentas. Elas ficavam mais elevadas do que as
grandes pedras na colina onde o Sr. Cameron o tinha levado. Aquele pensamento o acalmou um
pouco; ele tinha muito mais medo das pedras. Mesmo com o ruído profundo e ensurdecedor
que as turbinas faziam — aquilo estava fazendo com que seus ossos se contorcessem, mas não
entrava realmente em seus ossos.
A única coisa que o impedia de voltar ao túnel e esperar que alguém o encontrasse pela
manhã era... aquela coisa. Ele não queria ficar em lugar nenhum perto daquilo.
Ele não podia mais ouvir seu coração. Estava muito barulhento dentro da câmara das
turbinas para que ele pudesse ouvir qualquer coisa. Ele certamente não podia se ouvir
pensando, mas as escadas tinham que estar próximas das janelas, e ele cambaleou para aquele
lado, mantendo o máximo de distância que podia das enormes corcovas duplas e negras que se
esticavam do chão.
Foi somente quando ele finalmente encontrou a porta, abriu-a e caiu na escadaria
iluminada que ocorreu a ele se o Sr. Cameron talvez estaria ali em cima, esperando por ele.
29 – DE VOLTA A LALLYBROCH
Roger não sentiu absolutamente nada por um momento. Havia um leve clique que o lembrava
do arranque que um carro faz quando a bateria está morta, e por um momento desorientado,
ele pensou que aquilo tinha sido criado por seu cérebro. Então seus olhos se focaram no
cachorro que, impedido de comê-lo, tinha entrado na casa e estava andando pelo corredor, suas
unhas clicando no chão de parquet.
Oh. Então era isso que tinha deixado aqueles arranhões na porta da cozinha, ele pensou,
confuso, enquanto a besta empinava e soltava o seu peso na porta ao fim do corredor, depois
passava num tiro quando ela se abria.
— Você está bem, senhor? — Brian Fraser estava olhando para ele, sobrancelhas pretas e
grossas levantadas em preocupação. Ele estendeu a mão — Venha para o meu escritório e
sente-se. Possivelmente eu deva pegar uma bebida?
— Eu... Obrigado — Roger disse abruptamente. Ele pensou que seus joelhos poderiam
ceder a qualquer momento, mas ele tentou seguir o mestre de Lallybroch para a sala de
conferência, o escritório e estúdio do senhor da casa. Seu próprio escritório.
As prateleiras eram as mesmas, e por trás da cabeça de seu anfitrião estava a mesma
coluna de livros de fazenda que ele muitas vezes folheava, evocando através de suas entradas
desbotadas, uma vida fantasma da antiga Lallybroch. Agora os livros eram novos, e Roger sentiu
que ele era um fantasma. Ele não gostou da sensação.
Brian Fraser o entregou um pequeno e grosso copo de vidro cheio de bebida alcoólica.
Uísque, e um uísque muito decente. O cheiro dele começou a trazê-lo de volta de seu estado de
choque, e a queimadura quente descendo pela sua garganta aliviou seu aperto.
Como ele perguntaria o que ele tão desesperadamente precisava saber? Quando?! Ele
olhou sobre a escrivaninha, mas não havia nenhuma carta por terminar, convenientemente
datada, não havia almanaques de plantio para os quais pudesse olhar casualmente. Nenhum
dos livros das prateleiras era de alguma ajuda; o único que ele reconhecera era o de Defoe, “As
aventuras de Robinson Crusoé”, e ele tinha sido publicado em 1719. Ele sabia que devia ser
mais tarde do que isso; a casa não tinha sido construída antes de 1719.
Ele refreou a onda crescente de pânico. Não importava; não importava se não era o tempo
esperado — não se Jem estivesse aqui. E ele devia estar. Ele tinha que estar.
— Eu sinto muito por perturbar sua família, senhor — ele disse, limpando a garganta
quando abaixou o copo — Mas a questão é que eu perdi o meu filho e estou à procura dele.
— Perdeu o seu filho! — exclamou Fraser, com os olhos se arregalando de surpresa —
Que Santa Brígida esteja contigo, senhor. Como isso aconteceu?
Era melhor dizer a verdade onde podia, ele pensou, e, além do mais, que outra coisa ele
poderia dizer?
— Ele foi sequestrado dois dias atrás e levado para longe de mim... Ele tem apenas nove
anos. Eu tenho razões para acreditar que o homem que o pegou veio para esta área. Tem alguma
chance de você ter visto um homem alto, magro e moreno viajando com um rapaz jovem, de
cabelos ruivos, mais ou menos desta altura?
Ele colocou a mão contra seu próprio braço, cerca de dez centímetros acima de seu
cotovelo; Jem era alto para sua idade e ainda mais alto para aquela época — mas Brian Fraser
era também um homem alto, e seu filho...
Uma nova onda de choque passou por Roger com o pensamento: Jamie estava aqui? Na
casa? E, se ele estivesse, quantos anos teria? Quantos anos ele tinha quando Brian Fraser
morreu?
Fraser estava balançando a cabeça, seu rosto preocupado.
— Não vi, senhor. Qual é o nome do homem que pegou seu rapaz?
— Rob... Robert Cameron, é o seu nome. Eu não conheço sua família — ele adicionou,
assumindo com naturalidade um sotaque forte como o de Fraser.
— Cameron... — Fraser murmurou, batendo com os dedos na escrivaninha enquanto
procurava em sua memória. O movimento ativou alguma coisa na memória de Roger; era o
fantasma de um dos gestos característicos de Jamie quando estava pensando — mas Jamie, com
seu dedo imobilizado, fazia isso com os dedos esticados, enquanto seu pai apresentava uma leve
ondulação.
Ele pegou o copo de novo e tomou outro gole, olhando o mais casualmente possível para
o rosto de Fraser, procurando por semelhanças. Estavam ali, mas de forma bastante sutil,
principalmente no topo da cabeça, no conjunto dos ombros — e nos olhos. O rosto era bem
diferente, mais quadrado no maxilar, mais amplo na testa, e os olhos de Brian Fraser eram de
um avelã escuro, não azuis, mas a forma inclinada deles, a boca ampla — aquilo era igual em
Jamie.
— Não há muitos Camerons por perto de Lochaber — Fraser estava balançando a cabeça
— E eu não ouvi nada sobre um andarilho neste distrito — Ele deu a Roger um olhar direto, não
acusador, mas definitivamente inquisitivo — Por que você acha que o homem veio para cá?
— Eu... Ele foi visto — Roger desabafou — Perto de Craigh na Dun.
Aquilo assustou Fraser.
— Craigh na Dun — Ele repetiu, inclinando-se um pouco para trás, seus olhos cautelosos
— Ah... E de onde você veio, senhor?
— De Inverness — Roger replicou prontamente — Eu o segui de lá.
Estava bem perto da verdade. Ele estava tentando não pensar que, em sua missão para
encontrar Jem e Cameron, ele tinha partido exatamente do mesmo ponto onde estava sentado
agora.
— Eu... um amigo... um parente veio comigo. Eu o mandei para Cranesmuir para procurar.
A notícia de que ele aparentemente não era um maluco solitário pareceu tranquilizar
Fraser, que afastou a cadeira da escrivaninha e se levantou, olhando para a janela, onde uma
grande roseira se curvava magra e negra contra o céu que desaparecia.
— Mmphm. Bem, espere um pouco, senhor, e fique à vontade. É final de dia e você não
conseguirá percorrer grandes distâncias antes que a noite caia. Coma com a gente e nós
forneceremos uma cama para esta noite. Talvez o seu amigo o encontre amanhã com boas
notícias, ou um dos meus inquilinos possam ter visto alguma coisa. Vou mandar alguém pela
manhã para perguntar.
As pernas de Roger tremiam com a vontade de ficar de pé, correr para fora da casa e fazer
alguma coisa. Mas Fraser estava certo: seria inútil — e perigoso — vagar pelas montanhas da
Highland no escuro. Ele poderia perder a trilha, talvez ser pego por uma tempestade fatal nesta
época do ano. Ele podia ouvir o vento; a roseira batia contra o vidro da janela. Iria chover em
breve. E Jem estava lá fora?
— Eu... sim. Eu agradeço, senhor — ele disse — É muita gentileza sua.
Fraser bateu em seu ombro, saiu para o corredor e gritou — Janet! Janet, nós temos um
convidado para o jantar.
Janet?
Ele ficou em pé sem pensar e saiu do escritório quando a porta da cozinha se abriu — e
uma silhueta pequena e esguia apareceu momentaneamente contra o brilho da cozinha,
esfregando as mãos no avental.
— Minha filha, Janet, senhor — Fraser disse, chamando a sua filha para a luz que
desvanecia. Ele sorriu com carinho para ela — Este é Roger MacKenzie, Jenny. Ele perdeu seu
rapazinho em algum lugar.
— Ele perdeu? — A garota fez uma pausa no meio de uma reverência, e seus olhos se
arregalaram — O que aconteceu, senhor?
Roger explicou mais uma vez brevemente sobre Rob Cameron e Craigh na Dun, mas o
tempo todo estava consumido pela vontade de perguntar à jovem mulher quantos anos ela
tinha. Quinze? Dezessete? Vinte e um? Ela era incrivelmente bonita, com a pele muito branca
que florescia devido ao calor da cozinha, cabelos pretos e encaracolados macios que estavam
presos para longe de seu rosto, e uma constituição esguia que ele tentou com afinco não ficar
olhando — mas o que era mais perturbador era que, apesar de sua óbvia feminilidade, ela tinha
uma semelhança surpreendente com Jamie Fraser. Ela poderia ser a sua filha, ele pensou, e
depois parou em choque — e lembrando-se, com uma pontada no coração que desceu até os
joelhos — quem era realmente a filha de Jamie Fraser.
Oh, Deus. Bree. Oh, Jesus me ajude. Será que eu a verei de novo?
Ele percebeu que tinha ficado em silêncio e estava olhando para Janet Fraser com a boca
aberta. Aparentemente, ela estava acostumada a esse tipo de reação dos homens, entretanto;
ela deu a ele um recatado sorriso de olhos puxados, disse que o jantar estaria na mesa dentro
de alguns instantes e que talvez papai pudesse mostrar ao Sr. MacKenzie o caminho para o
reservado? Em seguida, ela caminhou de volta pelo corredor, a grande porta balançando atrás
dela, e ele descobriu que conseguia respirar de novo.
O jantar foi simples, mas abundante e bem preparado, e Roger percebeu que a comida o
restaurou surpreendentemente. Não era de se admirar — ele não conseguia se lembrar quando
fora a última vez que se alimentara.
Eles comeram na cozinha, com duas empregadas domésticas chamadas Annie e Senga e
um trabalhador faz-tudo que se chamava Tom McTaggart compartilhando a mesa da família.
Todos estavam interessados em Roger e, embora mostrando muita simpatia em relação ao seu
filho desaparecido, estavam ainda mais interessados em de onde ele tinha vindo e quais as
notícias que ele carregava.
Neste ponto ele não era de grande valia, como não tinha a menor noção qual ano era (Brian
morrera — Deus, ele irá morrer — quando Jamie tinha dezenove anos, e se Jamie nascera em
Maio de 1721 — ou seria 1722? — e ele era dois anos mais novo que Jenny...) e não tinha a
mínima ideia do que estava acontecendo no mundo naquele momento, mas ele se demorou um
pouco, explicando seus ancestrais com um pouco de detalhes — aquilo era considerado como
boas maneiras, por um lado, e por outro, seu local de nascimento em Kyle of Lochalsh era longe
o bastante de Lallybroch para que os Frasers provavelmente não conhecessem ninguém de seu
clã.
Então, ele finalmente teve um pouco de sorte, quando McTaggart falou que tinha tirado os
sapatos para sacudir uma pedra, depois de ver um dos porcos se esquivar por baixo da cerca e
se dirigir trotando para a horta. Ele correu atrás do porco, é claro, e conseguiu capturá-lo —
mas tinha o levado de volta apenas para perceber que a outra porca também havia se contorcido
para fora e comia pacificamente o seu sapato.
— Isso foi tudo o que ela deixou! — ele disse, puxando meia sola de couro desfiado de seu
bolso e acenando para eles com censura — E eu tive que arrancar de sua boca!
— Por que você se importou? — Jenny perguntou, franzindo o nariz para o objeto úmido
— Não se preocupe, Taggie. Nós vamos abater os porcos na próxima semana, e você pode pegar
um pouco da pele para fazer um novo par de sapatos.
— E eu suponho que terei que ficar descalço até lá, não é? — McTaggart perguntou,
descontente — Há neve no chão pela manhã, sim? Eu poderia pegar uma doença e morrer de
pleurisia antes que o porco coma seu último balde de lavagem, quanto menos seja abatido.
Brian riu e levantou o queixo na direção de Jenny — Seu irmão não deixou um par de
sapatos para trás quando foi para Paris? Eu acredito que deixou, e se você não o deu para os
pobres, Taggie pode usá-lo por um tempo.
Paris. A mente de Roger trabalhava furiosamente, calculando. Jamie tinha passado dois
anos em Paris na université e tinha voltado... quando? Quando ele tinha dezoito anos, ele pensou.
Jamie teria — terá — dezoito anos em Maio de 1739. Então, agora era 1737, 1738 ou 1739.
A diminuição da incerteza o acalmou um pouco, e ele tentou colocar sua mente para
pensar nos eventos históricos que ocorreram nesse período de tempo que ele poderia oferecer
como notícia durante as conversas: absurdamente, a primeira coisa que veio à sua mente foi
que o abridor de garrafa tinha sido inventado em 1738. A segunda foi que houve um enorme
terremoto em Bombai em 1737.
Sua audiência estava inicialmente mais interessada no abridor de garrafa, que ele foi
obrigado a descrever em detalhes — inventados impetuosamente, já que ele não tinha noção
de como a coisa realmente se parecia, embora tenha havido murmúrios de simpatia para os
residentes de Bombai e uma breve oração pelas almas daqueles que foram esmagados pelas
quedas das casas.
— Mas onde fica Bombai? — perguntou a mais nova das criadas, franzindo o cenho e
olhando de um para outro.
— Na Índia — disse Jenny prontamente, e afastou sua cadeira — Senga, pegue o
cranachan, sim? Eu vou te mostrar onde fica a Índia.
Ela desapareceu pela porta vai-e-vem, e a agitação da remoção de pratos deixou Roger
com algum espaço para respirar. Ele estava começando a se sentir um pouco mais tranquilo,
mais seguro de suas possibilidades, embora ainda agonizante de preocupação por Jem. Ele
reservou um momento de reflexão para William Buccleigh e como Buck podia digerir as notícias
da data de sua chegada.
Mil setecentos e alguma coisa... Jesus, Buck nem tinha nascido ainda! Mas, afinal, que
diferença isso fazia?, ele perguntou a si mesmo. Ele também ainda não havia nascido, e tinha
vivido um tempo muito feliz antes de sua data de nascimento... Poderia a proximidade com o
início da vida de Buck representar algum problema, entretanto?
Ele sabia — ou pensava que sabia — que você não podia voltar para um tempo durante
sua própria existência. Tentar existir fisicamente ao mesmo tempo que você mesmo não era
possível. Aquilo quase o tinha matado uma vez; talvez eles tenham chegado muito perto da linha
de vida original de Buck, e Buck de alguma forma recuou, levando Roger com ele?
Antes que ele pudesse explorar as implicações daquele pensamento inquietante, Jenny
voltou, carregando um livro grande e fino. Ele se provou um atlas pintado à mão, com mapas —
mapas surpreendentemente precisos, em alguns casos — e descrições das “Nações do Mundo”.
— Meu irmão o enviou para mim de Paris — Jenny disse a ele orgulhosamente, abrindo o
livro em uma página dupla no continente que continua a Índia, onde o círculo estrelado indicava
que Bombai estava rodeado por pequenos desenhos de palmeiras, elefantes e alguma coisa que,
após um exame minucioso, descobriu-se ser uma planta de chá — Ele está na université lá.
— Sério? — Roger sorriu, tendo o cuidado de parecer impressionado. Ele estava, na
verdade, cada vez que pensava no esforço e nos custos envolvidos em sair deste lugar deserto
e remoto nas montanhas para ir a Paris — Há quanto tempo ele está lá?
— Oh, quase dois anos agora — Brian respondeu. Ele estendeu a mão e tocou na página
com cuidado — Nós sentimos muita falta do rapaz, mas ele escreve com frequência. E ele nos
envia os livros.
— Ele estará de volta logo — Jenny disse, embora com um ar de convicção que parecia, de
alguma forma, forçado — Ele disse que voltaria.
Brian sorriu, embora também fosse um pouco forçado.
— Sim. Eu certamente espero que sim, a nighean. Mas você sabe que ele pode encontrar
oportunidades que o mantenham por lá durante um tempo.
— Oportunidades? Você quer dizer uma mulher de Marillac? — Jenny perguntou, uma
distinta aspereza em sua voz — Eu não gostei da forma como ele escreve sobre ela. Nem um
pouco.
— Ele poderia escolher uma esposa pior, moça — Brian levantou um ombro — Ela é de
uma boa família.
Jenny fez um som muito complicado com a garganta, indicando respeito suficiente por seu
pai para evitar de expressar sua real opinião sobre “aquela mulher” e, ao mesmo tempo,
deixando bem clara qual era essa opinião. Seu pai riu.
— Seu irmão não é um completo tolo — ele assegurou a ela — Eu duvido que ele se case
com uma simplória ou com uma... uma... — Ele obviamente desistiu de dizer “prostituta”. Seus
lábios começaram a formar a palavra, mas não conseguiram pensar numa substituta para a
palavra em tempo.
— Ele se casaria — Jenny replicou — Ele caminharia diretamente para uma teia de aranha
com os olhos abertos, se a aranha tivesse um rosto bonito e um quadril arredondado.
— Janet! — Seu pai tentou parecer chocado, mas falhou completamente. McTaggart
gargalhou abertamente, e Annie e Senga riram por trás de suas mãos. Jenny os encarou, mas em
seguida ergueu-se com dignidade e se dirigiu ao hóspede.
— Então, Sr. MacKenzie. Sua esposa ainda está viva, eu espero? E ela é a mãe de seu rapaz?
— Ela... — Ele sentiu a pergunta como um golpe no peito, mas depois se lembrou de quem
era. As chances de uma mulher sobreviver ao parto eram ínfimas em muitos lugares — Sim.
Sim, ela está viva... em Inverness, com nossa filha.
Mandy. Oh, minha doce menina. Mandy. Bree. Jem. De repente, toda a enormidade daquilo
o atingiu. Ele conseguira, até agora, ignorar a questão, se concentrando na necessidade de
encontrar Jem, mas agora um vento frio passou pelos buracos de seu coração deixados pelas
possibilidades. As possibilidades eram de que ele nunca mais os veria. E eles nunca saberiam o
que acontecera a ele.
— Oh, senhor — Jenny sussurrou, inclinando-se para frente para colocar uma mão em seu
braço, seus olhos arregalados com horror para o que ela tinha provocado — Oh, senhor, eu sinto
muito! Eu não quis...
— Está tudo bem — ele conseguiu dizer, forçando as palavras através de sua laringe
mutilada em um coaxar — Eu estou... — Ele ondulou a mão numa desculpa cega e saiu da mesa
cambaleando. Ele foi diretamente para fora e se viu na noite ao lado de fora.
Havia uma fenda estreita de luz soturna no topo das montanhas, onde a nuvem não se
estabilizava, mas o quintal diante dele estava profundamente nas sombras, e o vento tocou seu
rosto com o cheiro de chuva fria. Ele estava tremendo, mas não por causa do frio, e sentou-se
abruptamente na grande pedra onde eles costumavam colocar as galochas das crianças quando
estavam sujas de barro.
Ele colocou os cotovelos sobre os joelhos e seu rosto nas mãos, sobrecarregado por um
momento. Não apenas pela sua própria situação — mas por aquela dos que estavam na casa.
Jamie Fraser estaria voltando para casa em breve. E logo em seguida viria a tarde em que os
casacas vermelhas marchariam pelo terreno de Lallybroch, encontrando Janet e os criados
sozinhos. E os eventos aconteceriam numa trilha que resultaria na morte de Brian Fraser,
acometido por uma apoplexia enquanto observava seu único filho ser açoitado — ele pensara
— até a morte.
Jamie... Roger estremeceu, vendo em sua mente não seu indomável sogro, mas o jovem
alegre que, entre as distrações de Paris, ainda pensava em mandar livros para sua irmã. Que...
Tinha começado a chover, com um rigor tranquilo que ensopou seu rosto em segundos.
Pelo menos ninguém iria saber se ele chorasse de desespero. Eu não posso impedir isso, ele
pensou. Eu não posso dizer a eles o que vai acontecer.
Uma grande forma surgiu na escuridão, assustando-o, e o cachorro se apoiou
pesadamente contra ele, quase o empurrando da pedra na qual ele estava sentado. Um nariz
grande e peludo foi empurrado com simpatia em seu ouvido, mais molhado que a própria chuva.
— Jesus, cão! — ele disse, meio rindo, apesar de tudo — Deus! — Ele colocou os braços ao
redor da criatura enorme e fedida e descansou sua testa contra o massivo pescoço, sentindo um
conforto incipiente.
Ele não pensou em nada por um tempo e ficou inexplicavelmente aliviado. Aos poucos,
entretanto, pensamentos coerentes voltaram. Talvez não fosse verdade que as coisas — o
passado — não podia ser mudado. Não as grandes coisas, talvez, não os reis e as batalhas. Mas
talvez — apenas talvez — as coisas pequenas pudessem. Se ele não podia contar aos Frasers de
Lallybroch o castigo que estava prestes a cair para cima deles, talvez houvesse alguma coisa que
eles pudesse dizer, algum aviso que ele pudesse deixar...
E se ele fizesse isso? E se eles escutassem? Aquele bom senhor iria morrer de apoplexia de
qualquer forma, alguma fraqueza em seu cérebro tomando forma quando ele saísse do celeiro
algum dia? Mas aquilo manteria seu filho e sua filha a salvo — e então?
Será que Jamie ficaria em Paris e se casaria com a francesa coquete? Será que ele voltaria
pacificamente para viver em Lallybroch e cuidar de sua propriedade e de sua irmã?
De qualquer forma, ele não estaria andando a cavalo perto de Craigh na Dun em cinco ou
seis anos, perseguido por soldados ingleses, ferido e precisando da assistência de uma viajante
do tempo aleatória que tinha acabado de passar pelas pedras. E se ele não conhecesse Claire
Randall... Bree, ele pensou. Oh, Cristo. Bree.
Houve um som atrás dele — a porta da casa se abrindo — e o feixe de luz de uma lanterna
caiu sobre o caminho nas proximidades.
— Sr. MacKenzie? — Brian Fraser chamou na noite — Está tudo bem, homem?
— Deus — ele sussurrou, segurando o cachorro — Mostre-me o que fazer.
30 – LUZES, AÇÃO, SIRENES
A porta no topo da escadaria estava trancada. Jem bateu nela com os punhos, chutou com seus
pés e gritou. Ele podia sentir tudo aquilo atrás dele, no escuro, e a sensação que se arrastava até
suas costas, como se estivesse vindo buscá-lo, e esse pensamento o assustou tanto que ele gritou
como uma ban-sidhe e se jogou contra a porta, repetidamente, e...
A porta se abriu e ele caiu com tudo no chão de linóleo sujo, cheio de pegadas e bitucas de
cigarro.
— O que diabos... Quem é você, rapaz, e o que em nome de Deus você estava fazendo aí
dentro?
Uma mão grande o agarrou pelo braço e o puxou para cima. Ele estava sem fôlego de tanto
gritar e quase chorando de alívio, e demorou um minuto para se lembrar de quem era.
— Jem — Ele engoliu em seco, piscando na luz, e limpou sua face com a manga da camisa
— Jem MacKenzie. Minha mãe é — Sua mente ficou em branco, repentinamente incapaz de se
lembrar qual era o primeiro nome de sua mãe — Ela trabalha aqui algumas vezes.
— Eu conheço sua mãe. Não há como confundir os cabelos, rapaz.
O homem que o tinha puxado para cima era um guarda de segurança; o emblema na
manga de seu uniforme dizia isso. Ele inclinou a cabeça de um lado para o outro, olhando por
sobre Jem, a luz intermitente refletindo em sua cabeça calva e em seus óculos. A luz estava vindo
daquelas lâmpadas de tubo longo no teto que seu pai havia dito que eram fluorescentes; elas
zumbiam e o faziam se lembrar da coisa no túnel, e ele se virou rapidamente e empurrou a porta
com um estrondo.
— Alguém está te perseguindo, garoto? — O guarda colocou a mão na maçaneta, e Jem
colocou as costas contra a porta.
— Não! — Ele podia sentir novamente, atrás da porta. Esperando. O guarda estava
franzindo o cenho para ele — Eu... Eu apenas... Está realmente escuro lá embaixo.
— Você estava lá no escuro? Como chegou lá? E onde está a sua mãe?
— Eu não sei.
Jem começou a ficar com medo novamente. Realmente com medo. Porque o Sr. Cameron
o tinha trancado no túnel para poder ir a algum lugar. E ele podia ter ido para Lallybroch.
— O Sr. Cameron me colocou ali — ele desabafou — Ele devia me buscar para passar a
noite com Bobby, mas em vez disso me levou para Craigh na Dun, e depois me levou para sua
casa e me trancou num quarto por toda a noite, e na manhã seguinte ele me trouxe para cá e me
trancou no túnel.
— Cameron... O quê? Rob Cameron? — O guarda se abaixou para que pudesse franzir o
cenho diretamente no rosto de Jem — Por quê?
— Eu... Eu não sei — Nunca conte para ninguém, seu pai havia dito.
Jem engoliu seco com força. Mesmo que ele quisesse dizer, ele não sabia por onde
começar. Ele podia dizer que o Sr. Cameron o levou para a colina em Craigh na Dun, para as
pedras, e o empurrou contra uma delas. Mas ele não podia dizer o que acontecera naquele
momento, não mais do que poderia dizer ao Sr. MacLeod — era o que estava escrito em seu
crachá, Jock MacLeod — o que era aquela coisa brilhante no túnel.
O Sr. MacLeod fez um barulho pensativo com a garganta, balançou a cabeça e se
endireitou.
— Bem, é melhor que eu ligue para os seus pais para que eles venham te buscar, sim? Eles
podem dizer se querem falar com a polícia.
— Por favor — Jem sussurrou, sentindo seus joelhos se transformarem em água ao pensar
em sua mãe e seu pai vindo buscá-lo — Sim, por favor.
O Sr. MacLeod o levou para um pequeno escritório onde o telefone estava, deu a ele uma
lata de Coca-Cola quente, e disse a ele para se sentar ali e dizer o número dos seus pais. Ele
sorveu a bebida e se sentiu muito melhor, observando o dedo grosso do Sr. MacLeod girar a
roda do telefone. Uma pausa, e depois ele conseguiu ouvir chamando na outra extremidade.
Breep-breep... breep-breep... breep-breep...
Estava quente dentro do escritório, mas ele estava começando a se sentir frio ao redor do
rosto e nas mãos. Ninguém atendia ao telefone.
— Talvez estejam dormindo — ele disse, sufocando um arroto por causa da Coca-Cola. O
Sr. MacLeod deu a ele um olhar lateral e balançou a cabeça, colocou o telefone no gancho e
discou outra vez, fazendo Jem dizer os números um de cada vez.
Breep-breep... breep-breep...
Ele estava se concentrando com tanta força para que alguém atendesse ao telefone que
não notou nada até que o Sr. MacLeod de repente virou sua cabeça na direção da porta,
parecendo surpreso.
— O que... — O guarda disse, e então houve um borrão e um ruído parecido com o que o
primo Ian fazia quando matava um cervo com uma flecha, e o Sr. MacLeod fez um barulho
horrível e caiu de sua cadeira para o chão, a cadeira voando para longe e caindo com o estrondo.
Jem não se lembrava de ter levantado, mas estava pressionado contra o armário de
arquivos, apertando a lata com tanta força que a Coca-Cola borbulhou e escorreu pelos seus
dedos.
— Você vem comigo, garoto — disse o homem que tinha batido no Sr. MacLeod. Ele estava
segurando o que Jem pensava ser um cassetete, embora ele nunca tivesse visto um. Ele não
podia se mexer, mesmo que quisesse.
O homem fez um barulho de impaciência, passou por cima do Sr. MacLeod como se ele
fosse um saco de lixo, e pegou Jem pela mão. Tomado de puro terro, Jem o mordeu com força. O
homem gritou e o soltou, e Jem jogou a lata de Coca-Cola diretamente em seu rosto, e quando o
homem se abaixou, ele passou correndo por ele e saiu do escritório pelo corredor, correndo por
sua vida.
Estava ficando tarde; elas passaram por cada vez menos carros na estrada, e a cabeça de Mandy
tinha começado a oscilar. A máscara da princesa-rata estava no topo de sua cabeça, os bigodes
feitos de canudo parecendo antenas. Vendo isso pelo espelho retrovisor, Brianna teve uma
súbita visão de Mandy como uma pequena estação de radar, varrendo o campo sombrio à
procura de pequenos sinais de Jem.
Ela poderia fazer aquilo? Ela balançou sua cabeça, não para dissipar essa ideia, mas para
impedir que sua mente deslizasse para fora da realidade. A adrenalina de sua raiva e de seu
terror tinha escoado; suas mãos tremiam um pouco no volante, e a escuridão ao redor delas
parecia vasta, um enorme vazio que as engoliria em um instante se ela parasse de dirigir, se o
feixe fraco dos faróis desligasse...
— Quente — Mandy murmurou sonolenta.
— O que, querida? — Ela tinha ouvido, mas estava muito hipnotizada pelo esforço de
manter os olhos na estrada para absorver conscientemente.
— Mais quente — Mandy lutou para se sentar ereta. Os elásticos de sua máscara
prenderam em seus cabelos e fizeram um barulho alto quando ela os puxou.
Brianna parou cuidadosamente no acostamento, acionando o freio de mão e, esticando a
mão para trás, começou a desenroscar a máscara.
— Você quer dizer que estamos indo em direção a Jem? — ela perguntou, tomando
cuidado para evitar que a voz tremesse.
— Uh-huh — Livre do incômodo, Mandy deu um grande bocejo e estendeu a mão em
direção à janela — Mmp — Ela colocou a cabeça nos braços e reclamou sonolenta.
Bree engoliu, fechou seus olhos, e depois os abriu, olhando cuidadosamente na direção
que Mandy apontara. Não havia estrada... mas havia alguma coisa, e com um uma sensação
como se um fio de água gelada descesse por sua espinha, ela viu o pequeno sinal marrom que
dizia: ESTRADA DE SERVIÇO. SEM ACESSO PÚBLICO. HIDRELÉTRICA DO NORTE DA ESCÓCIA.
Barragem de Loch Errochty. O túnel.
— Maldição! — disse Brianna, e pisou no acelerador, esquecendo-se do freio de mão. O
carro deu um salto e parou, e Mandy se sentou, os olhos vidrados e enormes como os de uma
coruja.
— Nós vamos pá casa?
Jem correu pelo corredor e se jogou na porta vai-e-vem ao final com tanta força que ele
derrapou pelo patamar do outro lado e caiu pela escada, quicando e batendo nos degraus e
terminando em uma pilha atordoada em sua base.
Ele ouviu os passos vindo rapidamente em direção a porta em cima e, com um pequeno
grito aterrorizado, rastejou pelo segundo patamar e se jogou de cabeça para o próximo, seu
estômago deslizando pelos degraus, e então ele caiu sobre o traseiro e foi dando cambalhotas
pelo restante da escada.
Ele estava chorando de terror, engolindo ar e tentando não fazer barulho, tropeçando nos
próprios pés, e tudo doía, tudo — mas a porta: ele tinha que sair. Ele cambaleou através da
penumbra do hall de entrada, as únicas luzes brilhando através da janela de vidro onde a
recepcionista geralmente se sentava. O homem estava vindo: ele podia ouvi-lo praguejando no
fim da escada.
A porta principal tinha uma corrente enrolada através das grades. Limpando as lágrimas
em sua manga, ele correu de volta para a recepção, procurando freneticamente. SAÍDA DE
EMERGÊNCIA — ali estava, o sinal vermelho sobre a porta ao final do pequeno corredor. O
homem invadiu o saguão e o viu.
— Volte aqui, seu desgraçado!
Ele olhou ao redor freneticamente, pegou a primeira coisa que viu, que era uma cadeira
com rodinhas, e a jogou com o máximo de força possível no hall de entrada. O homem praguejou
e pulou para o lado, e Jem correu para a porta e se jogou contra ela, explodindo na noite com
um grito de sirenes e o flash de luzes ofuscantes.
Fraser não perguntou nada. Em vez disso, serviu uma dose de uísque para cada um, o cheiro
quente e defumado atingindo-o. Havia algo confortável em beber uísque acompanhado, não
importava quão ruim fosse o uísque. Ou a companhia, aliás. Esta garrafa em particular era
especial, e Roger estava grato, tanto pela garrafa quanto pelo seu doador, pelo senso de conforto
que subia do copo, envolvendo-o, um gênio da garrafa.
— Slàinte! — ele disse, levantando o copo, e viu Fraser olhar para ele com um interesse
repentino. “Slàinte” era uma das palavras que tinham pronúncia distinta, dependendo de onde
você vinha: homens de Harris e Lewis diziam “Slàn-ya”, enquanto os do norte falavam “Slànj”.
Ele usava a forma que tinha conhecido em Inverness, onde crescera; será que estava muito
errado de onde ele dissera que vinha? Ele não queria que Fraser pensasse que ele era um
mentiroso.
— O que você disse que faz, a chompanaich? — Fraser perguntou, tomando um gole,
fechando os olhos em um respeito momentâneo à bebida, e voltando a abri-los para encarar
Roger com uma curiosidade gentil, tingida talvez por certa cautela, a fim de desequilibrar seu
visitante — Estou acostumado a conhecer o trabalho de um homem por suas roupas e maneiras,
não que se encontrem muitas pessoas diferentes por aqui — Ele sorriu um pouco com aquilo
— E tropeiros, funileiros e ciganos não precisam de muito esforço para serem distinguidos.
Claramente você não pertence a nenhum destes grupos.
— Eu tenho um pouco de terra — Roger replicou. Era uma pergunta esperada; ele estava
com a resposta pronta, mas se encontrou relutante em dizer mais. Dizer a verdade, até onde
poderia. — Deixei minha mulher conduzindo as coisas, enquanto vim procurar nosso rapaz.
Além disso — ele ergueu o ombro brevemente —, eu fui treinado como um ministro.
— Oh, sim? — Fraser recostou-se, observando-o com interesse — Eu pude ver que você é
um homem educado. Estava pensando que fosse talvez um professor ou um escriturário, talvez
um advogado.
— Já fui professor e escriturário — Roger disse, sorrindo — Não subi tanto, ou caí talvez,
para a prática da lei ainda.
— É uma boa coisa também — Fraser sorveu a bebida, com um meio sorriso.
Roger deu de ombros — A lei é um poder corrupto mas aceitável para os homens em razão
de ter surgido por causa dos homens. É uma forma de prosseguir com as coisas, é o melhor que
se pode dizer a respeito.
— E não é uma coisa ruim para se dizer também — Fraser concordou — O direito é um
mal necessário, sem o qual não podemos viver, mas você não acha que ele é um substituto pobre
para a consciência? Falando como um ministro, quero dizer?
— Bem... sim. Eu acho... — Roger disse, de alguma forma surpreso — Seria melhor que os
homens lidassem decentemente uns com os outros, de acordo com... bem, com os princípios de
Deus, se o senhor me permite colocar dessa forma. Mas o que se tem que analisar antes é, em
primeiro lugar, que há homens que não levam Deus em consideração, e, em segundo lugar, se
existem homens, e eles sempre existem, que não reconhecem poder algum maior que o deles
próprios.
Fraser assentiu, interessado.
— Sim, bem, é verdade que a melhor consciência não tem qualquer proveito num homem
que não se importa. Mas o que se deve fazer quando a consciência fala de forma diferente para
os homens de boa vontade?
— Como em disputas políticas, você quer dizer? Os partidários dos Stuarts contra os da...
Casa de Hanover? — Era uma coisa imprudente a se dizer, mas poderia ajudá-lo a compreender
quem ele era, e ele não queria dizer nada que pudesse fazer com que parecesse que ele tinha
um interesse pessoal em um dos lados.
O rosto de Fraser exibiu um surpreendente fluxo de expressões, desde a surpresa até o
ceticismo, terminando com um olhar de tristeza meio divertida.
— Algo assim — ele concordou — Eu lutei pela Casa dos Stuart em minha juventude, e
ainda que não se possa dizer que não há consciência ali, ela não foi muito longe para o campo
comigo — Sua boca se torceu na lateral, e Roger sentiu mais uma vez um pequeno “plop”, como
se uma pedra fosse jogada em suas profundezas, as ondulações do reconhecimento se
espalhando através dele. Jamie fazia isso. Brianna não. Jem sim.
Ele não conseguia parar de pensar sobre isso, entretanto; a conversa estava balançando
delicadamente no precipício de um convite para debate político, e isso, ele não poderia fazer.
— Era Sheriffmuir? — ele perguntou, sem fazer esforço para disfarçar seu interesse.
— Sim — Fraser disse, abertamente surpreso. Ele olhou para Roger em dúvida — Você
mesmo não poderia ter participado, certamente... talvez seu pai tenha contado a você?
— Não — disse Roger, com a pontada momentânea de dor que seu pai sempre trazia. De
fato, Fraser era apenas alguns anos mais velho que ele mesmo, mas ele sabia que o outro homem
o tomava por alguém uma década mais jovem.
— Eu... ouvi uma canção sobre isso. Eram dois pastores reunidos em uma colina, falando
sobre a grande luta e argumentando sobre quem ganhou.
Aquilo fez Frazer rir.
— Bem, eles poderiam! Estávamos discutindo sobre isso antes de terminarmos de
recolher os feridos — Ele tomou um gole de uísque e o rolou pensativamente sobre a boca,
claramente se lembrando — Então, depois, como a canção continua?
Roger respirou fundo, pronto para cantar, e depois se lembrou. Fraser tinha visto a marca
da corda em seu pescoço e tivera tato o suficiente para não fazer comentários sobre isso, mas
não havia necessidade de tornar o dano evidente. Em vez disso, ele cantou as primeiras linhas,
batendo os dedos na mesa, ecoando o ritmo do grande bodhran que era o único
acompanhamento para a canção.
Saiu melhor do que ele pensara; a canção realmente era mais falada do que cantada, e ele
conseguiu cantá-la toda somente com um som estranho ou com um pouco de tosse. Fraser foi
arrebatado, o copo esquecido em sua mão.
— Oh, isso é ótimo, homem! — Fraser exclamou — Embora o jovem poeta tenha um
sotaque maldito. De onde ele é, você sabe?
— É... Ayrshire, eu acho.
Fraser balançou a cabeça em admiração e se recostou.
— Você poderia, talvez, escrevê-la para mim? — ele perguntou, quase timidamente — Eu
não iria fazê-lo ter o trabalho de cantar novamente, mas eu adoraria aprendê-la.
— Eu... claro — Roger disse, surpreso. Bem, que mal havia em deixar o poema de Robert
Burns solto no mundo alguns anos antes do próprio Burns? — Conhece alguém que sabe tocar
bodhran? É melhor com a percussão em segundo plano — Ele bateu os dedos na mesa para
ilustrar.
— Oh, sim — Fraser foi farfalhando sobre uma gaveta em sua mesa; ele saiu com várias
folhas de papel, a maioria com coisas escritas sobre elas. Franzindo o cenho, ele folheou os
papeis, escolhendo um e tirando-o do maço, colocando-o virado para baixo na frente de Roger,
oferecendo a ele a parte de trás, em branco.
Havia penas de ganso, um pouco esfarrapadas pelo uso, mas bem aparadas, em um jarro
sobre a mesa, e um tinteiro de bronze, que Fraser ofereceu a ele com um movimento generoso
e amplo com a mão.
— O amigo de meu filho toca bem. Ele partiu como um soldado, entretanto, é uma pena —
Uma sombra cruzou o rosto de Fraser.
— Ach — Roger estalou a língua em simpatia; ele estava tentando decifrar a escrita que
aparecia através da folha — Ele se juntou a um regimento das Highlands?
— Não — Fraser disse, soando um pouco assustado. Cristo, ainda havia regimentos das
Highlands? — Ele foi para a França como um soldado mercenário. Salários melhores, menos
flagelações que o exército, ele disse ao seu pai.
O coração de Roger se levantou; sim! Era uma carta ou talvez um diário de entradas — o
que quer que fosse, havia uma data ali: 17... aquilo era um 3? Tinha que ser, não poderia ser um
8. 173... poderia ser um 9 ou um 0, não poderia dizer com certeza através do papel — não, tinha
que ser um 9, então 1739. Ele respirou com alívio. Alguma data de Outubro de 1739.
— Provavelmente é mais seguro — ele disse, prestando atenção apenas parcialmente na
conversa quando começou a arranhar as linhas. Fazia um tempo desde que ele escrevera com
uma pena, e ele ficou constrangido.
— Mais seguro?
— Sim — ele disse —, do ponto de vista das doenças, principalmente. A maioria dos
homens que morrem no exército é por causa de doenças, sabe? Por causa da aglomeração, pelo
fato de terem que viver em barracas, comer rações pobres. Eu acho que os mercenários têm um
pouco mais de liberdade.
Fraser murmurou algo como “liberdade para morrer de fome”, mas foi baixinho. Ele
estava batendo os próprios dedos na mesa, tentando pegar o ritmo enquanto Roger escrevia.
Ele era surpreendentemente bom; quando a música estava escrita, ele a cantava suavemente
em uma agradável voz grave de tenor e tinha pegado a linha da percussão muito bem.
A mente de Roger estava dividida entre a tarefa à sua frente e a carta sob sua mão. A
sensação do papel e a aparência da tinta o lembravam vividamente da caixa de madeira, cheia
com as cartas de Jamie e Claire. Ele teve que parar de olhar para a estante onde, no futuro, a
colocaria, quando a casa fosse dele.
Eles estiveram racionando as cartas, lendo-as lentamente — mas quando Jem fora levado,
todas as apostas estavam de fora. Eles haviam passado por toda a caixa, procurando por
qualquer menção a Jem, qualquer indicação de que ele poderia ter escapado de Cameron e
encontrado o caminho para a segurança com seus avós. Não havia uma palavra sobre Jem.
Nenhuma.
Eles não eram algo em que ele queria pensar agora, também.
— Seu filho está estudando para ser advogado, em Paris? — Roger perguntou
abruptamente. Ele pegou a bebida fresca que Brian servira para ele e tomou um gole.
— Sim, bem, ele talvez pudesse ser um advogado decente — Fraser admitiu — Ele poderia
argumentar até levá-lo ao chão, tenho que dizer isso sobre ele. Mas eu acho que ele não tem a
paciência para as leis ou para a política — Ele sorriu de repente — Jamie vê imediatamente o
que pensa que precisa ser feito e não consegue entender por que alguém pensaria de outra
forma. E ele prefere bater em alguém a persuadi-lo, se chegar ao ponto.
Roger riu com tristeza.
— Entendo essa ânsia — ele disse.
— Oh, de fato — Fraser assentiu, reclinando-se em sua pequena cadeira — E não direi que
isso não seja algo necessário em algumas ocasiões. Especialmente nas Highlands — Ele fez uma
careta, mas não sem humor — Então... Por que você acha que este Cameron roubou o seu filho?
— Fraser perguntou sem rodeios.
Roger não ficou surpreso. Como estavam se dando bem, ele sabia que Fraser tinha que
estar se perguntando a respeito do que Roger estava dizendo e quão verdadeiro ele era. Bem,
ele estava pronto para aquela pergunta. E a resposta era pelo menos uma versão da verdade.
— Nós vivemos na América por um tempo — ele disse, e sentiu uma pontada ao dizer isso.
Por um momento, sua cabana confortável em Ridge estava ao seu redor, Brianna dormindo com
seus cabelos soltos no travesseiro ao lado dele e a respiração das crianças como uma doce névoa
acima deles.
— América! — Fraser exclamou com espanto — Onde?
— Na colônia da Carolina do Norte. Um bom lugar — Roger correu a acrescentar —, mas
não sem os seus perigos.
— Fale um local onde não haja perigo — Fraser disse, mas ondulou a mão para o lado —
E estes perigos o fizeram voltar?
Roger balançou a cabeça, um aperto na garganta com a lembrança.
— Não, foi a nossa filha... Mandy. Amanda, é o nome dela. Ela nasceu com uma coisa errada
em seu coração, e não havia um médico que podia tratá-la. Então nós... voltamos, e enquanto
estávamos na Escócia, minha esposa herdou algumas terras e nós permanecemos aqui. Mas...
Ele hesitou, pensando como explicar o restante, mas sabendo o que sabia sobre os
ancestrais dos Frasers e sua história com os MacKenzie de Leoch, o homem provavelmente não
ficaria excessivamente perturbado com sua história.
— O pai de minha esposa — ele disse com cuidado — é um bom homem... um ótimo
homem, mas ele chama a atenção. É um líder, e um líder que os outros homens... Bem, ele me
disse uma vez que seu próprio pai havia dito para ele que, quando ele fosse um adulto, outros
homens o tentariam, e eles o fizeram.
Ele observou o rosto de Brian Fraser cuidadosamente, mas, além da contração de uma
sobrancelha, não houve resposta aparente.
— Eu não vou entrar na história toda — já que ela ainda não aconteceu — mas o resumo
dela é que o meu sogro recebeu uma grande quantia de ouro. Ele não a considera como sua
propriedade, mas como algo que lhe foi deixado em confiança. Ainda assim, existe essa quantia
em ouro. E, mesmo que isso tenha se mantido em segredo...
Fraser fez um ruído de simpatia, reconhecendo as dificuldades do sigilo em tais condições.
— Então, esse Cameron descobriu sobre o tesouro, é isso? E pensou em extorquir o seu
sogro ao capturar o neto? — A sobrancelha escura de Fraser se elevou com o pensamento.
— Isso pode estar em sua mente. Mas, além disso, meu filho sabe onde o ouro está
escondido. Ele estava com o seu avô quando o ouro foi guardado em segurança. Apenas os dois
sabem sobre o paradeiro, mas Cameron descobriu que o meu filho conhece o local.
— Ah — Brian se sentou por um momento, olhando para o uísque, pensativo. Finalmente,
ele limpou a garganta e olhou para frente, encontrando os olhos de Roger — Eu talvez não
devesse dizer tal coisa, mas isso já pode estar em sua mente. Se ele levou seu filho apenas
porque o rapaz sabe onde está o tesouro... bem, se eu fosse um homem sem escrúpulos, eu acho
que forçaria o garoto a me passar a informação, assim que eu estivesse sozinho com ele.
Roger sentiu o frio deslizar com a sugestão para a boca do seu estômago. Era uma coisa
que tinha estado no fundo de sua mente, embora ele ainda não tivesse admitido para si mesmo.
— Fazê-lo contar e depois matá-lo, você quer dizer?
Fraser fez uma careta, descontente.
— Eu não quis pensar nisso — ele disse —, mas sem o rapaz, o que há para marcá-lo? Um
homem sozinho... Ele poderia viajar como quisesse, sem ser notado.
— Sim — Roger disse, e parou de respirar — Sim. Bem... ele não o matou. Eu... Eu conheço
um pouco o homem. Eu não acho que ele faria isso... Assas... — Sua garganta se fechou de
repente, e ele tossiu com violência — Assassinar uma criança — ele terminou com a voz rouca.
— Ele não iria.
Deram a ele um quarto no final do corredor do segundo andar. Quando sua família vivesse lá,
aquele seria o quarto de brincar das crianças. Ele tirou a camisa, abaixou a calça e entrou na
cama, resolutamente ignorando as sombras nos cantos que seguravam os fantasmas dos
gigantescos blocos de construção de papelão, da casa de bonecas, das seis armas e dos quadros
negros. A saia de franjas do traje Annie Oakley de Mandy tremulou no canto de seu olho.
Ele sentia dor dos fios de cabelos até as unhas dos pés, interna e externamente, mas o
pânico gerado pela sua chegada já havia passado. Como ele se sentia não importava, entretanto;
a pergunta era — e agora? Eles não tinham ido onde pensavam, ele e Buck, mas ele tinha que
assumir que tinham acabado no mesmo lugar. O local onde Jem estava.
Como mais eles podiam ter chegado aqui? Talvez Rob Cameron soubesse mais agora sobre
como a viagem funcionava, pudesse controlá-la, e tinha deliberadamente trazido Jem para este
tempo, de modo a frustrar a nossa perseguição?
Ele estava muito exausto para manter-se firme aos seus pensamentos, e muito menos para
agregá-los com coerência. Ele tirou tudo de sua mente, o máximo que pôde, e se deitou, olhando
para o escuro, vendo o brilho de um cavalo de balanço.
Então, ele saiu da cama, ajoelhou-se no chão frio, e rezou.
32 – ESTÁ PREDITO QUE, PARA MUITOS DOS HOMENS QUE TROPEÇAM NO LIMIAR, O
PERIGO OS ESTÁ ESPREITANDO DE DENTRO
Lallybroch
31 de outubro de 1980
Brianna não conseguia abrir a sua porta da frente. Ela continuou tentando, sacudindo a grande
chave de ferro pela fechadura, até que a policial feminina a tirou de suas mãos trêmulas e a
colocou no buraco da fechadura. Ela não tinha começado a tremer até que o carro de polícia
aparecesse no caminho para Lallybroch.
— Prefiro as fechaduras antigas — a policial constatou, lançando um olhar dúbio — É
original da casa? — Ela levantou a cabeça, olhando para frente do banco calmo da casa,
franzindo os lábios ao ver o lintel com sua data esculpida.
— Eu não sei. Nós geralmente não trancamos a porta. Nunca tivemos bandidos — Os
lábios de Brianna ficaram dormentes, mas ela conseguiu dar um sorriso fraco. Por sorte, Mandy
era incapaz de contradizer essa mentira deslavada, porque tinha visto um sapo na grama pelo
caminho e o estava seguindo, cutucando-o com a ponta do sapato para fazê-lo pular. Jemmy,
colado protetoramente ao lado de Brianna, fez um barulho com a garganta que o fez lembrar
assustadoramente de seu pai, e ela olhou para ele, estreitando os olhos.
Ele fez o ruído novamente e olhou para longe.
Houve um clique quando a porta se abriu, e a policial se endireitou com um ruído
satisfeito.
— Sim, está aberto. Agora, você tem certeza de que ficará bem, Sra. MacKenzie? — A
mulher disse, dando a ela um olhar duvidoso — Aqui por conta própria enquanto seu marido
está ausente?
— Ele chegará logo — Brianna assegurou a ela, embora um buraco se formasse em seu
estômago com as palavras.
A mulher olhou para ela considerando e depois assentiu relutantemente, e abriu a porta.
— Bem, você sabe melhor do que eu, espero. Vou apenas verificar se o seu telefone está
funcionando e se todas as portas e janelas estão trancadas, posso? Enquanto isso, você olha em
volta para se certificar de que tudo está onde deveria.
O pedaço de gelo que tinha se formado em suas entranhas durante as longas horas de
interrogatório subiu para o seu peito.
— Eu... eu... eu tenho certeza de que está tudo bem — Mas a policial já tinha entrado e
estava esperando impacientemente por ela — Jem! Traga Mandy para dentro e a leve para o
quarto de brinquedos, ok?
Ela não podia suportar deixar as crianças lá fora, sozinhas, expostas. Ela mal podia
suportar que eles ficassem fora de sua vista. Mas a última coisa que ela precisava era que Mandy
ficasse prestativamente junto com ela, conversando com a Oficial Laughlin sobre o buraco de
padre em que o Sr. Rob estava. Deixando a porta aberta, ela se apressou atrás da policial.
— O telefone está lá — ela disse, conversando com a Oficial Laughlin no corredor e
apontando em direção ao escritório de Roger — Há uma extensão na cozinha. Vou checar e ver
a porta dos fundos — Sem esperar por uma resposta, ela se apressou pelo corredor e quase se
jogou na porta que levava à cozinha.
Ela não parou para checar nada, mas abriu a gaveta de bugigangas e pegou uma lanterna
coberta de borracha. Destinada a ajudar os fazendeiros a fazer partos noturnos ou a procurar
por suprimentos, a coisa media mais de trinta centímetros e pesava cerca de um quilo.
O rifle calibre 22 estava na área de serviço e, por um instante, enquanto caminhava pela
casa, ela debateu consigo mesma sobre matá-lo, de uma forma desapaixonada que
provavelmente a assustaria se ela tivesse tempo de pensar sobre isso. Ela tinha Jem de volta,
apesar de tudo — mas não. A Oficial Laughlin certamente reconheceria o som de um tiro, apesar
do feltro verde que abafava a porta da cozinha. E havia aparentemente mais que ela precisava
saber sobre Rob Cameron. Ela o deixaria inconsciente e colocaria uma fita adesiva em sua boca.
Ela entrou na área de serviço e fechou a porta da cozinha atrás de si. Havia uma tranca,
mas ela não poderia trancar deste lado sem a chave, e as chaves estavam em cima da mesa do
hall de entrada, onde a Oficial Laughlin as tinham deixado. Em vez disso, ela arrastou mais o
banco pesado e o enfiou entre a porta e a parede, concentrando-se na logística. Onde era o
melhor lugar para bater em alguém na cabeça para deixar a pessoa inconsciente sem causar um
traumatismo craniano? Ela tinha uma vaga memória de sua mãe mencionando uma vez que... o
occipital?
Ela esperava um clamor de Cameron ao som de sua entrada, mas ele não espiou. Ela podia
ouvir os passos no andar de cima, o caminhar confiante de um adulto estava ao fundo no
corredor. Oficial Laughlin em seu tour de inspeção, sem dúvida checando as janelas do primeiro
andar, a mente voltada para assaltantes que pudessem escalar. Ela fechou os olhos por um
momento, imaginando a policial enfiando a cabeça para dentro da sala de brinquedos
exatamente quando Mandy estava contando ao seu irmão com detalhes sobre as aventuras da
noite anterior.
Não havia nada que pudesse fazer em relação a isso. Ela inspirou profundamente,
levantou a grade no buraco de padre, e apontou a luz na escuridão. As sombras vazias.
Por alguns momentos ela continuou procurando, balançando a luz da lanterna de um lado
para outro, e mais uma vez, e outra ainda... sua mente simplesmente se recusando a acreditar
em seus olhos.
A luz capturou o brilho opaco da fita adesiva — dois ou três maços descartados,
arremessados para um canto. Uma sensação gelada apareceu atrás de seu pescoço, e ela virou
para trás, a lanterna levantada — mas era nada mais do que apreensão; ninguém estava lá. A
porta externa estava fechada, a janela da área de serviço também.
A porta estava trancada. Ela fez um ruído baixo e aterrorizado e bateu a mão com força
sobre a própria boca. Como a porta entre a área de serviço e a cozinha, a porta de fora da área
de serviço tinha uma tranca — por dentro. Se alguém saísse e deixasse a porta trancada atrás
de si, é porque tinha a chave da casa. E seu rifle tinha sumido.
Eles são muito pequenos, ela continuou pensando. Eles não deveriam saber sobre essas coisas;
eles não deviam saber que isso é possível. Suas mãos estavam tremendo; ela tentou três vezes
abrir a gaveta da cômoda de Mandy, e depois de falhar pela terceira vez, ela bateu com fúria no
móvel com a lateral dos punhos, sussurrando pelos dentes cerrados — Seu maldito, filho da
puta! Não ouse ficar em meu caminho! — Ela bateu o punho no topo da cômoda, ergueu o pé e
bateu a sola de seu tênis com tanta força que o móvel balançou para trás e bateu na parede com
um estrondo.
Ela agarrou os puxadores da gaveta e puxou. A gaveta aterrorizada disparou, e ela pegou
a coisa toda e a arremessou contra a parede, onde ela bateu e explodiu num spray de arco-íris
de calcinhas e pequenas camisetas listradas.
Ela se aproximou e olhou para a gaveta danificada, deitada de cabeça para baixo.
— Então — ela disse calmamente — Isso vai te ensinar a sair do meu caminho quando eu
tiver coisas para pensar.
— Como o que, mamãe? — disse uma voz cautelosa do corredor. Ela olhou e viu Jemmy
pairando ali, os olhos passando rapidamente dela para a gaveta e voltando.
— Oh — Ela pensou em tentar explicar a gaveta, mas em vez disso limpou a garganta e se
sentou na cama, esticando uma mão para ele — Venha aqui, a bhalaich.
Suas sobrancelhas ruivas se ergueram para o tratamento carinhoso em gaélico, mas ele se
aproximou de boa vontade, aconchegando-se em seu braço. Ele a abraçou com força,
escondendo a cabeça em seu ombro, e ela o segurou o mais firmemente que podia, balançando-
se para frente e para trás e fazendo os ruídos suaves que fazia quando ele era pequeno.
— Vai ficar tudo bem, meu bebê — ela sussurrou para ele — Vai ficar.
Ela o ouvir engoliu e sentiu suas costas se moverem sob sua mão.
— Sim — Sua voz tremeu um pouco e ele fungou e depois tentou de novo — Sim. Mas o
que vai ficar bem, mãe? O que está acontecendo? — Ele se afastou um pouco, então, olhando
para ela com olhos que seguravam mais perguntas e mais sabedoria do que qualquer garoto de
nove anos devia razoavelmente ter. — Mandy disse que você colocou o Sr. Cameron no buraco
do padre. Mas ele não está lá agora, eu olhei.
A sensação de uma mão fria deslizando por sua nuca voltou enquanto ela se lembrava do
buraco vazio.
— Não, ele não está.
— Mas você não o deixou sair, certo?
— Não. Eu não o soltei. Ele...
— Então, alguém o fez — ele disse de forma positiva — Quem você acha que faria isso?
— Você tem uma mente muito lógica — ela disse, sorrindo um pouco, apesar de tudo —
Você herdou isso de seu avô Jamie.
— Ele disse que eu herdei isso de minha avó Claire — Jem replicou, mas automaticamente;
ele não estava tão distraído — Eu pensei que talvez possa ser o homem que me perseguiu na
represa, mas ele não poderia estar aqui soltando o Sr. Cameron ao mesmo tempo em que estava
me perseguindo. Não é? — Um medo repentino apareceu em seus olhos, e ela sufocou o impulso
irresistível de caçar o homem e matá-lo como se fosse um gambá raivoso.
O homem tinha fugido na barragem, correndo na escuridão quando a polícia apareceu,
mas, Deus a ajudasse, ela ia encontrá-lo um dia, e então — mas este dia não era hoje. O problema
agora era impedi-lo — ou impedir Rob Cameron — de chegar perto das crianças de novo.
Então ela compreendeu o que Jemmy estava dizendo e sentiu o frio que carregava no
coração se espalhar como uma nevasca através de seu corpo.
— Você quer dizer que há outro homem — ela disse, surpresa por quão calma ela soou —
Sr. Cameron, o homem na represa, e quem quer que tenha tirado o Sr. Cameron no buraco do
padre.
— Poderia ser uma mulher — Jemmy apontou. Ele parecia menos assustado ao falar sobre
aquilo. Era uma coisa boa, porque sua própria pele estava arrepiada pelo medo.
— Você sabe como a vovó chamava... chama... estes pelos eriçados? — Ela esticou o braço,
os pelos vermelhos para cima — Arrepio.
— Arrepio — Jemmy repetiu, e deu um sorrido nervoso — Eu gosto da palavra.
— Eu também — Ela inspirou profundamente e se levantou — Vá pegar uma troca de
roupas e seus pijamas, tá bom, querido? Eu tenho que fazer algumas ligações e depois eu acho
que nós vamos visitar a Tia Fiona.
33 – É MELHOR DORMIR EM UMA PELE SADIA
Roger acordou subitamente, mas sem choque. Não tinha a sensação de ter tido pesadelos, nem
tinha ouvido ruídos, mas seus olhos estavam abertos e ele estava plenamente consciente. Era
talvez uma hora antes de o sol nascer. Ele tinha deixado as janelas abertas; o quarto estava frio
e o céu nublado tinha a cor de uma pérola negra.
Ele ficou deitado sem se mover, escutando as batidas de seu coração, e percebeu que, pela
primeira vez em vários dias, elas não estavam aceleradas. Ele não estava com medo. O medo e
a confusão da noite, o terror dos últimos dias, tinha desaparecido. Seu corpo estava
completamente relaxado; assim como sua mente.
Havia algo flutuando em sua mente. Absurdamente, era uma linha de “Johnny Cope”: É
melhor dormir em uma pele sadia, para o que será uma manhã sangrenta. O que era mais
estranho é que ele podia ouvir — até mesmo sentir — a si mesmo cantando, em sua antiga voz,
cheia de força e entusiasmo.
— Não que eu seja ingrato — ele disse para as vigas caiadas de branco no teto, sua voz
matutina rachada e áspera — Mas que diabos é isso?
Ele não tinha certeza se estava falando com Deus ou com sua própria consciência, mas a
probabilidade de receber uma resposta era provavelmente a mesma em cada caso. Ele ouviu o
baque suave de uma porta se fechando em algum lugar abaixo e alguém lá fora assobiando
através dos dentes — Annie ou Senga, talvez, a caminho da ordenha da manhã.
Uma batida veio em sua própria porta: Jenny Murray, com uma touca branca, os cabelos
encaracolados e escuros amarrados para trás, mas não ainda prontos para o dia, com um jarro
de água quente, um pote de sabão suave e uma navalha de barbear.
— Papai disse que você pode andar a cavalo? — ela disse sem preâmbulos, olhando-o de
cima e baixo em uma espécie de avaliação.
— Eu posso — ele replicou com a voz rouca, pegando o jarro envolto na toalha. Ele
precisava muito limpar o muco da garganta e cuspir, mas não conseguiria fazer isso na frente
dela. Consequentemente, ele apenas assentiu e murmurou — Taing — enquanto pegava a
navalha, em vez de perguntar o porquê.
— O café da manhã estará na cozinha quando você descer — ela disse com praticidade —
Traga o jarro para baixo, sim?
Uma hora depois, completamente cheio com chá quente, mingau, bannocks com mel, e morcela,
ele se encontrou em um cavalo desgrenhado, seguindo Brian Fraser através da névoa crescente
da manhã.
— Vamos dar uma volta pelas proximidades — Fraser disse a ele no café da manhã,
colocando uma colherada de morango em conserva em um bannock — Mesmo que ninguém
tenha visto seu rapaz, e para ser honesto — sua boca aberta se torceu em uma desculpa —, eu
acho que teria ouvido se alguém tivesse visto um estranho no distrito. Eles falariam.
— Sim, muito obrigado — ele disse, honestamente. Até mesmo em seu próprio tempo, as
fofocas eram a melhor forma de espalhar uma notícia nas Highlands. Não importa quão rápido
Rob Cameron pudesse viajar, Roger duvidava que ele poderia ultrapassar a velocidade da fala,
e esse pensamento o fez sorrir. Jenny notou o sorriso e sorriu de volta com simpatia, e ele
pensou mais uma vez em como ela era uma moça bonita.
O céu ainda estava baixo e ameaçador, mas a chuva iminente ainda não tinha dissuadido
ninguém da Escócia a fazer alguma coisa, e era improvável que isso começasse agora. Sua
garganta parecia melhor agora após o chá quente, e a estranha sensação de calma com a qual
ele havia se levantado ainda o acompanhava.
Alguma coisa tinha mudado durante a noite. Talvez fosse o fato de dormir em Lallybroch,
entre os fantasmas de seu próprio futuro. Talvez aquilo tivesse estabilizado sua mente
enquanto ele dormia.
Talvez fosse a resposta para as suas preces e um momento de graça. Talvez não fosse mais
do que o maldito existencialismo de Samuel Beckett — “Se eu não posso continuar, eu vou
continuar”. Se ele tivesse uma escolha — e ele tinha, Beckett que se danasse — ele escolheria
com graça.
O que quer que tivesse causado aquilo, ele não estava mais desorientado, arrancado de
seu equilíbrio pelo que ele sabia sobre o futuro das pessoas ao seu redor. Ainda havia uma
profunda preocupação em relação a eles — e a necessidade de encontrar Jem ainda o preenchia.
Mas agora era uma coisa tranquila e sólida em seu coração. Um foco, uma arma. Algo em que se
apoiar.
Ele endireitou os ombros enquanto pensava nisso e, ao mesmo tempo, viu as costas retas
e os ombros largos de Brian sob o conjunto escuro do casaco de seu tartã. Eles eram o eco de
Jamie e a promessa de como Jem seria.
A vida continua. Era seu trabalho, acima de tudo, resgatar Jem, tanto pelo bem de Brian
Fraser como pelo seu próprio.
E agora ele sabia o que tinha mudado nele e deu graças a Deus pelo que era
verdadeiramente uma graça. Ele havia dormido — e acordado — completo. E, ainda que tivesse
uma maldita manhã por vir, ele tinha uma direção agora, calma e esperança, porque o bom
homem que cavalgava à sua frente estava do seu lado.
Eles visitaram mais do que uma dezena de casas no decorrer do dia e pararam um funileiro que
encontraram pelo caminho, também. Ninguém tinha visto um estranho recentemente, com ou
sem um rapaz ruivo, mas todos prometeram espalhar o boato e todos, sem exceção, ofereceram
suas orações para Roger e sua busca.
Eles pararam para jantar e para passar a noite com uma família de nome Murray que tinha
uma fazenda substancial, embora não rivalizasse com Lallybroch. O proprietário, John Murray,
revelou-se no decorrer da conversa como o gerente de Brian Fraser — o supervisor de grande
parte do negócio físico da propriedade de Lallybroch — e ele emprestou uma atenção solene à
história de Roger.
Um homem idoso, com o rosto alongado, braços musculosos e de ossos largos, ele chupou
os dentes, considerando, e assentindo com a cabeça.
— Sim, eu vou mandar um de meus rapazes por aí pela manhã — ele disse —, mas se você
não encontrou nenhum vestígio deste homem ao longo do caminho... talvez seja melhor você ir
à guarnição e contar sua história, Sr. MacKenzie.
Brian Fraser arqueou uma sobrancelha escura, franzindo o cenho para isso, mas assentiu.
— Sim, não é uma má ideia, John — Ele se virou para Roger — Fica a alguma distância
daqui, sabe? A guarnição do Forte William, perto de Duncansburgh. Mas nós podemos
perguntar ao longo do caminho, e os soldados mandam mensageiros regularmente entre a
guarnição, Inverness e Edimburgo. Se eles ouvirem alguma coisa sobre o homem, podem
mandar notícias para nós rapidamente.
— E talvez eles possam prender o sujeito em flagrante — Murray acrescentou, seu
semblante um tanto melancólico se iluminando um pouco com a ideia.
— Moran taing — Roger disse, curvando-se um pouco para os dois em reconhecimento, e
então virando-se para Fraser — Farei isso, e obrigado. Mas, senhor, você não precisa me
acompanhar. Você tem os próprios negócios com os quais lidar, e eu não...
— Eu vou, ficarei feliz em acompanhá-lo — Fraser o interrompeu com firmeza — Há muito
tempo e eu não tenho nada para fazer que John não possa fazer por mim.
Ele sorriu para Murray, que soltou um pequeno ruído entre um suspiro e uma tosse, mas
assentiu.
— O Forte William fica no meio das terras dos Camerons, não se esqueça — Murray
observou distraidamente, olhando em direção aos campos escuros. Eles tinham jantado com a
família, mas depois saíram pela porta ostensivamente para compartilhar um cachimbo; ele
ardia nas mãos de Murray, deixado de lado por um momento.
Brian fez um som evasivo com a garganta, e Roger imaginou o que Murray queria dizer.
Era um aviso que Rob Cameron podia ter parentes ou aliados a quem ele estivesse se dirigindo?
Ou havia alguma tensão ou dificuldade entre alguns dos Camerons e os Frasers de Lovat — ou
entre os Camerons e os MacKenzies?
Aquilo representava alguma dificuldade. Se houvesse uma disputa de qualquer
importância acontecendo, Roger já devia saber sobre isso. Ele deu um pequeno e grave “hmp”
e decidiu se aproximar de qualquer Cameron com cautela. Ao mesmo tempo... será que Rob
Cameron tinha intenção de buscar refúgio ou ajuda com os Camerons deste tempo? Será que
ele talvez tivesse vindo ao passado antes e tinha um local seguro entre o seu clã? Aquele era um
pensamento ruim, e Roger sentiu seu estômago se apertar como se para resistir a um soco.
Mas não; não teria havido tempo. Se Cameron só tinha descoberto sobre a viagem no
tempo através do guia que Roger tinha escrito para o eventual uso de seus filhos, ele não teria
tempo para ir ao passado, encontrar um ancestral e... não, era ridículo!
Roger sacudiu o emaranhado de pensamentos meio formados como se eles fossem uma
rede de pesca jogada sobre sua cabeça. Não havia nada mais a ser feito até que eles chegassem
à guarnição no dia seguinte.
Murray e Fraser estavam inclinados sobre a cerca agora, compartilhando o cachimbo e
conversando casualmente em gaélico.
— Minha filha me pediu para perguntar por seu filho — Brian Fraser disse, com um ar de
descontração — Alguma notícia?
Murray bufou, a fumaça saindo de suas narinas, e disse algo muito idiomático sobre seu
filho. Fraser fez uma careta em simpatia e balançou a cabeça.
— Pelo menos seu filho está vivo — ele disse, voltando para o inglês — Certamente, ele
vai voltar para casa quando tiver o seu quinhão de batalhas. Nós fizemos isso, certo? — Ele
cutucou Murray suavemente nas costelas, e o homem mais alto bufou novamente, mas com
menos ferocidade.
— Não foi o tédio que nos trouxe até aqui, a dhuine dhubh. Não você, de qualquer forma
— Ele levantou uma sobrancelha grisalha, e Fraser riu, embora Roger pensasse que havia uma
ponta de arrependimento no riso.
Ele se lembrava da história muito bem: Brian Fraser, um bastardo do velho Lord Lovat
tinha roubado Ellen MacKenzie de seus irmãos Colum e Dougal, os MacKenzies do Castelo de
Leoch, e a tinha levado até Lallybroch, meio que rejeitados por ambos os clãs, mas pelo menos
deixados para viver sua própria vida. Ele tinha visto o retrato de Ellen, também — alta, com
cabelos ruivos, e inegavelmente uma mulher que valia o esforço.
Ela se parecia muito com sua neta Brianna. Por reflexo, ele fechou os olhos, inspirou
profundamente o ar frio da noite das Highlands, e pensou que podia senti-la ali ao seu lado. Se
ele abrisse os olhos novamente, poderia vê-la na fumaça?
Eu vou voltar, ele direcionou o pensamento para ela. Não importa como, a nighean ruaidh.
Eu vou voltar. Com Jem.
34 – SANTUÁRIO
Era quase uma hora de carro ao longo das estradas estreitas e sinuosas das Highlands, de
Lallybroch até a nova casa de Fiona Buchan em Inverness. Muito tempo para Brianna pensar se
ela estava fazendo a coisa certa, se ela tinha qualquer direito de envolver Fiona e sua família em
uma questão que parecia muito perigosa. Muito tempo para obter um torcicolo por tanto olhar
sobre o ombro — embora, se ela estivesse sendo seguida, como saberia?
Ela tinha dito às crianças onde Roger estava, o mais gentilmente e rápido possível. Mandy
tinha colocado um polegar na boca e olhava gravemente para ela, os olhos arregalados. Jem...
Jem não havia dito nada, mas estava pálido sob suas sardas e parecia prestes a vomitar. Ela
olhou pelo espelho retrovisor. Ele estava curvado em um canto do banco traseiro, o rosto virado
para a janela.
— Ele vai voltar, querido — ela disse, tentando dar a ele um abraço tranquilizador. Ele a
tinha deixado, mas ficou rígido em seus braços, aflito.
— É minha culpa! — ele disse, sua voz baixa e automática como a de um fantoche — Eu
deveria ter saído antes. Então papai não teria...
— Não é sua culpa — ela disse firmemente — É culpa do Sr. Cameron e de ninguém mais.
Você foi muito corajoso. E o papai vai voltar logo.
Jem tinha engolido seco, mas não dissera nada em resposta. Quando ela o deixou ir, ele se
balançou por um momento, e Mandy se aproximou para abraçar suas pernas.
— Papai vai voltar logo — ela disse encorajadoramente — Para o jantar!
— Pode demorar um pouco mais do que isso — Bree disse, sorrindo apesar do pânico
embolado como neve em suas costelas.
Ela respirou fundo de alívio quando a estrada se abriu perto do aeroporto e ela pôde
acelerar para mais do que 40 km/h. Outro olhar cauteloso para o espelho, mas a estrada estava
vazia atrás dela. Ela pisou no acelerador.
Fiona era uma das únicas duas pessoas que ela conhecia. A outra estava em Boston: o
amigo mais antigo de sua mãe, Joe Abernathy. Mas ela precisava de um santuário para Jem e
Mandy agora. Ela não podia ficar com eles em Lallybroch; as paredes eram de um metro de
espessura em alguns lugares, sim, mas era uma mansão de fazenda, não uma casa de torre
fortificada, e não tinha sido construída com qualquer noção de que os habitantes precisariam
repelir os invasores ou criar um cerco.
Estar na cidade deu a ela uma sensação de alívio. Ter pessoas ao seu redor. Testemunhas.
Camuflagem. Ajuda. Ela pulou do carro na frente da pensão Bed and Breakfast Craigh na Dun
(de três estrelas) com o senso de um nadador exausto rastejando para a borda.
O momento era bom. Era final de tarde; Fiona teria terminado de limpar e ainda não seria
a hora de fazer os check in dos novos hóspedes ou de começar o jantar.
Um pequeno sino pintado de azul tilintou quando eles abriram a porta, e uma das filhas
de Fiona instantaneamente colocou uma cabeça inquisitiva no hall de entrada.
— Tia Bree! — ela gritou, e repentinamente o átrio estava cheio de crianças, e as três
meninas de Fiona empurravam umas às outras para abraçar Bree, carregar Mandy, e fazer
cócegas em Jem, que prontamente caiu ao chão e se arrastou para baixo do banco onde as
pessoas deixavam seus casacos.
— O que... Oh, é você, mulher! — Fiona, saindo da cozinha com um avental que dizia PIE
QUEEN na frente, sorriu com deleite ao ver Bree e a envolveu num abraço farinhento. — O que
está errado? — Fiona murmurou em seu ouvido, cobrindo a boca com o abraço. Ela recuou um
pouco, ainda segurando Bree, e olhou para ela, apertando os olhos com uma preocupação meio
brincalhona — Rog está aprontando fora de casa?
— Você... poderia dizer que sim.
Bree tentou dar um sorriso, mas evidentemente não foi um sorriso muito bom, porque
Fiona de repente bateu palmas, trazendo ordem para o caos no átrio, e despachou as crianças
para a sala no andar de cima para assistirem televisão. Jem, parecendo exausto, foi persuadido
a sair de baixo do banco e relutantemente seguiu as garotas, olhando por sobre o ombro para
sua mãe. Ela sorriu e fez movimentos para que ele saísse, e depois seguiu Fiona para dentro da
cozinha, olhando por reflexo sobre o próprio ombro.
A chaleira apitou, interrompendo Brianna, mas não antes de ela chegar ao ponto mais saliente
de sua história. Fiona aqueceu e encheu o bule, apertando os lábios em concentração.
— Você disse que ele pegou o rifle. Ainda tem a sua arma?
— Sim. Está embaixo do banco da frente do meu carro neste momento.
Fiona quase deixou cair o bule. Brianna esticou o braço e pegou a alça, firmando-o. Suas
mãos estavam congelando e a porcelana quente lhe deu uma sensação maravilhosa.
— Bem, eu não iria deixá-la numa casa em que os bastardos têm a chave, não é?
Fiona apoiou o bule e se benzeu — Dia eadarainn’s na t-old — Deus entre nós e o mal. Ela
se sentou, dando a Brianna um olhar afiado — E você tem certeza de que são bastardos, no
plural?
— Sim, infelizmente tenho — Bree disse laconicamente — Mesmo que Rob Cameron
conseguisse criar asas para voar do meu buraco do padre... Deixe-me contar o que aconteceu
com Jem na represa.
Ela contou, em poucos e breves sentenças, ao final do que Fiona estava olhando sobre o
ombro para a porta fechada da cozinha. Ela olhou de volta para Bree, aquietando-se. Em seus
trinta e poucos anos, ela era uma jovem mulher agradavelmente arredondada com um rosto
agradável e a expressão calma de uma mãe que normalmente tinha o sinal indiano em sua prole,
mas neste momento ela tinha uma expressão que a mãe de Brianna descreveria como “sangue
nos olhos”. Ela disse alguma coisa muito feia em inglês em relação ao homem que havia
perseguido Jem.
— Então — ela disse, pegando uma faca que estava mais próxima e examinando
criticamente a lâmina —, o que nós devemos fazer?
Bree inspirou profundamente e sorveu cuidadosamente o chá quente e cremoso. Estava
doce, sedoso e muito reconfortante — mas não tão reconfortante quanto o “nós”.
— Bem, primeiro... você permitiria que Jem e Mandy ficassem aqui enquanto eu vou fazer
algumas coisas? Pode ser que eles tenham que passar a noite; eu trouxe pijamas, apenas para o
caso de ser necessário. — Ela apontou para o saco de papel que ela tinha colocado na cadeira.
— Sim, é claro — Um pequeno franzido se formou entre as sobrancelhas escuras de Fiona
— Que tipo de... coisas?
— É... — Brianna começou, com a intenção de dizer “melhor que você não saiba”, mas de
fato era melhor que alguém soubesse para onde ela estava indo e o que ela iria fazer. Apenas
para o caso de ela não voltar. Uma pequena bolha do que poderia ser medo ou raiva se levantou
da sensação de calor do meio de seu peito. — Eu vou visitar Jock MacLeod no hospital. Ele é o
guarda noturno que encontrou Jam na represa. Ele pode conhecer o homem que bateu nele e
tentou levar Jem. E ele conhece Rob Cameron. Ele talvez possa me dizer quem são os amigos de
Cameron fora do trabalho na gráfica.
Ela esfregou uma mão no rosto, pensando.
— Depois disso, eu vou falar com a irmã de Rob e seu sobrinho. Se ela estiver envolvida
no que quer que seja, ficará preocupada. E se ela está envolvida, eu preciso saber.
— Você acha que será capaz de perceber? — O franzido na testa de Fiona tinha diminuído
um pouco, mas ela ainda parecia preocupada.
— Oh, sim — Brianna disse, com uma firme determinação — Eu serei capaz de saber. Em
primeiro lugar, se alguém com quem eu falar estiver envolvido, provavelmente tentará me
impedir de fazer perguntas.
Fiona fez um ruído baixo que poderia ser soletrado como “eeengh”, indicando
preocupação profunda.
Brianna bebeu o último gole de chá e abaixou a xícara com um suspiro explosivo.
— E então — ela disse —, eu vou voltar para Lallybroch para falar com um serralheiro e
fazer com que ele mude todas as fechaduras e instale alarmes nas janelas mais baixas — Ela
olhou questionadoramente para Fiona — Eu não sei quanto tempo isso vai demorar...
— Sim, é por isso que você trouxe os pijamas das crianças. Sem problemas, mulher — Ela
mordeu o lábio inferior, olhando para Brianna.
Bree sabia o que ela estava pensando, debatendo se deveria ou não perguntar, e ela a
salvou do problema.
— Não sei o que vou fazer em relação a Roger — ela disse com firmeza.
— Ele vai voltar, com certeza — Fiona começou, mas Bree balançou a cabeça. A
Compreensão Aterrorizante número 3 não podia mais ser negada.
— Eu acho que não — ela disse, embora tenha mordido o lábio, como se para impedir que
as palavras saíssem — Ele... Ele não tem como saber que Jem está aqui. E ele nunca o
abandonaria.
Fiona estava apertando a mão de Brianna dentro das suas.
— Não, não, é claro que ele não faria isso. Mas se ele e o outro cara continuarem as buscas
e não encontrarem nenhum vestígio... Eventualmente, com certeza ele pensaria... — Sua voz foi
morrendo enquanto ela tentava imaginar o que Roger poderia pensar nestas circunstâncias.
— Oh, ele vai pensar, tudo bem — Bree disse, e conseguiu soltar uma risada baixa e
trêmula. O pensamento na determinação de Roger, a sensação crescente de medo e desespero
que inevitavelmente o consumiria, sua luta para continuar... porque ele continuaria; ele nunca
desistiria e voltaria para dizer que Jem estava perdido para sempre. Se ele não encontrasse
nenhum traço de Jem, o que ele poderia pensar? Que Cameron talvez o tivesse assassinado,
escondido seu corpo, e ido para a América em busca do ouro? Ou que eles dois tinham ficado
presos naquele espaço horrível entre um tempo e outro, nunca podendo ser encontrados?
— Bem, e ele fará orações, também — Fiona disse com um rápido aperto na mão de Bree
— Eu posso ajudar nisso.
Aquilo fez com que as lágrimas vertessem, e ela piscou com força, esfregando os olhos com
um guardanapo de papel.
— Eu não posso chorar agora — ela disse com a voz embargada — Eu não posso. Não
tenho tempo — Ela ficou de pé repentinamente, liberando sua mão. Ela fungou, assoou o nariz
com força no guardanapo e fungou de novo. — Fiona... Eu... Eu sei que você não disse nada para
ninguém sobre... nós — ela começou, e até mesmo ela poderia ouvir a dúvida em sua voz.
Fiona bufou.
— Não contei — ela disse — Teria sido levada ao hospício, e o que Ernie faria com as
meninas e tudo o mais? Por quê? — Ela adicionou, dando a Brianna um olhar duro — No que
você está pensando?
— Bem... as mulheres que... que dançam em Craigh na Dun. Você acha que uma delas sabe
sobre isso?
Fiona sugou uma das bochechas, pensando.
— Uma ou duas das mais velhas pode ter uma ideia — ela disse lentamente — Nós temos
chamado o sol em Beltane ali há mais tempo do que qualquer uma saiba. E algumas coisas
realmente são passadas de uma geração para outra, você sabe. Seria estranho se ninguém nunca
imaginasse. Mas, mesmo que alguém saiba com certeza o que acontece lá, não falaria... não mais
do que eu.
— Certo. Eu só imaginei... você poderia descobrir, discretamente, se uma das mulheres
tem laços com Rob Cameron? Ou talvez... com as Orkneys?
— Para quê? — Os olhos de Fiona se arregalaram — Por que as Orkneys?
— Porque Rob Cameron fez escavações arqueológicas lá. E eu acho que foi isso que o
tornou interessado nos círculos de pedras para começar. Eu conheço um homem chamado
Callahan, um amigo de Roger, que trabalhou lá com Rob e eu vou falar com ele também, talvez
amanhã; não acho que terei tempo de fazer isso hoje. Mas se tem mais alguém que pode estar
conectado com coisas assim... — Era mais do que um tiro no escuro, mas no momento ela estava
inclinada a olhar debaixo de qualquer pedra que poderia levantar.
— Eu vou perguntar — Fiona disse pensativamente — E falando nisso... ligue para mim
se não voltar esta noite, sim? Apenas para que eu saiba que você está segura.
Bree assentiu, sua garganta apertada, e abraçou Fiona, pegando um pouco mais de força
de sua amiga.
Fiona a viu caminhar pelo hall, parando nos pés da escada, e olhou em direção à conversa
vinda de lá de cima. Será que Bree queria se despedir de Jem e Mandy? Sem falar nada, Brianna
sacudiu a cabeça. Seus sentimentos eram muito intensos; ela não conseguiria escondê-los
suficientemente bem e não queria assustar as crianças. Em vez disso, ela pressionou os lábios
nos dedos e mandou um beijo para cima, e então virou em direção à porta.
— A sua arma... — Fiona começou atrás dela, e parou. Brianna se virou e levantou uma
sobrancelha.
— Eles não podem fazer balística de uma espingarda de caça, não é?
35 – UM QUARTEL
Demoraria um dia e meio para ele fazer a viagem, mesmo com o bom tempo. Tendo em conta
que estava chovendo, que a jornada de volta fora difícil e que a última parte dela envolveu
tropeços no escuro, procurando por uma trilha quase invisível, eles cobriram a distância em um
tempo surpreendentemente curto.
— Eu vou entrar com você — Brian disse, levando seu cavalo pelo pátio — Eles não são
meus inquilinos, mas me conhecem.
A casa — era um chalé modesto, seu brilho branco como um seixo à luz de uma lua
minguante — estava fechada para a noite, persianas abaixadas e porta trancada. Fraser bateu
na porta e gritou em gaélico, entretanto, identificando a si mesmo e dizendo que ele tinha
trazido o parente do homem doente, e a porta se abriu, emoldurando um cavalheiro barbudo
de camisa e gorro de dormir, que olhou para eles por um longo tempo antes de dar um passo
para trás com um ríspido “entrem”.
A primeira impressão de Roger era de que a casa estava cheia até o teto com os odores de
seres humanos. Eles estavam deitados em pequenos montes juntos no chão, perto da lareira ou
em plataformas na parede oposta, e havia cabeças despenteadas aqui e ali apontando para cima
como cães da pradaria, piscando sob a luz do fogo para ver o que estava acontecendo.
Seu anfitrião — apresentado por Fraser como Angus MacLaren — assentiu secamente
para Roger e gesticulou em direção a um leito arrastado para o centro do cômodo. Duas ou três
crianças pequenas estavam dormindo ali, mas Roger podia ver apenas um borrão do rosto de
Buck no travesseiro. Cristo, ele esperava que Buck não tivesse nada contagioso.
Ele se inclinou para perto, sussurrando — Buck? — para não acordar ninguém que já não
tivesse acordado. Ele não podia ver muito do rosto de Buck na escuridão, e pela barba que o
cobria também, mas seus olhos estavam fechados, e ele não os abriu em resposta a Roger
dizendo o seu nome. Nem em resposta a quando Roger colocou uma mão em seu braço. O braço
parecia quente, mas dada a atmosfera sufocante na cabana, ele pensou que Buck continuaria
quente mesmo que estivesse morto há horas.
Ele apertou o braço, suavemente no começo, e depois com mais força — e pelo menos
Buck tossiu de forma estrangulada e abriu os olhos. Ele piscou lentamente, parecendo não
reconhecer Roger, e depois os fechou de novo. Seu peito arfava visivelmente, entretanto, e ele
respirava agora com uma nota lenta e ofegante, claramente audível.
— Ele disse que há algo de errado com seu coração — MacLaren disse a Roger, com a voz
baixa. Ele estava se inclinando sobre o ombro de Roger, olhando atentamente para Buck — Ele
vibra e, quando isso acontece, ele fica azul e não consegue respirar ou se levantar. Meu segundo
filho mais velho o encontrou na urze ontem à tarde, estatelado no chão como um sapo
esmagado. Nós o pegamos e demos algo para beber, e ele perguntou se nós poderíamos mandar
alguém para Lallybroch para perguntar por seu parente.
— Moran taing — disse Roger — Eu estou muito agradecido, senhor.
Ele se virou para Brian, que estava à espreita atrás de MacLaren, olhando para Buck com
o cenho franzido.
— E obrigado a você, também, senhor — Roger disse a ele — Por toda a sua ajuda. Eu não
posso agradecê-lo o suficiente.
Fraser deu de ombros, dispensando os agradecimentos.
— Eu imagino que você ficará com ele? Sim. Se ele for capaz de viajar pela manhã, traga-o
para Lallybroch. Ou chame, se houver alguma coisa que possamos fazer.
Fraser assentiu para MacLaren em despedida, mas depois parou, estreitando os olhos na
escuridão para ver o rosto de Buck. Ele olhou para Roger, como se comparasse suas feições.
— Seu parente é de Lochalsh também? — ele perguntou, curioso, e olhou de novo para
Buck — Ele parece muito com os parentes de minha esposa. Os MacKenzie de Leoch.
Então, ele notou a pequena e atarracada forma do que deveria ser a Sra. MacLaren —
olhando sob sua touca — e tossiu, inclinando-se e saindo sem esperar pela resposta.
O Sr. MacLaren foi trancar a porta, e a mulher da casa se virou para Roger, bocejou
cavernosamente, e depois apontou em direção à cama, coçando a bunda inconscientemente.
— Você pode dormir com ele — ela disse — Tire-o da cama se ele morrer, sim? Eu não
quero que minhas colchas se estraguem.
Ela tinha levado uvas para Jock MacLeod, que eram o presente tradicional para os hospitais. E
uma garrafa de Bunnahabhain4 de dezoito anos, que tinha iluminado o seu rosto — ou o que
podia ser visto dele abaixo das bandagens que envolviam sua cabeça e o machucado que
estreitava os olhos injetados de sangue.
— Oh, eu estou um pouco pálido — ele havia dito a ela, envolvendo a garrafa em seu
roupão e entregando-a para que a escondesse em seu armário de cabeceira —, mas não estou
tão mal. Uma pancada na cabeça, e foi só isso. Eu só estou feliz pelo rapaz ter conseguido
escapar. Você sabe como ele foi parar no túnel, moça?
Ela contou a ele a versão oficial, ouviu pacientemente suas especulações, e depois
perguntou se ele talvez conhecia o homem que batera nele.
— Bem, eu o reconheci — Jock disse, surpreendendo-a. Ele se recostou em seus
travesseiros —, o que não quer dizer que eu saiba o seu nome. Mas eu já o vi, sim, muitas vezes.
Ele capitaneava um barco no canal.
— O quê? Um barco fretado, ou um dos barcos do passeio jacobita? — Seu coração bateu
mais rápido. O Canal Caledônia, ele queria dizer. Ele ia de Inverness até o Forte William e
carregava uma grande quantidade de tráfego aquático, a maior parte dele visível na estrada.
— Pelo barulho do motor, devia ser uma embarcação pequena. Eu só o notei porque o
primo de minha mulher tem um parecido; saímos nele uma vez. Dez metros, eu acho.
— Você disse à polícia, é claro.
— Sim, eu contei — Ele bateu os dedos contundentes sobre a colcha, olhando de lado para
ela — Eu descrevi o homem o melhor que pude, mas, você sabe, ele não parece incomum. Eu o
reconheceria, e talvez o seu rapaz também, mas eu não sei se a polícia o encontraria facilmente.
Ela tirava o canivete suíço do bolso enquanto falava, brincando com ele meditativamente,
abrindo e fechando as lâminas. Ela abriu o saca-rolhas, testando a ponta afiada com o polegar.
— Você acha que poderia descrevê-lo para mim? Eu desenho um pouco; eu poderia fazer
um retrato falado.
Ele riu para ela, olhos desaparecendo na carne machucada.
— Sirva-me uma dose, moça, e nós podemos conversar.
Brianna chegou a Lallybroch mais uma vez no final da tarde, em cima da hora para seu encontro
com o serralheiro às quatro horas. Um pedaço de papel atado à porta balançava-se no vento de
outono; ela o arrancou e o abriu com os dedos gelados.
Tive uma ligação de emergência em Elgin; não vou estar de volta até a noite. Ligarei pela
manhã. Desculpa, Will Tranter.
4 Uísque escocês
Ela olhou em volta, receosa, mas não viu nada fora do normal. O terreno ao redor da casa
estava tranquilo, o pequeno rebanho de ovelhas já recolhidos após o pôr do sol. Ela inspirou
profundamente, virando-se de um lado para o outro como fazia quando ia caçar com seu pai
nas florestas da Carolina do Norte, como se pudesse capturar o cheiro dos cervos com a brisa.
O que ela estava procurando agora? Fumaça de escapamentos. Borracha, metal quente,
poeira no ar, o fantasma de um carro. Ou talvez alguma outra coisa, ela pensou, lembrando-se
do fedor do suor de Rob Cameron. O cheiro de um estranho.
Mas o ar frio trouxe a ela apenas o cheiro das folhas mortas, das fezes de ovelhas, e uma
pitada da essência de terebintina da plantação de pinheiros da Comissão Florestal, a oeste.
Ainda assim. Ela ouvira seu pai mencionar uma sensação atrás do pescoço quando alguma
coisa estava errada, e ela sentiu os cabelos de sua nuca se arrepiarem. Ela se virou, voltou para
o carro e dirigiu para longe de lá, olhando automaticamente para trás de si a cada poucos
minutos. Havia um posto de gasolina alguns quilômetros à frente na estrada; ela parou ali para
ligar para Fiona e dizer que pegaria as crianças pela manhã, depois comprou alguns petiscos e
dirigiu de volta, pegando a estrada de terra batida que circulava a borda mais distante das terras
de Lallybroch, o que a levou para dentro da plantação de pinheiros.
Nesta época do ano, escurecia às quatro e meia da tarde. Até a encosta, a pista não era
mais do que dois buracos lamacentos, mas ela seguiu com cuidado ao longo deles até chegar a
uma das clareiras onde os guardas florestais empilhavam gravetos para queimar. O ar era
áspero com o cheiro de lenha e uma grande mancha enegrecida na terra ainda lançava brasas e
fumaças, mas o fogo já tinha se extinguido. Ela dirigiu o carro para trás de um monte de galhos
recém-recolhidos, empilhados para o próximo dia, e desligou a ignição.
Quando ela desviou da plantação, carregando a espingarda em uma das mãos, algo grande
passou por sua cabeça em silêncio total e ela tropeçou, ofegante. Uma coruja; ela desapareceu,
um borrão pálido no escuro. Apesar de seu coração disparado, ela estava feliz em vê-la. Animais
brancos eram portadores de boa sorte para o folclore céltico; ela poderia fazer bom uso da
sorte.
Corujas são guardiãs dos mortos, mas não apenas dos mortos. Elas são mensageiras entre
os mundos. Por um instante, Roger estava próximo a ela, sólido, quente na noite fria, e ela
levantou a mão por impulso, como se fosse tocá-lo.
Então ele tinha partido e ela estava parada sozinha nas sombras dos pinheiros, olhando
na direção de Lallybroch, a arma fria em sua mão — Eu vou trazê-lo de volta, Roger — ela
sussurrou baixinho, e fechou a mão esquerda em um punho, apertando o anel de cobre com o
qual eles tinham se casado — Eu vou — Mas primeiro ela tinha que se certificar de que as
crianças estavam seguras.
A noite se levantou em torno da casa e Lallybroch desapareceu lentamente de seu campo
de visão, uma mancha mais pálida contra a escuridão. Ela checou a trava da arma e se moveu
silenciosamente em direção à casa.
Ela andou pela colina atrás da torre, o mais silenciosamente possível. O vento tinha chegado, e
ela duvidava que qualquer um pudesse ouvir seus passos sobre o farfalhar do tojo e de palha
seca que crescia ali.
Se eles estivessem esperando por ela, querendo fazer-lhe algum mal, certamente estariam
na casa. Mas se eles apenas queriam saber onde ela estava... eles poderiam estar observando a
casa, e este era o lugar para fazer isso. Ela parou encostada ao muro da torre e colocou a mão
nas pedras, ouvindo. O farfalhar fraco, pontuado por um ocasional sopro do vento. Os morcegos
já teriam saído para caçar há tempos, mas os pombos estavam em seus ninhos.
Pressionando as costas contra as pedras, ela se esgueirou por toda a torre, parando perto
da porta, e esticou a mão, tateando pelo trinco. O cadeado estava frio em sua mão, intacto e
trancado. Soltando a respiração, ela se atrapalhou com o molho de chaves em seu bolso e
encontrou a chave correta pelo tato.
Os pombos adormecidos entraram em erupção em uma louca vibração quando o vento da
porta aberta deslizou para cima, para as vigas do teto onde estavam pousados, e ela se apressou
a encostar na parede, fora do caminho de uma chuva tamborilante de incontinência por causa
do medo. Os pombos se acalmaram rapidamente, entretanto, e pousaram novamente em um
farfalhar murmurante de indignação por serem perturbados.
Os andares superiores tinham despencado há muito tempo e as madeiras tinha
desaparecido; a torre era como uma concha, mas uma concha resistente, suas pedras exteriores
restauradas ao longo dos anos. A escada fora construída a partir da própria parede, os degraus
de pedra fixos entre o interior e o exterior da parede, e ela colocou a arma sobre o ombro para
subir lentamente, sentindo o caminho com uma das mãos. Havia um isqueiro em seu bolso, mas
não havia necessidade de se arriscar ao usá-lo.
Quando tinha subido um terço do caminho, parou em uma janela que dava uma ótima
vista da casa abaixo. Estava frio nas escadas, mas sua jaqueta era grossa e ela não iria congelar.
Ela pegou uma barra de Violet Crumble de seu bolso e se sentou para esperar.
Ela tinha ligado para a Hydro Board e pedido por uma semana de folga para lidar com uma
emergência familiar. Notícias do que tinha acontecido na represa Loch Errochty na noite
passada tinham se espalhado, então ela não tivera nenhuma dificuldade, com exceção de se
desviar da enxurrada de exclamações de simpatia e perguntas curiosas — que ela alegava não
ser capaz de responder, devido ao inquérito policial em curso.
A polícia... eles poderiam ajudá-la. Jock tinha contado a eles sobre o homem na represa;
eles estavam atrás dele. Ela teve que contar sobre Rob Cameron. E, com alguma relutância, ela
disse que ele tinha invadido sua casa e a ameaçado, já que provavelmente Mandy iria tagarelar
sobre isso. Ela contou a eles sobre o seu descontentamento por ser supervisionado por uma
mulher e sobre o assédio no trabalho — embora aquilo parecesse um motivo insignificante para
sequestrar uma criança. Entretanto, ela não tinha mencionado a maior parte das coisas físicas,
nem o buraco do padre ou a fuga assistida de Cameron. Apenas dissera que havia batido nele
— primeiro com a caixa de cartas, e depois com o bastão de críquete — e ele tinha fugido. Ela
tinha saído com Mandy para encontrar Jem, aquilo sendo obviamente mais urgente do que ligar
para polícia. A polícia não concordava com sua avaliação, mas eles eram britânicos e muito
educados em sua desaprovação.
Ela contou que Cameron havia dito a ela onde Jem estava. Se a polícia o encontrasse, ele
não estaria em posição de contradizê-la. Ela realmente queria que o capturassem. Poderia haver
complicações, mas ela se sentiria mais segura se ele não estivesse vagando por aí solto. Com seu
rifle. Possivelmente escondido na sua casa.
Sua mão se fechou dentro do profundo bolso de sua jaqueta, sentindo os contornos
confortáveis de dezenas de balas de espingarda.
37 – COGNOSCO TE5
O curandeiro chegou no meio da tarde. Ele era um homem baixo, mas não franzino; ele parecia
um lutador amador, com ombros quase tão largos quanto os de Roger. Ele não se apresentou,
mas assentiu educadamente para a Sra. MacLaren, seus olhos passando pela sala em um olhar
breve e abrangente, e depois focaram em Buck, que tinha caído em um sono inquieto e não
acordou nem mesmo com a perturbação causada pela entrada do curandeiro.
— Ele diz que seu coração... — Roger começou sem jeito. O homem olhou bruscamente de
lado para ele, depois acenou a mão numa postura de dispensa e, andando, olhou atentamente
para Buck por um momento. Todos os MacLarens esperavam em um silêncio sem fôlego,
claramente esperando por alguma coisa espetacular.
O homem assentiu para si mesmo, removeu o casaco e virou-se de costas apenas com a
camisa, exibindo musculosos antebraços bronzeados pelo sol.
— Bem, então — ele disse, sentando-se na cama e colocando uma mão no peito de Buck
— Deixe-me... — Seu rosto ficou completamente inexpressivo e ele tirou apressadamente a mão
como se tivesse recebido um choque elétrico.
Ele balançou a cabeça rápida e intensamente e abriu a camisa de Buck, mergulhando as
duas mãos na abertura e colocando-as horizontalmente no peito de Buck.
— Jesu — ele sussurrou — Cognosco te!
De repente, todos os pelos do corpo de Roger se arrepiaram, ardendo como se uma
tempestade se aproximasse. O homem tinha falado em Latim, e o que ele disse foi “Eu conheço
você”.
5 Eu te conheço.
Todos eles estavam respirando, os corações batendo como um — e de alguma forma eles
estavam dando suporte ao homem doente, segurando-o como parte de uma entidade maior,
abraçando-o, ajudando-o. O coração doente de Buck estava na palma da mão de Roger: ele
percebeu isso de repente e, também repentinamente, ele percebeu que tinha estado ali por
algum tempo, descansando naturalmente na curva de sua palma como uma pedra de rio
arredondada, lisa e pesada. E... batendo, ao mesmo tempo que o coração no peito de Roger. O
que era muito estranho é que nada disso pareceu fora do comum.
Estranho — e impressionante — como era, Roger poderia tê-lo explicado. Sugestão em
massa, hipnose, força de vontade e disposição. Ele tinha feito a mesma coisa consigo mesmo
inúmeras vezes, cantando — quando a música prendia o público a ele, quando ele sabia que eles
estavam juntos e o seguiriam para qualquer lugar. Ele tinha feito aquilo uma ou duas vezes,
durante a pregação; sentira as pessoas calorosas com ele e levantando-o da mesma forma que
ele as levantava. Era impressionante ver aquilo sendo feito tão rapidamente e sem qualquer
tipo de aquecimento, entretanto — e era muito mais inquietante sentir os efeitos em sua
própria carne. O que o estava aterrorizando, entretanto, é que as mãos do curandeiro estavam
azuis.
Não havia dúvida sobre isso. Não era um truque de luz — não havia nenhuma para falar a
verdade, com exceção do brilho opaco que saía do fogo. Não era uma coisa enorme; sem
fulgurações de fogo ou neon. Mas um azul suave surgindo entre os dedos do curandeiro,
rastejando sobre as costas de suas mãos — e agora se espalhando em uma leve neblina ao redor
de suas mãos, parecendo penetrar o peito de Buck.
Roger olhou para um lado, e depois para outro, sem mover a cabeça. Os MacLarens
estavam prestando atenção, mas não mostravam sinal algum de terem visto qualquer coisa
surpreendente. Eles não viam. Os pelos de seus antebraços se levantaram silenciosamente. Por
que ele via?
Thup-tup... thup-tup... thup-tup... Incansável, regular — e ainda assim, Roger se tornou
consciente de uma súbita mudança. Não no ritmo do curandeiro — aquele não variava de forma
alguma. Mas alguma coisa havia mudado. Ele olhou para baixo involuntariamente em sua mão,
onde ainda estava imaginando o coração de Buck, e agora estava quase surpreso ao vê-lo ali,
um objeto redondo fantasmagórico, transparente mas pulsando regular e gentilmente. Por
conta própria.
Thup-tup... thup-tup... thup-tup. O curandeiro agora estava seguindo, não liderando. Não
diminuindo as batidas, mas parando por um período mais longo entre elas, deixando que o
coração de Buck bater sozinho entre eles.
Por fim, o som fraco parou, e havia um silêncio no cômodo pelo comprimento de três
batimentos. E então o silêncio se quebrou como uma bolha de sabão, deixando os espectadores
piscando e balançando suas cabeças, como se tivessem acordado de um sonho. Roger fechou
sua mão vazia.
— Ele ficará bem — O curandeiro disse para a Sra. MacLaren, de uma maneira prática —
Deixe-o dormir o máximo que puder, e dê algo para ele comer quando acordar.
— Muito obrigado, senhor — a Sra. MacLaren murmurou. Ela deu um tapinha em
Josephine, que tinha adormecido com a boca aberta, uma trilha brilhante de saliva caindo do
canto de sua boca até o ombro de sua mãe — Devo fazer uma cama para você perto do fogo?
— Ah, não — O curandeiro disse, sorrindo. Ele colocou seu casaco, vestiu o manto e pegou
o chapéu — Eu não estarei muito distante.
Ele saiu, e Roger esperou por um momento, apenas longo o bastante para que todos
voltassem a conversar, e então o seguiu, fechando a porta silenciosamente atrás de si.
O curandeiro estava um pouco abaixo na estrada; Roger viu o vulto escuro do homem se
ajoelhando em oração diante de um pequeno santuário, as extremidades de seu manto
esvoaçando no vento. Roger se aproximou dele lentamente, ficando um pouco para trás para
não perturbar suas devoções — e, por impulso, inclinou sua cabeça em direção à pequena
estátua, tão desgastada que não tinha rosto. Cuide bem deles, por favor, ele rezou. Ajude-me a
voltar para ele... para Bree. Isso foi tudo o que ele teve tempo de pedir, antes de o curandeiro se
levantar — mas era tudo o que ele tinha para dizer, de qualquer forma.
O curandeiro não o tinha ouvido; ele se levantou e se virou, surpreso ao ver Roger, mas
reconhecendo-o instantaneamente. Ele sorriu, um pouco cansado, claramente esperando
alguma questão médica de natureza privada.
O coração acelerado, Roger esticou a mão e pegou a do curandeiro entre as suas. Os olhos
do homem se arregalaram em choque.
— Cognosco te — Roger disse, muito suavemente. Eu conheço você.
— Então, quem é você? — Dr. Hector McEwan ficou parado e o encarando com os olhos estreitos
contra o vento, seu rosto cauteloso, mas excitado — Vocês dois... quem são vocês?
— Talvez você saiba disso melhor do que eu — Roger disse a ele — Aquela... luz nas suas
mãos...
— Você conseguiu ver — Não era uma pergunta, e a cautelosa emoção dos olhos de
McEwan veio à vida, visível até mesmo à luz difusa.
— Sim, eu consegui. Onde é que você... — Roger procurou pela melhor forma de perguntar,
mas, afinal de contas, quantas formas existiam? — De quando você veio?
McEwan olhou involuntariamente sobre o ombro em direção à pequena cabana, mas a
porta estava fechada, a fumaça saindo do buraco no telhado. Estava começando a chover, um
tamborilar premonitório entre a urze amontoada perto do caminho. Ele se moveu
abruptamente, pegando os braços de Roger.
— Venha — ele disse — Não podemos ficar aqui, sombrio como está; estaremos
chamando a morte.
“Sombrio” era a palavra; a chuva começara para valer e Roger estava ensopado em
questão de minutos, tendo saído sem chapéu ou capa. McEwan o guiou rapidamente pelo
caminho sinuoso através de moitas de tojo escuro, emergindo em um trecho de charneca, onde
os restos de uma pequena horta ofereciam algum abrigo. O lugar havia sido queimado e
recentemente; o cheiro ainda permanecia. Um canto de palha permanecia, no entanto, e eles
entraram embaixo, muito próximos em sua proteção escassa.
— Anno Domini, mil oitocentos e quarenta e um — McEwan disse diretamente, sacudindo
a chuva de seu casaco. Ele olhou para Roger, uma sobrancelha grossa levantada.
— Mil novecentos e oitenta — Roger replicou, o coração martelando. Ele limpou a
garganta e repetiu a data; o frio tinha afetado sua garganta, e as palavras emergiram em um
coaxar estrangulado. McEwan se inclinou próximo ao som, olhando para ele.
— O que é isso? — O homem perguntou de forma afiada — Sua voz... está se quebrando.
— Não é nad... — Roger começou, mas os dedos do curandeiro já estavam rastejando por
trás de sua cabeça, desfazendo o nó da gravata. Ele fechou os olhos, sem resistir.
Os dedos largos de McEwan estavam frios em seu pescoço; ele sentiu o toque gelado e
delicado em sua pele enquanto ele traçava a cicatriz da corda e, depois, com mais força, quando
o curandeiro cutucou delicadamente em volta de sua laringe danificada, criando uma sensação
involuntária de asfixia, e ele tossiu. McEwan pareceu surpreso.
— Faça isso de novo — ele disse.
— O que, tossir? — Roger disse, rouco como um corvo.
— Sim, isso — McEwan colocou a mão confortavelmente em torno do pescoço de Roger,
logo abaixo de seu queixo, e assentiu — Uma vez, depois espere e faça de novo — Roger tossiu
gentilmente, sentindo uma leve dor com cada expulsão de ar onde a mão do curandeiro
pressionava. O rosto do homem se iluminou com interesse, e ele removeu a mão.
— Você sabe o que é um osso hioide?
— Se eu tivesse que adivinhar, diria que é algo no pescoço — Roger limpou a garganta e
esfregou o pescoço, sentindo a aspereza da cicatriz abaixo da palma de sua mão — Por quê? —
Ele não tinha certeza se devia ficar ofendido pela intrusão pessoal ou... alguma outra coisa. Sua
pele formigava ligeiramente onde McEwan o tinha tocado.
— Está logo ali — disse o curandeiro, pressionando com o polegar, logo abaixo do queixo
de Roger — E se ele tivesse estado aqui — ele moveu o polegar alguns centímetros para baixo
—, você estaria morto, senhor. É um osso pequenino e frágil. É fácil de estrangular alguém
quebrando-o, com os dedos ou com uma corda — Ele se afastou um pouco, os olhos atentos em
Roger; a curiosidade ainda estava estampada em seu rosto, mas a cautela retornara — Você e o
seu amigo estão fugindo de... alguma coisa? Ou alguém?
— Não — Roger se sentiu muito cansado, a tensão de tudo apossando-se dele, e olhou em
volta para procurar um lugar para sentar. Não havia nada além de pedaços escuros de rocha
que caíram da parede da casa de campo quando a palha em chamas foi puxada para baixo. Ele
empurrou dois blocos juntos e se sentou em um deles, os joelhos próximos das orelhas — Eu...
isso — Ele tocou seu pescoço brevemente — foi há muito tempo, não tem nada a ver com o que
nós... nós... nós estamos procurando meu filho. Ele só tem nove anos.
— Oh, Deus! — O rosto largo de McEwan se vincou com simpatia — Como...?
Roger levantou uma mão — Você primeiro — ele disse, e limpou a garganta mais uma vez
— Eu direi tudo o que sei, mas... você primeiro. Por favor.
McEwan apertou os lábios e olhou para o lado, pensando, mas depois deu de ombros e se
abaixou, grunhindo, para o seu próprio assento rústico.
— Eu era um médico — ele disse abruptamente — Em Edimburgo. Eu vim para as
Highlands para caçar perdizes com um amigo. As pessoas ainda fazem isso, cem anos depois?
— Sim. Perdizes ainda são saborosas — Roger disse secamente — Foi através de Craigh
na Dun que você atravessou, então?
— Sim, eu... — McEwan parou abruptamente, percebendo no que a pergunta implicava —
Querido Deus no céu, você está me dizendo que existem outros lugares? Onde... isso acontece?
— Sim — Os pelos dos braços de Roger se arrepiaram — Quatro que eu saiba;
provavelmente há outros. Quantos círculos há nas Ilhas Britânicas?
— Não tenho ideia — McEwan estava claramente abalado. Ele se levantou e foi até a porta,
a soleira chamuscada e o lintel queimado quase completamente. Roger esperava que nenhuma
das pedras acima caísse na cabeça do homem, pelo menos não até que ele descobrisse mais
coisas.
Dr. McEwan ficou ali por um longo tempo, olhando para a chuva, que tinha adquirido o
tom cinza prateado da pele de um gato. Finalmente ele balançou a cabeça e voltou, a boca
definida em uma firme decisão.
— Sim, não há nada a ganhar com o sigilo. E eu espero que não haja nada a perder com a
honestidade.
A última frase não foi dita como uma pergunta, mas Roger assentiu e tentou parecer sério.
— Bem, então. Perdizes, eu dizia. Estávamos na charneca, logo abaixo daquela colina onde
as pedras estão. De repente, uma raposa se atirou para fora de uma samambaia, diretamente
no meu pé, e um dos cachorros perdeu a cabeça e a perseguiu. Brewer (este é o meu amigo,
Joseph Brewer) correu atrás dele, mas ele tem... ele tinha — McEwan se corrigiu, com uma
expressão de irritação leve que fez Roger querer sorrir, porque ele estava muito familiarizado
com o sentimento de ter que lidar com o fenômeno — um pé torto. Ele conseguia caminhar bem
com uma bota especial, mas escalar e correr... — Ele deu de ombros.
— Então, você foi atrás do cachorro e... — Roger deu de ombros involuntariamente com a
memória, bem como McEwan.
— Exatamente.
— O cachorro... passou? — Roger perguntou de repente. McEwan pareceu surpreso e
vagamente afrontado.
— Como eu poderia saber? Ele não apareceu onde eu caí, eu posso dizer isso.
Roger fez um breve gesto de desculpas.
— Só fiquei curioso. Nós... Minha esposa e eu estivemos tentando decifrar o máximo que
podemos sobre isso, para o bem dos nossos filhos — “Filhos” ficou preso em sua garganta,
saindo como não mais do que um sussurro, e a expressão de McEwan se suavizou.
— Sim, é claro. Seu filho, você disse?
Roger assentiu e tentou explicar o que podia, sobre Cameron, as cartas... e, depois de um
momento de hesitação, sobre o ouro do espanhol, afinal de contas, ele tinha uma razão para
acreditar que Cameron levaria Jem para lá em primeiro lugar, e ele sentia que Dr. McEwan
possuía uma sólida bondade.
— Querido Deus — o doutor murmurou, balançando a cabeça em consternação — Eu vou
perguntar entre os meus pacientes. Talvez alguém... — Ele parou, com o rosto ainda
preocupado. Roger teve a distinta impressão de que a preocupação não era apenas direcionada
a Jem, ou até mesmo pela descoberta impressionante de que havia outro...
Ele parou, vendo claramente na mente o brilho azul suave que rodeava os dedos de
McEwan — e o olhar de surpresa e prazer em seu rosto. Cognosco te. Eu te conheço. Prazer, não
apenas choque. Ele e Buck não eram os primeiros viajantes que ele conhecia. Mas o doutor não
havia dito muito. Por que não?
— Há quanto tempo está aqui? — Roger perguntou, curioso.
McEwan suspirou e esfregou uma mão no rosto.
— Talvez por tempo demais — ele disse, mas depois afastou o pensamento, endireitando-
se — Dois anos, aproximadamente. Falando em tempo demais... — Ele se endireitou, puxando
a capa sobre os ombros — Ficará escuro em menos de uma hora. Eu preciso ir, se quero chegar
à Cranesmuir ao anoitecer. Eu virei novamente amanhã para atender seu amigo. Poderemos
conversar um pouco mais.
Ele se virou abruptamente, mas de repente virou de volta e, esticando a mão, segurou a
garganta de Roger em sua mão.
— Talvez — ele disse, como se fosse para si mesmo — Apenas talvez — Então, ele assentiu
mais uma vez, e partiu, sua capa balançando como as asas de um morcego atrás dele.
38 – O NÚMERO DA BESTA
Após Fraggle Rock, a televisão passou para o noticiário da noite, e Ginger esticou a mão para
desligá-la, mas parou abruptamente quando uma imagem de Jem no ano anterior da escola
piscou na tela. Ela olhou para a televisão, a boca semiaberta, e depois olhou incredulamente
para Jem.
— É você! — ela disse.
— Eu sei disso — ele disse irritado — Desligue, sim?
— Não, eu quero ver. — Ela o bloqueou quando ele se lançou para a tela; Ginger tinha onze
anos e era maior do que ele.
— Desligue! — ele disse, então, com astuta inspiração — Vai assustar Mandy e ela vai
chorar.
Ginger lançou a Mandy um rápido olhar — ela tinha ótimos pulmões — e, relutantemente,
desligou a TV.
— Mmphm — ela disse, e baixou a voz — Mamãe nos disse o que aconteceu, mas ela disse
que não devíamos falar sobre isso com você.
— Bom — Jem disse — Não fale — Seu coração estava martelando e ele se sentia suado,
mas suas mãos ficavam frias, e quentes e depois frias novamente.
Ele escapara, mas por pouco, mergulhando sob os arbustos plantados no topo do
vertedouro e rastejando para baixo da borda de concreto até encontrar uma depressão e cair
na água. Ele se sacudiu para baixo o máximo que podia e se segurou com força até que suas
mãos ficassem dormentes, com a água negra se revirando a centímetros dos seus pés e
desaparecendo no vertedouro por ele, encharcando-o com as gotas frias. Ele ainda podia sentir
seus ossos tremerem com isso.
Ele pensou que poderia vomitar se pensasse sobre isso mais um pouco, então se virou e
passou a olhar para a caixa de brinquedos das meninas pequenas. Estava cheia de brinquedos
de meninas, é claro, mas talvez se elas tivessem uma bola... Elas tinham. Era cor de rosa, mas
daquele tipo que quica bem.
— Nós poderíamos ir para o jardim, talvez, e jogar um pouco? — ele sugeriu, quicando a
bola no chão e a pegando.
— Está escuro e chovendo a cântaros — Tisha disse — Não quero me molhar.
— Ah, é só uma garoa! O quê? Você é feita de açúcar?
— Sim — disse Sheena, com um sorriso afetado — Açúcar e especiarias e tudo de bom, é
disso que as garotas são feitas. Recortes e caracóis e caudas de filhotinhos...
— Venha brincar de boneca — sugeriu Tisha, balançando uma boneca nua para convidá-
lo — Você pode ficar com o GI Joe se quiser. Ou você prefere o Ken?
— Não, eu não vou brincar de boneca — Jem disse firmemente — Não gosto dessas coisas
de roupa e tudo mais.
— Eu binco de boneca! — Mandy falou em seu caminho entre Tisha e Sheena, mãos
ansiosas estendidas para uma Barbie em um vestido de baile com babados rosa. Sheena a
colocou longe na hora certa.
— Sim, sim — ela acalmou o grito iminente de Mandy —, você pode brincar, com certeza.
Mas tem que brincar com cuidado; não vai querer estragar o vestido dela. Aqui, sente-se, fique
quieta, eu vou te dar esta. Está vendo seu pente e sua escova? Você pode arrumar seu cabelo.
Jem pegou a bola e saiu. A sala do andar de cima tinha carpete, mas o chão era de madeira
nua. Ele bateu a bola e ela disparou para o teto com um estrondo, por pouco não atingindo a
luminária pendurada. Ela quicou no chão e ele a pegou antes que pudesse pular de novo,
segurando-a contra o peito.
Ele ouviu por um segundo, para se certificar de que a Sra. Buchan não tinha ouvido. Ela
estava lá atrás na cozinha, entretanto; ele podia ouvir o som dela cantando junto com o rádio.
Ele estava a meio caminho nas escadas quando o sino tocou na porta da frente, e ele olhou
sobre o corrimão para ver que estava entrando. Era Rob Cameron e Jem quase engoliu a própria
língua.
Jem se apertou contra a parede do patamar, seu coração batendo tão forte que ele mal podia
ouvir a Sra. Buchan da cozinha.
Ele deveria ir pegar Mandy? Não havia outro caminho para sair da casa que não fossem as
escadas; ele não poderia descer com Mandy pela janela do salão, não havia uma árvore ou algo
parecido...
A Sra. Buchan estava dizendo olá e que ela sentia muito se o senhor estivesse querendo
um quarto, porque ela estava cheia pela semana toda. O Sr. Cameron estava sendo educado,
dizendo “não, obrigado” gentilmente, que ele só estava imaginando se podia conversar com ela...
— Se você está vendendo alguma coisa... — ela começou, e ele a interrompeu.
— Não, senhora, não é nada disso. São só algumas perguntas que eu tenho sobre as pedras
em Craigh na Dun.
Jem estava com falta de ar. Seus pulmões estavam pesados, mas ele pressionou a mão
sobre a boca para que o Sr. Cameron não pudesse ouvi-lo. A Sra. Buchan não ofegou, mas ele
podia ouvi-la inspirar profundamente e depois parar, decidindo o que dizer.
— Pedras? — ela disse, e até mesmo ele podia ver que ela estava fingindo perplexidade
— Eu não sei nada sobre as pedras.
Rob deu uma risada educada.
— Eu peço perdão, senhora. Eu deveria ter me apresentado, primeiro. Meu nome é Rob
Cameron e... Alguma coisa errada, senhora? — Ela não só tinha ofegado muito alto, como Jem
pensou que ela devia ter dado uns passos para trás sem olhar e esbarrado na pequena mesa do
hall, porque houve um baque e um “Ai!” e barulho das molduras caindo.
— Não — A Sra. Buchan disse, tentando se estabilizar — Não. Eu tive uma vertigem
apenas. Tenho pressão alta, sabe? Fiquei um pouquinho tonta. Seu nome é Cameron, certo?
— Sim. Rob Cameron. Eu sou primo por casamento de Bechy Wemyss. Ela me contou um
pouco sobre a dança nas pedras.
— Oh — Aquele “oh” significava problemas para Becky Wemyss, pensou Jem, que
conhecia muito sobre as vozes das mães.
— Eu sou um estudioso das formas antigas, sabe? Estou escrevendo um livro... De
qualquer forma, eu imaginei se não poderia talvez conversar com você por alguns minutos.
Becky disse que você saberia mais sobre as pedras e as danças do que qualquer outra pessoa.
A respiração de Jem se abrandou, uma vez que ele percebeu que o Sr. Cameron não tinha
vindo porque sabia que ele e Mandy estavam ali. Ou talvez ele soubesse e estivesse testando a
Sra. Buchan até que pudesse arrumar uma desculpa para usar o banheiro e sair em busca deles?
Ele olhou apreensivamente para a metade do lance de escadas que ia do patamar ao andar de
cima, mas a porta do átrio superior estava fechada, e mesmo que ele pudesse ouvir a risada de
Mandy por ela, provavelmente o Sr. Cameron não podia.
A Sra. Buchan estava levando o Sr. Cameron para a cozinha. Sua voz não parecera nada
amigável ao dizer “Venha comigo, vou dizer o que puder”. Jem imaginou se ela poderia colocar
veneno de rato no chá do Sr. Cameron.
Talvez a Sra. Buchan não tivesse nenhum veneno de rato, entretanto. Ele deu um passo
para o lado, depois para o outro, e então recuou. Ele realmente, realmente queria correr para
baixo nas escadas, sair pela porta e continuar se afastando. Mas não podia deixar Mandy.
Suas considerações cessaram de vez quando a porta da cozinha se abriu, mas ele pôde
ouvir que eram os passos da Sra. Buchan, e somente os dela, vindo rápida e suavemente.
Ela virou-se para subir as escadas, mas parou quando o viu no corredor, uma mão ao peito.
Então, ela correu para ele e o abraçou com força, sussurrando em seu ouvido.
— Maldição, rapaz! O que você está... bem, não importa, eu estava vindo procurar você.
Você o viu?
Jem assentiu, sem palavras, e a boca da Sra. Buchan se fechou.
— Sim. Vou levá-lo para fora. Saia pelo portão. A duas casas daqui mora a Sra. Kelleher.
Bata em sua porta e diga que eu te enviei para usar o telefone. Ligue para a polícia e diga que o
homem que te sequestrou está aqui... você sabe o endereço, não é?
Ele assentiu. Ele tinha visto o número quando visitara a casa antes, com mamãe e papai e
se lembrava porque era 669; papai tinha dito que deveria ser 666, mas aquele era o número da
besta. Jem perguntara se o Sr. ou a Sra. Buchan eram a besta, e mamãe e papai riram como
mergulhões.
— Bom — disse a Sra. Buchan, soltando-o — Vá, então.
— Mandy... — ele começou, mas ela o calou.
— Eu vou cuidar dela. Venha!
Ele correu pelas escadas atrás dela, tentando não fazer nenhum barulho, e, na porta, ela
ficou na ponta dos pés e segurou o pequeno sino para que ele não soasse.
— Corra! — ela sussurrou.
Ele correu.
A Sra. Kelleher era uma velha e surda senhora. Jem estava sem fôlego e com tanto medo que
não conseguia juntar as palavras da forma correta, por isso demorou um tempo até que ela o
levasse ao telefone, e depois a mulher na delegacia desligou duas vezes, porque ela pensou que
era uma criança passando trotes.
— Eu sou Jeremiah MacKenzie! — ele gritou, na próxima vez que ela atendeu — Eu fui
sequestrado!
— Você foi? — disse a Sra. Kelleher, muito assustada. Ela pegou o telefone dele — Quem
é? — ela exigiu.
Houve um chiado suave... pelo menos a policial não desligou de novo. A Sra. Kelleher se
virou e olhou através de seus óculos para ele.
— Para quem você estava querendo ligar, rapaz? Você ligou para a polícia por engano.
Ele realmente queria bater em alguma coisa, mas não podia bater na Sra. Kelleher. Ele
disse algo muito feio em gaélico, e sua boca se abriu. Ela tirou o telefone da orelha, entretanto,
e ele o pegou.
— O homem que me sequestrou está aqui — ele disse, tão lentamente quanto podia — Eu
preciso que alguém venha! Antes que... — A inspiração bateu — antes que ele machuque a
minha irmãzinha! É na Glenurquhart Road, número 669. Venha imediatamente! — Então, ele
desligou o telefone antes que a mulher começasse a fazer perguntas.
A Sra. Kelleher tinha muitas perguntas, e ele não queria ser rude, então perguntou se podia
usar o banheiro e fechou a porta contra ela, depois foi para as janelas superiores, esperando
pela polícia.
Nada aconteceu pelo que pareceu uma eternidade. As gotas de chuva começaram a
escorrer pelo seu cabelo e pelos cílios, mas ele estava com medo de perder alguma coisa. Ele
estava limpando a água dos olhos quando repentinamente a porta do número 669 se abriu e
Rob Cameron saiu correndo, pulou num carro e saiu cantando os pneus.
Jem quase caiu da janela, mas depois correu de volta para o banheiro, quase derrubando
a Sra. Kelleher no caminho.
— Obrigado, Sra. Kelleher! — ele gritou sobre o ombro, pulando três degraus de cada vez,
e saindo correndo pela porta.
Havia muita gritaria e choradeira dentro da casa dos Buchans, e ele sentiu seu peito se
apertar tanto que ele mal conseguia respirar.
— Mandy! — Ele tentou chamar, mas seu nome saiu num sussurro.
A porta da frente estava aberta. Lá dentro, havia garotas em todo lugar, mas ele viu Mandy
na confusão do átrio imediatamente e correu para agarrá-la. Ela não estava chorando, mas ela
se agarrou a ele como uma sanguessuga, escondendo a cabeça de cabelos escuros e cacheados
em seu estômago.
— Está tudo bem — ele disse a ela, apertando-a com alívio — Está tudo bem, Man. Eu te
peguei. Eu te peguei.
Seu coração começou a desacelerar um pouco, e ele viu que a Sra. Buchan estava sentada
no sofá, segurando uma toalha cheia de cubos de gelo em seu rosto. Alguns dos cubos de gelo
tinham caído e estavam no tapete aos seus pés. Tisha e Sheena estavam se agarrando à sua mãe
e chorando, e Ginger estava tentando alisar os cabelos de sua mãe e confortar as irmãs ao
mesmo tempo, mas seu rosto estava muito pálido e as lágrimas escorriam silenciosamente.
— Sra. Buchan... está tudo bem? — Jem perguntou timidamente. Ela tinha um estranho
sentimento na boca do estômago. De alguma forma, ele tinha certeza que aquilo era culpa sua.
A Sra. Buchan olhou para ele. Um lado de seu rosto estava inchado e o olho estava metade
fechado, mas do outro lado, seu olho estava injetado com fogo, e aquilo o fez se sentir melhor.
— Sim, tudo bem, Jem — ela disse — Chega, meninas! Está tudo bem; não é nada além de
um olho roxo. Parem de fazer barulho, sim? Eu não consigo ouvir os meus pensamentos.
Ela deu uma sacudidela sutil e bem humorada para se livrar do aperto das meninas,
empurrando e dando palmadinhas nelas com a mão livre. Então, houve uma batida na porta e
uma voz de homem.
— Polícia aqui! Alguém está em casa?
Jem poderia ter dito à Sra. Buchan o que acontecera quando ele havia chamado a polícia.
Perguntas, e perguntas, e mais perguntas. E se havia coisas que não podiam ser ditas à polícia...
Pelo menos a Sra. Buchan não deixaria que os policiais o levassem para a delegacia para
responder a mais perguntas, insistindo que não poderia deixar as meninas sozinhas. Quando a
polícia saiu, Mandy e Sheena estavam ambas dormindo no sofá, curvadas numa bola como dois
gatinhos, e Ginger e Tisha tinham feito chá para todos, e então se sentaram bocejando num
canto juntas, piscando ocasionalmente para se manterem acordadas.
Poucos minutos depois de a polícia sair, o Sr. Buchan chegou para o jantar, e todas as
explicações tiveram que ser passadas de novo. Não havia muito o que dizer: a Sra. Buchan tinha
sentado com o Sr. Cameron na cozinha e dito a ele um pouco sobre as danças... não eram um
segredo, a maioria das pessoas que viviam em Inverness há algum tempo sabia sobre elas.
Porém, ela tinha deixado o rádio ligado enquanto estavam conversando e, de repente, o locutor
disse o nome de “Robert Cameron” e que ele estava sendo procurado pelo sequestro de um
garoto da região e...
— E então o filho da puta saltou da cadeira, assim como eu, e ele deve ter pensado que eu
tinha intenção de pará-lo. Eu estava entre ele e a porta, no meio do caminho, e ele me socou no
olho, me empurrou na parede e saiu correndo.
O Sr. Buchan estava lançando olhares ocasionais para Jem e parecia querer perguntar
algumas coisas, mas, em vez disso, disse que iriam para a cidade para comer peixe, uma vez que
era tão tarde, e todos começaram a se sentir melhor. Jem podia ver a troca de olhares entre os
Buchans, entretanto, e ele meio que imaginou se o Sr. Buchan não tinha a intenção de deixar
Mandy e ele na delegacia na volta. Ou talvez deixá-los na borda da estrada.
39 – O FANTASMA DE UM ENFORCADO
Os céus se abriram, e Roger estava molhado até os ossos por causa do tempo em que caminhara
até a cabana dos MacLarens. Em meio aos gritos de desespero da Sra. MacLaren e de sua velha
mãe, ele foi apressadamente despido, embrulhando em uma colcha irregular e confortável e
colocado em frente ao fogo, onde sua presença atrapalhava bastante a preparação do jantar.
Buck, apoiado em travesseiros com os dois menores MacLarens enrolados e dormindo ao seu
lado, levantou uma sobrancelha inquisitiva para Roger.
Roger moveu sua mão levemente, em um gesto que deixava claro que ele contaria depois.
Ele pensou que Buck parecia melhor; havia cor em seu rosto e ele estava sentado na posição
vertical, não escorado na cama. Por um breve instante, Roger imaginou o que aconteceria se ele
colocasse a própria mão em Buck. Ela ficaria azul?
O pensamento lançou um arrepio por ele, e Allie, uma das filhas dos MacLarens, afastou a
ponta de sua colcha para longe do fogo com um grito de alarme.
— Tenha cuidado, senhor!
— Sim, tome cuidado! — disse Vovó Wallace, puxando o ferro enegrecido que cuspia
gordura quente para longe das pernas nuas dele e fazendo movimentos com as mãos — Basta
uma faísca disso e você se acenderá como um pavio — Ela era cega de um dos olhos, mas o outro
era afiado como uma agulha e ela lançou um olhar penetrante a ele — Alto como você é,
provavelmente colocaria fogo até nas vigas, e depois eu gostaria de saber para onde todos nós
iríamos.
Houve um burburinho geral com aquilo, mas ele pensou que a risada carregava uma nota
desconfortável e imaginou o motivo.
— Moran taing — Roger disse em um educado agradecimento pelo conselho. Ele se moveu
uns trinta centímetros para longe do fogo, posicionando-se próximo à cadeira onde o Sr. Angus
MacLaren estava sentado, consertando seu cachimbo — Já que falou nas vigas... há uma
pequena cabana logo acima da colina que foi queimada. Foi um acidente de cozinha?
O cômodo ficou silencioso, e as pessoas congelaram por um instante, todas olhando para
ele.
— Evidentemente não — ele disse, com uma tosse apologética — Eu sinto muito por
trazer isso à luz... As pessoas foram mortas, então?
O Sr. MacLaren deu a ele uma espécie de olhar pensativo, muito em desacordo com sua
genialidade anterior, e colocou o cachimbo no joelho.
— Não pelo fogo — ele disse — O que o levou para lá, homem?
Roger encontrou os olhos de MacLaren.
— Estava procurando pelo meu filho — ele disse simplesmente — Eu não sabia onde
olhar... então eu olho em todos os lugares. Pensando se ele conseguiu fugir, se ele está vagando
sozinho... talvez tentando encontrar algum abrigo...
MacLaren inspirou profundamente e se recostou, balançando um pouco a cabeça.
— Sim, bem. Você vai querer manter distância daquela cabana.
— É mal assombrada? — Buck perguntou, e todas as cabeças se viraram para olhar para
ele e então voltaram para o Sr. MacLaren, esperando para que ele desse a resposta.
— Pode ser — ele disse, depois de uma pausa relutante.
— É amaldiçoada — Allie sussurrou baixinho para Roger.
— Você não entrou lá, não é senhor? — disse a Sra. MacLaren, a preocupação permanente
se aprofundando entre as sobrancelhas.
— Oh, não — ele garantiu a ela — O que aconteceu lá?
McEwan não tivera qualquer hesitação ao entrar na cabana; será que ele não sabia sobre o
que quer que os preocupava?
A Sra. MacLaren fez um ruído baixinho e, balançando a cabeça, virou o caldeirão para fora
de seu suporte e começou a colher os pedaços de cozido com uma colher de pau. Não era sua
função falar sobre tais acontecimentos, era o que dizia sua boca selada.
O Sr. MacLaren fez um ruído um pouco mais alto e, inclinando-se para frente, começou a
pesadamente se colocar de pé.
— Eu vou checar os animais antes do jantar, sabe — ele disse, e deu um olhar a Roger —
Talvez você queira vir comigo e sair do caminho das moças enquanto fazem o jantar.
— Oh, sim — Roger disse, com uma leve inclinação para a Sra. MacLaren, engatando a
colcha mais alta em seus ombros e seguindo o anfitrião para o estábulo. Ele capturou o olhar de
Buck enquanto passava e deu de ombros levemente.
De maneira geral, o local onde o gado dormia era separado das pessoas apenas por uma
parede de pedra com um grande espaço no topo, permitindo que o considerável calor — bem
como pedaços flutuantes de palha e um forte cheiro de urina e estrume advindos do gado —
penetrasse o lugar. Os MacLarens tinham um estábulo confortável, bem conservado e com palha
limpa empilhada em uma das extremidades, com três vacas gordas e um touro preto e franzino
que bufava ferozmente para Roger, as narinas rubro-negras sob a luz fraca e o anel de bronze
preso ao seu nariz.
A cabana estava longe de ser fria — com nove pessoas lotando o local e um bom fogo de
turfa na lareira — mas o estábulo estava repleto de um calor abrangente e uma sensação de paz
que fez Roger suspirar e abaixar os ombros, só então percebendo que eles estavam mais
próximos das orelhas pelo que pareciam horas.
MacLaren não fez mais do que uma verificação superficial em seus animais, coçando o
touro entre as orelhas e administrando tapas confortantes nos flancos das vacas. Então, ele
levou Roger para o final do estábulo com um movimento de cabeça.
Desde sua conversa com Hector McEwan, Roger tinha uma sensação desagradável,
causada por algo que ele ouviu, mas não entendeu. E agora, quando MacLaren se virou para
falar com ele, estava ali repentinamente, claro em sua cabeça. Cranesmuir.
— Dois estranhos construíram aquela pequena cabana ali em cima — MacLaren disse —
Eles vieram do nada aparentemente; um dia eles simplesmente estavam lá. Um homem e uma
mulher, mas nós não sabíamos se eram marido e mulher, ou talvez um homem com sua filha, já
que ele parecia um pouco mais velho do que ela. Eles diziam que tinham vindo das ilhas... e eu
acho que ele talvez tivesse mesmo, mas ele não falava como qualquer habitante de ilha que eu
já conheci.
— Ela era escocesa?
MacLaren pareceu surpreso.
— Oh, sim, ela era. Ela falava gaélico. Eu diria que ela veio de algum lugar a nordeste de
Inverness, talvez Thurso... mas, mais uma vez... não era muito... certo.
Não era muito certo. Como alguém fora de seu devido lugar, fingindo.
— Como ela era? — Roger disse. Sua voz estava grossa; ele teve que limpar a garganta e
repetir.
Os lábios de MacLaren se apertaram, mas não em condenação; era o tipo de assobio sem
som que as pessoas davam ao ver alguma coisa notável.
— Bonita — ele disse — Muito bonita, na realidade. Alta e magra, mas... é... não tão magra
em algumas partes, se é que me entende — Ele abaixou a cabeça, meio envergonhado, e Roger
percebeu que sua relutância em falar sobre isso na frente das mulheres não se devia apenas à
natureza escandalosa da história.
— Entendo — Roger disse, abaixando sua própria voz para o nível confidencial de
MacLaren — Eles eram reservados, então? — Se não fossem, certamente todo o distrito saberia
sobre eles e rapidamente descobririam se eram marido e mulher.
MacLaren franziu o cenho.
— Sim, eles eram... embora ele fosse suficientemente amigável; eu o encontrei uma ou
duas vezes, fora da charneca, e nós trocamos umas palavras, e eu sempre vim embora pensando
em como ele era um bom homem, e ainda assim, quando eu contei a Maggie sobre isso, eu não
conseguia me lembrar exatamente de nada que ele havia dito.
MacLaren disse que, de alguma forma, surgiram boatos de que a mulher era um pouco
estranha... como uma curandeira, mas que talvez ela desse mais do que a cura pelas ervas se a
encontrasse sozinha em casa...
Não havia luz no estábulo salvo o brilho opaco da lareira do fogo ao lado, mas, ainda assim,
Roger podia ver que MacLaren tinha ficado corado e desconcertado com aquilo. Roger estava
começando a se sentir desconfortável também, mas não pela mesma razão.
Cranesmuir. Ele conhecia o nome, soube disso no momento em que McEwan disse. Os
MacLarens tinham dito que o curandeiro era de Draighhearnach. Cranesmuir era na direção
oposta — e a uns três quilômetros de distância. Por que ele estava indo para lá esta noite?
— Houve histórias. Sempre há histórias, sobre uma mulher como aquela — MacLaren
limpou a própria garganta — Mas ela era boa com a cura de ervas, e com os seus encantos
também. Ou, pelo menos, é o que as pessoas diziam.
Mas, então, o homem foi embora, MacLaren disse. Ninguém sabia para onde; eles apenas
não o viram mais, e a mulher continuou como antes, mas agora a maioria de seus visitantes
eram homens. E as mulheres pararam de levar seus filhos para lá, embora fossem algumas
vezes, silenciosamente, e em segredo.
E, então, um dia antes de Samhain, quando o sol estava se pondo e as grandes fogueiras
começaram a ser construídas para a noite, uma mulher da região subiu até a cabana e voltou de
lá gritando.
— Ela tinha encontrado a porta da cabana aberta, a mulher e todas as suas coisas tinham
sumido... e um homem estava pendurado na viga, morto com uma corda ao redor do pescoço.
O choque apertou a garganta de Roger. Ele não conseguia falar.
MacLaren suspirou, a cabeça inclinada. Uma vaca veio por trás dele, encostando o focinho
gentilmente, e ele colocou uma mão em seu traseiro como se procurasse apoio do animal, que
continuava placidamente ruminando.
— Foi o padre que disse que deveríamos limpar o local com fogo, pois havia o cheiro do
mal naquilo, e ninguém conhecia o homem. Nós não podíamos dizer se era apenas um pobre
homem que tirou a própria vida por desespero, ou se tinha sido um assassinato.
— Eu... entendo — Roger forçou as palavras através da queimação em sua garganta, e
MacLaren olhou repentinamente para ele. Ele viu a boca do homem se abrir, seus olhos se
esbugalharem, e percebeu que, devido ao calor, deixara que a colcha escorregasse sobre os
ombros. MacLaren estava olhando diretamente para o seu pescoço, onde a cicatriz lívida e
inconfundível do enforcamento devia aparecer à luz vermelha.
MacLaren se afastou, ou tentou se afastar, mas não havia lugar para ir. Ele se achatou
contra o flanco de uma das vacas, fazendo um ruído baixo e anasalado. A vaca pareceu irritada
com isso e levou o casco solidamente para o pé de MacLaren. A consequente angústia e fúria
pelo menos fez com que MacLaren perdesse um pouco o medo, e quando ele conseguiu se livrar,
em meio a pancadas e imprecações, ele se virou corajosamente para Roger, a mandíbula
distorcida.
— Por que você veio aqui, a thaibse? — ele disse, os punhos cerrados, mas em voz baixa
— Qualquer pecado que eu possa ter cometido, não fiz nada para você. Não tenho parte na sua
morte e eu disse que eles deveriam ter enterrado seu corpo sob a lareira antes de queimar o
local. O sacerdote não o colocaria num cemitério, certo? — ele adicionou, evidentemente
temendo que o fantasma do homem enforcado viesse reclamar sobre a disposição não
santificada onde estavam seus restos mortais.
Roger suspirou e esfregou a mão sobre o rosto, a barba áspera contra sua palma. Ele podia
ver muitos rostos curiosos, atraídos pelo grito de MacLaren, perscrutando a sombra do estábulo
pelo brilho da sala ao lado.
— Teria um rosário em sua casa, senhor? — ele disse.
Foi uma noite longa e agitada. Vovó Wallace tinha arrancado as crianças da cama de Buck, como
se temesse que ele podia devorá-las no momento em que ela virasse as costas, e as colocara em
sua cama, enquanto as crianças mais velhas dormiram com seus pais ou enroladas em colchas
perto da fogueira. Roger compartilhou a cama com Buck, já que sua habilidade de segurar o
rosário nas mãos, beijar o crucifixo e rezar o rosário todo com a família mal fora suficiente para
que Angus MacLaren não o jogasse para a noite e mijasse nos marcos da porta para impedir que
ele entrasse, e obviamente não o tinha tornando mais popular.
Ele duvidava que Buck havia dormido mais do que ele mesmo, já que seu ancestral teve
que sair da cama ao amanhecer, declarando uma urgente necessidade de visitar o privativo.
Roger apressadamente se levantou, dizendo — Eu ajudarei você — e vestiu a camisa ainda
úmida e as calças.
Ele estava satisfeito ao ver que Buck não parecia precisar de muita ajuda. Ele caminhava
com dificuldade e mancava um pouco, mas seus ombros estavam levantados e ele não estava
ofegando e ficando azulado.
— Se eles pensam que você é um fantasma vingativo, o que diabos eles pensam que eu
sou? — Buck perguntou, no instante em que eles saíram da cabana — E certamente, por
bondade, você poderia ter dito que apenas a Oração do Senhor uma vez, e não ter arrastado
todos por décadas rezando um rosário e arruinado o jantar!
— Mmphm — Buck tinha razão neste sentido, mas Roger tinha ficado muito chateado no
momento para pensar naquilo. Além do mais, ele queria dar a eles tempo para se recuperarem
do choque — Não foi arruinado — ele disse, irritado — Somente os nabos ficaram um pouco
queimados.
— Somente! — Buck ecoou — O lugar ainda está fedendo. E a mulher odeia você. Eles vão
encher o seu mingau de sal, vai ver... Para onde você acha que estamos indo? É por aqui.
Ele apontou para um caminho à direita que, de fato, levava até o banheiro, que estava bem
visível.
Roger fez outro som irritado, mas o seguiu. Ele estava fora do prumo naquela manhã,
distraído. Não tinha dúvidas em relação ao motivo.
Agora? Ele se perguntou, olhando para a porta do banheiro que se fechou atrás de Buck.
Era de dois lugares, mas ele não tinha intenção de abordar o que tinha para dizer sob condições
de tanta intimidade, não importa quão particular o assunto fosse.
— O curandeiro — ele disse por trás da porta, escolhendo o ponto mais simples para
começar — McEwan. Ele disse que voltaria hoje para te ver.
— Eu não preciso ser visto — Buck replicou — Estou bem!
Roger conhecia o homem por tempo suficiente para reconhecer a bravata encobrindo o
medo, e respondeu de acordo.
— Sim, bem. Como você se sentiu? — Ele perguntou curiosamente. — Quando ele colocou
as mãos em você?
Silêncio de dentro do banheiro.
— Você sentiu alguma coisa? — Ele perguntou, depois que o silêncio tinha se alongado
pelo tempo necessário para as funções naturais.
— Talvez — disse a voz de Buck, rude e relutante — Talvez não. Eu caí no sono enquanto
ele estava batendo no meu peito como um pica-pau procurando vermes nas árvores. Por quê?
— Você entendeu o que ele disse para você? Quando ele te tocou? — Buck sendo um
advogado em seu próprio tempo, devia ter estudado latim.
— Você entendeu? — Um ligeiro ranger de madeira e um barulho de pano.
— Sim. E eu disse o mesmo para ele, logo antes de ele partir.
— Eu estava dormindo — Buck repetiu obstinadamente. Claramente ele não queria falar
sobre o curandeiro, mas ele não teria escolha em relação a isso, Roger pensou sombriamente.
— Saia daí, sim? Os MacLarens estão todos no pátio, cruzando as pernas — Ele olhou sobre
o ombro e ficou surpreso ao ver que, de fato, os MacLarens estavam no pátio.
Não todos eles — eram somente Angus e um garoto alto, claramente um MacLaren,
também, pela forma que tinha. Ele parecia familiar — ele tinha estado na casa na noite anterior?
Eles estavam inclinados juntos, conversando em uma evidente excitação, e o garoto estava
apontando na direção da estrada distante.
— Saia — Roger repetiu, com uma urgência repentina em sua voz — Alguém está vindo.
Posso escutar os cavalos.
A porta do banheiro se abriu com violência e Buck saltou como um boneco numa caixa,
enfiando a camisa para dentro das calças. Seus cabelos estavam emaranhados e sujos, mas seus
olhos estavam alertas, e ele pareceu inteiramente capaz; aquilo era reconfortante.
Os cavalos vinham por cima do cume do monte agora — seis deles: quatro pôneis peludos
das Highlands chamados garranos, um baio esguio e indiferente, e um cavalo castanho
surpreendentemente bom com a crina preta. Buck agarrou o braço de Roger com um aperto
forte como uma mordida de cavalo.
— A Dhia — Buck disse, baixinho — Quem é esse?
40 – ANJOS INCONSCIENTES
Roger não tinha ideia quem era o homem alto com o cavalo bom, mas estava claro como cristal
o que ele era, tanto pelos modos deferentes dos MacLarens quanto pela maneira que seus
companheiros ficavam naturalmente atrás dele. O homem no comando.
Um encarregado dos MacKenzie?, ele pensou. A maioria dos homens usava um tartã de
caça com um padrão em verde, marrom e branco, mas Roger não estava familiarizado o
suficiente com os padrões locais para dizer se eles vinham de algum lugar próximo ou não.
O homem alto olhou sobre seu ombro para o aceno de MacLaren, e seus olhos
descansaram em Roger e Buck com um ar de interesse casual. Não havia nada ameaçador em
suas maneiras, mas Roger pareceu se endireitar para adquirir sua altura total e desejou por um
instante não estar descalço e com a barba por fazer, as calças desafiveladas batendo nos joelhos.
Pelo menos ele tinha alguém atrás de si também: Buck tinha dado um passo para trás dele.
Ele não tivera tempo de se sentir surpreso antes de reconhecer o estranho.
O homem era poucos centímetros mais baixo que ele mesmo e tinha a idade próxima da
sua, moreno e de boa aparência em um tipo familiar de...
— Bom dia para você, senhor — o homem moreno disse, com uma inclinação de cortesia
com a cabeça — Meu nome é Dougal MacKenzie, do Castelo de Leoch. E... quem é você?
Querido Jesus, que inferno, ele pensou. O choque percorreu-o, e ele esperou não ter
demonstrado em seu rosto. Ele apertou sua mão firmemente.
— Eu sou Roger Jeremiah MacKenzie, de Kyle of Lochalsh — ele disse, mantendo a voz
suave e, ele esperava, confiante, como alguma compensação por sua aparência. Sua voz soava
quase normal nesta manhã; se ele não a forçasse, com sorte não iria ter problemas.
— Seu criado, senhor — MacKenzie disse com uma ligeira inclinação, surpreendendo
Roger com suas maneiras elegantes. Ele tinha profundos olhos castanhos que olhavam para
Roger com franco interesse, e um leve toque do que parecia diversão, antes de transferir o olhar
para Buck.
— Meu parente — Roger disse apressadamente — William Bu... William MacKenzie. —
Quando?, ele pensou com agitação. Buck já teria nascido? Dougal reconheceria o nome William
Buccleigh MacKenzie? Mas, não, ele não podia ter nascido ainda; você não pode existir duas vezes
ao mesmo tempo, pode?!?
Uma pergunta de Dougal MacKenzie interrompeu o fluxo de confusão, embora Roger não
a tenha ouvido. Buck respondeu, entretanto.
— O filho de meu parente foi levado — ele disse, olhando para Dougal com exatamente...
Oh, meu Deus, exatamente a mesma atitude de confiança despreocupada que o outro MacKenzie
carregava. — Há aproximadamente uma semana, por um homem chamado Cameron. Robert
Cameron. Talvez você conheça este homem?
Dougal, é claro, não o conhecia — não era de se surpreender, já que Cameron não existia
naquele tempo até semana passada. Mas ele conferenciou com os seus homens, fez perguntas
inteligentes e expressou aberta simpatia e preocupação, que ao mesmo tempo confortaram
Roger e o fizeram sentir como se estivesse prestes a vomitar.
Neste ponto, Dougal MacKenzie não tinha sido mais do que um nome na página da
história, momentânea e vividamente ilustrado pelas memórias disjuntas de Claire. Agora ele se
sentava solidamente ao sol da manhã ao lado de Roger no banco fora da casa de campo dos
MacLarens, seu xale áspero cheirando levemente a urina e urzes, e uma barba de dois dias
raspando nos dedos quando ele coçou o queixo, pensativo.
Eu gosto dele, Deus me ajude. E, Deus me ajude, mas eu sei o que vai acontecer a ele.
Seus olhos se fixaram com fascínio no pescoço de Dougal, forte e queimado pelo sol,
enquadrado pelo colarinho aberto de sua camisa amarrotada. Roger desviou o olhar, fixando-o,
em vez disso, nos pelos ruivos do pulso de Dougal, que capturavam a luz do sol enquanto ele
gesticulava para o leste, falando de seu irmão, o chefe do clã MacKenzie.
— Colum não pode viajar por si mesmo, mas ele ficaria feliz em receber vocês dois, se
chegarem a Leoch em sua busca — Ele sorriu para Roger, que sorriu de volta, sentindo-se
aquecido — Para onde pretendem ir agora?
Roger inspirou profundamente. Para onde, de fato?
— Para o sul, eu acho. William não encontrou vestígios de Cameron em Inverness, então
eu estou pensando que ele poderia ter ido em direção a Edimburgo, pretendendo pegar um
navio lá.
Dougal franziu os lábios, assentindo para o pensamento.
— Bem, então — Ele se virou para seus homens, que estavam sentados nas pedras que
delineavam o caminho, e os chamo — Geordie, Thomas, vamos emprestar seus animais a estes
homens; peguem sua bagagem. Vocês têm pouca chance de chegar até a vila a pé — ele disse,
voltando a olhar para Roger — Ele deve estar montado e cavalgando rapidamente, ou vocês
teriam encontrado algum vestígio dele.
— Eu... Muito obrigado — Roger conseguiu dizer. Ele sentiu um arrepio profundo, apesar
do sol em seu rosto — Você deve... quero dizer... isso é muito gentil. Nós os traremos de volta
assim que possível... ou os enviaremos, se... se formos detidos em algum lugar.
— Moran taing — Buck murmurou, assentindo para Geordie e Thomas, que assentiram
de volta, parecendo melancólicos, mas filosóficos, em relação ao prospecto de voltarem
andando de onde quer que tivessem vindo.
De onde eles tinham vindo? Aparentemente, Angus MacLaren tinha enviado o filho ontem
à noite antes da ceia, para pedir que Dougal desse uma olhada para os seus hóspedes
alarmantes. Mas Dougal e seus homens teriam que estar em algum lugar próximo...
O barulho de metal quando Jock jogou uma bolsa obviamente pesada no chão ao lado de
Dougal lhe deu uma ideia. Dia de Pagamento. Dougal estava coletando os impostos para o seu
irmão — e devia estar em seu caminho de volta para Leoch. Muitos dos impostos teriam sido
pagos com produtos — presuntos, galinhas, lã, peixe salgado — e provavelmente a equipe de
Dougal estava acompanhada por uma ou mais carroças, que eles deixaram para trás onde quer
que estivessem na noite passada.
Angus MacLaren e seu filho mais velho ficaram parados do lado, olhos fixos com suspeita
em Roger como se ele pudesse criar asas e sair voando. Dougal se virou para Angus com um
sorriso e disse em gaélico: — Não se preocupe, amigo; eles não são mais fantasmas do que os
rapazes e eu somos.
— Não esqueçais da hospitalidade — Buck disse na mesma língua —, pois através dela,
muitos hospedaram anjos de forma inconsciente.
Houve uma pausa surpresa para aquilo, todos olhando para ele. Então, Dougal riu, e seus
homens o seguiram. Angus meramente fez um ruído educado com a garganta, mas trocou o peso
das pernas e visivelmente relaxou. Como se isso tivesse sido um sinal — e talvez fosse —, a
porta se abriu, e a Sra. MacLaren e Allie saíram, com uma pilha de tigelas de madeira e uma
panela fumegante de mingau. Uma das menores MacLarens saiu depois, cuidadosamente
carregando um saleiro em cada mão.
No burburinho geral de servir e comer — as mulheres tinham colocado mais sal em seu
mingau, mas não tanto quanto pensara —, Roger disse baixinho para Dougal:
— MacLaren realmente mandou alguém te chamar para saber se eu era um fantasma?
Dougal pareceu surpreso, mas depois sorriu, um dos lados de sua boca se levantando. Era
a forma como Brianna sorria quando ela queria reconhecer uma piada que não achara
engraçada — ou quando ela via alguma coisa engraçada que não queria compartilhar com
todos. Uma pontada lancinante seguiu o choque de reconhecimento e Roger foi obrigado a olhar
para baixo por um momento e limpar a garganta para controlar a voz.
— Não, homem — Dougal disse casualmente, também olhando para baixo enquanto
limpava a tigela com um pedaço de bolo duro retirado de seu alforje — Ele pensou que eu
poderia ser de alguma ajuda para você em sua busca — Ele olhou para cima, então, diretamente
para o pescoço de Roger, e levantou uma sobrancelha escura e espessa — Não que a presença
de um homem meio enforcado à sua porta não suscite perguntas, sabe?
— Pelo menos, um homem meio enforcado por responder a perguntas — Buck disse —
Não como o cara na cabana acima, sim?
Aquilo surpreendeu Dougal, que colocou sua colher para baixo e olhou para Buck. Que
encarou de volta, com uma sobrancelha levantada.
Santo Deus... eles percebiam aquilo? Qualquer um deles? Não estava calor, apesar do sol,
mas Roger sentiu o suor começando a se formar em sua espinha. Era mais uma questão de
postura e expressão do que dos traços — e, ainda assim, o eco de similaridade entre os dois
rostos era claro como... bem, como o nariz longo e reto em ambas as faces.
Roger podia ver os pensamentos cintilando no rosto de Dougal: surpresa, curiosidade,
suspeita.
— E o que você tem a ver com aquele cara lá de cima? — ele perguntou, com uma ligeira
elevação do queixo em direção ao local da cabana queimada.
— Nada, até onde eu sei — Buck respondeu, com um breve encolher de ombros. — Só quis
dizer que, se você quiser saber o que aconteceu ao meu parente, pode perguntar a ele. Não
temos nada a esconder.
Muito obrigado, Roger pensou, com um olhar de canto para seu ancestral, que sorriu
suavemente de volta para ele e voltou cautelosamente a comer seu mingau salgado. Por que
diabos você disse isso, de todas as coisas?
— Eu fui enforcado por engano no lugar de outro homem — ele disse, o mais casualmente
possível, mas ouviu a voz falhar em sua garganta, apertando-se, e teve que parar de falar para
pigarrear —, na América.
— América — Dougal repetiu, abertamente espantado. Todos estavam olhando para ele
agora, tanto os homens de Dougal quanto os MacLarens — O que o levou para a América, e o
que o trouxe de volta?
— Minha esposa tem parentes lá — Roger replicou, imaginando o que diabo Buck estava
fazendo — Na Carolina do Norte, próximo ao Rio Cape Fear — Ele quase tinha falado de Hector
e Jocasta Cameron, antes de se lembrar que Jocasta era irmã de Dougal. E também que foi
Culloden que a mandou para a América... e Culloden ainda não tinha acontecido.
E ele não vai viver para ver isso, ele pensou, observando o rosto de Dougal enquanto ele
falava, sentindo um estado de horror confuso. Dougal morreria, horas antes da batalha, nos
sótãos da casa de Culloden perto de Inverness, com a adaga de Jamie Fraser afundada em sua
garganta.
Ele contou a história de seu enforcamento e de seu resgate brevemente, deixando de fora
o contexto da Guerra da Regulação — e deixando de fora o papel de Buck em seu enforcamento
também. Ele podia sentir Buck ao seu lado, inclinando-se para frente, atenciosamente, mas não
olhou para ele. Não poderia olhar para ele sem estrangulá-lo. Queria estrangulá-lo mesmo
assim.
Ele mal podia falar quando terminou, e seu coração estava batendo nas suas orelhas com
raiva reprimida. Todos estavam olhando para ele, com uma gama de emoções que ia de
admiração a simpatia. Allie MacLaren estava fungando abertamente, o avental em seu nariz, e
até mesmo sua mãe parecia como se, de alguma forma, se arrependesse do sal. Angus tossiu e
entregou a ele uma garrafa do que se provou ser cerveja, e ele estava muito grato por isso. Ele
murmurou um agradecimento e tomou um gole, evitando todos os olhares.
Dougal assentiu com seriedade, e então se virou para Angus.
— Conte-me sobre o homem lá de cima — ele disse. — Quando isso aconteceu, e o que
você sabe sobre isso?
O rosto de MacLaren perdeu um pouco da cor natural, e ele parecia querer sua cerveja de
volta.
— Foi há seis dias, a ghoistidh — Ele deu um breve e muito menos atmosférico resumo do
que ele tinha contado na noite passada, mas era a mesma história.
Dougal pareceu pensativo, batendo os dedos gentilmente em seus joelhos.
— A mulher — ele disse — Você sabe para onde ela foi?
— Eu... hã... ouvi que ela foi para Cranesmuir, senhor — A cor de MacLaren tinha voltado,
com interesse, e ele cuidadosamente evitou os olhos duros de sua esposa.
— Cranesmuir — Dougal repetiu — Sim, bem. Talvez eu a procure, e tenha uma palavra
com ela. Qual é o seu nome?
— Isbister — MacLaren desabafou — Geillis Isbister.
Roger não sentiu realmente a terra se mexer sob seus pés, mas ficou surpreso por isso não
ter acontecido.
— Isbister? — As sobrancelhas de Dougal se elevaram — Das ilhas do norte, não?
MacLaren encolheu os ombros numa pantomima de ignorância — e desinteresse. Ele
parecia como se alguém tivesse feito uma tentativa séria de ferver sua cabeça, e Roger viu a
boca de Dougal se contorcer novamente.
— Sim — ele disse secamente — Bem, talvez não seja muito difícil encontrar uma mulher
de Orkney num local do tamanho de Cranesmuir.
Ele levantou o queixo em direção aos seus homens, e todos eles se levantaram junto com
ele. Assim como Roger e Buck.
— Boa viagem pra vocês, senhores — disse, curvando-se — Eu vou comentar sobre o seu
rapazinho. Se eu souber de alguma coisa, onde devo mandar as notícias?
Roger trocou olhares com Buck, perplexo. Ele não poderia pedir para que mandassem
notícias para Lallybroch, sabendo o que sabia sobre as relações entre Brian Fraser e seus
cunhados.
— Você conhece um lugar chamado Sheriffmuir? — ele perguntou, tateando em busca de
algum outro lugar que ele tinha certeza de existir neste tempo — Há uma pousada lá, embora
não muito mais do que isso.
Dougal pareceu surpreso, mas assentiu.
— Eu conheço, senhor. Eu lutei em Sheriffmuir com o Conde de Mar, e nós jantamos lá
com ele uma noite, meu pai, meu irmão e eu. Sim, eu mando notícias para lá, se houver alguma.
— Obrigado — As palavras vieram meio engasgadas, mas claras o suficiente. Dougal deu
a ele um aceno simpático com a cabeça, depois se virou para se despedir dos MacLarens.
Tomado de um pensamento repentino, porém, ele voltou. — Não suponho que vocês sejam
realmente anjos, não é? — ele perguntou, seriamente.
— Não — Roger disse, sorrindo o melhor que podia, apesar do frio em sua barriga. E não
é você que está falando com um fantasma.
Ele ficou parado com Buck, observando a partida dos MacKenzies, Geordie e Thomas se
mantendo junto com um pouco de esforço, enquanto os cavalos trotavam lentamente no
caminho de pedras.
A frase “Bem aventurados aqueles que não viram, mas acreditaram” flutuou por sua
cabeça. Talvez não fosse a crença abençoada; mas sim o não ter que ver. Ver, às vezes, era
horrível!
Roger atrasou sua própria partida o máximo que ele podia, esperando pelo retorno de Dr.
McEwan, mas quando o sol ficou alto no céu, estava claro que os MacLarens queriam que eles
partissem — e Buck queria ir.
— Eu estou bem — ele disse irritado, e bateu no peito com o punho — Forte como um
tambor.
Roger fez um ruído cético com a garganta — e ficou surpreso. Não doeu. Ele refreou o
impulso de colocar a mão em seu próprio pescoço; não havia necessidade de chamar atenção
para ele, mesmo estando de partida.
— Sim, tudo bem — Ele se virou para Angus MacLaren e Stuart, que prestativamente
enchera o cantil de Roger na esperança de apressá-los a seguirem seu caminho e o segurava
pingando com as mãos — Obrigado por sua hospitalidade, senhor, e por sua gentileza com meu
parente.
— Oh — disse MacLaren, uma distinta expressão de alívio aparecendo em seu rosto com
o que era claramente uma despedida — Está tudo bem. Não foi nenhum incômodo.
— Se... se o curandeiro aparecer, você poderia agradecer por nós? E dizer que eu vou
tentar vê-lo quando voltarmos?
— Quando voltarem — MacLaren repetiu, com menos entusiasmo.
— Sim. Estamos indo para Lochaber, para as terras dos Camerons. Se não encontrarmos
nenhum traço de meu filho lá, entretanto, provavelmente voltaremos por esse mesmo caminho,
talvez possamos ir para o Castelo de Leoch para ter notícias.
O rosto de MacLaren clareou com essas palavras.
— Oh, sim — ele disse cordialmente — Boa ideia. Boa viagem!
41 – ONDE AS COISAS CONVERGEM
— Agora, não é que eu não queira ajudar a sua mãe — o Sr. Buchan disse, pela terceira vez —,
mas eu não posso ter esses tumultos ocorrendo em minha casa, e criminosos indo e vindo com
as minhas garotas lá, posso?
Jem balançou a cabeça obedientemente, embora o Sr. Buchan não estivesse olhando para
ele; ele estava olhando no espelho retrovisor, por cima do ombro, ocasionalmente, como se
pensasse que alguém poderia os estar seguindo. Isso fez com que Jem quisesse olhar também,
mas ele não podia ver sem se ajoelhar no banco e virar de costas, e Mandy estava meio
adormecida em seu colo.
Era tarde, e ele bocejou, esquecendo-se de cobrir a boca. Ele pensou em dizer “perdão”,
mas não achou que o Sr. Buchan havia percebido. Ele sentiu um arroto vindo e cobriu a boca
dessa vez, sentindo o gosto de vinagre do peixe e das batatas. O Sr. Buchan tinha comprado uma
ceia extra de peixe para mamãe; estava em um papel pardo no chão aos pés de Jem, para não
sujar o banco de gordura.
— Você sabe quando seu pai vai voltar? — O Sr. Buchan perguntou abruptamente,
olhando para ele. Jem balançou a cabeça, sentindo o peixe e as batatas se levantarem como uma
bola em seu esôfago.
A boca do Sr. Buchan se pressionou com força, como se ele quisesse dizer alguma coisa
que não devia.
— Papai... — Mandy murmurou, e então empurrou a cabeça nas costelas de Jem, bufou e
voltou a dormir. Ele se sentia terrível. Mandy não sabia onde papai estava; ela provavelmente
pensava que ele estava em um hotel ou algo parecido.
Mamãe disse que papai iria voltar, assim que percebesse que Jem não estava lá com Vovô.
Mas como?, ele pensou, e teve que morder o lábio com força para não chorar. Como ele saberia?
Estava escuro, mas havia um brilho no painel. Se ele chorasse, talvez o Sr. Buchan visse.
Faróis brilharam no espelho retrovisor e ele olhou para cima, roçando a manga
furtivamente sob seu nariz. Ele podia ver um furgão branco chegando por trás deles. Sr. Buchan
disse alguma coisa baixinho e pisou com mais força no acelerador.
Brianna tinha entrado em modo de espera da caça: um estado de separação física e mental, onde
a mente e o corpo cuidavam de seus próprios negócios, mas seriam capazes de entrar em ação
unificada no momento que alguma coisa digna de ser comida aparecesse. Sua mente estava em
Ridge, revivendo uma caça ao porco espinho com seu primo Ian. A viscosidade pungente e a
fumaça lacrimejante das tochas de pinheiro, um vislumbre de olhos brilhantes numa árvore, e
um porco espinho eriçado como um pesadelo nos galhos, com os espinhos para cima e ruídos
ameaçadores, silvando e rosnando como uma lancha flatulenta...
E então o telefone tocou. Em um instante, ela estava parada, com a arma na mão, cada
sentido focado na casa. Tocou mais uma vez, o ruído duplo de “brr!” distante, mas inconfundível.
Era o telefone do escritório de Roger, e quando pensou nisso, viu o breve brilho de uma luz
quando a porta do escritório se abriu e o toque parou abruptamente.
Seu couro cabeludo se contraiu, e ela sentiu uma breve conexão com o porco espinho na
árvore. Mas o porco espinho não tinha uma arma.
Seu impulso imediato foi ir até lá e expulsar quem quer que estivesse na casa, exigindo
saber o que aquilo significava. Sua aposta estava em Rob Cameron, e o pensamento de expulsá-
lo como uma perdiz sob a mira de sua arma fez com que sua mão se apertasse na arma
mencionada em antecipação. Ela tinha Jem de volta; Cameron saberia que ela não precisava
mantê-lo vivo.
Mas... Ela hesitou na porta da torre, olhando para baixo.
Mas, quem quer que estivesse na casa, tinha atendido ao telefone. Se eu fosse um ladrão,
não atenderia ao telefone na casa onde eu estava roubando. A não ser que eu pensasse que
acordaria as pessoas de dentro da casa.
Quem quer que estivesse ali dentro, já sabia que os donos da casa não estavam.
— Quod erat demonstrandum — a voz de seu pai veio à mente, com uma satisfação
sombria. Alguém na casa estava esperando uma ligação.
Ela deu um passo para fora, um profundo suspiro do cheiro fresco de tojo substituiu o
cheiro úmido de musgo da torre, seu coração batendo rapidamente e sua mente trabalhando
ainda mais rápido. Quem estaria ligando para ele — para eles? Para dizer o quê?
Talvez alguém estivesse observando mais cedo, e tivesse visto que ela descera pela
estrada da floresta. Talvez eles tivessem ligado para dizer a Rob que ela estava ali fora, na torre.
Não, aquilo não faria sentido. Quem quer que estivesse na casa, já estaria lá quando ela chegara.
Se alguém a tivesse visto chegar, teria ligado.
— Ita sequitur... — ela murmurou.
Então era o seguinte: se a ligação não fosse sobre ela, deveria ser um aviso que alguém —
a polícia, e por quê? — estava vindo em direção a Lallybroch — ou notícias de que alguém que
estivesse ali fora tinha encontrado as crianças.
A barra de metal estava escorregadia sob sua palma suada, e ela fez um esforço notável
para manter um aperto firme na arma. Precisou fazer um esforço ainda maior para não correr
em direção à casa.
Mesmo com a situação agravante como era, ela tinha que esperar. Se alguém tivesse
encontrado as crianças, ela não conseguiria chegar a tempo na casa de Fiona para protegê-las;
ela teria que depender de Fiona e Ernie e a polícia da cidade de Inverness. Mas se esse fosse o
caso, quem quer que estivesse na casa sairia em algum momento. A menos que aquele bastardo
do Rob ficasse por ali para tentar pegá-la de surpresa, e... Apesar da arma em sua mão, aquele
pensamento lhe deu uma sensação desagradável dentro de si, uma sensação que ela reconheceu
como um toque fantasmagórico do pênis de Stephen Bonnet.
— Eu matei você, Stephen! — ela disse baixinho — E eu fico feliz que você esteja morto.
Você poderá ter companhia no inferno muito em breve. Certifique-se de que haja um fogo aceso
para ele, ok?
Aquilo restaurou sua coragem, e caindo de quatro, ela se arrastou através do tojo,
descendo a encosta num ângulo que iria levá-la para perto da horta, mas não pelo caminho, que
era visível da casa. Até mesmo no escuro, ela não queria arriscar; a meia-lua estava subindo,
embora se mostrasse irregularmente atrás das nuvens.
O ruído de um carro a fez levantar a cabeça, olhando sobre um tufo de palha seca. Ela
colocou uma mão no bolso, tamborilando nas balas soltas. Quatorze. Deveria ser suficiente.
A observação de Fiona sobre balística passou por sua mente, juntamente com uma leve
lembrança da possibilidade de ir para a prisão por homicídio. Ela poderia arriscar, pela
satisfação de matar Rob Cameron — mas um pensamento indesejável ocorreu a ela, de que ela
não precisaria mais dele para localizar Jem, mas ainda precisava entender o que estava
acontecendo. E mesmo que a polícia pudesse rastreá-lo a partir da represa, se houvesse algum
tipo de gangue envolvida, Rob era provavelmente o único jeito de descobrir quem eram os
outros — e o que queriam.
Os faróis brilharam na pista e na porta, e ela se levantou abruptamente. A luz com detector
de movimento tinha se acendido, mostrando o painel branco do caminhão de Ernie,
inconfundível, com BUCHAN ELETRICIDADE/PARA TODAS AS SUAS NECESSIDADES, LIGUE
01463 775 4432 ao lado, com o desenho de um cabo rompido, cuspindo faíscas.
— Maldição! — ela disse — Maldição do inferno!
A porta do caminhão se abriu e Jem pulou para fora, e depois se virou para ajudar Mandy,
que não era mais do que uma pequena mancha escura nos recessos do caminhão.
— VOLTE PARA O CAMINHÃO! — Brianna gritou, saltando para baixo da encosta,
deslizando nas pedras redondas e torcendo os tornozelos em manchas esponjosas de urze —
JEMMY! VOLTE!
Ela viu Jem se virar, seu rosto pálido no brilho da luz, mas era tarde demais. A porta da
frente se abriu e duas figuras escuras saíram correndo, correndo para o caminhão.
Ela não gastou mais fôlego, mas correu com todas as forças. Uma espingarda era inútil à
distância — ou talvez não. Ela derrapou até parar, colocou a arma no ombro e disparou. A bala
voou pelas urzes com um zumbido como o de uma flecha, mas o ruído havia advertido os
invasores pelo caminho.
— VOLTEM PARA O CAMINHÃO! — Ela gritou, e atirou novamente. Os intrusos bateram
em retirada para a casa, e Jem, bendito seja, saltou para o caminhão como um sapo assustado e
bateu a porta. Ernie, que tinha acabado de sair, ficou parado por um momento, boquiaberto em
direção à encosta, mas então, percebendo o que havia acontecido, voltou à vida e mergulhou
para dentro de sua própria porta.
Ela recarregou no brilho dos holofotes. Por quanto tempo a luz iria ficar acesa se ninguém
se mexesse? Ela colocou mais uma bala e correu para o caminhão de Ernie. Mais faróis
chamaram sua atenção em direção à estrada. Santa Maria, Mãe de Deus, quem era? Por favor,
Deus, que seja a polícia...
A luz apagou-se, e depois se acendeu novamente quando o segundo veículo rugiu no pátio,
movendo-se com velocidade. As pessoas dentro da casa estavam penduradas na janela, gritando
alguma coisa para o novo caminhão — sim, era outro caminhão, muito parecido com o de Ernie,
exceto pelo fato de que estava escrito POULTNEY’S, FORNECEDORA DE UM BOM JOGO e tinha
uma imagem de um javali selvagem.
— Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte...
Ela tinha que chegar ao caminhão de Ernie antes... Tarde demais! O caminhão do BOM
JOGO acelerou e bateu na lateral do caminhão de Ernie, lançando-o vários metros para o lado.
Ela podia ouvir o grito de Mandy sobre todas as coisas, agudo como uma agulha em seu coração.
— Mãe Sangrenta de... Jesus H. Roosevelt Cristo!
Ela não teria tempo para circundar o pátio. Ela correu através dele, tentou focar, e alvejou
o pneu da frente do caminhão com chumbo grosso.
— FIQUE NO CAMINHÃO! — ela gritou, fechando a segunda bala e apontando a arma para
o para-brisa no mesmo movimento. Ela viu um borrão de branco quando suas pessoas se
abaixaram para fora de sua vista.
Os homens — sim, ambos eram homens — de dentro da casa estavam gritando um com o
outro, e para as pessoas no caminhão, e para ela. Xingamentos e insultos inúteis em sua maioria,
mas um deles estava agora dizendo aos outros que a arma dela era uma espingarda. Inútil
exceto a curta distância, e para apenas dois tiros.
— Você não pode cobrir a todos nós, mulher!
Aquele era Rob Cameron, gritando do caminhão do Poultney. Ela não se importou em
responder, mas correu para se alinhar com a casa, e a janela da sala de estar se dissolveu em
uma chuva de vidro.
O suor estava escorrendo pela lateral de seu corpo, fazendo cócegas. Ela abriu a arma e
colocou mais duas balas no lugar. Ela se sentia como se estivesse se movendo em câmera lenta
— mas o restante do mundo se movesse ainda mais lentamente. Sem pressa, ela caminhou até
o caminhão de Ernie e colocou as costas contra a porta atrás da qual Jem e Mandy estavam se
escondendo. Um forte odor de peixe e vinagre maltado flutuou quando a janela se abriu alguns
centímetros.
— Mãe...
— Mamãe! Mamãe!
— Maldição, Brianna! O que está acontecendo?
— Um bando de malucos está tentando me matar e pegar os meus filhos, Ernie — ela disse,
elevando a voz sobre o choro de Mandy — O que parece? Que tal ligar o motor, hum?
O outro caminhão estava fora do alcance eficaz da espingarda, e ela podia ver apenas um
dos lados dele. Ela ouviu a porta se abrindo do outro lado e viu um lampejo de movimento
dentro da janela quebrada da casa.
— Agora seria um bom momento, Ernie — Ela não se esquecera de que um daqueles
bastardos tinha o seu rifle. Ela podia apenas esperar que eles não soubessem como usá-lo.
Ernie estava girando freneticamente a chave e pisando no acelerador. Ela podia ouvi-lo
rezando baixinho, mas ele afogou o motor; o motor de arranque zumbiu inutilmente. Com o
lábio inferior escondido nos dentes, ela correu para a frente do caminhão a tempo de pegar uma
das pessoas do caminhão do BOM JOGO — para sua surpresa, era uma mulher, baixinha e
atarracada que tentou correr para trás, tropeçou e caiu sobre seu traseiro, com um audível
“Oof”.
Ela queria rir, mas depois viu Cameron saindo do caminhão, seu rifle na mão, e o desejo a
deixou.
— Largue! — Ela foi em direção a ele, a arma no ombro. Ele não sabia como usar o rifle;
ele olhou loucamente dela para a arma, como se esperasse que ela funcionasse sozinha, depois
mudou de ideia e a deixou cair no chão.
A porta da frente da casa se abriu, e ela ouviu pés correndo rapidamente. Ela girou nos
calcanhares e correu, também, chegando ao caminhão de Ernie no momento exato de capturar
os dois homens que estavam na casa. Um deles imediatamente começou a andar de lado,
claramente com a intenção de circular o caminhão e recolher seus camaradas idiotas. Rob
Cameron agora estava avançando para ela devagar, as mãos para cima para mostrar seu intento
não-ofensivo — Ha!
— Olhe, Brianna, nós não queremos machucar você — ele disse.
Ela engatilhou mais uma bala em resposta a isso, e ele deu um passo para trás.
— É sério — ele disse, uma aspereza na voz — Nós queremos falar com você, só isso.
— Sim, conta outra — ela disse — para me fazer rir. Ernie?
— Mãe...
— Não se atreva a abrir a porta até que eu diga, Jemmy!
— Mãe!
— Vá para o chão, Jem, agora! Junto com Mandy! — Um dos homens da casa e a mulher
atarracada estavam se movendo de novo; ela podia ouvi-los. E o segundo homem da casa tinha
desaparecido na escuridão, fora do círculo de luz — ERNIE!
— Mas, mãe, alguém está vindo!
Todos congelaram por um instante, e o som de um motor avançando pela estrada da
fazendo veio claramente pela noite. Ela se virou e segurou na maçaneta da porta, abrindo-a
exatamente quando o motor de Ernie finalmente tossiu e ganhou vida. Ela se apressou para
tomar o seu assento, seus pés quase atingindo a cabeça de Jem quando ele olhou para cima, os
olhos enormes na penumbra.
— Vamos, Ernie! — ela disse, muito calmamente dadas às circunstâncias — Crianças,
fiquem aí embaixo.
Uma ponta de fuzil atingiu a janela perto da cabeça de Ernie, trincando o vidro, e ele gritou,
mas não deixou — Deus o abençoasse — que o motor afogasse novamente. Outro golpe e o
vidro quebrou em uma cascata de fragmentos brilhantes. Brianna largou a própria arma e
esticou o braço acima de Ernie, tentando alcançar o rifle. Ela tinha uma mão nele, mas o homem
que o segurava conseguiu se soltar. Segurando selvagemente, ela raspou na balaclava e a toca
de lã saiu em sua mão, deixando o homem abaixo boquiaberto pelo choque.
Os holofotes se apagaram, mergulhando o jardim em escuridão, e pontos brilhantes
dançaram na frente de seus olhos. Eles se acenderam de novo quando o novo veículo rugiu para
o quintal, a buzina estridente. Brianna pulou para fora do colo de Ernie, tentando ver através
do para-brisa e, em seguida, atirou-se para o outro lado do caminhão.
Era um carro comum, um Fiat azul escuro, parecendo um brinquedo enquanto circulava
o jardim, a buzina berrando como uma porca no cio.
— Amigo, você acha? — Ernie perguntou, sua voz tensa, mas não em pânico — Ou
inimigo?
— Amigo — ela disse, sem ar, quando o Fiat foi em direção aos três intrusos que estavam
em pé juntos: o portador do rifle desmascarado, a mulher com o casaco Barbour, e quem quer
que fosse o cara que não era Rob Cameron. Eles se espalharam como baratas na grama, e Ernie
bateu um punho sobre o painel em exultação.
— Isso vai ensinar esses viados!
Bree gostaria de ficar e observar o restante do show, mas onde quer que Cameron
estivesse, ele estava indubitavelmente muito perto.
— Vá, Ernie!
Ele foi, com um terrível barulho de metal sendo triturado e raspado. O caminhão balançou
um pouco, o eixo traseiro provavelmente estava danificado. Ela só poderia esperar que a roda
não saísse.
O Fiat azul estava rondando o pátio; ele buzinou e iluminou o caminhão de Ernie, e uma
mão acenou pela janela do motorista. Brianna colocou a cabeça para fora cautelosamente e
acenou de volta, depois caiu de volta em seu assento, ofegante. Pontos pretos estavam nodando
por seu campo de visão e seus cabelos estavam grudados no rosto, lisos com o suor.
Eles andaram pela estrada em marcha lenta, com um ruído horrível; pelo som, a roda
traseira tinha desabado.
— Mãe — Jemmy colocou a cabeça na borda do banco como um cão da pradaria — Posso
subir agora?
— Claro. — Ela inspirou profundamente e ajudou Mandy a rastejar para cima depois dele.
A garotinha se jogou no peito de Brianna, choramingando.
— Está tudo bem, meu bebê — ela sussurrou nos cabelos de Mandy, agarrando-se ao
corpo pequeno e sólido tanto quanto Mandy se agarrava a ela — Tudo vai ficar bem.
Ela olhou para Jem, escorado entre Ernie e ela. Ele estava curvado para dentro de si
mesmo e tremendo visivelmente dentro de sua jaqueta de lã, mesmo que estivesse quente
dentro da cabine. Ela esticou a mão e o segurou pela nunca, chacoalhando-o gentilmente.
— Está tudo bem aí, amigo?
Ele assentiu, mas sem dizer nada. Ela envolveu a mão dele com a sua, e a apoiou nos
joelhos dele, apertando com força — tanto para reafirmá-lo quanto para tentar conter o tremor
da própria mão.
Ernie limpou a garganta.
— Eu sinto muito, Brianna — ele disse com a voz rouca — Eu não sabia que... Eu quero
dizer, eu pensei que ficaria tudo bem se eu trouxesse as crianças de volta, e depois que Cameron
foi para a nossa casa e bateu em Fiona, eu... — Uma trilha de suor brilhou enquanto descia de
trás de sua orelha.
— Ele fez o quê?
Depois dos eventos da última hora, esta notícia foi registrada apenas como um pontinho
na sua sismografia pessoal, obscurecido pelas maiores ondas de choque que só agora
diminuíam. Mas ela fez perguntas, e Jem começou a sair de sua própria concha de choque,
contando sua parte, e gradualmente se tornando indignado em relação à Sra. Kelleher e à
atendente da delegacia. Ela sentiu um tremor na boca do estômago que não era exatamente um
riso, mas perto disso.
— Não se preocupe com isso, Ernie — Ela empurrou para o lado suas novas tentativas de
perdão. Sua voz saiu rasgada, sua garganta doía de tanto gritar — Eu teria feito o mesmo, eu
imagino. E nós nunca fugiríamos se não fosse por você — Porém, eles nunca teriam estado lá se
não fosse por ele, em primeiro lugar, mas ele sabia disso tanto quanto ela; não havia sentido em
jogar na cara dele.
— Sim, mmphm — Ele dirigiu em silêncio por um momento, depois comentou em tom de
conversa, olhando pelo retrovisor — Aquele carro azul está nos seguindo, sabe? — Sua garganta
se moveu quando ele engoliu.
Brianna esfregou uma mão no rosto, e depois olhou. Realmente, o Fiat estava atrás deles
a uma distância discreta.
Ernie tossiu — Ehm... para onde você quer ir, Bree? É só que, eu não tenho certeza de que
conseguiremos chegar até a cidade. Mas há um posto de gasolina na estrada principal... Se eu
parasse lá, eles têm um telefone. Você poderia ligar para a polícia, para que eles lidassem com
aquele caminhão.
— Não chame a polícia, mãe — Jemmy disse, suas narinas dilatadas com nojo — Eles não
ajudam em nada.
— Mmphm — Ela disse evasivamente, e levantou uma sobrancelha para Ernie, que
assentiu e travou a mandíbula.
Ela estava inclinada a ser contra chamar a polícia também — deixando as preocupações
de lado, eles podiam ser muito questionadores para serem úteis. Ela tinha conseguido desviá-
los da questão delicada de onde seu marido estava na noite anterior, dizendo que ele estava em
Londres para visitar a Sala de Leitura do Museu Britânico e que ela ligaria para ele assim que
chegasse em casa. Se a polícia descobrisse sobre o tiroteio na fazenda, haveria ainda mais
escrutínio em seus assuntos particulares. E não seria necessário ter muita imaginação para
concluir que a polícia poderia realmente suspeitar que ela tivesse alguma coisa a ver com o
desaparecimento de Roger, já que ela não poderia apresentá-lo e nem dizer onde ele estava.
Poderia nunca ser capaz disso. Ela engoliu, com força.
O único recurso seria alegar que eles tiveram uma briga e ele a abandonou — mas isso
soaria muito frágil, à luz dos acontecimentos recentes. E ela não diria alguma coisa assim na
frente das crianças, de forma alguma.
Mas parar no posto de gasolina era a única coisa que ela poderia fazer no momento. Se o
Fiat azul os seguisse para lá, pelo menos ela poderia descobrir um aliado. E se fosse à polícia,
era uma incógnita... bem, ela decidiria quando tivesse que decidir. A adrenalina e o choque a
tinham abandonado; ela se sentia fora da realidade, sonhadora e muito, muito cansada. A mão
de Jemmy tinha relaxado na sua, mas seus dedos ainda estavam curvados ao redor de seu
polegar.
Ela recostou, fechando os olhos, e lentamente traçou a curva da espinha de Mandy com
sua mão livre. Sua garotinha tinha relaxado e caído no sono novamente contra o seu peito, seu
filho com a cabeça em seu ombro, o peso da confiança de seus filhos pesava em seu coração.
O posto de gasolina era próximo ao Little Chef Café. Ela deixou Ernie conversando com o
garagista enquanto pegava os filhos. Ela não se importou em olhar sobre o ombro; o Fiat azul
tinha reduzido para uma distância respeitável, não se aglomerando em cima deles enquanto
dirigiam a 30 km/h. Se o motorista não quisesse falar com ela, teria ultrapassado e
desaparecido. Talvez ela devesse tomar uma xícara de chá antes de lidar com isso.
— Mal posso esperar — ela murmurou — Abra a porta, por favor, Jem?
Mandy estava inerte como um saco de cimento em seus braços, mas começou a se mexer
com o cheiro de comida. Bree não gostou do cheiro de óleo rançoso da fritura, de batatas
queimadas e de xarope sintético de panqueca, mas pediu sorvete para Jem e Mandy, com uma
xícara de chá para si mesma. Certamente nem mesmo aquele lugar poderia arruinar um chá, não
é?
Um copo de água morna e um sachê de chá a convenceu do contrário. Não importava; sua
garganta estava tão apertada que ela duvidava que poderia engolir até mesmo água.
O entorpecimento abençoado do choque estava a deixando, embora ela tivesse preferido
mantê-lo enrolado como um cobertor ao seu redor. O Café parecia muito brilhante, com muitos
metros de marcas de pés no linóleo branco; ela se sentia exposta, como um inseto no chão da
cozinha. Ela sentia desagradáveis picadas de apreensão em seu couro cabeludo, e manteve os
olhos fixos na porta, desejando ser capaz de levar a espingarda lá para dentro.
Ela não tinha percebido que Jem também estivera observando a porta até que ele se
endureceu ao seu lado.
— Mãe! É o Sr. Menzies!
Por um momento, nem as palavras e nem a visão do homem que tinha acabado de entrar
no Café faziam qualquer sentido. Ela piscou várias vezes, mas ele ainda estava ali, caminhando
em direção a eles com um rosto ansioso. O diretor da escola de Jem.
— Sra. MacKenzie — ele disse, e, esticando a mão por cima da mesa, apertou a mão dela
fervorosamente — Graças a Deus vocês estão bem!
— É... Obrigada — ela disse debilmente — Você... Era você? No Fiat azul? — Era como ficar
na expectativa para confrontar Darth Vader e ficar cara-a-cara com Mickey Mouse.
Ele de fato corou atrás de seus óculos.
— É... bem, sim. Eu... é... — Ele capturou o olhar de Jem e sorriu sem jeito — Está cuidando
bem de sua mão, então, Jem?
— Sim, senhor — Jem estava obviamente prestes a explodir com perguntas. Bree
adiantou-se com um olhar de repreensão e com um gesto para que Lionel Menzies se sentasse.
Ele o fez e inspirou profundamente, prestes a dizer alguma coisa, mas foi interrompido pela
garçonete, uma mulher sólida de meia-idade com meias grossas e um cardigã, além de um ar
que indicava que ela não dava a mínima se eles eram alienígenas ou baratas, contanto que não
complicassem a sua vida.
— Não peça o chá — Bree disse, com um aceno de cabeça em direção a sua xícara.
— Sim, obrigada... Eu quero... um sanduíche de bacon e um Irn-Bru? — ele perguntou
timidamente, olhando para a garçonete — Com molho de tomate?
Ela não respondeu, mas fechou o bloco de anotações e se foi.
— Certo — Menzies disse, endireitando os ombros como se fosse enfrentar um pelotão de
fuzilamento — Diga-me uma coisa, certo? Era Rob Cameron lá na sua casa?
— Sim — Bree falou secamente, lembrando-se tardiamente que Cameron era parente de
Menzies de alguma forma... um primo ou algo assim? — Por quê?
Ele pareceu infeliz. Um homem pálido com cabelos castanhos um pouco encaracolados e
óculos, ele não era marcante de qualquer maneira, mas ainda assim, geralmente tinha certa
presença, simpatia e um ar de autoridade que saltava aos olhos e fazia com que houvesse uma
sensação de segurança em sua companhia. Isso estava notavelmente em falta naquela noite.
— Eu temia que pudesse ser. Eu ouvi... no jornal da noite. Que Rob estava sendo procurado
pela polícia — ele abaixou a voz, embora não tivesse ninguém para ouvir — por causa de... bem...
— ele assentiu discretamente em direção à Jem — capturar o Jeremiah, aqui.
— Ele me sequestrou! — Jem disse, deixando que sua colher caísse e endireitando-se no
assento — Ele o fez, Sr. Menzies! Ele disse que me levaria para passar a noite com Bobby, mas
não fez isso. Ele me levou para as pedras e...
— Jem — Brianna falou baixinho, mas era a sua voz de “Cale a boca agora”, e ele o fez,
embora com um sonoro bufo e um olhar para ela.
— Sim, foi ele — ela disse calmamente — O que você sabe sobre isso?
Ele piscou, surpreso.
— Eu... Por quê? Nada. Eu não posso imaginar por que ele... — Ele parou de falar, tossiu e,
tirando os óculos, tirou um lenço do bolso e os poliu. Quando os colocou de novo, tinha se
recomposto. — Você deve se lembrar de que Rob Cameron é o meu primo. Eu fiquei abismado
de ouvir aquelas coisas sobre ele. Então, pensei em talvez ir para Lallybroch, ter uma palavra
com você e com o seu marido — ele levantou uma sobrancelha, mas ela não respondeu à óbvia
pergunta sobre Roger e ele continuou —, ver se Jem estava bem... você está bem, Jem? — ele
parou para perguntar seriamente para o garoto.
— Oh, sim, estou bem — Jem replicou alegremente, embora parecesse tenso —, senhor —
ele adicionou tardiamente, e lambeu um pouco de sorvete de chocolate em seu lábio superior.
— Isso é bom — Menzies sorriu para Jem, e Brianna viu um pouco de sua luz habitual por
trás de seus óculos. O calor ainda estava em seus olhos, embora ele estivesse sério quando olhou
para ela — Eu queria perguntar se poderia ter ocorrido um engano, mas estou achando que
provavelmente não? À luz do... De tudo aquilo — Ele inclinou a cabeça em direção a Lallybroch
e engoliu.
— Sim, tudo aquilo aconteceu — ela disse secamente, trocando o peso de Mandy em seu
colo — e Rob Cameron o fez.
Ele fez uma careta, inspirou profundamente, mas assentiu.
— Eu gostaria de ajudar — ele disse simplesmente.
— Você definitivamente ajudou — ela assegurou a ele, imaginando o que diabos faria com
ele agora — Eca! Mandy, você está sujando tudo! Use um guardanapo, pelo amor de Deus!
Ela limpou o rosto de Mandy rapidamente, ignorando o gemido de irritação de sua filha.
Ele poderia ajudar? Ela queria muito acreditar nele; ela ainda estava tremendo por dentro e
pronta para aceitar qualquer oferta de ajuda.
Mas ele era parente de Rob Cameron. E talvez ele tivesse ido até sua casa para conversar,
mas talvez ele tivesse ido por outra razão. Ele poderia, afinal, ter interferido para evitar que ela
explodisse Rob em pedaços sangrentos, em vez de salvar a ela e aos seus filhos de Rob e seus
companheiros mascarados.
— Eu falei com Ernie Buchan — Menzies disse, apontando com a cabeça para a janela de
vidro — Ele, hum, pareceu pensar que você não queria envolver a polícia?
— Não — A boca de Bree ficou seca; ela tomou um gole de chá morno, tentando pensar.
Estava ficando mais difícil a cada momento; seus pensamentos estavam dispersos como gotas
de mercúrio, separando-se em uma dezena de direções diferentes — Não... Apenas não agora.
Nós ficamos na delegacia metade da noite anterior. Eu realmente não posso lidar com mais
nenhuma pergunta agora — Ela respirou fundo e olhou diretamente para ele — Eu não sei o
que está acontecendo — ela disse — Eu não sei por que Rob Cameron sequestraria Jemmy.
— Sim, você... — Jem começou, e ela virou a cabeça ao redor para encará-lo.
Ele encarou de volta, os olhos vermelhos e os punhos fechados, e com um choque de
alarme, ela reconheceu o temperamento Fraser, prestes a explodir com um estrondo.
— Você sabe! — Ele disse, alto o suficiente para que vários caminhoneiros que estava no
balcão se virassem para olhar para ele — Eu disse a você! Ele queria que eu...
Mandy, que tinha começado a pegar no sono de novo, acordou e começou a chorar. — Eu
quero o papai!!!
O rosto de Jem estava vermelho de fúria. De repente, ficou branco.
— Cale a boca, cale a boca, cale a boca! — Ele gritou para Mandy, que ganiu de terror e
gritou mais alto, tentando se embaralhar com o corpo de Brianna.
— PAPAIIII!
— Jem! — Lionel Menzies estava de pé, esticando o braço para o menino, mas Jem estava
absolutamente fora de si, literalmente pulando de raiva. Todo o restaurante estava olhando
para eles.
— Vá embora! — Jem rugiu para Menzies — MALDIÇÃO! Não toque em mim! Não toque
na minha mãe! — E, em um excesso de paixão, ele chutou Menzies na canela.
— Jesus!
— Jem! — Bree segurava com força a chorosa Mandy, mas não conseguiu alcançar Jem
antes que ele pegasse seu prato de sorvete, o jogasse na parede e depois saísse correndo do
Café, abrindo a porta com tanta força que o homem e a mulher que estavam entrando tiveram
que se afastar para não serem derrubados por sua saída intempestiva.
Brianna se sentou repentinamente, como se todo o sangue tivesse deixado sua cabeça.
Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós...
O local estava silencioso, exceto pelos soluços de Mandy, embora isso estivesse
diminuindo na medida em que o pânico passava. Ela se enfiou no peito de Brianna, enterrando
o rosto no casaco acolchoado.
— Quieta, querida — Bree sussurrou, inclinando a cabeça para que os cachos de Mandy
se esfregassem em seus lábios — Quietinha agora. Está tudo bem. Tudo vai ficar bem.
Um murmúrio abafado terminou em um choroso — ... Papai?
— Sim — Bree disse firmemente — Veremos o papai em breve.
Lionel Menzies limpou a garganta. Ele tinha se sentado para massagear a canela, mas
parou de fazer isso para gesticular em direção à porta.
— Se eu... É melhor que eu vá atrás de Jem?
— Não. Ele está bem... Eu quero dizer... Ele está com Ernie. Eu posso vê-lo. — Eles estavam
no estacionamento, visíveis no brilho da luz do sinal neon. Jem tinha colidido com Ernie, que
vinha em direção ao restaurante, e se agarrava a ele como um macaco. Enquanto Brianna
observava, Ernie, um pai experiente, ajoelhou-se e abraçou Jem, batendo em suas costas e
alisando seus cabelos, e falando seriamente com ele.
— Mmphm — Era a garçonete com o sanduíche de Menzies, o rosto impassível derretido
em simpatia — A mocinha está cansada, sem dúvida.
— Eu sinto muito — Bree disse debilmente, e indicou com a cabeça o prato quebrado e a
mancha do sorvete de chocolate na parede — Eu... hum... vou pagar por isso.
— Oh, não se incomode, moça — A garçonete disse, balançando a cabeça — Eu tive filhos.
Posso ver que você já tem muita coisa acontecendo no momento. Deixe-me buscar outra xícara
de chá.
Ela saiu. Sem falar, Lionel Menzies bateu na alça de sua caneca de Irn-Bru e a empurrou
em direção a ela. Ela a pegou e tomou um gole. A propaganda dizia que aquela coisa era feita a
partir de vigas enferrujadas que tinham sido recuperadas de estaleiros de Glasgow. Apenas na
Escócia isso teria sido considerado um bom ponto de venda, ela refletiu. Mas cerca de metade
daquilo era açúcar, e a glicose bateu em seu fluxo sanguíneo como o elixir da vida.
Menzies assentiu, vendo-a se endireitar como uma flor murcha revivida.
— Onde está Roger? — ele perguntou suavemente.
— Eu não sei — ela disse, tão suavemente quanto ele; Mandy tinha dado um soluço final
e caído pesadamente no sono, o rosto ainda enterrado no casaco de Brianna. Ela mudou o tecido
de lugar para que Mandy não sufocasse — E eu não sei quando ele vai voltar.
Ele fez uma careta, parecendo infeliz e estranhamente embaraçado; ele estava tendo
dificuldade em encontrar seus olhos.
— Entendo. Mmphm. Foi... Quero dizer, ele... partiu por causa do que Rob... é... fez para
Jem? — Sua voz ficou ainda mais baixa e ela piscou para ele. O aumento de açúcar em seu sangue
tinha feito com que os seus pensamentos voltassem para o foco, entretanto, e de repente a ficha
caiu, e o sangue foi para o seu rosto.
Ele pensou que Rob tinha capturado Jemmy para... e Jemmy tinha dito “você sabe o que
ele fez”, e ela o tinha mandado ficar quieto... e ela dissera que não queria a polícia envolvida...
oh, Santo Deus. Ela inspirou profundamente e esfregou uma mão no rosto, imaginando se era
melhor que ele pensasse que Rob tinha molestado Jemmy — e agora estava tentando assassiná-
la para encobrir o assunto — ou dizer a ele alguma meia verdade razoável.
— Rob veio para minha casa na noite passada e tentou me estuprar — ela disse,
inclinando-se sobre a cabeça de Mandy para manter sua voz baixa o suficiente de forma a não
chegar aos ouvidos dos caminhoneiros sentados no balcão, que estavam olhando
disfarçadamente sobre os ombros para ela — Ele já tinha levado Jem, e Roger saiu para tentar
encontrá-lo. Nós pensamos que ele tivesse levado Jem para... para Orkney — Aquilo parecia
longe o suficiente — Eu... deixei mensagens; eu estou esperando que Roger volte logo... assim
que ele ouça que Jemmy foi encontrado — Ela cruzou os dedos sob a mesa.
O rosto de Menzies ficou sem expressão, todas as suas suposições anteriores colidindo
com as novas.
— Ele... ele... oh — Ele parou por um momento, mecanicamente tomando um gole do chá
gelado dela, e fazendo uma careta — Você quer dizer... — ele disse cuidadosamente — que você
acha que Rob sequestrou Jem para que seu marido se afastasse, para que ele... é... pudesse...
— Sim, eu acho — Ela aproveitou esta sugestão, agradecida.
— Mas... aquelas outras pessoas. Com... — Ele passou a mão vagamente sobre a cabeça,
indicando as balaclavas — O que na terra...?
— Eu não tenho ideia — ela disse firmemente. Ela não iria mencionar o ouro espanhol a
menos ou até que tivesse que fazê-lo. Quanto menos pessoas soubessem sobre isso, melhor.
Bem como a outra coisa...
Mas a menção “daquelas outras pessoas” a fez se lembrar de uma coisa, e ela tateou no
bolso espaçoso, tirando a balaclava que ela arrancou do homem que quebrara a janela com o
rifle. Ela tinha pegado um vislumbre de seu rosto em meio à luz e à sombra e não tinha tido
tempo de pensar sobre isso. Mas agora que ela o fazia, uma nova constatação chegou à sua
mente.
— Você conhece um homem chamado Michael Callahan? — ela perguntou, tentando
manter a voz casual. Menzies olhou para a balaclava, e depois para ela, os olhos se arregalando.
— É claro que sim. Ele é um arqueólogo, algo a ver com a ORCA, o Centro de Estudos de
Orkney, eu quero dizer. O Centro... Você não está querendo me dizer que ele estava com as
pessoas que...
— Tenho certeza. Eu vi o seu rosto apenas por um segundo quando tirei isso dele. E — Ela
fez uma careta de desgosto, arrancando um tufo de cabelo cor de areia de dentro da balaclava
— aparentemente isso não foi tudo o que eu peguei dele. Rob o conhece. Ele veio para
Lallybroch para dar sua opinião sobre umas ruínas atrás da casa, e ficou para o jantar.
— Oh, meu Deus! — Menzies murmurou, parecendo afundar novamente em seu assento.
Ele tirou os óculos e massageou a testa um pouco. Ela o observou pensar, sentindo-se cada vez
mais distante.
A garçonete voltou e colocou em sua frente uma nova xícara de chá quente e cremoso, já
adoçado e agitado. Brianna a agradeceu e começou a beber, observando a noite lá fora. Ernie
tinha levado Jem em direção à garagem, sem dúvida para checar como estava o caminhão.
— Eu posso entender por que você não quer problemas — Menzies disse cuidadosamente
por fim. Ele tinha comido metade de seu sanduíche; o restante estava no prato, escorrendo
ketchup de uma forma nojenta — Mas, na verdade, Sra... Posso chamá-la de Brianna?
— Bree — ela disse — Claro.
— Bree — ele disse, assentindo, e um canto de sua boca se contorceu.
— Sim, eu sei o que isso significa em escocês — ela disse secamente, vendo o pensamento
passar por sua face. Bree era uma tempestade ou uma grande perturbação.
O rosto de Lionel se quebrou num meio sorriso.
— Sim. Bem... o que eu estou pensando, Bree... Eu odeio sugerir isso, mas e se Rob fez
algum mal a Roger? Não valeria à pena aguentar as perguntas para que a polícia procurasse por
ele?
— Ele não fez nada — Ela se sentia indizivelmente cansada e só queria ir para casa —
Acredite em mim, ele não fez. Roger partiu com o seu... seu primo, Buck. E se Rob tivesse
conseguido machucá-los de alguma forma, ele certamente teria se gabado disso quando ele...
bem...
Ela inspirou de uma forma que sentiu percorrer todo o seu corpo, até os pés doloridos, e
mudou de posição, segurando Mandy firmemente.
— Lionel. Eu vou dizer uma coisa. Leve-nos para casa, pode ser? Se aquelas pessoas ainda
estiverem à espreita, iremos diretamente à polícia. Se não estiverem, isso pode esperar até
amanhã.
Ele não gostou nada da ideia, mas também estava sofrendo os efeitos do choque e da
fadiga, e depois de mais um argumento finalmente concordou, dada à sua teimosia implacável.
Ernie tinha ligado para pedir uma carona, depois de se certificar de que Lionel os levaria
para casa. Lionel estava tenso em seu caminho de volta para Lallybroch, as mãos ficando
brancas no volante, mas os faróis do Fiat mostraram que o pátio estava vazio, exceto por um
pneu descartado e jogado no cascalho, a borracha aberta como as asas de um abutre gigantesco
no céu.
As crianças estavam dormindo; Lionel carregou Jem, e depois insistiu em fazer uma busca
na casa com Bree, pregando ripas de madeira na janela quebrada da sala, enquanto ela olhava
os quartos — mais uma vez — com uma sensação de déjà vu.
— Não é melhor que eu fique aqui essa noite? — Lionel perguntou, hesitando na porta —
Eu ficaria feliz em ficar de guarda.
Ela sorriu, embora isso tenha exigido muito esforço.
— Sua esposa já deve estar imaginando onde você está. Não, você já fez o suficiente... mais
do que o suficiente por nós. Não se preocupe; eu... tomarei providências amanhã. Eu só quero
que as crianças possam ter uma boa noite de sono em suas próprias camas.
Ele assentiu, os lábios apertados em preocupação, e olhou ao redor do hall de entrada, os
painéis castanhos reluzentes à luz do lustre, até mesmo os sabres ingleses dispostos como
barras invertidas parecendo, de alguma forma, acolhedores e tranquilos por causa da idade.
— Você não tem família e amigos na América? — ele perguntou abruptamente — Eu quero
dizer, pode ser uma boa ideia sair daqui por uns tempos, não?
— Sim — ela disse — Eu estava mesmo pensando nisso. Obrigada, Lionel. E boa noite.
42 – TODO MEU AMOR
Ela estava tremendo. Estava tremendo desde que Lionel Menzies havia partido. Com um leve
senso de abstração, ela esticou a mão, com os dedos abertos, e observou-a vibrar como um
diapasão. Então, irritada, fez um punho e socou a palma da outra mão com força.
Repetidamente, trincando os dentes com fúria, até que teve que parar, ofegante, com a palma
formigando.
— Ok — ela disse baixinho, os dentes ainda cerrados — Ok — A neblina vermelha tinha
se levantado como uma nuvem, deixando uma pilha de pensamentos gelados.
Nós temos que ir.
Para onde?
E quando?
E o pensamento mais frio de todos:
E Roger?
Ela estava sentada no escritório, o painel de madeira brilhando suavemente à luz de velas.
Havia uma luminária de leitura muito boa ali, bem como o lustre, mas ela acendera o grande
candelabro em vez disso. Roger gostava de usá-lo quando escrevia à noite, passando para o
papel as canções e poemas que ele tinha memorizado, às vezes com uma pena de ganso. Ele
dizia que isso o ajudava a lembrar das palavras, trazendo um eco do tempo onde ele as tinha
aprendido.
O cheiro de cera quente da vela trouxe um eco dele. Se ela fechasse os olhos, poderia ouvi-
lo, cantarolando baixinho enquanto trabalhava, parando ocasionalmente para tossir ou limpar
a garganta machucada. Seus dedos esfregaram suavemente a escrivaninha de madeira,
convocando o toque da cicatriz da corda em seu pescoço, virando para envolver a parte de trás
de sua cabeça, enterrando os dedos na calidez escura de seus cabelos, enterrando o rosto em
seu peito...
Ela estava tremendo de novo, desta vez com soluços silenciosos. Ela fechou as mãos de
novo, mas desta vez apenas respirou até que passasse.
— Isso não vai adiantar — ela disse em voz alta, fungou profundamente e, acendendo a
luz, apagou a vela e pegou uma folha de papel e uma caneta esferográfica.
Enxugando as lágrimas de seu rosto com as costas da mão, ela dobrou a carta cuidadosamente.
Envelope? Não. Se qualquer pessoa encontrasse isso, um envelope não seria impedimento
algum. Ela virou a carta e, fungando, escreveu “Roger”, em sua melhor caligrafia escolar.
Ela tateou em seu bolso à procura de um Kleenex e assoou o nariz, sentindo obscuramente
que devia fazer algo mais... cerimonial?... com a carta, mas, tirando colocar a carta na lareira e
atear fogo a ela para que o vento do norte a levasse, como seus pais costumavam fazer com suas
cartas de infância para o Papai Noel, nada ocorreu a ela.
Em seu atual estado de espírito, ela achou reconfortante o fato de que Papai Noel sempre
viera.
Ela abriu a gaveta grande e foi tateando na parte de trás para o fecho que liberava o local
secreto quando algo lhe ocorreu. Ela fechou a gaveta grande e abriu a pequena no centro, que
continha canetas e clipes de papel, além de borrachas — e um batom deixado no lavabo no
andar de baixo por alguma convidada aleatória.
Era rosa, mas um rosa escuro, e não importava que a cor não combinava com os seus
cabelos. Ela o aplicou às pressas sem usar um espelho e depois pressionou os lábios
cuidadosamente na palavra Roger.
— Eu te amo — ela sussurrou, e, tocando o beijo rosa com um dos dedos, abriu a gaveta
grande de novo e empurrou o ponto que destravava o local escondido. Não era um fundo falso,
mas um espaço ao lado da escrivaninha. Um painel deslizante que levava a um buraco com cerca
de quinze centímetros por oito.
Quando Roger o descobrira, ele continha três selos impressos com a cabeça da Rainha
Vitória — infelizmente, eram apenas selos comuns da era vitoriana, em vez de selos valiosos de
colecionador — e uma mecha de cabelo loiro ondulado de criança, desaparecendo pela idade,
atada com uma linha branca e um pedaço de urze. Eles tinham deixado os selos lá — quem
sabia? Talvez eles pudessem se tornar valiosos quando outras gerações herdassem a mesa —
nas ela havia colocado a mecha de cabelo entre as páginas de sua Bíblia e fazia uma oração pela
criança e seus pais, quando se deparava com ela.
A carta coube facilmente no coração da escrivaninha. Um momento de pânico: ela deveria
ter incluído mechas dos cabelos das crianças? Não, ela pensou ferozmente. Não seja mórbida.
Sentimental, sim. Mórbida, não.
— Deus, permita que todos nós possamos ficar juntos de novo — ela sussurrou,
empurrando o medo e, fechando os olhos, fechou o painel com um clique.
Se ela não tivesse aberto os olhos exatamente quando retirou a mão, nunca teria visto.
Apenas a borda de alguma coisa pendurada atrás da grande gaveta, quase invisível. Ela esticou
a mão e encontrou um envelope, bem no fundo, preso na lateral interna da escrivaninha com
fita adesiva. Ela tinha se secado com o tempo; a batida anterior na gaveta devia tê-la soltado.
Ela virou o envelope com a sensação de alguma coisa que acontece em um sonho e, como
em um sonho, não se surpreendeu ao ver as iniciais B.E.R. escritas no papel amarelado. Muito
lentamente, ela o abriu.
Querida Deadeye, ela leu, e sentiu cada um dos pelos de seu corpo se elevar lenta e
silenciosamente, um de cada vez.
Querida Deadeye,
Você acabou de me deixar, depois de nossa maravilhosa tarde entre os discos de tiro. Meus
ouvidos ainda estão soando. Quando atiramos, eu fico dividido entre o imenso orgulho em sua
habilidade, a inveja dela — e o medo de que algum dia você possa precisar usá-la.
Que estranha sensação é, escrever sobre isso. Eu sei que você eventualmente vai entender
quem — ou talvez, o que — você é. Mas eu não tenho ideia de como você vai adquirir este
conhecimento. Será que estou prestes a fazer uma revelação, ou isso será notícia antiga quando
você encontrar a carta? Se nós dois tivermos sorte, poderei contar para você pessoalmente quando
estiver mais velha. E se nós tivermos muita sorte, isso não vai dar em nada. Mas eu não ousaria
arriscar sua vida nessa esperança, e você não tem idade o suficiente para que eu possa te dizer.
Eu sinto muito, querida, isso é terrivelmente melodramático. E a última coisa que eu quero
é alarmá-la. Eu tenho toda a confiança do mundo em você. Mas eu sou o seu pai e, assim, estou
preso aos medos que afligem a todos os pais — que alguma coisa terrível e imprevisível possa
acontecer ao seu filho e você não tenha poder algum para protegê-lo.
— O que diabos, papai? — Ela esfregou com força a nuca para amenizar a comichão ali.
Homens que viveram através da guerra geralmente não falam sobre isso, a não ser com
outros soldados. Homens que fazem o meu tipo de serviço não falam com ninguém, e não apenas
por causa dos Segredos Oficiais. É que o silêncio devora a sua alma. Eu tinha que falar com alguém,
e meu velho amigo Reggie Wakefield se tornou meu confessor.
(Ele é o Reverendo Reginald Wakefield, um ministro da Igreja da Escócia que vive em
Inverness. Se você estiver lendo esta carta, provavelmente eu estarei morto. Se Reggie ainda
estiver vivo e você tiver idade o suficiente, vá visitá-lo; ele tem minha permissão para dizer a você
tudo o que souber sobre isso).
— Idade suficiente? — Rapidamente, ela tentou calcular quando aquilo tinha sido escrito.
Discos de tiro. Sherman’s — o campo de tiro onde ele a ensinara a usar uma espingarda. A
espingarda tinha sido presente pelo seu décimo quinto aniversário. E seu pai tinha morrido
pouco antes do seu aniversário de dezessete anos.
O Exército não tem nada a ver diretamente com isso; não vá para esta direção em busca de
informações. Eu estou dizendo isso apenas porque foi lá que eu aprendi como funciona uma
conspiração. Eu também conhecia muitas boas pessoas na guerra, muitas delas em posições
elevadas, e muitas estranhas; os dois se sobrepõem com mais frequência do que se poderia desejar.
Por que é tão difícil de dizer isso? Se eu estiver morto, sua mãe já pode ter contado a você a
história do seu nascimento. Ela me prometeu que nunca falaria sobre isso, enquanto eu vivesse, e
eu tenho certeza de que cumpriu esta promessa. Se eu estiver morto, entretanto, ela pode...
Perdoe-me, querida. É difícil dizer, porque eu amo a sua mãe e eu amo você. E você sempre
será a minha filha, mas você foi concebida por outro homem.
Tudo bem, está dito. Vendo isso escrito tão preto no branco, meu impulso é de rasgar o papel
em pedacinhos e queimá-los, mas não farei isso. Você precisa saber.
Logo após o fim da guerra, sua mãe e eu viemos para a Escócia. Algo como uma segunda lua
de mel. Ela saiu uma tarde para coletar flores — e nunca mais voltou. Eu procurei — todos
procuraram — por meses, mas não havia sinal dela, e eventualmente a polícia encerrou as buscas
— bem, na realidade, eles não deixaram de lado a suspeita de que eu a tinha assassinado, malditos,
mas acabaram se cansando de me assediar. Eu tinha começado a retomar minha vida, e tinha
decidido continuar, talvez deixar a Inglaterra — e então Claire voltou. Três anos após o seu
desaparecimento, ela surgiu nas Highlands, imunda, faminta, surrada — e grávida.
Grávida, ela disse, de um jacobita das Highlands de 1743, chamado James Fraser. Eu não vou
entrar em detalhes sobre tudo o que foi dito entre nós; foi há muito tempo e isso não importa —
exceto pelo fato de que SE a sua mãe disse a verdade, e realmente viajou no tempo, então você
pode ter a mesma habilidade de fazer isso. Eu espero que não. Mas se você puder... Deus, eu não
acredito que estou escrevendo isso seriamente. Mas eu olho para você, querida, com o sol em seus
cabelos ruivos, e eu o vejo. Eu não posso negar.
Bem. Demorou um bom tempo. Um tempo muito longo. Mas sua mãe nunca mudou a história,
e embora nós não falemos disso há algum tempo, tornou-se óbvio que ela não era mentalmente
perturbada (o que eu assumi ser o caso logo de início). E eu comecei... a procurar por ele.
Agora eu preciso divagar por um momento; perdoe-me. Eu acho que você não deve ter
ouvido sobre o Vidente Brahan. Pitoresco como era — se, de fato, ele existiu —, ele não é realmente
muito conhecido além daqueles círculos que têm certo gosto para os aspectos mais bizarros da
história escocesa. Reggie, entretanto, é um homem de imensa curiosidade, bem como imenso
conhecimento, e ficou fascinado pelo vidente — um tal de Kenneth MacKenzie, que viveu no século
dezessete (talvez), e que fez um grande número de profecias sobre diversas coisas, às vezes sob o
comando do Conde de Seaforth.
Naturalmente, as únicas profecias mencionadas em conexão com este homem são aquelas
que aparentemente se tornaram reais: ele previu, por exemplo, que quando houvesse cinco pontes
sobre o Lago Ness, o mundo cairia no caos. Em Agosto de 1939, a quinta ponte sobre o Ness foi
inaugurada, e em Setembro, Hitler invadiu a Polônia. Caos o bastante para qualquer um.
O vidente teve um fim pegajoso, como os profetas geralmente têm (por favor, lembre-se disso,
querida, sim?), queimado até a morte num barril de alcatrão por ordem de Lady Seaforth — para
quem ele tinha imprudentemente profetizado que seu marido estava tendo casos com várias
senhoras enquanto estava em Paris. (Isso é provavelmente verdade, em minha opinião).
Entre as suas profecias menos conhecidas, entretanto, havia uma chamada “A Profecia
Fraser”. Não há um grande conhecimento sobre isso, e o que se sabe é incoerente e vago, como as
profecias geralmente são, o Antigo Testamento que o diga. A única parte relevante, eu acho, é esta:
“O último da linhagem de Lovat vai governar a Escócia”.
Pare se puder, agora, querida, e olhe para o papel que eu estou anexando à carta.
Tateando e desajeitada pelo choque, ela deixou as folhas caírem juntas e teve que pegá-
las do chão. Era fácil saber de qual papel ele estava falando; o papel era mais frágil, uma
fotocópia de um manuscrito — de algum tipo de árvore genealógica — do autor, não de seu pai.
Sim. Bem. Este pedaço de informação perturbadora veio para minhas mãos através de
Reggie, que o conseguiu com a esposa de um homem chamado Stuart Lachlan. Lachlan tinha
morrido repentinamente, e quando sua viúva estava limpando a escrivaninha, encontrou o papel
e decidiu passar para Reggie, sabendo que ele e Lachlan compartilhavam o interesse pela história
da família Lovat, já que era uma família de Inverness; a sede do clã era em Beauly. Reggie, é claro,
reconheceu os nomes.
Você provavelmente não sabe nada sobre a aristocracia escocesa, mas eu conheci Simon
Lovat, Lord Lovat, isto é, durante a guerra — ele pertencia ao Comando, e depois às Forças
Especiais. Nós não éramos amigos próximos, mas nos encontrávamos casualmente, por conta dos
negócios, você poderia dizer.
— Negócios de quem? — ela disse em voz alta, desconfiada — Dele ou seu? — Ela podia
ver o rosto de seu pai, com o sorriso contido no canto da boca, mantendo segredo mas deixando
transparecer que havia alguma coisa.
Os Frasers de Lovat têm uma linhagem bastante simples de descendentes, até chegarmos ao
Velho Simon — bem, todos eles são chamados de Simon —, aquele que é conhecido como a Velha
Raposa, que foi executado por traição após a Rebelião Jacobita — em 45, eles dizem. (Há bastante
coisa sobre ele em meu livro sobre os jacobitas; não sei se em algum momento você vai ler aquilo,
mas está lá, se você se sentir curiosa).
— Eu deveria me sentir curiosa? — ela murmurou — Ha! — Brianna sentiu uma definida,
mas velada, nota de acusação ali e pressionou os lábios, aborrecida consigo mesma por não ter
lido os livros de seu pai ainda e pelo fato de ele ter mencionado.
Simon foi um dos Frasers mais pitorescos, em vários sentidos. Ele teve três esposas, mas não
era famoso pela fidelidade. Ele teve alguns filhos legítimos, e Deus sabe quantos filhos ilegítimos
(embora dois destes sejam conhecidos), mas seu herdeiro foi o Jovem Simon, conhecido como a
Jovem Raposa. O Jovem Simon sobreviveu ao Levante, embora tenha sido desacreditado e tenha
perdido sua propriedade. Ele eventualmente acabou recebendo a maior parte de volta através dos
tribunais, mas a luta levou a maior parte de sua longa vida, e, embora ele tenha se casado, ele o
fez numa idade muito avançada e não teve filhos. Seu irmão mais novo, Archibald, herdou a
propriedade, mas depois morreu sem filhos também.
Então Archibald era o “último da linhagem dos Lovat” — há uma linha direta de
descendentes entre ele e os Frasers de Lovat, que teria sido concomitante com o Vidente Brahan
— mas claramente ele não era o governante escocês previsto.
Você pode ver na árvore, entretanto. Quem quer que tenha feito, listou os dois filhos
ilegítimos, assim como o Jovem Simon e seu irmão. Alexander e Brian, nascidos de mães diferentes.
Alexander entrou no sacerdócio e se tornou abade em um monastério na França. Não teve filhos
conhecidos. Mas Brian...
Ela sentiu o gosto da bile e achou que poderia vomitar. Mas Brian... Ela fechou os olhos em
reflexo, mas isso não importava. A árvore estava gravada no interior de suas pálpebras.
Ela se levantou, empurrando a cadeira com um ranger, e foi para o corredor, o coração
trovejando em seus ouvidos. Engolindo repetidamente, ela foi para o hall de entrada e tirou a
arma de seu lugar atrás do chapeleiro. Ela se sentiu um pouco melhor com ele nas mãos.
— Não está certo — Ela não tinha percebido que falara em voz alta; sua própria voz a
assustou — Não está certo — ela repetiu, em uma voz baixa e feroz — Eles deixaram pessoas
de fora. E sua Tia Jenny? Ela teve seis filhos! E quanto a eles?
Ela estava marchando no corredor, a arma na mão, balançando o cano de um lado para o
outro como se esperasse que Rob Cameron — ou qualquer outra pessoa, e o pensamento a fez
estremecer — saltasse para fora da sala ou da cozinha ou viesse escorregando pelo corrimão.
Aquele pensamento a fez olhar para cima das escadas — ela tinha deixado todas as luzes acesas
quando desceu do quarto das crianças — mas o patamar estava vazio e nenhum som vinha de
lá de cima.
Um pouco mais calma, ela vasculhou o piso térreo com cuidado, olhando atrás de cada
porta e janela. E o buraco do padre, cujo buraco vazio apresentava-se ironicamente boquiaberto
para ela.
Jem e Mandy estavam bem. Ela sabia que eles estavam. Mas, ainda assim, ela subiu, com a
ponta dos pés, e ficou parada perto de suas camas por um longo tempo, observando o brilho
pálido da luz do abajur da Branca de Neve em seus rostos.
O relógio comprido do hall abaixo bateu a hora, e deu uma única badalada! Ela inspirou
profundamente e desceu para terminar de ler a carta de seu pai.
— Neutralizá-los — ela murmurou, o frio em suas mãos se espalhando pelos braços e pelo
peito, cristalizando-se ao redor de seu coração. Ela não tinha dúvida sobre o que ele queria dizer
com aquilo, a praticidade do termo abrandando o assunto. E se ele tivesse encontrado a pessoa
— as pessoas?
— Você não pode ter certeza que aquelas coisas têm o nome do seu pai — Buck assentiu em
direção às placas de identificação, o cordão ainda enrolado ao redor da mão de Roger, os
pequenos discos ainda apertados na palma de sua mão — Quantos MacKenzies existem, pelo
amor de Deus?
— Muitos — Roger se sentou em uma grande rocha coberta de liquens. Eles estavam no
topo da colina que se erguia atrás de Lallybroch; a torre ficava na encosta logo abaixo deles, seu
telhado cônico uma ampla espiral preta de ardósias — Mas não tantos que voaram pela Royal
Air Force durante a Segunda Guerra Mundial. E até menos que desapareceram sem deixar
vestígios. Quanto àqueles que podem ser viajantes do tempo...
Roger não conseguia se lembrar o que disse quando viu as placas de identificação ou o
que Brian Fraser disse a ele. Quando ele começou a notar as coisas de novo, ele estava sentado
na grande cadeira de balanço de Brian com uma caneca de chá quente segura entre as mãos e
toda a família enfiada na porta, olhando para ele com olhares que iam de compaixão a
curiosidade. Buck estava agachado na frente dele, franzindo o cenho no que poderia ser
preocupação ou simplesmente curiosidade.
— Sinto muito — Roger havia dito, limpando a garganta, e colocando o chá não bebido
sobre a mesa. Suas mãos pulsavam por causa do calor do copo — Foi apenas o choque. Eu...
agradeço.
— É alguma coisa relacionada ao seu rapazinho, então? — Jenny Fraser tinha perguntado,
os profundos olhos azuis escurecidos de preocupação.
— Eu acho que sim — Ele colocou suas suspeitas de lado e se levantou com dificuldade,
balançando a cabeça para Brian — Obrigado, senhor. Eu não posso agradecer o suficiente por
tudo o que fez por mim... por nós! Eu... preciso pensar um pouco sobre o que vou fazer agora. Se
me der licença, Senhorita Fraser?
Jenny assentiu, sem tirar os olhos de seu rosto, mas espantando as empregadas
domésticas e a cozinheira pela porta para que ele pudesse passar. Buck o tinha seguido,
murmurando coisas reconfortantes para a multidão, e saído junto com ele, sem falar nada até
que eles chegaram à solidão do topo da colina escarpada. Onde Roger explicou exatamente o
que as placas de identificação eram e a quem elas tinham pertencido.
— Por que duas? — Buck perguntou, esticando um dedo hesitante para tocar nas placas
— E por que elas têm cores diferentes?
— Duas para o caso de uma delas ser destruída pelo que quer que o matasse — Roger
disse, inspirando profundamente — As cores... elas são feitas de papelão prensado e tratadas
com químicos, substâncias eu quero dizer, diferentes. Uma delas resiste à água e a outra resiste
ao fogo, mas eu não sei dizer qual é qual.
Conversar sobre detalhes técnicos tornou possível a ele falar. Buck, com uma
desacostumada delicadeza, estava esperando que Roger falasse o indizível.
Como as placas tinham chegado ali? E quando — e sob quais circunstâncias — elas tinham
se separado de J(eremiah) W(alter) MacKenzie, católico apostólico romano, número de série
448397651, RAF?
— Claire... minha sogra... eu falei sobre ela pra você, não?
— Um pouco, sim. Uma vidente, não?
Roger riu brevemente — Sim, como eu sou. Como você é. É fácil ser um vidente se o que
você vê já aconteceu.
Buck olhou com os olhos vesgos para as placas, os lábios pressionados juntos, e depois mudou
o olhar para Roger.
— Você acha que o seu rapaz está com o seu pai, de alguma forma?
— Não.
Aquele pensamento em particular não tinha ocorrido a Roger, e o balançou por um
momento. Ele deu de ombros, entretanto.
— Não — ele repetiu mais firmemente — Eu estou começando a pensar que talvez... talvez
Jem não esteja aqui — A declaração pairou no ar, revolvendo lentamente. Ele olhou para Buck,
que parecia estar encarando a situação.
— Por que não? — Seu parente perguntou abruptamente.
— A, porque nós não encontramos nenhum vestígio dele. E B, porque agora há isso — Ele
ergueu as placas, os leves discos de papelão levantando-se com a brisa.
— Você soa como a sua esposa — Buck disse, meio divertido — Ela faz isso, sim? Classifica
as coisas em A, B, C e tal.
— É como a mente de Brianna funciona — Roger disse, sentindo uma breve onda de
afeição por ela — Ela é muito lógica.
E se eu estiver certo, e Jem não estiver aqui... onde ele está? Ele foi para outro tempo ou nem
chegou a viajar? Como se a palavra lógica provocasse isso, uma gama de possibilidades terríveis
se abriu diante dele.
— O que eu estou pensando... Nós dois estávamos nos concentrando no nome Jeremiah
quando chegamos aqui, certo?
— Sim, estávamos.
— Bem... — Ele torceu o cordão entre os dedos, fazendo os discos girarem lentamente —
E se nós pensamos no Jeremiah errado? É o nome do meu pai também. E... e se Rob Cameron
não fez com que Jem atravessasse as pedras...
— Por que ele não faria isso? — Buck interrompeu afiadamente. Ele transferiu o olhar
furioso para Roger — O caminhão dele estava lá em Craigh na Dun. Ele não estava.
— Claramente ele queria que nós pensássemos que ele atravessou. Quanto ao porquê
disso... — Ele ficou chocado com o pensamento. Antes que ele pudesse limpar a garganta, Buck
terminou por ele.
— Para nos afastar, de forma a ter sua mulher para si mesmo — Seu rosto se escureceu
com a raiva, parte dela dirigida a Roger — Eu disse a você que o homem estava olhando para
sua esposa.
— Talvez, sim — Ele disse brevemente —, mas pense, sim? Por trás do que quer que ele
tenha em mente em relação à Brianna... — As meras palavras conjuravam imagens que faziam
o sangue subir para sua cabeça — O que quer que ele tenha em mente — ele repetiu, o mais
calmamente que podia —, ele provavelmente também queria saber se isso era verdade. Sobre
as pedras. Se nós, ou qualquer outra pessoa, realmente podemos atravessá-las. Ver para crer.
Buck soprou o ar de suas bochechas, considerando.
— Você acha que ele talvez estivesse lá? Observando-nos desaparecer?
Roger deu de ombros, momentaneamente incapaz de falar com os pensamentos que
enevoavam seu cérebro.
Os punhos de Buck estavam cerrados nos joelhos. Ele olhou para a casa abaixo, e depois
para trás dele, para as montanhas que se erguiam, e Roger sabia exatamente o que ele estava
pensando. Ele limpou a garganta com um grunhido.
— Nós estamos longe há duas semanas — Roger disse — Se ele quisesse fazer algum mal
a Brianna... ele já teria feito — Jesus! Se ele... não — Ela não deixaria que ele machucasse a ela
ou às crianças — ele continuou, com a maior estabilidade que conseguiu — Se ele tentasse
qualquer coisa, ele seria preso ou enterrado sob a torre.
Ele levantou o queixo em direção à torre abaixo, e Buck bufou em uma relutante diversão.
— Então, sim. Eu quero correr diretamente para Craigh na Dun também. Mas pense,
homem. Nós sabemos que Cameron foi para as pedras depois de capturar Jem. Será que ele não
faria Jem tocá-las para saber? E se ele o fez... e se Cameron não pudesse viajar, mas Jem o fez...
para se afastar dele?
— Mmphm — Buck pensou nisso por um tempo e assentiu relutantemente — Então você
está pensando que, se o rapaz escapou de Cameron e atravessou acidentalmente, ele poderia
não tentar voltar na mesma hora?
— Talvez ele não pudesse — Roger estava com a boca seca e engoliu seco para gerar saliva
o suficiente para falar — Ele não tinha uma pedra preciosa. E mesmo que tivesse... — Ele
assentiu em direção a Buck — Você sabe o que aconteceu a você, mesmo tendo uma pedra. Fica
pior cada vez. Jemmy podia estar muito assustado para tentar — E ele poderia ter tentado, e
não conseguido, e agora estava perdido... NÃO!
Buck assentiu.
— Então. Você acha que ele pode estar com seu pai, afinal? — Ele soava extremamente
cheio de dúvidas.
Roger não podia suportar ficar sentado por mais tempo. Ele se levantou abruptamente,
jogando as placas de identificação no bolso interno de seu casaco.
— Eu não sei. Mas esta é a única evidência sólida que nós temos. Eu terei que ir e ver.
45 – A CURA DAS ALMAS
— Você está fora de sua pequena mente rosa. Sabe disso, sim? — Roger olhou para Buck com
diversão.
— Onde diabos você aprendeu essa expressão?
— De sua esposa — Buck replicou — Que é uma moça extremamente bonita e articulada,
aliás. E se você pretende voltar para sua cama um dia desses, é melhor pensar bem no que vai
fazer.
— Eu pensei — Roger disse brevemente — E eu estou fazendo.
A entrada para o Forte William parecia a mesma de quando ele tinha vindo ali com Brian
Fraser aproximadamente duas semanas antes, mas desta vez havia apenas algumas pessoas por
ali, com os xales sobre suas cabeças, e chapéus puxados para baixo por causa da chuva. O forte
por si só parecia ter um aspecto sinistro, as pedras cinzentas sombrias e listradas de preto por
causa da umidade.
Buck refreou-se, fazendo uma careta quando o cavalo balançou sua cabeça e o polvilhou
com gotas de água presas em sua crina.
— Sim, bem. Eu não vou entrar. Se nós tivermos que matá-lo, é melhor que ele não me
conheça, para que eu possa chegar por trás dele. Eu vou esperar por você lá na taverna — Ele
levantou o queixo, indicando um estabelecimento chamado Peartree, alguns metros abaixo da
estrada para o forte, e depois chutou seu cavalo para que ele se movesse. Quando estava alguns
metros distante, se virou e olhou sobre o ombro — Uma hora! Se você não vier até mim então,
virei atrás de você!
Roger sorriu, apesar de sua apreensão. Ele acenou brevemente para Buck e virou seu
cavalo.
Abençoe-me, Deus, ele orou. Ajude-me a fazer a coisa certa... para todos. Incluindo para
Buck. E para ele mesmo.
Ele não parou realmente de rezar em momento algum desde que Jem havia desaparecido,
embora a maior parte destas orações fossem apenas o frenético e reflexivo “Querido Deus” dito
por todos que estão enfrentando uma crise. Com o tempo, a crise ou o peticionário se
desgastam, e as orações cessam ou... a pessoa começa a ouvir.
Ele sabia disso. E ele estava ouvindo. Mas ainda não tinha sido pego de surpresa por uma
resposta.
Ele tinha experiência suficiente com essa coisa de rezar para reconhecer uma resposta
quando ela aparecia, embora às vezes ela fosse indesejável. E o lembrete, chegando como um
pensamento aleatório no meio de sua jornada chuvosa e manchada de lama, de que a alma de
Jack Randall estava muito mais em perigo do que a vida de Brian Fraser era muito indesejável.
— Bem, então — Buck tinha dito, iluminando-se sob a aba de seu chapéu encharcado
quando Roger compartilhara sua perturbação com aquela intuição —, são mais razões para
matá-lo agora. Salvaríamos os Frasers e evitaríamos que aquele perverso vá para o inferno... Se
ele ainda não tiver feito nada que o mande para lá — ele adicionou com um pensamento
posterior — Dois coelhos numa cajadada só, sim?
Roger pensou por um momento antes de replicar.
— Só por curiosidade... Você era um advogado de instância inferior ou de instância
superior, quando exercia a profissão?
— De instância inferior. Por quê?
— Não é de se admirar que não tenha dado certo. Todos os seus talentos estão em outra
direção. Você não pode ter uma conversa sem argumentar?
— Não com você — Buck disse claramente, e chutou seu cavalo para que ele acelerasse
para um trote, enviando torrões de barro em seu rastro.
Roger deu seu nome e perguntou ao funcionário do exército se ele poderia conversar com
o Capitão Randall, e então ficou parado ao lado da fogueira, tirando do corpo o máximo de água
que conseguiu antes do homem voltar para levá-lo ao escritório de Randall.
Para sua surpresa, era o mesmo escritório onde ele e Brian Fraser tiveram sua última
audiência com o Capitão Buncombe quase duas semanas antes. Randall estava sentado atrás de
sua mesa, pena na mão, mas olhou para cima com uma expressão cortês quando Roger entrou
na sala e levantou um pouco, fazendo uma pequena reverência.
— Seu criado, senhor. Senhor MacKenzie, certo? Você está vindo de Lallybroch, eu
suponho.
— Seus mais obediente servo, senhor — Roger replicou, ajustando seu sotaque para o seu
escocês tingido de Oxbridge — O Sr. Brian Fraser foi gentil o suficiente para me dar o objeto
que você levou. Eu queria agradecê-lo pela ajuda e perguntar se poderia me dizer onde o objeto
foi encontrado.
Ele sabia sobre a banalidade do mal; monstros humanos vinham em formas humanas.
Mesmo assim, ele estava surpreso. Randall era um homem bonito, bastante elegante no porte,
com uma expressão interessada e animada, uma curva bem-humorada na boca, e olhos escuros
e calorosos.
Bem, ele é humano. E talvez ainda não seja um monstro.
— Um dos meus mensageiros o trouxe — Randall replicou, limpando a pena e deixando-
a cair numa jarra cheia de outras penas — Meu antecessor, Capitão Buncombe, mandou
despachos para o Forte George e o Forte Augustus sobre o seu filho... Sinto muito pela sua
situação — ele adicionou formalmente. — Uma patrulha de Ruthven Barracks me trouxe o
ornamento. Receio não saber onde eles o descobriram, mas talvez o mensageiro que o trouxe
de Ruthven saiba. Eu vou mandar chamá-lo.
Randall foi até a porta e falou com a sentinela do lado de fora. Voltando, ele fez uma pausa
para abrir um armário, que revelou um estande de perucas, um saleiro, duas escovas de cabelo,
uma lupa, e uma pequena bandeja com um decanter de vidro e copos.
— Permita-me oferecer uma bebida, senhor — Randall serviu uma dose cautelosa em
cada copo e ofereceu um a Roger. Ele pegou o próprio copo, suas narinas queimando um pouco
ao sentir o cheiro do uísque — O néctar do país, pelo que eu entendo — ele disse com um sorriso
irônico — Disseram-me que eu preciso desenvolver gosto por isso — Ele tomou um gole
cauteloso, parecendo esperar uma morte súbita como resultado.
— Se eu puder dar uma sugestão... um pouco de água misturada a ele é costumeiro —
Roger disse, cuidadosamente tirando qualquer traço de diversão de sua voz — Alguns dizem
que abre o sabor e o torna mais suave.
— Oh, sério? — Randall pousou seu copo, parecendo aliviado — Isso parece sensato. Essa
coisa tem gosto de algo inflamável. Sanders! — ele gritou em direção à porta — Traga um pouco
de água!
Houve uma pequena pausa, nenhum dos homens sabendo o que dizer em seguida.
— A, hã, coisa — Randall disse — Posso vê-la de novo? É bastante notável. É uma joia de
algum tipo? Um ornamento?
— Não. É um... tipo de amuleto — Roger disse, pescando as placas de identificação de seu
bolso. Ele sentiu uma dor no peito ao pensar nos pequenos rituais pessoais que os aviadores
faziam: uma pedra da sorte no bolso, um lenço especial, o nome de uma mulher pintado na
frente do avião. Amuletos. Pedaços pequenos de uma magia de esperança, proteções contra um
céu vasto com fogo e morte — Para preservar a alma — Na memória, pelo menor.
Randall franziu um pouco o cenho, olhando das placas de identificação para o rosto de
Roger, e depois voltando. Ele estava claramente pensando na mesma coisa que Roger: e se o
amuleto está separado da pessoa que ele deveria proteger... Mas ele não disse nada, meramente
tocou a placa verde gentilmente.
— J. W. O nome de seu filho é Jeremiah, certo?
— Sim. Jeremiah é um velho nome de família. É o nome do meu pai. Eu... — Ele foi
interrompido pela entrada do Cabo MacDonald, um soldado muito jovem, pingando de tão
molhado e levemente azulado por causa do frio, que saudou Capitão Randall inteligentemente,
e depois tossiu de uma forma que sacudiu toda a sua estrutura.
Uma vez recomposto, ele imediatamente cumpriu as ordens de Randall de dizer a Roger
tudo o que sabia sobre as placas de identificação — mas ele não sabia muito. Um dos soldados
que passava por Ruthven Barracks o tinha ganhado num jogo de dados num bar do local. Ele se
lembrava do nome do bar — Fatted Grouse; ele havia bebido ali também — e ele pensou que o
soldado havia dito que ganhou as moedas de um fazendeiro voltando do mercado em Perth.
— Você se lembra do nome do soldado que o ganhou? — Roger perguntou.
— Oh, sim, senhor. Era o Sargento McLehose. E agora eu estou pensando... — Um amplo
sorriso exibiu os dentes tortos dele com a lembrança — Eu me lembro do nome do fazendeiro
também! Era Sr. Anthony Cumberpatch. Ele provocou o Sargento McLehose, sendo estrangeiro
e soando muito calmo.
Ele reprimiu o riso e Roger sorriu. Capitão Randall limpou a garganta, e o riso parou
abruptamente, Cabo MacDonald adquirindo uma sóbria atenção.
— Obrigada, Sr. MacDonald — Randall disse secamente — Isso é tudo!
O Cabo MacDonald, envergonhado, bateu continência e saiu. Houve um momento de
silêncio, durante o qual Roger tomou consciência da chuva, ficando cada vez mais forte, fazendo
barulho como cascalho na grande janela. Um pingo frio passou por sua moldura e tocou seu
rosto. Olhando para a janela, ele viu o pátio abaixo, e o pelourinho, um crucifixo sombrio,
austero e solitário, escuro na chuva.
Oh, Deus!
Cuidadosamente, ele enrolou as placas de identificação e as colocou novamente no bolso.
Então, encontrou os olhos escuros do Capitão Randall.
— O Capitão Buncombe disse a você, senhor, que eu sou um ministro?
As sobrancelhas de Randall se elevaram em surpresa.
— Não, ele não disse — Randall estava claramente imaginando por que Roger
mencionaria isso, mas foi cortês — Meu irmão mais novo é um clérigo. Ah... Da Igreja da
Inglaterra, é claro — Então, a pergunta ficou fracamente implícita, e Roger respondeu com um
sorriso.
— Eu sou um ministro da Igreja da Escócia, senhor. Mas se eu puder... você me permite
oferecê-lo uma bênção? Pelo meu sucesso e do meu parente... e em agradecimento pela sua
gentil ajuda.
— Eu... — Randall piscou, claramente desconcertado — Eu... suponho que sim. É... tudo
bem — Ele se recostou um pouco, parecendo desconfiado, as mãos sobre o mata-borrão. Ele
ficou completamente surpreso quando Roger se inclinou para frente e pegou ambas as suas
mãos firmemente. Randall tentou se soltar, mas Roger segurou com mais força, os olhos no
capitão.
— Oh, senhor — ele disse — nós pedimos a sua bênção em nossas obras. Guia-me e ao
meu parente em nossa busca, e guie este homem em seu novo emprego. Que a sua luz e presença
esteja conosco e com ele, e que o seu julgamento e compaixão sempre recaia sobre nós.
Recomendo-o aos seus cuidados. Amém.
Sua voz se quebrou na última palavra, e ele deixou as mãos de Randall e tossiu, olhando
para o lado enquanto limpava a garganta.
Randall limpou a garganta também, envergonhado, mas manteve a compostura.
— Eu agradeço por sua... é... prece, Sr. MacKenzie. E eu te desejo boa sorte. E um bom dia.
— O mesmo para você, Capitão — Roger disse, levantando-se — Que Deus esteja com
você!
46 – DIGA-ME, MENINO JESUS...
Dr. Joseph Abernathy estacionou na entrada de sua casa, ansiando por uma cerveja gelada e um
jantar quente. A caixa de correio estava cheia; ele arrancou de lá um punhado de circulares e
envelopes e entrou, classificando-os enquanto caminhava.
— Conta, conta, propaganda, lixo, lixo, mais lixo, apelo de caridade, conta, idiota, conta,
convite... Oi, querida... — Ele parou para dar um beijo em sua esposa, seguido de um segundo
para cheirar seu cabelo — Oh, cara, nós teremos linguiças e chucrute para o jantar?
— Você terá — sua esposa lhe disse, carinhosamente pegando o casaco pendurado no
cabideiro com uma mão e apertando sua nádega com a outra — Eu vou para uma reunião com
Marilyn. Estarei de volta às nove, se a chuva não deixar o tráfego muito ruim. Algo bom chegou
do correio?
— Não. Divirta-se!
Ela revirou os olhos para ele e saiu antes que ele pudesse perguntar se ela comprara
algumas Bud. Ele jogou as cartas meio separadas no balcão e abriu o refrigerador para verificar.
Um pacote vermelho e branco reluzente de seis cervejas acenava alegremente para ele, e o ar
estava quente com o cheiro de linguiça frita e vinagre que ele quase podia sentir o gosto sem
sequer tirar a tampa da panela no fogão.
— Uma boa mulher vale mais do que rubis — ele disse, inalando alegremente e puxando
uma lata de seu envoltório de plástico.
Ele estava na metade do primeiro prato de comida e a dois terços de terminar a sua
segunda cerveja quando tirou os olhos da seção de esportes do jornal e viu a carta no topo da
pilha desarrumada do correio. Ele reconheceu a caligrafia de Bree logo de cara; era grande e
arredondada, com uma determinada inclinação para a direita — mas havia alguma coisa errada
com a carta.
Ele a pegou, franzindo um pouco o cenho, imaginando por que parecia tão estranha... e
depois percebeu que o selo estava errado. Ela escrevia pelo menos uma vez ao mês, mandando
fotos das crianças, contando sobre o seu trabalho, sobre a fazenda — e todas as cartas tinham
selos britânicos, cabeças roxas e azuis da Rainha Elizabeth. Este tinha um selo americano.
Ele lentamente abaixou a carta como se ela pudesse explodir e engoliu o restante da
cerveja em um gole. Fortificado, ele cerrou a mandíbula e pegou a carta novamente.
— Diga-me que você e Roger vieram trazer as crianças para a Disneylândia, Bree — ele
murmurou, lambendo a mostarda de sua faca antes de usá-la para abrir o envelope. Ela tinha
falado sobre fazer isso um dia — Menino Jesus, diga-me que é uma foto de Jem apertando a mão
do Mickey Mouse.
Para seu alívio, era uma foto dos dois filhos dela na Disneylândia, sorrindo para a câmera
no abraço do Mickey Mouse, e ele riu alto. Então, ele viu a pequena chave que tinha caído do
envelope — a chave de um cofre de banco. Ele colocou a foto de lado, foi até a geladeira e pegou
outra cerveja, e se sentou deliberadamente para ler a breve nova que acompanhava a foto.
19 de Junho de 1778
Filadélfia
Ele subiu para o mezanino e puxou a escada atrás de si, para que as crianças não subissem. Eu
estava me vestindo rapidamente — ou pelo menos tentando — enquanto ele me contava sobre
Dan Morgan, sobre Washington e sobre os outros generais continentais. Sobre a batalha que
estava por vir.
— Sassenach, eu tive que fazer isso — ele disse de novo, suavemente — Eu sinto muito.
— Eu sei — eu disse — Eu sei que você sente muito — Meus lábios estavam rígidos —
Eu... você... Eu sinto muito também.
Eu estava tentando prender a dezena de pequenos botões que fechavam o meu vestido,
mas minhas mãos tremiam tanto que eu não conseguia nem pegá-los. Eu parei de tentar e
peguei a escova de cabelos que ele tinha trazido para mim da casa na Chestnut Street.
Ele fez um pequeno ruído com a garganta e a tirou de minha mão. Ele a jogou na nossa
cama improvisada e colocou os braços ao redor de mim, segurando-me firmemente com meu
rosto enterrado em seu peito. A roupa de seu novo uniforme cheirava índigo fresco, casca de
noz e terra fresca; ela era estranha contra meu rosto. Eu não conseguia parar de tremer.
— Fale comigo, a nighean — ele sussurrou em meus cabelos emaranhados — Eu estou
com medo e não quero me sentir tão sozinho agora. Fale comigo.
— Por que sempre tem que ser você? — Eu desabafei em seu peito.
Aquilo o fez rir, um pouco tremulamente, e eu percebi que nem todo o tremor estava vindo
de mim.
— Não sou somente eu — ele disse, e alisou meus cabelos — Há milhares de outros
homens se preparando hoje, talvez até mais, que não queriam fazer isso também.
— Eu sei — Eu disse de novo. Minha respiração estava um pouco mais estável. — Eu sei.
Eu virei meu rosto para o outro lado para respirar, e de repente comecei a chorar, sem
nenhum aviso prévio.
— Eu sinto muito — Engasguei. — Eu não quero... Eu não quero t-tornar tudo isso m-mais
difícil para você. Eu... Eu... Oh, Jamie, quando eu soube que você estava vivo... Eu quis tanto ir
para casa. Ir para casa com você.
Seus braços se apertaram com força ao redor de mim. Ele não falou, e eu sabia que era
porque ele não conseguiria.
— Assim como eu — ele sussurrou por fim — E nós iremos, a nighean, eu prometo a você.
Os sons de lá de baixo flutuaram para nós: o som de crianças correndo de um lado para o
outro na loja e na cozinha, de Marsali cantando para si mesma em gaélico enquanto fazia tinta
fresca para a prensa a partir de verniz e tisna. A porta se abriu e um ar fresco e chuvoso entrou
junto com Fergus e Germain, adicionando as suas vozes à alegre confusão.
Nós ficamos parados nos braços um do outro, recebendo o conforto de nossa família
abaixo, tristes pelos membros da família que nunca mais veríamos, ao mesmo tempo em casa e
sem lar, nos equilibrando no fio da navalha do perigo e da incerteza. Mas juntos.
— Você não vai para a guerra sem mim — Eu disse firmemente, endireitando-me e
fungando — Nem pense nisso.
— Eu nem sonharia com isso — Ele me assegurou gravemente, começando a limpar o
nariz na manga de seu uniforme, mas pensando melhor e parando para olhar para mim
impotente. Eu ri, trêmula, mas ainda era uma risada, e dei a ele o lenço que eu tinha
automaticamente colocado em meu peito quando amarrei meu espartilho. Como Jenny, eu
sempre carregava um.
— Sente-se — Eu disse, engolindo enquanto pegava minha escova de cabelo — Eu vou
trançar o seu cabelo.
Ele tinha lavado os cabelos naquela manhã; estavam limpos e úmidos, os fios vermelhos
suaves e macios estavam frios em minhas mãos, cheirando — curiosamente — a sabão francês,
com um toque de bergamota. Eu quase preferia o cheiro de suor e de repolho que me rodeava
na noite anterior.
— Onde você tomou banho? — Perguntei curiosamente.
— Na casa da Chestnut Street — ele respondeu, um pouco tenso — Minha irmã preparou
para mim. Ela disse que eu não poderia me tornar um general cheirando como comida
estragada, e havia uma banheira e água quente de sobra.
— Ela preparou? — Murmurei — Hã... Falando em Chestnut Street... como Sua Graça o
Duque de Pardloe está?
— Ele saiu antes do amanhecer, segundo Jenny — ele disse, inclinando a cabeça para me
ajudar. Seu pescoço estava quente sob meus dedos — De acordo com Ian, Denny Hunter disse
que ele estava bem o suficiente para partir, desde que levasse um frasco de sua poção mágica.
Então, a Sra. Figg devolveu-lhe suas calças com alguma relutância, pelo que eu entendi, e ele se
foi.
— Foi para onde? — Eu perguntei. Seus cabelos estavam mais entremeados de prata do
que antes. Eu não me importava com isso; eu me importava com o fato de eu não estar por perto
para ver isso acontecendo a cada dia.
— Ian não perguntou a ele. Mas ele disse que a Sra. Figg passou ao duque o nome de alguns
amigos de Lord John... Legalistas que ainda poderiam estar na cidade. E o filho dele está
hospedado em uma casa aqui, não? Não que você tenha que se preocupar, Sassenach — Ele virou
a cabeça para sorrir de lado para mim — Sua Graça é um homem difícil de matar.
— Eu suponho que é preciso uma pessoa difícil de matar para conhecer a outra — eu disse
acidamente. Eu não perguntei por que Jamie tinha ido até a Chestnut Street; com Hal, Jenny e
todas as outras preocupações em mente, eu sabia que ele queria saber se John havia
reaparecido. Aparentemente não, e um pequeno frio se instalou em meu coração.
Eu estava tateando no meu bolso por uma fita com a qual prenderia seus cabelos, quando
mais uma brisa penetrou pelo sótão, levantando o linóleo e fazendo com que alguns papeis
flutuassem. Eu me virei para ver a fonte da brisa e vi Germain, balançando-se na corda presa à
polia na qual os barris eram levados para o sótão através de vagões.
— Bom dia, Grandpère — ele disse, tirando uma teia de aranha do rosto quando pousou e
inclinando-se para Jamie com formalidade. Ele se virou e fez uma reverência para mim, também
— Comment ça va, Grandmère?
— Be... — eu comecei automaticamente, mas fui interrompida por Jamie.
— Não — ele disse definitivamente — Você não virá conosco.
— Por favor, vovô! — A formalidade de Germain desapareceu em um instante, substituída
pela súplica — Eu poderia ajudá-lo.
— Eu sei — Jamie disse secamente — E os seus pais nunca me perdoariam se você fosse.
Eu nem quero saber o que a sua noção de ajuda envolve, mas...
— Eu poderia levar mensagens! Eu posso cavalgar, sabe? Você mesmo me ensinou. E eu
tenho quase doze anos!
— Você sabe o quanto isso é perigoso? Se um atirador britânico não o jogar para fora da
sela, alguém da milícia poderia cortar sua cabeça para roubar o cavalo. E eu sei contar, sabe?
Você não tem nem onze anos ainda, então não tente me enganar.
Obviamente, o perigo não causava medo algum em Germain. Ele deu de ombros,
impaciente.
— Bem, eu poderia ser um ordenança, então. Eu posso encontrar comida em qualquer
lugar — ele acrescentou, astuto. Ele era, de fato, um batedor de carteiras muito bom, e eu olhei
para ele pensativamente. Jamie interceptou meu olhar e me encarou.
— Nem pense nisso, Sassenach. Ele seria preso por roubo e enforcado ou açoitado no
começo de sua vida, e eu não poderia fazer nada para impedir.
— Nunca alguém me pegou! — Germain disse, seu orgulho profissional ferido —
Nenhuma vez!
— E nem vão pegar — Seu avô assegurou a ele, fazendo-o ficar quieto com um olhar de
aço — Quando você tiver dezesseis anos, talvez...
— Oh, sim? Vovó Janet disse que você tinha oito anos quando participou de um ataque
surpresa com o seu pai.
— Roubar gado não é o mesmo que ir para a guerra, e eu não fiquei perto da luta — Jamie
disse — E a sua Avó Janet deveria manter a boca fechada.
— Sim, eu vou dizer a ela que você disse isso — Germain retorquiu, descontente — Ela
disse que você foi atingido na cabeça com uma espada.
— Eu fui. E com sorte você viverá para ser um homem idoso e com o cérebro intacto,
diferente de seu avô. Deixe-nos, rapaz, sua avó precisa vestir as meias.
Ele se levantou e, pegando a escada, deslizou-a pelo mezanino, empurrando Germain
firmemente para ela. Ele ficou olhando para baixo com firmeza até que Germain tocasse o solo,
deixando seu desagrado evidente ao ignorar os últimos degraus e aterrissar com um baque
forte.
Jamie suspirou, endireitou o corpo e se alongou suavemente, grunhindo um pouco.
— Deus sabe onde iremos dormir esta noite, Sassenach — observou ele, olhando para a
nossa cama grosseira enquanto se sentava para que eu terminasse de trançar seus cabelos —
Pelo bem das minhas costas, espero que seja um lugar mais macio que esse — Ele riu para mim
repentinamente — Você dormiu bem?
— Nunca dormi melhor — Assegurei a ele, alisando a fita. De fato, eu sentia dor em quase
todos os lugares onde era possível se ter dor, salvo talvez pelo topo da minha cabeça.
Para falar a verdade, eu mal tinha dormido, bem como ele; passamos as horas de escuridão
numa exploração lenta e silenciosa, encontrando o corpo um do outro... e, ao amanhecer,
tínhamos tocado a alma um do outro novamente. Eu toquei sua nuca agora, gentilmente, e sua
mão se levantou para a minha. Eu me sentia, ao mesmo tempo, maravilhosa e esgotada, e não
sabia nesse momento qual era o sentimento que se sobressaía.
— Quando nós vamos partir?
— Assim que você vestir as suas meias, Sassenach. E amarrar seus cabelos. E fechar os
seus botões — ele adicionou, virando-se e olhando para meu decote excessivo — Aqui, deixe
que eu faço isso.
— Vou precisar de minha caixa de remédios — eu disse, meio estrábica enquanto
observava seus dedos ágeis deslizando pelo meu peito.
— Eu a trouxe — ele assegurou a mim, e franziu um pouco o cenho, os olhos atenciosos
nos botões que ainda estavam abertos — É uma linda caixa. Imagino que sua senhoria o tenha
comprado, não?
— Sim — Eu hesitei por um momento, desejando que ele dissesse John em vez de “sua
senhoria”. Eu também gostaria de saber onde John estava... e que ele estava bem. Mas aquele
não parecia o momento para dizer aquelas coisas.
Jamie se inclinou para frente e beijou o topo dos meus seios, seu hálito quente contra
minha pele.
— Eu não sei se terei uma cama esta noite — ele disse, endireitando-se —, mas seja ela de
penas ou de palha, promete que você a dividirá comigo?
— Sempre! — eu disse e, pegando meu casaco, eu o sacudi, coloquei-o em meus ombros e
sorri corajosamente para ele — Vamos, então.
Jenny tinha me enviado a caixa de remédios de Chestnut Street e, com ela, a grande carga de
ervas que eu tinha comprado em Kingsessing, que tinha sido entregue na noite anterior. Com a
prudência de uma dona de casa escocesa, ela também tinha incluído um quilo de farinha de
aveia, um punhado de sal, um pacote de bacon, quatro maçãs, e seis lenços limpos. Além de um
rolo de tecido com uma breve nota, que dizia:
— E como é que se compra algo adequado para ir à guerra? — Eu perguntei, olhando para
Jamie em seu esplendor índigo. Seu uniforme parecia estar completo, desde o casaco com
dragonas e insígnias de um general até o colete amarelo e as meias de seda creme. Alto e
aprumado, com os cabelos ruivos ordenados com a fita preta, ele claramente chamava a
atenção.
Ele colocou o queixo para trás e olhou para si mesmo.
— Bem, a camisa e a roupa de baixo já eram minhas; eu as comprei quando voltei da
Escócia. Mas quando eu voltei para a Filadélfia para te encontrar ontem, encontrei Jenny
primeiro, e contei a ela sobre o General Washington e pedi que ela cuidasse disso pra mim.
Então, ela pegou minhas medidas e encontrou um alfaiate que faz uniformes junto com seu filho,
e os intimidou a trabalhar a noite toda para fazer o casaco e o colete... Pobres desgraçados —
ele adicionou, cuidadosamente puxando um fio solto da borda do seu punho — Como você pode
não estar preparada, Sassenach? Sua senhoria achou que não era conveniente você ser uma
médica do povo e fez com que você queimasse as roupas de trabalho?
Aquilo foi dito num tom de brincadeira que tinha a intenção de sugerir perfeita inocência
por parte de quem estava falando ao mesmo tempo em que tornava perfeitamente evidente a
malícia. Não estou dizendo que não farei um alarido sobre isso mais tarde. Olhei fixamente para
a caixa médica que John havia me dado, e depois novamente para ele, estreitando um pouco os
olhos.
— Não — eu disse, com descontração — Eu derramei vitríolo nelas quando estava
fazendo... fazendo éter — A memória fez com que suas mãos tremessem sutilmente, e eu tive
que baixar a xícara do chá de urtiga que eu estava bebendo.
— Jesus, Sassenach — Jamie falou baixinho... Félicité e Joan estavam ajoelhadas aos seus
pés, discutindo uma com a outra enquanto se ocupavam ao polir a fivela de latão de seu sapato.
Mas ele encontrou os meus olhos sobre suas cabeças, horrorizado — Diga-me que você não
estava fazendo isso bêbada.
Eu respirei fundo, ao mesmo tempo revivendo a experiência e tentando não fazê-lo.
Parada no galpão quente e penumbroso atrás da casa, o vidro arredondado deslizando em
minhas mãos suadas... e então o líquido espirrando — por pouco não acertando meu rosto — e
o cheiro doentio magicamente se espalhando, os buracos de fumaça que queimavam
diretamente através do meu avental de lona e a saia abaixo. Eu realmente não me importei
naquele momento se eu viveria ou não — até que parecesse que eu iria morrer nos próximos
poucos segundos. Aquilo fez uma grande diferença. Não me convenceu a não cometer suicídio
— mas o choque do acidente próximo me fez realmente pensar mais cuidadosamente sobre
como. Cortar os próprios pulsos era uma coisa; morrer em lenta e desfiguradora agonia era
outra.
— Não, eu não estava — eu disse, e, pegando o copo, sorvi uma grande e deliberada
quantidade — Eu... Era um dia quente. Minhas mãos estavam suando, e o frasco caiu.
Ele fechou os olhos brevemente, claramente visualizando a cena, e então esticou a mão
por cima da cabeça elegante de Félicité para envolver minha bochecha.
— Não está fazendo isso de novo, certo? — ele disse suavemente — Não faça mais.
Para ser honesta, o pensamento de fazer éter de novo deixava minhas palmas suadas. Não
era quimicamente difícil, mas era terrivelmente perigoso. Um movimento errado, um ligeiro
excesso de vitríolo, alguns graus a mais de calor... E Jamie sabia tão bem quanto eu quão
explosiva a coisa era. Eu podia ver a memória das chamas em seus olhos, a Casa Grande
queimando ao nosso redor. Engoli.
— Eu não quero — Eu disse honestamente — Mas, sem ele, Jamie, eu não posso fazer
coisas que poderia fazer com ele. Se eu não o tivesse, Aidan estaria morto, bem como o sobrinho
de John, Henry.
Ele comprimiu os lábios e pareceu considerar que Henry Grey era dispensável — mas ele
gostava do pequeno Aidan MaCallum Higgins, cujo apêndice fora removido em Ridge com a
assistência do meu primeiro lote de éter.
— A vovó precisa ajudar as pessoas a se sentirem melhor, Grandpère — Joanie disse em
tom de censura, levantando a cabeça dos pés de Jamie e franzindo o cenho para ele — Mamãe
diz que é a sua vocação. Ela não pode simplesmente deixar de fazer isso.
— Eu sei disso muito bem — ele assegurou a ela —, mas ela não precisa explodir a si
mesma ao fazer isso. Além do mais, quem vai cuidar do povo doente, se a sua avó estiver em
pedaços?
Félicité e Joanie acharam aquela imagem hilária; eu a achava menos divertida, mas não
disse nada mais até que pegassem seus trapos e o vinagre para levar de volta à cozinha. Ficamos
na parte de trás dos dormitórios, fazendo nossas malas e arrumando os nossos pacotes para a
partida, momentaneamente sozinhos.
— Você disse que estava com medo — eu disse baixinho, os olhos sobre os carretéis de
linha grossa e os aglomerados de fios de seda que eu estava estocando na caixa de madeira com
várias agulhas de sutura —, mas que isso não o impediria de fazer o que tem que fazer, certo?
Eu temo por você, mas isso certamente não vai te impedir também — Eu fui cuidadosa para
falar sem amargura, mas ele estava tão sensível aos tons esta manhã quanto eu.
Ele parou por um momento, olhando para as fivelas brilhantes de seus sapatos, e depois
levantou a cabeça e olhou diretamente para mim.
— Você acha que, porque você me disse que os rebeldes irão vencer, eu estou livre para
me retirar?
— Eu... Não — Eu coloquei a tampa na caixa com um ruído, sem olhar para ela. Eu não
podia desviar os olhos dele. Seu rosto estava sério, mas seus olhos seguravam os meus, com
atenção — Eu sei que você tem que fazer isso. Eu sei que é parte de quem você é. Você não pode
se afastar e continuar sendo quem é. Esse é mais ou menos o meu ponto sobre...
Ele me interrompeu, avançando e tomando meus pulsos.
— E o que você acha que eu sou, Sassenach?
— Um maldito homem, é o que você é! — Eu soltei os pulsos das mãos dele e me virei, mas
ele tinha uma mão no meu ombro e me virou para encará-lo novamente.
— Sim, eu sou um maldito homem — ele disse, e um leve traço de arrependimento tocou
sua boca, mas seus olhos estavam azuis e estáveis — Você já fez as pazes com o que acha que
eu sou, você acha... Mas eu acho que você não sabe o que isso significa. Ser o que eu sou não
significa apenas que vou derramar meu próprio sangue quando necessário. Significa que eu
terei que sacrificar outros homens para os fins da minha própria causa... Não apenas aqueles
que eu mato como inimigos, mas aqueles que eu tenho como amigos... ou os meus parentes.
Sua mão caiu, e a tensão deixou os seus ombros.
Ele se virou em direção à porta, dizendo — Venha quando estiver pronta, Sassenach.
Eu fiquei parada ali por um instante, piscando, e depois corri atrás dele, deixando minha mala
meio arrumada para trás.
— Jamie! — Ele estava parado na gráfica, Henri-Christian em seus braços, começando a
se despedir das garotas e de Marsali. Germain não estava em nenhum lugar à vista, sem dúvida
de mau humor. Jamie olhou para frente, assustado e depois sorriu para mim.
— Eu não ia te deixar para trás, Sassenach. E nem estou tentando apressá-la também. Faça
suas...
— Eu sei. Eu só... Eu preciso te dizer uma coisa.
Todas as pequenas cabeças se viraram na minha direção como um ninho de pássaros
bebês, bocas suavemente rosadas abertas em curiosidade. Ocorreu a mim que seria melhor que
eu esperasse até que estivesse na estrada, mas pareceu algo urgente para dizer a ele agora —
não apenas para aliviar sua ansiedade, mas para fazê-lo saber que eu entendia.
— É William — Eu soltei, e o rosto de Jamie se obscureceu por um instante, como um
espelho embaçado. Sim, eu tinha entendido.
— Venha comigo, a bhalaich — Marsali disse, pegando Henri-Christian de Jamie e o
colocando no chão — Aff! Você pesa mais do que eu, homenzinho! Vamos sair agora, moças, o
vovô não está saindo ainda. Ajudem-me a arrumar as coisas da vovó.
As crianças obedientemente saíram correndo atrás dela, embora ainda olhassem para nós
com a curiosidade frustrada. As crianças odiavam segredos, a menos que fossem elas a mantê-
los. Olhei para eles e depois de volta para Jamie.
— Eu não sei se eles sabiam sobre William. Eu suponho que Marsali e Fergus saibam, já
que...
— Já que Jenny disse a eles. Sim, eles sabem — Ele revirou os olhos em breve resignação,
e depois os fixaram em meu rosto — O que foi, Sassenach?
— Ele não pode lutar — Eu disse, deixando escapar um suspiro meio preso — Não importa
o que o exército britânico esteja prestes a fazer. William está em liberdade condicional depois
de Saratoga... Ele é um convencionista. Você sabe sobre o Exército da Convenção?
— Sei — Ele pegou minha mão e a apertou — Você quer dizer que ele não está autorizado
a pegar em armas a menos que seja trocado, o que ele não foi. É isso?
— Sim. Ninguém pode ser trocado, até que o Rei e o Congresso cheguem a um consenso
sobre isso.
Seu rosto de repente ficou vívido com o alívio, e eu estava aliviada por ver isso.
— John tem tentado trocá-lo há meses, mas não há uma forma de fazer isso — Eu
dispensei o Congresso e o Rei com um aceno de minha mão livre e sorri para ele — Você não
terá que enfrentá-lo numa batalha.
— Taing do Dhia — ele disse, fechando os olhos por um instante — Eu tenho pensado
nisso há dias, nos momentos em que não estava pensando em você, Sassenach — ele adicionou,
abrindo os olhos e olhando para mim — A terceira vez é a da sorte. E esta será uma terrível
sorte de fato.
— Terceira vez? — Eu disse — O que você quer... Pode soltar os meus dedos? Estão
adormecidos.
— Oh — ele disse. Ele os beijou gentilmente e os soltou — Sim, desculpe, Sassenach. Eu
quis dizer... Eu já atirei no rapaz duas vezes em sua vida até agora e o errei por não mais do que
alguns centímetros. Se isso acontecesse de novo... Você não tem como controlar isso muito bem
na batalha e acidentes acontecem. Eu estava sonhando durante a noite e... Oh, não importa!
Ele dispensou os sonhos e se virou, mas eu coloquei uma mão em seu braço para impedi-
lo. Eu sabia de seus sonhos — e eu o ouvira gemer na noite anterior, lutando contra eles.
— Culloden? — Eu disse suavemente — Isso está voltando? — Eu esperava que fosse
Culloden e não Wentworth. Ele acordava dos sonhos com Wentworth suando e rígido e não
podia suportar ser tocado. Na noite passada, ele não havia acordado, mas tinha se contraído e
gemido até que eu colocasse os meus braços em volta dele. E então ele se aquietou, tremendo
de volta para seu sono, a cabeça enfiada com força em meu peito.
Ele deu de ombros um pouco e tocou meu rosto.
— Nunca foi embora, Sassenach — ele disse, tão suavemente quanto eu — E nunca irá.
Mas eu durmo melhor quando estou ao seu lado.
48 – APENAS PELA DIVERSÃO
Era um prédio perfeitamente normal de tijolos vermelhos. Modesto — sem frontões, sem linteis
esculpidos —, mas sólido. Ian olhou para ele com cautela. A casa da Reunião Anual da Filadélfia,
a mais importante reunião da Sociedade dos Amigos das Américas. Sim, muito sólido.
— Será que isso é como o Vaticano? — ele perguntou a Rachel — Ou mais como um palácio
de arcebispo?
Ela bufou.
— Isso se parece como algum tipo de palácio para você? — Ela falou normalmente, mas
ele podia ver o pulso acelerado batendo no ponto macio atrás das orelhas.
— Parece um banco — ele disse, e isso a fez rir.
Ela parou rapidamente, entretanto, olhando sobre o ombro como se estivesse com medo
que alguém pudesse sair e repreendê-la por isso.
— O que eles fazem aí dentro? — ele perguntou, curioso — É uma grande casa de
encontros?
— É — ela disse — Mas também há negócios a tratar, você sabe. Os encontros anuais lidam
com questões de... eu suponho que você chamaria de princípios. Nós chamamos de Fé e Prática;
há livros, reescritos frequentemente para refletir o presente sentido da reunião. E consultas —
Ela sorriu de repente, e o coração dele deu um salto extra — Eu acho que você reconheceria as
consultas... elas são bem parecidas com o que você descreveu como o exame de consciência
antes das confissões.
— Oh, sim — ele disse concordando, mas se recusou a prosseguir com o assunto. Ele não
se confessava há anos e não se sentia suficientemente perverso diante das circunstâncias atuais
em relação a isso — Esta Fé e Prática... é onde eles dizem que você não deve se juntar ao exército
Continental, mesmo que você não pegue em armas?
Ele lamentou imediatamente ter perguntado; a pergunta esmaeceu a luz em seus olhos,
mas apenas momentaneamente. Ela inspirou profundamente pelo nariz e olhou para ele.
— Não, isso seria uma opinião... uma opinião formal. Amigos falam sobre todos os pontos
passíveis de consideração antes de dar uma opinião, seja positiva ou não — Mal houve hesitação
antes do “não”, mas ele o ouviu e, esticando a mão, tirou o alfinete de seu chapéu de palha,
gentilmente ajeitando-o, já que estava um pouco torto, e colocou o alfinete mais uma vez.
— E se no final for um “não” e nós não conseguirmos encontrar uma sociedade que nos
aceite, moça... o que faremos?
Seus lábios se pressionaram, mas ela encontrou os olhos dele.
— Amigos não são casados pela sociedade. Ou por um padre ou ministro. Eles se casam
entre si. E nós vamos nos casar um com o outro — Ela engoliu — de alguma forma.
As pequenas bolhas de apreensão que estiveram crescendo em seu estômago desde
aquela manhã começaram a estourar, e ele colocou uma mão sobre a boca para abafar um
arroto. Ficar nervoso o atingia nas entranhas; ele não tinha sido capaz de comer o desjejum. Ele
se afastou um pouco, por educação, e viu duas figuras virando a esquina — Oh! Ali está seu
irmão, e parecendo muito feliz para um Quaker.
Denzell estava vestindo um uniforme de soldado Continental e parecia envergonhado
como um cachorro de caça com um laço ao redor do pescoço. Ian reprimiu sua diversão,
entretanto, meramente assentindo quando seu futuro cunhado parou diante deles. A noiva de
Denny não carregava tais escrúpulos.
— Ele não está lindo? — Dottie cantou, afastando-se alguns passos para admirá-lo. Denzell
tossiu e empurrou os óculos no nariz. Ele era um homem aprumado, não muito alto, mas largo
nos ombros e com antebraços fortes. Ele realmente estava bem naquele uniforme, Ian pensou, e
disse que sim.
— Eu vou tentar não deixar que minha aparência aumente minha vaidade — Denzell disse
secamente — Não é um soldado também, Ian?
Ian sacudiu a cabeça, sorrindo.
— Não, Denny. Eu não conseguiria ser nenhum tipo de soldado, mas sou um batedor
decente — Ele viu os olhos de Denzell se fixarem em seu rosto, traçando a linha dupla dos
pontos tatuados que circulavam ambas as maçãs do rosto.
— Eu esperava que você fosse — Uma certa tensão nos ombros de Denny relaxaram —
Batedores não precisam matar os inimigos, não é?
— Não, podemos fazer uma escolha em relação a isso — Ian assegurou a ele, olhando-o
de frente — Nós podemos matá-los se quisermos, mas apenas pela diversão, entende? Isso não
conta realmente.
Denzell piscou por um instante para aquilo, mas Rachel e Dottie riram, e ele sorriu
relutantemente.
— Vocês estão atrasados, Denny — Rachel disse, quando o relógio público marcou dez
horas — Henry estava com alguma dificuldade?
Denzell e Dottie tinham ido se despedir do irmão de Dottie, Henry, que ainda convalescia
da cirurgia que Denny e a tia de Ian, Claire, tinham feito.
— Pode-se dizer que sim — Dottie disse —, mas não por doenças físicas. — O olhar de
diversão sumiu de seu rosto, embora um leve brilho ainda permanecesse em seus olhos — Ele
está apaixonado por Mercy Woodrock.
— Sua locatária? O amor não é uma condição fatal, é? — Ian perguntou, levantando uma
sobrancelha.
— Não se o nome dos envolvidos não estiver entre os Montague e os Capuleto — Denny
disse — A dificuldade é que, mesmo que Mercy corresponda ao seu amor, ela pode ou não ainda
ter um marido vivo.
— E até que ela descubra que ele está morto... — Dottie completou, levantando um ombro
magro.
— Ou vivo — Denny disse, dando a ela um olhar — Sempre há uma possibilidade.
— Não há muita possibilidade para ele — Dottie replicou sem rodeios — A tia, quero dizer,
a Amiga Claire atendeu um homem chamado Walter Woodcock que estava seriamente ferido
em Ticonderoga, e ela disse que ele estava perto da morte e foi levado como p-prisioneiro —
Ela tropeçou um pouco na última palavra, e Ian se lembrou de repente que seu irmão mais
velho, Benjamin, era um prisioneiro de guerra.
Denzell viu uma nuvem cruzar seu rosto e gentilmente pegou as mãos dela entre as suas.
— Ambos os seus irmãos sobreviverão às suas provações — ele disse, e o calor tocou seus
olhos através dos óculos — Bem como nós, Dorothea. Os homens morrem de tempos em tempos
e os vermes os consomem, mas não por amor.
— Hmph! — Disse Dottie, mas deu a ele um sorriso relutante — Tudo bem, então... Vamos
em frente. Há muito a fazer antes de partirmos.
Para a surpresa de Ian, Denzell assentiu, pegou um maço de papeis dobrados de seu peito
e, virando-se, subiu os degraus para a porta da casa.
Ian tinha suposto que o local era apenas um ponto conveniente para os encontros — ele
se reuniria com seu tio e sua Tia Claire na estrada para Coryell’s Ferry, mas tinha ficado para
ajudar com o carregamento, já que Denny, Dottie e Rachel estariam levando um vagão cheio de
suprimentos médicos, mas evidentemente Denny tinha negócios a tratar com o Encontro Anual
da Filadélfia.
Será que ele estava buscando aconselhamento sobre como se casar como um Quaker
mesmo zombando de sua... como se chamaria? Regra? — não, Rachel disse que era uma opinião,
mas uma opinião de peso — em relação ao apoio da rebelião?
— Ele está dando a eles sua versão... seu testemunho — Dottie disse de forma prática,
vendo a perplexidade no rosto de Ian — Ele escreveu tudo. Por que ele acha que é correto fazer
o que está fazendo. Ele vai dar isso ao secretário do Encontro Anual e pedir para que suas
opiniões sejam mencionadas e discutidas.
— Você acha que eles farão isso?
— Oh, sim — Rachel disse — Eles podem discordar de você, mas não o sufocarão. E boa
sorte a eles se tentarem — ela adicionou, baixinho. Ela tirou um lenço do decote, muito branco
contra a cor suavemente castanha de sua pele, e enxugou com pancadinhas as gotas de suor de
suas têmporas.
Ian sentiu um desejo profundo e repentino por ela e olhou involuntariamente para a torre
do relógio. Ele precisaria estar na estrada em breve e esperava que houvesse tempo para passar
uma hora preciosa com Rachel primeiro.
Os olhos de Dorothea estavam fixos na porta pela qual Denny havia passado.
— Ele é tão adorável — ela disse suavemente, como se falasse consigo mesma. E então,
olhou envergonhada para Rachel — Ele se sentiu mal ao usar este uniforme para cuidar de
Henry — ela disse, um tom de desculpas em sua voz —, mas o tempo era curto...
— Seu irmão ficou chateado? — Rachel perguntou com simpatia. As sobrancelhas de
Dottie se abaixaram.
— Bem, ele não gostou — ela disse francamente —, mas não é como se ele não soubesse
que nós somos Rebeldes; eu disse a ele algum tempo atrás. — Sua expressão relaxou um pouco.
— E ele é o meu irmão. Ele não vai me rechaçar.
Ian imaginou se aconteceria o mesmo com o pai dela, mas não perguntou. Ela não havia
mencionado o duque. Ele não estava realmente prestando atenção às preocupações familiares
de Dottie, entretanto — sua mente estava cheia com o pensamento da batalha que estava por
vir e tudo o que precisaria ser feito imediatamente. Ian capturou o olhar de Rachel e sorriu, e
ela sorriu de volta, toda a preocupação derretendo de seu rosto ao olhar pra ele.
Ele também tinha preocupações, certamente, aborrecimentos e inquietações. No fundo de
sua alma, entretanto, estava o peso sólido do amor de Rachel e do que ela havia dito, as palavras
brilhando como uma moeda de ouro no mundo de um poço escuro: vamos nos casar um com o
outro.
49 – PRINCÍPIO DA INCERTEZA
William olhou para Randall-Isaacs com algo entre irritação e curiosidade. O homem tinha, para
todos os efeitos, o abandonado na cidade de Quebec um ano e meio antes, e desaparecido,
deixando-o para passar o inverno preso entre as freiras e os viajantes. A experiência tinha
melhorado o seu francês e suas habilidades de caça, mas não o seu temperamento.
— Capitão Randall-Isaacs — ele disse em reconhecimento, porém friamente. O capitão
sorriu agradavelmente para ele, nem um pouco dissuadido pelo seu tom.
— Oh, apenas Randall agora — ele disse — É o nome do meu pai, você sabe. O outro nome
era uma cortesia ao meu padrasto, mas o velho homem morreu...
Ele levantou um ombro, deixando que William chegasse à óbvia conclusão: que um
sobrenome judaico não poderia ser um trunfo para um oficial ambicioso.
— Estou surpreso em vê-lo aqui — Randall continuou, íntimo, como se eles tivessem se
visto num baile no mês passado — Você estava em Saratoga com Burgoyne, não?
A mão de William aperou as rédeas, mas ele pacientemente explicou sua condição
peculiar. Pela, possivelmente, vigésima vez.
— Certamente é melhor do que cortar feno em Massachusetts — ele disse, com um olhar
para as colunas que marchavam enquanto eles passavam — Pensou em voltar para a Inglaterra,
entretanto?
— Não — William disse, de alguma forma assustado — Por quê? Em primeiro lugar, eu
duvido que consiga autorização, pelos termos da liberdade condicional. Por outro lado... Por
que eu faria isso?
Por que, de fato?, ele pensou, com uma nova pontada. Ele nem tinha começado a pensar
sobre o que o esperava na Inglaterra, em Helwater, em Ellesmere. Em Londres, para falar a
verdade... Oh, Jesus...
— Por que, de fato? — Randall disse, inconscientemente o ecoando. O homem parecia
pensativo — Bem... não há muita oportunidade para você se destacar aqui, há? — Ele olhou
muito brevemente para o cinto de William, vazio de armas, e olhou diretamente para o outro
lado, como se a visão fosse de alguma forma vergonhosa, o que era.
— E o que você acha que eu poderia fazer lá? — William exigiu, mantendo a paciência com
alguma dificuldade.
— Bem, você é um conde — Randall apontou. William sentiu o sangue subir pelo seu
pescoço, mas não podia dizer nada — Você tem um assento na Câmara dos Lordes. Por que não
usar isso para realizar alguma coisa? Parta para a política. Duvido que a sua condicional diga
alguma coisa sobre isso... e, contanto que você não volte para se juntar ao exército, não imagino
que a viagem por si só seja um problema.
— Eu nunca pensei nisso — William disse, esforçando-se para ser educado. Ele não podia
pensar em alguma coisa que ele queria menos do que ser um político, a menos que fosse ser um
político que atuava numa farsa.
Randall inclinou a cabeça amavelmente para lá e para cá, ainda sorrindo. Ele estava igual
a quando William o tinha visto pela última vez: cabelos escuros presos para trás, sem pó, com
boa aparência, mas não bonito, esbelto, mas sem ser muito magro, gracioso nos movimentos,
com uma constante expressão de simpática genialidade. Ele não havia mudado muito — mas
William sim. Ele era dois anos mais velho agora, muito mais experiente, e estava ao mesmo
tempo surpreso e satisfeito ao descobrir que ele percebia que Randall estava brincando com
ele como uma mão de besigue. Ou tentando.
— Suponho que haja outras possibilidades — William disse, guiando o seu cavalo ao redor
de uma enorme poça lamacenta de urina, que se formara numa depressão da estrada.
O cavalo de Randall tinha parado para urinar também. Randall ficou sentado com o
máximo de compostura possível numa situação destas, mas não tentou elevar a voz sobre o
barulho. Ele continuou o seu caminho a partir do barro e alcançou William antes de continuar
a conversa.
— Possibilidades? — ele soou genuinamente interessado, e provavelmente estava,
William pensou, mas por quê? — O que você estava pensando em fazer?
— Você se lembra do Capitão Richardson, é claro? — William perguntou casualmente, mas
com um olhar para o rosto de Randall. Uma sobrancelha escura se levantou um pouco, mas
tirando isso, ele não mostrou nenhuma emoção particular ao ouvir o nome.
— Oh, sim — Randall replicou, tão casual quanto William — Você viu o bom capitão
recentemente?
— Sim, alguns dias atrás — O temperamento de William se estabilizou e ele esperou com
interesse para ver o que Randall poderia ter a dizer sobre isso.
O capitão não pareceu ter sido pego de surpresa, exatamente, mas seu ar de prazerosa
inconsequência tinha definitivamente mudado para outra coisa. William podia na verdade vê-
lo pensando se deveria perguntar sem rodeios o que Richard queria ou se deveria tomar outro
rumo, e a percepção deu a ele uma pequena emoção.
— Lord John está com Sir Henry? — Randall perguntou. Aquilo foi uma conclusão
esquisita o suficiente para fazer William piscar, mas não havia razão para não responder.
— Não. Por que ele deveria estar?
A sobrancelha se elevou novamente.
— Você não sabia? O regimento do Duque de Pardloe está em Nova York.
— Está? — William estava mais do que assustado ao ouvir aquilo, mas apressou-se a se
recompor. — Como você sabe?
Randall acenou uma mão com unhas bem feitas, como se a resposta fosse irrelevante — o
que talvez fosse.
— Pardloe deixou a Filadélfia nesta manhã com Sir Henry. — Ele explicou — Como o
duque convocou Lord John para a tarefa, eu pensei...
— Ele fez o quê? — O cavalo de William sacudiu a cabeça e bufou com a exclamação, e
William apertou o grande pescoço, usando o gesto para evitar o rosto de Randall por um
momento. Seu pai estava aqui?
— Eu parei na casa de sua senhoria na Filadélfia ontem — Randall explicou — e uma
estranha escocesa, que deve ser a governanta, eu suponho, me disse que sua senhoria tinha
partido há vários dias. Mas se você não o viu...
Randall levantou a cabeça, olhando para frente. Uma névoa de fumaça de madeira já se
mostrava acima das árvores, fogueiras para cozinhar, fogueiras para lavar e fogueiras para
observação tomavam o acampamento que crescia, seu sabor um tempero agradável para as
narinas. Aquilo fez o estômago de William roncar.
— Hup! Hup! Acelere o passo... Marchem! — O grito de um sargento veio de trás deles, e
eles se colocaram para o lado para que uma coluna dupla de infantaria, que não precisava da
exortação, passasse; eles estavam ansiosos por seu jantar e pela chance de baixar as armas para
a noite.
A pausa deu a William tempo para um pensamento de momento: ele deveria convidar
Randall para jantar com ele mais tarde, para tentar despistá-lo? Ou deveria se afastar do homem
o mais rapidamente possível, usando a necessidade de esperar com Sir Henry como uma desculpa?
Mas e se Lord John realmente estivesse com Sir Henry neste momento? E o maldito Tio Hal — era
tudo o que ele precisava na atual circunstância!
Randall tinha evidentemente usado a pausa para pensar, também, e veio com sua própria
decisão. Ele se aproximou de William, e após um rápido olhar para se certificar de que ninguém
estar perto deles, inclinou-se e falou em voz baixa.
— Eu digo isso como um amigo, Ellesmere. Embora eu admita que você não tenha razão
alguma para acreditar em mim, eu espero que você me escute. Pelo amor de Deus, não se
envolva em qualquer missão que Richardson sugerir. Não vá com ele a lugar algum, não importa
quais sejam as circunstâncias. Se você puder evitar, nem mesmo fale com ele.
E com isso, ele freou seu cavalo, virou repentinamente e o instigou, descendo a estrada a
galope, indo para longe do acampamento.
51 – MENDIGANDO
Grey não se importaria, se não fosse pelas dores de cabeça. A dor nas laterais de seu corpo tinha
se reduzido a algo tolerável; ele pensou que talvez uma costela pudesse ter sido quebrada, mas
contanto que ele não tivesse que correr, aquilo não seria um problema. O olho, entretanto...
O olho machucado se recusava teimosamente a se mover, a não ser para estremecer em
sua órbita, lutando contra qualquer obstrução que o segurava — um músculo orbicular? Era
disso que o Dr. Hunter o tinha chamado? — em uma tentativa de ajudar o seu par a focar. Isso
era doloroso e exaustivo por si só, mas também causava visão dupla e dores de cabeça
excruciantes, e ele se encontrava frequentemente incapaz de comer quando elas o atingiam,
querendo apenas deitar na escuridão e esperar que o latejar passasse.
Quando pararam para montar acampamento na noite do segundo dia de marcha, ele mal
conseguia enxergar pelo olho bom, e seu estômago estava pesado com a náusea.
— Aqui — ele disse, empurrando seu pão quente para um dos seus companheiros, um
alfaiate de Morristown chamado Phillipson — Pegue. Não consigo, simplesmente não... — Ele
não poderia continuar, mas pressionou a mão contra o olho fechado. Cataventos verdes e
amarelos e flashes brilhantes de luz estouraram por trás de sua pálpebra, mas a pressão
diminuiu a dor por um momento.
— Guarde para mais tarde, Bert — Phillipson disse, colocando o pão na mochila de Grey.
Ele se inclinou para perto e olhou o rosto de Grey à luz da fogueira — Você precisa de um
tampão para esse olho — ele declarou — para impedir que você o fique esfregando, pelo menos;
está vermelho como a meia de uma prostituta. Aqui.
E com isso, ele tirou seu próprio chapéu de feltro surrado e, tirando uma pequena tesoura
do peito, cortou um pedaço redondo da borda, esfregou um bom pedaço de goma ao redor para
fixá-lo, e depois o prendeu cuidadosamente sobre o orbe ferido com um lenço manchado
fornecido por outros milicianos. Todos eles se agruparam ao redor para assistir, com as
expressões mais amáveis de preocupação, ofertas de comida e bebida, sugestões a respeito de
qual companhia teria um cirurgião que pudesse vir para sangrá-lo e por aí vai. Grey, na fraqueza
da dor e da exaustão, pensou que ele pudesse chorar.
Ele conseguiu agradecer a todos pela preocupação, mas finalmente eles o deixaram, e
depois de um trago em algo não identificável, mas fortemente alcoólico do cantil de Jacobs, ele
se sentou no chão, fechou o olho bom, inclinou sua cabeça para trás contra um tronco, e esperou
que o latejar nas têmporas diminuísse.
Apesar de seu desconforto corporal, ele se sentiu confortado no espírito. Os homens que
estavam com ele não eram soldados, e Deus sabia que não eram um exército — mas eles eram
homens, engajados num propósito comum e conscientes um do outro, e isso era uma coisa que
ele conhecia e amava.
— ... e nós trazemos nossas necessidades e desejos diante de ti, ó Grande Senhor, e
imploramos por suas bênçãos sobre os nossos atos...
O Reverendo Woodsworth estava conduzindo um breve serviço de orações. Ele fazia isso
toda noite; aqueles que tivessem interesse, podiam se juntar a ele; aqueles que não tinham, se
ocupavam em conversas baixinhas ou pequenas tarefas de conserto ou talha.
Grey não tinha ideia real de onde estavam, exceto que deviam estar em algum lugar ao
nordeste da Filadélfia. Mensageiros a cavalo os encontravam ocasionalmente, e pedaços
confusos de notícias e especulações se espalhavam como moscas pelo grupo. Ele concluiu que
o exército britânico estava indo para o norte — claramente para Nova York — e que
Washington tinha deixado Valley Forge com suas tropas e tinha a intenção de atacar Clinton em
algum lugar en route, mas ninguém sabia onde. As tropas deveriam se reunir num local
chamado Coryell’s Ferry, onde elas poderiam, possivelmente, descobrir para onde estavam
indo.
Ele não gastou energia para pensar sobre sua própria posição. Ele poderia escapar
facilmente na escuridão, mas não havia sentido em fazer isso. Vagando pelo campo no meio das
companhias de milícia convergentes e das tropas regulares, ele corria mais risco de acabar
voltando à custódia do Coronel Smith, que provavelmente o enforcaria sem hesitar, então ele
permaneceu com a milícia de Woodsworth.
O perigo poderia aumentar quando eles se juntassem às tropas de Washington — mas
exércitos grandes realmente não conseguiam se esconder um do outro, e nem tentavam se
esquivar de serem notados. Se Washington fosse para qualquer lugar perto de Clinton, Grey
poderia desertar facilmente neste ponto — se alguém considerasse aquilo como deserção — e
cruzar as linhas para as mãos dos britânicos, arriscando apenas ser alvejado por uma sentinela
mais entusiasmada antes de poder se render e se tornar conhecido.
Gratidão, ele pensou, ouvindo a oração do Sr. Woodsworth em meio a uma crescente
névoa de sonolência e dor minguante. Bem, sim, havia mais algumas coisas que ele podia contar
em sua lista de bênçãos.
William ainda estava em liberdade condicional e, portanto, não podia ser um combatente.
Jamie Fraser tinha sido libertado do exército Continental para escoltar o corpo do Brigadeiro
Fraser de volta para a Escócia. Embora tivesse retornado, ele não estava mais no exército; ele
não se envolveria nesta luta, também. Seu sobrinho Henry estava se curando, mas não tinha
condições de se reestabelecer para o combate. Não havia ninguém que pudesse se envolver na
batalha — se ela fosse existir — com quem ele precisasse se preocupar. Apesar de vir ao seu
pensamento... Sua mão encontrou o bolso vazio de suas calças. Hal. Onde diabos estava Hal?
Ele suspirou, mas então relaxou, respirando os aromas de fumaça de madeira, das agulhas
de pinheiro e do milho assado. Onde quer que Hal estivesse, ele estaria seguro o suficiente. Seu
irmão podia tomar conta de si mesmo.
Quando as orações terminaram, um dos seus companheiros começou a cantar. Era uma
música que ele conhecia, mas as palavras eram bem diferentes. Sua versão, pega de um
cirurgião de exército que havia lutado com os colonos durante a guerra da França e da Índia,
era:
O Dr. Shuckburgh não tinha uma opinião muito boa dos colonos, e nem o compositor da
versão mais recente, usada como uma canção de marcha. Ele a ouvira na Filadélfia e cantarolou
baixinho.
Yankee Doodle veio à cidade,
Para comprar uma espingarda,
Vamos jogar alcatrão e pena nele,
Assim como faremos a John Hancock!
Seus atuais companheiros estavam cantando agora — com gosto — a mais recente
evolução:
Ele imaginou, bocejando, se qualquer um deles conhecia a palavra dudel, que significava
“simplório” em Alemão. Ele duvidava que Morristown, Nova Jersey, já tivesse visto um
Macaroni, aqueles homens jovens e afetados que usavam perucas cor-de-rosa e cobriam o rosto
de pó.
À medida que sua dor de cabeça diminuía, ele começou a apreciar o simples prazer de se
recostar. Os sapatos com seus cadarços improvisados mal cabiam em seus pés e, além de
deixarem seus calcanhares em carne viva, davam a ele pontadas de dores pelo esforço de
constantemente encolher os dedos para que o sangue continuasse fluindo. Ele alongou as
pernas suavemente, quase aproveitando o dolorido de seus músculos, tão perto da felicidade
em contraste com a caminhada.
Ele foi distraído de seu catálogo de bênçãos por um pequeno e faminto engolir perto de
sua orelha, seguido por uma voz baixa e jovem.
— Senhor... se você não pretende comer o seu pão...
— O quê? Oh... sim. Claro.
Ele lutou para conseguir se sentar, uma mão pressionada protetoramente sobre o olho
machucado, e virou a cabeça para ver um garoto de onze ou doze anos sentado na tora ao seu
lado. Ele tinha a mão dentro de seu saco, procurando pela comida, quando o garoto ofegou, e
ele olhou para cima, a visão oscilando à luz do fogo, para descobrir que estava encarando o neto
de Claire, cabelos louros em um halo despenteado em volta de sua cabeça e um olhar de horror
na face.
— Quieto! — ele disse em um suspiro, e agarrou o joelho da criança em um aperto tão
repentino que o garoto soltou um pequeno grito.
— Ora, o que você tem aí, Bert? Capturou um ladrão? — Abe Shaffstall, distraído de um
jogo incoerente com as juntas dos dedos, olhou por sobre o ombro, encarando o garoto... Cristo,
qual era o seu nome? Seu pai era francês; era Claude? Henri? Não, aquele era o garoto mais novo,
o anão...
— Tais-toi! — ele disse baixinho para o menino, e se virou para seus companheiros —
Não, não... esse é o filho de um vizinho da Filadélfia... É... Bobby. Bobby Higgins — ele adicionou,
pegando o primeiro nome que apareceu em sua mente — O que o trouxe até aqui, filho? — ele
perguntou, esperando que o garoto fosse tão perspicaz quanto sua avó.
— Estou procurado pelo meu avô — o garoto replicou prontamente, embora seus olhos
se inquietassem ao redor do círculo de rostos, agora todos voltados em sua direção na medida
em que a cantoria morria. — Minha mãe me mandou com roupas e comida para ele, mas alguns
companheiros malvados me arrancaram da mula e... levaram tudo embora — A voz do garoto
tremulou realisticamente, e Grey notou que, de fato, suas bochechas sujas mostravam as trilhas
de lágrimas.
Isso provocou um estrondo de preocupação ao redor do círculo e a imediata produção de
bolsas de pão duro, maçãs, carne seca e lenços sujos.
7Em meados do século XVIII, os Macaroni eram jovem homens que se vestiam e se comportavam de forma muito
afetada. É um termo pejorativo.
— Qual é o nome de seu avô, filho? — Joe Buckman perguntou — Com qual companhia ele
está?
O garoto pareceu perplexo com isso e olhou rapidamente para Grey, que respondeu por
ele — James Fraser — ele disse, com um aceno tranquilizador que fez sua cabeça latejar — Ele
estaria com uma das companhias da Pensilvânia, não Bobby?
— Sim, senhor — O garoto limpou o nariz no lenço oferecido e, com gratidão, aceitou a
maçã. — Mer... — ele se interrompeu com um ataque de tosse ardiloso e alterou para —
Obrigado pela gentileza, senhor. E a você também, senhor.
Ele devolveu o lenço e se pôs a consumir a maçã vorazmente, limitando suas respostas a
acenos e balanços de cabeça. Murmúrios indistintos indicavam que ele tinha esquecido o
número da companhia de seu avô.
— Não importa, garoto — o Reverendo Woodsworth disse de forma confortante — Nós
vamos todos para o mesmo lugar. Você encontrará o seu avô com as tropas lá, certamente. Você
acha que consegue nos acompanhar a pé?
— Oh, sim, senhor — Germain! Era isso! Germain disse, assentindo rapidamente — Eu
posso caminhar.
— Eu cuidarei dele — Grey disse às pressas, e isso pareceu acabar com o assunto.
Ele esperou impacientemente até que todos se esquecessem da presença do garoto e
começassem a se preparar para dormir, e então levantou, os músculos protestando, e balançou
a cabeça para que Germain o seguisse, abafando uma exclamação de dor com o movimento.
— Certo — ele disse em uma voz baixa, assim que estavam fora da faixa de audição dos
outros — O que diabos você está fazendo aqui? E onde está seu maldito avô?
— Eu estava procurando por ele — Germain replicou, desabotoando sua calça para mijar
— Ele foi para... — Ele parou, obviamente incerto de qual era sua relação com Grey agora —
Peço o seu perdão, meu senhor, mas eu não sei se devo dizer isso pra você ou não. Quero dizer...
— O garoto não era nada mais do que uma silhueta contra a escuridão mais negra de fundo, mas
até mesmo a linha de seu corpo expressava uma eloquente cautela — Comment se fait-il que
vous soyez ici?
— Como eu cheguei até aqui — Grey repetiu baixinho — Comment, de fato. Não importa.
Eu vou dizer para onde estamos indo, pode ser? Percebi que estamos rumando para um local
chamado Coryell’s Ferry para nos juntarmos ao General Washington. Isso te lembra algo?
Os ombros magros de Germain relaxaram, e um leve tamborilar na terra indicou que
aparentemente isso o fazia se lembrar de algo. Grey se juntou a ele, e, quando terminaram,
voltaram para a fogueira do acampamento.
Ainda ao abrigo da floresta, Grey colocou a mão no ombro de Germain e apertou. O garoto
parou.
— Attendez, monsieur — Grey disse, em voz baixa — Se a milícia descobrir quem eu sou,
vão me enforcar. Instantaneamente. Minha vida está em suas mãos neste momento. Comprenez-
vous?
Houve silêncio por um enervante momento.
— Você é um espião, meu senhor? — Germain perguntou suavemente, sem se virar.
Grey parou antes de responder, oscilando entre a conveniência e a honestidade. Ele não
poderia se esquecer do que viu e ouviu, e quando ele voltasse para suas próprias linhas, o dever
o compeliria a passar as informações que tinha.
— Não por escolha — ele disse por fim, tão suavemente quanto o garoto.
Uma brisa fresca tinha aparecido com o pôr-do-sol, e a floresta murmurava ao redor deles.
— Bien — Germain disse por fim — E obrigada pela comida. — Ele se virou, então, e Grey
pôde ver o brilho da luz do fogo em uma sobrancelha loira, arqueada em curiosidade. — Então
eu sou o Bobby Higgins. Quem é você, então?
— Bert Armstrong — Grey replicou brevemente — Pode me chamar de Bert.
Ele liderou o caminho em direção ao fogo e os rolos de cobertores dos homens que
dormiam. Ele não conseguia dizer, acima do farfalhar das árvores e o ronco de seus
companheiros, mas ele pensou que o pestinha estava rindo.
52 – SONHOS DE MORFINA
Dormimos naquela noite num quarto público de uma pensão em Langhorne. Corpos estavam
espalhados pelas mesas e bancos, enrolados debaixo das mesas, e dispostos em arranjos
aleatórios em tábuas, capas dobradas, e alforjes, o mais longe da lareira que era possível estar.
O fogo estava se extinguindo, mas ainda irradiava um considerável calor. O cômodo estava cheio
com os aromas amargos de madeira queimada e corpos quentes. Eu estimava a temperatura da
sala como algo por volta de uns quarenta graus, e os corpos adormecidos em exposição estavam
em sua maior parte nus, coxas pálidas, ombros e seios brilhando sob a luz soturna das brasas.
Jamie viajava com camisa e calças, seu novo uniforme e suas deslumbrantes roupas
íntimas cuidadosamente dobradas em uma maleta até chegarmos ao alcance do exército, então
simplesmente tinha que desabotoar as calças e tirar as meias para se despir. Para mim era mais
complicado pelo fato de que as minhas vestes de viagem eram cheias de cordões de couro, e ao
longo de um dia encharcado de suor, o nó tinha se apertado em um nódulo teimoso que resistia
a todas as tentativas.
— Você não virá para a cama, Sassenach? — Jamie já estava se deitando, tendo encontrado
um canto remoto atrás do balcão e espalhando nossas capas.
— Eu quebrei uma unha tentando soltar essa maldita coisa, e eu não consigo alcançar essa
porcaria com os meus dentes! — Eu disse, prestes a me desfazer em lágrimas de frustração. Eu
estava balançando por causa do cansaço, mas não conseguiria dormir nos confins úmidos do
meu espartilho.
Jamie esticou um braço na escuridão, acenando.
— Venha se deitar comigo, Sassenach — ele sussurrou — Eu vou fazer isso por você.
O simples alívio de deitar, depois de doze horas na sela, era tão maravilhoso que eu quase
mudei de ideia sobre dormir com o espartilho, mas ele estava falando sério. Ele se contorceu e
inclinou a cabeça para enfiar a cara nos meus laços, um braço ao redor de minhas costas para
me estabilizar.
— Não se mexa — ele murmurou em minha barriga, a voz um pouco abafada — Se eu não
conseguir tirar com os dentes, vou cortar tudo com a faca.
Ele olhou para cima com um ruído interrogativo quando eu abafei uma risada diante da
perspectiva.
— Só estou tentando decidir se é melhor ser acidentalmente estripada ou dormir com o
meu espartilho — Sussurrei, envolvendo seu rosto. Estava quente, os cabelos macios na nuca
úmida ao toque.
— Minha pontaria não é tão ruim, Sassenach — ele disse, parando seus trabalhos por um
instante — O único risco seria perfurar seu coração.
Ele conseguiu atingir o seu objetivo sem a ajuda de armas, gentilmente soltando o nó com
os dentes até que pudesse terminar a tarefa com os dedos, abrindo o espartilho de lona pesada
como uma concha para expor a brancura do meu corpo. Eu suspirei como um molusco se
abrindo à maré alta, arrancando o tecido e observando as marcas que o espartilho deixara em
minha carne. Jamie afastou o espartilho descartado, mas permaneceu onde estava, seu rosto
perto dos meus seios, passando suas mãos gentilmente nas laterais de meu corpo.
Eu suspirei de novo com seu toque; ele o fazia por hábito, mas era um hábito do qual eu
sentira falta pelos últimos quatro meses, e um toque que eu pensei que não sentiria de novo.
— Você está muito magra, Sassenach — ele sussurrou — posso sentir cada uma de suas
costelas. Vou encontrar comida para você amanhã.
Eu estivera muito preocupada nos últimos dias para pensar em comida, e estava muito
cansada para sentir fome, mas fiz um ruído de concordância em resposta e acariciei seus
cabelos, traçando a curva de seu crânio.
— Eu amo você, a nighean — ele disse, muito suavemente, seu hálito quente em minha
pele.
— Eu amo você — respondi também suavemente, tirando o laço de seu cabelo e
afrouxando a trança entre meus dedos. Pressionei sua cabeça perto da minha, não em convite,
mas numa necessidade urgente e súbita de mantê-lo perto de mim, de protegê-lo.
Ele beijou meu seio e virou a cabeça, deitando-a na curva de meu ombro. Ele respirou
profundamente uma vez, mais uma e depois adormeceu, o peso relaxante de seu corpo contra
o meu, tanto proteção quanto confiança.
— Eu amo você — eu disse, quase sem ruído algum, meus braços o envolvendo com força
— Oh, meu Deus, como eu te amo!
Poderia ter sido a sensação de uma fadiga esmagadora, ou o cheiro, a mistura de álcool e corpos
sujos, que me fez sonhar com o hospital.
Eu estava andando pelo pequeno corredor além da ala masculina do hospital onde eu
fizera meu treinamento em enfermagem, a pequena garrafa de morfina fortemente presa em
minha mão. As paredes eram de um cinza sujo; bem como o ar. Ao final do corredor estava a
banheira de álcool onde as seringas eram mantidas.
Eu levantei uma, fria e escorregadia, com cuidado para não deixá-la cair. Mas acabei
deixando; ela escorregou de minha mão e se quebrou no chão, espalhando cacos de vidro que
cortaram minhas pernas.
Não podia me preocupar com isso; eu tinha que voltar com a injeção de morfina — os
homens estavam berrando atrás de mim, desesperados, e de alguma forma era o som da tenda
de operações da França, homens gemendo, gritos e soluços desesperançados, e meus dedos
tremiam por causa da urgência, tateando no banho de aço frio entre as seringas que se sacudiam
como ossos.
Peguei uma, segurando-a com tanta força que ela também quebrou em minha mão, e o
sangue escorreu pelo meu pulso, mas eu não estava consciente da dor. Outra, eu precisava de
outra; eles estavam com dores terríveis e eu podia fazer aquilo parar, se apenas...
De alguma forma, eu tinha uma seringa limpa e comecei a abrir a pequena garrafa de
morfina, mas minha mão estava tremendo, os grânulos se espalhando como sal; Irmã Amos
ficaria furiosa. Eu precisava das pinças, do fórceps; eu não podia segurar os pequenos grãos
com os dedos e, em pânico, sacudi vários deles para dentro da seringa. Uma seringa inteira, não
um quarto dela como deveria ser, mas eu tinha que chegar até os homens, tinha que amenizar
a dor deles.
Então eu estava correndo de volta pelo infinito corredor cinza em direção aos gritos, cacos
de vidro brilhando entre as gotas vermelhas que pingavam no chão, ambos tão brilhantes
quanto as asas de uma libélula. Mas minha mão foi ficando mais dormente, e a última seringa
caiu de meus dedos antes que eu pudesse alcançar a porta.
E eu acordei com uma sacudida que parecei parar meu coração. Engoli a fumaça e o fedor
de cerveja e de corpos, sem saber onde eu estava.
— Jesus, Sassenach, você está bem? — Jamie, assustado ao sair do seu sono, rolou em seu
cotovelo para cima de mim, e eu voltei para o presente com o mesmo choque que tive ao
acordar. Meu braço esquerdo estava dormente do ombro para baixo, e havia lágrimas em
minhas bochechas; eu senti a frieza de minha pele.
— Eu... sim. Foi apenas... um pesadelo — Eu me senti envergonhada ao confessar, embora
fosse privilégio dele sofrer com pesadelos.
— Ah — Ele se abaixou ao meu lado com um suspiro e me puxou para perto dele com um
braço. Ele deslizou o polegar pelo meu rosto e, sentindo a umidade, limpou-o com a camisa de
forma prática — Está tudo bem agora? — ele sussurrou, e eu assenti, grata por não ter que falar
sobre isso. — Bom — Ele tirou os cabelos do meu rosto e esfregou minhas costas gentilmente,
os círculos de sua mão cada vez mais lentos até que ele adormeceu novamente.
Era noite fechada e todos estavam dormindo profundamente no cômodo. Todos pareciam
respirar em uníssono, roncos e suspiros e grunhidos todos se encerrando em algo que parecia
ondas de uma maré vazante, me levantando e me fazendo cair, carregando-me com eles, em
segurança de volta às profundezas do sono.
Apenas as pontadas e agulhadas da sensação voltando ao meu braço dormente me
impediram disso, e apenas momentaneamente.
Eu ainda podia ver o sangue e os cacos de vidro e ouvia, contra o sussurro dos roncos, o
barulho do vidro se estilhaçando, via as manchas sangrentas no papel de parede Número 17.
Santo Deus, eu rezei, ouvindo o coração de Jamie sob minha orelha, lento e estável. O que
quer que aconteça, permita que ele tenha uma chance de conversar com William.
53 – EM DESVANTAGEM
William conduziu o seu cavalo para baixo entre as pedras, para um lugar plano onde ambos
pudessem beber. Era meio da tarde, e depois de um dia cavalgando de um lado para o outro da
coluna sob o sol escaldante, ele estava ressecado como um pedaço de carne seca de veado do
ano anterior.
Seu atual cavalo era Madras, um cavalo rebaixado com peito amplo e disposição firme e
constante. O cavalo entrou propositadamente na corrente, testando a profundidade, e
mergulhou o nariz na água com um suspiro feliz, sacudindo o couro contra a nuvem de moscas
que apareceram instantaneamente do nada quando eles pararam.
William abanou a mão, afastando vários insetos de seu rosto e tirou o casaco para um
alívio momentâneo do calor. Ele estava tentado a submergir, também — até o pescoço, se o
riacho fosse profundo o suficiente — mas... bem... Ele olhou cuidadosamente sobre o ombro,
mas ele estava bem longe da vista, embora pudesse ouvir os sons dos vagões de bagagem na
estrada distante. Por que não? Apenas por um momento. Não era como se o despacho que ele
estava levando fosse urgente; ele o tinha visto escrever, e continha nada mais do que um convite
para o General von Knyphausen para se juntar ao General Clinton para jantar numa pousada
que tinha a reputação de servir uma boa carne de porco. Todos estavam encharcados de suor;
a umidade não seria reveladora.
Ele rapidamente tirou os sapatos, a camisa, as meias, as calças e as roupas íntimas, e
caminhou nu na água que se revolvia, que mal chegava à sua cintura, mas estava fria. Ele fechou
os olhos em alívio extasiado — e os abriu abruptamente meio segundo depois.
— William!
Madras atirou a cabeça para trás com um grunhido assustado, dando um banho de
gotículas em William, mas ele mal notou através do choque de ver duas jovens mulheres
paradas na margem oposta.
— O que diabos você está fazendo aqui? — Ele tentou se agachar um pouco na água sem
fazer muito alarde sobre isso. Embora uma voz baixinha no fundo de sua mente questionasse
por que ele se importava: Arabela/Jane já tinha visto tudo o que havia para ver — E quem é
essa? — ele exigiu, apontando com o queixo para a outra garota.
Ambas estavam coradas como rosas de verão, mas ele pensou — ele esperou — que fosse
um resultado do calor.
— Esta é a minha irmã, Frances — Jane disse, com a elegância de uma matrona da
Filadélfia e gesticulou para a garota mais jovem — Faça uma reverência para sua senhoria,
agora, Fanny.
Fanny, uma jovem e adorável garota com cachos escuros aparecendo por baixo de sua
touca — ela devia ter o quê? Uns onze ou doze anos? — fez uma doce reverência a ele, as saias
vermelhas e azuis da chita aparecendo, e deixou cair os longos cílios modestamente ao longo
dos grandes olhos suaves parecidos com os de uma jovem corça.
— Seu mais humilde servo, mademoiselle — ele disse, inclinando-se com tanta graça
quanto possível, o que, a julgar pelas expressões nos rostos das garotas, provavelmente foi um
erro. Fanny colocou a mão sobre a boca e ficou ainda mais vermelha pelo esforço para não rir.
— Estou encantado em conhecer sua irmã — ele disse para Jane, friamente —, mas eu temo que
vocês me têm em desvantagem, madame.
— Sim, isso foi uma sorte! — Jane concordou — Eu não conseguia pensar numa maneira
de te encontrar naquela confusão, e quando nós o vimos cavalgar como se o diabo estivesse
atrás de você... Nós pegamos uma carona numa carroça de bagagem. Não achei que
conseguiríamos alcançá-lo. Mas nós tentamos e... voilà! Fortuna favet audax8, você sabe! — Ela
nem estava tentando fingir que não estava rindo dele.
Ele arranhou algumas respostas afiadas em grego, mas a única coisa que veio para a sua
mente inflamada foi um eco humilhante do passado, algo que seu pai havia dito a ele na ocasião
em que ele acidentalmente caíra numa fossa: Quais são as notícias do submundo, Perséfone?
— Virem-se de costas — ele disse secamente. — Eu vou sair.
Elas não se viraram. Rangendo os dentes, ele se virou de costas e deliberadamente subiu
à margem, sentindo a coceira que quatro olhos focados e interessados causava em suas costas.
Ele pegou a camisa e lutou para vesti-la, sentindo que, mesmo aquele parco abrigo permitiria
que ele continuasse a conversa de uma maneira mais digna. Ou talvez ele apenas colocasse suas
calças e botas debaixo do braço e partisse sem conversar.
O som de algo pesado caindo na água enquanto ele ainda estava envolto nas dobras de sua
camisa o fez girar, a cabeça aparecendo bem a tempo de ver Madras saindo do riacho ao lado
das meninas, os lábios já se esticando para pegar a maçã que Jane estava segurando para ele.
— Volte aqui, senhor! — Ele gritou. Mas as garotas tinham mais maçãs, e o cavalo não
dava atenção a mais nada, nem mesmo objetou quando Arabella/Jane pegou suas rédeas e as
prendeu casualmente em volta de um tronco jovem de salgueiro.
— Notei que você não perguntou como nós chegamos até aqui — ela disse — Sem dúvida,
a surpresa o privou de seus modos requintados habituais — Ela sorriu, mostrando as covinhas,
e ele a olhou severamente.
— Eu perguntei — ele disse — Eu me recordo distintamente de dizer “O que diabos você
está fazendo aqui?”.
— Oh, então você disse — ela disse, sem corar — Bem, para não entrar em muitos
detalhes, o Capitão Harkness voltou.
— Oh — ele disse, em um tom ligeiramente diferente — Entendo. Vocês, hã, fugiram,
então?
Frances assentiu solenemente.
William limpou a garganta — Por quê? O Capitão Harkness sem dúvida estará com o
exército. Por que vocês viriam aqui, de todos os lugares, em vez de ficarem em segurança na
Filadélfia?
— Não, ele não virá — Jane disse — Ele ficou preso na Filadélfia por causa dos negócios.
Então, nós viemos embora. Além do mais — ela adicionou negligentemente —, há milhares de
mulheres com o exército. Ele nunca nos encontraria, mesmo que estivesse procurando. E por
que ele estaria?
Aquilo era bem racional. Ainda assim... ele sabia como era a vida de uma prostituta no
exército. Ele também tinha uma forte suspeita de que as meninas tinham quebrado o seu
contrato no bordel; muito poucas conseguiam poupar dinheiro o suficiente para sair, e ambas
as garotas eram jovens demais para ter tanto dinheiro. Abandonar o razoável conforto de camas
limpas e alimentações regulares na Filadélfia a fim de acomodar soldados imundos e suarentos,
no meio das moscas e da lama, e recebendo pagamentos tanto em pancadas quanto em
moedas... Ainda assim, ele era obrigado a admitir que nunca tinha sido sodomizado por um
vicioso como Harkness e não tinha base para comparação.
— Eu imagino que você queira dinheiro, para ajudar na sua fuga? — ele disse, uma
aspereza em sua voz.
— Bem, talvez — disse Jane. Colocando a mão em seu bolso, ela tirou algo brilhante —
Mas, principalmente, eu queria te devolver isso.
Seu gorjal! Ele deu um passo involuntário em direção a ela, dedos chafurdando na lama.
Durante a viagem do dia seguinte, nós encontramos um mensageiro, enviado pelo comando de
Washington com uma nota para Jamie. Ele leu a nota inclinado contra uma árvore, enquanto eu
fazia uma visita discreta a uma moita próxima.
— O que ele diz? — Perguntei, ajeitando minhas roupas enquanto emergia da moita. Eu
ainda estava bastante admirada por Jamie ter falado realmente com George Washington, e o
fato de que ele estava franzindo o cenho para a carta presumivelmente escrita pelo futuro Pai
do País...
— Duas ou três coisas — ele replicou com um encolher de ombros, e, redobrando a nota,
colocou-a em seu bolso. — A única parte importante é que a minha brigada está sob o comando
de Charles Lee.
— Você conhece Charles Lee? — Coloquei meu pé no estribo e me levantei para a sela.
— Eu sei sobre ele — O que ele sabia parecia ser bastante problemático, a julgar pela linha
entre suas sobrancelhas. Eu levantei as minhas; ele olhou para mim e sorriu. — Eu o conheci,
sabe, quando eu vi o General Washington pela primeira vez. Tentei aprender um pouco mais
sobre ele desde então.
— Oh, então você não gostou dele — Observei, e ele me deu um pequeno grunhido.
— Não, eu não gostei — ele disse, instigando seu cavalo a andar — Ele fala alto e é
grosseiro e sujo. Eu pude ver isso por mim mesmo... mas, pelo que eu ouvi desde então, ele
também é invejoso até os ossos e não se importa em esconder isso muito bem.
— Invejoso? Em relação a quem? — Não em relação a Jamie, eu esperava.
— A Washington — ele respondeu de forma prática, surpreendendo-me — Ele pensa que
deveria ter o comando do Exército Continental e não gosta de ser o vice.
— Sério? — Eu nunca tinha ouvido nada sobre o General Charles Lee, o que parecia
estranho, se ele tivesse tanto destaque a ponto de essa expectativa ser razoável. — Você sabe
por que ele pensa isso?
— Sei. Ele sente que tem uma boa dose a mais de experiência na vida militar do que
Washington. E talvez isso seja verdade: ele esteve no exército britânico por algum tempo e lutou
em várias campanhas de sucesso. Ainda assim... — Ele levantou um ombro e o deixou cair,
dispensando General Lee por um momento. — Eu não teria concordado em fazer isso, se Lee
tivesse me pedido.
— Eu pensei que você não queria fazer isso, de qualquer maneira.
— Mmphm — Ele considerou por um momento — É verdade que eu não queria fazer
isso... Eu não quero agora — Ele olhou para mim, apologeticamente — E eu realmente não
queria que você estivesse aqui.
— Eu estarei onde você estiver até o fim de nossas vidas — Eu disse firmemente. — Seja
ela daqui uma semana ou quarenta anos.
— Mais do que isso — ele disse, e sorriu.
Nós cavalgamos durante um tempo em silêncio, mas profundamente conscientes um do
outro. Nós estávamos assim desde aquela conversa nos jardins em Kingsessing.
Eu vou te amar para sempre. Não importa que você durma com todo o exército britânico...
Bem, não, isso importaria, mas não faria com que eu parasse de te amar.
Eu te levei para a cama milhares de vezes, pelo menos, Sassenach. Acha que eu não estava
prestando atenção?
Não poderia haver ninguém como você.
Eu não tinha me esquecido de uma palavra que tínhamos dito — e nem ele, embora
nenhum de nós tenha falado sobre isso de novo. Não estávamos pisando em ovos um com o
outro, mas estávamos sentindo o caminho... encontrando o caminho para o outro, como
tínhamos feito duas vezes antes. Uma vez, quando eu voltei para encontrá-lo em Edimburgo... e
no começo, quando nós tivemos que nos casar pela força das circunstâncias. Apenas mais tarde
foi nossa escolha.
— O que você gostaria de ser? — Perguntei, por impulso. — Se você não tivesse nascido o
senhor de Lallybroch.
— Eu não nasci. Se o meu irmão mais velho não tivesse morrido, você quer dizer — ele
disse. Uma pequena sombra de arrependimento cruzou seu rosto, mas não permaneceu. Ele
ainda pranteava o garoto que tinha morrido aos onze anos, deixando um irmão pequeno para
carregar o fardo da liderança e da luta que crescia dentro de si... mas ele estava acostumado
àquele fardo há muito tempo.
— Talvez seja isso — eu disse. —, mas e se você tivesse nascido em outro lugar, talvez
numa família diferente?
— Bem, eu não seria o que eu sou, seria? — ele disse logicamente, e sorriu para mim. —
Eu posso me esquivar ocasionalmente do que Deus me enviou para fazer, Sassenach... mas eu
não tenho como argumentar com a forma como ele me fez.
Eu olhei para o que ele era — o corpo forte e firme e as mãos capazes, o rosto cheio de
tudo o que ele era — e não tive argumento também.
— Além do mais — ele disse, e inclinou a cabeça pensativamente —, se tivesse sido
diferente, eu não teria você, certo? Ou não teria Brianna e seus filhos...
Se tivesse sido diferente... Eu não queria perguntar se ele pensava que sua vida tinha
valido à pena.
Ele se inclinou e tocou minha bochecha.
— Tudo vale à pena, Sassenach — ele disse — Por mim.
Eu limpei a garganta.
— Por mim também.
Ian e Rollo nos encontraram alguns quilômetros antes de Coryell’s Ferry. A escuridão tinha
caído sobre nós, mas o brilho do acampamento era ligeiramente visível contra o céu, e nós
continuamos o caminho cautelosamente, sendo parados a cada meio quilômetro por sentinelas
que surgiam irritantemente do escuro, com os mosquetes prontos.
— Amigo ou inimigo? — O sexto deles exigiu dramaticamente, olhando para nós sob o
feixe de uma lanterna segurada no alto.
— General Fraser e sua senhora — Jamie disse, protegendo os olhos com a mão e olhando
para baixo para a sentinela — Isso é amigável o suficiente para você?
Eu abafei um sorriso em meu xale; ele tinha se recusado a parar para encontrar comida
ao longo do caminho, e eu havia me recusado a deixá-lo comer bacon cru, não importava quão
bem defumado ele estava. As quatro maçãs de Jenny tinham acabado, nós não tínhamos comido
nada desde a noite anterior, e ele estava faminto. Um estômago vazio geralmente acordava o
demônio que adormecia dentro dele, e isso estava claramente evidente no momento.
— É... sim, senhor, General, eu apenas... — O feixe de luz da lanterna mudou para
descansar em Rollo, atingindo-o exatamente na cara e transformando seus olhos em um flash
de verde assustador. A sentinela fez um barulho sufocado, e Ian inclinou para baixo em seu
cavalo, seu próprio rosto, com as tatuagens Mohawk e tudo, aparecendo repentinamente.
— Não se preocupe conosco — ele disse jovialmente para a sentinela — Nós somos
amigáveis também.
Para minha surpresa, havia, na verdade, um assentamento de bom tamanho no Coryell’s Ferry,
com várias pousadas e muitas casas empoleiradas às margens do Delaware.
— Eu suponho que este seja o motivo para Washington ter escolhido este como o ponto
de encontro? — Perguntei a Jamie — Boa estrutura, eu quero dizer, e alguns suprimentos.
— Sim, deve ser isso — ele disse, embora tenha falado distraidamente. Ele tinha subido
um pouco nos estribos, olhando o cenário. Todas as janelas em todas as casas estavam acesas,
mas uma grande bandeira americana, com seu círculo de estrelas, tremulava acima da porta da
maior pousada. Era a sede de Washington, então.
Minha principal preocupação era colocar alguma comida em Jamie antes de ele se
encontrar com General Lee, se o referido realmente fizesse jus à sua reputação de arrogância e
irritação. Eu não sabia o que havia nos ruivos, mas muitos anos de experiência com Jamie,
Brianna e Jemmy tinham me ensinado que, enquanto a maioria das pessoas se tornava irritada
quando estava com fome, uma pessoa ruiva com estômago vazio era uma bomba-relógio
ambulante.
Enviei Ian e Rollo com Jamie para encontrarem a sede, descobrirem o que poderíamos ter
em termos de acomodações, e descarregar o burro de carga, depois segui com o nariz o cheiro
mais próximo de comida.
As cozinhas do acampamento estavam funcionando desde que o fogo havia se acendido,
mas eu já estivera em muitos acampamentos de exército e sabia como elas funcionavam;
pequenas panelas estariam fervendo durante toda a noite, cheias de cozido e mingau para a
manhã seguinte, ainda mais sabendo que o exército estava perseguindo o General Clinton. Era
incrível pensar que eu o tinha encontrado socialmente apenas alguns dias antes...
Eu estava tão focada em minha tarefa que não vi um homem saindo da penumbra e quase
esbarrei nele. Ele me segurou pelos braços e nós valsamos uma meia-volta atrapalhada antes
de pararmos.
— Pardon, madame! Receio ter pisado em seu pé! — disse uma jovem voz francesa, muito
angustiada, e eu olhei diretamente no rosto preocupado de um homem muito jovem. Ele estava
de camisa e calças, mas eu podia ver que sua camisa exibia punhos rendados. Um oficial, então,
apesar de sua juventude.
— Bem, sim, você pisou — Eu disse suavemente —, mas não se preocupe. Eu não estou
machucada.
— Je suis tellement désolé, je suis un navet!9 — ele exclamou, batendo na própria testa. Ele
não usava peruca, e eu percebi que, apesar de sua idade, seus cabelos estavam recuando em um
ritmo rápido. O que sobrara dele era ruivo e estava inclinado para trás devido ao seu aparente
hábito de passar os dedos sobre ele, o que ele estava fazendo no momento.
— Bobagem — eu disse em francês, rindo — Você não é um nabo.
— Oh, sim — ele disse, mudando para inglês. Ele sorriu charmosamente para mim — Eu
uma vez pisei no pé da Rainha da França. Ela foi muito menos graciosa, sa Majesté — ele
adicionou com tristeza — Ela me chamou de nabo. Ainda assim, se isso não tivesse acontecido...
Eu fui obrigado a deixar a corte, sabe... talvez eu nunca tivesse vindo para a América, por isso
não podemos lamentar completamente a minha falta de jeito, n’est-ce pas?
Ele estava extremamente alegre e cheirava a vinho — não que aquilo fosse algo fora do
comum. Mas dado ao seu comportamento excessivamente francês, à sua riqueza evidente e à
sua tenra idade, eu estava começando a pensar...
— Eu tenho a, hã, honra de conhecê-lo... — Inferno, qual era o seu título real? Supondo-se
que ele realmente fosse...
— Pardon, madame! — ele exclamou, e, pegando minha mão, inclinou-se e a beijou —
Marie Joseph Paul Yves Roch Gilbert du Motier, Marquis de La Fayette, a votre service!
Ian, Rollo e eu pedimos licença aos generais e saímos para a escuridão para encontrar nossas
camas, escoltados por um ordenança com uma lanterna. As fogueiras queimavam altas acima e
abaixo das margens do Delaware, e muitos dos barcos do rio tinham lanternas ou tochas
também, as luzes se refletindo na água como cardumes de peixes brilhantes.
— Você sabe alguma coisa sobre o homem que comeu ao seu lado? — Perguntei a Ian, em
meu gaélico hesitante. Ele riu (ele e Jamie sempre riam quando eu falava em gaélico), mas
levantou um ombro de forma negativa.
— Não sei, mas vou descobrir — ele disse. — Ele é inglês, isso eu posso dizer.
Ele usou a palavra “Sassenach”, o que me causou um leve choque. Fazia um longo tempo
desde que eu ouvira um escocês usar aquela palavra com o significado que ele pretendia.
— Sim, ele é. Você acha que isso faz diferença? — Tecnicamente, todos eles ainda eram
ingleses... bem, menos La Fayette, von Steuben, Kosciuszko, e outros esquisitos similares... Mas
era verdade que a maior parte dos oficiais Continentais tinham nascido e passado sua vida na
América. Lee não tinha. Ian fez um ruído escocês irrisório, indicando que sim. — Mas eu ouvi
que ele foi adotado pelos Kahnyen’kehaka também — Objetei.
Ian ficou em silêncio por um momento, e então pegou meu braço, inclinando-se para perto
para falar em meu ouvido.
— Tia — ele disse suavemente —, você acha que eu deixei de ser escocês?
55 – VIRGENS VESTAIS
— Um pouco de clara de ovo misturada com uma gota ou duas de algália. Teoricamente é bom
para a pele, mas francamente — Eu estava dizendo, quando ouvi o som de vozes fora da tenda.
Rachel e Ian tinham voltado, parecendo alegres, corados, e da forma como os jovens
ficavam quando passaram uma ou duas horas fazendo o tipo de coisa sobre a qual eu estava
instruindo Dottie. Eu a vi olhar de lado para Rachel e depois — muito brevemente — para as
calças de Ian. Ela corou um pouco.
Rachel não percebeu, sua atenção tendo se fixado na Sra. Peabody... bem, a atenção de
todos estava fixada na Sra. Peabody; era realmente impossível olhar para qualquer outra coisa.
Ela franziu o cenho para a mulher imensa no chão e depois olhou para mim.
— Onde está Denzell?
— Uma excelente pergunta. Ele saiu há uns quinze minutos para procurar água. Há
cerveja, entretanto, se você estiver com sede — Assenti em direção ao jarro negligenciado.
Ian serviu um copo para Rachel, esperou até que ela bebesse, e depois encheu o copo para
si mesmo, os olhos ainda fixos na Sra. Peabody, que estava emitindo uma notável variedade de
sons, embora ainda estivesse inconsciente.
— O Tio Jamie sabe onde você está, tia? — ele perguntou — Ele estava procurando por
você agora. Ele disse que a colocaria em algum lugar seguro para dormir, mas você escapou. De
novo — ele adicionou com um amplo sorriso.
— Oh — eu disse — Ele já terminou de conversar com os generais, então?
— Sim, ele foi conhecer alguns dos capitães de milícia que estão sob sua responsabilidade,
mas a maioria já deve estar dormindo agora, então ele foi se juntar a você nos Chenowyths. A
Sra. Chenowyths ficou um pouco surpresa ao descobrir que você tinha saído — acrescentou
delicadamente.
— Eu só saí para tomar um pouco de ar — eu disse, na defensiva — E então... — Gesticulei
para a paciente no chão, que agora tinha se estabilizado num ronco ritmado. Sua cor estava
melhor; aquilo era animador — É... Você acha que Jamie está irritado?
Ian e Rachel ambos riram.
— Não, tia — Ian disse —, mas ele está muito cansado e a quer muito.
— Ele pediu para você dizer isso?
— Não precisamente com estas palavras — Rachel disse —, mas o significado ficou claro
— Ela se virou para Ian, com um rápido aperto em seu braço — Você poderia sair para
encontrar Denny, Ian? Claire não pode deixar essa mulher sozinha, eu acho? — Ela perguntou,
arqueando uma sobrancelha para mim.
— Ainda não — eu disse. — Não parece que ela vai entrar em trabalho de parto
imediatamente — Cruzei os meus dedos contra a possibilidade —, mas ela não deve ser deixada
sozinha neste estado.
— Sim, claro — Ian bocejou de repente, mas depois se chacoalhou para voltar ao estado
de alerta — Se eu cruzar com o tio Jame, vou dizer a ele onde você está, tia.
Ele saiu, e Rachel serviu outro copo de cerveja, que me ofereceu. Estava em temperatura
ambiente — e de um ambiente quente — mas amarga e forte. Eu não tinha realmente pensado
que estava cansada, mas a cerveja me revigorou espantosamente.
Dottie, tendo checado o pulso e a respiração da Sra. Peabody, colocou a mão aberta sobre
a barriga distendida — Você já fez um parto antes, cunhada? — Dottie perguntou a Rachel,
sendo cuidadosa em seu discurso simples.
— Muitos — Rachel replicou, agachada ao lado da Sra. Peabody — Mas isso parece
diferente, entretanto. Ela sofreu alguma lesão... Oh! — O fedor da cerveja a atingiu, e ela se
afastou e tossiu — Entendo.
A Sra. Peabody soltou um gemido alto e todas nós ficamos rígidas. Eu limpei as mãos no
avental, apenas para garantir. Ela relaxou de novo, entretanto, e depois de alguns momentos de
silêncio contemplativo para ver se a Sra. Peabody faria isso de novo, Dottie inspirou
profundamente.
— A Sra... Eu quero dizer, a Amiga Claire estava me dizendo coisas muito interessantes.
Em relação a... é... o que esperar da noite de núpcias.
Rachel olhou para cima com interesse.
— Qualquer instrução seria muito bem-vinda para mim. Eu sei onde as... hã... partes vão,
porque eu já as vi indo para lá muitas vezes, mas...
— Você já viu?!? — Dottie olhou boquiaberta para ela, e Rachel riu.
— Sim. Mas Ian me assegurou que ele tem mais habilidade nisso do que um touro ou um
bode, e minhas observações são limitadas ao mundo animal, eu receio — Uma pequena linha se
formou entre suas sobrancelhas — A mulher que cuidou de mim após a morte dos meus pais
era... muito diligente em me informar sobre as minhas obrigações femininas, mas suas
instruções consistiam em grande parte de: “Abra suas pernas, trinque seus dentes, garota, e o
deixe entrar”.
Eu me sentei na caixa e me estiquei para aliviar minhas costas, suprimindo um grunhido.
Deus sabia quanto tempo poderia demorar para Ian encontrar Jamie entre os milhares de
soldados do acampamento. E eu realmente esperava que Denny não tivesse sido atingido na
cabeça ou recebido o coice de uma mula.
— Sirva-me outro copo, pode ser? E pegue um pouco mais para vocês. Suspeito que vamos
precisar disso.
— ... E se ele disser “Oh, Deus, Oh, Deus!” em algum momento — eu aconselhei —, tome ciência
do que está fazendo, para que possa fazer o mesmo da próxima vez.
Rachel riu, mas Dottie franziu um pouco o cenho, parecendo ligeiramente estrábica.
— Você acha... Ou melhor, vocês acham, que Denny usaria o nome do Senhor em vão, até
mesmo sob estas circunstâncias?
— Eu já o ouvi fazer isso com muito menos provocações do que essa — Rachel assegurou
a ela, sufocando um arroto com as costas da mão — Ele tenta ser perfeito em sua companhia,
você sabe, por medo que você mude de ideia.
— Ele tenta? — Dottie pareceu mais surpresa do que satisfeita — Oh. Eu não faria isso,
vocês sabem. Devo dizer isso a ele?
— Não até que ele diga “Oh, Deus, Oh, Deus” para você — Rachel disse, sucumbindo a uma
risadinha.
— Eu não me importaria — eu disse — Se um homem diz “Oh, Deus” nesta situação, quase
sempre o faz como uma oração.
As sobrancelhas finas de Dottie se juntaram em concentração.
— Uma oração de desespero? Ou de gratidão?
— Bem... Isso depende de você — Eu disse, e abafei um pequeno arroto também.
Vozes masculinas que se aproximavam por fora da tenda fizeram com que nós nos
tornássemos conscientes do jarro de cerveja vazio e nós nos sentamos retas, ajeitando os
nossos cabelos ligeiramente despenteados, mas nenhum dos cavalheiros que entrou estava em
qualquer condição de nos atirar pedras pela aparência.
Ian tinha encontrado Denzell e Jamie, e em algum lugar ao longo do caminho, tinham
adquirido um pequeno e robusto companheiro, com um chapéu armado, e os cabelos numa
trança atarracada. Todos eles estavam corados e, embora não estivessem cambaleando,
estavam envoltos em uma névoa de grãos de cevada fermentados.
— Aí está você, Sassenach! — Jamie se animou ainda mais ao me ver, e eu senti uma
pequena onda de prazer — Você está... quem é essa? — Ele estava avançando em minha direção,
com a mão esticada, mas parou abruptamente ao ver a Sra. Peabody, que estava deitada com os
braços para fora e a boca aberta.
— Está é a senhora sobre a qual lhe falei, tio Jamie — Ian não estava cambaleando,
também, mas estava distintamente se balançando e agarrou o pau da barraca para se firmar —
Aquela que está... é... — Ele gesticulou com a mão livre para o cavalheiro de chapéu — Ela é a
mulher dele.
— Oh? Sim, eu entendo — Ele passou suavemente ao redor da forma reclinada da Sra.
Peabody — Ela não está morta, está?
— Não — eu disse — Acho que eu teria notado.
Ele podia estar embriagado de alguma forma, mas ainda capturou a ênfase duvidosa que
eu coloquei eu “acho”. Ele se ajoelhou cuidadosamente e colocou a mão na frente de sua boca
aberta.
— Não, só está bêbada — ele disse alegremente. — Vamos dar uma mão para levá-la para
casa, Sr. Peabody?
— É melhor emprestar um carrinho de mão — Dottie sussurrou para Rachel, ao meu lado,
mas por sorte ninguém notou.
— Isso seria muito gentil de sua parte, senhor — Surpreendentemente, o Sr. Peabody
parecia ser o único sóbrio no grupo. Ele se ajoelhou e alisou o cabelo úmido com ternura na
testa de sua esposa. — Lulu? Acorde, querida. É hora de ir agora.
Para minha surpresa, ela abriu os olhos e, depois de piscar inúmeras vezes em confusão,
pareceu fixar o olhar em seu marido.
— Aí está você, Simon! — ela disse, e, com um sorriso arrebatador, caiu sonoramente no
sono.
Jamie se levantou lentamente, e eu pude ouvir os ossos de suas costas estalarem enquanto
ele se alongava. Ele ainda estava corado e sorrindo, mas Ian estava certo — ele estava muito
cansado. Eu podia ver as profundas linhas de cansaço em seu rosto e as cavidades debaixo de
seus ossos.
Ian também as viu.
— Tia Claire precisa ir para a cama, tio Jamie — ele disse, apertando o ombro de Jamie e
dando-me um olhar — Foi uma longa noite para ela. Leve-a, sim? Denny e eu podemos ajudar o
Sr. Peabody.
Jamie deu um olhar afiado ao seu sobrinho e depois lançou o mesmo olhar para mim, mas
eu gentilmente bocejei de forma ampla o suficiente para que meu queixo estalasse — sem
grande esforço — e com um último olhar para a Sra. Peabody para me certificar de que ela não
estava morrendo e nem entrando em trabalho de parto, peguei o braço dele e o puxei com
determinação para fora, acenando brevemente para dizer adeus.
Lá fora, nós dois inspiramos o ar fresco, suspiramos em uníssono e rimos.
— Foi uma longa noite, não? — Coloquei minha testa contra seu peito e meus braços ao
redor dele, lentamente esfregando os nós de suas vértebras pelo seu casaco — O que aconteceu?
Ele suspirou de novo e beijou o topo de minha cabeça.
— Eu tenho o comando de dez companhias de milícias mistas da Pensilvânia e de Nova
Jersey; o marquês tem o comando de mil homens, incluindo os meus, e foi encarregado de criar
um plano para morder o traseiro do exército britânico.
— Parece divertido — O barulho do acampamento tinha morrido consideravelmente, mas
o ar espesso ainda trazia a vibração de muitos homens, despertos ou dormindo levemente. Eu
pensei que pudesse sentir as mesmas vibrações de expectativa passarem por Jamie, apesar de
seu óbvio cansaço — Você precisa dormir, então.
Seu braço se apertou ao meu redor e sua mão livre passeou lentamente pelas minhas
costas. Eu tinha deixado o avental de Denny na tenda, e a minha capa estava sobre o meu braço;
a fina musselina de minha combinação poderia muito bem nem existir.
— Oh, Deus — ele disse, e sua mão grande e quente envolveu minha nádega com uma
repentina urgência — Eu preciso de você, Sassenach. Preciso demais!
A combinação era tão fina na frente quanto era nas costas; eu podia sentir os botões do
seu colete — e algumas outras coisas — através dela. Ele realmente me queria demais.
— Você se importa em fazer isso numa cripta que cheira a urina? — Perguntei, pensando
novamente no quarto dos Chenowyths.
— Eu já tive você em lugares piores, Sassenach.
Antes que eu pudesse dizer “cite três”, a tenda se abriu para vomitar uma pequena
procissão, que consistia em Denzell, Dottie, Rachel e Ian, cada casal carregando uma ponta de
um lençol no qual estava a protuberante forma da Sra. Peabody. O Sr. Peabody liderava o
caminho, com a lanterna nas mãos.
Estávamos parados nas sombras, e eles passaram sem nos notar, as garotas rindo com os
ocasionais tropeços, os jovens homens grunhindo com o esforço, e o Sr. Peabody os encorajando
enquanto eles faziam a laboriosa caminhada pela escuridão, presumivelmente indo até a casa
dos Peabody.
A tenda estava ali diante de nós, escura e convidativamente vazia.
— Sim?
— Oh, sim.
Os padioleiros tinham levado as lanternas, e a lua criava um cenário nu no horizonte; o
interior da tenda estava cheio de uma poeira macia e negra que se levantava ao nosso redor
numa nuvem com fragrância de álcool — com um leve toque de vômito — quando entramos.
Eu me lembrava exatamente onde as coisas estavam, entretanto, e nós conseguimos
empurrar quatro caixas de suprimentos juntas. Eu estiquei minha capa sobre elas, ele tirou seu
casaco e seu colete, e nós nos deitamos juntos precariamente na escuridão que cheirava a
cerveja.
— Quanto tempo você acha que temos? — Perguntei, abrindo os botões de sua calça. Sua
carne estava quente e rígida em minha mão, e sua pele macia como seda.
— Tempo o suficiente — ele disse, e esfregou meu mamilo com o polegar, lentamente,
apesar de sua aparente urgência — Não se apresse, Sassenach. Não há como dizer quanto
teremos essa chance de novo.
Ele me beijou demoradamente, sua boca com gosto de Roquefort e Vinho do Porto. Eu
podia sentir a vibração do acampamento aqui também — ela corria através de nós como uma
corda de violino esticada demais.
— Eu não acho que tenho tempo para fazê-la gritar, Sassenach — ele sussurrou em meu
ouvido —, mas talvez eu tenha tempo para fazê-la gemer.
— Bem, possivelmente. Temos algum tempo até amanhecer, certo?
Fosse por causa da cerveja e das explicações sobre a noite de núpcias, por causa da hora
tardia ou por causa do ar de segredo — ou talvez apenas por causa do próprio Jamie e nossa
crescente necessidade de nos esquecermos do mundo e pensarmos apenas em nós mesmos —
ele teve tempo, e de sobra.
— Oh, Deus — ele disse, por fim, e veio lentamente sobre mim, seu coração batendo forte
contra minhas costelas — Oh... Deus.
Eu senti meu próprio pulso nas mãos, nos ossos e no meu centro, mas não consegui deixar
minha resposta mais eloquente do que um débil “ooh”. Depois de um tempo, entretanto, eu me
recuperei o suficiente para acariciar seus cabelos.
— Nós vamos para casa de novo em breve — Sussurrei para ele — E teremos todo o tempo
do mundo.
Aquilo me rendeu um suave ruído escocês de afirmação, e nós ficamos lá deitados por um
pouco mais de tempo, sem querer nos separar e nos vestir, embora as caixas de suprimentos
fossem duras e a possibilidade de sermos descobertos aumentasse com o passar de cada
minuto.
Por fim, ele se mexeu, mas não se levantou.
— Oh, Deus — ele disse suavemente, em um tom completamente diferente — Trezentos
homens — E ele me abraçou com mais força.
56 – PAPISTA FEDORENTO
O sol ainda não tinha se erguido no horizonte, mas o local dos cavalos estava cheio como um
formigueiro, cheio de cavalariços, forrageadores, carroceiros e ferradores, todos correndo para
cumprir suas tarefas em uma luz rosada suave e incongruente cheia com o ruído de centenas
de pares de mandíbulas que mastigavam. William pegou a ferradura velha do casco do cavalo
baio castrado e estendeu a mão para pegar a nova, que um pequeno cavalariço estava
segurando nervosamente contra o peito.
— Agora, venha aqui, Zeb — ele disse em tom persuasivo — Eu vou te mostrar como se
faz; não há nada de difícil nisso.
— Sim, senhor — Zebedee Jeffers se aproximou um centímetro, os olhos se revezando
entre os cascos do cavalo e a massiva carne de seu corpo. Jeffers não gostava de cavalos. Ele
particularmente não gostava de Visigoth. William pensou que provavelmente Zeb não sabia o
que era um Visigoth.
— Tudo bem. Está vendo? — Ele bateu a picareta contra a sombra: a borda de uma
pequena pedra que se prendera na ferradura durante a noite — É apenas uma pequena, mas é
como se você estivesse com uma pedra em seu sapato, e ele ficará coxo se não cuidarmos disso.
Aqui, não está muito preso; quer tentar?
— Não, senhor — Zeb disse honestamente. Zebedee tinha vindo da costa de Maryland e
tinha conhecimentos sobre ostras, barcos e peixes. Não sobre cavalos.
— Ele não vai te machucar — William disse, com um toque de impaciência. Ele andava de
um lado para outro nas colunas dezenas de vezes por dia, carregando despachos e coletando
relatos; ambos os seus cavalos precisavam ser mantidos prontos; seu cavalariço regular,
Colenso Baragwanath, estava com febre, e ele não tivera tempo de encontrar outro criado.
— Sim, ele vai. Senhor — Zeb adicionou num reflexo tardio. — Viu? — Ele estendeu o
braço magro, exibindo o que era indubitavelmente uma marca de mordida roxa.
William suprimiu a vontade de perguntar o que diabos o garoto havia feito ao cavalo.
Visigoth não era um cavalo com mau temperamento em geral, mas podia ser irritável, e o
remexer nervoso de Zeb era o suficiente para tentar qualquer um, imagine um cavalo solitário
e faminto.
— Tudo bem — ele disse com um suspiro, e arrancou a pedra com uma faca afiada —
Melhor assim? — ele disse para o cavalo, deslizando a mão pela perna dele e batendo em seu
flanco.
Ele colocou a mão no bolso e tirou um monte de cenouras flácidas, compradas na noite
anterior de uma fazendeira que viera ao acampamento com cestos de produtos jogados sobre
seus ombros largos.
— Aqui. Dê isso a ele; façam amizade — ele sugeriu, entregando uma cenoura para Zeb —
Segure-a deitada em sua mão.
Antes que o garoto pudesse estender o ramo de oliveira, entretanto, o cavalo colocou a
cabeça para baixo e o arrancou dos dedos dele com um ruído audível de seus dentes
amarelados. O menino soltou um gritinho e deu vários passos para trás, colidindo com um balde
e caindo de bunda sobre ele.
Dividido entre aborrecimento e um desejo impróprio de rir, William sufocou ambos os
sentimentos e foi pegar o cavalariço entre os montes de esterco.
— Vou te dizer uma coisa — ele disse, limpando o menino com a mão firme — certifique-
se de que toda a minha esteira esteja no vagão de bagagem. Veja se Colenso não precisa de
alguma coisa, e garanta que haja alguma coisa para eu comer esta noite. Vou pedir para o
cavalariço de Sutherland cuidar dos cavalos.
Zeb caiu com alívio.
— Obrigado, senhor!
— E vá ver um dos cirurgiões para cuidar desse braço! — William gritou atrás dele, acima
do som crescente de zurros e relinchos. Os ombros do menino se elevaram até suas orelhas e
ele caminhou mais rápido, fingindo que não tinha ouvido.
William selou Goth — ele sempre havia feito isso, não confiando em ninguém mais para
verificar a aderência da qual sua vida poderia depender — e então o deixou com o outro cavalo,
Madras, e foi encontrar o cavalariço de Lord Sutherland. Apesar da agitação, ele não teve
problema algum para encontrá-lo; Sutherland tinha dez cavalos, todos nobres, e tinha pelo
menos uma dezena de cavalariços para cuidar deles. William estava terminando as negociações
com um deles quando teve um vislumbre de um rosto familiar no meio da multidão.
— Merda — ele disse, baixinho, mas o Capitão Richardson o tinha visto e estava vindo em
sua direção, sorrindo jovialmente.
— Capitão Lord Ellesmere. Seu criado, senhor.
— Ao seu serviço, senhor — William disse, o mais agradavelmente que conseguiu. O que
aquele canalha queria agora?, ele imaginou. Não que Richardson fosse um canalha... ou pelo
menos ele não era necessariamente um, apesar do aviso de Randall. Poderia ser que, no fim,
Randall é que fosse o canalha. Mas ele realmente guardava rancor de Richardson, tanto por
causa da Mãe Claire quanto por sua causa. O pensamento de Mãe Claire o esfaqueou
inesperadamente, e ele o forçou para trás. Nada daquilo era culpa dela.
— Eu estou surpreso em vê-lo aqui, sua senhoria — Richardson disse, olhando ao redor
do acampamento turvo. O sol estava alto, e partículas douradas iluminavam a neblina de poeira
que se levantava da pelagem rústica das mulas — Você é um convencionista, não?
— Eu sou — William disse friamente. Richardson certamente sabia que ele era. William
se sentiu obrigado a se defender, embora ele não soubesse contra o quê — Eu não posso lutar.
— Ele abriu os braços — Como você pode ver, não carrego arma alguma.
Ele fez gestos educados indicando sua necessidade imediata de estar em outro lugar, mas
Richardson ficou parado lá, sorrindo com aquela cara comum, tão banal que sua própria mãe
provavelmente não o encontraria no meio de uma multidão, exceto por uma mancha marrom
ao lado de seu queixo.
— Ah, para ter certeza — Richardson se aproximou mais, abaixando a voz — Este sendo
o caso... Eu me pergunto se...
— Não — William disse definitivamente. — Eu sou um dos assessores do General Clinton,
e eu não posso largar minha tarefa. Com licença, senhor; eu estou sendo aguardado.
Ele se virou e saiu, o coração martelando — e percebeu tarde demais que tinha deixado o
cavalo para trás. Richardson ainda estava parado ao lado do estábulo, conversando com um
cavalariço que estava levando os piquetes para baixo, enrolando uma corda em torno do ombro
enquanto o fazia. A multidão de cavalos e mulas estava rapidamente diminuindo, mas ainda
havia vários perto de Visigoth para permitir que William se infiltrasse entre as pessoas e
fingisse estar mexendo com seus alforjes, com a cabeça inclinada para esconder o rosto até que
Richardson fosse embora.
A conversa o deixara com a imagem inquietante de sua antiga madrasta na última vez em
que a vira, desgrenhada e en déshabillé, mas brilhando com uma vida radiante que ele nunca
vira. Ele supunha que ela não era mais sua madrasta, mas ele gostava dela. Tardiamente,
ocorreu a ele que Claire agora-Fraser ainda era sua madrasta — por causa de um pai diferente...
Inferno!
Ele cerrou os dentes, tateando no alforje por seu cantil. Agora que aquele maldito escocês
tinha voltado de sua sepultura de água, jogando a tudo e a todos na confusão... por que ele não
poderia ter se afogado e nunca mais voltar?
Nunca mais voltar.
Você é um papista fedorento, e o seu nome de batismo é James. Ele congelou como se tivesse
sido alvejado nas costas. Ele se lembrava. Os estábulos em Helwater, o cheiro quente de cavalos
e de palha, e o feno que entrara por suas meias pinicando. Chão de pedra fria. Ele estava
chorando... Por quê? Tudo o que ele se lembrava é de uma enorme onda de desolação, e de um
desespero total. O fim do mundo. Mac partindo.
Ele inspirou profunda e lentamente e pressionou os lábios juntos. Mac. A palavra não
trazia um rosto à sua memória; ele não conseguia se lembrar de como Mac se parecia. Ele era
grande, isso era tudo. Maior do que o seu avô ou qualquer um dos lacaios ou dos outros
cavalariços. Segurança. Uma sensação de felicidade constante como um cobertor velho e macio.
— Merda — ele sussurrou, fechando seus olhos.
E aquela felicidade tinha sido uma mentira também? Ele era muito novo para entender a
diferença entre a deferência de um cavalariço ao seu jovem mestre e a real gentileza. Mas...
— Você é um Papista fedorento — ele sussurrou, e recuperou o fôlego com algo que
poderia ter sido um soluço — E o seu nome de batismo é James.
Era o único nome que eu tinha o direito de dar a você.
Ele percebeu que os nós de seus dedos estavam pressionados contra o peito, contra seu
gorjal — mas não era a segurança do gorjal que ele sentia. Eram os pequenos grãos do rosário
de madeira que ele tinha usado ao redor do pescoço por anos, escondido sob sua camisa onde
ninguém poderia ver. O rosário que Mac havia lhe dado... juntamente com o seu nome.
Com uma rapidez que o chocou, ele sentiu os olhos molhados. Você foi embora. Você me
deixou!
— Merda! — ele disse, e bateu seu punho com tanta força no alforje que o cavalo bufou e
recuou, e uma corrente de dor se espalhou pelo seu braço, obliterando tudo.
57 – NÃO SEJA DELICADO NESSA BOA NOITE
Ian acordou antes do amanhecer para encontrar o tio de cócoras ao seu lado.
— Estou saindo para tomar o café da manhã com os capitães de minha companhia —
Jamie disse sem preâmbulos — Você deve se reportar ao Coronel Wilbur como um escudeiro. E
você pode tratar de nos encontrar os cavalos, Ian? Eu vou precisar de montarias extras e armas,
e você também — Ele derrubou uma bolsa no peito de Ian, sorriu e desapareceu na névoa da
manhã.
Ian rolou lentamente para fora de seu cobertor, alongando-se. Ele havia escolhido seu
lugar de descanso bem longe do acampamento principal, em uma pequena elevação de terra
perto do rio. Ele não se incomodou em imaginar como Tio Jamie o tinha encontrado, ou perdeu
tempo para se maravilhar com os poderes de recuperação de seu tio.
Ele usou esse tempo para as próprias preparações, vestindo-se cuidadosamente,
encontrando comida e pensando nas coisas que precisava fazer. Ele havia sonhado durante a
noite, e o sonho ainda estava nele, embora ele não pudesse se lembrar dos detalhes. Ele estivera
nos bosques densos e algo estava lá com ele, escondido entre as folhas. Ele não tinha certeza do
que era, ou mesmo se ele o tinha visto, mas a sensação de perigo permanecia inquieta entre
suas omoplatas. Ele ouvira um corvo gritar em seu sonho, e aquilo certamente era um aviso de
algum tipo — mas então o corvo passara por ele, e não era um corvo de forma alguma, mas uma
ave branca de algum tipo. Suas asas tinham tocado sua bochecha durante o voo, e ele podia
sentir o roçar de suas pernas.
Animais brancos eram mensageiros. Tanto os Mohawks quanto os Highlanders diziam isso.
Ele era um índio e um Highlander; os sonhos não podiam ser deixados de lado. Algumas
vezes, o significado de um sonho flutuava na superfície de sua mente como uma folha na
superfície da água. Ele o deixou de lado, esperando que o sonho voltasse e explicasse a si
mesmo, e foi cumprir suas tarefas, encontrando Coronel Wilbur, achando dois cavalos razoáveis
e grandes o suficiente para suportarem um grande homem durante a batalha... mas a ave branca
ficou com ele durante todo o dia, pairando logo acima de seu ombro direito, um vislumbre
ocasional com o canto de seus olhos.
No final da tarde, com seu trabalho feito, ele voltou para o acampamento principal e encontrou
Rachel em fila com um grande número de outras mulheres no poço do pátio do Goose and
Grapes, dois baldes descansando aos seus pés.
— Eu poderia levar estes dois para o rio pra você — ele ofereceu. Ela estava corada por
causa do calor do dia, mas parecia linda, seus braços nus marrons e os músculos curvilíneos
deles tão puros e delicados que seu coração se alentou só de olhar para eles.
— Eu agradeço, Ian, mas não — Ela sorriu para ele e esticou a mão para beliscar uma das
duas penas de águia que ele amarrara em seus cabelos — Sua tia disse que os barcos jogam seus
resíduos no rio, e metade do exército está urinando lá também, e ela está certa. Eu deveria
precisar caminhar um quilômetro acima do rio para encontrar um lugar com água limpa. E as
suas tarefas?
Ela falou com interesse, mas sem o senso de preocupação ou desaprovação, e ele apreciou
isso.
— Eu não vou matar ninguém, a menos que eu precise, Rachel — ele disse suavemente, e
tocou sua bochecha. — Eu me alistei como escudeiro. Não precisarei matar.
— Mas as coisas acontecem — ela disse, e olhou para o lado, para impedir que ele visse as
sombras repentinas em seus olhos — Eu sei.
Com um inesperado surto de impaciência, ele quis perguntar a ela: ela preferia que ele
matasse ou fosse morto pela graça de sua alma? Mas ele sufocou o impulso e a pontinha de raiva
com ele. Ela o amava, ele não duvidava disso. Era talvez uma pergunta justa para um Quaker,
mas não para a sua noiva.
Seus olhos estavam no rosto dele, interessados e pensativos, e ele sentiu um leve rubor
subir para suas bochechas, imaginando quanto de seus pensamentos tinham aparecido.
— A jornada da sua vida está ao longo de seu próprio caminho, Ian — ela disse — e eu não
posso compartilhar desta jornada, mas posso caminhar ao seu lado. E é o que eu farei.
A mulher de pé atrás deles na fila suspirou pesadamente com satisfação.
— Agora, isso é uma coisa muito linda e certa a se dizer, querida — ela disse a Rachel, em
tom de aprovação.
E, mudando o olhar para Ian, olhou para ele com ceticismo de cima a baixo. Ele estava
vestido com calças, botas e camisa de chita, e as penas nos cabelos e as tatuagens não deviam
parecer tão estranhas assim, ele pensou.
— Você provavelmente não a merece — a mulher disse, sacudindo a cabeça em dúvida —
Mas tente, seja um bom rapaz.
Ele transportou a água para Rachel, caminhando através da expansão do campo para o local
onde Denzell tinha montado sua tenda médica. A tenda ainda estava de pé, mas o vagão de
Denzell com seus pintassilgos pintados na tampa traseira estava arrumado ao lado, Dottie de
pé nele, e Denzell entregando encomendas e caixas para ela.
Rachel ficou na ponta dos pés para beijar sua bochecha, e depois desapareceu dentro da
tenda para ajudar com os pacotes.
— Você se juntará a nós mais tarde, Ian? — Denny olhou para cima do bloco que estava
amarrando.
— Em qualquer lugar, a bhràthair — Ian disse, sorrindo — Para onde estão designados,
então?
— Oh. Nenhum lugar — Denny tirou seus óculos, polindo-os distraidamente com a barra
da camisa — Ainda não é o Primeiro Dia, mas nós podemos estar envolvidos demais na batalha
quando este dia chegar; nós pensamos em nos encontrar antes do jantar esta noite. Ficaríamos
contentes se você se sentisse à vontade para se juntar a nós. Mas se não quiser...
— Não, eu irei — Ian disse rapidamente — Com certeza. Ah... onde? — Ele gesticulou com
a mão vagamente, indicando o caos semi-organizado do acampamento ao redor deles.
Novas companhias de milícia ainda estavam vindo de Nova Jersey e da Pensilvânia para
se juntarem aos soldados Continentais, e como os oficiais tinham sido designados para recebê-
las e organizá-las, além de ajudá-las a encontrar um local para montar acampamento, todos
estavam sobrecarregados. Os homens estavam montando acampamento em qualquer lugar
onde conseguissem encontrar um terreno aberto, e havia um grande ir e vir em busca de água
e comida, discussões e vozes exaltadas, e o som das pás dos trabalhadores e dos xingamentos
murmurados nas proximidades indicavam a criação de mais uma trincheira sanitária. Uma
pequena procissão constante de pessoas que não podia esperar visitou o bosque em busca de
um momento de privacidade. Ian fez uma nota mental para ficar atento caso caminhasse para
aqueles lados.
— Você não está querendo fazer isso aqui, certamente? — Pessoas iam e vinham durante
todo o tempo, com a necessidade de receber atenção médica, e provavelmente não parariam só
porque estava acontecendo um encontro.
— O Amigo Jamie disse que vai nos providenciar um refúgio — Denny assegurou a ele —
Nós iremos assim que... Quem está aí com você, Dorothea?
Dottie estava arrumando suprimentos mas fez uma pausa para falar com uma jovem que
havia subido no vagão e se ajoelhado no assento e agora se dirigia à Dorothea com seriedade.
— É uma mulher em trabalho de parto, Denny — ela chamou — Três fogueiras adiante!
— É urgente? — Denny começou a desfazer o pacote que acabara de fazer.
— Essa garota diz que sim — Dottie se endireitou e colocou os cabelos loiros e
emaranhados para dentro da touca — É o quarto filho de sua mãe; não houve problema com os
outros três, mas dadas às condições...
Ela se esgueirou passando pela bagagem até a tampa traseira abaixada e Ian deu a mão
para ajudá-la a descer.
— Ela realmente queria a Sra. Fraser — Dottie disse a Denny, em voz baixa — Mas ela vai
se contentar com você — Ela sorriu. — Você está lisonjeado?
— Eu vejo que minha reputação se espalha como pomada sobre um travesseiro de seda
— Ele replicou tranquilamente — e o seu uso de linguagem clara me inflama. É melhor vir
comigo. Você pode cuidar do vagão, Ian?
Os dois saíram apressados pelo labirinto de vagões, cavalos e porcos — alguns
fazendeiros empreendedores tinham levado uma dezena de porcos magros para o
acampamento, procurando vendê-los para o intendente, mas os porcos tinham se assustado
com uma explosão de mosquete acidental e corrido por entre a multidão, causando uma
confusão massiva. Rollo tinha corrido atrás de um e quebrado seu pescoço; Ian tinha sangrado
e eviscerado a carcaça e — depois de dar a Rollo o coração e os miúdos — guardou-o sob a lona
úmida, escondido embaixo do vagão de Denzell. Se ele encontrasse o guardador de porcos
perturbado, ele pagaria pelo animal, mas não o deixaria fora de suas vistas. Ele deu uma rápida
olhada por baixo da carroça, mas o caroço coberto de lona ainda estava lá.
Rollo se moveu um pouco e fez um ruído estranho, não era bem um gemido, que desviou
a atenção de Ian para o cachorro.
— O que foi, a choin? — ele perguntou. Rollo imediatamente lambeu sua mão e resmungou
de uma forma espetacular, mas Ian escorregou para fora do vagão e se ajoelhou nas folhas,
passando os dedos pelo corpo grande e desgrenhado, só para garantir. Apalpar, tia Claire dizia,
uma palavra que sempre fazia Ian sorrir.
Ele encontrou um pequeno ponto dolorido onde o cão havia sido baleado no outono
anterior, na carne do ombro, logo acima da pata dianteira, mas aquilo sempre estivera lá. E um
lugar em sua coluna, poucos centímetros a frente da cauda do animal, o fez juntar as pernas e
gemer ao ser pressionado. Talvez Rollo tivesse se distendido ao perseguir o porco.
— Você não é mais tão jovem quanto costumava ser, não é, a choin? — ele perguntou,
coçando a mandíbula esbranquiçada de Rollo.
— Nenhum de nós é, a mac mo pheathar — disse seu tio Jamie, saindo do crepúsculo e
sentando-se no caixote que Dottie estivera usando para subir no vagão.
Ele estava usando o uniforme completo e parecia com calor. Ian passou a ele seu cantil e
Jamie o pegou, assentindo em agradecimento, passando a manga por seu rosto.
— Sim, depois de amanhã — ele disse, em resposta às sobrancelhas elevadas de Ian — À
primeira luz, se não antes. O pequeno Gilbert conseguiu o comando de mil homens e a
permissão para ir na retaguarda.
— Você... Quero dizer nós — Ian se corrigiu — iremos com ele?
Jamie assentiu e bebeu profundamente. Ian pensou que ele parecia um pouco tenso, mas,
afinal de contas, ele estava no comando de trezentos homens — se todos eles estavam indo com
La Fayette...
— Eu acho que estão me enviando com ele na esperança de que minha antiga sabedoria
irá equilibrar o entusiasmo juvenil do Seigneur de La Fayette — Jamie disse, abaixando o cantil
com um suspiro — E talvez isso seja melhor do que ficar para trás com Lee — Ele fez uma careta
— Água Fervente acha que está aquém de sua dignidade ficar à frente de menos do que mil
homens e desistiu do comando.
Ian fez um ruído indicando divertimento com isso e fé na sagacidade de seu tio. Poderia
ser divertido, irritar a retaguarda britânica. Ele sentiu um arrepio de antecipação com o
pensamento de colocar sua calça de guerra.
— Para onde Denzell foi? — Jamie perguntou, olhando para o vagão.
— Foi realizar um parto mais à frente — Ian disse, levantando o queixo em direção aonde
Denzell e Dottie tinham partido — Ele disse que você vai organizar uma reunião Quaker esta
noite.
Jamie levantou uma sobrancelha grossa, brilhando com gotas de suor.
— Bem, eu não estava planejando participar dela, mas eu disse que eles poderiam usar a
minha tenda e seriam bem-vindos. Por quê? Você vai?
— Pensei que poderia ir — Ian disse — Fui convidado, afinal de contas.
— Foi? — Jamie pareceu interessado — Você acha que eles pretendem convertê-lo?
— Eu não acho que é assim que os Quakers funcionam — Ian disse, um pouco pesaroso
— E boa sorte a eles se tentarem. Eu acho que o poder da oração tem limites.
Aquilo fez seu tio bufar com diversão, mas Jamie balançou a cabeça — Nunca pense assim,
rapaz — ele advertiu — Se a pequena Rachel quiser, ela terá sua espada batendo num arado
antes que você possa dizer “O peito do pé de Pedro é preto”. Bem, duas vezes — ele adicionou
— ou talvez três.
Ian fez um barulho dissidente pelo nariz — Sim, e se eu fosse tentar ser um Amigo, quem
os protegeria? Rachel, e seu irmão e Dottie, quero dizer. Você sabe disso, não? Que eles só
podem ser o que são porque você e eu somos o que somos.
Jamie se inclinou um pouco para trás, com os lábios franzidos, e exibiu o fantasma de um
sorriso irônico.
— Eu sei bem disso. Assim como Denzell Hunter; é por isso que ele está aqui, embora às
custas de sua casa e de sua associação aos Amigos. Mas, pense, vale à pena protegê-los, além do
fato de você estar apaixonado por Rachel, quero dizer.
— Mmphm — Ian não estava com humor para discutir filosofia, e ele duvidou que seu tio
também estivesse. A luz estava naquela longa hora antes do escurecer, quando as coisas na
floresta param e respiram, diminuindo o ritmo para a noite. Era um bom momento para caçar,
porque as árvores eram as primeiras a diminuir o ritmo e você podia ver os animais se movendo
através delas.
Tio Jamie sabia disso. Ele se sentou, relaxado, com nada se movendo além dos seus olhos.
Ian viu seu olhar se movendo para cima e virou a cabeça para ver. Um esquilo agarrava-se a um
tronco de plátano, a uns três metros de distância. Ele não o teria visto, se não tivesse capturado
o último movimento de sua cauda. Ele encontrou os olhos de Jamie, e eles sorriram e se
sentaram em silêncio por um tempo, ouvindo o barulho do acampamento, até ele começando a
silenciar.
Denzell e Dottie ainda não tinham voltado; talvez o parto estivesse mais complicado do
que Denny pensara. Rachel iria em breve para a tenda de Jamie, para o encontro.
Ele pensou sobre isso. Seria necessário um encontro, para discutir sobre os dois, e então
aprovar e testemunhar o casamento. Será que Denny tinha em mente estabelecer uma nova
associação de Amigos, na qual ele pudesse se casar com Dottie — e Rachel pudesse se casar com
Ian?
Jamie suspirou e se agitou, preparando-se para levantar.
— Ahh... Tio — Ian disse, em um tom casual que fez seu tio instantaneamente focar a
atenção nele.
— O quê? — Disse seu tio com cautela — Você não engravidou sua moça, não é?
— Não — Ian disse, ofendido... e imaginando vagamente como seu tio percebera que ele
estava pensando em Rachel — E por que você pensaria numa coisa dessas, seu velho mendigo
de mente suja?
— Porque eu sei muito bem o que “Ahh... tio” geralmente significa — Jamie o informou
cinicamente — Isso significa que você se envolveu em alguma confusão envolvendo uma moça
e quer um conselho. E eu não consigo pensar que você pode estar confuso em relação à Rachel.
A moça mais direita que eu já conheci, com exceção de sua Tia Claire, quero dizer — Ele
adicionou, com um breve sorriso.
— Mmphm — Ian disse, não muito satisfeito com a acuidade de seu tio, mas obrigado a
admitir a verdade nisso — Bem, então. É só que...
Apesar da intenção completamente benéfica — até inocente — da pergunta que veio à sua
mente, ele sentiu seu rosto se esquentar.
Jamie levantou suas sobrancelhas.
— Bem, se você quer saber, então... É que eu nunca me deitei com uma virgem — Uma vez
que aquilo saiu, ele relaxou um pouco, embora as sobrancelhas de seu tio quase tenham
chegado à linha de seus cabelos — E, sim, eu tenho certeza de que Rachel é virgem — ele
adicionou defensivamente.
— Eu também tenho — Seu tio o assegurou — A maioria dos homens não consideraria
isso um problema.
Ian deu um olhar a ele — Você sabe o que eu quero dizer. Eu quero que ela goste.
— Muito louvável. Você já teve queixas de mulheres antes?
— Você está com um humor raro, tio — Ian disse friamente — Você sabe muito bem o que
eu quero dizer.
— Sim, quer dizer que se você está pagando uma mulher para ir para a cama,
provavelmente não vai ouvir nada que não goste em relação à sua própria performance — Jamie
balançou um pouco para trás, olhando para ele — Você disse a Rachel que tinha o hábito de se
deitar com prostitutas?
Ian sentiu o sangue correndo em seus ouvidos e foi obrigado a respirar por um momento
antes de responder.
— Eu contei tudo a ela — ele disse pelos dentes cerrados — E eu não chamaria isso de
hábito — Ele sabia que não deveria continuar com isso — Não mais do que os outros homens
— porque ele sabia muito bem que tipo de resposta receberia por isso.
Felizmente, Jamie parecia ter refreado sua jocosidade por um momento e estava
considerando a questão.
— Sua esposa Mohawk — ele disse delicadamente — Ela, é...
— Não — Ian disse — Os índios entendem o sexo de forma um pouco diferente — E,
aproveitando a oportunidade para se vingar, adicionou — Você não se lembra daquela vez que
fomos visitar o Cherokee Pássaro de Neve e ele mandou duas mulheres para esquentarem a sua
cama?
Jamie deu a ele um olhar antiquado que o fez rir.
— Diga-me, Ian — ele disse, depois de uma pausa —, você teria essa conversa com o seu
pai?
— Deus, não!
— Estou lisonjeado — Jamie disse secamente.
— Bem, veja... — Ian respondera por reflexo e viu-se atrapalhado atrás de uma explicação
— Isso... Quero dizer... Não é que eu não falaria com meu pai sobre isso, mas se ele me dissesse
qualquer coisa, eu saberia que tinha a ver com ele e minha mãe, não? E eu não poderia... bem,
eu não poderia, isso é tudo.
— Mmphm.
Ian estreitou os olhos para seu tio.
— Você não vai me tentar e dizer que minha mãe...
— Que é minha irmã, sim? Não, eu não diria nada como isso. Eu entendi o seu ponto. Eu
só estou pensando... — Ele parou e Ian deu a ele um olhar aguçado. A luz estava esmorecendo,
mas ainda havia bastante. Jamie deu de ombros. — Sim, bem. É só que... a sua tia Claire era uma
viúva quando eu me casei com ela, sim?
— Sim. E?
— Sim — disse seu tio, azedo como um limão — E eu recebi muitos conselhos também,
do meu tio Dougal e de seus homens.
Dougal MacKenzie morrera antes de Ian nascer, mas ele já tinha ouvido muitas coisas
sobre o homem, de uma forma ou de outra. Sua boca se torceu.
— Você se importaria de transmitir um pouco disso?
— Deus, não! — Jamie ficou de pé e limpou pedaços da casca de árvore de seu casaco —
Eu acho que você já sabe que precisa ser gentil, sim?
— Sim, eu pensei nisso — Ian assegurou a ele — Mais nada?
— Sim, bem — Jamie se levantou, considerando — A única coisa útil foi o que a minha
esposa me disse naquela noite. “Vá devagar e preste atenção”. Eu acho que você não pode errar
assim — Ele arrumou o casaco nos ombros — Oidhche mhath, Ian. Vejo você à primeira luz, se
não antes.
— Oidhche mhath, tio Jamie.
Quando Jamie chegou à borda da clareira, Ian o chamou.
— Tio Jamie!
Jamie se virou para olhar sobre seu ombro.
— Sim?
— E ela foi gentil com você?
— Deus, não! — Jamie disse, e sorriu abertamente.
58 – CASTRAMETAÇÃO
O sol estava baixo no céu quando William chegou ao acampamento de Clinton, e mais baixo
ainda antes de ele virar Goth em direção aos cavalariços de Sutherland. Zeb não estava em lugar
algum à vista. Talvez estivesse com Colenso.
Ele entregou seus despachos para o Capitão von Munchausen, encontrou o funcionário da
companhia e achou a tenda que dividia com dois outros jovens capitães, ambos do 27º Batalhão
de Infantaria. Randolph Merbling estava sentado na parte de fora, lendo à luz do sol que se
extinguia, mas não havia sinal de Thomas Evans — e nem de Colenso Baragwanath. Nem de
Zebedee Jeffers. Nem da bagagem de William.
Ele respirou por um momento, e depois se chacoalhou como um cachorro molhado. Ele
estava tão cansado de ficar com raiva que simplesmente não podia estar mais desmotivado. Ele
deu de ombros, emprestou uma toalha de Merbling, lavou o rosto e foi procurar alguma coisa
para comer.
Ele tinha se decidido a não pensar em nada até que tivesse um pouco de comida e foi bem
sucedido nisso, deixando que o frango assado, o pão, o queijo e a cerveja preenchessem pelo
menos alguns dos espaços vazios dentro de si. Quando terminou, entretanto, uma repentina
imagem súbita e nítida perfurou seu agradável devaneio digestivo. Um rosto bonito e corado,
com olhos desconfiados da exata cor da cidra que ele estava bebendo.
Jane. Inferno! Entre uma coisa e outra, ele tinha se esquecido da prostituta e de sua irmã.
Ele havia pedido para que elas o encontrassem na tenda médica ao pôr-do-sol... Bem, o sol ainda
não tinha se posto. Ele já estava de pé e caminhando, mas depois pensou melhor, voltando para
a cozinha, e pediu alguns pães e queijos por garantia.
Castrametação era a ciência de preparar um acampamento militar adequado. Esgotos,
valas sanitárias, onde colocar o depósito de pólvora para evitar que ele inundasse caso
chovesse... Ele tinha recebido um breve curso sobre isso. Ele provavelmente nunca teria que
fazer isso, mas ajudava a localizar coisas, se soubesse onde elas deveriam estar. E, nos
acampamentos, o hospital devia ficar do lado oposto à sede de comando, perto da água, mas no
alto se fosse possível.
Estava lá, e ele encontrou a grande lona verde sem dificuldade. Poderia tê-la encontrado
com os olhos fechados. Cirurgiões carregavam o aroma de seu trabalho ao redor de si, e o cheiro
de sangue seco e o ar inquieto da doença e das mortes recentes era perceptível a centenas de
metros. Era pior — muito pior — após uma batalha, mas sempre havia doenças e acidentes, e o
fedor permanecia até mesmo nos dias de paz, agravado agora pelo calor abafado que se
distribuía como um cobertor úmido sobre o acampamento.
Havia homens, e não poucas mulheres, agrupados em volta da tenda, querendo atenção.
Ele deu a eles um rápido olhar, mas não viu Jane. Seu coração tinha disparado um pouco ao
pensar em vê-la, e ele se sentiu inexplicavelmente desapontado. Não havia motivos para isso,
disse a si mesmo. Ela e sua irmã não seriam nada além de problemas para ele. Elas deviam ter
cansado de esperar, e...
— Você está muito atrasado, meu senhor — disse uma voz acusatória em seu cotovelo e
ele girou ao redor para vê-la olhando para ele por cima de seu nariz, o melhor que alguém mais
baixa que ele poderia fazer, o que não era grande coisa. Ele se pegou sorrindo para ela,
absurdamente.
— Eu disse ao pôr-do-sol — Ele replicou suavemente, assentindo em direção ao oeste,
onde uma fina faixa brilhante ainda podia ser vista por entre as árvores — Ele não se pôs ainda,
não é?
— O sol demora um maldito longo tempo para se pôr ali — Ela mudou sua desaprovação
para o orbe da questão — É muito mais rápido na cidade.
Antes que ele pudesse discutir com essa afirmação ridícula, ela olhou para trás dele,
franzindo o cenho.
— Por que não está usando seu gorjal? — Ela exigiu, as mãos nos quadris — Eu tive muitos
problemas para obtê-lo de volta para você!
— Eu estou muito grato a você, senhora — ele disse, esforçando-se para se manter sério
—, mas pensei que poderia provocar perguntas, entretanto, se eu aparecesse repentinamente
no meio do acampamento usando-o, e eu pensei que você e sua irmã possivelmente preferiam
evitar... explicações tediosas?
Ela fungou, mas não sem diversão.
— Que atencioso. Não tão atencioso com os seus criados, entretanto, não é?
— O que quer dizer?
— Venha comigo. — Ela enganchou o braço ao dele e o guiou em direção à floresta antes
que ele pudesse protestar. Ela o levou até um pequeno alpendre na vegetação rasteira, que
parecia ter sido construído de um saco de dormir do exército e duas anáguas. Inclinando-se ao
convite dela, ele descobriu sua irmã, Fanny, lá dentro, sentada ao lado de um saco de dormir
que tinha sido estocado com grama fresca, sobre o qual estavam encolhidos Colenso e Zeb,
ambos parecendo desnorteados. Ao vê-los, eles se encolheram ainda mais.
— O que diabos vocês estão fazendo aqui? — ele exigiu. — E onde está a minha esteira,
Zeb?
— Está ali atrás, senhor — Zeb tremeu, sacudindo o polegar em direção ao amontoando
atrás dele. — Eu não consegui encontrar sua tenda e eu não queria deixar tudo isso, entende?
— Mas eu disse a você... E quanto a você, Baragwanath? Ainda está doente? — William
exigiu, ajoelhando de repente e enfiando a cabeça dentro do abrigo. Colenso parecia mal, pálido
como um copo de leite azedo, e claramente com dor, curvado sobre si mesmo.
— Oh... Isso não é nada, senhor — ele disse, engolindo pesadamente — Eu devo só ter...
comido... alguma coisa.
— Você foi ver o médico?
Colenso virou o rosto para o saco de dormir, os ombros curvados. Zeb estava se afastando,
aparentemente pensando em correr dali.
William o pegou pelo braço; o pequeno cavalariço gritou e ele o soltou — O que há de
errado? Você não foi ver o seu braço também?
— Eles têm medo dos médicos — Jane disse de forma afiada.
William se levantou até atingir sua altura máxima e olhou para ela.
— Oh? Quem disse a eles que deveriam ter medo dos médicos? E como eles chegaram aos
seus cuidados, se eu puder perguntar?
Seus lábios se pressionaram juntos, e ela olhou involuntariamente para o abrigo. Fanny
estava cuidado deles, os olhos de corsa grandes na luz que se desvanecia. Ela engoliu e colocou
uma mão protetora sobre o ombro de Colenso. Jane suspirou profundamente e pegou o braço
de William de novo.
— Venha comigo.
Ela o levou para uma curta distância dali, ainda mantendo o pequeno abrigo em seu campo
de visão, mas fora da faixa auditiva.
— Fanny e eu estávamos esperando por você quando estes meninos chegaram juntos. O
maior... Como você disse que é o seu nome?
— Colenso Baragwanath. Ele é da Cornualha — William adicionou brevemente, vendo um
olhar de diversão passar pelo rosto dela.
— Realmente. Eu espero que isso não seja contagioso. Bem, ele estava tão doente que nem
conseguia ficar de pé, e desmaiou no chão perto de nós, fazendo os ruídos mais horríveis. O
menor (Sim, eu sei que ele se chama Zebedee, obrigada) estava ao lado dele, meio chorando
com a confusão. Minha irmã é uma das mais compassivas criaturas — ela disse, quase
apologeticamente — Ela foi ajudar, e eu a segui.
Ela deu de ombros.
— Nós levamos Colenso para o bosque longe o suficiente para que ele pudesse abaixar as
calças a tempo, e eu dei a ele um pouco de água.
Ela tocou um pequeno cantil de madeira que se pendurava de seu ombro, e ele imaginou
brevemente onde ela o havia conseguido. Ela não o tinha quando as encontrara no dia anterior.
— Eu estou muito grato a você, senhora — ele disse formalmente. — Agora... Por que,
exatamente, vocês não levaram os garotos para os médicos?
Pela primeira vez, sua compostura mostrou sinais de que iria se quebrar. Ela virou um
pouco para longe dele, e ele notou os últimos raios de sol iluminando o topo de sua cabeça com
um brilho fraco e familiar de castanho. A visão disso trouxe de volta à memória o seu primeiro
encontro com ela com a força de um trovão — e, com isso, a memória de sua vergonha se
misturou à excitação. Especialmente o último sentimento.
— Responda para mim — ele disse, mais asperamente do que pretendia, e ela se virou
para ele, os olhos estreitados com seu tom.
— Havia um dedo no chão ao lado da tenda do cirurgião — ela estalou — e isso assustou
a minha irmã, e os garotos se assustaram junto com ela.
William esfregou os nós dos dedos na ponte de seu nariz, olhando para ela.
— Um dedo — Ele tinha visto pilhas de membros amputados ao redor das tendas dos
cirurgiões em Saratoga, e, tirando uma rápida oração de agradecimento por nenhum dos braços
e pernas desconectados ser seu, não tinha experimentado problema algum — De quem era?
— Como eu poderia saber? Eu estava muito ocupada em evitar que seu ordenança se
cagasse todo para perguntar.
— Ah. Sim. Obrigado — Ele disse, formalmente. Ele olhou em direção ao abrigo novamente
e ficou surpreso ao ver que Fanny tinha saído e pairava a poucos metros de sua irmã, um olhar
atento sobre o adorável rosto. Ele parecia ameaçador?, ele imaginou. Apenas para garantir, ele
relaxou um pouco sua postura e sorriu para Fanny. Ela não mudou a expressão, mas continuou
a olhar com suspeita para ele.
Ele limpou a garganta e pegou o saco de seu ombro, entregando-o para Jane — Eu pensei
que vocês podiam ter perdido o jantar. Os garotos... bem, Zeb, pelo menos, comeu alguma coisa?
Jane assentiu e pegou o saco com uma celeridade que sugeria que fazia certo tempo que
as garotas não tinham uma refeição — Ele comeu com os outros cavalariços.
— Tudo bem, então. Eu vou levá-lo para ver esse braço e talvez consiga algum remédio
para Colenso, enquanto você e sua irmã se refrescam. Então, senhora, nós podemos discutir a
sua situação.
Ele tinha ficado intensamente consciente de sua presença física por alguns momentos,
mas quando disse isso, ela lançou todo o efeito de seu olhar sobre ele — cidra, ele pensou
vagamente, ou xerez? — e pareceu de alguma forma fluir, deslocando-se de alguma forma
indefinível. Ele não a tinha visto se mover, mas de repente ela estava ao alcance de seu toque, e
ele sentiu o odor de seus cabelos imaginou que sentia a calidez de seu corpo através de suas
roupas. Ela pegou a mão dele brevemente, e seu polegar se moveu ao redor de sua palma,
lentamente. A palma formigou e os pelos de seu braço se arrepiaram.
— Eu tenho certeza de que poderemos chegar a um acordo razoável, meu senhor — ela
disse, muito séria, e o soltou.
Ele arrastou Zeb para a tenda dos cirurgiões como se ele fosse um potro recalcitrante e
esperou, prestando apenas um pouco de atenção, enquanto um cirurgião escocês com sardas
limpava as feridas do menino. Arabella/Jane não tinha o cheiro do perfume indecente que ela
usava no bordel, mas, Cristo, ela cheirava bem.
— Nós deveríamos cauterizar a ferida, senhor — a voz do jovem médico estava dizendo
— Isso evitará que se forme um abscesso, sim?
— Não! — Zeb se afastou do médico e correu até a porta, batendo nas pessoas e mandando
uma mulher para os ares com um grito. Arrancado de seus pensamentos aleatórios, William deu
um mergulho por reflexo e agarrou o menino.
— Vamos lá, Zeb — ele disse, colocando Zeb de pé e o impelindo firmemente de volta ao
Dr. MacFreckles — Não será tão ruim. É só um segundo ou dois, e então vai ter acabado.
Como Zeb parecia patentemente não convencido disso, William o depositou firmemente
em um banquinho e puxou sua manga direita para cima.
— Olhe — ele disse, exibindo a longa cicatriz em forma de cometa em seu antebraço — É
isso que acontece quando você tem um abscesso.
Zeb e o médico olharam para a cicatriz, impressionados. Tinha sido uma ferida de lasca,
ele contou a eles, causada por uma árvore atingida por um raio.
— Vaguei ao redor do Grande Pântano Sombrio por três dias e com febre — ele disse. —
Alguns... índios me encontraram e me levaram para um médico. Eu quase morri e — ele abaixou
as sobrancelhas e deu a Zeb um olhar afiado — o médico quase teve que amputar o meu braço,
quando o abscesso explodiu e ele o cauterizou. Você pode não ter tanta sorte, hein?
Zeb ainda parecia infeliz, mas concordou relutantemente. William o segurou pelos ombros
e disse coisas encorajadoras enquanto o ferro estava esquentando, mas seu próprio coração
estava batendo com força, como se ele mesmo estivesse esperando pela cauterização.
Índios. Um, em particular. Ele pensou que tinha esgotado sua raiva, mas ali estava ela de
novo, explodindo em chamas frescas como uma brasa esmagada aberta como uma ferida.
Maldito Ian Murray. Maldito escocês e Mohawk. Seu maldito primo, o que tornava tudo
ainda pior.
E então havia Rachel... Murray o tinha levado para o Dr. Hunter e para Rachel. Ele inspirou
de forma profunda e irregular, lembrando-se de seu vestido índigo surrado, pendurado no
prego na casa dos Hunter. Ele agarrando um pedaço de pano e o pressionando em seu rosto,
sentindo seu cheiro como se estivesse com falta de ar.
Fora ali que Murray conhecera Rachel também. E agora ela estava noiva dele...
— Ai! — Zeb se contorceu, e William percebeu tardiamente que ele estava enterrando os
dedos no ombro do garoto, como se... ele tirou a mão dali como se o menino fosse uma batata
quente, sentindo a memória do aperto de aço de James Fraser em seu braço e a dor agonizante
que o deixara adormecido do ombro até a ponta dos dedos.
— Perdão — ele disse, a voz tremendo um pouco com o esforço de esconder sua fúria —
Perdão, Zeb.
O cirurgião estava pronto com o ferro brilhante; William segurou o braço de Zeb, o mais
gentilmente que podia, e o segurou esticado enquanto a coisa era feita. Rachel tinha segurado
o dele.
Ele estava certo; foi rápido. O cirurgião pressionou o ferro quente na ferida e contou até
cinco, lentamente, e depois o tirou. Zeb ficou rígido como um pau de barraca e sugou o ar
suficiente para abastecer três pessoas, mas não gritou.
— Está feito — o médico disse, tirando o ferro e sorrindo para Zeb — Aqui, vou colocar
um pouco de azeite doce e um curativo. Você foi bem, rapaz.
Os olhos de Zeb estavam lacrimejantes, mas ele não estava chorando. Ele fungou
profundamente e limpou o rosto com o dorso de sua mão, olhando para William.
— Muito bem, Zeb — William disse, apertando gentilmente seu ombro, e Zeb conseguiu
dar um parco sorriso em resposta.
Quando eles voltaram para as garotas e para Colenso, William tinha conseguido controlar
a raiva — de novo. Ele nunca seria capaz de se livrar dela? Não até que você decida o que fazer
em relação às coisas, ele pensou sombriamente. Mas não havia nada que ele pudesse fazer agora,
então ele esmagou todas as faíscas em sua cabeça firmemente para a densa bola vermelha e a
rolou para o fundo de sua mente.
— Aqui, deixe Fanny fazer isso. Ele confia nela — Jane pegou o vidro que continha o
remédio que o Dr. MacFreckles tinha feito para Colenso e entregou para sua irmã. Fanny
prontamente se sentou ao lado de Colenso, que estava fingindo dormir, e começou a acariciar
sua cabeça, murmurando alguma coisa para ele.
William assentiu e, gesticulando para que Jane o acompanhasse, se afastou o suficiente
para que não fossem ouvidos. Para sua surpresa, parte de seu cérebro estivera aparentemente
analisando o problema e tirando conclusões enquanto o restante estava ocupado, já que ele
tinha um plano.
— O que eu sugiro é o seguinte — ele disse, sem preâmbulos. — Eu vou tomar
providências para que você e a sua irmã recebam a ração regular do exército, como seguidoras
de acampamento, e para que viajem sob minha proteção. Uma vez que estivermos em Nova
York, eu te darei cinco libras e vocês ficarão por conta própria. Em troca...
Ela não sorriu, mas uma covinha aparece em sua bochecha.
— Em troca — ele repetiu com mais firmeza —, vocês acompanharão meu ordenança e
meu cavalariço, cuidando de seu males, e se certificando de que eles estão bem cuidados. Você
também será minha lavadeira.
— Sua lavadeira? — A covinha desapareceu abruptamente, substituída por uma
expressão de puro espanto.
— Lavadeira — Ele repetiu obstinadamente. Ele sabia o que ela estava esperando que ele
propusesse e estava surpreso consigo mesmo por não ter sugerido exatamente aquilo, mas ali
estava. Ele não poderia, não com seus pensamentos em Rachel e em Anne Endicott tão frescos
em sua mente. Não com a raiva profunda que ele tentava sufocar, alimentada pelo pensamento
de que ele não merecia nenhuma mulher que não fosse uma prostituta.
— Mas eu não sei como lavar roupa!
— Quão difícil isso pode ser? — Ele perguntou, tão pacientemente quanto podia — Você
lava minhas roupas. Não coloca goma em minhas gavetas. É só isso, não?
— Mas... mas... — Ela parecia horrorizada. — É necessário ter uma... uma chaleira! Um
garfo, uma pá, alguma coisa para mexer com... Sabão! Eu não tenho nenhum sabão!
— Oh — Aquilo não tinha ocorrido a ele — Bem... — Ele procurou em seu bolso, que estava
vazio, e depois tentou no outro, onde encontrou um guiné, dois pences e um florim. Ele a
entregou o guiné. — Compre o que precisar, então.
Ela olhou para a moeda dourada em sua palma, seu rosto inexpressivo. Ela abriu sua boca,
e depois a fechou de novo.
— Qual é o problema? — Ele perguntou impacientemente. Ela não respondeu, mas uma
voz suave atrás dele, sim.
— Ela nan sabe como.
Ele se virou para encontrar Fanny olhando para ele sob a touca, suas bochechas delicadas
coradas pelo sol.
— O que você disse?
A boca macia de Fanny se pressionou com força e suas bochechas ficaram ainda mais
vermelhas, mas ela repetiu, obstinada — Ela nan sabe como.
Jane alcançou Fanny em dois passos, colocando um braço ao redor dos ombros de sua
irmã e olhando para William.
— Minha irmã tem a língua presa — ela disse, desafiando-o a dizer alguma coisa — É por
isso que ela tem medo dos médicos. Ela acha que eles vão amputar sua língua se descobrirem.
Ele inspirou profunda e lentamente.
— Entendo. E o que ela disse para mim... “Ela não sabe como”? Ela está falando de você,
eu imagino. O que é que você não sabe?
— Tinheiro — sussurrou Fanny, agora olhando para o chão.
— Tinh... Dinheiro? — Ele olhou para Jane — Você não sabe como...
— Eu nunca tive nenhum dinheiro! — Ela estalou, e jogou o guiné no chão aos seus pés —
Eu sei os nomes das moedas, mas não sei o que se pode comprar com elas, exceto... exceto... o
que se pode comprar num bordel! Minha boceta vale seis xelins, tudo bem? Minha boca vale
três. E a minha bunda vale uma libra. Mas se alguém me der três xelins, eu não saberia se posso
comprar um pedaço de pão ou um cavalo com eles! Eu nunca comprei nada!
— Você... você quer dizer... — Ele estava tão embasbacado que não conseguia juntar as
palavras para formar uma frase — Mas você tem salário. Você disse...
— Eu sou uma prostituta de bordel desde os dez anos! — Seus punhos se fecharam, os nós
dos dedos afiados por baixo da pele — Eu nunca vi o meu salário! A Sra. Abbott o gasta, segundo
ela, para minha... ou melhor, para a nossa comida e as nossas roupas. Eu nunca tive sequer um
centavo em meu nome, quanto menos gastei um. E agora você me dá... isso — Ela bateu o pé no
guiné, enterrando-o na terra — e me diz para comprar um sabão?!? Onde? Como? De quem?!
Sua voz tremeu e seu rosto estava mais vermelho do que o sol ao se pôr poderia deixar.
Ela estava furiosa, mas também próxima das lágrimas. Ele queria pegá-la nos braços e acalmá-
la, mas pensou que poderia ser uma boa maneira de perder um dedo.
— Quantos anos tem Fanny? — Ele perguntou, em vez disso. Ela ergueu a cabeça, ofegante.
— Fanny? — Ela disse inexpressiva.
— Eu tenho... onzze — A voz de Fanny disse atrás dele — Teixe-a sozinha!
Ele se virou para ver a garota olhando para ele, um pedaço de pau em sua mão. Ele poderia
ter rido, se não fosse a expressão em seu rosto — e se não fosse pelo que ele acabara de
perceber. Ele deu um passo para trás, como se visse ambas as garotas, e como se fossem um imã
e um pedaço de ferro, elas se aproximaram e se agarraram, olhando desconfiadas para ele.
— Qual é o valor de sua virgindade? — Ele perguntou para Jane sem rodeios, com um
aceno para Fanny.
— Dezz liblass — Fanny respondeu automaticamente, exatamente quando Jane gritou:
— Ela não está à venda! Nem para você e nem para qualquer outro pederasta! — Ela
pressionou Fanny firmemente mais perto de seu corpo, desafiando-o a fazer um movimento em
direção à garota.
— Eu não a quero — Ele disse pelos dentes cerrados — Eu não vou fornicar com uma
criança, pelo amor de Deus!
A expressão dura de Jane não se alterou, e ela não soltou sua irmã.
— Então por que você perguntou?
— Para verificar minhas suposições em relação à sua presença aqui!
Jane bufou — Sendo elas...
— Que vocês fugiram. Presumivelmente porque sua irmã agora chegou a uma idade
onde...? — Ele levantou uma sobrancelha, assentindo para Fanny.
Os lábios de Jane se comprimiram, mas ela deu um aceno pequeno e relutante.
— Capitão Harkness? — Ele perguntou. Era um tiro no escuro, mas com pontaria certeira.
Harkness não ficara satisfeito ao ser privado de sua presa e, incapaz de vir até William, poderia
muito bem ter decidido ter sua vingança em outro lugar.
A luz banhava a tudo com tons de dourado e lavanda, mas ele pôde ver o rosto de Jane
empalidecer, e sentiu um aperto no lombo. Se ele encontrasse Harkness... Ele resolveu que iria
à sua procura no dia seguinte. O homem podia estar na Filadélfia como elas disseram — mas
poderia não estar. Seria um foco bem-vindo para a sua raiva.
— Certo, então — Ele disse, da forma mais prática que pôde.
Ele se abaixou e tirou o guiné da terra, percebendo enquanto o fazia que tinha sido um
tolo ao oferecer isso a ela. Não por causa do que ela dissera a ele, mas porque alguém como ela
— ou como Colenso — nunca teriam essa quantia. Eles seriam suspeitos de roubo e muito
provavelmente teriam o dinheiro arrancado pela primeira pessoa que visse.
— Apenas cuide dos garotos, tá bom? — Ele disse a Jane — E vocês duas fiquem longe dos
soldados até que eu possa encontrar roupas simples pra vocês. Vestidas assim — Ele gesticulou
para a roupa elegante delas, manchada de poeira e suor —, vocês serão tomadas por prostitutas,
e os soldados não costumam aceitar um “não” como resposta.
— Eu sou uma prostituta — Jane disse, em uma voz estranha e seca.
— Não — Ele disse, e sentiu sua própria voz como se ela estivesse estranhamente
separada de si mesmo, mas muito firme — Você não é. Você está viajando sob minha proteção.
Eu não sou um cafetão, então você não é uma prostituta. Não até que cheguemos a Nova York.
59 – UMA DESCOBERTA ENTRE AS FILEIRAS
Jamie encontrou Natanael Greene em sua tenda e ainda usando apenas as camisas, os restos do
desjejum em uma mesa diante dele, franzindo o cenho para uma carta em sua mão. Ele a deixou
imediatamente de lado ao ver Jamie e se levantou.
— Entre, senhor, entre! Já comeu alguma coisa hoje? Tenho um ovo extra — Ele sorriu,
mas brevemente; o que quer que o tenha incomodado na carta ainda se escondia nas dobras de
sua testa. Jamie olhou para ela com o canto do olho; pelas manchas e as bordas irregulares,
parecia uma correspondência doméstica e não uma nota oficial.
— Eu já comi, obrigado, senhor — Jamie disse, com uma pequena reverência de
reconhecimento em direção ao ovo, que repousava negligenciado em um pequeno copo de
madeira com um coração pintado — Eu só estava pensando que, se você tiver intenção de
cavalgar hoje, quero ir com você, pode ser?
— Claro! — Greene pareceu surpreso, mas satisfeito — Seus conselhos seriam bem-
vindos, General.
— Talvez possamos trocar nossa sabedoria, então — Jamie sugeriu — Eu poderia
valorizar seus conselhos também, embora de outra forma.
Greene parou, com o casaco meio colocado.
— Sério? Conselhos de que tipo?
— Casamento.
O rosto de Greene mostrou espanto, uma tentativa cortês de conter o espanto e mais
alguma coisa. Ele olhou para trás de si para a carta que estava na mesa e colocou o casaco nos
ombros.
— Eu poderia fazer uso de bons conselhos em relação a isso também, General Fraser —
ele disse, com um toque irônico nos lábios — Vamos sair, então.
Eles cavalgaram pelo acampamento do norte ao nordeste — Greene estava equipado com
uma bússola maltratada, e Jamie desejou por um momento ainda ter o astrolábio de ouro que
William enviara de Londres a pedido de Lord John. Ele tinha sido perdido quando a Casa Grande
queimara, embora o surto de pensamentos negros que passava por ele agora tivesse mais a ver
com John Grey do que com o incêndio e as suas consequências.
A conversa inicial tratou apenas das coisas práticas: a localização das trincheiras de
suprimentos ao longo da provável linha de marcha — e, se necessário, de retirada, embora
ninguém comentasse sobre essa possibilidade. Não havia nenhuma dúvida em particular sobre
o local para onde o exército britânico estava indo; um corpo tão grande como aquele, com
enormes trens de bagagem e rebanhos de seguidores de acampamento tinha limitações na
escolha das estradas.
— Sim, isso seria bom — Jamie disse, assentindo em concordância à sugestão de Greene
de uma fazenda abandonada — Você acha que o poço está bom?
— Estou decidido a descobrir — Greene disse, virando a cabeça de seu cavalo em direção
à fazenda — Está quente como o inferno. Nossas orelhas estarão torradas até meio-dia, eu
imagino.
Estava quente; eles tinham dispensado suas meias e seus coletes e estavam cavalgando
somente com as camisas, os casacos deixados nos alforjes, mas Jamie sentia o linho de sua
camisa grudando nas costas e o suor escorrendo por suas costelas e pelo seu rosto. Felizmente,
o poço ainda estava bom; a água brilhava visivelmente abaixo, e uma pedra lançada respondeu
com um satisfatório “plank”.
— Confesso que estou surpreso por encontrá-lo em busca de conselhos em relação a
casamento, General — Greene disse, tendo primeiro bebido sua porção e depois despejado um
balde de água luxuosamente sobre sua cabeça. Ele piscou para tirar a água de seus cílios,
balançou-se como um cachorro, e entregou o balde para Jamie, que assentiu em agradecimento
— Eu diria que a sua união é uma das mais harmoniosas.
— Sim, bem, não é com o meu próprio casamento que eu estou preocupado — Jamie disse,
grunhindo um pouco ao puxar um balde cheio, mão ante mão, pois o molinete tinha apodrecido
e ele precisou pegar uma corda em seu alforje — Você conhece um jovem batedor chamado Ian
Murray? Ele é meu sobrinho.
— Murray. Murray... — Greene pareceu inexpressivo por um momento, mas então a
compreensão o atingiu — Oh, ele! Sim, conheço. Seu sobrinho, você disse? Achei que ele fosse
um índio. Custou-me um guiné aquela corrida. Minha esposa não ficará feliz com isso. Não que
ela esteja feliz no momento — ele adicionou com um suspiro. Evidentemente a carta era de casa.
— Bem, eu poderia convencê-lo a devolver o dinheiro — Jamie disse, suprimindo um
sorriso — se você for capaz de ajudá-lo a se casar.
Ele levantou o balde sobre a cabeça e deu a si mesmo um momento de prazer enquanto a
água aplacava o calor. Ele exalou grata e profundamente o frescor, sentindo o gosto das pedras
úmidas do fundo do poço, e também se sacudiu.
— Ele quer se casar com uma moça Quaker — ele disse, abrindo os olhos — Eu soube que
você era um Amigo, pois o ouvi conversando com a Sra. Hardman quando nos conhecemos.
Então eu pensei, talvez, se você não poderia me dizer o que é necessário em termos de exigência
para um casamento deste tipo.
Se Greene ficara surpreso ao descobrir que Ian era sobrinho de Jamie, estas notícias
pareceram deixá-lo sem palavras. Ele ficou parado por um momento, com os lábios se movendo
para dentro e para fora de sua boca, como se pudesse sugar de volta uma palavra que tinha sido
cuspida, e por fim ele encontrou o que dizer.
— Bem... — ele disse. Ele parou por um tempo, considerando, e Jamie esperou
pacientemente.
Greene era um homem de opiniões bastante fortes, mas ele não as emitia apressadamente.
Jamie imaginou o que havia a se considerar nessa questão, entretanto... Será que os Quakers
eram ainda mais estranhos em seus costumes do que ele pensava?
— Bem... — Greene disse de novo, e exalou, enquadrando os ombros — Eu devo dizer,
General, que eu não me considero mais um Amigo, embora eu tenha sido, de fato, criado nesta
seita. — Ele lançou a Jamie um olhar afiado — E eu também devo dizer que a causa de minha
partida foi o ressentimento por suas mentes fechadas, e suas maneiras supersticiosas. Se o seu
sobrinho pretende se tornar um Quaker, senhor, eu recomendaria que você fizesse o seu melhor
para dissuadi-lo.
— Oh. Bem, essa é a dificuldade, suponho — Jamie replicou igualmente — Ele não
pretende se tornar um Quaker. E eu acho que essa é uma sábia decisão; ele não é adequado para
tudo isso.
Greene relaxou um pouco com isso e sorriu, embora ironicamente.
— Eu fico feliz em ouvir isso. Mas ele não tem nenhuma objeção de que sua esposa
continue sendo uma Amiga?
— Acho que ele é sensato o suficiente para não sugerir o contrário.
Aquilo fez Greene rir — Talvez ele vá gerenciar o casamento bem o suficiente, então.
— Oh, ele será um bom marido para a moça, não tenho dúvidas. É fazer o casamento
acontecer que parece uma dificuldade.
— Ah. Sim — Greene olhou ao redor da fazenda, enxugando o rosto molhado com um
lenço amassado — Isso pode, de fato, ser muito difícil, se o jovem homem... bem. Deixe-me
pensar por um momento. E nesse meio tempo... o poço está bom, mas nós não podemos estocar
a pólvora aqui; não sobrou muito do telhado, e me disseram que esse clima frequentemente é o
presságio de uma tempestade.
— Provavelmente deve haver um galpão coberto lá atrás — Jamie sugeriu.
Havia. A porta não existia mais e um emaranhado de finas e pálidas raízes brotavam de
um saco de batatas podres abandonadas no canto, os tentáculos rastejando em lento desespero
em direção à luz.
— Isso vai servir — Greene decidiu, e fez uma nota a lápis no pequeno livro que carregava
para todos os lugares — Vamos seguir em frente, então.
Eles deixaram os cavalos beberem, jogaram mais água sobre si mesmos e partiram,
vaporizando gentilmente. Greene não era um tagarela, e não houve conversa alguma por dois
ou três quilômetros, quando ele finalmente chegou a uma conclusão em seus processos mentais.
— A principal coisa para ter em mente em relação aos Amigos — ele disse, sem qualquer
preliminar — é que eles dependem muito da companhia e da opinião dos outros, muitas vezes
excluindo o mundo que não frequenta os seus encontros — Ele lançou um olhar para Jamie —
A jovem mulher... seu sobrinho é conhecido pela sociedade à qual ela pertence?
— Mmphm — Jamie disse — Pelo que eu entendi por seu irmão, ambos foram expulsos
de sua sociedade, em um pequeno vilarejo da Virgínia, quando ele decidiu se tornar um
cirurgião do exército Continental. Ou talvez ele tenha sido expulso, e ela meramente saiu com
ele; eu não sabia se isso fazia alguma diferença.
— Oh, entendo — Greene afastou a camisa molhada de seu copo para tentar deixar que
um pouco de ar entrasse em sua pele, mas era uma esperança vã. O ar estava espesso como um
cobertor de lã no campo fervilhante — Um “Quaker Guerreiro”, como eles chamam?
— Não, ele não pegará em armas — Jamie assegurou a Greene —, mas aparentemente o
simples fato de ele estar conectado ao exército ofendeu sua sociedade — Greene bufou de um
jeito particular e Jamie limpou a garganta — De fato, Denzell Hunter, o Dr. Hunter, também está
noivo. Embora seu caminho pareça ser mais fácil, já que sua noiva se tornou uma Amiga.
— Ela já tem uma sociedade? — Greene perguntou bruscamente.
Jamie balançou a cabeça — Não, parece que houve um... evento privado. A conversão,
quero dizer. Ouvi dizer que os Quakers não têm clero ou rituais...? — Ele deixou a pergunta no
ar delicadamente, e Greene bufou de novo.
— Não têm. Mas eu garanto a você, General, não há nada realmente privado na vida dos
Amigos... Certamente também não em assuntos espirituais. Meu próprio pai se opunha à leitura,
como se ela fosse uma prática que provavelmente o separava de Deus, e quando eu era um
jovem homem, eu não apenas lia como comecei a colecionar obras sobre estratégia militar, que
era algo em que tinha interesse. Por isso, fui levado para um comitê de exame de nossa
sociedade e submetido a questionários em relação a... Bem, como eu disse, não sou mais um
membro desta seita.
Ele soltou os lábios e fez pequenos ruídos de ronco por um tempo, franzindo o cenho para
a estrada adiante — embora Jamie tenha percebido que, mesmo em sua preocupação, Greene
estava tomando nota dos arredores, pensando na logística.
Ele próprio tinha tomado consciência de uma certa vibração no ar e imaginou se Greene
a sentira. Não era exatamente um ruído, era uma perturbação que ele conhecia muito bem: um
grande corpo de homens e cavalos, muito distantes para que pudessem ver a poeira, mas ainda
lá. Eles haviam encontrado o exército britânico. Ele engoliu um pouco, olhando cuidadosamente
para as árvores em frente para o caso de batedores britânicos aparecerem — os britânicos
certamente já deviam saber que estavam sendo perseguidos.
A audição de Greene era menos acurada, entretanto, ou talvez ele só estivesse
preocupado, porque olhou surpreso para Jamie, embora tenha diminuído o ritmo também.
Jamie levantou uma mão para evitar que ele falasse e levantou o queixo — havia um cavaleiro
vindo em direção a eles, seguindo a estrada. O som dos cascos era audível, e a própria montaria
de Jamie balançou a cabeça e relinchou com interesse, as narinas dilatadas.
Ambos os homens estavam armados; Greene colocou a mão sobre o mosquete que se
balançava ao lado de sua sela. Jamie manteve o rifle em seu suporte, mas checou a trava das
pistolas em seu coldre. Era inábil disparar uma arma longa sobre um cavalo.
O cavaleiro estava vindo devagar, entretanto; a mão de Jamie que apertava a pistola,
relaxou, e ele balançou a cabeça para Greene. Eles refrearam, esperando, e um momento depois,
o cavaleiro entrou em seu campo de visão.
— Ian!
— Tio Jamie! — O rosto de Ian floresceu com o alívio ao vê-lo, e não era de se admirar. Ele
estava vestido como um Mohawk, em calças de camurça e camisa de chita, com penas em seus
cabelos, e uma grande e peluda carcaça cinza estava pendurada no cinto de sua sela, o sangue
pingando lentamente dela para as pernas do cavalo.
O animal não estava morto, entretanto; Rollo se contorcia e erguia a cabeça, lançando o
olhar amarelo aos recém-chegados, mas reconheceu o cheiro de Jamie e latiu uma vez, deixando
a língua cair para fora de sua boca, ofegante.
— O que aconteceu com o cão, então? — Jamie cavalgou até chegar ao lado de Ian e se
inclinou para frente para olhar.
— O estúpido caiu numa armadilha mortal — Ian disse, franzindo o cenho para o cachorro
em repreensão. Então, ele gentilmente coçou a penugem do grande cachorro — Besteira! Eu
teria caído nela antes se ele não estivesse na minha frente.
— Está muito ferido? — Jamie perguntou. Ele achava que não; Rollo estava dando o seu
costumeiro olhar de avaliação ao General Greene... Um olhar que fazia a maioria das pessoas se
afastar.
Ian balançou a cabeça, sua mão na pele de Rollo para que ele ficasse calmo.
— Não, mas ele cortou a perna e está coxo. Eu estava procurando por um lugar seguro
para deixá-lo; eu tenho que passar um relatório ao Capitão Mercer. Embora vê-los aqui... Oh,
bom dia para você, senhor — ele disse a Greene, cujo cavalo tinha se afastado em resposta à
Rollo e estava indicando um forte desejo de continuar se afastando, contra a inclinação de seu
cavaleiro. Ian esboçou uma saudação e se voltou para Jamie — Já que você está aqui, tio Jamie,
poderia talvez levar Rollo de volta ao acampamento e pedir para Tia Claire costurar sua perna?
— Oh, sim — Jamie disse, resignado, e desceu da sela, tateando em busca de seu lenço
encharcado — Deixe-me enfaixar a sua perna primeiro. Eu não quero que ele espalhe sangue
por toda minha sela, e o cavalo também não vai gostar disso.
Greene limpou sua garganta.
— Já que mencionou relatórios, Senhor... Murray? — Ele perguntou, com olhares laterais
para Jamie, que assentiu — Talvez você pudesse me dar os relatórios também?
— Sim, senhor — Ian disse concordando — O exército está dividido em três corpos agora,
com uma longa linha de vagões de bagagem entre eles. Até onde posso dizer, pelas informações
que eu troquei com outro batedor que caminhou ao longo da coluna, eles estão indo para um
local chamado Freehold. O solo não é muito bom para o ataque, porque é amassado como um
lenço usado, todo cortado por barrancos e pequenos riachos, embora o outro batedor tenha me
dito que há clareiras além desse terreno onde poderia ocorrer uma batalha, e talvez
pudéssemos direcioná-los para lá.
Greene fez perguntas afiadas, algumas que Ian podia responder e outras que não podia,
enquanto Jamie se ocupava com o trabalho delicado de enfaixar a perna do cachorro — havia
uma desagradável estaca na ferida, embora não muito profunda; Ele esperava que ela não
estivesse envenenada. Os índios faziam isso às vezes, para o caso de um veado ou texugo ferido
pular para fora da armadilha.
O cavalo de Jamie não estava entusiasmado ante a perspectiva de carregar um lobo em
suas costas, mas eventualmente foi persuadido, e com nada mais do que olhos nervosos
lançados de um lado para o outro ocasionalmente, eles montaram.
— Fuirich, a choin — Ian disse, inclinando-se e coçando Rollo atrás das orelhas — Eu
voltarei, sim? Taing, tio! — E com um breve aceno para Greene, ele estava partindo, seu próprio
cavalo claramente querendo colocar o máximo de distância entre si e Rollo.
— Santo Deus! — Greene disse, franzindo o nariz para o cheiro do cão.
— Sim, bem — Jamie disse, resignado — Minha esposa diz que você se acostuma com
qualquer tipo de cheiro após senti-lo por um tempo. E eu suponho que ela sabe do que está
falando.
— Por quê? Ela é uma cozinheira?
— Oh, não. Uma médica. Gangrena, sabe? Intestinos purulentos e coisas do tipo...
Greene piscou.
— Entendo. Você tem uma família muito interessante, Sr. Fraser — Ele tossiu e olhou para
Ian, que rapidamente desaparecia com a distância — Você pode estar errado sobre ele nunca
se tornar um Quaker. Pelo menos ele não abaixa a cabeça para um título.
61 – AS TRÊS VIAS VISCOSAS
Com uma hora para gastar, eu peguei o meu kit de suprimentos médicos e fui até a grande
árvore onde os doentes entre os seguidores de acampamento costumavam se reunir. Os
cirurgiões do exército atendiam os seguidores de acampamento, além dos soldados, quando
tinham tempo — mas não teriam tempo hoje.
Havia o sortimento habitual de doenças e lesões menos graves: uma lasca profundamente
enraizada (infectada, requerendo a aplicação de unguento, seguida de escavação, desinfecção e
bandagem); um dedo deslocado (causado quando o paciente chutou um companheiro durante
o jogo, mas que eu consegui reduzir rapidamente); um lábio partido (que necessitou de um
ponto e um pouco de pomada de genciana); um pé terrivelmente cortado (resultado da
desatenção no momento de cortar lenha, e que requereu vinte e oito pontos e um enorme
curativo); uma criança com infecção de ouvido (usei um cataplasma de cebola e prescrevi chá
de casca de salgueiro); outra criança com dor de barriga (chá de hortelã e uma forte advertência
sobre o consumo de ovos de idade incerta de ninhos de pássaros de proveniência
desconhecida)...
Os poucos pacientes que precisavam de remédio eu deixei de lado até que pudesse lidar
com as lesões. Depois — com um olhar atento para o sol — eu os levei até minha tenda para
dispensá-los com pacotes de casca de salgueiro, hortelã e folhas de cânhamo.
A aba da tenda estava aberta; certamente eu a havia fechado? Eu coloquei a cabeça na
escuridão da tenda e parei abruptamente. Uma figura alta estava parada diante de mim,
aparentemente no ato de vasculhar minha caixa de remédios.
— O que diabos você está fazendo com isso? — Perguntei bruscamente, e a figura
estremeceu, assustada.
Meus olhos agora tinham se acostumado à luz difusa, e eu vi que o ladrão — se é que ele
era isso — era um oficial Continental, um capitão.
— Eu peço que me perdoe, madame — ele disse, arqueando-se superficialmente — Eu
ouvi que existiam suprimentos de medicamentos aqui. Eu...
— Existem e eles são meus — Isso pareceu um pouco displicente e, embora eu certamente
pensasse que sua atitude fora rude, eu suavizei o comentário um pouco — Do que você precisa?
Eu imagino que posso separar um pouco...
— Seus? — Ele olhou da caixa, claramente um caro kit profissional, para mim, e suas
sobrancelhas se elevaram — O que você está fazendo com uma coisa dessas?
Muitas respostas possíveis passaram pela minha cabeça, mas eu me recuperei da surpresa
de vê-lo suficientemente bem para não repassá-las. Eu me decidi por algo neutro — Posso saber
o seu nome, senhor?
— Oh — Ligeiramente perturbado, ele se inclinou para mim — Perdoe-me. Capitão Jared
Leckie, seu criado, senhora. Eu sou um cirurgião do segundo batalhão de Nova Jersey.
Ele olhou para mim pensativamente, claramente imaginando quem diabos eu era. Eu
estava usando um avental de lona com grandes bolsos sobre o meu vestido, com os bolsos
cheios com todos os tipos de pequenos instrumentos, curativos, garrafas e frascos de pomadas
e líquidos. Eu também tinha tirado o meu chapéu de abas largas ao entrar na tenda e, como
sempre, não estava usando touca. Eu tinha prendido meus cabelos, mas eles haviam se soltado
e estavam se enrolando ao redor de minhas orelhas. Ele obviamente suspeitava que eu era uma
lavadeira, vindo para coletar a roupa suja — ou possivelmente algo pior.
— Eu sou a Sra. Fraser — Eu disse, dando o que eu esperava ser um aceno gracioso — É...
Sra. General Fraser, quero dizer — Adicionei, vendo que aquilo não parecia tê-lo impressionado.
Suas sobrancelhas se ergueram, e ele olhou abertamente para mim, de cima a baixo, seus
olhos demorando no topo dos bolsos de meu avental, onde havia uma bandagem prestes a se
desenrolar em frente ao meu corpo e um frasco de assa fétida, cuja cortiça estava solta,
permitindo que o seu cheiro flutuasse suavemente acima dos outros cheiros notáveis de um
acampamento. Isso era comumente conhecido como “excremento do diabo”, e por uma boa
razão. Eu puxei o frasco para fora e o fechei melhor. Este gesto pareceu, de alguma forma,
tranquilizá-lo.
— Oh! O general é um médico, pelo que vejo — Ele disse.
— Não — Eu disse, começando a perceber que teria um trabalho árduo com o Capitão
Leckie, que parecia jovem e não muito brilhante — Meu marido é um soldado. Eu sou uma
médica.
Ele olhou para mim como se eu tivesse dito a ele que era uma prostituta. Então, ele
cometeu o erro de assumir que eu estava brincando e começou a gargalhar.
Neste ponto, um dos meus pacientes, uma jovem mãe cujo filho de um ano de idade tinha
infecção de ouvido, colocou a cabeça perfeitamente coberta hesitantemente na tenda. Seu
garotinho estava em seus braços, gritando e com o rosto vermelho.
— Oh, Deus — Eu disse — Sinto muito por deixá-la esperando, Sra. Wilkins. Traga-o; vou
pegar a casca para ele diretamente.
O Capitão Leckie franziu o cenho para a Sra. Wilkins e a chamou para mais perto. Ela olhou
nervosamente para mim, mas permitiu que ele se abaixasse para olhar o pequeno Peter.
— Ele tem um dente nascendo — Leckie disse, em tom acusatório, depois de passar o dedo
grande e sujo pela boca cheia de saliva de Peter — Ele precisa que a gengiva seja cortada para
que o dente saia — Ele começou a remexer em seu bolso, onde ele sem dúvida tinha um bisturi
ou uma lanceta altamente insalubre.
— Os dentes dele estão nascendo — Concordei, sacudindo certa quantidade de casca em
seu almofariz —, mas ele também tem uma infecção no ouvido, e o dente sairá sozinho dentro
das próximas vinte e quatro horas.
Ele se virou para mim, indignado e surpreso.
— Você está me contradizendo?
— Bem, sim — Eu disse, suavemente — Você está errado. Talvez você queira dar uma boa
olhada em sua orelha esquerda. Ela está...
— Eu, senhora, sou diplomando pela Faculdade de Medicina da Filadélfia.
— Eu o parabenizo — Eu disse, começando a me sentir irritada —, mas ainda assim você
está errado.
Tendo o deixado momentaneamente sem palavras, eu terminei de moer a casca em pó e a
joguei dentro de um quadrado de gaze, que eu dobrei em um pacote e entreguei para a Sra.
Wilkins, com as instruções quanto à fermentação da infusão e de como administrá-la, além de
como aplicar o cataplasma de cebola.
Ela pegou o pacote como se ele fosse explodir e, com um olhar rápido para o Capitão
Leckie, fugiu, com o pequeno Peter uivando como uma sirene à distância.
Eu inspirei profundamente.
— Agora — eu disse, o mais agradavelmente possível — Se você precisar de alguma coisa,
Dr. Leckie, eu tenho um bom suprimento. Eu posso...
Ele se colocou de pé como um grou olhando um sapo, com olhos redondos e hostis.
— Seu criado, senhora — Ele disse secamente, e passou por mim.
Eu revirei meus olhos em direção à lona sobre minha cabeça. Havia uma pequena lagartixa
agarrada ao tecido, que olhava para mim sem nenhuma emoção particular.
— Como ganhar amigos e influenciar as pessoas — eu comentei para ela — Tome nota. —
Então, eu empurrei a aba da tenda de volta e acenei para que o próximo paciente entrasse.
Eu tive que correr para ir ao meu encontro com Jamie, que estava prestes a começar sua revisão
quando eu apareci, torcendo meus cabelos juntos e os colocando rapidamente sob meu chapéu
de abas largas. Era um dia terrivelmente quente; ficar ao sol aberto por apenas alguns minutos
tinha feito com que o meu nariz e as minhas bochechas formigassem em advertência.
Jamie se inclinou gravemente para mim e começou a avançar ao longo dos homens
dispostos em linha para a revisão, saudando-os, batendo continência para os oficiais, dando
suas notas ao ajudante de campo para que algumas coisas fossem feitas.
Ele tinha o Tenente Schnell com ele como ajudante de campo — um bom garoto alemão
da Filadélfia, que tinha talvez dezenove anos — e um cavalheiro corpulento que eu não
conhecia, mas assumi, pelo uniforme, que era o capitão encarregado de qualquer que fosse a
companhia que estávamos inspecionando. Eu os segui, sorrindo para os homens enquanto
passava, enquanto os olhava de lado para detectar quaisquer sinais evidentes de doença, lesões
ou deficiências — eu tinha certeza de que Jamie poderia detectar embriaguez excessiva sem a
minha opinião de especialista.
Havia trezentos homens, ele me dissera, e a maioria deles estava muito bem. Eu continuei
andando e assentindo, mas não estava acima de fantasiar alguma circunstância perigosa na qual
eu encontraria o Capitão Leckie se contorcendo de dor, que eu graciosamente acalmaria,
fazendo com que ele se ajoelhasse e pedisse desculpas por sua atitude censurável. Eu estava
tentando decidir entre a perspectiva de uma bala de mosquete embutida em sua nádega, torsão
testicular, e algo temporário e mortificadoramente desfigurante, como paralisia de Bell, quando
meu olho captou o vislumbre de algo estranho na linha.
O homem à minha frente estava parado ereto, o mosquete encostado nos braços, e os
olhos fixados diretamente à frente. Isso estava perfeitamente correto — mas nenhum outro
homem na linha estava fazendo isso. Milicianos eram mais do que capazes, mas geralmente não
viam sentido nas formalidades militares. Olhei para o soldado rígido, passei por ele — e depois
olhei de volta.
— Jesus H. Roosevelt Cristo! — Exclamei, e somente o puro acaso impediu que Jamie me
ouvisse, ele estando distraído pela repentina chegada de um mensageiro.
Eu dei dois passos apressados para trás, me inclinei e olhei sob a aba de seu chapéu
empoeirado. O rosto abaixo estava definido em linhas ferozes, com um olhar furioso e
sombriamente ameaçador — e era completamente familiar para mim.
— Maldito inferno — Sussurrei, puxando-o pela manga — O que você está fazendo aqui?
— Você não acreditaria se eu dissesse — ele sussurrou de volta, sem mover um músculo
do rosto ou do corpo — Continue andando, minha querida.
Tal foi o meu espanto que eu poderia realmente ter feito isso, se minha atenção não tivesse
sido atraída por uma pequena figura se escondendo atrás da linha, tentando evitar ser notado
agachado atrás de uma carroça.
— Germain! — Eu disse, e Jamie girou, com os olhos arregalados.
Germain ficou tenso por um instante e depois virou-se para fugir, mas era tarde demais;
o Tenente Schnell, fazendo jus ao seu nome11, penetrou a linha e pegou Germain pelo braço.
— Ele é seu, senhor? — Ele perguntou, olhando curiosamente de Jamie para Germain.
— Ele é — Jamie disse, com um tom que teria transformado o sangue de muitos homens
em água — O que diabos...
— Eu sou um ordenança — Germain disse orgulhosamente, tentando se soltar do aperto
do Tenente Schnell — Eu tenho que estar aqui!
— Não, você não é — Seu avô assegurou a ele — E o que você quer dizer com ordenança?
Ordenança de quem?
Germain olhou na direção de John e depois, percebendo seu erro, virou-se de volta, mas
era tarde demais. Jamie alcançou John com um único passo e arrancou o chapéu de sua cabeça.
O rosto era identificável como o de Lord John Grey, mas apenas por alguém que o
conhecesse bem. Ele usava um tapa olho de feltro preto sobre um dos olhos, e o outro estava
obscurecido pela sujeira e pelas contusões. Ele tinha cortado seus luxuriantes cabelos loiros
para cerca de três centímetros de comprimento e parecia ter passado barro neles.
Com uma considerável desenvoltura, ele coçou a cabeça e entregou o seu mosquete a
Jamie.
— Eu me rendo a você, senhor — Ele disse, com uma voz clara — A você, pessoalmente.
Assim como meu ordenança — Ele adicionou, colocando uma mão no ombro de Germain.
O Tenente Schnell, muito espantado, soltou Germain como se ele estivesse pegando fogo.
— Eu me rendo, senhor — Germain disse solenemente, e bateu continência.
Eu nunca tinha visto Jamie ficar totalmente sem palavras, e nem agora, mas estava muito
próximo disso. Ele inalou fortemente pelo seu nariz, e depois se virou para o Tenente Schnell.
— Escolte os prisioneiros para o Capitão McCorkle, Tenente.
— Ele está machucado — Eu disse, o mais levemente que pude, com um breve gesto na
direção de John. Os lábios de Jamie se comprimiram por um instante, mas ele assentiu.
— Leve os prisioneiros, e a Sra. Fraser — Eu ouso dizer que foi apenas a sensibilidade de
minha parte que percebeu certa ênfase em “Sra. Fraser” — para a minha tenda, Tenente.
Com apenas um fôlego, ele se virou para John.
— Eu aceito sua rendição, Coronel — Ele disse, com uma polidez fria — E a sua liberdade
condicional. Eu vou conversar com você mais tarde.
E, com isso, ele virou as costas para nós três, com o que poderia ser descrito como uma
maneira acentuada.
— O que diabos aconteceu ao seu olho? — Eu exigi, olhando para ele. Eu fiz com que John se
deitasse na maca de minha pequena tenda médica, a aba aberta para admitir o máximo possível
de luz.
O olho estava inchado, meio fechado e rodeado por um anel preto e pegajoso onde o feltro
do tapa olho estava se desfazendo, a carne subjacente uma paleta lúgubre de verde, roxo e
amarelo. O olho por si só estava vermelho como uma saia de flanela e, pelo estado irritado de
suas pálpebras, estivera lacrimejando constantemente há algum tempo.
— Seu marido me socou quando eu disse que tinha ido para a cama com você — Ele
replicou, com absoluta compostura — Eu realmente espero que ele não tenha tomado nenhuma
ação violenta ao se reunir com você?
Se eu fosse capaz de fazer um ruído escocês convincente, teria feito. Como não era o caso,
eu meramente olhei para ele.
Eu não sabia bem o que dizer a John, na sequência dos eventos recentes. Ele parecia estar
passando pela mesma coisa, mas lidou com o constrangimento social fechando os olhos e
fingindo dormir. Eu não podia deixá-lo até que Germain voltasse com o mel — assumindo que
ele encontrasse, mas eu tinha uma grande quantidade de fé em sua habilidade.
Bem, não fazia sentido ficar sentada com as mãos cruzadas. Eu peguei meu almofariz e o
meu pilão e comecei a moer raiz de genciana e alho para fazer uma pomada antibiótica. Isso
ocupou as minhas mãos, mas infelizmente não ocupou a minha mente, que estava correndo em
círculos como um hamster numa roda.
Eu tinha duas preocupações principais no momento, sendo que para uma delas eu não
podia fazer nada: o sentimento crescente da batalha que se aproximava. Eu conhecia isso muito
bem; eu não poderia estar enganada. Jamie não tinha me falado explicitamente, talvez porque
não tinha as ordens por escrito ainda — mas eu sabia tão claramente como se isso tivesse sido
gritado de cima de um pregoeiro. O exército se movimentaria em breve.
Eu lancei um olhar para John, que estava deitado como uma efígie no túmulo, as mãos
cuidadosamente cruzadas no peito. Tudo o que faltava era um pequeno cachorro curvado aos
seus pés. Rollo, roncando sob a maca, devia servir, eu supunha.
John, é claro, também estava preocupado. Eu não tinha ideia de como ele tinha chegado a
onde estava, mas pessoas suficientes tinham visto que ele se rendera e sua presença seria de
conhecimento geral até a caída da noite. E uma vez que...
— Eu não imagino que você planeja escapar, se eu te deixar por um momento, certo? —
Perguntei abruptamente.
— Não — ele disse, sem abrir os olhos — Eu dou minha palavra de honra. Além do mais,
eu não conseguiria sair do acampamento — ele adicionou.
O silêncio voltou, quebrado pelo zunido de uma grande abelha, que entrara na tenda, pelos
gritos mais distantes, pelos tambores dos soldados e pelos baixos ruídos da vida diária de um
acampamento.
A única coisa boa — se alguém pudesse considerar dessa maneira — é que o crescente
sentimento de urgência da batalha era provavelmente um obstáculo para a curiosidade dos
oficiais em relação a John. O que diabos Jamie faria com ele quando o exército desfizesse o
acampamento pela manhã?, eu imaginei.
— Grandmère, Grandmère! — Germain irrompeu na tenda, e Rollo, que estivera dormindo
durante toda a visita de Percy Beauchamp sem nem se mexer, explodiu de baixo da maca com
um alto “woof”, quase derrubando John.
— Quieto, cachorro — Eu disse, ao vê-lo olhando descontroladamente ao redor da tenda,
e dei um aperto de restrição em sua nuca — E que po... Quero dizer, o que dia... Digo, qual é o
problema, Germain?
— Eu o vi, vovó! Eu o vi! O homem que levou Clarence! Venha rápido! — E, sem esperar
pela resposta, ele se virou e saiu correndo da tenda.
John começou a se sentar, e Rollo ficou tenso sob minha mão.
— Sente-se! — Disse para ambos — E fiquem aqui, inferno!
Os pelos de meus braços estavam formigando, embora o suor escorresse pela minha nuca. Eu
tinha deixado meu chapéu para trás e o sol brilhava em minhas bochechas; eu estava ofegante
quando consegui alcançar Germain, tanto pela emoção quanto pelo calor.
— Onde...
— Logo ali, vovó! O grande demônio com o lenço em volta do braço. Clarence deve tê-lo
mordido! — Germain adicionou, com alegria.
O demônio em questão era grande: cerca de duas vezes o meu tamanho, com a cabeça
parecida com uma abóbora. Ele estava sentado no chão sob a sombra da que eu considerava a
árvore hospitalar, cuidando de seu braço enfaixado e encarando nada em particular. Um
pequeno grupo de pessoas procurando tratamento médico — dava para perceber isso por
causa de suas atitudes e das costas caídas — estava mantendo distância dele, olhando
cautelosamente para ele de tempos em tempos.
— É melhor que você fique fora de vista — Murmurei para Germain, mas, ao não ouvir
resposta alguma, olhei ao redor para descobrir que ele já tinha desaparecido de vista, sendo
uma criança esperta como era.
Eu andei para cima, sorrindo, para o pequeno grupo de pessoas que esperavam — a
maioria mulheres com crianças. Eu não conhecia nenhuma delas por nome, mas elas claramente
sabiam quem e o que eu era; elas balançavam suas cabeças e murmuravam cumprimentos, mas
desviavam os olhos de lado para o homem abaixo da árvore. “Atenda-o primeiro antes que
aconteça alguma coisa” era a mensagem clara. Como também era claro o senso de violência mal
contida que o homem irradiava para todos os lados.
Eu limpei minha garganta e caminhei até o homem, imaginando o que diabos eu diria a
ele. “O que você fez com a mula Clarence?” ou “Como você ousa roubar meu neto e deixá-lo no
deserto sozinho, seu maldito bastardo?”.
Eu decidi por algo mais delicado — Bom dia. Eu sou a Sra. Fraser. O que aconteceu ao seu
braço, senhor?
— A maldita mula me mordeu até os ossos, maldita fedorenta — o homem replicou
prontamente, e me encarou sob as sobrancelhas sulcadas com tecido cicatricial. Seus dedos
também eram assim.
— Deixe-me ver, sim? — Sem esperar por permissão, eu peguei seu pulso peludo e muito
quente, e desamarrei o lenço. Estava duro com sangue seco.
Clarence — se realmente fosse Clarence — realmente o tinha mordido até os ossos. As
mordidas de cavalos e mulas podiam ser sérias, mas geralmente resultavam apenas em
hematomas profundos; equinos tinham mandíbulas poderosas, mas seus dentes da frente eram
projetados para rasgar pasto, e como a maioria das mordidas aconteciam sobre as roupas, eles
geralmente não partiam a pele. Podia acontecer, entretanto, e Clarence o tinha feito.
Um retalho de pele — e um bom pedaço de carne — com cerca de sete centímetros tinha
parcialmente se descolado, e eu conseguia ver além da fina camada de gordura, o brilho do
tendão e a membrana vermelha que cobria o rádio. A ferida era recente, mas tinha parado de
sangrar, exceto por um pouco de exsudação nas bordas.
— Hum — Eu disse evasivamente, e virei suas mãos — Você consegue fechar os dedos em
um punho?
Ele podia, embora o anelar e o dedo mínimo não se fechassem completamente. Eles se
moviam, entretanto; o tendão não estava partido.
— Hum — eu disse de novo, e procurei a minha garrafa de solução salina e uma sonda. A
solução salina era um pouco menos dolorosa para desinfecção do que álcool diluído ou vinagre
e, de alguma forma, era mais fácil conseguir sal, pelo menos quando se vivia em uma cidade,
mas eu mantive um aperto forte no enorme pulso enquanto jogava o líquido na ferida.
Ele fez um ruído como um urso ferido, e os espectadores que esperavam deram vários
passos para trás, como se fossem um corpo só.
— De fato uma mula cruel — Observei suavemente, enquanto o paciente se recompunha,
ofegante. Seu rosto escureceu.
— Vou espancar aquela filha da puta até a morte quando voltar — ele disse e mostrou os
dentes amarelos para mim — Vou arrancar sua pele e vender a sua carne.
— Oh, eu não o aconselharia a fazer isso — Eu disse, tentando controlar o meu
temperamento — Você não vai querer usar esse braço pra nada violento; poderia causar
gangrena.
— Poderia? — Ele não ficou pálido (não era possível, dada à temperatura), mas eu
definitivamente chamara sua atenção.
— Sim — Eu disse agradavelmente — Você já viu gangrena, ouso dizer? A carne fica verde
e pútrida, com um cheiro bestial, e morre em questão de dias... esse tipo de coisa?
— Eu já vi — ele murmurou, os olhos fixos em seu braço.
— Bem, bem — eu disse suavemente — vamos fazer o nosso melhor aqui, não?
Eu normalmente ofereceria ao paciente num caso destes, uma dose fortificante de
qualquer bebida alcoólica disponível e, graças ao marquês, eu tinha um bom suprimento de
conhaque francês, mas na atual situação, eu não estava me sentindo caridosa.
De fato, meu sentimento geral era de que Hipócrates poderia ficar cego por alguns
minutos. Não faça mal, certamente. Ainda assim, não havia muito que eu pudesse fazer por ele,
armada apenas com uma agulha de sutura de cinco centímetros e tesouras de bordado.
Eu costurei a ferida tão lentamente quanto pude, tendo o cuidado de chapinhar mais
solução salina sobre ela periodicamente e olhando disfarçadamente ao meu redor para buscar
ajuda. Jamie estava com Washington e o alto comando para elaborar estratégias; eu não podia
chamá-lo para lidar com um ladrão de mula.
Ian tinha desaparecido com seu cavalo, escoltando o exército britânico. Rollo estava com
Lord John. Rachel tinha partido com Denny e Dottie no vagão dos Quakers para procurar
suprimentos no vilarejo mais próximo. E eu os desejava boa sorte para isso; os forrageadores
do General Greene tinham se espalhado como gafanhotos sobre a face da terra no momento em
que o exército havia parado, coletando fazendas e celeiros em seu caminho.
O paciente estava praguejando de forma monótona e sem inspiração, mas não mostrava
sinal algum de que iria convenientemente desmaiar. O que eu estava fazendo com seu braço
provavelmente não melhoraria o seu humor; e se ele realmente tivesse a intenção de ir
diretamente para Clarence e bater nela até a morte?
Se Clarence estivesse solta, eu apostaria todas as minhas fichas na mula para vencer
aquela luta, mas ela provavelmente estaria amarrada e até mancando. Mas então... um
pensamento horrível caiu sobre mim. Eu sabia onde Germain estava, e o que ele estava fazendo
— ou tentando fazer.
— Jesus H. Roosevelt Cristo — Murmurei, inclinando a cabeça sobre o braço do carroceiro
para esconder o que era, sem dúvida, uma expressão horrorizada. Germain era um batedor de
carteiras extremamente talentoso, mas roubar uma mula no meio de uma gangue de
carroceiros...
O que Jamie havia dito? Ele seria levado como ladrão e enforcado ou decapitado no início
de sua vida, e eu não poderia fazer nada para impedir. Os carroceiros sendo como eram,
provavelmente só quebrariam o seu pescoço e resolveriam tudo, em vez de esperar por
qualquer tipo de justiça militar.
Eu engoli seco e olhei rapidamente sobre meu ombro, para ver se eu podia localizar o
acampamento dos carroceiros. Se eu pudesse ver Germain...
Eu não podia ver Germain. O que eu vi foi Percy Beauchamp, olhando-me pensativamente
da sombra de uma tenda nas proximidades. Nossos olhos se encontraram, e ele
instantaneamente veio em minha direção, arrumando o casaco. Bem, a cavalo — ou à mula —
dado não se olham os dentes.
— Madame Fraser — ele disse, e se curvou — Você precisa de alguma ajuda?
Sim, eu realmente preciso de ajuda; eu não poderia arrastar o meu reparo cirúrgico por
muito mais tempo. Eu lancei um olhar para o meu massivo paciente, imaginando se ele
compreendia francês.
Aparentemente meu rosto era tão transparente quanto Jamie sempre me dissera; Percy
sorriu para mim e disse em tom de conversa em francês — Eu não acho que esse coágulo de
sangue menstrual é capaz de entender mais inglês do que é necessário para contratar o tipo de
prostituta com pústulas que permitiria que ele a tocasse, quanto menos compreender a língua
dos anjos.
O carroceiro continuava murmurando — Merda, merda, merda, maldita mula, aquela
fedorenta...
Eu relaxei um pouco e repliquei em francês — Sim, eu preciso de ajuda... com a máxima
urgência. Meu neto está tentando pegar de volta a mula que esse idiota roubou dele. Você
poderia recuperá-lo do acampamento dos carroceiros antes que alguém note?
— À votre service, madame — ele replicou prontamente, e, batendo os calcanhares juntos,
ele se inclinou e saiu.
Eu demorei o máximo que podia ao final da sutura da ferida, preocupada que o meu paciente
desbocado pudesse encontrar Germain entre os carroceiros, os modos franceses de Percy
podiam ser inúteis numa situação como essa. E eu realmente não podia esperar que Hipócrates
continuasse fechando os olhos, se eu fosse compelida a tomar medidas drásticas caso o homem
tentasse quebrar o pescoço de Germain.
Eu ouvi um zurro alto e familiar atrás de mim, entretanto, e me virei bruscamente para
ver Percy, corado e um pouco desgrenhado, trazendo Clarence na minha direção. Germain
estava sentado sobre a mula, seu rosto sério com linhas de um triunfo vingativo enquanto
olhava para o meu paciente.
Eu me levantei rapidamente, procurando pela minha faca. O carroceiro, que estava
cutucando suavemente o curativo ao redor de seu braço, olhou para cima, assustado, e depois
ficou de pé com um rugido.
— Merda! — Ele disse, e começou a ir propositadamente na direção deles, com os punhos
cerrados. Percy, para seu crédito, se manteve firme, embora tenha empalidecido um pouco. Ele
entregou as rédeas para Germain, entretanto, e deu um passo firme para frente.
— Monsieur... — Ele começou. Eu gostaria de saber o que ele tinha em mente para dizer,
mas não descobri, já que o carroceiro não se incomodou em conversar, em vez disso dirigindo
um punho na barriga de Percy. Percy caiu sentado e se dobrou como um leque.
— Inferno... Germain! — Germain, nem um pouco assustado com a súbita perda de seu
apoio, reuniu as rédeas de Clarence e tentou atacar o carroceiro no rosto com elas.
Isso possivelmente seria efetivo, se ele não tivesse deixado sua intenção tão clara. Como
era, o carroceiro se abaixou e estendeu a mão, claramente tentando pegar as rédeas ou Germain.
A multidão ao meu redor percebera agora o que estava acontecendo, e as mulheres começaram
a gritar. Neste ponto, Clarence decidiu se envolver e, deitando as orelhas para trás, curvou os
lábios e atacou o rosto do carroceiro, quase arrancando o nariz do homem.
— MALDITA MULA ESTÚPIDA! — Profundamente inflamado, o carroceiro saltou para
Clarence e mordeu o lábio superior da mula, agarrando-se com um aperto mortal ao seu
pescoço. Clarence gritou. As mulheres gritaram. Germain gritou.
Eu não gritei, porque não conseguia respirar. Eu estava dando cotoveladas para abrir
caminho entre a multidão, tateando pela fenda de minha saia para tentar encontrara a faca.
Assim que eu coloquei a mão no cabo, entretanto, uma mão desceu para o meu ombro, me
fazendo parar.
— Perdão, milady — Disse Fergus, e, passando propositadamente por mim, caminhou até
ficar ao lado da grande massa que era a mula, o carroceiro, e a criança que gritava, e disparou a
pistola em sua mão.
Tudo parou, por uma fração de segundo, e depois os berros e gritos recomeçaram, todo
mundo subindo em direção a Clarence e seus companheiros para ver o que estava acontecendo.
Por um longo momento, não era evidente o que tinha acontecido. O carroceiro soltou a mula,
espantado, e se virou para Fergus, os olhos esbugalhados e a saliva escorrendo por seu queixo.
Germain, com mais presença de mente do que eu teria numa situação como essas, segurou as
rédeas e as arrastou com toda sua força, tentando virar a cabeça de Clarence, cujo sangue estava
claramente pingando e que não estava entendendo nada.
Fergus calmamente colocou a pistola de fogo em seu cinto — eu percebi neste momento
que ele devia ter atirado na lama perto dos pés do carroceiro — e conversou com o homem.
— Se eu fosse você, senhor, me retiraria prontamente da presença deste animal.
Aparentemente, ele não gosta de você.
Os berros e gritos tinham parado, e isso fez com que muitas pessoas rissem.
— Ele te pegou, Belden! — um homem próximo gritou. — A mula não gosta de você. O que
acha disso?
O carroceiro parecia um pouco confuso, mas ainda com impulsos homicidas. Ele ficou ali
parado com os punhos cerrados, as pernas separadas e os ombros curvados, encarando a
multidão.
— O que eu acho...? — Ele começou — Eu acho...
Mas Percy tinha conseguido levantar e, embora estivesse um pouco curvado, tinha
mobilidade. Sem hesitação, ele se aproximou e chutou o carroceiro inteligentemente nas bolas.
Isso foi mais do que bom. Até mesmo o homem que parecia ser amigo de Belden gritou
com o riso. O carroceiro não caiu, mas se curvou como uma folha seca, agarrando-se. Percy
inteligentemente não esperou que ele se recuperasse, mas se virou e fez uma reverência a
Fergus.
— À votre service, monsieur. Eu sugiro que você e o seu filho, e a mula, claro, devem se
retirar?
— Merci beaucoup, e eu sugiro que você faça o mesmo, tout de suite — Fergus replicou.
— Ei! — O amigo do carroceiro gritou, sem rir agora — Você não pode roubar essa mula!
Fergus virou sobre si mesmo, arrogante como o aristocrata que Percy deixara implícito
que ele era.
— Eu não posso, senhor — ele disse, inclinando a cabeça alguns centímetros em
reconhecimento. — Porque um homem não pode roubar algo que já lhe pertence, não é?
— Isso não é... O que não é...? — Exigiu o homem, confuso.
Fergus dispensou a resposta. Levantando uma sobrancelha escura, ele deu vários passos,
se virou e gritou — Clarence! Écoutez-moi 12!
Com o colapso do carroceiro, Germain tinha sido bem sucedido ao controlar Clarence,
embora as orelhas da mula ainda estivessem para baixo em desagrado. Ao som da voz de
Fergus, entretanto, as orelhas se levantaram lentamente e giraram em sua direção.
Fergus sorriu, e eu ouvi uma mulher atrás de mim suspirar involuntariamente. O sorriso
de Fergus era extremamente charmoso. Ele colocou a mão no bolso e tirou uma maçã, que ele
espetou em seu gancho.
— Venha — ele disse para a mula, estendendo a mão direita e girando os dedos num
movimento de coçar a cabeça. Clarence foi, desconsiderando o Sr. Belden, que agora estava
sentado no chão e agarrando os joelhos, a melhor forma de contemplar seu estado. A mula
12 Écoutez-moi = Escute-me!
inclinou a cabeça para pegar a maçã, cutucando o cotovelo de Fergus, e permitiu que sua cabeça
fosse acariciada. Houve um murmúrio de interesse a aprovação da multidão, e eu notei alguns
olhares de censura dirigidos ao Sr. Belden que gemia.
A sensação de estar prestes a desmaiar tinha me deixado, e agora minhas entranhas
começavam a se descontrair. Com algum esforço, eu deslizei a faca de volta para a bainha sem
me cortar nas coxas e alisei as saias.
— Quanto a você, sans crevelle — Fergus estava dizendo para Germain, com uma ameaça
em voz baixa que ele aprendera com Jamie —, nós temos algumas coisas para discutir.
Germain adquiriu um tom amarelado e doentio — Sim, papai — ele murmurou, abaixando
a cabeça para evitar o olhar ameaçador de seu pai.
— Desça — Fergus disse a ele, e, virando-se para mim, levantou a voz — Madame General,
permita-me apresentar esse animal pessoalmente ao General Fraser, a serviço da liberdade!
Isso foi dito em um tom tão sincero que algumas almas aplaudiram. Eu aceitei, o mais
graciosamente que podia, em nome do General Fraser. Na conclusão desses procedimentos, o
Sr. Belden tinha levantado vergonhosamente e cambaleava em direção ao acampamento dos
carroceiros, tacitamente cedendo Clarence para a causa.
Eu peguei as rédeas de Clarence, aliviada e feliz por vê-la de novo. Aparentemente, o
sentimento era mútuo, já que ela encostou o nariz em meu ombro com familiaridade e fez ruídos
íntimos.
Fergus, por sua vez, ficou por um momento olhando para Germain, depois endireitou os
ombros e se virou para Percy, que ainda parecia pálido, mas tinha endireitado a peruca e
recuperado o domínio de si mesmo. Percy se inclinou muito formalmente para Fergus, que
suspirou profundamente e fez uma reverência também.
— E eu suponho que nós, também, temos um assunto a discutir, monsieur — ele disse,
resignado — Talvez possamos fazer isso um pouco mais tarde?
O rosto bonito de Percy se iluminou.
— À votre service... seigneur — ele disse, e fez mais uma reverência.
63 – O USO ALTERNATIVO DE UMA SERINGA DE PÊNIS
Germain tinha, de fato, encontrado um pouco de mel, e agora que a emoção de recuperar
Clarence tinha passado, ele tirou um grande pedaço de favo de mel pegajoso envolto em um
lenço sujo, dos recessos de sua calça.
— O que você vai fazer com isso, vovó? — ele perguntou, curioso. Eu coloquei o pedaço
de favo escorrendo num prato de cerâmica limpo e estava mais uma vez empregando a útil
seringa de pênis, cuidadosamente esterilizada com álcool, para sugar o mel, tomando cuidado
para evitar os pedaços de cera e os grãos de pólen perceptíveis. Tendo sido projetada mais para
irrigação do que para punção, a seringa tinha um rombo, com a ponta suavemente cônica:
justamente o que eu precisava para lançar mel no olho de alguém.
— Eu vou lubrificar o olho machucado de sua senhoria — Eu disse. — Fergus, você poderia
me ajudar a segurar a cabeça de sua senhoria, por favor? Coloque a mão em sua testa. E,
Germain, você vai segurar suas pálpebras abertas.
— Eu posso ficar imóvel — John disse irritado.
— Fique quieto — Eu disse brevemente, e me sentei no banco ao lado dele — Ninguém
consegue ficar imóvel quando coisas estão sendo jogadas em seu olho.
— Você estava enfiando seus malditos dedos em meu olho nem uma hora atrás. E eu não
me movi!
— Você se contorceu — Eu disse. — Não é sua culpa, não tem como evitar. Agora, fique
quieto; eu não quero furar os seus olhos acidentalmente com isso.
Respirando audivelmente pelo nariz, ele fechou a boca e deixou que Fergus e Germain o
imobilizassem. Eu debati comigo mesma se deveria diluir o mel na água, mas o calor do dia tinha
feito com que sua espessura ficasse menor e eu achei melhor usar sem diluir.
— É antibacteriano — Eu expliquei para os três, usando meu ferro de cauterizar de novo
para levantar seu globo ocular e lançar um pequeno jato de mel sob ele — Isso significa que
mata os germes.
Fergus e Germain, para quem eu já havia explicado sobre os germes uma vez, assentiram
inteligentemente e tentaram parecer como se acreditassem na existência de tais coisas, o que
eles não acreditavam. John abriu a boca como se fosse falar, mas depois a fechou de novo e
exalou fortemente pelo nariz.
— Mas a principal virtude do mel neste momento — Continuei, besuntando o globo
ocupar generosamente — é a sua viscosidade. Pode soltar agora, Germain. Pisque, John. Oh,
muito bem!
O processo tinha, obviamente, feito com que o olho lacrimejasse, mas até mesmo o mel
diluído retinha sua viscosidade; eu podia ver o brilho alterado da luz através da esclera,
indicando a presença de uma fina e lisa — eu esperava — camada de mel. Um pouco tinha
transbordado, é claro, e lágrimas âmbares escorriam por suas têmporas em direção à orelha;
eu estanquei o fluxo com um lenço.
— Como está?
John abriu e fechou o olho algumas vezes, muito lentamente.
— Tudo parece borrado.
— Não importa; você não vai ficar olhando através desse olho por um dia ou dois de
qualquer forma. Está melhor?
— Sim — ele disse, de uma forma mal humorada, e nós três fizemos ruídos de aprovação
que o deixaram envergonhado.
— Certo. Sente-se, cuidadosamente! Sim, isso mesmo. Feche seu olho e o segure para
capturar as lágrimas — E, entregando a ele um lenço limpo, eu desenrolei um pedaço de atadura
de gaze, coloquei um pouco de pano cuidadosamente em sua órbita e enrolei a bandagem por
sua cabeça algumas vezes, amarrando no fim. Ele se parecia muito com uma pintura antiga
intitulada “O espírito de 76”, mas eu não mencionei isso. — Tudo bem — Eu disse, exalando e
sentindo-me satisfeita comigo mesma — Fergus, por que você e Germain não saem para
encontrar um pouco de comida? Algo para sua senhoria e algo para comermos na viagem
amanhã. Eu acho que será um longo dia.
— Este já está sendo longo o suficiente — John disse. Ele estava balançando um pouco, e
eu o empurrei gentilmente de volta para a cama sem resistência. Ele esticou o pescoço para
amenizá-lo, e depois se ajeitou no travesseiro com um suspiro — Obrigado.
— O prazer foi meu — Assegurei a ele. Eu hesitei, mas, com a partida de Fergus, eu não
achei que teria uma chance melhor para perguntar o que estava em minha mente — Eu suponho
que você não saiba o que Percival Beauchamp quer com Fergus, certo?
O olho bom abriu e olhou para mim.
— Você quer dizer que não acha que ele acredita que Fergus é o herdeiro perdido de uma
grande fortuna? Não, eu também não acredito nisso. Mas se o Sr. Fraser puder receber um
pequeno conselho, eu sugiro fortemente que ele tenha o mínimo de contato possível com
Monsieur Beauchamp — O olho se fechou novamente.
Percy Beauchamp tinha se afastado — muito graciosamente — após o resgate de Clarence,
explicando que precisava se encontrar com o marquês, mas adicionando que procuraria Fergus
no dia seguinte. Quando as coisas estiverem mais calmas, ele adicionou, com uma gentil
reverência.
Eu considerei John pensativamente.
— O que ele fez para você? — Perguntei. Ele não abriu seu olho, mas seus lábios se
apertaram.
— Para mim? Nada. Nada mesmo — Ele repetiu, e se virou, ficando de costas para mim.
64 – TREZENTOS E UM
Jamie caminhou para a luz da fogueira muito tarde, sorriu para mim e se sentou
repentinamente.
— Tem comida? — Ele perguntou.
— Tem sim, senhor — Disse a mulher que estava mexendo na panela — E você também
vai querer, senhora? — Ela adicionou firmemente, dando-me um olhar que sugeria fortemente
que eu não estava em minha melhor aparência. Eu não estava disposta a me importar, mas
aceitei com gratidão uma tigela de madeira com algo quente e um pedaço de pão para comer
junto.
Eu mal notava o que estava comendo, embora estivesse faminta. O dia tinha sido tão cheio
de atividades que eu não tivera tempo de comer — e nem teria comido, de fato, se não tivesse
levado comida para John, quando ele insistiu para que eu me sentasse por dez minutos e
comesse com ele. Percy Beauchamp não tinha voltado; o que era algo bom, eu supunha.
Havia algumas dezenas de homens das companhias de Jamie que eu tinha rejeitado por
deformidades ou algum outro motivo — por serem aleijados, ou asmáticos ou muito velhos —
e talvez três dezenas mais que estavam essencialmente saudáveis, mas ostentando algum
ferimento que requeria atenção, sendo em geral resultado de brigas ou de quedas por causa da
embriaguez. Muitos deles ainda estavam sob a influência da bebida e tinham sido mandados
sob custódia para a cama.
Eu imaginei por um momento quantos homens normalmente iam para a batalha bêbados.
Com toda a honestidade, eu me sentiria fortemente tentada a fazer isso também, se tivesse que
fazer os que os homens fariam.
Ainda havia um tremendo alvoroço, mas o sentimento anterior de entusiasmo tinha se
transformado em algo mais concentrado, mais focado e sóbrio. Os preparativos estavam sendo
feitos seriamente.
Eu tinha terminado os meus, ou esperava ter terminado. Uma pequena tenda para abrigar
do sol escaldante, pacotes de suprimentos médicos, kits cirúrgicos, cada um deles equipado com
um frasco de suturas úmidas, um chumaço de gaze para absorver o sangue, uma garrafa de
álcool diluído — eu não tinha mais sal e não poderia conseguir mais do comissário; eu tinha
tentado naquela manhã. E o kit de emergência que eu carregava no ombro, o tempo todo.
Eu me sentei perto do fogo, mas apesar disso e mesmo com o calor da noite, comecei a me
sentir fria e pesada, como se eu estivesse lentamente me petrificando, e foi então que eu percebi
quão cansada eu estava. O acampamento não estava totalmente adormecido — ainda havia
conversas ao redor das fogueiras, e o ocasional ruído de uma foice ou espada sendo afiada, mas
o volume tinha diminuído. A atmosfera tinha se acalmado na medida em que a lua baixava, até
mesmo as almas mais excitadas com a perspectiva da batalha iminente sucumbindo ao sono.
— Venha se deitar — Eu disse suavemente para Jamie, e levantei de meu assento com um
gemido abafado. — Não será por muito tempo, mas você precisa de algum descanso... e eu
também.
— Sim, tudo bem, mas eu não vou conseguir ficar sob a lona — ele disse, com a voz baixa,
me seguindo — Eu me sinto meio sufocado; não conseguiria respirar dentro de uma tenda.
— Bem, há muito espaço aqui fora — Eu disse, nobremente suprimindo uma pontada ante
o pensamento de dormir no chão. Buscando alguns cobertores, eu o segui, bocejando, um pouco
além da margem do rio, até encontrarmos um ponto privado por trás dos galhos de salgueiros
que lançavam suas folhas na água.
De fato, estava surpreendentemente confortável; havia um pouco de grama crescida na
qual nós abrimos os cobertores e, tão perto da água, o ar estava pelo menos se movendo, frio
em minha pele. Eu tirei as anáguas e arranquei o espartilho, com um arrepio de êxtase pelo
alívio quando o frescor se agitou suavemente pela minha combinação úmida.
Jamie estava apenas com sua camisa e estava esfregando o rosto e as pernas com
repelente para mosquitos, a presença de uma horda destes insetos era a razão para a falta de
companhia perto da água. Eu me sentei ao lado dele e peguei uma pequena colher da mistura
de hortelã com óleo de girassol. Mosquitos raramente me picavam, mas isso não os impedia de
ficar passando pelas minhas orelhas e batendo inquisitivamente em minha boca e em minhas
narinas, o que eu achava extremamente desconcertante.
Eu me deitei, observando enquanto ele terminava de se untar. Podia sentir a aproximação
distante da manhã, mas ainda assim esperava por qualquer breve esquecimento que pudesse
ter antes que o sol se levantasse e o inferno caísse sobre a terra.
Jamie fechou a lata e se estendeu ao meu lado com um gemido baixo, as sombras negras
das folhas estremecendo sobre sua camisa branca. Eu rolei em direção a ele assim como ele
rolou em minha direção, e nós nos encontramos com um beijo cego, sorrindo contra a boca um
do outro, contorcendo-nos para encontrar uma boa posição juntos. Mesmo com o calor, eu
queria tocá-lo.
Ele queria me tocar, também.
— Sério? — Eu disse, surpresa — Como você pode... Você esteve em pé por horas...
— Não, apenas pelos últimos minutos — ele assegurou a mim — Eu sinto muito,
Sassenach. Eu sei que você está cansada e eu não pediria isso, mas estou desesperado.
Ele soltou meu traseiro por tempo suficiente para tirar sua camisa e eu resignadamente
comecei a desembaraçar a combinação de minhas pernas.
— Eu não me importarei se você adormecer enquanto eu estiver em você — Ele disse em
meu ouvido, sentindo o caminho com uma das mãos — Eu não vou demorar. Eu só...
— Os mosquitos vão picar sua bunda — eu disse, ajeitando meu próprio quadril para uma
posição melhor e abrindo as pernas — Não seria melhor colocar um pouco de... Oh!
— Oh? — Ele disse, soando satisfeito — Bem, está tudo bem se você quiser ficar acordada,
é claro.
Eu agarrei sua nádega, com força, e ele deu um pequeno grito, riu e lambeu minha orelha.
O ajuste estava um pouco seco, e ele esticou o braço para pegar o repelente de mosquitos.
— Tem certeza... — Comecei com dúvida — Oh!
Ele já estava aplicando o repelente em mim, com mais entusiasmo do que destreza, mas o
seu entusiasmo era mais excitante do que sua habilidade poderia ser. Ter uma pequena
quantidade de óleo de hortelã aplicada nas partes íntimas era uma sensação nova, também.
— Faça aquele ruído de novo — ele disse, respirando pesadamente em minha orelha —
Eu gostei.
Ele estava certo; não demorou muito. Ele deitou metade dentro de mim e metade fora,
ofegante, seu coração batendo lenta e pesadamente contra meus seios. Eu tinha minhas pernas
enroladas ao redor dele — podia sentir a vibração dos pequenos insetos em meus tornozelos e
nos pés descalços enquanto eles invadiam, ávidos por sua carne desprotegida — e não queria
soltá-lo. Eu o puxei para mais perto, balançando-o gentilmente, escorregando e formigando e...
Eu também não demorei muito. Minhas pernas trêmulas relaxaram, soltando-o.
— Posso te dizer uma coisa? — Eu disse, depois de sentir o cheiro acentuado da hortelã
— Os mosquitos não vão picar o seu pau.
— Eu não me importaria que eles me carregassem para seu covil para alimentar seus
filhos — ele murmurou. — Venha aqui, Sassenach.
Eu tirei o cabelo úmido do meu rosto e me ajeitei contente no oco de seu ombro, com seu
braço ao redor de mim. Neste momento, eu tinha encontrado a sensação de acomodação com a
atmosfera úmida, na qual eu tinha parado de tentar manter o controle dos limites do meu
próprio corpo e começava a me dissolver no sono.
Eu dormi sem sonhar e sem me mover, até que uma câimbra em meu pé esquerdo me
despertou o suficiente para que eu me mexesse um pouco. Jamie levantou um pouco o braço,
depois o colocou de volta quando me ajeitei, e eu tive consciência de que ele não estava
dormindo.
— Você... tudo bem? — Murmurei, a língua grossa pela sonolência.
— Sim, bem — ele sussurrou, e sua mão alisou o cabelo, tirando-o de minha bochecha —
Volte a dormir, Sassenach. Eu vou acordá-la quando for a hora.
Minha boca estava pegajosa, e eu demorei um momento para localizar as palavras.
— Você precisa dormir também.
— Não — ele disse, de forma suave, mas definitiva — Não, eu não quero dormir. Tão perto
da batalha... Eu tenho sonhos. Eu os tive pelas últimas três noites e eles estão piorando.
Meu próprio braço estava cruzado sobre seu corpo; ao ouvi-lo dizer isso, eu o levantei
involuntariamente, colocando a mão em seu coração. Eu sabia que ele havia sonhado — e tinha
uma boa ideia sobre o que eram os sonhos, pelas coisas que ele havia dito durante o sono. E
pela forma como acordara, tremendo.
— Eles ficam piores.
— Shh — ele disse, e inclinou a cabeça para beijar meu cabelo — Não lute contra o sono,
a nighean. Eu só quero ficar aqui dentado com você em meus braços, para mantê-la segura e
observá-la dormir. Eu poderei me levantar, então, com a mente clara... e fazer o que precisar ser
feito.
66 – PINTURA DE GUERRA
Nessun dorma. Ninguém deve dormir. Era uma música — uma ária, como Brianna chamava —
de uma ópera que ela conhecia; ela tinha tocado uma parte dela em sua universidade, vestida
com robe chinês. Ian sorriu ao pensar em sua prima, mais alta do que muitos homens,
caminhando para cima e para baixo em um palco, balançando suas vestes de seda ao redor de
si; ele gostaria de ter visto isso.
Ele tinha pensado nela desde o momento em que abrira a pequena bolsa de camurça onde
as tinturas dela estavam guardadas. Ela era uma pintora, Bree, e muito boa. Ela moera os
próprios pigmentos, e fizera o ocre avermelhado para ele, e o preto e o branco do carvão e da
argila seca — e fez pra ele, também, um profundo verde da malaquita, e um amarelo brilhante
da vesícula do búfalo que ela e sua mãe tinham matado; nenhum outro homem tinha cores tão
profundas para sua pintura, e ele desejou por um momento que o Comedor de Tartarugas e
alguns dos seus outros companheiros Mohawk pudessem estar ali com ele para admirá-las.
O ruído do acampamento distante era como a cantoria de cigarras nas árvores próximas
dos rios: um zumbido muito alto para que fosse possível pensar, mas que ia embora quando
você se acostumava a ele. Ninguém deve dormir... As mulheres e crianças, eles poderiam dormir
— mas as prostitutas certamente não. Não esta noite.
Ele sentiu uma contração com o pensamento, mas a dispensou. Pensou em Rachel e deixou
para lá, também, mas relutantemente.
Ele abriu a caixa de casca de salgueiro com gordura de veado e untou seu rosto, seu peito
e seus ombros com ela. Normalmente, ele conversaria com os espíritos da terra enquanto fazia
isso, e então para seus santos particulares, Miguel e Brígida. Mas ele não estava vendo Miguel e
Brígida; Brianna ainda estava suavemente com ele, mas o que ele sentia era uma forte presença
de seu pai, o que era desconcertante.
Não parecia respeitável dispensar o pensamento de seu próprio pai. Ele parou o que
estava fazendo e fechou seus olhos, em vez disso, esperando para ver se talvez papai tinha
alguma coisa a dizer para ele.
— Eu espero que você não esteja me dizendo que vou morrer, sim? — Ele disse em voz
alta — Porque eu não quero morrer até que eu tenha pelo menos me deitado com Rachel.
— Bem, esse é um objetivo nobre, com certeza — A voz seca era de tio Jamie, e os olhos
de Ian se abriram. Seu tio estava de pé entre as folhas de um salgueiro, vestido com nada além
de sua camisa.
— Sem uniforme, não é, tio? — ele disse, embora seu coração saltasse no peito como um
rato assustado — O General Washington não ficará satisfeito.
Washington era um grande defensor do uso de uniformes adequados. Os oficiais deveriam
estar adequadamente vestidos o tempo todo; ele dizia que os Continentais não poderiam ser
levados a sério como um exército se fossem para o campo de batalha parecendo e agindo como
rebeldes armados.
— Sinto muito por interrompê-lo, Ian — Tio Jamie disse, saindo de trás das folhas. A lua
estava quase desaparecendo; ele não era nada mais do que um fantasma, com as pernas nuas
em sua camisa flutuante — Com quem você estava falando?
— Oh. Com meu pai. Ele estava apenas... aqui em minha mente, sabe? Eu quero dizer, eu
pensei nele com frequência, mas não é com tanta frequência que eu o sinto comigo. Então eu
pensei que ele podia estar vindo me dizer que eu morreria hoje.
Jamie assentiu, não parecendo incomodado com o pensamento.
— Eu duvido — ele disse — Você está se pintando, sim? Arrumando-se, quero dizer.
— Sim, eu estava prestes a fazer isso. Quer um pouco também? — Ele disse aquilo em tom
de brincadeira e Jamie compreendeu.
— Eu faria isso, Ian. Mas eu acho que o General Washington poderia me pendurar pelos
polegares e me açoitar, se eu aparecesse diante dele com minhas tropas uniformizadas e
estivesse com pintura de guerra.
Ian fez um pequeno som de divertimento e passou dois dedos na tinta vermelha, que ele
começara a espalhar por seu peito.
— E o que você está fazendo aqui somente com sua camisa, então?
— Lavando — Jamie disse, mas em um tom que indicava que isso não era tudo — E...
falando com os meus próprios mortos.
— Mmphm. Algum em particular?
— Meu tio Dougal, e Murtagh, que era o meu padrinho. São os dois que eu mais queria
comigo na batalha — Jamie fez um pequeno movimento inquieto — Quando posso, tomo um
pequeno momento para ficar sozinho antes de uma luta. Para me lavar, sabe, e rezar um pouco,
e depois... para pedir que eles se juntem a mim quando eu for.
Ian achou isso interessante; ele não conhecera nenhum dos dois homens — ambos haviam
morrido em Culloden —, mas já tinha ouvido suas histórias.
— Bons lutadores — ele disse — Você pede para o meu pai também? Para que ele te
acompanhe, quero dizer. Talvez seja por isso que ele esteja por perto.
Jamie virou sua cabeça bruscamente para Ian, surpreso. Então relaxou, balançando a
cabeça.
— Eu nunca tive que pedir a Ian Mòr — ele disse suavemente. — Ele estava sempre...
comigo. — Ele gesticulou brevemente para a escuridão à sua direita.
Os olhos de Ian arderam e sua garganta se fechou. Mas estava escuro; isso não importava.
Ele limpou a garganta e segurou um dos pequenos discos de tinta no alto — Quer me
ajudar, tio Jamie?
— Oh? Sim, claro. Como você quer?
— Vermelho na minha testa, eu posso fazer isso. Mas preto dos pontinhos até o queixo —
Ele passou o dedo pela linha de pontos tatuados que se curvava abaixo de suas bochechas — O
preto é para força, sim? Isso é uma declaração de que você é um guerreiro. E amarelo significa
que você não tem medo de morrer.
— Oh, sim. Você vai querer o amarelo hoje?
— Não. — Ele deixou que o sorriso aparecesse em sua voz, e Jamie riu.
— Mmphm — Jamie esfregou a tinta com a escova de pé de coelho, e depois espalhou a
cor uniformemente com seu polegar. Ian fechou os olhos, sentindo a força vindo para si com o
toque.
— Você geralmente faz isso sozinho, Ian? Parece difícil, a não ser que você tenha um
espelho.
— Na maior parte das vezes. Ou, algumas vezes, fazemos juntos, e um irmão do clã o pinta.
Se é uma coisa importante, um grande ataque, por exemplo, ou se você vai guerrear contra
alguém, então é o curandeiro que nos pinta, e canta.
— Diga-me que você não quer que eu cante, Ian — seu tio murmurou. — Quero dizer, eu
tentaria, mas...
— Posso ficar sem isso, obrigado.
Preto na parte inferior do rosto, vermelho na testa e um pouco do verde da malaquita
seguindo a linha das tatuagens, de orelha a orelha, passando pela ponte do nariz.
Ian olhou para os pequenos discos de pigmento; era fácil detectar o branco e ele apontou
para ele.
— Você poderia desenhar uma flecha, tio? Na minha testa. — Ele passou o dedo da
esquerda para a direita, mostrando onde.
— Eu posso, sim — A cabeça de Jamie estava inclinada sobre os discos de tinta, a mão
pairando ali — Você não me disse uma vez que o branco é para a paz?
— Sim, se você for negociar ou vender, você usa um pouco de branco. Mas ele também
serve para o luto... então, se você vai se vingar de alguém, talvez deva usar o branco.
A cabeça de Jamie se moveu para cima, olhando para ele.
— Isso não é por vingança — Ian disse — É pelo Flecha Voadora. O homem morto de quem
eu assumi o lugar, quando fui adotado.
Ele falou tão casualmente quanto podia, mas sentiu seu tio se contrair e olhar para baixo.
Nenhum deles iria esquecer aquele dia de despedida, quando ele tinha ido para
Kahnyen’kehaka e ambos pensaram que seria para sempre. Ele se inclinou para frente e colocou
a mão no braço de Jamie.
— Naquele dia, você me disse “Cuimhnich”13, tio Jamie. E eu o fiz — Lembrou.
— Eu também, Ian — Jamie disse suavemente, e desenhou a flecha em sua testa, seu toque
como o de um padre na Quarta-Feira de Cinzas, marcando Ian com o sinal da cruz — Nós todos
fizemos. É isso?
Ian tocou a listra verde cautelosamente, para ter certeza de que ela estava seca o
suficiente.
— Sim, eu acho que sim. Sabia que foi Brianna que me fez essas tinturas? Eu estava
pensando nela, mas depois pensei que não deveria levá-la comigo para esse caminho.
Ele sentiu a respiração de Jamie em sua pele, quando seu tio bufou e depois se sentou.
— Você sempre leva suas mulheres com você na batalha, Ian Òg. Elas são a raiz de sua
força, homem.
— Oh, sim? — Aquilo fazia sentido, e era um alívio para ele. Ainda assim... — Eu estava
pensando que talvez não fosse certo pensar em Rachel em tal lugar, entretanto. Ela sendo uma
Quaker e tal.
Jamie molhou o dedo médio na gordura de veado, e então delicadamente no pó de argila
branca, e desenhou um grande V perto da crista do ombro direito de Ian. Até mesmo no escuro,
ele aparecia vividamente.
— Pomba branca — ele disse com um aceno. Ele soou satisfeito. — Aí está a Rachel pra
você.
Ele limpou os dedos na rocha, e então se levantou e se alongou. Ian o viu se virar e olhar
em direção ao leste. Ainda era noite, mas o ar tinha mudado, naqueles poucos minutos que eles
ficaram sentados. A figura alta de seu tio era distinta contra o céu, onde um pouco antes ele
tinha parecido parte da noite.
— Uma hora, nada mais — Jamie disse — Coma primeiro, sim? — E, com isso, se virou e
caminhou para longe para suas próprias orações interrompidas.
13 Lembre-se.
67 – ANSIANDO POR COISAS QUE NÃO ESTÃO ALI
William desejou poder parar de ansiar pelas coisas que não estavam lá. Uma dezena de vezes
naquele dia — talvez até mais! — ele tentou pegar a adaga que deveria estar em seu cinto. Uma
ou duas vezes tentou alcançar suas pistolas. Batera uma mão impotente contra seu quadril,
sentindo falta de sua espada, e do peso pequeno e sólido de seu alforje de tiro, o balanço da
caixa de cartuchos.
E agora ele estava deitado nu em sua cama, a mão plana em seu peito onde ele tinha
colocado sem pensar à procura do rosário de madeira. O rosário que, se ele ainda tivesse, não
seria mais o conforto que fora durante tantos anos. O rosário que, se ele ainda tivesse, não diria
mais “Mac” para ele. Se ele ainda o tivesse, ele o teria arrancado e lançado ao fogo. Era
provavelmente o que James Fraser tinha feito quando William jogara o rosário na cara do
bastardo. Mas, na verdade, Fraser não era o bastardo, era?
Ele murmurou “Scheisse” e se virou irritado. A um metro de distância, Evans se mexeu e
peidou durante o sono, um som abafado e súbito, como um canhão distante. De seu outro lado,
Merbling roncava.
Amanhã. Ele tinha ido para a cama tarde depois de um dia exaustivo e levantaria em uma
hora, talvez, mas continuava acordado, os olhos tão adaptados à escuridão que podia ver o
borrão pálido da lona da tenda acima de sua cabeça. Não havia chance de dormir, ele sabia.
Mesmo que ele não tivesse que entrar em ação — e ele não iria — a proximidade da batalha o
deixava tão tenso que ele poderia pular da cama e ir diretamente para as linhas inimigas agora,
com a espada na mão.
Haveria uma batalha. Talvez não uma muito grande, mas os Rebeldes estavam latindo em
seus calcanhares, e amanhã — hoje — haveria um encontro. Esse encontro poderia acabar com
as ambições de Washington, embora Sir Henry fosse firme ao dizer que não era esse o seu
objetivo. Ele queria levar o exército e as pessoas sob sua proteção para Nova York; isso era tudo
o que importava — embora ele não tivesse grandes objeções se os seus oficiais quisessem
demonstrar sua superioridade militar enquanto faziam isso.
William tinha ficado atento atrás da cadeira de Sir Henry durante o jantar, suas costas
contra a parede da tenda, ouvindo atentamente enquanto os planos eram delineados. Ele tinha,
de fato, tido a honra de carregar as ordens formais escritas até von Knyphausen, cujas tropas
marchariam para Middletown, enquanto a brigada de Clinton entrava em formação na
retaguarda, para envolver os rebeldes enquanto a de Lord Cornwallis escoltava o comboio de
bagagens em segurança. Era por isso que tinha ido para a cama tão tarde.
Ele bocejou repentinamente, surpreendendo a si mesmo, e se ajeitou, piscando. Talvez ele
pudesse dormir um pouco, afinal. Pensar no jantar e nas ordens e em coisas mundanas como a
cor do pijama de von Knyphausen — era de seda rosa, com amores-perfeitos roxos bordados
ao redor do pescoço — em vez da batalha que estava por vir, o tinha acalmado incrivelmente.
Distração. Era disso que ele precisava.
Valia à pena tentar, ele supôs... Ele se contorceu para ficar numa posição mais confortável,
fechou os olhos e começou mentalmente a extrair as raízes quadradas de números superiores
a cem.
Ele estava na raiz quadrada de 117 e se confundiu tateando pelo resultado de 12 e 6
quando sentiu a súbita agitação do ar em sua pele úmida. Ele suspirou e abriu os olhos,
pensando que Merbling tinha levantando para mijar, mas não era Merbling. Uma figura escura
estava de pé na porta da tenda. A borda da lona não estava fechada, e a figura era claramente
visível contra o fraco brilho das fogueiras no exterior. Uma garota.
Ele se sentou rapidamente, esticando uma mão para a camisa que tinha jogado nos pés da
cama.
— O que diabos você está fazendo aqui? — Ele sussurrou, o mais suavemente que
conseguiu.
Ela estava pairando, incerta. Mas ao ouvi-lo falar, ela veio diretamente para ele, e a
próxima coisa que ele percebeu foi que suas mãos estavam em seus ombros, seus cabelos
raspando em seu rosto. Ele colocou as mãos para frente em reflexo e percebeu que ela estava
em sua combinação, seus seios livres e quentes sob ela, a poucos centímetros de seu rosto.
Ela se afastou, e no que pareceu o mesmo movimento, arrancou a combinação pela cabeça,
balançou os cabelos e o montou, suas coxas úmidas e redondas pressionando as suas.
— Saia! — Ele a pegou pelos braços, afastando-a. Merbling parou de roncar. As roupas de
cama de Evans farfalharam.
William se levantou, pegou sua camisa e a combinação dela e, pegando-a pelo braço,
marchou para fora da tenda, o mais silenciosamente que pôde.
— O que diabos você acha que está fazendo? Aqui, vista isso! — Ele empurrou a
combinação sem cerimônia para os braços dela e rapidamente vestiu sua camisa. Eles não
estavam à vista de ninguém, mas poderiam ficar a qualquer momento.
Sua cabeça emergiu da combinação como uma flor estalando para fora da neve. Uma flor
furiosa.
— Bem, o que você acha que eu estava fazendo? — Ela disse. Ela liberou os cabelos que
estavam presos na combinação e os afofou com violência — Eu estava tentando fazer uma
gentileza a você!
— Uma... o quê?
— Você vai lutar amanhã, não? — Havia luz o suficiente para ver o brilho de seus olhos
quando ela olhou para ele — Soldados sempre querem sexo antes da baralha. Eles precisam
disso.
Ele esfregou a mão com força pelo rosto, a palma raspando no áspero bigode que estava
crescendo, e depois respirou profundamente.
— Entendo. Sim. É muito gentil de sua parte — Ele de repente sentiu vontade de rir. Ele
também, repentinamente, quis tirar vantagem de sua oferta. Mas não o suficiente para fazê-lo
com Merbling de um lado e Evans do outro, com as orelhas alertas. — Eu não vou lutar amanhã
— ele disse, e a angústia que ele sentiu ao dizer isso em voz alta o assustou.
— Não vai? Por que não? — Ela soou assustada, também, e mais do que um pouco
desaprovadora.
— É uma longa história — ele disse, lutando para manter a paciência. — E não é da sua
conta. Agora, olhe. Eu aprecio o seu pensamento, mas eu disse a você: você não é uma prostituta,
pelo menos não agora. E você não é a minha prostituta.
Embora sua imaginação estivesse cheia de imagens do que poderia ter acontecido se ela
tivesse se enfiado em sua cama e o pegado antes que ele estivesse completamente acordado...
Ele colocou o pensamento de lado firmemente e, pegando-a pelos ombros, virou-a.
— Vá para sua própria cama agora — ele disse, mas não conseguiu se impedir de dar um
tapinha em suas nádegas na despedida. Ela virou a cabeça e olhou para ele sobre o ombro.
— Covarde! — Ela disse — Um homem que não fode, não luta.
— O quê? — Por um instante, ele pensou que ela não tinha realmente dito isso, mas tinha.
— Você me ouviu. Ótima maldita noite!
Ele a alcançou em dois passos, pegou seus ombros e a virou para encará-la.
— E quem te deu essa pérola de sabedoria, posso saber? Seu bom amigo Capitão
Harkness? — Ele não estava realmente bravo, mas o choque de sua chegada inesperada ainda
reverberava em seu sangue e ele estava irritado. — Eu te salvei de ser sodomizada para que
você jogasse minhas circunstâncias na minha cara?
Seu queixo se afastou, e ela respirava com dificuldade, mas não em sofrimento aparente.
— Que circunstâncias? — Ela exigiu.
— Eu disse a você... Inferno! Você sabe o que é o exército dos Convencionistas?
— Não.
— Bem, essa é a longa história e eu não vou contá-la a você aqui, usando apenas minha
camisa, no meio do acampamento. Agora, vá embora e cuide de sua irmã e dos rapazes. Esse é
o seu trabalho; eu vou cuidar de mim mesmo.
Ela exalou bruscamente, com um som de “puh”.
— Sem dúvida você vai — ela disse, com o máximo de sarcasmo e um olhar para o seu
pênis, que estava cutucando sua camisa de forma absurda, fazendo com que suas preferências
urgentes ficassem claras.
— Scheisse — Ele disse de novo, brevemente, e então a agarrou num abraço de urso que
pressionou o corpo dele contra o seu e a beijou. Ela lutou, mas depois de um primeiro momento,
ele percebeu que ela não estava lutando para se soltar, mas para provocá-lo ainda mais. Ele
aumentou o aperto até que ela parou, mas não parou de beijá-la por algum tempo.
Ele finalmente a soltou, ofegante e molhado de suor; o ar estava tão quente que era como
respirar alcatrão. Ela também estava ofegante. Ele poderia tomá-la. Ele queria. Colocá-la de
quatro na grama atrás da tenda, arrancar sua combinação e tê-la por trás — não levaria mais
do que alguns segundos.
— Não — ele disse, e limpou a boca com a parte de trás de sua mão. — Não — ele disse de
novo, com mais certeza. Cada nervo de seu corpo a queria, e se ele tivesse dezesseis anos, já
teria finalizado há muito tempo. Mas ele não tinha, e ele tinha autocontrole suficiente para virá-
la de novo. Ele a segurou pela nuca e pelas nádegas para impedir que ela se virasse e a manteve
imóvel.
— Por quê? — Ela disse, em uma voz calma.
— É uma longa história também — ele disse — Boa noite, Jane.
E, soltando-a, afastou-se na escuridão. Perto dali, os tambores da alvorada começaram.
PARTE IV
DIA DA BATALHA
68 – SAIR NA ESCURIDÃO
Ian estivera cavalgando pelas terras brevemente no dia anterior, observando — O que é uma
boa coisa, também — ele disse, baixinho. A lua estava escura, e ele tinha que ser sagaz e se
manter na estrada. Ele não arriscaria as pernas de seu cavalo no terreno acidentado antes que
tivesse que fazê-lo, e Santa Brígida garantiria que o céu estivesse muito iluminado, então.
Ainda assim, ele estava feliz pela escuridão, e pela solidão. Não que a terra estivesse
imóvel; as florestas viviam à noite, e muitas coisas saíam na hora estranha antes do amanhecer,
quando a luz começava a se mostrar. Mas nem o farfalhar das lebres e dos ratos e nem a
chamada sonolenta dos pássaros que acordavam exigia a sua atenção ou tomava qualquer
conhecimento dele. Ele tinha terminado suas próprias orações após tio Jamie tê-lo deixado, e
então partiu sozinho em silêncio, e a paz de seus preparativos ainda estava com ele.
Quando vivia com os Mohawk — particularmente quando as coisas tinham dado errado
com Emily — ele deixava a maloca por vários dias, caçando sozinho com Rollo, até que a solidão
da natureza amenizasse o seu espírito o suficiente para voltar, fortalecido. Ele olhou para baixo
em reflexo, mas Rollo tinha sido deixado para trás com Rachel. A ferida causada pela armadilha
estava limpa; tia Claire tinha colocado alguma coisa que ajudava — mas ele não deixaria que
Rollo fosse para uma batalha como aquela prometia ser, mesmo que estivesse inteiro e fosse
mais jovem do que era.
Não havia dúvidas sobre a vinda da batalha. Ele podia sentir o seu cheiro. Seu corpo estava
se elevando em direção à luta; ele podia sentir o formigamento — mas ele valorizava este
silêncio momentâneo mais ainda por isso.
— Não vai durar muito tempo — ele disse suavemente para o cavalo, que o ignorou. Ele
tocou a pomba branca em seu ombro e partiu, ainda quieto, mas não sozinho.
Os homens tinham permanecido com suas armas por toda a noite, por ordens de Sir Henry.
Embora ninguém de fato dormisse sobre um mosquete e uma caixa de cartuchos, havia algo
sobre dormir com uma arma tocando seu corpo que o mantinha alerta, pronto para se levantar
do sono rapidamente.
William não tinha armas com as quais deitar, e não precisara levantar, como não tinha
dormido, mas não estava menos alerta por causa disso. Ele não lutaria, e se ressentia
profundamente por isso — mas ele estaria lá fora mesmo assim, por Deus.
O acampamento era um alvoroço, tambores retumbando pelos corredores das tendas,
soldados chamando e o ar cheio dos cheiros de pão assado, carne de porco e mingau de ervilha.
Não havia sinal visível do amanhecer ainda, mas ele podia sentir o sol chegando, logo
abaixo da linha do horizonte, levantando-se com a lenta inevitabilidade de seu domínio diário.
O pensamento o fez lembrar, vividamente, da baleia que ele avistara durante a viagem para a
América: uma sombra escura abaixo da lateral do navio, facilmente descartada com a mudança
de luz sobre as ondas — e então, lentamente, o volume crescente, a percepção e a constatação
de tirar o fôlego de vê-la subir, tão perto, tão grande — e de repente ali.
Ele prendeu suas calças e as fechou antes de colocar seus protetores de joelho e colocar
suas botas hessianas. Pelo menos ele tinha seu gorjal de novo, para emprestar um ar de
cerimônia à árdua tarefa de se vestir. O gorjal, é claro, o fazia lembrar de Jane — será que algum
dia ele seria capaz de usá-lo sem se lembrar da maldita garota? — e dos eventos recentes.
Ele se arrependera de não aceitar sua oferta, e ainda se sentia assim. Ele ainda podia sentir
o seu cheiro, almiscarado e suave, como se colocasse o rosto numa pele grossa. Seu comentário
ainda o irritava, também, e ele bufou, ajeitando o casaco nos ombros. Talvez ele pensasse
melhor em tudo antes de chegarem a Nova York.
Estes pensamentos ociosos foram interrompidos pela aparição de outro dos assessores
de Sir Henry, o Capitão Crosbie, que colocou a cabeça pela abertura da tenda, claramente de
forma apressada.
— Oh, aí está você, Ellesmere. Eu esperava pegá-lo... aqui. — Ele lançou um bilhete
dobrado na direção de William e desapareceu.
William bufou de novo e pegou o bilhete do chão. Evans e Merblings já tinham saído, tendo
tropas para inspecionar e comandar; ele os invejava amargamente.
Era do General Sir Henry Clinton, e foi como uma pancada no estômago: ... em vista de sua
situação peculiar, eu acho que é melhor que você fique com os escriturários hoje...
— Stercus14! — Ele disse, sentindo que o alemão era insuficiente para os seus sentimentos.
— Excrementum obscaenum15! Filius mulieris prostabilis16!
Seu peito estava apertado, o sangue estava tamborilando em suas orelhas, e ele queria
bater em alguma coisa. Seria inútil apelar para Sir Henry, ele sabia muito bem. Mas passar o dia
essencialmente chutando os calcanhares na tenda dos escriturários — afinal, o que havia ali
para ele fazer, se ele não poderia carregar despachos ou até mesmo fazer o trabalho entediante
mas necessário de pastorear os seguidores de acampamento e os Legalistas? O quê — ele teria
que ir buscar o jantar dos funcionários, ou segurar uma tocha em cada mão quando escurecesse,
como um maldito candelabro?
Ele estava prestes a amassar a nota em um bolo, quando outra cabeça nada bem-vinda
invadiu a tenda, seguida de um corpo elegante: Capitão André, vestido para a batalha, a espada
na lateral de seu corpo e as pistolas em seu cinto. William olhou para ele com desgosto, embora
ele fosse, na realidade, um cara legal.
— Oh, aí está você, Ellesmere — André disse, satisfeito. — Eu esperava que você ainda
não tivesse partido. Eu preciso que você leve um despacho para mim, rapidamente. Para o
Coronel Tarleton, com a legião britânica, os novos Provinciais, de chapéus verdes... Você o
conhece?
— Conheço, sim — William aceitou o despacho selado, sentindo-se estranho —
Certamente, Capitão.
— Você é um bom homem — André sorriu e apertou seu ombro, e então saiu,
entusiasmado com a ação iminente.
William respirou profundamente, cuidadosamente dobrou a nota de Sir Henry para sua
forma original, e a colocou em sua cama. Quem poderia dizer que ele não tinha visto André
primeiro e, dada à urgência do requerimento, partira imediatamente, sem ler a nota de Sir
Henry?
Ele duvidou que fosse fazer falta, de qualquer maneira.
14 Stercus = Esterco
15 Excrementum obscaenum = Excremento obsceno
16 Filius mulieris prostabilis = Filho de uma prostituta
69 – O PUM DO PARDAL
Talvez fossem quatro horas da manhã. Ou antes do pum do pardal, como as forças armadas
britânicas costumavam dizer. Aquele senso de deslocamento temporal estava de volta,
memórias de outra guerra vindo como uma névoa repentina entre mim e o meu trabalho, e
depois desaparecendo em um instante, deixando o presente nítido e vívido como Kodachrome.
O exército estava se movendo.
Nenhuma névoa obscurecia Jamie. Ele era grande e sólido, seus contornos claramente
visíveis contra a noite que se fragmentava. Eu estava desperta e alerta, vestida e pronta, mas o
frio do sono ainda estava em mim, fazendo com que meus dedos ficassem desajeitados. Eu podia
sentir o seu calor e me aproximei dele, como eu faria com uma fogueira. Ele estava guiando
Clarence, que estava ainda mais quente, embora muito menos alerta, as orelhas flácidas em um
aborrecimento sonolento.
— Você ficará com Clarence — Jamie me disse, colocando as rédeas da mula em minha
mão — E com isso, para se certificar de que vai mantê-la, se você estiver sozinha — “Isso” era
um par de pesadas pistolas, com o coldre e as amarras presas em um cinto de couro grosso que
também continham um pacote de balas e pólvora.
— Obrigada — Eu disse, engolindo enquanto enrolava as rédeas ao redor de um broto de
árvore para colocar o cinto das pistolas. As armas eram surpreendentemente pesadas, mas eu
não podia negar que o seu peso em meus quadris era surpreendentemente confortante,
também. — Tudo bem — Eu disse, olhando em direção à tenda onde John estava — E quanto...
— Eu já pensei nisso — Ele disse, me cortando — Reúna o restante das suas coisas,
Sassenach; eu não tenho mais do que quinze minutos, se tiver, e eu preciso que você esteja
comigo quando partirmos.
Eu o vi caminhar a passos largos para o mêllé, alto e resoluto, e imaginei — como o tinha
feito muitas vezes antes — Será que é hoje? Essa será a última lembrança que eu terei dele? Eu
fiquei muito quieta, observando o máximo que podia.
Quando eu o perdera pela primeira vez, antes de Culloden, eu me lembrava de tudo. Cada
momento da nossa última noite juntos. Pequenas coisas voltariam para mim através dos anos;
o gosto de sal em suas têmporas e a curva de seu crânio quando eu envolvi sua cabeça em
minhas mãos; os finos e macios cabelos na base de sua nuca, grossa e úmida entre meus dedos...
a repentina magia de seu sangue na luz do amanhecer quando eu cortara sua mão e o marcara
como meu para sempre. Aquelas coisas o tinham mantido vivo para mim.
E quando eu o tinha perdido esta vez, para o mar, eu tinha me lembrado da sensação dele
ao meu lado, quente e sólido em minha cama, e do ritmo de sua respiração. A luz através dos
ossos de seu rosto no luar e o rubor de sua pele ao sol nascente. Eu podia ouvi-lo respirar
quando deitava sozinha em meu quarto na Chestnut Street — uma respiração lenta, regular e
incessante, embora eu soubesse que ela tinha cessado. O som me confortava, e depois me
deixava maluca com o conhecimento da perda, então eu colocava o travesseiro sobre minha
cabeça numa tentativa fútil de parar de ouvir — apenas para emergir mais tarde, com o ar do
quarto espesso pela fumaça de madeira e cera das velas, e com a luz se desvanecendo, e ser
confortada por ouvir mais uma vez.
Se desta vez... Mas ele havia se virado, repentinamente, como se eu tivesse chamado seu
nome. Ele veio rapidamente para mim, pegou-me pelos braços e disse em uma voz forte e baixa
— Não será hoje, também.
Então, ele colocou os braços ao redor de mim e me puxou até que eu ficasse nas pontas
dos pés num beijo profundo e suave. Eu ouvi breves aplausos dos homens que estavam ali perto,
mas isso não importava. Mesmo que fosse hoje, eu iria me lembrar.
Jamie caminhou em direção às suas companhias, reunidas livremente perto do rio. O hálito da
água e a névoa que saía dele o confortou, mantendo-o protegido por um pouco mais de tempo
na paz da noite e no profundo senso de sua família, ali em seu ombro. Ele tinha dito a Ian Mòr
para ficar com Ian Òg17, como era o correto, mas tinha a estranha sensação de que havia três
homens com ele, ainda assim.
Ele precisava da força de sua morta. Trezentos homens, e ele os conhecia há apenas alguns
dias. Em todas as vezes anteriores, quando ele levara homens para a batalha, eles eram homens
de seu sangue, de seu clã, homens que o conheciam, que confiavam nele — como ele conhecia e
confiava neles também. Estes homens eram estranhos para ele, e ainda assim, suas vidas
estavam em suas mãos.
Ele não estava preocupado por sua falta de treinamento; eles eram rudes e
indisciplinados, era meramente uma multidão, em contraste com os regulares Continentais que
tinham passado todo o inverno sob as ordens de von Steuben — o pensamento no pequeno
prussiano em formato de barril o fez sorrir —, mas suas tropas sempre tinham sido este tipo de
homem: fazendeiros e caçadores, afastados de suas ocupações diárias, armados com foices e
enxadas tão frequentemente quanto com mosquetes e espadas. Eles lutariam como demônios
por ele — e com ele — se confiassem nele.
— Como está, Reverendo? — Ele disse suavemente para o ministro, que tinha acabado de
abençoar seu rebanho de voluntários e estava curvado entre eles em seu casaco preto, os braços
ainda meio estendidos como um espantalho protegendo o acampamento enevoado ao
amanhecer. O rosto do homem, sempre bastante severo, se iluminou ao vê-lo, e ele percebeu
que o céu por si só tinha começado a brilhar.
— Tudo bem, senhor — Woodsworth disse rispidamente — Estamos prontos. — Ele não,
graças a Deus, mencionou Bertram Armstrong.
— Bom — Disse Jamie, sorrindo de orelha a orelha, e vendo-os todos se iluminando na
medida em que o amanhecer os tocava — Sr. Whelan, Sr. Maddox, Sr. Hebden... estão todos bem
nesta manhã, eu espero?
— Estamos bem — eles murmuraram, parecendo timidamente gratos por ele saber seus
nomes. Ele gostaria de conhecer a todos, mas tinha feito o melhor que pudera, aprendendo os
nomes e os rostos de um punhado de homens em cada companhia. Isso poderia dar a eles a
ilusão de que conhecia todos os homens pelo nome... ele esperava que sim; eles precisavam
saber que ele se preocupava com eles.
— Pronto, senhor — Era o Capitão Craddock, um de seus três capitães, rígido e
autoconsciente pela importância da ocasião, e Judah Bixby e Lewis Orden, dois dos tenentes de
Jamie, atrás dele. Bixby não tinha mais do que vinte anos, Orden talvez fosse um ano mais velho
que isso; eles mal podiam reprimir a excitação, e ele sorriu para eles, sentindo a alegria de sua
jovem masculinidade ecoar em seu próprio sangue.
Havia alguns homens muito jovens entre as milícias, ele notou. Dois rapazes meio
crescidos, altos e esguios como espigas de milho — quem eram eles? Oh, sim, os filhos de
Craddock. Ele se lembrava agora; sua mãe havia morrido apenas um mês atrás, e então eles se
juntaram ao pai na milícia.
Deus, permita-me trazê-los de volta em segurança!, ele rezou.
E sentiu — de fato sentiu — uma mão descansando brevemente em seu ombro, e sabia
quem era o terceiro homem que estava com ele.
Taing, pai, ele pensou, e piscou, levantando o rosto para que as lágrimas em seus olhos
pudessem ser tomadas pelo brilho da manhã que se acendia.
Mal passara uma hora desde o amanhecer e seria, sem dúvida, outro dia bestialmente quente,
mas naquele momento o ar ainda estava fresco e tanto William quanto Goth estavam felizes. Ele
abriu caminho por entre a massa fervilhante de homens, cavalos, carrinhos de artilharia e os
outros impedimentos de guerra, assobiando baixinho “The king enjoys his own again”.
Os vagões de bagagem já estavam sendo preparados; uma grande nuvem de poeira se
levantou, permeada de ouro pelo sol nascente, do parque dos carroceiros próximo à divisão de
von Knyphausen, acampados a uns quinhentos metros de distância, do outro lado de
Middletown. Eles sairiam diretamente, em direção a Sandy Hook — e Jane, Fanny, Zeb e Colenso
iriam junto, era o que ele sinceramente esperava. Uma breve lembrança sensorial de pele de
dentro das coxas de Jane passou pela sua mente e ele parou de assobiar por um instante, mas
depois sacudiu a cabeça. Tinha trabalho a fazer!
Ninguém sabia exatamente onde a Legião Britânica estava, embora se assumisse que
estivesse em algum lugar nas proximidades da divisão de Clinton, sendo um de seus regimentos
pessoais, criado a apenas um mês em Nova York. Aquilo podia ser arriscado, mas William estava
muito disposto a apostar que ele poderia evadir do aviso de Sir Henry sob condições como estas.
— Como procurar um piolho numa peruca francesa — ele murmurou, e bateu no pescoço
de Goth. O cavalo estava livre e brincalhão, e mal podia esperar para alcançar a estrada aberta
e galopar. A divisão de Clinton estava segurando a retaguarda longe de Middletown... distância
suficiente para que Goth liberasse sua adrenalina. Primeiro, entretanto, eles teriam que passar
pela massa espalhada de seguidores de acampamento, que estava lutando para despertar em
uma pressa desesperada. Ele manteve Goth a rédeas curtas, para que não pisasse em alguma
criança: havia dezenas de pequenos diabinhos, pululando sobre a terra como gafanhotos.
Olhando para cima a partir do chão, ele vislumbrou uma forma familiar, em pé na fila do
pão, e seu coração deu uma pequena cambalhota de prazer. Anne Endicott, vestida para o dia
mas sem sua touca, os cabelos escuros em uma trança grossa pelas suas costas. Essa visão deu
a ele um frisson de intimidade, e ele quase não se controlou e a chamou. Haveria tempo o
suficiente, depois da batalha.
71 – FOLIE À TROIS
Eu corri atrás de Germain com minha mochila médica pendurada no ombro, cheia de vidros
borbulhantes, uma pequena caixa de instrumentos extras e suturas embaixo do meu braço, as
rédeas de Clarence em mãos, e uma mente tão agitada que eu mal podia ver para onde estava
indo.
Eu percebera naquele momento que eu não tinha dito nada a John que ele não soubesse.
Bem... exceto a parte do destino do Capitão André, e embora aquilo fosse aterrorizante o
suficiente, não era de importância direta no momento.
Ele tinha me feito parar de falar, porque ele já sabia em quanto perigo estava — e quais
provavelmente seriam os efeitos em Jamie, e em mim. Você não deve ser encontrada sozinha
comigo.
Porque eu fora, em algum momento, sua mulher, ele queria dizer. Era nisso que ele
estivera pensando, mas não quis me dizer, até que eu o forçasse.
Se alguma coisa acontecesse — bem, sejamos francos em relação a isso: se ele quebrasse
sua promessa e escapasse — eu poderia ser suspeita de ajudá-lo, mas a suspeita seria muito
mais pronunciada se alguém pudesse testemunhar que estávamos tendo uma conversa em
particular. E Jamie seria suspeito de cumplicidade na pior das hipóteses; na melhor, seria dito
que ele tem uma esposa desleal a ele e à causa da independência... Eu poderia facilmente acabar
numa prisão militar. Bem como Jamie.
Mas se John não escapasse... ou escapasse e fosse recapturado...
Mas a estrada se estendia à minha frente, e Jamie estava lá em seu cavalo, segurando as
rédeas de minha égua. E era com Jamie que eu cruzaria o Rubicão hoje... não com John.
O marquês de La Fayette estava esperando por eles no ponto de encontro, com o rosto corado
e os olhos brilhando em antecipação. Jamie não pôde evitar sorrir ante a visão do jovem francês,
vestido com um glorioso uniforme com paramentos em seda vermelha. Ele não era
inexperiente, entretanto, apesar de sua juventude e de sua óbvia francesidade. Ele havia
contado a Jamie sobre a batalha em Brandywine Creek no ano anterior, onde ele tinha sido
ferido na perna, e em como Washington insistira para que ele deitasse ao seu lado e o enrolara
em sua própria capa. Gilbert idolatrava Washington, que não tinha filhos, e que claramente
sentia uma profunda afeição pelo marquês.
Jamie olhou para Claire, para ver se ela estava apreciando a toilette elegante de La Fayette,
mas seu olhar estava fixo — com um leve franzido na testa — em um grupo de homens
distantes, além das filas ordenadas de regulares Continentais. Ela não estava usando seus
óculos; ele podia ver facilmente à distância e se levantou nos estribos para olhar.
— General Washington e Charles Lee — Ele disse a ela, sentando-se novamente na sela.
La Fayette, avistando-os também, virou-se na própria sela e cavalgou em direção aos oficiais
superiores — Eu suponho que devo me juntar a eles. Você já viu Denzell Hunter?
Ele tinha em mente confiar Claire aos cuidados de Hunter; ele não queria que ela ficasse à
deriva pelo campo de batalha — se houvesse um —, não importava quão útil ela pudesse ser lá,
e estava desconfiado de deixá-la sozinha.
Hunter estava dirigindo seu vagão, entretanto, e isso não permitiria que ele se mantivesse
junto com os homens em marcha. Nuvens de poeira se elevaram no ar, agitada por milhares de
pés ansiosos; aquilo fez cócegas em seu peito e ele tossiu.
— Não — ela disse. — Não se preocupe. — E ela sorriu para ele, corajosa, embora seu
rosto estivesse pálido mesmo com o calor, e ele pôde sentir a vibração de seu medo no próprio
estômago. — Você está bem?
Ela sempre olhava para ele daquela forma inquisitiva quando ele estava prestes a lutar,
como se estivesse guardando seu rosto na memória para o caso de ele ser morto. Ele sabia por
que ela fazia isso, mas o ato o fazia se sentir estranho — e ele já estava inquieto nesta manhã.
— Sim, estou bem. — Ele disse e, pegando sua mão, a beijou. Ele deveria ter ido embora,
mas permaneceu por um momento, relutante em deixá-la.
— Você... — Ela começou, e depois parou abruptamente.
— Se eu coloquei ceroulas limpas? Sim, embora seja uma perda de tempo, sabe, quando
as armas começam a disparar...
Foi uma brincadeira bastante fraca, mas ela riu, e ele se sentiu melhor.
— O que você ia perguntar? — Ele a questionou, mas ela balançou a cabeça.
— Esqueça. Você não precisa de mais nada para pensar agora. Apenas... Tenha cuidado,
pode ser? — Ela engoliu visivelmente, e seu coração se revirou.
— Eu vou tomar cuidado — Ele disse, e pegou as rédeas mas olhou sobre o ombro, para o
caso de Jovem Ian estar vindo. Ela estava segura o suficiente, em meio às companhias que se
formavam, mas ele ainda ficaria mais feliz se alguém tomasse conta dela. E se ele lhe dissesse
isso, ela provavelmente...
— Ali está Ian! — Ela exclamou, estreitando os olhos para ver. — Qual é o problema com
o seu cavalo?
Ele olhou para onde ele estava olhando e viu a causa facilmente. Seu sobrinho estava a pé,
levando o cavalo ao lado, ambos parecendo excêntricos.
— Está coxo — ele disse. — E muito coxo! O que há de errado, Ian? — Ele gritou.
— Pisou em um buraco e rachou o casco. — Ian deslizou a mão pela perna do cavalo e o
animal se inclinou para ele, permitindo que levantasse seu casco. A fissura era visível, e
profunda o suficiente para que Jamie estremecesse em compaixão. Era como ter uma unha
arrancada, ele supôs, e ter que caminhar uma grande distância assim.
— Pegue meu cavalo, Ian — Claire disse, e deslizou para fora de sua égua em uma onda
de saias e anáguas — Eu posso montar em Clarence. Não preciso ser rápida, afinal de contas.
— Sim, tudo bem — Jamie disse, embora um pouco relutante. Sua égua era muito boa, e
Ian precisava de uma montaria — Troquem as selas, então, e Ian... Espere pelo Dr. Hunter. Não
deixe sua tia até que ele chegue, sim? Adeus, Sassenach; vejo você mais tarde. — Ele não podia
mais esperar, e instigou o seu cavalo para a multidão.
Outros oficiais tinham se reunido ao redor de Washington; ele estava quase se atrasando.
Mas não era o risco de estar conspicuamente atrasado que revirava as suas entranhas. Era a
culpa.
Ele deveria ter reportado a prisão de John Grey assim que ela acontecera. Ele sabia muito
bem disso, mas tinha atrasado, esperando... esperando o quê? Que a situação ridícula de alguma
forma evaporasse? Se ele tivesse reportado, Washington teria Grey sob sua custódia e o
prenderia em algum lugar — ou o enforcaria, para ser tomado como exemplo. Ele não achava
isso provável, mas a possibilidade tinha sido o suficiente para impedir que ele dissesse alguma
coisa, contando com o caos do êxodo iminente para que ninguém notasse.
Mas o que estava comendo suas entranhas não era a culpa em relação ao dever diferido,
ou mesmo à exposição de Claire ao perigo deixando-a com o pequeno sodomita na tenda em
vez de delatá-lo. Era o fato de que ele não tinha pensado em revogar a liberdade condicional de
Grey naquela manhã antes de deixá-lo. Se o tivesse feito, Grey poderia ter facilmente escapado
na confusão da partida, e mesmo que houvesse algum problema depois... John Grey estaria a
salvo.
Mas era tarde demais, e com uma breve oração pela alma de Lord John Grey, ele freou ao
lado do Marquês de La Fayette e fez uma reverência ao General Washington.
72 – PÂNTANOS E IMBRÓGLIOS
Havia três córregos que passavam por aquela terra, cortando-a. Onde a terra era macia, a água
tinha se infiltrado profundamente e o riacho corria no fundo de uma ravina íngreme, as
margens grossas com mudas e arbustos. Um fazendeiro com quem ele tinha falado quando
estava fazendo uma escolta no dia anterior, tinha dito seus nomes — Dividing Brook,
Spotswood Middle Brook e Spotswood North Brook — mas Ian não tinha muita certeza de que
sabia qual era esse.
O solo aqui era largo e baixo; o riacho corria para um local que parecia uma espécie de
imersão, e ele se virou; era um terreno ruim tanto para um homem quanto para um cavalo. Um
dos fazendeiros chamara as ravinas de “pântanos”, e ele achou que era uma boa palavra. Ele
olhou acima do riacho, procurando por bons lugares com água, mas a ravina era muito íngreme.
Um homem talvez conseguisse atravessar, com água até a cintura, mas os cavalos e mulas, não.
Ian os sentiu antes de vê-los. A sensação de um animal de caça, encontrando-se escondido
na mata, esperando que a presa descesse para beber água. Ele virou seu cavalo rapidamente e
cavalgou ao longo da margem do riacho, observando as árvores do outro lado.
Movimento, uma cabeça de cavalo se agitando contra as moscas. O vislumbre de um rosto
— rostos — pintado, como o seu.
Um arrepio de alarme se espalhou pela sua espinha e o instinto o fez se abaixar contra o
pescoço do cavalo, quando a flecha passou acima de sua cabeça. Ela se fixou, tremendo, em uma
figueira próxima.
Ele se endireitou, seu próprio arco na mão, encaixou uma flecha no mesmo movimento, e
a mandou de volta, mirando cegamente para o ponto onde os tinha avistado. A flecha arrancou
folhas enquanto voava, mas não se fixou em nada — ele não esperava que o fizesse.
— Mohawk! — Veio um grito irrisório do outro lado, e algumas poucas palavras em uma
língua que ele não entendia, mas cuja intenção era clara o suficiente. Ele fez um gesto muito
escocês, cujo sentido também era claro, e os deixou rindo.
Ele parou para retirar a flecha da figueira. Adornadas com penas da cauda de um pica-pau
verde, mas não num padrão que ele conhecia. O que quer que eles estivessem falando, não era
uma língua algoquiana. Poderia ser algo mais ao norte, como Assiniboine — ele saberia, se desse
uma boa olhada neles — mas poderia ser algo mais próximo.
Muito provavelmente trabalhando para o exército britânico, entretanto. Ele conhecia a
maior parte dos batedores indígenas que trabalhavam para os Rebeldes. E, embora eles não
estivessem tentando matá-lo — eles poderiam ter feito isso, facilmente, se realmente quisessem
—, aquilo era uma provocação maior do que se esperaria. Talvez apenas por eles o terem
reconhecido pelo que ele era.
Mohawk! Para alguém que falava inglês, era mais fácil do que dizer “Kahnyen’kehaka”.
Para qualquer uma das tribos que conheciam os Kahnyen’kehaka, aquela podia ser tanto uma
palavra para assustar as crianças como um insulto calculado. “Comedor de homem” era o
significado, já que os Kahnyen’kehaka eram conhecidos por assar os seus inimigos vivos e
devorar a sua carne.
Ian nunca tinha visto tal coisa acontecendo, mas ele conhecia homens — homens velhos
— que já tinham visto e falariam sobre o assunto com prazer. Ele não se importava em pensar
sobre isso, pois trazia à sua memória muito vividamente a noite em que o padre tinha morrido
em Snaketown, mutilado e queimado vivo — a noite que tinha, inadvertidamente, tirado Ian de
sua família e o tornado um Mohawk.
A ponte estava riacho acima, talvez a uns sessenta metros de onde ele estava. Ele parou,
mas a floresta do outro lado estava silenciosa, e ele se aventurou a atravessar, os cascos de seu
cavalo batendo cuidadosamente nas placas de madeira. Se havia batedores britânicos ali, o
exército não estava muito longe.
Havia amplas clareiras além da floresta do outro lado, e além destas clareiras, os campos
de uma fazenda de bom tamanho; ele podia ver um pouco dos prédios através das árvores — e
o movimento de homens. Ele se virou rapidamente, circulando o bosque e saindo num terreno
aberto o suficiente para poder enxergar.
Havia soldados de casaco verde enfileirados além dos prédios da fazenda, e ele podia
sentir o cheiro de enxofre no ar pesado. Granadeiros.
Ele virou seu cavalo e voltou, para encontrar alguém a quem pudesse contar o que tinha
visto.
Embora não estivesse ansioso para ser removido para algum tipo de prisão, John Grey estava
começando a desejar pelo menos a solidão. Fergus Fraser e seu filho tinham insistindo em
permanecer com ele até que alguém aparecesse. Presumivelmente para que pudessem dizer a
Jamie como ele seria eliminado.
Ele estava peculiarmente desinteressado em relação aos métodos e meios dessa
eliminação, esperando o seu desenvolvimento. Ele queria a solidão para poder contemplar
sobre a presença de Percy Wainwright, bem como os seus motivos e sua possível ação. Com La
Fayette, ele dissera. Conselheiro. John estremeceu ao pensar que tipo de conselho poderia ser
dado por aquele... e o que ele queria com Fergus Fraser?
Ele olhou para o referido impressor, presentemente engajado numa discussão com seu
precoce rebento.
— Você fez isso! — Germain encarou seu pai, com o rosto vermelho de justa indignação.
— Você mesmo me disse, uma dezena de vezes! Como você foi para a guerra com Grandpère, e
esfaqueou um homem na perna, e montou em um canhão quando os soldados o estavam
transportando de volta para Prestonpans... e você nem era tão velho quanto eu sou agora
quando fez tudo isso!
Fergus parou por um instante, encarando seu filho pelos olhos estreitos, obviamente se
arrependendo de sua prévia prolixidade. Ele respirou constantemente pelo nariz por um
momento e depois assentiu.
— Isso foi diferente — ele disse uniformemente — Eu era empregado de milorde na
época, não seu filho. Eu tinha o dever de atendê-lo; ele não tinha responsabilidade alguma de
me impedir de fazer isso.
Germain piscou, franzindo o cenho com incerteza.
— Você não era seu filho?
— É claro que não — Fergus disse, exasperado. — Se eu te contei sobre Prestonpans,
certamente também contei que era um órfão em Paris quando conheci seu grandpère. Ele me
contratou para bater carteiras para ele.
— Ele o fez? — John não tinha a intenção de interromper, mas não conseguiu evitar.
Fergus olhou para ele, assustado; evidentemente ele não tinha notado a presença de John,
focado como estava em Germain. Ele fez uma reverência.
— Sim, meu senhor. Nós éramos jacobitas, entende? Ele precisava de informações. Cartas.
— Oh, de fato — John murmurou, e tomou um gole de sua garrafa. Então, relembrando
suas maneiras, ofereceu para Fergus, que piscou em surpresa, mas aceitou com outra
reverência e tomou um gole. Bem, devia ser um trabalho extenuante, perseguir uma criança
errante por um exército. Ele pensou brevemente em Willie, e agradeceu a Deus por seu filho
estar a salvo... Ele estava, não?
Ele sabia que William certamente deixara a Filadélfia quando Clinton retirou o exército —
talvez como um ajudante de campo não combatente de um oficial superior. Mas ele não tinha
pensado nisso com o presente fato de que o General Washington estava agora perseguindo
Clinton e poderia possivelmente o encontrar. E neste caso William...
Aqueles pensamentos o distraíram do tête-à-tête que ocorria, e ele foi afastado deles por
uma pergunta feita por Germain.
— Eu? Oh... dezesseis. Eu teria ido para o exército mais cedo — John adicionou
apologeticamente — se o regimento de meu irmão já estivesse formado, mas ele só o completou
durante o Levante Jacobita — Ele olhou para Fergus com interesse. — Você estava em
Prestonpans, certo?
Aquela deveria ter sido sua primeira batalha, também — e tinha sido, exceto pelo fato de
ele ter encontrado Red Jamie Fraser, um notório jacobita, em uma montanha duas noites antes.
— Você matou alguém? — Germain exigiu.
— Não em Prestonpans. Mais tarde, em Culloden. Eu gostaria de não tê-lo feito. — Ele
esticou a mão para a garrafa. Estava quase vazia, e ele a secou.
Um momento depois, ele estava feliz por sua celeridade; se ele ainda não tivesse drenado
a garrafa, poderia ter sufocado. A borda da tenda se dobrou para trás, e Percy Wainwritgh/
Beauchamp colocou a cabeça ali, depois congelou em surpresa, os olhos escuros dardejando de
um para outro dos habitantes da tenda.
John teve um impulso de jogar a garrafa vazia nele, mas pensou melhor, e disse friamente:
— Eu peço que me perdoe, senhor. Estou ocupado.
— Eu notei. — Percy não olhou para John. — Sr. Fergus Fraser — ele disse suavemente,
entrando na tenda com a mão esticada — Seu criado, senhor. Comment ça va?
Fergus, incapaz de evitá-lo, apertou sua mão com reservas e se inclinou suavemente, mas
sem dizer nada. Germain fez um ruído gutural com a garganta, mas desistiu quando seu pai lhe
lançou um olhar afiado.
— Eu estou feliz por finalmente tê-lo encontrado em particular, Monsieur Fraser — Percy
disse, ainda falando em francês. Ele sorriu o mais charmosamente possível — Monsieur... você
sabe quem é?
Fergus o encarou pensativamente.
— Poucos homens conhecem a si mesmos, monsieur — ele disse. — De minha parte, eu
estou inteiramente inclinado a deixar este conhecimento a Deus. Ele pode lidar com isso melhor
do que eu poderia. E chegando a esta conclusão, eu acredito que isso é tudo o que eu tenho a
dizer. Pardonnez-moi.
Com isso, ele passou por Percy, pegando-o fora de guarda e fazendo-o perder o equilíbrio.
Germain se virou da borda da tenda e mostrou a língua.
— Sapo detestável! — Ele disse, e depois desapareceu com um pequeno grito quando seu
pai o empurrou através da aba.
Percy perdera um de seus sapatos com fivela de prata ao tentar ficar de pé. Ele tirou a
terra e a matéria vegetal de suas meias e colocou os pés dentro do sapato, os lábios
comprimidos e um rubor bastante atraente aparecendo em suas bochechas.
— Você não deveria estar com o exército? — John perguntou. — Certamente você queria
estar lá, se Washington se encontrar com Clinton. Eu imagino que os seus “interesses” vão
querer um relatório completo de uma testemunha ocular, não?
— Cale a boca, John — Percy disse brevemente —, e escute. Eu não tenho muito tempo.
— Ele se sentou no banco com um baque, cruzou as mãos no joelho, e olhou atentamente para
John, como se avaliasse sua inteligência — Você conhece um homem, um oficial britânico,
chamado Richardson?
Fergus caminhou através das ruínas deixadas pelo êxodo do exército, segurando Germain
firmemente pela mão. Os seguidores de acampamento e os homens que tinham sido deixados
para trás por não se encaixarem, estavam trabalhando na recuperação, e ninguém deu mais do
que um olhar para os Frasers. Ele só podia esperar que o cavalo estivesse onde ele o havia
deixado. Ele tocou a pistola em sua camisa, apenas para garantir.
— Sapo? — Ele disse para Germain, sem se importar em tirar a diversão de sua voz. —
Maldito sapo, você disse?
— Bem, ele é, papai. — Germain parou de andar de repente, livrando a mão. — Papai, eu
preciso voltar.
— Por quê? Esqueceu alguma coisa? — Fergus olhou sobre o ombro para a tenda, sentindo
um mal-estar entre as omoplatas. Beauchamp não poderia forçá-lo a ouvir, quanto menos fazer
alguma coisa que ele não quisesse, mas ainda assim ele tinha grande aversão pelo homem. Bem,
poderia chamar de medo; ele raramente se incomodava em mentir para si mesmo. Então por
que ele devia temer um homem como aquele...
— Não, mas... — Germain lutou para escolher entre vários pensamentos que estavam
claramente tentando emergir ao mesmo tempo. — Grandpère me pediu para ficar com sua
senhoria se Monsieur Beauchamp viesse, para que eu ouvisse o que ele diz.
— Sério? E ele disse o porquê?
— Não. Mas disse isso. E, também, eu era... eu sou... o servo de sua senhoria, seu ordenança.
Eu tenho a obrigação de atendê-lo. — O rosto de Germain estava comoventemente sério, e
Fergus sentiu seu coração se apertar um pouco. Ainda assim...
Fergus nunca dominara a forma escocesa de fazer barulhos brutos mas eloquentes com a
garganta — ele os invejava — mas não era ruim com as comunicações similares feitas com o
nariz.
— De acordo com o que os soldados disseram, ele é um prisioneiro de guerra. Você
pretende acompanhá-lo para qualquer masmorra ou porão onde eles o colocarem? Porque eu
acho que a Mamãe iria até você e o arrancaria de lá através da pele de sua nuca. Venha comigo,
ela está muito preocupada e esperando para ouvir que você está a salvo.
A menção a Marsali teve o efeito esperado; Germain abaixou a cabeça e mordeu o lábio.
— Não, eu não... quero dizer, eu não vou... bem, mas, papai! Eu só preciso ir até lá e me
certificar de que Monsieur Beauchamp não está fazendo nada de mal a ele. E talvez ver se ele
tem comida antes de partirmos — ele adicionou. — Você não quer que ele morra de fome, não
é?
— Milorde parecia razoavelmente bem nutrido — Fergus disse, mas a urgência no rosto
de Germain o fez dar um passo relutante em direção à tenda. Germain brilhou pelo alívio e pela
emoção, pegando a mão de seu pai de novo. — Por que você acha que Monsieur Beauchamp
pretende machucar sua senhoria? — Fergus perguntou, segurando Germain por um momento.
— Porque sua senhoria não gosta dele, e nem Grandpère — o garoto disse brevemente. —
Vamos, papai! Sua senhoria está desarmada, e quem sabe o que aquele sodomita tem em seu
bolso?
— Sodomita? — Fergus parou de andar.
— Oui, Grandpère disse que ele é um sodomita. Vamos! — Germain estava praticamente
frenético agora e puxou seu pai por pura força de vontade.
Sodomita? Bem, isso era interessante. Fergus, observador e muito experiente nos caminhos
do mundo e do sexo, tinha há algum tempo tirado suas próprias conclusões em relação às
preferências de Lord Grey, mas naturalmente não tinha mencionado isso a Jamie, já que o inglês
era um dos melhores amigos de seu pai. Será que ele sabia? Independentemente disso, o fato
fazia com que o relacionamento de sua senhoria com esse tal de Beauchamp fosse muito mais
complexo, e ele se aproximou da tenda com um elevado senso de curiosidade e de cautela.
Ele estava preparado para colocar sua mão sobre os olhos de Germain e arrastá-lo para
longe, se alguma coisa desagradável estivesse acontecendo na tenda, mas antes que eles se
aproximassem o suficiente para espiar pela abertura, ele viu a lona estremecer de uma forma
estranha e puxou Germain para trás.
— Arrête — ele disse suavemente. Ele não conseguia imaginar até mesmo a mais
depravada prática sexual fazer com que a tenda se comportasse daquele jeito e, gesticulando
para que Germain ficasse ali, ele se moveu nas pontas dos pés para um dos lados, mantendo
uma pequena distância entre os escombros do acampamento.
Lord John estava se contorcendo para fora da borda traseira da tenda, xingando baixinho
em alemão. Com os olhos nessa exposição peculiar, Fergus não notou que Beauchamp emergia
da frente da tenda até ouvir a exclamação de Germain e virar para encontrar o garoto atrás de
si. Ele estava impressionado com a habilidade de Germain para se mover silenciosamente, mas
este não era o momento para elogios. Ele gesticulou para seu filho e se afastou um pouco,
escondendo-se atrás de uma pilha de barris de seiva.
Beauchamp, com a face corada, afastou-se rapidamente, limpando o joio dos babados
elegantes de seu casaco. Lord John, lutando para se levantar, partiu na outra direção, para a
floresta, sem se importar com a própria roupa, e não era de se admirar. O que diabos o homem
andara fazendo, vestido de tal maneira?
— O que devemos fazer, papai? — Germain sussurrou.
Fergus hesitou apenas por um momento, olhando para Beauchamp. O homem estava indo
em direção a um grande prédio, provavelmente o centro de comando do General Washington.
Se Beauchamp estava com o exército Continental, poderia ser encontrado novamente — se isso
fosse necessário.
— Devemos seguir Lord John, papai? — Germain estava vibrando com ansiedade, e Fergus
colocou a mão no ombro do garoto para acalmá-lo.
— Não — ele disse, firmemente, mas com algum pesar, já que ele mesmo estava bastante
curioso. — Claramente ele tem negócios urgentes a fazer, e nossa presença poderia lhe causar
mais danos do que ajuda.
Ele não adicionou que Lord John quase certamente estava indo para o campo de batalha
— se é que existia um. Tal observação só serviria para deixar Germain mais ansioso.
— Mas... — Germain tinha o senso de sua mãe da teimosia escocesa, e Fergus reprimiu um
sorriso ao ver suas pequenas sobrancelhas loiras se juntarem na expressão exata de Marsali.
— Ele vai procurar por seu grandpère ou por seus compatriotas — Fergus apontou. —
Qualquer um poderá tomar conta dele, e em nenhum dos casos nossa presença seria útil para
ele. E a sua mãe vai nos assassinar se não retornarmos para a Filadélfia dentro de uma semana.
Ele também não mencionou que o pensamento em Marsali e as outras crianças sozinhas
na tipografia causava-lhe um grande mal-estar. O êxodo do exército britânico e de uma horda
de Legalistas não deixara a Filadélfia mais segura, de forma alguma. Havia muitos saqueadores
e homens fora-da-lei que tinham se mudado para lá de modo a coletar os restos de quem tinha
fugido — e ainda havia muitos simpatizantes dos Legalistas que não admitiam isso
abertamente, mas ainda poderiam agir facilmente por trás dos panos.
— Vamos — ele disse mais gentilmente, e pegou Germain pela mão — Vamos precisar
encontrar um pouco de comida para o caminho.
John Grey caminhou pela floresta, tropeçando aqui e ali por ter somente um olho útil; o chão
nem sempre estava onde ele pensava.
Uma vez longe do acampamento, ele não fez esforço algum para ficar fora de vista; Claire
tinha envolvido seu olho com tiras de algodão e enfaixado sua cabeça de forma profissional com
uma bandagem de gaze para manter o algodão no lugar. Isso protegeria o olho machucado ao
mesmo tempo que permitia que o ar secasse a pele ao seu redor, ela disse. Ele supôs que
estivesse funcionando — suas pálpebras não estavam tão doloridas e em carne viva como antes,
apenas um pouco pegajosas — mas no momento ele estava feliz por parecer apenas um homem
ferido deixado para trás pelo exército americano. Ninguém iria pará-lo para fazer perguntas.
Bem, ninguém exceto seus antigos companheiros do 16º Regimento da Pensilvânia, se ele
tivesse a má sorte de encontrá-los. Só Deus sabia o que eles pensaram quando ele se rendeu a
Jamie. Ele se sentia mal por isso — eles tinham sido muito gentis com ele e deviam sentir que
sua bondade fora traída na revelação da identidade dele, mas não havia uma maldita escolha
sobre isso.
Não havia muita escolha sobre isso, também.
— Eles pretendem levar o seu filho. — Provavelmente esta era a única coisa que Percy
poderia ter dito para fazê-lo atender.
— Eles quem? — Ele disse bruscamente, sentando-se. — Levá-lo para onde? E para quê?
— Os americanos. Quanto ao motivo... por causa de você e do seu irmão. — Percy olhara
para ele, balançando a cabeça — Você tem a mínima noção de seu valor, John?
— Do meu valor para quem? — Ele tinha se levantado, então, balançando-se
perigosamente, e Percy pegou sua mão para estabilizá-lo. O toque foi suave e firme e
assustadoramente familiar. Ele retirou a mão. — Disseram-me que tenho um valor considerável
como bode expiatório, caso os americanos decidam me enformar. — Onde estava a maldita nota
de Hal... Quem a tinha agora? Watson? Smith? General Wayne?
— Bem, isso não vai acontecer, não é mesmo? — Percy pareceu imperturbável ao pensar
na iminente morte de Grey — Não se preocupe. Eu vou ter uma palavrinha.
— Com quem? — Ele perguntou, curioso.
— Com o General La Fayette — Percy disse, adicionando com uma sutil reverência —,
para quem eu tenho a honra de ser um conselheiro.
— Obrigado — Grey disse secamente. — Eu não estou preocupado com a possibilidade de
ser enforcado, pelo menos não neste exato minuto, mas eu quero saber o que diabos você quis
dizer sobre meu filho, William.
— Isso seria muito mais fácil com uma garrafa de porto — Percy disse, com um suspiro
—, mas o tempo não nos permite, infelizmente. Sente-se, pelo menos. Você parece como se
estivesse prestes a cair de cara no chão.
Grey se sentou, com o máximo de dignidade que conseguiu reunir, e olhou para Percy.
— Para colocar a situação da forma mais simples possível, e ela não é simples, garanto a
você, há um oficial britânico chamado Richardson...
— Eu o conheço — Grey interrompeu. — Ele...
— Eu sei que você o conhece. Fique quieto. — Percy fez um gesto com as mãos para ele.
— Ele é um espião americano.
— Ele... o quê?
Por um instante, ele pensou que poderia realmente cair de cara no chão, apesar do fato de
estar sentado, e agarrou a madeira do catre com ambas as mãos para impedir que isso
acontecesse.
— Ele me disse que havia proposto a prisão da Sra. Fraser por distribuir material
insidioso. Foi por isso que eu me casei com ela. Eu...
— Você? — Percy arregalou os olhos para ele. — Você se casou?
— Certamente — Grey disse irritado — Assim como você, ou foi o que me disse. Continue
sobre o maldito Richardson. Há quanto tempo ele está espionando para os americanos?
Percy bufou, mas continuou.
— Eu não sei. Eu fiquei sabendo sobre ele na primavera do ano passado, mas pode ser que
ele já estivesse fazendo isso antes. É um companheiro muito ativo, tenho que admitir. E não fica
contente em meramente coletar as informações e passá-las. Ele é o que se poderia chamar de
provocador.
— Ele não é o único que está provocando. — Grey murmurou, resistindo à vontade de
esfregar seu olho machucado — O que ele quer fazer com William?
Ele estava começando a ter um sentimento desagradável em seu abdômen. Ele tinha dado
a William a permissão para realizar pequenas missões de recolher informações para o Capitão
Richardson, que...
— Colocando da forma mais franca possível, ele tentou mais de uma vez colocar seu filho
numa situação em que ele parecesse simpatizar com os Rebeldes. Eu fiquei sabendo que, no ano
passado, ele o mandou para Grande Pântano Sombrio, na Virgínia, com a intenção de que ele
fosse capturado por um ninho de rebeldes que tinham um baluarte lá... Presumivelmente, eles
tornariam conhecido que ele desertara e estava integrando suas forças, enquanto o mantinham
prisioneiro.
— Para quê? — Grey exigiu. — Você pode se sentar? Olhar para você está me deixando
com dor de cabeça.
Percy bufou de novo e se sentou — não no banco convenientemente posicionado, mas ao
lado de Grey na cama de acampamento, com as mãos nos joelhos.
— Presumivelmente para desacreditar a sua família. Pardloe estava fazendo discursos
inflamados na Câmara dos Lordes na época, em relação à conduta da guerra. — Ele fez um gesto
pequeno e impaciente que John reconheceu, uma vibração rápida dos dedos. — Eu não sei de
tudo, ainda, mas o que eu sei é que ele arranjou para que seu filho fosse levado, durante a viagem
a Nova York. Ele não está se importando com indiretas e política; as coisas mudaram, agora que
a França está na guerra. Isso é uma simples abdução, com a intenção de exigir a sua cooperação
e a de Pardloe na questão do território noroeste e possivelmente algo a mais, pelo preço da vida
de seu garoto.
Grey fechou o seu olho bom, em um esforço para que sua cabeça parasse de girar. Dois
anos antes, Percy tinha abruptamente voltado para sua vida, carregando uma proposta de um
certo “interesse” francês — deixando claro que este “interesse” queria de volta o valioso
território noroeste, atualmente nas mãos da Inglaterra, e, em retorno, auxiliaria com sua
influência para que a França não entrasse na guerra do lado dos americanos.
— As coisas mudaram. — Ele repetiu, com aspereza.
Percy inalou fortemente pelo nariz.
— O Almirante d’Estaing zarpou de Toulon com uma frota, em abril. Se ele já não estiver
desembarcando em Nova York, estará em breve. O General Clinton pode ou não saber sobre
isso.
— Jesus! — Ele cerrou os punhos na moldura da cama, com força o suficiente para deixar
as marcas de suas unhas. Então os malditos franceses tinham oficialmente entrado na guerra.
Eles haviam assinado o Tratado de Aliança com a América em fevereiro, e declararam guerra à
Inglaterra em Março, mas eram só boatos. Navios e canhões e homens custavam dinheiro.
De repente, ele agarrou o braço de Percy, apertando com força.
— E onde você entra nessa história? — Ele disse, com a voz fria — Por que está me dizendo
tudo isso?
Percy respirou fundo, mas não se distanciou. Ele retornou o olhar de Grey, olhos castanhos
claros e diretos.
— Onde eu entro nisso não importa — ele disse. — E não há tempo. Você precisa
encontrar seu filho rapidamente. Quanto ao porquê, eu te digo...
John o viu se aproximar e não se afastou. Percy cheirava a bergamota e laranja e estava
com hálito de vinho tinto. O aperto no braço de Percy diminuiu.
— Pour vos beaux yeux18 — Percy sussurrou contra seus lábios.
E riu, maldito seja!
Seguimos na esteira do exército. Por causa da velocidade da marcha, os soldados tinham sido
instruídos a deixar para trás equipamentos superficiais, e eu tivera que abandonar muitos de
meus suprimentos, também. Ainda assim, eu tinha uma montaria e seria capaz de acompanhar
o ritmo, embora estivesse carregada com tudo o que tinha sido capaz de levar. Afinal de contas,
eu pensei, não faria nenhum sentido eu acompanhar o exército se não tivesse nada com o que
tratar os ferimentos.
Eu tinha carregado Clarence com tudo o que ela poderia transportar. Como ela era uma
mula grande, era uma quantidade substancial, incluindo uma pequena tenda, uma cama
dobrável de acampamento para cirurgia, e tudo o que eu pude empinar no meio, em termos de
bandagens, algodão e desinfetante — eu tinha tanto um pequeno barril de solução salina
purificada quanto várias garrafas de álcool etílico (estas disfarçadas como venenos, com
grandes caveiras pintadas nos rótulos). Também carregava um jarro de azeite doce para
queimaduras, minha caixa de medicamentos, e feixes de ervas secas, grandes frascos de
pomada, e dezenas de pequenas garrafas e frascos de tinturas e infusões já preparadas. Meus
instrumentos cirúrgicos, as agulhas e suturas estavam em sua própria caixa, dentro de uma
mochila com mais rolos de bandagem, para serem carregadas em meu corpo.
Eu deixei Clarence amarrada e fui descobrir onde as tendas do hospital seriam colocadas.
O acampamento estava cheio de não-combatentes e pessoal de apoio, mas eu finalmente fui
capaz de localizar Denny Hunter, que me disse que, com base nos relatórios do General Greene,
os cirurgiões seriam despachados para a aldeia de Freehold, onde havia uma grande igreja que
poderia ser usada como hospital.
— A última coisa que ouvi foi que Lee tinha assumido o comando da força de ataque à
retaguarda britânica e tem a intenção de cercá-los — ele disse, polindo os óculos com a beira
da camisa.
— Lee? Mas eu achei que ele não considerava este um comando importante e não o
pegaria.
Eu não me importava de uma forma ou de outra — exceto que Jamie e sua companhia
estariam engajados nesta missão, e eu tinha minhas próprias dúvidas em relação ao General
Lee.
Denzell deu de ombros, colocando seus óculos de volta e enfiando a camisa para dentro
da calça.
— Aparentemente, Washington decidiu que mil homens eram insuficientes para o seu
propósito e elevou o número para cinco mil, que Lee considerou mais apropriado ao seu... senso
de importância própria.
A boca de Denny se torceu um pouco ao dizer isso. Ele olhou para meu rosto, entretanto,
e tocou meu braço gentilmente.
— Nós podemos colocar nossa fé em Deus... e esperar que o Senhor esteja de olho em
Charles Lee. Você virá comigo e com as garotas, Claire? Sua mula poderá se juntar a nós de bom
grado.
Eu hesitei por não mais do que um segundo. Se eu montasse Clarence, poderia levar
apenas uma fração do equipamento e dos suprimentos que ele poderia carregar. E como Jamie
disse que me queria com ele, eu sabia muito bem que ele se referia ao fato de que queria se
assegurar de onde eu estava, e que eu estaria por perto caso ele precisasse de mim.
— Seu marido pode confiar em mim para cuidar de seu bem-estar — Denny disse,
sorrindo, tendo adivinhado claramente o que eu estava pensando.
— Et tu, Brute? — Eu disse bruscamente e, quando ele piscou, adicionei com mais
civilidade — Eu quero dizer... Todos sabem o que eu estou pensando o tempo todo?
— Oh, eu duvido muito disso — ele disse, e sorriu para mim. — Se assim fosse, imagino
que teriam mais cuidado com o que dizem perto de você.
Eu fui no vagão de Denny com Dottie e Rachel, Clarence em um ritmo impassível
longitudinalmente atrás, atada à traseira da carroça. Dottie estava corada pelo calor e pela
emoção; ela nunca estivera perto de uma batalha antes. Nem Rachel, mas ela já tinha auxiliado
seu irmão durante um inverno muito rigoroso em Valley Forge e tinha muito mais ideia do que
poderia acontecer.
— Você não acha que talvez devesse escrever para sua mãe? — Eu ouvi Rachel perguntar
seriamente. As garotas estavam atrás de mim e de Denny, sentadas na cama do vagão e evitando
que as coisas caíssem quando passávamos por sulcos e poças de lama.
— Não. Por quê? — O tom de Dottie era desconfiado; não exatamente hostil, mas muito
reservado. Eu sabia que ela tinha escrito para contar à mãe que tinha intenção de se casar com
Denzell Hunter, mas nunca recebera uma resposta. Dado às dificuldades de se corresponder
com a Inglaterra, entretanto, não havia como garantir que Minerva Grey tinha lido a carta.
Ocorreu a mim, com um repentino remorso, que eu não escrevia para Brianna há muitos
meses. Eu não tinha sido capaz de suportar escrever sobre a morte de Jamie, e não houvera
tempo desde seu retorno para pensar sobre isso.
— É uma guerra, Dottie — Rachel disse. — Coisas inesperadas podem acontecer. E você
não iria querer que sua mãe... bem... descobrisse que você pereceu sem garantir que ela está em
seu coração.
— Hum! — Disse Dottie, claramente surpresa. Ao meu lado, eu senti Denzell trocar o peso
do corpo, inclinando-se um pouco para frente enquanto pegava as rédeas. Ele olhou de lado
para mim e sua boca se torceu para cima numa expressão que era tanto uma careta quando um
sorriso, reconhecendo que estivera ouvindo a conversa das garotas também.
— Ela se preocupa comigo — ele disse baixinho. — Nunca consigo mesma. — Ele soltou
as rédeas com uma das mãos para passar o nó do dedo sob o nariz. — Ela tem tanta coragem
quanto seu pai e os seus irmãos.
— E tanta teimosia quanto eles, você quer dizer. — Eu disse baixinho, e ele sorriu, apesar
de tudo.
— Sim — Ele disse. Ele olhou sobre o ombro, assim como eu, mas as garotas tinham se
movido para a parte de trás da carroça e estavam conversando com Clarence, espantando as
moscas de sua cara com as agulhas de um longo galho de pinheiro. — Você acha que isso é uma
falta de imaginação em nível familiar? Porque, no caso dos homens da família dela, não pode
ser ignorância das possibilidades.
— Não, certamente não pode ser isso — Concordei, com uma nota de piedade. Eu suspirei
e estiquei um pouco as minhas pernas. — Jamie é do mesmo jeito, e certamente não por falta de
imaginação. Eu acho que é... — Eu fiz um pequeno gesto impotente. — Talvez “aceitação” seja a
palavra.
— Nós discutimos isso, Dorothea e eu. — Ele assentiu em direção às garotas. — Amigos
vivem com o conhecimento de que este mundo é temporário e que não há nada a temer na
morte.
— Alguns, talvez. — De fato, todo mundo nessa época tinha uma aceitação prática da
mortalidade; a morte era uma presença constante nos cotovelos de todos, embora eles
considerassem essa presença de várias maneiras — Mas eles... aqueles homens... o que eles
fazem é diferente, eu acho. É mais uma aceitação da forma como eles acham que foram feitos
por Deus.
— Sério? — Ele pareceu um pouco assustado com isso, e suas sobrancelhas se juntaram
em contemplação — O que você quer dizer com isso? Que eles acreditam que Deus os criou
deliberadamente para...
— Para serem responsáveis por outras pessoas, eu acho. — Eu disse. — Eu não sei se isso
é uma noção de obrigação. Jamie era um senhor de terras na Escócia, sabe? Ou talvez seja
apenas a ideia de que... é isso que um homem deve fazer — eu concluí, sem convicção. Porque
“isso” claramente não era o que Denzell Hunter pensava que um homem devesse fazer. Embora
eu pensasse um pouco nisso. Claramente a resposta o deixou preocupado.
Como deveria, dada a sua posição. Eu podia ver que a perspectiva da batalha o excitava e
que esse fato era um motivo de grande preocupação a ele.
— Você é um homem muito corajoso — Eu disse baixinho, e toquei a manga de sua camisa.
— Eu vi isso. Quando você fez o jogo do desertor de Jamie, depois de Ticonderoga.
— Não era coragem, eu garanto a você — ele disse, com uma risada curta e sem humor.
— Eu não procurava ser corajoso; eu só queria provar que era.
Eu fiz um ruído desrespeitoso — eu não estava no nível de Jamie ou Ian, mas tinha
conseguido pegar alguns trejeitos — e ele olhou surpreso para mim.
— Eu aprecio a distinção — disse a ele. — Mas eu conheci muitos homens corajosos em
meu tempo.
— Mas como você pode saber o que está por trás...
— Fique quieto. — Eu ondulei os dedos para ele — A coragem envolve tudo, desde a
completa insanidade e o descaso sangrento pela vida alheia, que é o caso da maioria dos
generais, até a embriaguez, a imprudência e a idiotice sem rodeios, que é o tipo de coisa que
faria um homem suar e tremer e vomitar... mas mesmo assim, fazer o que tem que fazer. Que é
— eu disse, parando para respirar e cruzando minhas mãos no colo — exatamente o tipo de
coragem que você compartilha com Jamie.
— Seu marido não sua e treme — ele disse secamente. — Eu já o vi. Ou, melhor, eu nunca
o vi fazendo tais coisas.
— Ele sua e treme por dentro, na maioria das vezes — repliquei. — Embora ele realmente
vomite antes, ou durante, uma batalha.
Denzell piscou, uma vez, e não falou por um tempo, absorvido — aparentemente — em
passar por um grande vagão de feno cujos bois de repente decidiram não continuar e pararam
no meio da estrada.
Por fim, ele inspirou e exalou explosivamente.
— Eu não tenho medo de morrer — ele disse. — Essa não é a minha dificuldade.
— Qual é? — Perguntei, curiosa. — Você tem medo de ser mutilado e ficar indefeso? Eu
certamente teria esse medo.
— Não — Sua garganta se moveu quando ele engoliu. — É por causa de Dorothea e Rachel.
Eu receio que não teria a coragem de deixá-las morrer sem tentar salvá-las, mesmo que isso
significasse matar alguém.
Eu não conseguia pensar em nada para dizer a isso, e nós continuamos sacudindo em
silêncio.
As tropas de Lee deixaram Englishtown às seis da manhã, indo para o leste, em direção ao
Palácio de Justiça de Monmouth. Lee chegou à Corte por volta das nove e meia, para descobrir
que a maior parte do exército britânico tinha partido — presumivelmente se movendo em
direção à Middletown, já que era pra lá que a estrada levava.
Lee foi impedido de seguir, porém, pela presença de uma pequena mas beligerante
retaguarda sob comando do General Clinton. Ou foi o que Ian disse a Jamie, tendo chegado perto
o suficiente para ver os pavilhões do regimento. Jamie tinha comunicado essa informação a Lee,
mas não viu evidências de que isso tenha afetado os planos do cavalheiro (sempre assumindo
que ele tivesse um plano) ou sua pouca inclinação para mandar mais batedores para fazer um
reconhecimento.
— Rodeie este monte e veja se consegue descobrir onde está Cornwallis — Jamie disse a
Ian. — Os granadeiros que você viu são provavelmente hessianos, então eles estarão perto de
von Knyphausen.
Ian assentiu e pegou o cantil cheio que Jamie ofereceu a ele.
— Devo contar ao General Lee, se eu o vir? Ele não pareceu muito interessado no que eu
tinha a dizer.
— Sim, diga a ele se você o vir antes de me encontrar... Diga ao marquês, também, se ele
estiver ao seu alcance, mas me encontre de qualquer forma, sim?
Ian sorriu para ele e pendurou o cantil em seu pescoço. — Boa caçada, Bhràthair-
mathàr19!
Jamie tinha duas companhias de sangue quente na metade da manhã, escaramuçadas
perto do Palácio de Justiça de Monmouth, mas ainda não havia nenhum morto e apenas três
estavam feridos o suficiente para se aposentar. Coronel Owen tinha requisitado cobertura para
sua artilharia — apenas dois canhões, mas qualquer artilharia era bem-vinda — e Jamie tinha
enviado os pensilvanos de Thomas Meleager para lidar com aquilo.
Ele enviara uma das companhias do Capitão Kirby para fazer um reconhecimento em
direção ao que ele pensava ser o riacho e manteve o restante, esperando pelas ordens de La
Fayette ou Lee. La Fayette estava em algum lugar à frente dele, Lee bastante para trás e para o
leste, com o corpo principal de suas tropas.
O sol estava na altura das dez horas da manhã quando um mensageiro apareceu, agachado
dramaticamente em sua sela como se estivesse atravessando um tiroteio, embora na realidade
não tivesse um único soldado britânico à vista. Ele puxou as rédeas de seu cavalo, fazendo-o
parar, e passou o recado, ofegante.
— Há nuvens de poeira a leste... pode ser que estejam chegando mais casacas vermelhas!
E o marquês disse que há canhões dos casacas vermelhas no pomar de cidra, senhor, e
perguntou o que você vai fazer em relação a isso, por favor.
O mensageiro suado engoliu ar, soltando as rédeas em óbvia preparação para correr
novamente. Jamie se inclinou e tomou a rédea do cavalo para impedi-lo.
— Onde é o pomar de cidra? — Ele perguntou calmamente. O mensageiro era jovem,
talvez com dezesseis anos, e tinha olhos arregalados, bem como seu cavalo ossudo.
— Não sei, senhor — ele disse e começou a olhar de um lado para o outro, como se
esperasse que o pomar se materializasse de repente na clareira onde eles estavam.
Uma explosão repentina e distante reverberou pelos ossos de Jamie, e as orelhas de seu
cavalo se mexeram para cima.
— Esqueça, rapaz — ele disse. — Eu os escuto. Deixe seu cavalo respirar, ou ele
provavelmente morrerá antes que o sol esteja alto no céu.
Soltando as rédeas, ele acenou para o Capitão Craddock e virou seu próprio cavalo na
direção do som do canhão.
O exército americano tinha muitas horas de vantagem à sua frente, e o exército britânico ainda
mais — mas um homem sozinho podia se mover com muito mais velocidade do que uma
companhia, até mesmo de infantaria leve. E John não estava sobrecarregado por armas. Ou por
comida. Ou água.
Você sabe perfeitamente bem que ele está mentindo para você.
Eram talvez oito horas da manhã quando chegamos a Freehold, onde a igreja seria estabelecida
como o hospital principal. Era um grande prédio, situado no meio de um enorme cemitério que
se alastrava, um hectare ou mais de terra na qual as lápides eram tão individuais quanto seus
proprietários tinham sido em vida. Não havia corredores de cruzes brancas e uniformes por
aqui.
Eu separei um pensamento para as covas da Normandia e me perguntei se aquelas fileiras
atrás de fileiras de mortos sem face tinham sido feitas para impor uma espécie de organização
pós-morte à custa da guerra — ou se ele tinha sido feito para destacar essas mortes, uma
contabilidade solene distribuída em fileiras intermináveis de vazio e cruzes.
Mas eu não mantive o pensamento por muito tempo. A batalha já estava começando agora
— em algum lugar — e já havia feridos chegando, um grande número de homens sentados na
sombra de uma grande árvore perto da igreja, e mais vindo pela estrada, alguns cambaleando
com a ajuda de amigos, alguns sendo carregados nas liteiras — ou nos braços de outra pessoa.
Meu coração deu uma guinada com a visão, mas eu tentei não procurar por Jamie ou Ian; se eles
estivessem entre os feridos, eu saberia em breve.
Houve uma agitação perto da varanda da igreja, onde as portas duplas tinham sido abertas
totalmente para permitir a passagem, e enfermeiros e cirurgiões entravam e saíam
apressadamente — mas era uma pressa organizada, até o momento.
— Entre para ver o que está acontecendo — Sugeri a Denzell — As garotas e eu vamos
descarregar as coisas.
Ele parou por um momento suficiente para desengatar suas duas mulas e colocá-las para
pastar, e depois correu para a igreja.
Eu encontrei os baldes e despachei Rachel e Dottie para encontrarem um poço. O dia já
estava desconfortavelmente quente; nós precisaríamos de uma boa quantidade de água, de uma
forma ou de outra.
Clarence mostrava uma imensa vontade de se juntar às mulas de Denny para pastar entre
as lápides, sacudindo a cabeça contra sua corda e proferindo gritos de irritação.
— Tudo bem, tudo bem, tudo bem — Eu disse, apressando-me a desfazer as tiras das
embalagens e pegando sua carga — Espere um... Oh, Deus!
Um homem estava cambaleando em minha direção, quase caindo de joelhos a cada passo
e caindo vertiginosamente. Um lado de seu rosto estava preto, e havia sangue cobrindo seu
uniforme. Eu larguei os pacotes do acampamento e os paus da barraca e corri para pegá-lo pelo
braço antes que ele tropeçasse em uma lápide e caísse de cara na terra.
— Sente-se — Eu disse. Ele parecia confuso e não parecia me ouvir, mas como eu estava
puxando seu braço, ele se abaixou, permitindo que seus joelhos relaxassem abruptamente e
quase me levando junto com ele quando se apoiou numa grande pedra homenageando um tal
de Gilbert Tennent.
Meu paciente estava se balançando como se estivesse prestes a cair, mas ainda assim, uma
verificação rápida não me mostrou ferimentos significativos; o sangue em seu casaco vinha de
seu rosto, onde a pele negra tinha se empolado e partido. Não era apenas a fuligem da pólvora
— a pele tinha realmente se queimado até torrar, a camada de carne abaixo tinha cauterizado,
e meu paciente cheirava assustadoramente como porco assado. Eu forcei meu estômago a se
controlar e parei de respirar pelo nariz.
Ele não respondia às minhas perguntas, mas olhava para minha boca e parecia lúcido,
apesar de continuar se balançando. A ficha finalmente caiu.
— Ex... plo... são? — Eu praticamente soletrei, com exagerado cuidado, e ele assentiu
vigorosamente, depois parou abruptamente, balançando-se tanto que eu tive que segurá-lo pela
manga e endireitá-lo.
Artilheiro, pelo uniforme. Então alguma coisa grande explodira perto dele — um morteiro,
um canhão? — e não apenas havia queimado seu rosto quase até os ossos, mas também
queimado ambas as suas orelhas e perturbado o equilíbrio do ouvido interior. Eu assenti e
ajeitei suas mãos para que agarrasse a pedra onde estava sentado, para mantê-lo no lugar
enquanto eu rapidamente terminava de descarregar Clarence — que estava dando voltas
frustrada; eu deveria ter percebido de cara que o artilheiro estava surdo, já que ele parecia não
perceber que mancava — soltando-a e a deixando que se juntasse às mulas de Denny na sombra.
Eu cavei o que precisava dos pacotes e comecei a fazer o pouco que podia pelo homem ferido, o
que consistia principalmente em umedecer uma toalha em solução salina e aplicá-la em seu
rosto como um cataplasma, para remover o máximo de fuligem possível sem esfregar.
Eu agradeci a Deus pela minha previdência em trazer o jarro de azeite doce para
queimaduras — e amaldiçoei a falta dela por não ter comprado aloe no Jardim dos Bartram.
As garotas ainda não tinham retornado com a água; eu esperava que houvesse algum poço
próximo. Água de riacho tão próxima de um exército não poderia ser usada sem ferver. Aquele
pensamento me fez olhar ao redor por um ponto onde uma fogueira poderia ser acesa e eu fiz
uma nota mental para mandar as garotas buscarem lenha a seguir.
Minha mente foi arrancada de minha lista mental rápida, entretanto, pela repentina
aparição de Denny da igreja. Ele não estava sozinho; ele parecia estar discutindo
apaixonadamente com outro oficial Continental. Com uma breve exclamação de exasperação,
eu procurei em meu bolso e encontrei meus óculos envoltos em seda. Com eles em meu nariz,
o rosto do interlocutor de Denny ficou claro — Capitão Leckie, diplomado pela Faculdade de
Medicina da Filadélfia.
Meu paciente puxou minha saia e, quando eu me virei para ele, apologeticamente abriu a
boca e fez uma mímica de que queria beber. Eu coloquei um dedo para cima, pedindo para que
ele esperasse um momento, e fui ver se Denzell precisava de reforços.
Minha aparição foi recebida por um olhar austero do Capitão Leckie, que olhou para mim
como se estivesse vendo alguma coisa questionável na sola de seu sapato.
— Sra. Fraser — Ele disse friamente. — Eu estava exatamente dizendo ao seu amigo
Quaker que não há lugar dentro desta igreja para mulheres astutas ou...
— Claire Fraser é a cirurgiã mais habilidosa que eu já vi operando! — Denzell disse. Ele
estava corado e bastante eriçado pela raiva. — Você causará muitos danos aos seus pacientes,
senhor, se não permitir que ela...
— E onde você obteve seu treinamento, Dr. Hunter, já que está tão confiante de sua
própria opinião?
— Em Edimburgo — Denny disse através dos dentes cerrados. — Onde fui treinado pelo
meu primo, John Hunter. — Vendo que isso não teve impacto em Leckie, ele adicionou — E pelo
seu irmão, William Hunter, parteiro da rainha.
Aquilo fez Leckie se surpreender, mas infelizmente, também o deixou de nariz empinado.
— Entendo — ele disse, dividindo um leve sorriso de escárnio entre nós. — Eu o
parabenizo, senhor. Mas, como eu duvido que o exército requeira um parteiro, talvez você
devesse auxiliar sua... colega — e, nesse ponto, ele realmente abriu suas narinas em minha
direção, o pomposo suíno — com suas sementes e poções, em vez de...
— Nós não temos tempo para isso. — Eu interrompi firmemente. — Dr. Hunter é, tanto
um médico treinado, quanto um cirurgião devidamente nomeado pelo exército Continental;
você não pode deixá-lo de fora. E se a minha experiência de batalha (que eu me aventuro a
sugerir que deve ser muito mais extensa do que a sua, senhor) estiver correta, você precisará
de toda a ajuda que conseguir. — Eu me virei para Denzell e dei a ele um longo olhar. — Sua
tarefa é com aqueles que precisam de você. Então, é comigo. Eu te falei sobre a triagem, não? Eu
tenho uma tenda e meus próprios instrumentos cirúrgicos e suprimentos. Farei a triagem ali,
para lidar com os casos menores, e enviarei aqueles que precisarem de cirurgias maiores.
Eu olhei sobre o ombro, e depois voltei a olhar para os dois homens fumegantes.
— É melhor que você vá rapidamente para dentro. Eles estão começando a se acumular.
Isso não era uma expressão metafórica. Havia uma multidão de feridos vagando embaixo
das árvores, alguns homens deitados em macas improvisadas e esteiras de lonas... e uma pilha
sinistra de corpos, estes presumivelmente de homens que morreram por causa dos seus
ferimentos enquanto iam para o hospital.
Felizmente, Rachel e Dottie apareceram neste momento, cada uma delas carregando um
balde de água em cada mão. Eu virei as costas para os homens e fui encontrá-las.
— Dottie, venha e arrume os paus da tenda, sim? — Eu disse, pegando os baldes — E
Rachel... você sabe como se parece um sangramento arterial, eu imagino. Vá procurar entre os
homens e me traga os que apresentem esse problema.
Eu dei água ao meu artilheiro queimado, e depois o ajudei a se levantar. Quando ele ficou
de pé, eu vi entre suas pernas o epitáfio gravado na lápide de Gilbert Tennent: SE O LEITOR
TIVESSE OUVIDO O ÚLTIMO TESTEMUNHO DESTE HOMEM, ESTARIA CONVENCIDO DA
EXTREMA LOUCURA DE POSTERGAR O ARREPENDIMENTO.
— Eu suponho que há lugares piores para fazer isso — Comentei com o artilheiro, mas,
incapaz de me ouvir, ele simplesmente levantou minha mão e a beijou antes de se balançar para
sentar na grama, a toalha úmida pressionada em seu rosto.
75 – O POMAR DE CIDRA
O primeiro tiro os pegou de surpresa, uma explosão abafada do pomar de cidra e uma lenta
fileira de fumaça branca. Eles não correram, mas se enrijeceram, olhando para ele por
instruções. Jamie disse para aqueles próximos a ele — Bons rapazes — e depois levantou a voz
— Para a minha esquerda, agora! Sr. Craddock, Reverendo Woodsworth, quero que vocês os
cerquem; entrem no pomar pela retaguarda. O restante deve se dispersar para a direita e atirar
o máximo que puder.
A segunda explosão afogou suas palavras, e Craddock se sacudiu como uma marionete
cujas cordas foram cortadas e caiu no chão, o sangue jorrando do buraco negro em seu peito. O
cavalo de Jamie recuou violentamente, quase o derrubando.
— Vão com o reverendo! — Ele gritou para os homens de Craddock, que encaravam o
corpo do capitão boquiabertos — Vão agora!
Um dos homens se sacudiu, agarrou a manga do outro e o puxou, e então todos eles
começaram a se mover como se fossem um só. Woodsworth, Deus o abençoe, ergueu seu
mosquete acima da cabeça e rugiu: — Comigo! Sigam-me! — e invadiu a multidão
desorganizada de pernas de cegonha que passavam por ele correndo, mas eles o seguiram.
O cavalo tinha se acalmado, mas ainda se movia inquieto. Ele estava — supostamente —
acostumado ao barulho das armas, mas não gostava do forte cheiro de sangue. Jamie também
não.
— Nós não deveríamos... enterrar o Sr. Craddock? — Uma voz tímida sugeriu por trás dele.
— Ele não está morto, seu desmiolado!
Jamie olhou para baixo. Ele não estava — mas não demoraria mais do que alguns
segundos.
— Vá com Deus, homem — ele disse baixinho. Craddock não piscou; seus olhos estavam
fixos no céu, ainda não opacos, mas cegos.
— Vão com os seus companheiros — ele disse aos dois soldados que permanecerem, e
então percebeu que eles eram os dois filhos de Craddock, com talvez treze e quatorze anos, com
os rostos pálidos e parecendo ovelhas. — Digam adeus a ele — ele disse abruptamente. — Ele
ainda pode ouvi-los. E depois... vão. — Ele pensou por um momento se não deveria mandá-los
para La Fayette, mas não seria mais seguro lá — Corram!
Eles correram — eles eram ótimos corredores — e com um gesto para os Tenentes Orden
e Bixby, ele virou o cavalo para a direita, seguindo a companhia de Guthrie. O canhão estava
disparando mais regularmente do pomar. Ele viu uma bola quicar ali perto, a uns três metros
de distância, e o ar estava espesso por causa da fumaça. Ele ainda podia sentir o cheiro do
sangue de Craddock.
Ele encontrou o Capitão Moxley e o enviou com uma companhia inteira para a fazenda do
outro lado do pomar.
— Fiquem à distância. Eu quero saber se os casacas vermelhas estão lá dentro ou se a
família permanece na casa. Se a família ainda estiver lá dentro, circulem a casa; entrem se eles
permitirem, mas não forcem a passagem. Se houver soldados dentro da casa e eles saírem atrás
de vocês, prendam-nos e tomem a casa se possível. Se os soldados estiverem dentro da casa,
não façam nada; mandem alguém de volta para mim. Eu estarei atrás do pomar; ao norte.
Guthrie estava esperando por ele, os homens deitados na grama atrás do pomar. Ele
deixou os dois tenentes com seu cavalo, que ele atou a uma cerca fora do alcance do pomar, e
se arrastou junto com a companhia, mantendo-se abaixado. Ele caiu de barriga ao lado de Bob
Guthrie.
— Eu preciso saber onde estão os canhões... a sua localização exata e quantos são. Envie
três ou quatro homens em diferentes direções, que sejam sagazes, entende o que quero dizer?
Sim. Eles não farão nada; só verão o que conseguirem e voltarão, rápido.
Guthrie estava ofegante como um cachorro, o rosto mal barbeado inundado de suor, mas
ele riu e assentiu e continuou o seu caminho rastejando pela grama.
O prado estava seco, marrom e quebradiço pelo calor do verão; as meias de Jamie
pinicavam por causa do capim, e o cheiro quente e acentuado de feno maduro era mais forte do
que o da pólvora.
Ele bebeu água de seu cantil; estava quase vazio. Não era nem meio-dia, mas o sol estava
descendo sobre eles como um ferro de passar. Ele se virou para dizer a um dos tenentes que o
estavam seguindo para que eles encontrassem água, mas nada se movia na grama atrás dele a
não ser as centenas de gafanhotos, zumbindo como faíscas. Cerrando os dentes contra a rigidez
em seus joelhos, ele continuou andando com o auxílio dos pés e das mãos e voltou em direção
ao seu cavalo.
Orden estava caído a uns três metros de distância, alvejado em um dos olhos. Jamie
congelou por um instante, e alguma coisa passou perto de sua bochecha. Poderia ser um
gafanhoto ou não. Ele estava deitado na grama ao lado do tenente morto, o coração batendo no
ouvido, antes que o pensamento estivesse completamente formado.
Guthrie. Ele não ousou levantar sua cabeça para chamá-lo — mas teria que fazer isso. Ele
colocou os pés abaixo de si da melhor forma que podia, se atirou para fora da grama e correu
como um coelho, de um lado para o outro, ziguezagueando para fora do pomar da melhor forma
que podia, mas continuando a ir para a direção que tinha dado a Guthrie.
Ele podia ouvir os tiros agora: havia mais do que um franco-atirador no pomar,
protegendo o canhão, e o som era o de um rifle. Caçadores? Ele se jogou na grama e rastejou
loucamente, agora gritando por Guthrie.
— Aqui, senhor! — O homem apareceu de repente ao lado dele como uma marmota, e
Jamie segurou a manga de Guthrie, puxando-o de volta para baixo.
— Traga... seus homens de volta. — Ele engoliu ar. — Há atiradores... no pomar. Daquele
lado. Eles serão atingidos.
Guthrie estava olhando para ele, a boca semi-aberta.
— Pegue-os!
Sacudido para fora de seu choque, Guthrie assentiu como uma marionete e começou a se
levantar. Jamie o bem pelo tornozelo e o fez se abaixar, pressionando-o com uma mão nas
costas.
— Não... se levante — Sua respiração estava lenta e ele conseguiu falar calmamente. —
Ainda estamos ao alcance das armas aqui. Pegue seus homens e saia com sua companhia de
volta para a linha do cume. Junte-se ao Capitão Moxley; diga a ele para voltar e se reunir
comigo... — Sua mente ficou em branco por um momento, tentando pensar em algum lugar
razoável para um encontro. — ao sul da fazenda. Com a companhia de Woodbine — Ele tirou
sua mão de Guthrie.
— Sim, senhor. — O homem se arrastou sobre as mãos e os joelhos, esticando a mão para
pegar o chapéu que tinha caído.
Ele olhou de volta para Jamie, os olhos cheios de séria preocupação.
— Você está muito ferido, senhor?
— Ferido?
— Há sangue em todo o seu rosto, senhor.
— Não é nada. Vá!
Guthrie engoliu, assentiu, limpou o rosto com a manga, e continuou rastejando pela grama,
o mais rápido que podia. Jamie colocou a mão em seu próprio rosto, tardiamente ciente de um
leve ferimento em sua bochecha. Certamente, seus dedos voltaram sangrentos. Não era um
gafanhoto, então.
Ele limpou os dedos na barra do seu casaco e notou mecanicamente que a costura da
manga tinha se queimado no ombro, exibindo a camisa branca abaixo. Ele se levantou um pouco
mais, cauteloso, olhando ao redor em busca de Bixby, mas não havia sinal dele. Talvez estivesse
morto no gramado também; ou talvez não. Com sorte, ele teria visto o que estava acontecendo
e corrido de volta para advertir as companhias que se dirigiam para lá. O cavalo ainda estava
onde ele havia deixado, graças a Deus, atado a uma cerca, a uns 45 metros de distância.
Ele hesitou por um momento, mas não havia tempo a perder na procura de Bixby.
Woodsworth e suas duas companhias estariam voltando do pomar em poucos minutos, e
estariam ao alcance dos rifles alemães. Ele se levantou e correu.
Alguma coisa puxou seu casaco, mas ele não parou, e alcançou seu cavalo, lutando para
respirar.
— Tiugainn! — ele disse, balançando-se na sela. Ele se virou para longe do pomar e
galopou através de uma plantação de batata, embora ferisse seu coração de fazendeiro ver o
que a passagem do exército já tinha causado.
Eu não sei quando os médicos começaram a chamar aquilo de “a hora de ouro”, mas certamente
todos os médicos de campo de batalha desde a época da Ilíada conheciam a teoria. Quando um
acidente ou lesão não são imediatamente fatais, as chances de vida da vítima são maiores se o
tratamento é recebido dentro de uma hora da ocorrência desta lesão. Após esse período, com o
choque, a contínua perda de sangue e a debilidade por causa da dor... a chance de salvar um
paciente vai acentuadamente diminuindo.
Adicionando a isso as temperaturas infernais, a falta de água e o estresse de correr pelos
campos e florestas, usando suéteres surrados e carregando armas pesadas, inalando fumaça de
pólvora e tentando matar alguém ou evitar ser morto, pouco antes de ser ferido, imaginei que
nós estávamos enfrenteando os quinze minutos de ouro ou menos.
Dado ao fato de que os feridos estavam sendo carregando ou tinham que caminhar —
provavelmente mais de um quilômetro — para um lugar onde pudessem encontrar
assistência... Eu supus que estávamos fazendo o melhor para salvar o máximo de pessoas
possível. Mesmo que temporariamente, acrescentei severamente para mim mesma, ouvindo os
gritos dos homens dentro da igreja.
— Qual é o seu nome, querido? — Eu disse para o jovem homem à minha frente. Ele não
podia ter mais do que dezessete anos e estava muito perto de sangrar até a morte. Uma bala
tinha atravessado a carne de seu braço, o que normalmente seria uma localização fortuita para
um ferimento. Infelizmente, naquele caso, a bala passou pela parte de baixo do braço e atingiu
a artéria braquial, que estivera jorrando sangue de maneira lenta, mas constante até eu apertar
seu braço.
— Private Adams, senhora — ele replicou, embora seus lábios estivessem brancos e ele
estivesse tremendo — Eles me chamam de Billy — adicionou educadamente.
— Prazer em conhecê-lo, Billy — Eu disse — E você, senhor...?
Ele tinha sido trazido cambaleando, inclinado em outro garoto quase da mesma idade —
e quase tão pálido, embora eu não achasse que ele estava ferido.
— Horatio Wilkinson, senhora — ele disse, inclinando a cabeça numa reverência
envergonhada, o melhor que ele conseguia fazer enquanto segurava seu amigo.
— Encantada, Horatio — Eu disse. — Eu estou com ele agora. Você poderia pegar um
pouco de água, com umas gotas de conhaque? Está logo ali. — Eu assenti em direção ao caixote
que eu estava usando como mesa, na qual uma de minhas garrafas marrons marcavam
VENENO, ao lado de um cantil cheio de água e copos de madeira. — Assim que ele tiver bebido,
dê a ele aquela tira de couro para morder.
Eu teria dito para Horatio pegar um pouco da mesma bebida, mas só havia dois copos, e o
segundo era meu. Eu estava bebendo água constantemente — meu corpete estava ensopado e
colado em mim como a membrana interior de uma casca de ovo, e o suor escorria
constantemente pelas minhas pernas — e eu não queria compartilhar os germes de soldados
variados e que não escovavam os dentes regularmente. Ainda assim, eu poderia ter que dizer a
ele para dar um gole rápido diretamente da garrafa de conhaque; alguém teria que aplicar
pressão ao braço de Billy Adams enquanto eu suturava a artéria braquial, e Horatio Wilkinson
não parecia estar à altura da tarefa.
— Você poderia... — Eu comecei, mas eu estava segurando um bisturi e uma agulha de
sutura com uma ligadura pendente na mão livre, e a visão disso foi demais para o jovem Sr.
Wilkinson. Seus olhos reviraram para cima e ele caiu, como se não tivesse ossos, no chão.
— Ferido? — Disse uma voz familiar atrás de mim, e eu me virei para ver Denzell Hunter
olhando para o Sr. Wilkinson. Ele estava quase tão pálido quanto Horatio e, com fios de cabelo
soltos e se agarrando às bochechas, a antítese de sua aparência usual.
— Desmaiado — Eu disse. — Você pode...
— Eles são idiotas — ele disse, tão pálido (de raiva, agora eu percebia) que mal conseguia
falar. — Cirurgiões de regimento, eles chamam a si mesmos! Uma boa parte deles nunca viu um
homem ferido em batalha antes. E aqueles que viram mal são capazes de fazer qualquer
tratamento que não seja a amputação. Uma companhia de barbeiros faria melhor!
— Eles podem estancar sangramentos? — Perguntei, pegando sua mão e colocando-a ao
redor do braço de meu paciente. Ele automaticamente pressionou o polegar na artéria braquial
próxima à axila, e o jato de sangue que tinha voltado quando eu tirei minha própria mão, parou
novamente — Obrigada — eu disse.
— Por nada. Sim, a maior parte deles pode fazer isso — Ele admitiu, acalmando-se um
pouco. — Mas eles são tão invejosos de privilégios e tão afiliados aos próprios regimentos, que
muitos deles estão deixando homens feridos morrerem porque não pertencem ao seu
regimento e aquele que deveria ser o seu cirurgião está ocupado!
— Isso é um escândalo! — Eu murmurei e disse — Morda com força agora, Private —
enquanto colocava a tira de couro entre seus dentes e fazia uma rápida incisão para aumentar
o ferimento suficientemente para que eu pudesse encontrar o final da artéria cortada.
Ele mordeu, e deu não mais do que um baixo grunhido quando o bisturi cortou sua carne;
talvez ele estivesse em choque o suficiente para não sentir muita coisa... eu esperava que não
fosse este o caso.
— Nós não temos muita escolha. — Observei, olhando em direção à sombra das grandes
árvores que circulavam o cemitério.
Dottie estava cuidando das vítimas de insolação, dando a elas água e — quando o tempo
e os baldes permitiam — encharcando-os. Rachel estava encarregada dos traumas de cabeça,
dos ferimentos abdominais, e de outros ferimentos sérios que não poderiam ser tratados com
amputação ou suturas ou talas. Na maioria dos casos, os cuidados envolviam apenas confortá-
los enquanto morriam, mas ela era uma garota boa e forte, que tinha visto muitos homens
morrerem durante o inverno em Valley Forge; ela não se esquivava do trabalho.
— Teremos que deixá-los — Eu inclinei o queixo em direção à igreja, minhas mãos
estando ocupadas segurando o braço de Private Adams e suturando a artéria — fazer o que são
capazes de fazer. Não que nós pudéssemos impedi-los.
— Não — Denny respirou, soltou o braço quando percebeu que eu havia costurado a
artéria, e limpou o rosto com o casaco — Não, nós não podemos. Eu só precisava expressar
minha raiva onde ela não causaria mais problemas. E perguntar se eu poderia pegar um pouco
de sua pomada de genciana; eu notei que você tem dois tubos prontos.
Eu dei a ele uma pequena risada irônica.
— Fique à vontade. Aquele idiota do Leckie mandou um ordenança há algum tempo para
tentar se apropriar de meu estoque de algodão e bandagens. Você precisa de um pouco, aliás?
— Se você tiver um pouco sobrando — Ele lançou um olhar sombrio para a pilha de
suprimentos — Dr. McGillis enviou um ordenança escavar a vizinhança em busca de itens de
uso e outro para voltar ao acampamento e trazer mais.
— Pegue metade — Eu disse, assentindo, e terminei de enfaixar o braço de Billy Adams
com o mínimo de bandagem possível para fazer o trabalho. Horatio Wilkinson tinha se
recuperado um pouco e estava se sentando, embora ainda estivesse pálido. Denny o ajudou a
levantar e o despachou com Billy, para que se sentassem na sombra por um tempo.
Eu estava procurando em um dos meus pacotes pela pomada de genciana quando notei a
aproximação de outro grupo e me endireitei para ver qual seriam as suas necessidades.
Nenhum deles parecia estar ferido, embora todos cambaleassem. Eles não usavam
uniforme e não portavam armas, exceto porretes; não dava para saber se eram parte da milícia
ou...
— Ouvimos dizer que você tem um pouco de conhaque, senhora — um deles disse,
estendendo a mão de uma maneira quase amigável e me pegando pelo pulso — Venha
compartilhar com a gente, sim?
— Solte-a! — Denzell disse, em um tom de profunda ameaça que fez com que o homem
que segurava meu pulso realmente soltasse, surpreso. Ele piscou para Denzell, que ele
evidentemente não tinha notado antes.
— Quem diabos é você? — Ele perguntou, mas num tom de espanto e não tanto de
confronto.
— Eu sou um cirurgião do exército Continental — Denzell disse firmemente, e se moveu
para ficar ao meu lado, colocando o ombro entre mim e os homens, que estavam claramente
muito bêbados.
Um deles riu para isso, um som alto de risada, e seu companheiro gargalhou e o cutucou,
repetindo “cirurgião do exército Continental”.
— Cavalheiros, vocês devem sair — Denzell disse, ficando ainda mais na minha frente. —
Nós temos homens feridos que precisam de atenção.
Ele ficou parado ali, com os punhos levemente cerrados, na atitude de um homem pronto
para a batalha — embora eu estivesse quase certa de que ele não entraria numa briga. Eu
esperava que a intimidação surtisse efeito, mas olhei para a minha garrafa; ela tinha só um
quarto do conteúdo — talvez fosse melhor entregá-la a eles e esperar que fossem embora...
Eu podia ver um pequeno grupo de Continentais feridos descendo a estrada, dois deles
em macas, e mais alguns cambaleando, esfarrapados em suas camisas ensanguentadas, os
casacos nas mãos sendo arrastados na poeira. Eu estiquei a mão para a garrafa, com a intenção
de entregá-la aos intrusos, mas um movimento no canto de meu olho me fez olhar em direção
à sombra da árvore onde as garotas atendiam aos prisioneiros. Tanto Rachel quanto Dottie
estavam paradas de pé, observando o que acontecia, e neste ponto, Dottie, com um forte olhar
de determinação em seu rosto, começou a caminhar em nossa direção.
Denny a viu também; eu pude ver a súbita mudança em sua postura, um toque de
indecisão. Dorothea Grey podia ter se professado uma Quaker, mas o sangue de sua família
claramente tinha suas próprias ideias. E eu pude — para minha surpresa — dizer exatamente
o que Denzell estava pensando. Um dos homens já tinha notado Dottie e tinha se virado —
balançando — em sua direção. Se ela os confrontasse e um ou mais deles a atacasse...
— Cavalheiros — Eu interrompi o zumbido de interesse entre os visitantes, e três pares
de olhos injetados se viraram lentamente em minha direção. Eu peguei uma das pistolas que
Jamie havia me dado, a apontei para cima e puxei o gatilho.
O tiro saiu com um empurrão violento e um barulho que me ensurdeceu
momentaneamente, juntamente com uma nuvem de fumaça acre que me fez tossir. Eu limpei
os olhos lacrimejantes em minha manga a tempo de ver os visitantes partindo apressadamente,
com olhares ansiosos para trás, por cima de seus ombros. Eu localizei um lenço em minhas
coisas e limpei a mancha de fuligem em meu rosto, emergindo do linho das dobras para
encontrar as portas da igreja ocupadas por muitos cirurgiões e enfermeiros, todos olhando para
mim.
Sentindo-me como Annie Oakley, e reprimindo a vontade de rodar minha pistola —
principalmente porque tinha medo de derrubá-la; ela tinha quase trinta centímetros de
comprimento — eu realojei minha arma e respirei fundo. Eu me sentia um pouco tonta.
Denzell estava olhando para mim com preocupação. Ele engoliu visivelmente e abriu a
boca para falar.
— Agora não — Eu disse, minha própria voz soando abafada, e assenti em direção aos
homens vindo em nossa direção. — Não há tempo.
76 – OS PERIGOS DA RENDIÇÃO
Quatro malditas horas. Horas gastas mergulhadas num campo ondulante cheio das ralés dos
soldados Continentais, pequenos grupos de milícia, e mais malditas rochas do que qualquer
lugar deveria ter para funcionar corretamente, se você perguntasse a Grey. Incapaz de suportar
mais as bolhas e os pedaços em carne viva, ele tinha tirado os sapatos e as meias e colocado-os
nos bolsos de seu casaco surrado, escolhendo mancar descalço enquanto conseguisse.
Se ele encontrasse alguém cujos pés tivessem o mesmo tamanho, ele pensou
sombriamente, poderia pegar uma das rochas onipresentes e utilizá-la.
Ele sabia que estava próximo às linhas britânicas. Ele podia sentir o tremor no ar. O
movimento de um grande corpo de homens, sua crescente excitação. E em algum lugar, a uma
distância não muito grande, o ponto onde a excitação estava se tornando ação.
Ele sentira a presença da luta desde o dia anterior. Algumas vezes escutava gritos e a
explosão oca dos mosquetes. O que eu faria se fosse Clinton?, ele pensou.
Clinton não poderia ultrapassar os Rebeldes que o perseguia; isso era claro. Mas ele teria
tempo suficiente para escolher um local decente onde ficar e fazer algumas preparações.
As chances eram que ele deixasse uma parte do exército — a brigada do Cornwallis, talvez;
Clinton não deixaria os hessianos de von Knyphausen sozinhos — ele teria assumido uma
posição defensiva, esperando atrasar os rebeldes por tempo suficiente para que a trilha de
bagagem passasse. Então, o exército principal voltaria e assumiria sua posição — talvez
ocupando um vilarejo. Ele tinha passado por dois ou três destes, cada um com sua própria
igreja. Igrejas eram boas; ele enviara muitos batedores para estes lugares em seu tempo.
Onde William tem mais probabilidade de estar? Desarmado e incapaz de lutar, as chances
eram de que ele estivesse com Clinton. É onde ele deveria estar. Mas ele conhecia seu filho.
— Infelizmente — ele murmurou. Ele iria, sem hesitar, desistir de sua vida e de sua honra
por William. Isso não significava que ele estava satisfeito com a perspectiva de fazer isso.
Entretanto, a presente circunstância não era culpa de William. Ele tinha que admitir —
relutantemente — que era pelo menos um pouco culpa dele. Ele havia permitido que William
realizasse trabalhos de inteligência para Ezekiel Richardson. Ele deveria ter analisado melhor
Richardson...
O pensamento de ter sido enganado pelo homem era quase tão perturbador quanto o que
Percy havia dito sobre ele.
Ele só poderia esperar que pudesse correr para Richardson em circunstâncias que
permitiram que ele matasse o homem discretamente. Mas se tivesse que ser ao meio-dia, às
vistas do General Clinton e sua equipe, ele o faria.
Ele estava inflamado em cada parte de seu ser; sabia disso e não se importava.
Havia homens vindo, o que ecoava na estrada atrás de si. Americanos, desordenados, com
vagões ou caixões. Ele saiu da estrada e permaneceu quieto na sombra de uma árvore,
esperando que eles passassem.
Era um grupo de Continentais, puxando um canhão. Era bem pequeno: de
aproximadamente quatro libras. Puxado por homens e não por mulas. Era a única artilharia que
ele tinha visto no curso da manhã, entretanto; isso era tudo que Washington possuía?
Eles não o notaram. Ele esperou por mais alguns minutos, até que estivessem fora de vista,
e seguiu em seu encalço.
Ele ouviu mais canhões, em algum lugar à sua esquerda, e parou para ouvir. Britânicos, por Deus!
Ele fizera parte da artilharia, no início de sua carreira militar, e o ritmo de uma equipe de
artilheiros trabalhando ainda estava incorporado em seus ossos.
Esponja no canhão!
Carregar o canhão!
Bater!
Fogo!
Uma unidade de artilharia única. Seis canhões de dez libras. Eles tinham algo acontecendo,
mas não estavam sendo atacados; as explosões eram esporádicas, e não como aconteceriam
num combate quente.
Embora, para ser justo, qualquer esforço físico para fazer o que fosse pudesse ser descrito
como “quente” hoje. Ele se lançou num corredor de árvores, exalando aliviado na sombra. Ele
estava pronto tirar seu casaco preto num momento de descanso. Será que ele deveria abandonar
a maldita coisa?
Ele tinha visto um grupo de milícia mais cedo, usando apenas as camisas, alguns com
lenços atados sobre suas cabeças por causa do sol. Com o casaco, entretanto, ele poderia blefar,
passando-se por um cirurgião de milícia — sua roupa cheirava mal o suficiente.
Ele mexeu a língua, tentando colocar um pouco de saliva na boca seca. Por que diabos ele
não tinha pensado em levar um cantil quando saíra? A sede decidira agir agora.
Vestido como estava, ele poderia ser alvejado por qualquer soldado de infantaria ou
dragão que o visse, antes de ter a possibilidade de falar uma palavra. Mas enquanto um canhão
era muito efetivo contra uma grande massa de inimigos, eles eram quase inúteis contra um
homem sozinho, já que o alvo não poderia ser ajustado rápido o suficiente, a não ser que o
homem fosse tolo o suficiente para avançar em linha reta — e Grey não era tão tolo assim.
Entretanto, o oficial encarregado do canhão estaria armado com espadas e pistolas, mas
um homem se aproximando de uma artilharia sozinho e a pé não representaria perigo; o puro
espanto provavelmente permitiria que ele se aproximasse sem levar um tiro. E as pistolas eram
tão imprecisas para qualquer distância maior do que a de dez passos, que ele não estava
arriscando muito, racionalizou.
Ele apressou o passo o máximo que podia, um olhar atento à sua volta. Havia muitas
tropas Continentais por perto agora, marchando furiosamente. Os regulares o arrebanhariam,
já que ele estava caminhando ferido, mas ele não ousava se render aos britânicos enquanto o
combate estava acontecendo, ou ele estaria morto em pouco tempo.
A artilharia no pomar poderia ser sua melhor chance, embora fosse arrepiante caminhar
na frente das bocas dos canhões. Com um palavrão abafado, ele colocou de novo seu sapato e
começou a correr.
Ele correu diretamente para dentro de uma companhia de milícia, mas eles estavam indo
para outro lugar e deram a ele apenas um olhar superficial. Ele desviou para o lado, para dentro
de uma cerca-viva, onde se debateu por um momento antes de conseguir sair. Ele estava em um
campo estreito, muito pisoteado, e do outro lado dele, estava um pomar de maçãs, apenas os
topos das árvores aparecendo acima da pesada nuvem de fumaça branca da pólvora.
Ele capturou um vislumbre de movimento além do pomar e arriscou dar alguns passos
para o lado para olhar — depois se escondeu de volta rapidamente para ficar fora de vista. A
milícia americana, homens vestidos com camisas de caça e suéteres de lã, alguns deles sem
camisa e brilhando com o suor. Eles estavam em massa ali, provavelmente planejando uma
corrida por trás do pomar, na esperança de capturar ou desativar os canhões.
Eles estavam fazendo bastante barulho, e os canhões tinham parado de atirar. Certamente
a artilharia sabia que os americanos estavam lá e já estavam fazendo suas preparações para
resistir. Não era a melhor hora para chamá-los, então...
Mas então ele ouviu os tambores. Bastante distantes, ao leste do pomar, mas o ruído
aparecia claramente. A infantaria britânica em marcha. Uma perspectiva melhor do que a
artilharia no pomar. Em movimento, a infantaria não estaria disposta ou preparada para atirar
num homem sozinho e desarmado, não importava o que ele estivesse vestindo. E se ele pudesse
chegar perto o suficiente para atrair a atenção de um oficial... mas ele ainda teria que cruzar o
terreno aberto do pomar para conseguir alcançar a infantaria antes que eles marchassem para
um local fora do seu alcance.
Mordendo o lábio em exasperação, ele saiu da cerca-viva e correu por entre as nuvens de
fumaça à deriva. Um tiro cortou o ar muito próximo dele. Ele se jogou na grama por instinto,
mas depois se levantou e continuou a correr, lutando para respirar. Cristo, havia atiradores com
rifle no pomar, defendendo os canhões! Caçadores.
Mas a maioria destes atiradores devia estar olhando para o outro lado, prontos para
encontrar a milícia, já que não havia mais tiros deste lado do pomar. Ele diminuiu, pressionando
a mão na lateral de seu corpo. Ele tinha atravessado o pomar agora. Ele ainda podia ouvir os
tambores, embora eles estivessem se afastando... se afastando, se afastando...
— Ei! Você aí! — Ele deveria ter continuado, mas estava sem fôlego e não tinha certeza de
quem estava chamando, e então parou por um instante, quase se virando. Apenas quase, porque
um sólido corpo se arremessou pelo ar, derrubando-o.
Ele atingiu o chão sobre um dos cotovelos e já estava pegando a cabeça do homem com a
outra mão, os cabelos úmidos e oleosos escorregando pelos seus dedos. Ele atingiu o rosto do
homem, rastejou como uma enguia de baixo dele, colocando o joelho em seu estômago
enquanto se movia, e conseguiu se levantar.
— Pare aí mesmo! — A voz falhou absurdamente, lançando-se em um falsete, e o assustou
tanto que ele realmente parou, lutando para respirar.
— Você... sem conta... imundo — O homem (não, por Deus, era um menino!) que o tinha
derrubado estava se levantando. Ele tinha uma grande pedra na mão; seu irmão (devia ser seu
irmão; eles pareciam como duas ervilhas em uma vagem, ambos meio crescidos e desajeitados
como perus) tinha um taco de bom tamanho.
A mão de Grey tinha ido para sua cintura quando levantara, pronto para pegar a adaga
que Percy o entregara. Ele já tinha visto os garotos antes, ele pensou — os filhos de um
comandante de uma das companhias de milícia de Nova Jersey — e, claramente, eles também
já o tinham visto.
— Traidor! — Um deles gritou para ele — Maldito espião!
Eles estavam entre ele e a distante companhia de infantaria; o pomar estava às suas costas,
e os três estavam dentro do alcance dos rifles de qualquer hessiano que olhasse naquela
direção.
— Olhem... — ele começou, mas pôde perceber que não faria sentido.
Alguma coisa acontecera; eles estavam loucos por algum motivo — terror, raiva, luto? —
o que fazia suas feições mudarem como água e seus membros tremerem com a necessidade de
fazer qualquer coisa imediata e violenta. Eles eram garotos, mas ambos mais altos do que ele e
capazes de fazerem algo que causaria a ele os danos que eles claramente queriam causar.
— General Fraser — Ele disse em voz alta, esperando que eles parassem pela incerteza.
— Onde está o General Fraser?
77 – O PREÇO DA QUEIMADURA DE SIENNA
William tocou sua mandíbula suavemente, parabenizando a si mesmo por Tarleton ter
conseguido batê-lo no rosto apenas uma vez, e não ter acertado seu nariz. Suas costelas, seus
braços e seu abdômen eram outra questão, e suas roupas estavam embarreadas e sua camisa
suja, mas não seria aparente a um observador casual que ele estivera em uma briga. Ele poderia
se safar — contanto que o Capitão André não acabasse mencionando o despacho para a Legião
Britânica. Afinal de contas, Sir Henry devia estar extremamente ocupado naquela manhã, se
metade do que William ouvira ao longo do caminho fosse verdade.
Um capitão de infantaria dissera, em seu caminho de volta, ter visto Sir Henry, no
comando da retaguarda, liderar uma investida contra os americanos, aproximando-se tanto que
quase foi capturado antes que os homens que estavam atrás se juntassem a ele. William tinha
explodido ao ouvir isso — ele adoraria participar. Mas pelo menos ele não tinha ficado enfiado
na tenda dos escriturários...
Ele não tinha andado mais do que quatrocentos metros para voltar à brigada de
Cornwallis quando Goth soltou uma ferradura. William disse um palavrão, desceu e se abaixou
para dar uma olhada. Ele encontrou a ferradura, mas dois pregos tinham sumido e uma busca
rápida não trouxe resultados positivos; não haveria como martelar a ferradura de volta usando
o salto de sua bota, que tinha sido seu primerio pensamento.
Ele colocou a ferradura no bolso e olhou ao redor. Soldados se movimentavam em todas
as direções, mas havia uma companhia de granadeiros britânicos do lado oposto da ravina, em
formação no topo da ponte. Ele liderou Goth até lá, suavemente.
— Hallo!20 — Ele chamou o companheiro mais próximo. — Wo ist der nächste
Hufschmied?21
O homem olhou com indiferença para ele e deu de ombros. Um jovem companheiro,
entretanto, apontou na outra direção da ponte e gritou: — Zwei Kompanien hinter uns kommen
Husaren! — Os hussardos estão vindo, duas companhias atrás!
— Danke!22 — William gritou de volta, e liderou Goth na sombra esparsa de um bosque
de pinheiros finos. Bem, isso tinha sido uma sorte. Ele não teria que levar o cavalo para muito
longe; ele poderia esperar que o ferrador e sua carroça chegassem até ele. Ainda assim, ele se
preocupou com o que a demora lhe causaria.
Cada nervo estava repuxado como uma corda de harpa; ele continuou tocando seu cinto
onde suas armas normalmente estariam. Ele podia ouvir os sons dos mosquetes disparando à
distância, mas não podia ver nada. A zona rural estava dobrada como um leporello23, o prado
se dobrando repentinamento em ravinas florestadas, e depois voltando para cima, apenas para
desaparecer novamente.
Ele enfiou a mão no bolso à procura de seu lenço, tão encharcado agora que serviu apenas
para espalhar o suor de seu rosto. Ele sentiu um leve frescor flutuando acima do riacho, doze
metros abaixo, e caminhou para mais perto da margem na esperança de sentir mais. Ele bebeu
a água morna de seu cantil, desejando poder descer e beber diretamente do fluxo, mas não
ousou fazê-lo; ele poderia descer a encosta íngreme sem problemas, mas voltar seria uma
escalada difícil, e ele não poderia arriscar perder o ferreiro.
20 Olá (alemão).
21 Onde está o ferreiro mais próximo? (Alemão)
22 Obrigado (alemão).
23 Papel dobrado em várias partes, e em duas direções diferentes, como seria para formar um leque.
— Er spricht Deutsch. Er gehört!24 — Ouviu o quê? Ele não estivera prestando atenção à
conversa esporádica dos granadeiros, mas aquelas palavras sibiladas chegaram claramente a
ele, e ele olhou ao redor para ver quem era que estava falando em alemão, apenas para ver dois
granadeiros bem próximos a ele. Um deles riu nervosamente para ele, e ele se enrijeceu.
De repente, mais dois estavam ali, entre ele e a ponte — Was ist hier los? — ele exigiu
asperamente. — Was machst ihr da? — O que é isso? O que vocês estão fazendo?
Um sujeito corpulendo exibiu uma expressão apologética.
— Verzeihung. Ihr seid hier falsch.25
Eu estou no lugar errado? Antes que William pudesse dizer qualquer outra coisa, eles se
aproximaram dele. Ele deu uma cotovelada, socos e chutes, e bateu descontroladamente, mas
não durou mais do que poucos segundos. Mãos colocaram seus braços para trás, e o homem
corpulento disse mais uma vez — Verzeihung — e, ainda parecendo apologético, bateu em sua
cabeça com uma pedra.
Ele não perdeu a consciência até atingir o fundo da ravina.
Havia o diabo de muita luta, Ian pensou — mas isso era tudo o que podia ser dito daquilo. Havia
uma boa quantidade de movimento — particularmente entre os americanos — e sempre que
eles se encontravam com um grupo de casacas vermelhas, havia luta, frequentemente uma luta
feroz. Mas o terreno era tão irregular que os exércitos raramente se reuniam em grupos
grandes.
Ele tinha encontrado seu caminho ao redor de muitas companhias de infantaria britânica
mais ou menos esperando numa emboscada, entretanto, e além desta vanguarda havia um bom
número de pavilhões de regimentos britânicos no meio deles. Isso ajudaria a saber quem estava
no comando ali? Ele não tinha certeza se poderia dizer, mesmo se estivesse perto o bastante
para capturar os detalhes das bandeiras.
Seu braço esquerdo doía, e ele o esfregou distraidamente. O ferimento do machado tinha
se curado bem, embora a cicatriz ainda estivesse em relevo e macia — mas o braço ainda não
tinha readquirido sua força total, e soltar uma flecha contra os batedores índios mais cedo tinha
deixado seus músculos trêmulos e pulando, com uma queimação profunda em seu osso.
— É melhor não tentar aquilo de novo — ele murmurou para Rollo, e depois se lembrou
que o cachorro não estava com ele.
Ele olhou para cima e descobriu que um dos batedores índios estava com ele, entretanto.
Ou pelo menos ele pensou que sim. Vinte metros distante, um guerreiro Abenaki sentado num
pônei, olhava para Ian pensativamente. Sim, Abenaki, ele tinha certeza, vendo sua escalpa
raspada completamente desde as sobrancelhas até o couro cabeludo e a faixa de tinta preta nos
olhos, os brincos longos de conchas que se penduravam dos ombros do homem, seu nácar
brilhando ao sol.
Mesmo enquanto fazia estas observações, ele se virou em sua montaria, procurando
abrigo. O corpo principal dos homens estava a uns duzentos metros de distância, no prado
aberto, mas havia estandes de castanha e álamo, e talvez a uns oitocentos metros de onde ele
tinha vindo, a terra se enfiava em uma das grandes ravinas. Não seria bom ficar preso no solo
abaixo, mas se fosse muito necessário, seria uma boa forma de desaparecer. Ele chutou o cavalo
com força e eles dispararam, virando abruptamente para a esquerda quando passaram numa
muda em crescimento — o que era uma boa coisa, porque ele ouvira alguma coisa pesada passar
próximo de sua cabeça e se fixar na muda. Um bastão? Tomahawk?26
27 Deus me ajude!
— Vamos — ele disse ao cavalo. — Você vai estourar se continuar bebendo assim,
amaidan. — Foi necessária alguma luta, mas ele conseguiu tirar o nariz da égua do riacho, água
e pedaços de grama verde escorrendo para fora de sua boca frouxa enquanto ela bufava e
balançava a cabeça. Enquanto puxava a cabeça do cavalo para levá-lo de volta à margem, ele viu
outro soldado britânico.
Este estava deitado próximo ao fundo da ravina, também, mas não no barro. Ele estava
com a cara para baixo, mas a cabeça virada para um dos lados, e...
— Oh, Jesus, não! — Ian prendeu as rédeas do cavalo rapidamente ao redor de um tronco
de árvore e saltou encosta acima. Era ele, claro. Ele havia reconhecido ao primeiro vislumbre
das pernas longas, do formato da cabeça, mas o rosto deixou claro, mesmo mascarado pelo
sangue como estava.
William ainda estava vivo; seu rosto estava contorcido abaixo dos pés de meia dúzia de
moscas pretas se alimentando do sangue seco. Ian colocou a mão sob sua mandíbula, da forma
como Tia Claire fazia, mas, sem ideia de como encontrar a pulsação ou como ela deveria ser se
estivesse tudo bem, retirou a mão. William estava deitado na sombra de um grande sicômoro,
mas sua pele ainda estava quente — não poderia ser diferente, Ian pensou, até mesmo se ele
estivesse morto, em um dia como aquele.
Ele se levantou, pensando rapidamente. Ele precisaria colocar o demônio sobre o cavalo,
mas talvez fosse melhor tirar sua roupa? Tirar o casaco revelador, pelo menos? Mas e se ele o
levasse em direção às linhas britânicas, encontrasse alguém para tomar conta dele e encontrar
um médico? Seria mais rápido.
Ainda assim era melhor tirar o casaco, ou o homem morreria de calor antes que pudesse
chegar a qualquer lugar. Isso resolvido, ele se ajoelhou de novo, o que salvou sua própria vida.
O tomahawk se fixou no tronco do sicômoro exatamente no local onde sua cabeça estivera um
momento antes.
E, um momento depois, um dos Abenaki correu para baixo da encosta e pulou em cima
dele com um grito que lançou o mau hálito dele em sua cara. Aquela fração de segundo,
entretanto, foi o suficiente para que ele se levantasse e se desviasse para o lado, levantando o
corpo do Abenaki sobre o seu quadril em um lance de luta livre desajeitado que jogou o homem
na lama a uns dois metros de distância.
O segundo estava atrás dele; Ian ouviu os pés do homem no cascalho e nas ervas daninhas
e girou para enfrentar o seu golpe, impedindo-o com o antebraço e pegando a faca com a outra
mão.
Ele a pegou — pelo lado da lâmina, e assobiou por entre os dentes quando ela cortou sua
palma — e inclinou o pulso do homem com o braço meio entorpecido. A faca caiu. Mão e faca
estavam escorregadias pelo sangue; ele não conseguiria segurar na empunhadura mas a tinha
nas mãos — ele se virou e a jogou o mais longe que podia, e ela mergulhou na água.
Então, ambos estavam em cima dele, socando, chutando e rasgando-o. Ele cambaleou para
trás e perdeu o equilíbrio, mas não soltou um dos atacantes, e conseguiu cair no riacho com o
homem em cima dele. Depois disso, perdeu o controle.
Um dos Abenaki estava deitado de costas na água e Ian tentava fervorosamente afogá-lo,
enquanto o outro estava em cima de suas costas e tentava passar um braço ao redor de seu
pescoço — e então houve um barulho do outro lado da ravina e tudo parou por um momento.
Vários homens, movendo-se de forma desorganizada — ele podia ouvir tambores, mas havia
um som como o de um mar distante, e vozes incoerentes.
Os Abenaki pararam também, apenas por um instante, mas foi o suficiente: Ian torceu o
corpo, arremessando o homem que estava sobre ele, e saltou desajeitadamente pela água,
escorregando e afundando no fundo lodoso, mas chegou à margem e correu para a primeira
coisa que encontrou — um alto carvalho branco. Ele se atirou para o tronco e subiu, pegando
nos galhos para subir cada vez mais alto e mais rapidamente, sem qualquer prudência com sua
mão ferida, a casca áspera raspando em sua pele.
Os índios foram atrás dele, mas era tarde demais; um deles pulou e estapeou seus pés
descalços mais não conseguiu segurá-lo, e ele tinha o joelho acima de um galho grosso, e se
pendurou ali, ofegante, e depois ficou de pé. Seguro? Ele pensava que sim, mas depois de um
momento olhou para baixo com cuidado.
Os Abenaki estavam andando de um lado para outro como se fossem lobos, olhando para
os ruídos acima da ravina e depois para Ian — e depois do outro lado da ravina em direção a
William, e isso fez Ian se enrolar. Deus, o que ele poderia fazer se eles decidissem cortar a
garganta do homem? Ele não tinha nem uma pedra para jogar neles.
A única coisa boa é que aparentemente nenhum deles tinha uma arma ou um arco; deviam
tê-los deixado com seus cavalos, lá em cima. Eles não podiam fazer nada além de lançar pedras
nele, e não pareciam inclinados a fazê-lo.
Mais barulho vindo de cima — havia muitos homens ali; o que eles estavam gritando? — e
os Abenaki abruptamente abandonaram Ian. Eles caminharam espirrando água pelo riacho,
suas calças ensopadas e sujas de lama negra, pararam brevemente para virar William e tatear
por suas roupas — evidentemente ele já tinha sido roubado, porque não encontraram nada —
e depois desataram o cavalo de Ian e com um último grito irônico de “Mohawk” desapareceram
com a égua em meio aos brotos de salgueiro.
Ian arrastou-se com uma mão até a encosta, rastejou por certa distância e depois ficou deitado
por um tempo sob um tronco caído à beira de uma clareira, pontos pretos indo e vindo em seus
olhos como um enxame de mosquitos. Havia muita coisa acontecendo nas proximidades, mas
nada próximo o suficiente para causar uma preocupação imediata. Ele fechou os olhos,
esperando fazer com que os pontos fossem embora. Ele não o fizeram, em vez disso mudando
de preto para uma horrível constelação de bolhas rosas e amarelas que o fizeram ter vontade
de vomitar.
Ele rapidamente abriu os olhos de novo, a tempo de ver vários soldados Continentais
enegrecidos pela pólvora, com as camisas rasgadas, alguns nus da cintura para cima, arrastando
um canhão pela estrada. Eles estavam sendo seguidos de perto por mais homens e outro
canhão, todos cambaleando com o calor e com os olhos esbranquiçados de exaustão. Ele
reconheceu o Coronel Owen, marchando junto aos engates, o rosto coberto de fuligem com uma
expressão de infeliz desespero.
Uma sensação de agitação atraiu a atenção de Ian em direção a um grupo de homens, e ele
percebeu com um leve sentimento de interesse que aquele era um grupo realmente grande de
homens, com um pavilhão se balançando flacidamente contra seu mastro.
Isso, por sua vez, agitou o seu reconhecimento. Certamente, ali estava o General Lee, com
o nariz longo e franzindo o cenho, mas parecendo muito seguro de si, andando para fora da
massa em direção a Owen.
Ian estava muito longe e havia muito barulho para que ele conseguisse ouvir qualquer
coisa, mas o problema era claro pelos gestos e indicações de Owen. Um de seus canhões estava
quebrado, queimado, provavelmente pelo calor dos disparos, e o outro tinha se soltado de seu
suporte e estava sendo puxado por cordas, seu metal raspando nas rochas enquanto era
arrastado.
Um senso de urgência fraca estava se reafirmando. William. Ele precisava contar a alguém
sobre William. Certamente não seria aos britânicos.
As sobrancelhas de Lee se encolheram e seus lábios ficaram mais finos, mas ele manteve
a compostura. Ele se inclinara para baixo em sua cela para ouvir a Owen; agora ela assentiu,
falou poucas palavras e se endireitou. Owen passou a manga da camisa contra o rosto e acenou
para seus homens. Eles pegaram as cordas e se inclinaram com o peso, desconsolados, e Ian
notou que três ou quatro estavam feridos, as roupas enroladas ao redor de suas cabeças ou
mãos, um deles mancando com uma perna ensanguentada, uma mão apoiada no canhão para
se segurar.
A adrenalina de Ian estava começando a baixar agora, e ele estava desesperadamente
sedento, embora tivesse bebido tanto do riacho apenas alguns minutos atrás. Ele não tinha
notado para onde estava indo, mas, vendo que o canhão de Owen estava descendo a estrada,
sabia que devia estar perto da ponte, mesmo que ela estivesse fora de vista. Ele rastejou para
fora de seu esconderijo e conseguiu ficar de pé, segurando-se no tronco por um instante
enquanto sua visão ficava preta e branca de novo.
William. Ele precisava encontrar ajuda... mas primeiro ele precisava encontrar água. Ele
não conseguiria fazer nada sem ela. Tudo o que ele bebera no riacho tinha evaporado com o seu
suor e ele estava ressecado até os ossos.
Foram necessárias várias tentativas, mas enfim ele conseguiu água de um soldado de
infantaria que tinha dois cantis pendurados ao redor do pescoço.
— O que aconteceu com você, amigo? — O homem da infantaria perguntou, olhando para
ele com interesse.
— Lutei contra batedores britânicos — Ian replicou e, relutantemente, devolveu o cantil.
— Espero que tenha vencido, então — O homem disse, e acenou sem esperar pela
resposta, movendo-se com sua companhia.
O olho esquerdo de Ian estava ardendo muito e sua visão estava turva; um corte em sua
sobrancelha estava sangrando. Ele procurou na pequena bolsa em sua cintura e encontrou o
lenço envolto ao redor da orelha defumada que ele carregava. Era um pequeno pedaço de
tecido, mas grande o suficiente para amarrar ao redor de sua sobrancelha.
Ele passou os nós dos dedos sobre a boca, já necessitando de mais água. O que ele deveria
fazer? Ele podia ver o pavilhão agora sendo vigorosamente agitado, ondeando pesadamente no
ar espesso, convidando as tropas a segui-lo. Certamente Lee estava marchando sobre a ponte;
ele sabia para onde estava indo, bem como as tropas que o acompanhavam. Ninguém iria — ou
poderia — parar para descer uma ravina e auxiliar um soldado britânico ferido.
Ian balançou a cabeça experimentalmente e, percebendo que seu cérebro não parecia
chacoalhar, partiu em direção ao sudoeste. Com sorte, ele encontraria La Fayette ou Tio Jamie,
e talvez encontrasse outra montaria. Com um cavalo, ele poderia tirar William da ravina
sozinho. E o que quer que acontecesse naquele dia, ele ainda acertaria as coisas com aqueles
Abenaki bastardos.
79 – A HORA MAIS QUENTE
Um dos homens de La Fayette surgiu naquele momento com ordens para voltarem, para se
reunirem ao corpo principal de La Fayette perto de uma das fazendas entre Spotswood South
Brook e Spotswood Middlebrook. Jamie ficou satisfeito ao ouvir isso; não havia nenhuma
maneira razoável de companhias de milícia semi-armadas sitiarem a artilharia entrincheirada
do pomar, não com os atiradores de rifle guardando o canhão.
— Reúna suas companhias, Sr. Guthrie, e me encontre na estrada ali em cima — Jamie
disse apontando. — Sr. Bixby, você pode encontrar o Capitão Kirby? Diga a mesma coisa a ele;
vou permanecer junto às tropas de Craddock.
As companhias do Capitão Craddock tinham sido altamente desmoralizadas pela sua
morte, e Jamie tinha assumido seu comando para impedir que eles se espalhassem como
abelhas.
Eles marcharam pelos campos, arrebanhando o Cabo Filmer e seus homens na casa da
fazenda — estava deserta; não havia motivo para deixar qualquer um ali — e passaram pela
ponte sobre um dos riachos. Ele diminuiu um pouco quando os cascos de seu cavalo bateram
nas tábuas, sentindo o frescor abençoado subindo da água a dez metros abaixo. Eles deveriam
parar, ele pensou, para beber água — eles não faziam isso desde cedo e os cantis deviam estar
secos — mas demoraria muito para que tantos homens conseguissem descer a ravina para
chegar ao riacho, e voltar. Ele pensou que poderiam fazer isso quando encontrassem La Fayette;
havia poços por lá.
Ele podia ver a estrada à frente e estreitou os olhos para espreitar os britânicos. Ele se
perguntou, com uma irritação momentânea, onde estava Ian; ele teria gostado de saber para
onde os britânicos estavam indo.
Ele descobriu um instante depois. Um tiro disparou nas proximidades, e seu cavalo
escorregou e caiu. Jamie puxou seu pé para se libertar e rolou para fora da sela enquanto o
cavalo batia na ponte com um baque que chacoalhava toda a estrutura, lutando por um instante,
relinchando alto, e deslizou pela borda para dentro da ravina.
Jamie ficou de pé; sua mão estava queimando, toda a pele tirada de sua palma quando ele
derrapou nas tábuas estilhaçadas.
— Corram! — Ele gritou, com o restante de fôlego que restara, e acenou com o braço
descontroladamente, reunindo os homens, apontando para a estrada em direção às árvores que
cresciam e poderiam cobri-los. — Vão!
Ele se encontrou entre eles, o aumento de homens carregando-o, e eles tropeçaram na
cobertura, ofegando e respirando com esforço por causa da corrida. Kirby e Guthrie estavam
reunindo suas companhias, os homens do falecido Capitão Craddock estavam se aglomerando
ao redor de Jamie, e ele assentiu, sem fôlego, para que Bixby e o Cabo Greenhow contassem os
narizes.
Ele ainda podia ouvir o ruído que o cavalo fizera ao bater no chão abaixo da ponte.
Ele estava prestes a vomitar; ele sentiu tudo subir e sabia que não deveria segurar. Ele fez
um rápido movimento para que o Tenente Schnell, que queria falar com ele, esperasse. Foi para
trás de um grande pinheiro, e deixou que seu estômago se revirasse como um sporran vazio.
Ele ficou inclinado por um momento, a boca aberta e a testa pressionada contra a casca grossa
para se apoiar, deixando com que o jato de saliva lavasse o gosto de sua boca.
Cuidich mi, a Dhia... Mas sua mente tinha perdido toda a noção das palavras naquele
momento, e ele se endireitou, limpando a boca com a manga. Quando saiu de trás da árvore,
porém, todos os pensamentos do que estava acontecendo e do que ele teria que fazer em relação
a isso desapareceram. Ian tinha saído das árvores próximas e estava caminhando pelo espaço.
O rapaz estava a pé e se movendo lenta, mas obstinadamente. Jamie podia ver os machucados,
mesmo a uma distância de doze metros.
— É um dos nossos ou um dos dele? — Um miliciano perguntou em dúvida, levantando
seu mosquete para Ian, apenas para garantir.
— Ele é meu — Jamie disse. — Não atire nele, sim? Ian! Ian!
Ele não correu — seu joelho esquerdo doía muito para correr — mas caminhou em
direção ao seu sobrinho o mais rápido possível e ficou aliviado em ver o olhar vítreo nos olhos
de Ian se quebrar e brilhar em reconhecimento.
— Tio Jamie! — Ian balançou a cabeça como se para clareá-la e parou abruptamente com
um suspiro.
— Você está muito ferido, a bhalaich? — Jamie perguntou, dando um passo para trás e
procurando por sangue. Havia um pouco, mas nada terrível. O rapaz não estava segurando a si
mesmo como se tivesse sido ferido em algum órgão vital...
— Não. Não, é... — Ian trabalhou a boca, tentando salivar para formar palavras, e Jamie
entregou seu cantil na mão dele. Havia pouquíssima água ali, mas foi o suficiente e Ian a engoliu.
— William — Ian ofegou, abaixando o cantil vazio — Seu...
— O que tem ele? — Jamie interrompeu. Havia mais homens descendo a estrada, alguns
deles meio correndo e olhando para trás. — O quê? — ele repetiu, apertando o braço de Ian.
— Ele está vivo — Ian disse de uma vez, avaliando corretamente tanto a intensidade
quanto a intenção da pergunta. — Alguém bateu em sua cabeça e o deixou no fundo da ravina.
— Ele gesticulou vagamente em direção aos batedores. — Talvez uns trezentos metros para
oeste da ponte, sim? Ele não está morto, mas eu não sei dizer quão mal ele está ferido.
Jamie assentiu, fazendo cálculos imediatos.
— Sim, e o que aconteceu a você? — Ele podia apenas esperar que William e Ian não
tivessem tentado matar um ao outro. Mas se William estava inconsciente, não poderia ser ele
que levara o cavalo de Ian, e claramente alguém tinha feito isso, porque...
— Dois batedores Abenaki — Ian replicou com uma careta — Os bastardos estiveram me
seguindo por...
Jamie ainda estava segurando Ian pelo braço esquerdo e sentiu o impacto da flecha e o
choque de sua reverberação pelo corpo do rapaz. Ian olhou incrédulo para seu ombro direito,
onde o eixo da flecha se projetava, e caiu de joelhos, seu peso o puxando do aperto de Jamie
quando ele se ajoelhou.
Jamie lançou-se sobre o corpo de Ian e e bateu no chão rolando, evitando a segunda flecha;
ele a ouvir cortar o ar perto de sua orelha. Ele ouviu o homem de milícia armado falar acima
dele e depois a confusão de gritos, um grupo de seus homens se espalhando e correndo em
direção à fonte das flechas, berrando.
— Ian! — Ele rolou seu sobrinho para que ele ficasse de barriga para cima.
O rapaz estava consciente, mas o que era possível ver de seu rosto por baixo da pintura
estava branco e medonho, sua garganta trabalhando impotentemente. Jamie segurou a flecha;
estava alojada onde Claire chamava de deltoide, a parte carnuda do braço superior, mas ela não
se mexeu quando ele a chacoalhou gentilmente.
— Eu acho que atingiu o osso — ele disse a Ian. — Não é tão ruim, mas está bastante preso.
— Eu também acho — Ian disse fracamente. Ele estava lutando para se sentar, mas não
podia — Quebre-a, sim? Eu não posso continuar com isso pra fora assim.
Jamie assentiu, colocou seu sobrinho sentado de forma instável e quebrou a flecha entre
as mãos, deixando um pedaço irregular de poucos centímetros de comprimento, para que fosse
possível puxá-la depois. Não havia muito sangue, apenas um fio correndo pelo braço de Ian.
Claire poderia tirar a ponta da flecha mais tarde.
A gritaria e a confusão estavam se tornando generalizados. Um olhar ao redor mostrou a
ele que mais homens estavam descendo a estrada, e ele ouviu um pífano sinalizando à distância,
agudo e desesperado.
— Você sabe o que aconteceu lá em cima? — Ele disse a Ian, assentindo em direção ao
barulho. Ian balançou a cabeça.
— Eu vi o Coronel Owen descendo com seu canhão em ruínas. Ele parou para trocar uma
palavra com Lee e depois continuiu, mas sem pressa.
Alguns homens estavam correndo, embora de forma pesada e desajeitada — não como se
a perseguição estivesse próxima. Mas ele podia sentir o alarme começando a se espalhar pelos
homens ao redor dele e se virou.
— Fique comigo! — Ele disse calmamente para Guthrie. — Mantenha seus homens juntos,
e comigo. Sr. Bixby, diga isso ao Capitão Kirby, também. Fiquem comigo; não se movam a não
ser que eu dê a ordem.
Os homens da companhia de Craddock que tinham corrido atrás dos Abenaki — ele supôs
que essa era a fonte das flechas — tinham desaparecido na floresta. Ele hesitou por um instante,
mas depois mandou um pequeno grupo atrás deles. Nenhum índio que ele conhecera lutava de
uma posição fixa, então ele duvidava estar mandando seus homens para uma emboscada.
Talvez na cara dos britânicos que chegavam, mas se fosse o caso, é melhor que ele ficasse
sabendo o mais rapidamente possível, e pelo menos um ou dois provavelmente voltariam para
contar a ele.
Ian estava se levantando; Jamie se inclinou e ajudou o rapaz colocando uma mão abaixo
de seu ombro bom e estabilizando-o. Suas pernas tremiam em suas calças e o suor escorria em
bicas por seu torso nu, mas ele se manteve de pé.
— Foi você que chamou o meu nome, tio Jamie? — Ele perguntou.
— Sim, eu o fiz quando vi você saindo das árvores — Jamie assentiu em direção à floresta,
mantendo os olhos atentos para qualquer um que viesse daquele local. — Por quê?
— Não agora. Antes disso — Ele tocou o fim irregular da haste da flecha cautelosamente
— Alguém gritou atrás de mim; foi isso que me fez sair do lugar, o que foi muito bom ou eu teria
recebido essa flecha no peito.
Jamie sacudiu a cabeça e sentiu aquela fraca perplexidade que sempre sentia quando se
tratava de fantasmas — se é que este era o caso. A única estranheza disso era que nunca tinha
parecido realmente estranho.
Mas não havia tempo para pensar em tais coisas; havia gritos agora de “Retirar! Retirar!”
e os homens atrás dele se mexeram e ondularam como uma plantação de trigo ao vento
ascendente.
— Fiquem comigo! — ele disse, em uma voz firme e alta, e aqueles que estavam mais
próximos pegaram suas armas e se aquietaram.
William. O pensamento em seu filho provocou um surto de alarme em seus ossos. A flecha
que tinha atingido Ian fizera com que a visão de William, esparramado e sangrando na lama,
fugisse de sua cabeça, mas agora... Cristo, ele não poderia enviar nenhum homem atrás do rapaz,
não com metade do exército voltando naquela direção, e os britânicos talvez em seus calcanhares...
Um repentino raio de esperança: se os britânicos fossem para aquele caminho, eles talvez
passassem pelo rapaz e cuidassem dele.
Ele queria muito ir ele mesmo. Se William estivesse morrendo... mas ele não podia deixar
seus homens em quaisquer circunstâncias, e particularmente nestas circunstâncias. Uma terrível
urgência se apoderou dele.
Cristo, se eu nunca falar com ele — nunca disser...
Agora ele viu Lee e seus ajudantes descendo a estrada. Eles estavam se movendo
lentamente, sem nenhum ar de pressa, mas deliberando — e olhando de um lado para o outro,
quase clandestinamente, olhando rapidamente de novo para frente, sentando-se retos em suas
selas.
— Retirar! — O grito estava aumentando agora ao seu redor, ficando mais forte, e os
homens estavam correndo para a floresta. — Retirar!
— Fiquem comigo — Jamie disse, suavemente o suficiente para que apenas Bixby e
Guthrie o ouvissem, mas foi o bastante. Eles se endureceram e ficaram com ele. Sua decisão
ajudaria a controlar o restante. Se Lee viesse para perto dele, e ordenasse... então eles teriam
que ir. Mas não até que isso acontecesse.
— Merda! — Disse um dos homens atrás dele, surpreso. Jamie olhou para trás, viu um
rosto atento, e depois girou sobre si mesmo para olhar para o mesmo lugar que o homem estava
olhando. Alguns dos homens de Craddock estavam saindo da floresta, parecendo satisfeitos
consigo mesmos. Eles tinham a égua de Claire com eles, e sobre sua sela estava o corpo inerte
de um índio, sua escalpa longa e oleosa quase raspando no chão.
— Eu o peguei, senhor! — Um dos homens, Mortlake, bateu continência, sorrindo com os
dentes brancos da sombra de um chapéu que ele não pensou em remover. Seu rosto brilhava
como couro oleado, e ele assentiu para Ian de modo amigável, apontando o polegar para a égua
— O cavalo é seu?
— É, sim — Ian disse, e seu sotaque escocês fez Mortlake piscar — Eu agradeço, senhor.
Eu acho que é melhor meu tio ficar com o cavalo, entretanto. Você precisará dela, sim? — Ele
adicionou para Jamie, levantando uma sobrancelha em direção às fileiras de homens atrás
deles.
Jamie queria recusar; Ian parecia mal poder andar. Mas o rapaz estava certo. Jamie teria
que liderar aqueles homens, para frente ou para trás — e ele precisaria que eles fossem capazes
de vê-lo. Ele assentiu relutantemente, e o corpo do Abenaki foi jogado da cela e lançado sem
cuidado para o lado. Ele viu os olhos de Ian seguindo-o, escuros pelo desgosto, e pensou por
uma fração de segundo na orelha defumada que seu sobrinho carregava no sporran, e esperava
que Ian não... mas, não, um Mohawk não levava os troféus pela morte de outro homem.
— Havia dois deles, você disse, Ian?
Ian se virou da contemplação do Abenaki morto e assentiu.
— Eu vi o outro — Mortlake respondeu à pergunta implícita. — Ele correu quando
alvejamos este. — Ele tossiu, olhando para o aumento do fluxo de homens descendo a estrada
— Perdão, senhor, mas não deveríamos estar em movimento também?
Os homens estavam se remexendo, esticando o pescoço para ver, murmurando quando
avistaram Lee, cujos ajudantes estavam se espalhando, tentando mobilizar os homens
pululantes em algum tipo de retirada organizada mas sendo redondamente ignorados. Então
alguma coisa, uma mudança na atmosfera, fez Jamie se virar, e metade dos homens fez o mesmo.
E lá vinha Washington na estrada com o antigo garanhão branco de Jamie, galopando, e
um olhar em sua cara grande e áspera que poderia derreter até ferro.
O pânico incipiente dos homens se dissolveu de uma vez enquanto eles avançavam, com
a urgência de entender o que estava acontecendo. Havia caos na estrada. Algumas companhias
esparramadas pararam abruptamente para olhar ao redor procurando por seus companheiros,
alguns notando a súbita aparição de Washington, outros ainda descendo a estrada e colidindo
com aqueles que estavam imóveis — e, no meio de tudo isso, Washington puxou seu cavalo ao
lado de Charles Lee e se inclinou em direção a ele, corado como uma maçã pelo calor e pela
raiva.
— O que você quer dizer com isso, senhor?! — foi tudo o que Jamie conseguiu ouvir
claramente, as palavras levadas até ele por um capricho do ar pesado, antes que os ruídos e a
poeira e o calor sufocante se estabelecessem tão densamente na cena que foi impossível ouvir
qualquer coisa acima das conversas paralelas, com exceção do eco inquietante das rajadas de
mosquete e o ocasional estalo fraco das granadas à distância.
Ele não tentou gritar sobre o barulho; não era necessário. Seus homens não iriam a lugar
algum, fixos no espetáculo como estavam.
O rosto de nariz longo de Lee estava tomado de fúria, e Jamie o viu por um breve instante
como Punch, a marionete furiosa do espetáculo Punch e Judy. Um desejo absurdo de rir
borburlhou, quando o corolário necessário irresistivelmente se apresentou: George
Washington como Judy, a megera entocada que atacava o marido com um pedaço de pau. Por
um momento, Jamie temeu ter sucumbido ao calor e perdido a cabeça.
Uma vez imaginado, entretanto, ele não conseguia escapar daquele pensamento, e por um
momento ele estava parado no Hyde Park, observando Punch alimentar seu bebê na máquina
de salsicha.
Porque isso era claramente o que Washington estava fazendo. Não durou mais do que três
ou quatro minutos, e então Washington fez um furioso gesto de desgosto e dispensa e, girando
seu cavalo, partiu a trote, circulando as tropas que haviam paralisado ao longo da estrada,
observando fascinadas.
Emergindo de seu próprio fascínio com uma sacudida, Jamie colocou um pé no estribo da
égua e montou.
— Ian... — ele disse, e seu sobrinho assentiu, colocando uma mão em seu joelho, tanto
para se estabilizar, ele imaginou, quanto para tranquilizar o seu tio.
— Dê-me alguns homens, tio Jamie — ele disse — Eu cuidarei de... sua senhoria.
Mal houve tempo para convocar Cabo Greenhow e detalhar que ele deveria escolher cinco
homens para acompanhar Ian, antes de Washington se aproximar o suficiente para detectar
Jamie e seus companheiros. O chapéu do general estava em sua mão e seu rosto estava em
chamas, raiva e desespero integradas à ansiedade, e todo o seu ser irradiava alguma coisa que
Jamie raramente vira, mas reconhecia. Ele se sentira assim uma vez. Era o olhar de um homem
que estava arriscando tudo, porque não havia escolha.
— Sr. Fraser! — Washinton gritou para ele, e sua grande boca se esticou num sorriso
resplandecente — Siga-me!
80 – PATER NOSTER
William despertou lentamente, sentindo-se péssimo. Sua cabeça doía e ele queria vomitar.
Estava terrivelmente sedento, mas o pensamento de beber qualquer coisa fez sua garganta se
apertar e ele vomitou debilmente. Ele estava deitado sobre grama e insetos; havia insetos
subindo nele... Ele viu, por um vívido momento, uma linha de pequenas formigas subindo
ocupadas nos pelos escuros de seu pulso e tentou sacudir a mão contra o chão para desalojá-
las. Sua mão não se moveu, entretanto, e sua consciência se desvaneceu.
Ele voltou com uma corrida latejante e agitada. O mundo estava girando vertiginosamente
de cima para baixo, e ele não conseguia respirar. Então ele descobriu que as coisas escuras que
entravam e saíam de seu campo visual eram pernas de cavalos e percebeu que estava de barriga
para baixo numa sela, sendo carregado para algum lugar. Onde...?
Havia muitos gritos nas proximidades, e o ruído fazia com que sua cabeça doesse ainda
mais.
— Parem! — Gritou uma voz inglesa. — O que vocês estão fazendo com ele? Parem! Parem
ou vou matá-los!
— Deixe-o! Empurre-o para fora! Corra! — Uma voz vagamente familiar, escocesa. Então
uma confusão de ruídos e em algum lugar no meio deles, a voz escocesa de novo, gritando —
Diga ao meu... — Mas então ele atingiu o chão com um baque que arrancou seu ar e sua
consciência, e deslizou novamente para a escuridão, de cabeça.
No final, era a própria simplicidade. John Grey caminhou por uma trilha de gado, seguindo as
pegadas dos cascos em direção ao que devia ser água, e caminhou diretamente para dentro de
um grupo assustado de soldados britânicos enchendo seus cantis num riacho lamacento. Com
a cabeça tonta pela sede e pelo calor, ele não se importou em tentar se identificar ou se explicar,
apenas colocou suas mãos no ar e se entregou com uma intensa sensação de alívio.
Os soldados deram água a ele, por fim, e então ele marchou sob a guarda de um garoto
nervoso com um mosquete para dentro do pátio de uma fazenda que parecia estar deserta. Sem
dúvida os donos tinham fugido ao perceberem que estavam no meio de uma tropa de vinte mil
homens ou mais empenhada no caos.
Grey foi empurrado ao longo de um vagão meio preenchido com grama cortada, foi
obrigado a se sentar no chão com vários outros prisioneiros capturados — na sombra, graças a
Deus — e deixado ali sob a guarda de dois soldados de meia-idade, armados com mosquetes, e
uma criança nervosa de quatorze anos ou mais num uniforme de tenente, que se contorcia toda
vez que o som de uma rajada ecoava pelas árvores.
Aquela poderia ser sua melhor chance. Se ele pudesse chocar ou intimidar o rapaz para
enviá-lo a Cornwallis ou Clinton...
— Senhor! — Ele latiu para o menino, que piscou para ele, assustado. Bem como os
americanos capturados. — Qual é o seu nome, senhor? — Ele exigiu em voz de comando. Isso
atingiu o jovem tenente de forma absurda; ele deu dois passos involuntários para trás antes de
parar. Ele corou, entretanto, e se recompôs.
— Cale a boca! — Ele disse, e, dando um passo para frente, lançou uma algema na orelha
de Grey.
Grey o pegou pelo pulso por reflexo, mas antes que pudesse soltar o garoto, um dos
soldados deu um passo em sua direção e bateu em seu antebraço esquerdo com o cano do
mosquete.
— Ele disse para calar a boca — O soldado disse suavemente. — Eu faria isso se fosse você.
Grey ficou quieto, mas apenas porque não conseguia falar. Aquele braço já tinha sido
quebrado duas vezes antes — uma vez por Jamie Fraser, e uma vez por uma explosão de canhão
— e a terceira vez definitivamente não era o charme. Sua visão ficou preta por um momento, e
tudo dentro dele se contraiu em uma bola de chumbo quente. E então começou a doer, e ele
pôde respirar de novo.
— O que foi isso que você disse? — O homem sentado perto dele disse baixinho, com as
sobrancelhas levantadas — Não é inglês, é?
— Não — disse Grey, e parou para respirar de novo, agarrando o braço contra a barriga
— É alemão para “Oh, merda!”.
— Ah — O homem assentiu compreensivamente e, com um olhar cauteloso para os
guardas, tirou um pequeno frasco de baixo de seu casaco e tirou a rolha antes de entregá-lo a
Grey. — Tente isso, amigo — ele sussurrou.
O cheiro de maçãs fermentadas subiu diretamente para seu cérebro e quase o fez vomitar.
Ele conseguiu engolir, entretanto, e devolveu o frasco com um aceno de agradecimento. O suor
escorria pelo seu rosto em bicas, fazendo com que seu olho bom ardesse.
Ninguém falou. O homem que tinha dado a ele a aguardente de maçã era um regular
Continental, de meia-idade, com um rosto desfigurado e somente metade dos dentes sobrando.
Ele estava sentado debruçado, com os cotovelos nos joelhos, os olhos fixos à distância, onde o
som da luta estava. Os outros estavam fazendo a mesma coisa, ele percebeu — todos esticando-
se em direção à batalha.
O Coronel Watson Smith surgiu em sua mente, sem dúvida convocado pelos vapores da
aguardente de maçã, mas aparecendo tão repentinamente que Grey sacudiu um pouco, e um
dos guardas se enrijeceu, dando a ele um olhar duro. Grey olhou para o outro lado, entretanto,
e o homem relaxou.
Chocado pela dor, exausto e sedento, ele se deitou, envolvendo o braço latejante contra
seu peito. O zumbido dos insetos preencheu seus ouvidos, e a rajada dos mosquetes recuou para
o barulho sem sentido de um trovão distante. Ele se deixou cair numa catatonia não
desagradável, visualizando Smith sem camisa, deitado no catre estreito sob uma lanterna,
embalando Grey em seus braços, apertando suas costas com uma mão reconfortante. Em algum
momento, ele derivou para um sono inquieto, pontuado pelos sons de armas e gritos.
Ele despertou repentinamente, com a boca parecendo algodão, para desobrir que muitos
outros prisioneiros tinham sido trazidos e que havia um índio sentado ao seu lado. O olho bom
de Grey estava pegajoso e turvo, e demorou um momento para ele reconhecer o rosto sob os
remanescentes da pintura de guerra em preto e verde.
Ian Murray deu a ele um olhar longo e uniforme que dizia claramente “Não fale”, e ele não
o fez. Murray levantou uma sobrancelha para seu braço ferido. Grey levantou seu ombro bom
em um gesto de desdém e focou sua atenção sobre o carrinho de água que chegava pela estrada.
— Você e você, venham comigo — Um dos soldados apontou o polegar para dois dos
prisioneiros e os levou em direção ao carrinho, do qual eles retornaram logo, carregando baldes
de água.
A água estava morna e tinha gosto de madeira podre, mas eles beberam avidamente,
deixando cair em suas roupas por causa da pressa. Grey passou uma mão úmida sobre o rosto,
sentindo de alguma forma mais calmo em sua mente. Ele flexionou seu pulso esquerdo
experimentalmente; talvez fosse apenas uma contus... não, não era.
Ele ficou sem fôlego com um silvo, e Murray, como se em resposta, fechou os olhos, uniu
as mãos, e começou a entoar um Pai Nosso.
— O que diabos é isso? — O tenente exigiu, indo para cima dele — Está falando em
linguagem de índio, senhor?
Ian abriu os olhos, olhando o garoto suavemente.
— É latim. Eu estou rezando, sim? — Ele disse — Você se importa?
— Se eu... — O tenente parou, perplexo tanto pela resposta em sotaque escocês quando
pelas circunstâncias. Ele lançou um olhar aos soldados, que pareciam estar focados em outra
coisa. Limpou a garganta. — Não — ele disse brevemente, e se virou, fingindo estar absorvido
na nuvem distante de fumaça de pólvora que pairava sobre as árvores.
Murray virou os olhos para Grey e, com um leve aceno de cabeça, começou o Pai Nosso de
novo. Grey, um pouco confuso, se juntou a ele, tropeçando um pouco. O tenente se enrijeceu,
mas não se virou.
— Eles sabem quem você é? — Murray perguntou em latim no final da prece, sem variar
a entonação.
— Eu disse a eles; eles não acreditaram em mim — Grey replicou, adicionando uma
aleatória “Ave Maria” no final para maior verossimilhança.
— Gratia plena, Dominus tecum. Devo dizer a eles?
— Eu não tenho ideia no que isso vai resultar. Suponho que não haja problema.
— Benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, Jesu — Murray replicou, e se
levantou.
Os guardas se viraram imediatamente, levantando seus mosquetes nos ombros. Murray
ignorou isso, dirigindo-se ao tenente.
— Talvez não seja problema meu, senhor — ele disse suavemente. — Mas eu não gostaria
de ver você arruinar sua carreira por causa deste pequeno erro.
— Fique quie... Que erro? — O tenente exigiu. Ele tinha tirado sua peruca por causa do
calor mas agora a colocava novamente na cabeça, evidentemente pensando que aquilo lhe daria
mais autoridade. Ele estava equivocado em sua impressão, já que a peruca era muito grande e
imediatamente deslizou para o lado sobre uma orelha.
— Este cavalheiro — Murray disse, gesticulando para Grey, que se sentou e olhou
impassível para o tenente. — Eu não posso imaginar o que o trouxe até aqui ou por que ele está
vestido desta forma, mas eu o conheço bem. Ele é Lord John Grey. O... hã... irmão do Coronel
Grey, o Duque de Pardloe? — ele adicionou delicadamente.
A tonalidade do rosto do jovem tenente mudou notavelmente. Ele olhou rapidamente de
um lado para outro entre Murray e Grey, franzindo o cenho, e distraidamente colocou sua
peruca no lugar. Grey se levantou lentamente, mantendo o olho nos guardas.
— Isso é ridículo — O tenente disse, mas sem força. — Por que Lord John Grey estaria
aqui, parecendo como um... assim?
— As exigências da guerra, Tenente — Disse Grey, mantendo sua voz uniforme. — Vejo
que você pertence ao quadragésimo nono regimento, o que significa que o seu Coronel é Sir
Henry Calder. Eu o conheço. Se você puder me emprestar papel e lápis, escreverei a ele uma
breve nota, pedindo a ele uma escolta para me buscar. Você pode enviar a nota através do
carregador de água — ele adicionou, vendo um olhar selvagem aparecer nos olhos do garoto, e
esperando acalmá-lo antes que ele entrasse em pânico e decidisse que a melhor forma de
resolver esse imbróglio era atirar em Grey.
Um dos soldados — aquele que tinha quebrado o braço de Grey — tossiu gentilmente.
— Nós precisaremos de mais homens, senhor, de qualquer maneira. Três de nós com
dezenas de prisioneiros... e sem dúvida chegarão mais. — O tenente ficou inexpressivo, e o
soldado tentou de outra forma. — Eu quero dizer... pode ser que você esteja chamando reforços.
— O homem capturou o olho de Grey e tossiu de novo.
— Acidentes acontecem — Grey disse, embora sem muita caridade, e o guarda relaxou.
— Tudo bem — o tenente disse. Sua voz se quebrou e ele repetiu — Tudo bem! — em um
barítono rouco, olhando beligerantemente ao redor. Ninguém era tolo o bastante para rir.
Os joelhos de Grey queriam tremer, e ele se sentou abruptamente para impedir isso. O
rosto de Murray — bem, os rostos de todos os prisioneiros — estavam cuidadosamente
inexpressivos.
— Tibi debeo — Grey disse baixinho. Eu reconheço o débito.
— Deo gratias — Murray murmurou, e foi só então que Grey viu a trilha de sangue que
manchava o braço e a lateral do corpo de Murray, manchando sua tanga, e a parte de trás de
uma flecha quebrada saindo da carne de seu ombro direito.
William voltou à consciência de novo deitado em alguma coisa que não se mexia, graças a Deus.
Havia um cantil sendo pressionado em seus lábios, e ele bebeu, engolindo avidamente, os lábios
procurando por mais água como se ela tivesse sido tirada dele.
— Não tão rápido, ou você vai passar mal — disse uma voz familiar. — Respire uma vez,
e você poderá ter mais. — Ele respirou e forçou seus olhos a se abrirem contra um clarão de
luz. Um rosto familiar apareceu sobre ele, e ele estendeu a mão hesitante em direção a ele.
— Papai... — ele sussurrou.
— Não, mas a segunda melhor pessoa — disse seu tio Hal, dando um firme aperto na mão
que se elevara e sentando-se ao seu lado. — Como está a cabeça?
William fechou os olhos e tentou focar em alguma coisa além da dor.
— Não... tão mal.
— Conta outra — seu tio murmurou, segurando nas bochechas de William e virando sua
cabeça para o lado. — Vamos dar uma olhada.
— Vamos beber mais água. — William conseguiu dizer, e seu tio bufou um pouco e colocou
o cantil de volta nos lábios de William.
Quando William parou de respirar de novo, seu tio retirou o cantil e perguntou, em um
tom de voz perfeitamente normal — Você acha que consegue cantar?
Sua visão estava entrando e saindo de foco; momentaneamente havia dois de seu tio, e
depois um, depois dois de novo. Ele fechou um olho e tio Hal se estabilizou.
— Você quer que eu... cante? — Ele conseguiu dizer.
— Bem, talvez não exatamente neste minuto — o duque disse. Ele se sentou em seu banco
e começou a assobiar uma melodia — Você reconhece isso? — ele perguntou, parando de
assobiar.
— Lillibulero — William disse, começando a se sentir um pouco melhor — Por que, em
nome de Deus?
— Conheci um sujeito uma vez que tinha sido atingido na cabeça por um machado e
perdeu sua habilidade de cantar. Não conseguia distinguir uma nota da outra. — Hal se inclinou
para frente, exibindo dois dedos — Quantos dedos eu estou mostrando?
— Dois. Enfie-os no seu nariz — William aconselhou. — Saia daqui, sim? Acho que vou
passar mal.
— Eu disse que você não deveria beber muito rápido — Mas seu tio colocou uma bacia
sob seu rosto e uma mão forte segurando sua cabeça, envolvendo-o enquanto ele vomitava e
tossia e a água jorrava de seu nariz.
Quando ele voltou a deitar em seu travesseiro — era um travesseiro, ele estava deitado
num catre de acampamento — ele tinha recobrado os seus sentidos o suficiente para ser capaz
de olhar ao redor e determinar que estava numa tenda de exército — provavelmente a tenda
de seu tio, a julgar pelo baú maltratado e a espada acima dele — e o brilho de luz estava vindo
do sol baixo da tarde que se infiltrava pela borda aberta da tenda.
— O que aconteceu? — ele perguntou, limpando a boca com as costas da mão.
— Qual é a última coisa da qual você se lembra? — Tio Hal rebateu, entregando um cantil
a ele.
— De... hã... — Sua mente estava cheia de pedaços e trechos confusos. A última coisa da
qual ele se lembrava era de Jane e sua irmã, rindo dele quando ele estava nu no riacho. Ele
sorveu água e colocou dois dedos cuidadosos na cabeça, que parecia estar envolta em
bandagens. Estava dolorida ao toque — Levar meu cavalo para beber água em um riacho.
Tio Hal levantou uma sobrancelha — Você foi encontrado em uma vala, perto de um local
chamado Spottiswood ou algo parecido. As tropas de von Knyphausen estavam ocupando uma
ponte lá.
William começou a sacudir a cabeça, mas pensou melhor e fechou os olhos contra a luz.
— Eu não me lembro.
— Provavelmente você vai se lembrar depois. — Seu tio parou. — Você se lembra onde
você viu seu pai pela última vez?
William sentiu uma calma incomum sobre aquilo. Ele apenas não se importava mais, disse
a si mesmo. O mundo todo saberia, de uma forma ou de outra.
— Qual deles? — Ele disse sem rodeios, e abriu seus olhos. Seu tio o encarava com
interesse, mas sem nenhuma surpresa particular.
— Você conheceu o Coronel Fraser, então? — Hal perguntou.
— Sim — William disse brevemente. — Há quanto tempo você sabe?
— Há cerca de três segundos, com certeza — seu tio replicou. Ele esticou a mão e
desabotoou o casaco de couro ao redor de seu pescoço, suspirando com alívio quando o tirou.
— Bom Deus, está calor. — O couro tinha deixado uma grande marca vermelha; ele a massageou
gentilmente, semi-cerrando os olhos — Quanto a pensar que havia algo bastante notável em
sua semelhança com o referido Coronel Fraser... desde que eu o encontrei novamente na
Filadélfia recentemente. Antes disso, eu não o via há muito tempo... desde que você era muito
pequeno, e eu nunca o tinha visto junto a ele, de qualquer forma.
— Oh.
Eles ficaram sentados em silêncio por um tempo, mosquitos e moscas pretas caindo da
lona na cama de William como flocos de neve. Ele se tornou consciente dos ruídos de um grande
acampamento que o rodeava, e ocorreu a ele que deveriam estar com General Clinton.
— Eu não sabia que você estava com Sir Henry — ele disse por fim, quebrando o silêncio.
Hal assentiu, puxando para fora do bolso o frasco de prata velho antes de jogar o próprio casaco
sobre o baú.
— Eu não estava; eu estive com Cornwallis. Nós (o regimento, quero dizer) chegamos a
Nova York há cerca de duas semanas. Eu vim para a Filadélfia para ver Henry e John e para fazer
perguntas sobre Benjamin. Eu cheguei bem a tempo de sair da cidade com o exército.
— Ben? O que ele fez para você estar perguntando sobre ele?
— Ele se casou, teve um filho e foi tolo o suficiente para ser capturado pelos Rebeldes,
evidentemente — seu tio replicou suavemente. — Pensei que ele poderia receber um pouco de
ajuda. Se eu lhe der um gole disso, conseguirá engolir?
William não replicou, mas esticou a mão para pegar o frasco. Estava cheio com um bom
conhaque; ele inspirou cuidadosamente, mas pareceu não representar riscos para seu
estômago embrulhado, e ele arriscou um gole.
Tio Hal o observou por um momento, sem falar. A semelhança entre ele e Lord John era
considerável, e William sentiu algo estranho ao vê-lo — algo entre o conforto e o ressentimento.
— Seu pai — Hal disse após alguns momentos. — Ou meu irmão, se você preferir. Você se
lembra de quando foi a última vez em que o viu?
O ressentimento explodiu abruptamente na raiva.
— Sim, eu me lembro malditamente bem. Foi na manhã do dia 16. Na casa dele. Com o
meu outro pai.
Hal fez um pequeno ruído de “hum”, indicando interesse.
— Foi quando você descobriu, não?
— Foi.
— John contou a você?
— Não, ele não disse nada! — O sangue subiu ao rosto de William, fazendo sua cabeça
latejar com uma rapidez tão feroz que ele ficou tonto. — Se eu não tivesse ficado cara a cara
com o... o sujeito, eu suponho que ele nunca teria me dito.
Ele se balançou e estendeu a mão para não cair. Hal o pegou pelos ombros e o deitou de
volta nos travesseiros, onde ele ficou parado, os dentes cerrados, esperando que a dor
desaparecesse. Seu tio pegou o frasco de sua mão sem resistência, sentou-se de novo e tomou
um gole, pensativo.
— Você poderia ter se dado pior — seu tio observou depois de um momento. — No
sentido de quem lhe gerou, eu quero dizer.
— Oh, sério? — William disse friamente.
— Com certeza, ele é um escocês — O duque disse criteriosamente.
— E um traidor.
— E um traidor — Hal concordou. — Mas um diabo de um bom espadachim, entretanto.
E bom conhecedor de cavalos.
— Ele era um maldito de um cavalariço, pelo amor de Deus! É claro que ele sabe sobre
cavalos! — Uma nova onda de ultraje fez com que William se levantasse de novo, apesar do
latejar em suas têmporas. — O que diabos eu vou fazer?!
Seu tio suspirou profundamente e colocou a rolha de volta no frasco.
— Conselho? Você é muito velho para receber e muito jovem para seguir. — Ele olhou de
lado para William, seu rosto tão semelhante ao de papai. Mais magro, mais velho, as
sobrancelhas começando a ficar grisalhas, mas com o mesmo humor triste nos cantos dos olhos
— Pensou em estourar os próprios miolos?
William piscou, assustado.
— Não.
— Isso é bom. Qualquer coisa que não seja isso é uma melhoria, não? — Ele se levantou,
alongando-se, e grunhiu com o movimento. — Deus, eu estou velho. Deite-se, William, e volte a
dormir. Você não está em condições de pensar. — Ele abriu a lanterna e soprou a vela, fazendo
a tenda mergulhar na escuridão.
Houve um farfalhar quando a aba da tenda se levantou, e a luz ardente do sol que se punha
delineou a figura esbelta do duque quando ele se virou.
— Você ainda é o meu sobrinho — ele disse em um tom convencional. — Duvido que isso
lhe tará muito conforto, mas é a verdade.
81 – ENTRE AS LÁPIDES
O sol estava baixo e brilhando diretamente em meus olhos, mas as vítimas chegavam com tanta
frequência que eu não tinha tempo nem para mudar meu equipamento de lugar. Eles haviam
lutado durante todo o dia; ainda estavam lutando — eu podia ouvir, por perto, mas não
conseguia ver nada quando olhava para aquela direção, piscando contra o sol. Ainda assim, os
gritos e os disparos dos mosquetes e o que eu imaginei serem granadas — eu nunca tinha
ouvido uma granada explodir, mas algo fazia um tipo irregular de ruído como “pooong” que era
bem diferente dos tiros de canhões ou da lenta percussão dos tiros de mosquete — eram ruídos
altos o suficiente para abafarem aos sons de grunhidos e choros da sombra das árvores e o
zumbido incessante das moscas.
Eu estava balançando pelo cansaço e pelo calor e, de minha parte, estava quase indiferente
à batalha. Até que um jovem vestido com o uniforme marrom de milícia cambaleou até mim,
com o sangue escorrendo de um profundo corte em sua testa. Eu estanquei o sangue e limpei o
rosto antes de reconhecê-lo.
— Cabo... Greenhow? — Eu perguntei em dúvida, e um pequeno jorro de medo penetrou
a névoa da fadiga. Joshua Greenhow estava em uma das companhias de Jamie; eu o tinha
conhecido.
— Sim, senhora — Ele tentou inclinar a cabeça, mas eu o impedi, pressionando
firmemente sobre o maço de retalhos que tinha enfiado em sua testa.
— Não se mexa. General Fraser... Você o... — Minha boca secou, grudenta, e eu estiquei a
mão automaticamente para meu copo, apenas para perceber que ele estava vazio.
— Ele está bem, senhora — O cabo me assegurou, e esticou um longo braço acima da mesa,
onde meu cantil estava — Ou pelo menos ele estava na última vez em que o vi, e isso foi há não
mais do que dez minutos. — Ele colocou água em meu copo, jogou-a em sua própria boca,
respirou pesadamente por um instante de alívio, e depois serviu mais água, que ele entregou
para mim.
— Obrigada. — Eu bebi; estava tão quente que mal poderia ser discernida como molhada,
mas amenizou minha língua — Meu sobrinho... Ian Murray?
O Cabo Greenhow começou a balançar a cabeça, mas parou.
— Eu não o vejo desde meio-dia, mas também não o vi morto, senhora. Oh... sinto muito,
senhora. Eu quis dizer...
— Eu sei o que você quis dizer. Aqui, coloque sua mão ali e mantenha a pressão — Eu
coloquei sua mão sobre os retalhos de tecido e pesquei uma agulha de sutura com linha de seda
da jarra de álcool. Minhas mãos, estáveis durante todo o dia, tremeram um pouco, e eu tive que
parar e respirar por um momento. Perto. Jamie estava tão perto. E em algum lugar no meio da
luta, eu podia ouvir.
O Cabo Greenhow estava me contando alguma coisa sobre a batalha, mas eu estava tendo
problemas para entender. Algo sobre General Lee sendo dispensado de seu comando e...
— Dispensado do comando? — Eu soltei. — Por que diabos?
Ele pareceu assustado com minha veemência, mas replicou gentilmente.
— O motivo eu não sei, senhora. Tem alguma coisa a ver com um recuo e como ele não
deveria ter ordenado que ele acontecesse, mas então General Washington apareceu em seu
cavalo e xingou e amaldiçoou como o diabo, com o perdão de sua presença, senhora — ele
adicionou educadamente. — De qualquer forma, eu o vi! General Washington. Oh, senhora, isso
foi tão... — As palavras falharam e eu entreguei a ele o cantil com minha mão
momentaneamente livre.
— Jesus H. Roosevelt Christ — Murmurei baixinho. Os Americanos estavam ganhando?
Estavam se mantendo? Será que o maldito Charles Lee tinha ferrado tudo, afinal de contas, ou
não?
O Cabo Greenhow felizmente não notara minha linguagem, mas estava voltando à vida
como uma flor na chuva, entusiasmado pelo que tinha feito.
— E então nós corremos diretamente atrás dele, e ele estava percorrendo a estrada e a
linha do cume, gritando e abanando seu chapéu, e todas as tropas marcharam de volta para
baixo... Todos eles olharam para cima com os olhos quase saltando de suas cabeças e depois
eles se viraram e caíram sobre nós, e o exército todo, nós apenas... nós apenas nos lançamos
sobre os malditos casacas vermelhas... Oh, senhora, foi maravilhoso!
— Maravilhoso! — Eu ecoei obedientemente, limpando uma trilha de sangue que
ameaçava cair em seu olho. As sombras das lápides no cemitério se estenderam, longas e
violetas, e o som das moscas zumbia em meus ouvidos, mais alto do que o ruído dos tiros que
ainda ocorriam, e estavam cada vez mais perto, aproximando-se da barreira dos mortos. E Jamie
estava com eles.
Deus, mantenha-o seguro! Rezei em silêncio com meu coração.
— Você disse alguma coisa, senhora?
Jamie esfregou uma mão úmida de sangue em seu rosto, a lã áspera em sua pele, o suor
queimando seus olhos. Era em direção a uma igreja que eles tinham perseguido os britânicos
— ou o pátio de uma igreja. Homens se esquivavam por entre as lápides, saltando em
perseguição.
Os britânicos tinham virado para a baía, entretanto, um oficial organizando-os em uma
linha irregular, e o embate começou, os mosquetes ancorados, os soquetes delineando...
— Fogo! — Jamie gritou, com toda a força que restara em sua voz rouca — Fogo neles!
Agora!
Apenas alguns homens tinham carregado as armas, mas às vezes é necessário apenas um.
Um tiro soou atrás dele, e o oficial britânico que estava gritando parou de gritar e cambaleou.
Ele passou os braços ao redor de si mesmo, curvando-se e caindo de joelhos, e alguém atirou
nele de novo. Ele foi lançado para trás e depois caiu de lado.
Houve um rugido da linha britânica, que se dissolveu em uma corrida, alguns homens
parando por tempo suficiente para arrumar suas baionetas, outros empunhando suas armas
como porretes. Os americanos os encontraram, loucos e gritando, com armas e punhos. Um
miliciano alcançou o oficial caído, puxando-o pelas pernas, e começou a arrastá-lo em direção à
igreja, talvez com a intenção de mantê-lo prisioneiro, talvez para conseguir ajuda a ele...
Um soldado britânico se jogou contra o americano, que cambaleou para trás e caiu,
perdendo o poder sobre o oficial. Jamie estava correndo, gritando, tentando reunir os homens,
mas era inútil; eles tinham perdido o juízo por completo na loucura da luta, e qualquer intenção
que eles tivessem em aproveitar o oficial britânico, eles também a haviam esquecido.
Sem um líder, alguns dos soldados britânicos estavam engajados num grotesco cabo de
guerra com dois americanos, cada um segurando uma extremidade do oficial britânico morto
— porque certamente ele devia estar morto agora, se já não estivesse antes.
Consternado, Jamie correu entre eles, gritando, mas sua voz falhou completamente por
causa da tensão e da falta de ar, e ele percebeu que não estava emitindo nada mais do que
grasnados fracos. Ele alcançou a luta, pegou um dos soldados pelo ombro, na intenção de puxá-
lo para trás, mas o homem girou e o socou no rosto.
Foi um golpe rude na lateral de sua mandíbula, mas o fez soltar o homem, e ele perdeu o
equilíbrio quando alguém passou perto dele para pegar em alguma parte do corpo do oficial.
Tambores. Um tambor. Alguém à distância estava batendo em alguma coisa com urgência,
um convite.
— Recuar! — Alguém gritou com a voz rouca. — Recuar!
Alguma coisa aconteceu; uma pausa momentânea — e de repente tudo ficou diferente e
os americanos estavam passando por ele, apressados mas não mais frenéticos, alguns deles
carregando o oficial britânico morto. Sim, definitivamente morto; a cabeça do homem pendia
como uma boneca de pano.
Graças a Deus não o estão arrastando pela terra, foi tudo o que ele teve tempo de pensar.
O tenente Bixby estava em seus ombros, o sangue escorrendo de seu rosto de uma ferida aberta
em seu couro cabeludo.
— Aí está você, senhor! — Ele disse, aliviado. — Pensei que você tivesse sido levado. Nós
pensamos. — Ele pegou Jamie respeitosamente pelo braço, puxando-o para ir com ele. — Venha
comigo, senhor, sim? Eu não confio que aqueles malditos bastardos não possam voltar.
Jamie olhou na direção que Bixby estava apontando. Os britânicos estavam recuando, sob
a direção de alguns oficiais que tinham vindo para frente da massa de casacas vermelhas que
se formava à meia-distância. Eles não mostravam qualquer disposição para se aproximar, mas
Bixby estava certo: ainda havia tiros aleatórios sendo disparados, de ambos os lados. Ele
assentiu, procurando no bolso pelo seu lenço extra para entregar ao homem para estancar o
ferimento.
O pensamento em ferimentos lhe trouxe Claire à memória, e ele se lembrou do que Denzell
Hunter havia dito: “A Igreja de Tennent, o hospital está montado ali”. Aquela era a Igreja de
Tennent?
Ele já estava seguindo Bixby em direção à estrada, mas olhou para trás. Sim, os homens
que carregavam o oficial britânico estavam levando-o até a igreja, e havia homens feridos
sentados próximos à porta, mais deles perto de uma pequena tenda branca — Deus, aquela era
a tenda de Claire, será que ela estava...
Ele a viu logo de cara, como se o seu pensamento a tivesse conjurado, logo ali ao ar livre.
Ela estava de pé, encarando boquiaberta, e espantada — havia um regular Continenal num
banco ao seu lado, segurando um pano manchado de sangue, e mais desses panos em uma bacia
aos seus pés. Mas por que ela estava lá fora? Ela...
E então ele a viu se sacudir para a frente, colocar a mão na lateral do corpo e cair.
Uma marreta bateu na lateral de meu corpo, fazendo-me sacudir, a agulha caindo de minhas
mãos. Eu não me senti caindo, mas estava deitada no chão, pontos pretos e brancos piscando
em volta de mim, uma sensação de intenso torpor irradiando da lateral direita de meu corpo.
Eu senti o cheiro de terra úmida e grama quente e de folhas de sicômoro, pungentes e
confortantes.
Choque, eu pensei vagamente, e abri minha boca, mas nada além de um clique seco saiu
de minha garganta. O que... O torpor do impacto começou a diminuir, e eu percebi que tinha me
enrolado como uma bola, meu antegraço pressionado por reflexo em meu abdômen. Eu senti
cheiro de queimado, e de sangue fresco, muito fresco. Eu tinha sido alvejada, então.
— Sassenach! — Eu ouvi Jamie rugir em meus ouvidos. Ele soava distante, mas eu ouvi o
terror claramente em sua voz. Eu não me senti perturbada por isso. Eu me senti muito calma.
— Sassenach!
Os pontos se uniram. Eu estava olhando por um túnel estreito de luz e de sombras que
giravam. Ao final dele estava o rosto chocado do Cabo Greenhow a agulha pendurada pela linha
do corte meio costurado em sua testa.
PARTE V
CONTANDO NARIZES
82 – MESMO AS PESSOAS QUE QUEREM IR PARA O CÉU NÃO QUEREM MORRER PARA
CHEGAR LÁ
Vozes... Eu ouvia palavras, desconexas, penetrando na névoa como balas, de forma aleatória.
— ... encontre Denzell Hunter!
— General...
— Não!
— ... mas você é necessário...
— Não!
— ... ordens...
— NÃO!
E outra voz, esta outra dura pelo medo.
— ... poderia ser executado por traição e deserção, senhor!
Aquilo me fez focar a atenção e eu ouvi a resposta, claramente.
— Então eles vão ter que me executar onde estou, senhor, porque não vou sair do lado
dela.
Bom, eu pensei, e confortada, caí na espiral vazia novamente.
— Tire seu casaco e o seu colete, rapaz! — Jamie disse abruptamente. O garoto pareceu
completamente desnorteado, mas, estimulado por um movimento ameaçador de Bixby, fez o
que tinha sido ordenado. Jamie o pegou pelo ombro, o virou e disse — Fique parado, sim?
Inclinando-se rapidamente, ele pegou um punhado da horrível poça de sangue e barro e,
de pé, escreveu cuidadosamente na camisa branca do mensageiro com o dedo: Eu renuncio à
minha comissão. J. Fraser.
Ele arremessou os restos de terra, mas, depois de um momento de hesitação, adicionou
um distorcido e relutante Senhor no topo da mensagem, depois bateu no ombro do rapaz.
— Vá e mostre ao General Lee — ele disse.
O tenente ficou pálido.
— O general está com um péssimo humor, senhor — ele disse. — Eu não ousaria!
Jamie olhou para ele.
O garoto engoliu e disse — Sim, senhor —, abaixou os ombros sob suas vestes e correu,
desabotoado e se sacudindo.
Esfregando as mãos descuidadamente em suas calças, Jamie se ajoelhou novamente ao
lado do Dr. Leckie, que lançou a ele um rápido aceno. O médico estava pressionando um
chumaço de gaze e uma enorme porção de saia com força contra as laterais de Claire com ambas
as mãos. As mãos do cirurgião estavam vermelhas até o cotovelo, e o suor escorria pelo seu
rosto, pingando de seu queixo.
— Sassenach — Jamie disse suavemente, com medo de tocá-la. Suas próprias roupas
estavam ensopadas de suor, mas ele se sentia frio. — Pode me ouvir, moça?
Ela retomou a consciência, e o coração dele subiu até a garganta. Seus olhos estavam
fechados, espremidos em uma careta de dor e concentração. Ela o ouvira; os olhos dourados se
abriram e se fixaram nele. Ela não falou; sua respiração silvava pelos dentes cerrados. Ela o vira,
entretanto, ele tinha certeza — e seus olhos não estavam enevoados pelo choque, e não com a
morte iminente. Ainda não.
Dr. Leckie estava olhando para seu rosto, também, com atenção. Ele soltou a respiração, e
a tensão em seus ombros amenizou um pouco, embora ele não tenha relaxado a pressão de suas
mãos.
— Você pode pegar mais gaze, bandagens, tecidos, o que quer que seja? — ele perguntou.
— Eu acho que o sangramento está diminuindo.
A bolsa de Claire estava aberta um pouco atrás de Leckie. Jamie se lançou para ela, lançou
o conteúdo ao chão, e pegou um punhado de bandagens enroladas. A mão de Leckie fez um
ruído de sucção quando ele a afastou do tecido ensopado e pegou as bandagens limpas.
— Você deve cortar os laços de sua roupa. — O médico disse calmamente. — Eu preciso
que ela permaneça parada. E isso vai permitir que ela respire mais facilmente.
Jamie se atrapalhou com sua adaga, as mãos trêmulas pela pressa.
— Desa...marre... — Claire resmungou, franzindo o cenho ferozmente.
Jamie riu absurdamente ao ouvir sua voz, e suas mãos se estabilizaram. Então ela pensava
que viveria para precisar dos laços. Ele engoliu ar e se pôs a desfazer os nós. Os laços de seu
espartilho eram de couro e, como sempre, estavam encharcados de suor — mas ela dava um nó
simples, e ele conseguiu soltá-lo com a ponta de sua adaga.
O nó se abriu e ele soltou os laços, abrindo o espartilho. Seu peito branco subiu enquanto
ela respirava, e ele sentiu um embaraço instantâneo quando viu seus mamilos se enrijecerem
pelo tecido molhado de suor de sua combinação. Ele queria cobri-la.
Havia moscas em todo lugar, pretas e zumbindo, atraídas pelo sangue. Leckie balançou
sua cabeça para desalojar uma que tinha pousado em sua sobrancelha. Elas estavam
fervilhando ao redor das orelhas de Jamie, mas ele não se incomodava com isso, em vez disso
espantando-as quando elas rastejavam pelo corpo de Claire, sobre seu rosto pálido e
contorcido, suas mãos meio curvadas e indefesas.
— Aqui — Leckie disse, e pegando uma das mãos de Jamie, empurrou-a para baixo no
tecido — Pressione com força.
Ele se sentou nos calcanhares, pegou outro rolo de bandagem e o desenrolou. Com
algumas elevações e grunhidos, juntamente com um terrível gemido de Claire, juntos eles
conseguiram circular o corpo dela, segurando as roupas no lugar.
— Certo. — Leckie se balançou por um momento, e então ficou laboriosamente em pé. —
O sangramento quase parou por enquanto — ele disse a Jamie. — Eu voltarei quando puder. —
Ele engoliu e olhou diretamente para o rosto de Claire, limpando o próprio queixo com a manga
da camisa — Boa sorte para você, senhora.
E com isso, ele simplesmente partiu em direção às portas abertas da igreja, sem olhar para
trás. Jamie sentiu uma onda de fúria tão grande que achou que poderia capturar o homem e
trazê-lo de volta, se pudesse deixar Claire por um momento. Ele tinha partido — deixado-a, o
bastardo! Sozinha, indefesa!
— Que o diabo coma sua alma e a salgue bem antes, seu puto! — Ele gritou em gaélico por
trás do cirurgião desaparecido. Sobrecarregado pelo medo e pela raiva, e pela raiva da
impotência, ele caiu de joelhos ao lado de sua esposa e bateu o punho cegamente no chão.
— Você acabou de... chamá-lo de... puto? — As palavras sussurradas fizeram com que ele
abrisse os olhos.
— Sassenach! — Ele estava lutando para abrir seu cantil descartado, perdido nos
escombros das coisas da bolsa dela. — Aqui, deixe-me dar um pouco de água a você.
— Não. Ainda... não — Ela conseguiu levantar um pouco a mão, e ele ficou mortificado,
com o cantil na mão.
— Por que não? — Ela esatava cinza como aveia tostada, e escorregadia de suor, tremendo
como uma folha. Ele podia ver seus lábios começando a rachar pelo calor, pelo amor de Deus!
— Eu não... sei. — Ela trabalhou a boca por um momento antes de encontrar as próximas
palavras. — Não sei... onde está. — A mão trêmula tocou os tecidos, que já mostravam uma
mancha de sangue começando a se formar. — Se perf... perfurou o... intestino. Beber me...
mataria. Rápido. Cho... Choque intestinal.
Ele se sentou ao lado dela lentamente e, fechando os olhos, respirou deliberadamente por
alguns segundos. Por um momento, tudo tinha desaparecido: a igreja, a batalha, os gritos e o
farfalhar das rodas ao longo da estrada esburacada de Freehold. Não havia nada além dela e
dele, e ele abriu os olhos para observar seu rosto, para fixá-lo na memória para sempre.
— Sim — Ele disse, mantendo a voz o mais estável que podia. — E se este for o caso... e
isso não te matar rapidamente... Eu já vi homens morrendo por causa de tiros no intestino.
Balnain morreu desta forma. É demorado e sujo, e eu não vou deixar que você morra daquela
forma, Claire. Não vou!
Ele falava sério, realmente falava. Mas sua mão apertou o cantil com força o suficiente
para amassar o estanho. Como ele poderia dar a ela a água que poderia matá-la diante de seus
olhos... agora?
Não agora, ele rezou. Por favor, não permita que seja agora!
— Eu não... quero... de qualquer forma — ela sussurrou, depois de uma longa pausa. Ela
piscou para afastar uma mosca verde, que brilhava como esmeralda e tinha vindo beber suas
lágrimas. — Eu preciso... Denny. — Um suspiro suave. — Rápido.
— Ele está vindo — Ele mal podia respirar, e suas mãos pairavam sobre ela, temendo tocar
qualquer coisa. — Denny está vindo. Aguente firme!
A resposta para isso foi um pequeno grunhido — seus olhos se fecharam com força, bem
como sua mandíbula — mas ela o tinha ouvido, pelo menos. Com a vaga lembrança de que ela
sempre dizia que era necessário cobrir o doente com choque e elevar seus pés, ele tirou o casaco
e colocou sobre ela, e depois tirou o colete, enrolou e o colocou sob seus pés. Pelo menos o
casaco cobrira o sangue que agora tomava toda a lateral de seu vestido. Ele ficava aterrorizado
ao ver aquilo.
Os punhos dela estavam cerrados, ambos impulsionando-se com força em seu lado ferido;
ele não poderia segurar sua mão. Ele colocou uma mão em seu ombro, para que ela soubesse
que ele estava lá, fechou os olhos e rezou com todo o seu ser.
83 – PÔR DO SOL
O sol estava quase se pondo, e Denzell Hunter estava abaixando suas facas. O ar estava espesso
com a doçura da aguardente de milho; ele limpara seus instrumentos nela, e eles estavam
reluzindo sobre o guardanapo limpo que a Sra. Macken tinha colocado sobre o aparador.
A jovem Sra. Macken pairava na porta, uma mão pressionada sobre a boca e os olhos
grandes como os de uma vaca. Jamie tentou dar a ela um sorriso tranquilizador, mas o que quer
que tenha sido sua expressão, não era um sorriso e pareceu alarmá-la ainda mais, porque ela se
retirou para a escuridão de sua despensa.
Ela provavelmente estivera alarmada durante o dia todo, como todos no vilarejo de
Freehold; ela estava no fim da gravidez e seu marido estava lutando com os Continentais. E ela
estava ainda mais alarmada na última hora, desde que Jamie batera em sua porta. Ele batera em
seis portas antes da dela. Ela fora a primeira a atender, e, em um mau retorno por sua
hospitalidade, agora encontrava uma mulher ferida deitada na mesa da cozinha, com o sangue
escorrendo de si como um cervo recém-abatido.
Aquela imagem o enervou ainda mais — a Sra. Macken não era a única na casa que tinha
sido abalada pelos eventos — e ele se aproximou para pegar a mão de Claire, para tranquilizar
tanto a si mesmo quanto a ela.
— Como está, Sassenach? — Ele disse, em voz baixa.
— Péssima! — Ela replicou com a voz rouca, e mordeu o lábio para evitar dizer mais
alguma coisa.
— Não é melhor você beber um gole? — Ele se moveu para pegar a garrafa de aguardente
de milho do aparador, mas ela balançou a cabeça.
— Ainda não. Eu não acho que perfurou o intestino, mas eu prefiro morrer pela perda de
sangue do que pela sepsia ou pelo choque, se eu estiver errada.
Ele apertou sua mão. Estava fria, e ele esperou que ela continuasse falando, embora ao
mesmo tempo ele soubesse que não deveria fazê-la falar. Ela precisaria de toda a sua força. Ele
tentou o máximo que podia reunir um pouco de sua própria força e passar para ela sem a
machucar.
A Sra. Macken entrou no cômodo, carregando um castiçal com uma vela de cera fresca; ele
podia sentir a doçura da cera de abelha, e o cheiro de mel o fazia se lembrar de John Grey. Ele
imaginou por um instante se Grey tinha conseguido voltar às linhas britânicas, mas não tinha
atenção para nada que não fosse Claire.
Bem naquele momento, ele se ressentia por ter desaprovado sua fabricação de éter. Ele
daria tudo o que possuía para poupá-la da consciência da próxima meia hora.
O sol poente lavou o cômodo com ouro, e o sangue atravessando as bandagens ficou ainda
mais escuro.
— Sempre concentre-se ao usar uma faca afiada — Eu disse fracamente. — Você pode perder
um dedo ou mais. Minha avó costumava dizer isso, e minha mãe também.
Minha mãe morrera quando eu tinha cinco anos, minha avó poucos anos depois — mas eu
não a via com frequência, já que Tio Lambert passava pelo menos metade de seu tempo em
expedições arqueológicas ao redor do mundo, comigo sendo parte de sua bagagem.
— Você brincava frequentemente com facas afiadas quando era criança? — Denny
perguntou. Ele sorriu, embora seus olhos estivessem fixos no bisturi que ele cuidadosamente
estava afiando numa pedra. Eu podia sentir o cheiro do óleo, um cheiro suave e sombrio sob o
odor de sangue e o cheiro resinoso das vigas inacabadas acima de nós.
— Constantemente — Eu respirei, e mudei minha posição o mais lentamente possível. Eu
mordi o lábio com força e consegui aliviar minhas costas sem grunhir alto. Isso fez com que os
nós dos dedos de Jamie ficassem brancos.
Ele estava parado na janela naquele momento, segurando o peitoril enquanto olhava para
fora.
Vê-lo ali, os ombros largos delineados pelo sol poente, trouxe de volta para mim uma
memória súbita, surpreendente em sua nitidez. Ou melhor, memórias, já que as camadas de
experiências voltaram todas juntas, de repente, e eu estava vendo Jamie rígido pelo medo e pelo
luto, a figura negra e magra de Malva Christie se inclinando em direção a ele — e me lembrei de
sentir tanto uma vaga afronta quando uma tremenda sensação de paz quando comecei a deixar
meu corpo, carregada pelas asas da febre.
Eu tirei aquela memória da cabeça de uma vez, com medo até de pensar naquela paz. O
medo era tranquilizador; eu ainda não estava tão próxima da morte para achá-la atraente.
— Eu tenho certeza que atingiu o fígado — Eu disse a Denny, cerrando os dentes. —
Aquela quantidade de sangue...
— Tenho certeza de que você está certa — ele disse, pressionando gentilmente a lateral
de meu corpo — O fígado é uma grande massa de tecido densamente vascularizado — ele
adicionou, virando-se para Jamie, que não se virou da janela, mas curvou os ombros ante a
possibilidade de descobrir qualquer coisa de natureza aterrorizante.
— Mas o que é excelente em relação a um ferimento no fígado — Denny adicionou
alegremente — é que ele, diferente de outros órgãos do corpo, pode se regenerar por conta
própria, ou é o que sua esposa me diz.
Jamie lançou a mim um breve e assustado olhar, e voltou a encarar a janela. Eu respirei o
mais superficialmente que pude, tentando ignorar a dor, e tentando ainda mais não pensar no
que Denny estava prestes a fazer.
Aquele pequeno exercício de autodisciplina durou cerca de três segundos. Se tivéssemos
sorte, seria simples e rápido. Ele teria que ampliar o buraco da entrada da bala o suficiente para
ver onde ela tinha ido, para poder inserir uma sonda ao longo de seu caminho, na esperança de
encontrar a bala antes de ter que cavar para achá-la. Então uma rápida — eu só poderia esperar
— inserção de qualquer uma de suas pinças seria mais apropriado. Ele tinha três, de diferentes
tamanhos, além de um boticão: bom para pegar um objeto redondo, mas suas garras eram
muito maiores do que as pontas das pinças e causariam muito mais sangramento.
Se não fosse simples ou rápido, eu provavelmente estaria morta dentro da próxima meia
hora. Denny estava inteiramente correto no que tinha dito a Jamie: o fígado é extremamente
vascularizado, uma enorme esponja de penos vasos sanguíneos cruzados por alguns bem
grandes como a veia porta hepática. É por isso que o ferimento, superficialmente pequeno, tinha
sangrando tão alarmantemente. Nenhum dos vasos maiores tinha sido danificado — ainda —
porque eu teria sangrado até a morte em questão de minutos se fosse o caso.
Eu estava tentando respirar superficialmente, por causa da dor, mas tive uma necessidade
imensa de inspirar profundamente; eu precisava de oxigênio, por causa da perda de sangue.
Sally passou pela minha mente, e eu me ative ao seu pensamento para me distrair. Ela
tinha sobrevivido à amputação, gritando através de uma mordaça de couro, com Gabriel — sim,
Gabriel, era o nome do jovem homem com ela — com os olhos esbranquiçados como os de um
cavalo em pânico, lutando para segurá-la de forma estável e não desmaiar. Ela tinha desmaiado,
felizmente, quando eu estava quase no fim — então, dane-se você, Ernest, pensei cansada — e
eu deixara ambos aos cuidados de Rachel.
— Onde está Rachel, Denny? — Perguntei, de repente pensando espantada. Eu pensei ter
um vislumbre breve dela no pátio da igreja após ser alvejada, mas não podia ter certeza de nada
que tinha acontecido naquele borrão de preto e branco.
A mão de Denny parou por um instante, o ferro cauterizador que ele estava segurando
suspendido sobre um pequeno braseiro que ele deixara fumegando no final do aparador.
— Ela está procurando por Ian, acredito — ele disse baixinho, e colocou o ferro muito
gentilmente no fogo. — Está pronta, Claire?
Ian, eu pensei. Oh, Deus. Ele não tinha voltado.
— Como nunca mais estarei — Tentei dizer, já imaginando o cheiro de carne queimada.
Da minha carne.
Se a bala estivesse alojada próxima dos grandes vasos, a manipulação de Denny podia
causar a ruptura destes vasos e eu teria hemorragia interna. A cauterização poderia provocar
um choque repentinho e me matar sem aviso prévio. Mais provavelmente, eu poderia
sobreviver à cirurgia, mas morrer de infecção. Era um pensamento consolador... Pelo menos
nesse caso eu teria tempo para escrever uma breve nota à Brianna — e talvez advertir Jamie
para ser mais cuidadoso com quem se casava da próxima vez.
— Espere — Jamie disse. Ele não elevou a voz, mas havia urgência suficiente nela para
congelar Denny.
Fechei meus olhos, descansei minha mão suavemente em minha roupa, e tentei visualizar
onde a maldita bala poderia estar. Era apenas no fígado ou tinha atingindo alguma coisa no
caminho? Havia tanto trauma e inchaço, entretanto, que a dor era generalizada sobre todo o
lado direito de meu abdômen; eu não podia escolher uma única linha vívida de dor aguda que
levaria à bala.
— O que foi, Jamie? — Denny perguntou, impaciente para fazer seu trabalho.
— Sua noiva — Jamie disse, soando confuso. — Ela está descendo a estrada com um grupo
de soldados.
— Você acha que ela está presa? — Denny perguntou, com uma suposição calma. Eu vi
sua mão tremer um pouco quando ele pegou um guardanapo de linho, no entanto.
— Eu acho que não — Jamie disse com dúvida. — Ela está rindo com alguns deles.
Denny tirou seus óculos e os limpou cuidadosamente.
— Dorothea é uma Grey — ele apontou. — Qualquer membro de sua família pode fazer
uma pausa em volta da forca para fazer brincadeiras espirituosas com o carrasco antes de
graciosamente colocar a corda em volta do pescoço dele com as próprias mãos.
Aquilo era tão verdadeiro que me fez rir, embora meu humor tenha sido cortado por um
choque de dor que tirou meu fôlego. Jamie olhou para mim rapidamente, mas eu acenei a mão
fracamente para ele, e ele foi abrir a porta.
Dorothea entrou, virando-se para acenar sobre o ombro e dizer adeus à sua escolta, e eu
ouvi Denny suspirar com alívio quando ele colocou os óculos novamente.
— Oh, bom — ela disse, indo beijá-lo — Eu esperava que você ainda não tivesse começado.
Sra. Fraser... Claire... como está? Eu quero dizer... Como está passando? — Ela pousou o grande
cesto que estava carregando e veio rapidamente para a mesa em que eu estava deitada, para
pegar minha mão e olhar de forma simpática para mim com seus grandes olhos azuis.
— Eu estou um pouquinho melhor — Eu disse, fazendo um esforço para não trincar os
dentes. Eu me sentia úmida e nauseada.
— O General La Fayette ficou muito preocupado ao ouvir que você tinha sido ferida — ela
disse. — Ele colocou todos os seus ajudantes para rezar o rosário por você.
— Que gentil — eu disse, e estava sendo sincera, mas esperando que o marquês não
tivesse me mandado nada muito complicado que eu precisasse compor uma resposta. Chegando
àquele ponto, eu queria começar logo o maldito negócio, não importava o que acontecesse.
— E ele enviou isso — ela disse, com um olhar um tanto presunçoso no rosto enquanto
segurava uma garrafa de vidro verde — Você vai querer isso primeiro, eu acho, Denny.
— O que... — Denny começou, esticando a mão para a garrafa, mas Dorothea tinha tirado
a rolha e o doce cheiro de xarope de xerez rolou para fora, com o fantasma de um distinto cheiro
herbal sobre ele, algo entre cânfora e sálvia.
— Láudano — disse Jamie, e seu rosto assumiu uma expressão tão surpreendente de
alívio que só então eu percebi quão aterrorizado ele estivera por mim. — Deus a abençoe,
Dottie!
— Ocorreu a mim que o Amigo Gilbert poderia possivelmente ter algumas coisas que
seriam úteis — ela disse modestamente. — Todos os franceses que eu conheço são
terrivelmente obcecados por sua saúde e têm enormes coleções de tônicos e pastilhas e
clísteres. Então eu fui perguntar.
Jamie me colocou meio sentada, com o braço atrás de minhas costas e a garrafa em meus
lábios, antes que eu pudesse agradecer.
— Espere, tudo bem? — Eu disse irritada, colocando a mão sobre a boca da garrafa — Eu
não tenho nenhuma ideia de quão forte essa coisa é. Você não me ajudará em nada ao me matar
com ópio.
Custou-me muito dizer isso; meus instintos clamavam que eu drenasse a garrafa, se isso
pudesse fazer aquela dor horrível passar. Aquele espartano imbecil que permitira que a raposa
roesse seus órgãos vitais não tinha nada a ver comigo28. Mas, pensando bem, eu não queria
morrer, nem por causa do tiro, nem pela febre e nem por desventura medicamentosa. E então
Dottie emprestou uma colher da Sra. Macken, que observava com uma fascinação macabra da
porta enquanto eu tomava duas colheradas, me deitava, e esperava pelos intermináveis quinze
minutos para julgar os efeitos.
— O marquês mandou todos os tipos de iguarias e coisas para ajudar na sua recuperação
— Dottie disse encorajadora, virando-se para a cesta e começando a levantar coisas aleatórias
para me distrair. — Perdiz na geleia, patê de cogumelos, um queijo terrivelmente fedido e...
Meu súbito desejo de vomitar cessou repentinamente, e eu me sentei um pouco, fazendo
com que Jamie emitisse um grito de alarme e me segurasse pelos ombros. Foi bom que ele tenha
feito isso, ou eu teria caído no chão. Eu não estava me importando, entretanto, minha atenção
fixa no cesto de Dottie.
— Roquefort — Eu disse com urgência. — É queijo Roquefort? Mais ou menos cinza, com
veias verdes e azuis?
— Bom, eu não sei — ela disse, assustada com minha veemência. Ela suavemente
arrancou um pacote envolto em tecido do cesto e o segurou delicadamente em minha frente. O
odor flutuando foi o suficiente e eu relaxei, deitando-me lentamente.
— Bom — Eu respirei. — Denzell... quando você terminar... feche a ferida com o queijo.
Mesmo acostumado comigo, isso fez a mandíbula de Denny se abrir. Ele olhou do queijo
para mim, claramente pensando que a febre devia ter se estabelecido numa velocidade
incomum e severa.
— Penicilina — eu disse, engolindo e acenando com a mão para o queijo. Minha boca
estava pegajosa por causa do láudano — O mofo que faz esse tipo de queijo é uma espécie de
Penicillium. Use principalmente as veias.
Denny fechou a boca e assentiu, determinado.
— Eu o farei. Mas devemos começar logo, Claire. A luz está indo embora.
28Plutarco narra um episódio em que um garoto espartano teria roubado uma raposa e para que ninguém
percebesse, guardou-a dentro de suas vestes. A raposa o mordeu até chegar às suas entranhas, mas o garoto não
deu sequer um único grito de dor para evitar chamar a atenção dos comandantes, que só descobriram o ocorrido
quando o garoto já se encontrava morto e ainda com a raposa a lhe devorar.
A luz estava indo, e o senso de urgência no cômodo era palpável. Mas a Sra. Macken trouxe
mais velas, e Denny me assegurou que seria uma cirurgia simples; ele poderia realizá-la muito
bem à luz de velas.
Mais laúdano. Eu estava começando a senti-lo — uma sensação não desagradável de
tontura — e eu fiz Jamie me deitar de novo. A dor estava definitivamente menor.
— Dê-me mais um pouco — Eu disse, e minha voz parecia não pertencer a mim.
Eu respirei o mais fundo que podia e me ajeitei numa boa posição, olhando com desgosto
para a tira de couro ao meu lado. Alguém — talvez o Dr. Leckie — tinha cortado meu espartilho
na lateral durante os procedimentos. Eu abri as bordas amplamente e dei minha mão a Jamie.
As sombras cresceram entre as vigas manchadas de fumo. O fogo da cozinha estava
estável, mas ainda vivo, e seu brilho começou a se mostrar vermelho na lareira. Olhando para o
teto e piscando em meu estado drogado, eu comecei a me lembrar do tempo em que eu quase
morrera por intoxicação bacteriana, e fechei os olhos.
Jamie estava segurando minha mão esquerda, fechada em punho no meu peito, sua outra
mão gentilmente acariciando meu cabelo, alisando as mechas úmidas para fora do meu rosto.
— Está melhor agora, a nighen? — Ele sussurrou, e eu assenti, ou pensei ter feito.
A Sra. Macken murmurou alguma pergunta para Dottie, recebeu uma resposta e saiu. A
dor ainda estava lá, mas distante agora, um pequeno fogo tremeluzente que eu podia mandar
embora ao fechar os olhos. Os batimentos do meu coração estavam mais imediatos e eu estava
começando a experimentar... não alucinações, exatamente. Imagens desconexas, entretanto: os
rostos de estranhos que apareciam e desapareciam por trás de meus olhos. Alguns estavam
olhando para mim, outros pareciam alheios; eles sorriam e zombavam e faziam caretas, mas
não tinham nada, realmente, a ver comigo.
— De novo, Sassenach — Jamie sussurrou, levantando minha cabeça e colocando a colher
em meus lábios, pegajosa com o xerez e o gosto amargo do ópio — Mais um. — Eu engoli e me
deitei. Se eu morresse, poderia ver minha mãe de novo? Eu imaginei e experimentei uma
necessidade urgente por ela, chocante em sua intensidade.
Eu estava tentanto convocar seu rosto diante de mim, trazê-la para fora da horda de
estranhos, quando eu de repente perdi o fio dos meus pensamentos e comecei a flutuar numa
esfera de um azul muito escuro.
— Não me deixe, Claire — Jamie sussurrou, muito perto de minha orelha. — Desta vez, eu
imploro. Não vá para longe de mim. Por favor — Eu pude sentir a calidez de seu rosto, ver o
brilho de sua respiração em minha bochecha, embora meus olhos estivessem fechados.
— Eu não vou deixar — Eu disse, ou pensei dizer, e fui embora. Meu último pensamento
claro foi que eu tinha me esquecido de pedir a ele para não se casar com uma tola.
O céu lá fora estava da cor de lavanda, e a pele de Claire estava banhada em ouro. Seis velas
queimavam pelo cômodo, as chamas altas e estáveis no ar pesado.
Jamie ficou de pé ao lado de sua cabeça, uma mão em seu ombro como se para confortá-
la. Na realidade, era o senso dela, ainda viva sob sua mão, que o estava mantendo de pé.
Denny fez um pequeno ruído de satisfação por trás de sua máscara de bandido, e Jamie
viu o músculo de seu antebraço nu tensionar quando ele puxou o instrumento de dentro do
corpo de Claire. Sangue escorria do ferimento, e Jamie ficou tenso como um gato, pronto para
saltar sobre sua presa, mas nenhum surto seguiu àquilo e o sangue foi diminuindo, com uma
pequena trilha final de sangue quando as garras do instrumento emergiram, alguma coisa
escura apertada entre elas.
Denny jogou a bala na palma de sua mão e a observou, e depois fez um barulho irritado;
seus óculos estavam embaçados por causa do suor decorrente de seu esforço. Jamie os tirou o
nariz do Quaker e os limpou apressadamente na barra de sua camisa, devolvendo-os antes que
Hunter pudesse piscar duas vezes.
— Eu agradeço — Denny disse suavemente, voltando sua atenção para a bala de
mosquete. Ele a virou delicadamente e deixou sair um suspiro audível. — Inteira — ele disse —
Graças a Deus!
— Deo gratias — Jamie ecoou fervorosamente, e esticou uma mão — Deixe-me ver, sim?
As sobrancelhas de Hunter se elevaram, mas ele derrubou a coisa na mão de Jamie. Estava
assustadoramente quente, quente por causa de seu corpo. Mais quente até que o ar ou a própria
carne suada de Jamie, e aquela sensação fez com que ele fechasse o punho sobre ela. Ele lançou
um olhar para o peito de Claire: subindo, descendo, embora com uma lentidão alarmante. Quase
tão lentamente, ele abriu a mão.
— O que você está procurando, Jamie? — Denny perguntou, parando para esterilizar
novamente o bico da sonda.
— Marcas. Uma fenda, uma cruz... qualquer marca de manipulação — Ele rolou a bala
cuidadosamente entre seus dedos, e depois relaxou, um pequeno surto de gratidão fazendo-o
murmurar novamente — Deo gratias.
— Manipulação? — Havia linhas verticais entre as sobrancelhas de Denny, aprofundando-
se quando ele olhou para cima. — Para fazer a bala, você quer dizer?
— Isso... ou pior. Algumas vezes um homem pode esfregar alguma coisa nas marcas,
veneno ou algo do tipo, ou... ou merda. Apenas para o caso de a bala por si só não ser fatal, sim?
Hunter pareceu chocado, sua expressão pálida clara até mesmo por trás do lenço.
— Se você tem a intenção de matar um homem, você pretende fazer mal a ele — Jamie
disse secamente.
— Sim, mas... — Hunter olhou para baixo, pousando sua ferramenta cuidadosamente na
toalha como se ela fosse feita de porcelana e não metal. Sua respiração agitou o tecido atado
sobre sua boca. — Mas uma coisa é matar na batalha, matar um inimigo quando é uma questão
de defender a própria vida... e outra coisa é ter a clara intenção de sangue-frio que o seu inimigo
deveria morrer de uma forma lenta e horrível...
Claire fez um barulho medonho de gemido e estremeceu sob suas mãos quando Denny
gentilmente apertou a carne de cada lado do ferimento. Jamie a segurou pelos cotovelos, para
impedir que ela se virasse. Denny pegou a coisa com garras de novo.
— Você não faria isso — Hunter disse com certeza. Seus olhos estavam atentos em sua
delicada sondagem, um chumaço a postos para coletar o sangue que escorria lentamente da
ferida. Jamie sentia a perda de cada gota como se fosse de suas próprias veias, e se sentiu gelado;
quanto ela poderia perder e ainda continuar viva?
— Não. Seria uma coisa covarde — Mas ele falou automaticamente, mal prestando
atenção. Ela se tornara mole; ele viu seus dedos se desenrolarem, ficando estáticos, e olhou para
seu rosto, sua garganta, procurando por uma pulsação visível. Ele sentiu uma, com o polegar
onde ele pressionava o osso de seu braço, mas não sabia dizer se era o coração dela que estava
batendo ou o seu.
Ele estava perfeitamente consciente da respiração de Denny, audível por trás da máscara.
Ela parou por um instante, e Jamie desviou os olhos de seu escrutínio do rosto de Claire para
ver o olhar atencioso do Quaker quando ele tirou a coisa dela mais uma vez — desta vez
segurando um tufo de uma coisa irreconhecível. Denny abriu as garras de seu fórceps e
derrubou o tufo na toalha, e depois usou a ferramenta para cutucá-lo, tentando esticar a coisa,
e Jamie viu o espinho de minúsculos fios escuros quando o sangue foi absorvido pela toalha
numa mancha vermelha. Tecido.
— O que você acha? — Denny perguntou a ele, franzindo o cenho — É um pedaço de sua
combinação ou de seu corpete? Pelo tamanho do buraco em seu espartilho, eu poderia pensar...
Jamie procurou apressadamente em seu sporran, e tirou uma pequena bolsa de seda na
qual ele mantinha os óculos que usava para leitura, e os colocou sobre o nariz.
— Você tem pelo menos duas coisas separadas aqui — ele anunciou, depois de uma leitura
ansiosa — A lona do espartilho e um pedaço mais claro de roupa. Viu? — Ele pegou uma pinça
e delicadamente cutucou os fragmentos, separando-os — Eu acho que esse é um pedaço de sua
combinação.
Denny olhou para a pilha desconsolada de roupas sujas no chão, e Jamie, adivinhando sua
intenção, a pegou, esticando-a e exibindo os restos de seu vestido.
— É um claro buraco — Denny disse, olhando para o tecido que Jamie havia aberto sobre
a mesa. — Talvez... — Ele pegou o fórceps e se virou, não finalizando.
Mais uma sondagem, mais profunda, e Jamie cerrou os dentes para não gritar em protesto.
O fígado é tão vascularizado, ela havia dito, dando instruções a Denny de como ele devia
trabalhar. — O risco de hemorragia...
— Eu sei — Denny murmuou, sem olhar para cima. O suor tinha grudado o lenço em seu
rosto, moldando-o sobre o nariz e os lábios, então sua fala era visível — Eu estou sendo...
cuidadoso.
— Eu sei disso — Jamie disse, mas tão suavemente que ele não sabia se Hunter o tinha
ouvido. Por favor. Por favor, deixe-a viver. Abençoada Mãe, salve-a... salve-a, salve-a, salve-a... As
palavras se juntaram rapidamente e ele perdeu o sentido delas, mas não o sentido de sua súplica
desesperada.
A mancha vermelha na toalha sob ela tinha crescido para uma proporção alarmante
quando Hunter pousou a ferramenta outra vez e suspirou, os ombros caindo.
— Eu acho... espero... que tenha acabado.
— Bom. Eu... o que você vai fazer a seguir?
Ele viu Denny sorrir por trás do tecido ensopado, os olhos marrom-oliva suaves e estáveis
sobre ele.
— Cauterizar, fechar a ferida e rezar, Jamie.
84 – ANOITECER
Já estava escuro quando Lord John Grey, acompanhado de uma escolta respeitável e de um índio
ligeiramente danificado, entraram mancando no acampamento de Clinton.
As coisas estavam mais ou menos como esperado após uma batalha: fortes correntes de
agitação se misturavam à exaustão, a última prevalecendo. Não havia farra e nem música entre
as tendas. Os homens ao redor das fogueiras e cozinhas do acampamento, entretanto, estavam
comendo e se organizando, conversando sobre a batalha em voz baixa. Não havia sentimento
de celebração — mais um sentimento de irritação, de uma surpresa descontente. O cheiro de
carne de carneiro se elevou fortemente entre os cheiros de poeira, mulas e suor humano, e a
boca de Grey se encheu de saliva, tanto que ele teve que engolir antes de responder ao inquérito
solícito do Capitão André em relação aos seus desejos imediatos.
— Eu preciso ver o meu irmão — ele replicou. — Eu me encontrarei com o General Clinton
e o meu senhor Cornwallis mais tarde. Quando eu tiver tomado um banho e trocado de roupa
— ele adicionou, sacudindo o horrível casaco preto pelo que ele sinceramente esperava ser a
última vez.
André assentiu compreensivelmente, tirando a vestimenta repugnante dele.
— É claro, Lord John. E... hã...? — Ele acenou com a cabeça delicadamente na direção de
Ian Murray, que atraía olhares, se não encaradas, por onde passava.
— Ah. É melhor que ele venha também.
Ele seguiu André pelos corredores ordenados de tendas, ouvindo o tilintar da desordem
e sentindo o conforto da rotina imperturbável do Exército ao redor de si. Murray caminhou
atrás dele, silencioso. Ele não tinha ideia o que o homem estava pensando e estava muito
cansado para se preocupar.
Ele sentiu os passos de Murray vacilarem, entretanto, e automaticamente olhou sobre o
ombro. Murray tinha se virado, toda a atenção focada numa fogueira próxima, uma fogueira de
lenha, ao redor da qual se sentavam vários índios. Grey se perguntou vagamente se eles
poderiam ser amigos de Murray... e corrigiu essa impressão no próximo segundo, quando
Murray deu três passos gigantes, pegou um dos índios com o antebraço ao redor de sua
garganta e socou a lateral de seu corpo com tanta força que arrancou o fôlego do outro com um
som audível.
Murray então jogou o índio ao chão, caiu sobre ele com ambos os joelhos — Grey
estremeceu com o impacto — e apertou o pescoço do homem. Os outros índios saíram do
caminho, rindo e fazendo ganidos agudos, se de encorajamento ou de escárnio Grey não saberia
dizer.
Ele ficou ali parado, piscando, balançando-se sutilmente, e incapaz de intervir ou de
desviar os olhos. Murray não tinha deixado que um dos cirurgiões do acampamento
removessem a flecha de seu ombro, e o sangue fresco salpicava da ferida enquanto ele socava
seu oponente com violência — e repetidamente — no rosto.
O índio — ele tinha o couro cabeludo raspado e brincos de conchas; Grey os notou quando
Murray arrancou um deles de sua orelha e a colocou na boca de seu oponente — estava
tentando fortemente resistir e retaliar, apesar de estar em tamanha desvantagem.
— Você acha que são conhecidos? — Capitão André perguntou a Grey. Ele tinha virado, ao
ouvir os gritos, e agora estava ao lado de Grey, observando o tumulto com interesse.
— Eu acho que devem ser — Grey replicou distraidamente. Ele olhou brevemente para os
outros índios, nenhum deles parecia ter qualquer interesse em ajudar seu companheiro,
embora alguns deles parecessem fazer apostas em relação ao resultado. Eles claramente
estavam bebendo, mas não pareciam mais intoxicados do que a média dos soldados para aquele
dia.
Os combatentes agora estavam se contorcendo no chão, evidentemente se esforçando
pela posse de uma faca usada pelo homem atacado por Murray. A luta estava atraindo a atenção
dos outros alojamentos; um número de homens tinha corrido das fogueiras próximas e estava
se agrupando atrás de Grey e André, fazendo especulações e apostas precipitadas, oferecendo
conselhos gritados.
Grey estava consciente, mesmo em meio à sua fadiga, de certa preocupação por Murray
— e não apenas por causa de Murray. Na chance escassa de que ele pudesse em algum momento
no futuro realmente falar com Jamie Fraser novamente, ele não queria que o primeiro assunto
fosse a morte do sobrinho de Fraser quando ele estava mais ou menos sob a custódia de Grey.
Ele não conseguia pensar o que diabos fazer sobre isso, entretanto, e continuou ali, assistindo.
Como a maioria das lutas, não durou muito. Murray ganhou a posse da faca, pelo
expediente brutal mas efetivo de dobrar um dos dedos do seu oponente para trás até quebra-
lo e pegar a empunhadura quando o homem a soltou.
Quando Murray pressionou a lâmina contra a garganta do outro homem, ocorreu
tardiamente a Grey que ele poderia realmente ter a intenção de matá-lo. Os homens ao redor
dele certamente pensaram que sim; houve um suspiro universal quando Murray passou a
lâmina pela garganta do inimigo.
O silêncio momentâneo engendrado por causa disso foi o suficiente para que os homens
reunidos ouvissem Murray dizer com esforço notável — Eu te devolvo a sua vida!
Ele se levantou do corpo do índio, balançando-se e parecendo como se estivesse
embriagado, e arremessou a faca na escuridão — causando uma consternação considerável e
não poucos xingamentos entre aqueles que estavam na direção do lançamento.
Na excitação, a maior parte da multidão provavelmente não ouviu a resposta do índio,
mas Grey e André, sim. Ele se sentou, muito lentamente, as mãos trêmulas enquanto
pressionava uma dobra de sua camisa no ferimento superficial em sua garganta, e disse, em um
tom quase convencional — Você vai se arrepender disso, Mohawk.
Murray estava respirando como um cavalo sem fôlego, suas costelas visíveis cada vez que
ele ofegava. A maior parte da pintura tinha saído de seu rosto; havia longas manchas de
vermelho e preto descendo pelo seu peito reluzente, e apenas uma raia horizontal de alguma
cor escura que havia sobrado em suas bochechas — aquilo e uma mancha branca no topo de
seu ombro, acima do ferimento da flecha. Ele assentiu para si mesmo, uma vez e depois outra.
E, sem pressa, saiu do círculo da fogueira, pegou um tomahawk que estava caído no chão e,
elevando-o por cima da cabeça com ambas as mãos, o levou para baixo no crânio do índio.
O som congelou Grey até a medula e silenciou todos os homens presentes. Murray ficou
parado por um momento, respirando pesadamente, e depois caminhou para longe. Quando ele
passou por Grey, virou sua cabeça e disse, em um tom de voz perfeitamente calmo — Ele está
certo. Eu teria me arrependido — antes de desaparecer na noite.
Houve um rebuliço tardio e súbito entre os espectadores, e André olhou para Grey, mas
ele balançou sua cabeça. O exército não tomou conhecimento oficial do que acontecera entre os
batedores índios, exceto que houvera um incidente envolvendo os regulares. E eles não seriam
mais irregulares do que o cavalheiro que acabara de deixá-los.
André limpou a garganta.
— Ele era o seu... hã... prisioneiro, meu senhor?
— Ah... não. Um... parente pelo casamento.
— Oh, entendo.
Estava completamente escuro quando a batalha acabou. William reuniu todas as informações
possíveis do ordenança que levara seu jantar, e ele podia ouvir os ruídos do acampamento
diminuindo na medida em que as companhias dos soldados chegavam, eram dispensadas e se
espalhavam para guardar os equipamentos e procurar comida. Nada como o sentimento usual
de relaxamento que se espalhava pelo acampamento após o pôr-do-sol. Tudo estava agitado e
inquieto — bem como William.
Sua cabeça doía horrivelmente e alguém tinha costurado seu couro cabeludo; os pontos
estavam ardendo e coçando. Tio Hal não tinha voltado, e ele não tivera nenhuma notícia além
do relatório do ordenança, o que indicava que não houvera vitória sobre os americanos, mas
que todas as três partes do exército de Clinton tinham se retirado em boa ordem, embora com
baixas consideráveis.
Ele não tinha certeza se queria qualquer outra notícia, para ser honesto. Haveria o
momento do acerto de contas com Sir Henry após ignorar suas ordens — embora ele estivesse
supondo que Sir Henry possivelmente estava ocupado demais para perceber...
Então ele ouviu o som de passos e se sentou. Sua aflição desapareceu no momento em que
a aba da tenda se levantou e ele viu seu pai — Lord John, ele se corrigiu, mas com um
pensamento distraído. Seu pai pareceu surpreendentemente pequeno, quase frágil, e na medida
em que Lord John mancou lentamente para a luz da lanterna, William viu a bandagem
manchada em volta de sua cabeça, a tipoia improvisada, e quando William abaixou os olhos, ele
também viu o estado dos pés nus de seu pai.
— Você está... — ele começou, chocado, mas Lord John o interrompeu.
— Eu estou bem — ele disse, e tentou sorrir, embora seu rosto estivesse branco e vincado
pela fadiga — Tudo está bem, Willie. Contanto que você esteja vivo, tudo está bem.
Ele viu seu pai se balançar, estendeu uma mão para estabilizá-lo e, ao descobrir que não
havia nenhum local onde ele poderia segurar, desistiu e forçou seu corpo a se levantar. A voz
de Lord John estava rouca, e seu olho exposto estava injetado de sangue e exausto, mas... terno.
William engoliu.
— Se você e eu temos coisas a dizer um para o outro, Willie (e é claro que temos), vamos
esperar até amanhã. Por favor. Eu não... — Ele fez um gesto vago de hesitação, que terminou em
nada.
O nó na garganta de William surgiu repentinamente e de forma dolorosa. Ele assentiu, as
mãos apertadas com força na cama. Seu pai assentiu, também, respirou profundamente e se
virou em direção à porta da tenda — onde, William viu, Tio Hal pairava, olhos fixos em seu
irmão e sobrancelhas juntas com preocupação.
O coração de William se apertou, em um caroço muito mais doloroso do que aquele que
estava em sua garganta.
— Papai! — Seu pai parou abruptamente, virando-se para olhar sobre seu ombro. — Eu
estou feliz por você não estar morto. — William desabafou.
Um sorriso desabrochou lentamente no rosto castigado de seu pai.
— Eu também — ele disse.
Ian saiu do acampamento britânico, sem olhar para nenhum dos lados. A noite estava pulsando
lentamente em volta de si. Era como estar preso dentro de um grande coração, ele pensou,
sentindo as paredes grossas apertando-o até deixá-lo sem fôlego, e depois se afastando para
que ele flutuasse sem peso.
Lord John tinha oferecido um cirurgião do exército para cuidar de seu ferimento, mas ele
não conseguiria suportar ficar ali. Ele precisava ir, encontrar Rachel, encontrar Tio Jamie. Ele
tinha recusado a oferta de um cavalo, também, incerto de conseguir permanecer em cima dele.
Seria melhor que ele caminhasse, dissera a sua senhoria.
E ele estava caminhando bem, embora fosse obrigado a admitir que não se sentia bem.
Seus braços ainda estavam tremendo pelo choque do golpe mortal. Aquilo vinha de suas
entranhas e ainda ecoava por seus ossos, e não parecia encontrar um lugar para sair de seu
sangue. Bem, isso se resolveria em breve — não era a primeira vez, embora ele não tivesse
matado alguém durante um longo tempo, e ainda mais tempo que ele não o fazia com tanta
violência.
Ele tentou pensar quem tinha sido o último, mas não conseguiu. Ele podia ouvir e ver e
sentir coisas, mas mesmo que seus sentidos trabalhassem, eles não o faziam corretamente com
as coisas que ele sentia. Tropas ainda passavam por ele para entrar no acampamento. A batalha
devia ter cessado agora com a escuridão; os soldados estavam voltando para casa. Ele podia
ouvir o barulho que eles faziam, marchando, seus copos e cantis de estanho tilintando contra
as caixas de cartuchos — mas ele ouvia o ruído muito depois de eles terem passado, e ele não
conseguia dizer certamente as fogueiras que estavam distantes daquelas que brilhavam
próximas de seus pés.
O superintendente escocês. Em Saratoga. O rosto do homem estava de repente ali em sua
memória, e tão de repente quanto isso, seu corpo se lembrou da sensação do golpe. O soco
violento de sua faca, sob as costelas posteriores do homem, diretamente no rim. A grande e
estranha flexão que ele sentiu em seu próprio corpo enquanto a vida do homem chegava ao
ápice e depois se esvaía.
Ele imaginou por um momento confuso se os açougueiros também sentiam isso — esse
eco — quando abatiam um animal. Você podia sentir, às vezes, quando cortava a garganta de
um veado, mas geralmente não quando estava torcendo o pescoço de uma galinha ou
esmagando o crânio de uma doninha.
— Ou talvez você só se acostume a isso — ele disse.
Talvez seja melhor você não tentar se acostumar com isso. Não pode ser bom para sua alma,
a bhalaich, se acostumar a este tipo de coisa.
— Não — ele concordou. — Mas você quer dizer quando é com as suas mãos, sim? Não é
a mesma coisa com uma arma ou uma flecha, é?
Oh, não. Eu realmente penso às vezes, será que faz diferença para o homem que você mata,
e também para você mesmo?
Os pés de Ian se embrenharam em uma toceira de mudas na altura do joelho e ele
percebeu que tinha saído da estrada. Já estava escurecendo e as estrelas ainda estavam fracas
acima de sua cabeça.
— Diferente — ele murmurou, voltando para a estrada. — O que quer dizer com
diferente? Ele estará morto, de qualquer forma.
Sim, isso é verdade. Mas eu acho que talvez seja pior sentir isso de forma pessoal, entretanto.
Ser alvejado numa batalha é quase como ser atingido por um raio, sabe? Mas você não pode
impedir que seja pessoal quando você mata um homem com as próprias mãos.
— Mmphm — Ian caminhou um pouco em silêncio, os pensamentos em sua cabeça
circulando como sanguessugas nadando em um copo, indo de um lado para outro. — Sim, bem
— ele disse, por fim, e percebeu de repente que estava falando em voz alta pela primeira vez —
Foi pessoal.
O tremor em seus ossos tinha amenizado um pouco com a caminhada. A grande pulsação
da noite tinha diminuído e se alojado apenas no ferimento da flecha, a dor pulsando com as
batidas de seu próprio coração.
Aquilo o fez pensar na pomba branca de Rachel, entretanto, voando serena sobre o
ferimento, e sua mente se estabilizou. Ele podia ver o rosto de Rachel agora, e podia ouvir os
grilos cantando. O ruído de tiros de canhão em suas orelhas tinha cessado e a noite cresceu lenta
e pacificamente ao redor dele. E se o seu pai tinha mais alguma coisa a dizer em relação à morte,
ele escolheu manter em silêncio enquanto eles caminhavam para casa juntos.
John Grey aliviou seus pés maltratados na bacia, os dentes cerrados contra a sensação esperada,
mas para sua surpresa descobriu que aquilo lhe causou pouca dor, apesar da pele rasgada e das
bolhas rompidas.
— O que... isso não é água quente, é? — Ele perguntou, inclinando-se para frente para
olhar.
— Azeite doce — seu irmão disse, seu rosto cansado relaxando um pouco. — E é melhor
que esteja morno e não quente, ou meu ordenança será crucificado ao amanhecer.
— Tenho certeza de que o homem está tremendo em suas botas. Obrigado, aliás — Ele
adicionou, cautelosamente mexendo os pés. Ele estava sentado no catre de Hal, seu irmão
empoleirado no baú, derramando alguma coisa de um cantil em um dos copos que o
acompanhavam há décadas.
— Por nada — Hal disse, entregando o copo a ele. — O que diabos aconteceu com seu
olho? E seu braço está quebrado? Eu chamei um cirurgião, mas pode demorar algum tempo.
Ele moveu a mão, abrangendo o acampamento, a recente batalha, e o fluxo de feridos que
voltavam ao pôr-do-sol.
— Eu não preciso de um médico. De início, pensei que meu braço estava quebrado, mas
eu tenho quase certeza de que é só uma contusão realmente dolorosa. Quanto ao olho... Jamie
Fraser.
— Sério? — Hal pareceu surpreso e se inclinou para frente para olhar no olho de Grey,
agora sem as bandagens e, pelo que Grey podia dizer, muito melhor. O lacrimejamento
constante tinha parado, o inchaço tinha diminuído um pouco e ele podia, com cuidado, movê-
lo. Pelo olhar no rosto de Hal, entretanto, a vermelhidão e os hematomas talvez ainda não
tivessem desaparecido.
— Bem, primeiro foi Jamie, e depois sua esposa. — Ele tocou o olho levemente. — Ele me
socou, e depois ela fez uma coisa excruciante para consertá-lo e colocou mel nele.
— Tendo sido objeto das noções de tratamento médico desta senhora, eu não estou nem
ligeiramente surpreso ao ouvir isso — Hal levantou seu copo em uma breve saudação; Grey fez
o mesmo e bebeu. Era cidra, e uma vaga lembrança da aguardente de maçã e do Coronel Watson
Smith flutuou pela mente de Grey. Ambas pareciam remotas, como se tivessem acontecido há
anos e não há dias.
— A Sra. Fraser cuidou de você? — Grey riu para seu irmão. — O que ela fez para você?
— Bem... ela salvou minha vida, para ser perfeitamente franco. — Era difícil dizer à luz da
lanterna, mas Grey pensou ter visto seu irmão corar levemente.
— Oh. Neste caso, estou duplamente em débito com ela.
Ele levantou o copo de novo cerimoniosamente, e depois o secou. A cidra desceu muito
bem após um dia quente e sem comida. — Como diabos você caiu em suas garras? — ele
perguntou curiosamente, estendendo o copo para indicar que queria mais cidra.
— Eu estava procurando por você — Hal disse incisivamente. — Se você estivesse onde
deveria estar...
— Você acha que eu tenho que ficar sentado em algum lugar esperando para que você
apareça sem avisar e me envolva em... Você sabia que eu quase fui enforcado por sua culpa?
Além do mais, eu estava ocupado sendo sequestrado por James Fraser naquele momento.
Hal elevou uma sobrancelha e serviu mais cidra — Sim, você disse que ele bateu em você.
Por quê?
— Eu nem poderia começar a explicar, Hal — ele disse, cansado. — Você pode me
encontrar uma cama? Eu acho que vou morrer, e se houver alguma chance afortunada de isso
não acontecer, eu terei que conversar com Willie amanhã sobre... bem, esqueça. — Ele bebeu o
restante da cidra e pousou o copo, preparando-se, relutantemente, para tirar os pés do azeite
doce.
— Eu sei sobre William — Hal disse.
Grey parou abruptamente, olhando em dúvida para seu irmão, que deu de ombros.
— Eu vi Fraser — ele disse simplesmente — na Filadélfia. E quando eu disse alguma coisa
a William esta tarde, ele confirmou.
— Ele confirmou? — Grey murmurou. Ele estava surpreso, mas um pouco animado em
relação a isso. Se Willie tinha se acalmado o suficiente para conversar com Hal sobre o assunto,
a conversa de Grey com seu filho poderia ser um pouco menos atribulada do que ele temia.
— Há quanto tempo você sabe? — Hal perguntou curiosamente.
— Com certeza? Desde que Willie tinha dois ou três anos. — Ele de repente deu um
enorme bocejo, e depois se sentou piscando estupidamente. — Oh, eu queria perguntar. Como
foi a batalha?
Hal olhou para ele com algo entre afronta e divertimento — Você estava nela, não?
— Minha parte nela não foi bem. Mas as minhas perspectivas estavam de alguma forma
limitadas pelas circunstâncias. Por isso e pelo fato de eu ter apenas um olho útil — ele
adicionou, gentilmente cutucando o olho machucado. Uma boa noite de sono...
A espera pela cama o fazia balançar, por pouco evitando simplesmente cair no catre de
Hal.
— É difícil dizer — Hal pegou uma toalha amassada num cesto de roupas para lavar que
ficava num canto e, ajoelhando-se, levantou os pés de Grey do azeite doce e os secou
delicadamente. — O diabo de uma bagunça. O terreno é horrível, cercado por riachos,
consistindo em terras agrícolas ou em matas fechadas... Sir Henry se afastou com o trem de
bagagem e os refugiados, mantendo-os seguros. Mas em relação a Washington... — Ele deu de
ombros. — Até onde eu posso dizer pelo que vi e ouvi, suas tropas se saíram bem. Muito bem
— ele adicionou, pensativamente. Ele se levantou — Deite-se, John. Vou encontrar uma cama
em outro lugar.
Grey estava muito cansado para discutir. Ele simplesmente caiu e rolou para ficar de
costas, sem se importar em se despir. O olho machucado estava pegajoso, e ele pensou
vagamente se deveria pedir a Hal para encontrar um pouco de mel, mas decidiu esperar até a
manhã seguinte.
Hal pegou a lanterna de seu gancho e se virou para a borda da tenda, mas parou por um
momento, virando-se.
— Você acha que a Sra. Fraser... aliás, amanhã eu vou querer saber como diabos você foi
se casar com ela... Você acha que ela sabe sobre William e James Fraser?
— Qualquer um que tenha olhos e os veja juntos poderia saber — Grey murmurou, os
olhos semi-fechados — Ela nunca mencionou, entretanto.
Hal resmungou. — Aparentemente todo mundo sabia, exceto William. Não é de se admirar
que ele...
— Há uma palavra pra isso.
— Eu ainda não encontrei.
— Isso importa? — Os olhos de Grey se fecharam de qualquer forma. Através das névoas
do sono, ele ouviu a voz baixa de Hal, na porta da tenda.
— Eu tive notícias de Ben. Eles disseram que ele está morto.
85 – UM LONGO CAMINHO PARA CASA
Jamie se sentou em frente à pequena janela usando apenas calças e camisa, observando os
cabelos de sua esposa secarem.
Estava quente como uma forja no pequeno quarto que a Sra. Macken tinha dado a eles, e
o seu suor se prendia sobre ele como o orvalho que cedia ao próprio peso e caía nas laterais de
seu corpo com qualquer movimento, mas ele estava sendo cuidadoso para não bloquear
qualquer sutil brisa de ar que pudesse entrar no cômodo; o ar rescendia a queijo Roquefort e
sangue.
Ele encharcara os cabelos dela com a água do jarro que a Sra. Macken tinha trazido e
acabou molhando sua combinação; ela colara em seu corpo, a volta de sua nádega aparecendo
rosada através do tecido enquanto ele secava. O tecido também exibia a atadura do curativo e
a mancha de sangue que se espalhara lentamente sobre a roupa.
Lentamente. Seus lábios formaram a palavra e ele pensou nela apaixonadamente, mas não
disse em voz alta. Lentamente! Parar completamente seria muito melhor, mas ele se contentaria
com a lentidão agora.
Oito litros. Era a quantidade de sangue que ela dizia que o corpo humano portava. Poderia
variar um pouco, entretanto; claramente um homem de seu tamanho tinha mais sangue do que
uma mulher como ela. Alguns fios de cabelo estavam começando a se elevar, enrolando-se
enquanto secavam, delicados como antenas de formigas.
Ele gostaria de dar a ela um pouco de seu sangue; ele tinha muito. Ela dissera que isso era
possível, mas não naquela época. Tinha algo a ver com coisinhas do sangue que poderiam não
ser compatíveis.
Seus cabelos tinham uma dezena de cores: marrom, melaço, creme e manteiga, açúcar,
preto... vislumbre de dourado e prateado onde a luz do sol poente a tocava. Uma ampla faixa de
um branco puro em suas têmporas, quase da mesma cor de sua pele. Ela estava deitada de lado
com o rosto em sua direção, uma mão enrolada contra o peito, a outra solta, virada para cima,
de forma que o interior de seu pulso se mostrava, branco também, com as veias azuis
devastadoras.
Ela dissera que tinha pensado em cortar os pulsos quando acreditou que ele estivesse
morto. Ele não achou que faria isso, caso ela morresse. Ele já tinha visto algo parecido: Toby
Quinn com seu pulso cortado até o osso e todo o sangue caído no chão, o cômodo cheirando a
carnificaina e a palavra “dízimo” escrita na parede acima dele com sangue, sua confissão. Um
imposto para o inferno, aquilo significava, e seus ombros encolheram apesar do calor e ele se
benzeu.
Ela dissera que talvez fosse o sangue que tivesse feito todos os filhos do Jovem Ian
morrerem — o sangue dele que não se combinava com o sangue de sua esposa Mohawk — e
que talvez fosse diferente com Rachel. Ele rezou uma rápida Ave Maria para que assim fosse, e
se benzeu de novo.
Os cabelos que se derramavam por seus ombros estavam se enrolando agora, sinuosos,
lentos como pães em crescimento. Ele deveria acordá-la para beber água de novo? Ela precisava
de água, para ajudá-la a produzir mais sangue, e para resfriá-la com o suor. Mas enquanto ela
dormia, a dor era menor. Alguns momentos a mais, então.
Não agora. Por favor, não agora.
Ela mudou de posição, gemendo, e ele notou que ela estava diferente; inquieta agora. A
mancha em sua bandagem tinha mudado de cor, tinha escurecido do escarlate para a cor de
ferrugem na medida em que secava. Ele colocou a mão suavemente em seu braço e sentiu o
calor. A hemorragia tinha cessado. A febre tinha começado.
Agora as árvores estavam falando com ele. Ele gostaria que elas parassem. A única coisa que
Ian Murray queria no momento era o silêncio. Ele estava sozinho, mas seus ouvidos zumbiam e
sua cabeça ainda latejava com os ruídos.
Isso sempre acontecia por um tempo após uma grande batalha. Você ficava escutando tão
atentamente para ouvir os sons do inimigo, a direção do vento, a voz de um santo atrás de si...
que começava a escutar as vozes da floresta, como quando está caçando. E então você ouvia os
tiros e os gritos, e nos momentos que isso parava, você ouvia o sangue gotejando de seu corpo
e tamborilando em seus ouvidos, e, com tudo isso, demorava algum tempo para que isso parasse
depois.
Ele tinha breves vislumbres do que acontecera durante o dia — soldados despedaçados;
o baque da flecha que o atingira; o olhar de George Washington em seu grande cavalo branco,
correndo pela estrada, acenando com o chapéu —, mas estas imagens iam e vinham em uma
névoa confusa, como se fossem reveladas a ele em um relâmpago, e depois desaparecessem
numa bruma que zumbia.
Um vento passou sussurrando através dos galhos de árvore sobre ele, e ele o sentiu como
se a sua pele tivesse sido escovada com uma lixa. O que Rachel poderia dizer quando ele contasse
a ela o que havia feito?
Ele ainda podia ouvir o som do tomahawk arrebentando o crânio do Abenaki. Ele podia
sentir também, nos ossos dos seus braços, na dor que explodia de sua ferida.
Vagamente, ele percebeu que seus pés não estavam mais o mantendo na estrada; ele
estava tropeçando em touceiras de capim, enfiando os dedos envoltos pelos mocassins nas
rochas. Ele olhou para trás para encontrar seu caminho — ele o via, claro, uma linha vascilante
de preto... Por que ela era vascilante?
Ele não queria o silêncio, afinal de contas. Ele queria a voz de Rachel, não importava o que
ela poderia dizer a ele.
Ocorreu vagamente a ele que não conseguiria continuar. Ele estava consciente de um fraco
senso de surpresa, mas não estava com medo.
Ele não se lembrava de ter caído no chão, sua bochecha quente pressionada contra as frias
agulhas dos pinheiros. Laboriosamente, ele conseguiu ficar de joelhos e espanou de si a grossa
camada de agulhas caídas. Então ele se deitou com seu corpo na terra úmida, o cobertor de
agulhas caindo sobre ele; ele não podia fazer mais nada e, assim, fez uma breve oração para a
árvore, para que ela o protegesse durante a noite.
E, enquanto ele caía de cabeça na escuridão, ele ouviu a voz de Rachel em sua memória.
A jornada da sua vida está ao longo de seu próprio caminho, Ian — ela dissera — e eu não
posso compartilhar desta jornada, mas posso caminhar ao seu lado. E é o que eu farei.
Seu último pensamento foi que ele esperava que ela ainda quisesse isso quando ele
contasse a ela o que tinha feito.
86 – QUANDO O DEDO ROSADO DO AMANHECER APARECE ACIMA DA MULTIDÃO
Grey acordou com os tambores da alvorada, não assustado pelo costumeiro barulho, mas sem
saber exatamente onde estava. Num acampamento. Bem, isso era bastante óbvio. Ele balançou
as pernas para fora do catre e se sentou lentamente, fazendo uma averiguação. Seu braço
esquerdo doía muito, um de seus olhos estava fechado completamente, e sua boca estava tão
seca que ele mal podia engolir. Ele tinha dormido com suas roupas, cheirava mal e precisava
muito urinar.
Ele tateou sob o catre, encontrou um penico e o usou, notando de uma forma bastante
sonhadora que sua urina cheirava a maçãs. Isso trouxe a ele o gosto da cidra e, com ele, a
lembrança do dia e da noite anteriores. Mel e moscas. Artilharia. Jamie, o sangue escorrendo
pelo seu rosto. Coronha do rifle e o osso quebrando. William... Hal...
Quase a lembrança toda. Ele se sentou e ficou quieto por um momento, tentando decidir
se Hal realmente havia dito que seu filho mais velho, Benjamin, estava morto. Certamente não.
Devia ter sido um pesadelo, demorando-se em sua mente. E ainda assim ele tinha a estranha
sensação da condenada certeza que desce como uma cortina sobre a mente, sufocando a
descrença.
Ele se levantou, cambaleando um pouco, determinado a ir encontrar seu irmão. Ele ainda
não tinha encontrado os sapatos, entretanto, quando a aba da tenda foi jogada para trás e Hal
entrou, seguido por um ordenança com uma bacia, um jarro fumegante e implementos de
barbear.
— Sente-se — Hal disse, em uma voz completamente normal. — Você terá que usar um
dos meus uniformes, e não fará isso cheirando assim. O que diabos aconteceu ao seu cabelo?
Grey tinha se esquecido e passou a palma da mão no topo da cabeça, surpreso pelos
cabelos eriçados.
— Oh. Uma estratégia de guerra. — Ele se sentou lentamente, os olhos em seu irmão. O
olho ruim tinha se aberto, embora estivesse desconfortavelmente ramelento, e pelo que Grey
podia ver, Hal parecia exatamente como sempre fora. Cansado, é claro, fatigado, e um pouco
assustado, mas todos pareciam assim um dia depois de uma batalha. Certamente se fosse
verdade ele pareceria diferente. Pior, de alguma forma.
Ele teria perguntado, mas Hal não permaneceu na tenda, saindo e deixando John nas mãos
do ordenança. Antes que as abluções estivessem completas, um jovem médico escocês cheio de
sardas apareceu, bocejando como se não tivesse dormido à noite, e piscou com olhos turvos
para o braço de Grey. Ele o cutucou de maneira profissional, disse que o osso estava rachado,
mas não quebrado, e o colocou numa tipoia.
A tipoia teve que ser removida logo em seguida, para que ele pudesse se vestir — outro
ordenança chegara com um uniforme e uma bandeja com o desjejum — e quando ele estava
arrumado e bem alimentado, estava louco de impaciência.
Ele teria que esperar que Hal reaparecesse, entretanto; não fazia sentido sair para
esquadrinhar o acampamento sem ele. E ele realmente precisava conversar com seu irmão
antes de procurar por William. Um pequeno disco de mel tinha sido providenciado juntamente
com a torrada e ele colocou um dedo duvidoso sobre ele, imaginando onde ele deveria colocar
em seus olhos, quando a tenda se abriu novamente e seu irmão veio até ele.
— Você realmente disse que Ben está morto? — Ele desabafou de uma vez. O rosto de Hal
se contraiu um pouco, mas sua mandíbula definida.
— Não — Hal disse uniformemente. — Eu disse a você que tive notícias de Ben, e que
disseram que ele estava morto. Mas eu não acredito nisso. — Ele deu a John um olhar
desafiando-o a contradizer sua crença.
— Oh. Bom — Grey disse suavemente. — Então eu também não acredito. Porém, quem
disse isso a você?
— É por este motivo que eu não acredito — Hal replicou, virando-se para levantar a aba
da tenda e olhar para fora, evidentemente para se certificar de que não seria ouvido, e o
pensamento fez com que a barriga de Grey vibrasse um pouco. — Foi Ezekiel Richardson que
me deu as notícias, e eu não confiaria neste cara nem se ele dissesse que eu tenho um buraco
no traseiro de minhas calças, quanto menos numa coisa como essa.
A vibração na barriga de Grey se tornou um bater de asas.
— Seus instintos não o traíram neste caso — ele disse. — Sente-se e pegue um pedaço de
torrada. Eu tenho algumas coisas para dizer a você.
William acordou com uma dor de cabeça explosiva e a convicção de que tinha se esquecido de
alguma coisa importante. Segurando a cabeça, ele descobriu que havia uma bandagem em volta
dela, cobrindo sua orelha. Ele a tirou impacientemente; havia sangue nela, mas não muito e
estava seco. Ele se lembrava de pedaços vagos das coisas que aconteceram na noite anterior —
dor, náusea, sua cabeça boiando, tio Hal... e depois uma imagem de seu pai, com o rosto branco
e frágil... Se você e eu temos coisas a dizer um para o outro... Cristo, ele sonhara aquilo?
Ele disse um palavrão em alemão, e uma jovem voz o repetiu, meio em dúvida.
— O que isso significa, senhor? — perguntou Zeb, que apareceu ao lado de sua cama com
uma bandeja coberta.
— Você não precisa saber, e não repita isso — William disse, sentando-se. — O que
aconteceu com a minha cabeça?
A sobrancelha de Zeb se dobrou.
— Você não se lembra, senhor?
— Se eu me lembrasse, estaria perguntando a você?
As sobrancelhas de Zeb ainda estavam contraídas em concentração, mas a lógica dessa
questão escapou dele, e ele meramente deu de ombros, pousou a bandeja e respondeu à
primeira pergunta.
— Coronel Grey disse que você foi atingido na cabeça por desertores.
— Desert... Oh — Ele parou para considerar aquilo. Desertores britânicos? Não... havia uma
razão para ele ter profanado em alemão. Ele tinha uma memória fugaz dos hessianos, e... o quê?
— Colenso não está mais com caganeira — Zeb disse amavelmente.
— É bom saber que o dia está começando bem para algumas pessoas. Oh, Jesus — A dor
estalou dentro de seu crânio, e ele pressionou uma mão em sua cabeça — Você tem alguma
coisa para beber nessa bandeja, Zeb?
— Sim, senhor! — Zeb descobriu a bandeja, triunfantemente revelando um prato de ovos
mexidos com torrada, um pedaço de presunto e um copo de algo suspeitosamente escuro, mas
que cheirava fortemente a álcool.
— O que é isso?
— Não sei, senhor, mas o Coronel Grey disse que um tipo de... pelo do cachorro que te
mordeu.
— Oh — Então não tinha sido um sonho.
Ele empurrou aquele pensamento para o lado por um momento e olhou o copo com um
interesse cauteloso. Ele tinha tomado seu primeiro restaurador quando tinha quatorze anos e
confundira o ponche sendo preparado para o jantar de Lord John com o mesmo tipo de bebidas
que as mulheres ofereciam nas festas de jardim. Ele tivera mais algumas nos anos seguintes e
as achava invariavelmente efetivas, embora horríveis de beber.
— Tudo bem, então — ele disse, e, respirando profundamente, pegou o copo e o secou,
engolindo heroicamente sem parar para respirar.
— Bravo! — Disse Zeb, admirado. — O cozinheiro disse que poderia enviar algumas
salsichas se você fosse comê-las.
William meramente balançou a cabeça — estando momentaneamente incapaz de falar —
e pegou um pedaço de torrada, que ele segurou por um momento, sem saber se estava pronto
para enfiá-la na boca. Sua cabeça ainda doía, mas o restaurador tinha soltado um pouco dos
detritos de seu cérebro.
... Conselho? Você é muito velho pra recebê-los e muito novo para segui-los...
... Er spricht Deutsch. Er gehört!... Ele fala alemão. Ele ouviu.
— Eu ouvi — ele disse lentamente. — O que eu ouvi?
Zeb pareceu pensar que aquela era outra pergunta retórica e, em vez de tentar responde-
la, perguntou algo que queria saber.
— O que aconteceu com Goth, senhor? — Seu rosto magro era solene, como se esperasse
receber más notícias.
— Goth — William repetiu inexpressivo — Alguma coisa aconteceu a Goth?
— Bem, ele se foi, senhor — Zeb disse, aparentemente tentando ser respeitoso. — Quer
dizer... quando os soldados resgataram você e o índio dos Rebeldes, você não estava nele.
— Quando... que índio? O que diabos aconteceu ontem, Zeb?
— Como eu poderia saber? — Zeb disse, afrontado. — Eu não estava lá, estava?
— Não, é claro... inferno! Meu tio, o Duque de Pardloe, está no acampamento? Eu preciso
conversar com ele.
Zeb pareceu em dúvida.
— Bem, eu posso ir e procurar por ele, suponho.
— Faça isso, por favor. Agora.
William o dispensou com um aceno e depois se sentou quieto por um momento, tentando
jntar os fragmentos dispersos de sua memória. Rebeldes? Goth... Ele se lembrava de alguma coisa
com Goth, mas o que era? Ele tinha corrido para cima dos Rebeldes, e eles pegaram seu cavalo?
Mas o que era essa coisa sobre índios e desertores, e por que ele continuava ouvindo ecos em
alemão no fundo de seu cérebro?
E quem, veio à sua mente, era o Coronel Grey a quem Zeb estava se referindo? Ele assumira
que era seu tio Hal — mas a classificação de seu pai era tenente-coronel, e ele também era
chamado de “coronel” geralmente. Ele olhou para a bandeja e para o copo vazio. Tio Hal
certamente sabia sobre o pelo do cachorro, mas...
Contanto que você esteja vivo, tudo está bem.
Ele colocou a torrada intocada para baixo, um repentino aperto em sua garganta. De novo.
Ele tinha sentido aquilo na noite passada, quando vira seu pai. Quando ele disse ao seu pai —
sim, inferno, seu pai! — “eu estou feliz por você não estar morto”.
Ele talvez não estivesse pronto para conversar com seu pai — ou papai para ele — e ele
não concordava que tudo estivesse bem, mas...
Um raio brilhante de luz do sol atingiu seu rosto quando a borda da tenda foi lançada para
o lado, e ele se sentou ereto, balançando as pernas para fora da cama e pronto para se encontrar
com...
Mas não foi nem seu tio e nem seu pai que apareceu no borrão de seu olho lacrimejante
pela luz solar. Foi Banastre Tarleton, usando uniforme, mas sem a peruca e todo desabotoado,
parecendo indecentemente feliz para alguém cuja face parecia ter sido espancada há não muito
tempo.
— Está vivo, então, Ellesmere? — Ban viu seu prato e, pegando um pedaço de ovo mexido
com o dedo, o engoliu. Ele lambeu os dedos engordurados, fazendo ruídos de satisfação. —
Cristo, estou faminto! Não como nada desde o amanhecer de ontem. Matar com o estômago
vazio te deixa acabado, é o que eu digo. Posso pegar o restante?
— Fique à vontade. Quem você matou para o café da manhã? Rebeldes?
Tarleton pareceu surpreso, pego com a boca cheia de torrada. Ele mastigou mais ou menos
e fechou a boca antes de responder com uma chuva de farelos.
— Não, as tropas de Washington se retiraram para o sul, até onde eu sei. Desertores
hessianos. O mesmo grupo que o condecorou e o deixou para morrer, ou é o que eu imagino.
Eles tinham o seu cavalo; eu o reconheci — Ele esticou a mão para pegar outro ovo, e William
enfiou uma colher em sua mão.
— Pelo amor de Deus, coma como um cristão. Você está com o meu cavalo?
— Estou. Ele está coxo do casco direito, mas não acho que seja algo muito grave. Hum...
Você tem o seu próprio cozinheiro?
— Não, ele é o cozinheiro do meu tio. Conte-me sobre os desertores. Eles bateram na
minha cabeça e a minha memória está um pouco confusa — Mais do que um pouco, mas pedaços
dela estavam começando a voltar com rapidez agora.
Entre as mordidas, Tarleton contou a ele a história. Uma companhia de mercenários sob
as ordens de von Knyphausen tinha feito a cabeça deles para desertar durante a batalha, mas
nem todos os homens concordaram. Aqueles que eram a favor da deserção se afastaram um
pouco e estavam discutindo baixinho se seria necessário matar os dissidentes, quando William
apareceu inesperadamente no meio deles.
— Aquilo os deixou meio preocupados, como você poderia supor. — Tarleton, tendo
comido os ovos e a maior parte das torradas, pegou o copo e pareceu desapontado ao encontrá-
lo vazio.
— Provavelmente tem água naquele cantil — William disse, apontando em direção a um
objeto de estanho e couro pendurado no pau da tenda — Então é isso... Eles pareciam um pouco
nervosos, mas quando eu perguntei a um deles em alemão se havia um ferrador por perto... foi
isso! Goth perdeu uma ferradura, é por isso que ele... mas quando eu ouvi alguém sussurrando,
soando frenético, ele estava dizendo “Ele ouviu! Ele sabe!”. Eles devem ter pensado que eu tinha
ouvido sua conversa e sabia o que eles estavam planejando fazer.
Ele respirou aliviado por ter essa parte do dia restaurada para si.
Tarleton assentiu — Imagino que sim. Eles realmente mataram alguns dos dissidentes,
porque passaram dos limites depois de baterem na sua cabeça e o jogarem na ravina, mas não
todos eles.
Alguns dos mercenários escaparam e foram até von Knyphausen, que, após ouvir as
notícias, mandou um despacho para Clinton pedindo por assistência para lidar com os canalhas.
William assentiu. Era sempre melhor lidar com deserção ou traição com tropas de fora
das companhias afetadas. E conhecendo Ban Tarleton, ele teria aproveitado a chance para
perseguir os desertores e...
— Pediram para que você os matasse? — Ele perguntou, esforçando-se para ser casual.
Tarleton deu a ele um sorriso com ovo e limpou algumas migalhas remanescentes no
queixo.
— Não especificamente. Eu tive a impressão de que, contanto que eu levasse alguns de
volta para contar a história, ninguém se importava muito com a minha maneira de agir. E houve
uma pitada de pour encourager les autres29 em minhas ordens.
Educadamente suprimindo seu choque com a revelação de que Tarleton podia ler, ainda
mais ler Voltaire, William assentiu.
— Entendo. Meu ordenança disse uma coisa muito curiosa: ele mencionou que eu fui
encontrado com os Rebeldes, junto com um índio. Você sabe alguma coisa sobre isso?
Tarleton pareceu surpreso, mas balançou a cabeça.
— Percival Wainwright? — John não tinha visto Hal tão desconcertado desde os eventos que
culminaram na morte de seu pai, que também envolviam Percy, pensando bem.
— Em sua muito chique figura. Aparentemente ele é um conselheiro do Marquês de La
Fayette.
— Quem é este?
— Um sapo jovem com muito dinheiro — Grey disse abaixando um ombro — Um general
rebelde. Diz-se que é muito próximo de Washington.
— Próximo — Hal repetiu, com um olhar afiado a Grey — Próximo a Wainwright também,
você acha?
— Provavelmente não desta forma — ele replicou calmamente, embora seu coração tenha
batido um pouco mais rápido. — Eu vejo que você não está de todo surpreso por ele estar vivo.
Percy, quero dizer — Ele estava vagamente afrontado; tivera muitos problemas para fazer
parecer que Percy tinha morrido na prisão enquanto esperava o julgamento por sodomia.
Hal meramente bufou. — Homens como ele nunca morrem tão convenientemente. Por
que diabos você acha que ele disse essas coisas a você?
Grey suprimiu a vívida memória de bergamota, vinho tinto e laranja.
— Eu não sei. Mas o que eu sei é que ele está profundamente envolvido com interesses
franceses, e...
— Wainwright nunca está envolvido em qualquer interesse que não seja o dele mesmo —
Hal interrompeu bruscamente. Ele deu a John um olhar afiado. — Você faria bem em se lembrar
disso.
— Eu duvido que o verei de novo — John replicou, antevendo a implicação que seu irmão
o considerava ingênuo, ou pior. Ele estava inteiramente consciente de que, mesmo que Hal
estivesse tratando as notícias de Richardson em relação a Ben com desprezo, e provavelmente
estivesse certo ao fazer isso, nenhum deles poderia ignorar completamente a possibilidade de
que o homem estivesse dizendo a verdade.
Hal verificou este pressuposto batendo seu punho no baú, fazendo com que os copos de
estanho saltassem e caíssem. Ele ficou de pé abruptamente.
— Maldição! — Ele murmurou. — Fique aqui!
— Onde você está indo?
Hal parou na porta da tenda por um segundo. Seu rosto ainda estava abatido, mas John
reconheceu a luz da batalha em seus olhos.
— Vou prender Richardson.
— Você não pode prendê-lo, pelo amor de Deus! — Grey ficou de pé também, esticando a
mão para a manga de Hal. — A qual regimento ele pertence?
— Ao Quinto, mas ele está desligado. Eu disse a você que ele era um agente da inteligência,
não? — A palavra “inteligência” pingou com desprezo.
— Tudo bem. Eu vou conversar com Sir Henry primeiro.
John estava segurando o braço de Hal e intensificou o aperto ao ouvir aquilo. — Eu pensei
que você já estivesse cheio dos escândalos — ele disse, tentando soar calmo. — Respire fundo
e imagine o que provavelmente vai acontecer se você fizer isso. Assumindo que Sir Henry
arranjaria tempo para atender à sua requisição. Hoje, pelo amor de Deus?
Ele podia ouvir o exército se movendo lá fora; não havia perigo de perseguição por parte
das tropas de Washington, mas Clinton não ficaria ali perdendo tempo. Sua divisão, com suas
bagagens e os refugiados sob sua proteção, estariam na estrada em uma hora.
O braço de Hal estava duro como mármore sob a mão de John e permaneceu desta forma.
Mas ele parou, respirando com lenta e profunda regularidade. Por fim, ele virou a cabeça e olhou
dentro dos olhos de seu irmão. Um feixe de luz mostrou em cada linha de seu rosto o alívio duro.
— Diga uma coisa que você acha que eu não faria — ele disse baixinho — para não ter que
dizer a Minnie que Ben está morto.
Grey inspirou longa e profundamente e assentiu, soltando-o.
— Aceito seu ponto de vista. O que quer que você esteja querendo fazer, eu vou ajudar.
Mas primeiro eu tenho que encontrar William. O que Percy disse...
— Ah — Hal piscou e seu rosto relaxou um pouco. — Sim, é claro. Encontro você aqui em
meia hora.
William mal tinha terminado de se vestir quando a mensagem que ele estivera meio que
esperando chegou de Sir Henry, entregue pelo Tenente Foster, que ele conhecia um pouco.
Foster fez uma careta em simpatia ao entregar a nota.
William observou o selo pessoal de Sir Henry: não era um bom sinal. Por outro lado, se ele
seria preso por se ausentar sem dispensa no dia anterior, Harry Foster teria levado uma escolta
armada e o levado sem sua licença. Aquilo era levemente animador, e ele quebrou o selo sem
hesitar.
Era uma nota lacônica aconselhando-o a ser retirado de serviço até novo aviso — mas isso
era tudo. Ele exalou, só então percebendo que estivera segurando o fôlego.
Mas é claro que Sir Henry não iria prendê-lo — como e onde, com o exército prestes a se
mover? A não ser que o colocassem dentro de uma jaula e o transportasse numa carroça...
Realisticamente, Clinton não poderia nem mesmo confiná-lo em um quartel; os quartéis em
questão estavam começando a se sacudir sobre sua cabeça enquanto o ordenança de seu tio
desmontava a tenda.
Tudo bem, então. Ele guardou a nota em seu bolso, colocou as botas em seus pés, pegou o
chapéu e saiu, sentindo-se não tão mal, considerando todas as coisas. Ele estava com dor de
cabeça, mas era suportável, e ele tinha conseguido comer o que Tarleton deixara do desejejum.
Quando as coisas se acalmassem e Sir Henry tomasse conhecimento oficial de sua
desobediência, William poderia procurar Capitão André e pedir que ele explicasse sobre o
pedido para encontrar Tarleton, e tudo ficaria bem. Neste meio tempo, ele iria até a área dos
seguidores de acampamento e encontraria Jane.
Havia um forte cheiro amargo de repolho fresco flutuando sobre os cheiros das casas
improvisadas e de detritos humanos, e uma dispersão de carroças estava parada ao longo da
estrada, com mulheres gritando ao redor delas. Os cozinheiros do exército alimentavam os
refugiados, mas as rações eram esparsas — e sem dúvida tinham sido interrompidas durante a
batalha.
Ele caminhou ao longo da estrada, mantendo o olhar atento para encontrar Jane ou Fanny,
mas não avistou nenhuma das duas. Seu olho sintonizou uma jovem, entretanto; pareceu ter
visto Peggy Endicott, caminhando pela estrada com um balde em cada mão.
— Senhorita Peggy! Posso oferecer minha assistência? — Ele sorriu para ela e se sentiu
aquecido ao ver que o rosto dela, antes ansioso, mostrou satisfação sob sua touca.
— Capitão! — Ela gritou, quase deixando os baldes caírem em sua excitação. — Oh, estou
tão feliz em vê-lo! Estávamos todos preocupados com você, sabe, na batalha, e todos nós
fizamos uma oração por sua segurança, mas papai nos disse que você certamente prevaleceria
sobre os Rebeldes malvados e que Deus o manteria a salvo.
— Suas amáveis orações tiveram grande efeito — ele assegurou gravemente, pegando os
baldes. Um deles estava cheio de água e o outro de nabos, suas cabeças verdes e murchas sobre
a borda. — Sua mãe e seu pai estão bem? E suas irmãs?
Eles caminharam juntos, Peggy dançando nas pontas dos pés e falando como um pequeno
e afável papagaio. William continuou atento, procurando por Jane ou Fanny entre as lavadeiras;
era mais seguro que elas ficassem perto daquelas temíveis senhoras do que em outras partes
do acampamento. Não havia chaleiras fervendo nesta manhã, é claro, mas o cheiro de sabão de
soda cáustica flutuava no ar úmido como espuma, de um caldeirão cheio de roupas sujas.
Não havia sinal de Jane e Fanny quando ele chegou até o vagão dos Endicotts — ainda
sobre as quatro rodas, ele estava feliz ao ver. Ele foi saudado calorosamente por todos os
Endicotts, embora as garotas e a Sra. Endicott tenham feito muito alarde ao verem sua cabeça
quando ele tirou o chapéu para ajudar com o carregamento da carroça.
— Não foi nada, senhora; uma mera contusão — ele assegurou à Sra. Endicott pela nona
vez, quando ela o instigou a se sentar à sombra e beber um pouco de água com umas gotas de
conhaque, já que, graças a Deus, eles ainda tinham um pouco...
Anne, que tinha se colocando mais perto dele, passando a ele os itens a serem carregados,
se inclinou com um baú de chá e deixou que suas mãos esbarrassem na dele —
deliberadamente, ele tinha certeza.
— Você acha que ficará em Nova York? — Ela perguntou, inclinando-se para pegar uma
maleta — Ou talvez... perdoe-me pela minha curiosidade, mas as pessoas falam... voltar para a
Inglaterra? A Senhorita Jernigan disse que você poderia fazer isso.
— A Senhorita... Oh, claro — Ele se lembrava de Mary Jernigan, um pedaço loiro e muito
coquete com quem ele dançara num baile na Filadélfia. Ele olhou sobre a multidão de
refugiados. — Ela está aqui?
— Sim — Anne replicou, um pouco tensa. — O Dr. Jernigan tem um irmão em Nova York;
eles ficarão com ele por um tempo. — Ela se recompôs (ele percebeu que ela se arrependera
em chamar a atenção dele para Mary Jernigan) e sorriu para ele, de forma profunda o suficiente
para invocar a covinha em sua bochecha esquerda — Você não precisaria se refugirar com seus
parentes, entretanto, não é? A Senhorita Jernigan disse que você tem uma vasta propriedade à
sua espera na Inglaterra.
— Hum — Ele disse sem se comprometer.
Seu pai o tinha alertado desde cedo sobre as jovens mulheres que poderiam querer se
casar com ele com um olho em sua fortuna, e ele conhecera algumas delas. Ainda assim, ele
gostava de Anne Endicott e sua família e estava inclinado a pensar que eles se preocupavam
realmente com ele, apesar de sua posição e das considerações pragmáticas que agora afligiam
Anne e suas irmãs, com os negócios de seu pai tão precários.
— Eu não sei — ele disse, pegando a maleta das mãos dela. — Eu realmente não tenho
ideia do que será de mim. Quem tem, nesses tempos de guerra? — Ele sorriu, um pouco
tristemente, e ela pareceu sentir seu senso de incerteza, porque impulsivamente colocou uma
mão em sua manga.
— Bem, pode ter certeza de que tem amigos, pelo menos, que se preocupam pelo que
acontece a você — ela disse suavemente.
— Obrigado — ele disse, e virou o rosto em direção ao vagão, para que ela não percebesse
o quanto aquilo o tinha tocado.
Ao se virar, entretanto, seu olho capturou um movimento intencional, alguém rumando
em sua direção através da multidão, e os suaves olhos escuros de Anne Endicott desapareceram
abruptamente de seu pensamento.
— Senhor! — Era seu cavalariço Colenso Baragwanath, ofegante pelo esforço da corrida.
— Senhor, você...
— Aí está você, Baragwanath! O que diabos está fazendo aqui, e onde você deixou Madras?
Boas notícias, entretanto: Goth voltou. O Coronel Tarleton está com ele e... O que foi, pelo amor
de Deus? — Ele perguntou, já que Colenso estava se contorcendo como se uma cobra estivesse
em suas calças, seu rosto quadrado contorcido pelas informações.
— Jane e Fanny se foram, senhor!
— Se foram? Para onde?
— Eu não sei, senhor. Mas elas se foram. Eu voltei para pegar meu casaco e a barraca ainda
estava de pé, mas suas coisas tinham sumido e eu não consegui encontrá-las e, quando eu
perguntei ao pessoal próximo, disseram que as meninas tinham enrolado suas trouxas e
partido.
William não perdeu tempo perguntando como alguém possivelmente poderia escapar de
um acampamento aberto com outras milhares de pessoas, quanto mais por que aquilo seria
necessário.
— Para qual direção elas foram?
— Para aquele lado, senhor! — Colenso apontou para a estrada.
William passou a mão sobre seu rosto e parou de repente quando tocou inadvertidamente
o machucado inchado em sua têmpora esquerda.
— Ai! Bem, inferno... Oh, perdoe-me, Senhorita Endicott — Neste momento, ele se tornou
consciente de Anne Endicott em seu cotovelo, os olhos redondos de curiosidade.
— Quem são Jane e Fanny? — Ela perguntou.
— Ahh... duas jovens moças que estão viajando sob minha proteção. — Ele disse, sabendo
exatamente o efeito que esta informação provavelmente teria, mas não tinha como evitar —
Garotas muito jovens — ele adicionou, uma vã esperança de melhorar as coisas — Filhas de
um... hã, primo distante.
— Oh — ela disse, parecendo distintamente não convencida. — Mas elas fugiram? Por que
fariam algo do tipo?
— Maldito seja... Eu... Perdoe-me, senhorita. Eu não sei, mas devo ir e descobrir. Você pode
pedir desculpas aos seus pais e irmãs?
— Eu... é claro — Ela fez um pequeno e abortivo gesto em direção a ele, levantando a mão
e dispensando-o. Ela parecia tanto assustada quanto sutilmente afrontada. Ele lamentou aquilo,
mas não havia tempo para fazer qualquer coisa sobre o assunto.
— Seu criado, senhora — ele disse, e, inclinando-se, ele a deixou.
No final, passou meio dia, e não meia hora, até que John visse Hal novamente. Ele encontrou seu
irmão, por acaso, parado na estrada que levava ao norte, observando as colunas marchantes
passarem. A maior parte do acampamento já tinha partido; apenas os vagões da cozinha e as
chaleiras da lavanderia estavam passando agora, a expansão desordenada dos seguidores de
acampamento se espalhando atrás deles como uma praga sobre o Egito.
— William se foi — ele disse a Hal sem preâmbulos.
Hal assentiu, o rosto sombrio — Assim como Richardson.
— Inferno!
O cavalariço de Hal estava ao lado, segurando dois cavalos. Hal inclinou sua cabeça para
uma égua preta e tomou as rédeas de seu próprio cavalo, um cavalo castrado claro.
— Para onde você acha que estamos indo? — John perguntou, vendo seu irmão virar a
cabeça do cavalo para o sul.
— Para a Filadélfia — Hal replicou, com os lábios cerrados. — Para onde mais?
Grey podia pensar em inúmeras alternativas, mas reconhecia uma pergunta retórica
quando a via — Você tem um lenço limpo?
Hal deu a ele um olhar inexpressivo, e depois remexeu em sua manga, puxando um lenço
de linho amassado, mas limpo.
— Aparentemente. Por quê?
— Eu imagino que precisaremos de uma bandeira de trégua em algum momento. O
exército Continental está entre nós e a Filadélfia, quero dizer.
— Oh, isso — Hal colocou o lenço de volta em sua manga e não disse mais nada até que
tivessem passado pelos últimos remanescentes da horda de refugiados e se encontrassem mais
ou menos sozinhos na estrada que levava ao sul. — Ninguém pode ter certeza, na confusão. —
ele disse, como se estivessem conversando segundos antes. — Mas parece que o Capitão
Richardson desertou.
— O quê?!
— Não é um momento ruim para fazer isso, na verdade — Hal disse reflexivamente. —
Ninguém notaria que ele partiu durante dias, se eu não tivesse vindo procurar por ele. Ele
estava no acampamento na noite passada, entretanto, e a menos que ele tenha se disfarçado
como um carroceiro ou uma lavadeira, ele não está mais aqui.
— A contingência parece remota — Grey disse. — William estava aqui nesta manhã, tanto
o seu ordenança quanto seus cavalariços o viram, além do Coronel Tarleton da Legião Britânica,
que tomou o desjejum com ele.
— Quem? Oh, ele... — Hal acenou como se Tarleton fosse uma distração — Clinton o
valoriza, mas eu nunca confio num homem que tem lábios iguais aos de uma mulher.
— Independente disso, parece que ele não tem nada a ver com o desaparecimento de
William. O cavalariço Baragwanath acha que William partiu para procurar duas... jovens
mulheres entre os seguidores de acampamento.
Hal olhou para ele, uma sobrancelha levantada.
— Que tipo de mulher?
— Provavelmente o tipo que você está pensando — John replicou, um pouco tenso.
— Nesta hora da manhã, após receber uma pancada na cabeça na noite anterior? E jovens
mulheres no plural? O garoto tem energia, tenho que admitir.
Grey poderia dizer um monte de outras coisas sobre William neste momento, mas não o
fez. — Então, você acha que Richardson desertou. — Isso explicaria o foco de Hal na Filadélfia;
se Percy estava certo e Richardson fosse, na realidade, um agente americano, para onde mais ele
iria?
— Parece a possibilidade mais provável. Além disso... — Hal hesitou por um momento,
mas depois sua boca se firmou. — Se eu acreditasse que Benjamin estivesse morto, o que seria
esperado que eu fizesse?
— Sair para fazer perguntas sobre sua morte — Grey respondeu, suprimindo a sensação
incômoda que a noção disso induzia. — Reclamar seu corpo, pelo menos.
Hal assentiu. — Ben foi, ou está, preso num local de Nova Jersey chamado Acampamento
de Middletown. Eu não estive lá, mas é no meio do território mais forte de Washington, nas
Montanhas Watchung. É o ninho dos Rebeldes.
— E é improvável que você fizesse uma viagem como essa com uma grande guarda
armada — John observou. — Você iria sozinho, ou talvez com um ordenança, um estandarte ou
dois. Ou comigo.
Hal assentiu. Eles cavalgaram por um tempo, cada um com seus pensamentos.
— Então você não está indo para as Montanhas Watchung — Grey disse, por fim. Seu
irmão suspirou profundamente e apertou sua mandíbula.
— Não imediatamente. Se eu puder encontrar Richardson, posso descobrir o que
realmente aconteceu, ou não aconteceu, a Ben. Depois disso...
— Você tem um plano a seguir assim que chegarmos à Filadélfia? — Grey inquiriu. —
Dado ao fato que a cidade está nas mãos dos Rebeldes?
Os lábios de Hal se contraíram — Eu terei, quando chegarmos lá.
— Eu ouso dizer que sim. Eu tenho um plano agora, entretanto.
Hal olhou para ele, colocando uma mecha de cabelo úmido atrás da orelha. Seus cabelos
estavam cuidadosamente atados para trás; ele não tinha se dado ao trabalho de trancá-los
naquela manhã, um claro sinal de sua agitação — Envolve qualquer coisa patentemente insana?
Seus melhores planos são sempre assim.
— Nem um pouco. É certo que nós encontraremos os Continentais, como eu disse.
Considerando que não sejamos alvejados num primeiro momento, vamos exibir nossa bandeira
de trégua — ele assentiu para a manga de seu irmão, na qual a ponta do lenço estava aparecendo
— e exigiremos ser levados ao General Fraser.
Hal deu a ele um olhar assustado.
— James Fraser?
— Exatamente. — O estômago embrulhado de Grey se apertou um pouco com o
pensamento. Tanto pelo pensamento de falar com Jamie de novo, quanto pelo fato de ter que
dizer a ele que William tinha sumido. — Ele lutou com Benedict Arnold em Saratoga, e sua
esposa é amiga do homem.
— Deus ajude o General Arnold neste caso — Hal murmurou.
— E quem terá uma razão melhor para nos ajudar nesse sentido do que James Fraser?
— Quem, de fato? — Eles cavalgaram por algum tempo em silêncio, Hal aparentemente
perdido em pensamentos. Não foi até pararam para encontrar um riacho e dar água aos cavalos
que ele falou de novo, a água escorrendo por seu rosto onde ele o tinha lavado. — Então, você
não apenas se casou com a esposa de Fraser, mas acidentalmente esteve criando seu filho
ilegítimo pelos últimos quinze anos?
— Aparentemente sim — Grey disse, em um tom que ele esperava indicar completa falta
de disposição a falar sobre o assunto.
Pela primeira vez, Hal entendeu sua intenção.
— Entendo — ele disse, sem mais perguntas, limpando o rosto com a bandeira da trégua
e montando.
87 – O NASCER DA LUA
Não foi um dia calmo. Aparentemente Jamie tinha, de alguma forma, mantido suficiente
presença de mente na noite anterior para escrever uma breve nota — embora não tenha se
lembrado de tê-lo feito — para La Fayette, explicando o que tinha acontecido e confiando suas
tropas ao marquês. Ele a tinha enviado pelo Tenente Bixby, com instruções para notificar os
capitães e os comandantes de milícia de suas companhias. Depois disso, ele tinha se esquecido
de tudo a não ser Claire.
As coisas não o tinham esquecido, entretanto. O sol mal tinha nascido quando um grande
número de oficiais apareceu à porta da Sra. Macken, em busca do General Fraser. A Sra. Macken
lidava com cada recém-chegado como sendo o possível portador de más notícias em relação ao
seu marido ainda desaparecido, e o cheiro de mingau queimado se espalhou pela casa,
infiltrando-se nas paredes juntamente com o cheiro do medo.
Alguns tinham vindo com perguntas, outros com notícias ou fofocas — General Lee tinha
sido dispensado, tinha sido preso, tinha ido para a Filadélfia, tinha virado a casaca e se juntado
a Clinton, tinha se enforcado, tinha desafiado Washington para um duelo. Um mensageiro
chegou de General Washington com uma nota pessoal de simpatia e bons votos; outro veio de
La Fayette com uma enorme cesta de alimentos e meia dezena de garrafas de vinho.
Jamie não conseguia comer, mas deu a comida à Sra. Macken. Ele reteve duas garrafas de
vinho, entretanto, que abriu e manteve perto de si durante o dia, tomando goles ocasionais para
sustentar-se enquanto esperava e rezava.
Judah Bixby entrava e saía como um fantasma útil, aparecendo e desaparecendo, mas
sempre parecendo estar lá quando alguma coisa era necessária.
— As companhias de milícia... — Jamie começou, mas depois não conseguiu lembrar o que
tinha pensado em perguntar em relação a eles — Eles estão...?
— A maior parte já foi para casa — Bixby disse a ele, descarregando uma cesta cheia de
garrafas de cerveja — O alistamente termina no trigésimo dia, senhor — ele adicionou
gentilmente — mas a maioria deles partiu na primeira hora esta manhã.
Jamie soltou uma respiração que ele não sabia estar segurando e sentiu um pouco de paz.
— Eu imagino que se passarão meses até que alguém saiba se foi ou não uma vitória —
Bixby comentou. Ele puxou a rolha de uma garrafa e depois da outra, e entregou uma delas a
Jamie —, mas certamente não foi uma derrota. Devemos beber a isso, senhor?
Jamie estava cansado pela preocupação e pelas orações, mas conseguiu sorrir para Judah
e dispensou rápidas palavras de agradecimento a Deus pelo garoto.
Uma vez que Judah tinha partido, ele fez uma oração maior pelo seu sobrinho. Ian não
tinha voltado, e nenhum dos visitantes de Jamie tinha notícias dele. Rachel tinha vindo tarde na
noite anterior, silenciosa e com o rosto pálido, e tinha ido embora ao nascer do dia. Dottie tinha
se oferecido para ir com ela, mas Rachel recusou; as duas tinham que lidar com os feridos que
ainda estavam sendo trazidos e daqueles que estavam abrigados nas casas e celeiros de
Freehold.
Ian, Jamie pensou com angústia, se dirigindo ao seu cunhado. Pelo amor de Deus, olhe por
seu rapaz, porque eu não posso fazer isso. Sinto muito.
A febre de Claire tinha subido rapidamente durante a noite, e depois pareceu cair um
pouco com a chegada da luz; ela ficava ocasionalmente consciente, e capaz de trocar algumas
palavras, mas na maior parte do tempo ela estava deitada num cochilo inquieto, sua respiração
rasa e pontuada por súbitos suspiros profundos que a faziam acordar — ela sonhara que estava
sufocando, dissera numa das vezes. Ele dava a ela o máximo de água possível e afagava seu
cabelo novamente, e ela caía nos seus sonhos febris, murmurando e gemendo.
Ele começou a se sentir como se ele mesmo estivesse vivendo um sonho febril: preso
numa repetição infinita de orações e água, quebrado apenas pelos visitantes de um mundo
estranho e desaparecido.
Talvez este fosse o purgatório, ele pensou, e deu sorriso amarelo lembrando de si mesmo,
acordando em Cullonden Moor há tantos anos, suas pálpebras seladas pelo sangue, pensando
que estava morto e grato por isso, mesmo que sua perspectiva imediata fosse o purgatório —
sendo aquela uma circunstância desconhecida e vaga, provavelmente desagradável, mas não
temida.
Ele temeu o que parecia ser iminente.
Ele tinha chegado à conclusão que não poderia se matar, mesmo que ela morresse. Mesmo
que ele pudesse cometer um pecado desta magnitude, havia pessoas que precisavam dele, e
abandoná-las seria um pecado ainda maior do que a destruição por espontânea vontade do dom
da vida dado por Deus. Mas viver sem ela — ele a observava respirar, obsessivamente, contando
dez respirações antes de acreditar que ela não tinha parado — certamente seria seu purgatório.
Ele não pensou que tivesse desviado os olhos dela, e talvez não o tivesse feito, mas ele saiu
de seu devaneio para ver que os olhos dela estavam abertos, um suave tom de preto no branco
de seu rosto. A luz tinha desaparecido para o final do crepúsculo e todas as cores tinham se
apagado do cômodo, deixando-os em uma névoa poeirenta que não era a luz do dia e ainda não
era a noite. Ele viu que seus cabelos estavam quase secos, enrolando-se em massas sobre o
travesseiro.
— Eu decidi... não morrer — ela disse, em uma voz que era não mais do que um sussurro.
— Oh. Bom — Ele estava com medo de tocá-la, por receio de machucá-la, mas não
conseguia suportar não fazê-lo. Ele colocou a mão nela o mais suavemente possível,
encontrando sua pele fria apesar do calor aprisionado no pequeno sótão.
— Eu poderia, você sabe — Ela fechou um olho e olhou acusadoramente para ele com o
outro. — Eu queria; isso é... horrível.
— Eu sei — ele sussurrou, e levou a mão dela aos seus lábios. Seus ossos estavam frágeis
e ela não tinha força para apertar sua mão; seus dedos moles entre os dele.
Ela fechou os olhos e respirou audivelmente por um tempo.
— Você sabe por quê? — Ela disse de repente, abrindo seus olhos.
— Não — Ele pensou em fazer alguma observação como uma piada sobre sua necessidade
de escrever a receita do éter, mas seu tom era muito sério e ele não falou.
— Porque — ela disse, e parou com uma pequena careta que apertou o coração dele. —
Porque — ela disse pelos dentes cerrados — eu sei como é... como quando eu... pensei que você
estava morto, e... — Um pequeno suspiro para respirar, e seus olhos capturaram os dele — E eu
não faria isso com você. — Seu peito caiu e seus olhos se fecharam.
Foi um longo momento antes de ele poder falar.
— Obrigado, Sassenach — Ele sussurrou, e segurou sua mão pequena e fria entre as suas
e observou sua respiração até a lua subir.
Eu podia ver a luz pela pequena janela; estávamos no sótão da casa. Era a primeira respiração
da lua nova, mas ela ainda estava toda visível, uma perfeita bola violeta e índigo, envolta por
uma nesga de luz, luminosa entre as estrelas — “A lua nova com a velha”, as pessoas do campo
a chamavam na Inglaterra. Em Ridge, pessoas a chamavam de “retenção da água”.
A febre tinha me abandonado. Ela também havia me deixado esgotada, tonta e mais fraca
que um rato recém-nascido. A lateral de meu corpo estava inchada do quadril até o cóccix,
quente e suave ao toque, mas eu tinha certeza de que era apenas pelo trauma cirúrgico. Não
havia nenhuma infecção significativa, apenas uma pequena inflamação próxima à superfície da
incisão.
Eu me sentia como a lua nova: a sombra da dor e da morte ainda estavam claramente
visíveis para mim — mas apenas porque a luz estava ali para colocar isso em perspectiva. Por
outro lado, ainda havia pequenas indignidades e questões de ordem prática com as quais lidar.
Eu tinha que fazer xixi, e eu não conseguiria me sentar sozinha, quanto menos me agachar sobre
um penico.
Eu não tinha ideia de que horas eram, embora com a luz daquela hora, não pudesse ser o
meio da noite. A casa estava silenciosa, entretanto — O Tenente Macken tinha retornado em
segurança no final da tarde, trazendo com ele muitos outros homens, mas eles estavam exaustos
demais para celebrações; eu podia ouvir roncos suaves vindos do andar inferior. Eu não poderia
perturbar a todos chamando Loretta Macken para me ajudar. Com um suspiro, eu me inclinei
na lateral da cama e limpei a garganta.
— Sassenach? Você está bem? — Um segmento de escuridão no chão se moveu
repentinamente e adquiriu a forma sombria de Jamie.
— Sim. E você?
Isso me fez quase rir.
— Eu vou ficar, Sassenach — ele disse suavemente, e eu ouvi o farfalhar de seu movimento
quando ele ficou de pé — Eu estou feliz por você estar bem o suficiente para perguntar. Precisa
de água?
— Hã... é o oposto, na verdade — eu disse.
— Oh? Oh — Ele parou, um borrão pálido em sua camisa, para alcançar algo embaixo da
cama. — Você precisa de ajuda?
— Se eu não precisasse, não teria acordado você — Eu disse, um pouco irritada. — Eu não
achei que conseguiria esperar pela Sra. Macken ou por Dottie, entretanto — Ele bufou um pouco
e me pegou sob os braços, levantando-me para que eu ficasse sentada.
— Agora — ele murmurou. — Não é como se você não tivesse feito isso, e muitas outras
coisas piores, para mim.
Embora isso fosse verdade, não tornava as coisas mais fáceis.
— Você pode me soltar agora — eu disse — Talvez sair do quarto?
— Talvez não — ele disse, suavemente, mas com um tom que indicava que sua mente
estava decidida em relação ao assunto — Se eu deixá-la, você vai cair de cara no chão e você
sabe disso muito bem, então pare de falar e faça o que tem que fazer, sim?
Demorou um tempo — qualquer coisa que colocasse pressão em meu abdômen, incluindo
o ato de urinar, doía absurdamente — mas o negócio foi feito e eu fui colocada de volta sobre
os travesseiros, ofegando. Jamie se inclinou e pegou o penico, claramente com a intenção de
jogar o seu conteúdo pela janela, de acordo com os costumes de Edimburgo.
— Não, espere! — Eu disse — Deixe aí até amanhã.
Ele parou.
— Por quê? — ele perguntou cuidadosamente. Claramente ele suspeitou que eu ainda
estivesse desequilibrada por causa da febre e pensando em fazer algo nojento e irracional
usando o conteúdo do penico, mas ele não quis dizer nada, para o caso de eu ter alguma coisa
lógica, ainda que bizarra, em mente. Eu teria rido, mas doía muito.
— Eu preciso checar, quando tiver luz, para ter certeza que não há sangue — eu disse —
Meu rim direito está muito dolorido; eu quero ter certeza de que não houve danos.
— Ah. — Ele colocou o utensílio cuidadosamente para baixo e, para minha surpresa, abriu
a porta e se esgueirou para fora, movendo-se na ponta dos pés como uma raposa caçando. Eu
ouvi um rangido quando ele pisou num degrau solto, mas nada mais até que um brilho indicou
o seu retorno segurando um castiçal.
— Dê uma olhada, então — ele disse, pegando o penico de novo e levando-o até mim —
Eu sei que você vai ficar preocupada com isso se tiver que esperar até o amanhecer.
Ele soou resignado, mas aquela pequena reflexão me trouxe à beira das lágrimas. Ele
ouviu isso em minha respiração e se inclinou para mais perto, alarmado, levando a luz ao meu
rosto.
— Você está bem, Sassenach? É ruim, então?
— Não — eu disse, e limpei meus olhos rapidamente com um canto do lençol. — Não,
está... está tudo bem. Eu só... Oh, Jamie, eu amo você! — Eu me deixei levar pelas lágrimas, então,
fungando e chorando como uma idiota. — Eu sinto muito — eu disse, tentando me recompor.
— Eu estou bem, não há nada errado, é só que...
— Sim, eu sei bem o que é — ele disse, e, colocando a vela e o penico no chão, ele se deitou
na cama ao meu lado, balançando-se precariamente na borda. — Você está ferida, a nighean —
ele disse suavemente, tirando meus cabelos do rosto molhado — E com febre, e com fome e
esgotada. Não há muito mais de você do que isso, não é, pobrezinha?
Eu balancei minha cabeça e me agarrei a ele — Não há muito sobrando de você também
— eu tentei dizer, murmurando na frente de sua camisa.
Ele fez um pequeno ruído divertido e esfregou minhas costas, muito gentilmente — É o
suficiente, Sassenach — ele disse. — Eu sou o suficiente. Por enquanto.
Eu suspirei e tateei sobre o travesseiro para encontrar um lenço e assoar meu nariz.
— Está melhor? — ele perguntou, sentando-se.
— Sim. Não vá, entretanto — Eu coloquei uma mão em sua perna, dura e quente sob minha
mão — Você pode se deitar comigo por um minuto? Eu estou terrivelmente gelada.
Eu estava, embora percebesse pela umidade e pelo sal em sua pele que o quarto estava
bastante quente. Mas a perda de tanto sangue tinha me deixado com frio e ofegante; eu não
conseguia terminar uma frase sem parar para respirar, e os pelos de meus braços estavam
permanentemente arrepiados.
— Sim. Não se mexa. Eu vou dar a volta. — Ele circulou a cama e se deitou cuidadosamente
atrás de mim. Era uma cama estreita, mal conseguindo comportar nós dois pressionados juntos.
Eu exalei suavemente e relaxei contra ele lentamente, deleitando-me com a sensação de
seu calor e o sólido conforto de seu corpo.
— Elefantes — Eu disse, respirando o mais superficialmente possível para conseguir falar.
— Quando uma elefanta está morrendo, algumas vezes um macho tenta copular com ela.
Houve um silêncio marcante atrás de mim, e depois uma grande mão descansou
firmemente em minha testa.
— Ou você está com febre de novo, Sassenach — ele disse em minha orelha — ou você tem
fantasias muito pervertidas. Você não quer realmente que eu...
— Não — Eu disse rapidamente. — Não neste momento. E eu também não estou
morrendo. O pensamento apenas veio para mim.
Ele fez um ruído escocês divertido e, levantando os cabelos de meu pescoço, beijou minha
nuca.
— Desde que você não esteja morrendo — ele disse — talvez isso baste no momento.
Eu peguei sua mão e a coloquei no meu seio. Lentamente eu me esquentei e meus pés
gelados, pressionados contra suas canelas, relaxaram. A janela agora estava cheia de estrelas,
nebulosas com a umidade da noite de verão, e eu de repente senti falta das noitas frias, claras e
de veludo negro das montanhas, as estrelas brilhando enormes, perto o suficiente para as
tocarmos no alto de algum cume.
— Jamie? — Sussurrei — Podemos ir para casa? Por favor?
— Sim — ele disse suavemente. Ele segurou minha mão e o silêncio encheu o cômodo
como a luz da lua, ambos imaginando onde poderia ser nosso lar.
88 – UMA LUFADA DE ROQUEFORT
Eu não vira nenhum dos visitantes do dia anterior, embora Jamie tivesse me contado sobre eles.
Aquele dia, entretanto, trouxe um deles para mim. A Sra. Macken o trouxe escada acima, apesar
de seu estágio avançado de gravidez, e mostrou o meu quarto minúsculo com grande respeito.
Ele não estava usando uniforme e estava — para ele — bastante apagado, em um casaco
e calças cinza que eram referidas (com precisão) como “uma cor triste”, embora ele tivesse o
cuidado de usar um colete cinza-claro que combinava com sua cor.
— Como você está, minha querida? — Ele perguntou, tirando o chapéu. Sem esperar por
uma resposta, ele se ajoelhou ao lado da cama, pegou minha mão e a beijou suavemente.
Seus cabelos loiros tinham sido lavados, eu notei (conseguia sentir o cheiro de sabão de
bergamota) e cortados uniformemente. Como o comprimento era de aproximadamente três
centímetros, o efeito geral me fazia pensar irresistivelmente num patinho felpudo. Eu ri, depois
ofeguei e pressionei a mão na lateral de meu corpo.
— Não a faça rir! — Jamie disse, encarando John. Seu tom de voz era frio, mas eu o vi
observando o aspecto de John, e o canto de sua própria boca se torceu.
— Eu sei — John disse com tristeza para mim, passando uma mão sobre a cabeça e
ignorando Jamie completamente — Isso não é terrível? Eu deveria realmente usar uma peruca
pelo bem da decência, mas eu não conseguiria suportar o calor.
— Não sei se eu culpo você — disse a ele, e passei a mão pela massa bagunçada de meus
cabelos, caindo sobre meus ombros — Embora eu ainda não tenha chegado ao ponto de querer
raspar meu próprio cabelo — adicionei incisivamente, sem virar minha cabeça em direção a
Jamie.
— Não. Isso não combinaria com você — John me assegurou.
— Como está o seu olho? — Perguntei, suavamente tentando me levantar do travesseiro.
— Deixe-me dar uma olhada.
— Fique aí — ele disse, e, inclinando-se sobre mim, abriu ambos os olhos — Eu acho que
está bastante bom. Ainda está um pouco dolorido ao toque e sinto uma pontada estranha
quando o movimento muito para um lado ou para o outro, mas... você está sentindo cheiro de
queijo francês? — Ele soou um pouco assustado.
— Hum — Eu estava gentilmente apalpando a carne ao redor da órbita, que mostrava
apenas um pouco do inchaço original. A esclera ainda estava injetada de sangue, mas os
hematomas estavam muito melhores. Eu abaixei a pálpebra inferior para inspecionar a
conjuntiva: um belo rosa escorregadio, sem sinal de infecção — Ainda lacrimeja?
— Apenas no sol forte, e não muito — ele assegurou a mim, endireitando-se. Ele sorriu
para mim. — Obrigado, minha querida.
Jamie não disse nada, mas a forma como ele respirava mostrava certa aspereza em relação
a isso. Eu ignorei. Se ele escolhesse fazer alarde, eu não teria como pará-lo.
— O que você está fazendo aqui? — Ele perguntou abruptamente. John olhou para ele,
uma sobrancelha levantada, como se estivesse surpreso ao vê-lo se aproximando do outro lado
da cama. John se levantou, capturando os olhos de Jamie com os seus.
— O que acha que eu estou fazendo? — Ele disse baixinho. Não havia nenhum indício de
desafio na pergunta, e eu pude ver que Jamie de repente percebeu sua própria hostilidade,
franzindo o cenho um pouco enquanto olhava para John, pensativo.
Um lado da boca de John se torceu para cima um pouco.
— Você acha que eu vim para lutar por esta senhora? Ou para seduzi-la e roubá-la de você?
Jamie não riu, mas a linha entre suas sobrancelhas amenizou um pouco.
— Eu não — ele disse secamente. — E como você não parece muito machucado, eu duvido
que veio para ser atendido.
John fez um amável movimento com a cabeça, indicando que esta linha de pensamento
estava correta.
— E eu duvido, também — Jamie continuou, uma aspereza rastejando em sua voz — que
você veio para continuar a discussão prévia.
John inalou lentamente, e exalou ainda mais lentamente, encarando Jamie com um olhar
uniforme — Você não acha que não resta nada mais a ser dito em relação àquela discussão?
Houve um silêncio marcante. Eu olhei de um para outro, os olhos de Jamie tinham se
estreitado e os de John estavam arregalados — os olhos de ambos azuis e fixos. Tudo o que
estava faltando eram os rosnados e a batida lenta das caudas.
— Você está armado, John? — Perguntei agradavelmente.
Ele olhou para mim, chocado — Não.
— Bom — Eu disse, grunhindo um pouco enquanto lutava para me levantar. — Então,
obviamente você não está aqui para matá-lo — Eu assenti para Jamie, parado de meu outro lado
com os punhos meio cerrados — e se ele não quebrou o seu pescoço na primeira vez, não fará
isso agora. Certo? — Perguntei, arqueando uma sobrancelha para Jamie.
Ele olhou por cima de seu nariz para mim, mas eu vi sua boca relaxar ligeiramente. E suas
mãos — Provavelmente não.
— Bem, então — Eu tirei os cabelos de meu rosto. — Não há motivo para vocês baterem
um no outro. E a linguagem agressiva prejudicaria a natureza agradável desta visita, não?
Nenhum deles respondeu a isso.
— Isso não foi verdadeiramente uma pergunta retórica — eu disse. — Mas tudo bem. —
Eu me virei para John, cruzando as mãos em meu colo. — Lisonjeada como eu estou pela
atenção, eu não acho que você veio exclusivamente para perguntar sobre o meu bem-estar.
Então, se você puder perdoar minha curiosidade vulgar... por que está aqui?
Ele finalmente relaxou e, com minha permissão, pegou o banco, entrelançando os dedos
sobre seu joelho.
— Eu vim para pedir a sua ajuda — ele disse diretamente a Jamie — Mas também — foi
pequena, mas percebi sua hesitação — para fazer uma oferta. Não como quid pro quo30 — ele
adicionou. — A oferta não depende de sua ajuda.
Jamie fez um ruído escocês indicando profundo ceticismo mas disposição para ouvir.
John assentiu e respirou antes de continuar. — Uma vez você mencionou a mim, minha
querida, que...
— Não continue chamando-a disso.
— Sra. Fraser — John alterou e, com uma reverência educada para mim, trocou sua
atenção para Jamie — uma vez mencionou que ela (e você também, eu imagino) conhecia
General Arnold.
Jamie e eu trocamos olhares confusos. Ele deu de ombros e cruzou os braços.
— Sim, nós conhecemos.
— Bom. O que eu... e meu irmão — eu senti, mais do que vi, Jamie se acender com a menção
de Hal — queremos pedir a você é que nos apresente Arnold, com sua requisição pessoal para
que o general permita a nossa entrada na cidade, e que ele nos ajude como puder para que possa
procurar pelo meu filho.
John soltou a respiração e se sentou, a cabeça baixa, imóvel. Ninguém se mexeu.
Por fim, Jamie soltou um longo suspiro e se sentou no banco do outro lado do quarto.
— Diga-me — ele disse resginado — O que o pequeno bastardo fez agora?
Ele foi, por instinto, buscar Madras, mas parou para pensar no caminho. Se ele encontrasse as
garotas, não poderia levar as duas de volta com ele no cavalo. Ele mudou a direção e mergulhou
no parque dos carroceiros, emergindo um pouco depois com um carrinho de munição, agora
vazio, puxado por uma grande mula cinza, de pelo áspero e com uma orelha faltando.
A mula não estava inclinada a se mover rapidamente, mas ainda assim fazia um tempo
melhor do que duas garotas caminhando. Quanto tempo de vantagem elas tinham? Talvez uma
hora, pelo que Zebedee disse, talvez mais.
— Eia! — Ele gritou, e estalou o chicote sobre os quartos da mula. O animal era rude, mas
não tolo, e deu uma guinada em ritmo mais acelerado, embora William tenha suspeitado que
esse esforço poderia ser para fugir das moscas pululantes e não em resposta à sua pressa.
Uma vez solidamente em movimento, entretanto, a mula pareceu capaz de mantê-lo sem
muito esforço, e eles trotaram pela estrada num ritmo razoável, facilmente passando os
carrinhos agrícolas, os forrageadores, e alguns grupos de batedores. Certamente ele
encontraria as garotas rapidamente.
Ele não o fez. Ele dirigiu por cerca de dezesseis quilômetros, na sua estimativa, antes de
concluir que não havia forma de as garotas terem superado sua velocidade, e então ele voltou,
procurando cuidadosamente ao longo das poucas estradas de fazenda que levavam aos campos.
De um lado para o outro ele se deslocou, perguntando a todos que ele via, ficando cada vez mais
quente e irritado.
No meio da tarde, o exército se encontrou com ele, as colunas marchantes ultrapassando
as mulas, que tinha diminuído para uma caminhada agora. Relutantemente, ele se virou e
continuou com o exército até o acampamento. Talvez Colenso estivesse errado; talvez as
garotas não tivessem partido. Em todo caso, ele as encontraria quando o acampamento
estivesse montado para a noite.
Ele não as encontrou. Ele encontrou Zeb, entretanto, e Colenso com ele. Ambos eram
inflexíveis na ideia de que as garotas tinham, de fato, partido — e William não encontrou
vestígio delas, embora tenha feito perguntas teimosas entre as lavadeiras e as cozinheiras.
Por fim, ele se arrastou pelo acampamento em busca de seu pai ou tio Hal. Não que ele
esperasse que qualquer um dos dois tivesse qualquer noção das garotas — mas de alguma
forma sentia que não poderia abandonar suas buscas sem pelo menos solicitar sua ajuda em
perguntar sobre as garotas. Duas garotas crescidas não poderiam possivelmente ultrapassar
um exército e...
Ele parou no meio do acampamento, fazendo com que os homens atrás de si tivessem que
se desviar.
— Inferno — ele disse, com muito calor e cansado até mesmo para fazer uma exclamação
— Colenso, seu maldito canhoto sodomita — E mal contendo sua exasperação, tanto consigo
mesmo quanto com seu cavalariço, ele partiu sombriamente para encontrar Colenso
Baragwanath.
Porque Colenso era um maldito canhoto sodomita. William tinha notado aquilo
imediatamente, pois sofria da mesma aflição. Diferente de Colenso, entretanto, William podia
dizer a diferença entre sua mão direita e sua mão esquerda, e tinha um senso de direção.
Colenso... não, e William queria chutar a si mesmo por não se lembrar disso.
— Seu maldito idiota — ele murmurou, passando a manga contra o rosto suado e sujo de
poeira — Por que você não pensou nisso?
Porque não fazia sentido — uma vez que ele parou para pensar nisso — que as garotas
tivessem fugido do exército. Mesmo que elas estivessem com medo de alguém do exército, e
mesmo que elas conseguissem chegar a Nova York, seria melhor que fossem para o outro lado,
pelo menos temporariamente. Deixar que o exército marchasse bem à frente, e depois traçarem
seu caminho para onde queriam ir.
Ele olhou para o sol, apenas um pouco acima da linha do horizonte, e respirou de forma
pesada e exasperada. O que quer que fosse, Jane não era tola. Primeiro ele teria que encontrar
o jantar, e depois Colenso — mas ele apostaria que tinha boas chances de encontrá-las no dia
seguinte, de volta para Middletown.
Ele as encontrou, pouco antes do meio-dia. Elas o viram chegando, mas ele já as tinha
avistado antes: as duas caminhando na borda da estrada, cada uma com um pacote na mão. Elas
olharam sobre o ombro para o som de rodas, não viram nada alarmante, e continuaram
andando — e então Jane girou novamente, seu rosto horrorizado quando percebeu quem
acabara de ver.
Ela deixou um dos pacotes cair, agarrou a irmã mais nova pelo pulso e a puxou pela
estrada. A estrada atravessava fazendas naquele ponto, com campos abertos dos dois lados —
mas havia um considerável bosque de castanheiras alguns metros adiante e, apesar dos gritos
de William, as garotas correram até ele como se o diabo as estivesse perseguindo.
Murmurando baixinho, ele parou, abandonou as rédeas e pulou para fora. Mesmo com as
pernas longas, ele falhou em capturá-las antes que elas chegassem à borda do bosque.
— Parem, pelo amor de Deus! — Ele gritou — Eu não vou machucá-las.
Fanny, ao ouvir isso, pareceu disposta a parar, mas Jane a puxou urgentemente e elas
desapareceram entre as folhas farfalhantes.
William bufou e diminuiu o ritmo. Jane podia fazer o que viesse à sua mente — se ela
tivesse uma, o que ele estava fortemente inclinado a duvidar no momento — mas não tinha
direito de arrastar sua irmã por um terreno que tinha sido campo de batalha há apenas dois
dias.
Gravetos quebrados e grandes trechos de vegetação esmagada marcavam os campos, pela
corrida dos soldados ou pela artilharia sendo puxada por ali. Ele podia sentir o cheiro de morte
quando respirava profundamente; isso o deixou desconfortável. O fedor de cadáveres não
enterrados inchando no sol, abertos, cheios de moscas e vermes... Por um lado, ele esperava que
as garotas não vissem aquilo. Por outro, se elas o fizessem, provavelmente voltariam correndo
para seus braços, gritando.
E cadáveres podiam não ser as únicas coisas escondidas nas dobras e sulcos dos campos.
Sua mão foi automaticamente até a cintura, pretendendo segurar o punho de sua faca — que,
obviamente, não estava ali.
— Maldita merda dos infernos!
Como se isso fosse um sinal, um súbito barulho veio das árvores. Não era um cadáver; ele
podia ouvir vozes masculinas, xingando, persuadindo, e gritos altos. Ele pegou um galho caído
e o jogou no bosque, gritando com o máximo de força que seus pulmões permitiam. Ele podia
ouvi-los; então eles certamente também podiam ouvi-lo, e o tom dos gritos mudou. As garotas
ainda estavam gritando, mas menos freneticamente, e os homens — sim, mais de um... dois, três?
Não mais — estavam discutindo, agitados, temerosos. Não eram ingleses... não falavam inglês...
— Mistkerle! — Ele gritou com toda a força. Malditos hessianos! — Feiglinge! — Covardes
comedores de merda!
Uma grande quantidade de folhas e galhos quebrados, e, olhando através das árvores, ele
viu que vários deles — a julgar pelo barulho, as garotas ainda estavam com eles — estavam
indo para a estrada.
Ele parou de gritar e instantaneamente alterou seu curso, voltando para a estrada,
trombando distraidamente com os ramos pendurados das castanheiras, que batiam em sua
cabeça e seus ombros. Ali! Ele viu um homem sair do meio das árvores, cambaleando pela
estrada, e estocando para trás, pegando alguma coisa. Um grito mais alto e Fanny saiu
cambaleando, o homem agarrando-a pelo pescoço.
William desviou a atenção para eles e desatou a correr, gritando xingamentos incoerentes,
brandindo seu taco improvisado. Ele deve ter parecido assustador em seu uniforme, porque o
homem segurando Fanny a soltou, virou e correu como um coelho, a poeira levantando de seus
pés. Fanny tropeçou e caiu de joelhos, mas não havia sangue, ela estava bem...
— Jane! — Ele gritou — Jane! Onde você está?
— Aqui! Ele... — Sua voz foi cortada repentinamente, mas ele conseguiu ver onde ela
estava, a não mais do que três metros dele, e mergulhou por entre os ramos acenando
freneticamente.
Havia dois homens com ela, um com uma mão sobre sua boca, e o outro lutando para soltar
a baioneta de um mosquete marrom. William chutou a arma das mãos dele, e depois se lançou
para cima do homem e, em segundos, estava no chão, lutando com um homem corpulento que
poderia não saber como usar uma baioneta, mas certamente estava familiarizado com a batalha
de uma forma mais primitiva.
Eles rolaram de um lado para o outro, ofegando e retalhando, os galhos se quebrando
como o som de tiros abaixo de seus corpos. Ele ouviu vagamente o grito do outro homem —
talvez Jane o tenha mordido; boa menina! — mas não podia prestar atenção em nada além do
homem que estava tentando fervorosamente estrangulá-lo. Ele pegou o pulso do homem e, com
uma sutil memória de Ban Tarleton, puxou-o para perto e bateu em seu rosto.
Funcionou mais uma vez; houve um horrível ruído, o sangue quente se espalhou por seu
rosto, e sua força diminuiu. William se contorceu para longe, sua cabeça boiando, apenas para
se encontrar encarando o outro homem, que evidentemente tinha sido bem sucedido em soltar
a baioneta, porque tinha vários centímetros de aço afiado na mão.
— Aqui! Aqui! — Jane saiu de um arbusto ao lado de William, assustando-o, e empurrou
algo em sua mão. Era, graças a Deus, uma faca. Nada que rivalizasse com uma baioneta, mas era
uma arma.
Jane estava rígida ao seu lado; ele pegou seu braço e começou a caminhar para trás, a faca
para baixo e ameaçadora em sua mão. O hessiano — Cristo, era um daqueles filhos da puta que
o tinham acertado na cabeça? Ele não podia dizer; havia pontos flutuando na frente de seus
olhos, e os homens tinham jogado fora seus casacos verdes. Todos os filhos da puta usavam
casacos verdes?, ele se perguntou confuso.
Então eles estavam na estrada, e as coisas ficaram confusas. Ele pensou ter bloqueado um
dos homens, e as garotas estavam gritando de novo, e ele se encontrou na estrada, engasgado
com a poeira, mas voltou para o bosque antes que um dos bastardos o chutasse no rosto... e
então houve um grito e as batidas de cascos, e ele soltou o homem cujo braço ele estava
segurando, e girou ao redor de si mesmo para ver Rachel Hunter em uma mula, vindo
rapidamente pela estrada, balançando seu chapéu pelas alças e gritando — Tio Hiram! Primo
Seth! Rápido! Venham! Venham! Ajudem-me!
Sua mula levantou a cabeça da grama e, vendo a montaria de Rachel, zurrou em saudação.
Esse pareceu ser a gota d’água para os desertores, que ficaram boquiabertos por um momento,
e depois se viraram e partiram pela estrada atrás de seu colega desaparecido.
William ficou se balançando por um momento, tentando recuperar o fôlego, e depois
largou a faca e se sentou abruptamente.
— O que — ele disse, em uma voz que soava petulante até mesmo para os próprios
ouvidos — você está fazendo aqui?
Rachel o ignorou. Ela desceu de sua mula, aterrissando com um pequeno baque, e foi até
a mula de William, atando-a ao carrinho. Apenas depois disso ela caminhou até onde William
estava sentado, lentamente limpando a terra de seus joelhos e checando seus membros.
— Você não viu duas garotas, viu? — ele perguntou, inclinando a cabeça para olhar para
Rachel.
— Sim. Elas correram para as árvores — ela disse, assentindo em direção ao bosque de
carvalhos — Quando ao que eu estou fazendo aqui, eu já percorri esta estrada três vezes,
procurando pelo seu primo, Ian Murray — Ela deu a ele um olhar duro enquanto dizia isso,
como se o desafiasse a contradizer sua afirmação a respeito de seu parentesco com Murray. Sob
outras circunstâncias, ele poderia ter se sentido ofendido, mas naquele momento ele não tinha
energia — Eu estou assumindo que se você o tivesse visto, vivo ou morto, teria me dito, certo?
— Sim — ele disse. Havia um nó inchado entre seus olhos, onde ele tinha batido no
desertor, e ele o esfregou suavemente.
Ela respirou fundo, suspirou alto, e limpou o rosto suado em seu avental antes de voltar a
colocar o chapéu. Ela olhou para ele, balançando a cabeça.
— Você é um galo, William — Rachel disse tristemente. — Eu percebi isso em você antes,
mas agora eu tenho certeza.
— Um galo — ele repetiu friamente, limpando a terra de sua manga. — De fato. Um
homem presunçoso, cacarejador e espalhafatoso... É isso que você pensa de mim?
Suas sobrancelhas se elevaram. Elas não eram aquelas sobrancelhas uniformes do nível
clássico de beleza; elas se curvavam nas extremidades, até mesmo quando seu rosto estava em
repouso, o que lhe dava uma aparência de inteligência interessada. Quando o rosto não estava
relaxado, elas se inclinavam numa espécie de olhar perverso e afiado. Elas faziam isso nesse
momento, mas depois relaxaram. Um pouco.
— Não — ela disse. — Você nunca cuidou de galinhas, William?
— Não faço isso há muitos anos — ele disse, examinando o buraco aberto no cotovelo de
seu casaco, o buraco de sua camisa abaixo dele e o arranhão sangrento em seu cotovelo nu.
Inferno, um dos malditos tinha chegado perto de arrancar seu braço com aquela baioneta. —
Entre uma coisa e outra, meu conhecimento recente de galinhas está limitado em grande parte
ao desjejum. Por quê?
— Bem, um galo é uma criatura de coragem incrível — Rachel disse, de forma repreensiva
— Ele pode se jogar para cima de um inimigo, mesmo sabendo que ele vai morrer durante o
ataque, para permitir que suas fêmeas escapem.
A cabeça de William balançou para cima.
— Minhas fêmeas? — ele disse, o ultraje trazendo o sangue para seu rosto. — Minhas
fêmeas? — Ele olhou na direção que Jane e Fanny tinham tomado, e depois olhou de volta para
Rachel. — Você não percebeu que elas são prostitutas?
Ela revirou os olhos para ele em exasperação. Ela revirou os malditos olhos para ele!
— Eu imagino ter vivido com o exército por tempo maior que você mesmo — ela disse,
fazendo um grande esforço para falar acima de seu nariz com ele — Eu estou familiarizada com
as mulheres que não têm propriedade e nem proteção e são reduzidas à horrível experiência
de vender seus corpos, sim.
— Horrível experiência? — ele repetiu. — Você percebe que...
Ela bateu o pé e o encarou.
— Você pode parar de repetir tudo o que eu digo? — ela exigiu. — Eu estava tentando te
fazer um elogio, como sua amiga, lamentando o final de vida que sua galização certamente o
trará. Se as suas acompanhantes são prostitutas ou não, e se você paga pela companhia delas, é
irrelevante ao assunto.
— Irre... — William começou a se indignar, mas sufocou a palavra antes que pudesse ser
acusado de repetir — Eu não as estou pagando!
— Irrelevante — ela repetiu, fazendo isso ela mesma, por Deus! — Você se comportou da
mesma maneira para comigo, afinal de contas.
— Você... — Ele parou abruptamente. — Eu o fiz?
Ela exalou fortemente, olhando-o de uma maneira que sugeria que ela o teria chutado nas
canelas ou pisado em seus pés se não se lembrasse dos seus princípios Quakers.
— Duas vezes — ela disse, elaboradamente educada. — As ocasiões eram tão
insignificantes, suponho, ou eu era, para que você tenha esquecido?
— Faça-me lembrar — ele disse secamente e, arrancando uma tira de seu casaco, ele a
usou para limpar a terra, e o sangue, de seu rosto.
Ela exalou novamente, mas obedeceu — Você não se lembra da criatura odiosa que nos
atacou naquele lugar horrível na estrada de Nova York?
— Oh, isso — Sua barriga se apertou com a lembrança. — Eu não fiz isso exatamente por
você. E eu nem tive muita escolha no assunto. Ele tentou enfiar um machado em minha cabeça.
— Humpf. Eu acho que você tem uma atração fatal por maníacos do machado — ela disse,
franzindo o cenho para ele. — Aquele Sr. Bug realmente bateu em sua cabeça com um machado.
Mas quando você o matou mais tarde, foi para proteger a Ian e a mim de um destino semelhante,
não foi?
— Oh, de fato — ele disse, um pouco irritado — Como você pode saber que não foi apenas
vingança por ele ter me atacado?
— Você pode ser um galo, mas não é um galo vingativo — ela disse reprovadoramente.
Ela tirou um lenço de seu bolso e limpou o próprio rosto, que estava brilhando por causa do
suor mais uma vez — Não deveríamos procurar pelas suas... acompanhantes?
— Deveríamos — ele disse, com resignação, e se virou em direção ao bosque — Eu acho
que elas vão fugir caso eu vá atrás delas, entretanto.
Rachel fez um ruído impaciente e, passando por ele, entrou no bosque, farfalhando pelos
galhos e folhas como um urso faminto. O pensamento o fez rir, mas um grito repentino limpou
o sorriso de seu rosto. Ele correu atrás dela, mas ela já estava se retirando, arrancando Jane por
um dos braços enquanto tentava evitar os golpes de Jane com a mão livre, os dedos como garras
prestes a cortar o rosto de Rachel.
— Pare com isso! — William disse bruscamente e, dando um passo para frente, pegou Jane
pelo ombro e a arrancou do aperto de Rachel. Ela virou cegamente para ele, mas ele tinha braços
mais longos do que Rachel e facilmente a segurou. — Você vai parar com isso? — Ele disse,
irritado. — Ninguém vai te machucar. Não agora.
Ela parou, embora olhasse de um lado para outro entre ele e Rachel, como um animal
acoado, ofegando e com os brancos dos olhos visíveis.
— Ele está certo — Rachel disse, gradualmente a soltando, prestes a capturá-la de novo
se percebesse que ela iria fugir. — Eu não sei o seu nome.
Ela não fugiu, mas não falou também. Seu vestido estava rasgado no pescoço, e ela colocou
uma mão na borda do rasgo automaticamente, tentando colocar o tecido de volta no lugar.
— Você viu minha sacola? — Ela disse, com um tom de voz quase normal — Eu tenho uma
almofadinha dentro dela. Preciso de uma agulha.
— Eu vou procurar — Rachel disse suavemente. — Você a deixou cair no bosque?
— Alhi! — Fanny falou de forma acentuada atrás de William, e ele tomou consciência de
que ela estivera ali há algum tempo; ela já tinha dito aquilo uma ou duas vezes antes.
— O quê? — ele disse impacientemente, meio virando em direção a ela enquanto tentava
manter Jane e Rachel à vista.
— Tsem um ínzio ali dentlo — ela disse, apontando em direção ao bosque.
— Ian!
Rachel correu pela estrada, rápida como uma bala, e desapareceu entre as árvores.
William a seguiu apressadamente, com a mão em sua faca. Havia provavelmente mais do que
um índio naquele bosque, e se não fosse Murray...
Mas ele pôde dizer pela exclamação horrorizada e aliviada de Rachel das profundezas da
floresta, que era ele.
Murray estava amassado em uma pilha na sombra profunda da base de um grande
pinheiro, as agulhas o cobrindo parcialmente; evidentemente ele tentara se esconder mas tinha
desmaiado enquanto tentava realizar a tarefa.
— Ele está respirando — Rachel disse, e ele ouviu a surpresa em sua voz.
— Bom — William disse brevemente e, agachando-se ao lado dela, colocou uma mão no
ombro de Murray para virá-lo. O corpo aparentemente insensível tremeu, contorceu-se
violentamente, e acabou em seus joelhos, balançando e olhando freneticamente em volta,
segurando o ombro que William tinha apertado. Só então William viu o sangue seco escorrido
no braço e as gotas frescas que saíam a partir de uma flecha quebrada enfiada na carne inchada.
— Ian — Rachel disse — Ian, sou eu. Está tudo bem agora. Eu estou com você — Sua voz
era estável, mas sua mão tremia enquanto ela o tocava.
Murray engoliu ar, e seu olhar turvo pareceu clarear, viajando de Fanny e Jane, que tinham
entrado no bosque atrás de William, parando brevemente com o cenho franzido no rosto de
William, e depois se estabilizando e relaxando ao ver Rachel. Ele fechou os olhos e soltou um
longo suspiro.
— Taing do Dhia — ele disse, e afundou de novo.
— Água — Rachel disse urgentemente, balançando o cantil vazio que estava jogado no
chão ao lado de Ian — Você tem um pouco de água, William?
— Eu tenho — disse Jane, saindo de seu transe e tateando para pegar o cantil ao redor de
seu pescoço — Ele ficará bem, você acha?
Rachel não respondeu, mas ajudou Murray a beber, seu rosto pálido de ansiedade. O
próprio rosto de Murray portava os remanescentes de uma pintura de guerra, William viu com
interesse, e uma breve ondulação levantou os cabelos de seu couro cabeludo, imaginando se
Murray tinha matado algum soldado britânico. Pelo menos o maldito não estava segurando
nenhum escalpo em seu cinto, nem britânico e nem de ninguém.
Rachel agora conversava em tons baixos com Murray, olhando ocasionalmente para
William, uma certa especulação em seu olhar.
William ficou levemente surpreso ao descobrir que ele sabia exatamente o que ela estava
pensando. Embora talvez não fosse tão surpreendente; ele estivera se perguntando a mesma
coisa: Murray conseguiria cavalgar uma mula? Claramente ele não conseguiria andar muito. E
se ele não pudesse... Será que Rachel poderia persuadir William a levar ela e Murray até a cidade
em sua carroça?
Ele sentiu seu estômago se apertar com o pensamento de voltar à Filadélfia.
Seu próprio olhar foi em direção a Jane — apenas para descobrir que ela não estava lá. E
nem Fanny.
Ele estava quase levantando quando ouviu a mula de Rachel zurrar em protesto, e chegou
à estrada em segundos para encontrar Jane engajada numa luta fútil para empurrar Fanny para
a sela. A garota mais nova estava tentando bravamente, agarrando-se à crina da mula e tentando
passar uma perna sobre ela, mas a mula contestava veementemente esse comportamento,
balançando a cabeça e se afastando de Jane, deixando as pernas de Fanny chutando
desesperadamente o ar.
William a alcançou em três passos e a pegou pela cintura.
— Solte, querida — ele disse calmamente. — Eu a peguei.
Fanny era surpreendentemente pesada, dada à sua frágil aparência. Ela tinha um cheiro
doce, também, embora seu pescoço estivesse sujo e suas roupas exibissem a sujeira e a poeira
da estrada.
Ele a colocou no chão e se virou para encarar Jane, que parecia desafiadora. Ele estava
familiarizado com ela há tempo suficiente agora, entretanto, para perceber que o queixo
levantado e a mandíbula apertada escondiam o medo e, como consequência, falou mais
gentilmente do que falaria.
— Para onde você estava planejando ir? — Ele perguntou, em um tom de leve interesse.
— Eu... bem, para Nova York — ela respondeu, mas incerta, e seus olhos se mexiam para
todos os lados, como se esperasse que alguma ameaça se manifestasse na paisagem tranquila.
— Sem mim? Eu estou magoado, senhora, de você ter concebido uma súbita aversão à
minha companhia. O que eu fiz para ofendê-la?
Ela pressionou os lábios juntos, mas ele pôde ver que seu tom de brincadeira a acalmou
um pouco; ela ainda estava com o rosto vermelho pelo esforço, mas não respirava mais de forma
irregular.
— Eu acho que devemos nos separar, Lord Ellesmere — ela disse, com uma tentativa
absurda de formalidade. — Eu... nós... devemos seguir o nosso próprio caminho agora.
Ele cruzou os braços, inclinou-se para trás contra a carroça, e olhou por cima do nariz para
ela.
— Como? — ele perguntou. — Vocês não têm nenhum dinheiro, vocês não têm uma
montaria, e vocês não conseguiram andar nem dez quilômetros sem encontrar alguém do tipo
daqueles homens alemães.
— Eu... tenho um pouco de dinheiro. — Ela passou a mão sobre a saia, para alisá-la, e ele
notou que de fato havia uma protuberância em seu bolso. Apesar de ele ter a intenção de
permanecer calmo, ainda havia um pouco de raiva nele, e acabou explodindo com aquilo.
— Onde você o conseguiu? — Ele exigiu, endireitando-se e a pegando pelo pulso. — Eu
não te proibí de se prostituir?
Ela deslizou para fora de suas mãos e deu dois passos para trás.
— Você não tem nenhum direito de me proibir de fazer qualquer maldita coisa! — Ela
estalou, a cor queimando em suas bochechas. — E não é da sua conta, mas eu não recebi esse
dinheiro desta forma.
— Como, então? Você leiloou a sua irmã?
Ela o estapeou, com força. Ele não deveria ter dito aquilo e ele sabia, mas esse
conhecimento — e a sua bochecha latejante — apenas serviu para deixá-lo mais bravo.
— Eu deveria deixá-las aqui, sua...
— Ótimo! É exatamente o que eu quero que você faça! Seu... seu...
Antes que qualquer um deles conseguisse pensar num epíteto, Rachel e Ian emergiram da
floresta, o alto escocês se inclinando pesadamente sobre ela. William deu um olhar final a Jane
e foi ajudar, pegando o peso de Murray em um dos lados. O homem enrijeceu, resistindo por um
momento, mas depois cedeu; ele precisaria de ajuda.
— O que aconteceu? — William perguntou, acenando em direção à flecha quebrada —
Uma discussão particular ou apenas pontaria ruim?
Aquilo fez a boca de Murray se torcer, relutantemente.
— Sorte de guerra — ele disse roucamente, e se sentou na parte de trás da carroça. Ele
respirava como um boi sem fôlego, mas tinha posse de si mesmo. Ele deu a William um breve
olhar. — O que você está fazendo aqui, a fang Sassunaich?
— Não é da sua conta, mas belo trabalho eu tive — William replicou, tão brevemente
quanto. Ele se virou para Rachel, tendo se decidido. — Pegue a carroça e leve as meninas para
um lugar seguro.
— Tudo... — Rachel começou, mas depois olhou em volta, assustada, quando Jane e Fanny
passaram correndo por ela, cruzaram a estrada e se enfiaram na floresta — Para onde elas estão
indo?
— Oh, inferno! — William disse, já acelerando pela estrada. — Espere aqui.
Elas não podiam fugir dele, e não havia nada no caminho da floresta para permitir que elas se
escondessem. Ele pegou Fanny — mais uma vez a mais lenta das duas — pela parte de trás de
seu avental quando ela estava rastejando sobre uma tora. Para seu espanto, ela se contorceu
em seu aperto e se lançou sobre ele, arranhando seu rosto e gritando:
— Cola, Janie, cola!
— Você pode parar com isso? — Ele disse irritado, segurando-a à distância de seu braço
— Ai! — Ela tinha enfiado os dentes em seu pulso, e ele a soltou.
Ela deslizou como uma enguia sobre a tora e saltou para longe como um coelho, ainda
gritando. Ele começou a segui-la e depois pensou melhor. Por um lado, ele tinha um forte
impulso de abandoná-las, mas por outro... Ele se lembrava de Mac contando sobre maçaricos
um dia enquanto estavam sentados perto de Watendlath Tarn, comendo pão e queijo, e
observando os pássaros.
— Cai fora, Mac — ele disse baixinho, e empurrou os pensamentos de Helwater e do
cavalariço impiedosamente para longe. Mas ele se lembrava, querendo ou não.
Eles correm e gritam como se estivessem feridos, vê? O braço de Mac estivera ao redor dele,
evitando que ele se aproximasse demais dos pássaros vibrantes. Mas é para afastá-lo de seu
ninho, para que você não esmague seus ovos e nem prejudique seus filhotes. Olhe com cuidado,
entretanto, e você os verá.
William ficou parado, acalmando sua própria respiração e olhando ao redor, lenta e
cuidadosamente, mal mexendo sua cabeça. E ali estava, de fato, o ninho do maçarico:
infelizmente para Jane, ela estava usando chita rosa naquele dia, e suas nádegas rosadas se
arredondavam suavemente para fora da grama a uns três metros de distância, como um par de
ovos num ninho.
Ele caminhou em silêncio, sem pressa. Nobremente resistindo ao desejo de dar uma
palmada em suas nádegas curvilíneas, ele espalmou as mãos em suas costas.
— Peguei — ele disse — Está com você!
Ela se contorceu debaixo de sua mão e pulou para ficar de pé.
— O quê? — Ela disse — O que diabos você quis dizer? — Ela estava com os olhos
arregalados e nervosa, mas também irritada.
— Você nunca brincou de pega-pega? — Ele perguntou, sentindo-se tolo enquanto dizia.
— Oh — ela disse, e soltou um pouco o fôlego — É um jogo. Entendo. Sim, mas faz muito
tempo.
Ele supôs que ninguém brincava de pega-pega em um bordel.
— Olha — ela disse tensa — nós queremos ir. Eu... eu agredeço o que você fez por mim...
por nós. Mas...
— Sente-se — ele disse, e a compeliu a fazê-lo, levando-a até o toco sobre o qual sua irmã
tinha escapado e pressionando seu ombro até que ela, relutantemente, se sentasse. Ele, então,
sentou-se ao lado dela e pegou suas mãos entre as suas. Elas eram muito pequenas, e estavam
frias e úmidas por causa da grama onde ela havia se escondido — Olha — ele disse, firmemente,
mas sem (ele esperava) ser rude —, eu não vou deixar você fugir. Isso está claro. Se você quiser
ir para Nova York com o exército, eu vou te levar; eu já disse isso. Se você quiser voltar para a
Filadélfia...
— Não! — O terror dela ante aquele pensamento estava claro agora. Ela se empurrou
desesperadamente para longe de sua mão, mas ele não a soltou.
— É por causa do Capitão Harkness? Porque...
Ela soltou um grito que poderia vir da garganta de um pássaro selvagem capturado numa
armadilha e ele intensificou o aperto em seu pulso. Tinha ossos delicados e finos, mas ela era
surpreendentemente forte.
— Eu sei que você roubou o gorjal — ele disse. — Está tudo bem. Ninguém vai descobrir.
E Harkness não vai tocá-la de novo; eu prometo isso a você.
Ela fez um pequeno ruído borbulhante que poderia ser uma risada ou um suspiro.
— Coronel Tarleton... você sabe, o dragão verde que tentou avançar para cima de você?
Ele me disse que Harkness está ausente sem licença, e não voltou ao regimento. Você sabe
alguma coisa sobre isso?
— Não — ela disse. — Deixe-me ir. Por favor!
Antes que ele pudesse responder, uma voz clara e pequena saltou das árvores a poucos
metros de distância.
— Voscê prescissa contar a ele, Janie.
— Fanny! — Jane virou-se em direção à sua irmã, momentaneamente se esquecendo que
estava presa. — Não!
Fanny saiu das sombras, cautelosa mas curiosamente composta.
— Se voscê não disser, eu vou — Ela disse, seus olhos castanhos grandes fixados no rosto
de William — Ele não vai te plender — Ela se aproximou, com cuidado, mas não com medo. —
Se eu contar, plomete não nos levar de volta?
— De volta para onde?
— Pla Filadélfia — ela disse — Ou para o ezécito.
Ele suspirou, exasperado, mas com a exceção de torturá-las para receber uma resposta,
claramente nenhum progresso seria feito até que ele concordasse. E ele estava começando a ter
uma sensação gelada sob as costelas em relação a qual seria a resposta.
— Eu prometo — ele disse, mas Fanny recuou, desconfiada.
— Jule — ela disse, cruzando os braços.
— Ju... Oh. Inferno. Tudo bem, então. Eu juro pela minha honra.
Jane fez um ruído pequeno e sombrio que ainda parecia uma risada. Aquilo doeu.
— Você acha que eu não tenho honra? — Ele exigiu, virando-se para ela.
— Como eu poderia saber? — Ela contrapôs, levantando o queixo. Ele tremia, mas ela o
controlou — Como a honra parece?
— Para o seu bem, é melhor esperar que ela se pareça muito comigo — ele disse a ela, mas
depois se virou para Fanny — Sobre o que você quer que eu jure?
— Soble a cabesça da sua mãe — ela disse prontamente.
— Minha mãe está morta.
— Do seu pai, então.
Ele inspirou longa e profundamente. Qual deles?
— Eu juro sobre a cabeça de meu pai — ele disse uniformemente.
E então elas contaram a ele.
— Eu sabia que ele ia voltar — Jane disse. Ela estava sentada no tronco, as mãos cruzadas entre
as coxas e olhando para os pés — Eles sempre voltam. Os maus. — Ela falou com um tipo de
resignação sem graça, mas seus lábios se apertaram com a memória. — Eles não podem
suportar o pensamento de que você partiu sem... sem... Eu pensei que seria comigo, entretanto.
Fanny estava sentada ao lado de sua irmã, o mais perto que ela podia ficar, e agora colocou
os braços ao redor de Jane e a abraçou, seu rosto no ombro vestido de chita.
— Eu sinto muito — ela sussurrou.
— Eu sei, querida — Jane disse, e bateu na perna de Fanny. Um olhar feroz veio para seu
rosto, entretanto. — Não é sua culpa e nunca... nunca... pense que é.
A garganta de William parecia grossa pelo desgosto que o pensamento trazia. Aquela linda
garotinha com rosto de flor, tomada por...
— Sua virgindade valia dez libras — Jane o lembrou. — A Sra. Abbott estava guardando-
a, esperando por um homem rico que gostasse de garotas novas e virgens. O Capitão Harkness
ofereceu vinte libras a ela. — Ela olhou diretamente para William pela primeira vez. — Eu não
poderia deixar isso acontecer — ela disse simplesmente. —, então pedi para que a Sra. Abbott
me deixasse ir junto; disse que poderia evitar que Fanny fizesse uma confusão. Eu sabia como
ele era, entende? — Ela disse, e pressionou os lábios juntos involuntariamente por um instante.
— Ele não era do tipo que vai para cima de você como um touro e acaba com tudo. Ele é do tipo
que brinca, fazendo você se despir um pouco de cada vez e... e fazer coisas... enquanto te conta
tudo sobre o que pretende fazer com você.
E então foi fácil ir para trás dele enquanto ele observava Fanny, com a faca que ela tinha
pego da cozinha e escondido nas dobras de sua saia.
— Eu pretendia esfaqueá-lo pelas costas — ela disse, olhando para baixo de novo. — Eu
vi um homem esfaqueado daquele jeito uma vez. Mas ele viu no rosto de Fanny o que eu... não
foi sua culpa, ela não conseguiu evitar — ela adicionou rapidamente. — Mas ele se virou
rapidamente para trás e eu não tive muita escolha.
Ela enfiou a faca na garganta de Harkness e a arrancou, com a intenção de esfaqueá-la de
novo. Mas aquilo não tinha sido necessário — Havia sangue em todo lugar. — Ela ficara pálida
em dizer, suas mãos envoltas no avental.
— Eu fui pla cima — Fanny adicionou com praticidade — Foi uma bagunça.
— Eu imagino que sim — William disse secamente. Ele estava tentando não visualizar a
cena (o candelabro, o sangue espirrando, as garotas assustadas) com pouquíssimo sucesso —
Como vocês fugiram?
Jane deu de ombros. — Era o meu quarto, e ele tinha trancado a porta. E ninguém ficou
surpreso quando Fanny começou a gritar — ela adicionou, com um traço de amargura.
Havia uma bacia e um jarro de água, os trapos usuais para limpeza; elas se lavaram
rapidamente, trocaram de roupa e escalaram a janela.
— Encontramos carona na carroça de um fazendeiro e... você sabe o resto — Ela fechou
os olhos por um momento, como se revivesse “o resto”, e depois os abriu e olhou para ele, seu
olhar escuro como sombras na água — E agora? — Ela perguntou.
William estivera fazendo a si mesmo a mesma pergunta pelos últimos vários segundos da
história de Jane. Tendo conhecido Harkness, ele tinha considerável simpatia pela ação de Jane,
mas...
— Você planejou isso — ele disse, dando a ela um olhar afiado. A cabeça dela estava baixa,
seus cabelos soltos escondendo o rosto — Você pegou a faca, tinha as roupas para se trocar,
sabia como descer pela janela e fugir.
— Então? — Disse Fanny, em uma voz extremamente fria para uma garota de sua idade.
— Por que matá-lo? — Ele perguntou, transferindo sua atenção para Fanny, mas
mantendo um olhar atento sobre Jane. — Vocês iriam fugir de qualquer forma. Por que não
escaparam e fugiram, simplesmente?
Jane levantou a cabeça e a virou, olhando diretamente em seus olhos.
— Eu queria matá-lo — ela disse, em uma voz perfeitamente razoável que o congelou
apesar do calor do dia.
— Eu... entendo.
Ele viu mais do que Jane, com seus delicados pulsos, enfiando uma faca no grosso pescoço
do Capitão Harkness com sua irmã menor gritando. Ele viu o rosto de Rachel, pálido entre as
folhas, a uns dois metros de distância. Pela sua expressão, ela parecia ter ouvido tudo.
Ele limpou sua garganta.
— Hã... O Sr. Murray está bem? — Ele perguntou educadamente.
Jane e Fanny viraram, com os olhos arregalados.
— Ele desmaiou — Rachel replicou. Ela estava olhando para as jovens moças
praticamente da mesma forma que elas olhavam para ela, com um olhar de fascinado horror —
Seu ombro está muito inflamado. Eu vim ver se vocês têm um pouco de conhaque.
Ele tateou em seu bolso e tirou um pequeno frasco prateado com as armas da família Grey
gravadas na frente.
— Pode ser uísque? — Ele perguntou, entregando para ela. Rachel pareceu surpresa;
uísque não era uma bebida popular, mas Lord John sempre gostara e William adquirira o
mesmo gosto, embora agora, sabendo da verdade sobre sua mancha vergonhosa de sangue
escocês, ele não tivesse certeza de que seria capaz de beber aquela coisa de novo.
— Servirá, eu agradeço. — Ela segurou o frasco por um momento, claramente querendo
ir até Murray, mas hesitante em partir.
Ele se sentiu grato por sua hesitação; ele não queria ficar a sós com Jane e Fanny, ou,
melhor, ele não queria ficar sozinho com a decisão do que diabos deveria fazer. Rachel pareceu
interpretar corretamente o sentimento dele e, com um breve — já trarei de volta — ela
desapareceu em direção à estrada.
Ninguém falou. Depois daquele olhar direto, Jane tinha inclinando e cabeça de novo e se
sentava quieta, embora uma mão alisasse inquieta o tecido de sua saia sobre uma das coxas
roliças, repetidamente.
Fanny passou a mão sobre o topo da cabeça de Jane em um gesto protetor, enquanto
olhava para William sem expressão. Ele achou aquilo enervante.
O que ele devia fazer com elas? Obviamente elas não poderiam voltar para a Filadélfia. E ele
dispensou como indigno o impulso de simplesmente abandoná-las à própria sorte. Mas...
— Por que vocês não querem ir para Nova York com o exército? — Ele perguntou, sua voz
parecendo incomumente alta, dura em seus próprios ouvidos — O que as fez fugir ontem?
— Oh — Jane olhou para cima lentamente, seus olhos um pouco desfocados, como se ela
estivesse sonhando. — Eu o vi de novo. O dragão verde. Ele queria que eu fizesse com ele na
noite anterior, e eu não fiz. Mas eu o vi novamente ontem de manhã e pensei que ele estivesse
procurando por mim — Ela engoliu. — Eu disse a você... Conheço aqueles que não desistem.
— Muito perceptivo de sua parte — ele disse, olhando para ela com algum respeito. — Ele
não desiste. Você não gosta dele, então? — Porque ele não pensou por um instante que o fato
de ele proibi-la de se prostituir a teria parado, caso fosse seu desejo.
— Não é isso — ela disse, e dispensou Banastre Tarleton com um tipo de gesto abrupto
que alguém usaria para um inseto. — Mas ela foi ao bordel antes, no último ano. Ele não foi
comigo, porque escolheu outra garota, mas eu sabia que se ele passasse muito tempo comigo,
ele provavelmente se lembraria por que eu parecia familiar a ele. Ele disse que eu era — ela
adicionou — quando veio para mim na fila do pão.
— Entendo. — Ele parou. — Então você quer ir para Nova York, mas sem o exército. Está
certo?
Jane deu de ombros, com raiva — Isso importa?
— Por que diabos não importaria?
— Quando importou o que uma prostituta quer? — Ela se levantou e saiu batendo os pés
pela clareira, deixando-o a olhar para ela espantado.
— O que há de errado com ela? — Ele exigiu, virando-se para Fanny. A garota mais nova
olhou para ele em dúvida, os lábios pressionados, mas depois deu de ombros.
— Ela ascha que você pode entlegá-la a um policial ou magistlado — Ela disse, lutando um
pouco para dizer “magistrado” — Ou talvez pala o ezécito. Ela matou um soldado.
William esfregou uma mão sobre o rosto. De fato, o pensamento em entregar Jane à justiça
passou por sua mente, com o choque de saber sobre o seu crime. Entretanto, o pensamento não
havia permanecido.
— Eu não faria isso — ele disse a Fanny, lutando para soar razoável. Ela o olhou
ceticamente, sob as sobrancelhas escuras e uniformes.
— Po que não falia?
— É uma ótima pergunta — ele disse secamente. — E eu não tenho uma resposta. Mas eu
suponho que você não precise de uma.
Ele levantou uma sobrancelha para ela, e ela bufou um pouco para rir. Jane estava
chegando à borda da clareira, olhando para trás em direção a Fanny a cada poucos segundos;
sua intenção era clara, mas ela não partiria sem a sua irmã. Ele tinha certeza disso.
— Já que você está aqui comigo — ele observou — e não lá com sua irmã... você não quer
fugir, e sabe que ela não irá sem você. Portanto, eu concluo que você não acha que eu a
entregaria à justiça.
Ela balançou a cabeça, lenta e solenemente como uma coruja.
— Jane diz que eu não sei nada sobre os homens, mas eu sei.
Ele suspirou.
— Deus me ajude, Frances, mas você sabe.
Não houve mais conversas até Rachel retornar poucos minutos depois.
— Eu não consigo levantá-lo — ela disse diretamente a William, ignorando as garotas por
um momento. — Você pode me ajudar?
Ele se levantou repentinamente, aliviado pela perspectiva de ação física, mas olhou sobre
o ombro para Jane, ainda pairando no lado mais distante da clareira como um beija-flor.
— Ficalemos aqui — Fanny disse baixinho. Ele assentiu para ela e se foi.
Ele encontrou Murray deitado na lateral da estrada, perto do vagão. O homem não estava
inconsciente, mas a influência da febre nele era clara; seu olhar estava turvo e sua fala estava
enrolada.
— Eu posso andar...
— O inferno que você pode — William disse brevemente — Segure em meu braço.
Ele fez o homem se sentar e olhou para o ombro ferido. O ferimento em si não estava ruim;
não parecia que tinha quebrado algum osso e não estava sangrando muito. Por outro lado, a
carne estava vermelha e inchada e começava a suporar. Ele se inclinou para mais perto e
cheirou discretamente — não o suficiente: Rachel notou.
— Não há gangrena — Ela disse — Eu acho que não haverá necessidade... eu acho que as
coisas ficarão bem, contanto que nós possamos levá-lo para um médico logo. O que você
pretende fazer com suas garotas? — Ela adicionou abruptamente.
Ele não se importou em dizer a ela novamente que não eram dele. Evidentemente elas
eram, pelo menos em termos de responsabilidade imediata.
— Eu não sei — ele admitiu, levantando-se. Ele olhou para a floresta, mas a clareira era
longe o suficiente para que não houvesse nenhum vislumbre delas e nem um movimento visível.
— Elas não podem ir para a Filadélfia, e eu não posso levá-las de volta ao exército. A melhor
coisa que posso pensar por enquanto é encontrar para elas algum refúgio em um dos pequenos
vilarejos da região e escondê-las até que eu possa encontrar um lugar mais... seguro — Onde
diabos isso pudesse ser. Canadá?, ele se perguntou descontroladamente.
Rachel balançou a cabeça decididamente.
— Você não tem noção de como as pessoas falam em lugares pequenos, ou com que
rapidez as notícias e os rumores se espalham — Ela olhou para Murray, que ainda estava
sentado, mas se balançava, os olhos meio fechados. — Elas não têm outra profissão — ela disse
— E seria rapidamente aparente a qualquer um qual é a profissão delas. Elas precisam não
apenas de refúgio, mas refúgio com pessoas que não vão jogá-las na rua uma vez que isso se
torne conhecido.
Ela estava bronzeada por causa do sol — sua touca de chita azul tinha caído por causa do
esforço com Jane e estava pendurada sobre os ombros — mas seu rosto empalideceu quando
ela olhou para Murray. Ela cerrou os punhos, fechou os olhos por um momento, depois os abriu,
endireitando-se até adquirir sua altura total, e olhou para William.
— Há um pequeno assentamento de Amigos, talvez há duas horas de viagem daqui. Não
mais do que três ou quatro fazendas. Eu sei dele por causa de uma mulher que foi para Valley
Forge com seu marido. As garotas poderiam ficar a salvo lá, pelo menos por um tempo.
— Não! — Murray disse — Você não pode... — Ele parou, os olhos focando, e abraçou a si
mesmo com o braço bom, ainda balançando-se. Ele engoliu seco — Não — ele repetiu — Não
é... seguro.
— Não é — William concordou — Três jovens mulheres na estrada e sozinhas? E sem uma
pistola para se defender?
— Se eu tivesse uma pistola, não a usaria — Rachel apontou com certa aspereza. — Nem
um canhão.
Murray riu — ou, pelo menos, fez um ruído que poderia passar por diversão.
— Sim — ele conseguiu dizer, e parou para respirar antes de falar as próximas palavras.
— Você pode levá-las — ele disse para William — Eu... ficarei aqui, ficarei bem.
— Uma ova que ficará — Rachel disse ferozmente. Ela pegou o braço de William e o puxou
para perto de Murray. — Olhe para ele! Diga a ele, já que ele parece não acreditar em mim.
William olhou, relutantemente, encarando o rosto de Murray, pálido como sebo e liso com
um suor doentio. As moscas se agrupavam no ombro de Murray; ele não tinha força para
espantá-las.
— Merde — William murmurou baixinho. E então, mais alto, embora com relutância —
Ela está certa. Você precisa de um médico, se quer uma chance de manter seu braço.
Aquele pensamento evidentemente não tinha atingido Murray; a morte, sim —
amputação, não. Ele virou a cabeça e franziu o cenho para o ferimento.
— Inferno — William disse, e virou para Rachel. — Tudo bem — ele disse — Diga-me
onde é este assentamento. Eu vou levá-las.
Ela fez uma careta, os punhos enrolados nas laterais de seu corpo. — Até mesmo os
Amigos podem não lidar bem com a aparição súbita de um estranho que pede a eles santuário
por tempo indeterminado para uma assassina. Eu não sou uma estranha e posso explicar a
situação das meninas melhor do que você.
Ela inspirou tão profundamente que seu peito se inchou de forma visível, e olhou para
Murray, voltando sua cabeça para dar um olhar afiado a William.
— Se eu vou fazer isso, você deve mantê-lo a salvo.
— Eu devo?
— Rachel! — Murray disse com a voz rouca, mas ela o ignorou.
— Sim. Nós teremos que levar a carroça, as garotas e eu.
William respirou fundo, mas podia ver que ela tinha razão. Ele também podia ver o que a
decisão de salvar Jane custava a ela.
— Tudo bem — ele disse tenso. Ele esticou a mão para o gorjal e o tirou do pescoço,
entregando-o a ela — Dê isso a Jane. Ela pode precisar, se as duas acabarem ficando sozinhas.
— Estranhamente, a remoção do gorjal pareceu tirar um peso de sua mente. Até mesmo a
possibilidade de ser preso se ninguém na Filadélfia o conhecesse não o preocupava muito.
Ele estava prestes a remover seu casaco e o seu colete incriminadores — ele os teria que
esconder em algum lugar — quando Rachel deu um passo para mais perto dele e colocou uma
mão em seu braço.
— Este homem é o meu coração e a minha alma — ela disse simplesmente, olhando para
seu rosto. — E ele é do seu próprio sangue, não importa o que você possa sentir em relação a
isso no momento. Eu confio que você o manterá a salvo, pelo bem de todos nós.
William deu a ela um longo olhar, pensou em várias respostas possíveis, e não disse
nenhuma delas, mas assentiu brevemente.
— Para onde eu devo levá-lo? — Ele perguntou. — Para minha... para Lady J... quero dizer,
para a Sra. F... Eu quero dizer, droga! — ele emendou, sentindo o sangue subir às suas bochechas
— Para sua tia?
Rachel olhou para ele, assustada.
— Você não sabe? É claro que não, como poderia saber? — Ela acenou para sua própria
ingenuidade, impaciente — Sua tia foi alvejada durante a batalha, fora da Igreja de Tennent,
onde ela atendia os feridos.
O aborrecimento de William se apagou de uma só vez, como se água gelada tivesse sido
jogada em sua cabeça, inundando suas veias.
— Ela está morta?
— Pela graça de Deus, não — ela disse, e ele sentiu o aperto em seu peito relaxar um
pouco. — Ou pelo menos não estava ontem — ela emendou com o cenho franzido —, embora
estivesse muito ferida.
O aperto voltou.
— Ela está na casa dos Macken no vilarejo de Freehold, a cerca de dez quilômetros naquela
direção. — Ela assentiu para a estrada. — Meu irmão provavelmente está lá também, ou nas
proximidades; ainda há feridos de guerra lá. Ele pode lidar com o feriamento de I-Ian — Pela
primeira vez, sua voz perdeu a estabilidade e seus olhos foram até seu prometido.
Os olhos de Murray estavam afundados e vitrificados pela febre, mas ele tinha domínio
suficiente de si mesmo para esticar a mão boa para ela. O movimento repuxou o braço
machucado e ele fez uma careta, mas Rachel ajoelhou ao seu lado em um segundo, passando os
braços ao redor dele.
William tossiu e se virou discretamente para deixá-los ter um momento de privacidade
para se despedirem. Independente de seus próprios sentimentos, eles mereciam isso. Ele já
tinha visto muitos ferimentos darem problema, e as chances de Murray não eram maiores do
que a média. Por outro lado, o homem era aparentemente tanto um maldito escocês quanto um
Mohawk, e ambas as raças eram notoriamente difíceis de matar.
Ele tinha saído da estrada, e seu olhou capturou um vislumbre de tecido rosa atrás de um
arbusto.
— Jane — ele chamou — é você?
— Sim — ela disse. Ela saiu dali, com os braços cruzados e apontou o queixo para ele — O
que você pretende fazer? Comigo, quero dizer.
— A Senhorita Hunter vai levar você e Fanny para um lugar seguro — ele disse, o mais
gentilmente que podia. Apesar de sua fachada corajosa, ele a fazia pensar numa corça, a luz
salpicada que passava através das árvores manchando seu rosto e seu vestido, fazendo-a
parecer tímida e insubstancial, como se pudesse desaparecer na floresta com o próximo
suspiro. — Eu vou te mandar notícias assim que tiver conseguido... um arranjo adequado.
— Ela? — Jane lançou um olhar surpreso em direção à estrada — Por quê? Por que você
não pode nos levar? Ela não quer ficar com seu... o índio?
— A Senhorita Hunter terá tempo para explicar tudo a você no caminho. — Ele hesitou,
incerto do que mais dizer a ela. Da estrada, ele ouviu o murmúrio distante de vozes, Rachel e
Ian Murray. Ele não podia ouvir as palavras, mas não importava; o que eles estavam dizendo
um ao outro era claro. Ele sentiu uma pequena e afiada dor sob o terceiro botão do colete e
tossiu, tentando desalojá-la.
— Obrigada, senhor — disse uma voz suave atrás dele, e ele se virou para encontrar Fanny
em seu cotovelo. Ela pegou sua mão, virou a palma para cima, e plantou um pequeno e quente
beijo em seu centro.
— Você... Por nada, Senhorita Fanny — Ele disse, sorrindo para ela apesar de tudo. Ela
assentiu para ele, muito digna, e saiu para a estrada, deixando-o com Jane.
Por um momento, eles ficaram olhando um para o outro.
— Eu ofereci a você muito mais do que um beijo — ela disse baixinho. — Você não quis.
Eu não tenho nada a mais a lhe oferecer em agradecimento.
— Jane — ele disse — Não é... Eu não... — E então ele parou, desesperadamente triste, mas
incapaz de pensar em qualquer coisa que poderia dizer em resposta. — Tenha uma boa viagem,
Jane — ele disse, por fim, sua garganta apertada — Adeus.
90 – É UM SÁBIO QUEM CONHECE SEU PAI
Era evidente que, embora forte, a mula de Rachel não aguentaria o peso de dois homens do
tamanho de William e Ian Murray. Não importava; eles não podiam ir mais rápido do que o
ritmo de uma caminhada, de qualquer forma; Murray poderia montar, e William caminharia ao
lado para se certificar que o bastardo não caísse.
Murray conseguiu subir na sela, mesmo tendo apenas uma mão funcional; Rachel tinha
enfaixado rudemente o braço ferido e o colocado numa tipoia feita com sua anágua. William não
ofereceu ajuda, sentindo que tal oferta não seria bem-vinda e nem aceita.
Observando o laborioso processo, entretanto, William ficou interessado em notar que,
embora o tecido da anágua estivesse bastante usado e desbotado, ele tinha sido bordado com
pequenos raios de sol azuis e amarelos nas bordas. As mulheres Quakers comumente usavam
roupas íntimas atraentes por baixo de seus vestidos sóbrios?
Como partiram numa caminhada cautelosa, o som da carroça ainda era audível, embora
estivesse desaparecendo entre as árvores.
— Você está armado? — Murray perguntou de repente.
— Ligeiramente — Ele ainda tinha a faca que Jane colocara em sua mão, agora envolta em
um lenço e enfiada em seu bolso, como não tinha bainha. Ele colocou o dedo no cabo de madeira,
imaginando se era a mesma faca que... Bem, é claro que era.
— Eu não. Poderia encontrar um porrete para mim?
— Você não confia em mim para mantê-lo seguro? — William perguntou sarcasticamente.
Os ombros de Murray estavam caídos e sua cabeça estava voltada para frente, balançando-
se um pouco com o movimento da mula, mas ele se virou e deu a William um olhar com olhos
pesados pela febre, mas ainda surpreendentemente alertas.
— Oh, eu confio em você. São em homens como aqueles com os quais você lutou que eu
não confio.
Aquele era um bom ponto; as estradas estavam longe de serem seguras, e saber disso deu
a William uma grave pontada na consciência pelas mulheres que ele acabara de despachar,
desarmadas e desprotegidas, para dirigirem por quilômetros sobre aquelas estradas, com uma
mula e uma carroça. Eu deveria ter ido com elas, insistido para que fôssemos todos juntos...
— Minha mãe sempre diz que não há ninguém mais teimoso do que o meu tio Jamie —
Murray observou suavemente —, mas uma moça Quaker com a mente feita poderia dar ao tio
Jamie um bom trabalho, devo dizer. Eu não poderia impedi-la e nem você.
William não estava disposto a discutir qualquer uma das pessoas mencionadas, e nem se
engajar numa discussão sobre a relativa teimosia. Ele colocou uma mão no freio e parou a mula.
— Fique aqui. Eu vi algo que pode servir. — Ele já tinha notado que havia poucos galhos
caídos próximos da estrada; nunca havia, quando forrageiros do exército recentemente
passaram pelo local. Mas ele vira um tipo de pomar de alguma espécie, um pouco além da
estrada, com uma fazenda logo atrás.
Enquanto caminhava em direção ao pomar, ele podia ver que a artilharia tinha sido
puxada por ali; havia marcas profundas no chão, e muitas das árvores tinham galhos quebrados,
pendurados como insetos.
Havia um homem morto no pomar. Da milícia americana, pelo camisa de caça e pelas
calças de lã, deitado curvado entre as raízes retorcidas de uma grande macieira.
— Essa deveria ter sido arrancada — William disse em voz alta, mantendo a voz estável.
Antigas macieiras nunca rendiam muito; elas deviam ser arrancadas depois de quinze ou vinte
anos e replantadas. Ele se virou para longe do corpo, mas não com rapidez suficiente para evitar
ver as moscas gananciosas se levantarem em uma nuvem que zumbia no que sobrara do rosto.
Ele caminhou três passos e vomitou.
Sem dúvida foi o cheiro de maçãs podres que se levantou do fantasma de pólvora negra;
todo o pomar cantarolava com o ruído de vespas se empanturrando com os sucos. Ele
desamarrou o lenço da faca de Jane e enfiou a faca em seu cinto sem olhar para ver se havia
manchas de sangue nela. Ele limpou a boca, então, e depois de um momento de hesitação,
colocou o lenço sobre o rosto do Rebelde. Alguém tinha despojado o corpo; ele não tinha armas
e nem sapatos.
— Isso servirá para você? — Ele colocou um galho de macieira de quase um metro no arco da
cela. Ele o tinha quebrado com ambas as mãos, então era um porrete útil, da grossura de seu
próprio antebraço.
Murray pareceu despertar de um cochilo; ele se aprumou lentamente, pegou o bastão e
assentiu.
— Sim, isso servirá — Ele disse suavemente. Sua voz parecia grossa, e William olhou para
ele bruscamente.
— É melhor você beber mais um pouco — ele disse, entregando o cantil. Estava ficando
baixo; provavelmente não mais do que um quarto agora. Murray o pegou, embora se movesse
lentamente, bebeu e o devolveu com um suspiro.
Eles caminharam sem conversar por meia hora ou mais, deixando a William tempo para,
pelo menos, compreender os eventos daquela manhã. Passava bastante do meio-dia agora; o
sol pressionava seus ombros como um ferro de passar aquecido. Quão longe Rachel disse que
estavam de Freehold? Uns dez quilômetros?
— Você quer que eu diga a você ou não? — Murray disse de repente.
— Que você me diga o quê?
Houve um breve som que poderia ser de divertimento ou de dor.
— Se você é muito parecido com ele.
Possíveis respostas vieram para ele tão rapidamente que colapsaram como um castelo de
cartas. Ele escolheu uma no topo.
— Por que você acha que eu deveria perguntar? — William conseguiu dizer, com uma
frieza que congelaria a maioria dos homens. É claro que Murray estava queimando com tanta
febre que seria necessária uma nevasca de Quebec para congelá-lo.
— Eu perguntaria, se fosse comigo — Murray disse suavemente.
Isso desencadeou a explosão incipiente de William.
— Talvez você pense desta forma — ele disse, sem tentar esconder seu aborrecimento —
Você pode conhecê-lo, mas não sabe nada sobre mim.
Desta vez, o som foi inegavelmente de divertimento: risada, de um tipo rouco e rangente.
— Eu o ajudei a sair de uma latrina, há dez anos — Murray disse. — Foi quando eu te
conheci pela primeira vez, sim?
O choque deixou William quase mudo, mas não completamente.
— O quê... Aquele... aquele lugar nas montanhas... Fraser’s Ridge...?! — Ele tivera sucesso,
na maior parte do tempo, em esquecer o incidente com a cobra na latrina, e com isso, da maior
parte da viagem miserável através das montanhas da Carolina do Norte.
Murray tomou a cólera de William por confusão, entretanto, e escolheu elucidar.
— A forma como você saiu de lá sujo, com os olhos azuis arregalados, e o rosto definido
para o assassinato... aquilo foi o Tio Jamie vindo à vida, quando desperta — A cabeça de Murray
balançou para frente de forma alarmante. Ele se conteve e se endireitou com um gemido
abafado.
— Se você for cair — William disse, com cortesia elaborada — faça isso do outro lado,
sim?
— Mmphm.
Eles andaram mais uns cem metros antes de Murray voltar à vida, retornando à conversa
— se é que podia ser chamada assim — como se não houvesse pausa.
— Então, quando eu o encontrei no pântano, eu sabia quem você era. Eu não me lembro
de você ter me agradecido por salvar sua vida naquele dia, aliás.
— Você pode me agradecer por não te amarrar numa padiola e te arrastar por quilômetros
pela terra como uma pantera morta — William estalou.
Murray riu, ofegando um pouco.
— Provavelmente você o faria, se tivesse uma pantera morta — O esforço para rir pareceu
privá-lo do equilíbrio e ele se balançou alarmantemente.
— Caia e eu o farei de qualquer forma — William disse, pegando-o pelas coxas para
estabilizá-lo —, sendo uma pantera morta ou não — Cristo! A pele do homem estava tão quente
que ele podia sentir através das calças de camurça.
Apesar da névoa, Murray notou sua reação.
— Você sobreviveu à febre — ele disse, e respirou profundamente. — Eu também
sobreviverei; não se aborreça.
— Se você está querendo dizer que eu não devo me preocupar com sua morte — William
disse friamente. — Eu não estou preocupado.
— Eu também não — Murray assegurou a ele. O homem cambaleou um pouco, as rédeas
quase soltas em uma das mãos, e William imaginou se ele poderia estar com insolação — Você
prometeu a Rachel, não?
— Sim — William disse, adicionando quase involuntariamente — Eu devo a ela e ao irmão
dela a minha vida, assim como a você.
— Mmphm — Murray disse em concordância, e ficou em silêncio.
Ele parecia ter adquirido uma cor acinzentada sob a pele queimada pelo sol. Desta vez ele
ficou em silêncio por bons cinco minutos antes de voltar à vida outra vez.
— E você não acha que eu sei bastante sobre você, após te ouvir delirando com febre por
vários dias?
— Eu acho que não — William disse. — Não mais do que eu saberei sobre você quando
chegarmos a Freehold.
— Talvez mais do que você pensa. Pare, sim? Eu vou vomitar.
— Eia! — A mula parou obedientemente, embora ela não gostasse do som ou do cheiro do
que estava acontecendo atrás de sua cabeça, e se mantivesse deslizando em círculos, tentando
escapar.
William esperou até que tudo acabasse, e depois entregou seu cantil sem comentar.
Murray o secou e devolveu. Sua mão estava trêmula, e William começou a se preocupar.
— Nós teremos que parar assim que eu encontrar água — ele disse — para você ficar um
pouco na sombra.
Nenhum deles tinha um chapéu; ele tinha deixado o seu com o uniforme, enrolado no
casaco abaixo de um arbusto.
Murray não respondeu a isso; ele não estava exatamente delirando, mas pareceu estar
seguindo uma conversa separada em sua mente.
— Eu posso não te conhecer tão bem, mas Rachel conhece.
Aquilo era inegavelmente verdade e deu a William uma sensação mista estranha de
vergonha, orgulho e raiva. Rachel e seu irmão o conheciam bem; eles tinham salvado sua vida e
cuidado dele até que reestabelecesse a saúde, tinham viajado com ele por semanas e
compartilhado comida e perigos.
— Ela diz que você é um bom homem.
O coração de William se apertou um pouco.
— Eu agradeço pela boa opinião dela — Ele disse. A água não tinha ajudado muito; Murray
definitivamente estava se balançando na sela, seus olhos semifechados. — Se você morrer —
William disse em voz alta —, eu vou me casar com ela.
Aquilo funcionou; as pálpebras de Murray se abriram repentinamente. Ele sorriu, de
forma sutil.
— Eu sei disso — ele disse. — Mas sabia que eu não vou morrer? E, além do mais, você me
deve uma vida, Inglês.
— Eu não. Eu salvei sua maldita vida, também; eu salvei vocês dois daquele maníaco (Bug
era o nome dele?) com o machado na Filadélfia. Estamos quites.
Algum tempo interminável depois, Murray se levantou novamente.
— Eu duvido — ele disse.
91 – CONTANDO OS PONTOS
Jamie viu os Greys saindo da casa e voltou com um ar de satisfação sombria. Eu teria rido se não
doesse fazê-lo, mas sorri para ele.
— Seu filho, seu sobrinho, sua esposa — Eu disse — Fraser, três; Grey, zero.
Ele me deu um olhar assustado, mas então seu rosto realmente relaxou pela primeira vez
em dias — Você está se sentindo melhor, então — ele disse e, atravessando o quarto, inclinou-
se e me deu um beijo — Fale tolices para mim mais um pouco, sim? — Ele se sentou
pesadamente no banco e suspirou, com alívio. — Pense — ele disse — Eu não tenho a mínima
ideia de como vou te manter sem dinheiro, sem comissão e sem profissão. Mas eu o farei.
— Sem profissão, claro — eu disse confortavelmente. — Fale uma coisa que você não pode
fazer.
— Cantar.
— Oh. Sim, além disso.
Ele esticou as mãos nos joelhos, olhando criticamente para as cicatrizes em sua mão
direita mutilada.
— Eu duvido que pudesse ganhar a vida como uma malabarista ou um batedor de
carteiras, também. Muito menos como um escrivão.
— Você não tem que escrever — eu disse. — Você tem uma prensa... Bonnie, é o nome
dela.
— Bem, sim — ele admitiu, uma certa luz vindo aos seus olhos — Eu tenho. Mas ela está
em Wilmington no momento. — Sua prensa tinha sido enviada de Edimburgo aos cuidados de
Richard Bell, que estava, presumivelmente, a mantendo até que seu verdadeiro dono fosse
tomar posse dela.
— Nós iremos buscá-la. E então... — Mas eu parei, com medo de lançar má sorte ao nosso
futuro por planejá-lo com tanta antecedência. Era um tempo incerto para todos, e não havia
como dizer o que o amanhã nos traria. — Mas primeiro — eu emendei, esticando a mão para
apertar a sua —, você deve descansar. Você parece como se estivesse prestes a morrer.
— Não fale sobre esse tipo de tolices — ele disse, e riu e bocejou ao mesmo tempo, quase
quebrando a mandíbula.
— Deite-se — eu disse firmemente. — Durma... pelo menos até que o Tenente Bixby
apareça de novo com mais queijo.
O exército americano tinha se retirado para Englishtown, a cerca de dez quilômetros dali,
aproximadamente uma hora a cavalo. O exército britânico tinha desmontado completamente o
acampamento, e como havia muitas das unidades de milícia cujas inscrições tinham expirado,
as estradas estavam ainda muito cheias com homens indo para casa, a maioria a pé.
Ele deitou em sua cama, surpreendentemente com pouco protesto — uma boa indicação
do quão exausto ele realmente estava — e adormeceu em segundos.
Eu também estava muito cansada, ainda muito fraca e facilmente esgotada, até mesmo por
algo como a visita de Grey, e eu me deitei e cochilei, despertando cada vez que algum ruído se
levantava ao meu redor, mas Jamie dormiu profundamente, e ouvir o seu ronco regular acalmou
o meu coração.
Eu acordei algum tempo depois, ouvindo uma batida distante abaixo. Quando levantei
minha cabeça do travesseiro, ouvi uma voz gritando — Ô de casa! — e instantaneamente fiquei
em estado de alerta. Eu conhecia aquela voz.
Eu olhei rapidamente para baixo, mas Jamie ainda estava dormindo profundamente,
enrolado como um ouriço. Com uma lentidão excruciante, eu consegui colocar minhas pernas
para fora da cama e — movendo-me como uma tartaruga geriátrica e me segurando na cama
— dei dois passos até a janela, onde eu me agarrei ao peitoril.
Havia uma bonita mula baia no pátio, com um corpo seminu deitado sobre a sela. Eu
ofeguei — e imediatamente me dobrei de dor, mas não soltei o peitoril. Eu mordi meu lábio com
força, para não gritar. O corpo usava camurça, e seus longos cabelos castanhos ostentavam um
par de penas de peru sujas.
— Jesus H. Roosevelt Christ — Eu respirei, através dos dentes cerrados — Por favor, Deus,
não permita que ele esteja... — Mas a oração foi respondida antes que eu terminasse de proferi-
la; a porta abaixo se abriu, e no próximo momento William e o Tenente Macken caminharam
para fora e levantaram Ian da mula, colocaram suas mãos sob seus ombros e o carregaram para
dentro da casa.
Eu me virei, instintivamente procurando pela minha caixa de remédios — e quase caí. Eu
me segurei na moldura da cama, mas soltei um gemido involuntário que fez Jamie se levantar,
parecendo frenético.
— Está... tudo bem — eu disse, desejando que os músculos de minha barriga ficassem
imóveis. — Eu estou bem. É... Ian. Ele voltou.
Jamie ficou de pé, balançou a cabeça para clareá-la, e foi diretamente para a janela. Eu o vi
se enrijecer e, segurando a lateral de meu corpo, eu o segui. William tinha saído da casa e estava
se preparando para montar a mula. Ele estava vestido com camisas e calças, muito sujo, e o sol
lambia os cabelos escuros de seu peito com vislumbres de vermelho. A Sra. Macken disse
alguma coisa da porta, e ele se virou para responder. Eu não pensei ter feito algum ruído, mas
alguma coisa o fez olhar repentinamente para cima e ele congelou. Eu senti Jamie congelar
também, quando seus olhos se encontraram.
O rosto de William não mudou e, depois de um longo momento, ele se virou para a mula
novamente, montou e foi embora. Depois de outro longo momento, Jamie soltou a respiração.
— Deixe-me colocá-la na cama, Sassenach — ele disse calmamente. — Eu tenho que
encontrar Denny para que ele cuide de Ian.
92 – EU NÃO VOU DEIXÁ-LO SOZINHO
Alguém dera láudano a ele antes de trabalhar em seu ombro. Era uma coisa estranha aquela.
Ele já tinha experimentado antes, pensou, há muito tempo, embora ele não soubesse o nome na
época. Agora Ian estava deitado de costas, piscando lentamente enquanto a droga diminuía em
sua mente, tentando decidir onde estava e o que era real. Ele tinha quase certeza de que o que
ele estava vendo no momento não era.
Dor. Aquilo era real e era algo para usar como âncora. Não tinha ido completamente
embora — ele estivera consciente dela, mas remotamente, como se um cordão desagradável de
lama verde como um fluxo de água suja estivesse serpenteando por seus sonhos. Agora que ele
estava acordado, entretanto, estava se tornando mais desagradável a cada minuto. Seus olhos
não conseguiam focar ainda, mas ele os forçou a se abrirem em busca de alguma coisa familiar.
Ele a encontrou logo de cara.
Garota. Moça. Ifrinn, o que ela era.
— Rachel — ele resmungou, e ela se levantou instantaneamente, parando o que estava
fazendo para ir até ele, o rosto preocupado, mas iluminado. — Rachel? — ele disse novamente,
incerto, e ela pegou sua mão boa, pressionando-a junto ao peito.
— Você está acordado — ela disse suavemente, seus olhos o encarando —, mas ainda está
com muita febre, por causa do calor de sua pele. Como está se sentindo?
— Melhor ao vê-la, moça — Ele tentou lamber os lábios ressecados. — Tem um pouco de
água?
Ela fez um pequeno som de angústia por ele ter perguntado, e correu para levar um copo
aos seus lábios. Talvez fosse a melhor coisa que ele já tinha provado, ainda melhor por ela estar
segurando sua cabeça enquanto ele bebia — ele estava muito tonto. Ele não queria parar, mas
ela levou o copo para longe.
— Depois eu te dou mais — ela prometeu. — Você não deve beber muito e nem muito
rápido, ou vai vomitar. E entre a terra e o sangue, você já fez bagunça o suficiente — ela disse,
sorrindo.
— Mmphm — ele disse, deitando-se. Ele estava limpo, em sua maior parte. Alguém tinha
limpado o restante de gordura de veado e da pintura, tirando uma boa parte do suor e do sangue
com isso. Seu ombro estava envolvido com um cataplasma de algum tipo; cheirava picante e
familiar, mas sua mente nebulosa ainda estava longe de permitir que ele se lembrasse do nome
da erva. — Tia Claire amarrou meu braço? — ele perguntou. Rachel olhou para ele, suas
sobrancelhas franzidas.
— Sua tia está doente — ela disse cuidadosamente. — Você não se lembra que eu disse
que ela estava ferida por causa de um tiro durante a batalha?
— Não — ele disse, sentindo-se vazio e confuso. Ele não tinha nenhuma recordação dos
últimos dias de batalha — Não. O que... ela está bem?
— Denny removeu a bala, e o seu tio Jamie está com ela. Ambos dizem com muita firmeza
que ela ficará bem — Sua boca se torceu um pouco, um meio caminho entre sorriso e
preocupação. Ele fez o melhor para sorrir de volta.
— Então ela ficará bem — ele disse. — Tio Jamie é um homem muito teimoso. Posso beber
mais água?
Desta vez ele bebeu mais devagar e engoliu mais antes que ela afastasse o copo. Havia um
barulho estridente e regular em algum lugar; durante algum tempo ele o tomou por um
fantasma dos tambores que ele ouvira, mas agora tinha parado por um momento, pontuado por
uma maldição alta.
— O que... onde nós estamos? — ele perguntou, começando a ser capaz de olhar para as
coisas de novo. Sua visão oscilante o convenceu de que ele estava, na verdade, em um pequeno
estábulo de vaca; era o cheiro de feno novo que ele estava sentindo, e o cheiro quente de esterco
fresco. Ele estava deitado num cobertor aberto sobre um monte de feno, mas a vaca não estava
ali naquele momento.
— Um local chamado Freehold. A batalha foi travada nas proximidades; Washington e o
exército se retiraram para Englishtown, mas boa parte dos soldados feridos receberam refúgio
dos habitantes daqui. Atualmente nós estamos desfrutando da hospitalidade de um ferreiro
local, um cavalheiro chamado Heughan.
— Oh — A forja. Essa era a fonte dos tinidos e das maldições. Ele fechou os olhos; isso
ajudava com a tontura, mas ele podia ver as sombras de seus sonhos por dentro de suas
pálpebras e os abriu de novo. Rachel ainda estava lá; isso era bom. — Quem venceu a batalha?
— ele perguntou.
Ela deu de ombros, impaciente. — Como ninguém disse nada sensato sobre isso, eu
imagino que ninguém. Os americanos estão se gabando por não terem sido derrotados,
certamente, mas o exército britânico também não o foi. Tudo com o que eu me preocupo é você.
E você ficará bem — ela disse, e pousou a mão gentilmente sobre sua testa. — Eu estou dizendo
isso. E eu sou tão teimosa quando qualquer escocês que você se importar em nomear, incluindo
você mesmo.
— Eu preciso que você me diga uma coisa, moça. — Ele não queria dizer aquilo, mas as
palavras soaram familiares em sua boca, como se ele já as tivesse dito antes.
— Alguma coisa diferente? — Ela estava se virando, mas parou, parecendo desconfiada.
— Diferente? Eu te disse coisas enquanto eu estava... — Ele tentou acenar a mão numa
ilustração, mas até mesmo seu braço bom estava pesado como chumbo.
Rachel capturou o lábio superior entre os dentes, encarando-o.
— Quem é Geillis? — Ela perguntou abruptamente — E o que em nome de... de Deus ela
fez com você?
Ele piscou, assustado e ainda assim aliviado ao ouvir o nome. Sim, foi com isso que ele
sonhara... Oh, Jesus. O alívio desapareceu de repente.
— O que eu disse? — ele perguntou cautelosamente.
— Se você não se lembra, eu não quero trazer isso de volta à você — Ela se ajoelhou ao
seu lado, as saias farfalhando.
— Eu me lembro do que aconteceu... Eu só quero saber o que eu disse sobre isso.
— O que aconteceu — ela repetiu lentamente, olhando seu rosto. — Em seus sonhos, você
quer dizer? Ou... — Ela parou de falar, e ele viu sua garganta se mover enquanto ela engolia.
— Provavelmente ambos, moça — ele disse suavemente, e tentou alcançar minha mão —
Eu falei sobre Geillis Abernathy?
— Você só disse “Geillis” — ela disse, e cobriu a mão dele com as suas, segurando-o —
Você estava com medo. E você gritou de dor, mas é claro que você estava com dor, então... mas,
depois... o que quer que você tenha visto...
A cor subiu lentamente por seu pescoço e inundou seu rosto, e com uma ligeira recaída
em seu sonho, ele a viu por um instante como uma orquídea com uma garganta escura na qual
ele poderia mergulhar seu... Ele cortou aquela visão e descobriu que estava respirando
rapidamente.
— Parecia que você estava experimentando alguma coisa além da dor — ela disse,
franzindo o cenho.
— Sim, eu experimentei — ele disse, e engoliu — Posso beber mais água?
Ela serviu a ele, mas com um olhar fixo que indicava que ela não pretendia ser distraída
de sua história pelas necessidades físicas.
Ele suspirou e se deitou novamente — Foi há muito tempo, a nighean, e não é nada com
que você tenha que se aborrecer. Eu fui tomado, sequestrado, por um breve período, quando eu
tinha aproximadamente quatorze anos. Eu fiquei com uma mulher chamada Geillis Abernathy,
na Jamaica, até que meu tio me encontrou. Não foi muito agradável, mas também não me
machucou.
Rachel elevou uma sobrancelha elegante. Ele amava vê-la fazendo isso, mas em algumas
vezes mais do que outras.
— Havia outros rapazes lá — ele disse — e eles não tiveram tanta sorte.
Por um longo tempo depois daquilo, ele tivera medo de fechar os olhos à noite, porque via
seus rostos. Mas eles desapareceram, pouco a pouco, e agora ele sentia um espasmo de culpa
por ter deixado que eles entrassem na escuridão.
— Ian — Rachel disse suavemente, e sua mão apertou a bochecha dele. Ele sentiu sua
grossa barba quando ela o tocou, e um agradável arrepio o percorreu, da mandíbula até o
ombro. — Você não precisa falar sobre isso. Eu não vou te obrigar a trazer isso à tona.
— Está tudo bem — ele disse, e engoliu com mais facilidade — Eu vou te contar, mas mais
tarde. É uma antiga história, e você não precisa ouvi-la agora. Mas... — Ele parou um pouco e
ela levantou a outra sobrancelha. — Mas o que eu tenho para te dizer, moça...
E ele contou a ela. Muito do que acontecera dos dois dias anteriores eram um borrão, mas
ele se lembrava vividamente dos dois Abenaki que o tinham caçado. E do que ele tinha
finalmente feito, no acampamento britânico.
Ela ficou em silêncio por tanto tempo que ele começou a pensar se ele realmente estava
acordado e tivera aquela conversa ou se ainda estava sonhando.
— Rachel? — Ele disse, mexendo-se inquieto na cama espinhosa de feno. A porta do
estábulo estava aberta e havia luz suficiente, mas ele não conseguia ler seu rosto. O olhar dela
descansava no rosto dele, entretanto, com os olhos de avelã distantes, como se ela estivesse
olhando através dele. Ele temia que ela estivesse.
Ele podia ouvir o ferreiro Heughan lá fora, caminhando de um lado para o outro e fazendo
sons tilintantes, parando para apostrofar alguns implementos não cooperativos em termos
grosseiros. Ele podia ouvir o próprio coração, também, uma batida irregular e desconfortável.
Finalmente um tremor passou por Rachel, como se ela estivesse se chacoalhando para
acordar, e ela colocou uma mão em sua testa, alisando seus cabelos para trás enquanto olhava
em seus olhos, os seus agora suaves e insondáveis. Seu polegar desceu e traçou a linha tatuada
em suas bochechas, muito lentamente.
— Eu acho que nós não podemos mais esperar para nos casarmos, Ian — ela disse
suavemente. — Eu não quero que você tenha que encarar tais coisas sozinho. Estes são tempos
sombrios, e nós precisamos estar juntos.
Ele fechou os olhos e todo o ar saiu de dentro dele. Quando ele respirou de novo, sentiu o
gosto da paz.
— Quando? — ele sussurrou.
— Assim que você conseguir caminhar sem precisar de ajuda — ela disse, e o beijou,
suavemente como uma folha caindo da árvore.
93 – A CASA DA RUA CHESTNUT
A casa estava ocupada; havia fumaça saindo da chaminé a oeste. A porta estava fechada,
entretanto, e trancada.
— Eu me pergunto o que aconteceu com a antiga porta — John disse a Hal, tentando abrir
novamente, apenas para garantir. — Costumava ser verde.
— Se você bater nessa porta, você pode conseguir que alguém saia e te diga o motivo —
Hal sugeriu. Eles não usavam uniforme, mas Hal estava visivelmente no limite, e estivera assim
desde que foram chamados pelo General Arnold.
O general tinha sido compreensivelmente reservado, mas civilizado, e depois de ler a carta
de Fraser por três ou quatro vezes, tinha concordado em dar a eles autorização para ficar na
cidade e fazer as perguntas que precisassem fazer.
— Com o entendimento — Arnold havia dito, um vislumbre de sua renomada arrogância
se mostrando na fachada de governador — de que se eu ouvir alguma coisa desagradável,
prenderei os dois e os colocarei para fora da cidade em uma trave.
— No quê? — Hal disse incredulamente, não estando acostumado ao método americano
peculiar de fazer os hóspedes não se sentirem bem-vindos.
— Numa trave — Arnold repetiu, sorrindo jovialmente — Um longo pedaço de madeira?
Usado para cercas, eu acredito?
Hal tinha se virado para John, uma das sobrancelhas levantada, como se o convidasse a
traduzir o discurso de algum Hotentote encontrado aleatoriamente. John suspirou
internamente, mas o fez.
— Uma pessoa indesejável é montada no objeto em questão — ele disse —, escarranchada
sobre ele. Diante disso, um grupo de homens levanta cada extremidade e parte pelas ruas com
ele, jogando o forasteiro para fora da cidade. Eu acredito que alcatrão e penas por vezes possam
ser aplicados como um gesto preliminar, embora os efeitos físicos da trave geralmente sejam
suficientes.
— Ela achata suas bolas como se um cavalo tivesse pisado — Arnold disse, ainda sorrindo.
— Não faz nada bem ao seu traseiro, também.
— Eu imaginaria que não — Hal disse polidamente. Sua cor estava, de alguma forma, mais
avermelhada do que o comum, mas ele não deu outra indicação de ofensa, o que Grey pensou
ser uma indicação razoável (não que ele precisasse de uma) da importância da missão que eles
tinham.
O som do ferrolho se abrindo interrompeu suas lembranças. A porta se abriu, revelando
sua governanta e cozinheira, Sra. Figg, com uma pistola na mão.
— Lord John! — Ela exclamou, deixando a arma cair com um baque.
— Bem, sim — ele disse, dando um passo para frente e pegando a arma. Ele sorriu,
sentindo um carinho imenso no peito ao vê-la (substanciosa, arrumada e decorada com muitas
fitas, como sempre) — É muito bom vê-la de novo, Sra. Figg. Permita-me apresentá-la ao meu
irmão, o...
— Nós já nos conhecemos — Hal disse, uma aspereza irônica na voz — Como está,
senhora?
— Melhor do que Sua Graça, ao que parece — A Sra. Figg replicou, estreitando os olhos
para ele — Ainda respirando, entretanto, pelo que vejo.
Ela soou como se aquela não fosse uma situação inteiramente desejável, mas Hal sorriu
amplamente para ela.
— Conseguiu enterrar a prataria a tempo? — Ele perguntou.
— Certamente — ela replicou com dignidade, e, virando-se para John, perguntou — Você
veio buscá-la, meu senhor? Eu posso desenterrá-la rapidamente.
— Talvez ainda não — John disse. Ele olhou em volta, notando os trilhos que faltavam em
seu corrimão no patamar superior, a parede manchada e esburacada ao lado das escadas e... —
O que aconteceu ao lustre?
A Sra. Figg suspirou e balançou a mão sombriamente.
— Isso foi o Mestre William — ela disse — Como ele está, meu senhor?
— Receio não saber, Sra. Figg. Eu esperava que ele pudesse estar aqui, mas compreendo
que não?
Ela pareceu perturbada por isso.
— Não, senhor. Nós não o vemos desde... bem, desde o dia em que você partiu.
Ela olhou duramente para ele, absorvendo tudo, desde os cabelos curtos até as contusões
que estavam se curando e o terno medíocre, balançou a cabeça e suspirou, mas depois
endireitou os amplos ombros, determinada a ser alegre.
— E estamos felizes ao vê-lo, senhor! E Sua Graça. — Ela adicionou com um pensamento
tardio. — Vão se sentar e eu farei uma xícara de chá em dois minutos.
— Você tem chá? — Hal disse, iluminando-se.
— A primeira coisa que nós enterramos foi o jogo de chá — ela informou a ele — Mas eu
acabei de trazer uma parte dele para a Senhorita Dottie, então...
— Dottie está aqui?
— Certamente — disse a Sra. Figg, satisfeita ao ser portadora de boas notícias — Eu vou
até a cozinha e a chamarei.
Isso se provou desnecessário, já que o som da porta de trás se abrindo indicou a entrada
de Dottie, carregando uma montanha de objetos irregulares. Foi provado que eram abobrinhas
da horta, que caíram em cascata sobre o piso numa inundação de amarelo e verde quando ela
soltou o avental para saltar em seu pai e abraçá-lo.
— Papai!
Por um instante, o rosto de Hal mudou inteiramente, suavizado pelo amor, e Grey ficou
surpreso e desconcertado ao sentir que lágrimas tinham se formado em seus próprios olhos.
Ele se virou, piscando, e caminhou até o aparador, para dar a eles um momento de privacidade.
O serviço de chá de prata tinha saído dali, é claro, mas seus pratos de porcelana Meissen
estavam no lugar de costume no trilho de pratos. Ele tocou a borda de laços de um deles,
sentindo-se estranhamente desencarnado. E o seu lugar não mais o conhecerá.
Mas agora Dottie estava falando com ambos; Grey se virou para ela, sorrindo.
— Eu estou tão feliz por vocês dois estarem seguros e aqui! — Suas bochechas estavam
coradas, seus olhos brilhavam e o coração de Grey falhou sabendo que aquele estado de
felicidade seria extinto no próximo minuto, assim que Hal contasse a razão de sua presença.
Antes que qualquer desgraça pudesse cair, entretanto, Dottie tinha tomado as rédeas da
conversa e a levado para uma direção completamente diferente.
— Já que estão aqui... Tio John, nós podemos usar a sua casa? Para o casamento, quero
dizer. Por favor. Por favor?
— O casamento? — Hal se desengatou de sua filha gentilmente e limpou a garganta. — O
seu casamento?
— É claro que estou falando de meu casamento, papai. Não seja tolo — Ela sorriu para o
tio, colocando uma mão coquete em sua manga. — Podemos, Tio John? Nós não podemos nos
casar numa casa da sociedade, mas nós precisamos de testemunhas para que seja um
casamento Quaker apropriado e, realmente, eu tenho certeza de que papai não iria querer que
eu me casasse em uma sala pública ou numa taverna. Iria? — Ela apelou, virando-se para Hal,
cuja expressão tinha voltado ao antigo resguardo.
— Bem, certamente você pode, minha querida — John disse, olhando ao redor de sua sala
de estar. — Assumindo que eu tenha a posse desta propriedade até que o casamento ocorra.
Quando será a cerimônia, e quantas testemunhas nós precisaremos acomodar?
Ela hesitou, batendo a unha contra os dentes.
— Eu não tenho certeza. Haverá alguns dos Amigos que, como Denny, foram expulsos da
sociedade por se juntarem ao exército Continental. E alguns amigos (amigos no diminutivo, com
todo o respeito) se sobrou algum na Filadélfia. E... família? — Ela hesitou novamente, olhando
de lado para seu pai, debaixo de seus cílios. John reprimiu um sorriso.
Hal fechou os olhos e suspirou profundamente.
— Sim, eu virei ao seu casamento — ele disse, abrindo-os com resignação — Bem como
Henry, mesmo que eu tenha que arrastá-lo pelo pescoço. Eu suponho que a Sra. Woodcock
deveria ser convidada, também — ele adicionou, com uma marcante falta de entusiasmo — Mas
é claro que Adam... e... e Ben...
John pensou por um momento que ele devia dizer a ela agora, mas os lábios dele se
fecharam, firmes com determinação. Ele não olhou para John, mas John compreendeu o “não
agora, pelo amor de Deus. Deixe-a ser feliz por mais um tempo”, tão claramente como se tivesse
sido falado em voz alta.
— Não, isso é uma pena — Dottie disse com pesar, e encontrou os olhos de seu pai
diretamente — Eu sinto muito em relação à mamãe. Eu escrevi para ela, entretanto.
— Escreveu, querida? — Hal disse, soando quase normal — Isso foi atencioso. — Ele
inclinou sua cabeça para ela, entretanto, os olhos se estreitando um pouco — O que mais?
— Oh — Sua cor, que tinha voltado ao normal, se avermelhou de novo, e ela começou a
amassar distraidamente as pregas de seu avental com uma das mãos — Bem. Você sabia que
Rachel, a irmã de Denzell, está noiva de Ian Murry? Ele é sobrinho do Sr. Fraser... Não, não, nós
não usamos “senhor”, desculpe... Ele é sobrinho de James Fraser. Você conhece...
— Eu conheço — Hal disse, num tom que cortava explicações posteriores. — Quem ele é,
quero dizer. O que você está querendo dizer? Sem enrolar, por favor.
Ela fungou para ele, mas não pareceu nem um pouco desconcertada.
— Bem, então. Rachel e Ian querem se casar o mais rápido possível, assim como Denny e
eu. Como todas as testemunhas estarão presentes, por que não poderíamos fazer os dois
casamentos ao mesmo tempo?
Desta vez, Hal olhou para John. Que olhou de volta, um pouco surpreso.
— Ah... bem. Eu suponho que isso não significaria ter hóspedes adicionais? Incluindo o
referido Sr. Fraser? Eu tenho certeza de que me perdoará por usar o seu título, querida; eu estou
acostumado a estes excessos sociais.
— Bem, sim. Rachel diz que a Sra. Fraser está recuperada o suficiente para voltar à
Filadélfia amanhã ou depois. E então, é claro, há Fergus e sua esposa, Marsali, e talvez as
crianças, e eu não sei se há outros amigos que... Eu não acho que Ian tenha qualquer
relacionamento Mohawk aqui por perto, mas...
— Um, dois, três, quatro, cinco... — John se virou e começou a contar as pequenas cadeiras
douradas que estavam dispostas rigidamente sob o lambril. — Eu acho que nós ficaremos um
pouco apertados, mas se...
A Sra. Figg limpou a garganta. O som foi suficientemente impressionante para que todos
parassem de falar e olhassem para ela.
— Desculpem-me, senhores — ela disse, e um suave vermelho estava visível em seu rosto
redondo. — Eu não quis passar em sua frente ou presumir... Acontece que eu mencionei ao
Reverendo Figg sobre o fato de a Senhorita Dottie e o Amigo Denzell precisarem de um local
para se casarem.
Ela limpou a garganta, ficando ainda mais corada por baixo da pele escura, de modo a
adquirir certa semelhança com uma bola de canhão recém-atirada, Grey pensou, divertido pela
ideia.
— E... bem, para resumir, senhorita e cavalheiros, o reverendo e sua congregação ficariam
satisfeitos se vocês considerassem se casar no prédio da nova igreja, sendo que vocês foram tão
amáveis de contribuir para sua construção. Não é nada extravagante, imagine, mas...
— Sra. Figg, você é uma maravilha — Grey juntou as mãos dela entre as dele, uma atenção
que a perturbou ao ponto de ficar sem palavras. Ao ver isso, ele a soltou, embora permitisse que
Dottie segurasse e beijasse a governanta, exclamando de gratidão. Aquilo estava bem, mas
quando Hal pegou a mão da Sra. Figg e a beijou, a pobre senhora quase sufocou e, recolhendo
sua mão, retirou-se apressada, murmurando desconexa sobre o chá e evitando por pouco
tropeçar numa abobrinha.
— Está tudo bem vocês se casarem numa igreja? — Hal perguntou a Dottie, uma vez que
a Sra. Figg tinha se retirado a uma distância segura. — Não é como os Judeus, não é? Não
precisaremos ser circuncidados para participar? Porque se for o caso, eu acho que sua lista de
convidados será substancialmente reduzida.
— Oh, eu tenho certeza que não... — Dottie começou vagamente, mas sua atenção foi
capturada por alguma coisa que ela vira na janela da frente. — Deus, o que é...?
Sem se importar em completar o pensamento, ela voou para a porta destrancada e a abriu,
revelando um William assustado na varanda.
— Dottie! — ele disse. — O quê... — E então ele teve um vislumbre de John e de Hal. O
rosto de William sofreu uma mudança relâmpago que fez com que um frisson corresse das
costas até o cóccix de John. Ele vira aquela exata expressão no rosto de James Fraser centenas
de vezes, pelo menos, mas nunca a tinha visto em William.
Era o rosto de um homem que não gostava de suas perspectivas imediatas — mas que se
sentia inteiramente capaz de lidar com elas. William entrou, repelindo com força a tentativa
abortada de Dottie de abraçá-lo. Ele tirou seu chapéu e fez uma reverência para Dottie, depois
fez o mesmo para John e Hal.
— Seu servo, senhorita. Senhores.
Hal bufou, olhando seu sobrinho da cabeça aos pés. William estava vestido da mesma
forma que John e Hal, em roupas comuns, embora fossem roupas de bom corte e qualidade, John
observou; claramente eram dele mesmo. — E onde diabos você esteve nos últimos três dias, se
eu puder perguntar?
— Não, você não deve — William replicou brevemente. — Por que vocês estão aqui?
— Estávamos procurando por você, em primeiro lugar. — John replicou da mesma forma,
antes que Hal pudesse intervir novamente. Ele havia colocado a pistola sobre a lareira,
facilmente ao alcance de Hal, mas tinha quase certeza que ela não estava carregada. — E por
Capitão Richardson também. Você o viu recentemente?
A expressão surpresa de William fez com que John suspirasse de alívio por dentro. — Não,
eu não o vi — William olhou astuciosamente de um homem para outro. — Era isso que vocês
estavam fazendo na sede de Arnold? Procurando por Richardson?
— Sim — John respondeu, surpreso — Como você... Oh. Você estava observando o local.
— Ele sorriu — Eu realmente me perguntava como aconteceu de você aparecer aqui tão
fortuitamente. Você nos seguiu, desde a sede do General Arnold.
William assentiu e, esticando um longo braço, puxou uma das cadeiras encostadas à
parede — Eu o fiz. Sentem-se. Há coisas que precisam ser ditas.
— Isso soa um pouco sinistro — Dottie murmurou — Talvez seja melhor eu pegar o
conhaque.
— Faça isso, por favor, Dottie — John disse — Diga à Sra. Figg que nós queremos o da
safra de 57, se puder. Se não estiver enterrado, quero dizer.
— Eu acho que tudo que é de natureza alcoólica está bem, na verdade. Eu vou buscar.
Sra. Figg chegou neste ponto com uma bandeja chacoalhante de chá, desculpando-se pela
jarra humilde de barro onde a bebida estava, e dentro de alguns momentos, todos estavam em
posse de uma xícara fumegante e um copo de conhaque de 57.
— Obrigada, querida — Hal disse, aceitando o copo de Dottie, e depois adicionando
incisivamente. — Você não precisa ficar.
— Eu preferia que você ficasse, Dottie. — William disse baixinho, mas com um olhar
ostensivo para Hal. — Há coisas que você precisa saber, eu acho.
Com não mais do que um breve olhar para seu pai, Dottie, que estivera pegando as
abóboras dispersas, sentou-se na poltrona, do lado oposto ao seu primo.
— Diga-me, então — ela disse simplesmente.
— Não é nada demais — ele assegurou a ela, com uma suposta descontração — Eu
descobri recentemente que sou filho de James Fraser, que...
— Oh — ela disse, e olhou para ele com renovado interesse. — Eu realmente pensei que
o General Fraser me lembrava alguém! É claro, é isso! Deus, Willie, você realmente se parece
demais com ele!
William pareceu espantado, mas rapidamente se recompôs.
— Ele é um general? — Ele perguntou a Hal.
— Ele era — Hal disse. — Ele renunciou à sua comissão.
William fez um ruído pequeno e sem humor. — Renunciou? Bem, eu também.
Depois de um longo momento de silêncio, John colocou sua xícara cuidadosamente no
pires com um pequeno tilintar.
— Por quê? — Ele perguntou suavemente, ao mesmo tempo que Hal, franzindo o cenho
disse:
— Você pode fazer tal coisa enquanto tecnicamente é um prisioneiro de guerra?
— Eu não sei — William disse laconicamente, e evidentemente em resposta às duas
perguntas. — Mas eu o fiz. Agora, quanto ao Capitão Richardson... — E ele contou seu encontro
surpreendente com Denys Randall-Isaacs na estrada. — Ou, melhor, Denys Randall, como ele
agora se chama. Evidentemente seu padrasto era um judeu e ele quer evitar a associação.
— Sensato — Hal disse brevemente. — Eu não o conheço. O que mais você sabe sobre ele,
William? Qual é a conexão dele com Richardson?
— Eu não tenho a mínima ideia — William disse, e, secando sua xícara, esticou a mão para
a jarra e serviu mais um pouco — Há alguma conexão, obviamente; de início, eu assumiria que
Randall talvez tenha trabalhado com, ou para, Richardson.
— Talvez ele ainda o faça — John sugeriu, uma ligeira aspereza na voz. Ele tinha sido um
espião por muitos anos e não estava inclinado a levar as coisas ditas por agentes de inteligência
ao pé da letra.
Isso pareceu surpreender William por um momento, mas ele assentiu relutantemente.
— Tudo bem — ele admitiu. — Mas, diga-me... Por que diabos vocês dois estão
interessados em Richardson?
Eles contaram a ele.
Com a conclusão, Hal estava empoleirado ansiosamente na poltrona ao lado de Dottie, um
braço ao redor dos ombros trêmulos dela. Ela estava chorando em silêncio, e ele estava
enxugando seu rosto com um lenço, este agora um trapo sujo após ter servido como bandeira
de trégua.
— Eu não acredito nisso — ele repetia obstinadamente, pela sexta ou sétima vez. — Você
está me ouvindo, querida? Eu não acredito nisso, e eu não quero que você acredite também.
— N-não — ela disse obedientemente. — Não... Eu não vou. Oh, Ben!
Na esperança de distraí-la, John se virou de volta para William.
— E o que o trouxe até a Filadélfia, se eu puder perguntar? Você não pode ter vindo em
busca do Capitão Richardson, porque quando deixou o acampamento, não sabia que ele havia
desaparecido.
— Eu vim para tratar de assuntos pessoais — William disse, em um tom que sugeria que
o assunto continuaria pessoal. — Mas também...
Ele pressionou os lábios juntos por um momento, e mais uma vez John teve a estranha
sensação de deslocamento, vendo Jamie Fraser.
— Eu ia deixar isso aqui para você, para o caso de você voltar à cidade. Ou pedir para que
a Sra. Figg mandasse para Nova York, se...
Sua voz foi sumindo, quando ele puxou uma carta do peito de seu casaco azul escuro.
— Mas eu não preciso disso agora — ele concluiu firmemente, e a guardou de novo. — Só
está dizendo o que eu já te disse. — Um leve rubor tocou suas bochechas, entretanto, e ele evitou
os olhos de John, virando-se para Hal. — Eu vou encontrar Ben — ele disse, simplesmente. —
Eu não sou mais um soldado; não há perigo de eu ser tomado como um espião. E eu posso viajar
com muito mais facilidade do que você pode.
— Oh, William! — Dottie pegou o lenço de seu pai e assoou o nariz com um pequeno ruído
feminino. Ela olhou para ele com os olhos cheios de lágrimas. — Você irá, realmente? Oh,
obrigada!
Aquele não era, é claro, o fim da história. Mas não era revelação alguma a Grey que William
possuísse uma teimosia tão obviamente derivada de seu pai biológico que ninguém além de Hal
pensaria em argumentar com ele. E mesmo Hal não argumentava muito.
No devido tempo, William se levantou para ir embora.
— Mande meu carinho para a Sra. Figg, por favor — ele disse a John e, com uma pequena
reverência para Dottie — Adeus, prima.
John o seguiu até a porta para deixá-lo sair, mas no limiar colocou a mão em sua manga.
— Willie — ele disse suavemente. — Dê-me a carta.
Pela primeira vez, William pareceu um pouco menos certo. Ele colocou a mão no peito,
mas a deixou ali, hesitante.
— Eu não vou ler, a não ser que você não volte. Mas, se este for o caso... eu a quero. Para
guardá-la.
William exalou, assentiu e, colocando a mão dentro de seu casaco, removeu uma carta
selada e a entregou. Grey notou que ela tinha sido selada com uma grossa gota de cera de vela
e que William não usara seu sinete, preferindo, em vez disso, estampar sua impressão digital,
firmemente na cera quente.
— Obrigado — ele disse através do nó em sua garganta. — Que Deus o acompanhe. Filho.
94 – O SENTIDO DA ASSEMBLEIA
A Igreja Metodista era um modesto edifício de madeira com janelas de vidro simples e, embora
possuísse um altar, poderia facilmente passar por uma casa de encontros Quaker, com um
modelo de três cruzes emolduradas com versículos enrolados da Bíblia que se penduravam da
parede. Eu ouvi Rachel exalar quando parou lá dentro, olhando ao redor.
— Sem flores? — A Sra. Figg tinha dito no dia anterior, escandalizada. — Eu entendo que
tenha que ser simples, mas Deus fez as flores!
— Uma capela de Amigos não teria flores — Rachel disse, sorrindo — Nós achamos que
elas são de alguma forma pagãs, e são uma distração ao ato de adorar. Mas nós somos os seus
convidados e certamente um convidado não deve dizer ao seu anfitrião como manter a própria
casa.
A Sra. Figg piscou à palavra “pagã”, mas fez um pequeno ruído de concordância e se
acomodou em benignidade.
— Tudo bem, então — ela disse. — Sua senhoria tem três boas roseiras, e há girassóis em
cada metro desta cidade. Há algumas madressilvas também — ela adicionou pensativamente.
Havia; todos plantavam madressilvas próximo aos banheiros.
Como um aceno às sensibilidades Quakers, entretanto, havia apenas um vaso de flores —
um vaso muito simples — entre os dois bancos de madeira que tinham sido colocados na frente
da sala, e o perfume suave de madressilvas e rosas se misturava ao cheiro de terebintina das
tábuas de pinho e aos aromas pungentes de pessoas limpas, mas com calor.
Rachel e eu entramos, juntando-nos ao que supostamente seria chamado de festa de
casamento, na sombra de baixo de uma grande árvore de limão. As pessoas ainda estavam
chegando sozinhas ou aos pares, e eu captei muitos olhares curiosos em nossa direção —
embora eles não fossem destinados às duas noivas.
— Você vai se casar com... isso? — Hal disse, olhando para o melhor vestido de domingo
de Dottie, de musselina cinza clara com uma fita branca e um laço ao redor da cintura. Dottie
elevou uma sobrancelha loira para ele.
— Ha — Ela disse — Mamãe me contou o que ela estava usando quando você se casou
com ela em uma taverna em Amsterdã. E como foi o primeiro casamento de vocês. Diamantes e
fitas brancas e a Igreja de São James não ajudaram muito, não é?
— Dorothea — Denzell disse suavemente. — Não importune o seu pai. Ele tem o suficiente
com o que lidar.
Hal, que tinha ficado corado com os comentários de Dottie, ficou ainda mais vermelho por
causa de Denny e respirou de forma ameaçadora, mas não disse mais nada. Hal e John estavam
ambos usando uniforme completo e ofuscavam as noivas em seu esplendor. Eu pensei que era
uma pena que Hal não fosse levar Dottie até o altar, mas ele meramente inalou profundamente
quando a forma do casamento foi explicada a ele e disse — depois de receber uma cotovelada
de seu irmão nas costelas — que estava honrado por presenciar o evento.
Jamie, em contraste, não usava seu uniforme, mas sua aparência nas vestes completas das
Highlands fez com que os olhos da Sra. Figg se arregalassem — e não apenas os dela.
— Doce pastor da Judeia — ela murmurou para mim. — Aquele homem está usando uma
anágua de lã? E que tipo de padrão tem aquele tecido? É o suficiente para queimar os olhos de
sua cabeça.
— Eles a chamam de Fèileadh beag — Eu disse a ela — na língua nativa. Em Inglês,
geralmente é chamado de kilt. E o padrão é o tartã da família.
Ela o olhou por um longo tempo, a cor aumentando lentamente em suas bochechas. Ela se
virou para mim com a boca cheia para fazer uma pergunta, depois pensou melhor e se calou
firmemente.
— Não — eu disse, rindo — Ele não está.
Ela bufou. — De qualquer forma, ele provavelmente morreria de calor — ela previu —
assim como esses dois galos de briga. — Ela assentiu para John e Hal, gloriosos e suando. Henry
também tinha comparecido de uniforme, usando as vestes mais modestas de tenente. Ele tinha
o braço de Mercy Woodcock ao redor do seu e deu ao seu pai um olhar, desafiando-o a dizer
alguma coisa.
— Pobre Hal — Eu murmurei para Jamie. — Seus filhos são uma provação para ele.
— Sim, não são? — Ele replicou. — Tudo bem, Sassenach? Você parece pálida. Não é
melhor entrar e se sentar?
— Não, eu estou bem — Assegurei a ele. — Eu só estou pálida, após um mês dentro de
casa. É bom estar ao ar fresco. — Eu tinha uma bengala, e Jamie, para me apoiar, mas estava me
sentindo muito bem, com exceção de uma ligeira pontada na lateral de meu corpo, e estava
aproveitando as sensações da mobilidade, embora não aprecisasse a sensação de usar
espartilho e anáguas naquele tempo quente de novo. Ficaria ainda mais quente, com todos
sentados juntos quando a cerimônia começasse; o Reverendo da congregação da Sra. Figg
estava ali, é claro, sendo aquela sua igreja, e os bancos estavam cheios.
A igreja não tinha sino, mas a alguns quarteirões, o sino da Igreja de São Pedro começou
a anunciar a hora. Era o momento, e Jamie, eu, e os irmãos Grey entramos para encontrar os
nossos lugares. O ar zumbia com conversas murmuradas e curiosidade — mais ainda quando
viram os uniformes britânicos e as vestes de Jamie, embora eles tivessem deixado as espadas
em casa, em deferência à associação dos Amigos.
Tanto a curiosidade quanto as conversas se elevaram ainda mais quando Ian entrou. Ele
usava uma camisa nova, de chita branca com desenhos de tulipas azuis e roxas, suas calças de
camurça e a tanga, os mocassins — e um bracelete feito com conchas azuis e brancas, que eu
tinha quase certeza de que sua esposa Mohawk, Trabalha com as Mãos, tinha feito para ele.
— E aqui, é claro, está o padrinho — Eu ouvi John sussurrar para Hal. Rollo seguia aos
calcanhares de Ian, desconsiderando a comoção que causava. Ian se sentou em um dos dois
bancos que tinham sido dispostos na frente da igreja, encarando a congregação, e Rollo se
sentou aos seus pés, coçou-se preguiçosamente, e depois deitou, ofegando gentilmente,
observando a multidão com um olhar amarelo e preguiçoso, como se julgasse sua eventual
comestibilidade.
Denzell entrou, parecendo um pouco pálido, mas caminhou e se sentou no banco ao lado
de Ian. Ele sorriu para a congregação, a maioria da qual murmurou e sorriu de volta. Denny
usava seu melhor terno — ele tinha dois — um terno decente de popelina azul com botões de
estanho, e embora ele fosse menor e menos ornamentado do que Ian, de forma alguma
desaparecia ao lado de seu futuro cunhado estrangeiro.
— Você não vai passar mal, não é, moça? — Jamie disse a Rachel. Ela e Dottie entraram,
mas estavam pairando perto de uma parede. As mãos de Rachel estavam cerradas no tecido de
sua saia. Ela estava tão branca quanto papel, mas seus olhos brilhavam. Eles estavam presos em
Ian, que olhava para ninguém além dela, com o próprio coração em seus olhos.
— Não — ela sussurrou. — Venha comigo, Dottie. — Ela esticou uma mão e as duas moças
caminharam juntas até o outro banco e se sentaram. Dottie estava corada. Rachel cruzou as
mãos no colo e continuou a olhar para Ian. Eu senti Jamie suspirar um pouco e relaxar. Ao lado
de Jamie, Jenny se esticou para olhar em volta e sorriu com satisfação.
Ela tinha feito Rachel se vestir, porque, após as exigências dos últimos meses, Rachel não
tinha nada além de trapos. E embora Jenny fosse, em geral, a favor da modéstia na vestimenta,
ela sabia o valor de um decote bem feito. O vestido era de chita verde pálido com um pequeno
padrão de videiras enroladas em verde-escuro, e tinha caído como uma luva. Com seus cabelos
castanhos escuros brilhando soltos em seus ombros e os olhos de avelã grandes eu seu rosto,
Rachel parecia um habitante da floresta — talvez uma ninfa das árvores.
Eu estava prestes a compartilhar essa fantasia com Jamie quando o Reverendo Sr. Figg
caminhou para a frente da igreja, virou-se e sorriu para a congregação.
— Bênçãos a todos vocês neste dia, irmãos e irmãs! — ele disse, e foi respondido por um
estrondo de “Bençãos a você, irmão” e discretos “améns”. — Bem, então. — Ele olhou de Ian e
Denny para as garotas, e depois voltou à congregação. — Nós estamos aqui reunidos para um
casamento. Mas as moças e os cavalheiros a se casarem pertencem à Sociedade dos Amigos,
então será um casamento Quaker, e ele é um pouco diferente dos que vocês já viram antes, então
eu tomarei a liberdade de explicar a vocês como será.
Um pequeno zumbido de interesse e especulação, que ele calou com uma mão. O Sr. Figg
estava pequeno e elegante em um terno preto e de gola branca alta, mas tinha muita presença,
e cada orelha estava sintonizada atentamente às suas explicações.
— Nós temos a honra de sediar esta reunião, pois é assim que os Amigos chamam suas
adorações. E para eles, um casamento é apenas uma parte comum da reunião. Não há padres
ou ministros envolvidos; a moça e o cavalheiro apenas... casam-se um com o outro, quando
percebem ser o momento certo.
Aquilo causou uma onda de surpresa, talvez até certa desaprovação e eu pude ver a cor se
intensificar nas bochechas de Dottie. O Sr. Figg se virou para sorrir para as garotas, e depois
voltou à congregação.
— Eu acho que talvez um dos nossos amigos Quakers queira nos contar um pouco sobre
sua noção de reunião, como certamente eles sabem sobre isso melhor do que eu. — Ele se virou
com expectativa em direção a Denzell Hunter, mas foi Rachel que se levantou. O Sr. Figg não a
vira e olhou com surpresa quando ela falou atrás de si, fazendo todos rirem.
— Bom dia — ela disse, falando suavemente mas de forma clara, quando as risadas
morreram. — Eu agradeço a todos pela sua presença aqui. Pois Cristo disse: “onde quer que
dois ou mais de vocês se reúnam em meu nome, ali estarei”. E esta é toda a essência de uma
reunião dos Amigos: que o Cristo possa tornar Sua presença conhecida entre nós, e dentro de
nós. — Ela esticou um pouco as mãos — Então, nós nos reunimos e ouvimos, tanto um ao outro
quanto a luz que cresce dentro de nós. Quando uma pessoa é tocada pelo espírito a falar, ele ou
ela fala.
— Ou canta, se preferir — Dottie adicionou, olhando para John.
— Ou canta — Rachel concordou, sorrindo. — Mas nós não tememos o silêncio, pois
frequentemente Deus fala mais alto nos momentos silenciosos em nossos corações. — E com
isso, ela se sentou novamente, composta.
Por um momento, houve muito embaralhamento e pessoas pestanejando entre a
multidão, o que foi sucedido por um silêncio de expectativa, quebrado por Denny, que se
levantou deliberadamente e disse: — Eu fui movido a dizer quão grato estou por vocês nos
aceitarem. Pois fui colocado para fora de minha associação, e minha irmã comigo, pela minha
intenção declarada de me juntar ao exército Continental. E pela mesma razão, nós não somos
bem vindos como membros da Associação da Filadélfia.
Ele olhou para Rachel, a luz refletindo em seus óculos.
— Esta é uma coisa grave para um Amigo — ele disse baixinho. —, pois nossas associações
são onde nossas vidas e almas estão, e quando os Amigos se casam, toda a sua associação deve
aprovar e testemunhar o casamento, para que a comunidade apoie o casamento. Eu privei
minha irmã desta aprovação e deste suporte, e eu imploro que ela me perdoe.
Rachel bufou de forma não feminina — Você seguiu sua consciência, e se eu não pensasse
que você estava certo, teria dito.
— Era minha responsabilidade tomar conta de você!
— Você tomou conta de mim! — Rachel disse. — Eu pareço desnutrida? Estou nua?
Uma onda de diversão percorreu a congregação, mas nenhum dos Hunters notou.
— Eu a tirei de seu lar e da associação que cuidou de você, e a obriguei a me seguir num
caminho de violência, em um exército cheio de homens violentos.
— Esse seria eu, imagino — Ian interrompeu, limpando a garganta. Ele olhou para o Sr.
Figg, que pareceu de alguma forma atônito, e então para a assembleia extasiada nos bancos —
Eu não sou um Amigo, sabem? Eu sou um escocês das Highlands e um Mohawk, e não é possível
ficar mais violento do que isso. Por direito, eu não poderia me casar com Rachel, e seu irmão
nem deveria permitir.
— Eu gostaria de vê-lo me impedir! — Disse Rachel, sentando-se ereta com os pulsos
curvados nos joelhos — Ou você, também, Ian Murray!
Dottie parecia estar achando a conversa divertida; eu podia ver que ela estava lutando
para não rir — e, olhando de lado no banco em minha frente, eu podia ver precisamente a
mesma expressão no rosto do pai dela.
— Bem, é por minha culpa que você não pôde se casar em um encontro Quaker adequado
— Ian protestou.
— Não mais do que minha — Denny disse, fazendo uma careta.
— Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa — Jamie murmurou em meu ouvido. — Você
acha que eu deveria dizer que isso é tudo minha culpa, por deixar Ian com os índios e por ser
um mau exemplo para ele?
— Apenas se o espírito te mover a isso — Eu disse, sem tirar meus olhos do espetáculo.
— Pessoalmente, eu aconselharia que você e o espírito ficassem de fora disso.
A Sra. Figg não estava disposta a ficar de fora. Ela limpou a garganta ruidosamente.
— Agora, perdoem-me por interromper, mas pelo que eu entendo, vocês Amigos pensam
que uma mulher é igual a um homem, certo?
— Sim — Rachel e Dottie disseram firmemente juntas, e todos riram.
A Sra. Figg corou como uma ameixa preta madura, mas manteve a compostura — Bem,
então — ela disse —, se essas senhoras querem se casar com esses cavalheiros, por que vocês
acham que devem tentar demovê-las de fazer isso? Vocês têm alguma reserva em relação ao
assunto?
Um distinto murmúrio feminino de aprovação veio da congregação, e Denny, que ainda
estava de pé, pareceu lutar para manter a compostura.
— Ele tem um pau? — Veio um sussurro com sotaque francês atrás de mim e uma
risadinha desequilibrada de Marsali em resposta. — Você não pode se casar sem um pau.
Aquela reminiscência do casamento pouco ortodoxo de Fergus e Marsali numa praia
caribenha me fez enfiar as rendas do lenço na boca. Jamie se remexeu para suprimir uma risada.
— Eu tenho reservas — Denzell disse, respirando profundamente. — Embora não — ele
adicionou rapidamente, olhando para Dottie — em relação ao meu desejo de me casar com
Dorothea ou à honra de minhas intenções para com ela. Minhas reservas, e talvez as reservas
do amigo Ian, embora eu não possa falar por ele, estão inteiramente em outro sentido. Isto é,
eu... nós, talvez... sinto que nós devemos desnudar as nossas falhas e limitações como... como
maridos — E, pela primeira vez, ele também corou — Para que Dorothea e Rachel possam...
possam chegar a uma adequada... hã...
— Para que elas saibam no que estão se metendo? — A Sra. Figg terminou por ele. — Bem
este é um bom sentimento, Dr. Hunter...
— Amigo — Ele murmurou.
— Amigo Hunter — ela disse, com um leve rolar dos olhos — Mas eu posso te dizer duas
coisas. A primeira é que a sua jovem mulher provavelmente sabe mais sobre você do que você
mesmo. — Mais risadas. — E a segunda, falando como uma mulher com certa experiência, eu
posso dizer a você que ninguém sabe como é ser casado até se encontrar no meio dessa situação
— Ela se sentou com um ar de finalidade, para um zumbido de aprovação.
Havia uma certa quantidade de olhares de um lado para o outro e um senso de movimento
do lado esquerdo da igreja, onde muitos homens estavam sentados juntos. Eu os tinha visto
entrar, com mulheres que claramente eram suas esposas; as mulheres tinham se separado,
entretanto, e tinham ido se sentar do lado direito da igreja, o que me fez pensar que talvez eles
fossem Quakers, embora não houvesse nada em sua vestimenta que os diferenciasse dos outros
trabalhadores e mercadores na congregação. Eu podia vê-los chegando a um tipo silencioso de
consenso, e um deles se levantou.
— Eu sou William Sprockett — ele disse formalmente, e limpou a garganta. — Nós viemos
falar em apoio ao Amigo Hunter. Porque nós também somos Amigos que seguiram os ditames
de nossa consciência e nos envolvemos com a rebelião, além de outros assuntos que um Amigo
normalmente procuraria evitar. E, como consequência... fomos expulsos da associação.
Ele parou, o cenho franzido, evidentemente incerto de como continuar. Uma pequena
mulher que usava amarelo e rosa do outro lado, falou claramente.
— O que o meu marido quer dizer, amigos, é que um homem que não segue o que sua luz
interior o diz para seguir, mal pode ser chamado de homem. E que, embora um homem de
consciência possa ser inconveniente às vezes, isso não o torna um mau marido. — Ela sorriu
para o Sr. Sprockett e se sentou.
— Sim — disse o Sr. Sprockett grato — Como minha esposa foi gentil o suficiente para
dizer, sair para lutar não nos torna inaptos ao casamento. Então todos nós viemos — ele varreu
a mão de forma ampla, indicando seus companheiros e suas esposas pelo corredor — para
aprovar e testemunhar seu casamento, Amigo Hunter.
— E nós apoiaremos o seu casamento, Dorothea — A Sra. Sprockett disse, com a cabeça
inclinada — E ao seu, Rachel.
Denny Hunter tinha ficado de pé enquanto toda essa conversa acontecia.
— Eu... agradeço a vocês, Amigos — ele disse, e se sentou abruptamente, seguido mais
lentamente pelos Sprocketts.
Um silêncio caiu sobre a sala, e por um tempo não houve ruído algum a não ser o barulho
remoto das ruas lá fora. Aqui e ali uma tosse, alguém pigarreando, mas, acima de tudo, silêncio.
Jamie colocou uma mão na minha, e meus dedos se viraram para se entrelaçarem aos dele. Eu
podia sentir o seu pulso com as pontas dos meus dedos, os ossos sólidos dos nós e das falanges.
Sua mão direita, danificada e marcada com as cicatrizes do sacrifício e do trabalho. Marcadas
também com os sinais do meu amor, os reparos brutos feitos em meio à dor e ao desespero.
Sangue do meu sangue, osso do meu osso...
Eu imaginei se pessoas que não eram felizes em seus casamentos pensavam em seus
cônjuges quando testemunhavam uma cerimônia de casamento; pensei que os que são felizes
o faziam sempre. A cabeça de Jenny estava inclinada, seu rosto calmo e introspectivo, mas em
paz; será que agora ela estava pensando em Ian e no dia de seu casamento? Ela estava; sua cabeça
se virou um pouco para um dos lados, ela colocou uma mão suavemente no banco e sorriu para
o fantasma sentado ao seu lado.
Hal e John estavam sentados no banco em frente a nós, um pouco para o lado, e eu podia
capturar vislumbres de seus rostos, tão parecidos e, ainda assim, tão diferentes. Ambos tinham
se casado duas vezes.
Era um pequeno choque, de fato, lembrar que o segundo casamento de John tinha sido
comigo, porque ele parecia tão separado de mim agora, nossa breve parceria parecendo tão
distante no tempo que era quase irreal. E então... havia Frank.
Frank. John. Jamie. Sinceridade de intenção nem sempre era suficiente, eu pensei, olhando
para as pessoas jovens nos bancos na frente da igreja, nenhum deles olhando um para o outro
agora, mas sim para suas mãos cruzadas, para o chão, ou permanecendo de olhos fechados.
Talvez percebendo que, como a Sra. Figg havia dito, um casamento não é feito dos rituais ou das
palavras, mas da convivência.
Um movimento me tirou dos meus pensamentos; Denny tinha se levantado e esticava uma
mão para Dottie — que se levantou como se estivesse hipnotizada — e pegou as mãos dela com
as suas.
— Você tem claramente a sensação desta reunião, Dorothea? — ele perguntou
suavemente e, ao vê-la assentir, falou — Na presença de Deus, e diante de nossos Amigos, eu
tomo você, Dorothea, como minha esposa, prometendo, com a divina assistência, ser um marido
carinhoso e fiel enquanto nós dois vivermos.
Sua voz era baixa, mas claramente audível quando, com o rosto brilhando, ela replicou: —
Na presença de Deus, e diante de nossos Amigos, eu tomo você, Denzell, como meu marido,
prometendo, com a divina assistência, ser uma esposa carinhosa e fiel enquanto nós dois
vivermos.
Eu ouvi Hal recuperar o fôlego, no que pareceu um suspiro, e então a igreja explodiu em
aplausos. Denny pareceu assustado com isso, mas depois sua expressão se quebrou num sorriso
brilhante e ele levou Dottie, radiante em seu braço, pela congregação, até a parte de trás de
igreja, onde eles se sentaram juntos no último banco.
Pessoas murmuraram e suspiraram, sorrindo, e a igreja gradualmente se aquietou — mas
não para sua antiga sensação de contemplação. Havia agora uma sensação de expectativa,
tingida talvez por um pouco de ansiedade, na medida em que a atenção foi focada em Ian e
Rachel — que não mais olhavam um para o outro, mas para o chão.
Ian respirou audivelmente até para os bancos de trás, levantou a cabeça, e, pegando a faca
de seu cinto, a colocou no banco ao lado dele.
— Sim, bem... Rachel sabe que eu fui casado, com uma mulher do clã dos Lobos dos
Kahnyen’kehaka. E a forma Mohawk de se casar talvez não seja tão diferente de como os Amigos
fazem. Nós nos sentamos ao lado um do outro diantes das pessoas, e nossos pais (sim, porque
eles me adotaram) falam por nós, dizendo o que sabem de nós e que nós temos um bom caráter.
Até onde eles sabem — ele adicionou apologeticamente, e houve um sopro de risos. — A moça
com quem me casei carregava um cesto em seu colo, cheio de frutos e vegetais e outros tipos de
comida, e ela disse a mim que prometia me alimentar através de suas plantações e cuidar de
mim. E eu... — Ele engoliu e, esticando a mão, tocou em sua faca. — Eu carregava uma faca e um
arco, e as peles de algumas lontras que eu havia caçado. E eu prometi a ela que caçaria e a
manteria aquecida com as minhas peles. E todas as pessoas concordaram que devíamos nos
casar... e foi o que aconteceu.
Ele parou, mordendo o lábio, e depois limpou a garganta e continuou.
— Mas os Mohawk não se casam pelo seu tempo de vida, mas até que a mulher deseje.
Minha esposa escolheu se separar de mim, não porque eu a agredi ou a maltratei, mas por...
outras razões — Ele limpou a garganta de novo, e sua mão foi para o bracelete de conchas ao
redor de seus bíceps. — Minha esposa era chamada de Wakyo’teyehsnonhsa, que significa
“Trabalha com as Mãos”, e ela fez isso para mim, como um símbolo do amor. — Dedos marrons
e longos atrapalharam-se nas cordas, e a fileira de conchas se soltou, deslizando em sua mão.
— Agora eu a tiro, como um testemunho de que venho até aqui como um homem livre, que a
minha vida e o meu coração são meus de novo para que eu os possa entregar. E eu espero dá-
los para sempre.
As conchas azuis e brancas fizeram um suave estalido quando ele as colocou no banco. Ele
deixou os dedos descansá-los nelas por um momento, e depois retirou as mãos.
Eu podia ouvir a respiração de Hal, estável agora mas suavemente rouca. E a de Jamie,
grossa na garganta.
Eu podia sentir todos os tipos de coisas se movendo como fantasmas no ar espesso e
imóvel da igreja. Sentimentos, simpatia, dúvida, apreensão... Rollo rosnou baixinho na garganta
e ficou em silêncio, os olhos amarelos e observadores aos pés de seu mestre.
Nós esperamos. A mão de Jamie se contorceu na minha, e eu olhei para ele. Ele estava
observando Ian, atentamente, os lábios pressionados juntos, e eu sabia que ele estava pensando
se deveria se levantar e falar em nome de Ian, para garantir à congregação — e à Rachel — de
seu caráter e virtude. Ele capturou meu olhar, entretanto, balançou a cabeça sutilmente, e
assentiu em direção à frente. Era a vez de Rachel falar, se ela quisesse.
Rachel estava sentada imóvel como uma pedra, o rosto branco como ossos e os olhos em
Ian, queimando. Mas ela não disse nada.
E nem se moveu, mas alguma coisa se moveu através dela; eu pude ver o conhecimento
disso passando por seu rosto, e de alguma forma seu corpo mudou, endireitando-se. Ela estava
ouvindo.
Todos nós ouvimos com ela. E o silêncio acendeu lentamente para a luz.
Havia um leve pulsar no ar, então — não exatamente um som — e as pessoas começaram
a olhar para cima, chamadas a partir do silêncio. Um borrão apareceu entre os bancos da frente,
e um beija-flor se materializou, voando através da janela aberta, uma pequena mancha verde e
escarlate pairando ao lado das trombetas de corais das madressilvas nativas.
Um suspiro veio do coração da igreja e o sentimento daquela reunião se tornou claro.
Ian se levantou, e Rachel foi ao encontro dele.
95 – UM COMPASSO DE 3 E 2
Denzell e Dorothea
Era a melhor festa na qual Dorothea Jacqueline Benedicta Grey já tinha estado. Ela dançara com
condes e viscondes nos mais lindos salões londrinos, havia comido de tudo, desde pavão
dourado até truta recheada com camarões e montada num artístico mar de geleia com um tritão
esculpido de gelo brandindo sua lança e tudo mais. E ela havia feito estas coisas em vestidos tão
esplêndidos que os homens piscavam quando ela aparecia.
Seu novo marido não piscava. Ele olhava para ela com tanta intensidade através dos
óculos com aros de aço que ela pensou que poderia sentir seu olhar na pele, do outro lado da
sala e através do seu vestido cinza-claro, e ela pensou que poderia explodir de felicidade,
explodir em pedaços por sobre a mesa da taverna White Camel. Não que alguém notaria se isso
acontecesse; havia tantas pessoas lotando a sala, bebendo, conversando, bebendo, cantando, e
bebendo, que uma vesícula biliar ou um rim aos seus pés poderia passar despercebido.
Apenas possivelmente, ela pensou, uma ou duas pessoas poderiam passar sem serem
notadas também — para fora daquela adorável festa.
Ela chegou a Denzell com alguma dificuldade, havendo um grande número de pessoas
querendo comprimentá-los. Mas quando se aproximou dele, ele esticou a mão e pegou a dela, e
um instante depois eles estavam fora no ar da noite, rindo como mergulhões e se beijando nas
sombras da Capela Anabatista que ficava ao lado da taverna.
— Você quer ir para casa agora, Dorothea? — Denny disse, parando para respirar — Você
está... pronta?
Ela não o soltou, mas se moveu para mais perto, tirando seus óculos e aproveitando o
cheiro de seu sabão de barbear e do amido que engomava sua roupa — bem como o seu cheiro
abaixo de tudo.
— Estamos realmente casados agora? — Ela sussurrou. — Eu sou sua esposa?
— Nós estamos. Você é — ele disse, sua voz um pouco rouca. — E eu sou o seu marido.
Ela pensou que ele estava falando solenemente, mas um sorriso incontrolável de alegria
se espalhou pelo rosto dele ao falar e ela riu alto.
— Nós não dissemos “uma só carne” em nossos votos — ela disse, afastando-se um pouco,
mas continuando a segurar sua mão —, mas você acha que o princípio permanece? Geralmente
falando?
Ele colocou os óculos com mais firmeza sobre o nariz e olhou para ele com intensa
concentração e olhos brilhantes. E, com um dedo da mão livre, tocou seu seio.
— Estou contando com isso, Dorothea.
Ela já estivera em seu quarto antes. Mas primeiramente como uma convidada, e depois como
sua assistente, entrando para embalar uma cesta de ataduras e pomadas antes de acompanhá-
lo para alguma chamada profissional. Era bem diferente agora.
Ele havia aberto todas as janelas mais cedo e as deixou assim, sem se preocupar com os
insetos voadores e com o açougue na rua abaixo. O segundo andar do prédio estaria sufocante
após um dia de calor — com a gentil brisa penetrando por ali, o ar era como leite quente, suave
e líquido na pele, e os cheiros de carne do açougue agora estavam sendo sobrepostos pelos
perfumes da noite a partir dos jardins da Bingham House, duas ruas para frente.
Todos os traços de sua profissão tinham sido removidos, e a luz da vela que ele havia
acendido brilhava serenamente num quarto de mobílias simples, mas confortável. Duas
pequenas poltronas estavam ao lado da lareira, um único livro na mesa entre elas. E, pela porta
aberta, uma cama recém-feita com colcha lisa e travesseiros brancos e gordos acenavam
sedutoramente.
O sangue ainda vibrava através de seu corpo como vinho, embora ela tivesse bebido muito
pouco. Ainda assim, ela se sentia incontavelmente tímida e ficou parada ali por um momento,
ao lado da porta, como se esperasse um convite. Denny acendeu mais duas velas e, virando-se,
viu que ela estava parada ali.
— Venha — ele disse suavemente, esticando uma mão para ela, e ela foi. Eles se beijaram
demoradamente, as mãos vagando lentamente, as roupas começando a se afrouxar. A mão dela
parou casualmente lá embaixo e o tocou através de suas calças. Ele inspirou e ia dizer alguma
coisa, mas não foi rápido o suficiente.
— Uma carne — ela o lembrou, sorrindo, e o envolveu — Eu quero ver a sua parte nisso.
— Você já viu essas coisas antes — Denny disse — Eu sei que sim. Você tem irmãos, por um
lado. E... para tratar os... homens feridos... — Ele estava deitado nu na cama, bem como ela,
acariciando o objeto em questão, que pareceu estar apreciando imensamente a atenção. Os
dedos dele deslizavam pelos cabelos dela, brincando com os lóbulos de sua orelha.
— Eu espero que você não acha que eu já tenha feito isso com os meus irmãos — ela disse,
cheirando-o com prazer. — E os dos homens feridos não estão geralmente em condições de
serem apreciados.
Denny limpou sua garganta e se esticou um pouco, sem se contorcer demais.
— Eu acho que você deveria permitir que eu apreciasse a sua carne um pouco — ele disse
— se espera que eu seja capaz de torná-la minha esposa esta noite.
— Oh — Ela olhou para o pau dele e depois para si mesma, surpresa — O que... Que isso
significa? Por que você não seria capaz?
— Ah — Ele pareceu satisfeito e ansioso (parecia tão jovem sem os óculos) e saltou para
fora da cama, indo para a sala externa, seu traseiro pálido e rígido à luz das velas. Para o espanto
de Dottie, ele voltou com o livro que ela notara na mesa e entregou a ela. Estava cheio de
marcadores e, quando ela o pegou, ele se abriu em suas mãos, exibindo muitos desenhos de
homens nus em cortes transversais, suas partes privadas em vários estágios de dissecção.
Ela olhou descrente para Denny.
— Eu pensei... Eu sei que você é virgem; eu não queria que você ficasse com medo, ou que
se sentisse despreparada. — Ele estava corado como uma rosa, e em vez de desmoronar em
gargalhadas, que era o que ela gostaria de fazer, ela fechou o livro e pegou o rosto dele entre as
mãos.
— Você é virgem também, Denny? — ela disse suavemente. Seu rubor ficou ainda mais
intenso, mas ele manteve o olhar preso ao dela.
— Sim. Mas... eu sei como. Sou um médico.
Aquilo foi demais, e ela realmente riu, mas baixinho e de forma sufocada, o que o
contagiou, e em segundos eles estavam nos braços um do outro na cama, tremendo
silenciosamente, com ocasionais roncos e repetições de “eu sou um médico”, que os lançavam
para novos paroxismos.
Por fim, ela se encontrou deitada de costas, respirando pesadamente, com Denny deitado
sobre si, e uma transpiração escorregadia untando-os. Ela levantou uma mão e tocou seu peito,
e isso o fez ficar arrepiado, os pelos escuros de seu corpo ondulando-se. Ela estava tremendo,
mas não com medo e nem por causa das risadas.
— Você está pronta? — ele sussurrou.
— Uma só carne — ela sussurrou de volta. E eles foram.
As velas tinham queimado até suas bases, e as sombras nuas na parede se moviam lentamente.
— Dorothea!
— Você provavelmente deveria ficar quieto — ela advertiu a ele, brevemente removendo
a boca para poder falar. — Eu nunca fiz isso antes. Você não iria querer que eu me distraísse
agora, iria?
Antes que ele pudesse articular uma única palavra, ela tinha voltado às suas ações
alarmantes. Ele gemeu — não podia evitar — e colocou as mãos gentilmente, e de forma
indefensa, em sua cabeça.
— Isso se chama felação, sabia? — Ela perguntou, parando para respirar.
— Sim. Como... Quero dizer... Oh. Oh, Deus!
— O que disse? — O rosto dela estava lindo, tão corado que a cor aparecia até mesmo à
luz de velas, seus lábios de um rosa profundo e úmidos...
— Eu disse... Oh, Deus!
Um sorriso iluminou sue rosto sombreado com felicidade, e seu aperto firme ficou ainda
mais intenso. A sombra dele estremeceu.
— Oh, bom — ela disse, e com uma pequena risada triunfante, ela se inclinou para deslizar
sobre ele os dentes brancos e afiados.
Ian e Rachel
Ian levantou o vestido verde num farfalhar de tecidos, e Rachel balançou a cabeça com força,
derramando grampos em todas as direções com pequenos ruídos metálicos. Ela sorriu para ele,
seus cabelos escuros ficando levemente cacheados por causa da umidade, e ele riu e tirou um
pouco mais dos pequenos aros de arame.
— Eu pensei que iria morrer — ela disse, correndo os dedos pelos cabelos soltos, que
Jenny tinha colocando para cima antes da festa na taverna de White Camel — Entre os grampos
pinicando minha cabeça e o aperto de meu espartilho. Desamarre-me, sim, marido? — Ela se
virou de costas para ele mas olhou sobre os ombros, os olhos dançando.
Ele pensou que era impossível ser movido ainda mais por sentimentos ou ficar mais
excitado fisicamente — mas aquela única palavra provocou ambas as coisas. Ele passou um
braço ao redor do meio de seu corpo, fazendo-a guinchar, afrouxou os laços de seu espartilho e
gentilmente mordeu sua nuca, fazendo-a guinchar ainda mais. Ela lutou para se soltar, e ele riu,
segurando-a com mais força enquanto afrouxava os laços. Ela era magra como uma muda de
salgueiro e duas vezes mais elástica; ela se contorceu contra ele, e aquela pequena luta aqueceu
ainda mais o seu sangue. Se ele não tivesse autocontrole, ele a teria presa na cama em segundos,
as anáguas, combinações e meias que se danassem.
Mas ele tinha autocontrole e a soltou, retirando as tiras de seus ombros e tirando o
espartilho sobre sua cabeça. Ela se sacudiu novamente, ajeitando a combinação úmida em seu
corpo, e depois ficou parada, olhando presunçosa para ele. Seus mamilos se destacavam com
força sobre o tecido mole.
— Eu ganhei aquela aposta para você — ela disse, passando uma mão sobre a delicada fita
de cetim que passava ao redor do pescoço em sua combinação e se agitava na bainha, adornada
com flores azuis, amarelas e rosas.
— Como você soube disso? — Ele a alcançou, puxando-a para perto, e espalmou ambas as
mãos em seu traseiro, nu abaixo da combinação — Cristo! Você tem um doce e pequeno traseiro
arredondado.
— Blasfêmia, em nossa noite de núpcias? — Mas ela estava satisfeita, ele podia dizer.
— Não é blasfêmia; é uma oração de ação de graças. E quem contou a você sobre a aposta?
— Fergus tinha apostado com ele uma garrafa de cerveja preta que uma noiva Quaker usaria
simples roupas de baixo de linho. Ele não sabia, mas esperava que Rachel não sentisse que
agradar seu marido era a mesma coisa de fazer um espetáculo vaidoso para o mundo.
— Germain, é claro — Ela colocou os próprios braços ao redor dele e o espalmou de
maneira semelhante, sorrindo — O seu não é pequeno e nem arredondado, mas nem por isso é
menos doce, eu acho. Você precisa de ajuda com os seus fechos?
Ele poderia dizer que ela queria ajudá-lo, então ele deixou que ela se ajoelhasse e
desabotoasse sua calça. A visão do topo de sua cabeça escura e desgrenhada, curvando-se
seriamente para realizar a tarefa, fez com que ele colocasse sua mão gentilmente sobre ela,
sentindo seu calor, desejando o toque de sua pele.
Suas calças caíram e ela se levantou para beijá-lo, sua mão acariciando seu pau rígido
como um pensamento tardio.
— Sua pele é tão macia ali — ela disse contra sua boca. — Como veludo!
Seu toque não era hesitante, mas muito suave, e ele colocou a mão para baixo e envolveu
os dedos nos dela, mostrando a forma exata de fazer aquilo, como agarrá-lo com firmeza e
excitá-lo.
— Eu gosto quando você geme, Ian — ela sussurrou, aproximando-se mais e trabalhando
em seu pau mais um pouco.
— Eu não estou gemendo.
— Sim, está.
— Eu só estou respirando um pouco. Aqui... eu gosto disso... mas... aqui.
Engolindo em seco, ele a pegou no colo — fazendo com que ela desse um grito — e a
carregou até a cama. Ele a deixou cair sobre o colchão — ela soltou um grito ainda mais alto —
e deitou ao lado dela, pegando-a nos braços. Houve certa quantidade de contorções, risos e
ruídos inarticulados, e ela tirou a camisa de chita dele, enquanto ele colocava a combinação dela
para baixo, apesar de ainda estar presa em sua cintura.
— Eu ganhei — ela disse, balançando a anágua amassada para baixo e a chutando para
fora.
— Você acha isso, não é?
Ele inclinou a cabeça e pegou seu mamilo na boca. Ela fez um ruído muito gratificante e
agarrou sua cabeça. Ele se intrometeu gentilmente sob seu queixo e, em seguida, baixou a
cabeça e chupou com mais força, sacudindo a língua como uma cobra.
— Eu gosto quando você geme, Rachel — ele disse, parando para respirar e rindo para ela
— Você quer que eu te faça gritar?
— Sim — ela disse, sem fôlego, uma mão no mamilo úmido. — Por favor.
— Daqui a pouco. — Ele parou para respirar, levantando-se acima dela para que um pouco
de ar entrasse entre seus corpos (era um cômodo pequeno e quente) e ela colocou a mão para
cima para sentir seu peito. Ela esfregou o polegar suavemente contra o mamilo dele, e a
sensação foi como um tiro diretamente para seu pênis.
— Deixe-me — ela disse suavemente, e se levantou, uma mão ao redor do pescoço dele, e
o chupou, muito gentilmente.
— Mais — ele disse com a voz rouca, apoiando-se contra o peso dela. — Com mais força.
Com os dentes.
— Com os dentes? — Ela deixou escapar, soltando-o.
— Com os dentes — ele disse sem fôlego, rolando para ficar de costas e para mantê-la
sobre seu corpo. Ela inspirou e abaixou a cabeça, os cabelos se esparramando pelo peito dele.
— Ai!
— Você disse com os dentes — Ela se sentou, ansiosa. — Oh, Ian, eu sinto muito. Eu não
queria machucá-lo.
— Eu... você não o fez... bem, você fez, mas... eu quero dizer... Faça de novo, sim?
Ela olhou para ele, em dúvida, e ocorreu a ele que, quando seu tio Jamie dissera para ele
ir devagar e de forma gentil com uma virgem, não se referia apenas ao momento da defloração.
— Aqui, mo nighean donn — ele disse, puxando-a para deitar ao seu lado. Seu coração
estava martelando e ele suava. Ele alisou os cabelos para trás de suas têmporas e colocou o
nariz em sua orelha — Acalme-se um pouco, sim? E então eu vou te mostrar o que eu quis dizer
quando pedi para você ir com os dentes.
Ian cheirava a vinho e uísque, além do cheiro almiscarado de pele masculina — ele queimava
surpreendentemente sob as mãos dela e agora recendia a um cheiro animalesco, de uma forma
muito melhor. Ela pressionou o rosto na curva de seu ombro, respirando com prazer. Ela tinha
o pau dele em suas mãos, segurando com firmeza... mas a curiosidade fez com que ela
diminuísse o aperto e tateasse mais para baixo, os dedos se entrelaçando nos pelos pubianos
grossos. Ele exalou repentinamente quando ela envolveu seu escroto, e ela sorriu contra seu
ombro.
— Você se importa, Ian? — Ela sussurrou, rolando a adorável forma ovalada de suas bolas
na palma da mão. Ela já vira o escroto masculino inúmeras vezes, folgado e enrugado, e embora
não sentisse nojo, nunca tinha pensado nele com mais do que um leve interesse. Aquilo era
maravilhoso, contraído de forma apertada, a pele tão macia e tão quente... Com atrevimento, ela
desceu um pouco mais e sentiu um pouco atrás, entre suas pernas.
O braço dele ao redor dos ombros dela se enrijeceu, mas ele não pediu para que ela
parasse, em vez disso abrindo um pouco as pernas e permitindo que ela o explorasse. Ela
limpara traseiros masculinos, centenas de vezes, e ocorreu-lhe o pensamento fugaz que nem
todos tomavam muito cuidado... mas seus pelos eram enrolados e muito limpos, e os quadris
dela se moviam involuntariamente contra ele quando seus dedos escorregaram hesitantemente
por entre suas nádegas. Ele se contorceu, tensionando-se involuntariamente, e ela parou,
sentindo-o tremer. Então ela percebeu que ele estava rindo, balançando-se silenciosamente.
— Estou fazendo cócegas em você? — Ela perguntou, apoiando-se num cotovelo. A luz da
única vela tremeluziu em seu rosto, esvaziando suas bochechas e fazendo seus olhos brilharem
como se ele estivesse sorrindo para ela.
— Sim, esta é uma palavra para isso — Ele correu uma mão mais ou menos até a metade
de suas costas e a segurou pela nuca. Ele balançou a cabeça lentamente, olhando para ela. Os
cabelos dele tinham se soltado da trança e estavam espalhados escuros atrás de sua cabeça —
Aqui estou eu, tentando ir devagar, tentando ser gentil... e a próxima coisa que eu percebo é
você apertando minhas bolas e enfiando os dedos no meu traseiro!
— Isso é errado? — Ela perguntou, sentindo um leve enjoo — Eu não tive a intenção de
ser... hã... tão... ousada?
Ele e puxou para baixo e a abraçou apertado.
— Você não pode ser ousada em exagero comigo, moça — ele sussurrou em seu ouvido, e
deslizou as mãos pelas suas costas, descendo ainda mais. Ela engasgou. — Shhh — ele
sussurrou, e continuou, lentamente — Eu pensei que talvez você poderia ter um pouco de medo
de início. Mas você não está com medo, não é?
— Eu estou. Estou... a-aterrorizada — Ela sentiu a risada borbulhar por seu peito, mas
havia um pouco de verdade naquilo também, e ele ouvira. Sua mão parou de se mover e ele se
afastou o suficiente para olhar para ela, apertando um pouco os olhos.
— Está?
— Bem... Não aterrorizada, exatamente. Mas... — Ela engoliu em seco, repentinamente
envergonhada — Eu só... Isso é tão bom. Mas eu sei que quando você... quando nós... bem, vai
doer, na primeira vez. Eu... Eu estou, de alguma forma, com medo disso... bem, eu não quero
parar o que estamos fazendo, mas eu... eu gostaria de chegar àquela parte, para não ter mais
que me preocupar.
— Passar por isso — ele repetiu. Sua boca se torceu um pouco, mas sua mão era gentil na
base de suas costas — Bem, então — Ele abaixou a outra mão e a envolveu, muito
delicadamente, entre as pernas.
Ela estava inchada ali, e escorregadia — e ficava cada vez mais desde que ele tinha
levantado o vestido sobre sua cabeça. Seus dedos se moveram, um e depois outro, brincando,
acariciando... e... e...
Aquilo a pegou completamente de surpresa, um sentimento que ela conhecia, mas maior,
muito maior, e então ela se deixou levar através do êxtase.
Ela se acomodou lentamente e de forma lânguida, latejando. Em todos os lugares. Ian a
beijou suavemente.
— Bem, isso não demorou muito, não é? — ele murmurou. — Coloque as mãos em meus
braços, mo chridhe, e se segure. — Ele se moveu para cima dela, ágil como um felino, e colocou
o pau entre suas pernas, deslizando lenta mas firmemente. Muito firmemente. Ela estreitou um
pouco os olhos, contraindo-se involuntariamente, mas o caminho estava escorregadio e sua
carne inchada deu as boas-vindas a ele; e nenhuma quantidade de resistência seria capaz de
mantê-lo longe.
Ela percebeu que seus dedos estavam enfiados em seus braços, mas não o soltou.
— Eu estou machucando você? — Ele disse suavemente. Ele parou de se mover, seu
comprimento total dentro dela, estirando-a de uma forma enervante. Algo tinha se rompido, ela
pensou; queimava um pouco.
— Sim — ela disse, sem fôlego. — Eu não... me importo.
Ele se elevou lentamente e a beijou no rosto, no nariz, nas pálpebras, suavemente. E
durante todo o tempo, havia a consciência daquilo — dele — dentro dela. Ele se afastou um
pouco e se moveu. Ela fez um ruído baixo e sem fôlego, não exatamente um protesto, um pouco
de dor, não exatamente encorajamento.
Mas ele tomou como encorajamento e se moveu com mais força.
— Não se preocupe, moça — ele disse, um pouco sem fôlego também. — Eu não vou
demorar muito também. Não desta vez.
Rollo estava roncando no canto, deitado de costas para se resfriar, as pernas dobradas como as
de um inseto.
Ela tinha um gosto suavemente doce, de seu próprio almíscar, e um traço de um forte
sabor animalesco que ele reconheceu como sua própria semente.
Ele enterrou seu rosto nela, respirando profundamente, e o ligeiro sabor salgado do
sangue o fez pensar em trutas, recém-pescadas e mal cozinhas, a carne quente e macia, rosada
e escorregadia em sua boca. Ela o empurrou com surpresa e arqueou-se contra ele, e ele
intensificou o seu poder sobre ela, fazendo um ruído baixo de reafirmação.
Era como pescar, ele pensou sonhadoramente, as mãos abaixo de seus quadris. Formando
em sua mente a figura escura e elegante abaixo da superfície, deixando a isca descer até que...
Ela inspirou profundamente e com força. E então havia o engajamento, a súbita sensação de
espanto, e logo em seguida uma consciência feroz quando a linha se esticava, você e o peixe
focados um no outro como se não houvesse mais nada no mundo...
— Oh, Deus — ele sussurrou, e parou de pensar, apenas sentindo os pequenos
movimentos de seu corpo, as mãos dela em sua cabeça, seu cheiro e seu sabor, e os sentimentos
de Rachel passaram para ele através de palavras murmuradas.
— Eu amo você, Ian...
E não havia mais nada no mundo além dela.
Jamie e Claire
A luz de uma baixa meia-lua amarela brilhava através das aberturas das árvores, flamejando
nas águas escuras e correntes do Delaware. Tão tarde da noite, o ar estava fresco por causa do
rio, muito bem-vindo aos rostos e corpos aquecidos pela dança, pelo banquete, pela bebedeira
e pelo fato de terem ficado tão próximos com outras centenas de corpos quentes pelas últimas
seis ou sete horas.
Os casais tinham escapado relativamente cedo: Denzell e Dottie muito discretamente, Ian
e Rachel através de gritos estridentes e sugestões indelicadas de uma sala cheia de convidados
de uma festa de casamento. Uma vez que eles saíram, a festa se tornou uma imensa folia, a
bebedeira interrompida ocasionalmente pelos brindes de casamento.
Nós tínhamos nos afastado dos irmãos Grey — Hal, como pai de uma das noivas, era o
anfitrião da festa — pouco após a meia-noite. Hal estivera sentado numa cadeira próxima à
janela, muito bêbado e respirando roucamente por causa da fumaça, mas suficientemente
composto para se levantar e se inclinar sobre minha mão.
— Você deveria ir para casa — Eu o aconselhei, ouvindo o barulho fraco de sua respiração
sobre os ruídos da festa — Pergunte a John se ele tem mais fumo, e se ele tiver, fume. Isso fará
bem a você. — E não apenas fisicamente, pensei.
— Agradeço por seus gentis conselhos, senhora — ele disse secamente, e, tardiamente, eu
me lembrei de nossa conversa na última vez que estivemos expostos ao fumo: sua preocupação
com o filho Benjamin. Se ele pensara nisso também, entretanto, não disse nada, e meramente
beijou minha mão e assentiu para Jamie, em despedida.
John ficara ao lado de seu irmão pela maior parte da noite e estava atrás dele agora,
enquanto nós nos retirávamos. Seus olhos encontraram os meus brevemente, e ele sorriu, mas
não deu um passo para frente para tomar minha mão — não com Jamie em meus ombros. Eu
imaginei brevemente se veria algum dos Grey novamente.
Nós não tínhamos voltado para a tipografia, mas vagávamos pelo rio, aproveitando o
frescor do ar noturno e conversando sobre os jovens casais e a excitação do dia.
— Eu imagino que suas noites estão sendo ainda mais excitantes — Jamie comentou. —
Acho que as moças estarão doloridas amanhã, pobrezinhas.
— Oh, pode ser que não sejam apenas as moças — eu disse, e ele fungou com diversão.
— Sim, bem, você pode estar certa sobre isso. Se bem me lembro, na manhã seguinte ao
nosso casamento, eu pensei por um momento ter participado de uma luta. E então eu a vi na
cama comigo e sabia que era o que tinha acontecido.
— Isso não o atrapalhou nem um pouco — eu comentei, chutando uma pedra pálida em
meu caminho — Eu me lembro de ter sido rudemente acordada na manhã seguinte.
— Rudemente? Eu fui muito gentil com você. Mais do que você foi comigo — ele adicionou,
um sorriso distinto na voz — Eu disse isso a Ian.
— Você disse o que a Ian?
— Bem, ele queria um conselho, e então eu...
— Conselho? Ian? — Até onde eu sabia, o garoto tinha começado suas atividades sexuais
aos quatorze anos, com uma prostituta de idade similar num bordel em Edimburgo, e não tinha
olhado para trás. Além de sua esposa Mohawk, houve pelo menos meia dúzia de outras ligações
que eu sabia, e eu tinha certeza de que não sabia de todas.
— Sim. Ele queria saber como lidar gentilmente com Rachel, ela sendo uma virgem. É algo
novo para ele — ele adicionou ironicamente.
Eu ri.
— Bem, eles terão uma noite interessante, então... todos eles — Eu contei a ele sobre as
perguntas de Dottie no acampamento, sobre o aparecimento de Rachel e a nossa sessão pontual
de aconselhamento pré-marital.
— Você disse o que a elas? — Ele bufou com diversão. — Você me faz dizer “Oh, Deus” o
tempo todo, Sassenach, e a maioria das vezes não tem nada a ver com a cama.
— Eu não posso evitar que você seja naturalmente disposto a usar esta expressão — eu
disse. — Mas você realmente diz isso na cama com muita frequência. Você até disse isso na
nossa noite de núpcias. Repetidamente. Eu me lembro.
— Bem, não é de se admirar, Sassenach, com todas as coisas que você fez comigo na nossa
noite de núpcias.
— O que eu fiz com você? — Eu disse, indignada. — O que diabos eu fiz com você?
— Você me mordeu — ele disse imediatamente.
— Oh, eu não mordi. Onde?
— Aqui e ali — ele disse evasivamente, e eu o acotovelei — Oh, tudo bem... você mordeu
o meu lábio enquanto eu te beijava.
— Eu não me lembro de ter feito isso — eu disse, olhando para ele. Suas feições eram
invisíveis, mas o brilho da água por causa da lua delineou sua silhueta ousada e de nariz reto.
— Eu me lembro de você me beijando por um longo tempo enquanto tentava desabotoar meu
vestido, mas tenho certeza de que não o mordi.
— Não — ele disse pensativamente, e correu a mão suavemente pelas minhas costas. —
Foi mais tarde. Depois que eu saí para pegar um pouco de comida pra você, e Rupert e Murtagh
e todos os outros ficaram me zombando. Eu sei porque foi quando eu bebi um pouco do vinho
que eu levei para você, e eu notei que queimou um corte em meu lábio. E eu a levei para cama
de novo antes de tomar o vinho, então deve ter sido naquele momento.
— Ha — eu disse — Naquele momento, você não teria notado se eu tivesse arrancado sua
cabeça como um louva-a-deus. Você o tomou adequadamente e pensou que sabia de tudo.
Ele colocou um braço ao redor de meus ombros, puxou-me para perto e sussurrou em
meu ouvido — Eu a tomei adequadamente, a nighean. E nem você estava notando tantas coisas,
além do que estava acontecendo entre as suas pernas.
— É meio difícil de ignorar aquele tipo de acontecimento — eu disse formalmente.
Ele riu baixinho e, parando sob uma árvore, puxou-me para junto de si e me beijou. Ele
tinha uma boca adoravelmente macia.
— Bem, eu não posso negar que você me ensinou as coisas, Sassenach — ele murmurou.
— E fez um ótimo trabalho.
— Você aprendeu realmente rápido — eu disse — Talento natural, eu suponho.
— Se fosse uma questão de treinamento especial, Sassenach, a raça humana teria morrido
há muito tempo — Ele me beijou de novo, levando mais tempo desta vez. — Você acha que
Denny sabe o que está prestes a fazer? — ele perguntou, soltando-me — Ele é um homem muito
virtuoso, sim?
— Oh, eu tenho certeza de que ele sabe tudo o que precisa saber — Protestei. — Ele é um
médico, afinal de contas.
Jamie deu uma risada cínica.
— Sim. Embora ele possa ter contato com prostitutas estranhas ocasionalmente, é por
causa de sua profissão e não da profissão delas. Além disso... — Ele se moveu para mais perto
e, colocando as mãos através das fendas dos bolsos de minha saia, apertou firmemente meu
traseiro. — Eles ensinam na faculdade de medicina como abrir as pernas de sua mulher e a
lamber do cóccix até o umbigo?
— Eu não te ensinei isso!
— De fato você não ensinou. E você é uma médica, não?
— Isso... Tenho certeza de que isso não faz nenhum sentido. Você está bêbado, Jamie?
— Eu não sei — ele disse, rindo — Mas eu tenho certeza de que você está, Sassenach.
Vamos para casa — ele sussurrou, inclinando-se para mais perto e passando a língua na lateral
do meu pescoço — Eu quero que você me faça dizer “Oh, Deus” para você.
— Isso... pode ser arranjado — Eu tinha esfriado um pouco durante nossa caminhada, mas
os últimos cinco minutos tinham caído em mim como uma vela, e se antes eu queria ir para casa
para tirar o meu espartilho, agora eu estava imaginando se conseguiria esperar tanto tempo.
— Bom — ele disse, tirando as mãos de minha saia — E então eu verei o que posso fazer
você dizer, mo nighean donn.
— Certifique-se de que me fará dizer “não pare”.
PARTE VI
OS LAÇOS QUE UNEM
Se ela não precisasse de selos, não teria parado nos correios. Ela teria enviado aquele lote de
cartas para a caixa de correio para que o carteiro coletasse, ou as colocado diretamente na caixa
de correio da esquina quando levara as crianças à praia para ver os pelicanos.
Mas ela precisava de selos; havia pelo menos mais uma dúzia de coisas incômodas com as
quais lidar: coisas que precisavam de reconhecimento de firma, ou fotocópias ou declarações
fiscais ou...
— Palavra com M — ela murmurou, deslizando para fora do carro — Maldita palavra com
M da palavra com P — Aquilo era um pequeno alívio para a sensação de ansiedade e opressão.
Aquilo não era justo. Quem precisava mais do alívio de ocasionais palavrões do que uma mãe com
filhos pequenos?
Talvez ela devesse começar a usar a expressão de sua mãe, “Jesus H. Roosevel Christ”, em
vez disso. Jem tinha incorporado aquilo em sua própria coleção de expletivos antes de fazer
quatro anos e o tinha ensinado à Mandy; eles não ficariam chocados ao ouvir isso.
Não tinha sido tão difícil da última vez. Bem, não, ela se corrigiu. Tinha sido muito mais
difícil, no sentido mais importante. Mas isso... esse... esse pântano de detalhes mesquinhos —
propriedade, contas bancárias, aluguel, notificações... Ela sacudiu o maço de envelopes lacrados
em sua mão contra a coxa, irritada. Se pudesse, teria pego Jem e Mandy pelas mãos e corrido,
não caminhado, diretamente para as pedras sem nenhum sentimento além do alívio por
abandonar todas essas malditas coisas.
Ela realmente não tinha muitas coisas quando fez isso pela primeira vez. E, é claro, ela
tinha alguém com quem deixar tudo. Seu coração se apertou um pouco, lembrando-se do dia
em que pregou a tampa da caixa de madeira que contava a modesta história de sua família: a
prataria que vinha da família de seu pai, fotografias dos pais de sua mãe, a coleção das primeiras
edições de seu pai, o uniforme Rainha Alexandra da Segunda Guerra Mundial de sua mãe, ainda
com um fraco mas detectável odor de iodo impregnado a ele. E ela tinha sentido tanta dor ao
escrever aquela nota a Roger: Você me disse uma vez que... todos precisam de uma história. Esta
é a minha...
Ela tinha certeza naquele momento que nunca mais veria Roger de novo, quanto menos a
prataria.
Ela piscou com força e empurrou a porta dos correios com tanta força que ela bateu na
parede, e todos na recepção se viraram para olhar para ela. Com o rosto quente, ela pegou a
maçaneta e fechou a porta com cuidado exagerado, e depois cruzou a recepção pisando de
forma macia e evitando todos os olhares.
Ela colocou os envelopes através das aberturas da caixa de correio, com um certo
sentimento de sombria satisfação para cada coisa tediosa eliminada. Preparar-se para
desaparecer no passado, deixando todas as coisas para trás, era uma coisa; preparar-se para
desaparecer enquanto pensava que você poderia eventualmente voltar e precisar daquelas
coisas de novo... ou que seus filhos poderiam voltar dali a vinte anos, sem você... Ela engoliu.
Aquilo era diferente, como seu pai era inclinado a dizer. Ela não poderia apenas jogar tudo
aquilo sobre o Tio Joe, ele não...
Ela se virou, olhando através da recepção automaticamente até a caixa de correio, e parou,
vendo a carta. Ela sentiu os pelos se elevarem em seu antebraço enquanto marchava pelo
linóleo sujo e estendia a mão para a maçaneta, antes mesmo que sua mente registrasse
conscientemente o fato de que não se parecia como uma conta de serviço, uma carta de
aplicação de cartão de crédito ou qualquer tipo de correspondência oficial.
G-H-I-D-E-I... A tranca do cadeado de combinações destravou e a pequena e pesada porta
se abriu. E bem ali no correio, ela sentiu o cheiro de urze e fumaça de turfa e o hálito das
montanhas, tão fortemente que seus olhos borraram e sua própria respiração ficou presa na
garganta.
Era um envelope branco comum, dirigido a ela pelas mãos capazes de Joe Abernathy. Ela
podia sentir alguma coisa dentro dele, outro envelope, este com um caroço dentro — um selo
de algum tipo? Ela voltou ao carro alugado antes de abrir o envelope.
Não era um envelope, mas uma folha de papel, dobrada e selada com cera, os borrões da
tinta preta atravessando o papel onde a pena tinha riscado muito profundamente. Uma carta
do século dezoito. Ela a pressionou em seu rosto, inalando, mas o cheiro de fumaça e urze tinha
ido embora — se é que estivera lá. Agora ela só sentia o cheiro de papel antigo e quebradiço;
nem mesmo o odor ferroso de tinta tinha sobrado.
Havia uma breve nota de Tio Joe, um pedaço de papel dobrado ao lado da carta.
Bree, querida...
Espero que você receba isso a tempo. Chegou do agente imobiliário da Escócia. Ele disse que
quando o novo inquilino de Lallybroch foi armazenar os móveis, eles não conseguiram retirar
aquela grande escrivaninha pela porta do escritório. Então, eles chamaram um dono de
antiquário para desmontar o móvel — muito cuidadosamente, ele me garantiu. E quando o
fizeram, encontraram três selos da Rainha Victoria e isso.
Eu não li. Se você ainda não partiu, fale-me se quer os selos; Lenny Jr. ficará com eles e lhes
dará um lar, se você não quiser.
Com todo o meu amor,
Tio Joe.
Brianna Randall Fraser MacKenzie, ele tinha escrito na frente. Para ser mantido até o
momento de necessidade.
Aquilo a fez rir, mas o som saiu como um soluço, e ela passou as costas das mãos sobre os
olhos, desesperada para ler.
As primeiras palavras a fizeram derrubar a carta como se ela estivesse pegando fogo.
15 de Novembro, 1739
Ela a pegou de volta. Para que aquilo não passasse despercebido, ele tinha sublinhado o
ano de 1739.
— Como diabos você... — ela disse em voz alta, e colocou a mão sobre a boca onde a
manteve até terminar de ler.
Minha querida,
Eu sei o que você está pensando, e eu não sei. Minha melhor aposta é que eu vim em busca
de Jeremiah e o encontrei — ou posso ter encontrado — mas não a pessoa que eu pensei que
estivesse procurando.
Eu busquei ajuda em Lallybroch, onde conheci Brian Fraser (você gostaria dele, e ele de você)
e através dele — com a assistência do Capitão Jack Randall, de todas as pessoas — tomei posse de
um conjunto de placas de identificação da RAF. Eu reconheci a informação nelas.
Nós (Buck ainda está comigo) estivemos procurando por Jem desde nossa chegada e não
encontramos sinal algum dele. Eu não vou desistir — é claro que você sabe disso — mas como
nossas perguntas não surtiram fruto algum nas terras dos clãs do norte, eu sinto que devo seguir
a única pista que tenho para ver se consigo localizar o dono destas placas.
Eu não sei o que pode acontecer, e eu tinha que te deixar algumas palavras, embora as
chances de você recebê-las sejam minúsculas.
Que Deus abençoe a você e Jem — onde quer que ele esteja, pobrezinho, e eu só posso esperar
e rezar para que ele esteja bem — e à nossa doce Mandy.
Eu te amo. E sempre vou te amar.
R.
Ela não percebeu que estava chorando, até que as lágrimas que escorriam por seu rosto
fizessem cócegas em sua mão.
— Oh, Roger — ela disse — Oh, bom Deus!
No final da noite, com as crianças dormindo seguras e o som do Oceano Pacífico através das
portas de varanda, Brianna pegou um caderno encapado, novo, e uma caneta Fisher Space (que
podia escrever de cabeça para baixo, debaixo d’água e em condições de gravidade zero), que ela
pensou ser inteiramente apropriada para aquela composição em particular.
Ela se sentou sob uma boa luz, parou por um momento, e então se levantou e serviu a si
mesma uma taça de vinho branco gelado, que ela colocou na mesa ao lado de seu caderno. Ela
estivera compondo pedaços daquilo em sua mente durante todo o dia e, então, começou sem
dificuldade.
Não havia como dizer quão velhas as crianças seriam quando — ou se — elas lessem
aquilo, então ela não fez esforço algum para simplificar as coisas. Não era um assunto simples.
Certo. O papai escreveu o que nós achamos saber sobre isso, em termos de observação de
ocorrências, efeitos físicos e moralidade. Esta próxima parte poderia ser melhor descrita como as
hipóteses preliminares da causa: como os viajantes do tempo funcionam. Eu chamaria isso de
parte científica, mas vocês não podem aplicar os métodos científicos com os dados escassos de que
dispomos.
Qualquer abordagem científica começa com observações, entretanto, e nós temos o
suficiente disso para construir uma série de hipóteses. Testá-las...
A ideia de testá-las fez a mão de Brianna tremer tanto que ela foi obrigada a pousar a
caneta e respirar lentamente por dois ou três minutos, até que os pontos pretos parassem de
dançar na frente de seus olhos. Cerrando os dentes, ela escreveu:
Hipótese 1: Que a passagem/vórtice do tempo ou o que quer que seja, surge no cruzamento
das linhas ley (definidas aqui como forças geomagnéticas, em vez da definição folclórica de linhas
retas traçadas num mapa entre estruturas antigas, como montanhas, círculos de pedra ou locais
de adoração ancestral, como os lagos santos. A suposição é que as linhas folclóricas podem
coincidir ou ser paralelas às linhas geomagnéticas, mas não há grandes evidências deste efeito).
Evidências que suportam essa hipótese: algumas. Mas para começar, nós não sabemos se as
pedras são parte dessa coisa do vórtex ou apenas marcadores configurados quando os povos
antigos viam outras pessoas dos povos antigos pisarem na grama bem ali... e... puf!
— Puf! — Ela murmurou para si mesma, e alcançou a taça de vinho. Ela planejara beber
como uma recompensa quando terminasse, mas no momento ela se sentia mais necessitada de
primeiros socorros do que de recompensas. — Eu gostaria que fosse apenas “Puf”.
Um gole, dois, e depois ela colocou a taça para baixo, o toque cítrico do vinho
permanecendo prazerosamente em sua língua.
— Onde estávamos? Oh, puf...
O papai foi capaz de conectar muitas linhas ley folclóricas aos pés dos círculos de pedra.
Teoricamente seria possível verificar a polaridade geomagnética da rocha ao redor dos círculos
de pedra; isso poderia de alguma forma suportar a hipótese 1, mas poderia ser um pouco difícil de
executar. Isto é, você pode medir o campo magnético da terra — Carl Friedrich Gauss descobriu
como fazer isso em 1835 aproximadamente — mas não é o tipo de coisa que é muito feita.
Os governos que fazem pesquisas geológicas têm equipamentos para isso; eu sei que o
Observatório Eskdalemuir da British Geological Survey tem, porque vi um artigo sobre isso. E eu
cito: “Tais observatórios podem medir e prever as condições como tempestades magnéticas que
algumas vezes afetam as comunicações, a energia elétrica e outras atividades humanas”.
O exército faz esse tipo de coisa também, ela escreveu num pensamento tardio.
Hipótese 2: Entrar num vórtice do tempo com uma pedra preciosa (preferencialmente
lapidada, vide observações feitas por Geillis Duncan em relação a este efeito) oferece algum tipo
de proteção ao viajante em termos de efeitos físicos.
Pergunta: por que lapidar? Nós usamos principalmente pedras não lapidadas ao passar por
Ocracoke e nós sabemos de outros viajantes que usam pedras não lapidadas.
Especulação: Joe Abernathy disse que um de seus pacientes, um arqueologista, contou a ele
sobre um estudo dos círculos de pedra em Orkney, onde foi descoberto que as pedras têm
qualidades tonais interessantes, pois fornecem uma espécie de nota musical. Qualquer tipo de
cristal — e todas as gemas têm uma estrutura cristalina interior — tem uma vibração
característica quando é atingido; é assim que os relógios de quartzo funcionam.
Então, e se o cristal que você carrega tem vibrações que respondem a — ou estimulam, nesse
caso — vibrações nos círculos de pedra próximos? E se este for o caso... quais poderiam ser os
efeitos físicos? N.F.I.*
Ela fez uma pequena nota no fim da página: * N.F.I. – Não faço ideia, e retornou à escrita.
Era melhor não dizer aquilo. Ela hesitou por algum tempo, mas, afinal de contas, suas
próprias experiências eram dados, e como havia tão poucos deles... Ela terminou a frase e
continuou.
Hipótese 3: Viajar com uma pedra preciosa permite que alguém tenha mais controle ao
escolher para onde/quando ir.
Ela parou, franzindo o cenho, e riscou o “onde”. Não havia qualquer indicação de pessoas
viajando entre lugares diferente. Seria muito útil se fosse possível, entretanto... Ela suspirou e
continuou.
Evidência: muito vaga, devido à falta de dados. Nós soubemos de alguns poucos viajantes
além de nós mesmos e, destes, cinco Americanos Nativos (parte de um grupo político chamado
Montauk Five) viajaram usando as pedras. Um deles morreu na tentativa, outro sobreviveu e
viajou 200 anos no passado, e outro, um homem chamado Robert Springer (conhecido como
“Dente de Lontra”), viajou mais do que a distância comum, chegando a (aproximadamente) 250 a
260 anos antes de seu ano de partida. Nós não sabemos o que aconteceu com os dois outros
membros do grupo: eles podem ter viajado para outro período e nós não encontramos menção
alguma a eles (é difícil rastrear um viajante do tempo, se você não sabe onde ele pode ter ido, qual
é o seu nome real, ou como ele se parece); podem ter sido lançados para fora do vórtice do tempo
por razões desconhecidas; ou podem ter morrido.
Aquela pequena possibilidade a enervou tanto que ela pousou a caneta e tomou vários
goles grandes do vinho antes de continuar.
Pela evidência do diário do Dente de Lontra, estes homens viajaram com pedras preciosas, e
ele havia encontrado uma grande opala com a qual tinha intenção de fazer a viagem de volta.
(Esta é a pedra que Jemmy fez explodir, na Carolina do Norte, presumivelmente porque opalas de
fogo têm grande quantidade de água).
Não tinha — e pensando de volta naquilo, ela não podia imaginar como não — ocorrido a
ela no momento ver se Jemmy poderia ferver água ao tocá-la. Bem, ela podia compreender o
motivo de não ocorrer a ela, em retrospecto; a última coisa que ela queria era qualquer outra
peculiaridade perigosa perto de seus filhos, quanto menos peculiaridades perigosas inerentes
a eles.
— Eu imagino quão frequente dois viajantes do tempo se casam? — ela disse em voz alta.
Não havia como dizer qual era a frequência do gene — se era um gene, mas parecia uma
aposta decente — na população em geral, mas não devia ser muito comum, ou as pessoas
passariam pelo Stonehenge e por Callanish e fariam “puf” diariamente...
— Alguém teria notado — ela concluiu, e ficou sentada e girando a caneta por um tempo
de meditação.
Ela teria encontrado e se casado com Roger se não fosse por toda essa coisa de viajante do
tempo? Não, porque foi a necessidade de sua mãe de descobrir o que acontecera aos homens de
Lallybroch que a levara até a Escócia.
— Bem, eu não me arrependo — ela disse em voz alta para Roger. — Apesar de... tudo.
Ela flexionou os dedos e pegou a caneta, mas não escreveu. Ela não tinha pensado em mais
nada além das hipóteses e queria que elas estivessem claras em sua mente, pelo menos. Ela
tinha vagas noções sobre como um vórtice do tempo poderia ser explicado num contexto de
uma teoria de campo unificada, mas se Einstein não pudera fazer isso, ela não imaginava que
poderia fazê-lo naquele exato minuto.
— Deve estar em algum lugar, entretanto — ela disse em voz alta, e esticou a mão para
pegar o vinho. Einstein tentara formar uma teoria que lidasse tanto com a relatividade quanto
com o eletromagnetismo, e claramente eles estavam lidando com relatividade aqui, mas de um
tipo no qual talvez não fosse a velocidade da luz o limite. O que era, então? A velocidade do
tempo? A forma do tempo? Os campos eletromagnéticos podiam se cruzar em alguns lugares para
deformar o tempo?
E as datas? Tudo o que eles pensavam que sabiam — por menos coisas que fossem —
indicava que a viagem era mais fácil e mais segura nos festivais do sol e do fogo; os solstícios e
equinócios... Uma pequena ondulação passou por suas costas. Poucas coisas eram conhecidas
sobre os círculos de pedra, e uma das coisas mais comuns é que muitos deles tinham sido
construídos com a previsão astronômica em mente. Será que a luz batendo numa pedra
específica era o sinal que a terra tinha alcançado algum alinhamento planetário que afetava o
geomagnetismo daquela área?
— Hugh! — Ela disse e tomou um gole, folheando as páginas que já tinha escrito — Que
bagunça. — Isso não pode ser de grande ajuda: nada além de pensamentos desconexos e coisas
que nem poderiam ser qualificadas como especulação decente.
Ainda assim, sua mente não a deixaria esquecer do assunto. Eletromagnetismo... Os corpos
tinham campos elétricos, ela sabia disso. Será que era por isso que você simplesmente não se
desintegrava quando viajava? O seu próprio campo te mantinha em conjunto apenas pelo tempo
suficiente de aparecer em outro lugar? Ela supôs que isso pudesse explicar a coisa das pedras
preciosas: você poderia viajar com a força de seu próprio campo, se tivesse sorte, mas a energia
liberada a partir das ligações moleculares em um cistal poderia ser uma adição àquele campo,
então talvez...?
— Droga — ela disse, seus processos mentais sobrecarregados se partindo. Ela olhou
culpada para o corredor que levava ao quarto das crianças. Ambos conheciam aquela palavra,
mas não deviam pensar que sua mãe conhecia.
Ela se afundou na poltrona para terminar o vinho e deixar sua mente vagar livremente,
embalada pelo som das ondas à distância. Sua mente não estava interessada na água,
entretanto; parecia mais preocupada com a eletricidade.
— Eu canto o Corpo Elétrico — ela disse suavemente. — As legiões daqueles a quem eu amo
me envolvem31.
Agora, ali havia um pensamento. Talvez Walt Whitman estivesse desvendando alguma...
porque se a atração elétrica das legiões daqueles que eu amo têm um efeito na viagem do tempo,
isso explicaria o efeito aparente de fixar sua atenção numa pessoa específica, não?
Ela pensou em chegar até o círculo de pedras de Craigh na Dun, pensando em Roger. Ou
esperar em Ocracoke, com a mente fixa firmemente em seus pais — ela tinha lido todas as cartas
agora; ela sabia exatamente onde eles estavam... Isso faria diferença? Um instante de pânico,
enquanto ela tentava visualizar o rosto de seu pai, e mais ainda quando ela tateava pelo de
Roger.
A expressão da face rejeita a explicação. A próxima linha ecoou suavemente em sua cabeça.
Mas a expressão de um homem bem-feito aparece não apenas em seu rosto;
Está em seus membros e articulações também, está curiosamente nas articulações de seus
pulsos e quadris;
Está em seu andar, na postura de seu pescoço, no fletir da cintura e dos joelhos — que as
vestes não escondem;
A forte e suave qualidade que ele tem transluz através do algodão e da flanela;
Vê-lo passar comunica tanto quanto o melhor poema, talvez mais;
E te demoras a contemplar seu dorso, a parte posterior de seu pescoço e as laterais do ombro.
Ela não se lembrava de mais nada, mas não havia necessidade; sua mente tinha se
acalmado.
— Eu o reconheceria em qualquer lugar — ela disse suavemente para seu marido, e
levantou o que sobrava em sua taça — Slàinte.
31 “I sing de Body Electric. The armies of those I love engirth me” – Trecho de poema do Walt Whitman.
97 – NÃO HÁ GRANDE FALTA DE CABELOS NA ESCÓCIA
O Senhor Cumberpatch se provou uma pessoa alta e ascética com uma massa incongruente de
cachos vermelhos acima de sua cabeça, semelhante a um pequeno e curioso animal. Ele tinha,
dissera ele, conseguido os discos numa troca por um leitão, juntamente com uma panela de lata
cujo fundo estava queimado mas poderia ser facilmente consertado, seis ferraduras, um
espelho e metade de uma cômoda.
— Não sou realmente um funileiro, sabe? — ele disse — Não viajo muito. Mas as coisas
vêm ao meu encontro, sim.
Evidentemente elas o faziam. A pequena casa de campo do Sr. Cumberpatch estava
abarrotada até as vigas com itens que já tinham sido úteis e poderiam se tornar novamente,
uma vez que o Sr. Cumberpatch os consertasse.
— Você vende muito? — Buck perguntou, levantando uma sobrancelha para o relógio de
carruagem que estava desmembrado sobre a lareira, suas peças internas ordenadamente
empilhadas em um prato velho de prata.
— Acontece — O Sr. Cumberpatch disse laconicamente. — Está vendo alguma coisa de
que gosta?
No interesse de obter cooperação, Roger pechinchava educadamente por um cantil
amassado e um saco de dormir de lona com apenas alguns pequenos orifícios carbonizados na
borda, estes sendo o resultado de algum soldado descansando perto demais de uma fogueira. E
ele recebeu, em retorno, o nome e a direção geral da pessoa de quem o Sr. Cumberpatch tinha
conseguido os discos.
— É um tipo precário de joia — disse o seu anfitrião, com um encolher de ombros. — E a
velha não queria tê-la em sua casa, já que todos aqueles números poderiam ter alguma coisa a
ver com magia, sim? Ela não suporta feitiçaria e coisas do tipo.
A velha em questão possivelmente tinha uns vinte e cinco anos, Roger pensou, uma
pequena criatura de olhos escuros como uma ratazana, que — convidada a trazer chá — os
mediu com um olhar astuto e começou a vender a eles queijos pequenos e flácidos, quatro nabos
e uma grande torta de uva passa, a um preço exorbitante. Mas o preço incluía suas próprias
observações em relação às transações do marido — valia à pena, até onde Roger percebia.
— Esse ornamento... é uma coisa estranha, não? — ela disse, estreitando os olhos para o
bolso onde Roger o havia colocado — O homem que o vendeu a Anthony disse que o conseguiu
de um homem cabeludo, um daqueles que vivem nos muros.
— A que muros a senhora se refere? — Buck perguntou, secando sua xícara e a esticando
para pegar mais. Ela deu a ele um olhar com olhos brilhantes, obviamente pensando que ele era
um simplório, mas eram clientes pagantes, afinal de contas...
— Aos quais... Aos romanas, é claro — ela disse. — Eles dizem que o velho imperador dos
romanos os ergueu, para impedir que os escoceses entrassem na Inglaterra — O pensamento a
fez sorrir, os dentes pequenos brilhando — Como se alguém quisesse ir para lá em primeiro
lugar!
As perguntas subsequentes não desencadearam mais nada; a Sra. Cumberpatch não tinha
ideia o que queria dizer “um homem cabeludo”; aquilo era o que o homem tinha dito, e ela não
tinha mais pensado sobre o assunto. Declinando a oferta do Sr. Cumberpatch pela sua faca,
Roger e Buck saíram, a comida enrolada no saco de dormir. Mas ao fazerem isso, Roger viu um
prato de cerâmica contendo um emaranhado de correntes e pulseiras manchadas, e um raio de
luz atingiu um pequeno brilho vermelho.
Devia ter sido a descrição de Cumberpatch dos discos como uma joia — uma forma
comum de se referir a um ornamento daquele tipo — que tornara sua mente sensível. Ele parou
e, mexendo no prato com seu dedo indicador, puxou um pequeno pingente, enegrecido, rachado
e com a corrente quebrada — parecia como se ele tivesse sido submetido a um incêndio — mas
que se assemelhava a uma granada, coberta de sujeira, mas lapidada.
— Quanto você quer por isso? — ele disse.
Estava escuro para quatro horas da tarde, e as noites eram longas e escuras para dormir fora
de casa, mas a sensação de urgência de Roger os levou, e eles se encontraram incivilizados numa
estrada solitária, com nada além de um pinheiro da Caledônia por abrigo. Fazer uma fogueira
com pavio e agulhas de pinheiro úmidas não era brincadeira, mas afinal de contas, Roger
refletiu, sombriamente esfregando o aço e o sílex pela centésima vez — e em seu dedo pela
vigésima — eles não tinham nada além de tempo.
Buck tinha, como uma premeditação nascida de experiências dolorosas, trazido um saco
de turfa e, depois de quinze minutos assoprando freneticamente as faíscas e lançando pedaços
de grama e agulhas de pinheiro à chama minúscula, eles tiveram sucesso em conseguir que dois
daqueles objetos miseráveis queimassem com calor suficiente para assar — ou pelo menos
selar — os nabos e aquecer seus dedos, senão o restante deles.
Não houvera nenhuma conversa desde que eles deixaram o estabelecimento de
Cumberpatch: era impossível falar com o vento frio passando por suas orelhas enquanto
cavalgavam, e não havia fôlego suficiente para fazer isso enquanto lutavam com o fogo e a
comida.
— O que você vai fazer se nós o encontrarmos? — Buck perguntou de repente, com meio
nabo na mão — Se J. W. MacKenzie realmente for seu pai, quero dizer.
— Eu gast... — A garganta de Roger estava entupida por causa do frio e ele tossiu e cuspiu,
retomando a fala com a voz rouca — Eu gastei os últimos três dias pensando nisso, e a resposta
é que eu não sei.
Buck grunhiu e desenrolou a torta de passas do saco de lona, dividindo-a cuidadosamente
e entregando metade dela a Roger.
Não estava ruim, embora a Sra. Cumberpatch não tivesse boa mão para massas.
— Cheio — Roger comentou, parcimoniosamente pescando as migalhas de seu casaco e
as comendo — Você não quer ir, então?
Buck sacudiu a cabeça — Não, eu não consigo pensar em nada melhor para fazer. Como
você disse, é a única pista que temos, embora não pareça ter nada a ver com o seu rapaz.
— Mmphm. E há uma coisa boa... nós podemos ir para o sul até o muro; nós não
precisaremos perder tempo procurando pelo homem de quem Cumberpatch comprou os
discos.
— Sim — Buck disse em dúvida — E então o quê? Caminharemos pelo comprimento dela,
perguntando por um homem cabeludo? Quantos destes você acha que pode haver? Não há falta
de cabelo na Escócia, quero dizer.
— Se tivermos que fazer isso — Roger disse brevemente. — Mas se J. W. MacKenzie, e não
apenas seus discos de identificação, estiverem na vizinhança, imagino que ele terá causado
bastante especulação.
— Mmphm. E quão longo é este muro, você sabe?
— Eu sei, sim. Ou, melhor — Roger se corrigiu. — Eu sei quão longo ele era quando foi
construído: oitenta milhas romanas. Uma milha romana sendo apenas ligeiramente menor do
que a milha inglesa. Não tenho ideia do quanto dela ainda existe, entretanto. A maior parte,
provavelmente.
Buck fez uma careta — Bem, digamos que nós possamos caminhar cerca de quinze a vinte
milhas em um dia... caminhar será fácil, se é um maldito muro... são apenas quatro dias para
cobri-lo totalmente. Entretanto... — Um pensamento caiu sobre ele e o fez franzir o cenho,
empurrando o topete úmido para trás — Isso é se nós pudermos cobrir de uma ponta a outra.
Se nós chegarmos no meio dele, entretanto, como será? Podemos cobrir metade e não encontrar
nada, e depois ter que voltar por todo o caminho para onde começamos — Ele olhou
acusadoramente para Roger.
Roger esfregou a mão sobre seu rosto. Estava começando a chover, e a garoa nebulizava
em sua pele.
— Eu pensarei nisso amanhã, sim? — ele disse — Nós teremos muito tempo para fazer
nossos planos no caminho. — Ele esticou a mão para o saco de dormir de lona, sacudiu um nabo
flácido e o comeu em seguida, depois colocou o saco sobre sua cabeça e seus ombros. — Quer
se juntar a mim embaixo disso ou você a quer para cama?
— Não, eu estou bem — Buck puxou seu chapéu para baixo e se sentou curvado, os dedos
o mais perto possível do que havia sobrado do fogo.
Roger puxou os joelhos para cima e os colocou na extremidade do saco de dormir. A chuva
fazia um leve ruído de gotas na lona, e no cansaço da exaustão e do frio, mas com o conforto de
um estômago cheio, ele permitiu a si mesmo o conforto ainda maior de imaginar Bree. Ele fazia
isso apenas à noite, mas esperava ansiosamente por estes momentos com mais antecipação do
que esperava pelo jantar.
Ele a visualizou em seus braços, sentada entre seus joelhos, a cabeça encostada em seu
ombro, confortável sob a lona com ele e seus cabelos macios com respingos de chuva que
capturavam a suave luz do fogo. Quente, sólida, respirando contra seu peito, seu coração
entrando em sintonia com o dela...
— Eu imagino o que eu diria para o meu próprio pai — Buck disse repentinamente — se
eu viesse a conhecê-lo, quero dizer — Ele piscou para Roger de baixo da aba sombreada de seu
chapéu — O seu pai sabia (sabe, quero dizer) sobre você?
Roger suprimiu a irritação por ser perturbado em sua fantasia, mas respondeu
brevemente. — Sim. Eu nasci antes de ele desaparecer.
— Oh. — Buck balançou um pouco para trás, parecendo pensativo, mas não disse mais
nada. Roger descobriu, entretanto, que a interrupção tinha feito sua esposa desaparecer. Ele se
concentrou, tentando trazê-la de volta, imaginando-a na cozinha em Lallybroch, os vapores da
cozinha se elevando ao redor de si, elevando fios de cabelo vermelhos e enrolados ao redor de
seu rosto e a umidade brilhando na ponte longa e reta de seu nariz...
O que ele estava ouvindo, entretanto, era a discussão que ela tivera com ele se deveria
contar ou não a Buck a verdade sobre sua paternidade.
— Você não acha que ele tem o direito de saber? — ela havia dito. — Você não gostaria de
saber algo deste tipo?
— Na realidade, eu não acho que gostaria — ele havia dito no momento. Mas agora...
— Você sabe quem é o seu pai? — Roger perguntou repentinamente. A pergunta estivera
em sua mente há meses, embora ele estivesse incerto de ter o direito de perguntar.
Buck deu a ele um olhar perplexo e levemente hostil.
— O que diabos você quer dizer com isso? É claro que eu sei... ou sabia. Ele está morto
agora — Seu rosto mudou de repente, percebendo. — Ou...
— Ou talvez não esteja, já que você ainda não nasceu. Sim, isso só vem à cabeça depois de
um tempo, não?
Aparentemente, isso tinha acabado de ocorrer a Buck. Ele se levantou abruptamente e
saiu. Ele ficou longe por uns bons dez minutos, dando a Roger tempo para se arrepender de ter
dito alguma coisa. Mas finalmente Buck saiu da escuridão e se sentou novamente perto da turfa
fumegante. Ele se sentou com os joelhos para cima, os braços passados ao redor deles.
— O que você quis dizer com isso? — Ele perguntou abruptamente — Que eu conheci o
meu pai e tal.
Roger inspirou profundamente o cheiro de grama úmida, das agulhas de pinheiro e da
fumaça de turfa — Eu quis dizer que você não nasceu na casa onde foi criado. Sabia disso?
Buck pareceu desconfiado e um pouco confuso — Sim — ele disse lentamente. — Ou... não
sei muito bem sobre isso, quero dizer. Meus pais não tinham nenhuma criança além de mim,
então eu pensei que talvez houvesse... bem, eu pensei que eu provavelmente era um bastardo
nascido da irmã do meu pai. Ela morreu, eles disseram, mais ou menos na época em que eu
nasci, e ela não era casada, então... — Ele deu de ombros, com um dos ombros apenas — Então,
não. — Ele virou a cabeça e olhou para Roger, sem expressão — Como você sabe disso?
— Por causa da mãe de Brianna — Ele sentiu uma saudade aguda e súbita de Claire e ficou
surpreso com isso. — Ela era uma viajante. Mas ela estava em Leoch, aproximadamente naquela
época. E ela nos contou o que aconteceu. — Ele tinha a sensação de buraco na barriga de quando
você vai pular num precipício para cair em águas de profundidade desconhecida, mas não havia
como parar agora. — Seu pai é Dougal MacKenzie do Castelo de Leoch, chefe de guerra do clã
MacKenzie. E sua mãe é uma bruxa chamada Geillis.
O rosto de Buck ficou absolutamente inexpressivo, a luz suave da fogueira brilhando nas
maçãs do rosto largas que eram um legado de seu pai. Roger de repente quis se aproximar e
pegar o homem nos braços, tirar os cabelos de seu rosto e confortá-lo como o faria com uma
criança — como a criança que ele podia ver tão claramente naqueles olhos verdes grandes e
espantados. Em vez disso, ele se levantou e desapareceu na noite, dando àquele que era quatro
vezes seu tataravô a privacidade que ele precisaria para lidar com as notícias.
Não tinha doído. Roger acordou tossindo, e gotas de umidade rolavam e faziam cócegas em suas
têmporas, desalojadas pelo movimento. Ele estava dormindo mais embaixo do saco de dormir
de lona do que em cima, valorizando mais o seu potencial para repelir a água do que o potencial
conforto quando cheio de grama, mas ele não tinha sido capaz de suportar mantê-lo sobre a
cabeça.
Ele colocou a mão cuidadosamente na garganta, sentindo a linha espessa da cicatriz de
corda que cruzava a parte inferior de sua laringe. Ele rolou, apoiou-se em um cotovelo, e limpou
a garganta experimentalmente. Não doeu desta vez também.
Você sabe o que é um osso hioide? Ele sabia; como o resultado de inúmeras consultas
médicas por causa de sua voz prejudicada, ele entendia a anatomia de sua garganta muito bem.
E, desta forma, tinha compreendido o que o Dr. McEwan quis dizer; seu próprio hioide estava
localizado ligeiramente mais para cima e um pouco para trás do que era normal, uma
circunstância da sorte que salvara sua vida quando ele foi enforcado, já que o esmagamento
daquele pequeno osso o teria sufocado.
Ele estivera sonhando com McEwan? Ou sobre ser enforcado? Sim, era isso. Ele tinha sonhos
como aquele frequentemente nos meses que se seguiram ao fato, embora eles tenham ficado
menos corriqueiros nos últimos anos. Mas ele se lembrava de olhar para cima através dos
ramos rendados da árvore, vendo — em seu sonho — a corda amarrada no galho acima dele, e
a luta desesperada para gritar em protesto com a mordaça em sua boca. E então o inevitável
deslizar sob ele quando o cavalo em que ele estava montado foi levado embora... mas desta vez
não tinha doído. Seus pés tinham batido no chão e ele se levantou — mas se levantou sem a
asfixia ou a queimação, sem as sensações perfurantes que o deixavam ofegando e cerrando os
dentes.
Ele olhou do outro lado; sim, Buck ainda estava ali, encolhido sob o tecido xadrez irregular
que ele tinha comprado de Cumberpatch. Sábia compra.
Ele deitou novamente de lado, colocando a lona de forma a cobrir sua cabeça, mas permitir
que ele respirasse. Ele tinha que admitir a sensação de alívio ao ver Buck; ele meio que esperava
que o homem levantasse acampamento e rumasse diretamente para o Castelo de Leoch após
ouvir a verdade sobre sua própria família. Embora, em justiça a Buck, ele não fosse um covarde.
Se ele tivesse se decidido a fazer isso, ele provavelmente diria — após socar Roger no nariz por
não ter contado a verdade antes.
No entanto, ele estava lá, olhando para as cinzas do fogo quando Roger voltou. Ele não
tinha olhado para cima, e Roger não havia dito nada para ele, mas tinha se sentado e pegado
uma agulha e linha para remendar um rasgo em seu casaco.
Depois de um tempo, entretanto, Buck se mexeu.
— Por que esperou para me contar isso agora? — Ele perguntou baixinho. Sua voz não
tinha qualquer nota particular de acusação — Por que não me disse enquanto ainda estávamos
perto de Leoch e Cranesmuir?
— Eu ainda não tinha me decidido em relação a te contar — Roger disse sem rodeios. —
Foi apenas pensando sobre... bem, sobre o que estamos fazendo e o que pode acontecer. Eu
pensei de repente que talvez você devesse saber. E... — Ele hesitou por um momento. — Eu não
planejei isso, mas talvez tenha sido melhor assim. Você terá tempo para pensar, talvez, para
saber se você quer encontrar os seus pais antes de nós voltarmos.
Buck meramente grunhiu em resposta a isso e não disse mais nada. Mas não era a resposta
de Buck que estava ocupando a mente de Roger no momento.
Não havia doído quando ele limpara a garganta enquanto conversava com Buck, embora
ele não notasse isso conscientemente na hora.
McEwan — era o que ele tinha feito? Seu toque? Roger gostaria de ter sido capaz de ver se
a mão de McEwan emanava luz azul quando tocou sua garganta danificada.
E o que era aquela luz? Ele pensou que Claire tinha mencionado aquilo uma vez — oh, sim,
descrevendo como Mestre Raymond a havia curado, após o aborto que ela tivera em Paris. Ver
seus ossos brilharem azuis dentro de seu corpo era a forma como ela tinha colocado, ele pensou.
Agora, aquele era um pensamento inquietante — aquele era um traço familiar, comum aos
viajantes do tempo? Ele bocejou grandemente e engoliu mais uma vez, experimentalmente. Sem
dor.
Ele não podia mais manter o controle de seus pensamentos. Ele sentiu o sono se espalhar
pelo seu corpo como um bom uísque, aquecendo-o. E se deixou levar, finalmente, imaginando o
que ele poderia dizer ao seu pai. Se...
98 – UM HOMEM PARA FAZER O TRABALHO DE HOMEM
Boston, Massachusetts
08 de dezembro de 1980
Gail Abernathy providenciou um jantar rápido, mas sólido, de espaguete com almôndegas,
salada, pão de alho e — depois de um olhar rápido e penetrante para Bree — uma garrafa de
vinho, apesar dos protestos de Brianna.
— Você vai passar a noite aqui — Gail disse, em um tom que não admitia oposição, e
apontou para a garrafa — E vai beber isso. Eu não sei o que você tem feito a si mesma, garota, e
você não precisa me dizer, mas precisa parar de fazê-lo.
— Eu gostaria de poder — Mas seu coração tinha disparado no momento em que passara
pela porta familiar, e o senso de agitação diminuiu um pouco, embora estivesse longe de
desaparecer. O vinho ajudou, entretanto.
Os Abernathys ajudaram mais. Apenas a sensação de estar entre amigos, de não estar
sozinha com as crianças e com o medo e a incerteza. Ela foi do desejo de chorar ao desejo de rir
e voltou ao primeiro no espaço de segundos, e sentiu que, se Gail e Joe não estivessem lá, ela
poderia não ter escolha além de entrar no banheiro, ligar o chuveiro e gritar numa toalha
dobrada — sua única válvula de escape nos últimos dias.
Mas agora havia pelo menos alguém com quem falar. Ela não sabia se Joe poderia oferecer
alguma coisa além de um ouvido simpático, mas no momento aquilo valia mais do que qualquer
coisa a ela.
As conversas durante o jantar foram leves e orientadas para as crianças, com Gail
perguntando a Mandy se ela gostava de Barbies e se a sua Barbie tinha um carro, e Joe falando
sobre futebol versus basebol — Jem era fanático pelo Red Sox, podendo se manter acordado
por horas para ouvir as escassas coberturas pelo rádio com sua mãe. Brianna contribuía com
nada mais do que um ocasional sorriso e sentiu a tensão lentamente deixar seu pescoço e seus
ombros.
Tudo voltou, mas com menos força, quando o jantar acabou e Mandy — meio dormindo
com o braço no prato — foi carregada para a cama por Gail, que murmurava “Jesus, alegria dos
homens” em uma voz parecida com o cello. Bree se levantou para retirar os pratos sujos, mas
Joe acenou para que ela voltasse, levantando-se de sua cadeira.
— Deixe isso aí, querida. Venha conversar comigo na sala. Traga o restante do vinho —
ele adicionou, e depois sorriu para Jem — Jem, por que você não sobe e pergunta a Gail se pode
assistir TV no quarto?
Jem tinha uma mancha de molho de espaguete no canto da boca, e seus cabelos estavam
arrepiados em um dos lados como espinhos de um ouriço. Ele estava um pouco pálido pela
viagem, mas a comida o tinha restaurado e seus olhos estavam brilhantes, alertas.
— Não, senhor — ele disse respeitosamente, e afastou a própria cadeira. — Eu vou ficar
com a minha mãe.
— Você não precisa fazer isso, querido — ela disse. — Tio Joe e eu temos coisas de adulto
para discutir. Você...
— Eu vou ficar.
Ela deu a ele um olhar duro, mas reconheceu instantaneamente, com uma combinação de
horror e fascinação, um Fraser do sexo masculino com uma ideia já formada.
Seu lábio superior estava tremendo, apenas um pouco. Ele fechou a boca com força para
estabilizá-lo e depois olhou sobriamente para Joe, e de volta para mim.
— O papai não está aqui — ele disse, e engoliu. — E nem o vovô. Eu vou... eu vou ficar.
Ela não conseguia falar. Joe assentiu, entretanto, tão seriamente quanto Jem, pegou uma
lata de Coca-Cola do refrigerador e liderou o caminho até a sala. Ela o seguiu, então, segurando
a garrafa de vinho e duas taças.
— Bree, querida? — Joe se virou por um momento — Pegue outra garrafa do armário de
cima do fogão. Isso vai levar algum tempo de conversa.
Realmente levou. Jemmy estava em sua segunda Coca — a questão sobre sua ida à cama,
e sobre ele dormir, era puramente acadêmica — e a segunda garrafa de vinho estava um terço
vazia quando ela terminou de descrever a situação — todas as situações — e o que ela pensava
em fazer sobre elas.
— Ok — Joe disse, casualmente — Eu não acredito que vou dizer isso, mas você precisa
decidir se vai atravessar as pedras na Carolina do Norte ou na Escócia para chegar ao século
dezoito de qualquer forma. É isso?
— É... a maior parte disso — Ela tomou um gole de vinho; aquilo pareceu estabilizá-la —
Mas é a primeira coisa, sim. Veja bem, eu sei onde mamãe e papai estão, ou estavam, no final
dos anos 1778, e seria para este ano que voltaríamos se tudo desse certo como antes. Eles
estariam voltando para Fraser’s Ridge ou estariam a caminho de lá.
O rosto de Jem se iluminou um pouco com aquilo, mas ele não disse nada. Ela encontrou
seus olhos diretamente.
— Eu ia levar você e Mandy através das pedras em Ocracoke, de onde nós saímos antes,
você se lembra? Na ilha?
— Vrum — ele disse muito suavemente, e se quebrou num sorriso, revivendo sua primeira
exposição aos automóveis.
— Sim — ela disse, sorrindo de volta apesar de tudo — E então nós poderíamos ir para
Ridge, e eu iria deixá-los com vovó e vovô enquanto ia para a Escócia para procurar o papai.
O sorriso de Jem morreu, e suas sobrancelhas ruivas se uniram.
— Perdoe-me por apontar o óbvio — Joe disse —, mas não havia uma guerra acontecendo
em 1778?
— Havia — ela disse tensa — E, sim, poderia ser um pouco difícil conseguir um navio da
Carolina do Norte para a Escócia, mas acredite em mim, eu poderia conseguir.
— Oh, eu acredito — ele assegurou a ela — Seria mais fácil, e mais seguro, eu imagino, do
que atravessar pela Escócia e procurar por Roger cuidando de Jem e Mandy ao mesmo tempo,
mas...
— Eu não preciso que ninguém cuide de mim!
— Talvez não — Joe disse a ele —, mas você precisaria ter seis anos e trinta quilos a mais,
além de mais uns sessenta centímetros de altura para que pudesse cuidar de sua mãe. Até que
você esteja deste tamanho, para que ninguém possa te pegar e carregar para longe, ela terá que
se preocupar com você.
Jem pareceu querer argumentar neste ponto, mas ele estava numa idade em que a lógica
às vezes prevalecia, e felizmente aquela foi uma destas vezes. Ele fez um pequeno ruído de
“mmphm” com a garganta, que assustou Bree, e se sentou de volta na poltrona, ainda franzindo
o cenho.
— Mas você não pode ir para onde vovó e vovô estão — ele apontou. —, porque não é
onde, ou melhor, quando, o papai está. Ele não está no mesmo tempo que os dois.
— Bingo — ela disse brevemente, e, colocando a mão dentro do bolso de seu suéter,
cuidadosamente retirou o saco de plástico que protegia a carta de Roger. Ela a entregou a Joe
— Leia isso.
Ele retirou os óculos de leitura de seu próprio bolso e, com eles apoiados sobre o nariz,
leu a carta cuidadosamente, olhou para ela, com os olhos arregalados, e depois inclinou a cabeça
e leu de novo. Depois disso, ele ficou sentado por vários minutos, olhando para o espaço, a carta
aberta em seu joelho.
Por fim, ele deu um suspiro, dobrou a carta cuidadosamente, e a entregou de volta para
ela.
— Então, agora tem a ver com espaço e tempo — ele disse. — Você já assistiu Doctor Who
na PBS?
— O tempo todo — ela disse secamente — na BBC. E não pense que eu não venderia a
minha alma para ter um TARDIS.
Jem fez o pequeno ruído escocês de novo, e Brianna olhou de lado para ele.
— Você está fazendo isso de propósito?
Ele olhou para ela, surpreso. — Fazendo o quê?
— Esqueça. Quando você tiver quinze anos, eu vou te prender na adega.
— O quê? Por quê? — ele exigiu, indignado.
— Porque é quando seu pai e o seu avô começaram a se meter em problemas e
evidentemente você será exatamente igual a eles.
— Oh — Ele pareceu satisfeito ao ouvir aquilo.
— Bem, colocando de lado a possibilidade de possuir um TARDIS... — Joe se inclinou para
frente, enchendo as duas taças de vinho — É possível viajar para mais longe do que você tinha
pensado, porque Roger e esse cara Buck conseguiram. Então, você acha que poderia fazer o
mesmo?
— Eu preciso — ela disse simplesmente. — Ele não tentará voltar sem Jem, então eu
preciso ir procurá-lo.
— Você sabe como ele fez isso? Você disse que são necessárias pedras preciosas para fazer
isso. Ele tinha um tipo especial de gema?
— Não. — Ela franziu o cenho, lembrando-se do esforço de usar a tesoura de cozinha para
dividir o antigo broche de diamantes. — Cada um deles tinha alguns pequenos diamantes, mas
Roger foi antes com um único diamante grande. Ele disse que foi como das outras vezes que nós
sabemos; a pedra explodiu ou vaporizou ou algo do tipo... Sobrou apenas a mancha de fuligem
em seu bolso.
— Mmm — Joe tomou um gole de vinho e o segurou pensativamente na boca por um
momento antes de engolir — Hipótese um, então: o número é mais importante do que o
tamanho; ou seja, você pode ir mais longe se tiver mais pedras em seu bolso.
Ela olhou para ele por um momento, um tanto surpresa.
— Eu não tinha pensado nisso — ela disse lentamente. — Da primeira vez que ele tentou,
entretanto... ele tinha o medalhão de sua mãe; que tinha granadas nele. Definitivamente
granadas, no plural. Mas ele não conseguiu. Ele foi lançado de volta, pegando fogo. — Ela
estremeceu brevemente, a repentina visão de Mandy jogada no chão, queimando... Ela tomou
um gole de vinho e tossiu. — Então... então nós não sabemos se ele poderia ter ido mais longe
se atravessasse.
— É apenas um pensamento — Joe disse suavemente, observando-a — Agora... Roger
menciona Jeremiah aqui, e soa como se ele estivesse falando de outra pessoa além de Jemmy
que possui esse nome. Você sabe o que ele quis dizer?
— Eu sei — Um traço de algo entre o medo e a excitação correu pelas suas costas como
pezinhos gelados, e ela tomou outro gole de vinho e respirou profundamente antes de contar a
ele sobre Jerry MacKenzie. As circunstâncias de seu desaparecimento... e o que sua mãe havia
dito a Roger. — Ela acha que ele provavelmente era um viajante do tempo acidental. Um
viajante que... não conseguiu voltar — Ela tomou outro gole rápido.
— É o meu outro avô? — Jemmy perguntou. Seu rosto corou um pouco com o pensamento
e ele se sentou mais para frente, as mãos enfiadas entre as coxas — Se formos aonde o papai
está, nós poderemos conhecê-lo também?
— Eu não posso nem imaginar — ela disse a ele honestamente, embora a sugestão tenha
feito com que suas entranhas se enrolassem. Entre as milhões de contingências alarmantes
daquela situação, a possibilidade de conhecer seu falecido sogro face-a-face era o item 999.999
na lista de Coisas com as quais se Preocupar, mas aparentemente estava na lista.
— Mas o que Roger quer dizer quando fala de procurar Jeremiah? — Joe perguntou,
batendo teimosamente naquele ponto.
— Nós achamos que é assim que você... orienta — Brianna disse — Focando os
pensamentos numa pessoa em particular que está no tempo para o qual você pretende ir. Nós
não sabemos com certeza disso, entretanto — ela adicionou, e abafou um pequeno arroto —
Cada vez que nós, ou mamãe, fizemos isso, foi sempre para duzentos e dois anos de diferença.
E foi quando a mamãe voltou pela primeira vez, embora venha à minha memória — ela
adicionou, franzindo o cenho — que ela pensou que isso aconteceu por causa de Black Jack
Randall, o ancestral de papai, que estava lá. Ele foi a primeira pessoa que ela conheceu quando
saiu das pedras. Ela disse que ele parecia muito com papai.
— Aham — Joe serviu mais meia taça de vinho e olhou para ele por um momento, como
se hipnotizado pela suave luz avermelhada que brilhava no copo — Mas... — Ele parou,
juntando seus pensamentos — Mas outras pessoas foram mais longe. Essa Geillis que sua mãe
mencionou, e Buck? Ele... Esqueça. Roger e Buck fizeram isso desta vez, certamente. Então é
possível; nós só não sabemos como.
— Eu estava me esquecendo de Geillis — Bree disse lentamente.
Ela tinha visto a mulher apenas uma vez, e muito brevemente. Uma figura alta e esguia, os
cabelos loiros voando ao vento de um incêndio criminoso, sua sombra lançada em uma das
pedras de pé, enorme, alongada.
— Agora que estou pensando nisso... Eu não acho que ela tenha levado pedras preciosas
quando voltou. Ela pensou que era necessário... hã... um sacrifício — Ela olhou para Jem, e
depois olhou para Joe, abaixando as sobrancelhas com um olhar significativo que dizia “não
pergunte” — e fogo. E ela nunca voltou, embora planejasse fazer isso, com pedras — E de
repente uma coisa que ela não tinha percebido, apareceu em sua mente. — Ela disse à mamãe
sobre o uso das pedras, não o contrário. Então alguém... outra pessoa contou a ela.
Joe digeriu isso por um momento, mas depois sacudiu a cabeça, dispensando a distração.
— Hã. Tudo bem. Hipótese dois: focar os seus pensamentos numa pessoa em particular o
ajuda a ir para o tempo em que ela está. Isso faz sentido para você, Jem? — ele perguntou,
virando-se para Jemmy, que assentiu.
— Com certeza. Se é alguém que você conhece.
— Tudo bem. Então... — Joe parou abruptamente, olhando para Jem — Se é alguém que
você conhece?
A centopeia gelada se arrastou pelas costas de Bree e para dentro de seus cabelos, fazendo
sua escalpa se contrair.
— Jem — Sua voz soava estranha aos próprios ouvidos, rouca e meio sem fôlego — Mandy
diz que pode ouvir você, dentro da cabeça dela. Você pode... ouvi-la? — Ela engoliu, com força,
e sua voz se tornou mais clara — Você pode ouvir o papai desta forma?
As pequenas sobrancelhas ruivas se uniram numa expressão confusa.
— Com certeza. Você não pode?
A linha profunda entre as sobrancelhas de Tio Joe não tinha deixado sua expressão desde a
noite anterior, Jem notou. Ele ainda parecia amigável; ele assentiu para Jem e empurrou para
ele uma xícara de chocolate quente através do balcão, mas seus olhos continuavam indo e
voltando para mamãe, e todas as vezes em que ele fazia isso, a linha ficava mais profunda.
Mamãe estava passando manteiga na torrada de Mandy. Jem pensou que ela não estava
tão preocupada quanto estivera antes, e se sentiu melhor também. Ele havia dormido a noite
toda, pela primeira vez em um longo tempo, e ele pensou que talvez a mamãe também tivesse.
Não importava quão cansado ele estivesse, ele geralmente acordava a cada poucas horas,
tentando ouvir ruídos, e depois ouvindo mais atentamente para se certificar de que Mandy e
mamãe ainda estavam respirando. Ele tinha pesadelos onde elas não estavam.
— Então, Jem — Tio Joe disse. Ele pousou a sua xícara de café e limpou os lábios com um
guardanapo de papel que sobrara do Hallowenn; era preto com lanternas de abóbara laranjas
e fantasmas brancos estampados nele — Hum... quão longe você pode... é... você sabe, quando
sua irmã não está com você?
— Quão longe? — Jem disse, incerto, e olhou para sua mãe. Não tinha ocorrido a ele pensar
sobre isso.
— Se você fosse até a sala de estar agora — Tio Joe disse, assentindo em direção à porta
— Poderia dizer que ela está aqui, mesmo se não soubesse que ela estava?
— Sim. Eu quero dizer, sim, senhor. Eu acho que sim. — Ele colocou o dedo no chocolate
quente: ainda estava muito quente para beber — Quando eu estava no túnel, no vagão... Eu sabia
que ela estava... em algum lugar. Não é como ficção científica ou algo do tipo, quero dizer — ele
adicionou, tentando explicar — Não é como raios-X ou uma pistola Phaser 32 ou coisas do tipo.
Eu só... — Ele lutou para encontrar uma explicação e finalmente levantou a cabeça para sua
mãe, que estava olhando para ele com um olhar muito sério que o incomodou um pouco. — Eu
quero dizer que, se você fechasse os olhos, ainda saberia que mamãe está aqui, não? É parecido
com isso.
Mamãe e Tio Joe olharam um para o outro.
— Quer torrada? — Mandy esticou a torrada roída pela metade para ele. Ele a pegou e deu
uma mordida; estava bom, com um pão branco e macio e não o tipo de pão caseiro marrom que
mamãe fazia, com pedaços no meio.
— Se ele podia ouvi-la, ou senti-la, do túnel enquanto ela estava em casa, então pode fazer
isso a uma boa distância — Mamãe disse —, mas eu não tenho como ter certeza que ela estava
em casa naquele momento, porque eu estava dirigindo com ela, para procurar por Jem. E Mandy
podia senti-lo enquanto estávamos no carro naquela noite. Mas... — Agora suas sobrancelhas
se juntaram. Ele não gostava de ver uma linha ali — Ela estava me dizendo que estava frio
quando dirigimos em direção a Inverness, mas eu não sei se ela quis dizer que podia ouvi-lo
ou...
— Eu não acho que posso senti-la quando estou na escola — Jem disse, ansioso para
ajudar. — Mas eu não tenho certeza, porque não penso nela quando estou na escola.
— Quão longe é a escola de onde você mora? — Tio Joe perguntou. — Quer Pop-Tarts33,
princesa?
— Sim! — O rosto amanteigado de Mandy se iluminou, mas Jem olhou para sua mãe.
Mamãe parecia querer chutar Tio Joe sob o balcão por um segundo, mas depois olhou para
Mandy e seu rosto se suavizou.
— Tudo bem — ela disse, e Jem sentiu uma espécie de sensação animada e flutuante no
meio de seu corpo. Mamãe estava dizendo ao Tio Joe quão longe a escola era, mas Jem não
estava prestando atenção. Eles iriam fazer isso. Eles realmente iriam.
A Muralha de Adriano parecia muito com o que Roger se lembrava de uma viagem de escola há
muito tempo. Uma coisa enorme, com quase cinco metros de altura e mais de dois metros de
largura, com paredes duplas de pedra, cheias de escombros no meio, perdendo-se de vista à
distância.
As pessoas também não eram tão diferentes — pelo menos em termos de linguagem e
forma de vida. Eles criavam bovinos e caprinos, e o dialeto de Northumberland tinha
aparentemente se desenvolvido muito antes da época de Geoffrey Chaucer. O sotaque das
Highlands de Roger e Buck provocava o estreitar de olhos por incompreensão ou suspeita, e
eles se reduziram em sua maior parte a fazer gestos básicos e linguagens de sinais para obterem
comida e — ocasionalmente — abrigo.
Com um pouco de tentativa e erro, Roger conseguiu um inglês medieval como — Passou
por aqui um estranho?
Pela aparência do lugar — e os olhares que ele e Buck estavam recebendo — ele diria que
a contingência era remota, e isso se provou. Três dias de caminhada e eles ainda eram
claramente os homens mais estranhos perto do muro que eles tinham visto.
— Certamente um homem vestido com o uniforme da RAF seria ainda mais peculiar do
que nós? — ele disse a Buck.
— Ele seria — Buck replicou logicamente —, se ainda estivesse usando o uniforme.
Roger grunhiu em desgosto. Ele não tinha pensado na possibilidade de que Jerry pudesse
ter descartado o uniforme de propósito — ou de ter sido privado dele por quem quer que se
deparasse com ele primeiro.
Foi no quarto dia — o muro por si só tinha mudado surpreendentemente, não sendo mais
construído por pedras e entulho, mas por turfas empilhadas — que eles conheceram um
homem vestindo o casaco de voo de Jerry MacKenzie.
O homem estava de pé na beira de um campo arado pela metade, olhando
melancoliacamente à distância, aparentemente com nada em mente a não ser seus cabelos.
Roger congelou e colocou a mão no braço de Buck, compelindo-o a olhar.
— Jesus — Buck sussurrou, pegando a mão de Roger — Eu não acredito. É isso! Não é? —
Ele perguntou, virando-se para Roger, com as sobrancelhas elevadas — Quero dizer... a forma
como você descreveu...
— Sim. É. — Roger sentiu sua garganta se apertar com a emoção e com o medo. Mas havia
apenas uma coisa a ser feita, independentemente disso e, soltando a mão de Buck, ele caminhou
através da grama morta e das rochas espalhadas em direção ao fazendeiro, se era aquilo que
ele era.
O homem os ouviu chegando e virou casualmente — depois se enrijeceu, encarando-os
com mais atenção, e olhou freneticamente em volta em busca de ajuda.
— Eevis! — Ele gritou, ou foi o que Roger pensou. Olhando sobre o ombro, Roger viu as
paredes de pedra de uma casa, evidentemente construída dentro do muro.
— Coloque as mãos para cima — Roger disse a Buck, colocando as próprias mãos para o
alto, com as palmas para fora, para mostrar sua falta de ameaça. Eles avançaram lentamente,
com as mãos para cima, e o fazendeiro se manteve firme, embora os observasse como se eles
pudessem explodir se chegassem mais perto.
Roger sorriu para o homem e acotovelou Buck nas costelas para que ele fizesse o mesmo.
— Bom dia — ele disse, clara e cuidadosamente — Passou um estranho por aqui? — Ele
apontou para seu próprio casaco, e então para o casaco de voo. Seu coração estava martelando
com força; ele queria bater no homem e tirar o casaco de suas costas, mas isso não adiantaria.
— Não! — disse o homem rapidamente, afastando-se, segurando as bordas dos casacos.
— Vão embora!
— Não pretendemos fazer nenhum mal — Buck disse, no tom mais conciliador que
conseguiu fazer. Ele alisou o ar de maneira suave — Conheces tal homem...?
— O que diabos é isso? — Roger perguntou, pelo canto da boca — Nórdico antigo?
— Eu não sei, mas ouvi um homem de Orkney dizer isso uma vez. Significa...
— Eu sei o que significa. Isso parece Orkney pra você?
— Não. Mas se você pode dizer o que significa, talvez ele também possa, sim?
— Não! — o homem repetiu e gritou — Eevis — de novo. Ele começou a recuar.
— Espere! — Roger disse. — Olhe. — Ele procurou rapidamente em seu bolso e retirou o
pequeno pacote oleado com as placas de identificação de seu pai. Ele as esticou, balançando-as
na brisa fria — Viu? Onde está o homem que usava isso?
Os olhos do fazendeiro se arregalaram, e ele se virou e correu desajeitadamente, seus
tamancos atrasando-o através dos torrões do campo, gritando — Eevis! Ajuda-me! — e muitas
outras coisas incompreensíveis.
— Nós queremos esperar que Eevis apareça? — Buck disse, trocando o peso do corpo,
inquieto — Ele pode não ser amigável.
— Sim, nós queremos — Roger disse firmemente. O sangue estava alto em seu peito e em
seu rosto, e ele flexionou as mãos nervosamente. Perto. Eles estavam tão perto — e ainda
assim... Seu espírito passou da alegria para o medo e voltou em segundos. Não escapava a ele a
forte possibilidade de que Jerry MacKenzie podia ter sido morto por aquele casaco, uma
possibilidade que parecia muito mais provável dada à fuga precipitada de seu interlocutor.
O homem tinha desaparecido num bosque de pequenas árvores, atrás do qual algumas
cabanas eram visíveis. Talvez Eevis fosse um pecuarista ou um leiteiro?
Então os latidos começaram.
Buck se virou para olhar para Roger.
— Eevis, você acha?
— Jesus Cristo!
Um grande cachorro marrom com peito em formato de barril e uma imensa cabeça com
uma enorme mandíbula para combinar, veio galopando do meio das árvores, seu dono na
retaguarda com uma pá.
Eles correram, circulando a casa com Eevis em seus calcanhares, sedento por sangue. O
grande banco verde da muralha apareceu na frente de Roger e ele saltou, enfiando as pontas de
sua bota na turfa e escalando com os dedos, joelhos, cotovelos — e provavelmente seus dentes
também. Ele se atirou para cima e aterrissou com um baque de trincar os dentes do outro lado.
Ele estava lutando para respirar quando Buck aterrissou ao seu lado.
— Merda — seu ancestral disse brevemente, rolando para fora — Venha! — Ele puxou
Roger para que ele ficasse de pé e eles correram, ouvindo o fazendeiro gritar palavrões por cima
do muro.
Eles encontraram refúgio no sotavento de um penhasco a algumas centenas de metros do
muro e caíram lá, ofegando.
— O Imp... Imperador Adri... Adriano sabia o que dia... bos ele estava... fazendo — Roger
conseguiu dizer.
Buck assentiu, limpando o suor de seu rosto — Não... muito hospitaleiros — ele arquejou.
Ele balançou a cabeça e engoliu ar — E... agora?
Roger deu um tapinha no ar, indicando a necessidade de oxigênio antes de poder formular
ideias, e eles se sentaram quietos por um tempo, respirando. Roger tentou ser lógico em relação
àquilo, embora os espinhos de adrenalina continuassem interferindo nos seus processos
mentais.
Um: Jerry MacKenzie estivera lá. Aquilo era certo; estava além dos limites da
probabilidade de que houvesse dois viajantes perdidos usando casacos de voo da RAF.
Dois: ele não estava aqui agora. Aquilo poderia ser deduzido com segurança? Não, Roger
concluiu relutantemente, não poderia. Ele poderia ter trocado o casaco com o dono de Eevis por
comida ou alguma outra coisa, e neste caso ele teria partido. Mas se este fosse o caso, por que o
fazendeiro simplesmente não havia contado, em vez de mandar o cachorro para eles?
E se ele tivesse roubado o casaco... ou Jerry estava morto e enterrado em algum lugar
próximo — aquele pensamento fez o estômago de Roger se apertar e as barbas pinicarem em
sua mandíbula — ou ele tinha sido agredido e despojado, mas conseguira fugir.
Tudo bem. Se Jerry estava ali, estava morto. E se este fosse o caso, a única forma de
descobrir era subjugar o cachorro e depois arrancar a informação do dono de Eevis. Ele não se
sentia muito motivado a fazer isso naquele momento.
— Ele não está aqui — Roger disse com a voz rouca. Sua respiração ainda estava difícil,
mas um pouco mais regular agora.
Buck deu a ele um olhar rápido, mas depois assentiu. Havia um longo traço de lama verde
em sua bochecha, misturando o musgo da muralha que ecoava o verde de seus olhos.
— Sim. E o que faremos a seguir, então?
O suor estava gelando o pescoço de Roger; ele o limpou distraidamente com o final de seu
lenço que, de alguma forma, ultrapassara o muro com ele.
— Eu tive uma ideia. Dada à reação de nosso amigo ali — ele apontou na direção da
fazenda, invisível atrás da massa verde da muralha —, eu imagino que perguntar por um
estranho pode não ser a coisa mais esperta a fazer. Mas e as pedras?
Buck piscou para ele, sem compreender.
— Pedras?
— Sim. O círculo de pedras. Jerry viajou, nós sabemos disso. Quais são as probabilidades
de ele ter atravessado um círculo? E se este for o caso... é provável que estas pedras não estejam
muito longe daqui. E as pessoas não se sentiriam ameaçadas, eu imagino, por dois forasteiros
perguntando sobre as pedras. Se nós encontrarmos o local onde ele provavelmente passou,
então nós podemos começar a caminhar a partir de lá e perguntar nos lugares próximos às
pedras. Com cuidado.
Buck bateu os dedos no joelho, considerando, e depois assentiu.
— Um círculo de pedras não vai morder nossos traseiros. Tudo bem, então; vamos.
100 – RADAR
Boston
09 de dezembro de 1980
Jem se sentia nervoso. Mamãe e Tio Joe estavam tentando agir como se tudo estivesse bem, mas
até mesmo Mandy podia dizer que algo estava acontecendo; ela estava se remexendo no banco
de trás do Cadillac de Tio Joe como se tivesse formigas nas calças, arrancando o suéter de botões
pela cabeça de forma que seus cachos negros saíssem pela abertura superior como alguma coisa
que estivesse fervendo.
— Sente-se quieta — ele murmurou para ela, mas não esperava que ela o fizesse, e ela
realmente não o atendeu.
Tio Joe estava dirigindo, e mamãe tinha um mapa aberto em seu colo. — O que está
fazendo, Mandy? — Mamãe disse distraidamente. Ela estava fazendo marcações no mapa com
um lápis.
Mandy desafivelou o cinto de segurança e ficou de joelhos. Ela tirou os braços de dentro
das mangas do suéter para que elas ficassem caídas ao redor de si, e agora somente sua cabeça
aparecia pelo colarinho do casaco.
— Eu sou um povo! — Ela disse, e se sacudiu para que os braços do suéter dançassem. Jem
riu, apesar de tudo. Assim como sua mãe, mas ela acenou para que Mandy se sentasse.
— Polvo! — ela disse — E coloque o seu cinto de segurança agora. Os polvos são chamados
de Octopus em inglês. Octo significa oito em latim — ela adicionou. — Eles têm oito pernas. Ou
braços, talvez.
— Você só tem quatro — Jem disse a Mandy. — Isso faria com que ela se chamasse
Tetrapus, mãe?
— Talvez — Mas mamãe tinha voltado ao seu mapa. — A Common, você acha? — Ela disse
ao tio Joe. — Fica a aproximadamente quinhentos metros ao longo do eixo central. E nós
poderíamos descer no Jardim Público, se...
— Sim, boa ideia. Eu vou deixar você e Jem na Park Street, e depois vou dirigir ao longo da
Beacon até o fim da Common para voltar.
Estava frio e nublado, com apenas alguns poucos flocos de neve no ar. Ele se lembrava da
Boston Common e estava feliz ao vê-la novamente, mesmo com as árvores desfolhadas e a
grama marrom e morta. Ainda havia pessoas ali; sempre havia, e seus chapéus de inverno e
cachecóis pareciam felizes, em cores diferentes.
O carro parou na Park Street, do outro lado de um dos bondes de turistas que paravam a
cada vinte minutos. Papai os levara para ali uma vez — em um dos grandes bondes laranjas,
com as laterais abertas. Era verão na época.
— Você está com suas luvas, querida? — Mamãe já estava na calçada, olhando através da
janela. — Você ficará com Tio Joe, Mandy, apenas por alguns minutos.
Jem saiu e ficou ao lado da mãe na calçada, colocando suas luvas enquanto observavam o
Cadillac cinza partir.
— Feche os olhos, Jem — Mamãe disse baixinho, e pegou sua mão, apertando-a. — Diga-
me se você pode sentir Mandy em sua cabeça.
— Certamente. Eu quero dizer, sim. — Ele não tinha pensado em Mandy como uma
pequena luz vermelha antes daquela coisa do túnel com o vagão, mas agora sim. Isso meio
tornava mais fácil se concentrar nela.
— Isso é bom. Você pode abrir os olhos se quiser — Mamãe disse. — Mas continue
pensando em Mandy. Diga-me se ela ficar muito longe para você sentir.
Ele pôde sentir Mandy durante todo o tempo, até que o Cadillac parou perto deles de novo
— embora ele a tenha sentido mais suavemente em determinado momento, para depois voltar
a senti-la com força.
Eles fizeram a mesma coisa de novo, com Tio Joe e Mandy descendo a Arlington Street, no
lado mais distante do Jardim Público. Ele ainda conseguia senti-la e estava se sentindo com frio
e entediado, parado lá na rua.
— Ela pode ouvi-lo bem — Tio Joe reportou, abrindo o vidro — E quanto a você, campeão?
Você escuta bem a sua irmã?
— Sim — ele disse pacientemente. — Quero dizer... Eu posso dizer onde ela está, mais ou
menos. Ela não fala em minha cabeça ou algo parecido. — Ele estava feliz por não ser este o
caso. Ele não iria querer Mandy tagarelando em sua cabeça o tempo todo, e nem queria que ela
pudesse ouvir seus pensamentos também. Ele franziu o cenho para ela; ele não tinha realmente
pensado nisso antes. — Você não pode ouvir o que eu estou pensando, não é? — Ele exigiu,
enfiando o rosto na janela aberta. Mandy estava olhando para frente agora e o encarou,
surpresa. Ela estivera chupando os polegares, ele pensou; estava todo molhado.
— Não — ela disse, meio incerta. Ele podia ver que ela estava meio assustada com isso.
Assim como ele. Mas decidiu não deixar que ela, ou sua mãe, soubessem disso.
— Isso é bom — ele disse, e deu uma palmadinha em sua cabeça.
Ela odiava receber palmadinhas na cabeça e bateu nele com um ruído feroz. Ele deu um
passo para sair de seu alcance e sorriu para ela.
— Se tivermos que fazer isso de novo — ele disse à sua mãe — talvez Mandy possa ficar
com você e eu vou com Tio Joe?
Mamãe olhou incerta para ele, e depois para Mandy, mas pareceu compreender o que ele
queria dizer e assentiu, abrindo a porta para que Mandy descesse, aliviada.
Tio Joe cantarolava baixinho para si mesmo enquanto eles se viravam, iam para a direita
e passavam pelo grande teatro e o prédio dos maçons. Jem podia ver os nós dos dedos de tio Joe
aparecendo por sua pele, entretanto, onde ele estava segurando o volante.
— Você está nervoso, campeão? — Tio Joe disse, quando eles passaram a Lagoa dos Sapos.
Ela estava seca por causa do inverno; parecia meio triste.
— Aham — Jem engoliu. — Você está?
Tio Joe olhou para ele, meio assustado, e depois sorriu enquanto voltava a colocar os olhos
na rua.
— Sim — ele disse suavemente. — Mas eu acho que vai ficar tudo bem. Você cuidará bem
de sua mãe e de Mandy, e vocês vão encontrar seu pai. Ficarão juntos novamente.
— Sim — Jem disse, e engoliu de novo.
Ele dirigiu em silêncio por um tempo, e a neve fazia pequenos ruídos de arranhado no
para-brisa, como se sal estivesse sendo balançado dentro de um vidro.
— Mamãe e Mandy vão sentir muito frio — Jem se aventurou.
— Sim, esta será a nossa última tentativa de hoje — Tio Joe assegurou a ele. — Ainda
consegue senti-la? Mandy?
Ele não estivera prestando atenção; estivera pensando no círculo de pedras. E na coisa do
túnel. E em papai. Seu estômago doeu.
— Não — ele disse inexpressivo — Não! Eu não posso senti-la! — A ideia de repente o
deixou em pânico e ele endureceu em seu assento, empurrando-se para trás com os pés — Dirija
de volta!
— Estou a caminho, companheiro — Tio Joe disse, e fez uma conversão em U bem no meio
da rua — Gloucester Street. Você pode se lembrar deste nome? Precisamos contar à sua mãe,
para que ela possa estimar a distância.
— Aham — Jem disse, mas ele não estava realmente ouvindo Tio Joe. Ele estava tentando
duramente ouvir Mandy. Ele nunca tinha pensado nestas coisas antes, nunca tinha prestado
atenção se poderia ou não senti-la. Mas agora era importante, e ele cerrou os punhos e colocou
um deles no centro de seu corpo, abaixo das costelas, onde a dor estava.
E então ali estava ela, como se sempre estivesse ali, como uma de suas unhas ou algo do
tipo, e ele soltou o fôlego de forma ofegante, o que fez Tio Joe olhar bruscamente para ele.
— Você a encontrou de novo?
Jem assentiu, sentindo-se muito aliviado. Tio Joe suspirou e seus grandes ombros
relaxaram também.
— Bom — ele disse. — Não a deixe partir.
Brianna pegou Esmeralda, a boneca de pano, do chão da sala de estar da casa dos Abernathys e
a colocou cuidadosamente ao lado de Mandy. Seis quilômetros. Eles tinham passado a manhã
dirigindo em círculos ao redor de Boston, e agora eles sabiam mais ou menos quão longe o radar
mútuo das crianças podia chegar. Jem podia sentir Mandy até aproximadamente um quilômetro
e meio, mas ela podia senti-lo a até seis quilômetros. Jem podia sentir Brianna, também, mas
apenas vagamente e apenas por uma curta distância; Mandy podia sentir sua mãe a uma
distância quase tão grande quanto poderia detectar Jem.
Ela deveria escrever aquilo no guia, pensou, mas tinha passado a tarde fazendo arranjos
frenéticos, e agora o esforço de encontrar um lápis parecia equivalente a procurar a nascente
do Nilo ou a escalar o Kilimanjaro. Amanhã.
Pensar no dia seguinte a sacudiu para fora do seu torpor de exaustão com um jato de
adrenalina. Amanhã tudo começaria.
Eles tinham conversado, depois que as crianças foram para a cama. Ela e Joe, com Gail
ouvindo no canto, os brancos dos olhos aparecendo ocasionalmente, mas sem dizer uma
palavra.
— Tem que ser a Escócia — ela explicara — É Dezembro; os navios não podem partir até
a primavera. Se nós cruzarmos na Carolina do Norte, não poderemos viajar a partir das colônias
até Abril e não conseguiríamos chegar à Escócia antes do verão. Isso sem contar o fato de eu
saber como é uma viagem pelo oceano no século dezoito e de eu não querer fazer isso com as
crianças, a menos que não haja outra alternativa... Eu não posso esperar tanto tempo.
Ela tinha tomado um gole de vinho e engolido, mas o nó em sua garganta não desceu nem
um pouco a mais do que após os últimos cinco goles. Qualquer coisa poderia acontecer a ele em
seis meses. Qualquer coisa.
— Eu tenho que encontrá-lo.
Os Abernathys olharam um para o outro, e a mão de Gail tocou Joe gentilmente no joelho.
— É claro que sim — ela disse. — Você está certa em relação a ir para a Escócia,
entretanto? E as pessoas que tentaram tirar Jem de você? Será que eles não estarão esperando,
se você voltar?
Bree riu — de forma trêmula, mas era uma risada.
— Outra razão para partir — ela disse. — No século dezoito eu poderei parar de olhar
sobre o meu ombro.
— Você não viu ninguém... — Joe começou, franzindo o cenho, mas ela balançou a cabeça.
— Não na Califórnia. E não aqui. Mas eu continuo prestanto atenção. — Ela tinha tomado
algumas outras precauções também, coisas que ela se lembrava do memorial breve e discreto
com as experiências da Segunda Guerra Mundial de seu pai, mas não havia necessidade de
entrar naquele mérito.
— E você tem alguma ideia de como manter as crianças a salvo na Escócia? — Gail estava
empoleirada inquieta à beira de seu assento, como se quisesse sair para checar as crianças.
Brianna conhecia aquele sentimento.
Ela suspirou e tirou uma mecha de cabelo de seu olho.
— Há duas pessoas... bem, três... em quem eu acho que posso confiar.
— Você acha — Joe ecoou, soando cético.
— As únicas pessoas em quem eu tenho certeza que posso confiar estão aqui — ela disse
simplesmente, e levantou a taça de vinho para eles. Joe olhou para o lado e limpou a garganta.
Então, olhou para Gail, que assentiu para ele.
— Então nós iremos com você — ele disse firmemente, virando-se de volta para Bree —
Gail pode cuidar das crianças e eu posso me certificar de que ninguém vai te incomodar até que
tudo esteja pronto para partir.
Ela mordeu o lábio para conter as lágrimas que estavam surgindo em seus olhos.
— Não — ela disse, e depois limpou a garganta com força, para matar o tremor em sua
voz, causada tanto pela visão dos dois Drs. Abernathys passeando pelas ruas de Inverness
quanto pela gratidão. Não é como se não houvesse pessoas negras nas Highlands escocesas, mas
elas não eram suficientemente frequentes para não serem notadas. — Não — ela repetiu, e
respirou profundamente. — Nós iremos para Edimburgo para começar; eu posso pegar o que
precisamos lá, sem atrair atenção alguma. Nós não iremos para as Highlands até que tudo esteja
pronto, e eu só vou entrar em contato com os meus amigos lá no último minuto. Não haverá
tempo para que ninguém perceba que estamos lá, antes de nós... antes de nós... atravessarmos.
Aquela palavra, “atravessar”, a atingiu como um golpe no peito, aterrorizada como ela
estava com a memória do vazio que existia entre o agora e o antes. Entre ela e as crianças — e
Roger.
Os Abernathys não desistiram facilmente — ela tinha certeza que haveria outra tentativa
durante o café da manhã — mas ela tinha fé na própria teimosia e, culpando a exaustão, ela
escapou para suas preocupações para ficar sozinha consigo mesma.
Ela estava exausta. Mas a cama que ela compartilhava com Mandy não a atraía. Ela
precisava ficar sozinha por um tempo, para descomprimir antes de o sono vir. Ela podia ouvir
os ruídos da preparação para ir para a cama no andar de baixo; tirando os sapatos, ela caminhou
silenciosamente para o primeiro andar, onde uma luz tinha sido deixada acesa na cozinha e
outra no fim do corredor da sala, onde Jem tinha sido colocado para dormir, no sofá grande.
Ela se virou para verificá-lo, mas sua atenção foi desviada para um ruído metálico familiar.
A cozinha tinha uma porta com portinhola no meio. Ela se aproximou e olhou pela abertura
para descobrir que Jem estava em pé numa cadeira perto do balcão, esticando a mão para pegar
uma Pop-Tart da torradeira.
Ele olhou para cima, com os olhos arregalados ao som de seus passos, segurou a massa
quente por um segundo a mais, e a soltou quando ela queimou seus dedos.
— Ifrinn!
— Não diga isso — ela disse a ele, entrando no cômodo para recuperar a torta caída. —
Estamos prestes a ir para onde as pessoas entenderiam a palavra. Aqui... Quer um pouco de leite
com isso?
Ele hesitou por um instante, surpreso, e depois pulou como um passarinho, com os pés
juntos, e pousou com um baque suave no chão de azulejos. — Eu vou pegar. Quer um pouco
também?
De repente, nada na Terra soava melhor do que uma Pop-Tart quente de mirtilo com
chocolate branco derretido e um copo de leite quente. Ela assentiu e partiu a tortinha em duas,
colocando cada metade numa toalha de papel.
— Não conseguiu dormir? — Ela disse finalmente, depois que eles comeram a guloseima
em um silêncio compartilhado.
Ele balançou a cabeça, os cabelos ruivos arrepiados como um porco-espinho.
— Quer que eu leia uma história para você? — Ela não sabia o que a fizera dizer aquilo;
ele era muito velho para que ela lesse para ele, embora ele sempre ficasse por perto quando ela
lia para Mandy. Ele deu a ela um olhar preconceituoso, mas então, surpreendentemente,
assentiu e correu até o terceiro andar, voltando com a nova cópia dos Contos de Berçário Animal
na mão.
Ele não quis se deitar imediatamente, mas sentou-se muito perto dela no sofá enquanto
ela lia, com o braço ao redor dos ombros dele. Seu peso ficava cada vez maior e mais quente
contra o corpo dela, enquanto sua respiração diminuía.
— Meu pai costumava ler para mim quando eu acordava e não conseguia voltar a dormir
— ela disse suavemente, virando a última página — O vovô Frank, quero dizer. Era bem
parecido com isso; tudo quieto. — E os dois acolhidos e flácidos, juntos em uma poça de luz
amarela e quente, com a noite distante.
Ela sentiu o interesse sonolento de Jem se elevar.
— Ele era como o vovô? O Vovô Frank? — Ela tinha contado às crianças poucas coisas
sobre Frank Randall, não querendo que ele fosse esquecido, mas ela sabia que ele nunca tinha
sido mais do que um fantasma ao lado da vívida calidez de seu outro avô, o avô que elas teriam
de volta. Ela sentiu uma pequena e súbita ruptura em seu coração, um vívido segundo de
compreensão por sua mãe.
Oh, mamãe...
— Ele era diferente — ela disse suavemente, sua boca deslizando nos cabelos brilhantes
dele — Ele era um soldado, entretanto. Isso eles tinham em comum. E ele era um escritor, um
acadêmico, como o papai. Todos eles eram (são) parecidos, entretanto: todos eles cuidam das
pessoas. É o que bons homens fazem.
— Oh — Ela pôde sentir que ele estava adormecendo, lutando para manter a consciência,
os sonhos começando a caminhar pelos seus pensamentos. Ela o deitou no meio dos cobertores
e o cobriu, alisando os cabelos no topo de sua cabeça.
— Nós podemos vê-lo? — Jem disse repentinamente, sua voz sonolenta e macia.
— Papai? Sim, nós o veremos — ela prometeu, fazendo com que sua voz ficasse mais
sólida com confiança.
— Não, o seu pai... — ele disse, os olhos semiabertos, enevoados pelo sono — Se nós
passarmos pela pedra, poderemos ver o Vovô Frank?
Sua boca se abriu, mas ela ainda não tinha descoberto a resposta quando o ouviu começar
a roncar.
101 – SÃO SEUS AQUELES ANIMAIS?
Embora fosse inegavelmente verdade que os círculos de pedra não mordiam, Roger pensou, isso
não significava que eles não eram perigosos.
Tinha levado apenas um dia e meio para que eles encontrassem um círculo de pedras. Ele
tinha feito um esquema rápido de um círculo de pedras no dorso de sua mão, com um pedaço
de carvão, para auxiliar na comunicação, e aquilo tinha funcionado surpreendentemente bem.
Embora as pessoas aleatórias que encontraram os vissem com imensa curiosidade — e eles não
receberam poucos olhares acompanhados do gesto do indicador girando na cabeça — ninguém
achou os visitantes mais do que estranhos, e todos sabiam onde estavam as pedras.
Eles tinham chegado até uma pequena vila, de fato — consistindo de uma igreja, uma casa
pública, um ferreiro e várias casas particulares — onde a última casa em que se aproximaram
até mandou um dos filhos mais novos para guiar Buck e Roger ao seu objetivo.
E ali estavam eles agora: uma dispersão de pilares compactos, cheios de líquen e
maltratados pelo vento ao lado de um lago raso cheio de taboas. Atemporais, indefesos, parte
da paisagem — e a visão deles encheu Roger com um medo tão gelado em sua pele como se ele
estivesse parado ali no vento, nu.
— Você consegue ouvi-las? — Buck murmurou baixinho, seus próprios olhos fixados nas
pedras.
— Não — Roger murmurou de volta — Você consegue?
— Eu espero que não — Mas Buck estremeceu de repente, como se alguma coisa tivesse
passado por ele.
— São estas as tuas bestas? — o menino perguntou, sorrindo para Roger.
Ele apontou para as pedras, explicando — Roger imaginou — a lenda local de que as
pedras eram de fato gados das fadas, congelados no lugar quando o tropeiro bebeu muito e caiu
no lago.
— Juro — o menino assegurou solenemente, fazendo uma cruz sobre o coração — O
Mestre Hacffurthe encontrou-lhe o chicote!
— Quando? — Buck perguntou bruscamente. — E onde vive o Mestre Hacffurthe?
Uma semana atrás, talvez duas, disse o menino, acenando a mão para indicar que a data
não era importante. E ele poderia levá-los até o Mestre Hacffurthe se eles quisessem ver aquela
coisa.
Apesar de seu nome, Mestre Hacffurthe se provou um jovem homem de cabelos claros, o
sapateiro da aldeia. Ele falava o mesmo dialeto Northumbriano impenetrável, mas com algum
esforço e a intervenção do menino — cujo nome, ele disse, era Ridley — o seu desejo foi tornado
claro, e Hacffurthe obedientemente pegou o chicote das fadas debaixo de um balcão, esticando-
o suavemente diante deles.
— Oh, Deus — Roger disse ao ver aquilo e, com uma sobrancelha levantada para
Hacffurthe para pedir permissão, tocou a fita com cuidado. Um pedaço de tecido feito à máquina
com sete centímetros de largura e sessenta centímetros de comprimento, sua superfície
esticada brilhando até mesmo na fraca luz da sapataria. Um pedaço de um cinto do avião da
RAF. Eles estavam nas pedras certas, então.
As perguntas cuidadosas ao Sr. Hacffurthe, então, não suscitaram mais nada de útil. Ele
tinha encontrado o chicote das fadas no lago, balançando-se de um lado para o outro entre as
taboas, mas não tinha visto mais nada.
Roger notou, entretanto, que Ridley se contorceu um pouco quando o Sr. Hacffurthe disse
isso. E depois que eles saíram da casa do sapateiro, ele parou na borda da vila, com a mão em
seu bolso.
— Eu agradeço a você, Mestre Ridley — ele disse, e pegou uma moeda que fez o rosto do
menino se iluminar. Ele a colocou na mão de Ridley, mas, quando o garoto se virou para ir,
colocou a mão em seu braço. — Mais uma coisa, Mestre Ridley — ele disse, e, com um olhar para
Buck, pegou as placas de identificação.
Ridley tentou se soltar do aperto de Roger, o rosto redondo ficando pálido. Buck fez um
pequeno ruído de satisfação e pegou Ridley pelo outro braço.
— Conte-nos sobre o homem — Buck sugeriu satisfeito — E eu posso não quebrar o seu
pescoço.
Roger lançou um olhar de irritação a Buck, mas a ameaça foi efetiva. Ridley tragou como
se tivesse engolido um cogumelo inteiro, mas começou a falar. Entre o dialeto de Ridley e a sua
angústia, a história levou algum tempo para terminar, mas por fim Roger estava quase certo de
ter a essência toda.
— Deixe-o ir — ele disse, soltando Ridley. Ele pescou em seu bolso e saiu com outra moeda
de cobre, que ele ofereceu ao garoto. O rosto de Ridley se flexionou entre o medo e o ultraje,
mas depois de um momento de hesitação, ele pegou a moeda e foi embora, olhando sobre o
ombro enquanto corria.
— Ele contará à família — Buck observou. — É melhor corrermos.
— Nós vamos. Mas não por causa disso. Está ficando escuro — O sol estava muito baixo,
um feixe brilhante de luz amarela exibindo-se nos pés de um frio céu ocre. — Vamos. Nós
precisamos escolher a direção enquanto podemos enxergar.
Até onde Roger tinha sido capaz de compreender pela história de Ridley, o homem vestido
de forma estranha (alguns diziam que ele era do povo das fadas, outros que ele era um habitante
do norte, embora houvesse confusão se isso significava que ele era um escocês, um nórdico ou
alguma outra coisa) tinha tido a má sorte de aparecer numa fazenda a duas ou três milhas das
pedras, onde ele tinha sido atacado por habitantes locais, sendo estes um clã antissocial
chamado Wad.
Os Wads tinham tirado tudo o que era de aparente valor do homem, espancado-o e o
lançado numa ravina — um dos Wads tinha se gabado de mencionar isso a um tropeiro de
passagem, que tinha mencionado o estranho no vilarejo.
A vila, obviamente, ficara interessada — mas não o suficiente para ir procurar pelo
homem. Quando Hacffurthe, o sapateiro, encontrou o pedaço peculiar de tecido, entretanto, os
rumores começaram a se espalhar rapidamente. A excitação tinha atingido altos níveis naquela
tarde, quando um dos vaqueiros de Mestre Quarton chegara ao vilarejo para que a Vovó Racket
furasse seu furúnculo e revelara que um estranho com um sotaque incompreensível tinha
tentado roubar uma torta do peitoril da Senhora Quarton e agora estava sendo mantido preso
enquanto o Mestre Quarton decidia o que era melhor fazer com ele.
— O que ele deve fazer? — Roger tinha perguntado. Ridley tinha expulsado os lábios para
fora e balançado a cabeça.
— Ele deve matá-lo — ele disse. — Ou pode ser que ele corte suas mãos. Mestre Quarton
não suporta roubo.
E isso — além de uma vaga direção em relação à localização da fazenda de Quarton — era
tudo o que tinham.
— Deste lado da parede, a aproximadamente três quilômetros para oeste e um pouco para
o sul, abaixo de um cume e ao longo de um córrego — Roger disse severamente, alongando o
passo. — Se nós conseguirmos encontrar o córrego antes de escurecer completamente...
— Sim — Buck caiu ao lado dele quando eles se viraram para onde tinham deixado os
cavalos — Suponho que Quarton tem um cachorro, certo?
— Todos têm um cachorro.
— Oh, Deus.
102 – APENAS UMA CHANCE
Não havia lua. Inegavelmente aquilo era uma coisa boa, mas tinha suas desvantagens. A fazenda
e seus anexos estavam dispostos num poço de escuridão tão profundo que eles poderiam nem
perceber que estavam lá se não o tivessem visto antes de a luz ter partido. Eles esperaram,
entretanto, pela escuridão total e o apagar das velas dentro da casa, e depois uma hora ou mais
para garantir que os habitantes — e seus cachorros — estavam todos dormindo.
Roger estava carregando uma lanterna escura, mas com as laterais fechadas; Buck correu
sobre alguma coisa que estava deitada no chão, soltou um grito assustado e caiu ao lado daquilo.
A coisa se provou ser um grande ganso dormindo, que soltou um “Wonk” assustado de alguma
forma mais alto do que o grito de Buck, e prontamente partiu para cima dele com o bico e as
asas se debatendo. Houve um latido afiado e questionador à distância.
— Quieto! — Roger sibilou, indo auxiliar seu ancestral. — Você acordará os mortos,
imagine os habitantes da casa. — Ele lançou a capa sobre o ganso, que se calou e começou a
andar em volta de si mesmo, confuso, uma pilha de panos escuros móvel. Roger colocou a mão
sobre a boca, mas não conseguiu evitar bufar pelo nariz.
— Sim, certo — Buck sussurrou, levantando-se — Se você acha que eu vou pegar sua capa
de volta, pode esquecer.
— Ele se soltará daqui a pouco. — Roger sussurrou de volta — Ele não precisará disso.
Enquanto isso, onde diabos você acha que o levaram?
— Para algum lugar que tem uma porta que possa ser trancada — Buck esfregou as mãos
juntas, tirando a sujeira delas. — Eles não o manteriam na casa, entretanto, certo? Ela não é tão
grande.
Não era. Você poderia colocar cerca de dezesseis fazendas como aquela dentro de
Lallybroch, Roger pensou, e sentiu uma súbita pontada de dor, pensando em Lallybroch como
era quando ele a tinha — ou a tivesse.
Buck estava certo, entretanto: não poderia haver mais do que dois quartos e, talvez, um
mezanino para as crianças. E dado ao fato de os vizinhos pensarem que Jerry — se fosse mesmo
Jerry — era um estrangeiro, um ladrão e/ou um ser sobrenatural, não era provável que os
Quartons o mantivessem dentro da casa.
— Você viu um celeiro, antes de escurecer? — Buck sussurrou, mudando para gaélico. Ele
estava na ponta dos pés, como se isso o pudesse ajudar a ver acima da escuridão, e estava
olhando de um lado para o outro. Com os olhos adaptados à escuridão como os de Roger
estavam, ele poderia pelo menos enxergar a silhueta das construções pequenas da fazenda. O
paiol de milho, o galpão das cabras, o galinheiro, a forma desgrenhada do feno...
— Não — Roger replicou na mesma língua. O ganso tinha se livrado da capa e partido,
fazendo pequenos ganidos insatisfeitos; Roger se inclinou e pegou sua capa de volta — É um
lugar pequeno; eles provavelmente não têm nada além de um boi ou uma mula para a lavoura,
se tiverem. Eu sinto cheiro deles, no entanto... estrume, sabe?
— Sim — Buck disse, caminhando abruptamente em direção a uma estrutura quadrada
— O estábulo das vacas. Ele teria uma barra na porta.
E tinha. E a barra estava em seu suporte.
— Eu não estou ouvindo nenhuma vaca aí dentro — Buck sussurrou, aproximando-se —
e o cheiro é antigo.
Era quase inverno. Talvez eles tenham abatido a vaca — ou vacas; talvez eles a tivessem
vendido. Mas, se eram vacas ou não, havia alguma coisa lá dentro; ele ouviu um farfalhar e o
que poderia ser uma maldição abafada.
— Sim, bem, há alguma coisa aí dentro — Roger levantou a lanterna escura, apalpando
para abri-la — Tire a barra, certo?
Mas antes que Buck pudesse alcançar a barra, um grito de “Olá” veio de dentro, e alguma
coisa caiu pesadamente contra a porta — Ajuda! Ajude-me! Ajude-me!
A voz falava inglês, e Buck voltou àquela língua — Você pode, por favor, fazer menos
barulho? — Ele disse ao homem lá dentro, irritado. — Você quer que todos eles saiam para nos
pegar? Aqui, então, traga a luz para mais perto — ele disse a Roger, e tirou a barra com um
pequeno grunhido de esforço.
A porta se abriu quando Buck colocou a barra no chão, e a luz saiu pela porta aberta da
lanterna. Um homem franzino com cabelos esvoaçantes — da mesma cor dos de Buck, Roger
pensou — piscou para eles, tonto por causa da luz, e depois fechou os olhos.
Roger e Buck olharam um para o outro por um instante, e depois, em comum acordo,
entraram no estábulo.
É ele, Roger pensou. É ele. Eu sei que é ele. Deus, ele é tão jovem! Pouco mais do que um
garoto. Estranhamente, ele não sentiu nenhuma explosão vertiginosa de excitação. Era uma
sensação de calma certeza, como se o mundo tivesse repentinamente se ajeitado e tudo
estivesse entrando nos eixos. Ele esticou a mão e tocou o homem gentilmente no ombro.
— Qual é o seu nome, companheiro? — ele disse suavemente, em inglês.
— MacKenzie, J. W. — o jovem homem disse, os ombros se endireitaram quando ele
levantou o queixo saliente — Tenente, da Royal Air Force. Número de serviço... — Ele parou,
olhando para Roger, que tardiamente percebeu que, calmo ou não, ele estava sorrindo de orelha
a orelha — O que é engraçado? — Jerry MacKenzie exigiu, beligerante.
— Nada — Roger assegurou a ele — Hã... feliz... feliz em vê-lo, só isso — Sua garganta
estava apertada, e ele teve que tossir — Você está aqui há muito tempo?
— Não, apenas umas poucas horas. Você não tem nenhuma comida aí, eu suponho? — Ele
olhou esperançosamente de um homem a outro.
— Nós temos — Buck disse — mas este não é o momento para isso, sim? — Ele olhou
sobre o ombro — Vamos embora.
— Sim. Sim, nós devemos ir — Mas Roger falou automaticamente, incapaz de parar de
olhar para J. W. MacKenzie, RAF, vinte e dois anos.
— Quem são vocês? — Jerry perguntou, olhando de volta. — De onde vocês são? Deus
sabe que vocês não são daqui!
Roger trocou um rápido olhar com Buck. Eles não tinham planejado o que dizer; Roger
não queria provocar azar pensando que eles realmente encontrariam Jerry MacKenzie, e quanto
a Buck...
— Inverness — Buck disse abruptamente. Ele soava rouco.
Os olhos de Jerry passaram de um para outro, e ele pegou a manga de Roger.
— Você sabe o que quero dizer — ele disse, e engoliu ar, abraçando a si mesmo — De
quando?
Roger tocou a mão de Jerry, fria e suja, os dedos longos como os seus. A pergunta lhe deu
um nó na garganta e engrossou a sua voz quando ele respondeu.
— Um longo tempo em relação a você — Buck disse baixinho, e pela primeira vez Roger
captou uma nota de desolação em sua voz. — Em relação a agora. Perdidos.
Isso foi um golpe em seu coração. Ele tinha verdadeiramente esquecido sua situação por
um tempo, pela urgência de encontrar aquele homem. Mas a resposta de Buck fez com que o
rosto de Jerry, já abatido pela fome e pela tensão, ficasse branco sob a sujeira.
— Jesus — Jerry sussurrou — Onde nós estamos agora? E... e quando?
Buck enrijeceu. Não por causa da pergunta de Jerry, mas por causa de um ruído lá fora.
Roger não sabia o que o tinha causado, mas não era o vento. Buck fez um ruído baixo e urgente
com a garganta, mudando o peso do corpo.
— Eu acho que faz parte da Northumbria agora — Roger disse. — Olha, não temos tempo.
Temos que ir, antes que alguém escute...
— Sim, certo. Vamos lá, então — Jerry tinha um lenço de seda ao redor do pescoço; ele
puxou as pontas retas e as enfiou dentro da camisa.
O ar lá fora estava maravilhoso após o cheiro de bosta de vaca, fresco com o cheiro de
terra recém-arada e urzes mortas. Eles seguiram seu caminho o mais rapidamente possível pelo
quintal, contornando a casa da fazenda. Jerry estava mancando, ele viu, mancando bastante, e
Roger pegou seu braço para ajudá-lo. Um ruído estridente veio da escuridão, a alguma distância
— e depois outro latido, num tom mais profundo.
Roger rapidamente lambeu um dedo e o segurou para cima, para medir a direção do vento.
Um cachorro latiu novamente, e outro ecoou.
— Por aqui — ele sussurrou para seus companheiros, puxando o braço de Jerry. Ele os
liderou para o mais distante da casa possível, tentando manter seus passos, e eles se
encontraram tropeçando através de um campo arado, os torrões de terra grudando em suas
botas.
Buck tropeçou e xingou baixinho. Eles saltaram dos sulcos para o cume, os pés
desajeitados, Roger agarrando o braço de Jerry para mantê-lo de pé; uma das pernas de Jerry
parecia aleijada e não aguentava o seu peso. Ele tinha sido ferido. Eu vi a medalha...
E então os cachorros começaram a latir, suas vozes repentinamente claras — e muito mais
próximas.
— Jesus — Roger parou por um instante, respirando com força. Onde diabos estava o
bosque onde eles tinham se escondido? Ele jurava que eles estavam marchando para ele, mas... O
feixe da lanterna balançava loucamente, mostrando pedaços sem significado algum do campo.
Ele fechou a lateral; era melhor que eles não usassem a lanterna.
— Por aqui! — Buck se balançou para longe e Roger e Jerry os seguiram forçosamente, os
corações martelando. Cristo, parecia que havia uns cinco cachorros pelo menos que tinham sido
soltos, todos latindo. E aquela era uma voz, chamando os cachorros? Sim, era. Ele não conseguia
entender uma única palavra, mas o significado era claro como água.
Eles correram, cambaleando e ofegando. Roger não podia dizer onde eles estavam; ele
estava seguindo Buck. Ele derrubou a lanterna em algum ponto; ela caiu com um baque e ele
ouviu o óleo em seu reservatório derramar. Com uma suave lufada, o fogo se tornou uma chama
brilhante.
— Merda! — Eles correram. Não importava para onde, para qual direção. Apenas para
longe do farol em chamas e das vozes iradas... mais do que uma.
De repente eles estavam no meio das árvores — o baixo e intrincado bosque onde eles
haviam se escondido mais cedo. Mas os cachorros estavam em seu encalço, latindo
ansiosamente, e eles não pararam, mas continuaram abrindo caminho no meio do mato até
saírem novamente, em uma colina íngreme e coberta de urzes. O pé de Roger afundou numa
poça esponjosa, que o sugou até o tornozelo, e ele quase perdeu o equilíbrio. Jerry firmou os
pés e puxou Roger para cima, depois perdeu o próprio equilíbrio quando seu joelho vacilou;
eles se abraçaram, balançando precariamente por um instante, e então Roger se lançou para
frente novamente e eles conseguiram sair.
Ele pensou que seus pulmões iam estourar, mas eles continuaram — não mais correndo;
não era possível correr numa colina como aquela — labutando, colocando um pé após o outro,
após o outro... Roger começou a ver explosões de luz nas bordas de sua visão; ele tropeçou,
cambaleou e caiu, e foi colocado de pé por Jerry.
Os três estavam meio encharcados e, da cabeça aos pés, estavam sujos de barro e
arranhados por causa das urzes quando finalmente chegaram ao topo da colina e pararam por
um momento, balançando-se com falta de ar.
— Para onde... estamos indo? — Jerry chiou, usando o fim do lenço para limpar o rosto.
Roger balançou a cabeça, ainda sem fôlego — mas depois capturou um brilho fraco de
água.
— Vamos levar você... de volta. Para as pedras do lago. Por onde... você veio. Vamos!
Eles se atiraram para baixo do outro lado da colina, de cabeça, quase caindo, agora
empolgados pela velocidade e pelo pensamento de terem um objetivo.
— Como... me encontraram? — Jerry ofegou, quando eles finalmente chegaram ao solo e
pararam para respirar.
— Encotramos suas placas — Buck disse, quase bruscamente — E seguimos sua trilha.
Roger colocou a mão em seu bolso, prestes a devolver as placas de identificação — mas
não o fez. O fato o atingiu, como uma pedra no meio do peito, de que, mesmo tendo encontrado
Jerry MacKenzie contra todas as possibilidades substanciais, ele estava prestes a se separar
dele, provavelmente para sempre. E isso apenas se as coisas fossem bem...
Seu pai. Papai? Ele não conseguia pensar naquele jovem homem, pálido e manco, em seus
quase vinte anos, como seu pai — não o pai que ele imaginara durante toda a vida.
— Vamos — Buck pegou o braço de Jerry agora, quase o carregando, e eles começaram a
forjar seu caminho através dos campos escuros, perdendo seu caminho e encontrando-o de
novo, guiados pela luz de Orion acima de suas cabeças.
Orion, Lepus. Canis major. Ele encontrou um pouco de conforto nas estrelas, brilhando no
céu negro e frio. Elas não mudavam; elas brilhariam para sempre — ou tão perto que nem faria
diferença — sobre ele e sobre aquele homem, não importava onde cada um deles pudesse
acabar.
Acabar. O ar frio queimou seus pulmões. Bree...
E então ele pôde vê-las: colunas magras, não mais do que manchas na noite, visíveis
apenas porque eram escuras e imóveis contra a folha de água em agitado movimento por causa
do vento.
— Certo — ele disse roucamente e, engolindo, limpou seu rosto na manga — É aqui que
deixaremos você.
— Vão? — Jerry arquejou — Mas... mas vocês...
— Quando você... atravessou. Você tinha alguma coisa com você? Uma pedra preciosa,
alguma joia?
— Sim — Jerry disse, perplexo. — Eu tinha uma safira não lapidada em meu bolso. Mas
ela sumiu. É como se ela tivesse...
— Como se ela tivesse queimado — Buck finalizou por ele, com a voz sombria — Sim.
Bem, e daí?
Esta última pergunta foi endereçada a Roger, que hesitou. Bree... Não mais do que um
instante, entretanto — ele colocou a mão dentro da bolsa de couro em sua cintura, tirou um
pequeno pacote oleado, abrindo-o e pressionou o pingente de granada na mão de Jerry. Estava
suavemente quente por causa de seu corpo e a mão de Jerry se fechou sobre ele por reflexo.
— Leve isso; é bom. Quando você atravessar — Roger disse, e se inclinou sobre ele,
tentando impressioná-lo com a importância daquelas instruções — pense em sua esposa, sobre
Marjorie. Pense com muita força; visualize-a em sua mente, e caminhe diretamente. O que
diabos você fizer, entretanto, não pense em seu filho. Apenas na sua esposa.
— O quê? — Jerry estava amedrontado. — Como diabos você sabe o nome de minha
esposa? E onde você ouviu sobre o meu filho?
— Não importa — Roger disse, e virou a cabeça para olhar sobre o ombro.
— Maldição — Buck disse suavemente — Eles ainda estão vindo. Há uma luz.
Havia: uma única luz, balançando-se sobre o chão, como se alguém a carregasse. Mas, até
onde Roger podia ver, não havia ninguém atrás dela, e um tremou violento o percorreu.
— Thaibhse — disse Buck, baixinho. Roger conhecia aquela palavra bem o suficiente...
Espírito era o seu significado. E geralmente um espírito disposto ao mal. Uma assombração.
— Sim, talvez. — Ele estava começando a recuperar o fôlego. — E talvez não — Ele se
virou de novo para Jerry. — De qualquer forma, você precisa ir, homem, e agora. Lembre-se,
pense em sua esposa.
Jerry engoliu, suas mãos se fechando ao redor da pedra.
— Sim. Sim... certo. Obrigado, então — ele adicionou, sem jeito.
Roger não podia falar, e conseguiu dar a ele apenas um parco sorriso. E então Buck estava
ao seu lado, puxando-o com urgência pela manga e gesticulando para a luz cintilante, e eles
partiram, desajeitados e pesados após aquela breve esfriada no exercício.
Bree... Ele engoliu, os punhos cerrados. Ele tinha conseguido uma pedra uma vez, poderia
fazer isso novamente... Mas a maior parte de sua mente ainda estava com o homem que eles
acabaram de deixar perto do lago. Ele olhou sobre o ombro e viu Jerry começando a caminhar,
mancando bastante, mas resoluto, os ombros finos enquadrados sob a camisa cáqui pálida e o
final de seu lenço flutuando ao vento.
E então tudo cresceu dentro dele. Tomado por uma urgência maior do que ele já tinha
sentido, ele se virou e correu. Correu sem se importar onde pisava, com a escuridão, com o grito
assustado de Buck atrás de si.
Jerry ouviu os passos na grama e se virou, assustado. Roger o pegou por ambas as mãos,
apertou-as com força o suficiente para fazer Jerry ofegar, e disse ferozmente — Eu amo você!
Isso foi tudo o que ele teve tempo de dizer — e tudo o que ele possivelmente poderia dizer.
Ele o soltou e se virou rapidamente, suas botas fazendo um ruído de sapato molhado nas gramas
secas do lago. Ele olhou para a colina, mas a luz tinha desaparecido. Provavelmente era alguém
da fazenda, satisfeito pelos intrusos terem ido embora.
Buck estava esperando, envolto em sua capa e segurando a de Roger; ele devia tê-la
deixado cair quando descera a colina. Buck a chacoalhou e a colocou sobre os ombros de Roger;
os dedos de Roger tremiam, tentando prender o broche.
— Por que você disse a ele uma coisa idiota como aquela? — Buck perguntou, prendendo
o broche por ele. A cabeça de Buck estava baixa, sem olhar para ele.
Roger engoliu em seco, e sua voz saiu clara, mas dolorosa, as palavras como pedaços de
gelo em sua garganta.
— Porque ele vai voltar. É a única chance que eu vou ter. Vamos.
103 – PÓS-PARTO
A noite estremeceu. A noite toda. O terreno e o lago, o céu, a escuridão, as estrelas e todas as
particularidades de seu próprio corpo. Ele estava espalhado, instantaneamente em todos os
lugares e parte de todas as coisas. E parte deles. Houve um momento de exaltação muito grande
pelo medo e depois ele desapareceu, seu último pensamento não mais do que um fraco “Eu
sou...” vocalizado mais em esperança do que como uma declaração.
Roger voltou para um conhecimento turvo de si mesmo, deitado de costas sob um céu
negro cujas estrelas brilhantes pareciam pontinhos agora, desesperadamente distantes. Ele
sentia a fala delas, sentia falta de fazer parte da noite. Sentia falta, com uma breve sensação
dilacerante de desolação, dos dois homens que tinham compartilhado sua alma durante aquele
momento em chamas.
O som de Buck vomitando voltou para ele junto com a sensação de seu corpo. Ele estava
deitado na grama fria e úmida, meio ensopado, cheirando a barro e esterco velho, gelado até os
ossos e dolorido em uma quantidade inúmera de lugares desconfortáveis.
Buck disse alguma coisa horrível em gaélico e vomitou novamente. Ele estava com as mãos
e os joelhos no chão, a alguns metros de distância, uma mancha na escuridão.
— Você está bem? — Roger resmungou, rolando para o lado. Ele tinha se lembrado, de
repente, do problema com o coração de Buck quando eles atravessaram por Craigh na Dun —
Se o seu coração estiver te atrapalhando de novo...
— Se estivesse, o que diabos você poderia fazer? — Buck disse. Ele estava deitado em
alguma coisa esquisita na grama e se sentou pesadamente, passando a manga contra a boca. —
Cristo, eu odeio isso! Não sabia que sentiríamos isso, tão longe.
— Mmphm — Roger se sentou lentamente. Ele imaginou se Buck tinha sentido a mesma
coisa que ele, mas não pareceu o momento para discussões metafísicas. — Ele foi embora, então.
— Quer que eu vá até lá para me certificar? — Buck disse desagradavelmente. — Deus,
minha cabeça!
Roger se levantou, cambaleando um pouco, e foi pegar Buck por um braço, alavancando-
o para ficar de pé.
— Vamos — ele disse — Vamos encontrar os cavalos. Vamos nos afastar um pouco, fazer
um acampamento e colocar alguma comida dentro de você.
— Eu não estou com fome.
— Eu estou — De fato, ele estava faminto. Buck se balançou, mas pareceu capaz de ficar
de pé sozinho. Roger o soltou e se virou brevemente para olhar para trás, para o lago distante e
o círculo de pedras. Por um momento, ele recapturou a sensação de ser parte delas, e então
aquilo desapareceu; a água brilhante e as pedras eram nada além de parte da paisagem
escarpada.
Não havia como saber que horas eram, mas a noite ainda estava bastante escura quando
eles recuperaram os cavalos, e cavalgaram até um local abrigado sob um penhasco,
encontraram água, fizeram fogo, e tostaram alguns pães para comerem com seu arenque
salgado.
Eles não falaram, ambos exaustos. Roger deixou de lado o óbvio “e agora?” e deixou seus
pensamentos virem aleatoriamente; haveria tempo suficiente para os planos no dia seguinte.
Depois de um tempo, Buck se levantou abruptamente e saiu pela escuridão. Ele ficou
afastado por algum tempo, durante o qual Roger continuou sentado, olhando para o fogo,
revivendo cada momento que passara com Jerry MacKenzie em sua mente, tentando fixar tudo.
Ele desejava apaixonadamente que fosse de dia, para que ele pudesse ser capaz de ver mais do
rosto de seu pai do que os breves vislumbres que a lanterna escura permitira.
Quaisquer fossem seus arrependimentos, entretanto, e o frio conhecimento de que Jerry
não conseguiria voltar — ou pelo menos não conseguiria voltar para onde tinha saído, pelo
menos (Deus, e se ele acabasse perdido em outro tempo estranho? Aquilo era possível?) — havia
aquela pequena coisa que o acalorava. Ele havia dito. E onde quer que seu pai fosse, ele
carregaria aquilo consigo.
Ele se envolveu com a capa, deitou-se próximo às brasas da fogueira, e levou isso com ele
para o sono.
Quando Roger acordou de manhã, com a cabeça pesada, mas sentindo-se razoavelmente bem,
Buck já tinha feito fogo e estava fritando bacon. O cheiro daquilo fez com que Roger se sentasse,
esfregando as reminiscências do sono para longe de seus olhos.
Buck levantou uma fatia grossa de bacon da panela, colocou-a no pão e entregou a ele. Ele
parecia ter se recomposto dos efeitos colaterais da partida de Jerry; ele estava desalinhado e
barbudo, mas com os olhos claros e deu a Roger um olhar avaliador.
— Você está inteiro? — Não foi uma pergunta retórica, e Roger assentiu, pegando a
comida. Ele começou a dizer alguma coisa em resposta, mas sua garganta estava contraída, e
não saiu muita coisa de lá. Ele limpou a garganta com força, mas Buck sacudiu a cabeça,
indicando que não seria necessário fazer tanto esforço para responder. — Estou pensando que
devemos ir para o norte novamente — Buck disse, sem preâmbulos. — Você vai querer
continuar procurando pelo seu rapaz, eu suponho... e eu quero ir à Cranesmuir.
Assim como Roger, embora provavelmente por outras razões. Ele olhou para Buck de
perto, mas seu ancestral evitou seu olhar.
— Geillis Duncan?
— Você não faria? — O tom de Buck era beligerante.
— Eu o fiz — Roger disse secamente. — Sim, é claro. — Isso não saiu como uma surpresa.
Ele mordeu o sanduíche improvisado lentamente, imaginando o quanto deveria contar a Buck
sobre Geillis. — Sua mãe... — ele começou, e limpou a garganta novamente.
Quando Roger terminou, Buck ficou sentado em silêncio por algum tempo, piscando para
para o último pedaço de bacon, secando na panela.
— Jesus — ele disse, mas não em tom de choque. Mais um profundo interesse, Roger
pensou, com certa inquietação. Buck olhou para Roger, a especulação e seus olhos verde-musgo.
— E o que você sabe sobre o meu pai, então?
— Mais do que eu posso contar a você em poucos minutos, e nós devemos ir embora. —
Roger se levantou, limpando os farelos em seus joelhos — Eu não quero tentar explicar a nossa
presença para nenhum daqueles malditos cabeludos. Meu Inglês Arcaico não é o que costumava
ser.
— Sumer is icumen in34 — Buck disse, com um olhar para as árvores desfolhadas, brotos
precariamente enraizados nas fendas do penhasco — Lhude sing cuccu35. Sim, vamos.
19 dezembro de 1980
Edimburgo, Escócia
Está quase na hora. O solstício de inverno é depois de amanhã. Eu continuo imaginando que posso
sentir a terra mudando lentamente na escuridão, as placas tectônicas se movendo abaixo de meus
pés e... coisas... invisivelmente se alinhando. A lua está crescendo, quase um quarto completa. Não
tenho ideia se isso pode ser importante.
Pela manhã, pegaremos o trem para Inverness. Eu liguei para Fiona; ela nos encontrará na
estação, e nós vamos comer e trocar de roupa em sua casa — e então ela nos levará de carro até
Craigh na Dun... e nos deixará lá. Continuo pensando se deveria pedir para que ela ficasse — ou
voltasse em uma hora, para o caso de um ou mais de nós ter permanecido, ter pegado fogo ou
estar inconsciente. Ou morto.
Depois de hesitar por uma hora, liguei para Lionel Menzies também, e pedi para que ele
mantivesse os olhos em Rob Cameron. Inverness é uma cidade pequena; sempre há a chance de
que alguém nos veja saindo do trem, ou na casa de Fiona. E as palavras se espalham rapidamente.
Se alguma coisa for acontecer, eu quero ser avisada.
Eu tenho estes breves momentos de lucidez quando tudo para estar certo e eu me encho de
esperança, quase tremendo em antecipação. A maior parte do tempo eu continuo pensando que
estou louca, e então eu realmente fico trêmula.
105 – O SÚCUBO DE CRANESMUIR
Cranesmuir, Escócia
Roger e Buck estavam parados do outro lado de uma pequena praça no meio de Cranesmuir,
olhando para a casa do fiscal. Roger lançou um olhar sombrio ao pedestal no meio da praça,
com seu pelourinho de madeira. Pelo menos havia buracos para um canalha apenas; não havia
ondas de crime em Cranesmuir.
— No sótão, você disse? — Buck estava olhando atenciosamente para as janelas no topo
da torre. Era uma casa substancial, com vitrais nas janelas, e até mesmo o sótão tinha alguns,
embora menores do que os dos andares inferiores — Eu consigo ver as plantas penduradas no
teto, eu acho.
— Foi o que Claire disse, sim. Que ela mantém seu... seu... — A palavra “covil” veio à sua
mente, mas ele a descartou em favor de — sua botica lá em cima. Onde ela faz suas poções e
encantos. — Ele inspecionou as mangas, que ainda estavam úmidas após um banho de esponja
nos estábulos dos cavalos para remover as manchas maiores da viagem, e checou se a fita em
seus cabelos estava em ordem.
A porta se abriu e um homem saiu — um mercador, talvez, ou um advogado, bem vestido,
com um casaco quente contra a garoa. Buck mudou o peso do corpo para um lado, tentando ver
a casa antes que a porta se fechasse atrás dele.
— Há uma empregada na porta — ele relatou. — Eu vou bater, então, e perguntar se eu
posso ver... Sra. Duncan, é o seu nome?
— Até o momento, sim — Roger disse.
Ele simpatizava inteiramente com a necessidade de Buck de ver sua mãe. E, para falar a
verdade, ele estava curioso para conhecer a mulher também; ela era cinco vezes sua tataravó
— e uma das poucas viajantes de quem ele sabia algumas coisas. Mas ele também já ouvira o
suficiente sobre ela para que seus sentimentos fossem uma mistura de excitação com uma
considerável inquietação. Ele tossiu, colocando o punho na frente da boca.
— Você quer que eu suba com você? Se ela estiver em casa, quero dizer.
Buck abriu a boca para responder e depois a fechou, pensando por um momento e
assentindo.
— Sim, eu quero — ele disse baixinho. Ele lançou a Roger um olhar longo de lado,
entretanto, com um brilho de humor — Você pode me ajudar a manter a conversa.
— Fico feliz em ajudar — Roger disse — Estamos de acordo numa coisa, entretanto: nós
não vamos contar a ela quem você é. Ou o que é.
Buck assentiu novamente, embora seus olhos estivessem agora fixos na porta, e Roger
pensou que ele não estava prestando atenção.
— Sim — ele disse. — Vamos, então — e ele caminhou através da praça, a cabeça para
cima e os ombros bem alinhados.
— Sra. Duncan? Bem, eu não sei, senhor — a empregada disse. — Ela está em casa hoje,
mas o Dr. McEwan está com ela agora.
O coração de Roger saltou.
— Ela está doente? — Buck perguntou bruscamente, e a empregada piscou, surpresa.
— Oh, não. Eles estão tomando chá na sala de estar. Gostariam de sair da chuva e eu vou
ver o que ela diz? — Ela deu um passo para trás e Roger tomou vantagem disso para tocá-la no
braço.
— O Dr. McEwan é um amigo nosso. Você poderia dar a ele os nossos nomes? Roger e
William MacKenzie... Ao seu serviço.
Eles discretamente balançaram a maior quantidade de água que conseguiram de seus
chapéus e casacos, mas dentro de poucos momentos a empregada estava de volta, sorrindo.
— Venham, senhores, a Sra. Duncan disse que são bem-vindos! Logo após as escadas. Eu
vou pegar um pouco de chá a vocês.
A sala de estar era no andar de cima, uma pequena sala, bastante cheia, mas quente e
colorida. Nenhum dos homens tinha olhos para os móveis, entretanto.
— Sr. MacKenzie — Dr. McEwan disse, parecendo surpreso, mas cordial. — E Sr.
MacKenzie — Ele apertou as mãos deles e se virou para a mulher que tinha se levantado de seu
assento próximo ao fogo. — Minha querida, permita-me apresentar um antigo paciente meu e
o seu parente. Cavalheiros, essa é a Sra. Duncan.
Roger sentiu Buck se enrijecer um pouco, e não era de se admirar. Ele esperava não estar
encarando também.
Geillis Duncan talvez não fosse de uma beleza clássica, mas isso não importava. Ela
certamente tinha boa aparência, com os cabelos loiro-creme presos sob uma touca e — é claro
— os olhos. Olhos que o faziam querer fechar os seus e cutucar Buck nas costas para fazer o
mesmo, porque certamente ela ou McEwan iriam notar...
McEwan tinha notado alguma coisa, tudo bem, mas não eram os olhos. Ele estava olhando
Buck com o cenho franzido em desagrado, quando Buck deu um longo passo para frente, pegou
a mão da mulher e se inclinou para beijá-la.
— Sra. Duncan — ele disse, endireitando-se e sorrindo diretamente para aqueles claros
olhos verdes — Seu mais humilde e obediente servo, senhora.
Ela sorriu de volta, uma sobrancelha loira levantada, com um olhar divertido que
encontrava o de desafio implícito de Buck. Mesmo de onde estava, Roger sentiu o estalo de
atração entre eles, afiado como uma faísca de eletricidade estática. Assim como McEwan.
— Como está sua saúde, Sr. MacKenzie? — McEwan disse para Buck. Ele puxou uma
cadeira para o lugar. — Sente-se e deixe-me examiná-lo.
Buck não ouviu ou fingiu não ouvir. Ele ainda estava segurando a mão de Geillis Duncan,
e ela não o estava afastando.
— Foi muito gentil de sua parte nos receber, senhora — ele disse. — E certamente nós
não pretendemos perturbar o seu chá. Nós ouvimos falar de suas habilidades como curandeira
e viemos vê-la no que poderia se chamar de forma profissional.
— Profissional — ela repetiu, e Roger ficou surpreso com sua voz. Era leve, quase de
menina. Então ela sorriu de novo e a ilusão de seu jeito de menina desapareceu. Ela retirou a
mão agora, mas com um lânguido ar de relutância, seus olhos ainda fixos em Buck com óbvio
interesse. — Sua profissão ou a minha?
— Ah, eu não sou nada além de um humilde advogado, senhora — Buck disse, com uma
gravidade tão patentemente falsa que Roger teve vontade de socá-lo. Então, ele adicionou,
virando-se para Roger — e meu parente aqui é um estudioso e músico. Mas como você pode
ver, ele sofreu um acidente muito triste com sua garganta e...
Agora Roger queria verdadeiramente socá-lo — Eu... — ele começou, mas por um capricho
cruel do destino, sua garganta escolheu aquele momento para se contrair, e seu protesto
finalizou como um murmúrio de um cano enferrujado.
— Nós ouvimos falar de você, senhora, como eu disse — Buck continuou, colocando uma
mão simpaticamente no ombro de Roger e apertando com força. — E como eu disse, nós
pensamos...
— Deixe-me ver — ela disse, e veio para ficar em frente à Roger, seu rosto de repente a
apenas centímetros do dele. Atrás dela, McEwan estava ficando com o rosto vermelho.
— Eu já atendi este homem — ele disse a ela — É uma lesão permanete, embora eu tenha
sido capaz de oferecer um pequeno alívio. Mas...
— Permanente, de fato — Ela desfez o colarinho dele em segundos e abriu sua camisa, os
dedos quentes e leves em sua cicatriz. Ela mudou o olhar e olhou diretamente em seus olhos. —
Mas foi uma sorte, eu diria. Você não morreu.
— Não — ele disse, sua voz rouca, mas pelo menos trabalhando novamente. — Eu não
morri. — Deus, ela era inquietante. Claire a tinha descrito vividamente, mas Claire era uma
mulher. Ela ainda o estava tocando, e embora seu toque não fosse de forma alguma impróprio,
era condenadamente íntimo.
Buck estava ficando impaciente; ele não gostava que ela tocasse Roger mais do que
McEwan gostava. Ele limpou sua garganta.
— Eu imagino, senhora... você não poderia ter algum medicamento, talvez? Não apenas
para o meu parente aqui, mas... bem... — Ele tossiu de uma forma que indicava que ele nutria
doenças mais delicadas que ele não queria mencionar na frente dos outros.
A mulher cheirava a sexo. A sexo muito recente. O cheiro se levantava dela como incenso.
Ela ficou na frente de Roger por um momento, ainda olhando atentamente para seu rosto,
mas depois sorriu e levou sua mão para longe, deixando sua garganta de repente fria e exposta.
— É claro — ela disse, mudando seu sorriso e sua atenção para Buck — Venha para o meu
pequeno sótão, senhor. Eu tenho certeza de que eu tenho alguma coisa que pode curar o que o
aflige.
Roger sentiu sua pele se arrepiar em seu peito e seus ombros, apesar do bom fogo na
lareira. Buck e McEwan tinham se contraído um pouco, e ela sabia disso muito bem, embora seu
rosto estivesse inteiramente composto. Roger fixou um olhar em Buck, desejando que seu
antepassado olhasse para ele. Buck não se moveu para pegar o braço de Geillis, que colocara
sua mão no cotovelo dele.
McEwan fez um ruído baixo com a garganta.
Então Buck e Geillis tinham ido, o som de seus passos e as vozes animadas morrendo
enquanto eles subiam a escada para o sótão, deixando Roger e McEwan ambos em silêncio, cada
um por suas razões.
Roger pensou que o bom doutor poderia estar prestes a ter uma apoplexia, se aquele fosse o
termo médico correto para o “rompimento de uma junta”. Quaisquer fossem seus próprios
sentimentos em relação à partida abrupta de Buck e Geillis — e eles eram vívidos — eles se
empalideceram ao lado da tonalidade do rosto de Hector McEwan.
O médico estava um pouco ofegante, sua compleição vibrando. Claramente ele queria
seguir o par errante, mas foi retido pelo fato de que não tinha ideia do que poderia estar
acontecendo quando ele os encontrasse.
— Não é o que você está pensando — Roger disse, encomendando a própria alma a Deus
e esperando que não fosse.
McEwan se virou para olhar para ele — O diabo que não é — ele estalou. — Você não a
conhece.
— Claramente não a conheço tão bem quanto você — Roger disse incisivamente, e
levantou uma sobrancelha.
McEwan disse alguma blasfêmia em resposta, pegou o atiçador e esfaqueou
violentamente os pedaços enfumaçados de turfa da lareira. Ele se virou um pouco em direção à
porta, o atiçador ainda em sua mão, e o olhar em seu rosto de tal forma que Roger pulou de pé
e agarrou-o pelo braço.
— Pare, homem — ele disse, mantendo a voz o mais baixa e uniforme possível, na
esperança de acalmar McEwan — Você não fará nenhum bem a si mesmo. Sente-se, agora. Eu
vou dizer porque isso... porque ele... porque o homem está interessado nela.
— Pela mesma razão que qualquer cachorro na vila está interessado em uma cadela no
cio — McEwan disse venenosamente. Mas ele permitiu que Roger tirasse o atiçador de sua mão
e, embora não tenha se sentado, ele pelo menos respirou fundo diversas vezes, o que o fez
retomar uma aparência de calma.
— Sim, diga-me, então... por todo bem que isso irá fazer — ele disse.
Não era uma situação que permitia diplomacia ou eufemismo.
— Ela é sua mãe, e ele sabe disso — Roger disse sem rodeios.
O que quer que McEwan estava esperando, não era isso, e por um instante, Roger ficou
grato por ver que o rosto do homem ficou absolutamente inexpressivo pelo choque. Apenas por
um instante, entretanto. Provavelmente seria uma situação difícil de explicar, no mínimo.
— Você sabe o que ele é — Roger disse, pegando o médico pelo braço novamente e
puxando-o em direção à poltrona — Ou, melhor, o que nós somos. Cognosco te?
— Eu... — A voz de McEwan morreu, embora ele abrisse e fechasse a boca algumas vezes,
procurando impotente pelas palavras.
— Sim, eu sei — Roger disse suavemente. — É difícil. Mas você sabe, não?
— Eu... sim — McEwan se sentou abruptamente. Ele respirou por um momento, piscou
uma vez ou duas e olhou para Roger — Sua mãe. Sua mãe?
— Eu sei disso com bastante certeza — Roger assegurou a ele. Um pensamento o atingiu,
entretanto. — Ah... você sabia sobre ela, não? Que ela é... uma de nós?
McEwan assentiu — Ela nunca admitiu. Apenas... apenas riu para mim quando eu disse a
ela de onde tinha vindo. E eu não soube disso durante muito tempo. Não até que eu... — Seus
lábios se juntaram abruptamente numa linha apertada.
— Eu estou supondo que você não teve a oportunidade de curá-la — Roger disse
cuidadosamente. — Ela... é... tem alguma coisa a ver com a luz azul, por acaso?
Ele estava tentando com força evitar a imagem mental de Geillis e Dr. McEwan, nus e
suando, ambos banhados numa luz azul fraca. A mulher era cinco vezes sua tataravó, não
importava o que mais deveria se dizer sobre ela.
— Não... exatamente. Ela é uma herbalista muito boa e não é ruim nos diagnósticos, mas
ela não pode... fazer aquilo. — Ele girou os dedos brevemente para ilustrar, e Roger sentiu uma
fraca memória do calor quando McEwan tinha tocado sua garganta.
O médico suspirou e esfregou a mão sobre o rosto.
— Não há sentido em evadir, eu suponho. Eu a engravidei. E eu pude... “ver” não é
exatamente a palavra, mas eu não consigo pensar em outra. Eu pude ver o momento em que a
minha... semente... alcançou seu óvulo. O... é... o feto. Ele brilhou em seu útero; eu pude sentir
quando a toquei.
Um certo calor se elevou no rosto de Roger — Perdoe-me por perguntar, mas... como você
sabe que isso aconteceu porque ela é... o que é? Isso não poderia acontecer com uma mulher
normal?
McEwan sorriu — muito tristemente — com a palavra “normal”, e balançou sua cabeça.
— Eu tive dois filhos como uma mulher em Edimburgo... no meu tempo — ele disse
baixinho, e olhou para os pés — Essa... foi uma das razões por eu não tentar voltar.
Roger fez um som com sua garganta machucada que deveria ser de lamento e compaixão,
mas se foram os seus sentimentos ou a sua laringe que levou a melhor sobre ele, o som emergiu
como um austero “Hrmph” e a cor de McEwan começou a se elevar novamente.
— Eu sei — ele disse miseravelmente. — Eu não procuro... dar alguma desculpa para isso.
Menos mal, Roger pensou. Gostaria de vê-lo tentar, seu... seu... — Mas as recriminações não
adiantariam nada naquele momento, e ele sufocou o que mais ele poderia ter a dizer sobre o
assunto, em vez disso voltando para Geillis.
— Você disse que — colocando o queixo para cima, para o som de passos e batidas
audíveis lá em cima — a engravidou. Onde está a criança?
McEwan respirou de forma longa e trêmula — Eu disse... ela é uma ótima herbalista...
— Jesus, senhor — Roger disse — Você sabia que ela tinha a intenção de fazer isso?
McEwan engoliu audivelmente, mas se manteve em silêncio.
— Meu Deus — Roger disse. — Meu Deus. Eu sei que não tenho o direito de julgá-lo, mas
se fosse, homem, você estaria queimando no inferno.
E com isso, ele desceu a escada e saiu para as ruas de Cranesmuir, deixando todos à sua
própria sorte.
Ele tinha feito dezesseis circuitos pela praça da vila — era uma praça pequena — antes de
conseguir acalmar precariamente o seu senso de ultraje. Ele ficou parado na frente da porta de
Duncan, os punhos cerrados, tomando profundas e deliberadas respirações.
Ele tinha que voltar. Você não se afastava de pessoas que estavam se afogando, mesmo
que a pessoa tivesse pulado num pântano de propósito. E ele não queria pensar o que poderia
acontecer se McEwan, deixado sozinho, fosse sobreposto pela angústia ou pela fúria e corresse
para o par que estava no sótão. Ele realmente não queria pensar o que Buck — ou, Deus
perdoasse, Geillis — poderia fazer neste caso, e o pensamento o galvanizou.
Ele não se importou em bater. Arthur Ducan era o procurador fiscal; sua porta estava
sempre aberta. A pequena empregada colocou a cabeça para fora de uma das portas interiores
ao som de seus passos, mas quando viu quem era, voltou aos seus afazeres, sem dúvida
pensando que ele tinha saído para fazer alguma coisa.
Ele quase correu até a escada, uma consciência culpada agora fornecendo a ele visões de
Hector McEwan enforcado no pequeno lustre na sala de estar, os pés balançando indefesos no
ar.
Quando ele entrou, entretando, encontrou McEwan escorado na borda da poltrona, o
rosto enterrado nas mãos. Ele não olhou para a entrada de Roger, e não levantou a cabeça nem
quando Roger o sacudiu gentilmente pelo ombro.
— Vamos, homem — ele disse com a voz rouca, e depois limpou a garganta — Você ainda
é um médico, não? Você é necessário.
Aquilo fez o homem olhar para cima, assustado. Seu rosto estava manchado pela emoção
— raiva, vergonha, desolação, luxúria. Poderia a luxúria ser uma emoção?, Roger se perguntou
brevemente, mas dispensou o pensamento como acadêmico demais para o momento. McEwan
endireitou os ombros e esfregou ambas as mãos no rosto, como se tentasse apagar os
sentimentos que estavam tão claramente expostos ali.
— Quem precisa de mim? — ele disse, e se levantou com uma decente tentativa de
compostura.
— Eu preciso — Roger disse, e limpou sua garganta de novo, com um ruído como a queda
de um cascalho. Parecia cascalho também; a forte emoção o chocou, literalmente — Venha para
fora, sim? Eu preciso de ar, e você também.
McEwan lançou um último olhar para o teto, onde os ruídos agora tinham cessado, firmou
os lábios, assentiu e, pegando o chapéu da mesa, foi junto com Roger.
Roger o liderou até a praça e passou pela última casa, e depois foi até o caminho de uma
vaca, esquivando-se dos montes de esterco, até chegarem a uma muralha de pedra onde
poderiam se sentar. Ele se sentou e gesticulou para McEwan, que fez o mesmo, obedientemente.
A caminhada tinha devolvido ao médico uma aparência de calma, e ele se virou de uma vez para
Roger e abriu seu colarinho — que ainda estava solto. Roger sentiu o fantasma do toque de
Geillis Duncan em sua garganta e estremeceu, mas estava frio lá fora e McEwan não notou.
O médico colocou os dedos frouxou ao redor da cicatriz e pareceu ouvir por um momento,
a cabeça inclinada para um lado. Então ele puxou a mão um pouco e sentiu delicadamente mais
para cima, sondando com dois dedos, depois mais para baixo, o cenho um pouco franzido de
concentração.
E Roger sentiu. A mesma estranha sensação de calor por causa da luz. Ele estivera
prendendo o fôlego sob o toque do doutor, mas ao perceber isso, ele exalou repentinamente —
e livremente.
— Jesus — ele disse, e colocou a própria mão na garganta. A palavra veio livremente
também.
— Está melhor? — McEwan olhava para ele atentamente, sua chateação anterior
esquecida pela preocupação profissional.
— Está... — A cicatiz ainda estava saliente sob seus dedos, mas alguma coisa tinha
mudado. Ele limpou a garganta experimentalmente. Um pouco de dor, um pouco de bloqueio,
mas notavelmente melhor. Ele abaixou a mão e olhou para McEwan — Obrigado. O que diabos
você fez?
A tensão que era tangível através de McEwan desde que Roger e Buck tinham entrado na
casa de Duncan finalmente diminuiu, bem como o aperto na garganta de Roger.
— Eu não sei se posso dizer com precisão — ele disse apologeticamente. — É só que eu
sei como o som de uma laringe deveria ser, e eu consigo dizer como é o som da sua e... — Ele
deu de ombros um pouco, impotente — Eu coloco os meus dedos lá e... visualizo como deveria
ser.
Ele tocou a garganta de Roger gentilmente de novo, explorando.
— Eu posso dizer que está sutilmente melhor agora. Mas ainda há uma boa quantidade de
dano. Eu não posso dizer se em algum momento ela poderá ser completamente curada. Pra
dizer a verdade, eu duvido. Mas se eu pudesse repetir o tratamento... parece ser necessário
algum tempo entre os tratamentos, sem dúvidas para que o tecido se cure, assim como uma
ferida externa. Até onde posso dizer, o tempo ótimo entre os tratamentos de um ferimento sério
é cerca de um mês; Geillis — E aqui, seu rosto se contorceu violentamente; ele havia se
esquecido. Ele dominou a si mesmo com esforço, entretanto, e continuou — Geillis acha que o
processo pode ser afetado pela fase da lua, mas ela é...
— Uma bruxa — Roger terminou por ele.
O olhar de infelicidade tinha retornado ao rosto de McEwan, e ele abaixou a cabeça para
esconder.
— Talvez — ele disse suavemente. — Certamente ela é... uma mulher incomum.
— E é uma coisa boa para a raça humana que não haja mais mulheres como ela — Roger
disse, mas depois se conteve. Se ele podia rezar pela alma imortal de Jack Randall, ele não
poderia fazer menos pela sua própria tataravó, sendo ela uma maníaca homicida ou não. Mas o
problema imediato era tentar extrair a alma infeliz diante de si das garras dela, antes que ela
pudesse destruir Hector McEwan inteiramente.
— Dr. McEwan... Hector — ele disse suavemente, e colocou uma mão no braço do médico
— Você precisa sair deste lugar, e de perto dela. Ela não vai meramente trazer grande
infelicidade ou colocar sua alma em perigo. Ela pode muito bem te matar.
Um olhar de surpresa momentaneamente substituiu a infelicidade nos olhos de McEwan.
Ele olhou de lado, torceu a boca e olhou de volta para Roger, bastante de lado, como se tivesse
medo de olhá-lo diretamente nos olhos.
— Certamente você está exagerando — ele disse, mas as palavras não tinham força. O
pomo de adão de McEwan se moveu visivelmente quando ele engoliu.
Roger inspirou de forma profunda e irrestrita e sentiu o ar fresco e úmido em seu peito.
— Não — ele disse gentilmente — Eu não estou. Pense nisso, sim? E reze, se puder. Há
misericórdia, sim? E perdão.
McEwan suspirou, também, mas não com nenhum sentimento de liberdade. Ele lançou os
olhos para baixo, fixou-os na terra lamacenta e nas poças de chuva que dançavam nos pontos
mais baixos.
— Eu não consigo — ele disse, sua voz baixa e sem esperança — Eu... tentei. Não consegui.
A mão de Roger ainda estava no braço de McEwan. Ele apertou, com força, e disse — Então
eu vou rezar por você. E por ela — Ele adicionou, esperando que nenhuma relutância
aparecesse em sua voz.
— Obrigado, senhor — O médico disse — Eu valorizo demais isso. — Mas seus olhos
tinham se levantado e virado, como se ele não tivesse força alguma sobre eles, em direção a
Cranesmuir e suas chaminés que soltavam fumaça, e Roger sabia que não havia esperança.
Ele caminhou de volta a Cranesmuir e esperou na praça até que a porta da casa de Duncan se
abrisse e Buck emergisse. O homem parecia suavemente surpreso — mas não insatisfeito — ao
ver Roger, e assentiu para ele, mas não falou. Eles caminharam juntos até uma taberna, onde
conseguiram um quarto e subiram para se refrescar antes do jantar. A taverna não tinha um
banheiro, mas a água quente, o sabão, o barbeador e as toalhas de alguma forma os restauraram
para um estado decente de limpeza.
Buck não tinha falado uma palavra além do necessário, mas carregava uma expressão
estranha — meio satisfeito e meio envergonhado — e continuou lançando longos olhares
laterais a Roger, como se incerto se diria alguma coisa, mas querendo fazê-lo.
Roger serviu um copo de água da jarra, bebeu metade dele e pousou o copo com um ar de
resignação.
— Diga-me que você não o fez — ele disse finalmente — Por favor.
Buck lançou um rápido olhar a ele, parecendo tanto chocado pelas suas palavras quanto
levemente divertido.
— Não — ele disse, depois de uma pausa longa o suficiente para que Roger sentisse um
nó se formar em sua barriga. — Não, eu não o fiz. Não estou dizendo que não poderia ter feito,
entretanto — ele adicionou. — Ela... não estava disposta.
Roger teria dito que não queria saber, mas ele não foi capaz de demover a si mesmo. —
Você tentou?
Buck assentiu, e depois pegou o copo de água e jogou o que sobrara em seu rosto,
sacudindo-se para ter uma lufada de vento.
— Eu a beijei — ele disse — Coloquei minha mão em seu seio.
Roger tinha visto a parte superior dos seis seios quando eles incharam acima do corpete
de lã verde-escuro, redondos e brancos como gotas de neve — mas muito maiores. Com uma
considerável força de vontade, ele evitou perguntar “e o que aconteceu depois?”.
Ele não teve que fazer isso, entretanto; Buck obviamente estava revivendo a experiência
e queria falar sobre isso.
— Ela colocou a mão na minha, mas não tirou a minha mão. Não de início. Ela continuou
me beijando... — Ele parou a narrativa e olhou para Roger, com uma sobrancelha elevada —
Você já beijou muitas mulheres?
— Eu nunca contei — Roger disse, com certa aspereza — E você?
— Quatro, além dela — Buck disse contemplativamente. Ele balançou a cabeça — Isso foi
diferente.
— Eu esperava que fosse. Beijar sua mãe, quero dizer...
— Não este tipo de diferente — Buck tocou os lábios com dois dedos, suavemente, como
uma garota o faria — Outro tipo. Ou talvez eu não queira dizer isso, exatamente. Eu beijei uma
prostituta uma vez, e não foi daquele jeito. — Ele bateu nos lábios distraidamente por um
segundo, e depois percebeu o que estava fazendo e retirou as mãos, parecendo
momentanemanete envergonhado — Você já foi com uma prostituta?
— Não — Roger disse, tentando não soar como se estivesse censurando, mas não
conseguindo fazer isso muito bem.
Buck deu de ombros, deixando isso de lado.
— Bem, então. Ela manteve a minha mão em seu seio enquanto me beijava. Mas depois...
— Ele parou, corando, e Roger empertigou-se. Buck, corando?
— O quê? — Ele perguntou, incapaz de se conter.
— Bem, ela a levou para baixo, sabe, sobre seu corpo, muito lentamente, e ainda me
beijando e... bem, eu devia ter ouvido suas saias farfalharem, não? Mas eu não estava prestando
atenção, porque quando ela colocou minha mão e a colocou em sua... é... parte feminina, eu
pensei que poderia desmaiar de choque.
— Sua... ela estava... aquilo, quero dizer... nua?
— Nua como um ovo, e sem pelos também — Buck assegurou a ele — Você já ouviu falar
de tal coisa?
— Já, sim.
Buck olhou para ele, os olhos verdes arregalados.
— Você quer dizer que sua esposa...
— Eu não quis dizer isso — Roger estalou — Não se atreva a falar de Brianna, a amaidan,
ou eu vou arrancar sua cabeça com as mãos apenas para brincar com ela.
— Você e quem mais? — Buck disse automaticamente, mas acenou com a mão para
acalmar Roger. — Por que você não me disse que minha mãe era uma prostituta?
— Eu não diria algo assim a você, mesmo que eu soubesse com certeza, e eu não sabia —
Roger disse.
Buck olhou para ele por um momento em silêncio, os olhos diretos. — Você nunca será
um ministro decente — ele disse, por fim — se não puder ser honesto.
As palavras foram ditas objetivamente, sem calor — e arderam ainda mais, por serem
verdadeiras. Roger respirou pesadamente pelo nariz.
— Certo — ele disse. E disse a Buck tudo o que sabia, ou pensava saber, em relação a
Gillian Edgars, ou Geillis Duncan.
— Jesus — Buck disse, piscando.
— Sim — Roger disse brevemente.
A descrição de Buck de seu encontro com a mãe tinha dado a Roger uma vívida e
perturbadora imagem de Brianna, e ele não tinha sido capaz de rejeitá-la. Ele ansiava por ela e,
como resultado, estava muito ciente das imagens remanescentes de Buck e Geillis; ele viu a mão
do homem distraidamente pegar a si mesmo, os dedos desenhando-se lentamente, como se
estivesse se tocando... Cristo, ele podia sentir o cheiro dela na carne de Buck, pungente e
insultuoso.
— Então agora você a conheceu — Roger disse abruptamente, olhando para o outro lado.
— E agora você sabe o que ela é. Isso é o suficiente, você acha?
Ele foi cuidadoso para fazer com que a pergunta fosse apenas uma pergunta, e Buck
assentiu, mas não em resposta, mais como se ele estivesse tendo uma conversa interna — se
consigo mesmo ou com Geillis, Roger não sabia.
— Meu pai — Buck disse pensativamente, sem realmente responder. — Pelo que ele disse
quando nós o encontramos no sítio dos MacLarens, eu pensei que ele talvez ainda não a
conhecesse. Mas ele estava interessado, você pode dizer isso — Ele olhou repentinamente para
Roger, um pensamento tendo caído sobre ele — Você acha que foi o fato de ele nos ter conhecido
que o fez... vai fazer — ele se corrigiu com uma careta — ele encontrá-la? — Ele olhou para
baixo, e depois para Roger — Eu não existiria se nós não tivéssemos vindo encontrar o seu
garotinho, quero dizer?
Roger sentiu o senso usual de estranheza assustada ao perceber esse tipo de coisa, algo
entre ter dedos frios repentinamente colocados contra a parte inferior de suas costas.
— Talvez — ele disse. — Mas eu duvido que algum dia você vai saber disse. Não com
certeza.
Ele estava feliz o suficiente por deixar o assunto de Geillis Duncan, embora o outro parente
de Buck provavelmente não fosse menos perigoso.
— Você acha que precisa falar com Dougal MacKenzie? — Roger perguntou
cuidadosamente.
Ele não queria ir para qualquer lugar perto do Castelo de Leoch ou dos MacKenzies, mas
Buck tinha o direito de fazer isso se quisesse, e Roger tinha a obrigação — duas delas, tanto
como parente quanto como ministro — de ajudá-lo se ele decidisse por isso. E não importava
como tal conversa seria, ele duvidava muito que seria tão desconcertante quanto o encontro
com Geillis.
Mas perigosa, entretanto...
— Eu não sei — Buck disse suavemente, como se estivesse falando consigo mesmo. — Eu
não saberia o que dizer ao homem... a qualquer um deles.
Aquilo alarmou Roger, que se sentou reto.
— Você não quer voltar para ela, não é? Para... para sua mãe?
A boca de Buck se curvou num dos lados.
— Bem, nós realmente não dissemos muito um para o outro — ele apontou.
— E nem eu — Roger disse brevemente — para o meu pai.
Buck fez um ruído indeterminado com a garganta, e eles caíram em silêncio, ouvindo a
chuva que aumentava no telhado. O pequeno fogo diminuiu sob a chuva que caía pela chaminé
e se apagou, deixando nada além do fraco cheiro do calor. E, depois de pouco tempo, Roger se
enrolou em sua capa e se deitou curvado em um lado da cama, esperando que seu corpo se
aquecesse o suficiente para que ele pudesse dormir.
O ar pela janela quebrada era afiado com o frio e o cheiro entorpecente das samambaias
molhadas e das cascas de pinheiro. Nenhum lugar cheirava como as Highlands, e Roger
percebeu que seu coração se aliviou por aquele perfume rude. Ele estava quase dormindo
quando a voz de Buck veio suavemente para ele pela escuridão.
— Eu estou feliz por você ter dito isso, apesar de tudo.
106 – UMA PESSOA NÃO MUITO BOA
Roger insistiu em acampar fora da cidade, pensando que seria melhor levar Buck o mais longe
possível de Geillis Duncan. Pela primeira vez, não estava chovendo e eles conseguiram reunir
galhos de pinheiro suficientes para fazer uma fogueira decente; o pinheiro geralmente
queimava mesmo úmido, por causa da resina.
— Eu não sou uma pessoa muito boa — As palavras foram baixas e demoraram um
momento para serem registradas. Roger olhou para cima para ver Buck escorado em sua rocha,
um longo pedaço de pau na mão, cutucando o fogo de maneira inconstante. Roger esfregou uma
mão ao longo de sua mandíbula. Ele se sentia cansado, desencorajado, e não estava no humor
para mais aconselhamento pastoral.
— Eu conheci piores — ele disse, depois de uma pausa. Aquilo soou pouco convincente.
Buck olhou para ele debaixo da franja de seus cabelos loiros — Eu não estava procurando
por contradição ou consolação — ele disse secamente. — Só estava declarando um fato. Chame
de prefácio, se quiser.
— Tudo bem — Roger se alongou, bocejando, e depois se ajeitou — Um prefácio para o
quê? Uma desculpa? — Ele viu a pergunta no rosto de seu ancestral e, irritado, tocou a garganta.
— Por isso.
— Ah, isso — Buck se balançou um pouco para trás e cerrou os lábios, os olhos fixos na
cicatriz.
— Sim, isso! — Roger estalou, a irritação se tornando raiva repentinamente — Você tem
alguma noção do que tirou de mim, seu bastardo?
— Talvez um pouco — Buck voltou a cutucar o fogo, esperando que a extremidade da
madeira se incendiasse, e depois a colocando novamente na terra. Ele ficou em silêncio, então,
e por um tempo não houve som algum, exceto o barulho do vento através das folhas secas das
samambaias. Um fantasma caminhando, Roger pensou, observando as folhas marrons dentro
do círculo de agitação da fogueira e depois caindo. — Eu não estou dizendo isso como um
pretexto, entenda — Buck disse, por fim, os olhos fixos no fogo. — Mas há a questão da intenção.
Eu não pretendia que você fosse enforcado.
Roger fez um ruído baixo e violento em resposta a isso. Aquilo doeu. Ele estava cansado
de sentir dor ao falar, ou cantar, ou até mesmo para grunhir.
— Caia fora — ele disse abruptamente, levantando-se — Apenas... caia fora. Eu não quero
olhar para você.
Buck lançou a ele um longo olhar, como se estivesse debatendo se deveria ou não dizer
alguma coisa, mas depois deu de ombros, levantou-se e desapareceu. Ele voltou após cinco
minutos, entretanto, e se sentou com um ar de alguém que tinha alguma coisa a dizer. Certo,
Roger pensou. Vamos logo com isso.
— Não ocorreu a vocês, enquanto liam aquelas cartas, que há outra forma para o passado
se comunicar com o futuro?
— Bem, é claro — Roger disse, impaciente. Ele enfiou sua adaga em um dos nabos para
testá-lo; ainda duro como uma pedra. — Nós pensamos em todos os tipos de coisas: diários
deixados sob pedras, notícias de jornal — ele fez uma careta para este último — e um número
de coisas menos úteis. Mas a maior parte destas opções eram ou muito incertas ou muito
arriscadas; foi por isso que nós decidimos usar os bancos. Mas...
Ele parou de falar. Buck parecia presunçosamente superior.
— E eu suponho que você pensou em alguma coisa melhor? — Roger disse.
— Ora, homem, está bem debaixo do seu nariz — Com um sorriso, Buck se inclinou para
testar o próprio nabo e, evidentemente achando o resultado satisfatório, o levantou das cinzas
sobre a ponta de sua adaga.
— Se você acha que eu vou perguntar a você...
— Além disso... — Buck disse, assoprando o nabo quente entre as frases — além disso... é
a única forma de o futuro se comunicar com o passado.
Ele deu a Roger um olhar duro e direto, e Roger sentiu como se tivesse sido espetado por
uma chave de fenda.
— O que... você? — Ele vomitou. — Você quer dizer que você...
Buck assentiu, os olhos casualmente em seu nabo enfumaçado.
— Não pode ser você, pode? — Ele olhou para cima de repente, os olhos verdes
capturando a luz do fogo. — Você não irá. Você não confiaria em mim para continuar
procurando.
— Eu... — As palavras pegaram na garganta de Roger, mas ele tinha bastante certeza que
elas apareceram em seu rosto.
O próprio rosto de Buck se contorceu num sorriso torto. — Eu continuaria procurando —
ele disse. — Mas eu vejo que você não acreditaria em mim.
— Não é isso — Roger disse, limpando a garganta — É só que... Eu não posso partir
enquanto acho que Jem está aqui. Não enquanto eu não sei ao certo se poderia voltar se eu
partisse e ele... não estivesse do outro lado. — Ele fez um gesto de impotência. — Ir e saber que
talvez eu o esteja abandonado para sempre?
Buck assentiu, olhando para baixo. Roger viu a garganta do outro homem se mover,
também, e foi atingido por um momento de consciência.
— O seu Jem — Roger disse suavemente. — Você sabe onde ele está, pelo menos. Quando,
quero dizer. — A pergunta era clara: se Buck estava lutando para arriscar atravessar as pedras
novamente, por que ele não o faria em busca de sua própria família, em vez de carregar uma
mensagem a Bree?
— Vocês são todos meus, não são? — Buck disse rispidamente. — Meu sangue. Meus...
filhos.
Apesar de tudo, Roger se sentiu tocado por isso. Um pouco. Ele tossiu, e não sentiu dor.
— Mesmo assim — ele disse. Ele deu a Buck um olhar direto. — Por quê? Você sabe o que
isso pode fazer com você; já poderia ter feito na última vez, se McEwan não estivesse lá.
— Mmphm — Buck cutucou seu nabo novamente e o colocou de volta no fogo. — Sim.
Bem, quero dizer; eu não sou uma pessoa muito boa. Não seria uma perda tão grande, quero
dizer, se eu não conseguisse. — Seus lábios se curvaram um pouco quando ele olhou para Roger.
— Você talvez tenha um pouco mais a oferecer ao mundo.
— Eu estou lisonjeado — Roger disse secamente. — Eu imagino que o mundo poderá
continuar sem mim, se for necessário.
— Sim, talvez. Mas talvez sua família não possa.
Houve um longo silêncio enquanto Roger digeria aquilo, quebrado apenas pela explosão
de um galho queimando e o pio distante das corujas cortejando.
— E a sua família? — ele perguntou, por fim, baixinho. — Você parece pensar que sua
esposa seria feliz sem você. Por quê? O que você fez a ela?
Buck fez um ruído breve e infeliz, que poderia ser tomado por um riso irônico.
— Eu me apaixonei por ela — Ele respirou profundamente, olhando para o fogo. — Eu a
desejei.
Ele tinha conhecido Morag Gunn logo após começar a trabalhar como aprendiz de
advogado em Inverness. O advogado para quem ele trabalhava tinha sido chamado para ir a
uma fazenda perto de Essich, para fazer o testamento de um homem velho, e levou o aprendiz
para ajudar no caminho.
— Demorou três dias, porque o velho homem estava muito doente, e ele não conseguia
fazer aquilo por mais do que poucos minutos de cada vez. Então nós ficamos com a família, e eu
saía para ajudar com os porcos e as galinhas quando não era necessário lá dentro. — Ele deu de
ombros. — Eu era jovem e não tinha má aparência, e eu agradava bastante as mulheres. E ela
gostou de mim, mas estava apaixonada por Donald McAllister, um jovem fazendeiro de Daviot.
Mas Buck tinha sido incapaz de esquecer a moça, e sempre que ele tinha um dia livre no
trabalho, cavalgava até a fazenda para visitá-la. Ele veio de Hogmanay, e havia uma Cèilidh36, e...
— E o pequeno Donald bebeu um trago (ou dois ou três ou quatro) a mais e foi encontrado
em uma barraca com a mão dentro do corpete de Mary Finlay. Deus, que confusão houve! —
Um sorriso triste cintilou no rosto de Buck — Os dois irmãos de Mary deram uma surra em
Donald e o deixaram no chão como um pescado, e todas as moças estavam gritando e os rapazes
gritavam como se fosse o Dia do Julgamento. E a pobrezinha da Morag estava de fora, atrás do
estábulo das vacas, com o coração partido.
— Você... hã... a confortou — Roger sugeriu, sem tentar tirar a nota cética de sua voz. Buck
lançou um olhar afiado para ele e depois deu de ombros.
— Pensei que aquela poderia ser a minha única chance — ele disse simplesmente. — Sim,
eu o fiz. Ela estava péssima e começou a beber, e tão chateada... eu não a forcei. — Seus lábios
se pressionaram juntos. — Mas eu não aceitaria um “não” como resposta, também, e depois de
um tempo, ela desistiu de dizer isso.
— Sim. E quando ela acordou na manhã seguinte e percebeu...?
Buck levantou uma sobrancelha.
— Ela não disse nada para ninguém. Foi apenas depois de dois meses que ela percebeu...
Buck tinha chegado à sala do Sr. Ferguson um dia de março para encontrar o pai de Morag
Gunn e três de seus irmãos esperando por ele, e assim que os proclamas puderam ser lidos, ele
era um homem casado.
— Então — Buck respirou profundamente e passou a mão sobre o rosto. — Nós...
Casamos. Eu estava loucamente apaixonado por ela, e ela sabia disso e tentava ser gentil comigo.
Mas eu sabia bem o suficiente que era Donald que ela queria antes e isso ainda era verdade. Ele
ainda estava lá, sabe, e ela o via ocasionalmente quando havia cèilidh ou venda de gado.
Foi sabendo disso que Buck aproveitou a oportunidade para navegar para a Carolina do
Norte com sua esposa e o bebê.
— Eu pensei que ela esqueceria — ele disse, um pouco desanimado. — Ou pelo menos que
eu não teria que ver aquele olhar em seus olhos quando ela o via.
Mas as coisas tinham ido mal para os MacKenzies no Novo Mundo; Buck tinha falhado em
se estabelecer como advogado, eles tinham pouco dinheiro e nenhuma terra, e eles não tinham
a quem recorrer para pedir ajuda.
— Então, nós voltamos — Buck disse. Ele rolou o nabo no fogo e o furou com o espeto; a
crosta preta se quebrou e o branco escorreu. Ele olhou para o vegetal por um momento, então
o amassou, esmagando nas cinzas.
— E Donald ainda está lá, é claro. Ele se casou?
Buck balançou sua cabeça, depois tirou os cabelos dos olhos.
— Não era nada bom — ele disse suavemente. — Foi verdade o que eu disse a você sobre
como eu acabei atravessando as pedras. Mas uma vez que eu voltei a mim e descobri como as
coisas eram... Eu sabia que Morag estaria melhor se eu nunca mais voltasse. Ou ela me daria por
morto depois de um tempo e se casaria com Donald, ou, na pior das hipóteses, seu pai a aceitaria
O cabelo de Esmeralda estava muito vermelho. Alguém iria notar. Eles iriam fazer perguntas. Sua
idiota, por que você está pensando nisso? Eles notariam uma Barbie em um biquíni de bolinhas
muito mais rapidamente... Brianna fechou os olhos por um instante para apagar a visão da
boneca de pano de Mandy com sua peruca assustadoramente escarlate, brilhando com um
corante muito mais luminoso do que qualquer coisa viável no século dezoito. Ela tropeçou em
uma pedra e disse a palavra com M baixinho, e, seus olhos tendo se aberto, segurou Mandy com
mais firmeza com a mão livre, a outra sendo empregada para segurar Esmeralda.
Ela sabia muito bem por que estava se preocupando com o cabelo da boneca. Se ela não
pensasse em alguma coisa inconsequente, ela iria virar à direita para voltar e correr pela
encosta rochosa como uma lebre em pânico, arrastando Jem e Mandy através do tojo morto.
Nós vamos fazer isso. Nós temos que fazer. Nós vamos morrer, vamos todos morrer lá, no
escuro... Oh, Deus, oh, Deus...
— Mãe? — Jemmy olhou para ela, as sobrancelhas pequenas franzidas.
Ela fez uma boa tentativa — ela pensou — em dar um sorriso tranquilizador, mas deve ter
parecido menos convincente, a julgar pela expressão alarmada dele.
— Está tudo bem — ela disse, abandonando o sorriso e colocando a pouca convicção que
podia em sua voz — Está tudo bem, Jem.
— Aham — Ele ainda parecia preocupado, mas virou o rosto para cima da colina, e sua
expressão se suavizou, a intencionalidade substituindo a preocupação — Eu posso ouvi-las —
ele disse suavemente — Você pode ouvi-las, mamãe?
Aquele “mamãe” fez a mão dela se apertar, e ele fez uma careta, embora ela pensasse que
ele não tinha notado. Ele estava ouvindo. Ela parou, e todos eles ouviram. Ela podia ouvir o
barulho do vento e um leve tamborilar como uma breve chuva varrendo a urze castanha. Mandy
estava murmurando para Esmeralda. Mas o rosto de Jem estava direcionado para cima, sério,
mas não aterrorizado. Ela podia ver o topo das pedras, quase invisíveis acima da crista do
morro.
— Eu não posso, querido — ela disse, soltando apenas uma parte da respiração que ela
estava segurando. — Não ainda — E se eu não puder ouvi-las mais? E se eu perdi essa capacidade?
Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós... — Vamos... nos aproximar mais.
Ela estivera congelada por dentro pelas últimas vinte e quatro horas. Ela não tinha sido
capaz de comer ou dormir, mas continuou, empurrando tudo de lado, martelando tudo —
recusando-se a de fato acreditar que eles iam fazer isso, mesmo fazendo as preparações
necessárias em um estranho estado de calma.
A bolsa de couro pendurada em seu ombro se balançou um pouco, tranquilizando-a em
sua sólida realidade. O peso poderia ser grande para carregar — mas a manteria firme contra a
força do vento e da água, segura contra a terra. Jem soltou a sua mão, e ela colocou a mão
compulsivamente na fenda de sua saia para sentir os três caroços duros no pacote enrolado ao
redor de sua cintura.
Ela tivera medo de tentar as pedras sintéticas, por temer que elas não funcionassem — ou
pudessem explodir violentamente, como a grande opala que Jemmy tinha explodido em
pedaços na Carolina do Norte.
De repente ela foi varrida por um desejo de estar em Fraser’s Ridge — e com seus pais —
tão intenso que as lágrimas brotaram em seus olhos. Ela piscou com força e limpou os olhos
com a manga, fingindo que o vento os tinha feito lacrimejar. Isso não importava; nenhuma das
crianças estava notando. Agora ambas estavam olhando para cima — e ela finalmente percebeu,
com um pequeno baque de medo, que ela podia ouvir as pedras; elas estavam zumbindo, e
Mandy zumbia com elas.
Ela olhou para trás de si involuntariamente, para ter certeza de que não tinham sido
seguidos — mas eles tinham. Lionel Menzies estava subindo o caminho atrás deles, escalando
rapidamente.
— Palavra com F — ela disse em voz alta, e Jem girou para ver o que estava acontecendo.
— Sr. Menzies! — ele disse, e seu rosto se quebrou em um sorriso de alívio — Sr. Menzies!
Bree gesticulou firmemente para que Jem ficasse onde estava e deu alguns passos para
baixo em direção a Menzies, pequenas pedras deslizando para dentro de seus sapatos e
saltando para baixo em direção a ele.
— Não tenha medo — ele disse, subindo sem fôlego e parando logo abaixo dela — Eu... Eu
tinha que vir, para me certificar de que vocês estavam seguros. Que vocês... que vocês... foram
embora — Ele assentiu em direção ao topo, olhando além dela. Ela não se virou para olhar; ela
podia sentir as pedras agora, zumbindo gentilmente, naquele momento, em seus ossos.
— Nós estamos bem — ela disse, e sua voz estava surpreendentemente estável. —
Realmente. É... Obrigada — ela adicionou, tardiamente educada.
O rosto dele estava pálido e um pouco tenso, mas se contorceu num pequeno sorriso ao
ouvir aquilo.
— É um prazer — ele disse, com a mesma educação. Mas ele não se moveu para virar e ir
embora. Ela respirou por um momento, percebendo que seu núcleo congelado havia derretido.
Ela estava viva de novo, completamente, e bastante alerta.
— Há alguma razão pela qual nós não estaríamos seguros? — Ela perguntou, observando
os olhos dele por trás dos óculos. Ele fez uma careta sutil e olhou sobre o ombro. — Merda —
ela disse. — Quem? Rob Cameron? — Ela falou asperamente e ouviu o rangido do cascalho sob
os sapatos de Jem quando ele se virou bruscamente ao ouvir o nome.
— Ele e seus amigos, sim — Ele assentiu em direção ao topo. — Você, hã, realmente
deveria ir. Agora, quero dizer.
Brianna disse alguma coisa realmente feia em gaélico, e Jemmy deu uma risada nervosa.
Ela olhou para Menzies.
— E o que você estava planejando fazer se Rob e seu bando de idiotas vierem para cima
de nós?
— O que acabei de fazer — ele disse simplesmente. — Adverti-la. Eu iria logo se fosse
você. Sua, hã, filha...
Ela se virou ao redor para ver Mandy, com Esmeralda na dobra do braço, laboriosamente
subindo pelo caminho.
— Jem! — Ela deu um passo gigante, pegou-o pela mão e eles subiram a colina atrás de
Mandy, deixando Lionel Menzies no caminho abaixo.
Eles pegaram Mandy exatamente na borda do círculo e Bree tentou segurar na mão dela,
mas não conseguiu. Ela podia ouvir Lionel Menzies subindo atrás deles.
— Mandy! — Ela pegou a garotinha e ficou parada, ofegante, cercada pelas pedras. O
zumbido estava ainda mais alto agora e fazia seus dentes coçarem; ela os rangeu uma ou duas
vezes, tentando se livrar da sensação, e viu Menzies piscar. Bom.
Então ela ouviu o som de um motor de carro abaixo e viu o rosto de Menzies mudar para
um olhar de alarme.
— Vá! — Ele disse — Por favor!
Ela procurou embaixo da saia, as mãos trêmulas, e finalmente segurou as três pedras. Elas
eram do mesmo tipo, pequenas esmeraldas, embora com lapidações ligeiramente diferentes.
Ela as tinha escolhido por fazerem com que se lembrasse dos olhos de Roger. O pensamento
nele a estabilizou.
— Jem — ela disse, e colocou uma pedra em sua mão — E Mandy... esta é a sua. Coloque-
as em seus bolsos e...
Mas Mandy, com o pequeno pulso segurando sua esmeralda, tinha se virado em direção à
maior das pedras. Sua boca se abriu por um momento, e então de repente seu rosto se iluminou
como se alguém tivesse acendido uma vela dentro dela.
— Papai! — Ela gritou e, arrancando sua mão da de Brianna, correu diretamente para a
fenda da pedra e para dentro dela.
— Jesus! — Brianna mal ouvira a exclamação de choque de Menzies. Ela correu em direção
à pedra, tropeçou em Esmeralda e caiu na grama.
— Mamãe! — Jem parou por um momento ao lado dela, olhando freneticamente de um
lado para outro entre ela e a pedra onde sua irmãzinha tinha desaparecido.
— Eu estou... bem — ela conseguiu dizer, e com aquela reafirmação, Jem atravessou a
clareira, gritando:
— Eu vou pegá-la, mãe!
Ela engoliu ar e tentou gritar atrás dele, mas fez apenas um coaxar chiado. O som de pés
fez com que ela olhasse temerosamente à volta, mas era apenas Lionel, que tinha corrido para
a borda do círculo, olhando para baixo na colina. À distância, ela podia ouvir as portas dos carros
batendo. Portas. Mais do que uma...
Ela ficou de pé; ela tinha caído sobre a bolsa e machucado as costelas, mas não importava.
Ela mancou em direção à fenda da pedra, parando apenas para pegar Esmeralda por reflexo.
Deus, Deus, Deus... era a única coisa em sua cabeça, uma agonia em oração não falada.
E de repente a oração foi respondida. Ambos estavam em frente a ela, balançando-se e
pálidos. Mandy vomitou; Jem se sentou pesadamente sobre o traseiro e permaneceu lá,
balançando-se.
— Oh, Deus... — Ela correu para eles, apertou-os com força contra si apesar das dores em
seu corpo. Jem se agarrou a ela por um momento, mas depois se afastou.
— Mãe — ele disse, e sua voz estava sem fôlego pela alegria — Mãe, ele está lá. Nós
podemos senti-lo. Nós podemos encontrá-lo... Temos que ir, mãe!
— Vocês têm — Era Lionel de novo, sem fôlego e assustado, puxando a capa de Brianna,
tentando endireitá-la para ela — Eles estão vindo... três deles.
— Sim, eu... — Mas então a consciência a atingiu, e ela se virou em pânico para as crianças
— Jem, Mandy... suas pedras... onde elas estão?
— Queimaram — Mandy disse solenemente, e cuspiu na grama — Gosto de vômito. Eca
— Ela limpou a boca.
— O que você quer dizer...
— Sim, elas queimaram, mãe. Viu? — Jem virou para fora os bolsos de sua calça,
mostrando a ela o ponto queimado e o cheiro de carbono, que se desprendia fortemente da lã
chamuscada.
Frenética, ela se atrapalhou com as roupas de Mandy, encontrando a mesma marca de
queimado na lateral de sua saia, onde a pedra vaporizada tinha queimado através de seu bolso.
— Ela queimou você, querida? — Ela perguntou, correndo a mão pelas coxas resistentes
de Mandy.
— Não muito — Mandy a tranquilizou.
— Brianna! Pelo amor de Deus... Eu não posso...
— Eu não posso! — Ela gritou, virando-se para ele com os punhos cerrados. — As pedras
das crianças desapareceram! Elas não podem... elas não podem atravessar sem elas! — Ela não
sabia ao certo se isso era verdade, mas o pensamento de deixá-las tentar passar por... por...
aquilo sem a proteção de uma pedra, embrulhou seu estômago e ela quase chorou de medo e
desespero.
— Pedras — ele repetiu, ficando inexpressivo — Joias, você quer dizer? Pedras preciosas?
— Sim!
Ele ficou parado por um instante com a boca aberta, e depois caiu de joelhos, puxando sua
mão esquerda, e no próximo instante estava batendo a mão direita febrilmente contra uma
rocha que estava meio afundada na grama.
Bree olhou para ele impotente por um segundo, e depois correu para a borda do círculo,
escondeu-se atrás de uma pedra, e ficou parada nas sombras, observando. Olhando pela lateral,
ela podia ver formas humanas, a meio caminho da colina e se movendo rapidamente.
Do outro lado da pedra, Menzies deu um grunhido de dor ou de frustração e bateu alguma
coisa com força contra a rocha, com um barulho de algo se quebrando.
— Brianna! — Ele gritou, urgente, e ela correu de volta, com medo que as crianças
estivessem tentando atravessar, mas estava tudo bem; elas estavam paradas na frente de Lionel
Menzies, que estava se inclinando sobre Mandy, segurando uma de suas mãos.
— Enrole seu punho, mocinha — ele disse, quase gentilmente — Sim, é isso. E, Jem... aqui,
coloque em sua mão — Brianna estava perto o suficiente agora para ver que havia uma pequena
coisa brilhante na palma de Jem... e que o punho de Mandy estava enrolado ao redor de um
grande anel, bastante danificado, com um emblema da Maçonaria esculpido no ônix... e a pedra
gêmea do pequeno diamante de Jem brilhando ao lado dele, um buraco vazio do outro lado.
— Lionel — ela disse, e ele esticou a mão e tocou sua bochecha.
— Vá agora — ele disse — Eu não posso partir até que vocês vão. Uma vez que vocês
tiverem passado, entretanto, eu vou correr.
Ela assentiu bruscamente com a cabeça, e depois se inclinou para pegar as mãos das
crianças. — Jem, coloque-a em seu outro bolso, sim? — Ela engoliu ar e se virou em direção à
grande fenda da pedra. O barulho martelava em seu sangue e ela pôde sentir pulsando, tentando
separá-la.
— Mandy — ela disse, e mal podia ouvir a própria voz — Vamos encontrar o papai. Não o
perca.
Foi somente quando a gritaria começou que ela percebeu que não tinha dito “obrigada” e
então não pensou em mais nada.
108 – O CAMPO ENTERRADO
Ela amava Lallybroch no inverno. O tojo e as giestas e as urzes não pareciam morrer, mas sim
simplesmente desaparecer na paisagem, as urzes roxas se reduzindo à suave sombra marrom
de si mesmas e as giestas, a um conjunto de varas secas, suas vagens longas e planas
chacoalhando suavemente ao vento. Hoje o ar estava frio e imóvel, e a suave fumaça cinza das
chaminés se elevava para tocar o céu baixo.
— Casa, estamos em casa! — Mandy disse, pulando para cima e para baixo — Bom, bom,
bom! Posso beber uma Coca-Cola?
— Não é nossa casa, pateta — Jem disse. Apenas a ponta rosada de seu nariz e um lampejo
de seus cílios era visível no espaço entre o seu chapéu de lã e o cachecol em volta de seu pescoço.
Sua respiração lançava uma névoa branca. — É antes... Eles não têm Coca-Cola agora. Além
disso... — ele adicionou logicamente — está muito frio para tomar Coca. Sua barriga iria
congelar.
— Hã?
— Esqueça, querida — Brianna disse, e intensificou o aperto na mão de Mandy. Eles
estavam parados na crista da colina atrás da casa, perto dos remanescentes do Forte de Ferro.
Tinha sido um curso laborioso para subir a colina, mas ela estava relutante de se aproximar
pela frente da casa, onde eles seriam visíveis por bons quinhentos metros, atravessando o
campo aberto.
— Você consegue sentir o papai em algum lugar próximo? — Ela perguntou à criança. Ela
automaticamente procurou pelo velho Morris laranja de Roger enquanto eles desciam a colina,
e sentiu uma horrível queda no espírito ao não ver nem o carro e nem a garagem de cascalho.
Jem balançou a cabeça; Mandy não respondeu, distraída por um fraco balido abaixo.
— Ovelasss! — ela disse, encantada. — Vamos ver as ovelas!
— Não são ovelhas — Jem disse, de mau humor. — São cabras. Elas estão na Torre.
Podemos descer, mãe? Meu nariz está prestes a cair.
Ela ainda estava hesitante, observando a casa. Cada músculo estava esticando, puxando
em direção à casa. Lar. Mas não era o seu lar, não agora. Roger. A qualidade forte, doce e flexível
que ele tem...
É claro, ela sabia que ele provavelmente não estava lá; ele e Buck estariam procurando em
algum lugar por Jerry MacKenzie. E se eles o tivessem encontrado?, ela pensou, com um pequeno
baque de alguma coisa entre excitação e medo.
O medo era o que a estava impedindo de correr colina abaixo para bater na porta e
conhecer quem quer de sua família que estivesse em casa naquele dia. Ela tinha passado os
últimos poucos dias na estrada, e as horas da caminhada final onde a carroça os tinha deixado,
tentando decidir — e sua mente ainda estava mais dividida que nunca.
— Vamos — ela disse às crianças. Ela não podia deixá-los lá fora no frio enquanto se
decidia — Vamos visitar as cabras primeiro.
O cheiro de cabras a golpeou no momento em que ela abriu a porta — pungente, quente e
familiar. Quente, acima de tudo; todos os três suspiraram em alívio e prazer quando o calor dos
animais os envoleu, e eles sorriam para a rápida ansiedade e os gritos chorados de “mééé” que
saudaram sua presença.
Pelo ruído que ecoou das pedras das paredes, devia haver cerca de cinquenta cabras
dentro da torre — embora Brianna tenha contado apenas meia dúzia de idosas, com as orelhas
longas e caídas, quatro ou cinco filhotes meio crescidos, com as barrigas arredondadas, e apenas
um bode robusto que abaixou seu chifre e os encarou, desconfiado e com os olhos amarelos.
Todos eles compartilhavam uma calha velha que cobria metade do piso térreo da torre. Ela
olhou para cima — mas em vez das vigas expostas bem acima que ela esperava ver, havia o piso
intacto de outro andar.
As crianças — os seus filhos, e ela sorriu com o pensamento — já estavam passando
pedaços de feno pela cerca e brincando com os cabritinhos, que estavam em pé nas patas
traseiras para olhar aos visitantes.
— Jemmy, Mandy! — Ela gritou. — Tirem seus chapéus e luvas e os coloquem perto da
porta, para que as cabras não mastiguem! — Ela deixou Jem ajudando Mandy com suas luvas e
subiu as escadas para ver o que havia no segundo andar.
A luz pálida de inverno que entrava pelas janelas listrava a silhueta dos sacos de estopa
que enchiam a maior parte do espaço. Ela inspirou e tossiu um pouco; a poeira do chão
flutuando no ar, mas sentiu o cheiro doce de milho seco — amido, eles chamavam — e o cheiro
mais profundo de cevada madura, também, e quando ela cutucou um saco com a ponta do pé,
ouviu o barulho das avelãs. Lallybroch não passaria fome durante o inverno.
Curiosa, ela subiu mais um lance para o último andar e encontrou um bom número de
pequenos barris de madeira dispostos contra a parede. Era muito mais frio ali, mas o aroma
inebriante de bom uísque enchia o ar com a ilusão de calor. Ela ficou parada, respirando por um
momento, querendo muito se embebedar, para obliterar sua mente, para ser capaz de não
pensar mais, mesmo que apenas por alguns minutos.
Mas esta era a última coisa que ela poderia fazer. Em questão de minutos, ela teria que
agir.
Ela deu um passo de volta para a escada estreita que ficava entre a parede interior e
exterior da torre e olhou em direção à casa, com vívidas memórias da última vez em que estivera
lá, abaixada na escada, no escuro, e com uma arma de fogo nas mãos, observando a luz dos
estranhos em sua casa.
Havia estranhos aqui agora, também, embora fossem de seu próprio sangue. E se... Ela
engoliu. Se Roger tivesse encontrado Jerry MacKenzie, seu pai estaria com seus vinte anos —
muito mais jovem do que o próprio Roger. E se o seu próprio pai estivesse ali agora...
— Ele não pode estar — Ela sussurrou para si mesma, e não tinha certeza se aquilo era
para se tranquilizar ou se era um motivo de tristeza. Ela o conhecera pela primeira vez na
Carolina do Norte, mijando atrás de uma árvore. Ele tinha quarenta anos e ela vinte e dois.
Você não pode entrar em sua própria linha do tempo, não poderia existir no mesmo tempo
duas vezes. Eles pensavam saber disso com certeza. Mas e se você entrasse na vida de alguém
duas vezes em tempos diferentes?
Era isso que estava transformando o seu sangue em gelo e fazendo seus punhos cerrados
tremerem. O que aconteceria? Uma de suas aparições poderia mudar as coisas, talvez cancelar a
outra? Não aconteceriam as mesmas coisas? Ela não conheceria James Fraser na Carolina do
Norte se o conhecesse agora?
Mas ela tinha que encontrar Roger. Não importava o que acontecesse. E Lallybroch era o
único lugar que ela sabia com certeza que ele tinha passado. Ela respirou profundamente e
fechou os olhos.
Por favor, ela rezou. Por favor, me ajude. Sua vontade seja feita, mas por favor, mostre-me o
que fazer...
— Mãe! — Jemmy veio correndo escada acima, seus passos altos no corredor de pedras
apertado. — Mãe! — Ele apareceu em seu campo visual, olhos azuis arregalados e cabelos em
pé e meio revoltos com excitação — Mãe, desça aqui! Um homem está vindo!
— Como ele é? — Ela perguntou, urgente, segurando-o pela manga. — Qual é a cor de seus
cabelos?
Ele piscou, surpreso.
— Pretos, eu acho. Ele está na base da colina. Eu não consegui ver o seu rosto.
Roger.
— Tudo bem. Eu estou indo — Ela se sentiu meio chocada, mas não mais congelada. Estava
acontecendo agora, o que quer que fosse, e a energia corria pelas suas veias.
Mesmo enquanto descia as escadas correndo atrás de Jemmy, a racionalidade a dizia que
não era Roger — à distância ou não, Jemmy reconheceria seu pai. Mas ela tinha que ver.
— Fiquem aqui — ela disse às crianças, com tanta voz de comando que eles piscaram, mas
não argumentaram. Ela abriu a porta, viu o homem vindo pelo pátio e saiu para encontrá-lo,
fechando a porta firmemente atrás de si.
À primeira vista, ela percebeu que não era Roger, mas a decepção foi substituída ao
mesmo tempo pelo alívio por não ser Jamie. E intensa curiosidade, porque devia certamente
ser...
Ela correu pelo pátio de forma a ficar bem distante da torre, apenas para garantir, e estava
tomando o caminho pelas pedras do cemitério da família, os olhos no homem que subia o
caminho íngreme e rochoso.
Um homem alto e de constituição sólida, os cabelos negros ficando um pouco grisalhos,
mas ainda grossos, brilhantes e soltos sobre os ombros. Os olhos dele estavam sobre o chão
áspero, observando os próprios pés. E então ele chegou ao seu destino e atravessou o pátio em
direção à colina, para uma das pedras do cemitério. Ele se ajoelhou ao lado da pedra e pousou
alguma coisa que ele estava carregando nas mãos.
Ela trocou o peso do corpo, incerta se deveria chamá-lo ou esperar até que ele terminasse
o que estava fazendo em relação ao morto. Mas as pedras pequenas abaixo de seus pés se
moveram também, rolando com um barulho que o fez olhar para cima e, ao vê-la, levantar-se
abruptamente, as sobrancelhas pretas levantadas.
Cabelos pretos, sobrancelhas pretas. Brian Dubh. Black Brian.
Eu conheci Brian Fraser (você gostaria dele e ele de você)...
Olhos grandes e castanhos encontraram, assustados, os dela, e por um segundo, foi tudo
o que ela viu. Seus lindos olhos profundos e a expressão de horror atordoado neles.
— Brian — ela disse — Eu...
— A Dhia! — Ele ficou mais pálido do que o gesso da casa abaixo — Ellen!
O espanto a privou da fala por um instante — longo o suficiente para que ela ouvisse
passos leves descendo a colina atrás de si.
— Mãe! — Jem chamou, sem fôlego.
O olhar de Brian mudou e foi para trás dela, e sua boca se abriu ao ver Jem. Então, um
olhar de alegria radiante inundou o seu rosto.
— Willie! — ele disse — A bhalaich! Mo bhalaich! — Ele olhou de volta à Brianna e esticou
uma mão trêmula para ela — Mo ghràidh... mo chridhe...
— Brian — ela disse suavemente, seu coração na voz, cheio de piedade e amor, incapaz de
fazer qualquer coisa além de responder à alma que se mostrava tão claramente em seus
amáveis olhos. E quando ela disse seu nome pela segunda vez, ele parou, balançando-se por um
momento, e então seus olhos rolaram em sua cabeça e ele caiu.
Ela estava se ajoelhando na urze morta e crocante ao lado de Brian Fraser antes sequer
de pensar em se mexer. Havia um leve tom de azul em seus lábios, mas ele estava respirando, e
ela inspirou profundamente de alívio, vendo seu peito se elevar lentamente sob a camisa velha
de linho.
Não pela primeira vez, ela desejou fervorosamente que sua mãe estivesse lá, mas virou a
cabeça para um dos lados e colocou dois dedos no pulso que ela podia enxergar na lateral do
pescoço. Seus dedos estavam gelados e a carne dele estava assustadoramente quente. Ele não
acordou ou se agitou com o seu toque, entretanto, e ela começou a temer que ele não tivesse
apenas desmaiado.
Ele tinha morrido — iria morrer — por causa de um derrame. Se houvesse alguma
fraqueza em seu cérebro... Oh, Deus. Será que ela o tinha matado prematuramente?
— Não morra! — Ela disse para ele em voz alta — Pelo amor de Deus, não morra aqui!
Ela olhou rapidamente em direção à casa lá embaixo, mas ninguém estava vindo. Olhando
para baixo outra vez, ela viu o que ele segurava: um pequeno buquê de ramos verdes, atado
com fitas vermelhas. Teixo — ela reconheceu as estranhas bagas tubulares vermelhas — e
azevinho.
E então ela viu a pedra. Ela a conhecia bem, pois se sentava ao lado dela frequentemente,
contemplando Lallybroch e aqueles que dormiam sob suas terras.
E:
— Mãe! — Jem derrapou os últimos metros, quase caindo ao lado dela. — Mãe, mãe...
Mandy disse... quem é ele? — Ele olhou do rosto pálido de Brian para o dela e voltou.
— Seu nome é Brian Fraser. Ele é o seu bisavô — Suas mãos estavam tremendo, mas para
sua surpresa ela se sentiu repentinamente calma ao falar as palavras, como se ela tivesse
chegado ao centro de um quebra-cabeças e descobrisse que ela era a peça que faltava — O que
tem Mandy?
— Eu o assustei? — Jem se abaixou, parecendo preocupado — Ele olhou para mim logo
antes de cair. Ele está... morto?
— Não se preocupe. Eu acho que ele apenas está chocado. Ele pensou que nós fôssemos...
outras pessoas. — Ele tocou a bochecha de Brian, sentindo o suave pinicar de sua barba, e alisou
os cabelos para trás de suas orelhas. Sua boca se moveu um pouco enquanto ela fazia isso, o
fantasma e de um meio-sorriso, e seu coração disparou. Graças a Deus, ele estava vontando a si
— O que Mandy disse?
— Oh! — Jem se levantou, rapidamente, com os olhos arregalados — Ela disse que ouviu
o papai.
109 – A REALIDADE É AQUELA QUE, QUANDO VOCÊ PARA DE ACREDITAR, NÃO VAI
EMBORA
Roger virou a cabeça de seu cavalo em direção a Lallybroch, sabendo que não havia outro lugar
para ir. Ele tinha deixado Brian Fraser seis semanas antes e tinha ficado triste pelo que pensara
ser uma partida permanente. Seu coração estava um pouco mais calmo agora com o
pensamento de ver Brian novamente. E também pela certeza de ter um ouvido simpático,
embora houvesse pouca coisa que ele pudesse dizer abertamente.
Ele teria que contar a Brian, é claro, que não tinha encontrado Jem. Aquele pensamento
era como um espinho em seu coração, e um espinho sentido a cada nova batida. Pelas últimas
semanas, ele tinha sido capaz de colocar a dor brutal da ausência de Jemmy de lado um pouco,
esperando, de alguma forma, que encontrar Jerry poderia levá-lo a Jem. Mas isso não tinha
acontecido.
O que diabos isso queria dizer era um completo mistério. Ele tinha encontrado o único
Jeremiah que havia para encontrar ali? Se tinha... onde estava Jem?
Ele queria dizer a Brian que tinha encontrado o homem a quem pertenciam as placas
identificadoras — Brian perguntaria. Mas como fazer isso sem divulgar a identidade de Jerry e
a relação de Roger com ele — ou explicar o que tinha acontecido a ele? Ele suspirou,
controlando o cavalo ao redor de uma grande poça na estrada. Talvez fosse melhor dizer
simplesmente que ele tinha falhado, não tinha encontrado J. W. MacKenzie — embora ele se
sentisse perturbado por mentir descaradamente para um homem de coração tão aberto.
E ele não podia discutir Buck também. Além do pensamento de Jem, Buck era o assunto
mais pesado em sua mente naquele momento.
Você nunca se tornará um ministro decente, se não puder ser honesto. Ele tentara ser. A
verdade honesta da situação vendo pelo seu ponto de vista egoísta é que ele sentia muito a falta
da companhia de Buck, que ele estava profundamente invejoso da possibilidade de Buck chegar
à Brianna e — não menos, ele assegurou a si mesmo — que ele estava aterrorizado que Buck
não pudesse passar pelas pedras novamente. Ele poderia morrer na tentativa, ou talvez ficar
perdido novamente, sozinho em algum tempo aleatório.
A verdade para Buck é que, embora se pudesse argumentar (e não com pouca força) que
ele deveria ser retirado imediata e permanentemente das proximidades de Geillis Duncan,
atravessar as pedras talvez fosse o meio menos desejável para garantir tal resultado.
Aceitar o gesto galante de Buck era uma tentação, entretanto. Se ele conseguisse
atravessar, dizer a Bree onde Roger estava... Roger não imaginou que Buck poderia voltar,
entretanto. Os efeitos da viagem eram cumulativos, e Hector McEwan provavelmente não
estaria por perto da próxima vez.
Mas se Buck tinha a intenção de arriscar a travessia, apesar do perigo muito real à sua
própria vida, certamente era a obrigação de Roger tentar persuadi-lo a voltar para a sua própria
esposa e não a ir até a de Roger, não?
Ele esfregou a parte de trás da mão contra os lábios, sentindo na memória a suavidade dos
cabelos castanhos de Morag em sua bochecha quando ele se abaixou para beijar sua testa nas
margens do Alamance. A gentil confiança em seus olhos — e o fato de que ela tinha salvado sua
vida muito pouco tempo após aquilo. Seus dedos descansaram por um instante em sua garganta,
e ele percebeu, com um lampejo da surpresa que aparece quando há o reconhecimento de algo
já conhecido, que quaisquer que fossem seus lamentos em relação à sua voz, ele nunca, por um
instante, desejara que ela não o tivesse salvo.
Quando Stephen Bonnet ia jogar o filho de Morag no mar, Roger tinha salvo sua criança
de se afogar, e o fez arriscando sua própria vida. Mas ele não pensava que ela havia feito o que
fez em Alamance como forma de pagamento de um débito. Ela o fizera porque não queria que
ele morresse.
Bem. Ele não queria que Buck morresse.
Morag queria Buck de volta? Buck pensava que não, mas ele poderia estar errado. Roger
estava bastante certo de que o homem ainda amava Morag e que esta abnegação tinha mais a
ver com o próprio senso de falha pessoal de Buck do que com o que ele pensava que eram os
desejos de Morag.
— Mesmo que isso seja verdade — ele disse em voz alta — quando é que eu paro de tentar
lidar com as vidas dos outros?
Ele balançou sua cabeça e cavalgou através de uma luz enevoada que tecia farrapos de
névoa através do tojo molhado e preto. Não estava chovendo, o que já era alguma coisa, embora
o céu portasse nuvens carregadas que encobriam o topo das montanhas próximas.
Ele nunca perguntara ao seu pai adotivo sobre a arte de ser um ministro; era a última coisa
que ele pensara em ser. Mas ele tinha crescido na casa do Reverendo e tinha visto paroquianos
vindo todos os dias para o seu escritório confortável em busca de ajuda ou conselhos. Ele se
lembrava de seu pai (e agora sentia uma nova estranheza com a palavra, sobreposta como
estava com o frescor da presença física de Jerry MacKenzie), ele se lembrava de ele se sentar
com um suspiro para tomar chá na cozinha com a Sra. Graham, balançando a cabeça em
resposta ao olhar questionador dela e dizendo: “algumas vezes não há nada que você pode fazer
por eles, além de uma orelha amigável e uma oração”.
Ele chegou a um ponto morto na estrada, fechou os olhos e tentou encontrar uma paz
momentânea no caos de seus pensamentos. E acabou, como todos os ministros desde a época
de Aaron sem dúvida acabavam, jogando as mãos para cima e exigindo: — O que Você quer de
mim? O que diabos eu devo fazer em relação a estas pessoas?
Ele abriu os olhos quando disse isso, mas em vez de encontrar um anjo com um
pergaminho iluminado parado à sua frente, ele foi confrontado pelos pequenos olhos amarelos
de uma gaivota sentada na estrada a alguns metros de seu cavalo e nem um pouco preocupada
pela presença de uma criatura trezentas vezes maior que ela. A ave deu a ele um tipo antigo de
olhar, depois esticou as asas e partiu com um ganido alto! Ele ecoou colina acima, onde mais
algumas gaivotas giravam lentamente, pouco visíveis contra o céu branco como papel.
A presença da gaivota quebrou o seu silêncio de isolamento, no mínimo. Ele cavalgou com
um quadro mais calmo em sua mente, decidido a não pensar nas coisas até que tivesse que fazer
isso.
Ele pensou que estava perto de Lallybroch; com sorte, ele a alcançaria antes que
escurecesse. Sua barriga roncava com a perspectiva de tomar chá e ele se sentiu muito mais
feliz. O que quer que ele pudesse ou não contar a Brian Fraser, apenas ver Brian e sua filha Jenny
já seria um conforto.
As gaivotas gritaram bem acima de sua cabeça, ainda girando, e ele olhou para cima.
Certamente: ele podia ver as ruínas baixas do Forte de Ferro ali em cima, as ruínas que ele havia
reconstruído — ele iria reconstruir? E se ele nunca conseguisse voltar para — Jesus, nem pense
nisso, homem, ou ficará mais louco do que já está.
Ele cutucou o cavalo e ele relutantemente acelerou um pouco. Ele acelerou muito mais no
próximo momento, quando um ruído de colisão veio da encosta acima.
— Eia! Eia, seu idiota! Eia, eu disse! — Esses xingamentos, juntamente com uma puxada
das rédeas para trazer a cabeça do cavalo para o outro lado, teve um efeito, e eles pararam
encarando o local de onde tinham vindo, para ver um jovem garoto de pé, ofegante, no meio da
estrada, seus cabelos ruivos em pé, quase escuro na luz que estava partindo.
— Papai — ele disse, e seu rosto se acendeu como se tivesse sido tocado pelo sol — Papai!
Roger não tinha nenhuma memória de ter deixado seu cavalo e corrido pela estrada. Ou de ter
feito qualquer outra coisa. Ele estava sentado no barro e na névoa em um pedaço de samambaia
molhada com seu filho apertado com força no peito, e nada mais importava no mundo.
— Pai — Jem continuava dizendo, ofegando com soluços — Papai, papai...
— Eu estou aqui — ele sussurrou nos cabelos de Jem, as lágrimas escorrendo por seu
rosto — Eu estou aqui, eu estou aqui. Não tenha medo.
Jem deu um suspiro trêmulo e conseguiu dizer — Eu não estou com medo — e chorou
mais um pouco.
Por fim, o senso de tempo voltou, juntamente com a sensação de água entrando pela parte
de trás de suas calças. Ele respirou e estremeceu um pouco, alisou os cabelos de Jem e beijou
sua cabeça.
— Você está cheirando a cabra — ele disse, engoliu, esfregou os olhos dele com as costas
da mão, e riu — Onde diabos você estava?
— Na torre com Mandy — Jem disse, como se essa fosse a declaração mais natural do
mundo. Ele deu a Roger um olhar levemente acusatório — Onde você estava?
— Mandy? — Roger disse inexpressivo. — O que você quer dizer com Mandy?
— Minha irmã — Jem disse, com a paciência que uma criança geralmente mostra para
com a estupidez de seus pais — Você sabe...
— Bem... Onde está Mandy, então? — No estado de confusão surreal de Roger, Mandy
poderia ter aparecido ao lado de Jem como um cogumelo.
O rosto de Jem ficou momentaneamente inexpressivo pela confusão, e ele olhou ao redor
como se esperasse que Mandy se materializasse para fora do musgo e da urze a qualquer
momento.
— Eu não sei — ele disse, soando levemente intrigado — Ela correu para encontrar você,
e então mamãe caiu e quebrou alguma coisa e...
Roger tinha soltado Jem, mas o agarrou de novo ao ouvir isso, quase arrancando o fôlego
do menino.
— Sua mãe está aqui também?
— Bem, claro — Jem disse, soando meio irritado — Quero dizer... Não aqui aqui. Ela está
lá em cima, no velho forte. Ela tropeçou numa rocha quando estávamos correndo para pegar
Mandy.
— Jesus, senhor — Roger disse com fervor, dando um passo na direção do forte, e depois
parando abruptamente — Espere: você disse que ela quebrou alguma coisa... Ela está ferida?
Jem deu de ombros. Ele estava começando a parecer preocupado de novo, mas não tanto.
O papai estava ali; tudo ficaria bem.
— Eu não acho que seja grave — ele assegurou ao seu pai — Ela não conseguia andar,
entretanto, então ela me disse para correr e pegar Mandy. Mas eu encontrei você antes.
— Tudo bem. Ela está consciente, então? Está falando? — Ele segurava Jem pelos ombros,
tanto para impedir que ele desaparecesse (ele meio que temia estar alucinando) quanto para
compeli-lo a responder.
— Aham — Jem apresentava um ligeiro franzido em seu rosto — Mandy está em algum
lugar por aqui... — Contorcendo-se para se soltar, ele se virou lentamente, o rosto vincado de
concentração.
— Mandy! — Roger gritou colina acima. Ele colocou as mãos ao redor da boca e gritou
novamente — BREE!
Ele examinou o forte e as laterais da colina ansiosamente em busca da cabeça de Bree
aparecendo sobre as ruínas ou qualquer sinal de agitação entre a vegetação que poderia ser
ocasionada por uma criança de três anos correndo. Nenhuma cabeça apareceu, mas uma brisa
tinha surgido e toda a colina parecia viva.
— Mandy correu para baixo da colina? — Ele perguntou, e, quando Jem assentiu, ele olhou
atrás dele. A terra se achatava em um pântano do outro lado da estrada, e não havia o vislumbre
de nada que poderia ser Mandy ali. A menos que ela tivesse caído e estivesse num buraco... —
Você fica aqui — ele disse a Jem, apertando seu ombro com força — Eu vou subir a colina para
procurar. Vou trazer sua mãe para baixo.
Ele subiu pelo caminho de carvalho que era a coisa mais próxima de uma rua, gritando o
nome de Mandy a intervalos, dividido entre a alegria imensa e um pânico aterrador, com medo
de que não fosse real, com medo de que ele tivesse realmente ficado maluco e estivesse
simplesmente imaginando que Jem estava ali... ele se virava a cada três passos para verificar
que ele ainda estava lá, parado na estrada.
Bree. Pensar que ela estava ali, logo acima dele...
— Mandy! — ele gritou de novo, sua voz se quebrando. Mas ela se quebrara de emoção, e
ele percebeu num instante assustador que ele estivera gritando num volume alto há minutos
agora... e não doía. — Deus o abençoe, Hector — ele disse fervorosamente sob a sua respiração,
e continuou, começando a fazer ziguezague de um lado para outro na colina, batendo nos paus
de vassoura seca e nas mudas de bétula, chutando tojo e feno morto para o caso de Mandy ter
caído, talvez trombado com uma rocha.
Ele ouviu as gaivotas gritando acima, de forma aguda e penetrante, e olhou para elas,
esperando ver Brianna olhando sobre a parede do forte. Ela não estava, mas alguma coisa gritou
de volta — aguda e penetrante, mas não uma gaivota.
— Papaiiiii!
Ele girou, quase perdendo o equilíbrio, e viu Jem correndo pela estrada — e chegando à
curva da estrada, o cavalo de Buck com Buck sobre ele, e um pacote descontrolado com cabelos
pretos e encaracolados se contorcendo precariamente nos braços de Buck.
Ele não podia falar quando eles o alcançaram.
— Acho que você pode ter perdido alguma coisa — Buck disse rispidamente, e entregou
Mandy cuidadosamente para ele. Ela era um peso vivo em seus braços e cheirava a cabras.
— Papai! — Ela exclamou, sorrindo para ele como se ele tivesse acabado de chegar do
trabalho — Smack! Smack! — Ela o beijou ruidosamente e se aconchegou ao seu peito, os
cabelos fazendo cócegas em seu queixo.
— Onde você estava? — Jem estava dizendo acusatoriamente.
— Onde você estava? — Mandy rebateu, e mostrou a língua para ele — Blééé!
Roger estava chorando de novo, não conseguia parar. Mandy tinha carrapichos e gravetos
presos nos cabelos e nas roupas, e ele pensou que ela devia ter se molhado a não muito tempo.
Buck contorceu as rédeas, como se estivesse prestes para se virar e partir, e Roger esticou a
mão e agarrou o estribo.
— Fique — ele resmungou. — Diga que isso é real.
Buck fez um ruído incoerente e, olhando através de suas lágrimas, Roger percebeu que
Buck estava tentando inadequadamente esconder a própria emoção.
— Sim — Buck disse, soando quase tão chocado quanto Roger. Ele soltou as rédeas e
descendo do cavalo para a estrada, pegou Jem muito gentilmente nos braços — Sim, é real.
110 – FRICCIONANDO
O Dr. McEwan era um médico solitário e tinha uma cama de solteiro. A cama estava agora
acomodando quatro pessoas, e mesmo que duas destas pessoas não fossem grandes, a
atmosfera geral era a do metrô de Londres na hora do rush. Calor, cheiro aleatório de carne por
todos os lados, e uma distinta escassez de oxigênio.
Brianna se contorceu, tentando encontrar espaço para respirar. Ela estava deitada de lado,
as costas pressionadas na parede, com Mandy esmagada em uma massa que respirava
pesadamente entre seus pais. Roger balançava precariamente na outra borda da cama com Jem
esparramado mole sobre ele, as pernas de Jem ocasionalmente se contraindo em espasmos,
cutucando Bree nas canelas. E Esmeralda estava tomando a maior parte do único travesseiro,
os cabelos vermelhos no nariz de todo mundo.
— Você conhece a palavra “friccionar”? — Bree sussurrou para Roger. Ele não estava
dormindo; se estivesse, estaria no chão agora.
— Conheço. Por que? Quer tentar isso agora? — Ele esticou a mão cuidadosamente sobre
Jem e apertou o braço nu de sua esposa levemente. Os pelos finos de seu antebraço se elevaram;
ela pôde vê-los fazendo isso, levantando silenciosamente sobre o brilho opaco da lareira.
— Eu quero fazer menos disso com uma criança de três anos de idade. Mandy está
drogada. Jem está dormindo o suficiente para ser movido?
— Vamos descobrir. Eu vou sufocar se ele não estiver — Roger colocou a mão embaixo de
seu filho, que emitiu um sonoro “hum”, mas em seguida estalou os lábios e ficou em silêncio.
Roger bateu suavemente nele, inclinou-se para ter certeza de que ele estava dormindo e se
endireitou — Certo, então.
Eles tinham aparecido na porta de McEwan depois de escurecer, Brianna suportada entre
Roger e Buck, as crianças aos seus calcanhares. O médico, embora claramente surpreso pela
invasão noturna dos MacKenzies, tinha mantido a calma, colocando Bree sentada em sua maca
com os pés numa panela de água fria e depois mandando a empregada para encontrar um pouco
de jantar para as crianças.
— Uma entorse, e não muito ruim — Ele assegurou a Brianna, secando seus pés com uma
toalha de linho e apalpando habilmente seu tornozelo. Ele passou um polegar pelo tendão
problemático e notou que ela fez uma careta — Isso levará algum tempo para curar, mas eu
acho que posso diminuir a dor um pouco... se você quiser? — Ele olhou em direção a Roger, com
as sobrancelhas levantadas, e Brianna respirou pelo nariz.
— Não é o tornozelo dele — ela disse, meio irritada — E eu certamente apreciaria
qualquer coisa que você pudesse fazer.
Roger assentiu, para sua irritação ainda maior, e McEwan colocou os pés dela em seus
joelhos. Vendo que ela segurava nas bordas da maca para manter o equilíbrio, Roger se ajoelhou
ao lado dela e passou os braços ao redor de seu corpo.
— Incline-se em mim — ele disse baixinho em seu ouvido — Apenas respire. Veja o que
acontece.
Ela lançou a ele um olhar confuso, mas ele meramente passou os lábios pela orelha dela e
assentiu em direção a McEwan.
A cabeça do médico estava inclinada sobre o pé, que ele segurava suavemente em ambas
as mãos, os polegares no peito de seu pé. Ele os movia lentamente em círculos, e depois
pressionava firmememente. Uma dor afiada se espalhou por seu tornozelo, mas morreu
abruptamente antes que ela pudesse ofegar.
As mãos do médico estavam notavelmente quentes em sua carne fria, e ela imaginou o
motivo, já que estiveram imersas na mesma água fria de seus pés. Uma mão agora envolvendo
os calcanhares, e o polegar e o indicador massageando a carne macia suavemente,
repetidamente, e então com um pouco mais de força. A sensação pairava inquietantemente em
algum lugar entre dor e prazer.
McEwan olhou para cima de repente e sorriu para ela.
— Levará algum tempo — ele murmurou. — Relaxe, se puder.
De fato, ela podia. Pela primeira vez em vinte e quatro horas, ela não estava com fome.
Pela primeira vez em dias, ela estava começando a descongelar completamente — e pela
primeira vez em meses, ela não estava com medo. Ela deixou sua respiração sair e descansou a
cabeça no ombro de Roger. Ele fez um ruído baixo com a garganta e segurou mais firme,
endireitando-se.
Ela podia ouvir Mandy contando uma história desconexa a Jem sobre as aventuras de
Esmeralda na sala de trás onde a empregada os tinha levado para tomar sua sopa com pão.
Certamente estavam seguros, e ela se entregou à felicidade elementar dos braços de seu marido
e do cheiro de sua pele.
Mas a expressão de um homem bem-feito aparece não apenas em seu rosto;
Está em seus membros e articulações também, está curiosamente nas articulações de seus
pulsos e quadris;
— Bree — Roger sussurrou para ela alguns momentos depois — Bree... Olhe.
Ela abriu os olhos e viu na primeira curva do pulso dele, onde seus seios descansavam, a
dura elegância dos ossos e das curvas de seu antebraço musculoso. Mas então seu foco se
ampliou e ela se assustou um pouco. Seus dedos estavam brilhando com uma fraca luz azul mal
visível nas fendas entre eles. Ela piscou com força e olhou de novo, para ter certeza de que ela
estava realmente vendo aquilo, mas o som que Roger fez com a garganta assegurou a ela que
era real — e que ele também tinha visto.
Dr. McEwan tinha sentido o espanto dela; ele olhou para cima e sorriu novamente, desta
vez de alegria. Seus olhos mudaram para Roger, e depois voltaram para ela.
— Você também? — ele disse. — Pensei que sim. — Ele segurou os pés dela imóveis por
mais um longo tempo, até que ela pensou sentir a pulsação dos dedos dele ecoando nos espaços
entre os pequenos ossos, e então ele enrolou uma bandagem cuidadosamente ao redor de seu
tornozelo e abaixou gentilmente seu pé no chão. — Está melhor agora?
— Sim — ela disse, e sentiu a voz um pouco rouca. — Obrigada.
Ela queria fazer perguntas a ele, mas ele se levantou e colocou seu casaco.
— Vocês me alegram muito por passarem a noite aqui — ele disse firmemente, ainda
sorrindo para ela — Eu vou encontrar uma cama com um amigo — E levantando o chapéu para
Roger, ele fez uma reverência e saiu, deixando-os sozinhos para colocarem as crianças na cama.
Não surpreendentemente, Mandy tinha feito um alvoroço por causa de dormir numa cama
estranha e num quarto estranho, reclamando que Esmeralda pensou que o médico cheirava
alguma coisa engraçada e que ela estava com medo do grande guarda-roupa porque poderia
haver kelpies37 nele.
— Kelpies vivem apenas na água, boba — Jem havia dito, mas ele também parecia um
pouco apreensivo com o enorme armário escuro com a porta quebrada. Então todos eles tinham
deitado juntos na cama estreita, os pais tão confortados quanto as crianças pela pura
proximidade física.
Brianna sentiu o calor suave e a névoa da respiração cobrindo sua exaustão física, uma
atração sobre seus sentidos que a chamava para o sono. Mas nem de perto tão forte quanto o
senso de Roger.
37Os kelpies fazem parte do folclore escocês. São espíritos das águas que assumem a forma de cavalos (ou de
humanos) e podem fazer com que as pessoas se afoguem, levando-as às profundezas.
Está em seu andar, na postura de seu pescoço, no fletir da cintura e dos joelhos — que as
vestes não escondem...
Ela ficou deitada por um momento, a mão nas costas de Mandy, sentindo a lenta pulsação
do coração da criança, observando Roger pegando Jem nos braços e se virando para deitá-lo em
uma das colchas extras que a empregada de McEwam tinha trazido com a sopa.
A forte e suave qualidade que ele tem transluz através do algodão e da flanela...
Ele estava vestido com nada além de sua camisa e suas calças e agora parou para soltar as
calças de lã, casualmente coçando o traseiro em alívio, a longa camisa de linho
momentaneamente elevada para exibir a curva magra de uma nádega. Então ele foi pegar
Mandy, sorrindo sobre seu corpo que exuberantemente respirava em cima de Bree.
— O que acha de deixarmos a cama para as crianças? Podemos fazer uma cama com as
capas, se elas tiverem secado um pouco, e as colchas que estavam na sala de cirurgia. — Ele
pegou Mandy como pegaria uma braçada de roupa para lavar, e Bree foi capaz de se sentar e se
esgueirar para fora da cama, sentindo o maravilhoso movimento do ar através de sua
combinação molhada de suor e o tecido macio roçando em seus seios fez com que seus mamilos
se enrijecessem.
Ela arrumou a roupa de cama; ele colocou as crianças de volta na cama, e ela as cobriu e
beijou suas faces sonhadoras, beijando Esmeralda para compor o cenário e a colocando nos
braços de Mandy. Roger se virou em direção à porta fechada da sala de cirurgia e olhou para
Bree sobre o ombro, sorrindo. Ela podia ver a sombra de seu corpo pela camisa de linho, contra
o brilho da lareira.
Vê-lo passar comunica tanto quanto o melhor poema, talvez mais;
E te demoras a contemplar seu dorso, a parte posterior de seu pescoço e as laterais do ombro.
— Você irá para a cama comigo, moça? — ele disse suavemente, e estendeu a mão para
ela.
— Oh, sim — ela disse, e foi até ele.
A sala de consultas estava fria, após o calor úmido do quarto, e eles foram diretamente um para
o outro, membros e lábios quentes se procurando. O fogo daquele cômodo tinha se extinguido,
e eles não se preocuparam em reacendê-lo.
Roger a tinha beijado no instante em que a vira no chão do forte, pegando-a e levantando-
a em um abraço que esmagou suas costelas e quase machucou seus lábios. Ela não fizera
qualquer objeção. Mas agora sua boca estava suave e macia e a barba que crescia raspava
levemente em sua pele.
— Rápido? — ele murmurou contra sua boca — Devagar?
— Na horizontal — ela murmurou de volta, apertando seu traseiro — A velocidade é
irrelevante. — Ela estava apoiada em uma perna, o pé machucado elegantemente (assim ela
esperava) estendido atrás dela. As ministrações do Dr. McEwan tinham amenizado bastante o
latejar, mas ela ainda não conseguia colocar peso sobre o pé por mais do que um breve segundo.
Ele riu — baixinho, e com um olhar culpado em direção à porta do quarto — e, inclinando-
se repentinamente, pegou-a no colo e cambaleou através do quarto até a chapeleira, onde ela
agarrou as capas e as jogou ao chão perto da mesa, aquele sendo o espaço mais limpo visível.
Ele se agachou, as costas rangendo de forma audível e reprimindo virilmente um gemido
quando a abaixou gentilmente sobre a pilha de roupas.
— Tenha cuidado! — Ela sussurrou, e não em tom de brincadeira. — Você pode deslocar
suas costas e então o que faremos?
— Então você ficaria por cima — ele sussurrou de volta e correu a mão pelas suas coxas,
sua combinação enrolando-se com o movimento. — Mas eu não machuquei as costas, então
você não precisa.
Então, ele tirou sua camisa, abriu as pernas dela e veio ao seu encontro com um ruído de
profunda satisfação.
— Espero que você realmente estivesse falando sério quando disse que a velocidade era
irrelevante — ele disse em seu ouvido, poucos minutos depois.
— Oh, sim — ela disse vagamente, e passou os braços ao redor do corpo dele. — Você...
apenas... fique aí dentro. — Quando pôde, ela o soltou, embalando sua cabeça e beijando a suave
e quente carne ao lado de seu pescoço. Ela sentiu a cicatriz da corda e gentilmente passou a
ponta da língua ao longo dela, fazendo com que ele ficasse com as costas e os ombros
arrepiados.
— Você está com sono? — Ele perguntou alguns momentos depois, desconfiado.
Ela abriu um dos olhos. Ele tinha ido de volta ao quarto para procurar por colchas e estava
ajoelhado ao lado dela, esticando uma sobre seu corpo. A colcha tinha um cheiro leve de mofo,
com uma nota de camundongos, mas ela não se importou.
— Não — ela disse, e rolou para se deitar de costas, sentindo-se maravilhosa, apesar do
chão duro, de seu tornozelo torcido e da percepção tardia de que o Dr. McEwan devia fazer
operações e amputações naquela mesa. Havia uma mancha escura na parte de baixo, logo acima
de sua cabeça. — Apenas... lânguida. — Ela esticou a mão lentamente para Roger, instando-o a
entrar sobre a colcha com ela — E você?
— Eu não estou com sono — ele assegurou a ela, deslizando ao lado dela — E se você acha
que vou dizer que estou “lânguido”, pense melhor.
Ela riu — baixinho, olhando para a porta — rolou e descansou a testa contra seu peito.
— Eu pensei que poderia nunca vê-lo de novo — ela sussurrou.
— Sim — ele disse suavemente e acariciou os seus cabelos compridos e as suas costas —
Eu também.
Eles ficaram em silêncio por um longo momento, ouvindo a respiração um do outro — a
respiração dele vindo com mais facilidade do que antes, ela pensou, sem aqueles pequenos
arranhados.
Então, ele finalmente disse — Conte-me.
E ela contou, sem rodeios e com a menor quantidade de emoção que ela conseguiu. Ela
pensou que ele poderia se exaltar o suficiente por ambos.
Ele não poderia gritar ou praguejar, por causa das crianças que estavam dormindo. Ela
podia sentir a raiva nele; ele estava tremendo de raiva, seus pulsos contraídos como sólidas
maçanetas de osso.
— Eu vou matá-lo — ele disse, em uma voz um pouco estridente sobre o silêncio, e seus
olhos encontraram os dela, selvagens e tão escuros que pareciam negros na penumbra.
— Está tudo bem — ela disse suavemente, e, sentando-se, pegou as mãos dele entre as
suas, levantando uma e depois a outra para seus lábios — Está tudo bem. Estamos bem, todos
nós. E estamos aqui.
Ele olhou para o lado e respirou profundamente, e depois olhou de novo para ela, suas
mãos se enrijecendo nas dela.
— Aqui — ele repetiu, sua voz triste, ainda rouca de fúria — Em 1739. Se eu...
— Você teve que fazer isso — ela disse firmemente, apertando com força as mãos dele. —
Além disso — ela adicionou, um pouco timidamente — Eu meio que pensei que nós não iríamos
ficar. A não ser que você tenha tomado gosto por vários habitantes.
Expressões cintilaram no rosto dele, indo de raiva à lamentação e à aceitação relutante...
e até mesmo ao humor relutante, quando ele se recompôs. Ele limpou a garganta.
— Sim, bem — ele disse secamente. — Há Hector McEwan, certamente. Mas há muitas
outras pessoas também... Geillis Duncan, por exemplo.
Um pequeno choque passou por ela ao ouvir o nome.
— Geillis Duncan? Bem... sim, eu suponho que ela estaria aqui nesse ponto, não? Você...
Você a conheceu?
Uma expressão verdadeiramente extraordinária passou pelo rosto de Roger com aquela
pergunta.
— Eu conheci — ele disse, evitando seu olhar questionador. Ele se virou e acenou com a
mão para a janela da sala de consultas que dava para a praça — Ela mora do outro lado da praça.
— Sério? — Brianna se levantou, apertando a colcha em seu peito, esqueceu do pé
machucado e cambaleou. Roger se levantou e a pegou pelo braço.
— Você não quer conhecê-la — ele disse, com ênfase. — Sente-se, sim? Você vai acabar
caindo.
Brianna olhou para ele, mas permitiu que ele a ajudasse a se sentar no ninho de cobertores
e colocasse a colcha sobre seus ombros. Estava realmente frio naquele cômodo, agora que o
calor de seus esforços tinha cessado.
— Tudo bem — ela disse, e sacudiu o cabelo para que ele cobrisse suas orelhas e o seu
pescoço — Diga-me por que eu não vou querer conhecer Geillis Duncan.
Para sua surpresa, ele corou profundamente, o que ficou visível até mesmo nas sombras
da sala de consulta. Roger não tinha nem a cor de pele e nem o temperamento de corar
facilmente, mas quando ele descreveu — breve, mas vividamente — o que tinha acontecido (ou
possivelmente não acontecido) com Buck, Dr. McEwan e Geillis, ela compreendeu.
— Puta merda — ela disse, com um olhar sobre o ombro para a janela. — É... Quando o Dr.
McEwan disse que encontraria uma cama com um amigo...?
Buck tinha saído, dizendo que conseguiria uma cama na taverna ao pé da High Street e os
veria pela manhã. Presumivelmente ele quis mesmo dizer aquilo, mas...
— Ela é casada — Roger disse laconicamente — Presumivelmente seu marido teria
notado se ela convidasse homens estranhos para passar a noite.
— Oh, eu não sei — ela disse, meio provocativa — Ela é uma herbalista, lembra? Mamãe
consegue fazer uma boa poção para dormir; eu imagino que Geillis poderia também.
A cor lavou o seu rosto novamente, e ela sabia, tão claramente como se ele tivesse dito,
que ele estava visualizando Geillis Duncan fazendo alguma coisa vergonhosa com um ou outro
dos seus amantes enquanto estava deitada ao lado de seu marido roncando.
— Deus — ele disse.
— Você, hã, se lembra o que vai acontecer ao seu pobre marido, não? — Bree disse
delicadamente. A cor sumiu instantaneamente do rosto de Roger, e ela sabia que ele não tinha
pensado naquilo. — Este é um dos motivos pelos quais não podemos permanecer aqui — ela
disse, gentil mas firmemente — Há muitas coisas que nós sabemos. E nós não sabemos o que
tentar interferir pode ocasionar, mas podemos apostar que é perigoso.
— Sim, mas... — Ele começou, mas se interrompeu ao ver o olhar no rosto dela. —
Lallybroch. É por isso que vocês não foram lá? — Ele tinha tentado levá-la colina abaixo quando
a resgatara do forte. Ela insistira que, em vez disso, eles tinham que ir até o vilarejo para
procurar ajuda, mesmo que isso significasse uma estranha e dolorosa caminhada de três horas.
Ela assentiu e sentiu um pequeno nó em sua garganta. Ele ficou lá enquanto ela contava a
ele sobre o encontro com Brian no cemitério.
— Não é só que eu tenho medo do que conhecê-los pode ocasionar... mais tarde — ela
disse, e o nó se dissolveu em lágrimas — É que... oh, Roger, o olhar em seu rosto quando ele me
viu e pensou que eu era Ellen! Eu... ele... ele vai morrer em um ano ou dois. Aquele homem bonito
e doce... e não há nada que nós possamos fazer para evitar isso. — Ela engoliu em seco e enxugou
os olhos. — Ele pensa que viu sua esposa e seu filho, que eles estão e-esperando por ele. E a...
oh, Deus, a alegria em seu rosto. Eu não poderia tirar isso dele, eu simplesmente não poderia.
Ele a pegou nos braços e esfregou suas costas gentilmente enquanto ela soluçava.
— Não, é claro que você não poderia — ele sussurrou para ela. — Não se preocupe, Bree.
Você fez o certo.
Ela fungou e procurou entre as capas por alguma coisa onde assoar seu nariz, decidindo-
se por fim por um tecido manchado da mesa do Dr. McEwan. Ele tinha o cheiro pungente de
algum medicamente, graças a Deus, e não de sangue.
— Mas há o papai, também — ela disse, inspirando profunda e tremulamente. — O que
vai acontecer com ele... as cicatrizes em suas costas... Eu... não suporto pensar nisso e nós não
fazendo nada, mas nós...
— Não podemos — Roger concordou baixinho. — Não ousaríamos fazer nada. Só Deus
sabe o que eu já posso ter feito, encontrando Jerry e o enviando... para onde quer que eu o tenha
enviado. — Pegando o tecido, ele o colocou num balde de água e passou no rosto dela, sua frieza
amenizando as bochechas quentes, mesmo fazendo-a tremer. — Venha se deitar — ele disse,
colocando um braço ao redor de seus ombros. — Você precisa descansar, mo chridhe. Foi um
dia terrível.
— Não — ela murmurou, deitando-se e colocando a cabeça na curva do ombro dele,
sentindo a força e o calor de seu corpo. — Foi um dia maravilhoso. Eu tenho você de volta.
111 – OS SONS QUE COMPÕEM O SILÊNCIO
Roger sentiu que ela começava a relaxar, e de repente ela deixou seu aperto teimoso na
consciência e caiu no sono como se tivesse inalado éter. Ele a segurou e ouviu os pequenos sons
que compunham o silêncio: o silvo distante da fogueira de turfa no quarto, um vento frio
sacudindo a janela, o farfalhar e a respiração das crianças dormindo, o lento batimento do
valente coração de Brianna.
Obrigado, ele disse silenciosamente a Deus.
Ele esperava cair no sono rapidamente; o cansaço o cobria como um cobertor de chumbo.
Mas o dia ainda estava nele, e ele ficou deitado por mais algum tempo olhando para a escuridão.
Ele estava em paz, muito cansado para conseguir pensar coerentemente em qualquer
coisa. Todas as possibilidades flutuaram em volta dele num redemoinho distante e lento,
distante demais para preocupá-lo. Onde eles poderiam ir... e como. O que Buck poderia ter dito
a Dougal MacKenzie. O que Bree tinha trazido em sua mala, pesada como chumbo. Se haveria
mingau para o café da manhã — Mandy gostava de mingau.
O pensamento em Mandy o fez sair das cobertas para checar as crianças. Para se certificar
de que elas realmente estavam lá.
Elas estavam, e ele ficou de pé ao lado da cama por um longo tempo, observando seus
rostos em uma gratidão muda, respirando o quente cheiro de infância deles — ainda com um
leve toque de cabra.
Por fim, ele se virou, tremendo, para voltar à sua quente esposa e à bem-aventurança do
sono. Mas quando ele entrou novamente na sala de consulta, ele olhou através da janela para a
noite lá fora.
Cranesmuir dormia, e a névoa se espalhava em suas ruas, as pedras brilhando úmidas à
meia-luz da lua que se abaixava. Do outro lado da praça, entretanto, uma luz apareceu no sótão
da casa de Arthur Duncan.
E na sombra da praça abaixo, um pequeno movimento traía a presença de um homem.
Esperando.
Roger fechou os olhos, o frio se levantando de seus pés descalços para seu corpo, vendo
em sua mente a súbita visão de uma mulher de olhos verdes, preguiçosa nos braços de um
amante de cabelos loiros... e um olhar de surpresa e depois de horror em seu rosto quando o
homem desaparecia de seu lado. E um brilho azul se elevando de seu útero.
Com os olhos fechados com força, ele colocou a mão na vidraça gelada e fez uma oração
para o acompanhar.
PARTE VII
ANTES DE SAIR DAQUI
05 de setembro de 1778
Dobrei o tecido num quadrado e usei o alicate para mergulhá-lo no caldeirão fumegante, depois
fiquei balançando-o suavemente de um lado para o outro até que a compressa esfriasse o
suficiente para que eu a abrisse e usasse. Joanie suspirou, remexendo-se em seu banquinho.
— Não esfregue o olho — Eu disse automaticamente, vendo seu punho curvado ir em
direção ao grande terçol rosa em sua pálpebra direita — Não se preocupe; não vai demorar
muito.
— Sim, isso demora muito — ela disse irritada. — Isso demora uma eternidade!
— Não seja ingrata com a sua avó — Marsali disse a ela, parando no meio de seu caminho
da cozinha até a tipografia, um rolo de queijo para Fergus em sua mão — Fique quieta e
agradeça.
Joanie gemeu e se contorceu, e mostrou a língua depois que sua mãe partiu, mas a guardou
na boca de novo e pareceu envergonhada quando viu minha sobrancelha levantada.
— Eu sei — Eu disse, com alguma simpatia. Segurar uma compressa quente num terçol
por dez minutos parecia uma eternidade. Particularmante se você estivesse fazendo isso seis
vezes por dia pelos últimos dois dias — Talvez você possa pensar em alguma coisa para o tempo
passar. Você poderia recitar para mim as tabuadas enquanto eu falo a raiz valeriana.
— Oh, vovó! — ela disse, exasperada, e eu ri.
— Aqui está — Eu disse, entregando o cataplasma quente a ela — Você conhece alguma
música boa?
Ela exalou mal humorada, as pequenas narinas dilatadas.
— Eu gostaria que o vovô estivesse aqui — ela disse. — Ele poderia me contar uma
história. — A nota de acusação comparativa era clara em sua voz.
— Soletre “hordéolo” para mim e eu vou te contar sobre a esposa do cavalo d’água — eu
sugeri. Isso fez com que o seu olho não afetado se abrisse com interesse.
— O que é hordéolo?
— É o nome científico para terçol.
— Oh — Ela pareceu não ficar impressionada com aquilo, mas sua testa se enrugou um
pouco em concentração, e eu pude ver seus lábios se moverem enquanto ela soletrava as
sílabas. Tanto Joanie quanto Félicité eram boas em soletrar; elas brincavam para ver quem
ganhava desde que eram crianças pequenas, desafiando uma à outra com novas palavras.
Aquela era uma ideia; talvez eu pudesse fazer com que ela soletrasse palavras incomuns
para mim durante os tratamentos de compressa. O terçol era grande e desagradável; sua
pálpebra inteira estivera vermelha e inchada no início, o olho não mais do que uma fenda
brilhante e ressentida. Agora o próprio terçol tinha se reduzido ao tamanho de uma ervilha, e
pelo menos três quartos do olho era visível.
— H — ela disse, olhando para mim para ter certeza de que estava certa, e eu assenti —
O, R, D — eu assenti de novo, e vi seus lábios se moverem silenciosamente.
— Hordéolo — eu repeti para ajudar e ela assentiu, mais confiante.
— E, acento agudo, O, L, O!
— Excelente! — Eu disse, sorrindo para ela. — E quanto a... — Eu procurei por outra
palavra, longa, mas estritamente fonética. — Hepatite?
— O que é isso?
— É uma infecção viral do fígado. Você sabe onde fica o seu fígado?
Eu estava procurando pela minha caixa de remédios, mas parecia não ter mais aloe. Eu
teria que ir até o Jardim dos Bartram amanhã, pensei, se o tempo permitisse. Eu não tinha mais
quase nada, por causa da batalha. Senti a pequena e costumeira pontada na lateral de meu corpo
ao pensar naquilo, mas eu a afastei firmemente. Isso iria acabar, bem como os pensamentos.
Marsali apareceu repentinamente na porta da cozinha, enquanto Joanie estava
cuidadosamente soletrando “acantocitose”, e eu olhei para cima de minha trituração. Ela estava
segurando uma carta em sua mão e parecia preocupada.
— É o índio que se chama Joseph Brant que o Jovem Ian conhece? — ela perguntou.
— Eu imagino que ele conhece vários deles — Repliquei, pousando o pistilo — Mas eu já
o ouvi mencionar Joseph Brant, sim. O nome Mohawk do homem começa com T, eu acho, mas é
só disso que eu tenho certeza. Por quê?
Eu senti uma ligeira inquietação com o nome. A esposa Mohawk de Ian, Emily, vivia num
assentamento em Nova York fundado por Brant; Ian mencionara isso, muito brevemente,
quando ele fora lá visitá-la no ano passado.
Ele não dissera qual era o propósito de sua visita, e Jamie e eu não perguntamos, mas eu
assumi que tinha alguma coisa a ver com o seu medo de não conseguir conceber uma criança,
já que todos os seus bebês com Emily tinham nascido mortos ou sido abortados. Ele tinha me
perguntado sobre o motivo, e eu dissera a ele o que podia, oferecendo, para tranquilizá-lo, a
informação de que ele poderia ser capaz de conceber com outra mulher.
Eu ofereci uma rápida oração pelas chances de Rachel, e depois voltei abruptamente para
o que Marsali estava dizendo.
— Eles fizeram o quê?
— Este cavalheiro — ela bateu na carta — disse que Brant e seus homens foram a um
lugar pequenino chamado Andrustown. Nada além de sete famílias vivem lá — Seus lábios se
pressionaram com força, e ela olhou para Joanie, que estava ouvindo com as orelhas em pé. —
Eles saquearam e queimaram o local, ele diz, e massa... é... acabaram com o povo que vivia lá.
— Qual é a palavra, mãe? — Joanie perguntou brilhantemente. — A que significa que eles
acabaram com as pessoas?
— Massacraram — Eu disse a ela, salvando sua mãe do embaraço — Isso significa
assassinar brutal e indiscriminadamente. Aqui — Entreguei a ela a compressa nova, que ela
aplicou sem protestar, franzindo o cenho ante o pensamento.
— É diferente de apenas matar alguém?
— Bem — Eu disse judiciosamente. — Isso depende. Você pode matar alguém por
acidente, por exemplo, e isso não seria um massacre, embora certamente fosse lamentável. Você
poderia matar alguém que estivesse tentando matar você, e isso seria autodefesa.
— Rachel diz que não se deve fazer isso — Joanie observou, mas meramente por uma
questão de rigor — E se você estiver com um exército e tiver que matar os soldados do outro
lado?
Marsali fez um ruído escocês baixo de desaprovação, mas respondeu laconicamente.
— Se um homem vai para o exército, então matar é a sua função — ela disse. — Ele o faz,
em sua maior parte — ela adicionou de forma justa, com uma sobrancelha levantada para mim
— para proteger sua família e sua propriedade. Então isso é mais como autodefesa, sim?
Joanie olhou de sua mãe para mim, ainda franzindo o cenho.
— Eu sei o que é bru-tal — ela disse. — Que significa ser cruel quando não precisa ser.
Mas o que é in-dis-cri-mi-na-do? — Ela falou em sílabas, cuidadosamente, como se estivesse
prestes a soletrar a palavra.
— Sem escolher — eu disse, levantando um dos ombros — Significa que você faz alguma
coisa sem notar com quem está fazendo e provavelmente sem muita razão em fazer isso com
esta determinada pessoa.
— Então, o amigo índio do primo Ian não tinha razão alguma para queimar o local e matar
as pessoas?
Marsali e eu trocamos um olhar.
— Nós não sabemos disso — Marsali disse. — Mas não é uma coisa boa, o que quer que
tenha acontecido. Agora, você já terminou. Vá encontrar Félicité e comece a encher o tanque. —
Ela pegou a compressa de Joanie e a enxotou para fora da cozinha.
Ela ficou parada, observando até Joanie sair pela porta dos fundos, e depois se virou para
mim e entregou a carta.
Era do Sr. Johansen, aparentemente um dos correspondentes regulares de Fergus, e o
conteúdo era aquilo que Marsali havia dito, embora com a adição de alguns detalhes horríveis
que ela não mencionara na frente de Joanie. Era bastante factual, com apenas alguns poucos
ornamentos do século dezoito, e o que era mais arrepiante — literalmente, eu pensei; alguns
dos residentes de Andrustown tinham sido escalpelados, como um aviso.
Marsali assentiu quando eu olhei para cima após ler a carta.
— Sim — ela disse. — Fergus quer publicar a carta, mas eu não tenho certeza se ele deve
fazer isso. Por causa do Jovem Ian, sabe?
— O que tem o Jovem Ian? — Disse uma voz escocesa vinda da porta da tipografia, e Jenny
entrou, um cesto de mercado sob o braço. Seus olhos foram para a carta em minha mão, e suas
sobrancelhas escuras e afiadas se elevaram.
— Quanto ele te contou sobre ela? — Marsali perguntou, após explicar a carta. — Sobre a
índia com quem ele se casou.
Jenny balançou a cabeça e começou a tirar as coisas do cesto.
— Nem uma palavra, exceto por pedir a Jamie que dissesse que ele não iria nos esquecer.
Uma sombra cruzou seu rosto com a memória, e eu imaginei por um momento como
aquilo deveria ter sido para ela e Ian, receber a carta de Jamie sobre as circunstâncias em que
Ian tinha se tornado um Mohawk. Eu sabia a agonia com a qual ele tinha escrito a carta, e
duvidava que a leitura tivesse sido com menos agonia.
Ela pousou uma maçã e acenou para que eu lhe desse a carta. Tendo lido em silêncio, ela
olhou para mim. — Você acha que ele ainda tem sentimentos por ela?
— Eu acho que sim — Respondi relutantemente. — Mas nada comparado aos seus
sentimentos por Rachel, certamente.
Eu me recordava dele, entretanto, parado ao meu lado no crepúsculo à meia-lua no Forte
Ticonderoga, quando ele me contara sobre seus filhos — e sobre Emily, sua esposa.
— Ele se sente culpado em relação a ela, não? — Jenny perguntou, astutamente vendo
meu rosto.
Eu lancei um olhar para ela, mas assenti. Ela comprimiu os lábios, mas depois entregou a
carta de volta para Marsali.
— Bem, nós não sabemos se a sua esposa tem alguma coisa a ver com esse Brant ou com
as coisas que ele faz, e não foi ela que foi massacrada. Eu diria para deixarmos Fergus publicar,
mas — e ela olhou para mim — mostre a carta para Jamie e peça para ele conversar com o
pequeno Ian sobre isso. Ele vai ouvir. — Sua expressão se iluminou um pouco então, e um
sorriso sutil emergiu. — Ele tem uma boa esposa agora, e eu acho que Rachel vai mantê-lo em
casa.
Cartas eram entregues à tipografia a qualquer hora do dia — e, não raramente, à noite — e por
todos os tipos de mensageiros. A Filadélfia se glorificava por ter o melhor sistema de correio
das colônias, tendo sido estabelecido por Benjamin Franklin apenas três anos antes; os
carteiros andavam regularmente entre Nova York e Filadélfia e cerca de trinta outras rotas pela
colônia.
Dada à natureza do trabalho de Fergus e à natureza dos tempos, entretanto, quase todas
as cartas chegavam por rotas mais antigas: repassadas por viajantes, mercadores, índios e
soldados, e enfiadas sob a porta na vigília da noite. Ou eram entregues para um membro da
família na rua. Foram trocas deste tipo durante a ocupação britânica da cidade que tinham me
compelido a casar com John Grey para evitar ser presa por conspiração ou espionagem.
A própria carta de John, entretanto, chegara tranquilamente na bolsa de um carteiro,
devidamente carimbada e selada com uma gota de cera amarela impressa com o seu sinete na
forma de uma meia-lua sorridente.
Minha querida,
Eu estou com meu irmão e o seu regimento em Nova York, e eu provavelmente ficarei aqui
por algum tempo. Sendo assim, eu pensei em mencionar que a Locação de minha casa na Chestnut
Street estará em vigor até o Fim do Ano, e o Pensamento de ela vazia, podendo ser vandalizada ou
deixada à ruína me aflige, portanto eu concebi a Noção de oferecê-la mais uma vez a você.
Não, apresso-me a acrescentar (caso seu intransigente Marido esteja lendo isso), como um
Domicílio, mas como uma Instalação para Consultas. Familiarizado como estou com seu Hábito
peculiar de atrair Pessoas sofrendo de Doenças, Deformidades ou Injúrias hediondas, e estando
também familiarizado com o Número de Pessoas atualmente habitando o Estabelecimento do
jovem Sr. Fraser, eu acredito que você poderá praticar suas Aventuras médicas com mais
facilidade na Chestnut Street do que entre as Prensas da Tipografia e uma imponente Pilha de
Bíblias de seis centavos.
Como eu não espero que você gaste o seu precioso Tempo com Labor doméstico, arranjei
para que a Sra. Figg e uma outra Serva permaneçam empregadas pelo tempo que você precisar,
sendo pagas pelo meu Banco. Você me deixará muito feliz, minha querida, ao aceitar minha
Proposta, já que isso deixará minha mente mais tranquila em relação à Propriedade. E o
Pensamento de você trabalhando, seriamente administrando um Clíster em General Arnold, vai
animar o Tédio de minha presente Condição.
— Por que você está rindo, Mãe Claire? — Marsali perguntou, observando-me com a carta
na mão. Ela sorriu, brincando — Alguém lhe enviou uma carta de amor?
— Oh, algo do tipo — eu disse, dobrando. — Você não sabe onde Jamie está agora, sabe?
Ela fechou um olho para ajudar no pensamento, mantendo o outro em Henri-Christian,
que estava diligentemente engraxando as melhores botas de seu pai — e boa parte de si mesmo
no processo.
— Ele disse que estava indo com o Jovem Ian ver sobre um cavalo de um homem — ela
disse — e então iria para as docas.
— Para as docas? — Eu disse, surpresa. — Ele disse o porquê?
Ela balançou a cabeça. — Eu poderia talvez imaginar, entretanto. Está bom, Henri! A Dhia,
veja o seu estado! Vá procurar uma de suas irmãs e peça para lavarem as suas mãos, sim?
Henri olhou para as mãos, como se estivesse surpreso ao encontrá-las daquela forma.
— Oui, maman — ele disse, e limpando-as alegremente nas calças, saiu correndo pela
cozinha, gritando — Félicité! Venha me lavar! — a plenos pulmões.
— Ele tem falado com Fergus sobre irmos com vocês, quando voltarem à Carolina do
Norte — ela disse — Se eu tivesse que adivinhar, diria que ele foi descobrir quanto custará para
mover tudo — ela fez um gesto amplo, abrangendo tudo, desde a tipografia até o mezanino —
através de um navio.
— Hum — eu disse, o mais evasiva possível, embora meu coração tivesse saltado, tanto
pelo pensamento da partida iminente para Ridge quanto pelo pensamento de Fergus e Marsali
irem conosco. — Você... quer? — Eu perguntei cuidadosamente, vendo a linha entre suas
sobrancelhas. Ela ainda era uma mulher adorável, fina e de bons ossos, mas era muito magra e
as linhas de tensão afiavam suas feições.
Ela balançou a cabeça, mas mais em indecisão do que em negação.
— Eu realmente não sei — ela admitiu. — É um pouco mais fácil agora, com os britânicos
longe, mas eles não estão tão longe assim, estão? Eles poderiam voltar, e então? — Ela olhou
inquieta sobre o ombro, embora a tipografia estivesse vazia no momento. Fergus tivera que sair
de casa e viver furtivamente na periferia da cidade durante os últimos meses de ocupação
britânica.
Eu abri minha boca para dizer a ela que eu duvidava disso. Hal Grey havia me dito, sob
influência da maconha, que a nova estratégia britânica era separar as colônias do Sul e do Norte
e suprimir a rebelião lá, deixando com que o Norte morresse de fome até se submeter. Mas eu
decidi não falar. Era melhor não mencionar aquilo até que eu descobrisse o que Jamie havia dito
a Fergus.
Por que eu não sabia o que iria acontecer? Eu perguntei a mim mesma, frustrada — e não
pela primeira vez. Por que eu não tinha pensado em me enfiar num livro de história americana
quando tive a chance?
Bem, porque eu não esperava terminar na América, era a resposta. Eu apenas agi, supus.
Não fazia sentido gastar tanto tempo planejando, de qualquer forma, dada à propensão da vida
de dar reviravoltas sem aviso algum.
— Seria maravilhoso, se vocês viessem — Eu disse, o mais suavemente possível,
adicionando astuciosamente — Seria ótimo ter as crianças por perto.
Marsali bufou, olhando-me de lado.
— Sim — ela disse secamente. — Nunca pense que eu não apreciaria o valor de uma avó.
E quando você for, a vovó Janet irá também.
— Você acha que sim? — Eu não tinha pensando nisso. — Mas Jenny ama você e suas
crianças... Fergus é filho dela tanto quanto os garotos que ela pariu.
— Bem, isso talvez seja verdade. — Ela admitiu, com um breve sorriso que me mostrou a
moça radiante de quinze anos que se casara com Fergus numa praia caribenha doze anos antes
— Mas o Jovem Ian é o seu filho mais novo, sabe? E ela o teve por muito pouco tempo. Agora ele
está casado e ela vai querer ficar por perto, para ajudar com seus filhos quando eles chegarem.
E você sabe que Rachel irá onde Ian for e que Ian irá onde o papai for.
Aquela era uma avaliação sagaz, eu pensei, e dei a ela um breve aceno de concordância.
Ela suspirou profundamente e, sentando-se em sua cadeira de amamentação, pegou o
item superior de sua cesta cheia de roupas para costurar, a agulha enfiada apontando para cima
do vestuário que ela estivera remendando da última vez. Eu não tinha o desejo de abandonar
aquela conversa e, pegando um banquinho, sentei-me ao seu lado e peguei uma das meias de
Germain do cesto. O cesto de costura, juntamente com suas agulhas, seus novelos de linha e
seus ovos de cerzir, estavam ao lado do cesto de roupas para consertar, e eu habilmente
coloquei a linha em minha própria agulha, sentindo-me satisfeita por ainda conseguir fazer isso
sem ter que colocar os óculos.
— E quanto a Fergus? — Eu perguntei sem rodeios. Porque claramente Fergus era o xis
da questão, o motivo de Marsali estar preocupada.
— Sim, esse é o problema — ela disse francamente. — Eu iria, e feliz, mas você sabe como
era para ele ficar em Ridge.
Eu sabia, e fiz uma sutil careta, esticando o calcanhar da meia sobre o ovo de cerzir.
— A cidade tem sido perigosa neste último ano — ela disse, e engoliu em seco com a
memória. — Nem posso dizer a você quantas vezes os soldados vieram para prendê-lo; eles
quebraram a loja, mais de uma vez, quando não conseguiram encontrá-lo. E os Legalistas
vinham pintar frases na parede da frente às vezes. Mas o perigo não o preocupava, contanto
que não ameaçasse a mim ou às crianças.
— E algumas vezes mesmo que ameaçassem — eu murmurei. — E eu não estou falando
apenas de Fergus. Malditos homens.
Marsali fungou com divertimento.
— Sim. Mas o ponto é... Ele é um homem, não? Ele tem que sentir que vale alguma coisa.
Ele precisa se sentir capaz de cuidar de nós, e essa é uma coisa que ele pode fazer (e fazer muito
bem) aqui. Eu não posso ver como ele conseguiria viver decentemente nas montanhas.
— Isso é verdade — Admiti relutantemente. Era um dia quente e sufocante na cozinha,
com o caldeirão fervendo sobre a lareira. Com moscas ou não (e havia um número incrível delas
na Filadélfia), eu me levantei para abrir a porta de trás. Não estava notavelmente mais fresco lá
fora, embora pelo menos o fogo abaixo da grande banheira não estivesse aceso ainda; as garotas
ainda a estavam enchendo, andando de um lado para o outro a partir do poço com os baldes.
Henri-Christian não estava em lugar algum à vista, mas presumivelmente tinha sido
limpo; um pano imundo de preto estava jogado perto da porta. Eu me abaixei para pegá-lo e vi
um pedaço dobrado de papel no chão ao lado do degrau. Não tinha nada escrito nele, mas
pareceu proposital, então eu o peguei e o levei para dentro.
— Ainda assim — Marsali disse, mal esperando que eu me sentasse —, eu fico pensando
que, mesmo que nós não formos para Ridge, poderíamos sair daqui. Deve haver lugares mais
ao sul onde um impressor poderia ser útil, mesmo que estes lugares não sejam tão grandes
quanto a Filadélfia.
— Bem, há Charleston — eu disse em dúvida — e Savannah. Elas são tão quentes e
medonhas no verão quanto a Filadélfia, mas os invernos são mais leves, eu suponho.
Ela me lançou um breve olhar por cima da combinação que ela estava remendando, e
depois a pousou no colo, como se tivesse tomado uma decisão.
— Não é o clima que me preocupa — ela disse baixinho.
E, inclinando-se, ela tateou sob a pilha de camisas e meias, emergindo com um punhado
de notas sujas e com letras desgastadas. Segurando-as cuidadosamente, como se elas portassem
alguma doença, ela as colocou em meu joelho.
— Qualquer impressor atualmente recebe estas coisas sob sua porta — ela disse,
observando meu rosto enquanto eu lia os primeiros bilhetes — Especialmente se tomar uma
posição. Nós não o fizemos, pelo tempo que pudemos, mas depois de um tempo, você não pode
mais ficar no meio da estrada.
Aquilo foi dito com uma simplicidade e uma aceitação que trouxe lágrimas aos meus olhos.
Ainda mais com o conteúdo das notas anônimas — já que nenhuma delas tinha assinatura e elas
possuíam uma variedade de letras, embora algumas claramente tivessem sido escritas pela
mesma pessoa — tornando bastante claro qual era o preço por ficar ao lado dos Rebeldes.
— Era pior, talvez — ela disse, pegando-as de volta e as empilhando ordenadamente —
quando os britânicos estavam aqui. Eu pensei que iria parar quando eles partissem, mas não
parou.
— Eu não imagino que todos os Legalistas partiram com eles — eu disse, respirando
profundamente para me controlar. Eu me sentia como se tivesse recebido um soco no estômago.
— Apenas os ricos — Marsali disse cinicamente. — Aqueles que teriam a chance de ser
arrastados de suas casas ou espancados e roubados, sem a proteção do exército. Mas isso não
significa que os mais pobres não tenham as mesmas opiniões.
— Por que você guarda isso? — Eu perguntei, entregando as notas de volta com dois
dedos, como se fossem uma pinça — Eu acho que os lançaria ao fogo, um por um.
— Eu o fiz, de início — ela disse, enfiando a mão cheia dos bilhetes maldosos de volta no
fundo da cesta — Mas eu descobri que não podia esquecer o que eles diziam, e as palavras
voltavam para mim à noite e me impediam de dormir.
Ela se endireitou, deu de ombros e pegou a agulha novamente.
— Eu disse a Fergus e ele disse que a melhor coisa a fazer era ler as notas várias vezes,
uma após a outra. Lê-las um para o outro — Um breve e triste sorriso tocou sua boca. — Então,
nós fizemos isso, depois que as crianças foram dormir... Nós sentávamos perto do fogo e nos
revezávamos para ler. E ele tirava sarro delas, criticando a gramática e a falta de poesia,
comparando-as uma com a outra, e nós as classificamos da melhor para a pior... E então nós as
deixávamos de lado e dormíamos nos braços um do outro.
Sua mão descansou gentilmente sobre o monte de roupas para consertar, como se fosse o
ombro de Fergus, e eu sorri.
— Bem — eu disse e, limpando a garganta, entreguei a nota que eu havia pegado no
degrau — Eu não tenho ideia de essa é outra da sua coleção, mas eu a encontrei no degrau de
trás agora mesmo.
Ela a pegou com uma sobrancelha levantada e olhou, virando de um lado para o outro.
— Está mais limpa que a maioria — ela observou — Um papel decente, também. Talvez
seja apenas... — Sua voz morreu quando ela abriu e começou a ler. Eu podia ver que a escrita ali
dentro era breve; dentro de segundos, o sangue sumiu de seu rosto.
— Marsali — Eu estiquei o braço em direção a ela, e ela enfiou a nota na minha mão e se
levantou rapidamente.
Joaninha, joaninha, a nota dizia, voa para longe de casa. Sua casa está em chamas e seus
filhos sumiram.
— Henri-Christian! — A voz de Marsali era forte e urgente — Meninas! Onde está o seu
irmãozinho?
113 – CAÇADA À LUZ DO DIA
Encontrei Henri-Christian no primeiro lugar que procurei: na mesma rua, brincando com as
duas garotas Phillips menores. Os Phillips tinham dez filhos, e até mesmo Henri-Christian
poderia se misturar em sua casa sem ser notado.
Alguns pais impediam que seus filhos fossem para qualquer lugar perto de Henri-
Christian — por medo que o nanismo fosse transmissível, eu supus, ou por causa da superstição
popular de que sua aparência era o resultado de sua mãe ter fornicado com o diabo. Eu ouvia
isso ocasionalmente, embora a vizinhança toda tomasse o cuidado de não dizer isso perto dos
ouvidos de Jamie, Fergus, Ian ou Germain.
Os Phillips eram judeus, entretanto, e aparentemente sentiam certa simpatia por uma
pessoa cujas diferenças ocasionavam sua marginalização. Henri-Christian sermpre era bem-
vindo em sua casa. A empregada que fazia todos os trabalhos meramente assentiu quando eu
perguntei se alguma das crianças mais velhas poderia levá-lo para casa mais tarde, e então
voltou a lavar roupa; era dia disso em toda a Filadélfia, e a atmosfera úmida era agravada pela
imensa quantidade de vapor das tinas na vizinhança, todas fumegantes com o fedor de sabão
de soda.
Eu voltei rapidamente para a tipografia para dizer à Marsali onde Henri-Christian estava
e, tendo aliviado seus temores, coloquei meu chapéu de abas largas e anunciei minha intenção
de ir comprar peixe para o jantar. Marsali e Jenny, armadas respectivamente com um garfo de
lavar e uma grande pá de roupas, me lançaram olhares marcantes — ambas sabiam exatamente
o quanto eu odiava lavar roupa — mas nenhuma delas me disse nada.
Eu, obviamente, tinha sido dispensada do trabalho doméstico durante minha recuperação
e, a bem da verdade, ainda não estava bem para fazer o trabalho pesado que as roupas
encharcadas e quentes exigiam. Eu poderia conseguir pendurar as roupas, talvez, mas aliviei
minha consciência na razão de que: 1) o peixe era um jantar fácil para fazer num dia de
lavanderia, 2) eu precisava caminhar regularmente, de modo a recuperar minha força, e 3) eu
queria conversar com Jamie, sozinha.
A carta anônima tinha me chateado quase tanto quanto a Marsali. Não era como as outras
ameaças que ela tinha me mostrado: aquelas eram superficialmente políticas, e embora
algumas fossem dirigidas a Marsali (já que ela tinha administrado o jornal sozinha enquanto
Fergus estava escondido), elas eram do tipo “vadia rebelde”. Eu já ouvira tais epítetos —
juntamente com “Prostituta Tory” e os seus equivalentes em alemão e Yiddish38 — comumente
nas partes mais pesadas da Filadélfia.
Isso era diferente. Tinha o cheiro de uma malícia refinada e inteligente, e eu de repente
senti a presença de Jack Randall em meu ombro, tão fortemente que eu parei abruptamente e
me virei.
A rua estava cheia, mas não havia ninguém atrás de mim. Nenhum vislumbre de casaco
vermelho em qualquer lugar, embora houvesse oficiais Continentais em vários lugares, em azul
e amarelo.
— Cai fora, Capitão — Eu disse, baixinho. Não tão baixinho: recebi um olhar arregalado
de uma pequena e roliça mulher que vendia pretzels com uma bandeja ao redor do pescoço. Ela
olhou sobre o meu ombro para ver com quem eu estava falando, e depois se virou para mim
com um olhar preocupado.
38 A linguagem usadapelos judeus na Europa Central e Oriental antes do Holocausto. Foi originalmente um dialeto
do alemão com as palavras do hebraico e várias línguas modernas e é hoje falado principalmente nos EUA, Israel
e Rússia.
— Você está bem, senhora? — Ela disse, com um pesado sotaque alemão.
— Sim — eu disse, envergonhada. — Sim, estou bem. Obrigada.
— Leve isso — ela disse gentilmente, entregando-me um pretzel — Eu acho que você está
com fome.
E dispensando com a mão minha tentativa atrapalhada de pagar, ela desceu a rua, os
quadris amplos rebolando, agitando um espeto de pretzels empilhados e gritando — Brezeln!
Heiße Brezeln!
Sentindo-me repentinamente tonta, encostei-me contra a frente de um prédio, fechei os
olhos e mordi o pretzel. Estava consistente, fresco, e coberto com sal, e eu descobri que a mulher
tinha razão. Eu estava com fome. Faminta, de fato.
O pretzel bateu em meu estômago e então em minha corrente sanguínea, dando uma
sensação instantânea de estabilidade e bem-estar, e o pânico momentâneo que eu sentia,
evaporou tão rapidamente que eu quase acreditei que não tinha acontecido. Quase.
Aquilo não acontecia há algum tempo. Eu engoli a última mordida do pretzel e, depois de
checar meu pulso — forte e estável — continuei caminhando em direção ao rio.
Eu caminhei lentamente; era meio-dia, e qualquer grande esforço me deixaria encharcada
de suor e muito provavelmente com tontura novamente. Eu deveria ter levado minha bengala,
mas tinha decidido, imprudentemente, fazer aquilo sem ela. Eu odiava me sentir enferma.
Eu odiava sentir... aquilo, ainda mais. A repentina sensação de ameaça, de medo
irracional... violação. Flashback, era como os militares chamavam aquilo — chamariam aquilo
— em meu tempo. Não acontecia comigo desde Saratoga, entretanto, e eu quase tinha me
esquecido. Quase.
Era completamente explicável, claro: eu tinha sido alvejada, ficara próxima da morte, e
ainda estava fisicamente fraca. Na última vez, eu estava no meio da floresta escura, próxima a
um campo de batalha, sozinha, e rodeada por homens violentos. Não era de se admirar que isso
acontecesse; a situação era muito próxima do que tinha sido quando eu fora sequestrada e
agredida...
— Estuprada — eu disse em voz alta, firmemente, para o espanto extremo de dois
cavalheiros que passavam. Eu não prestei atenção neles. Não fazia sentido tentar evitar a
palavra ou a memória. Aquilo tinha acabado; eu estava segura.
Antes disso... a primeira vez que eu tinha sido tomada por aquela sensação de ameaça, foi
em River Run, no decorrer de uma festa. Mas uma festa na qual o senso de violência era palpável.
Na ocasião, Jamie estava próximo, graças a Deus. Ele percebera que eu estava assombrada —
literalmente, ele assumiu — e tinha me dado um punhado de sal contra o fantasma que me
assombrava.
As Highlands sempre tinham uma resposta prática, se a dificuldade fosse manter uma
fogueira acesa para a noite, secar suas vacas ou ser assombrado.
Eu toquei o canto da minha boca com a língua, encontrei um cristal de sal do pretzel e
quase ri. Olhei sobre o ombro para a mulher que tinha me socorrido, mas ela tinha
desaparecido.
— Assim como um anjo faria, eu suponho — murmurei. — Obrigada.
Provavelmente havia um encanto para isso em gaélico, eu refleti. Havia dezenas,
provavelmente centenas. Eu conhecia apenas alguns poucos, a maioria em relação à saúde (eles
davam tranquilidade aos meus pacientes que falavam gaélico), mas escolhi um que parecia mais
adequado para a situação e caminhei firmemente, meus pés sólidos nas pedras do calçamento,
cantando:
— Eu piso na sua apreensão/Como espezinhas a baleia com a salmora/Sua apreensão de
costas, sua apreensão de corpo/Teu desagradável desperdício de peito.
E então eu vi Jamie, vindo das docas, rindo de alguma coisa que Fergus estava dizendo, e
o mundo voltou ao lugar ao meu redor.
Jamie olhou para mim, pegou meu braço e me conduziu para um pequeno café na esquina da
Locust Street. A essa hora do dia, estava tudo menos deserto, e eu atraí relativamente pouca
atenção. Mulheres bebiam café — quando havia — mas a maioria bebia café em casa, na
companhia de amigos ou em pequenas festas e salões. E embora houvesse grandes cafés em
Londres e em Edimburgo que as mulheres podiam frequentar ocasionalmente, os cafés da
Filadélfia tendiam a ser locais onde os homens falavam de negócios, fofocas e política.
— O que você estava fazendo, Sassenach? — Jamie perguntou suavemente, pegando a
bandeja de xícaras de café e biscoitos de amêndoa do garçom. — Você parece... — Ele estreitou
os olhos para mim, evidentemente procurando por um termo acurado, mas que não me faria
jogar o café escaldante nele.
— Um pouco indisposta — Fergus disse, tomando as pinças para colocar o açúcar — Aqui,
senhora. — Sem perguntar, ele colocou três torrões de açúcar mascavo em minha xícara —
Dizem que o consumo de bebidas quentes refresca — ele adicionou amavelmente.
— Bem, faz com que você transpire mais — eu disse, pegando minha colher. — Mas se o
suor não evaporar, isso certamente não vai te refrescar. — Eu estimei que a umidade do
ambiente estava provavelmente em cem porcento, mas provei um pouco do meu café adoçado
e o assoprei — Quanto ao que eu estava fazendo, eu estava indo comprar peixe para o jantar. E
o que vocês cavalheiros estavam fazendo?
Sentar havia feito com que eu me sentisse mais estável, e estar ladeada por Jamie e Fergus
fez com que a estranha sensação de ameaça que eu experimentara na rua, diminuísse um pouco.
Mas pensar na carta anônima no degrau fez com que os pelos da minha nuca se arrepiassem,
apesar do calor.
Jamie e Fergus olharam um para o outro, e Fergus levantou um ombro.
— Calculando os nossos ativos — Jamie disse — E visitando armazéns e capitães que
fazem transporte de carga.
— Sério? — O pensamento fez meu coração disparar imediatamente. Aqueles pareciam
os primeiros passos concretos em direção à nossa casa. — Nós temos algum ativo para começo
de conversa? — A maior parte de nosso dinheiro tinha sido usada para pagar cavalos,
uniformes, armas e comida para os homens de Jamie, juntamente com outros custos relativos à
guerra. Teoricamente, o Congresso reembolsaria estas despesas, mas dado a tudo o que o
General Arnold havia me dito sobre o Congresso, eu preferia pensar que não devíamos ter
muitas esperanças disso.
— Um pouco — Jamie disse, sorrindo para mim. Ele sabia muito bem o que eu estava
pensando. — Eu encontrei um comprador para o nosso cavalo castrado; quatro libras.
— Parece um bom preço — eu disse, incerta. — Mas... nós não vamos precisar do cavalo
para a viagem?
Antes que ele pudesse responder, a porta se abriu e Germain entrou, um pacote de jornais
embaixo do braço e uma carranca no rosto. A carranca desapareceu como o orvalho da manhã
quando ele nos viu, entretanto, e ele veio me abraçar.
— Grandmère! O que você está fazendo aqui? Maman disse que você saiu para comprar
peixe.
— Oh — eu disse, repentinamente culpada ao pensar na lavanderia — Sim. Eu estou, é...
quero dizer, eu estava em meu caminho... Quer um pedaço, Germain? — Eu ofereci a ele o prato
com os biscoitos de amêndoa, e seus olhos se iluminaram.
— Um — Fergus disse firmemente. Germain revirou os olhos para mim, mas pegou um
único biscoito, levantando-o com dois dedos e exagerada delicadeza.
— Papai — ele disse, consumindo o biscoito em duas mordidas rápidas — Eu acho que
talvez você devesse ir para casa.
Ambas as sobrancelhas fortemente escuras de Fergus se elevaram.
— Por quê?
— Porque — Germain disse, lambendo o açúcar do canto de sua boca e olhando os
biscoitos que sobraram — Vovó Jannie disse ao Sr. Sorrel que, se ele não parasse de importunar
Maman, ela iria enfiar o garfo de lavanderia nele. Ela pode muito bem fazer isso — ele adicionou
pensativamente, passando o dedo no prato para capturar as migalhas dos biscoitos.
Fergus rosnou. Aquilo me assustou bastante, já que eu não ouvia algo parecido dele desde
que ele era um feroz carreirista aos oito anos de idade em Paris.
— Quem é Sr. Sorrel? — Jamie perguntou, em um tom enganosamente suave à mesa.
— Um proprietário de taverna que passa pela gráfica a caminho do trabalho e para para
comprar um jornal... e cobiçar a minha esposa — Fergus disse, tenso. Ele empurrou seu banco
para trás e se levantou — Com licença, minha senhora — ele disse, fazendo uma reverência
para mim.
— É melhor que eu vá com você? — Jamie perguntou, também afastando o seu banco da
mesa. Fergus balançou a cabeça, e colocou seu chapéu.
— Não. O homem é um covarde. Um vislumbre meu e ele terá ido embora. — Seus dentes
muito brancos foram exibidos num sorriso repentino — Se a sua irmã ainda não o tiver colocado
para fora.
Ele saiu, deixando os biscoitos à mercê de Germain, que os colocou no bolso antes de ir
até o balcão e depositar os novos jornais, tirando de lá os muito lidos e manchados de café de
ontem, e pegando o dinheiro da proprietária.
— Quando você estava imputando os ativos, Fergus disse como ele está indo com o
negócio da tipografia? — Perguntei, lançando a minha voz baixa para que não chegasse até
Germain.
— Sim — Jamie passou a xícara de café abaixo do nariz e fez uma leve careta. A bebida era
chamada de café — alguns grãos genuínos provavelmente tinham sido incluídos na mistura —
mas continha uma alta proporção de chicória e alguns outros ingredientes. Eu tirei um pequeno
fragmento de uma bolota carbonizada de minha xícara e coloquei mais açúcar.
A tipografia era de fato muito rentável; ainda mais agora, como o maior competidor de
Fergus, um Legalista, tinha deixado a cidade com a partida do exército britânico.
— Há muitas despesas, entretanto — Jamie explicou — e algumas delas aumentaram
desde que o exército saiu.
Papel e tinta eram mais difíceis de obter, já que o exército não estava mais protegendo o
transporte de cargas para dentro e para fora da cidade. E o aumento dos perigos nas estradas
públicas significava menos pedidos de livros enviados e, quando eles eram enviados, deviam
ser segurados contra perda ou roubo.
— E então há o seguro das instalações, que é caro — Jamie adicionou. Ele beliscou o nariz
suavemente, e depois bebeu o café em três grandes goles — Marsali não gosta de pagar isso —
ele disse, ofegando um pouco —, mas Fergus sabe o que aconteceu à minha tipografia em
Edimburgo. E ele me contou algumas poucas coisas que Marsali não sabe também.
— Que coisas? — Eu lancei um olhar cauteloso a Germain, mas ele estava engajado no que
era claramente uma conversa picante com uma das garotas que serviam no balcão. A garota era
dois ou três anos mais velha do que Germain, mas estava claramente se divertindo com ele.
— Oh, a ameaça estranha de umas pessoas que não gostam de algo que ele imprimiu ou
que têm os narizes colocados para fora porque ele não vai publicar alguma coisa deles. Um
pouco de sabotagem, às vezes: seus jornais roubados dos cafés e tavernas e espalhados na rua,
embora ele tenha dito que isso melhorou desde que o Sr. Dunphy saiu da cidade.
— Dunphy era o impressor Legalista?
— Sim. Germain! — Ele gritou do outro lado do café. — Você não tem outros lugares para
visitar hoje? Porque, se tem, é melhor ir antes que suas notícias fiquem obsoletas.
Isso fez alguns clientes rirem, e as orelhas de Germain ficaram rosadas. Ele deu um olhar
ao seu avô, mas era sábio o suficiente para não dizer nada, e com algumas poucas últimas
palavras para a garota do balcão, saiu, deslizando o pequeno bolo que ela o tinha dado em seu
bolso, com um ar casual.
— Você não acha que ele está batendo carteiras, não é? — Perguntei, observando a
habilidade com que aquela manobra foi realizada. Fergus tinha ensinado Germain boa parte de
suas próprias técnicas àquele respeito, não querendo que suas habilidades fossem perdidas.
— Só Deus sabe, mas é melhor que ele deixe a Filadélfia. Ele não encontrará tanto espaço
para este talento especial nas montanhas — Jamie esticou o pescoço para olhar pela janela,
observando Germain descendo a rua, e depois se sentou, balançando a cabeça. — A coisa
principal sobre a qual Fergus não contou à Marsali, entretanto, é sobre o janota francês
Wainwright.
— O quê? O elegante Percival? — Perguntei meio divertida. — Ele ainda está por perto?
— Sim, ele está. Persistente sodomitazinho — ele observou desapaixonadamente. — Ele
escreveu um relato detalhado do que ele afirma ser a história dos pais de Fergus, com a
conclusão de que Fergus é o herdeiro de uma grande propriedade na França. Fergus disse que,
se fosse um romance, seria criticado como implausível e nenhum editor tocaria nele. — Ele
sorriu ante o pensamento, mas depois ficou sério. — Ainda assim... Fergus disse que não tem a
menor intenção de ter alguma coisa a ver com o assunto. Mesmo que isso seja verdade, ele não
tem a intenção de ser o peão para os interesses de outra pessoa. E se não for verdade, menos
ainda.
— Hum — Eu tinha passado a simplesmente comer os torrões de açúcar agora, em vez de
misturá-los ao café problemático, e esmaguei um com os meus molares. — Por que ele está
escondendo isso de Marsali, então? Ela sabe sobre as abordagens anteriores de Wainwright,
não?
Jamie bateu a mão na mesa enquanto pensava, e eu o observei fascinada; há muito tempo
ele estava acostumado a tamborilar os dois dedos rígidos de sua mão direita enquanto pensava
— o dedo médio e o anelar, que tinham sido quebrados, grosseiramente arrumados, e
frequentemente quebrados novamente, por causa da maneira estranha que eles se esticavam.
Mas eu finalmente tinha amputado o dedo anelar estragado depois que ele tivera metade dele
arrancado por um sabre da cavalaria na primeira batalha de Saratoga. Ele ainda tamborilava
essa mão, entretanto, como se o dedo estivesse lá, embora agora apenas o dedo médio atingisse
o topo da mesa.
— Ela sabe — ele disse lentamente. — Mas Fergus disse que começou a haver uma
pequena mudança em... alguma coisa... nas importunações de Wainwright. Não exatamente uma
ameaça, mas apenas coisas como uma observação de que, é claro, já que Fergus é o herdeiro da
propriedade dos Beauchamp (se ele realmente for, de fato), então Germain seria o herdeiro do
título e das terras após ele.
Eu franzi o cenho.
— Eu posso ver que isso está sendo oferecido como um incentivo... mas por que isso é uma
ameaça?
Ele me deu um olhar uniforme sobre a mesa do café.
— Se Germain herdasse esta propriedade... Os chefes de Wainwright não precisariam
realmente de Fergus agora, precisariam?
— Jesus H... Sério? — Eu disse. — Você... ou melhor, Fergus acha que Wainwright e
companhia podem matá-lo e depois usar Germain para se apossar da propriedade ou o que quer
que eles tenham em mente?
Jamie deu um fantasma de um elevar de ombros.
— Fergus não teria vivido o tanto que viveu sem ter noção de quando alguém quer
prejudicá-lo. E se ele pensa que há alguma coisa de errado com esse Wainwright, eu estou
inclinado a acreditar nele. Além disso — ele adicionou —, se isso o torna mais disposto a sair
da Filadélfia e vir para o sul com a gente, eu não vou persuadi-lo de que está errado.
— Bem, há isso — Eu olhei em dúvida para os restos de meu café e decidi não bebê-lo —
Falando em Germain, entretanto... ou, melhor, nas crianças em geral... é exatamente o motivo
de eu procurar por você.
E, em poucas palavras, eu descrevi a nota da joaninha e seu efeito em Marsali.
As sobrancelhas grossas e ruivas de Jamie se juntaram, e seu rosto assumiu uma
expressão que seus inimigos reconheceriam. Eu tinha visto aquela expressão pela última vez à
luz do amanhecer em uma montanha na Carolina do Norte, quando ele tinha me escoltado
através das florestas e clareiras, de um corpo gelado ao outro, para me mostrar que os homens
que tinham me machucado estavam mortos, para garantir a mim que eles não poderiam mais
me tocar.
— Foi isso que me deixou... hã... indisposta na rua — Eu disse, meio apologeticamente. —
Pareceu tão... cruel. Mas de um tipo delicado de crueldade, se você sabe o que quero dizer. Isso
me fez lembrar — Os mortos tinham os próprios meios de fazer com que você se lembrasse
deles, mas eu não senti nada com a memória de sua vingança além de um senso remoto de alívio
e ainda mais remoto de admiriação com a beleza sobrenatural da carnificina de tal ato.
— Eu sei — ele disse suavemente, e bateu o dedo que faltava na mesa — E eu gostaria de
ver essa nota.
— Por quê?
— Para ver se a letra é parecida com a que está na carta de Percy Wainwright, Sassenach
— ele disse, afastando-se da mesa e me entregando meu chapéu — Está pronta?
114 – OBRIGADO POR TODOS OS PEIXES
Eu comprei um robalo quase tão grande quanto o meu braço, juntamente com um embrulho de
lagostins e um saco de ostras do estuário, e a cozinha cheirava deliciosamente a pão fresco e
ensopado de peixe. Era uma coisa boa, já que os ensopados podem ser aumentados, e Ian e
Rachel, com Rollo a reboque, tinham entrado na tipografia logo antes do jantar, tão visivelmente
no auge de sua felicidade conjugal que sorriam — e ocasionalmente coravam — ao olhar um
para o outro.
Jenny sorriu, e eu vi seus ombros magros relaxarem um pouco, ao ver o rosto radiante de
Ian. Eu dei uma mexida rápida ao ensopado e fiquei de pé atrás dela, que estava sentada junto
ao fogo, colocando minhas mãos naqueles ombros e os massageando gentilmente. Eu sabia
muito bem o que um dia de lavanderia fazia para os músculos.
Ela soltou um suspiro longo e feliz e inclinou a cabeça para permitir que eu colocasse os
polegares em seu pescoço.
— Você acha que a nossa pequena Quaker já está grávida? — ela murmurou para mim.
Rachel estava do outro lado do cômodo, conversando com as crianças mais novas e lidando
facilmente com elas, embora seus olhos continuassem virando para Ian, que estava olhando
para alguma coisa que Fergus tinha tirado da cômoda ao lado.
— Mal faz um mês que eles estão casados — eu sussurrei de volta, embora olhasse
cuidadosamente para Rachel.
— Não demora tanto tempo — Jenny disse — E claramente o rapaz sabe fazer o serviço.
Olhe para ela. — Seus ombros estremeceram sutilmente com uma risada contida.
— Uma boa coisa para uma mãe pensar sobre seu filho — eu disse baixinho, embora não
conseguisse tirar o divertimento de minha própria voz e nem dizer que ela estava errada.
Rachel brilhava à luz mágica do crepúsculo que se misturava à da lareira, e seus olhos
descansavam nas linhas das costas de Ian, mesmo enquanto admirava a nova boneca de pano
de Félicité.
— Ele puxou ao pai — Jenny disse, e fez um pequeno ruído de “hmph” com a garganta,
ainda divertida, mas com um toque de... saudade? Meus próprios olhos foram para Jamie, que
tinha se juntado a Fergus e Ian no aparador. Ainda ali, graças a Deus. Alto e elegante, a luz suave
fazendo sombras nas dobras de sua camisa enquanto ele se movia, um brilho fugitivo da ponte
longa de seu nariz, as ondas ruivas de seus cabelos. Ainda meu. Graças a Deus.
— Venha cortar o pão, Joanie! — Marsali chamou — Henri-Christian, pare de brincar com
o cachorro e pegue a manteiga, sim? E, Félicité, guarde sua boneca e chame Germain. — O som
distante das vozes dos meninos veio da rua, gritos pontuados pelo baque ocasional de uma bola
contra a parede da frente da loja. — E diga àqueles pequenos pagãos que se eles quebrarem
uma janela, seus pais vão ficar sabendo!
Um breve surto de caos doméstico finalizou com todos os adultos sentados nos bancos à
mesa e as crianças em seu próprio amontoado próximo à lareira, com suas tigelas e colheres de
madeira. Apesar do calor da noite, o vapor perfumado das cebolas, do leite, dos frutos do mar e
do pão fresco envolveram a mesa em um breve encantamento de antecipação.
Os homens se sentaram por último, sua conversa murmurada parando muito antes de
chegarem à mesa, e eu dei a Jamie um olhar breve e questionador. Ele tocou meu ombro quando
se sentou ao meu lado, dizendo — Sim, mais tarde — baixinho, e assentiu para a lareira. Pas
devant les enfants39, então.
Claire era adorável, de pé branca e nua como uma estátua francesa contra a o profundo
crepúsculo que entrava pela janela aberta, seus cabelos encaracolados como uma nuvem
tempestuosa ao redor de seus ombros. Jamie queria ficar parado olhando para ela, mas queria
mais ainda ter seu pau dentro dela.
Ainda havia vozes lá embaixo na cozinha, entretanto, e ele foi puxar a escada para cima.
Não daria certo se Germain ou uma das garotas subissem ali para dizer boa noite.
Houve gargalhadas de Ian e Fergus abaixo, provavelmente ao verem a escada
desaparecendo, e ele riu para si mesmo, colocando-a de lado. Eles tinham suas próprias esposas,
e se eles eram tolos o suficiente para sentar e beber cerveja em vez de aproveitar suas camas,
não era da sua conta.
Claire já estava na cama improvisada quando ele se virou da borda do mezanino, uma
sombra pálida sob a penumbra dos tonéis de tinta. Ele se despiu e deitou nu ao lado dela,
tocando a curva de seu quadril; ela tocou seu pênis — Eu quero você — ela sussurrou, e de
repente tudo mudou.
Era a magia comum entre eles, mas era magia. O cheiro de cebolas e de salmoura em suas
mãos, o gosto de manteiga e de cerveja em sua língua, as cócegas dos cabelos dela em seu
ombro, e uma repentina pressa quando ela correu um dedo pela rachadura de seu traseiro, o
que o deixou duro entre suas pernas dispostas.
Ela fez um ruído que o fez colocar a mão sobre sua boca, e ele a sentiu rir, o hálito quente
contra sua palma, então ele tirou a mão e impediu os ruídos com a própria boca, deitando-se
completamente sobre ela por um momento, sem se mover, tentando esperar, mas incapaz de
fazê-lo pela sensação dela se contorcendo sob ele, lisa e escorregadia, esfregando seus mamilos
nele, pedindo para que... e então ela tremeu e soltou um ruído baixo de rendição que o libertou
para fazer o que queria, e ele o fez.
10 setembro de 1778
Nova York
Hal deu um suspiro suave — Eu não gosto que você vá sozinho — ele disse.
— Eu também não gosto — John disse de forma prática, abrindo a garrafa — Mas a única
pessoa que poderia efetivamente ir comigo é você, e você não pode fazer isso por causa do
regimento, então... Deus, eu sinto falta de Tom Byrd — ele disse impulsivamente.
— Seu antigo valete? — Hal sorriu, apesar da situação preocupante. — Quanto tempo faz
que você o viu pela última vez? Dez anos pelo menos, certamente?
— Pelo menos isso — Pensar em Tom ainda lhe dava uma leve pontada.
Tom tinha abandonado o emprego — com profundo pesar de ambos os lados — para se
casar, e tinha se tornado um tipógrafo bem sucedido em Southwark, sua esposa tendo recebido
de herança uma próspera casa pública de seu pai. Grey não poderia invejá-lo em sua feclidade,
mas ainda sentia falta de Byrd, com seus olhos afiados, mente rápida e cuidado ansioso tanto
pelas roupas de Grey quanto por sua pessoa.
Ele olhou para si mesmo; seu valete atual tinha conseguido deixá-lo decente — uma tarefa
que ele mesmo admitia ser de Sísifo — mas faltava a ele tanto imaginação quanto capacidade
de conversa.
— Você deveria levar Marks, independentemente disso — Hal disse, tendo evidentemente
seguido sua linha de pensamento sem dificuldade. — Alguém tem que mantê-lo em ordem. —
Ele deu ao uniforme de John um olhar crítico.
— Eu posso me vestir, você sabe — John disse suavemente. — Quanto ao uniforme... —
Ele olhou para baixo e deu de ombros. — um pouco de escovação, camisas limpas, meias
sobressalentes... não é como se eu fosse ser chamado pelo General Washington.
— Podemos apenas esperar — Os lábios de Hal se pressionaram juntos. Ele já tinha
expressado suas reservas (se algo tão violentamente explícito pudesse ser descrito sob tais
termos) em relação à intenção de Grey de viajar sozinho e usando uniforme.
— Eu já tive a minha cota de ser preso como um espião, obrigado — John replicou. —
Além do risco de ser enforcado, o senso de hospitalidade dos americanos... embora venha à
minha mente, que eu queria te perguntar: você conhece Watson Smith? Ele costumava ser um
capitão do Vigésimo Segundo Regimento, eu acho.
Hal franziu o cenho em concentração, mas suas sobrancelhas amenizaram quase
imediatamente.
— Eu conheço — ele disse — Um oficial muito bom; foi muito bem em Crefeld e Zorndorf
— Ele inclinou a cabeça para um dos lados, com as sobrancelhas erguidas. — Por quê?
— Ele virou a casaca; agora é um coronel do Exército Continental. Eu fui o seu convidado
involuntário por um curto período de tempo. Um companheiro legal. — Grey adicionou — Ele
me embebedou com aguardente de maçã.
— Sem dúvida com a intenção de extrair informações da inteligência de você? — A
expressão de Hal tornou claro que devia haver muito naquela linha para Smith extrair.
— Não — Grey disse pensativamente. — Eu acho que não. Nós só ficamos bêbados juntos.
É um bom companheiro — ele repetiu. — Eu estava prestes a expressar a esperança de que eu
não o encontrasse de novo. Eu não gostaria de ter que matá-lo, quero dizer. Mas eu suponho
que não está além das possibilidades que eu o encontre em algum lugar.
O pensamento lhe deu um pequeno e agradável aperto na barriga que o surpreendeu.
— De qualquer forma — ele adicionou — eu estou indo de uniforme, mesmo que seja um
uniforme sujo. Isso não vai necessariamente impedir que eu seja preso, passe fome ou seja
torturado, mas impedirá que eu seja enforcado.
— Torturado? — Hal lançou um olhar para ele.
— Eu me lembro de ter acordado depois da aguardente. — John contou a ele. — E da
cantoria. Você tem ideia de quantos versos os americanos têm para “Yankee Doodle”?
Hal grunhiu em resposta a isso e pegou uma pasta de couro, da qual ele extraiu um
pequeno maço de documentos.
— Aqui está sua boa-fé — ele disse, entregando os documentos. — Eles podem ajudar,
assumindo que você seja capturado ou preso, em vez de alvejado à primeira vista, e que seus
captores aceitem dar uma lida neles.
Grey não se preocupou em responder a isso, estando ocupado em folhear os documentos.
Uma cópia de seu mandado de comissão; uma nota de Hal como Coronel do Regimento,
dispensando o Tenente Coronel John Grey temporariamente de seus serviços e empreendendo
a tarefa de localizar e ajudar a Sra. Benjamin Grey (antes Amaranthus Cowden), viúva do
Capitão Benjamin Grey, da Trigésima-Quarta Base; uma carta de Clinton “a quem puder
interessar”, formalmente reconhecendo a missão de Grey e requisitando que qualquer cortesia
e auxílio possa ser prestada a ele em decorrência da mesma; várias letras de câmbio do banco
Coutts em Nova York (“Apenas para garantir”, Hal havia dito. “Para garantir o quê?”. “Para o
caso de você ser derrubado e roubado, seu idiota”. “Oh”); e... a nota de Benedict Arnold,
garantindo que o Duque de Pardloe e seu irmão, Lord John Grey, tinham permissão para
permanecer temporariamente na Filadélfia com o propósito de procurar pelo sobrinho do
duque.
— Sério? — Grey disse, levantando suas sobrancelhas para este último documento. — Sob
quais circunstâncias você acha que isso pode ser útil?
Hal deu de ombros e alisou seu colete. — O fato de eu e você sermos conhecidos do General
Arnold deve valer alguma coisa. Afinal de contas, a nota não dá a opinião dele sobre nós.
Grey deu um olhar crítico à nota, mas, de fato, Arnold se absteve de pessoalidades e não
tinha codificado suas ameaças em relação às traves, ao alcatrão e às penas.
— Tudo bem — Ele fechou a pasta e a pousou na mesa, colocando o chapéu em cima para
garantir que não a esqueceria. — É isso, então. O que tem para o jantar?
John Grey estava aproveitando um sonho confuso, mas agradável, envolvendo chuva de
primavera, seu dachshund Roscoe, Coronel Watson Smith, e uma grande quantidade de lama,
quando ele gradualmente se tornou consciente de que as gotas de chuva em seu rosto eram
reais.
Ele abriu os olhos, piscando, para descobrir sua sobrinha, Dottie, segurando um jarro em
uma das mãos e aspergindo água dos dedos em seu rosto.
— Bom dia, Tio John — ela disse alegremente. — Levante-se e brilhe!
— A última pessoa imprudente o suficiente para me dizer isso de manhã teve um fim
muito desagradável — ele disse, lutando para se sentar e esfregando a manga da camisa no
rosto.
— Sério? O que aconteceu com ele? Ou era ela? — Ela mostrou suas covinhas para ele e
pousou o jarro, enxugando os dedos molhados na saia.
— Que pergunta imprópria — ele disse, olhando para ela.
— Bem, eu sou uma mulher casada agora, sabe? — Ela disse, sentando-se com um ar de
extremo autocontrole. — É permitido que eu saiba que homens e mulheres ocasionalmente
compartilham a cama, mesmo para fora dos laços do matrimônio.
— Para fora? De onde você pegou essa construção bárbara? Você tem falado com os
escoceses?
— Constantemente — ela disse. — Mas o que aconteceu com a pessoa desafortunada que
tentou tirá-lo de seus sonhos?
— Oh, ele. — Ele esfregou a mão sobre a cabeça, ainda surpreso ao sentir os cabelos tão
curtos, embora eles tivessem crescido o suficiente para ficarem um pouco mais planos, em vez
de arrepiados como uma escova de barbear. — Ele foi escalpelado pelos índios vermelhos.
Ela piscou.
— Bem, isso ensinará a ele, certamente — Ela murmurou.
Grey balançou as pernas para fora da cama e deu a ela um olhar aguçado.
— Eu não me importo se você está casada, Dottie. Você não está autorizada a me ajudar
com as roupas. O que diabos você está fazendo aqui, de qualquer forma?
— Eu vou com você encontrar a viúva de B-Ben — ela disse, e de repente sua fachada
brilhante ruiu como papel-machê na chuva. As lágrimas chegaram aos seus olhos, e ela fechou
a mão com força sobre a boca para impedi-las de cair.
— Oh — Grey disse — Oh, minha querida...
E parando apenas para arremessar sua bengala (mesmo em emergências, havia limites),
ele se ajoelhou ao lado dela e a pegou nos braços.
— Está tudo bem — ele disse suavemente a ela, esfregando suas costas. — Ben pode não
estar morto, afinal de contas. Nós achamos que não, seu pai e eu — Nós certamente esperamos
que não, ele pensou, mas optou pela visão mais positiva da situação.
— Não acham? — Ela engasgou, fungou e se sentou um pouco, olhando para ele com os
olhos inundados.
— Certamente não — ele disse firmemente, e cavou no bolso de seu banyan40 para
encontrar um lenço.
— Mas por que não? — Ela aceitou o linho oferecido (um pouco amassado, mas não
indecente) e enxugou o rosto. — Como ele pode não estar?
Grey suspirou, preso entre Cila e Caríbdis, como de costume quando enredado em uma
das situações de Hal.
— Seu pai sabe que você está aqui? — Ele perguntou, com uma tática para ganhar tempo.
— Ele... Quero dizer, não — Ela disse, limpando a garganta e se sentando reta — Eu fui até
seu quarto, mas ele não estava, então eu vim encontrar você.
— Como você pode ter certeza que Ben está morto?
Grey se levantou e, atando o cinto de seu banyan, começou a procurar pelos seus chinelos.
Ele sabia que Hal ainda não tinha escrito para Minnie sobre Ben — ele não o faria, a menos que
tivesse certeza — e mesmo que tivesse certeza disso, não havia forma de isso ter chegado à
Dottie tão rapidamente. E Hal não teria contado as notícias à filha até ter certeza, não mais do
que o faria para sua esposa.
— Henry me contou — ela disse. Ela derramou um pouco de água no lenço e começou a
reparar sua pele. — Eu fui visitar Mercy e ele, e ele tinha recebido uma carta de Adam, dizendo
que... você tem certeza que ele não está morto? — ela perguntou ansiosamente, abaixando o
lenço para olhar para ele. — A carta de Adam dizia que ele tinha recebido essa notícia de algum
funcionário do General Clinton, e que ela dava a certeza de que Ben havia morrido num
acampamento militar em Nova Jersey... Middlebrook, eu acho que era o nome.
— Não, nós não temos certeza — ele admitiu. — Mas nós temos motivos razoáveis para
desconfiar, e até que eles sejam completamente explorados, vamos proceder na suposição de
Hal entrou quando o arenque e os grelhados mistos estavam quase prontos. Ele parou por um
segundo quando viu Dottie, mas depois continuou, mais lentamente, olhando para ela.
— Bom dia, papai — ela disse rapidamente, levantando-se e indo beijar sua bochecha. —
Sente-se e pegue um espeto.
Ele se sentou, ainda olhando para ela, e depois trocou um olhar com John.
— Eu não tenho nada a ver com isso — Grey assegurou ao seu irmão. — Ela veio... Como
você chegou aqui, Dottie?
— Em um cavalo — Ela replicou pacientemente, pegando um pedaço de torrada.
— E onde está o seu marido? — Hal perguntou suavemente. — Ele sabe onde você está?
— Denzell está onde o seu dever o leva — ela disse, laconicamente. — Com o exército
Continental. O meu dever me trouxe até aqui. E é claro que ele sabe.
— E ele não tem objeção alguma de que você viaje sozinha da Pensilvânia para Nova York,
com a estrada infestada de...
— Eu não estava sozinha. — Ela deu uma delicada mordida em sua torrada, mastigou e
engoliu. — Ian e alguns amigos Mohawk me trouxeram. Os Mohawk estavam viajando para
algum lugar ao norte daqui.
— Ian... tem alguma chance de ser Ian Murray? — Grey perguntou, mas depois respondeu
a si mesmo. — Eu suponho que deva ser; quantos Mohawks se chamam Ian? Eu entendo que
ele se curou de seu ferimento, então; fico feliz em ouvir isso. Como você...
— Dorothea — disse Hal, num tom comedido, olhando para Dottie. — Por que você está
aqui?
Dottie sustentou seu olhar, a mandíbula visivelmente cerrada.
— P-por causa de Ben — ela disse, incapaz de manter a voz completamente estável. —
Você... Papai, você tem certeza de que ele não está morto?
Hal inspirou audivelmente e assentiu.
— Eu tenho certeza — ele disse em sua melhor voz de comando. Mas John viu que os nós
de seus dedos tinham se esbranquiçado enquanto ele pegava a colher, e sentiu o nó em seu
próprio estômago se apertar em resposta.
Dottie claramente tinha suas próprias dúvidas, a julgar pelo olhar que lançou ao seu pai,
mas ela assentiu obedientemente. Sendo Dottie, é claro que ela não parou ali.
— Como? — Ela disse. — Como você sabe? Adam e Henry pensam... o pior.
A boca de Hal abriu uma fração de centímetro, mas nada saiu dali.
John pensou que Hal deveria realmente estar preparado para isso, mas seu irmão estava
passando por um momento difícil. E, para ser justo, era difícil estar preparado para algo como
Dottie.
— Eu suponho que é melhor você contar a ela — John disse. — Se você não contar, ela
escreverá para Minnie.
Hal lançou a ele um olhar cheio de veneno, totalmente consciente de que sua sugestão útil
tinha sido feita com a inteção de forçá-lo a divulgar o seu raciocínio à Dottie — mas não havia
realmente uma escolha, e ele o fez com tanta graça quanto podia.
— Mas este Capitão Richardson não fez nada com Willie, não é? — Dottie disse, franzindo
o cenho — Eu pensei...
— Não nesta ocasião — John disse brevemente — mas dado ao seu comportamento
anterior no Pântano Sombrio e em Quebec, nós estamos suspeitando dele.
— E o homem aparentemente desertou — Hal apontou.
— Você não sabe disso. Ele pode ter sido morto por alguém e seu corpo foi perdido —
Dottie apontou logicamente.
— Ele foi visto deixando o acampamento — John disse pacientemente. — Sozinho. E dado
ao que sabemos e conjeturamos sobre ele, eu acho que temos motivos para considerar a
possibilidade de que ele pode ser um agente americano.
Ele estava razoavelmente convencido disso, vendo toda sua experiência com Richardson
em retrospectiva. Ele mesmo já tinha sido um agente de inteligência por alguns anos, e cada um
de seus instintos estava gritando “Peixe fedorento” em relação a Ezekiel Richardson.
— Eu me culpo muito — ele disse apologeticamente para Hal. — Eu deveria ter me dado
conta disso muito antes. Mas eu estava... distraído naquele momento. — Distraído. Insuflado
para o lado e mais do que meio obliterado pelas notícias da morte de Jamie Fraser. Mesmo a
memória daquilo era o suficiente para revirar seu estômago. Ele largou o espeto de peixe,
intocado.
— Tudo bem — Dottie disse lentamente. Seu próprio café da manhã estava congelado no
prato. Assim como o de Hal. — Então você não acredita que Ben está morto, porque Richardson
o disse que ele estava... e você acha que Richardson é um traidor. Mas isso é... tudo? — Ela olhou
atentamente para seu pai, seu jovem queixo tremendo suavemente, tentando se recompor.
Hal fechou os olhos por um momento, e depois os abriu e olhou diretamente para ela.
— Dorothea — ele disse suavemente. — Eu tenho que acreditar que Ben está vivo. Porque,
se ele não estiver, então sua mão morrerá por causa do coração partido... e eu morrerei com ela.
Houve um momento de longo silêncio, durante o qual Grey ouviu a passagem das carroças
na rua e as vozes abafadas de seu valete e de um engraxate no corredor. Dottie não fez qualquer
som, mas ele pensou que podia ouvir as lágrimas que rolaram por suas bochechas.
116 – O SONO QUE DESATA A EMARANHADA TEIA DOS CUIDADOS41
15 de setembro de 1778
Filadélfia
Os pombos no telhado da pensão faziam barulho arrastado, como o mar entrando numa praia
de seixos, rolando as pequenas pedras arredondadas em sua onda. Rachel estava fazendo um
ruído similar, roncando muito sutilmente. Ian achava aquilo charmoso e poderia ter ficado ali
deitado, observando-a e ouvindo-a por toda a noite — exceto pelo fato de ela estar deitada em
seu braço esquerdo, que tinha ficado dormente, e pelo fato de ele precisar urgentemente urinar.
O mais gentilmente possível, ele se soltou debaixo de seu peso suave, mas ela tinha sono
leve e acordou repentinamente, bocejando e espreguiçando como um jovem puma à luz das
velas. Ela estava nua, os braços e o rosto da cor de um pão recém-torrado, o corpo branco e suas
partes íntimas sob os pelos castanho-escuros de uma maravilhosa cor que não era nem rosa,
nem violeta e nem marrom, mas o fazia lembrar das orquídeas na floresta da Jamaica.
Ela esticou os braços para cima da cabeça, e o movimento levantou seus seios
surpreendentemente redondos e brancos e fez com que seus mamilos se enrijecessem. Ele
começou a se levantar lentamente, também, e rapidamente se virou, antes que se tornasse
impossível fazer o que ele precisava fazer.
— Volte a dormir, moça — ele disse — Eu só... é... — Ele gesticulou em direção ao pinico
sob a cama.
Ela fez um um agradável ruído sonolento e rolou para o lado, observando-o.
— Você se importa se eu olhar? — Ela perguntou, em uma voz suave e rouca pelo sono e
pelos gritos abafados de antes.
Ele olhou para ela, espantado.
— Por que você iria querer olhar? — Aquilo parecia levemente perverso, mas de uma
forma distintamente excitante. Ele queria virar de costas para poder mijar, mas se ela queria
observá-lo...
— Parece uma intimidade do corpo — ela disse, olhando para ele com os olhos
semicerrados. — Uma coisa de confiança, talvez. O fato de você considerar que o seu corpo é
meu, assim como eu considero o meu corpo, seu.
— Você considera? — Aquela ideia o surpreendeu, mas ele não objetou. De forma alguma.
— Você viu as partes mais escondidas de mim — ela apontou, e, abrindo as pernas,
colocou os dedos delicadamente entre elas para ilustrar. — E as provou, também. Qual é o
gosto? — Ela perguntou curiosamente.
— Truta recém-pescada — ele replicou, sorrindo para ela. — Rachel, se você quiser
observar enquanto faço isso, tudo bem. Mas não pode ficar falando comigo enquanto eu estou
tentando, sim?
— Oh — Ela bufou um pouco, divertida, e rolou, virando suas costas e suas nádegas muito
redondas para ele. — Vá em frente, então.
Ele suspirou, examinando as perspectivas.
— Vai levar um minuto, sim? — Antes que ela pudesse pensar em alguma outra coisa
ultrajante para dizer a ele, ele continuou, na esperança de distraí-la. — Tio Jamie e Tia Claire
estão pensando em sair da Filadélfia em breve. Para voltar à Carolina do Norte, sabe? O que
você acha de ir com eles?
— O quê? — Ele ouviu o farfalhar do colchão de palha de milho quando ela se virou
rapidamente para ele. — Para onde você está pensando em ir, que eu não posso ir junto?
— Ah, eu não quis dizer isso, moça — Ele assegurou a ela, com um rápido olhar sobre o
ombro. Ela estava apoiada nos cotovelos, olhando acusadoramente para ele. — Eu quis dizer
que nós dois iremos. Para Fraser’s Ridge, o assentamento do Tio Jamie.
— Oh — Aquilo a surpreendeu e a deixou em silêncio. Ele podia ouvi-la pensando sobre o
assunto, e sorriu para si mesmo. — Você não sente uma obrigação para com o exército
Continental? — Ela perguntou depois de um momento, cuidadosamente. — Com a causa da
liberdade?
— Eu não acho que são necessariamente a mesma coisa, moça — Ele disse, e fechou os
olhos aliviado quando tudo relaxou. Ele sacudiu o pênis e afastou o penico, tomando tempo para
formular uma frase coerente. — O Duque de Pardloe disse à Tia Claire que, depois de Saratoga,
os britânicos fizeram novos planos. Eles pretendem separar as colônias do sul das colônias do
norte, bloqueando o sul e tentando deixar o norte com fome, para que ele se submeta.
— Oh — Ela se moveu para dar espaço a ele ao seu lado, e depois se aconchegou a ele, sua
mão livre envolvendo seus testículos. — Então isso significa que não haverá luta no norte, e
você não será necessário como um batedor aqui... mas talvez seja no sul?
— Sim, ou eu posso encontrar outra utilidade para mim mesmo.
— Fora do exército, você quer dizer? — Ela estava tentando deixar a esperança fora de
sua voz; ele podia ver pela forma muito sincera com que ela olhava para ele, e ele sorriu,
colocando sua própria mão sobre a dela. Ele era muito a favor da intimidade, mas não queria
ser espremido como uma laranja, caso Rachel fosse tomada pelo entusiasmo.
— Talvez — ele disse. — Eu tenho um pedaço de terra, sabe, em Ridge? Tio Jamie deu para
mim, há alguns anos. Seria um trabalho pesado: limpar os campos, plantar, arar... Mas o trabalho
da fazenda e, em geral, pacífico. Exceto as coisas como ursos e porcos selvagens e incêndios e
tempestades de granizo, quero dizer.
— Oh, Ian — Seu rosto tinha se suavizado, bem como sua mão, agora descansado
tranquilamente na dele. — Eu adoraria trabalhar na fazenda com você.
— Você sentiria falta de seu irmão. — Ele lembrou a ela. — E de Dottie. Talvez até de
Fergus e Marsali com as crianças também. Eu não acho que eles vão se assentar em Ridge,
embora Tio Jamie pense que eles talvez possam viajar mais para o sul conosco, mas para se
assentarem perto da costa. Fergus precisará de uma cidade com tamanho decente, se quiser
continuar vivendo da tipografia.
Uma sombra cruzou seu rosto ao pensar naquilo, mas ela balançou a cabeça.
— Eu vou sentir falta de Denzell e Dottie... Mas eu sentiria de qualquer forma, já que eles
irão onde o exército for. Mas eu ficarei muito feliz se você não acompanhar o exército — Ela
adicionou suavemente, e levantou seu rosto para beijá-lo.
Rachel acordou instantaneamente. Ela não estava dormindo profundamente, seu corpo ainda
mole por causa de fazer amor, e ainda tão em sintonia com Ian que, quando ele engasgou e se
enrijeceu ao lado dela, ela saltou de uma vez para a consciência e colocou as mãos em seus
ombros, pretendendo sacudi-lo gentilmente para fora de seu sonho.
No momento seguinte, ela estava no chão em um emaranhado de roupas de cama, seu
marido sobre ele e suas mãos enormes ao redor de seu pescoço. Ela caiu e se contorceu,
empurrando-o em um pânico fútil — e então, quando seu fôlego desvaneceu e estrelas
vermelhas e brilhantes brilharam nos recantos escuros de sua visão, ela assumiu o controle de
si mesma e levou os joelhos para cima com o máximo de forma que conseguiu.
Foi um golpe de sorte, embora ela tenha errado o alvo; ela atingiu Ian com força na coxa,
e ele acordou num estalo e a soltou. Ela lutou para sair debaixo dele, ofegando e sibilando, e
rastejou o mais rapidamente possível para o canto, onde se sentou trêmula com os braços ao
redor dos joelhos, o peito pesado e o coração martelando nas orelhas.
Ian estava respirando pesadamente pelo nariz, parando frequentemente para grunhir ou
dizer algo breve — e provavelmente muito expressivo, se ela tivesse o bom senso de entender
— em gaélico ou Mohawk. Depois de alguns poucos minutos, entretanto, ele lentamente se
sentou e se inclinou contra a cama.
— Rachel? — Ele disse com cautela, depois de um momento de silêncio. Ele soava racional,
e seus braços que apertavam as próprias coxas, relaxaram um pouco.
— Aqui — ela disse, hesitante. — Você está... bem, Ian?
— Oh, sim — ele disse suavemente. — Quem te ensinou a fazer isso com um homem?
— Denny — ela disse, começando a respirar com mais facilidade. — Ele disse que
desencorajar um homem a cometer o pecado do estupro não é violência.
Houve um momento de silêncio, no canto da cama.
— Oh — disse Ian. — Eu preciso ter uma conversinha com Denny, um dia desses. Uma
discussão filosófica sobre o significado de suas palavras.
— Eu tenho certeza de que ele iria gostar — Rachel disse. Ela ainda estava nervosa com o
que acontecera, mas se arrastou para se sentar ao lado de Ian no chão. O lençol estava jogado
em uma poça pálida nas proximidades, e ela o sacudiu para cobrir sua nudez. Ela ofereceu
metade dele a Ian, mas ele balançou a cabeça e se inclinou para trás um pouco, gemendo ao
estender uma perna.
— Hum. Você gostaria que eu... esfregasse sua perna? — Ela perguntou timidamente.
Ele fez um pequeno ruído abafado que ela interpretou como diversão. — Não agora, sim?
Eles se sentaram juntos, os ombros mal se tocando, por um tempo. A boca dela estava seca,
e levou algum tempo para ela conseguir produzir saliva o suficiente para falar.
— Eu pensei que você ia me matar — ela disse, tentando fazer sua voz não tremer.
— Eu também pensei — Ian disse baixinho. Ele tateou para pegar sua mão no escuro e a
segurou com força. — Perdão, moça.
— Você estava sonhando — Ela se aventurou. — Você... Você quer contar para mim sobre
o que era o sonho?
— Deus, não — ele disse, e suspirou. Ele soltou sua mão e inclinou a cabeça, cruzando os
braços no topo dos joelhos.
Ela continuou quieta, sem saber o que dizer, e rezou.
— Era o Abenaki — ele disse eventualmente, com a voz abafada. — Aquele que eu matei.
No acampamento britânico.
As palavras eram simples e cruas, e a atingiram na boca do estômago. Ela sabia; ele havia
contado a ela quando voltara ferido. Mas ouvir aquilo novamente, no escuro, com as costas
arranhadas por causa do chão e a garganta machucada por causa das mãos dele... Ela sentiu
como se o ato em si tivesse acabado de acontecer, bem na sua frente, sua reverberação chocante
como um grito em seu ouvido.
Ela engoliu e, virando-se para ele, colocou uma mão levemente em seu ombro, sentindo
com o polegar a cicatriz fresca e irregular onde Denzell tinha feito um corte para removar a
flecha.
— Você estrangulou o homem até a morte? — Ela perguntou, muito baixinho.
— Não — Ele inspirou profundamente e se sentou — Eu o estrangulei, e cortei a sua
garganta, apenas um pouco, e então eu bati em sua cabeça com um tomahawk.
Ele se virou para ela e passou a mão suavemente pelos seus cabelos, alisando-os.
— Eu não tinha que fazer isso — ele disse. — Não naquele momento, eu quero dizer. Ele
não me atacou, embora tivesse tentado me matar antes.
— Oh — ela disse, e tentou engolir, mas sua boca tinha secado novamente. Ele suspirou e
se inclinou, de modo que sua testa encostou na dela. Ela sentiu o calor de sua proximidade, o
calor do seu hálito, o cheiro de cerveja e das bagas de zimbro que ele tinha mascado para limpar
os dentes. Seus olhos estavam abertos, mas tão sombrios que ela não conseguia ver nada dentro
deles.
— Você está com medo de mim, Rachel? — Ele sussurrou.
— Eu estou — Ela sussurrou de volta, e fechou sua mão sobre o ombro ferido dele,
suavemente para com força o suficiente para ele sentir um pouco de dor. — E eu estou com
medo por você, também. Mas há coisas que eu temo muito mais do que a morte... e ficar sem
você é o que eu mais tenho medo.
Rachel arrumou novamente a cama com a luz das velas e deixou a vela queimando por mais um
tempo, dizendo que queria ler, para tranquilizar a mente. Ian assentiu, beijou-a e se curvou
como um cachorro ao lado dela — o leito era muito curto para ele. Ela olhou para o canto, onde
Rollo dormia; ele estava estendido em linha reta como uma faca, a cabeça entre as patas.
Ian colocou uma mão em sua perna e se afundou no sono. Ela podia vê-lo fazendo isso, seu
rosto ficando solto e pacífico, os músculos de seus ombros relaxando. Era este o motivo de ela
ter deixado a vela acesa, para que pudesse observá-lo dormir um pouco e deixar que aquela
visão a trouxesse paz.
Ela tinha colocado suas anáguas, sentindo-se obscuramente exposta, e embora estivesse
quente o suficiente para deitar sobre o lençol, ela o tinha puxado sobre as pernas também,
querendo ser capaz de sentir Ian quando ele se movesse em seu sono. Ela moveu a perna em
direção a ele agora, lentamente, e sentiu o toque de seu joelho contra sua panturrilha. Seus
longos cílios lançavam sombras em suas bochechas à luz das velas, logo acima da linha de suas
tatuagens.
— Você é o meu lobo — ela disse a ele. — E mesmo quando sai para caçar à noite, vai
voltar para casa.
— E dormir aos seus pés — ele replicou.
Ela suspirou, mas se sentiu melhor, e abriu sua Bíblia, para ler um salmo antes de apagar
a vela, apenas para descobrir que ela tinha, distraidamente, pegado Pamela: ou a virtude
recompensada42, da mesa lateral. Ela bufou baixinho, divertida, e todo o senso de tensão saiu de
sua mente. Ela fechou o livro, apagou a vela, e se aconchegou em seu lobo adormecido.
Em algum momento muito mais tarde, nas horas vazias antes do amanhecer, ela abriu os
olhos. Não estava adormecida, mas certamente também não estava desperta, embora tivesse
um senso de perfeita consciência sem pensamentos. E uma sensação distinta e vívida de que
não estava sozinha.
Ian estava ao lado dela; seu hálito tocava seu rosto, mas ela se sentia distante dele. Foi
apenas quando aconteceu novamente que ela percebeu o que a tinha acordado: uma dor
pequena e aguda em sua barriga. Como a dor que às vezes vinha mensalmente, mas menor...
menos uma dor do que uma... pontada. Uma pontada de consciência.
Ela piscou e colocou as mãos sobre a barriga. As vigas mal eram visíveis acima de sua
cabeça, sombreadas com a distante aparição da luz.
A dor parou, mas a sensação de... companhia? De presença, melhor. Aquilo não tinha ido
embora. Pareceu muito estranho e completamente natural — e é claro que era, ela pensou.
Natural como as batidas de seu próprio coração e a respiração em seus pulmões.
Ela teve um fraco impulso de acordar Ian, mas passou quase ao mesmo tempo. Ela queria
manter aquilo para si mesma por enquanto, ficar sozinha com aquele conhecimento — mas não
Ian geralmente acordava antes dela, mas ela sempre sentia quando ele se mexia e ficava na
borda da vigília para aproveitar seu cheiro quente e sonolento, os pequenos sons masculinos
que ele fazia, e a sensação das pernas dele roçando na dela quando ele se balançava para fora
da cama e se sentava. Ele sentava na borda da cama por um momento, esfregando as mãos nos
cabelos e pensando nos afazeres do dia, e se ela abrisse os olhos, poderia ver suas longas e
adoráveis costas bem à sua frente, os músculos bronzeados por causa do sol e levemente se
curvando em suas nádegas elegantes e rígidas, brancas como o leite em contraste.
Às vezes ele emitia um pequeno peido estalado e olhava culpado por cima do ombro. Ela
fechava os olhos instantaneamente e fingia ainda estar dormindo, pensando que ela devia ser
completamente obcecada ao achar isso adorável — mas ela achava.
Naquela manhã, entretanto, ele se sentou, passou as mãos pelos cabelos e endureceu. Ela
abriu os olhos de uma vez, instantaneamente alarmada por alguma coisa em sua postura.
— Ian? — Ela sussurrou, mas ele não respondeu.
— A Dhia — ele disse, muito suavemente. — Ah, não, a charaid...
Ela soube naquele exato momento. Deveria saber no instante em que acordara. Porque
Rollo acordava quando Ian o fazia, espreguiçando e bocejando com um rangido dos músculos
de sua mandíbula e um bater preguiçoso da cauda contra a parede, antes de colocar o focinho
gelado na mão de seu mestre.
Naquela manhã, houve apenas o silêncio, e a forma curvada do que costumava ser Rollo.
Ian se levantou e foi até ele rapidamente, ajoelhando no chão ao lado do corpo de seu
cachorro, e colocou uma mão gentil em sua suave cabeça peluda. Ele não disse nada, nem
chorou, mas ela ouviu o som que ele fazia ao respirar, como se alguma coisa tivesse sido
arrancada de seu peito.
Ela levantou da cama e foi até Ian, ajoelhando-se ao lado dele, o braço ao redor de sua
cintura, e ela estava chorando, mesmo sem querer.
— Mo chù — Ian disse, correndo a mão suavemente sobre os pelos macios e espessos. —
Mo chuilean. — Sua voz estava embargada quando ele disse — Beannachd leat, a charaid. —
Adeus, velho amigo.
Então ele se sentou nos calcanhares, inspirou profundamente, e apertou a mão de Rachel
com muita força.
— Ele esperou, eu acho. Até saber que você estaria aqui comigo — Ele engoliu
audivelmente, e sua voz estava estável quando ele falou de novo. — Eu preciso enterrá-lo. Eu
sei de um lugar, mas é um pouco distante. Eu estarei de volta no meio da tarde, entretanto.
— Eu vou com você — O nariz dela estava escorrendo. Ela esticou a mão para a toalha
perto do jarro e assoou o nariz em uma das extremidades.
— Você não precisa fazer isso, mo ghràidh — ele disse gentilmente, e passou a mão sobre
os cabelos dela, para alisá-los. — É um longo caminho.
Ela inspirou profundamente e se levantou.
— Então é melhor nós irmos logo — Ela tocou seu marido no ombro, tão suavemente
quanto ele tinha tocado a pele de Rollo — Eu me casei com ele, tanto quanto me casei com você.
117 – À CAÇA NÓS IREMOS
15 de setembro de 1778
Montanha First Watchung
Havia um monte de excrementos pelo caminho, escuros e brilhantes como grãos de café e
praticamente do mesmo tamanho. William estava levando sua égua, devido à sua corpulência e
à natureza íngreme do terreno, então ele aproveitou a oportunidade para parar por um
momento e a deixar respirar. Ela o fez, com um bufo explosivo e uma sacudida de sua crina.
Ele se agachou e pegou uma das pelotas, cheirando. Muito frescas, embora não quentes, e
com notas amadeiradas que indicavam que o veado tinha explorado as castanhas verdes do
carvalho. Olhando à esquerda, ele viu as plantas quebradas que marcavam a passagem do
animal, e sua mão se contraiu, desejando envolver seu rifle. Ele poderia deixar a égua amarrada.
— O que acha disso, velha moça? — Ele perguntou à égua, com o sotaque de Lake District,
onde ele havia crescido — Você poderia carregar uma carcaça se eu conseguisse capturá-la?
A égua talvez tivesse uns quatorze anos, velha o suficiente para ser estável; de fato, seria
difícil imaginar uma montaria mais estável. Era mais como montar num sofá do que num cavalo,
com suas costas amplas e laterais curvadas como um tonel de cerveja. Mas ele não pensara em
perguntar quando comprara, se ela já tinha sido usada para caçar. Estabilidade de marcha e
temperamento suave não significavam necessariamente que ela ficaria bem se ele soltasse um
veado em suas costas, pingando sangue. Ainda assim...
Ele levantou o rosto para a brisa. Perfeito. Estava do outro lado da montanha, em direção
a ele, e ele imaginou que poderia na verdade sentir o cheiro do...
Alguma coisa se moveu na floresta, quebrando galhos, e ele ouviu o farfalhar
inconfundível: o som de uma grande criatura herbívora, arrancando bocados de folhas de uma
árvore.
Antes que pudesse pensar duas vezes, ele se levantou e tirou o rifle da bainha o mais
silenciosamente possível. Com os pés suaves como os de um furão, ele deslizou para dentro da
vegetação...
E, cinco minutos depois, ele segurava os chifres grossos de um jovem cervo com uma das
mãos enquanto passava a faca pela garganta dele com a outra, o som de seu tiro ainda ecoando
na escarpa rochosa acima dele.
Tinha acontecido tão rápido que mal parecia real, apesar da sensação de calor-frio do
sangue pingando em suas meias e o cheiro espesso dele. Havia um carrapato pendurado logo
abaixo do olho do veado, redondo como uma pequena uva moscatel. Será que ele se soltaria de
uma vez?, ele pensou. Ou haveria sangue o suficiente para que ele continuasse se alimentando por
algum tempo?
O veado estremeceu violentamente, empurrando os chifres para o peito dele, as pernas
convulsionando como se estivesse prestes a dar o seu salto final, e morreu.
Ele o segurou por algum tempo, o veludo desfiado ainda sobre os chifres como camurça
áspera sobre sua palma suada, o peso dos ombros peludos sobrecarregando seus joelhos.
— Obrigado — ele sussurrou, e o soltou. Ele se lembrou que tinha sido Mac, o cavalariço,
que o dissera que sempre se agradecia uma criatura que dava a você sua vida... E que tinha sido
James Fraser, alguns anos depois, que tinha matado um grande alce na frente dele e falado o
que ele chamava de “oração da evisceração” em gaélico, antes de massacrar a besta. Mas com o
sangue do veado em sua pele e a brisa se movendo na floresta ao redor de si, pela primeira vez
ele não afastou aquelas memórias.
Ele foi verificar a égua, que felizmente estava perto de onde ele a deixara, tendo se movido
apenas alguns metros para comer as ervas daninhas, e que olhou para ele com olhos tranquilos,
as flores silvestres amarelas penduradas nos cantos de sua boca, como se os tiros e o cheiro de
sangue fossem comuns em sua vida. Talvez fossem, ele pensou, e bateu em seu ombro
amigavelmente.
Este é para você, Ben, ele pensou alguns minutos depois, cortando a pele da barriga. Seu
primo, quase seis anos mais velho que ele mesmo, o levava para caçar ocasionalmente, na
floresta perto de Earlingden, com o Visconde Almerding, um amigo de Ben.
Ele tentou não pensar muito em seu primo enquanto fazia as preparações. A maior parte
dele acreditava sinceramente que Ben estava morto. Febre, de acordo com o que Richardson
tinha contado ao seu tio. Não era algo incomum para acontecer a um prisioneiro, de forma
alguma. E embora ele estivesse convencido — relutantemente, porque ele queimava de
vergonha por ter sido tão imbecil a ponto de ser seduzido pelo homem — de que Richardson
provavelmente era um vilão, aquilo não significava que cada palavra que saía da boca do
homem era uma mentira. Afinal de contas, ele não havia encontrado qualquer vestígio de Ben
durante as várias semanas de buscas.
Mas havia uma pequena parte de seu coração que não desistiria. E uma parte ainda maior
que faria qualquer coisa que pudesse para amenizar o luto de seu tio e de seu pai,
independentemente de qual fosse a verdade.
— E se tudo isso realmente aconteceu, o que diabos vai sobrar para eu fazer? — Ele
murmurou, enfiando a mão no calor do corpo e procurando pelo coração.
Pelo menos ele seria bem-vindo quando entrasse no Acampamento de Middlebrook, como
o chamavam. Um homem carregando carne fresca sempre era bem-vindo.
Meia hora depois, ele tinha eviscerado a carcaça e enrolado seu saco de dormir de lona ao
redor dela para manter as moscas longe. As narinas do cavalo se dilataram e ele bufou de
desgosto pelo cheiro, mas não fez qualquer objeção quando William colocou a carcaça sobre
seu lombo.
Era final da tarde, mas esta hora no verão indicava que ainda haveria luz por algum tempo.
Era melhor, ele pensou, que sua primeira abordagem fosse na hora do jantar. Havia boas chances
de que ele fosse convidado para se sentar com alguém, e as conversas eram muito mais fáceis
enquanto se comia e bebia.
Ele foi até o cume rochoso a fim de examinar o terreno e teve que admitir que Washington
e seus engenheiros haviam feito uma boa escolha. Do topo da Montanha First Watchung, no
qual ele estava, as planícies diante de New Brunswick se espalhavam claras abaixo. Os
Continentais poderiam facilmente manter os olhos no exército britânico em seu ninho de águia
e descer para interferir em seus movimentos — e o tinham feito.
Os exércitos tinham partido agora, entretanto: ambos. Os britânicos para Nova York, e as
tropas de Washington para... Bem, para onde quer que estivessem no momento. Eles não
estavam aqui, tanto melhor. Mas ainda havia pessoas que viviam próximas ao acampamento.
Ben tinha sido — era, ele se corrigiu ferozmente — um oficial; um capitão de infantaria,
como ele mesmo. E oficiais capturados eram frequentemente alojados por residentes locais, sob
liberdade condicional. Aquele era o local para começar as investigações.
— Vamos, então, moça — ele disse para a égua, desatando as rédeas do broto de árvore
aonde tinha as enrolado. — Vamos até lá para sermos bem recebidos.
118 – DENTRO DO ESPINHEIRO
16 de setembro de 1778
Filadélfia
Nós terminarmos o jantar e eu estava limpando o rosto de Henri-Christian com a barra de meu
avental, quando uma batida veio da porta que dava para o beco. Jenny, sentada perto de mim
com Félicité em seu colo, me lançou um rápido olhar, com as sobrancelhas elevadas. Aquilo era
causa para alarme?
Eu não tive tempo de dar de ombros ou de sacudir minha cabeça; toda a conversa cessou
no mesmo instante, a conversa das crianças morrendo como se alguém tivesse colocado um
abafador de vela sobre eles. Era a primeira hora escura e a porta estava trancada. Fergus e Jamie
trocaram olhares e, sem uma palavra, os dois se levantaram.
Jamie ficou de pé em um dos lados, a mão em seu punhal — eu não tinha percebido até
aquele momento que ele o usava o tempo todo agora, até mesmo à mesa. Eu ouvi o arrastar de
pés no beco. Havia mais do que um homem lá fora, e os cabelos se agitaram em minha nuca.
Jamie parecia relaxado, mas atento, com o peso na parte de trás dos pés, pronto assim que
Fergus levantou a barra.
— Bonsoir — Fergus disse calmamente, com um levantar interrogativo da frase no final.
Uma face pairava pálida no escuro, não perto o suficiente para ser reconhecida.
— Bonsoir, Monsieur Fraser — Eu pisquei em surpresa; eu conhecia aquela voz, mas nunca
tinha ouvido Benedict Arnold falar francês. Mas é claro que ele poderia, eu pensei, me
recuperando. Ele tinha liderado mais de uma campanha no Quebec. Era um francês de soldado
que ele falava: áspero, mas útil. — Madame Fraser, est ici, monsieur43? — ele disse. — Votre
mère44?
Fergus olhou reflexivamente sobre o ombro para Jenny, atônito. Eu tossi e tirei Henri-
Christian do meu colo, alisando seus cabelos arrepiados.
— Eu imagino que o governador está falando de mim — Eu disse. O governador virou para
o lado e murmurou alguma coisa para seu ajudante, que assentiu e se retirou para as sombras.
— Sra. Fraser — Arnold disse, soando aliviado. Fergus se afastou para o lado e o
governador entrou, fazendo uma reverência para Marsali e para Jenny, assentindo para Jamie,
antes de fixar a atenção em mim. — Sim, eu estava falando de você, senhora. Eu peço perdão
por minha intromissão inoportuna, senhor — ele adicionou, virando-se para Fergus. — Eu não
tinha certeza de onde a Sra. Fraser estava residindo e fui obrigado a fazer perguntas.
Eu vi a boca de Jamie se apertar brevemente a esta referência irritante à nossa falta de
moradia, mas ele se inclinou cortesmente.
— E eu ouso dizer que o assunto é urgente, senhor, já que o senhor veio fazer as perguntas
em pessoa.
— É importante, de fato. — O governador se virou para mim. — Eu vim para implorar por
um favor, senhora, em nome de um amigo. — Ele parecia um pouco melhor do que a última vez
em que eu o vira; tinha ganhado um pouco de peso e sua cor estava melhor, mas as linhas e
manchas de tensão e fadiga ainda estavam claras em sua face. Os olhos, entretanto, estavam tão
alertas como sempre.
Eu olhei para a cadeira bastante suja da liteira, inalei o cheiro de várias dezenas de usuários
anteriores, e segurei minha bengala com mais força.
— Eu posso andar — Eu disse. — Não é tão longe.
— Você não vai caminhando — Jamie replicou uniformemente.
— Tem certeza de que você não tem a intenção de me impedir?
— Sim, eu tenho — ele disse, ainda suavemente. — Eu não posso impedir que você vá, e
eu nem tentaria fazer isso, mas eu posso, por Deus, me certificar de que você não cairá de cara
na rua pelo caminho. Entre, Sassenach. Vão devagar — ele adicionou aos condutores, quando
abriu a porta da liteira e gesticulou para mim. — Eu vou junto e não estou a fim de galopar logo
após o jantar.
Não havendo alternativas razoáveis, eu reuni os remanescentes de minha dignidade e
entrei. E com o meu cesto de suprimentos sob os pés e os vidros da janela abertos no máximo
— as memórias de meu último percurso claustrofóbico numa liteira estavam tão vívidos quanto
o cheiro desta —, nós nos retiramos numa imponente corrida pelas tranquilas ruas noturnas
da Filadélfia.
O toque de recolher fora abrandado nos últimos tempos, devido aos protestos dos
proprietários das tavernas — e provavelmente, de seus patronos — mas a sensação geral da
cidade ainda era de tensão, e não havia sequer uma mulher respeitável na rua, nem grupos de
arruaceiros, ou qualquer um dos escravos que trabalhavam para seus mestres, mas viviam por
conta própria. Eu vi uma prostituta, parada na entrada de um beco; ela assobiou para Jamie e
gritou um convite, mas sem entusiasmo.
— Seu cafetão deve estar escondido... no beco com um cassetete... Permanecemos em três
a um — o condutor atrás de mim comentou, seus comentários pontuados pela respiração. —
Não é tão seguro... quanto quando o exército estava aqui.
— Você acha que não? — Seu parceiro grunhiu, e depois encontrou o fôlego para replicar.
— O exército estava aqui... quando o oficial teve sua... garganta cortada em um bordel. Eu calculo
que é por isso... que ela está aqui... usando apenas as anáguas. — Ele engoliu ar e continuou. —
Como você pretende... estabilizar a aposta, então? Vai com ela?
— Pode ser que este cavalheiro faça o serviço para nós — o outro disse com uma risada
breve e ofegante.
— Pode ser que não — eu disse, colocando minha cabeça para fora da janela. — Mas eu
vou olhar se você quiser.
Jamie e o homem da frente riram, o outro grunhiu, e nós sacudimos suavemente ao virar
a esquina e continuar pela rua onde a casa dos Shippen ficava, graciosa em seus terrenos, numa
pequena elevação perto da periferia da cidade. Havia uma lanterna iluminada no portão, outra
na porta. Eu imaginei se isso significava que éramos esperados; eu não pensei em perguntar ao
Governador Arnold se ele mandou um aviso antes de nós. Se ele não o tivesse feito, os próximos
poucos minutos seriam interessantes.
— Tem uma ideia de quanto tempo precisaremos ficar, Sassenach? — Jamie perguntou,
pegando a bolsa para pagar os condutores.
— Se ele já estiver morto, não vai demorar muito — Eu repliquei, balançando as minhas
saias para alisá-las. — Se não estiver, pode muito bem demorar a noita toda.
— Sim. Esperem um pouco, então — Jamie disse aos condutores, que estavam me
encarando, boquiabertos. — Se eu não sair em dez minutos, vocês estão livres para ir embora.
Sua força de personalidade era tamanha que eles não observaram que já estavam livres
para ir se quisessem, e meramente assentiram humildemente enquanto ele pegava meu braço
e me escoltava pelos degraus.
Nós estávamos sendo esperados; a porta se abriu quando as botas de Jamie se arrastaram
nas pedras limpas do alpendre, e uma jovem mulher olhou para fora, o alarme e o interesse
aparecendo em igual medido em seu rosto. Evidentemente o Sr. Bledsoe não estava morto,
então.
— Sra. Fraser? — Ela piscou um pouco, olhando-me de lado. — É... Eu quero dizer... é a
Sra. Fraser? O Governador Arnold disse...
— É a Sra. Fraser — Jamie disse, uma leve aspereza na voz. — E eu te asseguro, minha
jovem, de que estou em posição de saber disso.
— Este seria o Sr. Fraser — Informei à jovem mulher, que estava olhando para ele,
claramente perplexa. — Eu era provavelmente a Senhora John Grey na última vez em que me
viu — eu adicionei, tentando colocar um ponto final com indiferença. — Mas, sim, eu sou Claire
Fraser. É... ainda. Eu quero dizer... novamente. Eu entendo que o seu primo...?
— Oh, sim! Por favor... venha por aqui — Ela deu um passo para trás, gesticulando em
direção à parte de trás da casa, e eu vi que ela estava acompanhada de um serviçal, um homem
negro de meia-idade, que fez uma reverência quando eu encontrei seu olhar e depois liderou o
caminho por um longo corredor até a escada de trás, que nós subimos.
Durante o caminho, nossa anfitriã se apresentou tardiamente como Margaret Shippen e
se desculpou belamente pela ausência de seus pais. Seu pai — ela disse — tinha sido chamado
para uma viagem de negócios.
Eu não tinha sido formalmente apresentada a Peggy Shippen antes, mas já a tinha visto e
sabia um pouco sobre ela; ela tinha sido uma das organizadoras do Mischianza, e embora seu
pai a tenha impedido de comparecer ao baile, todas as suas amigas tinham comentado sobre
ela — e eu tive um vislumbre dela, ricamente vestida, uma ou duas vezes em outros eventos
que eu tinha ido com John.
Fazendo uma viagem de negócios? Eu capturei o olhar de Jamie quando ela disse isso, e ele
levantou um dos ombros brevemente. Mais do que provavelmente, Edward Shippen queria
evitar qualquer ligação pública com o infortúnio de seu sobrinho — e, dentro do possível,
manter o falatório sobre o incidente numa escala mínima. Não era um local e uma época seguros
para chamar atenção para as inclinações Legalistas da família.
A Senhorita Shippen nos levou a um pequeno quarto no terceiro andar, onde uma coisa
preta e com forma humana estava deitada na cama. O cheiro do alcatrão era espesso no ar,
juntamente com o distinto cheiro de sangue e uma espécie de gemido baixo e constante. Aquele
deveria ser Tench Bledsoe — e onde ele conseguiu um nome assim? Eu pensei, aproximando-
me cautelosamente dele. Até onde eu sabia, uma tenca45 era um tipo indistinto e medíocre de
carpa.
— Sr. Bledsoe? — Eu disse baixinho, colocando minha cesta de suprimentos numa
pequena mesa. Havia uma vela na mesa, e pela luz da única chama, eu pude ver o seu rosto... ou
metade dele. A outra metade estava obscurecida pelo alcatrão, bem como boa parte de sua
Jamie passou pela Senhorita Shippen e seu serviçal antes que qualquer um deles pudesse reagir.
Ele correu suavemente escada abaixo e entrou na casa, assustando uma empregada da cozinha.
Claramente o governador não entraria pela porta da cozinha.
Ele chegou à porta da frente exatamente quando uma firme batida soou, e a abriu.
— Senhora Margaret! — Arnold passou por Jamie como se ele não estivesse lá, o que não
era pouca coisa, e pegou as mãos de Peggy Shippen entre as suas. — Eu achei que deveria vir...
Seu primo? Como ele está?
— Ele está vivo. — Peggy engoliu, seu rosto da cor da vela de cera de abelha que ela estava
segurando. — A Senhora Fraser está... Ela disse que...
Ela engoliu de novo, e Jamie engoliu com ela, por simpatia, sabendo muito bem o que ela
estava pensando. Nos ossos quebrados da perna de Tench Bledsoe, vermelhos e viscosos como
os de um porco eviscerado. O fundo de sua garganta ainda estava amargo pelo gosto do vômito.
— Eu agradeço muito por enviar a Sra. Fraser para nós, senhor... Eu não conseguia pensar
o que íamos fazer. Meu pai está em Maryland e minha mãe está com sua irmã em Nova Jersey.
Meus irmãos... — Ela parou, parecendo distraída.
— Não, não, minha querida... Posso chamá-la assim? É minha mais ardente preocupação,
ajudar a você... sua família... proteger você — Ele não soltara as mãos dela, Jamie notou, e ela
não estava se afastando.
Jamie olhou dissimuladamente de Arnold para Peggy Shippen, e depois se virou um pouco,
recuando. Não era difícil para eles ignorá-lo; eles estavam focados um no outro.
Aquilo tornou o assunto bastante simples — ou pelo menos mais claro. Arnold queria a
garota, e a queria tão nua que Jamie estava um pouco envergonhado pelo homem. Não se podia
controlar a luxúria, mas certamente um homem deveria ter controle suficiente para escondê-
la. E não apenas pelo censo de decência, ele pensou, vendo um certo olhar de cálculo cauteloso
aparecendo no rosto de Peggy. Era, ele pensou, o olhar de pescador que acabara de ver uma
gorda truta nadando para sua isca.
Ele limpou a garganta de maneira marcante, e ambos se sacudiram como se ele tivesse
enfiado uma agulha neles.
— Minha esposa disse que será necessário amputar a perna ferida — ele disse. —
Rapidamente. Ela precisa de algumas coisas... instrumentos e coisas do tipo.
Eu preciso tanto da serra grande quanto da pequena, do conjunto de pinças (aquelas coisas
grandes que parecem ganchos — e muitas suturas...
Ele estava tentando manter a lista em sua cabeça, embora passasse mal ao visualizar a
maioria dos itens, pensando no uso que eles em breve teriam. Por trás da sensação de repulsa
e piedade, entretanto, estava a cautela... a mesma cautela que ele viu por trás dos olhos de
Benedict Arnold.
— Ela precisa? — Arnold disse, não exatamente uma pergunta. Seus olhos mudaram para
Peggy Shippen, que mordeu o lábio de forma atraente.
— Talvez você pudesse enviar o seu cocheiro à gráfica? — Jamie perguntou. — Eu posso
ir com ele e trazer o que ela precisa.
— Sim — Arnold disse lentamente, mas de forma abstrata, da forma como fazia quando
pensava rapidamente. — Ou... não. Vamos remover o Sr. Bledsoe, e a Sra. Fraser, claro, para a
tipografia. A Sra. Fraser terá acesso lá a tudo o que precisa, e a assistência e apoio de sua família.
— O quê? — Jamie exclamou, mas Peggy Shippen já estava pendurada no braço de Arnold,
seu rosto transformado pelo alívio. Jamie pegou o braço de Arnold para chamar sua atenção, e
os olhos do governador se estreitaram.
A intenção de Jamie tinha sido perguntar retoricamente se ele tinha ficado louco, mas o
tardar de milésimos de segundos foi suficiente para mudar a frase para algo mais político. —
Não há um cômodo na tipografia para tal empreendimento, senhor. Nós vivemos uns sobre os
outros, e as pessoas entram o tempo todo. Não será uma questão simples; o homem precisará
de cuidados por algum tempo.
Peggy Shippen soltou um gemido de ansiedade, e ficou claro para Jamie que Tench
Bledsoe era uma batata quente, tanto — ou mais — para Arnold quanto para os Shippens. A
última coisa que Arnold poderia querer, como o govenador militar da cidade, era um escândalo
público e desordem, os Legalistas remanescentes na Filadélfia ameaçados e assustados, os
Filhos da Liberdade vistos como vigilantes secretos, com uma lei para si mesmos.
Arnold devia querer muito que o incidente fosse abafado. Ao mesmo tempo, ele queria ser
o guerreiro nobre, cavalgando para ajudar a muito jovem e encantadora Senhorita Shippen ao
cuidar de seu primo enquanto removia o perigo em potencial que ele representava para sua
família.
Levando-o para a minha, Jamie pensou, sua cautela começando a se transformar em raiva.
— Senhor — Ele disse formalmente. — Não há possibilidade de prevenir que o assunto se
torne conhecido, se levar o homem para a tipografia de meu filho. E claramente você sabe o
perigo disso.
A verdade daquilo era evidente, e Arnold parou, franzindo a testa. Mas Jamie tinha lutado
com o homem e o conhecia muito bem; Jamie viu que, tendo decidido a aliviar a preocupação
da Senhorita Peggy, Arnold faria aquilo, fizesse chuva ou sol.
Evidentemente Claire estava certa no que dissera a ele sobre testosterona, e ele já sabia
que Arnold era um carneiro, tanto em termos de bolas quando de teimosia.
— Ah, eu já sei! — Arnold exclamou triunfantemente, e Jamie viu, com admiração
relutante, o general emergente. Esta admiração desapareceu com a próxima frase de Arnold. —
Lord John Grey — ele disse. — Poderíamos transportar o Sr. Bledsoe para a casa de sua
senhoria.
— Não! — Jamie disse por reflexo.
— Sim — Arnold disse, mas mais como uma auto-congratulação do que como uma
contradição; ele não estava prestando atenção — Sim, é a solução ideal! Sua senhoria e seu
irmão estão em débito comigo — ele explicou à Peggy, com uma modéstia fingida que fez Jamie
ter vontade de bater nele. — E como sua senhoria e a Sra. Fraser... — Neste ponto, ele teve um
vislumbre do rosto de Jamie e parou seu dircurso exatamente a tempo de evitar o
acontecimento. Ele tossiu. — A solução ideal — ele repetiu. — Você pode ir e contar à Sra. Fraser
o que nós pretendemos fazer, senhor?
— Nós? — Jamie disse. — Eu não tenho intenção de nada...
— O que diabos está acontecendo aqui embaixo? — A voz de Claire veio da escada atrás
dele, e ele se virou para vê-la se inclinando sobre o corrimão, brilhando como um fantasma à
luz do candeeiro acima dela. Havia sangue manchando seu avental, manchas pretas no tecido
pálido.
— Nada, a nighean — ele disse, fixando Arnold com um olhar firme. — Apenas discutindo
onde o Sr. Bledsoe deveria ir.
— Eu não me importo com onde ele deve ir — ela estalou, descendo para o hall de entrada,
as saias farfalhando com agitação. — Ele estará morto, se eu não puder cuidar de sua perna
rapidamente. — E então ela notou que algo estava acontecendo entre ele a Arnold e se moveu
para o lado de Jamie, olhando firmemente para o governador.
— General Arnold — ela disse —, se você tiver a mínima preocupação com a vida do primo
da Sra. Shippen, você vai levar meu marido prontamente para pegar os instrumentos dos quais
eu preciso. Depressa!
Arnold piscou, e Jamie teria sorrido se não estivesse preocupado por sua mulher — ela
estava feroz, mas parecia pálida, e seus punhos estavam cerrados no tecido de seu avental.
Poderia ser para evitar estapear o governador, mas ele pensou que fosse para esconder o fato
de que suas mãos tremiam... e ele percebeu com choque que ela estava com medo.
Não com medo das circunstâncias ou de qualquer dano futuro — com medo de que ela
não conseguisse fazer o que sabia que precisava.
Seu coração vacilou ante o pensamento. Ele pegou Arnold firmemente pelo braço,
compelindo-o a subir as escadas.
— Sim — ele disse abruptamente para Claire. — Vamos levar o homem para a casa de
Lord John e, enquanto você o prepara, eu vou pegar o que você precisa na tipografia. O general
vai me ajudar a movê-lo.
A resistência forte de Arnold cessou abruptamente quando ele entendeu o que Jamie dizia.
— Sim — ele disse. — Sim, eu... — Um longo gemido veio de cima e o interrompeu, e o
rosto de Claire endureceu.
— Não há tempo — ela disse, calmamente. — Senhorita Shippen... Peggy. Eu preciso da
maior faca que você tiver na cozinha, agora. Peça para que os seus criados tragam mais água
quente e tecido para bandagem. Uma agulha de costura forte e linha preta. — Seus olhos
procuraram os de Jamie, e ele soltou o braço do governador e foi até ela.
— Você está bem, moça? — Ele disse baixinho, pegando-a pelo cotovelo.
— Eu estou — Ela disse, e apertou sua mão brevemente. — Isso é muito ruim, entretanto.
Eu não... Eu sinto muito, mas vou precisar de ajuda para segurá-lo.
— Eu vou ficar bem — Ele disse. — Não fique preocupada. Apenas faça o que você precisa
fazer. Eu prometo que não vou vomitar nele enquanto você cuida de sua perna.
Ele não esperava realmente que aquilo forsse engraçado, e ficou surpreso — mas
satisfeito — quando ela riu. Não era muito uma risada, mas a tensão em seu braço relaxou, e
seus dedos estavam estáveis nos deles.
Ele pôde dizer no minuto que entrou no quarto. Ele não sabia o que tinha mudado, mas
claramente Claire tinha ouvido as batidas das asas da Morte do andar de baixo; ele podia senti-
las agora. Bledsoe ainda estava consciente, mas por pouco; uma fatia branca se mostrava
quando uma pálpebra se levantou com sua entrada.
— Estamos aqui, homem — Jamie sussurrou, caindo de joelhos e segurando a mão de
Bledsoe. Ela estava fria ao toque e pegajosa de suor. — Não se preocupe, nós estamos aqui. Tudo
acontecerá rapidamente.
Havia um forte cheiro de láudano no ar, juntamente com o fedor do alcatrão e do sangue
e dos cabelos queimados. Claire estava do outro lado da cama, segurando o pulso de Bledsoe,
seus olhos indo do rosto úmido à perna mutilada.
— Sépsis — ela disse, baixinho mas numa voz normal. — Você está vendo a linha vermelha
ali? — Ela gesticulou para a perna ferida, e Jamie a viu claramente: uma linha de cor vermelha-
escura e feia que não estava lá antes... ou talvez estivesse, e ele não tinha notado.
A visão daquilo fez os pelos finos em seus ombros se elevarem, e ele se moveu, inquieto.
— Envenenamento do sangue — Claire disse — Bactérias... germes... no sangue. Elas se
movem muito rapidamente e se isso se espalhar pelo corpo... não haverá nada que eu possa
fazer.
Ele olhou para cima abruptamente, ouvindo o leve tremor na voz dela.
— Mas antes disso, você pode? Há alguma chance? — Ele tentou soar encorajador, embora
o pensamento na alternativa fizesse os arrepios piorarem.
— Sim. Mas não é uma chance muito boa — Ela engoliu. — O choque da amputação pode
muito bem matá-lo na hora. E se não o fizer, ainda há uma grande chance de infecção.
Ele ficou de pé e rodeou a cama para falar com ela, pegando-a gentilmente mas de forma
sólida pelos ombros. Seus ossos estavam próximos da superfície, e ele pensou que seus
sentimentos também estavam.
— Se ele tiver uma chance, devemos dar a ele, Sassenach.
— Sim — ela murmurou, e ele sentiu o tremor passando pelo corpo dela, embora o ar
estivesse quente e parado. — Deus me ajude.
— Ele ajudará — Jamie sussurrou, cruzando os braços brevemente ao redor dela. — Assim
como eu.
Eu estava parada no lugar errado. O fato de que eu entendia o que estava acontecendo não me
ajudou nem um pouco.
Um cirurgião treinado é um assassino em potencial, e uma parte importante do
treinamento está em aceitar este fato. Sua intenção é totalmente benigna — ou pelo menos é o
que se espera — mas você está colocando as mãos violentas sobre alguém, e você deve ser
implacável para fazê-lo de forma eficaz. E algumas vezes a pessoa que está sob suas mãos vai
morrer, e mesmo sabendo disso... você faz o que tem que fazer.
Eu fiz com que me trouxessem mais velas, embora o ar na sala já estivesse sufocante. O
miasma da umidade e do suor que evaporava lentamente fez com que a luz dos candelabros
enchesse o cômodo com um brilho suave e romântico; perfeito para um jantar cheio de vinho,
flerte e dança.
O vinho poderia esperar, e qualquer cirurgião dançava com a morte rotineiramente. O
problema era que eu tinha esquecido os passos e estava flertando com o pânico.
Eu me inclinei para verificar o pulso de Tench e a respiração. Ele estava respirando
superficialmente, mas rápido. Falta de oxigênio, perda severa de sangue... e eu senti meu
próprio peito se apertar, sentindo o ar pesado, e eu me levantei, tonta, com o coração
martelando.
— Sassenach — Eu me virei, a mão na cabeceira da cama, para ver Jamie me observando,
as sobrancelhas juntas — Você está bem?
— Sim — Eu disse, mas minha voz soou estranha mesmo para os próprios ouvidos. Eu
balancei minha cabeça com força, tentando clareá-la. Jamie veio para perto de mim e colocou
sua mão na minha, nos pés da cama. Ela era grande e estável, e me ajudou.
— Você não vai ajudá-lo, moça, se desmaiar no meio dos procedimentos — ele disse, com
a voz baixa.
— Eu não vou desmaiar — Eu disse, um pouco irritada pela ansiedade. — Eu só... Eu... Eu
estou bem.
A mão dele saiu de cima da dela, e depois de olhar longamente para o seu rosto, ele
assentiu seriamente e deu um passo para trás.
Eu não ia desmaiar. Ou pelo menos eu esperava que não. Mas eu estava presa ali naquele
quarto apertado e quente, cheirando a sangue e alcatrão e ao cheiro de mirra do láudano,
sentindo a agonia de Tench. E eu não podia fazer isso. Eu não podia. Eu não devia.
Peggy entrou correndo, uma empregada atrás de si, com várias facas grandes apertadas
contra o peito.
— Uma destas vai servir? — Ela as derrubou no pé da cama com um tinido, e depois deu
um passo para trás, olhando ansiosamente para o rosto úmido e pálido de seu primo.
— Eu tenho certeza que alguma delas vai — Eu agitei a pilha de facas com cuidado,
extraindo algumas possibilidades: uma faca de entalhe que parecia afiada, e uma grande e
pesada faca do tipo usado para cortar legumes. E, com uma vívida lembrança da sensação de
cortar tendões, eu peguei uma faca para guarnecer recém-afiada, com a borda prateada.
— Vocês destrincham a própria carne? Se tiverem alguma coisa como uma serra óssea...
O serviçal ficou tão pálido quanto um homem negro era capaz, e saiu, presumivelmente
para adquirir uma.
— Água fervente? — Eu perguntei, com as sobrancelhas levantadas.
— Chrissy está trazendo — Peggy me assegurou. Ela lambeu os lábios, inquieta. — Você...
hum... — Ela parou, evitando por pouco dizer o que claramente estava pensando: você sabe o
que está fazendo?
Eu sabia. Esse era o problema. Eu sabia muito bem o que eu estava fazendo... de todas as
perspectivas.
— Tudo vai ficar bem — Eu assegurei a ela, com uma aparência decente de calma e
confiança. — Eu vejo que temos agulhas e linha. Você poderia pegar a maior agulha... talvez uma
agulha de carpete... para passar a linha para mim, por favor? E então em algumas menores, só
para garantir.
Apenas para garantir, caso eu tivesse tempo e oportunidade para realmente capturar e
ligar vasos sanguíneos. Era muito mais provável que a única escolha que eu tivesse fosse
cauterizar brutalmente o toco de perna fresco para estancar o sangramento, já que Trench não
tinha mais sangue o suficiente para perder.
Eu precisava ficar sozinha em minha cabeça, em um local claro e calmo. O lugar onde eu
podia ver tudo, sentir o corpo sob a minha mão em todas as suas particularidades... mas não ser
aquele corpo.
Eu estava prestes a destrinchar a perna de Tench Bledsoe como uma galinha. Jogar fora
seus ossos e sua carne. Cauterizar o toco. E eu sentia o medo dele na boca de meu estômago.
Benedict Arnold tinha voltado com uma braçada de lenha e uma faca de mesa de prata em
uma mão — meu ferro de cauterização, caso não houvesse tempo para suturar. Ele os colocou
na lareira, e o mordomo começou a cutucar o fogo.
Eu fechei os meus olhos por um momento, tentando não respirar pelo nariz, deixando o
brilho da vela para fora. Denny Hunter tinha me operado à luz de velas; eu me lembrava de
assisti-lo através da névoa dos meus cílios, incapaz de abrir meus olhos mais do que uma fenda,
já que cada uma das seis velas estava acesa, as chamas se elevando puras e quentes — e
sentindo o cheiro do pequeno ferro de cauterização no braseiro ao lado dele.
Uma mão tocou meu pulso e, engolindo ar, eu me inclinei cegamente para Jamie.
— O que há de errado, a nighean? — Ele sussurrou para mim.
— O láudano — Eu disse, quase de forma aleatória. — Você não... Você não perde
completamente a consciência. Ele faz a dor ir embora, mas não parar... ela apenas parece
desconectada de você, mas está lá. E você... você sabe o que está acontecendo — Eu engoli,
forçando a bile para baixo.
Eu senti. A sonda dura espetando a lateral de meu corpo, assustadora. O notável senso de
fria intrusão, misturado com um eco fraco e incongruentemente quente de movimentos
internos, as pontadas fortes como as de uma criança no útero.
— Você sabe o que está acontecendo — Eu repeti, abrindo meus olhos. Eu encontrei os
dele, olhando para mim gentilmente.
— Eu sei disso, sim? — Ele sussurrou, e envolveu minhas bochechas com sua mão de
quatro dedos. — Venha e me diga o que eu preciso fazer, mo ghràidh.
O pânico momentâneo estava passando; eu o forcei para o lado, sabendo que até mesmo pensar
nisso seria igual a mergulhar de cabeça para dentro do pânico. Eu coloquei uma mão na perna
machucada de Tench, permitindo a mim mesma senti-la, encontrar a sua verdade.
A verdade era muito óbvia. A parte inferior da perna era um desastre completo,
mecanicamente, e tão comprometida pela septicemia que não havia chance alguma de salvá-la.
Eu estava procurando desesperadamente por uma mandeira de salvar o joelho; já que um
joelho fazia muita diferença na habilidade de caminhar, de gerir o próprio corpo. Mas eu não
poderia fazer isso.
Ele estava perdido há tempos pelos ferimentos, pela perda de sangue e pelo choque; ele
era um homem teimoso, mas eu podia sentia a vida se esvaindo de sua carne, morrendo no meio
da infecção, da perturbação e da dor. Eu não podia pedir para que seu corpo suportasse a
cirurgia ainda mais dolorosa que seria amputar abaixo do joelho — mesmo que eu tivesse
certeza que tal amputação seria o suficiente para conter o avanço da septicemia, e eu não tinha.
— Eu vou tirar a perna dele logo acima do joelho — Eu disse a Jamie. Eu pensei ter falando
calmamente, mas minha voz soou estranha. — Eu preciso que você segure a perna para mim e
a movimente da forma como eu pedir. Governador... — Eu me virei para Arnold, que estava
parado com um braço tranquilizador no pulso de Peggy Shippen — venha segurá-lo. — Somente
o láudano não seria suficiente.
Para seu crédito, Arnold veio instantaneamente, e colocou uma mão contra a bochecha
úmida de Tench para um momento de tranquilização antes de segurar firmemente seus
ombros. Seu próprio rosto estava calmo, e eu me lembrei das histórias que eu tinha ouvido de
sua campanha no Canadá: queimaduras pelo frio, ferimentos, fome... Não, ele não era um
homem cheio de melindres, e eu senti certa tranquilidade pela presença de meus dois
ajudantes.
Não, três: Peggy Shippen veio ficar ao meu lado, pálida até nos lábios e com a garganta se
movendo a cada poucos segundos, quando ela engolia — mas com a mandíbula cerrada pela
determinação.
— Diga-me o que fazer — ela sussurrou, e fechou com firmeza a boca quando vislumbrou
a perna mutilada.
— Tente não vomitar, mas se você precisar, faça isso longe da cama. — Eu disse. — Caso
contrário, fique ali e me entregue as coisas que eu pedir.
Não havia mais tempo para pensar ou preparar. Eu apertei o torniquete, peguei a faca
mais afiada, assenti para meus ajudantes e comecei.
Uma incisão profunda, rápida, em torno de toda a parte superior da perna, cortando com
força para expor o osso. Um cirurgião de exército podia amputar uma perna em menos de dois
minutos. Bem como eu, mas seria melhor se eu pudesse cortar retalhos para cobrir o toco, e
pudesse selar os vasos maiores...
— Agulha grande — Eu disse para Peggy, esticando minha mão. Na falta de uma pinça
para pegar os vasos sanguíneos maiores, eles se enfiaram para dentro da carne quando eu
cortei, e eu tinha que cutucá-los com a ponta da agulha e puxá-los para fora, ancorá-los à carne
exposta, e depois ligá-los da forma mais rápida possível, chicoteando a linha em volta deles
como uma das agulhas menores e amarrando. Seria melhor do que cauterizar, se houvesse
tempo...
O suor estava escorrendo em meus olhos; eu tive que limpá-lo com o meu antebraço;
minhas mãos estavam sangrentas até o pulso.
— Serra — Eu disse, e ninguém se moveu. Eu tinha falando em voz alta? — Serra — Eu
disse, muito mais alto, e a cabeça de Jamie virou em direção aos implementos da mesa.
Inclinando-se pesadamente sobre a perna de Tench com uma das mãos, ele se esticou para
pegar a serra da mesa com a outra.
Onde estava Peggy? No chão. Eu vi o desabrochar de sua saia com o canto do olho e senti
vagamente através do assoalho os passos de um serviçal que viera tirá-la do caminho.
Eu tateei para encontrar outra sutura, às cegas, e a jarra de conhaque onde eu as tinha
colocado virou, derramando sobre o lençol e adicionando sua doce viscosidade na atmosfera.
Eu ouvi Jamie ofegar, mas ele não se moveu; seus dedos apertavam a coxa com força acima do
torniquete. Tench ficaria com hematomas ali, eu pensei preguiçosamente. Se ele vivesse por
tempo suficiente para que seus capilares sangrassem...
A serra era feira para destrinchar porcos. Resistente, não afiada, e não muito bem
conservada — metade dos dentes estavam dobrados, e ela saltava e deslizava sobre a minha
mão, apenas ralando o osso. Eu cerrei os dentes e empurrei com mais força, minha mão
escorregando sobre a alça, untada com sangue e suor.
Jamie fez um ruído profundo e desesperado e se moveu abruptamente, pegando a serra
de minha mão e me empurrando para o lado. Ele agarrou o joelho de Trench e se abateu sobre
a serra, dirigindo-a ao osso com muita força. Três, quatro, cinco pancadas, e o osso, três quartos
serrado, fez um barulho de rachadura que me sacudiu para a ação.
— Pare — Eu disse, e ele o fez, com o rosto pálido e molhado de suor. — Levante a perna
dele. Cuidadosamente. — Ele o fez, e eu fiz o corte embaixo... longos e profundos golpes da faca
aprofundando a incisão em um ângulo para fazer a curva, juntando o corte com a incisão
superior. O lençol estava molhado e escuro por causa do sangue, mas não muito. Ou o torniquete
estava segurando bem, ou o homem tinha pouco sangue para perder...
— Serra novamente — Eu disse urgentemente, descartando a faca. — Segure firme!
Ambas as partes. — Não havia mais do que uma fina parte de osso sobrando; o osso esponjoso
da medula aparecendo, o sangue fluindo lentamente pela superfície do corte. Eu não coloquei
qualquer pressão na serra; a última coisa que eu queria era quebrar o osso de alguma forma
esquisita. Não estava funcionando, entretando, e eu olhei de volta para minhas ferramentas,
desesperada para encontrar algo mais.
— Lima — Jamie disse, sua voz rouca pela tensão. Ele assentiu em direção à mesa. — Ali.
Eu agarrei a lima, uma coisa bem fina, mergulhei-a no conhaque e, virando-me de lado,
coloquei-a no último pedaço de osso, que se partiu gentilmente. Com uma borda irregular, mas
intacto, não partido.
— Ele está respirando? — Perguntei. Eu estava tendo problemas para respirar, e não
conseguia sentir os sinais vitais do paciente... exceto por sentir seu coração batendo, já que o
sangue pulsava suavemente dos vasos menores. Mas Arnold assentiu, sua cabeça inclinada,
atenta à face de Tench.
— Ele vai conseguir — ele disse, sua voz firme e alta, e eu sabia que ele estava falando
tando para Tench quanto para mim. Agora eu conseguia sentir a agitação na parte superior da
perna, um reflexo violento para se mexer, e Jamie se inclinou com força ali. Meus dedos roçaram
a parte inferior da perna, descartada, a carne horrivelmente flácida e borrachuda, e eu os
arranquei rapidamente, limpando-os convulsivamente em meu avental.
Eu passei o avental sangrento em meu rosto e empurrei de volta mechas soltas de cabelo
com as costas da mão. Elas estavam trêmulas; ambas.
Por que diabos você está tremendo agora? Eu pensei, irritada. Mas eu estava, e demorou
muito mais tempo do que deveria para cauterizar os últimos pequenos sangramentos —
adicionando o cheiro medonho de carne assada a tudo o mais no quarto; eu pensei que até
mesmo General Arnold poderia vomitar... Costurei as abas soltas de carne, passei uma
bandagem no ferimento e, por fim, afrouxei o torniquete.
— Tudo bem — Eu disse, endireitando-me. — Agora... — Mas se eu disse mais alguma
coisa, eu não ouvi. O quarto se balançou lentamente ao meu redor e se dissolveu num lampejo
de pontos brancos e pretos, e então tudo ficou escuro.
119 – A SEGUNDA LEI DA TERMODINÂMICA
Tench sobreviveu.
— Eu devia saber que você iria sobreviver — eu disse a ele. — Se você foi determinado o
suficiente para sobreviver a noite toda no rio, claramente uma mera amputação não o pararia.
Ele não tinha força suficiente para rir — a jornada numa liteira até Chestnut Street o tinha
deixado pálido e ofegante — mas sua boca se torceu o suficiente para qualificar sua expressão
como um sorriso.
— Oh... eu vou viver — ele conseguiu dizer. — Não daria... a eles... a satis... fação de morrer.
— Esgotado, ele fechou os olhos, o peito arfando. Eu limpei seu rosto gentilmente com o meu
lenço, bati em seu ombro e o deixei descansar.
Eu pedi para que os condutores da liteira o levassem para cima, para o que havia sido o
meu quarto, e eu fechei a porta atrás de mim agora com uma sensação estranhamente mista de
triunfo e depressão.
Eu tinha passado a manhã com a Sra. Figg e a empregada, Doreen, empacotando o que
sobrara dos móveis de John — a maior parte já tinha sido enviada para Nova York — e
rearrumando a casa para que ela servisse como um consultório temporário. Mesmo que
fôssemos deixar a Carolina do Norte em breve — e quanto antes melhor — eu tinha que ter
algum lugar para colocar Tench onde ele pudesse ser observado em boas condições de conforto
e higiene. E os pacientes que eu costumava atender na tipografia certamente poderiam receber
cuidados mais convenientes aqui.
Ao mesmo tempo... estar aqui de novo me trazia ecos do desespero entorpecido que eu
tinha vivido naquelas semanas ao acreditar que Jamie estava morto. Eu pensei que a azáfama
do trabalho e a limpeza dos móveis poderiam talvez evitar aquela sensação distante de
afogamento, mas no momento havia um redemoinho inquieto em torno dos meus tornozelos.
A opressão mental não era a única condição debilitante conectada à nova situação. Ao
deixar o Número 17 para voltar à casa dos Shippen, eu tinha sido seguida por uma gangue de
homens jovens. A maioria garotos, mas alguns eram grandes, e tinham entre dezesseis e
dezessete anos, grandes o suficiente para me deixarem inquieta sob seus olhares.
Ainda mais inquieta quando eles começaram a se aproximar de mim, apressando o passo
para sussurrar — Prostituta do rei! — em minha orelha antes de caírem para trás, ou tentarem
pisar na barra de minha saia, com risadinhas.
Eu pensei ter visto um ou dois deles na multidão, quando trouxera Hal para lá. Talvez eles
tenham me seguido e, descobrindo que eu era casada com Lord John, assumiram que eu era
uma vira-casaca, uma traidora da causa Rebelde. Ou possivelmente, eu pensei, endireitando a
coluna, eles fossem apenas infratores insignificantes.
Eu me virei para encará-los, segurando minha sombrinha. Não era exatamente uma arma,
mas nenhuma arma física seria útil contra tantos deles. Até mesmo um garoto de dozes anos
devia ter mais força do que eu no momento.
— O que vocês querem? — Eu exigi, usando a memória de minha voz de matrona, afiada
e dura... ou pelo menos eu esperei ainda ser capaz de fazer isso.
Alguns dos pequenos meliantes piscaram e deram um passo para trás, mas um dos
maiores deu um passo em minha direção, rindo. Precisei de todo meu controle para não recuar.
— Eu não sei, mula — ele disse, olhando-me de cima a baixo com uma insolência
preguiçosa. — O que uma senhora Legalista pode ter que nós possamos querer?
— Um rápido cutucão no olho é tudo o que posso oferecer — Informei a ele secamente,
com um olhar significativo para a minha sombrinha. — Aparentemente eu estou caminhando
muito devagar e atrapalhando o seu progresso, cavalheiro. Podem passar por mim. —
Capturando seus olhos com um olhar ameaçador, eu pisei na rua e gesticulei com a minha
sombrinha, indicando que eles deviam passar.
Isso fez com que alguns deles rissem, mas o garoto grande corou com uma cor rosada que
fez suas espinhas de adolescente florescerem ainda mais. Eu dei um passo para trás, na rua, em
uma imitação de polidez, mas na verdade na esperança de atrair alguma atenção.
Eu tive sorte: uma pequena carroça estava descendo a rua, os cascos dos cavalos batendo
nas pedras, e eu me movi ainda mais para o meio, bloqueando o caminho. O carroceiro,
acordando de sua semi-sonolência, quase levantou, olhando por baixo de seu chapéu.
— O que diabos estes malditos sodomitas estão fazendo no meio da rua? Tirem seus
traseiros gordos do meu caminho! — Ele levantou seu chicote de maneira ameaçadora, e os
garotos, que tinham começado a avançar para cima de mim, rapidamente recuaram.
O carroceiro observou enquanto eles se retiraram, tirou o chapéu e se inclinou para mim.
— Bom dia, vossa senhoria; espero que esteja bem. Posso oferecer uma carona, talvez? —
Ele estava falando em tom de brincadeira; eu não achava que ele realmente sabia que eu
recentemente tinha sido uma senhoria. Ele certamente se surpreendeu quando eu reuni as
minhas saias e montei em sua carroça, entretanto.
— Para casa, James — Eu disse, enrolando minha sombrinha. — E não poupe os cavalos.
A lembrança me fez sorrir um pouco, mas o sorriso morreu com o pensamento de que os
arruaceiros que tinham me abordado certamente viviam em algum local próximo. Eu poderia
não ter tanta sorte numa segunda vez. E com esse pensamento, uma onda de terror frio caiu
sobre mim e eu senti uma cinta de terror no centro de meu corpo, o atrito e os hematomas pelas
horas passadas atada de cabeça para baixo no lombo de um cavalo, sendo carregada indefesa
para...
— Pare com isso! — Eu disse bruscamente para mim mesma. — Pare com isso já! Eu não
vou passar por isso. — Eles eram adolescentes. Eu não tinha medo de... Mas o primeiro homem a
me estuprar tinha por volta de dezesseis anos; ele tinha pedido desculpas. Eu entrei num beco
estreito entre dois prédios e vomitei.
Eu consegui funcionar. Voltei para a casa dos Shippen e peguei minhas coisas, depois fui
para a tipografia para almoçar e empacotar o restante de minhas ervas e medicamentos; Fergus
e Germain os levariam para Chestnut Street durante as entregas da tarde.
Ninguém me molestou no meu caminho de volta à Chestnut Street. Eu poderia pedir a
Jenny para vir comigo, mas o orgulho me impediu. Eu não deixaria que o medo irracional me
impedisse de fazer as coisas que precisavam ser feitas.
Mas por quanto tempo você pode continuar fazendo isso? E qual é o sentido?
— Sempre há um sentido — eu murmurei. — É a vida de alguém. Este é o sentido.
Uma vida que podia ser arrancada, jogada fora, desperdiçada em um campo de batalha...
Quantos homens haviam morrido desta forma? E aquilo não parava, não ficava melhor... Era
uma guerra primitiva, pelo amor de Deus. Uma cadeia interminável de guerras estava entre as
minhas vidas: a Revolução aqui, a Guerra Mundial no outro lado... e conflitos constantes entre
elas.
O verão estava morrendo; o ar estava começando a ter um toque de frescor nas manhãs,
mas no meio da tarde ainda era espesso e pesado. Pesado demais para ser possível respirar
direito.
Eu parei por um momento fora do Número 17, sentindo-me desordenada para lidar com
as coisas. Depois de um momento, eu virei para o corredor que levava para a lateral da casa e
saía no pequeno jardim dos fundos, e me sentei num banco ali, entre as rosas, sentindo-me mal.
Eu não sei por quanto tempo eu fiquei sentada ali, com a cabeça nas mãos, ouvindo o zumbido
alto das abelhas. Mas eu ouvi os passos no corredor e consegui levantar a cabeça.
— Você está bem, Sassenach? — Era Jamie, a grande caixa de medicamentos e bandagens
nos braços. E pelo olhar alarmado em seu rosto, estava razoavelmente óbvio que eu não parecia
bem. Eu não conseguia reunir a energia necessária para tentar parecer bem.
— Eu só... pensei em me sentar — Eu disse, ondulando a mão no ar, indefesa.
— Eu estou feliz por você ter feito isso — Ele pousou a caixa na grama amarelada e se
abaixou na minha frente, examinando o meu rosto. — O que aconteceu?
— Nada — Eu disse e, sem aviso, comecei a chorar. Ou melhor, a vazar. Não era aquele
choro soluçante e convulsivo; as lágrimas apenas corriam pelas minhas bochechas sem minha
aprovação.
Jamie me cutucou por um tempo e se sentou ao meu lado, envolvendo os braços dele ao
redor de mim. Ele estava usando o seu velho kilt, e o cheiro da lã empoeirada, desgastada pelo
tempo, me fez dissolver completamente.
Ele intensificou o seu aperto e, suspirando, pressionou a bochecha em minha cabeça,
dizendo coisas pequenas e carinhosas em gaélico. E em pouco tempo, o esforço para
compreendê-las me fez retomar o controle de mim mesma. Eu inspirei profundamente e ele me
soltou, embora mantivesse o braço ao redor de mim para me dar apoio.
— Mo nighean donn — ele disse suavemente, e tirou os cabelos de meu rosto. — Você tem
um lenço?
Aquilo me fez rir. Ou, melhor, emitir um tipo de risada estrangulada, mas ainda assim...
— Sim. Pelo menos, eu acho que sim. — Eu tateei em meu peito e retirei um quadrado
resistente de linho muito lavado, no qual eu assoei o nariz diversas vezes e depois limpei os
meus olhos, pensando no que diabos eu ofereceria como explicação para meu estado
desordenado, tanto de mente quanto de corpo. Não havia nenhuma forma de começar, então eu
apenas comecei.
— Alguma vez você... Bem, não. Eu sei que sim.
— Provavelmente — ele disse, sorrindo um pouco — O que eu faço?
— Vê o... o vazio. O abismo. — Falar aquelas palavras reabriu a ferida de minha alma e o
vento frio a penetrou. Um arrepio me percorreu, apesar do calor do ar e do corpo de Jamie. —
Quero dizer... sempre está ali, sempre nos seus pés, mas a maioria das pessoas consegue ignorar,
e não pensar sobre isso. Na maior parte do tempo, eu consigo também. Você precisa fazer isso,
para ser médico. — Eu limpei meu nariz na manga, tendo derrubado o lenço. Jamie puxou um
lenço amarrotado de sua manga e me entregou.
— Você não está falando apenas da morte? — Ele perguntou. — Porque eu a vi com
bastante frequência. Ela não me assusta realmente desde que eu tenho dez anos ou mais. — Ele
olhou para mim e sorriu. — E eu duvido que você tenha medo dela, também. Eu já a vi enfrentá-
la milhares de vezes.
— Encarar alguma coisa não significa que você não tem medo dela — Eu disse secamente.
— Geralmente é o oposto. E eu sei que você sabe disso.
Ele fez um ruído baixo em concordância com a garganta e me abraçou gentilmente. Eu
normalmente acharia isso confortante, e o fato de eu não ter achado, serviu simplesmente para
aumentar o meu senso de desespero.
— É que... É apenas... nada. E um nada sem fim... É como se nada que você faça, nada que
você seja, possa importar; tudo é apenas engolido... — Eu fechei meus olhos, mas a escuridão
atrás de minhas pálpebras me assustou e eu os abri de novo. — Eu...
Eu levantei uma mão e depois a deixei cair.
Derrotada, eu disse. — Não estava lá... ou eu não estava procurando por isso, depois que
fui alvejada. Não foi quase morrer que me fez olhar para isso, ver que ela está pairando ali. Mas
ser tão... tão malditamente frágil! Ser tão apavorada.
Eu cerrei meus punhos, vendo os nós dos meus dedos, as veias azuis se destacando nas
costas de minhas mãos e se curvando em meus pulsos.
— Não é a morte — Eu disse, por fim, fungando. — É a futilidade. A inutilidade. A entropia
do sangue. A morte importa, pelo menos às vezes.
— Eu sei disso — Jamie disse suavemente, e pegou minhas mãos nas dele; elas eram
grandes, e surradas, cheias de cicatrizes e mutiladas. — É por isso que um guerreiro não teme
tanto a morte. Ele tem a esperança, e algumas vezes a certeza, de que sua morte vai importar.
O que acontece comigo entre o agora e o depois não importa para ninguém.
Aquelas palavras flutuaram do nada e me atingiram na boca do estômago, com tanta força
que eu mal consegui respirar. Ele as havia dito para mim, do fundo de seu desespero, nas
masmorras da Prisão de Wentworth, uma vida atrás. Ele tinha barganhado por minha vida,
então, com o que ele tinha... não a sua vida, que já estava perdida, mas com sua alma.
Importa para mim! Eu havia dito a ele e, contra todas as probabilidades, tinha curado sua
alma e o trazido de volta.
E então aquilo veio de novo, a necessidade gritante e terrível, e ele deixou a vida de lado
sem hesitar, por seus homens e pela criança que eu carregava. E naquela vez eu tinha sacrificado
a minha alma. E aquilo importava para nós dois.
Ainda importava. E a concha de medo se quebrou como um ovo e tudo dentro de mim se
derramou como sangue e água misturados e eu solucei em seu peito até que não havia mais
lágrimas e nem fôlego. Eu me inclinei contra ele, lânguida como um pano de prato, e observei a
lua crescente começando a se elevar ao leste.
— O que você disse? — Eu falei, levantando-me depois de um longo tempo. Eu me sentia
grogue e desorientada, mas em paz.
— Eu perguntei o que é entropia.
— Oh — Eu disse, momentaneamente desconcertada. Quando o conceito de entropia tinha
sido inventado? Ainda não, obviamente. — É... hã... uma falta de ordem, uma falta de
previsibilidade, uma inabilidade de funcionamento de um sistema.
— Um sistema do quê?
— Bem, aí você me pegou — Eu admiti, sentando-me e limpando o nariz. — Apenas um
tipo ideal de sistema, com energia térmica. A Segunda Lei da Termodinâmica basicamente diz
que a entropia de um sistema isolado (um sistema que não esteja recebendo energia de fora, eu
quero dizer) sempre vai crescer. Eu acho que é apenas uma forma científica de dizer que tudo
vai para a panela, o tempo todo.
Ele riu, e apesar de meu estado quebrado de espírito, eu também ri.
— Sim, bem, longe de mim argumentar com a Segunda Lei da Termodinâmica — ele disse.
— Eu acho que isso provavelmente está correto. Quando foi a última vez que você comeu,
Sassenach?
— Eu não sei — Eu disse. — Não estou com fome. — Eu não queria fazer nada além de
ficar sentada ao lado dele.
— Você está vendo o céu? — Ele disse, um pouco mais tarde. Era de um puro e profundo
violeta no horizonte, terminando numa imensidão preto-azulada sobre nossas cabeças, e
algumas estrelas queimavam como luzes distantes.
— É difícil não ver — Eu disse.
— Sim — Ele se sentou com a cabeça inclinada para trás, olhando para cima, e eu admirei
a linha de seu nariz longo e reto, sua boca suave e ampla e seu longo pescoço, como se os
estivesse vendo pela primeira vez.
— Não é um vazio lá em cima? — Ele disse baixinho, ainda olhando para cima. — E, mesmo
assim, nós não temos medo de olhar.
— Há luzes — eu disse. — Isso faz diferença. — Minha voz estava rouca, e eu engoli. —
Embora eu suponha que mesmo as estrelas estejam se acabando, de acordo com a Segunda Lei.
— Mmphm. Bem, eu suponho que os homens podem fazer todas as leis que quiserem —
ele disse —, mas Deus criou a esperança. As estrelas não vão se acabar. — Ele se virou e,
envolvendo meu queixo com a mão, me beijou gentilmente. — E nem nós.
Os ruídos da cidade tinham silenciado agora, embora nem a escuridão os sufocasse
inteiramente. Eu ouvia vozes distantes e o som de um violino: uma festa, talvez, em uma das
casas daquela rua. E o sino da Igreja de São Jorge indicou as horas com um pequeno “bong”!
Nove horas. E tudo estava bem.
— É melhor eu ver o meu paciente. — Eu disse.
120 – AI DE MIM, POBRE YORICK!
17 de setembro de 1778
Acampamento de Middlebrook, Nova Jersey
Duas noites mais tarde, William estava de pé na borda de uma floresta escura, observando uma
lua crescente e torta espalhando sua luz sobre o Acampamento de Middlebrook. Seu coração
martelava nos ouvidos e ele estava respirando rapidamente, as mãos apertadas em volta do
punho da pá que ele havia acabado de roubar.
Ele estivera correto em sua avaliação sobre as boas-vindas. Ele deixou seu sotaque mais
áspero e, posando de um jovem imigrante da Inglaterra interessado em se unir às tropas de
Washington, ele tinha sido convidado para se juntar à família Hamilton para jantar e para
dormir naquela noite. No dia seguinte, ele tinha caminhado pelo Acampamento de Middlebrook
com o filho mais velho de Hamilton, um homem com aproximadamente a sua idade, onde tinha
sido apresentado ao Capitão Ronson, um dos poucos oficiais ainda presentes ali.
Uma coisa tinha levado à outra e, aos poucos, ele conseguiu dirigir a conversa para a
batalha de Brandywine Creek e então para os prisioneiros de guerra britânicos... e
eventualmente ele tinha sido levado até o pequeno cemitério que estava diante dele agora.
Ele tinha sido cauteloso em relação a Ben, mencionando seu nome apenas casualmente
dentre vários outros... conhecidos da família, ele dissera, que ele ouvira falar que participaram
da batalha. Alguns dos homens com quem ele tinha conversado não tinha reconhecido o nome;
dois ou três disseram “oh, sim, o visconde inglês, prisioneiro, alojado com uma família chamada
Tobermory, um companheiro muito civilizado, era uma pena ter morrido”...
E um homem, um Tenente Corey, tinha dito a mesma coisa, mas seus olhos piscaram
levemente quando ele disse isso. William era esperto o suficiente para abandonar o assunto de
uma vez, mas comentou sobre o Capitão Benjamin Grey com outra pessoa, muito mais tarde e
fora dos ouvidos de Corey.
— Ele está enterrado aqui perto? — Ele perguntara, com o pressuposto decente de uma
preocupação casual. — Eu conheço sua família. Eu gostaria de ser capaz de escrever para eles,
dizer a eles que visitei, sabe...
Tinha sido necessário algum esforço; o solo do cemitério era bastante afastado do
acampamento, em uma pequena colina arborizada, e embora alguns túmulos estivessem
cuidadosamente identificados, outros tinham sido escavados às pressas, e muitos não tinham
nomes. Entretanto, seu companheiro não estava ocupado e tinha uma compleição útil; ele foi
escavando o livro de registros no qual os mortos estavam listados e, após alguns chutes,
eventualmente levou William a um monte achatado de terra com um pedaço de ripa preso
acima, no qual o nome GREY tinha sido escrito com um prego.
— Por sorte você veio antes de outro inverno chegar — Seu companheiro comentou,
arrancando a ripa e examinando-a criticamente. Ele balançou a cabeça, colocou a mão dentro
do bolso e, retirando um lápis de grafite, reforçou o nome com traços fortes, colocando a ripa
de volta na terra. — Talvez isso dure um pouco, para o caso de a família querer fazer uma lápide.
— Isso é... muito gentil de sua parte — William havia dito, a garganta apertada. — Eu vou
falar de sua gentileza para a família dele. — Mas ele não podia chorar por um homem que ele
teoricamente não conhecia, então ele engoliu suas emoções e se virou, encontrando algum
assunto banal para conversar enquanto eles desciam a colina.
Ele tinha chorado sozinho, mais tarde, encostado contra a lateral confortável da égua, cujo
nome era Miranda. Ela não era alegre, mas era um bom cavalo, e apenas bufou um pouco e se
mexeu para dar suporte a ele.
Ele estava insistindo teimosamente para si mesmo que devia haver algum erro. Ben não
podia estar morto. Esta crença tinha sido sustentada pela completa recusa de Tio Hal de
acreditar nas notícias. E era plausível; o que quer que Ezekiel Richardson estivesse planejando,
ele não queria nada de bom para os Greys.
Mas ali estava a sepultura de Ben, silenciosa e lamacenta, salpicada pelas primeiras folhas
de Setembro. E ao redor dele estavam os corpos em decomposição de outros homens, alguns
prisioneiros, alguns regulares Continentais, alguns milicianos... iguais, e igualmente sozinhos
em sua morte.
Ele havia jantado com os Hamilton novamente aquela noite, replicando automaticamente
durante a conversa, mas preocupado com sua própria miséria — e com o pensamento na
miséria ainda maior que estava por vir quando ele tivesse que voltar para Nova York e contar
ao seu pai e ao Tio Hal...
William tinha deixado os Hamiltons na manhã seguinte, deixando o restante do cervo para
eles, e foi seguido pela estrada estreita pelos seus votos de felicidade e pela esperança de que
se encontrariam de novo, junto do General Washington, quando as tropas voltassem para
Middlebrook no inverno. Ele tinha caminhado vários quilômetros descendo a montanha,
arrastando seu espírito atrás de si, quando parou para urinar.
Ele tinha caçado uma vez com Ben, e eles pararam da mesma forma; Ben tinha contado a
ele uma piada particularmente escabrosa, e ele tinha rido tanto que não conseguia mijar e Ben
tinha mijado em seus sapatos, o que fez ambos rirem ainda mais, e...
— Puta que pariu! — Ele disse em voz alta, e, abotoando suas calças, caminhou de volta
até Miranda e virou-se na sela. — Eu sinto muito, velha moça — ele disse, virando a cabeça dela
para encarar a colina acima. — Nós vamos voltar.
E ali estava ele, oscilando entre a convicção de que isso era loucura e o fato doloroso de
que não havia nada que pudesse fazer além de voltar a Nova York, e ele não faria isso até — e a
menos — que não tivesse outra escolha. Pelo menos ele poderia ser capaz de pegar uma mecha
do cabelo de Ben para Tia Minnie...
Aquele pensamento o fez ter vontade de vomitar, mas ele tocou a faca em sua cintura,
apertou a pá com mais força e caminhou cautelosamente entre as sepulturas.
A luz do luar estava forte o suficiente para encontrar os montes de terra, mas não para ler
as marcações. Ele teve que se ajoelhar e correr o dedo sobre várias ripas antes de sentir as letras
de G-R-E-Y.
— Certo — ele disse em voz alta. Sua voz soava baixa e embargada, e ele limpou a garganta
e cuspiu (para o lado, não em cima da sepultura). — Certo — ele disse novamente, com mais
força, e, de pé, pegou a pá e começou a enfiá-la na terra.
Ele começou perto de onde ele pensou que deveria estar a cabeça, mas cavou mais para o
lado — o pensamento de atingir o rosto de Ben com a pá lhe deixou aterrorizado. A terra estava
macia, úmida por causa da chuva recente, mas era um trabalho duro, e apesar do frescor da
noite na montanha, ele estava ensopado de suor antes de cavar por quinze minutos. Se Ben
tivesse morrido de febre do acampamento, como disseram — e veio à sua mente... será que
aquilo era sensato? Ele não estivera na paliçada com os homens alistados. Como um oficial, ele
tinha sido alojado com os Tobermorys. Como ele tinha pego febre do acampamento? Mas ainda
assim, se fosse o caso, então outros teriam morrido da mesma forma; era uma praga altamente
infecciosa, ele sabia disso.
Mas se fosse verdade, então inúmeros homens teriam sido enterrados ao mesmo tempo,
e rapidamente, para prevenir o contágio através dos corpos (Oh, aquele era um ótimo
pensamento: ele poderia estar abrindo uma cova pestilenta). De qualquer forma, se este fosse
o caso, as sepulturas seriam rasas.
Esta era. Sua pá atingiu alguma coisa mais dura do que a terra, e ele parou abruptamente,
os músculos trêmulos. Ele engoliu e voltou a cavar, com mais cautela.
O corpo tinha sido envolvido em um manto de pano de saco grosseiro. Ele não podia ver,
mas sondando cuidadosamente com os dedos, pôde perceber. Agachado, ele cavou com as
mãos, desenterrando o que ele esperava ser a cabeça. Seu estômago estava apertado e ele estava
respirando pela boca. O fedor era menor do que ele esperava, mas definitivamente estava lá.
Oh, Deus. Ben... Ele estivera cultivando a esperança de que a cova estivesse vazia.
Acariciando e sondado, ele descobriu a forma arredondada e inspirou profundamente,
sentindo a borda da mortalha. Ela tinha sido costurada? Não, a borda estava solta.
Ele tinha pensado em levar uma tocha, mas dispensou a ideia, não querendo correr o risco
de ser detectado. No geral, ele estava feliz por não tê-lo feito. Ele limpou a terra de suas mãos
em suas calças e colocou o tecido para trás gentilmente, fazendo uma careta quando ele se colou
na pele abaixo. Ele se soltou com um som horrível, áspero, e ele quase soltou o corpo e correu.
Mas ele se estabilizou e tocou o rosto do homem morto.
Não era tão terrível quanto ele pensou que seria; o corpo parecia intacto em sua maior
parte. Quanto tempo o corpo de um homem demorava para se decompor? O que o coveiro tinha
dito em resposta? Nove anos? Bem, então... Ele vira Hamlet com Ben e Adam, em Londres...
William lutou contra uma insana necessidade de rir e tateou gentilmente pelas feições do
morto. O nariz era largo e atarracado, não bicudo e afiado como o de Bem — mas sem dúvida o
processo de decomposição... Ele deslizou os dedos pela têmpora, pensando em ver se uma
mecha de cabelo poderia... e então ele parou, sem respirar.
O cadáver não tinha uma orelha. Inferno, ambas as orelhas estavam faltando. Ele tocou
novamente, em ambos os lados, incapaz de acreditar. Mas era verdade — e as orelhas estavam
em falta há algum tempo; mesmo com a sensação desagradável de carne solta por causa da
decomposição, os sulcos da cicatriz do tecido eram distintos. Um ladrão.
William se sentou nos calcanhares e inclinou a cabeça, soltando um suspiro enorme. Ele
se sentia tonto, e as estrelas pareciam cata-ventos em sua visão.
— Jesus — ele respirou, inundado de alívio, gratidão e terror — Oh, Jesus, obrigado! E, oh,
Cristo — ele adicionou, olhando para o estranho invisível na cova de Ben — o que faço agora?
121 – UM CREPITAR DE ESPINHOS
18 de setembro de 1778
Filadélfia
19 de setembro de 1778
Filadélfia
Mesmo quando o mundo acaba, as coisas continuam a acontecer. Você apenas não sabe o que
fazer em relação a elas.
Tudo cheirava a fumaça e a chamas. O ar, meus cabelos, a pele de Jamie, o vestido mal
ajustado que alguém tinha me dado... Até a comida tinha cheiro de cinzas. Mas, então, é assim
que seria, não?, eu refleti. Não importava; eu não conseguia comer mais do que um ou dois
bocados por educação.
Ninguém havia dormido. A tipografia queimara até o chão em poucas horas; não havia
nada a ser feito além de combater as brasas e as faíscas que voavam, para preservar as casas
próximas. Por misericórdia, não tinha sido uma noite com vento.
Os vizinhos tinham nos dado abrigo, roupas, comida e simpatia abundante. Nada daquilo
parecia real, e eu esperava de forma vaga que esse estado das coisas continuasse, mesmo
sabendo que não poderia ser dessa forma.
O que parecia real, entretanto, era a pequena coleção de vívidas imagens que tinham sido
literalmente gravadas em minha mente durante a noite. Os pés descalços de Henri-Christian,
com as solas sujas e grandes em comparação à perna, saindo debaixo da saia de sua mãe
enquanto ela o embalava, balançando para lá e para cá, envolta numa dor grande demais para
que qualquer ruído saísse. Germain, soltando a corda numa tentativa frenética de voar atrás de
seu irmão, caindo como uma pedra nos braços de Fergus. Fergus agarrando Germain com força
contra o peito de tal forma que os dois deviam carregar hematomas, o gancho brilhando contra
as costas manchadas de fuligem de seu filho.
Os garotos tinham dormido no telhado. Havia uma pequena porta no teto do mezanino do
quarto, da qual ninguém se lembrara com o pânico por causa do fogo.
Quando Germain finalmente começou a falar, em algum momento próximo ao amanhecer,
ele disse que os dois tinham saído para se refrescar e olhar para as estrelas. Eles tinham caído
no sono e não acordaram até que começaram a sentir as telhas onde estavam deitados quentes
— e pela fumaça que os envolviam pelas rachaduras do alçapão. Eles tinham corrido pelo
telhado até o outro lado, onde um alçapão semelhante os levou ao mezanino da tipografia.
Metade do mezanino havia caído e o restante estava em chamas, mas eles conseguiram passar
pela fumaça e chegar até os escombros da porta de carregamento.
— Por quê? — Ele chorou, passando de um conjunto de braços para o outro, ignorando
todas as palavras fúteis de conforto. — Por que eu não o segurei? Ele era muito pequeno; ele
não conseguia se segurar.
Apenas sua mãe não o tinha abraçado. Ela segurava Henri-Christian e não o soltaria até
que a luz do dia chegasse e a exaustão pura afrouxasse o seu aperto. Fergus e Jamie tinham
tinham tirado o pequeno e robusto corpo de sua mão e o levado para ser lavado e preparado
decentemente para os longos procedimentos pelos quais os mortos passam. Então Marsali tinha
ido ao encontro de seu filho mais velho e o tocado gentilmente em seu sono profundo,
lamentando.
O reverendo Figg mais uma vez tinha vindo em nosso auxílio, uma pequena e elegante
figura em seu terno preto e colarinho alto branco, oferecendo sua igreja para a realização do
velório.
Eu estava sentada na igreja agora, no meio da tarde, sozinha, num banco com as costas na
parede, cheirando a fumaça e estremecendo intermitentemente com os ecos das chamas e da
perda.
Marsali estava dormindo na cama de um vizinho. Eu a tinha colocado ali, com suas filhas
curvadas em cada lado de seu corpo, Félicité chupando o polegar, os olhos negros redondos e
atentos como os de sua boneca de pano, que por sorte tinha sido salva das chamas. Tão poucas
coisas tinham sido salvas. Eu me lembrava da constante angústia de perda após a Casa Grande
ter queimado, procurando por alguma coisa e percebendo que não estava ali.
Jenny, cansada e da cor branco-acinzentada de um osso, tinha ido dormir na casa dos Figg,
seu rosário nas mãos, as contas de madeira correndo suavemente por entre seus dedos
enquanto ela caminhava, os lábios movendo-se silenciosamente; eu duvidava que ela pararia
de rezar, mesmo em seu sono.
Pessoas iam e vinham, trazendo coisas. Mesas, bancos extras, pratos de comida. Flores de
final de verão, rosas e jasmins e ásteres azuis, e pela primeira vez, as lágrimas rolaram pelas
minhas bochechas com a lembrança aromática do casamento que tinha acontecido há tão pouco
tempo. Eu pressionei o lenço de um desconhecido em meu rosto, entretanto, não querendo que
ninguém visse e sentisse que deveria me confortar.
O banco ao meu lado rangeu e cedeu um pouco, e eu olhei pela borda de meu lenço para
ver Jamie ali comigo, usando um casaco gasto que claramente pertencia a um condutor de literia
— pois tinha uma faixa ao redor da manga que dizia “82” — e com o rosto lavado, mas as bordas
de sua orelha ainda sujas de fuligem. Ele pegou minha mão e a segurou com força, e eu vi as
bolhas em seus dedos, algumas novas, algumas que já tinham explodido pelo esforço para salvar
o que poderia ser retirado do fogo.
Ele olhou para a frente da igreja, em direção ao que não tinha sido salvo, e depois suspirou
e olhou para nossas mãos entrelaçadas.
— Você está bem, moça? — Sua voz estava rouca, sua garganta em carne viva e engasgada
por causa da fuligem, assim como a minha.
— Sim — eu disse. — Você comeu alguma coisa? — Eu já sabia que ele não tinha dormido.
Ele balançou a cabeça e se inclinou contra a parede, fechando os olhos, e eu senti seu corpo
relaxando pela exaustão momentânea. Ainda havia coisas a serem feitas, mas apenas por aquele
momento... Eu queria enfaixar suas mãos, mas não havia nada com o que fazer aquilo. Eu
levantei a mão que ele segurava e beijei os nós dos seus dedos.
— Como você acha que é quando se morre? — Ele perguntou repentinamente, abrindo os
olhos e olhando para mim. Seus olhos estavam vermelhos como uma almofada de agulha.
— Eu não posso dizer que realmente já pensei sobre isso — Repliquei, surpresa. — Por
quê?
Ele esfregou dois dedos lentamente entre suas sobrancelhas; eu pensei que, pela sua
aparência, devia estar com dor de cabeça.
— Eu só imaginei se seria assim — Ele fez um gesto breve com a mão, abrangendo a sala
meio vazia, as pessoas que tinham vindo desejar que tudo ficasse bem entrando e saindo aos
sussurros, os enlutados sentados, com os rostos inexpressivos como sacos de lixo, mexendo-se
(com um esforço visível) apenas para falar. — Se você não sabe o que fazer e não quer, na
realidade, fazer muita coisa. Ou se é como se você dormisse e acordasse num lugar novo e
quisesse sair de uma vez para saber como tudo é.
— De acordo com o Padre O’Neill, os inocentes ficam na presença de Deus imediatamente.
Não passam pelo limbo e nem pelo purgatório. Assumindo que tenham sido propriamente
batizados. — Eu acrescentei. Henri-Christian tinha, de fato, sido batizado, e como ele ainda não
tinha sete anos, a Igreja assumia que ele não tinha senso de razão o suficiente para cometer
pecados. Logo... — Eu conheci pessoas de cinquenta anos que tinham menos senso do que
Henri-Christian — Eu disse, limpando meu nariz pela milésima vez. Minhas narinas estavam
em carne viva, assim como minhas pálpebras.
— Sim, mas elas têm mais capacidade de causar danos por causa de sua tolice. — Um
sorriso suave tocou sua boca. — Eu pensei que estava morto no campo de Culloden; já falei para
você sobre isso?
— Eu acho que não. Sob tais circunstâncias, eu suponho que teria sido um pensamento
razoável, entretando... Você tinha sido nocauteado?
Ele assentiu, os olhos fixos no assoalho.
— Sim. Se eu tivesse sido capaz de olhar ao redor, eu saberia melhor, mas meus olhos
estavam selados por causa do sangue. Tudo estava vermelho e escuro, então eu supus que
estivesse no purgatório e teria que esperar até que alguém viesse me castigar. Depois de um
tempo, eu supus que o meu tédio era parte da punição. — Ele olhou para o pequeno caixão em
cima de um banco, na frente da igreja. Germain estava sentado ao lado dele, uma das mãos em
sua tampa. Ele não tinha se movido pela última meia hora.
— Eu nunca vi Henri-Christian entediado — eu disse em voz baixa, depois de um
momento. — Nem uma vez.
— Não — Jamie disse suavemente, e pegou minha mão. — Eu suponho que ele nunca
ficará.
Os velórios gaélicos tinham seu próprio ritmo. Fergus e Marsali entraram silenciosamente
uma hora mais tarde e se sentaram juntos de início, com as mãos dadas perto do caixão, mas
quando mais pessoas vieram, os homens gradualmente rodearam Fergus, absorvendo-o, como
uma gangue de fagócitos cercando um micróbio, carregando-o junto com eles; e depois de um
tempo, como normalmente acontece nestas situações, metade dos homens estava em um dos
lados do salão, falando baixinho, e os outros estavam lá fora, incapazes de suportar o espaço
fechado e a emoção exigente, mas querendo prestar sua simpatia e marcar sua presença.
As mulheres se aglomeraram, primeiro perto de Marsali, abraçando e chorando, e depois
se reunindo em pequenos grupos com suas amigas, pairando ao redor das mesas para
reorganizar as coisas e para colocar mais pães e bolos. Josiah Prentice veio com seu violino, mas
o deixou na caixa num primeiro momento. A fumaça de tabaco dos cachimbos dos homens lá de
fora atravessava a igreja em nuvens de um azul suave. Ela fazia cócegas no fundo do meu nariz,
uma reminiscência próxima demais do fogo para que eu me sentisse confortável.
Jamie me deixou com um breve aperto nas mãos e foi falar com Ian. Eu vi os dois olhando
para Germain; Ian assentiu e se moveu silenciosamente até seu sobrinho, colocando ambas as
mãos em seu ombro. Rachel pairava nas proximidades, os olhos negros atentos.
O banco ao meu lado rangeu, e Jenny se sentou. Sem dizer nada, ela colocou o braço em
meu ombro, e também em silêncio, eu inclinei minha cabeça na dela e nós choramos um pouco
— não apenas por Henri-Christian, mas também pelos bebês que nós havíamos perdido, minha
natimorta Feith, e seu bebê Caitlin. E por Marsali, que agora se juntava a nós nesse tipo de
parentesco do luto.
A noite caiu, a cerveja foi servida, alguma bebida mais forte foi trazida, e o clima sombrio
do evento foi se levantando um pouco. Ainda assim, era o velório de uma criança e uma vida
interrompida muito cedo; não poderia haver aquela sensação de memórias compartilhadas e
de risadas que havia no velório de um homem que tinha vivido uma vida plena e cujos amigos
vinham para compartilhar sua morte.
Josiah Prentice tocou seu violino, mas baixinho, misturando lamentos com melodias
calmas e um hino ocasional; não haveria muita cantoria naquela noite. Eu desejei repentina e
violentamente que Roger estivesse ali. Ele talvez soubesse o que dizer, em uma situação onde
não havia nada para dizer. E mesmo com sua voz danificada, ele saberia uma música para
cantar, uma oração para oferecer.
O padre O’Neill da Igreja de São Jorge tinha vindo, diplomaticamente ignorando o
casamento Quaker não ortodoxo realizado um mês antes, e ficou em pé perto da porta, para
conversar com Fergus e alguns outros homens.
— Pobre criança — Jenny disse, sua voz rouca pelas lágrimas, mas mais estável agora. Ela
estava segurando minha mão, e eu a dela, e ela não estava olhando para o caixão, mas para
Fergus — Seus filhos significam tudo para ele... e especialmente o nosso homenzinho.
Seus lábios tremeram, mas ela os pressionou juntos e endireitou as costas.
— Você acha que Marsali está grávida? — Ela disse, muito suavemente, olhando para
Marsali, com Joan e Félicité agarradas às suas saias, a mão de Joan em seu colo. A mão de sua
mãe descansava nos cabelos dela, gentilmente alisando-os.
— Eu acho — Eu disse, tão suavemente quanto ela.
Ela assentiu, e sua mão mudou, meio que se escondendo nas dobras de sua saia, fazendo
chifres contra o mal.
Mais pessoas tinham vindo. O Congresso estava se reunindo na Filadélfia, e muitos
delegados que realizavam negócios com Fergus tinham aparecido. Jonas Phillips e Samuel
Adams estavam lá, conversando perto dos refrescos da mesa. Se eu estivesse com um quadro
mental diferente, poderia ter me sentido maravilhada ao estar no mesmo cômodo com dois dos
homens que assinaram a Declaração da Independência, mas, eles eram apenas homens —
embora eu tenha achado gentil o fato de eles comparecerem.
Eu procurava por Germain a cada poucos minutos; agora ele estava de pé próximo às
mesas com Ian, bebendo alguma coisa de uma xícara. Eu pisquei e olhei novamente.
— Jesus H... Eu quero dizer, Santo Deus! Ian está dando licor de cereja a Germain!
Jenny olhou para os lábios vermelhos e brilhantes de Germain, e um tremor de diversão
passou por ela.
— Não consigo pensar em nada melhor para o rapaz agora, você consegue?
— Bem... não — Eu fiquei de pé, balançando minha saia. — Você quer um pouco?
— Quero — Ela disse, e se levantou com entusiasmo. — E talvez alguma coisa para comer,
também. Será uma longa noite; precisaremos de algo para nos sustentar, sim?
Era melhor estar de pé e se movimentando. A névoa do luto ainda era uma sensação
entorpecente, e eu não imaginava que ela passaria rapidamente, mas ao mesmo tempo... Eu
percebi que estava com fome agora.
O sentimento no salão foi mudando gradualmente, do primeiro impacto do choque e do
ressentimento, para o apoio confortante da família, e agora para conversas aleatórias. Que
estavam, eu percebi inquieta, começando a focar na especulação do que — ou quem — tinha
começado o incêndio.
No choque e no luto do evento, nenhum de nós tinha conversado sobre isso, mas mesmo
através da névoa entorpecente, as questões insidiosas pairavam como morcegos sobre nossas
cabeças: Por quê? Como? E... Quem?
Se é que alguém tinha feito aquilo. O fogo era uma praga comum numa época em que todas
as casas tinham lareiras abertas, e uma tipografia, com seu tipo de forja e seu estoque de
materiais inflamáveis, era ainda mais vulnerável a um simples acidente. Uma janela aberta, uma
brisa perdida, papeis soltos soprados... uma brasa cuspida do fogo capturando a folha...
E ainda assim...
A memória da carta anônima flutuava pesadamente na superfície de minha mente. Sua
casa está pegando fogo e seus filhos se foram...
E os jovens que tinha me seguido da Chestnut Street, a forma furtiva com que caminhavam
e suas provocações sussurradas. Deus, eu poderia ter levado sua inimizade até a porta de Fergus?
Jamie tinha vindo para ficar ao meu lado novamente, estável e sólido como uma rocha, e
me entregou um copo de licor de cereja. Era como beber um xarope para tosse muito forte, mas
era inegavelmente revigorante. No sentido que você ficava insensível, pelo menos. Eu vi que
Germain tinha deslizado lentamente para baixo perto da parede; Rachel ajoelhou-se perto dele
e o colocou no chão, depois dobrou seu xale e colocou sob sua cabeça.
O licor de cereja estava assumindo o lugar do nevoeiro; eu pensei que me sentir bêbada
era provavelmente uma melhora, no geral.
— Sra. Fraser? — Uma voz estranha à minha esquerda chamou minha atenção da
contemplação confusa das profundezas vermelho-escuras de meu copo. Um jovem homem com
roupas surradas estava parado em meu cotovelo, com um pequeno pacote nas mãos.
— Ela é — Jamie disse, dando ao homem um olhar inquisitivo. — Você está precisando de
um médico? Porque...
— Oh, não, senhor — O jovem homem assegurou a ele, obsequioso. — Pediram-me para
entregar isso nas mãos da Sra. Fraser, isso é tudo. — Ele entregou o pacote para mim, com uma
curta reverência, virou-se e saiu.
Confusa, e lenta pela fadiga, pelo luto e pelo licor de cereja, eu me atrapalhei com o laço,
então desisti e entreguei o pacote para Jamie, que esticou a mão para procurar sua faca,
falhando em encontrá-lo — porque, é claro, ela tinha sido perdida no fogo — e com um lampejo
de irritação, simplesmente arrancou a fita. O embrulho se abriu para revelar uma pequena bolsa
de couro e um bilhete, dobrado, mas não selado.
Eu pisquei e estreitei os olhos por um momento, depois mergulhei a mão em meu bolso.
Por um milagre, meus óculos estavam na parte de baixo da casa, deixados na cozinha quando
eu os tirei para cortar as cebolas, e Jamie tinha conseguido reavê-los em sua incursão pela casa
em chamas. A escrita elegante apareceu com uma clareza reconfortante.
Sra. Fraser,
Eu não acho que a minha Presença seria bem-vinda e eu não me intrometeria no Luto
privado. Eu não peço nada, nem Reconhecimento e nem Agradecimentos. Eu só peço para que você
me permita ajudar da única forma que eu posso e que você não revele a Fonte dessa Assistência
ao jovem Sr. Fraser. Eu confio em sua Discrição, bem como em sua Sabedoria.
Apesar da generosidade dos vizinhos, havia muito pouco para embalar. Também não havia mais
nenhuma razão para permanecer na Filadélfia. Nossa vida ali tinha terminado.
Havia — sempre há — uma especulação considerável em relação à causa do incêndio. Mas,
depois daquela explosão durante o velório, um senso de finalidade tinha se estabelecido entre
nós. Os vizinhos continuariam a falar, mas entre a família havia um acordo não falado de que
fazia pouca diferença se o incêndio tinha ocorrido por puro acidente ou pela maldade de
alguém. Nada traria Henri-Christian de volta. Nada mais importava.
Jamie tinha levado Fergus para fazer os arranjos de nossa viagem: não porque ele
precisasse de ajuda, mas como uma forma de manter Fergus em movimento, em vez de deixá-
lo simplesmente sentar ao lado do pequeno caixão de Henri-Christian e nunca mais se levantar.
As coisas eram mais fáceis e mais difíceis para Marsali. Ela tinha crianças das quais cuidar,
crianças que precisavam demais dela.
Rachel e eu empacotamos o que havia para empacotar, compramos comida para a viagem
e lidamos com os detalhes finais de nossa partida. Eu empacotei as coisas de meu consultório e,
com lágrimas mútuas e abraços, dei as chaves do Número 17 da Chestnut Street para a Sra. Figg.
E no final da tarde do dia seguinte ao velório, nós emprestamos um pequeno carrinho,
engatamos em Clarence e seguimos Henri-Christian até sua sepultura. Não houvera muita
discussão em relação ao enterro. Após o velório, Ian simplesmente se levantou e disse — Eu sei
onde ele deve descansar.
Era um longo caminho, talvez duas horas de caminhada para fora da cidade. O calor enfim
tinha diminuído, entretanto, e o ar se movia gentilmente ao redor de nós, com o primeiro toque
de frescor do outono. Não houve cerimônia em nossa procissão; não houve lamentos gaélicos
para uma vida tão curta, e nem lamentadoras profissionais. Apenas uma pequena família,
caminhando junta pela última vez.
Nós saímos da estrada ao sinal de Ian. Jamie desatou o carrinho de Clarende e a colocou
para pastar, então ele e Fergus levantaram o caixão e seguiram Ian para dentro do sussurro das
árvores, ao longo de um corredor pequeno e escondido, feito pelos cascos de veados, e subiram
até uma pequena clareira na floresta.
Havia dois grandes montes de pedra lá, na altura do joelho. E um menor, na borda da
clareira, sob os galhos de um cedro vermelho. Uma pedra reta se apoiava contra ele, onde a
palavra ROLLO tinha sido rabiscada.
Fergus e Jamie colocaram o pequeno caixão no chão, gentilmente. Joanie e Félicité tinham
parado de chorar ao longo da caminhada, mas vendo o caixão ali, tão pequeno e abandonado,
encarando o pensamento de irem embora... elas começaram a chorar silenciosamente,
agarrando-se fortemente uma à outra, e ao vê-las, a tristeza se elevou de mim como uma fonte.
Germain estava segurando com força a mão de sua mãe, mudo e com a mandíbula cerrada, mas
sem chorar. Não procurando suporte, mas dando, embora a agonia aparecesse claramente em
seus olhos enquanto eles descansavam sobre o caixão de seu irmão.
Ian tocou o braço de Marsali gentilmente. — Este local é abençoado pelo meu suor e pelas
minhas lágrimas, prima — ele disse suavemente. — Vamos abençoá-lo também com o nosso
sangue e deixar o nosso pequeno rapaz descansar aqui a salvo com sua família. Se ele não pode
ir conosco, vamos deixar uma parte nossa com ele.
Ele pegou a sgian dubh de sua meia e a passou no pulso, levemente, depois segurou o braço
em cima do caixão de Henri-Christian, deixando que algumas gotas caíssem na madeira. Eu
podia ouvir o som das gotas, como o começo da chuva. Marsali respirou de forma entrecortada,
endireitou o corpo e pegou a faca da mão dele.
PARTE VIII
BUSCA E RESGATE
Caro Hal,
Nós chegamos em Charleston a navio dois dias atrás, tendo encontrado uma Tempestade em
Chesapeake que nos empurrou para o Mar, atrasando-nos por muitos dias. Eu tenho certeza de
que você não ficará nem um pouco surpreso ao saber que Dottie é uma Navegadora muito melhor
do que eu.
Ela também parece Promissora como Agente de investigação. Nesta manhã, ela descobriu o
Paradeiro de Amaranthus Cowden pelo simples Expediente de parar uma Senhora bem-vestida na
Rua, admirando seu Vestido, e depois perguntando pelos nomes das melhores Costureiras da
Cidade, no Pressuposto (como ela me explicou mais tarde) de que Ben não teria se casado com
uma Mulher simplória ou uma que não tivesse Interesse em Moda.
A terceira Loja que visitamos de fato se vangloriou de que a Senhora Cowden (ela estava
chamando a si mesma de Sra. Grey, mas eles sabiam qual era o seu Nome de Solteira, já que ela
morava com uma Tia chamada Cowden) era uma Cliente, e eles foram capazes de descrevê-la para
mim como uma jovem Mulher de Altura média, com uma excelente Compleição, grandes Olhos
castanhos, e Cabelos abundantes de uma Tonalidade loiro-escura. Eles não puderam, entretanto,
passar o Endereço dela a mim, já que a Senhora recentemente saiu da cidade para passar o
inverno com as Amigas em Savannah. (A Tia acabou morrendo, pelo que descobri).
Interessantemente, ela se veste como uma Viúva, portanto aparentemente ela foi informada
— e por quem? Eu gostaria de saber — da presumida Morte de Ben, algum tempo depois da Data
da Carta que enviou a você, caso contrário ela certamente teria mencionado.
Eu também acho interessante que ela possa pagar pelos Serviços de Madame Eulalie — e
não uma pequena Extensão deles; eu tive sucesso ao induzir a Madame a me mostrar suas Contas
recentes — quando a Carta dela a você professou que estava em Dificuldades financeiras devido
à Captura de Ben.
Se Ben estiver de fato morto e tanto a Morte quando o Casamento se provarem reais, então
presumivelmente ela herdaria alguma propriedade — ou pelo menos a Criança herdaria. Mas ela
não pode ter possivelmente tomado tais Passos Legais no Período entre o envio da Carta a você e
o Presente; facilmente demoraria este tempo meramente para enviar uma Carta a Londres —
assumindo que ela tivesse qualquer Ideia para quem deveria enviar. E assumindo também que,
quem quer que tenha recebido não tivesse imediatamente informado a você.
Oh — ela realmente tem um Bebê, um Menino, e a Criança é dela; a Madame fez a ela dois
Vestidos e um conjunto de Anáguas para acomodar a Gravidez. Naturalmente, não foi dito se
Benjamin é o Pai da criança. Ela claramente conheceu Ben — ou possivelmente Adam; ela poderia
saber de “Wattiswade” por qualquer pessoa da Família — mas isso não é Prova nem do Casamento
e nem da Paternidade.
Em suma, uma Mulher interessante, sua suposta Nora. Claramente nosso Caminho agora
está em direção à Savannah, embora isso possa requerer um pouco mais de Esforço investigativo,
já que não sabemos os Nomes das Amigas de quem ela está recebendo Refúgio, e se ela é realmente
pobre, não comprará novos Vestidos.
Eu espero convencer Dottie de que ela não precisa me acompanhar. Ela está muito
determinada, mas eu posso ver que ela anseia pelo seu Médico Quaker. E se a nossa Busca for muito
prolongada... eu não permitirei que ela seja colocada em Perigo, garanto a você.
Seu mais afetuoso Irmão,
John
Senhor,
Está aqui ordenado e determinado que você monte e reajuste suas Tropas de qualquer maneira
que achar necessário, para em seguida fazer a Junção com o Tenente-Coronel Archibald Campbell,
para marchar na Cidade de Savannah na colônia da Geórgia, e tomar posse do local em nome de
Sua Majestade.
H. Clinton
Harold, o Duque de Pardloe sentiu seu peito se apertar e chamou seu ordenança.
— Café, por favor. — Ele disse ao homem. — Feito bem forte, e rapidamente. E traga um
conhaque enquanto estiver providenciando o café.
125 – TRAZIDO A VOCÊ PELAS LETRAS Q, E, E D
Lord John e sua sobrinha, Dorothea, comeram naquela noite em uma pequena taverna próxima
à costa, cujo ar estava impregnado com o aroma delicioso de peixe assado, enguias ao molho de
vinho e pequenas lulas inteiras, empanadas em farinha de milho e fritas. John inalou
profundamente com prazer, entregou um banquinho a Dottie e se sentou, aproveitando o
momento de indecisão gustativa.
— É aquele momento em que você pode imaginar de forma convincente a perspectiva
agradável de comer tudo o que o estabelecimento tem a oferecer. — Ele disse à Dottie. — Sem
se incomodar, momentaneamente, com o fato de que o estômago possui uma capacidade
limitada e que, portanto, é necessário escolher, afinal.
Dottie parecia um pouco em dúvida, mas, estimulada, ela inspirou profundamente a
atmosfera, na qual o cheiro de pão recém-saído do forno tinha sido adicionado, quando a
garçonete passou com uma grande fatia e um prato de manteiga no qual havia um trevo de
quatro folhas — sendo este o nome do local — estampado em sua superfícia oleaginosa.
— Oh, isso tem um cheiro maravilhoso! — Ela disse, o rosto se iluminando. — Posso ter
um pouco disso, por favor? E um copo de cidra?
Ele estava satisfeito ao vê-la morder o pão avidamente e inspirar profundamente sobre a
cidra — que era aromática o suficiente para rivalizar até mesmo com a lula, sua própria
relutante escolha final, embora ela fosse acompanhada por uma dezena de ostras frescas para
preencher quaisquer espaços que pudessem sobrar. Dottie tinha escolhido a pescada cozida,
embora só tivesse beliscado por enquanto.
— Eu fui até o porto esta tarde enquanto você estava descansado — ele disse, arrancando
um pedaço de pão para neutralizar o rabanete ralado misturado com a água salgada das ostras.
— Fiz algumas perguntas e descobri dois ou três barcos cujos donos não são avessos a viajar
até Savannah.
— Quanto demoraria? — Ela perguntou com cautela.
— É um pouco mais do que cento e sessenta milhas pela água — ele disse, dando de
ombros de forma casual. — Talvez dois dias, com um bom vento e um bom tempo.
— Hum — Dottie lançou um olhar cético à janela fechada do local. As persianas tremiam
por causa de uma rajada de chuva e vento. — É Outubro, Tio John. O tempo é bastante
imprevisível.
— Como você sabe? Madame... Posso ter um pouco de vinagre para a lula? — A esposa do
proprietário assentiu, saindo, e ele repetiu. — Como você sabe?
— O filho de nossa senhoria é um pescador. Assim como seu marido era. Ele morreu num
vendaval, no último outubro — ela finalizou docemente, e colocou o último pedaço de pão em
sua boca.
— Tal prudência e escrúpulos não combinam com você, Dottie — ele observou, aceitando
a garrafa de vinagre da proprietária e encharcando uma de suas lulas crocantes. — Oh, Deus —
ele disse, mastigando. — Ambrosia. Aqui... Experimente uma. — Ele espetou uma com seu garfo
e passou através da mesa para ela.
— Sim. Bem... — Ela olhou para o garfo carregado de lula sem entusiasmo. — Quanto
tempo levaria para viajar por terra?
— Talvez quatro ou cinco dias. Novamente, com bom tempo.
Ela suspirou, levantou a lula até sua boca, hesitou, e depois, com um ar de um gladiador
romano enfrentando um crocodilo na arena, colocou-a na boca e mastigou. Ela ficou pálida.
— Dottie! — Ele pulou para cima, derrubando seu banco e conseguiu pegá-la enquanto
ela murchava em direção ao chão.
— Gah — Ela disse fracamente e, soltando-se de seus braços, correu para a porta,
vomitando.
Ele a seguiu e teve tempo de segurar sua cabeça enquanto ela perdia o pão, a cidra e a lula
meio mastigada.
— Eu sinto muito. — Ela disse alguns momentos depois, quando emergiu da taverna com
uma caneca e um pano úmido nas mãos. Ela estava inclinada contra a parede mais abrigada do
prédio, envolta em sua capa e da cor de um pudim de sebo. — Como sou nojenta.
— Não pense nisso — ele disse amavelmente. — Eu já fiz o mesmo pelos seus três irmãos,
algumas vezes, embora não pelo mesmo motivo. Há quanto tempo você sabe que está grávida?
— Eu tive certeza disso há cerca de cinco minutos. — Ela disse, engolindo audivelmente e
dando de ombros. — Santo Deus, eu nunca mais vou comer lula.
— Você já comeu lula antes?
— Não. Eu nunca mais vou querer ver outra lula. Minha boca está com gosto de vômito.
John, que de fato tinha experiência em tais assuntos, entregou a ela uma caneca de cerveja.
— Lave a sua boca com isso — ele disse. — E depois beba o restante. Isso vai assentar seu
estômago.
Ela olhou em dúvida para a caneca, mas fez o que ele disse, e emergiu da caneca ainda
pálida, mas muito melhor.
— Está se sentindo melhor? Bom. Eu não imagino que você vai querer voltar lá para
dentro. Não, é claro que não. Deixe-me pagar e eu vou te levar para casa.
Lá dentro, ele pediu para a proprietária embrulhar o seu jantar abandonado... Ele não se
importava em comer lula frita fria, mas ele queria comer; ele estava faminto. Ele segurou tudo
cuidadosamente contra o vento enquanto eles voltavam para seus aposentos.
— Você não sabia? — Ele perguntou, curiosamente. — Eu sempre me perguntei sobre
isso. Algumas mulheres me disseram que sabiam logo de cara, e eu já ouvi falar de algumas que
de alguma forma se mantiveram alheias à sua condição até o momento em que o nascimento
estava diante delas, por mais incrível que isso pareça.
Dottie riu; o vento frio tinha trazido um pouco de cor de volta às suas bochechas, e ele
estava aliviado por ver que ela estava recuperada.
— Muitas mulheres discutem suas intimidades com você, Tio John? Isso parece um pouco
incomum.
— Eu pareço atrair mulheres incomuns — ele disse, tristemente. — Eu também pareço
ter o tipo de rosto que compele as pessoas a contar as coisas. Em outra época, talvez eu pudesse
ser um confessor, se esta é a palavra. Mas voltando ao assunto... — ele pegou seu cotovelo para
guiá-la ao redor de uma grande pilha de esterco — agora que você sabe... o que devemos fazer
em relação a isso?
— Eu não acho que nada precisa realmente ser feito por cerca de oito meses — ela disse
e ele lançou um olhar para ela.
— Você sabe o que eu quero dizer. — ele disse. — Eu duvido que você pretenda
estabelecer residência em Charleston até que sua criança nasça. Você quer voltar à Filadélfia...
ou para Nova Jersey, ou onde quer que Denzell esteja no momento... ou eu devo fazer arranjos
para irmos à Savannah e ficarmos lá por algum tempo? Ou... — Outro pensamento chegou a ele,
e ele mudou o olhar para um mais sério. — Você quer ir para casa, Dottie? Para a Inglaterra,
quero dizer. Para sua mãe?
O rosto dela ficou inexpressivo pela surpresa, que deu lugar a um olhar de saudade que
partiu seu coração. Ela olhou para o outro lado, piscando para se livrar das lágrimas, mas sua
voz era estável quando ela se virou para ele.
— Não — ela disse, e engoliu. — Eu quero ficar com Denzell. Tirando todas as outras
considerações — ela adicionou, conseguindo sorrir —, ele sabe como fazer um parto. Seu primo
William é o parteiro da Rainha, e Denny estudou com ele por um tempo.
— Bem, isso será útil — Grey concordou, secamente. Ele já tinha feito um parto uma vez,
completamente contra sua vontade, e ainda tinha pesadelos sobre aquilo.
Ele tinha certeza que Dottie não iria querer voltar para a Inglaterra, entretanto. Ele tinha
sugerido aquela noção por impulso mas agora percebia que isso podia ser mais perigoso do que
qualquer uma das outras alternativas. Desde que a França tinha entrado na guerra, todos os
navios ingleses corriam riscos.
— Eu estou pensando que devemos ir para Savannah, entretanto — Dottie estava dizendo.
— Estamos tão perto, quero dizer... E se a esposa de Ben estiver lá... ela pode precisar de nossa
ajuda, não?
— Sim — Ele concordou relutantemente. Havia uma obrigação familiar.
E, afinal de contas, a menos que ele fixasse residência em Charleston pelos próximos oito
meses, parecia não haver alternativa para a viagem de Dottie, em qualquer direção. Ainda
assim... o pensamento de ela dando à luz aqui, ele sendo o responsável por encontrar parteiras
e enfermeiras... e então ela e a criança precisariam ser transportadas.
— Não — ele disse, mais definitivamente — Amaranthus, assumindo que ela exista, terá
que se virar sozinha por um pouco mais de tempo. Eu vou te levar de volta a Nova York.
127 – O PLANO OGLETHORPE
Final de novembro
Savannah, diferente da maioria das cidades americanas, tinha sido cuidadosamente planejada
por seu fundador, um homem chamado Oglethorpe. Eu sabia disso porque a Sra. Landrum, a
mulher de quem tínhamos alugado nossa casa, tinha explicado para mim que a cidade fora
estabelecida de acordou com o “Plano Oglethorpe” — isso sendo dito em tons portentosos, já
que a Sra. Landrum era uma parente do acima referido Oglethorpe e era intensamente
orgulhoso da cidade e de sua perfeição cívica.
O plano consistia em seis alas — cada ala sendo composta por quatro blocos cívicos —
para negócios, e quatro alas para as casas, estes dispostos ao redor de uma praça aberta. Havia
dez casas em cada bloco administrativo49 e os homens de cada um deles treinavam juntos para
o serviço de milícia.
— Embora isso não seja mais tão importante quanto costumava ser — A Sra. Landrum
explicou para mim. — Os índios ainda são um incômodo na floresta, mas faz anos desde que
eles se incomodaram em vir para a cidade.
Eu pensei que os índios eram o de menos, mas como a Sra. Landrum não parecia
preocupada com a guerra contra os britânicos, eu não entrei nesse mérito. Era aparente pelas
suas referências que não apenas a sua família, mas todo mundo que ela conhecia, era Legalista,
claramente aquele era o estado das coisas, e aborrecimentos como aquela “rebelião, como eles
gostam de chamar” em breve seriam resolvidos e nós poderíamos comprar chá a um preço
decente mais uma vez.
Do meu ponto de vista, a coisa mais interessante em relação ao plano do Sr. Oglethorpe —
no curso da conversa, foi revelado a mim que ele tinha fundado não apenas Savannah, mas toda
a Província da Geórgia — era que cada casa de um bloco administrativo era provida de uma
área de fazenda de aproximadamente dois quilômetros fora da cidade e uma horta de cinco
hectares.
— Sério? — Eu disse, meus dedos começando a coçar com o pensamento na terra. — É...
Vocês plantam o quê?
O resultado desta conversa — e de muitas como essa — é que eu fiz arranjos para ajudar
na manutenção da horta em troca de uma participação nas “insolências” (como a Sra. Landrum
se referia às coisas verdes, como couve e nabos), aos feijões e ao milho seco, bem como um de
pequeno lote onde eu poderia cultivar as minhas ervas medicinais. Uma consequência
secundária daquele amável conhecimento era que Rachel e Ian, cujo quarto era abaixo do nosso,
começaram a se referir ao filho ainda não nascido como Oglethorpe, embora isso fosse
educadamente abreviado para “Oggy” quando a Sra. Landrum estava ouvindo.
E o terceiro e mais importante efeito da amizade com a Sra. Landrum foi que eu me
encontrei mais uma vez como uma médica.
Estávamos em Savannah há poucas semanas quando a Sra. Landrum veio para nosso
quarto numa tarde e perguntou se eu poderia saber alguma coisa sobre curas para dor de dente,
ela sabendo que eu tinha jeito com as ervas e tal.
— Oh, eu posso — repliquei, com um olhar repentino para minha bolsa médica, que
estivera acumulando poeira embaixo de nossa cama desde nossa chegada. — De quem é o
dente?
49 No texto original, a autora utiliza o termo “Tything”, que se refere à divisão administrativa ou unidade territorial.
O dente tinha pertencido a um cavalheiro chamado Murphy, do bloco Ellis, em que
vivemos. Eu digo que “tinha pertencido” porque eu tinha tirado o bicúspide quebrado e
infeccionado da boca do Sr. Murphy antes de ele poder dizer Jack Robinson, embora ele
estivesse com tanta dor que mal podia se lembrar do próprio nome, quanto menos do de Jack.
O Sr. Murphy estava extremamente grato pela sua libertação. Ele também era o
proprietário de um pequeno estabelecimento comercial vago do outro lado da Ellis Square. Foi
um trabalho de poucos segundos para adquirir uma placa onde estava escrito EXTRAÇÃO DE
DENTES. E dentro de vinte e quatro horas com a placa pendurada, eu estava orgulhosamente
depositando meus ganhos na mesa da cozinha — que também era o meu balcão de preparação
de ervas e a escrivaninha de Jamie, já que ocupava o centro de nosso pequeno cômodo.
— Muito bem, Sassenach!
Jamie pegou um pequeno pote de mel, recebido em pagamento de um dente do siso
arrancado. Ele amava mel. Eu também tinha recebido dois grandes ovos de peru (um deles
tomava toda a palma de minha mão), um pedaço de pão razoavelmente fresco, seis centavos e
uma moeda de prata espanhola.
— Eu acho que você poderia sustentar a família inteira sozinha, a nighean — ele disse,
enfiando um dedo no mel e o lambendo antes que eu pudesse impedi-lo — Ian e Fergus e eu
todos podemos nos aposentar e nos tornarmos cavalheiros do lazer.
— Bom. Você pode começar fazendo o jantar. — Eu disse, alongando minhas costas. O
espartilho realmente a deixava ereta durante um longo dia de trabalho, mas eu estava
desejando muito tirá-lo, comer o jantar e me deitar, em uma rápida sucessão.
— É claro, Sassenach — Com um pequeno floreio, ele pegou a faca em seu cinto, cortou
um pedaço do pão, regou mel sobre ele e entregou para mim. — Aqui está.
Eu levantei uma sobrancelha para ele, mas dei uma mordida. A doçura inundou minha
boca e a minha corrente sanguínea ao mesmo tempo, e eu senti o gosto da luz do sol e das flores.
Gemi.
— O que você disse, Sassenach? — Ele estava ocupado, untando outra fatia.
— Eu disse “muito bem” — Respondi, e peguei o pote de mel — Nós ainda o
transformaremos num cozinheiro.
Com as questões básicas de moradia e alimentação resolvidas, claramente a próxima ordem dos
negócios era recuperar Bonnie. Jamie tinha localizado a família Bell, e três semanas após a nossa
chegada em Savannah, ele e Fergus tinham juntado dinheiro o suficiente para contratar uma
carroça e uma mula extra do estábulo onde Clarence estava hospedada. Nós encontramos
Richard Bell pela manhã, e ele foi conosco até a fazenda de um tal de Zachary Simpson, o
fazendeiro onde Bonnie estava armazenada.
O Sr. Simpson limpou o restante de feno e tirou a lona com um ar de produção mágica,
como se estivesse tirando um coelho da cartola. Pela reação de três quartos dos espectadores,
poderia se pensar que ele realmente tinha feito isso: Jamie e Fergus suspiraram audivelmente,
e Richard Bell emitiu um zumbido de satisfação. Eu mordi meu lábio e tentei não rir, mas eu
duvido que eles perceberiam se eu tivesse rolado no chão em paroxismos de alegria.
— Nom de Dieu — Fergus disse, estendendo uma mão reverente. — Ela é tão linda.
— A melhor que eu já vi — O Sr. Bell concordou, claramente dividido entre o respeito e o
pesar.
— Sim — Jamie estava rosado pelo prazer, tentando visivelmente manter uma restrição
modesta. — Sim. Ela é linda, não?
Eu supus que ela era — para alguém que conhecia prensas, o que não era o meu caso.
Ainda assim, eu confessava ter certo carinho por Bonnie; nós já tínhamos nos conhecido antes,
em Edimburgo. Jamie estava lubrificando alguma parte de seu mecanismo quando eu retornara
para encontrá-lo após vinte anos, e ela tinha testemunhado a nossa reunião.
E ela tinha resistido aos rigores do desmembramento, da viagem marítima, da
remontagem e de meses emparedada em um celeiro com uma fortaleza louvável. Um pálido sol
de inverno penetrou a rachadura da parede do celeiro, fazendo sua madeira brilhar com um
orgulho sombrio, e seu metal estava — até onde eu podia ver — livre de ferrugem.
— Muito bem — eu disse, dando uma pequena palmadinha nela. Sr. Simpson estava
modestamente aceitando os aplausos da multidão pela sua façanha de preservar Bonnie dos
danos, e eu pude perceber que levaria algum tempo até que eles pudessem colocá-la na carroça
que havíamos trazido, então eu voltei para a casa da fazenda. Eu tinha notado uma numerosa
quantidade de galinhas ciscando no pátio e tinha esperança de conseguir ovos frescos.
O tesouro de Marsali — além da novena de Jenny a Santa Brígida, Rainha do Mar, e mais
uma modesta assistência de minhas agulhas de acupuntura (Clarence por sorte se provou uma
boa marinheira) — fez com que nós chegássemos a salvo em Savannah, mas as exigências de
acomodar dez pessoas e alugar instalações adequadas para uma pequena tipografia tinham
exaurido tanto o ouro das fontes Caslon English Roman quanto o dinheiro do seguro que Fergus
havia recebido pela destruição causada pelo incêndio.
Com a necessidade de renda um pouco aguda, Ian e Jamie tinham encontrado emprego em
um dos armazéns do rio. Uma escolha sábia, como se viu: além de seu pagamento e do estranho
casco de peixe salgado ou biscoito, estar nas docas durante o dia todo permitia que eles
escolhessem primeiro — e com um preço inferior — os produtos dos pescadores. Portanto, nós
não estávamos passando fome e nem ameaçados de escorbuto — o clima estava ameno o
suficiente para que muitas coisas verdes ainda crescessem, mesmo no fim de novembro — mas
eu estava cansada de arroz e peixe e couve do inverno. Um bom prato de ovos mexidos, agora...
possivelmente com manteiga fresca...
Eu tinha vindo equipada para negociar, com muitos pacotes de alfinetes e uma bolsa de
sal, e a Sra. Simpson e eu amigavelmente conduzimos uma barganha por uma cesta de ovos e
uma pequena lata de manteiga antes de os homens tirarem Bonnie do celeiro, e nos sentamos
na varanda, confortavelmente bebendo cerveja.
— Que galinhas notáveis estas — Eu disse, abafando um pequeno arroto. A cerveja, de
produção própria da Sra. Simpson, era deliciosa, mas forte. As galinhas em questão eram mais
do que notáveis: elas nem pareciam ter pernas; era como se estivessem rolando ao redor do
pátio com seus traseiros, bicando seu milho com alegre imperturbabilidade.
— Oh, sim — Disse a Sra. Simpson, assentindo com orgulho. — Minha mãe as trouxe...
bem, trouxe suas tatara-tataravós da Escócia, trinte anos atrás. “Esquisitas” é como ela as
chamava, mas elas têm um nome verdadeiro. Scots Dumpy50, é o nome. Ou pelo menos é o que
um cavalheiro de Glasgow me disse.
— Que apropriado — Eu disse, tomando outro gole de cerveja e olhando para as galinhas.
Elas, afinal de contas, tinham pernas; só que eram muito curtas.
— Eu as crio para venda — A Sra. Simpson adicionou amavelmente. — Caso você queira
uma galinha ou duas.
— Não consigo pensar em nada que eu gostaria mais — Eu disse melancolicamente. Os
arrozais e palmitos de Savannah pareciam infinitamente longe do ar limpo e afiado de Fraser’s
Ridge... mas pelo menos nós estávamos no sul. E março estava chegando, quando teríamos um
bom tempo para viajar, Marsali e Fergus estariam seguramente estabelecidos, e nós
poderíamos ir para a Carolina do Norte. — Talvez em alguns meses... — Eu adicionei galinhas
Scots Dumpy à lista mental que eu estava acumulando e voltei para a cerveja.
Como encanamentos, a medicina é uma profissão onde você aprende desde cedo a não colocar
os dedos na boca. Eu senti o cheiro de minha próxima paciente e estava pegando o pote de sabão
e a garrafa de álcool bruto antes que ela passasse pela porta. E no instante em que eu a vi, sabia
qual era o problema.
Havia duas mulheres, de fato: uma era alta, com uma aparência imponente, bem vestida e
usando um chapéu em vez da touca costumeira. A outra era uma garota pequena e magra que
poderia ter qualquer idade entre doze e vinte anos. Ela era o que se chamava de mulata, metade
negra e metade branca, com a pele café com leite e traços não muito delicados. Eu determinei
sua idade mínima em doze anos apenas porque ela tinha seios aparentes sobre o topo de seu
espartilho. Ela estava vestida impecavelmente, mas de forma simples, com algodão azul, e fedia
como esgoto a céu aberto.
A mulher alta parou, olhando para mim pensativamente.
— Você é uma médica mulher? — Ela perguntou, em tom de acusação leve.
— Eu sou a Dra. Fraser, sim — Repliquei da mesma forma. — E você é...?
Ela corou com isso e pareceu desconcertada. Também parecia em dúvida. Mas depois de
uma pausa constrangedora, ela se decidiu e assentiu bruscamente. — Eu sou Sarah Bradshaw.
A Sra. Phillip Bradshaw.
— É um prazer conhecê-la. E à sua... acompanhante? — Eu assenti para a jovem mulher,
que estava parada com os ombros curvados e a cabeça baixa, olhando para o chão. Eu podia
ouvir um suave ruído de gotejamento, e ela mudou de posição como se tentasse pressionar as
pernas juntas, estremecendo enquanto o fazia.
— Esta é Sophronia. Uma das escravas de meu marido. — Os lábios da Sra. Bradshaw se
comprimiram e se apertaram em linhas retas; pelas linhas que circulavam sua boca, ela fazia
isso rotineiramente. — Ela... quer dizer... eu pensei que talvez... — Seu rosto bastante sério se
inflamou; ela não conseguia descrever o problema.
— Eu sei o que é — Eu disse, salvando-lhe da dificuldade. Eu dei a volta ao redor da mesa
e peguei Sophronia pela mão; as mãos dela eram pequenas e muito calejadas, mas seus dedos
estavam limpos. Uma escrava doméstica, então. — O que aconteceu com o bebê? — Eu
perguntei gentilmente a ela.
Uma inspiração pequena e assustada, e ela olhou de lado para a Sra. Bradshaw, que deu
outro aceno brusco, os lábios ainda cerrados.
— Ele morreu dentro de mim — A garota disse, tão suavemente que eu mal podia ouvi-la,
mesmo que ela estivesse a não mais do que um braço de distância de mim. — Eles tiveram que
cortá-lo em pedaços. — Aquilo provavelmente tinha salvo a vida da garota, mas certamente não
ajudava em sua condição.
Apesar do cheiro, eu inspirei profundamente, tentando manter minhas emoções sob
controle.
— Eu vou precisar examinar Sophronia, Sra. Bradshaw. Se você tiver algum afazer, talvez
seja melhor ir e cuidar deles...?
Ela abriu os lábios o suficiente para fazer um ruído baixo e frustrado. Obviamente, não
havia nada que ela queria mais do que deixar a garota e nunca mais voltar. Mas também
obviamente, ela estava com medo do que a escrava pudesse contar a mim se ficássemos
sozinhas.
— A criança era do seu marido? — Eu perguntei sem rodeios. Eu não tinha tempo para
enrolar; a pobre garota estava pingando urina e fezes pelo chão e parecia prestes a morrer de
vergonha.
Eu duvidava que a Sra. Bradshaw estivesse destinada a morrer naquelas condições, mas
ela claramente se sentia tão envergonhada como Sophronia. Ela ficou pálida pelo choque, e
depois seu rosto corou ainda mais. Ela se virou e saiu, batendo a porta atrás de si.
— Eu vou tomar isso como um “sim”, então — Eu disse para a porta, e me virei para a
garota, sorrindo de forma tranquilizadora. — Aqui, querida. Vamos dar uma olhada no
problema, sim?
Fístula vesicovaginal e fístula retovaginal. Eu sabia desde o primeiro momento; eu apenas
não sabia quão ruim estava ou em qual extensão do canal vaginal ela tinha ocorrido. Uma fístula
é uma passagem entre duas coisas que nunca deveriam estar juntas e é, geralmente falando,
uma coisa ruim.
Não era algo frequente em países civilizados no século vinte, mas era mais comum do que
se podia pensar. Eu tinha visto aquilo diversas vezes em Boston, numa clínina onde eu
trabalhava uma vez por semana para prover cuidados médicos aos pobres da cidade. Jovens
garotas, jovens demais para serem consideradas como sexo oposto de forma séria,
engravidando antes que seus corpos tivessem amadurecido o suficiente. Prostitutas, algumas
delas. Outras garotas que estavam no lugar errado e na hora errada. Como esta.
Um bebê completamente formado que não poderia ser forçado pelo canal de parto, e dias
de trabalho de parto improdutivo, a cabeça da criança batendo como um aríete pelos tecidos da
pélvis, da bexiga, do intestino e da vagina. Até que, enfim, os tecidos afinaram e se partiram,
deixando um buraco irregular entre a bexiga e a vagina, ou entre a vagina e o reto, permitindo
que os dejetos do corpo escorressem para fora sem qualquer obstáculo pela sua vagina.
Não era uma questão de vida ou morte, mas era revoltante, incontrolável e muito
desconfortável, também. A parte interior das coxas de Sophronia estava inchada e com uma cor
vermelha e brilhante, a pele macerada devido à umidade constante, o lodo fecal irritante. Uma
uma fralda permanente, eu pensei, suprimindo uma necessidade profundamente visceral de
encontrar o Sr. Bradshaw e fazer algumas fístulas nele com uma sonda.
Eu conversei com ela enquanto a examinava, suavemente, e depois de um tempo ela
começou a me responder, embora ainda baixinho. Ela tinha treze anos. Sim, o Sr. Bradshaw a
tinha levado para a cama. Ela não tinha se importado. Ele disse que sua esposa era ruim para
ele, e ela era — todos os escravos sabiam. O Sr. Bradshaw tinha sido bom para ela, gentil, e
quando ela descobriu que estava grávida, ele a tinha tirado da lavanderia e colocado para
trabalhar na cozinha, onde ela teria boa comida e não teria que quebrar suas costas com as
roupas de cama pesadas.
— Ele ficou triste — ela disse suavemente, olhando para o teto enquanto eu limpava a
imundice entre suas pernas. — Quando o bebê morreu. Ele chorou.
— Ele chorou? — Eu disse, no que esperava ser uma voz neutra. Eu dobrei uma toalha
limpa e a pressionei entre suas pernas, jogando a molhada que ela estava usando em meu balde
de água e vinagre. — Quando o bebê morreu? Há quanto tempo, quero dizer?
Ela franziu o cenho, a expressão mal ondulando na pele jovem de sua testa. Ela sabia
contar?, eu me perguntei.
— Algum tempo antes de fazer salsicha — ela disse, incerta.
— No outono, então?
— Sim.
E agora nós estávamos no meio de Dezembro. Eu joguei água na minha mão suja e coloquei
um pouco de sabão em minha palma. Eu realmente precisava arrumar uma escova de unhas,
pensei.
A Sra. Bradshaw tinha voltado, mas não entrou na sala; eu tinha puxado as cortinas na
janela da frente, mas sua silhueta era clara através do tecido, as penas vistosas de seu chapéu
como um topete.
Eu bati o pé pensativamente, e depois me balancei para me recompor e abri a porta.
— Eu posso ser capaz de ajudar — Eu disse sem preâmbulos, assustando a mulher.
— Como? — Ela piscou para mim e, tomada de surpresa, seu rosto estava aberto,
preocupado mas sem a aparência comprimida de antes.
— Entre — Eu disse. — Está frio aí fora no vento. — E eu a guiei para dentro, uma mão
em suas costas. Ela era bastante magra; eu podia sentir os nós de sua espinha, até mesmo pelo
casaco e pelo espartilho.
Sophronia estava sentada na mesa, as mãos cruzadas no colo; quando sua dona entrou,
ela baixou a cabeça, olhando para o chão novamente.
Eu expliquei a natureza da dificuldade, da melhor forma que pude — nenhuma delas tinha
qualquer noção da anatomia interna; era uma simples questão de buracos para elas. Ainda
assim, eu consegui dar uma noção geral do problema.
— Você sabe que uma ferida pode ser costurada, para manter a pele junta enquanto ela
se cura? — Eu disse pacientemente. — Bem, é o mesmo tipo de coisa, mas muito mais difícil por
ser algo interno e pelos tecidos serem muito finos e escorregadios. Seria muito difícil de
costurar... Eu não tenho certeza se posso fazer isso, mas pelo menos posso tentar.
Era isso. No final do século dezenove, um médico chamado J. Marion Sims tinha, mais ou
menos, inventado toda a prática da cirurgia ginecológica, a fim de abordar exatamente esta
condição. Havia levado anos para que ele desenvolvesse as técnicas, e eu as conhecia — tinha
realizado o procedimento mais do que uma vez. A questão é que você precisava realmente de
uma anestesia boa e sólida de modo a ter uma chance de sucesso. O láudano ou o uísque podiam
bastar para cirurgias rápidas e mais brutas, mas não para cirurgias meticulosamente delicadas
como esta, o paciente tendo que estar completamente inconsciente e imóvel. Eu teria que
fabricar éter.
Eu não tinha ideia de como faria éter, vivendo numa pequena casa alugada com um
número de pessoas que eu realmente não queria explodir em pedaços. E o pensamento do que
o éter inflamável poderia fazer — tinha feito — me fez suar frio. Mas ao ver a fraca esperança
em seus rostos, eu decidi fazer.
Eu dei a Sophronia um pequeno pote de pomada de cera de abelha para a pele de suas
coxas e disse para elas voltarem em uma semana; eu saberia, então, se era possível. Eu as vi
saindo, e quando elas chegaram à rua, a Sra. Bradshaw esticou a mão inconscientemente e tocou
o ombro de Sophronia em um breve carinho de tranquilização.
Eu inspirei profundamente e resolvi que encontraria uma forma. Virando-me para entrar,
eu olhei do outro lado da rua e vi um homem jovem alto, cujos ombros magros me
surpreenderam com uma sensação de reconhecimento imediato. Eu pisquei uma vez, e a
imaginação prontamente o revestiu em escarlate.
— William! — Eu gritei e, pegando minhas saias, corri atrás dele.
Ele não me ouviu de início, e eu tive um tempo para duvidar — mas não tanto; o conjunto da
cabeça e dos ombros, o longo e decisivo passo... Ele era mais magro do que Jamie, e seus cabelos
eram de um castanho escuro, e não vermelhos, mas tinha os ossos de seu pai. E os olhos:
ouvindo-me, por fim, ele se virou, e aqueles olhos de gato azul-escuros se arregalaram de
surpresa.
— Mãe Cl... — Ele cortou a palavra, seu rosto endurecendo, mas eu estiquei o braço e
peguei sua grande mão entre as minhas (esperando que eu tivesse me livrado de toda a sujeira).
— William! — Eu disse, ofegando um pouco, mas sorrindo para ele. — Você pode me
chamar do que quiser, mas eu não sou menos, e nem mais, do que eu sempre fui.
Seu olhar severo suavizou um pouco com isso, e ele inclinou a cabeça, sem jeito.
— Eu acho que devo chamá-la de Sra. Fraser, não? — Ele soltou sua mão, embora
gentilmente. — Como você veio parar aqui?
— Eu poderia perguntar a mesma coisa... e talvez com mais razão. Onde está o seu
uniforme?
— Eu renunciei à minha comissão — ele disse, um pouco tenso. — Sob as circunstâncias,
pareceu um pouco sem sentido permanecer no exército. E eu tenho negócios a tratar que
requerem maior independência de movimento que eu teria se estivesse entre os auxiliares de
Sir Henry.
— Você poderia vir tomar alguma coisa quente comigo? Pode me contar sobre seus
negócios. — Eu tinha corrido para fora sem o meu manto e uma brisa fria me tocava com mais
intimidade do que eu gostaria.
— Eu... — Ele se conteve, franzindo o cenho, e depois olhou para mim pensativamente e
esfregou um dedo pela longa e reta ponte do nariz, assim como Jamie fazia quando estava
tomando uma decisão. E como Jamie, ele deixou a mão cair e assentiu brevemente como se o
fizesse para si mesmo. — Tudo bem — ele disse, um pouco brusco. — De fato, meus negócios
podem ser... de alguma importância para você.
Após cinco minutos, nós estávamos numa taverna da Ellis Square, bebendo cidra quente,
enriquecida com canela e noz-moscada. Savannah não era — graças a Deus — a Filadélfia, em
termos de clima de inverno desagradável, mas o dia estava frio e havia bastante vento, e o copo
de estanho estava maravilhosamente morno em minhas mãos.
— O que o traz para cá, então, Willie? Ou eu devo chamá-lo de William agora?
— William, por favor — ele disse secamente. — É o único nome que eu sinto meu por
direito, no momento. Eu gostaria de preservar as pequenas dignidades que tenho.
— Hum — Eu disse sem me comprometer. — William, então.
— Quanto ao meu negócio... — Ele suspirou brevemente e esfregou o nó dos dedos entre
as sobrancelhas. Então, ele me explicou sobre seu primo Ben, a esposa de Ben e seu filho, e então
falou sobre Denys Randall e finalmente... Capitão Ezekiel Richardson. Aquele nome me fez
sentar ereta.
Ele notou minha reação e assentiu, fazendo uma careta.
— Foi o que eu quis dizer quando mencionei que meus negócios poderiam ter alguma
relevância à você. Pa... Lord John disse que foi a ameaça de Richardson de prendê-la como uma
espiã que o fez se... é... casar com você. — Ele corou um pouco.
— Foi — Eu disse, tentando não me lembrar da ocasião. De fato, eu me lembrava apenas
de fragmentos daqueles dias vazios e ofuscantes em que eu acreditava que Jamie estava morto.
Um destes fragmentos, entretanto, era uma vívida lembrança de estar na sala de estar do
Número 17, segurando um buquê de rosas brancas, com John ao meu lado e um capelão militar
segurando um livro em nossa frente — e, de pé ao lado de John, sério e bonito, William com seu
uniforme de capitão e com seu gorjal brilhando, parecendo-se tanto com Jamie que eu senti por
um momento vertiginoso que o fantasma de Jamie tinha vindo assistir à cerimônia. Incapaz de
decidir se eu desmaiaria ou correria para fora da sala gritando, eu simplesmente fiquei ali
congelada, até que John me cutucou gentilmente, sussurrando em meu ouvido e eu soltei o “eu
aceito”, caindo na poltrona, com as flores se derramando de minhas mãos.
Capturada pela memória, eu havia perdido o que William estava dizendo e balancei a
cabeça, tentando focar.
— Eu tenho procurado por ele pelos últimos três meses — ele disse, pousando seu copo e
limpando a boca com as costas da mão. — Ele é um canalha indescritível. E eu não sei se ele está
em Savannah, aliás. Mas a última dica que tive dele foi que estava em Charleston, e ele saiu de
lá há três semanas, em direção ao sul. Agora, até onde eu sei, o homem está ligado à Flórida ou
já pode ter tomado um navio para a Inglaterra. Por outro lado... Amaranthus está aqui, ou pelo
menos é o que eu acredito. Richardson parece ter um interesse exagerado na família Grey e em
suas conexões, então talvez... Você conhece Denys Randall pessoalmente, aliás?
Ele estava olhando para mim atentamente sobre o copo, e eu percebi, com um fraco
sentimento de diversão misturado com ultraje, que ele tinha lançado o nome para mim de
repente, na esperança de me surpreender em qualquer conhecimento culpado que eu poderia
ter.
Ora, seu malandrinho, eu pensei, a diversão ganhando vantagem. Você precisará de um
pouco mais de prática até conseguir esse tipo de coisa, meu rapaz.
Eu, de fato, sabia uma coisa sobre Denys Randall que William quase certamente não sabia
— e que Denys Randall mesmo poderia não saber — mas não era uma informação que poderia
lançar qualquer luz sobre o paradeiro e os motivos de Ezekiel Richardson.
— Eu nunca o encontrei — Eu disse, muito sinceramente, e segurei o meu copo em direção
à garçonete, para que ela me servisse mais cidra. — Eu conheci a sua mãe, Mary Hawkins; nós
nos conhecemos em Paris. Uma garota adorável e doce, mas não tive contato com ela pelos
últimos... trinta... não, quarenta e quatro anos. Eu assumo, pelo que você me disse, que ela se
casou com um Sr. Isaacs... você disse que ele era um mercador judeu?
— Sim. É o que Randall disse... e eu não posso imaginar por que ele mentiria sobre isso.
— Nem eu. Mas o que você sabe... O que você acha — eu corrigi — é que, embora Denys
Randall e Ezekiel Richardson parecessem trabalhar juntos antes, agora isso não parece
verdadeiro?
William deu de ombros, impaciente.
— Até onde sei. Eu não vejo Randall desde que ele me advertiu sobre Richardson, mas eu
não vi Richardson também.
Eu podia sentir o seu desejo de se levantar e sair; ele estava tamborilando os dedos
suavemente no topo da mesa, e a mesa em si estremeceu um pouco quando ele bateu a perna
nela.
— Onde você está hospedado, William? — Eu perguntei impulsivamente, antes que ele
saísse. — Em... em caso de eu ver Richardson. Ou ouvir alguma coisa sobre Amaranthus, aliás.
Eu sou uma médica; muitas pessoas vêm me ver, e todos falam com médicos.
Ele hesitou, mas depois deu de ombros novamente, desta vez de forma bastante sutil. —
Eu aluguei um quarto no Hendry’s, na River Street.
Ele ficou de pé, jogou algum dinheiro na mesa, e estendeu a mão para me ajudar a levantar.
— Nós estamos na casa dos Landrum, a um quarteirão do Mercado da Cidade — Eu disse
por impulso, levantando-me. — Se você precisar... ou quiser chamar. Ou precisar de ajuda.
Apenas para garantir, quero dizer.
Seu rosto ficou cuidadosamente inexpressivo, embora seus olhos estivessem queimando
como chamas de fósforo. Eu senti um arrepio, sabendo por experiência própria o tipo de coisa
que devia estar se escondendo por trás daquela fachada.
— Eu duvido, Sra. Fraser — ele disse educadamente. E, beijando minha mão em uma breve
despedida, ele partiu.
129 – SAPOS SE APRESENTANDO
22 de dezembro de 1778
Jamie puxou firmemente a parte de trás da camisa de Germain e acenou com a mão livre para
Ian, que segurava a rocha.
— Olhe para a água primeiro, sim? — Jamie sussurrou, levantando o queixo para o brilho
negro do pântano submerso. Ele estava quebrado pelos aglomerados de capim de ribeira na
altura da cintura e por alguns juncos menores, verdes e brilhantes à luz da tocha. Aquele era
um ponto profundo, entretanto, com dois ou três do que os nativos chamavam de “hammocks”,
embora eles claramente quisessem dizer “hummock”, pequenas ilhas, com árvores como
arbusto-de-sebo e arbustos de chá-dos-apalaches, embora estes também tivessem uma
natureza mais espinhosa, como tudo o mais em um pântano, com exceção dos sapos e dos
peixes.
Alguns dos habitantes mais espinhosos do pântano, entretanto, eram móveis e nada que
você quisesse conhecer inesperadamente. Germain olhou obedientemente na escuridão, sua
lança a postos, segurada de forma firme e alta, pronta para o movimento. Jamie podia senti-lo
tremer, em parte pelo frio, mas principalmente, ele pensou, pela excitação.
Um repentino movimento quebrou a superfícia da água, e Germain avançou para frente,
jogando sua lança na água com um grito estridente.
Fergus e Jamie soltaram gritos mais profundos, cada um deles pegando Germain por um
dos braços e o puxando para trás sobre a lama, quando a cobra Mocassim-d’Água que ele quase
havia atingido se virou para ele, dando o bote, com a boca branca aberta.
Mas a cobra por sorte tinha negócios a fazer em outro lugar e nadou para longe como uma
sinuosidade irritada. Ian, seguramente fora de seu alcance, estava rindo.
— Você acha isso engraçado, não? — Disse Germain, carrancudo, a fim de fingir que não
estava tremendo.
— Sim, eu acho — Seu tio garantiu a ele. — Seria ainda mais engraçado se você fosse
comido por um jacaré, entretanto. Está vendo? — Ele levantou a tocha e apontou; a cerca de
três metros, havia uma ondulação na água, entre eles e a elevação de terra mais próxima.
Germain franziu o cenho, incerto, e depois virou para seu avô.
— Aquilo é um jacaré? Como você sabe disso?
— É — Jamie disse. Seu próprio coração estava acelerado por causa da Mocassim d’Água.
Serpentes o deixavam nervoso, mas ele não tinha medo dos jacarés. Cuidado, sim. Medo, não.
— Está vendo as ondulações em volta daquela ilha?
— Sim — Germain estreitou os olhos pela água. — E?
— Aquelas ondulações estão vindo em nossa direção pela lateral. Aquilo que Ian está
apontando? Está vindo em um ângulo à direita... exatamente para nós.
Estava, embora lentamente.
— Jacarés são bons para comer? — Fergus perguntou, observando pensativamente. —
Eles têm muito mais carne do que um sapo, n’est-ce pas?
— Eles são, e de fato possuem mais carne, sim — Ian trocou o peso de seu corpo um pouco,
avaliando a distância. — Entretanto, nós não podemos matar um destes com lanças. Eu deveria
ter trazido meu arco.
— Devemos nos... mover? — Germain perguntou em dúvida.
— Não, primeiro temos que ver quão grandes eles são — Ian disse, pegando a faca grande
em seu cinto. Ele estava usando uma tanga solta, e suas pernas nuas eram longas e firmes como
as de uma garça-real, em pé no meio da lama, com a água na altura da panturrilha.
Os quatro observaram com grande concentração enquanto a ondulação seguia, parava,
seguia mais um pouco, lentamente.
— Eles ficam atordoados pela luz, Ian? — Jamie perguntou, em voz baixa. Os sapos
ficavam; eles tinham talvez duas dezenas de sapos-boi em seu saco, surpreendidos na água e
mortos antes que soubessem o que os tinha atingido.
— Eu acho que não — Ian sussurrou de volta. — Entretanto, eu nunca cacei um jacaré
antes.
Houve um repentino brilho na água, uma dispersão de ondas e o brilho de duas órbitas
queimadas, os olhos de um demônio.
— A Dhia! — Jamie disse, fazendo um sinal convulsivo contra o mal. Fergus puxou
Germain de volta, fazendo um sinal desajeitado de cruz com seu gancho. Até mesmo Ian parecia
um pouco arrebatado; sua mão se afastou da faca em seu cinto e ele deu um passo para trás, em
direção à lama, sem tirar os olhos daquela coisa.
— É um pequeno, eu acho — Ele disse, com segurança. — Vejam, seus olhos não são
maiores do que a unha do meu polegar.
— Isso importa, se ele está possuído? — Fergus perguntou, desconfiado. — Mesmo que
nós conseguíssemos matá-lo, poderemos ser envenenados.
— Oh, eu acho que não — Jamie disse.
Ele podia vê-lo agora, enquanto ele pairava imóvel na água, os pés curtos e com garras
meio submersos. Talvez tivesse uns sessenta centímetros de comprimento... o maxilar cheio de
dentes com aproximadamente quinze centímetros. Poderia dar uma mordida desagradável,
mas nada além disso. Mas não estava perto o suficiente para ser alcançado.
— Você sabe como os olhos dos lobos se parecem no escuro? Ou de um gambá? — Ele já
tinha levado Fergus para caçar, é claro, quando ele era mais jovem, mas raramente à noite, e as
coisas que você caçava à noite nas Highlands geralmente fugiam de você, não ficavam te
observando.
Ian assentiu, sem tirar os olhos do pequeno réptil.
— Sim, isso é verdade. Os olhos dos lobos geralmente são verdes ou amarelos, mas eu já
os vi vermelhos às vezes, por causa da luz da tocha.
— Eu suponho que um lobo poderia ser possuído por um espírito do mal tão facilmente
quanto um jacaré — Fergus disse, um pouco tenso. Estava claro, entretanto, que ele não estava
com medo da coisa, também, agora que tinha dado uma boa olhada; todos eles estavam
começando a relaxar.
— Ele pensa que nós estamos roubando os sapos — Germain disse, rindo. Ele ainda estava
segurando a lança, e mesmo enquanto falava, ele avistou alguma coisa e lançou a arma na água
com um zumbido.
— Eu peguei, eu peguei! — Ele gritou, e se jogou na água, sem se importar com o jacaré.
Ele se inclinou para ver se sua presa estava firmemente paralisada, soltou outro pequeno grito
e puxou sua lança, exibindo um peixe-gato com um tamanho mediano, a barriga branca à mostra
em seu bater frenético, o sangue correndo em filetes pelos buracos que tinham sido feitos pela
arma.
— Tem mais carne aí do que no seu pequeno lagarto, sim? — Ian pegou a lança, arrancou
o peixe e cortou sua cabeça com a faca para matá-lo.
Todos olharam, mas o jacaré tinha partido, alarmado pelo tumulto.
— Sim, é o suficiente, eu acho — Jamie pegou ambos os sacos: um pela metade, com sapos-
boi, e o outro ainda se contorcendo lentamente pela inclusão de inúmeros camarões e lagostins
capturados nas águas rasas. Ele segurou o saco com os sapos aberto e Ian jogou o peixe ali
dentro, dizendo um verso da Benção da Caça, para Germain. — Você não deve comer peixe caído
e nem carne caída/Nenhum pássaro que sua mão não pode trazer para baixo/Seja grato pelo que
tem/Mesmo que haja mais nove nadando.
Germain não estava prestando atenção, entretanto; ele estava parado, imóvel, os cabelos
loiros se levantando na brisa, a cabeça virada.
— Olhe, Grandpère — ele disse, com a voz urgente. — Olhe!
Todos eles olharam e viram os navios, muito além do pântano, mas se aproximando, indo
para o pequeno promontório ao sul. Sete, oito, nove... pelo menos uma dezena, com lanternas
vermelhas em seus matros, e azuis na popa. Jamie sentiu os pelos de seu corpo se arrepiarem e
seu sangue gelar.
— Homens de guerra britânicos — Fergus disse, sua voz vazia pelo choque.
— Eles são — Jamie disse. — É melhor irmos para casa.
Estava quase amanhecendo quando eu senti Jamie deslizar na cama ao meu lado, trazendo a
pele fria e o cheiro de água salgada, lama fria e plantas do pântano com ele. Também...
— O que é esse cheiro? — Eu perguntei sonolenta, beijando o braço que ele passou ao meu
redor.
— Sapos, eu imagino. Deus, você está quente, Sassenach — Ele se aconchegou mais perto,
pressionando seu corpo no meu, e eu senti que ele soltava o laço da fita que prendia minha
combinação, na altura do pescoço.
— Boa caçada, então? — Eu gentilmente balancei meu traseiro no vazio de suas coxas e
ele suspirou em apreciação, seu hálito quente em minha orelha, e colocou uma mão fria por
dentro de minha combinação. — Oh.
— Sim. Germain pegou um bom peixe-gato, e nós trouxemos um saco de camarões e
lagostins... aqueles cinzas pequeninos.
— Hum. Então teremos um bom jantar. — Sua temperatura estava rapidamente se
igualando à minha, e eu estava derivando agradavelmente de volta para o sono, embora muito
disposta a ser despertada pelas razões certas.
— Nós vimos um jacaré. E uma cobra... uma Mocassim d’Água.
— Vocês não os capturaram, eu espero — Eu sabia que cobras e jacarés eram
supostamente comestíveis, mas eu não pensei que estávamos famintos o suficiente para aceitar
o desafio de cozinhá-los.
— Não. Oh... e uma dezena de navios britânicos cheios de soldados apareceu, também.
— Isso é... O quê? — Eu virei em meus braços, ficando face a face com ele.
— Soldados britânicos — ele repetiu gentilmente. — Não se preocupe, Sassenach. Eu
imagino que ficará tudo bem. Fergus e eu já escondemos a prensa, e nós não temos nada de
prata para enterrar. Isso é algo bom a se dizer da pobreza — ele adicionou reflexivamente,
apertando meu traseiro. — Você não precisa temer ser saqueado.
— Isso... O que diabos eles estão fazendo aqui? — Eu rolei e me sentei na cama, puxando
minha combinação sobre os ombros.
— Bem, você disse que Pardloe contou que eles pretendiam separar as colônias do sul,
sim? Eu imagino que eles tenham decidido começar por aqui.
— Por que aqui? Por que não em... Charleston? Ou Norfolk?
— Bem, eu não saberia dizer, não estando a par do conselho de guerra britânico — ele
disse suavemente. — Mas se eu tivesse que adivinhar, eu diria que talvez seja porque já há
muitas tropas na Flórida, e elas marcharão para encontrar este novo lote. Os Legalistas são
numerosos como pulgas num cachorro ao longo das Carolinas; se o exército assegurar a Flórida
e a Geórgia, eles ficarão bem posicionados para avançar em direção ao norte, com suporte local.
— Você tem tudo planejado, pelo que vejo — Eu pressionei as costas gentilmente contra
a parede (não havia cabeceira) e terminei de refazer o meu laço. Eu não me sentia bem para
atender uma invasão com o peito descoberto.
— Não — ele admitiu. — Mas há apenas duas coisas a fazer, Sassenach: ficar ou fugir. É o
auge do inverno nas montanhas; nós não vamos conseguir passar por elas até março, e eu
preferia não ter que vagar sem rumo pelo interior com três crianças, duas mulheres grávidas e
nenhum dinheiro. E eu duvido que eles vão queimar a cidade, não se eles querem que ela seja
uma base para a invasão do restante do sul. — Ele esticou o braço e correu uma mão macia pelo
meu ombro. — Não é como se você já não tivesse vivido numa cidade ocupada antes.
— Hum — Eu disse em dúvida, mas ele tinha razão. Havia algumas vantagens na situação,
a principal sendo que, se o exército tinha uma cidade, ele não precisaria atacá-la: não haveria
luta pelas ruas. Mas, então... eles ainda não a tinham tomado.
— Não se preocupe, moça — ele disse suavemente, e enroscou o dedo em minha fita. —
Eu não te disse quando casamos que você teria a proteção do meu corpo?
— Você disse — Eu admiti, e coloquei a mão sobre a dele. Grande, forte e capaz.
— Então venha se deitar comigo, mo nighean donn, e deixe-me provar isso a você — ele
disse, e soltou novamente minha fita.
Pernas de sapos como aquelas realmente pareciam muito com coxas de frango. E tinham um
gosto bastante parecido também, cobertas com farinha e ovos com um pouco de sal e pimenta
e fritas.
— Por que será que a carne de animais estranhos frequentemente é descrita como tendo
gosto de frango? — Rachel perguntou, cuidadosamente pegando mais uma perna por baixo da
mão estendida de seu marido. — Eu já ouvi as pessoas falando dessa forma sobre quase tudo,
desde leões da montanha até jacarés.
— Porque é verdade — Ian respondeu, levantando uma sobrancelha para ela e espetando
o garfo em um prato de pedaços de peixe-gato, similarmente empanados e fritos.
— Bem, se você quiser ser técnico sobre isso... — Eu comecei, com um coro de gemidos
misturados a risadas. Antes que eu pudesse me lançar numa explicação sobre a bioquímica das
fibras musculares, entretanto, houve uma batida na porta. Nós estivéramos fazendo tanto
barulho durante o jantar que eu nem tinha ouvido os passos na escada e fui tomada de surpresa.
Germain pulou para abrir a porta e olhou com surpresa para os dois oficiais Continentais,
usando uniforme completo.
Houve uma confusão geral das cadeiras raspando no chão quando os homens se
levantaram, e Jamie saiu de trás da mesa. Ele estivera trabalhando no armazém durante todo o
dia, após caçar nos pântanos à noite, e estava não apenas descalço, mas usando uma camisa
manchada e encardida e uma manta tão gasta que era fina em alguns pontos. Ainda assim,
ninguém duvidaria que ele era o mestre da casa. Quando ele inclinou a cabeça e disse “Senhores,
sejam bem-vindos”, ambos os oficiais tiraram os chapéus, se inclinaram e entraram,
murmurando “Seu criado, senhor”.
— General Fraser — O oficial mais velho disse, o título não era uma pergunta, enquanto
ele olhava para o traje de Jamie. — Eu sou o Major-General Robert Howe.
Eu nunca tinha visto o Major-General Robert Howe, mas conhecia seu acompanhante, e
minha mão enrijeceu na faca de pão. Ele estava usando um uniforme de coronel agora, e seu
rosto era tão suavemente olvidável como sempre, mas eu provavelmente nunca esqueceria do
Capitão Ezekiel Richardson — antigamente um capitão do exército de Sua Majestade, e visto
pela última vez na sede de Clinton na Filadélfia.
— Seu humilde servo, senhor — Jamie disse, em um tom que desmentia o elogio habitual.
— Eu sou James Fraser, mas não sou mais um oficial do exército. Eu renunciei à minha comissão.
— Entendo, senhor — Os olhos esbugalhados de Howe esquadrinharam a mesa, passando
por Jenny, Rachel, Marsali e as garotinhas antes de se assentarem em mim. Ele deu um pequeno
aceno de convicção e se inclinou para mim. — Sra. Fraser? Eu confio que você esteja bem,
senhora. — Obviamente ele tinha ouvido a história da renúncia dramática de Jamie.
— Estou, obrigada — Eu disse. — Cuidado com os lagostins ali, Coronel. — Porque
Richardson estava parado na frente da tina na qual eu colocara os lagostins na água e joguei um
pouco de farinha de milho, de modo a purgarem suas vísceras pelas próximas vinte e quatro
horas e se tornarem seguros para serem comidos.
— Perdão, senhora — Ele disse educadamente, movendo-se para o lado. Diferente de
Howe, ele estava essencialmente preocupado com os homens; eu vi seus olhos tocarem o
gancho de Fergus por um instante, dispensá-los, depois descansarem em Ian, com um ar de
satisfação. O que Jamie chamava de temor frio desceu pelas minhas costas. Eu já sabia o que
eles queriam; aquela era um grupo de pressão de alto nível.
Jamie reconheceu seu propósito também.
— Minha esposa está bem, graças a Deus, General. Eu imagino que ela gostaria que seu
marido permanecesse nessas condições também.
Bem, aquilo fora bastante contundente. Howe evidentemente decidira que não havia
sentido em continuar com as civilidades e entrou diretamente no assunto.
— Você está ciente, senhor, de que inúmeras tropas britânicas desembarcaram nos
arredores da cidade e sem dúvida pretendem invadi-la e capturá-la?
— Estou — Jamie disse pacientemente. — Eu vi seus navios chegando na noite passada.
Quanto a capturar a cidade, eu acho que eles estão extremamente bem colocados para fazer
exatamente isso. E se eu fosse você, General (e graças a Deus, eu não sou), eu reuniria os meus
homens neste exato minuto e marcharia para fora da cidade com eles. Conhece aquele
provérbio sobre viver para lutar no dia seguinte? Eu recomendo esta como uma estratégia.
— Eu estou entendendo corretamente, senhor? — Richardson se colocou na conversa, seu
tom áspero. — Você está negando se juntar a nós para defender sua própria cidade?
— Sim, nós negamos — Ian respondeu antes de Jamie. Ele olhou para os visitantes de
forma nada amigável e eu vi que sua mão direita caiu para o lado, tentando alcançar a cabeça
de Rollo, e depois seus dedos se curvaram, ao perceber que ele não estava lá. — Esta não é a
nossa cidade e nós não estamos dispostos a morrer por ela.
Eu estava sentada perto de Rachel e senti seus ombros relaxaram um pouco. Do outro lado
da mesa, os olhos de Marsali deslizaram para o lado, encontrando os de Fergus, e eu vi um
momento de comunicação conjugal silenciosa e um acordo. Se eles não sabem quem somos, não
diga a eles.
Howe, um homem bastante corpulento, abriu e fechou sua boca muitas vezes antes de
encontrar as palavras.
— Eu estou chocado, senhor — ele conseguiu dizer finalmente, o rosto bastante vermelho.
— Chocado. — Ele repetiu, seu segundo queixo tremendo pelo ultraje e, eu pensei, pelo
desespero. — Por um homem conhecido pela sua coragem na batalha, sua constância na causa
da liberdade, curvar-se covardemente às regras de um tirano sanguinário!
— Uma escolha muito próxima da traição — Richardson emendou, assentindo
severamente. Eu levantei minhas sobrancelhas para isso e olhei para ele, mas ele
diligentemente evitou os meus olhos.
Jamie continuou olhando por um momento, esfregando o dedo na ponte de seu nariz.
— Sr. Howe — ele disse por fim, deixando a mão cair. — Quantos homens você tem em
comando?
— Ora... Próximo de mil!
— Quão próximo?
— Seiscentos — Richardson disse.
No mesmo momento, Howe exclamou — Novecentos, senhor!
— Sim — disse Jamie, claramente não impressionado — Aqueles navios transportam
facilmente três mil homens, bem armados e com artilharia, e eles têm um regimento completo
das Highlands com eles também; eu ouvi seus assobios enquanto chegavam.
A cor de Howe desapareceu notavelmente. Ainda assim, ele se manteve fechado; ele
manteve sua dignidade.
— Quaiquer que sejam as chances, senhor — ele disse — é a minha responsabilidade lutar
para proteger a cidade confiada aos meus cuidados.
— Eu respeito a devoção de seu dever, General — Jamie disse, muito sério — E que Deus
esteja ao se lado. Mas eu não estarei.
— Nós poderíamos obrigá-lo fisicamente — Richardson apontou.
— Poderiam — Jamie concordou, imperturbável. — Mas por qual motivo? Vocês não
podem me obrigar a comandar homens se eu me negar a isso, e que bem há num soldado
indisposto?
— Isso é covardia, senhor! — Howe disse, mas estava claro que isso se tratava de
arrogância, e uma arrogância muito mal dirigida, diga-se de passagem.
— Dia eadarainn’s an t-olc — Jamie disse baixinho, e assentiu em direção à porta — Deus
entre nós e o mal — ele disse. — Vão com Deus, cavalheiros, mas saiam da minha casa.
— Você fez bem, Jamie — Rachel disse baixinho, após o som dos passos dos soldados morrerem
pela escada. — Nenhum Amigo poderia ter falado mais sabiamente.
Ele olhou para ela, arqueando a boca.
— Obrigado, moça — ele disse. — Mas eu acho que você sabe que eu não estava falando
pelas mesmas razões que um Amigo teria.
— Oh, eu sei — ela disse, sorrindo. — Mas o efeito é o mesmo, e os Amigos são gratos pelo
que conseguirem. Alguém vai pegar o último sapo?
Uma pequena onda de risos percorreu os adultos, e as crianças, que estavam sentadas
rígidas e pálidas durante a visita dos soldados, relaxaram como se fossem balões que alguém
estivesse esvaziando e começaram a zumbir em torno do cômodo, aliviadas. Temendo pela tina
com os lagostins, Jenny e Marsali os colocaram em algum tipo de ordem e os tiraram da casa
para dormirem, Marsali parando para beijar Fergus e pedindo para que ele tivesse cuidado ao
voltar para casa sozinho.
— Os britânicos ainda não estão na cidade, mon chou — ele disse, beijando-a de volta.
— Sim, bem... Nunca é demais manter a prática — Ela disse com sarcasmo. — Vamos,
pequenas ratazanas.
O restante de nós ficou sentado discutindo o futuro imediato e o que poderia ser feito.
Jamie estava certo sobre as vantagens da pobreza naquela situação — mas ao mesmo tempo...
— Eles pegarão qualquer comida que acharem — Eu disse. — Pelo menos no início. — Eu
dei uma olhada à prateleira atrás de mim; era nossa despensa e carregava o total do que
tínhamos armazenado: um pequeno pote de banha, sacos de pano de aveia, farinha, arroz, feijão
e milho, uma trança de cebolas e algumas maçãs secas, metade de um queixo, uma pequena
caixa de sal e um pote de pimenta, e os remanescentes de um torrão de açúcar. Além de nosso
pequeno estoque de velas.
— Sim — Jamie assentiu, levantou e foi buscar sua bolsa, que ele virou na mesa. — Cerca
de quatorze xelins. Ian? Fergus? — As fontes de Ian e Rachel adicionaram nove xelins; as de
Fergus, um guiné, dois xelins e alguns centavos.
— Veja o que você pode pegar na taverna amanhã, moça — ele disse, empurrando uma
pequena pilha de moedas em direção à Rachel. — Eu acho que posso pegar um barril de peixe
salgado no armazém. E você, Sassenach... se for rápida no mercado de manhã, pode conseguir
mais arroz e feijão, talvez um pedaço de bacon? — Peças de cobre e de prata tilintavam na mesa
diante de mim, o semblante impassível do Rei cinzelado de perfil.
— Não há lugar bom para esconder alguma coisa em nosso quarto — Ian observou,
olhando ao redor. — E nem aqui. No consultório da Tia, você acha?
— Sim, era o que eu estava pensando. É um piso de assoalho e o prédio tem uma boa
fundação. Talvez eu faça um pequeno esconderijo amanhã. Eu não imagino que haja muitas
coisas no seu consultório que os soldados possam querer? — Esta última pergunta foi
direcionada a mim.
— Apenas os medicamentos que são feitos com álcool — eu disse. Inspirei
profundamente. — Falando em soldados... eu tenho que contar uma coisa. Pode não ser
importante, mas...
E eu contei a eles sobre Ezekiel Richardson.
— Você tem certeza disso, Sassenach? — Jamie franziu o cenho um pouco, as sobrancelhas
ruivas brilhando à luz das velas. — Aquele jovem homem tem um rosto que pode pertencer a
qualquer um.
— Ele não é o que se chamaria de memorável, de fato — Admiti. — Mas, sim, eu tenho
certeza. Ele tem aquela verruga ao lado do queixo; eu me lembro disso. Era mais a forma como
ele estava olhando para mim. Ele me reconheceu, tenho certeza.
Jamie inspirou fundo e soltou o ar lentamente, considerando. Então, ele colocou as mãos
abertas na mesa e olhou para Ian.
— Sua tia encontrou meu filho, William, na cidade outro dia... por acidente — ele disse,
sua voz cuidadosamente neutra. — Diga a eles o que ele contou sobre Richardson, Sassenach,
pode ser?
Eu contei, mantendo um olhar na pulsação da garganta de Ian. Assim como Rachel; ela
colocou a mão na dele, que estava curvada num punho sob a mesa. Ele olhou para ela, sorriu
brevemente, e relutantemente a abriu, entrelaçando seus dedos aos dela.
— E o que William está fazendo aqui, então? — Ian perguntou, obviamente trabalhando
duro para manter a hostilidade fora de sua voz.
— Ele estava procurando por Richardson, de fato, mas ele também está procurando pela
esposa de seu primo, uma mulher chamada Amaranthus Grey, ou talvez Cowden — eu adicionei.
— Ela pode estar usando o nome de solteira. Eu queria perguntar se algum de vocês já ouviu
sobre ela.
Os dois sacudiram a cabeça.
— Você se lembraria de um nome como este — Rachel disse. — Mas você acha que William
não sabe que Richardson está aqui?
— Eu tenho certeza que ele não sabe — Eu disse. — E nem que Richardson se juntou aos
Rebeldes. Aparentemente.
Houve silêncio por um momento. Eu podia ouvir o suave clique fraco dos lagostins na tina
atrás de mim e o farfalhar de uma falha no pavio quando a chama se quebrou e dançou.
— Este homem, Richardson, pode simplesmente ter mudado sua lealdade — Rachel
sugeriu. — Eu conheço vários que o fizeram nos últimos dois anos.
— Pode ser — Eu disse lentamente —, mas a questão é que... John pensava que ele era um
agente de inteligência... um espião ou agente secreto de algum tipo. E quando alguém dessa
estirpe vira a casaca... você precisa perguntar se ele virou uma vez ou duas. Ou se ele não virou
de fato. Não?
Jamie colocou uma mão na mesa, pensando.
— Sim, bem — ele disse, por fim, e sentando-se reto, ele se alongou com um suspiro. — Se
houver alguma coisa duvidosa em relação a este homem, nós saberemos muito em breve.
— Nós saberemos? — Perguntei.
Ele me deu um sorriso irônico.
— Sim, Sassenach. Ele virá procurar por você. Mantenha sua pequena faca por perto, sim?
130 – INVASÃO
29 de dezembro
Nós ouvimos as armas pouco antes do amanhecer. Jamie parou o ato de se barbear para ouvir.
Era um trovão distante, irregular, abafado pela distância. Mas eu ouvi que a artilharia estava
por perto e senti o som como um eco em meus ossos, pedindo-me para levantar voo. Jamie
ouvira a artilharia a um alcance muito mais próximo do que o meu e pousou sua navalha,
colocando as mãos espalmadas sobre o lavatório. Para impedir que elas tremessem, eu pensei.
— Eles estão disparando os canhões dos navios no rio — ele disse em voz baixa. — E
artilharia regular ao sul. Deus ajude Howe e seus homens. — Ele se benzeu e pegou a lâmina.
— Quão longe você acha que eles estão? — Eu tinha parado no ato de colocar minhas
meias e agora a estava levantando, lentamente prendendo minha linha. Jamie sacudiu a cabeça.
— Não tem como dizer daqui. Eu vou sair daqui a pouco, entretanto, e vou poder ver qual
é a direção do vento.
— Você vai sair? — Eu perguntei, inquieta com a perspectiva. — Certamente você não vai
trabalhar hoje. — O armazém dos Fadler, onde ele trabalhava como supervisor e funcionário
sênior, era no rio.
— Eu não vou — ele disse brevemente. — Mas eu pensei em ir buscar as crianças e Marsali
e a minha irmã. Fergus terá saído para saber o que está acontecendo, e eu não quero que eles
fiquem sozinhos, sem nenhum homem. — Sua boca se afinou. — Especialmente se os soldados
vierem para a cidade.
Eu assenti, de repente incapaz de falar. O pensamento nas coisas que tinham acontecido
— e que poderiam acontecer — durante uma invasão... Graças a Deus, eu nunca tinha vivido
numa situação como aquela, mas tinha visto muitos noticiários e fotografias para não ter uma
ideia de quais eram as possibilidades. E já havia relatos de uma companhia britânica vindo da
Flórida sob o comando de um oficial chamado Major Prevost, explorando a área rural ao redor
de Sunbury, soltando os gados, e queimando celeiros e fazendas. Sunbury não era distante o
suficiente para ficarmos confortáveis.
Quando Jamie saiu, eu me abalei por alguns minutos, sem saber o que fazer primeiro, mas
depois me recompus e decidi fazer uma rápida visita ao meu consultório. Seria uma boa ideia
tirar de lá os meus instrumentos mais valiosos — não que qualquer um deles tivesse muito
valor; não havia mercado negro para serras de amputação (pelo menos, não ainda...) — e tais
medicamentos e insumos poderiam ser necessários se...
Eu cortei aquele “se” bruscamente e olhei ao redor do nosso modesto quarto. Eu tinha
mantido apenas alguns poucos mantimentos, como farinha e manteiga, e os itens mais
perecíveis aqui; qualquer coisa que pudesse ser armazenada por algum tempo estava agora
escondida sob o chão de meu consultório. Se nós teríamos Marsali, Jenny e as crianças por
tempo indefinido, entretanto, era melhor trazer de volta algumas coisas.
Eu peguei minha maior cesta e bati na porta de Rachel abaixo. Ela atendeu de primeira, já
vestida para sair.
— Ian saiu com Fergus — Ela disse, antes que eu pudesse perguntar. — Ele disse que não
vai lutar com a milícia, mas que Fergus é seu irmão e é o seu dever mantê-lo a salvo. Eu não
posso reclamar disso.
— Eu poderia — Eu disse francamente. — Eu reclamaria como uma louca se isso
adiantasse. É perda de fôlego, entretanto. Você pode vir comigo até o consultório? Jamie foi
buscar Jenny, Marsali e as crianças, então eu pensei que é melhor trazer de volta alguma coisa
para eles comerem.
— Deixe-me buscar meu cesto.
As ruas estavam cheias de pessoas — a maioria delas em algum processo para deixar a
cidade, buscando seus bens, ou empurrando carrinhos pela rua, embora alguns estivessem
claramente empenhados em saquear. Eu vi dois homens quebrarem uma janela e rastejarem
para dentro de uma grande casa na Ellis Square.
Chegamos ao consultório sem incidentes, entretanto, e encontramos duas prostitutas
esperando lá fora. Eram mulheres que eu conhecia e eu as apresentei a Rachel, que ficou muito
menos envergonhada pelas apresentações do que elas.
— Nós queremos comprar remédio para varíola, senhora — disse Molly, uma resistente
garota irlandesa. — Tantos quanto tenha à mão e esteja disposta a vender.
— Você está, hã, esperando uma explosão de varíola? Por assim dizer? — Eu estava
destrancando a porta enquanto conversávamos, calculando se a minha safra atual de penicilina
era potente suficiente para fazer alguma diferença.
— Não importa se ela funciona ou não, senhora. — Disse Iris, que era muito alta, magra e
negra — Nós estamos planejando vender aos soldados.
— Entendo — Eu disse, inexpressiva. — Bem, então...
Eu dei a elas a penicilina que tinha na forma líquida, recusando-me a cobrar por ela. Eu
mantive o mofo em pó e os remanescentes do queijo Roquefort, entretanto, para o caso de
alguém da família precisar deles. A artilharia tinha parado — ou o vento tinha mudado — mas
começou novamente enquanto caminhávamos até nossa casa, segurando as cestas sob nossas
capas para impedir que fossem roubadas.
Jamie tinha levado Marsali, Jenny e as crianças para lá, todos carregando o que podiam em
questão de roupas, comida e roupas de cama. Houve um longo período de caos total, enquanto
as coisas eram organizadas, mas enfim nós nos sentamos para um chá, por volta das três da
tarde. Jamie, negando-se a se envolver na engenharia doméstica, tinha exercitado sua
prerrogativa masculina desaparecendo vagamente para um “negócio” indeterminado, mas com
um instinto infalível reapareceu assim que o bolo estava sendo servido, carregando um grande
saco de aniagem cheio de mariscos, um barril de farinha e um pouco das notícias.
— A batalha terminou — ele disse, procurando por algum local para colocar os mariscos.
— Eu notei que as armas tinham parado há algum tempo. Você sabe o que aconteceu? —
Eu peguei a bolsa e coloquei os mariscos com um barulho alto num caldeirão vazio, e depois
coloquei um balde de água sobre eles. Eles se manteriam até o jantar.
— Exatamente o que eu disse ao General Howe que aconteceria — ele disse, embora não
tivesse nenhum sentimento de prazer por estar certo. — Campbell (este é o Tenente-Coronel
Britânico Archibald Campbell) cercou Howe e seus homens e os ensacou como peixes em uma
rede. Eu não sei o que fizeram com eles, mas eu espero que haja tropas na cidade antes que a
noite caia.
As mulheres todas olharam uma para a outra e relaxaram visivelmente. Aquelas eram, na
realidade, boas notícias. Afinal de contas, o exército britânico era muito bom em ocupar cidades.
E embora os cidadãos pudessem justificadamente se ressentir do aquartelamento de tropas e
da requisição de suprimentos, o fato subjacente era que não havia nada que mantinha a ordem
pública como um exército vivendo com você.
— Nós ficaremos seguros, então, com os soldados aqui? — Joanie perguntou. Ela estava
com os olhos brilhando por causa da aventura, como seus irmãos, e estivera seguindo a
conversa dos adultos de perto.
— Sim, em sua maior parte — Jamie disse, mas seu olhar encontrou o de Marsali e ela fez
uma careta. Provavelmente nós estaríamos a salvo o suficiente, embora a comida pudesse ser
pouca durante um tempo, até que os intendentes do exército colocassem as coisas em ordem.
Fergus e Bonnie, entretanto, eram outra questão.
— Por sorte, nós não começamos a fazer o L’Oignon ainda — ela disse, respondendo ao
olhar de Jamie. — Só estamos imprimindo panfletos, cartazes e folhetos religiosos estranhos.
Eu acho que vai ficar tudo bem — ela disse corajosamente, mas esticou a mão para tocar a
cabeça escura de Félicité, como se para se acalmar.
Nós fizemos os mariscos em uma sopa — era mais uma sopa aguada, já que tínhamos
pouco leite, mas engrossamos com biscoitos quebrados, e havia manteiga o suficiente — e
estávamos sentados à mesa para o jantar quando Fergus e Ian subiram as escadas fazendo
barulho, corados de excitação e cheios de notícias.
— Foi um escravo negro que fez a diferença — Fergus disse, enfiando um pedaço de pão
na boca. — Mon Dieu, eu estou faminto! Nós não comemos nada durante todo o dia. Este homem
se infiltrou no acampamento britânico logo após a luta começar e se ofereceu para mostrar um
caminho secreto através do pântano. O Tenente-Coronel Campbell mandou um regimento dos
Highlanders... nós podíamos ouvir o barulho; isso me fez lembrar de Prestonpans.
Ele sorriu para Jamie, e eu pude ver o órfão francês magricela de dez anos de idade que
ele tinha sido, montado num canhão capturado. Ele engoliu e tomou água, que era tudo o que
tínhamos naquele momento.
— Highlanders — ele continuou — e alguma outra infantaria, e eles seguiram o escravo
pelo pântano e foram rodeados pelos homens do General Howe, que estavam todos aglutinados,
já que é claro que eles não sabiam de qual direção a luta viria.
Campbell tinha enviado outra companhia da infantaria à esquerda de Howe, “para fazer
demonstrações”, Fergus disse, acenando com a mão e espalhando migalhas.
— Eles se viraram, é claro, para se encontrarem, e então os Highlanders caíram sobre eles
do outro lado, e voilà! — Ele estalou os dedos.
— Eu duvido que Howe sinta alguma gratidão por aquele escravo — Ian disse, passando
sua tigela no caldeirão de sopa. — Mas ele deveria. Ele não perdeu mais do que trinta ou
quarenta homens. E se eles tivessem ficado e lutado, provavelmente teriam todos sido mortos,
se não tivessem o bom senso de se renderem. E ele não parece um homem de bom senso — ele
adicionou pensativamente.
— Por quanto tempo você acha que eles vão ficar? O exército... — Jenny estava cortando
um pão e entregando pedaços ao redor da mesa, mas parou para passar o antebraço em sua
sobrancelha. Era inverno, mas com o fogo aceso no pequeno cômodo e tantas pessoas
amontoadas, a temperatura rapidamente estava se aproximando dos níveis de um banho turco.
Todos os homens trocaram olhares. E então Jamie falou, relutantemente.
— Um longo tempo, a piuthar.
131 – A CURA SOBERANA
Aquilo tinha que ser feito, e tinha que ser feito agora. Entre a inquietação de Jamie e as minhas
próprias dúvidas, eu tinha deixado de lado a questão de fazer éter. Mas agora nós estávamos
num dilema: eu simplesmente não poderia fazer o que precisava ser feito por Sophronia sem
um anestésico geral de confiança.
Eu já tinha decidido que podia produzi-lo no pequeno galpão da enorme horta da Sra.
Landrum. Era fora dos limites da cidade, com um acre de espaço aberto de cada lado, este
ocupado apenas pela couve de inverno e pelas cenouras hibernadas. Se eu me explodisse, não
levaria ninguém junto comigo.
Eu duvidava que esta observação tranquilizaria Jamie, entretanto, então não mencionei
meus planos. Eu reuni o que precisava e disse a ele apenas no último minuto, evitando que ele
se preocupasse. E, afinal de contas, se eu não conseguisse obter os ingredientes necessários...
mas eu estava certa de que poderia. Savannah era uma cidade de tamanho considerável, e tinha
um porto. Havia pelo menos três boticários pela cidade, bem como várias casas que importavam
itens especializados da Inglaterra. Alguém devia ter ácido sulfúrico, conhecido até então como
óleo de vitríolo.
O tempo estava frio, mas ensolarado, e ao ver inúmeros soldados de casaco vermelho pela
rua, eu me perguntei vagamente se as considerações climáticas tinham alguma coisa a ver com
os britânicos terem decidido mudar seu teatro de operações para o sul.
O velho Sr. Jameson — um cavalheiro enérgico em torno de setenta anos — me
cumprimentou agradavelmente quando eu entrei na Jameson’s Apothecary. Eu tinha tido a
oportunidade de fazer pequenas compras de ervas dele antes, e nós nos demos bem. Eu dei a
ele a minha lista e naveguei por entre os frascos de sua prateleira enquanto ele andava de um
lado para o outro para procurar os meus pedidos. Havia três jovens soldados do outro lado da
loja, reunidos em uma conversa furtiva com o Sr. Jameson mais jovem sobre alguma coisa que
ele estava mostrando a eles embaixo do balcão. Cura para varíola, imaginei — ou — dando a
eles o benefício da dúvida em relação à prevenção — possivelmente camisinhas.
Eles concluíram suas compras clandestinas e foram para fora, as cabeças baixas e os
rostos corados. O jovem Sr. Jameson, que era o neto do proprietário e tinha aproximadamente
a mesma idade dos soldados que tinham acabado de sair, também estava rosado, mas me
cumprimentou com calma, fazendo uma reverência.
— Seu criado, Sra. Fraser! Posso ajudá-la?
— Oh, obrigada, Nigel — eu disse. — Seu avô já está com a minha lista. Mas... — Um
pensamento me ocorreu, talvez por causa dos soldados — Eu me pergunto se você conhece a
Sra. Grey. Amaranthus Grey é o seu nome, e eu acredito que seu nome de solteira era... oh, como
era mesmo? Cowden! Amaranthus Cowden Grey. Você já ouviu este nome?
Ele franziu a testa lisa em pensamento.
— Que nome esquisito. É... Sem ofensa, senhora — ele rapidamente me garantiu. — Eu
quis dizer... que nome exótico. Bastante incomum.
— Sim, é. Eu não a conheço — falei —, mas uma amiga minha disse que ela vivia em
Savannah e me pediu para... hã... encontrá-la.
— Sim, claro — Nigel zumbiu por um tempo, mas balançou a cabeça. — Não, eu sinto
muito, senhora, mas eu não acho que já tenha encontrado Amaranthus Cowden.
— Cowden? — Disse o Sr. Jameson, emergindo repentinamente da sala dos fundos com
várias garrafas na mão. — É claro que nós conhecemos, garoto. Ou, melhor, não a encontramos;
ela nunca veio até a loja. Mas nós recebemos uma solicitação pelo correio, duas ou três semanas
atrás, pedindo por... Oh, o que era? Minha mente é uma peneira, Sra. Fraser, uma peneira
absoluta, eu garanto a você... Não envelheça, este é o meu conselho... Oh, sim. Creme para pele
Gould, água para gripe Villette, uma caixa de pastilhas para adoçar o hálito, e doze barras de
sabão francês Savon D’Artagnan. Foi isso — Ele sorriu para mim sobre os óculos. — Ela mora
em Saperville — ele acrescentou, numa reflexão tardia.
— Você é uma maravilha, vovô — Nigel murmurou obedientemente, e pegou as garrafas
que seu avô estava segurando. — Posso embrulhar estes, ou nós vamos misturar alguma coisa
para a senhora?
— Oh — O Sr. Jameson olhou para as garrafas em sua mão, como se estivesse pensando
como elas tinham chegado lá. — Oh, sim! Eu queria perguntar a você, Sra. Fraser, o que você
tem em mente fazer com o óleo de vitríolo. É absurdamente perigoso, sabe?
— Hum, sim, eu sei.
Eu olhei para ele pensativamente; alguns homens seriam capazes de se recusar a vender
a uma mulher algo que eles pensassem ser inapropriado ou perigoso, mas o Sr. Jameson parecia
apenas preocupado — e ele sabia que eu conhecia os usos das ervas medicinais.
— Eu tenho em mente fazer éter — Eu disse.
A substância era conhecida, eu sabia — alguém a tinha descoberto no século oito, ou era
o que tinham me falado na escola de medicina —, mas seu uso como anestésico não se
desenvolveria até o século dezenove. Eu me perguntava vagamente se no intervalo de mil e cem
anos ninguém havia notado que aquela coisa fazia as pessoas dormirem, mas tinha
inadvertidamente matado alguém e abandonado os experimentos.
Os dois Senhores Jameson pareceram surpresos.
— Éter? — Disse Nigel, abertamente confuso. — Por que você faria?
— Por que eu... O quê? Você quer dizer que já tem o material pronto? — Perguntei, atônita.
Ambos assentiram, contentes por poderem ajudar.
— Oh, sim — O Sr. Jameson disse. — Não é sempre que estocamos, é claro, mas com... é...
O exército... — Ele acenou com a mão, englobando a recente invasão e ocupação — há o
transporte de tropas, e haverá um grande aumento do transporte marítmo, agora que o
bloqueio não está em vigor.
— O que o aumento do transporte marítimo tem a ver com a venda de éter? — Perguntei,
imaginando se o Sr. Jameson estava possivelmente certo sobre os efeitos da idade avançada no
cérebro.
— Ora, senhora — Disse Nigel. — É um remédio soberano para o enjoo. Não sabia?
132 – UM JOGADOR NATO
Contei meus instrumentos pela terceira vez e, descobrindo que nenhum deles tinha me passado
despercebido na última contagem, eu os cobri com um tecido de linho limpo e bati neles
lentamente de forma tranquilizadora — se para os instrumentos ou para mim mesma, eu não
tinha certeza. Suturas de seda, suturas intestinais, agulhas... as agulhas mais finas de bordar que
eu conseguira obter em Savannah. Pequenas compressas, retalhos, bandagens enroladas. Um
galho de salgueiro de quinze centímetros, cuidadosamente limpo, polido e fervido lentamente
— para que a madeira não se partisse — que seria usado como cateter para estabilizar a uretra
e a bexiga e para impedir que a urina entrasse no campo cirúrgico. Eu tinha pensado em usar
um maior para o intestino, mas decidi que era melhor usar os meus dedos para manipular os
tecidos escorregadios ali — contanto que eu conseguisse não me cortar e nem me furar no
processo.
Rachel viria me assistir durante a cirurgia, e eu passaria por todos os instrumentos e
procedimentos com ela novamente. Eu tinha chegado uma hora mais cedo, entretanto,
querendo concluir as minhas preparações e passar um pouco de tempo sozinha, estabilizando
a minha mente e o meu espírito para o trabalho que tinha adiante.
Eu me sentia surpreendentemente calma, considerando a complexidade e os riscos da
operação. Poderia ser dito que, mesmo que eu falhasse, a pobre criança possivelmente não
ficaria pior do que estava — mas é claro que ela poderia morrer como resultado da cirurgia, de
choque, de infecção ou até mesmo de hemorragia acidental. Cirurgias abdominais eram muito
mais complicadas do que tentar uma correção transvaginal — mas dado ao que eu tinha em
mãos, pensei que as chances de conseguir a cura eram muito melhores desta forma. E então
havia a questão da curetagem que havia removido o bebê morto; eu não tinha ideia dos tipos
de danos que poderiam ter sido infligidos, mas se houvesse algum, eu poderia ser capaz de
corrigir.
Eu olhei automaticamente para a estante onde a minha fábrica de penicilina estava
trabalhando — ou pelo menos eu esperava que estivesse, bilhões de esporos excretando sua
substância útil. Eu não tivera tempo em Savannah para estabelecer um bom processo e testar o
produto resultante; não havia, como era frequentemente o caso, qualquer garantia que eu tinha
penicilina boa para utilizar, em meu caldo. Mas eu realmente tinha um pedaço de queijo francês
muito maduro, adquirido a um custo extravagante e agitado com um pouco de leite para fazer
uma pasta; o cheiro espesso dele lutava para se sobressair ao cheiro pungente de éter.
Eu pude ouvir os sons do início da manhã na cidade lá fora, calmantes em sua
simplicidade: o farfalhar de uma vassoura na calçada, o trotar dos vagões puxados pelos
cavalos, um cheiro tentador de pão quente quando os passos apressados do menino do padeiro
passaram. As exigências simples da vida rapidamente transformavam em rotina qualquer
espécie de caos, e mesmo que a invasão continuasse, a ocupação de Savannah tinha sido
razoavelmente sem derramamento de sangue.
Minha sensação de bem-estar e calmo destacamento foi interrompida um momento
depois pela abertura da porta do meu consultório.
— Posso ajudar? — Eu comecei, virando-me. Então eu vi meu visitante e alterei meu
comentário para algo mais hostil. — O que você quer?
O capitão — não, ele era um coronel agora; os benefícios da traição, eu supus —
Richardson sorriu encantadoramente para mim, depois se virou e trancou a porta. Eu abri uma
gaveta e peguei minha serra de amputação; era pequena o suficiente para ser usada
rapidamente, e sua borda serrilhada arrancaria seu nariz, se o meu alvo fosse bom.
O sorriso charmoso se ampliou em uma risada quando ele viu o que eu estava prestes a
fazer, e ele fez uma reverência. Ele não estava usando uniforme — o que não era de se admirar
— mas estava vestido de forma decente, com um casaco bastante sóbrio, com os cabelos sem
pó atados simplesmente para trás. Ninguém olharia duas vezes para ele.
— Seu mais humilde servo, senhora. Não precisa se alarmar; eu só queria garantir que não
seríamos interrompidos.
— Sim, é em relação a isso que eu fico alarmada — Eu disse, apertando firmemente a serra.
— Destranque esta maldita porta agora.
Ele olhou para mim por um momento, um olho estreitando-se em cálculo, mas depois
soltou uma risadinha baixa e, virando-se, tirou o trinco. Cruzando os braços, ele se inclinou
contra a porta.
— Melhor?
— Muito — Eu soltei a serra, mas não tirei a minha mão de perto dela. — Eu repito... O
que você quer?
— Bem, eu pensei que talvez tenha chegado o momento de colocar as minhas cartas na
sua mesa, Sra. Fraser... para ver se você quer jogar uma partida ou duas.
— A única coisa que eu posso estar inclinada a jogar com você, Coronel, é Mumblety-Peg 51
— Eu disse, batendo meus dedos no cabo da serra. — Mas se você quiser me mostrar as suas
cartas, vá em frente. Você vai querer ser rápido, entretanto... Eu tenho uma operação a fazer em
menos de uma hora.
— Não vai demorar tanto assim. Posso? — Levantando as sobrancelhas, ele gesticulou
para um dos bancos. Eu assenti e ele se sentou, parecendo bastante relaxado. — A parte
essencial do assunto, senhora, é que eu sou um Rebelde, e sempre fui.
— Você... O quê?
— Eu sou atualmente um coronel do exército Continental, mas quando você me conheceu,
eu estava trabalhando como um agente americano disfarçado de capitão do exército de Sua
Majestade na Filadélfia.
— Eu não entendo — Eu entendia o que ele estava dizendo, mas não podia entender por
que diabos ele estava contando aquilo para mim.
— Você mesma é uma Rebelde, não? — Uma sobrancelha escassa levantou-se em
questionamento. Ele realmente era um homem de aparência muito comum, eu pensei. Se ele era
um espião, era fisicamente feito para o trabalho.
— Eu sou — Eu disse cautelosamente. — E o que tem?
— Então, nós estamos do mesmo lado — Ele disse pacientemente. — Quando eu instiguei
Lord John Grey a casar com você, eu...
— Você o quê?
— Certamente ele disse a você que eu ameacei prendê-la por distribuir materiais
insidiosos? Coisa na qual você era muito desajeitada, devo acrescentar — ele adicionou
desapaixonadamente. — Sua senhoria me garantiu que não tinha interesse pessoal em você de
forma alguma e depois, muito gentilmente, casou-se com você no dia seguinte. Sua senhoria é
um homem muito galante, particularmente em vista de suas próprias preferências.
Ele inclinou sua cabeça, sorrindo de maneira conspiratória, e uma lança de gelo
atravessou minha barriga.
— Oh, então você sabe — ele observou, estudando meu rosto. — Eu pensei que você
saberia. Ele é extremamente discreto, mas eu acho que você é uma mulher muito perceptiva,
particularmente em assuntos sexuais.
— Levante-se — Eu disse, com a minha voz mais fria. — e saia. Agora!
51 Jogo de lançamento de facas. Quem conseguir lançar a faca mais próximo do próprio pé, vence.
Ele não o fez, é claro, e eu amaldiçoei minha falta de premeditação em não manter uma
pistola carregada no consultório. A serra poderia servir se ele me atacasse, mas eu sabia que
era melhor não atacá-lo.
Além disso, o que você faria com o corpo, se o matasse? A parte lógica de meu cérebro
continuava me perguntando. Ele não caberia no armário, muito menos no esconderijo.
— Pela terceira e última vez... — eu disse — O que você quer?
— Sua ajuda — Ele disse prontamente. — Eu originalmente tinha em mente usá-la como
uma agente. Você poderia ter sido muito valiosa para mim, movimentando-se no mesmo círculo
social que os britânicos em comando. Mas você pareceu muito instável (perdão, senhora) para
que eu me aproximasse imediatamente. Eu esperava que quando o luto pelo seu primeiro
marido acabasse, você entraria num estado de resignação no qual eu poderia conhecê-la e
adquirir graus de intimidade de tal forma a você ser persuadida a descobrir pequenos (e, de
início, aparentemente inocentes) pedaços de informação, que você passaria para mim.
— O que você quer dizer com “intimidade”? — Eu disse cruzando meus braços. Porque,
embora a palavra tivesse o sentido corrente de amizade, ele não a usava com esta entonação.
— Você é uma mulher muito desejável, Sra. Fraser — ele disse, olhando-me de forma
objetivamente apreciativa. — E também uma mulher que conhece os próprios desejos. Sua
senhoria obviamente não a compelia nesse sentido, então... — Ele levantou um ombro, sorrindo
de modo depreciativo. — Mas como o General Fraser voltou dos mortos, eu imagino que você
não está mais suscetível a iscas deste tipo.
Eu ri e deixei meus braços caírem.
— Você está adulando a si mesmo, Coronel — eu disse secamente — e não a mim. Olhe:
por que não para de me perturbar e me diz o que você quer que eu faça e por que você acha que
eu o farei?
Ele riu também, o que deu algum senso de individualidade ao seu rosto.
— Muito bem. Pode ser difícil de acreditar, mas essa guerra não sera vencida no campo
de batalha.
— Oh, sim?
— Sim, eu garanto a você, senhora. Ela será vencida pela espionagem e pela política.
— Uma nova abordagem, tenho certeza. — Eu estava tentando localizar de onde era o seu
sotaque; era Inglês, mas com um toque bastante plano. Não era de Londres, não era do norte...
educado, mas não polido. — Eu imagino que você não esteja solicitando minha assistência no
sentido político.
— Não, na verdade eu estou — ele disse. — Mesmo que de forma indireta.
— Eu sugiro que você tente uma abordagem direta — Eu disse. — Minha paciente chegará
daqui a pouco. — Os sons lá de fora tinham mudado; aprendizes e empregadas estavam
passando em pequenos grupos, com destino ao trabalho ou às compras diárias.
Ocasionalmente, havia uma risada de flerte de passagem.
Richardson assentiu em aceitação.
— Você está ciente da opinião do Duque de Pardloe sobre esta guerra?
Eu, de alguma forma, me surpreendi com isso. Estupidamente, não me ocorreu que Hal
pudesse ter uma opinião, fora das exigências de seu serviço. Mas se eu já conhecera um homem
que certamente tinha opiniões, era Harold, o Segundo Duque de Pardloe.
— Entre uma coisa e outra, eu nunca troquei opiniões com o duque nas questões políticas.
Nem com meu... nem com o seu irmão, aliás.
— Ah. Bem, as senhoras frequentemente não têm interesse em coisas fora de sua esfera,
embora eu imaginasse que você tivesse uma... apreciação mais ampla, se posso dizer. — Ele
olhou diretamente para o meu avental e para minha bandeja de instrumentos e depois para os
outros detalhes de meu consultório.
— O que tem a política dele? — Perguntei brevemente, desconsiderando suas implicações.
— Sua Graça é uma forte voz na Câmara dos Lordes — Richardson disse, brincando com
um fio desgastado na borda de seu punho. — E embora ele fosse, de início, muito a favor da
guerra, suas opiniões ultimamente têm sido muito mais... moderadas. Ele escreveu uma carta
pública ao primeiro ministro no outono, pedindo que ele considerasse uma reconciliação.
— E? — Eu não tinha a mínima ideia de onde ele queria chegar com isso e estava ficando
impaciente.
— Reconciliação não é o que queremos, senhora — ele disse, e, arrancando o fio, ele o
jogou do lado. — Tais esforços apenas vão atrasar o inevitável e interferir no compromisso dos
cidadãos de que nós desesperadamente precisamos. Mas o fato de Sua Graça mostrar essa visão
moderada é útil para mim.
— Muito bem — Eu disse — Vá direto ao ponto, se puder.
Ele ignorou meu comentário e procedeu com sua exposição como se tivesse todo o tempo
do mundo.
— Se ele estivesse ferozmente comprometido com um lado ou outro, seria difícil...
influenciá-lo. Mesmo não conhecendo Sua Graça muito bem, tudo o que sei dele indica que ele
valoriza seu senso de honra.
— Sim.
— ... quase tanto quanto ele valoriza sua família. — Richardson finalizou.
Ele olhou diretamente para mim, e pela primeira vez eu senti um lampejo real de medo.
— Já faz algum tempo que eu venho trabalhando para adquirir influência, de forma direta
ou não, sobre alguns membros da família do duque que estão ao meu alcance. Com, vamos dizer,
um filho... um sobrinho, talvez... mesmo com o seu irmão sob o meu controle, seria possível
afetar a posição pública de Sua Graça, de qualquer forma que parecesse mais vantajosa para
nós.
— Se você está sugerindo o que eu acho que está, então peço para que saia da minha frente
neste instante — Eu disse, no que esperava ser um tom de ameaça calma. Embora eu tenha
estragado o efeito adicionando — Além disso, eu não tenho qualquer conexão com a família de
Pardloe agora.
Ele sorriu levemente, sem nenhum senso de prazer.
— Seu sobrinho, William, está na cidade, senhora, e você foi vista conversando com ele há
nove dias. Talvez você não tenha conhecimento, entretanto, que tanto Pardloe quando seu
irmão estão aqui também?
— Aqui? — Minha boca se abriu por um momento e eu a fechei bruscamente. — Com o
exército?
Ele assentiu.
— Eu percebi que, apesar de seu recente... rearranjo marital?... você continua se dando
bem com Lord John Grey.
— Suficientemente bem para que eu não faça nada para colocá-lo em suas malditas mãos,
se é isso é você quer.
— Não é nada tão bruto, senhora — ele assegurou a mim, com um breve flash dos seus
dentes. — Eu tinha em mente apenas a transmissão de informações, de ambos os lados. Eu não
pretendo fazer nenhum mal ao duque e sua família; eu só quero...
Quaisquer fossem suas intenções, elas foram interrompidas por uma batida hesitante na
porta, que se abriu para admitir a cabeça da Sra. Bradshaw. Ela olhou apreensivamente para
mim e com desconfiança para Richardson, que limpou a garganta, levantou-se e fez uma
reverência para ela.
— Seu servo, senhora — ele disse. — Eu já estava me despedindo da Sra. Fraser. Bom dia
para você — Ele se virou e fez uma reverência para mim, mais elaborada. — Seu mais humilde
servo, Sra. Fraser. Eu espero vê-la novamente. Em breve.
— Aposto que sim — Eu disse, mas baixinho, e eu duvidava que ele tinha me ouvido.
A Sra. Bradshaw e Sophronia entraram no cômodo, aproximando-se o suficiente para que
Richardson em sua saída fizesse uma careta de repulsa involuntária ao cheiro de Sophronia, e
ele lançou um olhar assustado sobre o ombro para mim — o que fez com que ele colidisse
pesadamente com Rachel, que entrou correndo no consultório. Ele valsou com ela por um ou
dois passos, finalmente recuperando seu equilíbrio e escapando de forma pouco elegante,
perseguido por minha risada.
Aquela palhaçada parcialmente dissipou o mal-estar que ele havia levado para o meu
consultório, e eu o coloquei firmemente para fora de minha mente. Já era o suficiente de
Richardson para aquele dia, e eu tinha trabalho a fazer. Foi com uma sensação de confiança que
eu peguei a pequena mão de Sophronia entre as minhas e sorri para seu rosto abatido.
— Não se preocupe, querida — Eu disse. — Eu vou cuidar de você.
Sua única chance era falar com Campbell. Fanny havia dito a ele que Jenkins tinha levado Jane
para a casa cinza grande da Reynolds Square; aquele era o local mais provável para começar.
Ele parou na rua para limpar a pior parte da lama seca e os pedaços de vegetação de seu
casaco. Ele estava bastante consciente que parecia exatamente como quisera parecer nos
últimos três meses: um trabalhador desempregado. Por outro lado...
Como ele tinha renunciado à sua comissão, não estava mais sob a autoridade de Campbell.
E não importava como ele se sentia pessoalmente em relação ao seu título, ainda era verdade,
pela lei. O Nono Conde de Ellesmere se ergueu em toda a sua estatura, endireitou os ombros e
foi à guerra.
Os modos e a forma de falar o fizeram passar pelas sentinelas que estavam à porta. O
serviçal que veio retirar sua capa o olhou com um desalento incontestável, mas ficou com medo
de colocá-lo para fora e saiu para encontrar alguém que pudesse lidar com ele.
Havia um jantar acontecendo; ele podia ouvir o tilintar da prata e da porcelana, o
borbulhar das garrafas sendo derramadas, e o estrondo das conversas abafadas, pontuado por
explosões de risadas educadas. Suas mãos estavam suando: ele as limpou discretamente nas
calças.
O que diabos ele diria? Ele tentou formular alguma linha de argumentação razoável no
caminho, mas tudo parecia se quebrar em pedaços no momento em que ele pensava. Ele teria
que dizer alguma coisa, entretanto...
E então ele ouviu uma voz, elevando-se numa pergunta, que fez seu coração saltar uma
batida. Tio Hal! Ele não poderia estar enganado; seu tio e seu pai tinham vozes suaves, mas
penetrantes, claras como cristal lapidado — e afiadas como aço de Toledo quando queriam.
— Ei, você! — Ele se apressou pelo corredor e pegou um servo que estava saindo da sala
de jantar com um prato de cascas de caranguejos nas mãos — Dê-me isso — ele ordenou,
pegando o prato das mãos do homem — Volte lá para dentro e diga ao Duque de Pardloe que
seu sobrinho gostaria de trocar uma palavra com ele.
O homem arregalou os olhos para ele, com a boca aberta, mas não se moveu. William
repetiu sua solicitação, adicionando um “por favor”, mas também adicionando um olhar que
indicava que, no caso de resistência, seu próximo passo seria bater com o prato na cabeça dele.
Aquilo funcionou, e o homem se virou como um autômato e marchou de volta à sala de jantar
— da qual, em pouquíssimo tempo, seu tio emergiu, elegante nas vestimentas e nas maneiras,
mas claramente muito animado.
— William! O que diabos você está fazendo aqui? — Ele pegou o prato de William e o
lançou descuidadamente sob uma das cadeiras douradas encostadas ao longo da parede do
corredor. — O que aconteceu? Você encontrou Ben?
Cristo, ele não tinha pensado nisso. Naturalmente, Tio Hal assumiria que... Com uma careta,
ele balançou a cabeça.
— Não, Tio, eu sinto muito. Eu acho que sei onde está a sua esposa, mas...
O rosto de Hal passou por mudanças imensas, de emoção para decepção até uma calma
superficial.
— Bom. Onde você está instalado? John e eu iremos e...
— Papai está aqui também? — William deixou escapar, sentindo-se um tolo. Se ele não
tivesse sido tão sensível em relação à sua posição e evitado qualquer um do exército, saberia
que o 46º Regimento era parte das forças de Campbell.
— Naturalmente — Hal disse, com um toque de impaciência. — Onde mais ele poderia
estar?
— Com Dottie, procurando pela esposa de Ben — William respondeu inteligentemente.
— Ela está aqui também?
— Não — Seu tio pareceu descontente, mas não inteiramente. — Ela descobriu que está
grávida, então John corretamente a levou de volta para Nova York e menos corretamente a
colocou sob os cuidados de seu marido. Ela presumivelmente está onde quer que as tropas de
Washington estejam no momento, a menos que aquele maldito Quaker tenha o bom senso de...
— Oh, Pardloe — Um oficial robusto vestindo o uniforme de tenente-coronel e uma peruca
duplamente enrolada estava parado na porta, parecendo um pouco surpreso. — Pensei que
você estivesse passando mal, pela forma como saiu.
Apesar do tom suave, havia uma tendência subjacente na voz do homem que foi como uma
unha deslizando pela espinha de William. Aquele era Archibald Campbell, e pela frieza visível
com a qual ambos se encaravam, o valor de Tio Hal como negociador poderia não ser tão alto
como seu sobrinho esperava.
Ainda assim, Tio Hal poderia — e o fez — apresentar William a Campbell, aliviando-o da
preocupação de produzir uma adequada bona fides53.
— Seu criado, meu senhor. — Campbell disse, olhando para ele desconfiado. Ele olhou
sobre o seu ombro, saindo do caminho de dois serviçais que carregavam uma grande jarra de
vinho. — Temo que o jantar quase terminou, mas se você quiser, eu posso pedir para que os
servos providenciem uma pequena ceia para você no escritório.
— Não, senhor, eu agradeço — William disse, fazendo uma reverência, embora o cheiro
de comida tenha feito seu estômago roncar. — Eu tomei a liberdade de vir conversar com você
sobre... hã... uma questão urgente.
— De fato — Campbel pareceu descontente e não se preocupou em esconder o fato. —
Isso não pode esperar até amanhã?
— Eu não sei se pode, senhor. — Ele tinha olhado o grande carvalho na orla da cidade, que
ele pensou que poderia ser a árvore que Fanny mencionara. Como o cadáver de Jane não estava
pendurado ali, ele assumiu que ela ainda estava sendo mantida prisioneira na casa ao lado. Mas
não havia como garantir que eles não tinham a intenção de executá-la ao amanhecer. O exército
gostava de executar os prisioneiros de madrugada; começar o dia com a mente voltada para o
que era certo...
Ele controlou os pensamentos e fez outra reverência.
— Trata-se de uma jovem mulher, senhor, que foi presa hoje cedo, sob a suspeita de... de
agressão. Eu...
— Agressão? — As sobrancelhas de Campell se elevaram tanto que quase se esconderam
em sua peruca. — Ela esfaqueou um homem vinte e seis vezes, e depois cortou a sua garganta
a sangue frio. Se esta é a sua noção de agressão, eu odiaria ver...
— Quem é esta jovem mulher, meu senhor? — Tio Hal entrou na conversa, seu tom formal
e seu rosto impassivo.
— Seu nome é Jane — William começou, e parou, não tendo ideia de qual era o seu
sobrenome. — Hã... Jane...
— Pocock, pelo que ela diz — Cortou Campbell. — Ela é uma prostituta.
— A... — Hal cortou sua exclamação de uma sílaba tarde demais. Ele estreitou os olhos
para William.
— Ela está... sob minha proteção — William disse, o mais firmemente que podia.
— Sério? — Campbell falou de forma arrastada. Ele deu ao Tio Hal um olhar de desprezo
divertido, e Tio Hal ficou pálido pela fúria reprimida... sendo que a maior parte não estava
reprimida quando ele direcionou o olhar para William
— Sim, é sério — Disse William, ciente de que aquela não era uma resposta brilhante, mas
incapaz de pensar em nada melhor. — Eu gostaria de falar em nome dela. De providenciar um
advogado — Ele adicionou, descontroladamente. — Tenho certeza de que ela não é culpada do
crime do qual é acusada.
53 Boa-fé (latim)
Campbell de fato riu, e William sentiu que suas orelhas queimavam com o sangue quente.
Ele poderia ter dito alguma coisa imprudente se Lord John não tivesse aparecido naquele
momento, tão impecavelmente vestido como seu irmão e parecendo levemente inquisitivo.
— Ah, William! — Ele disse, como se já esperasse ver seu filho ali.
Seus olhos mudaram rapidamente para cada um dos rostos, obviamente tirando
conclusões sobre o teor da conversa, se não sobre o assunto. Com apenas uma pausa, ele deu
um passo para a frente e abraçou William calorosamente.
— Você está aqui! Eu estou muito feliz ao vê-lo — ele disse, sorrindo para William — Eu
tenho notícias maravilhosas! Pode nos dar licença por um momento, senhor? — Ele disse à
Campbell, e, sem esperar por uma resposta, pegou William pelo cotovelo, abriu a porta da
frente, e o levou pela ampla varanda, fechando a porta firmemente atrás deles. — Tudo bem.
Diga-me o que está acontecendo — Lord John disse, com a voz baixa. — E faça isso agora.
— Jesus — ele disse, quando William desabafou sobre uma pequena parte confusa da situação.
Ele esfregou a mão lentamente sobre o rosto, pensando, e repetiu — Jesus!
— Sim — William disse, ainda chateado, mas sentindo algum conforto pela presença de
seu pai. — Eu pensei em conversar com Campbell, mas então o Tio Hal estava aqui e eu esperei...
mas ele e Campbell pareciam estar...
— Sim, o relacionamento entre os dois poderia ser descrito como ódio cordial. — Lord
John concordou. — É altamente improvável que Archibald Campbell faça qualquer tipo de favor
a Hal, a menos que seja escoltá-lo pessoalmente para o inferno.
Ele exalou e balançou a cabeça, como se quisesse clareá-la dos vapores do vinho.
— Eu não sei, William, eu realmente não sei. A garota... Ela é uma prostituta?
— Sim.
— Ela cometeu o crime?
— Sim.
— Oh, Deus. — Ele olhou indefeso para William por um momento, depois endireitou os
ombros. — Tudo bem. Eu farei o que puder, mas não prometo nada. Há uma taverna na praça,
chamada Tudy’s. Vá até lá e espere por mim. Eu imagino que a sua presença não será muito útil
nesta discussão.
Pareceu uma eternidade, mas deve ter sido menos de uma hora depois, quando Lord John
apareceu no Tudy’s. Um olhar para o seu rosto foi o suficiente para saber que ele não tinha sido
bem sucedido.
— Eu sinto muito — ele disse sem preliminares, e se sentou na frente de William. Ele tinha
saído sem o chapéu e limpava as gotas de chuva que seu cabelo havia capturado. — A garota...
— Seu nome é Jane — William interrompeu. Parecia importante que ele insistisse naquilo,
para não deixar que todos a dispensassem como “a prostituta”.
— Senhora Jane Eleanora Pocock — Seu pai concordou, assentindo brevemente. —
Aparentemente ela não apenas cometeu o crime, como o confessou. Uma confissão assinada,
nada menos. Eu a li. — Ele esfregou a mão incansavelmente sobre o rosto. — Sua única objeção
foi a afirmação que ela esfaqueou Harkness vinte e seis vezes e cortou sua garganta. De acordo
com o que disse, ela o esfaqueou uma vez antes de cortar sua garganta. As pessoas costumam
exagerar as coisas.
— Foi o que ela me disse. — A garganta de William se apertou. Seu pai lançou um olhar
para ele, mas escolheu não dizer nada em resposta a isso. O que ele pensara estava bastante
claro, entretanto. — Ela estava tentando evitar que sua irmã fosse deflorada pelo homem — ele
disse numa urgência defensiva. — E Harkness era um sodomita depravado que a teria usado
(Jane, quero dizer) abominavelmente! Eu o ouvi falar sobre isso. Você ficaria com o estômago
revirado ao ouvi-lo.
— Eu ouso dizer que sim — Lord John concordou. — Clientes perigosos fazem parte da
profissão. Mas não havia nenhum recurso disponível a ela além da faca? A maioria dos bordéis
que atendem aos soldados tem alguns meios de resgatar suas prostitutas... da importunação
excessiva. E a Senhora Pocock, pelo que o Coronel Campbell me disse, é... hã... uma...
— Peça rara. Ela é. Era.
William esticou a mão cegamente para pegar a caneca de cerveja que ele estivera
ignorando, tomou um grande gole e tossiu convulsivamente. Seu pai observou com alguma
simpatia.
William, por fim, inspirou fundo e ficou sentado, olhando para os punhos, cerrados sobre
a mesa.
— Ela o odiava — Ele disse por fim, em voz baixa. — E a madame não teria impedido que
ele fosse com a irmã dela; ele pagou pela virgindade da menina.
Lord John suspirou e cobriu os punhos de William com sua mão, apertando-os.
— Você ama a jovem mulher, William? — Ele perguntou, baixinho. A taverna não estava
cheia, mas havia homens o suficiente bebendo ali para que ninguém os notasse.
William balançou a cabeça, impotente.
— Eu... tentei protegê-la. Salvá-la de Harkness. Eu... Eu a comprei por uma noite toda. Eu
não parei para pensar que ele voltaria... mas é claro que sim — Ele finalizou amargamente. —
Eu provavelmente tornei as coisas mais difíceis para ela.
— Não haveria uma forma de tornar as coisas melhores, a não ser que você se casasse com
a moça, ou matasse Harkness — Lord John disse secamente. — E eu não recomendo o
assassinato como forma de lidar com as situações difíceis. Ele tende a levar a complicações, mas
não tanto quanto um casamento. — Ele se levantou e foi até o bar, voltando com dois copos
fumegantes de ponche de rum quente.
— Beba isso — ele disse, empurrando um deles na frente de William. — Você parece estar
com frio.
Ele estava; ele tinha pego uma mesa no canto mais distante, longe do fogo, e um tremor
sutil e incontrolável o atravessava, suficiente para criar ondulações no ponche quando ele
envolveu o copo com a mão. O ponche estava bom, embora tivesse sido feito com casca de limão
em conserva, doce, forte e quente, e com conhaque em vez de rum. Ele não tinha comido nada
há horas, e aquilo aqueceu seu estômago imediatamente.
Eles beberam em silêncio — o que mais havia a dizer? Não havia uma forma de salvar Jane,
exceto por algum tipo de agressão física, e ele não podia pedir que seu pai ou seu tio se
juntassem a ele ou o apoiassem nesse tipo de ato desesperado. Eles não fariam isso, de qualquer
forma. Ele acreditava na sua afeição considerável por ele, mas sabia muito bem que eles viam
como seu dever prevenir que ele cometesse loucuras que se provariam fatais.
— Não foi completamente em vão, você sabe — Lord John disse baixinho. — Ela salvou
sua irmã.
William assentiu, incapaz de falar. O pensamento em ver Fanny pela manhã, apenas para
contar a ela... e depois? Ele deveria ficar atrás dela para observar Jane ser enforcada?
Lord John ficou de pé, sem perguntar, voltou para o bar para pegar outras bebidas. William
olhou para o copo fumegante colocando diante de si e então para o seu pai.
— Você acha que me conhece bem, não? — Ele disse, mas com verdadeira afeição em sua
voz.
— Sim, eu acho isso, William — Disse seu pai, no mesmo tom. — Beba...
William sorriu e, levantando-se, bateu no ombro de seu pai.
— Talvez você me conheça, mesmo. Vejo você de manhã, papai.
134 – ÚLTIMO RECURSO
Eu estava deitada na cama ao lado de Jamie, sonolenta e imaginando como eu poderia induzir a
Sra. Weisenheimer a coletar sua urina para mim. Ela sofria de cálculo biliar, para o qual o
tratamento herbal mais efetivo que eu tinha era a ursina. Felizmente, o Sr. Jameson tinha
algumas folhas secas em seu estoque. Para utilizá-la, era necessário ter cuidado, entretanto,
porque ela continha arbutina, que hidrolisava a hidroquinona — um antisséptico urinário
muito eficiente, mas perigosamente tóxico. Por outro lado... era um clareador de pele bastante
eficaz, se aplicado topicamente.
Eu bocejei e decidi que não valia à pena o incômodo de fazer Jamie ir até o consultório
para conversar com a Sra. Weisenheimer em alemão sobre sua urina. Ele faria isso se eu pedisse,
mas não fazia muito sentido.
Eu dispensei a ideia e rolei, aconchegando-me contra Jamie, que estava dormindo
pacificamente de costas, como sempre, mas que despertou um pouco pelo meu toque, deu um
tapinha desajeitado, enrolou-se em volta de mim e caiu no sono profundamente de novo.
Noventa segundos depois, houve uma batida na porta.
— Ifrinn! — Jamie se sentou ereto, esfregando a mão bruscamente no rosto, e jogou as
cobertas para o lado. Gemendo, eu o segui menos atleticamente, rastejando da cama e
procurando às cegas pelos meus chinelos.
— Deixe que eu vou. Provavelmente é para mim. — A esta hora da noite, uma batida na
porta era provavelmente alguém com alguma emergência médica que envolvia peixe salgado
ou cavalos, mas dada a ocupação militar da cidade, nunca se sabe.
Certamente ninguém anteciparia abrir a porta e encontrar William do outro lado,
parecendo pálido e feroz.
— O Sr. Fraser está em casa? — Ele disse laconicamente. — Eu preciso de sua ajuda.
Fraser se vestiu rapidamente, pegando um cinto com um punhal embainhado e uma bolsa de
couro pendurada, e prendendo-o à cintura sem fazer perguntas. Ele estava usando suas vestes
das Highlanders, William notou, uma manta muito usada e quase se desvanecendo. Ele fez uma
dobra com ela ao redor de seus ombros, assentindo em direção à porta.
— É melhor irmos até o consultório de minha esposa — ele disse suavemente, assentindo
em direção à fina parede, as ripas visíveis através do gesso. — Você pode me dizer o que precisa
lá.
William o seguiu pelas ruas escorregadias devido à chuva, a água parecendo lágrimas
geladas em sua bochecha. Por dentro, ele se sentia seco, uma tira de couro rachada e enrolada
ao redor de um coração sólido de terror. Fraser não conversou no caminho, mas o pegou uma
vez pelo cotovelo, empurrando-o para um espaço estreito entre dois prédios, exatamente
quando uma patrulha do exército virou a esquina. Ele ficou pressionado duramente contra a
parede, ombro a ombro com Fraser, e sentiu a densidade e o calor do homem com um choque.
No fundo de sua mente estava a memória de ter sido pequeno e ficar perdido no nevoeiro
de Lake District. Com frio e aterrorizado, ele tinha caído num buraco rochoso e permanecerá lá,
congelado, ouvindo os fantasmas na névoa. E então sentiu o alívio esmagador quando Mac o
encontrara, envolvendo-o no calor de seus braços de cavalariço.
Ele empurrou a memória impacientemente para o lado, mas uma sensação persistente de
alguma coisa que não era exatamente esperança permaneceu quando o último som de passos
desapareceu e Fraser deslizou para fora de seu esconderijo, convidando-o a segui-lo.
O pequeno consultório estava frio e escuro, cheirando a ervas e medicamentos e sangue
velho. Havia um cheiro adocicado, também, estranho mas familiar, e após um momento de
desorientação, ele percebeu que devia ser éter; ele já tinha sentido aquele cheiro na Mãe Claire
e em Denzell Hunter quando eles operaram seu primo Henry.
Fraser trancou a porta atrás deles e encontrou um castiçal no armário. Ele o entregou à
William, pegou uma caixinha de pólvora do mesmo armário e acendeu a vela com muita
eficiência. A luz vacilante brilhou em seu rosto, e a ousadia de suas feições saltaram à vista:
nariz longo e reto e sobrancelhas pesadas, bochechas amplas e uma modelagem profunda da
mandíbula e da têmpora. Era esquisito ver a semelhança tão marcante e tão de perto, mas
naquele momento William achou aquilo um estranho conforto.
Fraser pousou o castiçal na mesa e gesticulou para que William se sentasse num banco,
pegando o utro.
— Diga-me, então — ele disse calmamente. — Aqui é um lugar seguro; ninguém vai ouvir.
Imagino que seja um assunto perigoso?
— De vida ou morte — William disse e, respirando profundamente, começou.
Fraser ouviu com completa atenção, seus olhos fixados atentamente no rosto de William
enquanto ele falava. Quando ele terminou, houve um momento de silêncio. E então Fraser
assentiu uma vez, como se fosse para si mesmo.
— Esta jovem mulher — ele disse. — Posso saber o que ela é para você?
William hesitou, sem saber o que dizer. O que Jane era para ele? Não uma amiga, e não
ainda uma amante. E ainda assim...
— Ela... Eu a coloquei junto com sua irmã sob minha proteção — ele disse —, quando elas
saíram da Filadélfia com o exército.
Fraser assentiu como se aquela fosse uma explicação perfeitamente adequada da situação.
— Você sabia que seu tio e seu regimento estão com o exército? Que ele está aqui, quero
dizer.
— Sim. Eu conversei com meu... com Lord John e com Pardloe. Eles não têm como me
ajudar. Eu... renunciei à minha comissão — Ele se sentiu compelido a adicionar. — Isso não tem
nada a ver com o motivo de eles não poderem ajudar, mas quer dizer que eu não estou mais sob
comando militar.
— Sim, eu notei que você não está usando uniforme. — Ele disse. Ele tamborilou os dedos
de sua mão direita brevemente no topo da mesa, e William viu com surpresa que o dedo anelar
estava faltando, uma grossa cicatriz na parte da trás de sua mão. Fraser viu que ele notara. —
Saratoga — ele disse, com um lampejo de algo que poderia ter sido um sorriso em outras
circunstâncias.
William sentiu um pequeno choque com a palavra, coisas não percebidas no passado
voltando repentinamente para ele. Ele ajoelhado ao lado do leito de morte do Brigadeiro Simon
Fraser e um grande homem do outro lado, com uma bandagem branca na mão, inclinando-se
para baixo das sombras para dizer alguma coisa suave na língua escocesa para o brigadeiro, que
replicou na mesma língua.
— O brigadeiro — ele disse, e parou abruptamente.
— Meu parente — Fraser disse. Ele delicadamente absteve-se de acrescenter “e seu”, mas
William fez a conexão facilmente. Ele sentiu um distante eco de tristeza, como uma pedra jogada
na água, mas não podia esperar. — A jovem mulher vale a sua vida? — Fraser perguntou. —
Porque eu acho que provavelmente é esta a razão pela qual seus... seus outros parentes — o
canto de sua boca se elevou, embora William não pudesse dizer se era com humor ou desgosto
— falharam em ajudar.
William sentiu o sangue quente em seu rosto, a raiva suplantando o desespero.
— Eles não falharam comigo. Eles não podiam me ajudar. Está dizendo que não vai me
ajudar também, então, senhor? Ou que não pode? Está com medo dos riscos?
Fraser lançou um olhar de repreensão a ele; William percebeu, mas não se importou. Ele
estava de pé, os punhos cerrados.
— Não tem importância, então. Eu mesmo farei isso.
— Se você pensasse que podia, nunca teria ido até mim, rapaz — Fraser disse
uniformemente.
— Não me chame de “rapaz”, seu... seu... — William sufocou o epíteto, não por prudência
mas pela inabilidade de escolher entre os vários que surgiram ao mesmo tempo em sua mente.
— Sente-se — Fraser disse, sem elevar a voz, mas infundindo-a com uma voz de comando
que tornou impensável (ou pelo menos desconfortável) desobedecer.
William olhou para ele. Seu peito estava pesado e ainda assim ele não conseguia reunir ar
o suficiente para falar. Ele não se sentou, mas desenrolou seus punhos e ficou parado. Por fim,
ele conseguiu dar um aceno espasmódico. Fraser inspirou profunda e visivelmente e exalou de
forma lenta, deixando uma fumaça branca sair na sala escura e fria.
— Tudo bem, então. Diga-me onde ela está e o que você sabe da situação física. — Ele
olhou para a janela fechada, onde a umidade que escorria mostrou a escuridão entre as ripas
na medida em que a chuva penetrava ali — A noite não é longa o suficiente.
Eles foram até o armazém onde Fraser trabalhava, às margens do rio. Fraser deixou William
para fora, para vigiar, destrancou uma porta na lateral, e deslizou para dentro dela sem fazer
qualquer ruído, reaparecendo alguns minutos mais tarde vestido com calças ásperas e uma
camisa que não servia muito bem nele, carregando um pequeno saco de aniagem e dois grandes
lenços pretos. Ele entregou um deles a William e, dobrando o outro na diagonal, atou-o ao redor
do rosto, cobrindo o nariz e a boca.
— Isso realmente é necessário? — William atou seu próprio lenço, mas sentiu-se um
pouco ridículo, como se estivesse se vestindo para uma pantomima bizarra.
— Você pode ir sem ele, se quiser — Fraser advertiu a ele, pegando um gorro de lã para
fora do saco, e enfiando os cabelos para dentro dele, e depois puxando-o sobre suas
sobrancelhas. — Eu não posso arriscar ser reconhecido.
— Se você acha que o risco é tão grande... — William começou, com uma aspereza na voz,
mas Fraser o fez parar, pegando seu braço.
— Você pediu a minha ajuda — ele disse, a voz baixa e brusca. — Você acha que o risco é
digno. Mas eu tenho uma família para proteger. Eu não posso deixá-los morrendo de fome caso
seja pego.
William não teve chance de replicar; Fraser tinha trancado a porta e já estava saindo,
chamando-o impacientemente. Ele pensou naquilo, entretanto, seguindo o escocês na névoa
que subia até a altura dos joelhos nas ruas. Tinha parado de chover; aquela era uma coisa a seu
favor.
Você acha que o risco é digno. Sem nenhuma palavra sobre Jane ser uma prostituta ou uma
assassina confessa. Talvez fosse porque Fraser era um criminoso e sentia simpatia por ela.
Ou talvez ele esteja disposto a aceitar minha palavra do que é necessário fazer. E esteja
disposto a assumir qualquer maldito risco para me ajudar.
Mas tais pensamentos não podiam fazer nenhum bem agora, e ele os colocou para fora de
sua mente. Eles correram, com os pés leves e com os rostos cobertos, pelas praças vazias de
Savannah, em direção à casa próxima à árvore.
— Eu não imagino que você saiba em qual cômodo ela está? — Jamie murmurou para William.
Eles estavam sob o grande carvalho, escondidos não apenas pela sua sombra, mas pelas longas
barbas do musgo espanhol que se penduravam de seus galhos e pela névoa que se infiltrava
entre eles.
— Não.
— Espere aqui. — Fraser desapareceu daquela maldita forma felina. Deixado à sua
própria sorte e enervado pelo silêncio, William pensou em explorar o conteúdo da bolsa que
Fraser deixara no chão. Eram inúmeras folhas de papel e um frasco com rolha do que —
destampado — provou-se ser melado.
Ele ainda estava confuso sobre aquilo quando Fraser voltou, tão repentinamente como
havia desaparecido.
— Há apenas um guarda na casa, na frente — ele disse, movendo-se perto o suficiente
para sussurrar no ouvido de William. — E todas as janelas estão escuras, com excessão uma do
segundo andar. Há uma única vela queimando; deve ser a dela.
— Por que você acha isso? — William sussurrou de volta, assustado.
Fraser hesitou por um momento, mas depois disse, ainda mais baixo. — Eu já passei a
noite esperando ser enforcado na manhã seguinte. Eu não a passaria na escuridão se tivesse
escolha. Vamos lá.
Era uma casa de dois andares e, embora fosse razoavelmente grande, tinha sido
construída com simplicidade. Dois quartos no piso superior ao fundo, e dois na frente. As
persianas das janelas superiores estavam abertas, e o brilho de uma vela tremeluzia no quarto
à direita do fundo. Fraser insistiu em circular a casa — numa distância cautelosa, correndo de
arbusto para árvore, de árvore para arbusto — para terem certeza da posição do guarda. O
homem, armado com um mosquete apoiado nas costas, estava na varanda que tomava a frente
da casa. A julgar pela sua constituição, ele era jovem, provavelmente mais jovem do que William.
E pela sua postura, que era descuidada ao extremo, ele não estava esperando qualquer
problema.
— Eu não imagino que eles pensassem que uma prostituta teria amigos — William disse
baixinho, recebendo um breve ruído escocês em retorno. Fraser o chamou e o levou ao redor
da parte de trás da casa.
Eles passaram por uma janela que provavelmente pertencia à cozinha; não havia cortinas,
e ele podia ver a tênue luz de uma lareira nas profundezas do cômodo, apenas um vislumbre
através das persianas. Havia o risco de um ou mais escravos ou serviçais estarem dormindo na
cozinha, entretanto — e ele ficou feliz em ver que Fraser pareceu assumir a mesma coisa. Eles
se moveram ao redor do próximo canto da casa, o mais silenciosamente possível.
Fraser pressionou sua orelha na persiana de uma grande janela, mas pareceu não ouvir
nada. Ele passou a lâmina de sua faca robusta entre as persianas e, com alguma dificuldade,
alavancou o parafuso para fora de seu suporte. Ele gesticulou para que William viesse e se
apoiasse com força na janela, para impedir que o parafuso caísse de repente, e com um esforço
conjunto de espetáculos estúpidos e gestos frenéticos — que provavelmente teriam sido
cômicos para qualquer um que não estivesse envolvido na situação — eles conseguiram abrir
a maldita persiana sem fazer muito barulho.
A janela atrás tinha cortinas — melhor assim — mas o caixilho possuía uma trava, que
não cederia facilmente à faca de Jamie. O grande escocês estava suando; ele arrancou a touca
por um momento para limpar a sobrancelha, e depois a colocou de volta, e, tirando o melaço da
bolsa, ele destampou o frasco e jogou um pouco do xarope pegajoso em sua mão. Ele espalhou
o xarope sobre a vidraça do caixilho e, pegando uma folha de papel, grudou-a no vidro.
William não conseguia entender o procedimento, mas Fraser afastou o braço e socou o
vidro com o punho. Ele se quebrou com um pequeno ruído, e os pedaços de vidro foram
retirados facilmente, ficando presos no papel sujo de melaço.
— Onde você aprendeu a fazer isso? — William suspirou, profundamente impressionado,
e ouviu uma risada de satisfação de trás da máscara de Fraser.
— Minha filha me disse sobre isso — Ele sussurrou em resposta, lançando o vidro e o
papel no chão. — Ela leu em um livro.
— Sua... — William parou abruptamente, bem como seu coração. Ele tinha se esquecido.
— Sua... filha. Você quer dizer... Eu tenho uma irmã?
— Sim — Fraser disse brevemente. — Você a conheceu. Vamos. — Ele colocou a mão pelo
buraco no vidro, abriu o trinco e empurrou a janela. Ela se abriu, com um ruído inesperado de
dobradiças sem óleo.
— Merda! — William disse, baixinho.
Fraser disse alguma coisa que William assumiu ser o sentimento equivalente em gaélico,
mas não perdeu tempo. Ele empurrou William contra a parede e, com um sussurro de “fique aí”
desapareceu na noite.
William se achatou contra a parede, o coração martelando. Ele podia ouvir passos rápidos
descendo os degraus de madeira da varanda, e então batidas abafadas no chão úmido.
— Quem está aí? — O guarda gritou, enquanto rodeava a casa. Ao ver William, ele colocou
o mosquete sobre o ombro para mirar. E Fraser saiu da escuridão enevoada como um fantasma
raivoso, pegou o garoto pelo ombro, e bateu com uma pedra na parte de trás de sua cabeça.
— Depressa! — Ele disse, em voz baixa, empurrando o queixo em direção à janela aberta
enquanto baixava o corpo lânguido do guarda para o chão. William não perdeu tempo e se
enfiou para dentro da casa, contorcendo-se para cima do peitoril para pousar quase sem som
algum do outro lado, de cócoras no tapete do que provavelmente era uma sala de estar, a julgar
pelos contornos escuros do mobiliário. Um relógio que não estava visível tiquetaqueava
acusadoramente, em algum lugar na escuridão.
Fraser içou-se na moldura da janela aberta e parou por um momento, ouvindo. Mas não
havia som na casa, exceto o relógio, e ele desceu levemente para dentro do cômodo.
— Você não sabe de quem é esta casa? — Ele sussurrou para William, olhando ao redor.
William balançou a cabeça. Devia ser de algum oficial, mas ele não tinha ideia quem
poderia ser esse oficial — provavelmente o major responsável por questões disciplinares.
Presumivelmente, Campbell tinha levado Jane até ali como uma alternativa a deixá-la na
paliçada do acampamento. Tinha sido atencioso de sua parte.
Seus olhos se adaptaram rapidamente; havia uma forma escura e oblonga a alguns metros
— a porta. Fraser também a viu; sua mão descansou nas costas de William por um instante,
empurrando-o em direção a ela.
Havia um vidro oval na porta da frente, e luz suficiente penetrava por ele para mostrar o
carpete pintado do corredor, seu padrão de diamantes negro à luz incolor. Perto da porta, as
sombras escondiam o início de uma escada, e dentro de segundos eles estavam subindo, o mais
rápida e silenciosamente que dois homens tão grandes podiam.
— Por aqui — William estava na liderança; ele gesticulou para que Fraser virasse à
esquerda. O sangue latejava em as cabeça, e ele mal podia respirar. Ele queria arrancar a
máscara e engolir ar, mas ainda não... ainda não.
Jane. Será que ela tinha ouvido o guarda chamar? Se ela estivesse acordada, devia ter ouvido
os dois na escada.
O patamar não tinha janelas e estava muito escuro, mas havia um suave brilho de luz de
velas sob a porta de Jane — ele esperava, pelo amor de Deus, que fosse a porta de Jane. Correndo
a mão pelo batente, ele sentiu a maçaneta, e sua mão se fechou ao redor dela. Estava fechada,
naturalmente — mas ao tentar abri-la, uma parte de sua mão tocou uma chave, ainda na
fechadura.
Fraser estava atrás dele; ele podia ouvir a respiração do homem. Atrás da porta do outro
quarto, alguém estava roncando de forma tranquilizadora. Contanto que o guarda ficasse lá fora
por tempo suficiente...
— Jane — ele sussurrou o mais alto que ousou, colocando os lábios entre a fresta da porta
e o batente. — Jane! Sou eu, William! Fique quieta!
Ele pensou ter ouvido uma inspiração repentina do outro lado da porta, embora pudesse
ser apenas o som de seu próprio sangue correndo em seus ouvidos. Com um cuidado infinito,
ele puxou a porta em direção a si e virou a chave.
A vela estava de pé sobre uma pequena mesa, sua chama tremeluzindo
descontroladamente por causa da porta aberta. Havia um forte cheiro de cerveja; uma garrafa
quebrada estava jogada ao chão, o vidro marrom brilhando na luz bruxuleante. A cama estava
amarrotada, os lençóis pendurados metade para fora do colchão... Onde estava Jane? Ele girou,
esperando vê-la encolhida num canto, assustada com sua entrada.
Ele viu sua mão primeiro. Ela estava deitada no chão ao lado da cama e da garrafa
quebrada, sua mão estendida, branca e semiaberta como se estivesse em súplica.
— A Dhia — Fraser suspirou atrás dele, e agora ele podia sentir o cheiro ferroso do sangue,
misturado ao da cerveja.
Ele não se lembrava de ter caído de joelhos e levantado-a nos braços. Ela estava pesada,
lânguida e desajeitada, toda a graça e calor dela tinham ido embora e sua bochecha estava fria
ao toque. Apenas os cabelos ainda eram de Jane, brilhando à luz das velas, suaves contra sua
boca.
— Aqui, a bhalaich — Uma mão tocou seu ombro, e ele se virou sem pensar.
Fraser tinha abaixado a máscara ao redor de seu pescoço, e seu rosto estava sério, atento.
— Nós não temos muito tempo — ele disse suavemente.
Eles não falaram. Eles esticaram as roupas de cama em silêncio, jogaram uma colcha limpa
sobre a pior parte do sangue, e a deitaram sobre ela. William molhou seu lenço no jarro e limpou
os respingos de sangue de seu rosto e de suas mãos. Ele hesitou por um momento, e então
rasgou o lenço violentamente em duas partes e envolveu seu pulso lacerado, e depois cruzou
sua mão sobre o peito.
Jamie Fraser estava ao seu lado, então, com um fugitivo brilho da lâmina de sua faca.
— Por sua irmã — Ele disse e, curvando-se, cortou uma mecha de seus cabelos castanhos
brilhantes. Ele colocou a mecha no bolso de suas calças e saiu silenciosamente. William ouviu o
breve rangido de seus passos na escada e entendeu que ele tinha sido deixado para se despedir
com privacidade.
Ele olhou para seu rosto à luz de velas pela primeira e última vez. Ele se sentia vazio, oco
como um cervo eviscerado. Sem nenhuma ideia do que dizer, ele tocou a mão envolta pela
máscara preta e falou a verdade, em uma voz baixa de forma a ninguém além da morta o ouvir.
— Eu queria salvá-la, Jane. Perdoe-me.
135 – ÚLTIMOS RITOS
Jamie chegou em casa pouco antes do amanhecer, pálido e gelado até os ossos. Eu não estava
dormindo. Não dormira desde que ele tinha saído com William, e quando eu ouvi seus passos
nas escadas rangentes, peguei a água quente do caldeirão que sempre deixava em fogo brando
e a coloquei na caneca que eu já tinha preparado, com metade de uísque barato e uma colher
de mel. Pensei que ele precisaria disso, mas não tinha ideia do quanto.
— A moça cortou os pulsos com uma garrafa quebrada — ele disse, agachando-se em um
banquinho junto ao fogo, uma colcha sobre os ombros e a caneca quente entre as mãos grandes.
Ele não conseguia parar de tremer. — Que Deus a tenha e perdoe o seu pecado causado pelo
desespero. — Ele fechou os olhos e balançou a cabeça violentamente, como se para dissipar a
memória do que ele tinha visto no quarto. — Oh, Jesus, meu pobre rapaz.
Eu o fiz ir para a cama e rastejei ao seu lado para aquecê-lo com o meu corpo, mas não
tinha dormido também. Eu não sentia a necessidade disso. Haveria coisas a fazer quando o dia
chegasse; eu podia senti-los esperando, uma multidão paciente. William. A garota morta. E
Jamie havia comentado alguma coisa sobre sua irmã mais nova... Mas naquele momento, o
tempo ainda estava suspenso, equilibrando-se no limite da noite. Eu fiquei deitada ao lado de
Jamie e ouvindo-o respirar. Naquele momento, isso era suficiente.
John saiu cerca de dez minutos depois. Ele parou nos degraus, olhando em volta e eu acenei. Ele
veio para onde estávamos sentadas e fez uma reverência muito formal para Fanny.
— Seu criado, Senhorita Frances — Ele disse. — Entendi, pelo que o Coronel Campbell
disse, que você é irmã da Senhorita Pocock; por favor, permita-me oferecê-la as minhas
condolências.
Ele falou de forma muito simples e honesta, e os olhos de Fanny se encheram de lágrimas.
— Eu posso tê-la? — Ela disse suavemente. — Poi favoi?
Sem se importar com suas calças imaculadas, ele se ajoelhou em frente a ela, e pegou sua
mão entre as dele.
— Sim, querida. — Ele disse, tão suavemente quanto ela. — É claro que pode. — Ele deu
um tapinha em sua mão — Você pode esperar aqui, apenas por um momento, enquanto eu
converso com a Sra. Fraser?
Ele ficou de pé e, num pensamento tardio, tirou um grande lenço cor de neve de sua manga
e entregou para ela com outra pequena reverência.
— Pobre criança — ele disse, pegando minha mão e a colocando na curva de seu cotovelo.
— Ou crianças... a outra garota não podia ter mais do que dezessete anos. — Nós caminhamos
alguns passos, por uma pequena trilha de tijolos entre dois canteiros vazios, até estarmos a uma
distância segura dos ouvidos de quem passava na rua e de quem estava na casa. — Eu imagino
que William tenha pedido ajuda a Jamie. Eu pensei que ele poderia fazer isso, embora esperasse
que ele não fizesse, pelo bem de ambos.
Seu rosto estava sombrio, e havia olheiras sob seus olhos; evidentemente, ele tinha tido
uma noite perturbada também.
— Você sabe onde está William? — Perguntei.
— Não. Ele disse que tinha uma coisa para fazer fora da cidade, mas que retornaria à noite.
— Ele olhou sobre o ombro para a casa. — Eu arranjei para que... Jane... seja apropriadamente
cuidada. Ela não poderá ser enterrada num cemitério de igreja, é claro...
— É claro — Murmurei, irritada com o pensamento. Ele notou, mas limpou a garganta e
continuou.
— Eu conheço uma família que tem um cemitério particular. Eu acredito que posso
arranjar um enterro discreto. Rápido, é claro; amanhã, bem cedo?
Eu assenti, contendo-me. Não era culpa dele.
— Você está sendo muito bom — Eu disse.
A preocupação e a falta de sono estavam se apossando de mim; as coisas pareciam
estranhamente não dimensionais, como se as árvores e as pessoas e os móveis do jardim
estivessem meramente colados num cenário pintado. Eu balancei minha cabeça para clareá-la,
entretanto; havia coisas importantes a dizer.
— Eu tenho que te contar uma coisa — eu disse. — Eu gostaria de não precisar fazer isso.
Ezekiel Richardson foi até o meu consultório outro dia.
— O diabo que ele fez isso — John enrijeceu ao ouvir o nome. — Ele não está com o
exército aqui, certamente? Eu teria...
— Sim, mas não com o seu exército. — Eu disse a ele, tão brevemente quanto podia, o que
Richardson era (ou, melhor, o que foi revelado a mim; só Deus sabia há quanto tempo ele era
um espião Rebelde) e quais eram as suas intenções em relação a Hal e à família Grey em geral.
John ouviu, seu rosto bastante atento, embora o canto de sua boca se contorcesse quando
eu descrevi o plano de Richardson para influenciar as ações políticas de Hal.
— Sim, eu sei — Eu disse secamente, ao ver aquilo. — Eu não suponho que ele já tenha
conhecido Hal. Mas a coisa importante é... — Eu hesitei, mas ele tinha que saber. — Ele sabe
sobre você — Eu disse. — O que você... é. Eu quero dizer sobre...
— O que eu sou — ele repetiu, sem expressão. Seus olhos tinham se fixado em meu rosto
neste ponto; agora ele desviava o olhar. — Entendo. — Ele inspirou profundamente e exalou de
forma lenta.
John era um distinto soldado e um cavalheiro honrado, membro de uma antiga e nobre
família. Ele também era homossexual, em uma época em que aquele atributo particular era
tomado como uma ofensa capital. Aquele conhecimento estar nas mãos de um homem que
pretendia fazer mal a ele e à sua família... Eu sabia o que tinha acabado de fazer — com apenas
algumas palavras, eu tinha deixado claro que ele estava numa corda bamba, acima de um
precipício, com Richardson segurando a corda.
— Eu sinto muito, John — Eu disse, muito suavemente. Eu toquei seu braço, e ele colocou
a mão brevemente sobre a minha, apertando-a gentilmente, e sorriu.
— Obrigado. — Ele olhou para o chão de tijolos sob seus pés, e depois olhou para cima. —
Você sabe como ele conseguiu esta... informação?
Ele falou calmamente, mas um nervo estava pulando sob seu olho ferido, um pequeno
tremor. Eu queria colocar meu dedo ali, para estabilizá-lo. Mas não havia nada que eu pudesse
fazer.
— Não — Eu olhei de volta para o banco distante. Fanny ainda estava lá, uma figura
pequena e desolada, com a cabeça baixa. Eu me virei de volta para John; sua testa estava
franzida, enquanto ele pensava. — Mais uma coisa. A nora de Hal, a jovem mulher com um nome
estranho...
— Amaranthus — ele interrompeu, e sorriu ironicamente. — Sim, o que tem ela? Não me
diga que Ezekiel Richardson a inventou para seus próprios fins.
— Eu não duvidaria que ele o fizesse, mas provavelmente não — Eu disse a ele o que tinha
ouvido do Sr. Jameson. — Eu contei a William antes de ontem — Eu disse. — Mas com tudo o
que aconteceu — eu ondulei a mão, englobando Fanny, Jane, o Coronel Campbell e outras coisas
—, eu duvido que ele tenha tido tempo para ir até Saperville para procurar por ela. Você não
acha que esta é a tarefa de qual ele estava falando, não é? — Perguntei, impressionada pelo
pensamento.
— Só Deus sabe. — Ele esfregou a mão sobre o rosto, depois se endireitou. — Eu devo ir.
Eu terei que dizer algumas coisas a Hal. Não... aquilo, acho que não. — Ele disse, vendo meu
rosto. — Mas obviamente há coisas que ele precisa saber, e rapidamente. Deus a abençoe, minha
querida. Eu mando notícias sobre amanhã. — Ele pegou minha mão, beijou-a gentilmente, e a
soltou.
Eu o observei partir, suas costas muito retas, o escarlate de seu casaco brilhando como
sangue contra os cinzas e verdes apagados do jardim de inverno.
Nós enterramos Jane na manhã de um dia frio e maçante. O céu estava encharcado com nuvens
baixas e cinzentas, e um vento bruto soprava do mar. Era um cemitério particular muito
pequeno, que pertencia a uma grande casa fora da cidade.
Todos nós fomos com Fanny: Rachel e Ian, Jenny, Fergus e Marsali — até mesmo as garotas
e Germain. Eu me preocupei um pouco; eles não poderiam evitar sentir o eco da morte de Henri-
Christian. Mas a morte era um fato da vida, e muito comum, e embora eles parecessem solenes
e pálidos entre os adultos, estavam bastante compostos. Fanny não estava tão composta, mas
completamente entorpecida, eu pensei; ela tinha derramado todas as lágrimas que seu pequeno
corpo podia conter e agora estava branca e rígida como um uma haste alvejada com lixívia.
John veio, vestido com o seu uniforme (para o caso de algum curioso tentar nos perturbar,
ele explicara para mim em voz baixa). O fabricante de caixões tinha apenas os caixões para
adultos; o corpo envolto de Jane parecia como uma crisálida, eu meio que esperava ouvir um
som de algo seco se partindo quando os homens a pegaram. Fanny não quisera olhar para o
rosto de sua irmã pela última vez, e eu pensei que era melhor assim.
Não havia padre ou ministro; ela era uma suicida, e estava sendo enterrada em solo
sagrado apenas por respeito. Quando a última parte da terra foi colocada sobre ela, nós ficamos
em silêncio, esperando, o vento forte passando pelos nossos cabelos e roupas.
Jamie inspirou profundamente e deu um passo para a cabeceira do túmulo. Ele disse a
oração gaélica chamada Canto Fúnebre, mas em inglês, para que Fanny e John pudessem
compreender.
Jenny, Ian, Fergus e Marsali se juntaram, murmurando o verso final com ele.
Saperville
15 de janeiro de 1779
Saperville foi um local difícil de encontrar, mas, uma vez encontrado, era pequeno o suficiente
para que, em questão de três perguntas, ele descobrisse a residência de uma viúva de
sobrenome Grey.
— Ali — Hal puxou as rédeas, assentindo em direção a uma casa que ficava a cem metros
acima da estrada, nas sombras de uma enorme magnólia. Ele estava sendo casual, mas John
podia ver o músculo contraindo-se em sua mandíbula.
— Bem... Eu suponho que devemos subir e bater à porta, então. — Ele virou a cabeça do
próprio cavalo pela estrada esburacada, fazendo um balanço do lugar enquanto eles
caminhavam até ele. Era uma casa pobre, com a varanda da frente caindo em uma das pontas,
onde a fundação havia cedido, e metade de suas poucas janelas estava coberta. Ainda assim, o
local estava ocupado; a chaminé soltava uma fumaça irregular, de uma forma que sugeria que
não tinha sido recentemente limpa.
A porta foi aberta por uma mulher desmazelada. Uma mulher branca, mas vestida com
uma roupa manchada e chinelos, com olhos desconfiados e a boca virada para baixo, cujos
cantos mostravam manchas por causa de mascar tabaco.
— A Sra. Grey está em casa? — Hal perguntou educadamente.
— Não tem ninguém com esse nome aqui — A mulher disse, e tentou fechar a porta, o que
foi evitado pela bota de Hal.
— Nós fomos direcionados para este endereço, senhora — Hal disse, a polidez diminuindo
acentuadamente. — Informe à Sra. Grey que ela tem visitantes, por favor.
Os olhos da mulher se estreitaram.
— E quem diabos é você, Sr. Calças Elegantes?
A estima de John pela senhora subiu consideravelmente após aquilo, mas ele achou que
deveria intervir antes que Hal começasse a ofegar.
— Este é Sua Graça, o Duque de Pardloe, senhora — ele disse, com máxima delicadeza. O
rosto dela mudou na hora, embora não para melhor. Sua mandíbula endureceu, mas um brilho
predatório apareceu em seus olhos.
— Elle connaît votre nom — ele disse para Hal. Ela sabe o seu nome.
— Eu sei disso — Seu irmão estalou. — Senhora...
O que quer que ele iria dizer foi interrompido pelo repentino grito de um bebê, escada
acima.
— Com licença, senhora — Lord John disse polidamente para a moça e, pegando-a pelos
cotovelos, entrou com ela na casa, girando-a em volta de si e a empurrando para a cozinha.
Havia uma despensa, e ele a colocou naquele cubículo, fechando a porta atrás dela e, pegando
uma faca de pão de cima de mesa, colocou-a na trava como se fosse um parafuso improvisado.
Hal, nesse meio tempo, já tinha desaparecido escada acima, fazendo barulho suficiente
para rivalizar com uma companhia de cavalaria. John galopou atrás dele, e quando chegou ao
topo das escadas, seu irmão estava ativamente envolvido na tentativa de tentar arrombar a
porta de um quarto do qual vinham gritos de um bebê e gritos ainda mais altos de quem
provavelmente era a mãe da criança.
Era uma porta boa e sólida; Hal se jogou com o ombro e foi lançado para trás como se a
porta fosse feita de borracha indiana. Quase sem parar, ele levantou o pé e lançou a sola de sua
bota contra o painel, que gentilmente rachou, mas não quebrou.
Limpando o rosto com a manga, ele olhou para a porta e, tendo um vislumbre de
movimento sobre a rachadura do painel, gritou — Moça! Nós viemos resgatar você! Fique bem
longe da porta! — E, virando-se para John, com a mão esticada, disse — Pistola, por favor.
— Eu faço isso — John disse, resignado. — Você não tem prática com as maçanetas.
Diante disso, com um ar de descontração, ele tirou a pistola do cinto, mirou com cuidado
e atirou, despedaçando a maçaneta. O estouro da arma evidentemente assustou os habitantes
do quarto, já que um silêncio mortal recaiu sobre o cômodo; as reminiscências da maçaneta
estavam jogadas no chão do outro lado, e ele empurrou a porta com cuidado para abri-la.
Hal, acenando um agradecimento, entrou pelas nuvens de fumaça.
Era um quarto pequeno, um pouco encardido, e os móveis eram nada mais do que uma
cama, um armário, um banco e um lavatório. O banco era particularmente notável, já que estava
sendo brandido por uma jovem mulher com olhar selvagem, que segurava um bebê contra o
seio com a outra mão.
Um cheiro forte de amoníaco vinha de um cesto no canto, empilhado com retalhos sujos;
uma colcha dobrada em uma gaveta mostrava onde o bebê geralmente dormia, e a jovem
mulher estava menos penteada do que sua mãe provavelmente gostaria de vê-la, a touca torta
e o avental manchado. Hal desconsiderou todas as questões circunstanciais e se inclinou para
ela.
— Eu estou me dirigindo à Senhorita Amaranthus Cowden? — ele disse educadamente.
— Ou devo dizer Senhora Grey?
John lançou um olhar depreciativo ao seu irmão e se virou com um sorriso cordial para a
jovem.
— Viscondessa Grey — ele disse, e dobrou a perna como faria na corte — Seu mais
humilde servo, Lady Grey.
A jovem mulher olhava selvagemente de um homem para o outro, com o banco ainda
levantado, claramente incapaz de entender quem era o mandante daquela invasão, e finalmente
se dirigiu a John como a melhor — ainda que duvidosa — fonte de informação.
— Quem são vocês? — Ela perguntou, pressionando as costas contra a parede. — Calma,
querido. — Porque o bebê, recuperado do choque, decidiu desabafar.
John limpou a garganta.
— Bem... este é Harold, Duque de Pardloe, e eu sou seu irmão, Lord John Grey. Se a nossa
informação estiver correta, acredito que somos, respectivamente, seu sogro e seu tio por
casamento. Afinal de contas — ele comentou, virando-se para Hal —, quantas pessoas nas
colônias possivelmente se chamariam Amaranthus Cowden?
— Ela ainda não disse se é Amaranthus Cowden — Hal apontou. Ele, entretanto, sorriu
para a jovem mulher, que reagiu como a maioria das mulheres o fazia, olhando para ele com a
boca semiaberta.
— Posso? — John esticou a mão e pegou o banco gentilmente da mão dela, colocando-o
no chão e gesticulando para que ela se sentasse. — Que tipo de nome é Amaranthus, se eu posso
perguntar?
Ela engoliu, piscou, e se sentou, segurando o bebê.
— É uma flor — ela disse, soando um tanto atordoada. — Meu avô é botânico. Poderia ter
sido pior — ela adicionou incisivamente, ao ver o sorriso de John — Poderia ter sido Ampelopsis
ou Petunia.
— Amaranthus é um nome muito bonito, minha querida... se eu puder chamá-la assim? —
Hal disse com uma cortesia. Ele mexeu um dedo para o bebê, que tinha parado de chorar e
estava olhando para ele com cautela.
Hal tirou seu gorjal pela cabeça e balançou o objeto brilhante, perto o suficiente para que
o bebê o pegasse, o que ele fez.
— É muito grande para sufocá-lo — Hal assegurou a Amaranthus. — O pai dele, e os
irmãos, todos morderam isso. Assim como eu, aliás. — Ele sorriu para ela de novo. Ela ainda
estava pálida, mas deu a ele um aceno cauteloso em resposta.
— Qual é o nome dele, minha querida? — John perguntou.
— Trevor — ela disse, segurando com mais força a criança, agora completamente ocupada
em tentar colocar o gorjal em meia-lua (que tinha metade do tamanho de sua cabeça) na boca.
— Trevor Grey. — Ela olhou de um lado para o outro entre os irmãos Grey, um franzido
aparedendo entre as sobrancelhas. Então, ela levantou o queixo e disse, enunciando claramente
— Trevor... Wattiswade... Grey. Sua Graça.
— Então você é a esposa de Ben — Um pouco da tensão deixou os ombros de Hal. — Você
sabe onde Ben está, minha querida?
Seu rosto endureceu, e ela apertou o bebê com mais força.
— Benjamin está morto, Sua Graça — ela disse. — Mas este é o seu filho, e se você não se
importa... nós gostaríamos muito de ir com você.
137 – NEGÓCIOS INACABADOS
William abriu caminho aos empurrões pelo Mercado Municipal, ignorando as reclamações
daqueles que se recuperavam do impacto.
Ele sabia para onde estava indo e o que tinha que fazer quando chegasse lá. Era a última
coisa que tinha que fazer antes de deixar Savannah. Depois disso... não importava.
Sua cabeça latejava como um furúnculo inflamado. Tudo latejava. Sua mão — ele
provavelmente tinha quebrado alguma coisa, mas não se importava. Seu coração, batendo
dolorido dentro de seu peito. Ele não tinha dormido desde que enterrara Jane; provavelmente
nunca mais dormiria e não se importava.
Ele se lembrava de onde era o armazém. O local estava quase vazio; sem dúvida os
soldados tinham confiscado tudo o que o proprietário não tivera tempo de mover para fora de
seu alcance. Três homens estavam à beira da parede no fundo, sentados nos poucos barris de
peixe salgado que haviam sobrado e fumando seus cachimbos; o cheiro de tabaco o atingiu, um
pequeno conforto no cheiro frio do prédio quase sem peixes.
— James Fraser? — Ele disse para um dos vagabundos, e o homem apontou com o
cachimbo em direção a um pequeno escritório, uma espécie de galpão anexo à parede dos
fundos do armazém.
A porta estava aberta; Fraser estava sentado à mesa coberta de papeis, escrevendo alguma
coisa à luz que entrava por uma pequena janela gradeada atrás de si. Ele olhou para frente ao
som dos passos de William e, ao vê-lo, pousou a pena e se levantou lentamente. William entrou,
encarando-o através da mesa.
— Eu vim para dizer adeus — William disse, muito formalmente. Sua voz estava menos
firme do que ele gostaria, e ele limpou a garganta com força.
— Sim? E para onde você pretende ir? — Fraser estava usando seu tecido xadrez, as cores
desbotadas ainda mais abafadas pela ausência de iluminação, mas a luz que havia brilhou
repentinamente em seus cabelos quando ele moveu a cabeça.
— Eu não sei — William disse, áspero. — Não importa. — Ele inspirou profundamente. —
Eu... gostaria de agradecê-lo. Pelo que fez. Mesmo que... — Sua garganta se fechou; por mais que
tentasse, não conseguia tirar as pequenas mãos de Jane de seus pensamentos.
Fraser fez um gesto de dispensa e disse suavemente. — Que Deus a tenha, pobre moça.
— Mesmo assim — William disse, e limpou a garganta novamente. — Mas tem mais um
favor que eu gostaria de pedir.
A cabeça de Fraser virou para ele; parecia surpreso, mas assentiu.
— Sim, claro — ele disse. — Se eu puder.
William se virou e fechou a porta, e então se virou para encarar o homem novamente.
— Conte-me como eu nasci.
Os brancos dos olhos de Fraser brilharam pelo breve espanto, e depois desapareceram
quando seus olhos se estreitaram.
— Eu quero saber o que aconteceu — William disse. — quando você se deitou com a
minha mãe. O que aconteceu naquela noite? Se era noite — ele adicionou, e depois se sentiu
tolo por fazer isso.
Fraser olhou para ele por um momento.
— Você quer me contar como foi a primeira vez que se deitou com uma mulher?
William sentiu o sangue correr para sua cabeça, mas antes que pudesse falar, o escocês
continuou.
— Sim, exatamente. Um homem decente não fala tais coisas. Você não conta aos seus
amigos sobre isso, não é? Não, é claro que não. Muito menos contaria ao seu... pai, ou um pai
que...
A hesitação antes de “pai” foi breve, mas William a percebeu, sem problemas. A boca de
Fraser era firme, entretanto, e seus olhos eram diretos.
— Eu não contaria a você, não importa quem você fosse. Mas sendo quem você é...
— Sendo quem eu sou, eu acho que tenho o direito de saber!
Fraser olhou para ele por um momento, sem expressão. Ele fechou os olhos por um
instante e suspirou. Então os abriu e se levantou, endireitando os ombros.
— Não, você não tem. Mas não é isso que você quer saber, de qualquer forma. — ele disse.
— Você quer saber se eu forcei a sua mãe. E eu não forcei. Você quer saber se eu amava a sua
mãe. E eu não amava.
William deixou aquilo pairando no ar por um momento, controlando sua respiração até
ter certeza de que sua voz ficaria estável.
— Ela o amava? — Seria fácil amá-lo.
O pensamento veio para ele espontaneamente — e de forma indesejável —, mas com ele
vieram as memórias de Mac, o cavalariço. Algo que ele compartilhava com a sua mãe.
Os olhos de Fraser estavam para baixo, observando uma trilha de pequenas formigas
correndo ao longo das tábuas gastas.
— Ela era muito jovem — ele disse suavemente. — Eu tinha o dobro de sua idade. Foi
minha culpa.
Houve um breve silêncio, quebrado apenas pela sua respiração e pelos gritos distantes
dos homens trabalhando no rio.
— Eu já vi retratos — William disse abruptamente — do meu... do oitavo conde. Seu
marido. Você já viu?
A boca de Fraser se contorceu um pouco, mas ele balançou a cabeça.
— Você sabe, então... você o conhecia. Ele era cinquenta anos mais velho do que ela.
A mão mutilada de Fraser se contraiu, os dedos batendo levemente contra as coxas. Sim,
ele sabia. Como ele poderia não saber? Ele abaixou a cabeça, não exatamente assentindo.
— Eu não sou estúpido, sabe? — William disse, mais alto do que pretendia.
— Não pensei que você fosse — Fraser murmurou, mas não olhou para ele.
— Eu posso contar — William continuou, pelos dentes cerrados. — Você se deitou com
ela logo antes do casamento. Ou foi logo depois?
Aquilo o acertou em cheio; a cabeça de Fraser virou abruptamente para cima e houve um
vislumbre azul-escuro de raiva.
— Eu não enganaria um homem em seu casamento. Pode ter certeza disso, pelo menos.
Curiosamente, ele tinha. E apesar da raiva que ele ainda lutava para suprimir, ele começou
a pensar que talvez conseguisse entender como tudo tinha acontecido.
— Ela era imprudente — Ele fez uma afirmação, não uma pergunta, e viu Fraser piscar.
Ele não estava assentindo, mas ele pensou que fosse uma espécie de reconhecimento e
continuou, mais confiante. — Todos dizem isso... todos que a conheceram. Ela era imprudente,
bonita, descuidada... ela se arriscava...
— Ela tinha coragem — Aquilo foi dito com suavidade, as palavras caindo como pedras na
água, e as ondas se espalhando pela pequena sala. Fraser ainda estava olhando diretamente
para ele. — Eles já disseram isso a você? Sua família... as pessoas que a conheciam?
— Não — William disse, e sentiu a palavra afiada como uma pedra em sua garganta. Por
apenas um instante, ele a tinha visto naquelas palavras. Ele a tinha visto, e o reconhecimento
da imensidão de sua perda atravessou sua raiva como um raio. Ele dirigiu o pulso até a mesa,
batendo uma vez, duas, martelando até que a madeira balançou e as pernas vibrarem sobre o
chão, papeis voando e a tinta caindo.
Ele parou tão repentinamente como tinha começado, e o barulho cessou.
— Você se arrepende? — Ele disse, e não fez qualquer esforço para impedir sua voz de
tremer. — Você se arrepende, maldito?
Fraser tinha se virado para o outro lado; agora ele se virou bruscamente para encarar
William, mas não falou de início. Quando o fez, sua voz era baixa e firme.
— Ela morreu por causa disso, e eu lamento pela sua morte e vou me penitenciar pela
minha parte nessa história até o dia em que eu morrer. Mas...
Ele comprimiu os lábios por um instante, e então, com uma rapidez grande demais para
que William se afastasse, rodeou a mesa e, levantando a mão, envolveu as bochechas de William
em suas mãos, o toque suave e feroz.
— Não — ele sussurrou. — Não! Eu não me arrependo.
Então, ele girou sobre os calcanhares, abriu a porta com força e partiu, o kilt balançando.
PARTE IX
“THIG CRIOCH AIR AN T-SAOGHAL ACH MAIRIDH CEOL AGUS GAOL.”
O MUNDO PODE CHEGAR AO FIM, MAS O AMOR E A MÚSICA SÃO PARA SEMPRE.
Eu não conseguia parar de respirar. Do momento em que deixáramos o miasma com cheiro de
sal de Savannah, com sua névoa constante dos arrozais, da lama e de crustáceos em
decomposição, o ar ficou mais puro, os cheiros mais limpos — bem, deixando de lado a alagada
Wilmington, rescendendo à memória de crocodilos e piratas mortos —, mais apimentados e
mais distintos. E quando nós atingimos o cume da última passagem, pensei que poderia explodir
de simples felicidade ao cheiro da mata da primavera, uma intoxicante mistura de pinheiro e
abeto, carvalhos misturando o tempero das folhas verdes e frescas com a poeira das bolotas
caídas durante o inverno, e a doçura das nozes de castanha sob uma camada de folhas mortas
e úmidas, tão espessa que parecia flutuar no ar, levando-me junto. Eu não conseguia obter o
suficiente daquilo para os meus pulmões.
— Se você continuar ofegando assim, Sassenach, vai acabar desmaiando — Jamie disse,
sorrindo quando chegou ao meu lado. — Como está a nova faca, então?
— Maravilhosa! Olhe, eu encontrei uma enorme raiz de ginseng, e um pedaço de bétula
e...
Ele me parou com um beijo, e eu deixei cair o saco encharcado e cheio de plantas no
caminho, beijando-o de volta. Ele estivera comendo cebolas selvagens e agrião arrancado de
um local onde o riacho escorria, e tinha o seu próprio cheiro masculino, juntamente com o da
seiva de pinheiros e uma nota de sangue dos dois coelhos mortos que estavam pendurados em
seu cinto; era como beijar a própria natureza, e aquilo continuou por um tempo, interrompido
apenas por uma tosse discreta a alguns metros de distância.
Nós nos soltamos, e eu dei um passo automático para trás de Jamie, ao mesmo tempo em
que ele deu um passo para a minha frente, a mão pairando ao alcance de seu punhal. Uma fração
de segundo depois, ele deu um grande passo para frente e engolfou o Sr. Wemyss num enorme
abraço.
— Joseph! A charaid! Ciamar a tha thu?54
O Sr. Wemyss, um pequeno, magro e idoso homem, literalmente foi arrancado do chão; eu
podia ver um dos sapatos soltando-se do pé envolto em meia enquanto ele tentava segurá-lo.
Sorrindo com isso, eu olhei ao redor para ver se Rachel e Ian já estavam chegando, mas avistei,
em vez deles, um garoto pequeno e de rosto redondo. Ele tinha talvez quatro ou cinco anos, com
cabelos longos e loiros, voando soltos ao redor de seus ombros.
— É... Rodney? — Eu perguntei, fazendo uma suposição precipitada. Eu não o via desde
que tinha dois anos, mas eu não conseguia pensar em quem mais poderia estar acompanhando
o Sr. Wemyss.
A criança assentiu, examinando-me sobriamente.
— Você é a mulher que faz truques? — Ele disse, numa voz notavelmente profunda.
— Sim — Eu disse, surpresa por aquela abordagem, mas ainda mais surpresa por quão
certo meu reconhecimento disso parecia.
Eu percebi naquele momento que eu estivera retomando minha identidade enquanto
caminhávamos, que a cada passo que nós subíamos a montanha, sentindo seus cheiros e
Jamie tinha mandado notícias a frente, e vários preparativos tinham sido feitos para a nossa
chegada. Jamie e eu ficaríamos com Bobby e Amy Higgins; Rachel e Ian com os MacDonalds, um
jovem casal que morava a caminho do cume; e Jenny, Fanny e Germain ficariam com a viúva
MacDowall, que tinha uma cama extra.
Houve uma modesta festa em honra à nossa primeira noite — e pela manhã nós
levantamos e já fazíamos parte de Fraser’s Ridge novamente. Jamie desapareceu na floresta,
voltando na caída da noite para relatar que seu esconderijo de uísque estava a salvo, e trouxe
um pequeno barril com ele para ser usado como bem de comércio para o que precisássemos
para a casa, já que teríamos novamente uma casa da qual cuidar.
Em relação à mencionada casa... Ele tinha começado os preparativos para a construção da
nova casa antes de deixarmos Ridge, selecionando um bom local no topo da grande enseada
que se abria logo abaixo do próprio cume. O local era elevado, mas o terreno ali era
razoavelmente plano, e graças ao trabalho de Bobby Higgins, não tinha árvores, a madeira para
fazer o enquadramento da casa disposta em pilhas, e uma quantidade surpreendente de pedras
tinha sido arrastada para cima e empilhada, pronta para ser usada na fundação.
Para Jamie, a primeira ordem de negócio do dia era ver que sua casa — ou o começo dela
— estava como deveria, e a segunda era visitar cada um dos inquilinos de Ridge, recebendo e
passando as notícias, ouvindo-os e reestabelecendo-se como o fundador e proprietário de
Fraser’s Ridge.
Minha primeira ordem de negócio era o frênulo de Fanny. Eu passei um dia ou dois
organizando as várias coisas que tínhamos trazido conosco, em particular o meu equipamento
médico, enquanto recebia a visita de várias mulheres que foram me chamar na cabana dos
Higgins — a nossa primeira cabana, que Jamie e Ian tinham construído quando chegamos à
Ridge. Mas uma vez que aquilo estava feito, eu reuni meu esquadrão e iniciei a ação.
— Você certamente pode colocar a pobre moça para dormir com uísque — Jamie observou,
lançando um olhar preocupado para o copo cheio de líquido âmbar na bandeja ao lado de minha
tesoura de bordado. — Não seria mais fácil para ela com o éter?
— De certa forma, sim — Concordei, deslizando a tesoura afiada em um segundo copo,
este cheio de álcool. — E se nós tivermos que fazer uma frenectomia, eu teria que fazer isso.
Mas há os perigos em relação ao uso do éter, e eu não estou falando apenas em queimar a casa.
Eu só vou fazer uma frenotomia, pelo menos por enquanto. É uma cirurgia muito simples; vai
durar literalmente cinco segundos. E, além disso, Fanny disse que não quer ser colocada para
dormir... talvez ela não confie em mim. — Eu sorri para Fanny quando disse isso; ela estava
sentada no assento de carvalho próximo à lareira, solenemente tomando notas de minhas
preparações. Ao ouvir aquilo, entretanto, ela olhou abruptamente para mim, os grandes olhos
castanhos surpresos.
— Oh, não — ela disse. — Eu confio em vofê. Eu só quelo vei.
— Eu não a culpo — Garanti a ela, entregando o copo de uísque. — Aqui, então, tome um
bom gole disso e o segure na boca, deixando-o passar abaixo da língua o máximo de tempo que
puder.
Eu tinha um pequeno ferro cauterizador, sua alça envolta em lã torcida, aquecida numa
panela de Amy. Eu supus que não importava se ele teria gosto de salsichas. Eu tinha uma fina
agulha de sutura, já com fio de seda preta passado, apenas para garantir.
O frênulo é uma faixa muito fina de tecido que prende a língua ao assoalho da boca, e na
maioria das pessoas ele tem o tamanho exato para permitir que a língua faça todos os
movimentos complexos necessários à fala e à alimentação, sem deixar que ela vagueie pelos
dentes que se movem, onde poderia ser muito danificada. Em algumas pessoas, como Fanny, o
frênulo era longo demais e, prendendo a maior parte da língua no assoalho bucal, evitava que o
órgão fosse facilmente manipulado. Ela frequentemente tinha mau hálito porque, mesmo
limpando os dentes todas as noites, não conseguia usar a língua para desalojar pedaços de
comida que ficavam pressos entre a bochecha e a gengiva ou nas cavidades da maxila inferior,
abaixo da língua.
Fanny deu um gole audível, e depois tossiu violentamente.
— Isso é... foite! — Ela disse, seus olhos lacrimejando. Ela não se abalou, entretanto, e
quando eu assenti, tomou outro gole e se sentou estoicamente, deixando que o uísque
penetrasse em seus tecidos orais. Aquilo de fato deixaria o frênulo entorpecido, pelo menos um
pouco, e ao mesmo tempo providenciaria a desinfecção.
Eu ouvi Aidan e Germain chamarem lá fora; Jenny e Rachel tinham vindo para a cirurgia.
— Eu acho que é melhor fazermos isso lá fora — Eu disse para Jamie. — Eles nunca vão
caber aqui dentro... não com Oglethorpe. — A barriga de Rachel tinha feito progressos
consideráveis nas últimas semanas e estava do tamanho que fazia os homens nervosamente se
afastarem dela quando chegava de repente, como se ela fosse uma bomba.
Nós levamos a bandeja dos instrumentos para fora e montamos o nosso local de cirurgia
num banco próximo à porta da frente. Amy, Aidan, Orrie, e o pequeno Rob estavam agrupados
atrás de Jamie, que estava encarregado de segurar o espelho — tanto para direcionar luz à boca
de Fanny, auxiliando-me, quando para que Fanny pudesse, de fato, ver o que estava
acontecendo.
Como Oglethorpe impedia Rachel de ser colocada em serviço, entretanto, nós
reformulamos a equipe um pouco e acabamos com Jenny segurando o espelho e Jamie sentado
sobre o banco, segurando Fanny nos joelhos, seus braços envoltos confortavelmente ao redor
dela. Germain estava de pé, segurando uma pilha de panos limpos, solene como um coroinha, e
Rachel estava sentada ao meu lado, a bandeja entre nós, de modo a poder me entregar as coisas.
— Está tudo bem, querida? — Perguntei à Fanny.
Ela estava com os olhos arregalados como uma coruja atordoada por causa do sol, e sua
boca estava só um pouco aberta. Ela me ouviu, entretanto, e assentiu. Eu peguei o copo de sua
mão lânguida — estava vazio, e eu o entreguei a Rachel, que o encheu rapidamente.
— Espelho, por favor, Jenny? — Eu ajoelhei na grama em frente ao banco e com um
exercício de tentativa e erro, nós conseguimos direcionar um raio de luz exatamente na boca de
Fanny. Eu tirei a tesoura de costura do banho, enxuguei-a e, com um chumaço de pano, peguei
a língua de Fanny com a mão esquerda, levantando-a.
Não levou nem três segundos. Eu a tinha examinado cuidadosamente várias vezes,
fazendo-a mover a língua o máximo que conseguia, e sabia exatamente onde deveria ser o ponto
de ligação a ser cortado. Dois cortes rápidos e estava pronto.
Fanny fez um ruído baixo de surpresa e se agitou nos braços de Jamie, mas não pareceu
sentir uma dor aguda. A ferida estava sangrando, entretanto, repentina e profusamente, e eu
rapidamente empurrei a cabeça dela para baixo, para que o sangue pudesse cair no chão e não
engasgá-la.
Eu tinha outro chumaço à espera; mergulhei-o rapidamente no uísque e, segurando o
queixo de Fanny, elevei sua cabeça e enfiei o chumaço sobre sua língua. Aquilo a fez emitir um
“Ai” abafado, mas eu continuei segurando seu queixo e fechei sua boca, de modo a fazê-la
pressionar o chumaço com a língua.
Todos estavam esperando sem fôlego enquanto eu contava até sessenta. Se o
sangramento não parasse, eu teria que fazer uma sutura, o que seria complicado, ou teria que
cauterizar a ferida, o que certamente seria doloroso.
— ... cinquenta e nove... sessenta! — Eu disse em voz alta e, olhando dentro da boca de
Fanny, percebi que o chumaço estava substancialmente ensopado de sangue, mas não
sobreposto por ele.
Extrai aquele chumaço e coloquei outro, repetindo minha contagem silenciosa. Desta vez,
ele ficou somente manchado; o sangramento estava parando sozinho.
— Aleluia! — Eu disse, e todo mundo gritou.
A cabeça de Fanny balançou um pouco e ela sorriu, timidamente.
— Aqui, querida — Eu disse, entregando a ela o copo pela metade — Termine isso, se
puder... apenas tome goles devagar e deixe que eles passem pela ferida se conseguir; eu sei que
queima um pouco.
Ela fez o que eu pedira, mas rapidamente, e piscou. Se fosse possível cambalear estando
sentada, ela o teria feito.
— É melhor eu colocar a moça na cama, sim? — Jamie ficou de pé, gentilmente segurando-
a contra seu ombro.
— Sim. Eu vou junto para fazer com que a cabeça dela continue para cima, apenas para o
caso de o sangramento voltar e escorrer em sua garganta. — Eu me virei para agradecer aos
assistentes e espectadores, mas Fanny me interrompeu.
— Senhora... Fraser? — Ela disse, sonolenta. — Eu... O-b... — A ponta de sua língua estava
saindo de sua boca e ela olhava estrábica em direção a ela, espantada. Ela nunca tinha sido capaz
de esticar a língua antes e agora a mexia de um lado para o outro, como uma serpente muito
hesitante testando o ar. — Ob... — Ela parou, então, contorcendo a sobrancelha em uma
expressão terrível de concentração, e disse — O-Obri-Obrigada!
As lágrimas vieram para os meus olhos, mas eu consegui dar um tapinha em sua cabeça,
dizendo — Por nada, Frances.
Ela sorriu para mim, então, um sorriso pequeno e sonolento, e no instante seguinte estava
dormindo, a cabeça no ombro de Jamie e uma pequena linha de baba com sangue escorrendo
pelo canto de sua boca na camisa dele.
140 – UMA VISITA AO COMÉRCIO
— Nós não precisamos disso — Uma voz de desprezo disse — É uma peça de lixo inútil, isso
sim.
Ian olhou para cima do espelho que estava inspecionando e estreitou os olhos para dois
jovens homens do outro lado da loja, envolvidos em uma discussão com um funcionário sobre
uma pistola. Eles pareciam de alguma forma familiares para ele, mas ele tinha certeza que não
os conhecia. Pequenos e magros, com cabelos amarelados e cortados bem curtos em seu crânio
estreito, os olhos atentos, eles tinham o ar de arminhos: alertas e mortais.
Então um deles se endireitou em frente ao balcão e, virando sua cabeça, teve um vislumbre
de Ian. O jovem enrijeceu e cutucou seu irmão, que olhou para cima, irritado, e viu Ian.
— O que diabos...? Queijo e arroz! — O segundo jovem disse.
Claramente ele os conhecia; eles estavam avançando para ele, ombro a ombro, os olhos
brilhando com interesse. E vendo-os lado a lado, de repente ele os reconheceu.
— A Dhia! — ele disse baixinho, e Rachel olhou para cima.
— São amigos seus? — Ela disse suavemente.
— Você poderia dizer que sim. — Ele deu um passo para frente de sua esposa, sorrindo
para os... bem, ele não tinha certza do que eram agora, mas não eram mais pequenas garotas.
Ele achou que elas eram garotos quando as encontrara: dois órfãos alemães ferozes
chamados — eles disseram — Herman e Vermin, e eles pensavam que seus sobrenomes eram
Kuykendall. E então, eles eram, na realidade, Hermione e Ermintrude. Ele encontrara um
refúgio temporário para elas com... Oh, Cristo!
— Deus, por favor, não! — Ele disse em gaélico, fazendo com que Rachel olhasse alarmada
para ele.
Certamente elas não estavam mais com... mas estavam. Ele viu a parte de trás de uma
cabeça muito familiar — e um traseiro ainda mais familiar — sobre o barril de picles.
Ele olhou ao redor rapidamente, mas não havia como sair. As Kuykendalls estavam se
aproximando rapidamente. Ele inspirou profundamente, encomendou sua alma a Deus e se
virou para sua esposa.
— Há alguma chance de você recordar que me disse que não queria ouvir sobre cada
mulher com quem eu me deitei?
— Sim — ela disse, dando a ele um olhar profundamente interrogatico. — Por quê?
— Ah. Bem... — Ele respirou profundamente e falou bem a tempo. — Você disse que queria
que eu dissesse se nós encontrássemos alguém com que eu tinha... hã...
— Ian Murray? — Disse a Sra. Sylvie, virando-se. Ela veio em sua direção, um olhar de
prazer em seu rosto uniforme e com óculos.
— Ela — Ian disse rapidamente a Rachel, sacudindo o polegar na direção da Sra. Sylvie
antes de se virar para a senhora.
— Sra. Sylvie! — Ele disse cordialmente, agarrando-a com ambas as mãos para o caso de
ela poder tentar beijá-lo, como ocasionalmente costumava fazer quando se encontravam. — É
um prazer vê-la! E é um prazer ainda maior apresentá-la minha... hã... esposa. — A palavra saiu
com um pequeno coaxo e ele limpou a garganta com força. — Rachel. Rachel, está é...
— Amiga Sylvie — Rachel disse. — Sim, eu entendi. É um prazer conhecê-la, Sylvie. —
Suas bochechas estavam coradas, mas ela falou modestamente, oferecendo uma mão na
maneira que os Amigos faziam, em vez de fazer uma reverência.
A Sra. Sylvie envolveu Rachel — e Oglethorpe — com um só olhar e sorriu calorosamente
pelos seus óculos de aros de aço, apertando a mão oferecida.
— O prazer é inteiramente meu, garanto a você, Sra. Murray. — Ela deu a Ian um longo
olhar de esguelha e uma contração da boca que dizia claramente: “Você? Você se casou com
uma Quaker?”.
— É ele! Eu disse! — As Kuykendalls o cercaram. Ele não sabia como elas conseguiram
fazer aquilo, havendo somente duas delas, mas ele se sentia cercado. Para sua surpresa, uma
delas agarrou sua mão, apertando-a com ferocidade.
— Herman Wurm — ele (ele?) disse a Ian orgulhosamente. — É um prazer encontrá-lo
novamente, senhor!
— Verme? — Rachel murmurou, observando-os fascinada.
— Sim, Herman, eu estou feliz em ver que você está tão... é... bem. E você também... — Ian
estendeu uma mão cautelosa em direção a o que costumava ser Ermintrude, que respondeu
com uma voz estridente, mas visivelmente rouca.
— Trask Wurm — disse o jovem, repetindo o vigoroso aperto de mão. — É alemão.
— ‘Wurm’, eles querem dizer. — A Sra. Sylvie cortou, pronunciando o “Vehrm”. Ela estava
rosada pelo divertimento. — Eles ainda não conseguiram pegar o jeito do “Kuykendall”, então
nós desistimos e optamos por alguma coisa mais simples. E como você deixou claro que não
queria que se tornassem prostitutas, nós chegamos a um acordo útil. Herman e Trask fornecem
proteção para meu... estabelecimento. — Ela olhou diretamente para Rachel, que ficou ainda
mais corada, mas sorriu.
— Qualquer um que mexer com as garotas, nós tomamos conta rapidamente — O Wurm
mais velho garantiu a Ian.
— Não é tão difícil — o outro disse honestamente. — Quebre o nariz de um dos bastardos
com um cabo de enxada e o restante deles já se acalma.
Havia uma dezena ou mais de cabras leiteiras para escolher no balcão, em diferentes estágios
de gravidez. Os Higgins tinham um bom bode, entretanto, então eu não precisava me preocupar
com isso. Escolhi duas jovens cabras amigáveis e bagunceiras, uma inteira marrom e a outra
marrom e branca, com uma estranha marca na lateral que parecia como o pino arredondado de
duas peças de quebra-cabeça, uma das manchas marrom e a outra branca.
Eu apontei minhas escolhas para o jovem homem que era responsável pelo gado e, como
Jenny ainda estava deliberando sobre sua própria escolha, dei um passo para fora para olhar as
galinhas.
Eu tinha esperança de avistar as Scots Dumpy, mas encontrei apenas as comuns
Dominiques e Nankins. Eram boas o suficiente dentro de suas espécies, mas eu pensei que seria
melhor esperar até que Jamie tivesse tempo para construir um galinheiro. E, embora nós
pudéssemos levar as cabras com certa facilidade, eu não estava disposta a carregar galinhas por
dias.
Eu saí do galinheiro e olhei em volta, um pouco desorientada. Foi quando eu o vi.
De início, eu não tinha ideia de quem era. Nenhuma. Mas a visão do homem grande e lento
me fez congelar no lugar e meu estômago se curvar num instante de pânico.
Não, eu pensei. Não. Ele está morto; todos estão.
Ele era um homem com constituição desleixada, com ombros caídos e uma barriga
saliente que esticava o colete surrado, mas grande. Grande. Eu tive uma sensação de pavor
repentino, de uma grande sombra se destacando da noite para se deitar ao meu lado,
empurrando-me e depois me fazendo rolar como uma nuvem de tempestade, esmagando-me
na sujeira e nas agulhas de pinheiro.
Martha.
Um frio tomou conta de mim, apesar do sol quente em que eu estava.
Martha, ele havia dito. Ele tinha me chamado pelo nome de sua esposa morta e chorando
em meus cabelos quando terminou.
Martha. Eu tinha que estar errada. Aquele foi o meu primeiro pensamento consciente,
teimosamente articulado, cada palavra falada em voz alta na minha cabeça, cada palavra
colocada no lugar como uma pilha de pedras, a primeira fundação de um baluarte. Você. Está.
Enganada.
Mas eu não estava. Minha pele sabia disso. Ela se arrepiou, uma coisa viva, os pelos se
levantando em reconhecimento, em uma defesa vã, já que a pele nada poderia fazer em relação
a coisas assim.
Você. Está. Enganada!
Mas eu não estava. Meus seios sabiam disso, formigando em indignação, inchados contra
a vontade por causa das mãos ásperas que o apertavam e o puxavam.
Minhas coxas também sabiam; a queimação e a fraqueza dos músculos tensos após
aguentar aquilo, os nós onde os socos e os polegares brutais haviam deixado marcas que
chegaram até os ossos, e deixaram uma dor que persistia até mesmo quando os hematomas
desapareceram.
— Você está enganada — Eu disse, sussurrando, mas em voz alta. — Enganada.
Mas eu não estava. A carne profunda e macia entre minhas pernas sabia disso,
escorregadia com o horror indefeso da lembrança — bem como eu sabia.
Eu fiquei parada ali, hiperventilando por vários segundos antes de perceber o que eu estava
fazendo, e parei com um esforço consciente. O homem estava caminhando através do conjunto
de galpões de gado; ele parou junto aos porcos e se inclinou sobre a cerca, observando os
traseiros pesados com um ar de meditação. Outro homem empregado na mesma recreação
falou com ele, e ele respondeu. Eu estava muito longe para ouvir o que foi dito, mas eu capturei
o timbre de sua voz.
Martha. Eu sei que você não quer, Martha, mas precisa. Eu tenho que dar isso a você.
Eu não iria passar mal. Eu não iria. Com aquela decisão tomada, eu me acalmei um pouco.
Eu não deixara que ele e seus companheiros matassem a minha alma naquela época; por que
deixaria que ele me machucasse agora?
Ele se moveu para longe dos porcos e eu o segui. Eu não tinha certeza por que o estava
seguindo, mas senti uma estranha compulsão de fazê-lo. Eu não estava com medo dele;
logicamente, não havia razão para estar. Ao mesmo tempo, meu corpo irracional ainda sentia
os ecos daquela noite, de sua carne e de seus dedos, e preferia ter corrido para longe. Eu não
faria aquilo.
Eu os segui dos porcos até as galinhas, e de volta aos porcos — ele parecia estar
interessado em uma jovem porca preta e branca; ele a mostrou ao guardador dos porcos e
pareceu estar fazendo perguntas, mas depois balançou sua cabeça de forma abatida e foi
embora. Muito cara?
Eu poderia descobrir quem ele é. O pensamento me ocorreu, mas eu o rejeitei com um
surpreendente senso de violência. Eu não queria saber o seu nome.
Ainda assim... eu o segui. Ele foi para o prédio principal e comprou um pouco de tabaco.
Eu percebi que sabia que ele usava tabaco; eu tinha sentido o cheiro das cinzas em seu hálito.
Ele estava falando com o funcionário que pesava seu pedido, uma voz lenta e pesada. O que quer
que estivesse dizendo, continuou por um longo tempo; o funcionário começou a parecer tenso,
sua expressão dizendo claramente “Nós já terminamos; vá embora. Por favor, vá embora”. E
após cinco minutos, o alívio ficou tão claro quanto no rosto do funcionário, quando o homem se
virou para olhar os barris cheios de pregos.
Eu sabia pelo que ele dissera a mim, que sua esposa estava morta. Pela sua aparência e
pela forma como ele estava entediando a todos com quem falava, pensei que ele não tinha outra.
Ele claramente era pobre; o que não era incomum no interior. Mas ele também estava sujo e
desgastado, com a barba por fazer, e despenteado de uma forma que nenhum homem que tenha
mulher poderia estar.
Ele passou a um metro de mim enquanto ia em direção à porta, seu papel enrolado com
tabaco e sua bolsa de pregos em uma mão, um pedaço de caramelo de cevada na outra. Ele o
lambia com a língua grande e molhada, seu rosto mostrando uma espécie vazia e fraca de prazer
pelo sabor. Havia uma pequena mancha de vinho do porto, uma marca de nascença, ao lado de
sua mandíbula. Ele era bruto, pensei. Grosseiro. E a palavra veio a mim: ineficaz.
Cristo, eu pensei, com desgosto, misturado a um pouco de piedade contra a minha
vontade, o que aumentou o meu desgosto. Eu tive um pensamento vago — e percebera somente
agora — de confrontá-lo, de caminhar até ele e exigir saber se ele me conhecia. Mas ele olhara
diretamente para mim quando passou, sem sinal algum de ter reconhecido meu rosto. Talvez
houvesse diferença suficiente entre o que eu parecia agora — limpa e penteada, vestida
decentemente — e o que eu parecera na última vez em que ele havia me visto: imunda, com os
cabelos selvagens, meio nua e espancada.
Talvez ele nem tivesse me visto na época. Estava bastante escuro quando ele veio para
mim, atada e lutando para conseguir respirar, tentando respirar através do nariz quebrado. Eu
não o tinha visto.
Tem certeza que realmente é ele? Sim, eu tinha. Eu tive certeza quando ouvi sua voz e, ainda
mais, quando o vi e senti o ritmo de seu volumoso corpo, bamboleando.
Não, eu não queria falar com ele. Qual seria o sentido? E o que eu diria? Exigiria que ele se
desculpasse? Mais do que provavelmente, ele nem se lembraria de ter feito isso.
Aquele pensamento me fez bufar com um divertimento amargo.
— O que é engraçado, Grandmère? — Germain tinha aparecido aos meus cotovelos,
segurando dois caramelos de cevada.
— Apenas um pensamento — eu disse. — Não é nada importante. A Vovó Janet já está
pronta para ir?
— Sim, ela me mandou procurar por você. Quer um destes? — Ele generosamente
estendeu um pedaço de doce em minha direção. Meu estômago revirou, pensando na grande
língua rosada do homem lambendo sua guloseima.
— Não, obrigada — eu disse. — Por que você não leva para Fanny? Seria um ótimo
exercício para ela.
Cortar o seu freio não tinha miraculosamente liberado sua fala, ou mesmo ampliado sua
habilidade para manipular comida; aquelas coisas só seriam possíveis com trabalho. Germain
passava horas com ela, os dois colocando a língua para fora, girando-a em todas as direções
possíveis e rindo.
— Oh, eu tenho uma dezena de caramelos para Fanny — ele me assegurou. — E mais um
para Aidan, um para Orrie e um para o pequeno Rob também.
— Isso é muito generoso, Germain — Eu disse, um pouco surpresa. — É... Com o que você
os comprou?
— A pele de um castor — ele replicou, parecendo satisfeito consigo mesmo. — O Sr. Kezzie
Beardsley deu para mim por ter levado os seus filhos para o riacho enquanto ele e a Sra.
Beardsley se deitavam um pouco.
— Se deitavam — Eu repeti, minha boca se contorcendo com a vontade de rir. — Entendo.
Tudo bem. Vamos encontrar a Vovó Janet, então.
Foi preciso certa quantidade de tempo para organizar a viagem de volta para Ridge. Era uma
caminhada de dois dias; a pé, com cabras, demoraria provavelmente quatro. Mas nós tínhamos
comida e cobertores, e o tempo estava bom. Ninguém estava com pressa... Certamente não as
cabras, que estavam inclinadas a parar para comer qualquer coisa que encontravam ao alcance.
A paz da estrada e a companhia de meus companheiros fizeram muito para amenizar
meus sentimentos perturbados. A imitação de Rachel durante o jantar das expressões de Ian no
encontro repentino com a Sra. Sylvie e os Wurms melhoraram ainda mais, e eu caí no sono perto
da fogueira poucos segundos após me deitar, e dormi sem sonhar.
141 – MULHER, VOCÊ SE DEITA COMIGO?
Ian não sabia dizer se Rachel tinha achado graça ou se tinha ficado chocada, irritada ou as três
coisas. Aquilo o desbaratava. Ele geralmente sabia o que ela pensava sobre as coisas, porque ela
o dizia; ela não era o tipo de mulher — e ele conhecia várias assim — que esperava que um
homem lesse a sua mente e se irritava quando ele não o fazia.
Ela tinha mantido seus pensamentos para si mesma na questão da Sra. Sylvie e das
Wurms, entretanto. Eles fizeram os negócios que precisavam fazer, trocando duas garrafas de
uísque por sal, açúcar, pregos, agulhas, linhas, uma lâmina de enxada, e um pedaço de guingão
rosa, e ele comprara para ela um pepino de endro que era tão longo quanto a extensão de seus
dedos estendidos. Ela o tinha agradecido por isso, mas não dissera mais nada a caminho de casa.
Ela lambia o vegetal de maneira meditativa enquanto se balançava junto com Clarence.
Ele ficou fascinado ao observá-la fazer aquilo, o que o fez quase cair diretamente num
íngreme afloramento rochoso. Ela virou ao redor de si com a exclamação dele enquanto
cambaleava para ficar de pé, e sorriu para ele, então talvez não estivesse tão aborrecida em
relação à Sylvie.
— Você não pretende comer isso? — Ele perguntou, aproximando-se ao lado dela no
estribo.
— Eu vou — ela disse calmamente —, mas tudo ao seu tempo. — Ela lambeu o
comprimento substancial da coisa verde com um golpe longo e lento de sua língua e depois,
capturando os olhos dele, chupou deliberadamente o seu topo. Ele caminhou diretamente para
um galho de pinheiro, que o atingiu no rosto com as agulhas.
Ele xingou, esfregando os olhos lacrimejantes. Ela estava rindo!
— Você fez isso de propósito, Rachel Murray!
— Você está me acusando de impulsioná-lo à árvore? — Ela perguntou, arqueando uma
sobrancelha — Você é um experiente índio batedor, ou era o que eu acreditava. Certamente um
batedor sabe olhar para onde está indo.
Ela puxou as rédeas de Clarence até ela parar — Clarence sempre concordava em parar,
particularmente quando havia alguma coisa comestível à vista — e se sentou ali, sorrindo para
Ian, atrevida como um macaco.
— Dê-me isso, sim? — Ela entregou a ele o pepino, de boa vontade, limpando a mão úmida
em sua coxa. Ele deu uma grande mordida, sua boca se enchendo com o gosto de alho e endro e
vinagre. Então, ele enfiou o pepino em um dos alforjes e estendeu uma mão para ela. — Venha
aqui.
— Por quê? — Ela perguntou.
Ela ainda estava sorrindo, mas seu corpo tinha mudado, inclinando-se em direção a ele,
mas sem fazer qualquer esforço para descer. Ele entendia aquele tipo de comunicação e foi até
ela, pegou-a pelo que sobrara de sua cintura e a puxou para fora, numa onda de saias. Ele parou
por um instante para engolir o pepino, e depois a beijou profundamente, uma mão em seu
traseiro. Os cabelos dela cheiravam a pinhas, penas de galinha e o sabonete suave a que tia
Claire chamava de shampoo, e ele podia sentir o gosto da salsicha alemã que eles tinham comido
no almoço, sob o véu do pepino temperado.
Os braços dela estavam ao redor de seu pescoço, sua barriga pressionada contra ele, e
repentinamente ele sentiu um pequeno empurrão na própria barriga. Ele olhou para baixo,
espantado, e Rachel riu. Ele não percebera que ela não estava usando espartilho; seus seios
estavam presos com uma simples faixa sobre suas anáguas, mas sua barriga estava lá, redonda
e firme como uma abóbora sob o vestido.
— Ele, ou ela, está acordado — ela disse, colocando uma mão em sua protuberância, que
se movia lentamente como minúsculos membros que cutucavam experimentalmente aqui e
acolá dentro dela. Aquilo sempre era fascinante de alguma forma, mas Ian ainda estava sob a
influência da sucção do pepino.
— Eu vou balançá-lo para que volte a dormir — ele sussurrou em seu ouvido, e,
inclinando-se, levantou-a nos braços. Tinham se passado quase oito meses, e ela estava
notavelmente pesada, mas ele conseguiu fazer isso, com não mais do que um sutil grunhido e,
com cuidado por causa dos galhos baixos e das pedras soltas, ele a carregou para dentro da
floresta, deixando Clarence pastando em uma moita de grama suculenta.
— Eu prefiro pensar que não foi o encontro com sua ex-amante que causou este surto de paixão
— Rachel comentou pouco tempo mais tarde, sacudindo um piolho de madeira para fora do
antebraço de seu marido, que estava bem diante de seu rosto.
Eles estavam deitados de lado no manto xadrez de Ian, nus e juntos como colheres numa
caixa. Estava fresco sob as árvores, mas ela parecia nunca sentir frio ultimamente; a criança era
como uma pequena fornalha — sem dúvida herdara isso de seu pai, ela pensou. A pele de Ian
geralmente era quente, mas em relação a ele, o calor da paixão não era uma simples metáfora;
ele se incendiava quando deitavam juntos.
— Ela não era minha amante — Ian murmurou nos cabelos dela, e beijou atrás de sua
orelha. — Era apenas uma transação comercial.
Ela não gostou de ouvir aquilo e se enrijeceu um pouco.
— Eu disse a você que já tinha me relacionado com prostituas — A voz de Ian era baixa,
mas ela podia ouvir a leve reprovação em suas palavras. — Você preferia que eu descartasse
amantes pelo campo?
Ela inspirou profundamente, relaxou e esticou o pescoço para beijar a parte de trás de sua
longa mão bronzeada pelo sol.
— Não, é verdade... você me disse — ela admitiu. — E embora exista uma parte de mim
que esperava que você fosse virgem, casto e intocado... a honestidade me obriga a reconhecer
com gratidão as lições que você aprendeu nas graças da Sra. Sylvie. — Ela queria perguntar se
ele tinha aprendido as coisas que eles faziam com a Sra. Sylvie ou talvez com a sua esposa índia...
Mas ela não queria colocar os pensamentos de Trabalha com as Mãos entre eles.
A mão dele levantou e envolveu seu seio, brincando muito gentilmente com seu mamilo,
e ela se contorceu involuntariamente — um movimento lento e insinuante que empurrou suas
nádegas de encontro a ele. Os mamilos dela estavam muito grandes ultimamente e tão sensíveis
que mal podiam suportar a fricção do espartilho. Ela se contorceu novamente, e ele riu baixinho
e a fez rolar sobre seu corpo, para que pudesse tomar o mamilo na boca.
— Não faça ruídos desse tipo — ele murmurou contra sua pele. — Os outros chegarão a
qualquer momento agora.
— O que... eles vão pensar quando virem Clarence sozinha?
— Se alguém perguntar mais tarde, podemos dizer que estávamos procurando cogumelos.
Eles não deviam ficar muito mais tempo daquele jeito, ela sabia. Mas seu desejo era permanecer
ali para sempre — ou pelo menos por mais cinco minutos. Ian se deitou novamente atrás dela,
quente e forte. Mas sua mão agora estava em sua barriga, carinhosamente acariciando o
mistério arredondado que continha sua criança.
Talvez ele pensasse que ela estava dormindo. Talvez ele não se importasse se ela o
ouvisse. Ele falou em gaélico, entretanto, e embora ela ainda não conhecesse o suficiente da
língua para entender tudo o que ele estava dizendo, ela sabia que era uma oração. “A Dhia”
significava “Oh, Deus”. E é claro que ela sabia em nome do que ele rezava.
— Está tudo bem — ela disse suavemente quando ele parou, e colocou a mão sobre a dele.
— O quê?
— Que você pense em sua primeira criança... ou crianças. Eu sei que você o faz. E eu sei o
quanto você teme por esta aqui também — Ela adicionou, ainda mais suavemente.
Ele suspirou profundamente, seu hálito, ainda com cheiro de pepino e alho, quente em seu
pescoço.
— Você transforma o meu coração em água, moça... e se alguma coisa acontecesse a você
ou ao pequeno Oggy, isso faria um buraco em mim que arruinaria a minha vida.
Ela queria dizer que nada aconteceria a eles, que ela não permitiria. Mas isso seria
prometer uma coisa que ela não poderia garantir.
— Nossas vidas estão nas mãos de Deus — ela disse, apertando a mão dele. — E o que
quer que aconteça, nós estaremos com você para sempre.
Novamente vestidos, e o mais decente que podiam estar, arrumando os cabelos com os próprios
dedos, eles alcançaram a trilha exatamente quando Claire e Jenny viraram a curva, carregando
pacotes e cada uma delas levando uma cabra leiteira, criaturas amigáveis que soltaram altos
“mé” em saudação quando avistaram os dois estranhos.
Rachel viu a mãe de Ian olhar acentuadamente para seu filho, e então seus olhos azul-
escuros se levantaram para Rachel, empoleirada nas costas de Clarence. Ela deu a Rachel um
sorriso que dizia, tão claramente quanto as palavras, que ela sabia exatamente o que eles
estavam fazendo e achava aquilo divertido. O sangue quente subiu às bochechas de Rachel, mas
ela manteve a compostura e inclinou a cabeça graciosamente para Jenny — apesar do fato de
que os Amigos não inclinavam suas cabeças, exceto para adorar.
Ainda corada, ela não prestou atenção em Claire, mas quando eles já estavam longe o
bastante das mulheres mais velhas e das cabras para que não fossem ouvidos, Ian levantou o
queixo e gesticulou sobre o ombro.
— Você não acha que tem alguma coisa errada com a tia Claire?
— Eu não notei. O que você quer dizer?
Ian levantou um ombro, franzindo o cenho suavemente.
— Eu não sei dizer exatamente. Ela era ela mesma enquanto íamos até o posto comercial
e quando nós chegamos lá, mas... quando ela voltou do estábulo das cabras, ela parecia...
diferente.
Ele lutou para encontrar as palavras para explicar o que ele queria dizer.
— Não exatamente o que você diria de alguém que viu um fantasma... não com medo, eu
quero dizer. Mas... espantada, talvez? Surpresa, ou talvez chocada. Mas então quando ela me viu,
ela tentou agir como se estivesse tudo bem, e eu estava ocupado com os pacotes e acabei me
esquecendo do assunto.
Ele virou a cabeça novamente, olhando sobre o ombro, mas a trilha atrás deles estava
vazia. Um suave “mé” chegou através das árvores atrás deles, e ele sorriu — mas seus olhos
estavam preocupados.
— Sabe... A Tia Claire não consegue esconder as coisas muito bem. Tio Jamie sempre diz
que ela tem um rosto de vidro, e é verdade. O que quer que ela tenha visto lá... Eu acho que ainda
está junto dela.
142 – OS SENTIMENTOS MAIS PROFUNDOS SEMPRE SE MOSTRAM NO SILÊNCIO
Foi em algum momento na tarde do terceiro dia que Jenny limpou a garganta de forma
significativa. Nós tínhamos parado num riacho onde a grama selvagem crescia longa e grossa e
estávamos com os pés cansados na água, observando as cabras presas em cordas se divertirem.
Raramente alguém se importava em amarrar as cabras, já que elas podiam, se quisessem,
mastigar a corda e se livrar em questão de segundos. No presente caso, entretanto, havia muita
comida disponível e as cordas as manteriam dentro de nossa visão.
— Tem alguma coisa presa na sua garganta? — Perguntei agradavelmente. — Por sorte
há muita água.
Ela fez um ruído escocês indicando uma educada admiração por aquela fraca tentativa de
sagacidade e, colocando a mão em seu bolso, tirou dali um frasco de prata muito maltratado,
desarrolhando-o. Eu podia sentir o cheiro da bebida de onde eu estava... um precursor local do
uísque, eu pensei.
— Você trouxe isso da Escócia? — Perguntei, aceitando o frasco, que tinha um desenho
bruto de flor-de-lis na lateral.
— Sim, era de Ian. Ele o adquiriu quando ele e Jamie eram soldados na França; e levou de
volta consigo quando perdeu a perna. Nós costumávamos sentar no muro da casa de seu pai e
compartilhar um trago, enquanto ele estava se recuperando: ele precisava disso, pobre rapaz,
depois que eu o fazia andar para cima e para baixo da estrada dez vezes por dia, para aprender
a usar sua perna de pau. — Ela sorriu, os olhos oblíquos se vincando, mas com uma torção
melancólica de seus lábios. — Eu disse que não me casaria com ele, sabe? A menos que ele
pudesse estar ao meu lado sobre duas pernas para me levar ao altar após os votos.
Eu ri.
— Não foi exatamente isso que ele me disse. — Eu tomei um gole cauteloso, mas a bebida
lá dentro era deliciosa: ardente, mas suave. — Onde você conseguiu isso?
— Um homem chamado Gibbs, de Aberdeenshire. Você poderia pensar que eles sabem
alguma coisa sobre a fabricação de uísque lá, mas sem dúvida ele aprendeu em outro lugar. Ele
mora num local chamado Hogue Corners; você conhece?
— Não, mas não pode ser muito longe. É de fabricação própria, então? Jamie estaria
interessado. — Eu tomei outro gole e devolvi o frasco, segurando o uísque em minha boca para
saborear.
— Sim, eu pensei nisso também. Eu tenho uma pequena garrafa para ele em meu saco. —
Ela tomou um gole e assentiu com aprovação. — Quem era aquele imbecil gordo e sujo que te
assustou em Beardsley’s?
Eu engasguei com o uísque, engolindo pelo caminho errado, e quase tossi os meus
pulmões para fora em consequência. Jenny pousou o frasco, levantou as saias e entrou no
riacho, molhando seu lenço na água fria; ela o entregou a mim, e depois pegou a água em sua
mão e colocou um pouco na minha boca.
— Por sorte temos muita água, como você disse — ela comentou. — Aqui, pegue mais um
pouco.
Eu assenti, os olhos lacrimejando, mas puxei minhas saias para cima, me ajoelhei e bebi
por mim mesma, parando para respirar entre os goles, até parar de tossir.
— Eu não tinha dúvidas disso — Jenny disse, observando aquela performance. — Mas se
tivesse, não teria agora. Quem é ele?
— Eu não sei — Eu disse de mau humor, escalando novamente minha pedra. Jenny não
era o tipo de pessoa que se inibia por um tom de voz brusco, entretanto, e meramente elevou
uma sobrancelha em formato de asa de gaivota. — Não sei mesmo — Repeti, um pouco mais
calma. — Eu... apenas o vi em mais um lugar. Eu não tenho ideia de quem ele seja, entretanto.
Ela estava me examinando com o ar interessado de uma cientista com um novo micro-
organismo preso no microscópio.
— Sim, sim. E onde você viu o homem antes? Porque você certamente o reconheceu desta
vez. Você ficou muito chocada.
— Se eu pensasse que faria a mínima diferença, falaria que não é da sua conta — Eu disse,
lançando um olhar para ela. — Dê-me o frasco, sim?
Ela o entregou a mim, observando pacientemente enquanto eu tomava vários pequenos
goles e pensava no que dizer. Por fim, eu respirei profundamente, com o hálito cheirando a
uísque, e entreguei o frasco a ela.
— Obrigada. Eu não sei se Jamie contou a você que, há cerca de cinco anos, uma gangue
de bandidos que estava aterrorizando o interior chegou até Ridge. Eles queimaram o nosso
depósito de malte (ou tentaram fazê-lo) e machucaram Marsali. E eles... eles me pegaram. Como
refém.
Jenny devolveu o frasco para mim, sem falar, mas com um olhar de profunda simpatia nos
olhos azul-escuros.
— Jamie... me resgatou. Ele levou homens com ele, e houve uma terrível luta. A maior parte
da gangue foi morta, mas obviamente alguns conseguiram escapar na escuridão. Aquele...
aquele homem era um deles. Não, está tudo bem, não preciso de mais. — Eu havia segurado o
frasco como um talismã para ter coragem enquanto contava a história a ela, mas agora o
devolvia. Ela tomou um gole longo e pensativo.
— Mas você não tentou descobrir seu nome? As pessoas de lá o conhecem, eu notei; eles
teriam contado a você.
— Eu não quero saber! — Eu falei em voz alta o suficiente para que até uma das cabras
próximas emitisse um “mé-é-é” assustado e saltasse sobre um tufo de grama, evidentemente
não incomodada pela corda. — Eu... isso não importa — eu disse, em menos volume, mas não
com menos firmeza. — Os... líderes... estão todos mortos; bem como a maior parte dos outros.
Esse homem... ele... bem, você pode dizer ao olhar para ele, não? Como você o chamou? Cara
gordo e sujo? É só o que ele é. Ele não representa perigo para nós. Eu só... quero esquecer tudo
sobre ele. — Terminei, sem convicção.
Ela assentiu, abafou um pequeno arroto, pareceu assustada com o som e, balançando a
cabeça, arrolhou o frasco e o guardou.
Nós ficamos sentadas por um tempo em silêncio, ouvindo o ruído da água corrente e dos
pássaros na árvore atrás de nós. Havia um rouxinol nas proximidades, passando pelo seu longo
repertório com uma voz de bronze.
Depois de aproximadamente dez minutos, Jenny se esticou, arqueando suas costas e
suspirando.
— Você se lembra de minha filha Maggie? — Ela perguntou.
— Sim — Eu disse, sorrindo um pouco. — Eu fiz o parto dela. Ou, melhor, eu a peguei.
Você fez todo o trabalho.
— É verdade — ela disse, colocando um pé na água. — Eu tinha me esquecido.
Lancei a ela um olhar afiado. Se ela tivesse esquecido de verdade, aquela seria a primeira
coisa que ela esquecia, pelo menos de algo do meu conhecimento, e eu não pensei que ela tivesse
idade o suficiente para começar a esquecer as coisas agora.
— Ela foi estuprada — Ela disse, os olhos na água e sua voz estável. — Não da pior forma
possível, pois o homem não a agrediu... mas ela ficou grávida.
— Que horror! — Eu disse baixinho, após uma pausa. — Foi... Não foi por um soldado do
governador, não é? — Aquele tinha sido o meu primeiro pensamento, mas Maggie não seria
mais do que uma criança durante os anos do Levante e de Cumberland limpando as Highlands,
quando o exército britânico queimou, saqueou e, sim, de fato, estuprou no caminho em várias
aldeias e vilarejos.
— Não, não foi — Jenny disse, pensativamente. — Foi o irmão de seu marido.
— Oh, Deus!
— Sim, foi o que eu disse quando ela me contou. — Ela fez uma careta. — Mas esta foi a
única coisa boa sobre isso, entretanto. Geordie, que é o irmão, tem a mesma cor de cabelos e de
olhos que o seu marido, Paul, então a criança poderia se passar facilmente como filho legítimo.
— E... ela o fez? — Eu não consegui evitar a pergunta. — Ela deixou passar?
Jenny soltou um longo suspiro e assentiu, tirando os pés da água e os colocando sob suas
anáguas.
— Ela me perguntou o que fazer, pobrezinha. Eu rezei... Deus, como eu rezei! — Ela disse,
com uma violência súbita, e depois bufou um pouco. — E eu disse a ela para não contar a ele...
ao Paul, quero dizer. Porque, se ela o fizesse, qual seria o final daquilo? Um deles morto (já que
um homem das Highlands nunca poderia conviver com alguém que estuprou sua esposa, e nem
deveria), e poderia ser Paul, ou não. E mesmo que ele apenas batesse em Geordie e o expulsasse,
todos saberiam o que havia por trás daquilo, e o pobre garotinho... Porque era o Wally, embora,
é claro, nós não soubéssemos disso ainda, enquanto estávamos falando sobre isso... O bebê seria
tomado como um bastardo e fruto de um estupro... O que seria dele?
Ela se inclinou e, pegando um pouco de água nas mãos, jogou-na no rosto. Ela inclinou a
cabeça para trás, os olhos fechados e a água correndo pelas suas bochechas altas e afiadas, e
balançou-a.
— E a família... Paul e Geordie? Uma coisa assim os despedaçaria... e os colocaria em
conflito conosco, sem dúvida, porque eles insistiriam até o fim de que Maggie estava mentindo,
em vez de acreditar numa coisa destas. São criaturas cabeçudas, os Carmichaels — ela disse
judiciosamente. — Leais o suficiente, mas teimosos como rochas.
— Isso dito por uma Fraser — Eu comentei. — Os Carmichaels devem ser marcantes nesta
linha.
Jenny bufou, mas não replicou nem por um momento.
— Então — ela disse por fim, virando-se para olhar para mim —, eu disse para Maggie
que tinha orado por causa disso, e pareceu a mim que, se ela pudesse suportar este fardo pelo
bem de seu marido e de seus filhos, ela não deveria dizer nada. Ela deveria tentar perdoar
Geordie se pudesse; e se não pudesse, deveria se afastar dele, mas sem dizer nada. E foi isso que
ela fez.
— O que... Geordie fez? — Perguntei curiosamente. — Ele... Ele sabe que Wally é seu filho?
Ela balançou a cabeça.
— Eu não sei. Ele partiu, um mês após a criança nascer... emigrou para o Canadá. Ninguém
ficou surpreso por isso; todos sabiam que ele era completamente apaixonado por Maggie e que
ele ficara fora de si quando ela escolheu Paul. Esperava que as coisas ficassem mais fáceis.
— Fora das vistas, fora da mente? Sim, eu suponho — Eu disse secamente. Eu pensei que
não deveria perguntar, mas não consegui evitar. — Maggie contou ao Paul... depois que Geordie
partiu, quero dizer?
Ela balançou a cabeça e ficou de pé, um pouco tensa, balançando suas saias para baixo.
— Eu não tenho certeza, mas eu acho que não. Contar a ele, depois de tanto tempo de
silêncio... como ele aceitaria isso? E ele ainda odiaria seu irmão, mesmo que não pudesse matá-
lo. — Seus olhos azuis, tão parecidos com os de Jamie, olharam para mim com um ar tristemente
divertido. — Você não pode estar casada com um homem das Highlands há tanto tempo e não
saber quão profundamente eles podem odiar. Vamos lá... É melhor nós levarmos estas criaturas
antes que elas explodam.
E ela nadou pela grama, com os sapatos na mão, cantando um encanto em gaélico para
reunir o gado:
Os três que estão acima na cidade da glória,
Pastoreando minhas ovelhas e minhas vacas,
Protegendo-as devidamente do calor, da tempestade e do frio,
Com a bênção do poder levando-os para baixo,
De uma grande altura para o seu estábulo.
Eu fiquei pensando naquilo, depois que todos já tinham se enrolado em seus cobertores e
tinham começado a roncar, naquela noite. Bem... Eu não tinha parado de pensar desde que eu
vira o homem. Mas à luz da história que Jenny tinha me contado, meus pensamentos começaram
a ficar mais claros, como colocar casca de ovo e borra de café no solo pode estabilizá-lo.
A ideia de não contar nada ainda era, é claro, a primeira coisa em minha mente e ainda era
a minha intenção. A única dificuldade — bem, havia duas, para ser honesta. Mas a primeira era
que, por mais irritante que pudesse ser ouvir aquilo repetidamente, eu não podia negar que eu
tinha o rosto de vidro. Se alguma coisa estivesse me preocupando seriamente, as pessoas que
viviam comigo imediatamente começariam a me olhar de lado, pisando em ovos
exageradamente ao meu redor — ou, no caso de Jamie, exigindo sem rodeios que eu dissesse
qual era o problema.
Jenny tinha feito praticamente a mesma coisa, embora não tivesse me pressionado por
detalhes de minha experiência. Muito claramente, ela tinha adivinhado os contornos do que
acontecera, entretanto, ou nunca teria escolhido me contar a história de Maggie. Ocorreu a mim,
tardiamente, se Jamie teria contado a ela alguma coisa sobre o ataque de Hodgepile e suas
consequências.
A dificuldade subjacente, entretanto, era a minha própria responsabilidade em encontrar
o homem gordo e sujo. Eu bufava toda vez que repetia a descrição para mim mesma, mas aquilo
de fato ajudava. Ele era um homem, e não um homem muito cativante. Não era um monstro.
Não... não adiantava fazer um alvoroço sobre isso. Só Deus sabia como ele tinha acabado se
juntando à guangue de Hodgepile... eu supunha que a maioria das gangues era composta em
grande parte por idiotas irresponsáveis.
E... por mais que eu não quisesse reviver aquela experiência... eu o fazia. Ele não tinha
vindo a mim com intenção de me machucar. De fato, ele não tinha me machucado (se eu não
fosse contar que ele me esmagara com seu peso, forçara minhas coxas a se separarem e enfiara
seu pinto para dentro de mim).
Eu relaxei os dentes, inspirei profundamente e comecei mais uma vez.
Ele tinha vindo a mim por oportunismo... e necessidade.
Martha, ele tinha dito, soluçando, as lágrimas e o ranho quentes em meu pescoço. Martha,
eu te amava tanto...
Eu poderia perdoá-lo por causa disso? Colocar de lado o dissabor do que ele havia feito
comigo e ver apenas a criatura patética que ele era?
Se eu pudesse... Isso impediria que ele vivesse em minha mente, uma rebarba constante sob
o cobertor dos meus pensamentos?
Eu inclinei a cabeça para trás, olhando para o profundo céu negro cheio de estrelas. Se
você sabia que elas eram bolas de gás em chamas, podia imaginar o que Van Gogh vira, sem
dificuldade... e olhando para aquele vazio iluminado, você poderia compreender por que as
pessoas sempre olhavam para o céu para conversar com Deus. Você precisa sentir a imensidão
de alguma coisa que é muito maior do que você, e ali está... uma vastidão imensurável, e sempre
presente. Cobrindo-nos.
Ajude-me, eu disse silenciosamente.
Eu nunca conversava com Jamie sobre Jack Randall. Mas eu sabia pelas poucas coisas que
ele havia me contado — e pelas coisas desconexas que ele dizia em seus sonhos — que era desta
forma que ele tinha escolhido viver. Ele tinha perdoado Jack Randall. Repetidamente. Mas ele
era um homem teimoso; ele podia fazer isso. Milhares de vezes, e ainda mais.
Ajude-me, eu disse, e senti as lágrimas escorrerem pelas minhas têmporas, para dentro de
meus cabelos. Por favor. Ajude-me.
143 – COISAS ENTRANDO EM PERSPECTIVA
Funcionava. Não facilmente, e frequentemente por não mais do que alguns minutos — mas o
choque desapareceu e, de volta em casa, com a paz da montanha e o amor da família e dos
amigos me rodeando, eu senti uma sensação bem-vinda de equilíbrio retornando. Eu rezei, e
perdoei, e enfreitei.
Aquilo recebera bastante ajuda das distrações. O verão era a época mais movimentada
numa comunidade agrícola. E quando os homens estão trabalhando com foices e enxadas e
carroças e gado e armas e facas — eles se machucam. Em relação às mulheres e às crianças —
queimaduras e acidentes domésticos e constipação e diarreia e dentes nascendo e... vermes.
— Ali, está vendo? — Eu disse em voz baixa, segurando uma vela acesa a alguns
centímetros do traseiro de Tammas Wilson, de dois anos. Tammas, chegando à conclusão
razoável de que eu estava prestes a queimar suas costas ou sua bunda, gritava e chutava,
tentando escapar. Sua mãe o segurou com mais força, entretanto, e puxou suas nádegas mais
uma vez, revelando os pequenos e brancos oxiúros fêmeas que pululavam ao redor de seu
pequeno e idealmente imaculado ânus.
— Cristo entre nós e o mal — Annie Wilson disse, soltando uma das mãos para se benzer.
Tammas fez um esforço determinado para escapar e quase conseguiu se lançar de cabeça no
fogo. Eu o segurei por um dos pés, entretanto, e o puxei de volta.
— Estas são as fêmeas — Expliquei. — Elas rastejam à noite e colocam ovos na pele. Os
ovos causam coceira e então, é claro, seu garoto coça. É isso que causa a vermelhidão e a
brotoeja. E então ele espalha os ovos em tudo o que toca — e como Tammas tinha dois anos, ele
tocava em tudo o que estava ao seu alcance — e é por isso que toda a sua família provavelmente
está infectada.
A Sra. Wilson se contorceu suavemente em seu banco, se por causa dos oxiúros ou por
embaraço, eu não sabia dizer, e ajeitou Tammas que prontamente se lançou para fora de seu
colo e foi em direção à cama onde estavam suas duas irmãs mais velhas, com quatro e cinco
anos. Eu o peguei pela cintura e o arrastei de volta para perto da lareira.
— Que Santa Brígida nos salve! O que eu posso fazer? — Annie perguntou, olhando
impotente das garotas adormecidas para o Sr. Wilson que, cansado pelo dia de trabalho, estava
enrolado na outra cama, roncando.
— Bem, para as crianças mais velhas e os adultos, você pode usar isso. — Eu tirei uma
garrafa de meu cesto e entreguei a ela, cautelosamente. Não era de fato explosivo, mas, sabendo
do seu efeito, eu sempre tinha aquela ilusão. — É um tônico de Suspiro de Bebê55 com raiz de
Ipeca. É um laxante muito forte, que significa que vocês terão uma séria caganeira — Eu
emendei, vendo que ela não tinha compreendido —, mas algumas doses serão suficientes para
vocês se livrarem dos oxiúros, contanto que você possa impedir que Tammas e as meninas
continuem espalhando-os. E para as crianças menores — Eu entreguei um pote de pasta de
alho, forte o suficiente para fazer Annie enrugar o nariz, mesmo com o pote fechado. — Pegue
uma grande quantidade com o dedo e passe nas crianças, por fora e por dentro.
— Sim — ela disse, parecendo resignada, e pegou tanto o pote quanto a garrafa.
Provavelmente não seria a pior coisa que ela teria feito, sendo uma mãe. Eu dei a ela as
instruções em relação à fervura das roupas de cama e adverti estritamente sobre o sabão e
sobre lavar as mãos religiosamente, desejei melhoras a ela e saí, sentindo uma forte urgência
de coçar meu próprio traseiro.
55 Euphorbia corollata (planta nativa dos Estados Unidos, conhecida como “Baby’s breath”); não tem nome popular
no Brasil, já que não ocorre no país.
Aquilo passou a caminho da cabana dos Higgins, entretanto, e eu deslizei para a cama ao
lado de Jamie com uma sensação pacífica de um trabalho bem-feito.
Ele rolou sonolento e me abraçou, então fungou.
— O que em nome de Deus você estava fazendo, Sassenach?
— Você não vai querer saber — Eu assegurei a ele. — A que eu estou cheirando?
Se fosse apenas alho, eu não iria me levantar. Se fosse a fezes, entretanto...
— Alho — ele disse, por sorte. — Você está cheirando como um Gigot d’agneau 56 francês
— Seu estômago roncou com o pensamento e eu ri, baixinho.
— Eu acho que é mais provável que você receba mingau para o desjejum.
— Tudo bem — ele disse confortavelmente. — Há mel para colocar nele.
Na tarde seguinte, não havendo chamados médicos urgentes, eu subi para o local da casa nova
com Jamie. As folhas verdes em forma de escudo e as hastes arqueadas dos morangos selvagens
estavam em todos os lugares, salpicando a encosta com pequenos corações vermelhos e
agridoces. Eu tinha levado uma pequena cesta comigo — eu nunca ia a lugar algum sem uma
cesta durante a primavera ou o verão — e eu já a tinha enchido quando chegamos à clareira,
com sua linda vista de toda a enseada de Ridge.
— Parece que faz uma vida desde que viemos aqui pela primeira vez — eu comentei,
sentando-me em uma das pilhas de madeira semiescavada e tirando meu chapéu de abas largas
para deixar que a brisa soprasse pelos meus cabelos. — Você se lembra de quando encontramos
os morangos? — Eu ofereci algumas frutas para Jamie.
— Mais como duas ou três. Vidas, eu quero dizer. Mas, sim, eu me lembro. — Ele sorriu,
sentou-se ao meu lado e pegou uma das pequenas frutas da palma de minha mão.
Ele gesticulou para o chão mais ou menos plano diante de nós, onde ele tinha estabelecido
um piso rústico, com estacas cravadas no solo e cordas delimitando os cômodos.
— Você vai querer que o consultório fique na frente, sim? Igual era antes? Foi como eu o
coloquei, mas é fácil de mudar, se você quiser.
— Sim, eu acho que sim. Eu vou ficar lá mais do que em qualquer outro lugar; seria bom
poder olhar pela janela e ver que tipo de emergência hedionda está chegando.
Eu tinha falado seriamente, mas ele riu e pegou mais alguns morangos.
— Pelo menos se eles tiverem que subir a colina, isso vai atrasá-los um pouco. — Ele tinha
levado para cima o desenho que tinha feito e agora estava de joelhos, abrindo-o para mostrar
os seus planos, perfeitamente desenhados a lápis.
— Eu terei meu escritório do outro lado do corredor, como era antes. Você vai notar que
eu fiz o corredor maior, por causa do patamar da escada, e talvez eu queira uma pequena sala
de estar ali, entre o escritório e a cozinha. Mas a cozinha... Você acha que poderíamos talvez ter
uma cozinha separada, como John Grey tinha na Filadélfia?
Eu considerei por um momento, minha boca franzindo um pouco por causa das bagas
adstringentes. Eu não estava surpresa por aquele pensamento ocorrer a ele; qualquer um que
passasse por um incêndio, quanto mais dois, provavelmente teria muita consciência dos
perigos.
— Oh, eu acho que não — Eu disse, por fim. — Eles fazem isso tanto por causa do calor
quanto por causa do perigo do fogo, e este não é um problema aqui. Nós precisaremos de
fogueiras pela casa, afinal de contas. O perigo de incêndios não pode ser muito maior só pelo
fato de cozinharmos.
— Certamente isso depende de quem está fazendo a comida — Jamie disse, levantando
uma sobrancelha para mim.
56 Pernil de cordeiro
— Se você está querendo dizer algo pessoal com este comentário, pode retirar. — Eu disse
firamente. — Eu posso não ser a melhor cozinheira do mundo, mas eu nunca servi suas cinzas.
— Bem, você é o membro da família que incendiou uma casa, Sassenach. Você tem que
admitir isso. — Ele estava rindo e colocou uma mão casualmente para interceptar o golpe
simulado que eu apontei para ele. Sua mão fechou o meu punho completamente, e ele me puxou
sem esforço até ele.
Ele colocou um braço ao redor de mim e o queixo no meu ombro, tirando os meus cabelos
do rosto com a mão livre. Ele estava descalço e vestia apenas uma camisa e seu surrado xale
xadrez marrom e verde de trabalho, um que ele tinha comprado de um negociante de tecidos
em Savannah. O tecido tinha subido um pouco em suas coxas; eu puxei a dobra em seu traseiro
e a alisei para baixo, ao longo do músculo de sua perna.
— Amy disse que tem um tecelão escocês em Cross Creek — Eu disse. — Quando você for
para lá, talvez devesse encomendar um novo xale... talvez um com seu próprio tartã se o tecelão
conseguir um vermelho Fraser.
— Sim, bem... Há muitas outras coisas com as quais gastar dinheiro, Sassenach. Eu não
preciso estar elegante para caçar ou pescar... e eu faço os trabalhos de campo apenas com a
camisa.
— Eu poderia usar no dia-a-dia uma saia de flanela cinza e cheia de buracos que isso não
faria diferença para o meu trabalho... Mas você não iria querer que eu fizesse isso, certo?
Ele fez um baixo ruído escocês de divertimento e mudou a posição do corpo, segurando-
me com mais firmeza.
— Eu não iria querer isso. Eu gosto de vê-la ocasionalmente com um belo vestido, moça,
com os seus cabelos presos e os seus doces seios à mostra. Além disso — ele adicionou —, um
homem é julgado pela forma como ele provém à sua família. Se eu deixá-la sair em trapos, as
pessoas vão pensar que eu sou cruel ou imprudente. — Era claro pelo seu tom qual destas
condições seria o pecado mais terrível.
— Oh, eles não pensariam — Eu disse, principalmente para provocar, pelo bem do
argumento. — Todos em Ridge sabem perfeitamente bem que você não é nenhum deles. Além
disso, você não acha que eu gosto de olhar para você em toda a sua glória?
— Ora, isso é muito frívolo de sua parte, Sassenach; eu nunca esperaria este tipo de coisa
da Dra. C.E.B.R. Fraser.
Ele estava rindo novamente, mas parou abruptamente quando se virou um pouco.
— Olhe — ele disse em meu ouvido, e apontou para o lado da enseada. — Logo ali, à
direita, onde o riacho sai do meio das árvores? Está vendo?
— Oh, não! — Eu disse, avistando uma mancha branca se movendo lentamente entre os
tapetes verdes de agrião e lentilha — Não pode ser ela, certamente?
Eu não podia ver os detalhes àquela distância e sem os meus óculos, mas pela forma como
se movia, o objeto em questão era certamente um porco. Um grande porco. Um grande porco
branco.
— Bem, se não é a maldita porca branca, é uma filha exatamente igual a ela. Mas o meu
palpite é que aquela é nossa velha conhecida. Eu conheceria aquele traseiro orgulhoso em
qualquer lugar.
— Bem, então — Eu me inclinei para trás contra ele com um pequeno suspiro de
satisfação. — Agora eu sei que estamos em casa.
— Você estará dormindo sob o próprio teto dentro de um mês, a nighean. — Ele disse, e
eu pude ouvir o sorriso em sua voz. — Pense, pode não ser mais do que o telhado de um
alpendre para começar, mas será nosso. Até o inverno, entretanto, eu terei construído as
chaminés, as paredes e o telhado; eu posso colocar o chão e as portas mesmo que haja neve no
chão.
Eu coloquei uma mão ao redor de suas maçãs do rosto, quentes e levemente mal
barbeadas. Eu não me iludia de que aquele seria o paraíso ou mesmo um refúgio da guerra —
as guerras tendiam a não ficar apenas em um local, mas a se movimentarem, da mesma forma
que os ciclones e ainda mais destrutivos onde tocavam. Mas pelo tempo que durasse, aquele era
o nosso lar, e agora era a paz.
Nós nos sentamos em silêncio por um tempo, observando os falcões circularem sobre o
campo aberto abaixo e as maquinações da porca branca — se, de fato, era ela — que agora tinha
se juntado a outros pequenos suínos para forragear, sem dúvida sua ninhada da primavera. Aos
pés da enseada, dois homens a cavalo entraram em nosso campo de visão, na estrada, e eu senti
a atenção de Jamie se intensificar e depois relaxar.
— Hiram Crombie e o novo clérigo — ele disse. — Hiram disse que ele pretendia ir até a
encruzilhada buscar o homem, para que ele não se perdesse.
— Você quer dizer que Hiram precisa se certificar de que ele é severo o suficiente para o
trabalho — Eu disse, rindo. — Você percebe que eles não têm o hábito de vê-lo como humano,
não?
Hiram Crombie era o chefe do pequeno grupo de colonos que Jamie tinha recebido há seis
anos. Todos eles eram presbiterianos com uma disposição particularmente dura e inclinados a
considerar os papistas como sendo profundamente pervertidos, se não de fato a semente de
Satanás.
Jamie soltou um pequeno ruído, mas com certo desligamento tolerante.
— Eles vão se acostumar comigo novamente — ele disse. — E eu pagaria para ver Hiram
conversando com Rachel. Aqui, Sassenach, minha perna dormiu. — Ele me ajudou a sair de seu
colo e ficou de pé, sacudindo seu kilt para que ele ficasse no lugar certo. Velho ou não, aquele
kilt combinava com ele, e meu coração se elevou ao vê-lo parecendo como deveria: alto e com
os ombros largos, o chefe de sua casa, mais uma vez o mestre de sua própria terra.
Ele olhou sobre a enseada novamente, suspirou profundamente e se virou para mim.
— Falando em emergências hediondas — ele disse pensativamente —, você sempre quer
vê-las chegando. Assim você pode ficar em boa condição se resolvê-las — Seus olhos
encontraram os meus diretamente. — Agora seria um bom momento para você me dizer o que
está acontecendo, não?
— Não há nada de errado — Eu disse, provavelmente pela décima vez. Eu peguei uma crosta da
casca ainda agarrada à madeira e me sentei. — Está tudo perfeitamente bem. Sério.
— Sassenach — ele disse suavemente. — Eu sou muito mais teimoso do que você, e você
sabe disso muito bem. Agora, eu sei que alguma coisa a deixou chateada quando foi para
Beardsley’s, e eu sei que você não queria me falar sobre isso. Algumas vezes eu sei que você
precisa assentar sua mente sobre um assunto antes de falar, mas você teve tempo suficiente
para fazer isso... e eu percebi que, o que quer que seja, é pior do que eu pensei, ou você já teria
contado agora.
Eu hesitei, tentando pensar em alguma coisa para dizer a ele que talvez não fosse
exatamente... Eu olhei para ele e decidi que... não, eu não poderia mentir para ele — e não
apenas porque ele seria capaz de saber imediatamente que eu estava mentindo.
— Você se lembra — eu disse lentamente, olhando para ele — da noite do nosso
casamento? Você me disse que não me pediria para contar coisas que eu não podia. Você disse
que o amor tinha espaço para segredos, mas não para mentiras. Eu não vou mentir para você,
Jamie... mas eu realmente não quero dizer nada.
Ele mudou o peso do corpo de uma perna para outra e suspirou.
— Se você acha que isso vai aliviar a minha mente, Sassenach... — ele disse, e balançou a
cabeça. — Eu não disse isso, de qualquer maneira. Eu me lembro da ocasião vividamente — e
ele sorriu para mim — e o que eu disse era que não havia nada entre nós além do respeito... e
que eu pensava que o respeito podia ter espaço para os segredos, mas não para as mentiras.
Ele parou por um momento, e depois disse muito gentilmente.
— Você não acha que há mais do que respeito entre nós agora, mo chridhe?
Eu inspirei profundamente. Meu coração estava martelando contra o espartilho, mas era
apenas uma agitação normal e não pânico.
— Sim — eu disse, olhando para ele. — Jamie... por favor não me pergunte isso agora. Eu
realmente acho que está tudo bem; eu tenho rezado por causa disso e... e... eu acho que tudo
ficará bem — Eu terminei, um pouco sem convicção. Eu me levantei, entretanto, e peguei suas
mãos. — Eu vou te falar quando achar que posso — eu disse. — Pode viver com isso?
Seus lábios se apertaram enquanto ele pensava. Ele não era um homem de respostas
fáceis. Se ele não pudesse viver com isso, diria para mim.
— É uma questão para a qual eu preciso estar preparado? — Ele perguntou seriamente.
— Se isso puder causar uma luta de algum tipo, quero dizer, precisarei estar preparado.
— Oh — Eu soltei o fôlego que estava prendendo, de alguma forma aliviada. — Não. Não,
não é nada desse tipo. É mais uma questão do tipo moral.
Eu podia ver que ele não estava feliz sobre isso; seus olhos procuravam em meu rosto, e
eu vi o olhar preocupado neles, mas por fim ele assentiu, lentamente.
— Eu vou viver com isso, a nighean. — Ele disse suavemente, e beijou minha testa. — Por
enquanto.
144 – INTERROMPIDO
As outras coisas principais que requeriam a atenção de um curandeiro durante o verão eram as
gestações e os nascimentos. Eu rezava todos os dias para que o parto de Marsali tivesse sido
seguro. Embora já fosse o dia primeiro de junho, provavelmente passariam-se meses até que
nós tivéssemos qualquer notícia, mas eu a tinha examinado antes de partirmos — com lágrimas
— em Charleston, e tudo parecia normal.
— Você acha que este pode ser... como Henri-Christian? — Ela falou o nome com
dificuldade e pressionou a mão em sua barriga inchada.
— Provavelmente não — Eu disse, e vi as emoções ondulando-se em seu rosto como o
vento passando sobre a água. Medo, arrependimento... alívio.
Eu me benzi, fazendo outra rápida oração, e caminhei para a cabana de MacDonald, onde
Rachel e Ian estavam ficando até que Ian pudesse construir uma casa para eles. Rachel estava
sentada no banco da frente, descascando ervilhas numa bacia, a bacia apoiada
confortavelmente sobre sua barriga.
— Madainn mhath! — Ela disse, sorrindo de alegria ao me ver. — Você não está
impressionada com a minha facilidade linguística, Claire? Eu posso dizer “Bom dia”, “Boa noite”,
“Como você está?” e “Cai fora de St. Kilda agora”.
— Parabéns! — Eu disse, sentando-me ao lado dela. — Como seria este último?
— Rach a h-Irt — ela me disse. — Eu imagino que “St. Kilda” é na verdade uma figura de
linguagem indicando uma localização remota, e não um destino real.
— Eu não ficaria surpresa. Você tentou impor os princípios do discurso direto em gaélico,
ou isso nem é possível?
— Eu não tenho ideia — ela disse francamente. — A Mãe Jenny propôs ensinar para mim
a Oração do Senhor em gaélico. Talvez eu possa dizer a partir disso, já que presumivelmente as
pessoas se dirigem ao Criador no mesmo tipo de voz que usam para o discurso direto.
— Oh — Eu não tinha pensado nisso, mas era sensato. — Então você chama Deus de “você”
quando conversa com Ele?
— É claro. Quem deveria ser um Amigo mais próximo?
Não ocorrera a mim, mas presumivelmente era por isso que usávamos “vós”, “vosso”, etc,
nas orações; aquelas eram originalmente as formas familiares do pronome “você”, mesmo que
o discurso direto em inglês tivesse mudado e perdido a distinção, exceto pelo discurso dos
Amigos.
— Que interessante — eu disse. — E como está Oggy hoje?
— Inquieto — ela disse, batendo na borda da bacia com força, e fazendo-a saltar,
derramando as ervilhas. — Assim como eu — ela adicionou, enquanto eu caçava as ervilhas em
sua saia e as colocava novamente na bacia.
— Eu não duvido disso — Eu disse, sorrindo. — A gravidez parece durar para sempre, até
que de repente você entra em trabalho de parto.
— Eu mal posso esperar — ela disse, com fervor. — E nem Ian.
— Alguma razão em particular?
Um glorioso e lento rubor se elevou a partir de seu pescoço e impregnou-se em seu couro
cabeludo.
— Eu o acordo seis vezes por noite, porque preciso urinar. — Ela disse, evitando meu
olhar. — E Oggy o chuta, tanto quanto chuta a mim.
— E? — Eu disse, convidativa.
O rubor se intensificou ligeiramente.
— Ele diz que mal pode esperar para, hã, mamar em mim — ela disse timidamente. Ela
tossiu e olhou para cima, o rubor desaparecendo um pouco. — Mas na verdade — ela disse,
agora séria — ele está ansioso pela criança. Você sabe sobre os filhos que ele teve com a mulher
Mohawk; ele contou a você, antes de decidir se era certo de sua parte se casar novamente.
— Ah. Sim, ele contou. — Eu coloquei uma mão em sua barriga, sentindo a pressão
reconfortante de um pé empurrando e a longa curvatura das pequenas costas. O bebê ainda não
tinha descido, mas pelo menos estava de cabeça para baixo. Aquele era um grande alívio. — Vai
ficar tudo bem — eu disse, e apertei sua mão. — Tenho certeza disso.
— Eu não estou com medo por mim mesma — ela disse, sorrindo e apertando de volta. O
sorriso desapareceu um pouco quando ela colocou a mão na barriga. — Mas tenho muito medo
por eles.
O tempo estava bom — e os dentes do menor dos Higgins estavam começando a nascer — e nós
pegamos duas colchas e caminhamos até o local onde ficaria a casa, logo após o jantar, para
aproveitar o longo crepúsculo. E para ter um pouco de privacidade.
— Você não acha que poderemos ser interrompidos por um urso ou alguma outra forma
selvagem, não é? — Perguntei, tirando o vestido áspero que eu usava para trabalhar.
— Não. Falei com Jo Beardsley; ele me disse que o urso mais próximo está a uma boa
distância daqui, naquela direção — Ele assentiu em direção ao outro lado da enseada. — E eles
não viajam muito nesta época do verão, enquanto há boa comida onde eles estão. E os leões da
montanha não se ocupam com pessoas, já que existem coisas mais fáceis para eles matarem. Eu
vou fazer uma pequena fogueira, entretanto, apenas para garantir.
— Como está Lizzie? — Perguntei, desdobrando as colchas enquanto o observava fazer
uma pequena fogueira com grande eficiência. — Jo disse?
Jamie sorriu, os olhos atentos no que estava fazendo.
— Ele disse, durante algum tempo. O principal era que ela estava boa o suficiente para
estar inclinada a arrancar pedaços dele e de Kezzie de forma a distrair a mente. É por isso que
Jo estava caçando; Kezzie fica em casa quando ela está irritada, porque ele não pode ouvi-la tão
bem.
Os gêmeos Beardsley eram idênticos, e tão parecidos que a única forma de dizer com qual
você estava conversando era que Keziah não ouvia muito bem, como resultado de uma infecção
na infância.
— Isso é bom. Sem malária, quero dizer. — Eu tinha visitado Lizzie logo depois de
chegarmos e a encontrei com sua ninhada próspera, mas ela havia me dito que tivera alguns
problemas com a febre durante o último ano, sem dúvida devido à falta de casca de jesuíta. Eu
tinha deixado com ela a maior parte do que eu tinha trazido de Savannah. Eu deveria ter
pensado em perguntar se tinham um pouco disso no posto comercial, pensei... e empurrei para
fora a pesada sensação de inquietação que veio a mim ao pensar naquele local, pensando
firmemente: “eu perdoo você”.
Com a fogueira pronta, nós nos sentamos e ficamos alimentando-a com pedaços de
madeira enquanto observávamos os últimos raios de sol desaparecendo pelas nuvens douradas
atrás dos piquetes negros dos cumes mais distantes. E com a luz do fogo dançando nas madeiras
empilhadas e nas pilhas de pedras da fundação, nós aproveitamos a privacidade de nossa casa,
por mais rudimentar que ela pudesse ser no momento. Nós nos deitamos pacificamente entre
as nossas colchas — não estava frio, mas num local tão elevado o calor do dia se desvanecia
rapidamente do ar — e observamos as faíscas tremeluzentes que saíam das chaminés e as
janelas iluminadas, nas pequenas casas visíveis entre as árvores da enseada. Antes que as luzes
fossem apagadas para a noite, nós já estávamos dormindo.
Eu acordei algum tempo depois, de um sonho erótico, contorcendo-me lentamente sobre
a colcha irregular, os membros pesados de desejo. Aquilo parecia acontecer com mais
frequência na medida em que eu envelhecia, como se fazer amor com Jamie acendesse um fogo
que não morria, mas continuava a arder durante a noite. Se eu não despertasse o suficiente para
fazer alguma coisa em relação àquilo, levantaria na manhã seguinte estúpida e nebulosa por
causa dos sonhos não satisfeitos e do sono inquieto.
Felizmente, eu estava acordada e, embora ainda agradavelmente sonolenta, bastante
capaz de fazer alguma coisa em relação a isso, o processo muito mais fácil pela presença de um
homem grande, quente e com cheiro pungente ao meu lado. Ele se mexeu um pouco quando eu
me deitei de costas, criando um pouco de espaço entre nós, mas voltou a respirar pesadamente
logo depois, e eu coloquei minha mão mais para baixo, encontrando o calor intumescido. Não
demoraria muito.
Poucos minutos depois, Jamie mudou de posição novamente, e minha mão ficou imóvel
entre as minhas coxas. E então sua mão deslizou rapidamente sob a colcha e me tocou no
mesmo local, quase fazendo meu coração parar.
— Eu não queria interromper, Sassenach — Ele sussurrou em meu ouvido — Mas você
não gostaria de ter um pouco de ajuda com isso?
— Hum — eu disse, suavemente — Ah... o que você tem em mente?
Em resposta, a ponta de sua língua encostou em minha orelha, e eu deixei um pequeno
grito sair. Ele bufou com diversão e colocou a mão entre as minhas pernas, tirando dali os meus
próprios dedos, que estavam bastante molhados. Um dedo grande me acariciou delicadamente
e eu arqueei as costas.
— Oh, você está bastante avançada, então — ele murmurou. — Está escorregadia e
salgada como uma ostra, Sassenach. Entretanto, ainda não terminou.
— Não, eu... há quanto tempo você está ouvindo?
— Oh, faz tempo suficiente — ele assegurou a mim e, parando as operações por um
momento, ele pegou minha mão livre e a dobrou firmemente em torno de uma parte muito
entusiasmada de sua própria anatomia — Hum?
— Oh — eu disse — Bem... — Minhas pernas tinham assumido a situação com muito mais
rapidez do que a minha mente, assim como ele.
Ele abaixou a cabeça e me beijou na escuridão, com um rigor suave e ansioso, e depois
afastou a boca por tempo suficiente para perguntar — Como os elefantes fazem amor?
Felizmente, ele não esperou por uma resposta, já que eu não tinha uma. Ele rolou sobre
mim e deslizou para dentro no mesmo movimento, e o universo encolheu de repente para um
único ponto vívido.
Alguns minutos depois, nós ficamos deitados sob as estrelas em chamas, as colchas
empurradas para o lado e os corações voltando lentamente ao normal.
— Você sabia — eu disse — que o seu coração de fato para por um momento durante o
clímax? É por isso que os batimentos ficam mais lentos por um minuto ou dois; o sistema
nervoso simpático aciona todas as suas sinapses, deixando que o parassimpático controle seu
coração, e ele diminui os batimentos cardíacos.
— Eu notei que parou — ele assegurou a mim — Não me importo de fato com o motivo,
contanto que continue depois. — Ele colocou os braços acima da cabeça e espreguiçou
luxuosamente, aproveitando o ar frio da noite em sua pele. — Na verdade, eu nunca me importei
se ele começaria a bater novamente, também.
— Há um homem em você — Comentei, tolerante. — Sem premeditações.
— Você não precisa premeditar em relação a isso, Sassenach. O que você estava fazendo
quando eu a interrompi, quero dizer. Eu admito que, se tem uma mulher envolvida, você tem
que pensar em todos os tipos de coisas, mas não nisso. — Ele parou por um momento. — Hã.
Eu não... a servi bem o suficiente mais cedo, Sassenach? — Ele perguntou, um pouco
timidamente. — Eu deveria ter levado mais tempo, mas não consegui esperar e...
— Não, não — Eu assegurei a ele. — Não é isso. Quero dizer... Eu só... Gostei tanto que
acordei querendo mais.
— Oh. Bom.
Ele relaxou com um suspiro profundo de satisfação, fechando os olhos. A lua estava em
sua fase crescente e eu podia vê-lo claramente, embora a luz do luar tirasse todas as cores do
cenário, deixando-o como uma escultura em preto e branco. Eu corri a mão pelo seu peito e
suavemente pela sua barriga ainda rígida — o trabalho físico extenuante tinha seu preço, mas
também tinha os benefícios — e envolvi seus genitais, quentes e úmidos em minha mão.
— Tha ball-ratha sìnte riut — ele disse, colocando uma grande mão sobre a minha.
— Uma o quê? — Eu disse. — Uma perna... sortuda?
— Bem... membro, na realidade; perna seria um exagero. “Há um membro sortudo
esticado contra você”. É a primeira linha de um poema de Alasdair mac Mhaighistir Alasdair.
“Para um excelente pênis”, é o nome.
— Ele tinha a si mesmo em alta conta, não? Esse Alasdair.
— Bem, ele não diz que é o dele... embora eu admita que haja certa implicação. — Ele
estreitou um pouco os olhos e declamou. — Tha ball-ratha sìnte riut / A choisinn mìle buaidh /
Sàr-bodh iallach acfhainneach / Rinn-gheur sgaiteach cruaidh / Ùilleach feitheach feadanach /
Làidir seasmhach buan / Beòdha treòrach togarrach / Nach diùltadh bog no cruaidh.
— Eu ouso dizer — Eu disse. — Declame em inglês; eu acredito que perdi alguns pontos
principais. Ele não pode ter comparado seu pênis com o ponteiro de uma gaita de foles, não é?
— Oh, sim, ele o fez — Jamie confirmou, e depois traduziu: — “Há um membro sortudo
esticado contra você / Que teve milhares de conquistas / Um pênis excelente que é de couro,
bem equipado, / Pontiagudo, penetrante, firme, / Lubrificado, musculoso, duro, / Forte,
durável, duradouro / Vigoroso, poderoso, alegre / Que não rejeitaria nem um corpo macio e
nem um duro”.
— De couro, é? — Eu disse, rindo. — Eu não me admiro, após milhares de conquistas. O
que ele quer dizer com “bem-equipado”, entretanto?
— Eu não saberia dizer. Suponho que eu já tenha visto uma ou duas vezes, enquanto
mijava na borda da estrada, quero dizer... Mas, neste caso, não fiquei muito impressionado pelas
suas virtudes.
— Você conhecia esse Alasdair? — Eu rolei e apoiei a cabeça em meu braço.
— Oh, sim. Assim como você, embora você talvez não soubesse que ele escrevia poesias,
já que não sabia muito gaélico na época.
Eu ainda não sabia muito bem, embora agora que estávamos entre pessoas que falavam
gaélico, tudo estivesse voltando aos poucos.
— Onde nós o conhecemos? No Levante?
Ele era o tutor de gaélico do Príncipe Tearlach.
— Sim. Ele escreveu muitos poemas e canções sobre a causa Stuart.
E agora que ele estava comentando, eu pensei que talvez me lembrasse dele: um homem
de meia-idade cantando à luz da fogueira, com os cabelos longos e bem barbeado, com uma
fenda profunda no queixo. Eu sempre me perguntava como ele podia se barbear tão bem com
uma lâmina.
— Hum.
Eu tinha sentimentos mistos sobre pessoas como Alasdair. Por um lado, sem eles mexendo
na panela e excitanto o romantismo irracional, a Causa poderia facilmente ter morrido antes de
Culloden. Por outro... era por causa deles que os campos de batalha — e aqueles que haviam
morrido lá — eram lembrados.
Antes que eu pudesse pensar muito profundamente naquele assunto, entretanto, Jamie
interrompeu meus pensamentos, ociosamente colocando seu pênis para um dos lados.
— Os mestres me fizeram aprender a escrever com a mão direita — ele comentou — mas
por sorte não ocorreu a ninguém me forçar a abusar de mim mesmo desta forma também.
— Por que chamar desta forma? — Eu perguntei, rindo. — Abusar de si mesmo, quero
dizer.
— Bem, “masturbar-se” soa muito mais perverso, não? E se você está abusando de si
mesmo, soa menos como se você estivesse se divertindo.
— Forte, durável, duradouro — Eu citei, pegando o objeto em questão suavemente. —
Talvez Alasdair estivesse falando de uma luva de couro?
— Vigoroso e poderoso ele até pode ser, Sassenach, e certamente alegre... mas eu vou te
dizer uma coisa... ele não vai se levantar três vezes numa mesma noite. Não na minha idade.
Desatando minha mão, ele rolou, envolvendo-me como uma colher diante dele, e em
menos de um minuto, nós estávamos dormindo.
Quando eu acordei, ele já tinha partido.
145 – VISITA A UM JARDIM ASSOMBRADO
Eu sabia. Do momento em que eu acordei com o canto dos pássarios e uma colcha fria ao meu
lado, eu sabia. Jamie frequentemente se levantava antes do amanhecer, para caçar, pescar ou
para viajar — mas ele invariavelmente me tocava antes de partir, deixando-me com uma
palavra ou um beijo. Nós tínhamos vivido por tempo suficiente para saber como a vida poderia
ser arriscada e quão rapidamente as pessoas poderiam se separar para sempre. Nós nunca
falávamos disso ou o fazíamos de maneira formal, mas quase nunca nos separávamos sem um
breve sinal de afeto.
E agora ele tinha saído no escuro, sem uma única palavra.
— Seu maldito! Maldito homem! — Eu disse, e bati o punho no chão, frustrada.
Eu desci a colina, as colchas dobradas sob meu braço, furiosa. Jenny. Ele tinha ido falar
com Jenny. É claro que sim; como eu não tinha previsto isso?
Ele tinha concordado em não me perguntar. Ele não tinha dito que não perguntaria a outra
pessoa. E embora Jenny claramente me amasse, eu nunca tive qualquer ilusão sobre onde estava
a sua lealdade. Ela não contaria voluntariamente o meu segredo, mas se o seu irmão
perguntasse, à queima-roupa, ela certamente contaria a ele.
O sol estava espalhando o calor como mel sobre a manhã, mas nada dele estava chegando
aos meus ossos frios.
Ele sabia. E ele tinha saído para caçar.
Eu não precisava, mas olhei mesmo assim. O rifle de Jamie tinha sumido de seu lugar atrás da
porta.
— Ele veio mais cedo — Amy Higgins disse, passando uma tigela de mingau para mim. —
Nós todos ainda estávamos na cama, mas ele chamou baixinho e Bobby se levantou para
destrancar a porta. Eu teria o alimentado, mas ele disse que estava bem e partiu. Foi caçar, ele
disse.
— É claro — Eu disse. A tigela estava quente em minhas mãos e, apesar do que eu pensava
(ou melhor, do que eu sabia) que estava acontecendo, o cheiro espesso dos grãos era muito
atraente. E havia mel, e um pouco de creme que sobrara da fabricação de manteiga; Amy
permitia isso em deferência ao gosto inglês de Bobby, embora ela se prendesse ao fato de
colocar sal no mingau, como era o costume escocês.
Comer me acalmou, um pouco. O fato contundente de que não havia absolutamente nada
que eu pudesse fazer. Eu não sabia o nome do gordo nojento ou onde ele vivia. Jamie talvez
soubesse. Se ele tivesse conversado com Jenny imediatamente, ele poderia facilmente ter
enviado uma nota para o posto comercial dos Beardsley e perguntado quem era o homem gordo
que tinha uma mancha de vinho no rosto. Mesmo que ele ainda não soubesse e estivesse a
caminho de descobrir, eu não tinha meios de alcançá-lo — quanto mais de impedi-lo.
Um homem das Highlands não pode conviver com um homem que estuprou sua mulher, e
nem deveria. Era o que Jenny tinha dito a mim. Era um aviso, eu agora percebia.
— Gak! — Era o pequeno Rob, cambaleando pelo quarto, que agarrou minha saia com
ambas as mãos e estava me dando um sorriso com dentes, todos os quatro — Fome!
— Olá — Eu disse, sorrindo de volta, apesar de minha inquietação. — Você está com fome?
— Eu estendi uma pequena colher de mingau com mel em sua direção, e ele foi até ela como
uma piranha esfomeada.
Nós compartilhamos o restante da tigela em um silêncio amistoso — Rob não era uma
criança tagarela — e eu decidi que trabalharia no jardim naquele dia. Eu não queria me afastar
muito, como Rachel poderia entrar em trabalho de parto a qualquer momento, aparentemente.
E um curto período de solidão em meio à companhia suave do reino vegetal podia me emprestar
um pouco da muito necessária calma.
Isso também me tiraria da cabana, eu refleti, quando Rob, após lamber a tigela, entregou-
a de volta para mim, cambaleou pela cabana e, levantando suas vestes, mijou na lareira.
Haveria uma horta perto da nova casa. Isso já tinha sido planejado e medido, a terra tinha sido
revirada e postes para a cerca de veados tinham começado a se acumular. Mas não havia sentido
caminhar àquela distância todos os dias para cuidar de uma horta se ainda não havia uma casa
na qual morar. Eu cuidava da horta de Amy naquele meio tempo, plantando sementes e
propágulos entre os repolhos e nabos, mas hoje eu queria visitar o Antigo Jardim.
Era como as pessoas de Ridge o chamavam, e elas não iam até lá. Eu o chamava em
particular de Jardim de Malva, e fui.
Era numa pequena elevação atrás de onde a Casa Grande constumava ficar. Com a nova
casa já em mente, eu passei pelo ponto onde a Casa Grande ficava sem o menor escrúpulo. Havia
coisas mais exigentes sobre as quais ter escrúpulos, eu pensei, e ri.
— Você está ficando louca, Beauchamp — Murmurei, mas me senti melhor.
A cerca de veado tinha se inclinado e quebrado em diversos pontos, e os cervos
naturalmente tinham aceito o convite. A maior parte dos bulbos tinham sido pisoteados e
comidos e, embora algumas plantas mais suaves, como as alfaces e os rabanetes, tivessem
escapado por tempo suficiente para se propagarem, os brotos tinham sido mordiscados e
reduzidos a caules cheios de cicatrizes brancas. Mas uma rosa selvagem cheia de espinhos
estava florescendo num dos cantos, vinhas de pepino rastejavam pelo chão e uma grande
parreira de abóboras se ondulava sobre uma parte desmoronada da cerca, cheia de frutos
jovens.
E uma monstruosa erva-tintureira crescia no centro do caminho, com quase três metros
de altura, seu caule grosso e avermelhado suportando uma grande variedade de folhas verdes
e centenas de hastes florais vermelho-arroxeadas. As árvores próximas tinham crescido
imensamente, protegendo-a e, à luz difusa, os caules longos e atarracados pareciam-se com
nudibrânquios, aquelas lesmas do mar coloridas, gentilmente agitando-se nas correntes de
vento em vez das correntes de água. Eu a toquei respeitosamente enquanto passava; ela tinha
um cheiro estranhamente medicinal, o que era bom. Havia um grande número de coisas úteis a
se fazer com erva-tintureira, mas comê-la não era uma delas. O que queria dizer que as pessoas
até podiam se alimentar de suas folhas, mas as chances de um envenenamento acidental não
valiam à pena a preocupação da preparação, a menos que não houvesse mais nada para comer.
Eu não conseguia me lembrar do ponto exato onde ela tinha morrido. Onde a erva-
tintureira havia crescido? Aquilo seria totalmente pertinente, mas talvez poético demais.
Malva Christie. Uma mulher estranha e machucada, mas que eu amava. Que talvez também
me amasse, da melhor forma que podia. Ela estava grávida e quase prestes a ter a criança
quando seu irmão — o pai da criança — cortara sua garganta, ali no jardim.
Eu a encontrara momentos depois e tentara salvar o bebê, fazendo uma cesariana de
emergência com a minha faca de jardinagem. Ele estava vivo quando o tirei da barriga de sua
mãe, mas morreu logo em seguida, a breve chama da vida passando como um brilho azulado
em minhas mãos.
Alguém tinha lhe dado um nome?, eu me perguntei de repente. Eles tinham enterrado o
bebê junto com Malva, mas eu não me lembrava de alguém ter mencionado seu nome.
Adso veio me perseguindo através do mato, os olhos atentos em um pássaro gordo que
estava ocupado com os vermes num dos cantos. Eu me mantive quieta, observando, admirando
a forma ágil em que ele se afundava imperceptivelmente enquanto se aproximava, rastejando
em sua barriga nos últimos poucos metros, parando, movendo-se, parando mais uma vez por
um segundo longo e enervante, nada além da ponta de sua cauda se movendo.
E então ele se movimentou, rápido demais para os olhos verem, e em uma breve e
silenciosa explosão de penas, tudo estava terminado.
— Muito bem, gato — Eu disse, embora a violência repentina tivesse me assustado um
pouco. Ele não prestou atenção, mas saltou através de um ponto baixo da cerca, a presa em sua
boca, e desapareceu para aproveitar sua refeição.
Eu fiquei parada por um momento. Eu não estava procurando por Malva; as pessoas de
Ridge diziam que seu fantasma assombrava o jardim, chorando por seu filho. Exatamente o tipo
de coisa que eles pensariam, eu imaginei, impiedosamente. Eu esperava que seu espírito tivesse
partido e estivesse em paz. Mas não podia evitar pensar, também, em Rachel, tão diferente na
alma, mas uma jovem mãe, tão perto de dar à luz, e tão próxima de mim.
Minha antiga faca de jardinagem tinha se perdido há muito tempo. Mas Jamie fizera uma
nova para mim durante as noites de inverno em Savannah, o cabo feito de osso de baleia, e
modelado, como a última, para caber exatamente em minha mão. Eu a peguei da bainha em meu
bolso e cortei meu pulso, sem parar para pensar.
A cicatriz branca na base de seu polegar tinha sumido, nada além de uma fina linha, quase
perdida entre as linhas que marcavam a minha palma. Ainda era legível, entretanto, se você
sabia o que procurar: a letra “J” que ele tinha cortado em minha carne antes de Culloden.
Alegando que eu era dele.
Eu massageei a carne perto do corte gentilmente, até que uma gota vermelha escorreu
pela lateral de meu pulso e caiu no chão, aos pés da erva-tintureira.
— Sangue pelo sangue — eu disse, as palavras tranquilas em si, mas parecendo afogadas
pelo farfalhar das folhas ao redor. — Descanse em paz, criança, e não machuque a ninguém.
Não machuque a ninguém. Bem, você tentou. Como médica, como amante, como mãe e como
esposa. Eu me despedi silenciosamente do jardim e subi a colina, em direção à cabana dos
MacDonalds.
Como Jamie faria isso? Eu comecei a pensar, e fiquei surpresa ao descobrir que eu estava
pensando nisso e de forma puramente desapaixonada. Ele tinha levado o rifle. Será que ele
atingiria o homem de alguma distância, como se ele fosse um veado tomando água? Um tiro
limpo, e o homem morto antes mesmo de perceber.
Ou ele sentiria a necessidade de confrontar o homem, de dizer a ele o motivo de ele estar
prestes a morrer — oferecendo uma chance para que ele lutasse por sua vida? Ou ele apenas
caminharia até ele com o rosto frio da vingança, não diria nada e mataria o homem com as
próprias mãos?
Você não pode ter sido casada com um homem das Highlands por tanto tempo sem saber a
intensidade com a qual eles odeiam.
Eu realmente não queria saber.
Ian tinha atirado em Allan Christie com uma flecha, como alguém faria com um cão
raivoso, e precisamente por razões semelhantes.
Eu tinha visto o ódio de Jamie brilhar intensamente na noite em que ele tinha me
resgatado e dito aos seus homens: “Matem todos”.
Como era agora para ele? Se o homem tivesse sido encontrado naquela noite, era
inquestionável que ele morreria. Seria diferente agora, apenas por que o tempo passou?
Eu caminhei pelo sol, mas ainda me sentia fria, as sombras do Jardim de Malva comigo. A
questão estava fora das minhas mãos; não era mais problema meu, mas de Jamie.
Eu encontrei Jenny no caminho, subindo rapidamente, um cesto em seu braço e o rosto aceso
pela emoção.
— Já? — Eu exclamei.
— Sim, Matthew MacDonald desceu há cerca de meia hora para dizer que sua bolsa
estourou. Ele foi encontrar Ian.
Ele tinha achado Ian; nós encontramos os dois jovens homens na porta da cabana,
Matthew brilhando e corado de alegria, Ian branco como uma folha de papel sob suas roupas. A
porta da cabana estava aberta; eu podia ouvir o murmúrio de vozes femininas lá dentro.
— Mãe — Ian disse rouco, ao ver Jenny. Seus ombros, enrijecidos pelo terror, relaxaram
um pouco.
— Não se preocupe, a bhalaich — ela disse, confortando-o, e sorriu de forma simpática
para ele. — Sua tia e eu já fizemos isso uma vez ou duas. Vai ficar tudo bem.
— Vovó! Vovó! — Eu me virei para encontrar Germain e Fanny, ambos cobertos de terra
e com gravetos e folhas em seus cabelos, os rostos brilhando de excitação. — É verdade? A
Rachel vai ter o bebê? Podemos assistir?
Como aquilo acontecia?, eu pensei. As notícias nas montanhas pareciam viajar pelo ar.
— Assistir, imagine só! — Jenny exclamou, escandalizada. — Um parto não é local para
um homem. Vá para fora!
Germain pareceu dividido entre o desapontamento e o prazer por ser chamado de
homem. Fanny pareceu esperançosa.
— Eu não s-sou um homem — Ela disse.
Jenny e eu olhamos com dúvida para ela e depois uma para a outra.
— Bem, você também não é uma mulher ainda, não é? — Jenny disse a ela. Se não, ela
estava perto. Pequenos seios começavam a aparecer quando ela estava apenas com a
combinação, e sua menarca estava próxima.
— Eu já vi bebês nascendo — Era uma simples declaração de um fato, e Jenny assentiu
lentamente.
— Sim. Tudo bem, então.
Fanny ficou radiante.
— E o que nós fazemos? — Germain exigiu, indignado. — Nós, homens.
Eu sorri, e Jenny deu uma risada profunda, que era mais antiga que o tempo. Ian e Matthew
pareceram assustados, Germain bastante surpreso.
— Seu tio fez sua parte cerca de nove meses atrás, rapaz, assim como você o fará quando
chegar a hora. Agora, você e Matthew vão levar seu tio para longe daqui e embebedá-lo, sim?
Germain assentiu seriamente e se virou para Ian.
— Você quer o vinho de Amy, Ian, ou nós devemos ir buscar o bom uísque do vovô?
O rosto longo de Ian se contorceu, e ele olhou para a porta aberta da cabana. Um grunhido
profundo, não exatamente um gemido, veio de lá de dentro e ele desviou o olhar, empalidecendo
ainda mais. Ele engoliu e tateou na bolsa de couro que usava ao redor da cintura, tirando dali o
que parecia uma pele de animal e entregando-a para mim.
— Se... — ele começou, depois parou para se recompor e começou de novo. — Quando o
bebê nascer, você pode envolvê-lo, ou envolvê-la — ele adicionou rapidamente — nisso?
Era uma pele pequena, suave e flexível, bastante fina e em tons de cinza e branco. Um lobo,
eu pensei, surpresa. Era a pele de um filhote de lobo natimorto.
— É claro, Ian — Eu disse, e apertei seu braço. — Não se preocupe. Ficará tudo bem.
Jenny olhou para a pele pequena e macia e balançou a cabeça. — Eu duvido, rapaz, que
isso cobrirá metade do seu bebê. Não viu o tamanho da sua esposa ultimamente?
146 – E VOCÊ SABE DISSO
Jamie voltou para casa três dias mais tarde, com um grande cervo amarrado à sela de Miranda.
O cavalo parecia pouco entusiasmado com isso, embora tolerante, e ela soltou ar pelas narinas
e estremeceu quando ele tirou a carcaça dali de cima, deixando-a cair com um baque.
— Sim, moça, você foi ótima — ele disse, batendo em seu flanco. — Ian está por aqui, a
nighean? — Ele parou para me beijar brevemente, olhando colina acima em direção à cabana
dos MacDonalds. — Seria bom ter ajuda com isso.
— Oh, ele está aqui — Eu disse, sorrindo. — Eu não sei se ele vai tirar a pele do veado para
você, entretanto. Ele tem um novo filho e não consegue tirá-lo da vista.
O rosto de Jamie, embora cansado e desgastado, se quebrou num sorriso.
— Um filho? Que as bênçãos de Santa Brígida e do Arcanjo Miguel recaiam sobre ele! Um
rapaz grande?
— Muito! — Eu assegurei a ele. — Acho que ele deve pesar quase cinco quilos.
— Pobre moça — ele disse, com uma careta de simpatia. — E é o seu primeiro filho. A
Rachel está bem, certo?
— Está cansada e dolorida, mas está bastante bem — Assegurei a ele. — Posso trazer um
pouco de cerveja enquanto você cuida do cavalo?
— Uma boa esposa é mais valiosa do que os rubis. — Ele disse, sorrindo. — Venha para
mim, mo nighean donn.
Ele esticou um longo braço e me puxou para mais perto, segurando-me contra si. Eu
coloquei os meus braços ao redor dele e senti o tremor de seus músculos exaustos, e a força
árdua que ainda permanecia nele, que o mantinha, não importava quão cansado ele estivesse.
Nós ficamos parados de pé por algum tempo, minha bochecha contra seu peito e seu rosto
contra meus cabelos, pegando força um do outro para o que estava por vir. Sendo um casal.
Em meio à alegria geral e a confusão por causa do bebê — que ainda estava sendo chamado de
Oggy, seus pais ainda não tendo escolhido um nome — a limpeza do cervo, e o banquete
subsequente, que durou até a noite, era o final da manhã do dia seguinte quanto conseguimos
ficar a sós novamente.
— A única coisa que faltou na noite passada foi o licor de cereja — Eu comentei. — Eu
nunca vi tantas pessoas bebendo tanto e de tantas coisas diferentes.
Nós estávamos caminhando — lentamente — até o nosso terreno, carregando várias
bolsas de pregos, uma pequena serra muito cara e uma planta que Jamie trouxera na noite
passada, além do veado.
Jamie fez um som baixo de divertimento, mas não respondeu. Ele parou por um momento
para olhar ao local, presumivelmente visualizando o contorno do que seria nossa casa.
— Você acha que talvez ela devesse ter um terceiro andar? — Ele perguntou. — As
paredes poderiam suportar com facilidade. Se nós tomássemos cuidado com a construção das
chaminés, quero dizer, mantendo-as aprumadas.
— Precisamos de tantos quartos assim? — Perguntei em dúvida. Certamente houvera um
tempo na casa antiga em que eu gostaria de ter tantos quartos assim: influxos de visitantes,
novos emigrantes, ou refugiados que frequentemente preenchiam o local ao ponto da exaustão
(minha). — Ter mais espaço pode encorajar os hóspedes a virem.
— Você faz parecer como se eles fossem formigas brancas, Sassenach.
— O que... Ah! Cupins. Bem, sim, há uma forte semelhança superficial.
Chegando à clareira, eu empilhei os pregos convenientemente e fui lavar meu rosto e
minhas mãos na água da pequena fonte que fluía das rochas um pouco acima da colina. Quando
voltei, Jamie tinha tirado sua camisa e estava montando dois cavaletes. Eu não o via sem camisa
há um longo tempo e parei para apreciar a vista. Além do simples prazer em ver seu corpo se
flexionando e se movimentando, os feixes musculares se movendo facilmente sob sua pele, eu
gostava de saber que ele se sentia seguro ali e podia ignorar as suas cicatrizes.
Eu me sentei num balde virado de ponta cabeça e o observei por um tempo. As batidas do
martelo temporariamente silenciaram os pássaros e, quando ele parou e colocou o cavalete de
pé, o ar ficou vazio em meus ouvidos.
— Eu gostaria que você não sentisse que precisava fazer isso — Eu disse baixinho.
Ele não respondeu por um momento, mas franziu os lábios enquanto se agachava e pegava
mais alguns pregos.
— Quando nós nos casamos... — ele disse, sem olhar para mim. — Quando nos casamos,
eu disse a você que lhe daria a proteção de meu nome, de meu clã... e de meu corpo. — Ele ficou
de pé e olhou para mim, sério. — Você está me dizendo agora que não quer mais isso?
— Eu... não — Eu disse abruptamente. — Eu só... Eu só queria que você não o tivesse
matado, é só isso. Eu... Eu consegui perdoá-lo. Não era uma coisa fácil, mas eu consegui. Não
permanentemente, mas eu pensei que eu poderia fazê-lo, mais cedo ou mais tarde.
Sua boca se torceu um pouco.
— E se você o perdoasse, ele não precisaria morrer, é isso? É como um juiz deixando um
assassino em liberdade, porque a família de sua vítima o perdoou. Ou um soldado inimigo
liberado com todas as suas armas.
— Eu não sou um estado de guerra, e você não é o meu exército!
Ele começou a falar, depois parou um pouco, procurando em meu rosto, os olhos atentos.
— Eu não sou? — Ele disse baixinho.
Eu abri minha boca para responder, mas descobri que não poderia. Os pássaros tinham
voltado, e um bando de tentilhões ciscavam aos pés de um grande abeto que crescia ao lado da
clareira.
— Você é — Eu disse relutantemente, e, ficando de pé, passei os braços ao redor dele. Ele
estava quente por causa do trabalho, e as cicatrizes em suas costas eram finas como linhas sob
os meus dedos. — Eu gostaria que você não tivesse que ser.
— Sim, bem — ele disse, e me abraçou apertado.
Depois de um tempo, nós caminhamos de mãos dadas até a maior pilha de madeira e nos
sentamos. Eu podia sentir que ele estava pensando, mas estava contente em esperar até que ele
formasse em sua mente o que queria me dizer. Não demorou muito. Ele se virou para mim e
pegou minhas mãos, formal como um homem prestes a dizer os votos de seu casamento.
— Você perdeu seus pais muito jovem, mo nighean donn, e vagou pelo mundo, sem raízes.
Você amou Frank — Sua boca se comprimiu por um instante, mas eu pensei que ele não
estivesse consciente disso — e é claro que você ama Brianna e Roger Mac e as crianças... mas,
Sassenach... Eu sou o verdadeiro lar do seu coração, e eu sei disso.
Ele levantou minhas mãos até sua boca e beijou minhas palmas, uma e depois a outra, seu
hálito quente e sua barba macia em meus dedos.
— Eu já amei muitos, e ainda amo tantas outras pessoas, Sassenach... mas é só você que
tem o meu coração, completamente em suas mãos — ele disse suavemente. — E você sabe disso.
Nós trabalhamos durante todo o dia, Jamie montando as pedras da fundação, eu cavando o novo
jardim e forrageando na floresta, trazendo erva-diurética e cimicífuga, menta e gengibre
selvagem para transplantar.
Por volta do fim da tarde, nós paramos para comer; eu tinha levado queijo e pão, além de
maçãs, na minha cesta e tinha colocado duas garrafas de cerveja na nascente para mantê-las
geladas. Nós nos sentamos na grama, e nos inclinamos para trás contra uma pilha de madeira
sombreada pelo grande abeto, cansados e comendo em um silêncio amigável.
— Ian disse que Rachel virá amanhã para ajudar — Jamie disse por fim, comendo
parcimoniosamente o centro de sua maçã. — Você vai comer a sua, Sassenach?
— Não — Eu disse, entregando a ele. — As sementes de maçã contêm cianeto, sabe?
— Isso vai me matar?
— Não matou até agora.
— Bom. — Ele arrancou a haste e comeu o núcleo. — Eles já chegaram a um consenso
sobre o nome do garoto?
Eu fechei meus olhos e me inclinei para trás, na sombra do grande abeto, aproveitando
seu cheiro intenso e aquecido pelo sol.
— Hum. Da última vez que eu ouvi, Rachel estava sugerindo Fox, em homenagem a George
Fox, sabe; ele é o fundador da Sociedade dos Amigos, mas naturalmente eles não chamariam o
bebê de George, por causa do rei. Ian disse que ele não gosta muito de raposas, entretanto. E
quanto a Wolf, em vez disso?
Jamie fez um ruído escocês meditativo.
— Sim, nada mal. Pelo menos ele não está querendo chamar o menino de Rollo.
Eu ri, abrindo meus olhos.
— Você realmente acha que é isso que ele tem em mente? Eu sei que as pessoas colocam
nas crianças os nomes de seus parentes ancestrais, mas nomear um filho em homenagem ao
seu antigo cachorro...
— Sim, bem — Jamie disse judiciosamente. — Ele era um bom cachorro.
— Bem, sim, mas... — Um movimento do outro lado da enseada capturou meu olhar.
Pessoas vindo pela estrada das carroças. — Olhe, quem é? — Havia quatro pequenos pontos se
movendo, mas à distância eu não conseguia saber muito mais do que isso sem os meus óculos.
Jamie colocou a mão sobre os olhos, espiando.
— Ninguém que eu conheça — ele disse, soando suavemente interessado. — Parece uma
família, entretanto, porque tem um casal de crianças. Talvez sejam pessoas novas, querendo se
estabelecer aqui. Eles não têm muitos bens, entretanto.
Eu estreitei os olhos; eles estavam mais próximos agora, e eu podia perceber a
disparidade de altura. Sim, um homem e uma mulher, ambos usando chapéus de aba larga,
juntamente com um menino e uma menina.
— Veja, o menino tem cabelo ruivo — Jamie disse, sorrindo e erguendo o queixo para
apontar. — Ele me lembra Jem.
— Parece mesmo. — Curiosa agora, eu me levantei e procurei minha cesta, encontrando
o pedaço de seda no qual eu mantinha meus óculos quando não os estava usando. Eu os coloquei
e me virei, satisfeita como sempre por poder ver pequenos detalhes surgindo de repente.
Sutilmente menos satisfeita ao ver que o que eu pensava ser uma casca de madeira perto de
onde eu estava sentada era, de fato, uma enorme centopeia, desfrutando da sombra.
Eu voltei minha atenção aos recém-chegados, entretanto; eles tinham parado — a
garotinha derrubou alguma coisa. Sua boneca, eu podia ver os cabelos da boneca, uma mancha
de cor no chão, mais vermelhos do que os do garoto. O homem estava usando um casaco e a
mulher tinha uma grande mala sobre um ombro. Ela a pousou e se inclinou para pegar a boneca,
espanando-a e entregando de volta à sua filha.
A mulher se virou, então, para falar com o marido, esticando o braço para apontar para
alguma coisa — a cabana dos Higgins, imaginei. O homem colocou ambas as mãos sobre a boca
e gritou, e o vento carregou suas palavras para nós, suaves, mas claramente audíveis, em uma
voz forte e meio rachada.
— Ô de casa!
Eu fiquei de pé, e Jamie levantou-se e pegou minha mão, com força o suficiente para deixar
um hematoma em meus dedos.
Movimentos na porta da cabana, e uma pequena figura que eu reconheci como Amy
Higgins apareceu. A mulher alta tirou o chapéu e acenou, seus cabelos longos e ruivos fluindo
como uma bandeira ao vento.
— Ô de casa! — Ela gritou, rindo.
E então eu estava voando colina abaixo, com Jamie logo atrás de mim, os braços abertos,
nós dois voando juntos no mesmo vento.