Bjorne Melkevik - Ler Pachukanis
Bjorne Melkevik - Ler Pachukanis
Bjorne Melkevik - Ler Pachukanis
Ler Pachukanis*
Bjarne Melkevik**
Resumo:
O presente ensaio tem por objetivo realizar uma leitura crítica de Pachukanis, enfatizando o legado epistemológico
marxista para a teoria do direito: a centralidade das relações sociais na explicação do fenômeno jurídico e a
historicidade reivindicada para este mesmo fenômeno, assim como a problemática da equivalência jurídica.
Palavras-chave:
Pachukanis; marxismo; epistemologia jurídica.
Reading Pashukanis
Abstract:
This paper aims to realize a critical reading of Pashukanis, emphasizing the epistemological Marxist legacy to the
theory of law: the centrality of social relations in the explanation of the legal phenomenon, the historicity claimed
for this same phenomenon as well as the question of legal equivalence.
Key words:
Pashukanis; Marxism; legal epistemology.
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Bjarne Melkevik
1 Note-se que a maior parte das traduções em línguas ocidentais foi feita a partir da tradução alemã revisada de 1929.
2 Pachukanis mudará em 1927 o sentido desta proposição, e dirá que ela só será válida assim: “na medida em que cuida de definições
fundamentais”.
3 Observemos que Pachukanis parafraseia aqui Marx ([1857] 1977, p. 261).
então que: a “mercadoria, por exemplo, não obstante seu evidente caráter ideológico, reflete uma relação social
objetiva” (PACHUKANIS, 1980, p. 55; 1970, p. 64; 1988, p. 38; cf. MARX, (1867) 1977, pp. 604 ss).
Se, posteriormente, a “mercadoria” pode ser um objeto para a consciência, por exemplo, em uma ideologia
singular de mercadores, uma teorização a este nível será necessariamente sempre inapropriada e falsa (MARX,
[1867], 1977, pp. 561-2). A epistemologia conduz Pachukanis à rejeição fundamental de qualquer concepção
“ideológica” (ou política) do direito, porque “a constatação da natureza ideológica de um dado conceito não nos
dispensa de modo algum da obrigação de estudar a realidade objetiva, isto é, a realidade que existe no mundo
exterior e não apenas na consciência.” (PACHUKANIS, 1980, p. 55; 1970, p. 65; 1988, p. 38)
Se o alvo aparente de Pachukanis nesta passagem é M. A. Reisner, convém não se iludir, uma vez que é
Friedrich Engels quem é realmente visado (REISNER, 1951, p. 102)4. Com efeito, Reisner se vale da autoridade de
Engels quando este defende que o marxismo não pode estudar o direito como idealidade (ou ideologia), fazendo,
assim, da consciência ideológica a instância explicativa mesma do direito. Segundo uma tal opinião, resulta que se
o direito se situa ao nível de uma idealidade, a instância explicativa não pode ser outra que o nível mesmo de tal
idealidade, ou seja, as formas ideológicas nas quais os homens ganham consciência. Em outros termos, Reisner e
Engels introduzem, tal como Hegel, a problemática do direito em um processo em que a consciência – o Espírito
– torna-se instância explicativa. Para Pachukanis, ao contrário, uma tal teoria ideológica do direito não poderá ser
outra coisa que um hegelianismo ou uma idealismo não declarado e ele rejeita inteiramente e sem ambiguidade a
opinião de Engels. Agora, assim fazendo, Pachukanis abre sutilmente a questão traumática concernente ao papel
ambíguo que Engels desempenhou na tradição “marxista”. Que ele se mostre tão discreto é, ainda, compreensível,
visto que mesmo hoje em dia as opiniões divergem profundamente sobre esta questão, notadamente se Engels foi
o primeiro marxista ou, antes, o primeiro antimarxista e o responsável pelas derivações totalitárias e dogmáticas que
se ligam, atualmente, ao nome de Marx.
4 Sobre Reisner, ver: Stoyanovitch (1965, pp. 77 ss). Cf. Engels (1978, p. 386) e Pachukanis (1980, p. 54; 1970, p. 63).
5 Cf. Marx ([1867], 1978, p. 1.428). Pachukanis não faz qualquer referência.
6 Cf. Marx, que diz: “uma relação social de produção determinada” (s. d., p. 193).
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porque ele apresenta um conjunto de ideias – a economia política – à análise e à crítica não a partir de outro corpo
de ideias, mas por se reduzir analiticamente a seu elemento constitutivo, as relações sociais. Em suma, podem existir
outros conjuntos ou sistemas de ideias que não as categorias econômicas ditas “burguesas”. Por consequência, é o
capital, por meio das categorias econômicas, que representa o ponto de partida teórico, enquanto as relações sociais
representam a teorização da realidade como lugar onde vivem homens e mulheres de carne e osso. Claramente,
trata-se, como Marx havia defendido, de uma “crítica da economia política” e uma noção ou um discurso sobre
“a economia marxista” não revela mais que ignorância e impostura. E, acima de tudo, o que Marx designará por
metáfora da base-superestrutura pode se precisar pela afirmação de que as relações sociais se exprimem de forma
diferenciada e por linguagens (ou discursos) que se reportam a formas concretas de relações interindividuais e suas
estratificações segundo as modalidades possíveis de experiência social (MARX [1859] 1977, p. 272).
Se, então, todo discurso sobre uma “economia marxista” é automaticamente excluído como irracional (ou
como uma manipulação ideológica para tolos), todo discurso, portanto, sobre um “direito marxista” também o é. É
preciso, antes de mais, compreender, defende Pachukanis, o direito como uma objetivação social da mesma maneira
que o são as categorias econômicas na teoria do fetichismo de Marx, a saber, no que nos concerne aqui, lugares
das interações sociais. Duas proposições de Pachukanis podem nos servir para melhor compreender os lugares
sociais do direito: examinemos, primeiramente, a transposição que Pachukanis faz das categorias econômicas para
os lugares do direito e, em seguida, examinemos a tese segundo a qual o direito, como fenômeno social, é parte
integrante de um conjunto de objetivações que inclui a economia, a cultura, a política etc.
A primeira proposição de Pachukanis defende a ideia de que a sociedade se constitui em um conjunto de
objetivações sociais. Antes, a sociedade, como materialidade, analisa-se pelas objetivações sociais existentes que,
simbolizando a existência de relações sociais (na sua não-imediatez), confirmam a citada sociedade como lugar
onde se produzem e se reproduzem as relações sociais, ao infinito. Tudo como em Marx, esta análise da sociedade
coloca entre parênteses a fenomenologia das atividades humanas, revelando que ela – i.e., a sociedade – está
estruturada pelas objetivações sociais compreendidas como produtoras de sentido social por seus atores. Há, então,
em Pachukanis, um “sentido do social” situado ao nível dos atores sociais e este “sentido” não pode ser negado
nem negligenciado em favor de outra coisa, como foi frequentemente o caso do marxismo tradicional e, sobretudo,
soviético.
Em seguida, a segunda proposição de Pachukanis diz que o direito está inscrito no coração de tal estrutura de
objetivações. Pachukanis sustenta que as categorias jurídicas parecem determinar a vida social independentemente
dos atores e isto faz naturalmente a aproximação com a consideração análoga de Marx a respeito das categorias
econômicas (PACHUKANIS, 1980, pp. 75; 79; 81-82; cf. pp. 74-90; 1970, pp. 103; 107; 110-1; cf. pp. 99-131).
Com efeito, as categorias jurídicas – o sujeito jurídico, a relação jurídica e a norma jurídica – seguem, de acordo
com Pachukanis, um curso que parece independente daquele do homem. Assim, as situações sociais do trabalho,
da habitação ou da plena satisfação das necessidades (“a reprodução social”) representam, em si, as situações
jurídicas às quais os homens se submetem livremente. Daí a impressão, em tudo uma falsa aparência, de que se
professa que as categorias jurídicas parecem seguir um curso independente das situações sociais lá onde elas não
exprimem esta situação de objetivação. Quando a situação social de trabalho se apresenta em um estado específico
de desenvolvimento histórico sob a forma do contrato, esta situação social se apresenta como a situação jurídica
dos trabalhadores.
Dessas duas proposições cabe identificar a objetivação social, que nos permite abordar a questão do direito.
Para Pachukanis, é o conceito de sujeito de direito que deve nos interessar. A tese de Pachukanis consiste em
sustentar que, da mesma maneira que as coisas envolvidas na troca adquirem o caráter social de mercadoria, o
indivíduo, como participante das relações sociais de sua época, adquire a característica social de sujeito jurídico.
Com efeito, o indivíduo se ajusta à sociedade mercantil como sujeito jurídico da mesma forma que o produto
do trabalho trocado se ajusta à sociedade mercantil como mercadoria. Assim, cada sujeito, graças à relação de
reciprocidade, pode por si só estabelecer esta relação em face das coisas, de si mesmo e dos outros. Esta relação
ajusta, por consequência, o indivíduo na realidade social como tendo o poder jurídico sobre a coisa e “ele mesmo,
na qualidade de possuidor e de proprietário, não é senão uma simples encarnação do sujeito jurídico abstrato,
impessoal, um puro produto das relações sociais” (PACHUKANIS, 1980, p. 76; 1970, p. 103; 1988, p. 72).
Especifiquemos, entretanto, que a qualidade de possuidor que está em questão aqui não é uma qualidade jurídica
tal qual nós a encontramos na doutrina (ou dogmática) dita “jurídica”, mas, acima de tudo, uma qualidade de
sujeito jurídico como intersubjetividade, porque o direito é, aqui, “o terreno intermediário no qual os sujeitos se
encontram na posse de direitos, uma esfera de resolução das reivindicações entre sujeitos. A essência do direito é
a relação entre sujeitos” (HIRST, 1980, p. 203; cf. BALBUS, 1977).
Para Pachukanis, de fato, as relações de vontade e os sujeitos jurídicos são as formas mesmas do intercâmbio.
Enquanto a troca determina a sociedade como sociedade mercantil em que se encontra o valor, a mercadoria, a
moeda, o direito etc., a sociedade se recria ela mesma, por estes elementos, nas relações sociais que implica. A
existência do direito se torna uma objetivação determinada que o indivíduo confronta como determinação social e
em que desempenha sua existência social. Assim, “do mesmo modo que a riqueza da sociedade capitalista reveste
a forma de uma enorme acumulação de mercadorias, também a sociedade, em seu conjunto, apresenta-se como
uma cadeia ininterrupta de relações jurídicas” (PACHUKANIS, 1980, p. 62; cf. p. 51; 1970, p. 75; cf. p. 58; 1988,
p. 47). Logo, o direito, tal como inscrito concretamente na realidade do intercâmbio, representa abstratamente
o cruzamento de uma pluralidade de relações sociais. Isto se torna possível pelo fato de que a objetivação social
resultante das relações de vontade introduz historicamente uma universalidade que se enraíza na realidade.
Consequentemente, o direito adquire, defende Pachukanis, o mesmo estatuto teórico que o valor tal como
definido por Marx. Enquanto o valor é uma realidade puramente social para Marx, o mesmo vale para o direito,
para Pachukanis: como o valor é uma forma social, uma forma de troca, o direito é igualmente uma forma social.
Para ele, já que a forma do direito está inscrita na realidade, somente as relações sociais podem fundar o quid juris.
Por consequência, Pachukanis faz repousar a legitimidade do direito sobre a realidade social, excluindo por isso
mesmo qualquer outra legitimação do direito a partir de entidades abstratas, seja o povo, o proletariado, a nação
ou o estado e, sobretudo, um discurso de ideologia ou de política “marxista”. Em suma, o direito, concebido como
relação social, constitui-se na única instância de legitimidade do direito.
3. Historicidade do direito
Examinemos agora a questão da historicidade do direito tal como considerada por Pachukanis. Veremos
que, se o direito imbrica-se na história material, o direito “burguês”, como a forma mais desenvolvida do direito
de acordo com Marx, revela a sociabilidade histórica apoiada pela existência do direito. Que a tese sobre a extinção
do direito se tornou crucial para Pachukanis é, desde logo, incontestável; mais importante ainda, porém, é que esta
premissa lança uma luz esclarecedora sobre a maneira da qual o paradigma marxista se vale para explicar a existência
do direito, sua presença histórica e, paradoxalmente, o fato de que a política soviética errou ao acreditar que o
“direito” pereceria ali onde seria preciso, acima de tudo, reconhecer sua pertinência em sua forma “burguesa” para
a sociedade soviética. O último aspecto nos permite lançar uma mirada crítica sobre Pachukanis como partidário
zeloso da “extinção do direito”.
Acompanhando o esquema exposto pelo pensamento de Pachukanis, a forma jurídica não está propriamente
falando da gênese histórica “em si”, porque as relações sociais não podem ser compreendidas, retrospectivamente,
senão pela materialidade que se produz efetivamente. A tese sobre a historicidade do direito se descobre, então,
graças às categorias da forma evoluída do direito que nós encontramos sedimentadas na sociedade capitalista e,
portanto, também a conclusão incisiva sobre o fato de que a instância explicativa desta historicidade tem de ser
esta forma evoluída. Se esta proposição continua a senda de Marx, nós descobrimos, em seguida, como ela está
estritamente contrária à posição de Engels, seguida pela tradição ideológico-marxista, para a qual poderia ser
atribuída uma origem específica ao “direito”. A debilidade de Engels está, é claro, em que isto é feito sem qualquer
preocupação com a “juridicidade” e nos informa que ele é, antes de tudo, um partidário do “ideo-direito” dos
filósofos inspirados pelo idealismo alemão.
A questão da historicidade do direito é principalmente uma questão, defende Pachukanis, sobre nossa
contemporaneidade e, sobretudo, sobre o contexto soviético em que ele escreve. A possibilidade do direito, tal
como realizada ao nível dos sujeitos de direito, refere-se, segundo ele, a uma determinação histórica, qual seja, a
forma do direito existente na formação social contemporânea que é, entrementes, o único ponto de referência para
compreender o direito como fenômeno social. Isto diz respeito, em primeiro lugar, à questão relativa à natureza
do “direito” soviético e leva Pachukanis a refutar todo estatuto ideológico ou político próprio a um “direito”
supostamente soviético. Para ele, o “direito” soviético se reporta à determinação histórica da forma do direito e
nenhum discurso ideológico ou político, mesmo que seja marxista, pode se atribuir o papel de mudar, como por
magia, a realidade dos indivíduos via palavras políticas ou ideológicas.
Se Pachukanis tem razão, a historicidade do direito não é, então, um elemento de sobrevivência do capitalismo
na sociedade soviética, mas constitui a racionalidade mais moderna do direito. O que nos leva à tese, decorrente da
tradição marxista, que insiste sobre a perspectiva de uma extinção necessária do direito acompanhando o triunfo
do socialismo como materialidade garantidora da liberdade total e impecável do homem: uma tese que Pachukanis
aceita inteiramente e até mesmo com fervor. Mas se o direito não tem nenhum futuro, a extinção do direito não
pode se realizar, no contexto soviético, por ideologia, uma vez que a realidade, segundo Marx, nunca se modifica
com meras tomadas de poder e muito menos com discursos políticos, econômicos ou estatistas (mesmo que sejam
“marxistas”). Pachukanis defende também a ideia de que o “direito” na sociedade soviética não chega, de nenhuma
maneira, a juntar-se à forma avançada do direito burguês.
Reportemo-nos, agora, ao modo como se opera a aceitação da tese da extinção do direito. Pachukanis
introduz uma correspondência entre as categorias jurídicas de base e o desaparecimento do momento jurídico
nas relações humanas. Com efeito, as categorias jurídicas, tais como sujeito de direito, relação jurídica e norma jurídica,
devem dar lugar ao elemento imediato das relações entre os homens. Assim, o critério de extinção das categorias
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jurídicas consiste em torná-las intermediárias supérfluas nas relações humanas. Pachukanis introduz aqui uma
correspondência entre a existência e a eficácia social, econômica e jurídica das categorias e o desaparecimento do
momento jurídico das relações humanas.
A extinção do direito e de suas categorias jurídicas está, em Pachukanis, diretamente ligada ao advento
material do socialismo (ou “comunismo”). Apenas o advento (e a confirmação ao nível dos fatos) do socialismo
representa a possibilidade suficiente que permite a extinção das categorias jurídicas, pois é a potencial determinação
histórica do socialismo, como esfera de imediatidade das relações humanas, que torna, sempre potencialmente,
factível a extinção. Pachukanis retoma, na verdade, a utopia de Marx expressa em Sobre A questão judaica, de 1844,
em que o advento do socialismo está vinculado ao advento do homem livre, tendo “reconhecido e organizado as
suas próprias forças como forças sociais” (PACHUKANIS, 1980, p. 48; 1970, pp. 52-3; 1988, p. 88). Está claro, por
conseguinte, que se, para Pachukanis, a extinção das categorias jurídicas pode resultar do advento do socialismo, a
sociedade soviética tal, como existia, não estava pronta para tanto e estava longe de poder ver isso ocorrer.
O horizonte da extinção potencial do direito não constitui, portanto, nenhuma questão de ordem ou de
agenda política previsível, mas abrange a questão mais árdua no longo prazo acerca da transformação e modificação
material das relações sociais sobre as quais devem trabalhar homens e mulheres a partir da sociedade civil. Esta
extinção do direito deve, simplesmente, ocorrer substancialmente no coração das relações sociais e, portanto, fora
do domínio do direito como tal; é a extinção da sociedade mercantil que engendrará a sua extinção, e não qualquer
decisão política ou ainda um discurso ideológico (mesmo que “marxista”). Pachukanis mantém, em suma, sempre
as relações sociais como a única instância explicativa da extinção do direito e trata todo discurso contrário como
engodo ideológico.
Associando a extinção do direito à da sociedade mercantil e de trocas, Pachukanis repete, de fato, o ideal
de Marx sobre uma economia imediata em que o homem retoma sua liberdade para a instaurar como liberdade de
todos. Não há, além disso, muita dúvida, no espírito de Pachukanis, de que a possibilidade de uma tal economia de
liberdade não possui qualquer assento na sociedade soviética e se apresenta somente como utopia. Por conseguinte,
indica a impossibilidade concreta e prática de uma tal extinção na realidade soviética (onde o estado econômico
foi tão desastroso que mesmo um capitalismo rudimentar ainda não estava acessível), inexistente e mais utópica
que o advento impossível do socialismo. Sobre o plano econômico, isto abre, obviamente, o abismo não-marxista
em que um regime político deseja substituir os atores econômicos capitalistas e, especialmente, ser mais capitalista
do que eles. Note-se que os dois discursos econômicos dominantes, e sobretudo tendo o endosso das autoridades
políticas, nomeadamente os de N. I. Bukhárin e E. Preobrajensky, advogavam abertamente por uma exploração
primária tendo como alvo os mais vulneráveis da sociedade soviética, a saber, a população rural. O resultado é
bem conhecido: fome e uma opressão sangrenta e cega contra todos os que ousaram protestar. Quanto à extinção
do direito, a partir de 1921 (e Pachukanis silenciou sobre isto), o que teve lugar foi efetivamente o contrário, pois
justamente a noção de “direito” foi instrumentalizada para reforçar a opressão e a manipulação do knout7.
É precisamente a este nível que a questão relativa à natureza ou, ainda, à característica ideológica do que
foi chamado, a partir de 1919-21, de “direito” soviético ressurge. Porque, de acordo com Pachukanis, a conclusão
que se impõe é a de que se trata de um debate falacioso, inútil e supérfluo. Se Pachukanis tem razão, a tese sobre
a historicidade da forma do direito se opõe a todo discurso sobre um “novo direito” e o rejeita como ideológico
(ou, então, como um subserviço ideológico usado indevidamente pelo regime em vigor) ou, pior ainda, afirma
que sociedade soviética, comprometendo-se com uma concepção ideológica de “direito” – isto é, um “decretismo
político” (muitas vezes chamado de “marxista”) –, não poderá fazer mais que mal à realidade, tal como vivida pelos
indivíduos. Com certeza, Pachukanis não o admite abertamente, mas se seguirmos seu raciocínio, mostra-se lógica
a conclusão. Esta assertiva se confirma pela caracterização da sociedade soviética em 1924, em que ele enfatiza
que a situação não é de todo “avançada” e que a sociedade soviético-mercantil, como fenômeno social, está presa
em um “capitalismo do estado proletário” (PACHUKANIS, 1980, p. 89; 1951, p. 179, nota 98; 1988, p. 88). Pois
lembremos que a palavra supérflua aqui, a saber, “proletário”, é justamente a palavra que revela a tragédia política,
econômica e, sobretudo, humana que se desenrola diante de seus olhos.
de um jogo de equivalência dos sujeitos e, em um segundo momento, como este lugar instaura um domínio de
temporalidade quanto à constituição dessa equivalência.
A respeito de nossa primeira problemática, examinemos mais exaustivamente o que entendemos pela
expressão “jogo de equivalência” dos sujeitos de direito. Para Pachukanis, o lugar da equivalência refere-se à
existência de uma estrutura de objetivação do direito, da morfologia do direito e da inscrição do direito como
materialidade que permite a experiência do direito, ou simplesmente o que permite uma experiência jurídica na
realidade. Esta experiência jurídica potencial na realidade social, insistamos nisso, é, para Pachukanis, comparável a
um jogo – um jogo social e jurídico – no sentido exato de que a forma do direito, como mediação social, mediatiza-se
concretamente na realidade como um jogo de equivalência entre os sujeitos. Disso resulta que é sempre necessário
examinar a adequação da juridicidade fixando-se na troca como lugar por excelência das relações sociais concretas
para capturar o direito em uma sociedade concreta como se reportando aos indivíduos (PACHUKANIS, 1980, pp.
101-9; 1970, pp. 139-52).
A constituição social e política do sujeito de direito se revela, portanto e segundo Pachukanis, sempre
extrínseca ao direito; esta constituição é criada pela sociedade e não pelo direito. Quanto à exclusão histórica de
grupos de indivíduos da capacidade civil, por exemplo os escravos, os jovens, as mulheres etc., assim que se dá seu
acesso ao estatuto de sujeito após mudanças sociais e lutas sociais (e de classes), ele não se relaciona diretamente,
portanto, ao direito (PACHUKANIS, 1980, p. 76; 1970, p. 102), mas se manifesta como uma consequência da
evolução das relações sociais que têm uma incidência, por meio de estatutos socialmente reconhecidos, sobre o
direito. Não é, pois bem, pela determinação da forma do direito que o homem pode tornar-se sujeito (ator) pelo
direito, mas antes pelos estatutos sociais forjados constantemente pelos recursos próprios da sociedade civil.
Revela-se, principalmente, que o sujeito tem seus “direitos” em um sentido metamórfico e condicional,
vale dizer, que se joga tudo no seu encontro com os outros sujeitos; logo, que os direitos dos sujeitos adquirem
existência objetiva na interação dos sujeitos. É a exteriorização dos indivíduos sob a máscara de sujeitos de direito
que instaura o mecanismo de reconhecimento mútuo dos direitos de cada um. No processo de delimitação do
“teu” e do “meu”, são os sujeitos de direito que introduzem objetivamente uma delimitação na forma do direito em
que o teu torna-se o meu e o meu torna-se o teu. Por conseguinte, os sujeitos de direito se reconhecem na esfera
das relações sociais, assim como no domínio da objetividade do direito, antes de tudo como atores de seus direitos.
O jogo de equivalência, na teoria pachukaniana do direito, designa finalmente a realidade potencial do direito
como incremento de um processo de metamorfose, de mudança desejada e que intervém no mundo vivido das
pessoas. Disso resulta uma definição do direito como relação sujeito-sujeito, vale dizer, como diálogo material
entre os sujeitos. A relação sujeito-sujeito de direito inscreve-se, por consequência, na lógica da forma do direito;
o diálogo dos sujeitos tem sentido no quadro das relações sociais e é a partir dessa única perspectiva que se pode
compreender a questão da juridicidade em Pachukanis. Em contraste, toda tentativa de ancorar a questão do direito
na relação entre o homem e as coisas só pode criar robinsonadas de antidireito. Com efeito, toda concepção de
direito que se elabore fora da relação sujeito-sujeito da sociedade civil não passa de uma especulação causal e
metafísica, trazendo uma coisificação do direito. Mas, acima de tudo, está excluída expressamente toda referência
a qualquer “obrigação” (ou dever). De fato, o direito não se refere ou se conforma a nenhuma obrigação dos
indivíduos, mas se constitui, ao contrário, como um “direito que dá direito”, em que o oposto do direito é um “não-
direito”. O que introduz, em Pachukanis, uma linha de demarcação forte e não vulnerável em face de eventuais
“obrigações” que os indivíduos se comprometem a respeitar, por razões morais, éticas ou políticas particulares, e,
é certo, em oposição a toda questão do direito – daí a lembrança de que o direito não pode jamais ser associado às
obrigações, sob o risco de se incorrer no não-direito.
Prossigamos nossa análise especificando ainda mais o lugar da equivalência em sua lógica interna, que é ao
mesmo tempo irenogênica (pacificadora) e polemogênica (conflitual)8.
Quanto ao elemento irenogênico, destacamos que Pachukanis, ao fazer do direito um intermediário nas
relações sociais, inscreve este elemento no coração mesmo do direito. Como este implica um reconhecimento do
“outro” como sujeito de direito, dá-se, em consequência, um acordo pacífico para chegar a um consenso. Esta
lógica de reconhecimentos interindividuais se revela necessária e socialmente lógica por estabelecer a troca de
posições do sujeito de direito que permite, em seguida, a troca de mercadorias. Segundo Pachukanis, a relação
sujeito-sujeito do direito é um fator constitutivo de pacificação social, embora delimitado pelo domínio do direito.
Mas, como esta relação, segundo Pachukanis, não está situada socialmente fora do tempo e do espaço, quer dizer,
não é o simples objeto de uma idealidade, o domínio do direito se introduz como um exemplo de que os outros
domínios do social podem, eventualmente, estar. Nesse sentido, Pachukanis faz do direito um agente pacificador
8 Irenogênese contém o radical grego “ireno”, que é relativo a “paz”; já polemogênese contém o radical “polemos”, que se refere
a guerra. Em português, estudos especializados utilizam as expressões “irenologia” e “polemologia”, ciências da paz e da guerra,
respectivamente. [N. T.]
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porque estabilizador de uma realidade de reconhecimento mútuo, ainda que este elemento irenogênico tenha
sempre seu complemento no elemento polemogênico (conflitual) do direito.
Quanto ao elemento polemogênico do direito, Pachukanis enfatiza a ordem jurídica que está largamente
condicionada por este último, em razão do fato de que existe “uma luta” por afirmar a supremacia de um sujeito em
detrimento de outro. Cada parte quer reforçar sua própria posição, quer impor seu interesse no estabelecimento da
ordem jurídica. A questão do direito não existe, então, no vácuo, mas se insere e reflete a divergência de interesses
existente em toda sociedade; como ele afirma:
uma das premissas fundamentais da regulamentação jurídica é, assim, o antagonismo dos interesses particulares
ou privados. Este antagonismo é tanto condição lógica da forma jurídica quanto causa real de evolução da su-
perestrutura jurídica. A conduta dos homens pode determinar-se pelas regras mais complexas, mas o momento
jurídico desta regulamentação inicia-se onde começam as diferenças e as oposições de interesses (PACHUKA-
NIS, 1980, p. 60; 1970, p. 70; 1988, p. 44).
Pachukanis utiliza a imagem eloquente do torneio de cavaleiros (PACHUKANIS, 1980, p. 60; 1970, p. 70)
para caracterizar o antagonismo social dos interesses presentes. Sua teorização situa a luta sobre o plano social sem,
todavia, negligenciar a perspectiva do fim a se alcançar, que é o estabelecimento da ordem jurídica; sua teoria se
diferencia fundamentalmente da concepção imaginária que se encontra em certos marxistas de tendência leninista
(TIGAR; LEVY, 1977; LEFCOURT, 1971), porque estas se referem a “não-direitos” que se opõem à ordem
jurídica em uma luta de poder puro. Pelo contrário, a ordem jurídica não pode, segundo Pachukanis, ser conhecida
sem uma luta efetiva em que os sujeitos delimitem, cada um por sua conta, seu espaço jurídico em função de
seu peso social e de sua tenacidade. A lógica do “direito que dá direito” não pode se realizar sem um elemento
polemogênico que realiza o direito materialmente, como um posicionamento ao mesmo tempo jurídico e social.
Segue-se que não podemos pensar a questão do direito senão levando em consideração, simultaneamente,
tanto um elemento quanto o outro. Será uma falsidade epistemológica (e teórica) privilegiar um elemento em
detrimento de outro. Ilustremos nossa proposta com o domínio do direito do trabalho, que se desenrola como
“luta” relativa à delimitação jurídica entre o trabalho e o capital (EDELMAN, 1978; COLLIN, 1980). Pois, se se
considera o direito do trabalho nesta perspectiva, chega-se a pensar nisso como uma luta interna à forma do direito
em que cada parte tem a intenção de tomar o direito a seu favor.
Em suma, notamos com esta análise que o que o direito inclui em sua relação sujeito-sujeito não pode
ser separado da perspectiva da ordem temporal. Com efeito, a materialidade da forma do direito condiciona a
forma temporal de sua ordem. Em analogia, assim, com a afirmação de que a forma do valor em Marx não pode
ter conteúdo/substância, a “forma” do direito não possui qualquer coisa a mais. O valor, como o direito, recebe
uma confirmação material pelo jogo de equivalência dos atores do direito. Resulta, segundo Pachukanis, que a
temporalidade do direito constitui o domínio ad judicium, vale dizer, o domínio da decisão. Em outras palavras, o
domínio da decisão jurídica pode ser um pouco saudável se se situar no sentido da relação sujeito-sujeito e de seus
jogos de equivalência. Não existe, portanto, infere Pachukanis, uma “substância ou essência do direito” a partir do
que é preciso julgar, mas, ao contrário, uma problemática da temporalidade jurídica para julgar na prática e com
relação aos sujeitos de direito.
Referências bibliográficas
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