Ainda Bem Que Nos Restou A Poesia

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ainda bem

que nos restou


a poesia

1
ainda bem que nos restou a poesia

antologia

org.: francisco ramai

primeira edição

obra independente

2020

2
diagramação:
francisco ramai
capa:
arthur diogo

este livro foi lançado durante a pandemia do covid-19


para arrecadar fundos para compra de cestas básicas

3
Agradeço à Clarice Sabino,
Kaio Bruno Dias e Arthur Diogo
pela prestatividade.

Aguardo o futuro roendo as unhas e enxugando os olhos.

4
“O que ponho de cerebral nos meus escritos
é apenas uma vigilância
para não cair na tentação
de me achar menos tolo que os outros.”
(Manoel de Barros)

5
Sumário

1. Francisco Ramai, pág. 8


2. Erick Saraiva, pág. 31
3. Bárbara Deidel Bittencourt, pág. 52
4. Davi Melo, pág. 67
5. Saulo Pessato, pág. 88
6. Arzírio Cardoso, pág. 109
7. Vandei Oliveira, pág. 116
8. Brunno Leal, pág. 138
9. José Danilo Rangel, pág. 159
10. Brendow H. Godoi, pág. 183
11. Arthur Diogo, pág. 205
12. Giovanna Vieira, pág. 236
13. Alf, pág. 253
14. Lineker Campos, pág. 270
1. Wally Wilde, pág. 290
16. Manoel de Areia, pág. 317
17. Kaio Bruno Dias, pág. 334
18. Clarice Sabino, pág. 340

6
7
1. Francisco Ramai

Nascido no interior da paraíba em 1998, Francisco Ramalho Neto


se tornou Ramai em 2016, quando começou a publicar seus escri-
tos na internet. Levou dois anos para publicar o seu primeiro livro,
“espetando o coração com uma agulha”, em 2018. Lançou em segui-
da, em 2019, os livros “eu te amo como uma criança dirigindo um
carro” e “sou tão humano que me dói”. Em 2020, lançou o livro “eu
nunca consegui dizer teu nome sem tremer o canto da boca”. Todos
os livros, lançados de forma independente, foram bem aceitos pelo
público e venderam milhares de cópias cada. Ao longo desses pou-
cos anos, Ramai recebeu o prêmio “memória sousense” pelo SESI
de Sousa, sua cidade natal, além de ter feito diversas aparições em
bibliotecas e teatros da região.

8
toda mosca que passa
meu cachorro tadinho
tenta pegar e não consegue

me identifico
meu cachorro sou eu
a mosca é a felicidade

9
no estado que estamos
de avanço tecnológico
já é tanta coisa que se pode
fazer num computador
que a gente vai morrer
sem saber de tudo
mas mesmo assim
todo mundo hoje em dia
tá sempre meio entediado
essa coisa não me desce
isso que a gente sente
não é tédio não senhor
é tristeza

10
não gosto do escuro
mas o luto e a saudade
me obrigam a manter
as luzes apagadas
pra ver se teu fantasma
aparece no meio da noite
pra me dar um susto

11
eu sinto por você
um amor tão forte
mas tão forte
que toda vez
que digo que te amo
é um desabafo

12
acho que entendi o motivo
de falarmos com voz de criança
quando estamos apaixonados:

é que nos bate uma felicidade


tão pura, tão gostosa, tão genuína,
que a gente até se sente criança de novo…

13
tem noite que não
tenho tempo pra nada
a não ser pensar em você.
quer dizer, pensar em você
até que é uma ocupação e tanto:
exige nuances, técnicas, horas,
e muita maturidade
pra não morrer de sem você.
mas o problema é que só eu
entendo o trampo que isso dá.
então quando você me pergunta
o motivo deu ter sumido ontem à noite,
respondo com meias verdades:
“acontece que andei ocupado...”

14
minha maior angústia é ter pressa:
eu só quero os meus sonhos pra ontem
mas a vida, essa lerda, só me dá amanhãs e amanhãs…

15
é como se nada fosse capaz de matar a tristeza.
nem o gozo mais prazeroso
nem o sonho mais iludido
nem a cachaça mais forte.
é como se nada fosse
tão forte.
eu tenho uns amigos
que são tão tristes quanto eu
e sei que eles são tristes
pois quando a gente sai pra beber
a gente ri de uma forma patética.
como se de uma maneira desesperada
absurdamente desesperada
a gente necessitasse
gargalhar.
talvez assim
a tristeza pareça ter fim
mas no fundo
bem no fundo
a gente sabe
que não tem…

16
quando eu tinha oito anos
escrevi num bilhete
que amava minha vizinha
e joguei no quintal da casa dela.

eu esqueci de colocar meu nome


então ela nunca soube que fui eu,
mas mesmo assim valeu a pena:

aquele foi meu primeiro poema de amor…

17
nesses jantares de natal
o que mais dói
é esse clima tenso
quase imperceptível
essa saudade
que todo mundo sente
em silêncio
dos parentes que já não
ocupam mais a mesa...

18
eu não chamo de amor
o que acontece comigo
quando olho pra você.
é que seria muito simples
limitar essa sensação disrítimica
com um termo assim, tão corriqueiro.
quer dizer, eu até te amo,
mas pra nós dois,
só o amor
não basta.
é muito mais do que isso.
é no mínimo
desespero.

(mas eita desespero gostoso…)

19
rapidinhas

*
a nossa infância acaba
assim que choramos com razão pela primeira vez

*
a tristeza só é uma coisa bonita por insistência dos poetas

*
não há absolutamente nada mais poético do que um sorriso triste

*
as estátuas são pedras que apanharam até se tornarem heróis

*
quem diz que a vida passa rápido
nunca parou pra observar um relógio de parede

*
ler poesia é chamar a dor pra uma valsa

*
meus últimos sonhos andam sendo lembranças

*
com saudade do filho a mãe suspira
sempre que põe no fogo um bife a menos

20
eu sou eu
aí você chega
e eu sei lá

21
mesmo sendo ateu convicto
me sinto muito querido
quando alguém deseja
que deus cuide de mim.
é que por mais que eu não acredite
saber que alguém deseja
que um ser supremo e poderoso me cuide
é um carinho tão bonito
parece até eu te amo...

22
eu teria tanta coisa bonita pra te dizer!
coisas que talvez até fizessem
você se apaixonar por mim…
mas acontece que não sou muito bom
em correr atrás dos meus sonhos.
eu só sei ficar no meu canto
criando conversas imaginárias contigo
que nunca irão acontecer,
mas deveriam…

23
enquanto nos falávamos
por telefone a noite inteira
eu rabiscava círculos num bloco de papel.
o som da sua voz no meu ouvido.
a gente contando estrelas por telefone.
agora que você se foi faz uns dias
e tua voz só existe na minha cabeça,
eu lembro que já fiz suas pernas tremerem
e digo que tá tudo bem, não vou morrer.
mas olho pra estes rabiscos horrorosos
e choro.

24
é no mínimo curiosa
a admiração que nós humanos
temos pelo céu
pois todo dia ele é
praticamente igual
mas mesmo assim
ficamos diariamente abestalhados
tiramos fotos pintamos quadros
observamos por horas…
inclusive penso
que é daí que vem o amor:
essa linda admiração imbecil non sense
por uma coisa tão monótona…

25
hoje passei um café
pra tomar sozinho
mas ficou forte demais.

fiquei com inveja,


queria ser forte igual a ele.

26
tenho certeza
que você não é psicopata
pois me disseram
que psicopatas
não deixam rastros
e eu vejo um pedaço teu
em todo lugar
que vou

27
deve haver
um código oculto
em cada outdoor
de cidade grande
que deixa todo
mundo no ônibus
meio deprimido

28
a família que mora
no apartamento vizinho
briga quase todo dia
e eu, que hoje moro sozinho,
fico ouvindo a gritaria da janela
morrendo de inveja
e saudade do povo lá de casa.

29
tem dia que parece difícil ser feliz.
como se o sorriso
ficasse entalado na garganta
feito um pedaço de bolo muito grande.
mas tem dia que é tão fácil ser feliz,
que todos os dias que passei chorando
parecem não fazer nenhum sentido.
queria saber explicar isso,
mas é coisa que não se explica.
é só meu coração moleque
tentando lidar com o tempo...

30
2. Erick Saraiva

Erick Vinicius de Oliveira Saraiva nasceu em 1993, em Sete Lagoas,


Minas Gerais. Em 2013 criou uma página com o pseudônimo de
João e hoje você o encontra nas redes por “Vem cá, João”. Em 2019
publicou seu primeiro livro na versão digital intitulado “Vem cá,
deitar comigo no chão”.

31
tudo é a lembrança de algo ou alguém

32
fico parado no lugar
mais solitário que há
meus próprios pensamentos
e é como se eu observasse
a Terra sozinho na lua

33
não tem mais poesia
não tem mais paixão
você era os traços que eu desenhava
os versos que eu escrevia
não tem mais sentido ou razão
você está mais longe do que
diz a geografia
onde não alcança
nem sequer
a última esperança

34
seu nome é comum o bastante
para eu ouvir constantemente
porém não é o suficiente
para que não seja o seu rosto
o primeiro a vir à minha mente

35
me dê licença porque agora vou ficar sozinho
para poder reclamar da solidão

36
se me falassem que vou morrer amanhã
eu teria uma lista de arrependimentos
cantaria epitáfio dos titãs
mas se me falassem
que vou viver mais cem anos
eu esperaria cem anos para fazer
essa mesma lista

37
eu sinto que cada um de nós
é um idioma à parte
e por mais que possamos
aprender o idioma do outro
nunca saberemos como é
ser nativo de outra língua

38
quando me deito de bruços
sempre acabo pensando em você
e te desejo tanto
que parece que vai se
tornar realidade

39
tenho terminado as noites
com um gosto amargo
em meus lábios
porque não tenho mais dito
coisas doces a seu respeito
e por causa do vinho barato

40
talvez a maneira como tenho expressado
sobre como vejo belezas no presente
e tenho raízes no passado
te deixaram com a impressão errada
sobre mim
eu penso no que falo e falo muito
sobre o que penso
mas se tenho você
somos só eu e você
e fim

41
podemos voltar algumas conversas atrás
para quando falamos eu te amo
pela primeira vez?

42
não quero viver em uma constante
procura ao bilhete premiado
quero ter sorte na vida
sem deixar minha vida à própria sorte
eu sei que não é o que parece
enquanto você me vê
aqui sentado

43
ouvir no fone de ouvido novo
após o anterior ter estragado
tomar uma cerveja
depois de passar o dia estressado
por que gostamos mais
de matar a sede
do que nos manter hidratados?

44
no aniversário de sessenta anos de Brasília
meu avô me perguntou como será que uma
pessoa consegue criar uma cidade
pois ele que não sabe que criei
um mundo inteiro pensando em você

45
fico pensando se nessas sextas
quando você não sai, se você
fica lembrando de mim
mas daí fico triste de imaginar
que eu só existo
nos seus dias vazio

46
me imagino arremessando
copos de vidro ao chão
enquanto eles se estilhaçam
eu ainda espero alguém
me gritar em repressão
mas nada acontece
além de mais um estrago
que eu fiz por não saber
exatamente o que dizer

47
eu vesti o seu rosto
e às vezes vejo a vida
como se fosse através
dos seus olhos e os meus
azul turquesa e noite escura

48
há ideias que precisam sair
do papel
porém
primeiro
há pesos que precisam sair
das costas

49
dia desses a gente vai estar
na mesma cidade, ao mesmo tempo
e mesmo assim estaremos
centenas de lembranças atrás

50
eu acordaria às quatro da manhã
a pessoa mais feliz do mundo
se fosse pra pegar o avião
que me levasse até você

51
3. Bárbara Seidel Bittencourt

Bárbara é aquariana e capixaba, mas mora no Rio de Janeiro. Acre-


dita que a poesia é uma maneira genuína de retratar os sentimen-
tos cotidianos e parte do que guardamos na caixa torácica. Possui
publicações em revistas digitais e um livreto independente feito em
máquina de escrever.

52
pouco ou nada

senhor de mim

sigo tentando

encontrar sentido

nos espaços vazios

que compõem

este eu

de tudo

o que me resta

são os sonhos

onde não

fechei os olhos

53
finjo saber

o que poupo

quando me calo

sei que

não há falo

que cale

minha fala cálida

54
cada ser é infinito

uns são poço

outros são poça

55
é preciso calma

para saber esperar

e preciso alma

para receber

quando chegar

56
uma ruga

perto do teu olho

aparece

quando

franze a testa

ou

quando chora

a lágrima

cai

e demora

forma um

ca

mi

nho

e aprendo

a nadar

em correnteza

57
se você

não tivesse

que entrar

na minha mente

primeiro

a cabeça não ficara

acima

do coração

58
antes de

ser fortaleza

fui uma

pedra pequena

59
podem procurar

a fundo

nas entranhas

no íntimo escondido

cavem com pás de ferro

encontrarão

tuas digitais

não nego

60
anseio a hora

de te ver

mas a saudade

sempre chega primeiro

meu peito

não perdoa

os teus atrasos

61
por entre

a fresta

espio

a festa

tudo o que resta

ir além

das arestas

entre meu corpo

sopro solto

infinitas reticências

única urgência

62
ao tempo

queremos

dar a função

aguda

de nos resolver

63
quero ir

no curioso lugar

onde nasce a arte

e a pegamos no colo

no surgimento da palavra

pois é na falha silenciosa

do artista desconhecido

é na

queda

que se torna artista

no tropeço

na rachadura do solo seco

na flor que nasce

da fratura exposta

sei pouco do mundo

além das esquinas

que percorro

não conheço neve ou deserto

mas muito sei do asfalto


64
dos arranha-céus e altas tensões

carrego em mim

uma pressa de nascença

do filho prematuro

que corre para fora

do útero

querendo achar que a rua é casa

65
quando nossas

veias

artérias

estiverem entupidas

de balas

e nada mais pulsar

lembre-se que

anda assim

haverá a poesia

mãos e bocas

e a nossa voz

66
4. Davi Melo

Davi Melo, 28, natural de Fortaleza/CE. Escreve nas redes sociais


desde 2016 através do @invernoemsaturno. Também é autor do livro
“A gravidade que é a poesia”, lançado pela Editora CeNE em 2018.

67
amo escrever versos
pela manhã assim como
amo quando o sol bate nos
teus olhos e eles refletem uma
nova luz originada a partir da simples
certeza de que você está aqui.

68
hoje eu acordei
e lembrei de você.
amanhã também.

69
paixão é tinta no balde.
amor é aquarela na parede.

70
apesar da distância
física, você é a pessoa
mais poesia de mim.

71
viva o amor livre
e o poema no livro.

72
abraça ela, tira
uma selfie e deixa o
amor sair bonito na foto.

73
amar é alcançar o peito
de alguém e continuar
correndo para perto.

74
é que ao seu lado
todo instante
é tudo.

75
dormir entre os teus lençóis.
acordar entre as tuas pernas.

76
se for ao lado de
quem você ama,
enfrente.

77
ainda que me tirassem
tudo e me deixassem somente
com a tua risada, então não
me tirariam nada.

78
você é um caminho sem volta.

79
que seja sua prioridade
mas nunca a sua propriedade.

80
torço para que o amor
te encontre e para que
você comemore ao lado
dele como se tivesse
ganho um campeonato.

81
apaixonei-me pelos teus olhos
antes mesmo de enxergar que
você seria minha paixão.

82
um dia estarei
sentado na calçada
em frente da casa que
o amor fará morada.

83
adoro quando estamos
a sós na cama e o amor
bate na aorta e nos chama.

84
coloque reciprocidade em tudo,
inclusive naquilo que fizeram
questão que não desse em nada.

85
e que cada estrela
incontável do céu
seja um beijo que
eu ainda não te dei.

86
em tão pouco tempo, tanto.

87
5. Saulo Pessato

Saulo Eudes Pessato Ferreira é graduado em Letras pela PUC-Cam-


pinas, trabalhou por mais de doze anos como professor de Língua
Portuguesa e Literatura para o Ensino Médio e cursinho nas redes
Anglo e Objetivo e também como autor de material didático digi-
tal para o grupo SEB/COC. Em 2011, iniciou nas redes sociais um
projeto de literatura que hoje conta com mais de 650 mil seguidores
(facebook + instagram) e que se tornou a semente de dois livros de
poesia: “No jardim das Borboletas”, publicado em 2016 e “Verso en-
tre Virilhas”, em 2017 e “Diálogos de Olhos”, de crônicas, publicado
em 2020. Além destes gêneros, Saulo escreve peças de teatro, roteiros
de programas de TV e romances.

88
Ele não

Ela é contra a paixão que tortura,


o carma imposto apontado no rosto
feito arma de manipulação.
Ela aprecia o amor-liberdade,
com a força que voa à própria vontade
na democracia do coração.
Ele não.

89
Linha dura

O presidente linha dura


a tortura endossa,
engrossa a voz
para exaltar a ditadura,
no peito bate,
mas na hora do debate
ou da pergunta jornalista,
foge, arrega, vira as costas, dá pista
e só enfrenta o antagonista
com o viés da verborragia
quando jaz na sepultura
vazia da democracia.

90
Poeminha esquisito

Segundo me consta:
terceira esposa
e primeira dama.

Somos
nos costumes
conservadores,

mas liberais
nos numerais
ordinais.

91
Sem paciência

Sem paciência
com gente incompetente,
com mensagem só de ida
e resposta rarefeita,
fugidia, intransigente.
Sem paciência
com estupidez lisonjeada,
ignorância convencida
e pequenez de si contente...
Sem paciência
a ponto de travar o dente
e sentir o palavrão se anunciar
árvore frondosa
que arrebenta calçada, destrói a frente
da casa e entorta até o asfalto,
ainda que, sem paciência para brotar,
seja só semente.

92
Messias

Bruta piada!
Elegeram um messias
o Messias...
Gente tapada
ou tapeada?

93
Fake News (a mentira e o ódio)

A mentira
tem perna curta,
é dura e não dura,
usa botina;
a verdade
é bailarina.

94
Substrato

ódio envenena
amor fertiliza:
aplica-se ódio
e a vida perece;
aplica-se amor
e a vida floresce.

95
Hipocrisia – Acróstico

Honrado
incorruptível
pragmático
ousado
confiável
rigoroso
inovador
sincero
idôneo
amanhã descobrirão ser tudo errôneo.

96
Cargo público

Eleição, no Brasil,
é dar porcos
às pérolas.

97
Comitiva

A estupidez não faz mistério:


desfila, a carreata perfila,
na esplanada dos ministérios.

98
Embaixaduque

Quem diria
que para o cargo mais alto
almejado no salto
da diplomacia
a disciplina a ser dominada
era algo tão nada
como a fidalguia.

99
Decreto das armas

Presidente imprevisível
- Compre um fuzil!
Falta um fusível...

100
Inteligente

Político honesto,
inteligente,
não dá vexame,
acaba com o problema,
a doença,
rasgando o exame.

101
Destorcida

Brasileiro médio
é mesmo uma comédia:
para desfilar contra
a corrupção
veste a camisa da Seleção,
mas, desde que roube
para o seu time,
grita até gol
para Juiz ladrão.

102
O espelho

Presidente sem juízo,


louco, pensa que mita:
nas mesmas águas do vaso
em que caga, mija e vomita,
em seguida se admira, ao acaso,
feito Narciso.

103
ASSASSINATO DE LÍDER INDÍGENA

Sinais de fumaça

Líder Waiãpi
é morto no Amapá.
A tribo pede socorro
ao governo brasileiro,
mas o líder dos governantes,
que era antes garimpeiro,
ignora a dor das facadas
e sente que a vista embaça
para ler sinais de fumaça.

104
ASSASSINATO DA FLORESTA AMAZÔNICA

O sono do omisso

A alma da floresta
à cidade escurece,
deixa-a noturna,
faz-te uma prece
para que durmas
à luz de candeia
enquanto seu corpo,
longe, incendeia.

105
ASSASSINATO DE UM MÚSICO CARIOCA

Oitenta tiros

Se vão morrer alguns inocentes,


disse o presidente,
por mim está tudo bem.
Só vai mudar isso daí
quando partirmos para a guerra civil...
E poucos dias após o elogio
à polícia que mata onze em batalha
oitenta tenta tiros de fuzil
também reivindicam a sua medalha.

Os tiros foram oitenta!


É... os políticos avisaram
que o governo seria austero,
mas as palavras de consolo à família,
os pedidos de desculpa,
foram zero.

106
ASSASSINATO DE UMA VEREADORA

Prova dos nove

Esses crivos que te furam o corpo,


nove e de nove milímetros,
são os direitos dos pequenos
que reivindicaste em vida.
Toma, são de bom tamanho,
nem largos, nem fundos,
é a cota que merecem
todos os teus no mundo:
um por ser preta, um pela voz à cor;
um por ser mulher, um pela voz ao gênero;
um por ser lésbica, um pela voz às letras;
um por ser favelada, um pela voz aos pobres.
E mais um para calar a arma.
Teus direitos são esses e se assim se assinam
com o puxar de um dedo na cor das chacinas.
Nove tiros são os crivos como os cravos da outra cruz.
Noves fora e o que sobra, o que rola
é que boca cala, mas a palavra espalha;
um corpo morre, mas o protagonismo nasce e fala
em escala de um para nove.
107
Vasos e baldes

Não se chateie
com a quantidade de coisas ruins
prevalecendo sobre as boas
na música, no cinema, na arte.
Na política!
Sempre foi mais fácil produzir lixo
do que que cultivar flores.

108
6. Arzírio Cardoso

Arzírio Cardoso é poeta e cronista. Graduado em Letras e mes-


trando em Estudos de Linguagem e Tecnologia, pela UTFPR, tem
poemas e crônicas publicados nas principais revistas literárias do
país, como Mallarmargens- revista de poesia e arte contemporânea;
Germina- Revista de Literatura e Arte; e no jornal literário RelevO.
Publicou dois livros de poesia, “Bromas & Bromélias” e “Cartó-
grafo de Dunas”, ambos pela Editora Penalux.

Em 2017, foi o vencedor do Prêmio Escriba de Crônicas, com a


crônica “A língua, o asterisco e a natureza da sardinha”. Em 2018, foi
finalista do Prêmio Sesc de Poesia Carlos Drummond de Andrade, e,
em 2019, segundo colocado no Prêmio de Literatura da Universida-
de Federal do Espírito Santo, com o livro de crônicas “Conheço duas
formas de acabar com a vida que são tiro e queda”, recém-lançado
pela Editora Patuá, em abril de 2020.

109
Lunix

Como se saltasse
De trás de uma grande moita
A luz irrompeu aflita
Afoita
Rompendo a noite com seu machado
Com sua foice
Com seu açoite.

Métodos nada serenos,


O escuro foi alvejado
Sem ais nem menos.

Tomado de assalto
Sem tempo para apelos
Atropelos, sobressaltos
De seus alvéolos, subtraído
Seus elos, desintegrados.

¡Quanto alvoroço
Por nada!
Soubesse o dia
Que o alvo da noite
É a alvorada.

Do livro Cartógrafo de Dunas, Editora Penalux, 2017.

110
Oásis III

Encosta em meu peito o teu corpo exaurido


E descansa-o dessa ânsia
Dessa cólica intermitente
Que é estar vivo.
Revigora tuas forças
Lentamente, sem lamentos
Porque se lá fora ainda vigora
Ainda dura
Nossa eólica inconstância
O que te ofereço agora é calma,
Brandura.

Descansa.

Do livro Cartógrafo de Dunas, Editora Penalux, 2017.

111
Amuletos

Amuletos?
Nem de muletas!
Milagres?
Me larguem!
Aqui, trevos não se atrevem
Figas não me fisgam
Ferraduras não me ferram.
Em abrir portas a murro
Fio-me mais do que em sussurros
Enviados a ninguém.
Para que a porta sucumba
Não tem reza
Nem macumba.
Aos diabos, seu abracadabra.
Meu pé de coelho
É um pé-de-cabra.

Do livro Bromas & Bromélias, Editora Penalux, 2015.

112
Alvos

Salvo ressalvas
Ninguém estará a salvo.
Sua pele pode ser escura
Ou muito alva,
A morte não vê cores
Só alvos.

Do livro Bromas & Bromélias, Editora Penalux, 2015.

113
Corônicas de quarentena: ¿Até tu, barão?

Seguindo recomendações do Ministério da Sanidade Mental, Ana


e eu decidimos assistir algum filme repetido, bobinho, frívolo, que
não requisitasse muita reflexão, que nos dispensasse de gastar muita
energia, já tão em baixa, nem tivesse enredo complexo, cheio das
reviravoltas e que tais. Um filme, enfim, que nos fizesse esquecer por
duas horas do mundo ruindo lá fora, das notícias onipresentes e mo-
notemáticas, das pessoas morrendo, do genocida sociopata que nos
desgoverna, do dinheiro suplantando vidas humanas e dos negacio-
nistas que nunca negam suas certezas infundadas.
Depois de breve (coisa rara) zapeada pelos cartazes da Netflix,
decidimos ver Tubarão, do Spielberg, convictos de que a película se
enquadrava em nossos critérios de puro entretenimento e, principal-
mente, de que ela nos faria esquecer por um momento do maldito
corona.
Vê aí se conseguimos:
O filme começa com uma jovem que, depois de uma noite de luau
na areia da praia, resolve se banhar no mar. É ela a primeira vítima
da fera assassina. O rapaz que estava com ela chama as autoridades.
Um legista conclui que a morte da garota foi causada por um ataque
de tubarão e recomenda ao chefe de polícia a interdição das praias.
A versão oficial do prefeito é a de que a causa do dilaceramento das
vísceras da jovem não foi o tubarão, mas a hélice de um barco.
A temporada estava se aproximando e a cidade certamente teria
prejuízo econômico caso o ataque fosse revelado, os turistas cance-
lariam suas reservas nos hotéis. O legista, sob influência política do
prefeito, esconde a verdade e assume a versão da hélice. Um biólogo
tentar avisar a todos que é perigoso entrar na água e que se nada for
feito mais pessoas morrerão. Não é ouvido e, no mesmo dia, o tuba-
rão faz sua segunda vítima.
Pescadores locais capturam um tubarão-tigre. Acreditando ser este
o tubarão assassino, o prefeito proclama as praias seguras. Os cien-
tistas fazem uma averiguação e concluem não ser possível o tubarão-
-tigre ser o comedor de gente, pois não havia tecido humano dentro
114
dele e o tamanho de sua mandíbula não correspondia ao tamanho
da mordida na menina morta. Sem dar mínima moral às evidências
apontadas por essa investigação, o prefeito decide manter as praias
abertas, permitindo apenas pequenas precauções pouco efetivas. No
dia seguinte, feriado, as praias estão completamente abarrotadas. O
tubarão ataca novamente e, claro, mata...
E foi assim que fracassamos miseravelmente. Ávidos por duas horas
de respiro das notícias sobre Coronavírus, acabamos assistindo um
filme inteirinho sobre Coronavírus.
Quando o filme terminou, já os créditos escalando a tela, a Netflix
mostrou-nos uma série de indicações de outros títulos. Um deles:
Tubarão 2.
Prova definitiva de que as pessoas nunca aprendem.
Bolsonaro já era um cuzão em 1975.

115
7. Vandei Oliveira

42 anos, poeta, educador, produtor cultural, nascido no Estado


do Ceará e morador da Cidade de Suzano/SP.
Em 2016 lançou seu primeiro livro de poesia “FALO”, e tem poesias
publicadas nas antologias “Sobrenome Liberdade”, “O que dizem
os umbigos” e “Contos de Infância Periférica”, ( todas produções
independentes, 2013/2018).
Atualmente, integra o coletivo Sarau na Galeria, onde organiza
uma atividade cultural mensal na cidade de Suzano-SP, além de
promover oficinas literárias, rodas de conversas e performances
poéticas em escolas, bibliotecas e espaços públicos.
Escreve diariamente em sua página do Instagram @poetaseuze,
poesias curtas e diretas.

116
Vim à vida a passeio,
eu passarinho
Bem te vi a vida
Passar...

117
Estou um caramujo existencial,
cada vez mais concha.

118
Tinha medo de amar
trancou-se,
jogou a chave fora
e ficou com medo de achar.

119
Tinha o coração tão mole
que derreteu-se,
escorreu entre os dedos,
virou mar

120
O desejo mais fundo que tu sente
Que o hálito, que o cheiro de teus dentes
Minha língua também deseja e não mente
(nem amigo, nem parente)
Não dispenso seu abraço, mas prefiro teu beijo com rima.

121
O tempo sopra

As flores de abril
E faz o inverno
Chegar mais cedo
Aqui dentro.
O vento sopra
As dores de abril
E faz o inverno
Ir embora a tempo.

122
Do silêncio
E deserto
Nasce uma
certeza,
é preciso
ser casulo
pra depois
ser borboleta.

123
Em meio
Ao caos
Faça de
Sua casa
Um cais
Se puder
Ame mais.

124
Existe
Um
eu
dentro
de
Deus

125
Na solidão
O silêncio
Grita mais
Que mil
Poemas

126
Não basta
Preencher
Meu vazio
É preciso
Transbordar

127
No vazio que me deito
Até fazer cama
Cada parte do
Meu peito
Devora a
Solidão
A
Solidão
Devora
cada parte
do meu peito
até fazer cama
no fazio que me deito

128
O sertão
Me fez
Ser tão
Humano
Que ser
Humano
Me faz
Sertão

129
Eu passarinho
Bem ti vi chegar,
Com a beleza
Da beija flor
E a cantoria
Do sabiá

130
Quem diria, que um dia desse chegaria,
O mundo isolado em casa,
Devido a uma grande pandemia?
Quem diria, que a coisa inverteria,
As casas cheias de gente
E as ruas todas vazias?

O abraço foi proibido, um grande temor.


Agora me responda fazendo  favor,
No ano passado quantas  pessoas  você abraçou?

O distanciamento, quem diria, virou forma de amor,


Mas me responda fazendo um favor
Diferente de você, quantas pessoas você amou?

Faz discurso de todos iguais,


Se comove com injustiças sociais,
Mas quem ta na linha de frente,
Morrendo nos hospitais?

Ficar em casa não é uma escolha nesse momento,


Até porque tem gente que não tem casa e vive ao relento.
Temos que escolher entre a saúde ou a fome no meio desse tor-
mento?
O que falta para os nossos líderes é mais discernimento.

O que falta pra combater essa doença?


É uma questão de saúde pública e não de crença.
Vamos seguir com muito cuidado o que é indicado pela ciência.
Nesse momento, precisamos ter consciência,

e não ficar  aplaudindo devaneios da presidência.

Diz que espera voltar à normalidade,


Que o povo saia dessa vulnerabilidade,
Mas que normal é esse?
Onde não havia Solidariedade.
131
Pense no próximo, não seja egoísta,
Ficar em casa é um ato altruísta,
Retomar nossa saúde será uma reconquista
E em mortes, o Brasil não será recordista.

Ficar em casa é um ato de coragem,


Não tem a ver com preguiça ou malandragem,
Leia um livro, embarque nessa grande viagem,
O pôr do sol da nossa janela é uma linda miragem.

Ficar em casa é um ato de cuidado,


Quem ama cuida, o amado resguardado.
Depois da chuva vem um dia ensolarado
E quando o arco íris sair, tudo isso terá passado.

132
Dias que
acordo Cinza,
Por ser só.
Tua poesia
Me faz luz,
Por ser sol.

133
A poesia
é como
o canto
da cigarra,
incomoda,
encanta e
transforma.

134
Uma mulher
semente
Quando Nasce
Flor de luta
Mesmo depois
Do luto
Continua a ser
Presente!

135
Você
me
faz
Cor
Ação
Flor
E ser.

136
O verbo se
fez carne
Na cor do
Povo Oprimido
Na dor do
povo sofrido
No verso
encarnado
De sangue.

137
8. Brunno Leal

Niteroiense, leonino, um reles observador das miudezas essa vida.


Gosta de rascunhar trivialidades e dar cor àquilo que passa em bran-
co. Perde-se do mundo através do seu perfil (@eubrunnoleal) no ins-
tagram.

138
Gosto
Do beijo demorado
Do beijo de reencontro
Do beijo que guardava
Uma saudade
Pra muito além
Daqueles lábios

139
Revirei a casa inteira
De ponta a ponta
Todos os cômodos
Todos os cantos
O armário que você gostava
O closet que você usava
Pus a casa do avesso
Em vão.
Não encontrei roupas
Nem objetos
Nem pretextos.
Da sua ausência
Você só esqueceu de vir buscar
A minha saudade.

140
Se isso que você pensa
Ser amor
Só te leva às lágrimas
E em momento algum
Te levou a sério
Então isso que você pensa
Ser amor
Não te levará

A lugar nenhum

141
Quando você desejar partir
Por favor avise-me.
Desde criança aprendi
Que quando alguém vai embora
Da nossa casa
Precisamos acompanhá-la até a porta
Pra que mais cedo ou mais tarde
Essa pessoa retorne.
Por isso quando estiver de saída
Avise-me
Porque assim como eu
Meu coração foi criado
À moda antiga.

142
Acho que você não percebeu
Mas no nosso último beijo
Eu debrucei sobre a tua boca
Pra ver se dali avistaria
Os segredos dessa coisa tua
Que inventaram de chamar
Saudade

143
O amor é uma montanha-russa
Onde quem não fecha os olhos
E não se arrepia
Com as suas quedas
Com os seus loopings

Com os seus altos e baixos


Talvez esteja ali
Por nada além
De uma fantasiosa obrigação

144
Estou trancado dentro de um coração
Cujo dono atirou as chaves fora
Mesmo que eu grite ninguém ouvirá
Chuta com força a porta de saída
E nada.
Não sei onde mora a lógica nessa prisão
O amor não é absolutamente nada além
Da liberdade
E da espontaneidade de querer ficar.
Socorro!

145
Olhar para o fim de uma história
Uma história como tantas outras
De muitos momentos bonitos
E alguns nem com tanto
Lembrar de toda a trajetória feita
Os pontos altos e baixos
E ter a tranquilidade de dizer
Não guardo mágoa de ninguém

146
Você é a mulher mais bonita do mundo.
Sim, é exatamente isso que você é
Você é do mundo
É do mundo porque escolheu ser
(ou foi o mundo que te escolheu?)

Hoje eu sou capaz de entender.

Adeus.
Adeus, meu amor.

147
O amor
É uma atitude tomada
No gargalo
Num botequim sujo
Numa conta pendurada
Numa ressaca de dia seguinte
Num juramento pra nunca mais
Num arrependimento
Ou numa felicidade
De continuar insistindo
E querer mais uma dose

148
(Re) amar é
Superar os orgulhos
Reconhecer os excessos

Respeitar o tempo a só
Perdoar palavras erradas
Silenciar sentimentos negativos
E construir pouco a pouco
Tijolo por tijolo
Um novo recomeço

149
Amar é lar pra morar no outro
Amarelar os dias nublados
Amar é ler seus pensamentos
Amar é linha torta
Amarelinha
Até o céu

150
Dobrei a esquina
Diversas vezes
Até fazer um barquinho
Que navegasse na saudade
E me levasse até você

151
Passado toda aquela dor
Olhou-se no espelho
Viu aquele reflexo
-um mero reflexo?-
Arregalou os olhos
E perguntou a si mesma

“Deus do céu,
Por onde andei?”

152
Essa ponta de esperança
Que carrego dentro de mim
É uma despensa pequenina
Com tudo que acumulei de ti
Na expectativa de atravessar
O inverno dos próximos meses
Que o coração inventou de chamar
Saudade

153
Às vezes tenho a impressão
De que os dias passaram
Mas esqueceram de me levar
Fiquei preso nesse eterno hoje
Onde a saudade
Insiste em me lembrar
De toda essa tua
Existência

154
Por vezes o amor demora
Porque o caminho precisa ser tortuoso
Necessita vencer as intempéries
E superar as adversidades
(Quem já viu um amor sem qualquer dificuldade?)
Pra quando enfim esse amor chegar
Apenas pedir colo
E sem nenhuma palavra, dizer
Me cuida

155
Às vezes
A única coisa de que preciso
É da sua mão
Pra acabar com o medo
E do coração
Pra acalmar o peito

156
Olhos que dançam dizem adeus
Quando adormecem

Olhos que dançam sempre choram

Se não esquecem

Não voltei pra casa.


No colo do tempo eu ainda existo

O colo do tempo
É o teu colo.

157
Quero ser dono de uma paixão bêbada.

Quero provar o sabor das loucuras sem receio de camisa-de-força e


pré-
julgamentos.

Quero tomar um porre de um amor insano e integral, acordar só no


dia seguinte
nocauteado pela ressaca, mas como todo bom bebum, querer mais.
Sempre.

158
9. José Danilo Rangel

Nasci em Itaitinga, interior do Ceará, em 1984. Em 1993, mudamos


para o Norte, eu e minha família, pra Porto Velho, Rondônia. Embo-
ra gostasse muito de ler, detestava poesia. Mas em 2006, apaixonado,
escrevi um soneto e o declamei. Deu certo, estamos juntos até hoje,
eu, a poesia e a musa. De lá pra cá, já participei de muitos saraus, fiz
muito amigos e inimigos, já editei uma revista digital, participei de
coletâneas. Atualmente, produzo zines, distribuo alguns “livrinhos
de poesia” e posto poesia nas redes sociais. Enfim, vou vivendo e
mantendo vivo o coração.

159
01.
O SILÊNCIO COMO ALARME

Há um silêncio. Não em tudo,


não no mundo, em mim.
Há algo mudo.
Nem sempre sei se é paz
ou outra coisa,
por isso, me inquieto.
Quem vive ouvindo
o coração sempre fica
desconfiado
Quando ele tá calado.

160
02.
UMA ESPERANÇA

Me pediram pra falar de esperança,


este dom ambíguo, pássaro e verme,
que a depender da circunstância
ou nos faz voar ou nos arregaça
Só sei dela assim, ambígua,
incerta, luz e sombra, afago e mordida,
mas acho que não era sobre isso,
que não era esse o pedido.
Quando alguém pede pra gente falar
sobre esperança, não quer saber
o que a gente acha da esperança,
quer uma luz, uma faísca.
Por isso é que me perguntei:
será que eu sei sobre esperança
algo que valha a pena acender?
Que é um bom momento pra ter,
eu sei que é, mas tenho a dizer
que a esperança é sempre inútil
em quem espera apenas.
O que mais?
A pandemia tem nos colocado
diante de um enorme espelho,
muitos vão se olhar e pelo horror
de se ver, vão acordar,
Taí uma esperança.

161
03.
VELHO TEIMOSO

Passa um cara de bicicleta e grita:


Vai pra casa, velho teimoso!
Quer morrer?

Vá tomar no... O velho grita de volta,


...Filho da puta!
Aí, sentado na frente do mercadinho,
toma uma lapada de Velho Barreiro
sem nem fazer careta.
Porra de morrer, ele diz,
Se morrer, morreu.
Podia já ter morrido de moto,
de carro, de facada, de tiro,
e não morri.
Garimpo é o inferno e eu
num voltei de lá?
Ora, porra!
Se morrer, morreu,
ficar fazendo hora extra
nessa merda...
Morreu, morreu, né, não?
Quando chega a hora, já era...
Ele disse
E olhou pra mim.
E eu, entrando de máscara
no mercadinho, pra adiar
a hora.
O medo tem efeitos diferentes
em pessoas diferentes.
Pensei,
não disse nada.

162
04.
NINGUÉM DIRIA

Tamanho 2020,
Ninguém diria que a gente ia tá banhando
as compras, pacotes de arroz, feijão,
caixa de leite;
Mas é isso...
Ninguém diria que a gente ia tá lavando
tanto as mãos
com água e sabão e álcool em gel,
Que álcool em gel seria o novo ouro,
Que espirro e tosse iam causar
tantos olhares e medo,
Mas é isso...
Ninguém diria que a gente ia ter
que escolher entre viver ou salvar
a economia,

Ninguém diria...
E ninguém poderia imaginar
que nem assim existe trégua,
Em plena pandemia,
mais que a vida, importa
a ideologia.

163
05.
SEXTA SANTA, MEDOS E O MERCADO

01. Sexta-feira santa. Saio. Porque na geladeira só temos frango e


minha mãe não pode comer frango.
O Deus dela exige que não. Vou comprar peixe. Não tem peixe...
Ovo então. Uma dúzia deve dar. Não
tem ovo. Sardinha! Vai ser o jeito. O mercadinho cheio, muitas pes-
soas de máscara e muitas outras
sem, a rua num grande movimento; é feriado, né? Há uma grande
normalidade agitando o bairro. Mas
não devia.

02. O medo arrasta as pessoas para os pés dos deuses. Medo e haver
necessidades e mais o medo de
não conseguir atendê-las. Cultuar por medo e ainda mais quando
com mais medo. Daí, de haver o
medo e deuses contra o medo, pra enfrentar o medo. E se acabasse
o medo, tais deuses seriam
aposentados?

03. Mas vivemos um tempo em que o medo precisa ser enfrentado,


combatido, desinventado, porque o
medo de hoje, o medo que sentimos hoje, ataca um deus moderno e
poderoso, o Mercado. As pessoas
estavam se escondendo em suas casas e, por isso, deixando de ali-
mentar o Mercado e sua esposa, a
Economia, por isso é preciso dizer que é uma gripezinha!

04. Muitas pessoas creem nisso de “só uma gripezinha!”, afinal, foi o
atleta que disse, o mito. O bom de
ser fanático é isso: não precisa se dar ao trabalho de questionar, é só
vendar os olhos e seguir,
ignorando o mundo e a gente toda morrendo de gripezinha...

164
06.
EFEITO CRISE

Que as crises como essas


nos revelam, me disse um amigo,
Que em dias assim,
os lobos que somos mostram
os dentes
E pra que servem...
Aceito, mas acrescento que
também em dias assim
A humanidade mais se esmera
em ser humana.

165
7.
DENTRO DE CASA

Me impressiona o modo
como os muros se apropriam
da gente, seus limites, sua dureza,
o cinza do reboco,
E como o avanço disso
me inquieta.

O silêncio lá fora é tanto


que nem parece haver
um fora,
Como se a casa flutuasse só
pelo vazio escuro do
Universo.
As janelas abertas
são monitores,
É por onde vemos o mundo
é por onde enviamos e recebemos
palavras de conforto e esperança
e descobrimos
como andam os nossos;
A maior parte
das notícias é má notícia.
Detesto ir ao mercado
e nessa hora tão parada,
penso na alegria que seria
ir lá.

166
08.
O DISCURSO DO LOBO

O lobo fez um vídeo


pra dizer que pode ser
que morram
7 mil pessoas,
Pode ser, ele diz.
“7 mil pessoas,
é muito triste,
MAS...
O Brasil não pode
parar.”
É pelo Brasil, ele diz.
Imaginem quantas vós
dentre as 7 mil pessoas,
quantos vôs no meio,
Irmãos, mães, pais,
tios, tias, amigos
e amigas,
7 mil pessoas
e tenha certeza disso:
nenhuma delas é
próxima do lobo.
Não, mas é preciso,
o Brasil não pode parar

E o seu lobo está disposto


a esse sacrifício.

167
09.
SELVAGEM

Mais selvagem que a


selvageria,
Ainda bem que eu não fiz
Economia.
Já pensou? Racionalizar
com a vó dos outros...
Mas o “atleta” está a salvo.
“Vai ser só uma gripezinha.”
Acho tão estranho
um presidente
precisar de tanta gente
que o explique, justifique,
mistifique,
Não é estranho?
“Não, mas ele não disse
o que disse, ele disse
o seguinte...”
E quem acha ruim
é que é burro,
Inteligente é concordar
com o presidente e morrer
pra salvar a economia
Do caos total,
de todo o mal,
amém!
Os bancos coitados,
precisam de dinheiro.
A gente não,
a gente é muita gente.

168
10.
DEPOIS

Depois
ainda seremos
nós,
Mas já
seremos outros.

169
11.
TENSO

Vou pro trabalho,


quase sem trânsito,
mas era melhor
que tivesse...
Parece domingo,
mas a tensão
não tira folga.

170
12.
MITO DO MOTOBOY

Os sísifos de hoje
não sobem pedras,
fazem entregas,
Rodam
pra máquina rodar.
Assim
os deuses do capitalismo
condenam:
Suas penas não são leves,
mas como a vida,
são breves,
Os sísifos de hoje
gozam dessa sorte:
Da morte.

171
13.
O QUE PERDEMOS

A capacidade de sonhar?
Não perdemos.
A capacidade de confiar
completamente?
Não perdemos.
A capacidade de amar
numa total entrega?
Não perdemos.
Ao longo dessa vida,
às vezes, tão dura,
Se perdemos algo
é a capacidade
de ignorar
A realidade.

172
14.
NÃO A CARNE

Coisas
que não confessarei,
sombras, lâminas,
angústias,
Andam a me espreitar
como lobos famintos,
sanguinários
Ansiando o momento
de me dilacerar!
Não a carne,
mas a outra parte
viva.

173
15.
MANHÃ, CHUVA, DESÂNIMO

01.
A noite toda embaixo dágua,
a cidade acorda úmida e fria,
mas vivamente mal educada,
Minha irmã revida, xinga,
buzina, espragueja.
Vamos pro trabalho.
Com um pouco de dor
nas costas e vontade zero
de me levantar, momentos
antes, me levanto.
A primeira vitória do dia
é contra mim mesmo,
venço e me sinto derrotado.

02.
A vida era mais leve quando
eu não percebia o risco
de poder durar um século,
A vida.
Pode ser que sim,
eu tenho medo.
Cem anos disso.
“Você está vivendo a vida
que viveria pela Eternidade?”
Porra, Nietzsche,
tá ruim aguentar a semana...
Cala a boca!

03.
Muitas vezes sentimentos
me afundam bem fundo
em suas atmosferas,
174
Me inundam e afogam.
O que não é nada ruim
com a alegria,
Tem vez que estou contente
e a vida é carnaval.
Mas tem dia, meu amigo,
que é osso.
Hoje estou desanimado
e chove, chove muito
E sinto que essa chuva
não para nunca mais.

175
16.
GESTO DE AMOR

No amor
tem muito mais
valor
O que se diz
sem dizer nada.
A mão que busca
a outra,
Os olhares rindo
num encontro.
O gesto de amor
é ele mesmo
manifesto.

176
17.
TRANSVERSAL

Pela primeira vez


na história, na minha
história, na nossa história,
na história do mercadinho
ali da esquina,
Pela primeira vez
na história do bairro,
de Porto Velho, de Rondônia,
do Brasil,
Tudo está vazio
e todos temos medo.
Algo assim nos atravessa
e você sabe o quê,
atravessa nossas bolhas,
e nos irmana,
E você sabe o quê,
todos sabemos.

E por muito tempo lembraremos


e nossos netos ficarão sabendo
e talvez não liguem pras histórias
dos velhos que (talvez) seremos,
E o que diremos sobre o liberalismo?
E os discursos de ódio?
Isso é uma trégua?
Nós nos demos as mãos?
Depois,
isso é coisa pra depois.
Depois ainda seremos nós,
mas já seremos outros.

177
18.
BOA NOTÍCIA

Entenda, não estamos


acostumados a ver,
mas a não ver,
A boa notícia é que
não precisamos mudar
de olhos,
Só de olhares.
Não estamos
acostumados a sentir,
mas a não sentir,
Mas não precisamos
mudar de coração,
Precisamos só
acordá-lo.
Não estamos
acostumados a pensar,
mas a não pensar,
Mas não precisamos
mudar de cérebro,
Só começar a usá-lo.
Há muito que não vemos,
muito que não sentimos,
muito que não pensamos,
Quero dizer: muitos!

178
19.
A DOR E DESCAMINHOS

01.
Há dores que não podem
ser aproveitadas, pensei,
dores que apenas doem,
mais nada.

Vou de moto na farmácia,


vou de moto no mercado,
a tarde é fresca, estranha
e fresca,
Porto Velho
chovendo sem parar
e o ar ventila,
e andar de moto é tão
bom.
Meu joelho dói um pouco.
O que posso aprender
com esse joelho que
reclama?
Talvez, andar errado.
Penso.

02.
A farmácia tem muita luz
e todos os farmacêuticos
parecem saber do que falam,
Entro andando com cuidado,
meu joelho dói e não quero
que ninguém saiba.
Não quero que ninguém
me veja puxando a perna,
andando estranho,
Tenho vergonha.
179
Disfarço.
Talvez esse joelho
(que reclama)
me ensine isso:
Disfarçar é preciso,
disfarçar a dor
pra não passar vexame.
Penso.
A dor de pisar,
de andar, seguir em frente.
Abstração demais,
eu acho e rio.

03.
Talvez
alguém puxando a perna
seja menos estranho
que alguém rindo só,
É o que penso
entrando na farmácia
e rindo só, penso.

Disfarçar é preciso.

04.
Há dores que não podem
ser aproveitadas?
Dores que apenas doem,
mais nada?
Penso.
A dor do joelho me
atrapalhando o passo,
me obrigando aos disfarce.

180
05.
Chego no mercado cheio,
vozes, preços, risos,
E aí, beleza?
Beleza!
Já peguei o frango,
o cuscuz, o leite,
e já tô na fila.
O que será bom
pra um joelho que dói?
Penso.
Talvez esse joelho
que reclame me ensine
que cuidar é preciso.
Talvez.

06.
Chego em casa pensando
em todas as dores do caminho,
eu querendo andar em linha
reta
E sem poder, por que
doía.
Muitas dores me ensinaram
a andar errado
E me ensinaram a disfarçar,
pra que não rissem de mim.
(Eu pensava que iriam
rir de mim.)
Até pensar em ouvir
a dor e falar da dor,
penso,
Quantos descaminhos...

181
20.
NADA MAIS DE SONHO

A ideia de que, uma hora,


não conseguimos mais
ignorar a realidade
Me pousou no ombro
um dia, em que sonhava
e ao sonho iam se interpondo
obstáculos, vários
E todos difíceis de deixar
pra lá.
E eu lamentei, a sós comigo,
poxa, nem mais sonhar,
nem mais sonhar...
Quando falo realidade falo
limites, impossibilidades
Essas coisas que se grudam,
que se pregam às nossas
consciências,
Que são como sirenes
que uma hora não dá
pra não ouvir.
Ou como aquele amigo
chato que fica dizendo
que não vai dar, que não
tem como,
A diferença é que o amigo
chato é a gente mesmo
gritando que não,
por dentro.

182
10. Brendow H. Godoi

Brendow H. Godoi nasceu em Belo Horizonte, em 1994. É advogado,


formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais. Ganhou projeção nacional fazendo literatura na internet,
com a página A Metafísica Poética que conta com milhares de leito-
res ao redor do mundo. É autor de quatro livros publicados no Brasil,
dentre eles Quente, Feito Tequila (2017), Pólvora (2019) e Abismo de
Carne e Osso (2020).

183
com ou sem mim

com ou sem mim


nossos filhos nascerão
filhos de outro pai e de outra
mãe.

eles terão nos olhos


os meus olhos te gritando sem palavras:
“me pede pra ficar”.

na prateleira da lembrança
restará apenas a sensação
empoeirada
de que conhecê-la fez do passado
um mero ensaio,
um treino antes de ser exposto à
sua incandescência.

dentro do bolso do meu paletó


ficará guardado o nosso medo de
machucar o outro,
medo que infelizmente não impediu de
nos machucarmos no final.

e num dia qualquer


meio que por acaso
tanto eu quanto você
vamos perceber
que não fazemos mais
parte
184
da vida um do outro
e que o jeito é respirar fundo e
seguir em frente mesmo.

você vai se dar conta de


que não se lembra
da última vez
em que eu digitei “boa noite, se cuida”
e eu vou me tocar que por mais
que inconscientemente eu
espere,
não vai chegar nenhuma mensagem tua
no meu celular.

185
triste em legítima defesa

no anel dourado da tua mão esquerda


tem o nome de
outro cara
mas na varanda aberta da tua alma
suja
há um coração com meu nome dentro.

teu perfume chique


já não é capaz de esconder
o nosso
cheiro de bicho selvagem que dorme
costurado na sua pele.

toda vez que olho para você


eu me certifico
que de fato nenhuma vida está
completa sem um grande desastre.

eu te amo
te mastigo, te tolero
te odeio
e fico assim,
triste em legítima defesa,
sem saber onde enfiar cada quilômetro
de mágoa do meu peito que sussurra teu
nome toda noite.

agarro-me
186
à toda e qualquer
vírgula que me lambe a cara por pena
enquanto exumo as lembranças
desse amor sem caráter
tentando me convencer de que alguns
poemas
terminam antes de virar a página.

187
malária

minha ex-namorada está com malária


mal-acabada
gengiva puída de crack
e
os ossos estufando a pele
fedendo a conhaque e sequela
rasgando de dentro
para fora
suas duas costelas.

eu não posso te ajudar, coração


não não não
não
posso
eu estou no fundo do poço
pensando em cortar
meu pescoço
e me deitar nas escadarias da
igreja de São José do Mangue
e misturar meu sangue com a sombra
do tesão arrastado
do padre
que fode escondido na sacristia.

juro
é todo dia
todo santo
dia.
188
aquele ordinário dá uns trocados para
um pivete
bater boquete e fazer o nome do pai
ajoelhado
diante do altar sagrado.

cê tinha que ver


que dó que dá ver o pivete
saindo só de lá
limpando a boca com a manga da camisa
e o padre limpando o suor
do pescoço
com a ponta da batina.

é, pescoço
não posso te ajudar, estou no fundo do poço
e estou chateado,
quero cortar o meu pescoço, é verdade,
bem lembrado.

189
psicanalista

me indicaram uma psicanalista clandestina


– Cristina –
ela não era formada em medicina
tampouco tinha ido à faculdade algum dia
[desconfio inclusive
que ela não fora sequer ao colégio]
mas lá estava eu
no consultório
da doutora Cristina que funcionava na casa
dela mesmo
num quarto fodido de uma pensão barata
que abrigava
garotas de programa com anemia, foragidos da
justiça e um travesti gente boa que
me ajudava a empurrar minha Elba ladeira
abaixo
[carro a álcool, tu sabe, só pega no tranco].

as paredes do consultório da doutora eram descascadas


e tinha um quadro
do Che Guevara
fumando um charutão pendurado,
náufrago, crucificado e empoeirado
que dava uma pesada boa no ar;
mas tão logo lá vinha a doutora varrendo as baratas
com uma vassoura,

pedindo para não reparar a bagunça

190
porque
no verão é sempre uma correria
e o consultório não parava limpo nem por
reza braba.

ela me disse que era adepta à teoria do Freud e por isso


me receitava cocaína
– de três a cinco pinos por semana –
mas tinha que ser a cocaína que vendia na biqueira
da esquina
[acho que ela tinha sociedade com o traficante de lá]
segundo a doutora, a cocaína da biqueira da esquina
era cocaína clínica
com propriedades neurológicas
que eram eficazes no tratamento de pacientes com histeria
tudo bem, eu disse, não vou me opor.

meu tratamento durou quatro meses e incrivelmente


eu fui curado dos meus distúrbios psicológicos e da minha
histeria obsessiva
na última sessão eu a agradeci imensamente
e desejei morar para sempre dentro do dragão verde
de cadeia que ela tinha tatuado
no bíceps esquerdo que dançava graciosamente
no rascunho sábio da doutora.

191
nota

meu pai era caminhoneiro


dirigia um mercedes 608 azul metálico e carregava
tudo quanto era
porcaria
pra João Pessoa,
Teresina
e pra Belém do Pará.

andava rebitado, cheirado, fodendo o cu


de travesti
e de puta doente em posto de gasolina adulterada
carregava na boleia do caminhão
o atestado de pior
pai do mundo,
marido
e ser humano.

voltava chapado e espancava a minha mãe com


a sua chave de roda de estimação
– Sônia –
era o nome da chave de roda
e eu ficava escutando aquilo escondido atrás
do guarda roupa.

ele morreu num acidente


no cruzamento de um retorno indo para
o triângulo mineiro e
ancorou sepultado numa nota pequenina do

192
jornal local,
mas no meu coração,
não.
canibal de estrelas

revisitei a minha
infância
debruçado na janela do meu
quarto.

o vizinho da esquina morreu


assassinado
há uns bons anos atrás
– o nome dele era Carlos.
não acharam o assassino do
Carlos até hoje.
a polícia disse
que foi:
queima de arquivo.

o Fabrício que mora no fim


da rua agora tem dois filhos
e o Felipe
tem apenas um.
o pai do Felipe – eu só o conhecia
como pai do Felipe –
largou tudo pra trás e foi morar
com outra mulher.

Renato foi tentar a vida nos


193
Estados Unidos e
se matou no banheiro de um
restaurante fast-food.
deixou a mãe aí, a dona Carmen,
recebendo pensão do
INSS.

Pedro – que era meu


melhor amigo – foi preso
mas já saiu.
virou evangélico e frequenta
a Assembleia de Deus.

Cristina, a única menina da


turma
se tornou Cristiano e trabalha
de Uber de segunda a sexta e
de garçom em
buffets
nos fins de semana.

tudo
mudou
muito muito muito
muito [mas eu continuo o mesmo].

observo o tropeçar do mundo


recluso e sobrevivente na minha
ilha

194
[até então intransponível].

minha ilha esquecida pelos dedos


desse grande
canibal de estrelas também
conhecido como
Deus.

195
poema branco

olhei calmo a chuva caindo


fina.
quantas incontáveis chuvas
já não caíram
desde antes
de
eu nascer?
quantas vezes a terra vermelha
não tossiu e infiltrada não
cuspiu
as gotas das incontáveis chuvas
que já caíram?

logo eu.
eu.
pequenininho dentro de uma
gaiola
querendo colocar o mundo
dentro do bolso
ou em poemas atemporais ou
no termo de posse de um
concurso foda
ou no reencarnar daquilo que eu
não pude ou deixei
de fazer.

quantos de mim não


sonharam
196
os meus sonhos
erraram os meus erros,
amaram meus amores,
morreram a minha morte
e olharam calmos a
chuva?

197
evangelho segundo lucas

a parada é que eu já não me dou mais


por
satisfeito com porra nenhuma
nem com as migalhas que você me dá escondido
do teu marido
ou os restos de afeto que eu encontro na lixeira
das pessoas.

eu me cansei de tentar me aquecer em


abraços de um braço só
ou de insistir em caber em
minutos contados
de um sexo semanal pesado de culpa no motel
mais fodido da cidade
tentando me sentir parte importante da vida de alguém
ou encontrar guarida
no evangelho segundo lucas naquela parte em que ele
diz que amar o próximo é
raspar as feridas vivas dos leprosos que moram
dentro da gente.

o grande lance é que eu tô cansadasso


de fingir que tá tudo numa boa, que eu sou grato
pra cacete
por receber a mínima parte do que a vida me dá,
do que Deus me dá
ou do que as pessoas me oferecem
sustentadas pelo
198
patético
sentimento de estarem me dando muito
como se eu precisasse de um favor ou um leito
na UTI
ou de um revólver carregado para explodir os miolos.

pro inferno.

199
poema de amor

mostre-me os peitos
e eu te escrevo
um
poema de amor.

poemas de amor atropelados


na sarjeta
da avenida dois de julho
não matam a
fome de uma prostituta
tão bonita
é bem verdade,
mas li num outdoor imaginário
que eles são
cachorros de guarda num jardim
de margaridas na
Holanda.

okay gata entendo o seu lado


guarde os seus
peitos
para alguém menos poético,
miserável, larápio e
com os lábios menos sujos
de lama
mas um alguém capaz de te
dar
uns trocados.
200
poemas de amor e conversa fiada
não
enchem a barriga de
ninguém.

201
meu grande amigo

ele deu um gole no vinho e


molhou a barba.

“caramba”
disse espremendo um sorriso de
criança e tentando arrumar a bagunça.

o bar estava vazio


e só havia nós dois ali
bebendo
conversando e
olhando as dançarinas.

no alto da nossa intimidade


eu me encurvei sobre a mesa
e enxuguei sua barba com um
guardanapo.

“tá molhado aí cara”.

em seguida ele falou dos tempos


em que trabalhava como carpinteiro e de
como era difícil serrar madeira de carvalho e

atravessar um prego naquilo.

no momento em que falou dos pregos


ele olhou para as mãos furadas e sorriu.

202
perguntou de mim
mal comecei a falar e me pus
a chorar.

senti minhas lágrimas morrerem


em seus dedos macios demais para
um homem feito que nem ele.

falei por horas a fio


falei sobre exatamente tudo
como eu me sentia e como aqueles dias
tinham sido difíceis.

ele me pediu um minuto e chamou o garçom.

“mais vinho meu querido”.

e voltou os olhos pra mim


meu amigo barbudo tinha
cabelos longos e também
tinha os olhos mais lindos
do mundo.

da sua boca não saíram palavras


[ele sabia dizer tudo com silêncio].

sabia drenar toda a minha dor apenas


com a paz do seu olhar.

203
pedimos a conta
e mais uma vez [como em todas]
ele fez questão de pagar sozinho.

nos despedimos com um abraço


longo.

“obrigado mais uma vez”


“tô sempre com você meu querido”.

e antes de virar a esquina eu ainda pude


vê-lo me acenar da porta do bar.

meu grande
e melhor amigo.

204
11. Arthur Diogo

Arthur Diogo é paraibano de Campina Grande, onde mora atual-


mente, mas passou grande parte da sua vida no Rio de Janeiro. Es-
creve desde a sua adolescência, começando com contos já perdidos.
Se aventurou e se encontrou nos poemas e publica desde 2016 na
página Realismo Poético. Publicou seu primeiro livro em 2019 (Essa
intensidade me fazendo mergulhar - poesia). Tem 25 anos e alguns
trocados.

205
1.

O pincel sobre a mesa


e a tela em branco
esperando ser beijada
pelas tintas.

Seu corpo, agora tão marcado pelo tempo,


está jogado no chão
enquanto ela procura
por um momento de inspiração
na esperança de pintar
um quadro imortal.

Mas a imortalidade é burra


e a quem interessa
essa tal vida eterna?

Ela não estará mais aqui


quando os seu quadros
fizerem sucesso.

Eu não estarei mais aqui


quando os meus livros
forem folheados
por mãos jovens
nascidas anos depois
da minha morte.

Mas o que fomos,


o que fizemos,
206
permanecerá.

Pensando bem
a imortalidade
não é tão burra assim.

A lembrança
que deixamos aqui
nos mantém
vivos.

Vivos,
vivos,
vivos...

207
2.

16 anos de casamento.
Tarde demais para desistir;
tarde demais para recomeçar;
tarde demais para o amor.

16 anos de casamento
e tudo o que sobrou
foram insultos
e noites mal dormidas
e contas para pagar.

Ele ainda a deseja,


mas ela já perdeu o tesão
como quem escuta uma música
que já se tornou enjoativa.

- Essa vida é um inferno! -


ele diz -
Você acabou com minha vida,
você acabou com minha vida!
Eu só queria acabar com tudo isso!

- É só amarrar uma corda no pescoço - ela responde - ou então se


jogar na frente de um ônibus.

Ele fica enfurecido


e ele fica vermelho
e ela pega a chave do carro
e sai.

208
Ele fica em casa
sem ninguém para ligar,
sem ninguém para ligar.

16 anos de solidão.
Tarde demais
para voltar atrás;
cedo demais
para o amanhã
que nunca virá.

Ela chega em casa


às 23h
depois de se deitar
com mais um garoto de programa.

Ele está na sala


pendurado pelo pescoço no
teto de telhas.

Tarde demais
para dizer
eu
te
amo.

209
3.

Era uma hora da manhã


quando ele entrou em casa
e ela já o esperava
sentada na cadeira.

Ele, bêbado, não quis conversa,


mandou ela sair da frente
com a brutalidade
de vinte búfalos.

- Olha aqui, seu desgraçado! -


disse ela -
Você pensa que eu não sei
onde você estava, né?
Você pensa que eu
sou alguma idiota,
seu merda!?

Ela gritava
e não tinha medo
da vizinhança escutar.

- Me deixa em paz, mulher! -


advertiu ele.

Mas ela não quis saber,


foi pra cima dele
com ódio, unhas e dentes.

210
Puxou pelo cabelo
e o jogou no chão.

Ele levantou
com mais ódio ainda,
tirou a peixeira
que estava em sua cintura
e foi pra cima.

Mas ela já estava preparada,


guardou uma garrafa de ácido
já aberta na cozinha.

Correu e jogou na cara do tal.

Ele berrava, corria, esperneava;


entrou em desespero
ao sentir sua pele queimar
e se desmanchar.

E ela jogou mais,


não teve piedade,
e enquanto o seu marido
se contorcia,
ela se ajoelhou na sua frente,
pegou a peixeira,
que nessa altura se encontrava no chão,
baixou a calça dele,
tirou a cueca
e lhe cortou o pau.

211
O sangue jorrava
e ele gritava em agonia
antes de finalmente morrer:

- Sua maldita! Sua desgraçada!


Eu te odeio! Sua vaca maldita!

Toda a vizinhança assistiu


quando a mulher saiu de sua casa
com os bagos em suas mãos
correndo e gritando
como se tivesse
enlouquecido.

Ela corria,
possuída pelo ódio.

Chegou na frente de uma casa


na vizinhança
e tacou os bagos do seu marido
no quintal.

Era ali
que ele a traía
quase todas as noites
com uma viúva.

A mulher voltou a correr


por toda a cidade
até ser imobilizada
por um policial.

212
Hoje vive numa solitária
e dizem que todas as noites
ela grita em desespero
ao sentir os bagos do seu marido
em suas mãos.

213
4.

A merda está sempre batendo


no nosso rabo.

É assim que é.

Seja por empregos fodidos


ou pela falta deles;
seja por estudos
não concluídos;
seja por uma esperança
cada vez menor
de um dia
a sorte nos sorrir.

A merda
sobe cada vez mais
na latrina
e chega cada vez mais perto
do nosso rabo.

Não adianta tentar levantar,


não adiantar tentar
dar descarga.

Os amores nos esvaziaram


e o sistema é foda,
é o que te prende
ao vaso
enquanto despeja
bosta e mais bosta.
214
5.

Tem sido dias tão pesados,


tão sufocantes.

Dias em que eu me sinto


numa corda bamba
e ela sempre me derruba.

O ‘pensar no pior’
nunca foi tão real.

Somos bombardeados
diariamente
por péssimas notícias
e não sabemos
em que lugar
podemos encontrar abrigo.

Tem sido dias


em que a sensação de pânico
é rotina,
que a boca vive seca
e o coração parece espancar,
e não bater normalmente.

Nesses dias
eu penso em todas as pessoas perdidas,
que se sentem fodidas <ainda mais>
e choro junto delas.

215
O pior
é constatar
que estamos abandonados
por aqueles que deveriam
nos amparar.

Tem sido dias


angustiantes.

Talvez o melhor
seja fugir disso tudo,
para o bem
da nossa saúde mental.

Tem sido dias


em que precisamos cuidar
ainda mais
de nós.

216
6.

É uma parada de outro mundo


quando você está na merda,
brochado com o mundo
e, do nada,
aparece alguém
que te faz florescer novamente.

Aquele alguém que te mostra


que, sim, a vida pode ter sentido
e o amor pode ser bom pra você.

É claro,
esse negócio de amor
é complexo falar.
Estamos praticamente
todos muito ferrados nesse assunto,
mas não custa acreditar
que um dia vamos esbarrar
com uma pessoa
que vai nos fazer tão bem,
que vai dar vontade de foder com ela
pro resta da vida.

Foder pra caralho.


Falo daquela transa
que te traz os melhores orgasmos.
A transa das almas.

217
7.

Você tenta fugir,


tenta escapar,
tenta de alguma maneira
não viver aquilo.

Por medo
ou por puro
capricho.

Mas quando a energia bate,


fodeu.

Não tem como fugir


de uma alma
que se reconheceu
na tua.

Não tem como


passar imune
por um olhar
que te prendeu,
por um toque
que te marcou.

Quando o destino quer


não tem discussão

É só aceitar os termos
e se jogar
torcendo
218
para que não acabe
novamente
em tragédia.

219
8.

Quem é que não quer


viver um grande amor,
com cheiro
e gosto
de verdade.

Quem é que não quer


se esbaldar no corpo
de quem também sabe
mergulhar em nós.

Gozar a carne
com quem goza
por nossa alma.

Quem é que não quer


um amor
que seja recíproco?

Não há nada
mais excitante
que isto.

E até mesmo
os mais doloridos,
desapegados
e descrentes
ainda desejam
sentir esse sabor.

220
9.

Essa garota
que me capturou
em algum lugar perdido,
onde as paredes dos labirintos
são repletas de mistério
e de lembranças
doloridas.

- Você é diferente
do que eu pensava -
ela diz.

- Como assim? -
eu pergunto.

- Você parece frágil.


A qualquer momento pode quebrar.

- Eu já estou quebrado,
mas quase ninguém consegue ver.

- Você não tem cara de durão


e nem mesmo parece um buceteiro.

- É porque eu não sou. .

- E por que escreve tanto sobre sexo?

- A gente tende a escrever


sobre o que nos marca,
e quando trepamos pouco,
221
cada minuto
se torna uma eternidade.

Ela então acende o seu cigarro


e caminha na minha frente.

Pessoas e mais pessoas


atravessando os sinais,
paradas nas faixas de pedestres,
sentadas em coletivos,
lendo os jornais.

E tudo o que eu vejo


é um belo rabo na minha frente
me puxando para um quarto
na Venâncio Neiva
onde eu fodo ele
com a devoção
de mil deuses.

No fim
ela acende outro cigarro
e se vira sorrindo
para mim.

- Se tudo que é bom dura pouco,


por que nossa transa
parece durar uma eternidade?

- Alguns bons momentos -


eu digo -
são tão bons
222
que ficam eternizados
na nossa memória.

Ficam passando
na nossa cabeça
como um filme bom
que a gente não cansa
de assistir.

Como algo bom


que a gente sempre
quer mais.

O foda
é que esse mais
parece distante.

O sorriso some do seu rosto,


ela joga fumaça pro ar
e fica encarando o teto.

Mais um fim de transa em silêncio.

223
10. Quando falo em solidão.

Quando falo em solidão, não falo daquela solidão que é chegar


em casa depois de sair e passar a noite com alguém. Não falo daque-
la solidão que é estar no seu carro sozinho (a) depois de estar com
alguns amigos. Não falo daquela solidão escolhida, procurada, dese-
jada. Essa solidão é a solidão boa. A solidão gostosa. É o que tantos
chamam de solitude.

Mas quando eu falo em solidão, eu falo daquela que rasga o teu


peito, que te faz prender o choro. É aquela solidão que te toma mes-
mo quando você está ao lado de alguém. Aquela que aparece mesmo
você estando rodeado de pessoas. É aquela que, quando você está
sozinho (a) consigo, não te deixa pensar, agir. Não te deixa em paz.
Ela só te grita: ninguém quer ficar com você; ninguém suporta você;
ninguém nunca vai ficar.

Talvez você não entenda quando eu falo de solidão. E eu acho


que isso é sorte. Porque quando eu falo de solidão, eu falo do tipo de
solidão que sufoca.

224
11.

Sorrisos
e mais sorrisos.

No ônibus,
no trem,
no metrô.

Nas lojas,
nas lanchonetes,
no centro da cidade.

Nas universidades,
nas empresas,
nos chão de fábrica
<mais raro, é verdade>.

Sorrisos
e mais sorrisos.

Em casa,
no facebook,
no instagram.

Sorrisos
e mais sorrisos
e nada mais
que sorrisos.

Mas quando eu olho


para um sorriso
eu consigo ver
225
muito mais
que uma falsa
felicidade.

Eu vejo
também
uma angústia
e uma tristeza
que tomam conta
dos olhares.

De noite,
eu tenho certeza,
essas angústias
e tristezas
e soltam
e se libertam
pelos mesmos olhos
que passaram o dia
sendo prisão.

Sorrisos
e mais sorrisos.

Me perguntaram
porque eu
não sou de sorrir.

Bem,
o mundo já tem
sorrisos falsos
226
o suficiente.

Guardo minhas gargalhadas


para os momentos
em que realmente
eu puder sorrir
com sinceridade.

Sorriso
não é sinônimo
de felicidade.

E eu
não me permito sorrir
enquanto por dentro
eu estou morrendo.

227
12.

A vida real
não tem filtro
e nela
estamos todos
de certa forma
fodidos.

228
13.

Cuidado, meu bem,


ao amar novamente.

São tempos difíceis


para quem sente muito
e as pessoas aprenderam
a fingir
até mesmo
profundidade.

Por isso,
meu bem,
cuidado no próximo amor.

Cuidado com os olhares doces


que escondem um vazio
tão assustador
que pode te fazer chorar
quando finalmente
revelado.

229
14.

Você chegou,
beijou,
chupou,
sentou,
gozou.

Colou teu corpo no meu,


me chupou com devoção,
empinou no ato
e me fez gozar
na tua pele.

Esfregou tua carne


no meu rosto
e eu gostei
de sentir teu sabor
no dia seguinte.

Foi repentino,
explosivo.
não estávamos
preparados.

Foi intenso,
porém,
efêmero.

Nem deu tempo


de sentar numa mesa de bar
e me apaixonar
230
pela maneira que você
bebe a cerveja.

Ou de acender
um cigarro perto de você
e te escutar reclamar
da fumaça.

Nem mesmo
de desenhar teu corpo nu.

Não deu tempo


de escutar uma música
e dizer
que é a nossa.

Mas deu tempo


de deixar saudade.
um gosto
de quero mais.

De marcar
tuas iniciais
em alguns poemas
de desilusão.

As duas letras
que minha cabeça gritam
quando estou em frente
àquela pousada.

231
Mas aceito o fato
de ter sido apenas
uma transa,
um caso.

Eu só não aceito
essa tua mania
de entrar nas minhas lembranças
e foder comigo
quando já estou perto
de esquecer
nosso momento.

E o pior
é que você
nem sabe disso.

232
15.

- Você tem cara de safado - dizia ela subindo no meu colo - e o me-
lhor é que seu membro mostra exatamente o mesmo.

- Talvez eu goste muito de sexo - respondi - ou talvez eu curta mui-


to matar o tédio.

Ela sorriu e se aproximou, colocou uma de suas mãos em meu pes-


coço e me puxou para perto, até colar o meu ouvido na sua boca.

- Espero que esteja entediado agora - disse.

233
16.

M era uma criatura singular, por assim dizer. Tinha muito o que ofe-
recer, mas o pouco já satisfazia seus homens. E era isso que a in-
comodava. Ela se sentia insuficiente, sem perceber que insuficiente
eram os homens.

Todos eles se assustavam com o jeito M de ser. Isto é: livre, sem me-
dos, sem preconceitos, impulsiva. Fazia todos eles se sentirem pre-
sos, até mesmo aqueles que se julgavam mais livres. E era isso que
eles evitavam. A sua liberdade. Eles não queriam voar com ela. Eles
temiam que a volta fosse dolorosa. E de fato era. Aqueles que ousa-
ram acompanhar o seu ritmo acabaram por descobrir que era algo
impossível. Ficaram pelo caminho, todos de quatro por ela, aos pran-
tos.

Nas noites solitárias ela se deita na cama e assiste no teto um filme


que mostra todos esses homens. Todos que já estiveram entre suas
pernas e tiveram medo de ir além. E os que foram e ficaram pelo
caminho também. Em alguns momentos, aquele pensamento de in-
suficiência volta, mas logo se vai. Ela se olha no pequeno espelho e
descobre o motivo de estar sozinha: é que ela é feita de fogo, e pes-
soas fogo não se encaixam nesse mundo gélido.

Ela vira de lado e dorme. Em outra cidade do país eu faço o mesmo.

234
17.

Tem dias que a gente desaba. Simplesmente desmorona. É como se


você estivesse fazendo um castelo de areia e uma onda conseguis-
se desmanchar em questões de segundos. Nesses dias a nossa força
parece desaparecer e tudo o que nós queremos é ficar na cama, ali,
quietinho, sem ninguém para nos pertubar.

O que nós não sabemos é que nossa força permanece aqui. Ela não
desapareceu. Apenas está descansando, e te obrigando a ter um des-
canso também. Nós não precisamos ser fortes o tempo todo. Nós
não somos feitos de pedra. Somos feitos de carne, osso e, no caso das
melhores pessoas, também de sentimentos. E por isso sangramos. E
não há nada de errado nisso.

Não, não vou falar pra você levantar, enfrentar as merdas da vida.
Tampouco para você se acomodar e aceitar a condição. Mas eu que-
ro dizer que esses momentos são mais do que normais. São também
necessários. É claro que não é bom chorar, paralisar. Mas esses dias
também são cruciais para te lembrar que você é humano (a), e não a
porra de um robô programado para não sentir. Sinta sim. Dá alegria
até a tristeza. Permita-se ir do céu ao inferno e do inferno ao céu. E
assim descubra que você não nasceu para se foder <mais>.

235
12. Giovanna Vieira

Giovanna Vieira tem 24 anos e escreve desde os 10 quando descobriu


seu amor pela escrita em um concurso na escola. Hoje publica seus
textos na @selopoeta e em seu Instagram pessoal (@givieiraa), onde
leva poesias dela e de outras pessoas para diversas capitais brasileiras
e outras partes do mundo! Além de textos relacionados a sentimen-
tos Giovanna também elabora artigos voltados para psicologia, sen-
do graduada na área.

236
1.

Acho que se meus textos tivessem voz


assim como tem um emaranhado de sentimentos
eles diriam tantas coisas que não estão nas palavras ali escritas.
Se eles tivessem voz, os papéis chorariam enquanto as palavras
gritam,
eles sorririam enquanto os versos brincam de recitar amor.
Se meus textos tivessem voz todos eles diriam teu nome.

237
2.

Estou deitada
mas a casa não me deixa dormir
ela balbucia algumas palavras
que de início não consigo entender
então ela grita seu nome dizendo que
sente saudades de você
e rangendo as portas meu coração respondem:
“eu também, eu também”.

238
3. Fusão nuclear

Certa vez li que as estrelas brilham devido a fusão nuclear


Que acontece em seu núcleo liberando uma energia tão forte
Capaz de irradiar o seu brilho pelo espaço sideral
Mas eu nunca havia compreendido tamanha energia
Até aquela noite em que vi estrelas nos teus olhos
E aquele brilho atravessou barreiras e ofuscou memórias
Que a tempos eram o sol do meu mundo
A gravidade que mantinha meus pés no chão foi a zero
E a física não foi capaz de explicar a colisão entre nossos universos
Tua constelação foi capaz de criar elementos dentro de mim
Que não se pode explicar com astrologia
Certa vez vi estrelas nos teus olhos
Eu só não sabia que um dia elas morreriam.

239
4. O poema mais bonito do mundo

Eu sempre preferi livros de poesias


Vivia buscando nos versos
O poema perfeito pra mim
Li Clarice, Cecilia
E todos os heterônimos de Fernando
Li reli rimas ricas e pobres
Falhei.
Falhei porque busquei nos lugares errados
Mas quando te vi ali parado
Com teu cabelo bagunçado
Eu entendi que nem sempre
Vou encontrar poesia nos livros
Às vezes elas têm olhos azuis
E um abraço apertado
Conheci o poema mais bonito do mundo
Quando te li naquelas rimas
Naquelas linhas bagunçadas
Que me levavam sempre pra nossa loucura
Para os nossos momentos e segredos
Encontrei o poema mais bonito do mundo
Quando te li pela última vez
E percebi que nem toda rima
Nasce de um amor que deu certo.

240
5. Me desculpe por não poder ficar

Sério eu gostaria de querer acordar num domingo de manhã ao


teu lado e escolher se iriamos almoçar ou tomar café da manhã, mas
eu ando preferindo acordar sozinha e comer pipoca enquanto leio
algum livro.

Eu gostaria de continuar aqui deitada em teu peito como sempre


faço, e ouvir teu coração ritmado tocando as mais belas melodias,
eu gostaria mesmo mas não posso mais, pois enquanto em teu peito
ouço uma escola de samba, no meu o carnaval acabou.

Me desculpe por não poder ficar, preciso que você entenda que
eu quero mas nós estamos em tempos diferentes e eu não posso te
machucar, não posso te quebrar, não posso te fazer desacreditar no
amor, não quero ter em minhas mãos o sangue de um coração par-
tido.

Eu vou sentir saudades das nossas risadas e dos nossos momentos


de silêncio, vou sentir falta do teu beijo levemente molhado e do teu
toque que me dava calafrios, eu vou sentir sua falta.

Não duvide do carinho e das palavras que te disse, não duvide do


amor que juntos cultivamos, mas é que eu preciso de alguém que
não apenas entenda minha loucura mas que seja louco comigo.

Eu preciso de alguém que ande ao meu lado e não apenas me


acompanhe,

Por isso me desculpe por partir, é que eu não posso ficar em um


lugar que me preenche, mas não me transborda mais.

241
6.

é sábado e o relógio pendurado na parede branca já marca onze


horas
pessoas se vestem e saem em busca de aventura
exceto aqueles que tiveram seus corações partidos
estes ainda não estão preparados para uma noite de sábado
feridos, ainda temem sentir novemente e se protegem em suas c
mas
por baixo de camadas de sonhos não realizados e histórias inacaba-
das
eu me incluo neste segundo grupo
desde que você se foi venho caminhando devagar
tomando doses de realidade diariamente
e deixando todos os sonhos que incluem você pra lá
tento substituir meu vício por outras drogas mais leves que o amor
mas a abstinência me faz te buscar nas mais profundas memórias
de cada dia que vivemos (se é que vivemos algum dia)
tento enganar minhas células que pedem por tua eletricidade
mas elas sabem que estes braços que agora me seguram
não são os teus que um dia me soltaram
já o inconsciente cria e recria versões de você em cada sonho
desde que nos desconhecemos...
encontro entre as folhas e leio a última carta que te fiz e não entre-
guei
as letras estão borradas pois naquela noite choveu dentro de mim
e meu coração transbordou)
nela escrevi todas as palavras que não te falei
aquelas que se perderam no caminho entre a fala e a emoção
as mesmas que agora leio e percebo que o amor nunca foi amigo da
razão
vou guardar estas palavras escritas junto com minhas relíquias
de bons momentos
e eu espero que de onde você estiver lembre-se que existi
que te amei mesmo que isso tenha custado meu coração que agora
se reconstrói
então seja feliz daí que eu estou reaprendendo a ser feliz aqui
e assim um dia nos lembraremos de uma forma diferente...
242
7.
Eu não me lembro ao certo quando aconteceu, quando o amor se
dissipou por nossos dedos, os mesmos que antes se entrelaçavam....
Quando foi que deixamos o amor virar pedra mesmo jurando o
infinito? Eu não me lembro do exato momento em que a luz que
havia em nós apagou.
Ainda me lembro de tudo aquilo que era nosso, dos sonhos não
vividos, dos sorrisos compartilhados, de tudo que ficou tanto tem-
po guardado e agora te entrego embrulhado em saudade do que
fomos.
Adeus.

243
8.
Venho te sentindo das mais diversas formas.
Esses dias te senti na ponta da língua, quando ela tocou o brigadei-
ro pelando e logo te senti ali, quente, e sorri ao lembrar em como
você vivia se queimando por comer tudo direto da panela com o
fogo ainda aceso.
Te senti nas gotas da chuva que tocaram minha pele como você
tocava enquanto dançávamos na sala em um dia frio. As gotas bor-
raram minha maquiagem como você borrava meu batom...
É incrível como venho te sentindo das mais diversas formas, cores
e sons... sexta-feira por exemplo, te senti naquela música que toca-
va sempre na rádio e você aumentava no último e cantava, a como
você cantava, e eu era sua fã número um, voz alguma me fazia sor-
rir como a sua me fazia.
Antes de dormir também te sinto... te sinto no cheiro que ficou no
teu travesseiro que agora está ali, sem uso, e que aos pouco vai per-
dendo seu cheiro que se dissipa com todas as outras coisas que você
deixou pra trás...
É impossível não sentir o gosto do teu beijo quando tomo uma
xícara de café ou como o último pedaço de pizza. Mas de todos os
momentos que venho te sentindo, o que mais me dói é quando te
sinto na saudade...a e como te sinto...
Mas tudo bem, amanhã talvez eu sinta um pouco menos ou um
pouco mais, não sei, mas tenho certeza que vou ficar bem, pois
por mais amor que eu senti e ainda sinto por você, eu venho me
reconstruindo ainda mais forte do que já sou e buscando me sentir
mais até que eu me sinta por completo como sempre deveria ter me
sentido...
Adeus.

244
9.
Você sente falta dos beijos não dados e das noite não dormidas ao
meu lado ?
Me faço essa pergunta desde que o seu lado da cama ficou repleto de
lembranças e um vazio que tem o teu tamanho.
Os cômodos da casa ainda não se acostumaram com sua ausência, a
prateleira anda perguntando sobre os livros que ali ficavam e minha
escova no banheiro agora vive só.
A noite ouço ruídos de saudades pelas paredes e tua voz ecoando em
alguma dessas lembranças que você esqueceu de levar.
Na porta da geladeira ainda tem um dos post-its que você me escre-
via e colava pelos cômodos toda manhã com recadinhos e piadas
nossas, e seu cereal favorito ainda está fechado bem ali no balcão da
cozinha.
Tem um pedaço teu em cada canto dessa casa que antes era palco do
nosso amor e agora se tornou um relicário de momentos bons que
vivi ao seu lado.
A casa Ainda não está pronta pra dizer adeus ...
E eu também não...

245
10.
Esquecer você não é como se eu pudesse enfiar a mão no meu peito
te arrancar de lá, esquecer não é fácil.
Ontem eu achei que tinha conseguido mas hoje, hoje eu vi uma
foto tua e tudo aquilo que venho tentando afastar da minha mente
voltou.
Voltou tão rápido que eu não fui capaz de conter e de repente feito
um parasita você havia se instalado na minha mente.
Não fui capaz de comer porque havia um nó em minha garganta e
borboletas ocupando todo meu estômago.
Não fui capaz de pensar porque todos os meus mecanismos de de-
fesa tentavam te expulsar da minha mente.
Dessa mesma mente que desmente todos os dias a esperança que
ainda tenho de você voltar...
Mas você não vai voltar né?
Você escolheu partir e eu não posso impedir isso.
Eu tentei eu juro que eu tentei mas a cada tentativa de te esquecer
era uma lembrança a mais que eu tinha de reviver.
É que você faz tanta falta
Eu sinto falta do teu cabelo
Eu sinto falta da tua risada irônica
Eu sinto falta de te ver me olhando mesmo quando eu estava desca-
belada...
Acho que te esquecer não vai ser possível, mas eu prometo que vou
tentar te transformar.
Vou tentar transformar tudo isso que eu sinto por você em uma
lembrança boa.
246
E assim quando a falta virar saudade vou colocar aquele nosso úni-
co disco de vinil pra tocar pela última vez, aquele vinil que a gente
comprou por cinco reais e o deixamos tocar a noite toda...
E finalmente eu vou sorrir sem dor ou mágoa de nós dois, e então
vou me despedir...
mas te esquecer pode ter certeza que não vou...

247
11.
13 de Setembro
Quando os abraços diminuírem
E as certezas forem morrendo
Quando tudo se resumir a vagas lembranças
E a vontade de estar perto não for suficiente
Quando o amor não for suficiente
E a noite tiver cor de desesperança
Deixe que teus olhos conduzam as lágrimas

Deixe-os dançar a última música pelo teu rosto


Enquanto o coração ritmado
conduz a dor pelo salão do peito vazio
Quando a saudade chegar
E as vagas lembranças não forem suficientes
E os sonhos se tornarem pesadelos
Quando pesadelos se tornarem reais
E os teus demônios acordarem
Quando a fé não for suficiente
Lembre-se de tudo aquilo que um dia te fizeram feliz
E lute porque a dor, os demônios e pesadelos
Podem ser vencidos se você reencontrar a luz
Que se apagou naquela noite de setembro...

248
12.
Ainda vai doer
Vai doer tanto que você vai desejar nunca tê-lo conhecido
Ainda vai sonhar inúmeras vezes com os momentos que não pude-
ram viver
E vai suplicar aos céus pedindo pra que leve a saudade embora
Antes mesmo dela chegar
E quando você achar que acabou
Que a dor dissipou
Ela vai voltar pra se despedir
Vai te fazer chorar uma ultima vez
E reler a aquela carta de amor que ele não te entregou
Mas você encontrou ali na segunda gaveta da escrivaninha
E então em um dia qualquer
Você vai acordar, lavar o rosto
Ouvir alguma canção
E finalmente perceber
Que a dor fechou as portas,
Entregou a chave do teu coração
E part iu
Deixando a casa pronta para um dia
Outro alguém entrar e fazer morada.

249
13.
Essa falta que você me faz
É um escárnio para meu peito
Que em prantos se desfaz
Aqui jaz um coração partido...

250
14.
“Obrigada pela visita”
Antes de sair devo lhe agradecer por ter feito do meu peito morada,
mas agora está na hora de organizar alguns móveis que ficaram fora
do lugar desde o dia em que você partiu.
Foi doloroso te ver saindo pela porta da frente do meu coração, dei-
xando a chave bem ali pendurada no átrio direito para que o próxi-
mo morador pudesse encontra-la com mais facilidade.
Não sei quando estarei pronta pra deixar outro alguém entrar pois
ainda preciso reestruturar muitas coisas que se quebraram com seu
adeus mas sei que se deixar a porta aberta eventualmente alguém
pode me oferecer uma mão (e um coração quem sabe) pra me ajudar
na reforma.
Sabe, quando você chegou eu não imaginava que seria um simples
visitante e com o tempo me acostumei com tua presença ali dentro
de mim e agora que a casa está vazia meus sentimentos gritam lá
dentro e o eco é a única voz que ouço.
Agora você partiu mas devo dizer que de certa forma uma parte sua
ficará comigo, vou emoldura-lá pra que o próximo morador saiba
que você passou por aqui e acrescentou muito em minha vida.
aproveite sua nova jornada e obrigada pela visita.

251
15.
Obstrui minha artéria com um amor inexistente...
Infartei.

252
13. Alf

Nasceu em 1995 em São Gonçalo dos Campos, umas cidadezinha


no interior da Bahia que não está no mapa mas apareceu em rede
nacional quando surgiu um lobisomem por lá. Participa da página
do Instagram @selopoeta e em grupos de whatsapp que nunca res-
ponde, só visualiza.

253
quis tanto te encontrar
em cada rua, em cada canto
em cada pessoa, em todo lugar
de tanto te procurar
me encontrei.

254
fui embora protestando, fazendo o maior barulho
para que você soubesse que não queria ter ido.
mas é isso, quando um não quer dois não amam.

255
quem faz teus olhos brilharem
quem faz você sorrir de orelha a orelha
e te alegra o coração
quem faz você feliz
é feliz contigo ?

256
amor não é o que você diz ou escreve para alguém. isso é fácil e o
amor vai além.
amor é tudo aquilo que você faz pela pessoa
amor é gesto
é ação.

257
não existe uma fórmula para fazer dar certo. a reciprocidade é es-
sencial, claro. entretanto, mesmo que seja reciproco não há a cer-
teza de que a coisa toda vai acontecer. o amor não é o resultado de
uma fórmula já pronta, ele é uma dessas contas que tomam o qua-
dro inteiro e misturam letras, números e símbolos que a gente não
sabe de onde veio e nem para onde vai.
o amor é simples, a formula dele que é complexa

258
eu estou sempre esgotado
dormindo pelos cantos
exausto da faculdade, do ônibus lotado de manhã cedo, do trabalho
e da rotina
mas eu nunca me canso de estar com você.

259
sempre que olho pra você
a escola de samba que carrego no peito
faz um desfile de carnaval.
é que quando a gente se encontrou
teu cheiro ficou grudado em mim
e não saiu mais,
como amaciante de roupas.
depois do nosso beijo
teu gosto perdurou na minha boca.
o sol do teu sorriso que me ilumina a vida
agora aquece os dias mais frios.
é que você chegou e então tudo me cabe
tudo me é possível.

260
algumas feridas levam mais tempo que outras para cicatrizar, tudo
bem por isso. é importante acompanhar todo o processo de cicatri-
zação e perceber como a dor vai diminuindo com o passar dos dias,
assim como não vai doer para sempre, tocar na ferida uma hora
não te afetará mais.

261
você precisa aprender, para o seu próprio bem, a ir embora quando
não há mais reciprocidade, quando o esforço e interesse vem só de
um lado, quando a vontade de estar, de fazer acontecer é só de um.
você não pode empurrar tudo com a barriga morando em dores e
amando por dois.

262
cultivamos a mania de querer tudo pra ontem, do dia pra noite,
colocando sempre a carroça na frente dos bois. esse imediatismo,
atrapalha a real percepção de que tudo tem seu tempo. calma, um
dia por vez. não se planta a semente hoje para colher o fruto ama-
nhã. mudanças precisam de tempo, umas mais tempo que outras
até.

263
mais importante que o destino é o percurso, é toda a caminhada e
o tempo que você levou para chegar. não é do dia pra noite, é um
processo. crescer requer tempo e paciência.

264
a vida é um ciclo e pessoas entram e saem de nossas vidas o tempo
todo. Aquele laço que achamos que é forte e duradouro se desfaz
com a brisa mais leve e pouco tempo depois surgem outros laços.
precisamos reconhecer e aceitar que as coisas terminam mas nós
continuamos, a vida e os ciclos continuam. tudo bem demorar um
pouco pra entender isso. a vida acontece com aqueles que ficam.

265
a falta é tudo o que sobrou do que fomos um dia.
sinto sua falta,
depois de acordar
e antes do dormir.
da pontinha dos teus pés
até teu último fio de cabelo.
sinto sua falta por inteiro
como o filho chora a falta da mãe,
o alcoólatra a falta do álcool
e o drogado a abstinência da droga
sinto sua falta.

266
quem parte sempre deixa algo. uma camisa na bagunça do guarda-
-roupa, um sms que não foi apagado do celular, fotos e vídeos em
uma pasta qualquer no computador, compras na fatura seguinte do
cartão de crédito, o par de meias que nunca era encontrado e que
agora está sempre no mesmo lugar: no fundo da gaveta. quem parte
nunca vai, quem parte sempre deixa algo pela casa ou no coração
de quem fica.

267
morro de inveja desse cigarro barato que a fumaça te impregna as
vestes e o cabelo
morro de inveja desse cigarro barato que você segura nas mãos
com tanta destreza e prazer
morro de inveja desse cigarro barato que te toca os lábios e entre
um trago e outro te rouba um beijo.

268
aqui na comunidade saimos todos os dias sem saber se voltamos vi-
vos para casa. pra quem não sente na pele, é exagero. mas aí a gente
morre e vira só números mesmo. é tiroteio, abordagem da polícia
só com preto em busu cheio, levar tapa na cara por causa do cabe-
lo, morrer sendo inocente porque preto é tudo bandido né? farda,
caderno e carteira de estudante no bolso e ainda assim sentir o ba-
culejo da pm por fazer nada e ser suspeito, sem falar no racismo de
todo dia que vai matando a gente por dentro... coisas demais nos
matam diariamente, mas pra quem não sente na pele é so exagero.
e agora tem um vírus aí que quando subir na comunidade vai ser
um carnaval, onde quem queima na quarta somos nós. aqui todo
beijo, tchau, bençã e abraço dado soa como despedida. cê louco tio.

269
14. Lineker Campos

27 anos. Nascido em Itumbiara, no estado de Goiás, e morador da


cidade de Uberlândia/MG. Formado em ciências contábeis. Estu-
dante de gastronomia. Amante de teatro, cinema, e fotografia. Gosta
de escrever sobre sentimentos que estão perdidos. Desde 2018 no
perfil (@porlineker) no Instagram.

270
sempre achei que estaria
destinado a solidão.
no fundo, sempre imaginei que nenhum
dos meus sonhos seriam realizados.
talvez as pessoas tivessem razão,
era preciso me submeter
ao que não me fazia feliz.
Mas o que seria de mim?

271
Vinícius,
ele me esperou debaixo
de chuva.
Seu chinelo estava molhado.
Quando nossos
olhos se encontraram
sai daquela lanchonete.
O sorriso entremeio a barba,
aqueceu aquele dia frio.
Em frente ao subway da
rua principal seu abraço
me salvou.
Foi como ser desenhado delicadamente
por suas mãos.
O nome dele, você já sabe.

272
Me apego,
sem anseios,
sem medos.
Me afago no teu toque
e me briso em cada
gota da chuva.
Você, Guaia
canto que nasce
da natureza,
olhos serenos.
do último
orvalho que cai.
Pés, raízes que
são sustento,
alento.
Tu, verbo.
Saudade, presente.
Me habita,
e que agora
faz cócegas
no meu peito.

273
no fundo, mesmo que não
admita, ele te espera.
Sempre esperou.
Ainda espera.
Longos anos se passaram
em meio a crises de ansiedade
e lapsos de saudade,
de coisas que nem sequer
aconteceram.

274
Você se silenciou
quando abri meu peito.
quando desnudei
minha alma.
E se foi.
E aqui, eu fiquei.

275
Eu e minha mania boba de me apaixonar
Eu e minha mania boba de acreditar no melhor das pessoas.
De achar que quem chega demonstrando gentileza
vai ser diferente dos outros...
Mesmo que seja.
É uma incerteza dramática que carregamos,
que descobrimos com tempo.
Aquele famoso benefício da dúvida.
Uma inexistência de realidade.
Eu e minha mania insaciável de tentar mergulhar em águas rasas.
Em lugares que a superficialidade cintila ofuscando
a verdade que transcende os raios do sol.
Deixando me tonto pelas invariáveis
Deixando me anestesiado por conta da nicotina.
Fotografia preto e branca. Silêncio.
Eu e minha mania boba de sentir com a alma.
De sentir com minh’alma.
De acreditar que a profundeza que habita
em mim habitará outros corpos.
Eu e minha mania boba de transbordar enquanto
os outros apenas chegam pra molhar os pés.
Eu e minha mania boba de mergulhar
em águas rasas.

276
eu me perdi durante tanto tempo,
esqueci como era sair sozinho pra ver o pôr do sol.
estava numa espécie de transe,
anestesiado por sua obsessão em me ferir.
em querer me mudar.
preso em uma ilusão criada por
alguma expectativa, ou pelos meus próprios medos;
o da solidão, o de não ser bonito o suficiente,
o de não ser especial, o de não conseguir ser alguém.
sempre ouvi de você que era amor,
quantas vezes me disse “eu te amo”.
a noite quando meus olhos se fechavam
com você me olhando era quando as traições soberbas aconteciam.
eu não via. E em meus sonhos eu tentava fugir.
numa dessas agruras eu consegui, me vi livre de você.
foi a melhor sensação.
me vi livre de algo que nunca existiu,
de um sentimento que não era real.

277
Amei, mas deixei
para me amar novamente
e em atos reais.
Muitas das vezes é
preciso partir,
para se reencontrar.

278
De tempo em tempo
eu me pego sonhando
de olhos abertos,
imaginando o que o
universo me reserva
no próximo segundo.

279
Estão a diluir
o amor,
ou o pouco
que sobrou dele.

280
de um dia para o outro
as coisas mudaram.
e agora me sinto preso
no tempo.
sufocado pela obrigatoriedade
do caos.
ansiando por um abraço que
não sabe quando será
desenhado.

281
esqueceram como se abraça
esqueceram como olhar nos olhos.
a tecnologia sucumbiu as relações
distanciando todos e enfraquecendo
os laços.
agora, quando todos precisam
acordar estão a dormir.
redescobrindo espero o que
jamais deveria ter sido esquecido,
o amor.

282
nas ruas não há ninguém
não se ouve mais os barulhos
das noites boêmias
todos se refugiaram dentro de si.
e diante os dias caóticos
a única coisa que todos sabem é
que o amor os salvará.

283
tem dias que sento
na beirada da calçada
para poder ver os poucos
carros passarem.
quase sempre é noite.
é a única maneira que
encontro de enxergar
as estrelas e não pensar
em você.

284
minha terapeuta sempre me
tranquilizou
em relação as ansiedades que me
entorpeciam.
aprendi com ela a não antecipar
o que ainda estaria por vir.
agora a única coisa que penso é que
não há o que antecipar,
a não ser esperar. esperançar.

285
em dias de amargura me disponho
a dispersar.
apago conversas sem sentido.
é minha maneira
de desvencilhar do que jamais
existiu.

286
em meio ao nada, percebo que
nunca fui bom com encontros
sempre fui o que ficou do lado
oposto da margem.
escrevendo sobre eles e tecendo
momentos bonitos que poderiam
ser palpáveis algum dia

287
A verdade é que ninguém sabe
O poder que tem de causar
Algum sentimento n’outro
Quando se fala de sentimentos
Não há culpados.
Apenas expectativas frustradas
E quem sabe reciprocidade.

288
Minha alma
inconstante
variável,
vaga por aí.

289
14. Wally Wilde

Não sou poeta nem nada, só tenho andado muito entediado.

290
Desenvolvendo teorias absurdas a cem por hora em uma mesa
de bar
(ou simplesmente “Darín”)

Desde o exato momento em que se nasce


se inicia uma busca por algo
passamos todo o tempo de existência
feito cães que perseguem um carro
sem a menor ideia do que fariam caso alcançassem.
Mas quem dera fossemos feito vira-latas
fieis, companheiros e autodidatas o bastante pra lamber as próprias
partes.
Invés disso, somos como um rebanho de vacas,
baixando a cabeça pra tudo
marchando por conta própria pro abate.
Há somente duas coisas na vida
pelas quais realmente compensa viver
o prazer
e a vontade
cedo ou tarde um dos dois
vai acabar matando você.
Por isso o pudor é um investimento frustrado,
o que será dos teus pedaços
que não foram mastigados?
Aprendemos a caçar, matar e comer outros animais,
você por sua vez, quando morrer
quem não comeu, não come mais.
Quero aproveitar cada instante
do tempo abençoado que me foi dado
espero que você volte logo
pra que a gente possa se comer de novo.
Para pensarmos
basta pararmos
de falar por um momento
silencio é o lugar
onde da pra escutar
291
as besteiras que podemos falar.
Mas a culpa não é minha
a culpa é da posição da lua
a culpa é das estrelas
dos planetas
do universo, tudo é tão lindo
vem comigo
quero calcular teu signo
faço isso pra saber quem é você
com ajuda do destino
e se os ascendentes deixarem
quem sabe eu posso até gostar de você
Dentro dos seus olhos
existe um mar
e nesse mar há um hemisfério
onde os barcos se perdem
voluntariamente.
A vida é uma tragédia, baby
e isso não vai acabar bem
mas se for pra eu me danar
que seja dando pra alguém
Antes disso quero te levar
para passear no parque
para caminhar na rua
para assistir una película en castellano
vamos fazer um filme argentino
falar bonito
vamos viver um amor sofrido
quem sabe você
não me deixa ser
o seu Ricardo Darín
E antes que a vida nos foda
me fode você

292
Quase um Frankstein
Te dei meu coração
você levou fígado, rins, pulmão.
Não acho ruim não,
acho até bom.
Sei que em algum lugar longe daqui
você anda tentando me reproduzir

293
BALADA PARA BAUMAN
Me espera parada na porta
sai de roupa muda
pisa leve na escada
vamos ter mil filhos no caminho
vamos ser dois putos
vamo sair do mundo
vamo cair nos fundos
me deixa desaguar seu rio
deixa eu ser seu pobre amigo
morrer 22 vezes
correr atrás de você
deixa eu me fuder
me fode você
vamos cozinhar pro amigos nos domingos
falar sobre filmes bonitos
envelhecer com calma
desejar com pressa
vamos sentir fome
eu vou beber seu canto
devorar seu pranto
eu vou beijar seus sonhos
vou sonhar seus planos
calar sua fome
vou matar seu nome
desenhar um apelido pra você
eu vou te dar motivos
te querer pra um infinito
e pra isso acontecer
só falta você
me dar match no tinder.

294
Mal vital
A paixão é um suicídio lento
Um grande mal vital e indispensável
Como eu e você,
oxidando a cada vez que respira.

295
Vísceras
O que a maioria de nós está fazendo?
pensando que pode enfiar
quilos e quilos de gente dentro do peito.
Achando que a carne aguenta
fingindo que não é de vísceras que a gente é feito.
Que o diesel que aquece os motores
não é um viscoso mar vermelho.
Porque tu andas rabiscando corações nas paredes?
Como se tua casa fosse ter espaço para sempre
Como se sequer fosse possível guardar um incêndio.
Nenhum amor que eu conheço
cabe em um poema
escorre pelos cantos da boca
queima a ponta dos dedos
Por isso vamos morar em outro estado
Por isso mudamos de apartamento
porque nenhum amor que eu conheço cabe em um poema.
E não tem músculo que não arrebente
Eu ouvi dizer que a esperança
era o martírio do naufrago
e que beber cada gota do oceano
era o único meio
o único jeito
de sair inteiro da terra deserta onde atracamos com os dentes
na ilusão de estar se salvando
E não tem músculo que descanse
Quando eu cheguei na tua praia
já desprovido de tudo
Já sem esposa, sem dinheiro
sem amigos e sem um nome
para me valer ou negociar com o diabo.

296
Quando eu me tornei o teu estado
de lábios salgados e os braços surrados
eu me dei ao chão e rezei para o único deus daquela ilha que era eu.
O que a maioria de nós está fazendo?
Enterrando as unhas no peito
A procura de um âmago
Quando eu..
Eu só sei amar com o estômago.

297
Já jurei pelo meu nome tantas vezes no espelho
que nem sei mais como me chamo
Quando ela pronunciou meu nome
de imediato atendi o seu chamado.
Sei que havia jurado; “Nunca mais”
mas fico com teus beijos
minha honra que se dane.

298
Instruções para se falar de amor

Há muitas formas de falar de amor


mas só um jeito genuíno de fazê-lo.

Invada minha casa durante a noite


ande pesado sob o piso
sirva duas taças de vinho
beba as duas
depois me alcança na cama
me acorda com seu hálito etílico
fode comigo

299
Estranho bonito
estranho bonito
você não sabe, mas eu ontem te vi na rua
cruzando a avenida entre os carros
de sapatos nas mãos.
me faltam argumentos que expliquem como,
mas tive a impressão de já te saber
como sei dos meus livros.
fiquei olhando em segredo por trás dos olhos você se afastar
]descalço.
com a planta dos pés lambendo o chão.
ainda que você mesmo não soubesse
eu sei onde ias.
ao primeiro bar abarrotado de figurantes bêbados falando em voz
alta
onde pudesse curar com bandaids
teus calcanhares feridos
onde pudesse ascender um cigarro
com teus magros dedos bonitos
e acalmar a garganta com bebida.
eu lá estaria
não para ser tua companhia,
porque como toda uma vida
você estaria só,
mas para ser o copo
que ao interromper devaneios tolos
sobre a arrogância das fronteiras
te beijaria os lábios num gole de cerveja.
de que lugares você vem?
quais foram teus nomes?
o que teu corpo quer?
me aportei perto o bastante para fisgar informação tua,
mas você respondia a quase tudo com silêncio.
tua boca não usa palavras.
investigo,
com a tenacidade de um menino.
mas não ouso, não ainda,
300
a reduzir a distância
contudo fantasio
que no meio de uma noite abafada
você gire a maçaneta do quarto
me invada
e ali, naquela cama vermelha
teu peito nu toque minhas costas nuas
com a textura dos teus pelos
com o cheiro forte das tuas axilas
depois, só depois adormeceríamos e
o mundo ao acordar não saberia nossos sonhos.
estranho bonito que vi outro dia na rua
tenho pensado em teus detalhes
como quem pensa em um parente próximo,
como quem conhece teus bairros, tuas esquinas e o limite da tua
matéria.
faz pouco sentido, eu sei,
mas também os sentidos e a razão
tudo mais tem sido pouco depois de ti.
fiz longas viagens
como me era desejável fazer
peregrinei pela beirada do continente
por terras quentes e distantes de casa
como um dia eu disse que faria
é verdade que me encontrei no mar
descobri que eu era mais forte do que dizia,
mas nada disso foi o bastante para não pensar em você atravessan-
do aquela rua.
cada praia onde estive eram para mim fotografias
nós
dois estranhos imediatistas
com os braços trançados para se proteger do frio
mais sujeitos homem que qualquer outro homem
mais ricos que qualquer barão.
em roupas de banho
sem querer com bolsos
em roupas de banho
mas cheios de vontade
301
certa e derradeira
para dizer teu nome
para pronunciar palavras grandes
para tentar explicar um para o outro
[quem nos dera o mundo]
essas coisas todas que ainda agora não sabemos bem.
logo você
me olharia nos olhos e confessaria
_tenho medo de enlouquecer.
ao que eu responderia
_seremos então dois loucos
um
a curar a febre do outro.
e um dia, após os anos talvez
você questionaria enfim o que somos.
ora, nos somos a fome do mundo
a vida marinha se debatendo no litoral
as raízes crescendo por sob a terra
o motivo das guerras
e a esperança de paz.
somos nossos pais que um dia morrerão
os filhos que virão e
depois deles, somos nós
até o fim apenas.
estranho bonito que vi na rua
de sapatos nas mãos a curar feridas
quando você se for
quando entrar em um carro ou dobrar uma esquina e eu te perder-
de vista
vou te imprimir na memória e carregar a espera comigo
tua ausência ocupará o espaço que era seu
e as ruas onde eu andar
e os lugares onde eu entrar
esperarão também por você.
porque hoje a distância é coisa real
tenho nas vértebras o peso das quilometragens.
e quando por acaso eu te encontrar
terei comigo a vida embaixo dos braços
302
terei os cabelos molhados e a alma lavada
pronto para ir contigo onde não fui,
com o devido cuidado de não mais te perder de vista outra vez.
O teu caminho é só de ida
não voltarei de lá.

303
Quimeras
As Quimeras
tem um jeito que é só delas
de te comer pelas beiradas.
Por uma estrada longa e reta
Tão quieta que você se reduz a ruído
Sussurrando
aumentando gradualmente
possuindo seus braços
sua nuca, sua mente
o coração pulsa infreável
tão rápido,
[não, mais rápido]
que a batida para
passa a pressionar os pulmões contra o peito,
não é um musculo
é um homúnculo
uma criatura imunda
alada
uma besta de asas e garras que quer sair
e você junta saliva espessa
que o faça descer outra vez
Referências obvias
se desprendem da sua cabeça
feito aves que abandonam
a copa de uma arvore
O universo se torna minúsculo
em exata proporção enorme
tourette
os seus bracinhos encolhem
as suas perninhas encolhem
agora um serzinho afundado no banco do carro
Você cai na real
Alice não era narcoléptica
o que ela teve foi uma crise de pânico
“eat me”
O motorista ri muito alto
304
os dentes dele vão te tragar por engano
Dedinhos longos se esticam no espaço
você alcança a maçaneta do carro
sabe que faria qualquer coisa para parar
até abrir a porta e saltar
_Pula, morrer interrompe qualquer história
_Ninguém morre pulando do carro.
Respira
encaixa a cabeça no lugar
se acalma
conta ate três
1, 3, 7
mão na porta
você salta
_Bom descanso senhor, obrigado!
É a fachada do seu prédio
não tem cura
não tem atalho
lama preta
flui da sua cabeça
e se projeta pela boca e nariz
_Espresso essa hora?
_De dentro pra fora não faz mal
Alguns animais dormem de pé
você não dorme
os músculos rejeitam a cama
A pupila dilata
o cérebro dilata
o tempo dilata
o coração de lata
A fé contrai
Mente é impulso elétrico
isso gera palavras que combinadas
correm nas veias e
envenenam o seu corpo.
Eu ontem vi deus
ele me disse “já era”.
Os pensamentos em movimento
305
que começaram lá atrás na estrada
não pararam de acelerar
Movimento retilíneo uniforme
Pane
A soma de todas as forças
é igual a zero
O cabo cessa
o tempo para
para lisia [com amor e verdade]
as orbitas arregaladas
a respiração curta, quase parada
inércia
Acho que em determinada hora
toda guerra é silenciosa
o dia nasce por debaixo na porta
e um mosca pousa em seus olhos.

306
Hey Amigo
hey amigo
não sei bem se por causa dos tempos sombrios que cruzamos
mas tenho pensado em um conto que ouvi na infância
ou que simplesmente inventei e
por causa dos tempos sombrios que cruzamos atribui a minha in-
fância.
Mas ha esse conto
sobre dois homens que se encontram em uma campina e se amam
como só se podem amar dois verdadeiros homens
e seguem ate que acabe
como só se pode acabar entre dois verdadeiros homens
com coragem!
Não
os que vieram antes de nós
e os que vieram antes dos antes de nós não sabiam nada
coragem não é essa enfermidade
que cala a voz e da vida a punhos cerrados
coragem, meu irmão
é humanizar-se.
Vê aquela rua lá fora?
derramaram petróleo e brita no chão
pintaram faixas com suas leis
levantaram concreto alto dos dois lados.
Aquela avenida que você pegou ate aqui
já foi um dia um rio.
Embruteceram essa cidade
fizeram-na crer que precisava ser forte para seguir adiante
o mesmo fizeram com você
Você é triste como o asfalto frio.
Outro dia, durante uma viagem
uma criança se aproximou de mim
com um punhado de terra e grama sobre as mãos e perguntou:
_Tio, isso é uma flor?
Não soube o que dizer, mas aquela criança me lembrou você
que não distingue o pasto seco de um forte a beira-mar
Tua espada e teu canhão não servem a nada
307
pois o medo é teu capitão.
Hei amigo
é cedo ainda
acorda
mesmo que a lua esteja alta
acorda
é cedo ainda
não existe atalho para uma vida mais tranquila
e a velhice prematura não é desculpa para a covardia.
A terra em torpor sob o asfalto
cobra das raízes que sejamos o que somos nós
homens e mulheres
iguais perante a relva
como cavalos selvagens
e não só mais um canalha.
Acorda amigo
que o bundamolismo já adormece outros tantos
e viver enquanto um homem
é apenas muito mais do que isso.

308
Canção para um diabo na estrada

Não sou de encarar paredes


a saber das horas
Não acredito em relógios
Em tempo certo para nada
Não acredito em tempo certo
Também não sou lá muito de esperar não
Sou urgente
Tenho pressa
Ainda assim, me vi sujeito a sua mania irritante de nunca ficar
Quando você, segura dos teus amanhãs
me tomou nos braços e me arrastou para a cama
Ainda que fosse a primeira noite
parecia uma despedida
Que se estendia por dias
Nos arrastando com ela.
Lembra da noite que você apareceu na cidade?
Com uma mochila grande nas costas
depois de uma longa viagem
Decidida a me visitar
Teu caminho te trouxe aqui
Naquela noite nos demoramos bebendo vinho
e irresponsáveis da finitude do que é vivo
descobrimos o significado dos nossos nomes
Ao que de imediato invertemos
Como espelhos
que distorcem o real à sua própria necessidade
Eu era agora o dono da casa
O anfitrião
A banhar com sal e ervas
teus pés cansados
E você
309
O forasteiro de lugares distantes
Que como chega, se vai
Ao nada
Tu és o Diabo na estrada
O que tens então para mim?
Que oferta me faz?
Quer que eu parta minha alma?
Pois bem, parto!
Me desfaço na vontade fisiológica de ir embora
Um brinde então
aos poucos loucos que sabem o que querem
eu tenho gasto os dentes e o pulmão na noite sem saber
Ainda não sei
Mas agora
sobretudo agora
ao menos sei o que não quero
Não quero mais me prostrar diante da terra
esperando que aeronaves
desembarquem tua figura
Se partimos
é porque um dia chegamos
É assim desde a construção de tudo
vai ser assim com a gente também
Então cheguemos logo
a esses lugares que nos esperam
O gozo
O choro
A saliva espessa
Tudo o que reconheço nessa terra
me desagua na pressa
de alcançar teu mar
O que mais importa?
310
Veste a tua alma
e pega a estrada
Eu vou vestir a minha
e te encontrar no caminho
Confere aí no teu relógio
o tempo não existe
É sempre agora
A vontade há de organizar os significados
e nos chamará pelo nome
Eu vou
Você vem?

311
RECEITA PARA UM MANIFESTO
Não leve a mal
leve vinho
pense em sacanagem
leve o que for vontade
e deixe em casa o que pesar.
Não dê desculpas
se faça de puta
faça loucuras
dê o que tiver que dar
e deixem que falem o que quiser falar
Não faça sentido
não faça pedidos
sonhe acordado
fuja pela escada
force uma entrada
dê lírios aos que sonham em padecer no paraíso
vem que eu te sigo
no caminho acaba comigo
lambe os dedos
raspa o tacho
mas não nos deixe sobrar pedaços

312
Solidão é uma cidade da janela para fora
Há uma certa solidão
em ver do alto a cidade.
Como se as paredes do peito
nos fosse pouco e não bastasse.
E eu acho isso lindo.

313
.
Deu no rádio que há
uma forte tempestade vindo.
Espero que seja você.

314
.
Meu poema favorito
É você
Dando em cima de mim

315
.
Não acredito em poesia
passando receita
Dando dica de não sofrer.
São duas coisas em que não confio
Na cura
e em poeta

316
15. Manoel de Areia

Eu estou no meio do caminho. Uma construção inacabada. Impos-


sível dizer se serei um prédio de vinte andares ou uma casa pequena,
com três janelas que se voltarão para rua. De todo modo, comecei
pelos jardins. Uma boa estrutura de ferragens, concreto e raízes anti-
gas (de quando revirei a terra): assim fiz o alicerce das flores. É preci-
so força para suportar as novas primaveras. Estou ainda levantando
as primeiras paredes, transformando lágrimas em cimento, palavras
em sonhos, observando as primeiras sementes que brotam. Manoel
de Areia é isto, um observador do seu alter ego que cresce no jardim,
enquanto discute vez ou outra com o tempo: um vizinho que costu-
ma incomodar. Ele não existe, mas se existisse, teria pouco mais de
vinte e dois anos, estaria ávido a descobrir a fonte dos sentimentos e
pensaria em pipas antes de dormir. Por enquanto estamos sem casa,
moramos nas pequenas palavras dos menores livros. É sempre um
prazer receber você aqui.

317
DESEJOS DO DIA-A-DIA

eu queria morrer por um dia

por um dia só

ser um observador

olhar a vida sem medo

ver as pessoas quem são

eu queria

por um dia só

me ver no espelho

não como reflexo

mas como coragem

queria eu morrer

por um dia só

morrer todo dia

exige vida demais

318
VELÓRIOS NO VERÃO

coloquei um cigarro na boca

pra fingir que

morria

ateei álcool no chão

pra que tudo virasse

fogo

tudo virou cinza.

a chuva caiu.

o coração continuou batendo.

até hoje não entendo

os dias de sol

319
INDIVI...DUAL

só hoje

fui do céu

ao inferno

tantas vezes...

essa deve ser

a maldição

de ter

uma alma com asas

mas um corpo de pé

320
CASUALIDADES

hoje eu voltei pra casa

deitei na minha velha cama,

encontrei a xícara solitária

que sangrava por companhia

pendurei os velhos erros

nos quadros novos que trouxe.

reencontrei poemas saudosos

e confianças despreparadas

me olhei no antigo espelho,

mas não consegui me enxergar

saí então de casa, atônito

eu havia me esquecido

em algum advérbio de lugar

321
ALFÂNDEGA

a vida passou correndo

pelo meu pequeno pedágio.

não consegui ver quem dirigia

mas uma autuação ficou registrada:

a vida é movimento

e eu preciso parar de cobrar

as suas passagens

322
PROTANOPIA

diante daquilo que sonho,

desaforos vêm colocando

sinais vermelhos.

ainda bem

que nasci

daltônico dicromático

323
DORMIR PELADO

cheguei cansado em casa

me despi dos jornalísticos.

um banho

um chá

uma coragem.

vesti meus poemas de dormir...

e reclinei sedento

da minha humanidade

324
MITOS

Que triste é ser!

que triste seria

se as sereias

da chuva

fossem todo dia

um pingo de alegria

325
BEBEDOURO

do sangue que escorria de mim

da ansiedade que esgotava meu rio,

ela descia rasgando a faringe,

silenciando mudos pensamentos

me amordaçando com versos vazios

reflexões solitárias sobre o nada.

imagens confusas misturadas a mim

deitadas no chão como jogadas fora

sentindo a existência pesar

como mil atmosferas sobre meus ombros

eu pensava ali na minha insignificância

eu bebi dor, do meu bebedouro

do meu cérebro, a fonte das razões

326
FLORES PÓSTUMAS

fui ao jardim da felicidade

e furtei duas rosas

sem grave ameaça ou coação.

levei-as à tristeza

que tocava minhas cordas vocais

com os silêncios mais agudos que eu poderia profetizar.

- mas por que duas rosas?

você me pergunta, feliz leitor.

e eu lhe digo:

uma rosa para a minha tristeza

e outra para a tristeza

da minha coragem que se foi

327
PEQUENAS ILUSÕES HUMANAS

caminhamos

pela rua infinita

como se infinitos

fôssemos

coisa

alguma

como se não fosse

sem saída a rua

da vida

como se a morte

só fosse

uma

328
PÁSSAROS CEGOS

os pássaros quando assentam-se

à beira dos olhos

contemplam o eterno.

veem

o abismo da existência

constantemente

ser julgado

pelo peso das asas

escutam os gritos

dos demônios presos

sob a gravidade

do voo

[e eles são mudos]

tocam numa mão

solitária

que escreve palavras soltas

e desenha
329
coisas eternas

[enfim]

os pássaros que assentam-se

à beira dos olhos

e contemplam o eterno

são cegos

[e espelhos]

330
FAIXA-PRETA

a ansiedade

é uma via de mão dupla

vem passado

vai futuro

alta velocidade

e nessa agonia

a gente é só pedestre

procurando a faixa certa

para
atravessar

331
ANARQUIA

o tempo está desgovernado

descendo a ladeira

sem rei, democracia

ou freios

está levando todo mundo

à ditadura do big bem

o tempo perdeu

seu relógio

de pulso

quem poderá

conter suas batidas?

332
SILÊNCIO SEPULCRAL

o tempo perguntou pro tempo:

- quanto tempo o tempo tem?

...

...

...

...

...

(o tempo travou a língua)

333
16. Kaio Bruno Dias
Kaio Bruno Dias usa de linguagem simples, delicada e marcada
pela juventude, para vasculhar as miudezas do cotidiano e da vida
prosaica, para falar da ausência, da perda, da saudade, da solidão, dos
desencontros amorosos, da impossibilidade de contato verdadeiro e
de comunicação profunda nos dias atuais, do vazio existencial e da
curta duração da vida; publicou Peg & Pag (2012), Respeite a solidão
alheia (2016), De surto em surto (2019), dois poemas de sua autoria
foram incluídos na mostra Poesia Agora, realizada no Museu da
Língua Portuguesa, São Paulo (2015). Compositor e intérprete
de músicas que tem seus poemas como letras, Kaio costuma se
apresentar em pocket-shows e recitais solos, tendo atraído a atenção
pela qualidade melódica de suas composições e pelas parcerias que
articula com outros artistas.

334
é fácil gostar de mim quando está tudo bem
é fácil me desejar de longe
quando estou com a minha melhor roupa
no alto dos meus melhores dias
mas e nos dias tristes e densos?
e as minhas fragilidades e defeitos?
você se apaixonaria por eles?
conseguiria acordar ao meu lado
mesmo sabendo que não sou perfeito?

335
a gente se mata todos os dias
em doses conta-gotas
de suicídios não violentos

morremos um pouco
quando deixamos de ser quem gostaríamos
quando silenciamos as nossas verdades
quando amamos e não somos amados
quando os vícios se tornam nossos melhores momentos
quando fazemos coisas por obrigação e não por vontade

morremos.

336
a gente acabou assim
na base da indiferença
te mandei algo
você nem respondeu
não busquei saber o porquê
talvez por medo, ansiedade
não sei

talvez a gente quisesse mesmo


sumir um do outro
e estávamos sem coragem de agir
nada fizemos
não responder era mais fácil
sumimos

337
ao invés de tomar a sua mão em casamento
gostaria de ser envolvido por ela
e levado a lugares e sensações
que nem as minhas tremulas palavras
conseguirão retratar, enfim
aceita morar comigo?

338
às vezes me sinto
igual a uma folha
que após se soltar da árvore
vai de acordo com o vento
voando rumo ao chão
num voo lindo e breve

para alguns, outono


para outros, suicídio

para a folha
foram cinco segundos
da melhor viagem de sua vida.

339
17. Clarice Sabino

Nasceu no Rio de Janeiro em 1998, cresceu em Belo Horizonte e


atualmente vive em São José dos Campos. Em 2016 despontou nas
redes sociais com seus poemas autorais ao criar a página Nada disso
é para você no Facebook. Em abril de 2018 lançou seu primeiro livro
“Para que serve a poesia?” através da editora Penalux.

340
Deusa do amor

Eu não sei se você sabia


mas quando encontraram a vênus de milo
ela já estava sem os dois braços

imagine não saber o que a deusa do amor fazia com as mãos

desmaiaram viúvas, arqueólogos, amantes e cartomantes

qual é o sentido da vida para aphrodite?


será que o amor escorria pelos seus dedos?
ela apontava pro futuro?
o que suas pulseiras contavam?
o que diziam as suas linhas das mãos?
você entende a gravidade da situação?

não ter as mãos da vênus


é encontrar a monalisa sem a boca
o dalí sem bigode
o grito calado
a última ceia sem jesus
van gogh sem tinta azul

não saber o que aphrodite


fazia com os braços
é o real mistério da fé
porque tem quem acredite
que ela se olhava em um espelho
fazia um gesto de elevação
ou só descansava as mãos
341
mas pra mim
apesar de todas essas teorias
só existe uma explicação:

os braços da aphrodite
não foram encontrados antes
porque eu não te conhecia antes
e agora que te conheço
a deusa do amor
pode fazer o favor
de recuperar seus membros
e mostrar pra todo mundo
que obviamente
uma de suas mãos
apontava
pra mim
e a outra
pra você

342
hay que aceitar o fim do mundo, pero sin perder la ternura ja-
más

tragédia anunciada
nos horóscopos
nas profecias
no jornal da madrugada
o sinal oscila mas dá pra ouvir
a nasa descobrindo um novo meteoro
a pandemia varrendo a terra
aumenta o volume aí
não tem mais vinho no supermercado
o dia dos meus anos talvez não chegue
escuta
o papa cancelou a páscoa?
e o futebol?
dudu fez birra na embaixada
vê se pode
alguém segura esse menino
alguém faz parar o choro
alguém atende o telefone
alguém avisa
ô motorista
preciso voltar para casa
para esse ônibus
por favor
eu vou descer

343
geografia do coração

ligo os pontos da memória


e traço retas entre a saudade
determino os limites
nomeio as fronteiras
desenho os rios e caminhos
respeito as escalas
o meu passado e futuro
impressos na contramão
do meu corpo-matéria
e você, corpo-estranho
mancha de café
risco de caneta
você turista
você residente
você explorador descobridor civilizador
invasor
perdido bem no meio do mapa

344
Se existe, usa

trocar carinho
sussurrar meu amor entre dentes
gritar vontades
me declarar nesse pequeno espaço

quero sentir a palavra como quem morde a língua


quero inventar a língua quando não existir a palavra

345
Regra

na natureza
tudo o que é forte
dura pouco:
terremoto
furacão
a vida das formigas
um dos eventos mais fortes de todos
(você já viu como nasce uma formiga?)
no entanto
não pode ser generalizada
porque algumas duram
horas outras décadas
e outras morrem antes porque
são atropeladas pelos pezinhos descalços
de rinocerontes bebês

o amor também

346
Obsessão barroca

dedicar toda a minha vida


pintando com os olhos
esse quadro branco
sem jogos de contraste

sem nem olhar no espelho


junto a parte com o todo
bagunço a metonímia
e quebro o joelho

te dou um beijo na boca


faço três pedidos
termino o poema no meio

347
Ideia

eu só queria me apaixonar por uns meses


dançar tango num quarto fechado
olhar nos olhos da pessoa amada
aprender a imitar os gatos e
desaparecer de repente

eu só queria me apaixonar por uma semana


de domingo até sábado
construir e destruir o mundo
e me entregar de braços abertos
e quebrar a cara
e me desesperar na solidão
e depois entender que

eu só queria me apaixonar por um dia


por três horas
por vinte e dois minutos
por trinta segundos
para ter tempo suficiente
para me embebedar de tédio
para me cansar de você
seja lá quem você seja

para desistir dessa bobagem toda


até sentir vontade de abandonar tudo
e sonhar bem baixinho
dessa vez

348
Memória

preencho minhas pequenas ausências


com a lembrança do seu rosto

escondo no armário
mas não muito bem
a vontade de mexer no seu cabelo

deixo em cima da mesa


do lado das chaves
desenhada num papel qualquer
o formato da sua boca

dentro da geladeira
do lado do leite
me deparo com o ritmo dos seus olhos
piscando junto a luzinha da porta

preencho minhas pequenas ausências cotidianas


com o inédito da presença do seu rosto

e me sinto cada vez mais só

349
eu te quero como quero que o bar da esquina abra mais cedo
e como quero acordar às 8h quando tenho que levantar às 5h
te quero com o mesmo fervor dos torcedores do boca
depois do gol do benedetto na final da libertadores
(e com a mesma angústia
quando outros três do river vieram)
te quero como os dinossauros esperaram o meteoro chegar na terra
enquanto a luz rasgava o céu em duas partes
te quero como quero que quem fez os arcos da lapa aprenda bem
com o seu sorriso
porque perto dele as curvas daquela merda são meros ângulos retos
te quero como quero que parem de colocar purê no cachorro quen-
te
te quero como quero comprar guaravita em qualquer posto de ga-
solina de São Paulo
te quero como quero ver o mar agora
te quero como quero dormir mais um pouquinho
te quero como quero parar a obra do meu vizinho só pra poder res-
pirar em silêncio
te quero como quero mudar de ideia
e bater no peito com orgulho dizendo
já que nada dessa porra é para nós
não me interessa
nem um pouco

pelos meus cálculos


nosso amor é impossível
but it is only math
y el querer no es una ciencia exacta
350
Contramão

No caminho que seus olhos percorrem


os meus seguem sem medo

Atravessamos nessa tarde


o túnel escuro das incertezas
sem esquecer que o sol
ainda brilha
por detrás
das nuvens

A felicidade é companhia
para quem sabe
por onde ir

351
Extra Extra

no lusco fusco subaquático


dessa estrada soterrada pela lama
um rei com o menino na barriga
troca migalhas por ouro
marketing pomposo
propaganda apocalíptica
o chefe ficou louco
entregue-me seus beijos suas roupas sua alma
venha ver a cara lavada do desejo
promoção imperdível
compre meu desinteresse
e pague os seus pecados parcelados
juros de ausência
cheque assinado
contrato de descompromisso
não vai perder a oportunidade hein
de fugir da cidade pra ir atrás do amor
e descobrir que não é só a cidade
que não existe

352
Não precisa repetir,

eu te escuto com atenção

não sei se existe alguma divindade


cabalística realística
sofística artística
qualquercoisística
na palavra

mas quando você


compartilha comigo
o pão e o verbo
eu recebo atenta
e faminta
(mais faminta
do que atenta
(porque com fome
ninguém
tem atenção
em nada))
a sua benção

353
Vem pra casa

A ponto de ter um ataque de nervos


Vejo os pezinhos do meu amor flutuando no abismo
Pequenos pontos de luz azul fazem festa na floresta
A dança vem do espaço entre as folhas das árvores
E a música sai da vitrola que enterrei na terceira curva do rio

O fim do mundo parece muito com uma fotografia


de uma dessas viagens tantas
que não fiz

354
Merci

tem um índio dentro de mim


que negocia com os franceses

o coração palpitando alto


do lado esquerdo do sena

e o café me esperando ainda quente na varanda

café é coisa de europeu?

então que me espere e esfrie com calma


s’il vou plait
nessa vida nasci brasileira

355
Livre

no centro da minha desatenção


o amor e a confusão
travam batalhas épicas

vou equilibrando
com um guarda-chuva nas mãos
meu corpo estranho
nesse fio longo
entre o poste e o prédio

isso de plano inclinado é coisa de teleférico

aprendi que a vontade


há de ser transportada
nas cadeirinhas coloridas
que passam embaixo dos pés

nada atrapalha o fluxo universal da dor


ela corre e gira sem parar
em cima das nossas cabeças

o único problema é a força da gravidade


a única solução é aceitar a queda

356
Lista manoélica para o fim dos tempos

observar o nascimento das pedras


descoisificar as amarras invisíveis
aprimorar as habilidades camaleísticas
secar os cabelos no sol e os pés no vento
perseguir coincidências
transformar a raiva em perturbância
correr com árvores
andar com crianças
sentar com cachorros
desadotar mágoas de estimação
fazer café passando o pó pela peneira
plantar bananeira sem parede
sustentar o peso do corpo na pele
carregar a força da alma nos olhos
compartilhar a poesia no sopro
metamorfosear o silêncio em letra
beijar as sílabas com palavras

357
diga-me seu endereço

sinto vontade de ter um amor desses de escrever cartas


para falar de algo que amadurece por aqui dentro ou por perto
íntimo ou êxtimo
maçãs vermelhas e brilhantes
fazer perguntas à morte e escutar o eco dos ventos
tenho vontade de sentir o gosto pós mordida
tudo já está mesmo mordido por formigas
tudo, tão doce e artificial
que até as abelhas morreram de fome
(mas as formigas não)
quero escutar histórias brilhantes
e chorar ao ver crianças correndo
quero sentar um pouco e dividir o fim da tarde
quero um amor para dividir o fim da tarde
e me sentir sozinha no início da noite
quero um amor para me sentir sozinha
(e por isso ter vontade de escrever cartas)
quero fazer parte dos que foram convocados
mas não foram escolhidos
quero apostar e perder
quero apostar outra vez e perder de novo
quero perder todas as vezes
para ter matéria para a escrita é preciso saber perder
é preciso se incomodar com a lírica dos sonetos clássicos
eu quero um amor anêmico e que não fale muito
quero a matéria mineral das consoantes
quero as vogais que formam os corações
358
quero o silêncio visceral
quero um amor urgente
que mude de endereço o tempo todo
que logo chega
e ainda mais rápido vai embora
um amor para escrever cartas com começo e fim
e cartas que não começam e nem terminam

359
meu coração,

essa pedra
carne dura atropelada
no meio do caminho
da avenida
vi(d)a de mão única

360
peito-labirinto

todos os caminhos me levam


até você
tento desviar pelas laterais
mas só existe uma saída:
a entrega

361
a vida não pode ser tão feliz assim

mas eu tenho em mim


a imagem do último índio sobrevivente dos tanarus
exército de um homem só
que caminha pelo coração do mundo
se escondendo em tocas de coelho
e rastejando pelas folhas
em direção ao último nascer do sol

minhas pupilas dilatam com a esperança


de um futuro próximo em que deus desce à terra
para beber com o diabo as cervejas derramadas na areia
admirando os fogos de copacabana

a vida não pode ser tão feliz assim

fico aqui refletindo


relendo algumas poesias suas
desenhando um fogaréu descontrolado
enquanto mastigo as canetas

a vontade de sentir
a ternura infantil
dos nossos filhos
me olhando nos olhos
me escapa nas mãos
como o sabonete no banho

por eles eu me curvaria


por eles eu teria fome
362
por eles eu seria triste

quando penso em você e no seu corpo cítrico


uma saudade amarga me morde a boca

a vida não pode ser tão feliz assim

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meu amor

fugiu com o circo como os cães fogem da carrocinha e como fo-


ge-me a palavra certa escuta isso que falo não tem nada a ver com
administrar sensações mas é simplesmente perceber que ser o ho-
mem de vidro de Cervantes por mais bonita que seja a ideia deve
ser extremamente dolorido não por questão de fragilidade perante
o mundo ou de frustração ao bater o pé na quina da mesa mas sim
puramente articular imagina mover os dedos e segurar uma caneta
sem lascar a ponta das falanges imagina caminhar na areia com os
pés tilintando imagina o corpo reagindo mal às mudanças de tempe-
ratura sempre a ponto de, de repente, explodir e assustar com o eco
agudo do rompimento tudo em volta que permanece sempre íntegro
enquanto tudo dentro se fragmenta em pequenos cristaizinhos mas
sem machucar o entorno porque a capa de couro que proteje o es-
queleto do homem é muito similar à dos vidros blindex do box dos
banheiros com porta de vidro então o corpo e tudo mais se resumiria
nessa sujeira de poeira dentro de um saco sem vida com resquícios
de sonhos e o cheiro amargo do abandono descrente do mundo por-
que como raios bate um coração de vidro? não bate.

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“Apesar de você
amanhã há de ser outro dia”
(Chico Buarque)

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