Estruturas Logicas-Lourival-Capitulo Xiv bVa6jZOtDa

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Capítulo XIV

SUMÁRIO: 1. Formalização do sistema – 2. Sis-


tema simples e sistema composto – 3. Critério de
pertinência – 4. Diferença sintática dos dois cri-
térios – 5. Impossibilidade do sistema normativo
simples – 6. Consistência no interior do sistema
– 7. Formalização da consistência – 8. Ângulo
sintático da consistência – 9. Postulado de unida-
de e consistência no direito, na ciência-do-direi-
to e na lógica – 10. Sistema de proposições nor-
mativas e sistema social – 11. Lógica e sistema
empírico.

1. FORMALIZAÇÃO DO SISTEMA

O que ficou estabelecido de uma maneira intuitiva, pode


ser dito em grau mais abstrato, com alguns aditamentos. Assim,
temos por verdade que o ordenamento jurídico positivo, como
linguagem, é um sistema de símbolos do discurso comum e
técnico (linguagem-de-objetos). Se de fato não alcança a forma-
-limite de sistema, o ordenamento é, tendencialmente, quanto
maior for o quantum de racionalização, sistema. Sendo sistema,
é conjunto de entidades. As entidades constituintes do conjun-
to são proposições. Não fatos ou condutas, que estão em outro
conjunto, entitativamente diverso: os fatos ou condutas não
são linguagem, isto é, símbolos gráficos que se estruturam

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LOURIVAL VILANOVA

segundo leis sintáticas. Os fatos e as condutas não se articulam


com partículas, umas em função de constantes, outras em
função de variáveis, nem se transformam consoante leis com-
binatórias formais. Nem mantêm a relação semântica de sig-
nificado com algum universo. Os fatos, selecionados do mundo
pelas hipóteses das normas, e as condutas, ora no tópico de
hipóteses, ora no lugar de teses ou consequências, são objetos
de referência deôntica, que é tipo de referência (estruturas
objetivantes, com seus suportes: os atos objetivantes, em sen-
tido husserliano) irredutível ao tipo descritivo e só pertinente
a uma linguagem.
Como sistema de símbolos, o Direito positivo é conjunto,
cujos elementos são do domínio da linguagem. Conjunto que
tem sua contraparte lá onde estão os fatos e as condutas, diga-
mos, o que representa o contradomínio desse sistema. É pos-
sível, bem sabemos, converter esse sistema referencial deôn-
tico do Direito em sistema-objeto de outro sistema de lingua-
gem, até terminar numa linguagem formal insuscetível de se
tornar linguagem-objeto de outra linguagem de ordem mais
elevada (podemos convencionar terminologicamente e deno-
minar sistema ao conjunto composto de enunciados descritivos;
ordenamento, ao conjunto composto de normas. Assim o faz
Nicolò Amato, Logica Simbolica e Diritto, pág. 406). Todavia,
sistema é também o de normas de Direito positivo, como pro-
posições inter-relacionadas e com um ponto final de referência
– o fundamento de validade.

2. SISTEMA SIMPLES E SISTEMA COMPOSTO

Sem desconhecer que sistema requer elementos e relações


constituintes de sua estrutura, pensemos num sistema de Di-
reito positivo reduzido a uma só proposição normativa. Seria
sistema unitário, quer dizer, de um único elemento. Mas, ainda
reduzido hipoteticamente a um e somente um elemento, terí-
amos, formalmente, sistema. Estamos sempre inclinados a
pensar o sistema de tipo multielemental, isto é, o sistema como
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AS ESTRUTURAS LÓGICAS E O SISTEMA DO DIREITO POSITIVO

coleção, reunião de partes, agregado de membros. A ideia


usual de sistema ou conjunto repele essa composição de um
só indivíduo ou objeto. Se o objeto é único, parece descabi-
mento dizer-se dele que basta para perfazer um conjunto.
Todavia, conjunto pode ser unimembre ou multimembre. Com
um único elemento, uma relação R de igualdade daria estru-
tura – todo elemento é igual a si mesmo: assim “a R a”, ou “a”
é igual a “a”.
Também a ideia usual e intuitiva repele mais energica-
mente a concepção de conjunto sem elementos. Todavia, há.
Se carece de extensão (de membros ou elementos), forma-se
tal conjunto por conotação. Assim, o conjunto dos números
pares não divisíveis por dois, o conjunto das ações que são si-
multaneamente proibidas e não-proibidas. Generalizando: o
conjunto dos x tais que são P e não-são P. Num caso, é sufi-
ciente predicar uma contradição analítica; noutro, impossibi-
lidade factual de se comprovar o enunciado sobre o membro
único do conjunto (sobre o conceito de sistema, v. L. S. Stebbing,
A Modern Introduction to Logic, págs. 196-201; S. K. Langer, An
Introduction to Symbolic Logic, págs. 74-80; Leônidas Hegen-
berg, Lógica Simbólica, págs. 281-336; especialmente Bobbio,
Teoria dell’Ordinamento Giuridico, págs. 18-22).

3. CRITÉRIO DE PERTINÊNCIA

De um só membro ou elemento, ou de vários membros ou


elementos, um conjunto não se constitui sem critério-de-per-
tinência. O membro ou os membros têm de satisfazer esse
critério, explícito ou implícito. Quando enumerativamente se
faz conjunto, recolhendo a esmo objetos (o conjunto dos astros
e dos homens e dos negócios jurídicos e dos números elevados
à potência n); implicitamente está o critério-de-pertinenciali-
dade mínimo (pertinencialidade ou pertencialidade): os x tais
que são algo. Em termos fenomenológicos: o conceito de ob-
jeto-em-geral, pouco importando o tipo ou região a que per-
tença o objeto. Conotativamente, o critério é dado por um

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predicado P: os x tais que têm a propriedade indicada no pre-


dicado P (convencionando, os objetos têm propriedades que,
em nível sintático, são representadas pelos predicados).
Sendo o Direito positivo conjunto de normas cujas expres-
sões simbólicas e formalizadas são proposições, há critério que
autorize a incluir tal ou qual proposição como elemento do
conjunto. Pelo conteúdo de tais normas, é impossível factual-
mente. Factualmente possível é uma listagem enumerativa de
todas as proposições pertencentes a um determinado sistema
de Direito positivo. Certo que o cômputo eletrônico reduz ou
elimina a factual dificuldade (Igor Tenório, Law and Cyberne-
tics, ed. brasileira, Direito e Cibernética, págs. 105 e segs.). O
conjunto Direito positivo é conjunto com elementos em núme-
ro finito, mas a dificuldade na enumeração exaustiva desses
elementos nos inclina para a definição do conjunto em termos
conotativos, apontando o critério segundo o qual uma propo-
sição jurídica pertence ou não pertence ao sistema.
Se dissermos que pertencem ao conjunto as proposições
provindas do Estado (através de órgãos seus) estaremos encer-
rados num círculo vicioso: o Estado não é puro fato, o fato-
-origem que serve de ponto de origem normativa. Ele mesmo
pressupõe normas, proposições normativas que delimitem os
feixes de competência dos órgãos que o integram (cada órgão
é “un fascio di competenza”, que tem por “pressupposto assolu-
to” o ordenamento jurídico do Estado, segundo Emilio Crosa,
Corso di Diritto Costituzionale, vol. 1, pág. 159); há, necessaria-
mente, pelo menos um órgão e pelo menos uma norma de or-
ganização para uma organização política ser Estado.
Nem critério sacado do mundo factual sociológico, nem
fundado em um universo de valores, nem no conteúdo norma-
tivo, que é copiosamente diversificado, servem para critério-
-de-pertinência de uma norma a um conjunto. Cada sistema
de Direito positivo é um conjunto S, cujos elementos são propo-
sições p’, p”, p’’’, ... pn.
Possível é tomar dois pontos de vista: um, tendo a Cons-
tituição positiva por ponto de referência; outro, é regredir à
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AS ESTRUTURAS LÓGICAS E O SISTEMA DO DIREITO POSITIVO

norma fundamental do sistema. Nem tudo o que está dentro


da Constituição positiva (restringindo à denominada Consti-
tuição formal) serve de critério-de-pertinência das proposições
jurídicas de um dado sistema. Sim as proposições que estatuem
sobre a forma e o conteúdo que as proposições normativas
devem apresentar, e indicam que órgão está habilitado com-
petencialmente para criar normas (incluir as proposições
constitucionais de revisão ou reforma constitucional). São
proposições normativas sobre proposições normativas, propo-
sições deonticamente qualificadas sobre outras proposições
normativas. Grande parte do sobredireito. As normas que, por
implicação, derivam de outras normas, que por inferência
derivam de outras, implicitamente estão abrangidas no que
afirmamos.

4. DIFERENÇA SINTÁTICA DOS DOIS CRITÉRIOS

Se tomarmos as proposições normativas de ordem cons-


titucional, que determinam o modo de construção de outras
proposições normativas (a forma procedimental, o órgão e, às
vezes, o conteúdo – geralmente vedam certo conteúdo: criar
normas discriminatórias, ferir direitos subjetivos básicos, etc.),
o critério para saber se uma proposição pertence ao sistema S
é, ele mesmo, proposição normativa no interior do sistema. É
proposição – digamos no singular – intra-sistemática, por isso
mesmo, uma proposição de Direito positivo, proveniente de
um fato: o fato de uma determinada vontade constituinte.
O jurista dogmático, que trabalha no interior do sistema,
que interpreta e o aplica, diante de uma lei, decreto ou senten-
ça, regredirá ao modo de construção de normas para saber se
pertencem ou não ao sistema. O modo de criação posto é, ao
mesmo tempo, o fundamento-de-validade. Sintaticamente, é
regra-de-regra, uma regra sintática colocada dentro do univer-
so de proposições normativas, suscetíveis de ser, através de
proposições normativas, alterada. As regras do processo legis-
lativo, que estão na Constituição, podem ser revisadas por
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outras regras constitucionais. Discute-se se as regras de revisão


constitucional podem, elas mesmas, serem revisadas: será a
possibilidade de reforma das regras-de-reforma constitucional.
Nelson Sampaio (O Poder de Reforma Constitucional, págs.
102-107) considera uma das limitações ao poder de reforma se
a Constituição é rígida. Mesmo na flexível, a reforma, se com-
promete o núcleo jurídico e político da Constituição, substi-
tuindo-a, não será mais poder de reforma, mas poder consti-
tuinte originário.
Mas quando Kelsen dá mais um passo na regressão em
busca do critério-de-pertinencialidade, detendo-se na norma
fundamental, como último grau, parece-nos, a proposição fun-
damental kelseniana coloca-se fora da órbita do sistema: é uma
proposição extra-sistemática. Sintaticamente, é uma regra fora
do sistema: é uma proposição de metalinguagem, relativamen-
te à linguagem do Direito positivo. Por isso, é insuscetível de
ser revisado pelo processo legislativo ordinário, ou pelo pro-
cesso de revisão constitucional. Insistindo Kelsen em que se
trata de proposição hipotética, isto é, de hipótese gnosiológica,
está colocando a norma fundamental no nível da linguagem da
Ciência-do-Direito. Como hipótese gnosiológica, porém, não
está no mesmo nível da ciência empírica que é a ciência jurí-
dica, pois constitui o pressuposto, ou a condição transcenden-
tal (em sentido kantiano) da experiência científica-dogmática
do Direito.
A norma fundamental, como proposição, é, assim, propo-
sição de metalinguagem em nível da Filosofia da ciência do
Direito, tomando o termo filosofia como metateoria: é teoria-
-da-teoria que é a ciência. Em termos de níveis: está na meta-
linguagem formal como sintaxe, e na metalinguagem material
relativamente à linguagem do Direito positivo. Como proposi-
ção de metalinguagem material a norma fundamental tem
conteúdo, refere-se a uma situação fáctica, é individualizada,
relativamente a essa situação. O que não impede uma teoria
geral da norma fundamental (sobre a distinção entre norma
fundamental abstrata e norma fundamental concreta, v. José

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AS ESTRUTURAS LÓGICAS E O SISTEMA DO DIREITO POSITIVO

Vilanova, “Vigencia y validez en el Derecho”, págs. 147-148, in


El Hecho del Derecho). O que suprime a norma fundamental
não é ato legislativo de qualquer espécie: é a mudança numa
situação factual de poder, a inefetividade, sociologicamente
sobrevinda, que desfaz a validade global do sistema. Sem a
eficacidade, a hipótese categorial carece de fundamento nas
coisas para ser aplicada (R. J. Vernengo em La Naturaleza del
Conocimiento Jurídico, págs. 127-139, mostra as variações kel-
senianas no conceito de norma fundamental).

5. IMPOSSIBILIDADE DO SISTEMA NORMATIVO


SIMPLES

Sistema unielementar é aquele que consta de um só mem-


bro. É conjunto chamado unitário. No caso do sistema do Di-
reito positivo, seria conjunto de uma só proposição deôntica.
Tendo em vista que o modal deôntico é tríplice, o conjunto
seria: de uma só proposição proibitiva, ou de uma única pro-
posição obrigatória, ou de uma única proposição permissiva
(incluindo na permissão a permissão unilateral e a permissão
bilateral, seguindo terminologia de Kalinowski). É possível? A
possibilidade toma duas direções: a lógica e a ontológica. Cui-
damos da primeira, conforme a índole deste trabalho.
Se o sistema do Direito positivo fosse conjunto de uma só
proposição proibitiva, diria: dado qualquer fato, qualquer con-
duta é proibida. Sinteticamente: tudo (qualquer que seja a
conduta) é proibido. Então, o sistema S teria unicamente a
proposição “V (p)”. Se a única proposição fosse a determinan-
te de conduta obrigatória, seria S ≡ “O (p)”. Se tudo fosse per-
mitido: S ≡ P (p).
É certo que a conversão interdefinicional relativiza o
problema. Quer dizer, estatuir que tudo é proibido equivale a
determinar que é obrigatório omitir a conduta C e é equivalen-
te a estabelecer que não-é-permitido realizar tal conduta. Em
símbolos, e tomando as proposições deônticas exteriormente
(sem desmembramento de sua estrutura interna): V (p) ≡ O
(não-p) ≡ não-P (p).

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Tanto faz o sistema estabelecer que é vedada qualquer


conduta, como dizer que é obrigatório não-cumprir qualquer
conduta, como afirmar que não é permitido qualquer condu-
ta. São, como se vê, equivalências analíticas. São válidas in-
dependentemente da verificação empírica, por serem verdades
formais. Independem dos sistemas de Direito positivo e não
podem ser infringidas pela vontade arbitrária da fonte formal
(da fonte criadora de normas) do sistema. O legislador pode
selecionar os conteúdos das normas, dentre os possíveis con-
teúdos factuais-naturais e sociais – do contexto real em que
se acha engajado. Não pode, todavia, impedir aquelas equi-
valências analíticas.
Mas, como, aparte, as equivalências analíticas são co-
-implicações, temos agora outra versão formal de impedimen-
tos a construir sistema de uma só proposição deôntica. Median-
te equivalências, poderíamos constituir sistema unitário de
uma só proposição deôntica, escolhendo qualquer dos três
modos deônticos de proposições. Mas ocorre precisamente isto:
se nos decidimos por um modo deôntico, ele necessariamente
implica outros. Questão terminológica: equivalência ora signi-
fica mera relação entre proposições, ora tipo de operação, como
implicação recíproca. Diferença que há em linguagem mate-
mática entre símbolos-de-operação, como “+”, “√”, e símbolos-
-de-relação “>”, “<”, “=”.
Assim, se se estabelece que tudo (toda conduta) está proi-
bido, esta proposição (abreviada) implica esta outra: é permi-
tido omitir a conduta proibida C. Em equivalências: V (p) ≡
P(não-p). Em linguagem de implicação: V (p) → P (não-p). Ou,
em termos intuitivos: o que está proibido implica está permi-
tido omitir. Do mesmo modo, se a única proposição deôntica
fosse O (p), seria ela implicativa de P (p) e implicativa de não-P
(não-p), ou seja, o que é obrigatório fazer, é permitido fazer, e
não é permitido omitir. Mas o que não é proibido, não-V (p),
equivale a permitido, P (p). Assim, os modos da proibição e o
da obrigação implicam sempre a permissão: permissão-de-não-
-fazer e permissão-de-fazer, respectivamente, o que é proibido

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AS ESTRUTURAS LÓGICAS E O SISTEMA DO DIREITO POSITIVO

e o que é obrigatório. Permissão unilateral, é certo. Não a


permissão bilateral de fazer ou omitir, justamente o que ca-
racteriza a conduta facultativa, ou seja: P (p) e P (não-p). O
obrigado tem o direito de fazer o que se lhe impõe (E. Garcia
Maynez, Introducción a la Lógica Jurídica, pág. 195) pois “se
uma conduta se encontra juridicamente ordenada está juri-
dicamente permitida” (o que E. Garcia Maynez denomina
princípio ontológico de inclusão; v. Ensayos Filosófico-Jurídi-
cos, pág. 293). Quer dizer, há necessariamente o direito de
omitir o que se proíbe e o direito de fazer o que se obriga: é
direito no sentido de permissão unilateral de omitir ou fazer,
fundado em um dever jurídico do titular, direito de exercício
obrigatório, não de exercício potestativo ou facultativo (o
direito ou a permissão jurídica de fazer e não-fazer que se
formula: F (p) ≡ P (p) /\ P (não-p)).
Essa implicação interproposicional de um modo deôntico
a outro modo deôntico constata-se, como já vimos, no interior
da proposição jurídica. Estabelecer-se proibição, obrigação ou
permissão é necessariamente a um sujeito face a outro sujeito.
A proposição jurídica é relacional em sua estrutura; assim, os
termos da relação – os sujeitos-de-direito – colocam-se em po-
sição assimétrica: se um é sujeito ativo, o outro é sujeito passi-
vo, se um tem obrigação de fazer ou omitir, o outro, correlati-
vamente, tem o direito ou a permissão jurídica (de exercício
obrigatório ou facultativo) de exigir o cumprimento da obriga-
ção comissiva ou omissiva. Parece, pois, pela via da “Lógica
dos termos” ou teoria das funções lógicas, impossível estatuir-
-se proibição universal, ou permissão universal (de qualquer
classe de sujeitos-de-direito, ou qualquer classe de ação ou
conduta), dada a estrutura relacional da proposição jurídica,
onde os modos deônticos se implicam.
Quando Kelsen observa que é possível sociedade sem
direitos subjetivos, onde só haja deveres, esquece que o corre-
latum do dever é uma pretensão que se faz valer, como possi-
bilidade jurídica de impedir o descumprimento do dever. O
modo deôntico da obrigação implica o modo deôntico do direito

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a opor-se ao inadimplemento do dever imposto, isto é, a per-


missão, juridicamente tutelada, de impedir a omissão do dever
jurídico. Se inexistir este, estamos diante de deveres morais,
não de deveres jurídicos, ou seja, estamos dentro de outro sis-
tema de proposições deônticas.
Qualquer modo deôntico, portanto, é relacional. Implica
seu converso. Toda relação deôntica R, tem sua conversa numa
Rc, que é a recíproca da primeira. Assim sendo, a hipótese-li-
mite de um Estado autocrático que proibisse qualquer condu-
ta, como vimos, não impediria o direito a omitir a conduta
vedada, nem impossibilitaria a permissão, juridicamente fun-
dada na norma de competência do sistema, em o autocrata
emitir norma universal de proibição. Os súditos teriam o direi-
to, com força erga omnes, de cumprir o devido, e, pois, a per-
missão unilateral de omitir, permissivo que se faria valer face
aos sujeitos-de-direito, fossem eles os súditos, fosse ele o au-
tocrata. Sendo hipótese-limite a de que qualquer conduta
fosse permitida, haveria a proibição de impedir, erga omnes
dirigida, a conduta licitamente permitida. Sem essa proibição
correlata, teríamos permissão-de-fato, sem proteção jurídica
alguma, com o que estaríamos fora do sistema de proposições
jurídicas de um direito positivo. Não teríamos um Estado jurí-
dico, sim um estado-de-natureza.

6. CONSISTÊNCIA NO INTERIOR DO SISTEMA

Se excluirmos a hipótese de sistema jurídico positivo


unitário, constituído de uma única proposição deôntica (ainda
no caso-limite de um Estado despótico, em que uma só norma
dá competência ao órgão supremo de emitir somente proibi-
ções, ou somente obrigações, ou somente permissões), temos
que os sistemas são conjuntos multimembres. Ora, conjuntos
de elementos que são proposições, ora conjuntos que têm como
partes outros subconjuntos de proposições.
Formalmente se pode pensar o conjunto que Kelsen
denominou Constituição total, num Estado federal, como

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AS ESTRUTURAS LÓGICAS E O SISTEMA DO DIREITO POSITIVO

sobreconjunto cujos membros são os subconjuntos de normas


federais e de normas estaduais, ou o sobreconjunto Direito das
gentes, cujas partes são os sistemas jurídicos estatais.
Os elementos ou partes, que não podem ser senão ele-
mentos – as proposições deônticas singulares – aglutinam-se
formando um todo, em virtude de satisfazerem dado critério-
-de-pertinência: as proposições p tais que provêm do órgão
superior ou por ele delegado a órgãos subordinados; as
proposições p tais que têm por último fundamento-de-vali-
dade a norma fundamental N’ que institui o fato do costume,
ou órgão especializado para criar normas válidas dentro do
sistema.
Também os subconjuntos ou conjuntos-partes de um
superconjunto agregam-se, formando o conjunto superior, em
virtude do critério-de-pertinência. Na teoria kelseniana, sob o
primado do direito das gentes, a norma fundamental de cada
sistema jurídico estatal, que serve de critério-de-pertinência
(fundamento-de-validade) às proposições jurídicas singulares,
não serve, é claro, como critério-de-pertinência para o Direito
internacional público. Cada conjunto normativo estatal per-
tence ao conjunto total – Direito das gentes – em virtude de
norma de delegação e em virtude da norma de efetividade: o
Direito internacional reparte as competências, sem interrom-
per a conexão-de-delegação, desde que haja suporte fáctico de
efetividade numa estrutura de poder historicamente existente.
No ápice do sistema do Direito das gentes está a última norma
fundamental absoluta.
O critério-de-pertinência – para seguir a teoria kelsenia-
na – não oferta critério material algum. Uma norma não deriva
necessariamente de outra pelo conteúdo de significação. Ainda
se derivar o conteúdo de outra – lei ordinária que complemen-
ta norma constitucional, decreto que complementa a lei ordi-
nária – ainda assim, o que faz a norma derivada valer é ter sido
construída de acordo com o método ou o processo estatuído.
A porção material obtida por inferência vale porque a norma
foi criada em conformidade com o procedimento fixado pelo

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LOURIVAL VILANOVA

sistema e o sistema, em seu todo, de acordo com a norma fun-


damental respectiva. Relativamente ao conteúdo de significa-
ção da norma subordinada, a norma procedimental, digamos,
é formal: prescreve apenas a forma (não necessariamente o
conteúdo mínimo, que deve apresentar, atendendo a certos
valores consagrados no sistema).
Mas, ainda que não se obtenha norma de outra norma
pelo conteúdo (o Direito é sistema dinâmico, não sistema
estático), a coordenação dentro de um conjunto requer com-
patibilidade: compatibilidade lógica, pois o conjunto é sistema
de proposições, onde os elementos se interligam por nexos
formais. As proposições, por serem proposições, não se reú-
nem segundo relações causais, ou relações normativo-gra-
maticais – sintaxe empírica de cada linguagem – mas conso-
ante relações lógico-formais. A forma de sistema coerente
(sem contradições) é, todavia, forma lógica limite, não um
fato empírico.

7. FORMALIZAÇÃO DA CONSISTÊNCIA

É patente que o ser sistema é a linha tendencial do orde-


namento jurídico positivo, em seu processo de racionalização.
O sistema é o caso limite, o tipo ideal ou modelo de que o tipo
empiricamente obtido se aproxima. A axiomatização do siste-
ma jurídico positivo requer uma tipificação que a realidade não
confirma. Os sistemas jurídicos abrigam normas incompatíveis,
formalmente contraditórias, normas contrariando normas, isto
é, antinomias.
E, todavia, os juristas continuam a ter os ordenamentos
em que trabalham por sistemas. A Sociologia do pensamento
sistemático no Direito tem sido posta à luz do dia (Legaz y
Lacambra, Filosofia del Derecho, págs. 76-165). Com certa irri-
tação, correlaciona-se o processo de racionalização com o
processo de estatização hipertrófica (Gurvitch, Sociology of
Law, págs. 149-152). Todavia, o estatismo dá-se bem em com-
panhia do irracionalismo, do decisionismo assistemático, da

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AS ESTRUTURAS LÓGICAS E O SISTEMA DO DIREITO POSITIVO

jurisdição caso por caso, sem subordinação a normas gerais e


sem a construção global do sistema.
A gênese sociológica dos sistemas jurídicos não perturba,
porém, sua função ulterior de conferir certeza nas relações
inter-humanas e de implantar, num âmbito-de-validade espa-
cial e pessoal, a autonomia, isto é, um nomos independente
(soberania) de outros sistemas de normas jurídicas, internos
ou externos.
Há contradições normativas sempre que a um modo de-
ôntico se oponha o mesmo modo afetado de negação. Assim,
tomando as proposições, sem desmembramento de sua com-
posição interior, contradizem-se V (p) e não-V (p); O (p) e não-
-O (p); P (p) e não-P (p), ou seja, as normas que proíbem e não
proíbem; que obrigam e não obrigam; que permitem e não
permitem. Formalmente, há contradições entre V (p) e P (p),
pois não-V (p) é equivalente a P (p). Há antinomias se se des-
loca a constante lógica não do functor deôntico, para afetar a
proposição encerrada nos parênteses: V (p) e V (não-p); O (p)
e O (não-p); P (p) e P (não-p). Neste último caso, só há conflito
normativo se a permissão é unilateral (a permissão fundada
num dever do titular, segundo a terminologia de E. Garcia
Maynez), pois a conjunção ou a enunciação simultânea de P
(p) e P (não-p) é a definição mesma do ato facultativo (o que
não se funda num dever do titular e, por isso, é de exercício
potestativo), ou seja, F (p) é, por definição, P (p) e P (não-p).
Tendo-se em conta o functor F, teríamos mais uma possibili-
dade contraditória, ou seja, F (p) e não-F (p).
O functor F não introduz, contudo, um quarto modo de-
ôntico, pois é a conjunção lógica de P (p) com P (não-p). Em
substância, é a modalidade deôntica da permissão (R. J. Ver-
nengo, Curso de Teoría General del Derecho, págs. 76-101), que
Kalinowski distingue em permissão unilateral (de fazer ou
omitir – ou excludente) e permissão bilateral (de fazer e omitir:
– o e conjuntivo compõe a definição do ato facultativo; Georges
Kalinowski, Études de Logique Déontique, págs. 24, 200-203).

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8. ÂNGULO SINTÁTICO DA CONSISTÊNCIA

De modo geral, pode dizer-se que se dá inconsistência


sempre que se negam as equivalências seguintes O (p) ≡ V
(não-p) ≡ não-P (não-P); não-O (p) ≡ não-V (não-p) ≡ P (não-p);
O (não-p) ≡ V (p) ≡ não-P (p).
As leis formais do cálculo de proposições descritivas,
aplicadas às interdefinições das constantes lógicas (operadores)
têm emprego no domínio das proposições deônticas, cujos
valores se interpretam como validade e não-validade, em lugar
de verdade e falsidade, mas cujo comportamento formal é
idêntico. Também há interdefinições nos functores deônticos
V (vedado ou proibido), O (obrigatório) e P (permitido) sempre
que se use o modificador não, ora prefixo ao functor deôntico
(não-V, não-O, não-P), ora infixo nos parênteses que cercam a
proposição p, descritiva de uma situação objetiva. Tenhamos
em conta que as fórmulas V (p), O (p) e P (p) são abreviadas,
para mostrar o caráter ou modo deôntico que afeta parcialmen-
te a proposição normativa. A proposição normativa no Direito
é relacional: o functor está interfixo na estrutura, posto entre
termos (os sujeitos-de-direito), correlativamente vinculando-os.
Correlação sim, pois a relação não é unidirecional: se A tem
direito ou permissão jurídica de fazer ou omitir, tem-no face a
B que, assimetricamente, está obrigado a não impedir a per-
missão juridicamente concedida a A.
Os functores modais estabelecem deonticamente rela-
ções que têm sua estrutura formal inviolável. Se se infrin-
gem, resvala-se para o sem-sentido ou para o contra-sentido,
conforme Husserl o verificou com as proposições descritivas
na gramática lógica pura. Não se pode excluir uma gramá-
tica pura no domínio das proposições normativas (absorvida
pela abordagem maior que é a sintaxe lógica). Assim, a con-
sistência de um sistema S de p-deônticas é problema de
ordem sintática: há leis formais que se têm de seguir para
construir proposições normativas consistentes. A inconsis-
tência pode dar-se quer dentro de uma só proposição, quer
entre proposições deônticas.
262
AS ESTRUTURAS LÓGICAS E O SISTEMA DO DIREITO POSITIVO

Quando Von Wright (Norm and Action, págs. 196-199)


pondera que há conflitos contraditórios se uma mesma vonta-
de emitente de normas dá para os mesmos sujeitos, na mesma
ocasião, permissões e proibições de atos, o termo vontade é
extraformal. Certo, empiricamente existe uma vontade efetiva
que racionalmente procura emitir normas não conflitantes para
serem cumpridas. Mas, formalmente, o que existe é uma última
proposição normativa positiva (ou pressuposta, como pensa
Kelsen), em relação à qual as demais proposições adquirem
validade. Sintaticamente, a validade é a relação que a norma
N’ mantém com a norma N”. Regredindo-se de norma em
norma, vai-se terminar, para obter a finitude do sistema, na
norma fundamental, que é o fundamento-de-validade, absolu-
to para o sistema.
A norma fundamental não tem, per se, validade absoluta.
E como falta-lhe conteúdo empírico, contradição com ela não
podem ter as normas criadas com fundamento nessa norma
fundamental. Ela imediatamente instaura o órgão constituin-
te, e mediatamente a Constituição positiva e as demais normas
do sistema, ou instaura o mero factum do costume ou da re-
volução como fonte criadora de regras do direito. Opera a
primeira delegação num “agente”, cujo ato tem por sentido
objetivo a constituição política do corpo social. Dá origem ao
sistema articulado em graus de validade (v. a formalização da
estrutura do sistema deôntico em Von Wright, Norm and Ac-
tion, págs. 189-207).
Tanto no interior de um sistema jurídico estatal, quanto
nas relações entre sistemas-parciais (estatais) e sistema global
(o do Direito das gentes) encontramos o tema da compatibilida-
de formal-lógica. Há leis de composição interna quanto leis de
composição externa articulando os sistemas-partes de um siste-
ma total. A regra, fundada em lei lógica, é evitar a contradição.
Contradições existem, tanto no interior do sistema estatal,
quanto no interior do sistema do Direito internacional público.
Já aludimos ao primeiro grupo. Encontramos, ainda, contradi-
ções entre Direito internacional geral e leis constitucionais,
263
LOURIVAL VILANOVA

entre tratados e leis ordinárias, entre sentenças de órgãos inter-


nacionais e sentenças de órgãos jurisdicionais estatais.
Ante o fato objetivo e irrecusável de que existem contra-
dições de normas jurídicas nos dois planos, e ante o fato de que
a Lógica não é suficiente para eliminar contradições entre nor-
mas (as leis lógicas não são normas de Direito positivo), Kelsen
segue o caminho voluntarista: os sistemas parciais e o sistema
total querem ambos os membros da contradição normativa. É
ato-de-vontade que mantém o conflito contraditório, cabendo
ao sistema – pelo seu órgão competente – aplicar uma ou outra
norma conflitante (não ambas, com o mesmo âmbito-de-vali-
dade temporal, espacial, pessoal e material). Modos deônticos
reciprocamente excludentes O (p) e não-O (p), V (p) e não-V
(p), P (p) e não-P (p), coexistem validamente, com validade
técnico-jurídica (são vinculantes, impositivas), ainda que logi-
camente com valores simetricamente opostos.
Se norma de Direito estatal, contradizendo norma de
Direito internacional público, desse lugar a recíproco anula-
mento (na hipótese de serem os sistemas tão-somente coor-
denados), teríamos o Direito positivo não se conduzindo de
acordo com a lei-de-terceiro-excluído e, em consequência,
lacuna nos sistemas em conflito. Quem admite lacuna no
Direito estatal, congruentemente, admite lacuna no Direito
internacional público. Charles de Visscher, por exemplo, con-
sidera a “plenitude formal” no Direito internacional um ide-
al motivado por certa “obsessão de unificação” (Charles de
Visscher, Théories et Réalités en Droit International Public,
págs. 174-177).

9. POSTULADO DE UNIDADE E CONSISTÊNCIA NO


DIREITO, NA CIÊNCIA-DO-DIREITO E NA LÓGICA

O sistema do Direito positivo parcial e o total podem con-


ter proposições normativas contraditórias, simultaneamente
válidas, ainda que não simultaneamente aplicáveis (à mesma
classe de sujeitos, de condutas, e nas mesmas “condições de

264
AS ESTRUTURAS LÓGICAS E O SISTEMA DO DIREITO POSITIVO

aplicação”, como denomina Von Wright). A contradição em


nível da linguagem-objeto, pensamos, não transita para a me-
talinguagem da Ciência-do-Direito. Todavia, Kelsen vê na
inexistência de contradição no Direito positivo (nacional e
internacional) a unidade sem a qual é impossível um sistema
coerente de proposições jurídicas descritivas desse direito. O
sistema da Ciência-do-Direito tem de se constituir de proposi-
ções jurídicas consistentes. A não-contraditoriedade desse
sistema depende da não-contraditoriedade do Direito positivo,
objeto de conhecimento.
Bem certo é que a Ciência-do-Direito apreende os dados
empíricos sob a categoria de norma jurídica válida, pertencen-
te a um conjunto (sistema) definido. O desnexo entre normas
impossibilita a composição harmônica no objeto do conheci-
mento jurídico.
A unidade do Direito, objeto de conhecimento dogmático,
não fica, todavia, comprometida pela existência de contradições
normativas. Normas opostas contraditoriamente podem ser
ambas válidas no sistema. A consistência do sistema do Direi-
to positivo não é condição da possibilidade do sistema da Ci-
ência-do-Direito. O sistema da Ciência-do-Direito, como siste-
ma cognoscente, inserido numa “situação comunicativa”, com
“função pragmática”, é certo (Tercio Sampaio Ferraz Jr., Di-
reito, Retórica e Comunicação, págs. 166-189), mas com função
descritiva de situações objetivas, é um sistema consistente (com
a pretensão inerente de consistência) para obter o valor-de-
-verdade. O Direito positivo tem a pretensão de modificar o
mundo; a ciência jurídica tem a pretensão de conhecer os
módulos normativos de modificar o mundo.
Formalizando-se a linguagem do Direito positivo tere-
mos, em contrapartida, um sistema de enunciados não neces-
sariamente consistentes. Formalizando-se a linguagem da
Ciência-do-Direito, por isso que essa linguagem com preten-
são científica evita contradições, obtém-se sistema formali-
zado consistente. Se, no plano da linguagem-objeto do Direi-
to positivo, podem pertencer a S, as proposições p e não-p,

265
LOURIVAL VILANOVA

simultaneamente válidas, nos sistemas S” e S’’’ (da Ciência-


-do-Direito e da Lógica da Ciência-do-Direito) proposições
mutuamente excludentes, por oposição contraditória, não
podem levar o mesmo sinal da verdade (nem o mesmo sinal de
falsidade, em virtude da lei-de-terceiro-excluído).
A teoria pura do Direito quer que a relação entre Ciência-
-do-Direito e Direito positivo, entre S” e S’, seja análoga à que
existe entre a formalização no sistema S’’’ face ao sistema S”.
Isso seria logicismo. Mas o logicismo detém-se ante o volunta-
rismo: o sistema do Direito positivo, como reiteradamente
Kelsen afirma, quer alternativamente normas em conflito, ca-
bendo ao poder de decisão, no aplicar as normas conflitantes,
optar por uma ou outra, permanecendo válida a contraposta.
A inaplicabilidade simultânea deixa intata a simultânea vali-
dade. O órgão aplicador que deixou de aplicar não-N, por
contradizer N, incidível no caso sub judice, posteriormente
pode aplicar não-N, que continuou como norma válida em
relação-de-pertinencialidade com o sistema.
Pondera Kelsen que não podemos descrever uma ordem
normativa afirmando: A deve-ser e A não-deve-ser como nor-
mas simultaneamente válidas. Vêem-se, então, dois sistemas,
o sistema S’, do Direito positivo, e o sistema S”, da Ciência-do-
-Direito. Suponhamos que S’, contenha as normas N e não-N
(contraditórias). Colocados no nível S”, podemos tomar o dado-
-de-fato, constitutivamente contraditório, e descrevê-lo em
proposições jurídicas, que não se contradizem por descrever a
existência de normas contraditórias do sistema-objeto. S”, em
relação a S’ sistema-objeto, é um sobre-sistema, o metassistema
material de linguagem que tem por tema de conhecimento a
linguagem em que se expressa o Direito positivo.
Assim, é inexato Kelsen dizer que a lei de não-contradição
(e de terceiro-excluído) é aplicável diretamente às proposições
jurídicas, e indiretamente às normas jurídicas. Há plena con-
sistência em enunciar: de acordo com o sistema S’, as normas
jurídicas N e não-N existem, são válidas, entram em vigor no
tempo T, aplicam-se à classe de sujeitos e à classe de ações tal
266
AS ESTRUTURAS LÓGICAS E O SISTEMA DO DIREITO POSITIVO

ou qual, preceituam sobre determinada matéria, incluem-se


nas subespécies Direito público ou Direito privado, revogam
ou são revogadas por outras normas vigentes, retrotraem ou
protraem a eficácia, etc. As cláusulas prefixas “é de direito”
(Rupert Schreiber), “em conformidade com o Direito positivo”
e outras equivalentes, são cláusulas de metalinguagem, relati-
vamente à linguagem do Direito positivo. Assim, contradição
há entre “A deve-ser B” e “A não-deve-ser B”. Não, porém, no
enunciado-de-enunciados: “de acordo com o sistema S, A deve-
-ser B e A não-deve-ser B”.
Sem compartilhar a tese de Fritz Sander, pode dizer-se
que “Der Grund aller Irrtuemer der Rechtslehre Kelsens liegt
in seiner Ansicht vom Verhaeltniss der Rechtswissenchaft zum
Recht” (Sander, Rechtsdogmatik oder Theorie der Rechtser-
fahrung, pág. 85). A extrapolação de Sander está em eliminar
os dois níveis de linguagem (para formularmos o problema em
termos atuais), de tal sorte que não restaria objeto para a ciên-
cia jurídica, como advertira Kelsen, mas tão-só o Direito, que
seria, ele mesmo, ciência, por constituir-se de juízos sintéticos
inseparáveis da experiência (Kelsen, Rechtswissenschaft und
Recht, pág. 101). Simplificando: as proposições jurídicas (Re-
chtssaetze) encontrar-se-iam no plano do Direito positivo, com
o que a distinção Urteil der Rechts e Urteil der Rechtswissen-
chaft, que tanto ocupou a polêmica de Sander, desfazer-se-ia
como falso problema (Fritz Sander, Kelsens Rechtslehre, págs.
68-76).
As proposições do Direito positivo representam, ante a
ciência jurídica dogmática, “das Faktum des Rechtes”, como o
conhecimento dogmático, ante a investigação lógico-formal
representa “das Faktum der Rechtswissenschaft”. Se traduzir-
mos essa estratificação em níveis da linguagem, teremos a
linguagem-objeto do Direito positivo (que pode ou não acolher
contradições), a metalinguagem material da Ciência-do-Direito
(que evita contradições para ser sistema consistente) e a meta-
linguagem formal da Lógica deôntica (por definição, articulada
consistentemente).

267
LOURIVAL VILANOVA

10. SISTEMA DE PROPOSIÇÕES NORMATIVAS E SIS-


TEMA SOCIAL

Sistema social compondo-se de uma só regra jurídica de


proibição, exaustivamente vedando qualquer conduta, impos-
sibilitaria a dinâmica mesma da vida social. Existiria somente
a obrigação-de-omitir, sem o correlato direito de exigir a omis-
são da conduta vedada.
Por outro lado, sistema social de uma só norma proibi-
tiva impediria a organização do poder. Haveria pelo menos
uma norma de habilitação em branco, conferindo ao autocra-
ta o poder de emitir normas proibitivas de conteúdos quais-
quer. Essa norma de habilitação ou de competência não teria
a forma de norma de proibição de conduta, mas a de norma
permissiva positiva, concedente de autorização ou de poder
de criar normas.
Deixando de parte o sistema social constituído de uma só
norma obrigatória – a proibição é reduzível à obrigação de
omitir, ou “V (p) ≡ O (não-p)” – para se pensar na hipótese de
norma só permissiva, sistema social, dizemos, constituído so-
mente de normas permissivas, decomporia as inter-relações
humanas que entretêm o tecido social em puras relações-de-
-fato (sem juridicidade, ainda que revestidas de outras espécies
de normatividade) .
A norma “qualquer conduta está permitida”, como úni-
ca norma do sistema jurídico para regrar o sistema social,
suprimiria a antijuridicidade, ou o pressuposto ilícito que
condiciona a sanção. Com isso, a norma perderia o caráter de
norma jurídica, como proposição composta de norma primá-
ria e de norma secundária, ou da parte endonormativa e da
parte perinormativa (Cossio, restaurando o valor ontológico
da endonorma ou norma secundária, na terminologia kelse-
niana). Se tudo fosse permitido, inexistiria o ilícito jurídico.
Então a impedibilidade da conduta permitida também estaria
permitida: o que suprimiria o constitutivo da conduta, como
licitude e ilicitude.

268
AS ESTRUTURAS LÓGICAS E O SISTEMA DO DIREITO POSITIVO

A permissão positiva de qualquer conduta, sociologica-


mente destruiria a sociedade como forma de organização jurí-
dica. Implantaria o estado-de-natureza.
Assim, logicamente, ontologicamente e sociologicamente,
é inviável sistema unitário (unimembre) de proposição norma-
tiva para articular o sistema social global, cuja forma mais
evoluída politicamente é o Estado.

11. LÓGICA E SISTEMA EMPÍRICO

Num sistema formal, duas proposições contraditórias não


podem ser ambas falsas. Resta uma verdadeira e, por isso, o
sistema é completo. Num sistema empírico de p-normativas,
como o do direito positivo, é possível p-normativas contraditó-
rias, ambas válidas – o que, como vimos, escapa à lei-de-não-
-contradição —, ou ambas não-válidas – o que escapa à lei ló-
gica de exclusão-de-terceiro. Agora, nenhuma dessas duas leis
lógicas pode asseverar que num dado sistema positivo existam
ou não duas normas, N e não-N. A existência de normas con-
traditórias é problema empírico – não lógico —, historicamen-
te contingente, dependente da fonte técnica de criação norma-
tiva do sistema.
Tanto pode ocorrer que existam N e não-N, ambas váli-
das, como pode ocorrer que num sistema S outra norma po-
sitiva determine a anulação (ab-rogação) de ambas. Neste
último caso, não resta norma válida, completante do sistema,
que a lei lógica de terceiro excluso conservaria. É problema
empírico e decisório do sistema, que a lógica jurídica não pode
impedir. O sistema quer, como o anotou Kelsen, ou não man-
ter normas conflitantes. A vontade racional de Von Wright é
um ideal.
Se o sistema determina que normas contraditórias se
anulem, uma certa conduta C, por ambas qualificada contra-
ditoriamente, inserida em modais mutuamente excludentes,
nem por isso é necessariamente atirada para o vazio, para a
área do juridicamente neutro. Reingressa essa conduta dentro
269
LOURIVAL VILANOVA

do âmbito de licitude da liberdade juridicamente estabelecida.


Perde o caráter modal de permissão direta, contraposta à proi-
bição, e insere-se na órbita da permissão bilateral de fazer e
omitir, não dependente (implicada) de qualquer das normas
conflitantes, que tiveram sua validade cortada por aquela so-
brenorma eliminatória de antinomias normativas. Em rigor, é
norma positiva que resolve o conflito de normas, ainda que seja
em ato judicial, como preliminar, para resolver o conflito de
interesses que compõem o caso (Giacomo Gavazzi, Delle Anti-
nomie, págs. 148-152).
Assim sendo, nem a lei de não-contradição garante a
consistência dos sistemas jurídicos positivos, nem a lei-de-
-terceiro-excluso garante a completude dos mesmos. É que os
sistemas jurídicos são sistemas empíricos de normas de conduta,
não sistemas de proposições cognoscentes da realidade. Resta
tão-só a unidade, que é conferida pelo comum fundamento-de-
-validade de todas as normas. Normas contraditórias ambas
válidas encontram seu fundamento de existência na última
fonte normativa a Constituição positiva, ou a Constituição em
sentido lógico-jurídico, i.é., a norma básica do sistema (a norma
fundamental pressuposta). Com a norma fundamental, ou com
a Constituição positiva, tem-se o critério-de-pertinencialidade:
é possível decidir-se se uma dada norma pertence ao sistema.

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