Livros Históricos - Questões Introdutórias Da Historiografia Bíblica - 2020
Livros Históricos - Questões Introdutórias Da Historiografia Bíblica - 2020
Livros Históricos - Questões Introdutórias Da Historiografia Bíblica - 2020
Neste capítulo será esboçada uma rápida panorâmica da produção historiográfica do antigo
Israel. A abundância deste tipo de obras nos levará a perguntar-nos por que a história é tão
importante para este povo.
O primeiro dado que nos chama a atenção no que diz respeito à historiografia bíblica é que em
Israel, diferentemente de outros povos antigos, encontramos um relato contínuo que vai desde as
origens do mundo até o ano 561 a.C. (Gênesis a Reis). Esta série de escritos, conhecida com o
nome de Eneateuco (= “nove livros”), nunca formou uma obra independente. Falando em
categorias judaicas, o Eneateuco é o resultado da união da Torah (= Pentateuco) com os ‘Profetas
Anteriores’ (Josué, Juízes, Samuel e Reis). Falando em categorias da investigação bíblica atual,
seria a fusão do Tetrateuco com a Obra Histórica Deuteronomista (Dt a Rs). Para que se formassem
esses blocos de tradições, transcorreram muitos séculos e, em sua redação definitiva, autores muito
distintos desempenharam um papel capital.
Talvez tenha sido numa noite de frio, junto ao fogo, quando começou a contar-se a história de
Israel. Inicialmente o fizeram os anciãos, que recordavam as andanças de antepassados famosos.
Chegaram mais tarde os grupos do deserto, relatando e exagerando as penalidades sofridas no
Egito, a terrível marcha para a Terra Prometida, a revelação concedida pelo Senhor a Moisés.
Viriam logo os poetas populares, cantores de ‘gestas’ realizadas contra os filisteus. Não faltavam
sacerdotes que, nas peregrinações anuais nos santuários, relatavam ao povo como Deus havia
aparecido naquele lugar sagrado.
Assim, de boca em boca, transmitidas oralmente, as tradições históricas de Israel começaram
a conservar-se e enriquecer-se. Até que surgiu uma classe mais culta, em torno da corte de
Jerusalém, no século X a.C. Também lhe interessavam outros dados, como: a lista dos
governadores de Salomão, os distritos em que dividiu seu reino, o lento processo de construção do
templo de Jerusalém e do palácio, com seus numerosos objetos de culto e de adorno. Todos estes
começam a usar a escrita. Não querem que dados importantes se percam com o passar do tempo.
Por último, dentro desta tradição escrita, surgem verdadeiros gênios, que recompilam com
enorme esforço os relatos antigos e os unem numa história contínua do povo. Alguns se
concentraram nas origens. Outros se limitaram a acontecimentos fundamentais de sua época, como
a ascensão de Davi ao trono ou as terríveis intrigas que provocou sua sucessão. Inclusive houve
um grupo que empreendeu a tremenda tarefa de recompilar as tradições que iam desde a conquista
da terra (séc. XIII) até a deportação para a Babilônia, compondo o que conhecemos como “História
Deuteronomista”.
Não obstante este longo itinerário de formação, o mais espontâneo é ler, de um só fôlego, esta
série de livros, já que existe uma clara sucessão cronológica entre eles. Também os babilônios ou
os gregos falaram das próprias origens e escreveram sobre a sucessão dos reis, porém se quisermos
reconstruir algo parecido com o que encontramos na Bíblia teremos que utilizar obras muito
diversas. Ninguém, na Babilônia ou na Grécia se propôs a grande tarefa de fazer uma síntese de
amplo fôlego.
Outro fato curioso é que quando já se possui o relato dos tempos antigos, ele é submetido a
uma nova e profunda revisão (livro das Crônicas). O novo texto, que às vezes reproduz o anterior
ao pé da letra, está escrito, no entanto, com uma mentalidade e uma intenção totalmente distintas.
Este fenômeno de “reescrever” o passado já o encontramos em tempos anteriores, ao contar as
tradições patriarcais. Como sabemos, a teoria de Wellhausen considera que o Pentateuco é a fusão
de diversas fontes (Javista, Eloísta, Sacerdotal), que repetem o que foi dito por seus predecessores,
matizando, mudando ou, simplesmente, completando. Em suma, os israelitas parecem conscientes
de que “cada geração deve escrever de novo a história”, como dizia Goethe.
Esse fenômeno se une a outro fato interessante. Se excetuarmos os breves relatos de Esdras e
Neemias, os mesmos autores que se preocupam em levar a cabo a adaptação anterior não
1
Resumo, aqui, o texto de SICRE, J.L., Introducción a la Historiografia Bíblica y Obra Historiografica
Deuteronomista, Roma: PUG, 1992 (apostila ‘ad usum studentium).
2
Por que os israelitas deram tanta importância ao fato de contar a história? A resposta ‘oficial’,
a mais difundida entre os estudiosos da Bíblia, é que a história é, para Israel, o lugar do encontro
com Deus. Este tema foi particularmente sublinhado por Von Rad em sua ‘Teologia do Antigo
Testamento’ e em diversos artigos. A fé do israelita não se baseia em mitos atemporais, alheios ao
espaço e ao tempo que nos rodeiam. É uma fé que nasce e se desenvolve no contato direto com os
acontecimentos do nosso mundo. Através deles, Deus revela seu amor, seu perdão, seu interesse
pelo homem, seu afã de justiça, seus desejos e planos com relação à humanidade. Não é uma
revelação que cai do céu, perfeitamente esboçada e concretizada em todos os seus pormenores, de
uma vez para sempre. Deus se revela pouco a pouco, passo a passo, não através de um livro, mas
ao longo da vida. O A.T. é uma busca apaixonada de Deus, uma tentativa divina de ser conhecido
mais perfeitamente, uma luta humana para penetrar no mistério de Deus.
Assim, do mesmo modo que nós, cristãos, conhecemos a Jesus por meio do que Ele fez e disse
e pelo que o Espírito continua realizando na Igreja, também os antigos israelitas conheceram a
Deus pelo que Ele fez e disse ao longo da história. Nada tem de estranho, portanto, que os israelitas
se preocupem tanto em escrever o ocorrido, ou, melhor dizendo, em recordar “as maravilhas que
o Senhor fez pelo seu povo”. Aqui entra o conceito teológico do ‘zikaron’ (memorial).
Esta interpretação oficial corre o perigo de idealizar os fatos e de não valorizá-los
corretamente. Sem dúvida, houve em Israel autores que viram a história como lugar do encontro
com Deus e precisamente por isso dedicaram grande parte de sua vida a escrevê-la. Porém, muitos
dos documentos que utilizam não foram escritos a partir dessa perspectiva.
A comparação com outro âmbito cultural pode aclarar a situação. A.K. GRAYSON, falando
do interesse que os assírios e babilônios tinham em contar o passado, o explica pelos seguintes
motivos: 1) propaganda política; 2) finalidade didática; 3) exaltação do herói; 4) utilidade prática
para os calendários, a adivinhação etc; 5) consciência da importância de recordar certas coisas.
Se excluímos o quarto ponto, os restantes nos ajudam a compreender por que os israelitas
escreveram tanto sobre o passado. Podemos inclusive pensar que o motivo da propaganda política
está, por vezes, muito mais presente na Bíblia até mesmo do que o estritamente religioso. Assim
o advertiram os fariseus, que não aceitaram no cânon o livro dos Macabeus, seus grandes
adversários. Eles não se fixaram no seu valor religioso, mas no seu valor como arma política.
WINCKLER, no início do século, demonstrou que a historiografia antiga oriental sempre tinha
uma finalidade que era, naturalmente, demonstrar ou justificar as pretensões políticas daqueles que
mandavam redigir o conjunto da história (ex. rei, partido etc.).
Embora a distinção entre o político e o religioso careça de sentido para um antigo israelita,
pode ser esclarecedora para o leitor atual. Por outra parte, assim se explica que muitas páginas da
Bíblia resultem pouco ‘edificantes’ para os cristãos de hoje e estes não consigam ver nelas nenhum
proveito. Lidas à luz dos motivos políticos, adquirem todo o seu relevo e interesse. Este fato pode
ser percebido claramente no estudo da história de Davi.
3
Apesar do nosso interesse não ser uma discussão filosófica dessa questão, pois são dois
conceitos notoriamente difíceis para se dar uma definição satisfatória e universal, pode ajudar, no
entanto, um breve esclarecimento do sentido em que procuraremos empregar os dois termos.
Quando falamos de história, temos presente o fato, o acontecimento, a ação passada. Por
historiografia, entendemos o fenômeno literário envolvendo a recordação e a análise, explícita ou
implícita, de eventos passados. Como tal, ela pode incluir uma variedade de gêneros literários,
como listas de reis, crônicas, anais, epopéia, apologias reais etc. Portanto, em nosso estudo, o mais
importante é que não se confunda uma categoria literária (historiografia) com um conceito
filosófico de história.
Como vimos, grande parte do A.T. é composta de textos cujo objetivo é recordar o passado.
Será, então, que todos esses livros são históricos? Assim pensavam as gerações passadas e,
inclusive, certos autores recentes. Contudo, hoje as coisas não parecem mais tão claras. O leitor
da Bíblia de Jerusalém e da Bíblia Pastoral, por exemplo, verá que o Pentateuco não é incluído
entre os Livros Históricos. Quem consulta a ‘Nueva Bíblia Española’ vê que da seção dos Livros
Históricos estão excluídos também Rute, Tobias, Judite e Ester, que formam o bloco denominado
“Narraciones”.
A separação do Pentateuco dos outros livros históricos pode ser justificada baseando-se na
tradição judaica, que traça uma clara fronteira entre a “Lei” e os “Profetas Anteriores” (Js, Jz, Sm,
Rs). Porém, o que influencia nesta separação não é a tradição judaica, mas a consciência de que
estes livros têm um valor muito diferente, quando considerados a partir do ponto de vista histórico.
Isso fica completamente claro quando nos deparamos com os relatos breves de Rt, Tb, Jt, Est.
Portanto, existe uma consciência de que o conceito de “livros históricos” deve ser utilizado
com menos freqüência e amplitude do que antes se fazia. Porém é uma consciência tão difusa que
convém aclarar um pouco mais as idéias. Não colocamos em dúvida o valor histórico de muitos
dados que o AT oferece. Trata-se de saber até que ponto podemos qualificar esses livros de
autêntica historiografia.
Em nossos dias é tarefa frequente, quase indispensável, refletir e escrever sobre a história.
Nisto somos herdeiros das culturas grega e bíblica. Porém, o “sentido histórico”, que aplica aos
acontecimentos um esquema de causa e efeito e exige grande capacidade de captar a realidade não
estava muito presente entre os povos antigos. JOHN WILSON escreve: “Nós pensamos em termos
de movimento e de continuidade, de antecedentes e consequentes, de causa e de efeito (...) Para o
homem antigo, os fenômenos observados não formavam parte de uma cadeia contínua e seus
antecedentes não se relacionavam com eles nem eram significativos. Considerava os fenômenos
como clarões momentâneos de um universo intemporal e ilimitado, reino dos deuses e, em
consequência, sujeito sempre à direção e à intervenção divina (...) E, posto que o homem antigo
carecia do sentido do tempo, da relatividade e da causação impessoal, não era historiador. Não
sentia interesse em retroceder às origens para explicar um fenômeno e se contentava em encontrar
para ele uma origem divina. Não buscava suas origens temporais, esforçando-se depois por seguir
os acontecimentos até o presente, cronológica e sistematicamente”.
4
Nesta linha, numerosos livros e artigos dão por suposto que Israel não teve uma autêntica
historiografia, mas que esta começou com os gregos, mais concretamente com Heródoto. É
provável que esta ideia se deva, em grande parte, ao fato de Cícero ter chamado Heródoto de “pai
da história”. A consequência é óbvia: se Heródoto é o pai da história, antes dele não pôde existir
historiografia. Aliás, muitos desconsideram a historiografia dos sumérios, assírios, babilônios,
hititas e israelitas. Não sabemos se isso se deve a um conceito muito “científico” do que é
historiografia ou a um desconhecimento do tema da historiografia oriental por parte de
determinados autores.
Outros, como Collingwood, em sua obra “A idéia da história”, descartam toda a produção
anterior a Heródoto qualificando-a de “quase historiografia”. Collingwood parte dos seguintes
princípios:
A história é investigação; se não há investigação, não há ciência.
O objeto da história são as “res gestae”, ações de seres humanos que foram realizadas no
passado. Quando se expõem ações de deuses, não estamos, naturalmente, diante de uma
autêntica historiografia.
O método da história é interpretar a evidência, os documentos que o historiador pode estudar.
A questão mais difícil radica em saber para que é a história: “minha resposta é que a história
é para que o homem se conheça a si mesmo (...) O valor da história é, por conseguinte, que
nos ensina o que o homem fez e, desta forma, o que o homem é”.
De acordo com estes pressupostos, Collingwood nega que na Mesopotâmia e no Antigo
Oriente houvesse verdadeira história. Existiu uma quase-história, que se ramifica em história
teocrática e mito. A história teocrática difere da verdadeira história pelo fato de que “suas
afirmações não respondem a perguntas, não são fruto da investigação, mas mera afirmação do
que o autor já sabe” e as ações que recorda não são humanas, mas divinas. A diferença entre a
história teocrática e o mito consiste em que este “não tem relação alguma com ações humanas”.
Estas duas formas de quase-história dominaram todo o Oriente Próximo até a aparição da
Grécia. Collingwood cita como exemplo a estela de Moab. As escrituras hebraicas contêm grande
quantidade de história teocrática e de mito. O que as diferencia do mundo-ambiente é que nas
literaturas orientais o elemento teocrático é particularista, enquanto no A.T. é universalista.
Inclusive pode-se dizer que a peculiaridade da legenda hebraica, comparada com a babilônica, é
que substitui a teogonia pela etnogonia.
antiga, a inclusão de acontecimentos fictícios deve ter certos limites, porque do contrário, não
se pode distinguir entre uma obra histórica e uma novela. Esse limite é dado pela orientação
geral da obra e pela atitude crítica do autor.
Esta atitude crítica do autor é essencial para que se dê uma autêntica historiografia. A história
surge apenas quando, superada a criação meramente artística da épica, começa-se a criticar as
próprias lendas, com sobriedade e bom senso, para ver se estão certas. Essa atitude
revolucionária assinala o aparecimento do espírito científico na grande arte de narrar os fatos.
A história, em seu sentido estrito, é a combinação das duas coisas: o espírito científico e a arte
de narrar. Inicialmente, a palavra história significa investigação; não significa um relato, mas
a busca do conhecimento e da verdade.
Como foi dito no ponto anterior, a história é, ao mesmo tempo, uma ciência e uma arte. Ciência
porque investiga; arte, porque narra. Ambos os elementos parecem contradizer-se; a retórica,
inclusive, se mal dosada pode debilitar a investigação. Porém isto não significa que um
expositor interessante e ameno não seja um bom historiador. Tudo depende do bom senso e do
equilíbrio do autor.
Não se trata, agora, de esboçar, nem mesmo rapidamente, a historiografia grega, nem de
pôr em relevo seus numerosos méritos. Ao nosso objetivo, interessa mais recordar algumas de suas
falhas, a fim de não aplicar à historiografia grega e à israelita “dois pesos e duas medidas”. Como
observou Collingwood, os elementos legendários, teocráticos e míticos não faltam por completo
nas obras clássicas dos historiadores gregos do século V a.C. Chega a admitir, também, a falta de
historicidade dos discursos de Tucídides. Por outro lado, o próprio método dos historiadores
gregos tem suas limitações, já que se baseia na ideia da evidência histórica, a qual se identificava
com a informação de fatos dada por testemunhas oculares desses mesmos fatos. Como
consequências negativas desse método podemos indicar:
Limitava a perspectiva histórica do historiador: sua obra não poderia estender-se além do que
permitia a memória viva; é certo que contam coisas de um passado remoto, porém tão logo os
historiadores gregos tentam remontar a um passado mais distante, os seus resultados são muito
mais débeis e precários.
O método do historiador grego o impede de escolher seu tema: pode escrever apenas sobre os
acontecimentos ocorridos no tempo das pessoas com as quais esteve em contato direto.
O método histórico grego impede que as diversas histórias particulares sejam reunidas numa
história global. Sua obra não pode ser reescrita, nem criticada, nem inserida num conjunto
mais amplo, porque é como uma obra de arte, de caráter único, individual, como uma estátua
ou um poema. Por conseguinte, para os historiadores gregos, nunca pôde existir uma “história
da Grécia”.
Esses dados oferecidos por alguém como Collingwood, que defendia que a história
científica começou na Grécia, são importantes para não se supervalorizar a historiografia grega e,
ao mesmo tempo, para compreender certas falhas da israelita.
A estima e o respeito que temos pela Bíblia não devem nos levar a “perder a cabeça” numa
questão puramente científica como esta. A qualquer historiador antigo nós o julgamos com
imparcial severidade, se é preciso, sem nos deixar enganar por suas boas intenções. O mesmo
critério deve-se usar no caso da análise dos livros bíblicos.
Duas coisas parecem importantes para não mitificar nem falsear a historiografia bíblica. A
primeira: distinguir entre as diferentes obras. A segunda: distinguir as diversas mentalidades a
propósito da história e da historiografia.
7
a) A mentalidade épico-sacral:
Esta forma de conceber a história e de contá-la é típica dos primeiros séculos de Israel,
porém continua acontecendo em tempos posteriores, inclusive até o século II a.C. Como exemplos
concretos deste tipo de historiografia, podemos ler: Jz 7,1- 8,3; 2 Mac 3, 24-30.
b) A mentalidade profana:
É a atitude totalmente oposta à anterior, que privilegia, como vimos, o milagre enquanto
elemento essencial da história. Na mentalidade profana, a história se desenvolve segundo suas
forças imanentes, é dirigida pela vontade dos homens, arrastada por suas paixões e ambições, sem
que em nenhum momento se perceba uma intervenção extraordinária de Deus. Este enfoque pode
ser encontrado também em tempos muito antigos.
Não se podem comparar esses historiadores com os atuais, porém eles se encontram muito
mais próximos de nós do que os de mentalidade épico-sacral. Veja-se, por exemplo, o modo como
se conta um episódio tão importante da história de Israel como a divisão do reino com a morte de
Salomão (1Rs 12). Ou, então, compare-se a batalha de Gedeão contra os reis madianitas (Jz 8,4ss)
com o capítulo anterior (Jz 7), exemplo típico da postura épico-sacral. Para alguns estudiosos, a
produção mais perfeita deste tipo de historiografia é a “História da sucessão ao trono de Davi”
(2Sm 9-20; 1Rs 1-2). Como indicamos mais acima, também as ‘Memórias de Neemias’ e o
primeiro livro de Macabeus podem ser um bom exemplo de mentalidade profana.
c) A mentalidade religioso-teológica:
4. Conclusões:
No início desse estudo, nós nos perguntávamos se aconteceu em Israel uma historiografia
“científica”. Depois de percorrido todo esse itinerário reflexivo, poderíamos indicar o seguinte:
a) Se por sentido histórico se entende, como disse WILSON, “ter sentido do tempo, da
relatividade e da causalidade impessoal”, ou, como disse SHOTWELL, “ver as coisas
10
em relação com outras, tanto no espaço como no tempo”, em Israel houve historiadores
que possuíram sem dúvida esta qualidade. Difícil é precisar se foram muitos ou poucos.
b) O mesmo pode-se dizer da atitude crítica diante das fontes. É certo que os redatores se
limitam a recompilar e ligar; nunca encontramos um toque de atenção, uma advertência
sobre a maior ou menor credibilidade da tradição. Porém, de outro lado, constatamos
na Bíblia uma atitude crítica diante da fonte última dos fatos históricos, ou seja, diante
das pessoas. Em todo o mundo antigo (e em grande parte do moderno) é pouco provável
que aconteça uma postura mais crítica com relação a um líder do que a de 2 Sm 9-20
com relação a Davi. Se a história científica consiste em buscar a verdade e dizê-la sem
medo nem servilismo, o autor desses capítulos é um dos maiores historiadores do
mundo antigo.
c) Apesar do que foi dito anteriormente, seria ingênuo considerar “históricas”, no sentido
mais estrito do termo, a maioria das obras do A.T. Como indicamos, a maioria dos
autores não pretendeu escrever uma história científica. É possível, quase seguro, que
alguns deles estivessem capacitados para essa empresa. Porém, provavelmente, nem
sequer se colocaram a questão. Para eles, o principal não era investigar o passado,
tentando descobrir a verdade do que aconteceu, mas interpretá-lo à luz das necessidades
e angústias do presente. “A Bíblia não é tanto uma crônica de eventos dignos de
recordação, ou a consideração do que vale a pena recordar, mas uma interpretação
de acontecimentos significantes” (A. SPEISER).
4 Os Gêneros Literários
A difícil tarefa de descobrir e catalogar todos os gêneros literários que se usam na Bíblia,
ou a idéia inconsciente de que não é algo muito importante, faz com que alguns autores tentem
resolver o problema silenciando-o por completo. É o que acontece, por exemplo, com
GOTTWALD, em sua obra recente “Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica”. Outros
estudiosos tratam a questão de maneira demasiado global, no que tange, sobretudo, aos livros
históricos, deixando muitas lacunas, como é o caso de OHLER, KAISER, TUCKER e
RENDTORFF.
Especial atenção aos gêneros literários históricos foi dedicada por MUÑOZ IGLESIAS
(Los géneros literarios y la interpretación de la Biblia, Madrid, 1968). Nega, com rigor, a
existência do gênero histórico na Bíblia, “se por gênero histórico entendemos o que os cânones
da historiografia moderna estabelecem como tal e o que a crítica histórica dos nossos dias exige
de relatos históricos de qualquer época”. No entanto, os autores bíblicos usaram um gênero
histórico, onde distingue os seguintes subgêneros: 1) epopéia ou história épica. 2) Midraxe
hagádico. 3) História patética. 4) Narrações etiológicas. 5) Narração livre ou novelada. 6)
Anúncios.
Embora muitos critiquem a classificação e apresentação dos gêneros literários feita por
EISSFELDT em sua Introdução ao Antigo Testamento, seu trabalho representa um sério esforço
por ter em conta todos os detalhes. Ele classifica os gêneros em três grandes blocos: Prosa
(discursos, sermões, orações, documentos, narrações poéticas e históricas), Ditos (legais, cultuais,
proféticos, sapienciais, provérbios, adivinhações) e Cantos (de tipos muito diferentes). No entanto,
embora Eissfeldt seja muito completo na catalogação, o mesmo não se pode dizer com relação à
forma em que descreve alguns destes gêneros e também deve-se admitir que o modo de agrupá-
los em certos blocos é discutível.
Atualmente, a apresentação melhor e mais exaustiva é a que está levando a cabo a série
“Form of the Old Testament Literature”. Os volumes de Coats sobre o Gênesis e de Long sobre
1Rs oferecem uma rápida visão sobre os gêneros narrativos e históricos. Para COATS, o gênero
global é a narração e, dentro dela, distingue saga, conto, novela curta, legenda, história, fábula,
etiologia e mito. Mais adiante, recolheremos algumas de suas ideias. LONG, ao tratar os gêneros
principais da literatura histórica, indica: lista, informe, relato histórico e história.
Antes de formular qualquer teoria, partamos de uma simples análise dos dados. No livro
de Josué, por exemplo, onde se conta a conquista e a repartição da terra entre as tribos,
encontramos gêneros muito distintos. Além dos vários tipos de narrações (sagas, legendas ou como
se queira chamá-las), temos discursos (de Deus a Josué: 1,1-9; de Josué às tribos da Transjordânia:
1,12-18; de Josué despedindo-se de todo o povo: cc. 23-24), fragmentos poéticos (10,12-13), listas
muito diversas (de reis vencidos: 12,9-24; de fronteiras entre as tribos, de cidades de cada tribo,
de cidades levíticas). Temos, portanto, no mesmo livro, narrações, listas, discursos e poesia.
Nenhum desses quatro blocos pode ser classificado dentro do gênero histórico. O relato da
travessia do Jordão ou da conquista de Jericó não é “história” no sentido técnico. As listas possuem
um enorme valor para o historiador, mas quem as escreveu não pensava em “escrever história”.
12
Contudo, podemos dizer que a soma de todos estes elementos, levada a cabo a partir de um
determinado ponto de vista, com uma intenção e com recursos concretos, é, sim, “história”. Muito
diferente da nossa, mas verdadeira “história”. O autor do livro de Josué levou a cabo um autêntico
trabalho de historiador. Por conseguinte, do ponto de vista dos gêneros literários, o conceito de
“história” só podemos aplicá-lo ao resultado final e não aos elementos integrantes.
O que exemplificamos a propósito de Josué se confirma, com diversos matizes, nos outros
livros. Nem seria preciso recordar a enorme quantidade de gêneros narrativos, no sentido mais
amplo da palavra. Aqui entram sagas (como a de Josué), legendas (especialmente abundantes são
as proféticas), novela curta (Sansão?), todos gêneros muito diferentes, cujo objetivo principal não
é “informar”, mas que se tornam indispensáveis para o historiador na hora de reconstruir o passado.
Diante da frieza e da concisão das listas, este grupo se caracteriza, em maior ou menor grau, por
um bom nível narrativo.
Entre os gêneros informativos, as listas não são tão abundantes como em Josué, porém
tampouco faltam. Por exemplo, listas de ‘juízes menores’ (Jz 10,1-5; 12,8-15), de filhos do
monarca (Saul: 1Sm 14,49; Davi: 2Sm 8, 15-18); de heróis de Davi (2Sm 23,8-39), de funcionários
(de Davi: 2Sm 8,15-18; de Salomão: 1Rs 4,1-6); de objetos fabricados para o templo de Jerusalém
(1Rs 7,15-51). Em linha parecida, os Anais dos Reis de Judá e Israel proporcionam dados sobre a
idade do monarca, anos de reinado, nome da mãe, sincronismo etc. Neste segundo bloco, devemos
incluir também gêneros que pretendem informar sobre dados históricos de maneira fria e objetiva,
alheia a toda pretensão literária: listas, anais, crônicas (sejam do palácio, do templo de Jerusalém
ou dos santuários principais).
O terceiro bloco, de gêneros estritamente poéticos, se enriquece com o ‘cântico de
Débora’(Jz 5), o de Ana (1Sm 2,1-10), as elegias por Saul, Jônatas e Abner (2Sm 1,19-27; 3,33-
34), o salmo atribuído a Davi (2Sm 22), suas últimas palavras (2Sm 23,1-7), o oráculo de Isaías
contra Assíria (2Rs 19,21-34) e versos soltos (Js 10, 12-13; 1Sm 21,12; 1Rs 8,12-13). Bastante
próximos a estes gêneros poéticos estão o apólogo de Joatão (Jz 9,7-15), a parábola que Natã conta
a Davi (2Sm 12,1-4), alguns dos muitos oráculos proféticos presentes na HD (1Sm 15,22-23.33;
1Rs 22,17) e certas orações (2Sm 7,18-29).
Finalmente encontramos numerosos discursos, pronunciados em circunstâncias as mais
diversas: por motivo de despedida (Josué: Jz 23-24; Samuel: 1Sm 12; Davi: 1Rs 2), quando da
consagração do templo (1Rs 8) e até o discurso de um embaixador assírio pedindo a rendição (2Rs
18,19-35). Em princípio, dada a falta de gravadores naquela época, podemos admitir, como ponto
de partida, que todos esses discursos foram inventados pelo historiador e não pertencem ao
material recebido da tradição.
Dentro dos gêneros narrativos ocupam um posto capital as sagas, legendas e relatos breves.
Dentro dos informativos, as listas e informes (em suas diversas modalidades) e os relatos históricos
breves (como 1Rs 12 e Jz 9).
Por outra parte, mesmo nos resultados finais se advertem notáveis diferenças. É muito
distinta a HD da HC, ou qualquer uma delas dos livros dos Macabeus. Isto significa que, no AT,
dentro da “história” devem-se distinguir diversos gêneros, como veremos mais adiante. De toda
esta problemática tão abundante, vamos nos limitar a esclarecer algumas ideias sobre as sagas e as
legendas, tema muito debatido nos últimos anos e de grande interesse para a HD.
4.4.1 AS SAGAS
O estudo das sagas no campo bíblico, especialmente no Gênesis, é mérito especial de
GUNKEL, há quase um século. Embora seu enfoque seja basicamente literário, ele estava muito
condicionado por sua época. A simples palavra “saga” suscitava temores entre os cristãos do final
do século XIX e início do século XX, que receavam ver diluir-se os conteúdos de sua fé. Por isso,
a primeira frase de seu comentário ao Gênesis é esta: “Conta o Gênesis história ou saga?” Em
seguida, com inevitável senso de autodefesa, indica que a saga não é mentira, mas uma forma
13
especial de poesia. Dentro deste mesmo enfoque, concederá grande importância às diferenças entre
saga e história: a saga é originariamente tradição oral, a história, escrita; o âmbito ao qual se refere
a saga é o pessoal e privado, a história fala de questões públicas; a saga fala não poucas vezes de
coisas que parecem incríveis, tem um tom poético. Em seguida, trata as distintas classes de sagas
no Gênesis e suas características literárias.
O influxo de Gunkel se adverte facilmente na maneira como EISSFELDT fala do tema. A
saga supõe o sentido do insólito e da importância de um determinado fenômeno no espaço e no
tempo. Deve sua origem a indivíduos com capacidade de reflexão e de imaginação, os quais se
dão conta da importância da pessoa de um líder, da estranha forma de uma montanha, de um animal
com determinadas características ou algo parecido. Na comunidade à qual pertencia o líder, ou
entre os que viviam nos arredores da montanha, ou os que observavam o curioso animal, se contava
e recontava a saga. Porém, logo, como no mito, ultrapassava os confins e se convertia numa saga
migratória, vinculada a novos objetos. Se os personagens, lugares ou ocasiões nos quais se centra
o relato são de caráter religioso (sacerdotes ou profetas, santuários ou festivais) a esse relato
chama-se ‘legenda’.
Se dividimos as sagas entre as que estão conectadas com localidades ou fenômenos naturais
e as que se centram num grupo humano ou num indivíduo (em outras palavras, em sagas locais ou
naturais e em sagas tribais ou de chefes), temos uma ideia global da riqueza do material. Todas
têm em comum, entre outras características, que são frequentemente etiológicas. Dada a estreita
relação entre o nome e a coisa, não tem nada de estranho que muitas sejam etiológicas. Porém, as
mais características de Israel são as tribais e nacionais, das quais está cheio o livro do Gênesis.
Uma coleção excelente de sagas de herói se encontra em Js 1-11; Jz 3,7-16,31; 1Sm 11; 13-14.
Em épocas posteriores, se escuta o eco das antigas sagas de herói quando o narrador descreve com
simpatia a morte de Acab (1Rs 22,34-35) e algo parecido encontramos na morte heroica de Eleazar
Abaron (1Mc 6,42-47).
Claus WESTERMANN não usa o termo ‘saga’ para o Gênesis, já que, em alemão, ‘saga’
evoca ‘saga de herói’, o que poderia ser aplicado aos relatos de Juízes, mas não aos patriarcais.
Ele prefere o termo “narrações”, que abarca os diversos tipos de sagas, legendas, mitos, contos etc.
A contribuição mais original de NEFF e COATS consiste em sublinhar que o termo ‘saga’
não pode ser aplicado a unidades menores, como pretendia Gunkel, mas que abarca uma
pluralidade de relatos e inclusive de gêneros, tais como novelas, legendas, anedotas, hinos, leis
etc. Por isso, “saga” descreve melhor o que outros designam “ciclo de sagas”. Tendo isto em conta,
podemos falar da saga de Abraão, ou da saga de Jacó, usando o termo com o mesmo sentido que
na literatura islandesa, advertindo as mesmas características literárias, a saber: pouco interesse pela
natureza, economia de detalhes, ausência de digressão narrativa, importância do personagem
principal, personagem acumulado de narrativas interrelacionadas, ausência de enredo, descrição
do personagem mais através da ação do que da palavra, credibilidade da história, uso da
genealogia, composição narrativa maior do que a duração de uma única história. Para COATS, as
sagas se dividem em três categorias: 1) a saga primigênia – um relato sobre a origem do mundo e
da humanidade; 2) a saga familiar, centrada no passado da família; 3) a saga de herói, sobre um
personagem central para a vida do povo, por exemplo, Moisés em Ex 1 - Dt 34. A saga, que surge
nos ambientes mais diversos (família, corte, culto, porta da cidade), pretende distrair, legitimar o
grupo, propor-lhe modelos de conduta.
4.4.2 AS LEGENDAS
Enquanto o termo ‘saga’ é pouco conhecido e pode até não sugerir nada, em contrapartida,
o termo ‘lenda’ (preferimos a forma legenda) resulta muito conhecido e carregado de conotações
negativas. Evoca a ideia de algo distante, fabuloso e falso: trevas da Idade Média, mentiras
inventadas com fins políticos. É difícil conseguir impor uma visão positiva deste termo. Contudo,
a ciência bíblica sempre o usou com grande respeito, reservando-o para designar relatos de estrito
valor religioso. Ao adotar a forma ‘legenda’, procuramos evitar o desgaste do termo popular
14
‘lenda’. ‘Legenda’ é uma forma verbal latina (particípio futuro passivo) que pode ser traduzida
como “as coisas que valem a pena serem lidas”.
O ponto de vista mais frequente é o que encontramos em EISSFELDT. Segundo ele, do
mesmo modo que no caso das sagas, deve-se distinguir entre as legendas que estão conectadas
com lugares e as que se centram num ser humano. As primeiras se relacionam, sobretudo, com os
“hieroi logoi”, tentando explicar a origem do caráter sagrado de um lugar, juntamente com os
costumes que ali se observam. As legendas também informam sobre a origem e a história de
numerosos detalhes do culto, como a serpente de bronze (Nm 21,4-9), a arca (1Sm 4-6; 2Sm 6)
etc. Festivais e toda classe de observâncias cultuais, como a circuncisão, também são importantes.
Geralmente suas origens são obscuras; porém, legendas piedosas tentam responder a estas
questões.
Como as pessoas são mais importantes do que as coisas, a isto se devem as legendas sobre
profetas, sacerdotes e leigos. As dos sacerdotes são menos numerosas dos que as dos profetas e
dão a impressão de terem sido inventadas por círculos sacerdotais (menos nos casos em que se fala
mal deles, como no caso dos filhos de Eli- 1Sm 2; 4 – ou em Nm 16,1-17,15). As legendas de
profetas parece terem-se desenvolvido livre e organicamente, embora não estejam livres de
partidarismos, tentando glorificar o herói às custas de seus inimigos. Podemos tomar como
exemplos, o ciclo de Elias e Eliseu (1Rs 17 - 2Rs 13). Depois do exílio, o leigo se converte em
protagonista. A época tardia produziu um novo tipo de legenda, a do mártir, no sentido etimológico
de testemunha, de confessor: judeus piedosos, homens e mulheres, valentes em suas palavras e
obras, dispostos a morrer por sua fé.
A investigação posterior, a partir de JOLLES, insistiu em relacionar a legenda com os
relatos medievais sobre os santos. Etimologicamente, “legenda” era o texto que devia ser lido em
determinado dia do ano para recordar as virtudes de um santo. Deste sentido singular, passou a
significar o conjunto dos textos que se liam no refeitório de um convento ou em determinados
santuários. O fundamental é que a recordação da vida e das virtudes do santo deveria provocar a
imitação. A legenda está vinculada à “imitatio”, centra-se no imitável. Embora esta idéia seja
admitida praticamente por todos os autores contemporâneos, na prática se observam notáveis
diferenças: 1) Coats pensa que a categoria do imitável não se refere só a virtudes religiosas,
também pode tratar-se de virtudes políticas (como em Gn 39-41). 2) Enquanto alguns consideram
o “imitável” como única intenção da legenda, outros sublinham também a “edificação do
auditório” (Coats, Koch) e ainda aspectos diferentes, como o do respeito a um lugar sagrado ou a
uma prática religiosa (Long).
Entre os textos bíblicos que se costumam classificar como legendas, dada a ênfase atual no
“imitável”, é frequente citar Dn 1-7. Coats também propõe Gn 22 (o sacrifício de Abraão). Em
conjunto, os capítulos mais tratados neste contexto são as chamadas “legendas proféticas”.
Segundo KOCH, as legendas medievais são, sem dúvida, muito diferentes das narrações
de profetas. Aqui, o que se põe em relevo não são as virtudes, mas o poder divino de que está
dotado o profeta e ao qual todos devem submeter-se. Apesar de tudo, esta denominação é a melhor
para as nossas histórias, já que, como nos textos medievais, o importante não é a biografia do herói,
mas que o ouvinte sinta-se interpelado. Conta-se algo edificante e deve-se obedecer e confiar no
Deus que se manifesta indiretamente através da palavra ou do milagre do profeta.
Este tema foi estudado detalhadamente por ROFÉ, que oferece um ponto de vista pessoal
e interessante, estudando a legenda breve (com sua elaboração literária posterior), a legenda na
vida política, a legenda ética, além de outros gêneros importantes para os livros dos Reis, como a
“Vida”, a historiografia profética, “exemplum” e parábola, epopeia e martirológio.
Comparando as legendas com as sagas, faltam-lhes o colorido e o humor, porém é algo
intencional. Inclusive personagens importantes são introduzidas anonimamente, as localidades não
interessam (quando aparecem, têm valor simbólico); por outra parte, a saga se concentra na ação,
enquanto a legenda o faz na atitude interior de homens religiosos ou anti-religiosos, cujas
possibilidades opostas são a fé ou a incredulidade, a virtude ou o vício. Diferentemente da
historiografia, a legenda, como a saga, conhece o milagre, porém adquire um valor distinto;
15
enquanto na saga o milagre forma parte orgânica do curso dos acontecimentos, na legenda irrompe,
geralmente, de forma abrupta, rompe a série dos acontecimentos e, por isso, não pode ser muito
desenvolvido.
A legenda compartilha com a saga o falar da ação de Deus dentro da história. Isto não pode
fazer a historiografia, que se deve ater apenas aos planos humanos, aos seus fracassos e êxitos.
Sagas e legendas falam também do ‘como’ da ação divina, a saga fixando-se mais no externo e
objetivo, a legenda, no interno e subjetivo. Portanto, ambas as tarefas são imprescindíveis dentro
da Bíblia, não vão contra a vinculação da fé bíblica com a história, mas a sublinham.
Embora todos os autores admitam diversos tipos de historiografia no AT, não é fácil
colocá-los de acordo na hora de descrever tais gêneros. MUÑOZ IGLESIAS distingue três tipos
de historiografia (história épica, midraxe hagádico, história patética), embora pense que em Israel
não se deu uma épica. Esta classificação resulta muito incompleta, já que não podemos encaixar
em nenhuma dessas categorias a Historiografia Deuteronomista, nem tampouco o Javista. OHLER
divide a historiografia israelita em três grupos: 1) as obras da “história da salvação”, em sentido
clássico, a mais antiga das quais é a Javista: o olhar ao passado deve iluminar a importância
presente de Israel e de sua missão. 2) A historiografia de influxo profético, que descobre a ação de
Deus também nos golpes mais terríveis; uma vez mais o presente, a catástrofe do exílio, deve ser
interpretado a partir do plano de Deus. 3) Historiografia pós-exílica, representada por Crônicas,
que tenta demonstrar como na comunidade judaica continua a obra começada por Deus em Israel.
Esta classificação de Ohler tem a vantagem de conceder à historiografia profética, representada
pela História Deuteronomista, o posto que merece. Contudo, tem o grave inconveniente de que
não parte do gênero literário, mas se limita a seguir a evolução histórica, silenciando o gênero dos
livros dos Macabeus. Como simples orientação, recolhemos de Muñoz Iglesias e Rofé alguns
dados, que podem resultar iluminadores.
a) História profética
Quem melhor estudou este tema foi Rofé, cujas conclusões resumimos. Se a historiografia
israelita começou no século X a.C., não surpreende que, com o passar do tempo, quando os profetas
assumiram uma posição influente em nível político, os escritores de história se encontrassem sob
o seu influxo e criassem um novo gênero literário, que foi exclusivo de Israel, até a chegada do
cristianismo: a historiografia profética. Ela tem todas as características típicas da historiografia:
trata de uma série de acontecimentos políticos contínuos, em vez de episódios isolados; examina
os fatos de forma realista, com um mínimo de explicações sobrenaturais e de milagres; busca a
exatidão histórica e sugere relações causais entre os fatos. A historiografia profética e a
historiografia tout-court diferem entre si porque na primeira a causa dos acontecimentos se atribui
frequentemente à palavra dos profetas, seja um oráculo, um ensinamento ou um aviso. O oráculo
de predição serve de causa suficiente de um acontecimento, no sentido que os acontecimentos
posteriores podem ser interpretados como cumprimento do oráculo. Os ensinamentos dos profetas
podem esclarecer por que os fatos seguem um determinado curso e a negativa em obedecer a um
aviso do profeta pode provocar o castigo. Como exemplos concretos, podemos citar: 2Rs 9,1-
10,28 (revolução de Jeú; 2Rs 18,13-19,37 (campanha militar de Senaquerib); 2Rs 20, 12-19 (a
embaixada de Merodac-Baladã) e a redação do livro dos Reis.
b) Midraxe hagádico
desenvolve sobretudo depois do desterro. Seu ponto de partida é sempre a revelação anterior e sua
finalidade e a aplicação às circunstâncias atuais.
O midraxe hagádico é a forma de midraxe que comenta uma passagem histórica.
Poderíamos defini-lo como a elaboração livre de um relato bíblico anterior para sublinhar seu
conteúdo religioso, atualizando-o com fins de edificação. Dentro da Bíblia, considera-se que
formam parte deste gênero os livros das Crônicas, a tradição P do Pentateuco, Sb 10-19, Sl 132.
Em maior ou menor escala, seu influxo se deixa sentir em Eclo 44,1-50,24 e em Tobias, Judite,
Ester, Baruc e Jonas.
c) História patética
Um dos problemas mais complexos com relação aos Livros Históricos do A.T. é saber
quando e como surgiu e foi-se desenvolvendo a Historiografia no antigo Israel. Há várias hipóteses
a esse respeito: foi no século X, como consequência da instauração da monarquia, aproveitando a
estabilidade e prosperidade do reinado de Salomão? Foi nos finais do século VII, quando a euforia
do reinado de Josias motivou a aparição de uma grande obra de propaganda do reino do Sul? Ou
foi no século VI, quando a dura experiência do desterro obrigou a refletir sobre o passado do povo?
Surge a historiografia quase do nada, com uma obra-prima que ilumina o céu como um raio, ou
conta com um longo passado de tentativas menores, que vão desde o conto até a saga de heróis?
Quem é o primeiro grande historiador de Israel? O Javista? O autor da “História da sucessão ao
trono de Davi”? O autor da Historiografia Deuteronomista? São muitas as opiniões que foram
expressas sobre esses temas, o que torna impossível reproduzi-las todas. Em seguida, exporemos,
em ordem cronológica, os pontos de vista mais significativos que encontramos na investigação
bíblica durante o século XX. Para compreender melhor as contribuições dos autores mais
representativos indicamos, desde o princípio, os temas que estão em jogo:
O modelo explicativo: a maioria dos autores não recorre a nenhum modelo prévio, tomado de
outros povos ou culturas. Cada um imagina, por sua conta e risco, como pôde ter lugar o
começo da historiografia israelita. No entanto, há autores que recorrem ao modelo da Grécia e
ao das sagas islandesas para buscar uma compreensão do que se deu em Israel.
Pressupostos da historiografia israelita: são muitos os autores que, de forma mais ou menos
explícita, tratam este aspecto. Advirta-se que os pressupostos podem ser de três classes:
culturais, políticos e literários. Os dois primeiros frequentemente se misturam muito.
Quando começa a historiografia? Como indicamos nas perguntas iniciais, dão-se respostas
muito diferentes. É comum situar os começos no século X, coincidindo com o momento do
apogeu do reinado de Salomão. Como postura radicalmente oposta, Van Seters (1983) pensa
que a historiografia israelita começa com o autor Deuteronomista, no século VI a.C.
Em que âmbito surge a historiografia? Deve-se prestar uma atenção especial a este ponto.
Alguns sublinham as raízes populares; outros, a influência da corte; outros vinculam as
primeiras grandes obras a indivíduos isolados, colocados acima da produção popular e
independentes da corte.
17
Trata-se de um dos autores com maior influência nos estudos bíblicos posteriores. Em
1910, publica um breve, mas interessante artigo sobre a “Historiografia no Antigo Testamento”.
Começa afirmando que a historiografia não é uma arte inata ao espírito humano. Surge apenas
quando a cultura atinge determinado nível. De fato, a maioria dos homens, inclusive dos atuais,
não chega à autêntica historiografia. Permanece em gêneros mais ou menos poéticos, como a saga
ou a anedota. Diferentemente destes, a historiografia é um gênero culto, que pressupõe a existência
e o uso frequente da arte de escrever. O historiador pretende expor os acontecimentos reais.
Através dos pré-julgamentos correntes, tenta penetrar nos fatos mesmos e mostrar sua conexão
íntima. Por isso, a historiografia sempre está relacionada, em certa medida, com a crítica histórica
e a filosofia da história. E o historiador não se dirige a qualquer pessoa do povo, mas só a um
determinado círculo: na Antiguidade, aos que sabiam ler.
Depois desta observação preliminar, válida para qualquer cultura, afirma GUNKEL que
em Israel existiu este tipo de historiografia e inclusive que floresceu de forma admirável. Tal
historiografia brota de duas fontes: a) das listas de todo tipo (filhos, heróis, oficiais...), que
desembocarão em “anais” da corte, semelhantes aos que existiam em outros países; b) dos
narradores, que aplicam à história a arte narrativa aprendida nas sagas populares.
Como restos desta historiografia antiga, cita a história o reinado de Abimelec (Jz 9), a
rebelião de Absalão (2Sm 13-20) e a revolução de Jeú (2Rs 9-10). Também certos relatos
relacionados com o templo, como a derrocada de Atalia (2Rs 11) ou a reforma de Josias (2Rs 22-
23), que sugerem a existência de uma crônica do templo, semelhante a outras conhecidas no
Oriente. Porém, a joia mais preciosa desta historiografia antiga são as histórias de Davi em 2Sm,
especialmente a rebelião de Absalão. Mais tarde, numa época interessada não só pelo estado, mas
também pelo indivíduo aplicou-se a arte da historiografia à redação de biografias de profetas
(relatos sobre Jeremias, compostos provavelmente por Baruc). Quando desapareceu a monarquia,
surgiram as memórias (Esdras, Neemias). E, por último, quando ressurge o estado de Judá com os
Macabeus, voltamos a encontrar de novo a historiografia política (1Mc).
As características distintivas da antiga historiografia de Israel, sobretudo com relação às
sagas e às legendas posteriores são as seguintes:
a) Seu tema são os acontecimentos públicos, especialmente as guerras. O que distingue o
relato histórico da saga histórica é que esta sente predileção pela vida privada do herói,
enquanto aquele se centra nos acontecimentos políticos. Por isso, a historiografia só é
possível quando existe um estado. E, consequentemente, a historiografia de Israel
começa com os primeiros heróis que introduziram em Israel algo parecido ao estado
(Gedeão, Abimelec) e termina com o desaparecimento do Estado: com o exílio se
destrói o sentido histórico.
b) O historiador quer mostrar o que ocorreu realmente, deixando-se guiar pelo que é
possível e provável. Por isso, não há intervenções da divindade; são somente homens
os que atuam, embora esse caráter profano da historiografia não signifique que ela seja
“ateia”. A objetividade do narrador israelita se adverte também na maneira de
apresentar os personagens e os acontecimentos.
c) O historiador é muito reservado na hora de expressar juízos. O que lhe interessa não é
julgar os fatos, mas dizer como ocorreram: recorde-se o caso de Amnon e Tamar (2Sm
18
13) ou a forma como atua Salomão, quando subiu ao trono (1Rs 2,12ss). Na antiga
historiografia israelita não encontramos a crítica histórica em momento algum; nisso a
historiografia israelita é inferior à grega.
d) Em contrapartida, o narrador histórico de Israel sabe contar esplendidamente. Dá vida
aos personagens, com poucos traços, porém característicos. A arte do relato é comum
à historiografia e à saga, especialmente a sua forma mais desenvolvida, a novela curta.
A contrapartida dessa forma de narrar consiste na despreocupação pelos contextos
objetivos. Os historiadores do AT nunca se interrogam por que Davi conseguiu
precisamente o que Saul não pôde conseguir; por que submeteu os povos vizinhos,
porém não teve uma posição segura dentro de Israel, como o demonstra a rebelião de
seu filho, etc. Sua inteligência política é escassa. Sua visão não capta ainda os
autênticos motivos da vida política. E, sobretudo, é incapaz de expor a atuação das
massas. Gosta do que excita a fantasia (situações grandiosas, comovedoras, discursos
vivos, ingentes catástrofes, cenas tensas), porém, imersa num mundo poético, está
longe de uma lógica rigorosa. Em vez do objetivo, interessa-lhe o pessoal; em vez do
geral, o concreto. Tudo isto demonstra que a historiografia de Israel não superou por
completo o estilo da saga, da qual procede.
Em resumo, a historiografia do antigo Israel, na qual se une uma admirável objetividade
com uma assombrosa arte narrativa, merece os maiores elogios. Em todo o Oriente não se deu
nada parecido. Como vimos, de acordo com E. Meyer, é a única que se pode comparar com a
grega.
Quanto mais se leem as poucas páginas do artigo de GUNKEL, mais se admira sua
profundidade e penetração do tema. Não se limita a uma simples enumeração do que foi surgindo
no terreno historiográfico, nem a indicar o possível processo de desenvolvimento. Também o faz.
Porém, sobretudo, expõe uma série de características fundamentais. Para ele a historiografia está
relacionada com a monarquia e alguns dos capítulos sobre Davi ocupam um posto central nela
(concretamente a rebelião de Absalão). GUNKEL concede grande importância aos narradores
populares, que são como que o subsolo cultural em que brota a historiografia de Israel.
Com palavras parecidas às de Gunkel, começa VON RAD seu extenso artigo sobre “Os
começos da historiografia no antigo Israel” (1944): “Os povos pertencentes à esfera cultural do
ocidente são discípulos e herdeiros tanto da historiografia grega como da bíblica”. Do mesmo
modo que Gunkel, VON RAD está convencido de que a maioria dos povos da antiguidade carecia
de “sentido histórico”, “não estava em condições de ver os grandes acontecimentos políticos em
sua dependência histórica e não chegaram a enquadrá-los num grande nexo causal de
acontecimento histórico. Por isso tampouco produziram uma historiografia”. Deste modo, só
existem dois povos que realmente escreveram história na Antiguidade: os gregos e, bem antes
deles, os israelitas. A tarefa que VON RAD se propõe é estudar a historiografia destes últimos,
porém apenas em sua primeira fase.
O que tornou possível a aparição deste fenômeno em Israel? VON RAD indica três causas:
a) Em primeiro lugar, Israel tinha o sentido histórico, ou seja, a capacidade de descobrir um nexo
causal entre os acontecimentos e relacioná-los entre si. Dá-se neste povo um primado do real
sobre o ideal, uma preocupação contínua pelo problema das origens, um desejo de explicar os
fenômenos pelas suas causas, o presente pelo passado, como o demonstram as sagas
etiológicas, tão frequentes na Bíblia (cf. Js 4,20s; 6,25.26; 8,29).
b) Em segundo lugar, Israel possuía uma extraordinária capacidade narrativa, quer dizer, a
capacidade de apresentar, com grande sobriedade de meios, personagens e situações que se
converteram em modelo para a arte literária do Ocidente. O estilo é simples, transparente, sem
superlativos e de extrema sobriedade, inclusive nos momentos culminantes.
19
c) A terceira causa é a peculiar concepção religiosa deste povo. Israel está acostumado, desde os
tempos mais antigos, a ver a ação de Deus em todos os acontecimentos, inclusive privados.
Esta onipresença de Deus, que não deixa vazios, constitui um poderoso princípio ordenador
dos acontecimentos. Os israelitas chegaram a ter um pensamento histórico e uma historiografia
graças à sua peculiar fé na onipotência histórica de seu Deus. E isto é precisamente o que
distingue a historiografia israelita da grega.
VON RAD crê que a obra historiográfica mais antiga dos israelitas é a “História da
sucessão ao trono de Davi”. Porém esta obra-prima necessita de uma preparação, que se encontra
nas sagas de heróis e na “História da ascensão de Davi ao trono”.
As sagas de heróis, embora não sendo uma autêntica historiografia, são de todas as sagas
(locais, cultuais, etimológicas, tribais etc) as que apresentam uma relação mais imediata com a
história. Não falam de personagens de obscuros tempos passados (como acontece nas sagas
patriarcais do Gênesis), mas seus protagonistas aparecem à plena luz da história. Não podemos
pôr em dúvida a sua historicidade, nem o lugar de sua aparição, nem os conflitos políticos que
refletem. Este tipo de sagas se encontra principalmente no livro de Josué e, sobretudo, em Juízes;
algumas também em 1 Sm.
Analisando o exemplo concreto de Gedeão (Jz 6,11-8,32), VON RAD apresenta as
seguintes características da saga de heróis: a) falta-lhe caráter unitário, já que tal tradição está
formada por uma série de sagas independentes, justapostas pelo redator final; b) no momento
culminante da história introduz intervenções portentosas de Deus ou elementos milagrosos; com
isto faz com que a verdadeira iniciativa dos acontecimentos seja do Senhor e não dos homens.
Estas duas características levam a não considerar as sagas de heróis como autêntica historiografia.
O resto do artigo dedica-o VON RAD a estudar a “História da sucessão ao trono de Davi”.
Esta, sim, é verdadeira historiografia porque tem precisamente o que faltava às sagas de heróis.
Em primeiro lugar, grande coesão interna. Enquanto as sagas de heróis eram um aglomerado de
relatos soltos, a “História da sucessão” aparece como um conjunto perfeitamente entrelaçado, em
que cada episódio se relaciona com os demais. Em segundo lugar, a obra está em relação direta
com a vida política. VON RAD também considera que a autêntica historiografia surge a partir da
vida política. Por isso, em tempos de Saul era impossível a historiografia, já que seu pequeno reino
não oferecia os pressupostos culturais e políticos necessários para esta atividade cultural. Em
tempos de Davi, as condições já existem. E a obra histórica em questão não apenas se propôs como
tarefa tratar a época de Davi, com todas as suas implicações de política interior e exterior, mas
escolheu como tema um problema único, o mais profundo e interessante do momento: quem
sucederá Davi no trono? Em terceiro lugar, seu modo de falar é autenticamente profano. Frente
à ingenuidade das sagas de heróis, que introduzem milagres e intervenções divinas por toda parte,
a atuação de Deus aparece aqui de modo francamente revolucionário: não se experimenta de modo
maravilhoso e intermitente; permanece oculta à vista, porém se subentende de modo mais global
e continuado. “Deus atua em todos os âmbitos da vida, tanto nos públicos como nos privados, nos
assuntos profanos e nos religiosos. Porém, sobretudo, o peso do agir divino se apoia, para além
das instituições cúlticas sagradas (guerra santa, chefe carismático, arca de Deus etc), plenamente
no profano”. Por grande que seja a originalidade do seu autor, esta obra requer uns pressupostos
históricos e culturais, os da era salomônica.
como resultado de um plano previsto por Deus na criação. Segundo MOWINCKEL, a obra do
Javista parece relacionada com o renascimento da política davídica nos tempos de Amasias (804-
776 a.C.). Posteriormente se viu ampliada com diversas adições (perícope do Sinai, história de
Balaão, expansão do relato da conquista), nas quais se fundamenta, sem motivo, a teoria de uma
fonte eloísta, que, na verdade nunca existiu.
No entanto, desde o final do J (Jz 1) até a história de Saul e de Davi, ficava um vazio,
preenchido então por Juízes. Estes relatos sobre heróis existiam independentemente; apenas as
tradições de Gedeão e Abimelec estavam relacionadas. Porém foram combinados por um só autor,
usando como elemento de união os “juízes menores” (como afirma Noth).
O último passo é constituído pelos Anais dos Reis de Judá e Israel. Não se trata dos anais
originais do estado, mas de uma obra mais popular. MOWINCKEL considera esses “Anais” como
sendo uma mesma obra, uma história sincrônica de ambos os reinos, escrita depois da queda da
Samaria (722 a.C.), em Judá, com os últimos retoques depois da queda de Jerusalém. Inicialmente
era contos independentes, muito parecidos com as narrações sobre os heróis do livro dos Juízes ou
com as façanhas atribuídas a Josué. Por conseguinte, nos encontramos, de novo, com a tradição
oral, o que não significa que as notas sobre determinados acontecimentos não remontem a fontes
escritas.
Um problema importante é se as numerosas narrações e legendas proféticas que a saga
deuteronomista inclui foram tomadas desses anais populares ou de outra ou outras fontes. Já que
a maioria destas legendas se refere ao papel dos profetas em assuntos públicos, devemos esperar,
“a priori”, que os contos populares sobre os assuntos dos reis e do estado falassem também da
atuação dos profetas nos vários acontecimentos. O único caso em que se pode demonstrar a
existência de uma fonte distinta à dos “anais populares” é em 2 Rs 25,22-26, tomado ao pé da letra
do livro de Jeremias.
Em resumo, o conjunto da historiografia literária de Israel é de origem judaica. Todas as
obras historiográficas mencionadas o autor da saga deuteronomista as utilizou, inclusive o Javista
em sua forma ampliada, do qual tomou a descrição da conquista da terra (o relato de Josué).
Como pôde ter acesso o autor pós-exílico da saga deuteronomista à historiografia antiga?
Juntamente com outros autores, MOWINCKEL pensa que as obras se aprendiam de cor. Não é
impossível que entre os exilados se começasse a consignar, por escrito, parte das tradições contidas
nos livros que se tinham perdido. E, depois da restauração, foi ainda mais necessário. Mas também
é provável, ou inclusive mais provável, que muito do conteúdo desses livros só existisse na
memória de gente culta, portadora das tradições. Naturalmente, por muito que estivesse
desenvolvida a arte da memória, este meio oral de transmissão permite desenvolvimentos
posteriores da tradição. É o que aconteceu no tempo entre a saga deuteronomista e a “História de
Israel” seguinte, ou seja, o livro das Crônicas. O Cronista amplia a saga deuteronomista em forma
escrita. O que traz de novo pode-se explicar como resultado do desenvolvimento da tradição oral
que foi acompanhando os livros escritos.
Podemos sintetizar a postura de MOWINCKEL da seguinte maneira:
a) Ponto de partida: os Anais.
b) A Saga de Salomão (cf. 1Rs 11,41) supõe os inícios da historiografia israelita. Trata-se
de anais oficiais mais contos “populares”.
c) Seguiu-lhe uma “História de Davi” (1Sm 1- 2Sm 6 + 2Sm 20-21; 23-24).
d) Em parte mais antiga que esta atividade literária e em parte paralela, temos o J, ao qual
se acrescentaram dados diversos em etapas posteriores.
e) Para preencher o vazio entre o J e a história de Davi se compôs o livro dos Juízes.
f) Por último, se redigiram em Judá os anais sincrônicos dos reis de Israel e de Judá.
Depois de alguns estudos preliminares, publica em 1983 sua importante obra “Em busca
da história. A historiografia no mundo antigo e as origens da história bíblica”. A obra tem duas
22