Ulsd730891 TD Vitor Gomes
Ulsd730891 TD Vitor Gomes
Ulsd730891 TD Vitor Gomes
FACULDADE DE BELAS-ARTES
Doutoramento em Belas-Artes
Especialidade de Ciências da Arte.
ANO 2017
UNIVERSIDADE DE LISBOA
FACULDADE DE BELAS-ARTES
Júri:
Presidente: Doutor Eduardo Manuel Alves Duarte, membro do Conselho Cientifico
da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (nomeado por
Despacho do Senhor Vice-Reitor, datado de 21 de abril de 2017, no uso
de competências delegadas).
Vogais:
Doutor Manuel Francisco Soares do Patrocínio, Professor Auxiliar com
- Agregação da Escola de Ciências Sociais da Universidade de Évora.
(1ºarguente);
1
Doutora Prudência Maria Fernandes Antão Coimbra, Professora Adjunta
- da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico do Porto (2º
arguente);
Doutora Maria João Lello Ortigão de Oliveira, Professora Auxiliar da
-
Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa;
Doutor Eduardo Manuel Alves Duarte, Professor Auxiliar da Faculdade
-
de Belas-Artes da Universidade de Lisboa;
Doutora Maria do Céu Simões Tereno, Professora Auxiliar da Escola de
-
Artes da Universidade de Évora (orientadora);
Doutora Cristina Maria de Sousa Azevedo Tavares, Professora Associada
-
da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (orientadora).
ANO 2017
2
DECLARAÇÃO DE AUTORIA
Eu Vitor Manuel dos Santos Gomes, declaro que a tese de doutoramento intitulada “A
PAISAGEM NAS ARTES VISUAIS: DE FRIEDRICH A VERTIGO (Alfred Hitchcock).
Uma história cultural do olhar.”, é o resultado da minha investigação pessoal e independente.
O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na
bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou
indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.
O Candidato
3
RESUMO
Com esta tese pretendemos pensar, investigar, interpretar e convidar a uma reflexão
sobre as diferentes dimensões contidas na temática artística, cultural e estética da Paisagem
nas Artes Visuais. Para a pesquisa e levantamento, serão adotados métodos que têm a ver
com o trabalho e pesquisas desenvolvidos por artistas, filósofos e teóricos do século XX e
do século XXI.
Palavras-Chave:
Paisagem, Artes Visuais, Pintura, Cinema, Estudos Visuais
4
ABSTRACT
In the early twenty-first century, there has been the interest of the landscape
understood as a figuration of an artistic, cultural, social and aesthetic system that can and
should support a cultural history of the gaze.
The artists mentioned in the title can be considered the historical theme of
benchmarks to study because feature a time and a historical landscape. Our area of research
is in the visual arts and the common thread is the theme of landscape.
With this thesis we intend to think, investigate, interpret and invite reflection on the
different dimensions contained in the artistic subject, cultural and aesthetic landscape in the
Visual Arts. For research and survey methods will be adopted that have to do with work
and research developed by artists, philosophers and theorists of the twentieth century and
the twenty-first century.
We can designate some aspects and landscape dimensions of the concept that
interests us to investigate the thesis configuration. Thus, we have: the landscape as
relationship category with art, in which experience and observation are priority premises of
their condition; the landscape as critical discourse, heir to a long tradition in which overlaid
it with very different statutes, because the landscape can serve as a mirror of values, beliefs,
opinions, ideas of an era.
In contemporary times, it calls environmental and ecological aspects completely
new; the landscape with aesthetic relevance, the landscape seen as a dynamic entity that
calls for an aesthetic attitude; the landscape as an artistic project.
The mentioned concepts, as well as certain guiding principles and respective
methodological matrices, address the domains: of the thought, the aesthetic and artistic
fruition of the landscape
Key Words:
Landscape, Visual Arts, Painting, Cinema, Visual Studies.
5
Gostaria de agradecer, a Inês Barreiros, Sílvia Mourato e José Maria Luz, pelo
apoio prestado, à minha família, aos Presidentes do Departamento de Paisagem,
Ambiente e Ordenamento da Universidade de Évora. Ao meu colega de Curso de
Doutoramento Joseph Rodrigues, à Professora Doutora Maria João Ortigão e ao
Professor Doutor Eduardo Duarte cujos comentários e conselhos nas apresentações do
Curso de Formação Avançado foram sempre úteis e pertinentes. Last but not the Least à
minha coorientadora, Professora Doutora Maria do Céu Tereno, por constante amparo e
auxílio prestado no meu percurso académico e pelo inultrapassável apoio nesta Tese, e à
Professora Doutora Cristina Azevedo Tavares pelo inexcedível apoio, bondade e
orientações cedidas durante a supervisão desta Tese.
6
“«Já aqui estive antes», disse. Já ali estivera; primeiro, com Sebastian, há mais de vinte anos, num dia
de junho sem nuvens, quando os valados se embelezavam com as rainhas-dos-prados e o ar se carregava
com todos os aromas de Verão; era uma dia de esplendor peculiar e, apesar de ali ter estado tantas
vezes, em tão diferentes estados de espirito, foi a essa primeira visita que o meu coração regressou nesta
última”
Esta Tese é dedicada à memória do meu pai que partiu para paisagens distantes durante
a realização da mesma.
7
Índice
Resumo 4
Agradecimentos 6
Dedicatória 7
Introdução 12
Capítulo I
O retorno à Paisagem 30
Capítulo II
8
2.4 The lost moment: Novos “murmúrios’ na Paisagem… 186
2.4.1 O Verde instantâneo: Aspetos da paisagem na pintura
do século XX 188
2.4.2 Barnett Newman e a legitimação da Arte americana
nas ‘Paisagens primitivas’. 205
2.4.2.1 Epílogo On Newman 207
2.4.3 Esplendor na Relva 211
2.4.4 O Regresso à Pintura. 215
Capítulo III
9
Referências Bibliográficas 343
Filmografia 399
Anexos 414
10
11
Fig. 1
Pierre-Auguste Renoir, Os Montes à volta da Baia de Moulin Huet, Guernsey, 1883.
Introdução
12
A escritora dinamarquesa, Karen Blixen, abriu as suas memórias dos seus 17
anos no Quénia com as já icónicas palavras:
1
In BLIXEN, Karen, África Minha, Clube do Autor, Lisboa, 2011. P. 11-12.
13
Fig. 2, Frame, Out of Africa, Sydney Pollack, 1985.
14
também nos pode fornecer uma série de categorias refletidas que podem caber como
modelos perante a nossa comunicação com a natureza. Todos temos alguma recordação
ou alguma memória visual ligada à paisagem nas nossas vidas como a de Karen Blixen.
Normalmente essas memórias - deslocam-se da cidade para fora - consistem em
experiências sensoriais em parques, nos subúrbios, nas florestas, em lagos, nas costas,
nas montanhas, no deserto, ad infinitum. Estas categorias naturais permitem que o nosso
sentido de perceção e de reorganização descubram etapas sequenciais.
A memória é antes de tudo uma faculdade: uma que, nas palavras de Santo
Agostinho no seu diálogo. De magistro2, nos permite falar de "coisas que pensamos e
sentimos". Ao comunicar a lembrança, a contemplação mental permite que o que agora
já não está mais presente nos nossos sentidos sirva de base para o reconhecimento de
uma experiência compartilhada. Essa forma falada de imagens "produzida nos salões da
memória" leva, portanto, um carácter de veracidade para os outros.
2
In De Magistro, St. Agostinho, Editora Vozes, S. Paulo, 1994.
15
uma operação social que define como eles vão juntos, ou o que eles têm em comum, e
então o que permite que esses dados sejam recuperados numa retrospetiva visual. É
igualmente numa base culturalmente partilhada que a nostalgia do lugar, das paisagens e
do passado implica um retorno em direção a um estado anterior da existência, marcado
por um papel comum e lembrado, que nos é dado pela natureza.
Escrever sobre a paisagem pode ser como uma “pintura na tela”, na medida em
que a memória é usada criativamente em ambos os casos - para evocar algo que não está
mais diante dos olhos.
Uma introdução a esta tese deve, em primeiro lugar, justificar o seu título: A
Paisagem nas Artes Visuais: de Friedrich a Vertigo (Alfred Hitchcock). Pretende-se
uma visão “renovadora” da paisagem nas artes visuais que permita ou revele o seu
denominador comum à pintura e ao cinema, áreas que serão abordadas nesta
investigação, e principalmente identificar uma história cultural do olhar através da
paisagem. Esse denominador comum define ou redefine a natureza desta temática. Os
artistas citados no título poderão ser considerados os balizadores históricos do tema a
estudar, pois caraterizam um tempo e uma paisagem histórica. O resultado é uma tese
que interpreta uma visão sobre a paisagem nas artes visuais, de uma relação do cinema
com a fisicalidade do nosso mundo e como o cinema nos ajuda a construir uma ideia e
um olhar de paisagem.
Este estudo pretende relançar mais “olhares” sobre a temática da Paisagem nas
artes visuais. Existindo já várias dissertações académicas em Portugal onde a paisagem
é abordada centralmente, lateral ou transversalmente, pretendemos contribuir para um
estudo renovador, original e que coloque questões contemporâneas a esta temática. Sem
pretender sermos pretensiosos ou “impertinentes”, gostaríamos que esta investigação
fosse uma espécie de “ramo distante”, contemporâneo, de ideias que foram abordadas (e
“plantadas”) por Kenneth Clark, na sua A Paisagem na Arte, e que estiveram na origem
de estudos contemporâneos tão pertinentes como a Landscape in Western Art de
Malcolm Andrews ou o Landscape and Power de Mitchell.
16
em parte, a um cuidado e preocupação crescentes com questões associadas aos riscos
ambientais que corremos e, consequentemente, a uma maior importância conferida ao
tema da ecologia.
A atual condição de crise faz com que o que era até agora invisível se torne
radicalmente aparente, tornando assim patentes as nossas preocupações com as questões
da morfologia, da ecologia e da estética da paisagem. Sobre a paisagem geram-se então
expectativas como se esta fosse a chave que permitisse a resposta a muitas questões de
gestão do espaço e das atividades que nele se desenvolvem, certamente devido ao
potencial de integração que oferece.
Os filósofos têm introduzido novas ideias e trazem uma nova luz sobre o
fenómeno da paisagem. Também um novo tipo de estudos que parte de uma visão
interdisciplinar onde se relacionam a linguística, a geografia, a história, a sociologia, a
arquitetura, a arte, o cinema, os estudos visuais e a literatura, entre outras várias
disciplinas, está a abrir novas vias ao conhecimento sobre um tema que aparece cada
vez mais pluridisciplinar, e complexo.
17
com o movimento moderno. A complexidade do conceito de paisagem destaca-se por
ser uma realidade multifacetada, permitindo um largo espectro de definições e
aproximações largamente determinadas pela abordagem e especialidade de quem o
utiliza e é cada vez mais objeto de múltiplas questões, interpelando-nos a um saber
multidisciplinar e a uma transversalidade de olhares.
Importa referir que esta investigação não é uma história da paisagem na arte, não
é uma história das relações da arte com a paisagem, mas é um contributo para avaliar a
aproximação entre a arte e a paisagem, e principalmente como olhamos para e através
dela. As ideias contribuidoras para esta tese não podem ser chamadas de “navegadoras
ou exploradoras” de si mesmas. Existentes como ideias dos “territórios”
cinematográficos, artísticos, culturais, visuais que descrevemos aqui, são vistas mais
corretamente como desbravadoras ou guias, que possuem um conhecimento único e
experiência dos vários conhecimentos que percorrem esta tese. Como pensadores,
atuámos em remover os adicionais, mais como mapa-fabricante destas terras visuais,
que são habilmente vistoriados por outras análises teóricas
As três partes articulam-se entre si por uma lógica inicial de separação das
entidades vitais da tese — a paisagem, a arte, o cinema— que evolui, depois, para uma
lógica de reunião dos pólos considerados, ou seja, uma construção de um olhar de
paisagem. O tema apresenta uma condição centrífuga a que se tentará dar uma
orientação centrípeta de capítulo a capítulo.
18
história cultural através desse olhar, nos domínios enunciados, ao condensar a
informação e as principais perspetivas de investigação abertas sobre estes temas,
inscrevendo-os num âmbito interdisciplinar. Estes dois capítulos procuram ainda
mostrar o interesse crescente por estas matérias, quer no âmbito da pesquisa teórica,
quer no interior da prática artística, quer, ainda, num campo mais extenso em que se
reconhece um interesse generalizado da sociedade pela paisagem. As razões que
explicam tal interesse serão também debatidas.
Com uma formação no domínio das Belas Artes (Pintura e Escultura) e História
de Arte, tendo a prática das Artes plásticas, sendo Assistente Universitário num
Departamento onde se ensina como desenhar elementos da paisagem, um doutoramento
“emoldurado” por uma Faculdade de Belas Artes que “conquistou” para os “territórios”
19
teóricos e historiográficos o cognome de “ciências da arte”, faz com que investigar um
tema como o nosso, implique apreciações oriundas da história da arte, dos estudos da
cultura visual, das artes e do cinema.
Esta disparidade de referências prestava-se a interrogações importantes sobre o
campo privilegiado de pesquisa desta tese e sobre os valores e princípios que lhe são
inerentes.
Elas são manipuladas para ressoar em toda uma gama de relações com a
descrição artística. As paisagens podem ser consumadas para transportar associações e
alusões, e desta forma tornar-se indiciadas da importação imaginativa ou poética.
Podem ser dadas a uma acentuação figurativa, ou serem dotadas de um poder simbólico
do afeto.
20
pertinente para as obras em questão. Ou pode deixar de integrar um conjunto suficiente
de casos individuais, juntamente com as condições de os encaixar de forma convincente,
na sua trajetória contínua de discussão.
Esta investigação não tem como objetivo constituir uma perspetiva desses
contributos, mas aproximar-se teoricamente dos seus pontos de vista e de problemas
válidos para o tema central que nos ocupa.
Convém acautelar que a reflexão sobre as dificuldades de delimitação dos
campos de estudo não visa tanto chegar a um pensamento rigoroso e espartilhado, como
despertar para a sua situação num plano mais abrangente que desmonta a objetividade
cega, a universalidade e o sentido de finalização de qualquer tese.
Quais as implicações das nossas experiências visuais, num mundo cada vez mais
centralizado no olhar?
Essas são algumas das inquietações que fundamentaram a sedimentação da
proposta dos Estudos Visuais. Estudos Visuais, Cultura Visual ou os Estudos da Cultura
Visual são os nomes que o este campo já recebeu de seus principais interlocutores. Uma
das denominações mais comuns é fornecida pelo americano W.J.T. Mitchell3. Para ele,
os Estudos Visuais referem-se ao campo de estudo, enquanto Cultura Visual é o objeto.
Assim, Estudos Visuais são a apreciação da Cultura Visual.
3
William John Thomas Mitchell (1942) - conhecido como W.J.T. Mitchell - é o Gaylord Donnelley
Distinto Professor de Inglês e História da Arte na Universidade de Chicago. Ele também é o editor da
Critical Inquiry, e contribui regularmente para a revista October. As suas monografias, Iconology (1986)
e Picture Theory (1994), concentram-se na teoria dos meios de comunicação e na cultura visual. Ele
baseia-se em ideias de Sigmund Freud e Karl Marx para demonstrar que, essencialmente, devemos
considerar as imagens como coisas vivas. A sua coleção de ensaios O que querem as fotos? (2005)
ganhou o prémio prestigioso da associação da língua moderna James Russell Lowell em 2005. Numa
recente entrevista de podcast Mitchell traça o seu interesse na cultura visual para o trabalho inicial de
William Blake, e o seu florescente interesse em seguida, para o desenvolvimento de uma ciência das
imagens. Na mesma entrevista, ele discute os seus esforços em curso para repensar a cultura visual como
uma forma de vida e à luz da média digital.
21
Para Hal Foster 4, o interesse das questões levantadas por essa temática reside na
forma em que as noções de universalidade e de contingência determinam o que nós
precisamos saber sobre a arte. A questão de identificação e da definição de arte tornou-
se especialmente relevante no contexto da ascensão dos Estudos Visuais e do seu
desafio a alguma das suposições protegidas na história da arte "Hoje o cânone é menos
uma barricada para atacar do que uma ruína para escolher através dele”5
Infeliz com a perspetiva de que o discurso da arte deve tornar-se apenas mais
uma das variadas formas de produção visual analisada pelos estudos visuais, Foster
traça uma genealogia de pensadores análogos, como Walter Benjamin e Erwin Panofsky
ou Michel Foucault e André Malraux, cujos escritos passados faz-nos pensar sobre o
conceito de arte nos nossos dias atuais.
4
Harold Foster (1955) é um crítico de arte e historiador de arte americano. Estudou na universidade de
Princeton, na universidade de Colômbia, e na universidade da cidade de New York. Ele lecionou na
Universidade Cornell de 1991 a 1997 e tem estado na Universidade de Princeton desde 1997.
A crítica de Foster centra-se no papel da vanguarda no pós-modernismo. Em 1983, ele editou The Anti-
Aesthetic: Essays on Postmodern Culture, um texto seminal no pós-modernismo. Em Recodings (1985),
ele promoveu uma visão do pós-modernismo que simultaneamente envolveu a sua história de vanguarda e
comentou sobre a sociedade contemporânea. Em O Retorno do Real (1996), propôs um modelo de
recorrência histórica da vanguarda, em que cada ciclo melhoraria os inevitáveis fracassos dos ciclos
anteriores. Vê as suas funções como crítico e historiador da arte como complementares ao invés de
mutuamente opostos.
5
In FOSTER, Hal, Recodings: Art, Spectacle, Cultural Politics, 1985. Bay Press.
6
Kobena Mercer (1960) é um distinto historiador e escritor de arte britânico, que escreve sobre arte
contemporânea e cultura visual. A sua análise teórica sobre Robert Mapplethorpe e Rotimi Fani-Kayode
foi descrita como "uma das críticas mais incisivas (e deliciosas a serem lidas) de políticas simples
baseadas na identidade no campo dos estudos culturais".
22
abordagem à história da arte e às preocupações estéticas," Mercer defende o que ele
chama de “diáspora estética” para os valores da estética que não tem nada a ver com o
desinteresse da tradição idealista e com tudo o que tenha a ver com a política de uma
identidade nacional particular.
Podem ter olhado para um espectro mais amplo do mundo da arte, mas
argumentaram que a arte dos diferentes povos foi diferente por causa do seu curso
histórico. "Mesmo onde o preconceito estético de um tipo pode parecer ausente,
pensando em termos de estereótipos, e, portanto, recorrer a outros tipos de
preconceito, não apenas de um tipo hermenêutico neutro, pode determinar a quota de
argumentos sobre a história e a estética. "11 A arte do mundo foi múltipla, mas para os
estudiosos vienenses a variedade pode ser julgada e ordenada de acordo com critérios
que inconscientemente manifestam uma eurocêntrica, e até mesmo germânica, visão.
O discurso de Karen Lang12 dramatiza a tensão entre a abstração da estética
filosófica e a textura do momento histórico na escrita de Erwin Panofsky. Lang sugere
7
In BEARDEN, Romare, African American Modernism at Mid-Century, In Michael Ann Holly & Keith
P. F. Moxey (eds.), Art History, Aesthetics, Visual Studies. Sterling and Francine Clark Art Institute. pp.
29--46 (2002)
8
In KAUFMANN, Thomas, National Stereotypes, Prejudice, and Aesthetic Judgments in the
Historiography of Art, in Art History, Aesthetics, Visual Studies, Ed by Michael Ann Holly and Keith
Moxey. 2002.
9
Thomas Kaufmann (1948) é um distinto estudioso da arte centro-europeia do Renascimento e do
Barroco. O seu interesse pela arte do Sacro Império Romano sob o domínio dos Habsburgo, numa época
em que os historiadores da arte favoreceram a Itália e a Europa Ocidental, levou-o também a
investigações inovadoras sobre o papel da geografia na criação da arte. O seu interesse pela arte da
Europa Central centrou-se inicialmente no tribunal de Praga de Rudolf II, que trouxe artistas de toda a
Europa para Praga.
10
Id. Ibid., p.76.
11
Id Ibid, p.77.
12
Karen Lang ensinou no California Institute of Technology (Caltech) e na University of Southern
California antes de ir para a Universidade de Warwick em 2011. Ela tem escrito muito sobre arte
moderna e contemporânea, estética filosófica e história da história da arte. Foi editora-chefe do The Art
Bulletin, a revista líder de revistas internacionais de história da arte (2010-2013).
23
que a preocupação de Panofsky com a estética, caracterizada mais profundamente nos
seus primeiros escritos, do que no seu trabalho posterior, tendem a ser de natureza mais
histórica.
Ela coloca a questão subjacente, no entanto, para a disciplina como um todo.
"Como é que um objeto estético em última análise, incognoscível se torna um objeto de
conhecimento disciplinar?"13 Panofsky parece ter sacrificado a estética com a sua
preocupação com a "experiência sensorial e experiência afetiva" para uma distância
segura entre sujeito e objeto, um "ponto de Arquimedes", da qual o historiador poderia
sentir-se seguro de que o seu trabalho constituiu uma contribuição para algo fixo e
permanente chamado de "conhecimento".
13
In LANG, Karen, Points of View in Art History and Aesthetics, In Art History, Aesthetics, Visual
Studies, Ed by Michael Ann Holly and Keith Moxey. 2002. p. 61.
14
Ivan Gaskell é professor de História Cultural e Estudos de Museus no Bard Graduate Center. O seu
trabalho sobre a cultura material aborda interseções entre história, história da arte, antropologia e
filosofia. A sua principal preocupação académica é mobilizar traços não-escritos do passado para iluminar
aspetos da vida de atores humanos que de outra forma permaneceriam obscuros.
15
GASKELL, Ivan The Language of Art History (Cambridge Studies in Philosophy and the Arts 1).
(Gaskell, Kemal S). Cambridge and Nova Iorque: Cambridge University Press; 1991. P.45.
24
perguntar, a que extensão é atribuível uma resposta ingénua e até que ponto porque
reconhecemos o trabalho como pertencente ao cânone da grande arte?
Embora grande parte da força da nova teoria analítica esteja dedicada ao estudo
de sistemas de representação, ele acredita que a sua missão principal se encontra em
melhorar a nossa compreensão da visão, não apenas da visualidade, mas dos processos
biológicos e culturais que a nossa experiência visual torna compreensível.
"As perguntas para perguntar sobre as imagens não são apenas o que elas
significam? Ou o que elas fazem? Mas o que é o segredo da sua vitalidade? E o que
17
elas querem? " Os estudos visuais não são apenas sobre" a construção social do
campo visual,”18mas também sobre “a construção do campo visual.”19 Além do
domínio do discurso, existe uma outra coisa, é como se fossemos intérpretes do olhar
em torno das “margens” das convenções e da ideologia.
Mitchell parece romper barreiras com os pensadores pós-estruturalistas que
insistiam que não há nenhuma maneira de sair da teia da representação, nem mesmo no
nosso próprio acesso ao real, que é efetivamente obstruído.
Em segundo lugar, Mitchell quer dissipar alguns dos desentendimentos que têm
surgido sobre o campo emergente. Longe de prejudicar a distinção da arte e da não-arte,
por exemplo, pondera a cultura visual como "ambos os lados desta sempre mudada
16
Id ibid, p. 48.
17
In MITCHELL, W.J.T, Showing Seeing. A Critique of Visual Culture. In Art History, Aesthetics, Visual
Studies, Ed by Michael Ann Holly and Keith Moxey. 2002.p. 235.
18
Id Ibid. P. 236.
19
Id Ibid. P. 236.
25
fronteira que traça as transações e as traduções entre elas. "20O que a cultura visual
nega, então, não é um discurso de arte, mas sim uma definição de arte. Afirma a função
social da categoria ao negar que ela pode ser fixamente atribuída e ter um significado
universal.
Os Estudos visuais não devem depender do seu atraso - nalgum sentido em que
chegou ao fim dos tempos e é, portanto, a fruição da história. Pelo contrário, é uma
forma de análise que complementam as práticas institucionalizadas dedicados ao estudo
do visual que já estão em vigor, e as suas investigações não são restritas à produção
visual da "modernidade".
Encantado por uma capacitação para estudar todas as formas de produção visual,
em vez de apenas aquelas incluídas na alçada da história da arte e estética, Mirzoeff
diferencia amplamente, todo o espectro dessa produção, a partir de fotografias, de
sessões espíritas, a imagens de Anne Frank. Para Mirzoeff, como muitos outros
20
Id Ibid, p.236.
21
Nicholas Mirzoeff é um teórico da cultura visual e professor no Departamento de Media, Cultura e
Comunicação da Universidade de Nova York. É o mais conhecido pelo seu trabalho que desenvolve no
campo da cultura visual e nos seus muitos livros sobre esta temática. Ele também é Diretor Adjunto da
Associação Internacional de Cultura Visual e organizou a sua primeira conferência em 2012.
22
In MIRZOEFF, Nicholas, An Introduction to Visual Culture, Psychology Press, 1999. P. 56.
26
convertidos ao campo visual, está entusiasmado pela liberdade de não saber como
encontrar todas as respostas: "a cultura visual é definida mais pelas perguntas que faz
que os objetos que estuda.”23
23
Id Ibid, p. 57.
24
In MITCHELL, W. J. T. Interdisciplinarity and Visual Culture. Art Bulletin. December 1995, v.
LXXVII, nº 4, p. 540-44.
27
digital, a semiótica das imagens, a psicanálise das imagens, as exposições e as
audiências.
28
29
Capítulo I
O retorno à Paisagem
30
1.1 Considerações Iniciais
31
várias disciplinas, está a abrir novas vias ao conhecimento sobre um tema que aparece
cada vez mais poliédrico, complexo, mas ao mesmo tempo tão acessível e reconhecível
pelas pessoas.
32
1.2. Abordagens Multidisciplinares da Paisagem
O habitat faz parte de toda a história da nossa relação com o ambiente físico, e a
tradição visual da representação da paisagem, tem desde o início sido um elemento vital
nesse relacionamento. Paisagens pictóricas levam a imagens paisagísticas, e existem
várias genealogias tipológicas neste género.
As fotos de paisagens também reproduzem preconceitos visuais que podem
nunca encontrar expressão formal nas obras de arte, mas que são influências para
modelar “momentos cruciais” em termos da maneira como podemos responder em
particular, tanto para o nosso meio ambiente natural como para as imagens do meio
ambiente.
33
espécie de galeria de arte, ou mais particularmente através dessas salas dedicadas às
Paisagens (apesar de que é uma atividade bastante agradável), mas que levantam
questões sobre a nossa relação com o tema da paisagem e a da sua visualização.
Porém, o que é a paisagem...? Antes de ser uma questão retórica, trata-se de uma
preocupação em analisar e construir um referencial. A Paisagem é um daqueles
conceitos evasivos, que pode ser tudo ou ao mesmo tempo ter um significado
específico, ambivalente, como na análise de Yi-Fu Tuan.27 Para este autor a perceção da
paisagem pelo homem depende da qualidade dos seus sentidos e também da sua
mentalidade, da capacidade da mente de extrapolar além dos dados compreendidos. Tais
espaços naturais estão no extremo conceptual do continuum experiencial. Existem três
tipos principais de espaço, com grandes áreas de superposição: o mítico, o pragmático e
o abstrato ou teórico.
34
paisagem quando foi traduzida numa imagem pintada por uma pessoa com visão,
talento e habilidade técnica.
Tão ampla que é esta temática, que a sua linguagem extrapolou os territórios
tradicionais desses estudos, e hoje, a palavra transformou-se numa metáfora, quando se
quer localizar num cenário qualquer, um conteúdo sobre o qual se vai analisar.
Neste subcapítulo vamos tentar mapear algumas das várias abordagens acerca do
conceito de paisagem. Não se trata de construir uma teoria da paisagem, pois esta tese
35
não é uma história da paisagem, mas de abrir uma “visão” para uma análise à conceção
da paisagem através de uma teoria, de uma história cultural do olhar.
Este livro, o terceiro de uma trilogia, que inclui Getting Back in Place (1993) e
The Fate of Place (1997), estende a sua tese de que a noção Heideggeriana de Gebild,
que faz do mundo uma "imagem organizada que reestrutura o Mundo do qual é uma
imagem "30(revela uma tensão fundamental entre a geometria abstrata do espaço e a
fenomenologia do lugar.)
28
Edward S. Casey (1939)) é um filósofo americano e professor universitário. Depois de estudar na
Universidade de Yale (BA 1961), recebeu o seu PhD da Northwestern University (1967) e ensinou em
Yale, Pacifica Graduate Institute, Stonybrook University, Santa Barbara, New School for Social
Research, Emory University, e em outras instituições. Atualmente é Professor Distinto de Filosofia na
Stony Brook University, Nova Iorque. Casey foi presidente da associação filosófica americana (divisão
oriental) e decano da faculdade das artes na Stony Brook University. Conduz pesquisas em termos da
estética, filosofia do espaço e do tempo, ética, perceção e teoria psicanalítica. Casey é um dos filósofos
mais influentes no que diz respeito à filosofia do espaço.
29
In CASEY, Edward S. Representing Place: Landscape Painting and Maps. Minneapolis/London: n
University of Minnesota Press: 2002.
30
Id., Ibid., p.234.
36
medieval pré-moderna. O seu livro propõe recuperar a ideia de o lugar através de uma
cuidadosa leitura de representações, especificamente a pintura de paisagem e de mapas.
31
Id. Ibid., p. 7.
32
CASEY, Op., Cit., p.273
37
mundo das imagens é enquadrado ou enquadrável; e assim com os mapas e com as
pinturas, o espectador determina os limites e as inclusões.
Assim, os nossos mapas são sempre uma aproximação da realidade, uma noção
que se torna ainda mais radical quando consideramos a afirmação de Heidegger de que
aquilo que acreditamos ser a realidade é em si mesma apenas uma aproximação, uma
imagem que construímos para nós mesmos.
O livro abrange uma vasta gama de material textual e visual, mas as fontes
primárias de Casey são as pinturas e os mapas. Como resultado, o seu livro é mais
facultoso do que a maioria dos livros da geografia humanista, porque não se afasta de
uma análise visual de certos objetos estéticos, ou seja, pinturas que normalmente estão
fora do cânone. (O autor refere particularmente os mapas “corográficos”, que são um
mapeamento qualitativo do sítio, em oposição aos mapas cartográficos, que são
quantitativos.)
33
In KANT, Crítica da Razão Pura, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2004.
38
experiência inata da diferença entre espaço e lugar. Casey foi um dos autores que se
insere num conjunto de teóricos que contribuíram para um novo olhar face a novos
desafios epistemológicos e que tomaram atitudes diferenciadas em relação ao espaço e à
paisagem.
34
JACKSON, John Brinckerhoff. Discovering the vernacular landscape. New Haven: Yale University
Press, 1984.
35
John Brinckerhoff Jackson, JB Jackson, (1909 - 1996) foi um escritor, editor, professor e desenhador
no âmbito do projeto da paisagem, norte-americano. Herbert Muschamp, crítico do New York Times na
área de arquitetura, afirmou que JB Jackson era " O maior escritor vivo na América, que se debruça sobre
as forças que moldaram a terra que esta nação ocupa." Ele teve uma enorme influência na ampliação da
perspetiva teórica sobre a paisagem. Livros de referência: Landscapes: Selected Writings of J. B. Jackson
(1970), American Space: The Centennial Years, 1865-1876 (1972), The Interpretation of Ordinary
Landscapes: Geographical Essays edited with D.W. Meinig (1979), Discovering the Vernacular
Landscape (1984), A Sense of Place, a Sense of Time (1994), Landscape in Sight: Looking at America
(1999).
36
Id. Ibid., p.5.
39
empírica e objetiva que a possibilita. É nessa realidade que partem as decisões do
processo percetivo e não o contrário. A relação, no texto de Jackson, entre paisagem e
espaço é crucial.
Para o autor, não se trata de sinónimos. A paisagem não é espaço. Nem o espaço
é essa categoria, para Jackson, a paisagem é um conjunto de espaços, espaços esses
alterados pelas relações humanas.
De acordo com este argumento, aqueles para quem a terra é o tecido das suas
vidas, para quem é sustento e ambiente da sua casa, não veem a terra como paisagem.
Eles relacionam-se com a terra enquanto participantes da mesma: para o participante
não há separação clara entre o sujeito e objeto. Existe, sim, uma fusão.
37
COSGROVE, Denis. Social Formation and Symbolic Landscape. Wisconsin: University of Wisconsin
Press, 1998, p. 1-2.
38
Denis E. Cosgrove (1948 - 2008) foi Professor da cátedra Alexander von Humboldt de Geografia da
Universidade de Los Angeles, Califórnia. Frequentou a Universidade de Oxford e a Universidade de
Toronto. Foi um importante geógrafo cultural, cujo trabalho focou-se nos conceitos de paisagem e
respetivas representações. Ele foi um dos defensores da 'nova geografia cultural' que incentivou uma
nova perspetiva sobre as complexas interconexões entre os muitos aspetos diferentes das paisagens e do
mundo. Livros de referência: The Iconography of Landscape: Essays on the Symbolic Representation,
Design and Use of Past Environments (1988), The Palladian landscape: geographical change and its
cultural representations in sixteenth century Italy (1993).
40
convicção de uma abordagem de paisagens específicas tal como Jackson e outros
teoricos discutiram e idealizaram.
Esta ideia da paisagem que o autor desenvolveu resume-se numa afirmação que
se destaca no seu livro: “A paisagem representa um modo de ver um caminho no qual
alguns europeus se representaram a outros, o mundo, sobre eles e as suas relações com
ele, e no qual fomentaram relações sociais. A paisagem é um modo de ver que tem a ver
com a sua própria história, mas uma história que pode entender-se só como parte de
uma mais larga história de economia e sociedade; isto tem as suas próprias suposições
e consequências, mas as suposições e as consequências cujas origens e as implicações
se estendem bem além do uso e da perceção da terra; isto tem as suas próprias técnicas
de expressão, que compartilha com outras áreas da prática cultural.39”
41
detalhadamente no começo do livro e promovida como uma fuga conceptual da
tendência dentro do marxismo para subordinar tanto expressões culturais materiais
como imaginativas aos imperativos da economia política, ela mesma concebida
basicamente na produção industrial.
42
A sua emergência é muito mais que um resultado simples da evolução mundial e
histórica do capitalismo de mercado. No período, depois de um conscientemente
modernismo de século XX com as suas determinadas formas de indústria e da produção
de massa e das suas expressões culturais vanguardistas e das principais narrativas
ideológicas, é possível reconsiderar a história da sociedade europeia desde o décimo
quinto século.
Para o autor tais complexidades da visão muitas vezes são explícitas na escrita
de um Ruskin e são prontamente evidentes em muitas das imagens de paisagem
pintadas por Giorgione, Claude Lorrain, Nicholas Poussin ou Turner.
Cosgrove pensa que o romantismo foi pouco mais do que uma expressão
43
ideológica de relações sociais capitalistas e industrialismo urbano que exemplifica os
constrangimentos, que os livros teóricos modelo, tendem a impor a uma muito mais
ricamente texturada característica de modernizar as sociedades europeias.
40
In MITCHELL, W. J. T. (Eds.). Landscape and Power. Chicago: The University of Chicago Press,
1994, p. 1-2.
44
padrões de generalidade. E ao mesmo tempo que tinham essa pretensão, quase “a-
histórica”, utilizaram uma visão linear e progressiva da história da arte.
41
MITCHELL, W. J. T, Op., Cit., p.5
45
principalmente com base na história da pintura de paisagem, e construir uma narrativa
dessa história como um movimento progressista em direção à purificação. Do campo
visual; a segunda (associada ao pós-modernismo) acabou por enaltecer o papel da
pintura e da pura visualidade formal a favor de uma abordagem semiótica e
hermenêutica que tratava a paisagem como uma lista de temas psicológicos ou
ideológicos.
É claro que as paisagens podem ser decifradas como sistemas textuais. Formas
naturais como árvores, pedras, água, animais e casas, podem ser lidas como símbolos
em alegorias religiosas, psicológicas ou políticas; as estruturas e formas características
(perspetivas elevadas ou fechadas, horários do dia, posicionamento do espectador, tipos
de figuras humanas) podem ser ligadas a tipologias narrativas como a pastoral, a
georgiana, o exótico, o sublime e o pitoresco.
42
MITCHELL, W. J. T, Op., Cit., p.1.
46
paisagística - pode ser entendida como uma articulação de uma perda de inocência que
transforma todas as asserções de Clark em perguntas assustadoras e respostas ainda
mais inquietantes.
"Nós" agora sabemos que não existe um “nó” simples, sem problemas, que
corresponde a um espírito humano universal buscando harmonia, ou até mesmo a uma
"amplificação" europeia e de desenvolvimento desde a Idade Média.
O que sabemos agora é o que críticos como John Barre nos mostraram, que há
um "lado negro da paisagem" e que esse lado negro não é meramente mítico, e não
apenas uma característica das pulsões instintivas regressivas associadas à "natureza"
não-humana, mas uma escuridão moral, ideológica e política que se “cobre” com
precisamente o tipo de idealismo inocente que Clark expressa: as discussões
contemporâneas sobre a paisagem provavelmente serão controversas e polémicas.
Landscape and Power pretende absorver essas abordagens num modelo mais
compreensivo que solicitaria não apenas qual paisagem "é" ou "significa" o que ela faz,
como funciona como uma prática cultural. A paisagem, que sugerimos não significa
meramente ou simboliza relações de poder; é um instrumento de poder cultural, talvez
até mesmo um agente de poder (ou que frequentemente se representa a si mesmo)
independente das intenções humanas.
O que fizemos e fazemos ao meio ambiente, o que o ambiente, por sua vez, nos
faz, como naturalizamos o que fazemos uns aos outros e como esses "feitos" são
decretados nos meios de representação que chamamos de "paisagem" são os assuntos
reais de paisagem e poder, para Mitchell.
47
contido, tratando a paisagem simbolicamente como imagem, texto ou teatro, por
exemplo, e tomado no seu extremo a ideia de uma paisagem virtual, atraiu a crítica de
um número de escritores desde as recentes discussões teóricas sobre paisagem.
48
identidade sociopolítica e de ação comunitária através da maior parte da Europa
setentrional contemporânea. Tal reclamação é indubitavelmente uma admoestação bem-
vinda contra os excessos mais selvagens de um tratamento pós-estruturalista sobre as
paisagens, quais meros simulacros, desconectados de qualquer ligação com a terra
material e da prática social real.
46
Simon Michael Schama, (1945) é um académico e escritor britânico, professor de História e História da
Arte na Universidade de Columbia, N.Y. Entre as suas obras mais famosas estão Landscape and Memory,
Dead Certainties, Rembrandt's Eyes, além de sua história da Revolução Francesa, Citizens. Schama ficou
conhecido por escrever e apresentar um documentário em 15 partes produzido e exibido pela BBC
intitulado A History of Britain; também é um crítico de arte para o jornal Americano The New York
Times.
49
constrói mais por meio da experiência dos outros do que pela autoconsciência
autónoma, Schama reconhece a apelação exótica de paisagens imaginativas localizadas
além do conhecido e do mundo diário: o mundo íntimo das pessoas.
Hoje, embora tenhamos fortes opiniões sobre quais os ambientes que gostamos,
raramente nos perguntamos: o que gostamos da paisagem e por que gostamos dela?
Quando publicado em 1975, a Experiência de Paisagem47 de Jay Appleton48 procurou
investigar aquelas configurações de paisagem que poderiam incitar respostas estéticas
universais nos seres humanos.
47
APPLETON, Jay; The Experience of Landscape, John Wiley & Sons, 1996.
48
Jay Appleton (1919 - 2015) foi um geógrafo britânico que propôs a "teoria do habitat" e avançou a
noção da "perspetiva-refúgio".
50
A fim de compreender as fontes da experiência estética, argumenta Dewey, é
necessário recorrer à vida animal abaixo da escala humana. Claro, sugerindo que as
manifestações estéticas em seres humanos representam um impulso animal motivado
pela sobrevivência, que terá sempre os seus críticos.
49
Rosario Assunto (1915 - 1994) foi um filósofo italiano. Analisou as questões estéticas da filosofia a
partir de um ponto de vista histórico e teórico tratando-os não apenas como filosofia da arte e da beleza,
51
estética que nós contemplamos vivendo nela”, em contraste com a das obras de arte, que
são contempladas como “vivendo em nós” – num caso dá-se “o sair de nós” em direção
ao objeto contemplado, no outro, os objetos são como que “trazidos até nós”50.
mas considerando que coincide com a própria filosofia julgada como estética pura. Estudou as ideias de
Baumgarten, Descartes, Leibniz, Kant e examinou principalmente a conceção do homem e da sua relação
com a natureza.
50
In ASSUNTO, Rosario, Il paesaggio e l’estetica, p. 164-165.
51
Assunto, Op., Cit., p174-176.
52
Allen Carlson é um filósofo americano (1943). Ele é Professor Emérito no Departamento de Filosofia
da Universidade de Alberta, no Canadá. Allen Carlson é conhecido pelo seu trabalho em estética,
particularmente em torno da estética ambiental e epistemologia.
53
CARSON, Allen, Appreciation and the natural Environment, Journal of Aesthetics and art Criticism,
1979, p.269.
54
Augustin Berque, (1942), é um geógrafo francês, orientalista e filósofo. Nas suas análises sobre
paisagens compara as diferentes visões do mundo que são refletidas por uma paisagem específica.
52
A paisagem é a “mediação entre a subjetividade humana e o mundo das
coisas”55, logo, não constitui um “objeto”, não se limita à forma do envolvimento
humano; envolve uma perceção sobre as coisas e requer condicionantes culturais,
sociais e históricas; envolve o sentido da visão com todas as estruturas inerentes ao seu
funcionamento próprio: “O nosso olhar não se dirige unicamente à paisagem; numa
certa medida, ele é a paisagem.”56
Para concluir este breve panorama sobre o modo como diversos pensadores de
diferentes disciplinas académicas abordam a paisagem, temos que esclarecer que
escolhemos os que são mais relevantes para a nossa perspetiva de análise e invocaremos
sempre que necessário as suas teorias nos próximos capítulos.
55
In BERQUE, Augustin, Cinq propositions pour une théorie du paysage, Editions Champ Vallon, 1994.
P.25.
56
Berque, Op., Cit., p.25.
53
1.3 A paisagem como género na Pintura
A relação da civilização ocidental com o meio natural não foi uma constante ao
longo dos séculos, ao passo que na China a paisagem é uma evidência a partir do século
IV e nunca se perdeu.57 A noção de paisagem no Ocidente surgiu associada ao
desenvolvimento da arte da pintura : «É verdade que a paisagem ocidental, enquanto
esquema de visão, é originalmente pictural, e que continua a ser, mesmo na literatura,
essencialmente descritiva; (…) Não foi a pintura que induziu a paisagem, mas aquela
pintura que inventando um novo espaço quatrocentista, aí inscreveu, progressiva e
laboriosamente, a paisagem ocidental.»58
A possível génese da palavra paisagem poderá ser atribuída ao poeta Flamengo
Jean Molinet que, em 1493, a utilizou com o sentido de «quadro representando uma
região»59. Em 1549, no dicionário de Francês-Latim de Robert Estienne, o termo
paisagem designava uma pintura sobre a tela60.
57
In BERQUE, Augustin, Cinq propositions pour une théorie du Paysage. p.19.
58
Trad. livre do autor « Il est vrai que le paysage occidental, en tant que schéma de vision, est
originairement pictural, et qu’il est reste durablement, même en littérature, essentiellement tabulaire ;
(…) Ce n’est pas la peinture qui a induit le paysage, mas cette peinture-là qui, inventant un nouvel
espace au Quattrocento, y a inscrit, progressivement et laborieusement, ce paysage-là », in Alain Roger,
Court traité du Paysage, p. 65.
59
Id., Ibid. p. 65.
60
Ver PITTE, Jean Robert, Histoire du paysage français. Paris : Tallandier, 1983.
54
parece relevante para a reflexão sobre a problemática deste culto. O avanço da ciência,
da tecnologia, da industrialização, da urbanização, gerou um progressivo corte do
cordão umbilical da civilização europeia com a natureza e o desenvolvimento de um
ambiente artificial, totalmente construído pelo homem, onde este progressivamente se ia
integrando.
O êxodo rural gerado pela revolução industrial que implicou a deslocação de
grandes aglomerados de população agrícola para centros urbanos na busca de melhores
condições de subsistência gerou uma explosão demográfica em cidades de estruturas
pré-industriais, com consequências sociais dramáticas. Filosófica e ideologicamente
verificaram-se reações às drásticas mudanças, acabando por eclodir movimentos,
também de cunho estético, apologéticos do naturalismo que numa herança das ideias de
Rousseau, pugnavam pelo reencontro do homem com a pureza e a inocência da
natureza.
O homem observa o seu meio com base na conjugação da sua estrutura genética
e da sua experiência cultural, através do seu sistema sensitivo, sentimental e racional,
produzindo observações multifacetadas e mutáveis que decorrem da sua irrepetível
identidade. Por outras palavras, configura-se uma dualidade ontológica entre a alterável
visão que o indivíduo elabora do ambiente, onde reside a noção de paisagem, e o
próprio meio que lhe é exterior e que se consubstancia no referente a partir do qual se
eleva aquela noção. Assim, entre o observador e a natureza desenvolve-se uma dialética
que funde o cultural e o natural, e que vai se alterando com o decorrer do tempo, para
dar origem à paisagem.
55
muito antes da sua teorização, afigura-se com um pressuposto de difícil argumentação.
Logo, a paisagem pode ter existido, antes mesmo de existir, como experiência de
cariz mental anterior à sua representação de cunho plástico e à sua estruturação
conceptual. Deste modo, até mesmo a designação "arte da paisagem" pareceria
redundante se se considerasse que a paisagem não existia antes da sua representação
estética, porém afigura-se relevante se se ponderar a hipótese de ela surgir
anteriormente e apenas como visão do sujeito sobre o seu ambiente.
Na ação estética que constitui a arte da paisagem, deverão ser distinguidos dois
níveis de intervenção: em artes (através de suportes e técnicas mais distantes de uma
intervenção no ambiente como na pintura, no desenho, na fotografia, na literatura, no
cinema, na música, entre outros), e num agir humano direto sobre o meio, como na
agricultura e na industrialização destituídas de uma prioridade artística, (o que acontece
na arte pública na qual se proclama o investimento de uma intenção estética no
ambiente, conforme na arquitetura, na arquitetura paisagista, entre outras
possibilidades).
56
paisagísticas, da Antiguidade à Idade Moderna, ainda geralmente consideradas como
meros panos de fundo na cena retratada, até ao apogeu do naturalismo no séc. XIX e ao
percurso artístico da crescente abstração, impulsionado pelo impressionismo, assumido
no séc. XX, a paisagem significa uma fruição estética concretizada numa experiência de
espacialidade, em terra ou no mar, no campo ou na cidade, envolvida numa atmosfera
de exterior.
Quando num retrato, numa natureza morta ou numa cena de interior, em géneros
aparentemente distintos da paisagem, se encontra uma sensação paisagística esta reside
numa aproximação dos elementos plásticos representados às coordenadas referidas –
território, atmosfera e exterioridade.
57
implementaram uma expressão paisagística embrenhada em valores morais, seguindo
um sentido de simplificação pictórica e o recurso a espaços vazios que adensavam o seu
abstracionismo.
58
cariz simbólico, enquanto a obra de Martini reflete a estética do gótico francês, que
exprime a beleza divina através de objetos sensoriais. Por sua vez, no Palácio dos Papas
em Avignon, nomeadamente na Tour de la Garde-Robe, encontram-se frescos datados
de 1343, os primeiros que traduzem esta nova atitude perante a natureza, onde um
conjunto de figuras desfruta deleitosamente o ambiente retratado com o requinte
medieval da decoração.
59
Particularmente nesta última cidade, as exigências matemáticas que se aplicavam nas
representações plásticas culminaram na criação da perspetiva científica por
Brunelleschi, teorizada por Leon Battista Alberti em Tratatto Della Pittura (1435-36).
Esta descoberta essencial para o aparecimento do homem moderno, determinou a
evolução da paisagem como forma de controlar plasticamente o espaço, e é plenamente
desenvolvida por Piero della Francesca (1416/92) cuja obra evidência um tratamento
luminoso de influência flamenga.
60
inventários venezianos.
61
Fig. 4 Albrecht Altdorfer, Paisagem com Ponte, c. 1518.
62
Já Ticiano (1490/1576), um dos seguidores de Giorgione, concebe nos seus
retratos e cenas figurativas, fundos paisagísticos de grande pujança e relevo no percurso
de uma paisagem idealista e mitológica que viria a influenciar, determinantemente,
Claude Lorrain e Poussin.
E a popularidade crescente em Itália da vida nas vilas como retiros de Verão, foi
determinante para o prestígio das expressões paisagísticas, pois os seus proprietários
afirmavam-se como patronos de artistas que se dedicavam na sua obra à apologia das
paisagens campestres, e cuja atmosfera foi captada pela já referida, poesia arcadiana.
Deste modo, durante o renascimento italiano, a poesia, as representações plásticas de
ambientes naturais, a arquitetura e a jardinagem, surgiam profundamente interligadas e
determinantes para a observação do natural.
63
Fig. 6
Pieter Bruegel, os caçadores na neve, 1565.
Fig. 7
Giorgione, A Tempestade, c. 1508.
64
Entre as figuras de destaque neste contexto estético, altamente considerado pelos
aristocratas patronos italianos, salienta-se a de Claude Lorrain (1600/1682) que,
pintando en plein air na zona campestre de Roma, concebe paisagens de sabor pastoral
idealizado com uma liberdade pictórica única, reveladoras de uma preocupação para
com os volumes, o tom e a luz.
Fig. 8
Annibale Carracci, A fuga para o Egipto, c. 1604.
65
Fig. 9
Vermeer, Vista de Delft, 1600/61.
66
tradicional produção de arte sacra, para encarar a natureza como revelação da
providência divina e, logo, como temática de eleição.
63
Kenneth Clark, (1903/1983) escritor, director de museu, fez programas sobre arte na rádio inglesa, e foi
um dos mais famosos historiadores de arte da sua geração. Em 1969, foi catapultado para a fama
internacional como o escritor, produtor e o apresentador da série da televisão da BBC, Civilisation: A
Personal View.
Um admirador de Ruskin e um protegido do crítico de arte mais influente do seu tempo, Bernard
Berenson, Clark transformou-se rapidamente no mais respeitado esteta do mundo britânico das artes.
Após um cargo como curador das artes no museu de Ashmolean de Oxford, em 1933 com apenas 30
anos, Clark foi nomeado director da National Gallery em Londres. Foi a pessoa mais nova de sempre a
67
O estudo de Kenneth Clark, embora não pretenda ser um tratado sobre a pintura
de paisagem, a verdade é que através dele fazemos uma viagem pelas relações do
homem com a natureza ao longo dos séculos. Relações essas, que se refletiriam na
pintura e que marcariam as fases da conceção humana da natureza. Por isso parece-nos
de toda a importância fazer uma breve análise desta obra para introduzir o leitor e
contextualizar o tema abordado neste trabalho.
O autor começa por expor que na Antiguidade essa relação não se fizera pois
«estivera tão profundamente impregnada do sentido grego de valores humanos, que
este conceito de natureza tinha desempenhado um papel secundário».64 A paisagem era
representada unicamente com valor decorativo.
preencher o lugar. Entretanto, era uma figura controversa devido à sua distância em relação à arte
moderna e do pensamento pós-moderno. Em 1946 Kenneth Clark renunciou ao seu cargo de director a
fim de devotar mais tempo à escrita. Entre 1946 e 1950 foi professor na Slade of Fine Art em Oxford. Foi
um dos membros fundadores e presidente do Conselho das Artes de Grã-Bretanha de 1955 a 1960.
64
In CLARK, Kenneth, Paisagem na Arte, p. 19.
65
Id., Ibid., p. 40.
68
Veneza - Giovanni Bellini, que fez do efeito luz o motivo principal da sua pintura.
E porquê no Norte? Porque a paisagem dos factos era uma forma burguesa de
arte e o século XVII foi a época da burguesia por excelência; sentindo esta, a
necessidade de ver coisas reconhecíveis, as paisagens da sua terra; aquilo, afinal, porque
tinha lutado. Também agora, após a repressão da Contra-Reforma e o fim das guerras
religiosas, dava-se um renascimento da ciência e da botânica e a teoria da luz de
Newton despontava.
Por outro lado, a tradição maneirista esgotara-se e o gosto natural holandês pela
paisagem podia agora exprimir-se. Assim foi com Rembrant, Rubens, Jacob Van
Ruysdael e mesmo num pintor de cidades como Vermeer. Mas, «pelos fins do século
XVII a pintura de luz deixou de ser um acto de amor e tornou-se estratagema».66
66
Id., Ibid., p. 55.
67
Id., Ibid., p. 76.
68
Id., Ibid., p. 77.
69
da vida pastoril. Este tipo de paisagem tem em Giorgione (com suas pinturas mágicas e
musicais), em Ticiano (cujo gosto pela natureza faz com que Poussin, Turner e
Constable nele procurassem inspiração) e em Claude (que pintava diretamente da
natureza e cujos quadros traduzem a contemplação que fazia da mesma) os seus
expoentes máximos.
Outra das ideias que Kenneth Clark desenvolve no livro, é a de que a paisagem
ideal estaria ligada à paisagem dos símbolos. «Ambas eram inspiradas por um sonho de
paraíso terrestre, ambas aspiravam criar uma harmonia entre o homem e a natureza. A
paisagem de símbolos começa com o frontispício de Simone Martini para o Virgílio de
Petrarca; a paisagem ideal pode-se dizer que termina com as ilustrações de Blake para
as Éclogas do Dr. Thornton».70 Discípulo de William Blake, Samuel Palmer, criou uma
linguagem muito próxima da simbólica, sendo o último pintor das paisagens virgilianas.
Podemos afirmar que, como explicitou Argan,71 para isto concorreu a cultura
iluminista, que revelava agora a natureza não como modelo, mas como um estímulo ao
qual se reage de diversas maneiras; questão fulcral na filosofia idealista, que se oporia à
imitação da natureza, considerando-a até trabalho supérfluo.
Por consequência, a arte deixava de ser imitação para passar a ser expressão. Por
outro lado, o aparecimento das teorias evolucionistas de Darwin tornaria as paisagens
ideais em mera fantasia – a destruição de um passado ideal levava à destruição da
paisagem ideal.
À época contemporânea, mais concretamente ao século XIX, corresponde, expõe
Clark, o desenvolvimento e afirmação da pintura de paisagem. «Uma cena calma, com
69
Id., Ibid., p. 95.
70
Id., Ibid., p. 97.
71
In ARGAN, Giulio Carlo, Arte Moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998.p. 4.
70
água em primeiro plano refletindo o céu luminoso e enquadrada por árvores escuras,
era algo que toda a gente estava de acordo em reconhecer como belo, exatamente como
em épocas anteriores estavam de acordo acerca de um atleta nu ou uma santa com as
mãos cruzadas sobre o peito».72
Também Courbet acreditava que o belo estava na natureza e que o artista devia
saber vê-lo sem ampliar a sua expressão. Segundo Clark, quando o artista segue o que
diz no seu manifesto é um grande paisagista, mas quando se esquece dos seus princípios
torna-se vulgar. «Todas as formas de expressão contêm nelas as sementes da sua
própria destruição, e tal como o classicismo tende para o vazio e a falta de vitalidade,
72
Clark, Op. Cit., p. 100.
73
Id., Ibid., pp. 110-111.
74
Id., Ibid., p. 111.
71
assim o naturalismo tende para a vulgaridade. É o estilo popular, o estilo que pode ser
compreendido sem esforço ou educação (...)».75 Mas será que em Interior do meu
Atelier (1854-55) é vulgar, como o acusa Clark? Não nos parece.
75
Id., Ibid., p. 114.
76
Id., Ibid., p. 120.
77
Id., Ibid., p. 121.
78
Id., Ibid., p. 123.
72
Apesar desta ideia, Kenneth Clark salienta que uma das mais-valias do
impressionismo foi a conquista da luz; o que possibilitou o visionamento da cor nas
sombras, era mais que um avanço técnico, era uma posição ética, carregada de
humanismo. É que estes pintores «eram miseravelmente pobres (...). Contudo a sua
pintura está cheia de uma confiança completa na natureza e na natureza humana».79
Mas, limitar a pintura a sensações é redutor, pois a arte relaciona-se com os nossos
conhecimentos, recordações e associações.
Aqui parece que o autor não compreende que a arte puramente ótica de outrora
já não correspondia às necessidades da sociedade à medida que o século XX se
aproximava. O mundo e o homem tornavam-se complexos, consequentemente a arte
também devia ser capaz de traduzir esta mudança. A partir do impressionismo, a arte
poderia até deixar à fotografia o primado da representação, mas reivindicava o primado
da comunicação emotivo-sensorial; e esta, ao contrário do que geralmente se pensa,
segundo Clark, relaciona-se justamente com os nossos conhecimentos, as nossas
recordações, as nossas associações...
79
Id., Ibid., p. 125.
80
Id., Ibid., p. 126.
81
Id., Ibid., p. 128.
73
mais longe que eles. Pois, «enquanto estes tomavam como ponto de partida a visão
natural e se estavam constantemente a referir a ela, Turner manteve apenas os
elementos necessários para a sua nova criação».82 Mas se dele descendem os
impressionistas, é preciso ver que as suas origens são românticas e, por isso, as suas
obras estão carregadas de uma força destrutiva, de um sentido indomável da natureza.
Com a sua morte podia supor-se que este sentido teria o seu fim. Porém, em fim
de século aparecia Van Gogh – carregado dos impulsos “pré-expressionistas” de
Grünewald, Altdorfer e Hubert – que possuía, como Turner, um sentido nórdico da luz.
A sua luz é, no entanto, diferente: «é impetuosa, caprichosa e ousada (...); atinge-nos
diretamente o espírito e só pode ser exorcizada por meio de símbolos violentos, espirais
de fogo e pelas cores mais violentas e brilhantes que se podem tirar dos tubos. Assim,
apesar da sua paixão pela natureza, sentiu-se cada vez mais obrigado a transformar o
que via numa expressão do seu próprio sofrimento».83
82
Id., Ibid., p. 133.
83
Id., Ibid., p. 141.
74
Já o regresso à ordem de Cézanne ocorre a partir das formas; era a tentativa de
“fazer Poussin de novo a partir da Natureza”. E isto é mais evidente nas suas paisagens
da Provence, que iriam conduzir ao Cubismo. «Desejava dar toda a solidez dos objetos
sem diminuir a sua cor ou enfraquecer o seu desenho pela modelação contínua. Os
únicos meios do conseguir consistiam em cindir os planos numa série de pequenas
faces, cada uma das quais podia, pela sua cor, assinalar-nos uma nova direção dos
planos. Esta atitude cubista (...) perante as formas individuais, era também inerente às
suas composições como um todo».84
O que estava a criar no fundo era uma harmonia paralela à da natureza. Esta era
a evolução lógica para o século XX: «É com Constable, com os românticos e
expressionistas que se volta a estabelecer uma tensão emocional mais exaltante,
colocando-se a tónica sobre a faculdade de mudança da própria natureza, e, por
conseguinte, sobre a variabilidade e inconstância da experiência humana (...). Na etapa
seguinte, a evolução lógica provoca a sublimação de certos efeitos de coloração,
transformando os fenómenos naturais em efeitos abstratos e acentuando o seu poder
emocional.»85
E é isso que Clark tenta não perceber,86 como fica explicito no Epílogo. Aqui,
detém-se no futuro da pintura de paisagem. O percurso do seu escrito parte da evidência
de uma paisagem simbólica, onde a natureza se manifestava em pormenores e tinha
apenas carácter decorativo.
84
Id., Ibid., p. 158.
85
Trad. livre do autor « C’est à Constable, aux romantiques et aux expressionnistes qu’il revient d’établir
une tension émotionnelle plus élévée, en mettant l’accent sur la faculté de changement de la nature elle-
même, et donc sur la variabilité et l’inconstance de l’expérience humaine (...). À l’étape suivante,
l’evolution logique entraîne la sublimation de certains effets de coloration, transformant les phénomènes
naturels en effets abstraits et accentuant leur puissance emotionnelle. », in Battisti, « Paysage (Arts) », in
Enciclopédie Universalys, p. 656.
86
Talvez porque estávamos em 1949 e o autor não possuía ainda o necessário distanciamento da arte sua
contemporânea, nem podia prever o futuro da arte da segunda metade do século, que se lhe seguiria.
75
este sentido da unidade, expresso pela atmosfera e pela luz, que os impressionistas vão
protagonizar.
Por outro lado, Clark, dá conta de que a vida ia ficando cada vez mais complexa,
o que forçou a especialização de determinadas disciplinas como a ciência (cujos livros
antes belamente ilustrados agora eram ilustrados por diagramas). A beleza eterna era
agora aquela que podia ser medida analiticamente por outros termos, nomeadamente os
da ciência e a pintura de paisagens não o era.
O microscópio e o telescópio permitiriam o acesso a uma natureza antes
desconhecida. Mas, segundo Clark, «o amor pela criação não pode estender-se ao
micróbio, nem aos espaços por onde a luz que atinge os nossos olhos viajou muito antes
da origem do homem».88 Tínhamos perdido a fé naquilo que convencionámos chamar
de ordem natural, e o pior é que conquistámos os meios de terminar com essa ordem. A
ciência tirou-nos a confiança na natureza e não a recuperaremos «enquanto não
tivermos aprendido ou esquecido infinitamente mais do que conhecemos no presente».89
O nosso conceito de natureza pode ainda enriquecer o espírito com novas e belas
imagens. Mas como? «A habilidade de ver, pintar e estudar a natureza, cresceram em
proporção em relação à sua utilidade aos interesses dos homens. Já não é possível
contrastar uma paisagem inocente com uma humanidade alienada. A paisagem já não
pode ser assim ingenuamente delimitada. (...) A paisagem está assim tão saturada pela
87
Clark, Op. Cit., p. 168.
88
Id., Ibid., p. 175.
89
Id., Ibid., p. 176.
76
toxidade da civilização que foi forçada a sair do seu papel anterior e encontrar um
novo: já não compensa a civilização, mas levanta-a para um poder mais elevado.».90
Parece, que o atual significado da palavra paisagem vai muito além daquele que
consta nos dicionários.93Por tudo isto a paisagem não pôde ser o apanágio da pintura do
século XX. A obra de arte passava a ser pensada mais a nível interior e emocional do
que ao nível da representação da realidade dos fenómenos concretos da natureza.
A arte atual, como expressou Perniola, já não se reconhece mais numa única
90
Trad. livre do autor « The ability to see, paint and study nature grew in proportion to its usefulness to
men’s interests. It is no longer possible to contrast an innocent landscape with an alienated humanity.
The landscape can no longer be so naïvely delimited. (...) The landscape is so sutured by the toxins of
civilization that it has been forced out of its former role and into a new one: it no longer compensates for
civilization, but raises it to a higher power. » in Martin Warnke, Political Landscape into Art, p. 146.
91
Trad. livre do autor «Une entité relative et dynamique où nature et société, regard et environnement
sont en constant interaction. », in Berque, Cinq Propositions Pour une Théorie du Paysage, p. 6.
92
Trad. livre do autor « landscape is it self a physical and multisensory medium (...) in which cultural
meanings and values are enconded (...) Landscape is already artifice in the moment of its beholding, long
before it becomes the subject of pictorial representation. » in Mitchell, Op. Cit., p. 14.
93
«Extensão de território que se abrange com um lance de vista», in Diccionário Prático Ilustrado, Porto,
Lello & Irmão Editores, 1992.
77
forma, mas parece querer para si todas as formas artísticas de todas as épocas e de todos
os países, todos os estilos e todos os revivals, todas as vanguardas e todas as modas.
Anuncia-se, por isso, um tempo que contém todas as artes e todos os tempos num único
tempo que contém todas as formas e, claro, também as da natureza. E estas são as
verdades latentes, para lá da natureza, de que Klee falava.
No século XIX a arte estava dominada pela paisagem, tendo esta sido capital
para um processo de definição nacionalista dos países, consequência da descoberta de
outros (para o qual contribuiu o Grand Tour) e da ascensão e desenvolvimento do
capitalismo; há até quem a associe ao imperialismo94. Portanto, quando falamos de
paisagem temos de ter em conta que nela se inscrevem atitudes culturais, políticas,
ideológicas e económicas.
No século XX nada importaria menos (na pintura) e a sua imagem explícita foi
repudiada, não só porque a sua carga nacionalista e anti urbana embaraçava os
modernos (que se queriam cosmopolitas), mas também porque a perceção do tempo, do
movimento e do espaço se aceleraram e a modificaram, tornando-a mais política do que
nunca.
94
Ver MITCHELL, Thomas, Landscape and Power. Chicago, The University of Chicago Press, 1992.
78
79
Capítulo II
80
2.1 Considerações Iniciais
81
82
Fig. 10
Claude Monet, Manneporte (Étretat), 1883.
83
Com a cultura iluminista, a natureza começava a ser vista não como um modelo
ideal, mas como um estímulo frente ao qual o Homem reage de diversas maneiras.
Ressaltamos que, para Rousseau, o homem se completa com a natureza, portanto não é
um estado a ser superado, como os filósofos Locke e Hobbes acreditavam.
95
LEOPOLDI, José. Rousseau – estado de natureza, “o bom-selvagem” e as sociedades indígenas.
publique.rdc.puc-rio.br/revistaalceu/media/alceu_n4_Leopoldi.pdf –2002, p. 160.
96
Diderot não apreciava a frivolidade do rococó mais do que Mengs, no entanto não defendia as regras e
convenções do neoclassicismo. Bem pelo contrário, ele preconiza, nos seus Salões (de 1759 a 1781) e,
sobretudo, no seu Essai sur la peinture, publicado em apêndice ao Salão de 1765, a liberdade de
expressão do artista exaltando o valor primeiro dos sentimentos e das paixões humanas.
Se bem que não tenha propriamente ideias estéticas originais, ele é um autor genial da descrição das
obras, inventando fórmulas literárias novas para melhor fazer o seu leitor penetrar no mundo da pintura. É
assim que a sua estratégia descritiva de Coresus et Callirho é apresentado por Fragonard no Salão de
1765 e assenta na hipótese de não ter visto a pintura, mas de ter construído um sonho no fim de um dia
durante o qual lera Platão.
A sua crítica torna-se a narração do sonho a um amigo (Grimm). Diderot encontra-se na caverna de Platão
e sucedem-se pequenas peripécias que levam a que o sonho produza uma imagem idêntica à tela de
Fragonard, o que significa — reciprocamente — que o próprio quadro se assemelha a um sonho, cujo
desenvolvimento narrado recria o que aconteceu antes da cena descrita por Fragonard. Este conhecimento
dos factos precedentes comunicado ао leitor permite-lhe perceber o sentido e o interesse da imagem
pintada, que corresponde exatamente à cena final do sonho.
84
Fig. 11
Alexander Cozens, Antes da Tempestade, c. 1770.
Fig.12
Alexander Cozens, Estudo de um céu com nuvens, c. 1771.
Admirador de Rembrandt, Diderot compreende também - e sabe fazer sentir - a grandeza da pintura de
Chardin. As suas preocupações morais são-lhe, muitas vezes, de uma ajuda preciosa para os juízos, mas
levam-no também a elogiar os quadros fastidiosamente melodramáticos de Greuze, seu amigo. Nem
sempre isso é verdade: o Portrait de Mme Greuze em Vestale lança sobre o seu autor uma interpelação
inequívoca: «Fazeis pouco de nós…. É uma Senhora das dores, mas com pouca força interior e um pouco
exagerada.» Não há relação entre a pintura e a maneira de sentir do artista. Diderot vê isso e afirma-o. Ele
é o fundador da Crítica de arte moderna (In Gérard-Georges lemaire, le salon de Diderot à Apollinaire
(com o texto do Salon de 1759 de Diderot, Edições Veyrier, Paris, 1990)
85
Como escreve Argan97, a poética iluminista do pitoresco e a poética romântica
do sublime ambas se completam, ambas são as duas faces da mesma moeda, sendo neste
caso a moeda a relação entre o indivíduo e a coletividade, a relação entre a vida e a
morte, a relação do Eu com o outro; ou o Eu se dissolve numa relatividade sem fim, ou
o Eu se absolutiza e corta qualquer relação com o outro.
Esta dialética dos dois termos mudará constantemente de forma, mas na arte
moderna esta dicotomia será pouco alterada; a arte moderna também é a procura da
ligação entre o indivíduo e a sociedade, entre o microcosmo e o macrocosmo, entre o
finito e o infinito, entre o temporal e o intemporal...
Será este um dos caminhos de toda a arte, do romantismo até aos nossos dias. As
luzes destas realidades da arte postas neste caminho, indicam as etapas muitas vezes
dramáticas da arte contemporânea, e iluminam a “paisagem arruinada” da civilização
ocidental como grandes clarões noturnos da consciência.98
97
In ARGAN, Giulio Carlo Arte Moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998. p. 20.
98
Id Ibid, p. 21.
86
A obra Pensées Philosophiques99 (1746) de Diderot pode ser considerada uma
espécie de hino calmo às “paixões”, mas umas paixões controladas. Neste livro, Diderot
defendeu uma reconciliação da razão com o sentimento, de modo a estabelecer a
harmonia. De acordo com Diderot, sem o sentimento haveria um efeito restritivo sobre a
virtude e não haveria a possibilidade da criação de trabalho sublime. No entanto, o
sentimento sem disciplina, arguia o autor, pode ser destrutivo. A razão era necessária
para “reinar” sobre o sentimento.
87
efeitos “bizarros” ou num sentido mais contemporâneo, “efeitos especiais”, e se escreve
que o género era muito popular em Inglaterra e muito valorizado. Na Enciclopédia
distingue-se já pitoresco e sublime. Seria o primeiro a dar o mote para a modernidade.
88
geométricas do Jardim Barroco Francês, que começou por ser visto como um
reservatório de ambientes pitorescos e atmosféricos. Não foi por coincidência que as
diversas vistas e panoramas do Jardim Inglês se baseavam frequentemente nos quadros
de Claude Lorrain.
No romantismo, a natureza não é mais a ordem revelada e imutável da Criação,
mas o ambiente da existência humana; não é mais o modelo universal, mas o estímulo a
que cada um reage de modo diferente; não é mais a fonte de todo o saber, mas o
objectivo da pesquisa cognitiva. Esta será de facto a pedra no charco, conquistada pela
cultura do Iluminismo e que se perpetua com o romantismo.
100
Ver BURKE, Edmund, A Philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and
Beautiful, Oxford University Press, USA; New Ed edition 1998.
101
Ver RAINE, Kathleen, William Blake. Oxford University 1970, p. 68.
89
Fig. 13
Henry Fuseli, O Pesadelo, 1791/91.
Fig. 14
William Blake, Piedade, 1795.
90
forma matemática é eterna na memória intelectual; a forma viva é existência
eterna.»102
Estas palavras revelam a sua profunda compreensão do que é essencial na arte
gótica. Blake foi pintor e poeta, e como poeta esteve ligado à revelação de Homero, da
Bíblia, de Dante, de Milton, em que via veículos de mensagens divinas. Temos que
reconhecer que nas suas manifestações mais simples, o valor da arte depende de
qualquer interpretação da vida, seja esta interpretação poética, religiosa ou filosófica.
Blake inspirava-se numa visão deste tipo, uma visão mística em demasia para ser
inteiramente comunicável.
102
In BLAKE, William; William Blake's Writings (2 Volumes), Oxford University Press; First Edition
edition, 1978.
103
Trad. livre do autor «The passions which belong to self preservation turn on pain and danger (...) they
are delightful when we have an idea of pain and danger, being actually in such circumstance (...)
whatever excites this delight, I call sublime...» in BURCKE, Edmund, A Philosophical Enquiry into the
Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful, p. 38.
91
conceptual – as ideias da razão.104 O sentimento do sublime acontece quando a
faculdade de apresentação conveniente de uma ideia, que foi despertada por algo
incomensurável e que não admite comparação; «em comparação do qual tudo o resto é
pequeno», como escreve Kant105. Como Argan nos diz, «não mais agradável variedade,
mas discórdia de todos os elementos de uma natureza rebelde e enfurecida; não mais
sociabilidade ilimitada, mas angústia da solidão sem esperança.»106
104
Metade da Crítica da Faculdade de Julgar (1790), de Kant, obra que constitui o culminar do percurso
iniciado com A Crítica da Razão Pura, é consagrada ao problema do juízo estético. Este último é
decomposto por Kant em quatro «momentos»:
A qualidade. O carácter desinteressado é a qualidade essencial de qualquer juízo do gosto «puro», em
oposição ao juízo prático, o qual, por ser empírico, exprime um interesse. Desinteressado, o juízo estético
apenas provoca um interesse, livre em relação às preferências subjetivas (quer dizer, em relação ao que
me causa agrado ou desagrado, anterior ao juízo). Kant também afirma, sobre o juízo estético, que este é
«autónomo», pois determina-se a si próprio através da sua própria atividade pensante ao exercer-se sobre
uma representação sensível. Apenas as propriedades formais do objeto são consideradas pelo juízo do
gosto kantiano (se o meu juízo se exerce sobre a matéria, já não é livre, pois sou sempre recetivo a ela de
uma maneira ou de outra).
A quantidade. O belo determinado pelo juízo do gosto agrada universalmente, pois não assenta nem
numa preferência pessoal, nem numa idiossincrasia percetual: «O belo agrada sem conceito». Para Kant,
o juízo do gosto não é um juízo que determine um objeto: exprime apenas a relação entre o sujeito e o
objeto.
A relação. Segundo Kant, o juízo do gosto tem os seus fundamentos na «forma da finalidade de um
objeto (ou do seu modo de representação)» e esta forma é a de uma finalidade sem um fim específico. O
juízo do gosto, se bem que seja um juízo pensante, não pode, pois, ser um juízo de conhecimento
pensante (o juízo do conhecimento exerce-se sempre sobre a finalidade do objeto), exerce-se
exclusivamente sobre o sentimento de uma forma final não especificada, a propósito da qual aquele que
julga experimenta um sentimento de um certo estado de harmonia das Suas faculdades representativas.
A modalidade. O juízo do gosto implica que o belo seja o objeto de uma satisfação necessária. Se a
satisfação não fosse necessária, não poderiam existir juízos de gosto puros, mas apenas juízos de gosto
empíricos (determinados pelas sensações). Em Kant, trata-se de uma necessidade exemplar: cada juízo do
gosto afirma ser um exemplo de uma regra universal que não pode ser enunciada conceptualmente.
O gosto que Kant menciona consiste na faculdade de julgar o belo, quer se trate do belo natural
ou do belo artístico. Resumindo a Sua conceção do objeto belo é indeterminista; chega ao ponto de
afirmar que o quadro vivo constituído por uma reunião mundana bem-sucedida deve ser considerado uma
pintura, pois o juízo global que o amador exerce sobre a organização formal do campo percetivo reside no
simples prazer desinteressado que o espetáculo deste quadro vivo nele desperta. Kant desvaloriza, assim,
o belo «artificial» face ao belo «natural», na medida em que este último quase sempre desperta um
interesse moral. Podemos ver o perigo que uma tal distinção representa, mas não obsta: a Crítica da
Faculdade de Julgar estabelece a autonomia radical do sensível em relação ao inteligível, o que, do ponto
de vista filosófico, surge como um passo de importância capital.
105
KANT, Emmanuel, in O belo e o Sublime (Ensaio de estética e moral), Porto, Livraria Educação
Nacional, 1943, p.35.
106
In ARGAN, Giulio Carlo, Arte Moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998. p. 19.
92
O arquiteto inglês William Chambers (1723/96) planeou (embora nunca tenha
executado) paisagens de terror e melancolia. Idealizou ruínas queimadas e inundadas,
povoadas por animais selvagens famintos, instrumentos de tortura espalhados pelo
terreno, masmorras subterrâneas de onde se poderiam ouvir os gritos dos martirizados,
vulcões artificiais cuspindo nuvens de fogo vermelhas. Enfim, um autêntico cenário dos
livros de Ann Radcliffe ou de Horace Walpole.
A noite com a sua afinidade de sóis, opunha-se ao sol único que brilhava no dia
racional dos iluministas e, antes do Sturm und Drank germânico de 1777, marcava a
sensibilidade ocidental que seria romântica.
O castelo misterioso de Otranto107, numa história “gótica” de terror; Vathek108
viajante dos infernos; O Italiano109, com inquisidores, bandidos, frades, freiras,
amantes, ruínas, conventos, igrejas, tempestades, sonhos, pontes de pesadelos, punhais,
liberdade – metáfora literária de todo o espírito de uma época. Aliás, as obras citadas
serão a fonte da literatura “gótica”, talvez o mais fecundo subgénero narrativo de toda a
literatura universal, e é a raiz não só da literatura policial, como do filme negro e de
suspense.
107
Ver WALPOLE, Horace, Otranto, Ed. Estampa, 1979.
108
Ver BECKFORD, William, Vathek, Ed. Estampa, 1979.
109
Ver RADCLIFFE, Ann, O italiano, Ed. Estampa, 1979.
93
Beckford, autor de Vathek, fará demolir uma mansão neoclássica para edificar
outra, neogótica, que será um dos lugares privilegiados em Inglaterra deste romantismo
de country.
Entre as montanhas alpestres da Suiça e os lagos de Lancashire que Wordsworth,
Byron ou Shelley cantarão de olhos enevoados, o paisagismo inglês definir-se-á até à
explosão luminosa de Turner. Ao mesmo tempo, e necessariamente, entre turbilhões de
luz e massas de trevas, produzir-se-ão as visões fantasmagóricas de Blake e de Fuseli.
Mas o the Romanticism não é o le Romantisme como não o fora die Romantik,
nesta complexa semântica das sincronias culturais. Géricault esteve em Inglaterra em
1820, e os paisagistas participaram em força no Salon de 1824. A pintura francesa não
conheceu fantasmas nem montanhas onde eles pudessem ter habitado. A Liberdade que
guia o povo na tela anti gótica, de Delacroix, tem uma carne real, uma força politica,
que as formas de Fuseli só podem assumir em imaginação...
O romantismo pode ser observado como uma rejeição aos conceitos da ordem,
da calma, da harmonia, da idealização ou da racionalização que tipificava o classicismo
nos finais do séc. XVIII e o neoclássico em particular. Enfatizava o individual (herança
da Revolução Francesa), o subjetivo, o irracional, a imaginação, o espontâneo, o
emocional, o visionário e o transcendental. Mas também procura nos estilos do passado,
nomeadamente no gótico, uma fonte de inspiração, complementada em muitos países
pelos programas de restauro dos monumentos medievais, então iniciados.
110
In ARGAN, Giulio, Carlo Arte Moderna. Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos. São Paulo,
Companhia das Letras, 1998. p. 53.
94
Este interesse por um passado gótico, por tanto tempo desprezado, era o sintoma
de uma reação contra a ordem social e a religião estabelecida ou quaisquer outros
valores consagrados, derivados dos valores da revolução Francesa, atitude nascida de
um forte desejo de emoções novas.
Qualquer experiência, real ou imaginária, serviria, desde que fosse
suficientemente intensa. Mas o propósito declarado dos românticos era o de derrubar os
artifícios que barravam o caminho a um “regresso à Natureza”, a natureza desmedida,
selvagem e variável, sublime ou pitoresca.
Em Portugal este género de teatro torna-se popular bastante mais tarde e entre os
dramaturgos “góticos” de mais sucesso contam-se os nomes de Ferreira de Azevedo,
César de Lacerda, Sousa Lobo e as peças Os Monges de Toledo, A Capela arruinada, A
Freira Sanguinária, O Emparedado, etc.
Foi a Inglaterra, mais que qualquer outra nação, quem forçou a transição do
fabrico manual para a produção em massa; a Revolução Industrial estava
inexoravelmente em marcha. Ela conduziu ao intenso crescimento das cidades e ao
surgimento dos “bairros de lata” para o proletariado, também ele a crescer rapidamente.
Quanto mais brutais se tornavam as condições de vida dos trabalhadores, mais escritores
e artistas reagiam ao mundo industrial empobrecido e prosaico, celebrando o poder da
imaginação, o culto da natureza e a criatividade individual.
96
Fig. 15
John Constable, O Carro de Feno, 1821.
Fig. 16
John Constable, A Baia de Weymouth, 1816.
97
É interessante verificar que Constable, Turner e Wordsworth eram
contemporâneos quase exatos, e aquilo que cada um deles fez na sua arte é
necessariamente equivalente. Ambos libertaram a sua arte de maneirismos derivativos
ou ecléticos, ambos se voltaram para o facto natural, para a visão natural, como escreve
Clark; construíram a sua obra na apreensão intuitiva desse facto.
Em William Turner, temos motivos pictóricos dissolvidos em cor e luz puras que
eram apaixonadamente defendidos contra os seus detratores por John Ruskin o mais
importante teórico do romantismo em Inglaterra, no seu livro de 1843 Pintores
Modernos. Ruskin112 nesse livro, dizia que o pintor que ama a natureza saberá
demonstrar que a arte não a pode imitar e é isso que faz Turner ao registar as suas
impressões setenta anos antes do impressionismo, representando a beleza abstrata da
natureza – este era um pintor que estava habituado a encontrar equivalentes gráficos
para todos os fenómenos e é isso que vemos nas suas tempestades, furacões, avalanchas.
112
Modern Painters, publicado em 1843 essencialmente para celebrar Turner, e Seven Lamps of
Architecture (1849) formulam o dogma de Ruskin: os fundamentos da crítica de arte enraízam-se no
sagrado. Para Ruskin, a arte e a moralidade confundem-se e a crítica deve libertar a Essência e a
Autoridade do Belo e do Verdadeiro. Esta adequação perfeita entre a arte e a moral impõe nomeadamente
uma vida virtuosa aos artistas. Aquilo que Marcel Proust, o seu tradutor em francês, denomina «o ponto
fixo ou o centro de gravidade da estética rusquiana» é «a preeminência do sentimento religioso sobre o
sentimento estético». (Prefácio de la Bible d'Amiens.) Contudo, Ruskin nem sempre consegue ser ele
próprio fiel aos seus princípios, e em alguns dos seus escritos confunde o que pertence à categoria da
informação (papel do historiador e do perito) e a condução da consciência (papel de pregador).
A Inglaterra deve a Ruskin uma tendência lamentável para julgar as obras de arte consoante a
suposta moral dos seus criadores. Mas o próprio Ruskin dá mostras de várias intenções profundas. Por
exemplo, segundo ele, o artista não deve escolher os seus motivos diretamente da natureza, mas sim entre
os elementos da sua arte. Um fragmento da natureza não deveria ser retido em função da sua beleza; o
artista deve escolher as linhas preferencialmente às cores; luzes e sombras em vez de formas, para
exprimir o seu amor pela natureza. O importante não é o objecto, mas a relação entre o sujeito e o objecto
que é também a relação da natureza com a arte.
Ruskin é o expoente máximo da crítica romântica; com ele, esta afasta-se dos contemporâneos,
que compreende mal (Ruskin prefere Turner a Constable) e apenas se interessa pelo gótico.
98
Fig. 17
William Turner, Paisagem com Rio e Baía distantes, c. 1840-50.
Fig. 18
William Turner, Chuva, Vapor e Velocidade – O Grande Caminho-de-Ferro Ocidental, 1844.
99
Baudelaire 113 (1821/67).
Turner, membro e professor da Royal Academy, começou por ter como
referência o estilo paisagístico clássico de Claude Lorrain, bem como as reflexões sobre
o belo e o sublime de Burke. Ao longo da sua carreira, baseada na teoria da cor de
Goethe, Turner desenvolveu um tratamento revolucionário da luz e da cor, produzindo
texturas e estruturas que tinham um efeito impressionista e por vezes quase abstrato,
como é especialmente visível nas pinturas de Veneza da década de 1840.
113
Além de ser um pioneiro de todos os grandes poetas simbolistas, Baudelaire é considerado pela maior
parte dos críticos como o mais provável fundador da poesia dita moderna. Isto deve-se ao fato de que
através da perceção do real, chegava sempre a um correpondente objetivo para o sentimento que desejasse
expressar, tal como o poeta T. S. Eliot define o termo, observando o seu uso precursor de tal conceito na
poesia do poeta francês. Veja-se o poema "Correspondances" (Correspondências), no livro As Flores do
Mal, onde Baudelaire expõe a origem de seu "projeto simbólico".
100
em Novalis, defendeu que os artistas deviam pintar «aquilo que veem dentro de si
próprios»114, assim como «aquilo que veem à sua frente115».
Retratando cumes de montanhas enevoadas, vistas marinhas, cemitérios e
florestas num estilo simultaneamente meticuloso e misterioso, as suas telas revelam um
carácter moderno que ultrapassa os seus motivos românticos. Isto deve-se em parte à
frugalidade das suas composições, que apresentam muitas vezes uma qualidade
simbólica com tendência para a abstração.
114
In KOERNER, Joseph Leo; Caspar David Friedrich and the Subject of Landscape. Yale University
Press, 1995, p. 88.
115
In KOERNER, Joseph Leo; Caspar David Friedrich and the Subject of Landscape. Yale University
Press, 1995, p. 89.
116
É unanimemente considerado um dos mais importantes e influentes filósofos da história. Pode ser
incluído naquilo que se chamou de Idealismo Alemão, uma espécie de movimento filosófico marcado por
intensas discussões filosóficas entre os pensadores de cultura alemã (Prússia) do final do século XVIII e
início do XIX. Essas discussões tiveram por base a publicação da Crítica da Razão Pura de Immanuel
Kant. Hegel, ainda no seminário de Tübingen, escreveu, juntamente com dois renomados colegas, os
filósofos Friedrich Schelling e Friedrich Hölderlin, o que chamaram de "O Mais Antigo Programa de
Sistema do Idealismo Alemão". Posteriormente Hegel desenvolveu um sistema filosófico que denominou
"Idealismo Absoluto", uma filosofia capaz de compreender discursivamente o absoluto (de atingir um
saber do absoluto, saber cuja possibilidade fora, de modo geral, negada pela crítica de Kant à metafísica).
Apesar de ser notavelmente crítica em relação ao Iluminismo, a filosofia hegeliana é tida por muitos
como, para usar a expressão de Habermas, a "filosofia da modernidade por excelência".
101
Fig. 19
Caspar David Friedrich, A Árvore solitária, 1822.
Fig. 20
Caspar David Friedrich, O Mar Polar, 1823-24
102
do observador na imagem retratada, na verdade reinterpretando o afastamento do mundo
natural que, de acordo com os filósofos idealistas germânicos, é uma pré-condição da
autoconsciência humana.
Na pintura O Mar Polar uma das obras mais importantes do pintor Caspar David
Friedrich podemos observar um veleiro esmagado pelas placas de gelo flutuante, numa
desoladora paisagem polar que pode ser interpretado como um símbolo da calamidade
histórica abrangendo a futilidade de esforço humano e a capacidade humana para lutar
contra tudo e contra todos.
Quando o novo género passa a ter direito a prémio distinto: o Prix de Rome de
Paisage, em 1817. De facto, a pintura de um Valenciennes (1750/1819) – que em 1799-
1800 publicou Élements de Perspective Pratique à l’Usage des Artistes, Suivis de
Réflexions et Conseils à un Élève sur la Peinture et Particulièrement sur le Genre de
Paysage117, onde afirma que os paisagistas, se quiserem manter a coerência da visão,
não devem continuar a trabalhar o seu motivo durante mais de duas horas, porque,
117
Ver de VALENCIENNES, Pierre-Henri, 1750-1819 : La nature l'avait créé peintre, Somogy, 2003.
103
depois disso, a luz muda ou modifica a visão – de um Michel (1763/1843), de um
Micallon (1796/1822) respira algo de novo.
Esse novo estava no tratamento naturalista dos estudos, que estes pintores não
hesitaram em adotar para a própria pintura, deixando-se levar pelo sentimento que lhes
inspirava a natureza e abrindo caminho a toda uma geração de independentes que se
congrega em Barbizon.
118
De acordo com Alain Roger, cujas reflexões sobre a paisagem serão mencionadas no capítulo
posterior, o aparecimento dos jardins constitui uma etapa essencial da “artealização” da natureza. No
mesmo sentido, Cármen Feliú afirma sobre a relação e o jardim e a natureza:
“Se admitirmos que o jardim é uma arte e corresponde a uma intervenção intencional do homem
sobre a natureza, intervenção que adquire através da história uma infinidade de formas diferentes,
segundo a linguagem de cada sociedade, estamos a supor que, como a arte, essa forma pode ser plural e
eternamente mutável. O jardim será, pois, o reflexo da sociedade que o criou em determinado momento
da sua história e responderá às correntes filosóficas, literárias, pictóricas, sociológicas que o não
conformando. O jardim, o parque, é a primeira e mais definida forma de paisagem cultural criada pela
mão do homem."
A paisagem artificial que é o jardim, pretendeu atingir a condição de arte e socorreu-se, ao
mesmo tempo, de outras práticas que podendo não ser da categoria das belas-artes, evidenciaram carácter
artístico: a topiária enquanto arte de dar forma às árvores e arbustos que compõem o jardim, a jardinagem
enquanto exploração qualidades intrínsecas das plantas. A história do jardim revela ainda uma
proximidade com as artes, através da arquitectura, de que acabou por fazer parte, da pintura, que
frequentemente se inspirou, e da escultura que integrou nos seus dispositivos espaciais e as nuas
composições mais grandiosas.
Na frase lapidar com que inicia uma das suas obras, Germain Bazin escreve: “O jardim nasceu
104
Watteau (1684/1721) e Fragonard (1732/1806).
Com a Revolução de Julho de 1830, e depois com a de 1848, era o fim da velha
ordem e a consagração de uma burguesia – curiosamente esta burguesia que coleciona a
pintura naturalista é a mesma que estimula e vive do progresso e da industrialização,
que esta mesma pintura rejeitava.
A paisagem emancipara-se ao passar a ser executada sur le motif, como havia
exposto Chateaubriand (1768/1848). Assim, a história, a mitologia, deixam de fazer
do deserto” Esta frase apresenta o jardim em contraste com o território dominante, em oposição ao
existente, como um sinal da frustração humana, mas também da sua vontade de a ultrapassar num desejo
de reconciliação.
A filosofia atribui ao jardim a condição de arte, porquanto ele é o modelo emblemático da A
jardinagem era vista como uma arte, ao lado da poesia ou da pintura, embora a relação com a arquitectura
que sempre mantivera, e que recuperará no século XX, a tenha tornado antecessora da arquitectura
paisagista.
A própria arquitectura paisagista evoluiu no sentido de se considerar prática artística. Embora
com o carácter de manual e não de tratado académico, surgiram no século XX, obras que abordaram o
jardim como arte.
119
Ver MIQUEL, Pierre, Paul Huet : De L'Aube Romantique a L'Aube Impressioniste / From the Dawn
of Romanticism to the Dawn of Impressionism, Edition De La Martinelle, 1962.
105
Fig. 21
Paul Huet, Maré alta perto de Honfleur, c.1861.
Fig.22
Jean Honoré Fragonard, Uma Avenida com Sombra, c. 1773.
106
parte dos temas da pintura, suplantadas que foram pelo novo género.
A França produziu artistas e obras no século XVIII que pareciam antecipar o
romantismo; exemplos disto são as dramáticas paisagens marítimas de um Vernet,
várias pinturas históricas de François-André Vincent (1746/1816), ou algumas das
representações de ruínas de Hubert Robert (1733/1808).
Basicamente, implicava a mesma coisa que o tão difundido apelo para que se
ultrapassasse a alienação do homem em relação à natureza, uma alienação descrita e
criticado por Denis Diderot, filósofo do Iluminismo e coeditor da Enciclopédia.
Foi precisamente a ênfase que dava à razão, que permitiu ao iluminismo francês
alcançar novos conhecimentos sobre a psicologia individual por um lado, e sobre a
natureza, por outro. Além dos avanços na ciência empírica, ajudou a abrir caminho para
novas sensibilidades nas artes.
107
Fig. 23
Jean Honoré Fragonard, A Cascata, c.1773.
Fig. 24
Jean-Antoine Watteau, Peregrinação à ilha de Cythère, 1717.
108
Eram pintores profundamente coloristas e um e outro eram génios brilhantes
que, como todos os grandes na história da arte, são difíceis de classificar dentro de um
estilo único. Ambos passaram ao lado do género paisagístico tão popular no resto da
Europa, preferindo, em vez dele, a pintura histórica; mas essa pintura continha a
paisagem e a paisagem participava na história.
O pathos das suas composições era construído em cor e luz, mas ao contrário das
antigas pinturas históricas, as suas focavam-se muitas vezes no herói anónimo, no
indivíduo envolvido em acontecimentos fatídicos ou circunstâncias desastrosas.
Aos vinte e quatro anos de idade começou a escrever um diário, o qual viria a
tornar-se um documento de extraordinário interesse – não somente um volume de
confissões que concorrem com as de Rousseau em “franqueza e autorrevelações” – os
ideais da revolução francesa – mas também o repositório de algumas das mais
profundas críticas de arte e literatura publicadas.
109
Fig. 25
Eugéne Delacroix, A Liberdade Guiando o Povo (28 de julho de 1830), 1830.
Fig. 26
Théodore Géricault, A Jangada da Medusa, 1818-19.
110
2.2.5 Quelle est la critique?
Em 1846, dois anos antes da revolução social que da França se alastrou até à
Alemanha, Áustria, Hungria e Itália, Charles Baudelaire (1821-1867) perguntou, «Para
que serve a crítica?» Já respondera a esta questão ao dedicar a sua crítica do Salon de
1846 «à burguesia», se a arte se dirige agora para o terceiro estado, então a função da
crítica de arte é ensinar a classe média a tirar partido dos negócios, do direito e da
ciência no prazer estético obtido através da arte.
Baudelaire chegou ao ponto de declarar que, tal como a arte só conseguia ter
valor quando proveniente de uma individualidade fortemente delineada, assim também
a crítica de arte só valia a pena quando portadora de uma opinião bem formada – se
tomasse partido, entrasse em diálogo com outra crítica ou com a arte transformada em
seu objeto, se diferenciasse e diversificasse a sua audiência sendo «parcial, apaixonada
e política».
Nas décadas de 1760 e 1770, quando ainda não havia nada parecido com um
crítico especializado em arte, o “enciclopedista” filósofo Denis Diderot (1713-1784)
procurou atrair a atenção de um público limitado e de elite (em número não superior a
15 subscritores de origem nobre) nos Salons que escreveu para o manuscrito
bissemanário do barão Grimm, o Correspondance littéraire, separando explicitamente
os seus registos dos comentários mais abrangentes sobre o Salon, escritos sem
ilustrações para o vasto público do Salon.
Contudo, Diderot não deixou de se imiscuir na confusão do Salon, fazendo
referência às suas obras e à sua divagação pelos diferentes espaços, permitindo que o
111
barulho imaginário de uma massa de visitantes se intrometesse na intimidade das
conversas fantasiosas inventadas com o fim de escapar a esse mesmo barulho, e
enquadrando as suas memórias pictóricas no âmbito da experiência fenomenal da
observação, que podia teoricamente ser sentida por qualquer um.
O campo da estética como um ramo da filosofia, viu a luz do dia. Sem ter
manifestado qualquer tipo de interesse pelas exposições ou pelas obras de arte
individuais, ou até pela arte como tal, Kant definiu o sentimento estético como a marca
da autonomia do tema humano livre, liberto dos prazeres inferiores e das contingências
da sensação e sobrevivência corporal, e diferenciou o «belo» e o «sublime» como
modos da relação do sujeito com o mundo objectivo inspirando-se em Edmund
Burke121.
120
Étienne-Jean Delécluze, 26 February, 1781 – 12 July 1863, foi um pintor francês e crítico de arte. De
1797 em diante, ele foi um aluno do pintor Jacques-Louis David, como ele descreve na biografia de
David. Como um dos seus alunos favoritos, ele foi convidado para a última refeição de David em França
antes de ir para Bruxelas em 1816.
De 1822 em diante, ele trabalhou como crítico para o Journal des débats. No seu livro Louis David, son
école et son temps, (Paris, 1855) ele foi politicamente controverso, e conseguiu reescrevê-lo, a fim de
restabelecer a sua reputação.
121
Uma Investigação Filosófica sobre a Origem das Nossas ideias do Sublime e do Belo (BURKE, E.
(1757), A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the sublime and Beautiful, Oxford:
Oxford University Press, 1992.) Publicada em 1757 representa, antes de tudo, um esforçado exercício de
psicologia filosófica. “Belo” (Participa do “belo” aquilo que move as paixões dos homens, provocando
112
Quando Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) proferiu as suas Lições
Introdutórias sobre Estética em Berlim, na década de 1820, respondeu criticamente
tanto ao sistema estético de Kant como ao monopólio da arte antiga de Johann Joachim
Winckelman (1717-1768). Tratando a arte como nunca Kant fez, traçou uma progressão
dialética desde a coerência interna e autossuficiência da escultura clássica à
fragmentação, à desintegração e carácter sublime das artes «românticas» da pintura e
literatura. Absorvido pelas teorias filosóficas e literárias do modernismo artístico, e
confrontado com o grito positivista de progresso, a conceção de Hegel da fase
romântica, como uma fase de dissolução na qual «a arte cai aos pedaços», constituiria
uma das duas correntes de pensamento acerca do destino da arte na modernidade.
Esta visão da arte moderna reforça a ficção da arte francesa que se centrava na
queda do artista moderno e na desintegração da sua arte num caos proto abstrato de
cores, tão inerentes como A Obra-Prima Desconhecida, conto publicado em 1845 por
Honoré de Balzac (1799-1850), Manette Salomon, romance escrito em 1867 por
Edmond e Jules de Goncourt (1822 -1896 e 1830-1870) sobre a arte na era das
Exposições Universais, e Obra-Prima de Émile Zola (1840-1902), escrito em 1886.
prazer (1757: 30). A beleza é em primeiro lugar, uma “qualidade social” pois conduz à criação da
“sociedade” sob duas formas: a sociedade dos sexos, que conduz à propagação da espécie, e a “sociedade
geral” que une os homens entre si, os homens aos animais e, “de algum modo” os homens ao mundo
inanimado. Afastados dos prazeres, rompidos os laços desta ligação natural às coisas, os homens
lamentam um passado perdido, quedando-se na nostalgia de uma “perda” ) e “sublime” (3) apresentam-
se como conceitos que vão sendo erguidos enquanto balizas da actividade psico-sensorial do homem,
etiquetas multifacetadas que respondem com fiabilidade ao principal objectivo do autor: “verificar se
existem quaisquer princípios [do Gosto], que afectem a imaginação, tão comuns a todos, tão
fundamentados e certos, que permitam fornecer os meios para sobre eles se raciocinar
satisfatoriamente” . Assentar um modelo antropológico único e universal não constitui, obviamente, uma
função bastante inédita no panorama do pensamento setecentista, sendo a Investigação explicitamente
herdeira da filosofia de David Hume. O projeto de Burke adquire, contudo, um “mais alto brilho” se
enquadrado na especificidade da restante obra do seu autor. Burke é um dos mais famosos ideólogos do
conservadorismo europeu.
113
Fig. 27
Hubert Robert, O Banho no Lago, s/d.
Fig. 28
Joseph Vernet, Vista de Nápoles com o Vesúvio, c. 1746.
114
Observando a Paisagem Marítima de Friedrich» Berlim, 1810.
115
articularam o conceito de «pitoresco», e escreveu a favor do princípio da
«originalidade» subjetiva em ensaios publicados na Enciclopédia Britânica, nas suas
Conversas à Mesa e n’O Atlas. Contudo, só depois de John Ruskin (1819-1900) ter
publicado o primeiro volume de Pintores Modernos em 1843 é que os valores de
Reynolds foram directamente desafiados e a pintura inglesa moderna, sobretudo com
William Turner, encontrou o seu expoente crítico.
123
O Fortnightly Review foi uma das revistas mais importantes e influentes na Inglaterra do século XIX.
Foi fundada em 1865 por Anthony Trollope, Frederic Harrison, Edward Spencer Beesly, e outros seis
editores; a primeira edição apareceu em 15 de maio de 1865. O Fortnightly Review teve como objetivo
oferecer uma plataforma para uma série de ideias, em reação ao jornalismo altamente partidário da
116
Fig. 29
Eugéne Delacroix, Vista do mar em Dieppe. 1852.
Fig. 30
Jean-François Millet, Inverno, 1868.
segunda metade do século XIX. De fato, ao anunciar a primeira edição do Fortnightly no Saturday
Review de 13 de maio de 1865, GH Lewes, o seu primeiro editor, escreveu: "O objeto da Fortnightly
Review é tornar-se um órgão da expressão imparcial de muitas e diversas mentes sobre temas de
interesse geral na Política, Literatura, Filosofia, Ciência e Arte ". Foi uma das primeiras publicações a
citar os autores dos seus artigos num momento em que o trabalho geralmente aparecia anonimamente ou
sob um pseudônimo. John Sutherland chamou-lhe um exemplar Inglês da Revue des Deux Mondes e
observou que foi "lançado num nível mais elevado do que outras revistas inglesas de sua classe".
O prefácio aforístico de Oscar Wilde para o seu livro O Retrato de Dorian Gray foi publicado na edição
de março 1891; e o ensaio de George Orwell intitulado Bookshop Memories apareceu em novembro de
1936. A revista impressa cessou a publicação em 1954 e foi incorporada no Contemporary Review.
117
as artes e o seu esforço para atingir a condição da música.
O primeiro grande defensor da noção de arte pela arte foi Théophile Gautier
(1811-1872) em França, que resolveu responder a um ataque surgido num jornal com
um prefácio mordaz no seu romance Mademoiselle de Maupin (1834), no qual gozava
com o positivismo do Conde de Saint-Simon (1760-1825) e o seu compromisso para
com a utilidade social das artes, advogando, ao contrário, a benéfica inutilidade da arte
nos tempos modernos.
124
L'Artiste foi uma revista semanal ilustrada publicada em Paris de 1831 a 1904, fornecendo "a mais
rica única fonte de comentário contemporâneo sobre artistas, exposições e tendências da era romântica
até o fim do século XIX ", segundo Ann Roth Nancy (1) Originalmente, L'Artiste focava-se nas artes
plásticas e na literatura, mas de 1859 adiante a literatura tornou-se a sua principal preocupação, que mais
tarde foi absorvida na famosa Revue de Paris.
Editores importantes incluem: A. Ricourt, H. Delaunay, e Arsène Houssaye. Notavelmente, publicou
obras de Honoré de Balzac, Gérard de Nerval, Théophile Gautier, Jules Janin, Théodore de Banville,
Émile Zola, Henri Murger, Jules Champfleury, Charles Baudelaire, Joseph Méry, Eugène Sue e Alphonse
Esquiros.
1- ROTH, Nancy Ann, "'L'Artiste' and 'L'Art Pour L'Art': the new cultural journalism in the July
Monarchy", The Art Journal, 1989. p 35-39.
118
Fig. 31
Claude Lorrain, O Vau, c. 1636.
Fig. 32
Claude Lorrain, Paisagem pastoral: O Campo Romano, 1639.
119
em Sobre o Princípio da Arte e o Seu Destino Social (1865), opondo-se explicitamente
à noção de arte pela arte em prol de um reconhecimento da arte como a forma mais
elevada e virtuosa de trabalho não alienado.
A conceção positivista, tal como foi aplicada à história da arte, estava agora
amplamente espalhada; foi partilhada por Charles Blanc (1813-1882), fundador da
ilustrada Gazette des Beaux-Arts em 1859 e autor da influente Grammaire des arts du
dessin (1867), quando compilou a sua enciclopédica História dos Pintores de Todas as
Escolas no decorrer das décadas de 1860 e 1870.
120
celebrando os valores urbanos do flaneur (aquele que deambula pelos boulevards,
aquele que se perde na paisagem citadina), bem como o vestuário e a cosmética da
mulher moderna, e se sentia cada vez mais ligado ao seu amigo Manet, apesar de pouco
ou nada ter escrito sobre ele.
Quando os críticos começaram a frequentar o círculo impressionista na década
de 1870, fizeram-no em termos semelhantes, tratando Manet como o fundador da nova
escola, apesar da sua recusa em aderir às exposições do grupo.125
Em 1876, surgiram críticas mais sérias, uma pelo poeta Stéphane Mallarmé
(1842-1898) e outra por Edmond Duranty (1833-1880), um jornalista naturalista do
tempo de Courbet. Mallarmé escreveu «Os Impressionistas e Édouard Manet» em
inglês para um jornal londrino, considerando Manet como o fundador da nova escola,
chamando a atenção para a forma como fora maltratado pelo júri e pelo público do
Salon (uma corrente importante de crítica moderna), fundindo a vida moderna
baudelairiana com o naturalismo de Zola e interpretando o Impressionismo como a
125
In HERBERT, Robert L. Impressionism: Art, Leisure, and Parisian Society. Yale University Press,
1991. p. 236.
121
recriação ótica das «sensações tácteis da natureza».
122
a maneiras literárias; Claude Lorrain pinta uma paisagem e chama-lhe Decadência do
Império Romano, buscando deliberadamente a associação de ideias literárias e plásticas,
num formalismo clássico.
Um paisagista – George Michel – está tão só que a sua própria vida é quase
desconhecida, ainda que a alma de Rembrandt lhe atravesse por vezes o caminho. Dois
pintores permanecem em Barbizon durante toda a sua vida. Rousseau – tão comovente
por vezes quando só usa a pena e anota as suas impressões diretas, as que se guardam
para o próprio, medidas, equilibradas, nítidas, musicais e compostas como todas as que
os mestres do desenho francês nos deixaram, de Claude e de Poussin a Vernet e a Corot
— Rousseau adormece à margem dos seus eternos pântanos, de que encontra a cor
violácea e suspeita nos castanheiros solitários e nos húmidos crepúsculos em que a sua
tristeza procura uma embriaguez poética que apenas conduz ao aborrecimento.
Millet crê — ou antes, crê-se depois de Millet – que basta a leitura da Bíblia para
lhes dar o sentido do mundo, e que a miséria simples e estoicamente suportada o tornará
digno de cantar a existência dos miseráveis no meio dos quais vive.
O moinho de vento do título jaz envolto numa sombra, mas as suas pás
projetam-se acima da linha do horizonte como se quisessem alcançar a luz do sol que
começa a romper por entre as nuvens. É possível que Michel conhecesse o significado
simbólico atribuído ao moinho de vento na arte do século XVII. Com as suas pás à
mercê de ventos inconstantes e instáveis, o moinho de vento figurava como um símbolo
do destino caprichoso e das vicissitudes da vida humana. As paisagens diretas daí
resultantes, de tipo atmosférico e românticas nos tons, combinavam a abordagem da
antiga pintura holandesa com uma nova e natural proximidade de observação e
execução que faria de Michel um antecessor da “escola” de Barbizon.
123
Fig. 33
Georges Michel, Paisagem com um Campo arado e uma Vila., 1880/82.
Fig. 34
Georges Michel, Paisagem com Moinho de Vento, Vista de Montmartre, 1820.
124
Duplo erro, de que nem o seu sentimento ora épico, ora virgiliano do campo, nem o seu
culto por Miguel-Ãngelo e por Poussin, nem a sua admiração por Delacroix, nem a sua
amizade por Daumier, que vinha só a Paris ‘de tempos a tempos’, sacudir nos seus
hábitos obstinados a chama do génio, poderão libertá-lo.
É verdade que lavrou em criança, que vive de ‘blusão e de tamancos’, mas isso
não nos importa. É certo que, durante uma viagem ao “árido, austero Auvergne”,
salpicado como um velho manto, estudou escrupulosamente a estrutura interna da terra,
de que nos deu admiráveis imagens, puras como um desenho japonês e firmes como um
desenho alemão.
É verdade que teve, nas suas bucólicas campestres, nos seus ceifeiros inclinados
num só movimento, nos seus semeadores alongados na sombra, nos seus cavadores
firmes na ferramenta, todas essas figuras simples da fatalidade grandiosa e triste do
trabalho, o sentimento da expressão escultural das formas, arrebatadas no espaço apenas
pelas suas grandes superfícies e pelos seus planos expressivos. Mas, nele, esse
sentimento é mais poético do que plástico, e muitas vezes, sob o plano ideal, a forma
soa oca.
125
Fig. 35
Diaz de la Pena, Narcisse, O caminho na Floresta, c.1850.
Fig. 36
Theodore Rousseau, Paisagem, meados do séc. XIX
126
Se Daubigny, bom paisagista, não se fosse iniciar nas belezas do campo junto de
Rousseau e de Millet, estes não teriam exercido nenhuma ação sobre os pintores
nascidos na confluência de Courbet e do materialismo científico e literário. E ainda esta
ação é mais moral que sensual.
O mundo exterior só existe fora do homem, e a luz exterior só o revela tal como
ele é. Delacroix é, sem dúvida, um mestre; reencontrou as leis quase perdidas de
contraste e de associação das cores; mas a sua imaginação arrasta-o alto e longe de
mais, leva a pintura a não poder passar de uma expressão simbólica – um passo mais,
literário – do universo. E, depois, pinta no «atelier», de memória. Courbet também; que,
esse, pelo menos, caminha para o facto e exprime-o sem comentários.
127
mas quando assim definimos a palavra não estamos a simplificar o problema das
relações do artista com a natureza?
Nos termos mais simples podemos dizer que o artista ao pintar uma paisagem
não tenciona descrever a aparência visível da paisagem, mas dizer-nos qualquer coisa
acerca dela.
Essa qualquer coisa pode ser uma observação ou emoção que partilhamos com o
artista, mas, com mais frequência, é uma descoberta original do artista que ele nos quer
comunicar. Quanto mais original for essa descoberta maior crédito nos merecerá o
artista, pressupondo sempre que ele tem suficiente mestria técnica para tornar essa
comunicação clara e eficaz.
Que será, então, que o artista descobre na natureza e que só ele é capaz de
comunicar ao mundo?
Será esta procura de uma nova observação da natureza, e uma nova comunicação
do artista com a paisagem, que os pintores de Barbizon vão procurar captar.
128
Fig. 37
Theodore Rousseau, Vista dos Arrabaldes de Granville, 1833.
Fig. 38
Constant Troyon, Estrada na Floresta, C. 1865.
129
Porém, como escreve Argan, como explicar o facto de essa mancha, mesmo não
descrevendo nada, dizer tudo, até a forma, a luz e a força dos ramos e das folhas?
Argan, dá-nos a resposta: “essa mancha faz com que reconhecemos a árvore:
não fornece uma noção, mas evoca uma experiência que está em nós, na nossa
memória. A mancha, em si, não representa senão a impressão súbita experimentada
diante do verdadeiro, numa condição específica de lugar, tempo, luz; todavia, como a
emoção aciona a nossa memória, a perceção em si, instantânea e superficial, adquire
uma profundidade psicológica.” 126
126
In ARGAN, Giulio Carlo.Op., Cit., p. 60.
127
Id., Ibid. p.61.
130
contemplativa, como se nos devessem transmitir uma mensagem extra-terrena, mas uma
postura prática e afetiva, como a que se tem com as pessoas e as coisas do quotidiano
que nos envolve.
Camille Corot (1796/1875) foi talvez um dos maiores paisagistas do século XIX.
Corot não participou ativamente nos grandes movimentos artísticos da época; a sua
pintura desenvolveu-se na órbita deles, todavia segue uma linha própria de pesquisa
dirigida especificamente ao facto pictórico, ao quadro, à sua estrutura. As paisagens do
primeiro período italiano (1825-8) sofreram influências da paisagem heróica de Poussin
e dos paisagistas do século XVIII: exceto pela temática diferente.
O sentimento para Corot, não é o impulso passional como para Delacroix, nem o
choque emotivo como para os paisagistas de Barbizon, mas a comunicação e a
identificação da realidade interior, moral com a realidade exterior, a natureza. O mundo
não é um espetáculo a ser admirado, mas sim uma grande experiência a ser vivida, e a
pintura é um modo de vivê-la. A natureza para Corot, não é o objeto, mas sim o motivo:
um termo que terá muita importância para toda a pintura oitocentista, até Cézanne.
E depois todos têm hábitos, de que mesmo os maiores se não puderam libertar e
que a natureza, diretamente interrogada, só raramente justifica fora das iluminações
131
artificiais e das atmosferas confinadas: opõem por toda a parte a sombra à luz e reúnem
todos os seus tons por uma gama de meios-tons intermediários, inapreensíveis à luz do
dia.
Como motivo é a solicitação, o estímulo; o que importa não é a natureza, mas o
sentimento da natureza, e esse sentimento é o fundamento da moral (toda a vida de
Corot foi inspirada por um elevado sentido moral).
132
Fig. 39
Jean-Baptiste-Camille Corot, Fontainebleau: Árvores de Carvalho em Bas-Bréau, 1833.
Fig. 40
Jean-Baptiste-Camille Corot, O Barqueiro, 1865.
133
2.2.8 ‘Déjeuner sur la ville’
Esta tentativa de retorno às fontes, nada tinha de novo senão o seu pretexto
científico, que a tornou em verdade decisiva. Já no próprio tempo dos triunfos
128
Chevreul (1786 – 1889)) Foi um químico francês cujo trabalho com ácidos levou a aplicações inicíais
nos campos da arte e da ciência. Ele é creditado com a descoberta do ácido margárico, com a creatina, e
projetar de uma forma primitiva o sabão feito a partir de gorduras animais e do sal. Ele viveu até aos 102
anos e foi um pioneiro no campo da gerontologia.
Depois de ser nomeado diretor dos serviços de corantes na Gobelins Manufactory em Paris, ele
recebeu muitas queixas sobre os corantes que eram usados lá. Em particular, os negros apareciam
diferentes quando utilizados ao lado dos azuis. Ele procurou determinar que o fio da cor observada foi
influenciado pelos outros fios circundantes. Isto levou a um conceito conhecido como contraste
simultâneo.
Chevreul também está ligado ao que é às vezes chamado de ilusão de Chevreul, as margens
brilhantes que parecem existir entre faixas adjacentes de cores idênticas com diferentes intensidades. O
contraste simultâneo identificado por Chevreul refere-se ao modo em que as cores dos dois objectos
diferentes afetam-se um ao outro. O efeito é mais perceptível quando compartilhado entre objetos de cor
complementares.
O trabalho de Chevreul foi adaptado à pintura com o objetivo de reproduzir a natureza o mais
natural possível, por efeitos de luz e do claro-escuro, que o artista deve repetir adaptando o contraste de
cor, que seriam aplicáveis à própria cor da pintura. No entanto, este princípio de cor, posteriormente, teve
uma grande influência na arte moderna na Europa, especialmente no Impressionismo, Neo-
impressionismo e Orfismo.
134
antagonistas de Ingres e de Delacroix, alguns pintores tinham deixado as oficinas e as
escolas para regressarem à «natureza» com um impulso sentimental cuja primeira
origem é preciso buscar na ação de A Nova Eloisa, das Confissões e do Contrato Social.
A cidade era um lugar de perdição para o homem sensível. Este não podia renovar a
inocência da sua visão senão no contacto da terra, fonte da juventude eterna das formas
em metamorfose e do coração a que a terra restitui a calma e a pureza.
Pissarro, que começa a não querer pintar senão ao ar livre, e que arrasta atrás de
si alguns amigos, Claude Monet, Renoir, Sisley, Bazille, mais tarde Cézanne, descobre
um jovem pintor, Édouard Manet, que nem sempre pinta fora mas que tem (foi o
primeiro na Europa) a audácia de pôr um tom claro por cima de outro tom claro, de
reduzir ao mínimo as meias tintas, ou mesmo de as ignorar, de quase suprimir o
modelado justapondo ou sobrepondo manchas que uma linha muito firme cerca, tirada a
um fundo desembaraçado de sombras cúmplices.
Pintura primitiva num sentido, com uma iluminação brutal, de frente, uma toalha
135
de luz difusa caindo verticalmente e revelando os objetos em silhuetas brilhantes,
colocadas uma sobre outras, ou ao lado umas das outras como grandes bocados de
cartão ou de pano cortados em plena luz.
Pintura crua, violenta, intransigente, que contraria toda a educação rotineira dada
à vista desde a Renascença pelos museus fuliginosos, e provoca tumultos sempre que
aparece em público. Pintura revolucionária, ousando, para voltar às fontes e aí
retemperar a arte de pintar, suprimir algumas das suas mais profundas conquistas, a fim
de a estabelecer em posições mais novas e de reatar a tradição.
Também Goya, que, pela união de alguns tons límpidos, faz surgir do nada, num
segundo, um braço, uma mão, um olhar, uma flor, uma alucinação violenta. Manet vai
vê-los a casa, e logo descobre o seu caminho. “Cor-de-rosa sobre cor-de-rosa, branco
sobre branco, manchas vivas, tudo brilha como se fosse um «bouquet», tudo canta,
nada acusa a forma em relevo, porque nada a ela se opõe no espaço cheio de tons
claros que a envolve ou se ordena nos fundos por trás dela. Tudo isso canta com um
pouco de força por vezes, mas jamais soa falso.”129
A carne, mesmo a que traz a boca e os olhos, não tem para ele mais importância
129
In HERBERTt, Robert L., Impressionism: Art, Leisure and Parisian Society (London and New Haven,
1988), p. 182.
136
que o rosa da gravata destacado no casaco preto, a nervura encarnada do livro que
sangra no tapete amarelo, a coberta da cama com reflexos azuis, os reflexos dos copos e
das facas tremidos no espelho.
Natureza morta imensa, um pouco dispersa, descosida, mas de uma força tal, que
determina ainda, passados quarenta anos, a invasão da cor na pintura e, por detrás dela,
todas as audácias, todos os esplendores, todos os clarões rutilantes e ferozes do Oriente.
Manet não quis fazer parte do grupo dos impressionistas, que ainda assim o
consideravam como um guia; no entanto ele acompanhou as pesquisas dos
impressionistas com interesse, aproximando-se cada vez mais dos desenvolvimentos da
pintura en plein-air, a que ele próprio dera início com o Déjeuner.
Estes eram anos de agitação social; por isso, as suas obras são fruto de uma
tomada de consciência da nova realidade coletiva e, de certa forma, uma resposta às
obras literárias de Lamartine, Stendhal, Balzac, George Sand e Flaubert, à história de
Michelet e às teorias de Proudhon, de Marx e Engels. Com efeito a estética realista é
137
mais profunda do que à partida possa parecer. A ela se ficaram a dever a abertura de
novos caminhos que iniciaram a discussão sobre os fins e autonomia da arte.
Manet revela a Pissarro a pintura fresca e sem sombras; Pissarro arrasta Manet
atrás de si para os campos e mostra-lhe, pelo seu exemplo e sobretudo pelo do
«virtuoso» do grupo, Claude Monet, que o ar livre não só suprime o modelado, mas o
próprio contorno das formas, e substitui ao tom local uma troca infinita de reflexos
dançantes, caldeados e solidários, em que a forma hesita e se sufoca no universal
flutuar.
Manet, seguindo os seus novos amigos, quase não mais pintará senão ao ar livre.
Já não são estudos a combinar no atelier, onde a luz atenuada e triste sufoca as
vibrações do espaço livre, muda as relações coloridas, acusa as formas paradas em
detrimento das suas superfícies inquietas, condena a vista a voltar pouco a pouco aos
seus velhos hábitos de progressivas degradações da luz demasiado artificial para a
obscuridade demasiado anódina.
138
quadro, que será inteiramente pintado lá fora. Eis o bosque de Courbet, com sua
penumbra verde, suas sombrias folhas estendidas por cima de calhaus e regatos. Mas o
sol penetra os ramos, põe sobre a terra e a carne claras e móveis manchas, e a sombra
esvai-se.
Depois, a vista do pintor, a princípio deslumbrada pela luz solar, fixa-se, insiste,
reeduca-se pouco a pouco, distingue um fantasma de sombra onde a princípio não via
mais nada. A própria sombra é luz, é transparente, aérea, e as cores do prisma, conforme
os mil tons vizinhos, a incidência da iluminação aí se decompõem e transmutam em
gamas cada vez mais esbatidas e subtis, que ninguém antes observara.
Em breve o objeto não terá a sua cor própria; o sol e a sombra que brincam,
todos os reflexos errantes que se entrecruzam, as variações da estação, da hora, do
segundo, impressionados pela passagem do vento ou pela interposição de uma nuvem,
passeiam à superfície mil tons cambiantes e móveis, que fazem da crosta do mundo um
vasto e móvel drama.
139
Fig. 41
Édouard Manet, Dejeuner Sur L'Herbe, 1863.
Fig. 42
Édouard Manet, O Caminho -de-Ferro, 1872-1873.
140
Pissarro passeia o seu apostolado pelos campos povoados. Demonstra, pintando
os tetos vermelhos entrevistos por detrás das macieiras, as colinas baixas bordadas pela
cortina dos choupos e pela ribeira, que mesmo quando se realiza, por uma técnica
rigorosa, o máximo de estremecimento aéreo e de brilho luminoso, pode-se continuar a
ser o poeta mais discreto da intimidade das coisas, o amigo das pobres casas, o que sabe
que as árvores têm mil aventuras admiráveis desde a pobreza do Inverno à riqueza do
Verão.
O que desenrola com ternura o humilde movimento das culturas nas encostas, a
sua harmonia espontânea e móbil, sempre de acordo com a luz e o tempo. Mais tarde,
quando vê menos bem, pinta do alto as grandes cidades, as fachadas por detrás das
folhas onde mil tons vivos e subtis se mexem na prata difusa, o vapor dourado sobre o
rio, o formigar longínquo da calçada e do passeio.
Porém a relação cada vez mais agonizante que se estabelecia com a nova
natureza – a cidade – não tem só resposta na pintura e na literatura, mas também na
arquitetura. Boullée (1728/99) havia sido o primeiro artista a pensar uma cidade ideal
que servisse a Revolução, mas esta recusara-a (é que não era possível ensinar e ao
mesmo tempo inovar); somente nos anos quarenta do século XIX surgiria uma efetiva e
real necessidade de pensar a cidade porque um novo sistema se impunha, baseado na
fábrica.
141
Fig. 43
Gustave Courbet, O Atelier do Pintor, uma Alegoria Real, Resumo de Sete Anos da minha Vida, 1855.
Fig. 44
Gustave Courbet, As Ondas, 1870.
142
São médicos, filósofos, engenheiros e padres, como Charles Fourier (1772/1832)
– o seu sistema previa a associação de indivíduos em falanstérios harmoniosamente
compostos com o fim de procurar para cada um dos seus membros o bem-estar no
trabalho livremente consentido – Victor Considérant, Proudhon, Robert Owen,
Richardson, Ruskin, William Morris, Marx e Engels e, mais tarde, Herbert George
Wells, que vão lançar-se nesta problemática e que dão a resposta no que foi apelidado
de “utopias“ urbanas. Estas vão ser acompanhadas na literatura por Éthiène Càbe, Júlio
Verne e Eugène Sue.
O modelo de Haussman foi tão próspero que irá ser exportado para São
Petersburgo, Nova Iorque (nos E. U. A. encontra terreno virgem para a melhor execução
daquilo a que se propõe uma cidade moderna), Barcelona, Madrid, Alemanha e Áustria,
e, já no século XX, para Buenos Aires e Rio de Janeiro.
Quase que podemos afirmar que o campo teria sido uma espécie de infância para
a pintura e a cidade a sua maturidade. E é isso que o impressionismo vai registar, a
143
modernidade da cidade de Haussman, porque também eles, os impressionistas, queriam
ser modernos.
Mas algo havia já mudado em Déjeuner sur l’Herbe (1863) de Manet, que é uma
obra síntese da pintura até então, porque congrega os géneros natureza-morta, paisagem,
nu, retrato, mas que abre o novo caminho ao destruir propositadamente a perspetiva.
130
A designação de Flâneur foi definida num longo artigo no Grand Larousse Dictionnaire Universel du
XIXe Siècle. O dicionário descreveu o Flâneur em termos ambivalentes, em partes iguais de curiosidade e
de preguiça e apresentou uma taxonomia da Flânerie: Flâneurs das avenidas, dos parques, das galerias,
dos cafés e os Flâneurs irracionais ou Flâneurs inteligentes.
O Flâneur foi antes de tudo, uma tipologia literária no final do século XIX em França, essencial
para qualquer imagem das ruas de Paris. A palavra associa um conjunto de associações: o homem de
lazer, o reboque, o explorador urbano, o conhecedor da rua. Foi Walter Benjamin, com base na poesia de
Charles Baudelaire, que fez desta figura um objeto de interesse académico no século 20, como um
arquétipo emblemática da experiência urbana, moderna. Segundo Benjamin, o Flâneur tornou-se um
símbolo importante para os académicos, artistas e escritores.
Na década de 1860, no meio da reconstrução de Paris sob Napoleão III e o barão Haussmann,
Charles Baudelaire apresentou um retrato memorável do Flâneur como o artista-poeta da metrópole
moderna: A multidão é seu elemento, como o ar é o de pássaros e água de peixes. A sua paixão e a sua
profissão são a tornar-se uma só carne com a multidão. Para o flâneur perfeito, para o espectador
apaixonado, é uma alegria imensa para configurar casa no coração da multidão, em meio ao fluxo e
refluxo do movimento, no meio do fugitivo e do infinito. Para ficar longe de casa e ainda assim sentir-se
em todos os lugares em casa; de ver o mundo, a estar no centro do mundo, e ainda assim permanecer
oculto das naturezas mundialmente imparcial que a língua pode, mas desajeitadamente definem. O
espectador é um príncipe que em todos os lugares folga na sua incógnita. de todos os elementos da vida.
(In Charles Baudelaire, "O Pintor da vida moderna", (New York: Da Capo Press, 1964). Orig. Publicada
no Le Figaro, em 1863.) Baseando-se em Fournel, e na sua análise da poesia de Baudelaire, Walter
Benjamin descreveu o Flâneur como a figura essencial do espectador urbano moderno, um detetive
amador e investigador da cidade.
144
(1841/1919), em Boulevard Montmartre (1897) de Pissarro (1830/1903), nos cartazes
de Toulouse-Lautrec que anunciavam os espetáculos noturnos da cidade, na Torre Eiffel
(1889) de Seurat (1859/91).
Sisley fala das festas aquáticas, dos céus de flocos onde a tempestade choca, do
vasto estremecimento do ar e das ribeiras à volta dos mastros cheios de bandeirolas, as
regatas de arrabalde, o sopro do leve vento nas folhas e nas ervas da margem, e o
estremecimento molecular do espaço uniforme e cinzento.
Claude Monet está inebriado pela luz e, a dois séculos de distância, corresponde,
pelo seu lirismo exasperado da livre planura, ao lirismo de Claude Lorrain fechado na
rigorosa arquitetura da vontade e da razão.
Apreende o sol antes de todos os outros, mesmo quando ainda se não levantou,
mesmo quando o céu está coberto. Através das nuvens ou para além da curva da terra, o
sol inunda o universo de uma chuva pulverulenta de raios que só os seus olhos veem.
145
Fig. 45
Claude Monet, A Gare de St-Lazare, 1877.
Fig. 46
Claude Monet, Rua Montorgueil, Paris, Comemorações de 30 de junho, 1877, 1878.
146
A toalha de claridade que o sol espalha sobre o mundo é para ele uma multidão
inumerável onde vagueiam e se entrecruzam cem mil átomos coloridos, que os outros
homens veem em bloco. Distingue o sol de Verão do sol de Inverno, o sol da Primavera
do sol do Outono.
O sol da aurora e o sol do crepúsculo não são o mesmo sol das dez ou quinze
horas que decorrem entre o nascer e o pôr-do-sol. De minuto a minuto segue o seu
aparecimento, o seu crescer, o seu declínio, os seus eclipses repentinos e os seus bruscos
retornos à superfície imensa da vida, de que cada estação, cada mês, cada semana e o
vento e a chuva, a poeira e a neve e o gelo mudam de cariz, de timbre e de acento.
Eis mil imagens da mesma água, mil imagens das mesmas árvores, e são como o
riso, o sorriso, o sofrimento, a esperança, a inquietude e o terror sobre a mesma face
humana, conforme reina a luz meridiana ou a sombra cerrada, ou todos os graus que
separam a sombra cerrada da luz merídia. Claro que a forma ainda ali está, mas foge e
furta-se como a dessas caras tão móveis que a expressão de olhos e lábios parece flutuar
em frente delas.
Qual é, neste homem tão vivo, o lugar que ocupa a teoria? Nenhum.
Eis extensões marinhas, velas, nuvens que flutuam entre céu e mar, eis a baça
profundidade e a espuma iluminada, e fantasmas de flores sob à tona dos charcos. Eis a
sombra das folhas misturada nos vivos regatos à ondulação das algas.
147
Fig. 47
Pierre-Auguste Renoir, O Moinho de la Galette, 1876.
Fig. 48
Claude Monet, Impressão Sol Nascente, 1872.
148
O mundo e o homem tornavam-se complexos; consequentemente, a arte
também. Os impressionistas que se apresentaram, em 1874, no atelier do fotógrafo,
Nadar, aderem à paisagem e à atmosfera.
A arte poderia até deixar à fotografia o primado da representação – era ela que
agora passava a representar a paisagem antes de descobrir as suas próprias qualidades e
possibilidades – mas reivindicava o primado da comunicação emotiva. Assim o
movimento impressionista rompe decididamente as pontes com o passado e abre a
extensa alameda, para a pesquisa artística moderna.
A nova organização do trabalho, aliada das novas inovações técnicas, bem como
a abertura aos mercados exteriores, permitem e exigem uma maior produção a menor
custo, (que se resolve sempre com uma abundante e substituível mão-de-obra,
localizada ao redor dos núcleos fabris).
149
Fig. 49
Camille Pissarro, Pomar em flor, Louveciennes, 1872.
Fig. 50
Camille Pissarro, Avenida Montmartre, 1897.
150
Por força dos problemas existentes, derivados das novas estruturas exigidas pela
cidade industrial, o urbanismo aparece como um instrumento que vai oferecer uma
solução formal e figurativa à organização espacial da cidade, e que incidindo na sua
nova estruturação social, vai propor formas de convivência que tratam de evitar os
“males” da nova sociedade industrial; regularizando instrumentos higiénicos e jurídicos,
antecessores da atual legislação urbanística.
Mas, “enquanto Hieroshigé ou Hokusaï reúnem, numa imagem única, cem mil
impressões dispersas de um extremo ao outro dos seus dias, Claude Monet, na
impressão de um segundo, dá cem mil imagens possíveis da estação e da hora em que
esse segundo soou”.131 E o esquema oriental e a análise ocidental chegam ao mesmo
resultado.
Pela primeira e única vez, sem dúvida, na história da pintura, o nome que se deu
a esse movimento convém-lhe, se o limitarmos pelo menos às obras de Claude Monet e
de Sisley, à maior parte das de Pissarro e aos primeiros ensaios de Cézanne e de Renoir.
É a sensação visual fulgurante do instante, que uma longa e paciente análise da
qualidade da luz e dos elementos da cor permitiu a três ou quatro homens fixar de
relance na sua complexidade infinita e mutável.
151
de um constrangimento literário que tinham dado todos os seus frutos há quatrocentos
ou quinhentos anos.
Isto é imenso. E por isso, durante trinta anos, todos os olhos se fixaram nele.
Enquanto os Impressionistas continuavam, através das mais “cegas e interessadas”
resistências, a conquista da luz, os movimentos anteriores ou paralelos ao seu,
perfaziam-se, continuavam-se ou esboçavam-se ao lado deles ou neles próprios sem que
se apercebessem disso.
152
secreto encaminhar de todos os sonhos sociais e realizações plásticas que, depois da
Revolução, removeram as fontes do sentimento e da ação, apresenta-se, em conjunto,
como uma ardente conquista dos elementos do real.
Mas, debaixo da crosta das teorias e dos sistemas, sob a ondulante superfície das
aventuras e dos costumes, é o temperamento do homem que persiste, o modo pelo qual
cada um, atravessando a vida da sua época, se apossa do espírito que circula e se fixa
nas formas do universo.
153
e grave iniciador do pontilhado, o poeta das formas silenciosas errantes no arrepio dos
ares à beira das águas soalheiras, e deste aos seus sucessores, não há desvio algum de
direção e de influência. Mas o realismo apaixonado e sensual de Ingres, colorista e
plástico em Manet, afirma-se documental em Degas, orça pela anedota em Toulouse-
Lautrec e volta, nos seus sucessores, à ilustração, à crónica quotidiana e mesmo à
caricatura.
Alto porte na visão sem inocência, longe do desejo de agradar, ávida de saber
para descrever, de descrever para saber. Sacrifício constante à expressão do gesto,
154
obstinação rebuscada nos atos mais precisos da «toilette», o saltar para dentro da
banheira, os braços erguidos para enrolar ou pentear os cabelos, a pressão da toalha ou
da esponja nos seios.
Arte cruel, que as chamas e as sombras passeadas por luzes de ribalta sobre a
carne tornam mais cruel, denunciando as covas e as bossas, mas onde por vezes, quando
o pastel se ilumina e flameja, um clarão poético brilha, evocando, com as suas bailarinas
enlevadas pelo turbilhão da dança em gazes e disfarces cintilantes, algum sonho breve
de mais em que a alma azedada de um Watteau volta a rondar sob os lustres, aí vendo
voar e quebrar-se as asas das borboletas fosforescentes.
155
Fig. 51
Paul Cézanne, Montanha Sainte-Victoire, 1888-1890.
Fig. 52
Vincent van Gogh, Vista de Arles, Pomar em Flor, 1889.
156
E essa obra acre e superaguda que chega a análise. O pessimismo romântico,
com a força lírica que se orgulha de sofrer, magnifica a volúpia. Mas, como se apoia de
mais em suas conclusões amargas, conduz diretamente a essas imagens, após as quais
não restará senão a esperança de uma nova ilusão. Eis Renoir, eis Cézanne, que
preparam um mundo desconhecido, podemos escrever, embora sejam pouco mais novos
do que o duro Manet e do que o cruel Degas, e mais velhos que o sinistro Lautrec, que
podiam pertencerem, sobretudo Renoir, a um novo século.
157
158
Fig. 53
Francisco Vieira Portuense, Fuga de Margarida de Anjou, 1798.
159
Como é que Portugal se afirma perante estas profundas ruturas que assolaram o
séc. XVIII e séc. XIX europeu? Como país periférico, resignado a uma nostalgia dos
tempos áureos da aventura marítima e ao seu desterro finistérreo, assim permanecemos
sempre um pouco arredados e desfasados das últimas novidades intelectuais e artísticas,
envoltos numa bruma sebastiânica que traria a nossa salvação.
Esse foi um tempo rico em História e histórias. Com efeito, o século XIX
português foi um século fustigado pelas Invasões Francesas, a fuga da família real para
o Brasil, a fragilidade do liberalismo de 1820, a guerra civil, o setembrismo e as
quezílias com os cartistas, o cabralismo, a regeneração, o Ultimatum inglês (a gota de
água), e finalmente a implantação da República, em 1910.
Um século que parecia não querer caber no tempo de cem anos e que havia, por
isso, de prolongar-se. Assim, a ideia de Vítor Hugo, ao fazer corresponder liberalismo e
romantismo, tinha em Portugal a sua maior expressão. Apesar disto o país, encarnado
para alguns em Zé-povinho, ficaria quase imóvel no meio de tantas revoluções.
160
Este “astro” era tão “só” o resultado de um país periférico geograficamente
(circunstância agravada pela falta de vias de comunicação que ligassem o país à
Europa); cujo poder político era ignorante, desinteressado e tinha falta de preparação
artística; cuja indústria era praticamente inexistente; cujo ensino era vítima do estado
das coisas (sem fio condutor), a que o liberalismo, apesar de alguns esforços, não
conseguiria dar resposta (as Academias de Belas-Artes apenas se fundariam em 1836 e
nem as tentativas, mais tardias, de reformar o ensino no sentido de ligar a arte à
indústria quebrariam esta realidade); cuja história de arte, a crítica e a teorização estética
eram ignorantes ou apáticas, pontuadas por uma ou outra exceção (nomeadamente
estrangeiros, se excetuarmos Joaquim de Vasconcelos (1849/1936), o pai da história da
arte portuguesa); cujos museus tardavam em aparecer (só em 1882 é que se funda o
Museu Nacional de Arte); cujos artistas, vítimas do “sistema”, mesmo quando puderam
saltar as fronteiras nacionais, foram incapazes de compreender, no todo ou nas partes, os
sistemas artísticos mais revolucionários.
161
Fig. 54
Auguste Roquemont, O pároco de aldeia pedindo o folar, 1840.
Fig. 55
Jean Pillement, Paisagem, 1780-86.
162
nacional.
Estas análises constituem a base crítica mais séria com que conta a historiografia
artística deste país, até essa data. Ela caiu no meio português como uma bomba,
mostrando erros, insuficiências, pretensões de investigadores, de artistas, de
colecionadores e publicando documentos negligenciados.
132
In GUSMÃO, Fernando, ALMEIDA GARRETT - DISCURSOS PARLAMENTARES POR FERNANDO
GUSMÃO, Companhia Nacional de Musica, Lisboa, 2004.
163
Visitando as colecções particulares nacionais, Raczynski, foi obrigado a moderar
entusiasmos e a arrumar lendárias atribuições. A sua atividade foi grande, criticando os
esquemas de ensino da Academia e estendeu-se ainda no campo das sugestões
pedagógicas.
O resultado desta prática traduziu-se quase numa só obra, Eneias salvando seu
pai Anquises do incêndio de Troia133 (1843), retomada obsessivamente de 1855 a 1871,
talvez a única pintura da história portuguesa de ambição programática neoclássica que o
seu autor, o pintor António Manuel da Fonseca (1796/1890) propôs a gerações
sucessivas de estudantes, como modelo a seguir.
164
descobrindo uma natureza intocada ainda pela industrialização, povoada de “saloios
campestres”.
A descoberta do mundo rural é obra dos românticos e tem que ver com o desejo,
sentido como necessidade, de procurar a essência das raízes culturais, das tradições, dos
costumes e das crenças do povo.
É neste contexto que devemos enquadrar a intenção de Garret de criar uma
literatura verdadeiramente nacional, intenção essa que ligou toda a sua atividade
literária e também jornalística.
165
Fig. 56
Tomás da Anunciação, o Vitelo, 1873.
Fig. 57
Tomás da Anunciação, Vista da Amora, paisagem com figuras, 1852.
166
A temática dos costumes populares, as tradições do povo e festas, e o pitoresco
dos trajes, que se manifesta claramente na década de quarenta, no âmbito das artes
plásticas, evoluem da tradição de uma pintura surgida ainda no século XVIII, pela mão
de vários pintores estrangeiros a trabalhar em Portugal, nomeadamente Pillement
(1728/1808) ou Delerive (1775-1818), em que vemos também despertar o gosto pelo
paisagismo. Além disso, o contributo destes pintores foi igualmente importante no
processo que levou à individualização da paisagem enquanto género na pintura.
134
In Arte Portuguesa do Século XIX, publicado pelo Instituto Português do Património Cultural em
1988.
167
com o gado, ou cenograficamente recriados no quotidiano de modestos lavradores.
A natureza neste quadro ainda não é o ambiente da vida, mas é concebida como
o reflexo do criador na imagem do criado. Sendo um manifesto pictórico, esta pintura
acaba por sofrer da própria programação do romantismo nacional: escolar e pouco
“emotivo”.
168
Fig. 58
João Cristino da Silva, Cinco Artistas em Sintra, 1855.
Fig. 59
João Cristino da Silva, O recuar da Onda, 1857
169
Este sempre se manifestara mais sensível à objetivação traduzida nos costumes
do povo e nos animais domésticos do que à paisagem pura, e esta pode ter sido uma das
razões porque o paisagismo português permaneceu ao longo de todo o século XIX
impossibilitado de se autonomizar enquanto género.
A pintura portuguesa experimentou a fatalidade de ser “mais pitoresca que
pictural”.135
Por isso no Vitelo, a luz abre-se mais subtil e tímbrica, a paisagem naturaliza-se,
no sentimento fugidio da captação de um instante atmosférico. Estava realizada a sua
discreta revolução.
Voltando a Cristino, porque ele foi o único pintor que se dedicou quase
exclusivamente à paisagem, e a ele se devem as raras paisagens românticas
descomprometidas dos motivos ruralistas a animalistas, O recuar da onda (1857) e a
Passagem do gado (1867) são bons exemplos das possibilidades deste pintor que
recorre aos elementos da natureza para através deles, transmitir os seus sentimentos e
sensações visuais.
135
In França, Op., Cit., p.274.
136
In França, Op., Cit., p. 277.
170
desejos de renovação da cultura nacional e os sentimentos de rejeição social de que se
sentiam vítimas, num país que no passado, como no presente, não valorizava nem
compreendia os seus artistas.
137
In FRANÇA, José-Augusto A Arte em Portugal no Séc. XIX, Vol. I, p.276.
171
Fig. 60
João Cristino da Silva, A passagem do gado, 1867.
Fig. 61
Francisco Metrass, Só deus! 1856.
172
1879, aqueles pintores regressaram e foram reconhecidos como mestres pelos artistas e
pela crítica.
Frequentando a Academia parisiense, os pintores portugueses tiveram que
cumprir precisas exigências escolares que aprofundaram a sua formação académica.
Eram, em primeiro lugar e definitivamente pintores profissionais prolongando uma
conceção de arte que o academismo setecentista estruturara e que se mantinha resistente
ao reconhecimento da liberdade do génio individual. Por isso foram aceites nos Salons
parisienses, os mesmos que só tardiamente aceitaram Daubigny e Corot e sempre
fecharam portas a Manet, aos jovens impressionistas e a Cézanne.
173
do natural, Silva Porto e Marques de Oliveira – que sempre que podia fugia da
Academia para se juntar ao amigo no campo – optavam por uma modernidade anterior,
já estabilizada e consagrada.
Os jovens discípulos idolatraram aquele mestre que nenhuma teoria tinha para
lhes ensinar, mas saía com eles para o ar livre.
O melhor que pintou foi “umas secas paisagens” dos arredores de Lisboa,
percorridas por característicos riscos que, mais que “mimarem” a vegetação, eram
marcações coloridas da luz; vistas de Vizela, tingindo o rio e o arvoredo em manchas
nervosas, tocadas pelos vultos impressivos das lavadeiras; as praias da Póvoa de
Varzim, empalidecendo os céus e o mar em cinzentos transparentes e acumulando as
pessoas, os barcos e as armações das redes numa espécie de bailado de sombras.
174
Fig. 62
António Silva Porto, Vista tirada da charneca de Belas ao pôr-do-sol, 1879.
Fig. 63
Marques de Oliveira, Praia de Banhos, 1884.
175
Este conjunto de obras situa-se entre a paisagem e o género, numa fusão mais
característica da tradição milletiana, e também italiana, do que da estrita estética
barbizoniana, bucolicamente envolvida num paisagismo ruralista de matriz romântica.
A par de uma carreira académica que a sua especialização lhe exigia, o melhor
da sua obra é no paisagismo, que se manifesta na continuidade das experiências
parisienses.
A sua pintura é livre, serena, cheia de transparências, e as paisagens tem
marcação dos volumes, à maneira de Corot.
Columbano (1857/1929) retratista, soube captar psicologicamente a pequena
burguesia lisboeta em obras como O Sarau (1880) ou Convite à Valsa (1880)138.
138
Ver FRANÇA, A Arte em Portugal no séc. XIX, Vol. 2, p. 265/266.
176
Fig. 64
António Silva Porto, um campo de trigo – Seara, 1882.
Fig. 65
Columbano, Antero de Quental, 1889.
177
Nesta imagem de angústia e desistência, mais do que o retrato próprio de
Antero, Columbano imobiliza o fracasso assumido da geração de 70, que quisera
modernizar um país, que isso mediocremente recusara. Pintou tudo o que quis e tudo a
seu gosto, e viveu “fotografando” o seu tempo.
Mas seria em Itália, que ele, em 1882-83, realizaria o essencial da sua obra.
Fixado em Capri, encontraria aí o cerne da sua particularidade; detendo pormenores
orgânicos de uma arquitetura de tradição mediterrânica, que lhe permitiu os exercícios
plásticos sobre o branco, sombreado com as sombras contrastantes dos verdes da
vegetação, dos ocres dos muros e dos intensos azuis de uma atmosfera muito luminosa.
178
Fig. 66
Henrique Pousão, Casas brancas de Capri, 1882.
Fig. 67
Henrique Pousão, Casa das Persianas Azuis, c.1883.
179
Finaliza-se este percurso pelo naturalismo em Portugal, com o pintor José
Malhoa (1855/1933) cujos seus dois quadros mais célebres, Os Bêbados (1907) e O
Fado (1910)139, transferiram para o ambiente urbano os desafios mentais da sua pintura
rural como se, afinal, só uma ténue diferença cultural existisse entre o campo e a cidade.
Esta pintura de Malhoa acaba por implicar uma energia quase revolucionária, talvez à
semelhança dos romances de Camilo Castelo Branco, narrando uma cultura inventada
que era profundamente exata, transposta em imagens positivas.
Ao contrário dos artistas antes citados, não estagiou em Paris ou Roma. Pintor
empenhado e apaixonadíssimo, depressa transmutou as paisagens bucólicas,
características da iconografia naturalista, em panos de fundo ativos de uma castiça
pintura de género, celebradora dos ciclos da vida rural, o trabalho, a festa, os rituais
religiosos, os amores e as duras desgraças de um povo rude e analfabeto.
180
oitocentista”, contemporânea já da pintura de Amadeo e da primeira afirmação dos
modernistas.
Com estes exemplos e com o empenho de outros artistas aqui não mencionados,
o naturalismo tem a sua apoteose em Portugal, culmina a estética pós-romântica
nacional e que, por outro lado, que constituem as referências pictóricas contra as quais
lutaram as primeiras vanguardas nacionais do séc. XX, nomeadamente o futurismo de
Almada – (1893/1970) e de Santa-Rita (1889/1918).
140
Ver TAVARES, Cristina Azevedo, A Sociedade Nacional de Belas-Artes, Fundação da Bienal de Vila
Nova de Cerveira, 2001.
141
ORTIGÃO, Ramalho, Notas de Viagem, Livraria Clássica Editora;1945.
142
Ver CHOAY, Françoise, L'allégorie du patrimoine, Seuil, Paris 1997.
181
Fig. 68
José Malhoa, Praia das Maçãs, 1918.
Fig. 69
José Malhoa, Outono, 1919.
182
em personalidades como Herculano, Garrett, Mendes Leal, Vilhena Barbosa, Luciano
Cordeiro, Sousa Viterbo, Gabriel Pereira, Conde de Sabugosa, Possidónio da Silva e
Joaquim de Vasconcelos e que Ramalho Ortigão haveria de fixar nas lúcidas páginas de
Notas de Viagem, uma investida contra a incúria, a inépcia, a ignorância, a má
governação, a preguiça.
Mas o que Ramalho não sabia era que esse património deve ser preservado, mas
não olhado em demasia. Mesmo quando, ao elogiar a casa dos Condes de Arnoso por
oposição às construções estrangeiradas que então se faziam (abrindo a questão da casa
portuguesa), o que está a fazer é a olhar o passado.
183
de Camões (relativo ao passado): este testemunha um momento grandioso, mas é
impossível ressuscitar o que está morto para sempre; uma obra assim, continua, não
pode salvar-nos de nada, porque já não nos diz respeito...tinha razão.
184
185
Fig. 70 Frame, Vertigo, Alfred Hitchcock, 1958.
186
No pintor Cézanne (1839/1906) já não estamos perante o artista viajante, nem
perante o pintor local, mas face ao pintor apostado em apenas um sítio: o Mont de Saint-
Victoire, porque o que lhe interessa não é a natureza, mas o que pode fazer com ela; esta
é apenas pretexto. O que estava a criar no fundo era uma harmonia paralela à da
natureza, quando a trata através do cilindro, da esfera e do cone. Picasso recuperará a
luta de Cézanne ao retratar e reduzir geometricamente a natureza, mas também a de
Manet, pelo retrato: Les Demoiselles d’Avignon (1906/07) representam um salto mortal.
187
2.4.1 O Verde instantâneo: Aspetos da paisagem na pintura do século
XX.
144
Jasper Johns (1930) é um pintor americano, escultor e associado com expressionismo abstrato, neo-
Dada e Pop art.
188
de nós.
Como forma de ilustrarmos a mudança que a civilização experimentou no século
XIX, poderemos comparar os estúdios de dois artistas famosos: um de Hans Makart
(1840/1884), em Viena, em 1885; o outro de Piet Mondrian (1872/1944), em Paris, em
1926. Essencial para Makart foi o ambiente artístico, na tradição mais floreada do
século XIX, com muita vegetação, podendo imaginar-se todas as palmeiras em vaso que
faziam parte desse ambiente de jardim de inverno que parecia fertilizar a sua mente e a
sua arte.
Argenteuil que desde o início dos anos 1870 é um local industrial emergente vê
assim as suas paisagens contaminadas, qual trecho de uma voz inocente campestre com
as madeiras dos cortes das árvores a subir pelo Sena, cada vez mais invadida pelas
ideias da cidade.
Este tema ficou de alguma forma imortalizado numa pintura de Claude Monet de
1870-71, mostrando-se ali um comboio da ferrovia que corre ao longo do horizonte,
uma máquina que polui o ar em torno das pessoas que disfrutam o verde. É fascinante
ver como ao mesmo tempo, Monet poderia estar interessado na maioria das experiências
189
Fig. 71
Rudolf von Alt, Makart’s Studio, 1885.
Fig. 72
Claude Monet, The Train in the Countryside, 1870-71.
190
do típico rural narrador, fazendo uma pausa para fotografar, entre outras coisas, o
descarregamento de carvão nas margens do Rio Sena, perto de Argenteuil, em 1872.
O facto é que Monet e muitos artistas no final do século XIX e início do século
XX experimentaram uma reviravolta completa da cidade para o campo sendo que nas
palavras de Voltaire, eles cultivavam os seus próprios jardins, ao ponto de criarem
mundos herméticos da natureza, de sonhos individualizados, nos quais moravam e
pudessem meditar um pouco, à semelhança das fantasias musicais de final de século
ilustradas nas partituras de Frederick Delius em Walk to Paradise Garden.
Este exemplo criativo aparece incorporado nos jardins de água, agora célebres,
191
que Monet criou em Giverny no início na década de 1890. Uma das belas fotografias de
Steven Shore da ponte japonesa, bem como da pintura de Monet, do mesmo assunto, Le
Pont Japonais, 1897 – 99, penetram tão profundamente nesta natureza fictícia,
construída pelo homem, que sentimos que o mundo exterior desapareceu
completamente.
Este tipo de esteticismo, em que uma paisagem de fantasia é construída por um
artista para o seu deleite privado mais refinado, é comum na experiência de final do
século XIX; pode encontrar-se muitos exemplos internacionais de pinturas que se
apropriam de um ‘pedaço’ de paisagem, proclamam-no como se fosse o cosmos
universal e enfatizam a exuberância da natureza e o seu caráter hedonista.
Essa mesma estética da natureza qual requintada tapeçaria, pode ser vista numa
outra pintura do pintor suíço insuficientemente conhecido Augusto Giacometti (1877
/1947) que se encaixa no tema do luxuriante jardim que florescia na época.
192
Fig. 73
Frederick Carl Frieseke, Lady in a Garden. C. 1912.
Fig. 74
Ferdinand Hodler, Autumm Evening. 1892/93.
193
Outra abordagem para a remoção da paisagem da experiência comum foi a
santificação quase assustadora da natureza, a qual pode tornar-se tão magicamente pura
como se fosse uma divindade.
A metáfora da imagem através de Hodler — que Matisse pode bem ter visto e
pensado na criação de suas próprias imagens — surgirá nestas paisagens que nos
194
Fig. 75
Ferdinand Hodler, The Consecrated One. 1893/94.
Fig. 76
Franz Marc, Horse in Landscape. 1910.
195
querem levar para o que parecem ser locais sagrados pré-históricos, uma natureza muito
generalizada, consistindo do nada, mas com o verde da terra fértil (tão ao contrário do
abstrato verde de Johns) e o azul do céu (ou é o azul da água?). Essas cores elementares
da paisagem — azul e verde — são como que destiladas como o ocre-vermelho da carne
dos números.
Aqui, Rousseau representa a mãe de todos nós, qual Eva, ao colocá-la dentro de
uma paisagem que é rara para os seus animais. A imagem manifesta-se quase numa
crença infantil no verde da natureza — algo de um anacronismo no início do século XX,
especialmente para os moradores da cidade como Picasso.
Tal regressão aos esconderijos mais profundos da natureza pode ter paralelo em
muita arquitetura do período, mas o exemplo mais famoso pode ser encontrado nos
196
Fig. 77
Henri Rousseau, Eve. 1906/08.
197
arredores de Barcelona, no Park Guell de Antoni Gaudi (1852/1926) de 1900-1914. A
entrada leva-nos a um templo dórico, mas ao mover-nos para os limites do parque,
entra-se, digamos, no território de Picasso e de Matisse; de repente estas colunas
tornaram-se pré-históricas, ilustram o tipo de ambiente selvagem que se poderia ter
vivido.
Movendo-nos ainda mais nos diferentes espaços destas galerias, podemos
dificilmente decifrar se eles são sintéticos ou naturais. Este tipo de conceito de regressão
é familiar em imagens de paisagem dos anos anteriores a 1914.
Marc retrata uma grande explosão de uma árvore simbólica e um eclipse do sol e
da lua sobre uma visão de Maria e do Menino, oferecendo num mito privado um
terremoto cósmico em que toda a terra está sendo destruída diante dos nossos olhos. A
própria natureza é o cerne desta destruição.
Essa sensação de violento, de tragédia apocalíptica é também evocada em
muitas obras pré-guerra de Kandinsky, dos quais Improvisação nº30 é provavelmente o
exemplo mais conhecido, especialmente devido à presença espectral de um canhão no
canto direito inferior, uma referência, de Kandinsky sobre a guerra que estava por vir.
198
Fig. 78
Franz Marc, Tirol. 1914.
Fig. 79
Vasily Kandinsky, Montain landscape with Church. 1910.
199
Na Alemanha este sentido de explosividade na véspera da guerra pode ser
sentido na arte de pintores menos conhecidos. É o caso duma pintura do artista Ludwig
Meidner (1884/1966) de um cenário apocalíptico que, para nós, que nascemos depois de
1945, tem uma qualidade quase de profecia. Na visão do Meidner, todo o mundo, tanto
a natureza e a cidade, parecem perdidos neste momento final. É interessante ver que das
cinzas desta "explosão" todos os tipos de novas formas irracionais, alguns delas até
mesmo em formas arquitetónicas, começaram a ressurgir na Alemanha.
Uma outra abordagem sobre a ressurreição da paisagem (ou o que restou dela)
após a primeira guerra mundial, pode ainda ser vista nas atividades dos artistas e
arquitetos a oeste do Reno, especialmente em Paris, a partir de 1918. Podemos olhar
para uma paisagem típica de 1921 de Fernand Léger (1881/1955) — embora
nominalmente uma cena rural, tem fragmentos de imagens da indústria em segundo
plano, mas o que é mais contundente: há uma árvore sem folhas, maldita, na esquerda
da pintura que evoca um pouco do potencial verde, uma sobrevivente, até de uma
memória da tradição francesa da paisagem clássica.
200
Fábrica na Horta de Ebro, na qual as palmeiras verdejantes do século XIX se
transformaram em chaminés abstratas que rimam com os edifícios da fábrica real em
primeiro plano.
Tais obras pertencem a uma tradição que remonta ao artista da década de 1880, o
qual tinha mais firmemente sintetizados os fatos da natureza com os fatos do mundo
industrial – Seurat: A Ponte em Courbevoie, c. 1886-87, mostrando um subúrbio
industrial de Paris, que não só tem a ferrugem de fábrica usual no Sena, mas também
nos oferece o que se torna uma árvore quase sozinha, simbólica, uma silhueta robusta,
mas irregular de um formulário sem folhas.
201
Fig. 80
Ludwig Meidner, Apocalyptic landscape. 1913.
Fig. 81
Georges Braque, Rio Tinto Factories at L’Estaque. 1910.
202
Esta parte da sua carreira pode ser observada na pintura que se encontra no
MoMa, Broadway Boogy Woogie, executada durante a segunda guerra mundial em
1942-43. Uma fotografia contemporânea de Manhattan mostra-nos Central Park como
um perfeito retângulo, uma câmara de isolamento para a natureza, bem como os
arranha-céus do Central Park em direção ao sul, uma imagem que Mondrian
transformou.
203
Fig. 82
Le Corbusier, Pavillon de L’Esprit Nouveau. 1925.
Fig. 83
Pablo Picasso, Landscape with dead and live Trees. 1919.
204
2.4.2 Barnett Newman e a legitimação da arte americana nas
‘Paisagens primitivas’.
É nos Estados Unidos que Duchamp e Picabia sentem que toda a arte europeia
envelheceu e decaiu. Propõem recomeçar do “princípio”, criar uma arte não da forma,
mas da acão. A escola de Nova Yorque, ou o Expressionismo Abstrato, quer ser
precisamente a manifestação imediata de uma vitalidade profunda que, liberta de
qualquer condicionamento repressivo, recupera o ritmo instintivo do gesto pictórico, e o
dinamismo de motivações obscuras, de mitologias remotas, de paisagens primitivas.
205
um campo de batalha, entre nós, pelo contrário, cada um sente-se imerso na sua
própria noite funda.» 145
A revolta do artista não tem programas nem perspetivas de êxito: dado que o
sistema não ameaça apenas a liberdade, mas a própria existência do indivíduo, a arte é o
último sinal de existência, do seu fim.
Aquilo que é posto em causa é, pois, o “quadro” na sua pura realidade objetual,
no seu ser. O problema da essência e do significado do quadro – como fenómeno no
universo dos fenómenos, já intuído por Cézanne e depois pelos cubistas — atinge
finalmente o seu limite, a tendência do Hard Edge, de que Newman é mestre. Não se
limita a sustentar a solidariedade substancial da pintura com o seu suporte material, mas
faz do material um objeto signo.
Nos textos de Newman foca-se muitas vezes a arte primitiva, notando a sua
capacidade de expressar os mais intensos e verdadeiros terrores, as mais verdadeiras
expressões. Pode-se até pensar, que a noção, que Newman tinha de primitivo, era a de
que a arte abstrata não era ‘formal, mas ‘antropológica’. Para Newman, o homem
moderno sabia a tragédia em que o mundo se tinha tornado. Achar uma imagem
adequada para esta particular condição, era fundamental para ele. Para entender a causa
do terror, tinha-se de entrar num estado trágico.
Aqui era a diferença do homem primitivo, que era ignorante acerca das forças
naturais que o rodeavam. Newman, defendia que, se podia entender que a abstração
primitiva podia servir como ponto de referência, como um princípio.
A inclusão dos textos de Newman nesta tese é uma breve análise das suas ideias,
e a procura da tal “ponte de referência” entre o primitivismo e o Avant-gard Nova
Yorquino, nas décadas de 40 e 50. A arte dos expressionistas abstratos também pode ser
vista como uma confirmação da sublimidade da pintura de paisagem americana do
século XIX.
Embora as suas imagens sejam abstratas, as vastas telas de Newman e de
Clyfford Still sugerem a grandeza e a energia da paisagem, enquanto as estruturas
elementares e radicais de Rothko e Gottlieb são metáforas do mistério da criação e dos
145
In ROSENBERG, Harold, The Tradition of the New, Perseus Books Group, 1994.
206
elementos naturais. Esses artistas estavam profundamente interessados no mito e no
primitivo, e a pintura de Gottlieb, Raios, que mostra uma orbita tranquila do sol ou da
lua acima de uma terra explosiva, é uma boa metáfora para ilustrar as ideias de Newman
e dos artistas que o rodeavam, que se esforçaram para revelar uma verdade cósmica. 146
Barnett Newman “reinventou” que a história de arte Ocidental era marcada por
um certo declínio, que teve a sua origem com os gregos. Eles foram os grandes
escritores da tragédia, mas a sua “plástica” começou a ficar “corrompida” por uma
preocupação de uma estética refinada. Por outras palavras, o estado natural entre o
pensamento e a forma que Newman caracteriza a arte primitiva, começou a desintegrar-
se.
Em “The new sense of fate”, Newman afirma que os escultores gregos
construíram uma arte de “Auto convicta sensibilidade” para uma economia do belo.
Como outros da sua geração, Newman desconfiava do belo.
No texto “The object and the image” faz uma poderosa declaração sobre a
vantagem de se ser um artista Americano. Os Europeus, para Newman, têm um falso
146
Ver textos de Newman em Anexos.
207
sentido trivial do trágico. Em contrário, o Americano era um primitivo “bárbaro”, que
nunca tendo nada de belo, não sofria dessa distração. O americano era livre de procurar
uma verdadeira imagem da emoção trágica em novas formas, da sua própria criação.
Adolph Gottlieb dizia em 1943: «Enquanto a arte moderna ganhou o seu impacto
inicial através da descoberta das formas da arte primitiva, nós achamos que a sua
verdadeira significação não assenta em meros arranjos formais, mas no sentido
espiritual que subjaz a todos os trabalhos arcaicos.»
O critério que guia as análises da arte da Costa Nordeste poderá ser a existência
de uma arte na qual a matriz absoluta de uma técnica procura uma forma perfeita. Esta
forma pode então ultrapassar a simples função do objeto utilitário convertendo-se num
modelo de um estilo. Isto depende também da organização particular de uma cultura,
como os contornos inerentes a toda uma representação espacial e da paisagem.
208
Quando olhamos um quadro construído a partir de uma perspetiva “ilusionista”
detemos uma representação simplificada do objeto, para imaginarmos a totalidade
complexa dos traços que a constituem. A arte primitiva segue um caminho inverso:
investe numa representação complexa dos traços do objeto para que construamos
mentalmente a sua presença real; para que possamos imaginá-lo de uma forma mais
completa de que um simples olhar.
Este tipo de representação, de que Newman e Boas falam, estabelece uma tensão
entre o verdadeiro e o invisível, que produz a ilusão de um espaço irreal: as coordenadas
que o definem não são as do olhar.
Para Newman, como para Beuys a arte dos primitivos não constitui um
repertório de formas a imitar. Através da identificação do ponto de união da técnica ao
pensamento, que constitui o ideal estético dos seus trabalhos, é-nos oferecido um
modelo de um espaço não ilusório, e de uma série de técnicas da representação mental.
Segundo Beuys, o homem deve ser livre para poder criar e transformar a sociedade e o
mundo em que vive.
Beuys afirma numa das frases que constitui o núcleo do seu pensamento
«Pensar é esculpir». Observa-se, pois, que a arte primitiva faz apelo a um tipo de
representação que não é aquilo que se vê, mas pode ser uma sequência de pontos de
vista que são organizados mentalmente, e são transpostos para a obra. Será um conjunto
de pensamentos que não se deve confundir com o procedimento técnico, no entanto o
procedimento é determinado por esses pensamentos.
209
Fig. 84
Barnett Newman, Dionysius, 1949.
De que modo pode falar-se de arte quando falamos das criações originárias dos
índios Americanos?
Poder-se-á dizer que neste aspeto a desconstrução cultural da arte iniciada com
Duchamp tem continuidade nesta dicotomia primitiva/vanguarda Americana. A “dobra”
210
aqui faz-se a partir da evidente e progressiva perda de direito de nomeação que na
atualidade o autor começa a sofrer em favor da obra, vindo assim ao encontro de
privilégio que as criações têm nas artes provindas do exterior.
211
Fig 85
Andy Warhol, Do It Yourself, 1962.
212
Do outro lado do Atlântico, Richard Long (1945) um britânico amante da
natureza, vagueava sobre o globo como um visitante de outro planeta, ao valorizar
cuidadosamente achados como a madeira da Califórnia que preservou e colocou num
círculo mágico numa galeria no SoHo ou seja documentando o seu próprio percurso
semelhante a uma cobra na ilha de Skye, a versão moderna de uma caminhada pela
floresta por, digamos, Dorothy (Feiticeiro de Oz) e William Wordsworth.
Mais do que uma cápsula do tempo em que as futuras civilizações poderiam vir
a aprender o que pensamos sobre a paisagem, o que conta na obra de Long é o relato
escrito de uma caminhada em linha reta em direção ao norte através da paisagem de
Dartmoor.
Mais certeira poderá ser uma fotografia de Alfred Leslie de uma vista
deslumbrante sobre o rio Connecticut e o Mount Holyoke. A paisagem nesta imagem é
realmente uma paisagem entre aspas porque alude claramente a um dos mais famosos
pintores americanos de paisagem, Thomas Cole, e à sua pintura de 1836 The Ox Bow.
147
A Escola do Rio Hudson foi um movimento artístico norte-americano que durou entre
aproximadamente 1825 e 1880, formado por um grupo de pintores paisagistas baseados em Nova Iorque,
que em termos estéticos sintetizou as ideias do Romantismo e do Realismo. Este grupo tinha um caracter
não formal e fraterno; alguns dos seus elementos migraram juntos para o interior do país, viviam e
trabalhavam na área hoje conhecida como Greenwich Village. O ponto inicial de interesse para as suas
pinturas foi a região do rio Hudson e as respetivas montanhas circundantes, dai o nome da escola. Em
meados do século XIX os seus membros ampliaram os seus horizontes para retratar o oeste selvagem dos
Estados Unidos. Alguns deles chegaram mesmo a pintar regiões distantes para eles como o Ártico, a
Europa, o Oriente e a América do Sul.
As primeiras referências ao nome da escola aparecem apenas na década de 1870, embora não se
saiba exatamente quem a denominou nesse momento, quando o prestígio do grupo começava a decair e
tinha uma conotação negativa. Estes pintores refletem basicamente três impulsos importantes dos
Estados Unidos do século XIX: o descobrimento, a exploração e a conquista. Sempre inserida numa ótica
bucólica e pastoril, onde os Homens e a natureza coexistiam pacificamente, e onde as pinturas tinham um
caracter formal detalhista e por vezes idealizado. Os artistas acreditavam que a natureza era a uma
inefável manifestação de Deus, conquanto os pintores variassem na profundidade das suas convicções
religiosas. Foram inspirados pelas filosofias do Sublime e do Transcendentalismo, pelas obras de artistas
europeus como Salvator Rosa, John Constable, William Turner e especialmente Claude Lorrain, e
partilhavam a veneração às paisagens naturais da América com os escritores norte-americanos
contemporâneos deles, como Henry David Thoreau e Ralph Waldo Emerson.
A Escola do Rio Hudson constitui um marco no atribulado processo de reconhecimento do
território e da paisagem norte-americana e de uma construção pictórica paisagística americana, que se
havia iniciado nos tempos coloniais com o trabalho e pesquisa de exploradores, naturalistas e artistas,
nacionais e estrangeiros. É tida como a mais importante expressão romântica na pintura norte-americana
do século XIX, a primeira escola de pintura genuinamente nacionalista e o movimento artístico mais
213
notável em toda arte do século XIX nos Estados Unidos.
Audubon, Wordsworth e Thoreau, enquanto enalteciam a divina grandeza da paisagem nacional,
estavam cientes das transformações sociais e econômicas do período, a Revolução Industrial, e temiam
pela degradação do ambiente natural em função do aceleramento do processo colonizador do Oeste.
Thoreau era inspirado pelas ideias de Goethe, de outros poetas europeus, e na filosofia de Kant depurada
pelo inglês Coleridge, reagindo contra os princípios racionalistas e antirreligiosos da elite comercial da
costa leste, a principal incentivadora da expansão para o interior, e também contra o ascetismo Puritano,
que via o mundo como essencialmente mau. Thoreau colocava a natureza como a imagem de verdades
espirituais e ideais, e como a fonte primeira da sua inspiração, e por isso era digna de ser preservada. Já
Emerson não via incompatibilidade entre a comunhão mística com a natureza e sua exploração pelo
homem, entendendo que ela era a base do conforto humano. O seu elogio do progresso contribuiu para a
sociedade da época ofuscar quaisquer preocupações sobre a destruição da paisagem ao longo desse
processo de desenvolvimento, embora tenha fomentado significativamente o interesse pela sua
representação na arte. Esse corpo de ideias, conhecido como Transcendentalismo, influenciou um grande
número de escritores, poetas, políticos e artistas na primeira metade do século XIX, levando à conceção
de que "a América era uma nação da Natureza" (In BLACK, Brian. Nature and the environment in
nineteenth-century American. Greenwood Publishing Group, 2006. pp. 81-82.), cuja beleza, ao contrário
do ambiente exaustivamente explorado, alterado e civilizado da Europa, estava na sua condição selvagem,
fonte de orgulho nacionalista. E o trabalho da colonização muitas vezes era equiparado aos feitos dos
heróis clássicos.
Em termos iconográficos e seguindo o pensamento de Tim Barringer (in BARRINGER, Tim.
Unmistakably American? National myths and the historiography of landscape painting in the USA. In
PAYNE, Christiana & VAUGHAN, William. English accents. Ashgate Publishing, Ltd. 2004.) desde a
independência a história dos Estados Unidos seguia um projeto consciente de construção da imagem e de
identidade nacional. O sucesso na separação da Inglaterra, a instituição do sistema democrático e a força
do desenvolvimento económico alimentava uma doutrina de excecionalidade para a caracterização da
nação Americana, que procurava também afirmar a unidade nacional a despeito de evidentes contradições
internas. A narrativa oficial da história dos Estados Unidos alcançava assim o status de Epopeia. Parte
fundamental nessa narrativa era sua corporalização através de símbolos visíveis, onde se solicitava a
participação dos artistas.
Na ausência de um passado histórico nos Estados Unidos o emblema mais significativo e
reconhecível da pátria era sua própria paisagem, que se exaltava vigorosamente. A pintura de paisagem, a
partir daí, a mercê do esforço dos artistas coloniais, havia conseguido um impacto maior sobre o grande
público, longe dos resultados europeus em termos de qualidade técnica. Não era um símbolo realmente de
tradição. Procurava-se adquirir uma primazia não encontrada na arte europeia. Passando a natureza
extensamente virgem do país a ser vista como um espelho ainda mais fiel do mundo imaculado de
Rousseau do que o cenário europeu, e a sua representação como um auto-retrato da sociedade e de um
poder civilizacional positivo. Contrariamente à pintura histórica, que exige do público uma base cultural e
literária relativamente ampla e consistente para poder ser plenamente apreciada, a pintura de paisagem era
uma expressão democrática e só requeria a experiência natural, patrimônio de todo ser humano.
A pouco a pouco ia-se fortalecendo a ligação do paisagismo com a filosofia transcendentalista,
dando-se razão a Thoreau (substituição da religião norte-americana pelo culto direto do Deus imanente na
natureza), e como Emerson pensava ao afirmar que "o pintor deveria saber que a paisagem tem beleza
para seus olhos porque expressa um pensamento de bondade".
Aliás a sua evidente preocupação com o transcendental levou críticos como Anne Hollander (in
HOLLANDER, Anne. Moving pictures. Edição da autora, 1989. p. 352.) a dizerem que a produção da
Escola do Rio Hudson pode ser considerada a verdadeira arte sacra norte-americana, e Barbara Novak,
talvez a mais acreditada estudiosa da Escola, a chamá-los de "sacerdotes da igreja natural". Essa
tendência introduzia uma nota nova na história da pintura norte-americana, mas não anulava a sua antiga
inclinação para a descrição realista dos temas. O público em geral acreditava que o pintor não precisava
ser um imitador servil da natureza, mas também não devia dar “muitas asas às suas fantasias pessoais”,
em busca de se preservar a clareza e palpabilidade dos fatos representados, e para que "a obra de Deus
não fosse obscurecida". A síntese original romântica realista da Escola do Rio Hudson nasceu do diálogo
entre necessidades e princípios opostos que se complementavam.
O imenso sucesso da Escola do Rio Hudson só aconteceu devido a um sistema de arte
amadurecido. A abertura do Canal do Erie em 1825 trouxe grande prosperidade à cidade de Nova Iorque,
onde eles tinham a sua base de operações. Tornou-se moda que os grandes investidores e comerciantes
exibissem a sua riqueza competindo entre si num mecenato voluntarioso. Mantinham-se grandes coleções
privadas, mas também promoviam grandes encomendas especiais para os pintores. Subvencionavam o
214
Um dos principais utilizadores deste tipo de idiomas é o artista escocês Ian
Hamilton Finlay (1925), que emprega uma variedade complexa de materiais e artefactos
concebidos e produzidos em cooperação com outros artistas. As obras daí resultantes
exploram temas como a pureza, a virtude moral, a retórica política e o terror, focando
todos os aspetos da tradição neoclássica.
Em termos mais gerais, a sua obra evoca a complexa relação entre a natureza, a
paisagem e a cultura. Todos estes temas concentram-se em torno do projeto mais
persistente do artista – a sua própria casa e os jardins em Little Sparta, Lanarkshire,
Escócia.
Surgiu nos primeiros anos da década de 1980, em oposição com a arte povera,
movimento anterior de moda até então na Itália. A transvanguarda defendia o regresso à
pintura e utilização de cores fortes e ambientes/paisagens “teatrais “após alguns anos da
soberania da arte conceptual.
seu aperfeiçoamento na Europa. Desta forma os principais representantes da Escola puderam estudar com
os mestres de renome internacional e conquistar uma desenvoltura técnica que levou á materialização das
suas ideias
Entre as principais referências europeias dos artistas da Escola do Rio Hudson estavam Salvator
Rosa, William Turner e John Constable, mas Claude Lorrain foi especialmente importante, estabelecendo
um modelo formal eficiente e expressivo para o paisagismo.
215
Fig. 86 Enzo Cucchi, Sem título, 1998
216
narrativo e multifacetado, com reminiscências dos frescos clássicos e da tapeçaria,
revelado por Paladino, que também experimenta a técnica do mosaico, tudo isto
deforma o mundo visível.
Qualquer artista que não seguisse a doutrina da arte abstrata corria o risco de ser
considerado um socialista, ou mesmo comunista. Por conseguinte, os artistas alemães
gozavam de pouco prestígio nos países ocidentais, onde mesmo os esforços autênticos
eram considerados como imitações de inferior qualidade. Também aqui Beuys
(1921/1986) foi um inovador.
Desde que se impôs internacionalmente, nos anos 70, a noção de «arte alemã»
adquiriu um significado inteiramente novo e, por vezes, até mesmo o significado de
uma trademark para a promoção das vendas. Beuys foi, de facto, um importante
pioneiro, mas impôs o seu próprio passado e mesmo o do seu povo, considerando-os
inseparáveis, sem negar nem suprimir qualquer facto.
217
E nunca deixou margem para dúvidas de que, segundo a sua interpretação da
tradição alemã, Johann Wolfgang von Goethe e Adolf Hitler, os clássicos de Weimar e
o diabólico nacional-socialismo estavam indissoluvelmente ligados. A sua obra está
impregnada da tristeza daquele acontecimento, é um permanente exigir a sua
condenação, mas poucos são os alemães que estão dispostos a isso.
218
um universo que exprime, antes de mais, tal como ele é e, simultaneamente, revela o
mundo tal como ele é.»149
Os meios utilizados para tal foram as obras em grande escala (por vezes pintadas
sobre paisagens), com o recurso a um forte impacto, bem como alusões escritas a
lugares e acontecimentos e a utilização de material alheio como a areia e a palha. Os
meios pictóricos utilizados por Richter nos finais dos anos 70 e nos anos 80 são bastante
mais subtis.
Emprega também fotografias pintadas de temas com implicação direta ou
indireta na história recente da Alemanha, mas o modo de pintar é mais fluido e
alucinatório. Esconde o original numa névoa que tem tanto de psicológico como de
pictórico. O passado aparece como presente, mas não sob a forma de uma memória
direta recuperável. Ao invés, surge como algo que só pode ser fixado através de uma
névoa de evasão e ambiguidade.
Nas suas paisagens, Kiefer não evoca as forças primitivas da Natureza, nem as
mistifica, como Emil Nolde, Karl Schmidt-Rottluff, Otto Mueller, Erich Heckel ou
Ernst Ludwig Kirchner. Nas paisagens de Kiefer, a terra apresenta-se queimada, é uma
terra apocalíptica. As suas pinturas recordam a imagem da Natureza apresentada pelos
românticos e pelos expressionistas, mas revelam como, perante as graves ameaças que
pairam sobre o nosso mundo, essa imagem está fora do tempo.
149
In KNEUBUHLERr, Theo, Wegsehen: Aufsätze, Briefe, Titel, Merve Verlag Gmbh, 1986.
219
Também a palha que, por vezes, utiliza nas suas pinturas fala de tempos
passados. A imagem de verdes prados, florestas sussurrantes e férteis campos, tudo não
passa de uma recordação. As paisagens de Kiefer revelam tristeza – insatisfação com o
declínio.
E os mitos que o artista evoca perderam a sua inocência mítica porque passaram
a fazer parte da História. O mito, ao contrário da História, não tem presente, passado ou
futuro. Os mitos ou as paisagens históricas representadas nos quadros de Kiefer foram
desvirtuados pela História da Alemanha para justificar e ocultar crimes inconcebíveis.
Esta é a problemática apresentada nos quadros de Kiefer e não um surdo e exaltado
germanismo.
A história do seu país constitui, sem dúvida, um dos seus principais temas. Neste
aspecto, são também notáveis os paralelismos com a obra de Immendorff e Penck,
assim como, embora em menor grau, com algumas séries de quadros de Baselitze
Lüpertz. Mas o principal tema de Kiefer é o passado imediato, os doze anos de terror do
nacional-socialismo.
220
Fig. 87 Anselm Kiefer, The Red Sea, 1984-1985
221
Por vezes, estão embebidas de uma ironia mordaz e de um patente sarcasmo,
como quando Kiefer apresenta a marinha de guerra do Terceiro Reich - que pretendia
conquistar a Grã-Bretanha – flutuando numa banheira, num quadro intitulado
“Operação Leão-Marinho”, segundo o nome de código da operação que foi abandonada
antes de ter sido sequer iniciada.
É uma visão da terra queimada, uma terra que nunca pode ser regenerada, e é
uma imagem que, como Alfred Leslie, diz muito sobre a maneira como a paisagem
parece ter sido relegada nas décadas de 1970 e 1980 ao domínio do mito, história e
memória.
222
Fig 89
Richter, Gerhard, Apple Trees, 1987.
Fig. 90
Robert Smithson, Cais Espiral, Rozel Point, Great Salt Lake, Utah, 1970.
223
Mas Richter esclarece, numa nota de 1986, que as suas paisagens «não são
apenas bonitas ou nostálgicas, numa evocação romântica ou clássica à imagem do
paraíso perdido, mas acima de tudo 'enganadoras' (ainda que nem Sempre tenha
encontrado o meio para o mostrar), sendo que com 'enganadora' me refiro à exaltação
com que olhamos a natureza. A natureza que, em todas as suas formas, está sempre
contra nós, porque não conhece sentido, nem clemência, nem compaixão, porque não
conhece nada, porque é absolutamente destituída de alma, o perfeito oposto de nós,
absolutamente inumana.»150"
150
In RICHTER, Gerhard. Catalogue Raisonné. Volume 4: 1988 - 1994, nos. 652-1 - 805-6, Elger,
Dietmar. 2015.
151
In GODFREY, Mark, Gerhard Richter: Panorama: A Retrospective, Tate Publishing; New edition
edition (30 May 2016), p.120.
152
In GODFREY, Mark, Gerhard Richter: Panorama: A Retrospective, Tate Publishing; New edition
edition (30 May 2016), p.122.
224
2.5 Considerações Finais: Paisagem versus Realidade.
225
Foi preciso um século para a pintura se procurar e achar. A paisagem ‘extingue-
se’ no século XX, ou pelo menos já não é lugar para a reflexão da pintura, será na
verdadeira arte do século XX, a ‘nova tela’ denominada cinema. Daqui em diante a obra
de arte passa a ser pensada mais a nível mental (Picasso dizia que pintava as formas
como as pensava e não como as via) e emocional do que ao nível da realidade dos
fenómenos concretos da natureza, nas verdades latentes para lá da natureza de que Klee
(1879/1940) falava.
Mas que pode fazer a pintura uma vez que abandonou a linguagem tradicional da
representação da natureza e se afastou dela o suficiente para se tornar incompreensível?
O que pode ela comunicar?
Como assinalou Marcuse153, uma obra de arte não é verdadeira pelo seu
conteúdo ou pela sua forma, mas porque o seu conteúdo se tornou forma.
153
Ver The Aesthetic Dimension: Toward A Critique of Marxist Aesthetics, 1979. Neste livro a dimensão
estética (para não ser confundido com um capítulo de Eros and Civilization: A Philosophical Inquiry into
Freud (1955; second edition 1966) de Marcuse, é uma resposta a artigos anteriores dentro da teoria crítica
sobre o tema da arte, em particular as de Walter Benjamin e de Theodor Adorno. Marcuse rejeitou o texto
designado de Benjamin em "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica" para a politização
(ou seja, um reflexo literal das realidades políticas percebidas) da arte moderna, reprodutíveis tanto para
refletir o estado de uma sociedade e para incentivar a mudança. Como ambos, Benjamin e Adorno,
Marcuse acredita que a resistência da arte a promessas de repressão social, e que uma revolução cultural
está necessariamente ligada a uma revolução política ou social.
.
226
Assim, falar da paisagem do século XX é, antes de mais, verificar senão a sua
ausência, pelo menos a sua colocação a saque. O exemplo mais sintomático desta perda
é precisamente o facto de a noção de património, a partir dos anos sessenta, ter sido
alargada a áreas geográficas – a necessidade de preservar certos sítios naturais, revela
que os estamos a perder, relíquias de um mundo perdido, devorado pelo tempo e pela
técnica.
Mas por um lado a Land Art pode remontar-nos aos primórdios da arte, ou da
paisagem oitocentista, e desvia-nos a atenção para problemas tão atuais como a
precariedade dos recursos naturais convidando-nos, "imperativamente" a assumir a
nossa pequenez face à grandiosidade da natureza.
154
In LONG, Richard in Citação da Documenta 7, Kassel, 1982, p.129.
227
Fig. 91 Robert Smithson, Cego no vale dos Suicídios., 1962.
Fig.92
Lewis Baltz, Park City, interior no. 70, 1980.
228
A Land art inaugura uma nova relação com o ambiente natural. A paisagem já
não é representada pictoricamente nem é um manancial de forças passível de expressão
plástica, a natureza passa a ser o lugar onde a arte se enraíza. O espaço físico – desertos,
lagos, canyons, planícies e planaltos – apresentam-se como campo onde os artistas
realizam intervenções, como em Cais Espiral, que Robert Smithson constrói sobre o
Great Salt Lake, em Utah.
Será preciso esperar pelo fim dos anos 70 do século passado com os movimentos
ecológicos e as manifestações contra a indiscutível má gestão da natureza que os artistas
vão registar, fotógrafos na maior parte, como o próprio Smithson155 pois a sua arte é
fundada não na natureza, mas na sua desnaturação, o que lhe interessa é a entropia;
Lewis Baltz – atente-se nas fotografias de Park City (1978-81) nas quais vemos a
indústria a transformar o terreno para a construção de casas de fim-de-semana, outra
invenção do século XX; Sophie Ristelhueber (1949) -fotografa paisagens em crise,
corpos (porque um corpo também é paisagem) ou lugares manipulados, marcados,
sacrificados e Tony Smith (a estes nomes havia que juntar Christo, Richard Long e
Hamish Fulton, que, embora noutra perspetiva, vão também intervir na paisagem). 156
229
apresenta perante nós, herdada da pintura de paisagem do século XIX, mas também da
fotografia, do fotojornalismo.
No fundo é aquilo que Freud teorizou como repulsa originária – o homem está
dividido contra si próprio e os conflitos inconscientes exprimem-se em pensamentos e
157
In MENÉRES, Clara, Prefácio do Catálogo da Exposição A Preto e Branco, Lisboa, 2006, p.7.
230
Fig. 93
Sophie Ristelhueber, Fotografia da série Fait, 1992.
Fig. 94
Clara Menéres, Costa da Morte, nigredo 7, 2003.
231
atos que parecem irracionais – e que Heidegger entendia como contração pela
violência.
Mas, alguns perguntarão, que pode fazer a pintura uma vez que abandonou a
linguagem tradicional da representação da natureza e se afastou dela o suficiente para se
tornar “incompreensível”? O que pode ela comunicar? Talvez aqueles que entram em
dificuldade defronte de um quadro de Rothko soubessem responder melhor à questão.
158
Ver WARNKE, Martin, Political Lansdcape: The Art History of Nature, London, 1994.
159
Trad. livre do autor « le point êxtreme d’une emotion spatial suggérée par la peinture, ou mieux pour
la couleur, articulée dans une gamme, qui va, tout comme le paysage historique, de l’idylle à la tragédie.
L’art contemporain, au-delà du paysage considéré comme genre, donne ainsi une synthèse du problème
posé par le rapport de plus en plus grand qui existe entre l’homme et le milieu naturel, autrefois
représenté par un modéste jardin, aujourd’hui plus étendu que l’infini physique et sensoriel. », in
BATTISTI, Eugenio, « Paysage (Arts) », in Enciclopédie Universalys, p. 658.
160
Eugenio Battisti (1924 –1989).
232
Fig. 95
Clara Menéres, Baía de Maputo, solve/coagula 1, 2003.
Fig. 96
Sebastião Salgado, Campo de refugiados em Benako, Tanzania, 1994.
233
Fig.97
James Nachtwey, à procura de sobreviventes (11 de Setembro). Nova Iorque, 2001.
Para finalizar este capítulo sobre a temática da paisagem nas artes visuais,
particularmente na pintura, remetemos para a análise visual de uma obra herdeira das
temáticas do romantismo, de um olhar histórico-cultural visual e de tudo o que se
escreveu neste capítulo. A obra é o filme Vertigo de Alfred Hitchcock, metáfora
artística de tudo o que se escreveu neste texto. O filme aborda a dicotomia vida/morte,
arte/realidade, numa história assombrada por paisagens e fantasmas do passado e do
presente.
Alguém que sabe que vai morrer e que se opõe à Sequóia Semperviva, «Always
green, ever living» (na mais bela sequência do filme, e do uso da paisagem numa obra
de arte do século XX).
234
As próprias imagens do percurso dos protagonistas do filme pela floresta
remetem-nos diretamente para as pinturas de um Turner ou de um Friedrich, no
conceito, uma natureza ilimitada como um mistério insolúvel, que eles visualizavam
como uma série de paisagens míticas em termos de destino cósmico e na relação do
Homem perante algo incomensurável e que não admite comparação; ou para as pinturas
de Barbizon, na forma, uma natureza do tipo atmosférico e romântica nos tons.
161
In da COSTA, João Bénard, Folhas da Cinemateca, 1994.
235
Uma mancha de Veneza, ali Londres, além algum rio francês, uma praia
portuguesa, algum canal da Holanda, além o mar da Normandia, por toda a parte o
império ilimitado do ar, da luz, do crepúsculo e da água…
Assim a arte cinematográfica presta uma das mais belas homenagens à história
da paisagem na pintura e testemunha que apesar de a pintura ter seguido outros
caminhos formais e conceptuais, a pintura de paisagens será sempre uma referência
histórica, artística, estética, imagética fundamental e sobretudo catalisadora na
construção de uma história cultural do olhar através da paisagem.
236
237
Capítulo III
238
3.1 Considerações Iniciais
Este capítulo pode ser considerado uma circunavegação cinematográfica. Apesar
de se pretender extenso, não é exaustivo. O impulso desta viajem cinematográfica, em
comparação com os trilhos dos exploradores do Ártico, das viagens dos navegadores
dos descobrimentos ou das conquistas dos alpinistas, não está relacionado tanto com o
esforço físico, ou com a posse do espaço tangível, mas com a análise das provas de
produção cultural – neste caso, especificamente, o cinema. Este capítulo tenta fornecer
um mapa, um índice.
162 In DELEUZE, Gilles Cinema 1: The Movement Image (French: Cinéma 1. L'Image-Mouvement),
Paris, Les Éditions de Minuit. 1983.
163
In GREENE, Naomi Pier Paolo Pasolini: Cinema as Heresy, Princeton University Press (March 23,
1992), p.45.
239
encontramos uma qualidade especial de registar tensões, de mostrar o mundo. O cinema
oferece-nos a possibilidade de perscrutar o real através do impulso imaginativo e da
prova documental, de fazer ressuscitar o passado e atualizar o futuro, de conferir uma
imagem da nossa realidade. A escrita cinematográfica exprime-se como um pedaço do
mundo que nos olha e nos representa.
Na opinião de João Mário Grilo (1958) “quaisquer que elas sejam, as palavras
de ordem no cinema, as unidades elementares da sua linguagem e dos enunciados
institucionais em que ela se exprime e atualiza, relevam, portanto, de uma pragmática
que se representa nos filmes e na natureza performativa dos seus enunciados. A
profundidade de campo da imagem do cinema não esbarra na Natureza, nem na
intencionalidade da mise en scène, nem sequer nos modos e nas dificuldades técnicas
de conjugação ótica do mundo, mas no contorno e nos limites de uma palavra
institucional e no efeito-território que ela produz; o campo cinematográfico – a porção
de espaço contido pelo enquadramento da câmara – não é, por isso, apenas imagético;
possui uma substância política” 164
Espaços, movimentos, cores, formas, eventos, relações, vidas são registados pelo
olhar da câmera cinematográfica e inscrevem uma cartografia dos lugares através da
captura /recriação de suas imagens. O cinema é uma fábrica de arquivos onde as
representações do espaço social e da paisagem ganham abrigo, revelando-nos o
imaginário social de um período e os usos sociais que engendram as topografias
164
In GRILO, João Mário, A Ordem no Cinema: Vozes e palavras de ordem no estabelecimento do
cinema em Hollywood. Tese de Doutoramento, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1993. P. 4-5.
240
geográficas. O cinema também se constitui como um espaço narrativo, ou seja, aquele
que se institui através de um jogo de relações entre significantes (imagens) e
significados (conteúdos) e expõe uma linguagem, como um índice que estabelece vias
diferenciadas de visão do espaço das representações das várias paisagens.
E a paisagem do futuro onde está? Há quem diga que está no cinema, nos filmes
de ficção científica, de conquista do espaço, dos céus, porque esse é o espaço que ainda
não foi conquistado, marcado politicamente...será isso algo de novo?
É que a “modernidade” se abriu com a captação dos céus, presentes já num
241
Turner ou num Constable. Ruskin havia já notado que o que distinguia a paisagem
“moderna” era a sua «nebulosidade». Por isso, a representação do céu, símbolo do
infinito e do efémero, em eterna transformação (ideias modernas), era a reação à
estabilidade, à permanência, à claridade da pintura até então.
Como nos diz Damisch (1928)166, a observação do céu e dos seus efeitos
atmosféricos conheceu na Europa desses tempos um renovado interesse desde os
estudos de Luke Howard - autor de um ensaio de classificação científica das nuvens, em
1803 -, à poesia de Goethe e Shelley e à música de Wagner, que buscava o infinito.
Cézanne, ao dar mais importância à tela enquanto texto do que ao texto da natureza,
levava à libertação da tela de qualquer «nebulosidade»; facto que permitiria que o
infinito se expressasse na tela branca (1918) de Malevich.
242
socialmente e culturalmente significativo dentro dele.
Este capítulo final leva-nos para um local de encaixe para a conclusão desta tese,
ao reconhecer nos seus exemplos, as paisagens cinematográficas aculturadas,
convencionadas do cinema moderno e contemporâneo, através de uma cultura do olhar.
243
3.2 O Cinema é Paisagem: Cartografias
244
As fotografias não são feitas à mão; elas são fabricadas. E o que é fabricado é uma
imagem do mundo.167
Todos os mapas envolvem histórias, onde se organiza tanto uma narrativa como
um discurso. Todos os mapas envolvem seleção, inclusão, omissão, observação e, por
vezes, invenção. Os mapas são baseados na utilização de técnicas específicas e,
portanto, tecnologias específicas. A geografia de oito volumes de Ptolemeu168 mostrou a
terra como plana e em forma de disco. A exploração medieval ofereceu exibições
alternativas de onde e como, terra e mar, montanhas e vales, podiam ser retratados e
levantaram questões sobre a noção de localização, o lugar do indivíduo, em ambos os
mundos natural e construído. O globo terrestre na mais antiga forma sobrevivente, uma
representação da terra na sua verdadeira forma esférica, foi concluído pelo geógrafo
169
alemão Martin Behaim (1459/1507) em 1492, e bem pode ter diretamente
influenciado Cristóvão Columbo e os descobridores Portugueses no potencial das suas
explorações.
167
In CAVELL, Stanley, The World Viewed, enlarged Ed. (London: Harvard University Press, 1979),
p.20.
168
A sua obra mais extensa é "Geographia" que, em oito volumes, contém todo o conhecimento
geográfico greco-romano. Esta inclui coordenadas de latitude e longitude para os lugares mais
importantes. Naturalmente, os dados da época tinham bastantes erros e o mapa que está apresentado está
bastante deformado, sobretudo nas zonas exteriores ao Império Romano. Ptolomeu inventou a projeção
cônica equidistante meridiana, na qual distâncias ao longo dos meridianos e ao longo de um paralelo
central são representadas numa escala constante, os paralelos são representados como círculos e os
meridianos como rectas.
169
Em colaboração com o pintor Georg Albrecht Glockenthon, Martin Behaim construiu, entre 1491 e
1493, aquando da sua permanência em Nuremberga vindo do Faial, um dos primeiros globos terrestres
conhecidos (que ele chamou "Erdapfel", ou seja, "maçã do mundo"), que o tornou famoso. O original está
hoje em exibição no Germanisches Nationalmuseum, de Nuremberga.
O Globo de Behaim, também conhecido como Globo de Nuremberga, seguiu a ideia de um globo
construído por volta de 1475 para o papa Sisto IV, mas melhorando a representação e incluindo os
meridianos e a linha do Equador. Apesar da fama, o Globo de Behaim tem numerosos erros geográficos,
mesmo quando analisado à luz dos conhecimentos da época. Ainda não tem o continente americano,
apesar de na altura já ser conhecida boa parte da costa oriental da América do Norte (a Terra dos
Bacalhaus).
245
colectivo e a visão singular, muitas vezes se encontram. O papel do realizador de
cinema poderia ser considerado como semelhante à função do geógrafo de mapas,
enquanto o papel dos atores e da equipa de filmagem pode, de fato, ser comparado com
o papel da tripulação de navios ou com uma equipa de montanhismo.
246
paisagens descobertas ou gravadas do mundo real. Paisagens, portanto, não são apenas
seletivas, mas nunca são neutras na intenção ou receção. Paisagens retratadas são,
muitas vezes, simbólicas e frequentemente contribuem para a formação social, que
refletem sobre as sociedades humanas e as normas sociais onde se inserem. Neste
sentido a paisagem pode ser encarada como um espaço ilusionista, em que as
características inventadas são desenvolvidas e a topografia é secundária para a sua
evocação, onde a relação entre o indivíduo, ou o coletivo, e a sua representação é ainda
mais acentuada.
247
primeiro computador doméstico prontamente acessível, aparecem na década de 1970
depois, softwares como o CD-ROM, chegaram no início de 1980, oferecendo
armazenamento de dados conveniente e o DVD da década de 1990, com as suas
plataformas suplementares de informação fílmica.
No futuro, aqueles que nasceram na era digital emergente podem ter uma
resposta diferente a paisagens cinematográficas, fundadas sobre a coerência da imagem
e som, talvez, em vez de sobre a correspondência do filme para com um sentido da
forma preexistente, ou verossimilhança conectada com experiência. Mas aqui, no fim da
era analógica, as paisagens cinematográficas relacionam-se com a natureza análoga da
representação, e esta representação é produzida pela seleção, construção ou de uma
mistura destas, e estas paisagens têm graus correspondentes de autenticidade e de
originalidade.
248
escolha de sequências. Representações de paisagens, como combinações complexas de
encontros visuais ou de características escolhidas, enfatizam a incrível variedade de
possíveis inter-relações que compõem o mundo.
Como Ross Gibson171 assinala: “A câmara não é uma máquina projetada para
expressar a sublimidade – baseada num padrão panteísta romântico ou pós-
modernista, o tipo de um sistema global, que antes de uma união centralizada, começa
a se desintegrar. A câmara não expressa uma "inexpressividade", muito pelo contrário.
Ela é projetada para não deformar os códigos da perspetiva que foram instalados na
prática da arte durante o renascimento.”172
O papel do enquadramento no cinema, usando a câmara para gravar ou
selecionar paisagens, é diferente, no entanto, do papel da tela na pintura. Dentro da
“moldura” cinematográfica o movimento, geralmente, é um dos indicadores essenciais
do significado. O Frame, mais frequentemente, é um contributo para o movimento (isto
171
Ross Gibson (1956) é Professor da Creative & Cultural Research na Universidade de Canberra. Nessa
função, ele trabalha de forma colaborativa na produção de livros, filmes e obras de arte. O autor
supervisiona estudantes de pós-graduação e durante o início de 2000, foi diretor executivo da criação para
o estabelecimento do Centro Australiano para a imagem em movimento na Federation Square, em
Melbourne. Antes disso, enquanto trabalhava na Universidade de Tecnologia de Sydney, ele foi Produtor
Consultor Sénior durante o desenvolvimento e os primeiros anos do Museu de Sydney. Nos últimos doze
anos, ele desempenha funções de Professor na UTS e na Universidade de Sydney.
172
In GIBSON, Ross, Camera natura: Landscape in Australia feature films, framework 22/23 (1983), 47-
51. (50).
249
é, ele é conhecido por ser uma parte de um continuum); muitas vezes contém o
movimento, mas sugere que este movimento vai além de seus limites.
250
alternativas, assentam ambos em convenções comuns de referência.
Pelo contrário, da forma discutida por Henri Bergson173, desta vez é real ou pura
e estimula as memórias que se entrelaçam com as ações de superfície da existência
quotidiana. As sugestões de Bergson tem uma especial referência aqui porque, na
análise das paisagens cinematográficas, é possível observarmos um conjunto de
características de referenciais que são tanto metafísicos como físicos. Bergson escreveu
uma vez:
“Tudo, então, deve acontecer como se uma memória independente reunisse as
imagens com o que elas sucessivamente ocorrem ao longo do tempo; E como se o nosso
corpo, juntamente com o seu contorno, nunca foi mais do que uma de entre estas
imagens, o último é o que obtemos em qualquer movimento fazendo uma seção
instantânea no fluxo geral do devir.".174
173
Henri Bergson (1859/1941) foi um filósofo e diplomata francês. Conhecido principalmente pelos seus
livros Ensaios sobre os dados imediatos da consciência, Matéria e Memória, A evolução criadora e As
duas fontes da moral e da religião, a sua obra é de grande atualidade e tem sido estudada em diferentes
disciplinas como o cinema, literatura, neuropsicologia, bioética, entre outras. Recebeu o Nobel de
Literatura de 1927.
174
In BERGSON, Henri Matéria e Memória. Londres, 1991, p.77.
251
Seria incorreto, no entanto, sugerir que as paisagens cinematográficas são
compostas apenas de imagens e o de um “arranjo cuidadoso”, de uma coleção, ou de
uma construção dessas imagens. E os sons da paisagem? Som e música são partes
integrantes das paisagens cinematográficas. Se estes funcionam como reforços
naturalistas da imagem, ou se eles são complementares, a sua contribuição é
considerável. Os ambientes acústicos no cinema revelam um conjunto de relações com
o som, bem como oferecem uma variedade de associações para a narrativa
cinematográfica, para as respostas do público bem como para as possibilidades de
composição disponíveis para os diretores e os editores.
252
diferenciação entre o som, a música e de fato o barulho. O barulho, que tende a denotar
o som desagradável ou o inesperado, interrompe uma paisagem cinematográfica,
sugerindo uma perturbação para o equilíbrio da imagem ou de uma banda sonora.
253
como metonímico.
254
Fig. 99. Frame, The Day After Tomorrow, Roland Emmerich. 2004.
255
As paisagens cinematográficas do filme alternam entre a paisagem ficcionada de
Nova Iorque, enquanto ao mesmo tempo, referindo-se a uma Nova Iorque que existe na
sua forma antiga, reconhecível por todos.
O filme apresenta tanto uma Nova Iorque real, um local transformado, mas
reconhecível para os protagonistas e uma Nova Iorque temática, um lugar de reunião
dos valores e de “interpretações”.
Ao fazê-lo, a natureza metafórica das paisagens no filme é constantemente
renovada e a conclusão da descongelação faz recuar o público para a questão de como
evitar um cenário de catástrofe climático, mas também como renovar o seu sentido de
responsabilidade em questões sociais bem como além daquelas referidas no filme.
256
Análise qualitativa enfatiza o significado e discute características inerentes ou
distintivas. Medição qualitativa não é necessariamente uma prova que é superior ou
mais importante; pelo contrário, medição qualitativa visa distinguir exemplos e
reconhecer propriedades inatas. Medição aqui refere-se aos atributos essenciais, e as
origens de medição qualitativa surgem a partir de nossa experiência dos fenômenos
naturais. Empatia desempenha um papel na medição qualitativa, e aqueles envolvidos
em tal medição são eles próprios sujeitos, posicionados dentro de um contexto histórico
e sociocultural.
257
Não se pode afirmar com confiança que uma paisagem cinematográfica
observada aparece puramente como um registo realista, quando está tão sujeita como
qualquer outro elemento cinematográfico para a manipulação estética, para o
aperfeiçoamento tecnológico e para uma doutrinação ideológica. A sua presença
proeminente e articulada chama a atenção para si mesma como uma inclusão
consciente, um portador de significados relevantes para o refinamento de uma estética
visual, um contato cultural comum entre o cineasta e o público e/ou a manutenção,
questionando e disseminando uma identidade nacional.
258
Por exemplo o cinema britânico das décadas de 1950 e 1960 oscila entre o
documentário que apresenta uma realidade influenciada pela vida real, séria, realista,
com reflexões das configurações da nova classe trabalhadora, e uma nova realidade
social colorida, reconhecível das representações da swinging London.
Muito poucos foram tão ambivalentes como Jacques Tatis em Playtime (1967)178, na
fusão de humor e pathos, com gags físicos complexos, da loucura humana, de um
nostálgico irrisório pessimismo presente, na representação de uma identidade francesa
tradicional e de uma reconhecível icónica Paris, que se perde dentro de uma
reconstrução clínica modernista.179
175
Paul Rotha (1907 - 1984) foi um documentarista britânico cineasta, historiador de cinema e crítico.
176
In ROTHA, Paul Documentary (Londres: Faber, 1936), 187.
177
Vittorio De Sica (1901/1974) foi um dos mais importantes realizadores e atores do cinema italiano e
Europeu. Como ator estreou-se em 1932, no filme Dois Corações Felizes. Como realizador a sua estreia
foi em 1939, com o filme Rosas Escarlates. Em 42 anos de carreira recebeu três Óscares para o melhor
filme estrangeiro: em 1946 por Vítimas da Tormenta, em 1948 por Ladrões de Bicicletas, e em 1971 por
O Jardim dos Finzi-Contini. É considerado o precursor do neorrealismo italiano. Como realizador, além
dos filmes com os quais ganhou o Óscar de melhor filme estrangeiro, Vittorio De Sica também se
destacou pela direção de Umberto D., em 1951; Boccaccio 70, de 1962; Ontem, Hoje e Amanhã, de 1963;
Matrimônio à Italiana, de 1964; e Os Girassóis da Rússia, de 1970.
178
Jacques Tati (1907-1982) foi um famoso realizador francês, ator e argumentista. Ao longo de sua
longa carreira, ele trabalhou como ator de comédia, escritor e diretor. Numa pesquisa conduzida pela
Entertainment Weekly dos realizadores de cinema, Tati foi eleito o maior de 46 de todos os tempos. Com
apenas seis longas-metragens no seu currículo como realizador, ele dirigiu menos filmes do que qualquer
outro realizador nesta lista de 50.
179
In HILLIKER, Lee No Espelho Modernista: Jacques Tati e a paisagem parisiense. The French
Review 76(2) (2002), 318-329.
259
Fig.101. Frame, Bicycle Thieves (Italian: Ladri di biciclette; Vittorio De Sica. 1948.
Fig.102. Frame, Bicycle Thieves (Italian: Ladri di biciclette; Vittorio De Sica. 1948.
260
Fig. 103. Frame, Playtime, Jacques Tati's. 1967.
261
Poucos são tão grandiloquentes como a capital francesa exibida no filme Diva (Jean-
Jacques Beineix, 1982): os seus habitantes participam numa Paris anunciada como um
outro lugar, um item de consumidor, aparentemente inconsciente da ironia das suas
declarações de individualidade através da aquisição e glorificação de itens produzidos
em massa e simulacros, que implicitamente tentam ridicularizar e destruir a
originalidade.
180
La Haine, Traduzido em português por O Odio, é um filme francês de 1995 a preto e branco. O filme
aborda o conflito entre a juventude francesa, a polícia em Paris e outros problemas enfrentados na
periferia da grande cidade francesa. Toda a história se passa num período de 24 horas em que os
protagonistas, três jovens franceses, enfrentam a polícia, encontram uma arma perdida e tem que decidir o
que fazer com ela; encontram gangues e skinheads e quando finalmente voltam para casa, deparam-se
com uma surpresa.
181
In VINCENDEAU, Ginette, Designs on the Banlieue: Mathieu Kassovitzs La Haine (1995), in Susan
Hayward e Ginette Vincentia (eds), French Film: Texts and Contexts, 2nded. (Londres: Routledge, 2000),
310-311.
262
Fig.105. Frame, Trás-os-Montes de António Reis e Margarida Cordeiro, 1974-76.
263
parindo sós, dois breves planos de pormenor de olaria, a música e as danças de
pauliteiros, as pontes medievais — compõem uma ideia de civilização em estreita
comunhão com o mundo natural.182”
182
In AREAL, Leonor, CINEMA PORTUGUÊS - UM PAÍS IMAGINADO, VOL. II. Edições 70, Lisboa,
2011.
264
265
3.3. Entre a configuração espacial e a paisagem no cinema
À primeira vista pode parecer surpreendente afirmar que paisagem não pode ser
tomada por garantida na Sétima Arte. Afinal de contas, o que vamos fazer com as
geladas extensões em Nanook of the North (Robert Flaherty, 1922)183, com as
montanhas de Bergfilme, de Arnold Fancks,184 da década de 1920, com o mar de Maria
do Mar (1930) de Leitão de Barros ou com as vistas panorâmicas do Monument
Valley,185 nos Westerns de John Ford, se estas imagens não constituem paisagens? Esta
pergunta atinge o cerne da questão, mas estamos “ainda mal equipados” para responder
agora esta questão até analisarmos este assunto e considerar alguns dos vários
significados da palavra paisagem.
183
Nanook of the North (também conhecido como Nanook of the North: uma história de vida e amor no
Ártico real) é um filme/documentário mudo americano/ de 1922 por Robert J. Flaherty, com elementos de
docudrama, num momento em que o conceito de separação de cinema, documentário e drama ainda não
existia.
Na tradição do que viria a ser chamado de” resgate da etnografia”, Flaherty capturado as lutas do homem
Inuk chamado Nanook e da sua família no Ártico canadiano. O filme tem sido considerado incorretamente
o primeiro documentário de longa-metragem. Em 1989, este filme foi um dos primeiros 25 filmes a ser
selecionado para preservação no National Film Registry pela Biblioteca do Congresso Norte Americana
como sendo "culturalmente, historicamente ou esteticamente significativa".
184
Arnold Fanck (1889 - 1974) foi um realizador de cinema alemão e pioneiro do gênero de filmes de
paisagens de montanha. Ele é mais conhecido pelas filmagens nos Alpes que ele capturou em filmes
como A Montanha Sagrada (1926), The white Hell Pitz Palu (1929), Tempestade sobre Mont Blanc
(1930), der weisse Rausch (1931) e SOS Eisberg (1933). Fanck também foi fundamental no lançamento
das carreiras de vários cineastas durante os anos da Weimar na Alemanha, incluindo Leni Riefenstahl,
Luis Trenker, e os cineastas Sepp Allgeier, Richard Angst, Hans Schneeberger, e Walter Riml.
185
Monument Valley é uma região dos Estados Unidos situada na reserva dos índios Navajos em cuja área
se encontra um monumento que marca o ponto de divisas de quatro Estados e é denomimado "As Quatro
Esquinas" que é comum a quatro estados, que são o Utah, Colorado, Novo México e Arizona. Foi muito
usada para as gravações dos filmes Western, particularmente os de John Ford, tendo como ator principal
John Wayne.
266
Fig.107. Frame, Nanook of the North (also known as Nanook of the North: A Story of Life and Love
in the Actual Arctic), Robert J. Flaherty. 1922.
Fig. 108. Frame, Storm over Mont Blanc (German: Stürme über dem Mont Blanc), Arnold Fanck.
1930.
267
Fig. 109. Frame, Maria do Mar, Leitão de Barros. 1930.
Com efeito, uma característica deste termo é o seu duplo sentido. Isso pode-se
referir a um gênero pictórico, mas pode também referir-se a vista reais de um “espaço
natural real, exterior”. Em outras palavras, refere-se à representação pictórica de um
268
espaço e em outras circunstâncias à perceção real de um espaço. Como resultado, não é
errado dizer que os vários olhares de Monument Valley de John Ford (1894 /1973) ou que
os campos de gelo de Nanooks são paisagens.
No entanto, esse uso define paisagem em virtude da coisa em “si" em vez da sua
representação e, portanto, não faz justiça ao significado do termo dentro das artes
visuais. Dentro deste reino, nem toda a representação do espaço exterior ou natural é
uma paisagem. No entanto, para dar sentido a esta distinção, vamos primeiro diferenciar
o que é o ambiente narrativo cinematográfico e paisagem.
O mesmo ocorre na poética de Aristóteles: "e tal como o local (topos), de acordo
com a definição aristotélica, é o invólucro dos corpos que ele limita, também a pretensa
“paisagem” (topion: localzinho) não seria nada sem os corpos em ação que a ocupam.
A narração surge primeiro e a sua localização no espaço é um efeito da leitura"188 O
comentário de Cauquelin, encoraja-nos assim a distinguir entre as duas diferentes
186
In CAUQUELIN, Anne L’Invention du Paysage. Paris: Plon 1989.
187
Id ibid p.39
188
Id Ibid p.39/40.
269
representações do espaço: a configuração ou o cenário e a paisagem.
No entanto definir o espaço narrativo pode revelar-se mais difícil do que parece
pela primeira vez. Isso ocorre porque a configuração cinematográfica, como ação,
constitui uma construção concetual inteiramente variável. Em outras palavras, a
configuração ou o cenário cinematográfico é normalmente desprovido de limites fixos;
ou pelo menos, tais limites são indefinidamente divisíveis, um pouco na forma do
famoso paradoxo do filósofo Zeno189. No cinema, esta dificuldade é agravada pela
189
Os paradoxos de Zeno (ou de Zenão), atribuídos ao filósofo pré-socrático Zenão de Eleia, são
argumentos utilizados para provar a inconsistência dos conceitos de multiplicidade, divisibilidade e
movimento. Através de um método dialético que antecipou Sócrates, Zeno procurava, partindo das
premissas dos seus oponentes, reduzi-las ao absurdo e com isso sustentar o ponto de fé dos eleáticos e do
seu mestre Parmênides, que ia contra as ideias pitagóricas. Como em outros pré-socráticos, não existe na
270
Fig.110. Frame, La bête lumineuse (English: The Shimmering Beast), Pierre Perrault. 1982.
Fig.111. Frame, La bête lumineuse (English: The Shimmering Beast), Pierre Perrault. 1982.
atualidade nenhuma obra completa de Zeno, sendo as fontes principais para os seus paradoxos as citações
na obra de Aristóteles e do aristotélico Simplício.
271
presença da duração e da montagem. Montagem, claro, pode fragmentar o espaço,
quebrar a configuração da ação e, assim, expandi-lo (pelo menos numericamente).
(a). Pode também ser incorporada em espaços maiores- muitas vezes não vistos- (por
exemplo, O Quebec em Lumineuse La Bête), cuja relevância só pode ser estabelecida
através da análise ou da interpretação.
190
La lumineuse bête (A Besta Luminosa) é um documentário canadiano 1982 dirigido por Pierre
Perrault, sobre um grupo de caçadores que se reúnem anualmente para caçar alces perto de Maniwaki,
Quebec. Foi exibido na secção Un Certain Regard no Festival de Cannes de 1983.
191 La Sortie de l'usine Lumière à Lyon é um dos primeiros filmes da história do cinema, foi produzido e
distribuído em 1895 pelos irmãos Lumière. É, por vezes, considerado como o primeiro filme a ser
projetado em público. É um filme de curta-metragem com uma duração de cerca de 45 segundos.
O primeiro cineasta português, Aurélio Paz dos Reis, produziu e realizou uma réplica deste filme em
1896, Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança, gravado na cidade do Porto, e que viria a ser o
primeiro filme português.
272
enquadramento, podemos também mais precisamente e com igual validade descrevê-lo
como um ponto específico dentro da arquitetura da fábrica; o portão: ou seja, a saída
onde os funcionários dos Lumière saem da fábrica, depois do seu trabalho.
192
Usamos aqui o termo de acordo com seu significado lógico e gramatical padrão.
273
Fig.112. Frame, Workers Leaving the Lumière Factory in Lyon (French: La Sortie de l'Usine Lumière
à Lyon), Louis Lumière.1985.
Fig.113. Frame, Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança, Aurélio Paz dos Reis, 1896,
274
No momento, porém, a questão essencial é: como é a paisagem distinta do espaço
cinematográfico.
A primeira é a distinção entre parergon193 e ergon194, que quer dizer entre (a)
paisagem como acessório espacial de uma cena pintada (a cena, não o cenário, sendo o
principal assunto ou a narrativa de uma pintura) ou como um elemento simples que
acompanham um conjunto maior (manuscritos iluminados, frescos decorativos, painéis,
etc.); e a paisagem (b) como o assunto principal e independente de uma obra (cenário
espacial como o foco principal do trabalho). O segundo critério diz respeito a distinção
entre as principais formas artísticas (em particular, a pintura a óleo) e as consideradas
Artes menores (aquarela, desenho, gravura, etc.). A este respeito, parece que paisagem
foi introduzida nos “formulários” menores bem antes dos grandes.
193 Parergon é um termo de Kant, aparece na sua obra A crítica da faculdade do juízo (1995). Em grego, parergon
significa “além ou ao lado do ergon”, o “fora da obra”, aquilo que é somente um acessório acidental, ornamentos
adjuntos que se acrescentam a uma obra já completa por si mesma.
194
Em grego ergon significa: trabalho, feito, produto, função.
275
emancipação da paisagem do seu papel de apoio como plano de fundo ou cenário para
eventos e personagens. Em consequência, estabelece a condição da sua emergência
como um objeto estético completamente distinto.
195
In CLARK, Kenneth, Op. Cit., p.229.
276
uma paisagem na maioria dos casos. É o lugar onde alguma coisa acontece, onde algo
acontece e se desdobra. Isso vale para os Westerns de John Ford, tanto quanto para os
filmes de montanha, concebidos por Leni Riefenstahl. Claro, isso não deveria
surpreender pois sabemos que o cinema dominante é acima de tudo um cinema
narrativo baseado na representação de ações e eventos. Devemos, pois, concluír que o
cinema narrativo é incompatível com a ideia de paisagem? Antes de responder, será útil
retornar à questão da autonomia da paisagem na arte.
196
In WOOD, Christopher, Albrecht Altdorfer and the Origin of Landscape. Chicago: Chicago University
Press, 1993, p.9.
277
1477-1510); e as obras do mestre de Antuérpia, Joachim Patinir (c. 1480-1524), que
receberam avaliações amplamente divergentes por vários historiadores de arte. Os casos
de Giorgione e Patinir são interessantes na medida em que eles vão problematizar a
autonomia da paisagem por colocar em causa o seu desenvolvimento.
Tendo em conta o que foi dito até este ponto, as obras de Patinir não constituem
paisagens no sentido pleno do termo (paisagens autónomas, independentes) porque
geralmente os eventos bíblicos, as personagens ou os temas mitológicos normalmente,
situam-se neste ambiente natural. Mas é importante notar como numerosos escritores e
historiadores de arte, começando com Goethe, observaram que em Patinir as cenas são
peculiares.
Elas são compostas de modo a inverter a até então usual relação entre a
configuração espacial e a presença humana nas pinturas. Com efeito, neles, os
personagens vão-se tornar acessórios. Deve ser por esse motivo que vemos estas
pinturas como paisagens no sentido moderno do termo? Ao perguntar isso, chegamos ao
ponto inicial da nossa interrogação: esta é uma definição ou uma paisagem? Ainda o
que nos interessa aqui não é tanto pronunciarmos sobre esta questão em matéria do
pintor Patinir, mas sim para ver como as suas obras levaram a diferentes respostas ou
interpretações, e se o olhar do “espectador foi sorteado” para as diferentes figuras
humanas picturais ou para a paisagem.
278
sua pintura. A partir daqui, é preciso apenas um passo para chegar à conclusão de que
eles constituem “paisagens autónomas”. André Piron observou isto, comentando que
Patinir “era o primeiro dos artistas da paisagem”. 199
Piron não estava sozinho ao
escrever isso200, mas na ausência de uma tradição de paisagem real no século XVI,
alguns historiadores têm dificuldade em aceitar a autonomia da paisagem no trabalho de
Patinir.
Esta atitude é bem resumida por Malcolm Andrews: Mas porque é tão cedo na
data para uma paisagem “independente”, estamos ansiosamente em guarda contra
uma interpretação ingênua ou tendenciosa teleológica baseada neste argumento. A
inexistência virtual de uma tradição de paisagem independente no início do século XVI
exerce uma pressão formidável sobre a nossa receção dessas imagens, que
consideramos dever ter uma raison d' être narrativa ou hagiográfica. " 201
Outro bom exemplo desta atitude em direção a Patinir é fornecido por Reindert
Falkenburg202:
199
In PIRON, André, Joachim Le Patinir, Henri Blès: Leurs vrais Visages (Gembloux: Duculot J., 1971),
p.19.
200
O mais frequentemente citado defensor desta posição é sem dúvida o historiador de arte Ludwig von
Baldass, "Die niederländische Landschaftsmalerei von Patinir bis Bruegel," Jahrbuch der
Kunsthistorischen Sammlungen (1918).
201
In ANDREWS, Malcolm, Op. Cit., p.43-44.
202
A própria pesquisa de Falkenburg explora as artes visuais principalmente a partir da perspetiva das
relações entre as imagens e os espectadores. Ele estudou as tensões e as crises na arte medieval e
renascentista, em particular o papel das artes visuais na formação estética, religiosa, moral e espiritual do
homem moderno primitivo. O seu interesse erudito considera especialmente as obras dos mestres
holandeses e flamengos do século XVI como Hieronymus Bosch e Pieter Bruegel. Nas várias obras que
escreveu destaca-se: O fruto da devoção: o misticismo e a imaginação do amor em pinturas flamengas da
Virgem e da Criança, 1450-1550.
Atualmente o autor está a finalizar um estudo monográfico, intitulado Mirror of Mirrors:
Hieronymus Bosch, O Jardim de Delícias Terrenas. Mais recentemente, Falkenburg foi presidente do
Departamento de História da Arte na Universidade de Leiden, na Holanda. Antes disso, foi Professor de
Arte e Religião Ocidentais na Graduate Theological Union em Berkeley, Califórnia; Vice-Diretor do
Instituto Holandês de História da Arte; pesquisador da Royal Dutch Academy of Sciences. Falkenburg
ensina a ideia do retrato, como uma das formas das mais fundamentais da expressão humana na arte.
Falkenburg detém o Ph.D. da Universidade de Amesterdão, mestrado e licenciatura da Universidade de
Gronigen, dos Países Baixos.
279
estética”. Como resultado, às vezes tem-se a ideia de que um autor está falando não
sobre uma paisagem do século XVI, mas de uma do século XIX, baseada sobre essas
noções da experiência estética da paisagem que se pode ler nas cartas de Schiller e de
Carus. Nas descrições das origens da” paisagem autónoma” do século XVI não há o
menor questionamento da validade de uma conceção da paisagem, que só pode ser
chamada disso no século XIX.
Este debate sobre Patinir é de interesse neste ponto porque ele exemplifica a
ambiguidade da relação entre ergon e parergon. Na verdade, ilustra as dificuldades de
distinguir nitidamente entre estes dois conceitos. O que serve como o verdadeiro
assunto das pinturas aqui? O que serve como o acessório?
203
In FALKENBURG, Reindert L., Op. Cit., p.2-3.
204
In ANDREWS, Malcolm, Op. Cit., p.48
280
É precisamente tais dificuldades que levam Jacques Derrida205 a analisar no seu
estudo sobre a Crítica do Julgamento de Kant, para entender a relação entre ergon e
parergon em termos da “différance”. Isto põe em causa e ainda dissolve a oposição
entre eles e traz à luz a sua interligação: “aquilo que constitui o parergon não é
simplesmente a sua exterioridade de excesso (excedente), é a ligação estrutural interna
que vem vincula-los para a falta interior do ergon. E esta falta seria constitutiva da
unidade do ergon. Sem essa falta, o ergon não precisaria do parergon. A falta da ergon
é a falta da parergon.”206
Com efeito, no entanto, esta ambiguidade acaba por se clarificar numa “empresa
interpretativa”, quer dizer, isto é, uma tradição – ou seja uma tradição de Patinir., que os
seus contemporâneos, ou os críticos mais modernos, cujo olhar tem sido definitivamente
afectado pela existência de paisagens autónomas desde o século XVII.
Um crítico de arte que adotou essa posição foi Ernst Gombrich (1909 /2001)207
que alegou que o nascimento da paisagem está definido pelo propósito dos
colecionadores italianos do século XVI que olharam para as pinturas que adquiriram,
205
Filósofo francês (1930 /2004) que iniciou durante os anos 60 do século XX, a Desconstrução em
filosofia. Esta "desconstrução", termo que inventou, deverá aqui ser compreendido, tecnicamente, por um
lado, à luz do que é conhecido como "intuicionismo" e "construcionismo"" no campo da metamatemática,
no modelo da obra de Brouwer e depois de Heyting, ao qual Derrida irá adicionar as devidas
consequências dos teoremas da indecidibilidade de Kurt Gödel e, por outro, a um aprofundamento critico
da obra de Husserl, Heidegger e Levinas na ultrapassagem da metafisica tradicional que ele vai apresentar
como sendo uma "metafisica da presença".
Com uma obra imensa, a rondar os 100 títulos, ao qual se junta a edição em curso dos seus Famosos
Seminários, é o filósofo mais traduzido no mundo, tendo exercido um profundo impacto nas mais
diversas áreas das humanidades e ciências humanas, em especial nos campos da estética, teoria da
literatura e filosofia do direito, e gerado debates decisivos com os pensadores mais importantes de sua
época (Claude Lévi-Strauss, Michel Foucault, John Searle, Paul Ricoeur, Jürgen Habermas, entre outros).
206
In DERRIDA, Jacques La vérité en peinture (Paris: Flammarion, 1978), 69.
207
Gombrich foi um dos mais famosos historiadores da arte do século XX, especialmente pelos seus
estudos sobre o renascimento. É o autor de um dos livros mais populares entre os adotados pelas
instituições de ensino de História da Arte, em vários países: The Story of Art (A História da Arte),
publicado pela primeira vez em 1950 em Londres e, desde então, com numerosas reedições e traduções.
Outros livros incluem Arte e Ilusão (1960), considerado por críticos como seu trabalho mais influente e
de maior envergadura, e os artigos reunidos em Meditações sobre um cavalinho de pau (1963) e A
imagem e o olho (1981). Outros livros importantes são Aby Warburg: uma biografia intelectual (1970), O
sentido da ordem (1979) e A Preferência pelo primitivo (póstumo, 2002).
281
incluindo pintura flamenga: “Nós não sabemos, se a pintura flamenga eram paisagens
puras, provavelmente não eram, mas para o connoisseur italiano, só eram interessantes
como paisagens." Quanto à Tempestade de Giorgione, Gombrich imediatamente
acrescenta: "O que quer que a pintura pode ilustrar, para o connoisseur veneziano
pertence à categoria de pintura de paisagem.”208
208
In GOMBRICH, Ernst, A teoria do renascimento da arte e a ascensão da paisagem, in Norm and
Form: Estudos na arte do renascimento (Londres: Phaidon, 1966), 109; doravante citado no texto.
209
WOOD, op. Cit.
210
Christopher S. Wood é Professor do Departamento de História da Arte da Universidade de Yale e um
dos pensadores contemporâneos mais interessantes sobre a temática da paisagem na arte. Ele é o autor de
Albrecht Altdorfer e as Origens da Paisagem, e o editor do The Vienna School Reader: Política e Método
Histórico da Arte na década de 1930.
282
3.3.3. Cinema e a "paisagem autónoma”.
Não há, claro, nenhuma causa por a paisagem que se manifestou tão
afincadamente na pintura não se expressaria no trabalho dos cineastas. Além disso,
numerosos cineastas já se apropriaram deste olhar e libertaram os filmes da
configuração espacial ao serviço da história, da narrativa, conferindo-lhe assim o status
de paisagem autónoma.
283
Todos nós estamos familiarizados com o enorme sucesso alcançado por Laura
Mulvey (1941) que, no contexto político do feminismo dos anos 1970, propôs a
utilização desses termos para descrever estratégias para representar o masculino e o
feminino no cinema clássico: enquanto os homens avançam a história através de sua
ação, as mulheres ameaçam prender o seu desenvolvimento, na medida em que sua
presença na tela pode apresentar momentos de contemplação.”215
Apesar de tudo, estas observações ainda mantêm a sua pertinência hoje, mesmo
que alguém não iria querer tratá-las como dogma. Mais importante, do nosso ponto de
vista, elas colocam em relevo tanto a distinção entre a história e o espetáculo como a
tensão que ele gera. Obviamente, o locus desta tensão é o espectador, quem pode
investir no desenvolvimento narrativo dos filmes por meio da inteligência narrativa, nos
termos de Paul Ricoeur (1913/2005), ou investir numa atitude contemplativa que produz
principalmente uma forma estética da qual a paisagem cinematográfica depende, como
veremos. Nesse sentido, podemos falar de dois “sistemas” de atividade do espectador: o
modo narrativo e de o modo panorâmico.216
215
“A presença da mulher é um elemento indispensável de espetáculo no filme narrativo normal, mas a
sua presença visual tende a trabalhar contra a linha de história, congelar o fluxo de ação em momentos
de contemplação erotica." Laura Mulvey, “Visual Pleasure and Narrative Cinema” in Visual and Other
Pleasures (Bloomington: Indiana University Press, 1989), p.19. Raymond Bellour, chegou a uma
conclusão semelhante na sua análise de uma sequência do filme, The Big Sleep, de Howard Hawks. In
Raymond Bellour, "L'évidence et le code" in L'Analyse du film (Paris: Albatros, 1979).
216
Pode parecer pleonástico dizer que a atividade do espectador possui um sistema panorâmico. Um
ponto apenas para enfatizar esse aspeto do espectador que consiste precisamente em aceder às imagens (e
sons) do espetáculo cinematográfico "por conta própria" e "para o seu próprio bem." O que nós
designamos aqui de sistema panorâmico tem pelo menos duas variações: (1) choque, que pertence à
repulsa ou atração (comentários de Eisenstein, a este respeito, são bem conhecidos; mas era também,
como Tom Gunning justamente salientou, um espaço disponível para os primeiros espectadores do filme,
bem como para os espectadores do cinema vanguardista em geral e dos filmes pós-modernos
contemporâneos; e contemplação (2). Ver Tom Gunning, 1986, 1995a, 1995b; Sergei Eisenstein, "A
montagem das atrações" e "A montagem de atrações de filme", em S. M. Eisenstein. Obras Selecionadas,
Volume I, Ed. de 1922-1934, escritos por Richard Taylor (Londres: BFI, 1988). Finalmente, vale a pena
acrescentar que esses modos de espectador se distinguem de que o processo de espectador descrito no
livro PSYCHO De la figure au musée imaginaireThéorie et pratique de l'acte de spectature LEFEBVRE,
Martin, 1998.op cit, 19-70.
284
ambos os “modos” absolutamente em simultaneamente.
217
In LEFEBVRE, Martin De la figure au musée imaginaire: Théorie et pratique de l'acte de spectature,
1998. P.94.
218
P. Adams Sitney realça o efeito desta temporalidade, adequada á linguagem da paisagem fílmica: "o
uso de paisagens sublimes frequentemente coincide com situações meteorológicas espetaculares. O
cinema foi a primeira arte que poderia representar a temporalidade e o ritmo de uma tempestade."
Sitney P. Adams, "Landscape in Cinema: The Rhythms of the World and the Camera," In Landscape,
Natural Beauty and the Arts, eds. Salim Kemal e Ivan Gaskell, Beleza Natural e paisagem (Cambridge:
Cambridge University Press, 1993), p.112.
285
Esta dupla existência temporal resulta na precariedade de uma paisagem que
mais ou menos desaparece quando o modo narrativo se assume e o espaço
cinematográfico retoma a sua função narrativa como configuração principal.
219
A contemplação da paisagem é facilitada aqui pela mise-en-scène, o silêncio dos personagens (temos
que esperar cerca de 10 segundos antes que Nora se dirige ao seu primo), a posição fixa da câmara (em
toda a cena, a câmara só faz dois reframings ligeiros), a ação física comedida, a lentidão da cena, e a
banda sonora que toca Largo.
220
Pertence, de facto, a tradição da "peça de conversação ao ar livre," um subgénero muito popular para
as pinturas da paisagem britânica durante o século XVIII.
286
Fig.114. Frame, Barry Lyndon, Stanley Kubrick, 1975.
287
Podemos perguntar, neste momento se a importância atribuída ao espectador e
ao seu modo panorâmico não reduz simplesmente a paisagem fílmica para as
idiossincrasias dos espectadores individuais? O olhar de câmaras não faz nada? Para
entender os papéis respetivos do espectador e do filme no surgimento da paisagem, é
importante examinar vários exemplos de condições existentes que podem produzir ou
pelo menos incentivar a visualização no modo panorâmico.
Parece pois possível chegar a acordo sobre a existência de dois paradigmas que
definem os polos de um espectro interpretativo: num caso, o espectador imputa ao filme
(ou ao seu realizador) a intenção de apresentar uma paisagem - isto nós podemos
designar de uma "paisagem intencional”; no outro, o espectador deve assumir que ele ou
ela é a fonte dessa paisagem cinematográfica - isto nós podemos designar por uma
"paisagem do espectador” ou, tomando uma sugestão de Gombrich, uma paisagem
“Impura”. Estas duas situações assumem inúmeras formas, muitas na verdade para
apresentá-las todos neste capítulo. No entanto, é possível citar algumas das suas
manifestações.
Entre os exemplos que ilustram melhor o primeiro paradigma são os filmes que
citam pinturas específicas, tais como os de Vincent Minnelli221 (1903/1986) Lust for
Life (1956) ou de Akira Kurosawa222 (1910 /1998), no seu filme Dreams (1990).223
221
Diretor de teatro americano e realizador de cinema, famoso por dirigir musicais como o clássico Meet
Me em St. Louis, Gigi, The Band Wagon e Um americano em Paris. Além de ter dirigido alguns dos mais
famosos e bem lembrados musicais de seu tempo, Minnelli fez muitas comédias e icónicos melodramas.
Ele foi casado com Judy Garland de 1945 até 1951; foram os pais de Liza Minnelli.
222
Um dos cineastas mais importantes e influentes na história do cinema, Kurosawa dirigiu 30 filmes
numa carreira de 57 anos. Kurosawa entrou na indústria cinematográfica japonesa em 1936, após um
breve período como pintor. Depois de anos trabalhando em vários filmes como assistente de direção e
argumentista, estreou-se como realizador em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, com o popular
filme de ação Sanshiro Sugata (aka Judo Saga). Depois da guerra, o aclamado Ángel Drunken (1948), em
que Kurosawa lançou o ator então desconhecido Toshiro Mifune num papel principal, cimentou a
reputação do diretor como um dos mais importantes jovens cineastas no Japão. Rashomon, que estreou
em Tóquio em agosto de 1950, tornou-se, em 10 de setembro de 1951, o vencedor surpreso do Leão de
Ouro no Festival de Cinema de Veneza e foi posteriormente lançado na Europa e América do Norte. O
sucesso comercial e crítico deste filme abriu os mercados dos filmes ocidentais pela primeira vez para os
produtos da indústria cinematográfica japonesa, o que, por sua vez, levou ao reconhecimento
internacional de outros cineastas japoneses. Ao longo dos anos 1950 e início dos anos 60, Kurosawa
dirigiu aproximadamente um filme por ano, incluindo vários filmes de grande reputação como Ikiru
288
Usando estratégias diferentes, ambos os filmes visualmente reproduzem
paisagens famosas de Van Gogh. O filme de Minnelli mostra repetidamente a artista no
trabalho transformando uma “verdadeira paisagem” numa paisagem pictórica.
(1952), Seven Samurai (1954) e Yojimbo (1961). Em 1990, ele aceitou o Óscar da Academia de Cinema
de Hollywood pela sua icónica obra.
223
Entre inúmeros outros exemplos que poderíamos citar, gostaríamos de mencionar o filme de Peter
Greenaway The Draughtsman's Contract (1982), onde o texto narrativo pictórico do filme (desenhos do
artista) funciona como um intertexto narrativo. Nós usamos este termo para sublinhar que os trabalhos
pictóricos — as paisagens — remetem-nos de volta e são quase idênticos aos pontos de vista mostrados
pela câmara fílmica, e não preexistem independentes do filme. O efeito na paisagem fílmica, no entanto, é
idêntico. Na verdade, os desenhos da paisagem e os correspondentes planos filmados são justapostos e
citam-se uns aos outros mutuamente, o que resulta numa ajuda ao espectador a traduzir na paisagem de
algumas das configurações espaciais do filme. Vale a pena mencionar também que os desenhos, que são
produzidos na diegese pelo Sr. Neville (o nome, pelo menos para um conhecedor de língua francesa
poderia sugerir uma negação da vida urbana e, portanto, uma possível ligação com natureza, com a
paisagem), são na realidade desenhados por Peter Greenaway, que, como realizador, também é
responsável pele fotografia e pelo filmar os mesmos pontos de vista no filme.
289
Fig.117. Frame, Lust for Life, Vincent Minnelli 1956.
224
No caso deste exemplo, o fato de que a personagem é mostrada na parte de trás tem o efeito de dirigir
o olhar do espectador em direção à paisagem retratada.
290
todo o plano cinematográfico da cena filmada, como uma paisagem.225 Este processo,
no entanto, como enfatiza Bonitzer, é dado a inúmeras variações.
225
In Bonitzer, Pascal, Décadrages. Peintures et cinéma (Paris: Cahiers du cinéma / edições de l'Etoile,
1985), 29-41. "Movimento implica que um filme não é uma pintura, que um plano cinematográfico não é
uma pintura. E ainda, é através da noção de um plano (do découpage' no tempo e no espaço que esta
noção supõe) que os cineastas podem comparar-se aos pintores "(Bonitzer, 29). Apesar do inegável valor
do ensaio do Bonitzer, não podemos deixar de notar, no entanto, que ele nunca questiona o status do filme
filmado nem como o espectador se pode relacionar com ele no tempo (ou seja, em relação à duração do
Plano). Com efeito, podemos imaginar casos onde apenas uma parte da duração de um Plano será
considerada "pictórico" pelo visualizador cujo modo de receção pode mudar entre os “modos de narrativa
e de panorâmico”.
291
Fig.119. Frame, Dreams, Akira Kurosawa, 1990.
292
Esta história, tão simples, continuamente corre o risco de desaparecer e de ser
substituída pela contemplação da paisagem de acordo com um contínuo refluxo e fluxo
na mente do espectador entre os modos de narrativa e panorâmico sob a pressão, ou
contaminação estética, contínua da presença das obras de Van Gogh e da integração
física das personagens nelas.
227
Van Gogh pintou a ponte Langlois em Arles em março de 1888 e os campos de trigo com corvos em
Auvers, em julho de 1890.
293
A transição das pinturas na parede do Museu para as paisagens reais 228 (uma
transição do pictórico para o fílmico) é realizada através de um jogo mimético
deliberado: um plano da pintura (a Pont de Langlois) é seguido pela sua reprodução
cinematográfica na vida real.
Claro, não pode haver dúvidas que os realizadores têm à sua disposição um
grande número de estratégias para fazer o espectador apreciar um filme (ou partes no
designado modo panorâmico) e para dirigir a sua atenção em direção ao espaço de
forma a libertá-lo da sua subserviência à narrativa.
Como já vimos anteriormente no filme Lust for Life, essas estratégias podem
ainda ser integradas na história em si. Por exemplo, a presença de um personagem
228
A ponte que nós vemos é evidentemente um set de filmagem. O original foi destruído em 1926.
Durante a década de 1960, uma réplica idêntica foi descoberta em Fos e transportada para Arles. Pode ser
encontrada na zona sul da cidade.
229
A banda sonora também recorda os pássaros pelo uso de sons eletrônicos para evocar os sons dos
corvos.
294
arrebatado pelo espaço natural, por uma paisagem que se oferece ao seu olhar pode
levar o espectador a contemplar o mesmo espaço, a mesma paisagem como uma
paisagem autónoma.
Entre os numerosos exemplos disto, podemos citar uma cena de The Misfits
(John Huston, 1961), onde, na frente de uma larga vista do Nevada, o personagem
interpretado por Marilyn Monroe grita “it’s like a Dream” seguido de um plano
cinematográfico objetivo da paisagem.
Este é o caso com vários planos de transição no cinema clássico. Quer dizer por
planos de transição, os planos que indicam na narrativa uma mudança espaço-temporal
na ação; pode ocorrer em vários pontos do filme, incluindo no início e no final onde eles
podem servir para indicar os limites geográficos da narração.
230
Estes são também chamados "Planos de fraque". Barry Salt usa os termos "atmosfera inserida", que
ele define como: "um plano de um local nos quais os atores não aparecem," In Film Style and
Technology; history and Analysis. 2ª ed. (Londres: Starword, 1992), 320. De acordo com Salt, é
principalmente depois da década de 1920 que este tipo de plano mais frequentemente aparece no filme
narrativo.
295
como uma intenção de retratar paisagens.
Este caráter moderno da paisagem está relacionado com a sua autonomia, com o
seu afastamento da narrativa, sempre que isso é feito intencionalmente. A conexão, no
entanto, precisa de alguma elucidação, especialmente se identificamos paisagem
principalmente com a sua manifestação na pintura clássica de paisagem.
231
Way Down East é um drama romântico americano de 1920, mudo e dirigido por D. W. Griffith,
protagonizado por Lillian Gish. É uma das quatro adaptações cinematográficas do jogo melodramático do
século XIX, Way Down East, de Lottie Blair Parker. A versão de Griffith é particularmente lembrada pelo
seu emocionante clímax no qual o personagem de Lillian Gish é resgatado da condenação num rio gelado.
Algumas fontes, citando anúncios de jornais da época, dizem que uma sequência foi filmada num
processo de cor, possivelmente Technicolor ou Prizmacolor.
296
Com efeito, estamos a concluir que é o cinema que se transformou em algo
moderno que não foi “o primeiro moderno”: O problema aqui decorre de uma suspeita,
o uso do adjetivo “moderno”. Enquanto isto não é o” lugar” de uma reconsideração em
grande escala da modernidade nas artes, e em particular no cinema e na pintura, ainda
podemos destacar certos aspetos da pintura de paisagem que, desde o início, tem
enredado dentro de uma teia de questões e problemas que são decididamente modernos.
Wood também nos lembra que o pintor Botticelli pintaria paisagem, em parte
nos seus frescos, lançando esponjas contra uma parede (um gesto cuja volatilidade
chocou DaVinci). Ao examinar um esboço desenhado por Dürer intitulado Quarry
(pedreira), Wood então interroga-se sobre a linha de possibilidade de algum tipo de
linhagem entre a paisagem e o “desenho abstrato" de rabiscos: “Talvez a irrealidade
linear e a irreflexão naturalmente derivavam para a paisagem "233.
232
In WOOD, Christopher, Op. Cit., p. 63.
233
Id Ibid, p. 64.
297
Naturalmente, tal comentário não pretende transformar o berço do modernismo
nas artes da Renascença. A sua finalidade, pelo contrário, é nos alertar para uma
possível linhagem entre a pintura de paisagem e o modernismo (em pintura), como já
descrevemos no segundo capitulo desta tese, e como ele se desenvolveu com o
Impressionismo, um movimento que, como já descrevemos, estava muito preocupado
com a representação da paisagem e com a do artista.
Estes incluem, entre outras coisas, novas práticas de gestão e do uso da terra, que
aparecem na Europa com o nascimento do capitalismo, especialmente aqueles que
dizem respeito às mudanças entre os relacionamentos da cidade e o país nos séculos XV
e XVI (particularmente na Itália). As novas conceções do espaço e a nova cosmologia
que resultam do estabelecimento das rotas comerciais para a África e Ásia; a conquista
do novo mundo; a melhoria da cartografia; assim como as descobertas científicas de
Copérnico e Galileu.
298
artificial de arte; ou da objetivação da terra como propriedade pura e simples, de uma
visão dos estranhos da terra de onde a alienação está completa e de uma estatística
ponderada que pode ser colocada sobre o” valor da paisagem” de um pedaço de terra,
que pode ser inserida numa relação de análise custo/benefício contra o valor que a
Terra poderia ter como um local industrial.
235
In COSGROVE, Denis, A Formação Social e a Paisagem Simbólica (Madison: University of
Wisconsin, 1998), p. 64; ensaio introdutório que acompanha a segunda edição deste trabalho, Cosgrove
oferece uma autocrítica da primeira edição que reflete um pouco sobre o tópico que escrevemos. Mais
especificamente, ele reconsidera a pequena importância que ele tinha inicialmente da paisagem após o
final do século XIX: "no livro eu reivindico aquela paisagem como uma preocupação ativa para a arte
progressiva que morreu na segunda metade do século XIX, após o último toque de romantismo, e que a
sua função ideológica de harmonização das relações sociais e ambientais através do prazer visual foi
apropriada pela disciplina de Geografia. Relendo estas reivindicações, parece que eles derivam mais de
imperativos teóricos associados à tese do livro do que de realidades históricas"(Cosgrove, xx)
236
Ver BARELL, John, The Dark Side of Landscape: the Rural Poor in English Painting, 1730-1840
(Cambridge: Cambridge University Press, 1980); Ann Bermingham, Landscape and Ideology. 1740-1860
(Berkeley: University of California Press, 1986).
299
Fig.121. Frame, Teorema, Pier Paolo Pasolini, 1968
300
Talvez estas problemáticas estilísticas e culturais podem servir para explicar pelo
menos em parte — a presença marcante da paisagem no trabalho de muitos realizadores
modernos (Pasolini, Antonioni, Godard, Wenders, Tarkovsky, por exemplo). Nos filmes
destes cineastas, ela encontra um terreno fértil de fato.
Este é o caso, por exemplo, no Teorema (Pier Paolo Pasolini, 1968), onde
imagens de um deserto vulcânico repetidamente interrompem o fluxo narrativo. Este
deserto é um espaço extra narrativo onde falta a função narrativa: nunca é o cenário para
a ação pertencentes ao universo narrativo do filme; a sua conexão com a narração em
vez disso é puramente simbólica.
Na medida em que esse lema é autônomo no que diz respeito à narrativa, este
espaço evoca a presença organizadora do realizador e assegura (juntamente com outros
traços) uma recusa do realismo psicológico, uma recusa de causalidade clássica, o uso
de uma montagem elíptica, um enquadramento incomum, uma heterogeneidade
estilística e uma estética modernista do filme.
Esta interpretação é tornada possível por, entre outras coisas, o enganador “jogo”
que conecta o deserto com a plataforma na estação de Comboios de Milão (a
configuração narrativa para a cena) no final do filme. Como resultado, esta relação
237
Este é, talvez, uma outra maneira da paisagem de vinculação para a presença organizadora do
realizador. Como observa David Bordwell, do ponto de vista narratológico: "normalmente, a abertura e o
fim de [um] filme são uma passagem mais auto-consciente, oniscientes e comunicativas. A sequência e os
primeiros planos usam vestígios de uma narração evidente."Narration in the Fiction Film, op cit, 160.
301
institui uma continuidade "simbólica" entre os dois espaços".
Embora não uma regra, podemos dizer que como muitos realizadores modernos,
a intencionalidade para a paisagem manifesta-se de acordo com duas estratégias
distintas: paisagens que aparecem durante as partes calmas na história (temps morts); ou
302
elas aparecem em momentos livres de qualquer motivação narrativa.
Por outras palavras, o que poderia ser objeto da narrativa no modo clássico (um
desaparecimento e uma morte questionável para explicar) é dada uma importância
secundária. Do ponto de vista formal, essa inversão do ergon e do parergon é análoga
ao processo que, como já vimos, deu origem à paisagem na pintura europeia. Portanto,
será de espantar ver as paisagens emergindo nos filmes de Antonioni238.
238
Antonioni, é claro, é geralmente considerado um cineasta "urbano". Alguns críticos, como Antonio
Costa, consideram que as suas "paisagens naturais" são subservientes ao seu olhar urbano: "[com
Antonioni, a paisagem extra-urbana 'natural' é vista, elaborada, interrogada pelo mesmo olhar que vê e
303
Fig.123. Frame, L'Avventura, Michelangelo Antonioni, 1960.
interroga o espaço urbano. A paisagem natural e a paisagem urbana são intercambiáveis: a primeira
não é diferente da segunda. " Antonio Costa, "Le regard du flâneur et le magasin culturel," in
Michelangelo Antonioni 2, 1966/1984, Ed. Lorenzo Cuccu (Roma: Ente Autonomo Gestione Cinema,
1988), p.124.
304
O filme L’Avventura, recordamos, foi galardoado no Festival de Cannes em
1960 “pela beleza das suas imagens”, como se essas imagens podem ser desanexadas ou
processadas autónomas dos outros elementos do filme — elementos que incluem
claramente a história.
239
Diversos críticos observaram este aspeto do cinema de Antonioni. Assim, Seymour Chatman escreve:
"Ele [Antonioni tem praticamente retornado ao cinema com a predominância do visual que perdeu
importância com o advento do som," In Antonioni, or the Surface of the World (Berkeley: University of
California Press, 1985), p. 89; doravante citados no texto; e Peter Brunette: "É verdade que muito do
efeito de Antonioni vem da faixa visual de seus filmes (em oposição ao diálogo enredo, personagem e
assim por diante) "em The Films of Michelangelo Antonioni (Cambridge: Cambridge University Press,
1998), 30.
240
Id Ibid, p. 45.
305
Fig. 125. Frame, L'Avventura, Michelangelo Antonioni, 1960.
306
“O objetivo não é apresentar "o mesmo lugar", mas a possibilidade que é na
realidade "outro lugar", talvez até mesmo um lugar exterior à narrativa fílmica. A cena
é portentosa consumada por um atraso que desafia todo o tecido da ficção. O filme diz
que não, que "isto é tal e tal um lugar, em que evento X ocorre," mas sim que "este
lugar é bastante importante independentemente das necessidades imediatas do enredo,
e o espectador terá sentido (e entendido) o seu valor estranho, se ele for investigá-lo
mais cuidadosamente. Por isso eu dou-vos tempo para fazê-lo. Este tipo de plano não
preparou o cenário para algum outro plano..., é o cenário em si próprio.
Não que o simples espaço de estase é alterado num evento ou numa ação. É
mais com que a câmara seja perseverante e faz do lugar como que “grávido” com o
significado. Contemplamos atentamente, de forma paralela, mas separada das
personagens. Estamos empenhados, mesmo antes de eles, os personagens fílmicos,
chegarem, ou depois que eles partem, numa análise que não entendemos muito bem,
mas que, no entanto, parece urgente.” 241
241
Id Ibid, 125-126.
307
incorpora a questão da arte da paisagem na sua narrativa de uma forma que contribui
para os numerosos aspetos reflexivos do filme e desta nossa reflexão em forma de Tese.
É claro, nunca sabemos o que impulsiona o fotógrafo para vir para o parque em
primeiro lugar, mas é interessante notar que, antes de se aventurar no jardim, o jovem
para numa loja de antiguidades e pede para ver algumas paisagens! Será que este desejo
de paisagem motivou o seu súbito interesse no parque? Qualquer outra coisa que pode
indicar, esta breve informação, é provável que predispõem o espectador para o
surgimento das paisagens cinematográficas.
Além disso, várias das fotos tiradas por Thomas no parque podem-se qualificar
como “arte da paisagem”, que não, no entanto, impede que o seu status — e o status do
Parque — se alterem, como veremos. Para obter uma compreensão clara da situação, no
entanto, é importante considerar, apenas brevemente, que o parque tem dois modos
pictóricos de aparição no filme: o fílmico e o fotográfico.
Cada espectador é livre de considerar e de ver esse espaço como uma paisagem
pessoal,242 mas — e isso é o que nos preocupa no momento — também podemos
imputar a Antonioni a intenção para retratar a paisagem baseada no tratamento visual,
que o Parque recebe (especialmente no uso de temps morts).
242
In ROPARS, Marie-Claire, "L'espace et le temps dans la narration des anées 60," In Michelangelo
Antonioni 2, 1966/1984.
308
a jovem (interpretada por Vanessa Redgrave) vagueia lentamente o caminho em direção
à parte inferior da câmara e depois sai da imagem. A câmara permanece imóvel e
oferece-nos ao longo de um plano uma seção do parque e a contemplação da paisagem
por um breve momento.
Aqui, dois processos são utilizados para permitir que a paisagem se desvaneça.
Em primeiro lugar, as ampliações de Thomas (bem como os reframings e o trabalho de
câmara de Antonioni) introduzem uma variação na escala do plano das fotos. O que era
originalmente um plano completo torna-se num plano médio, num close-up médio, num
close-up até a um extremo close-up, como um microscópio que explora até à exaustão
um organismo.
309
Fig.127. Frame, Blow-Up, Michelangelo Antonioni, 1966.
310
Uma análise, que deve ser tomada literalmente, porque desde as sucessivas
ampliações das fotografias, mostra um homem meneando um revólver escondido num
arbusto e um cadáver deitado apenas a alguma distância desse arbusto.
243
Charles Sanders Peirce (1839-1914) foi um filósofo, um lógico, um matemático, e um cientista
americano que é conhecido muitas vezes como "o pai do pragmatismo". Recebeu uma educação
académica como químico e trabalhou como cientista. Hoje ele é apreciado em grande parte pelas suas
contribuições à lógica, matemática, filosofia, metodologia científica e semiótica, e pela sua fundação do
pragmatismo. Ele fez grandes contribuições para a lógica, mas a lógica para ele abrangia muito do que
agora é chamado epistemologia e filosofia da ciência. Ele via a lógica como o ramo formal da semiótica,
da qual é o fundador, que prenunciou o debate entre os positivistas lógicos e os defensores da filosofia da
linguagem que dominou a filosofia ocidental do século XX; definiu o conceito de raciocínio abdutivo,
bem como a indução matemática rigorosamente formulada e o raciocínio dedutivo.
244
Marie-Claire Ropars (1936 /2007) foi uma importante teórica da literatura, do cinema e da estética. Foi
professora na Universidade de Vincennes (Paris VIII).
245
In ROPARS, Marie-Claire, Op. Cit., p.214.
311
Fig.129. Frame, Blow-Up, Michelangelo Antonioni, 1966.
até á morte inscrita neles. Ele faz isso através da mediação da narrativa. Mas há mais,
nos dois extremos da cadeia narrativa formada pelas fotos, existem duas imagens: uma
foto do parque e uma ampliação (um alargamento) desta mesma foto. A composição da
primeira imagem é (quase) idêntica ao longo plano, que mostra a jovem correndo para
longe e o seu desaparecimento no frame no segmento discutido anteriormente: é uma
foto de paisagem.
Este caminho de uma foto para a outra, bem como o processo técnico empregado
(ou seja, a ampliação) sugerem claramente a existência de um continuum entre as duas
imagens: uma é gerada pela outra. Entre as duas, encontra-se a narrativa vaga de uma
morte.
312
Existem inúmeras interpretações possíveis destes elementos e dos seus
relacionamentos para que cada um outro exista; ainda, há um de particular interesse para
nós aqui, porque constitui a sequência das ampliações fotográficas, como uma espécie
de alegoria: uma alegoria de uma história — da arte e, mais precisamente, a morte da
arte figurativa — realizado na passagem da representação da paisagem de abstração.
Uma analogia entre o papel dos temps morts no trabalho de Antonioni e o papel
da paisagem na história da representação resulta assim: a extensão dos temps morts —
que causa que a paisagem do cinema de Antonioni pode contribuir - para a morte da
narrativa fílmica, como a paisagem tem contribuído para a morte da arte figurativa.
Este é o caso com filmes como a paixão (1982), Prénom Carmen (1993), Je vous
salue Marie (1985), Rei Lear (1987), Nouvelle vague (1990), Allemagne année 90
(1991) e Hélas pour moi (1993). Ocasionalmente, Godard faz a paisagem emergir do
espaço narrativo através do uso de temps morts ou simplesmente deslocando o olhar da
câmara.
246
In MITCHELL, W. J. T., Op. Cit., p.13.
313
filme está cheio de contradições: não só de caráter, especialmente nas protagonistas
femininas, mas da forma como Godard escolhe traçar uma tragédia moderna no centro
(Roma) e no sul (Capri) de Itália, mesmo no verão, onde a luz e o sol reinam. A
obscuridade dos sentimentos e da escuridão da alma contra o esplendor e a majestade de
uma paisagem indiferente à miséria humana.
314
os planos de transição clássicos, que estabelecem a configuração para uma nova cena, as
inserções da paisagem de Godard não são de nenhuma maneira motivadas pela ação.
Muito pelo contrário, eles interrompem ou abrem o fluxo da ação. Se, como
explica Chatman, os temps morts dão a impressão de "um outro lugar", então isto é o
que é oferecido literalmente pelas paisagens inseridas nos filmes de Godard. Os planos
cinematográficos deste tipo são abundantes na maioria dos filmes que dirigiu desde a
década de 1960. A sua presença liga uma certa transcendência (mesmo que apenas em
relação a história) e contemplação e contribui para a elaboração de uma estética que
procura cada vez mais a expressão do sublime.
315
Fig. 130. Frame, Le Mépris, Jean-Luc Godard, 1966.
316
3.3.4.5. Manuel de Oliveira e a paisagem como tragédia.
O título Vale Abraão coloca a ênfase num contexto espacial específico. Esta
dicotomia identificadora do espaço e da paisagem, destinado ao sofrimento, mas
também propício ao prazer e à volúpia, define igualmente o destino da personagem
principal - Ema é apresentada em uníssono com a paisagem, um rosto dessa paisagem,
numa simbiose quase perfeita com a água do rio, a água que é também um símbolo do
Gênese, do nascimento, e para os Vedasé chamada de "mâtrimâh", que significa "a mais
materna".
Nos mitos dos heróis ela está sempre associada ao seu nascimento ou ao
renascimento. Mitra, por exemplo, nasceu nas margens de um rio, enquanto Cristo
"renasceu" no Rio Jordão. Dessa forma, o rio sempre nos reporta à origem das coisas,
do mundo, dos seres. Esse rio que parece deslizar languidamente ao longo daquele Vale,
sem grandes convulsões, num balançar constante, dividindo as duas margens do rio,
separando-as em metades diferenciadas e, ao mesmo tempo, coexistindo e fazendo parte
daquele todo que é a paisagem do Douro.
“O vale do Douro com os seus ritos vinhateiros, o mundo dos sonhos, desejos
imaginários, é o centro ficcional do filme. Vemo-lo apresentado e sacralizado pela voz
317
do narrador e, em termos imagéticos, enquadrado desde o início por um travelling a
partir do interior do comboio, que o penetra, deixando transparecer o fascínio
documentarista sempre presente na obra de Manoel de Oliveira.”247
247
In LOPES, Célia Maria Sousa, O Bovarismo ou a busca do absoluto no filme Vale Abraão de Manoel
de Oliveira, Tese de Mestrado em Estudos Francófonos, Universidade Aberta, Lisboa, 2010.
248
OLIVEIRA, Manoel de – Vale Abraão, com Leonor Silveira, Luís Miguel Cintra, Ruy de Carvalho.
Portugal/França/Suiça, 1993, 187mn (versão integral 203mn), DVD, Madragoa filmes.
249
DELEUZE, Gilles. L’Image-Mouvement, Paris, Éditions de Minuit, 1983, p.9.
250
O campo e as transformações de cultivo tinham também ocupado um papel central, por exemplo, em O
Pão, 1959. Cf. João Fernandes, «O Cinema Sazonal: A Evolução do Cinema Particular de Manoel de
Oliveira», in M. O. 2/3, Porto, Museu de Serralves, Civilização Editora, 2008.
251
In Folhas da Cinemateca Portuguesa.
318
Fig. 132. Frame, Vale Abraão, Manoel de Oliveira, 1993.
319
campos na outra margem e, do outro lado do Douro, a partir das vinhas, a paisagem
urbana.
Este “frame” corresponde, com frequência, ao que Isaac entrevê, validando que
“a paisagem não é o país, mas uma certa maneira de o ver [...], é o país percecionado
do ponto de vista de um sujeito”252.
252
COLLOR, Michel; Paysage et Poésie du Romantisme à nos jours, Paris, José corti, 2005, p.193.
253
In PAIXÃO, Ana, Uma Escrita da Temporalidade, Perspectivas da Paisagem. In Coloquio Letras, N.
179, Lisboa. 2012.
254
In DELEUZE, Gilles Cinéma I – L’image-mouvement, Paris, Éditions de Minuit, 1983, p. 9.
320
“Além do tempo de cada still e do movimento originado pela sucessão das
diversas frames, os signos cinematográficos modelam uma pluralidade de
temporalidades que se concentram e se fundem no discurso fílmico. Isaac transita
constantemente entre o presente e o passado e os campos do Douro são exemplares da
fusão de tempos, ao introduzirem o leitmotiv da mudança.”255
Até este ponto, examinamos algumas das estratégias que os cineastas usam para
fazer paisagens visíveis e introduzi-las em filmes de ficção. Sem dúvida, existem outros,
e a nossa análise não pretende oferecer um inventário exaustivo. Em vez disso, é
importante salientar mais uma vez que estas estratégias podem ser interpretadas sem
muito equívoco como indicando a intenção de mostrar uma paisagem.
255
In PAIXÃO, Ana, Uma Escrita da Temporalidade, Perspectivas da Paisagem. In Coloquio Letras, N.
179, Lisboa. 2012.
321
De fato, se voltarmos às questões suscitadas pelos historiadores de arte sobre o
trabalho de Patinir, deve tornar-se claro que a paisagem não pode ser definida
unicamente através de características formais. Por esta razão, nós tentamos enfatizar
uma abordagem interpretativa: onde a paisagem e a configuração espacial exigem
interpretação. No entanto, tal como um viés interpretativo não é nem
metodologicamente nem historicamente óbvio.
322
Fig.134. Landscape with the flight into Egypt, Joachim Patinir, 1516-1517.
Fig.135. Landscape with the flight into Egypt, Joachim Patinir, 1515-1516.
323
A paisagem deve ser vista como um sinal; por outras palavras, deve ser uma
maneira de conceber ou de representação da mesma, vendo, olhando, sentindo e,
portanto, de interpretar uma obra pictórica. A história da pintura de paisagem é a
história deste signo, o histórico das suas várias ocorrências aos olhos dos pintores e dos
críticos (e dos outros espectadores) desde a Renascença.
Num sentido estrito, esta história não é, portanto, uma história de obras de arte
(coisas materiais), mesmo que estas obras permanecem num local privilegiado para a
compreensão das diferentes manifestações da paisagem (especialmente aqueles
dependendo do olhar do pintor).
Aqui, Gombrich, como podemos ver, sente a obrigação de discutir dois tipos de
paisagem: a paisagem "pura" e o paese Italiana que poderia por meio de contraste de
nome, ser uma paisagem "impura". Porque criar esta distinção?
256
In GOMBRICH, Ernest, Op. Cit., p.119.
324
Agora, a discussão de Gombrich estabelece que os italianos viram a paisagem
onde outros — incluindo os artistas flamengos que pintaram as obras — viram outra
coisa. Assim, é claro que nós não podemos reduzir a paisagem à sua forma institucional
"pura". Além disso, é por isso que a história da pintura deve dar espaço para pinturas
que serão vistas (ou interpretadas) mesmo se estas pinturas de paisagens não
correspondem formalmente a uma paisagem "pura".
Nessas pinturas, é o olhar do espectador, que faz com que o espaço natural
autónomo, se transforma em paisagem e relega os outros elementos pictóricos para a
“margem”. E tudo isto independentemente das intenções verificáveis do pintor sobre a
paisagem.
Finalmente, mesmo que Gombrich não seja tão convincente quando se trata de
identificar os diversos fatores que determinaram o «olhar» da paisagem "impura" (as
suas interessantes explicações negligenciam as transformações culturais, científicas e
económicas do renascimento), e sugere a sua influência na paisagem "pura".
Além disso, segundo Gombrich este género, uma vez estabelecido, tornar-se-ia a
fonte do nosso “olhar" sobre o paisagismo" (a nossa sensibilidade à paisagem) do
mundo: "assim, embora seja usual para representar a descoberta do mundo ' como o
motivo subjacente para o desenvolvimento da pintura de paisagem, somos quase
tentados a inverter a fórmula e afirmar a prioridade da pintura de paisagem
sentida””257.
257
In GOMBRICH, Ernest Op. Cit., p.120.
258
Muito tem sido escrito sobre esta hipótese. Alain Roger, o especialista francês da paisagem, assumiu e
concebe a transformação do espaço (ou terra) na paisagem como a tarefa da arte, o que ele chama de
325
Fig.136. Frame, Melancholia, Lars von Trier, 2011.
"artialisation": "a natureza é indeterminada e só recebe as suas várias determinações da arte: a terra só
se torna uma paisagem sob as condições de uma paisagem e que, somente de acordo com...
modalidades... de artialisation." Em Court traité du paysage (Paris: Gallimard, 1997), 17-18. Para uma
crítica da primazia da arte no que diz respeito à paisagem, ver W. J. T. Mitchell, Op. Cit.
326
Depois de quatro séculos de desenvolvimento, este modo de ver a paisagem
constitui hoje um hábito cultural e um modo de olhar o mundo, revelando-se não só na
nossa capacidade de ver paisagens reais no local, mas também na nossa capacidade de
trazer um "olhar de paisagismo" sobre imagens que não imediatamente derivam do
gênero (por exemplo, obviamente, imagens fílmicas).
327
Fig. 138. Frame, The Age of Innocence, Martin Scorsese, 1993.
328
Dominique Chateau escreve: não só é raro que as paisagens aparecem sem
necessidade de narrativa, mas até mesmo a sua função principal prossegue desta
necessidade. Além disso, esta função é secundária em termos de "se considerar a
questão do ponto de vista dos próprios filmes (que a narrativa. Em geral, a paisagem
não é uma função suficiente.259
Tal significa que se nós adotamos o ponto de vista que privilegia a imanência,
isso é bem verdade. Podemos citar, por exemplo, os filmes de que John Ford filmou em
Monument Valley, como My Darling Clementine (1946) ou The Searchers (1956), para
que o argumento de Chateau seria inteiramente apropriado e onde, à primeira vista, o
espaço é formalmente subordinado à história.
Esta maneira de olhar para as imagens do mundo natural (quer sejam de Ford ou
de outra pessoa), a sensibilidade que as atesta, é a fonte de nosso desejo de falar delas,
259
In CHATEAU, Dominique, "Paysage et décor. De la natureza à l'effet de natureza,"Les paysages au
Cinéma, Ed. Jean Mottet (Seyssel: campeão Vallon, 1999), 97.
260
Consultar Richard Huston, "Sermons in Stone: Monument Valley in The Shearchers" in The Searchers:
Essays and Reflections: John Ford Classic Western, Ed Arthur M. Eckstein e Peter Lehman (Detroit:
imprensa da Universidade de estado de Wayne, 2004), 93-108.
261
In MAUDY, J. and Henriet, G., Géographies du Western, Paris: Nathan, 1989, p.69.
262
Id Ibid, p.74.
329
Quer para analisar e interpretá-las também no que diz respeito às qualidades que exibem
por conta própria, ou, da forma como podemos projetá-las para a narrativa, para
conectá-las com os temas ou as preocupações simbólicas, isto é, para encontrar algum
sentido nelas que vai muito além da sua função narrativa como configuração espacial.
330
Fig. 140. Frame, The Searchers, John Ford. 1956.
331
Estas observações não implicam o interesse da Ford no espaço natural, tendo
este um nível de autonomia da história. Como resultado, a história não é subserviente ao
espaço e à paisagem, mas o contrário? Dizê-lo de outra maneira, não é este o sinal
inegável de sua intenção de nos mostrar a paisagem ao invés de uma simples
configuração cenográfica espacial.
A analogia entre arte flamenga do século XVI e o cinema de John Ford talvez irá
surpreender aqueles que veem desde o início correspondências formais entre o uso de
Ford de Monument Valley (ou outros espaços naturais do Oeste) e as pinturas ou
ilustrações do "“ocidente longínquo". Afinal de contas, quantos planos de Ford do
deserto se assemelham a certas paisagens ocidentais como as pintadas por Frederic
Remington263 ou Alfred Jacob Miller264, ou fotografados por E. S. Curtis265
(1868/1952)?
Sabemos que, de outro lado, Ford está ciente deste corpus de trabalho.
263
Frederic Remington (1861/1909) pintor, ilustrador, escultor e escritor americano que se especializou
em representações do Velho Oeste americano, concentrando-se especificamente no último quarto do
século XIX do Oeste Americano e em imagens de vaqueiros e índios americanos.
264
Alfred Jacob Miller (1810/1874) artista americano mais conhecido pelas suas pinturas de caçadores e
índios no comércio de peles do oeste dos Estados Unidos. Ele também pintou retratos e pinturas de
gênero em e ao redor de Baltimore durante os meados do século XIX.
265
Edward Sheriff Curtis, fotógrafo americano e etnólogo cujo trabalho se concentrou no Oeste
americano e nos povos nativos americanos.
332
Mas é importante compreender claramente a diferença entre a Ford e Curtis.
Com efeito, embora os pintores, os ilustradores e os fotógrafos do Ocidente tenham
produzido trabalhos dentro do género bem estabelecido da paisagem pictórica, os filmes
de Ford participarem num gênero de narrativa cinematográfica: o Western. Esta
diferença implica uma diferente economia e funcionalidade espaciais, como temos
tentado demonstrar ao longo deste capítulo.
Em suma, não é porque usa Ford o plano cinematográfico para ilustrar uma
cavalgada no deserto que invocamos paisagem para dar conta da experiência que temos
do deserto. Isso não seria suficiente. Em vez disso, é porque, para os espectadores,
vários planos evocam a arte pictórica da paisagem (e o seu olhar), que serve como uma
mediação entre o filme e a paisagem.
Finalmente, quando pensamos sobre isso, há uma circularidade curiosa aqui que
nos permite distinguir os colecionadores italianos do século XVI dos espectadores de
Ford do século XX.
Se, como sugere Gombrich, a paisagem "pura", que mais tarde foi
institucionalizada como um gênero pictórico, começou como paisagem "impura", é
claramente esta paisagem "pura", que é em grande parte responsável pela paisagem
"impura" do cinema! Mas esta circularidade não é paradoxal, na medida em que a
paisagem como gênero pictórico processa apenas o olhar de paisagem (que faz o gênero
possível) na instituição da arte pictórica (que, como já explicamos, inclui, mas não é
redutível às obras de arte).
333
Este olhar, não foi uma fórmula que apreendeu o trabalho dos realizadores
cinematográficos de filmes de ficção. Nós sabemos porquê: A paisagem não é e não
seria, um gênero cinematográfico no mesmo sentido como o Western ou um filme Noir.
No entanto, não impede o “olhar de paisagem” de se manifestar na atividade sensorial
do espectador.
266
David Bordwell (1947) é um famoso historiador e teórico de cinema americano. Desde que realizou o
seu doutoramento pela Universidade de Iowa em 1974, escreveu mais de quinze volumes sobre a temática
do cinema, incluindo Narração no Ficção (1985), Ozu e a Poética do Cinema (1988), Making Meaning
(1989), E sobre a história do estilo no filme (1997). Com a sua esposa Kristin Thompson, Bordwell
escreveu os livros didáticos preliminares Film Art (1979) e Film History (1994). Com o filósofo estético
Noël Carroll, Bordwell editou a antologia Teórica: Reconstruindo os Estudos de Cinema (1996), uma
polêmica sobre o estado da teoria do cinema contemporâneo. O seu trabalho mais famoso, O cinema
clássico de Hollywood: Estilo do filme e modo de produção até 1960 (1985), escrito com a colaboração
de Thompson e Janet Staiger. Vários de seus artigos mais influentes sobre a teoria, a narrativa e o estilo
foram editados em Poetics of Cinema (2007).
267
In BORDWELL, David and THOMPSON, Kristin Film Art: An Introduction, Fourth Edition, Nova
Iorque; McGraw Hill, 1993, p.212.
334
Mas, dito isto, o que é produzido, quando, em vez de seguir a fúria da batalha
nas planícies e que é claramente o objeto do olhar da câmara, o nosso próprio olhar
abraça o espaço e torna a paisagem que emerge na nossa consciência?
335
“Planos Finais” – Conclusão
336
A paisagem, como temos visto, é uma representação do espaço. É uma forma de
predicado espacial. Outra maneira que a de dizer, seria a paisagem é uma forma de ser
do espaço externo nas nossas mentes. Esta representação, ou sinal, manifesta-se de
maneiras diferentes: do modo em que os seres humanos apreendem visualmente algum
fragmento do espaço real; da maneira em que eles têm de apreender o espaço retratado
nas obras pictóricas, assim como, através das obras que são capazes de "traduzir" este
sinal em composições pictóricas específicas.
Neste ultimo capítulo, vimos que estas estratégias semióticas podem trabalhar no
cinema e que dizem respeito ao espectador (especialmente através do que chamamos o
modo panorâmico) e à forma dual de temporalidade (a do meio do filme e da atividade
do espectador).
Agora voltamos brevemente a este aspeto temporal para definir melhor as suas
implicações. As paisagens no cinema, como sabemos, requerem que o espaço adquira
alguma autonomia da narrativa. Como já vimos, este é um resultado provável do uso de
temps morts que, não obstante o nome, muitas vezes tem consequências na nossa
experiência de espaço também. Assim, apesar do movimento contínuo do filme através
do projetor e da passagem do tempo na tela, temos a impressão em tais momentos que o
tempo em si (o filme, a história) é “preso” para entregar ao nosso ponto de vista, um
espaço.
Mas a sua presença certamente torna-se inútil para qualquer tentativa de analisar
337
o filme do espectador através do único fundamento da projeção (o tempo que leva para
o filme operar através do projetor). Roland Barthes (1915/1980) refletiu com um
propósito diferente em mente e reconheceu que tanto quando, influenciado por
Eisenstein, pensou numa teoria de fotogramas (ou Frames) no cinema, a fim de
compreender o que escapa à temporalidade fixa na condução do filme através do
projetor e da narrativa.
"O fotograma", escreveu Barthes, "ao instituir uma leitura que é ao mesmo
tempo instantânea e vertical desconsiderando o tempo lógico (que é apenas um tempo
operatório); ensina-nos a dissociar a restrição técnica (as filmagens) do
autenticamente fílmico, que é o significado do 'indescritível'.268
Isto não é dizer, no entanto, que a paisagem cinematográfica pertence aquilo que
Barthes chama de "significado pouco inteligente", nem de implicar que ela precisa ser
convertida em termos de um modo “foto-gramático”; O autor meramente em vez disso
sinaliza a necessidade de compreender o surgimento da paisagem fora da narrativa, fora
do que Barthes considera o nível comunicacional ou "informativo" do filme e, portanto,
como algo que - como um “obtuso” significado – funciona um pouco livremente da
projeção e do tempo diegético.
268
In BARTHES, Roland "Le troisième sens," in L'obvie et l'obtus. Essais critiques III (Paris: Gallimard,
1982), p.61.
338
território é espaço visto de "dentro", um espaço subjetivo e vivido.
Este tipo de espaço está associado mais aos cartógrafos, aos geógrafos, aos
conquistadores, aos caçadores, mas também aos agricultores, ou a alguém que habita ou
tem uma reivindicação na terra, do que usualmente ao artista (embora eles não sejam
mutuamente exclusivos).
Quando o geógrafo escreve, "A paisagem está ancorada na vida humana, não
algo para olhar, mas para viver e viver socialmente. A Paisagem é uma unidade entre
as pessoas e o ambiente que se opõe na sua realidade, á falsa dicotomia do homem e da
natureza... A Paisagem é para ser julgada como um lugar para viver e trabalhar em
termos de aqueles que realmente trabalham e moram lá. Todas as paisagens são
simbólicas".269
Ele, o geógrafo, retorna a paisagem à sua territorialidade. Com efeito, para além
do estudo da morfologia de uma região, os geógrafos, especialmente os geógrafos
culturais, descrevem a paisagem como um conjunto de relações que são tecidas entre os
seres humanos em actividade: agricultura, caça, pesca, navegação e transporte,
silvicultura, etc.
269
In COSGROVE, Dennis, Op. Cit., p.35.
270
In RAFFEST, Claude, Pour une géographie du pouvoir (Paris: Librairie Technique, 1980), 145, n. 27.
339
Com efeito, posse não é uma característica necessária para representar o espaço
como uma paisagem, na medida em que o entendemos em termos estéticos;
considerando que é necessário quando o espaço é representado como "território".
271
In HALL, Edward T., The Hidden Dimension (Garden City, NJ: Doubleday, 1966), 1966.
272
In APPLETON, Jay, The Experience of Landscape (Londres: John Wiley, 1975).
273
Ver LACOSTE, Yves, "um quoi sert le paysage? Qu’est-ce qu’un beau paysage,"em La théorie du
paysage en France, 1974-1994, Ed. Alain Roger (Seyssel: Champ Vallon, 1995).
340
Assim, muito antes do uso generalizado de mapas, os militares frequentemente
utilizavam desenhos que, embora fossem feitos para servir propósitos táticos e
territoriais, podem também ser olhados esteticamente; e mapas, é claro, que podem
igualmente ser utilizados esteticamente ou podem ser integrados em obras de arte.274
274
Ver CASEY, Edward S. Representing Place: Landscape painting and Maps (Minneapolis: Minnesota
University Press, 2002) and Earth-Mapping. Artists Reshaping Landscape (Minneapolis: Minnesota
University Press, 2005).
341
342
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http://livrozilla.com/doc/315758/tese-catarina-alves-costa---run
106-
http://livrozilla.com/doc/315758/tese-catarina-alves-costa---run
107-
Nanook of the North (also known as Nanook of the North: A Story of Life and Love In
the Actual Arctic), Robert J. Flaherty. 1922
https://en.wikipedia.org/wiki/Nanook_of_the_North
108-
. Frame, Storm over Mont Blanc (German: Stürme über dem Mont Blanc), Arnold
Fanck. 1930.
http://wikivisually.com/lang-de/wiki/St%C3%BCrme_%C3%BCber_dem_Mont_Blanc
109-
https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_do_Mar
110-
Frame, La bête lumineuse (English: The Shimmering Beast), Pierre Perrault. 1982.
http://movieworld.ws/pierre-perrault-film-works-volume-4-man-and-nature-loeuvre-de-
pierre-perrault-volume-4-lhomme-et-la-nature/
111-
Frame, La bête lumineuse (English: The Shimmering Beast), Pierre Perrault. 1982.
http://movieworld.ws/pierre-perrault-film-works-volume-4-man-and-nature-loeuvre-de-
pierre-perrault-volume-4-lhomme-et-la-nature/
112-
Frame, Workers Leaving The Lumière Factory in Lyon (French: La Sortie de l'Usine
Lumière à Lyon), Louis Lumière.1985.
392
https://en.wikipedia.org/wiki/Workers_Leaving_the_Lumi%C3%A8re_Factory
113-
Saída do Pessoal Operário da Fábrica Confiança, Aurélio Paz dos Reis, 1896.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Sa%C3%ADda_do_Pessoal_Oper%C3%A1rio_da_F%C3
%A1brica_Confian%C3%A7a
114-
https://pt.pinterest.com/olakubicka/stanley-kubrick-barry-lyndon/
115-
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116-
https://pt.pinterest.com/explore/lust-for-life/
117-
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118-
http://theredlist.com/wiki-2-20-777-782-view-1990-2000-profile-1990-bdreams-b.html
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119-
http://theredlist.com/wiki-2-20-777-782-view-1990-2000-profile-1990-bdreams-b.html
120-
http://theredlist.com/wiki-2-20-777-782-view-1990-2000-profile-1990-bdreams-b.html
121-
http://www.rebeldemule.org/foro/cine/tema13267.html
122-
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123-
https://pt.pinterest.com/beatris1354/michelangelo-antonioni/
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129-
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130-
https://vimeo.com/130020913
131-
https://vimeo.com/130020913
132-
395
http://avaxhome.unblocker.xyz/video/val_abraham.html
133-
http://avaxhome.unblocker.xyz/video/val_abraham.html
134-
http://www.kmska.be/en/collectie/highlights/Landschap_naar_Egypte.html
135-
http://www.kmska.be/en/collectie/highlights/Landschap_naar_Egypte.html
136-
https://pt.pinterest.com/pin/74098356340509353/
137-
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138-
https://theendofcinema.net/2015/10/
396
139-
https://pitchflick.wordpress.com/2015/07/28/solaris-1972-and-the-mirror-1975-plus-a-
note-on-my-blogging-future/
140-
https://www.ffffilm.com/movie/the-searchers-1956
141-
https://www.ffffilm.com/movie/the-searchers-1956
397
398
Filmografia
399
The Abominable Snowman (Val Guest, 1957)
400
Barry Lyndon (Stanley Kubrick 1975)
Britain Can Take It! (Humphrey Jennings and Harry Watt, 1940)
401
La caza (Carlos Saura, 1965)
The Days before Christmas (Stanley Jackson, Wolf Koenig, Terrence McCartney
Filgate, 1958)
402
Death ofa Bureaucrat (Tomás Gutiérrez Alea, 1966)
403
The Field (Jim Sheridan, 1990)
404
Heavenly Creatures (Peter Jackson, 1994)
I Know Where I'm Going! (Michael Powell and Emeric Pressburger, 1945)
Infernal Affairs (Wai Keung Lau and Siu Fai Mak, 2002)
405
Koktebel (Boris Khlebnikov and Aleksei Popogrebskii, 2003)
A Matter of Life and Death (Michael Powell and Emeric Pressburger, 1946)
406
The Miracle Worker (Alexander Medvedkin, 1937)
407
One Night the Moon (Rachel Perkins, 2001)
408
Reefer and the Model (Joe Comerford, 1987)
409
Sleeping Dogs (Roger Donaldson, 1977)
Strawberry and Chocolate (Tomás Gutiérrez Alea and Juan Carlos Tabío, 1993)
410
They're a Weird Mob (Michael Powell, 1966)
411
Walkabout (Nicholas Roeg, 1971)
412
413
Anexos:
414
TRÊS TEXTOS DE NEWMAN275:
“Tem-se tornado cada vez mais aparente que para percebermos a arte moderna,
temos de fazer uma avaliação das artes primitivas; tal como a arte moderna, mantêm-
se como uma ilha de revolta da estética da Europa Ocidental. As muitas tradições da
arte primitiva mantêm-se à parte, como autênticas realizações estéticas que florescem
sem beneficiar da história europeia.
275
Tradução livre do inglês pelo autor desta tese. In Newman, Barnett, Selected Writings and interviews,
University of California Press, 1992.
415
pintura primitiva, que desceu até nós de qualquer parte do globo.
É nossa esperança que estas grandes obras de arte, quer seja nas paredes das
casas, nas roupas cerimoniais e nas vestes oficiais, ou como mantas cerimoniais, serão
desfrutadas, em atenção a elas, mas não é apropriado enfatizar, que será um erro
considerar estas pinturas como meros instrumentos decorativos: eles constituem uma
espécie de indicador do desenho.
416
O QUADRO IDEOGRÁFICO
417
Espontânea e emergindo de diversos pontos, surgiu durante os anos da guerra
uma nova força na pintura americana, que é o moderno duplicado do impulso da arte
primitiva. Já em 1942 Mr. Edward Alden Jewell foi o primeiro publicamente a informar
disto. Desde então vários críticos e negociantes têm tentado rotular e descrever o
“acontecimento”.
É agora o tempo para o artista, ele próprio mostrar o dicionário, para tornar
claro para a comunidade as intenções que o motivam assim como os seus colegas.
Agora há um grupo de artistas que não são pintores abstratos, apesar de trabalharem
naquilo que é conhecido como estilo abstrato. Mrs. Betty Parsons organizou uma
exposição representativa deste trabalho na sua galeria, com os artistas que são os seus
expoentes. Não é sem significado que muitos deles estão associados à sua galeria.”
418
Até os impressionistas quebraram o “feitiço”, a vida emocional europeia foi
dominada, durante séculos pelo sonho grandioso do Renascimento. O próprio
Renascimento foi buscar o seu sonho à Grécia clássica, e para os Gregos a pirâmide
Egípcia foi o símbolo da beleza absoluta, o símbolo das suas esperanças artísticas.
No nosso tempo, Picasso pode ter tido muitas utopias, mas o seu primeiro
“sonho” — aquele que lhe deu “Voz” – foi a escultura negra. Isto não quer dizer que a
sua arte deriva daí, mas Picasso tentou adquirir as ideias artísticas que ele pensava
que existiam na tradição da arte primitiva. Semelhantemente Matisse encontrou o seu
“mundo nostálgico” nas grandes tradições da Pérsia primitiva.
O Museu de Arte Moderna de New York trouxe estas interligações entre a arte
moderna e a arte de povos primitivos até nós, com a recente exposição de objetos
artísticos das ilhas da Oceânia, do Pacífico do Sul.
Com esta exposição é agora claro que até o surrealismo — que deu sempre a
impressão de estar na periferia da revolução moderna das artes plásticas — não é
exceção no “Romantismo” do nosso tempo, que tem o seu Romance na Arte dos Mares
do Sul.
Esta foi a mais importante exposição que se realizou até agora, e a primeira
onde há uma preocupação estética deste material, tornando isto um evento de dimensão
internacional. É interessante que à exceção das peças trazidas da Austrália para
representar a arte dos Aborígenes, as quatrocentas peças apresentadas vêm todas de
museus científicos americanos. Foi preciso uma guerra para o público Americano
perceber a importância destas culturas, porque até agora, eram apenas símbolos de
419
culturas exóticas, para agências de viagens, fazerem cartazes.
O alcance da arte dos Mares do Sul, é tão vasto que seria incompleto tentar dar
uma análise detalhada aqui, como seria insuficiente tratar a história da Europa
ocidental numa frase. A Arte dos Mares do Sul integra desde o ornamento, estilos
decorativos Rococós dos Maoris da Nova Zelândia, para a funcional simplicidade das
ilhas da Micronésia, do expressionismo da arte semirealista da ilha da Páscoa, até ao
simbolismo imaginativo dos desenhos a carvão da Nova Irlanda; dos desenhos
metafísicos dos Aborígenes da Austrália, até à arte abstrata da Papua Nova-guiné.
Toda a vida está cheia de terror e a razão da arte primitiva está muito próxima
do pensamento moderno. Vivendo nós em tempos de grandes terrores, estamos numa
posição de entender a sensibilidade primitiva que o homem sente por isto. Contudo
apesar do homem sentir terror, é nos objetos que expressam este “sentimento”, que
contem os elementos de interpretação cultural que permitem a diferenciação das suas
expressões subjetivas. O homem moderno tornou-se no seu próprio terror. Para o
Africano, e para o Mexicano, o medo estava na selva, na natureza bruta.
Nas ilhas do Pacífico Sul é capaz de não ter havido um gosto pelo terror perante
uma natureza imobilizada, mas perante forças incontroláveis da natureza: o mar
420
inatingível, os ventos imensuráveis.
Contudo a relação do surrealismo com o pacífico Sul torna claro que o pintor
moderno, seja qual for a sua escola, está emocionalmente ligado à arte primitiva. O
artista da Oceânia e o surrealista formam uma fraternidade comum a uma proposta
estética.
Como a exposição clarifica, esta fraternidade também mostra as fundamentais
diferenças entre eles, o que explica o porque os surrealistas falharam na sua tentativa
de alcançar esta comunhão conjunta. Pode-se até pensar que o objetivo desta
421
importante exposição é demonstrar a falha dos surrealistas para interpretar o
significado do mágico — que eles só compreenderam o seu aspeto superficial;
insistindo numa apresentação materialista disso, na tentativa de apresentar um mundo
transcendental em termos de realismo, em termos da “plástica” renascentista e do
espaço renascentista, misturando o sonho geral do artista moderno com o sonho já
gasto da Europa académica.
Há um novo movimento que chegou à América, e que mostra através dos seus
trabalhos uma reinterpretação da arte da Oceânia, e que se baseia numa arte de
magia. As suas técnicas, são as técnicas da arte abstrata moderna, mas as suas origens
repousam no mesmo tema mitológico que motivou o artista do pacífico Sul. Estes
artistas estão mais próximos do artista primitivo que os tradicionais surrealistas.
Contudo uma análise do trabalho deste grupo é assunto a tratar noutro artigo.”
Barnett Newman
422
423