Ulsd730891 TD Vitor Gomes

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

A PAISAGEM NAS ARTES VISUAIS: DE


FRIEDRICH A VERTIGO (Alfred Hitchcock).
Uma história cultural do olhar.

Vítor Manuel dos Santos Gomes

Doutoramento em Belas-Artes
Especialidade de Ciências da Arte.

Tese orientada pela Professora Doutora Cristina Azevedo Tavares e pela


Professora Doutora Maria Céu Tereno
Especialmente elaborada para a obtenção do grau de Doutor

ANO 2017
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS-ARTES

A PAISAGEM NAS ARTES VISUAIS: DE FRIEDRICH A VERTIGO


(Alfred Hitchcock).
Uma história cultural do olhar.

Vitor Manuel dos Santos Gomes

Orientador(es): Prof. Doutora Cristina Azevedo Tavares


Prof. Doutora Maria Céu Tereno

Tese especialmente elaborada para a obtenção do grau de Doutor em Belas-Artes, na


especialidade de Ciências da Arte.

Júri:
Presidente: Doutor Eduardo Manuel Alves Duarte, membro do Conselho Cientifico
da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (nomeado por
Despacho do Senhor Vice-Reitor, datado de 21 de abril de 2017, no uso
de competências delegadas).
Vogais:
Doutor Manuel Francisco Soares do Patrocínio, Professor Auxiliar com
- Agregação da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora.
(1ºarguente);

1
Doutora Prudência Maria Fernandes Antão Coimbra, Professora Adjunta
- da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto (2º
arguente);
Doutora Maria João Lello Ortigão de Oliveira, Professora Auxiliar da
-
Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa;
Doutor Eduardo Manuel Alves Duarte, Professor Auxiliar da Faculdade
-
de Belas-Artes da Universidade de Lisboa;
Doutora Maria do Céu Simões Tereno, Professora Auxiliar da Escola de
-
Artes da Universidade de Évora (orientadora);
Doutora Cristina Maria de Sousa Azevedo Tavares, Professora Associada
-
da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (orientadora).

ANO 2017

2
DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu Vitor Manuel dos Santos Gomes, declaro que a tese de doutoramento intitulada “A
PAISAGEM NAS ARTES VISUAIS: DE FRIEDRICH A VERTIGO (Alfred Hitchcock).
Uma história cultural do olhar.”, é o resultado da minha investigação pessoal e independente.
O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na
bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou
indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.

O Candidato

Lisboa, 23 de junho de 2017.

3
RESUMO

No início do século XXI, assiste-se ao reiterar do interesse pela paisagem entendida


enquanto figuração de um sistema artístico, cultural, social e estético que pode e deve
fundamentar uma história cultural do olhar.
Os artistas citados no título poderão ser considerados os balizadores históricos do
tema a estudar, pois caraterizam um tempo e uma paisagem histórica.
O nosso território de pesquisa consiste nas artes visuais e o fio condutor é a
temática da Paisagem.

Com esta tese pretendemos pensar, investigar, interpretar e convidar a uma reflexão
sobre as diferentes dimensões contidas na temática artística, cultural e estética da Paisagem
nas Artes Visuais. Para a pesquisa e levantamento, serão adotados métodos que têm a ver
com o trabalho e pesquisas desenvolvidos por artistas, filósofos e teóricos do século XX e
do século XXI.

Podemos designar alguns aspetos e dimensões do conceito de paisagem que nos


interessa investigar para a configuração da tese. Assim teremos: a paisagem como categoria
de relacionamento com a arte, em que a experiência e a observação são premissas
prioritárias da sua condição; a paisagem como discurso crítico, herdeira de uma longa
tradição em que se revestiu de estatutos muito diversos, pois a paisagem pode servir como
espelho de valores, crenças, opiniões, ideias de uma época. Na contemporaneidade ela
convoca aspetos ambientais e ecológicos completamente novos; A paisagem com
relevância estética, a paisagem encarada como entidade dinâmica que apela a uma atitude
estética; A paisagem como projeto artístico.
Os conceitos referidos, bem como certos princípios orientadores e respetivas
matrizes metodológicas, abordam os domínios: do pensamento, da fruição estética e
artística da paisagem.

Palavras-Chave:
Paisagem, Artes Visuais, Pintura, Cinema, Estudos Visuais

4
ABSTRACT

In the early twenty-first century, there has been the interest of the landscape
understood as a figuration of an artistic, cultural, social and aesthetic system that can and
should support a cultural history of the gaze.
The artists mentioned in the title can be considered the historical theme of
benchmarks to study because feature a time and a historical landscape. Our area of research
is in the visual arts and the common thread is the theme of landscape.

With this thesis we intend to think, investigate, interpret and invite reflection on the
different dimensions contained in the artistic subject, cultural and aesthetic landscape in the
Visual Arts. For research and survey methods will be adopted that have to do with work
and research developed by artists, philosophers and theorists of the twentieth century and
the twenty-first century.

We can designate some aspects and landscape dimensions of the concept that
interests us to investigate the thesis configuration. Thus, we have: the landscape as
relationship category with art, in which experience and observation are priority premises of
their condition; the landscape as critical discourse, heir to a long tradition in which overlaid
it with very different statutes, because the landscape can serve as a mirror of values, beliefs,
opinions, ideas of an era.
In contemporary times, it calls environmental and ecological aspects completely
new; the landscape with aesthetic relevance, the landscape seen as a dynamic entity that
calls for an aesthetic attitude; the landscape as an artistic project.
The mentioned concepts, as well as certain guiding principles and respective
methodological matrices, address the domains: of the thought, the aesthetic and artistic
fruition of the landscape

Key Words:
Landscape, Visual Arts, Painting, Cinema, Visual Studies.

5
Gostaria de agradecer, a Inês Barreiros, Sílvia Mourato e José Maria Luz, pelo
apoio prestado, à minha família, aos Presidentes do Departamento de Paisagem,
Ambiente e Ordenamento da Universidade de Évora. Ao meu colega de Curso de
Doutoramento Joseph Rodrigues, à Professora Doutora Maria João Ortigão e ao
Professor Doutor Eduardo Duarte cujos comentários e conselhos nas apresentações do
Curso de Formação Avançado foram sempre úteis e pertinentes. Last but not the Least à
minha coorientadora, Professora Doutora Maria do Céu Tereno, por constante amparo e
auxílio prestado no meu percurso académico e pelo inultrapassável apoio nesta Tese, e à
Professora Doutora Cristina Azevedo Tavares pelo inexcedível apoio, bondade e
orientações cedidas durante a supervisão desta Tese.

6
“«Já aqui estive antes», disse. Já ali estivera; primeiro, com Sebastian, há mais de vinte anos, num dia
de junho sem nuvens, quando os valados se embelezavam com as rainhas-dos-prados e o ar se carregava
com todos os aromas de Verão; era uma dia de esplendor peculiar e, apesar de ali ter estado tantas
vezes, em tão diferentes estados de espirito, foi a essa primeira visita que o meu coração regressou nesta
última”

Evelyn Waugh, reviver o Passado em Brideshead

Esta Tese é dedicada à memória do meu pai que partiu para paisagens distantes durante
a realização da mesma.

7
Índice

Resumo 4
Agradecimentos 6
Dedicatória 7

Introdução 12

Capítulo I

O retorno à Paisagem 30

1.1 Considerações iniciais 31


1.2 Abordagens multidisciplinares da paisagem 33
1.3 A paisagem como género na Pintura 54
1.4 Kenneth Clark e a Paisagem na Arte 67

Capítulo II

De Friedrich a Kiefer: A Paisagem na Pintura. 80

2.1 Considerações iniciais 81

2.2 A Temática da Paisagem na Pintura do séc. XIX 83


2.2.1 O Sublime o e Pitoresco 86
2.2.2 Constable e Turner. 95
2.2.3 Caspar David Friedrich 100
2.2.4 ‘La Revolution Française’ 103
2.2.5 Quelle est la critique? 111
2.2.6 A fuga para a Floresta: Os pintores de Barbizon 121
2.2.7 A linguagem das árvores: Corot 131
2.2.8 ‘Déjeuner sur la ville’ 134
2.2.9. A nova paisagem: a Cidade 141

2.3 O Naturalismo em Portugal 159


2.3.1 Gosto versus Estética 161
2.3.2 Cinco Artistas em Sintra 168
2.3.3. Bolsas em Paris 171
2.3.4 Pousão e Malhoa 178
2.3.5. Quem és tu? 181

8
2.4 The lost moment: Novos “murmúrios’ na Paisagem… 186
2.4.1 O Verde instantâneo: Aspetos da paisagem na pintura
do século XX 188
2.4.2 Barnett Newman e a legitimação da Arte americana
nas ‘Paisagens primitivas’. 205
2.4.2.1 Epílogo On Newman 207
2.4.3 Esplendor na Relva 211
2.4.4 O Regresso à Pintura. 215

2.5 Considerações finais: Paisagem versus Realidade 225

Capítulo III

Always green, ever living. O Cinema e a Paisagem 238

3.1 Considerações iniciais 239

3.2 O Cinema é Paisagem: Cartografias 244


3.2.1 “Take One”: Definição de paisagem 246
3.2.2 “Framing” a paisagem 248
3.2.3 Tipologia de perceções da paisagem 253
3.2.4 Paisagens de mapeamento cinematográficas 256
3.2.5 Nação e estética 257

3.3. Entre a configuração espacial e a paisagem no cinema 266


3.3.1 Cenário cinematográfico versus paisagem 269
3.3.2 Autonomia e interpretação 277
3.3.3. Cinema e a "paisagem autónoma” 282
3.3.4 A Paisagem é intencional 288
3.3.4.1 A paisagem nos sonhos de Akira Kurosawa. 291
3.3.4.2 O Teorema da Paisagem em Pasolini. 301
3.3.4.3. L'avventura versus Blow-up.
Paisagens em Antonioni 303
3.3.4.4. A Paisagem indiferente de Jean-Luc Godard 313
3.3.4.5. Manuel de Oliveira e a paisagem como tragédia 317

3.3.5 A Paisagem do espectador, ou a paisagem "impura" 331

“Planos Finais” - Conclusão 336

9
Referências Bibliográficas 343

Créditos fotográficos 379

Filmografia 399

Anexos 414

10
11
Fig. 1
Pierre-Auguste Renoir, Os Montes à volta da Baia de Moulin Huet, Guernsey, 1883.

Introdução

12
A escritora dinamarquesa, Karen Blixen, abriu as suas memórias dos seus 17
anos no Quénia com as já icónicas palavras:

“Tive uma fazenda em África, no sopé das Ngongo (…)

(…) A situação geográfica, e a altitude combinavam-se para criar uma


paisagem inigualável... Era África destilada por dois metros de altitude, a essência
forte e depurada de um continente. As cores eram secas e queimadas, como as cores da
cerâmica. As árvores tinham uma folhagem leve e delicada, com uma estrutura
diferente da Europa; não crescia em arcos nem em cúpulas, mas em camadas
horizontais, fazendo com que as árvores solitárias e altas se assemelhassem a
palmeiras ou conferindo-lhe um ar heroico e romântico de galeras de velas
desfraldadas e à orla da floresta uma estranha aparência, como se toda ela vibrasse
ligeiramente. Sobre a relva das vastas planícies havia velhas árvores dispersas,
retorcidas e espinhosas, e a erva era aromática como o tomilho e a murta (…)

Todas as flores que se encontravam nas planícies ou nas trepadeiras e lianas da


floresta eram minúsculas como flores dos prados (…) os panoramas eram imensamente
vastos e tudo o que se avistava evocava grandeza, liberdade uma nobreza inigualável.
A principal característica da paisagem, e da vida que nela se vivia, era ar… O céu
raramente tinha uma tonalidade mais forte do que o azul-pálido ou lilás, com uma
profusão de nuvens imensas, imponderáveis, em constante mutação, acauteladas ou
parecendo vogar, mas era sempre de um azul vigoroso que, a uma curta distancia,
tingia as cordilheiras e os bosques de um azul-escuro intenso."1

Mais do que um livro de memórias da autora, este livro é uma homenagem a


todo um continente. Karen Blixen descreve detalhadamente os hábitos, as culturas e os
rituais dos Somalis, dos Massais e dos Kikuyus, assim como o colonialismo inglês na
África Oriental, tanto numa perspetiva institucional como social. A obra também é um
retrato de um modo de vida em comunhão com a natureza, a paisagem e com aquilo que
há de mais primitivo na humanidade

Além do imediatismo sensorial de uma lembrança como esta, a paisagem

1
In BLIXEN, Karen, África Minha, Clube do Autor, Lisboa, 2011. P. 11-12.

13
Fig. 2, Frame, Out of Africa, Sydney Pollack, 1985.

Fig.3, Frame, Out of Africa, Sydney Pollack, 1985.

14
também nos pode fornecer uma série de categorias refletidas que podem caber como
modelos perante a nossa comunicação com a natureza. Todos temos alguma recordação
ou alguma memória visual ligada à paisagem nas nossas vidas como a de Karen Blixen.
Normalmente essas memórias - deslocam-se da cidade para fora - consistem em
experiências sensoriais em parques, nos subúrbios, nas florestas, em lagos, nas costas,
nas montanhas, no deserto, ad infinitum. Estas categorias naturais permitem que o nosso
sentido de perceção e de reorganização descubram etapas sequenciais.

A noção de "olhar" em torno da qual a tese é construída levou a implicação, de


seção em seção e através do tempo, que a paisagem na arte deve ser entendida como um
meio de transmitir uma certa visão ou consciência do mundo natural e como a forma de
dar substância a esta impressão que paira sobre a consciência dessa visão. Segue-se que
o papel e o funcionamento da memória, precisam ser extraídos de forma mais explícita.

A memória é antes de tudo uma faculdade: uma que, nas palavras de Santo
Agostinho no seu diálogo. De magistro2, nos permite falar de "coisas que pensamos e
sentimos". Ao comunicar a lembrança, a contemplação mental permite que o que agora
já não está mais presente nos nossos sentidos sirva de base para o reconhecimento de
uma experiência compartilhada. Essa forma falada de imagens "produzida nos salões da
memória" leva, portanto, um carácter de veracidade para os outros.

A relação entre a memória, como um repositório de imagens permeando a


consciência e a transmissão e reconhecimento de sentimentos tem importantes
implicações nesta reflexão. A maneira como o mundo físico é tratado, como se regista
visualmente e assume o seu poder visual é profundamente relevante para o manuseio
dos materiais da paisagem na arte. Os termos da relação permitem que a experiência
seja captada num sentido de primeira ordem. Isso acontece através dos próprios
processos de representação que constituem a faculdade da memória e não como um
subproduto psicológico das perceções e pensamentos ligados a essa experiência.

A memória do “olhar” é ao mesmo tempo construída social e culturalmente, que


ela reúne e coloca em primeiro plano quando é necessário. Ao lidar com os elementos
pictóricos e sensoriais separados uns dos outros no tempo, também é essencialmente

2
In De Magistro, St. Agostinho, Editora Vozes, S. Paulo, 1994.

15
uma operação social que define como eles vão juntos, ou o que eles têm em comum, e
então o que permite que esses dados sejam recuperados numa retrospetiva visual. É
igualmente numa base culturalmente partilhada que a nostalgia do lugar, das paisagens e
do passado implica um retorno em direção a um estado anterior da existência, marcado
por um papel comum e lembrado, que nos é dado pela natureza.

Escrever sobre a paisagem pode ser como uma “pintura na tela”, na medida em
que a memória é usada criativamente em ambos os casos - para evocar algo que não está
mais diante dos olhos.

Uma introdução a esta tese deve, em primeiro lugar, justificar o seu título: A
Paisagem nas Artes Visuais: de Friedrich a Vertigo (Alfred Hitchcock). Pretende-se
uma visão “renovadora” da paisagem nas artes visuais que permita ou revele o seu
denominador comum à pintura e ao cinema, áreas que serão abordadas nesta
investigação, e principalmente identificar uma história cultural do olhar através da
paisagem. Esse denominador comum define ou redefine a natureza desta temática. Os
artistas citados no título poderão ser considerados os balizadores históricos do tema a
estudar, pois caraterizam um tempo e uma paisagem histórica. O resultado é uma tese
que interpreta uma visão sobre a paisagem nas artes visuais, de uma relação do cinema
com a fisicalidade do nosso mundo e como o cinema nos ajuda a construir uma ideia e
um olhar de paisagem.

Este estudo pretende relançar mais “olhares” sobre a temática da Paisagem nas
artes visuais. Existindo já várias dissertações académicas em Portugal onde a paisagem
é abordada centralmente, lateral ou transversalmente, pretendemos contribuir para um
estudo renovador, original e que coloque questões contemporâneas a esta temática. Sem
pretender sermos pretensiosos ou “impertinentes”, gostaríamos que esta investigação
fosse uma espécie de “ramo distante”, contemporâneo, de ideias que foram abordadas (e
“plantadas”) por Kenneth Clark, na sua A Paisagem na Arte, e que estiveram na origem
de estudos contemporâneos tão pertinentes como a Landscape in Western Art de
Malcolm Andrews ou o Landscape and Power de Mitchell.

No inicio do século XXI, assiste-se ao reiterar do interesse pela paisagem


entendida enquanto figuração de um sistema artístico, cultural, social e estético devido,

16
em parte, a um cuidado e preocupação crescentes com questões associadas aos riscos
ambientais que corremos e, consequentemente, a uma maior importância conferida ao
tema da ecologia.

A atual condição de crise faz com que o que era até agora invisível se torne
radicalmente aparente, tornando assim patentes as nossas preocupações com as questões
da morfologia, da ecologia e da estética da paisagem. Sobre a paisagem geram-se então
expectativas como se esta fosse a chave que permitisse a resposta a muitas questões de
gestão do espaço e das atividades que nele se desenvolvem, certamente devido ao
potencial de integração que oferece.

Os filósofos têm introduzido novas ideias e trazem uma nova luz sobre o
fenómeno da paisagem. Também um novo tipo de estudos que parte de uma visão
interdisciplinar onde se relacionam a linguística, a geografia, a história, a sociologia, a
arquitetura, a arte, o cinema, os estudos visuais e a literatura, entre outras várias
disciplinas, está a abrir novas vias ao conhecimento sobre um tema que aparece cada
vez mais pluridisciplinar, e complexo.

O interesse pela paisagem é cada vez mais alargado, decorrendo da


multifuncionalidade que lhe é inerente. A paisagem, capaz de responder às mudanças ao
longo do tempo, às transformações, adaptações e sucessões, surge como a única
entidade capaz de se adaptar à abertura, indeterminação e mudança exigidas pelas
condições urbanas e políticas de hoje.

Com esta análise queremos e desejamos uma reflexão sobre as diferentes


dimensões contidas na temática da paisagem nas artes visuais, artística, cultural e
estética. Para a pesquisa e levantamento, serão adotados métodos que têm a ver com o
trabalho e pesquisas desenvolvido por artistas, filósofos e teóricos do século XX e do
século XXI.

O nosso território de pesquisa pretende abordar as artes visuais (pintura e


cinema) e o “olhar condutor” é a temática da Paisagem. Ao conceito de paisagem é
inerente uma multifuncionalidade histórica, que se associa desde sempre aos conceitos e
às práticas artísticas, estéticas e da produção cultural. Esta polivalência modificou-se

17
com o movimento moderno. A complexidade do conceito de paisagem destaca-se por
ser uma realidade multifacetada, permitindo um largo espectro de definições e
aproximações largamente determinadas pela abordagem e especialidade de quem o
utiliza e é cada vez mais objeto de múltiplas questões, interpelando-nos a um saber
multidisciplinar e a uma transversalidade de olhares.

Importa referir que esta investigação não é uma história da paisagem na arte, não
é uma história das relações da arte com a paisagem, mas é um contributo para avaliar a
aproximação entre a arte e a paisagem, e principalmente como olhamos para e através
dela. As ideias contribuidoras para esta tese não podem ser chamadas de “navegadoras
ou exploradoras” de si mesmas. Existentes como ideias dos “territórios”
cinematográficos, artísticos, culturais, visuais que descrevemos aqui, são vistas mais
corretamente como desbravadoras ou guias, que possuem um conhecimento único e
experiência dos vários conhecimentos que percorrem esta tese. Como pensadores,
atuámos em remover os adicionais, mais como mapa-fabricante destas terras visuais,
que são habilmente vistoriados por outras análises teóricas

A estrutura do trabalho encontrou uma divisão adequada em três partes, a


primeira, reservada à análise de definições e ideias catalisadoras para o pensamento
sobre a paisagem, a segunda um percurso histórico-artístico e simultaneamente visual
sobre a contribuição da paisagem para a história da arte nos últimos séculos e
finalmente uma terceira parte, onde analisamos a relação da paisagem com o cinema e
definimos um argumento para uma configuração de uma história cultural sobre um olhar
de paisagem.

As três partes articulam-se entre si por uma lógica inicial de separação das
entidades vitais da tese — a paisagem, a arte, o cinema— que evolui, depois, para uma
lógica de reunião dos pólos considerados, ou seja, uma construção de um olhar de
paisagem. O tema apresenta uma condição centrífuga a que se tentará dar uma
orientação centrípeta de capítulo a capítulo.

Os capítulos I e II, respetivamente intitulados “O retorno à Paisagem” e “De


Friedrich a Kiefer: A Paisagem na Pintura”, constituem os fundamentos que sustentam
a reflexão posterior ao construir uma reflexão sobre um “Olhar de Paisagem” ou uma

18
história cultural através desse olhar, nos domínios enunciados, ao condensar a
informação e as principais perspetivas de investigação abertas sobre estes temas,
inscrevendo-os num âmbito interdisciplinar. Estes dois capítulos procuram ainda
mostrar o interesse crescente por estas matérias, quer no âmbito da pesquisa teórica,
quer no interior da prática artística, quer, ainda, num campo mais extenso em que se
reconhece um interesse generalizado da sociedade pela paisagem. As razões que
explicam tal interesse serão também debatidas.

No capítulo III, que evolui cronologicamente, sentir-se-á a transição de um


paradigma em que a paisagem define um olhar, percorrendo a relação entre o cinema,
pintura e cinema, até chegar aos vários cinemas nacionais que ilustram o que
escrevemos.

Para clarificar as circunstâncias e o contexto de paisagem em que o cinema a


insere, apresenta, e principalmente como é recebida, o capítulo III estabelece uma
tipologia de perceções, em função de critérios conceptuais, organizativos e formais. O
último subcapítulo do capítulo III faz a recensão da problemática que emerge da análise
desses casos, o que lhe confere um carácter de conclusão. Por este motivo, a última
parte é preenchida por Considerações Finais que fazem uma leitura global do trabalho
empreendido e perspetivam hipóteses de continuidade.

Cada capítulo envolve considerações de natureza metodológica exigidas, em


particular, pela dimensão teórica, visual, poética e historiográfica dos capítulos I e II, e
pela necessidade de explicitar os critérios que levaram ao estabelecimento de tipologias
e à seleção de casos de estudo, no capítulo III. No entanto, para lá dos presumíveis
casos metodológicos específicos que presidiram a essas áreas do trabalho e que,
pontualmente, serão esclarecidos, é incontornável uma apreciação metodológica global
que faça ressaltar as dúvidas com que nos debatemos e de uma consciência sobre a sua
situação interdisciplinar.

Com uma formação no domínio das Belas Artes (Pintura e Escultura) e História
de Arte, tendo a prática das Artes plásticas, sendo Assistente Universitário num
Departamento onde se ensina como desenhar elementos da paisagem, um doutoramento
“emoldurado” por uma Faculdade de Belas Artes que “conquistou” para os “territórios”

19
teóricos e historiográficos o cognome de “ciências da arte”, faz com que investigar um
tema como o nosso, implique apreciações oriundas da história da arte, dos estudos da
cultura visual, das artes e do cinema.
Esta disparidade de referências prestava-se a interrogações importantes sobre o
campo privilegiado de pesquisa desta tese e sobre os valores e princípios que lhe são
inerentes.

Ao longo da história da arte, até muito recentemente, a paisagem tem sido


tratada na maior parte como um recipiente ou um surround para as ações e os eventos;
ou como uma fonte de informações sobre os diferentes mundos reais ou possíveis, que o
artista apreciou. Essas preocupações colocam uma limitação forte sobre o tipo de
caracterização que é feita, e como ela está estabelecida.

Elas são manipuladas para ressoar em toda uma gama de relações com a
descrição artística. As paisagens podem ser consumadas para transportar associações e
alusões, e desta forma tornar-se indiciadas da importação imaginativa ou poética.
Podem ser dadas a uma acentuação figurativa, ou serem dotadas de um poder simbólico
do afeto.

As representações de paisagem, ao ter essas propriedades abrem o campo


interpretativo do olhar e da perceção do observador. Tanto a teoria retórica, nas suas
preocupações de longa data com o crescente poder da linguagem, e os
desenvolvimentos conceituais recentes no campo da linguística podem ser adaptados
adequadamente para o campo do visual.

Um estudo semiótico em grande escala também se iria concentrar mais


especificamente sobre a sobreposição e as diferenças entre os médiuns, como eles
suportam o enframing, fazem a distribuição de imagens de paisagem numa variedade de
formas, e na sua utilização para fins comunicativos. Houve uma época em que a teoria
procurou e se manifestou sobre o papel interpretativo da arte, relacionada com as ideias
dentro de seus contextos históricos, com o auxílio de um escrutínio crítico intensivo das
ligações e de ideias análogas descobertas. Mas hoje, na sua exigência e tendência para a
auto duplicação, já que se debruça sobre a procura de situar ideologicamente o que foi
dito anteriormente, logo essas ideias podem ter o efeito de apagar tudo o mais que é

20
pertinente para as obras em questão. Ou pode deixar de integrar um conjunto suficiente
de casos individuais, juntamente com as condições de os encaixar de forma convincente,
na sua trajetória contínua de discussão.

A investigação bibliográfica sobre a paisagem conduz-nos inevitavelmente a um


campo extenso de matérias que vão da arquitetura à arte, da geografia ao cinema, dos
estudos culturais, aos estudos visuais, o que impôs a necessidade de consulta, sem
intento de exaustividade, de alguns dos autores mais referenciados nestes domínios
reveladores da partilha de preocupações científicas entre diferentes áreas.

Esta investigação não tem como objetivo constituir uma perspetiva desses
contributos, mas aproximar-se teoricamente dos seus pontos de vista e de problemas
válidos para o tema central que nos ocupa.
Convém acautelar que a reflexão sobre as dificuldades de delimitação dos
campos de estudo não visa tanto chegar a um pensamento rigoroso e espartilhado, como
despertar para a sua situação num plano mais abrangente que desmonta a objetividade
cega, a universalidade e o sentido de finalização de qualquer tese.

Quais as implicações das nossas experiências visuais, num mundo cada vez mais
centralizado no olhar?
Essas são algumas das inquietações que fundamentaram a sedimentação da
proposta dos Estudos Visuais. Estudos Visuais, Cultura Visual ou os Estudos da Cultura
Visual são os nomes que o este campo já recebeu de seus principais interlocutores. Uma
das denominações mais comuns é fornecida pelo americano W.J.T. Mitchell3. Para ele,
os Estudos Visuais referem-se ao campo de estudo, enquanto Cultura Visual é o objeto.
Assim, Estudos Visuais são a apreciação da Cultura Visual.

3
William John Thomas Mitchell (1942) - conhecido como W.J.T. Mitchell - é o Gaylord Donnelley
Distinto Professor de Inglês e História da Arte na Universidade de Chicago. Ele também é o editor da
Critical Inquiry, e contribui regularmente para a revista October. As suas monografias, Iconology (1986)
e Picture Theory (1994), concentram-se na teoria dos meios de comunicação e na cultura visual. Ele
baseia-se em ideias de Sigmund Freud e Karl Marx para demonstrar que, essencialmente, devemos
considerar as imagens como coisas vivas. A sua coleção de ensaios O que querem as fotos? (2005)
ganhou o prémio prestigioso da associação da língua moderna James Russell Lowell em 2005. Numa
recente entrevista de podcast Mitchell traça o seu interesse na cultura visual para o trabalho inicial de
William Blake, e o seu florescente interesse em seguida, para o desenvolvimento de uma ciência das
imagens. Na mesma entrevista, ele discute os seus esforços em curso para repensar a cultura visual como
uma forma de vida e à luz da média digital.

21
Para Hal Foster 4, o interesse das questões levantadas por essa temática reside na
forma em que as noções de universalidade e de contingência determinam o que nós
precisamos saber sobre a arte. A questão de identificação e da definição de arte tornou-
se especialmente relevante no contexto da ascensão dos Estudos Visuais e do seu
desafio a alguma das suposições protegidas na história da arte "Hoje o cânone é menos
uma barricada para atacar do que uma ruína para escolher através dele”5

Infeliz com a perspetiva de que o discurso da arte deve tornar-se apenas mais
uma das variadas formas de produção visual analisada pelos estudos visuais, Foster
traça uma genealogia de pensadores análogos, como Walter Benjamin e Erwin Panofsky
ou Michel Foucault e André Malraux, cujos escritos passados faz-nos pensar sobre o
conceito de arte nos nossos dias atuais.

É Benjamin, um autor que tanto lamentou o fim da arte na era da reprodução


mecânica que lhe atribuiu uma força redentora na vida da cultura, com quem Foster
mais se identifica. Ele argumenta a consideração, não do que é arte, mas sim quando é
arte. Sensível ao falhanço de todas as definições, mas apaixonadamente comprometido
com o significado cultural das artes, a posição de Foster é de um "essencialismo
estratégico". Há momentos, que ele acredita que é necessário insistir que a arte se eleva
acima da objetividade, mas nessas ocasiões em última instância, resolve a questão de
como esses momentos podem ser caracterizados.

Talvez o desafio mais direto com os pressupostos da tradição estética é do ensaio


de Kobena Mercer6 sobre Romare Bearden7. "Trazer os estudos culturais para uma

4
Harold Foster (1955) é um crítico de arte e historiador de arte americano. Estudou na universidade de
Princeton, na universidade de Colômbia, e na universidade da cidade de New York. Ele lecionou na
Universidade Cornell de 1991 a 1997 e tem estado na Universidade de Princeton desde 1997.
A crítica de Foster centra-se no papel da vanguarda no pós-modernismo. Em 1983, ele editou The Anti-
Aesthetic: Essays on Postmodern Culture, um texto seminal no pós-modernismo. Em Recodings (1985),
ele promoveu uma visão do pós-modernismo que simultaneamente envolveu a sua história de vanguarda e
comentou sobre a sociedade contemporânea. Em O Retorno do Real (1996), propôs um modelo de
recorrência histórica da vanguarda, em que cada ciclo melhoraria os inevitáveis fracassos dos ciclos
anteriores. Vê as suas funções como crítico e historiador da arte como complementares ao invés de
mutuamente opostos.
5
In FOSTER, Hal, Recodings: Art, Spectacle, Cultural Politics, 1985. Bay Press.
6
Kobena Mercer (1960) é um distinto historiador e escritor de arte britânico, que escreve sobre arte
contemporânea e cultura visual. A sua análise teórica sobre Robert Mapplethorpe e Rotimi Fani-Kayode
foi descrita como "uma das críticas mais incisivas (e deliciosas a serem lidas) de políticas simples
baseadas na identidade no campo dos estudos culturais".

22
abordagem à história da arte e às preocupações estéticas," Mercer defende o que ele
chama de “diáspora estética” para os valores da estética que não tem nada a ver com o
desinteresse da tradição idealista e com tudo o que tenha a ver com a política de uma
identidade nacional particular.

Num artigo8, Tom Kaufmann9 oferece-nos uma outra perspetiva sobre as


reivindicações da estética tradicional. Longe de ser o produto da razão desapaixonada, a
filosofia idealista estava profundamente mergulhada nos valores culturais do momento
histórico em que ela foi concebida: "A disciplina foi formada e cresceu durante a era do
nacionalismo"10 Kaufmann mostra que os pais fundadores da história da arte - como
Alois Riegl e os membros da Escola de Viena - compartilhavam pressupostos racistas
que haviam sido uma característica da filosofia do Iluminismo.

Podem ter olhado para um espectro mais amplo do mundo da arte, mas
argumentaram que a arte dos diferentes povos foi diferente por causa do seu curso
histórico. "Mesmo onde o preconceito estético de um tipo pode parecer ausente,
pensando em termos de estereótipos, e, portanto, recorrer a outros tipos de
preconceito, não apenas de um tipo hermenêutico neutro, pode determinar a quota de
argumentos sobre a história e a estética. "11 A arte do mundo foi múltipla, mas para os
estudiosos vienenses a variedade pode ser julgada e ordenada de acordo com critérios
que inconscientemente manifestam uma eurocêntrica, e até mesmo germânica, visão.
O discurso de Karen Lang12 dramatiza a tensão entre a abstração da estética
filosófica e a textura do momento histórico na escrita de Erwin Panofsky. Lang sugere

7
In BEARDEN, Romare, African American Modernism at Mid-Century, In Michael Ann Holly & Keith
P. F. Moxey (eds.), Art History, Aesthetics, Visual Studies. Sterling and Francine Clark Art Institute. pp.
29--46 (2002)
8
In KAUFMANN, Thomas, National Stereotypes, Prejudice, and Aesthetic Judgments in the
Historiography of Art, in Art History, Aesthetics, Visual Studies, Ed by Michael Ann Holly and Keith
Moxey. 2002.
9
Thomas Kaufmann (1948) é um distinto estudioso da arte centro-europeia do Renascimento e do
Barroco. O seu interesse pela arte do Sacro Império Romano sob o domínio dos Habsburgo, numa época
em que os historiadores da arte favoreceram a Itália e a Europa Ocidental, levou-o também a
investigações inovadoras sobre o papel da geografia na criação da arte. O seu interesse pela arte da
Europa Central centrou-se inicialmente no tribunal de Praga de Rudolf II, que trouxe artistas de toda a
Europa para Praga.
10
Id. Ibid., p.76.
11
Id Ibid, p.77.
12
Karen Lang ensinou no California Institute of Technology (Caltech) e na University of Southern
California antes de ir para a Universidade de Warwick em 2011. Ela tem escrito muito sobre arte
moderna e contemporânea, estética filosófica e história da história da arte. Foi editora-chefe do The Art
Bulletin, a revista líder de revistas internacionais de história da arte (2010-2013).

23
que a preocupação de Panofsky com a estética, caracterizada mais profundamente nos
seus primeiros escritos, do que no seu trabalho posterior, tendem a ser de natureza mais
histórica.
Ela coloca a questão subjacente, no entanto, para a disciplina como um todo.
"Como é que um objeto estético em última análise, incognoscível se torna um objeto de
conhecimento disciplinar?"13 Panofsky parece ter sacrificado a estética com a sua
preocupação com a "experiência sensorial e experiência afetiva" para uma distância
segura entre sujeito e objeto, um "ponto de Arquimedes", da qual o historiador poderia
sentir-se seguro de que o seu trabalho constituiu uma contribuição para algo fixo e
permanente chamado de "conhecimento".

De acordo com Lang, o dispositivo que Panofsky encontrou na estética


subordinada à história foi o conceito de estilo. A ideia de estilo, argumenta, engloba a
qualidade da resposta, mas relativiza-o por meio da ideia de história.
É no conceito de memória que Ivan Gaskell14 encontra uma maneira de apagar a
fronteira entre a valorização estética e não-estética das obras de arte. Muitos exemplos
de seu “modelo escolhido” contaram que das suas memórias dos seus primeiros
encontros com a obra de Jeremiah de Rembrandt no Rijksmuseum, a resposta estética
foi inextricavelmente entrelaçada com a informação circunstancial.

Foi o suficiente de a textura da vida quotidiana naquelas recordações para


sugerir que as considerações estéticas não poderiam ser distinguidas como uma resposta
separada. "Em todos os casos a conjugação da memória como conhecimento afetou os
encontros sucessivos com ambas as reproduções e o original numa relação progressiva
sempre em desenvolvimento entre o objeto e o espectador." 15

Enquanto o seu artigo sugere que o valor estético é um aspeto necessário da


nossa experiência de uma pintura-como com essa de Rembrandt - poderíamos

13
In LANG, Karen, Points of View in Art History and Aesthetics, In Art History, Aesthetics, Visual
Studies, Ed by Michael Ann Holly and Keith Moxey. 2002. p. 61.
14
Ivan Gaskell é professor de História Cultural e Estudos de Museus no Bard Graduate Center. O seu
trabalho sobre a cultura material aborda interseções entre história, história da arte, antropologia e
filosofia. A sua principal preocupação académica é mobilizar traços não-escritos do passado para iluminar
aspetos da vida de atores humanos que de outra forma permaneceriam obscuros.
15
GASKELL, Ivan The Language of Art History (Cambridge Studies in Philosophy and the Arts 1).
(Gaskell, Kemal S). Cambridge and Nova Iorque: Cambridge University Press; 1991. P.45.

24
perguntar, a que extensão é atribuível uma resposta ingénua e até que ponto porque
reconhecemos o trabalho como pertencente ao cânone da grande arte?

Gaskell afirma que a localização do seu argumento em memórias pessoais


recusa-se a " dar crédito à falsa escolha entre a avaliação estética e a sua renúncia aos
estudos visuais.”16

Foi WJT Mitchell que mais diretamente abordou as questões levantadas no


estudo da cultura visual para as disciplinas mais estabelecidas da estética e da história
da arte. Na visão de Mitchell, os estudos visuais complementam o trabalho dos dois
campos, investigando a experiência de ver.

Embora grande parte da força da nova teoria analítica esteja dedicada ao estudo
de sistemas de representação, ele acredita que a sua missão principal se encontra em
melhorar a nossa compreensão da visão, não apenas da visualidade, mas dos processos
biológicos e culturais que a nossa experiência visual torna compreensível.

"As perguntas para perguntar sobre as imagens não são apenas o que elas
significam? Ou o que elas fazem? Mas o que é o segredo da sua vitalidade? E o que
17
elas querem? " Os estudos visuais não são apenas sobre" a construção social do
campo visual,”18mas também sobre “a construção do campo visual.”19 Além do
domínio do discurso, existe uma outra coisa, é como se fossemos intérpretes do olhar
em torno das “margens” das convenções e da ideologia.
Mitchell parece romper barreiras com os pensadores pós-estruturalistas que
insistiam que não há nenhuma maneira de sair da teia da representação, nem mesmo no
nosso próprio acesso ao real, que é efetivamente obstruído.

Em segundo lugar, Mitchell quer dissipar alguns dos desentendimentos que têm
surgido sobre o campo emergente. Longe de prejudicar a distinção da arte e da não-arte,
por exemplo, pondera a cultura visual como "ambos os lados desta sempre mudada

16
Id ibid, p. 48.
17
In MITCHELL, W.J.T, Showing Seeing. A Critique of Visual Culture. In Art History, Aesthetics, Visual
Studies, Ed by Michael Ann Holly and Keith Moxey. 2002.p. 235.
18
Id Ibid. P. 236.
19
Id Ibid. P. 236.

25
fronteira que traça as transações e as traduções entre elas. "20O que a cultura visual
nega, então, não é um discurso de arte, mas sim uma definição de arte. Afirma a função
social da categoria ao negar que ela pode ser fixamente atribuída e ter um significado
universal.

Da mesma forma, ele quer dissociar a introdução dos estudos visuais de


quaisquer implicações triunfalistas da sua localização dentro de uma visão teleológica
da história, que poderia implicar. Estudos visuais não devem depender de alegações de
que vivemos numa "idade do visível" ou que a modernidade representa uma
"hegemonia" do visível.

Os Estudos visuais não devem depender do seu atraso - nalgum sentido em que
chegou ao fim dos tempos e é, portanto, a fruição da história. Pelo contrário, é uma
forma de análise que complementam as práticas institucionalizadas dedicados ao estudo
do visual que já estão em vigor, e as suas investigações não são restritas à produção
visual da "modernidade".

Alguma ideia da heterogeneidade das imagens a que os estudos visuais prestam


a atenção é sugerida por uma análise de Nicholas Mirzoeff21. Ao convocar o "fantasma"
como uma metáfora do imaginário que tem sido geralmente localizado na periferia da
atenção académica, ele prevê que o futuro dos estudos visuais será ligado a uma
consideração das convenções visuais responsáveis pela construção e manipulação dos
sujeitos sociais. "Para a cultura visual, os objetos de estudo passam a existir nos pontos
de intersecção da visibilidade e do poder social." 22

Encantado por uma capacitação para estudar todas as formas de produção visual,
em vez de apenas aquelas incluídas na alçada da história da arte e estética, Mirzoeff
diferencia amplamente, todo o espectro dessa produção, a partir de fotografias, de
sessões espíritas, a imagens de Anne Frank. Para Mirzoeff, como muitos outros
20
Id Ibid, p.236.
21
Nicholas Mirzoeff é um teórico da cultura visual e professor no Departamento de Media, Cultura e
Comunicação da Universidade de Nova York. É o mais conhecido pelo seu trabalho que desenvolve no
campo da cultura visual e nos seus muitos livros sobre esta temática. Ele também é Diretor Adjunto da
Associação Internacional de Cultura Visual e organizou a sua primeira conferência em 2012.
22
In MIRZOEFF, Nicholas, An Introduction to Visual Culture, Psychology Press, 1999. P. 56.

26
convertidos ao campo visual, está entusiasmado pela liberdade de não saber como
encontrar todas as respostas: "a cultura visual é definida mais pelas perguntas que faz
que os objetos que estuda.”23

O outro lado desta liberdade, no entanto, não é abordado. Se, seguindo o


exemplo dos estudos culturais, os estudos visuais pretendem é atingir o estatuto
disciplinar, como é que vai ordenar o vasto mundo de imagens que ele deslindou? Se a
disciplina não pode ser organizada em torno de seus objetos, então é possível organizá-
la em torno das teorias e métodos pelos quais se propõe a estudar esses objetos? Se a
ultima pergunta mais tarde a revelar-se indispensável para qualquer definição futura dos
estudos visuais, então como são esses protocolos enquadrados?

Enquanto há claramente muito a ser alcançado a partir da energia proteica


lançada libertando os estudos visuais das restrições impostas por considerações de valor
estético e pelo conceito de arte, se não aspiram a alguma forma de identidade, as suas
atividades ameaçam dissipar-se na falta de uma forma.

O autor questiona se os estudos visuais seriam a parte visual do movimento dos


estudos culturais. Para ele, a grande virtude do novo campo é nomear uma questão em
vez de um objeto teórico bem definido. Diferente do feminismo, estudos de género, raça
e etnicidade, não se trata de um movimento político, nem mesmo um movimento
académico como os estudos Culturais.
Mitchell não nega a dívida para com os estudos em género e étnicos, e para com
os próprios Estudos Culturais. Os Estudos Visuais não existiriam sem tais influências;
mas também não existiriam sem a Psicanálise, a Semiótica, a Linguística, a Teoria
Literária, a Estética, a Antropologia, a História da Arte e os estudos de Cinema. 24

Para Mitchell, a história da arte tradicional estudaria os artistas, as práticas


artísticas, os estilos e movimentos e as instituições, enquanto os estudos de cultura
visual estudariam as imagens científicas e técnicas, o cinema e a televisão, a imagem

23
Id Ibid, p. 57.
24
In MITCHELL, W. J. T. Interdisciplinarity and Visual Culture. Art Bulletin. December 1995, v.
LXXVII, nº 4, p. 540-44.

27
digital, a semiótica das imagens, a psicanálise das imagens, as exposições e as
audiências.

Este entendimento justifica uma matriz da história da arte e de estudos visuais no


presente trabalho. A esta lista deve adicionar-se o elemento-chave que é a interpretação
e o olhar, elemento que constitui a marca da História da arte e dos Estudos Visuais na
atualidade e no fundo estabelece uma dinâmica estrutural na denominada Ciências da
Arte.

28
29
Capítulo I
O retorno à Paisagem

30
1.1 Considerações Iniciais

Este é um capítulo de enquadramento teórico e de análise das ideias que são


fundamentais para compreender a noção de paisagem.
A paisagem representa um território contestado continuamente sobre o qual
atendem ou divergem, quer os interesses privados e públicos, assim como os interesses
políticos ou nacionalistas.

A paisagem constitui um habitat em que os padrões de comportamento e os


rituais do reino animal tomam o seu lugar como sujeitos a uma curiosidade e a uma
interrogação continua. A paisagem fornece uma definição para histórias e performances
encenadas (geralmente fantástica). Os interesses, individuais e coletivos, decorrentes
destas considerações ganharam uma aquisição sobre o intelecto e a imaginação desde a
antiguidade e desde o Renascimento, continuam a ser uma constante na civilização
ocidental.

As duas características mais fundamentais da arte da paisagem, ao longo do


tempo, e em diferentes culturas, consistem no funcionamento por força de compressão e
de sudação, e que estabelece uma qualidade de ressonância na mente dos “espetadores”.
Compressão e sudação envolvem o destaque a partir de uma vasta extensão ou gama de
possibilidades na natureza, os elementos que efetivamente trazem os aspetos-chave do
foco da experiência.

Ressonância faz com que o observador vá procurar na memória, através das


associações pessoalmente carregadas e caminhos de recolhimento que são
sugestivamente criados. Estes princípios operativos são aqueles que se estendem
igualmente à literatura, à poesia da paisagem, ao cinema dado que as capacidades de
visualização do leitor são canalizadas e alertam para as tonalidades emotivas expressas
por elas.

Os filósofos, teóricos e académicos têm introduzido novas ideias e trazem uma


nova luz sobre o fenómeno da paisagem no século XX e XXI. Também um novo tipo de
estudos que parte de uma visão interdisciplinar onde se relacionam a linguística, a
geografia, a história, a sociologia, os estudos visuais, a arte e a literatura, entre outras

31
várias disciplinas, está a abrir novas vias ao conhecimento sobre um tema que aparece
cada vez mais poliédrico, complexo, mas ao mesmo tempo tão acessível e reconhecível
pelas pessoas.

O interesse multidisciplinar pela paisagem é cada vez mais alargado, decorrendo


da multifuncionalidade que lhe é inerente. A paisagem, capaz de responder às mutações
ao longo do tempo, às transfigurações, adaptações e sucessões, emerge como a singular
entidade capaz de se adaptar à abertura, indeterminação e mudança exigidas pelas
condições da nossa sociedade contemporânea.
Principiaremos com as considerações pelas quais a paisagem é hoje abordada
numa grandeza sem antecedentes e investigaremos, não a emergência, mas a
densificação deste objeto de estudo.

A elucidação e a análise da terminologia abrangerão uma parte fundamental


deste capítulo, na tentativa de diferenciar a conceção de paisagem de outros conceitos
que se interligam no mesmo espaço teórico: natureza, território, ambiente, ordenamento.
Prosseguiremos com as várias perspetivas sobre a paisagem, nas quais
analisaremos as reflexões principais e os autores que para nós são os mais marcantes
para clarificar as nossas questões sobre a paisagem e para nos ajudar a fundamentar a
nossa perspetiva sobre a paisagem nesta tese.
Finalizaremos este capítulo com uma análise ao livro de Clark, A Paisagem na
Arte, marcante e fundamental para ajudar ao entendimento da paisagem com as artes
visuais.

32
1.2. Abordagens Multidisciplinares da Paisagem

A paisagem, cultivada ou selvagem, já é artificial mesmo antes de se tornar


assunto de uma obra de arte. Mesmo quando simplesmente olhamos, já a estamos a
moldar e a interpretar. A paisagem pode nunca alcançar uma representação de uma
pintura ou de uma fotografia, no entanto, algo significativo acontece quando a” terra”
pode ser percebida como «paisagem».
Podemos muito bem seguir o impulso do desenho ou da fotografia, de uma
fração de terra particular em vista, e denominar a imagem resultante de «paisagem»,
mas não é a tomada formal de um registo artístico de apreciação, o que constituiu a terra
como «paisagem». Sendo nós artistas ou não, temos vindo a fazer este tipo de conversão
mental há séculos.

O habitat faz parte de toda a história da nossa relação com o ambiente físico, e a
tradição visual da representação da paisagem, tem desde o início sido um elemento vital
nesse relacionamento. Paisagens pictóricas levam a imagens paisagísticas, e existem
várias genealogias tipológicas neste género.
As fotos de paisagens também reproduzem preconceitos visuais que podem
nunca encontrar expressão formal nas obras de arte, mas que são influências para
modelar “momentos cruciais” em termos da maneira como podemos responder em
particular, tanto para o nosso meio ambiente natural como para as imagens do meio
ambiente.

As ilustrações desta tese incluem muitas imagens familiares e na sua própria


familiaridade têm contribuído para a maneira pela qual percebemos e percecionamos o
mundo que nos rodeia como paisagem. Estas obras de arte não são os produtos finais,
iniciam os estímulos, não raros em todo o processo de perceção e de conversão.

Essas questões parecem infinitamente ramificadas e centram-se nas questões


discutidas nos capítulos que se seguem. Esta análise não se destina a ser uma história da
pintura de paisagem ou de forma mais ampla da arte da paisagem.

A nossa intenção incide sobre a análise das questões já levantadas na nossa


introdução. É nossa preocupação não apenas conduzir o nosso leitor através de uma

33
espécie de galeria de arte, ou mais particularmente através dessas salas dedicadas às
Paisagens (apesar de que é uma atividade bastante agradável), mas que levantam
questões sobre a nossa relação com o tema da paisagem e a da sua visualização.

No entanto, o termo paisagem tem aparecido, com frequência, ligado a uma


abordagem mais tradicional, como a que a concebe enquanto “reflexo exterior do meio
geográfico”25. Só recentemente é que se tem difundido uma bibliografia que relata a
paisagem através de outros prismas, buscando aproximações com uma antropologia do
imaginário, com os estudos culturais e os estudos visuais26.

Porém, o que é a paisagem...? Antes de ser uma questão retórica, trata-se de uma
preocupação em analisar e construir um referencial. A Paisagem é um daqueles
conceitos evasivos, que pode ser tudo ou ao mesmo tempo ter um significado
específico, ambivalente, como na análise de Yi-Fu Tuan.27 Para este autor a perceção da
paisagem pelo homem depende da qualidade dos seus sentidos e também da sua
mentalidade, da capacidade da mente de extrapolar além dos dados compreendidos. Tais
espaços naturais estão no extremo conceptual do continuum experiencial. Existem três
tipos principais de espaço, com grandes áreas de superposição: o mítico, o pragmático e
o abstrato ou teórico.

Por exemplo, quando descrevemos cartograficamente o padrão de um solo,


usando símbolos, estamos também entrando no campo conceptual. E os sistemas
geométricos, espaços altamente abstratos, foram criados a partir da experiência de
espaciais primordiais; assim como a perceção visual é a base da geometria projetiva.

Há meio século atrás, Kenneth Clark escreveu um estudo pioneiro da pintura de


paisagem a que chamou Paisagem na Arte. Esse título assumiu um relacionamento
bastante simples entre os seus dois substantivos: para a “paisagem” significava uma boa
vista sobre um espaço de campo, enquanto a “arte” era o que aconteceu com aquela
25
In KULA, Witold. Problemas y métodos de la história económica. Barcelona: Península, 1977, p. 521
apud SILVA, Francisco Carlos Teixeira da Silva. História das Paisagens. In: CARDOSO, Ciro Flamarion;
VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). op. cit., p. 208.
26
In CORBIN, Alain. O território do vazio – A praia e o imaginário ocidental. São Paulo: Cia. Das
Letras, 1989 apud SILVA, Francisco Carlos Teixeira da Silva. História das Paisagens. In: CARDOSO,
Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). op. cit., p. 211.
27
In TUAN, Yi-Fu. Desert and ice: ambivalent aesthetics. In: KEMAL, Salim; GASKELL, Ivan (Eds.).
Landscape, natural beauty and the arts. Cambridge: Cambridge University Press, 1993

34
paisagem quando foi traduzida numa imagem pintada por uma pessoa com visão,
talento e habilidade técnica.

No título de Clark, a paisagem era a matéria-prima à espera de ser processada


pelo artista. Podemos começar por terra o que implica que, em vez de paisagem é a
matéria-prima, e que na conversão de terra numa paisagem, um processo percetivo já
começou pelo qual esse material é preparado como um assunto apropriado para o pintor,
para o artista, ou simplesmente para a absorção como uma gratificante experiência
estética. O processo pode, portanto, ser formulado como duplo: A terra para paisagem, a
paisagem para arte.

Duas questões surgem imediatamente. O que constitui a paisagem que é distinta


da terra, solo? A etimologia da palavra paisagem é assunto que remetemos para o
próximo subcapítulo. Aqui, estamos menos preocupados com a história do significado
do termo do que com a sua atual apresentação vernácula. Ao julgar o que é uma boa
vista, preferimos um determinado ângulo do campo; selecionando, editando
visualmente, suprimindo ou subordinando alguma informação visual em favor da
promoção de outros recursos. Estamos a construir uma disposição hierárquica de
componentes, dentro de uma visão simples, para que se torne uma mistura complexa de
fatos visuais e de uma construção imaginativa.

O que se distingue na análise da paisagem é a multiplicidade de abordagens para


com o conceito: da pintura de paisagens (um capítulo da história da arte) e do
paisagismo (incorporado na arquitetura e no urbanismo), o conceito expandiu-se para a
geografia (seja física ou humana), para a ecologia (por causa do movimento
ambientalista), para a história, para os estudos de cinema, para a literatura, já que se
examina a paisagem a partir de descrições de viajantes e de guias de viagens.

Tão ampla que é esta temática, que a sua linguagem extrapolou os territórios
tradicionais desses estudos, e hoje, a palavra transformou-se numa metáfora, quando se
quer localizar num cenário qualquer, um conteúdo sobre o qual se vai analisar.

Neste subcapítulo vamos tentar mapear algumas das várias abordagens acerca do
conceito de paisagem. Não se trata de construir uma teoria da paisagem, pois esta tese

35
não é uma história da paisagem, mas de abrir uma “visão” para uma análise à conceção
da paisagem através de uma teoria, de uma história cultural do olhar.

A interseção do espaço e do lugar sucede nas “areias móveis” das fronteiras da


filosofia e da estética. Não se trata de sugerir uma falta de clareza sobre uma qualquer
forma de conhecimento, mas para clarificar uma asserção sobre a imprecisão dos limites
epistemológicos que o debate sobre o espaço e o lugar, a paisagem, deve
necessariamente envolver.

O livro de Edward Casey,28 Representing Place: Landscape Painting and


Maps29, situa-se dentro do campo de geógrafos, antropólogos, sociólogos, arquitetos e
filósofos reunidos sob a bandeira pós-moderna do lugar sobre o espaço. Há algum
tempo o seu trabalho entrou, digamos num “combate”.

Este livro, o terceiro de uma trilogia, que inclui Getting Back in Place (1993) e
The Fate of Place (1997), estende a sua tese de que a noção Heideggeriana de Gebild,
que faz do mundo uma "imagem organizada que reestrutura o Mundo do qual é uma
imagem "30(revela uma tensão fundamental entre a geometria abstrata do espaço e a
fenomenologia do lugar.)

Esta fricção entre as tendências abstratas e universalizantes da vida moderna e o


potencial de cura do topos é criticada no contexto de uma cosmovisão da era do
Iluminismo que estende o espaço cartesiano e o tempo para fora do sujeito moderno.
Representing Place é uma avaliação da perda de um sentido de lugar na
modernidade, e da experiência de que Casey se associa mais de perto a uma cosmologia

28
Edward S. Casey (1939)) é um filósofo americano e professor universitário. Depois de estudar na
Universidade de Yale (BA 1961), recebeu o seu PhD da Northwestern University (1967) e ensinou em
Yale, Pacifica Graduate Institute, Stonybrook University, Santa Barbara, New School for Social
Research, Emory University, e em outras instituições. Atualmente é Professor Distinto de Filosofia na
Stony Brook University, Nova Iorque. Casey foi presidente da associação filosófica americana (divisão
oriental) e decano da faculdade das artes na Stony Brook University. Conduz pesquisas em termos da
estética, filosofia do espaço e do tempo, ética, perceção e teoria psicanalítica. Casey é um dos filósofos
mais influentes no que diz respeito à filosofia do espaço.
29
In CASEY, Edward S. Representing Place: Landscape Painting and Maps. Minneapolis/London: n
University of Minnesota Press: 2002.
30
Id., Ibid., p.234.

36
medieval pré-moderna. O seu livro propõe recuperar a ideia de o lugar através de uma
cuidadosa leitura de representações, especificamente a pintura de paisagem e de mapas.

Organizado em três partes, o livro considera como a "representação se sustenta


no lugar"31, e especificamente a representação potencial da terra vista através da pintura
e dos mapas para se recuperar ou, como diz Casey, substituir o sujeito humano no
mundo.

Na primeira parte, "Pintando a Terra", o autor traça o desenvolvimento da


importância da pintura de paisagem, além do seu papel puramente decorativo e num
meio para a representação de um emblema kantiano sublime do século XIX. A segunda
divisão, intitulada "Mapeando a Terra", propõe que os mapas primitivos também se
reapresentam e, em termos heideggerianos, enquadram o mundo vivido e o local
medido, oferecendo assim um modelo de como pensar sobre o lugar.

As partes I e II do seu livro são pensadas na medida em que não apresentam um


pensamento fora do que Casey argumenta ser uma sensibilidade pré-moderna - mesmo
que a sua cronologia se estenda até o século XIX. Além disso, uma suposição geral é
feita sobre o papel único do espaço como uma pré-condição universal para a experiência
humana. A terceira parte sintetiza os capítulos anteriores, mas focaliza especificamente
a ideia de enframing (também referida como reapresentação) que Casey argumenta que
é peculiar ao mapeamento e à pintura.

Os mapas, que Casey analisa de uma maneira perspicaz, são educativos e


esclarecedores, dai que recorramos à noção de mapas e de cartografia no terceiro
capítulo desta tese.

Na sua conclusão, Casey esboça quatro dificuldades especiais com o


mapeamento, argumenta que as quatro condições seguintes constituem a era moderna,
"como uma era em que tudo existe em conjunto para ser representado: de facto, existe
apenas como representado"32. Primeiro, o mundo como imagem é o mesmo que o
mundo-como-imagem, e como tal é maleável e capaz de o fazer. Em segundo lugar, o

31
Id. Ibid., p. 7.
32
CASEY, Op., Cit., p.273

37
mundo das imagens é enquadrado ou enquadrável; e assim com os mapas e com as
pinturas, o espectador determina os limites e as inclusões.

Mesmo na narrativa, a sequência e a ordenação das memórias é determinada.


Terceiro, o mundo é povoado por objetos que permanecem numa referência contínua a
um horizonte, seja como um horizonte de eventos que é a história dos objetos ou um
horizonte visual que é literalmente o eixo em torno do qual a perceção se desenvolve. E,
finalmente, os seres humanos são a fonte de todas as reapresentações, ou, como escreve
Kant na Crítica da Razão Pura, "as aparências em geral não são nada fora de nossas
representações"33

Assim, os nossos mapas são sempre uma aproximação da realidade, uma noção
que se torna ainda mais radical quando consideramos a afirmação de Heidegger de que
aquilo que acreditamos ser a realidade é em si mesma apenas uma aproximação, uma
imagem que construímos para nós mesmos.
O livro abrange uma vasta gama de material textual e visual, mas as fontes
primárias de Casey são as pinturas e os mapas. Como resultado, o seu livro é mais
facultoso do que a maioria dos livros da geografia humanista, porque não se afasta de
uma análise visual de certos objetos estéticos, ou seja, pinturas que normalmente estão
fora do cânone. (O autor refere particularmente os mapas “corográficos”, que são um
mapeamento qualitativo do sítio, em oposição aos mapas cartográficos, que são
quantitativos.)

O livro é uma contribuição instrutiva e importante para a interpretação das


representações na historiografia da geografia. Estranhamente, é nas suas afirmações
filosóficas que o livro encontra uma complexidade: a saber, o seu desejo de recuperar
um terreno fenomenológico para o lugar, é também por inferência conclusivo de que
existe uma noção transcendental de lugar-condição à qual a condição humana é inter -
subjetivamente sensível. Ou seja, para registar o efeito do mapa ou da pintura, devemos
ter uma consciência a priori, no sentido kantiano, de que existe tal coisa como "lugar".

O papel da representação é, portanto, um espelho. Reflete-nos a nossa

33
In KANT, Crítica da Razão Pura, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004.

38
experiência inata da diferença entre espaço e lugar. Casey foi um dos autores que se
insere num conjunto de teóricos que contribuíram para um novo olhar face a novos
desafios epistemológicos e que tomaram atitudes diferenciadas em relação ao espaço e à
paisagem.

Um dos autores mais importantes para os estudos de paisagem é John B.


Jackson3435. Num livro que reúne aulas proferidas entre 1974 e 1984, escrito sobretudo,
para um público interessado em arquitetura e no design da paisagem, o autor escreve
que esse novo movimento académico terminou por formular a problemática da
paisagem em termos que modifica o debate desta temática. O objetivo principal do autor
é familiarizar os leitores com a paisagem americana e celebrar a sua complexidade e a
sua beleza. A legitimidade desse objetivo baseia-se na suposição de que as paisagens
podem ensinar sobre a história americana, a sociedade, o povo e a sua relação com o
mundo.

Isso leva-nos à outra grande convicção de Jackson, a crença de que os humanos


são parte da paisagem e, de fato, a presença humana é a própria beleza, e essa beleza só
pode ser descoberta pela experiência em primeira mão da própria paisagem física.
Jackson oferece uma ampla crítica da academia por ter reconhecido apenas as
paisagens bem documentadas; Ele articula a necessidade de uma nova área de estudo
dedicada inteiramente à exploração e interpretação das paisagens culturais. O seu livro
seria uma apresentação informal não escrita exclusivamente para o mundo académico,
mas para os cidadãos americanos, que compartilham e visualizam essa paisagem.

Para Jackson, a paisagem “é uma realidade concreta e compartilhada


tridimensionalmente”36 Nesse sentido, a perceção só existe porque existe uma realidade

34
JACKSON, John Brinckerhoff. Discovering the vernacular landscape. New Haven: Yale University
Press, 1984.
35
John Brinckerhoff Jackson, JB Jackson, (1909 - 1996) foi um escritor, editor, professor e desenhador
no âmbito do projeto da paisagem, norte-americano. Herbert Muschamp, crítico do New York Times na
área de arquitetura, afirmou que JB Jackson era " O maior escritor vivo na América, que se debruça sobre
as forças que moldaram a terra que esta nação ocupa." Ele teve uma enorme influência na ampliação da
perspetiva teórica sobre a paisagem. Livros de referência: Landscapes: Selected Writings of J. B. Jackson
(1970), American Space: The Centennial Years, 1865-1876 (1972), The Interpretation of Ordinary
Landscapes: Geographical Essays edited with D.W. Meinig (1979), Discovering the Vernacular
Landscape (1984), A Sense of Place, a Sense of Time (1994), Landscape in Sight: Looking at America
(1999).
36
Id. Ibid., p.5.

39
empírica e objetiva que a possibilita. É nessa realidade que partem as decisões do
processo percetivo e não o contrário. A relação, no texto de Jackson, entre paisagem e
espaço é crucial.

Para o autor, não se trata de sinónimos. A paisagem não é espaço. Nem o espaço
é essa categoria, para Jackson, a paisagem é um conjunto de espaços, espaços esses
alterados pelas relações humanas.

Essa distinção entre a paisagem e o espaço também acontece na geografia. Mas,


se a noção de espaço transformado em Jackson, endereça a paisagem a uma dimensão
de sistemas construídos, tão adequada da arquitetura e do urbanismo, a disciplina da
geografia conservou a distinção entre um espaço natural e um espaço humano.

Outro geógrafo, Denis Cosgrove,3738 sustentou a ideia de paisagem como uma


maneira de olhar determinada por forças culturais e históricas específicas. Ele associa a
evolução do conceito de paisagem com o capitalismo moderno precoce e o abandono
dos sistemas feudais da posse da terra.

De acordo com este argumento, aqueles para quem a terra é o tecido das suas
vidas, para quem é sustento e ambiente da sua casa, não veem a terra como paisagem.
Eles relacionam-se com a terra enquanto participantes da mesma: para o participante
não há separação clara entre o sujeito e objeto. Existe, sim, uma fusão.

Formação social e Paisagem Simbólica não versa sobretudo sobre a


interpretação de paisagens específicas; é como um esboço histórico de ideias sobre a
paisagem, como se desenvolveram e se modificaram na Europa e na América do Norte
desde o décimo quinto século. A análise histórica que o livro apresenta, incide sobre a

37
COSGROVE, Denis. Social Formation and Symbolic Landscape. Wisconsin: University of Wisconsin
Press, 1998, p. 1-2.
38
Denis E. Cosgrove (1948 - 2008) foi Professor da cátedra Alexander von Humboldt de Geografia da
Universidade de Los Angeles, Califórnia. Frequentou a Universidade de Oxford e a Universidade de
Toronto. Foi um importante geógrafo cultural, cujo trabalho focou-se nos conceitos de paisagem e
respetivas representações. Ele foi um dos defensores da 'nova geografia cultural' que incentivou uma
nova perspetiva sobre as complexas interconexões entre os muitos aspetos diferentes das paisagens e do
mundo. Livros de referência: The Iconography of Landscape: Essays on the Symbolic Representation,
Design and Use of Past Environments (1988), The Palladian landscape: geographical change and its
cultural representations in sixteenth century Italy (1993).

40
convicção de uma abordagem de paisagens específicas tal como Jackson e outros
teoricos discutiram e idealizaram.

Esta ideia da paisagem que o autor desenvolveu resume-se numa afirmação que
se destaca no seu livro: “A paisagem representa um modo de ver um caminho no qual
alguns europeus se representaram a outros, o mundo, sobre eles e as suas relações com
ele, e no qual fomentaram relações sociais. A paisagem é um modo de ver que tem a ver
com a sua própria história, mas uma história que pode entender-se só como parte de
uma mais larga história de economia e sociedade; isto tem as suas próprias suposições
e consequências, mas as suposições e as consequências cujas origens e as implicações
se estendem bem além do uso e da perceção da terra; isto tem as suas próprias técnicas
de expressão, que compartilha com outras áreas da prática cultural.39”

A “formação social” permite-nos comentar as teorias sociais e históricas que


estruturam a aproximação do autor à paisagem. A paisagem simbólica deu uma
oportunidade de comentar os métodos pelos quais as paisagens reais e as suas
representações se aproximam no livro, e deu possibilidade de o autor voltar às questões
de mito, memória e significado, que invade a existência material de paisagens e que foi
influenciado pelo trabalho de Jackson.

Em termos paroquialmente disciplinares, Formação Social e Paisagem


Simbólica foi uma contribuição no final dos anos 70 e início do debate nos anos 80 do
século XX, dentro da geografia humana anglófona, ajustando então as primeiras
discussões e analises do que podemos ver como uma perceção tardia, qual colapso
profundo de suposições académicas, estabelecidas há muito tempo, sobre a coerência
disciplinar, método científico, verificação, objetividade e a política do conhecimento.

Naturalmente, o colapso da confiança nas grandes teorias ou “narrativas


principais” que dirigiram o projeto científico ocidental desde a Iluminismo não se
confinou de modo nenhum à disciplina da geografia, e progrediu consideravelmente
desde 1984.
O título Formação Social e Paisagem Simbólica posiciona o livro em termos
teóricos e políticos. A formação social é uma formulação marxista, discutida
39
COSGROVE, Denis, Op. Cit., p. 34.

41
detalhadamente no começo do livro e promovida como uma fuga conceptual da
tendência dentro do marxismo para subordinar tanto expressões culturais materiais
como imaginativas aos imperativos da economia política, ela mesma concebida
basicamente na produção industrial.

A maior parte da discussão histórica no livro concentra-se após um debate


historiográfico, que focava a atenção dos historiadores marxistas britânicos.
Conceptualmente, o feudalismo e o capitalismo destinam-se para designar tipos da
organização social cujas expressões legais, políticas e culturais se enraízam na
organização coletiva da produção material.

No livro, é por via de caminhos distintos, através dos quais socialmente o


homem se apropriou da terra, seja por valores próprios do feudalismo ou por valores do
capitalismo, que o autor tenta unir a perceção, as expressões e as significações
associadas à ideia de paisagem no Ocidente.

O foco na formação social em vez do modo da produção, como Cosgrove


sustenta no texto, destinou-se naturalmente como uma cláusula de fuga do determinismo
económico. Mas, como os críticos do marxismo conseguiram aludir, uma vez que as
cadeias da consciência do “ancoradouro” da casualidade e da valorização da produção
coletiva de mercadorias materiais quebram-se, como estão num marxismo humanista, a
teoria perde a maior parte da sua eficaz conceção.

Além disso, um número de discernimentos históricos e teóricos, da psicanálise,


do feminismo, e dos estudos pós-coloniais por exemplo, reconfiguraram a ênfase na
classe como a fundação da ação social dentro da historiografia estritamente marxista,
compartilhando a sua intenção crítica e progressiva de examinar a natureza e as origens
dos mundos sociais contemporâneos e procurar melhorar as suas injustiças.

Historicamente, a discussão sobre a transição para o capitalismo foi substituída


basicamente por uma análise de entendimento da evolução das sociedades modernas
largamente concebidas; sociedades essas que compartilham certas características
socioeconómicas, demográficas, políticas, culturais e espaciais, mas que também se
modificam histórica e geograficamente.

42
A sua emergência é muito mais que um resultado simples da evolução mundial e
histórica do capitalismo de mercado. No período, depois de um conscientemente
modernismo de século XX com as suas determinadas formas de indústria e da produção
de massa e das suas expressões culturais vanguardistas e das principais narrativas
ideológicas, é possível reconsiderar a história da sociedade europeia desde o décimo
quinto século.

Para Cosgrove desde a Renascença, e com mais fulgor desde o Iluminismo do


décimo oitavo século, as sociedades discutidas no livro experimentaram o seu presente,
e narraram o seu passado como uma conexão do material (demográfico, tecnológico,
socioeconómico, ambiental) e da cultura (intelectual, científico, político, artístico).

Um aspeto crucial de tal modernização é a consciência histórica de ser


“moderno”. Os valores humanistas promoveram-se por europeus até muito
recentemente como uma realização universal e progressiva, para adotar-se com um
tempo e um desenvolvimento por todos os povos, um elemento na construção de uma
identidade global moderna.

Central a esta narrativa progressiva da realização humana foi a imagem do


homem europeu individual, concebido como um sujeito universal, exercendo a
autoconsciência racional dentro de uma mente basicamente desincorporada, e dotado de
uma vontade de acionar: “o sujeito soberano de história”.

De facto, coloca-se a questão acerca daquele sujeito se é um herói invisível (ou


anti-herói) da Formação Social. O autor atribuiu as origens da ideia de paisagem à
experiência dos cidadãos burgueses nas cidades-estado italianas em relação à terra, e à
cultura humanista gerada fora da sua experiência, prestando a atenção específica ao
espaço unido e às novas tecnologias de visão e representação (perspetiva linear).

Para o autor tais complexidades da visão muitas vezes são explícitas na escrita
de um Ruskin e são prontamente evidentes em muitas das imagens de paisagem
pintadas por Giorgione, Claude Lorrain, Nicholas Poussin ou Turner.

Cosgrove pensa que o romantismo foi pouco mais do que uma expressão

43
ideológica de relações sociais capitalistas e industrialismo urbano que exemplifica os
constrangimentos, que os livros teóricos modelo, tendem a impor a uma muito mais
ricamente texturada característica de modernizar as sociedades europeias.

Na interpretação dos debates do Iluminismo, muito intensos sobre natureza


humana e as suas origens, os direitos do Homem, a liberdade e a organização
constitucional, que acompanhou o colapso dos regimes antigos europeus, assim como as
legitimações ideológicas projetadas para aliviar as etapas finais da transição das
economias de mercado capitalistas.

Para o autor as relações entre paisagem e nacionalismo romântico têm uma


história complexa que se estende durante a maioria daquele período. A emergência da
geografia como uma disciplina escolar em muitos países europeus foi em grande parte
uma expressão do nacionalismo “romântico”. Na geografia a elevação icónica da
paisagem nacional específica, que pode ler-se como uma extensão do discurso moral ao
qual a arte de paisagem já se tinha ligado durante o século XVIII. Ao contrário da
reclamação de que a geografia substituiu a arte de paisagem, o nacionalismo romântico
encontrou uma expressão artística intensa nas representações de paisagem.

No entanto, e apesar das críticas, se o texto de Cosgrove não conseguiu resolver


muitos dilemas, pelo menos inaugurou uma forma de pensar a questão: a noção espacial
de paisagem não é auto-suficiente, mas deve ser ponto de partida para reflexões mais
amplas.

Numa outra perspetiva na abordagem bidimensional da paisagem, que podemos


designar imagética, as desconstruções da segunda metade do século XX também se
fizeram sentir. No livro de Mitchell, Landscape and Power40, há uma boa síntese do que
aconteceu às leituras na história da arte.

Segundo o autor, a tendência teórica que vivificou até meados do século XX


esteve ligada a um “calendário” modernista. Preocupações com o formalismo levaram
alguns autores a uma leitura estruturalista, cuja intenção era a de estabelecer certos

40
In MITCHELL, W. J. T. (Eds.). Landscape and Power. Chicago: The University of Chicago Press,
1994, p. 1-2.

44
padrões de generalidade. E ao mesmo tempo que tinham essa pretensão, quase “a-
histórica”, utilizaram uma visão linear e progressiva da história da arte.

Assim, a pintura de paisagens progrediu através das escolas, como se as


mudanças pictóricas de tratamento, de jogo de luzes, temas, enquadramentos, etc,
fossem purificações do campo visual na obra da arte.

Logo no início na introdução do livro Landscape and Power, Mitchell escreve:


“Teses sobre Paisagem.

1- Paisagem não é um género de arte, mas um medium.


2. A paisagem é um meio de troca entre o humano e o rural, o eu e o outro. Como tal, é
como o dinheiro: bom só para si própria, mas expressiva de uma reserva
potencialmente ilimitada de valor.
3. Como o dinheiro, a paisagem é um hieróglifo social que esconde o real seu valor.
Fá-lo, naturalizando as suas convenções e ao convencionalizar a natureza.
4. Paisagem é uma “cena” natural mediada pela cultura. É ao mesmo tempo um
espaço representado e apresentado, um significante e um significado, um frame e o que
um frame contém, tanto um lugar real como o seu simulacro, tanto um pacote como a
mercadoria dentro do pacote.
5. A paisagem é um medium encontrado em todas as culturas.
6. Paisagem é uma formação histórica em particular associada com o imperialismo
europeu.
7. Teses 5 e 6 não se contradizem.
8. Paisagem é um medium exausto que já não é mais viável como expressão artística.
Como a vida, a paisagem é aborrecida; não devemos dizê-lo.
9. A paisagem referida na Tese 8 é a mesma que a de Tese 6.”41

Para o autor, a paisagem constitui um enquadramento teórico ativado por


diferentes usos e com vários aspetos. O objetivo deste livro para Mitchell, é mudar a
"paisagem" de um substantivo para um verbo. O autor pede que pensemos na paisagem,
não como um objeto a ser visto ou um texto a ser lido, mas como um processo pelo qual
as identidades sociais e subjetivas são formadas.

O estudo da paisagem, para o autor, passou por duas grandes mudanças no


século XX: a primeira (associada ao modernismo) tentou ler a história da paisagem

41
MITCHELL, W. J. T, Op., Cit., p.5

45
principalmente com base na história da pintura de paisagem, e construir uma narrativa
dessa história como um movimento progressista em direção à purificação. Do campo
visual; a segunda (associada ao pós-modernismo) acabou por enaltecer o papel da
pintura e da pura visualidade formal a favor de uma abordagem semiótica e
hermenêutica que tratava a paisagem como uma lista de temas psicológicos ou
ideológicos.

O autor esclarece que a primeira abordagem é contemplativa "porque o seu


objetivo é a expulsão de elementos verbais, narrativos ou históricos e a apresentação
de uma imagem projetada para a consciência transcendental - seja um “globo ocular
42
transparente", uma experiência de presença" ou de um "olho inocente". A segunda
estratégia é interpretativa e é exemplificada nas tentativas de decodificar a paisagem
como um corpo de sinais determinados.

É claro que as paisagens podem ser decifradas como sistemas textuais. Formas
naturais como árvores, pedras, água, animais e casas, podem ser lidas como símbolos
em alegorias religiosas, psicológicas ou políticas; as estruturas e formas características
(perspetivas elevadas ou fechadas, horários do dia, posicionamento do espectador, tipos
de figuras humanas) podem ser ligadas a tipologias narrativas como a pastoral, a
georgiana, o exótico, o sublime e o pitoresco.

O próprio autor escreve que percorremos um longo caminho desde a inocência


das frases iniciais de Kenneth Clark para a Paisagem em Arte. Mais notavelmente,
talvez, o "nós" para quem Clark fala com tanta segurança não pode mais se expressar
fora das aspas. Quem é este "nós" que se define pela sua diferença de "árvores, flores,
relva, rios, colinas, nuvens" e então apaga essa diferença, recriando-a como reflexo dos
seus próprios humores e ideias: A natureza é "marcada" por "estágios" pela pintura de
paisagem? Que perturbação exigia uma arte que restaurasse o "espírito humano" à
"harmonia com seu ambiente"?

A crítica recente à estética da paisagem - um campo que vai muito além da


história da pintura para incluir poesia, ficção, literatura de viagem e jardinagem

42
MITCHELL, W. J. T, Op., Cit., p.1.

46
paisagística - pode ser entendida como uma articulação de uma perda de inocência que
transforma todas as asserções de Clark em perguntas assustadoras e respostas ainda
mais inquietantes.

"Nós" agora sabemos que não existe um “nó” simples, sem problemas, que
corresponde a um espírito humano universal buscando harmonia, ou até mesmo a uma
"amplificação" europeia e de desenvolvimento desde a Idade Média.

O que sabemos agora é o que críticos como John Barre nos mostraram, que há
um "lado negro da paisagem" e que esse lado negro não é meramente mítico, e não
apenas uma característica das pulsões instintivas regressivas associadas à "natureza"
não-humana, mas uma escuridão moral, ideológica e política que se “cobre” com
precisamente o tipo de idealismo inocente que Clark expressa: as discussões
contemporâneas sobre a paisagem provavelmente serão controversas e polémicas.

Landscape and Power pretende absorver essas abordagens num modelo mais
compreensivo que solicitaria não apenas qual paisagem "é" ou "significa" o que ela faz,
como funciona como uma prática cultural. A paisagem, que sugerimos não significa
meramente ou simboliza relações de poder; é um instrumento de poder cultural, talvez
até mesmo um agente de poder (ou que frequentemente se representa a si mesmo)
independente das intenções humanas.

Um relato da paisagem entendida desta forma, portanto, não pode contentar-se


simplesmente em deslocar a visibilidade ilegível do paradigma modernista em favor de
uma alegoria legível; ele tem de rastrear o processo pelo qual a paisagem apaga sua
própria legibilidade e naturaliza-se e deve entender esse processo em relação ao que
poderia ser chamado de "histórias naturais" dos seus próprios espectadores.

O que fizemos e fazemos ao meio ambiente, o que o ambiente, por sua vez, nos
faz, como naturalizamos o que fazemos uns aos outros e como esses "feitos" são
decretados nos meios de representação que chamamos de "paisagem" são os assuntos
reais de paisagem e poder, para Mitchell.

A desconexão da paisagem das relações sociais produtivas com a terra, material

47
contido, tratando a paisagem simbolicamente como imagem, texto ou teatro, por
exemplo, e tomado no seu extremo a ideia de uma paisagem virtual, atraiu a crítica de
um número de escritores desde as recentes discussões teóricas sobre paisagem.

Um assunto dominante entre eles deveu segurar o sentido da paisagem como um


objeto geográfico material, abrangendo tanto a atividade humana como o ambiente
material, reconhecendo os seus atributos simbólicos sem reduzi-lo a uma mera
construção social.

As fundações ambientais e comunitárias da paisagem foram naturalmente


centrais aos conceitos geográficos da paisagem discutida atualmente. A recuperação
recente de trabalho e do pensamento de Carl Sauers43 por ambientalistas americanos,
alguns dos quais, como Barry Lopez44, que escreveram interpretações da paisagem
brilhantemente evocativas, e com a fertilidade contínua da geografia cultural como um
discurso ambiental dentro da academia americana levou a um debate ativo sobre a
paisagem dentro da geografia cultural nos últimos anos, na qual a etimologia e as
significações da paisagem se reexaminaram intensamente.

Kenneth Olwig45 por exemplo desafiou o argumento desenvolvido na Formação


Social que a paisagem surge como um modo de ver, uma construção simbólica,
basicamente substituiu a paisagem como uma experiência humana direta e da expressão
da ordem social coletiva dentro de um contexto geográfico e ambiental específico.

O autor acentua a significação contínua da paisagem como um contexto de


43
Carl Ortwin Sauer (1889/1975) foi um geógrafo Norte-Americano. Sauer foi professor de geografia na
Universidade da Califórnia em Berkeley de 1923 até tornar-se professor emérito em 1957. Ele tem sido
chamado do "decano da geografia histórica americana" e foi instrumental no desenvolvimento inicial da
escola de pós-graduação em geografia em Berkeley. Uma de suas obras mais conhecidas foi Agricultural
Origins and Dispersals (1952). Em 1927, Carl Sauer escreveu o artigo "Desenvolvimentos Recentes na
Geografia Cultural", que considerava como as paisagens culturais são feitas de "formas sobrepostas à
paisagem física".
44
Barry Holstun Lopez (1945) é um autor americano, ensaísta e escritor de ficção cujo trabalho é
conhecido por suas preocupações humanitárias e ambientais.
45
Kenneth Robert Olwig (1946) é um geógrafo de paisagem nascido nos Estados Unidos, especializado
no estudo da paisagem escandinava. Ele é mais conhecido por defender uma paisagem de compreensão
"substantiva", que incorpora os significados legais e outros significados vividos da paisagem, ao invés de
vê-la de uma maneira puramente estética. Os seus escritos incluem Paisagem, Natureza e o Corpo
Político (2002) e a Paisagem Ideológica da Natureza (1984).

48
identidade sociopolítica e de ação comunitária através da maior parte da Europa
setentrional contemporânea. Tal reclamação é indubitavelmente uma admoestação bem-
vinda contra os excessos mais selvagens de um tratamento pós-estruturalista sobre as
paisagens, quais meros simulacros, desconectados de qualquer ligação com a terra
material e da prática social real.

Tais estudos semânticos tendem a ficar confinantes em circuitos puramente


linguísticos, e pode ser que o argumento pela relevância social contínua da paisagem
como sinal de relações ambientais além do puramente visual se realize mais
efetivamente através de estudos de paisagem como no livro de Simon Schamas46
Paisagem e Memória, para recuperar as “veias” do mito e da memória que estão
debaixo da “superfície” temática.
Isto também conduz basicamente em direção à interpretação de meios de
comunicação expressivos pelos quais as relações com o mundo material se imaginaram
e se representaram: os textos, pinturas, projetos de jardins e parques, planos de cidade,
esculturas e fotografias.

A intenção do livro de Schamas não é construir uma estrutura histórica unitária


de significações e relações ambientais pela paisagem, mas, como o título de Schamas
contém, para revelar o poder da falta de compreensão mítica pela memória social, na
formação de uma identidade individual e social por meio do seu tratamento de uma
presença humana inescapável no mundo natural.

Estruturando a sua aproximação, como um ato de cuidar um jardim, em redor de


temas elementares como a madeira, água e rocha, Schama procura revelar como as
comunidades humanas desenharam imaginativamente através de características
dominantes do seu ambiente vivo, para formar uma identidade distinta.

Reconhecendo o impulso do discernimento antropológico que a identidade se

46
Simon Michael Schama, (1945) é um académico e escritor britânico, professor de História e História da
Arte na Universidade de Columbia, N.Y. Entre as suas obras mais famosas estão Landscape and Memory,
Dead Certainties, Rembrandt's Eyes, além de sua história da Revolução Francesa, Citizens. Schama ficou
conhecido por escrever e apresentar um documentário em 15 partes produzido e exibido pela BBC
intitulado A History of Britain; também é um crítico de arte para o jornal Americano The New York
Times.

49
constrói mais por meio da experiência dos outros do que pela autoconsciência
autónoma, Schama reconhece a apelação exótica de paisagens imaginativas localizadas
além do conhecido e do mundo diário: o mundo íntimo das pessoas.

Assim, por exemplo, descreve a evolução complexa de experiências do império


romano e das imagens dos territórios arborizados e não cultivados, além dos espaços
imperiais delimitados pelo Reno e pelo Danúbio: a paisagem descrita por Cornelius
Tacitus no seu Germania. Os povos selvagens e desconhecidos que não conseguiram
cultivar a terra, os habitantes destas florestas que tinham conspirado para derrotar o
poder de Roma por meio do uso estratégico da paisagem de Teutoburger Wald,
consideravam-se simultaneamente como os protetores da liberdade, conduzindo uma
vida exemplar de coletividade igualitária perto da natureza.

A vida romana e a paisagem ofereceram uma repreensão implícita à decadência


urbana imperial e sobre como exploraram os latifúndios do Mediterrâneo e da Itália. O
texto de Tacitus, forneceu para o autor, uma justificação ideológica para a significação
de uma paisagem de Wald und Fels dentro do nacionalismo romântico alemão.

Hoje, embora tenhamos fortes opiniões sobre quais os ambientes que gostamos,
raramente nos perguntamos: o que gostamos da paisagem e por que gostamos dela?
Quando publicado em 1975, a Experiência de Paisagem47 de Jay Appleton48 procurou
investigar aquelas configurações de paisagem que poderiam incitar respostas estéticas
universais nos seres humanos.

Buscando superar a lacuna entre a estética teórica e a análise detalhada da


prática das paisagens reais, os seus conceitos e teorias ainda são amplamente utilizados
hoje, no 42 º aniversário do seu livro. Construindo a sua tese sobre o trabalho do
filósofo americano e fundador da psicologia funcional, John Dewey, Appleton leva-nos
a um caminho “humilde”, mas pragmático da razão através do comportamento e do
ambiente.

47
APPLETON, Jay; The Experience of Landscape, John Wiley & Sons, 1996.

48
Jay Appleton (1919 - 2015) foi um geógrafo britânico que propôs a "teoria do habitat" e avançou a
noção da "perspetiva-refúgio".

50
A fim de compreender as fontes da experiência estética, argumenta Dewey, é
necessário recorrer à vida animal abaixo da escala humana. Claro, sugerindo que as
manifestações estéticas em seres humanos representam um impulso animal motivado
pela sobrevivência, que terá sempre os seus críticos.

Alguns argumentam que, como raça, os vestígios de comportamento territorial


podem permanecer nos seres humanos, no entanto estes são rapidamente sobrepostos
pela aprendizagem.

No entanto, não devemos esquecer que o comportamento estético do ser humano


adulto emergiu de um processo evolutivo que durou milhões de anos e Appleton
argumenta fortemente que isso basta para explicar que nossa preferência na paisagem
está no condicionamento biológico.
Simplificada e ordenada, a tese consiste no que o autor chama de "teoria do
habitat" e "teoria do refúgio-prospeto”.

A primeira baseia-se em trabalhos empíricos bem conhecidos de etólogos que


observaram que cada espécie animal procura condições ambientais ideais (abrigo),
principalmente em termos de padrões de comportamento fixos, sendo os padrões
aprendidos secundários. Quando um habitat corresponde mais ou menos às necessidades
internas, resulta uma sensação agradável, que Appleton acredita constituir nos seres
humanos a base para uma sensibilidade estética em relação à paisagem.

A aproximação de Jay Appleton às qualidades estéticas da paisagem é


certamente crua e dura de imaginar, contudo alude a uma conclusão estranha. Talvez a
beleza de uma paisagem não seja tão subjetiva como alguns podem crer, mas sim
apenas um traço evolutivo fundado na nossa necessidade muito essencial de
sobrevivência.

A apologia da especificidade da existência estética da paisagem é também um


tema central na teoria de Rosario Assunto49. A paisagem, afirma, “é uma realidade

49
Rosario Assunto (1915 - 1994) foi um filósofo italiano. Analisou as questões estéticas da filosofia a
partir de um ponto de vista histórico e teórico tratando-os não apenas como filosofia da arte e da beleza,

51
estética que nós contemplamos vivendo nela”, em contraste com a das obras de arte, que
são contempladas como “vivendo em nós” – num caso dá-se “o sair de nós” em direção
ao objeto contemplado, no outro, os objetos são como que “trazidos até nós”50.

Para o fílósofo “A experiência estética da natureza seria então esta interação na


qual o nosso contemplar intervém no constituir-se da natureza como objeto de
51
contemplação.” . Para o filósofo, o território tem uma significação quase
exclusivamente espacial, de valor amplo e quantitativo.

Outro autor que segue uma linha de pensamento análoga, ao defender a


especificidade de experiencia da paisagem em comparação com a da arte, é Allen
Carlson52. Na sua análise em Appreciation and the Natural Environment, apresenta dois
arquétipos, ambos apropriados à consideração da arte.

Referimos o segundo, pois é o que mais se adequa perante as ideias analisadas


nesta tese; arquétipo – paisagem, que tem como género artístico mais elucidativo a
pintura de paisagem, considera a obra como um cenário visto de um determinado ponto
de vista e a determinada distância e privilegia as qualidades pictóricas do desenho
envolvido pelo tratamento da cor. Segundo o autor existe uma conexão entre uma
deambulação no campo e um percurso numa galeria de pinturas de paisagem.53

Augustin Berque54 conduziu para os estudos da paisagem, não apenas as


informações visuais objetivas, a morfologia da paisagem, mas também as informações
subjetivas do observador. Para o autor a paisagem repousa na interação intrincada entre
sujeito e objeto.

mas considerando que coincide com a própria filosofia julgada como estética pura. Estudou as ideias de
Baumgarten, Descartes, Leibniz, Kant e examinou principalmente a conceção do homem e da sua relação
com a natureza.
50
In ASSUNTO, Rosario, Il paesaggio e l’estetica, p. 164-165.
51
Assunto, Op., Cit., p174-176.
52
Allen Carlson é um filósofo americano (1943). Ele é Professor Emérito no Departamento de Filosofia
da Universidade de Alberta, no Canadá. Allen Carlson é conhecido pelo seu trabalho em estética,
particularmente em torno da estética ambiental e epistemologia.
53
CARSON, Allen, Appreciation and the natural Environment, Journal of Aesthetics and art Criticism,
1979, p.269.
54
Augustin Berque, (1942), é um geógrafo francês, orientalista e filósofo. Nas suas análises sobre
paisagens compara as diferentes visões do mundo que são refletidas por uma paisagem específica.

52
A paisagem é a “mediação entre a subjetividade humana e o mundo das
coisas”55, logo, não constitui um “objeto”, não se limita à forma do envolvimento
humano; envolve uma perceção sobre as coisas e requer condicionantes culturais,
sociais e históricas; envolve o sentido da visão com todas as estruturas inerentes ao seu
funcionamento próprio: “O nosso olhar não se dirige unicamente à paisagem; numa
certa medida, ele é a paisagem.”56

Algumas décadas depois do estudo de Clark, Malcolm Andrews efectuou uma


segunda sistematização da paisagem na arte, atualizando aquele estudo, através da
consideração de movimentos artísticos do século XX que tentaram renovar a relação
entre a paisagem e a arte, mas também Andrews arquiteta um novo olhar sobre esse
património artístico, visual e cultural através de um conceito de paisagem diferente.

Para concluir este breve panorama sobre o modo como diversos pensadores de
diferentes disciplinas académicas abordam a paisagem, temos que esclarecer que
escolhemos os que são mais relevantes para a nossa perspetiva de análise e invocaremos
sempre que necessário as suas teorias nos próximos capítulos.

Em todas as ideias analisadas se verifica que a importância atribuída à


experiencia da paisagem seja ao nível da perceção individual, seja ao nível de um olhar
caracterizado por aspetos culturais e históricos.

55
In BERQUE, Augustin, Cinq propositions pour une théorie du paysage, Editions Champ Vallon, 1994.
P.25.
56
Berque, Op., Cit., p.25.

53
1.3 A paisagem como género na Pintura

A relação da civilização ocidental com o meio natural não foi uma constante ao
longo dos séculos, ao passo que na China a paisagem é uma evidência a partir do século
IV e nunca se perdeu.57 A noção de paisagem no Ocidente surgiu associada ao
desenvolvimento da arte da pintura : «É verdade que a paisagem ocidental, enquanto
esquema de visão, é originalmente pictural, e que continua a ser, mesmo na literatura,
essencialmente descritiva; (…) Não foi a pintura que induziu a paisagem, mas aquela
pintura que inventando um novo espaço quatrocentista, aí inscreveu, progressiva e
laboriosamente, a paisagem ocidental.»58
A possível génese da palavra paisagem poderá ser atribuída ao poeta Flamengo
Jean Molinet que, em 1493, a utilizou com o sentido de «quadro representando uma
região»59. Em 1549, no dicionário de Francês-Latim de Robert Estienne, o termo
paisagem designava uma pintura sobre a tela60.

Entendemos o culto do natural como um conjunto de rituais evocativos daquilo


que diz respeito à natureza e não ao transcendente; como um sistema de práticas
culturais que consagram este atributo que é projectado pelo observador em relação aos
elementos naturais e não aos símbolos do metafísico; como um louvor desta
característica que resulta da dialéctica entre o homem e a natureza, e não entre este e o
divino, adopta-se uma perspectiva pagã que opõe o natural ao sagrado, contrária a uma
posição religiosa, em que a natureza expressa sempre algo de transcendente.
Assim, afasta-se a simbólica religiosa das medievais hierofanias cristãs em que
os elementos naturais se encontravam empenhados na consagração de entidades divinas,
como na pomba do Espírito Santo e no Cordeiro de Deus, para se relevar todo um
processo de dessacralização e secularização do ambiente natural.

Para além da dicotomia sagrada/natural, a contraposição entre artificial/natural

57
In BERQUE, Augustin, Cinq propositions pour une théorie du Paysage. p.19.
58
Trad. livre do autor « Il est vrai que le paysage occidental, en tant que schéma de vision, est
originairement pictural, et qu’il est reste durablement, même en littérature, essentiellement tabulaire ;
(…) Ce n’est pas la peinture qui a induit le paysage, mas cette peinture-là qui, inventant un nouvel
espace au Quattrocento, y a inscrit, progressivement et laborieusement, ce paysage-là », in Alain Roger,
Court traité du Paysage, p. 65.
59
Id., Ibid. p. 65.
60
Ver PITTE, Jean Robert, Histoire du paysage français. Paris : Tallandier, 1983.

54
parece relevante para a reflexão sobre a problemática deste culto. O avanço da ciência,
da tecnologia, da industrialização, da urbanização, gerou um progressivo corte do
cordão umbilical da civilização europeia com a natureza e o desenvolvimento de um
ambiente artificial, totalmente construído pelo homem, onde este progressivamente se ia
integrando.
O êxodo rural gerado pela revolução industrial que implicou a deslocação de
grandes aglomerados de população agrícola para centros urbanos na busca de melhores
condições de subsistência gerou uma explosão demográfica em cidades de estruturas
pré-industriais, com consequências sociais dramáticas. Filosófica e ideologicamente
verificaram-se reações às drásticas mudanças, acabando por eclodir movimentos,
também de cunho estético, apologéticos do naturalismo que numa herança das ideias de
Rousseau, pugnavam pelo reencontro do homem com a pureza e a inocência da
natureza.

Outro dos elementos integrantes do título, trata-se do conceito de paisagem,


noção essencialmente mental que consiste na apreensão humana do ambiente natural ou
artificial, do processamento subjetivo elaborado pelo indivíduo como resultado da
evolução do seu todo cognitivo.

O homem observa o seu meio com base na conjugação da sua estrutura genética
e da sua experiência cultural, através do seu sistema sensitivo, sentimental e racional,
produzindo observações multifacetadas e mutáveis que decorrem da sua irrepetível
identidade. Por outras palavras, configura-se uma dualidade ontológica entre a alterável
visão que o indivíduo elabora do ambiente, onde reside a noção de paisagem, e o
próprio meio que lhe é exterior e que se consubstancia no referente a partir do qual se
eleva aquela noção. Assim, entre o observador e a natureza desenvolve-se uma dialética
que funde o cultural e o natural, e que vai se alterando com o decorrer do tempo, para
dar origem à paisagem.

Todo este processo estabelece-se a priori em relação à representação estética da


paisagem, contudo, historicamente, a sua concretização artística precedeu o seu
aparecimento no séc. XVI, enquanto conceito e palavra. Todavia, considerar que o
homem não dispunha de uma imagética paisagística decorrente da unidade cultural e
natural em que se afirmava individualmente, antes da sua materialização plástica e

55
muito antes da sua teorização, afigura-se com um pressuposto de difícil argumentação.
Logo, a paisagem pode ter existido, antes mesmo de existir, como experiência de
cariz mental anterior à sua representação de cunho plástico e à sua estruturação
conceptual. Deste modo, até mesmo a designação "arte da paisagem" pareceria
redundante se se considerasse que a paisagem não existia antes da sua representação
estética, porém afigura-se relevante se se ponderar a hipótese de ela surgir
anteriormente e apenas como visão do sujeito sobre o seu ambiente.

Na ação estética que constitui a arte da paisagem, deverão ser distinguidos dois
níveis de intervenção: em artes (através de suportes e técnicas mais distantes de uma
intervenção no ambiente como na pintura, no desenho, na fotografia, na literatura, no
cinema, na música, entre outros), e num agir humano direto sobre o meio, como na
agricultura e na industrialização destituídas de uma prioridade artística, (o que acontece
na arte pública na qual se proclama o investimento de uma intenção estética no
ambiente, conforme na arquitetura, na arquitetura paisagista, entre outras
possibilidades).

Parece clara, a mútua influência dentro e entre os dois domínios, pois se a


intervenção humana, mais ou menos estética, na natureza determinou as representações
artísticas da paisagem, também estas influenciaram as intervenções elaboradas
diretamente no meio ambiente. Por outro lado, importa destacar em ambas as
dimensões, a relevância do papel das estruturas de poder da sociedade como
codificadores culturais e intervenientes diretos na paisagem.

No entanto, para além da subjetividade e da individualidade da experiência


paisagística, importa encontrar aspetos comuns entre as suas ilimitadas imagens mentais
e o seu múltiplo tratamento estético, para que claramente se distinga de outras
temáticas.

Oscilando entre uma representação plástica mais próxima da sua observação


sensitiva, ou seja, mais próxima da realidade ambiental, seja natural ou citadina, e uma
abordagem mais idílica, fantasiosa ou abstrata, a paisagem contém uma territorialidade
atmosférica exterior como denominador comum em qualquer destes tratamentos. Aqui
parece residir o atributo essencial de uma paisagem – das primeiras expressões

56
paisagísticas, da Antiguidade à Idade Moderna, ainda geralmente consideradas como
meros panos de fundo na cena retratada, até ao apogeu do naturalismo no séc. XIX e ao
percurso artístico da crescente abstração, impulsionado pelo impressionismo, assumido
no séc. XX, a paisagem significa uma fruição estética concretizada numa experiência de
espacialidade, em terra ou no mar, no campo ou na cidade, envolvida numa atmosfera
de exterior.

Quando num retrato, numa natureza morta ou numa cena de interior, em géneros
aparentemente distintos da paisagem, se encontra uma sensação paisagística esta reside
numa aproximação dos elementos plásticos representados às coordenadas referidas –
território, atmosfera e exterioridade.

A partir destas premissas conceptuais e semióticas, importa esclarecer que o


subtítulo do trabalho parece introduzir uma transição iniciada no culto do natural e
culminada na arte da paisagem, tornando-se indispensável estabelecer as balizas
cronológicas que delimitam este processo.
Ora, a pré-história da representação da paisagem pode eventualmente iniciar-se
nas civilizações ocidentais da Antiguidade, onde surge ainda como cenário da cena
histórica ou mitológica representada e na civilização chinesa que, no séc. IV d.C., numa
consagração proposta pelo taoísmo, dispunha de representações plásticas cabalmente
dominadas pelo tratamento paisagístico.

No período helenístico, a obra do poeta grego Theocritus já criava imagens


literárias ligadas a um ambiente pastoril e no séc. I d.C., um interesse particular por
cenas campestres fez eclodir na decoração das vilas, cenas paisagísticas, por vezes
inspiradas na Odisseia de Homero, numa técnica de trompe-l'oeil que gerava uma ilusão
ótica de projeção das paredes até ao limite do horizonte, bem como no século seguinte
continuavam a florescer expressões paisagísticas de pendor arquitetural, onde surgiam
igualmente figuras.

Quanto à cultura chinesa, encontrou na primeira década da nossa era termos


designadores da ideia de paisagem, como shanshui, e a sua literatura já então criava
imagens ligadas a ambiências paisagísticas, produção escrita que antecipou as suas
representações plásticas. As práticas religiosas do taoísmo e do confucionismo

57
implementaram uma expressão paisagística embrenhada em valores morais, seguindo
um sentido de simplificação pictórica e o recurso a espaços vazios que adensavam o seu
abstracionismo.

Ainda durante o domínio do Império Romano, os territórios bárbaros, como os


da região da Alemanha, encontravam-se organizados em unidades políticas designadas
por civitates ou populi, que por sua vez se dividiam em pagus, enquanto delimitação
aparentemente jurisdicional, sendo este último termo, talvez a origem, nas línguas
derivadas do latim, da palavra paisagem. Mas, com a derrocada do Império e a entrada
na era medieval, o sistema feudal foi emergindo como um sistema social baseado na
posse da terra por parte do senhor, que, em troca de proteção, permitia aos agricultores
trabalharem-na comunitariamente.

Neste período surgem, igualmente, outros vestígios de representações


paisagísticas, apesar da ascensão das ideias cristãs que fizeram sucumbir qualquer
intenção anterior de abordagens mais naturalistas da paisagem. Segundo Santo
Anselmo, a natureza configurou-se como fonte de ímpias sensações, devendo o seu
tratamento adotar uma forma simbólica que remetesse a atenção para o domínio das
ideias.
Este tratamento iconográfico, intencionalmente distante da abordagem mimética,
limitou a aplicação dos elementos naturais à dimensão decorativa, emergindo a partir do
séc. XIII, como ornamentação de capitéis e de manuscritos. Desta representação
individualizada dos objetos naturais, transitou-se para uma abordagem de conjunto que
retomou a harmonia de um jardim paradisíaco.

Na arte florentina de Giotto (1267/1337) a paisagem revela-se apenas como um


cenário simplificado no qual decorrem os grandes gestos da humanidade e será antes
nos pintores de Siena, particularmente nos trabalhos de Simone Martini (1284/1344) e
Lorenzetti (1305/45) que a natureza ganha uma expressão natural.

Na realidade, na opinião de Kenneth Clark expressa na obra A Paisagem na


Arte61, as primeiras paisagens, no sentido moderno, constituem os frescos do Bom ou
Mau Governo de Lorenzetti, com um pendor realista já mais distante da paisagem de
61
CLARK, Kenneth, A Paisagem na Arte, Editora Ulisseia, Lisboa, 1964.

58
cariz simbólico, enquanto a obra de Martini reflete a estética do gótico francês, que
exprime a beleza divina através de objetos sensoriais. Por sua vez, no Palácio dos Papas
em Avignon, nomeadamente na Tour de la Garde-Robe, encontram-se frescos datados
de 1343, os primeiros que traduzem esta nova atitude perante a natureza, onde um
conjunto de figuras desfruta deleitosamente o ambiente retratado com o requinte
medieval da decoração.

Com o declínio da estrutura do poder feudal da Idade Média e a crescente


determinação económica dos territórios, a pintura do séc. XVI, especialmente no norte
da Europa e em Itália, cria as primeiras paisagens com um tratamento luminoso da
territorialidade, em que a espacialidade começa a ser banhada por uma atmosfera
luminosa. Destacam-se nesta nova atitude plástica, obras executadas por artistas
flamengos com um evidente esforço no sentido da aproximação à realidade ambiental e
uma particular atenção aos pormenores dos elementos representados, porém ainda
absorvidas por uma intenção espiritual.

O manuscrito Horas de Turim, executado em 1414 e 1417, cuja autoria levanta


algumas incertezas, mas que alguns autores atribuem a Hubert van Eyck, revela-se
como um dos exemplos maiores desta expressão paisagística, em que a composição
estruturada pelo pintor desenvolve uma sensação de profundidade e a paleta cromática
intensifica o efeito luminoso da atmosfera.

É neste contexto, do norte da Europa e do florescimento de um tratamento mais


realista da paisagem, que surgem as primeiras obras de topografia atribuídas ao pintor
suiço Conrado Witz (1400/46) que na tela A Pesca Milagrosa (1444), executa um fundo
em que os acidentes geológicos são trabalhados com grande exatidão. Também Albrecht
Dürer (1471/1528) elabora um conjunto de aguarelas, iniciado em 1494, que se podem
afirmar como um dos corolários deste movimento topográfico, entre elas se destacando
as primeiras representações exatas de uma cidade, neste caso de Innsbruck.

Em Itália, por sua vez, os principais polos de produção paisagística neste


período, residem em Florença e Veneza, onde floresceu a produção de mapas, com um
tratamento cartográfico e racional do espaço que influenciou obras inspiradas numa
visão paisagística que se pretendia mais próxima da realidade ambiental.

59
Particularmente nesta última cidade, as exigências matemáticas que se aplicavam nas
representações plásticas culminaram na criação da perspetiva científica por
Brunelleschi, teorizada por Leon Battista Alberti em Tratatto Della Pittura (1435-36).
Esta descoberta essencial para o aparecimento do homem moderno, determinou a
evolução da paisagem como forma de controlar plasticamente o espaço, e é plenamente
desenvolvida por Piero della Francesca (1416/92) cuja obra evidência um tratamento
luminoso de influência flamenga.

Porém será em Veneza, que a inovação flamenga será cabalmente entendida, em


particular na obra de Giovanni Bellini (1433/1516), um dos maiores pintores de
paisagem da sua época. Influenciado por della Francesca, o artista congrega ainda um
tratamento luminoso de sentido emocional, com uma abordagem simbólica, mas de
grande minúcia realista.

Paralelamente, Leonardo da Vinci (1452/1519) aprofundava já nos seus


trabalhos uma curiosidade científica que o levava a analisar demoradamente os
elementos naturais, com resultados de grande realismo paisagista, em que a expressão
da luz obedecia a um novo principio pictórico ligado à tonalidade azul da atmosfera.
Mas, refere-nos Leonardo, «primeiro tende a certeza de que conheceis todas as partes
de todas as coisas que desejais pintar, tanto os membros dos animais, como os
membros das paisagens, isto e, rochas, plantas, etc.»62

No início do século XVI, nestes centros nevrálgicos da produção paisagística,


assiste-se já à autonomização da paisagem enquanto género da pintura, particularmente
na zona do Danúbio, em Antuérpia e em Veneza, áreas densamente povoadas e
urbanisticamente desenvolvidas, proporcionado pelo florescimento económico holandês
e pelas cortes italianas.
O incremento na produção e no consumo de mapas nestas regiões, afigura-se
como uma causa e também como uma consequência destas novas condições de perceção
perante a paisagem e este levantamento cartográfico associado a intenções político-
militares, relaciona-se por sua vez com o surgimento de nomenclaturas próprias para a
designação da expressão paisagística, como o termo landschaft que Dürer aplica cerca
de 1520, e a palavra paese que surge, sensivelmente no mesmo momento, nos
62
in READ, H. A Educação pela Arte. São Paulo: Martins Fontes. 2001. P.24.

60
inventários venezianos.

A região do Danúbio, espraiada por territórios alemães, austríacos e suíços, é


encarada por alguns autores como uma escola paisagista onde se destacaram artistas
como Lucas Cranach (1472/1553) e Albrecht Altdorfer (1480/1538). Este último
exprime a evolução das forças da natureza em virtuosos efeitos de luz derramados sobre
o território, criando uma das primeiras pinturas a óleo plenamente dedicadas a uma
paisagem, conservada até à atualidade – Paisagem com Ponte (1518).

Nesta mesma época, em Antuérpia, Joachim Patinir (1480/1524) utilizava a


Weltlandschaft, ou seja, a paisagem do mundo observada de um elevado ponto em
relação ao território, projetando a visão, através de um esquema de tratamento
atmosférico com tonalidades azuis, para um vasto panorama.
Esta abordagem paisagística encontrou um dos seus expoentes no pintor Pieter
Brueguel (1525/69), evidenciando-se na sua obra tanto num estilo maneirista e uma
expressão simbólica da paisagem, como numa cuidadosa observação da natureza.

Noutro dos centros referidos, a cidade italiana de Veneza, a paisagem torna-se


popular e a designação paese generaliza-se entre a elite artística que considera encontrar
um talento especial nos paisagistas do norte do País.

Entre eles encontra-se Giorgione (1477/1510), cuja associação a um grupo de


poetas arcadianos, influencia a sua paisagem poética, plena de um lirismo que culmina
numa das suas obras maiores – A Tempestade (1508) – na qual deu larga à sua liberdade
criativa.

61
Fig. 4 Albrecht Altdorfer, Paisagem com Ponte, c. 1518.

Fig. 5 Joachim Patinir, Caronte atravessando o Estige, s/d.

62
Já Ticiano (1490/1576), um dos seguidores de Giorgione, concebe nos seus
retratos e cenas figurativas, fundos paisagísticos de grande pujança e relevo no percurso
de uma paisagem idealista e mitológica que viria a influenciar, determinantemente,
Claude Lorrain e Poussin.

Ainda nesta região, a Terraferma veneziana, resultante dos trabalhos de


drenagem em larga escala, começa a ser adquirida a partir do final do séc. XVI pela
aristocracia local, que constrói casas decoradas ao sabor das antigas paisagens em
trompe-l'oeil das vilas romanas, contexto arquitetural onde se destacam as vilas
projetadas por Andrea Palladio (1508/80), nas quais a casa e a sua envolvente externa
ajardinada, eram concebidas em conjunto.

E a popularidade crescente em Itália da vida nas vilas como retiros de Verão, foi
determinante para o prestígio das expressões paisagísticas, pois os seus proprietários
afirmavam-se como patronos de artistas que se dedicavam na sua obra à apologia das
paisagens campestres, e cuja atmosfera foi captada pela já referida, poesia arcadiana.
Deste modo, durante o renascimento italiano, a poesia, as representações plásticas de
ambientes naturais, a arquitetura e a jardinagem, surgiam profundamente interligadas e
determinantes para a observação do natural.

No séc. XVII, novos polos tomam a dianteira na produção paisagística,


especialmente a cidade de Roma e o norte da Holanda onde, respetiva e por oposição se
desenvolveu um movimento de paisagem ideal e clássica e um pioneiro estilo
naturalista.

Numa fase inicial do barroco, a capital italiana revelava-se como um centro


aglutinador de artistas provindos dos mais diversos pontos da Europa que começaram a
trabalhar num novo tipo de representação paisagística caracterizada pelo recurso a um
ponto de vista baixo e à unidade atmosférica que envolvia toda a composição.

63
Fig. 6
Pieter Bruegel, os caçadores na neve, 1565.

Fig. 7
Giorgione, A Tempestade, c. 1508.

64
Entre as figuras de destaque neste contexto estético, altamente considerado pelos
aristocratas patronos italianos, salienta-se a de Claude Lorrain (1600/1682) que,
pintando en plein air na zona campestre de Roma, concebe paisagens de sabor pastoral
idealizado com uma liberdade pictórica única, reveladoras de uma preocupação para
com os volumes, o tom e a luz.

Porém, o volume e a qualidade da produção não garantiam ainda o


reconhecimento por parte dos teóricos italianos, defensores de uma pintura de história
que retratava feitos heróicos da humanidade, cenas bíblicas e da literatura clássica.
E será com Annibale Carraci (1560/1609) na sua obra Fuga para o Egipto
(1600-04) que surgirá, pela primeira vez, uma representação paisagística que pretendia
ascender ao reconhecido nível da pintura de história. Outro dos artistas cujos trabalhos
se realçam neste âmbito da paisagem idealista é Nicolas Poussin (1594/1665).

Fig. 8
Annibale Carracci, A fuga para o Egipto, c. 1604.

65
Fig. 9
Vermeer, Vista de Delft, 1600/61.

Em paisagens imbuídas de um sentido moral, o pintor procura disciplinar o meio


natural avesso a princípios geométricos, através do emprego da “secção de ouro”, da
implantação de elementos arquiteturais e de composições ritmadas por volumes
verticais, horizontais e por diagonais, sem nunca abandonar uma observação cuidada do
ambiente natural.

No que concerne ao norte da Holanda, este século XVII trouxe uma


popularidade às representações paisagísticas nunca antes desfrutada, prestígio que
permitiu a alguns artistas especializarem-se nesta prática. Criando ainda paisagens
italianizantes no seu idealismo, os pintores holandeses vão construindo uma nova
expressão naturalista da natureza, como retrato do ambiente típico dos trabalhos rurais e
das paragens campestres do País.

Para tal situação contribuiu a conjugação de determinadas condições sociais,


políticas e religiosas únicas no contexto europeu. Reinaugura-se, então, no rescaldo da
Contra-Reforma que a reprimira, uma nova liberdade na análise perante a realidade e a
proliferação do calvinismo, com a sua opção iconoclasta, impõe o abandono da

66
tradicional produção de arte sacra, para encarar a natureza como revelação da
providência divina e, logo, como temática de eleição.

Por outro lado, a reconquista da independência das províncias ao império


espanhol, declarada em 1579, e o decorrente florescimento económico da burguesia
proporcionado pelo fim dos confrontos bélicos, ofereceram uma tranquilidade que
promoveu a busca de uma identidade nacional e catalisou a procura da produção
plástica representativa das paisagens tipicamente holandesas.

A obra de Jacob van Ruysdael (1628/82), talvez um dos maiores representantes


da paisagem naturalista antes de Constable, reflete a pujança das forças naturais através
de efeitos de claro-escuro que adensam a intensidade dramática das cenas, traduz uma
grande atenção aos pormenores e uma reação à luz que observa o seu movimento na
evolução das sombras, e que ira influenciar, consideravelmente, a pintura de paisagem
inglesa.

Ainda no séc. XVII, a escola holandesa revelou-se frutuosa na produção de


paisagens citadinas, na qual se salienta a obra de Vermeer (1632/75). O seu tratamento
atmosférico obtém uma delicadeza quase insuperável na Vista de Delft (1660/61), na
qual demonstra um requinte tonal e uma capacidade de distanciamento emocional.

1.4 Kenneth Clark e a Paisagem na Arte

Se hoje sabemos muita coisa sobre o modo como se institui a pintura de


paisagens e como foi executada na Europa e mais tarde nos Estados Unidos, foi através
de publicações que recentemente acompanharam importantes exposições e que em
grande parte são herança da obra pioneira de Kenneth Clark63, A Paisagem na Arte.

63
Kenneth Clark, (1903/1983) escritor, director de museu, fez programas sobre arte na rádio inglesa, e foi
um dos mais famosos historiadores de arte da sua geração. Em 1969, foi catapultado para a fama
internacional como o escritor, produtor e o apresentador da série da televisão da BBC, Civilisation: A
Personal View.
Um admirador de Ruskin e um protegido do crítico de arte mais influente do seu tempo, Bernard
Berenson, Clark transformou-se rapidamente no mais respeitado esteta do mundo britânico das artes.
Após um cargo como curador das artes no museu de Ashmolean de Oxford, em 1933 com apenas 30
anos, Clark foi nomeado director da National Gallery em Londres. Foi a pessoa mais nova de sempre a

67
O estudo de Kenneth Clark, embora não pretenda ser um tratado sobre a pintura
de paisagem, a verdade é que através dele fazemos uma viagem pelas relações do
homem com a natureza ao longo dos séculos. Relações essas, que se refletiriam na
pintura e que marcariam as fases da conceção humana da natureza. Por isso parece-nos
de toda a importância fazer uma breve análise desta obra para introduzir o leitor e
contextualizar o tema abordado neste trabalho.

O autor começa por expor que na Antiguidade essa relação não se fizera pois
«estivera tão profundamente impregnada do sentido grego de valores humanos, que
este conceito de natureza tinha desempenhado um papel secundário».64 A paisagem era
representada unicamente com valor decorativo.

Na Idade Média esse valor decorativo, acrescido de um valor simbólico,


constituía as duas vertentes de expressão da paisagem, a paisagem dos símbolos. É que
a natureza na Idade Média era vista com desconfiança, pois encerrava muitos perigos.
Ainda que a partir do século XII essa realidade se começasse a transformar; como é
possível observar nas obras literárias de Dante, Petrarca e nas obras pictóricas de Giotto,
Simone Martini e Lorenzetti. A natureza selvagem podia agora domar-se em jardins
fechados, representativos também eles do Éden.

Quando entramos na Idade Moderna, a paisagem dos símbolos passa a paisagem


dos factos e encerra em si um novo sentido de espaço. Facto que se dá ao mesmo tempo
na pintura italiana e flamenga; «mas se bem que produzindo um resultado semelhante, é
diferente nos meios e intenção. Em Van Eyck é instintivo, um subproduto da sua
perceção da luz, e em toda evolução da pintura flamenga mantém-se empírica (...). Mas
esta não podia satisfazer a mentalidade científica dos florentinos».65

Porém, Clark ressalva que a perspetiva científica não é a base do naturalismo.


Assim é ao Norte que cabe o papel de percursor da paisagem, pelas mãos de um Hurbert
Van Eyeck, de um Bosch ou de um Brueghel. O qual depois passaria para Itália via

preencher o lugar. Entretanto, era uma figura controversa devido à sua distância em relação à arte
moderna e do pensamento pós-moderno. Em 1946 Kenneth Clark renunciou ao seu cargo de director a
fim de devotar mais tempo à escrita. Entre 1946 e 1950 foi professor na Slade of Fine Art em Oxford. Foi
um dos membros fundadores e presidente do Conselho das Artes de Grã-Bretanha de 1955 a 1960.
64
In CLARK, Kenneth, Paisagem na Arte, p. 19.
65
Id., Ibid., p. 40.

68
Veneza - Giovanni Bellini, que fez do efeito luz o motivo principal da sua pintura.

E porquê no Norte? Porque a paisagem dos factos era uma forma burguesa de
arte e o século XVII foi a época da burguesia por excelência; sentindo esta, a
necessidade de ver coisas reconhecíveis, as paisagens da sua terra; aquilo, afinal, porque
tinha lutado. Também agora, após a repressão da Contra-Reforma e o fim das guerras
religiosas, dava-se um renascimento da ciência e da botânica e a teoria da luz de
Newton despontava.
Por outro lado, a tradição maneirista esgotara-se e o gosto natural holandês pela
paisagem podia agora exprimir-se. Assim foi com Rembrant, Rubens, Jacob Van
Ruysdael e mesmo num pintor de cidades como Vermeer. Mas, «pelos fins do século
XVII a pintura de luz deixou de ser um acto de amor e tornou-se estratagema».66

Outra via, no entanto, foi desenvolvendo-se durante a Época Moderna, era a da


paisagem fantástica. Refere o autor, que já no século XV os artistas haviam começado a
sentir que a paisagem se tornava demasiado insípida e vulgar e, por isso, tentaram
começar a explorar o misterioso e o desconhecido. Eram pintores urbanos e trabalhavam
para uma clientela, também ela urbana. Grünewald e Altedorfer são os seus expoentes.
Formava-se aqui a origem da pintura expressionista.

Porém, o fantástico também está presente em alguma pintura de Leonardo da


Vinci e do Maneirismo, nas obras de Tintoretto e El Greco. Se a «paisagem dos factos
degenerou em fotografia, também a paisagem fantástica degenerou no pitoresco, mais
especialmente naquele ramo de pitoresco de que derivou Salvetor Rosa».67 Sem ele,
prossegue Clark, nem Alexander Cozens, nem John Roberts e, por consequência, nem
Turner teriam podido descrever a natureza selvagem. «Assim o maior mestre de
paisagem selvagem (Turner) está ligado aos maneiristas românticos do século XVI, e
completa o ciclo que Altdorfer e Grünewald tinham começado».68

É ainda na Idade Moderna que se define um outro tipo de paisagem, a paisagem


ideal, que, segundo Clark, baseava-se na crença de uma Idade de Ouro ou na perfeição

66
Id., Ibid., p. 55.
67
Id., Ibid., p. 76.
68
Id., Ibid., p. 77.

69
da vida pastoril. Este tipo de paisagem tem em Giorgione (com suas pinturas mágicas e
musicais), em Ticiano (cujo gosto pela natureza faz com que Poussin, Turner e
Constable nele procurassem inspiração) e em Claude (que pintava diretamente da
natureza e cujos quadros traduzem a contemplação que fazia da mesma) os seus
expoentes máximos.

Também o «severo» e «cartesiano» Poussin pertence a esta categoria. Tudo na


sua pintura é resultado de uma meditação; era como se quisesse dar ordem à desordem
da natureza: a base da pintura de paisagem está no equilíbrio entre os elementos
horizontais e verticais do desenho. A sua influência «foi boa porque combinava de uma
maneira perfeita o ideal com o real»69 e estendeu-se, através de Valenciennes, a Corot e
Millet e depois a Pissaro e Cézanne.

Outra das ideias que Kenneth Clark desenvolve no livro, é a de que a paisagem
ideal estaria ligada à paisagem dos símbolos. «Ambas eram inspiradas por um sonho de
paraíso terrestre, ambas aspiravam criar uma harmonia entre o homem e a natureza. A
paisagem de símbolos começa com o frontispício de Simone Martini para o Virgílio de
Petrarca; a paisagem ideal pode-se dizer que termina com as ilustrações de Blake para
as Éclogas do Dr. Thornton».70 Discípulo de William Blake, Samuel Palmer, criou uma
linguagem muito próxima da simbólica, sendo o último pintor das paisagens virgilianas.
Podemos afirmar que, como explicitou Argan,71 para isto concorreu a cultura
iluminista, que revelava agora a natureza não como modelo, mas como um estímulo ao
qual se reage de diversas maneiras; questão fulcral na filosofia idealista, que se oporia à
imitação da natureza, considerando-a até trabalho supérfluo.

Por consequência, a arte deixava de ser imitação para passar a ser expressão. Por
outro lado, o aparecimento das teorias evolucionistas de Darwin tornaria as paisagens
ideais em mera fantasia – a destruição de um passado ideal levava à destruição da
paisagem ideal.
À época contemporânea, mais concretamente ao século XIX, corresponde, expõe
Clark, o desenvolvimento e afirmação da pintura de paisagem. «Uma cena calma, com

69
Id., Ibid., p. 95.
70
Id., Ibid., p. 97.
71
In ARGAN, Giulio Carlo, Arte Moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998.p. 4.

70
água em primeiro plano refletindo o céu luminoso e enquadrada por árvores escuras,
era algo que toda a gente estava de acordo em reconhecer como belo, exatamente como
em épocas anteriores estavam de acordo acerca de um atleta nu ou uma santa com as
mãos cruzadas sobre o peito».72

Constable é, para o autor, a personagem que aparece como percursora da


paisagem natural. Ele era um estudioso da tradição (de Ticiano, Claude, Wilson,
Gaspard, Poussin) e dava muita importância ao claro-escuro; este significava o “brilho
da luz”, mas também “sentido dramático” e era o que conferia sentimento às suas obras.
Wordsworth havia definido que a natureza era a revelação de Deus e a pintura de
Constable havia de exprimir essas ideias morais. Assim, à perda da fé em Deus,
corresponde a fé na Natureza.

Com efeito, como refere Clark, Constable influenciou também Rousseau, o


criador do academismo na paisagem naturalista, no entanto, parecia faltar-lhe o
abandono à natureza encarnado por Corot; cujos estudos em Roma fizeram com que o
seu gosto se desenvolvesse de um modo clássico, embora cheio de sentimento: «de toda
a grande gama de delicadas experiências visuais, Corot acabou por se satisfazer com
uma – a luz cintilante refletida pela água que passa através das folhas delicadas dos
vidoeiros e dos salgueiros. (...), mas apesar de ter descoberto uma fórmula que o
satisfazia tanto como ao seu público, Corot continuou a pintar a partir da sua
observação natural e sabia que essa era a essência da sua arte».73 De facto, apenas a
observação natural lhe permitia a impressão, à qual, segundo o pintor, nos devíamos
submeter: a arte «consiste em representar uma sensação e não nos persuadir a aceitar
uma verdade».74 Estava, portanto, aberto o caminho para o Impressionismo.

Também Courbet acreditava que o belo estava na natureza e que o artista devia
saber vê-lo sem ampliar a sua expressão. Segundo Clark, quando o artista segue o que
diz no seu manifesto é um grande paisagista, mas quando se esquece dos seus princípios
torna-se vulgar. «Todas as formas de expressão contêm nelas as sementes da sua
própria destruição, e tal como o classicismo tende para o vazio e a falta de vitalidade,

72
Clark, Op. Cit., p. 100.
73
Id., Ibid., pp. 110-111.
74
Id., Ibid., p. 111.

71
assim o naturalismo tende para a vulgaridade. É o estilo popular, o estilo que pode ser
compreendido sem esforço ou educação (...)».75 Mas será que em Interior do meu
Atelier (1854-55) é vulgar, como o acusa Clark? Não nos parece.

A escola que lhes sucede é a impressionista, cujas raízes são as naturalistas.


Mas, apercebendo-se de que para a prática do natural era necessário «simplicidade» e
«calma», os impressionistas, segundo o autor, tomaram um caminho diferente ao
representarem algo que o olho humano não pode analisar – a rede de cores puras de que
a luz é composta. Facto que lhes vai permitir uma maior liberdade criadora. Caberá a
Monet e Renoir o papel de precursores.

O primeiro não era muito permeável às tradições da pintura Europeia e o


segundo nutria pelo século XVIII uma admiração tal que não lhe permitia o culto franco
do natural: «Monet contribuiu com a sua completa confiança na natureza tal como era
vista, e com a sua notável compreensão do tom, enquanto Renoir contribuiu com a sua
técnica brilhante e com a sua paleta de arco-íris».76
Depois de uma curta pausa devida à guerra franco-prussiana, em 1871,
juntaram-se-lhes Pissarro, Sisley e depois Manet. É interessante a comparação que o
autor faz entre impressionismo e renascimento: «a excitação com que os
impressionistas conquistaram a representação da luz pelo uso da paleta de cores puras,
é semelhante à excitação com que os florentinos do século XV conquistaram a
representação do movimento pela fluência da linha. Mas a arte que depende da alegria
da descoberta, declina inevitavelmente quando a técnica é dominada».77

Tal como o renascimento degenerou em maneirismo, o impressionismo


transformou-se: Renoir retomou a firmeza de traço, Pissarro regressou à ordem, Sisley
continuou a pintar, mas cada vez com menos convicção... Monet, no entanto, levou as
doutrinas do impressionismo até às últimas consequências e apostou na técnica: «se a
decadência em todas as artes se manifesta na promoção dos meios a fins, as últimas
obras de Monet podem ser citadas como exemplo de Compêndio».78

75
Id., Ibid., p. 114.
76
Id., Ibid., p. 120.
77
Id., Ibid., p. 121.
78
Id., Ibid., p. 123.

72
Apesar desta ideia, Kenneth Clark salienta que uma das mais-valias do
impressionismo foi a conquista da luz; o que possibilitou o visionamento da cor nas
sombras, era mais que um avanço técnico, era uma posição ética, carregada de
humanismo. É que estes pintores «eram miseravelmente pobres (...). Contudo a sua
pintura está cheia de uma confiança completa na natureza e na natureza humana».79
Mas, limitar a pintura a sensações é redutor, pois a arte relaciona-se com os nossos
conhecimentos, recordações e associações.

Aqui parece que o autor não compreende que a arte puramente ótica de outrora
já não correspondia às necessidades da sociedade à medida que o século XX se
aproximava. O mundo e o homem tornavam-se complexos, consequentemente a arte
também devia ser capaz de traduzir esta mudança. A partir do impressionismo, a arte
poderia até deixar à fotografia o primado da representação, mas reivindicava o primado
da comunicação emotivo-sensorial; e esta, ao contrário do que geralmente se pensa,
segundo Clark, relaciona-se justamente com os nossos conhecimentos, as nossas
recordações, as nossas associações...

Todavia, durante o século XIX a pintura de paisagem tomaria outros caminhos


nas personagens de Turner e Van Gogh, a quem caberia a procura da luz, como expõe o
autor. O primeiro, mestre da paisagem imaginativa havia de dar o passo decisivo: «foi
Turner quem elevou toda a gama de cores até estas representarem não só a luz, como
serem simbólicas da sua própria natureza».80

De facto, era um pintor que estava habituado a encontrar equivalentes gráficos


para todos os fenómenos e é isso que vemos nas suas Tempestades, Furacões,
Avalanches... seria, com efeito, o mar a fornecer-lhe «um assunto em que não existia o
elemento da forma estática e tangível, em que todo o motivo era a cor, o movimento e a
luz.»81 As visitas a Itália, principalmente a Veneza, intensificaram o carácter
anticlássico da sua obra.
É por isto que os impressionistas dele descendem. Aliás, em Interior de
Petworth (que é uma tentativa de fazer da luz e cor as únicas bases do desenho), vai

79
Id., Ibid., p. 125.
80
Id., Ibid., p. 126.
81
Id., Ibid., p. 128.

73
mais longe que eles. Pois, «enquanto estes tomavam como ponto de partida a visão
natural e se estavam constantemente a referir a ela, Turner manteve apenas os
elementos necessários para a sua nova criação».82 Mas se dele descendem os
impressionistas, é preciso ver que as suas origens são românticas e, por isso, as suas
obras estão carregadas de uma força destrutiva, de um sentido indomável da natureza.

Com a sua morte podia supor-se que este sentido teria o seu fim. Porém, em fim
de século aparecia Van Gogh – carregado dos impulsos “pré-expressionistas” de
Grünewald, Altdorfer e Hubert – que possuía, como Turner, um sentido nórdico da luz.
A sua luz é, no entanto, diferente: «é impetuosa, caprichosa e ousada (...); atinge-nos
diretamente o espírito e só pode ser exorcizada por meio de símbolos violentos, espirais
de fogo e pelas cores mais violentas e brilhantes que se podem tirar dos tubos. Assim,
apesar da sua paixão pela natureza, sentiu-se cada vez mais obrigado a transformar o
que via numa expressão do seu próprio sofrimento».83

De facto, a arte expressionista de Van Gogh trouxe o carácter trágico da


natureza, mas tratava-se agora da natureza humana e que iria ter os seus sucessores nos
expressionistas do século XX.

No último capítulo Kenneth Clark debruça-se sobre o regresso à ordem,


protagonizado por Seurat e Cézanne. O primeiro encarnava de todas as correntes
intelectuais do tempo: a crença na ciência, o interesse na arte primitiva e oriental e
mesmo os começos da art nouveau e, juntamente com o segundo, representava as duas
tradições da pintura francesa do século XIX: Seurat amava Ingres e Delacroix era
amado por Cézanne.

Seurat desejava não apenas melhorar o impressionismo, mas empregar a sua


luminosa técnica e visão contemporânea na criação de obras que tivessem a grandeza e
a intemporalidade da renascença. Assim fez, ao criar uma teoria pseudocientífica da cor,
que havia de se concretizar em Uma Tarde de Domingo na Grande Jatte. A sua obra
reveste-se de uma procura intelectual da cor, baseada na ideia que os efeitos de cor
podem ser medidos cientificamente.

82
Id., Ibid., p. 133.
83
Id., Ibid., p. 141.

74
Já o regresso à ordem de Cézanne ocorre a partir das formas; era a tentativa de
“fazer Poussin de novo a partir da Natureza”. E isto é mais evidente nas suas paisagens
da Provence, que iriam conduzir ao Cubismo. «Desejava dar toda a solidez dos objetos
sem diminuir a sua cor ou enfraquecer o seu desenho pela modelação contínua. Os
únicos meios do conseguir consistiam em cindir os planos numa série de pequenas
faces, cada uma das quais podia, pela sua cor, assinalar-nos uma nova direção dos
planos. Esta atitude cubista (...) perante as formas individuais, era também inerente às
suas composições como um todo».84

O que estava a criar no fundo era uma harmonia paralela à da natureza. Esta era
a evolução lógica para o século XX: «É com Constable, com os românticos e
expressionistas que se volta a estabelecer uma tensão emocional mais exaltante,
colocando-se a tónica sobre a faculdade de mudança da própria natureza, e, por
conseguinte, sobre a variabilidade e inconstância da experiência humana (...). Na etapa
seguinte, a evolução lógica provoca a sublimação de certos efeitos de coloração,
transformando os fenómenos naturais em efeitos abstratos e acentuando o seu poder
emocional.»85

E é isso que Clark tenta não perceber,86 como fica explicito no Epílogo. Aqui,
detém-se no futuro da pintura de paisagem. O percurso do seu escrito parte da evidência
de uma paisagem simbólica, onde a natureza se manifestava em pormenores e tinha
apenas carácter decorativo.

Depois detém-se na fusão desses mesmos pormenores numa impressão total


através da luz – situação que vai de Leonardo da Vinci a Seurat. Porém, constituem
exceções Hurbert van Eyck, Bellini, Claude, Constable e Corot, que nos mostram que a
representação da luz deve o seu valor estético ao facto de ser a expressão do amor; foi

84
Id., Ibid., p. 158.
85
Trad. livre do autor « C’est à Constable, aux romantiques et aux expressionnistes qu’il revient d’établir
une tension émotionnelle plus élévée, en mettant l’accent sur la faculté de changement de la nature elle-
même, et donc sur la variabilité et l’inconstance de l’expérience humaine (...). À l’étape suivante,
l’evolution logique entraîne la sublimation de certains effets de coloration, transformant les phénomènes
naturels en effets abstraits et accentuant leur puissance emotionnelle. », in Battisti, « Paysage (Arts) », in
Enciclopédie Universalys, p. 656.
86
Talvez porque estávamos em 1949 e o autor não possuía ainda o necessário distanciamento da arte sua
contemporânea, nem podia prever o futuro da arte da segunda metade do século, que se lhe seguiria.

75
este sentido da unidade, expresso pela atmosfera e pela luz, que os impressionistas vão
protagonizar.

Quando entramos no século XX, os artistas mais arrojados haviam perdido o


interesse na natureza e vão afastar-se dela. É que «quando os pintores começam a
prender com alfinetes nos seus ateliers fotografias de gravuras romanescas, máscaras
negras e figuras catalãs, torna-se extremamente difícil uma resposta direta à
natureza».87

Por outro lado, Clark, dá conta de que a vida ia ficando cada vez mais complexa,
o que forçou a especialização de determinadas disciplinas como a ciência (cujos livros
antes belamente ilustrados agora eram ilustrados por diagramas). A beleza eterna era
agora aquela que podia ser medida analiticamente por outros termos, nomeadamente os
da ciência e a pintura de paisagens não o era.
O microscópio e o telescópio permitiriam o acesso a uma natureza antes
desconhecida. Mas, segundo Clark, «o amor pela criação não pode estender-se ao
micróbio, nem aos espaços por onde a luz que atinge os nossos olhos viajou muito antes
da origem do homem».88 Tínhamos perdido a fé naquilo que convencionámos chamar
de ordem natural, e o pior é que conquistámos os meios de terminar com essa ordem. A
ciência tirou-nos a confiança na natureza e não a recuperaremos «enquanto não
tivermos aprendido ou esquecido infinitamente mais do que conhecemos no presente».89

Assim, segundo o autor, a melhor esperança para a continuidade da pintura de


paisagens é um aumento das nossas ilusões e no emprego da paisagem como um ponto
central para as nossas emoções, pois ela pode ser o ponto de partido das nossas
reflexões anti miméticas.

O nosso conceito de natureza pode ainda enriquecer o espírito com novas e belas
imagens. Mas como? «A habilidade de ver, pintar e estudar a natureza, cresceram em
proporção em relação à sua utilidade aos interesses dos homens. Já não é possível
contrastar uma paisagem inocente com uma humanidade alienada. A paisagem já não
pode ser assim ingenuamente delimitada. (...) A paisagem está assim tão saturada pela

87
Clark, Op. Cit., p. 168.
88
Id., Ibid., p. 175.
89
Id., Ibid., p. 176.

76
toxidade da civilização que foi forçada a sair do seu papel anterior e encontrar um
novo: já não compensa a civilização, mas levanta-a para um poder mais elevado.».90

De facto, a paisagem já não é a mesma e a recente especulação teórica tende a


vê-la de outra forma, muito mais além da história da pintura, estendendo-se à literatura,
ao cinema, ao pensamento filosófico. Nos dias de hoje, a paisagem é mais «Uma
entidade relativa e dinâmica onde natureza e sociedade, olhar e ambiente estão em
constante interação.».91 Assim, «A paisagem é ela própria um meio físico e
multissensorial (...) em que os significados culturais e os seus valores estão interligados
(...) A paisagem é já um artifício no momento da sua observação, logo antes que se
transforme no tema da representação pictórica.».92

Parece, que o atual significado da palavra paisagem vai muito além daquele que
consta nos dicionários.93Por tudo isto a paisagem não pôde ser o apanágio da pintura do
século XX. A obra de arte passava a ser pensada mais a nível interior e emocional do
que ao nível da representação da realidade dos fenómenos concretos da natureza.

A pintura do século XX tem mais origem na mente do que na observação da


natureza – Picasso dizia que pintava as formas como as pensava e não como as via. A
arte caminhava para a abstração; contudo não se pense que essa abstração não tinha a
ver com a natureza. Paul Klee definiria muito bem esta tendência. Segundo ele, o artista
encontra o seu caminho no mundo (esse sentido é comparável às raízes de uma árvore),
cujo fluido vital se espalha pelo tronco (o artista) e concede-lhe a criação, a faculdade
de moldar a sua visão do mundo ao seu trabalho. Este cresce como a copa de uma
árvore, porém ninguém diria que a copa de uma árvore cresce à imagem das suas raízes.
E ainda assim o artista nada mais faz que transmitir aquilo que lhe vem das raízes.

A arte atual, como expressou Perniola, já não se reconhece mais numa única
90
Trad. livre do autor « The ability to see, paint and study nature grew in proportion to its usefulness to
men’s interests. It is no longer possible to contrast an innocent landscape with an alienated humanity.
The landscape can no longer be so naïvely delimited. (...) The landscape is so sutured by the toxins of
civilization that it has been forced out of its former role and into a new one: it no longer compensates for
civilization, but raises it to a higher power. » in Martin Warnke, Political Landscape into Art, p. 146.
91
Trad. livre do autor «Une entité relative et dynamique où nature et société, regard et environnement
sont en constant interaction. », in Berque, Cinq Propositions Pour une Théorie du Paysage, p. 6.
92
Trad. livre do autor « landscape is it self a physical and multisensory medium (...) in which cultural
meanings and values are enconded (...) Landscape is already artifice in the moment of its beholding, long
before it becomes the subject of pictorial representation. » in Mitchell, Op. Cit., p. 14.
93
«Extensão de território que se abrange com um lance de vista», in Diccionário Prático Ilustrado, Porto,
Lello & Irmão Editores, 1992.

77
forma, mas parece querer para si todas as formas artísticas de todas as épocas e de todos
os países, todos os estilos e todos os revivals, todas as vanguardas e todas as modas.
Anuncia-se, por isso, um tempo que contém todas as artes e todos os tempos num único
tempo que contém todas as formas e, claro, também as da natureza. E estas são as
verdades latentes, para lá da natureza, de que Klee falava.

No século XIX a arte estava dominada pela paisagem, tendo esta sido capital
para um processo de definição nacionalista dos países, consequência da descoberta de
outros (para o qual contribuiu o Grand Tour) e da ascensão e desenvolvimento do
capitalismo; há até quem a associe ao imperialismo94. Portanto, quando falamos de
paisagem temos de ter em conta que nela se inscrevem atitudes culturais, políticas,
ideológicas e económicas.

No século XX nada importaria menos (na pintura) e a sua imagem explícita foi
repudiada, não só porque a sua carga nacionalista e anti urbana embaraçava os
modernos (que se queriam cosmopolitas), mas também porque a perceção do tempo, do
movimento e do espaço se aceleraram e a modificaram, tornando-a mais política do que
nunca.

Vejamos, como tudo iria mudar na pintura de paisagens na Europa do século


XIX, e como esta mudança foi fundamental para a evolução e vanguarda de toda a arte e
principalmente na construção da cultura do olhar através da paisagem do mundo
ocidental.

94
Ver MITCHELL, Thomas, Landscape and Power. Chicago, The University of Chicago Press, 1992.

78
79
Capítulo II

De Friedrich a Kiefer: A Paisagem na Pintura.

80
2.1 Considerações Iniciais

Não é necessário demonstrar a importância e o papel da paisagem, a sua


evolução e suas variações, ao longo da história da arte. Igualmente curioso é constatar o
modo como o tema da paisagem se tem continuado a manifestar, ainda que de uma
forma mais lateral ou mais discreta, no contexto de muitas tendências vincadamente
marcantes, e por vezes mais radicais das últimas décadas.
Pensamos que aquilo a que chamamos persistência desta temática, e a
diversidade das formas que ela tem revestido no contexto das artes visuais
contemporâneas e na nossa cultura, se pode relacionar com a multidimensionalidade, a
versatilidade e a plasticidade do assunto. A paisagem, enquanto tema, apresenta uma
grande diversidade de aspetos e aproximações possíveis e produtivas a partir de um
ponto de vista artístico.
No momento em que a preservação da natureza se tornou numa palavra-chave,
no momento em que Convenções Internacionais obrigam a sociedade a realizar esses
compromissos, parece insólito não termos uma história da paisagem nas artes visuais,
principalmente em Portugal, para entendermos o que esteve em jogo ao longo dos dois
últimos séculos.
Temos como objetivo neste capítulo estabelecer a relação entre a temática da
paisagem e a pintura. Como já tínhamos escrito e exposto na introdução e no anterior
capitulo, com este capítulo pretendemos pensar, investigar, interpretar e convidar a uma
reflexão sobre as diferentes dimensões contidas na temática artística, cultural e estética
da Paisagem nas Artes Visuais. Para a pesquisa e levantamento, serão adotados métodos
que têm a ver com o trabalho e pesquisas desenvolvidos por artistas, pensadores,
filósofos e teóricos do século XX e do século XXI.

No início do século XXI, assiste-se ao reiterar do interesse pela paisagem


entendida enquanto figuração de um sistema artístico, cultural, social e estético que
pode e deve fundamentar uma história cultural do olhar. Os artistas citados no título
poderão ser considerados os balizadores históricos do tema a estudar, pois caraterizam
um tempo e uma paisagem histórica.
O nosso território de pesquisa consiste nas artes visuais, na pintura e o fio
condutor é a temática da Paisagem.

81
82
Fig. 10
Claude Monet, Manneporte (Étretat), 1883.

2.2 A Temática da Paisagem na Pintura do séc. XIX.

83
Com a cultura iluminista, a natureza começava a ser vista não como um modelo
ideal, mas como um estímulo frente ao qual o Homem reage de diversas maneiras.
Ressaltamos que, para Rousseau, o homem se completa com a natureza, portanto não é
um estado a ser superado, como os filósofos Locke e Hobbes acreditavam.

Rousseau no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre


os Homens, afirma que “a maioria de nossos males é obra nossa e (…) os teríamos
evitado quase todos conservando a maneira de viver simples, uniforme e solitária que
nos era prescrita pela natureza”95. Desde os finais de séc. XVII e durante as décadas
seguintes, os artistas e intelectuais em França e noutros locais, debatiam-se com a
questão de saber até que ponto o modelo clássico dominante deveria ser mantido. Os
defensores da “modernidade” duvidavam da validade contínua das suas normas.

Esta reserva não só conduziu a uma reavaliação da cultura judaico-cristã, como


levantou também a questão sobre quais os padrões artísticos que poderiam tomar o lugar
do códice clássico.

Em vez de uma estética baseada em valores inelutáveis, desenvolveu-se em


Inglaterra e em França uma doutrina do belo baseado no gosto e na sensibilidade
individuais. O sentir e o sentimento do artista e do espectador de arte passavam a ser o
fator preponderante que, em última análise, implicava uma inflexão para uma
abordagem psicológica da arte que, em meados do séc. XIX, começou a concentrar-se
nos seus aspetos mais sensacionais.96

95
LEOPOLDI, José. Rousseau – estado de natureza, “o bom-selvagem” e as sociedades indígenas.
publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/alceu_n4_Leopoldi.pdf –2002, p. 160.
96
Diderot não apreciava a frivolidade do rococó mais do que Mengs, no entanto não defendia as regras e
convenções do neoclassicismo. Bem pelo contrário, ele preconiza, nos seus Salões (de 1759 a 1781) e,
sobretudo, no seu Essai sur la peinture, publicado em apêndice ao Salão de 1765, a liberdade de
expressão do artista exaltando o valor primeiro dos sentimentos e das paixões humanas.
Se bem que não tenha propriamente ideias estéticas originais, ele é um autor genial da descrição das
obras, inventando fórmulas literárias novas para melhor fazer o seu leitor penetrar no mundo da pintura. É
assim que a sua estratégia descritiva de Coresus et Callirho é apresentado por Fragonard no Salão de
1765 e assenta na hipótese de não ter visto a pintura, mas de ter construído um sonho no fim de um dia
durante o qual lera Platão.
A sua crítica torna-se a narração do sonho a um amigo (Grimm). Diderot encontra-se na caverna de Platão
e sucedem-se pequenas peripécias que levam a que o sonho produza uma imagem idêntica à tela de
Fragonard, o que significa — reciprocamente — que o próprio quadro se assemelha a um sonho, cujo
desenvolvimento narrado recria o que aconteceu antes da cena descrita por Fragonard. Este conhecimento
dos factos precedentes comunicado ао leitor permite-lhe perceber o sentido e o interesse da imagem
pintada, que corresponde exatamente à cena final do sonho.

84
Fig. 11
Alexander Cozens, Antes da Tempestade, c. 1770.

Fig.12
Alexander Cozens, Estudo de um céu com nuvens, c. 1771.

Admirador de Rembrandt, Diderot compreende também - e sabe fazer sentir - a grandeza da pintura de
Chardin. As suas preocupações morais são-lhe, muitas vezes, de uma ajuda preciosa para os juízos, mas
levam-no também a elogiar os quadros fastidiosamente melodramáticos de Greuze, seu amigo. Nem
sempre isso é verdade: o Portrait de Mme Greuze em Vestale lança sobre o seu autor uma interpelação
inequívoca: «Fazeis pouco de nós…. É uma Senhora das dores, mas com pouca força interior e um pouco
exagerada.» Não há relação entre a pintura e a maneira de sentir do artista. Diderot vê isso e afirma-o. Ele
é o fundador da Crítica de arte moderna (In Gérard-Georges lemaire, le salon de Diderot à Apollinaire
(com o texto do Salon de 1759 de Diderot, Edições Veyrier, Paris, 1990)

85
Como escreve Argan97, a poética iluminista do pitoresco e a poética romântica
do sublime ambas se completam, ambas são as duas faces da mesma moeda, sendo neste
caso a moeda a relação entre o indivíduo e a coletividade, a relação entre a vida e a
morte, a relação do Eu com o outro; ou o Eu se dissolve numa relatividade sem fim, ou
o Eu se absolutiza e corta qualquer relação com o outro.

Esta dialética dos dois termos mudará constantemente de forma, mas na arte
moderna esta dicotomia será pouco alterada; a arte moderna também é a procura da
ligação entre o indivíduo e a sociedade, entre o microcosmo e o macrocosmo, entre o
finito e o infinito, entre o temporal e o intemporal...

A espontaneidade artística que ignorava todas as fronteiras, os golpes de génio e


a intoxicação criativa que estimulavam o artista a explorar domínios exóticos, arcaicos e
selvagens, eram enaltecidos como os novos meios da experimentação artística.
A nova figura da consciência artística, impulsionada pelo romantismo e trazida
até aos nossos dias através de um ininterrupto processo de contradições, liga, pois, em si
o triunfo da acidentalidade ou casualidade quotidiana, a morte, a liberdade como
verdade.

Será este um dos caminhos de toda a arte, do romantismo até aos nossos dias. As
luzes destas realidades da arte postas neste caminho, indicam as etapas muitas vezes
dramáticas da arte contemporânea, e iluminam a “paisagem arruinada” da civilização
ocidental como grandes clarões noturnos da consciência.98

Na nova figura do conhecimento artístico que o romantismo produziu, parece


que todas as figuras precedentes ardem como uma grande pira e, simultaneamente,
renascem purificadas, tornadas transparentes por um banho mortal e místico de verdade.

2.2.1 O Sublime o e Pitoresco

97
In ARGAN, Giulio Carlo Arte Moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998. p. 20.
98
Id Ibid, p. 21.

86
A obra Pensées Philosophiques99 (1746) de Diderot pode ser considerada uma
espécie de hino calmo às “paixões”, mas umas paixões controladas. Neste livro, Diderot
defendeu uma reconciliação da razão com o sentimento, de modo a estabelecer a
harmonia. De acordo com Diderot, sem o sentimento haveria um efeito restritivo sobre a
virtude e não haveria a possibilidade da criação de trabalho sublime. No entanto, o
sentimento sem disciplina, arguia o autor, pode ser destrutivo. A razão era necessária
para “reinar” sobre o sentimento.

Também Rousseau (1712/78) desde os anos sessenta fazia apologia a um certo


naturalismo que influenciaria os românticos, O estado de natureza, tal como concebido
por Rousseau, está descrito principalmente no seu Discours sur l'origine et les
fondements de l'inégalité parmi les hommes, 1754. A definição da natureza humana,
para o autor é um equilíbrio perfeito entre o que se quer e o que se tem. O homem
natural é um ser de apenas sensações. O homem no estado de natureza deseja somente
aquilo que o rodeia, porque ele não pensa e, portanto, é desprovido da imaginação
necessária para desenvolver um desejo que ele não percebe. Estas são as únicas coisas
que ele poderia "representar".

Rousseau dá à palavra natureza um sentido quase divino e nela encerra uma


espécie de absoluto a ser buscado e seguido. Tal sentido deixa transparecer que há uma
natureza da natureza, a qual até poderia ser grafada Natureza, com letra maiúscula, por
coincidir com o princípio divino. Nesse sentido, haveria uma natureza absoluta (N) que
gera a natureza (n) e o estado de natureza. Como força ativa que estabelece e conserva a
ordem de tudo quanto existe (seja num sentido metafísico ou no sentido puramente
científico atual), o seu sentido é substantivo e não meramente qualificativo, que pode
ser expresso na locução adjetiva de nature. É a força de onde emana o próprio estado
original e visível da ordem existente, o qual chamamos de estado natural.

É na Enciclopédia de Diderot (1713/84) e D’Alembert (1717/83) que


encontramos outra das primeiras definições de paisagem. Aí diz-se que esta é na pintura
um dos temas mais ricos, mais agradáveis e mais fecundos e se distinguem dois tipos: o
heroíco e a pastoral, que se unem frequentemente. Também se dá conta de que se
representam muitas vezes sítios inabitados e inóspitos para se ter liberdade de executar
99
Ver DIDEROT, Denis, Pensées philosophiques, Mille et Une Nuits, Paris, 2001.

87
efeitos “bizarros” ou num sentido mais contemporâneo, “efeitos especiais”, e se escreve
que o género era muito popular em Inglaterra e muito valorizado. Na Enciclopédia
distingue-se já pitoresco e sublime. Seria o primeiro a dar o mote para a modernidade.

Para o pitoresco, a natureza é um ambiente variado, acolhedor, propício, e que


favorece nos indivíduos o desenvolvimento dos sentimentos sociais. Donde, não é com
surpresa aparente que a poética do pitoresco se tenha desenvolvido na Inglaterra. Foi o
pintor e tratadista Alexander Cozens (1752/97) que o teorizou, preocupado em doar à
pintura inglesa do séc. XVIII, predominante retratista, uma escola de paisagistas.

O pitoresco exprime-se assim na pintura em tonalidades quentes e luminosas,


com pinceladas vivas que põem em relevo a irregularidade ou o carácter das coisas. Os
temas são os mais variados possíveis: árvores, troncos caídos, manchas de relva e poças
de água, nuvens móveis no céu, cabanas de camponeses, animais, e pequenas figuras
sempre diluídas na imensidão da paisagem. A passividade do artista é essência, a
natureza não pode ser tomada de assalto.

Esta é em parte o segredo da tradição inglesa. A natureza inglesa é entendida


com pureza, mas não é densamente povoada. Para o artista inglês a natureza é em certa
medida, um refúgio da vida.
Assistimos assim a um novo protagonismo da pintura de paisagem. A teoria da
arte em épocas anteriores tinha denegrido este género, uma vez que ele não podia
satisfazer as exigências clássicas concretizadas, sobretudo, pela pintura histórica. Na
instrução académica, este juízo viria a manter a sua validade em pleno século XIX. No
entanto, já no séc. XVIII, quando pensadores como Rousseau, Diderot e Schiller
lamentavam o afastamento do homem da natureza, começava-se a sentir uma alteração
fundamental de atitude. A atmosfera das paisagens subjetivamente sentida, impossível
de se enquadrar dentro de regras, passava agora a ser considerada como uma qualidade
por direito próprio.

Como se observa o interesse pela paisagem que iria mover os artistas


românticos por volta de 1800, fora preparado em teoria, anos antes. Assim também para
a prática artística. Um bom exemplo é o Jardim Inglês, surgido por volta de 1720 e
cujos conjuntos de árvores aparentemente indomáveis e naturais rompiam as restrições

88
geométricas do Jardim Barroco Francês, que começou por ser visto como um
reservatório de ambientes pitorescos e atmosféricos. Não foi por coincidência que as
diversas vistas e panoramas do Jardim Inglês se baseavam frequentemente nos quadros
de Claude Lorrain.
No romantismo, a natureza não é mais a ordem revelada e imutável da Criação,
mas o ambiente da existência humana; não é mais o modelo universal, mas o estímulo a
que cada um reage de modo diferente; não é mais a fonte de todo o saber, mas o
objectivo da pesquisa cognitiva. Esta será de facto a pedra no charco, conquistada pela
cultura do Iluminismo e que se perpetua com o romantismo.

A poética iluminista do pitoresco vê o indivíduo integrado no seu ambiente


natural, tal como Alice antes de passar para o outro lado do espelho, e o outro lado será
visionário, místico...
No livro, Um Inquérito Filosófico sobre as Origens das Nossas Ideias do
Sublime e do Belo,100 publicado em 1757, Edmund Burke abre caminho a uma estética
de terrores terríficos e delicados. Sobre o prisma do sublime, que permitiu à estética
estender-se para além da categoria limitativa e formal do belo, o romantismo procede
assim à exploração de um continente não propriamente novo, mas com muito ainda por
desbravar.
Este continente não pode ser habitado sem riscos; é o informe, o terrível, a
grandiosidade sem comparação, a ameaça da morte ou a iminência do nada que se
situam no seu horizonte. Diante de montanhas geladas e inacessíveis, do mar selvagem,
o homem não pode experimentar outro sentimento senão o da sua pequenez.

O sublime é visionário, angustiado. Na pintura as cores são foscas, pálidas,


desenhos de traços fortemente marcados, gestos excessivos, bocas gritantes, corpos
eroticamente desfalecidos... Os dois pilares da poética do sublime foram para Argan,
J.H. Füssli (1741/1825) e W. Blacke (1757/1827). «A natureza não tem contornos, mas
a imaginação tem101», eis a descoberta mais profunda de Blake que o levou
naturalmente para a arte gótica, que a sua imaginação contornava. O próprio Blake
escreveu um dia: «A forma grega é forma matemática; a forma gótica é a forma viva. A

100
Ver BURKE, Edmund, A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and
Beautiful, Oxford University Press, USA; New Ed edition 1998.
101
Ver RAINE, Kathleen, William Blake. Oxford University 1970, p. 68.

89
Fig. 13
Henry Fuseli, O Pesadelo, 1791/91.

Fig. 14
William Blake, Piedade, 1795.

90
forma matemática é eterna na memória intelectual; a forma viva é existência
eterna.»102
Estas palavras revelam a sua profunda compreensão do que é essencial na arte
gótica. Blake foi pintor e poeta, e como poeta esteve ligado à revelação de Homero, da
Bíblia, de Dante, de Milton, em que via veículos de mensagens divinas. Temos que
reconhecer que nas suas manifestações mais simples, o valor da arte depende de
qualquer interpretação da vida, seja esta interpretação poética, religiosa ou filosófica.
Blake inspirava-se numa visão deste tipo, uma visão mística em demasia para ser
inteiramente comunicável.

Os desenhos inacabados sobre os motivos de Dante, (nos quais trabalhava ainda


no seu leito de morte), embora mantendo este espírito gótico, buscam também uma
outra espécie de sensibilidade, mostram-nos que Blake podia ombrear com a
imaginação de Dante. Podemos reconhecer que dava aos seus desenhos uma estrutura
intelectual subtil ou uma organização formal. Talvez seja esta a qualidade que atrai as
mentes modernas (mais diretamente do que o significado esotérico em demasia dos seus
desenhos bíblicos).

O sublime surge assim ligado a um sentimento ambíguo, que é simultaneamente


de dor e prazer: «As paixões que pertencem à conservação da própria vida circulam
sobre a dor e o perigo (...) elas são deliciosas quando nós temos uma ideia da dor e do
perigo em tais circunstâncias (...) o que quer que excita este prazer, eu denomino
sublime…» 103

O Belo, para Kant, nasce de uma conformidade, de uma “conveniência entre


duas faculdades”: a imaginação, que é uma intuição sem conceito e o entendimento

102
In BLAKE, William; William Blake's Writings (2 Volumes), Oxford University Press; First Edition
edition, 1978.
103
Trad. livre do autor «The passions which belong to self preservation turn on pain and danger (...) they
are delightful when we have an idea of pain and danger, being actually in such circumstance (...)
whatever excites this delight, I call sublime...» in BURCKE, Edmund, A Philosophical Enquiry into the
Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful, p. 38.

91
conceptual – as ideias da razão.104 O sentimento do sublime acontece quando a
faculdade de apresentação conveniente de uma ideia, que foi despertada por algo
incomensurável e que não admite comparação; «em comparação do qual tudo o resto é
pequeno», como escreve Kant105. Como Argan nos diz, «não mais agradável variedade,
mas discórdia de todos os elementos de uma natureza rebelde e enfurecida; não mais
sociabilidade ilimitada, mas angústia da solidão sem esperança.»106

Após o lançamento do tratado de Burke sobre o sublime, os jardins passaram


cada vez mais a serem dotados de ruínas artificiais, capelas góticas, pagodes chineses e
quiosques mouriscos. Os seus tratados estavam inundados pelo mesmo anseio sublime
por lugares e tempos distantes, por uma inclinação para o exótico e medieval, e por uma
estética de “decadência” e ruína, que viria a caracterizar o devir da pintura romântica.

104
Metade da Crítica da Faculdade de Julgar (1790), de Kant, obra que constitui o culminar do percurso
iniciado com A Crítica da Razão Pura, é consagrada ao problema do juízo estético. Este último é
decomposto por Kant em quatro «momentos»:
A qualidade. O carácter desinteressado é a qualidade essencial de qualquer juízo do gosto «puro», em
oposição ao juízo prático, o qual, por ser empírico, exprime um interesse. Desinteressado, o juízo estético
apenas provoca um interesse, livre em relação às preferências subjetivas (quer dizer, em relação ao que
me causa agrado ou desagrado, anterior ao juízo). Kant também afirma, sobre o juízo estético, que este é
«autónomo», pois determina-se a si próprio através da sua própria atividade pensante ao exercer-se sobre
uma representação sensível. Apenas as propriedades formais do objeto são consideradas pelo juízo do
gosto kantiano (se o meu juízo se exerce sobre a matéria, já não é livre, pois sou sempre recetivo a ela de
uma maneira ou de outra).
A quantidade. O belo determinado pelo juízo do gosto agrada universalmente, pois não assenta nem
numa preferência pessoal, nem numa idiossincrasia percetual: «O belo agrada sem conceito». Para Kant,
o juízo do gosto não é um juízo que determine um objeto: exprime apenas a relação entre o sujeito e o
objeto.
A relação. Segundo Kant, o juízo do gosto tem os seus fundamentos na «forma da finalidade de um
objeto (ou do seu modo de representação)» e esta forma é a de uma finalidade sem um fim específico. O
juízo do gosto, se bem que seja um juízo pensante, não pode, pois, ser um juízo de conhecimento
pensante (o juízo do conhecimento exerce-se sempre sobre a finalidade do objeto), exerce-se
exclusivamente sobre o sentimento de uma forma final não especificada, a propósito da qual aquele que
julga experimenta um sentimento de um certo estado de harmonia das Suas faculdades representativas.
A modalidade. O juízo do gosto implica que o belo seja o objeto de uma satisfação necessária. Se a
satisfação não fosse necessária, não poderiam existir juízos de gosto puros, mas apenas juízos de gosto
empíricos (determinados pelas sensações). Em Kant, trata-se de uma necessidade exemplar: cada juízo do
gosto afirma ser um exemplo de uma regra universal que não pode ser enunciada conceptualmente.
O gosto que Kant menciona consiste na faculdade de julgar o belo, quer se trate do belo natural
ou do belo artístico. Resumindo a Sua conceção do objeto belo é indeterminista; chega ao ponto de
afirmar que o quadro vivo constituído por uma reunião mundana bem-sucedida deve ser considerado uma
pintura, pois o juízo global que o amador exerce sobre a organização formal do campo percetivo reside no
simples prazer desinteressado que o espetáculo deste quadro vivo nele desperta. Kant desvaloriza, assim,
o belo «artificial» face ao belo «natural», na medida em que este último quase sempre desperta um
interesse moral. Podemos ver o perigo que uma tal distinção representa, mas não obsta: a Crítica da
Faculdade de Julgar estabelece a autonomia radical do sensível em relação ao inteligível, o que, do ponto
de vista filosófico, surge como um passo de importância capital.
105
KANT, Emmanuel, in O belo e o Sublime (Ensaio de estética e moral), Porto, Livraria Educação
Nacional, 1943, p.35.
106
In ARGAN, Giulio Carlo, Arte Moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998. p. 19.

92
O arquiteto inglês William Chambers (1723/96) planeou (embora nunca tenha
executado) paisagens de terror e melancolia. Idealizou ruínas queimadas e inundadas,
povoadas por animais selvagens famintos, instrumentos de tortura espalhados pelo
terreno, masmorras subterrâneas de onde se poderiam ouvir os gritos dos martirizados,
vulcões artificiais cuspindo nuvens de fogo vermelhas. Enfim, um autêntico cenário dos
livros de Ann Radcliffe ou de Horace Walpole.

O mundo clássico, recomposto contra o pitoresco rocaille, num revivalismo de


empenho moral, é cedo contrariado por um renascimento de formas e de sentimentos
duma psicologia inquieta, atenta a íntimos rumores e capaz de os inventar. O pitoresco
psicológico invade a arte, já não para agrado dos sentidos, mas para tortura das almas;
para pontes poéticas espirituais.

O culto da paisagem tende para situações extremas. O campo burguês dos


holandeses cobre-se de céus tempestuosos, uma ameaça paira, a natureza é equívoca ou
ilusória. Os fenómenos físicos ganham um sentido que é legível poeticamente em
termos de meditação sobre-humana ou sobrenatural; as ruínas passam a ser símbolos de
um nada existencial, e com elas vem uma volúpia mortal, alcançável no mais sincero
dos fingimentos.

A noite com a sua afinidade de sóis, opunha-se ao sol único que brilhava no dia
racional dos iluministas e, antes do Sturm und Drank germânico de 1777, marcava a
sensibilidade ocidental que seria romântica.
O castelo misterioso de Otranto107, numa história “gótica” de terror; Vathek108
viajante dos infernos; O Italiano109, com inquisidores, bandidos, frades, freiras,
amantes, ruínas, conventos, igrejas, tempestades, sonhos, pontes de pesadelos, punhais,
liberdade – metáfora literária de todo o espírito de uma época. Aliás, as obras citadas
serão a fonte da literatura “gótica”, talvez o mais fecundo subgénero narrativo de toda a
literatura universal, e é a raiz não só da literatura policial, como do filme negro e de
suspense.

107
Ver WALPOLE, Horace, Otranto, Ed. Estampa, 1979.
108
Ver BECKFORD, William, Vathek, Ed. Estampa, 1979.
109
Ver RADCLIFFE, Ann, O italiano, Ed. Estampa, 1979.

93
Beckford, autor de Vathek, fará demolir uma mansão neoclássica para edificar
outra, neogótica, que será um dos lugares privilegiados em Inglaterra deste romantismo
de country.
Entre as montanhas alpestres da Suiça e os lagos de Lancashire que Wordsworth,
Byron ou Shelley cantarão de olhos enevoados, o paisagismo inglês definir-se-á até à
explosão luminosa de Turner. Ao mesmo tempo, e necessariamente, entre turbilhões de
luz e massas de trevas, produzir-se-ão as visões fantasmagóricas de Blake e de Fuseli.

Mas o the Romanticism não é o le Romantisme como não o fora die Romantik,
nesta complexa semântica das sincronias culturais. Géricault esteve em Inglaterra em
1820, e os paisagistas participaram em força no Salon de 1824. A pintura francesa não
conheceu fantasmas nem montanhas onde eles pudessem ter habitado. A Liberdade que
guia o povo na tela anti gótica, de Delacroix, tem uma carne real, uma força politica,
que as formas de Fuseli só podem assumir em imaginação...

Na pintura de Géricault, A Jangada da Medusa podemos observar precisamente


a metáfora a esse “continente do Medo” inserido no romantismo: «há uma balbúrdia,
uma confusão de corpos enleados: não empenhados numa ação, mas sofrendo a mesma
angústia. Observam-se dois impulsos contrários: a maré montante dos naufrágios que
projetam à incerta salvação; a onda que repele os destroços, o vento que influa a vala
na direção oposta. Toda a composição sofre o jogo desses dois impulsos contrários, a
esperança e o desprezo, a vida e a morte. Para Géricault, é justamente a derrota do
ideal, a inutilidade e a negatividade da história, a hostilidade entre o homem e a
natureza, a ameaça da morte nas ações da Vida.»110

O romantismo pode ser observado como uma rejeição aos conceitos da ordem,
da calma, da harmonia, da idealização ou da racionalização que tipificava o classicismo
nos finais do séc. XVIII e o neoclássico em particular. Enfatizava o individual (herança
da Revolução Francesa), o subjetivo, o irracional, a imaginação, o espontâneo, o
emocional, o visionário e o transcendental. Mas também procura nos estilos do passado,
nomeadamente no gótico, uma fonte de inspiração, complementada em muitos países
pelos programas de restauro dos monumentos medievais, então iniciados.

110
In ARGAN, Giulio, Carlo Arte Moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998. p. 53.

94
Este interesse por um passado gótico, por tanto tempo desprezado, era o sintoma
de uma reação contra a ordem social e a religião estabelecida ou quaisquer outros
valores consagrados, derivados dos valores da revolução Francesa, atitude nascida de
um forte desejo de emoções novas.
Qualquer experiência, real ou imaginária, serviria, desde que fosse
suficientemente intensa. Mas o propósito declarado dos românticos era o de derrubar os
artifícios que barravam o caminho a um “regresso à Natureza”, a natureza desmedida,
selvagem e variável, sublime ou pitoresca.

Se o Homem se comportasse “naturalmente” dando rédea solta às suas


inspirações, o mal desaparecia e a sua felicidade seria completa. Foi em nome da
natureza que os românticos adoraram a Liberdade, o Poder, o Amor, a Violência, a
Idade Média, o Terror, a Paixão.
O sobrenatural explicado, em que Ann Radcliffe se tornou mestra, teve o maior
êxito, sempre que teatralmente adoptado. Na França, Gilbert de Pixérécourt passa por
ser o inventor do melodrama. De 1800 a 1835, foi o mais popular e o mais inovador dos
homens do teatro Francês, com as suas peças-encenações-cenários mirabolantes:
fantasmas, diabos, almas-penadas, claustros, criptas, ruínas, grutas, tudo Pixérécourt
traz para a cena, cujos panos de fundo são sempre construções ao gosto gótico.

Em Portugal este género de teatro torna-se popular bastante mais tarde e entre os
dramaturgos “góticos” de mais sucesso contam-se os nomes de Ferreira de Azevedo,
César de Lacerda, Sousa Lobo e as peças Os Monges de Toledo, A Capela arruinada, A
Freira Sanguinária, O Emparedado, etc.

Foi a Inglaterra, mais que qualquer outra nação, quem forçou a transição do
fabrico manual para a produção em massa; a Revolução Industrial estava
inexoravelmente em marcha. Ela conduziu ao intenso crescimento das cidades e ao
surgimento dos “bairros de lata” para o proletariado, também ele a crescer rapidamente.
Quanto mais brutais se tornavam as condições de vida dos trabalhadores, mais escritores
e artistas reagiam ao mundo industrial empobrecido e prosaico, celebrando o poder da
imaginação, o culto da natureza e a criatividade individual.

2.2.2 Constable e Turner.


95
No campo da pintura paisagística inglesa a transição do século XVIII para o
romantismo ocorreu de forma gradual e, inicialmente, no seio de uma concentração de
atmosferas mais pacíficas.

O ponto de partida para este desenvolvimento foi a moda do século XVIII de


fazer concluir a educação dos jovens aristocratas ingleses com o Grand Tour, uma
viagem a Itália. Estes jovens eram muitas vezes acompanhados por aguarelistas, cujas
séries de pinturas serviam um fim não muito diferente do das fotografias e postais, que
os turistas tiram e compram hoje em dia.
As viagens aos lugares pitorescos, bem como um novo interesse pela atmosfera
dos locais e das paisagens, levaram a uma viragem sem precedentes na pintura inglesa
de paisagem, a partir de 1800 até 1840.

Entre os artistas envolvidos estão duas figuras emblemáticas: John Constable


(1776/1837) e William Turner (1775/1851). Artista de horizontes propositadamente
restritos, (no seu Suffolk natal, que pintou e observou incansavelmente), Constable
forneceu ao paisagismo romântico o modelo através do qual ele pôde evoluir na pintura
ocidental, até ao impressionismo.
Para os pintores franceses, ela vai constituir uma revelação, uma “nova porta”,
sobretudo a partir do famoso Salon de 1824, com a sua pintura O Carro de Feno (1821,
National Gal., Londres).

Apaixonado de Claude Lorrain pelo seu “claro-escuro”, que transporia


naturalisticamente, apreciador também dos holandeses e admirador de Cozens,
Constable estabelece uma ponte para a pintura moderna entendida em termos duma
natureza “visivelmente” representável, ou seja, individualizável nas transformações
físicas que a luz lhe impõe.

O segredo está no conselho de Wordsworth «deixa que a natureza seja a tua


mestra» assim como na frase de Constable «a pura perceção dos factos naturais». «O
céu é a fonte de luz na natureza e governa tudo»111, escreveu o pintor, consciente
também de que os sacrifícios que fazia à luz e ao seu brilho eram bem necessários
porque neles estava a própria «essência da paisagem».
111
In PARKINSON, Ronald. John Constable: The Man and His Art Hardcover, 1998.

96
Fig. 15
John Constable, O Carro de Feno, 1821.

Fig. 16
John Constable, A Baia de Weymouth, 1816.

97
É interessante verificar que Constable, Turner e Wordsworth eram
contemporâneos quase exatos, e aquilo que cada um deles fez na sua arte é
necessariamente equivalente. Ambos libertaram a sua arte de maneirismos derivativos
ou ecléticos, ambos se voltaram para o facto natural, para a visão natural, como escreve
Clark; construíram a sua obra na apreensão intuitiva desse facto.

Em William Turner, temos motivos pictóricos dissolvidos em cor e luz puras que
eram apaixonadamente defendidos contra os seus detratores por John Ruskin o mais
importante teórico do romantismo em Inglaterra, no seu livro de 1843 Pintores
Modernos. Ruskin112 nesse livro, dizia que o pintor que ama a natureza saberá
demonstrar que a arte não a pode imitar e é isso que faz Turner ao registar as suas
impressões setenta anos antes do impressionismo, representando a beleza abstrata da
natureza – este era um pintor que estava habituado a encontrar equivalentes gráficos
para todos os fenómenos e é isso que vemos nas suas tempestades, furacões, avalanchas.

A arte deixa então de ser imitação para passar a ser expressão.


Consequentemente, o ato da criação passa a ser sobrevalorizado e a ser um processo
paralelo ao da natureza. E assim, os românticos reivindicam para si o ato criativo, à
semelhança de Deus e da Natureza. Eram os primeiros modernos, como havia teorizado

112
Modern Painters, publicado em 1843 essencialmente para celebrar Turner, e Seven Lamps of
Architecture (1849) formulam o dogma de Ruskin: os fundamentos da crítica de arte enraízam-se no
sagrado. Para Ruskin, a arte e a moralidade confundem-se e a crítica deve libertar a Essência e a
Autoridade do Belo e do Verdadeiro. Esta adequação perfeita entre a arte e a moral impõe nomeadamente
uma vida virtuosa aos artistas. Aquilo que Marcel Proust, o seu tradutor em francês, denomina «o ponto
fixo ou o centro de gravidade da estética rusquiana» é «a preeminência do sentimento religioso sobre o
sentimento estético». (Prefácio de la Bible d'Amiens.) Contudo, Ruskin nem sempre consegue ser ele
próprio fiel aos seus princípios, e em alguns dos seus escritos confunde o que pertence à categoria da
informação (papel do historiador e do perito) e a condução da consciência (papel de pregador).
A Inglaterra deve a Ruskin uma tendência lamentável para julgar as obras de arte consoante a
suposta moral dos seus criadores. Mas o próprio Ruskin dá mostras de várias intenções profundas. Por
exemplo, segundo ele, o artista não deve escolher os seus motivos diretamente da natureza, mas sim entre
os elementos da sua arte. Um fragmento da natureza não deveria ser retido em função da sua beleza; o
artista deve escolher as linhas preferencialmente às cores; luzes e sombras em vez de formas, para
exprimir o seu amor pela natureza. O importante não é o objecto, mas a relação entre o sujeito e o objecto
que é também a relação da natureza com a arte.
Ruskin é o expoente máximo da crítica romântica; com ele, esta afasta-se dos contemporâneos,
que compreende mal (Ruskin prefere Turner a Constable) e apenas se interessa pelo gótico.

98
Fig. 17
William Turner, Paisagem com Rio e Baía distantes, c. 1840-50.

Fig. 18
William Turner, Chuva, Vapor e Velocidade – O Grande Caminho-de-Ferro Ocidental, 1844.

99
Baudelaire 113 (1821/67).
Turner, membro e professor da Royal Academy, começou por ter como
referência o estilo paisagístico clássico de Claude Lorrain, bem como as reflexões sobre
o belo e o sublime de Burke. Ao longo da sua carreira, baseada na teoria da cor de
Goethe, Turner desenvolveu um tratamento revolucionário da luz e da cor, produzindo
texturas e estruturas que tinham um efeito impressionista e por vezes quase abstrato,
como é especialmente visível nas pinturas de Veneza da década de 1840.

Turner olhava a natureza ilimitada como um mistério insolúvel, que ele


visualizava como uma série de paisagens míticas em termos de destino cósmico. Ao
considerar que o universo se estendia entre os polos da luz e da escuridão, encontrava
correspondências visuais com os processos da criação e destruição, do nascimento, de
um poder visionário que suplantava de longe as paisagens “poéticas” de outros artistas
românticos.

2.2.3 Caspar David Friedrich

Na Alemanha, a paisagem também se tornou no principal motivo da pintura


romântica. Na paisagem, a natureza era revelada como “arena” dos poderes supremos.
A expansão infinita do oceano, os sublimes reinos alpinos, as vistas panorâmicas do
horizonte distante ou a solidão selvagem, podiam evocar a presença divina na natureza
dos elementos, e fazer com que o observador a sentisse.

Em última análise, o ambiente natural não era representado pelas suas


qualidades, mas como um espelho de processos mentais e emocionais interiores.
O mais importante pintor de paisagens alemão do período romântico foi Caspar
David Friedrich (1774-1840), cuja obra acabaria por ser profundamente influenciada
pela filosofia alemã contemporânea, nomeadamente pela escola de Jena. Baseando-se

113

Além de ser um pioneiro de todos os grandes poetas simbolistas, Baudelaire é considerado pela maior
parte dos críticos como o mais provável fundador da poesia dita moderna. Isto deve-se ao fato de que
através da perceção do real, chegava sempre a um correpondente objetivo para o sentimento que desejasse
expressar, tal como o poeta T. S. Eliot define o termo, observando o seu uso precursor de tal conceito na
poesia do poeta francês. Veja-se o poema "Correspondances" (Correspondências), no livro As Flores do
Mal, onde Baudelaire expõe a origem de seu "projeto simbólico".

100
em Novalis, defendeu que os artistas deviam pintar «aquilo que veem dentro de si
próprios»114, assim como «aquilo que veem à sua frente115».
Retratando cumes de montanhas enevoadas, vistas marinhas, cemitérios e
florestas num estilo simultaneamente meticuloso e misterioso, as suas telas revelam um
carácter moderno que ultrapassa os seus motivos românticos. Isto deve-se em parte à
frugalidade das suas composições, que apresentam muitas vezes uma qualidade
simbólica com tendência para a abstração.

E mais ainda deriva da forma distintiva como Friedrich tratava as convenções


paisagísticas. Usou-as para estimular a reflexão acerca da dinâmica da cognição
humana, um projeto análogo às convenções filosóficas de Johann Gottlieb Fichte
(1762-1814), que foi um dos criadores do movimento filosófico conhecido como
Idealismo alemão, que se desenvolveu a partir dos escritos teóricos e éticos de
Immanuel Kant.

A sua obra é frequentemente considerada como uma ponte entre as ideias de


Kant e as de Hegel. Assim como Descartes e Kant, interessou-se pelo problema da
subjectividade e da consciência. Fichte também escreveu trabalhos de filosofia política e
é considerado como um dos primeiros pensadores do pangermanismo; e de Georg
Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). 116

Nas mãos de Friedrich, a tensão formal elevada existente entre as imagens de


primeiro plano e as que sobressaem mais ao fundo serve para evocar o jogo enigmático
entre a vida interior e o mundo exterior. Os seus quadros mostram muitas vezes figuras
vistas de trás, um processo que simultaneamente facilita e frustra a entrada psicológica

114
In KOERNER, Joseph Leo; Caspar David Friedrich and the Subject of Landscape. Yale University
Press, 1995, p. 88.
115
In KOERNER, Joseph Leo; Caspar David Friedrich and the Subject of Landscape. Yale University
Press, 1995, p. 89.
116
É unanimemente considerado um dos mais importantes e influentes filósofos da história. Pode ser
incluído naquilo que se chamou de Idealismo Alemão, uma espécie de movimento filosófico marcado por
intensas discussões filosóficas entre os pensadores de cultura alemã (Prússia) do final do século XVIII e
início do XIX. Essas discussões tiveram por base a publicação da Crítica da Razão Pura de Immanuel
Kant. Hegel, ainda no seminário de Tübingen, escreveu, juntamente com dois renomados colegas, os
filósofos Friedrich Schelling e Friedrich Hölderlin, o que chamaram de "O Mais Antigo Programa de
Sistema do Idealismo Alemão". Posteriormente Hegel desenvolveu um sistema filosófico que denominou
"Idealismo Absoluto", uma filosofia capaz de compreender discursivamente o absoluto (de atingir um
saber do absoluto, saber cuja possibilidade fora, de modo geral, negada pela crítica de Kant à metafísica).
Apesar de ser notavelmente crítica em relação ao Iluminismo, a filosofia hegeliana é tida por muitos
como, para usar a expressão de Habermas, a "filosofia da modernidade por excelência".

101
Fig. 19
Caspar David Friedrich, A Árvore solitária, 1822.

Fig. 20
Caspar David Friedrich, O Mar Polar, 1823-24

102
do observador na imagem retratada, na verdade reinterpretando o afastamento do mundo
natural que, de acordo com os filósofos idealistas germânicos, é uma pré-condição da
autoconsciência humana.

Estas obras têm um poder a que poderíamos chamar de espiritual, cobrindo a


paisagem com uma sensação de admiração tipicamente setentrional, uma qualidade que
partilham com as florestas virgens de Albrecht Altdorfer (c. 1481-1541). A sua
imagística enfaticamente autóctone foi moldada pelo crescimento do sentimento
nacionalista na esteira da ocupação napoleónica, que colocou durante muito tempo os
artistas germânicos sob a esfera de influência francesa.

Na pintura O Mar Polar uma das obras mais importantes do pintor Caspar David
Friedrich podemos observar um veleiro esmagado pelas placas de gelo flutuante, numa
desoladora paisagem polar que pode ser interpretado como um símbolo da calamidade
histórica abrangendo a futilidade de esforço humano e a capacidade humana para lutar
contra tudo e contra todos.

Entretanto, o cenário do desenvolvimento da pintura de paisagem muda-se para


França. A este facto não é indiferente a ascensão de uma burguesia, possibilitada pela
Revolução, que não estaria familiarizada com a pintura de história e não podia, portanto,
compreendê-la; porém, podia comprar pintura, uma pintura que talvez conseguisse
entender melhor. Foi nesta altura que o estatuto da pintura de paisagem começou a
mudar.

2.2.4 ‘La Revolution Française’

Quando o novo género passa a ter direito a prémio distinto: o Prix de Rome de
Paisage, em 1817. De facto, a pintura de um Valenciennes (1750/1819) – que em 1799-
1800 publicou Élements de Perspective Pratique à l’Usage des Artistes, Suivis de
Réflexions et Conseils à un Élève sur la Peinture et Particulièrement sur le Genre de
Paysage117, onde afirma que os paisagistas, se quiserem manter a coerência da visão,
não devem continuar a trabalhar o seu motivo durante mais de duas horas, porque,

117
Ver de VALENCIENNES, Pierre-Henri, 1750-1819 : La nature l'avait créé peintre, Somogy, 2003.

103
depois disso, a luz muda ou modifica a visão – de um Michel (1763/1843), de um
Micallon (1796/1822) respira algo de novo.

Esse novo estava no tratamento naturalista dos estudos, que estes pintores não
hesitaram em adotar para a própria pintura, deixando-se levar pelo sentimento que lhes
inspirava a natureza e abrindo caminho a toda uma geração de independentes que se
congrega em Barbizon.

As suas experimentações aproximavam-se, de certa forma, daquelas que, pela


mesma altura, propunham os paisagistas ingleses, cujos trabalhos passam a ser bastante
conhecidos e, inclusive, a fazer parte de coleções francesas. A isto junta-se a emigração
de alguns pintores e intelectuais franceses para Inglaterra e a de alguns ingleses para
França e, mais tarde, o espetacular sucesso das obras de Constable no Salon de 1824, o
que determina que a pintura francesa repense o seu percurso. A obra de Constable O
Carro de Feno (1821) leva, segundo a lenda, Delacroix a repintar O Massacre de Chios
(1822-24).

Antes, o romantismo francês não se preocupara com a natureza “naturada” e sim


com aquilo que na natureza se passava, com o seu carácter dramático – como é exemplo
a obra de Géricault (1791/1824), sobretudo na Jangada da Medusa, já referida. No
paisagismo inglês há toda uma atenção ao pormenor e ao instante, que se centra na terra
como lugar de origem e pertença, enquanto a pintura francesa se baseara nos prazeres
que se podiam tirar da natureza dos jardins geométricos palacianos118, como em

118
De acordo com Alain Roger, cujas reflexões sobre a paisagem serão mencionadas no capítulo
posterior, o aparecimento dos jardins constitui uma etapa essencial da “artealização” da natureza. No
mesmo sentido, Cármen Feliú afirma sobre a relação e o jardim e a natureza:
“Se admitirmos que o jardim é uma arte e corresponde a uma intervenção intencional do homem
sobre a natureza, intervenção que adquire através da história uma infinidade de formas diferentes,
segundo a linguagem de cada sociedade, estamos a supor que, como a arte, essa forma pode ser plural e
eternamente mutável. O jardim será, pois, o reflexo da sociedade que o criou em determinado momento
da sua história e responderá às correntes filosóficas, literárias, pictóricas, sociológicas que o não
conformando. O jardim, o parque, é a primeira e mais definida forma de paisagem cultural criada pela
mão do homem."
A paisagem artificial que é o jardim, pretendeu atingir a condição de arte e socorreu-se, ao
mesmo tempo, de outras práticas que podendo não ser da categoria das belas-artes, evidenciaram carácter
artístico: a topiária enquanto arte de dar forma às árvores e arbustos que compõem o jardim, a jardinagem
enquanto exploração qualidades intrínsecas das plantas. A história do jardim revela ainda uma
proximidade com as artes, através da arquitectura, de que acabou por fazer parte, da pintura, que
frequentemente se inspirou, e da escultura que integrou nos seus dispositivos espaciais e as nuas
composições mais grandiosas.
Na frase lapidar com que inicia uma das suas obras, Germain Bazin escreve: “O jardim nasceu

104
Watteau (1684/1721) e Fragonard (1732/1806).

Assim, de abordagem pitoresca, bucólica ou pastoral, a França virou-se para


uma espécie de mística do mundo rural, de atenção ao instante. A isto veio juntar-se a
influência da pintura holandesa do século XVII, recentemente (re) descoberta. E assim,
impulsionado pelo visionamento das obras dos paisagistas ingleses, em finais da década
de vinte começa a denotar-se um interesse crescente pela Natureza; facto que está
patente na obra de Paul Huet (1804/69) – no seu ensaio La Peinture de Paysage. Le
Mouvement des Arts de 1820 a 1836119 mostra a extensão e a complexidade destas
influências do ponto de vista de um pintor e não de um crítico.

As maiorias das paisagens de Huet estavam dominadas por tempestades,


explosões de nuvens e chuvas diluvianas. O mar revolto ao largo do promontório de
Granville, na Normandia, onde esteve em 1850, inspirou numerosos esboços de onde
nasceram as suas famosas pinturas de ondas. Aqui as vagas quebrando-se nos rochedos
são descritas com uma extrema proximidade. A espuma esvoaçante – fenómeno
altamente transitório – constitui o centro de interesse da pintura. O aspeto ameaçador
das violentas forças naturais é realçado ainda mais pela iluminação própria da
tempestade.

Com a Revolução de Julho de 1830, e depois com a de 1848, era o fim da velha
ordem e a consagração de uma burguesia – curiosamente esta burguesia que coleciona a
pintura naturalista é a mesma que estimula e vive do progresso e da industrialização,
que esta mesma pintura rejeitava.
A paisagem emancipara-se ao passar a ser executada sur le motif, como havia
exposto Chateaubriand (1768/1848). Assim, a história, a mitologia, deixam de fazer

do deserto” Esta frase apresenta o jardim em contraste com o território dominante, em oposição ao
existente, como um sinal da frustração humana, mas também da sua vontade de a ultrapassar num desejo
de reconciliação.
A filosofia atribui ao jardim a condição de arte, porquanto ele é o modelo emblemático da A
jardinagem era vista como uma arte, ao lado da poesia ou da pintura, embora a relação com a arquitectura
que sempre mantivera, e que recuperará no século XX, a tenha tornado antecessora da arquitectura
paisagista.
A própria arquitectura paisagista evoluiu no sentido de se considerar prática artística. Embora
com o carácter de manual e não de tratado académico, surgiram no século XX, obras que abordaram o
jardim como arte.
119
Ver MIQUEL, Pierre, Paul Huet : De L'Aube Romantique a L'Aube Impressioniste / From the Dawn
of Romanticism to the Dawn of Impressionism, Edition De La Martinelle, 1962.

105
Fig. 21
Paul Huet, Maré alta perto de Honfleur, c.1861.

Fig.22
Jean Honoré Fragonard, Uma Avenida com Sombra, c. 1773.

106
parte dos temas da pintura, suplantadas que foram pelo novo género.
A França produziu artistas e obras no século XVIII que pareciam antecipar o
romantismo; exemplos disto são as dramáticas paisagens marítimas de um Vernet,
várias pinturas históricas de François-André Vincent (1746/1816), ou algumas das
representações de ruínas de Hubert Robert (1733/1808).

Os escritos e os romances do filósofo Jean-Jacques Rousseau exerceram uma


enorme influência no pensamento europeu. Rousseau argumentava que, com o avanço
da civilização, a humanidade se deixara contagiar por sintomas cada vez mais graves de
decadência e degeneração. O seu famoso apelo ao “regresso à natureza”, não significava
o regresso à primitividade do homem, mas fez com que se olhasse com uma nova
atenção para a Natureza.

Basicamente, implicava a mesma coisa que o tão difundido apelo para que se
ultrapassasse a alienação do homem em relação à natureza, uma alienação descrita e
criticado por Denis Diderot, filósofo do Iluminismo e coeditor da Enciclopédia.

Foi precisamente a ênfase que dava à razão, que permitiu ao iluminismo francês
alcançar novos conhecimentos sobre a psicologia individual por um lado, e sobre a
natureza, por outro. Além dos avanços na ciência empírica, ajudou a abrir caminho para
novas sensibilidades nas artes.

Este desenvolvimento em direção a atitudes românticas foi, no entanto,


interrompido em 1789, pela Revolução Francesa. Os artistas que a serviam não podiam
(ou não queriam) aprovar qualquer viagem às profundezas misteriosas da mente
individual, pois o principal era defender os ideais republicanos vitoriosos e fornecer
propaganda visual para os objetivos políticos da nova república.

Em termos de conteúdo, esta pintura adotou o antigo catálogo romano de


virtudes, honra e representou-as em termos formais através de um neoclassicismo
rigorosamente composto e da pintura histórica.
Estas diferenças podem ser constatadas através da obra dos seus dois
protagonistas, Géricault e Delacroix (1798-1863).

107
Fig. 23
Jean Honoré Fragonard, A Cascata, c.1773.

Fig. 24
Jean-Antoine Watteau, Peregrinação à ilha de Cythère, 1717.

108
Eram pintores profundamente coloristas e um e outro eram génios brilhantes
que, como todos os grandes na história da arte, são difíceis de classificar dentro de um
estilo único. Ambos passaram ao lado do género paisagístico tão popular no resto da
Europa, preferindo, em vez dele, a pintura histórica; mas essa pintura continha a
paisagem e a paisagem participava na história.

O pathos das suas composições era construído em cor e luz, mas ao contrário das
antigas pinturas históricas, as suas focavam-se muitas vezes no herói anónimo, no
indivíduo envolvido em acontecimentos fatídicos ou circunstâncias desastrosas.

Delacroix viajou consideravelmente, ainda que sempre tivesse evitado Itália, o


seu espírito era essencialmente nórdico. Outras duas viagens tiveram nele uma grande
influência. Em 1832 visitou Marrocos e a Espanha e em 1838 a Bélgica e a Holanda. Do
Sul trouxe consigo um sentido voluptuoso da cor; no Norte encontrou-se com o talento
de Rubens; só naquela fúria flamenga e abundância animal veio a encontrar um paralelo
para a sua transbordante energia espiritual.

Aos vinte e quatro anos de idade começou a escrever um diário, o qual viria a
tornar-se um documento de extraordinário interesse – não somente um volume de
confissões que concorrem com as de Rousseau em “franqueza e autorrevelações” – os
ideais da revolução francesa – mas também o repositório de algumas das mais
profundas críticas de arte e literatura publicadas.

Delacroix exteriorizava um conflito interior, que podemos descrever


simplesmente como o conflito da razão e da imaginação, luta de cuja tensão extraía e
encontrava o princípio criador com que operava.

109
Fig. 25
Eugéne Delacroix, A Liberdade Guiando o Povo (28 de julho de 1830), 1830.

Fig. 26
Théodore Géricault, A Jangada da Medusa, 1818-19.

110
2.2.5 Quelle est la critique?

Em 1846, dois anos antes da revolução social que da França se alastrou até à
Alemanha, Áustria, Hungria e Itália, Charles Baudelaire (1821-1867) perguntou, «Para
que serve a crítica?» Já respondera a esta questão ao dedicar a sua crítica do Salon de
1846 «à burguesia», se a arte se dirige agora para o terceiro estado, então a função da
crítica de arte é ensinar a classe média a tirar partido dos negócios, do direito e da
ciência no prazer estético obtido através da arte.

Baudelaire chegou ao ponto de declarar que, tal como a arte só conseguia ter
valor quando proveniente de uma individualidade fortemente delineada, assim também
a crítica de arte só valia a pena quando portadora de uma opinião bem formada – se
tomasse partido, entrasse em diálogo com outra crítica ou com a arte transformada em
seu objeto, se diferenciasse e diversificasse a sua audiência sendo «parcial, apaixonada
e política».

Baudelaire escreveu em meados do século, quando os jornais diários e semanais


começaram a proliferar por Paris e o feuilleton de fim de página, com a sua dose de
bisbilhotice, ficção, notícias breves e críticas de arte e literatura, se tornou numa
instituição, tendo os repórteres de arte passado a ter uma presença constante. Mas a
noção de Baudelaire, apregoando o facto de a crítica de arte servir uma audiência muito
mais vasta de observadores de arte e, como tal, um novo campo de valores, não era nova
pois remontava ao final do século XVIII.

Nas décadas de 1760 e 1770, quando ainda não havia nada parecido com um
crítico especializado em arte, o “enciclopedista” filósofo Denis Diderot (1713-1784)
procurou atrair a atenção de um público limitado e de elite (em número não superior a
15 subscritores de origem nobre) nos Salons que escreveu para o manuscrito
bissemanário do barão Grimm, o Correspondance littéraire, separando explicitamente
os seus registos dos comentários mais abrangentes sobre o Salon, escritos sem
ilustrações para o vasto público do Salon.
Contudo, Diderot não deixou de se imiscuir na confusão do Salon, fazendo
referência às suas obras e à sua divagação pelos diferentes espaços, permitindo que o

111
barulho imaginário de uma massa de visitantes se intrometesse na intimidade das
conversas fantasiosas inventadas com o fim de escapar a esse mesmo barulho, e
enquadrando as suas memórias pictóricas no âmbito da experiência fenomenal da
observação, que podia teoricamente ser sentida por qualquer um.

Apesar de a maioria dos críticos do século XIX serem homens e mulheres


literatos, houve quem tivesse recebido lições de pintura; tal foi o caso de Delécluze, que
estudou no estúdio de David e escreveu a primeira grande biografia do artista em 1855.
Para Delécluze 120, que considerou a «vida e época» do artista como a chave da sua arte,
David era o «grande mestre» daquilo que era então a velha escola – os Antigos em
oposição aos Modernos. Deste modo, a crítica de arte foi estruturada em torno de uma
série de oposições, no seio das quais os artistas e objectos da sua análise eram
arbitrariamente colocados, de acordo com as exigências políticas do momento.

A Alemanha do final do século XVIII assistiu ao desenvolvimento de uma outra


tradição de escritos sobre a arte, baseada nas conferências universitárias. Com a Crítica
do Julgamento (1790) de Immanuel Kant (1724-1804), ele investiga os limites daquilo
que podemos conhecer pela nossa faculdade de julgar, que leva em consideração não
apenas a razão, mas também a memória e os sentimentos.

O campo da estética como um ramo da filosofia, viu a luz do dia. Sem ter
manifestado qualquer tipo de interesse pelas exposições ou pelas obras de arte
individuais, ou até pela arte como tal, Kant definiu o sentimento estético como a marca
da autonomia do tema humano livre, liberto dos prazeres inferiores e das contingências
da sensação e sobrevivência corporal, e diferenciou o «belo» e o «sublime» como
modos da relação do sujeito com o mundo objectivo inspirando-se em Edmund
Burke121.

120
Étienne-Jean Delécluze, 26 February, 1781 – 12 July 1863, foi um pintor francês e crítico de arte. De
1797 em diante, ele foi um aluno do pintor Jacques-Louis David, como ele descreve na biografia de
David. Como um dos seus alunos favoritos, ele foi convidado para a última refeição de David em França
antes de ir para Bruxelas em 1816.
De 1822 em diante, ele trabalhou como crítico para o Journal des débats. No seu livro Louis David, son
école et son temps, (Paris, 1855) ele foi politicamente controverso, e conseguiu reescrevê-lo, a fim de
restabelecer a sua reputação.
121
Uma Investigação Filosófica sobre a Origem das Nossas ideias do Sublime e do Belo (BURKE, E.
(1757), A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the sublime and Beautiful, Oxford:
Oxford University Press, 1992.) Publicada em 1757 representa, antes de tudo, um esforçado exercício de
psicologia filosófica. “Belo” (Participa do “belo” aquilo que move as paixões dos homens, provocando

112
Quando Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) proferiu as suas Lições
Introdutórias sobre Estética em Berlim, na década de 1820, respondeu criticamente
tanto ao sistema estético de Kant como ao monopólio da arte antiga de Johann Joachim
Winckelman (1717-1768). Tratando a arte como nunca Kant fez, traçou uma progressão
dialética desde a coerência interna e autossuficiência da escultura clássica à
fragmentação, à desintegração e carácter sublime das artes «românticas» da pintura e
literatura. Absorvido pelas teorias filosóficas e literárias do modernismo artístico, e
confrontado com o grito positivista de progresso, a conceção de Hegel da fase
romântica, como uma fase de dissolução na qual «a arte cai aos pedaços», constituiria
uma das duas correntes de pensamento acerca do destino da arte na modernidade.

Esta visão da arte moderna reforça a ficção da arte francesa que se centrava na
queda do artista moderno e na desintegração da sua arte num caos proto abstrato de
cores, tão inerentes como A Obra-Prima Desconhecida, conto publicado em 1845 por
Honoré de Balzac (1799-1850), Manette Salomon, romance escrito em 1867 por
Edmond e Jules de Goncourt (1822 -1896 e 1830-1870) sobre a arte na era das
Exposições Universais, e Obra-Prima de Émile Zola (1840-1902), escrito em 1886.

O «Romantismo» não correspondia a um estilo unificado, mas antes a uma


atitude moderna. Para os escritores germânicos como Friedrich von Schlegel (1772-
1829), o romantismo coincidiu com o ressurgimento do espiritualismo cristão e das
conceções nacionalistas do «génio germânico» (e com grupos artísticos germânicos,
como os Nazarenos em Roma); para Heinrich von Kleist (1777-1811) estava ligado à
expansão das «Emoções» perante a natureza e à paisagem germânica, «Depois de

prazer (1757: 30). A beleza é em primeiro lugar, uma “qualidade social” pois conduz à criação da
“sociedade” sob duas formas: a sociedade dos sexos, que conduz à propagação da espécie, e a “sociedade
geral” que une os homens entre si, os homens aos animais e, “de algum modo” os homens ao mundo
inanimado. Afastados dos prazeres, rompidos os laços desta ligação natural às coisas, os homens
lamentam um passado perdido, quedando-se na nostalgia de uma “perda” ) e “sublime” (3) apresentam-
se como conceitos que vão sendo erguidos enquanto balizas da actividade psico-sensorial do homem,
etiquetas multifacetadas que respondem com fiabilidade ao principal objectivo do autor: “verificar se
existem quaisquer princípios [do Gosto], que afectem a imaginação, tão comuns a todos, tão
fundamentados e certos, que permitam fornecer os meios para sobre eles se raciocinar
satisfatoriamente” . Assentar um modelo antropológico único e universal não constitui, obviamente, uma
função bastante inédita no panorama do pensamento setecentista, sendo a Investigação explicitamente
herdeira da filosofia de David Hume. O projeto de Burke adquire, contudo, um “mais alto brilho” se
enquadrado na especificidade da restante obra do seu autor. Burke é um dos mais famosos ideólogos do
conservadorismo europeu.

113
Fig. 27
Hubert Robert, O Banho no Lago, s/d.

Fig. 28
Joseph Vernet, Vista de Nápoles com o Vesúvio, c. 1746.

114
Observando a Paisagem Marítima de Friedrich» Berlim, 1810.

Para Stendhal (1783-1842), no seu Salon de 1824, o Romantismo significava o


«início de uma revolução nas belas-artes» – da «bela pintura moderna» oposta ao
«sistema de David» – e de um «estilo pessoal de sentimento» oposto ao talento e
autoconsciência da escola grega. E significava cor em vez de desenho – apesar de
Stendhal não se ter interessado muito pelo modelo deste tipo de pintura, sob
observação em 1824, O Massacre de Chios de Eugène Delacroix.

A pintura de Delacroix adequava-se melhor às Conversações Críticas sobre o


Salon de 1824, de Auguste Jal (1795-1873), escritas à boa maneira de Diderot como um
diálogo ficcional entre um filósofo e um artista, e defensoras do princípio segundo o
qual o «Romantismo inunda a sociedade e na medida em que a pintura é, de igual
modo, o reflexo da sociedade, a pintura torna-se romântica»122.

Um ano depois da Revolução de Julho de 1830, Heinrich Heine (1797-1856) fez


algumas observações sobre o Salon de 1831 (e as reações do público) para um jornal
alemão e, com o murmúrio da «multidão» do Salon transformando-se no rugido de uma
«turba» revolucionária mesmo por detrás dele, trouxe o conceito de «Romantismo» à
baila em função do momento politico - apesar de achar que as roupagens modernas, em
particular o casaco e o chapéu de cunho burguês postos em - evidência em a Liberdade
Conduzindo o Povo, de Delacroix, eram demasiado singelas para produzir uma boa
pintura.
A crítica de arte em Inglaterra, tal como nos Estados Unidos, não convergiu
necessariamente com as ondas de revolução social. Durante grande parte do século XIX,
o pensamento estético inglês foi dominado pelas visões idealistas expressas pelo
primeiro presidente da Royal Academy, Sir Joshua Reynolds (1723-1792) nos
Discursos sobre Arte facultados nas décadas de 1770 e 1780.

Entre as décadas de 1790 e 1830, começaram a surgir ideias contrárias acerca do


que era o apelo estético nos escritos sobre viagens, natureza e jardins que celebravam os
efeitos pitorescos da própria Natureza e da paisagem. William Hazlitt (1778-1830), com
a sua ligação inconformista à herança da Revolução Francesa, foi um dos que
122
In JAL, Auguste; L'Artiste et le philosophe, entretiens critiques sur le salon de 1824, Ponthieu, 1824.

115
articularam o conceito de «pitoresco», e escreveu a favor do princípio da
«originalidade» subjetiva em ensaios publicados na Enciclopédia Britânica, nas suas
Conversas à Mesa e n’O Atlas. Contudo, só depois de John Ruskin (1819-1900) ter
publicado o primeiro volume de Pintores Modernos em 1843 é que os valores de
Reynolds foram directamente desafiados e a pintura inglesa moderna, sobretudo com
William Turner, encontrou o seu expoente crítico.

Ruskin defendeu uma fidelidade de princípios em relação à especificidade e ao


sistema da natureza e, para a sua oposição binária, escolheu Turner, o representante da
sua visão da Natureza observada, em oposição a Claude Lorrain, o representante da
figuração paisagística convencional.

O nome de Ruskin depressa passou a estar ligado ao da Irmandade Pré-Rafaelita


depois de uma permuta com o crítico do jornal The Times em 1851; por volta da década
de 1850, era já o principal representante da estética vitoriana, cuja influência se sentiria
fortemente nos Estados Unidos, como podemos constatar através do seu principal
periódico sobre arte, The Crayon.
Mas, embora Elementos de Desenho (1857) de Ruskin seja presciente no seu uso
da teoria da cor, na sua articulação com o que viria a ser a «mancha» impressionista e na
forma como entendia a relação entre a ótica e a pintura, em 1877 ele encontrar-se-ia do
outro lado do espectro crítico na sua condenação do Noturno em Preto e Dourado
(1874), de James Whistler (1834-1903).

No “famoso julgamento” de 1878, em que Whistler acusou Ruskin de


difamação, o artista (que ficou sem dinheiro depois de ter perdido a ação) revoltou-se
contra o moralismo crítico e a noção de arte pela arte. Walter Pater (1839-1894)
partilhou o mesmo ponto de vista. Numa crítica que fez em 1868 relativamente à poesia
de William Morris defendeu a experiência intensa e «flamejante» do artista como um
valor em si mesmo.
Numa peça sobre arte renascentista veneziana publicada na Fortnightly
Review,123 em 1878, também articulou a especificidade dos suportes usados

123
O Fortnightly Review foi uma das revistas mais importantes e influentes na Inglaterra do século XIX.
Foi fundada em 1865 por Anthony Trollope, Frederic Harrison, Edward Spencer Beesly, e outros seis
editores; a primeira edição apareceu em 15 de maio de 1865. O Fortnightly Review teve como objetivo
oferecer uma plataforma para uma série de ideias, em reação ao jornalismo altamente partidário da

116
Fig. 29
Eugéne Delacroix, Vista do mar em Dieppe. 1852.

Fig. 30
Jean-François Millet, Inverno, 1868.

segunda metade do século XIX. De fato, ao anunciar a primeira edição do Fortnightly no Saturday
Review de 13 de maio de 1865, GH Lewes, o seu primeiro editor, escreveu: "O objeto da Fortnightly
Review é tornar-se um órgão da expressão imparcial de muitas e diversas mentes sobre temas de
interesse geral na Política, Literatura, Filosofia, Ciência e Arte ". Foi uma das primeiras publicações a
citar os autores dos seus artigos num momento em que o trabalho geralmente aparecia anonimamente ou
sob um pseudônimo. John Sutherland chamou-lhe um exemplar Inglês da Revue des Deux Mondes e
observou que foi "lançado num nível mais elevado do que outras revistas inglesas de sua classe".
O prefácio aforístico de Oscar Wilde para o seu livro O Retrato de Dorian Gray foi publicado na edição
de março 1891; e o ensaio de George Orwell intitulado Bookshop Memories apareceu em novembro de
1936. A revista impressa cessou a publicação em 1954 e foi incorporada no Contemporary Review.

117
as artes e o seu esforço para atingir a condição da música.

O primeiro grande defensor da noção de arte pela arte foi Théophile Gautier
(1811-1872) em França, que resolveu responder a um ataque surgido num jornal com
um prefácio mordaz no seu romance Mademoiselle de Maupin (1834), no qual gozava
com o positivismo do Conde de Saint-Simon (1760-1825) e o seu compromisso para
com a utilidade social das artes, advogando, ao contrário, a benéfica inutilidade da arte
nos tempos modernos.

Na sua derrogação das circunstâncias externas e no seu louvor ao espiritualismo


dos sentidos, para o qual «a visão de um Rafael autêntico ou de uma bela mulher nua»
eram igualmente emblemáticas, Gautier contornou de uma forma perversa a noção
kantiana da autonomia do «belo». Começou a escrever sobre crítica da arte para o então
primeiro periódico de arte surgido em Paris, L'Artiste,124embora nem sempre estivesse
do lado dos modernos nos últimos anos.

Houve muitos artistas que durante a Segunda República em França se


revoltaram contra esta noção de «arte pela arte», juntando as suas forças em torno da
figura de Gustave Courbet (1819-1877). Entre os que mais se destacaram a figura
Champfleury (Jules Fleury) 1821-1889, o escritor jornalista que demonstrou o seu
interesse pela arte popular e cultura vernácula no Un enterrement à Ornans de Courbet
em 1851, tendo publicado em 1857 um estudo sobre o Realismo, movimento cultural
com o qual Courbet se identificava.

O filósofo Saint-simoniano e teórico social Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865)


fez de Courbet o principal representante dos ideais defendidos pelos socialistas utópicos

124
L'Artiste foi uma revista semanal ilustrada publicada em Paris de 1831 a 1904, fornecendo "a mais
rica única fonte de comentário contemporâneo sobre artistas, exposições e tendências da era romântica
até o fim do século XIX ", segundo Ann Roth Nancy (1) Originalmente, L'Artiste focava-se nas artes
plásticas e na literatura, mas de 1859 adiante a literatura tornou-se a sua principal preocupação, que mais
tarde foi absorvida na famosa Revue de Paris.
Editores importantes incluem: A. Ricourt, H. Delaunay, e Arsène Houssaye. Notavelmente, publicou
obras de Honoré de Balzac, Gérard de Nerval, Théophile Gautier, Jules Janin, Théodore de Banville,
Émile Zola, Henri Murger, Jules Champfleury, Charles Baudelaire, Joseph Méry, Eugène Sue e Alphonse
Esquiros.
1- ROTH, Nancy Ann, "'L'Artiste' and 'L'Art Pour L'Art': the new cultural journalism in the July
Monarchy", The Art Journal, 1989. p 35-39.

118
Fig. 31
Claude Lorrain, O Vau, c. 1636.

Fig. 32
Claude Lorrain, Paisagem pastoral: O Campo Romano, 1639.

119
em Sobre o Princípio da Arte e o Seu Destino Social (1865), opondo-se explicitamente
à noção de arte pela arte em prol de um reconhecimento da arte como a forma mais
elevada e virtuosa de trabalho não alienado.

Por alturas do Segundo Império, o conceito menos politizado de «Naturalismo»


veio substituir o antigo conceito de «Realismo» de 1848, mais identificado com a
República, e a batuta passou para críticos como Jules-Antoine Castagnary (1830-1888)
e Théophile Thoré 1807-1869, aliás William Bürger, enquanto esteve exilado de França
entre 1849 e 1859).
Estes críticos interessaram-se quer pela história da arte holandesa, espanhola e
francesa, quer pela «nova escola» da pintura francesa, chamando a atenção para o milieu
sociale para a tendência vanguardista da arte (também uma ideia de Saint-Simon).

Quando o jovem jornalista e escritor Émile Zola entrou nesta “discussão” em


1866, foi para fazer de Édouard Manet (1832-1883) o representante do «novo estilo de
pintura». Em 1867, quando Manet, tal como Courbet, fez a sua retrospetiva fora do
âmbito da Exposição Universal, Zola escreveu um ensaio sobre ele para o Le Dix-
Neuvième Siècle, que voltaria a ser publicado à maneira de panfleto.

Nesse ensaio combinou o aspeto biográfico do pintor com a ênfase formalista


resultante da estruturação das suas obras em torno da tache (mancha ou salpico) e o
modo como dependia da fisiologia ocular do pintor. Ao fazê-lo, Zola aplicou à obra de
um artista contemporâneo o princípio positivista da influência da fisiologia, meio e
história de uma cultura sobre a sua arte, tal como expresso na altura por Hippolyte Taine
(1828-1893) nas suas conferências sobre a Filosofia da Arte na École des Beaux-Arts.

A conceção positivista, tal como foi aplicada à história da arte, estava agora
amplamente espalhada; foi partilhada por Charles Blanc (1813-1882), fundador da
ilustrada Gazette des Beaux-Arts em 1859 e autor da influente Grammaire des arts du
dessin (1867), quando compilou a sua enciclopédica História dos Pintores de Todas as
Escolas no decorrer das décadas de 1860 e 1870.

Zola colocou-se na posição de porta-voz de Manet, em competição directa com


Baudelaire, que havia publicado O Pintor da Vida Moderna no estrangeiro em 1863,

120
celebrando os valores urbanos do flaneur (aquele que deambula pelos boulevards,
aquele que se perde na paisagem citadina), bem como o vestuário e a cosmética da
mulher moderna, e se sentia cada vez mais ligado ao seu amigo Manet, apesar de pouco
ou nada ter escrito sobre ele.
Quando os críticos começaram a frequentar o círculo impressionista na década
de 1870, fizeram-no em termos semelhantes, tratando Manet como o fundador da nova
escola, apesar da sua recusa em aderir às exposições do grupo.125

Em 1874, Louis Leroy (1812-1885) deu ao grupo o nome que se afirmaria na


crítica que fez à primeira exposição do grupo em Charivari, iniciando uma tendência
que estaria na origem dos epítetos fauve e cubique, lançados alguns anos mais tarde pelo
crítico Louis Vauxcelles (1870-1943), quando quis falar depreciativamente de obras de
Henri Matisse e de outros, em exibição no Salon d’Automne de 1905, e de Georges
Braque na Galeria Kahnweiler e no Salon des Indépendants em 1908 e 1909,
respetivamente; impuseram-se de tal modo que passaram a identificar o nome dos
movimentos.

O mesmo se passou com o «Impressionismo», no pequeno e irreverente artigo


de Leroy, com o seu diálogo diderotiano entre o crítico e um académico extremamente
indignado que não conseguia ver o que é que as pinturas representavam com todas as
suas «raspadelas de paleta» (uma figura de retórica que remontava à época de Courbet),
«impressões», «lambidelas» e efeitos imitativos de mármore. Estas críticas adequavam-
se plenamente ao jornal satírico para o qual foram escritas, com o seu propósito de
entretenimento.

Em 1876, surgiram críticas mais sérias, uma pelo poeta Stéphane Mallarmé
(1842-1898) e outra por Edmond Duranty (1833-1880), um jornalista naturalista do
tempo de Courbet. Mallarmé escreveu «Os Impressionistas e Édouard Manet» em
inglês para um jornal londrino, considerando Manet como o fundador da nova escola,
chamando a atenção para a forma como fora maltratado pelo júri e pelo público do
Salon (uma corrente importante de crítica moderna), fundindo a vida moderna
baudelairiana com o naturalismo de Zola e interpretando o Impressionismo como a

125
In HERBERT, Robert L. Impressionism: Art, Leisure, and Parisian Society. Yale University Press,
1991. p. 236.

121
recriação ótica das «sensações tácteis da natureza».

A década de 1880 assistiu à fragmentação da escola naturalista, a nível da escrita


e da crítica, à eflorescência de uma série de revistas vanguardistas literárias e ao
aparecimento de um conjunto de novas vozes críticas fortemente envolvidas na criação
de novas reputações artísticas, que defendiam uma resposta dialética aos movimentos
artísticos e literários de onde haviam emergido.
Um deles foi o escritor Joris-Karl Huysmans (1848-1907), um seguidor de Zola
que escreveu Salons e publicou várias críticas das exposições impressionistas nos finais
de 1870 e inícios de 1880. Em 1886 assistiu à última exposição impressionista, focando
a série de nus de Degas como um adeus tanto ao público das exposições impressionistas
como aos princípios da crítica positivista.

2.2.6 A fuga para a floresta: os pintores de Barbizon

A paisagem só tardiamente se tornou uma preocupação central dos pintores


franceses do século XIX, mas teve um impacto gigantesco, que irá contribuir para a
grande viragem da arte moderna nas últimas décadas do século XIX, em França, e
consequentemente em toda a arte da civilização ocidental.

A partir de 1830, desenvolve-se em França a “escola” paisagista dita de


Barbizon, nome de uma aldeia na orla da floresta de Fontainebleau, para onde alguns
jovens pintores, tendo à frente Théodore Rousseau, haviam-se retirado com intuito de
renovar a pintura de paisagem, abandonando todas as convenções e regras, vivendo no
campo, estudando assiduamente os aspetos mutáveis da natureza e da luz.

Os principais componentes do grupo são: Théodore Rousseau (1812/67), Jean-


François Millet (1814/75), Diaz De La Peña (1808/76), Charles Daubigny (1817/78),
Jules Dupré (1811/89) e Constant Troyon (1810/65).
A pintura de paisagem já tinha tradição em França, com Poussin, Claude Lorrain
e Georges Michel, que transmitiam nos seus quadros um estado de sensibilidade
particular, talvez poética. Em Claude Lorrain e Poussin a poesia alia-se deliberadamente

122
a maneiras literárias; Claude Lorrain pinta uma paisagem e chama-lhe Decadência do
Império Romano, buscando deliberadamente a associação de ideias literárias e plásticas,
num formalismo clássico.

Um paisagista – George Michel – está tão só que a sua própria vida é quase
desconhecida, ainda que a alma de Rembrandt lhe atravesse por vezes o caminho. Dois
pintores permanecem em Barbizon durante toda a sua vida. Rousseau – tão comovente
por vezes quando só usa a pena e anota as suas impressões diretas, as que se guardam
para o próprio, medidas, equilibradas, nítidas, musicais e compostas como todas as que
os mestres do desenho francês nos deixaram, de Claude e de Poussin a Vernet e a Corot
— Rousseau adormece à margem dos seus eternos pântanos, de que encontra a cor
violácea e suspeita nos castanheiros solitários e nos húmidos crepúsculos em que a sua
tristeza procura uma embriaguez poética que apenas conduz ao aborrecimento.

Millet crê — ou antes, crê-se depois de Millet – que basta a leitura da Bíblia para
lhes dar o sentido do mundo, e que a miséria simples e estoicamente suportada o tornará
digno de cantar a existência dos miseráveis no meio dos quais vive.

Michel começou a descobrir o potencial pitoresco das paisagens dos arredores de


Paris, especialmente Montmartre, na época uma área rural salpicada de moinhos de
vento. Em Paisagem com Moinho de Vento, Vista de Montmartre, um céu tempestuoso
forma uma abóbada sobre uma paisagem em parte brilhantemente iluminada, em parte
mergulhada em escuridão. No canto inferior direito uma curva de estrada conduz ao
interior da pintura e fornece o acesso visual.

O moinho de vento do título jaz envolto numa sombra, mas as suas pás
projetam-se acima da linha do horizonte como se quisessem alcançar a luz do sol que
começa a romper por entre as nuvens. É possível que Michel conhecesse o significado
simbólico atribuído ao moinho de vento na arte do século XVII. Com as suas pás à
mercê de ventos inconstantes e instáveis, o moinho de vento figurava como um símbolo
do destino caprichoso e das vicissitudes da vida humana. As paisagens diretas daí
resultantes, de tipo atmosférico e românticas nos tons, combinavam a abordagem da
antiga pintura holandesa com uma nova e natural proximidade de observação e
execução que faria de Michel um antecessor da “escola” de Barbizon.

123
Fig. 33
Georges Michel, Paisagem com um Campo arado e uma Vila., 1880/82.

Fig. 34
Georges Michel, Paisagem com Moinho de Vento, Vista de Montmartre, 1820.

124
Duplo erro, de que nem o seu sentimento ora épico, ora virgiliano do campo, nem o seu
culto por Miguel-Ãngelo e por Poussin, nem a sua admiração por Delacroix, nem a sua
amizade por Daumier, que vinha só a Paris ‘de tempos a tempos’, sacudir nos seus
hábitos obstinados a chama do génio, poderão libertá-lo.

É verdade que lavrou em criança, que vive de ‘blusão e de tamancos’, mas isso
não nos importa. É certo que, durante uma viagem ao “árido, austero Auvergne”,
salpicado como um velho manto, estudou escrupulosamente a estrutura interna da terra,
de que nos deu admiráveis imagens, puras como um desenho japonês e firmes como um
desenho alemão.

É verdade que teve, nas suas bucólicas campestres, nos seus ceifeiros inclinados
num só movimento, nos seus semeadores alongados na sombra, nos seus cavadores
firmes na ferramenta, todas essas figuras simples da fatalidade grandiosa e triste do
trabalho, o sentimento da expressão escultural das formas, arrebatadas no espaço apenas
pelas suas grandes superfícies e pelos seus planos expressivos. Mas, nele, esse
sentimento é mais poético do que plástico, e muitas vezes, sob o plano ideal, a forma
soa oca.

De todos esses rebanhos ao luar, de todos esses fumos de aldeias perdidas, de


todas essas vozes abafadas que correm rente aos sulcos, de todos esses rumores
longínquos do «Angelus» e dos sinos, talvez um dia só fiquem alguns grandes clarões
fixados em quatro traços de pena e a lembrança de uma força desviada ao serviço de
uma sensibilidade respeitável e de um carácter comovedor.

125
Fig. 35
Diaz de la Pena, Narcisse, O caminho na Floresta, c.1850.

Fig. 36
Theodore Rousseau, Paisagem, meados do séc. XIX

126
Se Daubigny, bom paisagista, não se fosse iniciar nas belezas do campo junto de
Rousseau e de Millet, estes não teriam exercido nenhuma ação sobre os pintores
nascidos na confluência de Courbet e do materialismo científico e literário. E ainda esta
ação é mais moral que sensual.

Os homens decididos a voltar as costas à Escola e à oficina para limparem a


vista da fuligem dos museus e pedirem à luz do exterior os segredos da harmonia, não
podiam ouvir esse longo protesto contra a pintura doutrinária que subia do século
inteiro, de Ingres, de Daumier, de Delacroix, de Courbet, mas que os paisagistas puros
erguiam com mais ingenuidade, senão também com mais força que os outros.

Pissarro, apaixonado de teorias e de sistemas, segue Corot e Millet antes que


todos os outros, e porque cravará o cavalete num sulco, em frente de um lavrador com a
charrua ou de um rebanho de animais, descobrirá pouco a pouco a natureza da luz e a
qualidade da sombra, construindo sobre tais descobertas a pintura de amanhã. O
«atelier», o quarto onde se pinta, mesmo a luz desfigurada da rua, tudo isso mascara o
objeto.

O mundo exterior só existe fora do homem, e a luz exterior só o revela tal como
ele é. Delacroix é, sem dúvida, um mestre; reencontrou as leis quase perdidas de
contraste e de associação das cores; mas a sua imaginação arrasta-o alto e longe de
mais, leva a pintura a não poder passar de uma expressão simbólica – um passo mais,
literário – do universo. E, depois, pinta no «atelier», de memória. Courbet também; que,
esse, pelo menos, caminha para o facto e exprime-o sem comentários.

Millet, Rousseau bem-querem procurar motivos em pleno campo, em plena luz,


mas limitam-se a esboços, voltam para casa e amassam à luz triste de uma cabana ou à
candeia as suas geórgicas cristãs e os seus castanheiros idealizados. Paul Huet só vê os
campos, a floresta e o céu através de um sentimento voluntariamente dramático cuja
melancolia majestosa e grandiloquente exaspera os jovens criados na idolatria da
verdade nua e no rumor crescente da ciência vitoriosa do mistério, da dúvida, do lirismo
subjetivo, e mesmo do simples lirismo.

Quando falamos em natureza queremos dizer o mundo visível das aparências,

127
mas quando assim definimos a palavra não estamos a simplificar o problema das
relações do artista com a natureza?

Observamos a pintura de paisagem; temos dois problemas a considerar. Em


primeiro lugar, qual a distinção entre a arte e natureza? Existe alguma diferença
essencial entre a beleza da paisagem em si e a beleza representada pelo artista no seu
quadro dessa mesma paisagem?

Nos termos mais simples podemos dizer que o artista ao pintar uma paisagem
não tenciona descrever a aparência visível da paisagem, mas dizer-nos qualquer coisa
acerca dela.
Essa qualquer coisa pode ser uma observação ou emoção que partilhamos com o
artista, mas, com mais frequência, é uma descoberta original do artista que ele nos quer
comunicar. Quanto mais original for essa descoberta maior crédito nos merecerá o
artista, pressupondo sempre que ele tem suficiente mestria técnica para tornar essa
comunicação clara e eficaz.

Que será, então, que o artista descobre na natureza e que só ele é capaz de
comunicar ao mundo?
Será esta procura de uma nova observação da natureza, e uma nova comunicação
do artista com a paisagem, que os pintores de Barbizon vão procurar captar.

Na origem da escola de Barbizon encontra-se a enorme impressão suscitada no


ambiente artístico parisiense pela exposição dos pintores ingleses Turner e Constable.
Estes pintores de Barbizon surgem como “a imagem” do artista “moderno”, que
enfrenta a realidade de modo direto, livre de esquemas preconcebidos.

A novidade da técnica rápida, larga, brilhante, resoluta, é tão precisa que dá a


impressão de se distinguirem as folhas de árvore, onde um olhar mais atento apenas vê
manchas coloridas.

128
Fig. 37
Theodore Rousseau, Vista dos Arrabaldes de Granville, 1833.

Fig. 38
Constant Troyon, Estrada na Floresta, C. 1865.

129
Porém, como escreve Argan, como explicar o facto de essa mancha, mesmo não
descrevendo nada, dizer tudo, até a forma, a luz e a força dos ramos e das folhas?

Argan, dá-nos a resposta: “essa mancha faz com que reconhecemos a árvore:
não fornece uma noção, mas evoca uma experiência que está em nós, na nossa
memória. A mancha, em si, não representa senão a impressão súbita experimentada
diante do verdadeiro, numa condição específica de lugar, tempo, luz; todavia, como a
emoção aciona a nossa memória, a perceção em si, instantânea e superficial, adquire
uma profundidade psicológica.” 126

A experiência primeira é a da imagem intensiva. Antes de a perceção se


estabilizar, se fixar à distância e se impor, o mundo da primeira infância organiza-se em
torno de vagas sensoriais num turbilhão. Antes da constância percetiva, há as variações
da imagem. Porque a sensação desabrocha em imagens, tal como a perceção: o bloco
emotivo que as atravessa e as envolve mantém-nas ainda soldadas, indiferenciadas,
sincronizadas.

Os pintores de Barbizon, e Rousseau em particular, especificam em que consiste


o conhecimento da natureza proporcionado pela emoção; evidentemente não é um
conhecimento objetivo, científico, mas “as vozes das árvores, as surpresas dos seus
movimentos, a variedade das suas formas, até a singularidade dos modos como são
atraídos pela luz”.127

A cada escolha corresponde uma recusa e o que os pintores de Barbizon


recusam, com um gesto característico do romantismo, é o ambiente artificial da cidade.
Ao propor estudar a “psicologia” das árvores ou das nuvens, os pintores buscam assim
um clima cultural romântico, e um tema fundamental da poética inglesa do pitoresco.
Os pintores de Barbizon empenham-se agora em salvar esse valor que sentem
traído pela nova ordem da sociedade e pela industrialização cada vez mais generalizada,
mostrando-o como insubstituível: é o sentimento da natureza.

Em relação ao natural, os pintores de Barbizon não assumiram uma postura

126
In ARGAN, Giulio Carlo.Op., Cit., p. 60.
127
Id., Ibid. p.61.

130
contemplativa, como se nos devessem transmitir uma mensagem extra-terrena, mas uma
postura prática e afetiva, como a que se tem com as pessoas e as coisas do quotidiano
que nos envolve.

2.2.7 A linguagem das árvores: Corot

Camille Corot (1796/1875) foi talvez um dos maiores paisagistas do século XIX.
Corot não participou ativamente nos grandes movimentos artísticos da época; a sua
pintura desenvolveu-se na órbita deles, todavia segue uma linha própria de pesquisa
dirigida especificamente ao facto pictórico, ao quadro, à sua estrutura. As paisagens do
primeiro período italiano (1825-8) sofreram influências da paisagem heróica de Poussin
e dos paisagistas do século XVIII: exceto pela temática diferente.

A primeira viagem a Roma de 1825 a 1828 seria decisiva para o


desenvolvimento da pintura de Corot. Pintou numerosos estudos a óleo a partir da
natureza, monumentos históricos romanos e dos arredores de Roma. Estes estudos
possuíam uma frescura invulgar, captando a luz e a atmosfera de diferentes horas do dia
com as respectivas variações lumínicas.

O sentimento para Corot, não é o impulso passional como para Delacroix, nem o
choque emotivo como para os paisagistas de Barbizon, mas a comunicação e a
identificação da realidade interior, moral com a realidade exterior, a natureza. O mundo
não é um espetáculo a ser admirado, mas sim uma grande experiência a ser vivida, e a
pintura é um modo de vivê-la. A natureza para Corot, não é o objeto, mas sim o motivo:
um termo que terá muita importância para toda a pintura oitocentista, até Cézanne.

Corot tem, sem dúvida, o sentimento apaixonado do espaço e da luz, mas


também ele próprio pinta por esboços a lápis ou à pena, que combina em sua casa. Vê-
se, aliás, bem pouco da sua pintura; conserva consigo o melhor dela; a outra vai para
casa do negociante.

E depois todos têm hábitos, de que mesmo os maiores se não puderam libertar e
que a natureza, diretamente interrogada, só raramente justifica fora das iluminações

131
artificiais e das atmosferas confinadas: opõem por toda a parte a sombra à luz e reúnem
todos os seus tons por uma gama de meios-tons intermediários, inapreensíveis à luz do
dia.
Como motivo é a solicitação, o estímulo; o que importa não é a natureza, mas o
sentimento da natureza, e esse sentimento é o fundamento da moral (toda a vida de
Corot foi inspirada por um elevado sentido moral).

Sem dúvida a pintura de Corot, tão profundamente ligada à tradição dos


paisagistas italianos e holandeses dos séculos XVII e XVIII, pode parecer menos
“progressista” do que o realismo dos pintores de Barbizon, mas a conceção da arte
como experiência vivida é mais moderna: a definição do sentimento como modo de
conhecimento é um passo essencial rumo aquela conceção da sensação como
conhecimento, que será própria dos impressionistas.

A amizade no final da década de 1840 com os artistas de Barbizon influenciou


marcadamente a sua obra. Por volta desta época, Corot modificou o seu olhar sobre a
natureza. Em paisagens romanticamente líricas, ou paysages intimes, começou a captar
as fugazes atmosferas da natureza em cambiantes prateados, de suprema delicadeza.

As suas paisagens tiveram uma influência inspiradora nos impressionistas,


que desejaram incluí-lo na sua primeira exposição.

132
Fig. 39
Jean-Baptiste-Camille Corot, Fontainebleau: Árvores de Carvalho em Bas-Bréau, 1833.

Fig. 40
Jean-Baptiste-Camille Corot, O Barqueiro, 1865.

133
2.2.8 ‘Déjeuner sur la ville’

Há meio século que a ciência caminhara. O próprio «facto» estava


ultrapassado. Avançava profundamente na análise da matéria e todos os dias trazia
algum ‘milagre positivo’. A ciência e a arte de uma mesma época não passam de uma
maneira particular de falar, distinta pelos seus caracteres, mas comum pelo seu espírito
a todos os homens dessa época. Os resultados inesperados da aplicação à indústria e à
vida social das descobertas da química, da eletricidade, da mecânica, impressionavam,
antes de todas as outras, as imaginações móveis dos artistas habitualmente muito
afastados do movimento utilitário do seu século e mostrando-se desta vez dispostos a
nele buscarem caminho.

Os pintores interessam-se pelas descobertas de Chevreul128, que, em suma, não


faz mais que provar o que já tinham adivinhado Ticiano, Tintoreto, Veroneso, Greco,
Rubens, Rembrandt, Velázquez, Watteau, Chardin, Reynolds, Goya, o que sabiam
Constable e Delacroix, mas cuja demonstração rigorosa vai seduzir o espírito francês. O
constrangimento literário a que obedeciam os românticos cede o passo, depois de
Courbet, ao constrangimento científico, e o artista passa, quase sem transição, da prisão
do sujeito para a prisão do objeto.

Esta tentativa de retorno às fontes, nada tinha de novo senão o seu pretexto
científico, que a tornou em verdade decisiva. Já no próprio tempo dos triunfos
128
Chevreul (1786 – 1889)) Foi um químico francês cujo trabalho com ácidos levou a aplicações inicíais
nos campos da arte e da ciência. Ele é creditado com a descoberta do ácido margárico, com a creatina, e
projetar de uma forma primitiva o sabão feito a partir de gorduras animais e do sal. Ele viveu até aos 102
anos e foi um pioneiro no campo da gerontologia.
Depois de ser nomeado diretor dos serviços de corantes na Gobelins Manufactory em Paris, ele
recebeu muitas queixas sobre os corantes que eram usados lá. Em particular, os negros apareciam
diferentes quando utilizados ao lado dos azuis. Ele procurou determinar que o fio da cor observada foi
influenciado pelos outros fios circundantes. Isto levou a um conceito conhecido como contraste
simultâneo.
Chevreul também está ligado ao que é às vezes chamado de ilusão de Chevreul, as margens
brilhantes que parecem existir entre faixas adjacentes de cores idênticas com diferentes intensidades. O
contraste simultâneo identificado por Chevreul refere-se ao modo em que as cores dos dois objectos
diferentes afetam-se um ao outro. O efeito é mais perceptível quando compartilhado entre objetos de cor
complementares.
O trabalho de Chevreul foi adaptado à pintura com o objetivo de reproduzir a natureza o mais
natural possível, por efeitos de luz e do claro-escuro, que o artista deve repetir adaptando o contraste de
cor, que seriam aplicáveis à própria cor da pintura. No entanto, este princípio de cor, posteriormente, teve
uma grande influência na arte moderna na Europa, especialmente no Impressionismo, Neo-
impressionismo e Orfismo.

134
antagonistas de Ingres e de Delacroix, alguns pintores tinham deixado as oficinas e as
escolas para regressarem à «natureza» com um impulso sentimental cuja primeira
origem é preciso buscar na ação de A Nova Eloisa, das Confissões e do Contrato Social.
A cidade era um lugar de perdição para o homem sensível. Este não podia renovar a
inocência da sua visão senão no contacto da terra, fonte da juventude eterna das formas
em metamorfose e do coração a que a terra restitui a calma e a pureza.

Excesso contrário ao abuso do Museu e da excitação criadora das cidades,


consentimento ascético em girar no mesmo círculo, em nada a ver dos desejos e dos
ímpetos da época, em adormecer lentamente na fórmula pessoal, na sombra crescente do
hábito e do esquecimento. Delacroix está bem mais sozinho no centro das cidades
brutais, que ele constrange a gravitarem à volta do seu próprio espírito, do que esses
camponeses românticos que se exilavam a si próprios na solidão dos bosques e no
abafante deserto de um sentimento que de antemão esgota as fontes que a febre de viver
abrirá neles todos os dias.

A influência de Constable na evolução geral da arte europeia não acaba com


Delacroix. Depois de Delacroix vem Édouard Manet, e a revolução que com frequência
se associa por conveniência ao seu nome é uma das mais completas na história da
pintura. Na realidade, Manet é simplesmente o ponto onde culmina um movimento lento
e inevitável.

Espécie de agente catalítico do impressionismo, Manet deu-lhes o primeiro


exemplo escandaloso de uma nova independência estética, para além das intervenções
de Barbizon, facilmente assimiladas, ou da obra de um Corot.

Pissarro, que começa a não querer pintar senão ao ar livre, e que arrasta atrás de
si alguns amigos, Claude Monet, Renoir, Sisley, Bazille, mais tarde Cézanne, descobre
um jovem pintor, Édouard Manet, que nem sempre pinta fora mas que tem (foi o
primeiro na Europa) a audácia de pôr um tom claro por cima de outro tom claro, de
reduzir ao mínimo as meias tintas, ou mesmo de as ignorar, de quase suprimir o
modelado justapondo ou sobrepondo manchas que uma linha muito firme cerca, tirada a
um fundo desembaraçado de sombras cúmplices.
Pintura primitiva num sentido, com uma iluminação brutal, de frente, uma toalha

135
de luz difusa caindo verticalmente e revelando os objetos em silhuetas brilhantes,
colocadas uma sobre outras, ou ao lado umas das outras como grandes bocados de
cartão ou de pano cortados em plena luz.
Pintura crua, violenta, intransigente, que contraria toda a educação rotineira dada
à vista desde a Renascença pelos museus fuliginosos, e provoca tumultos sempre que
aparece em público. Pintura revolucionária, ousando, para voltar às fontes e aí
retemperar a arte de pintar, suprimir algumas das suas mais profundas conquistas, a fim
de a estabelecer em posições mais novas e de reatar a tradição.

Parisiense de Paris, e de família burguesíssima, discípulo de Tomás Couture —–


reminiscente de Ingres e de Delacroix e saudado por eles nos seus começos, conhecia
perfeitamente os mestres, mas encostava-se por instinto àqueles em que achava prévia a
justificação da própria audácia, os espanhóis, os flamengos, sobretudo Frans Hals, que,
para o puro prazer dos olhos, sem nenhum motivo anedótico, pitoresco ou literário,
associava as cores, com os gestos rápidos e a infalível segurança de uma mulher que põe
flores ou talha fazenda para um vestido ou um chapéu.

Também Goya, que, pela união de alguns tons límpidos, faz surgir do nada, num
segundo, um braço, uma mão, um olhar, uma flor, uma alucinação violenta. Manet vai
vê-los a casa, e logo descobre o seu caminho. “Cor-de-rosa sobre cor-de-rosa, branco
sobre branco, manchas vivas, tudo brilha como se fosse um «bouquet», tudo canta,
nada acusa a forma em relevo, porque nada a ela se opõe no espaço cheio de tons
claros que a envolve ou se ordena nos fundos por trás dela. Tudo isso canta com um
pouco de força por vezes, mas jamais soa falso.”129

Essa supressão quase completa do cambiante, da ressonância íntima do tom no


tom vizinho, essa visão pura e cruel que apresenta o mundo, qual ramo de flores vivas,
dá à pintura de Manet qualquer coisa de descontínuo, de excitante, como um grande
pedaço de pano claro em que, aqui e ali, fossem cosidos bocados diferentes, mas
também claros.

A carne, mesmo a que traz a boca e os olhos, não tem para ele mais importância

129
In HERBERTt, Robert L., Impressionism: Art, Leisure and Parisian Society (London and New Haven,
1988), p. 182.

136
que o rosa da gravata destacado no casaco preto, a nervura encarnada do livro que
sangra no tapete amarelo, a coberta da cama com reflexos azuis, os reflexos dos copos e
das facas tremidos no espelho.
Natureza morta imensa, um pouco dispersa, descosida, mas de uma força tal, que
determina ainda, passados quarenta anos, a invasão da cor na pintura e, por detrás dela,
todas as audácias, todos os esplendores, todos os clarões rutilantes e ferozes do Oriente.

O tema da conversa de figuras nuas e vestidas numa paisagem pode-se encontrar


em composições pictóricas anteriores à de Manet, mas observemos a paisagem retratada
na célebre pintura Dejeuner Sur L'Herbe: como na pintura seiscentista holandesa e na
pintura setecentista inglesa ela tem uma estrutura de perspetiva, de bastidores arbóreos,
com três aberturas em óculo sobre a luz do fundo; mas a água, a relva e a ramagem
formam uma espécie de cortinas transparentes e paralelas, que se sobrepõem compondo
zonas mais densas ou mais vazias da penumbra verde-azulada.

Manet não quis fazer parte do grupo dos impressionistas, que ainda assim o
consideravam como um guia; no entanto ele acompanhou as pesquisas dos
impressionistas com interesse, aproximando-se cada vez mais dos desenvolvimentos da
pintura en plein-air, a que ele próprio dera início com o Déjeuner.

Também Courbet (1819/77) anunciara o seu programa desde 1847: realismo


integral, abordagem directa da realidade, independente de qualquer poética previamente
constituída. Com isso, Courbet faz evoluir a arte para a experiência de enfrentar a
realidade e os seus problemas, com os meios exclusivos da pintura, apenas.

Deve-se ao realismo de Courbet e Millet a autonomia completa da paisagem, ao


desvincularem-na de qualquer elemento não diretamente natural e ao prestar atenção à
condição humana. Daumier (1808-1879) havia já aberto o caminho; atente-se em A
Carruagem de Terceira Classe (1862).

Estes eram anos de agitação social; por isso, as suas obras são fruto de uma
tomada de consciência da nova realidade coletiva e, de certa forma, uma resposta às
obras literárias de Lamartine, Stendhal, Balzac, George Sand e Flaubert, à história de
Michelet e às teorias de Proudhon, de Marx e Engels. Com efeito a estética realista é

137
mais profunda do que à partida possa parecer. A ela se ficaram a dever a abertura de
novos caminhos que iniciaram a discussão sobre os fins e autonomia da arte.

O realismo fixará não a paisagem do ponto de vista de um visitante, mas a


experiência de estar na paisagem, de trabalhar nela; a sua démarche não é fotográfica,
mas algo de mais elevado: a representação da própria condição humana. Em Millet o
homem é um elemento impotente que se funde na natureza, ele é também natureza; esta
ideia é expressa de um modo quase bíblico e muito sensível. Mas enquanto Millet não
se associa politicamente,

Courbet faz disso questão (participou na Comuna de Paris, em 1871, e esteve


preso durante seis meses, ligando-se à filosofia de Proudhon). As suas obras causariam
escândalo ao representarem a dimensão nobre e monumental dos factos do quotidiano
da vida camponesa, rompendo definitivamente com as cenas de género.
A sua obra O Atelier do Pintor, uma Alegoria Real, Resumo de Sete Anos da
minha Vida (1855) retrata uma cena com várias figuras contemporâneas, mas o mais
inovador é o destaque dado à natureza, que entra pelo atelier, ao mesmo tempo que este
se abre ao exterior.

Manet revela a Pissarro a pintura fresca e sem sombras; Pissarro arrasta Manet
atrás de si para os campos e mostra-lhe, pelo seu exemplo e sobretudo pelo do
«virtuoso» do grupo, Claude Monet, que o ar livre não só suprime o modelado, mas o
próprio contorno das formas, e substitui ao tom local uma troca infinita de reflexos
dançantes, caldeados e solidários, em que a forma hesita e se sufoca no universal
flutuar.

Manet, seguindo os seus novos amigos, quase não mais pintará senão ao ar livre.
Já não são estudos a combinar no atelier, onde a luz atenuada e triste sufoca as
vibrações do espaço livre, muda as relações coloridas, acusa as formas paradas em
detrimento das suas superfícies inquietas, condena a vista a voltar pouco a pouco aos
seus velhos hábitos de progressivas degradações da luz demasiado artificial para a
obscuridade demasiado anódina.

Vai-se implantar o cavalete nos próprios campos, e recortar na natureza o

138
quadro, que será inteiramente pintado lá fora. Eis o bosque de Courbet, com sua
penumbra verde, suas sombrias folhas estendidas por cima de calhaus e regatos. Mas o
sol penetra os ramos, põe sobre a terra e a carne claras e móveis manchas, e a sombra
esvai-se.

Depois, a vista do pintor, a princípio deslumbrada pela luz solar, fixa-se, insiste,
reeduca-se pouco a pouco, distingue um fantasma de sombra onde a princípio não via
mais nada. A própria sombra é luz, é transparente, aérea, e as cores do prisma, conforme
os mil tons vizinhos, a incidência da iluminação aí se decompõem e transmutam em
gamas cada vez mais esbatidas e subtis, que ninguém antes observara.

Em breve o objeto não terá a sua cor própria; o sol e a sombra que brincam,
todos os reflexos errantes que se entrecruzam, as variações da estação, da hora, do
segundo, impressionados pela passagem do vento ou pela interposição de uma nuvem,
passeiam à superfície mil tons cambiantes e móveis, que fazem da crosta do mundo um
vasto e móvel drama.

Quando as pessoas viram as pinturas de Boudin, em que o espaço marinho


emaranha as cordas e as velas e treme com o vapor e o nevoeiro, e as aguarelas do
holandês Jongkind, em que o ar, a água, o gelo, as nuvens são um mesmo abismo
líquido tão profundo como o oceano, tão transparente como o céu; quando Claude
Monet e Pissarro tiverem descoberto, em Londres, o esplendor dançante das núpcias do
sol, do crepúsculo, do nevoeiro e do mar com que as telas de Turner nos cegam, a
renovação da pintura estará feita no seu “instinto interior’.

Enquanto Pissarro se esforça por lhe formular os princípios, recomendando a


escolha das simples cores do espectro, proscrevendo-lho a combinação delas,
aconselhando a justapô-las ou entrecruzá-las por vírgulas separadas, Sisley, Claude
Monet, Renoir, Cézanne exercitam a vista em descobrir o movimento incessante da
superfície da vida, as suas mutações de minuto a minuto, segundo a marcha do sol, o
abismo infinito e trémulo de subtis cambiantes, de reflexos complexos, de trocas
luminosas e de colorações fugidias de que o universo aéreo é o contínuo teatro.

139
Fig. 41
Édouard Manet, Dejeuner Sur L'Herbe, 1863.

Fig. 42
Édouard Manet, O Caminho -de-Ferro, 1872-1873.

140
Pissarro passeia o seu apostolado pelos campos povoados. Demonstra, pintando
os tetos vermelhos entrevistos por detrás das macieiras, as colinas baixas bordadas pela
cortina dos choupos e pela ribeira, que mesmo quando se realiza, por uma técnica
rigorosa, o máximo de estremecimento aéreo e de brilho luminoso, pode-se continuar a
ser o poeta mais discreto da intimidade das coisas, o amigo das pobres casas, o que sabe
que as árvores têm mil aventuras admiráveis desde a pobreza do Inverno à riqueza do
Verão.

O que desenrola com ternura o humilde movimento das culturas nas encostas, a
sua harmonia espontânea e móbil, sempre de acordo com a luz e o tempo. Mais tarde,
quando vê menos bem, pinta do alto as grandes cidades, as fachadas por detrás das
folhas onde mil tons vivos e subtis se mexem na prata difusa, o vapor dourado sobre o
rio, o formigar longínquo da calçada e do passeio.

Para além da rutura com as poéticas opostas e complementares do “clássico” e do


“romântico”, o problema que se colocava era o de enfrentar a realidade sem o suporte de
ambos, libertar a sensação visual de qualquer experiência ou noção adquirida e de
qualquer postura previamente ordenada que pudesse prejudicar a sua “realidade”.

2.2.9 A nova paisagem: a Cidade

Porém a relação cada vez mais agonizante que se estabelecia com a nova
natureza – a cidade – não tem só resposta na pintura e na literatura, mas também na
arquitetura. Boullée (1728/99) havia sido o primeiro artista a pensar uma cidade ideal
que servisse a Revolução, mas esta recusara-a (é que não era possível ensinar e ao
mesmo tempo inovar); somente nos anos quarenta do século XIX surgiria uma efetiva e
real necessidade de pensar a cidade porque um novo sistema se impunha, baseado na
fábrica.

141
Fig. 43
Gustave Courbet, O Atelier do Pintor, uma Alegoria Real, Resumo de Sete Anos da minha Vida, 1855.

Fig. 44
Gustave Courbet, As Ondas, 1870.

142
São médicos, filósofos, engenheiros e padres, como Charles Fourier (1772/1832)
– o seu sistema previa a associação de indivíduos em falanstérios harmoniosamente
compostos com o fim de procurar para cada um dos seus membros o bem-estar no
trabalho livremente consentido – Victor Considérant, Proudhon, Robert Owen,
Richardson, Ruskin, William Morris, Marx e Engels e, mais tarde, Herbert George
Wells, que vão lançar-se nesta problemática e que dão a resposta no que foi apelidado
de “utopias“ urbanas. Estas vão ser acompanhadas na literatura por Éthiène Càbe, Júlio
Verne e Eugène Sue.

Haussman (1809/91) irá aproveitar algumas destas ideias e pô-las-á em prática,


entre 1855 e 1869 (Segundo Império e III República), em Paris, inspirado pela ideia de
que era possível viver tão bem na cidade, o novo centro de decisão política, quanto no
campo. O seu projeto tinha como objetivos: lutar contra a insalubridade, contra o
desemprego, contra o fermento revolucionário e o embelezamento da cidade. Aqui se
congregam todas as propostas do século, que assim encontram uma síntese final; era a
tentativa de definir uma cidade como capital do mundo – uma cidade para ser vista, mas
também vivida. O modelo ecléctico de raiz parisiense tipificar-se-ia na Ópera (1860-75)
de Garnier e nos pavilhões das Exposições Universais de 1889 e 1900.

O modelo de Haussman foi tão próspero que irá ser exportado para São
Petersburgo, Nova Iorque (nos E. U. A. encontra terreno virgem para a melhor execução
daquilo a que se propõe uma cidade moderna), Barcelona, Madrid, Alemanha e Áustria,
e, já no século XX, para Buenos Aires e Rio de Janeiro.

Era, portanto, um conceito de civilização que se tratava, pois, a metrópole era


também uma capital política e, por isso, devia encerrar em si uma resposta arquitetónica
atenta às necessidades do Estado, da burguesia ascendente, como às exigências de
circulação de bens e de pessoas. O que é que isto tem a ver com a pintura de paisagem?
É que esta era uma natureza pensada pelo Homem e para o Homem: a cidade. E daí em
diante ela não mais o deixaria de ser.

Quase que podemos afirmar que o campo teria sido uma espécie de infância para
a pintura e a cidade a sua maturidade. E é isso que o impressionismo vai registar, a

143
modernidade da cidade de Haussman, porque também eles, os impressionistas, queriam
ser modernos.

Com efeito, o Impressionismo apesar de ter as suas raízes na École de Barbizon,


na prática da pintura de plein air, vai distanciar-se desta quando elege temas urbano-
mundanos, quando utiliza a técnica da pincelada e quando procura o «momento
artístico», como lhe chamou Zola, o momento da impressão...e a impressão ficaria
registada na obra de Monet (1840/1926) Impressão Sol Nascente (1872).

Mas algo havia já mudado em Déjeuner sur l’Herbe (1863) de Manet, que é uma
obra síntese da pintura até então, porque congrega os géneros natureza-morta, paisagem,
nu, retrato, mas que abre o novo caminho ao destruir propositadamente a perspetiva.

A paisagem impressionista é, então dualista, com uma visão de uma nova


natureza, a urbana, com quem vai estabelecer uma relação afetiva, o Flâneur, ao
testemunhar um mundo e uma cidade em mudança física e intelectual, mantendo ao
mesmo tempo uma renovada observação da natureza, e uma reavivada comunicação do
artista com a paisagem.130
Atente-se em O cais do Sena de Manet, em Gare de Saint Lazare (1877) ou em
Rue Montorgueil (1878) de Monet, em Baile no Moulin de la Galette (1876) de Renoir

130
A designação de Flâneur foi definida num longo artigo no Grand Larousse Dictionnaire Universel du
XIXe Siècle. O dicionário descreveu o Flâneur em termos ambivalentes, em partes iguais de curiosidade e
de preguiça e apresentou uma taxonomia da Flânerie: Flâneurs das avenidas, dos parques, das galerias,
dos cafés e os Flâneurs irracionais ou Flâneurs inteligentes.
O Flâneur foi antes de tudo, uma tipologia literária no final do século XIX em França, essencial
para qualquer imagem das ruas de Paris. A palavra associa um conjunto de associações: o homem de
lazer, o reboque, o explorador urbano, o conhecedor da rua. Foi Walter Benjamin, com base na poesia de
Charles Baudelaire, que fez desta figura um objeto de interesse académico no século 20, como um
arquétipo emblemática da experiência urbana, moderna. Segundo Benjamin, o Flâneur tornou-se um
símbolo importante para os académicos, artistas e escritores.
Na década de 1860, no meio da reconstrução de Paris sob Napoleão III e o barão Haussmann,
Charles Baudelaire apresentou um retrato memorável do Flâneur como o artista-poeta da metrópole
moderna: A multidão é seu elemento, como o ar é o de pássaros e água de peixes. A sua paixão e a sua
profissão são a tornar-se uma só carne com a multidão. Para o flâneur perfeito, para o espectador
apaixonado, é uma alegria imensa para configurar casa no coração da multidão, em meio ao fluxo e
refluxo do movimento, no meio do fugitivo e do infinito. Para ficar longe de casa e ainda assim sentir-se
em todos os lugares em casa; de ver o mundo, a estar no centro do mundo, e ainda assim permanecer
oculto das naturezas mundialmente imparcial que a língua pode, mas desajeitadamente definem. O
espectador é um príncipe que em todos os lugares folga na sua incógnita. de todos os elementos da vida.
(In Charles Baudelaire, "O Pintor da vida moderna", (New York: Da Capo Press, 1964). Orig. Publicada
no Le Figaro, em 1863.) Baseando-se em Fournel, e na sua análise da poesia de Baudelaire, Walter
Benjamin descreveu o Flâneur como a figura essencial do espectador urbano moderno, um detetive
amador e investigador da cidade.

144
(1841/1919), em Boulevard Montmartre (1897) de Pissarro (1830/1903), nos cartazes
de Toulouse-Lautrec que anunciavam os espetáculos noturnos da cidade, na Torre Eiffel
(1889) de Seurat (1859/91).

Inclusive a Torre Eiffel, que havia sido inaugurada na Exposição Universal de


1889 como corolário do progresso técnico, mas também civilizacional da França,
figuraria em obras de artistas vindouros como Delaunay, sintoma de que o urbano era
moderno e que vinha para ficar.
A arte puramente ótica de outrora já não correspondia às necessidades da
sociedade à medida que o século XX se aproximava.

Renoir diverte-se a decompor a atmosfera mais gris, a luz mais neutra, em


prismas opalescentes onde os carmins, os vermelhos vivos, os rosas, os azuis e os
violetas de ourivesaria e as gemas reduzidas a pó brincam com o sol na carne nua, para
seguir os seus contornos nas sombras transparentes e redescobrir pouco a pouco os seus
volumes profundos com uma emoção crescente.

Sisley fala das festas aquáticas, dos céus de flocos onde a tempestade choca, do
vasto estremecimento do ar e das ribeiras à volta dos mastros cheios de bandeirolas, as
regatas de arrabalde, o sopro do leve vento nas folhas e nas ervas da margem, e o
estremecimento molecular do espaço uniforme e cinzento.

Claude Monet está inebriado pela luz e, a dois séculos de distância, corresponde,
pelo seu lirismo exasperado da livre planura, ao lirismo de Claude Lorrain fechado na
rigorosa arquitetura da vontade e da razão.

Apreende o sol antes de todos os outros, mesmo quando ainda se não levantou,
mesmo quando o céu está coberto. Através das nuvens ou para além da curva da terra, o
sol inunda o universo de uma chuva pulverulenta de raios que só os seus olhos veem.

145
Fig. 45
Claude Monet, A Gare de St-Lazare, 1877.

Fig. 46
Claude Monet, Rua Montorgueil, Paris, Comemorações de 30 de junho, 1877, 1878.

146
A toalha de claridade que o sol espalha sobre o mundo é para ele uma multidão
inumerável onde vagueiam e se entrecruzam cem mil átomos coloridos, que os outros
homens veem em bloco. Distingue o sol de Verão do sol de Inverno, o sol da Primavera
do sol do Outono.

O sol da aurora e o sol do crepúsculo não são o mesmo sol das dez ou quinze
horas que decorrem entre o nascer e o pôr-do-sol. De minuto a minuto segue o seu
aparecimento, o seu crescer, o seu declínio, os seus eclipses repentinos e os seus bruscos
retornos à superfície imensa da vida, de que cada estação, cada mês, cada semana e o
vento e a chuva, a poeira e a neve e o gelo mudam de cariz, de timbre e de acento.

Eis mil imagens da mesma água, mil imagens das mesmas árvores, e são como o
riso, o sorriso, o sofrimento, a esperança, a inquietude e o terror sobre a mesma face
humana, conforme reina a luz meridiana ou a sombra cerrada, ou todos os graus que
separam a sombra cerrada da luz merídia. Claro que a forma ainda ali está, mas foge e
furta-se como a dessas caras tão móveis que a expressão de olhos e lábios parece flutuar
em frente delas.

Qual é, neste homem tão vivo, o lugar que ocupa a teoria? Nenhum.

A teoria adapta-se estreitamente à necessidade do minuto e utiliza, para justificar


a forma de arte, que em Pissarro, por exemplo, pretende governar, os sistemas
científicos em voga nesse instante. Mas que importa! O que está ali é água, é céu, é uma
imensa luz mutável em que surgem vagamente palácios, pontes, árvores, falésias, torres
que tremem no mar e na margem numa troca universal, subtil e dançante de reflexos
tingidos de outros reflexos, de sombras movediças e transparentes, de bruscos cantos
inesperados de treva e de claridade.

Eis extensões marinhas, velas, nuvens que flutuam entre céu e mar, eis a baça
profundidade e a espuma iluminada, e fantasmas de flores sob à tona dos charcos. Eis a
sombra das folhas misturada nos vivos regatos à ondulação das algas.

147
Fig. 47
Pierre-Auguste Renoir, O Moinho de la Galette, 1876.

Fig. 48
Claude Monet, Impressão Sol Nascente, 1872.

148
O mundo e o homem tornavam-se complexos; consequentemente, a arte
também. Os impressionistas que se apresentaram, em 1874, no atelier do fotógrafo,
Nadar, aderem à paisagem e à atmosfera.

A arte poderia até deixar à fotografia o primado da representação – era ela que
agora passava a representar a paisagem antes de descobrir as suas próprias qualidades e
possibilidades – mas reivindicava o primado da comunicação emotiva. Assim o
movimento impressionista rompe decididamente as pontes com o passado e abre a
extensa alameda, para a pesquisa artística moderna.

A paisagem será o espaço de trabalho para os impressionistas. Os artistas


frequentemente pintam nas margens do Sena, no campo, en plein-air, decididos a acabar
com as regras do atelier, e a descobrir essa pintura que representa a impressão visual na
sua imediaticidade direta.

Por último, o outro lado da paisagem, ou as novas “paisagens”, nascidas das


grandes transformações sociais e políticas do século XIX. O urbanismo moderno nasce
no momento em que os processos tecnológicos e económicos que originam a cidade
industrial (1830-1850) começam a transformar e a “transbordar” as infraestruturas
existentes, tornando inegável a sua participação, como sistema corretor destes novos
acontecimentos urbanos.

O aumento da população, devido à diminuição da mortalidade, e à nova


redistribuição do território como consequência dos novos processos industriais, será o
primeiro fator a considerar entre os que alteraram o equilíbrio existente na primeira
metade do século XIX entre o campo e a cidade.

A nova organização do trabalho, aliada das novas inovações técnicas, bem como
a abertura aos mercados exteriores, permitem e exigem uma maior produção a menor
custo, (que se resolve sempre com uma abundante e substituível mão-de-obra,
localizada ao redor dos núcleos fabris).

149
Fig. 49
Camille Pissarro, Pomar em flor, Louveciennes, 1872.

Fig. 50
Camille Pissarro, Avenida Montmartre, 1897.

150
Por força dos problemas existentes, derivados das novas estruturas exigidas pela
cidade industrial, o urbanismo aparece como um instrumento que vai oferecer uma
solução formal e figurativa à organização espacial da cidade, e que incidindo na sua
nova estruturação social, vai propor formas de convivência que tratam de evitar os
“males” da nova sociedade industrial; regularizando instrumentos higiénicos e jurídicos,
antecessores da atual legislação urbanística.

Claude Monet viu, certamente, as estampas dos Japoneses, que Ingres já


procurava, e cuja influência, manifesta em Manet, em Guys, em Whistler, em Degas,
em Redon, em Lautrec, cresce de ano para ano na Europa a partir do meado do século e
até ao fim. Como elas, tende a exprimir os câmbios de fisionomia da face da terra e os
reflexos do espaço nos seus olhos, que são os rios e o mar.

Mas, “enquanto Hieroshigé ou Hokusaï reúnem, numa imagem única, cem mil
impressões dispersas de um extremo ao outro dos seus dias, Claude Monet, na
impressão de um segundo, dá cem mil imagens possíveis da estação e da hora em que
esse segundo soou”.131 E o esquema oriental e a análise ocidental chegam ao mesmo
resultado.

Pela primeira e única vez, sem dúvida, na história da pintura, o nome que se deu
a esse movimento convém-lhe, se o limitarmos pelo menos às obras de Claude Monet e
de Sisley, à maior parte das de Pissarro e aos primeiros ensaios de Cézanne e de Renoir.
É a sensação visual fulgurante do instante, que uma longa e paciente análise da
qualidade da luz e dos elementos da cor permitiu a três ou quatro homens fixar de
relance na sua complexidade infinita e mutável.

O Impressionismo despreza a forma das coisas; perde de vista, na pesquisa das


trocas universais, a linha que as limita e o tom que as define. Só vê a vibração luminosa
e colorida da casca da natureza. Mas, quando decresce e se transforma, limpou a vista
dos pintores, enriqueceu-lhes os sentidos com um enorme tesouro de sensações diretas,
que ninguém antes experimentara tão subtis, tão complexas, tão vivas, dotou-lhes a
técnica de um instrumento firme, novo e trabalhado, pela sua própria intransigência,
para a libertação futura da imaginação, até então prisioneira de um idealismo plástico e
131
HOUSE, John, Monet: Nature info Art (New Haven and London, 1986), p. 86.

151
de um constrangimento literário que tinham dado todos os seus frutos há quatrocentos
ou quinhentos anos.

Isto é imenso. E por isso, durante trinta anos, todos os olhos se fixaram nele.
Enquanto os Impressionistas continuavam, através das mais “cegas e interessadas”
resistências, a conquista da luz, os movimentos anteriores ou paralelos ao seu,
perfaziam-se, continuavam-se ou esboçavam-se ao lado deles ou neles próprios sem que
se apercebessem disso.

Era a consequência irresistível da dissociação social, que marchava ao mesmo


passo. Entre a construção sólida dos artistas procedentes da Revolução e da sua
expressão romântica e a fragmentação infinita das investigações que se tentavam, havia
a mesma distância que separa o ideal moral da conquista burguesa, das necessidades
nascentes que ela própria tinha libertado.

Corot, Daumier, Millet, Courbet, Puvis de Chavannes, apesar de vivos, pareciam


mortos há anos. Tudo o que era novo, tudo o que era inesperado ou pessoal chamava-se-
lhe Impressionismo para exprimir cólera ou amor. Lépine, tão clássico pelas suas
notações finas e nítidas dos aspetos médios da natureza, e aliás influenciado pelo grupo,
foi confundido com ele. Obstinaram-se, mesmo depois da sua última evolução, a incluir
no Impressionismo Cézanne e Renoir.

Confundiram-se as suas visões de ar livre e as suas análises de luz com as


sinfonias sombrias e as análises de trevas do americano Whistler, amador hábil e subtil
apaixonado de mistério e clarões na sombra, mas, como ele, oriundo de Delacroix, de
Courbet, de Manet, dos paisagistas do Japão.
A margem dele, e anunciando-o alguns anos antes, não se veem mexer, na
penumbra, os curtos e confusos jatos de chama de Monticelli. Sob a sua bandeira
arregimentaram Degas e Toulouse-Lautrec, que, sobretudo o primeiro, quase nada tinha
de comum com ele.

Tais confusões explicam-se, todavia. O naturalismo das últimas escolas do


século, de que Courbet é o iniciador aparente, e de que o movimento científico é
certamente o pretexto, mas nas quais se podem encontrar as múltiplas origens e o

152
secreto encaminhar de todos os sonhos sociais e realizações plásticas que, depois da
Revolução, removeram as fontes do sentimento e da ação, apresenta-se, em conjunto,
como uma ardente conquista dos elementos do real.

Mas, debaixo da crosta das teorias e dos sistemas, sob a ondulante superfície das
aventuras e dos costumes, é o temperamento do homem que persiste, o modo pelo qual
cada um, atravessando a vida da sua época, se apossa do espírito que circula e se fixa
nas formas do universo.

O naturalismo, sem dúvida, conhecerá apenas o objeto, manter-se-á por trinta


anos cada vez mais estreitamente sujeito ao seu império, e coibir-se-á de transpor, de
imaginar, de compor, de inventar, de exigir motivos ao mito e à História; não quererá
abrir mais a janela, copiar a rua e os que a atravessam, o céu, as árvores, os mercados,
os ajuntamentos, o que se passa e o que passa.

Nesse mundo concreto ver-se-á só este apreender a própria matéria, a densidade,


o sabor, a natureza exterior evidente do objeto. Por outro lado, a cor, os reflexos que
recebe e reenvia, as combinações da sombra e do sol na superfície cambiante. Aquela a
sua forma, a linha que a descreve e a isola, o seu carácter, o seu matiz. E, na forte
unidade naturalista que libertará a pintura das receitas e dos dogmas, da “pileca” do
ideal abstrato, este seguirá a esteira de Ingres, aquele a de Delacroix, aqueloutro a de
Daumier ou de Corot, estoutro a de Courbet, e todo o ardente movimento em direção à
cor e à forma vivas que caracteriza a pintura depois de David.

É isso que dá aos últimos movimentos do naturalismo essa altura dissociada, ao


mesmo tempo analítica nas suas direções e nas buscas, lírica no sentimento, como toda a
posse de algo desconhecido. De Delacroix a Seurat, Signac, H.-E. Cross, através dos
impressionistas, não há interrupção. Mas ainda que a alegria pareça subir e alargar-se à
medida que se aproxima a conquista do sol, com a vibração das paisagens do Sul levada
ao apogeu da violência, do brilho, do formigueiro e do movimento luminoso, a
dissociação acentua-se e, de análise em análise, chega ao beco sem saída de uma técnica
pictural de que se não pode evadir.

De Ingres a Toulouse-Lautrec, por Manet e Degas, a Seurat, o poderoso musical

153
e grave iniciador do pontilhado, o poeta das formas silenciosas errantes no arrepio dos
ares à beira das águas soalheiras, e deste aos seus sucessores, não há desvio algum de
direção e de influência. Mas o realismo apaixonado e sensual de Ingres, colorista e
plástico em Manet, afirma-se documental em Degas, orça pela anedota em Toulouse-
Lautrec e volta, nos seus sucessores, à ilustração, à crónica quotidiana e mesmo à
caricatura.

Nesse sentido, pelo menos, o estudo da forma e do gesto em ação na rua, no


«atelier», no café, no teatro, nas corridas e nos bailes atingiu o mais agudo da verdade
imediata e do carácter concreto. Não há volúpia alguma, embriaguez alguma a alcançar
de novo para além da forma e do objeto, do espaço errante, do domínio infinito da
comunicação musical, onde a intuição faz convergir todas as linhas, todos os volumes,
sucessão dos planos, relações e ecos da harmonia. Mas em Degas há uma vontade seca,
um traço cortante como uma faca.

Quer se trate de uma mulher carregando com ambas as mãos no ferro de


engomar e de ombros e braços nus, de um grupo de dançarinas correndo ao fogão a
amaciar as articulações, ou de esguios cavalos de corrida voltando à cavalariça ao longo
da relva, o gesto é de tal modo exato, embora não seja visível o minúsculo, que parece
seguido e dissecado, segundo o fluido que o esculpe, com uma ponta de aço. Tudo
parece dividido à luz difusa, tudo toma o aspeto mortuário dos acessórios de vidro e de
metal que a vida moderna impõe aos que procuram esquecer-se dela no prazer
maquinal. As faces parecem iluminadas por pálidos reflexos das mesas de café, das
colheres, dos pires, dos absintos nos balcões.

Os corpos angulosos e flácidos, acocorados no tubo esbranquiçado onde corre a


água, fazem a higiene triste como um vício escondido. As magras formas que os ossos
furam, o aspeto pobre, agudo e deslocado da máquina animal vista muito de perto, sem
amor, com o único inexorável desejo de a descrever na sua ação precisa que pudor
algum desperta e que nenhum entusiasmo lírico torna heroico por detrás dos olhos
clarividentes de mais.

Alto porte na visão sem inocência, longe do desejo de agradar, ávida de saber
para descrever, de descrever para saber. Sacrifício constante à expressão do gesto,

154
obstinação rebuscada nos atos mais precisos da «toilette», o saltar para dentro da
banheira, os braços erguidos para enrolar ou pentear os cabelos, a pressão da toalha ou
da esponja nos seios.

Quando os seus olhos agudos surpreendem a magreza dos cotovelos, a


deslocação dos ombros, a quebra das coxas e o achatamento das ancas, diz tudo isso
sem piedade. É, todavia, estranho que esse ocidental apaixonado pela mais
desinteressada verdade nos faça pensar muitas vezes em algum pintor oriental que
procurasse afogar nos mais ricos e raros tons, a todo o instante interrompido,
cambiados, moribundos, ressurgentes, a deceção do seu espírito.

Arte cruel, que as chamas e as sombras passeadas por luzes de ribalta sobre a
carne tornam mais cruel, denunciando as covas e as bossas, mas onde por vezes, quando
o pastel se ilumina e flameja, um clarão poético brilha, evocando, com as suas bailarinas
enlevadas pelo turbilhão da dança em gazes e disfarces cintilantes, algum sonho breve
de mais em que a alma azedada de um Watteau volta a rondar sob os lustres, aí vendo
voar e quebrar-se as asas das borboletas fosforescentes.

Em Toulouse-Lautrec esse seco clarão parece extinguir-se. A crueza insiste, raia


pelo sadismo, faz sangrar bocas murchas, amortece as pálpebras, unta os pobres cabelos
lisos, torna mais magras e pálidas as míseras carnes que se compram e vendem no
mercado. Bebedores macilentos, pálidas fêmeas, baço brilho dos zincos, tristeza
mecânica dos concertos e dos bailes, caves bafientas, odores de farmácias e pomadas,
tudo o que um século forte arrasta atrás do seu exército conquistador de animais de
amor emagrecidos para mitigar o viver dos seus feridos e doentes, Toulouse-Lautrec
violentamente o evoca com o seu traço trémulo, a sua cor amarga, a sua composição
deslocada. Face sinistra do prazer, último protesto indistinto do cristianismo na agonia
contra a embriaguez ascensional de um universo aceite.

155
Fig. 51
Paul Cézanne, Montanha Sainte-Victoire, 1888-1890.

Fig. 52
Vincent van Gogh, Vista de Arles, Pomar em Flor, 1889.

156
E essa obra acre e superaguda que chega a análise. O pessimismo romântico,
com a força lírica que se orgulha de sofrer, magnifica a volúpia. Mas, como se apoia de
mais em suas conclusões amargas, conduz diretamente a essas imagens, após as quais
não restará senão a esperança de uma nova ilusão. Eis Renoir, eis Cézanne, que
preparam um mundo desconhecido, podemos escrever, embora sejam pouco mais novos
do que o duro Manet e do que o cruel Degas, e mais velhos que o sinistro Lautrec, que
podiam pertencerem, sobretudo Renoir, a um novo século.

O mundo aceite na sua força indiferente, a alegria sensual reconquistada, tudo o


que é contemporâneo dessas obras nítidas e sombrias só amadurecerá nos espíritos vinte
ou trinta anos mais tarde. O que a alma francesa da época, fatigada por cem anos de um
dos mais poderosos esforços da História, penetrada pelo trágico desencanto de
Schopenhauer, pelo cristianismo sensual de Wagner, pelo imenso, desesperado rumor
do romance russo, sente nesse instante mais próximo de si, são os supremos sobressaltos
do sofrimento romântico, que lhe fazem crescer a amargura ao contacto do realismo
clarividente, cujo desenvolvimento o acompanha e lhe fornece novos alimentos.

Mesmo, e sobretudo talvez, quando conhece e raciocina, o coração ama a ilusão.


Enquanto os escritores e os pintores documentais continuam na solidão de uma empresa
sem piedade, o romantismo de Carrière e de Rodin absorve no ruído do seu surto lírico a
voz da verdade que eles sabem, e faz um câmbio heróico entre o conhecimento em que
o seu tempo se embrenha e se encarniça e a embriaguez do futuro que sentem crescer
em si.

Mas não foi só a fotografia que influenciou decisivamente o caminho da arte;


outro dos fatores foi o efeito libertador das culturas orientais primeiramente e, depois,
das culturas primitivas, pelo carácter simbólico que imputavam à arte. Esta “aprendera”
agora que não tinha de representar “tudo” para se exprimir...por isso depois do
impressionismo a natureza foi reduzida a figuras fundamentais, como no cubismo.

157
158
Fig. 53
Francisco Vieira Portuense, Fuga de Margarida de Anjou, 1798.

Não temos escola, não temos galerias, e não temos público.


Ramalho Ortigão

2.3 O Naturalismo em Portugal

159
Como é que Portugal se afirma perante estas profundas ruturas que assolaram o
séc. XVIII e séc. XIX europeu? Como país periférico, resignado a uma nostalgia dos
tempos áureos da aventura marítima e ao seu desterro finistérreo, assim permanecemos
sempre um pouco arredados e desfasados das últimas novidades intelectuais e artísticas,
envoltos numa bruma sebastiânica que traria a nossa salvação.

O século XIX começou em Portugal muito antes de se haver iniciado em


qualquer lugar do mundo e da mesma forma que se adiantou no século XVIII,
prolongar-se-ia até ao século XX. Começa com o terramoto de 1755 e a reconstrução da
Baixa pelo Marquês de Pombal – obra revolucionária porque até aqui as cidades eram
pensadas por justaposição, em acrescentos, mas Lisboa definirá, muito antes das
propostas de Haussman (isso só não se ficou a saber porque um texto de Correia da
Serra para a edição de 1774 da Enciclopédia desapareceu, ficando assim a Europa
privada de algo que poderia defini-la estética e filosoficamente), o traçado urbano e a
tipologia arquitetural conjuntamente e o resultado é uma cidade “moderna”, definida
entre um rio e um jardim –, interrompe-se, em 1777, com o advento da Viradeira
(reinado de D. Maria I), para prosseguir num século XIX temporal efetivo.

Esse foi um tempo rico em História e histórias. Com efeito, o século XIX
português foi um século fustigado pelas Invasões Francesas, a fuga da família real para
o Brasil, a fragilidade do liberalismo de 1820, a guerra civil, o setembrismo e as
quezílias com os cartistas, o cabralismo, a regeneração, o Ultimatum inglês (a gota de
água), e finalmente a implantação da República, em 1910.

Um século que parecia não querer caber no tempo de cem anos e que havia, por
isso, de prolongar-se. Assim, a ideia de Vítor Hugo, ao fazer corresponder liberalismo e
romantismo, tinha em Portugal a sua maior expressão. Apesar disto o país, encarnado
para alguns em Zé-povinho, ficaria quase imóvel no meio de tantas revoluções.

Decorrente desta realidade, a prática artística deparar-se-ia com grandes


dificuldades, açoitada por um “astro maligno” como, em 1817, Machado de Castro
(1731/1822) designara e que podia aplicar-se a todo o século XIX e parte (todo?) do
seguinte.

160
Este “astro” era tão “só” o resultado de um país periférico geograficamente
(circunstância agravada pela falta de vias de comunicação que ligassem o país à
Europa); cujo poder político era ignorante, desinteressado e tinha falta de preparação
artística; cuja indústria era praticamente inexistente; cujo ensino era vítima do estado
das coisas (sem fio condutor), a que o liberalismo, apesar de alguns esforços, não
conseguiria dar resposta (as Academias de Belas-Artes apenas se fundariam em 1836 e
nem as tentativas, mais tardias, de reformar o ensino no sentido de ligar a arte à
indústria quebrariam esta realidade); cuja história de arte, a crítica e a teorização estética
eram ignorantes ou apáticas, pontuadas por uma ou outra exceção (nomeadamente
estrangeiros, se excetuarmos Joaquim de Vasconcelos (1849/1936), o pai da história da
arte portuguesa); cujos museus tardavam em aparecer (só em 1882 é que se funda o
Museu Nacional de Arte); cujos artistas, vítimas do “sistema”, mesmo quando puderam
saltar as fronteiras nacionais, foram incapazes de compreender, no todo ou nas partes, os
sistemas artísticos mais revolucionários.

2.3.1 O gosto versus estética

A primeira manifestação pública onde começaram a sentir-se sinais de mudança


ocorre no seio da Academia de Lisboa, no seu segundo Salão, em 1843, embora não
tivesse sido seguida pelos inexperientes alunos da Academia: a inovação introduzida
veio principalmente pela mão dos diferentes artistas, trazidos à exposição,
nomeadamente Augusto Roquemont (1804/52) e B. Dufourcq (1807/70).

A revelação ou afirmação da pintura de paisagem e de costumes populares, foi


particularmente notada e objeto de crítica e de comentários na imprensa da época: O
Conde Raczynski (1788/1874) refere-se à exposição da Academia de 1843, salientando
os méritos de mestre Fonseca e Roquemont, mas considerando fraco o estado da arte
portuguesa, sendo esta a linha geral da sua crítica.

Aliás esta crítica de Raczynski, demonstra o estado precário e atrasado de


Portugal na construção de uma história da arte nacional e da pobreza de uma cultura
estética viva. Os escritores Garret e Herculano tiveram um papel fundamental na
construção de uma cultura estética, mergulhada nos conceitos de um romantismo

161
Fig. 54
Auguste Roquemont, O pároco de aldeia pedindo o folar, 1840.

Fig. 55
Jean Pillement, Paisagem, 1780-86.

162
nacional.

O encadeamento da valorização do manuelino e do gótico, permitiu um novo


olhar interessado, que o nacionalismo romântico bem explica.
Os mentores do romantismo português procuraram uma posição independente,
equilibrada, de certo modo antirromântica. O culto do diferente explica a literatura
confessional, em que o “Eu” liricamente se exibe na singularidade dos sentimentos e da
imaginação; como explica ainda, o nacionalismo estético, a valorização do que
distingue uma cultura regional de todas as outras, logo o apreço do tradicional e do
popular. “Este é um século democrático -proclama Garret – tudo o que se fizer há-de ser
pelo povo e com o povo” 132

Algumas vezes aflora, segundo a ideia de Rousseau, a ideia da bondade natural


do indivíduo, pervertido e constrangido pela sociedade (nas Viagens de Garret). O
romantismo constitui, por outro lado, uma tomada de consciência, a conquista dum
senso histórico (Herculano) e dum senso crítico novo aplicado aos fenómenos da cultura
(Garret).

O Conde Athanasius Raczynski, de nobreza polaca, vem para Portugal como


ministro da corte prussiana, e aqui permanece três anos, os quais foram para a história
da arte em Portugal marcantes e iniciaram novos percursos do pensamento e do
entendimento da arte e de uma cultura estética em Portugal.
Os seus estudos tomaram a forma de vinte e oito cartas dirigidas à Sociedade
Artística e Científica de Berlim, publicadas em Paris, em 1846, e de um Dicionário de
Artistas, que se seguiu à obra anterior, publicado em Paris em 1847.

Estas análises constituem a base crítica mais séria com que conta a historiografia
artística deste país, até essa data. Ela caiu no meio português como uma bomba,
mostrando erros, insuficiências, pretensões de investigadores, de artistas, de
colecionadores e publicando documentos negligenciados.

132
In GUSMÃO, Fernando, ALMEIDA GARRETT - DISCURSOS PARLAMENTARES POR FERNANDO
GUSMÃO, Companhia Nacional de Musica, Lisboa, 2004.

163
Visitando as colecções particulares nacionais, Raczynski, foi obrigado a moderar
entusiasmos e a arrumar lendárias atribuições. A sua atividade foi grande, criticando os
esquemas de ensino da Academia e estendeu-se ainda no campo das sugestões
pedagógicas.

A situação traumática da sociedade portuguesa nas primeiras décadas do século


XIX – até à vitória liberal de 1834 – teve consequências devastadoras, num país já
debilitado, para a prática artística em Portugal.
Assim quando a relativa calma política permitiu a fundação setembrista das
Academias de Belas-Artes, em Lisboa e no Porto, partiu-se em termos de referências
estéticas e programas de ensino, de modelos romanos e franceses, restringindo-os
fatalmente a deficientíssimos recursos financeiros.

O resultado desta prática traduziu-se quase numa só obra, Eneias salvando seu
pai Anquises do incêndio de Troia133 (1843), retomada obsessivamente de 1855 a 1871,
talvez a única pintura da história portuguesa de ambição programática neoclássica que o
seu autor, o pintor António Manuel da Fonseca (1796/1890) propôs a gerações
sucessivas de estudantes, como modelo a seguir.

Esta atitude fechada às tendências individualistas e apaixonadas do século XIX,


provocou uma intencional rebelião de gosto, assumida pelo jovem pintor Tomás da
Anunciação (1818/79), historicamente considerado o fundador do romantismo pictórico
nacional.
Conhecendo pouco (ou mesmo nada) os movimentos artísticos do tempo, essa
revolta, “suave”, contra as normas do ensino académico foi em primeiro lugar temática.
Os jovens tinham a convicção de que as iconografias clássicas da pintura da história,
eternamente repetindo a mitologia greco-romana, estavam ultrapassadas.

E se lhes faltavam modelos qualificados, oriundos de escolas ou ateliers


internacionais, dispunham de vários tipos de sensibilidade artísticas.

Nesta sequência, os românticos portugueses empenhar-se-ão nessa espécie de


Viagens na Minha Terra em pintura, detidos nos arredores naturais da cidade,
133
Ver FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no séc. XIX, Vol. 1, p.246.

164
descobrindo uma natureza intocada ainda pela industrialização, povoada de “saloios
campestres”.

Depois desta renovação temática visando aproximar a pintura de uma história


reconvertida em crónica, em que os heróis se transformam em indivíduos sem
genealogia e sem destino bem de acordo com as transformações sociais em curso, os
românticos já, ainda que empiricamente, possuíam o culto da Natureza, como critério
estético de um novo conceito de Belo, assim se aproximando da sensibilidade de ruptura
que já tinha acontecido na Europa.

O Pároco da Aldeia de Alexandre Herculano terminado em 1844, embora só


viesse a ser publicado em 1851, obra baseada nas lembranças de um passado vivido
num meio rural e impregnado de um profundo sentimento religioso e de uma visão
idílica, está muito próxima no tempo e no tema da pintura de Roquemont O Paróco de
aldeia pedindo o folar apresentada no Salão da Academia em 1843.

A intenção de valorização dos aspetos que mais e melhor traduziam a essência


da cultura popular, num primeiro momento defendida por via literária, rapidamente
contagiou artistas, nomeadamente pintores e escultores.

A descoberta do mundo rural é obra dos românticos e tem que ver com o desejo,
sentido como necessidade, de procurar a essência das raízes culturais, das tradições, dos
costumes e das crenças do povo.
É neste contexto que devemos enquadrar a intenção de Garret de criar uma
literatura verdadeiramente nacional, intenção essa que ligou toda a sua atividade
literária e também jornalística.

A sua estadia em Inglaterra e o contacto com os romances históricos de Walter


Scott motivaram a publicação, logo em 1828, de Adozinda, com que inicia uma
compilação das tradições populares portuguesas de que resulta a publicação de O
Romanceiro, em 1843, obra onde vemos o autor afirmar claramente as suas ideias:
«Nenhuma coisa pode ser nacional se não é popular».

165
Fig. 56
Tomás da Anunciação, o Vitelo, 1873.

Fig. 57
Tomás da Anunciação, Vista da Amora, paisagem com figuras, 1852.

166
A temática dos costumes populares, as tradições do povo e festas, e o pitoresco
dos trajes, que se manifesta claramente na década de quarenta, no âmbito das artes
plásticas, evoluem da tradição de uma pintura surgida ainda no século XVIII, pela mão
de vários pintores estrangeiros a trabalhar em Portugal, nomeadamente Pillement
(1728/1808) ou Delerive (1775-1818), em que vemos também despertar o gosto pelo
paisagismo. Além disso, o contributo destes pintores foi igualmente importante no
processo que levou à individualização da paisagem enquanto género na pintura.

A exposição da Academia de 1843 assume assim a revelação da pintura de


paisagem e de costumes populares, que viriam a preencher os horizontes da pintura
portuguesa ao longo de todo o século XIX, perdurando ainda no século XX, associados
ao retrato e à pintura histórica, constituindo os assuntos eleitos pelos pintores
românticos.

É assim que à margem da Academia (retrógrada),134 os jovens pintores


românticos se lançaram para novas experiências, encetando atividades que melhor
serviam os seus interesses e expectativas. Nesta medida, na prática de uma pintura de ar
livre, foram mais sensíveis, pintores e público comprador, ao género e ao pitoresco, do
que à paisagem pura.

Os artistas “românticos” portugueses não procuraram uma revolta pessoal, a


busca do individual, o irracional, o subjetivo, o visionário ou o transcendental; para eles
essa revolta seria escolar e temática.

Escolar, no sentido em que foi uma revolta contra as normas académicas;


temática, porque os jovens tinham a convicção de que as iconografias clássicas da
pintura de história, estavam ultrapassadas e nenhuma articulação produtiva lhes era
possível.

Os artistas, como já foi referido, procuraram na natureza, detida nos arredores


campestres da cidade, nos abundantes centros de ruralidade “mesmo dentro de portas”,
descobrindo uma paisagem intocada ainda pela industrialização, povoada de saloios

134
In Arte Portuguesa do Século XIX, publicado pelo Instituto Português do Património Cultural em
1988.

167
com o gado, ou cenograficamente recriados no quotidiano de modestos lavradores.

2.3.2 Cinco Artistas em Sintra

Observamos algumas dessas propostas e os respetivos autores; da geração


romântica de Anunciação, João Cristino da Silva, o autor de Cinco Artistas em Sintra
(1855) retrata o grupo de artista ao qual pertencia: centralizado em Anunciação, ladeado
de saloios e de outros pintores, Metrass, José Rodrigues, e o próprio Cristino, além do
escultor Vitor Bastos.

O lugar é Sintra, metáfora territorial, da própria definição de Romantismo;


identificada pela imagem à distância, do Palácio da Pena do rei D. Fernando,
recentemente concluído.

Verdadeiro manifesto de intencionalidades, esta pintura celebra a opção pelo ar


livre e o culto da natureza romantizada. Privilegia o contacto intencional com um povo
concreto, em relação ao qual os artistas pretendiam ser uma espécie de mestres,
valorizando o seu trabalho campestre e transmitindo-lhe a boa nova da cultura,
empenhada em fazer deles cidadãos de pleno direito, numa utópica aliança em que uns e
outros sabiam ter de lutar pela sua visibilidade social.

Ao mesmo tempo a pintura, através da enorme rocha que se situa ao fundo –


metáfora do próprio movimento romântico em Portugal – transmite-nos essa rigidez, de
uma pintura sem “sentimentos”, de uma vista não “emocionada”.

A natureza neste quadro ainda não é o ambiente da vida, mas é concebida como
o reflexo do criador na imagem do criado. Sendo um manifesto pictórico, esta pintura
acaba por sofrer da própria programação do romantismo nacional: escolar e pouco
“emotivo”.

Já a obra de Anunciação evolui da paisagem para a pintura animalista, por opção


de gosto, certamente, mas também por determinação do gosto do público.

168
Fig. 58
João Cristino da Silva, Cinco Artistas em Sintra, 1855.

Fig. 59
João Cristino da Silva, O recuar da Onda, 1857

169
Este sempre se manifestara mais sensível à objetivação traduzida nos costumes
do povo e nos animais domésticos do que à paisagem pura, e esta pode ter sido uma das
razões porque o paisagismo português permaneceu ao longo de todo o século XIX
impossibilitado de se autonomizar enquanto género.
A pintura portuguesa experimentou a fatalidade de ser “mais pitoresca que
pictural”.135

Anunciação celebrizou-se, apesar disso, com as suas melancólicas vistas como a


da Penha da França (1857), cada vez mais com as temáticas animalistas, vacas,
galinhas ou ovelhas, que atingem, no tardio Vitelo (1873), uma superior qualidade. No
fim da vida, Anunciação teve finalmente possibilidade de ir a Paris, podendo ver ao
vivo obras de Bonheur e Troyon, assim confirmando e aprofundando opções estéticas
para as quais não tivera mestre em Portugal.

Por isso no Vitelo, a luz abre-se mais subtil e tímbrica, a paisagem naturaliza-se,
no sentimento fugidio da captação de um instante atmosférico. Estava realizada a sua
discreta revolução.

Voltando a Cristino, porque ele foi o único pintor que se dedicou quase
exclusivamente à paisagem, e a ele se devem as raras paisagens românticas
descomprometidas dos motivos ruralistas a animalistas, O recuar da onda (1857) e a
Passagem do gado (1867) são bons exemplos das possibilidades deste pintor que
recorre aos elementos da natureza para através deles, transmitir os seus sentimentos e
sensações visuais.

A pintura de paisagem ou a experiência naturalista do romantismo português


quase se esgota na obra destes dois pintores, que tardiamente tiveram a oportunidade de
sair do país.
Francisco Metrass (1825/61) pretendeu renovar a pintura de história enquanto
género, adaptando-a às pulsões do século. Assim a pintura Camões na gruta de
Macau136 (1853) retoma um tema iconográfico que já Sequeira pintara e Garret
poetizara, numa comum atitude de personalizar, na figura romântica do poeta, os

135
In França, Op., Cit., p.274.
136
In França, Op., Cit., p. 277.

170
desejos de renovação da cultura nacional e os sentimentos de rejeição social de que se
sentiam vítimas, num país que no passado, como no presente, não valorizava nem
compreendia os seus artistas.

Aliás é interessante, o próprio Metrass ter-se representado a ele próprio nesta


pintura, num autorretrato, como Camões.
Na pintura Só Deus (1856), Metrass parte de uma cena de género, eventualmente
notícia de jornal, para construir uma metáfora pictórica do amor maternal: uma jovem
mulher, meio-despida procura salvar-se, e ao seu filho criança, da torrente que os
arrasta, segurando-se a um tronco partido. Tendo estado em Paris, é possível que
Metrass tenha visto A jangada da Medusa (1819) de Géricault, e que esta obra
fundadora do romantismo francês, o tenha inspirado na abordagem do tema da angústia
da morte perante as forças da natureza.

Mas enquanto a obra de Géricault é dominada por uma energia, um impulso


interior, uma fúria que não se concretiza numa ação definida, Metrass constrói uma
composição cenográfica, de um misticismo “pitoresco” ou «dum valor teatral que
guarda uma alta dignidade para além do melodramático do lance»137; ganhou a alta
dignidade, perdeu a pintura...

2.3.3 Bolsas em Paris

Quando por fim se institucionalizou a concessão de bolsas de estudo no


estrangeiro, em 1873, essas pensões do Estado contemplaram, além da pintura de
história, ainda considerada o mais importante género artístico, também a paisagem, que
assim via reconhecida a sua importância na hierarquia académica.

As bolsas conquistadas em concurso público, respetivamente por Marques de


Oliveira (1853/1927) e Silva Porto (1850/94), permitiram-lhes uma estada de mais de
cinco anos fora do país, quatro dos quais em Paris e um ano em Itália. Estes importantes
estágios estiveram na origem da oficialização do naturalismo português, quando em

137
In FRANÇA, José-Augusto A Arte em Portugal no Séc. XIX, Vol. I, p.276.

171
Fig. 60
João Cristino da Silva, A passagem do gado, 1867.

Fig. 61
Francisco Metrass, Só deus! 1856.

172
1879, aqueles pintores regressaram e foram reconhecidos como mestres pelos artistas e
pela crítica.
Frequentando a Academia parisiense, os pintores portugueses tiveram que
cumprir precisas exigências escolares que aprofundaram a sua formação académica.
Eram, em primeiro lugar e definitivamente pintores profissionais prolongando uma
conceção de arte que o academismo setecentista estruturara e que se mantinha resistente
ao reconhecimento da liberdade do génio individual. Por isso foram aceites nos Salons
parisienses, os mesmos que só tardiamente aceitaram Daubigny e Corot e sempre
fecharam portas a Manet, aos jovens impressionistas e a Cézanne.

Lentamente, no entanto, uma ligeira inovação penetrara na Academia. Sem


poderem ignorar o sucesso junto do público dos artistas de Barbizon, que se consagrou
desde os anos de 1840, as rígidas estruturas escolares acabaram por enquadrar a sua
prestigiada prática do paisagismo, praticado ao ar livre, em confronto com as variações
lumínicas da natureza.

Por isso, enquanto Marques de Oliveira, bolseiro de pintura de história, teve de


conformar-se às exigências estabelecidas, Silva Porto, estudante de paisagem,
beneficiou de orientações mais modernas, começando primeiro a copiar paisagens no
Louvre e depois a realizá-las do “natural”, nos campestres arredores parisienses.

O estudante português aproximou-se então da outra ambiência de aprendizagem,


em primeiro lugar, do círculo prestigiado de Daubigny, então em final de vida e de
carreira e já reconhecido pela crítica conservadora. Assim Silva Porto adquiriu o gosto
do esboço rápido, atento à multiplicidade cromática do real, libertou a pincelada das
convenções do acabado.

Sobretudo, converteu-se ao culto naturalista: a crença de que o belo era na


natureza que estava e não nos museus; que as iconografias clássicas de ressonância
histórica eram definitivamente “passado” e menos interessantes que a celebração dos
rituais da vida camponesa; que os pintores tinham uma espécie de missão a cumprir
num mundo dominado pela indústria e pelas cidades.
Nesses agitados anos de 1870, quando os impressionistas desencadeavam a
conciliação da cidade com a pintura moderna e questionavam a conformidade do registo

173
do natural, Silva Porto e Marques de Oliveira – que sempre que podia fugia da
Academia para se juntar ao amigo no campo – optavam por uma modernidade anterior,
já estabilizada e consagrada.

Regressado a Portugal, em 1879, Silva Porto ocupou de imediato a cadeira de


Paisagem da Academia de Belas-Artes de Lisboa, deixada livre por Anunciação que,
nesse ano, morria.

Um artigo publicado por Ramalho Ortigão (1836/1915), narrando uma visita ao


atelier do pintor, estabeleceu desde logo a unanimidade da crítica e as expectativas de
artistas e amadores, prontos a elegê-lo o «divino mestre», na expressão de Fialho de
Almeida (1857/1911), da nova pintura portuguesa.

Os jovens discípulos idolatraram aquele mestre que nenhuma teoria tinha para
lhes ensinar, mas saía com eles para o ar livre.

O melhor que pintou foi “umas secas paisagens” dos arredores de Lisboa,
percorridas por característicos riscos que, mais que “mimarem” a vegetação, eram
marcações coloridas da luz; vistas de Vizela, tingindo o rio e o arvoredo em manchas
nervosas, tocadas pelos vultos impressivos das lavadeiras; as praias da Póvoa de
Varzim, empalidecendo os céus e o mar em cinzentos transparentes e acumulando as
pessoas, os barcos e as armações das redes numa espécie de bailado de sombras.

174
Fig. 62
António Silva Porto, Vista tirada da charneca de Belas ao pôr-do-sol, 1879.

Fig. 63
Marques de Oliveira, Praia de Banhos, 1884.

175
Este conjunto de obras situa-se entre a paisagem e o género, numa fusão mais
característica da tradição milletiana, e também italiana, do que da estrita estética
barbizoniana, bucolicamente envolvida num paisagismo ruralista de matriz romântica.

Utilizando sobretudo a madeira como suporte em pequenos e médios formatos,


ele privilegia o esboço, a impressão, e a velocidade do registo. Os seus primeiros
discípulos, os únicos com legitimação histórica, constituíram à sua volta o Grupo do
Leão, pintado por Columbano num grande retrato de grupo, em 1885, para decorar a
cervejaria do mesmo nome, onde costumavam reunir-se e onde nasceu o projeto dos
Salões de Arte Moderna que, ao longo da década de 1880, foram a vanguarda possível
da pintura portuguesa.

Também no Porto, se verifica idêntica conjuntura artística. O lugar fulcral que


Silva Porto teve em Lisboa, foi aí desempenhado por Marques de Oliveira, professor de
Pintura de História.

A par de uma carreira académica que a sua especialização lhe exigia, o melhor
da sua obra é no paisagismo, que se manifesta na continuidade das experiências
parisienses.
A sua pintura é livre, serena, cheia de transparências, e as paisagens tem
marcação dos volumes, à maneira de Corot.
Columbano (1857/1929) retratista, soube captar psicologicamente a pequena
burguesia lisboeta em obras como O Sarau (1880) ou Convite à Valsa (1880)138.

Contrariamente aos hábitos paisagistas dos seus contemporâneos, pintou só em


recintos fechados e no seu atelier, analisando e caracterizando os seus retratados até ao
mais íntimo do seu ser, como se pode observar no Retrato de Antero Quental (1889),
realizado dois anos antes do suicídio do poeta. Como se pressentisse a dramática
realidade de morte próxima, o pintor desmaterializa o corpo do retratado, quase o
apagando na continuidade fechada do fundo castanho-escuro, deixando o rosto emergir,
torturado, espécie de caveira apenas adiada.

138
Ver FRANÇA, A Arte em Portugal no séc. XIX, Vol. 2, p. 265/266.

176
Fig. 64
António Silva Porto, um campo de trigo – Seara, 1882.

Fig. 65
Columbano, Antero de Quental, 1889.

177
Nesta imagem de angústia e desistência, mais do que o retrato próprio de
Antero, Columbano imobiliza o fracasso assumido da geração de 70, que quisera
modernizar um país, que isso mediocremente recusara. Pintou tudo o que quis e tudo a
seu gosto, e viveu “fotografando” o seu tempo.

2.3.4 Pousão e Malhoa

Henrique Pousão (1859/94) aluno de Silva Porto e de Marques de Oliveira,


passou na sua curta existência, por Paris e Roma, e a morte precoce, aos vinte e cinco
anos, impediu o pleno desenvolvimento da mais promissora e original poética pictórica
do fim-de-século português.

Logo em Paris, nas paisagens realizadas na aldeia de Saint- Sauves, Pousão


manifesta um desejo de atualização, distanciando-se do sentido romântico do
paisagismo de Barbizon.

Mas seria em Itália, que ele, em 1882-83, realizaria o essencial da sua obra.
Fixado em Capri, encontraria aí o cerne da sua particularidade; detendo pormenores
orgânicos de uma arquitetura de tradição mediterrânica, que lhe permitiu os exercícios
plásticos sobre o branco, sombreado com as sombras contrastantes dos verdes da
vegetação, dos ocres dos muros e dos intensos azuis de uma atmosfera muito luminosa.

Nestes o tema é apenas mote de ideias ou variações picturais, levemente


texturizadas, muito luminosas e tímbricas, enredadas numa lógica plástica autónoma,
sugerindo um percurso de paixão e de corte com os sistemas visuais estabelecidos.

178
Fig. 66
Henrique Pousão, Casas brancas de Capri, 1882.

Fig. 67
Henrique Pousão, Casa das Persianas Azuis, c.1883.

179
Finaliza-se este percurso pelo naturalismo em Portugal, com o pintor José
Malhoa (1855/1933) cujos seus dois quadros mais célebres, Os Bêbados (1907) e O
Fado (1910)139, transferiram para o ambiente urbano os desafios mentais da sua pintura
rural como se, afinal, só uma ténue diferença cultural existisse entre o campo e a cidade.
Esta pintura de Malhoa acaba por implicar uma energia quase revolucionária, talvez à
semelhança dos romances de Camilo Castelo Branco, narrando uma cultura inventada
que era profundamente exata, transposta em imagens positivas.

Ao contrário dos artistas antes citados, não estagiou em Paris ou Roma. Pintor
empenhado e apaixonadíssimo, depressa transmutou as paisagens bucólicas,
características da iconografia naturalista, em panos de fundo ativos de uma castiça
pintura de género, celebradora dos ciclos da vida rural, o trabalho, a festa, os rituais
religiosos, os amores e as duras desgraças de um povo rude e analfabeto.

Utilizando uma espécie de “realismo íntimo”, que se contenta no inventário da


pobreza e das suas marcas sobre os corpos, Malhoa pintava-os com uma espécie de
respiração sagrada em que a natureza participa, pela exuberância da terra e dos seus
frutos, sobretudo pela luz ensolarada que tudo envolve e transfigura, em amarelos e
laranjas sinuosos.

Na longa carreira de Malhoa devem ainda salientar-se raras marcações de uma


poética mais intimista, relacionáveis com situações de reflexões e pesquisa plástica, que
manifestam um transversal desejo de ultrapassar a mistificação da sua pintura mais
popular, como no Retrato da Minha Mulher (1914) ou na pintura Outono (1919),
desenvolvendo também os reptos da técnica impressionista e pós-impressionista que
então se internacionalizara como possibilidade académica de atualização da estética
naturalista.

A versatilidade e qualidade pictórica destas obras complexificam o entendimento


da personalidade incontornável de Malhoa: elas participam no pequeno conjunto das
obras-primas do naturalismo português, como as melhores peças de Ramalho ou
Marques de Oliveira, alargando o espectro de possibilidades aberto pela mais
qualificada produção de Silva Porto, e confirmando a vitalidade de uma estética “fino-
139
In FRANÇA, José-Augusto, A Arte em Portugal no séc. XIX, Vol. 2, p. 293.

180
oitocentista”, contemporânea já da pintura de Amadeo e da primeira afirmação dos
modernistas.

Eram, no entanto, raras marcações de excecionalidade, que se apagavam na


140
banalidade geral dos Salões da Sociedade Nacional de Belas Artes e, por isso,
nenhuma ponte puderam criar entre campos plásticos que então naturalmente se
olhavam como inimigos.

Com estes exemplos e com o empenho de outros artistas aqui não mencionados,
o naturalismo tem a sua apoteose em Portugal, culmina a estética pós-romântica
nacional e que, por outro lado, que constituem as referências pictóricas contra as quais
lutaram as primeiras vanguardas nacionais do séc. XX, nomeadamente o futurismo de
Almada – (1893/1970) e de Santa-Rita (1889/1918).

2.3.5 Quem és tu?

“Outra questão importante é que se não compreendíamos o que era o nosso


passado que, de alguma forma, nos impedia o presente e o futuro...não eram nem as
memórias de um passado glorioso que nos salvavam”.141

Este olhar o passado refletir-se-ia paradigmaticamente na questão do património


– como expôs Françoise Choay142; o património é revelador do estado de uma sociedade
e das questões que nela existem –, que atingia o corolário (não por acaso) neste fim de
século existencial, mas que já se havia manifestado ao longo de todo o século,

140
Ver TAVARES, Cristina Azevedo, A Sociedade Nacional de Belas-Artes, Fundação da Bienal de Vila
Nova de Cerveira, 2001.
141
ORTIGÃO, Ramalho, Notas de Viagem, Livraria Clássica Editora;1945.
142
Ver CHOAY, Françoise, L'allégorie du patrimoine, Seuil, Paris 1997.

181
Fig. 68
José Malhoa, Praia das Maçãs, 1918.

Fig. 69
José Malhoa, Outono, 1919.

182
em personalidades como Herculano, Garrett, Mendes Leal, Vilhena Barbosa, Luciano
Cordeiro, Sousa Viterbo, Gabriel Pereira, Conde de Sabugosa, Possidónio da Silva e
Joaquim de Vasconcelos e que Ramalho Ortigão haveria de fixar nas lúcidas páginas de
Notas de Viagem, uma investida contra a incúria, a inépcia, a ignorância, a má
governação, a preguiça.

Mas o que Ramalho não sabia era que esse património deve ser preservado, mas
não olhado em demasia. Mesmo quando, ao elogiar a casa dos Condes de Arnoso por
oposição às construções estrangeiradas que então se faziam (abrindo a questão da casa
portuguesa), o que está a fazer é a olhar o passado.

Assim, a necessidade de preservar certos monumentos (que encarnavam o


passado da Pátria) correspondia à necessidade de se procurar uma identidade que se
estaria a perder e um refúgio da nação face às transformações históricas, políticas,
económicas e sociais, que pareciam pôr em causa a sua própria identidade.

A adição de cada novo fragmento concedia à nação mais solidez, precisão e


autoridade, de certa forma, tranquilizava-a e tornava-a mais capaz de conjurar a angústia
e as incertezas presentes; era algo de narcísico, portanto. Mas não nos podemos
esquecer que Narciso morreu porque não se conseguiu abstrair de si próprio; assim o
culto do património não podia (pode) ser mais do que um tempo de retomar fôlego para
depois se reagir.

Esta perda de identidade que sentíamos em fim de século havia-se materializado,


anos antes, em Frei Luís de Sousa (1843), de Garrett. Esta é fundamentalmente a
teatralidade de Portugal como povo que já só tem identidade no imaginário ou mesmo
no fantástico, como salientou Eduardo Lourenço.

À pergunta quem és tu? Quem responde ninguém não é um mero marido


ressuscitado e fora de tempo, mas o próprio Portugal, aquele que não sabe de si.
Também Oliveira Martins (1845/1894) faria o balanço desta perda e decadência em
Portugal Contemporâneo, onde sente o pulsar negativista de toda uma sociedade.

Quando se questiona saber se valeria a pena salvar a pátria e se refere ao poema

183
de Camões (relativo ao passado): este testemunha um momento grandioso, mas é
impossível ressuscitar o que está morto para sempre; uma obra assim, continua, não
pode salvar-nos de nada, porque já não nos diz respeito...tinha razão.

Símbolo disso é o contraste evidente entre as linguagens de dois pintores,


Malhoa e Columbano, entre uma paleta ligada a valores cromáticos solares e outra
realizada num cromatismo surdo e soturno das penumbras; entre a afirmação da
natureza e do elogio da população campestre e do mundo rural e a sua equiparação,
enquanto tema plástico, ao retrato, às representações dos hábitos citadinos.

Se Malhoa espelha, fantasiosa e realisticamente, o pulsar da face campestre de


Portugal, Columbano oferece-nos a outra face, retrata todo um país nos seus retratados,
representantes ou imagens de um substrato sentimental que corre no leito espiritual de
um país que gestou os “vencidos da vida”.

184
185
Fig. 70 Frame, Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958.

2.4 The lost moment: Novos “murmúrios’ na Paisagem…

186
No pintor Cézanne (1839/1906) já não estamos perante o artista viajante, nem
perante o pintor local, mas face ao pintor apostado em apenas um sítio: o Mont de Saint-
Victoire, porque o que lhe interessa não é a natureza, mas o que pode fazer com ela; esta
é apenas pretexto. O que estava a criar no fundo era uma harmonia paralela à da
natureza, quando a trata através do cilindro, da esfera e do cone. Picasso recuperará a
luta de Cézanne ao retratar e reduzir geometricamente a natureza, mas também a de
Manet, pelo retrato: Les Demoiselles d’Avignon (1906/07) representam um salto mortal.

A natureza foi lugar onde se espelham sentimentos e emoções, lugar de


expressão, portanto, como em Van Gogh (1853/90) – que trouxe o carácter trágico da
natureza; a paisagem era uma metáfora de um estado emocional: tratava-se da natureza
humana – e, por extensão, no expressionismo. Ou a natureza foi lugar de símbolo,
imaginável, intemporal, e, portanto, simbolista e, por extensão, dadaísta ou surrealista.
O simbolismo foi aliás um movimento muito importante, na medida em que pela
primeira vez pintores, poetas e músicos estiveram ligados, tanto pessoalmente como em
luta por problemas artísticos comuns. Mallarmé afirmava que se devia pintar não a
coisa, mas o efeito por ela produzido – era o sintetismo, que surgiria nas obras de
Gauguin (1848/1903) e depois nas dos fauvistas.

Com efeito, a secreta harmonia entre homem e natureza que o mundo


materialista esquecia era servida por uma teoria de correspondências sinestésicas. Ou a
natureza não é equivalência e desprende-se pictoricamente dela, como em Kandinsky e,
por extensão, no abstracionismo. Com Kandinsky (1866/1944), aliás, ela deixa de
existir, há uma superação, que está mais ligada ao desenvolvimento da ciência. A beleza
eterna era agora aquela que podia ser medida analiticamente por outros termos,
nomeadamente os da ciência – o microscópio e o telescópio permitiriam o acesso a uma
natureza antes desconhecida143.

O desejo dos movimentos de vanguarda, seja na pintura, na dança, na música ou


no teatro, de romper definitivamente, fez da paisagem um tema ‘temporariamente
caduco’; tema esse mais adequado às manifestações nostálgicas sobre a perda da
natureza (reveladas em Barbizon) do que aos desejos que estas vanguardas tinham de
antecipar a libertação do homem do seu ambiente.
143
In CLARK, Kenneth, Op., Cit., p. 175.

187
2.4.1 O Verde instantâneo: Aspetos da paisagem na pintura do século
XX.

A cor verde é naturalmente associada à paisagem sendo ainda uma cor


relativamente rara na arte do século XX, especialmente na arte mais contemporânea. O
nome do artista que vem imediatamente ao nosso pensamento - fruto de uma exclusão
subliminar, ou talvez até intencional, da cor verde-verde, adaptando a natureza — é
Jasper Johns, (1930) conforme representado, por exemplo, em duas obras de 1955 na
coleção do MOMA sendo cada uma, um alvo: um vermelho, amarelo e azul; o outro,
todo verde.144 Um dos aspetos considerado como absorvente sobre o ‘destino’ verde é,
na verdade, a sua cor, que de alguma forma transfigura o verde numa abstração total.

Nada poderia ter menos associações com a natureza. É como se o verde de


repente tivesse sido levantado do espectro de cores e tivesse imergido isolado e irreal,
algo totalmente inorgânico. No entanto, o efeito forte do verde em que a pintura é
pintada torna-a ainda mais potente porque o verde é tão frequentemente ausente da
paleta de Johns. Numa famosa obra de 1959, False Start, os nomes de todas as cores
básicas são estampados; a palavra "verde" está lá, mas não há nenhum verde na pintura.

Geralmente, a paleta de Johns adere ao vermelho, amarelo, laranja, azul e às


vezes ao roxo, mas o verde é raro ou muito ‘periférico’, ocorrendo como um fator
mental, como no caso de variações das imagens da bandeira da década de 1950. Numa
litografia de 1967-68 sobre a memória, devemos olhar para a bandeira vermelha, branca
e azul e vemos uma miragem no espaço fornecido abaixo. Quando o verde aparece, é
como o complemento do vermelho, como um conceito completamente abstrato que não
tem nada a ver com a experiência da paisagem.

Todos esses aspetos funcionam como uma introdução de uma história


extremamente intrincada que esperamos finalizar não de forma sucessiva e
provavelmente não muito coesa, mas apresentando uma variedade de ideias e de
associações sobre o que podemos chamar de ‘a procura do verde da paisagem’ em torno

144
Jasper Johns (1930) é um pintor americano, escultor e associado com expressionismo abstrato, neo-
Dada e Pop art.

188
de nós.
Como forma de ilustrarmos a mudança que a civilização experimentou no século
XIX, poderemos comparar os estúdios de dois artistas famosos: um de Hans Makart
(1840/1884), em Viena, em 1885; o outro de Piet Mondrian (1872/1944), em Paris, em
1926. Essencial para Makart foi o ambiente artístico, na tradição mais floreada do
século XIX, com muita vegetação, podendo imaginar-se todas as palmeiras em vaso que
faziam parte desse ambiente de jardim de inverno que parecia fertilizar a sua mente e a
sua arte.

A abordagem de 1920 ao estúdio de um artista, como se pode observar na


famosa fotografia de André Kertész (1894/ 1985) do estúdio de Mondrian em 1926,
mostra que toda a natureza, com exceção de uma flor, foi banida deste santuário austero
de pureza. Aqui, a natureza seria um intruso estranho, mais indesejável, especialmente
nas décadas da idade da máquina.
Esta separação da natureza não tinha sido sempre o caso, como já escrevemos
neste capítulo.

A história do Impressionismo, como tem vindo a ser escrito e reescrito em


décadas recentes, e como já desenvolvemos neste capítulo, está cheia de narrativas
sobre a maneira como a distinção entre a cidade e o campo começou a ser traçada nas
décadas de 1860 e 1870; o local suburbano de Argenteuil sobre o Sena, a apenas a uma
curta viagem de Paris, foi um locus para este tipo de estudo.

Argenteuil que desde o início dos anos 1870 é um local industrial emergente vê
assim as suas paisagens contaminadas, qual trecho de uma voz inocente campestre com
as madeiras dos cortes das árvores a subir pelo Sena, cada vez mais invadida pelas
ideias da cidade.
Este tema ficou de alguma forma imortalizado numa pintura de Claude Monet de
1870-71, mostrando-se ali um comboio da ferrovia que corre ao longo do horizonte,
uma máquina que polui o ar em torno das pessoas que disfrutam o verde. É fascinante
ver como ao mesmo tempo, Monet poderia estar interessado na maioria das experiências

189
Fig. 71
Rudolf von Alt, Makart’s Studio, 1885.

Fig. 72
Claude Monet, The Train in the Countryside, 1870-71.

190
do típico rural narrador, fazendo uma pausa para fotografar, entre outras coisas, o
descarregamento de carvão nas margens do Rio Sena, perto de Argenteuil, em 1872.

De volta a Paris pintou o interior da Gare Saint-Lazare na época (1876-77) em


que explorava os luxuosos e privados jardins do Palácio pertencente aos seus amigos
Hoschedés de Montgeron. Que Monet era capaz de pinturas como estas durante o
mesmo período pode ser uma indicação da rutura crescente, ou da crescente distinção
entre natureza e artificio que parecia desenvolver-se no final da década de 1870.

As fotos, que a princípio parecem ser esquemáticas e opostas a preto e branco,


também podem oferecer um curioso ponto de convergência, para que a interpretação,
por exemplo, da Gare Saint-Lazare, quase se assemelhe a um dia no país, com as nuvens
naturais de Monet em pinturas anteriores agora traduzidas para as nuvens de vapor de
condensação dentro da estação de ferro e de vidro da estação ferroviária.

Os artistas em redor de Monet conseguem sintetizar o que pareciam ser os ritmos


e as imagens de um novo mundo industrial com visões de uma paisagem pública. Claro,
o mais famoso exemplo disto recai sobre Georges Seurat e o seu domingo no "Grande
Jatte", que inclui a primeira relva na história da arte que pode ser confundida com a
relva artificial.
A paisagem aparece totalmente sintética – sinal profético daquele pequeno
retângulo de relva verde perfeita, que já tivemos alguma vez nas nossas casas. Mais
fascinante do que tão estranhas congruências entre o natural e o sintético é a distinção
mais nítida que Monet e os outros pintores começaram a propor naquele momento entre
a cidade e o campo.

O facto é que Monet e muitos artistas no final do século XIX e início do século
XX experimentaram uma reviravolta completa da cidade para o campo sendo que nas
palavras de Voltaire, eles cultivavam os seus próprios jardins, ao ponto de criarem
mundos herméticos da natureza, de sonhos individualizados, nos quais moravam e
pudessem meditar um pouco, à semelhança das fantasias musicais de final de século
ilustradas nas partituras de Frederick Delius em Walk to Paradise Garden.

Este exemplo criativo aparece incorporado nos jardins de água, agora célebres,

191
que Monet criou em Giverny no início na década de 1890. Uma das belas fotografias de
Steven Shore da ponte japonesa, bem como da pintura de Monet, do mesmo assunto, Le
Pont Japonais, 1897 – 99, penetram tão profundamente nesta natureza fictícia,
construída pelo homem, que sentimos que o mundo exterior desapareceu
completamente.
Este tipo de esteticismo, em que uma paisagem de fantasia é construída por um
artista para o seu deleite privado mais refinado, é comum na experiência de final do
século XIX; pode encontrar-se muitos exemplos internacionais de pinturas que se
apropriam de um ‘pedaço’ de paisagem, proclamam-no como se fosse o cosmos
universal e enfatizam a exuberância da natureza e o seu caráter hedonista.

Tal é o caso no campo italiano de Gustav Klimt (1862/ 1918), de 1917. A


imagem dá-nos um vislumbre do campo italiano burguês, não importando onde a cena
se passa, porquanto a imagem é um tapete persa com deslumbrantes flores, o
equivalente a joias preciosas, ao invés de uma paisagem comum.

Essa mesma estética da natureza qual requintada tapeçaria, pode ser vista numa
outra pintura do pintor suíço insuficientemente conhecido Augusto Giacometti (1877
/1947) que se encaixa no tema do luxuriante jardim que florescia na época.

Podem ser considerados outros jardins floridos em ambos os lados do Atlântico:


alguns do expressionista alemão Emil Nolde (1867/1956) que são insulares e
herméticos, com tons mais nórdicos, misteriosos do que os exemplos considerados
anteriormente; do outro lado do Atlântico, uma pintura de c. 1912, por Frederick
Frieseke (1874/1939) de uma senhora num jardim sugere um mundo de escolha estética
e harmónica. Podemos ter a certeza de que a senhora retratada por Frieseke era uma
assinante de uma revista como a House Beautifull ou a House and Gardens…

Neste meio de elegância privada e de alta sensibilidade esta visão da natureza é


retratada em luxuriantes jardins do domínio exclusivo mundano do proprietário
aristocrática e burguês. Este trabalho, parece-nos, representa uma outra categoria
fascinante da resposta artística à natureza no final desse século.

192
Fig. 73
Frederick Carl Frieseke, Lady in a Garden. C. 1912.

Fig. 74
Ferdinand Hodler, Autumm Evening. 1892/93.

193
Outra abordagem para a remoção da paisagem da experiência comum foi a
santificação quase assustadora da natureza, a qual pode tornar-se tão magicamente pura
como se fosse uma divindade.

Este ponto pode ser demonstrado no trabalho de um grande número de artistas


no final do século XIX, mas escolhemos aqui o trabalho do mestre suíço Ferdinand
Hodler (1853/1918). Numa pintura de 1885, A Floresta de Faias, encontramo-nos num
amostra bonita, mas bastante familiar da paisagem, mas numa cena de outono de 1892 –
93; de repente, temos a sensação de algo mais dramático, focalizados na perspetiva de
um ponto: uma imagem que nos faz sentir que somos andarilhos solitários numa
paisagem cujo significado nem pode ser considerado religioso em caráter — um ponto
enfaticamente claro no caminho das almas escolhidas, numa pintura de 1893-94, em que
vemos no horizonte a iminente alta Cruz, a salvação para aqueles que seguem sobre esta
reta e o caminho estreito e florido. Este tipo de sacralização da natureza tornou-se um
lugar-comum no final do século XIX.

Consideremos mais um exemplo do trabalho do Hodler, uma pintura de 1893-94,


um hino sobre seis anjos que estão a proteger o filho de Hodler numa montanha.
Observamos nela uma árvore perfeita, recentemente plantada. A sua pureza hermética
ecoada através do símbolo da criança nua; parece que o domínio da paisagem artificial
se transfigura num tipo de ritual iniciático. O local parece sagrado, tão sagrado como
um santuário da pré-história; porventura seja o Stonehenge, embora neste caso inspirado
nalgum local dos Alpes suíços.

Um tipo de visão universal é também representado, com a terra arredondada


pintada mais abaixo. No prado cheio de ‘primavera’, anjos pairam num monte sagrado,
em que o natural e o espiritual finalmente se tornaram «um». Este sentimento de uma
regressão na natureza para algo que é espiritualmente elementar, ou de uma indução
«religiosa», ou ainda organicamente elementar, encontra-se constantemente na arte do
final do século e é exemplificada magnificamente num conjunto de grandes pinturas de
Henri Matisse (1869/ 1954) a Música e Dança, de 1910.

A metáfora da imagem através de Hodler — que Matisse pode bem ter visto e
pensado na criação de suas próprias imagens — surgirá nestas paisagens que nos

194
Fig. 75
Ferdinand Hodler, The Consecrated One. 1893/94.

Fig. 76
Franz Marc, Horse in Landscape. 1910.

195
querem levar para o que parecem ser locais sagrados pré-históricos, uma natureza muito
generalizada, consistindo do nada, mas com o verde da terra fértil (tão ao contrário do
abstrato verde de Johns) e o azul do céu (ou é o azul da água?). Essas cores elementares
da paisagem — azul e verde — são como que destiladas como o ocre-vermelho da carne
dos números.

As duas pinturas parecem anunciar a Sagração da Primavera de Stravinsky de


1913, levando-nos a uma paisagem de caráter primordial. As raízes da música, as raízes
da dança e as raízes da experiência de paisagem tornaram-se tão míticas que não as
podemos associar a qualquer lugar ou tempo. Podemos bem imaginar Isadora Duncan a
dançar uma das suas coreografias num desses ambientes pictóricos.

Esta paisagem arcaica da imaginação foi sondada por um grande número de


grandes artistas na reviravolta do século, e claro, Pablo Picasso (1881/1973) estava entre
eles. Em 1908, por exemplo, ele começou a explorar o que parece ser um tipo de
natureza primitiva, muitas vezes inspirado por uma pequena aldeia ao norte de Paris, La
Rue des Bois.

Se tivermos de imaginar o tipo de criatura humanoide que viveria numa tal


paisagem, provavelmente seria alguém como a mulher pré-histórica druídica noutra
pintura de Picasso, do mesmo ano The Dríade. Nenhum habitante da cidade
contemporânea poderia sobreviver nestas paisagens pintadas por Picasso ou Matisse; as
cenas tornaram-se míticas, primitivas, levando-nos de volta às origens das coisas, como
é o caso de uma forma muito mais inocente, na pintura Eve, uma pintura de Henri
Rousseau (1844/1910) de 1906 – 07.

Aqui, Rousseau representa a mãe de todos nós, qual Eva, ao colocá-la dentro de
uma paisagem que é rara para os seus animais. A imagem manifesta-se quase numa
crença infantil no verde da natureza — algo de um anacronismo no início do século XX,
especialmente para os moradores da cidade como Picasso.

Tal regressão aos esconderijos mais profundos da natureza pode ter paralelo em
muita arquitetura do período, mas o exemplo mais famoso pode ser encontrado nos

196
Fig. 77
Henri Rousseau, Eve. 1906/08.

197
arredores de Barcelona, no Park Guell de Antoni Gaudi (1852/1926) de 1900-1914. A
entrada leva-nos a um templo dórico, mas ao mover-nos para os limites do parque,
entra-se, digamos, no território de Picasso e de Matisse; de repente estas colunas
tornaram-se pré-históricas, ilustram o tipo de ambiente selvagem que se poderia ter
vivido.
Movendo-nos ainda mais nos diferentes espaços destas galerias, podemos
dificilmente decifrar se eles são sintéticos ou naturais. Este tipo de conceito de regressão
é familiar em imagens de paisagem dos anos anteriores a 1914.

Outras viagens de fantasia, especialmente a leste do Reno, envolveram paisagens


como a paisagem do filme O Feiticeiro de Oz completamente irreais, com as suas cores
do arco-íris e qualidade ‘totalmente derretida’. Tal é o caso num par de paisagens de
1910: uma por Franz Marc (1880 /1916) e a outra por Vasily Kandinsky (1866/1944).
Embora ambas as paisagens tivessem sido inspiradas pelos Alpes Bávaros fora
de Munique, dão-nos o efeito de um mundo extraterrestre, um conto de fadas, onde
prédios rústicos e a natureza e animais se tornam «um», fundidos num espectro de
intensidade prismática derretida. Tais imagens de um Éden perdido devem ter fornecido
bálsamo para as feridas de muitos europeus antes de 1914.

Esses artistas e muitos dos seus contemporâneos, especialmente na Alemanha,


também se viraram para a exibição deste sonho pastoral — exatamente nos mesmos
anos precedendo a eclosão da visão apocalíptica da paisagem da guerra. Outra pintura
de Franz Marc é, novamente, inspirada nas montanhas tirolesas, mas aqui percebe-se
uma versão de Götterdämmerung, muito profético, também, de Anselm Kiefer.

Marc retrata uma grande explosão de uma árvore simbólica e um eclipse do sol e
da lua sobre uma visão de Maria e do Menino, oferecendo num mito privado um
terremoto cósmico em que toda a terra está sendo destruída diante dos nossos olhos. A
própria natureza é o cerne desta destruição.
Essa sensação de violento, de tragédia apocalíptica é também evocada em
muitas obras pré-guerra de Kandinsky, dos quais Improvisação nº30 é provavelmente o
exemplo mais conhecido, especialmente devido à presença espectral de um canhão no
canto direito inferior, uma referência, de Kandinsky sobre a guerra que estava por vir.

198
Fig. 78
Franz Marc, Tirol. 1914.

Fig. 79
Vasily Kandinsky, Montain landscape with Church. 1910.

199
Na Alemanha este sentido de explosividade na véspera da guerra pode ser
sentido na arte de pintores menos conhecidos. É o caso duma pintura do artista Ludwig
Meidner (1884/1966) de um cenário apocalíptico que, para nós, que nascemos depois de
1945, tem uma qualidade quase de profecia. Na visão do Meidner, todo o mundo, tanto
a natureza e a cidade, parecem perdidos neste momento final. É interessante ver que das
cinzas desta "explosão" todos os tipos de novas formas irracionais, alguns delas até
mesmo em formas arquitetónicas, começaram a ressurgir na Alemanha.

Uma outra abordagem sobre a ressurreição da paisagem (ou o que restou dela)
após a primeira guerra mundial, pode ainda ser vista nas atividades dos artistas e
arquitetos a oeste do Reno, especialmente em Paris, a partir de 1918. Podemos olhar
para uma paisagem típica de 1921 de Fernand Léger (1881/1955) — embora
nominalmente uma cena rural, tem fragmentos de imagens da indústria em segundo
plano, mas o que é mais contundente: há uma árvore sem folhas, maldita, na esquerda
da pintura que evoca um pouco do potencial verde, uma sobrevivente, até de uma
memória da tradição francesa da paisagem clássica.

Imagens como as de Léger, esclarecem a fusão crescente da cidade e do campo,


da natureza e da indústria que existia na grande tradição construtiva de pintura francesa
ao longo do ‘cubismo’ de Paul Cézanne e de Seurat. Por exemplo, no primeiro plano de
uma famosa pintura de Cézanne, a Baía de L'Estaque, 1886, há uma mistura quase
camuflada de pausas domésticas (em primeiro plano) e plantas industriais, com a fábrica
a expelir o fumo industrial começando a poluir o azul profundo do céu Mediterrâneo.

Artistas como Picasso e Georges Braque também incluiriam coisas inesperadas


como edifícios industriais e fábricas em que poderiam ser uma ‘paisagem turística não
poluída’. Em 1910 na pintura de Braque do mesmo lugar, L'Estaque, o artista
claramente está a acenar em direção de Cézanne, representando também (embora não
possa ser imediatamente legível) os novos edifícios da fábrica, que têm uma poderosa,
uma jovem industrial vida própria. Braque suprime completamente o sentido da
natureza, do verde, do céu, que ainda se apega à imagem de Cézanne de lugares
relacionados do mediterrâneo.
Aspetos tradicionais da paisagem também foram aniquilados nas análogas
pinturas de Picasso, como aquela de 1909 de uma cidade de montanha nos Pirenéus

200
Fábrica na Horta de Ebro, na qual as palmeiras verdejantes do século XIX se
transformaram em chaminés abstratas que rimam com os edifícios da fábrica real em
primeiro plano.

Tais obras pertencem a uma tradição que remonta ao artista da década de 1880, o
qual tinha mais firmemente sintetizados os fatos da natureza com os fatos do mundo
industrial – Seurat: A Ponte em Courbevoie, c. 1886-87, mostrando um subúrbio
industrial de Paris, que não só tem a ferrugem de fábrica usual no Sena, mas também
nos oferece o que se torna uma árvore quase sozinha, simbólica, uma silhueta robusta,
mas irregular de um formulário sem folhas.

A expressão arquitetónica perfeita deste imaginário e a vaidade quase paradoxal


da natureza dentro de um mundo recém-construído podem ser encontrados no famoso
Pavillon de L'Esprit Nouveau em Le Corbusier (1887/1965) na Paris Exposition des
Arts Décoratifs de 1925: uma única árvore sobe através do círculo de um buraco no
telhado. Este projeto fornece uma contrapartida tridimensional para as árvores que
Léger — e antes dele, Seurat — que tão frequentemente pintaram nas suas
paisagens/máquinas.

Essa sensação da realidade totalmente sintética, da natureza como que saída da


linha de montagem, também foi enfatizada por Picasso, com a sua perspicácia habitual,
numa pequena paisagem do pós-guerra de 1919, na qual o verde da paisagem é pintado
com um verde extraordinariamente irreal, sintético. Picasso tinha transformado tradição
francesa de Poussin, a paisagem clássica em algo que se parece com um cenário
totalmente plano e artificial.

O artista do século XX que representa mais esquematicamente a colisão entre a


natureza e o mundo moderno é Mondrian, cuja carreira oferece uma reviravolta quase
completa de um casamento da natureza e seus mistérios, uma rejeição do mesmo em
favor de um imaginário enraizado na cidade utópica concebida durante e logo após a
primeira guerra mundial.

201
Fig. 80
Ludwig Meidner, Apocalyptic landscape. 1913.

Fig. 81
Georges Braque, Rio Tinto Factories at L’Estaque. 1910.

202
Esta parte da sua carreira pode ser observada na pintura que se encontra no
MoMa, Broadway Boogy Woogie, executada durante a segunda guerra mundial em
1942-43. Uma fotografia contemporânea de Manhattan mostra-nos Central Park como
um perfeito retângulo, uma câmara de isolamento para a natureza, bem como os
arranha-céus do Central Park em direção ao sul, uma imagem que Mondrian
transformou.

Este último trabalho Boogy Woogie é particularmente dramático tendo em conta


os seus primeiros trabalhos enquanto pintor de paisagens, nomeadamente, numa
paisagem «tipo Van Gogh» que representa uma paisagem perto de Amsterdam, c. 1902.
No início deste século ele parecia literal e figurativamente afastar-se cada vez mais da
paisagem citadina e do campo, terminando em 1909 – 11 numa terra distante, nas dunas
de um norte litoral gélido, a sua Holanda natal, onde sentiu que poderia mergulhar no
vazio. Tudo isto está longe de ser a união da indústria com o imaginário urbano que
caracteriza a sua obra posterior.

A nítida distinção entre a cidade moderna e a mais remota e primordial paisagem


foi uma visão quase única de Mondrian; há quase um perfeito paralelo com o outro lado
do Atlântico nas obras de Georgia O'Keeffe (1887/1986) ela, também, que muitas vezes
dividiu o seu trabalho na cidade versus campo.

Na sua conceção de 1927 do então novo marco arquitetónico nova-iorquino, o


Radiotor Building- dos arquitecto Raymond Hood (1881/1934) e André Fouilhoux
(1879/1945), pode até ser entre as imagens que inspiraram a sua visão da paisagem
citadina — um olhar de fenestração mais tarde abstraído por Mondrian.

O'Keeffe produziu imagens que salientaram a grandeza colossal da paisagem


urbana da cidade, ao mesmo tempo, no entanto, O'Keeffe fugiu da cidade na sua vida e
arte, viajando para as áreas remotas da América do Norte, buscando a experiência de
uma natureza intemporal que não poderia ser cronometrada pelos anos dos séculos XIX
e XX.

203
Fig. 82
Le Corbusier, Pavillon de L’Esprit Nouveau. 1925.

Fig. 83
Pablo Picasso, Landscape with dead and live Trees. 1919.

204
2.4.2 Barnett Newman e a legitimação da arte americana nas
‘Paisagens primitivas’.

Barnett Newman (1905/1970) foi um pensador que escolheu desenvolver as suas


ideias simultaneamente na pintura e na escrita. Os seus textos são um “marco” na
estética e na antropologia da arte do século XX. Ele simboliza o triunfo da “Escola
Americana” sobre a Europa, triunfo esse que vai influenciar toda a arte da segunda
metade do século XX. Pode parecer algo excêntrico ou estranho falarmos de Newman e
particularmente dos seus textos numa tese sobre a paisagem, mas precisamente por
ambos estarem em polos que aparentemente parecem opostos enquanto na realidade na
realidade são faces da mesma moeda.

Ao lermos os textos de Newman que tenta legitimar a nova via artística


americana, notamos uma interferência, inconsciente é certo, de temáticas centrais do
que já foi escrito neste capítulo.
Após a segunda guerra mundial, o centro da cultura o centro da cultura artística
mundial, e, consequentemente do mercado de arte, desloca-se de Paris para Nova
Yorque, sendo o florescimento explosivo da arte americana um dos fenómenos mais
“surpreendentes na história da arte do século XX”.

É nos Estados Unidos que Duchamp e Picabia sentem que toda a arte europeia
envelheceu e decaiu. Propõem recomeçar do “princípio”, criar uma arte não da forma,
mas da acão. A escola de Nova Yorque, ou o Expressionismo Abstrato, quer ser
precisamente a manifestação imediata de uma vitalidade profunda que, liberta de
qualquer condicionamento repressivo, recupera o ritmo instintivo do gesto pictórico, e o
dinamismo de motivações obscuras, de mitologias remotas, de paisagens primitivas.

Este gesto, que revela, ou realiza a angústia de uma vitalidade reprimida,


implica, porém, para além de qualquer interesse social e político direto, uma vontade de
revolta contra o agente da repressão e, portanto, contra o sistema tecnológico,
económico e social americano: à ideologia do “bem-estar”, contrapõe-se a exasperante
angústia do indivíduo; à regularidade do comportamento tecnológico, a gestualidade
instintiva, não projetável, do artista. «O artista francês considera-se a si próprio como

205
um campo de batalha, entre nós, pelo contrário, cada um sente-se imerso na sua
própria noite funda.» 145
A revolta do artista não tem programas nem perspetivas de êxito: dado que o
sistema não ameaça apenas a liberdade, mas a própria existência do indivíduo, a arte é o
último sinal de existência, do seu fim.

Aquilo que é posto em causa é, pois, o “quadro” na sua pura realidade objetual,
no seu ser. O problema da essência e do significado do quadro – como fenómeno no
universo dos fenómenos, já intuído por Cézanne e depois pelos cubistas — atinge
finalmente o seu limite, a tendência do Hard Edge, de que Newman é mestre. Não se
limita a sustentar a solidariedade substancial da pintura com o seu suporte material, mas
faz do material um objeto signo.

Nos textos de Newman foca-se muitas vezes a arte primitiva, notando a sua
capacidade de expressar os mais intensos e verdadeiros terrores, as mais verdadeiras
expressões. Pode-se até pensar, que a noção, que Newman tinha de primitivo, era a de
que a arte abstrata não era ‘formal, mas ‘antropológica’. Para Newman, o homem
moderno sabia a tragédia em que o mundo se tinha tornado. Achar uma imagem
adequada para esta particular condição, era fundamental para ele. Para entender a causa
do terror, tinha-se de entrar num estado trágico.

Aqui era a diferença do homem primitivo, que era ignorante acerca das forças
naturais que o rodeavam. Newman, defendia que, se podia entender que a abstração
primitiva podia servir como ponto de referência, como um princípio.
A inclusão dos textos de Newman nesta tese é uma breve análise das suas ideias,
e a procura da tal “ponte de referência” entre o primitivismo e o Avant-gard Nova
Yorquino, nas décadas de 40 e 50. A arte dos expressionistas abstratos também pode ser
vista como uma confirmação da sublimidade da pintura de paisagem americana do
século XIX.
Embora as suas imagens sejam abstratas, as vastas telas de Newman e de
Clyfford Still sugerem a grandeza e a energia da paisagem, enquanto as estruturas
elementares e radicais de Rothko e Gottlieb são metáforas do mistério da criação e dos

145
In ROSENBERG, Harold, The Tradition of the New, Perseus Books Group, 1994.

206
elementos naturais. Esses artistas estavam profundamente interessados no mito e no
primitivo, e a pintura de Gottlieb, Raios, que mostra uma orbita tranquila do sol ou da
lua acima de uma terra explosiva, é uma boa metáfora para ilustrar as ideias de Newman
e dos artistas que o rodeavam, que se esforçaram para revelar uma verdade cósmica. 146

2.4.2.1 Epílogo On Newman

A ausência na história de Arte, de artistas Africanos, Indianos, Índios, deve-se


ao facto de a história de Arte ser uma criação Ocidental, masculina e branca.

A contaminação de linguagens é hoje admitida como passível de integrar a


poética de qualquer arte. Continuam — embora de uma forma relativizada — a serem
válidas as categorias da classificação que se regem por antigas poéticas assentes sobre o
princípio da mimesis e da necessidade, e indicam para apreciação das obras o grau de
motivação (Hegeliana) visível em cada uma.
Deste modo continuam a ser excluídos desta história de Arte as criações, cujos
fundamentos, funções e apreciações sejam diferentes das poéticas modernas Ocidentais,
por não terem uma função poética e serem tradicionais, ou serem originárias de
minorias étnicas, raciais ou sexuais.

Barnett Newman “reinventou” que a história de arte Ocidental era marcada por
um certo declínio, que teve a sua origem com os gregos. Eles foram os grandes
escritores da tragédia, mas a sua “plástica” começou a ficar “corrompida” por uma
preocupação de uma estética refinada. Por outras palavras, o estado natural entre o
pensamento e a forma que Newman caracteriza a arte primitiva, começou a desintegrar-
se.
Em “The new sense of fate”, Newman afirma que os escultores gregos
construíram uma arte de “Auto convicta sensibilidade” para uma economia do belo.
Como outros da sua geração, Newman desconfiava do belo.

No texto “The object and the image” faz uma poderosa declaração sobre a
vantagem de se ser um artista Americano. Os Europeus, para Newman, têm um falso

146
Ver textos de Newman em Anexos.

207
sentido trivial do trágico. Em contrário, o Americano era um primitivo “bárbaro”, que
nunca tendo nada de belo, não sofria dessa distração. O americano era livre de procurar
uma verdadeira imagem da emoção trágica em novas formas, da sua própria criação.
Adolph Gottlieb dizia em 1943: «Enquanto a arte moderna ganhou o seu impacto
inicial através da descoberta das formas da arte primitiva, nós achamos que a sua
verdadeira significação não assenta em meros arranjos formais, mas no sentido
espiritual que subjaz a todos os trabalhos arcaicos.»

Antecedendo as vanguardas, o trabalho técnico do pintor (a habilidade artesanal,


seg. Rosenberg) visava em primeiro lugar a reprodução de um modelo espacial único e
verdadeiro. No contexto da pintura do séc. XX, considerou-se que as coisas naturais são
belas, mas a sua imitação é uma coisa morta, sendo a construção de um espaço
psiquicamente impossível, o primeiro gesto impossível. Neste ato de definições de
espaço e de paisagens o artista contemporâneo identifica a arte do pensamento e da
técnica. A escolha da abstração radical coincide então com uma escolha imaginária das
origens da representação pictórica.

O que o artista K. mostra a Newman é a possibilidade de conhecer o espaço onde


o pensamento pode converter-se em imagens, onde as formas abstratas da geometria se
possam definitivamente encaixar na referência à experiência quotidiana da visão, o
olhar sobre a paisagem para se converter numa linguagem de “paixão”.

O critério que guia as análises da arte da Costa Nordeste poderá ser a existência
de uma arte na qual a matriz absoluta de uma técnica procura uma forma perfeita. Esta
forma pode então ultrapassar a simples função do objeto utilitário convertendo-se num
modelo de um estilo. Isto depende também da organização particular de uma cultura,
como os contornos inerentes a toda uma representação espacial e da paisagem.

Segundo Franz Boas (1858-1942), existem somente duas maneiras de


representar o espaço: uma que se refere diretamente à visão e representa os objetos,
imitando o olhar numa perspetiva unifocal a outra representa os objetos, não como eles
se apresentam ao olhar, mas como são representados pelo espirito. Assim o escultor da
Costa Nordeste pode multiplicar as perspetivas e representar um animal a partir de
vários pontos de vista simultâneos.

208
Quando olhamos um quadro construído a partir de uma perspetiva “ilusionista”
detemos uma representação simplificada do objeto, para imaginarmos a totalidade
complexa dos traços que a constituem. A arte primitiva segue um caminho inverso:
investe numa representação complexa dos traços do objeto para que construamos
mentalmente a sua presença real; para que possamos imaginá-lo de uma forma mais
completa de que um simples olhar.

Este tipo de representação, de que Newman e Boas falam, estabelece uma tensão
entre o verdadeiro e o invisível, que produz a ilusão de um espaço irreal: as coordenadas
que o definem não são as do olhar.

Para Newman, como para Beuys a arte dos primitivos não constitui um
repertório de formas a imitar. Através da identificação do ponto de união da técnica ao
pensamento, que constitui o ideal estético dos seus trabalhos, é-nos oferecido um
modelo de um espaço não ilusório, e de uma série de técnicas da representação mental.
Segundo Beuys, o homem deve ser livre para poder criar e transformar a sociedade e o
mundo em que vive.

Esse impulso libertador deve-se desenvolver e atuar, sendo esse o cerne da


criatividade que permite mudança. Sem liberdade não há criatividade, uma criatividade
descontextualizada do contexto específico da arte.

Beuys afirma numa das frases que constitui o núcleo do seu pensamento
«Pensar é esculpir». Observa-se, pois, que a arte primitiva faz apelo a um tipo de
representação que não é aquilo que se vê, mas pode ser uma sequência de pontos de
vista que são organizados mentalmente, e são transpostos para a obra. Será um conjunto
de pensamentos que não se deve confundir com o procedimento técnico, no entanto o
procedimento é determinado por esses pensamentos.

209
Fig. 84
Barnett Newman, Dionysius, 1949.

De que modo pode falar-se de arte quando falamos das criações originárias dos
índios Americanos?

Quando não virmos na antropologia apenas a justificação das culturas, mas


atendermos também às diferenças internas de cada sujeito. Ao considerarmos que se
cada sistema de representação expressa um mundo, ele expressa e avalia igualmente a
representação de outras normas, ainda que elas possam parecer parciais ou ter um aspeto
funcional, religioso, iniciático ou político.

Poder-se-á dizer que neste aspeto a desconstrução cultural da arte iniciada com
Duchamp tem continuidade nesta dicotomia primitiva/vanguarda Americana. A “dobra”

210
aqui faz-se a partir da evidente e progressiva perda de direito de nomeação que na
atualidade o autor começa a sofrer em favor da obra, vindo assim ao encontro de
privilégio que as criações têm nas artes provindas do exterior.

Simultaneamente, outros tipos de semelhanças são identificáveis: a primeira é o


reconhecimento do direito do espectador à incompreensão e ao desentendimento da
criação que se apresenta diante de si; a segunda, a valorização da obra que passa
também a ser feita pela competência empática da comunicação sensitiva e emotiva, que
atua sobre o espectador de forma quase sempre ante / predicativa.

2.4.3 Esplendor na Relva

Após a segunda guerra mundial, o cisma entre o orgânico e o inorgânico, entre o


natural e o artificial, chegou a um ponto de divergência máxima e de suprema colisão.
Dois artistas Pop da década de 1960 deram uma ideia da natureza, como tornou-se na
nossa cultura nessa década. Em 1962, Do It Yourself de Warhol (1928/1987), um ícone
da paisagem americana transformou-se num diagrama de um anúncio comercial. Se
você quiser, diz o título de Warhol, mentalmente pode preencher as partes verdes, mas
você pode fazer essa escolha por si mesmo…

Roy Lichtenstein (1923/1997) em 1964 ofereceu um produto igualmente


sintético, urbano — Sinking Sun), um pôr-do-sol ‘pobre’, que também ridiculariza
quaisquer ideias antiquadas da natureza.

Não obstante, a natureza persistiu através de formas secretas e evidentes: secreta,


em imagens muito orgânicas de um mestre como Mark Rothko, cujo pôr-do-sol como
visão não poderia ser mais diferente de Lichtenstein; ou mais evidente, na tradição de
terraplanagem que começou a ser explorada na década de 1960 e 1970 pelo gosto de
Robert Smithson, como o famoso Cais Espiral de 1970, no Great Salt Lake, Utah, da
Land Art.

211
Fig 85
Andy Warhol, Do It Yourself, 1962.

212
Do outro lado do Atlântico, Richard Long (1945) um britânico amante da
natureza, vagueava sobre o globo como um visitante de outro planeta, ao valorizar
cuidadosamente achados como a madeira da Califórnia que preservou e colocou num
círculo mágico numa galeria no SoHo ou seja documentando o seu próprio percurso
semelhante a uma cobra na ilha de Skye, a versão moderna de uma caminhada pela
floresta por, digamos, Dorothy (Feiticeiro de Oz) e William Wordsworth.

Mais do que uma cápsula do tempo em que as futuras civilizações poderiam vir
a aprender o que pensamos sobre a paisagem, o que conta na obra de Long é o relato
escrito de uma caminhada em linha reta em direção ao norte através da paisagem de
Dartmoor.

Mais certeira poderá ser uma fotografia de Alfred Leslie de uma vista
deslumbrante sobre o rio Connecticut e o Mount Holyoke. A paisagem nesta imagem é
realmente uma paisagem entre aspas porque alude claramente a um dos mais famosos
pintores americanos de paisagem, Thomas Cole, e à sua pintura de 1836 The Ox Bow.

A imagem de Leslie oferece uma revisão histórica/artística, ou sintética, da


imagem da natureza do século XIX recordando o passado da paisagem americana. 147

147
A Escola do Rio Hudson foi um movimento artístico norte-americano que durou entre
aproximadamente 1825 e 1880, formado por um grupo de pintores paisagistas baseados em Nova Iorque,
que em termos estéticos sintetizou as ideias do Romantismo e do Realismo. Este grupo tinha um caracter
não formal e fraterno; alguns dos seus elementos migraram juntos para o interior do país, viviam e
trabalhavam na área hoje conhecida como Greenwich Village. O ponto inicial de interesse para as suas
pinturas foi a região do rio Hudson e as respetivas montanhas circundantes, dai o nome da escola. Em
meados do século XIX os seus membros ampliaram os seus horizontes para retratar o oeste selvagem dos
Estados Unidos. Alguns deles chegaram mesmo a pintar regiões distantes para eles como o Ártico, a
Europa, o Oriente e a América do Sul.
As primeiras referências ao nome da escola aparecem apenas na década de 1870, embora não se
saiba exatamente quem a denominou nesse momento, quando o prestígio do grupo começava a decair e
tinha uma conotação negativa. Estes pintores refletem basicamente três impulsos importantes dos
Estados Unidos do século XIX: o descobrimento, a exploração e a conquista. Sempre inserida numa ótica
bucólica e pastoril, onde os Homens e a natureza coexistiam pacificamente, e onde as pinturas tinham um
caracter formal detalhista e por vezes idealizado. Os artistas acreditavam que a natureza era a uma
inefável manifestação de Deus, conquanto os pintores variassem na profundidade das suas convicções
religiosas. Foram inspirados pelas filosofias do Sublime e do Transcendentalismo, pelas obras de artistas
europeus como Salvator Rosa, John Constable, William Turner e especialmente Claude Lorrain, e
partilhavam a veneração às paisagens naturais da América com os escritores norte-americanos
contemporâneos deles, como Henry David Thoreau e Ralph Waldo Emerson.
A Escola do Rio Hudson constitui um marco no atribulado processo de reconhecimento do
território e da paisagem norte-americana e de uma construção pictórica paisagística americana, que se
havia iniciado nos tempos coloniais com o trabalho e pesquisa de exploradores, naturalistas e artistas,
nacionais e estrangeiros. É tida como a mais importante expressão romântica na pintura norte-americana
do século XIX, a primeira escola de pintura genuinamente nacionalista e o movimento artístico mais

213
notável em toda arte do século XIX nos Estados Unidos.
Audubon, Wordsworth e Thoreau, enquanto enalteciam a divina grandeza da paisagem nacional,
estavam cientes das transformações sociais e econômicas do período, a Revolução Industrial, e temiam
pela degradação do ambiente natural em função do aceleramento do processo colonizador do Oeste.
Thoreau era inspirado pelas ideias de Goethe, de outros poetas europeus, e na filosofia de Kant depurada
pelo inglês Coleridge, reagindo contra os princípios racionalistas e antirreligiosos da elite comercial da
costa leste, a principal incentivadora da expansão para o interior, e também contra o ascetismo Puritano,
que via o mundo como essencialmente mau. Thoreau colocava a natureza como a imagem de verdades
espirituais e ideais, e como a fonte primeira da sua inspiração, e por isso era digna de ser preservada. Já
Emerson não via incompatibilidade entre a comunhão mística com a natureza e sua exploração pelo
homem, entendendo que ela era a base do conforto humano. O seu elogio do progresso contribuiu para a
sociedade da época ofuscar quaisquer preocupações sobre a destruição da paisagem ao longo desse
processo de desenvolvimento, embora tenha fomentado significativamente o interesse pela sua
representação na arte. Esse corpo de ideias, conhecido como Transcendentalismo, influenciou um grande
número de escritores, poetas, políticos e artistas na primeira metade do século XIX, levando à conceção
de que "a América era uma nação da Natureza" (In BLACK, Brian. Nature and the environment in
nineteenth-century American. Greenwood Publishing Group, 2006. pp. 81-82.), cuja beleza, ao contrário
do ambiente exaustivamente explorado, alterado e civilizado da Europa, estava na sua condição selvagem,
fonte de orgulho nacionalista. E o trabalho da colonização muitas vezes era equiparado aos feitos dos
heróis clássicos.
Em termos iconográficos e seguindo o pensamento de Tim Barringer (in BARRINGER, Tim.
Unmistakably American? National myths and the historiography of landscape painting in the USA. In
PAYNE, Christiana & VAUGHAN, William. English accents. Ashgate Publishing, Ltd. 2004.) desde a
independência a história dos Estados Unidos seguia um projeto consciente de construção da imagem e de
identidade nacional. O sucesso na separação da Inglaterra, a instituição do sistema democrático e a força
do desenvolvimento económico alimentava uma doutrina de excecionalidade para a caracterização da
nação Americana, que procurava também afirmar a unidade nacional a despeito de evidentes contradições
internas. A narrativa oficial da história dos Estados Unidos alcançava assim o status de Epopeia. Parte
fundamental nessa narrativa era sua corporalização através de símbolos visíveis, onde se solicitava a
participação dos artistas.
Na ausência de um passado histórico nos Estados Unidos o emblema mais significativo e
reconhecível da pátria era sua própria paisagem, que se exaltava vigorosamente. A pintura de paisagem, a
partir daí, a mercê do esforço dos artistas coloniais, havia conseguido um impacto maior sobre o grande
público, longe dos resultados europeus em termos de qualidade técnica. Não era um símbolo realmente de
tradição. Procurava-se adquirir uma primazia não encontrada na arte europeia. Passando a natureza
extensamente virgem do país a ser vista como um espelho ainda mais fiel do mundo imaculado de
Rousseau do que o cenário europeu, e a sua representação como um auto-retrato da sociedade e de um
poder civilizacional positivo. Contrariamente à pintura histórica, que exige do público uma base cultural e
literária relativamente ampla e consistente para poder ser plenamente apreciada, a pintura de paisagem era
uma expressão democrática e só requeria a experiência natural, patrimônio de todo ser humano.
A pouco a pouco ia-se fortalecendo a ligação do paisagismo com a filosofia transcendentalista,
dando-se razão a Thoreau (substituição da religião norte-americana pelo culto direto do Deus imanente na
natureza), e como Emerson pensava ao afirmar que "o pintor deveria saber que a paisagem tem beleza
para seus olhos porque expressa um pensamento de bondade".
Aliás a sua evidente preocupação com o transcendental levou críticos como Anne Hollander (in
HOLLANDER, Anne. Moving pictures. Edição da autora, 1989. p. 352.) a dizerem que a produção da
Escola do Rio Hudson pode ser considerada a verdadeira arte sacra norte-americana, e Barbara Novak,
talvez a mais acreditada estudiosa da Escola, a chamá-los de "sacerdotes da igreja natural". Essa
tendência introduzia uma nota nova na história da pintura norte-americana, mas não anulava a sua antiga
inclinação para a descrição realista dos temas. O público em geral acreditava que o pintor não precisava
ser um imitador servil da natureza, mas também não devia dar “muitas asas às suas fantasias pessoais”,
em busca de se preservar a clareza e palpabilidade dos fatos representados, e para que "a obra de Deus
não fosse obscurecida". A síntese original romântica realista da Escola do Rio Hudson nasceu do diálogo
entre necessidades e princípios opostos que se complementavam.
O imenso sucesso da Escola do Rio Hudson só aconteceu devido a um sistema de arte
amadurecido. A abertura do Canal do Erie em 1825 trouxe grande prosperidade à cidade de Nova Iorque,
onde eles tinham a sua base de operações. Tornou-se moda que os grandes investidores e comerciantes
exibissem a sua riqueza competindo entre si num mecenato voluntarioso. Mantinham-se grandes coleções
privadas, mas também promoviam grandes encomendas especiais para os pintores. Subvencionavam o

214
Um dos principais utilizadores deste tipo de idiomas é o artista escocês Ian
Hamilton Finlay (1925), que emprega uma variedade complexa de materiais e artefactos
concebidos e produzidos em cooperação com outros artistas. As obras daí resultantes
exploram temas como a pureza, a virtude moral, a retórica política e o terror, focando
todos os aspetos da tradição neoclássica.

Em termos mais gerais, a sua obra evoca a complexa relação entre a natureza, a
paisagem e a cultura. Todos estes temas concentram-se em torno do projeto mais
persistente do artista – a sua própria casa e os jardins em Little Sparta, Lanarkshire,
Escócia.

2.4.4 O Regresso à Pintura.

A Transvanguarda foi um movimento artístico italiano da pós-modernidade. O


termo e a defesa teórica deste grupo emergiram em 1979 pelo crítico Achille Bonito
Oliva, para um grupo de pintores italianos.

Surgiu nos primeiros anos da década de 1980, em oposição com a arte povera,
movimento anterior de moda até então na Itália. A transvanguarda defendia o regresso à
pintura e utilização de cores fortes e ambientes/paisagens “teatrais “após alguns anos da
soberania da arte conceptual.

O movimento teve como impulsionadores cinco artistas: Enzo Cucchi (1949),


Mimmo Paladino (1948), Nicola De Maria, Francesco Clemente (1952) e Sandro Chia
(1946).

seu aperfeiçoamento na Europa. Desta forma os principais representantes da Escola puderam estudar com
os mestres de renome internacional e conquistar uma desenvoltura técnica que levou á materialização das
suas ideias
Entre as principais referências europeias dos artistas da Escola do Rio Hudson estavam Salvator
Rosa, William Turner e John Constable, mas Claude Lorrain foi especialmente importante, estabelecendo
um modelo formal eficiente e expressivo para o paisagismo.

215
Fig. 86 Enzo Cucchi, Sem título, 1998

Os transvanguardistas representam-se por um ecleticismo subjetivo, no qual os


artistas retornam para uma imagem pictórica tradicional. Evocam conteúdos alegóricos
intemporais como a mitologia ou o ciclope, paisagens surreais e a assuntos heroicos
com grande expressividade cromática.

Um dos mais influentes impulsionadores da arte de Pós-Vanguarda, o crítico


italiano de arte Bonito Oliva148 (1939), salientou, com relativa antecipação, a notável
afinidade existente entre o Maneirismo e a arte dos anos 80. Isto é compreensível sob o
seu ponto de vista, pois, se examinarmos os quadros e esculturas de artistas como
Sandro Chia, Francesco Clemente, Enzo Cucchi e Mimmo Paladino, que ele apoiou
ativamente, essa relação é evidente.

Os corpos ‘bojudos’ das maciças figuras de Chia, as complexas metáforas de


Clemente, ricas de alusões, destinadas a criarem efeitos visuais de surpresa, os
enigmáticos rostos sem corpo, ou os corpos sem rosto de Cucchi, assim como o modo
148
Chille Bonito Oliva (1939) é um crítico e curador de arte contemporânea italiano que vive em Roma,
onde é professor de História da Arte Contemporânea na Universidade La Sapienza.

216
narrativo e multifacetado, com reminiscências dos frescos clássicos e da tapeçaria,
revelado por Paladino, que também experimenta a técnica do mosaico, tudo isto
deforma o mundo visível.

Estes artistas realçam o que é interessante, estranho, malicioso e mobilizam os


mitos do passado, combinam o incompatível – Pablo Picasso e Marc Chagall, a arte da
Antiguidade e as culturas das tribos africanas, o sonho e a realidade – as suas paletas
têm cores ardentes, por vezes tocando as raias do mau gosto. Naturalmente que, a nível
formal, as pinturas dos maneiristas revelam uma característica diferente.

O Neo-expressionismo é a designação dada à explosão artística alemã emergida


nos anos 80, que diligenciava recuperar a pintura como meio de expressão e a
identidade cultural alemã. Os artistas alemães ansiavam por seguir as ideias artísticas
vindas de França, dos EUA e, por vezes, também da Itália.

A arte ocidental, principalmente as formas abstratas, tinham-se tornado sinónimo


de liberdade graças à vitória dos Aliados. Além disso, a guerra fria tornou esta arte
numa arma ideológica. Os defensores ideológicos de uma arte abstrata de cunho
ocidental pareciam muito mais convincentes pelo facto de, na outra parte da Alemanha,
essas formas de arte serem rigorosamente interditas. Por ordem do partido dominante do
Estado, imperavam as tradições realistas, cuja variante contemporânea era vilipendiada
na Alemanha Federal por se tratar de um «realismo socialista».

Qualquer artista que não seguisse a doutrina da arte abstrata corria o risco de ser
considerado um socialista, ou mesmo comunista. Por conseguinte, os artistas alemães
gozavam de pouco prestígio nos países ocidentais, onde mesmo os esforços autênticos
eram considerados como imitações de inferior qualidade. Também aqui Beuys
(1921/1986) foi um inovador.

Desde que se impôs internacionalmente, nos anos 70, a noção de «arte alemã»
adquiriu um significado inteiramente novo e, por vezes, até mesmo o significado de
uma trademark para a promoção das vendas. Beuys foi, de facto, um importante
pioneiro, mas impôs o seu próprio passado e mesmo o do seu povo, considerando-os
inseparáveis, sem negar nem suprimir qualquer facto.

217
E nunca deixou margem para dúvidas de que, segundo a sua interpretação da
tradição alemã, Johann Wolfgang von Goethe e Adolf Hitler, os clássicos de Weimar e
o diabólico nacional-socialismo estavam indissoluvelmente ligados. A sua obra está
impregnada da tristeza daquele acontecimento, é um permanente exigir a sua
condenação, mas poucos são os alemães que estão dispostos a isso.

Embora seja grande a importância de Beuys para a aceitação da arte alemã a


nível internacional, a sua obra revelou-se tão fechada que, mesmo acrescentando-lhe o
epíteto de «alemã», a sua acessibilidade não se torna maior. Por isso, preferiu-se colar
este rótulo que, entretanto, se tornou genuinamente comercial, nos quadros daqueles
artistas alemães que também tinham desafiado a doutrina da arte abstrata.

Movimento artístico recuperado a partir dos anos oitenta, ao voltar a assinalar a


afeção pela arte. Foi grandemente influído pelos movimentos Simbolismo, Surrealismo
e Expressionismo. Recuperou de volta a escultura e a pintura, com suas representações
emocionais, criticas e subjetivas, após décadas de ‘expatriamento’. Enunciando a
passagem da arte na sua narração universal. Os artistas usavam tintas misturadas com
materiais como palha, areia e outros, colados na tela.

Estes artistas retomaram a tradição da arte figurativa – pretensamente em


declínio – principalmente o estilo expressivo. Baselitz (1938) é um desses artistas, assim
como Lüpertz (1941), Penck (1939), Immendorff (1945/2007) e Kiefer (1945). As suas
obras foram utilizadas como prova de que o Expressionismo alemão estava a viver um
segundo florescimento; e como juízos precipitados têm equiparado a «arte alemã» ao
«Expressionismo», as obras dos referidos artistas são consideradas, pura e
simplesmente, como exemplos da «arte alemã». Nada adianta que, quando muito, só os
primeiros quadros de Baselitz e os de Immendorff da série Café Deutschland revelem
semelhanças formais e superficiais com as pinturas do Expressionismo alemão.

As obras dos restantes artistas, pelo contrário, estão mais distantes do


Expressionismo dos pintores do movimento «Die Brücke» do que de Beuys. O crítico
de arte suíço, Theo Kneubühler refutou, com razão, todas as classificações precipitadas,
afirmando: «É evidente que a imagem (destes artistas – nota do autor) não revela a
imagem de um mundo tal como é constituído por interpretações existenciais, mas sim

218
um universo que exprime, antes de mais, tal como ele é e, simultaneamente, revela o
mundo tal como ele é.»149

Esta tensão entre a possibilidade de significado e os desastres decorrentes da


história marca também a obra de dois pintores alemães, Anselm Kiefer e Gerhard
Richter (1932), responsáveis pela produção de alguma da arte pós-moderna de maior
impacto. A obra de Kiefer de finais da década de 70 foca a tensão entre a arte e a
catástrofe nacional de uma forma explícita.

Os meios utilizados para tal foram as obras em grande escala (por vezes pintadas
sobre paisagens), com o recurso a um forte impacto, bem como alusões escritas a
lugares e acontecimentos e a utilização de material alheio como a areia e a palha. Os
meios pictóricos utilizados por Richter nos finais dos anos 70 e nos anos 80 são bastante
mais subtis.
Emprega também fotografias pintadas de temas com implicação direta ou
indireta na história recente da Alemanha, mas o modo de pintar é mais fluido e
alucinatório. Esconde o original numa névoa que tem tanto de psicológico como de
pictórico. O passado aparece como presente, mas não sob a forma de uma memória
direta recuperável. Ao invés, surge como algo que só pode ser fixado através de uma
névoa de evasão e ambiguidade.

A obra de Kiefer foi a que esteve sujeita às mais estranhas e incertas


interpretações que, muitas vezes, revelam também uma imensidade de preconceitos. Isto
é tanto mais incompreensível pelo facto de a obra de Kiefer não só se afastar claramente
do Expressionismo, sob o ponto de vista estilístico, como também de se lhe opor no
aspeto ideológico.

Nas suas paisagens, Kiefer não evoca as forças primitivas da Natureza, nem as
mistifica, como Emil Nolde, Karl Schmidt-Rottluff, Otto Mueller, Erich Heckel ou
Ernst Ludwig Kirchner. Nas paisagens de Kiefer, a terra apresenta-se queimada, é uma
terra apocalíptica. As suas pinturas recordam a imagem da Natureza apresentada pelos
românticos e pelos expressionistas, mas revelam como, perante as graves ameaças que
pairam sobre o nosso mundo, essa imagem está fora do tempo.
149
In KNEUBUHLERr, Theo, Wegsehen: Aufsätze, Briefe, Titel, Merve Verlag Gmbh, 1986.

219
Também a palha que, por vezes, utiliza nas suas pinturas fala de tempos
passados. A imagem de verdes prados, florestas sussurrantes e férteis campos, tudo não
passa de uma recordação. As paisagens de Kiefer revelam tristeza – insatisfação com o
declínio.

E os mitos que o artista evoca perderam a sua inocência mítica porque passaram
a fazer parte da História. O mito, ao contrário da História, não tem presente, passado ou
futuro. Os mitos ou as paisagens históricas representadas nos quadros de Kiefer foram
desvirtuados pela História da Alemanha para justificar e ocultar crimes inconcebíveis.
Esta é a problemática apresentada nos quadros de Kiefer e não um surdo e exaltado
germanismo.

A história do seu país constitui, sem dúvida, um dos seus principais temas. Neste
aspecto, são também notáveis os paralelismos com a obra de Immendorff e Penck,
assim como, embora em menor grau, com algumas séries de quadros de Baselitze
Lüpertz. Mas o principal tema de Kiefer é o passado imediato, os doze anos de terror do
nacional-socialismo.

O artista não é, porém, um historiador, e nem pretende sê-lo. Não considera a


sua obra como uma análise, mas sim o diagnóstico do tempo. A sua perceção da
História não é menos complexa que o conceito da realidade defendida por Beuys, de
quem, aliás, foi discípulo durante algum tempo.

220
Fig. 87 Anselm Kiefer, The Red Sea, 1984-1985

Fig. 88 Anselm Kiefer, märkische Heide, 1977.

221
Por vezes, estão embebidas de uma ironia mordaz e de um patente sarcasmo,
como quando Kiefer apresenta a marinha de guerra do Terceiro Reich - que pretendia
conquistar a Grã-Bretanha – flutuando numa banheira, num quadro intitulado
“Operação Leão-Marinho”, segundo o nome de código da operação que foi abandonada
antes de ter sido sequer iniciada.

Também a série dos seus grandes quadros multimediáticos sobre a batalha de


Hermann, na floresta de Teutoburgo, uma magistral combinação de gravura em
madeira, pintura e colagem, tem a sua nota de ironia e sarcasmo.

Uma das paisagens mais reveladoras dessa categoria retrospetiva é de um


Anselm Kiefer de 1974 que representa o Märkische Heide, perto de Berlim, um lugar
repleto de memórias culturais alemãs, não só do início do século XIX romântico e
pastoral como contada por Theodor Fontane, mas também de conflitos militares
horríveis e portentosos do século XX.

É uma visão da terra queimada, uma terra que nunca pode ser regenerada, e é
uma imagem que, como Alfred Leslie, diz muito sobre a maneira como a paisagem
parece ter sido relegada nas décadas de 1970 e 1980 ao domínio do mito, história e
memória.

A partir de 1969, Gerhard Richter abandona as imagens encontradas que até


então utilizara e passa a servir-se exclusivamente das suas próprias fotografias, em
especial registos de paisagens. O protótipo que posteriormente veio dar origem às
paisagens desfocadas, um tipo de imagem ao qual se mantém fiel até à data, baseia-se
na reprodução de vedute integradas em vistas da Córsega de 1968, utilizando cores
quase kitsch que se fundem, capazes de fazer pressentir através de uma névoa a diluída
beleza natural.

Richter combinou diferentes fotografias umas com as outras, não hesitando em


«embelezar» a natureza. Os trabalhos Wilhelmshaven, Brücken (am Meer) e Seestück
(bewölkt), todos de 1969, são cenários que, no que diz respeito à escolha temática e à
transparência, não são à primeira vista diferentes das obras dos românticos alemães.

222
Fig 89
Richter, Gerhard, Apple Trees, 1987.

Fig. 90
Robert Smithson, Cais Espiral, Rozel Point, Great Salt Lake, Utah, 1970.

223
Mas Richter esclarece, numa nota de 1986, que as suas paisagens «não são
apenas bonitas ou nostálgicas, numa evocação romântica ou clássica à imagem do
paraíso perdido, mas acima de tudo 'enganadoras' (ainda que nem Sempre tenha
encontrado o meio para o mostrar), sendo que com 'enganadora' me refiro à exaltação
com que olhamos a natureza. A natureza que, em todas as suas formas, está sempre
contra nós, porque não conhece sentido, nem clemência, nem compaixão, porque não
conhece nada, porque é absolutamente destituída de alma, o perfeito oposto de nós,
absolutamente inumana.»150"

As paisagens marítimas são claramente divididas em dois campos, céu e água,


por meio de uma linha horizontal pronunciada, o que proporciona uma orientação sem a
qual as duas esferas se dissolveriam uma na outra.
É certo que os horizontes estão fortemente acoplados, de modo a dar espaço ao
espetáculo dramático de formações de nuvens e voláteis jogos de luz, carregando a
atmosfera com tal veemência que começamos a levar a sério o cliché de uma natureza
de cortar a respiração.

Bem diferentes são os maciços montanhosos e os quadros de cidades, baseados


em fotografias tiradas por Richter da perspetiva inclinada de um avião de passageiros.
Ele estava «fascinado por estas cidades e montanhas sem vida, montes de pedra, tanto
umas como outras, coisas sem significado. Foi a tentativa de transmitir um sentimento
de conteúdo geral.»”151 Estes trabalhos são um contraponto às paisagens executadas
com minúcia e «Só se deixam agrupar devido à sua fragmentada estrutura pictórica
informal'».152" No lugar de uma película de superfície lisa e perfeita, aparece uma
pintura pastosa e grosseira, uma profusão de manchas.

150
In RICHTER, Gerhard. Catalogue Raisonné. Volume 4: 1988 - 1994, nos. 652-1 - 805-6, Elger,
Dietmar. 2015.
151
In GODFREY, Mark, Gerhard Richter: Panorama: A Retrospective, Tate Publishing; New edition
edition (30 May 2016), p.120.
152
In GODFREY, Mark, Gerhard Richter: Panorama: A Retrospective, Tate Publishing; New edition
edition (30 May 2016), p.122.

224
2.5 Considerações Finais: Paisagem versus Realidade.

225
Foi preciso um século para a pintura se procurar e achar. A paisagem ‘extingue-
se’ no século XX, ou pelo menos já não é lugar para a reflexão da pintura, será na
verdadeira arte do século XX, a ‘nova tela’ denominada cinema. Daqui em diante a obra
de arte passa a ser pensada mais a nível mental (Picasso dizia que pintava as formas
como as pensava e não como as via) e emocional do que ao nível da realidade dos
fenómenos concretos da natureza, nas verdades latentes para lá da natureza de que Klee
(1879/1940) falava.

Mas que pode fazer a pintura uma vez que abandonou a linguagem tradicional da
representação da natureza e se afastou dela o suficiente para se tornar incompreensível?
O que pode ela comunicar?

Como assinalou Marcuse153, uma obra de arte não é verdadeira pelo seu
conteúdo ou pela sua forma, mas porque o seu conteúdo se tornou forma.

Na realidade com a cartografia de praticamente todos os recantos da terra, a


confluência dos progressos tecnológicos e científicos da industrialização em grande
escala, do urbanismo triunfante, dos meios de transporte e comunicação cada vez mais
bem-sucedidos, com a massificação sem precedentes da produção e do consumo, com o
fascínio crescente das utopias tecnicistas, o mundo artificial construído por e para o
homem é considerado como único meio digno e adaptado às suas novas condições de
vida.
E assim a natureza e a paisagem no século XX mais não são que objetos
passíveis de ser manipuláveis, numa perspetiva utilitarista: uma e outras reduzidas à
ocupação, à exploração, à regulação, a espaços de lazer ou de poder, destinadas a
adaptar-se e a satisfazer as exigências ilimitadas e as necessidades, muitas das vezes
fabricadas, do homem contemporâneo.

153
Ver The Aesthetic Dimension: Toward A Critique of Marxist Aesthetics, 1979. Neste livro a dimensão
estética (para não ser confundido com um capítulo de Eros and Civilization: A Philosophical Inquiry into
Freud (1955; second edition 1966) de Marcuse, é uma resposta a artigos anteriores dentro da teoria crítica
sobre o tema da arte, em particular as de Walter Benjamin e de Theodor Adorno. Marcuse rejeitou o texto
designado de Benjamin em "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica" para a politização
(ou seja, um reflexo literal das realidades políticas percebidas) da arte moderna, reprodutíveis tanto para
refletir o estado de uma sociedade e para incentivar a mudança. Como ambos, Benjamin e Adorno,
Marcuse acredita que a resistência da arte a promessas de repressão social, e que uma revolução cultural
está necessariamente ligada a uma revolução política ou social.
.

226
Assim, falar da paisagem do século XX é, antes de mais, verificar senão a sua
ausência, pelo menos a sua colocação a saque. O exemplo mais sintomático desta perda
é precisamente o facto de a noção de património, a partir dos anos sessenta, ter sido
alargada a áreas geográficas – a necessidade de preservar certos sítios naturais, revela
que os estamos a perder, relíquias de um mundo perdido, devorado pelo tempo e pela
técnica.

Mesmo a Land Art, que revelava um desafio subliminar à inevitabilidade de uma


realidade desencantada e desenraizada, pode ser considerada por alguns um engodo: não
é um sinal de um regresso à paisagem, antes é a sua negação; pois, na sua maior parte,
trata-se de cenários fora do alcance humano a que só se tem acesso através de fotografia
e/ou de vídeos, estando, por isso, mais ocupada a redesenhar as fronteiras da arte do que
a exaltar a natureza.

Mas por um lado a Land Art pode remontar-nos aos primórdios da arte, ou da
paisagem oitocentista, e desvia-nos a atenção para problemas tão atuais como a
precariedade dos recursos naturais convidando-nos, "imperativamente" a assumir a
nossa pequenez face à grandiosidade da natureza.

Em suma, este movimento, desprovido de uma essência canónica, dá-nos a


liberdade de lhe podermos atribuir a nossa própria essência. «A minha arte trata do
trabalho por toda a vastidão do mundo, em qualquer lugar da superfície da terra. A
minha arte possui os temas dos materiais, das ideias, do movimento, do tempo. A beleza
dos objetos, dos pensamentos, dos lugares e das ações. O meu trabalho trata dos
sentidos, do meu instinto, da minha própria escala e do meu próprio empenhamento
físico. O meu trabalho é real e não ilusório ou conceptual. Trata das peças verdadeiras,
do tempo verdadeiro e das ações verdadeiras.»154

154
In LONG, Richard in Citação da Documenta 7, Kassel, 1982, p.129.

227
Fig. 91 Robert Smithson, Cego no vale dos Suicídios., 1962.

Fig.92
Lewis Baltz, Park City, interior no. 70, 1980.

228
A Land art inaugura uma nova relação com o ambiente natural. A paisagem já
não é representada pictoricamente nem é um manancial de forças passível de expressão
plástica, a natureza passa a ser o lugar onde a arte se enraíza. O espaço físico – desertos,
lagos, canyons, planícies e planaltos – apresentam-se como campo onde os artistas
realizam intervenções, como em Cais Espiral, que Robert Smithson constrói sobre o
Great Salt Lake, em Utah.

Será preciso esperar pelo fim dos anos 70 do século passado com os movimentos
ecológicos e as manifestações contra a indiscutível má gestão da natureza que os artistas
vão registar, fotógrafos na maior parte, como o próprio Smithson155 pois a sua arte é
fundada não na natureza, mas na sua desnaturação, o que lhe interessa é a entropia;
Lewis Baltz – atente-se nas fotografias de Park City (1978-81) nas quais vemos a
indústria a transformar o terreno para a construção de casas de fim-de-semana, outra
invenção do século XX; Sophie Ristelhueber (1949) -fotografa paisagens em crise,
corpos (porque um corpo também é paisagem) ou lugares manipulados, marcados,
sacrificados e Tony Smith (a estes nomes havia que juntar Christo, Richard Long e
Hamish Fulton, que, embora noutra perspetiva, vão também intervir na paisagem). 156

Aqueles vão regressar, de certa forma, ao sur le motif: montanhas esventradas,


descargas, terrenos baldios, subúrbios decrépitos e abandonados, cidades desoladas e
destruídas pela guerra, auto-estradas, ou outras marcas humanas modernas ou antigas,
como objetos da nova paisagem; num olhar factual, objetivo, sem sentimentalismo nem
nostalgia.
É toda uma iconografia do homem e da sua relação com a natureza que se
155
Smithson – 1938/73.
156
Richard Long é um escultor Inglês e um dos mais conhecidos artistas britânicos. Várias de suas obras
foram baseados em torno de deambulações que ele realizou na paisagem, e assim operam como uma
escultura natural na terra; ele usa os meios operativos como a fotografia, textos e mapas das paisagens por
onde ele deambulou. No seu trabalho, frequentemente citado como uma resposta aos ambientes em que
ele ingressou, a paisagem seria deliberadamente mudada de alguma forma, como numa linha feita na terra
Walking (1967), e outras vezes as esculturas foram consumadas na paisagem construídas por rochas ou
semelhante materiais encontrados e depois fotografados. Outras das suas peças consistem em fotografias
ou mapas de paisagens inalteradas acompanhadas por textos que detalham o local e a hora da caminhada
que ele realizou.
Hamish Fulton (nascido em 1946) é um artista “caminhante” britânico. Desde 1972, ele só fez trabalhos
com base na experiência de caminhadas na paisagem. Ele apresenta as suas caminhadas numa variedade
de meios, incluindo a fotografia, com ilustrações e de textos. Desde 1994, ele começou a praticar
caminhadas de grupo. Fulton argumenta que "caminhar é uma forma de arte em seu próprio direito" e
defende um reconhecimento mais amplo da Walking Art.

229
apresenta perante nós, herdada da pintura de paisagem do século XIX, mas também da
fotografia, do fotojornalismo.

A escultora Clara Menéres (1943) na sua exposição de 2006, A Preto e Branco,


exibe uma série de fotografias onde nos mostra um conjunto de paisagens atuais em
crise, e como a artista nos diz, no prefácio do catálogo da exposição: «Os desastres, as
tragédias, os desgostos deixam marcas profundas nas pessoas e nas coisas: A natureza
sofre da loucura dos homens e isso é visível na sua pele: manchas, feridas, cicatrizes
quase sempre negras; corpos reduzidos a cinzas ou à sua estrutura mínima; ossadas
despidas de vida, quer sejam árvores, pessoas ou paisagens».157

Repare-se que a paisagem contemporânea passa efetivamente pelo


fotojornalismo de James Nachtwey (1948), que começou por ser um fotógrafo de guerra
e agora é um fotógrafo antiguerra, e de Sebastião Salgado (1944) – que concilia estética
e informação, estética e engagement, estética e política: em Outras Américas (1984) é a
América que não a do consumismo norte-americano, mas a das tradições espirituais, a
das favelas e a dos índios; em Sahel (1984-1985) é a África da fome; em Trabalho
(1986-1992) é a dominação da máquina sobre o homem; em Terra (1997) é a
importância da terra e dos homens que se batem por ela, os sem-terra; em Êxodos é a
história de toda a humanidade em movimento, da migração, da pressão das cidades, da
transformação das relações económicas e geopolíticas.

As paisagens de hoje são, portanto, anti-paisagens, entrópicas, em ruínas,


decadentes, torturadas e que, idênticas por todo o planeta, oferecem a mesma vista
fúnebre, feito cemitério de signos; signos que testemunham a nossa intervenção,
(política é claro), sobre ela, da qual é banida qualquer promessa de reconciliação e
harmonia entre natureza e homem.

No fundo é aquilo que Freud teorizou como repulsa originária – o homem está
dividido contra si próprio e os conflitos inconscientes exprimem-se em pensamentos e

157
In MENÉRES, Clara, Prefácio do Catálogo da Exposição A Preto e Branco, Lisboa, 2006, p.7.

230
Fig. 93
Sophie Ristelhueber, Fotografia da série Fait, 1992.

Fig. 94
Clara Menéres, Costa da Morte, nigredo 7, 2003.

231
atos que parecem irracionais – e que Heidegger entendia como contração pela
violência.

Posto isto, os artistas quando se interessam pela paisagem, contentam-se em


condenar os excessos, mas na maioria dos casos sem nunca fazer referência explícita a
uma natureza estilhaçada, fragmentada, tal como o homem. É que já não é possível
representar uma paisagem inocente numa sociedade alienada, cujas fantasias políticas se
lhe colaram, se apoderam dela, refizeram-na, adaptaram-na às suas necessidades.158

E a guerra, material ou psicológica, que se faz pelo domínio da paisagem e dos


seus recursos (vide Palestina, Síria, Afeganistão, Iraque, Ártico, para só falar dos
exemplos mais recentes), é o exemplo mais sintomático.

Mas, alguns perguntarão, que pode fazer a pintura uma vez que abandonou a
linguagem tradicional da representação da natureza e se afastou dela o suficiente para se
tornar “incompreensível”? O que pode ela comunicar? Talvez aqueles que entram em
dificuldade defronte de um quadro de Rothko soubessem responder melhor à questão.

É que se a sua obra não representa paisagens, representa, todavia, «O ponto


extremo de uma emoção espacial sugerida pela pintura, ou melhor pela cor, articulada
numa gama, que vai, da mesma maneira que a paisagem histórica, do idílio à tragédia.
A arte contemporânea, para além da paisagem considerada tipo, dá assim uma síntese
do problema colocado pela relação cada vez mais existente entre o homem e o meio
natural, anteriormente representada por um modesto jardim, hoje mais vasto que o
infinito físico e sensorial.».159160

158
Ver WARNKE, Martin, Political Lansdcape: The Art History of Nature, London, 1994.
159
Trad. livre do autor « le point êxtreme d’une emotion spatial suggérée par la peinture, ou mieux pour
la couleur, articulée dans une gamme, qui va, tout comme le paysage historique, de l’idylle à la tragédie.
L’art contemporain, au-delà du paysage considéré comme genre, donne ainsi une synthèse du problème
posé par le rapport de plus en plus grand qui existe entre l’homme et le milieu naturel, autrefois
représenté par un modéste jardin, aujourd’hui plus étendu que l’infini physique et sensoriel. », in
BATTISTI, Eugenio, « Paysage (Arts) », in Enciclopédie Universalys, p. 658.
160
Eugenio Battisti (1924 –1989).

232
Fig. 95
Clara Menéres, Baía de Maputo, solve/coagula 1, 2003.

Fig. 96
Sebastião Salgado, Campo de refugiados em Benako, Tanzania, 1994.

233
Fig.97
James Nachtwey, à procura de sobreviventes (11 de Setembro). Nova Iorque, 2001.

Para finalizar este capítulo sobre a temática da paisagem nas artes visuais,
particularmente na pintura, remetemos para a análise visual de uma obra herdeira das
temáticas do romantismo, de um olhar histórico-cultural visual e de tudo o que se
escreveu neste capítulo. A obra é o filme Vertigo de Alfred Hitchcock, metáfora
artística de tudo o que se escreveu neste texto. O filme aborda a dicotomia vida/morte,
arte/realidade, numa história assombrada por paisagens e fantasmas do passado e do
presente.

Durante muito tempo cessam os diálogos e vamos visitando lugares e paisagens


do passado e de morte: capela-cemitério do séc. XVIII, hotel antigo, flores para os
mortos, museu com o retrato de uma morta, floresta das sequoias. Síntese das temáticas
da pintura, porque faz referência aos géneros natureza-morta, paisagem, retrato. Quem é
aquela mulher? A imagem que tínhamos visto no genérico, sem que a ampliação nos
deixasse perceber se tratava de Madeleine, de Judy, de Carlota ou das três, “paisagem”
da mulher e da morte, sem identidade possível.

Alguém que sabe que vai morrer e que se opõe à Sequóia Semperviva, «Always
green, ever living» (na mais bela sequência do filme, e do uso da paisagem numa obra
de arte do século XX).

234
As próprias imagens do percurso dos protagonistas do filme pela floresta
remetem-nos diretamente para as pinturas de um Turner ou de um Friedrich, no
conceito, uma natureza ilimitada como um mistério insolúvel, que eles visualizavam
como uma série de paisagens míticas em termos de destino cósmico e na relação do
Homem perante algo incomensurável e que não admite comparação; ou para as pinturas
de Barbizon, na forma, uma natureza do tipo atmosférico e romântica nos tons.

De nada vale ao homem entrar no inferno (como Orfeu) se as leis do aquém se


sobrepõem ao mistério total.
Quando assim acontece, cessa a aparição. E ficamos, de novo na vertigem (não
vivemos nos tempos atuais em constante vertigem). Do sonho, da loucura, do
inexplicável total.
«Que pode o mundo das Sequóias Sempervivas, das raízes, da duração e do
tempo, contra o mundo das aparições, do mar, do primeiro beijo, das imagens, do que
sempre escapa, escorre e flui!»161

Que pode o mundo das Sequóias Sempervivas contra o nevoeiro, o regelo e a


geada, os fumos vagabundos dos comboios e dos barcos, o odor das ervas queimadas,
das ervas floridas, das ervas húmidas, o brusco frio que gela as cores do mundo com o
vento.
Contra as pedras das fachadas, os brincos do sol e da sombra, da bruma e das
estações que fazem-nas bulir como a superfície das árvores, como as nuvens do ar,
como a face das águas.
Contra a pintura das águas, do ar, das miragens do ar na água, da água no ar e de
tudo o que flutua, oscila, rodopia, hesita, vai e vem entre o ar e a água. Contra uma
sombra: não se lhe vê palpitar no fundo senão um vago clarão, uma flexa longínqua, a
crista de uma breve onda; um clarão sobrevém, tudo reaparece num segundo para se
dissociar imediatamente e se afogar no sol.

161
In da COSTA, João Bénard, Folhas da Cinemateca, 1994.

235
Uma mancha de Veneza, ali Londres, além algum rio francês, uma praia
portuguesa, algum canal da Holanda, além o mar da Normandia, por toda a parte o
império ilimitado do ar, da luz, do crepúsculo e da água…
Assim a arte cinematográfica presta uma das mais belas homenagens à história
da paisagem na pintura e testemunha que apesar de a pintura ter seguido outros
caminhos formais e conceptuais, a pintura de paisagens será sempre uma referência
histórica, artística, estética, imagética fundamental e sobretudo catalisadora na
construção de uma história cultural do olhar através da paisagem.

Fig. 98 Frame, Alfred Hitchcock, Vertigo, 1958.

236
237
Capítulo III

Always green, ever living. O Cinema e a Paisagem.

238
3.1 Considerações Iniciais
Este capítulo pode ser considerado uma circunavegação cinematográfica. Apesar
de se pretender extenso, não é exaustivo. O impulso desta viajem cinematográfica, em
comparação com os trilhos dos exploradores do Ártico, das viagens dos navegadores
dos descobrimentos ou das conquistas dos alpinistas, não está relacionado tanto com o
esforço físico, ou com a posse do espaço tangível, mas com a análise das provas de
produção cultural – neste caso, especificamente, o cinema. Este capítulo tenta fornecer
um mapa, um índice.

Para Deleuze162 (1925/1995), o cinema não é uma língua, universal ou primitiva,


nem mesmo pode ser definido como uma linguagem. Para ele, o cinema traz à luz uma
matéria inteligível, que é como que um pressuposto, uma condição, uma relação
necessária através do qual a linguagem constrói os seus “objetos” (unidades e operações
significantes).
Contudo, essa relação, mesmo inseparável, é específica, e consiste em
movimentos e processos de pensamento (imagens pré-linguísticas), como também em
pontos de vista tomados sobre esses mesmos movimentos e processos (signos pré-
significantes). Pier Paolo Pasolini (1922 /1975), o cineasta italiano, afirma que o cinema
se constitui enquanto uma linguagem não convencional, diferente da escrita e da falada,
pois exprime o mundo não através de símbolos, mas por meio de uma realidade própria.
163

A criação dessa realidade própria constitui-se a partir das representações do


espaço que o cinema constrói de maneira singular, tecendo envolvimentos entre o que se
vê (a forma) e o que se apreende daquilo que é visto (o conteúdo). O registo cria os seus
objetos de exposição, fazendo do sensível e do inteligível uma só matéria constitutiva da
linguagem- imagem.

Na qualidade de um “documento de estudo”, a força do filme reside naquilo que


o diferencia das outras formas visuais. Na originalidade da imagem cinematográfica

162 In DELEUZE, Gilles Cinema 1: The Movement Image (French: Cinéma 1. L'Image-Mouvement),
Paris, Les Éditions de Minuit. 1983.
163
In GREENE, Naomi Pier Paolo Pasolini: Cinema as Heresy, Princeton University Press (March 23,
1992), p.45.

239
encontramos uma qualidade especial de registar tensões, de mostrar o mundo. O cinema
oferece-nos a possibilidade de perscrutar o real através do impulso imaginativo e da
prova documental, de fazer ressuscitar o passado e atualizar o futuro, de conferir uma
imagem da nossa realidade. A escrita cinematográfica exprime-se como um pedaço do
mundo que nos olha e nos representa.

Na opinião de João Mário Grilo (1958) “quaisquer que elas sejam, as palavras
de ordem no cinema, as unidades elementares da sua linguagem e dos enunciados
institucionais em que ela se exprime e atualiza, relevam, portanto, de uma pragmática
que se representa nos filmes e na natureza performativa dos seus enunciados. A
profundidade de campo da imagem do cinema não esbarra na Natureza, nem na
intencionalidade da mise en scène, nem sequer nos modos e nas dificuldades técnicas
de conjugação ótica do mundo, mas no contorno e nos limites de uma palavra
institucional e no efeito-território que ela produz; o campo cinematográfico – a porção
de espaço contido pelo enquadramento da câmara – não é, por isso, apenas imagético;
possui uma substância política” 164

Construindo ficções visíveis e paisagens, o cinema apropria-se de modo


particular do espaço e do tempo através das texturas de cenário, montagem, luz, som e
edição. Portanto, a paisagem, como uma escrita do imaginário e da memória social,
integra o cinema no seu movimento permanente de recriação. No entanto, o cinema ao
criar diferentes realidades torna-se num potente intermediário na construção da própria
paisagem. O cinema torna-se assim num arquivo que reúne não somente um vasto
repertório de documentação sobre o espaço paisagístico, quanto sobre as mudanças nas
conceções da paisagem no imaginário coletivo, uma vez que esse também entende as
alterações constantes na paisagem.

Espaços, movimentos, cores, formas, eventos, relações, vidas são registados pelo
olhar da câmera cinematográfica e inscrevem uma cartografia dos lugares através da
captura /recriação de suas imagens. O cinema é uma fábrica de arquivos onde as
representações do espaço social e da paisagem ganham abrigo, revelando-nos o
imaginário social de um período e os usos sociais que engendram as topografias

164
In GRILO, João Mário, A Ordem no Cinema: Vozes e palavras de ordem no estabelecimento do
cinema em Hollywood. Tese de Doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1993. P. 4-5.

240
geográficas. O cinema também se constitui como um espaço narrativo, ou seja, aquele
que se institui através de um jogo de relações entre significantes (imagens) e
significados (conteúdos) e expõe uma linguagem, como um índice que estabelece vias
diferenciadas de visão do espaço das representações das várias paisagens.

O espaço narrativo potencializa o nosso imaginário e traz à luz uma matéria


inteligível através da qual podemos construir os nossos objetos de leitura como unidades
165
e operadores significantes. Relembrando Merleau-Ponty (1908/1961) a linguagem
cinematográfica desabrocha num plano de leitura, cria um mundo e pinta um futuro.

Numa coexistência de mais de um século já atribuído entre o cinema e a


paisagem, firmou-se um conjunto imprevisto de conexões materiais e simbólicas. Esse
conjunto de relações desenvolveu uma textura densa de permutações de signos, fazendo
da paisagem e da linguagem cinematográfica espaços de representação que se
interrogam e se usam reciprocamente.

E, se considerarmos que a representação é mais do que uma mera duplicação


mimética do real, nela o pensamento tem lugar privilegiado para formular o sentido do
representado e indagar os propósitos da sua existência. Assim a arte cinematográfica
consagra um caminho de reconhecimento do mundo, da vida, da memória e dos sonhos
que pulsam das/nas várias paisagens.

Como escrevemos na Introdução desta tese, na contemporaneidade a paisagem


assume múltiplas formas e variadas interpretações e já não é possível representar uma
paisagem inocente, como no séc. XIX, numa sociedade alienada, cujas fantasias
políticas se lhe colaram, se apoderam dela, refizeram-na, adaptaram-na às suas
necessidades.

E a paisagem do futuro onde está? Há quem diga que está no cinema, nos filmes
de ficção científica, de conquista do espaço, dos céus, porque esse é o espaço que ainda
não foi conquistado, marcado politicamente...será isso algo de novo?
É que a “modernidade” se abriu com a captação dos céus, presentes já num

In MAURICE, Merleau-Ponty Le Visible et l’invisible, suivi de notes de travail, Edited by Claude


165

Lefort, Paris: Gallimard, 1964.

241
Turner ou num Constable. Ruskin havia já notado que o que distinguia a paisagem
“moderna” era a sua «nebulosidade». Por isso, a representação do céu, símbolo do
infinito e do efémero, em eterna transformação (ideias modernas), era a reação à
estabilidade, à permanência, à claridade da pintura até então.

Como nos diz Damisch (1928)166, a observação do céu e dos seus efeitos
atmosféricos conheceu na Europa desses tempos um renovado interesse desde os
estudos de Luke Howard - autor de um ensaio de classificação científica das nuvens, em
1803 -, à poesia de Goethe e Shelley e à música de Wagner, que buscava o infinito.
Cézanne, ao dar mais importância à tela enquanto texto do que ao texto da natureza,
levava à libertação da tela de qualquer «nebulosidade»; facto que permitiria que o
infinito se expressasse na tela branca (1918) de Malevich.

Portanto a pintura já havia procurado o infinito e dado, de certa forma, a


resposta. As paisagens contemporâneas de ficção científica, as virtuais, as manipuláveis
(de que os meios de comunicação, os poderes políticos e os poderes económicos são os
principais promotores) podem questionar a ideia de humanismo e, consequentemente, a
própria ideia de democracia, mas isso já é uma outra análise.

Este capítulo apresenta numerosos desafios conceptuais, estruturais e


metodológicos e cada subcapítulo deste capítulo começa na mesma junção: ponto de
encontro dos discursos de representação cinematográfica, da estética, das técnicas, das
tecnologias de cinema e das preocupações e expressões de cineastas proeminentes.

Cada argumento e análise retiram (e contribuem para) áreas existentes neste


território de cultura visual, mas também engloba, sintetiza os seus antecedentes e as
influências, em virtude desta intenção maior de uma tese: reconhecer, estimular e
integrar novas teorias da paisagem no cinema.

O mapeamento realizado neste capítulo como um todo preenche os requisitos


cartográficos de medição quantitativa e qualitativa: ele seleciona e destaca o
significante, o proeminente e o representante, mas ele também se esforça para delinear
as propriedades essenciais e inatas de cada exemplo e procura o historicamente,
166
In DAMISCH, Hubert, Théorie du nuage: pour une histoire de la peinture, Paris, Seuil, 1972.

242
socialmente e culturalmente significativo dentro dele.

As ideias contribuidoras para este capítulo não podem ser chamadas de


“navegadoras ou exploradoras” de si mesmas. Existentes como ideias dos territórios
cinematográficos, que descrevemos aqui, são vistas mais corretamente como
desbravadoras ou guias, que possuem um conhecimento único e experiência dos vários
cinemas nacionais que percorre este capítulo. Como pensadores, atuámos em remover
os adicionais, mais como mapa-fabricantes destas terras visuais, que são habilmente
vistoriados por outras análises teóricas.

A partir de uma base de princípios do século XIX, de contextos e suportes para a


representação da paisagem, que nos leva através de uma consideração do trabalho dos
criadores, cujo enquadramento e transmutação das paisagens foi considerável para os
fabricantes e do público de cinema cuja interação com essas novas representações
cinematográficas da paisagem, que mudaram a relação entre a humanidade e a paisagem
tão significativamente, resulta um capítulo que define a sua visão sobre a natureza da
relação do cinema com a fisicalidade do nosso mundo.

Este capítulo final leva-nos para um local de encaixe para a conclusão desta tese,
ao reconhecer nos seus exemplos, as paisagens cinematográficas aculturadas,
convencionadas do cinema moderno e contemporâneo, através de uma cultura do olhar.

No final, com uma paisagem cinematográfica inequivocamente construída,


determinada por fórmulas e culturalmente incorporada de codificação e de
descodificação, nela destacamos a complexidade, a concordância, a pertinência e a
abrangência da paisagem cinematográfica mesmo que reconhecemos a sua fabricação, a
sua eloquência controlada, mapeada e o seu caracter eternamente onírico e fabricador de
sonhos.

243
3.2 O Cinema é Paisagem: Cartografias

244
As fotografias não são feitas à mão; elas são fabricadas. E o que é fabricado é uma
imagem do mundo.167

Todos os mapas envolvem histórias, onde se organiza tanto uma narrativa como
um discurso. Todos os mapas envolvem seleção, inclusão, omissão, observação e, por
vezes, invenção. Os mapas são baseados na utilização de técnicas específicas e,
portanto, tecnologias específicas. A geografia de oito volumes de Ptolemeu168 mostrou a
terra como plana e em forma de disco. A exploração medieval ofereceu exibições
alternativas de onde e como, terra e mar, montanhas e vales, podiam ser retratados e
levantaram questões sobre a noção de localização, o lugar do indivíduo, em ambos os
mundos natural e construído. O globo terrestre na mais antiga forma sobrevivente, uma
representação da terra na sua verdadeira forma esférica, foi concluído pelo geógrafo
169
alemão Martin Behaim (1459/1507) em 1492, e bem pode ter diretamente
influenciado Cristóvão Columbo e os descobridores Portugueses no potencial das suas
explorações.

Os esforços europeus para descobrir o que se tornou conhecido como o “novo


mundo” trouxeram questões sobre as novas técnicas de cartografia. Os mapas existem
no tempo, e eles levantam questões que são, igualmente, espaciais e temporais. Eles têm
uma forma e sugerem uma ordem. Os mapas podem ser o produto de um indivíduo, de
muitos indivíduos, trabalhando em conjunto ou sequencialmente, ao longo do tempo.
Desta forma, o mapeamento é análogo ao ambiente cinematográfico, onde o esforço

167
In CAVELL, Stanley, The World Viewed, enlarged Ed. (London: Harvard University Press, 1979),
p.20.
168
A sua obra mais extensa é "Geographia" que, em oito volumes, contém todo o conhecimento
geográfico greco-romano. Esta inclui coordenadas de latitude e longitude para os lugares mais
importantes. Naturalmente, os dados da época tinham bastantes erros e o mapa que está apresentado está
bastante deformado, sobretudo nas zonas exteriores ao Império Romano. Ptolomeu inventou a projeção
cônica equidistante meridiana, na qual distâncias ao longo dos meridianos e ao longo de um paralelo
central são representadas numa escala constante, os paralelos são representados como círculos e os
meridianos como rectas.
169
Em colaboração com o pintor Georg Albrecht Glockenthon, Martin Behaim construiu, entre 1491 e
1493, aquando da sua permanência em Nuremberga vindo do Faial, um dos primeiros globos terrestres
conhecidos (que ele chamou "Erdapfel", ou seja, "maçã do mundo"), que o tornou famoso. O original está
hoje em exibição no Germanisches Nationalmuseum, de Nuremberga.
O Globo de Behaim, também conhecido como Globo de Nuremberga, seguiu a ideia de um globo
construído por volta de 1475 para o papa Sisto IV, mas melhorando a representação e incluindo os
meridianos e a linha do Equador. Apesar da fama, o Globo de Behaim tem numerosos erros geográficos,
mesmo quando analisado à luz dos conhecimentos da época. Ainda não tem o continente americano,
apesar de na altura já ser conhecida boa parte da costa oriental da América do Norte (a Terra dos
Bacalhaus).

245
colectivo e a visão singular, muitas vezes se encontram. O papel do realizador de
cinema poderia ser considerado como semelhante à função do geógrafo de mapas,
enquanto o papel dos atores e da equipa de filmagem pode, de fato, ser comparado com
o papel da tripulação de navios ou com uma equipa de montanhismo.

Ambos, os mapas e os filmes, assumem e tentam posicionar as audiências,


ideologicamente, bem como geograficamente. A interação entre os cineastas, os
artífices de mapas e o seu público pode ser semelhante a uma peregrinação
compartilhada, em que o indivíduo, grupo ou uma cultura, move-se através de uma
paisagem familiar ou recém-descoberta. Esta relação com a paisagem, temporal e
espacial, como é, pode até constituir a base de um rito de passagem, em que a
profundidade ou a amplitude do que é conhecido é reforçada ou reconhecida com aquilo
que era até então desconhecido. Paisagem então – numa aplicação particularmente útil
do termo – oferece um recetáculo cartográfico para auxiliar a aquisição cultural da mais
humana compreensão.

3.2.1 “Take One”: Definição de paisagem

A paisagem envolve o isolamento de uma certa medida espacial e de um


determinado período temporal. Ou seja, todas as noções de paisagem são produzidas
pela interpretação humana que, simplesmente devido à fisiologia humana ou devido à
obliquidade política ou cultural, é seletiva. Os subsequentes tratamentos estéticos da
paisagem, seja em pintura, fotografia ou filme, envolvem mais seleção, interpretação e
omissão, seja por um indivíduo ou por um grupo. As paisagens podem ser
reconfortantes ou assustadoras, desafiadoras ou tranquilizadoras como já observamos e
descrevemos no segundo capitulo desta tese.

As paisagens “recém-descobertas” nas viagens pelo mundo dos descobridores


europeus nos séculos XV ao XVIII muitas vezes trouxeram relatos em textos altamente
emotivos, com os descobridores a descreverem uma experiência pessoal, bem como
científica. Mas paisagens não são sempre descobertas, elas também podem ser criadas,
reproduzidas, ou até mesmo serem inventadas. As paisagens criadas em grande parte no
imaginário dos pintores ou dos cineastas muitas vezes iciam respostas semelhantes às

246
paisagens descobertas ou gravadas do mundo real. Paisagens, portanto, não são apenas
seletivas, mas nunca são neutras na intenção ou receção. Paisagens retratadas são,
muitas vezes, simbólicas e frequentemente contribuem para a formação social, que
refletem sobre as sociedades humanas e as normas sociais onde se inserem. Neste
sentido a paisagem pode ser encarada como um espaço ilusionista, em que as
características inventadas são desenvolvidas e a topografia é secundária para a sua
evocação, onde a relação entre o indivíduo, ou o coletivo, e a sua representação é ainda
mais acentuada.

Uma definição de paisagem, portanto, precisa reconhecer diferentes tipos de


ambientes, do rural para o urbano, do macro ambiente da ecologia ao micro-ambiente da
habitação humana. Representações de paisagens podem incorporar as manifestações da
modernidade, isto é, inteiramente compostas de acontecimentos da natureza. Enquanto é
possível reduzir as definições de paisagem com base na intervenção humana, na sua
ausência, na presença de recursos naturais, ou através, do impacto das suas
características notáveis. O ponto-chave sobre paisagens é que elas são compostas de
muitos elementos e estes elementos interagem para criar a nossa conceção global do
mundo.

Como um mapa, a paisagem cinematográfica é a instituição da ordem sobre os


elementos da paisagem, recolhendo a distinção entre o construído e o descoberto. Como
um mapa, a paisagem cinematográfica tem envolvido tecnologias e técnicas que têm
evoluído. Através do século XX, a associação de novas tecnologias do cinema com a
formação de paisagens cinematográficas, procedeu para melhorar as formas em que a
comunicação e a interpretação da paisagem foram compartilhadas.
O Cinema, como a forma de arte mais bem-sucedida do século XX, trabalhou de
maneira semelhante ao Globo produzido por Behaim no século XV, onde foram
projetadas e divulgadas imagens icónicas e ideias centrais sobre a paisagem,
distinguindo-as para nós, espectadores de uma tela cinematográfica, para descobrirmos
melhor as nossas noções de paisagem.

O Cinema atingiu um ponto-chave do seu desenvolvimento na última parte do


século XX com a chegada das novas tecnologias do cinema digital. Tecnologias digitais,
progredindo rapidamente na frente doméstica como o hardware, como o Apple Mac, o

247
primeiro computador doméstico prontamente acessível, aparecem na década de 1970
depois, softwares como o CD-ROM, chegaram no início de 1980, oferecendo
armazenamento de dados conveniente e o DVD da década de 1990, com as suas
plataformas suplementares de informação fílmica.

A chegada das tecnologias digitais ao cinema coincidiu com uma reorientação da


nossa compreensão do que constitui uma nação, ou estado-nação, com uma reavaliação
da ideia de comunidade, correspondente ao surgimento de comunidades fundadas no
world wide web, facilitado pela internet e com a crescente importância do global,
apoiada por esta comunicação digitalmente melhorada. No entanto, conceitos e ideias
que atualmente informam a nossa compreensão do cinema e das paisagens
cinematográficas, são aqueles conceitos e ideias, formadas na era analógica do século
XX.

No futuro, aqueles que nasceram na era digital emergente podem ter uma
resposta diferente a paisagens cinematográficas, fundadas sobre a coerência da imagem
e som, talvez, em vez de sobre a correspondência do filme para com um sentido da
forma preexistente, ou verossimilhança conectada com experiência. Mas aqui, no fim da
era analógica, as paisagens cinematográficas relacionam-se com a natureza análoga da
representação, e esta representação é produzida pela seleção, construção ou de uma
mistura destas, e estas paisagens têm graus correspondentes de autenticidade e de
originalidade.

3.2.2 “Framing” a paisagem

A Película cinematográfica, é composta por fotogramas170 de referência, bem


como de fotogramas de composição, e em grande parte apresenta a sua arte como uma
170
Denomina-se fotograma cada das imagens impressas quimicamente no filme cinematográfico.
Fotografados por uma câmara a uma cadência constante (desde 1929 padronizada em 24 por segundo) e
depois projetados no mesmo ritmo, em registo e sobre uma tela, os fotogramas produzem no espectador a
ilusão de movimento. Isto deve-se à incapacidade do cérebro humano de processar separadamente as
imagens formadas na retina e transmitidas pelo nervo ótico, quando percebidas sequencialmente acima de
uma determinada velocidade. Esta persistência da visão faz com que nossa perceção misture as imagens
de forma contínua, dando a sensação de movimento natural.
Como imagem individual de um filme, o fotograma corresponde ao “frame” do vídeo, e ambos são
genericamente chamados de 'quadros' de um produto audiovisual. A origem do fotograma remonta às
origens da própria fotografia, quando o alemão Johann Heinrich Schulze em 1724 descobriu a
sensibilidade dos sais de prata à luz.

248
escolha de sequências. Representações de paisagens, como combinações complexas de
encontros visuais ou de características escolhidas, enfatizam a incrível variedade de
possíveis inter-relações que compõem o mundo.

As paisagens cinematográficas são ainda mais complicadas pela leitura da


observação do movimento, pois dependem do fotograma para sugerir uma leitura e
limitar o alcance das interpretações. Embora possa ser possível visualizar um filme em
que a linha entre um fotograma e o seguinte pode ser vista como totalmente contínua, os
fotogramas dão-nos a aparência de estarem desprovidos de limites, e as tecnologias do
cinema têm sido utilizadas para fornecer imagens encapsuladas que, ao invés de limitar
a perceção humana, têm a capacidade de melhorá-la.

Ou seja, a importância do fotograma cinematográfico é a sua capacidade de


tornar possível uma interpretação e uma compreensão conferida pela forma. Essa
estrutura formal, relacionada com o contexto histórico da arte pictórica, é um
dispositivo que permite, tanto quanto as estruturas formais de certos tipos de poesia, que
ensinam o poeta a melhor traçar o seu argumento poético.

Como Ross Gibson171 assinala: “A câmara não é uma máquina projetada para
expressar a sublimidade – baseada num padrão panteísta romântico ou pós-
modernista, o tipo de um sistema global, que antes de uma união centralizada, começa
a se desintegrar. A câmara não expressa uma "inexpressividade", muito pelo contrário.
Ela é projetada para não deformar os códigos da perspetiva que foram instalados na
prática da arte durante o renascimento.”172
O papel do enquadramento no cinema, usando a câmara para gravar ou
selecionar paisagens, é diferente, no entanto, do papel da tela na pintura. Dentro da
“moldura” cinematográfica o movimento, geralmente, é um dos indicadores essenciais
do significado. O Frame, mais frequentemente, é um contributo para o movimento (isto

171
Ross Gibson (1956) é Professor da Creative & Cultural Research na Universidade de Canberra. Nessa
função, ele trabalha de forma colaborativa na produção de livros, filmes e obras de arte. O autor
supervisiona estudantes de pós-graduação e durante o início de 2000, foi diretor executivo da criação para
o estabelecimento do Centro Australiano para a imagem em movimento na Federation Square, em
Melbourne. Antes disso, enquanto trabalhava na Universidade de Tecnologia de Sydney, ele foi Produtor
Consultor Sénior durante o desenvolvimento e os primeiros anos do Museu de Sydney. Nos últimos doze
anos, ele desempenha funções de Professor na UTS e na Universidade de Sydney.
172
In GIBSON, Ross, Camera natura: Landscape in Australia feature films, framework 22/23 (1983), 47-
51. (50).

249
é, ele é conhecido por ser uma parte de um continuum); muitas vezes contém o
movimento, mas sugere que este movimento vai além de seus limites.

Dentro do fotograma, o movimento da câmara pode ocorrer, através da


utilização de uma focagem profunda ou menos profunda; O Plano, em cinema, é um
fragmento de filme rodado ininterruptamente, ou que parece ter sido rodado sem
interrupção. É, portanto, um conjunto ordenado de fotogramas ou imagens fixas,
limitado espacialmente por um enquadramento (que pode ser fixo ou móvel) e
temporalmente por uma duração. Os fotogramas, planos, cenas e sequências constituem
uma hierarquia de unidades do produto audiovisual, tanto para o planeamento e
realização quanto para a receção e análise do seu significado.

No momento da filmagem, o plano inicia-se sempre que a câmara é ligada para a


captação de imagens e termina quando ela é desligada. Neste sentido, a noção de plano
confunde-se muitas vezes com a da filmagem. No entanto, no cinema ficcional, um
mesmo trecho narrativo pode ser encenado e filmado várias vezes de um mesmo ponto
de vista, constituindo várias filmagens de um mesmo plano. Portanto, na filmagem, cada
tomada é uma tentativa de rodar um plano.

Dentro de qualquer fotograma ou panorâmica geral de qualquer paisagem


cinematográfica, não só o movimento, mas a cor e a forma possuem um papel central. A
cor e a forma no cinema têm precedentes naturais. Precisamos de olhar para os reinos
animal ou vegetal para reconhecer o papel da cor e da forma em revelações de perigo ou
de segurança, na formação de padrões de comportamento ou nos ciclos de atividade
sazonal. O mundo natural, informa os nossos próprios sentidos, instintivos e práticos, e
tem minimizado a nossa natureza construtiva, sugerindo-nos modos em que pode
compor e instrumentar a nossa arte visual.

Dada a qualidade expansiva do cinema, a gama de potenciais tonalidades e


configurações alternativas é considerável, e o papel dos cineastas ou colaboradores
criativos numa equipa de cinema, é reforçado. Em muitos casos, as paisagens
cinematográficas envolvem um grupo ou uma visão compartilhada; em alguns casos,
eles são o produto de um forte senso individual, no entanto, relacionado com uma
história cultural ou social. No entanto, em todos os casos clássicos ou em configurações

250
alternativas, assentam ambos em convenções comuns de referência.

Estes funcionam como memorias coletivas, recordando-nos a nossa


compreensão do mundo natural e podem descrever as nossas associações intuitivas que,
em muitos aspetos, são anteriores à nossa linguagem oral. O cinema, portanto, e a
“língua” das paisagens cinematográficas, são retratos que conectam os cineastas e os
diversos públicos com um senso inato e primitivo do eu e do mundo.

As paisagens cinematográficas não são simplesmente instantâneas, rementem


para os nossos “lugares” e para uma categoria geral, que as definem, antes da sua
representação. Este auxiliar mnemónico, fundado sobre a complexidade de um
enquadramento e de uma justaposição de enquadramentos, onde o lugar dos elementos
da composição cinematográfica na nossa compreensão humana é inata, é atemporal e
não necessariamente corresponde ao tempo do dia-a-dia, que é sujeita a vida humana.

Pelo contrário, da forma discutida por Henri Bergson173, desta vez é real ou pura
e estimula as memórias que se entrelaçam com as ações de superfície da existência
quotidiana. As sugestões de Bergson tem uma especial referência aqui porque, na
análise das paisagens cinematográficas, é possível observarmos um conjunto de
características de referenciais que são tanto metafísicos como físicos. Bergson escreveu
uma vez:
“Tudo, então, deve acontecer como se uma memória independente reunisse as
imagens com o que elas sucessivamente ocorrem ao longo do tempo; E como se o nosso
corpo, juntamente com o seu contorno, nunca foi mais do que uma de entre estas
imagens, o último é o que obtemos em qualquer movimento fazendo uma seção
instantânea no fluxo geral do devir.".174

Por paisagens cinematográficas, enquanto obviamente parte de um continuum e


igualmente compostas por frames, podem ser consideradas também condutores de
memórias e de uma forma de tempo, que transcende o próprio cinema.

173
Henri Bergson (1859/1941) foi um filósofo e diplomata francês. Conhecido principalmente pelos seus
livros Ensaios sobre os dados imediatos da consciência, Matéria e Memória, A evolução criadora e As
duas fontes da moral e da religião, a sua obra é de grande atualidade e tem sido estudada em diferentes
disciplinas como o cinema, literatura, neuropsicologia, bioética, entre outras. Recebeu o Nobel de
Literatura de 1927.
174
In BERGSON, Henri Matéria e Memória. Londres, 1991, p.77.

251
Seria incorreto, no entanto, sugerir que as paisagens cinematográficas são
compostas apenas de imagens e o de um “arranjo cuidadoso”, de uma coleção, ou de
uma construção dessas imagens. E os sons da paisagem? Som e música são partes
integrantes das paisagens cinematográficas. Se estes funcionam como reforços
naturalistas da imagem, ou se eles são complementares, a sua contribuição é
considerável. Os ambientes acústicos no cinema revelam um conjunto de relações com
o som, bem como oferecem uma variedade de associações para a narrativa
cinematográfica, para as respostas do público bem como para as possibilidades de
composição disponíveis para os diretores e os editores.

Como o movimento, a cor ou a forma, as paisagens cinematográficas podem


usar o som no filme como um atributo, mas não como um elemento discreto, concreto;
em vez disso, o som de cinema é experiente em relação ao que vemos na tela; o que
ouvimos, adiciona, pergunta, progride, estende, conclui ou desafia a ação, a imagem, o
movimento, a cor ou a forma.
O som, ou a música, pode num primeiro plano – fazer uma sinalização próxima
da ação ou do evento, sugerindo traços de caráter ou de potenciais narrativas. Um
momento específico de movimento, por exemplo, pode ser indicado na paisagem
cinematográfica, tanto através da incorporação de som e de música, como pelo uso de
certo tipo de vestuário ou de uma configuração narrativa. Também o som ou em
especial a música, salienta a natureza performativa do filme, e os aspetos teatrais da
paisagem cinematográfica podem ser aumentados pelo uso de som e/ou da música.

Considerando que o espaço visual é quase exclusivamente sólido ou opaco, o


espaço cinematográfico pode ser transparente. Curiosamente, se invertermos as ideias
desta relação em termos do visual e do auditivo no cinema, poderíamos ver o filme
como um mapa transparente com o seu próprio som.
Os mapas representam a tentativa para encarnar o físico. Não mais objetos em si,
mas pelo contrário são a tela em que a representação encontra a sua forma. O som e a
música, como com a imagem, têm uma perspetiva. Eles podem adicionar uma
profundidade mimética de um frame, ou a sequência de um filme. Eles também podem
ser puramente evocativos, e este é frequentemente o caso com a música nos filmes. Os
aspetos sensoriais das paisagens cinematográficas notavelmente são avaliados na

252
diferenciação entre o som, a música e de fato o barulho. O barulho, que tende a denotar
o som desagradável ou o inesperado, interrompe uma paisagem cinematográfica,
sugerindo uma perturbação para o equilíbrio da imagem ou de uma banda sonora.

O enquadramento de uma paisagem cinematográfica envolve uma complexa


combinação de características encontradas ou escolhidas – um pouco visuais, alguns
sonoros, alguns relacionados com o movimento, alguns com base na compreensão inata.
A variedade de inter-relações entre esses recursos é infinita e depende não só na
criatividade individual ou interpretação individual, mas também do grupo ou da
compreensão cultural. A paisagem cinematográfica também é formal e concetual e a
leitura das paisagens cinematográficas endereça-nos para ser cúmplices com os
cineastas e os espectadores do cinema.

3.2.3 Tipologia de perceções da paisagem

Quando se considera as paisagens cinematográficas, não temos que


necessariamente construir classificações doutrinárias, mas invadimos “reinos” de
acordo. Então, por exemplo, o acordo sobre o que constitui espaço interior ou exterior,
acordo sobre a relação entre o primeiro plano e o plano de fundo, acordo sobre como
nós percebemos a altura, largura, comprimento e a sua relevância para os conceitos de
estado, distância, duração, longevidade e beleza do mesmo.
O cinema, sendo um conjunto complexo de movimento, cor, forma e som,
precisa de tais acordos para permitir que a sua ordenação tenha um significado coerente
ou relativamente consensual. Isso pode incluir a referência a uma localidade geográfica,
a uma cultura ou um período histórico.

Essas ações podem naturalmente ser manipuladas: assumir o papel de fantasia


nalgum cinema de ficção científica, referenciando um mundo alienígena e, como é no
caso de Star Wars (1977) ou de Blade Runner (1982), fornecendo conscientemente uma
alusão anacrônica aos períodos anteriores da história da narrativa. As tipologias
pessoais, bem como as públicas, que estão relacionadas com as paisagens
cinematográficas auxiliam em transmitir o assunto ao espectador. O tema por variável
usa de figuras reconhecíveis. O filme pode ser metafórico nas suas representações, bem

253
como metonímico.

A maioria dos filmes é metonímico na natureza e é baseado numa escala


identificável das denominações. Então, por exemplo, numa paisagem cinematográfica,
em que é retratado um arranha-céus, temos a transferência da ideia de uma cidade, das
ideias de negócios e de comércio, das ideias do capitalismo, da riqueza e das ideias de
ambição e de aspiração. Alternadamente, na definição de uma cabana de agricultores
caindo aos pedaços, talvez do século XIX, temos a transferência da ideia do trabalho, da
pecuária, da existência pré-industrial ou agrária. Paisagens metonímicas não sugerem a
sua conclusão; elas indicam mais conceitos de relevância que elas encapsulam, ao invés
de sugerirem a inclusão. Mas nem todos os filmes são metonímicos.

A paisagem cinematográfica metafórica é a paisagem da sugestão. A metáfora


implica a transferência para uma “planície” alternativa da referência. O objetivo da
metáfora é aprofundar a nossa compreensão de um tema ou de um subtema e, como com
o seu uso no cinema, como na literatura, a metáfora permite à audiência prorrogar a sua
relação com o texto ou com a imagem.

Em O dia depois de amanhã (2004), um blockbuster onde Jack Halls (Dennis


Quaid) através de uma paisagem congelada é o representante do seu compromisso
renovado com o papel parental, em relação ao seu filho Sam (Jake Gyllenhaal).

O dia depois de amanhã usa a história apócrifa facilmente identificável das


alterações climáticas para investigar temas mais amplos de responsabilidade,
compromisso, liderança, crença e fé.

254
Fig. 99. Frame, The Day After Tomorrow, Roland Emmerich. 2004.

Fig.100. Frame, The Day After Tomorrow, Roland Emmerich. 2004.

255
As paisagens cinematográficas do filme alternam entre a paisagem ficcionada de
Nova Iorque, enquanto ao mesmo tempo, referindo-se a uma Nova Iorque que existe na
sua forma antiga, reconhecível por todos.
O filme apresenta tanto uma Nova Iorque real, um local transformado, mas
reconhecível para os protagonistas e uma Nova Iorque temática, um lugar de reunião
dos valores e de “interpretações”.
Ao fazê-lo, a natureza metafórica das paisagens no filme é constantemente
renovada e a conclusão da descongelação faz recuar o público para a questão de como
evitar um cenário de catástrofe climático, mas também como renovar o seu sentido de
responsabilidade em questões sociais bem como além daquelas referidas no filme.

Nas paisagens cinematográficas, o desenho do real não é só sobre o literal, mas


também no metonímico e metafórico, que podem articular o inconsciente, bem como o
consciente. As paisagens cinematográficas, portanto, podem ser paisagens da mente,
oferecendo representações deslocadas pelos desejos e valores, para que estes possam ser
expressos pelos cineastas e compartilhados pelo público.
Tal significação e as suas substituições que operam, apoiaram-se na exploração
destes espaços de forma não menos significativa do que a verificada na exploração
humana do espaço geográfico real. Paisagens cinematográficas, portanto, são ambas
materiais e mediadas. São lugares de descoberta.

3.2.4 Paisagens de mapeamento cinematográficas

As paisagens de “mapeamento” envolvem medição quantitativa e qualitativa. A


medida quantitativa refere-se à seleção de pontos no mapa que tem significado – estes
podem muitas vezes ser determinados, no mapeamento, pela frequência de uso ou
referência, pela sua proeminência ou pela extensão da sua particularidade. Dados
quantitativos são uma medida de magnitude, expressado em grande parte em termos
físicos, mas também se podem relacionar às características pessoais. Medida
quantitativa frequentemente usa as correspondências ou semelhanças ao sugerir regras
de análise a grupos particulares. No entanto, mapeamento também envolve medição
qualitativa.

256
Análise qualitativa enfatiza o significado e discute características inerentes ou
distintivas. Medição qualitativa não é necessariamente uma prova que é superior ou
mais importante; pelo contrário, medição qualitativa visa distinguir exemplos e
reconhecer propriedades inatas. Medição aqui refere-se aos atributos essenciais, e as
origens de medição qualitativa surgem a partir de nossa experiência dos fenômenos
naturais. Empatia desempenha um papel na medição qualitativa, e aqueles envolvidos
em tal medição são eles próprios sujeitos, posicionados dentro de um contexto histórico
e sociocultural.

No caso do mapeamento de paisagens cinematográficas no início do século XXI,


as teorias estão localizadas em análogo à história do cinema; estão envolvidas num
sentido cada vez mais universal, mas ainda nacionalizado da produção cinematográfica,
e elas estão cientes de que, embora não nasceram necessariamente, o colapso das
fronteiras entre os vários media, na convergência de uma noção de velho mundo do
cinema com um ideal de um mundo novo que nasce nessa multivalência dos media.

O Mapeamento não é unicamente uma ocupação da matemática. Enquanto


paisagens de mapeamento em termos de definição de dimensões e de localizar com
precisão o espaço, as características cinematográficas são análogas. O sentido
contemporâneo de um conhecimento especializado de mais de um século de evolução
fílmica e um reconhecimento da natureza convincente de navegar por uma paisagem
cada vez mais dinâmica entre a produção e o emprego do cinema num mundo
contemporâneo em que desapareceu o limite da divulgação do cinema como media.

3.2.5 Nação e estética

Uma configuração do cinema, na sua gama de localizações, de imagens


capturadas, pode aparecer como o elemento apenas inequívoco, genuíno, incorporado
num espetáculo discreto da engenharia moderna. Encontramos paisagens
cinematográficas, naturais e urbanas, físicas e sociais, com existências independentes
das suas representações e de usos em imagens cinematográficas. A sua persistência no
filme incorpora um realismo que desmente a colocação artificial e a inevitável
artificialidade das performances humanas num primeiro plano, num foco mais nítido.

257
Não se pode afirmar com confiança que uma paisagem cinematográfica
observada aparece puramente como um registo realista, quando está tão sujeita como
qualquer outro elemento cinematográfico para a manipulação estética, para o
aperfeiçoamento tecnológico e para uma doutrinação ideológica. A sua presença
proeminente e articulada chama a atenção para si mesma como uma inclusão
consciente, um portador de significados relevantes para o refinamento de uma estética
visual, um contato cultural comum entre o cineasta e o público e/ou a manutenção,
questionando e disseminando uma identidade nacional.

As paisagens cinematográficas podem também ser construídas – ou seja,


formadas a partir do isolamento consciente, intencional e focando a ênfase de detalhes
topográficos com a aplicação de técnicas específicas, e tecnologias (escolhas de
perspetivas e lentes, edição, filtros óticos, imagem melhorada gerada por computador).
A influência do realismo das imagens em movimento e das propriedades formais e
ideológicas do aparato cinematográfico em si, podem trair ou obscurecer este trabalho
de construção.
O que está contido na tela pode assumir o status do real simplesmente pela sua
presença no seu interior. No entanto, a autenticidade da paisagem cinematográfica não é
indiscutível: a reflexão da apreciação do que está selecionado para a reprodução alerta-
nos para a presença das paisagens como um papel, como outro elemento performativo,
em análises contemporâneas de realismo cinematográfico sobre as tecnologias dos
media do cinema.

A citação de Cavell no início deste texto incorpora e reconhece este paradoxo


inerente ao meio: a certeza aparente realista da reprodução mecânica, sem
intermediação no cinema de tudo o que cai dentro dos limites do frame e da verdade
interpretativa da seleção inevitavelmente parcial, da construção e da inclinação de uma
imagem, servindo propósitos implícitos ou explícitos.
Também a chave dentro do reconhecimento da seleção é a identificação de um
indivíduo que pode ser creditado com a criação artística. Esse isolamento do autor do
filme como cartógrafo solitário para a paisagem cinematográfica pode ser
particularmente prevalente e tentador dentro de contextos de cinema nacional, no qual a
aura da arte é cooptada por motivações do valor nacional, ideológico e estético.

258
Por exemplo o cinema britânico das décadas de 1950 e 1960 oscila entre o
documentário que apresenta uma realidade influenciada pela vida real, séria, realista,
com reflexões das configurações da nova classe trabalhadora, e uma nova realidade
social colorida, reconhecível das representações da swinging London.

Embora zelosamente comprometido com o uso de pessoas locais reais,


inalteradas e puras, o documentarista cinematográfico Paul Rotha175 admitiu que
criação reside não no arranjo da configuração mas na interpretação dela.176 Poucas
paisagens cinematográficas são tão eloquentes como a Roma de Ladri di Biciclette
(Vittorio De Sica, 1948)177: as imagens da capital italiana são as mais ilustrativas da
privação social e da alienação urbana do ambiente pós-guerra de que o protagonista as
experimenta em primeira mão.

Muito poucos foram tão ambivalentes como Jacques Tatis em Playtime (1967)178, na
fusão de humor e pathos, com gags físicos complexos, da loucura humana, de um
nostálgico irrisório pessimismo presente, na representação de uma identidade francesa
tradicional e de uma reconhecível icónica Paris, que se perde dentro de uma
reconstrução clínica modernista.179

175
Paul Rotha (1907 - 1984) foi um documentarista britânico cineasta, historiador de cinema e crítico.
176
In ROTHA, Paul Documentary (Londres: Faber, 1936), 187.
177
Vittorio De Sica (1901/1974) foi um dos mais importantes realizadores e atores do cinema italiano e
Europeu. Como ator estreou-se em 1932, no filme Dois Corações Felizes. Como realizador a sua estreia
foi em 1939, com o filme Rosas Escarlates. Em 42 anos de carreira recebeu três Óscares para o melhor
filme estrangeiro: em 1946 por Vítimas da Tormenta, em 1948 por Ladrões de Bicicletas, e em 1971 por
O Jardim dos Finzi-Contini. É considerado o precursor do neorrealismo italiano. Como realizador, além
dos filmes com os quais ganhou o Óscar de melhor filme estrangeiro, Vittorio De Sica também se
destacou pela direção de Umberto D., em 1951; Boccaccio 70, de 1962; Ontem, Hoje e Amanhã, de 1963;
Matrimônio à Italiana, de 1964; e Os Girassóis da Rússia, de 1970.
178
Jacques Tati (1907-1982) foi um famoso realizador francês, ator e argumentista. Ao longo de sua
longa carreira, ele trabalhou como ator de comédia, escritor e diretor. Numa pesquisa conduzida pela
Entertainment Weekly dos realizadores de cinema, Tati foi eleito o maior de 46 de todos os tempos. Com
apenas seis longas-metragens no seu currículo como realizador, ele dirigiu menos filmes do que qualquer
outro realizador nesta lista de 50.
179
In HILLIKER, Lee No Espelho Modernista: Jacques Tati e a paisagem parisiense. The French
Review 76(2) (2002), 318-329.

259
Fig.101. Frame, Bicycle Thieves (Italian: Ladri di biciclette; Vittorio De Sica. 1948.

Fig.102. Frame, Bicycle Thieves (Italian: Ladri di biciclette; Vittorio De Sica. 1948.

260
Fig. 103. Frame, Playtime, Jacques Tati's. 1967.

Fig. 104. Frame, Playtime, Jacques Tati's. 1967.

261
Poucos são tão grandiloquentes como a capital francesa exibida no filme Diva (Jean-
Jacques Beineix, 1982): os seus habitantes participam numa Paris anunciada como um
outro lugar, um item de consumidor, aparentemente inconsciente da ironia das suas
declarações de individualidade através da aquisição e glorificação de itens produzidos
em massa e simulacros, que implicitamente tentam ridicularizar e destruir a
originalidade.

Enquanto o realismo de superfície em La Haine, de 1995180 (Mathieu Kassovitz,


1967) é creditado como exigindo o reconhecimento cultural e político dos subúrbios de
uma Paris combatida (o banlieue), e a descoberta das circunstâncias sociais
contemporâneas no uso extensivo dos espaços compete com uma edição estilizada e
cinematografia dos filmes de ação.181

Também no filme Trás-os-Montes de António Reis (1927/1991) e Margarida


Cordeiro (1938), 1974-76, encontramos esta verdade inegável que o cinema em si
contribuiu para a imaginação e definição de paisagens nacionais.

Este filme é um regresso à terra dos seus autores: Margarida Cordeiro


retornando à sua origem natal e António Reis regressando ao território de O Acto da
Primavera (Manoel de Oliveira, 1963) onde fora assistente do famoso realizador.

Esta jornada de regresso é também a redescoberta do passado de um território


com locais isolados dos poderes centrais e suspensos num tempo arcaico de hábitos
rústicos, cujos traços num registo quase etnográfico – “as rocas de fiar, os teares, o
ferreiro que há 60 anos trabalha a «arte», a água carregada a baldes, as mulheres

180
La Haine, Traduzido em português por O Odio, é um filme francês de 1995 a preto e branco. O filme
aborda o conflito entre a juventude francesa, a polícia em Paris e outros problemas enfrentados na
periferia da grande cidade francesa. Toda a história se passa num período de 24 horas em que os
protagonistas, três jovens franceses, enfrentam a polícia, encontram uma arma perdida e tem que decidir o
que fazer com ela; encontram gangues e skinheads e quando finalmente voltam para casa, deparam-se
com uma surpresa.
181
In VINCENDEAU, Ginette, Designs on the Banlieue: Mathieu Kassovitzs La Haine (1995), in Susan
Hayward e Ginette Vincentia (eds), French Film: Texts and Contexts, 2nded. (Londres: Routledge, 2000),
310-311.

262
Fig.105. Frame, Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro, 1974-76.

Fig. 106. Frame, Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro, 1974-76.

263
parindo sós, dois breves planos de pormenor de olaria, a música e as danças de
pauliteiros, as pontes medievais — compõem uma ideia de civilização em estreita
comunhão com o mundo natural.182”

O cinema em si contribuiu para a conceção e a enunciação de paisagens


nacionais e comunidades locais, fornece algumas das motivações e parâmetros para
papéis nessa reflexão. O poder do cinema na representação da paisagem, seja rural,
metropolitana, industrial, urbana ou suburbana, tem impulsionado ou levou os cineastas
de cada nacionalidade, de um ponto de vista político, alimentar ou alimentarem-se das
definições da identidade nacional e foi visto pelo público de cinema como um dos
elementos mais conspícuos e eloquentes no idioma da cultura cinematográfica do qual
emana.

Com a presença no frame de uma paisagem significativa interpretável, os


produtos dos cinemas nacionais vêm para representar os seus países de origem de
maneiras que são ao mesmo tempo realista, física, tangível, artística, imaginativa e
metafórica. Imagens do cinema da paisagem, portanto, têm tanto para oferecer ao
geógrafo cultural como para o historiador de cinema ou ao crítico de cinema.

Para o reconhecimento das paisagens através da fluidez potencial de um


significado cultural, deve ser adicionado o reconhecimento dos filtros interpretativos
ligados aos modos (curta e documentário de cinema), géneros (o filme de estrada, o
suspense, o filme de terror, o noir) e de auteurs (em todas as suas manifestações
nacionais, industriais e críticas) que transportam as abordagens, leituras e conclusões
contidas nesta reflexão teórica.

182
In AREAL, Leonor, CINEMA PORTUGUÊS - UM PAÍS IMAGINADO, VOL. II. Edições 70, Lisboa,
2011.

264
265
3.3. Entre a configuração espacial e a paisagem no cinema

Em vez de continuar esta análise, examinando filmes onde uma determinada


utilização da paisagem foi utilizada (o seu simbolismo, a sua função, etc.), escolhemos
consultar a própria noção de paisagem cinematográfica. Simplesmente, porque na
cogitação parece-nos que não há nada óbvio sobre paisagem quando se trata de cinema,
pelo menos no sentido de que o termo assume nas artes visuais. Esta última qualificação
é necessária, acrescentaríamos, porque a “paisagem” como temos observado nesta tese
tem muitos significados diferentes, fato que dificulta uma análise mais perspicaz.

À primeira vista pode parecer surpreendente afirmar que paisagem não pode ser
tomada por garantida na Sétima Arte. Afinal de contas, o que vamos fazer com as
geladas extensões em Nanook of the North (Robert Flaherty, 1922)183, com as
montanhas de Bergfilme, de Arnold Fancks,184 da década de 1920, com o mar de Maria
do Mar (1930) de Leitão de Barros ou com as vistas panorâmicas do Monument
Valley,185 nos Westerns de John Ford, se estas imagens não constituem paisagens? Esta
pergunta atinge o cerne da questão, mas estamos “ainda mal equipados” para responder
agora esta questão até analisarmos este assunto e considerar alguns dos vários
significados da palavra paisagem.

183
Nanook of the North (também conhecido como Nanook of the North: uma história de vida e amor no
Ártico real) é um filme/documentário mudo americano/ de 1922 por Robert J. Flaherty, com elementos de
docudrama, num momento em que o conceito de separação de cinema, documentário e drama ainda não
existia.
Na tradição do que viria a ser chamado de” resgate da etnografia”, Flaherty capturado as lutas do homem
Inuk chamado Nanook e da sua família no Ártico canadiano. O filme tem sido considerado incorretamente
o primeiro documentário de longa-metragem. Em 1989, este filme foi um dos primeiros 25 filmes a ser
selecionado para preservação no National Film Registry pela Biblioteca do Congresso Norte Americana
como sendo "culturalmente, historicamente ou esteticamente significativa".
184
Arnold Fanck (1889 - 1974) foi um realizador de cinema alemão e pioneiro do gênero de filmes de
paisagens de montanha. Ele é mais conhecido pelas filmagens nos Alpes que ele capturou em filmes
como A Montanha Sagrada (1926), The white Hell Pitz Palu (1929), Tempestade sobre Mont Blanc
(1930), der weisse Rausch (1931) e SOS Eisberg (1933). Fanck também foi fundamental no lançamento
das carreiras de vários cineastas durante os anos da Weimar na Alemanha, incluindo Leni Riefenstahl,
Luis Trenker, e os cineastas Sepp Allgeier, Richard Angst, Hans Schneeberger, e Walter Riml.
185
Monument Valley é uma região dos Estados Unidos situada na reserva dos índios Navajos em cuja área
se encontra um monumento que marca o ponto de divisas de quatro Estados e é denomimado "As Quatro
Esquinas" que é comum a quatro estados, que são o Utah, Colorado, Novo México e Arizona. Foi muito
usada para as gravações dos filmes Western, particularmente os de John Ford, tendo como ator principal
John Wayne.

266
Fig.107. Frame, Nanook of the North (also known as Nanook of the North: A Story of Life and Love
in the Actual Arctic), Robert J. Flaherty. 1922.

Fig. 108. Frame, Storm over Mont Blanc (German: Stürme über dem Mont Blanc), Arnold Fanck.
1930.

267
Fig. 109. Frame, Maria do Mar, Leitão de Barros. 1930.

A palavra “paisagem”, que só entrou no léxico inglês durante o século XVII e


foi ‘emprestada’ das línguas dos países da Europa do Norte (como já observamos
anteriormente, e a sua origem pode ser encontrada no holandês, alemão ou Flamengo), é
usada hoje em vários contextos onde refere-se a objetos diferentes (por exemplo: na
pintura, arquitetura, geografia - para não mencionar os vários significados metafóricos:
paisagem intelectual, paisagem cultural, etc.). Para efeitos do presente capítulo, no
entanto, será suficiente para começar por distinguir entre os dois significados comuns
do termo.

Com efeito, uma característica deste termo é o seu duplo sentido. Isso pode-se
referir a um gênero pictórico, mas pode também referir-se a vista reais de um “espaço
natural real, exterior”. Em outras palavras, refere-se à representação pictórica de um

268
espaço e em outras circunstâncias à perceção real de um espaço. Como resultado, não é
errado dizer que os vários olhares de Monument Valley de John Ford (1894 /1973) ou que
os campos de gelo de Nanooks são paisagens.

Também podemos reivindicar com alguma confiança que o conceito de


“paisagem” se aplica a todos os espaços exteriores e naturais, vistos num écran do
cinema, enquanto poderia igualmente ser aplicada para o mesmo espaço como deve ser
visto no mundo, ou, por outras palavras, quando percebido no local.

No entanto, esse uso define paisagem em virtude da coisa em “si" em vez da sua
representação e, portanto, não faz justiça ao significado do termo dentro das artes
visuais. Dentro deste reino, nem toda a representação do espaço exterior ou natural é
uma paisagem. No entanto, para dar sentido a esta distinção, vamos primeiro diferenciar
o que é o ambiente narrativo cinematográfico e paisagem.

3.3.1 Cenário cinematográfico versus paisagem.

No seu livro, L'Invention du paysage, a historiadora de arte francesa Anne


Cauquelin constata a ausência do termo e da noção de paisagem na Grécia antiga: "para
os antigos gregos, não há palavra ou objeto que de perto ou de longe se assemelha a
que chamamos de paisagem”.186 Há, no entanto, as configurações de ambientes:
"Heródoto e Xenofonte não são avarentos nas suas descrições de “locais”. No entanto,
essas descrições não constituem o que chamamos de paisagens. Em vez disso, eles
constituem condições materiais básicas de um evento, uma guerra, uma expedição ou
uma lenda, ao qual permanecem subordinadas"187.

O mesmo ocorre na poética de Aristóteles: "e tal como o local (topos), de acordo
com a definição aristotélica, é o invólucro dos corpos que ele limita, também a pretensa
“paisagem” (topion: localzinho) não seria nada sem os corpos em ação que a ocupam.
A narração surge primeiro e a sua localização no espaço é um efeito da leitura"188 O
comentário de Cauquelin, encoraja-nos assim a distinguir entre as duas diferentes

186
In CAUQUELIN, Anne L’Invention du Paysage. Paris: Plon 1989.
187
Id ibid p.39
188
Id Ibid p.39/40.

269
representações do espaço: a configuração ou o cenário e a paisagem.

O cenário, o local, de acordo com Cauquelin, é acima de tudo, o espaço da


história e de eventos: é o cenário do teatro, para o que vai acontecer. Nenhuma
representação ou discurso recontando ação ou eventos pode ser feito sem uma
configuração cenográfica, mesmo que esse cenário pode sido entendido e interpretado
pelos espectadores numa variedade de maneiras. A configuração de um cenário refere-
se às características espaciais que são necessárias para todos os filmes de
acontecimentos de ficção ou dos documentários. No entanto, isto não reduz uma
configuração cinematográfica para um mero grupo de filmes.

Todas as unidades de significado num filme, se numa ação, num modo de


exibição de um objeto, etc., implicam um cenário (ou vários cenários). Esse espaço
cinematográfico é construído pelo espectador através de pistas dos vários sinais
audiovisuais (enquadramento, edição, volume do som, eco, etc.) e do conhecimento de
que ele já possui das características espaciais do nosso mundo. A configuração
cinematográfica pode ser altamente detalhada e precisa, ou pode permanecer bastante
vaga e indeterminada.

Em ambos os casos, ainda serve a mesma função discursiva: é o lugar onde a


ação ou os eventos ocorrem. Assim, os planos de fundo que são simplesmente pretos
(tais como aqueles encontrados nos primeiros filmes de Edison) constituem um
ambiente/cenário, tanto como as pradarias vistas num plano cinematográfico em
qualquer filme Western.

No entanto definir o espaço narrativo pode revelar-se mais difícil do que parece
pela primeira vez. Isso ocorre porque a configuração cinematográfica, como ação,
constitui uma construção concetual inteiramente variável. Em outras palavras, a
configuração ou o cenário cinematográfico é normalmente desprovido de limites fixos;
ou pelo menos, tais limites são indefinidamente divisíveis, um pouco na forma do
famoso paradoxo do filósofo Zeno189. No cinema, esta dificuldade é agravada pela

189
Os paradoxos de Zeno (ou de Zenão), atribuídos ao filósofo pré-socrático Zenão de Eleia, são
argumentos utilizados para provar a inconsistência dos conceitos de multiplicidade, divisibilidade e
movimento. Através de um método dialético que antecipou Sócrates, Zeno procurava, partindo das
premissas dos seus oponentes, reduzi-las ao absurdo e com isso sustentar o ponto de fé dos eleáticos e do
seu mestre Parmênides, que ia contra as ideias pitagóricas. Como em outros pré-socráticos, não existe na

270
Fig.110. Frame, La bête lumineuse (English: The Shimmering Beast), Pierre Perrault. 1982.

Fig.111. Frame, La bête lumineuse (English: The Shimmering Beast), Pierre Perrault. 1982.

atualidade nenhuma obra completa de Zeno, sendo as fontes principais para os seus paradoxos as citações
na obra de Aristóteles e do aristotélico Simplício.

271
presença da duração e da montagem. Montagem, claro, pode fragmentar o espaço,
quebrar a configuração da ação e, assim, expandi-lo (pelo menos numericamente).

Além do mais, um espaço cinematográfico pode ser sempre incorporado em


outros espaços de escala maiores. Consideramos, por exemplo, o documentário de
renome La Bête Lumineuse, de Pierre Perraults (1982)190: Qual é a sua configuração
espacial! É a província de Quebec! A floresta perto de Maniwaki! Ou é a sequência de
lugares revelados por momentos distintos do filme: a floresta, depois o lago, depois
aparece a cabine e assim por diante? De um modo geral, podemos dizer que na média da
realização cinematográfica (ficção ou documentário), a configuração da paisagem foca
sempre algum destes aspetos (floresta, cidade, bairro, etc.)

(a). Pode também ser incorporada em espaços maiores- muitas vezes não vistos- (por
exemplo, O Quebec em Lumineuse La Bête), cuja relevância só pode ser estabelecida
através da análise ou da interpretação.

(b). Pode ser dividido em um número indefinido de configurações menores: a


configuração de cada ação, mas também de cada plano ou mesmo de cada Frame.

Neste sentido, um espaço cinematográfico, mesmo que inicialmente sendo


estabelecido em função dos enquadramentos das câmaras de cinema, não pode ser
inteiramente definido por esta; a configuração de ambientes cinematográficos não pode,
por outras palavras, ser reduzida exclusivamente ao que é visto na tela. (O uso de sons
que não se veem e olhares são apenas duas das várias maneiras em que o que o invisível
num determinado filme podem indicar a sua configuração espacial).

O resultado, como mencionado anteriormente, é que a configuração espacial não


é vista e muitas vezes deve ser inferida do que é retratado. Para dar um exemplo bem
conhecido, pode-se descrever o cenário de La Sortie des Usines191, de 1895, dos irmãos
Lumière como da fábrica Lumière. Graças ao que vemos da fábrica através do seu

190
La lumineuse bête (A Besta Luminosa) é um documentário canadiano 1982 dirigido por Pierre
Perrault, sobre um grupo de caçadores que se reúnem anualmente para caçar alces perto de Maniwaki,
Quebec. Foi exibido na secção Un Certain Regard no Festival de Cannes de 1983.
191 La Sortie de l'usine Lumière à Lyon é um dos primeiros filmes da história do cinema, foi produzido e

distribuído em 1895 pelos irmãos Lumière. É, por vezes, considerado como o primeiro filme a ser
projetado em público. É um filme de curta-metragem com uma duração de cerca de 45 segundos.
O primeiro cineasta português, Aurélio Paz dos Reis, produziu e realizou uma réplica deste filme em
1896, Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança, gravado na cidade do Porto, e que viria a ser o
primeiro filme português.

272
enquadramento, podemos também mais precisamente e com igual validade descrevê-lo
como um ponto específico dentro da arquitetura da fábrica; o portão: ou seja, a saída
onde os funcionários dos Lumière saem da fábrica, depois do seu trabalho.

Além disso, o cenário também é e, obviamente, Lyon, França, Europa. Assim,


encontramo-nos com uma série de locais que, de acordo com os usos que fazemos do
filme, expandir e contrair, cabendo dentro uns aos outros como bonecas russas
aninhadas.

Pelo menos potencialmente fogem de um espaço específico (o local de saída dos


trabalhadores da fábrica, definida pelos planos de enquadramento) para o mais geral
(Lyon, França, do mundo), de acordo com o princípio semiótico de pars pro toto. Como
resultado, seria suficiente programar este filme dos Lumière numa retrospectiva em
“Lyon no final do século” pela sua configuração espacial “de repente transcender" o
quadro cinematográfico e para englobar não só a fábrica Lumière, mas a cidade de
Lyon, até mesmo embora esta última é dificilmente retratado no filme (para dizer o
mínimo). Esse uso do filme é, no entanto, perfeitamente plausível.

Neste sentido falar de um espaço já está a oferecer uma interpretação e a declarar


uma propriedade (um predicado192) do espaço fílmico apresentado no quadro
cinematográfico. Para falar sobre isso é preciso invocar um modo particular, que temos
de representar um espaço fílmico dado a si mesmo, de interpretá-lo. Isso implica a
referência sobre alguma forma de usar um filme, seja simplesmente de tentar dar sentido
a uma narrativa.

Ao longo dos anos, os teóricos do cinema procuram analisar alguns dos


princípios formais e estilísticos que vão presidir a construção e a compreensão do
espaço narrativo, especialmente no que diz respeito ao cinema clássico. A questão da
paisagem é mais complicada.

Para começar, podemos dizer que paisagem é, em certo sentido, o inverso do


cenário, que é um “anti ajustamento" da sorte. Claro, precisamos de ser mais precisos.

192
Usamos aqui o termo de acordo com seu significado lógico e gramatical padrão.

273
Fig.112. Frame, Workers Leaving the Lumière Factory in Lyon (French: La Sortie de l'Usine Lumière
à Lyon), Louis Lumière.1985.

Fig.113. Frame, Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança, Aurélio Paz dos Reis, 1896,

274
No momento, porém, a questão essencial é: como é a paisagem distinta do espaço
cinematográfico.

Claro, os historiadores da arte têm estado interessados na questão da paisagem,


como temos descrito e observado nos anteriores capítulos, o que constitui uma
componente significativa das produções pictóricas mais genéricas. Eles muitas vezes
lembram-nos do “nascimento” da pintura da paisagem no Ocidente. Com efeito, como
já escrevemos, a paisagem não surge de uma forma mais relevante na pintura europeia
até o final do século XVII, após um longo processo de emancipação, cuja origem pode
ser encontrada em parte na adoção da perspetiva linear e do processamento do espaço
pictórico.

Naturalmente, tal afirmação exige cautela pois qualquer compreensão do


nascimento da paisagem será em relação há conceção de paisagem. O que está claro, no
entanto, é que esta “proporção” se fundamenta na conjunção de pelo menos dois
critérios.

A primeira é a distinção entre parergon193 e ergon194, que quer dizer entre (a)
paisagem como acessório espacial de uma cena pintada (a cena, não o cenário, sendo o
principal assunto ou a narrativa de uma pintura) ou como um elemento simples que
acompanham um conjunto maior (manuscritos iluminados, frescos decorativos, painéis,
etc.); e a paisagem (b) como o assunto principal e independente de uma obra (cenário
espacial como o foco principal do trabalho). O segundo critério diz respeito a distinção
entre as principais formas artísticas (em particular, a pintura a óleo) e as consideradas
Artes menores (aquarela, desenho, gravura, etc.). A este respeito, parece que paisagem
foi introduzida nos “formulários” menores bem antes dos grandes.

Trabalhos da paisagem são encontrados, por exemplo, em xilogravuras ou


aguarelas por Dürer do final do século XV. Esta segunda distinção entre as maiores e
menores formas de arte parece-nos menos útil e talvez menos importante do que o
primeiro, que se opõe à paisagem como paregon e à paisagem como ergon. O que esta
primeira distinção traz para que menos no contexto da pintura é nada menos do que a

193 Parergon é um termo de Kant, aparece na sua obra A crítica da faculdade do juízo (1995). Em grego, parergon
significa “além ou ao lado do ergon”, o “fora da obra”, aquilo que é somente um acessório acidental, ornamentos
adjuntos que se acrescentam a uma obra já completa por si mesma.
194
Em grego ergon significa: trabalho, feito, produto, função.

275
emancipação da paisagem do seu papel de apoio como plano de fundo ou cenário para
eventos e personagens. Em consequência, estabelece a condição da sua emergência
como um objeto estético completamente distinto.

Portanto, apesar das representações “realistas” de cenas exteriores que


pressupunham sempre a presença de algum tipo de “paisagem”, estas representações
exteriores foram concebidas como uma marginália (parergon) ao lado do verdadeiro
assunto do trabalho, eventos ilustrados ou figuras (ergon). Neste sentido, a pintura
ocidental possuía representações dos espaços naturais bem antes do século XVII, mas
não como paisagens autónomas. Só se pintava configurações exteriores, naturais. Como
salienta Kenneth Clark:

Na paisagem a pintura tem tido uma história curta e descontínua. Na maior


idade da arte europeia, da idade do Pártenon e a idade da Catedral de Chartres, a
paisagem não poderia existir; para Giotto e Michelangelo era uma impertinência. É só
no século XVII, que grandes artistas ocupam a pintura de paisagem por si só e tentam
sistematizar as regras. Somente no século XIX vai tornar-se a arte dominante e criar
uma nova estética.195

Apenas recentemente, então, os pintores pintaram a paisagem no seu sentido


próprio e moderno, ou seja, como a paisagem autónoma, como escrevemos no capítulo
anterior. A arte pictórica tinha que se libertar de exigências anteriores de representação
(como a representação de eventos ou ações) para a pintura de paisagem emergir.

A liberdade da fixação de paisagens a favor da paisagem autónoma é a da


pintura de paisagem tal como a conhecemos hoje. Em grande medida, determinou a
ideia geral ou o conceito que temos da paisagem, e que se caracterizou em diferentes
estilos pictóricos como os que já escrevemos no capítulo anterior, de Poussin, Lorrain,
Constable, Turner, Corot, Monet, etc.

Neste ponto, poderemos tentar compreender melhor a base para a nossa


relutância inicial para conceber a ideia de uma “paisagem fílmica." Com efeito, no
cinema, os espaços naturais ou exteriores tendem a funcionar como cenário, ao invés de

195
In CLARK, Kenneth, Op. Cit., p.229.

276
uma paisagem na maioria dos casos. É o lugar onde alguma coisa acontece, onde algo
acontece e se desdobra. Isso vale para os Westerns de John Ford, tanto quanto para os
filmes de montanha, concebidos por Leni Riefenstahl. Claro, isso não deveria
surpreender pois sabemos que o cinema dominante é acima de tudo um cinema
narrativo baseado na representação de ações e eventos. Devemos, pois, concluír que o
cinema narrativo é incompatível com a ideia de paisagem? Antes de responder, será útil
retornar à questão da autonomia da paisagem na arte.

3.3.2 Autonomia e interpretação

Se agora temos uma ideia do que distingue a paisagem da do espaço


cinematográfico, convém referir como esta distinção realmente se torna aparente, apesar
da linha de fronteira traçada por volta do século XVII, que tantas vezes serve como a
“data de nascimento” oficial da paisagem na pintura. O anterior período oferece-nos
também uma visão preciosa para a compreensão das condições de possibilidade para
este nascimento. De uma maneira geral, sabemos que a paisagem na “pintura" se
restringe ao papel de cenário ou paisagem antes do século XVII. É simplesmente o
contexto exterior natural para uma ação ou evento, embora também pode interagir com
ele, simbolicamente e em aspetos importantes.

Um caso excecional entre os pintores do século XVI parece ser o de Albrecht


Altdorfer (c. 1480/1538), de quem Christopher Wood descreve-nos como, “a primeira
paisagem independente na história da arte europeia.”196 Certamente não pode se negar
a singularidade das paisagens de Altdorfers ou do seu estatuto autónomo. (Wood
descreve-as como composições narrativas do qual o objeto é removido ou será
abandonado)

No entanto, embora Altdorfer possa ser considerado relevante, é importante


salientar que observações semelhantes poderiam ser feitas sobre um grande número de
pinturas do século XVI, em que a paisagem desempenha um papel considerável. Dois
exemplos bem conhecidos são A Tempestade, um trabalho enigmático de Giorgione (c.

196
In WOOD, Christopher, Albrecht Altdorfer and the Origin of Landscape. Chicago: Chicago University
Press, 1993, p.9.

277
1477-1510); e as obras do mestre de Antuérpia, Joachim Patinir (c. 1480-1524), que
receberam avaliações amplamente divergentes por vários historiadores de arte. Os casos
de Giorgione e Patinir são interessantes na medida em que eles vão problematizar a
autonomia da paisagem por colocar em causa o seu desenvolvimento.

Tendo em conta o que foi dito até este ponto, as obras de Patinir não constituem
paisagens no sentido pleno do termo (paisagens autónomas, independentes) porque
geralmente os eventos bíblicos, as personagens ou os temas mitológicos normalmente,
situam-se neste ambiente natural. Mas é importante notar como numerosos escritores e
historiadores de arte, começando com Goethe, observaram que em Patinir as cenas são
peculiares.

Elas são compostas de modo a inverter a até então usual relação entre a
configuração espacial e a presença humana nas pinturas. Com efeito, neles, os
personagens vão-se tornar acessórios. Deve ser por esse motivo que vemos estas
pinturas como paisagens no sentido moderno do termo? Ao perguntar isso, chegamos ao
ponto inicial da nossa interrogação: esta é uma definição ou uma paisagem? Ainda o
que nos interessa aqui não é tanto pronunciarmos sobre esta questão em matéria do
pintor Patinir, mas sim para ver como as suas obras levaram a diferentes respostas ou
interpretações, e se o olhar do “espectador foi sorteado” para as diferentes figuras
humanas picturais ou para a paisagem.

O argumento que Patinir é um pintor de paisagens baseia-se em vários


pressupostos. No seu Diário de uma Viagem para a Holanda, ninguém menos que
Albrecht Dürer descreve Patinir como um “artista de boa paisagem”197. Fontes de
arquivo também mostram que pelo menos num caso, Patinir contratou pintores em
Antuérpia-nomeadamente, Quinten Metsys (1543/1589), para pintar as personagens em
algumas das suas pinturas, preferindo, por sua vez pintar as paisagens198. Mas é
sobretudo a composição das suas obras que atrai a atenção dos críticos.

No trabalho de Patinirs, acontece frequentemente que os personagens são


literalmente dominados pelas paisagens que ocupam praticamente toda a superfície da
197
In DURER, Albrecht, journal de voyage aux Pays-Bas pendant les années 1520-1521 (Paris: edições
Maisonneuve et Larose, 1993), 52.
198
In FRIEDLANDER, Major J. Lansdape, Portrait, Still-life. Their Origins and Development (New
York: Schocken Books, 1963), 47; Robert A. Koch, Joachim Patinir (Princeton: Princeton University
Press, 1968), 48-49.

278
sua pintura. A partir daqui, é preciso apenas um passo para chegar à conclusão de que
eles constituem “paisagens autónomas”. André Piron observou isto, comentando que
Patinir “era o primeiro dos artistas da paisagem”. 199
Piron não estava sozinho ao
escrever isso200, mas na ausência de uma tradição de paisagem real no século XVI,
alguns historiadores têm dificuldade em aceitar a autonomia da paisagem no trabalho de
Patinir.

Esta atitude é bem resumida por Malcolm Andrews: Mas porque é tão cedo na
data para uma paisagem “independente”, estamos ansiosamente em guarda contra
uma interpretação ingênua ou tendenciosa teleológica baseada neste argumento. A
inexistência virtual de uma tradição de paisagem independente no início do século XVI
exerce uma pressão formidável sobre a nossa receção dessas imagens, que
consideramos dever ter uma raison d' être narrativa ou hagiográfica. " 201

Outro bom exemplo desta atitude em direção a Patinir é fornecido por Reindert
Falkenburg202:

As paisagens de Patinirs foram constantemente medidas pelo modelo de uma


conceção estética da paisagem e têm sido consideradas como encarnando uma
“moderna” experiência da paisagem não mais regulada pela visão do mundo medieval
e religioso. Nesse sentido, elas têm sido ostentadas para representar uma “autonomia

199
In PIRON, André, Joachim Le Patinir, Henri Blès: Leurs vrais Visages (Gembloux: Duculot J., 1971),
p.19.
200
O mais frequentemente citado defensor desta posição é sem dúvida o historiador de arte Ludwig von
Baldass, "Die niederländische Landschaftsmalerei von Patinir bis Bruegel," Jahrbuch der
Kunsthistorischen Sammlungen (1918).
201
In ANDREWS, Malcolm, Op. Cit., p.43-44.
202
A própria pesquisa de Falkenburg explora as artes visuais principalmente a partir da perspetiva das
relações entre as imagens e os espectadores. Ele estudou as tensões e as crises na arte medieval e
renascentista, em particular o papel das artes visuais na formação estética, religiosa, moral e espiritual do
homem moderno primitivo. O seu interesse erudito considera especialmente as obras dos mestres
holandeses e flamengos do século XVI como Hieronymus Bosch e Pieter Bruegel. Nas várias obras que
escreveu destaca-se: O fruto da devoção: o misticismo e a imaginação do amor em pinturas flamengas da
Virgem e da Criança, 1450-1550.
Atualmente o autor está a finalizar um estudo monográfico, intitulado Mirror of Mirrors:
Hieronymus Bosch, O Jardim de Delícias Terrenas. Mais recentemente, Falkenburg foi presidente do
Departamento de História da Arte na Universidade de Leiden, na Holanda. Antes disso, foi Professor de
Arte e Religião Ocidentais na Graduate Theological Union em Berkeley, Califórnia; Vice-Diretor do
Instituto Holandês de História da Arte; pesquisador da Royal Dutch Academy of Sciences. Falkenburg
ensina a ideia do retrato, como uma das formas das mais fundamentais da expressão humana na arte.
Falkenburg detém o Ph.D. da Universidade de Amesterdão, mestrado e licenciatura da Universidade de
Gronigen, dos Países Baixos.

279
estética”. Como resultado, às vezes tem-se a ideia de que um autor está falando não
sobre uma paisagem do século XVI, mas de uma do século XIX, baseada sobre essas
noções da experiência estética da paisagem que se pode ler nas cartas de Schiller e de
Carus. Nas descrições das origens da” paisagem autónoma” do século XVI não há o
menor questionamento da validade de uma conceção da paisagem, que só pode ser
chamada disso no século XIX.

Os Historiadores de arte evidentemente começaram a partir da premissa de que


todas as paisagens pertencentes ao gênero baseiam-se numa e mesma conceção - que
acreditam que incorpora uma abordagem “a priori” exclusivamente estética. Este,
então, tende a ser o ponto de partida axiomático para as discussões das pinturas de
Patinir, que são consideradas como os primeiros tratamentos da paisagem
“autónomos,” embora não sempre “perfeitos "203

Desafiando as observações de alguns dos seus antecessores, Falkenburg mantém


que as paisagens de Patinir não dispõem de autonomia e estão ligadas a um conjunto de
acontecimentos e de personagens retratadas na pintura, ainda que apenas num jogo de
metáforas e de simbolismos subterrâneos complexos.

Consequentemente e apesar da importância que Falkenburg concede-lhes, as


paisagens de Patinir são mais uma vez relegadas para o papel de um acessório pictórico,
dominada pela eventualidade ou pela narrativa. Apesar desta nota de cautela e da
exaustiva análise iconográfica da flora por Falkenburgs e de outros elementos das
paisagens. “Ainda temos a impressão”, escreve Malcolm Andrews, “que o verdadeiro
propósito dessas pinturas, de escala supérflua nas suas paisagens na relação às suas
funções de narrativa, consiste em celebrar a imensa beleza do mundo natural”.204

Este debate sobre Patinir é de interesse neste ponto porque ele exemplifica a
ambiguidade da relação entre ergon e parergon. Na verdade, ilustra as dificuldades de
distinguir nitidamente entre estes dois conceitos. O que serve como o verdadeiro
assunto das pinturas aqui? O que serve como o acessório?

203
In FALKENBURG, Reindert L., Op. Cit., p.2-3.
204
In ANDREWS, Malcolm, Op. Cit., p.48

280
É precisamente tais dificuldades que levam Jacques Derrida205 a analisar no seu
estudo sobre a Crítica do Julgamento de Kant, para entender a relação entre ergon e
parergon em termos da “différance”. Isto põe em causa e ainda dissolve a oposição
entre eles e traz à luz a sua interligação: “aquilo que constitui o parergon não é
simplesmente a sua exterioridade de excesso (excedente), é a ligação estrutural interna
que vem vincula-los para a falta interior do ergon. E esta falta seria constitutiva da
unidade do ergon. Sem essa falta, o ergon não precisaria do parergon. A falta da ergon
é a falta da parergon.”206

Com efeito, no entanto, esta ambiguidade acaba por se clarificar numa “empresa
interpretativa”, quer dizer, isto é, uma tradição – ou seja uma tradição de Patinir., que os
seus contemporâneos, ou os críticos mais modernos, cujo olhar tem sido definitivamente
afectado pela existência de paisagens autónomas desde o século XVII.

Neste sentido, o nascimento da paisagem realmente deve ser entendido como o


nascimento de um modo de ver, o nascimento de um olhar (que o pintor, o colecionador
ou o crítico) o qual que antes se colocava na “margem” como cenário, chegou para
tomar o seu lugar no centro.

Um crítico de arte que adotou essa posição foi Ernst Gombrich (1909 /2001)207
que alegou que o nascimento da paisagem está definido pelo propósito dos
colecionadores italianos do século XVI que olharam para as pinturas que adquiriram,

205
Filósofo francês (1930 /2004) que iniciou durante os anos 60 do século XX, a Desconstrução em
filosofia. Esta "desconstrução", termo que inventou, deverá aqui ser compreendido, tecnicamente, por um
lado, à luz do que é conhecido como "intuicionismo" e "construcionismo"" no campo da metamatemática,
no modelo da obra de Brouwer e depois de Heyting, ao qual Derrida irá adicionar as devidas
consequências dos teoremas da indecidibilidade de Kurt Gödel e, por outro, a um aprofundamento critico
da obra de Husserl, Heidegger e Levinas na ultrapassagem da metafisica tradicional que ele vai apresentar
como sendo uma "metafisica da presença".
Com uma obra imensa, a rondar os 100 títulos, ao qual se junta a edição em curso dos seus Famosos
Seminários, é o filósofo mais traduzido no mundo, tendo exercido um profundo impacto nas mais
diversas áreas das humanidades e ciências humanas, em especial nos campos da estética, teoria da
literatura e filosofia do direito, e gerado debates decisivos com os pensadores mais importantes de sua
época (Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault, John Searle, Paul Ricoeur, Jürgen Habermas, entre outros).
206
In DERRIDA, Jacques La vérité en peinture (Paris: Flammarion, 1978), 69.
207
Gombrich foi um dos mais famosos historiadores da arte do século XX, especialmente pelos seus
estudos sobre o renascimento. É o autor de um dos livros mais populares entre os adotados pelas
instituições de ensino de História da Arte, em vários países: The Story of Art (A História da Arte),
publicado pela primeira vez em 1950 em Londres e, desde então, com numerosas reedições e traduções.
Outros livros incluem Arte e Ilusão (1960), considerado por críticos como seu trabalho mais influente e
de maior envergadura, e os artigos reunidos em Meditações sobre um cavalinho de pau (1963) e A
imagem e o olho (1981). Outros livros importantes são Aby Warburg: uma biografia intelectual (1970), O
sentido da ordem (1979) e A Preferência pelo primitivo (póstumo, 2002).

281
incluindo pintura flamenga: “Nós não sabemos, se a pintura flamenga eram paisagens
puras, provavelmente não eram, mas para o connoisseur italiano, só eram interessantes
como paisagens." Quanto à Tempestade de Giorgione, Gombrich imediatamente
acrescenta: "O que quer que a pintura pode ilustrar, para o connoisseur veneziano
pertence à categoria de pintura de paisagem.”208

O movimento do ajuste à paisagem através da transformação do nosso olhar


gráfico, é portanto, uma passagem da periferia para o centro. Mas um olhar pressupõe
sempre um assunto. Neste sentido, o historiador de arte tem dificuldade em datar o
nascimento da pintura de paisagem que repousa em grande parte em identificar o
assunto deste olhar (original). É o pintor (quem é ele, talvez: Giorgone, Patinir,
Altdorfer ou qualquer dos outros não nomeado aqui) quem liberta o primeiro “cenário
paisagem”, transformando-o numa paisagem; ou é o connoisseur (o colecionador, o
crítico) que inicialmente gosta do que vê, para os outros apenas acessório e
complementar?

Ainda assim, é importante reconhecer que a questão só delimita claramente o


duplo olhar e o seu uso duplo, de que a obra de arte e a paisagem dependem. Porque o
artista e o crítico partilham, cada um à sua maneira, o poder de transformar um cenário
pictórico numa paisagem, que é dizer, para mudar a configuração espacial da margem
para o centro da pintura.

Este é o caso do trabalho pictórico de Altdorfer, como escreveu Christopher


Wood209210. Assim, pode ser visto como os connoisseurs italianos, discutidos por
Gombrich, bem como com certos comentários ao trabalho de Patinir, e é óbvio que os
críticos (espectadores) também podem puxar a configuração espacial para fora da
margem, pelo menos na medida em que é visto conter, se só no olhar dos críticos, a
necessária autonomia.

208
In GOMBRICH, Ernst, A teoria do renascimento da arte e a ascensão da paisagem, in Norm and
Form: Estudos na arte do renascimento (Londres: Phaidon, 1966), 109; doravante citado no texto.
209
WOOD, op. Cit.
210
Christopher S. Wood é Professor do Departamento de História da Arte da Universidade de Yale e um
dos pensadores contemporâneos mais interessantes sobre a temática da paisagem na arte. Ele é o autor de
Albrecht Altdorfer e as Origens da Paisagem, e o editor do The Vienna School Reader: Política e Método
Histórico da Arte na década de 1930.

282
3.3.3. Cinema e a "paisagem autónoma”.

Não há, claro, nenhuma causa por a paisagem que se manifestou tão
afincadamente na pintura não se expressaria no trabalho dos cineastas. Além disso,
numerosos cineastas já se apropriaram deste olhar e libertaram os filmes da
configuração espacial ao serviço da história, da narrativa, conferindo-lhe assim o status
de paisagem autónoma.

Este é especialmente o caso com vários filmes experimentais feitos por


realizadores canadianos, incluindo Michael Snow (La région Centrale, 1971), David
Rimmer (Canadian Pacific, 1974 e Migration, 1969), Jim Anderson (Moving Bicycle
Picture, 1972-1975), Jack Chambers (Circle, 1968-1969) e Rick Hancox (Landfall,
1983).211 Podemos também acrescentar os célebres filmes de Walter Ruttmann212
(Berlin: Symphony of a city, 1927), Ralph Steiner213 (H2O, 1929), ou Joris Ivens214
(Rain, 1929), todos os que ficam a meio caminho entre os filmes experimentais e os
documentários.

Mas e a paisagem em narrativas de filmes de ficção que incidem sobre eventos e


ação? Estamos familiarizados com a regra de ouro do cinema clássico: tudo deve ser
subordinado à narrativa. Em princípio, cada elemento do filme deveria ser capaz de ser
integrado no processo narrativo. Isto é especialmente verdadeiro para a configuração
espacial cinematográfica (incluindo exteriores) que situa a ação e eventos relacionados
com o filme.

Embora às vezes tendemos a esquecer ou pelo menos a negligenciar o fato, é


evidente que, além de contar histórias ou relatar eventos, o cinema principalmente
oferece um espetáculo visual. No entanto, a fusão da história como o espetáculo
principal inevitavelmente gera ambiguidade, como certos teóricos do cinema já
salientaram.
211
Em 1989, a Galeria de Arte de Ontário apresentou, sob a direção do cineasta Richard Kerr, uma
retrospetiva de filmes sobre paisagem experimental realizados por cineastas canadenses. As obras são
discutidas por Bart Testa no catálogo publicado para a ocasião, o Espírito na Paisagem (Toronto: Galeria
de arte de Toronto, 1989).
212
1887 – 1941, realizador de cinema Alemão e junto com Hans Richter, Viking Eggeling e Oskar
Fischinger foi um dos primeiros artistas do cinema experimental na Alemanha.
213
1899 – 1986, fotógrafo americano, realizador de documentários pioneiros e uma figura-chave entre os
cineastas da vanguarda na década de 1930.
214
1898 – 1989, realizador de documentários holandês. A paisagem foi a temática central da sua vasta
obra.

283
Todos nós estamos familiarizados com o enorme sucesso alcançado por Laura
Mulvey (1941) que, no contexto político do feminismo dos anos 1970, propôs a
utilização desses termos para descrever estratégias para representar o masculino e o
feminino no cinema clássico: enquanto os homens avançam a história através de sua
ação, as mulheres ameaçam prender o seu desenvolvimento, na medida em que sua
presença na tela pode apresentar momentos de contemplação.”215

Apesar de tudo, estas observações ainda mantêm a sua pertinência hoje, mesmo
que alguém não iria querer tratá-las como dogma. Mais importante, do nosso ponto de
vista, elas colocam em relevo tanto a distinção entre a história e o espetáculo como a
tensão que ele gera. Obviamente, o locus desta tensão é o espectador, quem pode
investir no desenvolvimento narrativo dos filmes por meio da inteligência narrativa, nos
termos de Paul Ricoeur (1913/2005), ou investir numa atitude contemplativa que produz
principalmente uma forma estética da qual a paisagem cinematográfica depende, como
veremos. Nesse sentido, podemos falar de dois “sistemas” de atividade do espectador: o
modo narrativo e de o modo panorâmico.216

Ao olharmos um filme, estes dois sistemas provavelmente entram em cena em


momentos diferentes. Assim, os espetadores ao assistirem um filme em momentos no
modo narrativo, noutros no modo panorâmico, permitindo ambos acompanharem a
história narrativa e, sempre que necessário, contemplar o espetáculo cinematográfico. É
necessário, no entanto, salientar que não se pode assistir a mesma passagem fílmica
através de ambos os “modos” na mesma hora, ou seja, de uma forma que emprega

215
“A presença da mulher é um elemento indispensável de espetáculo no filme narrativo normal, mas a
sua presença visual tende a trabalhar contra a linha de história, congelar o fluxo de ação em momentos
de contemplação erotica." Laura Mulvey, “Visual Pleasure and Narrative Cinema” in Visual and Other
Pleasures (Bloomington: Indiana University Press, 1989), p.19. Raymond Bellour, chegou a uma
conclusão semelhante na sua análise de uma sequência do filme, The Big Sleep, de Howard Hawks. In
Raymond Bellour, "L'évidence et le code" in L'Analyse du film (Paris: Albatros, 1979).
216
Pode parecer pleonástico dizer que a atividade do espectador possui um sistema panorâmico. Um
ponto apenas para enfatizar esse aspeto do espectador que consiste precisamente em aceder às imagens (e
sons) do espetáculo cinematográfico "por conta própria" e "para o seu próprio bem." O que nós
designamos aqui de sistema panorâmico tem pelo menos duas variações: (1) choque, que pertence à
repulsa ou atração (comentários de Eisenstein, a este respeito, são bem conhecidos; mas era também,
como Tom Gunning justamente salientou, um espaço disponível para os primeiros espectadores do filme,
bem como para os espectadores do cinema vanguardista em geral e dos filmes pós-modernos
contemporâneos; e contemplação (2). Ver Tom Gunning, 1986, 1995a, 1995b; Sergei Eisenstein, "A
montagem das atrações" e "A montagem de atrações de filme", em S. M. Eisenstein. Obras Selecionadas,
Volume I, Ed. de 1922-1934, escritos por Richard Taylor (Londres: BFI, 1988). Finalmente, vale a pena
acrescentar que esses modos de espectador se distinguem de que o processo de espectador descrito no
livro PSYCHO De la figure au musée imaginaireThéorie et pratique de l'acte de spectature LEFEBVRE,
Martin, 1998.op cit, 19-70.

284
ambos os “modos” absolutamente em simultaneamente.

Eis porque pode-se dizer que a panorâmica interrompe a progressão da narrativa


para o espectador. Quando contemplamos um momento, um Frame do filme, nós
paramos de seguir a história por um momento, mesmo que a narrativa não desapareça
completamente da nossa consciência - ao qual nós podemos acrescentar que é
precisamente porque a narrativa não desaparece da nossa consciência, porque nós
podemos rever novamente a “história” a qualquer momento. A interrupção da narrativa
pela contemplação tem o efeito de isolar o objeto do olhar, momentaneamente,
libertando-o da sua função narrativa.

Descrevendo de uma maneira diferente, a contemplação do espetáculo fílmico,


depende de um olhar autónomo. É este olhar que permite a noção da paisagem fílmica
na ficção narrativa (e documentário com base num evento); torna possível a transição
da configuração à paisagem217. A contemplação da configuração espacial liberta-a
brevemente de sua função narrativa (mas talvez, nalguns casos, somente para o tempo
de um pensamento); por um instante, o cenário natural ao ar livre, de uma narrativa de
ação, e é considerado por seu próprio direito, como uma paisagem.

Como resultado, somos capazes de reconhecer uma característica das paisagens


cinematográficas que as distingue das paisagens pictóricas: duração. Com efeito, a
paisagem no filme narrativo possui a capacidade peculiar de aparecer e desaparecer
diante dos olhos dos espectadores em conformidade com o que foi descrito atrás.

Nós podemos descrever a paisagem cinematográfica como Paisagem


duplamente temporizada. Em outras palavras, ela é submetida simultaneamente para a
temporalidade do meio cinematográfico218 e para que o olhar dos espectadores, que
muda do modo narrativo para o modo panorâmico, volte novamente a partir de um
momento para o outro.

217
In LEFEBVRE, Martin De la figure au musée imaginaire: Théorie et pratique de l'acte de spectature,
1998. P.94.
218
P. Adams Sitney realça o efeito desta temporalidade, adequada á linguagem da paisagem fílmica: "o
uso de paisagens sublimes frequentemente coincide com situações meteorológicas espetaculares. O
cinema foi a primeira arte que poderia representar a temporalidade e o ritmo de uma tempestade."
Sitney P. Adams, "Landscape in Cinema: The Rhythms of the World and the Camera," In Landscape,
Natural Beauty and the Arts, eds. Salim Kemal e Ivan Gaskell, Beleza Natural e paisagem (Cambridge:
Cambridge University Press, 1993), p.112.

285
Esta dupla existência temporal resulta na precariedade de uma paisagem que
mais ou menos desaparece quando o modo narrativo se assume e o espaço
cinematográfico retoma a sua função narrativa como configuração principal.

Para ilustrar esta paisagem efêmera, simultaneamente transparente e enevoada,


nós gostaríamos de contemplar uma passagem do início do filme Barry Lyndon (Stanley
Kubrick (1928/1999), 1975).

O jovem Redmond, o protagonista central, um homem guiado por ciúme,


repreende a sua prima Nora por ter dançado com um capitão inglês, cinco vezes. A cena
acontece num caminho de árvores alinhadas. Este espaço claramente serve como
cenário para a ação de desdobramento (uma disputa de amantes, que terá repercussões
ao longo do filme (um duelo entre Redmond e o Capitão Quinn, o exílio de Redmond;
etc.).

Mas independente da sua função narrativa, quem presta atenção para a


configuração espacial em si mesma- e não para a ação narrativa - terá êxito em fazer
com que a paisagem desponte.219

É claro que, neste caso em particular, “fazer a paisagem emergir” significa


relacionar a imagem com certas convenções históricas da pintura de paisagem que o
espectador deve saber ou conhece de antemão.

Em outras palavras, é precisamente porque somos sensíveis à paisagem na arte,


e porque nós conhecemos as suas convenções, que estamos inclinados a conceder ao
espaço em questão, o valor de paisagem,220 através de uma cultura do olhar.

219
A contemplação da paisagem é facilitada aqui pela mise-en-scène, o silêncio dos personagens (temos
que esperar cerca de 10 segundos antes que Nora se dirige ao seu primo), a posição fixa da câmara (em
toda a cena, a câmara só faz dois reframings ligeiros), a ação física comedida, a lentidão da cena, e a
banda sonora que toca Largo.
220
Pertence, de facto, a tradição da "peça de conversação ao ar livre," um subgénero muito popular para
as pinturas da paisagem britânica durante o século XVIII.

286
Fig.114. Frame, Barry Lyndon, Stanley Kubrick, 1975.

Fig. 115. Frame, Barry Lyndon, Stanley Kubrick, 1975.

287
Podemos perguntar, neste momento se a importância atribuída ao espectador e
ao seu modo panorâmico não reduz simplesmente a paisagem fílmica para as
idiossincrasias dos espectadores individuais? O olhar de câmaras não faz nada? Para
entender os papéis respetivos do espectador e do filme no surgimento da paisagem, é
importante examinar vários exemplos de condições existentes que podem produzir ou
pelo menos incentivar a visualização no modo panorâmico.

Parece pois possível chegar a acordo sobre a existência de dois paradigmas que
definem os polos de um espectro interpretativo: num caso, o espectador imputa ao filme
(ou ao seu realizador) a intenção de apresentar uma paisagem - isto nós podemos
designar de uma "paisagem intencional”; no outro, o espectador deve assumir que ele ou
ela é a fonte dessa paisagem cinematográfica - isto nós podemos designar por uma
"paisagem do espectador” ou, tomando uma sugestão de Gombrich, uma paisagem
“Impura”. Estas duas situações assumem inúmeras formas, muitas na verdade para
apresentá-las todos neste capítulo. No entanto, é possível citar algumas das suas
manifestações.

3.3.4 A Paisagem é intencional

Entre os exemplos que ilustram melhor o primeiro paradigma são os filmes que
citam pinturas específicas, tais como os de Vincent Minnelli221 (1903/1986) Lust for
Life (1956) ou de Akira Kurosawa222 (1910 /1998), no seu filme Dreams (1990).223

221
Diretor de teatro americano e realizador de cinema, famoso por dirigir musicais como o clássico Meet
Me em St. Louis, Gigi, The Band Wagon e Um americano em Paris. Além de ter dirigido alguns dos mais
famosos e bem lembrados musicais de seu tempo, Minnelli fez muitas comédias e icónicos melodramas.
Ele foi casado com Judy Garland de 1945 até 1951; foram os pais de Liza Minnelli.
222
Um dos cineastas mais importantes e influentes na história do cinema, Kurosawa dirigiu 30 filmes
numa carreira de 57 anos. Kurosawa entrou na indústria cinematográfica japonesa em 1936, após um
breve período como pintor. Depois de anos trabalhando em vários filmes como assistente de direção e
argumentista, estreou-se como realizador em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, com o popular
filme de ação Sanshiro Sugata (aka Judo Saga). Depois da guerra, o aclamado Ángel Drunken (1948), em
que Kurosawa lançou o ator então desconhecido Toshiro Mifune num papel principal, cimentou a
reputação do diretor como um dos mais importantes jovens cineastas no Japão. Rashomon, que estreou
em Tóquio em agosto de 1950, tornou-se, em 10 de setembro de 1951, o vencedor surpreso do Leão de
Ouro no Festival de Cinema de Veneza e foi posteriormente lançado na Europa e América do Norte. O
sucesso comercial e crítico deste filme abriu os mercados dos filmes ocidentais pela primeira vez para os
produtos da indústria cinematográfica japonesa, o que, por sua vez, levou ao reconhecimento
internacional de outros cineastas japoneses. Ao longo dos anos 1950 e início dos anos 60, Kurosawa
dirigiu aproximadamente um filme por ano, incluindo vários filmes de grande reputação como Ikiru

288
Usando estratégias diferentes, ambos os filmes visualmente reproduzem
paisagens famosas de Van Gogh. O filme de Minnelli mostra repetidamente a artista no
trabalho transformando uma “verdadeira paisagem” numa paisagem pictórica.

Fig.116. Frame, Lust for Life, Vincent Minnelli 1956.

(1952), Seven Samurai (1954) e Yojimbo (1961). Em 1990, ele aceitou o Óscar da Academia de Cinema
de Hollywood pela sua icónica obra.
223
Entre inúmeros outros exemplos que poderíamos citar, gostaríamos de mencionar o filme de Peter
Greenaway The Draughtsman's Contract (1982), onde o texto narrativo pictórico do filme (desenhos do
artista) funciona como um intertexto narrativo. Nós usamos este termo para sublinhar que os trabalhos
pictóricos — as paisagens — remetem-nos de volta e são quase idênticos aos pontos de vista mostrados
pela câmara fílmica, e não preexistem independentes do filme. O efeito na paisagem fílmica, no entanto, é
idêntico. Na verdade, os desenhos da paisagem e os correspondentes planos filmados são justapostos e
citam-se uns aos outros mutuamente, o que resulta numa ajuda ao espectador a traduzir na paisagem de
algumas das configurações espaciais do filme. Vale a pena mencionar também que os desenhos, que são
produzidos na diegese pelo Sr. Neville (o nome, pelo menos para um conhecedor de língua francesa
poderia sugerir uma negação da vida urbana e, portanto, uma possível ligação com natureza, com a
paisagem), são na realidade desenhados por Peter Greenaway, que, como realizador, também é
responsável pele fotografia e pelo filmar os mesmos pontos de vista no filme.

289
Fig.117. Frame, Lust for Life, Vincent Minnelli 1956.

Enquanto tal espaço é oferecido como uma configuração espacial - de um ponto


de vista da narrativa serve para situar a ação de uma cena (a ação da pintura) – é uma
citação visual de uma pintura de paisagem conhecida, mostrada enquanto ela está sendo
realizada pelo artista que incentiva o surgimento da paisagem no filme224, assegurando a
autonomia do espaço exterior da narrativa do filme – apenas se momentaneamente.
Claramente, o filme oferece ao espectador os meios necessários para contemplar a
paisagem e até mesmo compará-lo com a pintura de paisagem famosa, cuja “recriação”
é retratada pela narrativa do filme.

Embora diferentes do exemplo de Barry Lyndon, a paisagem cinematográfica


aqui ainda é dependente da paisagem pictórica. A diferença reside no fato de que o
espectador reconhece agora uma citação direta pictórica que é inteiramente atribuível ao
filme. Este processo é idêntico para o “Plan Tableau” identificado há algum tempo por
Pascal Bonitzer (1946) com a diferença que o espectador não necessariamente observa

224
No caso deste exemplo, o fato de que a personagem é mostrada na parte de trás tem o efeito de dirigir
o olhar do espectador em direção à paisagem retratada.

290
todo o plano cinematográfico da cena filmada, como uma paisagem.225 Este processo,
no entanto, como enfatiza Bonitzer, é dado a inúmeras variações.

3.3.4.1 A paisagem nos sonhos de Akira Kurosawa.

Uma tal variação é encontrada no filme de Kurosawa, no segmento intitulado


“Corvos” 226
. Aqui, um personagem literalmente penetra no universo das pinturas de
Van Gogh depois de contemplar algumas pinturas do pintor num museu. A passagem do
Museu, representado pelas pinturas, inaugura uma narrativa breve, mínima que consiste
numa busca do personagem para conhecer o famoso pintor holandês.

Fig.118. Frame, Dreams, Akira Kurosawa, 1990.

225
In Bonitzer, Pascal, Décadrages. Peintures et cinéma (Paris: Cahiers du cinéma / edições de l'Etoile,
1985), 29-41. "Movimento implica que um filme não é uma pintura, que um plano cinematográfico não é
uma pintura. E ainda, é através da noção de um plano (do découpage' no tempo e no espaço que esta
noção supõe) que os cineastas podem comparar-se aos pintores "(Bonitzer, 29). Apesar do inegável valor
do ensaio do Bonitzer, não podemos deixar de notar, no entanto, que ele nunca questiona o status do filme
filmado nem como o espectador se pode relacionar com ele no tempo (ou seja, em relação à duração do
Plano). Com efeito, podemos imaginar casos onde apenas uma parte da duração de um Plano será
considerada "pictórico" pelo visualizador cujo modo de receção pode mudar entre os “modos de narrativa
e de panorâmico”.

291
Fig.119. Frame, Dreams, Akira Kurosawa, 1990.

Fig.120. Frame, Dreams, Akira Kurosawa, 1990.

292
Esta história, tão simples, continuamente corre o risco de desaparecer e de ser
substituída pela contemplação da paisagem de acordo com um contínuo refluxo e fluxo
na mente do espectador entre os modos de narrativa e panorâmico sob a pressão, ou
contaminação estética, contínua da presença das obras de Van Gogh e da integração
física das personagens nelas.

Essa integração manifesta-se de duas maneiras: primeiro, o personagem entra em


paisagens reais (alguns delas tendo sido objeto de pintura de Van Gogh) que a história
situa no tempo de Van Gogh - como se o protagonista estivesse viajando no tempo,
desde o momento anterior no Museu. Em segundo lugar, ele entra numa dessas pinturas,
literalmente.

A última estratégia domina a parte central do segmento onde os efeitos especiais


permitem o personagem caminhar através de sete sucessivas paisagens de Van Gogh.
Isso resulta num produto final artístico híbrido entre a pintura (ou desenho) e o cinema,
que ainda sugere o filme de animação.

Devido à presença de elementos da narrativa cinematográfica, porque seguimos


um personagem a mover-se de uma paisagem pictórica para uma outra pintura, pode-se
argumentar que o espaço retratado aqui adquire um determinado valor como cenário
espacial, que lhe falta como arte da paisagem cinematográfica.

No entanto, o uso de pinturas de paisagens famosas - num uso “panorâmico” -


permite que o espectador reconstrua cada uma dessas configurações espaciais, embora o
seu valor como paisagem esteja agora sujeito a uma duração cinematográfica: elas
tornaram-se paisagens cinematográficas.

Numa forma diferente, e num método menos tecnológico é usado no início e no


final do segmento: podemos ver o protagonista passar da ponte Langlois em Arles para
os campos de trigo de Auvers-sur-Oise, a magia da montagem tornando momentos e
espaços, na realidade desarticulados, parecerem contíguos dentro da ficção
cinematográfica.227

227
Van Gogh pintou a ponte Langlois em Arles em março de 1888 e os campos de trigo com corvos em
Auvers, em julho de 1890.

293
A transição das pinturas na parede do Museu para as paisagens reais 228 (uma
transição do pictórico para o fílmico) é realizada através de um jogo mimético
deliberado: um plano da pintura (a Pont de Langlois) é seguido pela sua reprodução
cinematográfica na vida real.

A transição é operada por um plano rápido e leve onde a câmara permanece


imóvel, reproduzindo as pinturas. O mesmo processo, embora desta vez para trás, fecha
o episódio: passamos de uma composição da vida real esboçando a composição da
pintura Wheat Field Under Threatening Skies (que integra os corvos por sobreposição, à
maneira de Hitchcock no filme The Birds, 1963) 229, á pintura real na parede do Museu.

Em ambos os casos, o filme em si dá-nos os meios com os quais garantem o


surgimento da paisagem cinematográfica através da copresença das pinturas de Van
Gogh e da sua reprodução cinematográfica.

No entanto, a ascensão da paisagem cinematográfica não diz respeito


unicamente aqueles espaços diretamente relacionados com as pinturas de Van Gogh. Na
verdade, o jogo intertextual de citações pictóricas, juntamente com outros elementos
formais encontrados em todo o segmento, tais como o uso repetido de planos longos,
uma montagem que favorece os temps morts, e um segmento narrativo tão simples que
pode ser largado e retomado com a maior das facilidades - pode ser visto como para
incentivar o espectador nessa mudança, para a frente e para trás, entre uma configuração
de cenário ou de uma paisagem real, com relação à grande parte dos exteriores
paisagísticos do segmento desta história.

Claro, não pode haver dúvidas que os realizadores têm à sua disposição um
grande número de estratégias para fazer o espectador apreciar um filme (ou partes no
designado modo panorâmico) e para dirigir a sua atenção em direção ao espaço de
forma a libertá-lo da sua subserviência à narrativa.

Como já vimos anteriormente no filme Lust for Life, essas estratégias podem
ainda ser integradas na história em si. Por exemplo, a presença de um personagem

228
A ponte que nós vemos é evidentemente um set de filmagem. O original foi destruído em 1926.
Durante a década de 1960, uma réplica idêntica foi descoberta em Fos e transportada para Arles. Pode ser
encontrada na zona sul da cidade.
229
A banda sonora também recorda os pássaros pelo uso de sons eletrônicos para evocar os sons dos
corvos.

294
arrebatado pelo espaço natural, por uma paisagem que se oferece ao seu olhar pode
levar o espectador a contemplar o mesmo espaço, a mesma paisagem como uma
paisagem autónoma.

Entre os numerosos exemplos disto, podemos citar uma cena de The Misfits
(John Huston, 1961), onde, na frente de uma larga vista do Nevada, o personagem
interpretado por Marilyn Monroe grita “it’s like a Dream” seguido de um plano
cinematográfico objetivo da paisagem.

Aqui, a construção narrativa dos segmentos (plano mostrando o objeto do


comentário da personagem) e sua construção visual (o plano) podem levar o espectador
a prestar atenção ao espaço, levado pelo olhar dele, facilitando assim a transformação de
configurações espaciais em paisagem. Em suma, qualquer estratégia para dirigir a
atenção dos espectadores para o espaço exterior, e não em direção à ação que está
ocorrendo dentro dele (independentemente se a estratégia é motivada pela narração)
pode ser atribuída a uma intenção de enfatizar a paisagem.

Por exemplo, com alguns planos de transição (comuns em filmes clássicos)230,


ou mesmo certos temps morts (típicos de cinema mais moderno). Claro, quanto mais a
estratégia em questão é feita pela narração mais o espetáculo das paisagens é legitimado
ou recuperado pelo desdobramento da informação.

Este é o caso com vários planos de transição no cinema clássico. Quer dizer por
planos de transição, os planos que indicam na narrativa uma mudança espaço-temporal
na ação; pode ocorrer em vários pontos do filme, incluindo no início e no final onde eles
podem servir para indicar os limites geográficos da narração.

É nomeadamente o caso de Barry Lyndon, onde Kubrick usa imagens da


residência de Lady Lyndon, Hackton House, como um leitmotiv para introduzir os
diferentes segmentos que ocorrem lá. A função narrativa mínima destes planos consiste
em assegurar a transição entre os dois segmentos e em apresentar a nova configuração
espacial para a ação. Esta função, no entanto, facilmente cede ao que pode ser sentido

230
Estes são também chamados "Planos de fraque". Barry Salt usa os termos "atmosfera inserida", que
ele define como: "um plano de um local nos quais os atores não aparecem," In Film Style and
Technology; history and Analysis. 2ª ed. (Londres: Starword, 1992), 320. De acordo com Salt, é
principalmente depois da década de 1920 que este tipo de plano mais frequentemente aparece no filme
narrativo.

295
como uma intenção de retratar paisagens.

Em Barry Lyndon, é muito tentador imputar esta intenção ao realizador porque


as composições fílmicas em questão evocam paisagens famosas pintadas, Malvern Hall
pintada por Constable em 1809, por exemplo. O plano de transição de um filme clássico
em que a ação é geralmente ausente ou reduzida a um mínimo, portanto, pode ser usado
para chamar a atenção dos espectadores para o espaço.

Apesar de um pretexto puramente narrativo legitimado pela economia narrativa


(o movimento de um segmento para outro e a introdução de uma nova configuração
espacial), isso torna a configuração disponível para ser transformada numa paisagem.

Finalmente, na medida em que a paisagem cinematográfica manifesta-se a um


nível de desprendimento da história aos olhos do espectador - atua precisamente como
uma paisagem autónoma - que não pode se evitar um namoro com um certo tipo de
modernidade. Isto é acima de tudo a modernidade do espetáculo cinematográfico: a
modernidade das atrações, fragmentação e heterogeneidade.

E isto é porque, mesmo nos filmes clássicos narrativos (digamos, em algumas


dos planos de transição de D. W. Griffiths, (1875/1948) no filme Way Down East,
1921231), a paisagem fílmica participa na modernidade, mesmo que apenas pelo nosso
olhar. Isto poderia explicar por que o cinema clássico continuamente tenta contê-la
através de funções técnicas e narrativas como planos transitórios ou pontos de vista
subjetivos. Não deve vir como uma surpresa, portanto, a paisagem ser incorporada na
linguagem visual de vários realizadores modernistas ou na estética avant garde de
numerosos realizadores experimentais.

Este caráter moderno da paisagem está relacionado com a sua autonomia, com o
seu afastamento da narrativa, sempre que isso é feito intencionalmente. A conexão, no
entanto, precisa de alguma elucidação, especialmente se identificamos paisagem
principalmente com a sua manifestação na pintura clássica de paisagem.

231
Way Down East é um drama romântico americano de 1920, mudo e dirigido por D. W. Griffith,
protagonizado por Lillian Gish. É uma das quatro adaptações cinematográficas do jogo melodramático do
século XIX, Way Down East, de Lottie Blair Parker. A versão de Griffith é particularmente lembrada pelo
seu emocionante clímax no qual o personagem de Lillian Gish é resgatado da condenação num rio gelado.
Algumas fontes, citando anúncios de jornais da época, dizem que uma sequência foi filmada num
processo de cor, possivelmente Technicolor ou Prizmacolor.

296
Com efeito, estamos a concluir que é o cinema que se transformou em algo
moderno que não foi “o primeiro moderno”: O problema aqui decorre de uma suspeita,
o uso do adjetivo “moderno”. Enquanto isto não é o” lugar” de uma reconsideração em
grande escala da modernidade nas artes, e em particular no cinema e na pintura, ainda
podemos destacar certos aspetos da pintura de paisagem que, desde o início, tem
enredado dentro de uma teia de questões e problemas que são decididamente modernos.

Duas questões importantes: a questão de estilo; e a relação entre o surgimento da


paisagem e certas transformações da sensibilidade em direção ao espaço europeu, no
momento do nascimento do capitalismo durante o renascimento.

Com relação ao estilo, Christopher Wood tem apontado como, desde o


renascimento, a paisagem ofereceu aos artistas um contexto ideal para enfatizar um
estilo pessoal: “Os cenários exteriores foram especialmente suscetíveis aos dispositivos
do autoengrandecimento e da auto publicidade da persona autoral. A paisagem foi um
local acolhedor para efeitos policromáticos comovedores. Árvores e cordilheiras
incentivaram detalhes excêntricos e linhas caligráficas. Vários textos renascentistas
sobre a aleatoriedade pictórica na verdade associam paisagem com liberdade de
regras"232.

Wood também nos lembra que o pintor Botticelli pintaria paisagem, em parte
nos seus frescos, lançando esponjas contra uma parede (um gesto cuja volatilidade
chocou DaVinci). Ao examinar um esboço desenhado por Dürer intitulado Quarry
(pedreira), Wood então interroga-se sobre a linha de possibilidade de algum tipo de
linhagem entre a paisagem e o “desenho abstrato" de rabiscos: “Talvez a irrealidade
linear e a irreflexão naturalmente derivavam para a paisagem "233.

O argumento de Wood pede-nos para conceber uma paisagem “primitiva” como


uma prática pictórica, cujo trabalho consiste em fazer o estilo visível, o que equivale a
dizer de tornar visível o que é, por definição, isolado e relativamente autônomo do que
do que é figurativamente retratado. Na verdade, é como se um continuum existisse entre
a autonomia de paisagens — de eventos, ação e personagens, ie., do assunto, ergon e da
autonomia da arte, da representação.

232
In WOOD, Christopher, Op. Cit., p. 63.
233
Id Ibid, p. 64.

297
Naturalmente, tal comentário não pretende transformar o berço do modernismo
nas artes da Renascença. A sua finalidade, pelo contrário, é nos alertar para uma
possível linhagem entre a pintura de paisagem e o modernismo (em pintura), como já
descrevemos no segundo capitulo desta tese, e como ele se desenvolveu com o
Impressionismo, um movimento que, como já descrevemos, estava muito preocupado
com a representação da paisagem e com a do artista.

É nesse sentido que voltamos ao comentário de Kenneth Clark, extraído da


conclusão de seu livro, já comentado nesta tese, “A paisagem na arte”: A pintura de
paisagem não pode ser considerada independentemente da tendência de imitação da
natureza como a raison d' ' être da arte. "234

O segundo aspeto diz respeito à relação entre a pintura de paisagem emergente e


as transformações específicas na forma do espaço em que foi concebida e
experimentada durante o renascimento. Estas transformações foram determinadas por
diversos fatores culturais, económicos e científicos.

Estes incluem, entre outras coisas, novas práticas de gestão e do uso da terra, que
aparecem na Europa com o nascimento do capitalismo, especialmente aqueles que
dizem respeito às mudanças entre os relacionamentos da cidade e o país nos séculos XV
e XVI (particularmente na Itália). As novas conceções do espaço e a nova cosmologia
que resultam do estabelecimento das rotas comerciais para a África e Ásia; a conquista
do novo mundo; a melhoria da cartografia; assim como as descobertas científicas de
Copérnico e Galileu.

O geógrafo Denis Cosgrove, (1948/2008) explicou como no vasto contexto da


transição para o capitalismo, a função social da “ideia” da paisagem consistia em unir-
mesmo se instáveis - duas conceções opostas do mundo natural: um mundo “natural
pré-capitalista” ligado à terra e uma relação capitalista “alienada” com ela, a terra. Ele
escreveu:

“A ideia de paisagem possui ambos os tipos de relacionamento que existem


numa união instável, sempre ameaçando cair num qualquer subjetivismo irrefletido
privilegiado onde o sentimento pela terra é incomunicável por meio da linguagem
234
In CLARK, Kenneth, Op. Cit., p. 86.

298
artificial de arte; ou da objetivação da terra como propriedade pura e simples, de uma
visão dos estranhos da terra de onde a alienação está completa e de uma estatística
ponderada que pode ser colocada sobre o” valor da paisagem” de um pedaço de terra,
que pode ser inserida numa relação de análise custo/benefício contra o valor que a
Terra poderia ter como um local industrial.

A origem da ideia da paisagem no Ocidente e das suas expressões artísticas têm


servido em parte para promover ideologicamente uma aceitação da relação da
propriedade, enquanto sustenta a imagem da terra como tradição.

A história da ideia da paisagem é uma exploração artística e literária sobre as


tensões no seu interior até que, com a criação hegemônica do capitalismo industrial
urbano e a cultura burguesa da propriedade, a paisagem perdeu a sua força moral e
artística e se tornou num residual na produção cultural, considerada como um
elemento de subjetividade puramente individual ou cientificamente definido pelo objeto
de estudo académico, particularmente na geografia.235”

Essencialmente, o argumento de Cosgrove está de acordo com aquele de


numerosos teóricos que veem na história da paisagem, bem como no princípio da
autonomia subjacente a isso, a maior narrativa da reificação e alienação da natureza na
época moderna, uma narrativa em que o modernismo forneceu muito frequentemente a
sua mais forte crítica.236

235
In COSGROVE, Denis, A Formação Social e a Paisagem Simbólica (Madison: University of
Wisconsin, 1998), p. 64; ensaio introdutório que acompanha a segunda edição deste trabalho, Cosgrove
oferece uma autocrítica da primeira edição que reflete um pouco sobre o tópico que escrevemos. Mais
especificamente, ele reconsidera a pequena importância que ele tinha inicialmente da paisagem após o
final do século XIX: "no livro eu reivindico aquela paisagem como uma preocupação ativa para a arte
progressiva que morreu na segunda metade do século XIX, após o último toque de romantismo, e que a
sua função ideológica de harmonização das relações sociais e ambientais através do prazer visual foi
apropriada pela disciplina de Geografia. Relendo estas reivindicações, parece que eles derivam mais de
imperativos teóricos associados à tese do livro do que de realidades históricas"(Cosgrove, xx)
236
Ver BARELL, John, The Dark Side of Landscape: the Rural Poor in English Painting, 1730-1840
(Cambridge: Cambridge University Press, 1980); Ann Bermingham, Landscape and Ideology. 1740-1860
(Berkeley: University of California Press, 1986).

299
Fig.121. Frame, Teorema, Pier Paolo Pasolini, 1968

Fig. 122. Frame, Teorema, Pier Paolo Pasolini, 1968

300
Talvez estas problemáticas estilísticas e culturais podem servir para explicar pelo
menos em parte — a presença marcante da paisagem no trabalho de muitos realizadores
modernos (Pasolini, Antonioni, Godard, Wenders, Tarkovsky, por exemplo). Nos filmes
destes cineastas, ela encontra um terreno fértil de fato.

3.3.4.2 O Teorema da Paisagem em Pasolini.

Este é o caso, por exemplo, no Teorema (Pier Paolo Pasolini, 1968), onde
imagens de um deserto vulcânico repetidamente interrompem o fluxo narrativo. Este
deserto é um espaço extra narrativo onde falta a função narrativa: nunca é o cenário para
a ação pertencentes ao universo narrativo do filme; a sua conexão com a narração em
vez disso é puramente simbólica.

Na medida em que esse lema é autônomo no que diz respeito à narrativa, este
espaço evoca a presença organizadora do realizador e assegura (juntamente com outros
traços) uma recusa do realismo psicológico, uma recusa de causalidade clássica, o uso
de uma montagem elíptica, um enquadramento incomum, uma heterogeneidade
estilística e uma estética modernista do filme.

Mas se a ausência de motivação narrativa serve este projeto estético, também


corre o risco de favorecer o surgimento de uma paisagem autónoma. Poderá ser refutado
que a autonomia em questão não é absoluta e que as imagens do deserto vulcânico que
participam na (moderna) temática da alienação burguesa, elaborada pela narrativa do
filme. Com efeito, o deserto (que aparece pela primeira vez nos créditos de abertura237)
pode ser tomado como nem mais nem menos do que uma metáfora para a aridez
espiritual do mundo “desnudado” moderno.

Esta interpretação é tornada possível por, entre outras coisas, o enganador “jogo”
que conecta o deserto com a plataforma na estação de Comboios de Milão (a
configuração narrativa para a cena) no final do filme. Como resultado, esta relação

237
Este é, talvez, uma outra maneira da paisagem de vinculação para a presença organizadora do
realizador. Como observa David Bordwell, do ponto de vista narratológico: "normalmente, a abertura e o
fim de [um] filme são uma passagem mais auto-consciente, oniscientes e comunicativas. A sequência e os
primeiros planos usam vestígios de uma narração evidente."Narration in the Fiction Film, op cit, 160.

301
institui uma continuidade "simbólica" entre os dois espaços".

E neste sentido, os últimos planos do filme que mostram um homem nu vagando


no deserto permitem-nos ver este espaço como uma configuração espacial simbólica,
que é dizer como a definição de uma ação simbólica não narrativa: assim como o
homem fica nu, isto (deserto) é Milão (o mundo burguês moderno em geral) feito nu.

Agora, parte da ambiguidade desaparece se recordamos que "a configuração


espacial" e "a paisagem" constituem duas formas que podemos conceber, que
representam o espaço fílmico e que ambas são dependentes de modos operativos do
espectador que fluem e refluem no tempo. No entanto, a pergunta permanece: o que é
que no filme nos direciona o olhar do espectador em direção à paisagem do deserto?

Já referimos a autonomia do deserto da narração. Outro elemento que pode ser


adicionado é a composição pictórica, que prossegue sobretudo através de planos de
longa distância. Neles encontramos uma dimensão adicional que, paradoxalmente,
determina mais a autonomia do deserto ao reinicia-lo, para o resto do filme: e determina
o seu status "simbólico".

Uma das características de muitas obras modernas é da sua tendência de ostentar


a sua “interprenabilidade” e uma profundidade hermenêutica através de uma recusa de
uma transparência e de um "realismo". Obviamente, o deserto de Teorema participa
nesta estética, em parte pela sua recusa em integrar-se na narrativa do filme. Por
conseguinte, exige um trabalho hermenêutico para descobrir como o espaço oferecido
para o espectador está ligado aos outros elementos do filme.

Somente através deste trabalho é possível ver, no deserto, uma representação


simbólica ou metafórica de Milão e, por extensão, do mundo moderno. Para fazer isso,
no entanto, é primeiro necessário "parar" no meio do deserto, para prender o nosso olhar
e tomá-lo como é — ou seja, para contemplá-lo como uma paisagem — antes de passar
para interpretar outros elementos do filme. Talvez escusado será dizer que esta tarefa é
facilitada pelo desprendimento do deserto da história.

Embora não uma regra, podemos dizer que como muitos realizadores modernos,
a intencionalidade para a paisagem manifesta-se de acordo com duas estratégias
distintas: paisagens que aparecem durante as partes calmas na história (temps morts); ou

302
elas aparecem em momentos livres de qualquer motivação narrativa.

No primeiro caso, é o espaço da história, a configuração espacial, que se torna


autónoma e adquire o valor da paisagem; na segunda, o espaço da história dá lugar a
outro espaço, um espaço que é "deslocado" ou arbitrário em termos do progresso
narrativo.

3.3.4.3. L'avventura versus Blow-up. Paisagens em Antonioni.

No trabalho de Michelangelo Antonioni (1912/2007) a primeira abordagem


domina as suas preocupações com a paisagem. (É a mesma coisa com Wenders, outro
realizador cujos filmes dão muita importância ao espaço). Em certos momentos, as
histórias de Antonioni parecem evaporar-se, deixando a paisagem emergir: as suas
histórias são um pouco como a personagem de Anna em L'avventura (Antonioni, 1959),
que desaparece misteriosamente de uma ilha deserta e do filme em si; ou como Thomas,
o personagem principal em Blow-up (Antonioni, 1966), que literalmente “escorrega
para fora” no último plano do filme, deixando no seu lugar o verde da relva de um
parque de Londres, que remete-nos para um verde instantâneo, nome de um subcapitulo
desta tese.

Sabemos que Antonioni atuou ali por descentralização; no filme L'avventura, e


da descentralização do desaparecimento da Anna que permite uma centralização da
narrativa em torno do relacionamento de Claudia (Monica Vitti) e do Sandro; e em
Blow-up, a centralização no assassinato no parque privilegia uma reflexão sobre a arte, a
representação e da realidade através do personagem do fotógrafo.

Por outras palavras, o que poderia ser objeto da narrativa no modo clássico (um
desaparecimento e uma morte questionável para explicar) é dada uma importância
secundária. Do ponto de vista formal, essa inversão do ergon e do parergon é análoga
ao processo que, como já vimos, deu origem à paisagem na pintura europeia. Portanto,
será de espantar ver as paisagens emergindo nos filmes de Antonioni238.

238
Antonioni, é claro, é geralmente considerado um cineasta "urbano". Alguns críticos, como Antonio
Costa, consideram que as suas "paisagens naturais" são subservientes ao seu olhar urbano: "[com
Antonioni, a paisagem extra-urbana 'natural' é vista, elaborada, interrogada pelo mesmo olhar que vê e

303
Fig.123. Frame, L'Avventura, Michelangelo Antonioni, 1960.

Fig.124. Frame, L'Avventura, Michelangelo Antonioni, 1960.

interroga o espaço urbano. A paisagem natural e a paisagem urbana são intercambiáveis: a primeira
não é diferente da segunda. " Antonio Costa, "Le regard du flâneur et le magasin culturel," in
Michelangelo Antonioni 2, 1966/1984, Ed. Lorenzo Cuccu (Roma: Ente Autonomo Gestione Cinema,
1988), p.124.

304
O filme L’Avventura, recordamos, foi galardoado no Festival de Cannes em
1960 “pela beleza das suas imagens”, como se essas imagens podem ser desanexadas ou
processadas autónomas dos outros elementos do filme — elementos que incluem
claramente a história.

Desde então, muitos teóricos têm salientado a predominância da imagem da


paisagem nos filmes de Antonioni.239 Para retornar para os dois filmes citados
anteriormente, é importante perceber o quão difícil pode ser para assistir L'avventura
sem o nosso olhar persistente (mesmo que apenas por um momento) na ilha rochosa
onde Anna desaparece; ou da mesma forma, para assistir o Blow-up sem ver o parque —
e as fotos do Parque — independentemente do que se passa neles.

Claro, se nós podemos atribuir a Antonioni a intenção de apresentar uma


paisagem, é porque o tratamento fílmico pode levar-nos a ver o espaço como autônomo
e desconectá-lo da sua função narrativa, no modo panorâmico.

Em L'avventura, por exemplo, o segmento longo na ilha após o desaparecimento


da Anna aumenta o número de temps morts. Alguns críticos já observaram a
importância deste traço estilístico com Antonioni, que é criado simultaneamente na
montagem, na mise-en-scène e no trabalho de câmara.

Seymour Chatman vê este traço, "O mais característico efeito estilístico de


Antonioni."240 Seymour descreve como a apresentação do espaço da “pré-narrativa” (a
visão de um espaço antes da chegada dos personagens) e o avanço da ação ou do espaço
"pós-narrativa" (o modo de exibição de um espaço após os personagens e a ação o terem
“abandonado”). A seguinte citação torna explícita a ligação entre o espaço narrativo, do
espaço da pré e da pós-narrativa colocada em funcionamento por temps morts
temporários.

239
Diversos críticos observaram este aspeto do cinema de Antonioni. Assim, Seymour Chatman escreve:
"Ele [Antonioni tem praticamente retornado ao cinema com a predominância do visual que perdeu
importância com o advento do som," In Antonioni, or the Surface of the World (Berkeley: University of
California Press, 1985), p. 89; doravante citados no texto; e Peter Brunette: "É verdade que muito do
efeito de Antonioni vem da faixa visual de seus filmes (em oposição ao diálogo enredo, personagem e
assim por diante) "em The Films of Michelangelo Antonioni (Cambridge: Cambridge University Press,
1998), 30.
240
Id Ibid, p. 45.

305
Fig. 125. Frame, L'Avventura, Michelangelo Antonioni, 1960.

Fig. 126. Frame, L'Avventura, Michelangelo Antonioni, 1960.

306
“O objetivo não é apresentar "o mesmo lugar", mas a possibilidade que é na
realidade "outro lugar", talvez até mesmo um lugar exterior à narrativa fílmica. A cena
é portentosa consumada por um atraso que desafia todo o tecido da ficção. O filme diz
que não, que "isto é tal e tal um lugar, em que evento X ocorre," mas sim que "este
lugar é bastante importante independentemente das necessidades imediatas do enredo,
e o espectador terá sentido (e entendido) o seu valor estranho, se ele for investigá-lo
mais cuidadosamente. Por isso eu dou-vos tempo para fazê-lo. Este tipo de plano não
preparou o cenário para algum outro plano..., é o cenário em si próprio.

Não que o simples espaço de estase é alterado num evento ou numa ação. É
mais com que a câmara seja perseverante e faz do lugar como que “grávido” com o
significado. Contemplamos atentamente, de forma paralela, mas separada das
personagens. Estamos empenhados, mesmo antes de eles, os personagens fílmicos,
chegarem, ou depois que eles partem, numa análise que não entendemos muito bem,
mas que, no entanto, parece urgente.” 241

Se Chatman fala aqui de temps morts no trabalho de Antonioni, a sua descrição


mostra que estes temps morts são igualmente uma preocupação espacial.
Essencialmente, temps morts são uma forma de processamento do espaço, uma maneira
de tirá-lo do filme de continuidade e do desenvolvimento narrativo, a fim de distingui-lo
e para torná-lo autónomo aos olhos do espectador.

Como resultado, o espaço durante estes temps morts é claramente distinto da


configuração da ação (ou num sentido ligeiramente diferente de Chatman, do "espaço
diegético"). Dito isto, não pretendemos tornar essas temps morts e o seu espaço
sinônimo de paisagem: nem todos os temps morts cinematográficos envolvem a
paisagem, longe disso. Pelo contrário, apenas pretendemos trazer à luz a afinidade que
existe entre esses temps morts e as paisagens cinematográficas, e que resulta da maneira
em que eles podem destacar este espaço cinematográfico.

Um ponto marcante sobre os filmes de Antonioni e do uso de temps morts é o


quanto puderem demonstrar, dentro de um contexto modernista, o estado de mudança
do espaço cinematográfico, o movimento de vai-e-vem entre o ambiente e a paisagem.
Talvez em nenhum lugar é isso melhor ilustrado do que em Blow-up, um filme que

241
Id Ibid, 125-126.

307
incorpora a questão da arte da paisagem na sua narrativa de uma forma que contribui
para os numerosos aspetos reflexivos do filme e desta nossa reflexão em forma de Tese.

Além disso, Blow-up usa os temps morts e a sua relação na configuração da


paisagem em que estabelece uma forma, salientando no cinema o duplo estatuto de
ambos numa narrativa (ou seja, temporal) e visual (ou seja, espacial) art. O locus
principal de ligação entre a configuração espacial e a paisagem é o parque de Londres,
onde Thomas, um fotógrafo profissional, tira a uma série de fotos.

É claro, nunca sabemos o que impulsiona o fotógrafo para vir para o parque em
primeiro lugar, mas é interessante notar que, antes de se aventurar no jardim, o jovem
para numa loja de antiguidades e pede para ver algumas paisagens! Será que este desejo
de paisagem motivou o seu súbito interesse no parque? Qualquer outra coisa que pode
indicar, esta breve informação, é provável que predispõem o espectador para o
surgimento das paisagens cinematográficas.

Além disso, várias das fotos tiradas por Thomas no parque podem-se qualificar
como “arte da paisagem”, que não, no entanto, impede que o seu status — e o status do
Parque — se alterem, como veremos. Para obter uma compreensão clara da situação, no
entanto, é importante considerar, apenas brevemente, que o parque tem dois modos
pictóricos de aparição no filme: o fílmico e o fotográfico.

Do ponto de vista das suas aparições cinematográficas, o parque é sem dúvida o


cenário para uma série de ações e eventos sobre Thomas: ele tira fotos, ele interage com
uma jovem, um cadáver é descoberto e desaparece, ele interage com uns mímicos, etc.
Mas o parque é também uma paisagem.

Cada espectador é livre de considerar e de ver esse espaço como uma paisagem
pessoal,242 mas — e isso é o que nos preocupa no momento — também podemos
imputar a Antonioni a intenção para retratar a paisagem baseada no tratamento visual,
que o Parque recebe (especialmente no uso de temps morts).

Um exemplo de muitos ocorre no final do primeiro segmento no parque quando

242
In ROPARS, Marie-Claire, "L'espace et le temps dans la narration des anées 60," In Michelangelo
Antonioni 2, 1966/1984.

308
a jovem (interpretada por Vanessa Redgrave) vagueia lentamente o caminho em direção
à parte inferior da câmara e depois sai da imagem. A câmara permanece imóvel e
oferece-nos ao longo de um plano uma seção do parque e a contemplação da paisagem
por um breve momento.

Em suma, graças aos temps morts temporários após o desaparecimento da jovem


mulher (tempo de "pós-narrativa"), a história parece desvanecer-se: tudo o que resta é o
parque, uma paisagem abraçada pelo olhar da câmara. Mais tarde, no segmento mais
famoso do filme, o parque reaparece sob a forma de fotografias que Thomas olha,
analisa, estuda, explora e organiza.

Como já referimos, algumas destas fotos parecem, genericamente, ser


fotografias de paisagem. Na maior parte, lembram imagens desde a primeira cena no
parque; aqui, no entanto as imagens do parque são apresentadas sob a forma de
trabalhos fotográficos autónomas que, por definição, são temps morts.

O uso da fotografia é interessante neste contexto porque se reproduz e se


materializa o processo de autonomização — de "prender" a imagem — que é necessário
para o surgimento da paisagem cinematográfica na mente do espectador. Este é
igualmente o caso em algumas das fotos do casal enquadrado num longo plano, que são
"desnarrativados" pelo tratamento fotográfico que passaram.

Aqui, dois processos são utilizados para permitir que a paisagem se desvaneça.
Em primeiro lugar, as ampliações de Thomas (bem como os reframings e o trabalho de
câmara de Antonioni) introduzem uma variação na escala do plano das fotos. O que era
originalmente um plano completo torna-se num plano médio, num close-up médio, num
close-up até a um extremo close-up, como um microscópio que explora até à exaustão
um organismo.

Este movimento em direção às pessoas fotografadas, em direção á ação


representada tem o efeito de empurrar a paisagem de volta para a margem, e o papel
acessório da configuração da paisagem parece, assim esconder uma narrativa.

309
Fig.127. Frame, Blow-Up, Michelangelo Antonioni, 1966.

Fig.128. Frame, Blow-Up, Michelangelo Antonioni, 1966.

310
Uma análise, que deve ser tomada literalmente, porque desde as sucessivas
ampliações das fotografias, mostra um homem meneando um revólver escondido num
arbusto e um cadáver deitado apenas a alguma distância desse arbusto.

Depois, há a montagem. Ao colocar as suas imagens lado a lado, o fotógrafo


torna-se um editor: seguindo parte de uma lição de Eisenstein, ele tenta dar sentido às
imagens com a justaposição delas. E é neste momento que a montagem cinematográfica,
no sentido estrito do termo, aparece. Desfilam diante de nossos olhos, num plano
completo, as fotos alargadas, repensadas para reintroduzir a temporalidade (a sequência
de imagens) e sugerem a trama da história e também uma eventualidade narrativa.

Mas o resultado é uma história largamente elíptica, sobre o qual vamos


basicamente nada saber; (para usar um termo emprestado da semiótica de C. S.
Peirce243) é uma espécie de narrativa rheme, ou seja, um sinal interpretado como o de
uma mera possibilidade e nada mais. Marie Claire Ropars244, que analisou este
segmento muito bem, fala de "outra possível, história incognoscível " escrita dentro da
temporalidade da narrativa do Blow-Up245. Tudo o que concluímos com esta
possibilidade, o efeito "espacial" do segmento é empurrar a paisagem para dar o seu
lugar para a configuração espacial. Em outras palavras, a paisagem dá lugar à ação na
mente do espectador.

Além disso, uma vez submetido a manipulação fílmica (variações no frame,


movimento da câmara, edição), que aparece inicialmente como uma calma e tranquila
imagem (típicos adjetivos para descrever a arte da paisagem) é capaz de apresentar
exatamente o contrário: a violência e a morte. " Com estas amplitudes, Antonioni,
portanto, oferece um caminho que conduz desde os temps morts da representação visual

243
Charles Sanders Peirce (1839-1914) foi um filósofo, um lógico, um matemático, e um cientista
americano que é conhecido muitas vezes como "o pai do pragmatismo". Recebeu uma educação
académica como químico e trabalhou como cientista. Hoje ele é apreciado em grande parte pelas suas
contribuições à lógica, matemática, filosofia, metodologia científica e semiótica, e pela sua fundação do
pragmatismo. Ele fez grandes contribuições para a lógica, mas a lógica para ele abrangia muito do que
agora é chamado epistemologia e filosofia da ciência. Ele via a lógica como o ramo formal da semiótica,
da qual é o fundador, que prenunciou o debate entre os positivistas lógicos e os defensores da filosofia da
linguagem que dominou a filosofia ocidental do século XX; definiu o conceito de raciocínio abdutivo,
bem como a indução matemática rigorosamente formulada e o raciocínio dedutivo.
244
Marie-Claire Ropars (1936 /2007) foi uma importante teórica da literatura, do cinema e da estética. Foi
professora na Universidade de Vincennes (Paris VIII).
245
In ROPARS, Marie-Claire, Op. Cit., p.214.

311
Fig.129. Frame, Blow-Up, Michelangelo Antonioni, 1966.

até á morte inscrita neles. Ele faz isso através da mediação da narrativa. Mas há mais,
nos dois extremos da cadeia narrativa formada pelas fotos, existem duas imagens: uma
foto do parque e uma ampliação (um alargamento) desta mesma foto. A composição da
primeira imagem é (quase) idêntica ao longo plano, que mostra a jovem correndo para
longe e o seu desaparecimento no frame no segmento discutido anteriormente: é uma
foto de paisagem.

A segunda imagem, que termina o ciclo das ampliações, amplia um detalhe


desde o primeiro até o ponto onde não aparece mais nada senão o grão fotográfico;
todos a figuração desaparece, e a foto assume a aparência de uma pintura abstrata —
como a amiga de Thomas ressalta mais tarde, corretamente.

A passagem de uma foto para a outra é assegurada por duas impressões


intermediárias que ampliam a imagem inicial do parque, mostrando inequivocamente o
cadáver de um homem, um fato introduzido imediatamente na narrativa em
desenvolvimento das fotos.

Este caminho de uma foto para a outra, bem como o processo técnico empregado
(ou seja, a ampliação) sugerem claramente a existência de um continuum entre as duas
imagens: uma é gerada pela outra. Entre as duas, encontra-se a narrativa vaga de uma
morte.

312
Existem inúmeras interpretações possíveis destes elementos e dos seus
relacionamentos para que cada um outro exista; ainda, há um de particular interesse para
nós aqui, porque constitui a sequência das ampliações fotográficas, como uma espécie
de alegoria: uma alegoria de uma história — da arte e, mais precisamente, a morte da
arte figurativa — realizado na passagem da representação da paisagem de abstração.

Comentando sobre o trabalho de Kenneth Clark, W.J. T. Mitchell observa que


para ele e muitos outros historiadores de arte, A pintura abstrata... constitui um dos
resultados da história da paisagem.246

Uma analogia entre o papel dos temps morts no trabalho de Antonioni e o papel
da paisagem na história da representação resulta assim: a extensão dos temps morts —
que causa que a paisagem do cinema de Antonioni pode contribuir - para a morte da
narrativa fílmica, como a paisagem tem contribuído para a morte da arte figurativa.

3.3.4.4. A Paisagem indiferente de Jean-Luc Godard.

Agora, sobre a segunda abordagem que o cineasta modernista tem em relação á


paisagem, poderíamos afirmar que já encontramos um exemplo com os vulcânicos
desertos do filme Teorema não se fosse a importância que esta abordagem tem na obra
de Jean-Luc Godard (1930). Assim, merece um (muito) breve comentário. Embora
presente desde a década de 1960 (por exemplo, Le Mépris de 1963), a paisagem tem
ocupado um lugar particularmente importante na obra de Godard na sua já longa
carreira.

Este é o caso com filmes como a paixão (1982), Prénom Carmen (1993), Je vous
salue Marie (1985), Rei Lear (1987), Nouvelle vague (1990), Allemagne année 90
(1991) e Hélas pour moi (1993). Ocasionalmente, Godard faz a paisagem emergir do
espaço narrativo através do uso de temps morts ou simplesmente deslocando o olhar da
câmara.

Em Le Mépris filmado inteiramente em Itália, entre Roma e a ilha de Capri, o

246
In MITCHELL, W. J. T., Op. Cit., p.13.

313
filme está cheio de contradições: não só de caráter, especialmente nas protagonistas
femininas, mas da forma como Godard escolhe traçar uma tragédia moderna no centro
(Roma) e no sul (Capri) de Itália, mesmo no verão, onde a luz e o sol reinam. A
obscuridade dos sentimentos e da escuridão da alma contra o esplendor e a majestade de
uma paisagem indiferente à miséria humana.

Não só a Itália pode substituir a antiga e épica Grécia, como em Roma há os


úteis estúdios Cinecittà, onde partes do filme foram filmadas: mas a forte luz do sol
italiano, a paisagem mitológica do mediterrâneo não aquece o coração humano nem
ilumina as consciências dos personagens. No entanto, não há nada de épico neste mundo
moderno: a luz permanece brilhante, mas já não é um espelho da alma; Não esclarece a
relação entre o marido e a mulher; contradiz essa relação, e se alguma vez ofusca, cega
ainda mais a sua visão e os seus pensamentos

Por exemplo, no início da seção intitulada "Incipit lamentation" em Nouvelle


Vague, Godard filma obstinadamente uma árvore (bem como os pedaços de céu visível
entre seus ramos) e deste modo desloca o olhar da câmara (e, com isso, nosso próprio)
longe da ação ocorrendo vários pés de distância.

Do ponto de vista de uma narrativa, o trabalho da câmara e edição são assim


"desmotivados". O resultado é uma redistribuição das funções clássicas da ergon e do
parergon. Para este momento, é configuração espacial que se torna paisagem — não o
evento (um acidente na estrada) — que ocupa a atenção da câmara e constitui o centro
de gravidade da imagem. A partir daí, a ação parece secundária.

Na segunda parte do filme, uma observação do personagem chama a atenção


para este processo: "Que se tornam visíveis," Elena diz para Lennox, "no lugar onde eu
desaparecer" ("Tu deviens visível à la place où je disparais"). Neste exemplo, a
configuração e paisagem ainda compartilham uma certa contiguidade espacial.

A abordagem típica de Godard, no entanto, consiste em romper brutalmente


todos a proximidade entre os dois. Para conseguir isso, Godard usa em uma das suas
estratégias de edição preferidas: a inserção de uma não-narrativa. Por exemplo, ele
apresenta uma foto (geralmente estática), mostrando o mar, um lago, o céu, uma floresta
ou uma clareira, no meio de um segmento ou entre dois segmentos. Em contraste com

314
os planos de transição clássicos, que estabelecem a configuração para uma nova cena, as
inserções da paisagem de Godard não são de nenhuma maneira motivadas pela ação.

Muito pelo contrário, eles interrompem ou abrem o fluxo da ação. Se, como
explica Chatman, os temps morts dão a impressão de "um outro lugar", então isto é o
que é oferecido literalmente pelas paisagens inseridas nos filmes de Godard. Os planos
cinematográficos deste tipo são abundantes na maioria dos filmes que dirigiu desde a
década de 1960. A sua presença liga uma certa transcendência (mesmo que apenas em
relação a história) e contemplação e contribui para a elaboração de uma estética que
procura cada vez mais a expressão do sublime.

Como se estes entranhados narrativos da paisagem, que oferecem uma imagem


da realidade material, os "outros lugares" da história, também sugerem o que não pode
ser representado, porque sugerem uma “implosão” da imagem e da imaginação.

Não é de estranhar que, após as suas incessantes interrogações sobre o status da


imagem, Godard eventualmente chega a clímax interrogativo cinematográfico— em Je
vous salue Marie ou pare pour moi, o problema da encarnação do divino e da analogia
do ser.

Este é um problema simultaneamente filosófico, teológico e estético e vai para a


consciência dos debates sobre as imagens na cultura ocidental. É também um problema
levantado pelas paisagens de Godard com uma insistência confinando a obsessão.

315
Fig. 130. Frame, Le Mépris, Jean-Luc Godard, 1966.

Fig. 131. Frame, Le Mépris, Jean-Luc Godard, 1966.

316
3.3.4.5. Manuel de Oliveira e a paisagem como tragédia.

Na paisagem do Vale do Douro, Ema coabita com o pai e é instruída numa


“paisagem familiar” de grande sensibilidade poética. Como uma mulher bonita e
sensual tem um irresistível gosto pelas ficções românticas, que acaba por nunca
conseguir encontrar perfeito contentamento junto dos homens que se aproximam, desde
logo casando com um médico que nunca amou.

No seguimento de uma veemente vida social, Ema, vai envolver-se numa


constante busca de paixões, opulência e provocações, cuja beleza e o seu espírito
provocatório lhe vão valer o cognome de "Bovarinha", uma versão moderna e nacional
da icónica "Bovary" do francês Flaubert. Por fim, dececionada e fracassada, Ema, “caí”
afogada no Douro, sem nunca se chegar a perceber se foi um acidente ou um suicídio.

"Vale Abraão" parte da adaptação ao cinema da obra homónima de Agustina


Bessa-Luís, por sua vez um exercício literário inspirado na "Madame Bovary".

O título Vale Abraão coloca a ênfase num contexto espacial específico. Esta
dicotomia identificadora do espaço e da paisagem, destinado ao sofrimento, mas
também propício ao prazer e à volúpia, define igualmente o destino da personagem
principal - Ema é apresentada em uníssono com a paisagem, um rosto dessa paisagem,
numa simbiose quase perfeita com a água do rio, a água que é também um símbolo do
Gênese, do nascimento, e para os Vedasé chamada de "mâtrimâh", que significa "a mais
materna".

Nos mitos dos heróis ela está sempre associada ao seu nascimento ou ao
renascimento. Mitra, por exemplo, nasceu nas margens de um rio, enquanto Cristo
"renasceu" no Rio Jordão. Dessa forma, o rio sempre nos reporta à origem das coisas,
do mundo, dos seres. Esse rio que parece deslizar languidamente ao longo daquele Vale,
sem grandes convulsões, num balançar constante, dividindo as duas margens do rio,
separando-as em metades diferenciadas e, ao mesmo tempo, coexistindo e fazendo parte
daquele todo que é a paisagem do Douro.

“O vale do Douro com os seus ritos vinhateiros, o mundo dos sonhos, desejos
imaginários, é o centro ficcional do filme. Vemo-lo apresentado e sacralizado pela voz

317
do narrador e, em termos imagéticos, enquadrado desde o início por um travelling a
partir do interior do comboio, que o penetra, deixando transparecer o fascínio
documentarista sempre presente na obra de Manoel de Oliveira.”247

A ausência do espaço citadino atribui á paisagem do Douro uma importância


capital, revelando um cosmos de rurais, burgueses, patrões e empregados domésticos.
Para Agustina Bessa-Luís, o filme - “é um fresco belíssimo sobre o Douro e um retrato
bem conseguido sobre o mundo da aristocracia que habita a região.”248

O espaço percorrido é passado, o movimento é presente, é o ato de percorrer249

Em 2010, o olhar de Manoel de Oliveira voltou novamente a uma paisagem


particular, bem conhecida do realizador desde o seu primeiro documentário — Douro,
Faina Fluvial —, filmado 79 anos antes. No filme O Estranho Caso de Angélica, um
campo de vinhas surge como leitmotiv da mudança e da passagem dos dias: dos
métodos tradicionais e artesanais da agricultura à utilização de aparelhos agrícolas 250.

Este filme é a concretização de um projeto perseguido ao longo de várias


décadas. Mantendo o essencial da história, Oliveira adaptou-a aos dias de hoje: “Uma
noite, Isaac, jovem fotógrafo, hóspede da pensão de Dona Rosa na Régua, é chamado
de urgência por uma família rica para tirar o último retrato da filha da mesma,
Angélica, uma jovem que morreu logo após o casamento. Na casa em luto, Isaac
descobre Angélica e fica siderado pela sua beleza. Quando coloca o olho na objetiva da
sua máquina fotográfica, a jovem parece retomar vida, apenas para ele. Isaac fica
instantaneamente apaixonado por ela. A partir daí, Angélica atormentá-lo-á noite e
dia, até ao esgotamento.”251

O quarto do jovem fotógrafo tem uma janela-varanda sempre aberta para o


Douro e para os montes esculpidos de socalcos. O rio ocupa um lugar central e de
separação de dois planos no enquadramento de Oliveira: a partir do quarto avistam-se os

247
In LOPES, Célia Maria Sousa, O Bovarismo ou a busca do absoluto no filme Vale Abraão de Manoel
de Oliveira, Tese de Mestrado em Estudos Francófonos, Universidade Aberta, Lisboa, 2010.
248
OLIVEIRA, Manoel de – Vale Abraão, com Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra, Ruy de Carvalho.
Portugal/França/Suiça, 1993, 187mn (versão integral 203mn), DVD, Madragoa filmes.
249
DELEUZE, Gilles. L’Image-Mouvement, Paris, Éditions de Minuit, 1983, p.9.
250
O campo e as transformações de cultivo tinham também ocupado um papel central, por exemplo, em O
Pão, 1959. Cf. João Fernandes, «O Cinema Sazonal: A Evolução do Cinema Particular de Manoel de
Oliveira», in M. O. 2/3, Porto, Museu de Serralves, Civilização Editora, 2008.
251
In Folhas da Cinemateca Portuguesa.

318
Fig. 132. Frame, Vale Abraão, Manoel de Oliveira, 1993.

Fig. 133. Frame, Vale Abraão, Manoel de Oliveira, 1993.

319
campos na outra margem e, do outro lado do Douro, a partir das vinhas, a paisagem
urbana.

As perspetivas dos campos de socalcos ou da cidade são mostradas de um só


relance, num frame, que surge em seguida e de modo contínuo no movimento
Cinematográfico. As vertentes com as vinhas são constantemente seguidas pelo seu
olhar, pelos seus binóculos e pela lente fotográfica de Isaac, tal como o fotógrafo que
descrevemos no filme Blow-Up.

Este “frame” corresponde, com frequência, ao que Isaac entrevê, validando que
“a paisagem não é o país, mas uma certa maneira de o ver [...], é o país percecionado
do ponto de vista de um sujeito”252.

“O espaço e a paisagem observados pelo fotógrafo são, aliás, muito diferentes


do entendimento de mundo dos restantes habitantes da pensão da D. Rosa. Também a
presença do vento se sente como um índice na paisagem: nos percursos oníricos em que
Isaac sobrevoa o Douro, os campos e as cidades, acompanhado de Angélica, são feitos
num fluxo-passagem de ar a preto e branco, representando em simultâneo o contraste
com a realidade e pressupondo o seu desfecho narrativo.”253

A experiência mediada através do olhar do fotógrafo é exemplar da construção


cinematográfica de Oliveira. Nos filmes de Manoel de Oliveira, a mediação faz-se
sentir, deixa um rasto que é em larga medida afirmado por uma câmara que pouco se
desloca, num enquadramento quase pictural de frames paisagísticas.

A paisagem representada tem uma ligação mediada com o real, relacionando-se


com o seu objeto de forma indícial ou simbólica. As fotografias de Angélica
demonstram o princípio criativo de Manoel de Oliveira: o objeto não é anunciado de
modo palpável, sugestionando uma presença. Pela lente, pela representação artística
fotográfica ou cinematográfica, Oliveira não pretende «atingir um real que existirá
independentemente das imagens; mas atingir um antes e um de pois tal como coexistem
com a imagem, tal como são inseparáveis da imagem254».

252
COLLOR, Michel; Paysage et Poésie du Romantisme à nos jours, Paris, José corti, 2005, p.193.
253
In PAIXÃO, Ana, Uma Escrita da Temporalidade, Perspectivas da Paisagem. In Coloquio Letras, N.
179, Lisboa. 2012.
254
In DELEUZE, Gilles Cinéma I – L’image-mouvement, Paris, Éditions de Minuit, 1983, p. 9.

320
“Além do tempo de cada still e do movimento originado pela sucessão das
diversas frames, os signos cinematográficos modelam uma pluralidade de
temporalidades que se concentram e se fundem no discurso fílmico. Isaac transita
constantemente entre o presente e o passado e os campos do Douro são exemplares da
fusão de tempos, ao introduzirem o leitmotiv da mudança.”255

Até este ponto, examinamos algumas das estratégias que os cineastas usam para
fazer paisagens visíveis e introduzi-las em filmes de ficção. Sem dúvida, existem outros,
e a nossa análise não pretende oferecer um inventário exaustivo. Em vez disso, é
importante salientar mais uma vez que estas estratégias podem ser interpretadas sem
muito equívoco como indicando a intenção de mostrar uma paisagem.

Como resultado, elas carregam o risco- ou, dependendo da situação, a vantagem


- da narrativa ficar “oprimida” pelo espetáculo, pelos eventos ou sendo oprimida por
imagens autónomas.

Tudo isso ocorrerá na medida em que estas estratégias incentivam a visualização


de um filme no modo panorâmico. Mas é igualmente necessário reconhecer que este
“modo panorâmico” não é imputável, porque sempre poderia ser visto como uma
intenção por parte do cineasta. Existem casos em que o espectador da obra é
responsável para a “emergência da paisagem!”. Esta é a segunda situação paradigmática
observada anteriormente, a que agora voltamos antes de concluir.

3.3.5 “O Olhar de Paisagem”: A Paisagem do espectador e a paisagem


"impura".

Mesmo que o nosso objetivo aqui seja considerar a relação do cinema da


paisagem com o olhar do espectador, será útil voltar brevemente à história da paisagem
na pintura. Entre outras coisas, isto proporcionará uma melhor justificação para a nossa
recusa de considerar a presença da paisagem no filme com base em considerações
formais isoladas.

255
In PAIXÃO, Ana, Uma Escrita da Temporalidade, Perspectivas da Paisagem. In Coloquio Letras, N.
179, Lisboa. 2012.

321
De fato, se voltarmos às questões suscitadas pelos historiadores de arte sobre o
trabalho de Patinir, deve tornar-se claro que a paisagem não pode ser definida
unicamente através de características formais. Por esta razão, nós tentamos enfatizar
uma abordagem interpretativa: onde a paisagem e a configuração espacial exigem
interpretação. No entanto, tal como um viés interpretativo não é nem
metodologicamente nem historicamente óbvio.

Por um lado, como já vimos anteriormente, para os estudiosos de Patinir, em


qualquer lado do debate que se encontram — estes tradicionalmente olham para
justificar as suas interpretações através de características formais adequadas aos
próprios trabalhos (alguns também tem em conta a história das ideias e das formas).

Como mencionámos anteriormente, aqueles que veem Patinir como o primeiro


dos artistas de paisagem, inicialmente “murmuram” as suas convicções sobre a
composição das suas pinturas. Neste tipo de argumento, no entanto, a "interpretação"
tende a ser negligenciada em favor de uma análise formal (e em certas ocasiões
histórica) "objetiva" que conjuga bem com determinadas conceções da ciência e do
conhecimento. Ainda, por cima ao enfatizar demais a forma arriscamo-nos a perder de
vista a interpretação dessas pinturas.

Por outro lado, é necessário reconhecer que a tradição clássica da pintura de


paisagem, precisamente porque é uma tradição e exibe hábitos formais, dissimula a
condição da existência da paisagem como predicado. Em outras palavras, através destes
hábitos — quer sejam hábitos artísticos (a prática da paisagem) ou hábitos culturais (a
prática da crítica de arte) —os “riscos” da paisagem vão aparecendo como um dado,
sujeitos à "lei" do género, que agora é aplicada por todos (artistas e críticos) sem muita
hesitação.

No entanto, que o caso de Patinir, ou o de os connoisseurs italianos do século


XVI, que Gombrich argumenta (e a que nos referimos anteriormente) e ilustram
perfeitamente a necessidade de interpretar as características formais das obras.

322
Fig.134. Landscape with the flight into Egypt, Joachim Patinir, 1516-1517.

Fig.135. Landscape with the flight into Egypt, Joachim Patinir, 1515-1516.

323
A paisagem deve ser vista como um sinal; por outras palavras, deve ser uma
maneira de conceber ou de representação da mesma, vendo, olhando, sentindo e,
portanto, de interpretar uma obra pictórica. A história da pintura de paisagem é a
história deste signo, o histórico das suas várias ocorrências aos olhos dos pintores e dos
críticos (e dos outros espectadores) desde a Renascença.

Num sentido estrito, esta história não é, portanto, uma história de obras de arte
(coisas materiais), mesmo que estas obras permanecem num local privilegiado para a
compreensão das diferentes manifestações da paisagem (especialmente aqueles
dependendo do olhar do pintor).

Na verdade, a importância deste esclarecimento é revelada quando voltamos a


nossa atenção para obras que contestaram o estatuto da história da arte da paisagem.
Este é o caso, por exemplo, com a pintura flamenga, mencionada por Gombrich, na
passagem citada anteriormente. É sobre estas pinturas, que os colecionadores do século
XVI, categorizadas como paisagens (paese), que Gombrich escreve: "nós não sabemos
se eles [as pinturas flamengas eram paisagens puras — provavelmente não eram —
mas para o conhecedor italiano eram interessantes como paisagens só" 256

Aqui, Gombrich, como podemos ver, sente a obrigação de discutir dois tipos de
paisagem: a paisagem "pura" e o paese Italiana que poderia por meio de contraste de
nome, ser uma paisagem "impura". Porque criar esta distinção?

Aparentemente, Gombrich quer fazer os seus leitores compreender que o paese


dos colecionadores venezianos não corresponde, em termos da sua forma, á paisagem
pintura que se tornou "institucionalizada" como um gênero no século XVII, e cuja
história é geralmente confundida com a das obras que caem sob a sua insígnia.

A confusão, à primeira vista, é inconsequente, pelo menos quando as obras de


arte mostram o olhar do pintor inequivocamente, que pode ser um que é formativo para
a paisagem. No entanto, e aqui está a resposta, repondo o olhar - o sinal - com as obras
de arte que exibem ocorrências que levam à adoção de uma abordagem exclusivamente
formal e reificada.

256
In GOMBRICH, Ernest, Op. Cit., p.119.

324
Agora, a discussão de Gombrich estabelece que os italianos viram a paisagem
onde outros — incluindo os artistas flamengos que pintaram as obras — viram outra
coisa. Assim, é claro que nós não podemos reduzir a paisagem à sua forma institucional
"pura". Além disso, é por isso que a história da pintura deve dar espaço para pinturas
que serão vistas (ou interpretadas) mesmo se estas pinturas de paisagens não
correspondem formalmente a uma paisagem "pura".

Nessas pinturas, é o olhar do espectador, que faz com que o espaço natural
autónomo, se transforma em paisagem e relega os outros elementos pictóricos para a
“margem”. E tudo isto independentemente das intenções verificáveis do pintor sobre a
paisagem.

Para resumir, a paisagem "pura" é o objeto de um consenso entre os pintores e


os espectadores muito forte, que podemos estabelecê-lo como uma "lei" genérica
institucional, esquecendo que sustenta uma interpretação. Por outro lado, o espaço da
"paisagem impura" salienta diretamente a sua ambiguidade através das diferentes
interpretações e diferentes usos a que vamos submetê-la.

Finalmente, mesmo que Gombrich não seja tão convincente quando se trata de
identificar os diversos fatores que determinaram o «olhar» da paisagem "impura" (as
suas interessantes explicações negligenciam as transformações culturais, científicas e
económicas do renascimento), e sugere a sua influência na paisagem "pura".

Além disso, segundo Gombrich este género, uma vez estabelecido, tornar-se-ia a
fonte do nosso “olhar" sobre o paisagismo" (a nossa sensibilidade à paisagem) do
mundo: "assim, embora seja usual para representar a descoberta do mundo ' como o
motivo subjacente para o desenvolvimento da pintura de paisagem, somos quase
tentados a inverter a fórmula e afirmar a prioridade da pintura de paisagem
sentida””257.

É como se primeiro dirigindo o seu olhar para as margens das pinturas, em


direção ao parergon, o homem moderno ocidental conseguiu desenvolver um
sentimento para a paisagem.258

257
In GOMBRICH, Ernest Op. Cit., p.120.
258
Muito tem sido escrito sobre esta hipótese. Alain Roger, o especialista francês da paisagem, assumiu e
concebe a transformação do espaço (ou terra) na paisagem como a tarefa da arte, o que ele chama de

325
Fig.136. Frame, Melancholia, Lars von Trier, 2011.

Fig.137. Frame, Melancholia, Lars von Trier, 2011.

"artialisation": "a natureza é indeterminada e só recebe as suas várias determinações da arte: a terra só
se torna uma paisagem sob as condições de uma paisagem e que, somente de acordo com...
modalidades... de artialisation." Em Court traité du paysage (Paris: Gallimard, 1997), 17-18. Para uma
crítica da primazia da arte no que diz respeito à paisagem, ver W. J. T. Mitchell, Op. Cit.

326
Depois de quatro séculos de desenvolvimento, este modo de ver a paisagem
constitui hoje um hábito cultural e um modo de olhar o mundo, revelando-se não só na
nossa capacidade de ver paisagens reais no local, mas também na nossa capacidade de
trazer um "olhar de paisagismo" sobre imagens que não imediatamente derivam do
gênero (por exemplo, obviamente, imagens fílmicas).

Nesses casos, é o contexto cultural que torna possível direcionar o olhar de


"paisagem" para os espaços narrativos de filmes de ficção, apesar da ausência de
estratégias ou intenções para torná-los autônomos. Repousando sobre o espectador para
assegurar o movimento de ajuste à paisagem e, quando possível, tornar o espaço
autónomo, para interromper, por um momento, a sua ligação com a narrativa. A
paisagem aparece quando, ao invés de seguir a ação, ligamos o nosso olhar em direção
ao espaço e vamos contemplá-lo, em e em si mesmo.

Esta é a paisagem de "impureza" do cinema, cuja existência não atribuímos


claramente a intenção ao realizador. Se certos traços formais incentivam o seu
surgimento (por exemplo, o plano ou um plano muito longo), não podem ser descritas
como regras ou normas fixas: eles dependem de fatores que variam de um espectador
para outro;

Eles também variam de acordo com o grau do espectador de interesse na


narrativa (ou um determinado momento da narrativa) ou na sua sensibilidade para
determinados tipos de paisagem (montanhas, mar, florestas, planícies do oeste
americano, etc.) filtrada através de sua cultura pictórica.

Este é o principal modo da paisagem na existência no cinema e que desempenha


um papel importante na nossa experiência de olharmos, de vermos a arte
cinematográfica e também da nossa perceção sobre o mundo.

327
Fig. 138. Frame, The Age of Innocence, Martin Scorsese, 1993.

Fig. 139. Frame, The Mirror, Andrei Tarkovski, 1975.

328
Dominique Chateau escreve: não só é raro que as paisagens aparecem sem
necessidade de narrativa, mas até mesmo a sua função principal prossegue desta
necessidade. Além disso, esta função é secundária em termos de "se considerar a
questão do ponto de vista dos próprios filmes (que a narrativa. Em geral, a paisagem
não é uma função suficiente.259

Tal significa que se nós adotamos o ponto de vista que privilegia a imanência,
isso é bem verdade. Podemos citar, por exemplo, os filmes de que John Ford filmou em
Monument Valley, como My Darling Clementine (1946) ou The Searchers (1956), para
que o argumento de Chateau seria inteiramente apropriado e onde, à primeira vista, o
espaço é formalmente subordinado à história.

No entanto negligencia uma perspetiva, as várias maneiras que o espectador


pode usar num filme e, por extensão, o aspeto predicativo (ou interpretativo) da
paisagem (como resultado do que constitui uma representação). Como se sabe que todo
o apreciador de Ford (ou dos Westerns), Monument Valley- o espaço de Ford por
excelência — tem sido objeto de muita crítica.260

Por exemplo, em Géographies du Western, J. Mauduy e G. Henriet veem este


"harmonioso, imutável e gigantesca configuração espacial, capaz de encerrar a busca
dos heróis Fordianos no meio de gigantescos murais e pilares que unem o céu e a
terra" como um "arquétipo universal" e um "arquétipo". 261

É um "mistério" universal assim como um "cenário natural trágico, nada como


a geografia convencional do Ocidente e que recorda a antiga tragédia na sua
abstração".262 Tal comentário atesta, se apenas pela sua existência, a capacidade dos
espectadores de contemplarem o espaço fílmico e trazerem para fora a paisagem e
olharem para ele com um olhar de modo autónomo.

Esta maneira de olhar para as imagens do mundo natural (quer sejam de Ford ou
de outra pessoa), a sensibilidade que as atesta, é a fonte de nosso desejo de falar delas,

259
In CHATEAU, Dominique, "Paysage et décor. De la natureza à l'effet de natureza,"Les paysages au
Cinéma, Ed. Jean Mottet (Seyssel: campeão Vallon, 1999), 97.
260
Consultar Richard Huston, "Sermons in Stone: Monument Valley in The Shearchers" in The Searchers:
Essays and Reflections: John Ford Classic Western, Ed Arthur M. Eckstein e Peter Lehman (Detroit:
imprensa da Universidade de estado de Wayne, 2004), 93-108.
261
In MAUDY, J. and Henriet, G., Géographies du Western, Paris: Nathan, 1989, p.69.
262
Id Ibid, p.74.

329
Quer para analisar e interpretá-las também no que diz respeito às qualidades que exibem
por conta própria, ou, da forma como podemos projetá-las para a narrativa, para
conectá-las com os temas ou as preocupações simbólicas, isto é, para encontrar algum
sentido nelas que vai muito além da sua função narrativa como configuração espacial.

O caso da Ford é mais interessante porque se encontra nele algumas


ambiguidades no seu uso de Monument Valley. Ford usou este panorama nove vezes,
começando com Stagecoach (1939). Bifurcando a fronteira entre Utah (ao norte) e
Arizona (ao sul), Ford constantemente distorce a sua geografia real: por exemplo,
Monument Valley é usada para se passar pelo sul do Arizona e do Novo México; no My
Darling Clementine, ele coloca uma lápide lá, embora a cidade situa-se na verdade no
Arizona do Sul; em The Searchers, Ford usa Monument Valley para representar o Texas.
Claro é do conhecimento comum que um realizador não precisa respeitar a geografia
natural.

Dito isto, Monument Valley é uma configuração facilmente identificável e


reconhecível de filme para filme apesar que representam espaços narrativos diferentes
em cada filme. A sua recorrência, portanto, cria uma situação incomum que fortemente
corre o risco de empurrar o espectador dos filmes de Ford para prender seu olhar sobre o
espaço, apesar de sua incorporação narradora forte, em cada um dos filmes, e da
ausência de estratégias formais para torná-la autónoma.

Além disso, a decisão de definir a ação de The Searchers em Monument Valley


conduz a incoerências mais de referencial e geográficas. Com efeito, no filme, os
colonos (incluindo Aaron Edwards, o irmão do herói) estabeleceram a sua fazenda e o
gado em solo texano. Mas Monument Valley — que aqui representa o lugar de diegética
— é um deserto!

Como resultado, o que é plausível no script e no nível do espaço diegético


(Texas) já não é plausível na imagem. Evidentemente, Ford estava pronto na
implausibilidade de risco para definir a ação do seu filme em Monument Valley. Então,
por que falar da paisagem "impura" nesse caso?

330
Fig. 140. Frame, The Searchers, John Ford. 1956.

Fig. 141. Frame, The Searchers, John Ford. 1956.

331
Estas observações não implicam o interesse da Ford no espaço natural, tendo
este um nível de autonomia da história. Como resultado, a história não é subserviente ao
espaço e à paisagem, mas o contrário? Dizê-lo de outra maneira, não é este o sinal
inegável de sua intenção de nos mostrar a paisagem ao invés de uma simples
configuração cenográfica espacial.

Mas ao invés de uma resposta clara, o que trazem estas questões é a


ambiguidade do Monument Valley nos filmes do Ford. Assim, apesar do desejo de
responder afirmativamente a estas três perguntas, é importante reconhecer que tal
afirmação faz veemência à maneira como numerosos espectadores (a maioria)
assistiram ao The Searchers.

Por exemplo, quantos deles notaram a ausência de pastos e a implausibilidade


resultante? Ainda, na medida em que Ford evita, do ponto de vista formal, as estratégias
de autonomização (tais como temps morts, diegética extra ou paisagem deslocadas,
inserções, etc) cabe ao espectador trazer para o seu olhar o surgimento da paisagem —
como é o caso na observação de telas de Patinir. Simplificando, a paisagem do
Monument Valley em The Searchers não é um dado — é uma pressuposição de espaço
que requer trabalho interpretativo por parte do espectador.

A analogia entre arte flamenga do século XVI e o cinema de John Ford talvez irá
surpreender aqueles que veem desde o início correspondências formais entre o uso de
Ford de Monument Valley (ou outros espaços naturais do Oeste) e as pinturas ou
ilustrações do "“ocidente longínquo". Afinal de contas, quantos planos de Ford do
deserto se assemelham a certas paisagens ocidentais como as pintadas por Frederic
Remington263 ou Alfred Jacob Miller264, ou fotografados por E. S. Curtis265
(1868/1952)?

Sabemos que, de outro lado, Ford está ciente deste corpus de trabalho.

263
Frederic Remington (1861/1909) pintor, ilustrador, escultor e escritor americano que se especializou
em representações do Velho Oeste americano, concentrando-se especificamente no último quarto do
século XIX do Oeste Americano e em imagens de vaqueiros e índios americanos.
264
Alfred Jacob Miller (1810/1874) artista americano mais conhecido pelas suas pinturas de caçadores e
índios no comércio de peles do oeste dos Estados Unidos. Ele também pintou retratos e pinturas de
gênero em e ao redor de Baltimore durante os meados do século XIX.
265
Edward Sheriff Curtis, fotógrafo americano e etnólogo cujo trabalho se concentrou no Oeste
americano e nos povos nativos americanos.

332
Mas é importante compreender claramente a diferença entre a Ford e Curtis.
Com efeito, embora os pintores, os ilustradores e os fotógrafos do Ocidente tenham
produzido trabalhos dentro do género bem estabelecido da paisagem pictórica, os filmes
de Ford participarem num gênero de narrativa cinematográfica: o Western. Esta
diferença implica uma diferente economia e funcionalidade espaciais, como temos
tentado demonstrar ao longo deste capítulo.

O que caracteriza a experiência da paisagem nos filmes citados de Ford é a


necessidade dos espectadores para quem certos planos fílmicos aparecem análogos à
paisagem de pinturas de confiarem na sua própria cultura pictórica e do sinal de
paisagem — ou olhar — a fim de interpretá-los.

Em suma, não é porque usa Ford o plano cinematográfico para ilustrar uma
cavalgada no deserto que invocamos paisagem para dar conta da experiência que temos
do deserto. Isso não seria suficiente. Em vez disso, é porque, para os espectadores,
vários planos evocam a arte pictórica da paisagem (e o seu olhar), que serve como uma
mediação entre o filme e a paisagem.

Por outras palavras, é a arte da paisagem que torna certos espectadores


habilitados, através do seu olhar, para “influir” no modo panorâmico, quando eles bem
poderiam permanecer no modo de narrativa. O efeito de pintura, ao contrário de quando
uma pintura é citada, não precisa ser mais interpretado como o resultado da intenção do
realizador (embora continua a ser uma opção).

Finalmente, quando pensamos sobre isso, há uma circularidade curiosa aqui que
nos permite distinguir os colecionadores italianos do século XVI dos espectadores de
Ford do século XX.

Se, como sugere Gombrich, a paisagem "pura", que mais tarde foi
institucionalizada como um gênero pictórico, começou como paisagem "impura", é
claramente esta paisagem "pura", que é em grande parte responsável pela paisagem
"impura" do cinema! Mas esta circularidade não é paradoxal, na medida em que a
paisagem como gênero pictórico processa apenas o olhar de paisagem (que faz o gênero
possível) na instituição da arte pictórica (que, como já explicamos, inclui, mas não é
redutível às obras de arte).

333
Este olhar, não foi uma fórmula que apreendeu o trabalho dos realizadores
cinematográficos de filmes de ficção. Nós sabemos porquê: A paisagem não é e não
seria, um gênero cinematográfico no mesmo sentido como o Western ou um filme Noir.
No entanto, não impede o “olhar de paisagem” de se manifestar na atividade sensorial
do espectador.

Consequentemente, não iriamos afirmar, como David Bordwell266 e Kristin


Thompson no seu livro introdutório para estudos de cinema, Arte Cinematográfica,267
que o plano ou um plano extremamente longo é no cinema, "o enquadramento para as
paisagens".

Se este tipo de enquadramento oferece uma visão que tende a predispor o


espectador a conceber uma paisagem por causa da distância que separa o objeto filmado
com a câmara, devemos evitar ver este enquadramento como a principal "causa" desta
conceção. Por um lado, é necessário notar que o que funciona para a paisagem funciona
igualmente bem para o que ocupa um grande espaço no plano cinematográfico.

Exemplos destes incluem, entre outros, as cenas de batalha no Nascimento de


Uma Nação (Griffith, 1914) e em inúmeros Westerns, a corrida dos carros em Ben Hur
(Wyler, 1959), as cenas de multidão no filme Outubro (Eisenstein, 1928) ou a procissão
em Ivan o terrível (Eisenstein, 1943). Portanto, não é simplesmente a paisagem que
pode beneficiar de planos longos; a representação da ação e dos eventos também pode
ser mostrada por eles.

Por outro lado e de forma relevante, a discussão de Bordwell e Thompson


vincula a paisagem de volta aos traços formais, sem se preocupar com a interpretação
desses traços. Uma visão cinematográfica de um espaço exterior não mais constituiria
uma paisagem de relance do que uma pintura.

266
David Bordwell (1947) é um famoso historiador e teórico de cinema americano. Desde que realizou o
seu doutoramento pela Universidade de Iowa em 1974, escreveu mais de quinze volumes sobre a temática
do cinema, incluindo Narração no Ficção (1985), Ozu e a Poética do Cinema (1988), Making Meaning
(1989), E sobre a história do estilo no filme (1997). Com a sua esposa Kristin Thompson, Bordwell
escreveu os livros didáticos preliminares Film Art (1979) e Film History (1994). Com o filósofo estético
Noël Carroll, Bordwell editou a antologia Teórica: Reconstruindo os Estudos de Cinema (1996), uma
polêmica sobre o estado da teoria do cinema contemporâneo. O seu trabalho mais famoso, O cinema
clássico de Hollywood: Estilo do filme e modo de produção até 1960 (1985), escrito com a colaboração
de Thompson e Janet Staiger. Vários de seus artigos mais influentes sobre a teoria, a narrativa e o estilo
foram editados em Poetics of Cinema (2007).
267
In BORDWELL, David and THOMPSON, Kristin Film Art: An Introduction, Fourth Edition, Nova
Iorque; McGraw Hill, 1993, p.212.

334
Mas, dito isto, o que é produzido, quando, em vez de seguir a fúria da batalha
nas planícies e que é claramente o objeto do olhar da câmara, o nosso próprio olhar
abraça o espaço e torna a paisagem que emerge na nossa consciência?

Pelas demonstrações de instantes cinematográficos onde os componentes espaço


e história naturais (por exemplo, a ação) existem lado a lado, parece óbvio que o plano é
uma condição suficiente para o surgimento da paisagem cinematográfica. A primeira
condição é, em outros espaços, no olhar do espectador, que é dizer, nos seus
conhecimentos culturais e na sua sensibilidade visual. Tentar desvendar o emaranhado
destas relações e dessas representações é o melhor que podemos desejar para finalizar
este capítulo.

335
“Planos Finais” – Conclusão

336
A paisagem, como temos visto, é uma representação do espaço. É uma forma de
predicado espacial. Outra maneira que a de dizer, seria a paisagem é uma forma de ser
do espaço externo nas nossas mentes. Esta representação, ou sinal, manifesta-se de
maneiras diferentes: do modo em que os seres humanos apreendem visualmente algum
fragmento do espaço real; da maneira em que eles têm de apreender o espaço retratado
nas obras pictóricas, assim como, através das obras que são capazes de "traduzir" este
sinal em composições pictóricas específicas.

No domínio da arte, a paisagem não é tanto o resultado de um trabalho; pelo


contrário, é o trabalho em si, que é o resultado da paisagem. Assim, a paisagem
manifesta-se num olhar interpretativo. Mais especificamente, manifesta-se nas tentativas
dos artistas para traduzir este olhar para o seu trabalho, e, pelos espectadores para
interpretar esta tradução, ou fornecer a sua própria paisagem interpretativa neste olhar.

Neste ultimo capítulo, vimos que estas estratégias semióticas podem trabalhar no
cinema e que dizem respeito ao espectador (especialmente através do que chamamos o
modo panorâmico) e à forma dual de temporalidade (a do meio do filme e da atividade
do espectador).

Agora voltamos brevemente a este aspeto temporal para definir melhor as suas
implicações. As paisagens no cinema, como sabemos, requerem que o espaço adquira
alguma autonomia da narrativa. Como já vimos, este é um resultado provável do uso de
temps morts que, não obstante o nome, muitas vezes tem consequências na nossa
experiência de espaço também. Assim, apesar do movimento contínuo do filme através
do projetor e da passagem do tempo na tela, temos a impressão em tais momentos que o
tempo em si (o filme, a história) é “preso” para entregar ao nosso ponto de vista, um
espaço.

Agora, um efeito similar é produzido quando o “olhar da paisagem" do


espectador apreende o que caso contrário, é apenas um cenário para a narrativa: o
espectador mentalmente prende o desenrolar do filme e internamente mantém o espaço
para contemplação até retornar ao modo de narrativa. Claro, seria impossível de
quantificar este “temps morts” internos.

Mas a sua presença certamente torna-se inútil para qualquer tentativa de analisar

337
o filme do espectador através do único fundamento da projeção (o tempo que leva para
o filme operar através do projetor). Roland Barthes (1915/1980) refletiu com um
propósito diferente em mente e reconheceu que tanto quando, influenciado por
Eisenstein, pensou numa teoria de fotogramas (ou Frames) no cinema, a fim de
compreender o que escapa à temporalidade fixa na condução do filme através do
projetor e da narrativa.

"O fotograma", escreveu Barthes, "ao instituir uma leitura que é ao mesmo
tempo instantânea e vertical desconsiderando o tempo lógico (que é apenas um tempo
operatório); ensina-nos a dissociar a restrição técnica (as filmagens) do
autenticamente fílmico, que é o significado do 'indescritível'.268

Isto não é dizer, no entanto, que a paisagem cinematográfica pertence aquilo que
Barthes chama de "significado pouco inteligente", nem de implicar que ela precisa ser
convertida em termos de um modo “foto-gramático”; O autor meramente em vez disso
sinaliza a necessidade de compreender o surgimento da paisagem fora da narrativa, fora
do que Barthes considera o nível comunicacional ou "informativo" do filme e, portanto,
como algo que - como um “obtuso” significado – funciona um pouco livremente da
projeção e do tempo diegético.

Finalmente, enquanto permanece muito mais a ser dito sobre a paisagem no


cinema (o objetivo desta tese foi puramente investigar algumas das suas condições de
emergência), é necessário reconhecer que "configuração" e "paisagem" não são os
únicos predicados que representam a nossa experiência do espaço real ou retratado.
Enquanto a configuração diz respeito á representação narrativa e a paisagem da
representação estética, é igualmente possível representar o espaço em termos mais
"antropológicos".

Com efeito, o espaço pode ser representado como referente a experiências


vividas, que não seja a narrativa ou a estética. Este é o caso, por exemplo, com a
"identidade" e "pertença" e as inúmeras formas de seduzir o espaço que tanto podem
implicar (defendê-lo contra invasores, por exemplo). Isto é onde a noção de
"territorialidade", do espaço representado como um território, se torna útil. Porque o

268
In BARTHES, Roland "Le troisième sens," in L'obvie et l'obtus. Essais critiques III (Paris: Gallimard,
1982), p.61.

338
território é espaço visto de "dentro", um espaço subjetivo e vivido.

Este tipo de espaço está associado mais aos cartógrafos, aos geógrafos, aos
conquistadores, aos caçadores, mas também aos agricultores, ou a alguém que habita ou
tem uma reivindicação na terra, do que usualmente ao artista (embora eles não sejam
mutuamente exclusivos).

Quando o geógrafo escreve, "A paisagem está ancorada na vida humana, não
algo para olhar, mas para viver e viver socialmente. A Paisagem é uma unidade entre
as pessoas e o ambiente que se opõe na sua realidade, á falsa dicotomia do homem e da
natureza... A Paisagem é para ser julgada como um lugar para viver e trabalhar em
termos de aqueles que realmente trabalham e moram lá. Todas as paisagens são
simbólicas".269

Ele, o geógrafo, retorna a paisagem à sua territorialidade. Com efeito, para além
do estudo da morfologia de uma região, os geógrafos, especialmente os geógrafos
culturais, descrevem a paisagem como um conjunto de relações que são tecidas entre os
seres humanos em actividade: agricultura, caça, pesca, navegação e transporte,
silvicultura, etc.

Estas relações estão dependentes das vastas bases económicas, políticas e


possuam outro modo imaginário, identificando aspetos cuja importância não pode ser
exagerada. Quando estas relações descrevem as maneiras que um tem de habitar a terra,
de possui-la, lutando por isso, ou trabalhando, e tende a ser representado em termos de
território.

Territorialidade, em outras palavras, torna-se o predicado dominante. O geógrafo


suíço Claude Raffestin (1936) define territorialidade como "a soma ' no sentido da
totalidade das relações mantidas por um assunto ou uma coletividade com o seu
ambiente.270

A definição tem a vantagem de ilustrar o caráter "possessivo" do território, que


contrasta com a experiência que nós podemos fazer no espaço em termos de
contemplação estética.

269
In COSGROVE, Dennis, Op. Cit., p.35.
270
In RAFFEST, Claude, Pour une géographie du pouvoir (Paris: Librairie Technique, 1980), 145, n. 27.

339
Com efeito, posse não é uma característica necessária para representar o espaço
como uma paisagem, na medida em que o entendemos em termos estéticos;
considerando que é necessário quando o espaço é representado como "território".

Que paisagem e território implicam diferentes modos de relação com o ambiente


espacial, diferentes formas de representação, podem ser mais evidenciados pelo trabalho
de E. T. Hall (1914/2009) que definiu território — pelo menos, em alguns dos seus
aspetos importantes — através de uma aproximação. Onde as distâncias físicas que as
pessoas estabelecem espontaneamente entre si no convívio social, das variações dessas
distâncias de acordo com as condições ambientais e nos diversos grupos ou situações
sociais e culturais em que se encontram 271

Claro, qualquer trecho de terra único pode em qualquer momento ser


representado como um cenário, uma paisagem e um território. Estas divisões semióticas
não são exclusivas e pode até haver casos de contaminação entre eles. Por exemplo,
272
ecoando o trabalho de Jay Appleton (1919/2015) , o geógrafo francês Yves Lacoste
(1929) tem observado que, no Ocidente, pelo menos, quando se evidencia que aquelas
são as mais bonitas paisagens, estas tendem a ser as mais vantajosas para fins táticos e
militares, ou seja, para defender ou conquistar um território.273.

Se Lacoste está correto, então o que chamamos o "olhar de paisagem" pode


facilmente sobrepor-se com um olhar mais territorial, como a dos militares. De acordo
com Lacoste, tanto o «olhar estético» e o «olhar tático» compartilham um investimento
comum na observação e na vista panorâmica. Não há nenhuma razão, portanto que
impossibilite a “paisagem" e o "território" de coexistirem como predicados para
representar a mesma porção de espaço.

Qualquer representação é privilegiada em qualquer determinado momento, e


dependerá de tais considerações pragmáticas como a relação do observador à terra e
como a observação é para ser usada (por exemplo, a apreciação estética vs um plano de
ataque). Esta conexão entre a paisagem e o território também pode ser examinada para
as relações que existem entre cartografia e as ilustrações da paisagem.

271
In HALL, Edward T., The Hidden Dimension (Garden City, NJ: Doubleday, 1966), 1966.
272
In APPLETON, Jay, The Experience of Landscape (Londres: John Wiley, 1975).
273
Ver LACOSTE, Yves, "um quoi sert le paysage? Qu’est-ce qu’un beau paysage,"em La théorie du
paysage en France, 1974-1994, Ed. Alain Roger (Seyssel: Champ Vallon, 1995).

340
Assim, muito antes do uso generalizado de mapas, os militares frequentemente
utilizavam desenhos que, embora fossem feitos para servir propósitos táticos e
territoriais, podem também ser olhados esteticamente; e mapas, é claro, que podem
igualmente ser utilizados esteticamente ou podem ser integrados em obras de arte.274

Como podemos imaginar, as interconexões entre cenário, paisagem, e território


pode às vezes ser bastante intrincada. Além disso, qualquer representação do espaço —
no cinema como em outras formas artísticas — pode chamar qualquer uma dessas
representações a qualquer momento e sobrepondo-as de acordo com fins estéticos,
narrativas sociais, antropológicas ou políticas.

Entretanto, os predicados aqui identificados não são de forma alguma


exaustivos. O fato é que o espaço ou a paisagem são uma realidade complexa que nós
continuamos a descobrir de acordo com as diferentes formas que temos de nos
relacionarmos com ambos e de os representar.

274
Ver CASEY, Edward S. Representing Place: Landscape painting and Maps (Minneapolis: Minnesota
University Press, 2002) and Earth-Mapping. Artists Reshaping Landscape (Minneapolis: Minnesota
University Press, 2005).

341
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2-

Frame, Out of Africa, Sydney Pollack, 1985;

http://www.oscars.org/news/out-africas-cinematic-landscape

3-

Frame, Out of Africa, Sydney Pollack, 1985;

http://www.oscars.org/news/out-africas-cinematic-landscape

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Albrecht Altdorfer, Paisagem com Ponte, c. 1518;


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Vermeer-Widok-Delft

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alexander-cozens-theredlist.jpg

13-

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https://ruedesfacs.hypotheses.org/category/philosophie

14-

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15-

John Constable, O Carro de Feno, 1821.

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22-

Jean Honoré Fragonard, Uma Avenida com Sombra, c. 1773.

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23-

Jean Honoré Fragonard, A Cascata, c.1773.

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Jean-Antoine Watteau, Peregrinação à ilha de Cythère, 1717.

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_(Watteau)

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Eugéne Delacroix, A Liberdade Guiando o Povo (28 de julho de 1830), 1830.

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26-

Théodore Géricault, A Jangada da Medusa, 1818-19.

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Hubert Robert, O Banho no Lago, s/d.

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28-

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Eugéne Delacroix, Vista do mar em Dieppe. 1852.


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30-

Jean-François Millet, Inverno, 1868.

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31-

Claude Lorrain, O Vau, c. 1636.

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34-

Georges Michel, Paisagem com Moinho de Vento, Vista de Montmartre, 1820.

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35-

Diaz de la Pena, Narcisse, O caminho na Floresta, c.1850.

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36-

Theodore Rousseau, Paisagem, meados do séc. XIX

383
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37-

Theodore Rousseau, Vista dos Arrabaldes de Granville, 1833.

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38-

Constant Troyon, Estrada na Floresta, C. 1865.

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_Eremitage.jpg

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58-

João Cristino da Silva, Cinco Artistas em Sintra, 1855.

http://www.museuartecontemporanea.pt/ArtistPieces/view/33/artist

59-

João Cristino da Silva, O recuar da Onda, 1857.

https://gulbenkian.pt/cam/collection-item/recuar-da-onda-139226/

60-

João Cristino da Silva, A passagem do gado, 1867.

http://www.museuartecontemporanea.pt/ArtistPieces/view/34/artist

61-

Francisco Metrass, Só deus! 1856.

http://www.museuartecontemporanea.pt/pt/pecas/ver/397/artist

62-

António Silva Porto, Vista tirada da charneca de Belas ao pôr-do-sol, 1879.

http://www.museuartecontemporanea.pt/pt/pecas/ver/436/artist

386
63-

Marques de Oliveira, Praia de Banhos, 1884.

http://www.museuartecontemporanea.pt/ArtistPieces/view/44/artist

64-

António Silva Porto, Um campo de trigo – Seara, 1882

http://www.porto24.pt/memoria/um-campo-de-trigo-de-silva-porto/

65-

Columbano, Antero de Quental, 1889.

http://www.museuartecontemporanea.pt/ArtistPieces/view/28

66-

Henrique Pousão, Casas brancas de Capri, 1882.

http://www.museuartecontemporanea.pt/pt/pecas/ver/423/artist

67-

Henrique Pousão, Casa das Persianas Azuis, c.1883.

https://br.pinterest.com/explore/persianas-azuis/

68-

José Malhoa, Praia das Maçãs, 1918.

http://gandalfsgallery.blogspot.pt/2015/06/jose-malhoa-praia-das-macas-1918.html

69-

José Malhoa, Outono, 1919.

http://acartaagarcia.blogspot.pt/2010/09/outono-jose-malhoa1919.html

70-

Frame, Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958

https://the.hitchcock.zone/wiki/Vertigo_(1958)_-_locations

71-

Rudolf von Alt, Makart’s Studio, 1885.

387
http://www.gettyimages.pt/detail/ilustra%C3%A7%C3%A3o/hans-makarts-studio-
before-auction-painting-by-rudolf-gr%C3%A1fico-stock/540778335

72-

Claude Monet, The Train in the Countryside, 1870-71.

http://poulwebb.blogspot.pt/2013/10/claude-monet-part-4-1868-1870.html

73-

Frederick Carl Frieseke, Lady in a Garden. C. 1912.

http://www.fineallarts.com/lady-in-a-garden-c1912-p-52962.html

74-

Ferdinand Hodler, Autumm Evening. 1892/93.

https://pt.pinterest.com/maribellaugolet/artisti-ferdinand-hodler/

75-

Ferdinand Hodler, The Consecrated One. 1893/94.

https://pt.pinterest.com/winds1025/ferdinand-hodlerswiss-1853~1918/

76-

Franz Marc, Horse in Landscape. 1910.

https://www.wikiart.org/en/franz-marc/horse-in-a-landscape-1910

77-

Henri Rousseau, Eve. 1906/08.

https://pt.pinterest.com/romieclaridge/paintings-art/

78-

Franz Marc, Tirol. 1914.

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Franz_Marc-Tyrol_(Tirol)_(1914).jpg

79-

Vasily Kandinsky, Montain landscape with Church. 1910.

https://pt.pinterest.com/velvetlilly1/kandinsky/

388
80-

Ludwig Meidner, Apocalyptic landscape, 1913.

http://www.artnet.com/magazineus/features/kuspit/vasily-kandinsky9-22-
09_detail.asp?picnum=7

81-

Georges Braque, Rio Tinto Factories at L’Estaque. 1910

https://pt.pinterest.com/pin/100486635407065555/

82-

Le Corbusier, Pavillon de L’Esprit Nouveau. 1925.

https://pt.pinterest.com/pin/79235274666689162/

83-

Pablo Picasso, Landscape with dead and live Trees. 1919.

https://en.wikipedia.org/wiki/File:Pablo_Picasso,_1919,_Paysage_(Landscape_with_De
ad_and_Live_Trees),_oil_on_canvas,_49.4_x_65.4_cm,_Bridgestone_Museum_of_Art,
_Tokio.jpg

84-

Barnett Newman, Dionysius, 1949.

https://www.wikiart.org/en/barnett-newman/dionysius-1949

85-

Andy Warhol, Do It Yourself, 1962.

https://pt.pinterest.com/pin/45880489925558237/

86-

Enzo Cucchi, Sem título, 1998

https://pt.pinterest.com/pin/558868634982861881/

87-

Anselm Kiefer, The Red Sea, 1984-1985

http://blog.artron.net/space-39245-do-album-id-18019.html

389
88-

Anselm Kiefer, märkische Heide, 1977.

http://blog.artron.net/space-39245-do-album-id-18019.html

89-

Richter, Gerhard, Apple Trees, 1987.

https://www.gerhard-richter.com/en/art/paintings/photo-paintings/apples-3/apple-trees-
7638

90-

Robert Smithson, Cais Espiral, Rozel Point, Great Salt Lake, Utah, 1970.

https://sites.google.com/site/consienciaverde/arte-ambiental

91-

Robert Smithson, Cego no vale dos Suicídios., 1962.

https://www.robertsmithson.com/drawings/blind_in_the_valley_400.htm

92-

Lewis Baltz, Park City, interior no. 70, 1980.

http://www.photoreview.org/re_viewing/pages/b10-Baltz_tif.htm

93-

Sophie Ristelhueber, Fotografia da série Fait, 1992.

http://saisdeprata-e-pixels.blogspot.pt/2006_10_01_archive.html

94-

Clara Menéres, Costa da Morte, nigredo 7, 2003.

Coleção da artista.

95-

Clara Menéres, Baía de Maputo, solve/coagula 1, 2003.

Coleção da artista.

96-

Sebastião Salgado, Campo de refugiados em Benako, Tanzania, 1994.

390
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1803200026.htm

97-

James Nachtwey, à procura de sobreviventes (11 de Setembro). Nova Iorque, 2001.

http://egosciente.blogspot.pt/2008_05_01_archive.html

98-

Alfred Hitchcock, Vertigo, 1958.

http://www.elcinedesdelacuna.com/el-autentico-toque-hitch/

99-

Frame, The Day After Tomorrow, Roland Emmerich. 2004.

https://northmantrader.com/2015/08/27/the-day-after-tomorrow/

100-

Frame, The Day After Tomorrow, Roland Emmerich. 2004.

https://northmantrader.com/2015/08/27/the-day-after-tomorrow/

101-

Bicycle Thieves (Italian: Ladri di biciclette; Vittorio De Sica. 1948.

http://www.cynephile.com/2011/07/why-ladri-di-bicicletta-vittorio-de-sica-1948/

102-

Bicycle Thieves (Italian: Ladri di biciclette; Vittorio De Sica. 1948.

http://www.cynephile.com/2011/07/why-ladri-di-bicicletta-vittorio-de-sica-1948

103-

Frame, Playtime, Jacques Tati's. 1967

https://whitecitycinema.com/category/blu-raydvd-reviews/

104-

Frame, Playtime, Jacques Tati's. 1967

https://whitecitycinema.com/category/blu-raydvd-reviews/

105-

Frame, Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro, 1974-76.

391
http://livrozilla.com/doc/315758/tese-catarina-alves-costa---run

106-

Frame, Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro, 1974-76.

http://livrozilla.com/doc/315758/tese-catarina-alves-costa---run

107-

Nanook of the North (also known as Nanook of the North: A Story of Life and Love In
the Actual Arctic), Robert J. Flaherty. 1922

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108-

. Frame, Storm over Mont Blanc (German: Stürme über dem Mont Blanc), Arnold
Fanck. 1930.

http://wikivisually.com/lang-de/wiki/St%C3%BCrme_%C3%BCber_dem_Mont_Blanc

109-

Frame, Maria do Mar, Leitão de Barros. 1930.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_do_Mar

110-

Frame, La bête lumineuse (English: The Shimmering Beast), Pierre Perrault. 1982.

http://movieworld.ws/pierre-perrault-film-works-volume-4-man-and-nature-loeuvre-de-
pierre-perrault-volume-4-lhomme-et-la-nature/

111-

Frame, La bête lumineuse (English: The Shimmering Beast), Pierre Perrault. 1982.

http://movieworld.ws/pierre-perrault-film-works-volume-4-man-and-nature-loeuvre-de-
pierre-perrault-volume-4-lhomme-et-la-nature/

112-

Frame, Workers Leaving The Lumière Factory in Lyon (French: La Sortie de l'Usine
Lumière à Lyon), Louis Lumière.1985.

392
https://en.wikipedia.org/wiki/Workers_Leaving_the_Lumi%C3%A8re_Factory

113-

Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança, Aurélio Paz dos Reis, 1896.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Sa%C3%ADda_do_Pessoal_Oper%C3%A1rio_da_F%C3
%A1brica_Confian%C3%A7a

114-

Frame, Barry Lyndon, Stanley Kubrick, 1975

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115-

Frame, Barry Lyndon, Stanley Kubrick, 1975

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116-

Frame, Lust for Life, Vincent Minnelli 1956.

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Frame, Lust for Life, Vincent Minnelli 1956.

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118-

Dreams Akira Kurosawa's 1990.

http://theredlist.com/wiki-2-20-777-782-view-1990-2000-profile-1990-bdreams-b.html

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Dreams Akira Kurosawa's 1990.

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Dreams Akira Kurosawa's 1990.

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121-

Frame, Teorema, Pier Paolo Pasolini, 1968

http://www.rebeldemule.org/foro/cine/tema13267.html

122-

Frame, Teorema, Pier Paolo Pasolini, 1968

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123-

Frame, L'Avventura, Michelangelo Antonioni, 1960.

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Frame, L'Avventura, Michelangelo Antonioni, 1960.

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Frame, L'Avventura, Michelangelo Antonioni, 1960.

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Frame, L'Avventura, Michelangelo Antonioni, 1960.

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Blow-Up, Michelangelo Antonioni, 1966.

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Blow-Up, Michelangelo Antonioni, 1966.

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Blow-Up, Michelangelo Antonioni, 1966.

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130-

Frame, Le Mépris, Jean-Luc Godard, 1966.

https://vimeo.com/130020913

131-

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132-

Frame, Vale Abraão, Manoel de Oliveira, 1993.

395
http://avaxhome.unblocker.xyz/video/val_abraham.html

133-

Frame, Vale Abraão, Manoel de Oliveira, 1993.

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134-

Landscape with the flight into Egypt, Joachim Patinir, 1516-1517.

http://www.kmska.be/en/collectie/highlights/Landschap_naar_Egypte.html

135-

Landscape with the flight into Egypt, Joachim Patinir, 1516-1517.

http://www.kmska.be/en/collectie/highlights/Landschap_naar_Egypte.html

136-

Frame, Melancholia, Lars von Trier, 2011.

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137-

Frame, Melancholia, Lars von Trier, 2011.

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138-

Frame, The Age of Innocence, Martin Scorsese, 1993.

https://theendofcinema.net/2015/10/

396
139-

Frame, The Mirror, Andrei Tarkovski 1975.

https://pitchflick.wordpress.com/2015/07/28/solaris-1972-and-the-mirror-1975-plus-a-
note-on-my-blogging-future/

140-

Frame, The Searchers, John Ford. 1956.

https://www.ffffilm.com/movie/the-searchers-1956

141-

Frame, The Searchers, John Ford. 1956.

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397
398
Filmografia

399
The Abominable Snowman (Val Guest, 1957)

2001: A Space Odyssey (Stanley Kubrick 1968)

About Adam (Gerry Stembridge, 2001)

Aerograd (Alexander Dovzhenko, 1935)

After the Wax (Caz Maviyan-Davis, 1991)

The Age of Innocence (Martin Scorsese, 1993)

Aguirre: Wrath of God (Werner Herzog, 1972)

Alice in Wondertown (Daniel Díaz Torres, 1991)

Amachua kurabu, (Kurihara Kisaburo, 1920)

L’Amant (Jean-Jacques Annaud, 1991)

Amantes del círculo polar (Julio Medem, 1999)

Aparajito (Satyajit Ray, 1956)

A propos de Nice (Jean Vigo, 1929)

Ararat (Atom Egoyan, 2002)

Arrival of a Train at Ciotat (Auguste Lumière and Louis Lumière, 1896)

Atanarjuat the Fast Runner (Zacharias Kunuk, 2000)

Aurore (Luc Dionne, 2005)

L'Avventura (Michelangelo Antonioni 1960)

Avoir 20 ans dans les Aurès (René Vautier, 1972)

Bad Blood (Mike Newell, 1982)

Ballad of a Soldier (Grigorii Chukhrai, 1959)

Ballad of the Little Soldier (Werner Herzog, 1984)

The Ballroom of Romance (Pat O'Connor, 1982)

400
Barry Lyndon (Stanley Kubrick 1975)

La Bataille d'Algers (Gillo Pontecorvo, 1966)

Beau travail (Claire Denis, 1998)

Beijing Bastards (Yuan Zhang, 1993)

Beneath Clouds (Ivan Sen, 2002)

Berlin: Symphony of a Big City (Walther Ruttman, 1927)

Between Friends (Don Shebib, 1973)

Bienvenido, Mister Marshall (Luis García Berlanga, 1952)

Bilbao (José Juan Bigas Luna, 1978)

The Birds (Alfred Hitchcock, 1963)

Bitter Sugar (Leon Ichaso, 1996)

Black Narcissus (Michael Powell and Emeric Pressburger, 1948)

Blade Runner (Ridley Scott, 1982)

The Blue Light (Leni Riefenstahl, 1932)

The Blue Angel (Josef von Sternberg, 1930)

Britain Can Take It! (Humphrey Jennings and Harry Watt, 1940)

Buenos Aires Affair (Wong Kar-Wai, 1997)

The Butcher Boy (Neil Jordan, 1997)

A Canterbury Tale (Michael Powelland Emeric Pressburger, 1944)

Captain Boycott (Frank Launder, 1947)

Caravan (Arthur Crabtree, 1946)

Caro Diario (Nanni Moretti, 1994)

Cartas de Alou (MontXo Armendáriz, 1990)

401
La caza (Carlos Saura, 1965)

The Chant of Jimmy Blacksmith (Fred Schepisi, 1978)

Charulata (Satyajit Ray, 1964)

Le Chat dans le sac (Gilles Groulx, 1964)

Los chicos (Marco Ferreri, 1959)

Chocolat (Claire Denis, 1988)

Chungking Express (Wong Kar-Wai, 1994)

Circle of Danger (Jacques Tourneur, 1951)

La ciudad no es para mí (Pedro Lazaga, 1966)

Clear and Present Danger (Phillip Noyce, 1994)

A Clockwork Orange (Stanley Kubrick 1971)

Cloud-capped Star (Ritwik Ghatak, 1962)

Cloud Paradise (Nikolai Dostal, 1991)

Consequences (Godwin Mawuru, 2000)

The Constant Nymph (Basil Dean, 1933)

El corazón del bosque (José Luis Borau, 1979)

Cosas que dejé en la Habana (Manuel Gutiérrez Aragón, 1996)

Cossacks of the Kuban (Ivan Pyrev, 1949)

Crash (David Cronenberg, 1996)

Crouching Tiger Hidden Dragon (Ang Lee, 2000)

The Cruel Sea (Charles Frend, 1953)

The Dark Glow of the Mountains (Werner Herzog, 1984)

The Days before Christmas (Stanley Jackson, Wolf Koenig, Terrence McCartney
Filgate, 1958)

402
Death ofa Bureaucrat (Tomás Gutiérrez Alea, 1966)

December Bride (Thaddeus O'Sullivan, 1989)

The Demi-Paradise (Anthony Asquith, 1943)

Desperate Remedies (Peter Main and Stewart Wells, 1993)

Diva (Jean-Jacques Beineix, 1982)

Dr Zhivago (David Lean, 1965)

Don's Party (Bruce Beresford, 1976)

Doss House (John Baxter, 1933)

Double Happiness (Mina Shum, 1994)

Drunken Angel (Akira Kurosawa, 1948)

Drylanders (Don Haldane, 1964)

Earth (Alexander Dovzhenko, 1930)

Edge of the World (Michael Powell, 1936)

Edward Scissorhands (Tim Burton, 1990)

The Enigma of Kaspar Hauser (Werner Herzog, 1974)

The English Patient (Anthony Minghella, 1996)

El espíritu de la colmena (Víctor Erice, 1973)

Esther Waters (Ian Dalrymple and Peter Proud, 1948)

Exposure (Kieran Hickey, 1978)

Eyes Wide Shut (Stanley Kubrick 1999)

Fallen Angels (Wong Kar-Wai, 1995)

The Falls (Kevin McMahon, 1991)

The Far Shore (Joyce Wieland, 1976)

403
The Field (Jim Sheridan, 1990)

The Fifth Element (Luc Besson, 1997)

The First Machete Charge (Manuel Octavio Gómez, 1969)

Fitzcarraldo (Werner Herzog, 1982)

Flame (Ingrid Sinclair, 1996)

49th Parallel (Michael Powell, 1941)

Furtivos (José Luis Borau, 1975)

Genevieve (Henry Cornelius, 1953)

Girl from Hunan (Fei Xie, 1986)

The Goddess (Satyajit Ray, 1960)

The Goddess (Yonggang Wu, 1934)

Goin' Down the Road (Don Shebib, 1970)

Los golfos (Carlos Saura, 1959)

Goodbye Pork Pie (Geoff Murphy, 1981)

The Good Companions (Victor Saville, 1933)

Great Day (Lance Comfort, 1945)

Great Expectations (David Lean, 1946)

Guantanamera (Gutiérrez Alea and Juan Carlos Tabío, 1997)

La Haine (Mathieu Kassovitz, 1995)

The Happy Guys (Grigorii Alexandrov, 1934)

The Heart of Britain (Humphrey Jennings, 1941)

Heart of Glass (Werner Herzog, 1976)

Heart of the Stag (Michael Firth, 1984)

404
Heavenly Creatures (Peter Jackson, 1994)

Henry V (Lawrence Olivier, 1944)

Henry, Portrait of a Serial Killer (John McHaughton, 1986)

Hephzibah (Curtis Levy, 1998)

Hero (Zhang Yimou, 2002)

High and Low (Akira Kurosawa, 1963)

Histories of the Revolution (Gutiérrez Alea, 1960)

The History of the Kelly Gang (Charles Tait, 1906)

Un Homme et son péché (Paul Gury, 1948)

Horse (Kevin Liddy, 1992)

House of Flying Daggers (Zhang Yimou, 2004)

How It Feels to Be Run Over (Cecil Hepworth, 1900)

Ice Cold in Alex (J. Lee Thompson, 1958)

I Know Where I'm Going! (Michael Powell and Emeric Pressburger, 1945)

Ikuru (Akira Kurosawa, 1952)

I Love a Man in Uniform (David Wellington, 1993)

Indochine (Régis Wargnier, 1992)

Infernal Affairs (Wai Keung Lau and Siu Fai Mak, 2002)

Into the West (Mike Newell, 1992)

Jedda (Charles Chauvel, 1955)

Judo (Zhang Yimou, 1990)

Kabeatsuki heya (Kobayashi Masaki, 1953)

Kasbah (Mariano Barroso, 2000)

405
Koktebel (Boris Khlebnikov and Aleksei Popogrebskii, 2003)

Komsomolsk (Sergei Gerasimov, 1939)

Ladri di Biciclette (Vittorio De Sica, 1948)

The Last Supper (Gutiérrez Alea, 1979)

Lawrence of Arabia (David Lean, 1962)

Le Mépris (Jean-Luc Godard, 1963)

Laxdale Hall (John Eldridge, 1952)

Listen to Britain (Humphrey Jennings and Stewart McAllister, 1942)

Little Dieter Needs to Fly (Werner Herzog, 1997)

The Long Memory (Robert Hamer, 1953)

The Lord of the Rings (Peter Jackson, 2001–3)

Lorna Doone (Basil Dean, 1934)

Love Story (Leslie Arliss, 1944)

Lucía (Humberto Solas, 1968)

Manuela (Humberto Solas, 1966)

Man, with a Movie Camera (Dziga Vertov, 1929)

Martín Hache (Adolfo Aristaráin, 1998)

Masala (Srinivas Krishna, 1991)

A Matter of Life and Death (Michael Powell and Emeric Pressburger, 1946)

Mauri (Merata Mita, 1988)

Men of sugar (Pastor Vega, 1965)

Millions like Us (Frank Launder and Sidney Gilliat, 1943)

The Mill on the Floss (Tim Whelan, 1937)

406
The Miracle Worker (Alexander Medvedkin, 1937)

Mirror (Andrei Tarkovskii, 1974)

Miss Grant Goes to the Door (Brian Desmond Hurst, 1940)

Mon oncle Antoine (Claude Jutra, 1971)

More Time (Isaac Mabhikwa, 1993)

La muerte de Mikel (Imanol Uribe, 1983)

Mujeres al borde de un ataque de nervios (Pedro Almodóvar, 1988)

My Best Fiend (Werner Herzog, 1999)

My One-legged Dream Lover (Penny Fowler-Smith and Christine Olsen, 1998)

Nanook of the North (Robert Flaherty, 1921)

The Navigator: A Medieval Odyssey (Vincent Ward, 1988)

Neria (Godwin Mawuru, 1992)

Ngati (Barry Barclay, 1987)

Night of the Demon (Jacques Tourneur, 1957)

The North-West Frontier (J. Lee Thompson, 1959)

North by Northwest (Alfred Hitchcock, 1959)

Nosferatu: A Symphony of Horror; or simply Nosferatu (F. W. Murnau, 1921/22)

Nosferatu (Werner Herzog, 1979)

Nothing (Vincent Natali, 2003)

Ocaña: retrato intermitent (Ventura Pons, 1979)

The Old and the New (Sergei Eisenstein, 1929)

Oliver Twist (David Lean, 1948)

Once Were Warriors (Lee Tamahori, 1993)

407
One Night the Moon (Rachel Perkins, 2001)

The Other Francisco (Sergio Giral, 1974)

Otoshiana (Teshigahara Hiroshi, 1962)

Paperback Hero (Peter Pearson, 1973)

Panorama from Incline Railway (American Mutoscope and Biograph, 1902)

Peppermint Frappé (Carlos Saura, 1967)

El perqué de tot plegat (Ventura Pons, 1994)

La Petite Aurore, lenfant martyre (Yves Bigras, 1952)

Phantom Ride on the Canadian Pacific (Edison Manufacturing Company, 1903)

Phenomenon (Jon Turteltaub, 1996)

The Piano (Jane Campion, 1993)

El pico (Eloy de la Iglesia, 1982)

Playtime (Jacques Tati, 1967)

Poitín (Bob Quinn, 1978)

Pour la suite du monde (Pierre Perrault and Michel Brault, 1963)

Pouvoir intime (Yves Simoneau, 1986)

Princess Mononoke (Miyazaki Hayao, 1997)

Psycho (Gus Van Sant, 1998)

The Quiet Man (John Ford, 1952)

Radiance (Rachel Perkins, 1998)

Rancheador (Sergio Giral, 1976)

The Red Desert (Michelangelo Antonioni, 1964)

Red Sorghum (Zhang Yimou, 1987)

408
Reefer and the Model (Joe Comerford, 1987)

The Return (Andrei Zviagintsev, 2003)

The Rich Bride (Ivan Pyrev, 1937)

Riding Alone for Thousands of Miles (Zhang Yimou, 2005)

Rien que les heures (Alberto Cavalcanti, 1926)

Rojou no reikon (Minoru Murata, 1921)

Romper Stomper (Geoffrey Wright, 1992)

Rory O'More (Sidney Olcott, 1910)

Rude (Clement Virgo, 1995)

Sal Gorda (Fernando Trueba, 1982)

Scanners (David Cronenberg, 1980)

The Scarecrow (Sam Pillsbury, 1982)

Scott of the Antarctic (Charles Frend, 1948)

Scream of Stone (Werner Herzog, 1991)

Secondary Roles (Orlando Rojas, 1989)

The Secret of Roan Inish (John Sayles, 1994)

Sé infiel y no mires con quien (Fernando Trueba, 1985)

Sekai wa kyoufusuru (Kamei Fumio, 1957)

Seven of the Brave (Sergei Gerasimov, 1937)

The Seventh Seal (Ingmar Bergman, 1956)

Signs of Life (Werner Herzog, 1968)

Simba (Brian Desmond Hurst, 1955)

Si Mungu Mtupu (Hammie Rajab, 1999)

409
Sleeping Dogs (Roger Donaldson, 1977)

The Shining (Stanley Kubrick 1980)

Sliver (Phillip Noyce, 1993)

Splendor in the Grass (Elia Kazan, 1961)

Smash Palace (Roger Donaldson, 1981)

Snowball Cherry Red (Vasilii Shukshin, 1973)

Sonatine (Takeshi Kitano, 1993)

Song of the Road (John Baxter, 1937)

Song of the Tourist (Pastor Vega, 1967)

La Soufrière (Werner Herzog, 1977)

South Riding (Victor Saville, 1938)

Spring on Zarechnaia Street (Felix Miromer and Marlen Khutsiev, 1956)

Stage Sisters (Xie Jin, 1965)

Star Wars (George Lucas, 1977)

Strawberry and Chocolate (Tomás Gutiérrez Alea and Juan Carlos Tabío, 1993)

Stray Dog (Akira Kurosawa, 1949)

Surcos (José Antonio Nieves Conde, 1951)

The Sweet Hereafter (Atom Egoyan, 1997)

Tampopo (]uzo Itami, 1986)

Tasio (Montxo Armendáriz, 1984)

Taxi (Carlos Saura, 1996)

Ten Canoes (Rolf de Heer and Peter Djigirr, 2006)

Te Rua (Barry Barclay, 1991)

410
They're a Weird Mob (Michael Powell, 1966)

Three Times (Hsiao-Hsien Hou, 2005)

Tierra (Julio Medem, 1994)

Tierra sin pan (Luis Buñuel, 1933)

Tigres de papel (Fernando Colomo, 1977)

The Titfield Thunderbolt (Charles Crichton, 1953)

Tokyo Story (Yasujiro Ozu, 1953)

Too Much (Fernando Trueba, 1995)

The Tracker (Rolf de Heer, 2002)

Tuyas Marriage (Quanan Wang, 2006)

27 horas (Montxo Armendáriz, 1986)

Vale Abrão (Manuel de Oliveira, 1993)

Vertical Love (Arturo Sotto, 1997)

Vertigo (Alfred Hitchcock 1959)

Victoria the Great (Herbert Wilcox, 1937)

La vida sigue (Fernando Fernán Gómez, 1962)

Videodrome (David Cronenberg, 1982)

View from Gorge Railroad (Thomas Edison, 1896)

Vigil (Vincent Ward, 1984)

The Village (M. Night Shyamalan, 2004)

Violent Cop (Takeshi Kitano, 1989)

Viridiana (Luis Buñuel, 1960)

Waking Ned (Kirk Jones, 1999)

411
Walkabout (Nicholas Roeg, 1971)

The Water Gypsies (Maurice Elvey, 1931)

Waydowntown (Gary Burns, 2000)

Went the Day Well? (Alberto Cavalcanti, 1942)

Werner Herzog Eats His Shoe (Les Blank, 1980)

Whale Rider (Niki Caro, 2002)

Whisky Galore! (Alexander Mackendrick, 1948)

The Wicked Lady (Leslie Arliss, 1945)

Wild Man (Geoff Murphy, 1977)

Wimbo WA Mianzi (Yusuf Chuwa, 1985)

The Wind that Shakes the Barley (Ken Loach, 2006)

The World of Apu (Satyajit Ray, 1959)

Woyzeck (Werner Herzog, 1979)

The Young Rebel (Julio García Espinosa, 1961)

Zabriskie Point (Michelangelo Antonioni, 1970)

Zigomar (Victorin-Hippolyte Jasset, 1911)

Lo zio di Brooklyn (Daniele Ciprì and Franco Maresco, 1995)

Un Zoo la nuit (Jean-Claude Lauzon, 1987)

Zui hao de shiguang (Hsiao-Hsien Hou, 2005)

412
413
Anexos:

414
TRÊS TEXTOS DE NEWMAN275:

. Pintura Índia da Costa Nordeste, 1946.


. O Quadro Ideográfico, 1947.
. A Arte dos Mares do Sul, 1946.

PINTURA ÍNDIA DA COSTA NORDESTE

Newman organizou uma segunda exposição de arte primitiva para a Betty


Parsons, desta vez da pintura Índia da Costa Nordeste, para celebrar a abertura da sua
própria galeria (Betty Parsons), na rua Fifty-Seventh. Como anteriormente, ele preparou
os arranjos e escreveu o catálogo para a exposição, que abriu no dia 30 de setembro até
ao dia 19 de outubro de 1946.

“Tem-se tornado cada vez mais aparente que para percebermos a arte moderna,
temos de fazer uma avaliação das artes primitivas; tal como a arte moderna, mantêm-
se como uma ilha de revolta da estética da Europa Ocidental. As muitas tradições da
arte primitiva mantêm-se à parte, como autênticas realizações estéticas que florescem
sem beneficiar da história europeia.

No continente americano, ao longo da Costa do Pacífico do Canadá e do Alasca


do sul, emergiu uma arte com uma tradição válida, que é uma das mais ricas
expressões humanas. Contudo a Arte Índia da Costa Nordeste, se não toda, é
invariavelmente compreendida em termos da forma do Totem.

Na montagem desta exposição da pintura da Costa Nordeste, em honra da


abertura da nova galeria Betty Parsons (Mrs. Parsons deve ser congratulada pela
longa devoção que tem pela arte moderna e primitiva). Eu tenho estado ansioso para
mudar o centro de interesse deste trabalho, pouco conhecido, que muitos antropólogos
reivindicam antecipadamente, de que o Totem é uma escultura. Se é ou não, ele
constitui um dos mais vastos, certamente um dos mais impressionantes tesouros de

275
Tradução livre do inglês pelo autor desta tese. In Newman, Barnett, Selected Writings and interviews,
University of California Press, 1992.

415
pintura primitiva, que desceu até nós de qualquer parte do globo.

É nossa esperança que estas grandes obras de arte, quer seja nas paredes das
casas, nas roupas cerimoniais e nas vestes oficiais, ou como mantas cerimoniais, serão
desfrutadas, em atenção a elas, mas não é apropriado enfatizar, que será um erro
considerar estas pinturas como meros instrumentos decorativos: eles constituem uma
espécie de indicador do desenho.

O desenho era uma função separada praticada pelas mulheres, e tomava a


forma de um desenho geométrico, não objetivo, modelo ou padrão. Estas pinturas eram
ritualizadas. Elas constituem uma expressão de crenças mitológicas, dessas pessoas, e
tomavam a forma dos objetos cerimoniais, somente porque essas pessoas não
praticavam uma arte formal ou pintavam sobre tela. Lá, a tradição estética dominante
era o abstrato.

As suas representações, os seus deuses mitológicos e os monstruosos Totens


eram símbolos abstratos, utilizando formas orgânicas sem se preocuparem com os
contornos das aparências. Tão restrito era esse conceito, que todas as coisas vivas
eram mostradas “Interiormente” através da bissecção do animal, mostrando ambas as
partes deste, que era a ilusão de um modelo simétrico. As suas preocupações, contudo,
não eram com a simetria, mas com a natureza do organismo, o modelo metafísico da
vida.
Há uma resposta nestes trabalhos para quem assume que a arte moderna
abstrata é um exercício esotérico de uma elite snob, entre essas pessoas simples, a arte
era normal (abstrata), bem compreendida, uma tradição dominante.
Podemos dizer que o homem moderno perdeu esta capacidade para pensar num
nível superior? Não é este trabalho mais iluminado que o trabalho dos nossos artistas
modernos abstratos; que trabalhando com a linguagem plástica, a que nós chamamos
de abstrata, contem uma infusão do conteúdo intelectual e emotivo, e que sem nenhuma
imitação dos símbolos primitivos, estão criando um mito vivo para nós na nossa
própria época.”

416
O QUADRO IDEOGRÁFICO

As análises de Newman sobre a “nova pintura” na América e os seus vastos


estudos de arte primitiva, culminaram neste catálogo com o prefácio “O Quadro
Ideográfico”, para a exposição de pintores que ele organizou na Betty Parsons Gallery,
que se realizou desde o dia 20 de janeiro a 8 de fevereiro de 1947. O laconismo e a
eloquência das suas declarações acerca dos artistas primitivos e modernos, revelam
como se tinham cristalizado de modo completo as suas ideias em 1947 e sugerem o
quanto ele estava perto de penetrar no seu próprio trabalho plástico.

“O artista Kwakiutl pintava sobre peles de animais e ele mesmo não se


preocupava com as inconsequências que faziam levantar a competição na Costa
Nordeste Índia. Nem ele, em nome de uma elevada pureza, renuncia ao mundo vivo
para o materialismo de desenho, desprovido de significação. As formas abstractas que
ele usa, a sua intensa linguagem plástica é dirigida por uma vontade ritualista próxima
de um metafísico inteligente. As realidades do dia-a-dia deixam para os fazedores de
ninharias; um agradável divertimento de um assunto não objetivo, para as mulheres
dos cestos de tecelagem.
Para ele, a forma era uma coisa viva, um veículo para um complexo
pensamento abstrato, um portador de terríveis sentimentos, que ele sente perante o
terror do inexplicável.

A forma abstrata, por consequência, era real em vez de uma “abstração”


formal de um facto visual, com o som harmónico de uma já conhecida natureza. Nem
tão pouco era uma ilusão purista, com a carga excessiva de verdades pseudocientíficas.
As bases de um ato estético é a ideia pura.
Mas a ideia pura é necessariamente um ato estético. Então assim o paradoxo
epistemológico será problema do artista. Nem espaço cortado, nem espaço construído,
nem construção, nem destruição Fauvista; nem a linha pura, direita e pequena, nem
linha torturada, deformada e humilhante; nem o olho preciso nem o olho selvagem do
sonho, tremente; mas o complexo-ideia que faz o contacto com o mistério da vida, do
homem, da natureza, da força, do caos negro que é a morte, ou a inteligência, um caos
brando que é a tragédia.
Só para isto tem significado. Tudo o resto, é todo o resto.

417
Espontânea e emergindo de diversos pontos, surgiu durante os anos da guerra
uma nova força na pintura americana, que é o moderno duplicado do impulso da arte
primitiva. Já em 1942 Mr. Edward Alden Jewell foi o primeiro publicamente a informar
disto. Desde então vários críticos e negociantes têm tentado rotular e descrever o
“acontecimento”.

É agora o tempo para o artista, ele próprio mostrar o dicionário, para tornar
claro para a comunidade as intenções que o motivam assim como os seus colegas.
Agora há um grupo de artistas que não são pintores abstratos, apesar de trabalharem
naquilo que é conhecido como estilo abstrato. Mrs. Betty Parsons organizou uma
exposição representativa deste trabalho na sua galeria, com os artistas que são os seus
expoentes. Não é sem significado que muitos deles estão associados à sua galeria.”

A ARTE DOS MARES DO SUL

Newman escreveu este artigo (originalmente publicado em espanhol) em


consequência da “Art of the South Seas”, uma exposição que teve occoreu no museu de
arte moderna de Nova Iorque, nos princípios de 1946. Este artigo foi publicado em
junho desse ano em espanhol na revista “Ambos Mundos” e somente foi traduzida para
inglês em 1970. Neste artigo, Newman fala das suas ideias acerca dos impulsos da arte
primitiva e do impulso da arte moderna para “primitivar-se”, distinguindo várias
culturas, mas reconhecendo propostas semelhantes especialmente entre a arte da
Oceânia e o Surrealismo.

“A arte primitiva tornou-se para os artistas o sonho “romântico” dos nossos


tempos. Cada época artística como cada época histórica tem os seus sonhos
“românticos” acerca do passado, visto que os artistas, não menos que os historiadores,
anseiam os grandes feitos de outras épocas, nunca os realizados no tempo deles. Os
impressionistas, é bem conhecido, tiveram o “sonho” deles nas gravuras japonesas.
Eles semearam esta arte do oriente, como à séculos atrás os Bizantinos desejaram criar
uma arte sacra à volta da lenda de Cristo, e tiveram a sua “Paixão” na grandeza
religiosa da Índia e da China.

418
Até os impressionistas quebraram o “feitiço”, a vida emocional europeia foi
dominada, durante séculos pelo sonho grandioso do Renascimento. O próprio
Renascimento foi buscar o seu sonho à Grécia clássica, e para os Gregos a pirâmide
Egípcia foi o símbolo da beleza absoluta, o símbolo das suas esperanças artísticas.

No nosso tempo, Picasso pode ter tido muitas utopias, mas o seu primeiro
“sonho” — aquele que lhe deu “Voz” – foi a escultura negra. Isto não quer dizer que a
sua arte deriva daí, mas Picasso tentou adquirir as ideias artísticas que ele pensava
que existiam na tradição da arte primitiva. Semelhantemente Matisse encontrou o seu
“mundo nostálgico” nas grandes tradições da Pérsia primitiva.

Os não-objetivos de Kandinsky a Mondrian, anseiam pelo purismo do desenho


primitivo. O expressionismo apanhou o idioma da arte moderna, rotulou esse idioma
como uma interpretação do significado da arte primitiva, para expressar uma arte
pessoal; como a uma certa distância El Greco usou o “sonho Veneziano” para
expressar a sua própria visão. A moderna escultura também tem o seu “romance” com
a tradição primitiva: Brancusi, com a pré-história e a arte negra, Henry Moore com a
escultura pré-colombiana Mexicana, Lipchitz com a sucessão de estilos primitivos.

O Museu de Arte Moderna de New York trouxe estas interligações entre a arte
moderna e a arte de povos primitivos até nós, com a recente exposição de objetos
artísticos das ilhas da Oceânia, do Pacífico do Sul.

Com esta exposição é agora claro que até o surrealismo — que deu sempre a
impressão de estar na periferia da revolução moderna das artes plásticas — não é
exceção no “Romantismo” do nosso tempo, que tem o seu Romance na Arte dos Mares
do Sul.

Esta foi a mais importante exposição que se realizou até agora, e a primeira
onde há uma preocupação estética deste material, tornando isto um evento de dimensão
internacional. É interessante que à exceção das peças trazidas da Austrália para
representar a arte dos Aborígenes, as quatrocentas peças apresentadas vêm todas de
museus científicos americanos. Foi preciso uma guerra para o público Americano
perceber a importância destas culturas, porque até agora, eram apenas símbolos de

419
culturas exóticas, para agências de viagens, fazerem cartazes.

O alcance da arte dos Mares do Sul, é tão vasto que seria incompleto tentar dar
uma análise detalhada aqui, como seria insuficiente tratar a história da Europa
ocidental numa frase. A Arte dos Mares do Sul integra desde o ornamento, estilos
decorativos Rococós dos Maoris da Nova Zelândia, para a funcional simplicidade das
ilhas da Micronésia, do expressionismo da arte semirealista da ilha da Páscoa, até ao
simbolismo imaginativo dos desenhos a carvão da Nova Irlanda; dos desenhos
metafísicos dos Aborígenes da Austrália, até à arte abstrata da Papua Nova-guiné.

Porem, se é possível isolar o caracter distintivo de uma tradição artística – por


exemplo descrever a arte ocidental como uma arte Voluptuosa — também pode ser dito,
que o caracter distintivo da arte

Africana é que é uma arte de terror; terror perante a natureza, a ideia de


natureza como um “Deus” que se manifesta na selva. Se pode dizer-se que a arte
Mexicana contém um poder de terror, também se pode dizer que apesar da sua vasta
amplitude o caracter distintivo da arte da Oceânia, a qualidade que nos dá a chave,
para a sua diferença, das outras tradições artísticas, é o seu senso de magia. É uma
magia baseada no terror, mas ao contrário do terror africano perante a natureza, este
é um terror perante o significado da natureza, o terror envolvido na procura das
respostas inerentes às misteriosas forças da natureza.

Toda a vida está cheia de terror e a razão da arte primitiva está muito próxima
do pensamento moderno. Vivendo nós em tempos de grandes terrores, estamos numa
posição de entender a sensibilidade primitiva que o homem sente por isto. Contudo
apesar do homem sentir terror, é nos objetos que expressam este “sentimento”, que
contem os elementos de interpretação cultural que permitem a diferenciação das suas
expressões subjetivas. O homem moderno tornou-se no seu próprio terror. Para o
Africano, e para o Mexicano, o medo estava na selva, na natureza bruta.

Nas ilhas do Pacífico Sul é capaz de não ter havido um gosto pelo terror perante
uma natureza imobilizada, mas perante forças incontroláveis da natureza: o mar

420
inatingível, os ventos imensuráveis.

Na Oceânia o terror é um elemento mais real do que uma imagem tangível. O


mar e o vento ao contrário da floresta estática ou da selva, aproxima atos metafísicos.
Ora benigno ora catastrófico, eles surgem-nos fora do espaço misterioso. O terror que
eles trazem não simboliza um medo perante uma natureza material, mas perante forças
abstratas. O artista da Oceânia na sua tentativa de explicar o mundo que o rodeia,
estabelece ele próprio uma epistemologia do inatingível. Ele desenvolve uma arte
pictural, que contém um drama extravagante, que se pode chamar de teatro — de
Magia.

A exposição em Nova Iorque, foi elaborada, de modo a que cada grupo


mostrasse influências com as várias facetas do movimento de arte moderna. O
funcionalismo dos objectos da Micronésia parece aos nossos olhos conceções
construtivistas. As distorções das figuras e dos desenhos da Papua tocam os nossos
pintores abstratos, algumas delas “chamam os nossos” expressionistas. Mas a maior
influência, o ponto de contacto mais visível, é sem dúvida nenhuma com os nossos
surrealistas.

Nós sabemos que para os surrealistas, ou para os movimentos que saíram do


surrealismo o sonho utópico não era o que muitos suponham o renascimento, mas a
arte do Pacífico Sul. O laço é claro é apenas uma união de emoções. Nós sabemos que
historicamente os surrealistas chegaram às suas propostas através de Freud. Ele foi a
Catálise que preencheu os inconscientes deles e que deu esperança que eles podiam,
através da livre associação de ideias e de símbolos, chegar a um mundo mágico. Os
surrealistas derivam de Freud.

Contudo a relação do surrealismo com o pacífico Sul torna claro que o pintor
moderno, seja qual for a sua escola, está emocionalmente ligado à arte primitiva. O
artista da Oceânia e o surrealista formam uma fraternidade comum a uma proposta
estética.
Como a exposição clarifica, esta fraternidade também mostra as fundamentais
diferenças entre eles, o que explica o porque os surrealistas falharam na sua tentativa
de alcançar esta comunhão conjunta. Pode-se até pensar que o objetivo desta

421
importante exposição é demonstrar a falha dos surrealistas para interpretar o
significado do mágico — que eles só compreenderam o seu aspeto superficial;
insistindo numa apresentação materialista disso, na tentativa de apresentar um mundo
transcendental em termos de realismo, em termos da “plástica” renascentista e do
espaço renascentista, misturando o sonho geral do artista moderno com o sonho já
gasto da Europa académica.

Os surrealistas esperavam tornar aceitável o que eles conscientemente sabiam


que era irreal. Esta insistência realística, esta tentativa de fazer o irreal mais real,
através de uma overdose de ilusão, acaba por falhar nessa tentativa de ir para além da
ilusão.

Nisto está a linha de divisão entre os surrealistas e os artistas da Oceânia. Nós


sabemos que o artista primitivo no seu esforço não nos dececiona. Ele acredita na sua
magia. Nós sentimos isso porque vimos que as suas convicções são profundas. Sem
nenhuma tentativa de ilusão, trabalhando diretamente, usando os materiais da
natureza, o artista primitivo dá-nos a sua visão, completa e com candura.

Há um novo movimento que chegou à América, e que mostra através dos seus
trabalhos uma reinterpretação da arte da Oceânia, e que se baseia numa arte de
magia. As suas técnicas, são as técnicas da arte abstrata moderna, mas as suas origens
repousam no mesmo tema mitológico que motivou o artista do pacífico Sul. Estes
artistas estão mais próximos do artista primitivo que os tradicionais surrealistas.
Contudo uma análise do trabalho deste grupo é assunto a tratar noutro artigo.”

Barnett Newman

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