Literatura e Arte Indígena No Brasil - Carola Saavedra

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Literatura e arte indígena no Brasil


Carola Saavedra∗ 

E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder


contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.
Ailton Krenak1

Desde a chegada dos europeus ao continente americano, foi sendo construído


um imaginário do que seria aquele mundo desconhecido e, especialmente, seus
exóticos habitantes. Um imaginário que se inicia oficialmente com a carta de Pero
Vaz de Caminha, o escrivão que acompanha Cabral em sua chegada à ilha de Vera
Cruz, território que depois de uma série de outros nomes passaria a se chamar
Brasil. Caminha narra esse primeiro encontro em sua carta endereçada ao Rei de
Portugal; nas entrelinhas, não só o olhar surpreso, mas também o que seria de-
pois um dos mitos constitutivos do país: a ideia de paraíso na terra, a ilha Brasil.
De certa forma, o nome Brasil remete simultaneamente a duas ideias distintas,
mas não por isso antagônicas: à ilha Brazil, Hi-Brazil, ilha mítica de natureza exu-
berante que podia ser avistada a cada sete anos e, ao mesmo tempo, à madeira
do Pau-Brasil, que acabou sendo o primeiro produto do extrativismo praticado
no país. Ou seja, um paraíso de onde era possível extrair riquezas, fossem elas
madeira, ouro ou força de trabalho, nas palavras de Caminha: “nessa terra, em se
plantando, tudo dá” (Caminha, 1500). Mas que habitantes teria aquele paraíso?
Caminha, mais uma vez, nos dá a resposta: “a feição deles é serem pardos, ma-
neira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus,
sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas;
e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto” (Caminha, 1500). Aqui
aparece sem pudores o bom selvagem, aquele que ainda não fora corrompido
pela civilização. O bom selvagem, tão puro, infantil, sempre disposto a trocar
ouro por espelhos e outras “quinquilharias”. Preguiçoso, pois não conhecia ainda
o trabalho; mais instinto que humanidade. Teriam elas alma, aquelas criaturas?
Logo depois surgiria também um mito oposto: o do canibal, ser malévolo e sem
lei, comedor de gente, que mataria por prazer, apenas para se deliciar com a carne
dos inimigos. Alimentando essa ideia, temos relatos famosos, como o de Hans Sta-
den, mercenário alemão que foi tomado prisioneiro pelos tupinambás, onde per-
maneceu nove meses (sem ser comido). No relato que ele publicou depois, os ín-

Escritora, doutora pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), professora e pesquisa-
dora na Universidade de Colônia, Alemanha. E-mail: [email protected].
1
KRenaK, 2019, p.27.
LiteRatuRa e aRte indÍgena no BRasil

dios são cruéis e parecem só pensar em guerras e canibalismo: “nas outras caba-
nas, continuaram suas zombarias comigo, e o filho do rei atou-me as pernas em
três lugares, obrigando-me a pular com os pés juntos. Riam-se disso e diziam: Aí
vem a nossa comida pulando!” (Staden, 2014, p. 78).
São esses dois mitos que fundam a “história pregressa” desses habitantes, o do
bom selvagem, vivendo num paraíso esquecido e o seu avesso, o do canibal se-
dento de carne humana. Paraíso e inferno, não havia saída. O curioso desses ima-
ginários é que, seja qual deles adotemos, o indígena fica preso a um tempo mí-
tico, um tempo fora da História. E se ele habita esse outro espaço, resta-lhe aqui,
no presente, apenas ausência. Ausência essa corroborada por uma ausência física,
real: o genocídio. O genocídio indígena no continente americano é um dos acon-
tecimentos mais violentos da história da humanidade. No caso do Brasil, estima-
se que somente 10% da população indígena sobreviveu aos dois primeiros séculos
de colonização portuguesa (ChaRny, 2000, p. 433). Mas não se trata de um fato
que acabou; ao contrário, trata-se de um genocídio ainda em marcha e que já dura
mais de 500 anos. Um desaparecimento que tem duas faces principais: o extermí-
nio físico e o extermínio cultural; assim, o indígena deixa de ser indígena para, es-
quecido de suas tradições, de sua língua e de si mesmo, tornar-se apenas mais um
miserável nas periferias das grandes cidades.
E se por um lado esse fato expõe a violência e o horror da colonização, por
outro dá a entender que, bom, já que todos morreram, e os que sobreviveram
foram assimilados, então acabou. Acabou-se o índio. A ideia não é nova, e está
muito bem plantada na cultura brasileira desde o início do século XX, graças a
pensadores como Gilberto Freyre que, ao fazer uma análise do brasileiro, vê uma
mestiçagem que daria à luz a um novo homem: “a luxúria dos indivíduos, soltos
sem família, no meio da indiada nua, vinha servir a poderosas razões do Estado
no sentido de rápido povoamento mestiço da nova terra. E o certo é que sobre a
mulher gentia fundou-se e desenvolveu-se através dos séculos XVI e XVII o grosso
da sociedade colonial, em um largo e profundo mestiçamento, que a interferência
dos padres da Companhia de Jesus salvou de resolver-se todo em libertinagem
para em grande parte regularizar-se em casamento cristão” (FReyRe, 2006, p. 161).
Mas, se por um lado Freyre buscava uma ideologia de valorização da mestiçagem,
por outro deu ferramentas teóricas para o mito da democracia racial, ou seja, não
há racismo porque não há raças distinguíveis. E se não há raças então tampouco
há negros ou índios, nem uma cultura própria com a qual se identificar, restando
apenas a invisibilidade e a cultura “do outro”, um padrão cultural branco-europeu.
Esse processo teve efeitos diversos em diferentes populações; no caso dos povos
indígenas, eles foram sendo apagados até a sua quase “extinção” ao olhar do outro.
Nos dias atuais, vale olhar para o depoimento de Ailton Krenak, um dos prin-
cipais pensadores indígenas no momento: “(…) as pessoas me encontram em uma
rua de Belo Horizonte e me perguntam: O senhor é peruano? Ou indiano, ou árabe.
Aí eu pergunto para os brasileiros, meus patrícios, por que é mais fácil você iden-

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tificar um peruano, um indiano, um boliviano, ou até um japonês andando nas


nossas ruas e não aquele que é índio, um nativo daqui?” (KRenaK, 2019b, p. 11). E,
assim, Krenak define da maneira mais acertada possível o que é ser indígena no
Brasil: ser indígena é ser invisível. Uma invisibilidade que começa lá atrás, com
a palavra que, até pouco tempo, era usada para designar uma imensa diversidade
de etnias e culturas: Índio. E com ela, as frases que a acompanham: índio é tudo
uma coisa só, índio é algo que desapareceu e virou folclore, dia do índio, fantasia
de carnaval. Índio, nome dado por Colombo, que imaginava ter chegado às Índias.
Nome outorgado, nome baseado num erro. Nome de ninguém.

A representação do indígena na cultura brasileira


Diante dessa inexistência, desse silenciamento de quinhentos anos, como fa-
lar de arte e literatura indígena? Nesse sentido, a primeira coisa a fazer é traçar
um breve panorama de como a cultura indígena tem sido recebida pela sociedade
“branca”. O adjetivo aparece aqui entre parênteses na intenção de ressaltar a afir-
mação do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro: “todos sabemos, naturalmente,
que no Brasil ninguém é branco – exceto quem é” (CastRo, 2019, p. 15). Não é
exagero afirmar que, até a década de 90, a arte indígena esteve relegada ao fol-
clore e ao artefato; já a literatura feita por indígenas era algo praticamente inexis-
tente.2 O que havia era a representação do indígena, tanto na literatura quanto
na arte, mas quase sempre se tratava de uma representação construída pelo ou-
tro, o “branco”, permeada pelo exótico e pelo clichê. É o caso do romance indige-
nista do século XIX, que ajudou a criar uma mitologia identitária excludente para
a jovem nação: “no entanto, esta reinterpretação parcial das imagens do estran-
geiro cedidas pela Europa na transição de colônias para Estados Nacionais não le-
vou a uma ruptura com o passado. Ao contrário, desenvolveram-se formas espe-
cíficas de exclusão, nas quais ‘mesmo dentro do si mesmo, um outro permanecia
excluído’ (…)” (Schulze, 2015, p. 85, tradução nossa).3
Um dos nomes mais importantes do indianismo é José de Alencar, autor de
romances como O Guarani, Iracema e Ubirajara (a chamada trilogia indianista).
Neles, Alencar, de origem portuguesa, constrói um índio idealizado, puro, que
jamais entra em conflito com os “brancos”, nem exige direitos, numa espécie de
Romantismo tropical. É o caso de O Guarani (1857), que narra a história do índio
Peri (uma típica representação do bom selvagem) que se apaixona pela bela, loura
2
Os motivos são muitos, entre eles, o desinteresse do mercado, mas também o fato de que as
culturas indígenas não tinham uma tradição de literatura escrita. Os detalhes serão analisados
mais adiante. Entre as exceções está o livro Antes o mundo não existia: a mitologia dos antigos
Desana-Kêhíripõrã (Kêhíri e Pãrõkumu, 1995), publicado em 1980.
3
Original: Diese partielle Umdeutung der von Europa zugewiesenen Fremdbilder im Übergang
von den Kolonien zu Nationalstaaten führte jedoch nicht zu einem Bruch mit der Vergange-
nheit. Vielmehr entwickelten sich spezifische Formen der Ausgrenzung, bei der »selbst innerhalb
des Eigenen ein Anderes abgespalten« wurde (…) Peter W. Schulze: Strategien kultureller Kan-
nibalisierung. Postkoloniale Repräsentationen vom brasilianischen Modernismo zum Cinema
Novo, pág. 85.

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e branca Cecília, filha de um português. Trata-se de um amor submisso, beirando


a adoração. A estrutura dos personagens é muito clara, quase mítica, e pode ser
bem percebida no trecho a seguir:

No dia seguinte, ao raiar da manhã, Cecília abriu a portinha do jardim e


aproximou-se da cerca.
— Peri! disse ela.
O índio apareceu à entrada da cabana; correu alegre, mas tímido e sub-
misso.
Cecília sentou-se num banco de relva; e a muito custo conseguiu tomar
um arzinho de severidade, que de vez em quando quase traía-se por um
sorriso teimoso que lhe queria fugir dos lábios.
Fitou um momento no índio os seus grandes olhos azuis com uma expres-
são de doce repreensão; depois disse-lhe em um tom mais de queixa do
que de rigor:
— Estou muito zangada com Peri!
O semblante do selvagem anuviou-se.
— Tu, senhora, zangada com Peri! Por quê?
— Porque Peri é mau e ingrato; em vez de ficar perto de sua senhora, vai
caçar em risco de morrer! disse a moça ressentida.
— Ceci desejou ver uma onça viva!
— Então não posso gracejar? Basta que eu deseje uma coisa para que tu
corras atrás dela como um louco? (AlencaR, 1857, p. 35).

Peri é retratado como o índio que não sabe falar bem o português, não sabe usar
os pronomes, e fala de si mesmo em terceira pessoa, uma lógica vista como infantil,
que por muito tempo foi usada na cultura popular para reproduzir a fala indígena.
Ele é ingênuo, mas não só isso, ele não é capaz de compreender a diferença entre
o simbólico e o real, mais uma vez, como uma criança que não consegue reconhe-
cer uma metáfora, uma linguagem simbólica ou irônica. Ele é apresentado como
alguém “alegre, mas tímido e submisso”, e provoca em Cecília (Ceci) uma mistura
de riso e afeto infantil, um afeto que a personagem poderia ter por seu animalzi-
nho de estimação. Mas Peri não é apenas submisso, ele é também valente, capaz
de caçar uma onça para oferecê-la à amada, e de lutar contra tudo e todos para
salvá-la, numa típica reprodução de amor cortês. Assim, na falta de uma Idade Mé-
dia, travestia-se o indígena numa espécie de nobre cavaleiro, no intuito de lançar
aí as bases míticas para uma suposta origem do “povo brasileiro”. Uma origem em
que o indígena, se existira em algum momento, já havia sido assimilado.
Algumas décadas mais tarde, com a chegada do Modernismo, o índio fará uma
nova entrada triunfal. Desta vez trata-se do grupo que gira em torno à Semana
de Arte Moderna de 1922, grupo constituído majoritariamente por integrantes da
elite paulistana com acesso direto aos salões de Paris, e que traz para os trópicos
suas próprias ideias de vanguarda. E se o indigenismo do século XIX dava voz ao
mito do bom selvagem, o índio ingênuo e valoroso, o Modernismo lançará mão do

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mito oposto: o antropófago, o temível canibal. O índio que devora o inimigo he-
roico (jamais o covarde) para adquirir as suas forças e demais qualidades. Surge en-
tão a Antropofagia, tendo como berço o Manifesto Antropófago (1928), de Oswald
de Andrade, cujas primeiras linhas já dão uma clara ideia do que virá: “só a antro-
pofagia nos une. (…) Tupi, or not tupi that is the question. Contra todas as cate-
queses. (…) Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”
(AndRade, 2017, p. 46). Aqui, a frase proferida por Hamlet “To be or not to be” se
transforma em “Tupi or not tupi”, fazendo referência a um dos grandes grupos in-
dígenas que habitavam o território brasileiro antes da colonização, o grupo Tupi-
Guarani. Trata-se da busca de uma identidade cultural para a nova nação que sur-
gia e que até então havia se guiado quase que totalmente pela cultura portuguesa;
na realidade, até meados do século XIX, toda a formação cultural e acadêmica da
elite brasileira era feita em Portugal (a imprensa foi proibida no Brasil até meados
do século XIX e a primeira universidade só passou a existir no início do século
XX). Nesse sentido, a Semana de 22 representa uma ruptura e, ao mesmo tempo,
a busca de uma identidade própria.
O Manifesto Antropófago vem colocar em palavras aquilo que começava a tomar
corpo, que é um outro caminho para a arte e literatura brasileira. A ideia básica é:
se não há como romper totalmente com a cultura europeia porque ela (também) é
o Brasil, façamos com ela o que faziam os índios antropófagos: devorar para adqui-
rir as suas melhores qualidades. Mas não só isso; devoremos, deglutamos e trans-
formemos esse saber em algo outro, algo nosso, um saber que misturaria num
mesmo caldeirão a cultura europeia e a cultura indígena brasileira. Só me interessa
o que não é meu, dizia Oswald de Andrade. É necessário salientar que esse pro-
cesso modernista de construção de uma identidade cultural, apesar de sua impor-
tância para a arte e literatura do país, contribuição que ressoa até os dias de hoje,
deixou de fora a cultura afro-brasileira e, no que diz respeito à cultura indígena,
esteve muito mais ligada a uma imagem “branca” de cultura indígena do que a gru-
pos indígenas reais, que aliás, não formam uma única cultura, ao contrário, se des-
dobram em uma diversidade imensa de idiomas, etnias, religiosidades e culturas.
Seja como for, até a década de 90, o indígena, quando aparece na cultura bra-
sileira, ocupa sempre o lugar do “outro”, um lugar de objeto, seja o índio como o
grande guerreiro, porém morto (do indigenismo) ou o de um ser que fora incorpo-
rado à nação através da mestiçagem ou deglutição cultural (Modernismo), e por-
tanto, morto também. Nos dois casos, trata-se de um sujeito que já não mais existe
na vida “real” do país, tornando-se uma figura do imaginário, seja ele Curupira
(ser do folclore indígena que hoje é representada como um duende branco e de
cabelos vermelhos), seja ele Macunaíma (livro de Mário de Andrade e que faz re-
ferência a Makunaima, demiurgo que aparece em diversas culturas indígenas da
região da atual Roraima).
Mas por que os anos 90? O que acontece nesse momento que faz com que haja
uma mudança na forma como os indígenas são vistos no imaginário brasileiro?

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Os motivos são muitos, entre os principais estão: o surgimento de um movimento


indígena a partir dos anos 80, que incluiu uma articulação entre diversos grupos
e etnias, e que tirou diversos povos de seu isolamento e trouxe a luta indígena
ao fazer político do país. Esse movimento surge de dentro das próprias aldeias
onde muitos curandeiros se voltam contra os padres, mas também a partir do
apoio de figuras importantes como Darcy Ribeiro, que em 1980 fundam a UNI
– União das Nações Indígenas (TuKano, 2019, p. 58). Isso aparece na eleição do
primeiro deputado indígena (1982), Mário Juruna, da etnia xavante, uma liderança
importantíssima, mas que foi ridicularizado pela maior parte da mídia brasileira
até a sua morte em 2002.
Outra voz essencial que emerge nos anos 80 é Ailton Krenak, hoje um dos gran-
des pensadores do país, que se tornou conhecido por causa do seu emblemático
discurso-performance na Assembleia Nacional Constituinte de 1987, discurso este
que influenciou um capítulo de direitos indígenas na nova Constituição. No im-
pactante vídeo desse discurso, vemos um jovem Ailton Krenak de terno branco
impecável, falando para a assembleia enquanto pinta o rosto de tinta negra (feita
de jenipapo), símbolo de luto da etnia Krenak. Com olhos marejados, diz: “Os se-
nhores não poderão ficar omissos, os senhores não terão como ficar alheios a mais
esta agressão, movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do
que significa ser um povo indígena (…)”(KRenaK, 2017a).
A partir desse momento, e com mais força, a partir dos anos 2000, a luta dos in-
dígenas se infiltra em vária áreas da sociedade das quais até então eles haviam sido
excluídos: a política, as universidades e também o mercado de arte e literatura. É
quando os indígenas passam a fazer parte (mesmo que pouco ainda) da vida pú-
blica do país. Surge então uma espécie de desconhecido, um ser que se imaginava
extinto. E é contra esse desconhecimento, essa morte, essa extinção que se baseia
a arte e a literatura indígena no Brasil de hoje.
Um dos aspectos mais importantes dessa luta por visibilidade é também a luta
por diversidade, por existir em diversidade, em oposição ao adjetivo “índio”, que
coloca todos numa mesma classificação, sem considerar as necessidades de cada
etnia. Em “Ideias para adiar o fim do mundo” Ailton Krenak nos lembra: “a gente
resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que somos
todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferen-
tes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos” (KRenaK,
2019a, p. 31). Krenak nos chama a atenção para o fato de que o rótulo “indígena”
inclui uma série de culturas diferentes, com idiomas diferentes.
Fora isso, há outra questão essencial, que são os diferentes níveis de contato com
a cultura hegemônica. Há no Brasil desde grupos indígenas que vivem isolados na
Amazônia e se recusam a qualquer tipo de contato, a grupos como os Yanomamis,
que mantém suas tradições às vezes dentro de territórios muito próximos de estra-
das federais, a grupos guarani urbanos, como o da Terra Indígena Jaraguá, dentro
do Estado de SP, e ainda indígenas aculturados que foram expulsos para as perife-

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rias dos grandes centros. São formas muito diferentes de relacionar-se com o outro
e consigo mesmo. Assim, trata-se aqui não só do “redescobrimento” desse ser que
se imaginava extinto, mas a percepção de que “ele” são muitos e vários. Não mais
o “índio”, mas sim uma série de etnias, idiomas, dialetos, culturas, níveis de con-
tato com os outros, enfim, todo um país que havia sido relegado ao subterrâneo.

Arte e literatura indígena


A arte indígena, é claro, sempre existiu. A grande transformação das últimas
décadas é que, a partir de uma ampla organização da luta indígena, somada a uma
série de mudanças nas regras sociais e políticas do país (redemocratização, sistema
de cotas nas universidades, projetos de apoio à cultura indígena), alguns indígenas
passam a ter acesso aos meios de criação usados pelos “brancos”: o cinema, o vídeo,
a literatura, as artes visuais. Assim, eles não se apropriam apenas desses meios,
mas se reapropriam da sua própria narrativa, de sua própria história, que até então
ficara confinada ao olhar do outro, nas artes e no pequeno círculo da antropologia.
A arte que surge é um claro movimento de resistência cultural, de recuperação
e preservação da memória, um dar-se a conhecer ao outro para poder continuar
existindo. De forma mais abrangente, trata-se de uma aposta no diálogo com o
outro não apenas pela própria existência, mas pela existência de todos, do planeta,
da floresta, dos animais. Podemos dizer que a arte e literatura indígena têm um
caráter utilitário no sentido de que têm objetivos muito claros: elas servem como
instrumento de luta, de resistência.4
É possível falar numa função interna e numa função externa. A função interna,
destinada ao próprio grupo, tem como objetivo preservar a cultura, idioma, costu-
mes, religiosidade, saber ancestral, e assim preservar a própria identidade. Muitas
vezes não se trata nem mesmo de um processo de preservar, mas de reconstruir,
recuperar um saber quase perdido, como é o caso de grupos indígenas que sofre-
ram intensos processos de desterritorialização e aculturação. Nas palavras de Eli-
ane Potiguara: “(…) o que sobra pra mim? (…) sou uma mulher, sou uma indígena,
não sou aldeada, moro em contexto urbano. Até porque seria uma hipocrisia mo-
rar numa comunidade agora. (…) Então, o que sobra para Eliane Potiguara? Sobra
a literatura” (PotiguaRa, 2019, p. 142). Já a função externa, voltada ao outro, ou
seja, aos “brancos” moradores das cidades, políticos, donos do poder, mas também
a sociedade como um todo, tem como objetivo principal o diálogo, lembrando as-
sim a todo instante não só que os grupos indígenas existem e resistem, mas que
têm outras percepções de mundo a oferecer, percepções de mundo cada vez mais
necessárias num planeta em colapso.
Outro aspecto importante ao se falar de arte e literatura indígena é a neces-
sidade de repensar e expandir os conceitos hegemônicos. Entre eles: a noção de
4
Isso se dá principalmente pelo fato dos diversos grupos indígenas, independentemente do tipo
de relação que possam ter com a cultura hegemônica, vivem sob constante ameaça de extinção
física e cultural.

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autoria e a ideia de arte enquanto produto. Dois aspectos que, aliás, estão forte-
mente interligados. Comecemos pela ideia de autoria. Na tradição ocidental, es-
pecialmente a partir do Renascimento, e junto ao estabelecimento da burguesia,
surge a ideia de autor como a conhecemos hoje, associada à ideia de sujeito, de
individualidade, em detrimento do coletivo. Dessa forma, se a autoria era até en-
tão a voz dos deuses, sendo o autor apenas o instrumento, com o tempo, o autor
enquanto detentor de um saber individual, enquanto dono de uma obra que pode-
ria ser comercializada, foi se tornando cada vez mais presente no mundo ociden-
tal. O autor passa a ser um sujeito, que por talento inato (o gênio) e trabalho pró-
prio, constrói uma obra que lhe pertence, assim como lhe pertence um carro ou
uma casa, ele passa a ter “uma assinatura” e essa assinatura tem um valor de mer-
cado. Para boa parte das culturas indígenas, essa lógica não faz sentido, os moti-
vos são muitos, mas um dos principais é o conceito de indivíduo. Como a identi-
dade é construída a partir do grupo, da comunidade, e não do indivíduo, a ideia
de autor, talento pessoal, genialidade, perde o seu sentido.
Assim, em muitos casos, os ganhos de trabalhos vendidos não vão para um
único artista, mas para todo o grupo, pois a produção artística, seja de que indi-
víduo for, não é vista como um produto individual, fruto do talento, mas como o
resultado dos saberes do grupo e seus ancestrais. E há casos de criações em cole-
tivos, que recusam sistematicamente o peso da autoria. Uma delas é o MAHKU –
Movimento dos Artistas Huni Kuin. Trata-se de um coletivo de artistas huni kuin
que pesquisam, traduzem e recriam, através de obras visuais, os huni meka, can-
tos visionários de nixi pae (ayahuasca), entoados durante as cerimônias em que
se consome ayahuasca. O idealizador do projeto é Ibã Huni Kuin, indígena, pes-
quisador, acadêmico, artista, tradutor, um sujeito que transita entre vários mun-
dos e linguagens, ao mesmo tempo em que desaparece sob o trabalho do grupo.
Outro exemplo de trabalho coletivo é o projeto “Vídeo nas Aldeias”, criado pelo
antropólogo Vincent Carelli, em 1986, tem como objetivo possibilitar que os gru-
pos indígenas façam a sua própria produção audiovisual, o que significa não só
acesso a equipamentos, mas também uma formação para isso, o que inclui cursos
e workshops dentro das aldeias (ARaÚjo, CaRvalho e CaRelli, 2011). Os filmes
daí resultantes são, em geral, considerados filmes do coletivo, não só daqueles que
efetivamente participaram do processo, mas de todo o grupo.
É importante salientar, porém, que esta não é a única forma de autoria, pois são
muitas as culturas e formas de interação com a lógica “branca”, havendo também
muitos artistas indígenas que detém assinatura própria. Essa relação outra com a
autoria cria diferenças também na relação com o mercado, ou seja, a ideia de arte
enquanto produto. Nas palavras de Ailton Krenak:

Eu não tenho muito engajamento com o mercado da produção cultural,


eu não percebo esse lugar como mercado. Eu vejo esse espaço como um
lugar que é desafiante para aquelas pessoas que, em diferentes lugares da
cultura, da identidade e das lutas pela vida aqui na terra precisam estar

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despertas e capazes de afetar uns aos outros no sentido de nos proteger


da vida, dentro dessa cápsula de vida. Não como um lugar de consumir,
mas como uma possibilidade da gente criar mundos, inventar mundos
para nós existirmos (KRenaK, 2017b).

Ailton Krenak coloca diretamente a questão, pois sua fala é o posicionamento


de grande parte das culturas indígenas no Brasil.5 Arte e literatura da perspectiva
indígena é muito mais um instrumento de criação de mundos, de resistência, do
que de mercado. Na base disso está, entre outras coisas, uma não separação entre
vida e obra, e também uma lógica do belo que permeia todos os âmbitos da exis-
tência, do corpo e da espiritualidade, sem diferenciação entre arte e artefato, arte
e artesanato, enfeite e obra. E dá o mesmo valor à pintura corporal, que é simul-
taneamente obra visual e literatura, assim como a uma cuia, um cocar. Nada es-
capa ao âmbito da beleza. Em outras palavras, se a estética é algo fluido, que tran-
sita entre as diversas esferas, ela não pode ser aprisionada num único ato ou ob-
jeto. Por isso, a arte, a literatura, elas não existem como uma conjunção de forças
estéticas que afluiriam para um único ponto, a obra de arte, mas como uma cons-
tante construção de mundos. Sendo assim, se não há produto, perde-se o sentido
mercadológico num sentido tradicional do termo. Pois não se trata de abrir mão
do valor que a obra de arte pode angariar, mas da concentração de valor exclusi-
vamente no objeto, sua aura de objeto único e irreproduzível.
Tício Escobar, um dos principais curadores e estudiosos de arte indígena na
América Latina, resume a questão da seguinte forma:

As expressões da arte indígena, como quase todos os tipos de arte não


moderna, não preenchem esses requisitos: não são produto de uma cri-
ação individual (apesar de cada artista reformular os padrões coletivos),
não geram rupturas transgressoras (ainda que suponham uma constante
renovação do sentido social), nem se manifestam em peças únicas (ainda
quando a obra produzida em série reitere com força as verdades repeti-
das sobre a própria história) (EscobaR, 2013, p.5).6

Escobar aborda neste trecho outro aspecto importante da arte indígena, o tempo
linear. Trata-se de culturas com uma outra noção de tempo, muito diferente do
tempo ocidental, que olha para frente em direção a um futuro, um progresso in-
cessante, que é a própria ideia de civilização. Para as culturas ameríndias, o tempo
5
É necessário ter cuidado com a generalização do que chamamos indígena. Como dito anterior-
mente, são diversos grupos e culturas e também diversos artistas, mas é possível falar em ten-
dências ao pensar as semelhanças entre as diversas culturas autóctones.
6
Tradução: Las expresiones del arte indígena, como casi todo tipo de arte no moderno, no llenan
esos requisitos: no son producto de una creación individual (a pesar de que cada artista reformule
los patrones colectivos), ni generan rupturas transgresoras (aunque supongan una constante
renovación del sentido social), ni se manifestan en piezas únicas (aun cuando la obra producida
serialmente reitere con fuerza las verdades repetidas de su propria historia) (EscobaR, 2013, p.5).

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é circular, nele passado e futuro se permeiam. Logo, muitos conceitos comuns na


arte e literatura ocidental deixam de fazer sentido, é o caso da ideia do novo, que
tanto caracterizou as vanguardas, a busca do que nunca foi feito, a constante rup-
tura com o passado, como se fosse possível caminhar em direção a um futuro me-
lhor e com mais brilho.
Em resumo, pode-se afirmar que a arte e a literatura indígena seguem as seguin-
tes tendências: 1) em geral, não se vinculam a um único autor; 2) ultrapassam as
fronteiras de gêneros e meios; 3) não são um produto apenas para o mercado; 4)
funcionam como uma ferramenta de resistência; 5) não buscam o futuro (a inova-
ção, o novo); 6) não se restringem a determinados objetos, mas se estendem a tudo
o que permeia a vida cotidiana. Trata-se de uma arte muito conectada com a vida,
com o corpo, com a natureza, com o saber mítico, com a comunidade.
Porém, apesar de tudo o que a cosmovisão indígena tem para ensinar ao sta-
tus quo, e do aumento de visibilidade e produção nos últimos anos, o fato é que,
com algumas exceções, tanto o mercado de arte quanto o literário continuam
mantendo os artistas indígenas como um grupo à parte, que faria um trabalho
de interesse etnográfico e não realmente artístico. Isso pode ser visto na falta de
uma ressonância crítica nos grandes jornais, na crítica em geral, assim como a
não inclusão de escritores indígenas em antologias de autores contemporâneos e
escasso acesso às grandes editoras. Na literatura, aliás, há o fenômeno da “escrita
para crianças”, ou seja, a prosa escrita por indígenas é quase sempre classificada
como infanto-juvenil e com funções pedagógicas, raramente com qualidade esté-
tica ou literária reconhecida. Essa classificação é um desdobramento cômodo que
o mercado dá ao posicionamento dos escritores indígenas, que veem na literatura
(assim como na arte) uma forma de intervenção na sociedade, nas palavras de
Daniel Munduruku: “Se desejarmos que se mude algo, temos que pensar nas cri-
anças e nos jovens. Escrever para crianças é uma estratégia de atingir a mente em
formação dessas pessoas que não fazem acepção de pessoas ou ideias. Este é o mo-
tivo básico que nos impulsiona a direcionar para as crianças e os jovens nossa pro-
dução literária” (MunduRuKu, 2019). Porém, seria importante questionar até que
ponto a publicação da literatura indígena sob o rótulo infanto-juvenil é realmente
uma literatura destinada especificamente a esse público ou se não se trata de mais
uma forma de “infantilizar” o pensamento indígena sob a ideia de uma “intenção
pedagógica”, informativa, porém jamais estética. Um segundo questionamento
importante a ser feito é quanto a inexistência de uma literatura indígena que es-
cape à questão dos mitos: isso se deve a um desinteresse dos próprios autores ou
ao fato de não haver espaço nem interesse numa literatura que fuja desse lugar?
Ailton Krenak, em um depoimento ao programa “Culturas indígenas” do Itaú
Cultural nos dá algumas pistas:

É bacana a gente contar histórias dos nossos antepassados, é como-


vente ouvir uma história bonita, todo mundo quer escutar uma história

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bonita, mas quem quer escutar uma história dura, real, do que nós esta-
mos vivendo hoje? Como é que a gente vai emoldurar essa história (…)
como é que a gente vai puxar o interesse de alguém por essa literatura?
(KRenaK, 2017b).

Outro aspecto importante a ser considerado é o fato de que, muitas vezes o


português não é a língua materna dos escritores indígenas, ou seja, ao escrever
em português, eles escrevem numa língua estrangeira; e mesmo quando o portu-
guês é a língua materna, trata-se sempre da fala do “outro”, como afirma Daniel
Munduruku:

Eu escrevo com as letras do conquistador, com as palavras do colonizador.


Sou, portanto, um indígena-escritor e o que escrevo traz a marca deste
lugar de onde venho. Para mim está claro que haverá um outro passo a
ser dado, que é escrever na própria língua e com parâmetros intelectuais
desenvolvidos por pensadores indígenas. Nesse momento, diria, teremos
uma literatura indígena. Genuinamente indígena (MunduRuKu, 2019).

E, por último, é necessário ressaltar que os povos indígenas no Brasil não têm
uma tradição de escrita. Sobre essa passagem de culturas ágrafas para letradas,
Ailton Krenak lança o seguinte questionamento, que mais uma vez nos obriga a
repensar nossos conceitos:

Para povos que são de origem, sem escrita, de tradição oral, fazer uma
travessia para esse mundo da escrita, só isso, já é um épico. E ele deve
ocultar trilhas insondáveis de alienação dessas identidades até chegar
nesse patamar da escrita, e lidar com esse recurso da escrita com fa-
miliaridade. (…) É bom não esquecer que os jesuítas vieram pra cá pra
botar escolas e catequizar os índios e ensinar eles a ler e a escrever, en-
quanto os índios puderam resistir eles não aprenderam nem a ler nem a
escrever. Então seria interessante a gente investigar se, quando os índios
estão lendo e escrevendo, se eles já se renderam ou se eles ainda estão
resistindo (KRenaK, 2017b).

ReAntropofagia
Nos últimos anos, surgiram exposições que marcaram a recepção da arte indí-
gena no Brasil. É o caso de TransMakunaima (2018), com curadoria de Jaider Es-
bell, e ReAntropofagia (2019), que teve como curadores Denilson Baniwa e Pedro
Gradella. Foram exposições que não só apresentaram a um público mais amplo
uma série de artistas indígenas contemporâneos, mas também estabeleceram as
bases teóricas de um movimento que tem se tornado muito forte na trajetória de
alguns artistas. Trata-se da ReAntropofagia. A ideia surge no ensaio de Jaider Es-
bell: “Makunaima, o meu avô em mim!” (Esbell, 2018). O ensaio de Esbell adota
uma linguagem incomum, que foge da lógica vigente, mais próxima da literatura

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do que do ensaio propriamente dito. Além disso, inclui imagens das telas pinta-
das pelo artista numa espécie de continuum texto-imagem (FiguRa 2). Trata-se
de Makunaima, entidade mítica que é, ao mesmo tempo, o avô de Esbell e a enti-
dade que o texto reivindica para si (para os seus):

Então Makunaima me aparece primeiro colonizado? Eu nem bem apresen-


tei o meu avô e já lhe convido a ir além do gênero, além do tempo. É que
vamos ter que visitar um outro mundo. Isso eu também devo lhe avisar.
Devo lhe avisar que estas estórias são parte da minha vida e que realmente
Makunaima é meu avô; isso é um fato. Makunaima e muitos outros vovôs
são daqui do extremo norte da Amazônia. Nós temos uma história e uma
geografia. Somos parentes diretos. É uma relação biológica, genética, ma-
terial e uma parte substancial em espírito, ou energia (Esbell, 2018, p. 12).

FiguRa 1 – Makunaima (Esbell, 2017, p. 20).

Makunaima é o demiurgo, ser sagrado, nas culturas indígenas da região de


Roraima. Sua trajetória até a literatura brasileira passa por caminhos incomuns.
Quem primeiro se interessa por essa mitologia é o etnólogo alemão Theodor Koch-
Grünberg, que coletou as narrativas dos povos taulipang e arekuná, o que resul-
tou num livro Vom Roraima zum Orinoco (1917). Quem teve acesso a esse livro foi
o escritor Mário de Andrade, que já vinha estudando o “folclore” indígena brasi-
leiro. Com base nessas informações, ele escreve o romance Macunaíma – o herói
sem nenhum caráter (1928), que é a forma como essa mitologia chega até nós. Ma-
cunaíma, de Mário de Andrade, faz um apanhado de várias mitologias de diver-
sos grupos indígenas no Brasil e narra a história, que se mostra uma reflexão pro-
funda sobre a identidade brasileira, de um ser híbrido, uma espécie de anti-herói:

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CaRola SaavedRa

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era


preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o
silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a ín-
dia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de
Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis
anos não falando. Si o incitavam a falar exclamava:
– Ai! que preguiça! (AndRade, 2013, p. 21).

Setenta anos mais tarde, porém, os próprios indígenas vão reivindicar Maku-
naima (escrito com K em diferenciação ao romance de Mário de Andrade). É o
caso do texto de Esbell, que nos lembra que se trata de seu avô (ou seja de uma re-
lação ancestral), e se aprofunda em desvencilhar a divindade Makunaima da per-
sonagem criada por Mário de Andrade e depois das ideias que acabaram fincadas
na cultura brasileira, a do anti-herói, o herói sem caráter no sentido de um herói
de características fluidas. Outro movimento nesse sentido é o livro “Makunaimã:
o mito através do tempo” (2019), de gênero indefinido, um livro-peça de teatro,
de autoria coletiva. Na obra ficcional, representantes indígenas discutem sobre
“Macunaima” durante um evento em homenagem ao autor na Casa Mário de An-
drade, hoje um museu. O tema da discussão é a apropriação cultural. É quando o
próprio Mário de Andrade acorda do seu sono de morte e chega para conversar
com eles. O livro traz à tona as vozes indígenas que até então haviam sido silen-
ciadas. As ilustrações são de Jaider Esbell.

Curadora
Sempre me questiono o quanto Koch-Grünberg aparou as narrativas de
Akuli. Certamente era muito fidedigno, como se vê nas minuciosas no-
tas de rodapé que deixou, mas penso que a narrativa deveria ser mais dis-
persa e menos conclusiva. Não o vejo encenando essa história toda de
uma vez. Pararia. Continuaria depois…
Akuli-pa
Verdade isso. Pararia para acender o fumo. Para acender a fogueira. Uma
criança se machucaria. É esse o tempo da aldeia.
Ariel
O pensamento indígena nos ajuda a transcender as falsas dicotomias da
civilização ocidental.
Mario
É possível. É de uma potência criativa inimaginável.
Ariel
Há religiões orientais que dizem que não há arte desde que o ser humano
mergulhou no abismo civilizacional. Que a verdadeira arte move monta-
nhas, literalmente. O resto são esboços.
Mario
Eu sinto exatamente isso quando leio Akuli (RennÓ et al., 2019, p. 80-81).

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O interessante é que não se trata de um debate no sentido de uma disputa de


sentido ou sobre a quem pertence o mito, mas de um diálogo real, um pensar junto,
a partir do outro. E Mário de Andrade aparece como alguém que vai ao encontro
desse outro, não como um inimigo.
Nesse mesmo movimento, temos o artista Denilson Baniwa, que também tra-
balha com o tema da ReAntropofagia, como é o caso de sua tela ReAntropofagia
(FiguRa 2).

FiguRa 2 – – Reantropofagia de Denilson Baniwa, 2017 (AssumpÇÃo, 2019).

Sobre o quadro, diz o próprio artista na abertura da exposição TransMakunaima:


“Aqui jaz o simulacro Macunaíma, jazem juntos a ideia de povo brasileiro e a antro-

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pofagia temperada com bordeaux e pax mongolica” (AssumpÇÃo, 2019). Ali vemos
a cabeça de Mário de Andrade sendo servida numa cesta-bandeja, um Mário de
Andrade de pele escura, junto a ela, um exemplar de Macunaíma. Curiosamente o
que é servido aqui é a cabeça e não o resto do corpo, uma cabeça com óculos, numa
clara referência à reapropriação intelectual, e não apenas de qualidades típicas dos
relatos de canibalismo como força, valentia etc., mais relacionadas ao corpo.
Outro momento “reantropofágico” de Denilson Baniwa foi a sua performance-
intervenção na Bienal de São Paulo 2018: “Performance Pajé-Onça Hackeando a
33ª Bienal de Artes de São Paulo” (Baniwa, 2019). Incorporando o personagem do
pajé-onça, Denilson se posiciona diante da fotografia do povo Sek’nam, etnia ex-
tinta que habitava a Terra do Fogo, e que abre a exposição de curadoria de Sofia
Borges; ali, descalço, usando uma máscara de onça e uma capa, o artista. O pajé-
onça caminha pela exposição que apresenta as fotos dos Sek’nam, apontando para
o fato de não haver nenhuma identificação de que etnia era aquela, e sem menci-
onar que se trata de um povo extinto. Um apagamento dentro do próprio apaga-
mento. O Pajé-onça passa diante de cada uma das fotografias e, numa atitude de
reverência e luto, põe flores diante de cada uma. Depois de andar pelo resto da
exposição, vai até a livraria dentro da própria Bienal, compra o livro Breve histó-
ria da arte, depois coloca-se novamente diante do imenso painel com a fotografia
dos Sek’nam e anuncia, enquanto rasga o livro: “uma história da arte tão breve
que não comporta os povos indígenas (…) mas eu vejo índios nas referências, eu
vejo índios e suas culturas roubadas” e, enquanto aponta para as fotos, “Ísso é o
índio? (…) É assim que querem o índio, preso no passado? Sem direito a futuro?
Lhes roubam a imagem, lhes roubam o tempo, lhes roubam a arte (…). Estamos vi-
vos, apesar do roubo, da violência, e da história da arte” (Baniwa, 2019).
A ReAntropofagia pode ser considerado um movimento que influencia e dá
voz a muitos artistas indígenas contemporâneos e consiste em se tomar de volta
a própria cultura, não num sentido de recuperar algo perdido, mas de, através de
uma antropofagia (como nos sugeriam Oswald de Andrade e o próprio Mário de
Andrade), deglutir, digerir a cultura do outro, criando a partir daí algo novo, algo
próprio. Sendo assim, a ReAntropofagia surge como um diálogo. Um diálogo ver-
dadeiro, em que o outro, ele também, se aproxime, sem armas, com ética, com arte.

Conclusão
Pensar a arte e a literatura indígena é também pensar o lugar do outro, seja
o outro aquele que fala, seja o outro aquele que está em silêncio; é pensar essas
forças discursivas, esse poder, sempre em desequilíbrio, mas não por isso sem
resistência.
O pensamento indígena “surge” agora não apenas como um novo discurso que
sempre esteve ali, mas como uma possibilidade de mundo, de um mundo por vir.
Assim, trata-se de tirar os povos indígenas do passado e trazê-los para o presente,

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FiguRa 3 – Perfomance Pajé-Onça Hackeando a 33ª Bienal de Artes de São Paulo (Baniwa, 2019a).

e assim, para um futuro possível. Não apenas como a obrigação óbvia de restituir
aos povos autóctones do continente o lugar que lhes é de direito, mas também a
chance única de aprender com o que eles têm a dizer, dialogar com eles, pensar
uma sociedade mais justa. E nesse pensar outros mundos, é urgente pensar tam-
bém o próprio conceito de arte e de literatura, não mais um conceito canônico, es-
sencialista, ligado a poucos gênios individuais, mas uma visão fluida, comunitária,
que deixe de lado a separação arte e vida, corpo e espírito, ser humano e natureza.
E nesse movimento é essencial desconstruir a ideia de “grande arte” e também a
de “índios que pintam ou escrevem”; a arte desdobra-se em muitas, e os indígenas
ocupam, assim como qualquer outro povo, o lugar do escritor, do artista.

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conversas com pensadores indígenas. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2019. p.
52-79.

Recebido em 14 de junho de 2020.


Aprovado em 17 de junho de 2020.

Resumo/Abstract/Resumen
Literatura e arte indígena no Brasil
Carola Saavedra
O texto apresenta um breve panorama da arte e literatura indígena no Brasil, desde
a chegada de Cabral até os dias atuais. Considerando que, por muitos séculos, os
povos indígenas foram invisibilizados das mais diversas formas, inclusive pela cul-
tura hegemônica “branca”, que sempre ditou o cânone no Brasil, o artigo aborda a
construção do “índio” na cultura brasileira, passando pelo Indigenismo e pelo Mo-
dernismo, e se concentra nas vozes indígenas que começam a (in)surgir com mais
força a partir dos anos 2000: Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara,
Denilson Baniwa, Jaider Esbell, entre outros. Vozes que reivindicam o lugar que
lhes foi negado na sociedade brasileira, um lugar de direito à vida, à arte e à cida-
dania, um lugar que aponta para novas narrativas, cada vez mais necessárias.
Palavras-chave: literatura indígena, arte indígena, cânone, reantropofagia.

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CaRola SaavedRa

Indigenous art and literature in Brazil


Carola Saavedra
The text presents a brief overview of indigenous art and literature in Brazil, from
the arrival of Cabral to the present. Given that for many centuries indigenous pe-
oples were invisibilised in the most diverse of ways, even by the “white” hegemo-
nic culture, which has always dictated the Brazilian canon, the article deals with
the construction of the “indio” in Brazilian culture, examining indigenism and mo-
dernism, and it focuses on indigenous voices that started to be heard more stron-
gly from the early part of the 21st century: Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Eli-
ane Potiguara, Denilson Baniwa, Jaider Esbell, among others. Voices that claim
the place they had been denied in Brazilian society, a place with a right to life, art
and citizenship, a place that points to new, ever-more necessary narratives.
Keywords: Indigenous literature, indigenous art, canon, reanthropophagia.

Arte y literatura indígenas en Brasil


Carola Saavedra
El texto presenta un breve panorama del arte y la literatura indígenas en el Brasil,
desde la llegada de Cabral hasta la actualidad. Teniendo en cuenta que, durante
muchos siglos, los pueblos indígenas fueron invisibilizados de las más diversas
formas, incluso por la cultura hegemónica “blanca”, que siempre ha dictado el
canon en el Brasil, el artículo aborda la construcción del “indio” en la cultura
brasileña, pasando por el Indigenismo y el Modernismo, y se centra en las voces
indígenas que empiezan a oírse con más fuerza a partir de los primeros años del
siglo XXI: Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Eliane Potiguara, Denilson Baniwa
y Jaider Esbell, entre otros. Sus voces reivindican el lugar que se les ha negado en
la sociedad brasileña: un lugar de derecho a la vida, al arte y a la ciudadanía; un
lugar que apunta a nuevas narrativas, cada vez más necesarias.
Palabras clave: literatura indígena, arte indígena, canon, reantropofagia.

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