LUHNING e TUGNY Etnomusicologia-Brasil

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Etnomusicologia no Brasil

reflexões introdutórias

Angela Lühning
Rosângela Pereira de Tugny

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Introdução
A trajetória disciplinar da etnomusicologia tem como pressu-
posto o profundo interesse e respeito pela diversidade sociocul-
tural e política de pessoas e grupos que se encontram em posição
minoritária frente às hegemonias geopolíticas, vivendo processos
contínuos de expropriação, seja ela territorial, patrimonial ou sim-
bólica, seja ela estatal ou privada. No Brasil, a etnomusicologia
se confrontou ao longo do tempo com a expropriação, mais do
que como um tema a ser debatido ou mais do que pelo interesse
e empatia dos etnomusicólogos. Essa questão adentrou também
os seus métodos de trabalho. Ainda que pareçam marcadamente
de cunho etnográfico, as pesquisas e práticas etnomusicológicas
no Brasil incorporaram em seus procedimentos um vínculo com
as políticas públicas, com a mobilização social, com a proteção de
territórios e saberes, com o cotidiano da violência urbana e da vio-
lência simbólica e com a urgência que marca a sobrevivência de
alguns dos povos com os quais elas trabalham e se solidarizam.
Essas pesquisas são frutos rebeldes do epistemicídio como dis-
cutido por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula de Meneses
(2010) que marcou também, mesmo que diferente, a percepção
cultural da classe média do Brasil com sua, em geral, noção muito
estreita de cultura. De fato, essas percepções limitadas de cultura,
que muitas vezes ignoram a diversidade cultural do país, entendem
as expressões culturais tradicionais como “folclore”, bem como
entendem muitos dos gêneros musicais recentes inseridos no con-
texto comercial e midiático como “música ruim”. Mas essas percep-
ções se pautam em histórias diversas, relacionadas com a complexa
trajetória sociopolítica do país. E são precisamente essas histórias
diversas que vários dos ensaios deste volume revelam, através da

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proposta e do engajamento dos autores em discutir o passado, pre-
sente e futuro de populações invisibilizadas, silenciadas e excluídas
dos discursos oficiais.
Os trabalhos realizados no âmbito da etnomusicologia no Brasil
tratam, sobretudo, das culturas musicais brasileiras, bem antes de
surgir o conceito da “etnomusicologia at home”. (NETTL, 2005) Isso
pode parecer apenas óbvio, levando em consideração o tamanho
do país e sua diversidade cultural, oferecendo-nos múltiplas pos-
sibilidades de abordagens, mas também evidencia desafios concei-
tuais e ideológicos imensos. A proximidade geográfica torna mais
alarmante a distância social entre os pesquisadores – geralmente
brancos, que frequentaram escolas privadas e tiveram acesso à uni-
versidade (pública) e aos programas de pós-graduação – e os sujeitos
de suas pesquisas, povos das comunidades negras urbanas e rurais,
indígenas, quilombolas.
É importante lembrar a perversa inversão das estruturas de aces-
so à educação no Brasil: o direito a uma educação escolar (de qua-
lidade) – garantida pela constituição e como tal responsabilidade
do estado – torna-se cada mais difícil, devido à situação deplorável
das escolas públicas. Desde o período colonial, o acesso à educação
foi restrito a famílias ricas, sendo quase impossível para a popu-
lação escrava e seus descendentes ter acesso à educação escolar.
Situação que tem se transformado só muito lentamente, e a prin-
cípio apenas no século XX. Isso significa que até hoje a melhor edu-
cação em nível primário e secundário encontra-se em escolas parti-
culares, inacessível àqueles que não possuem a situação econômica
adequada. Os egressos dessas escolas seguem sua formação univer-
sitária nas universidades públicas. Acrescente-se que, em geral, as
universidades públicas oferecem uma qualidade de formação sen-
sivelmente melhor do que a quase absoluta maioria das faculdades
privadas, em especial, aquelas criadas após o ano 2000, que são
grandes empreendimentos educacionais, muitas vezes sustentadas
por corporações multinacionais, sem investimentos em pesquisa,

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bibliotecas ou o propósito de preparação de futuros educadores ou
profissionais com senso crítico. Essa situação só começou a mudar
com a introdução de uma política de cotas (ações afirmativas), cons-
tituindo o primeiro passo para possibilitar aos grupos populacio-
nais de todos os segmentos sociais e étnico-raciais o acesso à edu-
cação superior em universidades públicas, o que contribui para um
processo de maior circulação de conhecimento e ascensão social,
mesmo que lento, de pessoas, anteriormente excluídas de uma edu-
cação de qualidade. Todo esse cenário, obviamente, tem causado
intensos debates, pelo fato de questionar e enfrentar privilégios
antes nunca questionados.1
O processo de democratização do país, iniciado a partir da
década de 1980, com as conquistas de direitos constitucionais de
parte desses povos e grupos, marcou o crescimento das universi-
dades públicas e as políticas de inclusão de pessoas negras e indí-
genas. Esse processo pautou de forma definitiva as relações entre
os sujeitos e as vozes das pesquisas em antropologia e etnomu-
sicologia no país. Uma nova geração de pesquisas se construiu
nesse significativo terreno de experiências constituído pelas polí-
ticas públicas nas áreas de cultura, direitos e educação que promo-
veram a visibilidade de novos agentes socioculturais na sociedade.
As políticas de ações afirmativas para inclusão de negrxs2 e indí-
genas nas universidades públicas garantiram uma presença inicial
e inédita dessas populações historicamente subalternizadas, no
mundo acadêmico. Vimos aparecer atores antes invisibilizados no
processo de produção e legitimação do conhecimento, com um
novo potencial cultural e crítico.

1 Ver as discussões de: Carvalho (2005/2006), Santos (2012), Santos e Queiroz (2005/2006)
e Segato (2005/2006).
2 Optamos, neste texto, por uma escrita não sexista como escolha consciente e política.
Assim, evitamos, dentro do possível, o uso de termos generalizantes no gênero mascu-
lino e, quando inevitável referir a gêneros, usamos o “x” para indicar a possibilidade da
diversidade de gênero.

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Os trabalhos aqui publicados representam a etnomusicologia
brasileira que se posiciona claramente com os/as agentes sonoras,
e não de forma distante (guardando seus privilégios sociais) apenas
escrevendo sobre estxs agentes. Ao contrário, essa etnomusicologia
passa a se configurar como um espaço de partilha de vozes de várias
comunidades de conhecimento, intervindo nas formas históricas de
legitimação do conhecimento nas universidades brasileiras, socie-
dades científicas e publicações, realizando com eles intervenções
acústicas em contextos de conflitos, nas reivindicações sociais, seja
no campo, seja nas cidades. Assim, o esforço intelectual dxs pesquisa-
dorxs dessa geração passou a ser duplo: compreender o intenso pro-
cesso de transformação das políticas públicas no Brasil – que modi-
ficaram e promoveram a emergência dos grupos sociais e étnicos
estudados – e enfrentar a impossibilidade de prosseguir com os
modelos clássicos de pesquisa etnomusicológica, bem como suas
formas de representação e circulação de informações.
Com profissionais formadxs e atuantes no âmbito dos desafios
que se intensificaram especialmente no novo milênio, a etnomu-
sicologia no Brasil se forjou em cenários acadêmicos, sociais, edu-
cacionais e culturais sempre mais diversificados e complexos e,
portanto, cada vez mais problematizados. O diálogo, o posiciona-
mento político e a ação se tornaram seus métodos, caracterizando
uma etnomusicologia engajada ou dialógica, buscando comparti-
lhar diferentes pontos de vista, nem sempre congruentes, e cons-
truindo novas epistemologias.

O lugar da etnomusicologia no cenário brasileiro


A diversidade de contextos de atuação e de pesquisa experimen-
tada pelos sujeitos aqui representados trouxe também o desafio
de um posicionamento adequado enquanto autores e autoras: a
exemplo de coletivos que conhecemos em nossas pesquisas, e expe-
rimentando uma via alternativa que se opõe ao individualismo

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solitário das produções acadêmicas, hoje balizadas por um sistema
altamente competitivo, reunimos grupos de autores/as para tra-
tarem de temas, métodos de pesquisa ou trabalhos em comum.
Alguns já estavam atuando em conjunto há mais tempo, sem ainda
terem assumido autorias coletivas entre si, outros se reuniram
diante da proposta deste volume por terem desenvolvido pesquisas
sobre temas afins. A construção de textos escritos de forma coletiva
também nos permitiu alcançar uma representatividade temática,
conceitual, geográfica, institucional, geracional e de gênero. Dentre
os grupos, encontramos professores, professoras e estudantes de uni-
versidades de todas as regiões do país e diferentes gerações e pesqui-
sadorxs que são ao mesmo tempo representantes de comunidades
envolvidas nas pesquisas. Assim, a diversidade de temas e a busca de
uma cobertura regional se entrelaçam com as composições hetero-
gêneas dos grupos de autorxs e formas de abordagem. Certamente,
a etnomusicologia no Brasil é tão múltipla e diversa quanto são as
trajetórias dxs profissionais envolvidos, revelando cada vez mais
atores e contextos sociais diferentes.3
Seguindo essa mesma linha de considerações, questões como a
representatividade e a diversidade das práticas etnomusicológicas
são temas centrais do texto de Cambria, Fonseca e Guazina intitu-
lado “Com as pessoas: reflexões sobre colaboração e perspectivas
de pesquisa participativa na etnomusicologia brasileira”. O grupo
de autores discute a etnomusicologia colaborativa e aprofunda as
margens conceituais em relação a termos próximos como etno-
musicologia “aplicada”, “participativa”, ou outros, utilizados no
contexto brasileiro e também além dele. Além disso, os/as autores
apresentam e discutem as implicações de vários exemplos de pes-
quisas recentes, realizadas por cada um deles. São pesquisas que
partem dessa premissa colaborativa, desenvolvidas em diferentes

3 Processos parecidos foram abordados e experimentados nos dois volumes da revista The
World of Music, referentes a etnomusicologia na Austrália e, em parte, em alguns outros
números. Damos destaque aos textos de Corn (2009) e Mungie, Tunstill e Ellis (1994).

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contextos culturais e geográficos brasileiros, envolvendo pessoas
que praticam diferentes tradições musicais em contextos rurais,
urbanos ou acadêmicos. Uma das consequências dessas novas rela-
ções de diálogo com novos interlocutores, discutidas no texto, tem
sido a autoria compartilhada, um fenômeno recorrente no Brasil
nos últimos anos. Assim, várixs colegas têm trabalhado com con-
ceitos e procedimentos etnomusicológicos entre grupos de jovens
pesquisadorxs, ainda na fase dos estudos secundários, para atuarem
em processos de documentação e ação comunitária. Outrxs atuam
junto às comunidades tradicionais dando suporte à consolidação de
suas próprias práticas perante as novas demandas sociais e políticas.
Essas experiências, intensificadas nas últimas décadas, ocorreram
em momentos e contextos geográficos e sociais diferentes e foram
apresentadas e analisadas por Marques (2008) em Cachoeira, Lucas
(2013) em Porto Alegre, e Araújo e Cambria (2013) no Rio de Janeiro.
Todas essas iniciativas envolveram jovens de comunidades diversas
e os resultados alcançados têm sido variados, a depender do escopo
inicial das propostas. De forma geral, esses projetos visam a melhor
inserção dxs envolvidxs nos seus contextos socioculturais, para se
empoderarem e se prepararem para uma atuação mais consciente e
crítica na sociedade e também para o diálogo com instâncias buro-
cráticas e políticas, independente de seus possíveis caminhos profis-
sionais futuros. Ao mesmo tempo, eles buscam preparar os/as parti-
cipantes para uma futura inserção na formação universitária com a
redação de textos científicos, criados em processos colaborativos e
coletivos.
Obviamente, existem tensões em torno dessas novas experiên-
cias no campo conceitual e prático de autorias e representações, mas
elas parecem estar localizadas mais ao redor da etnomusicologia do
que no seu próprio campo de atuação. Em regra geral, são os pares
da grande área de música, que nem sempre têm os mesmos entendi-
mentos dessas demandas que surgiram a partir dos diálogos da etno-
musicologia com a antropologia brasileira e que apresentam resis-
tência e estranhamento diante dessas novas práticas de pesquisa.

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É comum nos depararmos com regras e exigências sobre o nível de
titulação necessário para a participação em congressos e em publi-
cações científicas que podem coibir a participação de outros agentes
nesses espaços. A presença de autores e autoras não acadêmicos
ou ainda não graduadxs/pós-graduadxs em congressos científicos
e revistas da área ou em mesas redondas, muitas vezes pode causar
estranhamentos de colegas da área, a partir do argumento da vali-
dade científica de suas contribuições como participantes suposta-
mente não qualificadxs. Interessantes questões sobre a autoridade e
representação do saber se colocam, assim, com a presença de agentes
antes excluídos do debate.
A participação ativa de um grupo de jovens do chamado Com-
plexo da Maré,4 nos encontros da Associação Brasileira de Etnomu-
sicologia (Abet), reivindicando sua autoridade de fala, tem modifi-
cado as relações de poder acadêmicas e sido recebida com maior
ou menor dificuldade pelos nossos pares. A questão que o debate
nos coloca é sempre renovada a partir da seguinte questão: os/as
acadêmicxs que passaram por várias formações, alcançando dife-
rentes níveis de especialização, possuem autoridade para falar em
nome das comunidades subalternizadas que eles/elas estudam ou
para não incluir essas mesmas pessoas nos espaços acadêmicos
de produção de conhecimento? Esse conhecimento acadêmico
pode ser substituído pelo conhecimento da práxis ou pode dia-
logar com ele nas instâncias em que é geralmente apresentado
para a comunidade acadêmica? A partir dessas reflexões incô-
modas, mas importantes, também se questiona, redimensiona e
amplia os modelos interpretativos e teóricos presentes no âmbito
acadêmico brasileiro, em geral (ainda) pautados em prerrogativas
norte-americanas e europeias e como tais questionados por autores
como Santos e Meneses (2010).

4 Esse espaço geográfico específico no Rio de Janeiro, em geral definido como conjunto
de favelas, também foi abordado no texto de Cambria, Fonseca e Guazina, comentado
anteriormente.

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Apesar de etnomusicólogxs brasileirxs considerarem sua área e
atuação importantes, por diversos motivos, essa mesma percepção
nem sempre é compartilhada por pesquisadores de outras áreas5
ou pelo público não acadêmico em geral. Isso constitui um grande
desafio para a área: buscar construir novas formas de diálogo com
outras áreas acadêmicas e a sociedade ao seu redor para que possam
ser pensadas formas de inserção dos resultados de reflexões e expe-
riências na construção do conhecimento, chamando a atenção para
a valorização da diversidade dos fazeres musicais presentes no Brasil.
As novas parcerias experimentadas, apresentadas e discutidas
no presente volume, até agora, têm sido sobretudo discutidas entre
pares com visões e preocupações parecidas. Nos encontros de etno-
musicologia no Brasil, já tem se tornado praxe contar com a pre-
sença de representantes de contextos culturais, algo inaugurado
pelo Encontro Internacional de Etnomusicologia, em Belo Hori-
zonte, em 2000. (TUGNY; QUEIROZ, 2006) Mesmo assim, essas
questões, presentes com mais ou menos ênfase na etnomusico-
logia, nem sempre conseguem alcançar uma plateia mais ampla em
fóruns de discussão que vão além da etnomusicologia. Essas rela-
ções de tensão se tornam ainda muito mais presentes quando se
sai da esfera acadêmica e busca diálogos com grupos culturais da
sociedade civil. Estes, cada vez mais, têm se tornado críticos e con-
trários a situações de pesquisa, assumindo eles próprios funções
de protagonismo, questionando a posição hegemônica do mundo
acadêmico em relação à circulação e validação do conhecimento.

5 A etnomusicologia brasileira conceitualmente tem mantido mais aproximação com a


antropologia, mesmo que, na vida acadêmica prática, tenha dialogado mais com a edu-
cação musical, pelo fato da maior parte dxs etnomusicólogxs atuarem no âmbito de
escolas de música, inseridas nas universidades. Dessa forma, a etnomusicologia vive
uma situação paradoxal: na prática, ela trabalha com uma área com a qual tem pouca
discussão conceitual, enquanto inspira-se conceitualmente em outra área, a antropo-
logia, com a qual trabalha pouco na prática, salve poucos colegas que atuam em pro-
gramas de pós-graduação de antropologia. Esse dilema certamente passará por refor-
mulações com a crescente inclusão de etnomusicólogos em novas áreas acadêmicas
que vão além dessas duas principais áreas de atuação.

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Tudo isso tem levado à busca por novas formas de representativi-
dade, tornando autores acadêmicxs apenas uns/umas entre outrxs
participantes. É claro que essas experiências de justaposição, opo-
sição e equilíbrio de forças nem sempre atendem às expectativas
de todos os envolvidos, muitas vezes evidenciando rupturas, dissi-
dências e inversões, questões em constante processo de discussão
e discordância nos últimos anos. Elas levaram a novas formas de
afirmação como por exemplo a realização de encontros específicos
de pesquisadorxs negrxs ou ações e encontros promovidos apenas
por representantes de grupos indígenas para os quais podem even-
tualmente ser convidados pesquisadorxs não pertencentes a esses
grupos, mas tidos como seus/suas parceirxs.
Frente a esse cenário, não somente o coletivo de autores pre-
sente neste volume, mas também a etnomusicologia brasileira em
geral assumem um posicionamento político, no sentido de ques-
tionar o status quo da disciplina no ambiente acadêmico em geral:
discutindo de forma crítica sua inserção nas universidades brasi-
leiras, buscando cunhar, sobretudo na área das artes, a descons-
trução dos paradigmas eurocêntricos das formas artísticas que
pautam os currículos dos cursos de Música, reconfigurando assim
sua presença em diferentes instituições e seu papel na sociedade
brasileira.
Isso leva a uma discussão sobre novas formas de se qualificar e
até se profissionalizar na área de etnomusicologia, indo além de
uma formação estritamente acadêmica, como tem sido a regra nas
primeiras décadas da presença da área de estudos etnomusicoló-
gicos nas universidades brasileiras. Essas questões são abordadas no
texto de Lühning, Carvalho, Diniz, Lopes “Desafios da etnomusico-
logia no Brasil”, que apresenta uma discussão epistemológica sobre
as características, a transformação conceitual e expansão geográfica
da etnomusicologia e de seu crescimento quantitativo em termos de
recursos humanos no decorrer dos últimos 25 anos no Brasil. Além
disso, o texto mergulha em uma análise dos desafios crescentes

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relativos ao reconhecimento da etnomusicologia, em geral, pouco
conhecida e percebida fora do país, e os possíveis campos de atuação
de etnomusicólogxs que transcendem sempre mais a tradicional
atuação no âmbito acadêmico, um quadro que está se delineando
como uma das possibilidades da disciplina no Brasil.
As recentes comissões, os conselhos e órgãos criados na área de
cultura e educação em várias esferas da sociedade brasileira, por sua
vez, ainda permanecem pouco atentos à possibilidade e até necessi-
dade da participação de etnomusicólogxs, em geral, contando com
antropólogxs ou historiadores/as. Considerando que boa parte do
patrimônio imaterial brasileiro passa por uma expressiva presença
e diversidade de expressões musicais, cabe aos/às etnomusicólogxs
sensibilizar gestores de políticas públicas sobre o seu papel.
Nesse sentido, a discussão sobre as áreas de atuação tem se tor-
nado um tema urgente, bem como a reflexão sobre o mercado emer-
gente junto aos contextos tradicionais de música, na medida em
que elas se tornam também parte da economia da cultura ou da
indústria criativa. Isso fica ainda mais saliente em um país, no qual
o mercado da cultura popular, com suas inúmeras expressões, tem
oferecido, de fato, uma alternativa econômica para muitxs jovens.
Trata-se de questões que estão na pauta de reflexão etnomusico-
lógica desde o livro de Turino (2008), discutindo as características,
diferenças e relações entre ambientes de participação, apresentação
e gravação. Há de se convir que existam constelações específicas em
cada um dos lugares em observação, o que tem sido abordado no
último texto do livro de autoria de Sandroni, Souza Santos, Oliveira
Santos e Sales, “Músicos nas festas populares do Nordeste: trans-
formações recentes no forró e nas festas populares”. Os/as autorxs
nos oferecem a percepção dos próprios músicos dos estados de
Pernambuco/Paraíba que atuam no cenário de festas populares com
seus repertórios vistos como tradicionais, hoje também inseridos de
forma crescente no mercado fonográfico. Os músicos homens que
participaram da pesquisa são hoje, em boa parte, também pessoas

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formadas ou em processo de formação por conservatórios ou escolas
de música localizadas nas universidades brasileiras, o que gera um
cenário novo e não isento de conflitos.
São as escolas de música das universidades públicas brasileiras
que também formam e abrigam a maior parte de etnomusicólogxs,
em geral atuantes em programas de pós-graduação do país. Mesmo
que as escolas de música e institutos de artes não estejam no centro
das análises dos textos reunidos, elas representam um dos contra-
pontos mais importantes na discussão sobre a etnomusicologia no
Brasil com sua atuação e seus compromissos. Elas não poderiam
ficar fora da discussão deste volume, pois, em grande parte, são res-
ponsáveis pela configuração dos campos conceituais que envolvem
as noções de cultura e música. Dessa forma, em algum grau, a dis-
cussão do universo de escolas, escolas de música e as suas relações
com as políticas públicas de inclusão perpassa vários dos textos, em
especial, o sétimo texto de autoria Queiroz, Lucas, Prass, Ribeiro
e Aredes, “Culturas musicais afro-brasileiras: perspectivas para
concepções e práticas etnoeducativas em música. Ele aborda as
recentes leis federais, fruto de reivindicações sociais, que instituem
a presença de conteúdos da história e das culturas afro-brasileiras
e indígenas, no âmbito de escolas de formação básica. Isso leva à
necessidade de inserir essas questões no processo de formação dos
futurxs professorxs, especialmente os/as de música, que ocorre, nas
escolas de música. A discussão dessas questões envolve diretamente
a etnomusicologia brasileira e sua relação com a educação musical
e traz desafios específicos para ela.
O livro traz também um texto que apresenta experiências aca-
dêmicas inéditas. Ele discute projetos que dão passos além das polí-
ticas de cotas para o acesso de estudantes negrxs e indígenas às uni-
versidades públicas e das leis que tratam do conteúdo da história
indígena e afro-brasileira na educação básica. Nelas, os mestres e as
mestras de diferentes saberes, artes e ofícios das comunidades tra-
dicionais são convidadxs como professorxs na academia brasileira,

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recebendo o pagamento equivalente ao de um doutor, para ministrar
componentes curriculares em formações de graduação e pós-gra-
duação. Assim, instaura-se um profundo questionamento daquilo
que é reconhecido como conhecimento pelas universidades, expan-
dindo e enriquecendo repertórios artísticos e as práticas pedagógicas.
As relações entre contextos tradicionais de construção de saberes
e suas relações com os ambientes acadêmicos têm levado a tensas
discussões sobre novas possibilidades e necessidades de inserção
ou trocas, buscando-se transformar de forma radical o empobreci-
mento das escolas de arte nas universidades brasileiras, instituições
que historicamente excluíram de seus processos de ensino e apren-
dizagem as artes e ofícios dos mestres e das mestras das comuni-
dades tradicionais. O texto de Carvalho, Barros Cohen, Corrêa e
Chada, “O encontro de saberes como uma contribuição à etnomu-
sicologia e à educação musical”, discute a dimensão política desse
projeto com seu título sugestivo. Ele foi idealizado e introduzido em
várias universidades brasileiras desde 2010, experimentando e teo-
rizando sobre os saberes de grupos tradicionais em âmbitos acadê-
micos, através da inversão dos caminhos de construção do conheci-
mento: das comunidades tradicionais às universidades. Tal projeto
resulta não apenas na publicação de livros de autores quilombolas,
mães de santo de terreiros de candomblé e líderes indígenas, prati-
camente inexistentes no cenário intelectual elitizado do país, mas
na construção de políticas universitárias de reconhecimento e titu-
lação de mestres e mestras das artes e ofícios dos saberes populares
e tradicionais. As universidades brasileiras que reificaram histori-
camente a colonização do pensamento, dos saberes, do imaginário,
dos valores, dos métodos e da cultura no país passam assim por uma
radical transformação, na medida que trazem para o lugar de auto-
ridade epistêmica, atores antes silenciados, marginalizados, e, ainda
hoje, expropriados de suas terras e condições de vida cidadã. Alguns
dos mestres e das mestras indígenas/ professorxs, que estiveram nas
universidades que realizaram a experiência do encontro de saberes,

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carregam lesões corporais de processos violentos de exclusão de seus
territórios ou vivem sob cobertores plásticos na beira das estradas no
estado do Mato Grosso do Sul.
Para que esses conhecimentos tradicionais, representando saberes
de propriedade intelectual coletiva de grupos indígenas ou quilom-
bolas, possam ser efetivamente compreendidos na sua profundidade,
tem se tornado importante a realização de experiências comparti-
lhadas de pesquisa e registro com as comunidades, tal como as apre-
sentadas no quarto texto do livro Rodgers, Montardo, João, Jamal
Júnior, Rosse, Stein, Tugny, Pimentel, Aldé e Da Silva, “A memória
das canções como um território de resistência entre os povos indí-
genas da América do Sul: um projeto coletivo de documentação”.
Esse grupo de autorxs, que inclui representantes de grupos indí-
genas, apresenta a experiência do projeto de documentação sonora,
associado ao Museu do Índio-Fundação Nacional do Índio (Funai),
situado no Rio de Janeiro, composto por seis sub-projetos referentes
a seis povos indígenas diferentes. Tais projetos estão sendo realizados
em um contexto de grave retrocesso no que diz respeito às conquistas
constitucionais dos povos indígenas no Brasil, cujo direito à terra vem
sendo ameaçado pela monocultura, pela mineração e pelas constru-
ções de grandes e pequenas centrais hidrelétricas em todo o território
brasileiro. As experiências relacionadas ao registro e reconhecimento
dos repertórios sonoros indígenas se apresentam aqui em flagrante
conexão com o uso tradicional da terra, com a cosmopolítica xamâ-
nica e com a luta pelos direitos territoriais desses povos.
Por estar a música no cerne da sociabilidade e da construção
do conhecimento entre os povos ameríndios participantes desse
projeto, a memória musical passa a ser a memória da ocupação e
experiência territorial. Os/as pesquisadorxs se encontram assim no
principal terreno das disputas mais urgentes desses povos. Decidir
sobre qual repertório registrar, guardar e traduzir é um fato de alta
importância na cosmopolítica indígena. Todas as experiências rela-
tadas nesse texto foram construídas dentro dessa dinâmica tensa e

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contínua de negociações entre as chefias tradicionais e religiosas,
buscando criar no processo as formas mais eficazes de garantir a
fluidez das decisões comunitárias. Na maioria dos casos, discus-
sões riquíssimas são construídas de forma a criar mecanismos de
diálogo entre as noções de patrimônio, mas não só: as de direito
autoral. Grande parte dos repertórios registrados são atribuídos
pelas comunidades indígenas, a encontros e capturas com povos
outros encontrados. Mas, ainda que não reivindiquem autoria
sobre seus repertórios poético-musicais, esses são tidos como bens
e posses de grupos familiares, clãs, linhagens. Assim, os pesquisa-
dores indígenas, os anciãos de suas aldeias e os pesquisadores não
indígenas passaram a experimentar inconclusas e diversas formas
de registro, acondicionamento e circulação desses seus bens.
Não existe possibilidade de se criar legislações ou condutas éticas
que atendam igualmente a cada situação de pesquisa. No entanto,
é necessário que elas sejam constantemente reconstruídas em função
de garantir o protagonismo dos mestres detentores e mantenedores
dos conhecimentos musicais entre os povos. A direção do Museu do
Índio-Funai vem já há algum tempo experimentando o protagonismo
indígena na concepção de exposições, na consultoria dos objetos
conservados em reserva técnica e, portanto, inaugura essa tradição
no campo do registro sonoro, musical e acústico. O projeto cole-
tivo de documentação, se por um lado expressa ainda muito pouco
da enorme grandeza e variedade musical atualizada pelos falantes de
mais de 180 línguas no país, introduz uma mudança de paradigma
definitiva na condução ética das pesquisas sobre musicalidades ame-
ríndias. Ao lidar com um bem tão crucial e disparador de potên-
cias guerreiras como são os repertórios acústico-musicais, é neces-
sário que os pesquisadores não indígenas se sujeitam às tomadas de
decisão sobre a condução da pesquisa aos mestres detentores desses
conhecimentos.

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A etnomusicologia brasileira e sua inserção
na grande área de música
O processo colonizador, intimamente ligado à constituição do
país, à construção das suas estruturas, instituições e modos de pensar,
instituiu, em todas as universidades brasileiras e em todos os conser-
vatórios, o modelo do ensino regular da música europeia de concerto.
Este tornou-se o paradigma da música, embora no país pululassem
outras formas de fazer música, historicamente não reconhecidas
como repertórios capazes de construir uma educação musical dxs
jovens de classe média e alta, menosprezadas pelo discurso hegemô-
nico e relegadas à condição de folclore. Dessa forma, quando a etno-
musicologia começou a ser institucionalmente operante no Brasil em
1990, ela também provocou dentro do campo acadêmico da música
uma tensão constitutiva que reside no seu próprio histórico. Assim
sendo, a mera presença de um\a etnomusicólogx em um curso de
música no Brasil, instaura por si só um conflito, pois mostra, na forma
de espelho, às suas e seus colegas, o quanto elas/eles agem ainda como
colonizadores dentro do próprio país.6
Dessa forma, certamente, não é por acaso que muitos das/dos
profissionais da grande área de música, na qual a etnomusicologia
encontra-se geralmente inserida no Brasil, reagem com estranha-
mento em relação a esse campo de estudos, visto como apresen-
tando características “antropológicas” em demasia. Reconhece-se
e aceita-se, até certo ponto, seu papel questionador, porém, ao
mesmo tempo, ela é vista como “algo” problemático e até amea-
çador aos conceitos e práticas musicais instalados há muito tempo
no contexto acadêmico e profissional da área de música, em geral.

6 Essa situação pode ser comparada com a discutida por Deborah Wong (2006) no seu
texto sobre etnomusicólogos na universidade de Pomona (Califórnia), incluindo como
agravante ainda a questão de gênero no perfil de etnomusicólogos e etnomusicólogas
abordada no seu texto.

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Além disso, há críticas constantes à etnomusicologia por ela
supostamente estar apenas voltada para o discurso sobre música
(leia-se contextos musicais e desdobramentos das observações) e
supostamente pouco relacionada com a prática performática ou a
música “em si”, como se a análise musical tradicional, comum em
todos os cursos de música, fosse, ela sim, mais interna à música.
Mas, contrário a essa visão, uma parcela expressiva dxs etnomu-
sicólogxs atuantes no Brasil são músicos/musicistas praticantes,
na maioria das vezes, de gêneros que vão muito além de estilos da
música ocidental de concerto. Portanto, trata-se novamente de um
fato que provoca estranhamento.7
Nesse contexto, deve ser ressaltado ainda que questões de per-
formance, de forma geral, fazem parte das abordagens analíticas e
conceituais mais recorrentes nos últimos anos na grande área de
música. Portanto, torna-se pouco consistente a crítica feita à etno-
musicologia de forma genérica em relação ao seu viés tido como
apenas “teórico” e pouco prático, tratando-se, a nosso ver, muito
mais uma expressão de reação à disputa simbólica que a etnomu-
sicologia instaura no cenário mais amplo da música. Tal embate se
confunde, em grande parte, com a discussão sobre o próprio con-
ceito de música vigente no Brasil, tema de grande intensidade polí-
tica que atinge todas as sub-áreas de estudos musicais, tendo em vista
a sobreposição e oposição de gêneros musicais e a suposta incom-
patibilidade de práticas musicais vistas como mais tradicionais
ou aquelas vinculadas a novas tecnologias, questões tratadas em
todos os textos deste volume.
Esse ponto merece ainda comentários a partir de outra ótica: para
conseguir financiamentos, qualquer área de estudos acadêmicos no

7 Embora não exista ainda nenhuma bibliografia específica sobre essa questão, podemos
mencionar os exemplos de várixs colegas: Cássio Nobre e Ivan Vilela, tocam estilos
locais de viola com e em comunidades tradicionais de samba, e Climério Oliveira Santos
toca gêneros musicais nordestinos como maracatu e forró. Além disso, esses colegas
tocam suas próprias composições, como o fazem também outrxs etnomusicólogxs,
como Edilberto (Dil) Fonseca, Carlos Sandroni e Laila Rosa, entre outros exemplos.

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Brasil depende cada vez mais de sua relação com instâncias especí-
ficas de fomento.8 Estas, em geral, estão inseridas em secretarias espe-
cíficas do Ministério de Ciência e Tecnologia9 ou em órgãos equi-
valentes nos estados brasileiros, que apenas em parte contam com
essas instâncias. Nesse cenário, até alguns anos atrás, as artes tiveram
pouca visibilidade e contaram com pouca especificação interna, algo
que se fortaleceu nos últimos anos, bem como tem levado a inserção
de representantes da área de música nesses organismos, tais como
o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).10 Porém, é óbvio que isso representa apenas um tímido
começo de uma discussão sobre o papel e lugar do conhecimento
fora das grandes áreas de conhecimento já consolidadas, especial-
mente as exatas. Pelo fato da etnomusicologia muitas vezes dia-
logar com a área de ciências sociais, nem sempre é fácil dialogar com
os pares que avaliam e julgam projetos da área de etnomusicologia
a partir de seus conceitos de música e arte, em geral, também for-
mados pelo senso comum pautado na ideia da primazia da música
europeia de concerto.

A etnomusicologia e outras áreas afins


As dificuldades de diálogo não têm sido menores com as demais
áreas, caso um projeto de etnomusicologia tenha sido apresentado
em áreas além de humanas e artes, como tem ocorrido várias vezes.
Mencionamos aqui projetos etnomusicológicos que foram desen-
volvidos em editais lançados na área de agronegócios (LUCAS, 2013),

8 Além disso, busca-se (e exige-se) cada vez aproximações a setores produtivos especí-
ficos na indústria para garantir financiamentos de pesquisa, embora seja uma questão
bastante discutida no Brasil nos últimos anos.
9 Só após a publicação da revista em inglês, ocorreram as bruscas transformações no
cenário político brasileiro em 2016, levando ao desmonte do referido ministério e sua
fusão com o das comunicações.
10 O CNPq ainda é o órgão que mais financia pesquisas científicas no Brasil.

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trabalhando com jovens em contextos agrários específicos, no caso
quilombolas, voltados para seus contextos culturais. Outros foram ini-
ciados a partir de questões relacionadas com a saúde indígena, como
alcoolismo, para isso precisando trabalhar com as causas dos pro-
blemas observados, muitas vezes perceptíveis através de expressões
culturais e relacionados com estas. (TUGNY, 2004)11 Assim, a avaliação
de projetos interdisciplinares ou transdisciplinares da área de etno-
musicologia por colegas de outras áreas de conhecimento tornou-se,
igualmente, um desafio a ser enfrentado cada vez mais.12
Na mesma linha argumentativa de diálogos interdisciplinares, é
interessante colocar que só recentemente ocorreram os primeiros
casos de busca por possíveis emissões de laudos etnomusicológicos
em relação ao impacto de questões como ocupação de terras, barra-
gens hidrelétricas, igrejas evangélicas, tradições culturais específicas
e a importância de práticas musicais em determinados contextos
socioculturais, procedimento corrente há muito tempo nas áreas de
antropologia e do patrimônio artístico histórico. No campo da etno-
musicologia, trata-se de uma prática ainda pouco usual, embora fun-
damental, e discutida em recentes trabalhos de Lucas (2013), questão
que também permeia vários dos textos deste volume, mesmo que de
forma mais indireta.

11 Há outros exemplos: “Mapeando corpos e territórios nas práticas musicais maxakali” foi
um projeto subvencionado no âmbito do edital “Saúde dos povos indígenas” do CNPq
(2006) e do edital universal da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas
Gerais (Fapemig) (2007), pesquisando noções de corpo e territorialidade dos povos
maxakali por meio dos seus cantos e das práticas musicais. O projeto foi desenvolvido
entre 2006 e 2008 em interlocução com experiências do cotidiano maxakali em suas
relações com os serviços públicos de saúde.
12 Já outros projetos e experiências têm se situado na discussão sobre violência (ARAÚJO,
2006) ou políticas educacionais e culturais dirigidas a escolas e instituições do terceiro setor,
dialogando com as áreas de segurança pública e educação. (LUHNING, 2013, 2010)

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A etnomusicologia brasileira como prática política
Assim, poderíamos chegar a constatar uma aparente indefinição
do perfil atual da etnomusicologia brasileira, abrangendo caracte-
rísticas que vão de uma atuação acadêmica mais “clássica” a uma
crescente atuação com várias formas de posicionamento político e
de ativismo cultural e social. Mas, pelo contrário, entendemos esse
perfil amplo como seu ponto forte, pois, ele tanto permite, quanto
exige um constante diálogo com o cenário acadêmico e os contextos
sociais da sociedade brasileira dentro dos quais a disciplina encon-
tra-se inserida, em alguns momentos apenas reagindo e em outros
promovendo e provocando ações e reações.
Dessa forma, constata-se o potencial da etnomusicologia brasileira
como culture broker, tal qual já abordado por Davis (1992) em contextos
não hegemônicos da construção de conhecimento. Consideramos
que esse potencial crítico e reflexivo, talvez nem mesmo percebido
ainda por todos os/as profissionais da etnomusicologia no Brasil,
também constitui o cerne da incompreensão e temor ainda existente
entre colegas e outras subáreas ao redor de seu campo. É nesse amplo
espectro de ações, reflexões e posicionamentos que se desenvolve a
atual etnomusicologia brasileira apresentada neste livro, cujos textos
anteriormente foram publicados em 2016 pela revista the world of
music (new series).
Nesse mesmo contexto, surgem com mais ênfase as discus-
sões ligadas à ética, onde novamente percebe-se diferenças entre as
subáreas da grande área de música: enquanto para muitos pares a
questão da ética se resume a formulações técnicas de procedimentos
de pesquisa, para os/as etnomusicólogxs a discussão se pauta na
responsabilidade social do/da pesquisador/a e nos enfoques dados
por ele/ela a partir do diálogo com os seus interlocutores, sejam
os que ocupam papéis de participantes coautores, sejam os solici-
tantes de pesquisas, invertendo assim as clássicas posições de poder,
e tomadas de decisão sobre o processo investigativo. Isso inclui
também as tomadas de decisão sobre os formatos de escrita não

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acadêmica, dirigidos a outros públicos, visando conscientemente
formas de divulgação científica. Acreditamos que essas experiências
aqui abordadas, ainda que sejam por enquanto minoritárias, estão
se tornando cada vez mais presentes, e trarão ainda muitas discus-
sões e mesmo disputas nos campos da educação superior ao redor
da etnomusicologia.
Esse papel iconoclasta da etnomusicologia é no contexto bra-
sileiro o seu maior potencial. Acreditamos que os artigos reunidos
neste livro trazem uma contribuição para a discussão sobre o posicio-
namento de um campo de estudos que hoje nomeamos como “etno-
musicologia”, não somente no contexto brasileiro, mas também além
dele. Discussões sobre a terminologia mais adequada para nomear ou
renomear a área, como tem surgido nos últimos anos (GREVE, 2002;
LABORDE, 2008), especialmente no contexto europeu, perdem força
diante do desafio conceitual maior que carregam as experiências, ati-
tudes e posicionamentos, presentes nos textos desta coletânea. Mas,
mesmo assim, caberá ao futuro dizer se esses compromissos da área
atualmente chamada de etnomusicologia são suficientes para sua
contínua presença e inserção no cenário universitário brasileiro.
É importante ressaltar que a inserção e posterior expansão da
etnomusicologia nas universidades públicas brasileiras nos últimos
25 anos precisam ser vistas em um contexto sociopolítico maior, que
coincide com o período de redemocratização e crescimento econô-
mico do país. Este também impulsionou a busca de um contin-
gente crescente de pessoas por mais formação que não foi imediata-
mente atendida pelas universidades públicas, porém prontamente
aproveitada pelas instituições privadas de ensino superior. Estas
últimas cresceram proporcionalmente mais do que as públicas,
através de estratégias como ampliações e fusões, criando verda-
deiras empresas educacionais, além de receberem gradativamente
apoio governamental através de incentivos fiscais e concessão de
bolsas de financiamento estudantil. (SAMPAIO, 2011)

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Já as universidades públicas, que até hoje concentram quase
exclusivamente as atividades de pesquisa no Brasil e dependem do
Ministério da Educação, cresceram em ritmo mais lento e recente-
mente ainda foram atingidas por substanciais cortes orçamentais.
Esse complexo conjunto de fatores da política educacional causa
atualmente um cenário de grande imprevisibilidade em relação a
áreas como a etnomusicologia, mas também o ensino de música/
artes em geral, alocadas na sua maioria quase absoluta nas univer-
sidades públicas. É cedo para poder prever as consequências prá-
ticas desse cenário, mas certamente haverá impactos no âmbito
universitário brasileiro, resultantes das profundas transformações
sociais, econômicas e políticas que ocorreram nos últimos anos e
tanto beneficiaram inicialmente a inserção de etnomusicológxs
em mais universidades e a atuação fora delas, quanto representam
agora um cenário incerto de seu futuro.13

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13 Quando finalizamos, no início de 2015, o texto para a publicação em inglês, não pode-
ríamos imaginar o tamanho das profundas e crescentes incertezas que pairam agora, no
final de 2016, sobre as universidades e as discussões decorrentes sobre o lugar da pes-
quisa e do conhecimento no cenário atual do país.

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