O Reencontro de Freud Com As Ciências Biológicas
O Reencontro de Freud Com As Ciências Biológicas
O Reencontro de Freud Com As Ciências Biológicas
PORTO ALEGRE
2016
LUÍSA PINHEIRO DEVES
PORTO ALEGRE
2016
RESUMO
In this paper work is carried out a literature review of studies involving psychoanalysis and
neuroscience. There are still much controversy about the real possibility of integrating these
two disciplines. For Freud, not only integration was likely to be held, as he put it into practice
in the writing of the Project for a Scientific Psychology (1895). Even though he did not reached
his goal, Freud always longed for the day when the psychic phenomena would be described
biologically. Among neuroscientists, there is no consensus; however, extensive bibliography
confirms the feasibility of this integration. In this study, we gave emphasis to neuroscientific
studies related to the unconscious, repression, ego and dreams. Neuropsychoanalysis shows up
as a new field, but it already demonstrates potential for enriching the two disciplines involved.
Finally, more research is needed so that the dialogue between the mind and the brain is
increasingly profitable.
Key-words: Psychoanalysis; neuroscience; Freud; dreams; ego; repression; unconscious;
neuropsychoanalysis.
LISTA DE FIGURAS
INTRODUÇÃO .......................................................................................................................... 7
1 METODOLOGIA.................................................................................................................... 9
3 DISCUSSÃO ......................................................................................................................... 24
CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 28
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 29
7
INTRODUÇÃO
1 METODOLOGIA
Para fins de levantamento de dados, foi realizada uma busca de artigos científicos com
o auxílio das bases de dados Scielo e Pubmed, pesquisando tópicos relacionados à neurociência
e psicanálise, tendo como foco os artigos que apresentavam os temas conjuntamente. Após,
buscou-se ativamente artigos através das referências da literatura previamente encontrada.
Foram selecionados para inclusão no trabalho os artigos mais relevantes de cada matéria.
Efetuou-se ainda uma busca direta em livros-texto, principalmente para a primeira parte
do trabalho, concentrada em artigo freudiano, visto o maior aproveitamento de dados através
destes, em detrimento de artigos científicos.
10
2 EMBASAMENTO TEÓRICO
O Projeto consiste em uma obra divida em 3 grandes partes: (1) Esquema Geral,
(2) Psicopatologia e (3) Tentativa de Representar os Processos Psíquicos Normais. Freud
inicia deixando claro seu objetivo com o trabalho, qual seja de construir uma psicologia
que seja considerada uma ciência natural, fornecendo assim aos processos mentais uma
característica concreta e clara, como em regra se apresenta qualquer ciência. Estabelece,
para tal, dois pontos iniciais: “Há duas ideias principais envolvidas: [1] Aquilo que
distingue a atividade do repouso deve ser considerado como Q, sujeita às leis gerais do
movimento. [2] Os neurônios devem ser encarados como as partículas materiais”. (Freud,
1895, p. 355)
11
Com o símbolo “Q” Freud abrevia o que chama de “quantidade”, que seria o quantum
de energia ou tensão que excita em maior ou menor nível os neurônios, a partir de estímulos
internos ou externos.
Porém, é evidente que dos estímulos endógenos, aqueles ligados às “exigências da vida”
(como a fome e a sexualidade) não é possível esquivar-se. A cessação do estímulo somente
ocorrerá mediante “ações específicas”, as quais necessitam ser realizadas através do ambiente.
Consequentemente, ocorre uma tolerância a certo nível de Q mas, simultaneamente, um
empenho para mantê-lo o menor possível, dentro de uma constante.
Outra hipótese do Projeto engloba a ideia de que os neurônios podem ser catexizados
(isto é, podem receber excitações, acoplando determinada Q), ou podem permanecer vazios,
mantendo contato uns com os outros por vias de condução. Visando explanar de que modo a Q
acoplada não se esvai (como seria a lógica, seguindo o princípio da inércia), Freud admitiu que
existiriam resistências opostas à descarga nos contatos entre os neurônios, que funcionariam
como barreiras.
A hipótese de barreiras de contato é uma das mais importantes, uma vez que não só
antecipa o conceito de sinapses – surgido apenas dois anos mais tarde – como apresenta a base
para o entendimento da memória. Nesse momento, Freud postula o surgimento de dois grupos
de neurônios diferenciados: phi e psi.
O primeiro grupo deixa passar a Q como se não houvesse barreiras de contato. São
neurônios permeáveis (que não oferecem resistência e nada retêm), destinados a recepção e
percepção de estímulos externos. O segundo grupo utiliza suas barreiras de contato, permitindo
a passagem de Q com dificuldade ou apenas parcialmente. São neurônios impermeáveis (que
fornecem resistência e retêm Q), receptores de estímulos internos e que, após a excitação,
alteram-se para um estado diferente do anterior. Essa última característica é a premissa
necessária para o funcionamento da memória, da qual esse grupo é responsável.
12
É no Projeto que Freud indica pela primeira vez que os processos psíquicos
desenvolvidos pelos sistemas de neurônios phi e psi são inconscientes, e acaba se deparando
com um dilema: achar um lugar para o conteúdo da consciência. A consciência é responsável
por nos fornecer a qualidade; as diferentes sensações.
estímulo no interior do corpo para atingir o alívio e só conseguiremos alcançá-lo por meio de
uma ação específica (obtenção do alimento, no caso da fome, por exemplo) e para tanto, o bebê
necessita da ajuda de outro ser humano. Assim, além da função primária de descarga
automática, descobre-se aqui a imprescindível função secundária da comunicação. Quando o
bebê é atendido, o estímulo endógeno é removido e o montante final de todo esse fenômeno
constitui a experiência de satisfação. Em consequência da catexização simultânea dos
neurônios envolvidos em todo o processo (desde a recepção do estímulo, passando pela
percepção do objeto que proporcionou o alívio até o aviso sobre a eliminação da tensão), forma-
se uma facilitação entre eles, o que culmina na produção de uma imagem mnêmica do objeto
aliviador. Com isso, quando surgir um novo estado de urgência ou desejo, a lembrança do objeto
(imagem mnêmica) será automaticamente ativada.
As duas vivências acima elucidadas dão origem a dois produtos. No primeiro caso, o
estado de desejo provocado pela experiência de satisfação resulta em uma atração pelo objeto
desejado, ao passo que no segundo, a experiência da dor e o desprazer levam ao repúdio do
objeto hostil. Assinala-se aqui duas funções do mecanismo psíquico: a atração de desejo
primária e a defesa primária – ou recalcamento.
Os processos secundários, como visto na citação, podem ser descritos como uma
moderação dos processos primários. Enquanto os últimos operam com a energia transcorrendo
livremente, usufruindo de meios rápidos e automáticos para evitar o desprazer; os primeiros
operam com energia ligada ao ego, inibindo o caminho mais fácil a fim de adotar outro mais
adequado, evitando a frustração inevitável comentada acima.
15
A segunda parte do Projeto, diferente das outras duas, é caracterizada pela referência
prática utilizada. Nela, Freud utiliza os conceitos apresentados anteriormente para explicar o
sintoma histérico. Para tanto, define as ideias histéricas como "excessivamente intensas", em
um desequilíbrio energético, que a diferencia das ideias normais. Postula que tal desequilíbrio
se dá pelo deslocamento de Q de uma representação que causa desprazer (recalcamento) para
outra representação, a qual terá função simbólica. Freud ilustra sua tese com o caso Emma.
Emma é uma mulher com ideia persistente de que não consegue entrar sozinha em lojas,
e associa isso ao fato de aos 12 anos de idade ter entrado em uma loja, onde viu 2 vendedores
rindo entre si, o que lhe causou medo intenso e teve de sair correndo. Lembra ainda de ter
sentindo-se atraída sexualmente por um deles. Mais tardiamente na análise, recorda-se de outra
cena, na qual tinha 8 anos de idade. Ao entrar em uma confeitaria para comprar doces, foi
assediada sexualmente pelo dono, que lhe tocou nas partes genitais por cima da roupa. Lembrou
ainda de retornar uma segunda vez à confeitaria, sentindo-se muito culpada. Freud diz que o
riso dos vendedores da loja evocou inconscientemente a lembrança do riso do dono da
confeitaria. Além disso, nas duas ocasiões a roupa é parte importante da história e em ambas a
paciente se encontrava sozinha. Concluiu, portanto, que a roupa é parte importante da formação
simbólica, a qual encobre o recalcamento do trauma sexual.
Quase desnecessário apontar a enorme evolução nas últimas décadas no que diz respeito
à ciência e, em especial, à neurociência. Avanços tecnológicos não invasivos, que exploram
não só a anatomia mas também a dinâmica cerebral, despertaram o interesse de muitos
profissionais e vêm renovando nosso modo de pensar. A Ressonância Magnética Funcional
(fMRI), a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) e a Tomografia por Emissão de Fóton
Único (SPECT) são exemplos dos exames mais utilizados para esse tipo de pesquisa.
interdisciplinares. A partir deste, outros grupos paulatinamente surgiram em outros países, até
que no ano 2000 foi fundada a Sociedade Internacional de Neuropsicanálise, a qual realiza um
congresso anual com temas de relevância a múltiplas disciplinas.
2.2.1 Inconsciente
eventos (no caso, uma cor e um som ativados ao mesmo tempo). Conscientemente não
diferenciavam essas cores das outras apresentadas sem estímulo sonoro. Entretanto, os mesmos
pacientes demonstraram respostas emocionais ao receberem os estímulos, sugerindo o
estabelecimento de uma ligação inconsciente entre os eventos.
Mais recentemente, através do teste IAT (Implicit Association Test, ou Teste de
Associação Implícita), os pesquisadores Banaji e Greenwald (2013) demonstraram a notável
parcela do inconsciente nas relações interpessoais. Mostrando imagens de negros e brancos com
adjetivos bons e ruins, os participantes deveriam associar palavras e imagens. Os resultados
mostraram que 75% obtiveram muito mais dificuldade em associar com rapidez as imagens dos
negros aos adjetivos bons, concluindo a preferência inconsciente e automática pelas imagens
de brancos.
Indo um pouco mais além, Custers e Aarts publicaram uma extensa revisão não só
demonstrando a existência de processos inconscientes mas comprovando a enorme capacidade
de influência sobre nossas ações. É cômodo e muito aceito ter em mente que todas as nossas
ações são controladas, ou seja, que uma decisão consciente de alcançar algum objetivo é o que
produz a ação em si. Porém, no artigo, intitulado “The Unconsciouss Will” (2010), os
pesquisadores demonstraram que, ainda que não tenhamos consciência de ter recebido, um
estímulo externo pode modular a atividade neural e gerar uma resposta emocional ou motora.
Concluindo, assim, que as condutas ocorrem muitas vezes ao mando de objetivos inconscientes.
Antes de adentrar no desenvolvimento deste tópico, mostra-se útil fazer uma breve nota
sobre o uso dos termos repressão e recalque. Existem muitas discussões em relação à utilização
– ou não – dessas expressões como sinônimos. Alguns autores sugerem algumas diferenças
como, por exemplo, o psicanalista e doutor em filosofia Renato Mezan, o qual distingue
repressão de recalque afirmando que a primeira manteria as pulsões em nível pré-consciente
enquanto a segunda em nível inconsciente. Em contrapartida, outros autores utilizam-nas como
sinônimos, baseando-se principalmente no fato de que o próprio Freud seria negligente quanto
à diferenciação. Paulo César de Souza, autor do livro As Palavras de Freud (2010) diz: “Não
quero afirmar que a distinção não seria útil; apenas procuro demonstrar que o uso freudiano não
é tão coerente como desejariam muitos de seus estudiosos, […] É possível que haja um ganho
teórico em se fazer tal distinção, mas ela não aparece nítida nos textos de Freud.”.
18
Visto isso, no presente trabalho os termos serão utilizados como sinônimos, uma vez
que facilita o entendimento ao mesmo tempo em que não prejudica o objetivo da tópica.
A definição de repressão como mecanismo de defesa, segundo Glen O. Gabbard (2006),
é a “expulsão de impulsos ou ideias inaceitáveis ou o impedimento de que entrem na
consciência” (Gabbard, 2006, p. 39). No Projeto, o recalque aparece como parte dos sintomas
da histeria. No exemplo descrito anteriormente, a paciente Emma não recorda do fato que
ocorrera aos 8 anos de idade na confeitaria, o que não a impede de sofrer por isso; demonstrando
que essa memória está armazenada, porém impedida de vir à consciência.
O neurologista e neurocientista indiano Vilayanur Ramachandran dedica sua carreira,
dentre outros assuntos, a estudar os “membros fantasmas” (circunstância em que pacientes
amputados sentem o braço ou a perna perdida, geralmente de modo incômodo). Dentre seus
inúmeros pacientes estava a Sra. M., que sofrera um AVC no lado direito do cérebro,
ocasionando paralisia do lado esquerdo de seu corpo. Entretanto, seus sintomas foram além, e
a paciente apresentou um quadro de anosognosia; rara condição em que o paciente não tem
consciência da sua deficiência física, em uma provável negação, segundo o próprio
neurocientista.
Após ler sobre uma experiência de 1987 em que um neurologista italiano, Eduardo
Bisiach, havia conseguido reverter – mesmo que temporariamente – o quadro que chama de
“síndrome de negação” de uma paciente com sintomatologia parecida, apenas esguichando
água gelada em seu ouvido, Ramachandran não exitou em fazer o teste na Sra. M. Como
esperado, a paciente, em entrevista ao seu médico, subitamente admitira a paralisia e ainda
afirmara que assim estivera por vários dias, desde o dia do derrame. Algumas horas passadas,
ao ser entrevistada por um aluno de medicina, a paciente relatou toda conversa que tivera com
Dr. Ramachandran anteriormente, em uma narrativa rica em detalhes, incluindo a descrição da
gravata usada pelo médico. Relatou exatamente como havia ocorrido, exceto por um detalhe:
esqueceu-se unicamente da parte da entrevista em que lembrava estar plégica. No artigo em que
relata o caso, Ramachandran conclui:
2.2.3 Ego
2.2.4 Sonhos
Quando as primeiras descobertas científicas sobre o sonho e sua relação com o sono
REM surgiram em meados de 1950, alguns cientistas reduziram a função onírica aos achados
neurofisiológicos, descartando todo valor psicodinâmico preconizado por Freud. Seguindo essa
visão, Hobson e McCarley (1977) postularam a teoria de “ativação-síntese”. Essa teoria destaca
o aumento da atividade colinérgica na ponte durante o sono REM, levando a ativação das partes
mais altas do SNC, como o córtex visual, onde geram imagens oníricas. Estas, por sua vez, são
destituídas de quaisquer significados, pois seriam, conforme exposto no trabalho, apenas uma
tradução aleatória dos estímulos provindos do tronco cerebral. Os sonhos, portanto, seriam
“motivacionalmente neutros” segundo os autores, que concluem: “A força motivadora primária
do sonhar não é psicológica, mas fisiológica, pois o tempo de ocorrência e de duração do sono
[REM] é bastante constante, sugerindo uma gênese pré-programada e neuralmente
determinada” (Hobson e McCarley 1977, p. 1346).
Contudo, pesquisas subsequentes demonstraram que entre 5 e 30% das pessoas
propositalmente acordadas durante o sono REM não relatam sonhos, e até 50% das pessoas
acordadas durante o sono profundo (NREM) reportam estar sonhando (Solms, 2000). Foi
22
constatado, ainda, que mecanismos distintos controlam o sono REM e o sonho, sendo o
primeiro regulado pela atividade colinérgica da ponte (no tronco cerebral) e o segundo por um
sistema dopaminérgico no cérebro anterior (Solms, 2000). Com isso, hoje é incontestável o fato
de que sonhos podem ocorrer na ausência do sono REM e vice-versa.
No artigo em que comenta extensamente esse tema, Mark Solms (2000) destaca 110
relatos de casos clínicos sobre perda da capacidade de sonhar em pacientes com lesões cerebrais
anteriores. Destes, a maioria estava relacionada a alterações na junção parieto-têmporo-
occipital (PTO), área responsável pela formação de imagens mentais. Os demais casos foram
relacionados ao quadrante ventro-medial do lobo frontal, região que contém grande quantidade
de fibras do sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical, o qual conecta estruturas
límbicas e frontais com células dopaminérgicas na área ventral tegmentar (Fig. 1.). Diversas
análises dão suporte à interação do sistema DA ML-MC com os sonhos: leucotomia pré-frontal
com retirada do vmPFC em pacientes esquizofrênicos cessaram o ato de sonhar (Jus et al.,
1973); hipertivação do sistema por agentes dopaminérgicos como L-DOPA podem aumentar a
frequência dos sonhos além de torná-los mais vívidos (Nausieda et al., 1982) e, ainda,
componentes desse sistema, como a área ventral tegumentar, a amígdala, o vmPFC, o córtex
cingulado, entre outros, são achados ativos durante o sono REM (Perogamvros & Schwartz,
2012).
Esse sistema dopaminérgico foi anteriormente associado ao que Jaak Panksepp (1998)
chamou de “sistema de busca”. O autor postulou ser este um dos sete mecanismos instintuais
básicos dos mamíferos já identificados (os demais são: raiva, medo, luxúria, cuidado, aflição
(pânico) e o brincar [Panksepp, 2010]). Dentre os 7 sistemas, o de busca é o mais semelhante à
concepção freudiana de “pulsão libidinal”, pois consiste em um sistema “apetitivo e
motivacional”, primordial para a aquisição dos recursos necessários à sobrevivência (Panksepp,
2010). É isto que impulsiona o animal/homem a sair à procura do que possa satisfazer suas
necessidades e desejos, sendo relacionado, portanto, a uma fonte de energia vital (ou libido).
A partir da intrínseca relação entre o sistema de busca, a pulsão libidinal e o sistema
dopaminérgico mesolímbico-mesocortical, a teoria freudiana de sonhos como realização de
desejos começa a ganhar força novamente. Ainda que sejam necessários estudos para melhor
elucidar as funções oníricas, atualmente poucos cientistas voltariam a afirmar veementemente
que os sonhos “não possuem conteúdo ideacional, volitivo ou emocional primário” como
fizeram Hobson e McCarley em 1977. (Hobson e McCarley 1977, p. 1347)
23
3 DISCUSSÃO
“A neuropsicanálise é, em certo sentido, tão antiga quanto a própria psicanálise”. (M. Solms)
A frase acima parece contradizer o que foi chamado de área “atual e tão promissora” na
introdução deste trabalho, mas nem por isso está equivocada. Antes de aprofundar-se nas teorias
psicanalíticas e abandonar os termos neurobiológicos, Freud publicou grande quantidade de
trabalhos focados em neurologia clínica, neuroanatomia e farmacologia. Inevitavelmente, seus
conhecimentos acerca da [escassa] neurociência da época influenciaram suas teorias
psicanalíticas ulteriores de forma substancial.
Esse fato torna-se mais evidente quando se analisa seu Projeto para uma Psicologia
Científica (1895), uma ambiciosa tentativa de embasar suas descobertas sobre o funcionamento
mental, adquiridas a partir da observação clínica de pacientes, em conhecimentos neurológicos.
Nota-se, ao longo de toda a obra, referências à biologia como, por exemplo, na defesa primária
(recalcamento). Freud diz que a defesa primária consiste no fato de a imagem mnêmica
registrada do objeto hostil ser abandonada o mais rápido possível pela catexia nela investida.
Isso ocorre, pois o surgimento de outro objeto no lugar do hostil também é registrado, mas
como sinal de cessação da dor, e é nele que será investida a catexia. Sobre isso, diz Freud: “o
sistema psi, pensando biologicamente, procura reproduzir o estado de psi que assinalou a
cessação da dor” (Freud, 1895, p. 384).
Em outra ocasião, Freud aponta que a atração primária pelo objeto de desejo e a defesa
primária podem ser nocivas se não soubermos diferenciar a percepção real do objeto da mera
lembrança do mesmo. Para tanto, o ego possibilita essa diferenciação através da indicação de
realidade e, com isso, o autor conclui: “A experiência biológica ensinará, então, a não iniciar a
descarga antes da chegada da indicação de realidade e, tendo isso em vista, a não levar catexia
das lembranças desejadas além de certa quantidade” (Freud, 1895, p. 388, grifo meu).
Sabemos que Freud acabou por considerar sua obra um fracasso e, se dele dependesse,
jamais teria vindo a público. Contudo, apesar de ter abandonado seu trabalho – por que não? –
neuro-psicanalítico, o afastamento dos termos biológicos deu-se não por recusa à biologia, mas
sim pela impossibilidade de testar suas teorias com a ciência disponível a seu tempo. Freud
25
sempre almejou o dia em que essa tarefa seria possível e em vários textos faz menções a esse
respeito, como em Além do Princípio do Prazer (1920):
Parece que esse foi mais um dos acertos de Freud. Com o advento das neurociências
aprofundando os estudos sobre o funcionamento da mente, pouco a pouco o “campo de
ilimitadas possibilidades” começa a assinalar um caminho para a integração com a psicologia
e a psicanálise.
Entretanto, são nos demais tópicos que vemos semelhanças ainda mais claras com a
teoria freudiana. O próprio cientista indiano Vilayanur Ramachandran utiliza termos como
negação, confabulação, repressão e formação reativa para explicar sintomas em seus pacientes
com danos neurológicos; e no seu livro, Fantasmas no Cérebro (2002), em que comenta o caso
do estudo de anosognosia retratado anteriormente, Ramachandran diz não ver outra saída senão
a junção das teorias psicanalítica e neurocientífica para elucidar casos como o da Sra. M. É
digno de nota que o próprio autor admite no livro seu ceticismo em relação às terorias
psicanalíticas poucos anos antes. Mas com base nas suas pesquisas, nas leituras de Anna e
Sigmund Freud, e na observação clínica, relata ser inegável a presença das defesas psicológicas
nos seus pacientes e, apesar de não concordar 100% com as teorias freudianas, finaliza
chamando Freud de “gênio”.
26
Nem sempre os estudos são tão diretivos na relação entre psicanálise e neurociência,
mas muitas vezes a interação se faz necessária para melhor explanar o objeto de estudo em
questão. Sobre isso, o cientista LeDoux escreveu em um artigo para a revista Neuro-
psychoanalysis:
Seja direta ou indiretamente, o fato é que cada vez mais será necessária a conciliação
das matérias no estudo da mente. Em muitos casos, a ciência biológica não tem respostas para
perguntas as quais a psicanálise responde, e vice-versa. Se, portanto, é verdade que ambas estão
trilhando o caminho em direção ao conhecimento do mesmo universo, por que manter as
barreiras que as separam? É provável que novas descobertas possam ser atingidas mais
facilmente se os campos compartilharem e colaborarem entre si, muito mais do que se
alfinetando.
Isso não quer dizer, porém, que psicanalistas e neurocientistas deixem de estudar suas
matérias separadamente para focar apenas na sua integração. Pelo contrário, deve-se lembrar
das diferenças epistemológicas de cada matéria e sempre respeitá-las. O objetivo é mostrar que
o diálogo deve ser realizado tanto quanto possível ou necessário, visando o aprimoramento da
teoria e da prática, sempre em busca do melhor atendimento ao nosso paciente.
27
Talvez a dicotomia entre ciências biológicas e ciências humanas tenha sido necessária
para o avanço de ambas em suas áreas de atuação. Esse aspecto é muito nítido principalmente
para a psicanálise, a qual conseguiu ir muito além no entendimento da mente, sem ter o respaldo
da ciência, demasiadamente escassa à época dos maiores avanços na teoria psicanalítica.
Entretanto, essa separação atualmente não é mais justificável, uma vez que pode levar a teorias
reducionistas – as quais transformam nossos comportamentos, pensamentos e emoções em
simples respostas à ação de células nervosas e moléculas associadas – ou localizacionistas,
encaixando nossas ações a determinadas regiões específicas, sem levar em conta a ligação e
conexão entre elas, ou seja, sem contar a dinâmica mental.
Por esses e outros motivos, ao ler o Projeto nos dias de hoje, inevitavelmente é
necessário integrá-lo ao contexto atual das neurociências, e não fica difícil perceber o quanto
Sigmund Freud estava de fato à frente de seu tempo. Parece que, 100 anos após sua escrita, o
objetivo de sua obra está sendo aos poucos retomado por psicanalistas e neurocientistas
modernos, os quais agora detêm dos mecanismos necessários para alcançar tal meta.
CONCLUSÃO
“Amo a ciência e me dói pensar que tanta gente se assusta com ela ou acha que
optar pela ciência significa que não se pode escolher também a compaixão, ou
as artes, ou se admirar com a natureza. O objetivo da ciência não é nos curar
do mistério, mas reinventá-lo e revigorá-lo”. (Robert Sapolsky, Why Zebras
Don't Get Ulcers)
REFERÊNCIAS
ANDREASEN, Nancy C. Linking Mind and Brain in the Study of Mental Illnesses: A Project
for a Scientific Psychopathology. SCIENCE, VOL. 275, 14 MARCH 1997. Disponível em:
http://www.iub.edu/~eeglab/articles/andreasen_1997.pdf (último acesso em 28/07/2016)
BEZZERRA Jr. Benilton. Projeto para uma psicologia científica: Freud e as neurociências
/ 1ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
BOCCHI, Josiane Cristina; VIANA, Milena de Barros. Freud, as neurociências e uma teoria da
memória. Psicol. USP vol.23 no.3 São Paulo, 2012. Disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
65642012000300004&lang=pt#Xa (último acesso em 28/07/2016)
CORDEIRO, Alexander Magno; OLIVEIRA, Glória Maria de; RENTERÍA, Juan Miguel;
GUIMARÃES, Carlos Alberto. Revisão sistemática: uma revisão narrativa. Rev. Col. Bras. Cir. vol.34
no.6 Rio de Janeiro Nov./Dec. 2007 Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-
69912007000600012&script=sci_arttext (último acesso em 26 de julho de 2016)
CUSTERS R, AARTS H. The unconscious will: how the pursuit of goals operates outside
of conscious awareness. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/20595607/
(último acesso em 26 de julho de 2016)
ERDELYI, Matthew Hugh. The unified theory of repression. BEHAVIORAL AND BRAIN
SCIENCES (2006) 29, 499 –551. Disponível em
http://www.memorycontrol.net/Erdelyi(2006).pdf (último acesso em 26 de julho de 2016)
FREUD, Sigmund. Beyond the Pleasure Principle. (1920) in Standard Edition of the
Complete Psychological works of Sigmund Freud. Traduzido e editado por Strachey J. London,
Hogarth Press, 1955, p.1-64.
HOBSON, JA, MCCARLEY, RW. The brain as a dream state generator: an activation-
synthesis hypothesis of the dream process. Disponível em:
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21570 (último acesso em 26 de julho de 2016)
JUS, K., BOUCHARD, M., JUS, A., VILLENEUVE, A. & LACHANCE, R. Sleep EEG studies
in untreated, long-term schizophrenic patients. Archives of General Psychiatry 29, 386-390,
1973.
LEDOUX J. Psychoanalytic theory: clues from the brain. neuro-psyshoanalysis 1:44-44. 1999.
NAUSIEDA, P. A., WEINER, W. J., KAPLAN L. R., WEBER S., KLAWANS H. L. Sleep
disruption in the course of chronic levodopa therapy: an early feature of the levodopa
psychosis. Clin. Neuropharmacol.5, 183–194, 1982
NORTHOFF, Georg. Psychoanalysis and the Brain – Why Did Freud Abandon Neuroscience?
Front Psychol. 2012; 3: 71. Published online 2012 Apr 2. Disponível em
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3317371/#B79. (último acesso em 28/07/2016)
PEROGAMVROS, L, SCHWARTZ, S. The roles of the reward system in sleep and dreaming.
Neurosci Biobehav Rev. 2012 Sep;36(8):1934-51. doi: 10.1016/j.neubiorev.2012.05.010.
Epub 2012 Jun 2.
RIBEIRO, Sidarta. Sonho, memória e o reencontro de Freud com o cérebro Dream, memory
and Freud’s reconciliation with the brain. Rev Bras Psiquiatr 2003;25(Supl II):59-63.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/%0D/rbp/v25s2/a13v25s2.pdf (último acesso em
28/07/2016)
SOLMS, M. Dreaming and REM sleep are controlled by different brain mechanisms.
BEHAVIORAL AND BRAIN SCIENCES 23, 2000, p. 793–1121. Disponível em:
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/11515144 (último acesso em 26 de julho de 2016)
SOLMS, Mark e PANKSEPP, Jaak. The “Id” Knows More than the “Ego” Admits:
Neuropsychoanalytic and Primal Consciousness Perspectives on the Interface Between
Affective and Cognitive Neuroscience. Brain Sci. 2012 Jun; 2(2): 147–175. Published online
32
SOLMS, Mark e ZELLNER, Margaret R. Freudian drive theory today. From the couch to
the lab: Trends in psychodynamic neuroscience. 2012, p. 49-63. Disponível em:
https://scholar.google.com/citations?view_op=view_citation&hl=en&user=m2ZfZdQAAAAJ
&sortby=pubdate&citation_for_view=m2ZfZdQAAAAJ:yY3RG6sOEgwC (último acesso em
26 de julho de 2016)
SOUSSUMI, Yusaku. Essay on integration of some basic psychoanalytic concepts with basic
concepts of neuroscience. Psicol. clin. v.18 n.1 Rio de Janeiro, 2006. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652006000100006.
(último acesso em 27 de julho de 2016)