170 499 1 PB

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 6

“MOVIMENTO HIGIENISTA” NA HISTÓRIA

DA VIDA PRIVADA NO BRASIL:


DO HOMOGÊNEO AO HETEROGÊNEO1

EDIVALDO GÓIS JUNIOR

Doutorando em Produção Histórica da Educação Física da Universidade Gama Filho/RJ,


Professor de Dimensões Históricas e Sociais da Educação Física na UNINOVE

Resumo Abstract
Este ensaio tem como objetivo refletir sobre a homogeneidade This paper intends to contemplate the idea of either homogeneity or
ou heterogeneidade do discurso do “movimento higienista”. heterogeneity from the discourse of the “hygienist movement”. For this
Para isso, enfatizamos a análise de discursos teóricos e pro- the analysis of theoretical discourses and the hygienists' intervention
postas de intervenção dos higienistas. Chegamos à conclusão proposals were emphasized.The reached conclusion states that, in the
de que havia uma mentalidade heterogênea e difusa entre eles, past, there must have been both heterogeneous and diffused mentality
com propostas que iam da regulamentação dos casamentos en- among the hygienists, since their proposals ranged from the regulation
tre indivíduos mais aptos e esterilização, até a democratização of marriages between more capable individuals and sterilization to the
da saúde e da educação. democratization of health care and education
Palavras-chave: higienistas; sociedade; eugenia da raça. Key words: hygienists; society; eugenic of the race.

“MOVIMENTO HIGIENISTA” E HISTORIOGRAFIA sobretudo ficariam fustigadas em suas habitações”.


No fim do século XIX e início do XX, surgia uma (MARINS, 1998:133)
nova mentalidade que se propunha a cuidar da população, Neste artigo demonstraremos que, por muitas ve-
educando e ensinando novos hábitos. Convencionou-se zes, ao contrário do que pensa e escreve Marins, o discur-
chamá-la de “movimento higienista”. so higienista colaborou para que as denominações que E
Neste artigo, procuraremos refletir sobre o dis- circundavam o brasileiro, como a de inferioridade, fos- N
S
curso e as propostas de intervenção de intelectuais liga- sem superadas no pensamento social nacional. Nestes A
dos a esse movimento que tinham em comum o desejo escritos, o objetivo central é refletir sobre a tese que pen- I
O
de melhorar as condições de saúde coletiva da popula- sa o “movimento higienista” como aliado das elites eco- S
ção brasileira, aos quais chamaremos de “higienistas”, nômicas em todas as suas manifestações, de acordo com
em um sentido amplo, sem limitar o termo a médicos a passagem:
sanitaristas e estudiosos da Higiene. Com este intuito,
coletamos fontes primárias que datam, principalmente, A ambição de arrancar do seio da capital as habi-
da década de trinta, pois a maioria das produções sobre tações e moradores indesejados pelas elites diri-
o assunto se concentra na primeira década do século XX gentes começou a se materializar com as medi-
e no episódio da Revolta da Vacina. O estudo do pensa- das visando à demolição dos numerosos cortiços
e estalagens, espalhados por todas as freguesias
mento higienista posterior à Revolta da Vacina, com pre-
centrais do Rio de Janeiro, o que se procedeu sob
domínio de uma política de saúde nos moldes de uma a legitimação conferida pelo sanitarismo.
campanha policial, pode dar-nos uma idéia mais com- (MARINS, 1998:141)
plexa e heterogênea das mentalidades higienistas.
Recentemente, na publicação da obra História da Com o objetivo de testar a tese de homogeneidade
Vida Privada no Brasil, em volume dirigido por Fernando do discurso higienista, pretendemos abordar o intenso de-
Novais e organizado por Nicolau Sevcenko, Paulo César bate interno que existia dentro do “movimento higienista”,
Garcez Marins, no capítulo “Habitação e Vizinhança: li- no que se refere à sua intervenção, aos seus meios, teorias
mites da privacidade no surgimento das metrópoles bra- e ideais, ou seja, pensamos que os higienistas viviam uma
sileiras”, atribuiu uma homogeneidade ao discurso higie- heterogeneidade de propostas práticas e teóricas que, por
nista, caracterizando-o como movimento social orienta- diversas ocasiões, caminhavam no sentido de melhorar as
do pelos interesses das classes dirigentes. Nos seus estu- condições de vida da classe trabalhadora no que se refere a
dos sobre a urbanização, o autor considera o discurso hi- salários, saúde, educação, jornada de trabalho, enfim, tudo
gienista um reflexo do pensamento das elites, que preten- que colaborasse para a valorização do povo brasileiro, fa-
diam perseguir o povo em suas próprias habitações. Nas tos não abordados pela historiografia de Marins.
palavras do autor, as populações pobres eram “acusadas
de atrasadas, inferiores e pestilentas; essas populações se-
riam perseguidas na ocupação que faziam das ruas, mas 1 A ortografia de época foi mantida nas fontes primárias.

47

myolosaude.p65 47 18/06/02, 18:37


Preto
“MOVIMENTO HIGIENISTA” NA HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL: DO HOMOGÊNEO AO HETEROGÊNEO
ConSCIENTIAE SAÚDE. Rev. Cient., UNINOVE - São Paulo. V. 1 : 47-52

OS HIGIENISTAS: CRÍTICA DA SOCIEDADE E sobre a evolução do seres vivos, isto é, a mudança das con-
POLÊMICA RACIAL dições de vida provoca uma mudança das necessidades, a
Da célebre frase de Miguel Couto: “O Brasil é um seguir dos hábitos, para depois mudar geneticamente o pró-
imenso hospital”, em 1916, ao aumento do papel do Esta- prio organismo (MARQUES, 1997). Portanto, se o povo
do nas áreas sociais em 1930, os higienistas debateram, brasileiro se encontrava fragilizado no aspecto da saúde,
opuseram-se e fizeram propostas de intervenção antagôni- isso não se devia a sua constituição genética inferior, como
cas, alteraram um quadro político de apatia para um deba- pregavam os deterministas-raciais, mas ao ambiente e à
te polêmico em torno da modernização. Atingiram todos condição de abandono, que vinham inferiorizando a raça
os setores da sociedade com o argumento da higiene. Para no decorrer dos tempos. Então, o que fazer? Melhorar a
eles, Higiene seria uma área de conhecimento da Biologia raça pela educação, como ele mesmo indica: “só há um
com o objetivo de melhorar a qualidade de vida humana, problema nacional: a educação do povo. A decadência da
prevenir as doenças, aprimorar a saúde, descobrir cientifi- raça não se há de fazer na nossa terra, e o remédio do sobe-
camente os melhores hábitos para a defesa da saúde indi- rano é a cultura; o culto se faz são, o são se torna forte e o
vidual e coletiva2 (ELLIS JÚNIOR, 1933; BAPTISTA, forte herda à prole a sua robustez”. (COUTO, 1933:142)
1941; ABREU, 1929; BARROSO, s.d.). Com essa autori- Por meio da Educação se formaria uma cultura bra-
dade, os médicos prescreveram novos hábitos sobre todas sileira e um povo mais saudável, com melhores condições
as condições que pudessem afetar, de algum modo, a saú- de vida. Se a educação fosse democratizada, o povo pode-
de, ou seja, todas as atividades humanas - trabalho, escola, ria adquirir virtudes valorizadas na época, cuidaria melhor
moradia, asseio corporal, moralidade. Se o país estava do- de si mesmo e educaria melhor seus filhos, preparando-se
ente, cabia curá-lo, ou melhor, saneá-lo. para o trabalho moderno e possibilitando ao Brasil um
Muitos “higienistas” tomavam como referência a maior desenvolvimento. Seria mais saudável, pois apren-
idéia que preconizava ser a falta de saúde e educação do deria os novos hábitos higiênicos indicados pelos cientis-
povo responsável por nosso atraso em relação à Europa. tas. O brasileiro criaria um sentimento comum de naciona-
A situação de miséria do Brasil tinha explicações em fa- lidade, uma cultura própria. Esse era o objetivo da inter-
tores sociais, e, por esse motivo, julgavam poder cum- venção da educação e da saúde. Com esse discurso, os hi-
prir, com o simples apoio financeiro do Estado, o papel gienistas colaboraram para a melhoria das condições de
de modernizadores do Brasil. Muitos deles foram atrás vida do trabalhador.
deste título. O primeiro passo tomado foi criticar a situa- Belisário Penna, por exemplo, líder da Liga Pró-
ção de abandono e, depois, negar a inferioridade biológi- Saneamento do Brasil, compartilhava a idéia de povo
co-racial do povo brasileiro, incapacitado para o trabalho doente e abandonado pelo Estado. Ele não acreditava nas
moderno por questões sociais, e não por sua condição teorias européias sobre a inferioridade da raça brasileira.
etno-biológica.
Miguel Couto, sobre a questão do determinismo N'um país de doentes e analphabetos como o Bra-
racial, era categórico: sil, a preocupação máxima, primordial, de
governantes conscientes deveria ser a do sanea-
Não há raças humanas, nem superiores nem infe- mento physico, moral e intelectual dos seus ha-
riores, o que há são povos adaptados ao meio em bitantes. Não há prosperidade, não pode haver
que nasceram e se formaram, e que transferidos progresso entre indivíduos ignorantes, e muito
para outros se constituem o centro do metabolis- menos quando á ignorância se juntam as molés-
mo longo e eficiente(...). Um país de imigração tias e os vícios, o abatimento physico e
como o nosso, na altura em que se acha, já está intellectual, as lesões de orgãos essenciais.
em tempo de cuidar de sua seleção social não tanto (PENNA, 1923: 25)
pelo medo do contágio dos efeitos, como pela
necessidade de apuro de qualidades. (COUTO, Nos escritos deste higienista, encontramos o ide-
1932:82) al da intervenção do Estado com o objetivo de promo-
ver a saúde e educação do povo. Não encontramos re-
Couto se afastava do pensamento determinista ferências sobre a adoção de uma teoria evolucionista
racial. Para ele, as características do indivíduo não eram lamarckista (melhoria do genótipo pela modificação do
somente transmitidas geneticamente; tinham a influência fenótipo) como as encontradas na obra de Miguel
do ambiente. E estas qualidades adquiridas, com a influên- Couto3 (GÓIS JUNIOR, 1999). Belisário Penna apro-
cia do ambiente, poderiam ser transmitidas às gerações, xima-se mais do pensamento de Alberto Torres: para
como era defendido pela teoria evolucionista de Lamarck, ele, o problema do Brasil era falta de vontade política
que consistia na tese da influência das variações do meio e de organização.

2 Todos os manuais de higiene estudados nesta pesquisa concordavam 3 Fernando de Azevedo e Manuel Bonfim também foram influenciados pelo
com essa definição. lamarckismo.

48

myolosaude.p65 48 18/06/02, 18:37


Preto
Edivaldo Góis Junior

Nos termos do autor, Para o leitor que conhece o “movimento higie-


nista” pela historiografia da vida privada no Brasil, e
todos os problemas relativos à salubridade das por muitos autores da historiografia da Educação, a lei-
regiões e à saúde dos seus habitantes prendem-se tura dessas passagens deve causar no mínimo uma refle-
intimamente aos de sua organização política e xão. Vale lembrar que este autor foi um dos mais repre-
social. Cada um delles não pode ser resolvido sem sentativos do “movimento higienista” no Brasil: influ-
o concurso dos outros; são rodas conjugadas de
enciou intelectuais como Monteiro Lobato, organizou
uma maquina, que só funciona regularmente
quando suas engrenagens se ajustam e os seus expedições pelo interior do país, diagnosticando várias
eixos não se deslocam. (PENNA, 1923: 68) doenças, e denunciou a falta de responsabilidade do
Estado com o problema da saúde. Unido a Arthur Neiva,
Na opinião de Belisário Penna, era preciso organi- liderou a Liga Pró-Saneamento do Brasil, um dos movi-
zar o país; afirmava que não faltavam recursos ao governo mentos de maior repercussão na área médica, entidade
e criticava a política de empréstimos financeiros e de emis- embrionária da Sociedade Brasileira de Higiene. Tinha
são de títulos da dívida pública (precatórios). Penna tinha sempre em mente que a obra de saneamento era um pro-
uma preocupação central: sanear o interior do Brasil. Ci- jeto de intervenção social e que, definitivamente, nosso
tando os relatórios de Carlos Chagas e Oswaldo Cruz, ele problema era social.
verificou o estado de completo abandono do povo, sem
assistência de nenhuma espécie, entregue à malária e ou- O “MOVIMENTO HIGIENISTA”: SEUS CONTRAS-
tras doenças. O povo do interior não tinha informações TES E SUA COMPLEXIDADE
sobre as formas de prevenção das moléstias. Mesmo que a O “movimento higienista” compunha-se de uma
população soubesse de todas as indicações médicas e das frente ampla que abrigava várias posições políticas, que
formas profiláticas, não teria condições de praticá-las, afir- iam da esquerda para a direita, e vários métodos de inter-
mava aquele autor, pois não tinha recursos para se alimen- venção, que iam da democratização da educação e da saú-
tar nem para se medicar. Belisário tinha claro que não bas- de à regulamentação de casamentos, esterilização, segre-
tava ensinar a população a se cuidar; era preciso ensiná-la gação (correntes da Eugenia). Com o intuito de descrever
E
a trabalhar, a garantir seu sustento por meio de um empre- melhor este panorama, pretendemos desvelar as complexi- N
dades do movimento no Brasil. S
go com salário justo. Como indicar ao indivíduo que to- A
masse banho todos os dias e usasse roupas limpas, se ele Depois da descrição que fizemos, podemos per- I
O
não tinha o que comer? ceber que o “movimento higienista”, como todo movi- S
Diante desse quadro, o higienista poderia mento social amplo, aglutinava meios teóricos e práti-
direcionar seu discurso para outros setores da sociedade, cos diversos para chegar à mesma finalidade, ou seja,
mas, ao contrário, discursou em favor da mudança deste melhorar a saúde da população – esta era a finalidade
panorama desolador, denunciando um país que deixava que aglutinava. O movimento estudantil “Fora Collor”,
seu povo padecer isolado no campo. Dizia ele: “eis a cau- por exemplo, reuniu milhares de estudantes com um
sa da apavorante mortandade de crianças, de que não há único objetivo comum: derrubar o presidente. Mas se
muito os jornais se ocuparam, gastando muita tinta sem forem discutidos os meios teóricos e práticos para che-
descortinar o seu principal factor – a fome” (PENNA, gar a esse objetivo, constata-se que as idéias trafega-
1923: 90). Ele aponta a pobreza no campo e na cidade, e vam do anarquismo ao liberalismo. Não se pode rotular
sua conseqüência, a fome, como causas de nossa debili- este movimento de comunista, de esquerda: isso seria
dade física; portanto, nosso problema era social. Propu- agir de maneira precipitada. Essa diversidade de ideo-
nha o autor uma visita às periferias do Rio de Janeiro, logias ocorre também no Movimento “Diretas Já” e no
pois ali encontraríamos o mesmo contexto desolador do Movimento Sem Terra, em que podemos encontrar
interior, criado pelas más condições de vida dos trabalha- stalinistas, trotskistas, reformistas, e pessoas que só que-
dores. Para ele, a questão racial estava longe de ser o pro- rem trabalhar. Enfim, quando um movimento é amplo e
blema mas, sim, os fatores sociais. E o caminho de supe- democrático, várias mentalidades influenciam sua inter-
ração era o investimento nos ensinamentos da ciência em venção e a teoria que o orienta.
todos os ramos da atividade humana, assistidos pela me- Embora os higienistas não fizessem passeatas,
dicina e higiene, e na capacitação para o trabalho profis- tinham outras formas de pressionar, que eram discuti-
sional, o que exigia a intervenção do Estado. Nos seus das nos Congressos de Higiene e Eugenia. Nestes, de-
escritos: “Nós ficamos mais ou menos impassíveis, ale- finiam-se quais deveriam ser os meios para se chegar
gando que o mal foi importado da África ou de Alhures, ao objetivo comum. Na bibliografia da época podemos
que está generalizado, que é próprio do clima e da raça, observar que não havia discordância sobre as normas
que é muito difícil de combater-se, e quejandas tolices.” das várias divisões da Higiene. Assim, as normas so-
(PENNA, 1923: 56) bre a higiene da Escola, do trabalho, das ruas, do as-

49

myolosaude.p65 49 18/06/02, 18:37


Preto
“MOVIMENTO HIGIENISTA” NA HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL: DO HOMOGÊNEO AO HETEROGÊNEO
ConSCIENTIAE SAÚDE. Rev. Cient., UNINOVE - São Paulo. V. 1 : 47-52

seio corporal não se contradiziam.4 Com exceção de de embranquecimento faria o elemento negro desaparecer
um tema: a Higiene da Raça, ou Eugenia. Pedro Ânge- do país. Afrânio Peixoto, por exemplo, era um dos defen-
lo Pagni afirma que: sores dessa tese. Por outro lado, não poderíamos dizer que
este autor e outros eram darwinistas sociais stricto sensu,
A leitura do movimento eugênico feita apenas por pois apostavam na mistura de raças, o que era condenado
um de seus integrantes poderia fazer com que se ti- pelos darwinistas sociais.
vesse uma leitura homogênea desse movimento. O Uma outra corrente da Eugenia era a de Galton, uma
próprio Renato Khel, todavia, apressa-se em teoria que se baseava na evolução biológica de Darwin.
desmistificar essa idéia, dizendo que dentro desse
Para ele, esta evolução natural poderia ser auxiliada pela
movimento há uma disputa entre os
“consangüinaristas” e os “anti-consangüinaristas”. O intervenção médica, possibilitando a reprodução dos indi-
que implica dizer que havia divergências dentro des- víduos mais aptos, o que se daria pela regulamentação de
se movimento, sobretudo teóricas. Disputas essas que casamentos: os médicos identificariam os mais aptos e fa-
também podem ser verificadas, por exemplo, nos voreceriam seus casamentos; além disso, esterilizariam os
próprios textos e documentos de seus integrantes. Um doentes mentais. Sobre a hereditariedade, Galton tinha a
exemplo típico desse conflito é uma análise antropo- seguinte posição: caracteres adquiridos, como educação e
lógica, realizada por Fróes da Fonseca sobre a ques- robustez, não se transmitiam hereditariamente (MAR-
tão da raça, onde ele chega a concluir que o proble- QUES, 1997). Um adepto desta teoria era Waldemar Areno,
ma do Brasil não é racial...(PAGNI, 1994: 123-4)
médico e professor da cadeira de Higiene da Escola Naci-
Para entender esta primeira divisão entre os higienistas onal de Educação Física e Desportos, o qual dizia que,
– que se resumia aos que eram favoráveis à regulamentação excetuando-se as discussões em setores da Biologia, fica-
dos casamentos entre os mais aptos (até mesmo entre primos), va evidente que características adquiridas não eram trans-
apresentando qualidades físicas necessárias para um hipotético mitidas às gerações futuras. Era favorável também à regu-
aprimoramento racial, e aos que eram contra –, cabe analisar as lamentação dos casamentos e à esterilização de indivíduos
teorias em voga na época sobre o tema. Para isso, descrevere- ‘disgênicos’ (ARENO, 1949). Cabe destacar que os
mos, sucintamente, as teorias da Antropologia Física (corrente eugenistas não determinavam estes indivíduos ‘disgênicos’
etnológico-biológica), do darwinismo social, de Galton, pela raça, mas, sim, por portarem determinadas doenças.
Lamarck, e dos interventores sociais, em relação à raça. O maior nome dessas idéias no Brasil foi Renato Kehl.
Entre essas, a corrente mais tradicional era a Ao contrário da teoria de Galton, Lamarck pregava
etnológico-biológica, baseada no estudo das característi- que caracteres adquiridos para adaptação ao meio poderi-
cas físicas das raças. Paul Broca, médico francês, um dos am ser transmitidos hereditariamente. Isto justificava a evo-
maiores nomes desta corrente, constatou que o cérebro dos lução do pescoço da girafa, uma adaptação ao meio, que
negros era menor que o dos brancos (dados que posterior- possibilitou a ela alimentar-se de vegetais de altas árvores
mente foram bastante criticados), o que pressupunha supe- (esta teoria não é aceita atualmente). A necessidade do
rioridade intelectual dos últimos. Esta primeira teoria de- meio gerou uma característica que passou a ser codificada
fendia um determinismo racial (SKIDMORE, 1989). Inte- geneticamente (MARQUES, 1997). Acreditando nessa tese,
ressante constatar que nenhum higienista faz alusão a essa higienistas justificaram a intervenção estatal na educação
teoria nos Congressos de Higiene e Eugenia, evidenciando e na saúde do povo. Ao absorver cultura, a população ad-
seu desuso no início do século XX no Brasil. quiriria um caráter que seria passado hereditariamente aos
Já os darwinistas sociais usavam a teoria descendentes. Esta teoria, somada à dos interventores so-
evolucionista de Charles Darwin para comprovar a tese de ciais, basearia o higienismo intervencionista, que objetivava
raças superiores e inferiores. Segundo esta corrente, as ra- a democratização da saúde e da educação para melhorar a
ças superiores teriam uma melhor adaptação ao meio em raça. Podemos exemplificá-la na obra de Manoel Bonfim,
que viviam, e sobreviveriam, o que não aconteceria com as na qual narra, por exemplo, que os ibéricos, ao convive-
raças inferiores, condenadas ao desaparecimento. Portan- rem com os mouros, assimilaram uma agressividade con-
to, a humanidade evoluiria, chegando a uma raça homogê- tundente, transmitida de geração a geração pelo caráter na-
nea, mais apta (SKIDMORE, 1989). Esta teoria fundamen- cional (características psicológicas coletivas herdadas ge-
tou a campanha de embranquecimento do Brasil, sob o ar- neticamente) (BONFIM, 1905). Acreditava ele que as ca-
gumento de que a alta mortalidade dos negros se devia a racterísticas psicológicas de um povo, adquiridas ao longo
sua inferioridade, e que a mistura de raças com tendência de sua história, pudessem ser transmitidas hereditariamen-
te. Talvez Bonfim nunca tenha lido Lamarck ou Mendel5;
no entanto, por influência de seu tempo, utilizou pressu-
4 Cf. Os Manuais de Higiene: Ellis Junior, Alfredo. Noções elementares de
hygiene e de biologia. São Paulo, Saraiva, 1933; Baptista, Amaro Augusto de
postos da teoria lamarkista.
Oliveira. Elementos de higiene. Porto Alegre, Livraria do Globo, 1941; Abreu,
Henrique Tanner de. Estudos de hygiene. Rio de Janeiro, Quaresma, 1929; 5 As experiências mendelianas, na época, serviram de prova empírica para
Barroso, Sebastião. Hygiene para todos. São Paulo, Melhoramentos, s.d. o Lamarckismo.

50

myolosaude.p65 50 18/06/02, 18:37


Preto
Edivaldo Góis Junior

Outra linha bem próxima a este pensamento é a teorias determinista-raciais. Muitos higienistas perce-
intervencionista social. Os interventores sociais queri- beram que a causa da debilidade do povo era a inca-
am uma ação higienista com o objetivo de prestar assis- pacidade das elites de cuidarem dos problemas soci-
tência médica aos pobres, de democratizar as normas ais. No Primeiro Congresso Brasileiro de Eugenia, o
higiênicas, de tornar o trabalho justo. Viam, porém, que antropólogo Fróes da Fonseca, ao ler Lições de
isso só seria alcançado por meio de reformas sociais Eugenia de Renato Kehl, texto distribuído no Congres-
profundas que atingissem a organização política e fo- so, assim se pronunciou: “Não nos parece pois que a
mentassem um Estado interventor: queriam sanear o país organização das populações brasilienses seja proble-
pela higiene. Não se pautavam no discurso racial, so- ma racial. Como o têm reconhecido todos os grandes
bretudo; para eles, o problema brasileiro era social. O espíritos que têm procurado pôr em equação o nosso
mais representativo pensador desta corrente, no “movi- futuro, o problema fundamental é o da educação em
mento higienista”, foi Belisário Penna. geral e o da higiene em especial”. (FONSECA Apud
Portanto, todas essas mentalidades foram amal- MARQUES, 1997: 66)
gamadas nos Congressos de Higiene e Eugenia, o que Era a defesa dos interventores sociais, que viam
resultou num grande debate entre as correntes. Muitos na Eugenia uma forma de melhorar o homem brasileiro,
higienistas, em meio a essa conturbada discussão, aca- mas despiam-se de qualquer idéia de características ra-
baram abandonando as correntes teóricas e defenden- ciais superiores ou inferiores. Concordavam com eles
do uma prática interventora, que, muitas vezes, unia os adeptos da teoria lamarckista: era preciso intervir nas
pressupostos de teorias diferentes e corroborava uma condições sociais do país. Assim defendia Roquete Pin-
maior complexidade no entendimento do pensamento to: “...é uma questão bastante difícil, à primeira vista;
higienista. Isso se reflete na descrição de Vera Mar- pois que o resultado dos casamentos é condicionado não
ques sobre as divergências dos Congressos, como evi- somente por fatores biológicos mas também por fatores
denciaremos a seguir. sociais” (PINTO Apud MARQUES, 1997: 66). Ele dei-
A partir dos anos vinte, o discurso da Eugenia afas- xava claro que não adiantavam os casamentos entre in-
ta-se dos pressupostos arianistas defendidos por Oliveira divíduos mais aptos, se estes não tivessem condições
E
Vianna e das teorias deterministas raciais e começa a sin- sociais favoráveis. Por outro lado, dizia que não só o N
tonizar com um pensamento mais próximo de Galton, que aspecto social deveria ser observado, mas também o bi- S
A
não enfatizava o determinismo racial, e sim o melhora- ológico. Era preciso que o povo adquirisse característi- I
O
mento da espécie. Renato Kehl foi o defensor da tese de cas positivas, que seriam transmitidas aos filhos – pre- S
melhoramento racial pela intervenção eugênica. Ele que- cisávamos melhorar as condições sociais para melhorar
ria a aprovação em várias entidades e congressos do mo- a raça; tínhamos de progredir, como alude Fernando de
vimento pela regulamentação dos casamentos. Na Socie- Azevedo: “Progredir ou desaparecer, que significará isto,
dade Eugênica de São Paulo, por exemplo, sua proposta senão regenerar ou desaparecer! A regeneração physica
foi derrotada, resultando no seu desligamento dela. Mais é incontestavelmente um dos maiores factores do pro-
tarde, comentaria o assunto: gresso, senão for, talvez, este o próprio progresso”.
(AZEVEDO, 1933: 14)
Meus senhores (...) a associação eugênica que O debate se intensificou. Contudo, as idéias
tive a honra de fundar sob os auspícios de galtonianas nunca foram adotadas no Brasil, o que não acon-
Arnaldo Vieira de Carvalho, depois da morte teceu com as propostas intervencionistas e lamarckistas,
deste ilustre patrício e depois de minha pois, a partir de 1930, com a formação do Estado Nacional
transferencia para esta capital (Rio de Janeiro)
Brasileiro, muitas orientações higienistas foram seguidas
caiu em estado de latência, para não dizer que
morreu, devido à inconstância no entusiasmo para democratizar a incipiente estrutura de saúde e educa-
que despertam as iniciativas sérias e altruísticas ção no país.
no nosso país. (KEHL Apud MARQUES, Indutivamente, concluímos que, se não podemos
1997: 58) definir uma mentalidade higienista, dadas as várias di-
vergências teóricas em relação à intervenção no Brasil,
Cético em relação aos progressos paulistas na é possível definir o “movimento higienista” pelo que
questão da raça, Kehl abandonou a entidade e partiu tinha de comum: seu objetivo, que era o estabelecimen-
em campanha para o Rio de Janeiro. Mas esta não se- to de normas e hábitos para conservar e aprimorar a saúde
ria a primeira nem a última vez que as teorias sobre a coletiva e individual. Somente nesse aspecto é que po-
Eugenia se confrontariam. Kehl ainda teria de enfren- demos encontrar certa homogeneidade; fora dele, o que
tar a influência do pensamento de Alberto Torres no resta é uma mentalidade higienista em uma generalida-
“movimento higienista”, que resultava na rejeição às de difusa e heterogênea.

51

myolosaude.p65 51 18/06/02, 18:37


Preto
“MOVIMENTO HIGIENISTA” NA HISTÓRIA DA VIDA PRIVADA NO BRASIL: DO HOMOGÊNEO AO HETEROGÊNEO
ConSCIENTIAE SAÚDE. Rev. Cient., UNINOVE - São Paulo. V. 1 : 47-52

REFÊRENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ELLIS JÚNIOR, Alfredo. Noções elementares de hygiene


ABREU, Henrique Tanner de. Estudos de hygiene. Rio de e de biologia. São Paulo: Saraiva, 1933.
Janeiro: Quaresma, 1929. GÓIS JUNIOR, E. 2000. Os higienistas e a Educa-
ARENO, Waldemar. 1949. Higiene aplicada à Educação ção Física: a história de seus ideais. Disserta-
Física. Rio de Janeiro: s. c.p., p.10. ção de mestrado. Rio de Janeiro: Universidade
AZEVEDO, Fernando, 1933. O problema da regeneração: Gama Filho.
Educação Physica, número 5. MARINS, Paulo César. Habitação e vizinhança. In:
BAPTISTA, Amaro Augusto de Oliveira. Elementos de SEVCENKO (org.). História da Vida Privada no
higiene. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1941. Brasil. São Paulo: Cia. das Letras, vol. 3, 1998.
BARROSO, Sebastião. Hygiene para todos. São Paulo: MARQUES, Vera. Medicalização da Raça. Campinas:
Melhoramentos, S.d. Edunicamp, 1997.
BONFIM, Manoel. A América Latina: Males de Origem. PAGNI, Pedro. Fernando de Azevedo: Educador do Cor-
Rio de Janeiro: Garnier, 1905. po. 1994. Dissertação de Mestrado. PUC SP.
COUTO, Miguel. Seleção Social no Brasil. Medicina e Cul- PENNA, Belisário. Saneamento do Brasil. 2ª edição. R de
tura, Rio de Janeiro: Oscar Mano e Cia., vol. 1, 1932. Janeiro: Ribeiro dos Santos, 1923.
_______. A Educação e a Saúde. In: No Brasil só há um SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco. Raça e Naci-
problema nacional: a educação do povo. Rio de Ja- onalidade no pensamento brasileiro. São Paulo; Paz
neiro: Tipog. do Jornal do Comércio, 1933. e Terra , 1989

52

myolosaude.p65 52 18/06/02, 18:37


Preto

Você também pode gostar