Literatura e Arte Indígena No Brasil - Carola Saavedra
Literatura e Arte Indígena No Brasil - Carola Saavedra
Literatura e Arte Indígena No Brasil - Carola Saavedra
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dios são cruéis e parecem só pensar em guerras e canibalismo: “nas outras caba-
nas, continuaram suas zombarias comigo, e o filho do rei atou-me as pernas em
três lugares, obrigando-me a pular com os pés juntos. Riam-se disso e diziam: Aí
vem a nossa comida pulando!” (Staden, 2014, p. 78).
São esses dois mitos que fundam a “história pregressa” desses habitantes, o do
bom selvagem, vivendo num paraíso esquecido e o seu avesso, o do canibal se-
dento de carne humana. Paraíso e inferno, não havia saída. O curioso desses ima-
ginários é que, seja qual deles adotemos, o indígena fica preso a um tempo mí-
tico, um tempo fora da História. E se ele habita esse outro espaço, resta-lhe aqui,
no presente, apenas ausência. Ausência essa corroborada por uma ausência física,
real: o genocídio. O genocídio indígena no continente americano é um dos acon-
tecimentos mais violentos da história da humanidade. No caso do Brasil, estima-
se que somente 10% da população indígena sobreviveu aos dois primeiros séculos
de colonização portuguesa (ChaRny, 2000, p. 433). Mas não se trata de um fato
que acabou; ao contrário, trata-se de um genocídio ainda em marcha e que já dura
mais de 500 anos. Um desaparecimento que tem duas faces principais: o extermí-
nio físico e o extermínio cultural; assim, o indígena deixa de ser indígena para, es-
quecido de suas tradições, de sua língua e de si mesmo, tornar-se apenas mais um
miserável nas periferias das grandes cidades.
E se por um lado esse fato expõe a violência e o horror da colonização, por
outro dá a entender que, bom, já que todos morreram, e os que sobreviveram
foram assimilados, então acabou. Acabou-se o índio. A ideia não é nova, e está
muito bem plantada na cultura brasileira desde o início do século XX, graças a
pensadores como Gilberto Freyre que, ao fazer uma análise do brasileiro, vê uma
mestiçagem que daria à luz a um novo homem: “a luxúria dos indivíduos, soltos
sem família, no meio da indiada nua, vinha servir a poderosas razões do Estado
no sentido de rápido povoamento mestiço da nova terra. E o certo é que sobre a
mulher gentia fundou-se e desenvolveu-se através dos séculos XVI e XVII o grosso
da sociedade colonial, em um largo e profundo mestiçamento, que a interferência
dos padres da Companhia de Jesus salvou de resolver-se todo em libertinagem
para em grande parte regularizar-se em casamento cristão” (FReyRe, 2006, p. 161).
Mas, se por um lado Freyre buscava uma ideologia de valorização da mestiçagem,
por outro deu ferramentas teóricas para o mito da democracia racial, ou seja, não
há racismo porque não há raças distinguíveis. E se não há raças então tampouco
há negros ou índios, nem uma cultura própria com a qual se identificar, restando
apenas a invisibilidade e a cultura “do outro”, um padrão cultural branco-europeu.
Esse processo teve efeitos diversos em diferentes populações; no caso dos povos
indígenas, eles foram sendo apagados até a sua quase “extinção” ao olhar do outro.
Nos dias atuais, vale olhar para o depoimento de Ailton Krenak, um dos prin-
cipais pensadores indígenas no momento: “(…) as pessoas me encontram em uma
rua de Belo Horizonte e me perguntam: O senhor é peruano? Ou indiano, ou árabe.
Aí eu pergunto para os brasileiros, meus patrícios, por que é mais fácil você iden-
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Peri é retratado como o índio que não sabe falar bem o português, não sabe usar
os pronomes, e fala de si mesmo em terceira pessoa, uma lógica vista como infantil,
que por muito tempo foi usada na cultura popular para reproduzir a fala indígena.
Ele é ingênuo, mas não só isso, ele não é capaz de compreender a diferença entre
o simbólico e o real, mais uma vez, como uma criança que não consegue reconhe-
cer uma metáfora, uma linguagem simbólica ou irônica. Ele é apresentado como
alguém “alegre, mas tímido e submisso”, e provoca em Cecília (Ceci) uma mistura
de riso e afeto infantil, um afeto que a personagem poderia ter por seu animalzi-
nho de estimação. Mas Peri não é apenas submisso, ele é também valente, capaz
de caçar uma onça para oferecê-la à amada, e de lutar contra tudo e todos para
salvá-la, numa típica reprodução de amor cortês. Assim, na falta de uma Idade Mé-
dia, travestia-se o indígena numa espécie de nobre cavaleiro, no intuito de lançar
aí as bases míticas para uma suposta origem do “povo brasileiro”. Uma origem em
que o indígena, se existira em algum momento, já havia sido assimilado.
Algumas décadas mais tarde, com a chegada do Modernismo, o índio fará uma
nova entrada triunfal. Desta vez trata-se do grupo que gira em torno à Semana
de Arte Moderna de 1922, grupo constituído majoritariamente por integrantes da
elite paulistana com acesso direto aos salões de Paris, e que traz para os trópicos
suas próprias ideias de vanguarda. E se o indigenismo do século XIX dava voz ao
mito do bom selvagem, o índio ingênuo e valoroso, o Modernismo lançará mão do
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mito oposto: o antropófago, o temível canibal. O índio que devora o inimigo he-
roico (jamais o covarde) para adquirir as suas forças e demais qualidades. Surge en-
tão a Antropofagia, tendo como berço o Manifesto Antropófago (1928), de Oswald
de Andrade, cujas primeiras linhas já dão uma clara ideia do que virá: “só a antro-
pofagia nos une. (…) Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as cate-
queses. (…) Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”
(AndRade, 2017, p. 46). Aqui, a frase proferida por Hamlet “To be or not to be” se
transforma em “Tupi or not tupi”, fazendo referência a um dos grandes grupos in-
dígenas que habitavam o território brasileiro antes da colonização, o grupo Tupi-
Guarani. Trata-se da busca de uma identidade cultural para a nova nação que sur-
gia e que até então havia se guiado quase que totalmente pela cultura portuguesa;
na realidade, até meados do século XIX, toda a formação cultural e acadêmica da
elite brasileira era feita em Portugal (a imprensa foi proibida no Brasil até meados
do século XIX e a primeira universidade só passou a existir no início do século
XX). Nesse sentido, a Semana de 22 representa uma ruptura e, ao mesmo tempo,
a busca de uma identidade própria.
O Manifesto Antropófago vem colocar em palavras aquilo que começava a tomar
corpo, que é um outro caminho para a arte e literatura brasileira. A ideia básica é:
se não há como romper totalmente com a cultura europeia porque ela (também) é
o Brasil, façamos com ela o que faziam os índios antropófagos: devorar para adqui-
rir as suas melhores qualidades. Mas não só isso; devoremos, deglutamos e trans-
formemos esse saber em algo outro, algo nosso, um saber que misturaria num
mesmo caldeirão a cultura europeia e a cultura indígena brasileira. Só me interessa
o que não é meu, dizia Oswald de Andrade. É necessário salientar que esse pro-
cesso modernista de construção de uma identidade cultural, apesar de sua impor-
tância para a arte e literatura do país, contribuição que ressoa até os dias de hoje,
deixou de fora a cultura afro-brasileira e, no que diz respeito à cultura indígena,
esteve muito mais ligada a uma imagem “branca” de cultura indígena do que a gru-
pos indígenas reais, que aliás, não formam uma única cultura, ao contrário, se des-
dobram em uma diversidade imensa de idiomas, etnias, religiosidades e culturas.
Seja como for, até a década de 90, o indígena, quando aparece na cultura bra-
sileira, ocupa sempre o lugar do “outro”, um lugar de objeto, seja o índio como o
grande guerreiro, porém morto (do indigenismo) ou o de um ser que fora incorpo-
rado à nação através da mestiçagem ou deglutição cultural (Modernismo), e por-
tanto, morto também. Nos dois casos, trata-se de um sujeito que já não mais existe
na vida “real” do país, tornando-se uma figura do imaginário, seja ele Curupira
(ser do folclore indígena que hoje é representada como um duende branco e de
cabelos vermelhos), seja ele Macunaíma (livro de Mário de Andrade e que faz re-
ferência a Makunaima, demiurgo que aparece em diversas culturas indígenas da
região da atual Roraima).
Mas por que os anos 90? O que acontece nesse momento que faz com que haja
uma mudança na forma como os indígenas são vistos no imaginário brasileiro?
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rias dos grandes centros. São formas muito diferentes de relacionar-se com o outro
e consigo mesmo. Assim, trata-se aqui não só do “redescobrimento” desse ser que
se imaginava extinto, mas a percepção de que “ele” são muitos e vários. Não mais
o “índio”, mas sim uma série de etnias, idiomas, dialetos, culturas, níveis de con-
tato com os outros, enfim, todo um país que havia sido relegado ao subterrâneo.
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autoria e a ideia de arte enquanto produto. Dois aspectos que, aliás, estão forte-
mente interligados. Comecemos pela ideia de autoria. Na tradição ocidental, es-
pecialmente a partir do Renascimento, e junto ao estabelecimento da burguesia,
surge a ideia de autor como a conhecemos hoje, associada à ideia de sujeito, de
individualidade, em detrimento do coletivo. Dessa forma, se a autoria era até en-
tão a voz dos deuses, sendo o autor apenas o instrumento, com o tempo, o autor
enquanto detentor de um saber individual, enquanto dono de uma obra que pode-
ria ser comercializada, foi se tornando cada vez mais presente no mundo ociden-
tal. O autor passa a ser um sujeito, que por talento inato (o gênio) e trabalho pró-
prio, constrói uma obra que lhe pertence, assim como lhe pertence um carro ou
uma casa, ele passa a ter “uma assinatura” e essa assinatura tem um valor de mer-
cado. Para boa parte das culturas indígenas, essa lógica não faz sentido, os moti-
vos são muitos, mas um dos principais é o conceito de indivíduo. Como a identi-
dade é construída a partir do grupo, da comunidade, e não do indivíduo, a ideia
de autor, talento pessoal, genialidade, perde o seu sentido.
Assim, em muitos casos, os ganhos de trabalhos vendidos não vão para um
único artista, mas para todo o grupo, pois a produção artística, seja de que indi-
víduo for, não é vista como um produto individual, fruto do talento, mas como o
resultado dos saberes do grupo e seus ancestrais. E há casos de criações em cole-
tivos, que recusam sistematicamente o peso da autoria. Uma delas é o MAHKU –
Movimento dos Artistas Huni Kuin. Trata-se de um coletivo de artistas huni kuin
que pesquisam, traduzem e recriam, através de obras visuais, os huni meka, can-
tos visionários de nixi pae (ayahuasca), entoados durante as cerimônias em que
se consome ayahuasca. O idealizador do projeto é Ibã Huni Kuin, indígena, pes-
quisador, acadêmico, artista, tradutor, um sujeito que transita entre vários mun-
dos e linguagens, ao mesmo tempo em que desaparece sob o trabalho do grupo.
Outro exemplo de trabalho coletivo é o projeto “Vídeo nas Aldeias”, criado pelo
antropólogo Vincent Carelli, em 1986, tem como objetivo possibilitar que os gru-
pos indígenas façam a sua própria produção audiovisual, o que significa não só
acesso a equipamentos, mas também uma formação para isso, o que inclui cursos
e workshops dentro das aldeias (ARaÚjo, CaRvalho e CaRelli, 2011). Os filmes
daí resultantes são, em geral, considerados filmes do coletivo, não só daqueles que
efetivamente participaram do processo, mas de todo o grupo.
É importante salientar, porém, que esta não é a única forma de autoria, pois são
muitas as culturas e formas de interação com a lógica “branca”, havendo também
muitos artistas indígenas que detém assinatura própria. Essa relação outra com a
autoria cria diferenças também na relação com o mercado, ou seja, a ideia de arte
enquanto produto. Nas palavras de Ailton Krenak:
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Escobar aborda neste trecho outro aspecto importante da arte indígena, o tempo
linear. Trata-se de culturas com uma outra noção de tempo, muito diferente do
tempo ocidental, que olha para frente em direção a um futuro, um progresso in-
cessante, que é a própria ideia de civilização. Para as culturas ameríndias, o tempo
5
É necessário ter cuidado com a generalização do que chamamos indígena. Como dito anterior-
mente, são diversos grupos e culturas e também diversos artistas, mas é possível falar em ten-
dências ao pensar as semelhanças entre as diversas culturas autóctones.
6
Tradução: Las expresiones del arte indígena, como casi todo tipo de arte no moderno, no llenan
esos requisitos: no son producto de una creación individual (a pesar de que cada artista reformule
los patrones colectivos), ni generan rupturas transgresoras (aunque supongan una constante
renovación del sentido social), ni se manifestan en piezas únicas (aun cuando la obra producida
serialmente reitere con fuerza las verdades repetidas de su propria historia) (EscobaR, 2013, p.5).
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bonita, mas quem quer escutar uma história dura, real, do que nós esta-
mos vivendo hoje? Como é que a gente vai emoldurar essa história (…)
como é que a gente vai puxar o interesse de alguém por essa literatura?
(KRenaK, 2017b).
E, por último, é necessário ressaltar que os povos indígenas no Brasil não têm
uma tradição de escrita. Sobre essa passagem de culturas ágrafas para letradas,
Ailton Krenak lança o seguinte questionamento, que mais uma vez nos obriga a
repensar nossos conceitos:
Para povos que são de origem, sem escrita, de tradição oral, fazer uma
travessia para esse mundo da escrita, só isso, já é um épico. E ele deve
ocultar trilhas insondáveis de alienação dessas identidades até chegar
nesse patamar da escrita, e lidar com esse recurso da escrita com fa-
miliaridade. (…) É bom não esquecer que os jesuítas vieram pra cá pra
botar escolas e catequizar os índios e ensinar eles a ler e a escrever, en-
quanto os índios puderam resistir eles não aprenderam nem a ler nem a
escrever. Então seria interessante a gente investigar se, quando os índios
estão lendo e escrevendo, se eles já se renderam ou se eles ainda estão
resistindo (KRenaK, 2017b).
ReAntropofagia
Nos últimos anos, surgiram exposições que marcaram a recepção da arte indí-
gena no Brasil. É o caso de TransMakunaima (2018), com curadoria de Jaider Es-
bell, e ReAntropofagia (2019), que teve como curadores Denilson Baniwa e Pedro
Gradella. Foram exposições que não só apresentaram a um público mais amplo
uma série de artistas indígenas contemporâneos, mas também estabeleceram as
bases teóricas de um movimento que tem se tornado muito forte na trajetória de
alguns artistas. Trata-se da ReAntropofagia. A ideia surge no ensaio de Jaider Es-
bell: “Makunaima, o meu avô em mim!” (Esbell, 2018). O ensaio de Esbell adota
uma linguagem incomum, que foge da lógica vigente, mais próxima da literatura
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do que do ensaio propriamente dito. Além disso, inclui imagens das telas pinta-
das pelo artista numa espécie de continuum texto-imagem (FiguRa 2). Trata-se
de Makunaima, entidade mítica que é, ao mesmo tempo, o avô de Esbell e a enti-
dade que o texto reivindica para si (para os seus):
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Setenta anos mais tarde, porém, os próprios indígenas vão reivindicar Maku-
naima (escrito com K em diferenciação ao romance de Mário de Andrade). É o
caso do texto de Esbell, que nos lembra que se trata de seu avô (ou seja de uma re-
lação ancestral), e se aprofunda em desvencilhar a divindade Makunaima da per-
sonagem criada por Mário de Andrade e depois das ideias que acabaram fincadas
na cultura brasileira, a do anti-herói, o herói sem caráter no sentido de um herói
de características fluidas. Outro movimento nesse sentido é o livro “Makunaimã:
o mito através do tempo” (2019), de gênero indefinido, um livro-peça de teatro,
de autoria coletiva. Na obra ficcional, representantes indígenas discutem sobre
“Macunaima” durante um evento em homenagem ao autor na Casa Mário de An-
drade, hoje um museu. O tema da discussão é a apropriação cultural. É quando o
próprio Mário de Andrade acorda do seu sono de morte e chega para conversar
com eles. O livro traz à tona as vozes indígenas que até então haviam sido silen-
ciadas. As ilustrações são de Jaider Esbell.
Curadora
Sempre me questiono o quanto Koch-Grünberg aparou as narrativas de
Akuli. Certamente era muito fidedigno, como se vê nas minuciosas no-
tas de rodapé que deixou, mas penso que a narrativa deveria ser mais dis-
persa e menos conclusiva. Não o vejo encenando essa história toda de
uma vez. Pararia. Continuaria depois…
Akuli-pa
Verdade isso. Pararia para acender o fumo. Para acender a fogueira. Uma
criança se machucaria. É esse o tempo da aldeia.
Ariel
O pensamento indígena nos ajuda a transcender as falsas dicotomias da
civilização ocidental.
Mario
É possível. É de uma potência criativa inimaginável.
Ariel
Há religiões orientais que dizem que não há arte desde que o ser humano
mergulhou no abismo civilizacional. Que a verdadeira arte move monta-
nhas, literalmente. O resto são esboços.
Mario
Eu sinto exatamente isso quando leio Akuli (RennÓ et al., 2019, p. 80-81).
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pofagia temperada com bordeaux e pax mongolica” (AssumpÇÃo, 2019). Ali vemos
a cabeça de Mário de Andrade sendo servida numa cesta-bandeja, um Mário de
Andrade de pele escura, junto a ela, um exemplar de Macunaíma. Curiosamente o
que é servido aqui é a cabeça e não o resto do corpo, uma cabeça com óculos, numa
clara referência à reapropriação intelectual, e não apenas de qualidades típicas dos
relatos de canibalismo como força, valentia etc., mais relacionadas ao corpo.
Outro momento “reantropofágico” de Denilson Baniwa foi a sua performance-
intervenção na Bienal de São Paulo 2018: “Performance Pajé-Onça Hackeando a
33ª Bienal de Artes de São Paulo” (Baniwa, 2019). Incorporando o personagem do
pajé-onça, Denilson se posiciona diante da fotografia do povo Sek’nam, etnia ex-
tinta que habitava a Terra do Fogo, e que abre a exposição de curadoria de Sofia
Borges; ali, descalço, usando uma máscara de onça e uma capa, o artista. O pajé-
onça caminha pela exposição que apresenta as fotos dos Sek’nam, apontando para
o fato de não haver nenhuma identificação de que etnia era aquela, e sem menci-
onar que se trata de um povo extinto. Um apagamento dentro do próprio apaga-
mento. O Pajé-onça passa diante de cada uma das fotografias e, numa atitude de
reverência e luto, põe flores diante de cada uma. Depois de andar pelo resto da
exposição, vai até a livraria dentro da própria Bienal, compra o livro Breve histó-
ria da arte, depois coloca-se novamente diante do imenso painel com a fotografia
dos Sek’nam e anuncia, enquanto rasga o livro: “uma história da arte tão breve
que não comporta os povos indígenas (…) mas eu vejo índios nas referências, eu
vejo índios e suas culturas roubadas” e, enquanto aponta para as fotos, “Ísso é o
índio? (…) É assim que querem o índio, preso no passado? Sem direito a futuro?
Lhes roubam a imagem, lhes roubam o tempo, lhes roubam a arte (…). Estamos vi-
vos, apesar do roubo, da violência, e da história da arte” (Baniwa, 2019).
A ReAntropofagia pode ser considerado um movimento que influencia e dá
voz a muitos artistas indígenas contemporâneos e consiste em se tomar de volta
a própria cultura, não num sentido de recuperar algo perdido, mas de, através de
uma antropofagia (como nos sugeriam Oswald de Andrade e o próprio Mário de
Andrade), deglutir, digerir a cultura do outro, criando a partir daí algo novo, algo
próprio. Sendo assim, a ReAntropofagia surge como um diálogo. Um diálogo ver-
dadeiro, em que o outro, ele também, se aproxime, sem armas, com ética, com arte.
Conclusão
Pensar a arte e a literatura indígena é também pensar o lugar do outro, seja
o outro aquele que fala, seja o outro aquele que está em silêncio; é pensar essas
forças discursivas, esse poder, sempre em desequilíbrio, mas não por isso sem
resistência.
O pensamento indígena “surge” agora não apenas como um novo discurso que
sempre esteve ali, mas como uma possibilidade de mundo, de um mundo por vir.
Assim, trata-se de tirar os povos indígenas do passado e trazê-los para o presente,
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FiguRa 3 – Perfomance Pajé-Onça Hackeando a 33ª Bienal de Artes de São Paulo (Baniwa, 2019a).
e assim, para um futuro possível. Não apenas como a obrigação óbvia de restituir
aos povos autóctones do continente o lugar que lhes é de direito, mas também a
chance única de aprender com o que eles têm a dizer, dialogar com eles, pensar
uma sociedade mais justa. E nesse pensar outros mundos, é urgente pensar tam-
bém o próprio conceito de arte e de literatura, não mais um conceito canônico, es-
sencialista, ligado a poucos gênios individuais, mas uma visão fluida, comunitária,
que deixe de lado a separação arte e vida, corpo e espírito, ser humano e natureza.
E nesse movimento é essencial desconstruir a ideia de “grande arte” e também a
de “índios que pintam ou escrevem”; a arte desdobra-se em muitas, e os indígenas
ocupam, assim como qualquer outro povo, o lugar do escritor, do artista.
Referências
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(orgs.). Vídeo nas aldeias 25 anos: 1986 – 2011. Olinda: Vídeo nas Aldeias, 2011.
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RennÓ, Iara et al. Makunaimã: o mito através do tempo. São Paulo: Elefante, 2019.
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Staden, Hans. Viagem ao Brasil. Brasília: Fundação Darcy Ribeiro, Editora UnB,
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TuKano, Álvaro. Entrevista. In: Cohn, Sérgio; KadiwÈu, Idjahure (orgs.). Tembetá:
conversas com pensadores indígenas. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2019. p.
52-79.
Resumo/Abstract/Resumen
Literatura e arte indígena no Brasil
Carola Saavedra
O texto apresenta um breve panorama da arte e literatura indígena no Brasil, desde
a chegada de Cabral até os dias atuais. Considerando que, por muitos séculos, os
povos indígenas foram invisibilizados das mais diversas formas, inclusive pela cul-
tura hegemônica “branca”, que sempre ditou o cânone no Brasil, o artigo aborda a
construção do “índio” na cultura brasileira, passando pelo Indigenismo e pelo Mo-
dernismo, e se concentra nas vozes indígenas que começam a (in)surgir com mais
força a partir dos anos 2000: Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara,
Denilson Baniwa, Jaider Esbell, entre outros. Vozes que reivindicam o lugar que
lhes foi negado na sociedade brasileira, um lugar de direito à vida, à arte e à cida-
dania, um lugar que aponta para novas narrativas, cada vez mais necessárias.
Palavras-chave: literatura indígena, arte indígena, cânone, reantropofagia.
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