Rui Sousa Martins p495-550

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MITO E HISTÓRIA

NO NOROESTE DE ANGOLA

por
Rui de Sousa Martins*

Introdução

Este trabalho de síntese constitui a primeira parte de uma obra mais


vasta, dedicada ao sistema político tradicional das populações do Noroeste de
Angola, na qual abordaremos, igualmente, os emblemas dos chefes e alguns
aspectos etno-morfológicos e estéticos de uma insígnia particular: o bastão
(mvwala). A escolha desta temática não foi meramente arbitrária, mas resul-
tou da necessidade de completarmos e aprofundarmos a discussão dos resul-
tados do trabalho de campo realizado entre os Ndembu durante os anos de
1972 e 1973. Todo o passado do Noroeste angolano foi dominado pelo desen-
volvimento e queda do Estado Kongo e, por isso, o estudo de qualquer popu-
lação dessa vasta região pressupõe o conhecimento da evolução do "Reino de
São Salvador". Por outro lado, não é possível abordar a problemática das
insígnias dos chefes sem saber o que é um chefe Kongo, em que sistema polí-
tico se insere e de que poderes disfruta. Porém, o Kongo do século XVIII não
era igual àquele que os portugueses contactaram, pela primeira vez, no sécu-
lo XV, e a situação presente é o resultado de um complexo e fascinante pro-
cesso histórico. Assim, se o âmbito do nosso trabalho é especialmente limita-
do pela área de influência da cultura conguesa, no tempo, ele percorre um
caminho que vai do século XV aos nossos dias. Contudo, a nossa intenção
não é reconhecer exaustivamente a realidade Kongo, tarefa impossível para
os ombros de um só investigador, mas determinar somente as características
fundamentais da sua organização política. Esta tarefa pareceu-nos indispen-

* Departamento de História, F.C.S., Universidade dos Açores.

ARQUIPÉLAGO • HISTÓRIA, 2ª série, III (1999) 495-550

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sável para uma cabal compreensão do quadro sócio-político do Noroeste de


Angola e, em última análise, para situar o Estado Kongo na tipologia dos
Estados Negro-Africanos. A fim de prosseguirmos este projecto de investiga-
ção, definimos previamente vários problemas, em torno dos quais procurá-
mos desenvolver o nosso trabalho. Recorremos para isso à riquíssima docu-
mentação histórica disponível, às tradições orais registadas, e aos estudos his-
tóricos e etnológicos. No caso específico dos Ndembu, utilizámos dados reco-
lhidos durante os trabalhos de campo. Visto globalmente, todo este mananci-
al de fontes apresenta-se crivado de lacunas. Os documentos escritos, apesar
de abundantes e, por vezes ricos de conteúdo, estão muito longe de cobrir
todos os aspectos da realidade, distribuem-se de forma desigual ao longo do
tempo e relacionam-se com regiões particulares dentro da área, o que torna
controversa a generalização do respectivo conteúdo. Além disso, foram ela-
borados em grande parte por Missionários e têm de ser encarados critica-
mente. Quanto às tradições orais, pouco ou nada se sabe dos locais e cir-
cunstâncias em que foram recolhidas, o que torna a sua utilização sempre pro-
blemática. Os historiadores, ligados ou não à Antropologia Cultural, têm pro-
duzido trabalhos de excepcional mérito, mas as suas perspectivas são dife-
rentes e até contraditórias. Quase se pode afirmar que há tantos "reinos"
Kongo quanto os historiadores. No domínio etnológico existem boas mono-
grafias, muito embora grande número de sociedades esteja ainda por estudar.
Com base na comparação e discussão dos dados históricos e etnográfi-
cos tentámos determinar os elementos estruturais e as inter-relações dinami-
zadoras do sistema político adoptado pela generalidade das populações da área
Kongo. À medida que avançávamos na análise e na comparação das várias
fontes, fomos constatando que estas se completam e explicam mutuamente,
pois, apesar de se relacionarem com épocas e etnias diferentes, pertencem à
mesma área cultural, o que torna o trabalho comparativo especialmente con-
sequente, quando realizado com a necessária objectividade crítica. Todavia,
não foi nossa intenção criar uma imagem uniforme da área em estudo, mistu-
rando os dados, ignorando a evolução histórica e as muitas diferenças que
separam as etnias, ou generalizando aquilo que é característico de uma delas.
Esta síntese não pretende dar qualquer resposta definitiva aos múl-
tiplos problemas que se colocam, pois a nossa finalidade foi contribuir
apenas para a sua discussão. As páginas que se seguem, com as suas con-
fessadas lacunas e imperfeições, são uma prova de gratidão a todos os
autores que tanto nos ensinam sobre um povo que deu à humanidade con-
tributos estéticos de indiscutível valor.

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Este estudo surge num percurso de trabalho etnológico de alguns


anos. No terreno, e naquilo que o prolonga, as bibliotecas e os museus,
encontrei sempre muita gente disposta a ajudar e a acalentar o meu entu-
siasmo. E poder expressar a minha gratidão a essas pessoas é o momento
mais feliz dos meus trabalhos, pois para além das fórmulas convencionais,
está a compreensão, o sacrifício, a amizade e os momentos de vida vivida
que pude receber, mas que ficam sempre por retribuir.
Agradeço muito especialmente ao Prof. Doutor Abílio Lima de
Carvalho por ter aceite orientar a minha investigação e por me ter encora-
jado com tantas sugestões e ensinamentos.
A partir de 1980, este trabalho foi incluído nos projectos de investi-
gação do Departamento de História da Universidade dos Açores, onde fun-
ciona o Centro de Estudos Etnológicos. Apraz-me registar aqui o apoio rece-
bido inicialmente do Prof. Doutor Teodoro de Matos e do novo Director do
Departamento, Prof. Doutor José Enes que, na difícil fase final, me encora-
jou e facultou todo o apoio indispensável à concretização destes estudos.
E, todavia, a preparação desta síntese só foi possível graças à efi-
cácia e competência dos Serviços de Documentação da Universidade dos
Açores. À sua Directora, Drª D. Maria da Graça Chorão de Almeida Lima
Correia, manifesto o meu apreço e a minha gratidão.
À Drª D. Helena Prista Monteiro, Directora da Biblioteca do Museu
de Etnologia de Lisboa, ao Dr. Fernando Castelo Branco, Director da
Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa e ao Conservador da
Biblioteca do Musée de L'Homme de Paris, agradeço o excelente acolhi-
mento e as inúmeras facilidades de trabalho concedidas.
A Drª D. Pilar Vaz do Rego traduziu vários textos em alemão.
O Sr. Luís Mendes, desenhador do Centro de Estudos Geográficos da
Universidade Clássica de Lisboa, executou com muita mestria os mapas
que acompanham o trabalho. Ao Sr. Rui Dâmaso, funcionário dos Serviços
Gráficos da Universidade dos Açores, devo a feitura dos diagramas.
À D. Rosalina Rego, D. Elisa Sousa Lima e D. Cristina Tavares de
Melo agradeço o empenhamento e o esmero postos na dactilografia das
versões deste trabalho.
Finalmente, devo salientar que a minha mulher, Maria Lucinda
Soares, foi uma preciosa colaboradora e sacrificou muitas das suas horas
para que eu pudesse levar a bom termo esta obra.

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1. Uma civilização de celeiros e estados na savana da África Central

O Noroeste de Angola foi povoado por populações que foram clas-


sificadas em dois grandes grupos étnico-linguísticos: o Kongo e o
Mbundu, subdivididos, por sua vez, em etnias ou sub-grupos1 (Mapa 3).

1 Elementos sobre a distribuição geográfica das etnias, na área em estudo, encontram-


se nos seguintes trabalhos de carácter geral: Olga Boone, Carte ethnique du Congo Belge
et du Ruanda-Urundi. "Congo-Tervuren", Bruxelles, 1, 1955, p.51-55. Guy Atkins, A
demographic survey of the Kimbundu - Kongo language border in Angola. "Boletim da
Sociedade de Geografia de Lisboa", Lisboa, 7-9, 1955, p.325-346. Hélio Felgas, As popu-
lações nativas do Congo Português. Luanda, 1960. Mesquitela Lima, Carta étnica de
Angola. Luanda, 1970. José Redinha, Distribuição étnica de Angola. Luanda, 1971.
Neste trabalho, designaremos as populações por Kongo e Mbundu e as respectivas lín-
guas por Kikongo e Kimbundu.
Guthrie inclui as línguas Kikongo e Kimbundu na zona H, respectivamente Grupos 1
e 2. Malcolm Guthrie - The classification of the bantu languages, London, 1967, pp.50, 51.
Recentemente, e com base nos trabalhos do grupo de Tervuren (Bastin, Coupez, Halleux),
Jan Vansina classificou o Kikongo e o Kimbundu no tronco Atlântico (611) do Grupo 6
(Lualaba - Atlântico) /Bantu Ocidental/. Jan Vansina - Western Bantu expansion, "Journal
of African History", London, 25 (2), 1984, p. 129-145.
O complexo relacionamento entre o Kimbundu e o Kikongo não é uma simples ques-
tão geográfico-tipológica, mas tem sido igualmente abordado numa perspectiva histórico-
sociológica. O debate tem girado sobretudo em torno das afinidades existentes entre os
dois grupos linguísticos, fenómeno que, desde longa data, despertou o interesse dos auto-
res que se debruçaram sobre as línguas do Norte de Angola.
O comerciante português, Duarte Lopes, (1591) informou que la langue des populati-
ons de l'Angola est identique à celle des gens du Congo; en effet, nous l'avons rappelé,
l'Angola et le Congo ne constituent en réalité qu'un seul et même royaume. Il y a seule-
ment la différence qui existe entre deux populations voisines, comme par exemple entre
Portugais et Castillains ou entre Vénitiens et Calabrais. Les mots se prononcent différe-
ment, sont altérés de diverses façons, quoiqu'il s'agisse d'un même idiome, et on éprouve
quelque difficulté à se comprendre. Bal - Description du royaume de Congo et des con-
trées environnentes par Filippo Pigafetta et Duarte Lopes (1591). Louvain, 1965, p. 47.
Em 1804, o missionário capuchinho italiano, Fr. Bernardo Maria de Cannecattim, sublinhou
o estreito parentesco entre o Kikongo e o Kimbundu e, no ano seguinte, pôs a hipótese das duas
"Nações" terem uma "mesma origem, inaveriguável na obscura antiguidade do tempo".
Bernardo Maria de Cannecattim - Diccionário da língua bunda ou angolense, expli-
cada na portuguesa e latina. Lisboa, 1804, p.VIII, IX. Idem - Colecção de observações
grammaticais sobre a língua bunda ou angolense. Lisboa, 1805, p.XII.
Para Karl Laman, a afinidade entre os dois grupos linguísticos seria de tal maneira
estreita que acabou por classificar Kimbundu como um dialecto Kikongo do Grupo - W.
Karl Laman - Languages used in the Congo basin, a linguistic survey. "Africa", London,
1 (3), 1926, p. 374, 375. Mas, ao contrário de Laman, a generalidade dos especialistas con-

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sidera o Kimbundu e o Kikongo como dois grupos linguísticos distintos, embora relacio-
nados por um longo e dinâmico processo de trocas e contactos culturais.
Calogero Piazza tentou explicar o relacionamento entre o Kikongo e o Kimbundu em ter-
mos do "dualismo étnico" que caracterizaria o Reino do Mwene Kongo: Um grupo de invaso-
res de língua Kongo dominou os autóctones Mbundu que constituiam o substracto humano da
margem esquerda do baixo Zaire. Cada um dos grupos teria conservado, inicialmente, a res-
pectiva identidade linguística, funcionando o idioma dos invasores como langue de recouvre-
ment. Calogero Piazza - Appunti sulla lingua di Soyo, "Africa", Roma, 36 (2), 1981, p. 236, 243.
Deter-nos-emos mais adiante (p.54) sobre a questão do "dualismo étnico". Agora, impor-
ta-nos sublinhar que o problema do relacionamento entre as duas línguas não pode ser resol-
vido unicamente no âmbito das origens do Reino Kongo, ignorando todo o longo e comple-
xo processo histórico que envolveu populações Kongo e Mbundu. Há mesmo regiões, como
por exemplo Luanda, onde o Kimbundu se sobrepôs ao Kikongo a partir do século XVI.
A língua tem servido, igualmente, de critério fundamental para se determinar a classifi-
cação cultural e a distribuição das populações. O historiador congolês, Théophile Obenga,
baseando-se no citado trabalho de Karl Laman e no testemunho de Duarte Lopes, defendeu
a existência de um parentesco linguístico genético entre o Kimbundu e o Kikongo, língua que
fundamentaria a unidade cultural dos habitantes do Reino Kongo, em toda a sua extensão,
englobando igualmente as populações Mbundu. Théophile Obenga - Le Kikongo:
Fondement de l'unité culturelle, "Africa", Roma, 25 (2), 1970, p. 134-136, 153.
Além de ser controverso considerar o Kimbundu como um "dialecto" do Kikongo, o
critério linguístico só por si é insuficiente para uma correcta classificação das culturas.
Baumann, um dos mestres da escola histórico-cultural, baseando-se no conhecimento que
então se possuia da cultura material e das instituições africanas, inclui os povos de língua
Kimbundu no círculo Zambeze - Angola, enquanto os povos de língua Kikongo foram classi-
ficados no círculo Congolês do Sul que engloba igualmente os povos do Kwango. Baumann
e Westermann - Les peuples et les civilisations de l'Áfrique. Paris, 1970, p. 146-191.
Cremos ser desnecessário acrescentar as fortes críticas feitas à metodologia difusio-
nista e ao carácter arbitrário e excessivamente generalizado dos círculos culturais.
Muito diversa é a sistematização das Regiões Culturais da África Central proposta por
Jan Vansina. As etnias de Língua Kimbundu, com excepção dos Imbangala, foram incluí-
das na Região do Kongo. No entanto, os povos Yaka e Suku, considerados de língua
Kikongo, e os Imbangala (Mbundu) foram incluídos na Região Kwango. Vansina - Les
anciens royaumes de la savane. Léopoldville, 1965, p.30.
A classificação cultural de Murdock, que nos parece mais acabada e operativa, distin-
gue os grupos Kongo, Kimbundu, onde inclui os Imbangala, e Kwango que abarca, entre
outros, os Pende, Suku e Yaka.
Mas, o aperfeiçoamento da definição cultural das etnias Kongo e Mbundu esbarra
ainda com dificuldades de base, pois os inventários etnológicos de uma região tão impor-
tante como o Noroeste de Angola estão por fazer e os frutuosos trabalhos efectuados,
recentemente, nas vizinhas regiões da República do Zaire, mostram que muitos elementos
novos podem vir ainda a ser descobertos. Por outro lado, parece-nos que há uma acentua-
da tendência para o abandono das classificações culturais excessivamente generalizantes,
assim como das perspectivas homogeneizantes e estáticas. Os etnólogos e os historiadores

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O grupo Kongo2 habita uma vasta área a norte e a sul do rio Zaire, entre
a costa atlântica e Pool-Malebo (Stanley-Pool), ocupando a região administra-
tiva do Baixo Zaire (República do Zaire), grande parte do Noroeste de Angola,
o enclave de Cabinda e atingindo a parte ocidental da República do Congo.
A sul do rio Zaire, o grupo Kongo subdivide-se nas seguintes etni-
as: Solongo3, Mboma4, Ashikongo5, Zombo (Mbata)6, Nkanu7, Mpangu8,

da cultura esforçam-se, actualmente, por descobrir a diversidade e a complexidade dos


fenómenos culturais que se desenvolveram na vasta área do antigo "Reino" Kongo.
2 Albert Doutreloux - Introduction à la culture Kongo, "Annales", 46, Tervuren, 1963,
p.109-169. Idem, Les Kongo, in: Vansina, Introduction a l'ethnografhie du Kongo.
Kinshasa, 1966, p. 115-127.
Doutreloux é sobretudo um especialista dos Yombe, razão pela qual a leitura destes tra-
balhos não dispensa a consulta das monografias referentes às várias etnias da língua Kikongo.
A extensão da área de língua Kikongo esteve intimamente relacionada com a expansão
do "Reino" Kongo. No século XVI, populações de língua Kikongo habitariam ainda a
região de Luanda, onde posteriormente o Kimbundu se foi implantando. Joseph Miller,
Kings and Kinsmen, early Mbundu states in Angola, Oxford, 1976, p. 39.
3 Calogero Piazza - Appunti sulla lingua di Soyo, "Africa", Roma, 36 (2), 1981, p. 227-
252. Ferreira Diniz, Populações indígenas de Angola, Coimbra, 1918, p. 305-324. Gil
Marchal - Origem da roça Solongo (Zaire) segundo a lenda, "Portugal em África", Lisboa,
4(20), 1947, p.78-86. Mário Milheiros - Registo etnográfico e social sobre a tribo dos
Solongos, "Mensário Administrativo". Luanda, 83-84, p. 3-89; 85-86, p.3-51, 1954.
Na opinião de Cannecattim, o Kisolongo era o dialecto Kikongo que mais se aproxi-
mava do Kimbundu. Bernardo Maria de Cannecattim: Colecção de observações gramma-
ticais sobre a língua bunda ou angolense. Lisboa, 1805, p. 152.
Calogero Piazza tentou explicar o facto, recorrendo à já citada tese do "dualismo étni-
co". O Kisolongo, numa primeira fase do seu desenvolvimento, seria um idioma do grupo
Kimbundu, com influências da língua dos invasores Kongo, tornando-se, progressivamente,
numa língua de transição entre o Kimbundu e o Kikongo. Calogero Piazza, op. cit., p. 244.
Uma outra questão de grande interesse diz respeito à distribuição geográfica dos
Solongo. Charles Jeannest, comerciante na feitoria francesa de Ambrizete, escreveu em
1883: "Les Musserongos, dont font partie les nègres pillards de l'embochure du Congo,
habitent tout le pays compris entre ce fleuve et la riviàre Ambriz. Le pays des Michicongos
s'êtend jusqu'à la rivière Hoze [Loje], il est limité au nord par la rivière Ambriz..." Charles
Jeannest - Quatre années ao Congo. Paris, 1883, p. 127, 128, 137.
Os habitantes do "marquezado do Mossul", situado entre os rios Loje e Lifune eram
igualmente Ashikongo ("Michicongo", "Muchicongo"). Rafael de Castello de Vide, André
do Couto Godinho e João Gualberto de Miranda - Relação da viagem, que fizeram os
padres missionários, desde a cidade de Luanda, d'onde sahiram a 2 de Agosto de 1789,
até à presença do rei do Congo, onde chagaram a 30 de Junho de 1781. "Annaes do
Conselho Ultramarino", (parte não oficial), 2ª série, Lisboa, 1859-1861, p. 65.

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Diversamente do que foi cartografado por Ferreira Diniz (1918), Mesquitela Lima
(1970) e José Redinha (1971), o limite sul dos Solongo seria o rio Mbridje e não o Lifune,
a sul do Mbridje e até ao rio Lifune, a população seria de Ashikongo. Em apoio das infor-
mações registadas sobre os Solongo, pode consultar-se o mapa inserto na citada obra de
Gil Marshal (p.84) e a afirmação de Atkins, op. cit., p. 333.
Os Solongo ocuparam ainda uma parcela de território a norte do rio Zaire, e, no pas-
sado, foram súbditos do Mwene Nsonyo um dos principais chefes dependentes do Rei
Kongo. Dennett - At the back of the black man's mind. London, 1906, p. 16, 17. Joseph
Troesch - Itinerário ao Maiombe. "Mensário Administrativo", Luanda, 71-72, 1953, p. 44.
4 Os Mboma dividiram-se em vários ramos, um dos quais é o Mamboma Kongo ou
Kongo Ba Boma que ocupa a área entre Boma e Matadi a norte e a sul do rio Zaire. Os
Mboma tornaram-se famosos pelas suas esculturas em pedra sobejamente conhecidas. O
mais importante estudo etnológico realizado na região dos Mboma (Mbanza Manteke)
deve-se a Wyztt MacGaffey. Laman - The Kongo, vol. I, Stockholm, 1953, p. 37. Joseph
Cornet - Pierres sculptées du Bas - Zaire, Kinshasa, 1978. Wyatt MacGaffey - Custom and
government in the lower Congo. Berkeley, 1970, p. 10 a 13.
5 Adolf Bastian - Ein besuch in San Salvador. Brême, 1851. John Weeks - Among the
primitive Bakongo. London, 1974. Ferreira Diniz - Populações indígenas de Angola.
Coimbra, 1918, p. 65-89. Mário Milheiros - Registo etnográfico e social sobre a tribo dos
Congos. "Mensário Administrativo". Luanda, 79-80, pp. 3-67; 81-82, 1954, p. 3-30, 1954.
No antigo Estado Kongo, os Ashikongo estavam organizados em dois grandes chefa-
dos: Mpemba, onde, na opinião dos antigos cronistas se encontrava a mbanza Kongo (resi-
dência do "rei") e Mbamba.
6 Van Wing - Études Bakongo, sociologie, religion et magie. Bruxelles, 1959. Mertens
- Les chefs couronnés chez les Bakongo Orientaux. Bruxelles, 1942.
Mbata era um dos principais chefados dependentes do Mwene Kongo e o nome advém-
lhe do título do respectivo chefe. Mas como já tinha esclarecido Cavazzi (1687), "os naturais
desta província...são conhecidos pelo nome de Muzombo". João António Cavazzi - Descrição
histórica dos três reinos, Congo, Matamba e Angola (1687), vol. 1, Lisboa, 1965, p. 19.
7 Os Nkanu são culturalmente próximos dos Zombo, mas neles é mais pronunciada a
influência dos Yaka. São considerados os antigos habitantes do "Kongo di Amulaca". Van
Wing, op. cit., p. 74; Mertens, op. cit., p. 4.
8 Sobre os Mpangu e as populações vizinhas (Dikidiki, Lula, Mbeku, Ntandu, Nkanu), global-
mente conhecidas por Kongo Orientais, existem excelentes monografias, devidas a Missionários
belgas da Companhia de Jesus, congregação a que foi confiada a Missão do Kwango em 1892.
O trabalho clássico sobre os Mpangu é o de Van Wing, Études Bakongo, sociologie -
religion et magie. Bruxelles, 1959. Do maior interesse é a obra de Mertens, Les chefs cou-
ronnés chez les Bakongo Orientaux; études de régime successoral. Bruxelles, 1942. Os ele-
mentos recolhidos por Mertens estão datados e referenciados por aldeias, mas a inexistência
de um mapa torna difícil a utilização consequente dos dados. Enquanto Van Wing trabalhou
na Missão de Kisantu em pleno território Mpangu, Mertens pertenceu à Missão de Mpese,
implantada junto de populações Ntandu, Mbeku, Dikidiki e Lula, vizinhos dos Mpangu, mas
já de marcada influência Yaka. Mertens, op. cit., p. 4-12. Van Wing, op. cit., p. 73-74.
Os Mpangu foram um dos grandes chefados dependentes do Mwene Kongo.

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Nsundi, povo que se estende para norte do grande rio9, Tsotso10, Hungu11,
Yaka12 e Suku13. A norte do Zaire, habitam as etnias Woyo14, Kakongo15,
Vili16, Yombe17, Kunyi18, Manyanga19, e Bembe20.

9 Os Nsundi foram estudados por um Missionário da Swedish Covenant Church, Karl


Laman (1867-1944), cujas recolhas foram publicadas, postumamente, em quatro volumes,
com o título The Kongo (1953, 1957, 1962, 1968).
Para além do conhecimento directo das populações Nsundi, com quem viveu de 1891
a 1919, Laman baseou-se em 429 livros de notas, elaboradas em Kikongo, pelos catequis-
tas, com base em respostas a um questionário. No entanto, as datas de recolha, os locais
de origem das informações e o nome dos catequistas estão praticamente ausentes, sobre-
tudo nos três últimos volumes da obra, a que faltam os indispensáveis mapas. Além disso,
vários livros de notas foram elaborados fora da área Nsundi (Cabinda, Mboma, Yaka), mas
os elementos são quase todos provenientes do Norte do rio Zaire.
Os quatro volumes da obra foram ilustrados com excelentes desenhos de objectos etno-
gráficos, reunidos por Laman, que são acompanhados das indicações de origem. No entan-
to, também a ausência de um bom mapa torna difícil o uso científico desta documentação.
Sobre a obra de Laman, pode ler-se a penetrante crítica de John Janzen, Laman's Kongo eth-
nography: observations on sources, methodology, and theory. "Africa", 42 (4), 1972, p. 316-327.
Os Nsundi, que constituiram um dos principais chefados subordinados ao Mwene
Kongo, estão relacionados histórica e culturalmente com os povos Bwende, Kamba, Ladi
e Bembe que podem ser considerados Nsundi ou de origem Nsundi.
Laman - The Kongo, vol. I, Stockholm, 1953, p. 17-21, 34 e segs. Idem., vol. II,
Uppsala, 1957, p. 130.
Os Nsundi ocupam a extremidade interior do enclave de Cabinda. Joseph Troesch -
Gentes e famílias de Miconge. "Mensário Administrativo", Luanda, 69-70, 1953, p. 34-44.
10 Lobato de Faria - Povos do Pombo. "Mensário Administrativo", Luanda, 10, p. 31-
36; 11, p. 29-34; 12, p. 49-51; 1948. Joaquim de Sousa Rodrigues - Indígenas da tribo
Sosso. "Mensário Administrativo", Luanda, 15, 1948, p. 41-44. Mário Milheiros - Registo
etnográfico e social sobre a tribo dos Sossos. "Mensário Administrativo", Luanda, 75-76,
1953, p. 3-64; 77-78, 1954, p. 35-64.
Segundo Atkins, o Tsotso é um dialecto do Kikongo muito semelhante ao Hungu.
Atkins, op. cit., p. 340-342.
11 Ferreira Diniz, op. cit., p. 165-186. Guy Atkins - An outline of Hungu grammar.
"Garcia de Horta", Lisboa, 2 (2), 1954, p. 145-164.
Nos mapas étnicos de Redinha (1971) e Mesquitela Lima (1970) os Hungu são considerados
do grupo Kimbundu, mas os estudos realizados por Atkins permitem-nos classificá-los linguisti-
camente na área Kikongo. Guy Atkins - A demographic survey of the Kimbundu-Kongo language
border in Angola. "Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa", 7-9, 1955, p. 327, 328, 341.
Até ao século XVIII, porém, os Hungu tinham sido um sub-grupo Mbundu. Joseph
Miller - Kings and Kinsmen. Oxford, 1976, p. 41, 42.
12 Mário Milheiros - Anatomia Social dos Maiacas. Luanda, 1956. Plancquaert - Les Jaga
et les Bayaka du Kwango. Contribution historico-ethnographique. Bruxelles, 1932. Idem - Les

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Yaka, essai d'histoire. Tervuren, 1971. Jacques Denis - Les Yaka du Kwango. Tervuren, 1964.
Lamal - Basuku et Bayaka des districts Kwango et Kwilu au Congo. Tervuren, 1965.
Não é possível referir os Yaka sem tocar no problema das relações desta etnia com as
hordas dos célebres Jagas que, em 1568, teriam invadido o "Reino" Kongo, obrigando D.
Álvaro I a fugir para uma ilha do rio Zaire.
No entender de Plancquaert (1932, 1971), os Jagas são os antepassados dos Yaka.
Num corajoso e controverso artigo, o historiador Joseph Miller negou a existência de qual-
quer invasão. Ter-se-ia dado antes uma "revolta interna" dos Nsundi e Mbata, apoiada por
grupos estrangeiros (Matamba e Tyo).
John Thornton e Anne Hilton tentaram a "ressureição" dos Jagas, reconsiderando a
invasão no contexto político-económico do Kongo quinhentista. A resposta de Miller ao
artigo de Thornton e o apoio recebido de François Bontinck animaram esta questão,
dando-lhe nova luz, mas não a resolvendo nem encerrando.
Joseph Miller - Requiem for the Jaga. "Cahiers d'Études Africaines", Paris, 13 (1),
1973, p. 121-149. John Thornton - A ressurrection for the Jaga. "Cahiers d'Études
Africaines", Paris, 18 (1-2), 1978, p. 223-227. Joseph Miller - Thanatopsis. "Cahiers d'É-
tudes Africaines", Paris, 18 (1-2), 1978, p. 229-231. François Bontinck - Un mausolée
pour les Jaga. "Cahiers d'Études Africaines", Paris, 20 (3), 1979, p. 387-389. Anne Hilton
- The Jaga reconsidered. "Journal of African History", Cambridge, 22, 1981, p. 191-202.
13 Ferreira Diniz - op. cit., p. 187-208. Lamal - Basuku et Bayala des districts et Kwilu
au Congo. Tervuren, 1965.
14 O chefe-rei dos Woyo usava o título de Ma Ngoyo, de que deriva o nome do Estado
(Ngoyo). Como se sabe, Ma é uma abreviatura de Mwene ou Mani, termos que significam
"Senhor" (chefe investido).
Os Missionários do Espírito Santo, Joaquim Martins e José Martins Vaz, são autores
de importantes trabalhos sobre os Woyo, designados genericamente por Cabindas, muito
embora no enclave angolano de Cabinda vivam igualmente povos Vili, Kakongo e Yombe.
Sobre o Estado Ngoyo, pode ler-se o estudo de Carlos Serrano, recentemente editado
no Brasil.
José Martins Vaz - No mundo dos Cabindas. Lisboa, 1970. Joaquim Martins - Cabindas,
história, crença, usos e costumes. Cabinda, 1972. Carlos Moreira Henriques Serrano - Os senho-
res da terra e os homens do mar: antropologia política de um reino africano. São Paulo, 1983.
15 O chefe dos Kakongo era o MaKongo. Joseph Troesch - Itinerário ao Maiombe
(breve resenha de geografia física e etnográfica). "Mensário Administrativo", Luanda, 71-
72, 1953, p. 42, 43. Joaquim Martins, op. cit., p. 70, 73, 74, 79, 87-99.
16 Os Vili foram governados por um chefe com o título de Ma Lwango e, por isso, são
conhecidos igualmente por Lwango. A história dos estados Ngoyo, Kakongo e Lwango está
intimamente ligada e a cultura dos respectivos povos é semelhante. Antes de se tornarem
independentes, provavelmente nos finais do século XV, estiveram sujeitos ao "Reino"
Kongo.
Hagenbucher-Sacripanti - Les fondements spirituels du pouvoir au royaume de
Loango. Paris, 1973, p. 20-24. Phyllis Martin - The external trade of the Loango coast,
1576-1870. Oxford, 1972, p. 32.

503
RUI DE SOUSA MARTINS

O grupo Mbundu21 engloba, no Noroeste de Angola, as etnias


Ngola , Jinga23, Ndembu24, Bondo e Imbangala25, estende-se ainda para
22
leste do rio Kwango e para sul de Kwanza, áreas que estão fora do âmbi-

17 Os Yombe são uma das etnias Kongo mais conhecidas, graças à excelente mono-
grafia de Albert Doutreloux. O nome da região teria derivado de Ma Yombe, um título de
chefia. Albert Doutreloux - L'ombre des fétiches, société et culture Yombe. Paris, 1967, p.
30, 31.
Mas o significado do termo Yombe e a sua aplicação a uma área geográfica e seus habi-
tantes estão ainda por esclarecer devidamente. Joaquim Martins, op. cit., p. 85.
18 Soret - Les Kongo Nord - Occidentaux. Paris, 1959.
19 Soret, op. cit. Doutreloux, op. cit., p. 37.
Os Manyanga são também conhecidos como habitantes do Território Lwozi. A forma
Nyanga que aparece nalguns mapas é incorrecta. MacGaffey - Custom and government in
the Lower Congo, Berkeley, 1970, p. 12, 13 e nota 13.
20 Os Bembe (ocidentais) habitam na República Popular do Congo e são de origem
Nsundi. Laman - The Kongo, vol. II, Uppsala, 1967, p. 130.
21 Uma síntese actualizada da evolução etno-linguística dos Mbundu encontra-se na
consagrada obra de Joseph Miller Kings and Kinsmen, early Mbundu states in Angola.
Oxford, 1976, p. 37-42.
22 O nome deriva dos estados fundados nos séculos XV e XVI pelo chefe Ngola a
Kiluanje, entre o baixo Lukala e o Kwanza. Joseph Miller, op. cit., p. 73 e segs. Ferreira
Diniz, op. cit., p. 3-29.
23 O termo Jinga deriva de Nzinga, rainha Mbundu que, cerca de 1630, fundou um
poderoso reino na região de Matamba. Joseph Miller, op. cit., p. 42. Joseph Miller - Nzinga
of Matamba in a new perspective. "Journal of African History", London, 16 (2), 1975, p.
201-216.
24 Os Jindembu (sing. ndembu) eram chefes titulados e subordinados ao Mwene
Kongo que se foram tornando independentes na região entre os rios Loje e Nzenza. Os
Lwango, que organizaram importantes dembados a sul do rio Ndanji, descendem de gru-
pos de comerciantes Vili, provenientes da "Costa do Loango". Phyllis Martin, op. cit., p.
130-132.
Atkins, referindo-se aos Lwango do dembado Pangu a Luken, afirmou: Lwangu as
spoken by the younger generation bears a faily close resemblance to Hungu, Guy Atkins
- A demographic survey [...], p. 336.
Porém, David Magno, autor de um valioso estudo etnográfico sobre os Dembos, tinha
uma opinião diferente: "Os luangos falam o quimbundo, como os de Loanda, com excep-
ção de uma palavra ou outra e da entoação própria da região". David Magno - Relatório
dos serviços militares do Lombije (Caculo Cahenda, 21-1-1910). "Boletim oficial de
Angola", Luanda, 1910, p. 129. Idem - Etnografia dos Dembos. "Trabalhos da Sociedade
Portuguesa de Antropologia e Etnologia", Porto, 1 (3), 1921, p. 123-165.
25 Joseph Miller - Kings and Kinsmen, early Mbundu states in Angola. Oxford, 1976.

504
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

to deste trabalho. O sub-grupo Holo do Noroeste angolano parece não se


poder incluir nem no grupo Mbundu nem no grupo Kongo26.
Os povos de língua Kongo já no século XIV se encontravam orga-
nizados num importante Estado27, cujo modelo político exerceu marcada
influência nas regiões vizinhas. Todavia, o aparecimento do Estado Kongo
não foi um caso singular na África Central. Povos que praticavam uma
agricultura extensiva de derrube e queimada tinham-se ido estabelecendo
durante vários séculos na vasta savana a sul da Floresta Equatorial e a
norte do rio Zambeze, assim como nas florestas da bacia central do rio
Zaire, onde criaram Estados que tinham no vértice um chefe supremo. Foi
possível determinar nessa vasta região áreas fundamentais de inovação
política, onde se teriam desencadeado, a partir do século XIII, diversos
processos da formação de estados28 (Mapa 1).
No Alto Zaire, organizaram-se os reinos Luba, na área do lago
Sbaba, Lunda, junto ao rio Kalanyi (Bushimay) (Katanga Ocidental) e
entre os rios Sankuru e Kasai, os Buslongo criaram o Estado Kuba. Nas
florestas da bacia central do Zaire, formou-se o Estado Mongo. No baixo
Zaire desenvolveram-se os reinos Tyo e Kongo. A ideologia e o modelo de
organização política do Estado Kongo estão na base dos estados Ngoyo,
Kakongo, Lwango, Ndembu e de outros que se foram tornando indepen-
dentes do Mwene Kongo.
Se exceptuarmos os Mongo e os Tyo, os povos que criaram estados
a sul do equador são habitantes da savana, onde desenvolveram culturas
que se agrupam numa civilização de celeiros, de acordo com a conhecida
classificação de Jacques Maquet29.

26 Guy Atkins - A demographic survey [...], p. 344, 345.


27 Operativamente, consideramos estado uma sociedade dotada de estrutura de gover-
no, com funções políticas e administrativas diferenciadas e autonomia externa suprema.
Chamamos chefados às unidades políticas autónomas, existentes no seio do estado.
O nosso conceito instrumental de chefado não se identifica com o de "chefatura" pro-
posto por Elman Service - Los origenes del Estado y de la civilización. Madrid, 1984, p.
33, 34.
O "ponto da situação" sobre o conceito de estado foi feito recentemente por Henri
Claessen e Peter Skalnik - Ubi sumus? The study of the state, conference in retrospect, in:
Claessen e Skalnik, eds. "The study of the state". Paris, 1981, p. 490 a 492.
28 Joseph Miller - Equatorial Africa. Washington, 1976, p. 15 e segs.
29 Jacques Maquet - Les civilisations noires. Paris, 1962, p. 16, 17, 131 e segs.

505
RUI DE SOUSA MARTINS

O historiador Jan Vansina, confrontando o meio ambiente com a


forma de organização política, notou que, na periferia da savana, os habi-
tantes da floresta equatorial não estão organizados em estados, isto é, não
possuem sistemas políticos com estrutura centralizada e governados por
um indivíduo30.
Jacques Maquet aprofundou a importância do meio natural, relacio-
nando a formação florística de savana, as condições climáticas, marcadas
pela alternância da época das chuvas, cuja influência é preponderante, com
a do cacimbo, e as técnicas agrícolas utilizadas. A correlação desses três
factores possibilitou a produção de excedentes agrícolas que permitiram a
manutenção de governantes, de um corpo de funcionários executivos e de
vários especialistas na administração da justiça, nas práticas mágico-reli-
giosas e nos diferentes artesanatos. Segundo o esquema proposto pelo pró-
prio autor, o meio natural, as técnicas de produção, os excedentes agrícolas
produzidos e a apropriação desses excedentes por um dos membros do
grupo explicariam a emergência e o desenvolvimento do poder político31.
O aparecimento dos estados sedentários da savana e as respectivas estrutu-
ras políticas são explicadas, fundamentalmente, pelas características do
domínio tecno-económico, produtor de excedentes agrícolas32.
A divulgada tese de Jacques Maquet, apesar da sua aparente evi-
dência, tem sido posta em causa por investigadores recentes. Antes,
porém, debrucemo-nos sobre a importância do meio natural, uma vez que
parece existir uma certa correspondência entre as características ecológi-
cas da savana e uma civilização de celeiros e estados.
Se olharmos para o Noroeste de Angola, onde se desenvolveu o
Estado Kongo, verificamos que essa região é ocupada não propriamente
por savanas, mas por mosaicos de floresta-savana e que a agricultura
extensiva e as queimadas devem ter sido os factores que originaram os
capinzais que intercalam as florestas33. O processo ter-se-ia iniciado em
épocas recuadas, pois os arqueólogos opinam que, no Baixo Zaire, a
degradação da floresta teria começado antes da introdução da metalurgia

30 Jan Vansina - Les anciens royaumes de la savane. Kinshasa, 1965, p. 8.


31 Jacques Maquet, op. cit., p. 135.
32 Idem, p. 18, 19.
33 Helder Lains e Silva - Capinzais secundários de Angola. "Garcia de Horta", Lisboa,
4 (1), 1956, p. 49-55. Gandvaux Barbosa - Carta fitogeográfica de Angola, Luanda, 1970,
p. 80 e segs.

506
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

do ferro e que cultivadores neolíticos teriam sido os responsáveis pela


degradação da floresta nos começos do primeiro milénio34.
Sem negarmos a importância condicionante do ambiente natural,
temos de realçar igualmente a enorme influência exercida sobre ele pelo
processo civilizacional que se desenrolou no Noroeste de Angola e por
todo o Baixo Zaire.
A produção de excedentes agrícolas não explica nem determina a
formação de estados, pois estes podem surgir e existir sem eles35. A pró-
pria acumulação de bens e a selecção dos mesmos é motivada por exi-
gências de carácter religioso e político, encontrando, portanto, a sua razão
de ser no fundo axiológico, nas representações colectivas e visões do
mundo que orientam a acção dos chefes e a vida das sociedades.
Não é nosso objectivo negar a importância da dimensão económica
na formação e existência dos estados de agricultores de savana, muito
embora, numa perspectiva substantiva, tenhamos de considerar não apenas
as formas de produção mas o processo económico global que abrange igual-
mente a circulação e o consumo dos bens materiais. Outros aspectos do pro-
cesso económico, por exemplo, o controlo das fontes de bens escassos36,
mas de crucial importância, como é o caso do sal e dos minérios de ferro e
de cobre ou o comércio a longa distância37, têm sido apontados como expli-
cativos do aparecimento de estados a sul da floresta equatorial.
Vários factores, tais como a concentração demográfica, acções
militares e o génio de alguns chefes têm sido igualmente relacionados
com a formação desses estados38.
A origem do Estado, se bem que fascinante, não entra no domínio
do nosso trabalho e está longe de encontrar respostas satisfatórias. As

34 Rui de Sousa Martins - A Estação arqueológica da Antiga Banza Quibaxe. "Contribuições


para o Estudo de Antropologia Portuguesa", Coimbra, 9 (4), 1976, p. 298, nota 120.
35 É o caso dos estados Imbangala de Angola. Joseph Miller - Kings and Kinsmen,
[...], p. 275.
36 Miller, op. cit., p. 271, 272.
37 MacAdams - Antropological perspective on ancient trade. "Current Anthropology", 15
(3), 1974, p. 239-249. Michael Bisson - Trade and tribute. Archeological evidence for the origin
of states in South Central Africa. "Cahiers d'Études Africaines", Paris, 22 (3-4), 1982, p. 343-361.
38 Herbet Lewis - Warfare and the origin os the state: another formulation, in:
Claessen e Skalnik eds. "The study of the state". Paris, 1981, p. 208 e segs.
A formação de um estado por meio de conquista militar e de acção de um chefe, herói
fundador e civilizador, será por nós analisada no capítulo seguinte.

507
RUI DE SOUSA MARTINS

mais recentes tendências da investigação, apontam, porém, para uma


superação dos pressupostos evolucionistas e neoevolucionistas e para a
pesquisa de novas combinações de dados que reflictam a multidimensio-
nalidade e a complexidade espacial e temporal do processo de formação e
desenvolvimento dos estados39.

2. Na senda do Mito e da História: As origens do Estado Kongo

A problemática das origens é uma das mais importantes que se


coloca ao estudioso de qualquer estado tradicional da África Negra. À tra-
dição oral se devem inúmeras histórias que contam a génese desses esta-
dos, narrativas polémicas, à volta das quais se têm desencadeado anima-
dos debates, onde entram historiadores e etnólogos que ultrapassaram
definitivamente um percurso de mútua desconfiança.
A importante obra de Jan Vansina40 pôs fim ao monopólio do docu-
mento escrito como fonte para o conhecimento do passado dos "povos
sem escrita", e deu lugar de destaque às tradições orais como fontes da
História. Historiadores e antropólogos culturais lançaram-se na descober-
ta do passado das sociedades africanas até então consideradas "sem histó-
ria". A este período de entusiasmo segue-se uma fase de cepticismo e con-
testação que vem pôr em causa a forma como os textos orais foram utili-
zados. Duvida-se do interesse histórico das narrativas orais e dá-se impor-
tância sobretudo aos significados que elas possuem e às funções que
desempenham nas respectivas sociedades41.
O Reino Kongo foi um dos centros deste debate e a ele não pode fugir
quem se debruce sobre este célebre reino da África Central. Existem inclu-
sivamente várias narrativas recolhidas a partir do século XVII em que os
Kongo explicam a formação do seu Reino e em torno das quais se geraram
fortes controvérsias. Convém, por isso mesmo, conhecê-las, antes de nos
debruçarmos sobre as várias interpretações construídas pelos estudiosos.

39 Nesta perspectiva, leia-se o estimulante ensaio de Eisenstadt, Abitbol e Chazan, Les


origines de l'état: une nouvelle approche. "Annales", Paris, 6, 1983, p. 1232-1255.
40 Jan Vansina - De la tradition orals, essai de méthode historique. Tervuren, 1961.
41 Vansina, Mauny e Thomas - The historian in tropical Africa. Oxford, 1964, p. 2-7
e 60-64. Henry Moniot - L'histoire des peuples sans histoire, in: Jacques Le Goff e Pierre
Nora, ed. "Faire de l'histoire, nouveaus problèmes", Paris, 1974, p. 106-123. Ndaymel à
Nziem - Histoire clanique et histoire ethnique: quelques perspectives méthodologiques.
"Cultures", Paris, 7 (2), 1980, p. 63-78.

508
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

A versão mais antiga que se conhece é a da celebrada e controversa


História do Reino Congo, manuscrito anónimo da Biblioteca Nacional de
Lisboa, publicado por António Brásio que o atribuiu ao primeiro quartel do
século XVII42. Seiscentistas são ainda as tradições reproduzidas por Cavazzi
de Montecúccolo (1671)43 e por António Cadornega (1680-1681)44. Já de
princípios do século XVIII é a tradição que consta de um relato inédito, atri-
buído ao capuchinho italiano Francesco da Pavia(1702)45, assim como a
narrativa recolhida por Bernardo da Gallo (1710)46.
São estes os textos mais importantes acerca da origem do Estado
Kongo e sobre os quais nos vamos debruçar.

2.1. As narrativas sobre as origens do Estado

Versão 1:
História do Reino Congo (Ms. 8080 da Biblioteca Nacional de Lisboa)

(Séc. XVII)

"Antigamente não havia rey no que se chama hoje reino Congo,


mas estava repartido entre muitos senhores, ou regulos, que a dita pro-
vincia tinhão entre si repartida como ainda hoje ha na provincia
42 António Brásio - História do Reino Congo. Lisboa, 1969. Idem - História e
Missiologia. Luanda, 1973, p. 563-572.
O próprio autor anónimo informa-nos que foi cura na província de Nsundi. Brásio -
História do Reino Congo. Lisboa, 1969, p. 22.
43 J. A. Cavazzi de Montecúccolo - Descrição da história dos três Reinos do Congo,
Matamba e Angola (1687), 2 vol., Lisboa, 1965. Cavazzi terminou a redacção da sua obra em
1671, mas esta só foi editada em 1687. O autor tinha vivido em Angola de 1654 a 1667 e este-
ve na província de Sonyo entre 1664 e 1666. Idem, vol. 1, p. XXIII, XXIV, 101, nota 156.
44 As datas são as da redacção da obra. António de Oliveira Cadornega - História geral
das guerras angolanas (1680-1681), 3 vols., Lisboa, 1940-1942.
45 Jardin publicou um resumo desta relação, atribuindo-a ao capuchinho Francesco da Pavia.
A tradição que nos interessa foi publicada posteriormente por Calogero Piazza. Louis Jadin - Le
Congo et la secte des Antoniens. Restauration du Royaume sous Pedro IV et la "Saint Antoine"
congolaise (1694-1718). "Bulletin de l'Institut Historique Belge de Rome", Bruxelles, 33, 1961,
p. 432-440. Calogero Piazza - Alcune tradizzioni orali sulle origini del regno di Kongo "Annali
del Pontificio Museo Missionario Etnologico già lateranensi", Roma, 38-39, 1975, p. 248.
46 A narrativa faz parte de um extenso relatório traduzido e publicado por Louis Jadin,
op. cit., p. 449-488.

509
RUI DE SOUSA MARTINS

Ambundana, e cada huma das provincias em que está hoje repartido o dio
Reino: havia hum que chamavão Mani, que val tanto como senhor, na
cidade do Congo, onde no tempo presente está el rey, e assim he de quem
todo o Reino tomou o nome: residia o Summo Pontifice (fallando ao nosso
modo) daquella gentilidade chamado Mani-Cabunga, cujos successores
ha, e durão ainda em Congo o mesmo titulo de Cabunga, e he huma fami-
lia e geração entre os Muxicongos muito honrada; a este Mani-cabunga
acudião a pedir remedio em suas necessiddes, e agoa para suas semen-
teiras, e com sua licença e recolhiã quando era tempo..."47.

Mais adiante o anónimo autor descreve a formação do Reino por


Ntinu Wene:

"Ha ao longo do Zaire, da banda do Norte, hum pequeno rio cha-


mado Bungo, no qual haverá trezentos e cincoenta annos reinou hum rey,
que teve muitos filhos, e vendo o mais mosso delles, por nome Motino-
Bene, que para tantos irmãos era pouco o que seu pay tinha, e que ele não
podia vir a reinar senão por morte de todos elles, levado de hum dezejo
de mandar...determinou como valerozo que devia ser, ajuntar a gente que
pudesse, e com ella passar o Zaire da outra banda e conquistar a grande
provincia de Congo, que repartida estava em differentes senhores, ou
manis: não o enganou o pensamento, nem lhe sahirão em vão seus altos
pensamentos e valerozos conceitos; porque ajuntando huma grande mul-
tidão de mancebos muito maior do que elle imaginava, em breves tempos
passou da outra banda do coudeloso rio em canoas, ou almadias, e em
poucos annos sujeitou e meteo debaixo do seu senhorio tudo o que hoje
he o reino de Congo, ou a maior parte delle, o que não devia de ser sem
succederem muitas batalhas e recontros com mortos, e destruição de mui-
tas gentes assim dos naturaes, como dos conquistadores, das quaes coi-
sas não ha nenhuma noticia.
...Depois que o valerozo Motino-Bene teve conquistado todo, ou a
maior parte do reino, se foi aposentar em hum outeiro quatro legoas da
cidade de Congo e nelle fez repartição do que tinha ganhado entre os seus
capitães, dando a cada hum huma provincia, ficando-lhe os senhores pro-
prietarios tributarios, isto não por vida, mas enquanto fosse sua vontade

47 António Brásio - História do Reino Congo. Lisboa, 1969, p. 18, 19.

510
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

do dito Motino-Bene, o qual costume anda hoje se uza entre os reys


daquelle reino, dando ordem que todos os seus se cazassem com os natu-
raes da terra, os nobres com as nobres, e os plebeus com as pebleas, cha-
mando-se todos pelo nome antigo de Moxicongos. Elle com o resto da
gente que lhe ficou se foi para a cidade de Congo, da qual o rey toma o
nome, onde residia o Pontifice daquela gentilidade chamado Mani-
Cabunga, e se casou com huma filha sua, e ficou por absoluto rey e
senhor de todo aquelle grande reino.
Com este modo segurou o reino Motino-Bene, e o deixou a seus
descendentes, que são os que hoje reinão quinze (afora elle) seis gentios
e nove christãos, tomando todos os reis por titulo honorozo e de excel-
lencia o nome de Motino, primeiro fundador daquelle senhorio...e assim
se chamão os reis do Mani-Congo Motino pela causa que se disse; o
outeiro onde se fez a repartição do reino por Motino-Bene se chama ainda
Mongo-Caila, o Outeiro da Repartição. Há ainda no Bungo reis os quaes
se comunicão com os do Congo, mandando-se presentes huns aos outros,
reconhecendo-se por esta via por parentes, procedidos todos de hum
mesmo e proprio tronco.
....De Motino-Bene athé Macingacua (sic) Motino, que foi o pri-
meiro rey christão, houve hum e outro seis principes; dos quaes se não
tem muita noticia..."48.

Versão 2:
Descrição Histórica...(1971) de Cavazzi de Montecúccolo.

Segundo a tradição, o primeiro rei foi Luqueni, que com o valor das
suas armas submeteu diversas províncias e com o seu tacto político
ganhou o ânimo dos súbditos, tomando então o título de ntinu, ou "rei".
Eis como a tradição realata tudo isto:

"Na província de Corimba, que é perto do reino do Cuango, perto


do rio Zaire, morava um homem, chamado Emini-a-Nzima, casado com
uma tal Luqueni-lua-Sanze, filha de Nsacu-Lau e irmã de Mpucu-a-
Nsucu. Teve ela um filho a quem chamou Luqueni, do seu próprio nome.
O pai, desejoso de tornar-se grande, juntou quanta gente pôde e, corren-

48 Idem, p. 43-46.

511
RUI DE SOUSA MARTINS

do o país, viveu muito tempo alternadamente favorecido e perseguido


pela sorte. Por fim, conseguiu fortificar-se entre uns despenhadeiros, num
sítio inexpugnável e que era passagem obrigatória para os comerciantes.
Podia ele, portanto, correr as províncias ou, sem se mexer, exigir grandes
peagens e também tributos anuais.
Um dia, em que ele estava ausente e o filho Luqueni ficara a guar-
dar o sítio, o pequeno exigiu de uma tia o costumado imposto de passa-
gem. Recusou-se ela e repreendeu-o por a tratar como vassala, sem res-
peito nenhum pelo parentesco. Então o malvado, impelido pela avareza e
pelo desejo brutal de incutir terror, varou-lhe o ventre grávido, compen-
sando a perda do imposto com o duplo assassinato. O pai, ao voltar, ficou
aflito perante este crime, por ser ele irmão ou cunhado da morta, e quis
castigar o filho. Os soldados, porém, argumentando que por esta façanha
o rapaz mostrava um coração belicioso e varonil, em vez de aversão, tive-
ram simpatia por ele e proclamaram-no rei.
Então Luqueni, orgulhoso pelo resultado obtido, invadiu imediata-
mente a província de Pembacassi, que hoje pertence ao reino do Congo, com
o nome de Pemba. Continuando a sua marcha conquistadora, chegou ao sítio
onde agora se acha S. Salvador e escolheu-o para sua sede e capital.
Era chefe desta região um tal Mabambolo Mani-Pangala, cujos
filhos foram presos pelo tirano, mas conseguiram umas terras como
feudo, com a condição de o reconhecerem sempre como soberano. Porém,
o dito Mabambolo e os outros Pangalas seus sucessores sustentaram sem-
pre as suas razões contra a violência sofrida e, embora não tenham pre-
sentemente forças para sustentar os seus direitos, continuam ainda hoje,
com anual cerimónia, nos seus protestos, pondo assim em relevo não sei
se a sua antiga autoridade, tão depressa decaída, se a maravilhosa sorte
de Luqueni. Esta cerimónia não lhes serve para nada, mas o rei gloria-se
dela e estima-a muito. Eis como é realizada:
Cada ano o Pangala envia à corte uma mulher que em seu nome
intima o rei a ir-se embora, por não ser ele o legítimo possuidor da
região. O rei ouve-a publicamente e depois, carregando-a de presentes e
usando palavras de muita cortesia, exorta-a a voltar para o patrão a
dizer-lhe que sofra pacientemente a desgraça pela qual os seus antepas-
sados perderam o trono, e que, no entanto, fique satisfeito com o que lhe
resta, sem querer aventurar-se a novidades. Esta é a satisfação permitida
aos Mani-Pangala, que, afinal, devem comparecer nos tempos determi-
nados e curvar-se como vassalos, perante o soberano.

512
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

O sítio escolhido pelo Luqueni para a sua residência é um dos


melhores de todo o reino. É um morro isolado, assoalhado, ameno, raso
no cume e onde a gente chega por uma estrada fácil que um dos reis abriu
com o trabalho de muita gente. Acerca desta estrada narram os Pretos
coisas curiosas e fantásticas.49
O ar é suave e sadio, imperando os ventos o ardente calor do sol.
Por esta qualidade merece duplamente o nome de S. Salvador.
No meio da planície, onde agora se acha o Terreiro, vasto lugar
para as paradas militares e outras festas públicas, nos primeiros tempos
havia uma lagoa que mais tarde foi arrasada. Há quem acredite que o
peso do terreno trazido para esse fim, comprimindo as nascentes, faz jor-
rar água dos lados do morro. Com efeito, tudo em redor são nascentes
vivas e riachos cristalinos.
Luqueni, esperto e prudente, decretou leis apropriadas ao génio
dos seus súbditos e, uma vez fortalecido o seu domínio por meio delas,
deu o nome do reino às províncias conquistadas.
Depois dividiu o reino em comarcas, que distribuiu pelos seus
parentes e pelos seus partidários, os quais, emulando as suas façanhas
com igual valor, dilataram os seus territórios. Desta maneira se formou o
vasto reino chamado "Congo", dividido hoje em três: Angola, Matamba e
Congo propriamente dito. Todos os seus parentes e amigos o seguiram
nos seus empreendimentos. Ficou só um trio materno senhor de Bata, que
então era reino.
Emini-a-Nzima, por fim, morreu, não se sabe se satisfeito por ser o
pai de Luqueni, se invejoso de um rival. Uma coisa é certa: tendo passa-
do toda a sua vida na idiolatria, não salvou a sua alma. Todavia, por esta
desgraça, dele e de inumeráveis outros idólatras que não tiveram a sorte
dos seus descendentes de serem iluminados pela luz da verdadeira fé,
sempre teremos razão para nos compadecermos deles, em vez de os con-
denarmos. Foi-lhes feito um enterro conveniente, como a quem pretendia
ser rei, visto sê-lo já o seu filho Luqueni.
De Nsacu-Lau, avô materno acima nomeado, descendem os duques
de Bata. Estes, antigamente, visitavam o rei só de quando em quando e fazi-
am-no pessoalmente ou por meio de delegados, levados apenas por conve-
niência. Em seguida, porém, por o rei se ter tornado mais forte, aumentou

49 J. A. Cavazzi de Montecúccolo - op. cit., vol 1, p. 230-232.

513
RUI DE SOUSA MARTINS

neles o medo de serem despojados da sua autoridade. Então, prudentemen-


te, entraram no costume comum e submeteram-se completamente à coroa.
Antigamente, este ducado cuja banza ou capital era Anguirima, era
muito vasto. Há cerca de cem anos que o duque, ao chegar à corte, rece-
beu honras particularmente grandes e o novo título de Neacondiamene
Congo, ou "Avô do Rei do Congo".
Os descendentes de Luqueni, que guardaram valorosamente as suas
conquistas, foram sempre declarados reis e, embora muitos dos seus nomes
estejam esquecidos, há memórias do seu poderio. Portanto, parece prová-
vel que, além dos três reinos de Congo, Angola e Matamba, dominassem
outras regiões, das quais hoje, realmente, continuam a intitular-se reis,
como os reinos de Congo-ia-Mulaza, de Pagelungi, além do Zaire superi-
or, os Anzicos, Loango, Quissama, os Ambundos, Ngoi e Cacongo.
Tudo isto pude eu apreender dos Pretos acerca da origem e da his-
tória dos seus reis durante o tempo em que viveram desconhecidos dos
Europeus e, acrescentaria eu, também de si mesmos"50.

Versão 3:
História Geral das Guerras Angolanas (1680-1681)
de Oliveira de Cadornega.

"Os principios deste reino de Congo, davão delle noticias os con-


quistadores antigos destes reinos de Angola, dizendo que a nação
Mexiconga fora sempre reputada por estrangeiros, avenediça que havião
vindo da terra dentro a dominar aquelle reino; assim como digamos os
romanos, suevos, vandalos, godos, e semi-godos, que ocuparão a nossa
Luzitania, Espanha, e outros reinos e senhorios do mundo, e a gente afri-
cana segunda vez a Espanha, sendo da descendencia dos godos já catholi-
cos, perdendose em tempo del Rey Dom Rodrigo, sendo disto instrumento
a Cava, filha do Conde Dom Jullianes, como relatão as chronicas de
Espanha: assim esta gente Mexiconga, descendo da terra dentro e se enten-
de vierão do senhorio de Congo de Amulaca, se assenhorearão do pedoro-
zo reino do Congo, sendo os naturas delle Ambundos de outra casta"51.

50 António Cadornega, op. cit., vol. 3, p. 188.


51 Idem, p. 276, 277.

514
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

"E porque digamos mais alguma couza deste dilatado sertão do


reino do Congo, diremos o que contou um morador e cidadão que
ainda vive nesta cidade, por nome Francisco Luiz de Murça, capitão
mor que foi da capitania e destricto do rio Dande...E que estando elle
com mais dous portuguezes, que nomea por seus nomes, tambem nego-
ciantes, em Mani Sundi, que se intitula duque, como de feito o he, vie-
rão novas a este senhor, em como hum poderozo aquem chmão rey, por
nome Congo de Amulaza, estava com sua guerra em campo, o qual he
tão poderozo que passa muito alem do rio Coango pella terra dentro,
sem se saber em quem termina seu dilatado senorio; ao qual todos
temem e respeitão pelo muito gentio que tem de guerra e peçonha de
cabonzo com que trazem as frechas e azagayas ervadas, e que em o
ouvindo aquelles gentios nomear, todos lhe batem as palmas, assim
por das suas terras e senhorio proceder a nação Muxiconga, como
havemos tambem dito, como por haver procedido deste senhorio a
geração de alguns dos reys de Congo, como he a rainha may que
ainda vive, doma Anna Mani Mulaza, de quem tomou este appellido,
que foi mulher de Dom Garcia, rey de Congo, chamado o Quimpaco,
e avó de Dom Antonio rey de Congo, o degolado pello nosso exercito
em batalha campal..."52.

Versão 4:
Relato atribuído a Francesco da Pavia (1701).

"Da basse fondamento hebbe principio la Casa Reale (di


Congo), trahendo la sua origine da un fabro sagacissimo et astuto; e,
tutto che retto nelle sue opere, più fino era, però, nelle opportune occa-
sinoni del suo ingrandimento, mentre che, essendo ammesso da Popoli
Conghesi come arbitro delle loro differenze e liti, havendo due uniche
figlie, queste le maritó condue Sig (no) ri d'altre terre convicine; dalle
quali discenderono, poscia, li Ré posteri di Congo, alle cui Famiglie
diede la divisione della Parentela, à una di Chimolaza et all'altra di
Chinpanzo"53.

52 Calogero Piazza, op. cit., p. 248.


53 Luis Jadin, op. cit., p. 468-469.

515
RUI DE SOUSA MARTINS

Versão 5:
Relação de Bernardo da Gallo (1710).

"L'origine des rois du Congo vient d'une femme appelée Né Lucheni


ou Dame Lucheni, née à Coimba de ce coté du fleuve Zaire. Celle-ci vou-
lut un jour traverser le fleuve et impatiente d'attendre beaucoup, elle
insista près du batelier pour qu'il la fasse traverser au plus tôt, d'autant
plus qu'elle était enceinte.
'Mais êtes-vous peut-être, lui répondit l'impatient batelier, reine ou
mère de roi, que vous ne vouliez pas prende patience? attendez que les
autres passent et vous passerez ágalement, vous aussi'.
Né Lucheni se vexa de cette réponse et se mit en colère contre le bate-
lier, elle s'en alla pour cela près de son fils, qui s'appelait Muttinu a Lucheni
et lui raconta tout ce qui lui état arrivé. Le Muttinu a Lucheni, voyant sa
mère troublée et affligée, lui répondit pour la consoler: 'Allez, ma chère
maman, ne vous affligéz plus, tranquillizes-vous, nous remedierons à tout.
Avez-vous été appelée reine ou mère de roi? bien. Vous serez mère de roi au
moins, sinon reine et moi je serait roi, mais non sans royaume'. Ayant ensu-
ite préparé une armée nombreuse, il partit de sa patrie, conduisant avec lui
Né Lucheni, il traversa le zaire et s'arrêta sur l'autre rive du Congo.
Muttinu a Lucheni ayant donc pris peid sur les plages du Congo, il
commença à combattre les habitants du pays. Il alla sur le mont Vunda,
combla la terre un lac qui s'y trouvait et là construisit la cité royale pour
y habiter. C'est de cette façon qu'il conquit facilement les deux royaumes
du Congo et d'Angola. Il envoya ensuite Né Nehenghe, sa soeur, dans le
royaume d'Angola et lui-même resta dans la royaume du Congo, institu-
ant des gouverneurs pour les provinces du royaume. C'est pour cela qu'il
y a une costume superstitieuse au Congo, disant que, outre les ducs, mar-
quis et comtes, qui sont comme gouverneurs des provinces, il y a égale-
ment des seigneurs du pays, appelés Chittoni, lesquels font les cérémoni-
es pour donner possession aux nouveaux gouverneurs. Ils reçoivent des
paysans les prémices des fruits et, de leur propre main, les font ensuit
dégusten à ceux qui les ont offerts.
Les vieux noirs du Congo disent que Muttinu a Lucheni eut deux
successeurs paiens qui vécurent longtemps et le trosième fut baptisé, rece-
vant heuresement les lumiéres de notre sainte Foi catholique. Il reçu cette
grâce spéciale de la façon suivante.

516
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

...Il est necessaire de savoir que deux peuples se trovent dans ce


royaume. Un arrivé, comme immigrant, et l'autre vraiment du pays, celui-
ci composé de soumis ou assujettis et l'autre de dominateurs. Les domi-
nateurs sont ceuxqui vinrent de Coimba avec le premier roi ou Muttinu a
Lucheni et ils s'appellent Essicongo ou nobles congolais habitants de la
cité royale. Les autres, les soumis sont ceux qui se trouvaient dans le pays
et ceux des provinces du royaume, lesquels s'appellent Abhata, Abumba
ou paysans et ruraux54.

2.2. Interpretação das narrativas

2.2.1. Interpretações Historicistas: Migração e Conquista na


origem da formação do Estado Kongo.

Até data recente, as narrações orais sobre o passado eram interpre-


tadas como se fossem documentos históricos ou, pelo menos, como se
tivessem um fundo histórico. A interpretação literal dos textos orais trans-
critos fundamentou a tese de que a fundação e o aparecimento de um
poder político central e de uma capital não se deveram a um processo ori-
ginariamente local, mas a uma influência estrangeira, à vinda de um chefe
conquistador e civilizador, Nimi a Lukeni, que, ajudado por um grupo de
companheiros e recorrendo a alianças matrimoniais, estabeleceu uma
nova ordem jurídica e política, ordem essa que alastrou a partir do centro
criado que se tornou criador e organizador.

Origem do Processo Migratório

Se a mbanza Kongo foi fundada por um chefe estrangeiro, de onde


teria ele vindo? Onde se teria originado o processo migratório fundador
do Estado Kongo?
Este problema das origens, indissociável da interpretação literal das
narrativas, reveste-se do maior interesse, pois não se resume à indagação

54 Idem, p. 481. Transcrevemos a tradução de Jadin corrigida por Calogero Piazza e


John Thornton. Calogero Piazza - La prefetture apostolica del Congo alla metà del XVII
secolo. La relazione inedita di Gerolomo da Montesarchio. Milano, 1976, p. 202, nota 86.
John Thornton - The Kingdom of Kongo, Civil War and transition, 1641-1718. London,
1983, p. 16, 138, nota 7.

517
RUI DE SOUSA MARTINS

do local de onde teria partido Nimi a Lukeni, mas tem a ver, sobretudo,
com a origem do modelo político Kongo. A organização política dos esta-
dos Luba ou Kuba teria tido alguma influência na estrutura do Estado
Kongo ou teria ela vindo antes dos estados Mongo e Tyo? Em resumo, o
fenómeno migratório ter-se-ia organizado no Leste ou no Norte (mapa 3)?
Sobre esta questão existem duas posições fundamentais. A primei-
ra, que já encontramos formulada na "História do Reino Congo" (Ms.
8080), afirma que o Ntinu Wene teria vindo do Estado Vungo (Bungo) que
ficava a Norte do rio Zaire. Num documento de 1624, o reino Vungo
(Bungo) era considerado tronco e origem [...] dos Reis do Congo55. Na
opinião de Cuvelier, defensor desta tese, ce pays de Vungu correspondait
à ce que nous appelons actuellement le Mayombe ou à une grande porti-
on de ce territoire56. Adoptando esta posição, Doutreloux não só precisa
a localização do chefado Vungu como afirma que o Estado Kongo foi fun-
dado no fim do século XV por uma migração do grupo Yombe57. E daí
extrai uma controversa ilação: La culture et la structure socio-politique du
Roayume de Congo dérivent directement de la culture et de l'organisati-
on socio-politique Yombe et doivent s'expliquer en référence à celles-ci58.
A formação de estado não se explica agora pela acção de um chefe
estrangeiro. Todo o sistema sócio-cultural Kongo deriva directamente dos
Yombe, etnia estudada por Doutreloux, e que seria a chave dos mistérios
estruturais do velho Reino africano, o qual, no seu período áureo, teria
exercido influência pelo menos de Stanley-Pool ao rio Kwanza. E, assim,
o chefe civilizador foi substituído pela etnia explicativa.
Todavia, pensamos que, à semelhança das velhas "arcas do tesou-
ro", o complexo Estado Kongo exige múltiplas "chaves" a quem quiser
tentar compreender os seus segredos.

55 Paiva Manso - História do Kongo. Lisboa, 1877, p. 177.


56 Cuvelier - L'ancient royaume de Congo. Paris, 1946, p. 251.
Vansina defendeu a hipótese de uma origem setentrional do Estado Kongo e, conside-
rando as etapas da conquista tal como foram descritas por Pigafetta, afirma que dificil-
mente os invasores do Kwango passariam por Mbata e Mpangu, sendo mais lógica a tra-
vessia do rio Zaire e a ocupação directa da região de Mpemba. Vansina - Notes sur l'ori-
gine du Royaume de Kongo. "Journal of African History", Cambridge, 4 (1), 1963, p. 36,
37. Calogero Piazza, op. cit., 255-259.
57 Albert Doutreloux - L'ombre des fétiches, société et culture Yombe. Paris, 1967, p. 37.
58 Idem, p. 33.

518
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

Nenhuma das etnias Yombe, Mpangu, ou Nsundi, estudadas respec-


tivamente por Doutreloux, Van Wing e Karl Laman, em trabalhos de enor-
me mérito, pode explicar por si só toda a complexidade sincrónica e dia-
crónica do Estado Kongo e dos outros estados com ele relacionados.
O Vungu não foi o único lugar apontado como origem do chefe con-
quistador.
O missionário capuchinho Girolamo da Montesarchio, na impor-
tante relação Viaggio del Congho, datada de meados do século XVII, diz
que o primeiro rei Kongo partiu de Coimba e atravessou o Zaire para fun-
dar o seu Estado59. É esta igualmente a informação legada por Bernardo
da Gallo (1710)60.
Mas onde se situava Coimba?
Para Cavazzi, a província de Coimba (Coimba) é uma parte do
reino do Cuango61, localização perfilhada por Cadornega para quem a
nação Muxiconga procede das terras e senhorio do Congo de Amulaca
(Amulaza), cujo território se estendia muito para lá do rio Kwango62.
Note-se que Cadornega se baseou em informações recolhidas por um
comerciante português em Nsundi63.
59 Calogero Piazza - La prefettura apostolica del Congo alla metà del XVII secolo, la
relazione inedita di Girolamo da Montesarchio. Milano, 1976, p. 195, 196.
60 Louis Jadin - Le Congo et la secte des Antoniens. [...], p. 468.
61 Cavazzi, op. cit., vol. 1, p. 230.
Cuvelier critica a informação de Cavazzi, afirmando que este utilizou o manuscrito de
Montesarchio, transcrevendo Corimba em vez de Coimba. Cuvelier, op. cit., p. 251. Não
há dúvida que Cavazzi leu o texto do Pe. Jerónimo de Montesarchio com quem aliás con-
viveu, mas é o próprio autor da "Descrição Histórica" que nos informa ter ouvido a des-
crição da origem e história dos primeiros reis do Kongo da boca dos próprios autóctones.
Sobre as relações entre os dois missionários capuchinhos, leia-se o excelente trabalho de
Leite de Faria in Cavazzi, op. cit., vol. 1, p. XXVIII, XXIX.
Vansina para diminuir o valor da narrativa de Cavazzi escreveu que este nunca "pôs os
pés no Kongo". Ora isto não é verdade, pois sabemos que Cavazzi foi a Sonyo entre 1664
e 1666.
Vansina - Notes sur l'origine du royaume Kongo. "Journal of African History".
Cambridge, 4 (1), 1963, p. 33. Cavazzi, op. cit., vol. 1, p. XXIII e 101.
62 Cadornega, op. cit., vol. 3, p. 276, 277.
O rei D. Álvaro II (-1614) intitulava-se senhor de várias regiões, entre as quais se con-
tava o "Congo, Riamullaza" (Congo ria Nlaza). Brásio - Monumenta missionária africana,
vol. 3, Lisboa, 1953, p. 238 (doc. de 1583). Brásio - Monumenta [...], vol. 5, Lisboa, 1955,
p. 121 (doc. de 1604).
63 Idem, p. 276.

519
RUI DE SOUSA MARTINS

A versão de Cavazzi - Cadornega foi divulgada por Ravenstein64 e


sobretudo por Van Wing65, encontrando eco ainda em outras obras66. Em
apoio desta tese, Van Wing cita tradições recolhidas entre os Mpangu,
onde se diz que os fundadores do Kongo di Ntotila vieram do Kwango67.
E, quanto à ideia de uma origem Vungu, afirma que esta seria apenas a
localidade de onde veio uma linhagem de reis68.
Mas Cuvilier utiliza o mesmo tipo de argumento para contradizer a
tese exposta, ao afirmar que o erro de Cavazzi e Cadornega proviria do
facto de reis originários de Leste terem estado no poder na época em que
esses autores escreveram69.
O próprio Cadornega parece sustentar parcialmente esta posição, ao
escrever que do Congo de Amulaza procedeu a nação Muxiconga e tam-
bém "...a geração de alguns dos reys de Congo, como he a rainha may
que ainda vive, dona Anna Mani Mulaza..."70.
Balandier tentou resolver o problema, conciliando as duas posições
e explicando-as pelo facto de estarem relacionadas com momentos dife-
rentes da história Kongo e com genealogias reais que não tinham a mesma

64 Ravenstein - The strange adventures of Andrew Battell of Leigh. Haklyut Society,


1901, p. 102, 103.
65 Van Wing - Études Bakongo [...], p. 27-30.
66 Baumann e Westermann - Les peuples et les civilisations de l'Afrique. Paris, 1970,
p. 174. Laman - The Kongo, vol. 1, Uppsala, 1953, p. 8-10.
Laman subscreve algumas teses de Torday e Joyce, segundo as quais os Kongo teriam
vindo da região do lago Chade. As ideias destes dois investigadores estão hoje completa-
mente postas de lado e não nos deteremos sobre elas.
Lamal relaciona Nsuku (Mpuku a Nsuku, Npu-cuan-sucú) com Musuku, população
vizinha do Kongo dia Nlaza. Lamal - Basuku et Bayaka [...], 1965, p. 22, 23.
Plancquaert levantou o problema de Nzima (Emini a Nzima, Eminia-n-zima) ser equi-
valente a ndzima, pele da civeta usada como insígnia pelos Kalamba, "chefes da terra" dos
Yaka. Plancquaert - Les Yaka, essai d'histoire. Tervuren, 1971, p. 28, 126.
Contudo, a tradução que Lamal e Plancquaret fizeram do segundo parágrafo do texto
de Cavazzi transcrito não nos parece correcta. Pode ler-se o original em Calogero Piazza
- Alcuni tradizioni oralli [...], p. 241.
67 Van Wing, op. cit., p. 28, 29.
68 Idem, p. 30.
69 Cuvelier, op. cit., p. 251.
70 António Cadornega, op. cit., vol. 3, p. 277.

520
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

origem71. Estaremos perante duas interpretações clânicas (locais) da his-


tória étnica (universal) dos Kongo?
A questão das origens do Estado Kongo parece-nos insolúvel a
nível da interpretação literal das tradições orais e esta ideia tem-se vindo
a impor entre os investigadores da história africana. No que respeita às
posições tradicionais, que continuam a ter acesos defensores, tem vindo a
ganhar terreno a tese da origem setentrional72.

Lukeni: O Herói Revoltado e Homicida

Vejamos agora como as tradições orais explicam e justificam a


migração do herói-fundador e dos seus companheiros.
Na Versão 1 (H.R.C.), Ntinu Wene (Lukeni) rompe com a autoridade
do chefe-rei, seu pai, a quem pretendia substituir, e afasta-se para conquistar
o seu próprio domínio. Na Versão 2 (Cavazzi), Lukeni mata a tia que estava
grávida, varando-lhe o ventre. Em consequência do facto é proclamado rei
e, abandonando a autoridade do pai, inicia a gesta da conquista do seu reino.
Na Versão 3 ( da Gallo), a mãe de Ntinu a Lukeni, também grávida, foi rude-
mente insultada por um barqueiro, o que levou Lukeni a preparar um exér-
cito e a conquistar um reino, tornando-se a progenitora rainha-mãe.
Estes fragmentos narrativos têm levantado controversos problemas
que se prendem com o seu fundo histórico, com a natureza da revolta de
Lukeni, assim como a da violação cometida, e ainda com a procura de uma
interpretação adequada para a função das personagens em cena.
As acções narradas não são consideradas factos históricos, mas sim
fabulações de carácter etiológico que pertencem ao universo mítico dos
Kongo. Apesar disso, historiadores e etnólogos têm-se esforçado por des-
cobrir nelas um fundo histórico e por analisar as personagens e os factos
imaginários à luz da realidade cultural conguesa.

71 Georges Balandier - La vie quotidienne au royaume de Kongo. Paris, 1965, p. 19.


72 Segundo Miller "... notions of political authority diffused from the Tio to Kongo-spe-
aking lineages on the north bank of the Zaire and from there to the southern Kongo liking
between the lower and the ocean. Centralization became more pronounced south of the
river where a line of fourteenth- and fifteenth-century titleholders know as many Kongo
incorpored other noble titleholders in a small kingdom". Miller - Equatorial Africa.
Washington, 1976, p. 19.
Note-se que Miller fala em circulação de ideias e não em migração de povos.

521
RUI DE SOUSA MARTINS

Na origem das narrativas e de acordo com o próprio texto, deve ter


existido um facto histórico: a sucessão ou revolta de Lukeni73.
Nas Versões 1 e 2, o Ntinu Wene rompe com a autoridade do pai,
figura que tem sido interpretada de diversas formas. Para Calogero
Piazza, o pai de Lukeni não era o pai natural, mas sim o tio materno
(Nqwa Kazi), irmão mais velho da mãe e chefe da matrilinhagem. Na
Versão 5, o tio materno está presente na figura do barqueiro74. Nesta
perspectiva, Lukeni, na qualidade de sobrinho uterino, era herdeiro e
sucessor de Nimi a Nzima, embora a sucessão fosse pouco provável,
visto ser mais jovem que os irmãos (V. 1). Esta interpretação de
Piazza, apesar do seu fundamento etnológico, não recebe apoio do
texto da narrativa e acaba por cair no domínio das suposições.
O sociólogo António C. Gonçalves, baseando-se nos estudos de
Doutreloux sobre os Yombe75, dá-nos uma interpretação bem diferen-
te da Versão 1. A relação "pai-filho" não é aqui uma relação de paren-
tesco natural, mas antes uma relação sócio-política, traduzida em ter-
mos de parentesco. "Pai" (taata) é o título adquirido por um chefe que
dá uma parte da terra, a investidura do poder e a autonomia a um súb-
dito que, por sua vez, adquire o título de "filho" (mwana)76.

73 Randles - L'ancien royaume du Congo, des origines à la fin du XXe siècle. Paris,
1968, p. 18. António Gonçalves - Poder doméstico e poder político: duas vertentes com-
plementares do processo político numa sociedade tradicional. "Economia e Sociologia",
Évora, 36, 1983, p. 11.
74 Calogero Piazza - Alcuni tradizioni oralli [...], p. 243, 244. Podemos relacionar a
figura do barqueiro (V. 5) com Emini-a-Nzima (V. 2) que controlava uma zona de passa-
gem obrigatória no rio Zaire.
75 Referimo-nos especialmente à descrição das formas de ocupação da terra, tsi.
Doutreloux - L'Ombre des fétiches, société et culture Yombe. Paris, 1967, p. 42, 44, 45,
153, 154.
76 António C. Gonçalves - Poder doméstico e poder político: duas vertentes comple-
mentares do processo político numa sociedade tradicional. "Economia e Sociologia", 36,
1983, p. 11, 14, 18.
"É na qualidade de "filho" do chefe Vungu que Lukeni recebe uma parte do domínio
de seu "pai" e que o seu grupo se torna autónomo". Idem, p. 33.
Segundo Doutreloux, a circulação do poder cria uma hierarquia dos chefes e dos res-
pectivos grupos e este sistema de relações esboçou no passado estruturas do tipo estadual.
Doutreloux, op. cit., p. 154.

522
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

Como a ascensão de Lukeni no seio do matrigrupo seria difícil, este


não teve outra alternativa senão procurar uma nova terra e o apoio do
"pai" que lhe transmitisse o poder sagrado77.
A tese de António Gonçalves é aliciante, mas podemos acrescentar
que as relações de parentesco sócio-político não existem apenas entre
chefe investidor e chefe investido. Nos chefados do Noroeste de Angola,
o chefe é considerado convencionalmente "pai" de todos os subditos que,
por sua vez, se afirmam seus "filhos"78. O chefe supremo é a projecção no
plano político da figura do pai.
Tanto na interpretação de Piazza como na de Gonçalves, a cisão de
Lukeni foi com a sua matrilinhagem.
Na nossa opinião, a rotura do herói foi com o chefe a que estava
sujeito, solucionando-se deste modo a rivalidade existente. E isto inde-
pendentemente de quais quer relações de parentesco que seja possível
detectar entre ambos. O que se descreve é a rotura do novo chefe com o
seu predecessor: o novo reino separa-se do reino antigo.
Porém, o rompimento com o pai está relacionado com transgressõ-
es cometidas contra a tia e contra a mãe do Ntini Wene. A tia morta por
Lukeni (V. 2) e a mãe de Lukeni insultada pelo barqueiro (V. 5) são para
Randles rainhas-mães: a primeira do reino do passado e a segunda do
reino do futuro79. Segundo Calogero Piazza, existe igualmente uma
homologia entre as duas figuras femininas ligadas à maternidade e que
representariam a matrilinhagem de que descende o herói80.
Inclinamo-nos para a interpretação de Randles. As duas personagens
femininas identificam-se simbolicamente com a "rainha-mãe", uma mãe
classificatória e titulada que desempenhava funções de carácter ritual, liga-
das às mulheres e à fertilidade81. Portanto, pensamos que esta "mãe" insti-
tuída não se relaciona especificamente com a matrilinhagem de Lukeni.

77 António C. Gonçalves, op. cit., p. 17.


78 A título de exemplo, veja-se o que afirma inequivocamente David Magno sobre os
Ndembu. David Magno - Etnografia dos Dembos. "Trabalhos da Sociedade Portuguesa de
Antropologia e Etnologia", Porto, 1 (3), 1921, p. 49.
79 Randles - L'ancien royaume du Congo [...], p. 18. Para Randles, as transgressões são
simples invenções etiológicas para justificar uma cisão provocada por motivos que se
ignoram. Idem.
80 Calogero Piazza, op. cit., p. 244.
81 Infra, cap. 4.2.

523
RUI DE SOUSA MARTINS

E chegamos finalmente ao delicado problema das transgressões


cometidas: qual a sua natureza e quais os seus significados?
Antes, porém, deveríamos recordar a preciosa tradição sobre a ori-
gem do Estado Nsoyo, recolhida entre os Solongo pelo missionário S. Sp.
Gil Marchal, onde encontramos novamente o tema de homicídio da tia
grávida: Nzinga, sobrinho do Mwene Kongo, matou Nkaku a Lubumbu,
uma das mulheres do tio, que estava grávida, abrindo-lhe o ventre, e pôs-
se em fuga para a região do Nsoyo, onde viria a estabelecer o seu domí-
nio82. Henrique Abranches e Simão Souindoula, que se debruçaram sobre
esta tradição Solongo, pensam que o crime de Nezinga não é verdadeira-
mente um crime...ele é antes a violação de uma série de tabus - o tabu do
sangue, a proibição do incesto: esta violência sanguínia para com a tia é
um acto de significado incestuoso83.
Não nos parece que a interpretação de Abranches-Souindoula este-
ja correcta, pois matar a tia não é a mesma coisa que estabelecer com ela
um contacto sexual, ainda que ritualizado, e nada nos indica que o homi-
cídio mascare ou simbolize um acto incestuoso.
Laura Makarius já se tinha debruçado sobre o texto de Cavazzi e
explicou o homicídio da tia grávida como uma dupla violação de tabu:
assassínio de uma parente e de uma mulher grávida84.
A leitura de Makarius abre o caminho certo, mas é ainda insufici-
ente. A acção de Lukeni é, segundo pensamos, mais complexa e profunda
nas suas consequências e significados.
82 Gil Marchal - Origem da raça Solongo (Zaire) segundo a lenda. "Portugal em
África", Lisboa, 4 (20), 1947, p. 78-86. Lembramos que Cavazzi esteve também na região
Solongo. Supra, nota 42.
83 Henrique Abranches e Simão Souindoula - Comentário à tradição Nezinga.
"Revista Internacional de Estudos Africanos", Lisboa, 1, 1984, p. 190.
Na perspectiva de Abranches-Souindoula é patente a influência dos trabalhos de Luc
de Heusch, um especialista da "civilização interlacustre" e que estudou o incesto ritual dos
Kuba, Lele, Ganda, Nyoro, Shilluk e Lunda. Na literatura etnológica, o incesto tornou-se
a pedra angular da realeza tradicional africana. No entanto, estudos recentes (Claessen)
negam que o incesto real seja uma característica geral dos estados negro-africanos e põem
em causa a sua importância fora dos Kuba e Swazi. Luc de Heusch - Essais sur le symbo-
lisme de l'inceste royal en Afrique. Bruxelles, 1985. Idem - Aspects de la sacralité du
ouvoir en Afrique, in: "Le pouvoir et le sacré". Bruxelles, 1962, p. 140-158. Idem - Le roi
ivre ou l'origine de l'Etat. Paris, 1972. Henri Claessen - Specific features of African early
state, in Claessen e Skalnik eds. "The study of the state". Paris, 1981, pp. 66, 67, 77.
84 Laura Makarius - Le sacré et la violation des interdits. Paris, 1974, p. 161.

524
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

O acto homicida é, em primeiro lugar, a violação do tabu do san-


gue85, cumulativamente agravado por a vítima ser mulher86, estar grávi-
da87, ser uma parente88, pertencer à família real89 e ter morrido90. Lukeni
praticou um acto violento de feitiçaria maléfica, da máxima gravidade,
que pôs em causa toda a ordem social nos seus valores fundamentais.
Desta forma, não só se separa das estruturas de parentesco como se dis-
tancia da ordem normal da sociedade, colocando-se num plano superior e
adquirindo um poder mágico de poderosa eficácia. Mas, paradoxalmente,
a intenção última do acto maléfico não é anti-social, pois visa a instaura-
ção de uma ordem nova através da obtenção da máxima autoridade autó-
noma e legítima que, se por um lado, é benéfica, por ser fonte e garantia
de ordem, fertilidade e prosperidade geral, por outro, é perigosa em extre-
mo, pois o seu detentor pode fazer correr o sangue mesmo dos próprios
parentes. O acto de feitiçaria homicida, colocado ideologicamente na ori-
gem do poder, assim como as suas consequências explicam em grande
parte a imagem terrífica do chefe nos chefados do Noroeste de Angola.
Todavia a questão não é apenas conceptual e Piazza não deixa de relacio-
nar o homicídio da tia grávida com o matricídio cerimonial que faria parte

85 Frazer - Le rameau d'or, vol. 1, Paris, 1981, p. 626. Laura Makarius - op. cit., p. 668
e segs. Os Kongo acreditavam que a alma residia no sangue. António Brásio - D. António
Barroso, Missionário, cientista e missiólogo. Lisboa, 1956, p. 130, 131, 132. Van Wing -
Études Bakongo, sociologie, religion et magie. Bruxelas, 1959, p. 135.
86 Frazer, op. cit., p. 628. Algumas normas Woyo publicadas por José Martins Vaz ilus-
tram o especial respeito devido às mulheres. José Martins Vaz - No mundo dos Cabindas,
vol. 1, Lisboa, 1970, p. 219 (i.U, 2.U, 1.V) e vol. 2, p. 40, 41.
87 Frazer, op. cit., p. 568 e seguintes. Entre os Woyo, "a mulher que está para ser mãe
será honrada com muitos presentes e com sinais de gratidão, não só pelo marido, pela
família, mas até por toda a aldeia". José Martins Vaz, op. cit., p. 273.
88 O parentesco aqui pode ser unicamente sociológico. O sacrifício de uma vítima
humana, de preferência um parente próximo, é necessário para o feiticeiro e o chefe obte-
rem o poder mágico. Luc de Heusch - Estructura y praxis, ensayos de antropologia teóri-
ca. Madrid, 1973, p. 212, 213. Estermann - O problema do homicídio ritual no sul da
África, in "Etnografia de Angola (Sudoeste e Centro)", vol. 2, Lisboa, 1983, pp. 35-46.
89 Frazer, op. cit., p. 627. O especial respeito devido às mulheres dos chefes é ilustra-
do por algumas normas Woyo. José Martins Vaz, op. cit., vol. 2, p. 40, 67, 68.
90 Supra, nota 49. Balandier - La vie quotidienne au royaume de Kongo, du XXIe au
XVIIIe siècle. Paris, 1965, pp. 22-25. Entre os Kongo (Woyo) "quem mata deve morrer".
José Martins Vaz, op. cit., vol. 2, p. 50.

525
RUI DE SOUSA MARTINS

da investidura do Mwene Kongo91. Queremos ainda acrescentar que não


são apenas as transgressões mais graves (incesto e/ou homicídio) que
sacralizam o poder, ou, por outras palavras, a feitiçaria maléfica não é a
fonte última de todo o poder mágico-religioso dos chefes, como tem sido
admitido. O poder sagrado era adquirido ao longo do ciclo cerimonial da
investidura, onde, para além da prática de uma ou mais transgressões, vio-
lentas ou não, avultavam as unções, através das quais o chefe entrava na
posse dos espíritos ctónicos, assim como o culto dos antepassados-chefes
e a imposição das insígnias dotadas de poder mágico92.
Na Versão 5, a transgressão não foi cometida por Lukeni, mas sim
pelo terceiro elemento da tríade: o barqueiro. A vítima não é a tia grávida,
mas a própria mãe também grávida. A consequência fundamental é a
mesma: Lukeni torna-se chefe e conquista o seu domínio. A este facto
junta-se um novo dado: a mãe adquire uma posição diferente e superior, a
de rainha-mãe.
Enquanto Piazza é da opinião que, tal como no homicídio, a injúria
consuma a rotura de Lukeni com a matrilinhagem93, nós vemos no insul-
to do barqueiro um comportamento ritual de margem que define uma situ-
ação de liminaridade da "mãe" de Lukeni em trânsito para uma situação
superior, onde será dotada de mais poderes94.

O Ferreiro Primordial: Forjar as Lanças, as Enxadas e o Estado

A Versão 4 (Francesco da Pavia, 1701) é na realidade bem diferente das


que temos vindo a analisar, pois não fala em invasão nem cita o herói Lukeni,
mas esclarece que o primeiro Mwene Kongo foi um ferreiro inteligente e astu-
to, aceite pelo povo como juiz, e pai de duas filhas que estão na origem dos
clãs Mpanzu e Nlaza de que descendem os reis posteriores do Kongo.
A referência aos clãs Mpanzu e Nlaza, cuja rivalidade alimentou a
guerra civil no Kongo (1665-1710), reflecte as preocupações da época em

91 Piazza - Alcuni Tradizioni oralli [...], p. 245. Sobre o problema do homicídio ritual
no Estado Kongo, infra, cap. 5.
92 Infra, cap. 4.2 e cap. 5.
93 Piazza, op. cit., p. 245.
94 Sobre o conceito de rito liminar ou de margem, Arnold Van Gennep - Les rites de
passage. Paris, 1981, p. 24.

526
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

que o relato foi escrito e não se relaciona propriamente com o problema


das origens do estado conguês95.
O chefe-fundador surge agora na qualidade de bom juiz, atributo
que devia ter grande valor ideológico, nomeadamente se pensarmos que o
Mwene Kongo gozava de importantes poderes judiciais, competindo-lhe a
resolução justa dos mais graves litígios. Além disso, na época em que a
narrativa foi escrita, fazia-se sentir imperiosamente a necessidade de um
chefe conciliador que restaurasse a ordem do Estado.
Porém, o que mais tem chamado a atenção dos investigadores é
ter-se atribuído ao chefe primordial o exercício da arte de ferreiro. E a
tradição corrente no Kongo não só considerava o chefe-civilizador como
um artífice do ferro como lhe atribuia a invenção ou introdução da meta-
lurgia. Ouçamos Cavazzi (1671): O mais considerado dos artífices é o
serralheiro, pois uma arte é tanto mais estimada quanto mais necessária.
Além disso, acredita-se que o inventor desta arte fosse um dos primeiros
reis do Congo96. Wannyn, que percorreu o Baixo Congo de 1931 a 1941,
interessou-se por este problema e fez numerosas indagações junto da
população...Les réponses à nos centaines d'interrogations sont concor-
dantes: le premier ntotela a été "maître de forges", sinon forgeron97. A
questão ganha renovado interesse ao constatarmos que importantes esta-
dos a sul do rio Zaire foram fundados, segundo a tradição, por chefes
inventores da metalurgia do ferro. Os Nsundi afirmam sobre o seu chefe
primordial: He was Mansundi, who descended with his bows, dangers,
other knives and all sorts of edged tools. It is he who has produced them.
If it had not been for they would not have existed98. Cavazzi (1617)
transmite-nos elementos concordantes sobre o primeiro chefe Ngola:
Dizem os naturais que este foi um tal Ngola-Musuri, o que quer dizer
"rei serralheiro", a quem um ídolo teria ensinado a arte fabril99. Para

95 Van Wing - Études Bakongo [...], p. 28. Paiva Manso - História do Congo, Lisboa,
1877, p. 310 (documento de 1691). Jadin - Le Congo et la secte des Antoniens [...], p. 474,
480 (relação de Bernardo da Gallo, 1710).
96 Cavazzi - Descrição Histórica [...], vol. 1, p. 164. "Os serralheiros, porém, têm a
supremacia sobre todos, por ser esta a arte dos primeiros reis do Congo". Idem, p. 127.
97 Wannyn - L'art ancien du métal au Bas-Congo. Champles par Wavre, 1961, p. 59.
98 Karl Laman - The Kongo, vol. 1, Uppsala, 1953, p. 16.
99 Cavazzi, op. cit., vol. 1, p. 253.

527
RUI DE SOUSA MARTINS

os Kuba, foi Woot, o primeiro chefe, que criou as mais importantes ins-
tituições sociais e inventou a arte do ferro100.
Nas interpretações historicistas de Balandier e Calogero Piazza, a
fundação do Estado Kongo, por volta do século XIV, estaria relacionada
com a introdução de tecnologia dos metais que se tornou um privilégio
real e aristocrático101. Teria sido precisamente a superioridade tecnológi-
ca, ligada ao conhecimento da metalurgia e ao uso de armas de ferro, que
teria permitido aos guerreiros de Ntinu Wene submeter as populações pré-
existentes e instaurar a organização do novo Estado102.
Foi Plancquaert quem abalou os alicerces desta tese consagrada,
negando a existência de qualquer ligação entre os citados chefes-civiliza-
dores e o início do uso do ferro, pois a data atribuída à fundação dos esta-
dos da savana é muito recente e a Idade do Ferro teve início em épocas
mais recuadas. Levantou também as seguintes hipóteses: os primeiros
chefes teriam incorporado clãs de primitivos fundidores nos seus estados;
teriam adoptado os seus títulos ou divisas; ou poderiam descender
deles103.
Concordamos com Plancquaert ao dissociar a fundação do Estado
Kongo do início da Idade do Ferro no Noroeste de Angola e regiões vizinhas.

100 Luc de Heusch - Le roi ivre ou l'origine de l'Etat. Paris, 1972, p. 127.
No Ruanda, a invenção da arte de forjar é atribuída ao rei fundador Gihanga. Luc de
Heusch - Rois nés d'un coeur de Vache. Paris, 1982, p. 52-54, 190-194.
101 Balandier - La vie quotidienne du royaume de Kongo. Paris, 1965, p. 23, 97, 98.
Piazza - Alcuni tradizioni oralli [...], p. 248, 249.
102 Piazza - op. cit., p. 248, 249. R. Cornevin - Histoire de l'Afrique, vol. 2. Paris,
1967.
103 Plancquaert - Les Yaka, essai d'histoire. Tervuren, 1971, p. 12. Devemos distin-
guir os migrantes de língua Bantu, que inicialmente teriam culturas da Idade da Pedra e
utilizavam cerâmica, dos pioneiros da Idade do Ferro que são posteriores. Pensamos que
no Noroeste de Angola devem ter existido, sucessivamente, várias culturas da Idade do
Ferro e que os Kongo não se identificam com os pioneiros da metalurgia. Em Angola
(Luanda), a cultura cerâmica dos concheiros, considerada posterior ao paleolítico, foi data-
da, pelo C. 14, do século I (140 a.d.).
Santos Júnior e Carlos Ervedosa - A estação Arqueológica de Benfica (Luanda-
Angola). "Ciências Biológicas", 1 (1), Luanda, 1970. Pierre de Maret - Sanga: excavati-
ons, more data and some related problems. "Journal of African History", Cambridge, 18
(3), 1977, p. 331. Maret, Van Noten, Cahen - Radiocarbon dates from West Central Africa:
A Synthesis. "Journal of African History". Cambridge, 18 (4), 1977, p. 495.

528
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

Estas questões terão de ser resolvidas pela arqueologia e o problema crono-


lógico terá de ficar em aberto até obtermos datações seguras pelo C. 14.
A adopção, por um ou vários chefes, de divisas, emblemas ou até
de clãs ligados à metalurgia, quer nos primórdios quer num determinado
momento da existência do estado, relacionada ou não com transformaçõ-
es tecnológicas e formulada nas tradições orais, pode ser um caminho da
solução, muito embora nos leve a outras questões respeitantes à socieda-
de Kongo: que ligação tinha o chefe com a arte do ferro? Qual a situação
social do ferreiro? Que relações existiam entre chefes políticos e mestres
metalúrgicos?
Sabemos que o Ntinu Wene usava o título de ngangula a
Kongo104 e entre as suas insígnias contavam-se miniaturas do martelo-
bigorna (nzundu) dos mestres forjadores, um apito de ferreiro (sembo a
musuri) e ainda diversos objectos em metal (ferro e cobre), saídos das
mãos dos hábeis artífices do fogo e do ferro. Uma relação do século
XVII, escrita pelo Cónego André Cordeiro, ao descrever as cerimónias
de investidura do Mwene Kongo, refere que nelas figuravam três
homens, cada um dos quais segurando um par de jinzundu que, entre-
chocados de quando em vez, imitavam o som produzido pelos forjado-
res. O autor sublinha que o nzundu era insígnia real, muito antiga que
só podia ser usada pelo rei e pelo Mwene Mbata105. O martelo-insígnia
está ainda presente na designação Kongo Mbangala Nzundu atribuída a
um local situado entre os rios Tawa e Kwilu, onde teria existido a pri-
meira capital dos Kongo106.

104 Ngangula significa ferreiro nas línguas Kikongo e Kimbundu. Wannyn - L'art
ancien du métal [...], p. 10.
105 António Brásio - O problema da eleição e coroação dos reis do Congo, in "História
e Missiologia", Luanda, 1973, p. 235.
Num mito Kuba é a posse do martelo do ferreiro que legitima o poder do chefe. Luc
de Heusch - Le roi ivre [...], p. 135, 136.
O martelo de forja era também uma das insígnias dos chefes do Rwanda. Luc de
Heusch - Rois nés [...], p. 187 a 190.
106 Plancquaert - Les Yaka, essai d'histoire. Tervuren, 1971, p. 12, 18, 37, 48, 49. Tari
dia Nsundu (Pietra d'Inzondo), ("chefado Bamba-Lubota") era o nome de um monte forti-
ficado onde em 1764 se refugiou o rei D. Pedro V (1763-64). Jadin - Aperçu de la situati-
on du Congo et rite d'election des rois en 1775, d'après le P. Cherubino da savana, missi-
onnaire au Congo de 1759 à 1774. "Bulletin de l'Institut Historique Belge de Rome",
Bruxelles, 35, 1963, p. 6, 31 e 35.

529
RUI DE SOUSA MARTINS

Hoje sabemos que, nem mesmo no século XVII, o uso do martelo-


insígnia foi privativo do Mwene Kongo e do Mwene Mbata. Em 1699 o
missionário capuchinho Luca da Caltanisetta observou que o "chefe da
terra" de Baka (Nzonzo; Tsotso?) utilizava como insígnia "dois bocados de
ferro" que, por vezes, batia um contra o outro para se fazer reconhecer107.
Temos poucas dúvidas em afirmar que se tratava de miniatura do nzundu.
O "chefe da terra" de Baka, que na mesma altura praticou diversos ritos
propiciatórios de uma passagem segura no rio Inkisi, devia ser um alto
dignitário religioso108. Até ao nosso século, os chefes investidos dos
Ntandu109 usaram como insígnia dois jinzundu em miniatura e, quando
bebiam vinho de palma, pousavam-nos aos pés e lançavam ritualmente
sobre eles uma pequena porção110.
O apito sembo ansuri (apito de ferreiro), tocado por um homem
coberto do nariz para baixo (mascarado?), era outra das insígnias usadas
no século XVII pelo Ntotila111.
Entre os Kongo (Vili, Yombe, Nsundi), os apitos mágicos (nsiba), por
vezes ornamentados com primorosas esculturas, eram usados exclusivamente
por homens iniciados (chefes investidos, chefes de clã, caçadores importantes,
especialistas mágico-religiosos) para solicitar os espíritos benéficos112.
Mas, além disso, o Mwene Kongo tinha insígnias que, não sendo
utensílios de forja, eram de metal, nomeadamente de ferro, e a sua feitura
dependia da arte dos ferreiros. É o caso das cadeias de ferro com penden-
tes que o Ntotila envergava a tiracolo já no século XVI, também usadas
pelo Mwene Mbata, pelo Mwene Vunda113 e, segundo leva a crer, pelos
chefes políticos principais114.

107 François Bontinck - Diaire Congolais (1690-1701) de Fra Luca da Caltanisetta.


Louvain, 1970, p. 163.
108 François Bontinck , op. cit., p. 164, 165 sobre o problema dos "chefes da terra",
infra cap. 4.3.
109 Supra, cap. 1, nota 8.
110 Mertens - Les chefs couronnés chez les Bakongo orientaux. Bruxelles, 1952, p. 81,
82.
111 António Brásio - O problema da eleição [...], p. 235.
112 Raoul Lehuard - Les phemba du Mayombe. Paris, 1976, p. 66, 67.
113 António Brásio - O problema da eleição [...], p. 235.
114 Willy Bal - Description du royaume de Congo et des contrées environnentes [...],
p. 43.

530
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

Durante a investidura, o dignitário consagrado colocava no braço


do Ntotila uma "...ma lunga de ferro dourada inteira, e lhe dizem que
aquella ma lunga significa o Reino que lhe dão, que he inteiro e que intei-
ro o [h]ade deixar; e que asi como a ma lunga [é] de ferro, he o Reino de
ferro, que por isso se chama Congo riactari, que he o mesmo que o Congo
de ferro..."115.
Totalmente em ferro era a dupla sineta (ngonge), insígnia que anun-
ciava a presença dos grandes chefes políticos e convocava as suas gentes.
Dois outros símbolos de poder da maior importância, a espada (mbele a
lulendu) e a lança rituais, tinham lâminas de ferro116.
Mas os ferreiros Kongo não se distinguiam apenas pela manufactu-
ra de certas insígnias de poder. Eles eram os hábeis fundifores do ferro e
do cobre, praticando mais tarde a fundição do chumbo, do estanho, do
latão e até da prata. Forjavam os utensílios agrícolas e as armas usadas
tanto na caça como na guerra. A sua actividade revestia-se da maior
importância económica e a capacidade de manipular conjugadamente o
fogo, a água e os metais, sobretudo o ferro, estava ligada a especiais pode-
res e funções de carácter mágico-religioso. Não admira, pois, que tives-
sem uma situação social proeminente que se conservou até data recente.
Nos finais do século passado, John Weeks, que viveu em S. Salvador,
capital do Kongo, podia ainda escrever: "The Blacksmith holds an honou-
rable position among the natives; his forge is regarded as somewhat of a
sacred place, his fire must be treated properly; and his anvil is the object of
respect. There is thought to be something of magic in the skill with which
the blacksmith works the iron, hence his position in village life"117.
Referindo-se aos artífices Solongo (Nsoyo), Lorenzo da Luca relata-
va em 1705: "Les forgerons sont ordinairement des "fidalghi", c'est-à-dire
des nobles, car l'art du forgeron est exercé par la noblesse"118. Os "fidalg-
hi" devem ser entendidos como dignitários investidos e titulados. Além
disso, os mestres forjadores Solongo tinham especiais funções no domínio
da medicina mágica: "Quelqu'un par exemple, souffre d'une maladie. Il va
trouver le forgern, lui donne une rétribution et se fait soufflersur la figure
115 António Brásio - O problema da eleição [...], p. 237.
116 Infra, cap. 5.1.
117 John Weeks - Among the primitive Bakongo (1914). New York, 1969, p. 93.
118 Cuvelier - Relations sur le Congo du Père Laurent de Lucques (1700-1717).
"Mémoire I.R.C.B.", Bruxelles, 32 (2), 1953, p. 140.

531
RUI DE SOUSA MARTINS

à trois repriils répondent que le vent qui sort du soufflet chasse le mal du
corps et leur conserve longtemps la santé"119. Um ferreiro investido no
título de Mwene Masongo, chefe de uma localidade com o mesmo nome,
praticava determinados ritos de protecção no lugar onde iria ser construída
a casa do Mwene Nsoyo: "Le Mani Masongo qui est forgeron fait le tour de
l'emplacement de la maison manoeuvrant ses soufflets. Il y jette aussi de
l'eau, celle qui sert à réfrigérer le fer, afin qu'aucune chose nuisible n'ap-
proche de ce lieu et que le comte et la comtesse se couservent en bonne
santé". Em 1697, Fra Luca de Caltanisetta viu à saída da libata Damba
Bwenze (Nsundi) quatro grandes foles depositados num "altar de feiticei-
ros", o que mostra o carácter sagrado desses utensílios de ferreiro120.
Nos séculos XVII e XVIII o martelo-bigorna era utilizado pelos
forjadores Solongo num ordálio conhecido por "juramento de ferreiro"
(ndefo a nzundu)121. O acusado tinha de lamber o nzundu122 ou então era
obrigado a beber a água usada na lavagem cerimonial daquele utensílio de
forjador123 e, caso não tivesse dito a verdade, morreria.
Por todo o Noroeste angolano, os forjadores tinham o exclusivo
poder de tocar no ferro incandescente sem sofrerem quaisquer queimadu-
ras, sendo por isso chamados a aplicar a "prova do fogo", um ordálio que
consistia em pôr um ferro em brasa em contacto com a pele do acusado
que não se queimaria no caso de estar inocente. Cavazzi informa-nos que
entre os Kongo (Solongo?) este ordálio era aplicado por um feiticeiro cha-
mado mbau, sem dúvida um forjador titulado que agarrava o ferro em
brasa, colocava-o sobre a própria carne e desafiava o acusado a fazer o
mesmo. O ferro incandescente também podia tocar um fio esticado pelo
forjador e pela vítima e que ao romper-se denunciaria o culpado124.

119 Idem.
120 Idem, p. 149.
121 François Bontinck - Diaire congolais (1690-1701) de Fra Luca da Caltanisetta.
Louvain, 1970, p. 70.
122 Salvadorini - La relazione sul Congo di Bonaventura da Corella (1659). "Annali
della Faculta di Scienza Politiche del Universita de gli Studi di Pisa", Pisa, 3, 1973, p. 441.
123 Cuvelier - Relations sur le Congo [...], p. 140. Piazza - Giuseppe da Modena [...],
p. 460.
124 Salvadorini - La relazione sul Congo [...], p. 441. Cavazzi - Descrição histórica
[...], vol. 1, p. 103.

532
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

Ao descrever o rito da eleição do Mwene Kongo em 1775, o Pe.


Cherubino da Savona designa a "prova de fogo" por giuramenti di Báu e
para ele o termo mbau não se refere ao especialista mas ao próprio ferro
incandescente: Báu è un ferro infocato, che costumano i Gentili per pro-
vare la sua innocenza in quelle parti125. Será que o mesmo termo se apli-
cava simultaneamente ao forjador e ao ferro em brasa?
Entre os Suku orientais, a "prova de fogo" era designada Kiyha
mbau (do verbo - yha, ser queimado; - Yoka, queimar): "Un homme est
soupçonné d'adultère ou de vol; il nie. On le conduira chez le forgern
(bembo) qui lui mettra sur le bras une feuille de bananier ou de palmier
(luhusu mayimba) et passera un fer rouge sur le bras. S'il y a brûlure, la
preuve est faite de la culpabilité"126.
Nos povos de língua Kimbundu o "juramento do fogo" estava
igualmente muito divulgado. Cavazzi designa-o por Kilumbu e era feito
com uma "chapa de ferro" (Cavazzi) ou com uma faca (Cadornega) incan-
descentes que o especialista passava sobre a perna do acusado127. Os
Ndembu do estado Kibashi acreditam que o ferreiro (ngangula) pode pas-
sar o ferro incandescente pela perna ou tocar-lhe com as mãos sem ser
afectado por queimaduras. Por isso, era solicitado para aplicar um ferro
em brasa nas costas de uma mulher que fosse acusada de adultério. Os
martelos (Jinzundu), símbolos e detentores de poder mágico-religioso,
eram guardados no templo dos antepassados familiares do ngangula128.
No dembado de Kakulu ka kahenda, "o quimbandeiro é chamado quando
se trata de crimes de pouca importância, o qual aplica ao réu um ferro em
brasa; se na verdade ele for culpado, esse ferro queima-o; no caso con-
trário é considerado inocente. Antes de aplicarem ao corpo do réu o ferro
em brasa, a fim de conhecerem o grau da queimadura que ele pode pro-
duzir, fazem a experiência tocando uma pena de galinha com o ferro"129.
O "quimbandeiro" era, sem dúvida, um ngangula.

125 Cavazzi - op. cit., p. 104.


126 António Brásio - O problema da eleição [...], p. 242.
127 Lamal - Basuku et Bayaka [...], p. 193.
128 Cavazzi - Descrição histórica [...], vol. 1, p. 107. Cadornega - História Geral das
Guerras Angolanas (1680), vol. 3, Lisboa, 1972, p. 322. Dapper refere-se a esta prática,
designando-a por bulunbu. Dapper - Description de l'Afrique. Amsterdam, 1686, p. 372.
129 Elementos recolhidos pelo autor em 1973. Entrevista com João da Silva, Mwene
Mbaji da mbanza Kibashi.

533
RUI DE SOUSA MARTINS

O relacionamento mágico-religioso dos ferreiros com o fogo expli-


ca que os artífices do metal fossem os encarregados de velar pelo fogo
sagrado dos chefes Vili que ardia permanentemente durante o reinado do
Maloango e no fim do qual era extinto. O sucessor renovava o fogo pro-
tector e enviava-o aos chefes subordinados130.
O papel social dos ferreiros foi particularmente bem estruturado por
Mertens que recolheu um conjunto de dados esclarecedores entre os
Ntandu e povos vizinhos. Cada povoação tinha de ter o seu feiticeiro
(ngangula), escolhido pelo chefe e que, antes de começar a aprender o ofí-
cio, era iniciado por um ferreiro superior (mbuta ngangula).
Primeiramente, consagrava-se a alsafra de pedra, o que envolvia o sacri-
fício de um cabrito, cujo sangue era lançado sobre a pedra, sobre o cesto-
relicário dos antepassados chefes e ainda sobre os braceletes-relíquias. O
novo ferreiro era consagrado sobre a alsafra, imolando-se para o efeito
outro cabrito, de que se tiravam pequenos bocados de carne que o inicia-
do comia juntamente com mandioca preparada. Os chefes de povoação
eram, por sua vez, investidos por um ferreiro a quem tinham de comparar
os braceletes-insígnias. O ngangula presidia às cerimónias no recinto da
iniciação, colocava os braceletes no braço esquerdo do chefe que, por sua
vez, os recebia sobre a alsafra de pedra, e ungia o neófito. O ferreiro inter-
vinha igualmente na iniciação da mulher-chefe131.
Do conjunto de elementos que conseguimos reunir é possível
extrair algumas conclusões. O acesso aos conhecimentos (segredos) téc-
nicos e à perícia da metalurgia, o uso dos utensílios de ferreiro e ainda a
aquisição da imunidade ao fogo só eram possíveis àqueles que tivessem
obtido o poder mágico-religioso necessário à manipulação conjugada e
fecunda do fogo, da água e dos metais. Os próprios utensílios, para pode-
rem operar, tinham de adquirir poder sobrenatural, obtido por sagração
que, no caso da alsafra dos Ntandu, era anterior à do próprio ngangula,
sagrado posteriormente sobre ela. Foi um "ídolo", fonte de poder sobre-
natural, que ensinou a arte do ferro ao chefe - fundador Ngola Musuri. O
poder criador dos utensílios e dos artífices do metal vinha, nos casos que

130 David Magno - Etnografia dos Dembos [...], p. 165. No século XVIII este ordálio
já era usado na área da "Missão de Cahenda". Jadin - Aperçu de la situation du Congo [...],
p. 368.
131 Pechuel, Loesche - Volkskunde von Loango. Stuttgart, 1907, p. 170-174, 184.

534
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

foi possível averiguar, dos espíritos dos antepassados, quer estes tivessem
sido chefes investidos por ferreiros (Ntandu) ou até mesmo mestres forja-
dores (Ndembu). As cerimónias de sagração exigiam um acto cultural san-
grento que, entre os Ntandu, consistia na imolação de um animal domés-
tico (cabrito)132. O poder sobrenatural do ferreiro e dos utensílios por ele
manipulados permitia-lhe intervir nos domínios da medicina mágica e da
magia protectora, actuando em ambos os casos contra os espíritos maus.
No âmbito da justiça, revelando magicamente a culpa ou a inocência do
acusado. Na esfera do político, sagrando chefes, fabricando-lhes as insíg-
nias ou velando-lhes pelo fogo sagrado. O poder mágico-religioso do fer-
reiro era, portanto, fundamentalmente fecundo, benéfico, protector e ofen-
sivo das influências nefastas. Devido às importantes funções económicas
e religiosas que desempenhavam, os ferreiros ocuparam posições de rele-
vo nas hierarquias políticas do Estado Kongo, integrando um dos grupos
preponderantes133.
É altura de regressarmos às tradições orais que atribuem a fundação
da realeza sagrada a chefes-ferreiros, inventores ou introdutores da meta-
lurgia. Essas tradições postulam uma complexa identidade primordial
entre o ferreiro e o chefe e não propriamente uma igualdade simbólica
como defendeu Vansina134. Os ferreiros Kongo eram dotados de poder
mágico-religioso da mesma natureza da dos chefes políticos, dos adivi-
nhos, dos curandeiros e dos feiticeiros. Os poderes do chefe político e do
ferreiro tinham inclusivamente a mesma intencionalidade lícita, benéfica,
fecundante e defensiva, mas eram poderes de grau e âmbito muito diver-
sos, já que o chefe, identificando-se com o antepassado primordial - o fer-
reiro civilizador - era a fonte última da ordem, da prosperidade e da fecun-
didade nos domínios da natureza e da cultura. Podemos dizer que o chefe
político transpôs para o domínio dos homens e da cultura o poder do fer-

132 Mertens - Les chefs couronnés [...], p. 47 a 67, 367 a 375; 431-445.
133 Para Laura Makarius, a força mágica do ferreiro, que se comunica aos utensílios,
provinha da violação deliberada do tabu de sangue. Os elementos que conhecemos sobre
os Kongo põem em causa esta tese.
O sacrifício sangrento parece estabelecer antes uma comunicação entre o iniciado e os
espíritos dos antepassados, donde provém o poder sobrenatural. A força mágica de um dos
utensílios da metalurgia, a alsafra de pedra, não é obtida do ferreiro, mas de uma consa-
gração específica anterior. Laura Makarius - Le sacré [...], p. 106 e seguintes.
134 Vansina - Anthropologists and the third dimension. "Africa", London, 39, 1969, p. 65.

535
RUI DE SOUSA MARTINS

reiro sobre as forças da natureza. Além disso, as narrativas sobre o ferrei-


ro primordial deixam antever um modelo político que teria vigorado num
determinado momento histórico em que os chefes teriam sido iniciados
por ferreiros, como acontece entre os Ntandu, o que seria reflexo de um
universo social e económico dominado pela metalurgia do ferro e expli-
caria a presença dos jinzundu entre as principais e as mais antigas insíg-
nias de poder. O martelo-bigorna, símbolo do ferreiro, da linhagem do fer-
reiro e da fecundidade, tornou-se emblema dos chefes que desenvolveram
instituições políticas cada vez mais poderosas em sociedade de agriculto-
res e metalúrgicos.
Todavia, e em relação ao modelo Ntandu, se, por um lado, os fer-
reiros investem os chefes, por outro, são estes a escolher os que podem ter
acesso à arte dos metais e que ficarão na sua dependência.
Sabemos que o Mwene Kongo superintendia nas numerosas ofici-
nas de ferreiro instaladas nas colinas, em torno da capital135, e o seu poder
estendia-se aos próprios jazigos de minério, sobretudo aos de cobre, con-
siderado metal precioso e que abundava nas regiões de Mpemba, Wembo
e Wandu, governadas por chefes que ele próprio nomeava136. Alguns che-
fes subordinados deviam enviar anualmente ao Mwene Kongo, como tri-
buto, um certo número de objectos de ferro, nomeadamente enxadas, que
podiam funcionar igualmente como moeda137.
O Ntotila, ao intitular-se ngangula a Kongo, identificava-se com o
antepassado-chefe e ferreiro primordial, fonte de poder fecundante sobre
a natureza e a cultura e ainda fonte de poder legítimo sobre a arte dos
metais e os jazigos de minério.
Em trabalho recente, o historiador americano John Thornton dá-nos
uma interpretação diferente da Versão 4. Situando a narrativa no seu con-

135 Wannyn - L'Art ancien du métal [...], p. 10.


136 António Brásio - Monumenta Missionária Africana, Vol. 2, Lisboa, 1953, p. 59,
(doc. de 1536), p. 543, 544 (doc. de 1566), p. 545 (doc. de 1566?). Idem, vol. 7, p. 569,
570 (doc. de 1628). Gastão de Sousa Dias - A batalha de Ambuila, Lisboa, 1942, p. 25, 26,
27, 44, 45, 54, 55.
137 Cuvelier - Relations sur le Congo [...], p. 149. António de Almeida - Subsídio para
a história dos Reis do Congo. "Congresso do Mundo Português", vol. 8, Lisboa, 1940, p.
508, 509. Jadin - Andrea de Pavia au Congo, à Lisbonne, à Madère. Journal d'un missio-
naire capuchin, 1685-1702. “Bulletin de L'Institute Historique Belge de Rome, 41,
Bruxelles”, 1970, p. 434.

536
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

texto histórico-social, a conturbada segunda metade do século XVII, e


comparando-a com as narrativas do herói-conquistador Lukeni, Thornton
conclui que a destruição de São Salvador e a polarização do Reino em
vários estados alteraram a tradição oral e o chefe conquistador foi substi-
tuído, a nível ideológico, por um ferreiro-conciliador "...which was much
more fifting for the decentralised constitution of Kongo, where power res-
ted on conciliation, and the King was hardly even first among equals"138.
Em suma, as várias tradições sobre as origens do Estado Kongo foram ela-
boradas em momentos históricos diferentes, para justificar, ideologica-
mente, estruturas políticas distintas. A tese de Thornton, apesar de alici-
ante, é passível de algumas críticas. Antes de mais não temos quaisquer
elementos que comprovem que as poucas versões conhecidas foram pro-
duzidas nas épocas em que foram registadas e, por isso, não nos parece
metodologicamente correcto confinar as narrativas ao momento histórico
da recolha. Como o registo das versões não resultou de estudos sistemáti-
cos e aprofundados, também não é possível concluir seguramente que a
Versão 4 é uma inovação posterior às narrativas do herói-conquistador.
Pelo contrário, tudo nos leva a crer que as diferentes versões são "frag-
mentos" urdidos de um mesmo complexo de ideias e crenças sobre as ori-
gens da realeza sagrada dos Kongo, devendo ser lidos em conjunto e, por
esta razão, pensamos que o chefe fundador e conquistador foi igualmente
o ferreiro primordial. Por outro lado, as tradições orais sobre as origens
não podem ser reduzidas a produtos ideológicos de situações históricas
concretas, nem tão pouco podem ser entendidas apenas no âmbito dessas
situações. Pertencem, sem dúvida, ao quadro da realeza sagrada, mas de
uma forma muito especial: nutrindo o seu núcleo mítico que veícula, em
termos históricos, determinadas verdades transcendentes e fundamentais
para a sociedade em questão. Mas este núcleo mítico-histórico, adoptado
num determinado momento, persiste ao longo dos tempos, independente-
mente dos sucessivos contextos político-económicos que o interpretam de
forma diversa e pode vigorar em populações muito diferentes e afastadas.
Assim, até mesmo o quadro cultural de uma população é insuficiente para
a cabal compreensão desse tipo de narrativas que exige o recurso a com-
parações de âmbito mais vasto. Em conclusão, pensamos que o esquema

138John Thornton - The Kingdom of Kongo. Civil War and transition, 1641-1718.
Wisconsin, 1983, p. 84, 85, 117, 118.

537
RUI DE SOUSA MARTINS

explicativo do herói estrangeiro, revoltado, homicida, conquistador e fer-


reiro primordial, que fundou o Estado Kongo, deve ser muito anterior aos
séculos XVII e XVIII, perdendo-se a sua origem no fundo cultural Bantu.

Uma Data para a Fundação de Estado Kongo

Um outro problema fundamental para a perspectiva historicista é a


tentativa de datar, aproximadamente, o estabelecimento dos conquistado-
res e o início do chefado Kongo, com base na interpretação literal das tra-
dições orais. O próprio autor anónimo da Versão 1 defendeu a ideia do
reino Kongo ter sido fundado 350 anos antes da redacção do texto, ou
seja, no século XIII. Nos nossos dias, a questão tem girado em torno do
número de chefes que teriam reinado entre Nimi a Lukeni e o primeiro
Ntinu cristão, Nzinga a Nkuwu (-1506), tomando-se em consideração a
contagem do tempo na sociedade tradicional e os problemáticos interreg-
nos139. As informações disponíveis são divergentes e assim, entre os dois
Ntinu, teriam existido seis chefes (Versão 1), três (doc. 1624)140 ou ape-
nas dois (Versão 5). Piazza considera mais correcta a versão de 1624,
colocando a origem do Estado Kongo na segunda metade do século XIV
ou no início do século XV141, tese já defendida por Vansina142, por
Balandier143 e por Randles144 que se basearam em Cuvelier145. Esta data-
ção tem sido geralmente aceite e veiculada. No entanto, e com base nas
inovadoras propostas metodológicas do historiador americano Joseph
Miller, pensamos que a interpretação literal não nos permite determinar o
número de "reis" no obscuro e contraditório período entre Lukeni e
Nzinga a Nkuwu. Essa época corresponderá a um "período intermédio",

139 Nesta perspectiva leia-se a desenvolvida análise de Piazza - Alcuni tradizione orali
[...], p. 249 a 255.
140 António Brásio - Monumenta Missionária Africana, vol. 7, Lisboa, 1956, p. 292
(doc. de 1624).
141 Piazza, op. cit., p. 255.
142 Vansina - Notes sur l'origine du royaume de Kongo. "Journal of African History",
Cambridge, 4 (1), 1963, p. 37.
143 Balandier - La vie quotidienne au royaume de Kongo, du XVIe au XVIIIe siècle.
Paris, 1965, p. 22.
144 Randles - L'ancien royaume du Congo. [...], p. 18.
145 Cuvelier - L'ancien royaume du Congo. Paris, 1946, p. 253, nota 4.

538
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

caracterizado pela existência de poucas e vagas notícias, nomeadamente


se o compararmos com o "período das origens" ou com o "período recen-
te", mais próximo da época dos autores das versões citadas e ambos muito
mais ricos em informações146. Esta interpretação permite-nos recuar a
cronologia do reino do Kongo, cuja informação dataria do século XIII ou
de mais cedo ainda, o que vem ao encontro da intuição do autor anónimo
da Versão 1. Além disso, vários estudos arqueológicos têm-se encarrega-
do de confirmar a metodologia de Miller. É o caso dos trabalhos realiza-
dos em Sanga pelo belga Pierre de Maret que permitiram o primeiro con-
fronto aprofundado da tradição oral com os resultados de escavações e de
datas fornecidas pelo C. 14. Foram descobertas três tradições culturais
sucessivas: Kamilambian (século V), Kisalian (século VII) e Kabambian
(século XIV). A sociedade Kisalian tinha já uma organização estratifica-
da, o que fez recuar muito a génese de estado naquela região da África
Central147. Por isso mesmo, temos bastantes expectativas quanto a resul-
tados de futuras escavações que venham a ser feitas na área do antigo
"Reino do Congo".

O Problema das Populações Pré-Existentes e a Tese do


Dualismo Étnico

De acordo com as interpretações historicistas, a formação do


Estado Kongo deveu-se a uma invasão que se desenrolou fundamental-
mente sob a forma de ocupação progressiva, por etapas148, durante a qual
os recém-chegados povoaram áreas desertas ou submeteram-se às popu-
lações que foram encontrando.
Segundo Cardonega (Versão 3), a nação mexiconga, considerada
estrangeira e avenadiça, assenhoreou-se do Reino Kongo "sendo os natu-

146 Joseph Miller - The imbangala and the cronology of early Central African history.
"Journal of African History", Cambridge, 13 (4), 1972, p. 573, 574. Joseph Miller - The
dynamics of oral tradition in Africa, in Berbardi, Poni, Triulzi eds. "Fonti oralli.
Antropologia e storia". Milano, 1978, p. 80.
147 Pierre de Maret - Sanga: New excavations, more data, and some related problems.
"Journal of African History", Cambridge, 18 (3), 1977, p. 335, 337. Luba roots: The first
complete Iron Age Sequence in Zaire, "Current Anthropology", 20 (1), 1979, p. 233, 234.
148 António Gonçalves - La symbolisation politique. "Le prophetisme" Kongo au
XVIIIème siècle. München, 1980, p. 44.

539
RUI DE SOUSA MARTINS

raes delle Ambundos de outra casta". É precisamente nesta passagem do


historiador das guerras angolanas que Hélio Felgas149, Vansina150,
Doutreloux151, Randles152 e Piazza153 se apoiaram para defender que os
Kongo dominaram uma população Bantu autóctone, de língua diferente,
e organizada em estados: os "Ambundu" (Mbundu). No entanto, esta
identificação dos povos subjugados é controversa, pois o texto de
Cadornega parece-nos equívoco. Ambundu também significava "pre-
tos"154 e com esse sentido aparece inúmeras vezes na obra do historiador
angolense155. Por isso mesmo, pensamos que a expressão "ambundos de
outra casta" também pode ser lida "pretos de outra casta". Os Ambundu
figuram nos títulos do Mwene Kongo, usados no século XVI e XVII, mas
com um significado pouco claro e ligados ao chefe Ngola156. Aliás,
nenhuma das outras fontes é tão precisa, relativamente à identificação
dos povos submetidos: Não tinham rei, estando sujeitos a muitos senho-
res (Versão 1); seriam constituídos por "um número confuso de povos, de
régulos e de princípes"157. Como teremos ocasião de ver, o chefado
Mpangu teria constituído um "reino independente", antes de ser subme-
tido por Lukeni158, e Mbata teria sido um grande e poderoso reino que se
uniu livremente ao Estado Kongo159. Para Randles, "la grande innovati-

149 Hélio Felgas - História do Congo português. Carmona, 1958, p. 40, nota 1. Hélio
Felgas - As populações nativas do Congo português. Luanda, 1960, p. 36, 37.
150 Vansina - Notes sur l'origine [...], p. 33.
151 Doutreloux - Les Kongo, in: Vansina ed. "Introdution à l'éthnographie du Congo".
Kinshasa, 1966, p. 118.
152 Randles - L'ancien royaume du Congo [...], p. 19. A "Relação da Costa da Guiné" (1607)
(Brásio-Monumenta..., 5, p. 386), citada por Randles, considera os Amburidos (Ambundos)
como subordinados ao Mwene Kongo e não como um substracto do célebre Estado.
153 Piazza - Appunti sulla lingua di Soyo. "Africa", Roma, 36 (2), 1981, 243, 244.
154 Miranda de Magalhães - Manual das Línguas indígenas de Angola. Luanda, 1922,
p. VIII e XXIII.
155 Cadornega - História Geral das guerras angolanas (1680), vol. III, Lisboa, 1972,
p. 253, 255, nota 62.
156 Cuvelier - L'ancien royaume [...], p. 338 a 340.
157 Cavazzi - Descrição histórica [...], vol. 1, p. 230.
158 Willy Bal - Description du royaume de Congo [...], p. 68. Cavazzi - Descrição his-
tórica [...], vol. 1, p. 19.
159 Willy Bal - Description du royaume de Congo [...], p. 69. António Brásio - História
do Reino do Congo. Lisboa, 1969, p. 47, 48.

540
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

on de la conquête est le groupement de multiples petits royaumes en un


grand État centralisé et governé par un monarque suprême résident dans
une capitale"160.
Se, de facto, o Estado Kongo foi constituído por povos conquista-
dores e povos dominados, como se teriam processado as relações entre os
dois?
A resposta a este problema é do maior interesse para a compreen-
são da estrutura social conguesa.
Na Versão 1, Ntinu Wene ordenou "que todos os seus se cazassem
com os naturaes da terram, os nobres com as nobres, e os plebeus com as
plebeas, chamando-se todos pelo nome antigo de Moxicongos". Teria
havido, portanto, uma fusão "organizada" entre vencedores e vencidos.
A perspectiva da Versão 5 é, porém, muito diferente e nela se afir-
ma que no Reino Kongo habitam dois povos diferentes: o dominador,
constituído por invasores estrangeiros chamados "Essicongo ou nobres
congolenses, habitantes da cidade real" e os autóctones, vencidos, os
Abhata, Abumba161, que viviam nas áreas rurais e nas províncias.
Consequentemente, não teria havido uma simbiose bio-cultural entre
dominadores e dominados e as duas populações teriam mantido, pelo
menos durante um largo período da história, as respectivas identidades
culturais e linguísticas. Calogero Piazza, o grande defensor da tese do
"dualismo étnico", tira da Versão 5 algumas ilações do maior interesse,
afirmando "...l'esistenza, sulle due ruve del fiume Congi, di comunità fon-
data sul rispetto di una dualità della strutura politica, risolventes, da un
lato, nella contrapposizioni fra potere dei vassalli e autorità regale, in
una costruzione statuale smile, almeno all'apparenza, a quelle

160 Randles - L'ancien royaume du Kongo [...], p. 20.


161 Os abata (sing. mubata) são os habitantes das aldeias mabata (sing lubata). Cavazzi
- Descrição histórica [...], vol. 1, p. 84, 221. Jadin (Versão 4) tinha transcrito akkata com
os batwa, mbaka mbaka, akka ou bakke bakke, pigmeus ou anões que, segundo a tradição
oral, teriam ocupado algumas áreas do Reino Kongo. Interpretação semelhante já tinha
sido feita por Héli Chatelain. Randles - L'ancien royaume du Congo [...], p. 19, 58. Héli
Chatelain - Contos populares de Angola, Lisboa, 1964, p. 498, nota 199. Wannyn - L'art
ancien du métal au bas-Congo. Champles par Wavre, 1961, p. 10.
Estas narrativas integram-se no ciclo temático sobre anões e pigmeus que teve larga
expressão em Angola e não sabemos até que ponto constituirão uma vaga lembrança de
pigmeus, caçadores e recolectores.

541
RUI DE SOUSA MARTINS

dell'Occidente feudale, dall'altro, nel tacito giustapporsi, nell'interesse


societario, delle potestà dei capi tradizionali e dei signori di terre, ele-
mento questo quslificante l'ordinamento dei territori africani che potrem-
mo chiamare a successivo popomamento in cui la nazione allogena, pur
conquistando il pieno dominio delle instituzione, soggiace alla propria
inferiorità al patrimonio magico-spirituale"162. E, noutro local, precisa o
historiador italiano: "...tutta la storia politica e religiosa di Kongo può
essere revisitate in questa prospecttiva"163.
Na realidade, a tese de Piazza não vai muito além da letra das tra-
dições orais, assumindo o "dualismo étnico" como a chave da história e da
sociedade Kongo. Para que se tivesse formado uma estrutura de sobrepo-
sição de povos entre os Kongo era necessário que tivesse existido real-
mente uma migração de conquistadores estrangeiros. Porém, os mais
recentes trabalhos têm posto em dúvida a validade histórica desses este-
reótipos veiculados por inúmeras tradições orais da África Central. Os
"conquistadores estrangeiros" seriam personalizações explicativas que
traduziriam a adopção de novas ideias, instituições e métodos de organi-
zação política, ligados à instauração de um poder supra-clânico164. A tese
do dualismo étnico e a própria letra das tradições orais pressupõem que o
modelo cultural Kongo foi definitivamente estabelecido no momento pri-
mordial da invasão. Ora, nós sabemos que o Noroeste de Angola sofreu
profundas alterações depois do século XV: largos movimentos populacio-
nais, provocados pelo tráfico de escravos, e a expansão de povos de lín-
gua Kimbundu para as regiões costeiras165, enquanto grupos de Vili,
Zombo e Solongo se expandiram para o Sul166. Neste conturbado e fasci-
nante processo, onde os europeus tiveram papel de relevo, a fusão de gen-
tes e de culturas era inevitável e certos elementos culturais, considerados
como sobrevivências de um substracto Mbundu, podem resultar de influ-
ências assimiladas posteriormente.

162 Piazza - La perfettura apostolica del Congo [...], p. 288.


163 Piazza - Appunti sulla lingua di Soyo. "Africa", Roma, 36 (2), 1981, p. 236.
164 Joseph Miller - Kings and Kinsmen. Early Mbundu states in Angola. Oxford, 1976,
p. 8, 9, 280, 281.
165 Idem, p. 38, 39.
166 Broadhead Herlin - Trade and politics on the Congo Coast: 1770-1870. Boston,
1971, p. 41 a 44.

542
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

Crítica das Interpretações Historicistas

Nas páginas anteriores debruçamo-nos sobre as perspectivas histo-


ricistas das narrativas orais que descrevem a origem do Estado Kongo.
Aparentemente, essas interpretações são perfeitamente lógicas e coerentes
com a letra dos textos recolhidos. Aliás, o método utilizado é simples e
eficaz: as tradições orais são consideradas fontes históricas e equiparadas
a documentos escritos (analogia documental) e a interpretação infere-se
unicamente das palavras (leitura literal)167.
Um maior conhecimento das técnicas de elaboração da história nas
sociedades tradicionais negro-arianas revelou que as narrativas históricas
orais são um complexo de facto e ficção, onde se reflecte o contexto social
e ideológico do historiador-narrador não letrado e, sobretudo, a sua imagi-
nação e a sua arte. Por isso mesmo, não é possível interpretá-las apenas
como história e alguns autores chegam mesmo a negar-lhes qualquer valor
como fonte para conhecimento do passado. Por outro lado têm-se escrito
obras de mérito que exploram o universo mitológico dessas narrativas para
reconstituir o pensamento simbólico bantu168. Assim, veremos de seguida
em que medida as novas perspectivas contribuiram para um maior esclare-
cimento das tradições orais sobre a origem do Estado Kongo.

2.2.2. Interpretações estruturalistas: O Mito contra a História

Segundo as perspectivas estruturalistas, as tradições históricas orais


reflectem não factos passados mas estruturas internas do espírito humano
ou instituições sociais do próprio historiador-narrador169. Os investigado-
res ligados de algum modo ao estruturalismo sustentam uma clara distin-
ção entre mito e história, englobando na primeira categoria as narrativas
respeitantes ao período das origens e que pouco ou nada revelam sobre o
passado170. Consequentemente, é do maior interesse conhecer a forma
como os historiadores estruturalistas interpretam os textos orais sobre as
origens do Estado Kongo.

167 Joseph Miller - The dynamics of oral tradition in Africa [...], p. 75 e seguintes.
168 Referimo-nos aos trabalhos de Luc de Heusch publicados em 1972 e 1982.
169 Joseph Miller - The dynamics of oral tradition in Africa [...], p. 77, 78.
170 Idem, p. 80, 81.

543
RUI DE SOUSA MARTINS

2.2.2.1. Ekhom: O Dualismo estrutural da Sociedade Kongo

Kajsa Ekholm, autor de um estimulante trabalho sobre o Reino do


Kongo171, é um representante típico da óptica estrutural. O pressuposto
deste investigador é inequívoco: "myth is not history: it expresses not the
past but the present. It "belongs" to the society in which it is told, and its
form and content is decided there"172. E tira da sua posição todas as con-
sequências, afirmando, sem sombra de dúvida, que o mito da origem do
Estado Kongo descreve não um acontecimento histórico mas "...the peri-
od between the King's death and the coronation of a new king, i.e. inter-
rugnum"173. "...What was descrobed in the myth actually took place every
time throne changed hands"174. Vejamos agora como Ekholm explica as
várias situações narradas.
O Mwene Kongo simboliza a cultura, a lei, a ordem, o normal fun-
cionamento do trabalho produtivo. Quando o chefe supremo morre, a terra
cai num estado de anarquia, extingue-se o fogo sagrado do estado, param
os trabalhos agrícolas e o forjamento dos metais, não é permitido caçar,
pescar ou comerciar175. A esta situação real corresponderia, nas tradições
orais, uma imagem de ausência de ordem que teria precedido a chegada
do Ntinu Wene.
A ascenção de alguém à situação de Ntinu implica a morte de um
membro clã176 ou até da linhagem paterna177. Ao praticar este acto de
feitiçaria, o chefe torna-se feiticeiro, pois, sem esta faculdade, ficaria
indefeso, privado de poder e de prestígio178. A "conquista do reino" por
Lukeni simboliza a batalha da sucessão que era um confronto instituci-
onalizado na sociedade Kongo onde, segundo Ekholm, não existia uma
ordem sucessória. A luta pelo poder envolvia não apenas confrontos
armados, mas sobretudo a intervenção dos principais chefes e dignitári-
171 Kajsa Ekholm - Power and prestige. The rise and fall of the Kongo Kingdom.
Uppsala, 1972.
172 Idem, p. 163.
173 Idem, p. 166.
174 Idem, p. 168.
175 Idem, p. 166.
176 Idem, p. 168.
177 Idem, p. 176.
178 Idem, p. 177, 178.

544
MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

os, assim como a passagem do candidato em provas de destreza físi-


ca179. Desta forma, a legalidade, a ordem, a justiça e a legitimidade são
repostas ou conquistadas através da "ilegalidade", da violência e da
rebelião. Também para Ekholm o Estado Kongo tem uma organização
dual, embora esse dualismo não seja étnico, como pensa Calogero
Piazza, mas estrutural: a todos os níveis da sociedade existe um lado
dominante e um lado subordinado180. Logo, a nível da célula básica do
sistema familiar, encontramos a distinção entre geração mais velha e
geração mais nova e entre irmãos mais velhos e irmãos mais novos181.
Os mais velhos gozam de um sem número de privilégios e de direitos
relativamente aos mais novos e este tipo de ligação de parentesco (gera-
ção mais velha e mais nova) constitui o modelo das relações de poder
entre os segmentos de matrilinhagem, entre as matrilinhagens e entre
chefes políticos e subordinados. Dentro da estrutura política as diferen-
ças de geração social exprimem-se em terminologia patrilinear: Pai
(tata), mais velho e superior (mwana), mais novo e subordinado182. Os
que detêm o poder político são considerados socialmente, mas não bio-
logicamente, como velhos e como pais. Esta perspectiva estrutural da
organização dualista da sociedade Kongo, que tinha sido explicada até
agora em termos de "povoamento sucessivo", parece-nos correcta e de
grande interesse para a compreensão das sociedades do Noroeste ango-
lano. Apesar disso, a óptica estrutural de Ekholm é susceptível de algu-
mas críticas. Em primeiro lugar, é controverso e arbitrário arrumar as
tradições históricas orais exclusivamente no mito ou na história, catego-
rias de pensamento ocidental que podem não existir nas culturas negro-
africanas em questão183. Do ponto de vista que adoptámos, os funda-
mentos da organização política Kongo serão antes um composto mítico-
histórico. Por um lado, têm carácter mítico, porque contêm revelações
sobre o aparecimento do herói-fundador que, como antepassado primor-
dial, pertence ao domínio do sagrado, e ainda sobre os acontecimentos
ligados à criação do Estado Kongo, cuja existência fica assim explicada

179 Idem, p. 169, 170.


180 Idem, p. 156, 157, 174.
181 Idem, p. 35 a 38.
182 Idem, p. 50 a 55.
183 Joseph Miller - The dynamics of oral tradition in Africa [...], p. 79.

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RUI DE SOUSA MARTINS

e justificada184. O esquema do mito, eventos (migração, conquista, novo


poder), personagens (herói-fundador, ferreiro) e raciocínios (caos-
ordem)185 teria sido elaborado ou adoptado com base num fundo cultu-
ral muito mais vasto e antigo. Por outro lado, as narrativas têm um carác-
ter histórico, pois referem-se a acontecimentos do passado que se repor-
tam a realidades concretas no presente, possuindo um forte significado
tanto para os historiadores-narradores como para os destinatários 186.
Em segundo lugar, Ekholm considera as narrativas sobre as origens
como reflexo do interregno e do ciclo cerimonial da investidura de um
novo Ntinu. Ora, não se pode reduzir o mito à descrição do interregno nem
a investidura é o simples reflexo do mito, embora este seja a explicação
última da sagração de um novo chefe. As narrativas sobre as origens têm,
como sabemos, um sentido mais amplo e transcendente: revelar o funda-
mento mítico-histórico do Estado Kongo e da realeza sagrada. No ciclo
cerimonial da investidura de um novo Mwene Kongo, há uma recriação de
Estado, renovando-se ritualmente o processo genésico da fundação expli-
cado no mito primordial. Podemos representar estas relações no seguinte
diagrama:

2.2.2.2. John Thornton: Balibar no "Reino" Kongo

A partir do início dos anos sessenta, assistiu-se à renovação do pen-


samento marxista à luz do estruturalismo. O trabalho teórico realizado
permitiu a elaboração de vários conceitos que, aplicados ao estudo da evo-
lução das sociedades, possibilitaram a definição de novos "modos de pro-
dução" e o estabelecimento de "periodizações" mais aperfeiçoadas.
Dentro desta linha, o historiador americano John Thornton tentou aplicar
os conceitos teóricos elaborados, sobretudo na interpretação de Étienne
Balibar, à realidade concreta dos Kongo, extraindo daí conclusões inova-
doras187.

184 Mircea Eliade - Aspects du mythe. Paris, 1975.


185 Joseph Miller , op cit., p. 90, 91.
186 Idem, p. 84, 97, 95.
187 John Thornton - The Kingdom of Kongo, ca. 1390-1678. The development of an
African Social Formation. "Cahiers d'Études Africaines", Paris, 22 (3-4), 1982, p. 325.

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MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

Thornton baseou-se na conhecida distinção feita por Bernardo da


Gallo (Versão 5) entre os "Essicongo ou nobres congoleses", habitantes da
cidade real (mbanza Kongo), e os abata, residentes nas aldeias rurais (maba-
ta), esclarecendo que esta distinção não tem um carácter étnico nem de clas-
se, mas representa uma diferença estrutural entre dois modos de produção
distintos que se combinam na "formação social Kongo": "...each of these two
sectors of Kongo society was a complete social system, with its own pattern
of production, distribution and subordination, means of control and continu-
ity, and same extend, even its own ideology...each of the sectors possessed its
own economy and each was thus ruled by different economic forces. In the
villages, production was regulated by Kinship, and the surplus was obtained
by the transfer of a part of the production of the village to the local rulers or
their allies. In the towns, on the other hand, most of the production rested on
slave labor, and slaves worked on the land controlled by the nobility, who
consumed the surplus of his labor, directed the production to fit their needs
and the needs of the large sector of nonproducers who served them"188.
No período clássico da sua história (1390-1678), a formação social
Kongo era constituída pela articulação do modo de produção urbano ou
esclavagista, dominante e centrado na cidade de São Salvador, com uma
variante do modo de produção de linhagem, subordinada ao anterior e
implantada nas áreas rurais189. O funcionamento do modo de produção
dominante ordenava todo o sistema político e económico Kongo190.
Inspirando-se nos estudos de Wyatt MacGaffey, Thornton conside-
ra a tradição oral do herói-fundador Lukeni como a justificação ideológi-
ca e histórica de alguns fenómenos relevantes, elaborada em termos de
direito de conquista: a divisão do Kongo nos sectores urbano e rural; o
poder do Ntinu para nomear e demitir funcionários nas regiões domina-
das; e a apropriação, sob a forma de tributos, dos excedentes produzidos
pelas aldeias191. E Thornton acrescenta que o mito da origem representa

188 Thornton - The kingdom of Kongo. Civil War and transition (1641-1718). Madison,
1982, p. 16, 17.
189 "The existence of these two modes and their interrelation-ship conditioned the exis-
tence of the state and established its limits at the same time as it guaranteed the repro-
duction of the conditions in which it operated". Thornton - The Kingdom of Kongo, Ca.
1390-1678 [...], p. 328.
190 Idem, p. 330.
191 Thornton - The Kingdom of Kongo. Civil War and transition [...], p. 32, 57 e 117.

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RUI DE SOUSA MARTINS

e justifica religiosamente a génese da formação social Kongo, existente na


época clássica, e o surgimento do modo de produção esclavagista com
todas as suas consequências sociais e económicas192, Lukeni seria apenas
o símbolo de um complexo e longo processo social que, envolvendo muita
gente, criou a formação social Kongo.
A obra de Thornton contém uma excelente descrição da econo-
mia Kongo dos séculos XVI e XVII e temos de lhe reconhecer o méri-
to de ter posto em relevo a clara distinção entre mbanza e lubata que é
uma das características das organizações políticas na área de cultura
Kongo. Neste Estado, as diversas mbanza estavam hierarquizadas entre
si, segundo a posição do respectivo chefe titulado, e todas dependiam
da mbanza São Salvador. A diferença entre lubata e mbanza e entre as
diversas mbanza era sobretudo político-religiosa e não nos parece que
a essas relações de subordinação correspondessem sistemas sociais,
económicos e ideológicos totalmente diferentes. O sistema de produção
familiar com escravatura doméstica era o mesmo tanto na lubata como
em qualquer mbanza193. Por outro lado, o historiador americano incide
a sua análise na produção e apropriação de excedentes que se concen-
travam na mbanza São Salvador194. Pensamos que não está aí a expli-
cação última da organização económica prevalecente no Estado Kongo.
A apropriação vertical de bens alimentares, e sobretudo de bens de
prestígio, através das complexas e apertadas malhas da hierarquia con-
guesa, era, como se sabe, indissociável de um processo inverso de
redistribuição desses bens. Cada chefe de mbanza pagava o tributo ao
seu superior, recebendo em compensação um quantitativo de bens e,
por sua vez, tributava os chefes seus subordinados, a quem tinha de
redistribuir alguns. O Mwene Kongo, como é óbvio, não era tributado,

192 Thornton - The Kingdom of Kongo, Ca. 1390-1678 [...], p. 331, 332.
193 Ekholm - Power and prestige [...], p. 87 e seguintes. Ainda no século XVI, o trá-
fico da escravatura tomou enormes proporções e os europeus começaram a contactar direc-
tamente os chefes subordinados ao Mwene Kongo. Tal facto conduziu à progressiva desin-
tegração da estrutura político-económica do Estado num grande número de chefados inde-
pendentes em conflito permanente. Idem, p. 136 e seguintes.
194 "...the entire social formation functioned as a single economic system directed
toward a surplus for its dwelling upper class..." Thornton - The Kingdom of Kongo, ca.
1390-1678 (...), p. 328.
"...it was internally generated surplus that created the possibility of a noble lifestyle
and the need for this foreign trade in luxuries". Idem, p. 328, nota 10.

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MITO E HISTÓRIA NO NOROESTE DE ANGOLA

mas recebia tributos e redistribuia bens. Era ainda através dele que se
processava o comércio externo, o que lhe permitia controlar a circula-
ção de bens de prestígio, de ideias e de mitos195. Podemos concluir que
aqueles produtos eram usados e circulavam dentro dos estreitos limites
impostos pela organização social e política. A acumulação e a circula-
ção de tais bens escondem, porém, uma realidade subjacente: a obriga-
ção de tributo imposta pelos chefes aos seus subordinados e a conco-
mitante obrigação de generosidades a que aqueles tinham de se subme-
ter196. Portanto, é a sociedade e, em última análise, o sistema político
que explicam a acumulação e a circulação dos excedentes em bens de
prestígio.
As narrativas orais sobre as origens não se podem reduzir a uma
justificação ideológica da apropriação urbana dos excedentes rurais e do
trabalho dos escravos. Elas revelam sobretudo a génese da realeza sagra-
da Kongo, na qual e a partir da qual se tem de pensar a acumulação e a cir-
culação da riqueza.
O lado mais controverso dos estudos de Thronton está, porém,
nos pressupostos teóricos utilizados. No âmbito do estruturalismo mar-
xista não se estabeleceu ainda um consenso em torno das definições do
"modo de produção" e "formação social". No conceito de "modo de
produção" não foi ultrapassado o problema de "determinação em últi-
ma instância" da "estrutura económica", mantendo-se, portanto, o redu-
cionismo economicista. A "periodização" dos modos de produção, ape-
sar de ter conhecido significativos avanços, permanece extremamente
contraditória e imprecisa. A aplicação do conceito "modo de produção

195 Ekholm - Power and prestige [...], p. 98 e segs. Brugiotti da Vetralla descreve da
seguinte forma a redistribuição dos tributos: "Gli abitanti del Congo sono poverissimi, ne
vi è fra di loro chi attenda ad accumular ricchezze, si che anco li Titolati et il medesimo
Re non rirervano le cose di um anno per un altro, salvo che alcuni abilliamenti per le pro-
prie persone, ma tutto quello che da sudditi li vien contribuito da Vassalli, tutto in pochi
giorni ripartano e distribuiscono alle medesimi Vassalli che gli lo vadino a dimandare".
Violante Sugliani - P. Giacinto Brugiotti e la sua Missione al Congo (da una sua relazio-
ne inedite). "Bolletino della Società Geografia Italiana", Roma, 59 (9), 1922, p. 243.
196 Clastres - Recherces d'anthropologie politique. Paris, 1980, p. 136 e segs. Para
Bisson, o tributo não só evidencia a existência do poder coercivo que definiria as socieda-
des organizadas em Estado, como constitui a principal característica dos Estados da África
Central. Michael Bisson - Trade and tribute. Archaelogical evidence for the origin of sta-
tes in South Central Africa. "Cahiers d'Études Africaines", Paris, 22 (3-4), 1982, p. 358.

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RUI DE SOUSA MARTINS

esclavagista" à realidade social Kongo é surpreendente, pois o mesmo


conceito é aplicado geralmente às sociedades Grega e Romana197.
Estas reservas aos pressupostos de Thornton são outros tantos pro-
blemas em aberto que deixamos aos especialistas, lembrando que a apli-
cação ortodoxa de determinados conceitos do pensamento europeu às
sociedades tradicionais da África Negra pode levar à distorção e à oculta-
ção da realidade que se pretende compreender.

197 Maurice Godelier - Horizontes da Antropologia. Lisboa, 1973. C.E.R.M. - O modo


de produção asiático. Lisboa, 1974, p. 53 e segs. Uma perspectiva diferente sobre o modo
de produção esclavagista foi desenvolvida por Hinders e Hirst, cuja obra influenciou lar-
gamente o trabalho de Thornton. Barry Hinders e Paul Hirst - Pre-capitalist modes of pro-
duction. London, 1975, p. 81; 108 a 177.

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RECENSÕES

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