Familia e Individualizacao
Familia e Individualizacao
Familia e Individualizacao
ISBN — 85-225-0322-2
1ª edição — 2000
CDD — 301.421
sumário
Apresentação
SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA DA VIDA PRIVADA NA EUROPA E NO BRASIL.
OS PARADOXOS DA MUDANÇA, 7
Clarice Ehlers Peixoto e Vincenzo Cicchelli
Prefácio
O NASCIMENTO DO “INDIVÍDUO INDIVIDUALIZADO” E SEUS EFEITOS
NA VIDA CONJUGAL E FAMILIAR, 13
François de Singly
PARTE I
SOCIALIZAÇÃO DOS JOVENS E SITUAÇÕES DE MARGINALIZAÇÃO
Capítulo 1
O individualismo na cultura sueca: a recuperação da dimensão
privada pela esfera pública, 23
Magdalena Jarvin
Capítulo 2
A família ambígua. O caso dos moradores dos subúrbios populares de Bordeaux, 33
Cyprien Avenel
Capítulo 3
Tempo familiar e tempo individual entre desempregados, 49
Cécile Beaujouan
PARTE II
RELAÇÕES ENTRE GERAÇÕES: INDIVIDUALIZAÇÃO E SOLIDARIEDADE FAMILIAR
Capítulo 4
Mulheres francesas de origem argelina. Conquista de autonomia e reelaboração
dos modelos familiares tradicionais, 63
Marnia Belhadj
Black
Capítulo 5
O que os objetos tecnológicos dizem sobre as relações familiares:
o caso dos aposentados, 79
Vincent Caradec
Capítulo 6
Avós e netos na França e no Brasil: a individualização das transmissões
afetivas e materiais, 95
Clarice Ehlers Peixoto
Capítulo 7
Individualismo e formas de apoio: entre lógica incondicional
e personalização da parceria intergeracional, 113
Vincenzo Cicchelli
PARTE III
FORMAS CONTEMPORÂNEAS DE PARENTESCO E DE AFINIDADE
Capítulo 8
A individualização no feminino, o casamento e o amor, 135
Anália Torres
Capítulo 9
Formas de expressão pessoais e conjugais através das conversas telefônicas, 157
Claire-Anne Boukaïa
Capítulo 10
O parentesco por aliança, um parentesco desejado? Formas e conteúdos das
relações entre noras e sogros na sociedade francesa contemporânea, 167
Clotilde Lemarchant
Capítulo 11
Irmãos na idade adulta: um laço de parentesco por afinidade?, 177
Jean-Hugues Déchaux
Black
apresentação
SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA DA
VIDA PRIVADA NA EUROPA E NO
BRASIL. OS PARADOXOS DA MUDANÇA
CLARICE EHLERS PEIXOTO E VINCENZO CICCHELLI
Q UA N D O N O S D E B R U Ç A M O S N O E S T U D O D A V I D A P R I VA D A na Europa
em geral e na França em particular, notamos quanto é difícil acompanhar a natureza
das mudanças em curso, visto que parecem contraditórias, paradoxais e mesmo in-
completas. As transformações, muitas vezes, cruzam as permanências e tomam cami-
nhos inesperados.
Em um primeiro nível, podemos constatar que ao longo do século XX, e princi-
palmente na sua segunda metade, as famílias mudaram muito na Europa, como
1
testemunham todos os indicadores clássicos da demografia. O funcionamento in-
terno das famílias mudou muito, abrindo um espaço maior para a expressão pessoal
e para a autonomia de cada um de seus membros. Um novo quadro de vida familiar
foi progressivamente sendo elaborado, seguindo modalidades diferentes em cada
país. Entretanto, resta uma base comum na medida em que ela ainda permite às
relações intrafamiliares sustentar a construção identitária das crianças e dos adultos.
A individualização crescente das sociedades ocidentais se inscreve na família na
forma de uma busca de uma sustentação identitária assegurada pelos próximos. De
todo modo, contrariamente às aparências de desordem, apontadas na variação dos
1
Roussel, 1987, 1992; Bégeot & Fernandez-Cordon, 1997.
Black
8 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Black
Clarice Ehlers Peixoto e Vincenzo Cicchelli 9
2
Sobre esse ponto ver Cicchelli-Pugeault & Cicchelli, 1998.
3
Ver resenha bibliográfica de Fukui, 1980.
Black
10 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
4
Comissão organizadora do colóquio internacional Famille et Individualisation; coordenação geral:
Benoît Ceroux e Marie-Laetitia des Robert; organização: Vincenzo Cicchelli, Karim Gacem, Alejandra
Gaviria, Christophe Giraud, Muriel Letrait, Isabelle Mallon, Elsa Ramos.
Black
Clarice Ehlers Peixoto e Vincenzo Cicchelli 11
Fukui, Lia. Estudos e pesquisas sobre família no Brasil. BIB (10):13-23, 1980.
Mesure, Sylvie & Renault, Alain. Alter Ego. Les paradoxes de l’identité démocratique, Paris, Aubier,
1999.
Roussel, Louis. La famille en Europe Occidentale: divergences et convergences. Population
(1), 1992, p. 133-152.
———. Les décennies de mutations démographiques (1965-1985) dans les pays
industrialisés. Population (3), 1965/1985. p. 429-462.
Taylor, Charles. De l’anthropologie philosophique à la politique de la reconaissance. Le
Débat (89), mars/avr. 1996.
Black
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prefácio
O NASCIMENTO DO “ INDIVÍDUO
INDIVIDUALIZADO ” E SEUS EFEITOS
NA VIDA CONJUGAL E FAMILIAR *
FRANÇOIS DE SINGLY
A sociologia e a antropologia não têm por objetivo único escrever sobre o mun-
do tal como ele é. Elas devem, também, propor uma interpretação. Esse princípio
epistemológico se aplica igualmente à sociologia da família: não podemos nos con-
tentar em observar as mudanças que essa instituição conheceu e conhece ao longo
da segunda metade do século XX – sobretudo nos países ocidentais: o decréscimo
dos casamentos, das famílias numerosas, o crescimento das concubinagens, dos
divórcios, das “famílias pequenas”, das famílias monoparentais, recompostas, do
trabalho assalariado das mulheres –, é também necessário delas dar conta através de
uma orientação teórica.1 Foi a partir dessa ótica que organizei, com a ajuda de um
grupo de jovens doutorandos ou doutores do Centre de Recherches sur les Liens
Sociaux (Centre National de la Recherche Scientifique et Université de Paris V), um
colóquio internacional sobre “Família e individualização”, em outubro de 1999,
na Sorbonne. Foi a partir dessa manifestação, que reuniu uma centena de sociólo-
gos durante três dias, que se elaborou este livro, uma iniciativa de Clarice Ehlers
*
Tradução de Clarice Ehlers Peixoto.
1
Singly, 2000a:185-97.
Black
14 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
2
Na França, na coleção Logiques Sociales de L’Harmattan, estão sendo publicados sob minha direção dois
tomos desse colóquio: Individualisation et liens intergénérationnels e l’individualisation de l’adulte au sein des
collectifs. Neste prefácio são citados apenas os textos que não fazem parte do presente volume.
3
Taylor, 1992.
4
Id., 1998.
5
Bobin, 1996.
François de Singly 15
6
Darmon, no prelo.
16 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
O «eu» reclama cada vez mais o primeiro papel. Isso obrigou os homens e as
mulheres a mudarem sua maneira de conceber a vida comum. Essa se tornou atraen-
te, pois permite o reconhecimento de uma pessoa enquanto pessoa. A relação amo-
rosa ou afetiva é vista como um espaço favorável à revelação progressiva da identida-
de pessoal,7 não devendo assim sufocar. Cada um busca a fórmula mágica que lhe
possibilite ser “livre junto”.8
Um romance9 de Katherine Pancol revela como uma jovem mulher transforma
sua identidade, tornando-se um “indivíduo individualizado”, segundo a expres-
são de Charles Taylor, e a contragolpe tem novas expectativas em face da vida a
dois. Nas gerações anteriores, com o modelo da mulher dona de casa, ela se reali-
za de uma forma mediada, através do sucesso do marido e dos filhos, para o qual
ela contribui na sombra.10 Hoje, muitas mulheres reivindicam um sucesso pessoal,
sem mediador. O amor, conjugal ou maternal, não justifica mais (ou, para ser mais
exato, justifica menos) o retraimento da mulher da cena social e pública. Ele não
deve mais transformar o laço de dependência afetiva em um elo de dependência
social e econômica. A mulher quer poder conciliar, ao mesmo tempo, a atenção
aos outros, ao companheiro e aos filhos, e o cuidado de si, sua vida conjugal,
parental e pessoal.
A história de Sophie contada por Katherine Pancol retraça o percurso que leva,
com dificuldades, à esperança de tal conciliação. É uma mulher jovem de 20 anos,
que só se define em relação aos seus próximos, às expectativas de sua mãe, de seus
amigos e dos homens que a atraem. Ela quer mudar, sem o conseguir logo na primei-
ra tentativa. Assim, ela fica noiva de um homem, Patrick, que a faz descobrir o
prazer físico e ela se deixa levar pelo charme da vida a dois. O período de encanta-
mento amoroso termina, ela se conscientiza do custo que essa vida implica para ela.
Ela sente uma defasagem entre sua vida e aquilo que quer ser. Ela decide viajar
sozinha de férias, antes de seu casamento, e encontra um outro homem, Antoine,
que a seduz. Ela decide viver com ele: “Eu me arrisco. Eu faço uma escolha: eu”. Mas
ela não consegue seguir esse programa, apesar dos conselhos de uma tia, uma mu-
lher livre que a aconselha a “não se deixar engolir”, a “se construir por dentro”. De
fato, Sophie recomeça novamente a ser “dócil, na forma de uma noivinha de grande
coração”. Eles vão viver juntos. Mas, ao mesmo tempo, ela tem dúvidas: “esta dona
7
Singly, 1996.
8
Id., 2000b.
9
Moi d’abord. Paris, Points, Seuil, 1980. O romance, como o filme, constitui uma referência importante para
o sociólogo, atento na descoberta do imaginário contemporâneo, interiorizado pelas mulheres e os
homens.
10
Singly, 1987.
François de Singly 17
de casa simples não era exatamente eu, esta mulher que girava em torno de seus
metros quadrados. Eu me sentia um pouco limitada no meu pequeno conforto imo-
biliário”. Ela salva as aparências, fazendo de conta até o dia em que decide “não
mais desempenhar esse papel e começa seus exercícios de autenticidade”. Seu amor
por Antoine diminui: “Era Antoine Nescafé, Antoine do final de mês difícil, Antoine
‘lavo-suas-meias-e-reclamo’. Estávamos muito acostumados”.
Um acontecimento transforma sua existência, ela recebe uma proposta para se
tornar jornalista, seu sonho. Sophie se entrega inteiramente ao trabalho. Ela decide
não acompanhar Antoine, que parte para os Estados Unidos. Ela lhe diz que a vida
que ele está lhe propondo não lhe convém: “Eu quero, sozinha, fazer coisas para
mim. Não quero existir atrás de meu marido, dos filhos. No momento, me tornar eu
mesma é ficar no jornal”. Antoine não entende. Sophie justifica dessa forma sua
decisão: “Não quero mais me deixar levar pelas coisas que me acontecem. Decidi
pôr ordem no meu interior: primeiro eu e estou feliz, pois tenho certeza de não me
enganar. Vou me prender aos meus fantasmas para extrair a parte de mim que me
fará entrar na realidade. Minha realidade. Até o fim. Desfazendo todas as conven-
ções, apostei tudo, como me ensinaram, e não agüento mais. Me equilibro sobre
pedaços que se esticam de toda forma, quero recuperá-los para me recolar”. Ela
compreende, enfim, que sua busca tem um nome: “Eu. Quero, sozinha, seguir a
viagem ao fundo da minha liberdade. Só, sem pai nem mãe, sem amante tutelar”.
Sophie prefere viver sozinha a viver acompanhada, uma vez que essa vida não
lhe permite ser ela mesma. No entanto, ela não recusa a forma de vida em comum,
simplesmente viver com alguém está condicionado a guardar sua independência.
Ela deseja uma vida a dois que permita também uma vida para si. Ela quer, depois de
proclamar “primeiro eu”, viver com alguém se isso não exigir muitos sacrifícios
pessoais. Sua demanda se transforma, tornando-se “eu também”, suscetível de ser
conjugada a uma demanda idêntica do parceiro. Uma das mulheres interrogadas
em La femme seule et le prince charmant,11 desenha o perfil do homem que sonha:
“Não quero um cara de passagem para uma noite de sexo selvagem e perigoso. Não
quero um marido. Nem uma presença episódica, simpática, terna, tampouco me
satisfaria. Quero um cara com o qual possa novamente trocar, falar, viver”. O casa-
mento e a vida só são rejeitados em troca de uma vida a dois que permita satisfazer
as necessidades relacionais mas respeite a autonomia de cada um.
Do lado da vida privada, o ideal é a alternância entre um “eu sozinho” e um “eu
com”:12 nem o fechamento egoísta sobre si nem a dedicação excessiva ao outro. De
certa maneira, um “entre-dois” que autorize a satisfação de si em certos momentos,
com momentos para atividades separadas e outros para compartilhar práticas co-
muns.
11
Kaufmann, 1999.
12
Singly, 2000b.
18 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
O PROCESSO DE INDIVIDUALIZAÇÃO
13
Chaland, no prelo.
14
Singly & Ramos, 2000:155-76.
15
Singly, 2000c.
16
Alguns jovens raramente podem entrar no circuito do trabalho profissional estável. Assim, são excluídos
não somente desse universo mas também de um certo modo de construção identitária. A modernidade
produz novas desigualdades.
François de Singly 19
R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Black
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CAPÍTULO 1
*
Tradução de Angela Xavier de Brito.
1
Ehn, 1990.
Black
24 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
autonomização do jovem começa desde a mais tenra idade. Com efeito, os princí-
pios de responsabilidade e de autonomia estão integrados na educação recebida
no meio familiar, bem como no ensino e na educação cívica ministrados no con-
texto escolar. Para compreender melhor os valores que regem esse espírito indivi-
dualista, abordaremos a definição de Estado-providência e da família moderna no
modelo cultural sueco.
Os elementos aqui apresentados se apóiam em pesquisa bibliográfica e em traba-
lho de campo de um ano em Estocolmo, capital da Suécia.
O apoio financeiro
Em uma sociedade na qual os recursos são desigualmente distribuídos, a liberdade
de ação dos indivíduos pode ser extremamente limitada. O papel de “Estado
remediador” (the caring State) é assim de prevenir e de regulamentar tais injustiças.
Essa visão contribui para esclarecer os princípios de redistribuição e os conflitos
objetivos entre os grupos: reconhece uma certa diminuição da liberdade de ação
individual (não dispor da totalidade de sua renda) em prol da satisfação das necessi-
dades primárias dos indivíduos que se encontram em uma situação de escassez. Dessa
forma, a idéia fundamental de uma política de bem-estar (welfare) é que a redistribui-
ção das riquezas não pode ser obtida nem através de uma regulação do mercado, nem
pela contribuição voluntária dos indivíduos privilegiados. A redistribuição das rique-
zas reveste-se assim de uma obrigação, ainda que a maioria a considere legítima.2
Na Suécia, um grande número das alocações é atribuído às famílias cuja renda é
considerada insuficiente (alocações para as crianças, moradia, viagens). Essa ajuda
financeira tem como objetivo contribuir para a economia familiar durante os estudos
secundários dos jovens, o que elimina a responsabilidade de mantê-los, uma vez
terminada a escolaridade obrigatória. A busca de liberdade na escolha da atividade
profissional ulterior foi concretizada pela decisão política de oferecer uma formação
de base geral, que pode ser prolongada através dos estudos superiores e de cursos
para adultos. Assim, o ensino é gratuito e todo estudante recebe bolsas de estudo,
sem que a atribuição dessa ajuda financeira seja baseada em critérios sociais. Os
estudantes podem igualmente obter empréstimos a taxas muito interessantes. Tais
medidas visam à supressão dos obstáculos materiais à formação, aplicando-se essen-
2
Czaplicka, 1993.
Black
Magdalena Jarvin 25
cialmente àqueles indivíduos cujos pais não dispõem mais de recursos econômicos
para mantê-los.
Nesse ponto, pode-se observar uma primeira invasão da esfera familiar pela
esfera social. Com efeito, inúmeros suecos lutam contra sua dependência dos pa-
rentes próximos, situação que o Estado-providência busca igualmente suprimir.
Os parentes próximos nem sempre podem estar presentes cada vez que um indi-
víduo atravessa uma fase difícil; somente as instituições têm condições de aportar
os mesmos cuidados para todos, em nome do princípio da igualdade.3
Nas situações de dificuldades financeiras, por exemplo, alguns indivíduos pre-
ferem não recorrer aos seus pais:
Não me sinto bem quando peço a meus pais um empréstimo para o verão, mesmo se
vou reembolsá-los no início do ano; só faço isso quando a necessidade é realmente
imperiosa (Daniel, 25 anos).
Eu tinha 14 anos quando meus pais se separaram e foi ao mesmo tempo, ou talvez por
causa disso, que me revoltei e busquei minha independência. Creio que perdi o respei-
to por eles e também a confiança quando se divorciaram e não respeitava mais sua
autoridade. No entanto, a independência tem várias facetas: a gente decide sozinho
mas deve também assumir mais responsabilidades. Talvez tenha sido eu mesmo quem
colocou muitas exigências. Mas é preciso realmente que seja algo muito importante
para que eu solicite a ajuda de meus pais (Markus, 25 anos).
Esses dois trechos de entrevista ilustram bem a idéia de que, para alguns jo-
vens, o fato de ter de recorrer à ajuda familiar é percebido como uma “derrota”
pessoal, como uma falta de responsabilidade e de autonomia.
Aqui, é necessário ressaltar uma noção fundamental à cultura sueca, ou seja, o
fato de que ela se funda em uma ideologia centrada na noção de indivíduo. Annick
Sjögren (1993), etnóloga francesa que trabalha há uns 30 anos na Suécia, fez vários
estudos sobre as diferenças culturais; ela descreve a noção de ideologia centrada no
indivíduo da seguinte maneira: “Em uma ideologia centrada no indivíduo, a fron-
teira da integridade pessoal é traçada ao redor de cada indivíduo. Ele se torna assim
a unidade primária do grupo. Essa ideologia existe raramente em estado puro em
uma cultura. Cada mentalidade – quer dizer, as estruturas de normas e de pensa-
mento que são internalizadas através do tempo nas instituições e nos esquemas de
ação – inclui tendências ao mesmo tempo individualistas e grupais”.
3
Sjögren, 1993.
Black
26 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
O estímulo à independência
Na cultura sueca, a idéia de integridade pessoal constitui um elemento funda-
mental da vida pública e da vida privada. Ela pode ser definida da seguinte ma-
neira: o direito inviolável de ser seu próprio juiz. “Personal integrity is the feeling
of being a human being in its totality, and with definite limits”.5
Quando estudamos a educação dada às crianças suecas, esses princípios de inte-
gridade pessoal são encontrados em fatos precisos. Assim, existe uma política cons-
ciente que tem por objetivo reforçar o sentimento de integridade pessoal. Por exem-
plo, no nível familiar, uma criança de mais de 12 anos tem o direito de escolher se
quer viver com o pai ou com a mãe, em caso de divórcio. Na esfera escolar, podemos
observar o direito dos alunos a assistir às reuniões de pais e mestres na escola. Além
disso, os pátios de recreio geralmente não são rodeados de grades. Uma professora
primária, entrevistada por Annick Sjögren (1990), explicou que tinha o hábito de
levar seus alunos até os limites do pátio, dizendo-lhes que ali havia uma fronteira
invisível que não se devia ultrapassar. Essa prática ilustra bem o encorajamento
dado às crianças no sentido de desenvolverem um sentimento de responsabilidade.
Considera-se que elas nem sempre podem esperar que os adultos as ajudem, ne-
nhum limite sensível é imposto e devem aprender a criar seus próprios limites.
Ao crescer, a criança já integrou essas noções de responsabilidade e de autonomia
através da educação familiar e do ensino transmitido pela escola. No entanto, esse
espírito individualista pode afastar a família. Léonie Bernardini-Sjöstedt, citada por
Annick Sjögren (1993), escrevia já no princípio do século que, na Suécia, não se
consideram as crianças como pertencendo à família, mas é o Estado que detém a
responsabilidade última por elas. Se os pais não são considerados convenientes, as
crianças podem lhes ser retiradas, o que os franceses da época julgavam inaceitável.
4
Sjögren, 1993.
5
Ibid.
Black
Magdalena Jarvin 27
Ainda hoje os municípios6 assumem cada vez mais a responsabilidade das crian-
ças, das pessoas idosas e dos doentes, tendência que encoraja cada membro da famí-
lia a desfrutar de uma maior independência. Assim, todo adulto deve responsabili-
zar-se por si mesmo da maneira mais cabal, tanto econômica quanto moralmente.7
Voltando à problemática do ensino, cada criança é, para o sistema sueco, um
indivíduo dotado de direitos e uma pessoa responsável. Os pontos levantados no
Programa Escolar do Primário em 1980 lançam luz sobre os objetivos da educação
nacional: a criança deve ser educada como um cidadão responsável que, através do
desenvolvimento de suas capacidades pessoais, possa participar plenamente do de-
senvolvimento da sociedade. A família e o lar são apenas ajudas, mas não constitu-
em finalidades em si mesmas e estão colocados no mesmo nível que a escola. A
especificidade de cada indivíduo deve ser respeitada, o que subentende o respeito
ao outro, para que cada um possa se desenvolver como indivíduo. Além disso, a
escola deve zelar pela herança cultural da criança. O termo “família” não é nem
citado. Ao contrário, é o desenvolvimento do indivíduo e da coletividade que deve
ser estimulado. E se o lar não pode trazer os elementos necessários a esse desenvol-
vimento, uma lei de assistência social sugere que a criança deve morar em um outro
lugar que lhe dê melhores condições.8 Aqui trata-se bem da integridade pessoal da
criança.
D EFINIÇÃO DA FAMÍLIA
Vimos que a esfera pública se encarrega dos indivíduos com o objetivo de torná-los
independentes do grupo familiar. A questão que se coloca então é saber qual o papel
exercido pela família na vida do indivíduo e, particularmente, na vida da criança.
6
N. do T.: no original, a palavra utilizada é “commune”, cuja tradução literal seria “comuna”. No entanto,
na língua portuguesa, a idéia de uma unidade territorial semelhante encontra mais eco na noção de
município.
7
Sjögren, 1990.
8
Id., 1993.
9
Dahlström, 1993.
Black
28 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Black
Magdalena Jarvin 29
vida.10 Isso presume, por outro lado, que cada indivíduo seja considerado igual ao
outro e a noção de hierarquia tem uma significação menor, como já havíamos
constatado.
Para ilustrar o sentimento de culpa na cultura sueca, tomemos o exemplo da
atitude dos indivíduos diante do fato de dirigir embriagado. Quando se pergunta a
um sueco se ele dirigiria depois de beber álcool, a resposta é sistematicamente
negativa. A razão pela qual ninguém dirigiria depois de ter tomado vinho durante
um jantar, por exemplo, é o risco de provocar um acidente. Mas tal risco não se
refere ao próprio chofer, mas antes a eventuais passageiros, um outro chofer ou um
pedestre: “Eu jamais dirigiria se estivesse bêbada, porque jamais poderia viver com
a morte de outra pessoa na consciência” (Tova, 25 anos). Isso não significa, no
entanto, que uma pessoa de uma outra cultura não tenha problemas de consciência
em uma situação similar, mas que as respostas dadas durante as entrevistas na Sué-
cia eram fortemente marcadas pelo sentimento de culpa. Esse exemplo mostra até
que ponto a mentalidade sueca é impregnada pelos valores de responsabilidade
individual diante da coletividade.
Assim, a idéia subjacente à cultura sueca é que a criança vai, mais tarde, assumir
“seu lugar na coletividade” e, enquanto esperam tornar-se adultos e integrar a
autodisciplina, os jovens suecos apresentam um problema de comportamento em
sociedade. Apesar da evidência do princípio de autonomização e de responsabilização
das crianças com relação à casa paterna e à geração de adultos, o paradoxo dessa
liberação é reconhecido e discutido. A busca de independência das crianças contri-
bui para a existência de problemas de disciplina, torna difícil a integração das
normas adultas, influi no desejo precoce de fundar um lar e conduz, de maneira
geral, a uma fraca solidariedade entre gerações.11
10
Sjögren, 1990.
11
Daun, 1994.
Black
30 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Nós quatro somos uma família muito unida, eu conheço muito bem meus pais e suas
reações. Não somos o tipo de família que se encontra para comer todas as noites, mas
nos falamos com uma relativa freqüência, talvez duas ou três vezes por semana. Nós
não nos vemos muito, mas, de qualquer maneira, tenho a impressão de que somos bem
próximos (Elisabet, 25 anos).
A gente se vê sobretudo quando há um jantar de família, pelo menos uma vez a cada 15
dias. Mas a gente também pode se encontrar por razões práticas, se devo ajudá-los a
fazer qualquer coisa ou pegar o carro emprestado (Mans, 22 anos).
Ontem à noite, a gente estava justamente falando, entre amigos, do grau de implicação
dos pais em nossas vidas, até que ponto devíamos informá-los do que a gente faz. Eles
perguntam coisas mas a gente sempre pode escolher o que quer contar a eles. Acho que
meus pais têm uma idéia bastante correta do que faço, porque eu quis que as coisas se
passassem dessa maneira (Andreas, 26 anos).
12
Dahlström, 1993.
Black
Magdalena Jarvin 31
C ONCLUSÃO
R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Cederblad, M. Barnets första krets. In: Aronsson, Karin (red.). Barn i tid och rum. Stockholm,
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Czaplicka, M. Vägen till självförsörjning. Om ungdomars skolgang och inträde i arbetslivet.
In: Ungdomar i skilda sfärer. Stockholm, Brutus Östlings, 1993. (FUS-Rapport, 5.) [O cami-
nho para a independência. Da escolaridade dos jovens à entrada na vida ativa. In: Jovens
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Dahlström, E. Individ och kollektiv i ideologi, socialisation och vardag. In: Sverige, vardag
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Daun, A. Svensk mentalitet. Ett jämförande perspektiv. Stockholm, Rabén Prisma, 1994. [A menta-
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Black
32 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
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———. Integrity and honour; the limit to compromise for Swedes and Mediterranean
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1990.
———. Här går gränsen. Om integritet och kulturella mönster i Sverige och Medelhavsområdet.
Stockholm, Arena, 1993. [Até aqui mas não muito além. Integridade e variações culturais na
Suécia e na região mediterrânea.]
Black
CAPÍTULO 2
A P R I N C I PA L Q U E S T Ã O A B O R D A D A N E S T E T E X T O refere-se ao estatuto da
família nos subúrbios classificados como “difíceis”, na medida em que, nesse con-
texto, ela constitui uma dimensão essencial do cotidiano.1 Essa interrogação nasce
da constatação de que a sociedade francesa veicula, de maneira bastante geral, uma
visão negativa dos habitantes dos grandes conjuntos populares: a de que a crise se
centra na figura genérica da exclusão. A visibilidade dessas pessoas resume-se ao
acúmulo de problemas que apresentam: desemprego, desestruturação familiar, aban-
dono parental, incivilidades, anomia etc. No entanto, a marginalidade é a pior
maneira de definir os moradores desses bairros. Qualquer que seja a diversidade dos
percursos ou das situações, eles estão, com efeito, amplamente integrados aos cânones
do modelo cultural dominante das classes médias, apesar de estarem sempre subme-
tidos a formas de rejeição. Tanto o estilo de vida almejado quanto as imagens de si
são modelados por normas similares, dominadas pelo investimento na esfera priva-
da, pela preocupação consigo mesmo e pela busca da autonomia. Eles sonham com
*
Tradução de Angela Xavier de Brito.
1
Apóio-me aqui no estudo de Avenel (1999) sobre um bairro ZFU (zona franca urbana) situado na periferia
da aglomeração de Bordeaux. O termo “zona franca urbana” define os bairros desfavorecidos que são objeto
de uma intervenção específica do Estado e das coletividades territoriais, a exemplo da política urbana e social.
Black
34 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
uma vida “banal” (seria ordinária, simples?), apesar de a escassez de recursos tornar tal
projeto bastante incerto e de o estigma transmitido pelo bairro não permitir uma
vida normal. Desse ponto de vista, o investimento na esfera privada familiar não é
apenas o “negativo” da integração, mas constitui-se igualmente em um ponto de
apoio essencial para a construção de si mesmo, ordenado pelo valor organizador do
reconhecimento pessoal. O princípio da individualidade traduz a exigência moral
dos atores. Ele indica ainda a constituição de uma norma social de autonomia como
modo de ação coerente no seio de uma sociedade na qual comportar-se como “indi-
víduo” significa ser autor de sua própria vida.2 Mas aqueles que aspiram à felicidade
privada de uma família, a uma vida profissional estável, ao sucesso da vida pessoal
são, ao mesmo tempo, excluídos pelo desemprego estrutural, pela segregação social
e pelos estigmas. Essas pessoas que se abriram inteiramente ao mundo e se encon-
tram diante de portas fechadas são simultaneamente absorvidas e rejeitadas pela
sociedade. Por um lado, os moradores aderem e aspiram ao modelo cultural da
sociedade de massa, no centro da qual se encontram as classes médias, cujas normas
e valores eles partilham; por outro lado, situados nos limites inferiores das classes de
renda, a privação econômica os impede de realizar ou satisfazer essas aspirações,
tornando-os dominados pela angústia obsessiva do fracasso.
As camadas populares do subúrbio vivem o conflito dessa experiência dual entre as
condições de vida e as aspirações culturais. A família está, precisamente, no coração
dessa situação paradoxal e carrega tais contradições. Ela se desenha, assim, de forma
ambígua entre dois princípios de orientação opostos. De um lado, a esfera familiar
privada é um ponto de apoio essencial que preserva uma imagem aceitável e o lugar no
qual se pode ainda exercer algum poder. Mas, de outro, ela marca também uma linha
de ruptura na qual se está o tempo todo ameaçado de fracassar. Desse modo, a família
torna-se ambígua: ela não é somente “desafiliação”, mas também reafiliação, ponto de
apoio e linha de ruptura, objeto de proteção e ainda o lugar de reclusão.
Após explorar as duas lógicas contraditórias que caracterizam essa experiência e
o conseqüente sentimento de ambigüidade, interroga-se sobre a natureza dessa
individualização submetida aos mecanismos do desemprego e da precariedade.
Os fundamentos
Nos bairros populares fortemente estigmatizados, a família é o campo de um
mecanismo central de demarcação no qual os indivíduos vivem através de relações
de diferenciação auto-alimentadas. Nenhum deles deseja assimilar-se ao seu meio,
2
Ehrenberg, 1995.
Black
Cyprien Avenel 35
estabelecendo uma distância do vizinho mais próximo, no qual ele vê o sinal de sua
própria infelicidade e do declínio coletivo.3 A família é o centro de uma clivagem
que separa drasticamente a esfera privada da habitação, em torno da qual se erigem
verdadeiras barricadas afetivas, e o espaço público do bairro, percebido como hostil
ou até mesmo perigoso. A esfera privada, definida como o campo fechado das rela-
ções íntimas, deve ser preservada, contrapondo-se ao espaço público do bairro,
percebido como facilmente invasor. Na medida do possível, os contatos exteriores
não devem sobrepor-se aos limites do lar. A vida privada se opõe à vida pública.4
A família permanece como o espaço privilegiado das relações de felicidade ínti-
ma. Ela constitui não apenas o suporte essencial da estabilidade afetiva, mas também
o lugar que permite resistir à decadência. Nela, os indivíduos se definem “positiva-
mente” como pessoas, enquanto o bairro os remete a uma imagem negativa. É na
esfera privada, sobretudo através do mundo do consumo que inclui a televisão e os
belos objetos de decoração, que os moradores “praticam” seu “pertencimento”5 ao
mundo social, defendem sua identidade e se afiliam ao modelo das classes médias.
Se o bairro é apresentado como o lugar da ausência, a esfera privada é concebida
como um lugar de presença permanente. Os apartamentos são cuidadosamente
mantidos e tanto quanto possível embelezados e decorados com detalhes e marcas
pessoais. A escassez de recursos não impede que eles sejam com freqüência repintados
ou redecorados, enquanto o espaço público do bairro parece relegado ao abandono.
Pouco importam os meios de que se dispõe, a morada é sempre individualizada e é
freqüentemente o lugar onde se pode fazer uma pequena cena teatral. Desligados
pelo estigma que os coloca do “lado ruim” da existência, assim os moradores se
“unem” do lado bom, no interior da casa, pois sabe-se que a aquisição de objetos
materiais serve de suporte aos discursos de distinção, suscita invejas, alimenta fofo-
cas e veicula uma lógica de demarcação. Na medida em que o sentimento dominan-
te é o de não viverem no lugar onde legitimamente deveriam, a distância social que
os separa do meio ambiente se reduz e sobretudo, como mostrou Schwartz (1990),
verifica-se praticamente sua “permeabilidade ao desejo” no seio daquilo que consti-
tui um verdadeiro “santuário familiar”. A afirmação da adesão aos valores e ao modo
de vida das classes médias é aí tanto mais forte e explícita quanto ela é desmentida de
maneira permanente pelo contexto imediato.
O recuo para dentro da esfera privada não deve assim ser apenas apreendido de
maneira negativa. Ele o é apenas parcialmente, na medida em que traduz uma atitude
voluntária e geral de privatização da existência. “A única coisa à qual eu me apego é
a família”, diz a maior parte dos moradores. Ela funciona como um mundo em si
2
Dubet, 1997.
3
Ainda que essa lógica não proíba a formação de relações de vizinhança e de ajuda mútua, que são tecidas
mais segundo afinidades eletivas do que segundo um registro comunitário (Avenel, 1997).
4
N. do T.: tradução literal do termo francês appartenance, para o qual não há tradução exata em português.
Black
36 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
6
A separação entre as esferas pública e privada, ou antes, a emergência da esfera privada como uma esfera
autônoma, é o resultado de uma longa história de diferenciação (Cicchelli-Pugeault & Cicchelli, 1998).
7
Kaufmann, 1992; Roussel, 1989.
8
Singly, 1987 e 1996.
9
Id., 1996.
10
Essa lei, votada em dezembro de 1988, visa a garantir a cada cidadão uma renda mínima de existência:
“Toda pessoa que, em razão de sua condição física ou mental, da conjuntura econômica ou da situação de
emprego, se veja impossibilitada de trabalhar tem o direito de se ver outorgar pela coletividade meios
adequados à sua subsistência”. O teto da alocação difere segundo a composição da unidade familiar e do
número de dependentes. Em 1o de janeiro de 2000, o montante da RMI era de 2.552F para as pessoas que
vivem sozinhas, 3.828F para os casais sem filhos, 4.594F para os casais com um filho. Por fim, essa lei vincula
o pagamento da alocação à assinatura de um “contrato individual” cuja finalidade é envolver o beneficiário
em um processo de inserção social ou profissional.
Black
Cyprien Avenel 37
11
Pode-se verificar estatisticamente tal fato. Uma parte dos questionários aplicados na pesquisa do Instituto
Nacional de Estatística e de Estudos Econômicos (Insee), intitulada “Étude des conditions de vie des
ménages” (1994), realizada em 10 bairros desfavorecidos, se referia aos acontecimentos marcantes da vida.
Três quartos das repostas se referiam à vida familiar: mais de metade aos nascimentos e mortes, 1/5 aos
reencontros ou separações, enquanto os acontecimentos relacionados ao trabalho (emprego ou demissão)
constituíam apenas 5% das citações (cf. Duprez; Leclerc-Olive & Pinet, 1996).
Black
38 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
12
N. do T.: o termo usado na versão francesa é galère, que faz referência a um trabalho de F. Dubet.
13
Martin, 1997; Lefaucheur, 1993.
14
Townsend, 1987.
Black
Cyprien Avenel 39
15
Kaufmann, 1994.
16
Singly, 1988.
17
Théry, 1993.
18
Gauléjac & Taboada-Leonetti, 1994.
Black
40 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
19
Esse termo foi cunhado por Castel (1991).
20
En marge de la ville..., 1997.
Black
Cyprien Avenel 41
Tal situação não é específica aos desempregados. Os casais que trabalham e que
dispõem de uma renda reduzida conseguem se manter, mas raramente têm certeza
de que sua situação será estabilizada. Eles se sentem ameaçados, vivem a angústia
latente da decadência e, se chegam a evitar o pior, não podem garantir o melhor.
Por exemplo, eles nunca tiram férias. Eles se definem como “trabalhadores pobres”
que mal conseguem, no final das contas, “se virar”. Certamente, eles se encontram
em uma situação social mais favorável que os seus vizinhos, quase sempre desempre-
gados, mas, ao situar-se apenas acima dessa linha, não podem, na verdade, se ofere-
cer os pequenos prazeres da vida. O investimento financeiro nos encargos mínimos
da moradia, do carro e das crianças engole o orçamento e elimina qualquer veleida-
de de consumo. Pode-se observar, com freqüência, casais fazendo compras com uma
máquina de calcular na mão, recorrendo a um grande número de lojas para assegu-
rar o consumo mais barato de bens. O desequilíbrio é evitado a tal preço. Esses
casais deixam entrever uma certa exasperação, pois os sacrifícios ascéticos nunca são
acompanhados de repouso e prazer. A sobrevivência econômica só é possível caso se
priorize a estabilidade interna do lar, mas ao preço da renúncia de qualquer outro
consumo. Igualmente, a experiência dos “trabalhadores pobres” define aqueles que
gastam tempo e energia em “apertar o cinto” e em “calcular tudo”, mas com um
sentimento agudo de privação, apesar de terem um emprego. Da mesma maneira
que os desempregados, eles se definem como “reduzidos” a viver o dia-a-dia em
função de um orçamento que restringe a existência e proíbe qualquer projeção séria
em direção ao futuro. No final das contas, a instalação durável dos casais em um
contexto de precariedade reintroduz a velha obrigação popular de uma vida funda-
da no presente e nos vemos compelidos a seguir o raciocínio de R. Castel (1995)
quando enfatiza claramente a emergência do que se pode chamar de “neopauperismo”.
É preciso então compreender que os moradores se sentem interiormente humi-
lhados ao não poderem participar da vida social “normal”, ao terem que consumir
apenas da maneira mais banal, ainda mais que, durante as interações ordinárias da
vida cotidiana, eles têm o sentimento de que os indivíduos em situação mais favorá-
vel ignoram a “realidade” de um modo de vida marcado pela precariedade. Ou seja,
que os “outros” nem imaginam que, nesses momentos difíceis, até mesmo a compra
de alguns selos não é garantida ou que tomar um ônibus para o outro lado da cidade
é ainda menos possível. A precariedade estabelece uma relação com o mundo social
secretamente dominada por um sentimento de humilhação e de injustiça porque o
desafogo, a liberdade e, finalmente, a arrogância dos demais estão muito distantes
de sua própria experiência. As famílias podem “se agarrar” e “resistir”, mas têm
sempre o sentimento de nunca poder viver “normalmente”. Na medida em que a
sociedade de consumo engendrou uma norma média de comportamento de referên-
cia, não poder se conformar a ela de forma corrente, ter de empregar diariamente
uma energia considerável para conseguir chegar ou tentar manter-se em um mínimo de
conformidade, provoca a sensação de ser rejeitado pelo modelo dominante. Resulta
Black
42 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
O sentimento de fracasso
Escolher seu bairro em razão de dificuldades financeiras é vivido menos como
conseqüência de um destino coletivo do que como a experiência de uma injustiça
sofrida pessoalmente. Cada indivíduo define a si mesmo como possuidor de dispo-
sitivos que pedem para realizar-se:
Eu sou como todo mundo. Tenho o direito de viver minha vida, de realizar meus dese-
jos, de reivindicar meus gostos, de mobilizar meus talentos, minhas aspirações e as
qualidades que me são próprias.
21
Lapeyronnie, 1996.
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Cyprien Avenel 43
22
Lahire (1995) faz uma crítica do tema da demissão parental enquanto mito.
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44 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
O medo do declínio
A autonomia progressiva das crianças na passagem para a adolescência deixa os
moradores ainda mais sozinhos. Não apenas esses indivíduos acumulam problemas
de emprego e de finanças que os colocam à margem das modalidades “normais” de
participação social, como eles se transformam em “pessoas isoladas” no próprio
bairro. Enquanto a maior parte dos moradores “se agarra” e mobiliza toda a sua
energia para manter uma situação mais ou menos estável, uma importante minoria
ainda mais afastada do mundo do trabalho se deixa “abandonar” e tende a se retirar
cada vez mais do contexto em que vive, na medida em que a lógica da “desafiliação”
é acompanhada de dificuldades psicológicas que se imbricam inextricavelmente aos
problemas econômicos e sociais. Quando a situação de desemprego se eterniza, ela
provoca o sentimento difuso de se afundar em uma vida que se afasta progressiva-
mente da normalidade, na qual a inatividade instala um tempo cotidiano sombrio.
O mundo se retrai em uma totalidade – a esfera privada – que se transforma em um
“gueto” pessoal, na medida em que ele se torna o avesso da sociabilidade. A famí-
lia fechada sobre si mesma passa a ser a causa e a conseqüência das escassas possi-
bilidades de lidar com o mundo social: ela se torna ambígua. Se alguém pode
chegar a gostar de sua prisão, deve-se constatar que, por vezes, ela pode transfor-
mar-se em um verdadeiro inferno, pois não se dispõe de recursos econômicos e
sociais. A imagem mórbida da experiência descrita pelos próprios atores é a de uma
forma de cilada, um sentimento de estar fora do jogo, de não mais poder nem
querer jogar. Os indivíduos se preocupam mais em se proteger do que em elaborar
novas relações. Privado de ação, o indivíduo tende a proibir-se qualquer compro-
misso, mesmo ao preço de um recuo permanente sobre si mesmo como um mal
menor. A retração sobre si toma a dimensão observável do aniquilamento pessoal.
Os indivíduos não se definem mais por seus projetos, mas por estarem à espera de
interações. A infelicidade privada assinala então a infelicidade absoluta, o fracasso
mais completo – um fracasso vivido como inteiramente pessoal.
Resta ainda que, inversamente, a maioria dos moradores se sente aprisionada ao
domicílio sem tomar uma decisão nesse sentido. Eles ainda “resistem”, na medida
em que aspiram a um futuro melhor. Os atores manifestam então a vontade de se
reconstruir enquanto fonte de autoridade no interior da esfera familiar.
Black
Cyprien Avenel 45
ção, que se traduz, no final das contas, em um recuo forçado para dentro da esfera
privada: uma experiência certamente privada, mas privada sobretudo pela priva-
ção. Tudo transcorre como se o bilhete de entrada na sociedade fosse comprado
em moeda forte. O cocooning23 – esse “envelope” familiar que isola do mundo
exterior, percebido como decepcionante ou até mesmo hostil, e que permite respi-
rar um ar de autenticidade onde se realiza a busca da intimidade – tem um preço
elevado. A vida privada só adquire conteúdo e sentido quando é uma vida separada
do trabalho ou que se opõe a uma situação profissional. Enquanto, para as classes
médias, a esfera privada é um ponto de apoio que permite fazer abortar do interior
os constrangimentos externos, ou que traz um aumento de satisfação e de proteção
para melhor afrontar ou dominar a vida pública, para os moradores dos subúrbios,
ela se transforma em uma retirada simultaneamente forçada e voluntária, em que
predomina a ambivalência. A ligação à família é sempre ameaçada pelo sentimento
de declínio, na medida em que a esfera privada não é senão o espelho do desem-
prego. A vida privada só é suportável quando se dispõe dos meios ou das relações
que permitam um afastamento. Presos nas piores dificuldades financeiras, os mora-
dores desses bairros são, de certa forma, os grandes “perdedores” de nossa socieda-
de. A exemplo do ator de E. Goffman (1991), criador de suas diversas “faces”, as
classes médias se definem pela capacidade de tirar proveito de uma pluralidade de
papéis sociais – os indivíduos são simultaneamente pais, amigos, vizinhos, colegas,
membros de uma associação – mediante o engajamento múltiplo mais ou menos
controlado de sua pessoa segundo os lugares e as situações. Já a identidade dos
moradores desses bairros tende a reduzir-se a uma “totalidade” única, a esfera priva-
da familiar, circunscrita pelo papel de pai ou de mãe, na qual a ligação com os filhos
é a medida de todas as funções. A capacidade de ampliar eficazmente a rede de
relações para além do círculo mais próximo fornece uma quantidade de recursos
indispensáveis, que não apenas dão acesso ao emprego, mas também preservam os
meios de se constituir enquanto indivíduo. Como diz F. de Singly, o mundo do “eu
íntimo” se opõe ao mundo do “eu estatutário” ao mesmo tempo em que se apóia
nele. O que distingue os moradores desses bairros não são as disposições subjetivas
quanto a esse modelo, mas os recursos econômicos e sociais para poder colocá-lo em
prática, sem o que a esfera de integração adquire um conteúdo essencialmente fami-
liar. Quando as raras relações sociais desaparecem, essa esfera se transforma em
solidão, por vezes bem profunda. A família é um ponto de apoio moral essencial,
mas constitui igualmente uma armadilha que traça a linha de oscilação. Ela não está
em crise, mas funciona tendo os “pés” na precariedade econômica e a “cabeça” no
universo cultural das classes médias.
É lícito assim perguntar se a única visão possível dessa experiência é a de ser
apenas um “simples” problema de desvio entre os recursos e as aspirações, no mo-
23
Cocooning – literalmente, “fechar-se em um casulo”; é o fechamento sobre a esfera familiar.
Black
46 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
mento em que a cultura integra e a economia exclui. Talvez seja preciso dar mais um
passo nessa análise. Tudo leva a crer que não se trata tão-somente de um conformis-
mo familiar frustrado, porém, de forma ainda mais profunda, de uma “tensão
identitária”, expressa pelos atores, entre sua experiência pessoal e as expectativas
sociais. Em outras palavras, o problema vivido remete menos à experiência da priva-
ção econômica que à privação da própria experiência. O problema é mais “o que eu
não sou” do que “o que eu não tenho”. A principal característica dos moradores
desses bairros é que eles vivem de maneira extremamente personalizada os proble-
mas da vida familiar e, de maneira mais geral, sua situação social. No final, eles são
levados a interiorizar a responsabilidade de seus problemas. A infelicidade privada
se identifica com o estigma e confirma o fracasso, mas um fracasso vivido de maneira
totalmente pessoal, como um “ódio” a si mesmo. De certa forma, estamos aqui dian-
te da parte maldita da individualização. Os indivíduos são projetados diante da
cena e devem colocar-se na frente, revelar-se e implicar-se pessoalmente. Eles são
“obrigados” a ser livres e autônomos em todos os níveis da estratificação social. Seja
na busca de um emprego, no trabalho escolar, na vida conjugal, na educação das
crianças, na implicação em um trabalho, na saúde, são incitados a assumir a plena
responsabilidade de si mesmos. Isso é simultaneamente um desejo pessoal e um
imperativo social.24 Esse processo é amplamente sustentado e reivindicado pelas
classes médias, ou seja, por aqueles que dispõem dos recursos econômicos e sociais
para levar a cabo esse ideal de vida. Mas esse modelo se transforma em uma história
trágica, ou até mesmo mórbida, para aqueles que não têm segurança de sua posição.
Ele suscita um temível sentimento de culpabilidade e de destruição da personalida-
de para quem se encontra em situação de fracasso. Os atores são invadidos por um
sentimento de desprezo. Eles parecem então menos dominados do exterior, pela
ausência de um emprego, que do “interior”, quanto à forma de se perceber. A esfera
privada se torna insidiosamente o próprio lugar da dominação na medida em que os
indivíduos, impossibilitados de identificar o responsável por sua situação, deixam
seus ressentimentos se diluir em direção a uma entidade neutra e impessoal, a socieda-
de global, ou seja: ao mesmo tempo, todo mundo e ninguém. Não há inimigo. No
máximo, o próprio ator se torna seu próprio “adversário” e o sentimento de estar
prisioneiro das quatro paredes de uma habitação se transforma no sentimento de
não mais ser ele mesmo, como se as “grades” da prisão se instalassem no interior
mesmo do indivíduo. O que é ainda mais importante: esses moradores se vêem
pelos olhos dos outros, pelos olhos das classes médias, desses atores que se dizem
integrados – ou seja, através das categorias do estigma e do fracasso, que eles acabam
por interiorizar. A relação consigo mesmo é determinada pela imagem negativa
enviada pelas classes médias. Os moradores experimentam então grandes dificulda-
des para se definir sem utilizar uma linguagem que os anule. Eles se vêem impossi-
24
Martuccelli, 1995.
Black
Cyprien Avenel 47
bilitados de falar da própria experiência sem tomar como suas as palavras e as ima-
gens de quem os destrói. Eles não são privados apenas de emprego, mas sobretudo
de definição autônoma de si mesmos. Acaso não haverá neste relato matéria sufici-
ente para pensar a relação de dominação social, não tanto do ponto de vista estrita-
mente econômico, mas antes do ponto de vista identitário?
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Black
CAPÍTULO 3
CÉCILE BEAUJOUAN
Um momento crítico
*
Tradução de Angela Xavier de Brito.
Black
50 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
grande parte das pesquisas acaba por apreender o desemprego em termos de carên-
cias e desvantagens, terminando por representar a pessoa desempregada como des-
tituída de tudo, como uma espécie de negativo do trabalhador assalariado.
Sem considerar o grupo formado pelas pessoas que procuram emprego como uma
população confrontada com experiências homogêneas, sejam quais forem as condi-
ções históricas e sociais dentro das quais evoluem,1 o desemprego parece, com efeito,
constituir hoje em dia, na França, um “momento crítico”, no sentido atribuído por
Anselm Strauss: o período de desemprego é comparado com freqüência a uma fase
da vida em que as pessoas colocam brutalmente em questão sua identidade. Na
tipologia proposta por Strauss (1992:101-2), esses choques biográficos podem ser
produzidos, por exemplo, quando certas instituições impõem a seus membros uma
prova ou um desafio, dando-lhes a impressão, nesse momento, de ter ou não supe-
rado uma etapa de sua vida ou de sua carreira, de ter evoluído, progredido, muda-
do: “Por exemplo, é preciso que toda aluna de enfermagem, no início de sua forma-
ção, atravesse a prova de ver um doente morrer em seus braços. Algumas pessoas
pensam que isso é um momento decisivo na concepção de si”. Nessa lógica, o cho-
que identitário que se segue ao desemprego derivaria do fracasso de uma prova,
forjada pelo conjunto da sociedade, que consiste em exercer uma função social
específica e colocar-se na pele do trabalhador assalariado.
1
Ao estudar a emergência da categoria “desemprego”, Robert Salais (1986) sublinhou como a cessação
involuntária das atividades pode remeter a significações subjetivas das mais diversas ordens.
2
“O trabalhador acabou sendo promovido a um estatuto que nem sempre desfrutou e (…) poderíamos
dizer que um tal estatuto se encontra hoje em dia situado na vertente do normal (lembremo-nos das “classes
perigosas”), senão na vertente moralizadora (desempregados = malandros). Paralelamente a essa constitui-
ção do “modelo”, é preciso perguntar se aqui não se poderia transpor a análise de Y. Barel sobre o papel
social desempenhado pela denominação dos desviantes” (Schehr, 1999:13).
3
N. do T.: esse é o nome atribuído às pessoas que recebem o RMI (renda mínima de inserção), uma pensão
do Estado francês para as pessoas desempregadas há muito tempo.
4
Em seu livro Le chômage en crise, D. Demazière mostra que as categorizações propostas pelos funcionários
da Agência Nacional do Emprego (Anpe) desempenham um papel fundamental na construção de formas
identitárias negociadas entre as atribuições institucionais e as reivindicações das pessoas desempregadas.
Black
Cécile Beaujouan 51
Foi porque não assumi a tempo a responsabilidade para com meus estudos (…) se
tivesse feito as coisas a tempo, como me aconselhavam, creio que não estaria passando
por estas dificuldades aqui e agora (Francine).
5
A maioria dos trechos citados provém de entrevistas realizadas na Agência Local do Emprego de
Aubervilliers.
Black
52 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
6
Singly, 1996
7
É evidente que o emprego não é o único fator que fornece referências temporais. Por exemplo, todas as
atividades relativas às crianças – levá-las à escola, ajudá-las a fazer os deveres de casa, brincar com elas –
permitem que os atores organizem seu cotidiano em torno de referências sociais estáveis.
Black
Cécile Beaujouan 53
mo, não se entediar, eis o que está em jogo no processo de adaptação à nova situação
para a pessoa em busca de emprego. Podemos, de fato, levantar a hipótese de que há
coincidência entre estruturação pessoal e estruturação temporal e que as condições de
uma recomposição identitária que revalorize o eu profissional dependem da nova
organização temporal. Empregamos a expressão “tempo liberado” em vez de “tempo
livre”, noção sujeita a discussão, pois, como mostram alguns trabalhos, é importante
lembrar que a atividade do desempregado é em grande parte dedicada à procura de
trabalho, uma busca cotidiana e rigorosa. Ainda que o desempregado esteja momen-
taneamente liberado do trabalho, não é por isso que o seu tempo é livre; ao contrário,
é um tempo preenchido com obrigações.8 Mas o fato de o desempregado despender
seu tempo principalmente na busca de emprego não impede que o tédio apareça.
Pois, se para ser eficaz, a pessoa em busca de emprego deve organizar seu tempo em
função dessa procura, isso não impede que essa estruturação temporal seja, antes de
mais nada, uma reestruturação que exige um esforço que nem todos podem ou dese-
jam realizar. Como escreve Dominique Schnapper (1994:136), “a desorganização do
tempo acarreta o tédio e, ao mesmo tempo, torna impossível se dispor do tempo para
empreender atividades organizadas”. Ou seja, é o conjunto da existência, em todas
as suas dimensões, que pode ser profundamente afetado pela ausência de marcos
temporais, pela vertigem de um tempo vazio. Para que a pessoa em busca de emprego
possa forjar uma identidade social adequada a seus objetivos, ela deve reencontrar
uma temporalidade própria à experiência da vida cotidiana, para além de sua
recorrência, para além da não-evidência do mundo.
8
Ver, por exemplo, Zarifian, 1996.
9
Na concepção de François de Singly (1996), nos casais contemporâneos, um dos cônjuges assume os traços
ideal-típicos de Pigmalião, por seu paciente trabalho de revelação da identidade íntima e da confirmação
do mundo de seu parceiro.
Black
54 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
10
Kaufmann, 1996:91.
Black
Cécile Beaujouan 55
Antes de mais nada, sua presença física a meu lado, isso já significa alguma coisa, já é
algo positivo (Mourad).
“me ajudar”, “me escutar”, “ela aceita minha situação”, “ela compreende minha vida”
(Maurice),
“ela compreendeu bem a situação”, “ela me compreendeu muito bem”, “ela compreen-
de, ora!”, “ela é compreensiva, francamente, ela é compreensiva, ela me ajuda na vida
cotidiana” (Mourad).
Eles vão perguntar a todo mundo, “bom, será que alguém aí sabe o que é, eu tenho
alguém que está procurando um emprego, será que ninguém aí conhece uma empresa
que esteja recrutando gente?” Eles estão sempre perguntando para mim (Maurice).
Ao lado dessa lógica de difusão de informações, existe uma forma que exige um
maior investimento pessoal, na medida em que mobiliza o corpo e a atenção de
Black
56 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
maneira mais concreta. Ela consiste, por exemplo, em comprar e ler jornais e selecio-
nar ofertas de empregos para o cônjuge. Da mesma forma, a proposição de novas
atividades, cujo objetivo é tornar mais agradável a vida para o cônjuge durante o
período de desemprego, pode ser percebida como integrando uma lógica de valida-
ção identitária. O parceiro procura fazer com que o cônjuge “esqueça o estresse da
vida” de desempregado, ocupando seu dia com atividades (jardinagem, bricolagem,
leitura, lavagem da louça, passeios etc.), opondo-se ao tédio que o ronda. Tais pro-
posições não se destinam apenas a reafirmar a identidade, mas também a permitir
que a pessoa à procura de emprego realize sua busca em melhores condições e
atravesse de maneira mais amena um momento considerado difícil.
Às vezes, a gente vai pra fora de casa, nós temos um jardinzinho. Ela tenta fazer com
que eu trabalhe para esquecer um pouco as preocupações do cotidiano. Ela tenta
fazer isso, o jardim, a bricolagem. Às vezes, ela me traz – há uma biblioteca justo ao
lado de casa –, ela me traz uns livros para passar o tempo, né? Às vezes, eu a ajudo na
cozinha. Ela me diz: “Ei, você bem que poderia me ajudar a fazer isso, a lavar a louça,
não é?” Ela tenta de todo o jeito (Mourad).
A lógica aplicada nos casos que acabamos de mencionar – tanto de apoio discre-
to quanto de ajuda ativa – é a da validação mais ou menos intensa do eu do desem-
pregado. No segundo caso, valoriza-se sobretudo a “identidade estatutária”. O argu-
mento de que um dos tipos de ajuda é “discreto” e o outro “ativo” não basta para
hierarquizá-los, para considerar que um deles produz mais efeitos do que o outro.
Na verdade, pode-se considerar que a primeira forma de apoio é tanto mais forte
quanto ela é tácita, reiterada, fundada no cotidiano e inscrita em um procedimento
tido como natural, que se dirige, por essência, ao “eu íntimo”.
Identificamos igualmente alguns casos em que o parceiro contesta a identidade
do cônjuge, na maior parte das vezes através de censuras. Da mesma maneira que no
caso do apoio discreto, essa questão das censuras é freqüentemente expressa de
maneira confusa. Provavelmente, alguns entrevistados não retêm de forma clara o
conteúdo de censuras às vezes difusas e sem objeto preciso. É igualmente possível
que não queiram lembrar-se com precisão daquilo que é doloroso ou, caso se lem-
brem, que não queiram comunicar facilmente o que pensam ser necessário dissimu-
lar. Constatamos que essas censuras abstratas são freqüentemente ligadas a um de-
sentendimento anterior ao desemprego:
o desemprego só fez exacerbar conflitos que já existiam, né, simplesmente dando argu-
mentos complementares ou suplementares (Salim).
Black
Cécile Beaujouan 57
“absurdo” ou de uma “besteira” (Salim). Por outro lado, as críticas dirigidas a alguns
desempregados parecem, pura e simplesmente, querer colocar em questão um certo
número de traços de sua identidade, com o objetivo de corrigi-los. Alguns parceiros
se entregam a uma verdadeira empresa de invalidação da personalidade do cônjuge,
como atestam as censuras particularmente duras que teve de suportar Elise, que diz
“ter-se enganado inteiramente”:
Eles te espezinharam, você tem uns horários de trabalho impossíveis (…) Você é sempre
boa demais, sempre de cara boa, sempre séria, sempre “bom, tá bem, deixa comigo”.
Tais censuras parecem afetar a essência dessa moça em busca de emprego, pois
ela mesma se define como “maníaca”, “atenta”, “ansiosa”, “conscienciosa”, e tantos
outros adjetivos que revelam uma grande aplicação, um verdadeiro desejo de dar o
melhor de si, que, para seu parceiro, parecem embebidos de muita ingenuidade, de
uma ignorância da dureza das relações humanas.
11
Schwartz, 1990:21.
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58 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
pela vida familiar e pela vida profissional. Para Olivier Schwartz, esse desejo mascu-
lino de retirada e de fuga se explica pela vontade de escapar à impotência social
inerente à heteronomia própria ao trabalho operário e ao controle da esposa sobre a
esfera doméstica. Contestamos, no entanto, a concepção de que os valores centrífu-
gos sejam essencialmente masculinos. As entrevistas que realizamos mostram, com
efeito, que as mulheres têm uma vontade de “pertencer-se” que as faz igualmente
buscar uma porta de saída com relação à dependência tanto no “lá fora” quanto no
“lá longe”, para retomar os termos utilizados por Schwartz.12 Já Caradec, em seu
livro sobre o casal aposentado, utiliza a expressão metaforicamente expressiva de
“recantos próprios” para designar a apropriação de “zonas individuais” de recom-
posição dentro do domicílio conjugal. O escritório exerce com freqüência, segundo
Schwartz, o papel de “recanto”. Retirar-se para o escritório permite contornar o
veredicto social e ultrapassar as barreiras levantadas pela sociedade: as atividades de
natureza intelectual aí desenvolvidas dão ao desempregado a sensação de dispor das
capacidades necessárias para reintegrar o mundo do trabalho, mesmo se este último
lhe negou momentaneamente a identidade profissional que ele acredita estar confir-
mada. O desejo de escapar ao controle do grupo familiar para se refugiar em “terri-
tórios pessoais”, escapando desse modo ao seu “eu estatutário” de “marido”, é as-
sim, paradoxalmente, apenas uma condição para a reconstituição de um outro “eu
estatutário”, o profissional. Fizemos aqui alusão ao processo de construção social da
autonomia pessoal, mas poderíamos igualmente evocar os momentos solitários, opostos
aos momentos conjugais, na medida em que a repartição do tempo está em jogo
tanto na recomposição identitária quanto na divisão do espaço. Os diversos momen-
tos de reconstituição pessoal tomam assim a forma de várias atividades de
“desenclausuramento”. Algumas delas são claramente orientadas para o lazer e a
evasão – como a prática de um esporte, as pescarias, o café, o jardim, os passeios –
que derivam de uma busca do “lá fora”, enquanto outras – como a leitura, a música,
a decoração, a bricolagem, os bordados – derivam antes do “além”. Nas entrevistas
que fizemos, é a prática de um esporte que melhor representa as primeiras: ela visa
a “fazer esquecer de tudo”, “respirar” (Mourad), “liberar o espírito” e se “esvaziar
fisicamente” (Salim), “relaxar” (Maurice). Já as atividades do segundo tipo, quando
aplicadas às coisas, dão provas de um controle sobre o mundo próximo, abrem a
possibilidade de criar um universo encantado graças ao exercício de um savoir-faire,
de habilidades e de um sentido quase demiúrgico de modelamento das matérias e
das formas. Isso é o que Olivier Schwartz (1990:416) chama de “uma poética dos
objetos”, quando designa o artesanato dos operários do Norte, coisa que encontra-
mos igualmente em certas atividades femininas, como a decoração ou os bordados.
Da mesma maneira, certas atividades domésticas podem paradoxalmente constituir
12
Schwartz, 1990:345. A dimensão “exterior (fora)” se refere ao movimento de saída do espaço das obriga-
ções (família e trabalho), enquanto a dimensão “além” traduz as fugas poéticas e os devaneios.
Black
Cécile Beaujouan 59
atividades para “desaferrolhar”, como, por exemplo, passar roupa. Elas permitem
um encontro consigo mesmo e, dessa forma, tornam-se atividades cujo traço domi-
nante é “si mesmo-eu”, nas quais o “eu íntimo” ultrapassa o “eu estatutário”, mesmo
quando se fundam sobre o “si mesmo-nós”,13 ou seja, quando sua realização atesta a
primazia da célula familiar como princípio de identificação.
D ESEJO
DE ESTAR JUNTO E NECESSIDADE DE ESTAR SÓ :
A NEGOCIAÇÃO DE UMA “ BOA DISTÂNCIA CONJUGAL ” 14
Era outra coisa, eu ficava contente de voltar pra casa. Antes, eu quase não via minha
mulher e meus filhos durante o dia. Eu saía de manhã cedinho sem vê-los e voltava bem
tarde, à noite. Eu só os via à noite. Evidentemente, a necessidade não era a mesma.
Agora, bem, agora, a necessidade não é a mesma porque eu estou (…) eu a vejo regular-
mente. Então, não há nenhuma satisfação particular quando eu a vejo de noite (Salim).
Já Laura sofre com a atmosfera que se instaura em sua casa ao cair da noite. Ela
tem dificuldade em viver a transição entre a calma da tarde, quando a casa lhe
pertence, e a agitação noturna, que lhe dá o sentimento de que lhe estão roubando
seu universo íntimo:
À noitinha, eu me refugio no meu quarto (…) então, de noite, as coisas se passam assim.
Há o banho, o jantar e, depois do jantar, quer dizer, há o jornal na televisão e todo
13
Singly, 1993:100.
14
Caradec, 1996:95.
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60 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
mundo discute tudo. Meu filho pequeno faz a maior bagunça, os maiores lhe dão uns
bons gritos, eles brigam. Meu marido também grita porque não consegue fazer com
que se calem. Pra mim, este é o momento mais penoso, na verdade, entre oito e nove
horas. Depois, é como as coisas se passam… Eu subo pra botar a mais velha para dormir,
depois o menorzinho, e então só desço quando eles se acalmaram. Meu marido fica
vendo televisão, assim que o jornal termina, vem o filme. Geralmente, meu filho maior
fica com ele. E daí, bom, há um momento em que meus nervos cedem um pouquinho
(…) Eu me refugio no meu quarto, pego um livro mas não consigo dormir não (…)
(Laura).
A situação de desemprego requer assim, na maior parte das vezes, um acordo entre
os cônjuges quanto a uma organização que satisfaça a ambos, no que se refere às duas
exigências contraditórias acima evocadas. Nesse contexto em que ao mesmo tempo
prevalecem a busca de autonomia, ou seja, a necessidade de encontrar momentos para
si mesmo, e o desejo de estar com o outro, desfrutando de sua afeição e apoio em um
momento crítico, o sucesso do esforço de recomposição de si e, conseqüentemente, a
possibilidade de voltar a trabalhar dependem da articulação entre a apropriação de
“zonas individuais” de reconstituição e momentos de vida em comum.
R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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parte II
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CAPÍTULO 4
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64 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
capitais, tanto para elas mesmas quanto para o conjunto do grupo familiar do qual
são originárias. Ao favorecer o acesso aos empregos qualificados, a obtenção de
diplomas reconhecidos contribui igualmente para uma evolução acelerada das men-
talidades no interior da célula familiar, através de uma elaboração dos modelos
familiares tradicionais.
Com efeito, esses modelos sofreram várias fases de transformação. A primeira
delas se deu com a imigração dos pais e a conseqüente passagem da família extensa
à família nuclear. Isso acarretou importantes mudanças, sobretudo para as mulheres,
que viram sua posição e seu papel reforçados e ampliados no próprio seio da famí-
lia. Mas essa passagem marca principalmente uma importante distância e uma rup-
tura com os modos de funcionamento familiar da sociedade de origem. A segunda
fase surgiu com o advento das jovens gerações socializadas e escolarizadas na Fran-
ça, que contribuem para a penetração dos valores franceses no seio da família.
Com as jovens, as famílias experimentam mudanças de maior amplitude, visto
que elas atingem os próprios fundamentos da organização familiar e do modo de
regulação das práticas e das relações familiares magrebinas. Desde muito cedo con-
frontadas com as obrigações familiares e domésticas, as jovens mulheres se mostram
mais dispostas do que os rapazes a questionar a ordem familiar tradicional. A fre-
qüência à escola assim como a participação em diferentes atividades sociais e profis-
sionais acentuam seu processo de aculturação e de distanciamento das normas e
concepções familiares.
As transformações que as jovens e suas estratégias provocam no seio das famílias
argelinas são muito importantes, mas dificilmente é possível medi-las ou quantificá-
las, uma vez que elas acontecem dentro do microcosmo familiar. As lutas domésti-
cas, aparentemente minúsculas mas altamente simbólicas e eficazes, que essas jovens
mulheres travam graças ao seu sucesso escolar permitem-lhes conquistar a autono-
mia, sem que por isso tenham que romper relações com pais aos quais são estreita-
mente ligadas. Através dessas disputas pela autonomia, a ordem familiar tradicional
é abalada e posta em questão. Essas transformações afetam todas as camadas sociais,
inclusive as mais modestas e, portanto, mais sujeitas a permanecerem tradicionais
justamente em razão das formas de reagrupamento que elas são obrigadas a suportar
no interior de suas moradias precárias.
Tudo isso pode ser constatado através das estratégias de um grupo de jovens
mulheres de origem argelina nascidas e socializadas na França, com uma trajetória
de sucesso escolar e profissional, cujos pais chegaram à França no início dos anos
1960 (antes da independência da Argélia) e se instalaram nas favelas de Nanterre.2
2
Este estudo foi realizado durante minha tese de doutorado (Belhadj, 1998), defendida em 30-11-1998, sob
a direção de Dominique Schnapper, diretora de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales de
Paris. Este trabalho se apóia em entrevistas biográficas realizadas com 90 jovens nascidas na França de pais
argelinos.
Black
Marnia Belhadj 65
Essa cidade operária do noroeste de Paris abrigava, naquela época, uma das maiores
favelas da região parisiense, habitada essencialmente por argelinos que, devido à
grave crise de habitação, não encontravam outros lugares onde morar. Os pais de
condições modestas eram, em sua grande maioria, operários não-qualificados e a
única fonte de renda de famílias com uma média de seis ou sete crianças. Tais
famílias viveram uns 10 anos nessas favelas antes que o governo as realojasse em
“cidades de trânsito”, construídas com material pré-fabricado e habitadas, em sua
maioria, por famílias de origem magrebina e portuguesa. Permaneceram nessas ci-
dades de trânsito durante uns 15 anos, antes de ter acesso a um apartamento em
HLM.3 Todas essas jovens de origem operária compartilharam da mesma experiên-
cia e suas trajetórias sociais e familiares são bastante semelhantes. A presença, no
conjunto pesquisado, de um grupo de controle constituído de 20 jovens do sexo
feminino de origem argelina cujas famílias têm uma trajetória diversa ilustra tanto a
diversidade das experiências e dos percursos migratórios, sociais e familiares no
seio da população argelina vivendo na França, quanto seus efeitos diferenciais sobre
os comportamentos individuais e familiares.
A maioria das estratégias praticadas por essas jovens converge para um mesmo
objetivo: manter uma coesão familiar que lhes permita conciliar uma participação
ativa na vida social e profissional e a ligação afetiva e simbólica que mantêm com
suas famílias de origem. As duas coisas não são necessariamente incompatíveis,
mas, para tanto, faz-se necessário um esforço de conciliação, na medida em que as
ações se desenrolam no interior de dois espaços diferentes – o espaço social e o
espaço familiar (onde as referências culturais não são as mesmas) – e se desenvol-
vem sob o efeito de um duplo processo de socialização familiar e de aculturação aos
valores da sociedade francesa. Embora a ação familiar não se oponha sistematica-
mente à da sociedade, e vice-versa, não há uma harmonia preestabelecida entre as
concepções e as práticas familiares e os valores transmitidos pelas outras instâncias
de socialização. Assim, as famílias podem ao mesmo tempo prolongar e comple-
mentar o papel dessas instâncias, enviando os filhos à escola e estimulando-os a
adquirir um estatuto social e profissional, enquanto moderam as influências exter-
nas que, segundo eles, podem exercer um papel nefasto sobre seus comportamen-
tos. No caso das jovens, isso se manifesta por uma vigilância e por uma restrição às
saídas de casa, o que reduz consideravelmente sua autonomia pessoal.
3
N. do T.: os HLMs (habitações de baixo aluguel) são conjuntos habitacionais de propriedade do governo
francês, alugados a pessoas de baixa renda.
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66 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
O apego à família
Esse apego se manifesta tanto em relação aos pais quanto em relação a certos
valores familiares transmitidos na infância. Trata-se de normas de comportamento,
de conduta ou de hábitos como o respeito às gerações mais velhas, a ajuda mútua e
a solidariedade familiares, a convivibilidade, a hospitalidade, as atitudes à mesa ou
ainda um conjunto de saberes e de crenças que constituem, para essas jovens, um
legado familiar.
Black
Marnia Belhadj 67
seus membros. Esta é ainda mais forte na medida em que a emigração separou os pais
do resto do grupo familiar e reforçou os laços em torno do casal e dos filhos. As
conseqüências disso, sobretudo para as populações imigrantes originárias da bacia do
Mediterrâneo, são a existência de formas específicas de vida familiar, a consolidação
dos laços familiares e uma ajuda mútua que os franceses do mesmo meio social fre-
qüentemente desconhecem. Mais do que um valor transmitido durante sucessivas
gerações, a solidariedade familiar representa, nesse contexto, um dever que se impõe
a todos. Essa concepção solidária da família foi bastante interiorizada pelas jovens
entrevistadas e faz parte integrante de seu modo de representação e de sua personali-
dade. O apoio familiar não é apenas uma obrigação, representa um princípio de vida
e um elemento fundador das relações familiares. A ligação com a família se confunde
assim com a solidariedade e a ajuda mútua familiares. Para essas jovens, ela se traduz
concretamente no apoio moral e financeiro que elas devem aos pais, irmãos e irmãs
em idade escolar ou desempregados, mas também na responsabilidade que assumem
pelas questões administrativas e pelo acompanhamento do processo de escolarização
dos membros da fratria. Essa ajuda mútua engloba ainda o acompanhamento e a
responsabilidade pelos pais enfermos ou idosos, cujo internamento em asilos de ve-
lhos não é nem mesmo evocado. Tal prática – comportamento corrente nas socieda-
des modernas mas ignorado em muitas sociedades não-ocidentais, sobretudo nos
países árabo-muçulmanos – é percebida pelas jovens entrevistadas como contrária aos
valores de solidariedade transmitidos por seus pais, que elas adotaram.
O forte apego à família implica igualmente a aceitação de certas regras de condu-
ta necessárias à manutenção dos laços familiares, como aquelas que regem as práticas
matrimoniais que proíbem as mulheres de se casarem com homens de origem não-
muçulmana ou ainda de deixar o lar sem se casarem. Tais normas, abordadas adian-
te mais detalhadamente, as obriga com freqüência a desenvolver estratégias visando
a conciliar as próprias aspirações com as de sua família.
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68 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
vulneráveis em suas tarefas cotidianas. Esse mês é igualmente o período de reconciliação, de meditação e
de reflexão sobre si mesmo. O término do jejum do Ramadã, decretado pelas autoridades religiosas, é
celebrado com uma festa chamada Aïd el fitr (festa da refeição) e com uma prece solene na mesquita.
5
Schnapper, 1980.
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Marnia Belhadj 69
6
Segundo a pesquisa Emprego 1990 do Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos sobre o Emprego
(Insee), a maioria das jovens entre 25 e 29 anos titulares de um emprego estável não mora mais com os pais.
Nessa faixa de idade, elas deixam a casa dos pais com mais freqüência do que os homens. A coabitação com
os pais é sobretudo observada entre os estudantes, os desempregados ou as pessoas em situação precária.
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70 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
7
O casamento dos homens muçulmanos com uma mulher não-muçulmana é, em geral, mais aceito e mais
bem tolerado, na medida em que ele não acarreta as mesmas conseqüências e que se considera que os
homens têm maior poder que as mulheres no sentido de propiciar a conversão do outro cônjuge.
8
Essa atitude não é específica das populações de origem muçulmana; ela é igualmente observada entre os
judeus praticantes, aos quais são proibidos os casamentos com pessoas de outra origem, em nome da
manutenção e da perpetuação da identidade judia (Schnapper, 1980:156-7).
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Marnia Belhadj 71
Como vimos, as estratégias elaboradas por esse grupo de jovens não consistem
apenas em manter a coesão familiar; mas constituem, igualmente, o espaço de uma
negociação permanente entre as normas que regem o funcionamento familiar e seus
pais, abonadores dessas normas. O que está em jogo no seio dessa dupla negociação
é, principalmente, a conquista da autonomia pessoal e a realização dos projetos de
vida, através da participação nas atividades sociais e da apropriação de todos os
espaços de liberdade possíveis. Esses projetos lhes permitem ampliar seu círculo de
relações e viver outras experiências, longe do olhar dos pais.
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72 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
O processo de individualização
A busca da autonomia é a resultante do processo de individualização e de
autonomização que teve início com a freqüência à escola e o grupo de pares e se
acentuou com o exercício de uma atividade profissional. O papel da socialização
escolar e profissional9 é freqüentemente determinante nos mecanismos de aculturação
e de distanciamento das normas e valores familiares. Enquanto a escola lhes permi-
tiu desenvolver um senso crítico e ampliar as perspectivas de futuro, o exercício de
uma atividade profissional deu-lhes os meios de serem autônomas financeiramente e
de elaborarem seus projetos de vida. O próprio fato de trabalhar e ter acesso a um
estatuto social representa, para essas jovens, uma maneira de se diferenciarem do
conjunto de mulheres que não trabalham fora, e particularmente da mãe, que por
falta de meios e de instrução teve de se consagrar inteiramente à família e às tarefas
domésticas. Elas exprimem assim a recusa a reproduzir os esquemas tradicionais.
Essa vontade participa igualmente do processo de individualização que é acompa-
nhado, nesse caso, de uma regulação interna e externa dos comportamentos, na
medida em que permite ao indivíduo emergir enquanto pessoa autônoma (sabendo-
se que tal autonomia é sempre relativa), integrada e diferenciada do grupo a que
pertence – no caso, a família.
9
A socialização pelo trabalho não se realiza unicamente através do aprendizado de valores profissionais e
de um savoir-faire específico, mas igualmente das interações e de todas as formas de sociabilidade existentes
no contexto profissional, do qual emergirão novas relações e uma outra abordagem da sociedade.
10
Se a atividade profissional constitui, para essas jovens, um meio de se realizar pelo exercício de uma
atividade autônoma e de adquirir estatuto social e independência financeira, no entanto ela responde
apenas parcialmente às suas necessidades de autonomia e de auto-afirmação.
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Marnia Belhadj 73
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74 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
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Marnia Belhadj 75
através dos apoios naturais que elas encontram nessa esfera e, enfim, sua própria
adesão à lógica familiar. Ao apostar na manutenção da coesão familiar, elas conse-
guem com freqüência conquistar uma margem de manobra e de liberdade para
renegociar as normas familiares. Além disso, sua participação nos encargos familia-
res lhes fornece, de fato, um lugar central e amplia seu papel no grupo familiar. Da
mesma forma, a cumplicidade que as une às irmãs e à mãe lhes permite inverter as
relações de força e dobrar mais facilmente a atitude do pai para aumentar sua auto-
nomia. Essa solidariedade familiar às vezes pode até mesmo ajudar algumas delas a
conquistar uma verdadeira independência, que se traduz na compra ou aluguel de
um apartamento situado nas proximidades do domicílio familiar.
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76 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Tal poder reside sobretudo nas possibilidades de negociação que as jovens criam,
ainda que sejam limitadas e que a outra parte não seja destituída de meios de ação.
E STRATÉGIAS
COMO CAUSA DE PROFUNDAS
TRANSFORMAÇÕES FAMILIARES
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Marnia Belhadj 77
R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Black
78 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
———. Un nanterre algérien. Terre de bidonvilles. Paris, Autrement, 1985. (Hors Série, 85.)
Schnapper, D. Juifs et israélites. Paris, Gallimard, 1980.
———. La France de l’integration; sociologie de la nation en 1990. Paris, Gallimard, 1991.
Strauss, Anselm. La trame de la négociation; sociologie de l’interaction. Paris, L’Harmattan, 1992.
Tribalat, Michele. Faire France; un enquête sur les immigrés et leurs enfants. Paris, La Découverte,
1995.
Black
CAPÍTULO 5
*
Tradução de Angela Xavier de Brito.
1
Sobre a apresentação de alguns desses trabalhos, ver Caradec, 1997.
Black
80 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
2
Segalen & Bromberger, 1996; Julien & Warnier, 1999.
3
Desjeux; Monjaret & Taponier, 1998.
4
Essa pesquisa foi realizada no contexto do programa “Evoluções tecnológicas, dinâmica das faixas etárias
e envelhecimento da população”, animada pela Missão Pesquisa da Direção de Pesquisa, de Estudos, da
Avaliação e de Estatísticas do Ministério do Emprego e da Solidariedade (MiRe-Drees) e a Caixa Nacional
de Seguro-Velhice (Cnav). Esse projeto compunha-se de duas pesquisas: uma bibliográfica (Caradec, 1997)
e outra empírica (Caradec, 2000).
5
Apoiamo-nos aqui em umas 20 entrevistas realizadas com aposentados sexagenários vivendo maritalmen-
te (os dois cônjuges foram entrevistados juntos), assim como em algumas entrevistas realizadas com
pessoas viúvas. O objetivo desse trabalho era ultrapassar o discurso clássico da “inadaptação” das pessoas
idosas às tecnologias – pouco satisfatório devido a seu nível de generalidade –, buscando mostrar os
diversos usos que as pessoas de mais de 60 anos fazem dos objetos tecnológicos.
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Vincent Caradec 81
6
Déchaux, 1998.
7
Pronovost, 1994.
8
Spigel, 1996.
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82 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
liares que a televisão torna conflituais” – mas contribui, também, para um aumento
da individualização – pois permite viver juntos mas separadamente.9
Além disso, os usos “individualistas” ou “familiaristas” de um aparelho técnico
podem variar com o tempo. Isso é o que aconteceu com o rádio, que foi um meio de
comunicação familiar no início e que, com a invenção do rádio portátil e a multipli-
cação dos receptores, tornou-se um aparelho individual.10 A televisão parece passar
atualmente por uma evolução comparável, como mostra a pesquisa européia sobre os
jovens e a televisão,11 que também indica que essa tendência é mais acentuada na
Inglaterra do que nos outros países europeus.12
As conseqüências da introdução de um aparelho técnico dependem igualmente
de que modo a família funciona. Segundo observou Heidrun Mollenkopf (1992,
1995), a posse de uma segunda televisão ou de um videocassete atenuava os conflitos
relativos à escolha dos programas somente entre as famílias que valorizavam a auto-
nomia dos seus membros. O mesmo não acontece nas famílias que privilegiam a
fusão e o estar juntos em volta da televisão: nesses casos, “a presença de uma segun-
da televisão ou de um videocassete, que poderia oferecer uma outra solução, não
contribui para a resolução desses conflitos”.
9
Baboulin; Gaudin & Mallein, 1983.
10
Flichy, 1997.
11
Réseaux, 1999.
12
Livingstone, 1999.
13
Caradec, 1994 e 1996.
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Vincent Caradec 83
14
Clément; Mantovani & Membrado, 1996.
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84 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
15
Clément; Montovani & Membrado, 1996.
16
O telealarme é um dispositivo de chamada de urgência constituído de uma pequena caixa que contém
um botão. A pessoa idosa deve pendurá-lo ao pescoço, como um colar, o que lhe permite alertar uma
central de escuta.
17
N. do E.: a alternativa seria encaminhar os idosos dependentes às inúmeras casas de repouso mantidas
pelo Estado e/ou pelas caixas de aposentadoria.
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Vincent Caradec 85
Enfim, bom, é porque eu ainda não me empenhei pra valer. Porque você está sempre
presente e daí eu digo: “Então você faz”. Mas quando eu estiver sozinha (seu marido vai
partir para a casa de campo durante três semanas), claro que eu vou fazê-lo.
18
O Minitel é um terminal de computador colocado à disposição dos casais por France Télécom (a companhia
telefônica francesa) mediante um aluguel módico que permite o acesso a bancos de dados (como o Guia
eletrônico, sua conta bancária ou ainda informações diversas). Lançado em 1983, o Minitel faz hoje em dia
parte do equipamento de 22% dos casais franceses.
19
Caradec, 1994.
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86 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Ao contrário, sobre o cartão de crédito, o sr. T13 declara que eles têm “um para
os dois. A gente poderia ter dois, mas não vale a pena. A gente está sempre juntos,
então…”.
Por fim, se a independência conjugal favorece as formas de uso individualizadas,
certos objetos tecnológicos a facilitam. Este é o caso do carro, quando a esposa sabe
dirigir e o utiliza para atividades exteriores que lhe são próprias; é também o caso do
forno de microondas, que aparece, em uma pesquisa realizada entre as mulheres
parisienses com aproximadamente 60 anos, como “o aparelho que mais seduz essa
geração. Com ele, as mulheres não têm mais que estar em casa para preparar a
refeição do marido”.20
20
Coutras & Lacascade, 1997. O uso do microondas é, no entanto, menos freqüente na nossa amostra:
raramente as atividades exteriores que as esposas realizam sem os maridos levam-nas a fazer a refeição fora
da casa.
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Vincent Caradec 87
21
Claisse & Rowe, 1993.
22
Livingstone, 1996.
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88 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
A verdade é que, se eles estão na escola, não podem ver, então eles gravam o que está
passando em um canal e me pedem pra gravar outra coisa em outro. Assim, eles têm
duas coisas a ver mais tarde, então eles assistem aqui, quando eles vêm. Eu tenho um
monte de cassetes.
Essa atividade parece interessar menos o sr. T5, que declara que nunca teria com-
prado videocassete se não lhe tivessem oferecido um como presente de aposentado-
ria; contrariamente à sua esposa, que pensa que ela teria se equipado “de qualquer
forma, para os meus netos”. Essa lógica “familiar” que conduz as avós ao uso do
videocassete não é incompatível com a lógica “técnica” masculina, pois certos avôs
ajudam as mulheres a cuidar dos netos.23 Daí surge, muitas vezes, uma sábia reparti-
ção das formas de uso, como a que anuncia o seguinte diálogo entre o sr. e a sra. T20:
Sra.: Quando o menino (5 anos de idade) vem, ele traz seus cassetes ou então sou eu
quem passo, né?
Sr.: Mas para gravar, é verdade que isso é mais técnico, daí sou eu quem me ocupo.
23
Attias-Donfut & Segalen, 1998.
24
Glaude & Singly, 1987, fig. 4.
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Vincent Caradec 89
Quando papai [ela se refere ao marido] esteve doente, eu não conseguia mexer em seus
aparelhos, (…) Veja só! Mas acabei por saber como fazer. Você vê, quando foi preciso
(…) A bomba dele, veja só! No hospital, as enfermeiras não sabiam usá-la e fui eu quem
lhes mostrou (…). No fundo, quando é preciso, eu posso fazer, ora.
Como nota A.-J. Berg (1997), o que caracteriza o uso feminino dos objetos técni-
cos é justamente a negação do seu caráter técnico: assim, ao longo da entrevista a
sra. TV11 parece descobrir, quando evoca o exemplo dos aparelhos médicos, que
ela não é tão incompetente quanto acreditava ser e até fazia com que acreditassem.
25
Taylor, 1998.
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90 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Então, há muito tempo atrás, (...) enfim, já quando eu era pequena, eu sonhava em tocar
piano. Bom, na minha época não se tocava piano com tanta facilidade como agora, além
disso, meus pais também não tinham meios de (...) eles não tinham como me pagar aulas
de piano ou de me comprar um piano. Então, quando eu me aposentei, a primeira coisa
foi comprar um teclado eletrônico.
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Vincent Caradec 91
Foi talvez por isso que eu quis pegar o trem sozinha novamente, porque eu nunca mais
tinha tomado um trem sozinha desde aquela data… há 40 anos. Daí, fui buscar minha
passagem no guichê e depois eu quis pegá-la na bilheteria automática (…) Isso é toda
uma história, é como o carro, tenho a impressão (…). Tem toda uma história por detrás
disso(…) sei lá, uma história de independência (…) de querer reencontrar uma (…) de
poder me virar sozinha, né?
O videocassete, isso sou eu, por mim mesma, que fui comprar (…) sem dizer nada a
ninguém. Então, eles ficaram espantados, e ainda mais quando comecei logo a programá-
lo. Laurent (seu filho mais jovem, que vive ainda com os pais) ficava nervoso me vendo
tocar em todos esses botõezinhos e falava: “não é possível, você não conhece nada”. Daí
eu disse: “não se preocupe!” E consegui fazer tudo direitinho, sim, sim.
R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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92 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
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Vincent Caradec 93
Moyal, A. The gendered use of the telephone: an Australian case study. Media, Culture and
Society, 14:51-72, 1992.
Pronovost, G. Médias: éléments pour l’étude de la formation des usages sociaux. Technologies
de l’Information et Société, 6(4):377-400, 1994.
Réseaux. Les jeunes et l’écran (92-93), 1999.
Segalen, M. & Bromberger, C. L’objet moderne: de la production sérielle à la diversité des
usages. Ethnologie Française, 26 (1):5-16, 1996.
Singly, F. de. Le soi, le couple et la famille. Paris, Nathan, 1996.
Spigel, L. La télévision dans le cercle de famille. Actes de la Recherche en Sciences Sociales
(113):40-55, 1996.
Taylor, C. Les sources du moi. Paris, Seuil, 1998.
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Untitled-1 22 11/12/2008, 09:39
CAPÍTULO 6
1
A la rencontre du petit paradis: une étude sur le rôle des espaces publics dans la sociabilité des retraités à
Paris et à Rio de Janeiro. Paris, EHESS, 1993. (Tese de Doutorado) Foi publicada esta versão reduzida:
Envelhecimento e imagem: entre França e Brasil. São Paulo, Annablume, 2000.
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96 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
2
Em geral, os asilos e a maioria das casas geriátricas subvencionadas pelo Estado/SUS apresentam péssimas
condições de habitação e alimentação e a maioria dos funcionários não é especializada.
3
Foyers-logement são instituições não-médicas, reservadas às pessoas independentes ou autônomas de mais
de 60 anos. Cada uma tem seu apartamento individual, equipado com sistema de alarme, telefone etc. Há
lavanderia coletiva, camareiras para limpar os apartamentos, acompanhante para fazer compras e restau-
rante para aqueles que não querem cozinhar. Liberdade para ir e vir e diversas atividades socioculturais são
oferecidas durante a semana.
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Clarice Ehlers Peixoto 97
A INDIVIDUALIZAÇÃO DO AFETO
4
Sessenta e sete anos para os homens e 72 anos para as mulheres.
5
Attias-Donfut & Segalen, 1998.
6
Termo usado em francês para caracterizar o estatuto dos avós — grands-parents.
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98 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Não, amo os três (...) O do meio é mais, assim, acessível e acabo gostando mais dele
porque é mais bonzinho. O mais velho é arredio. Mas eu gosto de todos da mesma
maneira (Iná, brasileira, 70 anos, dona de casa, três netos).
Mesmo afirmando amar todos os netos igualmente, no final das contas tem sem-
pre um que é mais querido do que os outros. Em geral, a eleição afetiva se constrói ao
longo da infância dos netos e raros são os avós que escolheram seu preferido a partir
da adolescência, fase da vida caracterizada por uma redefinição das relações familia-
res. A passagem dessa etapa à vida adulta é acompanhada de perto por muitos dos
avós entrevistados, uma vez que essa transição pode levar a uma aproximação ou a
uma perturbação nas relações entre essas duas gerações.
Assim, para Simone, que observa a passagem do tempo e as mudanças de com-
portamento de sua neta mais velha,
em função da idade, a atitude muda. Tenho uma neta que vai fazer 18 anos, um neto com
15 anos e uma neta com 8 anos, com cada um é diferente, nada é parecido (...). A de 18
anos mudou repentinamente de comportamento (...), conversava com ela sobre diversos
problemas com mais facilidade há dois anos, três anos atrás. Agora, é difícil até encontrá-
la, pois ela vive a sua liberdade (francesa, 75 anos, dama de companhia, três netos).
Raros são os avós que não reclamam de certo distanciamento afetivo quando os
netos entram na adolescência, apesar de alguns deles se declararem prestes a rom-
per a relação se seus jovens adolescentes não seguirem as normas familiares e sociais.
Jeanne, por exemplo, mesmo não conseguindo abordar certos temas com suas duas
netas jovens, vive cheia de preocupações:
Eu as mimo bastante, mas ai delas se derem um mau passo, corto tudo! Eu sou assim, se
elas consumirem drogas, coisas desse tipo, corto logo. Posso ajudá-las mas de outro
modo, sem dar nenhum dinheiro (...) boto logo no caminho certo, tento redirigir o tiro!
(72 anos, secretária do serviço público, duas netas).
7
Ver a respeito, Attias-Donfut & Segalen, 1998.
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Clarice Ehlers Peixoto 99
Deste lado do oceano Atlântico, uma situação semelhante é vivida por Lídia, que
criou os dois netos e, depois que eles entraram na adolescência, sofre com o distan-
ciamento e mesmo com o desprezo:
Eu adoro encontrá-los! Na hora em que os vejo, tenho uma grande alegria, mas 10 ou
15 minutos depois eu já me afasto deles, fico triste. Eles me xingam de vó antiquada, vó
chata. Eles nem vêm mais na minha casa, não me visitam. Não telefonam para saber
como vou indo (...) e quando me procuram é porque querem dinheiro. E, depois que
dou, me arrependo porque eles desaparecem (60 anos, comerciária, quatro netos).
Ela [neta de 13 anos] chegou aqui às 9 horas da noite. Abro a porta, ela estava com três
mochilas e me disse: “briguei com meu pai e Gilbert [irmão], e vim para cá e vou ficar
aqui”. Ela ficou três meses! (67 anos, aide ménagère,8 nove netos).
Black
100 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
A formação da preferência
As predileções não se criam espontaneamente. A eleição dos avós e dos netos
está ligada a diversos fatores que possuem significados diferentes entre si: a assi-
duidade dos encontros (visitas ou telefonemas) e o “cuidado” ou a “guarda” (tem-
porária ou definitiva) são os mais freqüentes. Intervêm igualmente a primogenitura,
as afinidades, as trocas de presentes e de serviços que traduzem a atenção para
com o outro e alimentam a afeição. Nas relações familiares verticais, é impossível
não se proceder a uma escolha mesmo quando não existem relações tensas ou
conflitos familiares. Assim, num primeiro momento, todos os avós expressam a
imparcialidade de seus sentimentos; diante da pergunta “a senhora mantém rela-
ções mais próximas com um ou outro dos seus netos?”, Odette responde imediata-
mente: “não, mas... quem sabe com Camille” (francesa, 84 anos, dona de casa,
quatro netos). No entanto, quando eles descrevem detalhadamente as relações que
mantêm com os netos, uma preferência sempre aparece. Entre os brasileiros entre-
vistados, observamos que existe uma tendência mais forte do que entre os franceses
para a escolha do neto(a) mais velho(a). Afora a primogenitura, essa predileção
não se manifesta logo nos primeiros contatos, ela progride ao longo do ciclo da
vida familiar e depende da evolução das relações que eles mantêm com os filhos,
assim como da distância geográfica que os separa dos netos. Guardar/cuidar ou
criar os netos é um fator que contribui de modo decisivo para a eleição, em geral
alimentada pela convivência. Um certo número de avós procura justificar sua esco-
lha pela freqüência dos encontros:
Não tenho preferência, mas um costume. Estou mais habituada com Alice e Pierre, eles
vão me fazer mais falta [quando crescerem]. Não é uma preferência afetiva (...) talvez
seja uma preferência, mas não tenho a impressão de ter uma preferência. Só que sinto
mais falta daqueles que vejo todo o tempo. Os outros também me fazem falta, mas já
estou habituada com esta falta e não ligo tanto (Germaine, 65 anos, funcionária da
companhia estatal de eletricidade, quatro netos e relações conflituosas com a nora, mãe
dos netos que vê esporadicamente).
Cuidar ou criar é uma tarefa das avós. Nem todas cuidam dos netos diariamente,
mas a maioria é solicitada a fazê-lo ocasionalmente. A natureza dessas duas situações
é diferente. A “guarda” ou o “cuidado” pode ser por um longo período, mas não é
contínua: diariamente, para os netos que ainda não vão à escola, ou nas quartas-
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Clarice Ehlers Peixoto 101
feiras,11 para aqueles em idade escolar, ou ainda nos finais de semana e/ou nas
férias12. Muitos dos avós entrevistados gostam de guardar/cuidar dos netos em uma
ou outra dessas situações, afirmando que elas se traduzem em alegres encontros. Em
compensação, existem aqueles que consideram a guarda dos netos uma obrigação,
uma verdadeira prestação de serviço; é o que sente Paulette quando fala do seu papel
de “babá”: “não sou uma avó ideal, confesso que cuido deles por dever, mas não é
meu prato preferido”. Diante da pergunta sobre o que faz com os netos nos dois dias
da semana em que os guarda, ela responde:
Nada, me esforço para que façam os deveres escolares e é difícil. Aliás, minha filha contra-
tou uma pessoa para ajudar o mais novo nos deveres. Então, vou à casa deles e fico lá até
que minha filha chegue e é só isso (francesa, 72 anos, funcionária pública, três netos).
Tanto no Brasil quanto na França, poucos foram os avós que nunca guardaram/
cuidaram dos netos. Mesmo entre os mais resistentes, alguns o fazem de tempos em
tempos para “quebrar um galho” para os filhos, outros ficam com os netos somente
alguns dias nas férias escolares. É o caso de Monique, avó de oito netos:
Digo que não quero concorrer com minhas filhas. Sou uma avó quebra-galho no caso de
algum problema, uma avó afetuosa e pronto-socorro carinhosa quando precisam, mas
não sou babá, isso não! (65 anos, dona de casa e bibliotecária voluntária).
11
As escolas maternais e primárias francesas não funcionam nas quarta-feiras. Isso obriga os pais que
trabalham a recorrer às baby-sitters, aos centros de recreação das prefeituras ou aos avós. Tudo depende das
suas possibilidades financeiras e das relações que mantêm com suas famílias.
12
Ver a respeito Attias-Donfut & Segalen, 1998.
13
Os processos judiciais são longos e seu custo nem sempre é acessível aos mais pobres. Além disso, há um
alto índice de trabalho informal, o que dificulta provar o recebimento de uma remuneração.
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102 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
possibilidade, para as que trabalham, de pagar uma babá para cuidar dos filhos
durante o dia. Enfim, são os avós que vêm em socorro de seus filhos(as), recomeçan-
do assim uma segunda carreira de pais. Não é por acaso que alguns dos brasileiros
entrevistados se dizem muito mais apegados aos netos que criaram. A participação
dos avós franceses no divórcio de seus filhos, principalmente das filhas, também se
traduz em um sentimento de forte afeição para com os netos que cuidaram, embora
a coabitação seja rara.14
Estas duas situações – cuidar e criar – permitem, assim, a construção de verdadei-
ros laços entre avós e netos. Elas favorecem também o desenvolvimento de múltiplas
trocas, em todos os domínios – presentinhos, conselhos, passeios, ajudas, confidên-
cias, entre outras. Se a relação é bem cuidada até a idade adulta, um forte vínculo se
estabelece entre essas duas gerações, senão as relações podem se dissipar e a freqüên-
cia dos encontros se tornar rara. De todo modo, em qualquer das situações, confor-
me os netos crescem, menos os avós são solicitados e mais as relações entre as gera-
ções mudam de natureza: eles não são mais os avós em disponibilidade permanente,
passando a ser solicitados para “quebrar um galho” financeiro ou para participar
das festas familiares, levando consigo presentes ou envelopes com um “dinheiri-
nho” para distribuir entre seus descendentes.
P ROXIMIDADES E DISTÂNCIAS
Grande parte dos estudos sobre as relações familiares considera que a proximidade
geográfica é um elemento fundamental para a solidariedade familiar e a criação de
laços afetivos, como já assinalado. Mas isso não é regra absoluta, uma vez que encon-
tramos situações bem diferenciadas. Por exemplo, alguns avós vivem próximos fisica-
mente de seus filhos e netos mas estão afetivamente distantes, como Conceição, que
vive com a filha divorciada e suas duas netas. Elas moram no subúrbio do Rio de
Janeiro e dividem o mesmo terreno, cada uma em sua casa. Encarregada de criar as
netas para que sua filha trabalhasse, hoje ela se queixa da indiferença das netas depois
que se tornaram jovens adultas:
Hoje, os jovens preferem os outros jovens. A avó é só quando precisam de alguma coisa,
aí elas vêm procurar a avó. Eu gostaria que elas viessem mais para perto de mim. Elas já
foram assim, mas hoje em dia não são. Só vêm mesmo quando precisam, vivemos uma
pra lá outra pra cá. A gente se encontra, se vê, se fala, mas não tem aquela amizade de
antes (69 anos, dona de casa, duas netas).
14
Attias-Donfut, no artigo “En France: corésidence et transmission patrimoniale” (1995), analisou os efeitos
do divórcio e da coabitação entre pais e filhos franceses.
Black
Clarice Ehlers Peixoto 103
Nunca é demais (…). Mesmo se os vejo com freqüência não é suficiente, porque é
maravilhoso vê-los crescer” (69 anos, empregado de uma agência de turismo, quatro
netos).
René (85 anos) não tem a mesma opinião. Ele mora com sua mulher em Paris, na
região administrativa 19, tem 11 netos, entre 32 e 18 anos, que moram na região
parisiense e/ou em cidades próximas. Seus encontros acontecem nas reuniões de
família ou em algumas visitas de tempos em tempos:
Eu acho que os vejo da forma certa, de maneira a manter sempre uma boa relação.
Porque quando a gente se vê muito, cada um com sua personalidade, então (…) É melhor
deixar, e quando eles aparecem é porque querem, é de bom coração.
15
Várias pesquisas realizadas na França sobre os níveis de consumo dos aposentados mostram que suas
despesas telefônicas são bem altas. Ver, por exemplo, as pesquisas do Credoc, de Pochet (1997), de Attias-
Donfut & Segalen (1998).
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104 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
duidade das conversas impede que os laços se afrouxem, ainda que falem mais fre-
qüentemente ao telefone com seus filhos e que as conversas telefônicas com os netos
sejam sempre mais rápidas. Este é o caso de Maria Helena, cujos netos não moram
no Rio:
As três meninas moram em São Paulo, as menores. A mais velha mora sozinha em
Brasília, ela é advogada, e tem o mais velho, que mora com os pais em Belém. Mas
estão sempre em contato comigo, eu vou muito lá, eles vêm aqui, telefonam toda
semana. Eles não deixam de telefonar (...) Se de repente dá saudade, eu vou me
embora (67 anos, cinco netos).
Para Ana José, avó de 10 netos, dois dos quais moram em Brasília e um vive em
Florianópolis, a distância que a separa deste último, seu neto preferido, não é uma
barreira para as visitas:
Eu morro de saudades dele. Eu estava muito apegada a ele [antes da filha morar em
Florianópolis] e agora a gente se telefona toda semana. Às vezes, eu vou para lá e fico
um mês. Mas agora eles vêm para o Natal e talvez eu volte com eles para passar uns dois
meses lá. Eu morro de saudades dele! (72 anos, dona de casa, viúva).
Os avós brasileiros fazem suas malas com mais freqüência que os avós franceses
para irem ao encontro dos netos, ainda que as distâncias sejam mais longas e que os
meios de transporte sejam mais precários e difíceis (em geral, viajam de ônibus).
Trata-se, evidentemente, de um “efeito de idade”,16 já que são majoritariamente
mais jovens do que os franceses. Além disso, são mais livres, uma vez que muitos
deles são viúvos. Mas há um outro elemento ainda mais importante que estimula os
avós brasileiros a viajarem: é o desejo de fortalecer o vínculo familiar com seus
descendentes e a certeza de que essa vontade é recíproca. Sendo a sociedade brasi-
leira hierarquizada e relacional, os laços familiares e as relações pessoais são valores
estruturantes. A coabitação entre gerações é valorizada pela troca que representa.
Mesmo efêmera, essa co-residência implica uma relação de proximidade e até de
intimidade – normalmente não nos hospedamos em casa de quem não somos próxi-
mos ou com quem mantemos relações tensas. Tal atitude já é um indicador de uma
eleição afetiva, e não é por acaso que Ana José viaja menos para Brasília do que para
Florianópolis, onde vive seu neto preferido.
16
“Efeito de idade”, variável composta da conjugação de três fatores: envelhecimento, posição no ciclo de vida
e duração da vida. O modelo de ciclo de vida tem sido desenvolvido há décadas em psicologia do desenvol-
vimento e é amplamente utilizado por outras áreas de conhecimento. Expressando a evolução dos compor-
tamentos, dele fazem parte três tempos interdependentes: efeito de idade, efeito de coorte ou de geração e
efeito de período. Como todos os modelos, ele tem seus limites e dificuldades (Attias-Donfut, 1992).
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Clarice Ehlers Peixoto 105
Quanto aos avós franceses, seus deslocamentos são comparativamente mais raros.
São relativamente freqüentes, se avós e netos moram perto; as médias e longas distân-
cias em geral são percorridas nas férias. Raros são aqueles que viajam fora do calendá-
rio escolar para ver os netos e, na representação dos franceses entrevistados, viver
junto durante as férias não tem o mesmo sentido de uma coabitação, embora o tempo
de convivência seja equivalente àquele dos avós brasileiros. Nas férias, os avós france-
ses viajam muitas vezes com seus netos ou os recebem em casa. Trata-se, portanto, de
uma visita prolongada na qual as desvantagens da vida cotidiana são menores, as
relações de intimidade mais tênues e o sentimento de desconforto ou de incômodo
está ausente. Assinalamos que no Brasil as viagens de férias não constituem um hábi-
to e nem são institucionalizadas como na França.17 São iniciativas individuais que
não têm caráter ritual ou regular. Isso porque nem sempre viajamos nas férias, as
distâncias são longas e os meios de transporte e hospedagem caros. Assim, o caráter
banal da palavra partir na França se opõe ao caráter excepcional da palavra viajar no
Brasil. De todo modo, tanto no Brasil como na França, os deslocamentos se fazem
em função da idade dos avós e do custo das viagens.
Nessas famílias multigeracionais, a proximidade afetiva entre avós e netos está
ligada à natureza da relação que os primeiros mantêm com seus filhos e respectivos
cônjuges. As relações não-conflituosas favorecem a formação de uma preferência por
tal ou qual neto que não são necessariamente filhos de seus filhos preferidos. Mas há
ainda aqueles, como Maria do Carmo, que se referem ao inesquecível sentimento de
se tornar avó:
A Adriana eu adoro, é uma maravilha! Foi ela quem me fez avó! [é a neta mais velha]
(70 anos, costureira, seis netos).
Gosto dos três. Só tem uma coisa: o primeiro é sempre o primeiro (Ludovino, 67 anos,
divorciado, desenhista, três netos).
17
Prendre des vacances, noção que designa não somente “tirar férias”, mas sobretudo “viajar de férias”. Na
sociedade francesa, prendre des vacances é um direito social de todo cidadão desde 1936 e, por isso, está
profundamente arraigado aos hábitos familiares. “Tirar férias” significa mudar de ares, fugir do cotidiano,
viajar. Impossível ficar no mesmo lugar, na mesma cidade. Assim, para as famílias que têm filhos menores
de 18 anos, o Estado põe à disposição colônias de férias espalhadas pelo país inteiro e a preços relativamen-
te reduzidos. Mas nem todos recorrem a essa estrutura, preferindo viajar em família. De fato, somente as
famílias em situação muito precária não viajam de férias, o que vem se tornando um “problema social”,
principalmente para os jovens, pois ficam desocupados nos seus bairros periféricos e quando retornam ao
trabalho ou às aulas têm de suportar os relatos dos colegas sobre suas aventuras de férias. Partir e voltar das
férias é sempre manchete nos jornais franceses.
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106 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
18
Não podemos esquecer que se trata de pessoas de origem popular, cujo patrimônio é reduzido.
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Clarice Ehlers Peixoto 107
Valores e saberes
A educação e a formação profissional dos netos constituem a maior preocupação
dos avós brasileiros e franceses. E, se isso corresponde ao que esperávamos encon-
trar nas famílias francesas, pois elas atribuem um valor enorme aos estudos, ficamos
surpresos com o fato de que os avós brasileiros também dão grande importância à
vida escolar dos netos. Alguns deles chegam mesmo a vender seu pequeno aparta-
mento ou objetos de valor para pagar os estudos dos netos.19 Na França,20 a ajuda
dos avós entrevistados se dá principalmente através da compra de livros, do paga-
mento de cursos suplementares e de atividades culturais, além de viagens e colônias
de férias. Em geral, aqueles que cuidam dos netos diariamente, após o horário da
escola, têm a tarefa de supervisionar os deveres escolares, mas isso se resume muitas
vezes no controle do tempo que as crianças dedicam à elaboração das tarefas escola-
res. Nas camadas populares, tanto no Brasil como na França, a maioria dos avós tem
um nível de instrução baixo, o que leva a uma grande defasagem entre seu nível de
estudos e o dos netos. Além disso, alguns deles consideram que educar é dever dos
pais: “compete aos pais, os avós não estão aí para os dirigir, isso não!” (Denise, 69
anos, francesa, secretária, dois netos). Isso não impede que a preocupação maior
seja com o futuro dos netos. Nessas horas de guarda, de visita ou nos telefonemas, o
principal assunto de conversa entre essas duas gerações é o estudo. Eles aproveitam
também para transmitir alguns valores morais e sociais (respeito aos outros, sobretu-
do aos mais velhos; honestidade; importância dos laços familiares; o valor do traba-
lho; as histórias de família...), pois muitos deles acham que os pais de hoje são
muito negligentes nessas questões:
Ela vem passar 15 dias aqui comigo, vou aproveitar para lhe inculcar melhores princí-
pios (...) é engraçado porque comigo tem coisas que ela gosta de conversar (Raymonde,
75 anos, dama de companhia).
19
Dado que a qualidade do ensino público brasileiro caiu muito com as reformas educacionais implantadas
durante a ditadura e com a ausência de uma política educacional nos governos democráticos que se
seguiram, as famílias que possuem melhores condições financeiras matriculam os filhos nas escolas priva-
das que oferecem melhor qualidade de ensino, mas que são extremamente caras.
20
Na França, o ensino é inteiramente gratuito (da escola maternal à universidade) e todos têm direito à
inscrição nas escolas do bairro. Os pais que não mantêm os filhos nas escolas perdem o direito às allocations
familiales.
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108 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
midade, uma vez que eles falam também de comportamento sexual: os(as)
primeiros(as) namorados(as), a contracepção e a prevenção contra a Aids, a virgin-
dade, que é ainda um valor cultural em certas camadas sociais brasileiras.21 O dis-
curso de Edith resume bem as representações da geração mais velha sobre a preser-
vação da virgindade até o casamento:
Minha neta está namorando, ela começou a namorar no colégio e o menino tem a
mesma idade dela. Então, eu sempre digo que ela deve se conservar para o casamento,
porque quando eu comecei a namorar o meu marido, eu tinha a mesma idade que ela
tem. Eu tinha 16 anos e ele 19; namoramos 10 anos e casamos direitinho. Então, eu
digo isso para ela porque eu acho isso muito importante para a mulher (78 anos,
operária, quatro netos).
alguns jovens pensam que não temos nada a lhes transmitir. Todos querem viver suas
próprias experiências, a experiência dos mais velhos não serve para nada... Mas eu acho
que é preciso manter um mínimo de tradição, senão a família desaparece!
21
Essa questão é analisada por Bozon & Heilborn, 1996.
22
Essas questões são analisadas por Attias-Donfut, 1992; Barros, 1997; e Muxel, 1996.
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Clarice Ehlers Peixoto 109
Vou deixar um santinho e atrás do santinho vou escrever um conselho para cada um.
Para cada neto vou deixar um conselho e quero fazer um testamento. Não tenho muita
coisa para deixar, só este apartamento onde moramos e uma casinha em Araruama, mas
o testamento é a última gentileza de uma pessoa. É como se fosse o seu último cartão de
visita (já citada, seis netos).
Tanto num país como no outro, os avós entrevistados consideram que as doações
e os empréstimos de dinheiro, ou mesmo os presentes caros (videocassete, computa-
dor, bicicleta etc.) solicitados pelos netos no aniversário e no Natal, constituem uma
herança dada em vida, uma vez que a soma despendida os transforma em presentes
memoráveis, embora não representem uma transmissão familiar. Vários são aqueles
que consideram não ter grande coisa para transmitir, nem objetos nem histórias de
família, pois acreditam que eles não interessam a ninguém. Guardam para si, até o
final da vida, suas histórias de infância pobre e seus objetos preferidos que não
encontram destinatários.
As transmissões se transformam em trocas, na medida em que os netos também
transmitem alguma coisa aos avós. Para além dos pequenos serviços, os avós dizem
encontrar nos mais jovens a “alegria de viver”, que lhes dá “força para continuar”,
aprendendo as “novidades da vida atual” e mantendo assim a “a cabeça jovem”. As
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110 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
avós brasileiras são mais abertas às mudanças da vida moderna do que seus cônjuges,
pois elas aprendem com os netos pequenos, e principalmente com as netas, a dan-
çar e a cantar os novos ritmos musicais (pagode, tchan!). Na França, as avós também
cantam com os netos pequeninos, mas raras são aquelas que o fazem com os adoles-
centes. Igualmente nos dois países, alguns avós aprendem informática e se associam
às locadoras de vídeo para estar mais próximos aos interesses dos netos e poder
acompanhá-los no seu crescimento, impedindo assim que o vínculo se desfaça.
C ONSIDERAÇÕES FINAIS
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Clarice Ehlers Peixoto 111
R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Untitled-1 22 11/12/2008, 09:39
CAPÍTULO 7
“Estranhamente, o que me agradou, entre outras coisas, nesta pequena carta (uma
pequena folha de papel de pequeno formato) é que ele (meu pai) não dizia uma palavra
da universidade, não me pedia para repensar minha decisão, não me censurava por ter-
me recusado a prosseguir meus estudos – em resumo, ele não me oferecia nenhum dos
blablablás próprios aos pais, como é o hábito, e era justamente isso que estava errado
de sua parte, no sentido de que era um sinal ainda mais grave de sua falta de preocupa-
ção comigo.”
DOSTOIEVSKI, L’ADOLESCENT
*
Tradução de Angela Xavier de Brito.
1
Cicchelli-Pugeault & Cicchelli, 1998.
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114 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
tornou o principal analisador do objeto “família” desde suas origens, traz desafios
teóricos de tal monta que, um século mais tarde, continuamos a refletir sobre os
instrumentos necessários à compreensão dos movimentos históricos considerados
freqüentemente antinômicos. Como conciliar a igualização dos estatutos dos indi-
víduos com a necessidade, ressentida por cada um deles, de atingir um reconheci-
mento de suas características pessoais?2 Será possível ser simultaneamente fiel a si
mesmo e compartilhar horizontes de senso comum, perseguir objetivos próprios
visando a construir, a preservar sua autonomia, e cultivar a preocupação com o
Outro?
2
Tal distinção remete, por um lado, ao pensamento do século das luzes e, por outro lado, ao romantismo
alemão. Por essa razão, Charles Taylor (1996) intitula a primeira dimensão de “individualismo igualitário”
e a segunda de “individualismo romântico”. Sendo ambas constitutivas da modernidade, devem, segundo
ele, ser pensadas conjuntamente.
3
Cicchelli, 1999. A responsabilidade de si mesmo e a preocupação para com o outro são “exigências
próprias ao ideal ocidental da pessoa moral” (Piron, 1996:123). Sobre a importância do eu moral esponta-
neamente preocupado com o outro e não indiferente ao seu sofrimento, ver Bauman (1993; 1995). Sobre o
papel exercido pelo capital humanitário na valorização das dimensões não-utilitárias da relação com o
outro, ver Singly, 1990.
4
N. do T.: propositalmente, não utilizei a expressão “estudos universitários”, pois a universidade não cobre
todo o campo dos estudos superiores na França.
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Vincenzo Cicchelli 115
tratará a maneira pela qual os pais seguem os estudos superiores4 de seus filhos.
Tomar por objeto os estudantes, população bastante dependente das famílias de
origem em termos de recursos, de bens e de serviços,5 permite mostrar que a
individualização de suas trajetórias biográficas6 – que inicia desde a adolescência
nos liceus e continua durante o ciclo de estudos superiores – não se reduz apenas
à longa busca por uma emancipação familiar que desembocaria na dissolução ine-
lutável do vínculo. Um dos principais fatores aqui em jogo se refere à conciliação
dos estudos com o desenvolvimento da vida extra-escolar, das relações de amiza-
de e sentimentais. Isso é caracterizado por duas dimensões que se encaixam. De
um lado, os jovens desejam escolher por si mesmos as modalidades de seu inves-
timento em um e/ou outro campo de experiências, escolha que é tanto mais
possível quanto mais eles dão provas de espírito de autonomia no trabalho esco-
lar. De outro, um bom desempenho nos estudos faz sentido quando se refere ao
tipo de apoio que os estudantes esperam e o que efetivamente receberam de seus
pais.7 O fato de um estudante investir mais em seus estudos do que em atividades
próprias da juventude (e vice-versa) é, com freqüência, visto como uma escolha
individual, como o resultado de um longo processo de aprendizagem da discipli-
na e da afiliação à instituição. Mas esse tríptico implica um quadro que não é
suficientemente posto em evidência na sociologia do mundo estudantil, ou seja, o
quadro das interações familiares. Essas formas individuais da relação com os estu-
dos devem ser lidas paralelamente aos processos que conduzem a um apoio, por
vezes solicitado, por vezes imposto, por vezes terapêutico, por vezes patológico.
Em resumo, a maneira pela qual os estudantes julgam satisfatória e pertinente a
ajuda recebida da parte dos pais – seja quando eles reivindicam abertamente suas
necessidades, seja quando eles as formulam ex post facto8 – só pode ser apreciada
quando se estabelecem ligações entre essas duas dimensões.
5
Eicher & Gruel, 1997.
6
Erlich, 1998.
7
Este estudo se apóia em um corpus de 45 entrevistas-piloto realizadas pelos estudantes de Deug (Diplôme
d’Études Supérieures Générales), que corresponde ao primeiro ciclo de estudos superiores (os dois
primeiros anos do curso universitário) de sociologia da Universidade de Paris V, no contexto do módulo
de métodos quantitativos animado por F. de Singly, P. Bidet, O. Martin, C. Pugeault e V. Cicchelli. A fim
de tirar o melhor partido da leitura dessas entrevistas, neutralizou-se uma variável parasita (o ramo de
estudos), o que permitiu compreender a relação com o investimento mais no sentido de uma experiência
produzida pelo cruzamento dos desejos expressos pelos indivíduos e pelas famílias do que como o
produto de variáveis externas clássicas – sintetizadas no ramo de estudos seguido pelo estudante. Por essa
razão, foram entrevistados estudantes universitários e alunos das classes preparatórias às disciplinas
científicas.
8
N. do T.: as expressões latinas e inglesas presentes neste texto são do autor.
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116 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
9
Lahire, 1997.
10
Denominamos ascetismo escolar as formas de superinvestimento dos estudantes em seu trabalho escolar,
típicas dos inscritos nas classes preparatórias para as Grandes Écoles, institutos altamente seletivos do
ensino superior francês, cujo acesso se dá por concurso, após um período de formação adquirida em classes
preparatórias específicas. Entre elas destacam-se a Escola Normal Superior, a Escola Politécnica e a Escola
Nacional de Administração.
11
Lahire, 1995.
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Vincenzo Cicchelli 117
do sistema, que aceitam ou rejeitam, eles podem controlar a natureza e o grau de seu
investimento. Ao contrário, os que vivem mal o ascetismo e a negligência, que os
adotaram porque não tinham outro jeito, sem uma verdadeira reconstrução identitária,
possuem pouco domínio das regras de funcionamento da instituição. Eles chegam a
verbalizar a regra, mas não a dominá-la. Heterônomos em seu trabalho, eles vivem
uma fase de desencantamento.
Pode mesmo acontecer que o estudante que não se ache capaz de se aplicar nos
estudos jogue a carta do desinvestimento, tentando conquistar uma outra autono-
mia, conseqüência do aprendizado das experiências de sua juventude e do afrouxa-
mento das obrigações ligadas à continuação dos estudos, id est, do imperativo do
sucesso. Neste segundo caso, os sentimentos de autonomia e de heteronomia são
compreendidos a partir da tentativa de estabelecer uma distância da definição insti-
tucional e/ou familiar dos estudos. Do ponto de vista do sistema, o indivíduo não
chega a se conformar, mas do ponto de vista do ator, o distanciamento permite
afastar-se da influência institucional.
A extensão desse quadro de análise às relações entre pais e filhos visa a mostrar
que a ponderação das duas dimensões da identidade estudantil compromete os
atores nessa associação entre gerações e os estudos superiores. Trata-se então de
analisar que meios os pais utilizam para responder às expectativas formuladas pelos
filhos, de maneira mais ou menos explícita, ajudando-os a viver melhor sua relação
com os estudos e sua vida não-escolar (ou, no caso contrário, negligenciando essa
tarefa). Os jovens respondem à lógica legislativa parental12 através de um duplo
apelo, solicitando simultaneamente que eles intervenham – e assim exerçam seu
dever de pais, lógica incondicional – e que eles interpretem suas aspirações profun-
das, respondendo positivamente a elas.13
Essa demanda paradoxal é bastante forte no grupo dos estudantes.14 Em seu dis-
curso, a família toma a aparência de um pano de fundo do qual emana o apoio. Ao
lado dos recursos fornecidos, discerníveis e quantificáveis, como os recursos monetá-
rios, os jovens podem recorrer a uma segunda ordem de meios fornecidos por seus
pais para garantir um bom prosseguimento dos estudos: com efeito, por suas atitudes
e comportamentos, os pais podem constituir-se em apoio importante aos olhos dos
12
Cicchelli, 1997a e 1997b.
13
Cicchelli, 1999.
14
E isso independentemente do fato de que são eles que escolhem seus estudos (Galland; Clémençon; Le
Galès & Oberti, 1995), de que o estatuto de estudante seja eminentemente temporário (Bourdieu & Passeron,
1964) e o processo de afiliação à instituição, ao quadro da interação, seja feito fora da família (Coulon, 1997).
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118 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
filhos, validando suas escolhas, confortando-os em seus propósitos. Essa dinâmica es-
barra, no entanto, em dois tipos de dificuldades que se articulam. Ela pressupõe que os
pais se esforcem em decodificar as expectativas dos filhos,15 dosando, ao mesmo tem-
po, seu apoio. Muito insistente, o apoio pode ser visto como uma ingerência; muito
frouxo, pode ser percebido como uma manifestação de indiferença. A práxis e a
hermenêutica parentais devem oscilar entre estes dois pólos: interpretar para intervir,
intervir para apoiar, eis o apelo, a espécie de double bind,16 que os jovens dirigem a seus
pais para que sua associação se torne vantajosa para o bom desempenho nos estudos.
F IGURAS DO APOIO
15
O advento da interpretação no seio da família é o resultado da ampliação do modelo psicológico à sociedade
em seu conjunto, de sua interiorização no espaço doméstico escrutado por peritos qualificados, incumbidos de
enunciar a boa definição da interação conjugal e parental (Castel, 1981; Berger & Berger, 1984; Singly, 1996).
16
Sobre o double bind, as injunções paradoxais, ver Watlawick, Helmick-Beavin & Jackson, 1972.
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Vincenzo Cicchelli 119
17
Sobre as queixas como um indicador da construção da identidade conjugal, ver Caradec, 1996.
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120 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
estudantes. O fato de que esse processo tenha sido claramente explicitado ou de que
ele tenha se instalado de maneira silenciosa, através da rotina dos hábitos, não altera
em nada sua apreciação. Sentir-se desobrigado das tarefas domésticas do cotidiano
torna-se um recurso essencial, pois permite estruturar o tempo dos esforços e da
distensão, sem embaraçá-los com interstícios inúteis. David presta muita atenção a
esse aspecto. Ele faz questão de precisar que a suspensão das tarefas domésticas é
temporária, que ela segue o calendário escolar, tanto mais que ele continua, apesar de
tudo, a arrumar seu quarto. Seus pais, diz ele, sempre o habituaram a se ocupar de
seu espaço privado e a tomar parte na vida da casa. Por essa razão, tal suspensão é
outorgada com uma finalidade instrumental:
De qualquer jeito, minha mãe diz com freqüência que fico enclausurado em meu quarto
porque tenho uma enorme quantidade de trabalho escolar (...) se eu tivesse mais tempo,
claro que daria uma mãozinha (...) Bem, é verdade que isso resolve meus problemas,
claro que é apreciável, se tivesse que me ocupar dos outros, seria impossível gerir a
situação (David, 18 anos).
Veja você, ela não me angustiava, ela não me dizia: “você tem que passar, senão vou ficar
doente”, isso não, eu teria me sentido culpado e, quando a gente trabalha duro, só isso
já basta, não é preciso mais nada, mas, bom, ela estava lá (...) Antes de ir dormir, ela
passava cinco minutos pra me ver (...) me trazia um chá (...) parece que não é nada, mas
francamente faz muito bem.
Pais e filhos estão juntos no investimento dos estudos, fazendo convergir seus
esforços mútuos.
18
Na França, não existem empregados domésticos, embora as famílias com melhor nível de renda possam
recorrer aos serviços de diaristas remuneradas.
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Vincenzo Cicchelli 121
Eu tinha um professor que me disse uma vez “de todo jeito, em prepa,19 são quatro
horas de trabalho por noite e dez no fim de semana”. Honestamente, estes números dão
medo e, quando eu soube, disse que jamais poderia conseguir isso sozinho (...) Por isso
digo que, felizmente, eles me pressionam um pouco quando não faço nada, eles me
empurram a continuar, eles me encorajam e é bom que seja assim porque senão eu não
conseguiria.
Os pais ajudam o filho a construir seu itinerário, a não ficar à margem do cami-
nho, acompanhando-o, encorajando-o permanentemente, mostrando um interesse
manifesto por suas atividades escolares, lembrando-lhe o quanto seu sucesso é uma
razão de orgulho para eles. Essa vigilância constante lhe permite hierarquizar suas
atividades. Esse estudante anotou em uma folha de papel as pessoas que poderiam
contatá-lo por telefone. Sua mãe, com boa vontade, incumbiu-se de atender o telefo-
ne e o encorajou a aplicar esse mesmo princípio seletivo a outras esferas de ativida-
de. Os resultados dessa associação são facilmente verificáveis, segundo esse jovem:
“Quando você se aplica, é recompensado”. No início do ano, ele foi nomeado major
em física e isso provocou no pai, homem distante aos olhos do filho, uma efusão de
orgulho – pois ele também havia sido major em sua juventude. Isso, por sua vez,
encorajou o filho a redobrar os esforços. O dirigismo dos pais de Bernard assume,
aos olhos do filho, um sentido de solicitude.
19
Abreviação de “classes preparatórias”.
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122 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
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Vincenzo Cicchelli 123
Se, cada vez que eles me controlam, eles me restringem ou me pedem para argumentar,
para justificar o que faço ou as minhas escolhas etc., eu não poderia me assumir por mim
mesmo, teria sempre que prestar contas e eu não acho que isso poderia me ajudar, ao
contrário, eu poderia dizer que sou sempre o filhinho da mamãe e do papai e que não
posso me assumir. E para os estudos que quero fazer, é absolutamente necessário que chegue a
me assumir, mas tendo meus pais atrás de mim.
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124 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Por exemplo, quando digo que vou viajar com meus amigos, ou que vou passar o fim de
semana fora, minha mãe me diz: “Claro, claro, vai sim, vai viajar, aproveita enquanto
você é jovem”, diz Gabriel.
Sua mãe pensa que, na medida em que a autonomia no trabalho é uma qualidade
que não pode ser obtida por coerção, cabe ao jovem dosar seu esforço e adotar um
ritmo próprio. Já seu pai, desempregado há muito tempo, baseia-se em sua própria
experiência. O desemprego, que atinge até mesmo pessoas com níveis de instrução
mais elevados, afetou igualmente o pai de Gabriel, antigo aluno da École des Hautes
Études Commerciaux (HEC). Por essa razão, a seus olhos, parece inútil investir ex-
clusivamente nos estudos.
22 N. do T.: Smic – salário mínimo interprofissional. É o mais baixo salário autorizado por lei.
Black
Vincenzo Cicchelli 125
tamento a fim de conciliar sua vida universitária com a pessoal. Apaixonada por um
jovem com emprego fixo no Oriente Próximo, seus recursos relativamente elevados
lhe permitem visitá-lo, assumindo as despesas de transporte e permanência. Segun-
do Elizabeth, seus pais se importam com seu sucesso escolar. Ainda que não dispo-
nha de autonomia de trabalho, ela manifesta a intenção de tornar-se professora de
matemática em um liceu. Assim, as razões do adiamento do Deug são complexas,
porque Elizabeth é apegada ao mesmo tempo à sua relação sentimental, à sua vida
de estudante e à sua vida familiar. Seus pais acabaram aceitando quando ela prome-
teu não abandonar os estudos e financiar por si mesma esse subinvestimento tempo-
rário. O arranjo ao qual eles chegaram é vantajoso para Elizabeth, que é profunda-
mente grata a seus pais.
Meus pais foram superlegais comigo (...) eles poderiam ter envenenado minha vida, ah,
claro que podiam, mas não o fizeram, eles compreenderam que o caso com o meu
namorado é sério, que nós tínhamos que nos ver com mais freqüência e que eu não
podia investir apenas nos estudos.
O caso de Robert ilustra um outro exemplo de gratidão. Ele teve uma escolarida-
de difícil. No momento de escolher, no final do segundo grau, sua mãe exprimiu o
desejo de vê-lo fazer um curso técnico e Robert seguiu a sugestão da mãe. Em toda a
sua trajetória escolar, esse é o único caso de acompanhamento explícito de que se
lembra. Desde então, a história da carreira escolar de Robert é uma tentativa de
obter da mãe um apoio de recomposição. Desenvolvendo outras atividades fora as
da universidade (ele trabalha e tem uma vida conjugal), Robert tentou manter a mãe
à distância de seus estudos e de sua vida pessoal.
Minha mãe queria me ajudar (financeiramente) no início, mas eu recusei essa ajuda para
me assumir sozinho. Quando saí de casa, fiz isso para que ela não tivesse mais influência
sobre mim, para que não pudesse julgar minhas ações.
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126 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Pais indiferentes?
Quando o jovem se considera autônomo e julga estar investindo suficientemente
em seu trabalho, aprecia que seus pais lhe concedam o direito de passear e que
reconheçam a importância das relações de amizade e sentimentais, evitando subor-
dinar a vida extra-escolar à vida escolar. No entanto, onde se esperaria uma ausência
de recriminações, aflora uma censura. Essa atitude da parte dos pais pode ser perce-
bida como indiferença. Se a autonomia no trabalho não implica para Ego uma busca
da aprovação do Outro, ela não deve tampouco significar uma falta de interesse pelo
trabalho escolar. Quando os pais ratificam a autonomia, entregando ao jovem o
direito de tomar conta de si mesmo, isso pode ser percebido como a manifestação de
uma certa indiferença para com seus estudos.
Este é o caso de Anne-Marie, cuja forte insatisfação se manifesta nas declara-
ções de estima e apreço que dirige aos pais. Ela vive há alguns meses em um
colégio interno de segundo grau. Sempre boa aluna, sua partida de casa foi forte-
mente justificada pela distância geográfica do estabelecimento escolar assim como
novos direitos lhe foram consentidos, como as saídas noturnas. Se vários outros
estudantes invejavam o tipo de relação que ela estabeleceu com seus pais, seu
discurso deixa transparecer uma certa perplexidade que tende à polêmica. Anne-
23 Hagège, 1985:253.
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Vincenzo Cicchelli 127
Marie censura aos pais o fato de não prestarem muita atenção ao que ela faz. O
campo escolar é, para ela, fonte de grandes satisfações que gostaria de comparti-
lhar com eles. Além disso, ela desejaria que os pais tivessem uma atitude mais
parecida com a da mãe de Philippe, discreta mas presente. Ela observa que as
conversas entre ela e seus pais são cada vez mais curtas, que eles se ocupam cada
vez menos de sua vida na escola e de suas atividades escolares, no sentido estrito
do termo.
Olha, não sei por que, mas eles não me perguntam mais nada sobre meus deveres, meus
exames, nadinha (...) Nem adianta lhes dizer que me sinto estressada, que estou termi-
nando um dever bem complicado, eu esperava que eles me telefonassem ou me pergun-
tassem na semana seguinte, pelo menos para saber se me dei bem ou não, e nada! Eles
já fizeram a mesma coisa duas vezes (...) Não tenho mais paciência, eu digo a eles, “mas
vocês não dão a menor bola ou o quê?” (risos), daí eles respondem que esqueceram, que
sabem que sou boa aluna, que têm confiança em mim, mas enfim, de qualquer jeito, bem
que poderiam (...)
Ela tomou então uma decisão. Uma vez que eles não usam seu direito de saber,
não cumprindo o dever de reconhecer o valor do trabalho da filha e declinando da
função de validação dessa dimensão de sua identidade, ela vai mantê-los a distância.
Por orgulho, ela evitará qualquer conversa sobre a escola e ocultará toda a sua vida
fora do domicílio familiar.
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128 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
ram de controlá-lo desde o segundo grau, quando suas notas ainda eram boas. No-
tando que os pais se mostraram mais ou menos desinteressados, ele não lhes confes-
sou seu fracasso na universidade, os pais não sabem que ele está repetindo o primei-
ro ano pela segunda vez.
Eles não sabem de nada, eu tenho a impressão que, se não der o primeiro passo, eles
não me dirão nada. Se tivessem me empurrado mais um pouco, eu lhes diria: “Olha,
papai, olha, mamãe, este ano as coisas não estão fáceis”, eles teriam reclamado ou talvez
dissessem: “bom, veremos no ano que vem”. Mas as coisas não se passaram dessa
maneira (...) Assim, enquanto não me pedirem informações, não digo nada para eles.
Desse modo, certo desinteresse ou negligência pode ser considerado pelo estu-
dante um fator que favorece seu desinvestimento progressivo.
O caso de Roger confirma essa versão. Ele conta como a mãe terminou por não
perguntar mais nada sobre sua vida escolar. Por um lado, ele apreciou essa retração
materna, porque ainda se lembra de que em certa época a mãe o “deixava louco”.
Por outro lado, ele lamenta que essa retração, provocada por seu próprio comporta-
mento intolerante, tenha se manifestado justo no momento em que estava decidindo
se desinvestir.
Desde então, ela não pergunta mais nada, e isso me convém. Mas, por outro lado, eu me
encontro cada vez mais sozinho (...) ainda que isso não seja totalmente ruim, todo
mundo tem de passar por isso.
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Vincenzo Cicchelli 129
pais que têm uma maneira escolar de julgar seus filhos se limitam a reproduzir a
atitude dos professores. Victor afirma:
A gente está numa onda, nas prepa, a gente é julgado o tempo inteiro. Você é julgado
por tudo, você passa mal e você é julgado, você faz um exame e é julgado, você faz um
DS24 e é mais uma vez julgado, sempre julgado. As pessoas não param de te julgar, a
cada vez você é classificado, isso me perturba muito.
Eu volto para casa depois de um dia infernal (...) Bom, eu bem que gostaria que me
deixassem em paz, que me permitissem respirar (...) de qualquer maneira, tomo meu
fôlego em alguns minutos e depois começo a trabalhar sozinho (...) Então por que é que
eles me enchem o saco com essas perguntas idiotas: “então, foi tudo bem?, “E o DS, foi
legal? “E o professor foi simpático?” Eu não agüento (...) Eles se enganam, se pensam
que estão me ajudando (...).
Como forma de corrigir essa atitude deplorável e obrigar os pais a modificar sua
atitude, pelo menos evitando perguntas sobre seu trabalho, Victor tomou uma deci-
são radical. Ele decidiu subtrair os resultados de sua avaliação escolar à curiosidade
dos pais, escondendo suas notas. Os pais só terão notícias no momento do concurso.
Eu não quero que eles sigam meus estudos muito de perto, porque já não agüento mais
ser julgado e não quero que eles façam a mesma coisa. Quer dizer, eles não têm acesso
aos boletins, porque não tenho a menor vontade de ser julgado outra vez por meus
próprios pais (...) já sou suficientemente julgado durante todo o ano no liceu (...) e além
disso, sou perfeitamente capaz de ver se as coisas estão ou não correndo bem.
Acompanhamentos fracassados
Quando o estudante não é autônomo em seu trabalho, mas acha que não são seus
pais que vão ensiná-lo a ser, não concorda que eles façam um esforço de regulamen-
tação. Também nesse caso, o jovem estima que os pais deveriam sobretudo ajudá-lo
a encontrar-se a si mesmo, em vez de recorrer a práticas de estímulo destinadas a
fracassar.
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130 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Eu tenho um colega, seu pai é professor de física e ele é uma besta de tanto que estuda
física. Mas eu, meu pai faz exatamente outra coisa, então não pode me ajudar e quando
tenho um problema, bloqueio. E minha mãe, não adianta nem falar, porque ela nem
terminou o segundo grau (...) parou na primeira série (...). Tudo o que a gente faz está
acima de suas capacidades, depois da segunda série, então nem vale a pena falar. Por
exemplo, quando estou trabalhando no meu quarto, ela diz: “Como é que você faz?” Ela
fica admirada com o que faço e eu então aproveito (...). Porque eu tenho algumas
noções, mas minha mãe, ela fica assombrada com o que faço e é por isso que ela quer
que eu vá o mais longe possível (...) porque ela não se dá conta.
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Vincenzo Cicchelli 131
Não somente os pais não constituem um recurso adequado a seu sucesso escolar,
do ponto de vista cognitivo, como eles não chegam nem a aportar o apoio identitário
que ela reclama. Ao insistir em um sucesso que lhe escapa das mãos, eles lhe devol-
vem uma imagem dela mesma que ela rejeita. “Eles visam alto demais para mim”,
queixa-se ela. O projeto parental, anteriormente interiorizado por essa estudante,
começa a tornar-se estranho para ela. Ela gostaria então de se afastar dele e de seus
pais ao mesmo tempo, investindo mais na relação com seu namorado. Objetivamen-
te apoiada por seus pais, ela tem a impressão de capitalizar ainda menos essa ajuda
do que poderia prever. Mas não se culpabiliza por isso, na medida em que joga
sobre os pais a culpa de não a compreenderem.
C ONCLUSÃO
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132 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
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parte III
F ORMASCONTEMPORÂNEAS DE
PARENTESCO E DE AFINIDADE
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Untitled-1 22 11/12/2008, 09:39
CAPÍTULO 8
A individualização no feminino,
o casamento e o amor*
ANÁLIA TORRES
*
Tradução de Angela Xavier de Brito.
1
Contribuem, no fundamental, para as reflexões que se seguem os resultados de uma pesquisa sobre o
casamento intitulada “Trajetórias, dinâmicas e formas de conjugalidade. Assimetrias sociais e de gênero no
casamento”, que está em fase de conclusão. Pesquisas anteriores sobre o divórcio (Torres, 1996a) e certas
perspectivas sobre a análise sociológica das relações afetivas e do sentimento amoroso constituíram tam-
bém o fundamento deste estudo (Torres, 1987).
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136 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
nina, ou que esta nos remete claramente para aquela. É que até os anos 1960, as
concepções sobre o lugar da mulher na família, de Durkheim a Parsons, constituí-
ram obstáculos à idéia de uma mulher-indivíduo. Na ótica desses autores, a função
materna, definida como missão central feminina com base na especificidade bioló-
gica, é incompatível com a idéia de uma mulher autônoma, senhora do seu destino
e das suas opções, capaz de se sustentar ou de partilhar com o parceiro as funções de
provedor da família. É essa incompatibilidade que vem sendo posta em causa pelas
transformações dos últimos anos. A idéia de uma mulher-indivíduo começa a im-
por-se à idéia de uma mulher-natureza.
Mas pode se falar de uma mulher-indivíduo protagonista do seu destino, inde-
pendente e segura das próprias opções, “liberta” da sua natureza? E pode se falar de
um homem-indivíduo nas mesmas condições?
Esperamos contribuir para dar resposta a tais questões a partir de alguns dos
resultados da mencionada pesquisa. Através da técnica da entrevista em profundida-
de, procurou-se explorar a perspectiva individual de homens e mulheres do mesmo
casal, entrevistados separadamente. Considerou-se assim que foram ouvidas as duas
vozes do casamento, em três estágios, já que foram selecionados entrevistados com
durações de casamento diferentes – até 10 anos de duração, de 11 a 20 anos e de 21
e mais anos – a que fizemos corresponder três tempos: o tempo da adaptação, o
tempo das mudanças e das transições, o tempo da conformação ou da realização
pessoal. Os casais pertenciam ainda a setores sociais diferentes, o que deu origem,
entre outros critérios, à identificação de formas de conjugalidade também distintas:
institucional, fusional e associativa. Foram identificados ainda tipos de enfoque di-
ferentes – parental, conjugal e de realização pessoal e/ou profissional, lazer – com o
objetivo de reconhecer modalidades diversas de posicionamento de cada elemento
do casal e, por vezes, de variações do mesmo indivíduo em momentos diferentes do
seu trajeto, em face dessas distintas áreas de investimento.
Foram buscadas as coincidências e dessemelhanças do discurso e do relato refe-
rentes à mesma situação objetiva, estimulou-se a narração da história na primeira
pessoa, com perguntas precisas sobre o antes e o depois do casamento, em múltiplas
dimensões da vida conjugal e também paralelas a ela, incitando a reflexão sobre si
próprio e sobre o outro no contexto conjugal e fora dele.
Antes de tratar propriamente do tema, na ótica aqui circunscrita à questão da
individualização no feminino, importa definir alguns dos pressupostos teóricos que
orientaram essa pesquisa sobre o casamento.
D IMENSÕES DA CONJUGALIDADE
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Anália Torres 137
2
Relembre-se a definição de Burgess de família: “unidade de personalidades em interação, existindo
primordialmente para o desenvolvimento e gratificação mútua dos seus membros unidos mais por coesão
interna do que por pressões externas” (Osmond, 1987:113).
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138 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
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Anália Torres 139
tardia as determinações sociais cada vez mais perdem peso na conjugalidade, tenden-
do a afirmar-se a relação auto-referenciada (pure relationship) e o amor-confluente.4
Como dimensão do conceito de conjugalidade, a vertente afetiva inclui e trans-
cende o sentimento amoroso e a sexualidade. Com efeito, as componentes afetivas
inscritas na maternidade e na paternidade, além da produção de sentido existencial
e dos efeitos identitários já referidos, assumem cada vez maior relevo. É o bem-estar
afetivo das crianças que tende a estar no centro da vida familiar, perdendo simulta-
neamente importância a dimensão estatutária da parentalidade.
Identificar especificamente essa dimensão envolvida na conjugalidade e distin-
gui-la da dimensão amorosa justifica-se ainda pela constatação de que maternidade,
paternidade, relação conjugal e amorosa implicam sentimentos em jogo na
conjugalidade que por vezes entram em “concorrência” no decurso do casamento.
A quarta dimensão inscrita na conjugalidade é a que identifica o casamento como
fonte produtora de realidade, já não tanto no sentido simbólico, mas mais especifica-
mente no sentido das condições materiais. Expliquemo-nos. Com a entrada na
conjugalidade, não só se cria uma situação nova em termos das condições materiais de
existência – através, por exemplo, da partilha de recursos e despesas – como sucede
freqüentemente que se geram filhos e, com eles, novas relações afetivas. Ora esse aspec-
to de criação em sentido literal e metafórico aponta para uma característica intrínseca e
incontornável da conjugalidade: a sua dinâmica própria. É que a realidade que é criada
– vida em conjunto, relações familiares, filhos – não só interpela os atores no sentido
identitário, como cria um sistema específico de possibilidades e limites de ação.5
A sucessão de fases na vida conjugal não corresponde apenas a condições psico-
lógicas, identitárias e de crescimento pessoal, mas traduz-se em novas condições.
São os filhos pequenos dependentes ou já são autônomos e necessitam de outro tipo
de cuidados? Estamos numa fase de início da carreira profissional, no meio ou no
fim desta? Já está ultrapassada a fase de adaptação à relação e ao outro?
Há, assim, “tempos” diferentes na conjugalidade, por corresponderem a distin-
tas situações objetivas. O número e a idade dos filhos, a duração da relação conju-
gal, a forma como se está inserido na atividade profissional, são exemplos de fatores
que contribuem para criar realidades objetivas diferentes, que geram e impõem, por
sua vez, escolhas, decisões, formas de agir. Claro que o fato de os “tempos”
corresponderem a dinâmicas próprias e a sistemas de possibilidades e limites deve
ainda ser articulado ao fator gênero. O peso dos “tempos” disponíveis de cada
membro do casal é também social e “sexuadamente” diferenciado. O casamento
constitui-se em processo produtor de dinâmicas e constrangimentos específicos.
A quinta e última dimensão da conjugalidade remete para o fato de ela ser
social e historicamente situada. Isto é, e usando a metáfora de Berger e Kellner,
4
Giddens, 1992.
5
Almeida et alii, 1995:28.
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140 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
6
Com efeito, alguns dos entrevistados do grupo de duração do casamento de 20 e mais anos, dos setores
intermediários ou das profissões intelectuais e científicas, afirmaram que, no grupo dos amigos próximos,
eram dos poucos que permaneciam casados.
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Anália Torres 141
interpelam os atores sociais e que efeitos têm nas suas práticas e representações. Na
verdade, as idéias circulam, interferem e podem, em certos contextos sociais mais do
que em outros, chegar mesmo a transformar as relações e os processos sociais.
7
Eurostat, 1995.
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8
Torres, 1996a.
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144 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
9
Duas entrevistadas, do grupo de duração de casamento entre 10 e 19 anos, que tinham trabalhos
administrativos em tempo integral – uma secretária de administração e outra empregada de escritório –
ambas com dois filhos com idades entre 10 e 14 anos, decidiram reinvestir na sua formação. A primeira
retomou, após o expediente, um curso universitário interrompido, encontrando apoio total do marido,
que se ocupa dos filhos depois de ele próprio sair do trabalho e enquanto ela não chega. A segunda iniciou
também à noite uma licenciatura e conta com o apoio da mãe, que mora perto e vai ajudando nas tarefas
domésticas e “olhando” os netos.
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Anália Torres 145
10
Torres, 1987. Não deixa de ser curioso que as propostas feitas nessa altura sobre a necessidade de
desenvolver a análise sociológica das relações afetivas, do sentimento amoroso e da sua relação com a
conjugalidade e o divórcio têm sido citadas como contribuições inovadoras por alguns colegas de língua
francesa. Contribuíram para o conhecimento desses trabalhos não só Didier Le Gall (1992:69), que cita um
texto numa revista internacional, como também Jean Claude Kaufmann (1993:34), Claude Martin, a quem
agradeço a sua síntese para o francês das idéias centrais de um texto que só existia em português (Singly et
alii, 1996:149) e François de Singly, que fez referência a esse mesmo texto e ao trabalho sobre os “desamores”
na minha pesquisa sobre o divórcio (Singly et alii, 1996:99).
11
Não podemos esquecer a abordagem pioneira de Simmel (1988).
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146 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
nha à sociologia, pode ser explicada por duas ordens de fatores. Por um lado, temos
a perda de influência de paradigmas e perspectivas teóricas que defendem ou a
“exterioridade” dos fatos sociais ou, sob diversas formas, sublinham o peso das
estruturas e dos sistemas sociais, tendendo, em contrapartida, a diminuir o papel da
ação social e dos seus sentidos subjetivos. Seria mais difícil, nesse tipo de quadros
teóricos, prever a abordagem sociológica do sentimento amoroso, embora se encon-
trem algumas exceções.
Nos últimos 40 anos o panorama alterou-se. No plano epistemológico e teórico,
a passagem de um pluriparadigmatismo de combate a um pluriparadigmatismo de
convivência12 permitiu a rejeição dos raciocínios do tipo ou/ou que insistiam na
separação forçada do objetivo e do subjetivo, na dicotomia entre estruturas e práti-
cas. A conseqüência era que, ao se sublinhar o sentido subjetivo, não se olhava para
os constrangimentos externos objetivos e vice-versa. Em contrapartida, nos últimos
anos ganha visibilidade a busca de articulações e sínteses.
Por outro lado, maior atenção à temática dos sentimentos foi também sugerida
pelo conjunto de transformações sociais no plano das práticas e dos valores associa-
dos à forma de encarar as relações familiares e o casamento, de que constituem
exemplos o aumento do divórcio, a queda da taxa de natalidade, a crescente parida-
de entre homens e mulheres. Foi a análise de transformações desse tipo, especial-
mente a partir de uma pesquisa sobre o divórcio, que nos conduziu à tentativa de
analisar sociologicamente as relações afetivas.
O debate que a seguir se registra pretende sistematizar apenas algumas das con-
tribuições dos autores de referência. Outras propostas, de um conjunto enorme de
textos mais atuais já identificados, surgem apenas referidas ao longo do texto, ou a
propósito de questões concretas da pesquisa.
12
Almeida et alii, 1995:33.
13
Até os anos 1960 há, evidentemente, autores que escapam a essa arrumação esquemática e simplificadora,
não se situando nem num campo, nem noutro. Um dos casos mais fecundos é o de Norbert Elias, que na
análise do processo civilizacional aborda a relação entre o público e o privado. Ele mostra, precisamente,
como as estruturas sociais estão incorporadas nas práticas dos atores, situação muito bem identificada, por
exemplo, a propósito do tema das relações sexuais e da passagem do constrangimento externo ao
autoconstrangimento: “o código do comportamento social inscreve-se tão profundamente na natureza
humana, que ele se torna de certa maneira em elemento constitutivo do eu individual. Este elemento, o
‘surmoi’, transforma-se tal como a estrutura psíquica e o eu individual tomado com um todo, em função do
código de comportamento social e das estruturas da sociedade” (Elias, 1973:276).
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Anália Torres 147
data pelo menos de finais dos anos 1950. William Goode, num texto elucidativamente
intitulado “The theoretical importance of love”, aborda essa problemática. O autor
analisa o amor como um elemento da “ação social e como tal da estrutura social”.14
Nessa perspectiva, o amor não se trata apenas de um sentimento que pairaria acima
ou fora da vida social e que, como tal, só poderia ser analisado no quadro da psico-
logia ou do inconsciente. Ele é considerado uma espécie de mola propulsionadora
da ação, uma força que, no quadro dos valores das sociedades contemporâneas, tem
o poder suficiente para criar, em sentido real e figurado, novas relações sociais.
Poder para agir, força para criar, mas nem sempre com as mesmas margens de liber-
dade, nem com ausência de controle.
O autor americano considera então necessário analisar as relações que, em todas
as sociedades, relacionam o amor com a estrutura social, seja através dos padrões do
amor, seja através do “complexo do amor romântico”. Ao desenvolver tal análise,
mostra também que, na maior parte das sociedades e nas diversas classes sociais, o
problema da escolha do parceiro conjugal assume lugar de grande relevo, pelas suas
importantes conseqüências, principalmente pelos efeitos que tem nas relações de
parentesco e na transmissão do patrimônio. Sintoma de tal relevância é o fato de em
muitas sociedades e nos setores sociais mais elevados se considerar que essa escolha
não pode ser deixada ao acaso dos “amores” adolescentes, assumindo-se desde logo
que a inclinação amorosa deve ser controlada.
Goode conclui, de forma muito elucidativa: “contra a opinião considerável de
sociólogos e antropólogos contemporâneos sugiro que o amor é um potencial psico-
lógico universal, que é controlado por uma série de cinco padrões estruturais, que
constituem todos eles tentativas para que os jovens não façam escolhas dos seus
futuros cônjuges inteiramente livres”; (...) “A importância teórica do amor deve ser
vista (está traduzida) nos padrões socioestruturais que são desenvolvidos para o im-
pedir de romper os compromissos sociais existentes”.15
Essa idéia do amor como mola impulsionadora, como parte constitutiva da ação
e da estrutura social é bem sugestiva e acaba, como outras propostas do autor, de se
revestir de grande atualidade. Na verdade, a maior freqüência do divórcio e a sua
crescente aceitação e integração nas sociedades contemporâneas implicaram o surgi-
mento de novos tipos de família, novas situações e papéis sociais, novas formas de
mediação entre os indivíduos e o Estado, nova legislação. Através desta, e quando se
procura preservar direitos dos que indiretamente estão envolvidos nesses processos
– as crianças, por exemplo – nota-se com clareza a preocupação de conseguir formas
de controlar, atenuando-lhes os efeitos, a força disruptiva do amor. Outras tentativas
existem de contrabalançar a “desordem” das paixões.
14
Goode, 1959:38.
15
Ibid., p. 47.
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148 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
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Anália Torres 149
16
Luhmann, 1986:136. Essa perspectiva da assimetria dos sexos e do papel dos homens no amor romântico
está bem ilustrada em várias obras de que o de L’Amour de Stendhal, escrita no primeiro quarto do século XIX,
é apenas um brilhante exemplo. Trata-se quase de um manual de bem amar, obra de um homem sensível
destinada a outras almas sensíveis, em que se ensina a distinguir entre a simples galanteria ou o amor-gosto
das verdadeiras e desinteressadas paixões, que se dão bem melhor com a espontaneidade dos sentimentos do
que com retórica. A explicação da assimetria entre homens e mulheres, reservando aos primeiros um papel
ativo e às segundas um papel expectante, relaciona-se ainda com as atribuições familiares da mulher,
necessitando esta de se defender de propósitos menos honestos. Enquanto as mulheres deveriam preservar
a sua intimidade, só se entregando por amor uma vez e para todo o sempre, para os homens o exercício das
artes do amor só poderia trazer experiência, sabedoria, aperfeiçoamento, sensibilidade.
17
Ibid., p. 148.
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150 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
18
Luhmann, 1986: p. 153.
19
Ibid., p. 165.
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Anália Torres 151
deram ser a qualidade intrínseca da relação. Importava avaliar até que ponto se
poderão encontrar sinais dessa tendência nos casais entrevistados.
Outra proposta de Giddens (1992) refere-se à passagem do modelo do amor
romântico ao amor confluente (confluent love). De certo modo também associada à
primeira proposta, esta outra tem em conta as mudanças verificadas quanto ao estatu-
to das mulheres. O fato de se tender cada vez mais para relações igualitárias entre
homens e mulheres põe em questão modelos anteriores segundo os quais eram essen-
cialmente as mulheres que alimentavam uma visão romântica das relações conjugais,
sendo sobretudo elas que também mais se sentiam implicadas na componente emo-
cional e afetiva dessas relações. O confluent love20 seria a tendência para uma impli-
cação afetiva e emocional igualitariamente partilhada entre homens e mulheres, tam-
bém porque se trata hoje de trocas entre parceiros que estão cada vez mais próximos
no plano do desempenho dos papéis sociais. Essas perspectivas interessam direta-
mente ao nosso trabalho. Contudo, e em alternativa à idéia de amor-confluente,
julgamos mais ajustada às realidades analisadas a idéia de amor-construção.
20
Giddens, 1992:61.
21
Beck & Beck-Gernsheim, 1995:177.
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152 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Caso se queira propor uma síntese, pode-se então concluir que, apesar da diver-
sidade das propostas analisadas, há dois temas que as atravessam e aproximam.
Trata-se, por um lado, da relação entre modernidade e amor romântico e, por outro,
dos efeitos da chamada questão feminina na vivência do sentimento amoroso. Em-
bora se trate de temáticas associadas entre si, vale a pena, num primeiro momento,
distingui-las.
Quanto ao primeiro tema, o que parece mais interessante reter é a idéia de que a
crescente individualização, representando maior margem de liberdade e de escolha
22
Bourdieu, 1998:116.
23
Ibid., p.117.
24
Ibid., p. 119.
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Anália Torres 153
25 Também Weber se referia, decerto de forma um pouco diferente, à relação entre modernização e amor
romântico (Lindholm, 1998; Jackson, 1993); como já indicado, Norbert Elias aborda igualmente essa relação.
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154 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
nas representações e nas práticas dos nossos entrevistados mais velhos, do sexo
masculino e dos setores operários.
As dificuldades e disfuncionalidades do modelo devem-se ao fato de os indiví-
duos se sentirem amarrados a uma instituição que os constrange e lhes impõe com-
portamentos rígidos. Serão elas que, em articulação com outras transformações so-
ciais, a que não são estranhos também fenômenos como o crescimento das chama-
das classes médias e as mudanças de valores, irão dar origem à passagem a outra
“semântica”, como Luhmann nos mostrou.
A idéia segundo a qual o pretexto legítimo para o casamento deve ser o amor
surge em luta contra a visão anterior. Assume-se então que, se o amor está no centro
da escolha conjugal, os problemas que existiam anteriormente – desentendimentos
conjugais devido à estranheza entre os cônjuges, por exemplo – estariam automati-
camente superados. Essa visão está ainda associada a outras idéias, por vezes contra-
ditórias entre si. Defende-se o amor como suspensão do tempo e do espaço, como
“estado” que vence todos os obstáculos e supera todas as dificuldades. Mas o roman-
ce acaba quando a vida conjugal começa.
Nesse modelo há sobreposição entre amor, paixão, atração física, impulso sexu-
al, erotismo e assimetrias entre homens e mulheres. As mulheres são mais responsá-
veis pelo “trabalho” do amor do que os homens, na medida em que estariam especi-
almente vocacionadas para as emoções, a domesticidade, as relações familiares. As-
sim, se as coisas correm mal, também se pode atribuir a elas a responsabilidade por
não terem tido a “arte” de saber guardar o seu par. As respostas de algumas entrevis-
tadas mais velhas permitiram confirmar essa situação.
A visão romântica do casamento também surge freqüentemente nos discursos dos
entrevistados. Mas à medida que a idade e a duração do casamento aumentam, as
referências românticas ao sentimento amoroso inicial tendem a dar prevalência às
do companheirismo e da solidariedade.
As contradições inerentes ao modelo parecem evidentes. Por um lado, o amor é
menos um estado que suspende o tempo e o espaço e assume mais facilmente os
contornos de um processo. Depois do casamento é que tudo verdadeiramente come-
ça. E sendo assim, se a escolha amorosa é condição necessária ao casamento, ela não
é suficiente. O fundamental é que o amor persista ao longo da relação. Estas são
algumas das conclusões que podem ser tiradas do aumento dos divórcios depois dos
anos 1960. A relação conjugal continua a revelar todo o seu poder atrativo, repara-
dor, regenerador, e até transcendente como promessa, mas é preciso que o amor
persista e que a relação tenha qualidade.
Chega-se assim ao modelo do amor-construção. Freqüente nos discursos dos mais
jovens, essa perspectiva caracteriza-se por se assumir desde logo que, se o amor e a
paixão foram o pretexto inicial para o casamento, rapidamente ele foi se transfor-
mando num sentimento mais estável, mais “construído”. Descobriram-se aspectos
novos e até outros sentimentos – de que forma ele se preocupa com a criança, a
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Anália Torres 155
R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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156 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
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CAPÍTULO 9
*
Tradução de Angela Xavier de Brito.
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158 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Encontraremos ao longo deste texto alguns exemplos não exaustivos que visam a
mostrar como a identidade pessoal e a identidade conjugal se articulam mediante a
gestão das comunicações telefônicas. Procuraremos, em primeiro lugar, lançar luz
sobre os mecanismos utilizados pelo indivíduo, membro de um casal, para desen-
volver sua identidade pessoal através do fato de reservar alguns momentos para si
mesmo. Em seguida, procuraremos revelar os conflitos resultantes da coexistência
de momentos para si e momentos comuns.1 Finalmente, veremos que existem dois
tipos de estratégias com vistas a limitar as perturbações criadas pelo uso do telefone.
O prazer
A prática do telefone assume virtualmente a forma de uma relação face a face. O
telefone, enquanto objeto de mediação, permite escapar momentaneamente do do-
1
Definição do “eu conjugal”: é a maneira pela qual a identidade pessoal se modifica na formação de um
casal. Um eu estranho: o eu conjugal (Singly, 1988).
2
Claisse & Rowe, 1993; Moyal, 1992.
3
A comunicação funcional é aquela cujo valor é medido em função da sua eficácia, a comunicação ‘quente’
é a que visa à espontaneidade, à relação face a face, à recriação da presença humana em toda a sua
implicação e o seu calor, em seus descaminhos e conotações (Claisse & Rowe, 1993).
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Claire-Anne Boukaïa 159
micílio conjugal apesar de estarmos fisicamente situados nele: pode-se estar junto,
embora cada um esteja em sua casa. Essa atividade é vivida como integral, aportando
muitas vezes um certo prazer. A construção de uma identidade pessoal, diferente da
identidade de casal, passa pelo fato de outorgar-se momentos exclusivamente para
si, quando o cônjuge está ausente. Dessa forma, os momentos para si e os momentos
comuns não se superpõem: cada situação é definida de maneira unívoca.
Debrucemo-nos agora sobre o caso de Françoise4 e de sua amiga Betty, cuja rela-
ção face a face é prolongada por meio de comunicações telefônicas cotidianas.
P – Quando você telefona para a Betty, é sempre para marcar um encontro ou para dizer
alguma coisa específica?
R – Não, a gente tem sempre alguma coisa a se dizer e, além disso, bom, quando uma das
duas tem um problema, então a gente se telefona, e não é porque a gente acabou de se
encontrar que não tem mais nada para dizer. Ela mora aqui ao lado e nos vemos todos
os dias: na verdade, a gente continua nossos papos pelo telefone.
A gente se telefona para não dizer nada, essa conversa seria absolutamente dispensável.
Exceto quando é com mãe, senão, é verdade, quando falo com Marie-Charlotte, a gente
telefona pra dizer besteiras, pois afinal de contas poderíamos não fazê-lo. Mas se eu
telefono, é porque isso me dá prazer, ora essa! (…) O prazer de telefonar? É de não estar
só, é poder chamar alguém.
A noção de prazer basta para justificar esse tipo de comportamento. Falar, con-
versar ao telefone, é burlar a solidão, é se dar prazer sem ter de sair de casa. Os
momentos em que se está só em casa também são aproveitados para captar “pessoal-
mente” o domicílio conjugal. O telefone permite ampliar o território das constru-
ções pessoais.
4
Na época da pesquisa, Françoise tinha 47 anos. Ela está casada com Maxime (49 anos) e vivem juntos há
26 anos. Ela não trabalha, ele é inspetor de gestão. Eles têm três filhos: Mathieu (13 anos), Guillaume (20
anos) e Raphaèle (23 anos).
5
Emmanuelle tem 24 anos. Ela vive com Raymond (26 anos) há um ano e meio, mas “estão juntos” há sete
anos. Ela é estudante; ele, conselheiro comercial encarregado das relações com a clientela de uma empresa.
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160 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
O respeito
O tempo é uma dimensão primordial da gestão das interações. Quando o cônju-
ge está presente, o outro não fica muito tempo ao telefone, pois isso seria marcar
uma ausência. A partir daí, a identidade conjugal é prioritária e os limites espaço-
temporais se transformam em respeito. Emmanuelle, estudante, sabe gerir suas co-
municações telefônicas. Ela aproveita os momentos em que o marido está trabalhan-
do para fazer suas chamadas pessoais:
Claro que telefono também pra dizer besteiras, mas, na verdade, não fico horas a fio ao
telefone, como poderia ficar quando estou sozinha. Se ele fica nervoso quando eu passo
horas ao telefone? Não, mas, bom, não é nada agradável. E sem dúvida nenhuma ele ficaria
chateado se eu ficasse falando uma hora, uma hora e meia. Na verdade, é falta de educação
ficar falando ao telefone quando há outra pessoa em casa. Não é falta de educação quando
é por 15 minutos, mas durante horas, é faltar ao respeito para com a outra pessoa.
Não, não telefono sempre para as mesmas pessoas, estando sozinha em casa ou não. Em
geral, procuro chamar meus amigos pessoais quando Maxime não está em casa, para
não chateá-lo e, bom, de noite, todo mundo está ocupado e posso incomodá-los. Mas
quando a gente tem muita coisa a se dizer, daí eu telefono durante o dia.
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Claire-Anne Boukaïa 161
Françoise faz assim uma clara diferença entre seus amigos pessoais e sua vida de
casal. São duas esferas separadas que, em princípio, não devem se superpor. Esse
universo de amigos pessoais é percebido como algo que incomoda, se Maxime está
em casa. A fronteira é clara e não se deve transpô-la, em nome do casal. A autonomia
pessoal só pode ser assumida em momentos muito precisos: quando o “eu” se desen-
volve sem afetar o “nós”. Mas as coisas não são sempre assim tão simples. Muitas
vezes, o “eu” invade o “nós” e o indivíduo tem problema quando busca fixar uma
definição unívoca da situação.
Na verdade, as únicas chamadas que não gosto de fazer quando Raymond está presente
(são as profissionais). Por exemplo, ontem eu tinha que telefonar para alguém para
marcar um encontro em função de um estágio futuro e fico sem graça se ele escuta o que
digo. Porque eu já estou meio sem graça para falar e isso vai me deixar mais perturbada
ainda (se ele escuta), então eu pego o telefone e vou para o banheiro. Mas são pessoas
que não conheço bem, com quem tenho que prestar atenção ao que vou dizer… E fico
sem jeito porque ele está presente e vai fazer gracinhas, eu vou rir … Então, como sei
que ele é capaz de fazer essas besteiras, pego o telefone e vou falar do banheiro.
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162 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
estágio, de se afirmar como pessoa distinta, enquanto um “eu isolado”. Mas até que
ponto o telefone pode interromper os momentos comuns?
Tensões e censuras
A sensação de que uma chamada telefônica é uma intrusão na vida em comum
deriva de vários fatores. O grau de intimidade que liga o interlocutor a cada um dos
membros do casal pode lhe dar direito de acesso mais ou menos amplo. A família e
os amigos têm quase sempre um direito de acesso ilimitado, quando se trata de uma
urgência. No entanto, quando não é feito por “outros significativos” legitimados pelo
casal,6 a chamada telefônica pode ser fonte de tensões. O caráter de intrusão de uma
interação se origina quando ela transforma um elemento exterior em ocupação prin-
cipal, interrompendo assim todas as demais atividades de um indivíduo. A interação
perturba a “ordem conjugal”, na medida em que uma parte do que se diz pode ser
pouco clara e misteriosa para o outro membro do casal.
Algumas vezes, uma simples chamada telefônica chega a ser intolerável, quando
exprime uma intimidade demasiado grande. A tensão sobe e os casais são obrigados
a gerir tais situações na medida em que elas surgem. A voz da conjugalidade se eleva
quando essa barreira é ultrapassada. Uma terceira entrevistada, Christine,7 se coloca
como guardiã da harmonia conjugal.
Uma vez tive que intervir em uma conversa telefônica de Jérôme, era uma menina da
faculdade, uma aproveitadora que só lhe telefonava para obter os cursos e o fazia
perder tempo. Uma vez, ela telefonou às 11 horas da noite, eu fui meio dura, meio
malvada com ela e pedi encarecidamente a Jérôme que interrompesse aquela chamada
porque já fazia três ou quatro dias que ela telefonava nas horas mais inconvenientes, e
ela telefonava todos os dias perguntando onde é que ele andava, o que é que ele estava
fazendo e eu achei que ela não tinha nada com isso, porque ela já amola todo mundo
para obter os cursos. Ela não estuda, então o problema é dela, ela não tem o direito de
nos incomodar às 11 da noite. Ela não é uma amiga íntima, por isso não tem nada que
telefonar.
6
Berger & Kelliner, 1960.
7
Christine (27 anos) vive com Jérôme (26 anos) há dois anos. Ele é estudante; ela, responsável pela gestão
das salas em uma empresa pública.
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Claire-Anne Boukaïa 163
tor não é a causa direta dessa reação. Talvez um colega do sexo masculino de Jerôme
tivesse provocado uma perturbação menor.
A tensão engendrada pela prática telefônica pode igualmente explicar-se pelo
sentimento de exclusão que certos indivíduos experimentam quando seu parceiro
está se comunicando com alguém. Falar ao telefone é como ausentar-se do domicí-
lio, mesmo estando presente. Cada qual experimenta a exclusão e a auto-exclusão.
Eu me excluo da interação conjugal quando telefono para alguém em presença de
meu parceiro, mas também o estou excluindo dessa troca verbal. Laurent8 sente-se
particularmente afetado por essa situação:
Eu detesto que Brigitte passe a noite ao telefone, isso já aconteceu com uma certa
freqüência. Não suporto ter que ir me deitar enquanto Brigitte fica horas ao telefone
com alguém e eu tenho que dormir sem que ela esteja ao meu lado. Sobretudo quando
ela telefona a outra pessoa, ainda se for uma chamada de trabalho, tudo bem, mas
quando ela chama outra pessoa, eu não suporto. Primeiro, porque eu trabalho muito e
sou mais tolerante quando me dou conta de que ela também trabalha muito. Eu sei que
telefonar para as amigas ou para os amigos é um derivativo. Mas quando chego em casa
– eu já vejo Brigitte tão pouco – e ela ainda tira tempo para telefonar, eu fico danado. Daí
eu digo para ela parar: chega! não agüento mais, senão eu vou embora!
R – Quando Brigitte não quer que eu participe da conversa. Eu não suporto quando ela
fica fazendo confidências.
8
Laurent (38 anos) vive com Brigitte (41 anos). Ambos são arquitetos, vivem juntos há 10 anos e têm um
filho de quatro anos e meio.
Black
164 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
P – E quando você intervém em uma conversa telefônica de Sophie, como é que ela
recebe isso?
R – Bem, depende de eu a amolar muito ou não. Sei lá, eu aperto os botões do telefone,
eu digo: “alô, a comunicação foi cortada, não estou mais escutando”. Adoro fazer essas
brincadeirinhas quando acho que a conversa já durou demais. Isso é clássico. Ou então
falo no bocal à outra pessoa. Sophie segura o aparelho e eu chego perto e digo: “tudo
bem, ei, bom-dia” e mais sei lá o quê. (…) Ou quando estou chateado, faço “fu”!!!! Ou
passo do lado resmungando “nhãnhãnhã”!
AS ESTRATÉGIAS DE EVITAMENTO
Ao longo deste texto, quisemos mostrar como o desejo de autonomia pode tornar
complexa a prática telefônica. A passagem do “eu” ao “nós” pode muitas vezes
dificultar a aceitação pelo e para o cônjuge. Mas o telefone não pode unicamente ser
visto como um objeto de conflitos potenciais, ele pode também ser um objeto de
consenso: ocasional ou sistematicamente, os casais utilizam estratégias preventivas
para proteger seu universo conjugal. A conciliação é feita de várias maneiras: por
um lado, evitando toda e qualquer superposição entre momentos comuns e momen-
tos para si; por outro lado, tornando comuns as interações telefônicas, a vários
graus. Existem dois grupos de estratégias:
9
Etienne e Sophie têm 25 anos e são engenheiros. Vivem juntos há dois anos, mas “estão juntos” há seis.
Black
Claire-Anne Boukaïa 165
b) As que visam a integrar o outro nas interações telefônicas, criando assim não
uma superposição de interações, mas uma interação do casal com uma terceira
pessoa:
– contar o conteúdo das conversas durante o telefonema ou depois;
– integrar o cônjuge na conversa, utilizando o alto-falante, um outro telefone
ou um aparelho de escuta;
– brincar de interferir nas conversas.
R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Black
166 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Pierce, J. R. The telephone and society. In: Pool, I. de Sola (ed.). The social impact of the
telephone. MIT Press, 1977.
Red, A. A. L. Comparing telephone with face to face contact. In: Pool, I. de Sola (ed.). The
social impact of the telephone. MIT Press, 1977.
Schwartz. O. Le monde privé des ouvriers, hommes et femmes du Nord. Paris, PUF, 1990.
Singly F. de. Un drôle de moi, le moi conjugal. Dialogue (102):3-5, 1988.
———. Sociologie de la famille contemporaine. Paris, Nathan, 1993. (Coll. 128.)
———. Le soi, le couple et la famille. Paris, Nathan, 1996. (Coll. Essais & Recherches.)
———. Habitat et relations familiales. Paris, Plan Construction et Architecture, 1998.
Black
CAPÍTULO 10
*
Tradução de Angela Xavier de Brito.
Black
168 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
1
Singly, 1993.
Black
Clotilde Lemarchant 169
Não sei mais como é que eu os chamava antes. Eu me pergunto mesmo se os chamava –
diz a sra. Gallet.
Eu fazia de conta que não precisava chamá-los de longe, lembra-se a sra. Lebreton.
Antes, eu não lhes dava um nome (risos), tentava tratá-los de “vós”,3 tentava encontrar
uma fórmula que fosse bem aceita.
Para pôr um termo a essa situação inconfortável, a maioria das mulheres aprovei-
ta a oportunidade do nascimento de um primeiro neto(a). De fato, a escolha mais
comum recai sobre “vovô, vovó” (ou “vô” e “vó” etc.), ou seja, uma grande parte das
2
Gotman, 1988.
3
Este “vós” refere-se ao emprego da segunda pessoa do plural, muito comum na França nas relações mais
formais. Não confundir com “vós” (diminutivo de “avós”), que pode aparecer mais adiante neste texto.
Black
170 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
mulheres adota, para chamar os sogros, o nome que seus filhos lhes dão. Elas se
situam assim com relação a seus filhos, “ela é a avó de todos os meninos, daí a gente
a chama de ‘vó’”. Os sogros são antes de tudo percebidos como avós. A vinda de um
filho representa, com freqüência, uma solução para o problema de como chamá-los.
Antes, as pessoas não sabiam que nome atribuir-lhes e se fechavam em uma situação
inconfortável de evitamento. O filho também torna a relação por aliança menos
direta, menos prioritária. Ainda que essa escolha do termo de nomeação, freqüente-
mente associado ao tratamento na segunda pessoa do plural, se refira maciçamente
às noras mais velhas, ele também está em voga entre as noras da nova geração, que
resistem por vezes às propostas que são feitas de chamar os parentes por afinidade
pelo primeiro nome ou de “você”.
4
Schwartz, 1990; Chabaud-Rychter, Fougeyrollas & Sonthonnax, 1985; Pitrou, 1992.
Black
Clotilde Lemarchant 171
5
Singly, 1976.
Black
172 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
complexados do seu meio social, seja por parte de seus sogros, principalmente da
sogra, que se considera o esteio da reprodução familiar. A sra. Julien, 28 anos,
casada há seis anos, não se entende com a sogra. “Ela não tornou a situação mais
fácil para mim… e continua a agir assim, mesmo agora.” Casada com um farmacêu-
tico, a sogra fez de tudo para separar o filho da nora.
Acontece que ela era secretária de direção e estava habituada a encontrar pessoas
importantes, até mesmo nobres e tudo o mais. Eu sou de meio operário, o que já cria
uma barreira.
Minha sogra, era bem isso… Uma boa situação, enfim, alguma coisa que pudesse repre-
sentar algo, viu? Era sobretudo isso, ela se orientava sobretudo pelo cheiro.
Esses exemplos extraídos dos meios sociais mais variados mostram quanto os
pais continuam a exercer um poderoso papel de esteios da ordem e da reprodução
sociais no seio das famílias, prejudicando o princípio da livre escolha do cônjuge
pelo(a) filho(a) adulto(a).
6
Galland & Lemel, 1998.
Black
Clotilde Lemarchant 173
7
Pitrou, 1992.
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174 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
C ONCLUSÃO
Black
Clotilde Lemarchant 175
R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Black
Untitled-1 22 11/12/2008, 09:39
CAPÍTULO 11
*
Tradução de Angela Xavier de Brito.
1
Para uma crítica da unidimensionalidade das teses do individualismo familiar, ver Déchaux (1999).
Black
178 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
se oporia a regulação estatutária que emana dos direitos e deveres ligados aos papéis
e às posições, particularmente ausentes na relação entre irmãos.
Essa hipótese será testada aqui, a partir da pesquisa sobre “Redes de parentesco e
ajuda mútua” realizada pelo Insee,2 em outubro de 1997, a partir de uma amostra de 8
mil domicílios.3 Este texto retoma apenas um aspecto do trabalho realizado em colabo-
ração com Crenner e Herpin4 e consagrado à análise dos laços entre irmãos na socieda-
de francesa contemporânea, a partir do estudo da freqüência de seus encontros.
Apesar da tendência ao estreitamento colateral da rede de parentesco, conseqüên-
cia da queda contínua da fecundidade nos últimos 30 anos, a existência, na idade
adulta, de um irmão que não vive no mesmo domicílio ainda é bastante comum hoje
em dia. Entre os indivíduos de mais de 15 anos, 74% possuem ao menos um irmão ou
uma irmã adulta vivendo fora do domicílio estudado e essa proporção ultrapassa os
84% na faixa etária de 25 a 59 anos.5 A média de dois irmãos fora do domicílio oculta
uma grande dispersão: uma entre cada quatro pessoas não tem nenhum irmão e um
quinto delas tem mais de três.
O caráter pouco normativo do laço entre irmãos é atestado por dois conjuntos
de fatos. Por um lado, constata-se uma grande variabilidade do número de encon-
tros entre eles, segundo a situação familiar e social dos indivíduos. Por outro lado,
os encontros entre irmãos são tanto mais freqüentes quanto maior é o período de
vida em comum no qual se criam as afinidades, com exceção das fratrias de dois
irmãos, em que a relação parece obedecer a normas mais estritas.
2
Insee (Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos Econômicos).
3
As tabelas da pesquisa serão apresentadas no fim do texto.
4
Crenner, Déchaux & Herpin (2000), artigo a ser publicado na Revue Française de Sociologie.
5
Crenner, 1998.
Black
Jean-Hugues Déchaux 179
6
O caráter fracamente normatizado da relação entre irmãos envolve duas acepções. Em primeiro lugar, ele
emana de uma simples constatação estatística: a ausência de regularidades verificadas, ou seja, a dispersão
dos escores de freqüências; em segundo, ele permite a introdução da hipótese de um fraco enquadramento
normativo do laço entre irmãos: se as condutas individuais são tão variáveis, é provavel que as regras (ou
normas, no sentido sociológico do termo) que as regem são, senão inexistentes, pelo menos pouco rígidas.
7
Cumming & Schneider, 1961.
8
Adams, 1968; Firth, Hubert & Forge, 1969; Allan, 1977.
9
Gokalp, 1978.
10
Lee, Mancini & Maxwell, 1990; White & Riedmann, 1992.
11
O termo aqui empregado não se refere às sanções jurídicas, mas às sanções sociais do grupo de
parentesco, como, por exemplo, a condenação moral ou ostracismo do parente que se julga muito distante
de seus irmãos. Se existem sanções dessa natureza, com relação ao laço que liga pai e mãe aos filhos adultos
(cf. sobretudo Finch, 1989), elas estão manifestamente ausentes no contexto do laço entre irmãos.
Black
180 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
não foi verificada.12 Esse resultado, posto em evidência por Lee et alii (1990), prova
que as famílias numerosas não têm o poder de reforçar as obrigações estatutárias entre
os irmãos: as relações no seio da fratria são ainda menos sujeitas às normas do que as
demais, chegando ao ponto de que muitos irmãos não as cumprem.
As variações segundo a categoria social13 e o nível de instrução obedecem às
variações comuns ao conjunto das relações de parentesco: de um lado, o convívio
entre os irmãos evolui em razão inversa da hierarquia social, tendo os agricultores
os mesmos escores que os operários (tabela 3); de outro lado, pelo nível de instru-
ção, situando-se no mesmo nível tanto o bac14 como os diplomas inferiores a ele
(tabela 4). Do ponto de vista das variáveis que apreendem a posição social num
sentido amplo (socioprofissional, econômico e cultural), as relações entre irmãos
não se diferenciam dos outros tipos de laços de parentesco, sobretudo o de filiação
direta (pai e mãe/filhos adultos). Poder-se-ia crer que, sendo regido mais pela afini-
dade do que pelo estatuto, ou seja, estando mais próximo do arquétipo do laço
eletivo particularmente valorizado pelas categorias médias e superiores,15 o laço de
fraternidade fosse mais bem avaliado nesses meios. Os resultados de nossa pesquisa
invalidam essa hipótese. Como mostraram Coenen-Huther, Kellerhals e von Allmen
(1994:157-60), no que se refere às relações de ajuda mútua, a débil normatividade
dos laços de fraternidade é um dado geral do sistema de parentesco ocidental que
transcende as diferenças de categorias sociais.
12
Com a ressalva de que a equivalência que estabelecemos entre a freqüência dos encontros (que podemos
medir) e o tempo consagrado a tais encontros (que não podemos medir e que pode ser extremamente
variável) é uma aproximação. Cf. anexo.
13
N. do T.: as categorias sociais na França são classificadas por um código intitulado “profissões e categorias
sociais” (PCS), cujas divisões nem sempre podem ser traduzidas para o português, por não corresponderem
às classificações brasileiras. Por essa razão (sobretudo nas tabelas), deixamos algumas expressões em francês,
como, por exemplo, cadre, que designa os executivos do setor privado, os cargos superiores da função
pública, mas também os professores secundários e universitários e os profissionais liberais.
14
N. do T.: abreviação de baccalauréat, exame final do curso secundário que permite o acesso à universida-
de, mas por si só já constitui um diploma.
15
Bidart, 1997:244-6.
Black
Jean-Hugues Déchaux 181
Black
182 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
escolha dos irmãos que se freqüentam, são as preferências segundo o sexo ou o nível
de instrução. Parece que as relações das mulheres são mais indiferenciadas do que as
dos homens, sendo suas freqüentações menos condicionadas por suas preferências
pessoais. Assim, a regulação do laço entre irmãos é mais influenciada pela afinidade,
no caso dos homens, e, ao contrário, mais estatutário no caso das mulheres.
16
Esse indicador mede a diferença entre o escore de freqüência dos encontros entre irmãos do mesmo sexo
e aqueles de sexo diferente.
17
Bott, 1957.
18
Lee et alii, 1990:436; White & Riedmann, 1992.
19
No caso das pesquisas de Coenen-Huther et alii (1994) e de Bonvalet et alii (1997), trata-se de medir a
ligação afetiva existente entre irmãos e não o grau de freqüência dos encontros entre eles.
Black
Jean-Hugues Déchaux 183
ções (tabela 7): para os jovens de sexo masculino (homens de menos de 30 anos),
passamos (ao medir a tendência à homofilia) de uma distância bruta negativa (me-
nos de dois encontros) a uma distância real positiva (mais de nove encontros); para
as mulheres idosas (de mais de 60 anos), passamos de uma distância bruta pouco
positiva (mais de um encontro) a uma distância real bastante positiva (mais de 12
encontros). Em outras palavras, para as duas categorias, a tendência à homofilia é
muito mais afirmada quando existe possibilidade de escolha no interior da fratria.
No caso dos jovens de sexo masculino, isso se explica, sem dúvida, por um efeito de
estrutura: como as jovens mulheres deixam a casa paterna mais cedo, é mais freqüen-
te que os homens de menos de 30 anos convivam mais com os irmãos do que com as
irmãs. A homofilia cresce, assim, quase mecanicamente. Mas, no que se refere às
mulheres de mais de 60 anos, a distância não parece ser explicada pelo efeito de
estrutura ligado à diferença de mortalidade entre os homens e as mulheres, porque,
ao contrário, a homofilia bruta das mulheres deveria aumentar. Devemos, então,
pensar na hipótese de que as mulheres idosas que não compõem uma fratria mista
têm um comportamento específico: a distância registrada parece indicar que as
mulheres idosas que têm um ou mais irmãos do sexo masculino os freqüentem assi-
duamente, contrabalançando, para toda a população, a preferência de homofilia
que se exprime quando é possível uma escolha no interior da fratria. Devemos então
supor que essas mulheres idosas se sentem particularmente responsáveis por seus
irmãos? Desde que exista mais de uma mulher em uma fratria mista, a tendência à
homofilia entre as irmãs seria restabelecida, pois o apoio dado ao(s) irmão(s) seria
compartilhado. Tal explicação corresponde aos resultados das monografias mais
antigas que mostravam que os homens idosos, solteiros ou viúvos, tinham tendência
a estar sob os cuidados de uma irmã.20
Comentemos agora o caso da homofilia real por idade entre os homens e as
mulheres. Ela é relativamente constante para os dois sexos: homens e mulheres, em
qualquer idade, apresentam uma tendência à homofilia. No entanto, a curva femini-
na forma um patamar nas idades intermediárias (30-59 anos) que não tem equivalen-
te na curva masculina (tabela 6). A tendência à homofilia das mulheres se manifesta
de maneira bastante forte antes dos 30 anos e depois dos 60 anos, sendo moderada
nas idades intermediárias. Em suma, a homofilia dos homens é menos afetada pela
idade ou pelo ciclo de vida, sendo assim mais estrutural, enquanto a das mulheres
tende a se concentrar nas mulheres mais jovens e nas mais idosas.
Como explicar essa diferença? Sabe-se que a responsabilidade da gestão das rela-
ções de parentesco cabe às mulheres:21 elas se sentem mais engajadas nesse trabalho
relacional do que os homens. Esse papel, que lhes é atribuído em função da organi-
zação familiar, as transforma em agentes de ligação que trabalham no sentido de
20
Townsend, 1977:123; Young & Willmott, 1983:106.
21
Finch, 1989; Coenen-Huther et alii, 1994:62.
Black
184 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
22
Rosenthal, 1985.
23
Coenen-Huther et alii, 1994:137-8 e 142.
24
Ibid., p. 143.
25
Finch, 1989.
26
Héran, 1988.
27
Hoyt & Babchuk, 1983.
Black
Jean-Hugues Déchaux 185
assiduidade. Essa tendência à homofilia prejudica aqueles que têm níveis de instru-
ção inferiores aos da pessoa em questão (mais de sete encontros, contra mais de três,
em comparação com as pessoas que têm níveis de instrução superiores ao do entre-
vistado).
No entanto, a homofilia pela instrução é um comportamento exclusivamente
masculino. A clivagem entre homens e mulheres é espantosa: as mulheres não fazem
diferença quanto ao nível de instrução de seus irmãos, enquanto os homens estabe-
lecem um tratamento bastante diferenciado (tabela 8). Da mesma forma que em
relação às preferências sexuais, mas de maneira muito mais definida, as relações
entre irmãos, no caso das mulheres, são muito mais indiferenciadas, o que pode ser
explicado por seu papel de agente da intermediação: como a mulher trabalha para
reforçar a unidade e a integração do seu grupo de parentesco, não deve demonstrar
suas preferências, ainda que as tenha. Pode-se assim avançar uma explicação em
termos de papel sexualizado, em sua definição mais ampla. A socialização da mu-
lher a prepara menos do que os homens para a preocupação de rentabilizar seu
investimento escolar em um plano profissional, de maneira que sua percepção das
relações entre irmãos é menos afetada por esse prisma utilitarista.
C ONCLUSÃO
Black
186 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
É uma relação que existe sem que se precise ser ator; ela está aí, para a vida toda (…) de
toda maneira, ela existe, está implícita. É um sentimento forte que não precisa ser
expresso. A gente sabe que ela está aí e se apóia sobre ela. Não há necessidade de
mantê-la (mulher, 38 anos, quatro irmãos e irmãs).
28
Pesquisas conduzidas pelos estudantes de licence e maîtrise (3o e 4o anos de graduação) de sociologia da
Université de Paris V, sob minha direção.
Black
Jean-Hugues Déchaux 187
entre irmãos como uma ilustração das transformações recentes da família, no senti-
do de uma maior individualização?
Não creio. Parece, ao contrário, que estamos aqui diante de propriedades da
relação entre irmãos já claramente observadas por pesquisas mais antigas. Por exem-
plo, em sua monografia de South Borough, em Londres, elaborada em 1947, Firth e
Djamour (1956:63) sublinhavam a ausência de obrigação moral nas relações entre
irmãos, ainda que muito intensas (do ponto de vista positivo ou negativo) no plano
afetivo. Todas as pesquisas posteriores realizadas em meio urbano confirmaram tal
observação. O que espanta é mais a permanência desse fenômeno durante cerca de
50 anos do que sua mudança.
Do meu ponto de vista, a fraca normatividade das relações entre irmãos é antes
uma característica estrutural: a) dos sistemas de parentesco cognáticos; b) ainda mais,
de sistemas que atribuem uma importância à parentela, ou seja, sem uma tendência
de linhagem que emane de um regime de reprodução social com base em um siste-
ma fundiário. Parece que, em nosso meio cultural ocidental, as relações entre irmãos
só foram fortemente normatizadas nas sociedades camponesas do passado, nas quais
o imperativo de transmissão do patrimônio levava à constituição de quase-grupos de
parentesco no âmbito de um modelo de linhagem.29 Nessas sociedades, a interde-
pendência e a solidariedade entre irmãos eram imperativas e remetiam a direitos e
deveres precisos, na medida em que os estatutos dos irmãos eram muito claramente
definidos segundo sua posição de nascimento ou sexo. Em um regime de reprodu-
ção social fundado sobre a escolaridade, nada mais conduz à constituição de quase-
linhagens; em conseqüência, os obstáculos ao exercício do princípio de seletividade
que funda os sistemas de parentesco cognático são incidentais. A fraca normatividade
das relações entre irmãos seria assim um fato já antigo, resultante da passagem de
um sistema de reprodução social a um outro. Resta compreender por que as relações
entre irmãos oferecem uma resistência menor ao exercício do princípio de seletividade
do que o vínculo de filiação. Mas essa questão não será abordada neste texto.
R EFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
29
Augustins, 1990.
Black
188 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
Black
Jean-Hugues Déchaux 189
A NEXO
A pesquisa “Redes de parentesco e ajuda mútua” foi realizada pelo Insee em outubro
de 1997, dentro dos marcos da parte variável da “Pesquisa permanente sobre as
condições de vida dos domicílios” (PCV). A amostra abrangeu 8 mil domicílios. Em
cada um, a pessoa interrogada sobre os irmãos e as irmãs foi sorteada, conforme o
método de Kish, entre os membros do domicílio de 15 anos ou mais.
Depois de anotar os nomes de todos os irmãos e irmãs que não mais viviam no
domicílio, foram recolhidas informações individuais sobre o sexo, idade, nível de
instrução, atividade profissional e distância geográfica entre os domicílios. As per-
guntas eram: Com que freqüência você encontrou X (o nome do irmão ou da irmã)
nos últimos 12 meses? Com que freqüência vocês se telefonaram nos últimos 12
meses? Essas duas questões eram feitas em função de cada um dos irmãos ou das
irmãs inicialmente recenseados.
As tabelas fornecidas abaixo contabilizam os encontros efetuados com cada um
dos irmãos e irmãs. Trata-se de visitas feitas ao domicílio de um ou de outro, ou
então à casa de uma terceira pessoa, como, por exemplo, o pai ou a mãe. Note-se que
uma simples reunião de família pode provocar o encontro de vários irmãos ou ir-
mãs. Além dos encontros, são também contabilizadas as atividades em comum: saí-
das noturnas para um espetáculo ou férias passadas juntos. Mas não foram incluídos
entre os encontros os contatos fortuitos (cruzar-se na rua ou em uma loja, à saída da
escola etc.), ainda que tenham sido trocadas algumas palavras nessas ocasiões.
TABELA 1
Distância entre os domicílios e influência nos encontros entre irmão ou irmã
e os encontros com o pai ou com a mãe
Fonte: Rede de parentesco e ajuda mútua, Insee, out. 1997. (Pesquisa PCV.)
Base: Pessoas maiores de 14 anos, residentes na França, * com pelo menos um irmão ou uma irmã fora do
domicílio de origem; ** vivendo o pai fora do domicílio de origem; *** e vivendo a mãe fora do domicílio
de origem.
Leitura: Pessoas maiores de 14 anos, com pelo menos um irmão ou uma irmã vivendo fora do domicílio
de origem encontraram esse(s) irmãos ou essa(s) irmã(s) 99 vezes nos últimos 12 meses, estando suas casas
distantes pelo menos 10km.
Black
190 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
TABELA 2
Tempo de vida em comum e tamanho da fratria: influência nos encontros entre irmãos e irmãs
Quatro
Conjunto Um irmão ou Dois irmãos Três irmãos irmãos
uma irmã e irmãs e irmãs e irmãs
ou mais
Menos de 10 anos 24 34 22 25 23
10 a 14 anos 32 38 41 36 27
15 a 19 anos 33 49 40 32 26
Mais de 20 anos 43 49 48 44 37
Conjunto 35 46 41 35 28
Fonte: Rede de parentesco e ajuda mútua, Insee, out. 1997. (Pesquisa PCV.)
Base: Pessoas maiores de 14 anos, residentes na França, com pelo menos um irmão ou uma irmã fora do
domicílio de origem.
Leitura: Pessoas maiores de 14 anos, com pelo menos um irmão ou uma irmã, encontraram esse irmão ou
essa irmã 34 vezes nos últimos 12 meses, se viveram juntos na infância mais de 10 anos, e 49 vezes, se
viveram juntos mais de 20 anos.
TABELA 3
Distância entre os níveis de instrução e as categorias socioprofissionais:30
influência nos encontros entre irmãos ou irmãs
Nível de
instrução Agricultores, Cadres e Profissões
do irmão artesãos profissões interme- Empre- Operá-
ou da irmã Conjunto comerciantes intelectuais diárias gados rios Inativos
Superior 33 38 36 20 31 30 68
Mesmo nível 36 39 19 26 33 40 50
Inferior 29 43 18 24 31 61 44
Conjunto 35 39 21 23 32 39 54
Fonte: Rede de parentesco e ajuda mútua, Insee, out. 1997. (Pesquisa PCV.)
Base: pessoas maiores de 14 anos, residentes na França, que têm pelo menos um irmão ou uma irmã fora
do domicílio de origem.
Leitura: pessoas maiores de 14 anos, que têm pelo menos um irmão ou uma irmã agricultores, artesãos ou
comerciantes, encontraram esse(s) irmão(s) ou essa(s) irmã(s) do mesmo nível de instrução 39 vezes nos
últimos 12 meses.
30
N. do T.: as classificações do código PCS da França são as seguintes: a) agricultores, artesãos, comercian-
tes; b) cadres e profissões intelectuais; c) profissões intermediárias; d) empregados; e) operários; f) desem-
pregados, inativos.
Black
Jean-Hugues Déchaux 191
TABELA 4
Distância e nível de instrução: influência nos encontros entre irmão ou irmã
Nível de instrução
do irmão ou da irmã Conjunto < bac bac bac + 2 > bac + 2
Superior 33 32 39 27 7
Mesmo nível 36 38 35 23 15
Inferior 29 — 37 32 17
Conjunto 35 37 37 29 16
Fonte: Rede de parentesco e ajuda mútua, Insee, out. 1997. (Pesquisa PCV.)
Base: Pessoas maiores de 14 anos, residentes na França, com pelo menos um irmão ou uma irmã fora do
domicílio de origem.
Leitura: Pessoas maiores de 14 anos, com o nível escolar do bac, encontraram um irmão ou uma irmã com
o mesmo nível de instrução 35 vezes nos últimos 12 meses.
TABELA 5
Encontros entre irmãos e irmãs do mesmo sexo ou de sexos diferentes
Conjunto de indivíduos
Mulheres 31 36
Homens 31 39
Conjunto 31 38
Base: Pessoas maiores de 14 anos, residentes na França, que têm pelo menos um irmão ou uma irmã fora
do domicílio de origem.
Mulheres 30 37
Homens 29 35
Conjunto 30 37
Fonte: Rede de parentesco e ajuda mútua, Insee, out. 1997. (Pesquisa PCV.) Base: pessoas maiores de 14
anos, residentes na França, que têm pelo menos um irmão ou uma irmã fora do domicílio de origem.
Leitura: homens, com pelo menos um irmão e uma irmã fora do domicílio de origem, encontraram esse(s)
irmãos(s) 35 vezes e essa(s) irmã(s) 29 vezes nos últimos 12 meses.
Black
192 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
TABELA 6
Sexo e idade: encontros entre irmão e irmã do mesmo sexo ou de sexos diferentes
Mulheres 60 75 30 35 22 25 28 29
Homens 70 68 30 42 23 33 23 33
Conjunto 65 72 30 38 22 29 25 29
Base: Pessoas maiores de 14 anos, residentes na França, com pelo menos um irmão ou uma irmã fora do
domicílio de origem.
Mulheres 60 73 32 37 22 27 23 35
Homens 57 66 29 35 24 31 23 31
Conjunto 59 70 30 37 23 28 23 33
Fonte: Rede de parentesco e ajuda mútua, Insee, out. 1997. (Pesquisa PCV.)
Base: Pessoas maiores de 14 anos, residentes na França, com pelo menos um irmão ou uma irmã fora do
domicílio de origem.
Leitura: Homens de 30 a 39 anos, que têm pelo menos um irmão e uma irmã fora do domicílio de origem,
encontraram esse(s) irmão(s) 35 vezes e essa(s) irmã(s) 23 vezes nos últimos 12 meses.
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Jean-Hugues Déchaux 193
TABELA 7
Indicador de homofilia bruta e indicador de homofilia real, segundo sexo e idade
Homens
Homofilia bruta -2 +12 +10 +10
Homofilia real +9 +6 +7 +8
Mulheres
Homofilia bruta +15 +5 +3 +1
Homofilia real +13 +5 +5 +12
Fonte: Rede de parentesco e ajuda mútua, Insee, out. 1997. (Pesquisa PCV.)
Base: Pessoas maiores de 14 anos, residentes na França, com pelo menos um irmão ou uma irmã fora do
domicílio de origem.
Leitura: Homens que têm pelo menos um irmão ou uma irmã fora do domicílio de origem e situados na
faixa etária dos 30-39 anos, encontraram seus irmãos com maior freqüência que suas irmãs. A diferença
entre o escore de freqüência de encontros entre irmãos do mesmo sexo e os de sexo diferente é de 6,
quando os homens têm pelo menos um irmão e uma irmã (homofilia real), e de 12, quando têm pelo
menos um irmão ou uma irmã (homofilia bruta).
TABELA 8
Nível de instrução segundo o sexo: influência
nos encontros entre irmãos e irmãs
Nível de instrução do
irmão ou da irmã Conjunto Homens Mulheres
Superior 33 33 35
Mesmo nível 36 39 34
Inferior 29 23 33
Conjunto 35 35 34
Fonte: Rede de parentesco e ajuda mútua, Insee, out. 1997. (Pesquisa PCV.)
Base: Pessoas maiores de 14 anos, residentes na França, com pelo menos um irmão ou uma irmã fora do
domicílio de origem.
Leitura: Homens que têm pelo menos um irmão ou uma irmã fora do domicílio de origem encontraram
esse(a) ou esses(as) irmãos(ãs) 39 vezes nos últimos 12 meses quando tinham o mesmo nível de instrução e
33 vezes quando seu nível de instrução era superior ao deles.
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Untitled-1 22 11/12/2008, 09:39
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196 FAMÍLIA E INDIVIDUALIZAÇÃO
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Resumo dos livros.fm Page 1 Thursday, December 11, 2008 2:37 PM