2020 JanainaLopesPereiraPeres
2020 JanainaLopesPereiraPeres
Brasília
2020
Janaina Lopes Pereira Peres
Brasília
2020
FICHA CATALOGRÁFICA
COMO CITAR:
_____________________________________________
Janaina Lopes Pereira Peres
Brasília
2020
Aos que não fecham nem os olhos nem os ouvidos
Aos que se aventuram para além das fronteiras
Aos inconformados
Aos que acreditam que pela cultura,
pela arte e pela aprendizagem coletiva, beiramos a felicidade.
AGRADECIMENTOS
OBRIGADA.
Em primeiríssimo lugar, a todxs aquelxs que eu encontrei no campo. Agradeço pelo respeito a
minha presença estrangeira, por terem aceitado meu olhar e meu julgamento sobre seus
corpos, sobre suas palavras, sobre seus afetos e sobre seu território, por terem se aberto à
alteridade e por terem me permitido fazer parte, durante estes quatro anos, desta experiência
pública, que não apenas permitiu a construção coletiva de conhecimento novo, mas minha
própria reconstrução, enquanto pessoa e enquanto pesquisadora. Agradeço, em especial, aos
meus grandes e importantes parceiros no processo coletivo de construção desta pesquisa – os
praticantes do Movimento Hip Hop da Ceilândia. Em especial, ao Edson, que me abriu todas
as portas, ao Japão, à Dani, ao Jamaika, ao Papel, ao Rivas, à Jane, ao Ravel, ao Max, à
Rayane, ao Rodrigo, à Wemmia, ao Wan, à Realleza... E à Ceilândia.
Ao Bessa, que mergulhou em uma jornada de seis anos ao meu lado e que jamais caberá na
caixinha de ‘orientador’. Nenhum agradecimento estará à altura dos seus ensinamentos, das
suas boas energias, da sua alegria, do seu respeito por minha trajetória, do seu apoio às
minhas ideias confusas e de seu esforço para compreendê-las e torná-las compreensíveis, do
seu acolhimento, das suas dicas de arte e da sua companhia sempre agradável, inspiradora e
revigorante. A ele e a toda sua família (e, em especial, à Marcinha), que me deu café, almoço
e jantar, que me deu sorrisos dos mais genuínos e que me deu abraços dos mais carinhosos.
À Zana, que também não cabe em caixas, que chegou para nos virar ao revés. Quem, em tão
pouco tempo, nos deu tanto, nos ampliou, nos enriqueceu, nos inspirou. Que sorte a minha tê-
la encontrado..., com seus livros, com seus discos, com seus legumes ao curry, com sua
generosidade, com sua bibliografia radicalmente transformadora, com sua rede de
pesquisadores, com Pietro e com tantos amigos que herdei..., com sua força e energia tão
produtiva e produtora, de artigos e de vida. Agradeço pela confiança, pela exigência, pelo
rigor intelectual, pela disponibilidade e pela humanidade, qualidades que nos permitiram tão
sólida parceria.
À minha família. À minha mãe, que é meu guia e meu empuxo: quem se reconstrói e se
reinventa, diariamente, pra viver melhor no mundo e pra ser melhor pro mundo enquanto,
pelo exemplo, nos ensina a fazer o mesmo. À minha irmã, minha melhor metade e meu Exu,
há 35 anos me abrindo os caminhos. E ao meu pai, pelo incentivo à entrada no mundo mágico
da leitura. Sem eles, eu não seria.
Ao Juan e ao Marcos, que nunca duvidaram da riqueza e da importância desse percurso e que,
pelo caminho do amor, cada um em seu tempo, me tornaram um pouco melhor.
Ao Cadu e à Nanda, com quem construí uma amizade perene, nos dias + dias em sala de aula,
almoços + almoços no RU, tardes + tardes no café das letras, noites + noites de garrafas de
vinho e fatias de pizza na Baixa Asa Norte (vocês fazem falta!).
À Lara, minha guru acadêmica, meu pau pra toda obra, minha parceira de jobs e congressos,
minha companheira de gins e cafés: a melhor academic-coach que uma virginiana-doutoranda
poderia ter. E à Ana Paula Antunes Martins – ouvido para os meus desabafos, voz sensata para a
minha consciência e fonte infindável de risadas e de saber.
Ao meu grupo de pesquisa, com todos os seus agregados – Zana, Bessa, Ana Paula, Renata,
Jéssica, Grazy, Vic, Cadu, Camilla, Nara, Maísa, Léo, Ives, Gustavo, Rafa, Natália, Carol,
Gabriel, Leti, Flávio, Duda, Bella – minha quasi-família, meu porto-seguro afetivo e
intelectual, em Brasília, meu principal lócus crítico-reflexivo. À Escola Livre em Gestão
Social. À Rede de Pesquisadores em Gestão Social. Ao Núcleo de Estudos Urbanos e
Regionais – NEUR (UnB).
Às professoras Magda de Lima Lúcio, Fátima Makiuchi e Sayonara Leal, que tanto
contribuíram em minha qualificação de projeto de tese. E ao Professor Daniel Cefaï, que
aceitou se juntar a esse poderoso grupo de mulheres, para engrandecer, ainda mais, a banca, o
trabalho e nossas ideias, para pesquisas futuras.
A todos os amigos e colegas que encontrei na UnB, essa universidade linda e diversa. Em
especial à Cyntia Sandes, ao Rodrigo Mota, à Rebecca, ao Leandro (de Carvalho), à Antia, à
Ana Luísa, Ao Luís, à Layla, à Luciana Guedes, à Sued, à Nair. E aos amigos que fiz fora dela
e que conseguiram me fazer esquecer, mesmo que por poucas horas, da tese: Kilton, Dona
Ísis, Dani Naves, André Cherin, Dani Costa, Tarsila, Rosana e Lari.
À prática de jiu jitsu e aos forrós de quinta-feira, que, há tantos anos, me mantem sã e feliz. Aos
‘Bolsistas Capes’, que tornam os dias de trabalho e os de procrastinação mais leves. Ao libgen e
ao sci.hub, que, hackeando o sistema, nos garantem livre acesso ao conhecimento.
‘Quando as ruas chamam’, poema de Cacá Poeta transformado em rap por ocasião do 3º
Festival Nacional de Breaking Quando as Ruas Chamam (Ceilândia/DF)
(...) os outros somos nós mesmos. Como o rapaz que habitava os livros, nós passamos a
encontrar uma luz interior num acto de revelação que se diz nocturno. Inverte-se então a
relação entre a criatura e o criador: somos nós que somos lidos. E é por isso que estes
contos, mais do que gigantescos, não têm tamanho.
Mia Couto
No man and no mind was ever emancipated merely by being left alone.
John Dewey
RESUMO
Esta tese apresenta um modo de interpretar ‘políticas públicas’, que se concentra em vê-las como
fluxos multiatoriais, multidirecionais, multidimensionais, multiescalares e, sobretudo, multissensoriais.
Trata-se de um olhar que pressupõe disposição e capacidade imaginativa (para ver coisas conhecidas
sob nova luz). Pressupõe, ainda, valorizar a dimensão estética e processual das políticas públicas, em
lugar de concentrar-se em sua dimensão material – que nos leva a crer que são redutíveis ao objeto
resultante da ação de atores estatais ou de autoridades com poder decisório. Para reinterpretar políticas
públicas, porém, são necessárias novas lentes cognitivas, capazes de construir a visibilidade e a
inteligibilidade do que tem sido deixado, sistematicamente, de fora dos fluxos de políticas públicas: a
experiência. Fazemos isso por meio de um vai-e-vém teórico-metodológico experiencial: que
aproxima os estudos críticos em políticas públicas, do pragmatismo deweyano e da gestão social, em
busca de um pragmatismo crítico à brasileira; que intercala abdução, indução e dedução; que busca
aproximar, o máximo possível, o pensamento simbólico do pensamento sensível, com o intuito de
enriquecer o processo de produção de conhecimento e de reconhecer que ele é, inevitavelmente,
impregnado de valores e que se implica na experiência – por meio da escuta ativa em movimento, do
rastreamento-mapeamento de práticas e da pesquisa orgânica. Retrospectivamente, partimos de um
encantamento estético e perturbador, que fez emergir a intuição de que o movimento hip hop da
Ceilândia poderia ter algo importante a ensinar e que poderia ser reposicionado no campo de estudos
em políticas públicas. A partir disso, construímos o que uma ‘experiência pública’ pode ser e
projetamos um arcabouço analítico – construtivista em termos ontológicos, argumentativo em termos
epistemológicos, deontologicamente ancorado na gestão social, reflexivo no plano metodológico e
interpretativo no plano empírico. Por fim, utilizamos este arcabouço para reinterpretar o movimento
hip hop da Ceilândia como um produtor de argumentos e como uma experiência potencialmente
pública – uma parte essencial dos fluxos de políticas púlbicas. Concluímos que há muita coisa e muita
gente no mundo que segue invisibilizada ou marginalizado no mundo das políticas públicas e que há
muita experiência e muita expertise popular, local, situada (muitas vezes informal e improvisada)
sendo desperdiçada. Um olhar atento para experiências públicas – como é o caso do movimento hip
hop da Ceilândia – e sua relocalização no centro dos fluxos de políticas públicas têm o potencial de
gerar a força centrífuga necessária à expansão das fronteiras do campo e à inclusão de outros
elementos, outros atores e outros saberes no policy process. Apenas assim – pela experimentação
sensível de algo novo – seremos capazes de mudar de lugar, de encontrar novos equilíbrios e de
perseguir formas de desenvolvimento mais democráticas, pautadas em participação inclusiva e
irrestrita, arranjos que não assumam a democracia e a igualdade como fins, mas como processos de
experiência, como lugares-comuns de vida (DEWEY, 1998).
This thesis presents a way of interpreting 'public policies', which focuses on seeing them as
multiaactorial, multidirectional, multidimensional, multi-scale and, above all, multi-sensory flows. It is
a look that presupposes willingness and imaginative ability (to see things already known, in a new
light). It also presupposes valuing the aesthetic and procedural dimensions of public policies, instead
of focusing on its material dimension - which leads us to believe that they are reducible to the object
resulting from the action of state actors or authorities with decision-making power. To reinterpret
public policies, however, new cognitive lenses are necessary, capable of building the visibility and
intelligibility of what has been systematically left out of public policy flows: experience. We do this
by means of an experiential theoretical-methodological come-and-go: bringing together critical policy
studies, deweyan pragmatism and social management, in search of a critical pragmatism in a Brazilian
way; interspersing abduction, induction and deduction; seeking to bring symbolic thinking as close as
possible to sensitive thinking, in order to enrich the knowledge production process and to recognize
that it is inevitably impregnated with values; implicating ourselves into experience - through active
listening, tracking-mapping practices and organic research. Retrospectively, we started from an
aesthetic and disturbing enchantment, which gave rise to the intuition that the hip hop movement in
Ceilândia could have something important to teach and that it could be repositioned in the policy
studies field. From this, we develop what a 'public experience' can be and we design an analytical
framework - constructivist in ontological terms, argumentative in epistemological terms,
deontologically anchored in social management, methodologically reflective and interpretive in the
empirical level. Finally, we used this framework to reinterpret Ceilândia’s hip hop movement as a
producer of arguments and as a potentially public experience - an essential part of public policy flows.
We conclude that there is a lot of things and many people in the world that remain invisible or
marginalized in the world of public policies and that there is a lot of experiences and a lot of popular,
local, situated (often informal and improvised) expertise being wasted. A close look at public
experiences - such as Ceilândia's hip hop movement - and its relocation at the center of policy flows
has the potential to generate the centrifugal force necessary for the expansion of the policy field
borders and for the inclusion of other elements, other actors and other knowledge in the policy
processes. Through this path - sensibly experimenting something new - we will be able to change
places, find new balances and pursue more democratic forms of development, guided by inclusive and
unrestricted participation, arrangements that do not assume democracy and equality as ends, but as
experience processes, as commonplaces of life (DEWEY, 1998).
Keywords: public policies; critical policy studies; pragmatism; social management; public
experience; Ceilândia’s hip hop;
RESÚMEN
Esta tesis presenta una forma de interpretar las 'políticas públicas', que se enfoca en verlas como flujos
multiactoriales, multidireccionales, multidimensionales, multiescala y, sobre todo, multisensoriales. Es
una mirada que presupone la voluntad y la capacidad imaginativa (para ver las cosas conocidas bajo
una nueva luz). También presupone valorar la dimensión estética y procesal de las políticas públicas,
en lugar de centrarse en su dimensión material, lo que nos lleva a creer que son reducibles a los
objetos resultantes de la acción de los actores estatales o de autoridades con poder de decisión. Sin
embargo, para reinterpretar las políticas públicas, se necesitan nuevas lentes cognitivas, capaces de
construir la visibilidad e inteligibilidad de lo que se ha dejado sistemáticamente fuera de los flujos de
políticas públicas: la experiencia. Hacemos esto por medio de una experiencia teórico-metodológica
de va-y-viene: que reúne estudios críticos en políticas públicas, pragmatismo de Dewey y gestión
social, en busca de un pragmatismo crítico à la brasileña; que intercala abducción, inducción y
deducción; que busca acercar el pensamiento simbólico lo más posible al pensamiento sensible, para
enriquecer el proceso de producción de conocimiento y reconocer que este está inevitablemente
impregnado de valores; involucramonos en la experiencia, a través de la escucha activa en
movimiento, del seguimiento-mapeo de prácticas e de la investigación orgánica. Retrospectivamente,
partimos de un encanto estético e inquietante, que dio lugar a la intuición de que el movimiento hip
hop en Ceilândia podría tener algo importante que enseñar y que podría reposicionarse en el campo de
los estudios en políticas públicas. A partir de esto, construimos lo que puede ser una 'experiencia
pública' y diseñamos un marco analítico - constructivista en términos ontológicos, argumentativo en
términos epistemológicos, deontológicamente anclado en la gestión social, reflexivo en lo método e
interpretativo en el plano empírico. Finalmente, utilizamos este marco para reinterpretar el
movimiento hip hop de Ceilândia como un productor de argumentos y como una experiencia
potencialmente pública – una parte esencial de los flujos de políticas públicas. Concluimos que hay
muchas cosas y muchas personas en el mundo que permanecen invisibles o marginadas en el mundo
de las políticas públicas y que se desperdicia mucha experiencia y mucho conocimiento popular, local,
situado (y a menudo informal e improvisado). Una mirada cuidadosa a las experiencias públicas, como
el movimiento hip hop de Ceilândia, y su reubicación en el centro de los flujos de políticas públicas
tiene el potencial de generar la fuerza centrífuga necesaria para la expansión de las fronteras del
campo y la inclusión de otros elementos, otros actores y otros conocimientos en el proceso de
políticas. Solo de esta manera – a través de la experimentación sensible de algo nuevo –, podremos
cambiar de lugar, encontrar nuevos equilibrios y buscar formas más democráticas de desarrollo,
guiados por una participación inclusiva y sin restricciones, arreglos que no asuman la democracia y la
igualdad como fines, pero como procesos de experiencia, como lugares comunes de la vida (DEWEY,
1998).
Palabras clave: políticas públicas; estudios críticos; pragmatismo; gestión social; experiencia
pública; hip hop de Ceilandia;
RÉSUMÉ
Cette thèse présente une manière d'interpréter les «politiques publiques», qui vise à les considérer
comme des flux multiaactoriels, multidirectionnels, multidimensionnels, multi-échelles et surtout
multisensoriels. C'est un regard qui suppose la volonté et la capacité d'imagination (de voir les choses
déjà connues, sous un nouveau regard). Elle suppose également de valoriser les dimensions
esthétiques et procédurales des politiques publiques, au lieu de se focaliser sur sa dimension matérielle
- ce qui conduit à penser qu'elles sont réductibles à l'objet résultant de l'action d'acteurs d’État ou
d'autorités dotées d'un pouvoir de décision. Mais pour réinterpréter les politiques publiques, de
nouvelles lunettes cognitives sont nécessaires, celui qui est capables de construire la visibilité et
l'intelligibilité de ce qui a été systématiquement exclu des flux de politiques publiques: l'expérience.
Nous le faisons au moyen d'un va-et-vient théorico-méthodologique expérientiel: nous abordons des
études critiques en politiques publiques, le pragmatisme deweyan et la gestion sociale, à la recherche
d'un pragmatisme critique à la brésilienne; nous entremêlons l'abduction, l'induction et la déduction;
nous essayons de rapprocher, le plus possible, la pensée symbolique de la pensée sensible, afin
d'enrichir le processus de production des connaissances et de reconnaître qu'elle est inévitablement
imprégnée de valeurs; nous nous impliquons dans l'expérience - à travers de l'écoute active, le
tracking-mapping des pratiques et la recherche organique. Rétrospectivement, nous sommes partis
d'un enchantement esthétique et dérangeant, qui a donné lieu à l'intuition que le mouvement hip hop à
Ceilândia pouvait avoir quelque chose d'important à enseigner et qu'il pouvait être repositionné dans le
domaine des études en politiques publiques. À partir de là, nous développons ce qu'une « expérience
publique »' peut-être et nous concevons un cadre analytique - constructiviste en termes ontologiques,
argumentatif en termes épistémologiques, ancré déontologiquement dans la gestion sociale,
méthodologiquement réfléchissant et interprétatif au niveau empirique. Enfin, nous avons utilisé ce
cadre pour réinterpréter le mouvement hip hop de Ceilândia en tant que producteur d’arguments et en
tant qu’expérience potentiellement publique - une partie essentielle des flux de politiques publiques.
Nous concluons qu'il y a beaucoup de choses et beaucoup de gens dans le monde qui restent invisibles
ou marginalisés dans le monde des politiques publiques et qu'il y a beaucoup d'expériences et
beaucoup d'expertise populaire, locale, située (souvent informelle et improvisée) être gaspillé. Un
examen attentif des expériences publiques - telles que le mouvement hip hop de Ceilândia - et sa
relocalisation au centre des flux de politiques publiques ont le potentiel de générer la force centrifuge
nécessaire à l'expansion des frontières du champ et à l'inclusion d'autres éléments, d'autres acteurs et
d'autres connaissances dans les processus de politiques publiques. Par cette voie - expérimenter
sensiblement quelque chose de nouveau - nous fait changer de place, trouver de nouveaux équilibres et
poursuivre des formes de développement plus démocratiques, guidées par une participation inclusive
et sans restriction, des arrangements qui ne supposent pas la démocratie et l'égalité comme des fins,
mais comme des processus d'expérience, comme lieux communs de la vie (DEWEY, 1998).
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
B-BOY Breaking-boy
BH Belo Horizonte
CD Compact Disc
DF Distrito Federal
DJ Disk-jokey
MG Minas GErais
NY New York
PP Partido Progressista
RA Região Administrativa
RJ Rio de Janeiro
SP São Paulo
RESUMO...................................................................................................................... 032
ABSTRACT.................................................................................................................. 032
2.2.2Prática................................................................................................. 052
REFERÊNCIAS............................................................................................................ 058
RESUMO...................................................................................................................... 067
ABSTRACT.................................................................................................................. 067
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 068
4. O que uma ‘experiência pública’ pode ser (no campo de estudos em políticas
públicas)........................................................................................................................ 082
REFERÊNCIAS............................................................................................................ 090
RESUMO...................................................................................................................... 098
ABSTRACT.................................................................................................................. 098
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 099
RFERÊNCIAS.............................................................................................................. 128
RESUMO...................................................................................................................... 136
ABSTRACT.................................................................................................................. 136
RFERÊNCIAS.............................................................................................................. 164
ABSTRACT.................................................................................................................. 174
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 175
REFERÊNCIAS............................................................................................................ 208
POSFÁCIO.................................................................................................................. 222
REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 224
APÊNDICES
APÊNDICE A – CRÔNICA DE UMA EXPERIÊNCIA
ESTÉTICA........................................................................................................... 228
APÊNDICE B – MAPEAMENTO DE ATORES, GRUPOS, REDES,
COLETIVOS, PROJETOS E EVENTOS RELATIVOS AO MOVIMENTO
HIP HOP DA CEILÂNDIA................................................................................ 232
Quando cremos piamente na neutralidade científica, não faz diferença saber quem somos ou
quem escreve o que lemos. Entendo, porém, que o lugar de onde eu olho, de onde eu
interpreto e de onde eu falo influencia o que eu vejo, o que eu construo e como eu me
expresso. Os resultados desta pesquisa só são o que são em função de minhas posições, das
situações em que me coloquei, das experiências em que me engajei, das coisas que vi e senti e
das relações que pude construir. Assim, antes de introduzir esta tese, gostaria de me
introduzir. Nasci em Santa Catarina, filha de pais de ‘exatas’ – um engenheiro e uma química,
professora universitária. Cresci nas fronteiras, nos entre-lugares, em função de constantes
mudanças de escola, de bairro, de cidade, de estado e de país. Morei na Ásia e nos Estados
Unidos. Morei em um navio. E a cada pergunta sobre ‘de onde eu era’, aproveitava para
reconstruir meu discurso sobre mim. Nos trânsitos, percebi que somos simultaneamente
muitos e que nos tornamos outro a cada mudança de lugar. Percebi que nenhuma transição é
mera passagem suave e que ser estranho tem uma negatividade geradora de outros olhares, de
outras sensibilidades, de outras formas de saber, que emergem, justamente, do contato com o
diferente. Tive o privilégio de uma educação formal de qualidade e de ter sido iniciada no
mundo mágico da literatura, das artes e das cores muito cedo. Tive o privilégio de viajar e de
aprender outras línguas – códigos para decifrar outros mundos. Tive o privilégio de uma
família extremamente amorosa e presente, que me ensinou a duvidar e a ser empática.
Tive o privilégio de ingressar, e de ser bolsista, em uma das melhores universidades públicas
do país – a Universidade de Brasília –, para desenvolver pesquisas em nível de mestrado e de
doutorado. Mais uma vez na fronteira... mas, agora, entre campos científicos, em um
programa de pós-graduação multidisciplinar.
Quando ingressei no doutorado, orientada pelo Prof. Dr. Luiz Fernando Macedo Bessa, já
morava em Brasília há aproximadamente cinco anos e já tinha estado, ao menos uma vez e
por curiosidade, em quase todas as 31 Regiões Administrativas do Distrito Federal1. Mas
sempre fui “do plano”. Terminei minha dissertação de mestrado, sobre as relações entre
patrimonialização e desenvolvimento na cidade de Brasília – Patrimônio Cultural da
Humanidade, com a sensação de que precisava virar tudo o que eu pensava saber do avesso.
Precisava desaprender. Precisava transformar meu olhar e transformar meus trajetos.
No primeiro semestre do doutorado, em uma das disciplinas ofertadas pelo Prof. Dr. José
Walter Nunes, encontrei-me – nas páginas do livro ‘Se me deixam falar...’ (VIEZZER, 1981)
– com Domitila, uma mulher das minas da Bolívia, mãe de sete filhos, que acordava às 4h,
para fazer café e salteñas e complementar a renda do marido. Por meio de sua experiência e
de suas memórias, Domitila me ensinou sobre confiança e solidariedade, sobre desejos e
sensibilidades e sobre a fonte inesgotável de sabedoria e de fortaleza que é o povo. Ela
ensinou que nosso lugar no mundo é que nos educa a lutar. E, ao narrar como foi jogada, com
seus pertences e com seus filhos, em um caminhão, arrancada do seu lugar, ela provou que
entre os mineiros bolivianos e os candangos da Vila do IAPI pode haver muito em comum.
1
Com a criação da Região Administrativa do Sol Nascente, Brasília é atualmente constituída por 32 Regiões Administrativas
– RA.
22
INTRODUÇÃO GERAL
Ainda que a produção científica nacional, no campo das políticas públicas, apresente
crescimento quantitativo e venha incorporando, sobretudo a partir do início do século 21,
novos temas, novos atores e novos arranjos participativos – mobilizando teorias e modelos
diversos, como o de coalizões de defesa (SABATIER; JENKINS-SMITH, 1993), do
equilíbrio pontuado (BAUMGARTNER; JONES, 1991), de redes, comunidades e
subsistemas ou subgovernos (HECLO, 1978; HOWLETT; RAMESH, 1995; HAAS, 1992;
OSPINA-BOZZI, 1998), da teoria dos múltiplos fluxos decisórios (KINGDOM, 2003) e dos
sistemas complexos (LIPSKY, 1980; GRAU-SOLÉS et al.,2011) de wicked problems
24
De que são (ou deveriam ser) feitos os fluxos de políticas públicas? Que bases teóricas e
metodológicas nos auxiliam a construir a visibilidade e a inteligibilidade de experiências
estéticas no campo de estudos em políticas públicas? O que uma ‘experiência pública’ pode
ser? Que argumentos produzem? O que elas têm a nos ensinar? Que papéis podem
desempenhar? Quais são seus limites? Como desestabilizam e reorganizam os fluxos de
políticas públicas de modo a torná-los mais plurais, mais heterogêneos e, portanto, mais
representativos da sociedade brasileira e dos problemas sociais contemporâneos? Como
podem contribuir para democratizar a democracia? Para responder a estas perguntas –
derivadas do objetivo geral de reinterpretar o fluxo das políticas públicas a partir da
experiência –, organizamos esta tese em cinco artigos, que podem ser lidos de forma
independente, mas que são complementares. Nos três primeiros artigos, desenvolvemos os
caminhos teóricos, conceituais e metodológicos necessários à construção da visibilidade e da
inteligibilidade de ‘experiências públicas’ no campo de estudos em políticas públicas – a
partir dos critical policy studies, do pragmatismo deweyano e do paradigma da gestão social.
Nos dois últimos, utilizamos o arcabouço e as matrizes reflexivo-interpretativas que
construímos, para interpretar o movimento hip hop da Ceilândia.
25
Dedicamos todo o Artigo 3 à construção dessas lentes cognitivas. Ou seja, o desenho (ou
projetação) de um arcabouço – pautado em escolhas e pesquisa realizadas nos planos
ontológico, epistemológico, deontológico, metodológico e empírico – e de duas matrizes
analíticas que tem o objetivo de inspirar outros tipos de pesquisa no campo de estudos em
políticas públicas e de permitir que experiências como a do movimento hip hop da Ceilândia,
por exemplos, possam ser vistas como ‘experiências públicas’, como partes essenciais dos
fluxos de políticas públicas. Neste artigo, defendemos que, para situar ‘experiências’ públicas
no centro dos fluxos de políticas públicas – de forma a gerarem uma força centrífuga capaz de
ampliar o escopo desses fluxos (e as fronteiras dos próprios campos de estudos em políticas),
abarcando outros atores, outras racionalidades, outras gramáticas, expressões artísticas,
intuições, emoções, performances, estéticas, dissensos, valores, corporeidades, saberes,
percepções, práticas, sentimentos – é necessário assumir a indissociabilidade entre os planos
26
São estas as perguntas que buscamos responder nos artigos 4 e 5. Vale ressaltar, porém, que as
matrizes que construímos não constituem modelos a serem aplicados ou um passo a passo que,
se for seguido, vai nos levar a um lugar específico. Nosso intuito, ao contrário, foi o de abrir
caminhos interpretativos a partir dessas matrizes – a partir de entrecruzamentos práticos,
teóricos e metodológicos – que permitam a realização de pesquisas em movimento, de pesquisas
“implicadas” (BOULLOSA, 2019), que permitam que pesquisadores, cientistas e profissionais
do campo das políticas públicas lancem luz sobre elementos e atores tradicionalmente
invisibilizados, marginalizados ou subestimados e que ousem descobrir o que estes atores e
estes elementos têm a ensinar. Isso porque, às vezes, em lugar de tentar moldar, espremer,
apertar ou recortar objetos de pesquisa, para que possam caber dentro dos limites de um campo
científico, pode ser mais profícuo o esforço de ampliar as fronteiras dos campos, para que
outros sujeitos de pesquisa possam passar a fazer parte deles. No campo de estudos em políticas
públicas, este caminho provou-se bastante trabalhoso, ainda que já venha sendo pavimentado,
há mais de três décadas, por um grupo bastante consolidado de pensadores pós-positivistas,
entre eles Callahan e Jennings (1983), Fischer e Forester (1993), Fischer e Gottweiss (2012) e
Fischer (et al., 2016). De toda forma, nosso maior desafio foi o de construir, a partir dos estudos
desses autores, interlocuções com outras correntes de pensamento - como o pragmatismo
deweyano e a gestão social – que pudessem dar consistência teórico-metodológica a um
arcabouço analítico novo, para a interpretação de sujeitos de pesquisa não tradicionais.
É interessante notar que, justamente no momento em que o movimento hip hop se politiza, no
Brasil, dando origem a um estilo específico de rap, que fica conhecido como ‘rap nacional’ –
mais crítico e com letras carregadas de denúncias e de protestos acerca das mazelas sociais e
da precariedade das vidas de jovens negros, moradores das periferias brasileiras – ele
experimenta seu segundo nascimento: como objeto de estudo. No Brasil, a discussão sobre as
relações entre política e hip hop adentra a Academia, no início da década de 1990, pelas mãos
da socióloga Marília Pontes Sposito, que, em um artigo publicado na Revista Tempo Social,
intitulado “A sociabilidade juvenil e a rua: novos conflitos e ação coletiva”, a autora se refere
ao movimento hip hop como uma forma de apropriação do espaço urbano e um tradutor (ou
espelho) da sociabilidade juvenil, o que faria dele um instrumento auxiliar de avaliação dos
desafios que afetam as condições de vida metropolitanas. A estes trabalhos, seguiram-se
outras obras importantes, como o livro "Grafite, Pichação e Cia.", de Celia Maria Ramos
(1994), "Abalando os anos 90 - Funk e Hip Hop" e “O funk e o hip hop invadem a cena”,
ambos de Michael Herschmann (1997; 2000), em que o autor discute como o movimento hip
hop, por meio de sua estética e da experiência social, realiza sua própria política, buscando
retraçar fronteiras, ocupar espaços e se articular à cultura institucionalizada (aos circuitos de
produção e consumo cultura), ao mercado, entre outros.
2
Para a constituição deste corpus de trabalhos científicos, realizamos dois levantamentos, um em julho de 2017 e outro em
dezembro de 2020, por meio de duas plataformas voltadas à pesquisa de trabalhos científicos – Google Scholar e Scielo. Em
ambas, as buscas foram efetuadas pelas palavras “hip hop”, “música rap”, “break dance” e “graffiti” e os resultados foram
ordenados por ‘relevância’. No Google Scholar, consideramos os 300 trabalhos mais relevantes, na etiqueta “hip hop”; e os
50 trabalhos mais relevantes de cada uma das outras etiquetas (“música rap”, “break dance” e “graffiti”), tendo sido excluídos
os trabalhos que não foram escritos por pesquisadores brasileiros e em português. Já na plataforma Scielo, foram utilizadas as
mesmas etiquetas, com os filtros “Brasil” e “português”. A pesquisa resultou em 35 trabalhos, dos quais também foram
excluídos aqueles escritos por pesquisadores estrangeiros.
3
95% dos trabalhos foram publicados a partir dos anos 2000, com destaque para a primeira década do século, que concentrou
65% das publicações.
4
Foram consideradas a vinculação institucional indicada no trabalho e a área de pesquisa mais recente do autor principal.
28
Há outras coisas interessantes que emergem da análise mais detalhada deste corpus. A partir
dos anos 2000, os trabalhos passaram a apresentar uma significativa diversificação temática
(abarcando as relações do hip hop com questões de raça, gênero, religião, sexualidade,
identidade, de classe, de consumo, etc.) e, sobretudo, regional. As pesquisas sobre o hip hop,
antes desenvolvidas quase exclusivamente em universidades do Sudeste do país, passaram a
ser realizadas, também, em número significativo, em universidades do Norte, do Nordeste, do
Centro-Oeste e do Sul do país. Outro ponto interessante é que, para além da diversificação e
do aumento numérico de estudos sobre o movimento hip hop, em todas as regiões do país e
nas diversas áreas do conhecimento e embora as pesquisas sobre o hip hop ainda sejam
realizadas, majoritariamente, por homens, ao menos na Academia, aproximamo-nos da
paridade de gênero, com mulheres assinando 48% das publicações. Destes, apenas 09
trabalhos (menos de 3% do total de trabalhos) fazem referência explícita, em seus títulos, às
questões de gênero, à participação de meninas ou mulheres no movimento ou às relações entre
o movimento hip hop e o movimento feminista. Talvez este último número seja mais
representativo da realidade do movimento hip hop que, embora venha se pluralizando, ainda
permanece predominantemente masculino.
Vale ressaltar ainda que, principalmente a partir de meados dos anos 2000, os próprios
praticantes do movimento hip hop começaram a escrever suas histórias. Identificamos 11 livros
de autoria de praticantes do próprio movimento, entre autobiografias e relatos que pretendem
narrar a história do movimento a partir “de dentro”. São exemplos os livros "O que é Graffiti?",
de Celso Githay (1999); "Hip-Hop: Consciência e Atitude", de Big Richard (2005); "Cabeça de
Porco", escrito por Luiz Eduardo Soares, MV Bill e Celso Athayde (2005); "Trajetória de um
guerreiro: história do DJ Raffa", uma autobiografia do principal produtor musical do rap
brasiliense (DJ RAFFA, 2007); "Acorda Hip Hop!: despertando um movimento em
transformação", do Dj TR (LEAL, 2007); "Hip Hop: dentro do movimento", de Alexandre
Buzo (2010) e "A Rima Denuncia", escrito por Genival Oliveira Gonçalves, o GOG (2010).
Por fim, interessa-nos enfatizar que, dos trabalhos deste corpus, apenas dois trabalhos, um no
campo da Comunicação e outro no campo da Educação, mobilizam um arcabouço teórico
pragmatista, para analisar o movimento hip hop (GUIMARÃES, 2012; FIUZA, MACEDO,
2013) – por meio de autores como John Dewey, George Mead, Louis Quéré e Richard
5
O trabalho de Domingues, embora institucionalmente situado no campo das políticas públicas, não mobiliza referências
bibliográficas deste campo e menciona o termo "políticas públicas" apenas duas vezes (e de forma genérica), ao longo do
corpo do texto: uma primeira vez, ao dizer jovens negros continuam a ser "vítimas preferenciais da repressão estatal, ao
mesmo tempo em que [são] ignorados por grande parte das políticas públicas" (DOMINGUES, 2014, p. 49) e, uma última
vez, ao citar o portal do Conselho Nacional de Juventude - CONJUVE, em que consta que o Conselho tem, por atribuições, a
formulação e a proposição de diretrizes voltadas às "políticas públicas de juventude" (idem, p. 66). Em termos gerais, o
trabalho fundamenta-se na matriz teórica marxista e também mobiliza pesquisadores dos movimentos sociais e culturais,
dentre os quais: Karl Marx, Friedrich Engels, Rosa Luxemburgo, Vladimir Lênin, Alain Touraine, Georg Lukács, Antonio
Gramsci, Norberto Bobbio, Mikhail Bakunin, Hannah Arendt, Manuel Castells, Maria da Glória Gohn e Paulo Freire. O que
buscamos enfatizar é que, apesar da relevância das contribuições de Domingues (2014), seu trabalho pouco dialoga com o
campo das políticas públicas e com nossa proposta de aproximação teórica entre o pragmatismo deweyano, os critical policy
studies e a gestão social.
29
Shustermann. Sobre os demais, vale dizer que muitos se pautam em teorias sociológicas,
voltando-se, principalmente, à Sociologia da Juventude e à Sociologia da Violência e da
Criminalidade e mobilizando conceitos como “identidade”, “cultura”, “pobreza”, “raça” e
“etnia”. Outro grupo importante de trabalhos realiza suas análises por meio da abordagem dos
Estudos Culturais, mobilizando autores como Homi Bhabha, Néstor García Canclini, Stuart
Hall, Antonio Candido, Marilena Chauí, Maria Elisa Cevasco, Raymond Williams, Edward
Thompson, etc. E o grupo de trabalhos que talvez seja o mais numeroso, apresenta, como
marco teórico, os estudos oriundos da Sociologia dos Movimentos Sociais, a partir de autores
como Maria da Glória Gohn, Ângela Alonso, Eder Sader, Alberto Melucci, Michel Maffesoli
e Claus Offe. No campo da Geografia, predomina a matriz marxista, reunindo autores como
Milton Santos, Marcelo Lopes de Souza, Rogério Haesbert, Henri Lefebvre, David Harvey,
Jürgen Habermas, Louis Althusser, além dos clássicos Karl Marx, Rosa Luxemburgo,
Friedrich Engels, Mikhail Bakhtin, Antonio Gramsci, etc., mas, também, estudos oriundos da
Antropologia e da Sociologia Urbanas, como Manuel Castells, Anthony Giddens, Robert
Park, Louis Wirth, Alba Zaluar, Otávio Velho, etc.
Diante do exposto, não seria exagero afirmar que, para além de uma cultura, uma filosofia ou
um estilo de vida, o hip hop vem se consolidando como objeto/sujeito de estudos e
conformando, nesse sentido, um construto científico fortemente multidisciplinar e crítico. É
como se a tensão e os conflitos, há muito presentes nas ruas e na vida cotidiana – entre arte e
política, popular e erudito, cultura e entretenimento, centro e periferia, saber científico e saber
popular – e, sobretudo, as tensões entre políticas públicas estadocêntricas (pensadas e
construídas em espaços institucionalizados) e as ‘micro’ ou ‘nanopolíticas’ levadas a cabo,
diariamente, em espaços informais, tantas vezes marginais (marginalizados?) ou periféricos
(periferizados?) ganhassem uma nova arena de diálogo, de negociação e de ação.
Através das lentes que construímos – sobrepondo teorias, categorias e princípios extraídos do
pragmatismo, dos estudos críticos em políticas públicas e da gestão social – é possível
perceber dois riscos principais: a) estudar sobre o movimento hip hop em lugar de estudar
com ele, objetificando-o e interpretando-o de forma estática e por meio de um olhar distante,
“de cima” ou “de fora”; b) reduzi-lo, analiticamente, a uma forma de protesto e de resistência
ou a um instrumento de prevenção da violência e de correção de conduta, o que lhe conferiria
o status de ‘fórmula mágica’ para a solução de problemas considerados dos jovens ou das
periferias, como a delinquência, a precariedade das condições de vida e a violência urbana,
por exemplo. Tais reducionismos não invalidam, de forma alguma, estas análises – sim, é
evidente (e reivindicado pelos próprios praticantes do movimento hip hop) seu papel de
denúncia de problemas sociais, de protesto e de resistência aos poderes hegemônicos, como
também se torna cada vez mais evidente sua capacidade de transformar territórios e de
transformar a vida dos que se engajam no movimento. São bastante comuns frases como “o
hip hop me salvou” ou “o hip hop me deu tudo que tenho”, seja em entrevistas, rodas de
conversa ou letras de música.
O que gostaríamos de propor, porém, é sua interpretação por meio de lentes que revelem sua
multidimensionalidade, como uma tentativa de superar dicotomias, de evitar um olhar
moralizante, associado à ideia de que as periferias constituem ‘problemas sociais’ (SILVA &
30
SILVA, 2008) a serem resolvidos (com urgência) pelos não-periféricos e de evitar, ainda, uma
visão estereotipada e utilitarista da ação dos praticantes do movimento hip hop, como se a
prova de valor ou de veracidade das ‘experiências públicas’ estivesse em seus resultados
materiais ou numéricos e não na própria experiência, como defende o pensamento
pragmatista. Nesse sentido, identificamos uma importante lacuna de pesquisa, no campo de
estudos em políticas públicas, tanto no que diz respeito à mobilização do pragmatismo,
enquanto teoria e método, quanto no que concerne a análise de "casos" ou de experiências que
não estejam centrados no Estado ou nas instituições estatais.
31
PARTE I
32
RESUMO
Diversas experiências relevantes para o pensar e o fazer políticas públicas têm ficado de fora do campo de
estudos em políticas públicas, no Brasil. Partindo desse reconhecimento, este artigo estabelece bases
teórico-metodológicas alternativas, que não apenas indicam a importância da inclusão de tais experiências
nos estudos deste campo, como instigam a construção de instrumentos capazes de conferir-lhes
inteligibilidade. A partir de uma experiência estética in situ, possivelmente invisível em caminhos de
pesquisa tradicionais, propomos a aproximação entre os estudos críticos em políticas públicas, o
pragmatismo deweyano e a gestão social, por meio da articulação entre cinco categorias principais –
argumento, reflexividade, público, prática e experiência estética. Lançadas à encruzilhada – o lugar da
dúvida ou a situação indeterminada (problemática) que gera investigação e ação e conduz a um novo
equilíbrio – essas categorias nos ajudam a deslocar as fronteiras do campo, ampliando-o e pluralizando-o.
A exemplo do que faz Exu – engole de um jeito, para cuspir de forma transformada, abrindo novos
caminhos – escolhemos, a partir do nosso entrecruzamento, uma saída abdutiva, que nos permite ver e nos
permitirá interpretar outras situações, repletas de significação cultural e estética, e introduzir outros
elementos, materiais, atores e experiências nos fluxos de políticas públicas, afetando-os. Essa saída, porém,
pressupõe três deslocamentos principais: 1) ressignificar o conceito de ‘políticas públicas’, para que possa
ser interpretado como fluxo multiatorial e multisensorial e não como objeto (resultado das ações do
governo ou das negociações entre grupos de interesse que detém poder decisório), o que fazemos com o
auxílio da “mirada ao revés”; 2) adotar uma perspectiva sociocêntrica, em detrimento da tradição
estadocêntrica, o que fazemos com o auxílio dos estudos críticos; 3) reaproximar policy e politics, para que
o mundo das políticas públicas seja impregnado com a riqueza, a complexidade e as especificidadades da
realidade sociopolítica brasileira, o que fazemos com a ajuda do pragmatismo e da gestão social.
Palavras-chave: políticas públicas, estudos críticos, pragmatismo deweyano, gestão social, experiência.
ABSTRACT
Several relevant experiences for thinking and doing public policies have been left out of the policy
studies field in Brazil. Based on this recognition, this article establishes alternative theoretical and
methodological bases, which not only indicate the importance of including such experiences in policy
studies studies, but also instigate the construction of instruments capable of giving them intelligibility.
Based on an aesthetic experience in situ, possibly invisible in traditional research paths, we propose the
approximation between critical policy studies, Deweyan pragmatism and social management, through
the articulation between five main categories - argument, reflexivity, public, practice and aesthetic
experience. Thrown at the crossroads - the place of doubt or the undetermined (problematic) situation
that generates investigation and action, leading to a new balance - these categories help us to move the
boundaries of the field, expanding and pluralizing it. Just like Exu – who swallows in a way, to spit in a
transformed one, opening new paths - we choose, from our intersections, an abductive outlet, which
allows us to see and to interpret other situations, full of cultural and aesthetic significance, and to
introduce other elements, materials, actors and experiences in public policy flows, affecting them. This
solution, however, presupposes three main dislocations: 1) re-signifying the concept of 'public policiy',
so that it can be interpreted as a multi-actor flow and not as an object (result of government actions or
negotiations between interest groups that have decision-making power ), what we do with the help of
“Mirada ao revés” theory; 2) adopting a sociocentric perspective, to the detriment of the statocentric
tradition, which we do with the help of critical policy studies; and 3) reconnecting policy and politics, so
that the policy world is impregnated with the richness, the complexity and the specificities of the
Brazilian socio-political reality, which we do with the help of pragmatism and social management.
Keywords: public policy, aesthetics, Deweyan pragmatism, critical policy studies, social management,
public experience.
33
Parte I
***
Fui ‘n’ vezes à Ceilândia e ainda me lembro da primeira. E, se é teimosa na memória, é
porque não é banal. Sair do plano piloto é como romper uma bolha. Não uma bolha
efêmera, de ar, mas uma bolha de parede espessa, de textura lisa, de cor branca. Toda
lisa e branca. À metáfora do muro, prefiro essa, da bolha, que não separa só duas porções
de terra, mas que encarcera o ar, que tem um dentro e que tem um fora. E que não é
trivial, porque quando se fura a bolha, despenca-se no outro e tal queda-livre é sempre
incômoda. Porque o outro tem outra cor, tem outro cheiro, outro gosto. Lá tem outro ritmo.
Não é meramente outro lugar, é, também, outro tempo. Ensopada de suor e de
academicismo, quando vou à Ceilândia - de vidro escancarado à poeira, ouvindo Cultura
FM - sempre me vem Milton Santos, o geógrafo-brasileiro. Negro. Brasileiro. Geógrafo-
negro-brasileiro, que pensou muita coisa e, também pensou a distância. Pensou a falácia
da distância.
Olha, acho que não dá, mesmo, pra pensar a Ceilândia só pela cabeça de quem não
esteve com o pé lá... a Ceilândia é que tem que se pensar e ser pensada pela pele do
Japão, de quem mais tenha a Ceilândia cicatrizada. As cidades têm que ser pensadas
pelas cicatrizes, por essas marcas que não são só de cor, porque até a cor pode ser lisa,
mas a cicatriz não. Cicatriz tem textura. E a Ceilândia toda tem textura. Lá, nada é
branco, nada é claro, nada tem borda definida. Tem uma aspereza distintiva. Tem quina.
É o oposto do liso.
34
A pele preta do Japão também. E a do Jamaika. E a do Kabala e de toda essa gente que,
todo dia, muda de pele e de nome. Se reinventa. A pele da Wemmia, da Rayane e a pele
da Realleza, que brilha no sol nascente. A do GOG. E a do Mano Brown. Tudo pele viva,
carne viva. Voz com textura. Tudo boca que profere palavra áspera.
Na Ceilândia é tudo crespo. Foi por isso que, quando perguntei pro Japão o que ele
achava dos muros invisíveis ou imaginários que dividem “cidades constitucionalmente
indivisíveis”, a resposta foi um tiro [...que furou a bolha e dissipou a mágica, enquanto o sol
a essa altura já ia longe]:
“Só são imaginários pra quem acredita em imaginação. O muro é real, ele existe. E ele
segura. E ele expele. E se você chega perto, ele te expulsa”.
Tailândia. Ceilondres.
Quando eu entro na Ceilândia, pela Hélio Prates, meus teóricos também já vão longe.
Parte II
“Compreendi que devia me libertar das imagens que até ali haviam
anunciado as coisas que procurava: só então seria capaz de entender
a linguagem de Ipásia.”
Foda-se a imagem que vocês criaram / Não sou legível, não sou
entendível / Sou meu próprio Deus, meu próprio santo, meu próprio
poeta / Me olhe como uma tela preta, de um único pintor / Só eu posso
fazer minha arte / Só eu posso me descrever
À medida que nos inserimos em uma comunidade acadêmica, sobretudo quando engajados em
programas de pós-graduação de Instituições de Ensino Superior – IES brasileiras, absolutamente
preocupados com a cientificidade de nossas pesquisas – com as provas de verdade – e com as
métricas de publicação e de avaliação estabelecidas por agências estatais; ávidos por encontrar
conexões entre teoria, método e prática; ansiosos em descrever, compreender, problematizar e
analisar objetos de pesquisa e determinados a responder perguntas pré-formuladas, acabamos
destituindo, inevitavelmente, as experiências científicas de sua dimensão estética e, muitas vezes,
de todo valor e subjetividade, ofuscados pela coleta e pela seleção consciente de ‘dados
objetivos’, a que chamamos ‘evidências’ ou pela escolha de um conjunto de autores ou de uma
corrente de pensamento. Desenhamos e projetamos, na maioria das vezes, um caminho dedutivo
ou indutivo e, atados a ele e a um cronograma, construímos uma resposta a uma pergunta de
pesquisa - previa e intensivamente pensada (por nós ou por outros) –, que carrega consigo,
fatalmente, o apagamento de tantas outras respostas possíveis.
No campo dos estudos em políticas públicas, não é diferente: delimitam-se objetos de estudo
(que costumam referir-se a ações/respostas dos governos ou a processos de negociação e
tomada de decisão entre atores com poder) e aplicam-se teorias e modelos de análise. Talvez
por isso, sejam bastante comuns as denúncias do fracasso das ciências sociais aplicadas em
solucionar os problemas, cada vez mais complexos, da sociedade. Um fracasso que pode ser
atribuído, em grande medida, à obsessão com o objetivismo, com a neutralidade e com a
tecnocracia; à confusão entre cientificismo (herdeiro do positivismo científico) e ciência, que
conduz à hierarquização dos saberes e, consequentemente, ao desperdício de experiências
(TRIBE, 1972; WEISS, 1979; GUSFIELD, 1981; CALLAHAN & JENNINGS, 1983;
MAJONE, 1989; SOUSA SANTOS, 2002; FISCHER, 2016; FISCHER et. al., 2016). Há outras
coisas, porém, que cristalizam (ou aprofundam) a distância entre as ciências (sociais) e a
realidade (social): dentre elas, a reificação das políticas públicas, a seletividade do olhar e as
pobrezas interpretativa e reflexiva. Diante dessa miopia, vêm emergindo, com cada vez mais
força, reivindicações por estudos multi/interdisciplinares, transversais, interseccionais e
decoloniais. Crescem as reivindicações por novas teorias e novos métodos, que suportem
análises complexas e em movimento; crescem os clamores por maior pluralidade, diversidade e
participação, o que vem enchendo as ruas e praças do mundo e vem empurrando as fronteiras
dos campos científicos para as encruzilhadas – os lugares que possibilitam a construção crítico-
reflexiva de outras possibilidades de ver, de interpretar e de reconhecer experiências.
Há muita ação política sendo elaborada no interior do mundo social e muita experiência sendo
vivida cotidianamente. São ações e experiências ainda ininteligíveis, ainda não decodificadas,
no interior dos campos científicos e, também, no campo de estudos em políticas públicas.
Experiências sequer visíveis, mas essenciais à transformação do mundo social (QUÉRÉ;
TERZI, 2015) e à transformação dos próprios campos. E é essa premissa que nos incita a
propor que as políticas públicas não sejam interpretadas apenas como fenômenos objetivos
(CAPANO; GIULIANI, 1998) – normas, textos escritos, documentos, instrumentos,
programas, etc. – mas como processos fluidos, como fluxos multiatoriais (BOULLOSA,
2013; 2019) que se transformam continuamente a partir da combinação de diferentes
elementos. Em lugar da rejeição e da substituição do termo ‘política pública’ – como
propuseram Lascoumes e Le Galès (2012) –, o que propomos é que ele seja ampliado e
permeabilizado, para que possa ser continuamente preenchido com novos sentidos. Ao
compreender políticas públicas não apenas como materialidade ou como realidade objetiva,
mas como interpretações e reflexões acerca dessa realidade, alinhamo-nos não apenas a
Capano e Giuliani (1998) e Boullosa (2013), mas também a Pier Luigi Crosta (2009) e a
6
Assim costuma dar-se, também, a construção dos campos científicos: delimita-se um objeto específico, articulam-se ideias,
bases teóricas, métodos, instituições, revistas especializadas, controlam-se recursos estratégicos, define-se uma agenda,
elabora-se um discurso comum, definem-se relações de força, luta-se pelo monopólio da competência científica, pela
legitimidade de falar e de agir, por meio da construção de um sistema de signos e de significados compartilhados
(BOURDIEU, 1976; FARAH, 2016; 2018).
36
estudiosos críticos em políticas públicas, como Callahan e Jennings (1983), Dryzek (1989) e
Fischer e Forester (1993), que também buscam conferir maior importância à intepretação do
objeto do que ao objeto em si.
Esse salto, porém, do estudo da política pública como objeto (coisa) para seu estudo enquanto
um fluxo incerto, conflituoso e muitas vezes desordenado – que não pode ser visto, não pode
ser tocado, não pode ser predeterminado e não segue um percurso linear ou totalmente
previsível – exige, como instiga Calvino (1990), o abandono de significados já consolidados
em mentes cientificamente formatadas. Depende da disposição para traçar outros caminhos e
“escovar a história a contrapelo”, seja para que possamos contá-la de outras perspectivas e do
ponto de vista de quem não está nos centros (BENJAMIN, 1987, p. 225), seja para que
deixemos que sejam contadas, também, por outros narradores, como reivindicaram os rappers
Baco Exu do Blues (2018), na letra da música ‘BB King’ e Renan Inquérito (2010) na faixa
intitulada ‘Poucas Palavras’, do álbum ‘Mudança’: “(...) vou ser breve / Se a história e nossa,
deixa que nóis escreve”.
São apelos que trazem a perspectiva das batalhas – de rima, de poesia ou de breaking – para o
centro do fazer científico e que nos lançam às encruzilhadas. Porque as batalhas, na cultura
hip hop, em lugar de visarem a eliminação do outro, objetivam a superação de si e a
construção de algo novo, a partir do outro – engole-se o que o outro diz e, reflexivamente,
cospe-se algo novo. As batalhas configuram, portanto, um campo estético e um campo de
possibilidades, em que conflitos, tensões e violências são traduzidos em formas simbólicas
(SHUSTERMAN, 2008) e em disputas agônicas e legítimas (MOUFFE, 2007), pela produção
de narrativas, de significados, de argumentos e de valores. Uma batalha de rima ou de
breaking é dependente, portanto, de um fazer-junto: ela é uma situação, no sentido deweyano
(DEWEY, 1908; 2007), porque só emerge na e da interação e seu sucesso depende, em
grande medida, da capacidade crítico-reflexiva e da capacidade de articulação entre os
diferentes. Trazer essa noção para o centro da pesquisa pressupõe o combate à “monocultura
do saber” e aos privilégios epistemológicos, que marginalizam, silenciam, excluem ou
liquidam outros conhecimentos (SOUSA SANTOS, 2008, p. 154). Pressupõe jogar tudo na
encruzilhada e deixar que algo novo nasça.
Parece-nos, assim, cada vez mais necessário mirar ao revés (BOULLOSA, 2013; 2019),
adotar critérios e materiais de pesquisa distintos, em busca de explicações alternativas para
um mundo social cada vez mais plural, diverso e complexo. Afinal, da mesma forma que o
mundo sociopolítico é muito maior do que aquilo que conseguimos ver e do que conseguimos
representar por meio das categorias, dos conceitos, dos signos e dos símbolos que temos
disponíveis, o mesmo se dá no mundo das políticas públicas, o que exige de nós, cientistas
deste campo, o esforço de desenvolver instrumentos interpretativos que abarquem materiais
de pesquisa voláteis e mutáveis – como são, por exemplo, as narrativas, os argumentos, as
memórias, os imaginários sociais, os valores, as expressões artísticas e corporais, as práticas
socioterritoriais, as situações indeterminadas e as experiências estéticas. É preciso que os
instrumentos interpretativos estejam à altura da riqueza e da complexidade daquilo que se
quer interpretar: “(...) em vez da separação entre sujeito e objeto, o objeto que é sujeito; em
vez da separação entre observador e observado, o observador na observação; em vez da
37
A filiação aos estudos críticos em políticas públicas, portanto, nos deu abertura, por meio da
virada argumentativa (FISCHER; FORESTER, 1993; FISCHER; GOTTWEISS, 2014) e da
virada interpretativa (LIPSKY, 1980; JENNINGS, 1983; YANOW, 2016), para a inclusão de
discursos e falas, de textos e análogos de textos (TAYLOR, 1971) e de argumentos
(FISCHER, 2016) aos fluxos das políticas públicas – conferindo centralidade,
respectivamente, às palavras (MAJONE, 1989), aos significados (YANOW, 2016) e aos
valores (BOULLOSA, 2019). No Brasil, os desdobramentos dos Critical Policy Studies ainda
são bastante recentes e começam a ganhar densidade em fins da década de 2010, por meio de
reconfigurações teórico-metodológicas, como as propostas nos estudos de Boullosa (2013;
2019) e no âmbito do Grupo de Pesquisa “Processos de Inovação e Aprendizagem em
Políticas Públicas e Gestão Social”7, um espaço de trocas e de aprendizagem que nos
possibilitou diversas discussões e oportunidades de reflexão acerca das contribuições dos
Critical Policy Studies e do pragmatismo, para o campo de estudos em políticas públicas e
acerca da emergência da gestão social como paradigma alternativo de gestão.
O que temos visto, porém, é que, apesar dos importantes avanços permitidos (e já alcançados)
pelos estudos críticos em políticas públicas, oriundos, sobretudo, da passagem do
estadocentrismo ao sociocentrismo – que nos desloca da compreensão das políticas públicas
como a ação do estado (LASSWELL, 191) para a compreensão das políticas públicas como
argumentos, ou seja, como conversas multivocais (FISCHER, 2016) – a centralidade
conferida à palavra, aos signos e aos significados apresenta limites e, enquanto instrumento
analítico, não nos ajuda, necessariamente, a acessar determinadas práticas e experiências. Do
mesmo modo, tampouco nos auxilia a avançar, suficientemente, no debate acerca das relações
entre políticas públicas e estética, por exemplo, um debate que consideramos capaz de fazer
emergir outros modos de pensar, de (re)significar, de perceber, de participar, de comunicar e
de fazer a vida pública, seja por meio do reconhecimento de mais interações orgânicas entre
ser e meio (DEWEY, 2007; 2010), seja por meio da sublimação dos aspectos qualitativos e
subjetivos das situações, uma vez que o pragmatismo deweyano rejeita a distinção entre
situações objetivas e percepções subjetivas, levando-nos a sublinhar que ambas são geradoras
de conhecimento e de normatividade.
7
O Grupo, coordenado pela Professora Drª Rosana de Freitas Boullosa, teve início na Universidade Federal da Bahia –
UFBA, em 2009, e atualmente está sediado na Universidade de Brasília – UnB, vinculado ao Departamento de Gestão de
Políticas Públicas e ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional, do qual
fazemos parte.
38
8
A imaginação não como capacidade de fantasiar a realidade, mas como capacidade de conferir sentido às sensações,
fazendo com o que o muno deixe de ser mera representação, para ser uma representação em ininterrupta reconstrução (RUIZ,
2003). Para Dewey (1910), imaginar é sinônimo de ver situações e objetos conhecidos sob nova luz.
9
Isso levou Lasswell (idem, p. 07) a afirmar que “a batalha pelo método estava ganha”, uma vez que não havia razões para
duvidar do sucesso dos métodos quantitativos e que o principal objetivo das policy sciences era “aumentar a racionalidade no
fluxo de tomada de decisão” (idem, p. 03). Ainda que diversas outras abordagens, teorias ou modelos tenham emergido de lá
para cá – como a teoria da racionalidade limitada (1957), teoria da escolha racional (OLSON, 1965; BECKER, 1976;
COLEMAN; FARARO, 1992), teoria da racionalidade incremental (LINDBLOM, 1965), o modelo garbage can de escolha
organizacional (COHEN, MARCH e OLSEN, 1972), modelos pautados na racionalidade comunicativa de Habermas (1986),
etc. – e, ainda que tais modelos tenham sido problematizados e criticados, por autores como Pressman e Wildawski (1973),
Kingdon (2003), Baumgartner & Jones (1991), Sabatier & Jenkins-Smith (1993) e Howlett e Ramesh (1995), ao longo de
todo esse período, o Estado reinou soberano, como principal ator de políticas públicas, juntamente com a obsessão
racionalista-instrumental, denunciada por Dryzek (1989).
10
Ainda que consideremos este movimento de ampliação e de pluralização do campo lento e tardio, é importante enfatizar
que a literatura brasileira tem sido capaz de incorporar discussões emergentes, tanto em termos teórico-metodológicos,
buscando inspiração na teoria crítica e (com menor frequência) na teoria pós-positivista, quanto em termos temáticos,
incluindo nas agendas de pesquisa questões etárias, raciais, étnicas, de gênero e de sexualidade, por exemplo (FARAH,
2018).
39
Entendemos que este continuum – este fluxo, que pode ser protagonizado por atores estatais ou
por atores comuns, mas que nunca acontece fora de um conjunto de transações11 – só pode ser
interpretado a partir de uma situação12, que constitui o ponto de partida da experiência (DEWEY,
2010). O que propomos, portanto é uma pesquisa implicada (BOULLOSA, 2019) e centrada na
experiência13 (DEWEY, 1938). Assim, não defendemos apenas a sutura entre policy e politics,
mas a sutura entre problema e público, para que o conhecimento derivado da investigação seja um
conhecimento-no-contexto (FISCHER, 2016) ou, ainda, um conhecimento em movimento:
produzido no experimentando, no pensando, no interpretando, no discutindo. Esse é o desafio
imposto pela encruzilhada. E nossa saída será trilhada, em termos metodológicos, pelo recurso à
tríade peirciana (PEIRCE, 2005) e à noção de “ciência como coisa viva” (FERRARA, 1986/87, p.
02). Não se trata, mais uma vez, de uma proposta de ruptura com o conceito ou com o campo de
políticas públicas, mas com aquilo que se convencionou considerar, historicamente, como
conhecimento científico – um conhecimento pretensamente objetivo, neutro, racional, verdadeiro,
universal e, geralmente, distante da experiência.
Reunimos, portanto, no campo de estudos em políticas públicas, o que foi proposto por Peirce
(2005) – em termos de primeiridade, secundidade e terceiridade14 – e o que é defendido por
Dewey (1938), Ferrara (1987/87), Fischer (2016), Chateauraynaud (2018) e Boullosa (2019) –
em termos da utilidade15 ou da vivacidade do conhecimento. Em outras palavras, partimos de
uma história, de uma experiência estética que tem o potencial abdutivo de gerar dúvidas, de
aguçar a curiosidade e de desencadear um processo de investigação, a partir do qual buscamos
11
São processos ativos de vida entre um organismo e o ambiente (DEWEY, 1957; 2007; 2010).
12
Compreendem a diversidade e as relações entre múltiplas dimensões de transações, em um continuum entre o habitual, o
indeterminado (ou problemático) e um novo equilíbrio (DEWEY, 1922; DEWEY; BENTLEY, 1946). Em ‘Arte como
experiência’, Dewey (2010) enfatiza que toda situação – fazer uma refeição, jogar uma partida de xadrez, ter uma conversa,
escrever um livrou ou participar de uma campanha política, por exemplo – pode dar origem a uma nova experiência.
13
A isso, Dewey (1938, p. 26; 19; 73) deu os nomes de “learning by experience”, “through experience” ou “within experience”.
14
A proposta triádica de Peirce (2005) apresenta a experiência ou a Primeiridade fenomenológica como ponto de partida (o
lugar concreto a partir do qual o novo pode ser construído e as ideias podem ser produzidas); da experiência, passa-se à
Secundidade normativa (onde as ideias são explicadas, sistematizadas e testadas – em um processo indutivo), para que, então,
se desemboque na Terceiridade metafísica (onde as ideias são generalizadas, podendo dar origem a novas teorias ou novas
leis e, também, a novas experiências), em um caminho de pesquisa não linear: fluido, mas cumulativo. É interessante notar,
ainda, que à Primeiridade peirciana é associada a qualidade do ‘sentimento, da essência das coias; à Secundidade, são
associadas as ações como formas de luta, de reação e de resistência; e, à Terceiridade, associa-se a representação e a
aprendizagem, que só se desencadeia a partir da relação triádica (GREEN, 2014).
15
A defesa da utilidade do conhecimento rendeu muitas críticas a John Dewey e a outros pragmatistas, acusados de
utilitarismo exacerbado. Dewey (2010, p. 496) respondeu a elas dizendo que, quando ele aponta o conhecimento como algo
instrumental, ele está defendendo que o conhecimento funcione como um instrumento “para o enriquecimento da experiência
imediata, através do controle da ação exercida por ele”, o próprio conhecimento, o que nada tem a ver com a produção de
conhecimento pautada na racionalidade instrumental e utilitária (meios-fins) defendida pelos positivistas. Ademais, para o
pragmatismo, conhecimento e normas são instrumentos, que precisam ser constantemente testados, confirmados ou alterados,
interpretados, como produtos de um processo de aprendizagem social (KURUVILLA; DORSTEWITZ, 2010). O
conhecimento produzido pelo método pragmatista é pretensamente útil, porque é construído a partir da experiência concreta e
porque se pode duvidar dele, o que o torna sempre provisório e situacional. Nesse mesmo sentido, Crosta (1998, p. 15)
defende que “a forma de conhecimento mais útil à ação é aquela produzida durante a ação, pelos atores implicados nela”,
produto de uma combinação de conhecimentos diversos.
40
Por esse caminho, não buscamos respostas a uma pergunta de pesquisa predefinida, mas nos
engajamos em um processo de pesquisa desencadeado por situações que emergiram da
experiência vivida, da Praça do Cidadão, da Ceilândia e do movimento hip hop, que,
(re)situado e problematizado no fluxo de políticas públicas, tem muito a ensinar.
Parte III
E eu sinto o peso do nome. CEI-lândia. Pesa como barril de água. E tudo o que eu achava
saber, fica gasto. Puído. Esgarçado. Na Ceilândia não tem verdade simples (ela existe?).
Nada está dado (e onde está?). Se Sei-lândia se escrevesse com S, seria outra coisa?
Eu sei que rua, coreto e cidadão, quando se juntam em linhas, constroem uma imagem
quase idílica. E que seja... porque paira, na praça, uma liberdade de estar (e de ser, talvez)
que beira mesmo o bucolismo.
Pra mim, que trago o estereótipo da CEI-lândia tatuado na retina, a praça é como um
enclave. Ali, me esparramo. Quero esticar as costas no calor do banco que não é meu.
Quero esperar 2010 voltar, pra ouvir as três palmas que precederam o ‘pé na porta’. Quero
sorrir pra quem está e pra quem passa, como quem diz: “eu te vejo”. E sinto meu olho na
bolinha do olho do outro. E me escuto. Parece ser libertador e,
41
simultaneamente, inútil.
Cair da bolha é quase um golpe seco, que pode rachar o concreto. Porque a frustração
também é a fissura do hábito. E é na brecha, no defeito, no conflito, na rugosidade da
cicatriz, que moram outras cidades possíveis. É, também, paradoxalmente, pelas brechas
que se costuram os espaços frouxos, o choro frouxo, os problemas frouxos – fios frouxos,
prontos para serem amarrados. A brecha é pública. A praça é pública. Praça e Brecha:
pacificamente violentas, continuamente em guerra.
O rapaz, encostado na parede (bem na minha frente), barganhou com cautela a metade
do banco. Abaixou, no radinho, a voz do Sabotage – “um bom lugar a gente constrói com
humildade”. E foi se chegando.
Nesse brasil e nessa Ceilândia, o homem estranho (e preto) quando se aproxima traz a
latência do medo. Mas, latente mesmo é o preconceito, da minha geração branca, que
achou que rap era música de bandido. E que não percebeu que, de novo, na história da
Ceilândia não tem verdade simples. Tem disco de rap que moveu multidão. Tem cara feia
nos encartes, taco de beiseball, tem a morte, tem as chamas. Por trás dos discos, tem
Cláudio Raffaello Serzedello Corrêa Santoro – branco e ‘do plano’ –, pelejando pra
aguentar o peso do rap e o peso dos significados que atribuímos aos nomes.
Selado, no concreto da praça, tem medo e cansaço. Tem corpos prescritos. Mas também
tem arroubo, tem ímpeto e empuxo.
horário de Brasília.
Dentro do ‘Jovem’, tinha classe. Fora, também. O garoto do lado, com o olhar receptivo,
tentou me vender algo. Acenei, timidamente, um ‘não’. Depois, me ofereceu seda. Depois,
me pediu um isqueiro. Depois, se questionou, em silêncio, ‘pra quê’ eu ‘era’, ali. E me
ignorou na conversa entre homens. E me ignoraram, também, os que riscavam a quadra
de basquete, dançando sem bola e sem cesta.
Diante do cenho franzido e do olhar silencioso do rapaz ao meu lado, cortei o ar:
Mas há, também, na praça, mil pulsões. Há arte, antes do que nunca.
por Janaina Lopes Pereira Peres – Plano Piloto, 08 de outubro de 2019 (APÊNDICE A)
Enquanto os estudos em políticas públicas se esforçam para traçar as distinções entre politics
e policy16, para delimitar fatos e evidências e para produzir um tipo de conhecimento capaz de
aumentar a expertise, de aperfeiçoar a tecnocracia e de imputar cada vez mais racionalidade
ao policy process, experiências estéticas interseccionais, como a que emerge do movimento
hip hop da Ceilândia, nos jogam na encruzilhada. Como sugere Vaz (2011), em consonância
com os ritos associados a Exu17, faz-se necessário um ritual antropofágico e periférico, para
que versões marginais também possam ser narradas. Daí recorrermos à metáfora da
encruzilhada. Ao mesmo tempo em que representa o entrecruzamento ou a conjunção de
caminhos – a junção de espaços –, nela convergem, também, temporalidades – passado,
presente e futuro; vida, morte e renascimento. Se Exu é, no candomblé e na umbanda, o
multifacetado orixá orientador dos caminhos, o princípio explicativo dinâmico, o tradutor de
mundos e o gerador de movimentos (RUFINO, 2016), a encruzilhada, interpretada a partir dos
saberes da diáspora africana, representa um “campo de possibilidades”, em que se fundem
tempo e espaço (co-presenças), dando origem ao potencial transformador de Exu (idem, p.
59). Nesse sentido, a encruzilhada emerge como o lugar da dúvida e da incerteza que ativam a
reflexividade crítica, possibilitando a transformação de uma situação em outra, a
recomposição, o alargamento de quadros e a abertura de múltiplos caminhos (ou saídas, como
mencionado por Mãe Stella de Oxóssi, 2017).
O rapper baiano ‘Baco Exu do Blues’, além de ter incorporado Exu a seu nome artístico e de ter
dado ao seu primeiro álbum o título ‘Esú’, desponta, na atualidade, por seu engajamento nas
batalhas pela desconstrução-reconstrução de significados e pela transformação de valores. É na
encruzilhada que os “cidadãos-artistas” (BOAL, 2009, p. 91) transmutam energias negativas em
16
No texto que inaugura o campo, Lasswell (1951) enfatiza que a palavra policy – política pública – é comumente utilizada
em referência às decisões mais importantes que são tomadas, tanto na vida privada como na vida organizada, o que a deixa
livre das conotações negativas associadas ao político – politics.
17
“É assim que Exu [enquanto enugbarijó] inventa a vida enquanto possibilidade, engole de um jeito para cuspir de outra
forma totalmente transformada. (...) cospe marafo na encruza. Esse rito simboliza a invenção de novas possibilidades.”
(RUFINO, 2016, p. 61)
43
positivas, o que faz com que as interseções carreguem consigo a simbologia do encontro dos
opostos. Trata-se de uma oposição que se evidencia, também, em outras letras de rap – como na
letra da música ‘Encruzilhada’18, do grupo de rap ‘Cirurgia Moral’ ou na letra da música ‘Do pó
ao pó’, do Dj Jamaika, ambos da Ceilândia (Distrito Federal), em que invocam a encruzilhada
como o ponto de encontro do bem com o mal. A metáfora nos interessa, portanto, não como
representação de dicotomias, mas como ponto de encontro de diferentes. Em termos teórico-
metodológicos, interessa-nos, ainda, como “operadora de linguagens e de discursos” e como um
“lugar terceiro”, gerador de significados e de pluralidades, como foi proposto por Leda Martins
(1997, p. 25). E, interpretada pelas lentes do pragmatismo deweyano, nos interessa porque a
encruzilhada emerge como lugar da dúvida situada, ou seja, a própria situação geradora de
processos de investigação e de ação (DEWEY, 1908; 2007). Assim, adotamos uma
encruzilhada tripla – o ponto em que os estudos críticos em políticas públicas se encontram com
o pragmatismo e com a gestão social – não necessariamente como ponto de partida, em que se
exige a escolha de um caminho, mas como ponto de convergência de caminhos diferentes que,
pela aproximação, podem indicar outra saída.
Por meio da re-localização do olhar – que implica em mirar estes três caminhos ao revés,
objetivamos contribuir para o alargamento das fronteiras do campo de estudos em políticas
públicas e para a pluralização das vozes que nele ecoam, contribuindo, também, para sua
democratização. Alinhamo-nos, assim, a diversas outras tentativas de ruptura paradigmática,
de desenvolvimento de outras formas de pensar e de agir, de responder efetivamente a
problemas de pública relevância, de propor abordagens mais adequadas aos desafios
contemporâneos e de desenvolvimento de novos modos – mais inclusivos e mais
democráticos – de estudo, de análise e de desenho de políticas públicas. O recurso aos estudos
críticos em políticas públicas (sobretudo argumentativo e interpretativo), ao pragmatismo
(sobretudo deweyano) e à gestão social (em sua vertente brasileira) justifica-se na rejeição
comum a paradigmas científicos ou doutrinas filosóficas limitantes, que “fazem com que
algumas experiências pareçam sem importância, alguns pensamentos sejam impensáveis e
algumas questões de pesquisa potencialmente frutíferas pareçam indignas de investigação”
(GREEN, 2014, p. 80).
Justifica-se, ainda, no antagonismo ao modo positivista e cartesiano de fazer ciência que essas
correntes de pensamento compartilham. Tal abertura a outros valores, outras estéticas, outros
estilos de vida e outras experiências, consiste, nas palavras de Green (2014, p. 88) em um
“desafio ético”, democrático e pluralista, que nos parece fundamental no campo de estudos em
políticas públicas: o desafio de “olhar para os outros humildemente e escutá-los, em lugar de
julgar arrogantemente aquilo que desconhecemos, dando peso igual ou maior àquelas vozes que
foram comumente silenciadas ou desrespeitadas no passado (...)” (idem); o desafio de fazer com
que as políticas públicas direcionem-se a problemas públicos ‘reais’. O que defendemos é que o
papel precípuo das políticas públicas estatais é criar, também, um ambiente cultural em que as
minorias sociológicas – grupos sociais com baixa representatividade política, mas que
comumente constituem maiorias quantitativas – se sintam encorajadas a se engajar em torno de
18
Peço uma luz pra Deus, uma saída enfim.../ Minhas preces foram ouvidas, mas por quem não devia / De repente, no meio
da encruzilhada eu me via / dois caminhos, um destino, para a minha vida... (CIRURGIA MORAL, 1998, grifo nosso)
44
Chega de festejar a desvantagem / E permitir que desgastem a nossa imagem / Descendente negro
atual meu nome é Brown / Não sou complexado e tal / Apenas Racional / É a verdade mais pura /
Postura definitiva / A juventude negra / Agora tem voz ativa
Trecho da música ‘Voz Ativa’, do álbum ‘Escollha seu caminho’ (RACIONAIS, 1992)
Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que Lasswell (1951, p. 03) afirma que, por trás do
surgimento dos policy studies, havia a intenção de imputar mais racionalidade às decisões e ao
mesmo tempo em que lamenta que os “talentos altamente treinados” sejam escarços ou
demasiadamente caros, defendendo o “cultivo da técnica” como principal tarefa das policy
sciences, ele enfatiza que sua proposta de policy sciences é a proposta de uma ciência das
19
Para Frye (1983, p. 80) o olho arrogante é o que conecta todas as coisas e confere a elas significado, fazendo com que
aqueles que estão fora do campo de visão do olho arrogante, e, portanto, fora daquela rede de significados, sejam desprovidos
de qualquer sentido: “We fear that if we are not in that web of meaning there will be no meaning: our work will be
meaningless, our lives of no value, our accomplishments empty, our identities illusory.”.
45
políticas públicas da democracia – uma adaptação, nas palavras do próprio Lasswell (1971),
da abordagem recomendada por John Dewey e por seus colegas pragmatistas. Esta é, porém,
uma filiação polêmica. Tanto a criticidade (ou não) quanto o espírito democrático do
pensamento de Harold Lasswell têm alimentado importantes, no âmbito da revista Critical
Policy Studies (TORGERSON, 2019; ZITTOUN, 2019; BOULLOSA, 2019b) e das
Conferências Internacionais sobre Políticas Públicas (ICPPs)20. O que nos parece
indispensável salientar, porém – para além das incongruências entre as noções de
‘democracia’, em Lasswell (1927; 1931; 1951) e para Dewey (1998 [1937; 1939]) – é a
diferença entre o que o autor intenciona (ou escreve) e as consequências práticas que a obra
enseja – quer dizer, o que os leitores fazem dela (BOULLOSA, 2019b).
Isso porque os desdobramentos do campo de estudos em políticas públicas, seja nos Estados
Unidos ou no Brasil, evidenciam que “mesmo quando o conceito [de políticas públicas] se
torna, de alguma forma, mais plural, do ponto de vista de sua concepção social, tal pluralidade
é restrita ao processo de construção de soluções para um problema que já teria sido definido
por um grupo estreito e previamente estabelecido de intelectuais treinados para desenvolver
tarefas relativas à tomada de decisão” (idem, p. 02), o que demonstra a baixa densidade
democrática de tais processos. Nesse sentido, o entrecruzamento entre políticas públicas e
pragmatismo que propomos está pautado na proposta deweyana de radicalização da
democracia. E, para radicalizá-la, é necessário pensá-la como um processo diário e não como
um fim; é necessário ter fé no poder derivado de uma “inteligência pública coletiva”
(DEWEY, 1998 [1937], p. 05) e não apenas em uma inteligência técnica, que alimenta e
aperfeiçoa o policy process (LASSWELL, 1951). Comecemos, portanto, trazendo os
argumentos e a reflexividade, para dentro dos fluxos de políticas públicas.
2.1.1 Argumento
Entre as décadas de 1980 e 1990, ganhou força, no campo das políticas públicas (e, sobretudo,
nos Estados Unidos) um movimento denominado por Fischer e Forester (1993) de ‘virada
argumentativa’. Tal virada, de natureza pós-positivista, pressupõe, em sua base, a substituição
da prova ou da verificação científica (identidade com a verdade) pelo argumento (FISCHER,
2016); a substituição da racionalidade objetivista e instrumental por uma razão prática ou pelo
raciocínio-no-contexto; e a substituição dos documentos legislativos ou dos textos de autoria
do Estado ou de qualquer autoridade específica por outros ‘textos’ ou análogos de textos
(TAYLOS, 1971), construídos a partir de múltiplas interpretações e por múltiplos públicos
(YANOW, 2016). Reconhecer essa virada significa reconhecer que os significados não
apenas influenciam na política e no desenho de políticas públicas, mas que condicionam a
própria definição das situações e, consequentemente, dos problemas, determinando, muitas
vezes, os tipos de dados e evidências que embasarão o policy process (DRYZEK, 2006).
20
Na ocasião da 4ª Conferência (ICPP4, 2019), em Montréal, realizou-se uma mesa redonda intitulada “The Critical
Lasswell?”, com a participação dos mesmos pesquisadores que publicaram seus textos no volume 13, número 1, de 2019, da
Revista Critical Policy Studies: Douglas Trogerson, Rosana de Freitas Boullosa e Phillipe Zittoun.
46
A centralidade que vinha sendo conferida à linguagem (às palavras e a seus significados), no
âmbito da filosofia e das ciências sociais21, chamava atenção para a necessidade de ampliar o
olhar sobre as políticas públicas, que passavam – pelos olhos dos cientistas críticos em
políticas públicas – a ser vistas como “modos de expressão de significados humanos”
(YANOW, 2003, p. 229). Nesse sentido, as políticas públicas passaram a ser vistas como
resultantes de argumentos práticos que desencadeiam ações políticas. Dessa inflexão – que
traz para dentro do fluxo de políticas públicas não apenas os argumentos, mas as
interpretações sobre os argumentos, as deliberações críticas (formais e informais) e os valores
que subjazem as interpretações e as negociações (MAJONE, 1989) –, emergiram outros
métodos de análise de políticas públicas ou, como indica Dryzek (2016), outros quadros ou
lógicas de investigação, alternativas ao positivismo e ao racionalismo crítico, como são os
casos das análises discursivas (DRYZEK, 1987), interpretativas (CALLAHAN; JENNINGS,
1983), narrativas (ROE, 1994), argumentativas (FISCHER; FORESTER, 1993), feministas
(HAWKESWORTH, 1988), decoloniais, etc. Em comum, este métodos rejeitam a ideia de
existência de um mundo rígido, fechado ou acabado, rompem com a ideia de uma política
pública despolitizada e defendem a compreensão dinâmica e processual tanto do fazer
científico quanto do fazer política pública.
Há dois motivos principais, que justificam nosso recurso aos argumentos, enquanto categoria
teórico-metodológica. Em primeiro lugar, a escolha se deve ao fato de que tal recurso contém,
em si, a crítica à separação entre fato e valor. Recorrer a argumentos, que são uma “mescla
complexa de afirmações factuais, de interpretações, de opiniões e de avaliações” (MAJONE,
1989, p. 63), significa rejeitar que políticas públicas podem (ou devem) ser baseadas,
meramente, em fatos ou evidências. Em segundo lugar, porque a virada argumentativa, no
campo das políticas públicas, tem como objetivo primordial a democratização genuína da
investigação e da pesquisa como parte de um processo mais amplo de aprofundamento e de
democratização da própria democracia (FISCHER et. al., 2016), o que nos coloca em diálogo
direto tanto com a democracia radical e criativa defendida por Dewey (1998), quanto com a
proposta de “virada” epistemológica de Sousa Santos (2002; 2006).
21
Segundo Dryzek ( 2006), por meio do reconhecimento da ‘virada linguística’ (WITTGENSTEIN, 1968 [1921]) foi possível
aceder à importância da linguagem e dos significados não apenas na constituição da política, mas na elaboração da política
pública. Reconhece-se, ainda, que existem diferentes tipos de linguagem – a técnica e formalizada ou a que expressa
informalmente os conhecimentos experimentais cotidianos. “(...) de qualquer forma, a linguagem nunca é um meio neutro.”
(idem, p. 194). É nesse sentido, também, que nos parece conveniente a expansão da racionalidade comunicativa de Habermas
(1986), único caminho pelo qual será possível abarcar outras linguagens.
47
Por meio do recurso aos argumentos, podemos, ainda, pluralizar e diversificar nossas fontes e
nossos materiais de pesquisa, a partir da noção de que há argumentos por trás de teorias, por
trás de documentos e diretrizes, por trás de falas e discursos, por trás de narrativas, por trás de
textos e análogos de textos, por traz de ações e de práticas, verbais e não verbais, por trás dos
corpos e de seus deslocamentos nos espaços, por trás de situações problemáticas e por trás,
obviamente, de experiências públicas. Um argumento funciona, nesse sentido, como unidade
analítica traduzível em linguagem que está mais próxima do valor que orienta o policy
process. Interessam-nos, particularmente, não os argumentos de um ator (individual ou
isolado), mas os argumentos produzidos a partir de situações, no fluxo das experiências.
Afinal, se “a política pública é feita de linguagem” (MAJONE, 1989, p. 01) e se é impossível
dissociar o ‘martelo’ do ‘golpe’, também já não será possível conceber a dissociação entre
‘políticas públicas’ e os processos de argumentação desencadeados a partir do choque – de
perspectivas, de interesses, de ideias, de intenções, de experiências, de estéticas, de emoções.
2.1.2 Reflexividade
22
Aqui, reforçamos nossa crítica – em coro com Kemp (1985), Fischer (2016b), Dryzek (2016), Cullen (2017), Boullosa (et
al., 2019, no prelo) – à racionalidade comunicativa habermasiana, sobretudo em função de sua aposta em uma situação ideal
(e simétrica) de fala e em sua defesa de uma linguagem ou um discurso ‘competentes’ – um termo comumente associado a
fins técnicos, econômicos ou empírico-analíticos. Para Habermas (1986), o consenso derivado da argumentação é, em si, a
verdade. Para os cientistas críticos em políticas públicas, no entanto, um consenso só se aproximará de algum tipo de
‘verdade’ defensável, quando os processos de sua obtenção não reproduzirem vícios, o que só se alcança a partir da reunião
aberta e livre de uma pluralidade cada vez maior e mais heterogênea de vozes. Como denuncia Cullen (2017, p. 591), apesar
das boas intenções de Habermas, seu modelo universal reproduz apenas “o diálogo dos iluminados, a verdade dos que têm
poder, o consenso dos que têm tempo e possibilidades de sentar-se a conversar.”.
48
Diante das possibilidades abertas pelos estudos críticos e dos limites impostos pela centralidade
das palavras, nossa segunda proposta é a de direcionar o olhar ao pragmatismo deweyano23 do
século XIX e às releituras francesas que têm sido realizadas por autores como Daniel Cefaï
(1996; 2013; 2017) Alberto Frega (2016), Louis Quéré (2003) e Cedric Terzi (QUÉRÉ; TERZI,
2015). O recurso ao pragmatismo justifica-se em termos teóricos, metodológicos e
23
Importante salientar que nossa escolha pelo pragmatismo de John Dewey não se dá à revelia do reconhecimento e da
consideração das importantes contribuições de William James (1907), sobretudo no que diz respeito ao seu conceito de
verdade – que associa o verdadeiro/válido ao útil – e George Mead (1899), sobretudo no que diz respeito à provisoriedade da
verdade e à noção de ‘outro generalizado’ (MEAD, 1934), noções que estão no centro dos processos de construção de
gramáticas de justificação (BOLTANSKI; THÉVENOT, 1999; 2006), de gramáticas normativas (MENDONÇA, 2013) e de
arenas públicas (CEFAÏ, 2017). Ademais, justificamos nossa escolha no fato de que Dewey acrescenta, ao pragmatismo
peirciano, um maior grau de preocupação social e política (GONZALEZ; KAUFFMANN, 2012).
49
epistemológicos, porque não apenas nos permite ver práticas, como nos permite conferir
centralidade à experiência, o que nos ajuda a superar a fragmentação entre as dimensões social,
econômica, política, cultural, estética, artística, etc., no campo das políticas públicas. Colocar o
pragmatismo no centro deste campo de estudos tem, ainda, o intuito de preencher a lacuna que
se abriu entre o momento em que Lasswell (1971) invoca Dewey, como fonte inspiradora, e o
momento atual dos estudos em políticas públicas, no Brasil, que, mesmo quando desenvolvidos
sob uma perspectiva crítica, pouco se inspiram na noção deweyana de experiência ou em seu
radicalismo democrático24. Propomos, assim, retomar essa tradição, a partir de três categorias,
que nos parecem centrais essenciais para interpretarmos situações de políticas públicas: o
‘público’, a ‘prática’ e a ‘experiência estética’.
24
Uma análise rápida das pesquisas desenvolvidas a partir do campo de estudos em políticas públicas no Brasil é suficiente
para percebermos quão pouco mobilizada, por exemplo, é a obra The Public and its Problems, em que Dewey (1927)
desenvolve ideias bastante caras ao campo, a respeito da definição de problemas e da identificação de públicos, da
indissociabilidade entre fato e desejo (ou valor) ou entre público e político, dos pré-requisitos para a construção de
comunidades, etc.. Nesse sentido, citamos, como importantes contribuições que articulam a obra de Dewey ao campo das
políticas públicas ou da ação pública, os trabalhos de Boullosa (2013; 2015; 2019), Andion (et. al., 2017) e Gonsalves (et al.,
2019).
50
Inspirados pelas características acima, não tomamos o pragmatismo como uma epistemologia
geral, capaz de substituir todas as demais. Por um lado, consideramos que este caminho é
capaz de fomentar a reciprocidade e a reflexividade e de lançar luz sobre situações públicas,
situações práticas e situações que extrapolam o pensamento simbólico, estendendo-se ao
pensamento sensível (ou à estética). Por outro lado, reconhecemos que pode ser polêmica a
escolha de uma teoria-método desenvolvida, sobretudo, no início do século XX, nos Estados
Unidos, para estudar experiências contemporâneas, situadas no Brasil. Este foi, sem dúvidas,
um dos dilemas que nos jogava, a todo o momento, na encruzilhada. Construímos nossa saída
por meio da adição de um novo caminho à encruzilhada – o caminho da gestão social – e por
meio das considerações de Shusterman (1998) e de Kadlec (2007). Para Shusterman (idem),
John Dewey está entre os pensadores que mais avançam no sentido de superar a divisão entre
teoria e prática e entre conhecimento científico e outros saberes. Para Kadlec (idem), o
pragmatismo deweyano emerge como um aliado natural daqueles que acreditam que pessoas
comuns podem participar ativa e inteligentemente na determinação das condições em que
vivem, gerindo o curso dos acontecimentos. Nesse sentido, acreditamos que este caminho
possa indicar diferentes futuros de outros mundos possíveis, em diálogo com epistemologias
emergentes, sejam elas fundadas nos estudos decoloniais, nos estudos feministas, nos estudos
culturais ou nos estudos ancorados no paradigma da gestão social.
2.2.1 Público
Em termos gerais, Dewey (1927, p. 292) define o público como "um estado político"; em
termos específicos, define-o como um conjunto de indivíduos25 que, suficientemente afetados
(direta ou indiretamente, física ou emocionalmente), se veem implicados em uma situação
problemática, a ponto de exigirem algum tipo de reconhecimento ou a ponto de desencadearem,
a partir dessa percepção, algum tipo de ação ou prática, voltada ao teste de hipóteses e à
construção de respostas coletivas a problemas partilhados. Não significa dizer que o autor
defenda a ideia de um indivíduo onicompetente - que formula políticas, julga resultados,
conhece todas as demandas, encontra todas as soluções e sabe colocá-las em prática. O que o
autor defende é que os indivíduos, ao se engajarem em debates públicos, diálogos públicos,
confrontos públicos de perspectivas, de forma concentrada ou difusa, em espaços institucionais
ou não, formam comunidades de investigadores, por meio de um triplo processo de percepção-
reflexão-investigação, que permite que encontrem, por si próprios, seus caminhos.
Tanto Dewey (1957) quanto Mead (1913) defendem, portanto, que indivíduo e sociedade nunca
podem ser considerados em isolamento, porque se constituem, mutuamente, por meio de
25
Em referência à crítica a um possível liberalismo conservador deweyano, concordamos com Green (2014) quando defende
que a ênfase deweyana no indivíduo tem o intuito de contrapor-se à crença hegeliana de que os indivíduos estão sempre
subordinados a forças determinantes e de defender de que os indivíduos têm - e devem ter – autonomia (GREEN, 2014).
51
transações contínuas, em comunidades. Por esse motivo, Dewey (1998 [1927], p. 216) aposta
na restauração da vida comunal e na conformação de comunidades de investigadores, como
único caminho conveniente, para que os públicos possam “resolver adequadamente seus
problemas mais urgentes, encontrar-se e identificar-se”. A noção deweyana de público não
emerge, portanto, da ideia de que é público o que é gerido pelo poder público; não emerge da
ideia de que é público o que é de todos; ou da ideia que é público o que está localizado no
espaço público. Tampouco emerge do compartilhamento de argumentos racionais em um
espaço necessariamente central, institucionalizado e especializado, como a esfera pública
habermasiana (HABERMAS, 1964)26. O conceito deweyano de público dialoga com as noções
de experiência e de democracia e nos leva a compreender que, para que algo seja público,
precisa ser gerado e moldado a partir do conhecimento situado, produzido-no-contexto da
experiência (DEWEY, 1937), por aqueles mesmos indivíduos ou grupos que se consideram
público de uma situação problemática, o que nos abre espaço para incluir, nos processos de
deliberação e de decisão, todas as perspectivas marginais ou periféricas (CULLEN, 2017).
26
As contribuições de Habermas (1964), na direção de uma teoria democrática normativa pautada na participação pública e
na comunicação, na ‘linguagem competente’, na ‘comunicação especializada’, na ‘situação ideal de fala’, na ‘construção de
consenso’ e na ‘universalidade’ (MENDONÇA, 2016; CULLEN, 2017), por mais relevantes que tenham sido, contrariam
diversas premissas pragmatistas, sobretudo a que considera que toda forma de comunicação e de linguagem (inclusive a
emoção) é legítimas à deliberação.
27
Emprestamos, de Pankratz (1993) e da pesquisa ‘Emergência Política Periferias’ realizada pelo Instituto Update (2018), a
ideia de ‘fazedores’, para fazer referência específica a todos aqueles que se engajam em experiência públicas e fazem política
no dia-a-dia, para além dos espaços formais ou institucionalizados de ação e de participação políticas. Uma referência
específica aos que estão nas periferias, que se deslocam no território, promovendo encontros, articulações e trocas
socioterritoriais e que, assim, produzem soluções e inovações que possibilitam o atravessamento de fronteiras, por meio de
diálogos respeitosos entre realidades diferentes, em um ensaio diário (performático e dramático) de novas sociedades.
52
2.2.2 Prática
Há, porém, duas outras considerações sobre as práticas, que nos parecem fundamentais. A
primeira diz respeito à diferenciação entre ‘ação’ e ‘prática’ e, a segunda, diz respeito às
diferenças entre ‘prática pragmatista’ e ‘habitus bourdieusiano’30 (BOURDIEU, 1996). Em
seu esforço de apresentar uma ontologia da prática, Frega (2016) diferenciou estes dois
universos semânticos pontuando que, enquanto as noções de ação e de atividade referem-se,
sobretudo, às dimensões individual e intencional (os motivos que levam os atores a agir), as
práticas referem-se, mais bem, às dimensões social, contextual, institucional e técnica dos
atos (como se a prática fosse a ação-no-contexto). Sobre a escolha pela noção pragmatista de
prática, em detrimento do uso mais difundido nas ciências sociais – que entende ‘prática’
28
Sobre a ‘virada prática’ no campo das ciências sociais, ver Garfinkel (1967), Giddens (1989), Bourdieu (1990) e Schatzi (2001).
29
Vale esclarecer que, no âmbito do pragmatismo clássico, privilegiamos os escritos de James e, principalmente, de Dewey,
por concordarmos com Zittoun (2014) sobre os avanços que eles promovem a partir das ideias peircianas, politizando o
pragmatismo. Além disso, Dewey contribui com o processo de ampliação do campo de estudos em políticas públicas, que
advogamos, por meio de seus conceitos de público, de público político e de sua busca por uma democracia criativa e radical
(DEWEY, 1998 [1937]; 1998 [1939]). Nesse mesmo sentido, é importante notar as contribuições de James no que diz
respeito à importância de transformação dos quadros valorativos, para a transformação das práticas e, consequentemente da
vida social: “certos problemas, certos debates filosóficos, [têm] importância real para a humanidade, porque as crenças que
eles colocam em jogo levam a modos de conduta bastante diferentes” (DEWEY, 2007, p. 231).
30
Sobre diferenças e semelhanças entre Bourdieu e o pragmatismo americano acerca do conceito de habitus, ver Queré
(2016) e Shusterman (2015). Enquanto a noção de habitus confere centralidade à estrutura e pressupõe uma concepção
hierarquizada de sociedade, o pragmatismo defende uma noção de Sociedade experimental e cooperativa (DEWEY, 1927;
HONNETH, 2001).
53
como uma estrutura tácita, reveladora das formas de (re)produção da ordem social e fundada
no habitus bourdieusiano –, vale dizer que o que nos interessa não são as continuidades que
revelam a ordem social, mas, justamente, as rupturas. As possibilidades de transformação,
ressignificação, descontinuidade e inauguração de novas formas de organização, de novo
arranjos socioterritoriais, de novas formas de fazer, centrados na autonomia individual e
social e no potencial criativo da espontaneidade, do improviso, da gestão social e da
construção coletiva de soluções, ‘de baixo para cima’. E, como bem lembra Frega (2016),
nem o marxismo nem o estruturalismo conferem espaço suficiente à autonomia dos atores, ao
potencial criativo, às possibilidades de autorregulação e de autotransformação, ao
reconhecimento de múltiplas racionalidades e à problematização da normatividade como
modeladora das condutas, na explicação da vida social.
É a ideia de que um território nada mais é do que ‘o uso que se faz dele’ (idem), que costura o
conceito de público ao conceito de prática, no campo das políticas públicas. Em uma evidente
articulação com a filosofia pragmatista, Crosta (2003; 2006; 2009) compreende as práticas de
uso como constitutivas tanto da prova dos territórios (por seu funcionamento), quanto da
prova de seu caráter público, o que ele sintetiza na defesa de que as práticas de uso do
território constituem, simultaneamente, a política (politica) e as políticas públicas (politiche).
Este caminho nos auxilia a interpretar tanto os processos de formação de público, quanto os
processos de formação socioterritorial; auxilia-nos, ainda, a interpretar o próprio policy
process como um conjunto de práticas. Pela observação e pela interpretação das diversas
formas como os territórios são praticados (aí incluídos os usos não intencionais, não
institucionalizadas, não orquestradas e não tradicionais), portanto, podemos estudar
‘experiências públicas’.
Ainda que nosso primeiro impulso seja o de associar a experiência estética ao que é belo, a uma
experiência vivenciada em um lugar bonito, por exemplo, Dewey (2010) contrapõe esse
54
automatismo em ‘Arte como Experiência’, ao vincular sua noção de experiência estética a tudo
que é precioso e impregnado de valor. É necessário ter em mente, porém, que a tradução da
experiência em linguagem, oral ou escrita, não é tarefa fácil. Em sua tentativa de tradução,
Tomlin (In: SHUSTERMAN; TOMLIN, 2007) sugeriu expressões como ‘experiência que
transmite conhecimento’, ‘experiência ativa e catártica’, ‘um tipo de experiência diferente das
demais’ e etc., mas o que nos parece mais importante, na obra de Dewey (2010), é que o que
diferencia a experiência comum da experiência estética é a dimensão afetiva. Uma experiência
estética é aquela que nos afeta ao ponto de nos fazer duvidar, de nos fazes imaginar outros
caminhos possíveis, de nos fazer refletir sobre hipóteses e de nos inserir em uma comunidade de
investigadores (afetados) – é a experiência que nos afeta ao ponto de nos fazer públicos. A
experiência estética deweyana é de um tipo que nos permite compreender outras culturas,
outras formas de ser, de dizer, de fazer, de pensar; é uma experiência que nunca se encerra em
si mesma e que ativa nossas relações com o mundo. É a experiência mais corporificada e
impregnada do social (SHUSTERMAN, 1992). Ao envolver todo o corpo, amplia o
conhecimento e se constitui, ela mesma, como dimensão de aprendizagem (SILVA; VAZ,
2015). Por meio delas, produzimos nossa “forma de vida” (COMETTI, 2008, p. 170) e
conferimos densidade política a nossas práticas, articulamos identidades e territórios – em
termos objetivos e subjetivos.
A arte é, portanto, para Dewey (2010), a continuação da vida 31. Para o autor, a qualidade
estética não é característica exclusiva de um objeto, de um produto, de uma obra de arte, da
mesma forma como não se encerra na crítica artística. Ao contrário, a qualidade estética pode
permear qualquer experiência e pode ser atribuída a processos. Assim, mesmo o desinteresse
pelo prazer estético ou sua negação como valor, são suficientes para a constituição de uma
dimensão estética, que não pode nunca ser reduzida ao gozo individual, ao gosto associado à
verdade, à beleza ideal, objetivada e estereotipada ou à promessa de felicidade. A dimensão
estética revela-se, para Dewey (2010), no processo multissensorial e reflexivo, por meio do
qual somos capazes de restaura – de forma sempre parcial e situada – os sentidos, os
31
Este talvez seja o principal aspecto que distancia a teoria estética de Dewey (2010) da estética analítica bourdieusiana. Em
um artigo intitulado Pierre Bourdieu and Pragmatist Aesthetics: between practice and experience, Shusterman (2015)
discorre sobre as divergências irreconciliáveis entre a estética pragmatista e a estética analítica de Bourdieu, para quem a
noção de estética popular seria essencialmente contraditória, uma vez que, para este autor, a estética é definida em oposição à
cultura popular ou à vida prática.
55
Diante de tantos caminhos, parecia faltar um que nos fortalecesse não apenas enquanto
pesquisadores críticos do campo de estudos em políticas públicas, interessados no
desenvolvimento de pesquisas sociocêntricas e implicadas, mas, também, enquanto pesquisadores
brasileiros. Assim, não adotamos, nesta pesquisa, a gestão social como um conceito – que
emergiu, na década de 1990, com o intuito de fazer frente às tentativas de enquadramento de
novas experiências e de novos arranjos governativos em uma ótica predominantemente neoliberal
ou estratégica – mas como um paradigma (CANÇADO; PEREIRA; TENÓRIO, 2015)
epistemológico e deontológico que nos permite repensar, a partir de contextos específicos, a
gestão de públicos, de práticas, de temporalidades, de territorialidades, de políticas e de
experiências. Nesse sentido, como apontam França Filho e Boullosa (2015), a gestão social
assume a função de uma tecnologia social de organização, de mediação e de um tipo de tomada
de decisão idealmente dialógica, horizontal, inclusiva, coletiva, transparente, livre de coerção e
comprometida com o desencadeamento de processos de aprendizagem e de coprodução
(sociopolítica, socioeconômica, socioambiental, sociocultural, etc,).
Escolhemos este caminho, sobretudo, porque por trás do argumento da ‘gestão social’, estão
os valores do escrever a lápis (CANÇADO, 2011) e do fazer junto (BOULLOSA, 2013),
fundados na defesa de que estes processos precisam ser diariamente reativados, refeitos e re-
imaginados coletivamente. De forma análoga à tarefa que Dewey (1998 [1939]) atribui à
democracia, parece-nos que a tarefa atribuída à gestão social é a de sempre fomentar novas
experiências, mais livres e mais humanas, experiências que todos compartilhem e para a qual
todos contribuam. Assim, por meio da ‘gestão social’ – entendida como um conjunto de
valores, de saberes e de práticas (SILVA JR et. al., 2008; ARAÚJO, 2012) – propomos uma
costura semelhante a que fizemos a partir do conceito de reflexividade, mas enfatizando a
necessidade de atenção aos diferentes arranjos governativos e às diferentes temporalidades e
espacialidades que coexistem no território brasileiro e que moldam, por exemplo, as
experiências situadas nas periferias brasileiras.
Quando nos referimos à gestão social como um dispositivo ou uma tecnologia social, não nos
referimos a uma tecnologia de obtenção de consenso – como pretendido pelo modelo
habermasiano, por exemplo –, mas, sim, de compartilhamento e de cogestão de ideias,
intenções, interesses, opiniões, desejos, afetos, intuições, divergência, conflitos, etc., visando
um novo entendimento, adequado a cada realidade (FRANÇA FILHO; BOULLOSA, 2015).
Pelo caminho da gestão social, percebemos quão porosas e maleáveis são as fronteiras do
mundo social, dos problemas públicos, dos conceitos ou dos valores que nos empurram à
ação. E, se são porosas e maleáveis, podem ser deslocadas e podem ser impregnadas, cada vez
mais, com novas vozes e com novos significados. Não se sai dessa encruzilhada se não por
meio da radicalização da virada argumentativa e da reflexividade (FISCHER, 2016b;
DRYZEK, 2016) e, consequentemente, por meio do fomento a um tipo de democracia mais
radical e mais criativa (DEWEY, 1998 [1937; 1939]).
sobretudo por sua dimensão sensível e subjetiva, quando as estudamos como se fossem meras
‘coisas’ – produtos ou resultados (quase-naturais) da intenção (seja ação ou omissão) dos
atores que detém poder – desperdiçamos as experiências. Ao contrário, quando as estudamos
enquanto fluxos impregnados de subjetividade, enquanto processos dinâmicos sensíveis,
percebemos que, em seu seio, podem coexistir múltiplas verdades, múltiplos argumentos e
múltiplas racionalidades (inclusive conflitantes ou divergentes). Abrimos, portanto, caminho
para a construção de um arcabouço analítico que, ao invés de ser problem-oriented, como
proposto por Lasswell (1951), possa ser experience-oriented. E, recorrendo à gestão social,
enfatizamos que, para entender o hip hop, a Ceilândia ou qualquer outro sujeito de pesquisa,
não é suficiente percorrer os pensamentos de quem nunca os experimentou. Todas as formas
de ver e de interpretar dependem do ponto de onde vemos e de onde interpretamos. Ver e
interpretar são, portanto, ações contingentes e provisórias. Mudam conforme muda nossa
forma de pensar, de dizer, de fazer, de julgar, de imaginar, de responder, de conferir
significados, de participar.
Conforme indicamos no início deste artigo, o recurso metafórico à encruzilhada não tem o
intuito de indicar um ponto de chegada, de traçar um caminho único ou de desmerecer outros
caminhos. Ao contrário, buscamos nos unir aos esforços crítico-reflexivos que já estão em
curso, indicando alternativas de olhar. E, em resumo, o olhar que lançamos para o campo de
estudos em políticas públicas é radicalmente sociocêntrico, está fortemente impregnado de
política (politics), de cotidiano e se esforça para manter-se empático, crítico e reflexivo no
decorrer de seu percurso. É este olhar que nos permite perceber que há, no mundo das
políticas públicas, muito mais do que temos visto pelas lentes tradicionais. Mas, se por um
lado, a percepção de que os olhares tradicionais têm desperdiçado experiências
potencialmente criativas e transformadoras nos abre uma nova agenda de pesquisa, por outro
lado, ela nos joga novas encruzilhadas: afinal, que experiências podem ser qualificadas como
públicas, no campo das políticas públicas? Em que medida o conceito de ‘experiência
pública’ pode fomentar reflexões acerca da dimensão estética das políticas públicas? E mais:
quando supomos estar diante de uma experiência pública (digna, portanto, de ser
minuciosamente interpretada a partir do campo de estudos em políticas públicas), como
podemos estudá-la? Quais devem ser as estratégias de delineamento de uma pesquisa dessa
natureza? Com que instrumentos? A partir de quais materiais de pesquisa?
Se, da primeira encruzilhada, saímos pelas brechas abertas pelos estudiosos críticos, por
pragmatistas como John Dewey e Charles Sanders Peirce, pelos caminhos abertos pela gestão
social e por cientistas como Lucrécia Ferrara, por exemplo, para sair da segunda encruzilhada,
é necessário aprofundar a noção de ‘experiência pública’ e construir um arcabouço teórico-
metodológico e uma matriz que nos permitam estudá-la. Um arcabouço e uma matriz que nos
permitam ver não a “Ipásia” de Calvino, mas a Ceilândia dos praticantes do movimento hip
hop. A saída da encruzilhada precisa ser abdutiva: ou seja, a partir da situação. Porque é a
experiência que alimenta o fluxo de políticas públicas com outros materiais, com outros
atores, com outros saberes e com outros valores, capazes de conferir-lhe densidade e
pluralidade. E, ao mesmo tempo em que as experiências públicas conferem mais qualidade ao
58
fluxo de políticas públicas, elas suscitam (no público que se engaja a elas) outra consciência
acerca de seu papel.
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67
RESUMO
Neste artigo, buscamos desenvolver, a partir da teoria estética de John Dewey (2010) a noção de
‘experiência pública’. A partir de uma experiência estética – vivida no âmbito do movimento hip hop
da Ceilândia (Distrito Federal) – e de um levantamento bibliográfico multidisciplinar, objetivamos
aprofundar uma noção possível de ‘experiência pública’ e situá-la no campo de estudos em políticas
públicas. Por meio da problematização dos conceitos e da reflexão acerca da dimensão estética
inerente a eles, indicamos o que uma ‘experiência pública’ pode ser. Ao final deste artigo, que é parte
de um esforço maior de pesquisa – voltado à construção de bases teórico-metodológicas e analíticas
alternativas – indicamos que as ‘experiências públicas’ distinguem-se de experiências singulares ou
estéticas estudadas no âmbito da filosofia ou da sociologia, por duas características principais: por sua
capacidade de construir uma mesoescala de práticas e por sua capacidade de articulação e de
interlocução com estruturas formais, estatais ou institucionais da política e das políticas públicas. O
contato (mesmo indireto) com o outro, com o diferente, tem o potencial de ampliar repertórios de
ação, de significados e de valores. Por constituírem, ambas, fluxos, nem políticas públicas nem
experiências públicas podem dar-se isoladamente, porque sempre dependem de um processo
cumulativo – de outras experiências, de práticas reflexivas, de inovações e de aprendizagem.
Defendemos que as experiências públicas têm o potencial de gerar a força centrífuga que empurra
fronteiras para fora, dando-nos a possibilidade de abarcar novos elementos, outras visões de mundo e
todo um campo estético capaz de conferir qualidade e complexidade aos fluxos de políticas públicas,
contribuindo para sua democratização.
ABSTRACT
Based on the aesthetic theory of John Dewey (2010), we seek to develop the notion of 'public
experience'. Departing from an aesthetic experience - lived within the scope of the hip hop movement
in Ceilândia (Distrito Federal) - and from a multidisciplinary bibliographic survey, we aim to deepen a
possible notion of 'public experience' and to situate it in the policy studies field. Through the
problematization of traditional concepts and the reflection on its aesthetic dimensions, we indicate
what a ‘public experience’ can be. At the end of this article, which is part of a larger research effort -
aimed at building alternative theoretical-methodological and analytical bases - we indicate that 'public
experiences' are distinguished from singular or aesthetic experiences studied within the scope of
philosophy or sociology, for two main characteristics: for its capacity to build a mesoscale of practices
and for its capacity of articulation and interlocution with formal, state or institutional structures of
politics and of public policies. The connection (even indirect) with the other, with the different, has
the potential to expand repertoires of action, of meanings and of values. Because they are both a flow,
neither public policies nor public experiences can take place in isolation, because they always depend
on a cumulative process - of other experiences, reflective practices, innovations and learning. We
argue that public experiences have the potential to generate the centrifugal force that expands the
boundaries of the public policy field, giving us the possibility to encompass other elements, other
world views and an entire aesthetic field capable of giving quality and complexity to the policy flows,
contributing to their democratization.
INTRODUÇÃO
32
O Setor P Norte está localizado na periferia da Ceilândia (Região Administrativa - RA IX), que, por sua vez, é periferia do
Plano Piloto (RA I), o “centro” de Brasília/Distrito Federal.
33
Texto construído a partir de conversas, entrevistas e oficinas realizadas com o rapper Japão (2016; 2017) e a partir das
músicas “Ceilândia Resistência” (VIELA 17, 2001) e “Vou em Frente” (VIELA 17, 2005).
69
de nos fazer enxergar essa experiência, sem que precisemos sair do campo de estudos em
políticas públicas. Agora, indutivamente (a partir do caso do movimento hip hop da
Ceilândia), aprofundaremos as reflexões que nos conduzem à defesa do que uma ‘experiência
pública’ pode ser. Para o bem ou para o mal, não concluiremos este artigo com um conceito
de ‘experiência pública’ ou como alguma afirmação sobre o que ela é. Por dois motivos
principais: em primeiro lugar, porque a qualidade de pública não pode ser atribuída a uma
experiência a priori; em segundo lugar, porque, à exemplo do deslocamento que propomos no
Artigo 1 – ver políticas públicas como processos e não como fenômenos objetivos ou
resultados da ação de atores poderosos –, aqui, as experiências públicas também nos
interessam como processos dinâmicos (em constante transformação) e não apenas como
resultados do engajamento de um público em torno de uma situação problemática (DEWEY,
1927). O encontro com o rapper Japão foi o choque que nos colocou em ação: a partir dele,
intuímos que o movimento hip hop da Ceilândia têm o potencial de ser uma ‘experiência
pública’, refletimos sobre as consequências dos movimentos do hip hop no e com a Ceilândia,
imaginamos suas relações com o campo de políticas públicas e construímos bases teórico-
metodológicas capazes de sustentar nossa imaginação.
Com isso em mente e considerando que visibilidade e inteligibilidade podem ser construídas,
buscamos entremear a experiência vivida na Ceilândia às teorias da experiência e da estética
de Dewey (1929; 1997; 2010), para chegar a uma noção de ‘experiência pública’ no campo
das políticas públicas35. Os critical policy studies tiveram, nesse percurso, o importante papel
de ponte e de guarda-chuva, sobretudo porque entendemos que o pós-positivismo que embasa
os critical policy studies constitui, no campo das políticas públicas, a tradição filosófica com
as melhores condições de acomodar, confortavelmente, pesquisadores interessados em lançar
outros olhares sobre as politicas públicas e em construir visibilidades: interessados em ver
34
Atualmente sediado no Departamento de Gestão de Políticas Públicas da Universidade de Brasília – UnB e coordenado
pela Professora Drª. Rosana de Freitas Boullosa.
35
Embora o conceito de ‘experiência pública’ já seja bastante discutido pela sociologia francesa (QUÉRÉ, 2003; CEFAÏ,
2013; QUÉRÉ; TERZI, 2015; CEFAÏ, 2017), ele é pouco mobilizado pelas ciências das políticas públicas, seja no âmbito do
Ensino, da Pesquisa ou da prática. Ademais, temos observado, sobretudo ao longo da última década, a popularização do
termo ‘experiência’ associada a sua comoditização. Da indústria de alimentos à indústria turística, passando pelos prestadores
de serviço, não se vendem mais meros produtos, mas experiências.
70
algo já conhecido sob uma nova luz, o que é, segundo Dewey (1910), sinônimo de imaginar
outros mundos possíveis.
Nossa intuição – de que o movimento hip hop da Ceilândia podia ser uma experiência pública
com o potencial de dinamizar o fluxo e de transformar situações de política pública – foi
ganhando consistência na medida em que avançávamos nas leituras de ‘The Argumentative
Turn in policy analysis and Planning’ (FISCHER; FORESTER, 1993) do ‘Handbook of
Critical Policy Studies’ (FISCHER et al., 2016), de ‘Public and its Problems’ (DEWEY,
1927) e de ‘Arte como Experiência’ (DEWEY, 2010) e na medida em que a
compartilhávamos com a Rede de Pesquisadores em Gestão Social – RGS, no âmbito dos
encontros nacionais de pesquisadores em Gestão Social (ENAPEGS). Há sabedoria e alta
consciência na intuição e nosso percurso atesta que ela não é nem passiva, nem solitária
(FALCÃO, 2013). E, se como defendia Dewey (1931), as questões sociais, a epistemologia e
a estética são, para Dewey, indissociáveis, então a produção de conhecimento pressupõe
intuição (FALCÃO, 2013, p. 278). Sua prova de validade está na própria experiência. E na
medida em que nossa intuição ia ganhando consistência, ia ficando mais claro, também, que
pensar em termos de ações, intenções e argumentos não era suficiente para construir a
inteligibilidade das experiências. Há uma importante dimensão sensível na experiência, que
não pode ser apreendida se não por meio da indissociabilidade entre a compreensão do
mundo, a produção de conhecimento e a estética, como defendeu Dewey (1931).
Começamos, portanto, pela crítica à ideia de que ‘políticas públicas’ são resultados do
‘governo em ação’ (LASSWELL, 1951; LASSWELL; KAPLAN, 1952) ou que são aquilo
que o Estado faz ou deixa de fazer (DYE, 1972). Tal crítica não é nem inédita nem recente,
remontando, talvez, à própria cunhagem do termo policy sciences36 e ao subsequente
desenvolvimento da policy orientation de Harold Lasswell (1951), momentos que são
considerados marcos de origem deste campo de estudos aplicados, que nasceu para se
distinguir da ciência política (BOULLOSA et. al., 2019, no prelo).
36
Segundo Torgerson (2019), o termo policy sciences foi utilizado, pela primeira vez, em 1943, por Harold Lasswell, em um
memorando pessoal não publicado. O termo teria sido posteriormente publicado em 1948 e largamente repetido no livro “The
Policy Sciences”, editado por Lerner e Lasswell (1951).
71
É importante enfatizar, portanto, que, ainda que Lasswell (1951) tenha estado na vanguarda
dessa discussão, o desenvolvimento intelectual deste campo deve-se a inúmeras contribuições,
como as de Dahl e Lindblom (1953), Lindblom (1959) e Easton (1965), que criticavam,
sobretudo, o excesso de racionalidade instrumental no policy process; de Weiss (1972), Rein e
Schön (In: WEISS, 1977) e Lindblom (1979), que advogavam pela indissociabilidade entre
policy e politics, entendendo que toda política pública está fundada em interesses e em
quadros valorativos específicos; de Tribe (1972), que criticava a difusão de uma abordagem
fundamentalmente econômica, pautadas em trade-off, fronteiras de produção, curvas de
indiferença, análises custo-benefício, etc.; ou, ainda, de autores como Callahan e Jennings
(1983), Torgerson (1985), Stone (2002), Dryzek (1982; 1989), Majone (1989) e Fischer e
Forester (1993) que, já sob o rótulo dos ‘critical policy studies’, começaram a trazer a
linguagem para o centro do campo, entendendo que a análise de políticas públicas é uma
atividade eminentemente interpretativa e argumentativa.
Por mais que as críticas tenham sido múltiplas, contundentes e tenham vindo de diversas
direções37, publicações recentes, de autores como Yanow e Schwartz-Shea (2006), Durnová e
Zittoun (2011), Fischer (et. al., 2016), Boullosa (2013; 2019, no prelo) e Boullosa (et. al., 2019,
no prelo) atestam, que, apesar de consideráveis evoluções teóricas e até metodológicas, a prática
das políticas públicas pouco mudou. Segundo Anheier (2018), a diversificação do campo das
políticas públicas produziu uma coexistência cacofônica, permeada de tensões e de rivalidades
que, ainda que tenham frutificado em termos intelectuais, sobretudo no âmbito da pesquisa, não
tiveram força suficiente, para transformar o fazer político, as burocracias estatais e as estruturas
de gestão, que buscam, obstinadamente, se manter pretensamente neutras e orientadas à solução
de problemas pré-formatados (problem-oriented). A reconciliação entre democracia e
racionalidade, portanto, exige que avancemos para além da obsessão instrumental (DRYZEK,
1989). Não à toa, Fischer (2016, p. 164) denuncia que “as ciências sociais, as ciências empíricas
da sociedade, falharam grandemente” no que diz respeito à produção de conhecimento útil e à
predição do mundo e da sociedade, do mesmo modo que as políticas públicas vêm falhando,
também grandemente, em reduzir as desigualdades, em promover o bem-estar e a justiça
sociais, em fomentar melhores condições cotidianas de vida para a coletividade e em aprofundar
uma democracia que ainda é de baixa intensidade.
Foi, inclusive, no contexto de déficit democrático, que marcou a segunda metade do século
XX, no Brasil e no mundo, que o modelo norte-americano de ‘política pública’ – entendida
como “uma atividade de aconselhamento realizada por burocratas para subsidiar a decisão de
políticos eleitos” (FARAH, 2016, p. 963) – chegou ao Brasil. Acordos bilaterais, no âmbito
da Aliança para o Progresso38, garantiram o financiamento necessário à estruturação de cursos
37
Lascoumes e Le Galès (2012) chegam a considerar que o termo ‘política pública’ é datado e obsoleto, propondo sua
substituição por ‘ação pública’. De todo modo, apesar da radicalidade da proposta e da pluralização dos atores políticos
levados em consideração, o centro do conceito segue dominado por grandes atores, atores que têm alto poder de atuação e de
barganha e o olhar segue voltado à macro-escala de ação.
38
Dentre os beneficiados por tais convênios, estão o Departamento Administrativo do Serviço Público - DASP (órgão do
governo federal, criado em 1938), a Escola de Administração de Empresas de São Paulo - EAESP da Fundação Getúlio
Vargas - FGV, os curso de Administração da Universidade Federal da Bahia - UFBA e da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul - UFRGS e os cursos de pós-graduação da Escola Brasileira de Administração Pública – EBAP. É interessante
notar que a participação no convênio foi recusada pela Faculdade de Administração e Ciências Econômicas da Universidade
72
O que nos interessa, portanto, é verificar – a partir da experiência vivida na Ceilândia – quais
outros atores e quais outros materiais precisam ser abarcados por estes fluxos, para que
Federal de Minas Gerais - FACE/UFMG, em função, aparentemente, do alto grau de ingerência dos Estados Unidos na
Escola, como contrapartida dos recursos (WANDERLEY, 2016).
73
caibam, dentro das fronteiras do campo de estudos em políticas públicas, outras situações e
outras experiências capazes de nos ajudar a tratar os problemas que temos. Conscientemente,
colocamo-nos em uma situação delicada. Por um lado, não pretendemos defender que o termo
‘política pública’ seja substituído pelo termo ‘experiência pública’, porque, ainda que sejam
termos com natureza muito distinta, não são excludentes. Por outro lado, pode haver, em cada
um dos conceitos, características conflitantes, o que poderia nos levar a crer que se tratam de
termos inconciliáveis. Não são. Se concordamos com Dewey (1959) que o compartilhamento
(a comunicação) de experiências (sobretudo as divergentes) é um pré-requisito para a
conservação, a renovação, a ampliação e o aperfeiçoamento dos modos de vida, dos arranjos e
dos valores sociais e éticos (DEWEY, 1959), então, o conflito (ou o choque) emerge como
condição para a existência de um fluxo de políticas públicas, para uma comunidade de
investigadores e para o próprio desencadeamento de experiências que podem, no seio deste
fluxo, tornarem-se públicas.
Muito mais do que propor um conceito novo, temos o intuito de, por meio da reflexão sobre
seus significados, promover deslocamentos do olhar: de uma perspectiva estadocêntrica (que
entende política publica como ‘aquilo que o Estado faz’) para uma perspectiva radicalmente
sociocêntrica (que entende que política pública é, também, ‘tudo aquilo que nós fazemos’) 39;
de uma perspectiva centrada no debate sobre os melhores fins para uma política preocupada
em imaginar outros meios; de um apolítica pública voltada à solução de problemas pré-
estabelecidos (problem-oriented) para uma perspectiva que não seja centrada no problema,
mas que seja centrada na experiência e voltada à aprendizagem. Buscamos, ainda, escapar da
tradição de dividir o policy process em etapas, defendendo que tal tendência seja substituída
pelo esforço de reflexividade – ou seja, a capacidade de pensar sobre o que fazemos enquanto
fazemos; a capacidade de sermos transformados por experiências individuais e coletivas
enquanto também transformamos as experiências futuras, a partir de experiências anteriores.
Em outras palavras, acreditamos que a noção de ‘experiência pública’ – além de permitir que
outros modos de fazer, pensar e dizer coletivos [de outras práticas, nas palavras de Crosta
(2009)] emerjam – carregue consigo uma possibilidade real de compreensão e de tratamento
de problemas públicos, de forma mais transversal, multidimensional, complexa e democrática.
39
Não com a intenção anárquica de ruptura com o Estado ou com agentes estatais, mas com a intenção de propor a sutura ou o
‘religamento’ entre os atores socioterritoriais e o território, entre as práticas de uso e os processos de intervenção (estatais ou não)
que objetivem a indução de algum tipo de desenvolvimento (aí incluídas o que chamamos, tradicionalmente, de políticas
urbanas, políticas territoriais, políticas de desenvolvimento ou políticas sociais).
74
interessante notar que, embora a noção de ‘experiência pública’ que propomos neste artigo
inspire-se fortemente nos significados que John Dewey atribuiu à experiência (sobretudo à
noção de ‘experiência estética’) e ao público, o próprio Dewey não utilizou, até onde
pudemos verificar, essa expressão (DEWEY, 1910; 1927; 1929; 1937; 1950; 1963; 1997;
DEWEY, 1998 [1937; 1939]).
Antes de adentrarmos à noção de ‘experiência estética’, que nos incitou a refletir acerca da
dimensão estética das políticas públicas e que nos conduziu, por sua vez, à noção de
‘experiência pública’, gostaríamos de evidenciar, brevemente, de que política e de que
público estamos (ou deveríamos estar) falando. Tais esclarecimentos nos parecem
fundamentais, uma vez que o desenvolvimento da noção de ‘experiência pública’ parte do
pressuposto de que as ‘políticas públicas’ padecem de dois males principais: são pouco
políticas e pouco públicas. Mais especificamente, são pouco políticas, se considerarmos o que
Rancière (2004; 2005) e Mouffe (2003; 2005) nos dizem sobre a política, na contramão do
apreço do campo das políticas públicas pelo consenso, pela neutralidade, pela tecnicidade,
pela replicabilidade, pela instrumentalidade, pela efetividade, etc.; e são pouco públicas, se
tomarmos em conta a concepção de Dewey (2927) sobre público, que se opõe ao senso
comum, negando-se a reduzir o público a um público-multidão, um público-espectador ou um
público-beneficiário (passivo) das ações do governo e negando-se, ainda, a reduzir o termo
‘público’ ao que resulta da ação de um dos poderes públicos.
Quando falamos em ‘política’, portanto, não estamos nos referindo apenas ao exercício do
poder ou à luta por poder, mas sim à
Concordamos com estes autores que esta seja, precisamente, a negação da política e que a
toda busca obcecada por este tipo de consenso racional – ou por alguma uniformidade estética
– subjaz não apenas uma tentativa de despolitização, mas algum tipo de exclusão, de
ocultamento de ideias ou de silenciamento de vozes dissidentes, o que enfraquece,
sobremaneira, a democracia (MOUFFE, 2003; RANCIÈRE, 2005). Seguimos, portanto, por
outro caminho: o de reconhecer a impossibilidade de erradicação da dimensão dissensual e
conflituosa da vida em sociedade (MOUFFE, 2005) e de não perseguir acordos ou consensos,
mas entendimentos em que as diversas partes, mesmo discordando, passam a entender melhor
– no curso de processos interpretativos e argumentativos – sua situação e a situação do outro
(FORESTER, 2012). E, para que tais processos sejam críticos, é necessário que:
Não se trata, segundo Forester (2012), da ficção de uma comunicação ideal, mas de um
esforço contínuo e consciente de construção coletiva de novas práticas e de novos arranjos de
governança, seja diante das assimetrias de poder, das desigualdades socioculturais ou de
ideologias inconciliáveis. Um esforço menos voltado ao debate de argumentos e mais voltado
à prática interpretativa da escuta respeitosa de tais argumentos, dos diferentes pontos de vista,
das histórias uns dos outros, das diferentes formas de perceber e de sentir, o que só é possível
em ‘rituais’ participativos diversos, que não cabem, necessariamente em conselhos, em
audiências públicas ou em espaços institucionalizados de participação política. Uma escuta
que não se resume à escuta das palavras, mas que se estende a valores e significâncias, a
emoções, ao reconhecimento e ao poder (FORESTER, 2012; FISCHER, 2016): afinal, o que é
dito é inseparável de como é dito (JENNINGS, 1983). Conferir qualidade estética a uma
comunidade política significa considerá-la, como aponta Rancière (2010), não como um
grupo de indivíduos governados, mas como um organismo animado. Analogamente ao que
afirma Dewey (2010) a respeito da arte, apenas quando a política desce da torre de marfim,
abandona o pedestal da burocracia e mergulha no cotidiano – para produzir-se a partir dele –,
é que adquire qualidade estética.
76
Pensar uma sociedade democrática que resulte desse tipo de processo político, porém,
pressupõe, também, outro público. Um público que seja entendido, também, como processo e
como prática. Um sentido de público que não esteja vinculado nem a um público início – o
‘público’ de onde deriva a ação (o déspota ilustrado, o poder público, o especialista em
políticas públicas) – nem a um fim – o ‘público’ a que se destina a ação (o cidadão-
beneficiário, o público-alvo). O público de que falamos, a partir, principalmente, do
pragmatismo deweyano, é um público-processo, que se publiciza na medida em que se
problematiza (DEWEY, 1927). Como lembra Zask (2007) – a partir de reflexões do sociólogo
pragmatista Wright Mills e do filósofo, sociólogo e psicólogo francês, Gabriel Tarde – um
público não se confunde com uma multidão nem com uma massa, porque em um público, há
tantas opiniões diferentes quanto há indivíduos, o que significa dizer que um entendimento
público e democrático não repousará no encontro de uma opinião idêntica (o consenso de que
falávamos há pouco), mas na descoberta de pontos de convergência das diversas e distintas
opiniões individualizadas.
No sentido deweyano, o público é o que dá origem ‘a’ e o que emerge ‘de’ uma comunidade
de investigadores, de uma comunidade que duvida. Uma ‘Grande Comunidade’ (DEWEY,
1927) de indivíduos que se incomodam, que se afetam e que são afetados (direta ou
indiretamente) por situações problemáticas, a tal ponto que se dispõe a refletir, a imaginar e a
se envolver em projetos sociais, voltados à construção coletiva de respostas e à busca por
novos (e contingentes) equilíbrios. Nesse sentido, um público adquire qualidade estética
quando percorre o curso completo da experiência – identifica uma situação problemática,
engaja-se em torno dela (em termos afetivos, inclusive), imagina respostas possíveis e busca
reestabelecer o equilíbrio. Nas palavras de Cefaï (2017, p. 196), a dimensão estética do
público está relacionada a sua “capacidade de sentir, julgar e agir”.
Assim, se adotamos essa noção deweyana, uma política pública só poderia ser considerada
pública na medida em que desencadeasse tais processos, que constituísse comunidades de
investigadores; na medida em que fosse constituída e, simultaneamente, constituísse espaços de
experimentação, de aprendizagem, de contatos e de trocas. Significa dizer que uma política torna-
se pública não quando é pensada e formulada por um agente público ou quando suas
consequências atingem um determinado público-alvo, mas quando, no decurso do policy process,
são compartilhadas diferentes possibilidades de interpretação de experiências e de mundos,
porque a comunalidade da experiência – que emerge do compartilhamento de significados, de
formas simbólicas, de tipificações, de interpretações (MATEUS, 2016) – é o próprio gatilho que
ativa a aprendizagem, o senso de urgência e a criatividade, necessárias à ação política.
Na discussão sobre as relações entre política pública e estética, o que nos parece mais importante
é a indissociabilidade entre sentido e razão, entre o que sentimos e o que fazemos. Advogando tal
inseparabilidade, nos contrapomos, juntamente com Dewey (1950; 2010) e De Certeau (1998), à
ideia de uma arte distanciada da vida e, sobretudo, separada das práticas cotidianas. Contrapomo-
nos, também, à estética analítica – que privilegia o objeto de arte em detrimento da experiência e
que limita a experiência estética à contemplação (SHUSTERMAN, 1998). Tudo isso porque a
77
estética defendida por Dewey (2010) é social e corporificada40. Seu principal produto é o
conhecimento, a reelaboração de significados que, quando compartilhados, adquirem valor social
e permitem o aperfeiçoamento dos modos de vida e dos arranjos sociais. O autor não reduz a
experiência estética à experiência desencadeada pelo contato com obras ‘clássicas’ de arte ou por
sua mera apreciação, mas a estende à produção da própria vida, entendendo que a experiência
estética é a própria experiência de experimentação da vida - a origem e o resultado da interação
entre criaturas vivas e algum aspecto do mundo em que vivem.
Tanto a teoria estética quanto a teoria da experiência deweyanas buscam transpor os abismos
entre arte popular e alta cultura, entre os saberes populares e o conhecimento científico
(SHUSTERMAN, 2015). Segundo Dewey (2010), uma experiência, para ter qualidade
estética, precisa ser emocional e precisa nos tirar da zona de conforto, nos colocar em
movimento – nos afetar, no sentido conferido por Favret-Saada (1990). Assim, em toda
experiência estética existirá “um elemento de sujeição, de sofrimento no sentido lato”
(DEWEY, 2010, p. 118). A perspectiva deweyana de que a estética não se restringe a um tipo
de objeto ou a um tipo de arte, mas que é uma qualidade do fazer e do que é feito, abre espaço
para pensarmos esteticamente em uma ampla variedade de práticas políticas, estejam elas
inseridas nos altos ou nos baixos estratos culturais, nos centros ou nas periferias. A noção
estética deweyana nos incita a pensar políticas públicas não como produto de um processo
político (EASTON, 1953), mas como o próprio processo de interpretação de situações de
políticas públicas – que podem vir a se tornar problemas públicos – e de construção coletiva
de respostas. Incita-nos a pensar de forma não compartimentada, conferindo destaque à
função social, à experiência corporificada e aos sentimentos envolvidos no policy process –
não os sentimentos compactos ou pontuais (de cada indivíduo), mas os que são capazes de
durar, de se desenvolver e de se transformar no tempo e no espaço, construindo um enredo.
Não é novidade que a política tem sua própria estética. Uma estética que, segundo Rancière
(2005), manifesta-se em seus modos de fazer, em seu desenho de cenários, em seus
personagens, em suas manifestações e em suas consequências. O mesmo é válido para as
políticas públicas. É fácil perceber a existência de uma estética na linearidade racional, de
outra estética no incrementalismo e de outra nos ciclos de políticas públicas. É quase possível
enxergar a performatividade estética do analista ou do gestor de políticas públicas que salta,
linearmente, de um ponto a outro, sempre localizado mais adiante, como se progredisse; ou do
profissional muddling through, arrastando-se, lenta e cuidadosamente, por um lamaçal de
desafios e de alternativas, tomando apenas decisões incrementais, que possam ser facilmente
40
Conforme problematiza Shusterman (1998) em “Vivendo a Arte: o pensamento pragmatista e a estética
popular”, ainda que haja afinidades entre a estética pragmatista e a Escola de Frankfurt, intelectuais críticos que
se dedicaram ao estudo da estética, como Theodor Adorno (1987), por exemplo, opõe-se à tentativa pragmatista
de integrar a arte e a vida, entendendo que tal integração possa estimular a melhoria das duas. Em oposição ao
que pensa Adorno (1987), Dewey (2010) não só retira a arte de um pedestal, de um lugar sagrado, como defende
que ela seja contaminada pelo mundo, o que não significa, necessariamente, que será instrumentalizada,
dominada, manipulada, mercantilizada, homogeneizada ou neutralizada. A arte popular – como qualquer arte –
deve estar sob crítica constante, mas não deve ser a priori condenada ou descreditada (SHUSTERMAN, 1998).
78
No caso das políticas urbanas, por exemplo, também é fácil identificar a existência de uma
estética específica – tomemos como exemplo a política modernista que deu origem à cidade de
Brasília, símbolo do nacional-desenvolvimentismo e do processo de modernização proposto
pelo Plano de Metas, durante o governo de Juscelino Kubitschek. Eles também tinham sua
estética própria, assim como as reformas urbanas que marcaram a história de grandes centros
metropolitanos ocidentais – do Rio de Janeiro de Pereira Passos à Paris de Barão de Haussmann
–, bem como todas as demais políticas de reurbanização, reabilitação, revitalização e
requalificação de centros urbanos que se seguiram, até os dias atuais42. E, ainda, é fácil perceber
como se distinguem, esteticamente, as políticas de segurança pública ou de educação, por
exemplo, voltadas às zonas centrais e aquelas direcionadas às periferias43. Como lembra Knauss
(2015), o compromisso com a beleza deu origem a políticas urbanas obcecadas pela forma, pela
racionalidade das atividades e dos fluxos urbanos, pela hierarquia entre os espaços e pelo
controle da ordem espacial que anda lado a lado com a promoção da exclusão social.
Ao chamarmos atenção para a dimensão estética das políticas públicas, não estamos
defendendo esse tipo de embelezamento que descrevemos acima, estamos sim chamando
atenção para o fato de que a estética que subjaz a política é, também, reveladora de um quadro
de valores específico, de leituras e de interpretações também específicas acerca da realidade
social. Assim, quando nos referimos a uma ‘dimensão estética’ não estamos nos referindo à
beleza objetificada ou ao belo, afinal, “não importa a natureza dessa qualidade; pode ser que
nos enoje, nos assuste, ou que nos incomode de qualquer outra maneira a ponto de roubar o
gozo estético (...) – mesmo nesse caso o objeto permanece estético, embora as pessoas se
achem incapacitadas para contemplá-lo calmamente.” (PEIRCE, 1980, p. 44). Estamos
falando, na verdade, de uma esfera axiológica e de um complexo de saberes, como defendido
por Barbosa (2004): uma arena vinculada a registros de sensibilidade, de reconhecimento e de
pertencimento, de expressividade, de resistência, de temporalidades e de espacialidades, de
reflexividade-crítica, de sociabilidades. Registros a partir dos quais os atores sociais se
recusam a conferir a um ou a outro campo (à arte ou à ciência) o monopólio da verdade,
41
Em 1962, Lasswell chamou essas fases de intelligence, recomending, prescribing, invoking, applying, appraising e
terminating (LASSWELL, 1962).
42
Sobre as estratégias de intervenção voltadas às políticas de regeneração urbana, ver Arantes (2000), José (2012), Mendes
(2013), Ministério das cidades (2016) e Rykwert (2004).
43
No primeiro semestre de 2019, duas notícias ocuparam os noticiários do Distrito Federal: a primeira sobre a Portaria
Conjunta nº 1, de 31 de janeiro, que dispõe sobre o “projeto piloto Escola de Gestão Compartilhada, que prevê a
transformação de quatro unidades específicas de ensino da rede pública do Distrito Federal em Colégios da Polícia Militar”
(DOU/DF, 2019, p. 01); a segunda, sobre o projeto de implementação de escolas interculturais bilíngues na rede pública do
Distrito Federal, no âmbito do plano estratégico que traça as diretrizes da educação até 2020 – o “EducaDF” (GARONCE,
2019) e por meio de memorandos de entendimento com as Embaixadas da Espanha e da França. Se, por um lado, as escolas
escolhidas para a implementação do projeto piloto de militarização estão localizadas em Regiões Administrativas periféricas
– Estrutural, Ceilândia, Recanto da Ema e Sobradinho – caracterizadas pela Codeplan (2019) como regiões pertencentes aos
Grupos 3 (média-baixa renda) e 4 (baixa renda); por outro lado, as escolas escolhidas para abrigar o projeto de educação
bilíngue estão localizadas no Lago Sul e no Lago Norte, regiões administrativas do Grupo 1 (alta renda) (CODEPLAN, 2019)
79
reivindicando o próprio direito de construir suas verdades, inclusive, por meio da arte
(MUNCK, 2015).
É nesse sentido que defendemos que a transformação estética pode desencadear outras
transformações (dos padrões de sociabilidade, dos quadros valorativos, dos arranjos de
governança, dos modos de pensar e fazer políticas públicas), porque a experiência estética
(assim como as artes) – que emerge dos eventos e das cenas cotidianas, que desperta o olhar,
o ouvido e o interesse e que, assim, motiva a ação (DEWEY, 2010, p. 03) – é capaz de
promover a construção e o compartilhamento de significados. E, por meio dessa capacidade, a
dimensão estética adquire uma função reflexiva, de abertura do mundo a possibilidades livres
de constrangimentos teóricos e morais (BARBOSA, 2004), o que significa dizer que, pela
exposição à arte ou à ‘experiência estética’, em sentido amplo, os atores sociais têm mais
chances de transformar suas visões de mundo. Por meio da exposição permanente e
continuada à experiência estética, podem emergir novos quadros valorativos que, por sua vez,
renovam as formas como interpretamos nossos interesses e nossas necessidades, como
conferimos significados às situações. Pois o sensível libera os potenciais semânticos e os
torna, intersubjetivamente, disponíveis à ressignificação (BARBOSA, 2004).
Do mesmo modo em que não há arte sem um público que a interprete e que lhe confira
significados, tampouco há um problema de ordem ou de relevância pública, sem um público
que sofra suas consequências, de forma direta ou indireta, e que se engaje para transformá-lo
(DEWEY, 1927). Ambas as experiências – que vão do choque, da dúvida, da perplexidade ou
da indignação ao estabelecimento de um novo equilíbrio ou à criação de algo novo – são
estéticas. A mesma dúvida ou a mesma tensão que ativa a experiência intelectual do cientista
é a tensão ou a resistência que ativa a experiência do artista. Como lembra Gosse (2011), os
aspectos explícitos, participatórios, teatrais e mesmo quase-ritualísticos de alguns tipos de arte
dissolvem a distinção entre estética e experiência cotidiana, revelando o potencial estético do
próprio cotidiano e imbuindo, também, a arte com os conteúdos e as formas do dia a dia.
Nosso recurso à experiência estética, para pensar as políticas públicas, justifica-se, portanto,
na função social e moral da arte: a função de “quebrar a crosta da consciência
convencionalizada e rotineira”, de “eliminar o preconceito, retirar os antolhos que impedem
os olhos de ver, rasgar os véus decorrentes do hábito e do costume, aprimorar a capacidade de
perceber” (DEWEY, 2010, p. 306; 548). O que Dewey (2010) defende como sendo o fluxo da
experiência estética está em diálogo direto com o que entendemos como fluxo das políticas
80
públicas (BOULLOSA, 2013; 2019). Nem experiências estéticas nem políticas públicas
podem dar-se isoladamente, porque dependem do acúmulo, da aprendizagem, da
reflexividade, da inovação. Tudo o que é rotineiro ou empregado como pura repetição,
quando colocado em contexto, quando inserido em um fluxo, pode ganhar força e novos
significados – novo valor (DEWEY, 2010). E, como vem sendo crescentemente defendido por
estudiosos críticos, no campo das políticas públicas (TRIBE, 1972; HAWKESWORTH,
1994; STONE, 2002; FORESTER, 2012; DURNOVÁ, 2016) “há boas razões para supor que
a paixão das ciências sociais pela objetividade (...) é seriamente equivocada” (TRIBE, 1972,
p. 78), o que nos permite afirmar que nem experiências estéticas nem políticas públicas
podem existir dissociadas de suas dimensões afetiva, sensorial e subjetiva.
Lançar luz, porém, sobre a dimensão estética das políticas públicas, em si, não resolve o
problema. O que pode contribuir, para a ampliação do campo e para a emergência de novas
formas de fazer política pública e de gerir problemas públicos é, justamente, destronar o belo
estereotipado, superar a separação entre a arte e a vida cotidiana e entre a razão e o sensível,
abrir espaço e dar visibilidade à produção de outras estéticas, que destituam estéticas
hegemônicas em favor da multiplicidade estética que emana das diferentes práticas,
simplesmente porque não existimos no singular. Outras estéticas podem mobilizar códigos e
significados capazes de desorganizar, de bagunçar, de chacoalhar os cânones estéticos e
morais vigentes, seja porque emanam de forma mais espontânea e mais instável, porque
emanam como forma de resistência, de denúncia, de oposição ou, ainda, como forma de
sobrevivência. Muitas vezes, porém, como lembra Hollanda (2010), deixamos de reconhecer
seus conteúdos por preconceito ou por descrença em sua capacidade e em seu potencial de
produção de boas respostas ou de melhores soluções, sobretudo porque não compartilhamos
com estes públicos, os significados de bom e de melhor.
Acreditamos que, por meio do recurso ao campo do ‘estético’, seja possível ampliar o que
entendemos por política pública e por ‘normatividade’. Porque a normatividade que emana
das leis, das normas, dos programas, dos documentos e dos discursos oficiais é, também,
reflexo da normatividade que emana da ciência – das teorias, dos conceitos, dos métodos e do
que consideramos como fontes e materiais em nossas pesquisas. Para ressignificar a
‘normatividade’, portanto, parece essencial que redefinamos de onde emana a força
normativa: exclusivamente de normas e de documentos escritos e oficiais, fundamentados no
conhecimento científico e especializado, hierarquicamente organizado e de caráter imperativo
81
Quem não tem imaginação estética estará, portanto, em desvantagem tanto como ator-agente
social e praticante de territórios, quanto como cientista e como formulador, analista ou gestor
de políticas públicas. Em primeiro lugar, porque, sem imaginação estética, é possível conferir
repostas apenas às perguntas já feitas e não às perguntas que poderiam ou deveriam ter sido
feitas; é possível prever apenas as consequências das alternativas que foram previamente já
especificadas (TRIBE, 1972); não é possível ir além da identificação e da descrição de
comunidades de investigadores e de intérpretes, para explorar comunidades de práticas e de
praticantes e não é possível incorporar diferentes narrativas, diferentes identidades, valores e
crenças (YANOW, 2016). Em segundo lugar, porque faltará a quem não tem imaginação
estética a compreensão de que o mundo é plural e que está em constante e permanente
processo de fazer-se.
Por fim, aproximar o campo das políticas públicas do campo do estético significa lançar luz
sobre os diferentes modos e princípios de apreciação e de interpretação que coexistem em
sociedades complexas e que culminam em respostas múltiplas a problemas públicos.
Significa, ainda, defender que as intenções de uma política pública não sejam nunca
definitivas, porque, como recorda Dewey (2010, p. 218), “um novo poema é criado por cada
um que o lê poeticamente”. Todo indivíduo e todo grupo social trazem consigo, ao exercerem
suas individualidades e suas coletividades, um modo específico de ver, de sentir e de conferir
significados que, na interação com o que já está dado, com o que já está estabelecido, cria
algo novo, algo que ainda não existia. Não podemos perder de vista, porém, que a invenção de
outros mundos será sempre muito mais custosa e difícil do que o encontro com um mundo já
dado e interpretado (HAN, 2019).
82
“Não sendo políticos, era e é o mais que podemos fazer: indicar com o que fazemos ou tentamos, no campo da
Arte, o caminho para uma Teoria do Poder que, expressando o que nosso povo tem de melhor, esboce o
contorno do mapa capaz de definir nosso país como Nação.”
Se concordarmos com Capano & Giuliani (1998) que as políticas públicas são fenômenos
subjetivos, que não podem ser vistos ou tocados, que não tem um percurso linear definível e
que não constituem processos totalmente capturáveis ou apreensíveis, então, já estamos nos
distanciando das definições tradicionais de políticas públicas e nos aproximando, em alguma
medida, da própria noção de experiência pública que vimos defendendo até aqui. O
reconhecimento da subjetividade e da efemeridade deste fluxo já nos salva dos riscos de
confundir a política pública com seus instrumentos objetivos ou com sua dimensão material –
documentos, leis, normas, planos, programas, etc. –, mas ainda não é suficiente, para a
compreensão do que experiências públicas podem ser, no campo de estudos em políticas
públicas. Portanto, se não queremos apenas compreender, mas, também, inserir a noção de
‘experiência pública’ nesse já existente fluxo de políticas públicas, é preciso refletir,
primeiramente, sobre que fluxo é esse.
Segundo Boullosa (2013; 2019), para muito além da ação ou da omissão dos governos ou dos
atores que têm poder, políticas públicas devem ser compreendidas como fluxos de
instrumentos, de práticas e de argumentos (de valores) ativados por uma multiatorialidade
(um conjunto sempre móvel, impreciso e instável de atores individuais e coletivos)
interessada na definição e/ou na preservação de bens ou serviços de pública relevância. A
adoção desse conceito, desenvolvido no âmbito da teoria da ‘mirada ao revés’ (BOULLOSA,
2013) é o que pavimenta o caminho que pode conduzir as ‘experiências públicas’ ao centro
dos estudos, das análises e dos processos de políticas públicas. Um fluxo que precisa ser
compreendido em sua fluidez.
Um rio, como algo distinto de um lago, flui. Mas seu fluxo dá, às suas porções
sucessivas uma clareza e interesse maiores do que os existentes nas partes
homogêneas de um lago. Em uma experiência, o fluxo vai de algo para algo. À
medida que uma parte leva à outra e que uma parte dá continuidade ao que veio
antes, cada uma ganha distinção em si. O todo duradouro se diversifica em fases
sucessivas, que são ênfases de suas cores variadas.
Por causa da fusão contínua, não há buracos, junções mecânicas nem centros mortos
quando temos uma experiência singular. Há pausas, lugares de repouso, mas eles
pontuam e definem a qualidade do movimento. Resumem aquilo por que se passou e
impedem sua dissipação e sua evaporação displicente. A aceleração é esbaforida e
impede que as partes adquiram distinção. Em uma obra de arte, os diferentes atos,
episódios ou ocorrências se desmancham e se fundem na unidade, mas não
desaparecem nem perdem seu caráter próprio ao fazê-lo – tal como, em uma
conversa amistosa, há um intercâmbio e uma mescla contínuos, mas cada
interlocutor não apenas preserva seu caráter pessoal, como também o manifesta com
mais clareza do que é seu costume. (DEWEY, 2010, p. 111-112)
Assim, é importante ter em mente que, quando falamos de fluxo (e de experiência) não nos
referimos a um fluxo uniforme e sempre contínuo e livre, de acontecimentos, de práticas e de
83
A essência deste artigo, portanto, é defender que, da perspectiva das políticas públicas, tais fluxos
não podem ser pensados apenas de forma objetiva e não podem se resumir ao Estado, a agentes
oficiais, às instituições ou a grandes atores públicos ou privados – que identificam problemas,
elegem soluções adequadas ou efetivas, agem e avaliam a própria ação – caso tenhamos a
pretensão de diminuir desigualdades, promover modos de vida socialmente justos e aprofundar a
democracia. Para conferir qualidade estética aos fluxos de políticas públicas, é preciso inserir
neles tantos atores quanto existam na sociedade, lembrando que, para arriscar algo novo, em um
público deve haver tantas opiniões quanto existem indivíduos e tantas práticas quanto ideias e
motivos. É por meio do reconhecimento, do respeito e do fomento à diversidade e à criatividade
que, reflexivamente, uma experiência se publiciza em seu próprio curso.
Nesse sentido, não estamos sugerindo que políticas públicas e ‘experiências públicas’ sejam
compreendidas separadamente, como se fossem antônimos ou como se fossem iniciativas
necessariamente excludentes. Tampouco é possível afirmar, porém, que sejam a mesma coisa,
que tenham a mesma natureza ou sejam feitas do mesmo material. Não são. Enquanto uma
política pública é construída problem-oriented, voltada a um fim pré-estabelecido, e é
colocada em ação por meio de instrumentos (meios) também já disponíveis, uma experiência
pública, não o é. E, por isso, aqui talvez seja válido seguir o caminho inverso dos processos
de definição e de elaboração de conceitos, começando pela reflexão acerca do que uma
‘experiência pública’ não é. Não é plenamente descritível ou apreensível; não pode ser
pensada por um grupo restrito de profissionais especializados. Não tem o Estado como ponto
de partida e a Sociedade como ponto de chegada. Não tem todos os seus objetivos planejados
ou conhecidos. Não tem todos os seus cursos de ação previamente projetados. Não limita o rol
de atores nela envolvidos. Nunca é desterritorializada ou desenraizada, o que significa que
não poderá ser facilmente replicada, transladada ou traduzida. Não é (e não se pretende) feita
apenas de dados quantitativos e objetivos que não carecem de julgamentos e reflexões
adicionais. Não pretende, sequer idealmente, eliminar riscos e incertezas. Não é pontual ou
isolada. Nunca se transformará em hábito, repetido mecânica e irrefletidamente. Não tem
fronteiras e, talvez o mais importante, nunca nasce pública.
Uma ‘experiência pública’ torna-se pública, como defende Dewey (1927; 2010), na medida em
que conforma públicos, mas também, na medida em que não pertence a um só sujeito – ou seja,
na medida em que é social e coletivamente vivida, no movimento público, no movimento de
acontecimentos públicos em direção a um desfecho, seja ele desejado ou indesejado e,
sobretudo, na medida em que desencadeia novas experiências, em um processo contínuo e
cumulativo de aprendizagem. Torna-se pública na mesma medida em que se torna inteligível –
observável, descritível, interpretável, criticável por uma comunidade (de investigadores, de
84
praticantes), propositiva. Por isso, ainda que possamos refletir, teoricamente, sobre os elementos
ou as categorias que compõem uma ‘experiência pública’ – suas práticas, seus praticantes, seus
públicos, suas temporalidades e territorialidades, as interações que engendra, as transformações
que possibilita e os significados que constrói –, uma ‘experiência pública’ é de difícil
nomeação, porque só pode ser observada e interpretada na prática e em movimento – em um
continuum experiencial, nas palavras de Mateus (2016) ou mais à maneira do cineasta do que do
etimologista, para usar a metáfora de Cefaï (2011). E, como nos lembra Boal (2009, p. 100),
“nomear significa tentativa de imobilizar. O nome é a fixação no tempo e no espaço, do que é
fluido e não pode parar nem ser parado”. É como se as experiência públicas fossem,
necessariamente, significantes vazios, que se vão preenchendo a partir do que aconteça, sem
que sejam possíveis representações totalmente fixas sobre seus significados (CULLEN, 2017).
Assim, uma experiência pública é sempre a conclusão de um movimento de antecipação e de
acumulação e, simultaneamente, é a origem de outro movimento (DEWEY, 2010).
No campo das políticas públicas, uma ‘experiência pública’ distingue-se de uma experiência
singular ou estética, como as descritas por Dewey (2010) no âmbito da filosofia, ou de
experiências sociais e coletivas, como as descritas e analisadas no âmbito da sociologia, por
duas características principais: 1) sua capacidade de construir essa escala intermediária de
práticas – escala meso44, construindo articulações e interlocuções com as estruturas formais,
44
Uma escala intermediária que articula e busca conciliar os corpos territorializados em uma escala micro (os atores
criativos, inventivos, competentes, inovadores) às pequenas transações cotidianas, aos métodos e instrumentos
disponíveis na escala macro e a um estado de realidade mais amplo, em que se reproduzem regularidades e
assimetrias (BOLTANSKI, 2014). A mesoescala é a escala em que as práticas individuais articulam-se às práticas
sociais e às entidades macrossociais – estruturas ditas universais, como o Estado, o Mercado, as transações
complexas, etc. (FREGA, 2016). Uma escala capaz de dar origem a novas normatividades, justamente porque
articula não apenas micro e macro, mas simbólico e sensível (BOAL, 2019). Construir essa mesoescala, que não é
definida pelo número ou pelo tamanho dos membros que a compõem, mas pelo movimento, pela articulação, pela
capacidade de conectar, pela multidimensionalidade e pelo alcance de suas consequências é, precisamente,
debruçar-se sobre práticas, arenas e experiências públicas e esforçar-se para construir sua inteligibilidade.
85
estatais ou institucionaism, o que não significa dizer que, para ser pública, uma experiência
precisa institucionalizar-se ou que precisa, necessariamente, recorrer ao Estado ou inserir-se
nele; e 2) sua capacidade de estabelecer relações dialógicas (e não necessariamente harmônica
ou consensual), críticas e reflexivas com entidades macrossociais – como Estado e Mercado,
por exemplo – e com políticas públicas tradicionais, passando a constituir, assim, fluxos de
políticas públicas, como vimos defendendo. O principal ganho decorrente da entrada de
‘experiências públicas’ nesse fluxo é, justamente, a possibilidade de diversificação e de
pluralização desse diálogo, uma vez que, quanto mais heterogêneo for o ser-agir-refletir
coletivo, mais diversas e transversais serão as práticas que compõem o fluxo das políticas
públicas, ainda que nem todas as práticas sejam convergentes, ainda que não estejam todas
pautadas no mesmo quadro valorativo, ainda que não sejam todas coletivas e profundamente
democráticas, ainda que não convirjam todas para o mesmo fim ou para os mesmos preceitos
éticos ou morais. Quanto mais plurais, maiores são as chances de que conformem um
“conjunto de dinâmicas experimentais” (QUÉRÉ; TERZI, 2015, n.p) sujeito à dúvida, à
reformulação, à crítica, ao julgamento e, inclusive, à condenação.
Sobre a relação entre os movimentos sociais e as experiências públicas, vale dizer que, por um
lado, guardam importantes semelhanças com os chamados ‘novos movimentos sociais’
(TOURAINE, 1981; HABERMAS, 1981; GOHN, 1997), sobretudo, porque desafiam
diretamente os modelos mais tecnocráticos de governança; porque buscam dar ressonância a uma
maior pluralidade de vozes, rotineiramente ignoradas ou mesmo descartadas pelos poderes
tradicionais; porque se alinham a lutas cognitivas, simbólicas e identitárias, para além das lutas
redistributivas; porque são fontes de inovação e de matrizes produtoras de novos saberes; porque
enfatizam as dimensões social e cultural de suas lutas; porque são predominantemente
sociocêntricos; porque catalisam demandas sociais não contempladas pelo Estado e porque
86
Por outro lado, as experiências públicas não se restringem a absorver novos atores e novas
temáticas e tampouco se restringem aos movimentos de liberação, de protesto, de resistência
ou de defesa de direitos. Além disso, ainda que confiram valor especial à dimensão
sociocultural, as experiências públicas buscam superar a separação dessa dimensão das
dimensões econômica, política, cognitiva, territorial, estética, discursivo-argumentativa e
democrática. Para além da negação do status quo e do protesto contra o que já está dado, as
experiências públicas voltam-se sempre à construção (muitas vezes silenciosa) de alternativas:
em prol da abertura de novos espaços de atuação; em prol da ressignificação de espaços
participativos já existentes; em prol da imaginação e da invenção de novos modos de fazer e
de dizer, de agir e de se associar, de perceber e de superar situações problemáticas. É nesse
sentido que entendemos que tais experiências talvez não caibam neste rótulo, cunhado nos
anos 1980, de ‘novos movimentos sociais’ (TOURAINE, 1981; HABERMAS, 1981). Talvez
possam ser mais bem compreendidas como ‘sociedades em movimento’, porque, mesmo
quando não se manifestam diretamente, mesmo quando não adquirem visibilidade, seguem em
processo, movimentando-se organicamente.
Diferenciam-se, assim, dos movimentos sociais, sobretudo, por sua fluidez, por sua dispersão,
por seu dinamismo, por sua diversidade prática, por sua fugacidade, pelo esforço de
articulação entre escalas e de criação de escalas intermediárias de práticas, pela adoção de
outras linguagens na construção de suas narrativas, pela indefinição de seus fins, de seus
meios, de seus campos de ação, de suas bandeiras, de seus projetos e mesmo de suas
lideranças, mas, sobretudo, pela capacidade de abertura de espaços de escuta, de diálogo e de
formação que não apenas geram aprendizagem, mas que são capazes de promover uma
dinâmica de aprendizagem como a discutida por Argyris e Schön (1978) – um tipo de double
loop learning, capaz de promover transformações tanto no conhecimento, quanto nos valores
dos atores envolvidos na experiência; tanto nas ideias quanto nas regras, nos objetivos e nas
políticas. Distinguem-se, ainda, por sua reflexividade: a capacidade de, simultaneamente,
fazer e sofrer, agir e refletir, abrir novos mundos para dentro e para fora, por sua capacidade
de, simultaneamente, conformar públicos e conformar-se como experiência pública. Segundo
Mateus (2016), uma experiência pública se dá, justamente, nesse duplo curso de pluralização
de experiências singulares e de singularização de experiências plurais, em um processo de
interpenetração entre os indivíduos e as sociedades.
Assim como os movimentos sociais, porém, as experiências públicas também têm seus
limites. Ainda que ganhem em termos de liberdade, de potencial criativo e inovativo, em
fluidez e flexibilidade, em capilaridade e em transversalidade, quanto mais se distanciam dos
atores estatais e dos espaços formais de poder e de participação políticos, mais perdem em
termos de robustez, de força, de densidade, de poder de barganha, de capacidade de
financiamento, de permanência ou de durabilidade (no tempo e no espaço) e mesmo em
termos de capacidade de ação e de transformação. Nem toda dúvida, nem todo choque, nem
toda ruptura, nem toda investigação e nem todo conjunto de práticas resulta em uma
experiência pública. Como bem lembram Quéré e Terzi (2015, s.p.), em seu esforço de
87
Há choques e rupturas que não desencadeiam nada mais que sofrimento, que provocam nada
mais do que paralisia, apatia, depressão, medo ou mesmo ódio destrutivo, em lugar de
potência criativa ou de um tipo de reflexividade voltada à ação e à inovação. E, sobretudo,
quando nos propomos a refletir sobre experiências públicas (tantas vezes marginais ou
periféricas) não podemos desconsiderar que diversas experiências, por mais bem sucedidas
que possam parecer, se dão em contextos de violência, de conflito ético, de humilhação, de
privação, de ausência, de abandono, de preconceito, etc. Nesse sentido, Quéré e Terzi (2015)
também chamam atenção para o fato de que os efeitos de uma experiência pública podem ser
negativos, seja porque os afetados pelo problema podem sequer ter condições ou motivação
para agir, seja porque os desdobramentos da experiência podem levar a uma situação pior (e
inesperada), seja porque a associação em torno de um problema pode significar oposição a
interesses de grupos específicos, pode desagradar autoridades políticas ou pode,
simplesmente, despertar a atenção ou o interesse do mercado, culminando na neutralização, na
mercantilização ou mesmo na criminalização da experiência pública.
Diante do exposto, seria impossível afirmar, de antemão, sem pesquisa e sem imersão, que uma
experiência é pública ou que, sendo pública, é desejável. Mas, arriscamo-nos a listar, em
seguida, exemplos de experiências que problematizam os territórios marginais e periféricos
como locus de produção de conhecimentos e de soluções alternativas a problemas locais;
problematizam os espaços tradicionais e institucionais de exercício do poder, problematizam
questões de representatividade e de direitos e que atuam transversalmente, na construção de
novos significados e na promoção de espaços formativos e de aprendizagem. A lista que
apresentamos abaixo pauta-se, principalmente, na pesquisa ‘Emergência Política’ (UPDATE,
2018), que, embora não utilize a noção de ‘experiência pública’, mapeou mais de 400 iniciativas
ligadas à política institucional, a Organizações Não Governamentais – ONGs, coletivos
informais e indivíduos, com a proposta de apresentar um retrato histórico das periferias de cinco
capitais brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte e Brasília). São elas:
Todas essas iniciativas não constituem, de forma alguma, experiências contra o Estado, mas
são experiências essencialmente sociocêntricas. Experiências que se publicizam em seu
próprio curso, por meio da articulação entre práticas e entre diferentes atores e por meio da
imaginação de novas práticas, de promoção de novos arranjos de governança de territórios e
de problemas públicas e por meio do fomento de relações mais justas e mais simétricas,
visando a superação de dicotomias como Estado-Sociedade, Economia-Cultura ou Centro-
Periferia. Constituem-se enquanto tentativas situadas de crescimento, de transformação, de
melhoria da realidade cotidiana e da perspectiva de vida dos diversos grupos sociais que em
torno delas se engajam.
CONSIDERAÇÕES POSSÍVEIS
dos dissensos e dos conflitos que movem, cotidianamente, as sociedades. Conferir inteligibilidade
às ‘experiências públicas’, dentro do campo de estudos em políticas públicas, constitui um dos
caminhos possíveis para a superação dos abismos que separam a política representativa e
institucional dos fazeres políticos cotidianos e das sociedades em movimento.
Não significa dizer que o reconhecimento de ‘experiências públicas’, como parte dos fluxos
de políticas públicas, por si só, represente a solução dos nossos problemas mais urgentes ou
que tais experiências públicas gerarão, necessariamente, consequências desejadas, melhorias
ou algum tipo de desenvolvimento. Há muita incerteza, imprevisibilidade e conflito no campo
das experiências públicas e, de forma geral, no campo do estético, o que talvez nos ajude a
compreender por que os discursos de políticas públicas pautados nas ideias de progresso, de
desenvolvimento, de estratégia, de evidências, de eficiência e de efetividade têm muito mais
aderência na sociedade brasileira. Afinal, tanto a espera (com esperança) quanto as promessas
de dias melhores, próprias do cristianismo, geram mais segurança e tranquilidade do que o
investimento em possibilidades (muitas vezes remota) de criatividade e de inovação.
Ademais, há uma tendência, tanto no campo da política quanto das políticas públicas, de
redução da complexidade em prol de tornar as soluções propostas pelos agentes estatais mais
palatáveis e críveis e de tornar os problemas (ditos) públicos mais compreensíveis. Tais
simplificações pouco contribuem para reduzir as distâncias que separam os problemas
existentes das soluções oficialmente implementadas.
A política pública é, em seu desenho, uma promessa de futuro. A experiência pública, ainda
que também pressuponha um desenrolar-se para o futuro e que se volte à transformação
desse futuro, é, necessariamente, um aqui-agora. Nesse sentido, este artigo buscou avançar na
reflexão e na definição do que uma experiência pública pode ser, contribuindo para que as
experiências diárias de reinvenção – de formas de ver, de agir, de se organizar, de liderar, de
conferir significados, de gerir problemas – possam ganhar visibilidade e, assim, contribuir
para a transformação dos territórios e para a reconstrução do tecido social, por meio da
aproximação de realidades distintas, da redução das desigualdades e da democratização dos
espaços de participação, de ação e de tomada de decisão. Afinal, uma experiência é pública na
medida em que seus significados são publicamente construídos e publicamente
compartilhados. Pensar políticas públicas, portanto, não deveria ser considerada apenas uma
habilidade técnica, já que o tipo de experiência (estética) capaz de desencadear processos de
aprendizagem e de aumentar a vitalidade do campo de políticas públicas não será nunca
redutível a uma explicação completa ou a um tipo único de racionalidade. Isso faz das
políticas públicas um fluxo estético e sensível, que em seu movimento diverso e plural, de
ações, de intenções, de argumentos, de experiências, de percepções, de reflexões e de valores,
deve ser capaz de oferecer, diante de situações problemáticas, outras visões de mundo, apesar
do que já está pronto ou dado.
Não são necessariamente aprazíveis, não são universalmente bonitas, mas, em seu papel de
provocar a dúvida, o incômodo, o estranhamento ou mesmo o rechaço, provocam, também, um
reprocessamento das opiniões, dos interesses e, no limite, dos valores. Nesse sentido, as
experiências públicas têm muito a contribuir. Recorrer a elas justifica-se, assim, na assunção de
que um problema público-político pode ser mais facilmente resolvido ou transformado, se
caminharmos através do estético: não pelo caminho da beleza objetivada, mas pelo caminho de
valorização de processos multissensoriais e reflexivos de experiências públicas encadeadas, que
se voltam ao fazer e ao re-fazer, à transformação de algo em outra coisa. Interpretá-las, porém,
exige o desenvolvimento de outros arcabouços teórico-metodológicos e analíticos, capazes de
construir a inteligibilidade das experiências públicas e de produzir conhecimento novo, vivo e
socialmente útil. Alimentar os fluxos de políticas públicas com a maior pluralidade possível de
‘experiências públicas’ tem o potencial de provocar rupturas da ordem do sensível. A
construção da visibilidade e da inteligibilidade das experiências públicas faz emergir cenas
inéditas, novos modos de percepção e de circulação de informações, novas formas de economia,
novos arranjos de gestão, criando, nesse movimento, possibilidades inéditas.
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98
RESUMO
Este artigo delineia – a partir dos critical policy studies, do pragmatismo deweyano e da gestão social
– um caminho possível (e alternativo) para o estudo de ‘experiências (potencialmente) públicas’ no
campo de estudos em políticas públicas. Por meio da aproximação teórico-metodológica entre essas
três correntes de pensamento e por meio da mobilização das categorias público, prática e experiência
estética, projetamos um caminho investigativo-interpretativo em dois movimentos principais: a)
primeiramente, apresentamos o que julgamos necessário assumir em cinco planos de pesquisa –
ontológico, epistemológico, deontológico, metodológico e empírico – para construir a visibilidade de
‘experiências públicas’ a partir deste campo específico de conhecimentos e práticas; b) em segundo
lugar, e partindo do princípio da indissociabilidade entre os planos de pesquisa, construímos duas
matrizes analíticas para a construção crítico-reflexiva da inteligibilidade de ‘experiências públicas’.
Por fim, sugerimos que a indissociabilidade entre os planos de pesquisa, somada ao esforço de e
colocar em movimento para pesquisar com sujeito em movimento, é capaz de situar ‘experiências
públicas’ no centro dos fluxos de políticas públicas e de gerar uma força centrífuga que empurra as
fronteiras deste campo científico para fora e as torna mais permeáveis, abarcando o que está nas
margens. Em lugar de construir modelos, buscamos abrir novos caminhos a partir de entrecruzamentos
práticos, teóricos e metodológicos, com a pretensão de contribuir para a realização de pesquisas
“implicadas” (BOULLOSA, 2019), que permitam que pesquisadores, cientistas e profissionais do
campo das políticas públicas lancem luz sobre elementos e atores tradicionalmente invisibilizados,
marginalizados ou subestimados.
Palavras-chave: fluxo de políticas públicas; experiência pública; movimento; arcabouço reflexivo;
matriz analítica;
ABSTRACT
Based on critical policy studies, Deweyan pragmatism and social management, this article outlines an
alternative way to study ‘(potentially) public experiences’ in the policy field. Through the theoretical-
methodological approach between these three currents of thought and through the mobilization of
categories such as public, practice and aesthetic experience, we design an investigative-interpretative
path in two main movements: a) first, we present what we believe necessary to assume in five research
plans – ontological, epistemological, deontological, methodological and empirical – in order to build
the visibility of 'public experiences'; b) secondly, and based on the principle of the inseparability
between those plans, we design two analytical matrices for the critical-reflexive construction of the
intelligibility of ‘public experiences’. Finally, we suggest that the articulation between the research
plans, added to the effort to put oneself in motion to research with subjects that are also in motion, is
able to place 'public experiences' at the center of public policy flows and to generate a centrifugal
force that pushes the borders of this scientific field out and makes them more permeable,
encompassing what is on the margins. Instead of building models, we seek to open new paths based on
practical, theoretical and methodological intersections, with the intention of contributing to the
realization of “implicated” research (BOULLOSA, 2019), which allow researchers, scientists and
professionals in the field of public policies shed light on elements and actors traditionally invisible,
marginalized or underestimated.
Keywords: public policy public experience; movement; reflective framework; analytical matrix.
99
INTRODUÇÃO
45
Afinal, estamos situados em um território de aproximadamente 8,5 milhões de km2 (o continente Europeu, formado por 46
países, tem 10 milhões de km2, segundo Poulsen et al., 2019), habitado por mais de 200 milhões de pessoas, das quais 43,1%
se autodeclaram brancas, 46,5% pardas e 9,3% pretas (IBGE, 2019). Um país com mais de 15 milhões de pessoas abaixo da
linha da pobreza – o que significa que possuíam, em 2017, renda domiciliar per capita inferior a US$ 1,90 por dia (cerca de
R$140,00 mensais em valores de 2017) (IBGE, 2018). Um país com taxas de analfabetismo que oscilam de 3,9% (entre a
população branca) e 9,1% (entre pessoas pretas ou pardas). Em suma, um país absolutamente desigual, em que “as pessoas de
cor ou raça preta ou parda tiveram rendimento domiciliar per capita médio de quase a metade do valor observado para as
pessoas brancas em 2017” (idem, p. 55) e cujos índices de Gini (indicador clássico da desigualdade de renda) e de Palma (que
representa a razão entre os rendimentos dos 10% mais ricos em comparação aos 40% mais pobres), vêm crescendo em todas
as regiões do país (idem).
100
Começamos, portanto, apresentando as escolhas que fizemos e que julgamos importante (ou
indispensável) fazer, em cada um dos planos de pesquisa, quando nos propomos a ver e
interpretar experiências públicas como constituintes do fluxo de políticas públicas. O que
precisamos assumir em termos ontológicos, para que experiências públicas ganhem
inteligibilidade? Quais são os deslocamentos epistemológicos que precisamos fazer? Que
postura precisamos adotar enquanto cientistas de políticas públicas, interessados em
compreender o que são políticas públicas e como podem alargar as fronteiras do campo de
políticas públicas, enriquecendo-o? O que precisamos ter em mente, no momento de
desenharmos um caminho metodológico? De que instrumentos de pesquisa podemos nos
valer e quais novos instrumentos podemos criar?
Uma vez apresentadas e detalhadas as escolhas que fizemos e o quadro valorativo subjacente
a nossos esforços de pesquisa, apresentaremos, como resultado, a construção de duas matrizes
analítica para o estudo de experiências públicas. Para essa construção – que não engendra um
modelo, mas um caminho possível e alternativo para o desenvolvimento de pesquisas no
campo das políticas públicas – tomamos emprestados, dos estudos críticos em políticas
públicas e da gestão social, alguns princípios, sobretudo ontológicos e deontológicos, que
sintetizamos em dois grandes conjuntos:
Antes de apresentarmos, porém, o que é preciso assumir em cada plano de pesquisa e em que
consistem o arcabouço teórico-metodológico e as matrizes analíticas que nos permitirão ver e
estudar experiências públicas (como parte do fluxo de políticas públicas), vale evidenciar,
ainda introdutoriamente, o que entendemos por cada um dos planos:
Com essa indissociabilidade em mente, assumimos o desenho das fronteiras de cada plano de
pesquisa como um importante passo se projetação. E o que determinará os limites de tais
fronteiras são nossas escolhas. A partir delas, proporemos uma matriz analítica multi-
instrumental e, em seguida, proporemos que tudo isso seja colocado em movimento, de modo a
formar um fluxo de análise. O movimento, além de integrar os planos de pesquisa, lembrando-
nos mais uma vez de sua indissociabilidade, é o que cria um novo campo de possibilidades, que
pode se ampliar indefinidamente, a depender da força centrífuga gerada pela experiência
pública que for inserida em seu centro. A validade (ou a utilidade social) da nossa proposta
emerge, portanto, da coerência entre os planos e do campo de possibilidades interpretativas que
ela abre, e não necessariamente de fatores como neutralidade, objetividade, verificabilidade ou
falseabilidade, como manda a tradição. À exemplo do que faz Exu enquanto enugbarijó – uma
de suas múltiplas facetas – (RUFINO, 2016), a proposta é engolir todas as escolhas feitas em
cada um dos planos, para, na encruzilhada, cuspir algo novo: uma saída nova, que permita o
estudo “implicado” de experiências potencialmente públicas (BOULLOSA, 2019).
Em nosso caso, nos propusemos a tal movimento porque acreditamos que não exista
pensamento que possa ser impulsionado apenas por dados e porque concordamos com Han
(2019) em sua crítica à ciência positivista. Segundo este autor, a ciência movida apenas por
dados, não produz conhecimento ou verdade, mas sim “informações que, enquanto
positividade, nada mudam nem nada enunciam (idem, p. 90). O conhecimento precedido por
uma experiência, ao contrário, “pode abalar tudo que-já-tem-sido e fazer surgir algo
totalmente distinto”, pode transformar por meio da inquietação e da reflexão (HAN, 2019, p.
90, grifo do autor). Com isso em mente, vamos aos planos.
Em termos ontológicos, assumimos que mesmo as estruturas mais profundas, seja do mundo
simbólico ou do mundo sensível, são suscetíveis à modelagem ou à mudança. A vinculação à
104
As coisas – objetos, pessoas, eventos do mundo – não têm em si qualquer significado estabelecido, final ou
verdadeiro. Somos nós – na sociedade, nas culturas humanas – que fazemos [através da linguagem] as coisas
significarem
Hall, 1997, p. 61
de Sousa Santos (2007), uma linha abissal que separa a realidade social em dois
mundos: um mundo em que o funk e a estética da favela (geograficamente deslocada)
são mercantilizados e romantizados, tornando-se cenário, por exemplo, de festas em
bairros nobres das capitais brasileiras ou de festivais nacionais de música e inseridos
nos principais circuitos de produção e difusão cultural (ALVES, 2018; PITOMBO,
2019); e outro mundo, temporalmente contemporâneo ao primeiro, em que o mesmo
funk e a mesma estética da favela (geograficamente situada) são criminalizados e se
tornam cenário, por exemplo, de violenta repressão policial, como no recente (e talvez
mais violento) caso, ocorrido em Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo (TOMAZ,
2019; RODRIGUES; PAULUZI, 2019).
Não se trata, como acentua Fischer (2016) de uma mudança desimportante, uma vez que esse
tipo de deslocamento epistemológico vem ampliando e transformando, significativamente, o
campo de estudos em políticas públicas, ao menos em termos intelectuais. Trata-se de lançar
sobre o campo uma visão crítica, capaz de deslocar o esforço de apreender a realidade, para o
esforço de interpretá-la a partir de narrativas, de discursos, de argumentos, de pontos de vista,
de ideias, de processos sociais, etc., e a partir, sobretudo, de nossas próprias crenças e valores.
É nesse sentido que defendemos que, para compreender experiências públicas em movimento,
precisamos nos colocar, também, em movimento.
O primeiro passo desse movimento talvez seja repensar o que entendemos por políticas
públicas. No nosso caso, associamo-nos ao conceito de políticas públicas mobilizado no
âmbito da teoria da ‘mirada ao revés’ (BOULLOSA, 2013; 2019), em que políticas públicas
são compreendidas como fluxos
Mautratá / A gramáthika /
E jogar a culpa / Na lissenssa poéthika
Rapper Renan Inquérito (2014)
Diante disso, é importante enfatizar que só nos sentimos confortáveis com uma corrente
filosófica e só podemos desenhar e colocar em prática uma pesquisa, se acreditamos em sua
validade, se o caminho desenhado for coerente com nosso quadro valorativo, com nossa
postura não apenas enquanto cientistas, mas enquanto sujeitos sociais. Assim, o arcabouço
(ou framework) de análise que propomos aqui está ancorado em três posturas (ou valores),
que desenvolvemos abaixo:
2) Postura decolonial: a adoção de tal postura dentro do campo das políticas públicas,
alinhada ao paradigma da Gestão Social, implica na crítica à primazia da racionalidade
tecnocientífica e econômica, que concentra a tomada de decisão em pequenos grupos
de experts, estreitando as fronteiras do campo das políticas públicas. A partir desse
reconhecimento, uma postura decolonial implica no esforço em ampliar tais fronteiras,
para que mais pessoas, mais práticas, mais experiências – produtores de formas de
conhecimento não hegemônicas, tradicionalmente marginalizadas ou excluídas do
policy process – possam ganhar visibilidade e inteligibilidade (GÓMEZ
LECHAPTOIS, 2014). Adotar uma postura decolonial significa problematizar a
exclusividade de referenciais teóricos provenientes de países que pouco se parecem
com o nosso, escritos por autores que tem pouco ou nenhum conhecimento acerca das
especificidades da realidade brasileira e significa, ainda, problematizar e refletir acerca
dos limites da aplicação de modelos e da transferência de políticas públicas entre
diferentes contextos políticos, culturais, históricos, econômicos, etc. (DÁVILA;
SOTO, 2011). Não significa, contudo, desconsiderar todo o conhecimento produzido
em outro tempo ou em outro lugar, mas lançar um olhar crítico a estes cânones
epistemológicos, colocando-os em diálogo com outras perspectivas e propondo
alternativas de superação das lacunas que tais perspectivas produzem, o que buscamos
fazer a aproximação entre os estudos críticos em políticas públicas, o pragmatismo
clássico deweyano e a Gestão Social.
A promoção desse tipo de diálogo, portanto, precisa passar, necessariamente, por duas
compreensões: a de que o conhecimento decolonial e decolonizador é sempre
resultante de um fazer junto, situado temporal e espacialmente (BOULLOSA, 2013); e
a de que, se pretendemos ampliar as fronteiras do campo das políticas públicas,
contribuindo, assim, para a democratização de nossa democracia (SOUSA SANTOS,
2002; FISCHER et al., 2016), não podemos reduzir políticas públicas a um tipo único
de racionalidade, que exclui outras gramáticas, outras formas de pensar, de falar, de
fazer, de se associar e de gerir situações problemáticas.
3) Postura de ouvinte ativo: “Eu falo, falo – diz Marco –, mas quem me ouve retém
somente as palavras que deseja. (...) Quem comanda a narração não é a voz: é o
111
***
Eu me armei com minhas rima e o rap veio pra cobrar (...)
tomei sua mente de assalto e é melhor nem reagir
Trecho da música ‘Melhor não reagir’, do grupo Viela 17 (2014)
compartilhável – devem estar no centro da investigação. Neste plano, assumimos, como pilar,
o esforço permanente de reflexividade, por meio do que nos comprometemos com o
questionamento contínuo do que está dado e com a imaginação de outros mundos possíveis.
Daí porque ressaltamos, no plano deontológico, a importância da coerência entre quadros
valorativos e as escolhas intelectuais, feitas em cada um dos planos explicitados. Pautados em
valores progressistas, acreditamos que as fronteiras do campo de políticas públicas e que as
linhas e muros que separam, física e simbolicamente, pessoas e territórios, precisam ser
deslocadas, para que mais gente e para que mais experiências possam caber do lado de dentro,
tornando este lado cada vez mais repleto, mais plural, mais heterogêneo e mais complexo,
ainda que isso implique em mais incerteza e em maiores divergências de interesses, de
opiniões, de argumentos e de valores.
Em termos gerais, nosso caminho metodológico reuniu os três movimentos propostos por
Peirce (2005) – em termos de Primeiridade (ou abdução: o movimento de passagem da
experiência à dúvida), o lugar onde se encontra uma história, a experiência concreta a partir
da qual se constroem ideias e perguntas; de Secundidade (ou indução: movimento por meio
do qual se sistematizam e se testam ideias e hipóteses); e de Terceiridade (ou dedução:
movimento pelo qual nossas ideias podem ser generalizadas, podendo dar origem a novas
teorias, leis ou experiências).
Trata-se de um caminho que não foi previamente pensado ou definido, mas que envolveu
profunda reflexão, intenso vai-e-vém e inúmeros redesenhos, entre caminhadas teóricas e práticas,
observações mais ou menos participantes, cadernos de campo, registros fotográficos, escuta ativa,
trocas e compartilhamentos de afeto e de informações, que fizeram com que essa pesquisa não se
resumisse a um processo de construção de conhecimento científico, mas que se constituísse,
também, como o eco de uma experiência – individual e coletiva – que só se revelou,
completamente, na prática e cujas reverberações ainda se farão sentir, para além de seu término.
b. Rastreamento-Mapeamento46:
i. De atores individuais;
ii. De grupos;
iii. De histórias e estória;
iv. De eventos;
46
O rastreamento-mapeamento de práticas pode ser feito por meio das ferramentas elencadas sob a macro-estratégia “escuta
ativa e em movimento” e complementada por pesquisa na mídia hegemônica e alternativa e, sobretudo, em redes sociais
como Facebook e Instagram, que constituem importantes canais de comunicação e de divulgação de atividades e por onde se
pode rastrear atores, grupos, eventos e práticas, em tempo real.
116
Em termos metodológicos, o pós-positivismo leva a sério o que Marco Polo tem a dizer sobre
Olívia, em Cidades Invisíveis (CALVINO, 2003, p. 27): “jamais se deve confundir uma
cidade com o discurso que a descreve.” Nesse sentido, tanto o pragmatismo quanto os
pesquisadores e cientistas críticos em políticas públicas privilegiam, metodologicamente, a
experiência, suas consequências práticas e sua interpretação, em detrimento da prova ou da
verificação científica, o relato ou a narração da realidade e não a própria realidade (JAMES,
1980; CROSTA, 2009; DEWEY, FISCHER, 2016). A interpretação do sujeito de pesquisa –
uma ‘experiência pública’ em potencial – deve se dar no vai-e-vém entre práticas
multidimensionais, que conformam experiências e que conformam públicos, no movimento e
no cruzamento entre as diversas percepções construídas a partir do terrain, na co-construção
de um mosaico interpretativo.
O plano empírico, como dissemos, é o plano dos materiais de pesquisa e, para que seja
mantida a coerência entre os planos de pesquisa, ele deve refletir, diretamente, os
instrumentos elencados no plano metodológico. Neste tipo de pesquisa, assumimos o
interpretativismo como ferramenta e a vida cotidiana como principal material de pesquisa e,
para fins analíticos, desmembramos tal cotidiano – temporal e espacialmente situado – em
117
categorias que constituem nossas principais fontes (ou materiais) de pesquisa: as práticas, as
experiências estéticas e os públicos.
Materiais de pesquisa:
O próprio território (tempo-espaço recortado);
Praticas de uso do território (socioterritoriais);
Práticas artístico-culturais;
Práticas econômicas (mercantis e não mercantis);
Práticas políticas;
Práticas estéticas;
Práticas formativas;
Práticas afetivas;
Materiais de pesquisa:
Micro-narrativas;
Histórias orais;
Mapas de atores e de grupos;
Mapa de eventos;
Mapa de práticas;
Filmes e documentários;
Caderno de campo;
Corpus documental obtido por levantamento bibliográfico;
2. Construindo uma matriz analítica: como estudar ‘experiências públicas’ no campo das
políticas públicas?
Propomos, por meio da matriz apresentada abaixo (Figura 1), um caminho possível (e
alternativo) para o estudo de experiências potencialmente públicas, “de dentro” do campo das
políticas públicas. Por meio da observação, do rastreamento, do mapeamento e da interpretação
de práticas, de experiências estéticas e de públicos (categorias teórico-metodológicas) – pelas
lentes da ‘virada argumentativa’ e da ‘reflexividade-crítica’ (conjuntos de princípios ontológico-
deontológicos), defendemos que ‘experiências públicas’, ao serem inseridas nos fluxos de
políticas públicas, podem contribuir tanto para o alargamento das fronteiras deste campo,
quanto para o enriquecimento do policy process, seja por meio da valorização de outros saberes
(não científicos ou não especializados), da inclusão de novas vozes no campo das políticas
públicas, pela abertura de novos espaços de escuta e de diálogo, pelo desencadeamento de
processos de aprendizagem e/ou de produção de argumentos e de significados.
Por meio das categorias (extraídas, sobretudo do pragmatismo) e dos princípios supracitados
(extraídos, sobretudo, dos estudos críticos em políticas públicas e da gestão social - e
discutidos no item 1 deste artigo), modelizamos um instrumento analítico, para o estudo de
‘experiências públicas’ em movimento. A matriz divide-se em três níveis (mais superficial,
intermediário e mais profundo) e indica, em sua primeira linha, o que deve ser levado em
conta no momento da observação de ‘práticas’, ‘experiências estéticas’ e ‘públicos’; em sua
segunda linha, o que pode emergir do material de pesquisa construído no primeiro momento e
as possibilidades de interpretação; e, na terceira linha, quais são as possíveis consequências do
estudo de ‘experiências públicas’, para o campo das políticas públicas.
Com a linha diagonal pontilhada, que corta transversalmente a matriz, pretendemos apenas
chamar atenção para as implicações das diferentes temporalidades e territorialidades, que
atravessam toda prática, toda experiência e todo público e que se transformam
(constantemente) no curso da análise.
119
Isso porque, conscientes de sua situatividade, esforçamo-nos a observar práticas para além de
sua materialidade e de seus objetivos ou de sua atividade-fim, buscando compreender:
47
Segundo a qual a racionalidade objetivista e instrumental deve ser substituída pelo raciocínio-no-contexto e os argumentos,
os significados e os valores, subjacentes às práticas e às experiências, devem ser compreendidos como a própria política;
48
De acordo com a Teoria da Situatividade – bastante mobilizada nos campos da Psicologia e da Educação (GREENO, MOORE,
1993; GREENO, 1998; DURNING, ARTINO, 2011), em diálogo bastante próximo com Schön (1983), Vigotsky (1962) e Dewey
(1938) – o conhecimento, o pensamento e a aprendizagem são sempre situados: na experiência, no território, no contexto, nos
participantes, na cultura, no ambiente físico, etc.. De acordo com essa teoria, os componentes de uma prática não interagem
linearmente, mas de forma dinâmica e de acordo com a situação (que molda e que é moldada pela experiência) (DURNING,
ARTINO, 2011). Nesse sentido, a teoria da situatividade lança luz sobre os processos, em detrimento dos resultados e problematiza
os limites da aplicação de modelos de análise (rígidos ou fechados) em diferentes situações ou diferentes contextos, em franco
diálogo com as diferenças que Boullosa (2019) estabelece entre pesquisa aplicada e pesquisa implicada.
121
deslocar o olhar do resultado (do objetivo, do fim), para o processo. Tornamo-nos, assim,
aptos a compreender sua dimensão estética – o que afeta (no sentido conferido por Favret-
Saada, 1990), o que tira da zona de conforto e coloca em movimento:
Interpretando tudo isso pelas lentes da reflexividade-crítica – tão cara aos estudos críticos em
políticas públicas e ao paradigma da gestão social – pode ser possível identificar, em um
primeiro nível:
Conforma uma arena pública, no sentido conferido por Cefaï (2011; 2017, p. 200): “uma
arena social cujos atores visam bens públicos, referem-se ao interesse público, definem
seus problemas como públicos e sentem, agem e falam em consequência disso”.
Conforma uma comunidade de praticantes (YANOW, 2016), de investigadores
(DEWEY, 1927) ou de intérpretes – coautores, colaboradores práticos, fazedores de
123
O que buscamos fazer até aqui foi, portanto, construir uma matriz analítica que, embora
dividida em categorias, princípios e níveis de análise, reforçasse a indissociabilidade e a
articulação entre os planos de pesquisa e que permitisse, ainda o que estamos chamando de
uma análise em movimento. A ênfase que vimos dando ao movimento, ao longo de toda essa
construção tem como principal objetivo reforçar a noção de políticas públicas como fluxo (ou
processo) e a ideia de que, para que sejamos capazes de estudar algo que é contingente e
provisório precisamos nos colocar, também, em movimento. É a fluidez contínua e a
viscosidade do fluxo que mantém as coisas unidas, sem fixá-las ou engessá-las, e é o que
mantém, também, as fronteiras desses fluxos abertas, para que mais coisas possam passar a
fazer parte deles, conforme representado na segunda matriz, abaixo (Figura 2).
125
Essa segunda matriz representa que, por mais importante que seja o delineamento das
fronteiras de cada plano (como exercício de projetação), para que possamos manter a
coerência necessária entre nossas escolhas, na medida em que nos colocamos em movimento,
os planos também entram em movimento, criando um campo de sobreposições. Neste
movimento, as fronteiras dos planos tornam-se difusas, e nossas assunções se mesclam em um
conjunto que é diferente (e torna-se, no processo, maior) do que a soma das partes. Os planos
se fundem e se confundem, justamente porque devido ao princípio da indissociabilidade ou à
impossibilidade de assumi-los isoladamente. Nesse processo, de ‘engolir tudo, para cuspir
algo novo’, construtivismo, argumentativismo, gestão social, reflexividade e interpretativismo
fundem-se, para criar um campo de possibilidades de pesquisa.
Nesse sentido, para estudarmos os fluxos de políticas públicas por esta matriz, a ‘experiência
(potencialmente) pública’ precisa ser colocada em seu centro, porque é a interpretação que
fazemos dela que gera a força centrífuga necessária ao alargamento das fronteiras deste
campo de estudos – de modo que os fluxos de políticas públicas passam passar a abrigar não
126
apenas as experiências públicas, mas uma pluralidade infinita de corpos, vozes, ideias,
histórias, estéticas, racionalidades, saberes, etc. A depender da força estética da experiência –
de seu ritmo, de sua harmonia, da sua durabilidade no tempo e de sua capilaridade no espaço,
das articulações que promove e de sua capacidade de gerar outras experiências – maiores são
as chances de que as experiências ampliem as fronteiras do campo. Paradoxalmente, porém, à
medida que uma experiência pública cresce, sua força se dissipa e maiores são as chances de
que, na relação (muitas vezes conflituosa) com outros elementos do fluxo de políticas
públicas, a experiência pública comece a ser afetada pela relação com atores tradicionais de
políticas públicas ou pela racionalidade econômica, por exemplo, para o bem ou para o mal.
Mas, se uma experiência pública pode ser transformada, em seu curso, por ações, intenções e
interesses já existentes no fluxo, ela também pode, apesar das assimetrias de poder,
transformá-los, ainda que tais mudanças possam ocorrer mais lentamente e ainda que
dependam de sua capacidade de gerar práticas em rede, capazes de fazer emergir outras
racionalidades e de desencadear práticas pautadas em outros valores.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
***
quem não tem valor, tem preço
Por meio desse esforço, buscamos explicitar que, mais do que a neutralidade, do que a
objetividade, do que a confirmação de um método pré-estabelecido, do que a comprovação de
128
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134
PARTE II
135
RESUMO
Analisamos o movimento hip hop (MHH) da Ceilândia (DF/Brasil) pela matriz analítica reflexiva
construída à luz dos critical policy studies, do pragmatismo deweyano e da gestão social (Artigo 3).
Trata-se de uma abordagem “pela experiência” – construtivista no plano ontológico, argumentativa em
termos epistemológicos, reflexiva no método, interpretativa no plano empírico-analítico e,
valorativamente, ancorada na gestão social. Sustentados por 4 anos de construção coletiva de dados –
por meio de escuta ativa, do mapeamento de atores individuais, grupos, histórias, eventos, práticas,
etc., de pesquisa documental e do registro orgânico das observações (Artigo 3 e APÊNDICE B) –
demonstramos como o MHH produz argumentos que desafiam os discursos oficiais e fazem emergir
outras visões de mundo e outros valores pro centro do campo de políticas públicas. Para além de
manifestação artístico-cultural ou instrumento de luta e de resistência política, o MHH pode ser visto
como ‘experiência pública’ narrativo-argumentativa, capaz não apenas de “empurrar” as fronteiras do
campo de estudos em políticas públicas, mas de pluralizá-lo. A partir de três argumentos – o da
multiplicidade territorial, o da ressignificação como tecnologia social e o da ‘relacionalidade’
periférica – defendemos que o conjunto de práticas que compõem o MHH faz emergir outros modos
de pensar, de fazer, de imaginar, de dizer e de gerir de existência talvez desconhecida; desempenha
um importante papel na abertura de espaços de escuta, de aprendizagem e de produção de
conhecimentos; transborda as tradicionais disputas de classe, de espaço ou de poder, constituindo
disputas semânticas e estéticas e mantém comunidades em movimento.
Palavras-chave: movimento hip hop, políticas públicas, experiência pública, arcabouço reflexivo-
interpretativo, argumentos.
ABSTRACT
We analyzed Ceilândia’s hip hop movement (MHH) through the reflective analytical matrix and
framework built in the light of critical policy studies, Deweyan pragmatism and social management
(Article 3). It is an approach “through experience” - constructivist on the ontological level,
argumentative in epistemological terms, reflective in the method, interpretive in the empirical-
analytical level and, valuably anchored in social management. Sustained by 4 of collective data
construction - through active listening, mapping individual actors, groups, stories, events, practices,
etc., documentary research and the organic record of observations (Article 3 and APPENDIX B) - we
demonstrate how MHH produces arguments that defy official discourse and bring out other
worldviews and other values to the core of the policy field. In addition to an artistic-cultural
manifestation or an instrument of struggle and political resistance, the MHH can be seen as a
narrative-argumentative 'public experience', capable not only of “pushing” the frontiers of the policy
studies field out, but of pluralizing it. Based on three arguments - that of territorial multiplicity, that of
reframing as a social technology and that of peripheral 'relationality' - we defend that the set of
practices that make up the MHH raises other ways of thinking, doing, imagining, saying and managing
whose existence we may not have known; plays an important role in opening spaces of listening,
learning and knowledge production; overflows traditional class, space or power disputes, constituting
also semantic and aesthetic disputes and keeps communities moving.
Keywords: hip hop movement, public policy, public experience, reflexive-interpretative framework,
arguments.
137
Por muito tempo (e, em alguma medida, até os dias de hoje) políticas públicas são
compreendidas, quase exclusivamente, como aquilo que os governos fazem ou deixam de fazer,
o que implica em um tipo de cisão (pouco profícua) entre a vida política e a vida cotidiana
(LASSWELL, 1951; LASSWELL; KAPLAN, 1952; DYE, 1972; ROSE, 198950). O conceito
de ‘política pública’, porém, vem sendo cada vez mais tensionado, seja por autores que o
consideram insuficiente ou por autores que o consideram datado. De tão impregnado da ideia de
que é ‘aquilo que o governo faz’, o termo ‘política pública’ chegou a ser substituído, por
Lascoumes e Le Galès (2012), pela noção de ‘ação pública’, em um movimento que sugere,
como valor subjacente, a necessidade de retorno à Sociologia. Por outro lado, ainda que estes
autores tenham refutado a ideia de um policy process conduzidos exclusivamente pelo Estado,
eles subverteram o foco microscópico dos sociólogos da ação organizada (MUSSELIN, 2005) e
direcionaram o holofote a grandes atores (públicos e/ou privados), a instituições financeiras, a
corporações internacionais, a organizações não governamentais e a agências multilaterais. Ao
falarem em ‘ação pública’, portanto, não buscam aproximar a lupa, mas, sim, afastá-la,
propondo um nível de análise mais macrológico.
É por esse motivo que, apesar da validade da crítica aventada por Lascoumes e Le Galès
(2012) e das possibilidades de incursão (pontual) do conceito de ação pública em espaços
intermediários, não recorremos a ele, mas às noções de ‘ação coletiva’ e de ‘arena pública’,
amplamente discutidas por Cefaï (1996; 2009; 2011; 2013; 2017), sobretudo porque o
conceito de ação coletiva, diferencia-se da noção de ação pública, em termos pragmatistas, em
função do público que ativa. Enquanto a ‘ação pública’ ativa as autoridades públicas ou os
50
Apesar de ter intitulado seu livro “Ordinary People in Public Policy”, Rose (1989) preocupava-se com o que os governos
fazem pelas pessoas ordinárias, como fica evidente no trecho a seguir: “As pessoas ordinárias têm muitos papéis: no decurso de
um único dia, um indivíduo pode ser um esposo, um filho ou filha, um produtor, um consumidor, um amigo, ou até mesmo um
cidadão. Papeis não-políticos são muito mais numerosos que papéis políticos, e pessoas ordinárias gastam muito mais tempo em
atividades não políticas do que políticas. É por isso que as prioridades dos formuladores de políticas públicas não são iguais às
prioridades das pessoas ordinárias na vida cotidiana” (idem, p. 175, trad. nossa). Parece ter-lhe escapado, porém, que a dimensão
política permeia a vida cotidiana.
138
Isso evidencia que cada uma de nossas escolhas (inclusive conceituais) carrega um conjunto de
valores. Compreender os processos de problematização (formação de problemas ou de agendas)
e de publicização (formação de públicos) como pares indissociáveis de um processo contínuo,
permite-nos enxergar outras ações e experiências, enquadramentos normativos e valorativos,
bem como os critérios cognitivos, morais, políticos e estéticos que são mobilizados no
tratamento de qualquer situação problemática. É nesse sentido que Cefaï (2013, p. 04) afirma
que um problema público se tece em relatos – em narrativas, sempre múltiplas e muitas vezes
conflitantes – que o tornam não apenas visível, mas inteligível. É nesse sentido que defendemos
que tanto a visibilidade quanto a inteligibilidade de uma situação de política pública (que pode
vir a se transformar em uma experiência pública) são construções sociopolíticas e sociotécnicas.
Tal defesa nos vincula tanto ao construtivismo social de Berger e Luckmann (1999) quanto dos
estudos críticos em políticas públicas51, do pragmatismo deweyano e da gestão social, próximos
de uma praxeologia atenta à linguagem, aos usos e efeitos de signos e significados e à
historicidade dos conceitos. Concordamos com Majone (1989, p. 35) que “a política pública é
feita de palavras”, mas há, fora do mundo das palavras (do mundo simbólico), muita outra coisa
(sensível) que precisamos considerar52: além de ações, instrumentos, intenções,
problematizações, palavras e argumentos, ideias, desejos, práticas, emoções, palpites, corpos,
ritmos, tentativas, crenças, fracassos, valores, etc. Como lembra Boal (2009, p. 65) “palavra é
meia verdade: a verdade inteira inclui meus olhos, mão e boca, o tom da minha voz”. (BOAL,
2009). Nisso fundamenta-se nossa proposta de estudas políticas públicas não como resultado ou
produto da ação (seja ela pública ou privada), mas como um fluxo que será mais rico e
complexo quanto mais elementos (simbólicos e sensíveis) forem reconhecidos nele.
O que objetivamos demonstrar, portanto, é que a problematização das policy sciences – termo
cunhado por Lasswell (1951) – a partir de práticas e de experiências estéticas (potencialmente
públicas), como as engendradas pelo movimento hip hop da Ceilândia, por exemplo, tem o
potencial de alargar e enriquecer o campo de estudos em políticas públicas, tornando os fluxos
mais heterogêneos, transversais, críticos e criativos. Isso porque o fio histórico do conceito de
políticas públicas não nos leva a pessoas ou a experiências comuns, mas aos experts, aos
profissionais “iluminados” (LASSWELL, 1971, p. 156); não nos leva a perceber múltiplas
racionalidades, mas a buscar, obsessivamente, o aumento de uma racionalidade de tipo linear-
51
Sobretudo no que diz respeito à virada argumentativa e interpretativa no campo de estudos em políticas públicas. Sobre
isso, ver Callahan e Jennings (1983), Majone (1989), Fischer e Forester (1993), Fischer e Gottweiss (2012).
52
Esse entendimento pressupõe a irredutibilidade das políticas públicas a um fenômeno objetivo ou a um instrumento;
pressupõe compreender políticas públicas como fluxos, não o fluxo de ‘problemas’, ‘políticas públicas’ e ‘política’ proposto
por Kingdon (2003), mas um fluxo mais próximo do delineado por Boullosa (2013): um fluxo multifatorial de ações, de
instrumentos, de intenções e de problematizações.
139
Ainda que Lasswell (1970) tenha reconhecido a importância de componentes científicos e não
científicos no policy process, não chegou a reconhecer a importância de outros saberes,
reificando, a nosso ver, uma expertise universalista e científica. Enquanto Lasswell (1970, p.
08) considera ‘arena’ como “uma situação em que funcionários estatais estão envolvidos”, Cefaï
(2013) define-a como um lugar engendrado por um problema, um lócus de produção, de
circulação e de trocas intensas de argumentos, que envolvem sensibilizações, preocupações,
mobilizações, pesquisas, experimentações, disputas, etc. Assim, por mais que Lasswell (1971)
afirme ter seguido orientações de John Dewey e de seus colegas pragmatistas, o campo fundado
por ele parece estar seguindo caminhos distintos daqueles advogados pelo pragmatismo
deweyano (BOULLOSA, 2019).
Inspirados por Majone (1989) e guiados pela matriz de análise para o estudo de ‘experiências
públicas’ em movimento (Figura 1), interpretaremos o movimento hip hop da Ceilândia como
53
Nessa mesma direção, vale enfatizar a distinção, proposta por Majone (1989), entre dados (informações), evidências
(informações selecionadas dentre um conjunto disponível, para persuadir um auditório particular quanto à veracidade ou à
falsidade de uma afirmação) e argumentos, como sendo uma mescla complexa de afirmações de fatos e de avaliações
subjetivas a que subjazem quadros específicos de valores.
140
Para falar do movimento hip hop da Ceilândia, é preciso começar pelo território, por vários
motivos. Em primeiro lugar, porque o nascimento e o desenvolvimento socioterritorial de
Brasília (ou de suas 32 Regiões Administrativas - RAs) não apenas se entrelaçam com o
movimento hip hop, como também o orientam e o “alimentam”. Em segundo lugar, porque a
tensão entre a cidade pretensamente “inventada” e a cidade “praticada” está na origem da
disputa de narrativas que nos propomos a discutir, a partir do MHH da Ceilândia. As reflexões
apresentadas neste artigo constroem-se, no plano teórico-metodológico, a partir dos estudos
críticos em políticas públicas, do pragmatismo (sobretudo deweyano) e dos princípios da gestão
social. No plano empírico, são sustentadas por um trabalho de campo de aproximadamente seis
anos: dois dedicados à observação do processo de patrimonialização do Plano Piloto de
141
Entre outras coisas, a pesquisa sobre a patrimonialização de Brasília (PERES, 2016) revelou
quão conflituoso e contraditório foi o processo de formação política, cultural, estética e
socioterritorial da capital nacional e como esses conflitos moldaram a vida social e foram
moldados por ela. Faltava compreender como essa mesma sociedade reagiu, de diferentes
formas, a esse processo de formação, associando-se e engajando-se, em torno de situações
problemáticas, para construir e para (re)significar seu território, ativando experiências de
intervenção e de transformação socioterritorial que poderiam lhes garantir o status de política
urbana. Ainda durante a pesquisa acerca do processo de patrimonialização de Brasília, foi
possível perceber que a disputa de signos, de símbolos e de narrativas está nos alicerces da
cidade e permeia as relações entre o Plano Piloto e as “cidades-satélites”55 (centro e periferia),
mas entre o governo e os habitantes de cada porção do quadrilátero do Distrito Federal.
Dentre tantos pedaços territoriais passíveis de estudo e de análise, escolhemos o que resultou
de uma política pública urbana que consideramos paradigmática do planejamento territorial de
Brasília – a Campanha de Erradicação de Invasões (CEI). Uma política de estado, conduzida
durante o governo de Hélio Prates (1969-1974), impulsionada, em âmbito nacional, pelo
Sistema Financeiro de Habitação – SFH e pelo Banco Nacional de Habitação – BNH e, em
âmbito distrital, pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal – CODEPLAN e pela
Sociedade de Habitação de Interesse Social – SHIS. A Campanha erradicou “do mapa do
Distrito Federal – DF, as favelas do IAPI56, as Vilas Tenório, Esperança e Bernardo Saião
[além dos assentamentos Curral das Éguas e Placas das Mercês] e o Morro do Querosene [e
do Urubu]” (PAVIANI, 1976, p. 66) e deu o nome à cidade-satélite para onde foram levados
todos aqueles rotulados de ‘invasores’: Cei + lândia.
Entre 1970 e 1971, cerca de oitenta mil pessoas foram deslocadas de suas casas para um
território 30 km distante do Plano Piloto, sem redes de água e esgoto, sem iluminação, sem
asfalto, sem hospitais, postos médicos ou escolas (PEIXOTO et al, 2017). A extinção dos
aglomerados urbanos formados nas proximidades do plano piloto ou de áreas nobres da
cidade foi considerada, pelo governo militar, um sucesso de gestão – uma “solução social
pioneira na América do Sul” (HISTÓRIA..., 2011), o que evidencia que, em Brasília, até a
segregação foi planejada (PAVIANI, 2010; PERES, 2016; PEIXOTO et al., 2017). Para além
do instrumento de erradicação das invasões e de realocação das pessoas deslocadas em lotes
de terra muitas vezes cedidos pelo governo do Distrito Federal, o fluxo da política foi
composto, também, por outra campanha, de sensibilização da opinião pública e de
54
Brasília foi inserida na lista do Patrimônio Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação e a Cultura –
UNESCO, no ano de 1987, sob os critérios: (i) representar uma obra-prima do gênio criativo humano e (iv) ser um exemplo
excepcional de um tipo de construção, conjunto arquitetônico ou tecnológico ou paisagem que ilustra uma etapa significativa
da história da humanidade (UNESCO, 2015; 2016). Em 1987, o Conjunto Urbanístico de Brasília – CUB foi considerado
patrimônio distrital, por meio do Decreto 10.8929 (GDF, 1987), em 1990, foi inserido no Livro do Tombo Histórico Nacional
(IPHAN, 1992).
55
O Decreto 19.040 (GDF, 1998) veta o uso do termo ‘satélite’ em documentos oficiais e estabelece o termo ‘região
administrativa’ como substituto da expressão ‘cidade-satélite’, o que ilustra a afirmação de que a disputa por signos e
significados está nas bases da construção da cidade.
56
Vila do “Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários” – IAPI, localizada próxima à atual RA-VIII, Núcleo
Bandeirante (CODEPLAN, 2014).
142
Por outro lado, quando observamos a política pública urbana como um fluxo e através das
lentes crítico-reflexivas e interpretativas que construímos, é possível perceber a conformação
de um discurso político-normativo, cujo argumento central pauta-se na defesa de uma ideia
totalizante de cidade, que busca singularizar o território, atenuar ou eliminar suas diferenças e,
assim, as tensões e os conflitos oriundos de um longo processo de exclusão e de segregação
socioterritorial (PERES, 2019). Nesse fluxo, porém, costuma prevalecer a força dos
argumentos oficiais (ou de autoridade), que, ainda que não tenham o poder de engessar,
completa ou definitivamente, uma cidade, invisibilizam ou apagam outras narrativas, o que
tem diversos desdobramentos socioterritoriais59. Quando mudamos de lentes, porém, podemos
ver que um território não se constitui apenas por argumentos selecionados no âmbito do
Estado, mas por uma pluralidade complexa de narrativas, que fazem de cada Região
Administrativa um território polissêmico: mais plural, na medida em que mais pessoas se
engajam em sua produção. É, precisamente, nesse sentido que defendemos que a cada
argumento institucionalmente construído, geralmente de cima para baixo, pode-se contrapor
57
A letra do jingle ‘A cidade é uma só’ (1970) foi entoada em diversas escolas públicas do Distrito Federal e dizia:
Vamos sair da invasão, a cidade é uma só/ Você, que tem um bom lugar pra morar/ Nos dê a mão, ajude a construir nosso
lar/ Para que possamos dizer juntos: a cidade é uma só/ Você, você, você, você vai participar/ Porque, porque, porque a
cidade é uma só...
58
A Constituição de 1988, em seu artigo 32, estabelece a indissolubilidade do Distrito Federal e veta sua divisão em municípios
(BRASIL, 1988); O Decreto 19.040/1988 proíbe o uso do termo ‘satélite’ e oficializa o termo ‘Região Administrativa’ (GDF, 1998);
A Lei Distrital nº 1.648/1997 muda o nome da Região Administrativa I – Brasília, para RA-I Plano Piloto.
59
Apenas para exemplificar tais rebatimentos, citamos o processo de formação polinucleado, desordenado e desarticulado da
cidade (PAVIANI, 2010b) e a associação entre alta renda per capita e baixo coeficiente de GINI (ATLAS, 2014), que confere
à Brasília o título de cidade mais rica (em termos de renda domiciliar per capita) e, simultaneamente, mais desigual do Brasil
(PERES, 2016).
143
Ceilândia e hip hop nasceram, portanto, da terra vermelha, longe do centro monumental,
político e administrativo, mas, simultaneamente, no meio de outras centralidades, que foram
se construindo, na prática, fortemente marcadas pelas dimensões cultural, artística e estética.
E é interessante notar que a Ceilândia assumiu centralidades no decurso do processo por meio
do qual o movimento hip hop se publiciza e se problematiza – torna-se ‘experiência pública’ –
, seja pelo viés da formação identitária, da construção de novas sociabilidades, da geração de
emprego e renda, das lutas por reconhecimento (HONNETH, 2003) ou do esforço de
pertencer àquilo que nos pertence (SANTOS, 1999), bem como pelo viés da valorização e da
transformação do território por meio de seu uso. Território usado que, para Santos (2007),
representa o chão mais a identidade e, para Crosta (2009), representa o êxito de suas práticas.
Mundialmente, o movimento hip hop é conhecido por sua natureza multifacetada e costuma ser
apresentado em função de quatro ou cinco elementos: o rap, o breaking, o graffiti, a
discotecagem (realizada pelos Djs) e a filosofia ou conhecimento60. Aqui, porém, interessam-
nos outros elementos que emergem quando observamos o movimento hip hop através de outras
lentes, capazes de conferir-lhe complexidade e de elevar-lhe ao status de ‘experiência pública’.
Observado a partir de um arcabouço crítico-reflexivo – que combina os estudos críticos em
políticas públicas, o pragmatismo deweyano e a gestão social – e interpretado por meio de uma
matriz analítica que privilegia práticas, públicos e experiências estéticas, o movimento hip hop
revela-se multidimensional, dinâmico e transversal. Destacamos, assim, oito dimensões que
atestam a importância de estudá-lo como parte dos fluxos de políticas públicas:
60
Fala-se, normalmente em quatro ou cinco elementos, quais sejam: 1) a poesia, musicada e cantada por rappers (rap é
acrônimo para rithm and poetry) ou declamada em saraus, slams e batalhas; (2) a dança de rua (que congrega breaking,
footing, locking, popping, etc.) e é praticada por b-boys e b-girls; (3) o grafite (categoria que inclui murais, tags, bombs, pixo,
etc.), (4) a discotecagem dos DJs (acrônimo para disc-jockey), com seus scratches, samplers, remixes, back-to-back,
mashups, etc.; e (5) a própria filosofia do movimento – ou, simplesmente, ‘conhecimento’ – difundida pelos MCs (acrônimo
para master of cerimony). Há quem considere a moda como mais um elemento e há quem a considere parte inerente do
Movimento, conformando sua dimensão estética.
144
(3) Dimensão mercantil: relativa à inserção do MHH em uma indústria cultural global,
por meio da distribuição de produtos e serviços (consumidos ou comercializados) no
âmbito, sobretudo, das indústrias do entretenimento e da comunicação: encontros,
shows, festas, festivais, programas televisivos, reality shows, campeonatos, saraus,
batalhas, podcasts, livros, etc.; produtos relativos à indústria fonográfica: produção,
gravação, edição e distribuição de CDs, vinis, singles, beats, sons digitais, etc.;
produtos relativos à indústria da moda: design de moda, produção e distribuição de
camisetas, jaquetas, moletons, bermudas, bonés, durags, faixas, correntes, bijuterias,
meias, tênis, itens de vestuário e acessórios, em geral, representativos da estética
periférica, além de desfiles, catálogos, propagandas, etc.; ou, ainda, produtos relativos
145
(4) Dimensão política: comumente associada mais ao rap e ao grafiite (ou pixo), na
medida em que estes dois elementos assumem um caráter contestador e denunciativo,
o que faz com que o movimento hip hop seja diretamente associada a movimentos de
contestação e de resistência. Essa dimensão manifesta-se, também, pela postura de
seus artistas, quando se afirmam como opositores do sistema vigente ou quando
denunciam a ausência do Estado e questionam os rumos da política, das políticas
públicas e seus rebatimentos nas periferias. O MHH tem assumindo, cada vez mais, o
papel de instrumento de políticas públicas. É mobilizado, sobretudo, no campo do
serviço social e da assistência, como instrumento complementar para a
conscientização, educação, comunicação ou ‘recuperação’ de jovens – seja nas escolas
públicas ou em centros de recuperação de jovens com comportamento desviante ou
mesmo em casas de detenção e penitenciárias. Nessa dimensão, inserem-se, ainda, as
lutas e pressões por reconhecimento por parte dos praticantes do movimento hip hop,
que buscam reconhecimento enquanto membros ativos de uma comunidade
(cidadãos), enquanto titulares de direitos objetivos e subjetivos (como amor recíproco,
solidariedade, respeito, autoestima e dignidade), conforme discussão proposta por
Honneth (2003). No que diz respeito ao campo específico da política urbana, o MHH
costuma ser mais diretamente associado a questões culturais, que, apesar de sua
transversalidade ainda têm um tratamento marginal em comparação com as demais
seções temáticas que configuram a questão urbana, como o urbanismo, a habitação, a
segurança, o emprego, o saneamento, a infraestrutura, etc. (GRANGENEUVE, 2008).
De inspiração africana, o MHH teria florescido, de acordo com a versão mais difundida dessa
história, nos ghettos novaiorquinos, no início dos anos 1970, como subproduto dos
movimentos pró-Direitos Civis, nos Estados Unidos da América – não como no sonho
pacífico de Martin Luther King, mas, sim, na realidade cotidiana de jovens afro-americanos,
caribenho-americanos e latino-americanos (GEORGE, 2005). Na Ceilândia, porém, o MHH é
marcado por diversas ressignificações: o R do rap não se refere à rithm, mas à Revolução
(JAPÃO, 2016) e embora a Ceilândia figurasse como o lugar mais óbvio para o nascimento
61
Embora não tenhamos espaço para discutir a gestão social neste artigo, vale esclarecer que a gestão social: (1) consiste em
uma abordagem crítica brasileira no campo das políticas públicas (FRANÇA FILHO; BOULLOSA, 2015); (2) a
democractização da democracia é seu imperativo categórico (TENÓRIO, 2014); (3) volta-se, radicalmente, à realização do
bem comum (não estatal) (PEREIRA, 2014); (4) entendida como paradigma, considera que os significados por trás do que
está dado e do que ‘deve ser feito’ devem ser construídos coletivamente, em processos que não produzem apenas bens e
serviços, mas subjetividades e identidades (ROSA; MENDONÇA, 2011); (5) é indissociável da preocupação com a produção
de conhecimento vivo (FERRARA, 1986) e sempre a posteriori da experiência (PEIRCE, 2005).
62
Na distinção entre sentimentos, emoções e afetos, proposta por Han (2019, p. 94), os sentimentos têm uma temporalidade
diferente das emoções e dos afetos. Enquanto as emoções são essencialmente fugazes e os afetos são restritos a um momento,
os sentimentos “possuem uma duração, uma largura narrativa”; dos três, são os únicos que têm “acesso ao dialógico, ao
outro”. Optamos por chamar essa dimensão de ‘sentimental-afetiva’ para fazer referência a isso que tem duração no tempo e
no espaço, mas, também, a qualquer coisa que nos afete, que nos coloque em movimento, que seja capaz de nos colocar em
ação (por mais fugaz ou pontual que seja).
148
do hip hop, por ser um berço de imigrantes (predominantemente nordestinos) e por sua
história de escassez e de exclusão, o hip hop nasceu na área mais nobre da cidade, no Lago
Sul. Na visão dos praticantes do movimento hip hop da Ceilândia é a periferia que é o centro
(MACIEL, 2019). Antes mesmo de completar duas décadas de vida, a terra dos erradicados
das invasões já ganhava projeção na cena do Hip Hop nacional, com grupos como ‘Câmbio
Negro’ (1990) e ‘Álibi’ (1995), com álbuns e artistas premiados e músicas que apresentavam
“uma espécie de ‘raio-x do Brasil’” e do cotidiano periférico, articulando-se em um trabalho
contínuo de refiguração das experiências (CAMARGOS, 2015, P. 17-18).
Para além da música, do graffite e da dança, o MHH também ganhou as telas do cinema, por
meio das produções de Adirley Queirós, cineasta radicado na Ceilândia, que conferiu ao
MHH lugar de destaque na história da formação socioterritorial e identitária da cidade, com o
curta-documentário “Rap, o canto da Ceilândia” 64 (2005), indicado ao Prêmio Hutuz 2006, e
com os filmes ‘A cidade é uma só?’ (2011)65 e ‘Branco Sai Preto Fica’66 (2014), que além de
fazerem diversas referências ao MHH, conferem centralidade à Ceilândia e às discussões
sobre política urbana em Brasília, desafiando o discurso oficial. Segundo Adirley Queirós
(2015), seus filmes foram mais gestados no Departamento de Geografia da Universidade de
Brasília – onde teve contato com Milton Santos e com a ideia de democratização do território
–, do que no próprio Departamento de Comunicação, o que revela que a identidade da
Ceilândia forjou-se, justamente, na alteridade com o centro da capital federal e que o MHH
tornou-se, aos olhos de seus praticantes, uma espécie de cimento social – um caminho pelo
qual a juventude conseguiu ressignificar o que é ser ceilandense.
63
Genival Oliveira Gonçalves, o GOG, é rapper, cantor e escritor, de Sobradinho/DF, e um dos pioneiros do Movimento Hip Hop
no Distrito Federal. Participou da primeira formação do Grupo Álibi, da Ceilândia, e recebeu diversos prêmios por seu trabalho no
MHH, entre eles os Prêmios Hutuz nas categorias de: melhor disco do ano, com Tarja Preta (2004) e Aviso às Gerações (2007);
melhor artista solo, em 2007; melhor música do ano, com ‘Quando o Pai se Vai’ (2007); melhor videoclipe, com ‘Brasil com P’
(2008) e melhores músicas da década, com ‘É o Terror’ (2009).
64
De acordo com Queirós (2015), “no título do filme, o ‘canto’ não é a música, é o espaço. Até por volta de 2005, os dois maiores
lugares do Brasil em que existia o rap eram em São Paulo e Ceilândia”. O curta-metragem foi premiado no Festival de Cinema de
Brasília, em 2005 – primeira vez que Adirley Queirós entrou no Cine Brasília, localizado no Plano Piloto.
65
O longa-metragem recebeu Menção Honrosa de Melhor Filme na Semana dos Realizadores de 2011, ganhou o prêmio de melhor
filme escolhido pela crítica na 15ª Mostra de Cinema de Tiradentes e recebeu, ainda, o BACIFI 2012, em Buenos Aires, durante o
Festival Internacional de Cinema Independente, o Word Cinema Amsterdã (2012), o INDIE Brazil, em Los Angeles (2012), o
Panorama de Cinema da Bahia (2012) e o prêmio de melhor filme no Docs BH (VITRINE, s/d).
66
Premiado no Festival de Brasília e indicado ao Prêmio Guarani de Cinema Brasileiro (PAPO DE..., s/d).
149
O MHH aparece, na fala de seus praticantes, como um escudo contra a rejeição, a exclusão e a
segregação impostas por Brasília (tanto em termos materiais quanto simbólicos) e, ainda,
como um grito pelo direito à palavra no espaço público, um grito de cidadania (CANCLINI,
2007). Quando nos debruçamos sobre a realidade narrada pelo MHH da Ceilândia, é possível
perceber a própria fragilidade dos conceitos de ‘política pública’ e de ‘política urbana’, que
não abarcam (senão marginal ou pontualmente) as diversas práticas socioterritoriais
transversais, multidimensionais e multiescalares, que conformam o MHH, comumente
reduzido, no campo das políticas públicas, a um instrumento orientado à solução do problema
‘periferia’, um problema identificado e construído de cima para baixo e a partir argumentos de
escassez e de ausência.
A análise do Hip Hop em movimento, a partir de suas práticas e de seus textos, permitiu
perceber que ele não cabe em velhas dicotomias como rural-urbano, global-local ou centro-
periferia e que se empobrece quando é reduzido a um movimento artístico-cultural ou
confundido apenas com um gênero musical, o rap. Empobrece-se, também, quando é
reduzido a um meio de denúncia das mazelas sociais de territórios abandonados pelo Estado,
em resistência à opressão dos centros ou quando é reduzido a um instrumento, a serviço da
assistência social, útil ao engajamento de jovens desinteressados pelos estudos (sobretudo nas
escolas públicas das periferias da cidade), útil ao diálogo com a juventude acerca de temas
como violência doméstica, abuso sexual, uso de drogas, racismo ou bullying ou útil à
recuperação de jovens infratores, em casas de detenção, penitenciárias ou Centros Avançados
dos Juizados Especiais – CAJEs, mas inútil para desencadear processos de publicização, de
investigação, de inovação e de aprendizagem.
O MHH pode, sim, servir como instrumento de política pública ou como facilitador das
relações entre as autoridades (políticas, policiais ou educacionais, por exemplo) com os
jovens periféricos, mas nos parece ter, ainda, outros papeis, que só se revelam quando o
observamos através de outras lentes e quando vemos o movimento hip hop como experiência
pública transversal, multidimensional, multisensorial e multiescalar. Quando analisado através
das lentes dos estudos críticos, do pragmatismo e da gestão social, é possível perceber, entre
outras coisas: a) sua capacidade de constituir “comunidades de investigadores” (DEWEY,
1927); b) sua vocação para oportunizar espaços horizontais de aprendizagem, de construção
coletiva e de proposição de outros caminhos, rompendo, em alguma medida, com a ideia de
que a participação política popular precise ser ordenada, institucionalizada ou pré-projetada,
para que seja efetiva; c) seu papel de produtor de argumentos (MAJONE, 1989); d) seu
comprometimento com arranjos de organização e de gestão pautados no fazer junto; e) seu
compromisso com a construção de outras formas de gerir e de problematizar realidades socio-
interacionais complexas, a partir de outro modus operandi – para além do Estado –, tanto em
termos de processo quanto de finalidade, redefinindo as relações entre cultura e política, entre
economia e política, entre estética e política, etc., o que aproxima as práticas do MHH do que
entendemos por gestão social (FRANÇA FILHO, 2003; BOULLOSA, SCHOMMER, 2008;
FRANÇA FILHO, BOULLOSA, 2015).
O primeiro argumento que emerge das narrativas sobre o Hip Hop tem natureza territorial.
A história contada pelo MHH está enraizada na Ceilândia. Das letras de rap às mensagens
escritas em camisetas e bonés, há uma estética que está, acima de tudo, vinculada ao território
e que é continuamente atravessada por ele. Há um valor específico contido nesse desejo de
enraizamento, de pertencimento, de promoção e de valorização da Ceilândia, em escala
distrital e nacional. Há, ainda, um desejo de reconhecimento, que nos parece diretamente
vinculado à história de formação da cidade, em uma busca constante pela ressignificação da
sigla C.E.I, em resposta ao discurso oficial e aos rótulos e estigmas desencadeados por ele.
Afinal, para justificar a política de erradicação de invasões, o Governo difundiu o argumento
de que as invasões surgidas “dentro do anel sanitário de Brasília, empanavam a imagem da
mais moderna capital do mundo (...), com pessoas vivendo nas mais precárias condições
sociais e de higiene” (HISTÓRIA DE..., 2011). Dizia-se, ainda, que diversos serviços estavam
sendo implantados na Ceilândia, enquadrando-se “na paisagem humana criada para os ex-
favelados do Distrito Federal” (idem).
No campo das políticas públicas, ainda que o MHH não seja considerado (tradicionalmente)
um ator, na escala macro (das instituições políticas, por exemplo), por não ser dominante ou
hegemônico e por não deter poder de decisão; na escala micro, os praticantes do MMH
atorizam-se, individualmente, a partir das práticas de uso do território e, simultaneamente, o
próprio MHH faz-se público, publiciza-se coletivamente na mesoescala, conformando uma
151
“arena pública” (CEFAÏ, 2011), em torno da situação problemática apontada pelo Governo e
da necessidade de (re)construção identitária, que passa, necessariamente, pela ressignificação
de outros signos, como ‘favelado’, ‘invasor’ e ‘periférico’ ou RA-IX (Região Administrativa
número nove). O MHH conforma um tipo de luta por reconhecimento que explicita, nas
palavras de Sobottka e Saavedra (2012, p. 272) “uma gramática, uma semântica subcultural,
na qual as experiências de injustiça encontram uma linguagem comum”. Em outras palavras,
o MHH oferece a seus praticantes “a possiblidade de uma ampliação” das formas desse
reconhecimento (HONNETH, 2003, P. 272). Quando lemos o MHH como um texto67 social, o
argumento territorial emerge de diversas formas, vinculado, principalmente, a questões
identitárias, de pertencimento e de reconhecimento, nos três tipos elencados por Honneth
(2003), trazendo o pensamento sensível e a dimensão sentimental-afetiva para dentro do
processo político.
Se Ceilândia e Brasília são a mesma cidade? Pro Governo é. Porque era Governo do Distrito Federal e agora é
só Governo de Brasília, então pro Governo é... Só que aquela Brasília é muito mais bem tratada do que essa
aqui... Então não é... Pra mim, aqui é Distrito Federal, sempre foi... Sempre foi. (...) Eu costumo falar – eu falei
até no filme do Adirley Queiroz, quando eu participei – ‘Não, peraí... eu sou ceilandense, eu não sou brasiliense.
Afastou, afastou, mas aí nasceu outra... Afasta e nasce... [a periferia] é como um vírus, né?
(...) Rotina diária do jovem da [Ceilândia] Norte ou da Sul / ninguém se limita em derrubar mais um /
Rapaziada de preza, atitude de sobra / as outras áreas também têm suas cobras / Consequência da merda que
acontece na quebrada M / Malucos de outras áreas, a mobilete treme / Tentam tomar a todo custo nosso
território / manhãs de segunda à sexta, sempre tem velório...
67
A partir da virada linguística (RORTY, 1967), as relações sociais passam a ser compreendidas como textos ou análogos de
texto – incluindo comunicações escritas ou não, verbais ou não (TAYLOR, 1971) –, estruturados a partir de relações de
poder, de modelagens da ação social e de matrizes de significados e de valores (BOULLOSA; PERES; BESSA, 2019, no
prelo).
152
Eu acredito na paz, chega mais, vai que vai... / Troque o canhão por um livro, mostre que é capaz / Olha bem,
polícia invade seu barraco, sem mandato / Xinga sua esposa, quebra tudo, depois sai vazado / Aqui a lei do tom
impera, quem tem quadrada é o cara / O dono da favela... / Aqui é foda, mas, irmão, eu amo essa porra /
Ceilândia Norte, resistência, véi, eu to de boa!
É uma luta fazer com que cada cara se reconheça parte da sua comunidade. Antigamente, nos bailes, ninguém
falava que era da Ceilândia. Quando o rap falou que amava essa porra, que era ‘negão da Ceilândia’, trouxe
pertencimento... Camiseta da Ceilândia, bombou! Mas foi um trabalho de quase 30 anos. Ceilândia tinha que
ser a capital de Brasília.(...) Minhas músicas nunca contribuíram para estigmatizar a Ceilândia... só o rap que
fez por essa porra. Só o rap pediu justiça social. (...) Não existe rap de direita.(...) R-A-P é Revolução, Amor e
Poesia... o R não é de Ritmo não.
“Tudo que era de ruim, jogavam pra nós... Era a terra sem lei, o fim do mundo. A gente era o flagelo da
guerra. Falou que era da Ceilândia, as meninas já eram de outro jeito... Nem queriam conversa. [Pensavam]
‘ou foi, ou é, ou será bandido’. Era complicado bater no peito, com orgulho e falar ‘sou negão careca da
Ceilândia mesmo, e daí?’
A gente levantou a bandeira da Ceilândia, sacudiu, e falou que aqui é bom, mesmo sendo ruim.
(...) Depois a gente entendeu que o rap nada mais era que uma música que falava de dores coletivas, de
sentimentos coletivos, de ações no próprio território, com que a gente se identificava... E, no mais, a gente fala
da Ceilândia no nosso rap porque todos nós gostamos de enaltecer o nosso lugar, ainda mais quando o nosso
lugar é tão menosprezado...
(...) Hoje, a gente tem um pouquinho mais de autoestima... Mas não é fácil você romper com 30 anos de alguém,
todo dia, falando que é a cidade mais violenta do DF, que todo mundo vai morrer... Que é o Caldeirão do
Diabo, a Vila do Cachorro Sentado, etc... É muito difícil 68.(...) Brasília precisa falar assim: ‘Ceilândia,
desculpa!’
TEXTO 10 - Trechos de entrevista concedida por Rayane da Silva Soares (2019), atual
coordenadora da RUAS/Jovem de Expressão
A gente estava tentando buscar um nome que tivesse um sentido, mas que também representasse um valor nosso,
né? Eu acredito que a RUAS [acrônimo para Rede Urbana de Ações Socioculturais] fala muito do nosso
movimento de ocupação do espaço público. (...) se a gente não ocupar esses espaços com cultura, com coisas
68
Max Maciel (2019) faz referência ao polêmico jornalista especializado em cobertura policial e radialista, Mário Eugênio
Rafael de Oliveira, apresentador de um popular programa de rádio dos anos 1980 – o Gogó das Sete, um noticiário policial
que ia ao ar de segunda a sábado, na Rádio Planalto, conhecido, também, pelo bordão ‘aqui a notícia é do tamanho da
verdade, doa a quem doer!’. Na Ceilândia, Mário ficou conhecido por apelidar tanto os as pessoas quanto os pontos da cidade
considerados mais perigosos – o Setor O virou Vila do Cachorro Sentado, o P Sul virou Caldeirão do Diabo, motivo pelo
qual é bastante criticado por praticantes do movimento hip hop, que consideram que o programa prestava um desserviço à
imagem da cidade. Foi assassinado, aos 31 anos, em novembro de 1984, após denúncias acerca do envolvimento de policiais
civis e militares, da cúpula a Segurança do Distrito Federal, no que chamou de um ‘Esquadrão da Morte’, em Brasília (EBC,
2016). Segundo Brito (2017), um conjunto de reportagens do Correio Braziliense acerca do Esquadrão da Morte e do
assassinato do jornalista renderam ao jornal o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1985.
153
positivas, outras coisas vão ocupar o espaço, como a questão do tráfico, como a questão da violência, .... então,
pra mim, esse nome é bem simbólico!
TEXTO 11 - Trechos de entrevista concedida por Wemmia Anita Santos (2019b), uma das
idealizadoras da RA.IX (2019)
(...) hoje, eu tenho orgulho de dizer [olhos marejados] que a gente é RA-IX [em referência a ser da Ceilândia],
porque, no passado, muitos dos meus, e eu também, tivemos que negar no nosso currículo que a gente morava
aqui... Vez ou outra falava Taguatinga, botava até na QNL, na Chaparral, pra não dizer que era da Ceilândia.
Então, hoje, ver as pessoas me convidando pra falar nos lugares e as pessoas virem conversar comigo porque
eu sou RA-IX.... caramba, ...significa, então, que a gente conseguiu mudar a lógica, né?
(...) Não só a cultura periférica, mas a periferia como um todo não sabe o potencial que ela tem. O dia que ela
descobrir isso, vai ser uma grande revolução. (...) A arte urbana...e a arte, em geral... tem esse desafio e tem que
ter essa responsabilidade, de entender o que a gente é capaz de fazer... e de difundir isso, como um retorno, pra
nossa comunidade, pro nosso território.
(...) a cultura periférica sempre teve potencial político, mesmo sem saber. Enquanto a periferia não sabia, quem
olhava e sabia usava a periferia. Hoje é diferente, porque essa consciência política muita gente já tem... então,
hoje, quase todo mundo sabe que existe uma força muito grande e existe uma voz muito forte... só que, às vezes,
é tão grande e é tão forte que a gente acaba não se juntando...
Estes textos revelam não apenas as contradições entre as narrativas do MHH e a narrativa
oficial, mas, também, os próprios conflitos no interior do movimento e no interior do
território, sempre em disputa. É interessante apontar que as músicas ‘Reino da Morte’
(ÁLIBI, 1995) e ‘Ceilândia Resistência’ (VIELA 17, 2001) são apenas dois exemplos de uma
diversidade de letras de rap, escritas por artistas da Ceilândia ou de fora dela, que conferem
protagonismo ao território. Além de estar no título de ‘Ceilândia Resistência’, o nome da
cidade aparece, de forma explícita, em músicas do Grupo Viela 17 – como ‘Crise Sonora’,
‘Ao seu serviço’, ‘Respeita as Caras’, ‘Foi Complicado pra chegar aqui’, ‘Sem caô, sem
Simpatia’, ‘Estamos de Volta’, ‘Quebrada Quente’, ‘Valores a mais’, ‘A ti, todo respeito’,
‘Quando as Ruas Chamam’, ’20 de 40’, ‘Vou em Frente’, ‘Só Curto o que é bom’ e
‘Pequenos Homens’ –, do Grupo Álibi – como ‘C.E.I’, ‘Reino da Morte’, ‘Reino da Morte II’
– do grupo Câmbio Negro – como ‘Pega a Manha’, ‘Ceilândia Revanche do Gueto’, ‘Careca
sim, e daí?’ e ‘A Volta’ – e tantas outras. Difícil é encontrar alguma letra que não faça
referência, explícita ou implícita, à quebrada, à periferia ou a alguma região específica da
Ceilândia, em um verdadeiro tributo, que confronta a ideia de um território único ou singular.
69
Rivanilson da Silva Alves, Rivas, já foi b-boy, integrante do Grupo Reforços Breakers e foi integrante de um do maior
coletivo de grafite do Distrito Federal, o DF Zulu
154
Há, ainda, exemplos de álbuns de rap, como Sub-Raça (CÂMBIO NEGRO, 1993) e
Sobrevivendo no Inferno (RACIONAIS, 1997), que documentam as práticas socioterritoriais e
culturais das periferias. São narrativas plurais, que não romantizam o território, que não tem o
intuito de embelezar a periferia ou de idealizar a pobreza e que, assim, sem naturalizar a
condição de ser periférico, disputam as narrativas, subvertendo padrões estéticos dominantes e
reivindicando que ‘a periferia é o centro’ (MACIEL, 2019; SOARES, 2019) – a máxima que
sintetiza o argumento da multiplicidade territorial. Essa reivindicação de centralidade não tem o
intuito apenas de mudar o lugar do centro, defendendo outro tipo de unicidade territorial, mas
de chamar atenção para a existência de múltiplas centralidades, em diálogo tácito com Connell
(2012) e Sousa Santos (2008): se centro é onde se formam conceitos, se constroem argumentos
e se definem e se desenvolvem métodos (CONNEL, 2012), a partir da (re)localização dos
centros, reconhece-se o papel da periferia na produção de argumentos e de significados e na
definição e no desenvolvimento de outras formas de pensar, de dizer, de fazer, de julgar, de
imaginar, de responder e de participar.
Experiências públicas como o MHH assumem relevância, também, porque ‘bagunçam’ (e,
assim, pluralizam e diversificam) o palco público. Desorganizam o que é reificado como
‘ordem pública’, como ‘opinião pública’, como ‘moralidade pública’, categorias comumente
colocadas em um pedestal inatacável e elevadas ao status de cânones da sociedade
(GUSFIELD, 1981). Movimentos como esse podem, de fato, configurar produtivas pedras no
sapato da hierarquização social, cultural, estética e dos saberes (TROTTA, 2016). Por outro
lado, reconhecemos que a integração de novos e diferentes valores ao campo das políticas
públicas nunca será automaticamente desencadeada pela mera emergência ou pela
pluralização de experiências públicas como o MHH. Tal integração aos fluxos de políticas
públicas (e, também, às agendas de pesquisa em políticas públicas) depende, em grande
medida, da capacidade crítico-reflexiva de seus atores e da revisão do que se entende por
155
‘política pública’ e por ‘conhecimento’. Há que se compreender, também, que a posteriori das
experiências públicas os sujeitos sociais adquirem consciência de si mesmos e aprendem a
perceber a própria ação na interação com os outros e na apropriação dos signos, que passa,
necessariamente, por processos de esvaziamento semântico e de ressignificação.
Vejamos, então, como o MHH promove tais revisões, por meio de um segundo argumento,
que sintetizamos na máxima do rapper Renan Inquérito (2014, p. 16)70, bastante repetida por
praticantes do MHH da Ceilândia: “vou ser breve, se a história é nossa, deixa que nóis
escreve”, em oposição à defesa de uma história única.
O hip hop é um ato político... Há bastante tempo, lá atrás, quando o Câmbio Negro gravou a música dizendo
“sou negão careca da Ceilândia, mesmo, e daí?”, as pessoas falaram “Nossa, olha que bonito”... Não! Não era
bonito, era uma parada que tava engasgada, era um desabafo!
(...) Por isso que, talvez, eu use boné [de aba reta], não é só porque eu gosto, é porque é uma afronta mesmo...
então, eu uso boné em qualquer lugar. Estar de boné é afirmar uma identidade e afrontar os espaços, porque é
uma afronta, eu sei que é uma afronta... porque [o boné de aba reta], culturalmente, é marginalizado... É o
símbolo do estereótipo.
Hoje está na moda dizer que é da periferia. (...) meio que maquiaram essa ideia do que é viver na periferia...
Continuo dizendo que, para muitos, as dificuldades são as mesmas daquela época. O que mudou foi só a
imagem... e o sentido que a gente dá. Hoje a periferia está nas novelas, é moda, é bonito, é bacana ser
underground, ser marginal... (...) Até o dia em que as televisões perderem o interesse... talvez a periferia e o hip
hop ainda voltem a ser descartáveis.
...mas isso que eu acho genial de ser periférico, porque a gente está construindo o orgulho de ‘ser de onde é’, e
‘por que é?’, e ampliando as possibilidads... Então, a gente sai do cenário de escassez e passa pro de potência...
Porque é como se aqui sempre tivesse esse olhar mais de negligência, de ausência... E aí, sim, não negamos a
ausência do Estado, mas essa ausência não impediu que alternativas fossem construídas.
… Aquela caixa d´água que vocês veem lá… que hoje é um símbolo, lindo, bonito… lá era bica… Era uma bica,
um chafariz… Você saía da 26 da Ceilândia com um monte de balde, um monte de tambor, que era tambor velho
de construção, que nós pegávamos do Plano e trazíamos pra cá, com lata de tinta e tudo… e íamos lá buscar
água pra Ceilândia. Hoje as pessoas chegam lá, tiram foto e tal, mas aquilo ali eu vejo como uma fonte de água,
de sobrevivência… Se não tivesse aquilo lá, ninguém tinha bebido água na Ceilândia.
Eu acho Faroeste Caboclo uma piada de mau gosto (...) Jeremias era o cara que mais matava na 17 da
Ceilândia. (...) Só que Renato Russo não sabia isso, mas enalteceu um cara que era o terror da comunidade (...)
70
A frase também é parte da música “Poucas Palavras”, de Renan Inquérito, no Álbum ‘Mudança’.
156
Ele nunca pisou na Ceilândia... É esse tipo de coisa que nós estamos tentando desconstruir hoje, é isso que nós
ainda estamos tentando desconstruir.
(...) Tinha pouquíssimo conhecimento, mas o que a gente via, a gente tentava imitar, né? E aí começamos a
ouvir música, um rap mais pesado... E aí começamos a brincar com aquilo, pegar as músicas dos caras e fazer
letra em cima das letras deles (...) editando (...)
... A gente conseguiu tirar a cara de malvada da Ceilândia, durante um tempo, dentro do rap...
Mano, se vai dar poder ao povo, tem que tirar a informação [risos]... Ou uma coisa ou outra... Ou poder ou
informação, porque pensa o povo com poder e com informação... É de lascar, né, velho? (...) Antes um povo com
informação do que com poder. O povo com informação, ele cria o poder, ele mesmo...
Sabe? O hip hop não quer ninguém falando por ele... Ele quer falar por si só... E as letras das músicas estão aí
pra isso.
“As pessoas são como as palavras, só fazem sentido se juntas com as outras.
(...) / Fiz com a passarela o que eles fez com a cadeia e com a favela /
Enchi de preto”
Na batalha semântica, em que cada força busca atribuir às palavras o sentido que mais lhe
convenha (BOAL, 2009), o MHH ressignifica, deliberadamente, o que é ser periférico, o que
é estar no centro e o que é a periferia e ressignifica, também, todos os rótulos e símbolos
vinculados ao território – da Caixa d’água desenhada por Oscar Niemeyer ao nome da
‘cidade’71. Mas, afinal, quais são os limites dessas ressignificações? Qual o seu poder diante
das assimetrias de poder? Qual o papel dos argumentos marginais ou contra hegemônicos
diante de argumentos dominantes? E, ainda, qual é o custo social e simbólico de tais
ressignificações? Embora nos conduzam por caminhos demasiadamente longos e, talvez,
muito distantes do que é proposto neste artigo, estas nos parecem ser questões fundamentais,
para a ampliação da agenda de pesquisas no campo de estudos em políticas públicas. Atemo-
nos, aqui, à reflexão acerca de alguns limites relativos às dimensões artístico-cultural e
estética do MHH.
71
Termo utilizado pelos praticantes do MHH para se referir à Ceilândia.
72
Dewey (2010) lamenta que não exista, na língua inglesa, uma palavra que abarque, sem ambiguidade, o termo ‘artístico’,
que se refere primariamente ao ato de produção, e o termo ‘estético’ que se refere ao ato de percepção e satisfação, ou seja, o
fazer e o sofrer.
157
jeito e cuspindo de outra forma totalmente transformada (RUFINO, 2016) – nos ajudam a
compreender o lugar sociopolítico da arte nas sociedades contemporâneas: lançar um olhar
crítico-reflexivo para o que está dado (para o status quo), pegar os signos emprestados, engoli-
los (esvaziando-os de seus significados originais) e cuspir algo novo, ainda não pensado.
Da collage surrealista à pop art, passando pela Monalisa de bigode de Duchamp ou pelas
obras comerciais e pré-fabricadas de Andy Warhol (SHUSTERMAN, 2008), as práticas
artísticas de vanguarda indicam a “vontade de inscrever a obra de arte numa rede de signos e
significados, em vez de considerá-la como forma autônoma ou original” (BOURRIAUD,
2009, p. 12-13) e, assim, a vontade de subverter as lógicas dominantes, elaborar novos
sentidos, (re)selecionar as memórias, a partir de outros repertórios e de “narrativas
plurissêmicas” (AZEVEDO, 2014, p. 77), um conjunto de tantas narrativas quanto necessárias
para abarcar as múltiplas identidades, temporalidades que coexistem no território. É, também,
por colagem e por montagem, nos processos de engolir e cuspir, que o MHH se constrói,
buscando (re)significar realidades sociais caóticas e marcadas por alto grau de incerteza e de
insegurança, buscando abraçar o ‘prático’, o que se faz no cotidiano, para estendê-lo ao social,
ao político, ao econômico e ao cultural.
Daí os motivos de voltarmos nossa atenção à sua dimensão estética, catártica e, em grande
medida, “improvisada” do movimento hip hop. Se o interpretamos a partir das situações que
ele cria, a valorização da dimensão estética emerge como o prelúdio de outras racionalidades,
capazes de transformar o que entendemos por políticas públicas e como cada um de nós se vê
em fluxos de políticas públicas. Afinal, conforme defendido por Dewey (1980), a dimensão
estética - da arte e da cultura, ativadas pela experiência – é a responsável por construir a ponte
entre a crítica social e a política, promovendo um tipo de troca e de compartilhamento ativo e
alerta com o mundo.
oferece nossa única demonstração de uma estabilidade que não é estagnação, mas
que é rítmica e está em constante desenvolvimento (DEWEY, 1980, P. 19).
Quando nos propomos a ver o MHH como uma experiência pública, não podemos perder de
vista que, apesar do uso da expressão no singular, toda experiência pública é muitas, porque é
constituída por uma comunidade de práticas e praticantes, que conformam um fluxo
multifatorial, multidirecional e multisensorial vinculado à construção e à comunicação de
significados. Assim, quando nos debruçamos sobre experiências públicas, não estamos
questionando apenas o que significam, mas como significam (YANOW, 2016). Nesse sentido,
recorremos ao caso da ‘RAIX’ – uma central criativa criada por um grupo de jovens
ceilandenses, que agrega uma marca de vestuário, uma feira, uma loja colaborativa e diversos
projetos de formação e de promoção de ‘potências periféricas’ – como forma de demonstrar que
as práticas socioterritoriais ativadas pelo MHH colocam o conhecimento local/experiencial e o
conhecimento técnico e especializado em diálogo, revelando a agência dos que são,
historicamente, vistos apenas como alvo (ou como beneficiários) de políticas públicas.
Complexa e multifacetada, A RAIX pode ser interpretada como o resultado (ou a soma de
êxitos e fracassos) de outras práticas. Seu nascimento e seu desenvolvimento decorrem de
experiências de tentativa-e-erro, de improviso, de subversão, de dedicação, de pesquisa, de
coragem, de insistências, de dores, de um pouco de sorte, de muita paixão e de afetos. Uma
experiência que, sob a ótica da gestão social, ilustra o fazer-junto crítico-reflexivo dos
159
projetos que estão em permanente construção. Para compreender a ‘RAIX’ é necessário seguir
o fluxo do MHH e os ‘fios’ que levam às situações problemáticas que lhe deram origem:
A RAIX nasceu, primeiramente, como uma ideia do designer gráfico ‘Skill’, que, juntamente
com um grupo de amigos, tentou executar (a princípio sem êxito) um projeto de produção de
artigos/produtos relacionados ao território e à estética do MHH na Ceilândia. Em seguida, a
ideia foi compartilhada com Wemmia (assistente social), com Van (rapper) e com Palito
(professor de áudio visual do Programa Jovem de Expressão) e se transformou no projeto de
uma ‘central criativa’, voltada ao acolhimento e à promoção de iniciativas (potências)
identificadas no território. Por trás do conceito, está a apropriação do ‘nome’ conferido pelo
Governo do Distrito Federal à Ceilândia – Região Administrativa (RA) número 9 (IX) virou
‘RAIX’, em referência ao termo ‘raiz’ e à ideia de enraizamento territorial. O novo projeto foi
submetido ao primeiro edital73 do Laboratório de Empreendimentos Criativos – LeCria, em
2016, que financiou 10 projetos, com o valor de até R$10.000,00 por projeto. A RAIX,
porém, não foi contemplada. Ficou em 11º lugar.
De acordo com Wemmia Santos (2019), ceilandense de 25 anos, há muita coisa por trás da
RAIX, para além do comércio de itens de vestuário: a questão territorial, a questão identitária,
questões de raça e de gênero, além de uma longa história de resistência e de luta por
reconhecimento. Quando souberam que não haviam sido contemplados pelo Edital do LeCria, o
Coletivo questionou a banca, solicitou acesso aos pareceres, estudou todos os projetos que
haviam sido contemplados e reformulou a proposta – em um evidente processo de
73
Tratou-se do Edital 1ª Rede Coletivos de Expressão, patrocinado e realizado pelo Instituto Caixa Seguradora, em parceria
com a RUAS e com apoio da Secretaria de Trabalho do Distrito Federal e do Jornal de Brasília. O principal objetivo do
Edital do LeCria é fomentar iniciativas apresentadas por jovens da Ceilândia, sem burocracia e sem condicionalidades de
sucesso. Trata-se de uma tentativa de dizer aos jovens que eles podem se arriscar, podem ousar colocar suas ideias em
prática, que podem gastar o dinheiro recebido sem a preocupação com cronogramas rígidos de execução do recurso ou com
rubricas inflexíveis e, o que parece mais fundamental, sem a exigência de que a ideia dê certo (MACIEL, 2019). O Edital do
LeCria está em sua terceira edição.
160
“Foi incrível, imagina... Pra gente, isso era... era nascer monstrão!” (SANTOS, 2019).
Segundo Wemmia Santos (idem), adotaram a mesma estratégia das start-ups: na verdade, não
tinham nada, só a ideia. Venderam a ideia. Nos três meses seguintes, imaginaram tudo –
elaboraram a arte das camisetas, fizeram orçamentos, pesquisaram possíveis fornecedores,
compraram tecidos, contataram costureiras, tudo na Ceilândia. “Foi aquela camiseta com o
desenho de um coração meio em alto relevo que salvou a nossa vida... Ali nasceu a RAIX”
(SANTOS, 2019). A partir disso, o coletivo cresceu e desenvolveu novas práticas a partir de
cada situação problemática identificada pelo próprio grupo no decurso da experiência. Diante
das dificuldades em participar de feiras de produtores do Distrito Federal, em função dos altos
valores cobrados pelo espaço e pela estrutura, por exemplo, criaram a ‘banca da quebrada’.
Nas palavras de Wemmia (idem), começaram a realizar um périplo periférico, circulando por
todas as Regiões Administrativas do DF, mapeando e estabelecendo contato com outras
iniciativas e outros coletivos, também voltados à venda de produtos de base local/territorial,
construindo relações em rede. Nesse movimento, além de promoverem a marca, convenciam
outros coletivos a participaram da ‘banca da quebrada’, entregando seus produtos, com base
na confiança, para que fossem vendidos na banca, em troca de uma pequena cota sobre os
produtos vendidos, destinada à cobertura dos custos com transporte, alimentação e
infraestrutura. Assim, todos dividiam os custos e viabilizavam a participação de pequenos
produtores periféricos em grandes feiras do DF.
Com o tempo, os produtos angariados com outros coletivos deixaram de caber no único carro
disponível e, diante disso, o coletivo percebeu a oportunidade de criação de uma feira
exclusiva: a ‘Feira da Quebrada’. Submeteram um novo projeto ao Edital “Espaço Aberto”,
também do Programa Jovem de Expressão, e foram contemplados, para a realização da 1ª
Edição da Feira da Quebrada. De lá pra cá, foram realizadas cinco feiras, reunindo
gratuitamente iniciativas e produtos de diversas Regiões Administrativas do DF. A última
inovação do Coletivo – que se orgulha em ressaltar que mantém, desde o início, uma cadeia
produtiva 100% local e que se inspira nos princípios da economia solidária e criativa –
emergiu de outra situação problemática, percebida na prática. Diante da dificuldade de
realização periódica de feiras, necessárias para a manutenção dos vínculos de proximidade
161
74
Nesse mesmo sentido, o tema da 6ª Edição do Festival Elemento em Movimento foi ‘O que vem de nós’, em referência ao
esforço de reduzir a distância entre produção cultural, prestação de serviços e consumo.
75
Não em referência a trocas financeiras, mas à noção deweyano de transação, termo entendido como um processo ativo de
vida (q inclui atividades biológicas, hábitos sociais, pensamentos individuais, valores culturais, ambientes naturais, etc.), que
engaja os seres humanos e o ambiente em unidades compostas (situações), para a manutenção ou para a recuperação de um
equilíbrio orgânico, em um processo coletivo, autônomo e recíproco (DEWEY; BENTLEY, 1946; SEIGFRIED, 1996). Se,
na teoria da escolha racional, predomina a auto-ação, em que os sujeitos agem por seu próprio poder e vontade, nos modelos
de estímulo-resposta e causa-consequência, predomina a ideia de sujeitos e os objetos em inter-ação e, na filosofia
pragmatista deweyana, predomina a noção de trans-ação, em que indivíduos, objetos, natureza e sociedade constituem-se
mutuamente (KURUVILLA; DORSTEWITZ, 2009).
162
Por fim, diante da experiência da RAIX e da entrevista concedida por Wemmia, gostaríamos de
propor duas breves problematizações, que podem abrir novos caminhos de pesquisa e de
análise: uma relativa ao poder de apropriação de experiências públicas pelo poder público ou
pelo mercado, que evidenciam os limites das ressignificações; e outra relativa a nosso papel –
enquanto pesquisadores, acadêmicos, analistas ou formuladores de políticas públicas – na
ampliação e na pluralização do campo. Sobre o primeiro ponto, é importante reconhecer que o
apelo estético da periferia tem sido, com cada vez mais frequência, cooptado tanto pelo
mercado quanto por instituições públicas ou privadas, o que não significa que esses movimentos
estejam sendo realmente valorizados e respeitados ou que sua complexidade seja compreendida.
Para citar apenas alguns exemplos, vale recordar a cadeira ‘Favela’, criada em 1996 pelos
irmãos Campana e vendida por R$ 6.900,00 (REVISTA CASA &..., 2004); ou o ‘Espaço
Favela’, novidade do Rock in Rio 2019, com ingressos vendidos por mais de R$455,00
(RISTOW, 2019); ou as camisetas que estampam o nome ‘Favela’ – vendidas, na Itália, pela
grife Givenchy, por U$390 (FIGUEIREDO, 2014) ou no Brasil, pela Osklen, por R$89,00
(BRASILEIRO, 2015). Para além da mercantilização, há inúmeros exemplos de
estereotipação, como no caso da festa “No País das Maravilhas”, de cooperados da Unimed,
em São José do Rio Preto, em que se criou um cenário de favela composto por: uma mulher
negra com roupa de baiana, manuseando um tacho de acarajé em frente a um botequim, um
varal de arame com roupas penduradas, um garçom negro servindo churrasquinho em uma
laje, uma pia cheia de louça suja e um isopor de sacolé (PITOMBO, 2019). “Já dizia o poeta
Dugueto: quem não tem valor, tem preço!76” (INQUÉRITO, 2014, p. 62; VAZ, 2016).
Sobre o segundo ponto, gostaríamos apenas de enfatizar que todo conhecimento resulta de
fazeres e que, nesse sentido, são tudo menos “frutos estranhos que caem” ou que “são
colhidos de uma árvore” (HAN, 2019b, p. 53). Acrescentamos, ainda, que mesmo que fossem
frutos coletados em campo, precisariam ser mastigados, engolidos e digeridos por
comunidades de praticantes ou comunidades de investigadores (DEWEY, 1927) irredutíveis
às elites política, intelectual ou acadêmica, o que nos parece ganhar maior relevância em
contextos de crise democrática, de ‘pós-verdade’ e de reificação das evidências como base de
desenho de políticas públicas. Construir a visibilidade e a inteligibilidade de ‘experiências
públicas’ no campo de estudos em políticas públicas não depende apenas da pré-disposição do
pesquisador ou do analista ou da mera adoção de uma matriz analítica. Depende, também, do
compromisso permanente com a reflexividade e com a promoção de um ‘mundo de políticas
públicas’ e de um policy process mais plurais e democráticos.
76
A frase também consta no livro de Sérgio Vaz (2016), Flores de Alvenaria.
163
grupo social, tem seus símbolos cooptados por outros grupos ou outros suportes midiáticos.
Quando as favelas são transformadas em mero elemento decorativo, é verdade que têm seus
significados esvaziados, mas o mesmo esvaziamento que faz crescer a estigmatização, abre
espaço às ressignificações e à valorização de sua estética (TROTTA, 2016), para o bem ou
para o mal. O artista Baco Exu do Blues, quando justifica seu nome, evidencia, precisamente,
esse fluxo histórico, que só pode ser parcialmente percebido, parcialmente compreendido,
parcialmente capturado, parcialmente apropriado, parcialmente mercantilizado e, talvez,
apenas parcialmente ressignificado.
O MHH apresenta-se, nesse contexto e por meio das lentes que escolhemos para observá-lo
(Cf. Artigo 3), como expressão de um deslocamento permanente de signos e de significados.
Um jogo de esvaziar-se e preencher-se; de engolir e cuspir algo novo. Uma experiência
pública que é essencialmente narrativo-argumentativa, uma vez que é narrando que se
imprime sentido ao mundo, que se elaboram experiências, no tempo e no espaço, que se
articulam memórias; e é argumentando que se desafia o que é tomado por óbvio, que se
problematiza o que é apresentado como ‘acabado’ ou já ‘significado’ e que temos a
possibilidade de transformar os territórios com os quais não nos identificamos. Enraizado no
território e engajado em processos contínuos de apropriação-ressignificação e de construção
de novas racionalidades e relacionalidades, o MHH vem transformando o território
ceilandense, ocupando as ruas, conferindo novos usos às praças, preenchendo as brechas com
cor e com arte.
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172
RESUMO
Neste artigo, interpretamos o movimento hip hop da Ceilândia como uma ‘experiência pública’. Por
um lado, buscamos contribuir com análises já existentes sobre o movimento hip hop realizadas a partir
de outros campos disciplinares, observando-o por meio de outras lentes cognitivas (outro arcabouço
teórico-metodológico e outra matriz analítica) que fazem emergir outras dimensões desse movimento
artístico-estético-político; por outro lado, objetivamos contribuir com a ampliação das fronteiras do
campo de estudos em políticas pública, mobilizando outros métodos de investigação e observando
outros sujeitos de pesquisa. Para isso, problematizamos o território da Ceilândia como constructo das
interações centro-periferia e analisamos duas situações pelas lentes construídas no Artigo 3. Por meio
da escuta ativa e em movimento, do mapeamento de atores e práticas, da pesquisa documental e do
registro orgânico da experiência em campo (APÊNDICE B), pudemos concluir que o fluxo do
movimento hip hop da Ceilândia desencadeia processos de formação de públicos, conforma uma
mesoescala de práticas ao colocar em interação e em interlocução diferentes escalas espaço-temporais
e institucionais e ao configurar uma multiatorialidade capaz de conferir complexidade aos fluxos de
políticas públicas, aproximando-os da complexidade dos problemas sociais contemporâneos. Quanto
mais elementos e experiências forem reconhecidas nesses fluxos, maiores serão as chances de
ressignificação do cotidiano e da redefinição de horizontes possíveis de ação.
INTRODUÇÃO
No nosso caso, buscamos firmar raízes em um plano ontológico constituído por valores pós-
positivistas, radicalmente democráticos, sociocêntricos e progressistas; percorremos caminhos
teórico-metodológicos ainda pouco explorados dentro do campo de estudos em políticas
públicas; propusemo-nos a construir um novo caminho empírico-analítico e culminamos na
defesa de que experiências como a do hip hop da Ceilândia sejam vistas como ‘experiências
públicas’, interpretadas à luz do pragmatismo, dos estudos críticos e da gestão social e sejam
reconhecidas não apenas como sujeitos de pesquisa, no campo das políticas públicas, mas como
constitutivas dos fluxos de políticas públicas.
Em sentido amplo, considera-se que o hip hop tenha se originado como uma forma de
expressão, entre jovens afro-americanos, caribenho-americanos e latino-americanos, que
176
viviam nos subúrbios novaiorquinos, por volta dos anos 1970. Em comum, tais jovens tinham
a experiência social de vidas atravessadas pelas consequências (diretas e indiretas) da Guerra
do Vietnã, da ganância de Wall Street e do avanço da ideologia neo-con, por um lado, e do
crescente ativismo em prol de direitos civis e do aumento da liberdade entre afro-americanos,
com Malcom X e com a libertação de Nelson Mandela, por outro (GEORGE, 2005). Há,
porém, entre os praticantes do movimento hip hop, bastante resistência em difundir essa
história que confere ao Harlem e ao Bronx o título de “berços” do movimento, porque,
embora o rap tenha despontado, com mais força, nos Estados Unidos da América (EUA), o
nascimento do hip hop se deu quase simultaneamente ao redor do mundo e guarda relação
direta com as diásporas africana e caribenha77 (CAMARGOS, 2015).
Há pouco dissenso, porém, sobre duas coisas: a proximidade do movimento hip hop com as
ruas e sua relação visceral com a vida cotidiana. Assim, é importante enfatizar que que o hip
hop não nasce em um ‘vácuo’ e nem mesmo em um dia ou a partir de um jovem artista – seja
ele o Dj Kool Herc ou mesmo Afrika Bambaataa. O movimento hip hop é, sim, o resultado de
um processo – aberto, provisório e em constante transformação. Trata-se de um movimento
global – porque se difundiu por todo o globo, podendo ser encontrado em Nova Iorque, em
Berlim ou no Crato, município do sertão cearense, com menos de 140 mil habitantes (IBGE,
2017) –, mas é, simultaneamente, local e situado – culturalmente, socioeconomicamente,
politicamente, cognitivamente, esteticamente, artisticamente, etc. Foi influenciado,
musicalmente, pelo soul, pelo disco, pelo funk boogie e pelo chamado Jamaica Sound System
(uma variação de reggae com dub), o que o coloca em um lugar de “arte pós-moderna”
(GEORGE, 2005, p. x), que funde formas musicais ancestrais africanas com tecnologias
contemporâneas. Em termos estéticos e políticos, o movimento é conhecido por expressas e
ativar “a parrhesia socrática”: a coragem de dizer a verdade, a fala franca e ousada que
desafia a “moralidade convencional” e o “poder entrincheirado” (WEST, 2005, p. 12). Por
isso, o hip hop também é diretamente associado aos movimentos de resistência, o que parece
constituir um dos motivos pelos quais ele tenha sido associado à delinquência juvenil, à
desordem e à violência urbana e tenha sido, portanto, ignorado, pelo menos até o final dos anos
1980, pela indústria cultural, fonográfica, cinematográfica e da moda (ROSE, 1994).
Um importante ponto de inflexão, tanto para a conformação do hip hop enquanto “cultura” ou
“estilo de vida”, como para sua difusão pelo mundo, foi a criação da Universal Zulu Nation, em
1973, por Afrika Bambaata: um jovem afro-americano que, ao participar de um confronto entre
gangues rivais, no South Bronx (NY), assistiu à morte de seu melhor amigo
(GRANGENEUVE, 2008). Pelas lentes do pragmatismo, o surgimento da Zulu Nation é
representativo das formas pelas quais um choque – uma situação problemática (no sentido
conferido por Dewey, 1927; 2010) – desencadeia práticas de associativismo ou processos
crítico-reflexivos de aprendizagem. No caso dos EUA, o contexto social marcado por taxas
crescentes de violência urbana, associado a um contexto individual marcado pelos sentimentos
de perda, de dor e de sofrimento, deu origem a um novo arranjo sociocultural – uma associação
77
Com a intensa migração africana e caribenha para as Américas, entre as décadas de 1960 e 1970, outros valores culturais,
práticas, matrizes de interpretação e de ação, oralidades e ritmos passaram a influenciar os modos de pensar, de dizer e de se
comportar. Diversos autores, como Toop (1984), Gilroy (1991) e Watkins (2005), reforçam a conexão entre a cultura hip hop
e as tradições orais africanas.
177
de jovens, localizada na periferia de Manhattan, que tinha como principal objetivo substituir as
violentas rixas entre gangues por outras batalhas (de rima, de rap, de break e de graffiti) –, que
aparece na literatura internacional como o primeiro caso de associativismo, no âmbito da cultura
hip hop, de que se tem notícia (DARBY; SHELBY, 2015).
A partir disso, sobretudo, da criação da Zulu Nation, os praticantes do movimento hip hop
passaram a se organizar como uma comunidade, em torno de quatro elementos – o rap, o
breaking ou break-dancing, o graffiti e as performances de Disc-jokeys (Djs) e Masters of
cerimony (Mcs). À dimensão mais imaterial, subjetiva e difícil de apreender – aquela oriunda
do “conhecimento de si” –, Afrika Bambaata deu o nome de “filosofia” e a elevou ao status
de “quinto elemento” (PARDUE, 2004, p. 420). De todos os cinco elementos do hip hop,
porém, a música foi o que mais se capilarizou, consolidando-se, em todo o mundo, tanto em
termos estético-artísticos quanto em termos comerciais, o que faz com que o termo hip hop
seja usado, equivocadamente, como sinônimo de rap, em uma espécie de reducionismo
bastante contestado por seus praticantes, que defendem que, se por acaso o hip hop tiver
fronteiras, elas são difusas, permeáveis e absolutamente móveis.
Por sua difusão, por sua complexidade e por suas singularidades, defende-se que o hip hop
conforme uma cultura de “rotas globais” (WEST, 2005, p. 13). Há diversos fatos que podem
ilustrar essa afirmação, mas, como nos interessa a chegada do movimento hip hop ao Brasil,
vale a lembrança de que a mesma música que popularizou o rap nos guetos norte-americanos
– Rapper’s Delight, da banda The Sugar Hill Gang – foi responsável pela popularização desse
gênero musical no Brasil, depois de ter sido traduzida e transformada, por Luiz Carlos Miele e
Arnaud Rodrigues, no ‘melô do tagarela’ (PERES; BESSA, 2017). Essa faixa musical é
falada do início ao fim e considerada o primeiro rap em português, registrado em disco, no
Brasil, no início da década de 1980 (G1, 2015). A faixa, portanto, foi o ponto de partida para a
gravação das primeiras coletâneas de rap no Brasil: Cultura de Rua (pela gravadora Eldorado)
e Consciência Black (pela Zimbabwe Records), ambas de 1988 (PEIXOTO et. al., 2017).
Foram estas coletâneas as responsáveis por promover nomes como Thaíde, Dj Hum,
Racionais MC's e MV Bill, que se tornaram, mais tarde, as principais referências do rap
nacional e os primeiros agentes difusores do movimento hip hop por aqui.
Não à toa, autores como Contier (2005), Dayrell (2002) e Bentes (2004) comparam hip
hoppers a cronistas críticos da modernidade e da realidade periférica, cujas linguagens e
mensagens podem auxiliar a melhor compreender e a acessar as complexidades da sociedade
brasileira. Nesse sentido, se a música rap constitui um texto social, como também defende
Baker (1991), suas outras linguagens, suas formas de expressão e práticas poderiam constituir
o que Taylor (1971) denominou de “análogos de textos”, que, por serem veículos de produção
e de comunicação de significados, merecem ser interpretados – enquanto argumentos e
enquanto expressões de quadros específicos de valores – no campo das políticas públicas, em
consonância com o que advogam os teóricos do interpretativismo e do argumentativismo,
reunidos sob o guarda-chuva dos critical policy studies (CALLAHAN; JENNINGS, 1983;
FISCHER; FORESTER, 1993; DYANOW; SCHWARTZ-SEA, 2012; FISCHER;
GOTTWEISS, 2014; YANOW, 2016).
A Ceilândia não seria a Ceilândia, se não existisse Brasília. A afirmação é polêmica, mas, com
ela, não defendemos nenhum tipo de determinismo territorial nem tentamos estabelecer
hierarquias ou relações de dependência entre estes territórios. Pretendemos olhá-los pelas lentes
que vimos construindo – e que aproximam, teórico-metodologicamente, o pragmatismo
deweyano (e suas reverberações), os estudos críticos em políticas públicas e a gestão social.
Nesse sentido, propomos a retomada da hipótese de Pier Luigi Crosta (2001) que, inspirado pela
obra de John Dewey, considera que os territórios – e, portanto, o que entendemos como ‘escala
local’ – são construtos (ou resultantes) da interação social, da relação entre diversos atores em
situação de copresença. Dizer que a Ceilândia não existiria sem Brasília (e vice-versa), portanto,
implica em atorizar os territórios e em reconhecer que se constroem por alteridade.
Não fossem os sonhos e as esperanças de uma vida melhor na cidade-utopia, 56.953 pessoas
(provenientes, sobretudo, do Centro-Oeste, do Sudeste e do Nordeste do país) não teriam
migrado, para construir a nova capital federal – criada pela Lei nº 2.879, de 19 de setembro de
1956, por Juscelino Kubitscheck (CODEPLAN, 2013). Não tivessem, os agentes estatais,
planejado a segregação territorial, transformando-a em política pública, cerca de 80.000 pessoas
não teriam acordado com a notícia de que haviam sido sorteadas para viver na Ceilândia – a
terra (land ou -lândia) planejada para receber os trabalhadores removidos de seus locais de
moradia, por meio da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI-) (PAVIANI, 2010; PERES,
2016; PEIXOTO et al., 2017). Não fosse a capacidade de ressignificação e de transformação
dos sentimentos de rejeição e de exclusão em arte, o movimento hip hop da Ceilândia seria
outro, cantaria outros poemas, narraria outras histórias, produziria outros argumentos,
estamparia outras coisas em seus bonés e camisetas e estaria ancorado em outra estética.
179
Isso não justifica, porém, que os construtores de Brasília tenham sido considerados invasores,
não justifica a política de erradicação de invasões e não justifica a dor e o sofrimento que
deram origem a músicas como, ‘Brasília Periferia’ e ‘Eu e Lenine (A Ponte)’, do rapper
Genival Oliveira Gonçalves, o GOG; ‘Ceilândia Revanche do Gueto’, ‘Careca sim e daí?’ e
‘Sub-Raça’, do Grupo de rap Câmbio Negro; músicas como ‘Reino da Morte’ e ‘C.E.I
(compasso e indignação)’, do Grupo de rap Álibi; ou ainda, músicas como ‘Trinta e três anos
de periferia’, do Dj Jamaika, e ‘Foi Complicado pra chegar aqui’, ‘A ti todo Respeito’ e
‘Ceilândia Resistência’, do Grupo de rap Viela 17. Na opinião de Max Maciel 78 (2019a) –
pedagogo e ativista social, ex-rapper, ex-coordenador da Central Única de Favelas do Distrito
Federal (CUFA-DF79) e atual coordenador pedagógico da Rede Urbana de Ações
Socioculturais – RUAS (Ceilândia/Distrito Federal – DF)80:
(...) Brasília precisa pedir desculpas pra Ceilândia. Acho que isso é fundamental.
Brasília precisa falar assim: ‘- Ceilândia, me desculpa!’, porque nós não paramos ali
por um processo de urbanização ou de ocupação de terras, nós fomos jogados a
36km de distância do que é o centro. Você sabe o que é um cara que ajudou a
construir o prédio não poder nem ver, no seu campo visual, o prédio? (...) Isso é a
violência simbólica maior, que até hoje a galera ainda sente um pouco... 81
Tanto as letras de rap quanto a fala acima, evidenciam que, ainda que o choque – no sentido
deweyano (DEWEY, 1927; 2010) – possa constituir um estímulo benéfico, porque perturba a
inércia e é capaz de abrir brechas e dar início a uma experiência, constituir um público82, dar
origem a uma comunidade de investigadores, fomentar a construção de uma arena pública [no
sentido conferido por Cefaï (2011)] e desencadear processos de aprendizagem, também pode
gerar sofrimento, paralisar, traumatizar, deprimir ou ser “fonte de uma violência improdutiva”
(DEBAUGE-STAVO, 2012, p. 191). Isso porque a dor e o sofrimento – ocasionados por uma
experiência de injustiça, por exemplo – não são dados objetivos e estão, portanto, sujeitos a
diferentes interpretações individuais ou coletivas. As dores e os sofrimentos narrados e
tratados em roda – a exemplo do que ocorre nas rodas de terapia comunitária, realizadas no
âmbito do movimento hip hop da Ceilândia, como veremos adiante – tendem a seguir, por
exemplo, um percurso diferente de dores e sofrimentos não reconhecidos ou mal
78
Max Maciel, que faz parte do movimento hip hop da Ceilândia desde os anos 1990, já foi coordenador da CUFA/DF e
esteve à frente da RUAS./Jovem de Expressão, ao lado de Antônio de Padua, o atual presidente, por aproximadamente 10
anos. Em 2018, candidatou-se a deputado distrital, pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL)78 e, em 2019, voltou a fazer
parte da equipe fixa da ‘RUAS’ como coordenador pedagógico, atuando na articulação da Organização com diversos
coletivos e instituições de Ensino, Pesquisa e Extensão, por todo o Brasil, com destaque para a relação com a Universidade
de Brasília, com quem colabora frequentemente.
79
A Central Única das Favelas (CUFA) é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), criada em
1998, pelo ativista e produtor cultural Celso Athayde e pelo rapper MV Bill. Em seu processo de expansão, a CUFA chegou a
17 países e a 412 cidades brasileiras, tendo estabelecido sua base do Distrito Federal, na Expansão do Setor O, em 2006
(GLOBO COMUNIDADE, 2008). Atualmente, a CUFA-DF é coordenada por Bruno Kesseler e é a instituição responsável
pela realização da Taça das Favelas e do Concurso Top Cufa DF. Em 2017, os fundadores, Celso Athayde e MV Bill,
deixaram a CUFA e a entidade passou a ser administrada por Nega Gizza. Celso Athayde tornou-se CEO da Favela Holding
e de 21 das 25 empresas que a constituem. A Favela Holding auto intitula-se como a primeira holding social do mundo, com
o objetivo de promover o desenvolvimento de mais de 3.000 favelas e de seus moradores, por meio da atuação junto a
empreendedores comunitários, criando e fomentando “oportunidades de negócios, empreendedorismo e empregabilidade”
(FAVELA HOLDING, 2020).
80
Sobre os grupos de rap e os movimentos hip hop da Ceilândia, ver APÊNDICE A.
81
Entrevista concedida a Janaina Lopes Pereira Peres, em 04 abril de 2019, na Universidade de Brasília – UnB.
82
Cf. artigo 01.
180
encaminhados. Nesse sentido, a arte – e, especialmente, a arte pública83 – adquire uma função
primordial no manejo das emoções, porque desperta a necessidade de voltar a ver.
Outro exemplo paradigmático é o grafite (ou o pixo)84, que não constitui apenas uma
manifestação cultural, uma expressão artística ou mais um elemento do movimento hip hop,
mas é representativo da interação e da sobreposição entre tempos e espaços, entre centro e
periferia, na sociedade contemporânea. O muro pixado (ou grafitado) não apenas evidencia
tensões85, conflitos sociais e explicita antagonismos, como revela que, por trás dos muros
(físicos ou simbólicos), existem pessoas. O grafite torna-se, nessa perspectiva, mais uma das
tantas formas de responder ao choque, de reagir a uma cidade imposta e de colocar centro e
periferia em interação, em diálogo. Nas palavras de Rivas (2017), b-boy, rapper, Mc e
grafiteiro, “a intenção [do grafite] é trocar ideia com a cidade”. Sem citar Leminski (1983?),
que chegou a afirmar que o “grafite está para o texto assim como um grito está para a voz”,
Max Maciel (2019a), complementa que “(...) um grafite não é um grafite, né?... Ah, ele é um
grito, cara... Tem grafite que é um tapa na cara!”
Seguramente, o território “Ceilândia” não tem o mesmo significado para todos que o praticam,
seja porque nem todos praticam a mesma parte do território, seja porque não o praticam da mesma
forma, ainda que compartilhem práticas e experiências. “Todo indivíduo, grupo e população têm
atividades, interesses, preocupações distribuídas em vários lugares, onde se encontram co-
presentes com os outros, sempre diferentes” (CROSTA, 2001, p. 04). Diferentes atores, portanto,
compartilham diferentes lugares e é esse movimento – dinâmico, interativo, compartilhado – que
constrói vínculos de pertencimento, sempre plurais no espaço e sempre variáveis no tempo. É
nesse sentido que defendemos que a “identidade” dos territórios – como a das pessoas – é sempre
múltipla e construída na interação. Ao contrário do que ocorre nos espaços “lisos” (HAN, 2019) –
higienizados, controlados, ordenados, condicionados, normatizados – é, nos territórios que
admitem estranheza, que estão, também, as possibilidades de alteridade.
Tanto em Crosta (2001; 2009) quanto em Dewey (1927), é possível perceber a defesa de que a
alteridade – que implica na permanente negociação entre a consciência de si e o olhar sobre o
outro (RANCIÈRE, 2005) – constitui um princípio político e um pré-requisito para a política.
O olhar, afinal, é a primeira (e talvez a mais importante) forma de reconhecer o outro no
território e de ser por ele reconhecido. Por meio do olhar, emergem diferenças de
subjetividade, de raça, de gênero, de sexualidade, de etnia, de classe, de valores, de
posicionamento no tempo e no espaço – diferenças que transformam o modo como
83
Mais do que a arte em espaço público, referimo-nos à arte enraizada na experiência (DEWEY, 2010), uma arte com qualidade
política, capaz de promover a ressignificação de práticas e de territórios, de incitar a reflexividade-crítica ou a capacidade de
indignação, de dar visibilidade a grupos sociais marginalizados ou invisibilizados, de reforçar a dialogicidade, de transformar,
mesmo involuntariamente, um público e de fomentar a inclusão social (VELOSO, 2001; MARZADRO, 2013).
84
Segundo Russi (2017), o Brasil é o lugar onde a distinção entre grafite e pixo tem mais força. Trata-se de uma tentativa de
distinguir o artista do vândalo, o positivo do negativo, o socialmente belo do socialmente feio, o central do marginal, ignorando que
belo e feio também são construções sociais a que subjazem quadros valorativos específicos, como se evidencia na fala de Djan,
pichador paulista: “É, às vezes a gente fala ‘ – puta, ó estrago que nóis fez, mano...’, mas nóis acha bonito, meu... Como é que nóis
vai ficar triste com o baguio? Pra nóis, fica mais lindo ainda o prédio, sem zoeira, cara... É por isso que nóis faz o baguio, porque
nóis acha bonito pra caraio, meu...” (WAINER, OLIVEIRA, 2009).
85
A tensão explicita-se, também, no documentário ‘PIXO’ (WAINER, OLIVEIRA, 2009), que começa com a frase ‘não é
grafite, é pixo’ e que, além de reforçar a ideia de que “o pixo é a voz do povo nos muros” e a expressão dos sentimentos que
ninguém quer ver, elenca, como principais motivações: o reconhecimento social, o lazer/adrenalina e o protesto.
181
Trata-se, aqui, de uma discussão que se vincula a reflexões sobre o lugar conferido,
historicamente, às periferias (ou às favelas), ao longo do processo de urbanização brasileiro e,
ainda, sobre a forma como as políticas urbanas foram, historicamente, pensadas e desenhadas.
Por um lado, sobretudo a partir dos anos 1940/50, espaços informais de habitação foram
associados a espaços de ausência e a territórios-problema e, por outro, as políticas públicas e os
investimentos privilegiaram concepções homogeneizantes, que consideravam a periferia no
singular, e impregnadas de negatividade, fazendo com que as ações e os programas conduzidos
nas favelas brasileiras fossem direcionados, geralmente, à mitigação da violência e não à
promoção do exercício da cidadania (SILVA, 2009). No decorrer do tempo, a periferia passou a
ser vista como parte essencial das engrenagens do capitalismo e, nesse processo, "o eixo
paradigmático de representação das favelas” (SILVA, 2009, p. 16) precisou ser redefinido, ao
menos intelectualmente, enquanto o significante ‘periferia’ precisou ser ressignificado, em uma
tentativa de combate a visões simplistas, homogêneas e estereotipadas.
Segundo Villaça (2012), a partir de meados dos anos 1990, as periferias passaram a ser
simbolicamente valorizadas e, nesse movimento, as classes médias deixaram-se atrair pela
estética periférica, o que implicou, em alguma medida, em renegociações acerca dos acordos
estéticos vigentes, ao menos em termos mercantis. Se, historicamente, a simetria, o equilíbrio
e a proporção foram diretamente associados ao que é belo (SIMMEL, 1968), a estética
periférica – explicitada, por exemplo, por Sérgio Vaz (2011), em seu ‘Manifesto da
Antropofagia Periférica’ – assumiu a função de desestabilizar tais estruturas, por meio da
reivindicação de que, na assimetria, há mais lugar para a diversidade. Esse deslocamento,
porém, passa pela obrigatoriedade de se pensar fora de categorias pré-estabelecidas e de
dicotomias tradicionais, o que exige, por sua vez, o desenvolvimento de diferentes
modalidades de estudo e de diferentes arcabouços teórico-metodológicos, mais voltados à
percepção, à representação, ao cotidiano, ao sensível e, em nosso caso, à reflexividade-crítica
e ao interpretativismo.
A periferia de Brasília - tão planejada quanto a cidade, apesar de sua aparência desordenada,
de sua natureza transgressora e de seu surgimento um tanto espontâneo e assimétrico -
contrasta-se, frontalmente, com a simetria, a homogeneidade, a monumentalidade, a
funcionalidade e a racionalidade dos desenhos de Lucio Costa e das obras de Oscar Niemeyer,
que pretendiam, por meio da sobriedade das formas, moldar uma nova cidade e um novo
homem. Os contrastes entre a Região Administrativa I - Plano Piloto, popularmente conhecida
como "Brasília", e a Região Administrativa IX - Ceilândia, transbordam os dados estatísticos.
Em 1967, ao se pronunciar em defesa de Brasília, Lucio Costa (1985, p. 12) reconhece, com
naturalidade, os problemas da cidade, mas afirma que:
(...) a verdade é que Brasília existe onde há poucos anos só havia deserto e solidão; a
verdade é que a cidade já é acessível dos pontos extremos do país; a verdade é que a
vida brota e a atividade se articula ao longo dessas novas vias; a verdade é que seus
habitantes se adaptam ao estilo nôvo de vida que ela enseja, e que as crianças são
felizes, lembrança que lhes marcará a vida para sempre; a verdade é que mesmo
182
aquêles que vivem em condições anormais na periferia sentem-se ali melhor que
dantes; (...)
Como discutido em Peres (2016), tudo isso auxiliou a aprofundar distâncias geográficas,
socioeconômicas, culturais, intelectuais, estéticas, políticas e simbólicas. A reprodução de tais
argumentos pretendia apagar, ao menos simbolicamente, diferenças e tensões, mas acabou
invisibilizando, como consequência, a maioria da população, que vive fora do Plano Piloto –
o ‘centro’ de Brasília – e que não teve sequer a oportunidade de se adaptar a tal “novo estilo
de vida”, tendo-lhe restado aceitar a vida em “anormalidade” (COSTA, 1985). Tais
argumentos reforçam tanto a oposição entre centro e periferia quanto a marginalidade dos que
foram ‘escolhidos’ para morar na Ceilândia - uma marginalidade imposta por estruturas de
poder e que só se transformou, em alguma medida, no que Hooks (1990) chama de
‘marginalidade escolhida como lugar de resistência’, décadas mais tarde, no âmbito do
movimento hip hop.
86
Lei que versa obre a preservação da concepção urbanística de Brasília (Cf. Peres, 2016).
87
Rapper da Ceilândia, periferia de Brasília, líder do Grupo Viela 17 e idealizador da marca de vestuário do mesmo nome, em
entrevista concedida a Janaina Lopes Pereira Peres, em Brasília, no dia 25 de outubro de 2016.
R
Rapper do Capão Redondo, periferia de São Paulo e líder dos Racionais Mc’s,
89
Em referência ao Capão Redondo, periferia da cidade de São Paulo (SP); à Cidade de Deus, favela do Rio de Janeiro (RJ);
Restinga, periferia de Porto Alegre (RS); Alto do José do Pinho e Jaboatão dos Guararapes, localizados na periferia de Recife
(PE).
183
dia falando que é a cidade mais violenta do DF, que todo mundo vai morrer... [que nós
moramos] Onde é o caldeirão do diabo... (...) É muito difícil...”. No mesmo período, a Zona
sul de São Paulo ganhou o apelido de Vietnã do Brasil (VAZ, 2016).
As falas de Japão, Mano Brown, Max e Sérgio Vaz corroboram a afirmação de Crosta (2001) de
que o pertencimento é uma escolha, ainda que não seja uma escolha fácil. E, nesse sentido,
defender que uma experiência pública é sempre situada não significa afirmar que tal experiência
seja restrita ao lugar onde ocorre – à Praça do Cidadão, na Ceilândia Norte, por exemplo – mas,
sim, que a experiência do movimento hip hop ancora-se em relações sociais que só poderiam ter
sido construídas na interação entre atores e um meio, no tempo e no espaço, entre centros e
periferias. Trata-se, para Dewey (2010), da indissociabilidade, no âmbito da estrutura da
experiência estética, entre sofrer e fazer, entre moldar e ser moldado (CROSTA, 2001;
SHUSTERMAN, 1998). No caso do hip hop da Ceilândia, múltiplos deslocamentos – físicos e
simbólicos – entre a periferia e o centro culminaram na defesa, por parte de seus praticantes, de
que ‘a periferia é o centro’, o que nos permite interpretar que, lá, o hip hop se constituiu a partir de
um movimento de retorno.
Vejam que o primeiro encontro de hip hop do Distrito Federal, realizado em 1986, não
aconteceu, paradoxalmente, na Ceilândia (que hoje constitui a principal força do movimento
hip hop no Distrito Federal), mas em uma danceteria chamada “Le Club”, no Lago Sul, região
nobre de Brasília. Membros do movimento relatam que os filhos dos diplomatas e a classe
média e média-alta de Brasília, porque tinham oportunidade de viajar para o exterior, traziam
de lá as novidades musicais e realizavam festas que reuniam jovens de todo o DF
(TAVARES, 2010). Segundo o Dj Jamaika90 (2016),
(...) foi lá [na Le Club] que muita gente passou a se conhecer... Foi quando eu
conheci o Dj Raffa, conheci o Leandronic, X Câmbio Negro, pá... Essa galera toda...
A gente se conheceu ali, de um evento que aconteceu.... E a gente saiu do mesmo
lugar, mas ninguém se conhecia... E daí pra frente a coisa foi crescendo.
De volta à Ceilândia, Jamaika, Kabala e Kalako criaram, menos de um ano depois, o grupo BSB
boys, a que se seguiram importantes acontecimentos. Em 1989, por exemplo, juntamente com
outros praticantes do movimento hip hop, os BSB Boys deram início ao Encontro de b-boys de
Brasília, realizado em frente ao Shopping Conjunto Nacional (na parte superior da plataforma
da Rodoviária do Plano Piloto). O evento acontecia no ‘centro’ de Brasília (e não na Ceilândia)
por dois motivos principais: a necessidade de formar um público, o que era possibilitado pelas
facilidades de acesso, via transporte coletivo, à Rodoviária do Plano Piloto, conectada a todas as
periferias do DF; e porque havia, por trás das atividades vinculadas ao movimento, a intenção
de romper com as práticas vigentes no território, por meio da promoção de usos não usuais.
Objetivava-se, em grande medida, chocar esteticamente a monumentalidade e a ordem,
projetadas por Lúcio Costa e por Oscar Niemeyer. Em seus mais de 30 anos de trajetória, o
Encontro de b-boys (e b-girls, como passou a ser enfatizado recentemente) já aconteceu no
CONIC e, atualmente, ocorre aos primeiros sábados de todo mês, no Pátio da Biblioteca
Nacional, em plena Esplanada dos Ministérios (Brasília/DF).
90
Jefferson da Silva Alves, o Dj Jamaika, é produtor musical, Dj e rapper da Ceilândia, conhecido na cena do rap do Distrito
Federal e do rap nacional por suas participações no grupo Câmbio Negro, ao lado do rapper X e no Grupo Álibi, ao lado de
seu irmão, Kabala (atualmente, Rivas), em entrevista concedida em Brasília, em 18 de agosto de 2017.
184
A lógica do retorno para a periferia está evidenciada nessa trajetória, narrada pelo Dj Jamaika
(2016), sobretudo quando associada a outras narrativas, como, por exemplo, a do b-boy Papel
(2017) – idealizador e realizador de 5 edições do Festival Nacional de Breaking ‘Quando as
Ruas Chamam’, sempre na Ceilândia – e de Max Maciel (2019a) que, a frente da coordenação
da RUAS, percebeu, ainda na década de 1990, a importância de ocupar o centro, de se
apropriar de um espaço negado aos habitantes das periferias, de promover outros usos ao
território, de dar visibilidade ao movimento hip hop da Ceilândia e, principalmente, de
aprender a organizar, produzir e realizar eventos e práticas culturais. A lógica do retorno à
periferia confirmou-se, também, ao longo dos três dias de debates e rodas de conversa que
marcaram o I Seminário Diálogos em Movimento, realizado no âmbito do 5º Festival
Elemento em Movimento. Nessa ocasião, Jaqueline Fernandes, idealizadora, curadora e
coordenadora geral de oito edições do ‘Festival Latinidades’, relembrou que, nos anos 1990,
ninguém da “quebrada” tinha a profissão de ‘produtor cultural’: “Tinha evento cultural, mas
não era feito por ninguém da minha quebrada. No meu imaginário, produtor era uma figura
superpoderosa, endinheirada...” (FERNANDES, 2017).
Assim, pautados na máxima de, uma vez no centro, “nunca voltar pra quebrada de mente
vazia” (RAFUAGI, 2017), o passo seguinte à realização de eventos em Brasília seria, então,
levá-los à Ceilândia, juntamente com toda a cadeia produtiva. O principal resultado desse
movimento de retorno é, justamente, o ‘Elemento em Movimento’, o primeiro grande festival
de hip hop da Ceilândia e que segundo os organizadores é feito na periferia, é pensado e
produzido pela periferia e realizado para a periferia, em uma espécie de “marco zero” da
cultura, em que se elimina a distância entre produção e consumo cultural. Marta Carvalho –
atriz, produtora executiva e gestora de projetos culturais – conta que entrou chorando no
‘Elemento em Movimento’, emocionada por ter feito parte da formação dos jovens
profissionais que produziram o festival, participantes do curso de produção cultural ofertado
pelo Programa Jovem de Expressão91: “Hoje, essas lindezas são profissionais da área, que
querem mudar o nosso cotidiano” (CARVALHO, 2017).
Afirmar que “a periferia é o centro” significa, portanto, olhar de outra perspectiva, inverter a
direção dos fluxos e atentar à interação entre os termos deste par dicotômico. Para a atual
coordenadora geral da ‘RUAS’, Rayane Soares (2019), a Ceilândia é o centro, também,
porque é ela que provê a força de trabalho necessária para manter Brasília viva. Mas, como
lembra Chico César, no prefácio a Flores de Alvenaria (VAZ, 2016), a periferia não quer mais
se afirmar como mão de obra, mas como obra em si. Por isso, movimento hip hop da
Ceilândia nos ajuda a ler o binômio centro-periferia de outras formas, porque, se entendemos
que o território é processo e que a Ceilândia é, simultaneamente, produto e produtora de
91
O Jovem de Expressão é um Programa Social criado pelo Instituto Social Caixa Seguradora, em 2007, em parceria com o
Grupo Azulim e com o Movimento Integrado de Saúde Comunitária do Distrito Federal, com o desafio de reduzir a
exposição dos jovens a situações de violência, por meio do investimento no desenvolvimento de tecnologias sociais,
associadas à arte e à cultura, tendo sido implementado, Inicialmente, nas Regiões Adminsitrativas de Ceilândia e Sobradinho
II (JOVEM DE..., 2011). Em 2010, o programa foi considerado uma ‘tecnologia social’ sistematizada em um manual de
quatro volumes (validados pelo escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime – UNODC e pela Organização Pan-
Americana de Saúde – OPAS), e, em 2011, passou a ser executado pela ‘RUAS’, em função de sua experiência em cultura
urbana, no desenvolvimento de instrumentos de intervenção socioterritorial e na promoção de espaços colaborativos,
dinâmicos e agregadores (EXPRESSÃO, 2014). “Só em 2018, o Programa formou 330 jovens em 24 oficinas trimestrais”
(JEX, 2018, P. 08), que atuam profissionalmente e replicam a experiência para outras localidades do DF.
185
3. Pode, o Movimento hip hop da Ceilândia, ser visto como ‘experiência pública’?
Buscaremos responder a essa pergunta, orientados pelas matrizes analíticas para o estudo de
‘experiências (potencialmente) públicas’ em movimento, que construímos no Artigo 3, e
inspirados pela reconstrução narrativo-interpretativa de duas histórias, que entrelaçam atores,
trajetórias de vida, músicas, filmes, documentários, reportagens, eventos e práticas. E que,
nesses entrelaçamentos, se conectam, se reforçam mutuamente e se articulam no que
chamamos de mesoescala: uma escala em alguma medida abstrata, mas capaz de nos revelar,
em termos analíticos, a qualidade de ‘experiência pública’ do movimento hip hop da
Ceilândia, por meio da observação da situatividade, da processualidade e da performatividade
das práticas. Por meio dessas ‘histórias de práticas’, demonstraremos quais são os choques ou
os gatilhos crítico-reflexivos que colocam o hip hop da Ceilândia em movimento e como esse
movimento produz argumentos, se publiciza e se problematiza, constrói espaços de escuta e
de diálogo, desencadeia processos de aprendizagem e se insere no fluxo das políticas publicas.
92
A partir do método de Peirce (2005), as perguntas de pesquisa devem ser construídas abdutivamente, ou seja, a posteriori
da experiência. Por isso, toda esta pesquisa foi (re)pensada e (re)desenhada a partir de cada uma das histórias que embasam a
construção deste item, desde as perguntas de pesquisa até seus resultados, passando pela construção do sujeito de pesquisa,
do arcabouço reflexivo e pela construção das matrizes analíticas (Artigo 3) – o que, em conjunto, conforma nossa história de
pesquisa.
186
significava, inicialmente, olhar para todos os seus elementos – o rap, o scratching (realizado
pelos Djs), o breaking e o grafitti –, o que depois se revelou muito maior do que isso
O último encontro desse bloco foi com Alan Jhone Moreira, o b-boy Papel. Embora Papel seja
mais jovem do que o trio de pioneiros do movimento hip hop ceilandense – Japão, Jamaika e
Rivas –, ele se engajou cedo no breaking, ainda nos anos 1990, em uma época em que, na
Ceilândia, tinha-se pouco ou nenhum acesso a espaços culturais e os movimentos de breaking
que viam na televisão precisavam ser ensaiados em pedaços de papelão ou em montes de
terra, nas ruas e praças da cidade (PAPEL, 2017). Seu engajamento com o hip hop foi
motivado, inicialmente, pela necessidade de construção identitária e pelo desejo de superar
limites pessoais e desenvolver sua autoestima: começou no breaking porque percebeu que a
dança poderia servir de escudo contra o bullying. Só mais tarde, depois de sua primeira
apresentação de dança no Centro de Atendimento Juvenil Especializado – CAJE, ele percebeu
que o movimento hip hop poderia promover, também, transformações coletivas.
a Ceilândia respira hip hop: em todo lugar que você vai, algo relacionado com a arte
urbana acontece – seja um muro sendo grafitado, uma oficina de dança sendo
93
A narrativa incluiu as histórias sobre o extinto Quarentão, sobre o surgimento das primeiras crews de breaking e de grafitti -
Reforços Breakers (1984), DF Zulu Breakers (1989), sobre as brigas entre gangues rivais da Ceilândia Norte e da Ceilândia Sul,
sobre a formação, as músicas e o reconhecimento nacional dos grupos de rap Câmbio Negro (1990-2000) e Álibi (1995-2002),
sobre a parceria com o irmão, Rivas (que, antigamente era Kabala), sobre sua conversão à religião evangélica e ao rap gospel e,
por fim, sobre suas candidaturas a deputado distrital (JAMAIKA, 2016).
94
Rivanilson da Silva Alves foi b-boy, integrou o Grupo de rap Álibi, como rapper Kabala e atualmente é dono de uma
empresa de produção cultural, é grafiteiro, Mc e rapper, ao lado de seu filho Ravel.
95
Rivas e Dj Jamaika são irmãos e atuam no movimento hip hop do Distrito Federal desde a década de 1980.
96
Não o estilo gangsta americano, ligado à ostentação e ao luxo, mas um rap com batidas pesadas e letras que narravam a
violência, a criminalidade, o consumo de drogas e o descaso com as comunidades (RAFFA, 2007).
97
O Dj Jamaika candidatou-se a Deputado Distrital nos anos de 2010, 2014 e 2018. Em 2010, ainda com Ensino
Fundamental incompleto, candidatou-se a Deputado Distrital pela Coligação ‘Quero Mudar’, formada pelo Partido Social
Liberal – PSL (partido pelo qual se elegeu Jair Messias Bolsonaro, atual presidente do Brasil) e pelo Partido Trabalhista
Cristão - PTC, tendo recebido 939 votos no primeiro turno das eleições, o que representou 0,07% dos votos válidos (não
eleito) (TERRA, 2010) - http://noticias.terra.com.br/eleicoes/resultados/distrito-federal/#/deputado-distrital/; em 2014,
candidatou-se pela coligação entre o PSL e o Partido Ecológico Nacional - PEN, tendo recebido 3.031 votos (suplente); em
2018, já com o Ensino Médio completo, registrou sua candidatura, novamente pelo PTC, na coligação “Mobilizar para
mudar”, mas a candidatura foi indeferida, por “inaptidão” (Cf. <https://www.todapolitica.com/eleicoes-2018/dj-jamaika/. >).
Seu irmão, Rivanilson da Silva Alves – Rivas – candidatou-se, também a Deputado Distrital, pela coligação “Mobilização
Progressista”, pelo Partido Progressista – PP e Partido da Mobilização Nacional – PMN, tendo recebido 1001 votos (0,07%
dos votos válidos – não eleito).
187
ofertada em uma escola (...). O Estado já consegue enxergar a nossa arte marginal
como uma parceira importante tanto no resgate (por esse lado social), como na
educação, na saúde, etc. Simultaneamente, muitos espaços estão sendo abertos.
(PAPEL, 2017)
Por mais distintas que sejam as histórias e as formas de contá-las, elas conformam uma
narrativa potente, que não apenas revela um conjunto bastante diverso de práticas, mas também
revela processos: práticas que dão origem a outras práticas, práticas que se fundem ou que se
bifurcam, práticas que adensam outras práticas, e assim por diante. Em outras palavras, os
argumentos elaborados – por Japão, Jamaika, Rivas e Papel – revelam a situatividade e a
processualidade98 de um conjunto de práticas que compõe o movimento hip hop da Ceilândia,
uma experiência (potencialmente) pública. Demonstraremos, a seguir, por meio do cruzamento
entre trechos dessas conversas, de músicas e de falas registradas no premiado documentário de
Adirley Queirós (2005) – Rap, o Canto da Ceilândia – as interações entre o movimento hip hop
e seu ambiente físico, as relações de identidade, de pertencimento, de investimento afetivo, de
reconhecimento e de solidariedade que o movimento engendra em contextos socioemocionais
que afetaram (e continuam afetando) esses atores.
O primeiro aspecto relevante que emerge dessas narrativas diz respeito à relação entre o
movimento hip hop (e seus praticantes) e o território-Ceilândia. Japão (2016) enfatiza que uma
das principais funções sociais do movimento hip hop é ser um “meio de comunicação entre
áreas em conflito, entre pessoas que vivem em conflito” e que essa mediação (comunicativa)
precisa passar, necessariamente, por um trabalho de valorização (e até de enaltecimento) de um
território historicamente estigmatizado. Essa percepção justifica o próprio nome do Grupo de
rap que ele decidiu criar em 1997: Viela 17, em homenagem à rua onde morava com sua mãe,
que “ganhou” um lote do Programa Habitacional da Sociedade de Habitação de Interesse Social
(SHIS), na Expansão do Setor O, também conhecido como ‘Fundão’, ainda em um contexto
marcado pelos desdobramentos da Campanha de Erradicação de Invasões.
Além do vínculo evidente entre o nome do grupo e o território, dificilmente se encontra uma
música do Grupo que não traga ao menos uma referência explícita à viela 17, à Expansão, ao
Setor O, à Ceilândia ou à periferia/favela, de forma geral. Além de ser comum, também, a
referência e a articulação com outras “quebradas” do DF. Na faixa 2, do álbum 20 de 40 (VIELA
17, 2014a), além das múltiplas referências à ‘viela’’, o rapper canta:
98
Vale enfatizar que as práticas no âmbito do movimento hip hop não apresentam uma processualidade linear. São,
majoritariamente, práticas circulares e essa circularidade se evidencia de várias maneiras. Em termos objetivos, a quase
totalidade das práticas observadas se organiza em roda – das rodas de conversa, palestras, conferências e oficinas às batalhas
de Mcs, de b-boys ou aos saraus. Em termos subjetivos, a circularidade se evidencia, ainda, nas constantes trocas de papel no
âmbito das práticas – o produtor pode virar receptor, o fotógrafo pode ser, também, Dj e um mesmo indivíduo pode ter
entrado no movimento como b-boy e hoje pode ser grafiteiro, rapper e Mc, como é o caso de Rivas, por exemplo. Por fim,
como vimos, as práticas são circulares, ainda, no que diz respeito ao constante trânsito (circulação) entre centro e periferia.
188
E, assim, diversos exemplos se sucedem, passando por músicas que constituem verdadeiras
odes à Ceilândia e às histórias de resistência e de superação, que marcam a vida e a memória da
geração de ceilandenses que cresceu junto com a cidade. São exemplos: a faixa 04 do Álbum ‘O
Jogo’ (VIELA 17, 2001), intitulada ‘Ceilândia Resistência’ e a faixa 07 do álbum ‘20 de 40’,
‘Foi complicado pra chegar aqui’ (VIELA 17, 2014c). O mesmo pode ser observado na
discografia do grupo Álibi, sobretudo em músicas como ‘Reino da Morte’ e ‘C.E.I. (compasso e
indignação)’, ambas do álbum ‘Abutre’ (ÁLIBI, 1995). No caso do Grupo Câmbio Negro, a
música ‘Pega a Manha’, do álbum ‘Círculo Vicioso (1998), é ilustrativa do protagonismo
territorial.
Assim como Japão, Jamaika e Rivas também defendem o movimento hip hop das acusações
de ‘bairrismo’, justificando que é necessário que o rap reflita uma experiência, narre a vida
cotidiana naquela localidade: “Se mora na Ceilândia, é de lá que precisa falar” (JAMAIKA,
2016). Aos poucos, vai ficando claro que ‘falar da Ceilândia’ passou a fazer parte de um
projeto coletivo:
A cultura periférica sempre teve um potencial político, mesmo sem saber. Enquanto a
periferia não sabia, quem olhava (e sabia) usava a periferia. Hoje é diferente, porque essa
consciência política muita gente já tem... (...). Então é assim, a gente vai ter vários grupos
e... só Ceilândia, vamos falar só da Ceilândia (...) Se essas forças se unissem, na
Ceilândia, ia ser sinistro mesmo. Pode acontecer? Pode... (...) muito difícil, hoje, né? Se
isso chegar a acontecer... ah, eu queria tá dentro desse bagulho, vai ser louco...” (RIVAS,
2017).
Essa ‘primeira geração’ do movimento hip hop da Ceilândia assumiu, como principal missão,
reverter o estigma que pairava sobre a condição de ser ceilandense. Por isso, para além das
práticas artísticas vinculadas ao rap, ao scratching, ao breaking e ao graffiti – shows, festas,
eventos e trabalhos pontuais/individuais – estes artistas têm se engajado, desde a década de
1980, em um conjunto de práticas voltadas à valorização e à transformação do território: por
meio de parcerias com artistas de outras localidades99, para difundir o nome da Ceilândia, em
busca de reconhecimento; por meio da participação em eventos ou de sua organização – aí
incluídos os festivais, saraus, feiras, encontros e competições (nacionais e internacionais)100; por
meio do engajamento em projetos sociais; ou, ainda, por meio da criação de uma linhas de
produtos de vestuário101, que valorizem, simultaneamente, a estética do movimento hip hop e a
Ceilândia. Tudo isso – essa pluralidade de atividades, de eventos e de práticas –, porém, foi
99
Como exemplo, pode-se citar as importantes relações estabelecidas com o rapper Genival Oliveira Gonçalves, o GOG, e
com outros artistas nacionalmente conhecidos, como MV Bill e Mano Brown, líder do principal grupo de rap nacional, os
Racionais MCs, que homenagearam a Ceilândia na música ‘Capítulo 4, Versículo 3’ (RACIONAIS, 1997, grifo nosso):
Enfim, o filme acabou pra você/ A bala não é de festim, aqui não tem dublê / Para os manos da Baixada Fluminense à
Ceilândia / Eu sei, as ruas não são como a Disneylandia / De Guaianazes ao extremo sul de Santo Amaro / Ser um preto tipo
A custa caro.
100
Japão considera-se rapper e ativista social e, além de estar à frente do Grupo Viela 17 e da linha de produtos Viela 17
Shop, Japão criou a Fundação Comunidade e já atuou em diversos projetos socioeducativos, como “Rap com Ciência” – que
culminou na produção coletiva de um CD, com tiragem de 10.000 cópias –, “Rap Hour nas Escolas”, “Hip Hop contra o
crack”, “Atitude Hora H” e no Projeto “Roda de Rap”, realizado em unidades de internação; Jamaika e Rivas, além de
organizarem, juntamente com suas famílias, o maior Encontro de b-boys do Distrito Federal, que ocorre, mensalmente, há
mais de 30 anos, no Plano Piloto de Brasília, estão a frente, também, do Projeto ‘Rapensando nas Escolas’, voltado à
conscientização de jovens de escolas públicas do DF e à transmissão de informações sobre bullying, crime, violência e abuso
de drogas; O b-boy Papel já foi vencedor de, aproximadamente, 30 competições nacionais de breaking e já participou de
diversos eventos internacionais, nos Estados Unidos, na Alemanha e na Suíça, por exemplo, representando o movimento hip
hop da Ceilândia. É, também, criador e realizador do Festival Nacional de Breaking “Quando as Ruas Chamam” (que já teve
5 edições), compõe o Colegiado Setorial de Dança do Distrito Federal, faz parte do Conselho de Economia Criativa –
CONEC, do Distrito Federal, já foi homenageado pelo Programa Internacional Visitor Leadership Program (IVLP), da
Embaixada dos Estados Unidos, é idealizador do Projeto Urbanidades (2017), dá aulas de dança de rua e ministra oficinas de
reabilitação e reinserção de jovens infratores, em centros como CAJE, CESAMI e CIAGO, além de estar engajado em
diversos projetos sociais, como o “In Steps”.
101
Há diversas iniciativas como essa, na Ceilândia, e é muito comum encontrar jovens e praticantes do movimento hip hop
com itens de vestuário que homenageiam a cidade. São exemplos: a linha de produtos do Grupo Atitude; os bonés e
camisetas da marca ‘Cirurgia Moral’, a própria Viela 17 Shop e a RA.IX, que, em 2019, inaugurou sua primeira loja
colaborativa, na sede do RUAS/Jovem de Expressão, na Praça do Cidadão (Ceilândia-DF). As camisetas e bonés são
estampados com o nome da Ceilândia, com trechos de música rap de grupos locais e com dizeres como “100% Ceilândia”,
“I♥CEI”, “Ceilândia, 1971”, “Straight Outta Ceilândia”, “Nóis por Nóis”, “Ceilândia está em meu DNA”, “Cria da Quebra”
ou “Ceilândia, Solução Social Pioneira”, ironizando uma campanha do governo Militar, na década de 1970. Diversos
exemplos aparecem nos perfis das lojas no Instagram: @viela17shop e @r.a_ix e @atitudejovem.
190
1) Associamos o primeiro gatilho à letra do rap ‘Careca sim e daí?’, que compõe o álbum
Sub-Raça, do grupo de rap Câmbio Negro (1993)102. Nas conversas sobre a imagem
negativa, os preconceitos sofridos pelos moradores da Ceilândia e a estigmatização da
cidade, o verso “Sou negão careca da Ceilândia mesmo, e daí?”103 é apontado diversas
vezes como um ponto de inflexão que conferiu, à juventude ceilandense, a coragem de se
autoafirmar, não apenas em termos raciais, mas em termos estéticos e territoriais (por meio
do vínculo com símbolos, imagens, sons, vestimentas, cortes de cabelo e estilos, que são
próprios da cultura hip hop, e com a própria cidade): sou negão, sou careca e sou da
Ceilândia.
Japão (2016) e Rivas (2017) enfatizam que a música gravada por Câmbio Negro é um ato
político:
as pessoas gostaram, acharam até bonito..., mas não era pra ser bonito (!), era uma
parada que tava engasgada, era um desabafo! Sabe por quê? Porque, na Ceilândia,
desde 1971, quando foi fundada, até 1976, nós não atínhamos nem água [longo
silêncio]. Entendeu? (JAPÃO, 2016)
...antigamente, falava-se muito mais em Brasília, porque falar que era da Ceilândia
‘queimava’. (...) a música do Câmbio Negro mudou essa história, quando eles
colocaram a identidade... falaram que ‘nós somos Ceilândia’, que nós somos isso
aqui e acabou! Aí pronto, aí muda tudo... a galera começa a olhar e se sentir
representada e valorizar aquilo ali. É massa ver o Japão, ver todo mundo, com
camiseta da Ceilândia. Eu creio que é a única cidade que a galera pega e compra as
camisetas pra vestir e falar assim “Eu sou da Ceilândia” e vai pra qualquer lugar, e
gosta de ir com a camiseta, porque tá representando. A gente entende que tem uma
identidade muito forte, todo mundo entendeu isso. (RIVAS, 2017)
Nas palavras do Dj e produtor musical Raffa Santoro (DJ RAFFA, 2007, p. 27), músicas
como ‘Sub-Raça’ e ‘Careca sim e daí?’ provocaram uma “revolução na autoestima dos negros
das periferias de todo o Brasil”. Tratou-se, porém, de uma revolução ‘para dentro’, que se
deu, pelo menos inicialmente, no âmbito pessoal ou de um ‘mini-público’, ainda restrito
àqueles que eram diretamente afetados pela situação: os praticantes do movimento hip hop,
que escutavam música rap ou que participavam de atividades e de práticas vinculadas ao
movimento.
102
O Grupo de rap Câmbio Negro foi criado na Ceilândia, em 1990, pelos rappers X e Jamaika e pelo Dj Chocolate, tendo
sido, na opinião do produtor musical e Dj Raffa Santoro, “uma das maiores expressões culturais do segmento hip-hop de
todos os tempos” (DJ RAFFA, 2007). O Álbum Sub-Raça foi lançado em 1993 e em 1995, X e Jamaika se separaram, mas o
grupo continuou, com nova formação, até a saída de X, nos anos 2000. O Grupo Câmbio Negro foi três vezes indicado ao
prêmio Video Music Brazil – VMB, na categoria “melhor grupo de rap” e foi o vencedor da edição de 1999.
103
O verso foi repetido pelo rapper X, na abertura da faixa “A volta”, do álbum ‘Diário de um feto’ (1995), gravado logo
depois que o Jamaika deixou o grupo.
191
Pro governo é.... Porque era Governo do Distrito Federal e agora é só Governo de
Brasília... então, pro Governo parece que é... Só que aquela Brasília é muito mais
bem tratada do que essa aqui. Então, não é! Pra mim, aqui é Distrito Federal, sempre
foi... Eu costumo falar, eu falei até no filme do Adirley (...): ‘Não, peraí... Eu sou
ceilandense, eu não sou brasiliense! (JAPÃO, 2016, grifo nosso)
Nesse sentido, o documentário serviu como catalisador de um discurso que já vinha sendo
construído, de forma mais ou menos consciente, mais ou menos orquestrada, mas bastante
fragmentada. E, de acordo com o próprio Adirley, serviu para dar visibilidade e repercussão a
músicos que eram seus amigos, mas cujas carreiras estavam em decadência 105 (QUEIRÓS,
2013). No documentário, há referência ao processo de construção da autoestima do jovem,
negro, periférico e ceilandense – por meio da música ‘Careca sim e daí?’, há referência ao
processo pelo qual o hip hop da Ceilândia ganha relevância no cenário do hip hop nacional, há
referência ao enfrentamento do racismo, por meio de músicas como ‘Sub-Raça’, há críticas à
104
‘Rap, O Canto da Ceilândia’ foi o primeiro trabalho audiovisual de Adirley Queirós (2005). O curta-documentário, com
15 minutos de duração, foi produzido e apresentado como trabalho de conclusão de curso, no Curso de Cinema da
Universidade de Brasília – UnB, e inaugurou uma trajetória de criação artística em que a Ceilândia não é apenas um lugar
onde suas histórias acontecem, mas é uma personagem, uma atriz (QUEIRÓS, 2013), o que se evidencia, ainda mais
fortemente, no primeiro longa-metragem de Adirley Queirós (2011), ‘A cidade é uma só?’. De acordo com Adirley, a
produção e a gravação do curta-documentário sobre o rap da Ceilândia envolveram muita pesquisa, sobre a história da cidade
e das pessoas, além de pesquisa no Arquivo Público do Distrito Federal – ArqPDF e de mais de 300 horas de entrevistas
gravadas com personalidades como Jamaika, Japão e Markim do Tropa de Elite, considerados os pioneiros do movimento hip
hop da Ceilândia.
105
“O X era porteiro, estava desempregado, o Jamaica também, o Marqui era um cara que andava com a cadeira de rodas dele para
cima e para baixo, vendendo disco de mão em mão. E eu queria contar a história de uma primeira geração que perdeu: uma geração
que prometia, mas perdeu... Não é uma geração heroica, entende?” (QUEIRÓS, 2013, p. 23)
192
exigência de que o movimento hip hop se domestique e adote uma linguagem menos violenta
– seja “maquiado”, nas palavras de Japão ( QUEIRÓS, 2005). Acima de tudo isso, porém, há
“a ideia de que Ceilândia tem uma identidade no imaginário da população, de que o território
era um tema fantástico e de que o rap cantava o território da Ceilândia e, por isso, a gente se
emocionava com ele.” (QUEIRÓS, 2013, p. 24).
Por meio deste documentário, o movimento hip hop e os artistas da Ceilândia não apenas
chegaram às telas do cinema, como também chegaram ao ‘centro’: ao Cine Brasília, onde
receberam os prêmios mais cobiçados do Festival de Brasília106. E, ainda que o curta narre
uma história ordinária e de fracasso, como afirma Queirós (2013), sua repercussão e os
prêmios que recebeu provam não apenas o sucesso de uma produção cinematográfica, mas,
também, de uma experiência vivida. Lança-se luz, ainda, sobre outra questão, utilizada como
pano de fundo: o fato de que, no final da década de 1990, o movimento hip hop “já tinha sido
apropriado: já era política social, estava no MinC, na SAV [Secretaria do audiovisual]”,
assumindo registros – sobretudo em termos de estética, de linguagens e de temáticas – mais
“politicamente corretos” (QUEIRÓS, 2013, p. 24). As palavras do cineasta revelam sua
insatisfação e sua crítica às tentativas de reduzir o movimento hip hop à caixa estreita da
“política social” ou de reduzi-lo a instrumento de assistencialismo ou de
recuperação/ressocialização de uma juventude periférica considerada delinquente – conforme
discutimos no início deste artigo.
Ao fim e ao cabo, o filme deixou diversos legados. Ao Adirley Queirós, garantiu sua formatura
em Cinema, pela UnB, dois prêmios, visibilidade e o início de uma carreira promissora. Ao
movimento hip hop da Ceilândia, legou o registro de uma história, a construção de uma
narrativa, a possibilidade de que artistas do movimento pudessem se engajar em outro tipo de
linguagem artística, que pudessem ser atores e que pudessem contar suas próprias historias – o
que pode ser resumido em um legado de valorização e de reconhecimento que articula, temporal
e espacialmente, Brasília e Ceilândia, centro e periferia. E, à Ceilândia, além do papel de
protagonista, legou o CeiCine, um coletivo de cinema, nascido desse processo, com o objetivo
de negar os discursos e os argumentos produzidos em Brasília e de negar a forma tradicional de
fazer cinema e de fazer cultura (RAMOS, 2014). Nas palavras de Queirós (2013, p. 41, grifo
nosso), o mote era “fazer cinema numa cidade que não tem cinema”, criando “outra relação de
produção: coletiva”, por meio da mobilização de um grupo em que “eu sou o diretor hoje e
amanhã eu possa ser o caboman, que você vai ser roteirista hoje, amanhã vai ser diretor de arte.
Existiria uma integração dos grupos e as pessoas chegariam sem conhecer nada de cinema e
aprenderiam no processo, preferencialmente pessoas comuns”.
O documentário constitui um gatilho crítico-reflexivo porque, como revela Queirós (2013, p. 29),
foi ali que eles “sacaram que esse imaginário é muito forte”. O documentário conferiu aos atores –
praticantes da Ceilândia, no sentido crostiano (CROSTA, 2009) e praticantes do movimento hip
hop – a prova prática do potencial de articulação política e territorial e de construção de uma
106
Exibido no 38º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em 2005, ‘Rap, O Canto da Ceilândia’ dividiu espaço com
filmes de personalidades já bastante conhecidas no mundo das artes e do audiovisual nacional, como Camilo Cavalcante,
Kléber Mendonça e Sérgio Oliveira. Recebeu os prêmios de ‘Melhor Curta – Júri Popular’ e ‘Melhor Curta – Júri Oficial’
(RAMOS, 2014), além de outras premiações em Festivais por todo o Brasil..
193
narrativa sólida e de argumentos fortes, a partir da arte, a partir do rap e a partir de experiências
cotidianas. Desencadeou, ainda, processos de formação de público, processos de aprendizagem e
processos de democratização que muito se assemelham àqueles defendidos por John Dewey
(1927; 1998 [1937; 1939]; 2010).
(...) tinha um mapa do Brasil, ao fundo do palco, com as capitais... Rio de Janeiro,
São Paulo, pá e tal... E quando chegou no centro, naquele quadradinho ali, que era o
Distrito Federal, não tinha o nome ‘Distrito Federal’ e não tinha o nome ‘Brasília’,
tava escrito ‘CEILÂNDIA’! (...) e aquilo ali, cara, nos enobreceu demais, assim... A
gente ver aquilo e entender que o que a gente tava fazendo tava dando certo, essa
identificação que a gente tava procurando, né? Do reconhecimento lá fora....
107
Como enfatizam Sobottka e Saavedra (2012), a solidariedade depende, em grande medida, de relações simétricas entre
indivíduos autônomos, porque é, justamente, a chance simétrica de desenvolver suas próprias concepções de
‘desenvolvimento’, de ‘bem-estar’ ou de ‘vida boa’ e o direito de ter suas concepções respeitadas que garantirá, a uma
comunidade, dignidade e autoestima.
108
O Prêmio Hutúz, idealizado pelo produtor cultural e ativista social Celso Athayde e realizado pela CUFA – Central Única
de Favelas, no âmbito do Festival Hutúz, foi, por 10 anos consecutivos, a principal premiação nacional do movimento hip
hop, para o movimento hip hop. De 2000 a 2009 premiou quase 200 artistas, em 15 categorias.
109
Nas categorias de melhor ‘Grupo ou artista solo’, melhor álbum, com ‘Num dá nada... Se der é pouca coisa’ e ‘melhor
música’, com a música de mesmo nome do álbum.
110
O prêmio de melhor álbum do ano, com ‘Aviso às Gerações’, o de melhor artista solo e o de melhor música do ano, com
‘Quando o pai se vai’.
194
O movimento hip hop da Ceilândia conforma-se, nesse sentido, como uma arena na qual se
desenrolam, ininterruptamente, diferentes tipos de lutas por reconhecimento. Diversos atores,
diversos grupos sociais buscam, individual e coletivamente, desenvolver a capacidade de
influenciar a vida pública, de construir novos significados, de construir gramáticas mais
abrangentes e mais inclusivas e de fazer com que esses significados e essas gramáticas sejam não
apenas socialmente reconhecidos, mas socialmente respeitados e promovidos. Por meio desse tipo
de processo – que, como vimos, pode ser desencadeado por experiências públicas como a do
movimento hip hop da Ceilândia – outros atores, outras práticas, outros significados, outros
argumentos e outros valores podem passar a fazer parte de um novo “sistema de referência moral”
(SOBOTTKA; SAAVEDRA, 2012, p. 137) ou, nas palavras de Boullosa (2019, p. 05), de novos
“quadros de valor ativos”, que subjazem toda produção de conhecimento e todo policy process.
(...) não, o hip hop é um movimento não organizado. É isso. E, como diz o Japão, se
organizar, bagunça... O hip hop é muito múltiplo pra ser organizado (...), mas é
importante dizer que o nosso movimento parte da Zulu Nation, de uma ideia de
autoproteção e de solidariedade, de formação dos nossos, para superar nossos
desafios.
Elaboramos, a partir disso, duas razões que poderiam justificar sua não organização, que não
deve ser confundida com desorganização ou com falta de estratégia:
1) Porque é constituído por uma diversidade de atores que não necessariamente se conhecem,
que não têm, necessariamente, os mesmos interesses, opiniões, ideologias, pontos de vista,
filiações político-partidárias, etc., que não compartilham, necessariamente, as mesmas
experiências e os mesmos valores, mas que, seguramente, compartilham afetos, sentidos,
pontos de contato, o apreço pela diversidade, compartilham pertencimentos – no mínimo, à
Ceilândia e ao movimento hip hop (com sua estética, com seus princípios, com suas obras-
primas) – e compartilham, ainda, o desejo de reconhecimento e o desejo de transformar o
território e a realidade em que vivem, ainda que cada um o faça a seu modo;
111
Conforme discutido no Artigo 1.
195
Vejamos, então, como um choque estético é capaz de ativar a performatividade das práticas e,
consequentemente, uma mesoescala – em que micropráticas (situadas) conectam-se com
macroestruturas privadas, estatais ou político-institucionais, seja para reforçá-las ou para resistir a
elas –, dando origem a novas práticas, abrindo espaços de escuta e de diálogo e desencadeando
processos de aprendizagem, de inovação e de produção de conhecimento novo e socialmente útil.
A centralidade da nossa segunda história é a Praça do Cidadão e uma nova geração de jovens
praticantes do movimento hip hop, atores que se articulam no âmbito da Rede Urbana de Ações
Socioculturais – RUAS, que é, atualmente, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público (OSCIP), mantida por grandes instituições – como o Instituto Caixa Seguradora, o
Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes, a Unesco, o Instituto Sabin, o Instituto
Cláudio Sarkis de Desenvolvimento Humano e a Rede de Coletivos Culturais ‘Fora do Eixo’
– e gerida por uma equipe fixa de 15 jovens, em cargos de presidente, coordenadores e
diretores (aí incluídas a coordenação de produção, gestão financeira, direção de arte,
coordenação pedagógica, coordenação de comunicação, etc.) ou em funções específicas,
como de designer, produtor(a) e psicólogo(a).
Mas, não foi sempre assim. As histórias acerca do nascimento da ‘RUAS’, narradas
principalmente por Max Maciel (2019a; 2019b; 2019c) e interpretadas à luz do pragmatismo
crítico e da gestão social, ilustram como um choque pode desencadear um processo reflexivo
e investigativo, semelhante ao que aconteceu no caso de Afrika Bambaataa, um choque “da
ordem do sentir e do ressentir”, capaz de organizar sentimentos de indignação e oferecer boas
razões para agir (CEFAÏ, 2011, p. 75). Quando articulamos duas narrativas de Max: uma,
construída durante o “2º Brasília Cidade Design”112, em que ele relatou qual foi o choque ou a
“impulsão” (DEWEY, 2010, p. 58) que o colocou em movimento, que o afetou a ponto de
fazê-lo engajar-se em uma experiência e de sentir-se público dessa experiência (MACIEL,
2019c); e outra, construída durante um evento intitulado “Desconferências: Urbanidades
Criativas”113, em que ele relata o processo de ocupação da Praça do Cidadão e o início da
‘RUAS’, em 2006 (MACIEL, 2019b). Por meio da reconstrução interpretativa dessas
narrativas, é possível perceber que a ‘RUAS’ não é o resultado de uma ação ou de um
conjunto de ações, mas que conforma uma ‘experiência’ estética, que tem uma estrutura e que
tem um fluxo – uma performatividade. A diferença, segundo Dewey (2010), é que, na
experiência, o sofrer e o fazer estão sempre juntos na percepção, estão conectados e são
indissociáveis: formam um todo, o que não ocorre, necessariamente na ação.
112
A participação de Max Maciel, com o tema “A periferia é o Centro”, no ciclo de palestras organizadas pelo Coletivo Ossobuco,
em parceria com o 2º “Brasília Cidade Design” aconteceu em 13/08/2019, no Museu Nacional (Brasília/DF).
113
Evento realizado em 13 de abril de 2019, no Espaço cultural Renato Russo, localizado na Asa Sul, em Brasília.
196
Por volta dos anos 2000, Max já era um ativista social, engajado em movimentos ligados à
questão urbana, o que lhe rendeu um convite para participar de uma roda de conversa acerca
de uma peça teatral, que aconteceria no Teatro Goldoni, no Plano Piloto (Brasília/DF). O
convite, realizado por um coletivo de São Paulo, estendia-se a ele e a três amigos que nunca
tinham estado em um Teatro, todos da Ceilândia. Ansiosos e cientes das deficiências do
transporte coletivo, sobretudo no que diz respeito à ligação periferia-centro fora dos dias de
trabalho, os quatro foram cedo para a “parada de ônibus”, com o que consideravam suas
melhores roupas – calças largas, camisetas que iam até a metade da canela e bonés de aba
reta. Depois de mais de uma hora e de três tentativas frustradas de fazer um ônibus parar,
criaram uma estratégia: um dos colegas tirou o boné e colocou a camiseta pra dentro,
enquanto os outros três se esconderam atrás da estrutura de concreto. O ônibus seguinte parou
e, rapidamente, os quatro entraram, em bloco, sob os olhares preocupados do motorista e do
cobrador. Max conta que, ao longo do trajeto, discutiam Malcolm X, Che Guevara e ‘As veias
abertas da América Latina’ e não se deram conta de que o ônibus mudou de rota e se dirigia à
garagem, no Setor de Oficinas Sul, onde já aguardavam algumas viaturas da polícia. Os
amigos se entreolharam, preocupados com o horário de início da peça teatral e imaginando
que houvesse algum acidente na pista. O cobrador, então, levantou-se e explicou aos
passageiros que haviam parado devido a uma ameaça de assalto. Indignados e procurando
pela ameaça do lado de fora do ônibus, os quatro jovens demoraram a perceber que os
assaltantes em potencial eram eles.
À luz do pragmatismo deweyano, a fala acima evidencia como se estrutura uma experiência
estética, na dinâmica ou no movimento entre um sofrer e um fazer (Dewey, 2010). É
interessante como Max começa quase todas as suas intervenções públicas relembrando dois
episódios, ambos relacionados à questão territorial: em primeiro lugar, enfatiza que a cidade
de Brasília foi planejada para que não houvesse tensão social – uma cidade em que ‘centro’ e
‘periferia’ não dividem nem o mesmo campo físico nem o mesmo campo visual; e, em
segundo lugar, afirma que a Ceilândia é resultante de um “aborto”: o aborto dos filhos que
construíram a cidade e que, em lugar de terem sido reconhecidos como trabalhadores (ou
como heróis, talvez), foram considerados ‘invasores’ e foram ‘erradicados’, por meio de uma
política pública oficial, que constituiu a terceira experiência de remoção de favelas, no
Brasil114.
114
A primeira teria sido a remoção que deu origem à vila Kennedy e, a segunda, a que deu origem à Cidade de Deus, ambas
no Rio de Janeiro (RJ) e, também, durante a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985).
197
(...) nós queríamos criar um espaço sem condicionantes. Se o crime não cria
condicionante, eu não vou criar condicionante. Então, se o cara dá uma arma de
R$5.000,00 na mão dele [do jovem], eu vou dar uma câmera 35-DI, de R$5.000,00
na mão do moleque e dizer: ‘ – Vai, tio, tira foto...’ (...) Quem aqui foi no Jovem de
Expressão, se eu estiver mentindo, por favor, pode me desmentir em qualquer
momento. (MACIEL, 2019b)
A gente chegou naquele prédio, bateu três vezes. Ninguém abriu, nós entramos... E
estamos lá até hoje, sem nenhum papel. Num processo de ocupação é o seguinte, eu
não posso dizer que vou ocupar um lugar, fazer uma intervenção e ir embora. Essa é
uma ação pontual, que funciona em determinadas lógicas, quando você tem uma
comunidade suficientemente engajada pra tocar aquele processo. Como nós estamos
falando de uma praça que tinha conflito territorial, (...) a manutenção e o olhar é
mais emergencial. (...) não pode permanecer absolutamente nada... A gente chama,
na Psicologia, e nos ‘pop rua’ de memória química... Todos nós temos memórias
químicas... A cidade também tem sua memória química.
(...)
Então, se eu passo por um lugar que me relembra conflitos urbanos, essa cidade me
causa estresse, me causa uma série de problemas. Interferir arquitetonicamente em
um processo, seja ele visual, seja ele de locomoção, é emergencial em um processo
de ocupação, porque eu preciso mostrar pra população que algo mudou, ali, de
forma sistêmica e real, né...
Isso é uma coisa muito louca, porque assim... a cultura urbana sempre interferiu e
dialogou, pintando a cidade de suas formas coloridas... O problema é que o Estado
sempre marginalizou essa produção artística nos nossos territórios (...)
O grupo ocupou o espaço, realizou um mutirão com a própria comunidade e, por meio de um
processo de escuta e de diálogo com quem já usava a praça, criaram uma estratégia de
transformação física do lugar, que garantisse a manutenção dos vínculos de pertencimento
existentes e permitisse a criação de novos vínculos, mais saudáveis. Todo o material – tijolos,
cimento, latas de tinta, etc. – foi angariado por meio do apoio de comerciantes locais116 e de
chamamentos públicos, que convocavam voluntários e doações. Após a transformação física,
porém, era necessário transformar a narrativa: “Isso tem que ser um discurso, todo dia... Todo
115
Sobre as gangues do Distrito Federal, ver ABRAMOVAY et al., 2010.
116
Em função da necessidade periódica de reformas e de manutenção, o Jovem de Expressão realiza, periodicamente, ações
para a arrecadação periódica de materiais e para a organização de mutirões comunitários. As campanhas são divulgadas nas
mídias virtuais e nas mídias locais, como, por exemplo, o Diário de Ceilândia (DIÁRIO DE..., 2018) e nos perfis do Jovem
de Expressão no Facebook e no Instagram (https://www.facebook.com/jovemdeexpressao/ e @jovemdeexpressao,
respectivamente).
198
dia você tem que dizer pras pessoas ‘aqui vai ser legal, aqui tá legal...’" (MACIEL, 2019b) e a
construção de outra narrativa precisa passar, necessariamente, pela mídia – porque, “se há um
processo midiático de criminalização do território, automaticamente a gente precisa fazer um
processo midiático para desmistificar o território e dizer que aqui tem potência”. Por fim, era
necessário dar novos usos à praça: “a gente trazia os eventos, fazia um processo de ‘um outro
olhar’: .... campeonato de basquete, (...)”, “internet sem fio e computadores em um espaço que
não tem recepção... não interessa pra gente quem é que vai entrar no espaço... você entra, você
tá dentro.” (MACIEL, 2019b).
Aos poucos, a ‘RUAS’ foi diversificando suas práticas, com o objetivo de promover oficinas
culturais, investir em ferramentas de comunicação comunitária e apoiar outras iniciativas e
coletivos locais. E, quando passaram a executar o Programa Jovem de Expressão, em 2010 –
em parceria com a Caixa Seguradora – a Rede tornou-se referência no Distrito Federal e
passou a constituir uma importante catalisadora e articuladora de práticas: oficinas (gratuitas e
com certificação)117; espaços de escuta e diálogo, como o “Fala Jovem”, uma roda de terapia
comunitária aberta à comunidade e mediado por psicólogas118; um Laboratório de
Empreendimentos Criativos – LECria119, que funciona como incubadora social, selecionando
e financiando projetos ou coletivos, em diversas áreas. Atualmente a ‘RUAS’/Jovem de
Expressão disponibiliza, ainda, “pra quem mais quiser colar” (MACIEL, 2019b), um
infocentro, com computadores conectados à internet; uma biblioteca, com cerca de 60
retiradas por mês; uma sala de aula; um escritório coletivo; um galpão cultural (com sala de
dança, galeria de arte e exposições e um teatro de bolso); aulas de ciranda, de forró, de
percussão, de voguing, street dance, etc.; campeonatos de basquete, de rima e de breaking;
um cursinho Pré-vestibular120, totalmente gratuito e ofertado por 20 professores voluntários;
atendimento jurídico voluntário à comunidade, em questão tributária, criminal e cível; e o
próprio Festival Elemento em Movimento (EXPRESSÃO, 2014; JEX, 2018). Tudo é gratuito.
Sobre o Festival, vale enfatizar que a 3ª edição (2013) foi a primeira a concentrar todas as
atividades na Praça do Cidadão, com o objetivo reunir, em um só local – e na periferia – não
apenas os elementos do movimento hip hop, mas outros elementos da cultura urbana, ocupando
a praça e transformando-a em um espaço saudável (MACIEL, 2013)121. O nome do festival, que
117
De teatro, fotografia, audiovisual, estêncil, fanzine, produção de beats, intervenção urbana, cenografia, produção cultural,
dança e discotecagem (Dj), vivências em língua estrangeira, etc.
118
Ao longo de 2018 foram realizadas 30 rodas de terapia comunitária, na Praça do Cidadão, com oito psicólogos, atuando na
promoção da saúde mental, emocional e física, tanto da juventude quanto da comunidade em geral. Dentre as principais
violências relatadas estão o Racismo e a violência psicológica, que atinge 50% dos participantes, além da homofobia, da
violência intrafamliliar e da violência moral, que atingem cerca de 30% dos jovens que participaram das rodas (JEX, 2018).
119
O LeCria lançou, no final de 2019, seu 3º Edital. A cada edital, o Laboratório seleciona até dez projetos, financiados com
R$ 10.000,00 cada. Quando os editais são lançados, a RUAS organiza consultorias, para o auxílio no desenvolvimento de
projetos e busca impor, em seus editais, o mínimo de condições e barreiras possíveis, para que nenhuma ideia, por mais
mirabolante que possa parecer, seja constrangida ou desconsiderada a priori. O lema do LeCria é dar aos jovens da periferia a
chance de errar (MACIEL, 2019b)
120
Dos 60 alunos que realizaram o cursinho pré-vestibular do Jovem de Expressão, em 2018, 07 foram aprovados na
Universidade de Brasília, nos cursos de Terapia Ocupacional, Filosofia, Geografia, Artes Cênicas e Enfermagem (JEX, 2018)
121
A Edição de 2013 – co-produzida pela CUFA/DF, pelo Jovem de Expressão – contou, em termos institucionais, com
recursos do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet e da Lei de Incentivo à Cultura (LIC), patrocínio da Caixa
Seguradora – que é a financiadora social do Programa Jovem de Expressão – e apoio do Governo do Distrito Federal, por
meio da Coordenadoria da Juventude e da Administração Regional da Ceilândia. A produção e a organização do Festival,
porém, é “100% favela/’, como ressaltam seus organizadores, no vídeo institucional do Festival, (ELEMENTO..., 2013) e
pelos jovens do Jovem de Expressão, os responsáveis pela produção, apoio, fotografia, montagem e desmontagem de palcos,
199
Mil e quinhentas pessoas participaram dos 03 dias de Seminário e 30 mil pessoas participaram
da 6ª Edição do Festival Elemento em Movimento, com o tema ‘O que vem de nós’, em
referência ao esforço pela manutenção de uma cadeia 100/% local de produção: o Festival é
parte do processo de formação do Programa Jovem de Expressão e é inteiramente produzido e
realizado pelos alunos das turmas de roadie, fotografia, comunicação para festivais, produção
cultural, privilegiando fornecedores e prestadores de serviço da Ceilândia. Nas palavras de
Daiane, durante a abertura da 5ª Edição do ‘Elemento em Movimento’ (2017), “o festival
representa a crença na periferia. É feito por nós e para nós (...) sem a contratação de nenhum
tipo de serviço de fora da Ceilândia, sem a contratação de nenhum profissional de fora da
Ceilândia”. Nesse sentido, a experiência da ‘RUAS’ representa o acúmulo e a consumação de
outras experiências. E, como nos lembra Dewey (2010, p. 113), “se uma conclusão é
alcançada, é a conclusão de um movimento de antecipação e acumulação, um movimento que
finalmente se conclui. Uma ‘conclusão’ nunca é uma coisa separada e independente; é a
consumação de um movimento.” O Festival é, nesse sentido, consequência de um processo –
de uma série de práticas responsivas que se acumulam em direção ao cumprimento de um
objetivo – e o movimento hip hop da Ceilândia constitui-se como ‘experiência pública’.
Por fim, de toda essa história, vale enfatizar, ainda, a ênfase conferida à dimensão
comunicativa do movimento hip hop, seja para a construção ou para a (re)construção de
narrativas, a partir da perspectiva periférica. Nesse sentido, o ano de 2019 foi marcado, no
âmbito da ‘RUAS’, por práticas predominantemente comunicativas e pela abertura de espaços
de construção e de compartilhamentos de ideias, de conhecimento e de significados.
etc. Dentre as novidades da Edição de 2013, estavam o Campeonato de Skate DF Street; o campeonato de BMX (mountain-
bike) e o Parcour, articulando o movimento hip hop com outras expressões da cultura urbana .
122
O ‘I Diálogos em Movimento’ aconteceu entre os dias 09 e 11 de agosto, na Casa do Cantador (Ceilândia/DF) e abordou,
por meio de diversos formatos (debates com mediação, rodas de conversa, talk-shows, cineclubes, saraus, reuniões livres,
etc.) temas como: a relação entre centro e periferia, as relações entre a periferia, a universidade e a construção de
conhecimentos – por meio do diálogo acerca das ancestralidades, tradições e saberes marginais –, relações de gênero na arte e
na cultura, experiências festivas de resistência, relações entre cultura e empreendedorismo periférico, possibilidades de uma
“nova economia” – a partir da reflexão acerca de práticas econômicas periféricas –, direitos humanos, redes de proteção,
relações entre o movimento hip hop e o movimento LGBTQI+ e entre culturas de massa e mídias.
123
As palestras e debates realizados intitulavam-se: Vamos cuidar de nós? Saúde mental e resistência’, ‘Cultura e masculinidades’,
‘De quem é essa festa? Por uma cidade aberta, acessível e sem machismo’ e ‘Mulheres contra o fascismo’, ‘Empreendedorismo =
Empoderamento’, ‘A letra feminista: debate + slam + perfomances’ e ‘Negritude e comunicação’.
200
Interpretado à luz da ‘virada argumentativa’, a fala de Max Maciel (2019a), quando pondera
que “(...) se TED talks e USP talks, a periferia também talks!”, evidencia sua compreensão de
que a estética e a semântica constituem importantes campos de batalha (BOAL, 2009) e de
que “a política pública é feita de palavras” (MAJONE, 1989, p. 35) e de valores (FISCHER,
2016). Para além da ‘TV de Expressão’ (que produz vídeos e documentários disponibilizados
no Canal do Jovem de Expressão, no Youtube), do Cine Periferia (um espaço de divulgação de
produções locais e de difusão e debate de produções nacionais124), e das parcerias com
coletivos alternativos de mídia e de jornalismo – como o coletivo nacional “Mídia Ninja” e O
“Coletivo DUCA”, da Ceilândia – foram criadas duas novas práticas ou tecnologias sociais125:
o PerifaTalks, que realizou 03 edições ao longo de 2019126 e o Podcast “Papo de Quebrada”,
idealizado e apresentado pelo próprio Max, com o objetivo de difundir outras visões –
periféricas – sobre cidade, politica, cultura e entretenimento.
Ao longo de todo o processo de pesquisa e de escrita desta tese, me vi às voltas com esta
pergunta. Ou pior: para quem serve seu conhecimento? Para que serve uma pesquisa sobre o
movimento hip hop da Ceilândia? Ainda que as perguntas acerca da serventia do movimento
hip hop da Ceilândia sejam pouco (ou nada) pragmatistas e que ampliem, em alguma medida,
a sombra da servidão que acompanha os corpos periféricos, ela permeia o pensamento de todo
cientista engajado com a transformação social. Se a pergunta fosse formulada em outro tempo
124
Na 1ª Edição de 2020, o cine Periferia exibiu ‘Bacurau’, filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, premiado
no 72º Festival de Cannes, em 2019.
125
O Programa Jovem de Expressão considera tecnologia social “todo produto, método, processo ou técnica criada para
solucionar algum tipo de problema social, que atenda aos quesitos de simplicidade, baixo custo, fácil aplicabilidade e impacto
social comprovado. As tecnologias sociais facilitam a adoção de novos conhecimentos, atitudes e práticas sociais,
contribuindo para uma gestão efetiva de recursos e para a criação de estratégias que tornem os novos comportamentos mais
atraentes e mais fáceis de serem assimilados pela população a ser beneficiada” (COLETÂNEA, 2014, P. 23)
126
A primeira edição contou com a participação do juiz titular da Vara de Execuções Penais do Amazonas, Luiz Carlos
Valois; a segunda, foi protagonizada pela Deputada Federal, educadora popular e cientista política, Áurea Carolina; e, a
terceira, contou com a parceria entre o Prof. Dr. Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra/Portugal) e do
rapper GOG, do Distrito Federal.
201
Poderíamos, alternativamente, pautar nossa resposta em cifras que indicam que o movimento
hip hop da Ceilândia gera empregos, gera renda e dinamiza a economia, citando, por exemplo,
o número de empresas criadas a partir da experiência no âmbito do hip hop: a gravadora
criada pelo rapper GOG, a empresa de produção cultural criada pelo Dj Jamaika, a marca de
vestuário criada pelo rapper Japão ou a loja colaborativa criada por Wemmia, Wan, Skill e
Palito, entre outras. Poderíamos citar os Anuários do Jovem de Expressão (JEX, 2015; 2016;
2017; 2018), que registram o número de oficinas ofertadas, o número de jovens atendidos
pelo cursinho pré-vestibular, o número de rodas de terapia realizadas, o número de pessoas
que passaram a circular, diariamente, pela Praça do Cidadão ou o público de mais de 30 mil
pessoas que compareceu à última edição do Festival Elemento em Movimento.
Por outro lado, talvez seja mais interessante projetar a resposta para o futuro, porque, ainda que
isso envolva algum grau de abstração, nos permite elaborar futuros possíveis e imaginar respostas
que não se restringem a um ponto de vista. Para fazer referência explícita à arte, a mistura de
coisas diferentes (ou a “miscelânea de heterogêneos”, nas palavras de Rancière, 2005, p. 39),
desde o dadaísmo, sempre foi polêmica, seja por explicitar o lado sombrio das utopias ou por
denunciar a segregação de determinados grupos do espaço público. E é isso que o movimento hip
hop faz: mistura coisas diferentes, reúne um conjunto variado de práticas, que tem a produção
artístico-cultural como referência, mas que não se esgota na dimensão artística. À luz do
arcabouço teórico-metodológico que construímos – e concordando que o cantor de ópera e o
rapper de bairro podem ser considerados grandes artistas, em plano de igualdade – pode-se dizer
que o movimento hip hop da Ceilândia serve para construir ‘espaços de diversidade’, de
subjetivação política e de indeterminação. Espaços em que se vê, se aprende, se debate e se
constroem coisas novas. O movimento contribui, assim, para reduzir o abismo – amplamente
naturalizado – entre a experiência estética e a experiência ordinária ao tornar cada vez mais
difusas as fronteiras entre produtores e consumidores de arte – entre o artista e o cidadão (BOAL,
2009). Assumir, inspirados no pensamento pragmatista, que artista é quem cria, tem o potencial
de nos reconectar a outros modos de experimentar e, assim, de expandir nossos modos de pensar e
de agir (DEWEY, 2010; SHUSTERMAN, 1998).
A reposta mais importante, porém, é a que emerge do próprio movimento hip hop da
Ceilândia, visto e interpretado, por nós (que não somos praticantes e que não somos
periféricos), por meio de suas práticas. O movimento hip hop apresenta-se como uma força
política, que visa abrir espaço para temáticas e reflexões capazes de desestabilizar o que se
autointitula “centro”, não apenas para possibilitar a ocupação de espaços institucionais ou
202
para repetir comportamentos do centro, mas para transformá-los, por meio da construção de
alternativas, inclusive, dentro de espaços institucionais – como tem sido feito, por exemplo,
por meio das experiências de mandatos políticos coletivos. Atuando nas poucas brechas
existentes, o hip hop chama atenção para a abundância e para a potência que emerge das
periferias, sem minimizar as ausências ou as consequências de décadas de abandono. Os
praticantes do movimento hip hop não acreditam na existência de modelos únicos, mas na
possibilidade de arquitetar, coletivamente e na co-presença dos diferentes, outros projetos
políticos, que reúnam saberes diversos e metodologias transversais e multi-instrumentais, que
não reproduzam guetos de conhecimento e que rompam com a ideia de que a democracia só
se dá no consenso.
Como enfatiza Crosta (1998), as políticas públicas devem ser vistas como espaços de
interação mutuamente contaminados por diferentes tipos de conhecimento, especializados ou
comuns, porque é nesse processo de contaminação que se compartilham quadros de
significados e que se transformam processos de planejamento em ações conjuntas. É nesse
sentido que defendemos que as interações observadas no fluxo do movimento hip hop da
Ceilândia constituem uma ‘experiência pública’ de ação política conjunta, por meio da qual se
reexaminam grades interpretativas e valorativas e se constroem significados comuns e, que
alimentam processos interativos (e não necessariamente centrados no Estado ou em
instituições formais) de política (CROSTA, 1998). E é pública porque forma públicos, no
sentido deweyano (DEWEY, 1927) e porque não pertence a nenhum sujeito (GUIMARÃES,
2012). É, precisamente, essa dimensão relacional o que confere à experiência cotidiana ou
ordinária sua qualidade estética (DEWEY, 2010). Se, como nos lembra Connell (2012), a
grande ruptura epistemológica do século XX, na Academia, se deu com o surgimento da
Escola de Chicago e com seus pesquisadores urbanos, debruçados, cada vez mais, sobre as
diferenças sociais e sobre a desordem social nas cidades – operando uma espécie de fusão
entre sociologia e psicanálise; nas ruas das periferias, tal ruptura, análoga, se dá por meio da
fusão entre arte e política e o movimento hip hop é apenas mais um de seus vetores. O que
não se pode perder de vista, porém, é o fato de que o movimento hip hop, além de ser,
simultaneamente, global e situado, é heterogêneo e tem fronteiras móveis e permeáveis. No
complexo movimento do rap gangsta ao rap gospel, compreender o movimento hip hop exige
um olhar amplo, porque qualquer tentativa de reduzi-lo a um segmento ou a um de seus
elementos significa não compreendê-lo (TADDEI-LAWSON, 2005).
Assim, vale registra que interpretar o movimento hip hop, impõe diversas armadilhas. A
primeira delas diz respeito ao olhar de fora ou ao olhar estrangeiro, que sempre incorre no
risco de promover análises estereotipadas ou demasiadamente descoladas da realidade. Em
outras palavras, trata-se da armadilha do ‘lugar de fala’ (RIBEIRO, 2017), do qual a ciência e
o saber social não podem nunca se dissociar (PUELLO-SOCARRÁS, 2010), porque o lugar
de onde vemos, de onde enunciamos ou de onde escrevemos afetam ou transformam a
experiência. Acreditamos na possibilidade de falar de muitos lugares, mas consideramos
igualmente importante evidenciar que não somos praticantes do movimento hip hop e que, ao
menos em termos geográficos, não somos periféricos. Por que, então, estudar uma experiência
como esta? Em primeiro lugar, porque estamos defendendo que, a partir do campo das
políticas públicas – nosso principal lugar de fala –, sejamos capazes de ver, de interpretar e de
reconhecer experiências diferentes daquelas que são tradicionalmente vistas, interpretadas e
reconhecidas. Em segundo lugar, porque, em nosso exercício científico, estávamos
interessados na emergência de novos sujeitos de pesquisa e no abandono de velhos objetos de
pesquisa. E, em terceiro lugar, por um princípio de justiça, que justificamos com uma fala
certeira de Alexandre Faria, em um debate acerca do lugar e da fala da periferia (PENNA,
2016, p. 160):
204
Então, se por um princípio de justiça, quero lutar e se não é legítimo me alistar nesse
exército, a única coisa que posso fazer é tentar correr por fora, e fazer o possível
para bater em quem bate e não em quem apanha. Se isso não for possível, seria mais
digno não entrar na luta, ficar neutro, mas isso me confundiria com o opressor. Se
minha adesão à luta é ilegítima e meu silêncio sobre ela é minha confissão de culpa,
prefiro ser ilegítimo.
A segunda armadilha, apontada por Hardman (2016, p. 10), chama atenção para os perigos de
promover um tipo de “excepcionalismo periférico”, que, ao mesmo tempo em que é motivo de
rejúbilo nos domínios da arte popular e da cultura autóctone, é motivo de rebaixamento nos
campos da economia ou da política formal/institucionalizada. O pensamento pragmatista, ao
combater a separação entre a arte e a vida cotidiana, auxilia-nos a interpretar o movimento hip
hop para além de suas inegáveis contribuições ao campo da cultura e para além, também, de sua
instrumentalização como ferramenta externa, utilizada, de forma pontual e isolada, para a
recuperação de jovens com comportamento desviante – seja nas escolas públicas das periferias
ou em centros de detenção/recuperação de jovens ou jovens-adultos. Com esta pesquisa, não
nos propomos a julgamentos de valor, mas buscamos, justamente, combater tal seletividade –
que valoriza o movimento hip hop em determinados contextos e o invisibiliza ou criminaliza em
outros –, vendo-o como ‘experiência pública’ e reconhecendo-o como parte do fluxo de
políticas públicas, a despeito de seu hibridismo – que articula práticas formais e informais,
institucionalizadas e não institucionalizadas, centrais e periféricas. Ao fim e ao cabo, o que
buscamos é provocar um deslocamento naquilo que entendemos como política pública – que
deixe de ser a arte de fazer o que é possível, para ser “a arte de tornar possível o que é
necessário” (BOAL, 2009, p. 22).
No que diz respeito ao fazer científico, a terceira armadilha é perder de vista essa noção de
totalidade fragmentada e heterogênea e abandonar, a meio do caminho, a postura crítico-
reflexiva. Um desdobramento disso é a romantização do movimento hip hop, alçando-o ao
status de resposta ou de solução para todos os problemas. Isso porque são bastante comuns os
relatos, por parte de praticantes do movimento, de que ‘o hip hop me salvou’, ‘mudou minha
vida’ ou ‘me deu tudo que tenho’ e é comum, também, impregnar-se, no decurso da
experiência, tanto do sentimento de que, ao fim e ao cabo, o que vale é o “nós por nós”,
quanto do sentimento de que as dores e os sacrifícios individuais e coletivos são o motor das
transformações e da criatividade periférica, o que confere ao choque positividade ilimitada e
ignora as centenas de histórias de sofrimento, de perda, de frustração, de desemprego e de
fracasso, que também conformam o fluxo do movimento hip hop da Ceilândia.
127
Cf. Artigo 3.
205
do movimento hip hop (e, também, no da Ceilândia). Há divergência quanto ao papel central
do hip hop: entreter? Resgatar? Denunciar? Ser vetor de transformação socioterritorial? Há
divergência político-ideológica: enquanto uns defendem, por exemplo, que não existe rap de
direita e que toda prática vinculada ao movimento hip hop deve ter alguma função social e
comunitária, outros se associam a grandes empresas e a conglomerados midiáticos, em nome
da visibilidade e da captação de recursos, criticam a ‘síndrome do periférico’ que assola o
movimento e defendem que todos têm o direito de ascender socialmente por meio do poder de
consumo; enquanto uns utilizam as estruturas estatais e se inserem em espaços institucionais,
com o intuito de transformá-los, gradativamente, a partir de dentro, outros rejeitam a priori
tudo o que vem do Estado e consideram impensável assumir cargos de poder dentro do atual
sistema, em nome da autonomia plena; enquanto uns candidatam-se a cargos políticos pelo
Partido Socialismo e Liberdade – PSOL ou pelo Partido Popular Socialista – PPS (atual
Cidadania), outros são candidatos pelo Partido Progressista – PP (atual Progressistas) ou pelo
Partido Social Liberal – PSL.
E é essa pluralidade que confere complexidade e densidade a essa ‘experiência pública’ e que
exige de nós o apego ao olhar crítico-reflexivo, capaz de encontrar – no dissenso – o que há
em comum, em um esforço de compreender que a mesma periferia e o mesmo movimento que
podem desencadear práticas colaborativas e espaços de escuta, de diálogo e de aprendizagem,
podem defender, protagonizar e desencadear, também, práticas preconceituosas, violentas ou
autoritárias. Além disso, por mais proativo e engajado que se prove um público e por mais
transformadora e positiva que se prove – na prática – uma ‘experiência pública’, isso não
justifica injustiças sociais e não desresponsabiliza o Estado de seu papel de mediador de
conflitos, de facilitador de ‘experiências públicas’ e de indutor de processos de emancipação.
Acompanhar o Hip Hop da Ceilândia em movimento, ao longo de quatro anos, nos permitiu
perceber como ele foi se atorizando (na escala do indivíduo) e se publicizando (na escala
coletiva), desde seu ‘nascimento’ no Distrito Federal – como movimento predominantemente
artístico-musical – até os dias atuais, tendo transbordado as fronteiras do próprio movimento
(se é que tais fronteiras existem) e tendo se consolidado como um projeto transversal de
intervenção socioterritorial. Um projeto que não é de curto ou de longo-prazo, mas de prazo
indeterminado, que promove, por meio da construção e da promoção de uma mesoescala de
práticas, uma rede de práticas de uso, que abarca a dança, a música, o teatro, o canto, a
produção cultural, a palavra, as artes visuais, o esporte, a educação, a saúde (e, em especial, a
saúde mental), a economia solidária (ou o empreendedorismo periférico), a assistência social,
os direitos, a comunicação, etc. e que promove a articulação e a interlocução entre iniciativas
micropolíticas (muitas vezes informais) a estruturas tecnopolíticas estatais ou institucionais.
conscientização e de politização, para ser, além de tudo isso (ou, precisamente, por causa de
tudo isso) arte pública e experiência pública. Experiêcias multiatoriais, multidirecionais,
multidimensionais e multissensoriais, que se publicizam na medida em que seus significados
são coletivamente construídos e compartilhados e na medida em que conformam públicos
engajados em promover reequilíbrios diante de situações problemáticas (situações de políticas
públicas!). Compreender o Movimento Hip Hop nesses termos significa considerar que ele
não apenas desencadeia atividades, práticas de uso do território e interações sociais, como ele
é também ator e resultado de tais interações e de tais práticas. Significa ainda, entender, que
suas consequências – diretas e indiretas – o transbordam (temporal e espacialmente),
fomentando novas dinâmicas de construção de públicos e novas experiências públicas, em
outros tempos-espaços, ressignificando, inclusive, o signo ‘periferia’.
O que nos parece mais interessante no Movimento hip hop da Ceilândia é seu processo
reflexivo de publicização. Ou seja, no decurso de suas práticas, forma públicos e forma-se,
reflexivamente, como público. Vai construindo e conferindo significados e vai se
conscientizando de sua natureza e de seu papel, no decurso da experiência. Compreender o
movimento hip hop e as políticas públicas como processos ou como fluxos – multidirecionais,
multiatoriais e multissensoriais – significa, também, romper com estruturas de poder e de
hierarquia que subjazem pares dicotômicos como centro-periferia, razão-emoção ou estado-
sociedade, por exemplo. No fluxo, importa a interação. Assim, defender que nesse fluxo
sejam reconhecidos os maiores números possíveis de ‘experiências públicas’ é estar
convencido de que toda ação política e de que toda racionalidade está contaminada por um
contexto espaço-temporal (uma situação) e por um quadro de valores específico e que essas
diferenças são muito mais capazes de enriquecer o diálogo e de contribuir para o policy
process do que a pretensão ilusória de apagá-las ou de marginalizá-las.
A riqueza dos fluxos consiste no fato de que, para que existam, nenhum prática pode
funcionar sozinha ou de forma independente, porque cada uma carrega consigo um “ativismo
ativo” (CROSTA, 2009) em dois sentidos: (a) carrega o ativismo de quem nela se engaja e (b)
oferta as condições (a possibilidade e a ocasião) do próprio ativismo. É nesse sentido que
Crosta (2009) defende que práticas têm natureza ‘política’ e que defendemos, analogamente, a
natureza política e a natureza estética de toda ‘experiência pública’. O encontro entre os
fluxos das ‘políticas públicas’ e os das ‘experiências públicas’ tem o potencial de romper com
relações lineares ou sequenciais entre meios e fins, de deslocar saberes instituídos, de
desorganizar intenções e ações, de bagunçar a divisão entre efeitos esperados e resultados
obtidos e de confundir os papeis dos atores, articulando-os, portanto, em relações mais
colaborativas e menos assimétricas.
A partir desta interpretação, o movimento hip hop da Ceilândia passa a ser discutido como um
conjunto de práticas de uso que, por sua permanência no fluxo, consolida outras gramáticas e
conforma outros públicos. O movimento hip hop evidencia, ainda, que as narrativas – sejam
elas autoritárias ou democráticas – se constroem e se difundem artisticamente e esteticamente,
o que significa dizer que não cabem em uma só linguagem ou em uma só gramática. Como
discute Boal (2009), a arte está na coisa e a estética está no sujeito e em seu olhar. Assim, as
interpretações (sejam elas de políticas públicas ou de experiências públicas) devem reunir,
207
Este fluxo atua não apenas no sentido de formar um público, mas de afinar um discurso que é
atravessado pelo desejo de legitimação, de autoafirmação e de reconhecimento. O movimento
hip hop da Ceilândia busca construir uma narrativa alternativa e produzir argumentos que
desafiem e desestabilizem, inclusive no campo das políticas públicas, os argumentos
oficiais129. Desdobram-se desse fluxo, também, formas coletivas de tratamento ou de
reenquadramento de problemas considerados de pública relevância (para aquele público
específico) e modos próprios de organização, desencadeados pela reunião de seus praticantes
e da comunidade, de forma geral, em torno de vivências, valores, temas comuns, eventos
artístico-culturais e oportunidades de formação profissional ou política. Nesse sentido,
emergem, do movimento hip hop da Ceilândia, novos arranjos de governança – sociocultural,
sociopolítica, socioeconômica e socioterritorial –, pautados, muitas vezes, em princípios da
gestão social, como a criticidade, a reflexividade, a dialogicidade, a interatividade, a liberdade
nos processos compartilhados de deliberação, a solidariedade e o compromisso com a
emancipação, em suas múltiplas dimensões.
Por fim, e talvez de forma ainda mais relevante, inspirados no pragmatismo e, sobretudo, em
sua releitura crostiana, foi possível verificar que o fluxo do movimento hip hop da Ceilândia
128
Cf. Artigo 3.
129
Cf. Artigo 4.
208
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216
BATALHAS FINAIS
Tudo o que posso dizer, depois de todas estas páginas, é que cada experiência é uma e que é
impossível prever ou atestar – sem que seja no curso da própria experiência – todas as suas
consequências. A experiência é sua prova de validade. E, às vezes, é preciso sair
completamente do que se entende, tradicionalmente, por ‘política pública’, para dela falar. Se,
na década de 1990, os estudos acerca do hip hop indicavam que o estilo era um produto da
sociabilidade juvenil e uma forma peculiar de apropriação do espaço urbano, com o potencial
de mobilizar jovens excluídos, o que o movimento hip hop da Ceilândia revela é sua
capacidade de mobilização de jovens e adultos incluídos, pessoas que cotidianamente se
implicam em processos de aprendizagem de transformação socioterritorial, pessoas que abrem
ou ocupam continuamente espaços de escuta, de diálogo, de negociação e de criação – seja de
novas tecnologias sociais, de novos sinificados para velhos significantes, de iniciativas de
geração de renda, de projetos comunitários de intervenção socioterritorial, de eventos de lazer,
de promoção de saúde mental, de atividades esportivas, etc. Praticantes, investigadores,
comunicadores de experiências – públicos – implicados em uma ampla variedade de práticas e
de experiências que se publicizam em seus decursos (APÊNDICE B).
Já tendo apresentado nossas principais conclusões, a cada etapa desse caminho, escolhemos
utiliza este espaço final, para apresentar alguns percalços. Registramos, então, três desafios
teórico-práticos centrais que permearam esta pesquisa e alguns caminhos que buscamos
percorrer, para superá-los:
(1) Desafio 01: Os estudos críticos em políticas públicas ainda são pouco conhecidos no
Brasil e pouco mobilizados por professores e pesquisadores brasileiros. Embora tal
abordagem já venha sendo sistematicamente desenvolvida há mais de três décadas,
encontrando-se já fortemente institucionalizada no âmbito internacional (com
inúmeras publicações em livros, periódicos especializados, associações, grupo de
pesquisa e eventos) os critical policy studies – que consideramos como uma
alternativa consistente ao chamado mainstream positivista (BOULLOSA et al., 2019,
no prelo) ainda não foi devidamente difundido no campo de estudos em políticas
públicas brasileiro, nem no âmbito do ensino nem da pesquisa.
(2) Desafio 02: Há claros limites em se adotar, para tratar da realidade brasileira, estudos
que nasceram e que se desenvolveram nos Estados Unidos, na Europa ou no Norte do
mundo, como são os casos dos estudos críticos em políticas públicas e do
pragmatismo deweyano. Além disso, há obstáculos à aproximação entre essas duas
correntes, sobretudo em função da forte infuência exercida por Jürgen Habermas no
desenvolvimento dos Critical Policy Studies, por exemplo. Embora reconheçamos a
importância da Escola de Frankfurt e, especificamente, de Jürgen Habermas, para o
desenvolvimento de uma teoria crítica que avançasse em relação à crítica marxista,
acreditamos que o caminho do pragmatismo deweyano é mais fértil do que o caminho
habermasiano, se queremos propor uma abordagem crítico-reflexiva e radicalmente
sociocêntrica. Assim, não podemos nos esquivar nem das críticas elaboradas a partir
do Sul do mundo, seja a crítica à teoria da ação comunicativa habermasiana –
considerada por Cullen (2017) como um “neoiluminismo democrático” – seja a crítica
à utilização de matrizes teóricas eurocêntricas ou anglocêntricas, para interpretar
problemas brasileiros ou latino-americanos.
SIBA, 2007
222
POSFÁCIO
Semanas antes da entrega desta tese, eu lia “A estética do Oprimido”, de Augusto Boal
(2009). Ia pela página 80 quando recebi, por Whatsapp, um vídeo em que o então Secretário
Especial de Cultura, Roberto Alvim, pensava traçar os novos rumos da cultura brasileira –
anunciando, ao som de ‘Lohengrin’, de Wager, que 2020 seria o ano de uma “virada
histórica”, o ano do renascimento da Arte e da Cultura nacionais (assim, em letras
maiúsculas).
A virada mencionada por Alvim seria em direção à tradicional separação entre Belas Artes
(em maiúsculas) e artes populares (em minúsculas), alçando obras de arte – em sentido estrito
– a um solo sagrado; seria, também, uma virada em direção ao apagamento de uma
diversidade cultural e de uma pluralidade de expressões culturais que mal conseguiram sair da
invisibilidade; uma virada em direção ao que o secretário chamou de ‘mitos fundantes’ não
apenas da cultura brasileira, mas das futuras políticas públicas: a pátria, a família e Deus.
Na página seguinte do livro, Boal dizia que “José Carreras, no palco do Scala de Milão e o
pedreiro anônimo construindo sua casa, cada um tem a sua voz e sua arte. ‘Cantar é vestir-se
com a voz que se tem!’ – canta, na Lapa, com a suave voz que tem, Teresa Cristina. Ser
humano é ser artista.” E, enquanto isso, a propaganda governamental anunciava que quase
30% dos recursos disponíveis, por meio do Prêmio seriam destinados à premiação de cinco
óperas, uma de cada região do país. Cinco óperas. Cada uma premiada com R$1,1 milhões.
Lembrei-me de Max Maciel, que, em todas as suas falas, enfatiza que, na Ceilândia, com seus
mais de 600 mil habitantes, não há nenhuma sala de cinema, enquantom no plano piloto,
existem 97 salas, para menos de 200 mil habitantes.
***
224
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225
APÊNDICES
228
Olha, acho que não dá, mesmo, pra pensar a Ceilândia só pela cabeça de
quem não esteve com o pé lá... a Ceilândia é que tem que se pensar e ser
pensada pela pele do Japão, de quem mais tenha a Ceilândia cicatrizada.
As cidades têm que ser pensadas pelas cicatrizes, por essas marcas que
não são só de cor, porque até a cor pode ser lisa, mas a cicatriz não.
Cicatriz tem textura. E a Ceilândia toda tem textura. Lá, nada é branco,
nada é claro, nada tem borda definida. Tem uma aspereza distintiva. Tem
quina. É o oposto do liso.
A pele preta do Japão também. E a do Jamaika. E a do Kabala e de toda
essa gente que, todo dia, muda de pele e de nome. Se reinventa. A pele da
Wemmia, da Rayane e a pele da Realleza, que brilha no sol nascente. A
do GOG. E a do Mano Brown. Tudo pele viva, carne viva. Voz com textura.
Tudo boca que profere palavra áspera.
É a cicatriz que implode o mito do moderno.
Na Ceilândia é tudo crespo. Foi por isso que, quando perguntei pro Japão o
que ele achava dos muros invisíveis ou imaginários que dividem “cidades
constitucionalmente indivisíveis”, a resposta foi um tiro [...que furou a bolha
e dissipou a mágica, enquanto o sol a essa altura já ia longe]:
“Só são imaginários pra quem acredita em imaginação. O muro é real, ele
existe. E ele segura. E ele expele. E se você chega perto, ele te expulsa”.
Tailândia. Ceilondres.
Quando eu entro na Ceilândia, pela Hélio Prates, meus teóricos também já
vão longe.
E eu sinto o peso do nome. CEI-lândia. Pesa como barril de água. E tudo o
que eu achava saber, fica gasto. Puído. Esgarçado. Na Ceilândia não tem
verdade simples (ela existe?). Nada está dado (e onde está?). Se Sei-lândia
se escrevesse com S, seria outra coisa?
E se a Campanha tivesse sido de Erradicação da Intolerância? E se, por
engano, não tiverem erradicado só os ‘invasores’ lá do plano, mas,
também, toda a possibilidade de inovação?
A essa altura eu já estava me inclinando no banco pra encostar a cabeça
no concreto quente, bem ali, entre-tempos: entre o momento em que
nasceu a RUAS e o voguing no coreto. Praça do Cidadão.
Eu sei que rua, coreto e cidadão, quando se juntam em linhas, constroem
uma imagem quase idílica. E que seja... porque paira, na praça, uma
liberdade de estar (e de ser, talvez) que beira mesmo o bucolismo.
230
O Dj Jamaika candidatou-se a Deputado Distrital nos anos de 2010, 2014 e 2018. Em 2010,
ainda com Ensino Fundamental incompleto, candidatou-se a Deputado Distrital pela
Coligação ‘Quero Mudar’, formada pelo Partido Social Liberal – PSL (partido pelo qual se
elegeu Jair Messias Bolsonaro, atual presidente do Brasil) e pelo Partido Trabalhista Cristão -
PTC, tendo recebido 939 votos no primeiro turno das eleições, o que representou 0,07% dos
votos válidos (não eleito).
No Facebook: www.facebook.com/DjJamaika
No Facebook: www.facebook.com/alanjhonemoreira
‘A cidade é uma só?’ recebeu Menção Honrosa de Melhor Filme na Semana dos Realizadores
de 2011, ganhou o prêmio de melhor filme escolhido pela crítica na 15ª Mostra de Cinema de
Tiradentes e recebeu, ainda, o BACIFI 2012, em Buenos Aires, durante o Festival
Internacional de Cinema Independente, o Word Cinema Amsterdã (2012), o INDIE Brazil, em
Los Angeles (2012), o Panorama de Cinema da Bahia (2012) e o prêmio de melhor filme no
Docs BH.
No Facebook: https://www.facebook.com/aadirleyqueiros/
No Instagram: @rayanesoaresss
130
Rivanilson Alves da Silva já transitou por todos os elementos do movimento hip hop. Engajou-se no
movimento como b-boy, fundando o grupo Reforços Breakers; mais tarde, conhecido como rapper Kaballa,
formou o Grupo ‘Álibi’, com seu irmão Jamaika. Em 2002, converteu-se à religião evangélica, adotou o apelido
‘Rivas’ e começou a desenvolver a vertente do rap gospel. Fez carreira solo, lançou o disco “Valorizando a nossa
arte”, envolveu-se em diversos projetos sociais com escolas e centros de internação e, atualmente, tem uma
empresa de Produção Cultural e Promoção de Eventos, em que atua, juntamente com sua esposa, Jane (que já foi
e sempre esteve presente na cena hip hop da Ceilândia) e seu filho Ravel, que também é rapper.
No Instagram, podem ser encontrados e contatados nos perfis: @ rivas.graffiti /@rivas.oficial / @rivaseravel ou
por meio do projeto que desenvolvem atualmente, nas escolas públicas do distrito Federal, no perfil
@rapensandonasescolas- Mestre de Cerimôniao rapperconhecido como Kaballa até 2002, quando se converteu à
religião evangélica e passou a adotar apenas o apelido ‘Rivas) que, atualmente, é conhecido apenas como Rivas,
atuando como grafiteiro, como mestre de cerimônia (Mc) e como rapper, ao lado de seu filho, Ravel;
241
com álbuns como ‘Cérebro Assassino’, fortemente influenciado pelo estilo musical
mais acústico do Grupo Câmbio Negro, e ‘A minha parte eu faço’, misturando o estilo
de rap gangsta com rap consciente. Em 1994, o grupo recebeu um prêmio concedido
pela rádio Metrô FM (São Paulo), na categoria ‘revelação do ano’ (RAFFA, 2007, p.
334). Rei fez diversas parceriais com o Dj Jamaika e com o Grupo Álibi, com
destaque para as músicas ‘Reino da Morte’, ‘Chaparral’, ‘Intro’ e ‘Lobo do Asfalto’,
sucessos nacionais. Em 2008, Rei converteu-se ao cristianismo e, em 2014, lança o
álbum ‘Ao Rei dos Reis, Jesus Cristo’, que marcou o início de uma nova fase de sua
carreira, como produtor musical, a frente do estúdio de gravação ‘Majestic
Fonográfica’, onde grava e produz suas próprias músicas e estabelece parcerias com
outros artistas e grupos, como o Donas da Rima, por exemplo. Além da produção
musical, o rapper também investe em projetos sociais – a frente da Associação de
Apoio e Ressocialização do Preso e seus Familiares – AARPF, realizando oficinas e
intervenções culturais, e projetos em escolas, como o Rap Hour e o Rapensando nas
escolas, com palestras contra bullying, crime, violência e drogas – e está se firmando
na área de confecção de bonés e camisetas da marca ‘Cirurgia Moral’. Sua página
oficial no Facebook é ‘Rei – Servo de Deus’;
i. Grupo de rap ‘Guind’Art 121’ (1994): formado por Daher e Markim, é um dos
grupos mais tradicionais de rap do Distrito Federal. Além dos shows e trabalhos
associados aos quatro elementos do movimento hip hop, o grupo promove, há mais de
duas décadas, ações sociais – como arrecadação de alimentos, roupas, livros, etc. e
projetos de prevenção à violência e ao uso de drogas e de reinserção social de jovens
com passagem pelo sistema prisional – nas regiões e comunidades socialmente
vulneráveis. O grupo também tem sua própria linha de produtos de vestuário e, em
2002, adquiriu a gravadora Discovery – um dos selos mais importantes da cena
musical do rap no Brasil –, passando a promover diversos artistas locais, com o
objetivo de renovar o cenário do hip hop no Distrito Federal (RAFFA, 2007; GDF,
2018);
j. Grupo de rap ‘Álibi’ (1995): criado quando Jamaika sai do Grupo Câmbio Negro e
se reúne com seu irmão, cujo nome artístico, à época, era Kabala. GOG e Rei também
já participaram do grupo, que lançou seu último álbum em 2001 – A posse nunca
morre – e se dissolveu no início de 2002, com a conversão de Jamaika131 e de Rivas à
religião evangélica;
k. Grupo de rap ‘Sobreviventes de Rua – SRD’ (1997): que já teve diversas
formações, reunindo nomes como Buda, Preto Beto, Rebeca Realleza (hoje em
carreira-solo) e Henrique EXP;
131
O Dj Jamaika, além de ter feito parte dos Grupos BSB Boys, Detrito Federal, Câmbio Negro e Álibi, também
realizou, paralelamente, diversos trabalhos em carreira independente, de 1998 aos dias atuais, tendo lançado
álbuns como ‘Utopia’ (1998); ‘Pá Doido Pirá’ (2000, produzido pela Warner Music), ‘Antídoto’ (2005, um
álbum totalmente gospel, em parceria com seu irmão, Rivas); ‘Álibi para Morte’ (2007), ‘Evangeloco’ (2008) e’
Fé em Deus’ (2012). Além disso, é conhecido por ter integrado o elenco do curta-documentário “Rap, O Canto
da Ceilândia” e do longa-metragem “Branco Sai, Preto Fica”, ambos dirigidos por Adirley Queiroz; por seu
programa de rádio e, ainda, por ser o Dj residente, há 16 anos, da Festa Makossa Baile Black, realizada em
Brasília desde 2002 (GDF, 2018). Jamaika também já atuou ao lado de sua filha, Saphira, que também é rapper,
cantora e compositora. No Instagram, podem ser encontrados nos perfis @djjamaikaoficial / @saphiraoficial
242
l. Grupo de Rap ‘Família PR15’ (1999): grupo formado a partir de um Projeto Social,
desenvolvido na Escola Classe 38, no setor P Norte da Ceilândia, intitulado ‘Oficina
de Rima’, que ensinou aos estudantes diversas linguagens do movimento hip hop.
Durante o projeto, integrantes de cinco grupos diferentes – Existência Negra,
Conscientes MC’s, Realidade Anônima, Predica Febril e Tropa de Elite) decidiram
unir-se, para montar uma posse com 15 integrantes. Buscam associar suas músicas a
valores éticos e morais associados ao movimento hip hop e seus trabalhos estão
voltados à promoção da capacidade de autoexpressão, reforço da autoestima,
promoção do exercício da cidadania e da diversidade, incentivo ao empreendedorismo
e de luta contra todos os tipos de discriminação (GDF, 2018). Possuem uma página no
Facebook – Família PR15 – e, no Instagram, pode ser encontrados no perfil
@familiapr15oficial;
m. Grupo de rap ‘Viela 17’ (1997): sob o comando do rapper Japão;
n. Grupo de dança ‘Periféricos no topo’: de rua (charme/breaking);
o. Grupo de rap/hip hop ‘Minas de Stylu’: Sol Nascente;
p. Grupo de rap ‘Marmitos’: formado por Wandin, Chocola e MJ;
q. Associação Cultural Menino da Ceilândia (1995);
r. Associação Cultural Grupo Atitude;
s. Associação Vila dos Sonhos;
t. Coletivo Elemento 5;
u. CeiCine: iniciativa que emerge durante a gravação de um videoclipe, com Adirley
Queirós e o Dj Jamaika e que nasce com o intuito de fazer um cinema que não é
Brasília, mas, sim, Ceilândia. Fazer cinema numa cidade que não tem cinema, criar
imagens que não são as imagens do Congresso ou das Asas e de a partir de outras
relações de produção – essencialmente coletiva (QUEIRÓS, 2013);
a. ACESSO – Associação cultural de Estudos Sociais e sustentabilidade
Organizada: fundada em 2009, a Associação está localizada na Ceilândia Norte e
utiliza a cultura hip hop como pilar, para a promoção da “assistência cultural e social
às minorias; difusão do conhecimento; combate à exclusão”, além de apresentações
artísticas, promoção da cidadania, realização de ações sociais, ambientais e culturais e
palestras em escolas, centros culturais e unidades de ressocialização de jovens em todo
o Distrito Federal;
b. Central Única de Favelas – CUFA/DF;
c. Coletivo Maria Perifa;
d. Coletivo Hands-up (2012): coletivo fundado por Carlos Eduardo Kon Zion, voltado à
dança urbana (estética voguing e cultura ballroom) e ao empoderamento LGBTQIA+
e. Casa Ipê (2015): espaço de cultura feminista voltado à realização de saraus e rodas de
conversa sobre perspectivas de vida, trocas afetivas e escuta;
a. Projeto DF Street;
b. Projeto Basquete de Rua;
c. Projeto Ação Periferia;
d. Projeto Voz Ativa;
e. Projeto Ruas Convida: é um projeto voltado à descentralização da cultura e
do entretenimento, por meio da promoção de shows com artistas nacionais e
locais, na Ceilândia. Até o final de 2019, havia realizado três edições, todas na
Praça do Cidadão. Todo o recurso arrecadado é revertido em intervenções
socioterritoriais;
i. 1ª Edição: em 06 de julho de 2018, aconteceu, na Praça do Cidadão, o
‘Ruas Convida Djonga’. O evento, cujos ingressos custavam R$20,00,
contou com a participação de Rebeca Realleza, rapper do Sol Nascente
(DF);
ii. 2ª Edição: em 10 de agosto de 2019, aconteceu o ‘Ruas Convida
Makossa Baile Black’, também na Praça do Cidadão, com participação
de Rebeca Realleza e diversos Djs locais e ingressos vendidos por R$
7,00 – R$ 30,00;
iii. 3ª Edição: em 11 de outubro de 2019, aconteceu o ‘Ruas Convida
Marina Peralta e BNegão Trio, na Praça do Cidadão, com participação
de DuoRoots.. Ingressos vendidos por R$7,00 a R$30,00;
iv. 4ª Edição: em 07 de dezembro de 2019 aconteceu, na Praça do
Cidadão, o ‘Ruas Convida Mc Carol – O Baile Funk’, com ingressos
vendidos por R$7,00 a 30,00;
f. Projeto PerifaTalks: diálogos periférico: é um projeto idealizado e realizado
pela R.U.A.S. e que consiste em ciclos de conferências, inspirado em
experiências como ‘TED Talks’ ou ‘USP Talks’, com o objetivo de reunir
fazedores de cultura, artistas, empreendedores periféricos, militantes,
pesquisadores, etc., e promover discussões e provocações acerca dos possíveis
caminhos a serem seguidos e os possíveis desafios dos territórios;
i. 1ª Edição: ocorreu em 06 de agosto de 2019, com a participação de
Luiz Carlos Valois, juiz titular da Vara de Execuções Penais do
Amazonas, mestre e doutor em Direito Penal e Criminologia pela USP
e pós-doutorando em criminologia pela Universitäit Hamburg. A
primeira edição do Perifa Talks teve como tema “A Guerra às drogas:
uma nova política de drogas e o encarceramento em massa”;
ii. 2ª Edição: ocorreu em 19 de setembro de 2019, com a participação da
Deputada Federal Áurea Carolina. Além de deputada, áurea Carolina é
educadora popular, cientista política e especialista em gênero. Na
conferência, Áurea abordou sua trajetória política e as experiências de
campanhas e mandatos coletivos, com destaque para a experiência da
‘Gabinetona’, na Câmara Federal;
iii. 3ª Edição: ocorreu em 25 de outubro de 2019, com a participação de
Boaventura de Sousa Santos e do rapper GOG;
244
i. Sala de Dança;
ii. Galeria Risofloras;
j. Teatro de Expressão;
k. CEI Dance Crew;
l. Coletivo DUCA – Departamento Urbano de Comunicação e Arte: trata-se
de um coletivo de Artes Visuais e Comunicação, formado por 12 jovens de
diferentes Regiões Administrativas do DF, muitos deles ex-alunos das oficinas
do Jovem de Expressão, contemplados pelo 2º Edital do LECria (JEX, 2018)
m. Projeto Teia Criativa;
n. Guia de Metodologias e Tecnologias sociais: guia do Jovem de Expressão
em 04 volumes. Disponível em: http://jovemdeexpressao.com.br/publicacoes/
GALERIA DE FOTOGRAFIAS
BATALHAS
PROJETOS SOCIOEDUCATIVOS
FOTOGRAFIAS 03 - Registros do projeto “Arte Urbana nas Escolas”, organizado por Rivas,
Ravel e Jane, em parceria com a Start Family Crew, no CEF 19 (Ceilândia/DF).