2020 Roth Van Hoogstraten Tese
2020 Roth Van Hoogstraten Tese
2020 Roth Van Hoogstraten Tese
Santa Maria, RS
2020
Antônia Motta Roth Jobim van Hoogstraten
Santa Maria, RS
2020
This study was financied in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – Finance Code 001
A presente tese tem como objetivo apresentar a formulação de uma hipótese inicial de
funcionamento de linguagem como dispositivo analítico na avaliação da constituição psíquica
de bebês e comparar os perfis enunciativos de crianças com e sem sofrimento psíquico
considerando os fatores materno e da criança. Foram elaborados dois estudos para sustentar tais
formulações. No Estudo quantitativo foi utilizado o teste do Qui-Quadrado, considerando-se
um nível de significância de 5% (p < 0,05), buscando associações entre o perfil enunciativo, a
partir da análise dos Sinais Enunciativos de Aquisição de Linguagem (SEAL) e a presença de
risco à constituição psíquica, a partir dos Indicadores de Referência/Risco de Desenvolvimento
Infantil (IRDI) e no PREAUT. Para tal, a amostra selecionada contou com 70 sujeitos
acompanhados durante os primeiros 24 meses de vida, sendo 38 bebês com sinais de sofrimento
psíquico e 32 bebês sem sofrimento psíquico. No Estudo qualitativo foi proposta a análise do
funcionamento da linguagem das díades, podendo-se formular uma hipótese inicial de
funcionamento de linguagem associada à constituição psíquica, a partir de seu confronto com
os roteiros IRDI, Sinais PREAUT e SEAL. O estudo permitiu verificar aspectos enunciativos
da protoconversação inicial, a partir da análise de três sujeitos com sinais de sofrimento
psíquico acompanhados durante os primeiros 48 meses de vida. Pode-se evidenciar a
efetividade do instrumento no processo de detecção a tempo de sofrimento psíquico em bebês,
bem como da presença de associação estatística entre a presença de risco à constituição psíquica
e o processo de aquisição da linguagem considerando os resultados obtidos com a aplicação do
roteiro IRDI e dos sinais PREAUT em relação ao SEAL. Tais resultados permitem pensar, no
contexto dos serviços de puericultura do Serviço Único de Saúde, a possibilidade de avaliação
dos bebês a partir dos instrumentos utilizados (IRDI, Sinais PREAUT e SEAL) na atenção
primária.
This thesis aims to present a formulation of an initial hypothesis for functioning of the language
as an analytical device to evaluate the psychic constitution of babies and to compare the
enunciative profiles of children with and without psychological distress considering maternal
and child factors. Two studies were developed to support these formulations. For the
quantitative study it was used the Chi-square test, considering a significance level of 5% (p
<0.05), seeking associations between the enunciative profile, from the analysis of the
Enunciative Signs of Language Acquisition (SEAL) and the presence of risk to the psychic
constitution, from the Reference Indicators/Risk of Child Development (IRDI) and PREAUT
Grid. For this, a sample with 70 participants were selected and followed during the first 24
months of life, 38 babies of whom had signs of psychic distress and 32 babies had no signs
psychic distress. In the qualitative study, an analysis of dyad’s language functioning was
proposed allowing a formulation of an initial hypothesis for functioning of the language
associated with the psychic constitution based on its comparison with the IRDI, PREAUT Grid
and SEAL Signals. The study allowed to verify the enunciated aspects of the initial proto
conversation from the analysis of three individuals with psychic suffering signs, accompanied
during the first 48 months of life. It can be evidenced the effectiveness of the instrument in the
process of detection of psychological distress in the babies, as well as the presence of statistical
association between the presence of risk in the psychic constitution and the process of language
acquisition considering the results obtained with the application of IRDI and PREAUT Grid in
relation to SEAL. Such results can be considered in child health services of the Unified Health
Service with the possibility of evaluating babies using the instruments (IRDI, PREAUT and
SEAL Signs) of this research in initial care.
Tabela 1 – Média percentual de SEAL ausentes nos grupos com e sem sofrimento
psíquico (n=70)................................................................................................................... 91
Tabela 2 – Associação entre presença de risco IRDI e ausência/presença de SEAL
(n=70)................................................................................................................................. 92
Tabela 3 – Associação presença de risco Sinais PREAUT e ausência/presença de SEAL
(n=70)................................................................................................................................. 94
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO............................................................................................................. 11
1.1 OBJETIVOS................................................................................................................ 14
1.1.1 Estudo 1.................................................................................................................... 14
1.1.2 Estudo 2.................................................................................................................... 15
1.2 JUSTIFICATIVA......................................................................................................... 15
2 REFERENCIAL TEÓRICO........................................................................................ 19
2.1 CONSTITUIÇÃO PSÍQUICA..................................................................................... 19
2.1.1 A potência corporal do bebê enquanto sistema semiótico................................... 21
2.1.2 Alienação e separação............................................................................................. 24
2.1.3 Fantasma fundamental, identificações e seus percalços...................................... 26
2.1.4 O circuito pulsional e a construção da imagem corporal.................................... 30
2.1.5 Sofrimento psíquico: autismo e psicoses infantis................................................. 35
2.1.6 Roteiros de Detecção de Risco Psíquico e Avaliação Psicanalítica..................... 38
2.1.6.1 A pesquisa IRDI..................................................................................................... 38
2.1.6.2 A pesquisa PREAUT.............................................................................................. 46
2.2 A PERSPECTIVA ENUNCIATIVA DE BENVENISTE E SUAS
CONTRIBUIÇÕES PARA PENSAR A LINGUAGEM DOS BEBÊS............................ 50
2.2.1 A teoria enunciativa na detecção e intervenção a tempo: um pouco da
relação entre linguagem e psiquismo.............................................................................. 50
2.2.2 Princípios de Benveniste na clínica dos distúrbios de linguagem e na da
aquisição da linguagem.................................................................................................... 55
2.2.3 Deslocamentos da visão de Benveniste para a clínica de bebês.......................... 63
3 METODOLOGIA......................................................................................................... 75
3.1 ASPECTOS GERAIS DO DELINEAMENTO........................................................... 75
3.2 ASPECTOS ÉTICOS................................................................................................... 75
3.3 POPULAÇÃO E AMOSTRA...................................................................................... 75
3.4 PROCEDIMENTOS E INSTRUMENTOS DE COLETA.......................................... 77
3.4.1 Entrevista semi-estruturada................................................................................... 79
3.4.2 Filmagens das Interações Mães-Bebês.................................................................. 80
3.4.3 Protocolos de Avaliação Padronizados.................................................................. 80
3.4.3.1 Sinais PREAUT...................................................................................................... 81
3.4.3.2 Indicadores Clínicos de Risco ao Desenvolvimento Infantil (IRDI)...................... 82
3.4.3.3 Roteiro para Avaliação Psicanalítica de Crianças de Três anos (AP-3).............. 84
3.4.3.4 Sinais Enunciativos de Aquisição da Linguagem (SEAL)...................................... 85
3.4.3.5 Bayley-III Linguagem............................................................................................. 87
3.5 RESUMO DAS AVALIAÇÕES DISPONÍVEIS NO ACOMPANHAMENTO
DOS BEBÊS...................................................................................................................... 87
3.6 ANÁLISE DOS RESULTADOS................................................................................. 88
3.6.1 Estudo 1 – Associação entre sofrimento psíquico e Sinais Enunciativos de
Aquisição da 88
Linguagem...........................................................................................
3.6.2 Estudo 2 – Análise da contribuição de uma hipótese inicial de funcionamento
de linguagem no acompanhamento do sofrimento psíquico de 89
bebês...........................
4 RESULTADOS.............................................................................................................. 91
4.1 ESTUDO 1 – ASSOCIAÇÃO ENTRE SOFRIMENTO PSÍQUICO E SINAIS
ENUNCIATIVOS DE AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM................................................. 91
4.2 ANÁLISE DA CONTRIBUIÇÃO DE UMA HIPÓTESE INICIAL DE
FUNCIONAMENTO DE LINGUAGEM NO ACOMPANHAMENTO DO
SOFRIMENTO PSÍQUICO DE BEBÊS........................................................................... 95
4.2.1 Caso de Aurora........................................................................................................ 95
4.2.1.1 Avaliações realizadas ao longo da pesquisa......................................................... 97
4.2.1.1.1 Avaliação aos três meses..................................................................................... 97
4.2.1.1.2 Avaliação aos seis meses.................................................................................... 102
4.2.1.1.3 Avaliação aos nove meses................................................................................... 105
4.2.1.1.4 Avaliação aos 13 meses...................................................................................... 108
4.2.1.1.5 Avaliação aos 17 meses...................................................................................... 112
4.2.1.1.6 Avaliação aos 24 meses...................................................................................... 114
4.2.1.1.7 Avaliação aos 36 meses...................................................................................... 116
4.2.1.1.8 Avaliação aos 44 meses...................................................................................... 118
4.2.1.2 Hipótese inicial de funcionamento de linguagem e sua relação com a
constituição do psiquismo.................................................................................................. 122
4.2.2 Caso de Sol............................................................................................................... 125
4.2.2.1 Avaliações realizadas ao longo da pesquisa......................................................... 126
4.2.2.1.1 Avaliação aos três meses..................................................................................... 126
4.2.2.1.2 Avaliação aos seis meses.................................................................................... 129
4.2.2.1.3 Avaliação aos oito meses.................................................................................... 131
4.2.2.1.4 Avaliação aos 12 meses...................................................................................... 133
4.2.2.1.5 Avaliação aos 18 meses...................................................................................... 135
4.2.2.1.6 Avaliação aos 23 meses...................................................................................... 137
4.2.2.1.7 Avaliação aos 36 meses...................................................................................... 138
4.2.2.1.8 Avaliação aos 45 meses...................................................................................... 141
4.2.2.2 Hipótese inicial de funcionamento de linguagem e sua relação com a
constituição do psiquismo.................................................................................................. 147
4.2.3 Caso de Pedro.......................................................................................................... 149
4.2.3.1 Avaliações realizadas ao longo da pesquisa......................................................... 152
4.2.3.1.1 Avaliação aos três meses..................................................................................... 152
4.2.3.1.2 Avaliação aos seis meses.................................................................................... 156
4.2.3.1.3 Avaliação aos oito meses.................................................................................... 159
4.2.3.1.4 Avaliação aos 13 meses...................................................................................... 163
4.2.3.1.5 Avaliação aos 17 meses...................................................................................... 166
4.2.3.1.6 Avaliação aos 26 meses...................................................................................... 167
4.2.3.1.7 Avaliação aos 36 meses...................................................................................... 168
4.2.3.1.8 Avaliação aos 48 meses...................................................................................... 171
4.2.3.2 Hipótese inicial de funcionamento de linguagem e sua relação com a
constituição do psiquismo.................................................................................................. 178
5 DISCUSSÃO.................................................................................................................. 183
6 CONCLUSÃO............................................................................................................... 193
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................... 195
APÊNDICE A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
(TCLE)............................................................................................................................. 207
APÊNDICE B – ENTREVISTA INICIAL.................................................................... 209
APÊNDICE C – ENTREVISTA CONTINUADA........................................................ 211
ANEXO A – ROTEIRO PARA A AVALIAÇÃO PSICANALÍTICA DE
CRIANÇAS DE TRÊS ANOS – AP-3............................................................................ 213
ANEXO B - TABELA DE SINTOMAS CLÍNICOS.................................................... 219
11
1 INTRODUÇÃO
constituição psíquica, mas também no processo de aquisição da linguagem que permite a este
bebê assumir uma posição subjetiva no discurso (SOUZA; FLORES, 2013).
Nesses termos, considera-se que a linguagem preexiste ao bebê e que, a partir do
domínio da(s) língua(s) de sua comunidade, o bebê assume uma posição discursiva capaz de
sustentar sua posição de sujeito e produzir uma narrativa sobre seu corpo, sua história e seu
entorno. Dado o que se sabe hoje, ao nascer, o bebê já aporta uma organização corporal
inicial, fruto dos registros de memórias de experiências sensório-motoras intrauterinas
(BUSNEL; HERON, 2011), capaz de servir-lhe enquanto sistema semiótico, possibilitando
que, gradativamente, aproprie-se do sistema semiótico verbal materno (SOUZA, 2015).
Para Benveniste (1969/1989, p. 64), a língua confere “a outros conjuntos a qualidade
de sistemas significantes informando-os da relação de signo”, ela é “a grande matriz
semiótica”. Entretanto, o que se coloca como questão são as condições e potencialidades que
o bebê aporta na relação com o Outro primordial, por meio de um sistema semiótico não-
verbal rumo ao sistema semiótico verbal (SOUZA, 2015), especialmente em casos em que
impasses tornam-se evidentes nos primeiros tempos de constituição psíquica.
Considerando que o sistema semiótico corporal que o bebê aporta é diferente do
sistema semiótico materno, pois este último implica além do corpo, o domínio da língua, a
questão central deste estudo é observar como nas protoconversações e diálogos entre mãe e
bebê pode-se propor uma hipótese inicial de funcionamento de linguagem e como esse
dispositivo pode alimentar a compreensão da constituição psíquica do bebê.
Acredita-se que, a partir de uma leitura enunciativa, pode-se estabelecer uma relação
de homologia e interpretância (SOUZA, 2015), na qual o Outro primordial antecipa, interpreta
e retroalimenta as manifestações corpóreas do bebê, engajando-o no processo de apropriação
do sistema semiótico verbal, compartilhado na cultura. Essas relações que se estabelecem no
diálogo permitem identificar, entre mãe e bebê, uma dupla direção de endereçamento, visto
que tanto a mãe quanto o bebê são ativos nas trocas.
Em complementaridade aos estudos enunciativos, autores do campo psi podem trazer
uma contribuição relevante para a análise da função constitutiva da linguagem. Kupfer e
Voltolini (2008), por exemplo, afirmam que a experiência de um sujeito psíquico pode ser
verificada a partir de sinais fenomênicos – efeitos indiretos que a linguagem produz e é
produzida a partir da interação mãe-bebê. Para tanto, torna-se necessário estabelecer
13
indicadores que traduzam tais sinais, tanto no campo da psicanálise quanto no campo da
linguagem.
Nesta tese, utilizaram-se os Indicadores de Referência/Risco ao Desenvolvimento
Infantil (IRDI) (KUPFER et al., 2008a) e os Sinais PREAUT (OLLIAC et al., 2017) como
procedimentos de acompanhamento da constituição do psiquismo dos bebês. Também foram
utilizados os Sinais Enunciativos de Aquisição da Linguagem (SEAL) (CRESTANI, 2016;
FATTORE, 2018) para analisar como estava ocorrendo o processo de aquisição da
linguagem. As relações entre linguagem e psiquismo foram analisadas em dois estudos. O
primeiro, de cunho quantitativo, analisou os dados de 70 crianças de um a 24 meses e buscou
comparar os sinais de aquisição da linguagem que emergiram nas interações entre crianças e
suas mães, considerando a condição distinta de haver ou não sofrimento psíquico e suas mães.
Outro estudo, de caráter qualitativo, acompanhou três sujeitos de um a 48 meses por meio dos
mesmos roteiros e também da e a Avaliação Psicanalítica aos Três Anos – AP-3 (KUPFER et
al., 2008b) no qual são tomadas como elemento central para análise as protoconversações
iniciais e os diálogos mais tardios entre o bebê e sua mãe nos encontros avaliativos registrados
com filmagens. A análise dos registros das interações da díade sustentou a formulação desse
dispositivo analítico na avaliação clínica do laço entre bebês e seus pais.
Tal formulação parte da tese de Surreaux (2006) em que a pesquisadora lança a
proposta de uma hipótese de funcionamento de linguagem para explanar como uma fala
sintomática pode ser compreendida enquanto manifestação única do sujeito. Para tal, Surreaux
(ibidem) se apóia na estrutura topológica lacaniana do nó borromeu (LACAN, 1975-
1976/2007) e em estudos do campo linguístico como Jakobson e especialmente, Benveniste
para abordar o conceito de sujeito na linguagem.
Laznik (2016), Vorcaro (2016, 2009), Capanema e Vorcaro (2017) e Vorcaro e Lucero
(2010) quando se voltam para estruturas como o autismo e a psicose trabalham com a
proposição de uma clínica do nó borromeu, de modo similiar ao que Surreaux (2006) propõe
para a linguagem. O conceito de nó borromeu é proposto por Lacan na década de 1970, para
tratar do entrelaçamento dos registros Real, Simbólico e Imaginário que, sustentados por um
quarto elo, o Synthome, dizem do modo como o sujeito estrutura-se na linguagem.
Acredita-se que este tema é relevante porque, em casos de risco à constituição psíquica
e à aquisição da linguagem, diversos fatores que incidem sobre a constituição do psiquismo
precisam ser considerados. Para além das operações constituintes, torna-se necessário voltar-
14
1.1 OBJETIVOS
1.1.1 Estudo 1
O objetivo geral deste estudo seria comparar o perfil enunciativo de crianças com e
sem sinais de sofrimento psíquico em interação com suas mães. Os objetivos específicos
seriam:
15
1.1.2 Estudo 2
O objetivo geral deste estudo seria propor aspectos enunciativos que constituem a
formulação de uma hipótese inicial de funcionamento de linguagem e verificar se é um
dispositivo efetivo na avaliação da constituição psíquica de bebês. Os objetivos específicos
seriam:
1.2 JUSTIFICATIVA
atraso de linguagem com sofrimento psíquico associado. Esse é um motivo pelo qual pensar o
funcionamento de linguagem pode trazer uma contribuição para o diagnóstico diferencial
desses quadros.
Outra motivação para continuar a exploração do tema de mestrado é que, embora na
França a pesquisa PREAUT tenha produzido evidências importantes desses sinais para a
detecção precoce de autismo (OLLIAC et al., 2017), no Brasil ainda são recentes as pesquisas
com os sinais e também a ideia de complementaridade entre os Sinais PREAUT e os roteiros
utilizados na pesquisa IRDI (VAN HOOGSTRATEN et al., 2018a).
Por fim, salienta-se ainda a importância de se pensar em estratégias de avaliação na
clínica de bebês que permitam, em um contexto de Sistema Único de Saúde (SUS),
instrumentalizar os profissionais que estão na linha de frente da puericultura para que possam
avaliar se existem sinais de sofrimento psíquico, para além de sinais de doença orgânica como
tradicionalmente ocorre. Desse modo, acredita-se que será possível propor uma intervenção a
tempo quando necessária evitando a estruturação de uma psicopatologia grave, que hoje é
diagnosticada muito tarde, ou mesmo um atraso na aquisição da linguagem em curso. Busca-
se evitar a cristalização de sintomas, que acaba por dificultar a adaptação social das crianças.
18
19
2 REFERENCIAL TEÓRICO
No início do século XX, Sigmund Freud (1856-1939), apresenta uma nova leitura a
respeito do ser humano e dos processos que regem o aparelho psíquico. Segundo o
psicanalista, seriam os desejos inconscientes, delineados desde a infância, a partir das
primeiras relações de afeto, os propulsores do ser humano. Nessa perspectiva, haveria a
possibilidade de, a partir da análise, desvelar os desejos inconscientes recalcados que levariam
todo ser humano a construir sintomas para lidar com os impasses impostos pela sociedade.
Na década de 1950, Jacques Lacan (1901-1981), propõe uma releitura da obra
freudiana, nomeando conceitos até então implícitos, influenciado por linguistas como
Saussure, Jakobson e Benveniste. Segundo Lacan, a relação da obra freudiana com a
linguística poderia contribuir para as teorizações psicanalíticas, apesar de ter sido “por esta
porta que Freud entrou no que eram, na realidade, as relações do desejo com a linguagem, e
que ele tenha descoberto os mecanismos do inconsciente” (LACAN, 1964/1988, p. 19).
Lacan traz a possibilidade de pensar o Inconsciente enquanto “estruturado como uma
linguagem” (LACAN, 1964/1988). E, em “A instância da letra no Inconsciente ou razão
desde Freud” (LACAN, 1957/1998, p. 498), afirma que “é toda a estrutura da linguagem que
a experiência psicanalítica descobre no inconsciente”, estrutura da linguagem que preexiste ao
20
sujeito e lhe é apresentada por um outro, seu semelhante que, na posição de Outro primordial,
lhe empresta significantes para que este adentre o campo da Linguagem.
Entende-se que desde antes do seu nascimento, o bebê é tomado no discurso da mãe,
por uma rede simbólica estruturante. Afinal, mesmo antes de nascer a mãe lança desejos sobre
seu bebê, desejos que são inconscientes e endereçados a ele e que, posteriormente, ele se
colocará a responder ou não. Todavia, acredita-se que é no encontro do bebê com um Outro
Primordial após o nascimento, que pode ou não ser a mãe, que a rede simbólica pré-existente
e que lhe chega até então como canto encontra um destino corporal marcando os diferentes
registros pulsionais. A partir de então, os significantes que são apresentados pelo Outro vão
marcando o corpo do bebê, impulsionando-o a tecer uma narrativa própria, lançando
demandas, desejos e nomeações para membros, sensações e atos que o bebê reconhecerá ou
não.
O conceito de Outro é introduzido por Lacan (1955/1985) para explicar a relação de
alteridade e ambiguidade que rege as relações humanas mediadas pela Linguagem. Para
Lacan, a Linguagem permite ao sujeito estabelecer relações com um outro, semelhante, a
partir de uma imagem especular de eu (moi), ao mesmo tempo que legitima a existência do
Outro enquanto terceiro.
Desse modo, o Outro primordial, empresta significantes estruturantes ao aparelho
psíquico do bebê, promovendo um processo de alienação à sua linguagem e que tem como par
complementar o processo de separação, cujo agente exerce a função paterna. Essa instância
terceira garante que, gradativamente, o bebê possa se distanciar do desejo materno,
encontrando um espaço desde o qual possa falar em nome próprio, reconhecendo uma autoria
a respeito das interpretações que faz sobre suas sensações, seus desejos e o próprio mundo
que lhe rodeia (ROTH, 2016).
Nessa báscula de presença e ausência dos cuidados maternos, do olhar, do toque, do
manhês e de uma posição subjetiva capaz de antecipar e interpretar as produções corporais do
bebê, ele se constitui enquanto sujeito, construindo uma narrativa própria para sua existência.
Todavia, cabe ressaltar que o bebê é ativo nessa operação na medida em que, ao deparar-se
com esse encontro, traz uma experiência corporal prévia que alimenta ou resiste a essas
operações. Desse modo, ainda que o bebê se encontre na posição de infans, ele já apresenta
intencionalidade e singularidade expressas em uma dimensão corporal e que incidem sobre
esse encontro.
21
A respeito da narrativa a ser construída, marcada pela posição que o bebê ocupa no
seio familiar e no desejo parental, ressalta-se a dimensão do fantasma fundamental que diz de
um significante primordial que dá origem a toda a série significante posterior. Em paralelo,
ressalta-se também a organização do circuito pulsional que se estabelece, a partir de diferentes
registros: a oralidade, o olhar e a voz (CATÃO, 2009), bem como em outros registros como
tátil. Esses registros marcam a articulação entre o corpo e a linguagem, na medida em que
mediam a relação entre o corpo do bebê e os significantes vindos do Outro.
Nesses termos, ao longo desse capítulo, pretende-se tratar sobre o potencial que o
bebê aporta na relação com o Outro primordial, a partir do seu esquema corporal inicial,
conhecimento fundamental para que ele constitua uma semiótica corporal por meio da qual o
apresenta-se ativo na relação com o Outro primordial, não sendo apenas um receptor das
projeções maternas. Também discorreremos sobre as operações fundamentais na constituição
psíquica que servem de sustentação teórica para a construção dos roteiros utilizados.
das mais complexas habilidades sociais, bem como a identificação e preferência da voz, rosto
e odor materno. Mas, além da possibilidade de imitar, a pesquisa de Nagy et al. (ibidem) nos
mostra que o bebê recém-nascido não apenas imita, ele também é capaz de provocar.
A possibilidade do bebê recém-nascido de articular uma “produção motora ainda que
limitada, já nos mostra que ele responde de acordo com as suas percepções, com gestos e
sons, produzindo intencionalmente respostas e demandas ao outro que o entorna”
(PARLATO-OLIVEIRA, 2017, p. 19). E, para alguns autores, essa capacidade do bebê de
apropriar-se do que lhe é transmitido e responder a tal apelo, e também de propor para o outro
e provocá-lo a partir do seu aparato sensório-motor é chamado de intersubjetividade inata ou
primária (TREVARTHEN; DALEFIELD-BUTT, 2013).
Para Golse (2013), ao nascer, o bebê adentra um mundo já habitado pela linguagem
portando uma neurofisiologia inicial e uma subjetividade primária oriunda de memórias
sensório-motoras. A partir do encontro do bebê com um outro que lhe invista libidinalmente
poderia haver uma comodalização perspectiva que, posteriormente, daria origem a uma
subjetividade secundária.
Muratori et al. (2016) salientam que, nos casos de impasses na elaboração dos
estímulos sociais, percebe-se entraves na emergência da função da intersubjetividade.
Segundo os pesquisadores (ibidem, p. 38), “a falta de comportamentos intersubjetivos é o
melhor modo de reconhecer precocemente as crianças com autismo, e supõe-se que as
anomalias comportamentais do autismo podem ser consideradas com efeito anterior a um
transtorno da intersubjetividade primária e secundária”, tal como concebe Trevarthen (2002).
Segundo Muratori et al. (2011) percebe-se, na avaliação dos primeiros anos de
crianças posteriormente diagnosticadas com autismo, uma série de modificações relacionadas
com as competências sociais básicas (como olhar, sintonias posturais, busca de contato,
sorriso), bem como as competências subjetivas (atenção conjunta, apontar, imitar, antecipação
das expectativas e reações do outro), quando comparadas à crianças com desenvolvimento
típico. Para Muratori et al. (2016, p. 40), “é como se o sentido social dos comportamentos
básicos, que permite uma troca ação-resposta entre a mãe e a criança (...) fosse de alguma
forma perdido, levando a pensar que o desenvolvimento psicomotor não seja capaz de
sustentar o desenvolvimento social”. Assim, concluem os autores (ibidem, p, 48), percebe-se
que crianças posteriormente diagnosticadas com autismo apresentam “pouca capacidade de
24
manter o compromisso social (...) mas também (...) há algo de específico na motricidade da
criança que pode ser a base das dificuldades da criança na interação com o outro”.
Dentre as características corporais dessas crianças, ressaltam-se sinais de assimetria
persistente da posição deitada sobre o estômago com quatro meses, instabilidade de posição
sentada sem reflexos protetores; reflexos não inibidos ou não presentes na idade apropriada,
anomalias de deambulação, entre outros. Outra questão ressaltada dos impasses da criança
com risco de autismo em estabelecer uma organização motora em sincronia e sintonia em
responder proporcionalmente aos estímulos afetivos e corporais vindos do exterior,
expressando uma resposta apropriada diante da solicitação (MURATORI et al., 2016).
Tais estudos trazem para o debate a sensoriomotricidade inicial do bebê e contribuem
para se pensar as operações constituintes do psiquismo. Isso porque, a partir do corpo do
bebê, corpo este que acreditamos já apresentar uma organização inicial, nomeada aqui como
sistema semiótico corporal, o bebê adentra a relação fazendo frente aos significantes vindos
do Outro.
Tais significantes o inserem na dinâmica da necessidade, demanda e desejo,
propulsores da organização dos diferentes registros pulsionais no corpo do bebê. Mas, a
possibilidade de isso acontecer dependerá, de um lado, do modo como esse Outro encarnado
lida com a sua própria falta (CATÃO, 2009) e de outro, da potência desse bebê para adentrar
na relação e deixar-se alienar nesses significantes.
A partir do exposto na seção anterior, percebe-se que o laço que se estabelece entre a
mãe e seu bebê não está garantido apenas com os cuidados básicos de subsistência que
necessita um recém-nascido. O que garante essa relação é o laço simbólico entre a díade
sustentado por uma mãe que tem a marca da falta na sua constituição e que é capaz de supor
um saber sobre o seu bebê, de interpretar suas respostas e de transformar sua demanda a partir
das proposições do próprio bebê.
Considerando que o “inconsciente é estruturado como uma linguagem”, entende-se
que esse laço simbólico entre a díade que garante a estruturação do aparelho psíquico do bebê
é tecido a partir da báscula presença e ausência das operações de alienação e separação
exercidas pelos agentes da função materna e paterna.
25
Em contrapartida, a separação, marca para o sujeito que o Outro é faltante, pois, “nos
intervalos do discurso do Outro, surge na experiência da criança, o seguinte, que é
radicalmente destacável – ele me diz isso, mas o que é que ele quer?” (LACAN, 1964/1988,
p. 203). Assim, o bebê, agora na lógica do desejo, é convidado a suturar as faltas no discurso
do Outro a partir do enigma lacaniano: Che vuoi? (ROTH, 2016).
Por isso, tal como mencionado na seção anterior, essas questões colocam em cheque
o modo como o Outro primordial lida com a sua própria falta (CATÃO, 2009), pois, para
além das possibilidades e capacidades do bebê, o agente da função materna precisa sustentar
esse lugar de falta, de não saber algo sobre o seu bebê. Esse movimento de separação introduz
uma dialética dos objetos do desejo, no que ela faz a junção do desejo do sujeito com o desejo
do Outro (ROTH, 2016). E, tal como nos situa Lacan (1964/1988), o que resta dessa operação
é o objeto a, objeto causa do desejo.
Lacan (1960/1998) pontua que as relações são, necessariamente, mediadas pela
linguagem e tratam de ser uma relação de demanda, pois o significante da demanda, barra a
necessidade (referente aos cuidados básicos do bebê, por exemplo), e dá origem à pulsão. E,
26
entre a fissura entre a necessidade e a demanda, surge o desejo. Em outras palavras, “o desejo
se esboça na margem em que a demanda se rasga da necessidade: essa margem é a que a
demanda, cujo apelo não pode ser incondicional senão em relação ao Outro” (ibidem, p. 828).
Assim, a trilogia necessidade-demanda-desejo estabelece o registro pulsional na ordem
simbólica, a partir de uma relação dialética com o Outro (A) e o que retorna ao sujeito é a
pergunta: Che vuoi? (NETO, 2009).
Segundo Zizek (2010), a pergunta “Che vuoi?” marca uma abertura, uma separação
à alienação aos significantes do Outro, um espaço para a falta, para que o desejo do sujeito
possa aparecer. É nesse contexto que surge o lugar do fantasma fundamental, resposta a esse
enigma que vem do Outro, encenando seu desejo e ilustrando o que o sujeito é aos olhos do
Outro.
Segundo Jorge (2008, p. 34), “a fantasia sexualiza a pulsão de morte e oferece a ela,
através dessa sexualização, a erogeneização dos orifícios corporais, que são precisamente
29
regiões privilegiadas de troca com o Outro e sobre as quais a demanda do Outro incide”.
Nesse sentido, percebe-se que o fantasma coloca para o sujeito enigmas em relação à
sexuação (real), à filiação (simbólico) e às identificações (imaginário). Problemas estes que,
invariavelmente, estão além de sua capacidade de responder. Desse modo, o sujeito constrói
soluções de compromisso que tal como nomeia Freud, trata-se do sintoma psíquico
(JERUSALINSKY, 2008).
Nesse sentido, Jerusalinsky, (2011, p. 120) evidencia que essas três formações
inconscientes (sexuação, filiação e identificações) organizam o funcionamento mental da
criança com o mundo. Elas organizam a memória do sujeito, na medida em que enlaçam cada
novo acontecimento numa rede de significações. Quanto ao papel que cada nova inscrição
cumprirá nessa rede de significações, evidenciam-se dois destinos:
sujeito, o leva a construir uma ficção sobre o que ele é, uma resposta a tal enigma. Esse traço
significante é o traço unário “que, por preencher a marca invisível que o sujeito recebe do
significante, aliena o sujeito na identificação primeira que forma o ideal do eu” (LACAN,
1960/1998, p. 822)
Assim, o ideal do eu é sustentado por um significante do Outro que passará a
sustentar as identificações do sujeito. A imagem do sujeito depende da função significante do
ideal. Desse modo, percebe-se que nos casos em que a constituição do fantasma fracassa, tem-
se um sujeito com graves problemas na constituição do eu, da sua imagem (COSTA, 2012).
Nessa mesma direção, nas seções seguintes, pretende-se tratar, respectivamente, do circuito
pulsional que relança o sujeito em torno do objeto faltante e, em seguida, a construção dessa
imagem inconsciente do corpo, isto é, essa noção de eu que sustenta todas as operações
psíquicas do sujeito.
medida em que marcaria uma fixação inicial. Esse, segundo Freud, seria o primeiro momento
da constituição do aparelho psíquico (BIRMAN, 2009; CATÃO, 2009; JORGE, 2008).
Freud (1915/2004), na tentativa de diferenciar o conceito de pulsão em oposição ao
conceito de instinto, enumera quatro elementos invariáveis da pulsão: fonte (Quelle) enquanto
o processo somático que ocorre no interior do corpo; impulso (Drang) enquanto medida de
exigência de trabalho que ele representa para se chegar à satisfação; alvo (Ziel) que seria
sempre a satisfação; e, objeto (Objekt), elemento mais variável da pulsão, servindo apenas de
mediador para que a pulsão alcance seu objetivo, isto é, a satisfação. Segundo Birman (2009,
p. 104), esses diferentes elementos indicam uma montagem que se materializa na existência
do circuito pulsional pela qual o “impulso e exigência de trabalho exercido sobre o psíquico,
seria regulada por objetos que possibilitariam a satisfação do imperativo da força constante.
Na mesma direção, Lacan (1955/1985) complementa sugerindo que a pulsão se
apresenta como um roteiro no campo do Outro. Roteiro este que se organiza em torno da falta
constitutiva do sujeito e o coloca em uma situação de completa dependência ao significante
primordial que vem do Outro. É em virtude da falta que a pulsão parte de sua fonte em
direção ao alvo, circunda o objeto e retorna a sua origem.
Assim, o circuito pulsional se completa tangenciando o objeto que é sempre um
elemento faltoso. Pois, enquanto falta, nenhum objeto pode satisfazer completamente a
pulsão. Por isso, Lacan (1964/1988) lança o conceito de objeto a, objeto causa do desejo que
direciona a pulsão. Sendo assim, o objeto da pulsão é sempre presença de uma falta, por isso,
é o que há de mais variável. E, mesmo sendo a pulsão sempre parcial, pois nunca atinge seu
objeto, tem quatro objetos a primordiais – o seio, as fezes, o olhar e a voz.
Segundo Neto (2009), a perspectiva lacaniana sugere que a pulsão não passa de uma
montagem oriunda da articulação do sujeito com a linguagem, efeito da articulação na
linguagem da demanda do Outro – Che vuoi? Assim, ao mesmo tempo que marca, neste
primeiro momento, a alienação do sujeito aos significantes do Outro, sugere também sua
constituição na medida em que o sujeito é efeito da significação dessa demanda.
Freud (1915/2004) sugere que a montagem pulsional (tomando como referência a
pulsão sado-masoquista) apresenta-se em três tempos, onde: o primeiro tempo é ativo (na
medida em que volta-se para um objeto externo); o segundo tempo é reflexivo, pois toma uma
parte do próprio corpo como objeto; e, um terceiro tempo, dito passivo, na qual a pessoa
mesma se faz objeto de um outro. Para Freud (ibidem), nesse primeiro tempo, dito ativo, a
32
satisfação se daria por apoio nas funções vitais, tal como, no nível da pulsão oral, o bebê
mama o peito ou a mamadeira.
Por outro lado, Lacan, no texto A pulsão parcial e seu circuito (1964/1988, p. 173)
sugere uma modificação, assumindo que o terceiro tempo seria eminentemente ativa, pois é o
tempo do “fazer-se”, marcando o aparecimento de um novo sujeito aos olhos do outro. Pois,
“se, graças à introdução do outro, a estrutura da pulsão aparece, ela só se completa
verdadeiramente em sua forma invertida, em sua forma de retorno, que é a verdadeira pulsão
ativa”. Assim, tal como afirma Catão (2013), o sujeito tem sua origem a partir do remate
pulsional. E, Lacan completa, “esse sujeito, que é propriamente o outro, aparece no que a
pulsão pôde fechar seu curso circular” (LACAN, 1964/1988, p. 169).
Para Catão (2009), no segundo tempo da pulsão, no qual o bebê, por exemplo, suga
partes do seu corpo, a rigor, não seria possível pensar em auto-erotismo antes de haver um
primeiro fechamento do circuito pulsional marcando a instancia do Outro na dimensão de
Eros. E, tal como sugere Lacan (1964/1988), no terceiro tempo no qual o circuito pode se
fechar, um novo sujeito é apresentado para aquele que se deixa seduzir pelo espetáculo de seu
exibicionismo.
Pensando nos limites desse tempo de “fazer-se” para o Outro, Laznik (2013c) se
propõe a analisar a cena erótica em que a mãe ensina ao bebê sobre o gozo. Para a autora,
seria possível pensar em termos de dois tempos: Godente e Ma non tropo. No primeiro tempo,
Godente, em que, por exemplo, a mãe seduz seu bebê a alienar-se em seu desejo, “fazendo-
se” objeto dela e evidenciando a satisfação pulsional. Todavia, num segundo momento,
nomeado de Ma non tropo, salienta-se a importância da mãe, enquanto castrada, saber que o
gozo do Outro lhe é proibido, permitindo assim que o sujeito saia dessa posição.
O terceiro tempo marca o momento em que a criança ascende ao campo do Outro,
“se fazendo” objeto de desejo do Outro e se assujeitando a ele (LAZNIK, 2000). Para Lacan
(1969/1992), a transmissão subjetiva depende de um investimento libidinal singular advindo
de um Outro cujo desejo não é anônimo. “É assim que se (...) inaugura o campo das primeiras
marcas e representações (BARBOSA, 2010, p. 77).
Lacan (1964/1988) ainda sugere que nenhum objeto da necessidade pode satisfazer a
pulsão. Por esse motivo, a boca do bebê que se alimenta não se satisfaz com a comida, mas
sim na relação com o Outro primordial, onde algo do desejo materno, isto é, o significante
33
pulsão escópica (FERREIRA, 2010, p. 67). Pois, apesar da demanda oral se produzir pelo
mesmo orifício da pulsão invocante, “há duas bocas” (LACAN, 1965/2006). E, quanto aos
efeitos da pulsão invocante no corpo do bebê, salienta-se os primeiros balbucios e
protoconversações. Para Ferreira (2010), a protoconversação marca para a pulsão invocante a
atração do bebê pela voz materna, bem como sua contrapartida ao manhês.
E, se o bebê “se deixa cativar pelos sons da fala materna, graças aos sinais e à
qualidade da voz que escuta, (...) é graças ao gozo que o favorece tanto quanto à mãe. O gozo
do Outro, aliás, não lhe passa despercebido nem lhe é indiferente” (FERREIRA, 2010, p. 65-
66). Ainda, ressalta-se sobre a protoconversação:
inspirado pelo esquema ótico da “experiência do buquê invertido” de Henri Bouasse (1947)
tem contribuído para pensar essa construção.
Freud (1914/2004, p. 112) assinala dois tempos do narcisismo onde, num primeiro
momento, o narcisismo do bebê refere-se à identificação com o narcisismo renascido dos pais,
na medida em que eles projetam no bebê toda a sorte de sonhos e desejos nunca realizados por
eles. E, diante da realidade, bem como da avaliação que o eu faz de si mesmo, essa
identificação narcísica é forçada a se haver com seus limites, originando o recalque originário.
Num segundo momento do narcisismo haveria a possibilidade de sucessivas identificações
simbólicas que passam pelo objeto e pelo Outro produzindo um distanciamento das projeções
parentais (CATÃO, 2009).
A partir da leitura freudiana, Lacan (1955/1985), lança a diferenciação entre o
conceito de sujeito psíquico (je) e de eu (moi), para pensar a articulação do real do corpo do
bebê com as dimensões simbólica e imaginária postas em articulação nesse jogo de Eu ideal e
Ideal-de-Eu. Entende-se que nessa articulação as pulsões invocante e escópica são
fundamentalmente necessárias.
Atualmente, já é possível afirmar que o bebê já possui registros pré-natais que
contribuem para a construção de sua imagem corporal muito antes da construção da imagem
no laço do modo como Lacan e Freud induzem a pensar. Por isso, pode-se afirmar que essa
noção de imagem corporal necessita de atualizações que ultrapassam o escopo de discussão
desta tese.
materno, marcando assim a sua exclusão no campo do Outro. O terceiro tempo pulsional
refere-se a esse “se fazer” olhar e “se fazer” escutar, em que o bebê torna-se ativo na demanda
(LAZNIK, 2013b). É o que falta no autismo, isto é, essa “possibilidade de operar esta
reversão, isto é, de passar de uma posição puramente passiva, se deixar beijar os pés, sugar os
dedinhos da mão, na ‘voz mediana’ (BENVENISTE), que Lacan preconiza no Seminário III:
ao ‘se fazer’, forma eminentemente ativa da passividade” (LAZNIK, 2013c, p. 208).
Catão (2013) corrobora nessa perspectiva salientando que o não-olhar entre uma mãe e
seu filho constitui um dos primeiros sinais clínicos que permitem pensar, já nos primeiros
meses de vida, no risco de autismo. Um segundo sinal clínico sinalizado por Catão (2013) é a
não-instauração do circuito pulsional, tal como mencionado por Laznik (2013a).
Por isso, Catão (2013) pontua que a possibilidade de um diagnóstico diferencial entre
a psicose e o autismo pode ser verificada a partir da instauração (ou não) do terceiro tempo do
circuito pulsional. Isso é possível porque, diferentemente do autismo, na psicose há a
instauração do terceiro tempo pulsional. Nesses casos o bebê que, posteriormente, apresentará
uma psicose infantil, faz-se objeto de desejo de sua mãe, assujeitando-se facilmente a ela. O
problema aqui é justamente a possibilidade dessa mãe saber os limites deste gozo. Por isso,
enquanto no autismo é da alienação que se trata, na psicose o que fracassa é o outro polo da
subjetivação: a separação.
Diferentemente do autismo, nas psicoses, o que não se instala é a metáfora paterna.
Essa diferença estrutural entre as duas posições subjetivas pode ser evidenciada a partir da
posição da criança na linguagem, isto é, diante da demanda do Outro e do enigma che vuoi?
Nesses termos, diante de uma demanda vinda do Outro, no autismo, evidencia-se a recusa, o
evitamento. E em muitos casos, há a ausência completa da linguagem. Por outro lado, na
psicose, há uma relação com a linguagem, entretanto, a demanda do Outro é tomado como
mandato, num sentido unívoco que o silencia em seu desejo (SIBEMBERG, 2015).
A diferenciação entre a psicose e o autismo se faz pertinente diante da versão mais
recente do DSM-5, em que tal diferença é obscurecida. Isso se dá pelo motivo de que o
autismo é ampliado para Transtorno do Espectro Autista (TEA), abarcando “desde o autismo
clássico descrito por Leo Kanner até as psicoses não decididas na infância” (SIBEMBERG,
2015). Acredita-se que pensar o autismo como tendo um funcionamento diferente das demais
estruturas, especialmente das psicoses infantis é de fundamental importância para a escolha da
direção de tratamento a partir do suporte teórico que o campo psicanalítico oferece.
38
menor foi constituída com 267 crianças e avaliada aos 3 anos de idade. Nessa avaliação final
foi aplicado o roteiro para a Avaliação Psicanalítica (AP3) e o roteiro para a Avaliação
Psiquiátrica. Desses resultados, definiu-se o desfecho clínico da pesquisa (KUPFER et al.,
2008a):
A análise estatística evidenciou que o IRDI, com seus 31 indicadores, “possui uma
capacidade maior de predizer problemas de desenvolvimento do que a capacidade de predizer
risco psíquico” (KUPFER et al., 2008a, p. 224). Tais evidências demonstraram uma
amplitude maior do instrumento e a importância de se realizar, de modo complementar, uma
avaliação psicanalítica que permitiria os seguintes desfechos: a) presença ou ausência de
problemas de desenvolvimento propriamente dito para a criança; ou b) presença ou ausência
de desenvolvimento com risco psíquico para a constituição do sujeito (KUPFER et al., 2018,
p. 561).
O IRDI foi pensado a partir da possibilidade de verificação da presença de um sujeito
psíquico e de possíveis riscos para sua constituição só é possível a partir dos efeitos indiretos
que ele produz, isto é, apoiado em sinais fenomênicos que permitam supô-lo. Por isso, os
indicadores foram construídos a partir de quatro eixos teóricos fundamentais na relação mãe-
filho que determinam a constituição do sujeito. Esses eixos foram definidos, sob a perspectiva
psicanalítica, a partir das diferentes operações psíquicas que se estabelecem nos primeiros
41
anos de vida de uma criança, são eles: suposição de um sujeito (SS), estabelecimento da
demanda (ED), alternância presença/ausência (PA), e função paterna (FP). É importante
salientar que, para a construção desses quatro eixos, a pesquisa IRDI partiu do princípio de
que “o trabalho materno se tece gradualmente em torno desses quatro eixos, e tem como
resultado a instalação de um sujeito psíquico, a partir do qual o desenvolvimento de uma
criança se organiza” (KUPFER et al., 2009, p. 52).
O eixo da suposição de sujeito (SS) caracteriza uma antecipação do agente materno da
existência de um sujeito psíquico no bebê ainda não constituído. Essa antecipação se dá
graças a preocupação materna primária onde a mãe, com uma sensibilidade aumentada com as
manifestações do bebê, lhe empresta seu olhar e voz através da protoconversação e do manhês
carregado de uma musicalidade e carga afetiva. A mãe interpreta o apelo de seu bebê e vê em
seu corpinho o que ainda não está lá, “supõe que ele já está constituído psiquicamente, o que,
de fato, não aconteceu” (CATÃO, 2009, p. 74).
No eixo do estabelecimento da demanda (ED) estão reunidas as primeiras
manifestações involuntárias que o bebê apresenta ao nascer que são interpretadas pela mãe
como sendo um pedido dirigido a ela e que ela se põe em posição de responder. Essa demanda
encontra-se na base de toda a atividade posterior de linguagem e marcará todas as futuras
relações do sujeito (KUPFER et al., 2009).
Em seguida, o eixo da alternância presença e ausência (PA) caracteriza a alternância
entre presença e ausência que marcam todas as ações maternas. Nesse contexto, “a ausência
materna marcará toda a ausência humana como um acontecimento existencial, digno de nota,
obrigando a criança a desenvolver um dispositivo subjetivo para a sua simbolização”
(KUPFER et al., 2009, p. 52). Ao passo que a presença materna não será apenas física, mas
também simbólica. Será no intervalo entre a ausência e a experiência de satisfação
proporcionada pela presença da mãe que poderá surgir uma resposta da criança.
Por fim, no eixo da função paterna (FP) busca-se verificar os efeitos desta função que
baliza a função materna. A função paterna surge num primeiro momento por meio do discurso
da mãe e ocupa o lugar de terceiro na relação mãe-bebê, orientada pela dimensão social. O
exercício da função paterna poderá ter como efeito uma separação simbólica entre mãe e
bebê, impedindo assim “a mãe de considerar seu filho como um ‘objeto’ voltado unicamente
para a sua satisfação. Portanto, a possibilidade do efetivo exercício da função paterna garante
42
profissional, se possui um cônjuge, o Apgar do 1' e o sexo do bebê. Na fase II, realizada na
faixa etária dos seis meses, os principais fatores foram: tipo de aleitamento e com quem/onde
a criança dorme. Por fim, os principais fatores que influenciaram o desfecho “presença de
risco”, a partir do roteiro IRDI Fase III, aplicado na faixa etária entre 8 meses e 1 dia e nove
meses e 29 dias, foram: a idade materna, se a mãe possui um cônjuge que lhe oferece suporte
e o sexo do bebê.
Como mencionado anteriormente, em virtude da amplitude do instrumento IRDI, foi
proposto pela equipe de profissionais da pesquisa IRDI, uma avaliação psicanalítica no
terceiro ano de vida nomeada AP-3 (KUPFER et al., 2008b). Tal roteiro, parte dos quatros
eixos que estruturam o IRDI, mas considerando um sujeito já em estruturação mais avançada.
E, nesses termos, apresenta “quatro categorias que abarcassem o que se espera encontrar no
funcionamento psíquico de uma criança a partir de três anos” (KUPFER et al., 2018, p. 561),
são elas: o brincar e a fantasia (BF), o corpo e sua imagem (CI); manifestação diante das
normas e posição frente à lei (FP); a fala e a posição na linguagem (FL). Dessa forma, pode-se
identificar, a partir do terceiro ano de vida, o diagnóstico de autismo ou o risco para
emergência de outra psicopatologia, ou mesmo a presença de obstáculos emocionais à
emergência de aspectos estruturais (JERUSALINSKY, 2015a).
O roteiro AP-3 é baseado em quatro categorias que englobam o que se espera verificar
no funcionamento psíquico de uma criança de três anos: o brincar e a fantasia (BF); o corpo e
sua imagem corporal (CI); manifestações diante das normas e posição frente à lei (FP); a fala
e a posição na linguagem (FL) (Kupfer et al., 2018).
Quanto ao brincar e o estatuto da fantasia, considera-se que na infância a fantasia
apresenta um limite tênue com a realidade, em comparação ao indivíduo adulto neurótico que
apresenta “a fantasia subjetivada sob a forma de ficção, onde a ordem simbólica corta de
modo muito mais nítido o limite entre o imaginário e o real” (JERUSALINSKY, 2008, p.
125). Ressalta-se que na psicopatologia da infância, o modo como o imaginário se institui tem
caráter fundamental para o diagnóstico, podendo diferenciar diferentes posições estruturais:
• Sinal comunicativo 1 (S1): O bebê procura “se fazer” olhar por sua mãe (ou substituto)
na ausência de qualquer solicitação dela;
• Sinal comunicativo 2 (S2): o bebê procura suscitar a troca jubilatória com sua mãe (ou
com seu substituto) na ausência de qualquer solicitação dela.
três e cinco anos de idade para identificar casos prospectivos de falso negativo. Entre os
resultados, verificou-se que das 100 crianças que apresentaram triagem positiva, 45 receberam
um diagnóstico no seguimento. Entre aqueles que receberam o diagnóstico, 22 eram
saudáveis, 10 foram diagnosticados com autismo, sete com deficiência intelectual (ID) e seis
tinham outro transtorno do desenvolvimento. Os escores dos Sinais PREAUT foram
significativamente associados com médio e alto risco de autismo no CHAT em 24 meses –
Sinais PREAUT aos quatro meses: p <0,001, odds ratio de 12,1 (IC 95%: 3,0-36,8); Sinais
PREAUT aos nove meses: p <0,001, odds ratio de 38,1 (95% CI: 3,65 -220,3). O estudo pode
concluir que a grade PREAUT pode contribuir para a detecção precoce do autismo e sua
combinação com o CHAT pode melhorar o diagnóstico precoce de autismo e outros
distúrbios do neurodesenvolvimento.
Em pesquisa recente com a aplicação dos Sinais PREAUT em 80 bebês (25
prematuros e 55 a termo), Souza et al. (2018) evidenciaram que na avaliação do 4º mês, 42
bebês (15 prematuros e 27 a termo) apresentaram uma pontuação final inferior a 15 pontos. E,
na avaliação do 9º mês, esse número reduziu para 17 (6 prematuros e 11 a termo). Com
relação a análise de fatores sociodemográficos, psicossociais e obstétricos que influenciaram
para o desfecho presença de risco ou não a partir dos Sinais PREAUT (somatório inferior a 15
pontos), na faixa etária que compreende de três meses e 1 dia a quatro meses e 29 dias, tem-se
as seguintes variáveis: presença de atividade profissional materna e presença de dificuldade
alimentar do bebê. Nesses termos, foi considerado fator de risco a mãe não ter nenhuma
atividade profissional, seja trabalhar e/ou estudar. É importante ressaltar que no período da
avaliação dos quatro meses, essa variável sociodemográfica considerou como sendo mães
socialmente ativas aquelas que estavam em licença maternidade, bem como as que tinham
abandonado o emprego após o nascimento do filho, mas pretendiam retomá-lo após o sexto
mês do bebê. Quanto as variáveis obstétricas, verificou-se em relação a dificuldades
alimentares (refluxo e engasgo): bebês a termo (n=8) e com PREAUT alterados na faixa etária
do 4º mês apresentaram queixas de refluxo (n=5) e de engasgo (n=3); e, bebês prematuros
(n=6) que obtiveram PREAUT alterados na mesma faixa etária, as queixas foram de refluxo
(n=4) e de engasgo (n=2). Quanto a avaliação dos sinais PREAUT na faixa dos nove meses,
obtiveram-se como principais fatores sociodemográficos, psicossociais e obstétricos que
influenciaram no desfecho “presença de risco”: a prematuridade, o sexo do bebê, a mãe
49
possuir um cônjuge que lhe oferece suporte e o bebê experimentar diferentes posições
corporais e explorar o ambiente a sua volta.
Ainda, em relação à aplicação dos Sinais PREAUT com os IRDI, Roth-Hoogstraten et
al. (2018a), verificaram, a partir do Coeficiente de Concordância Kappa, que os IRDIS da fase
I apresentaram um coeficiente de valor substancial em relação aos sinais PREAUT avaliados
no mesmo período (0,775). Observa-se também que o sinal PREAUT 4-A, referente a “Ele
olha para sua mãe (ou substituto)” apresentou coeficiente de concordância substancial (0,771)
em relação ao IRDI 7 (“A criança reage (sorri, vocaliza) quando a mãe ou outra pessoa está se
dirigindo a ela”), avaliado na faixa etária do sexto mês do bebê. O mesmo acontece com os
IRDIS da fase III e os sinais PREAUT verificados na mesma avaliação, na qual se pode
observar um coeficiente de concordância igual a 0,744. Cabe destacar o coeficiente de
concordância de k=0,800 entre IRDI fase III e sinal PREAUT 2-A (o bebê procura “se fazer”
olhar por sua mãe ou substituto na ausência de qualquer solicitação), bem como o sinal 2-A
com o indicador 13 (a criança faz gracinhas). Como o item 2-A do sinal PREAUT é o sinal
mais pontuado (8), tendo em vista que através dele pode-se perceber claramente o
estabelecimento do terceiro tempo do circuito pulsional a partir da interação com a mãe ou
sua substituta, ele reflete, tal como o IRDI 13, a capacidade do bebê “se fazer” objeto de
jubilo do outro. Portanto, essa associação estatística está a comprovar as bases teóricas
psicanalíticas em comum dos dois protocolos. A pesquisa pôde evidenciar que os dois
protocolos verificaram, simultaneamente, a presença de sinais de risco à constituição psíquica.
Entretanto, percebe-se que quando comparados individualmente, excetuando o sinal 2-A na
correlação já explanada, os indicadores do protocolo IRDI (considerando a versão com 18
indicadores) e as perguntas dos sinais PREAUT apresentaram, na maioria dos casos, um
coeficiente de concordância kappa insuficiente ou moderado. O que se pode afirmar a partir
desse resultado é que, apesar de ambos verificarem a presença de risco, eles observam sinais
diferentes. O que está em acordo com o fato de os sinais PREAUT apresentarem como
objetivo identificar de modo mais específico o risco para o quadro de autismo, enquanto os
IRDI com 18 indicadores terem como objetivos a observação de sofrimento psíquico e suas
repercussões no desenvolvimento infantil. Pode-se dizer que, por caminhos distintos chegam
a resultados similares em termos de verificar se existe ou não algum impasse no processo de
constituição psíquica do bebê e, consequentemente, em seu desenvolvimento. Tais resultados
reforçam a presente tese de que, apesar da validade e potência dos roteiros de avaliação de
50
Falar sobre linguagem é uma tarefa complexa que demanda uma delimitação teórica a
respeito do objeto analisado devido à diversidade de teorias linguísticas. Para Surreaux
(2006), Emile Benveniste (1902-1976) destaca-se como o autor que trouxe a tona o sujeito na
linguagem dentro do campo linguístico. Nesse contexto, acredita-se que sua teoria tem grande
importância na interlocução entre linguística e psicanálise no que tange a aquisição da
linguagem e a clínica de bebês.
Compreendendo a importância de se estabelecer uma relação entre as propostas
teóricas Benveniste e possíveis descolocamentos das mesmas para pensar a linguagem na
clínica de bebês, nesta seção, serão apresentados alguns pontos importantes de sua teoria, bem
como de outros trabalhos que produziram esses deslocamentos para os campos da aquisição e
da clínica, esta com os distúrbios de linguagem ou com os bebês.
variados sobre a própria estrutura das línguas, quer seja na organização das formas ou nas
relações da significação”. (BENVENISTE, 1956/1988, p. 290)
No texto Forma e sentido na linguagem (1967/1989), Benveniste sustenta que a
função da linguagem “é, antes de tudo, significar” (p. 222) na medida em que a significação
representa o todo, pois do todo expresso vem a oferta de uma interpretação pelo alocutário, ou
seja, de um significado ao que foi dito. E complementa, “bem antes de servir para comunicar,
a linguagem serve para viver” (ibidem, p. 222).
A significação tem também um caráter muito singular, pois, apesar de parecer fugidia
e imprevisível, tem “o caráter de se realizar por meios vocais, de consistir praticamente num
conjunto de sons emitidos e percebidos, que se organizam em palavras dotadas de sentido”
(BENVENISTE, 1967/1989, p. 224). Ao tratar dessa questão, aborda os conceitos de signo e
frase. O signo tem como “realidade intrínseca” a língua; já a frase convoca um externo à
língua. O autor afirma que o signo significa e é reconhecido como sendo constituinte da
língua pelos seus falantes. O sentido da frase implica referência com a situação de discurso e
com a atitude do locutor (ibidem, p. 230).
Benveniste (1967/1989, p. 224) identifica o signo linguístico como “unidade
semiótica” que tem a significação como limite, na medida em que “não podemos descer
abaixo do signo sem perder a significação” (ibidem, p. 225). Por esse motivo, seu papel é o de
representar. E, sendo uma unidade semiótica, apresenta uma natureza polarizada, referente às
dimensões de forma e sentido, surgindo, por vezes, como significante e outras, como
significado. Desse modo, Benveniste (ibidem) sugere que há duas formas de ser na língua a
partir da forma (nível semiótico) e do sentido (nível semântico):
(...) o sentido é a noção implicada pelo termo mesmo da língua como conjunto de
procedimentos de comunicação identicamente compreendidos por um conjunto de
locutores; e a forma é, do ponto de vista linguístico (a bem dizer do ponto de vista
do lógicos), ou a matéria dos elementos linguísticos quando o sentido é excluído ou
o arranjo formal destes elementos ao nível linguístico relevante. Opor forma ao
sentido é uma convenção banal (...) mas se nós tentarmos reinterpretar esta oposição
no funcionamento da língua integrando-a e esclarecendo-a, ela retoma toda a sua
força e sua necessidade; vemos então que ela contém em sua antítese o ser mesmo
da linguagem (...) (Benveniste, 1967/1989, p. 224).
Entende-se que o nível semântico volta-se para a atividade do locutor que coloca a
língua em uso e em ação, evidenciando a função constitutiva da linguagem entre os homens e
o mundo. Nesse sentido, ressalta-se a frase como expressão semântica por excelência que
54
O sentido da frase é de fato a ideia que ela exprime; este sentido se realiza
formalmente na língua pela escolha, pelo agenciamento de palavras, por sua
organização sintática, pela ação que elas exprimem umas sobre as outras. Tudo é
dominado pela condição do sintagma, pela ligação entre os elementos do enunciado
destinado a transmitir um sentido dado, numa circunstância dada (1967/1989, p.
230)
Por outro lado, o signo semiótico existe em si, funda a realidade da língua sendo
definido por uma relação de paradigmas. Por esse motivo ancora o sistema semântico, “toda a
semiologia de um sistema não linguístico deve pedir emprestada a interpretação da língua,
não pode existir senão pela e na semiologia da língua” além disso, “a língua é o interpretante
de todos os outros sistemas, linguísticos e não-linguísticos (BENVENISTE, 1969/1989, p.
61). Portanto, conclui que a língua assume uma relação de interpretância em referência a
outros sistemas semióticos, porque é o único sistema semiótico que pode interpretar todos os
demais sistemas semióticos.
Assim, observam-se operações típicas e complementares que envolvem as dimensões
de conexão/integração de uma unidade de nível superior (sentido) e substituição/dissociação
em constituintes em nível inferior (forma). Para Benveniste (1967/1989), a língua-discurso
constrói uma semântica própria, produzida pela sinta matização das palavras na qual “o
sentido das palavras ocorre na atualização sintagmática para noções sempre particulares,
porque os signos, presentes no paradigma, são em si mesmos conceptuais e genéricos”
(SILVA, 2009a, p. 217).
Ainda em Semiologia da língua (1969/1989), Benveniste sugere que a semantização
da língua coloca em questão a significância que é engendrada pelo discurso. Desse modo, no
nível semiótico (signo), o que está em questão é o reconhecimento do signo, ao passo que, no
nível semântico (discurso), é a compreensão do enunciado. Benveniste (1969/1989) analisa
diferentes sistemas de semiologias e conclui que nenhum deles pode ser pensado, formulado e
analisado à parte da linguagem. É a partir da interpretação proposta pela língua que os demais
sistemas semióticos podem ser compartilhados, tendo em vista que, apesar do discurso ser
55
particular e inédito a cada momento, ele possui unidades fixas que permite o uso e
compreensão por um grupo muito grande de pessoas.
Partindo de Benveniste, alguns pesquisadores da linguagem contemporâneos, vem
pensando a respeito dos processos de aquisição e dos distúrbios ou atrasos de linguagem
considerando o caráter semântico da linguagem, o que dá relevo aos agentes do diálogo,
distanciando-se de avaliações de linguagem centradas apenas nas habilidades do sujeito em
atendimento, ou seja, da análise exclusiva do domínio semiótico da linguagem. Essa
ampliação do olhar sobre a linguagem em funcionamento tem sido fundamental para
modificar a perspectiva de avaliação e intervenção na clínica, como se verá a seguir.
A teoria enunciativa de Benveniste abre caminho para se pensar os modos como cada
sujeito se apropria da linguagem e a coloca em uso. Nesses termos, Cardoso (2010), por
exemplo, se apoia no princípio da intersubjetividade para avaliar distúrbios de linguagem.
Para tal, parte da análise da qualidade das interações da criança com distintos alocutários e da
relação entre forma e sentido para explanar algumas distinções clínicas importantes nos casos
de atraso na aquisição da linguagem.
Cardoso (2010), assim como Surreaux (2006), parte da construção teórica de
Benveniste para tratar da fala desviante. Para o autor, as noções de forma e sentido, ancoram o
questionamento a respeito do papel de significação, como conceito operador das relações
entre a linguagem e a língua. Nessa perspectiva, entende-se, a partir de Benveniste, que a
língua pode ser entendida a partir de dois universos, tal como mencionado anteriormente: em
relação ao repertório dos signos (semiótico); e, em relação a dimensão do discurso
(semântico).
Para Cardoso (2010), a leitura do linguista diante dessa realidade precisa considerar
duas faculdades também distintas para o falante: de um lado, o signo deve ser reconhecido; de
outro, o discurso deve ser compreendido. Essa realidade é compreensível nos casos de
distúrbios de linguagem em que se evidencia uma dissociação específica da isomorfia
forma/sentido, provocando impasses na compreensão da língua em uso.
56
a voz, mas não tem registro – pois o registro não é literal. Tem um traço de originalidade na
voz que não se expõe à interpretação (o que é da ordem do sinthoma)” (ibidem, p. 116).
Quanto ao sintoma de linguagem, Surreaux (2006, p. 121) ressalta a peculiaridade de
cada paciente, “trata-se de tomar o funcionamento específico da linguagem do paciente como
interrogante, algo como ‘reinventar’ os destinos da clínica de linguagem frente ao instigante
que cada paciente evoca nessa clínica”. Nesses termos, Surreaux (ibidem) propõe pensar o
sintoma de linguagem como um ato criativo por parte do sujeito, considerando o conceito de
“ato psicanalítico”, tal como proposta por Lacan em O Ato Psicanalítico (1967-1968). Para
Lacan, o ato psicanalítico tem a ver com a palavra e com o corte. Enquanto palavra,
significante, representa o sujeito do inconsciente e como corte, representa uma função que
envolve o vazio, a falta. Nesse sentido, diferentemente do “ato médico” que promete ser
portador da verdade, o ato psicanalítico é portador da falta que abre espaço para a construção
do sujeito. Todavia, diferentemente da subversão proposta pelo chiste (cujo estranhamento
tem efeitos simbólicos), o ato criativo do sintoma de linguagem apresenta algo da ordem do
sofrimento porque atualiza o mal-estar da fala sintomática fruto da dificulta do sujeito se
comunicar com seus interlocutores e, desse modo, incide sobre o real.
Em contrapartida, para compreender o processo de aquisição da linguagem pela
criança e considerando os desdobramentos da subjetividade/intersubjetividade constitutiva do
exercício da língua, Silva (2009a) considera ainda uma quarta instância que diz respeito ao
contexto cultural (ELE) em que o sujeito enuncia. Isso porque, ao nascer, o bebê ingressa em
um mundo simbólico já constituído. Silva (ibidem, p. 164), afirma: “aqui estamos diante de
um sujeito de aquisição da linguagem que é constituído e, ao mesmo tempo, constitui uma
relação humana com a cultura”. Por isso, considera a cultura como uma instância constituinte
do sujeito da aquisição da linguagem, tendo em vista que o sujeito da enunciação está “imerso
na cultura, da alocução ou diálogo, porque constitui e é constituído na esfera do diálogo. É um
sujeito linguístico-enunciativo, porque é produtor de referências e de sentido pelo/no
discurso” (op. cit., p. 150).
Ainda quanto a intersubjetividade, Silva (2009a, p. 166) ressalta que “as relações
diádicas eu-tu, eu/tu e (eu-tu)/ele para tratar das relações de conjunção eu-tu e, em
contrapartida, de disjunção das pessoas eu/tu e do conjunto (eu-tu) em relação a ele. As
relações diádicas de conjunção e disjunção estão marcadas, respectivamente “pela
reversibilidade/pessoalidade da relação interlocutória, em que eu e tu formam, na
58
Silva (2009a, p. 223) complementa sugerindo que, por meio das capacidades de
dissociação e de integração, o locutor e o alocutário engendram as formas e os sentidos para
produção de referências e co-referências no discurso, traçando a relação de
paradigma/sintagma e língua/discurso. Os pronomes pessoais eu e tu são singulares por serem
signos vazios, preenchidos quando postos em uso, identificados na instância do discurso por
aquele que fala, conforme indicado por Benveniste (1965/1989).
Especificamente pensando o processo de apropriação da linguagem, Benveniste
(1956/1988, p. 281) sugere que, “quando um indivíduo se apropria dela, a linguagem se torna
instâncias do discurso, caracterizadas por esse sistema de referências internas, cuja chave é o
eu, e que define o indivíduo pela construção linguística particular de que ele se serve quando
se enuncia como locutor”.
Quanto ao sujeito da aquisição da linguagem, Flores (1999) o assinala como sendo
constituído em uma relação de intersubjetividade e de alteridade. Para Silva (2009a, p. 166),
a alteridade em relação ao sujeito que enuncia (eu) diz respeito a dois “outros”: um alocutário
concebido como um outro (tu) e uma instância terceira, a língua (ele), constituída a partir de
uma instância cultural (ELE).
59
Ressalta-se que nesse primeiro mecanismo enunciativo, a criança (eu) ainda está na
dependência do dizer do outro (tu). A criança, tomada como ponto de referência, mesmo
alienada (aspecto da conjunção da díade eu-tu) ao outro, ocupa um lugar na estrutura
enunciativa (aspecto disjunto da díade eu-tu). Por outro lado, é ancorada no tu que eu inicia
suas primeiras experimentações na linguagem. Por isso, entende-se que o preenchimento de
lugar na estrutura se dá a partir do tu e na simultaneidade entre conjunção e disjunção com o
tu.
60
I- o aparelho de funções:
a) através da intimação;
61
b) através da interrogação;
II- do aparelho de formas de instanciação do eu:
a) uso do nós;
b) oscilação entre terceira e primeira pessoa;
c) marca do eu no verbo;
d) instanciação do nome;
e) atualização de referência ao locutor com a forma pronominal eu;
III- Mecanismos de instanciação da dupla enunciação pelo eu:
a) recuperação da alocução anterior pelo eu através de indução do tu;
b) constituição do relato de ações e a posição do eu com o estabelecimento de
relação entre os tempos linguísticos presente e passado;
c) constituição do relato de dizer e a posição do eu:
c.1) por projeção do eu de nova enunciação;
c.2) por retomada do eu de enunciação anterior;
d) simulação de eu de outra enunciação a criança brincando com o outro via língua.
Essa passagem das relações binárias para as trinitárias evidenciam que a criança
domina o aparelho formal da enunciação de modo a continuar seu processo de apropriação
linguística e possui os elementos necessários para ocupar um lugar enunciativo de modo a
produzir um discurso próprio sem dependência alguma de seu alocutário.
Desse modo, entende-se que a análise do processo de aquisição da linguagem por meio
de uma perspectiva enunciativa, pressupõe a investigação do enunciado do bebê (eu) no
diálogo eu-tu. Portanto, a interação entre eu-tu é indispensável enquanto instância de
funcionamento linguístico-discursivo que permite a análise dos mecanismos enunciativos
63
(Silva, 2009a) nos primeiros dois anos de vida, sem desconsiderar a singularidade na
aquisição da linguagem. Cabe agora refletir sobre o que esse percurso enunciativo diz para a
clínica de bebês.
o corpo do bebê é que “fala”. E, para tal, faz-se necessário resgatar dois princípios de
Benveniste (1969/1989): o princípio de não redundância entre os sistemas e o princípio de
interpretância, isto é, a relação entre sistema interpretante e sistema interpretado.
No primeiro caso, trata-se do fato de não haver sinonímia entre sistemas semióticos
diferentes. Eles podem ser complementares, mas jamais idênticos ou mutuamente
conversíveis. Para Benveniste (1969/1989, p. 54) “a não reversibilidade entre sistemas de
bases diferentes é a razão da não redundância no universo dos sistemas de signos. O homem
não dispõe de vários sistemas distintos para a mesma relação de significação”.
Outra questão importante a ser considerada é a relação entre o sistema interpretante e
sistema interpretado. Para Benveniste (1969/1989, p. 57), a linguagem serve de sistema
interpretante principal em relação aos demais (sistema artístico, por exemplo) pelo seu caráter
semiótico, pois se configura enquanto um “sistema finito de signos, regras de arranjo que
governam suas figuras, independentemente da natureza e do número de discursos que o
sistema permite produzir”. E, diferentemente dos outros sistemas, trata-se de um sistema com
unidades significantes.
Assim, quando se pensa em sistemas semióticos diferentes, é necessário considerar
três tipos de relações: relação de engendramento, relação de homologia e relação de
interpretância. A saber:
construções do sujeito na língua, bem como seus desvios. E, para que haja uma teoria de
linguagem que acolha o “patológico” nas produções do sujeito (FLORES; SURREAUX,
2004, p.82), faz-se necessário uma reconfiguração da linguística em dois aspectos: a) quanto a
concepção de objeto, para que a patologia possa integrá-lo como um interrogante; b) quanto a
concepção de teoria, já que esse objeto passa a ser concebido como estruturalmente marcado
por relações que demandam um quadro teórico amplo.
Kruel (2015, p. 54) salienta que o bebê, a princípio, não tem a apropriação plena do
sistema, nem mesmo a subjetividade constituída, por isso, “conta com um sistema semiótico,
que não é idêntico ao linguístico, mas que talvez permita o engajamento no diálogo por meio
de uma protoconversação”. Essa protoconversação que envolve sistemas semióticos distintos
demanda uma relação de homologia e interpretância, tal como proposto por Souza (2015), a
partir da leitura de Benveniste.
Nessa perspectiva, a protoconversão entre mãe e bebê apresenta elementos geradores
de mecanismos conjuntivos eu-tu e disjuntivos eu/tu no diálogo mãe-filho que são essenciais
ao processo de apropriação linguística inicial. Tais elementos estão presentes nessas relações
de homologia e interpretância entre mãe-bebê considerando os diferentes sistemas semióticos
em jogo e são fundamentais para pensar os mecanismos enunciativos propostos por Silva
(2009a) para o processo de aquisição da linguagem e, em específico, ao primeiro mecanismo.
A partir desse primeiro mecanismo de enunciação, Kruel et al. (2015) buscaram
analisar, desde as primeiras protoconversações entre mãe e bebê, as relações de homologia e
interpretância entre o sistema semiótico não verbal do bebê e o verbal da mãe. Assim, pode-se
pensar o ato de apropriação da linguagem como o ato no qual a “fala” ou gestualidade do bebê
assume status de enunciação para aquele que o interpreta. Por outro lado, complementa Kruel
(2015, p. 60)
Pode-se pensar que a sustentação de um lugar de fala para o bebê, feita pelo adulto,
por meio da interpretância atribuída às ações do bebê, ou seja, o que o adulto fala
pelo bebê ou sobre o bebê, e os momentos em que este ocupa seu lugar de fala,
parece ter uma relação de engendramento de posição discursiva ao bebê. Então,
poder-se-ia pensar em uma relação de engendramento na direção do sistema de
signos linguísticos do adulto dirigido às manifestações corporais/vocais do bebê por
meio da interpretância. Esta atua quando a mãe atribui sentido, via língua, às
manifestações corporais iniciais do bebê, e quando posta em ação instala uma
posição discursiva ao bebê, acertando ou não sua interpretação.
66
Nessa perspectiva, a homologia acontece nos momentos em que a mãe fala a respeito
do bebê ou com ele a respeito de algum gesto ou comportamento que ele apresentou. Desse
modo, a mãe correlaciona o sistema semiótico corporal do bebê com o seu, que é verbal. Na
interpretância, todavia, a mãe dá sentido, por meio do sistema semiótico linguístico, às
manifestações corporais que o bebê apresenta (Kruel et al., 2015). Nesse sentido:
1
Esse termo “lugar de enunciação” é utilizado por Silva (2009b) e foi sugerido pelo Dr. Valdir do Nascimento
Flores durante a defesa desta tese e achamos pertinente passar a utiliza-lo na discussão teórica e na análise da
pesquisa.
67
prematuros, com e sem risco psíquico, a partir do roteiro IRDI. O estudo concluiu que quanto
maior o número de vocalizações do bebê e das mães com o manhês, menos chance do bebê
apresentar sinais de risco à constituição psíquica nos primeiros quatro meses de vida,
momento em que o bebê começa a apresentar seus primeiros balbucios.
O estudo de Fattore et al. (2017) também demonstrou estatisticamente que a maior
maturidade do bebê na linguagem acaba por não demandar tanto uma linguagem particular
dirigida a ele pela mãe. Esse resultado corrobora aqueles de Saint-Georges et al. (2013) que
evidenciaram o modo como as mães tendem a ajustar a fala dirigida ao bebê de acordo com a
idade, as habilidades cognitivas e o nível linguístico. Isso porque “a fala dirigida à criança
depende das características psicológicas, sociais e culturais do adulto que cuida do bebê e da
responsividade e feedback deste ao adulto” (Fattore et al., 2017, p. 5).
Na mesma direção, Rechia et al. (2018) verificaram, a partir da análise de 54 bebês,
sendo 31 sem risco e 23 com risco psíquico de acordo com os IRDI, que a presença de risco
psíquico pode ser estatisticamente correlacionada com a menor maturação auditiva dos bebês.
O estudo indica que a fragilidade na relação mãe-bebê afeta não apenas o psiquismo e a
linguagem, mas também a audição do bebê, o que pode gerar consequências à aquisição da
linguagem, tendo em vista que, entre os quatro e os nove meses, o funcionamento sensorial
auditivo tem importância fundamental para que haja a internalização ou acondicionamento
acústico pela criança da língua escutada.
Considerando os estudos de aquisição da linguagem e observação de casos de bebês
cujo desfecho foi atraso na aquisição da linguagem após terem sido acompanhados pelo
roteiro IRDI, Crestani et al. (2017) observaram que havia casos em que o roteiro IRDI não
havia detectado o risco ao desenvolvimento. Por isso, a autora propôs em sua tese a criação e
validação preliminar dos SEAL capaz de captar risco para emergência dos mecanismos
enunciativos que caracterizam a aquisição inicial da linguagem pelos bebês.
Este roteiro, também em perspectiva indiciária, apresenta o SEAL que abordam a
participação do bebê e da mãe ou sua substituta na protoconversação e no diálogo, cujos
detalhes dos itens serão expostos na metodologia de pesquisa. São sinais aplicáveis a partir
dos três meses até 24 meses por meio de quatro instrumentos. A validação foi realizada a
partir de dois trabalhos: Crestani (2017; 2016) validou as Fases 1 e 2 do roteiro, referentes ao
primeiro ano de vida; e, Fattore (2018) validou as Fases 3 e 4, referentes ao segundo ano de
vida.
70
Após a análise fatorial, na Fase 3, a pesquisa evidenciou dois fatores: o fator 1 representando
a criança enquanto sujeito na linguagem, sustentada no diálogo pelo adulto e progredindo
lexicalmente; o fator 2, composto por um único sinal que engloba um conjunto de sinais
indicativos de desenvolvimento típico de linguagem. Na fase 4, todos os sinais compuseram
um único fator, indicando que todos evidenciam uma direção de análise semelhante. Os
resultados puderam demonstrar que os sinais dessas duas fases podem diferenciar grupos
quanto à aquisição da linguagem.
Fattore (2018) destaca dois fatores na Fase 3. O fator 1, composto pelos sinais do bebê
e da mãe. Quando ausentes, os sinais do fator 1, evidenciam um conjunto de condições
enunciativas que marcam que a criança não conseguiu atingir o segundo mecanismo
enunciativo, marcando que ela ainda não se reconhece como um falante na sociedade a qual
pertence (Fattore, 2018). Por outro lado, ainda na Fase 3, ressalta o fator 2, composto apenas
pelo sinal 14, que “sugere o que pode evidenciar as dificuldades de inteligibilidade de fala de
uma criança compensadas pela prosódia, ou seja, que a realização vocal da língua pode estar
empobrecida” (p. 62) resultando em um desfecho clínico como apraxia de fala (Rechia et al.,
2010).
Na Fase 4, os cinco sinais avaliados, devido sua natureza semelhante, puderam
demonstrar apenas um único fator. Nessa fase,
3 METODOLOGIA
Para o estudo quantitativo, a amostra dos sujeitos selecionados para a pesquisa contou
com 70 sujeitos oriundos da população da pesquisa maior “Análise Comparativa do
Desenvolvimento de Bebês Prematuros e a Termo e sua Relação com Risco Psíquico: da
detecção à intervenção”. Tais sujeitos foram selecionados por apresentarem todas as
avaliações até os primeiros 24 meses de vida. Esta amostra contou com 38 bebês com sinais
76
No primeiro encontro com as díades, quando os bebês estavam com menos de dois
meses, as mães assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (APÊNDICE - A)
constando os objetivos da pesquisa maior, os riscos envolvidos, a participação voluntária, o
sigilo quanto à sua identidade e o seu direito de desistir do processo em qualquer momento do
estudo. Além disso, responderam ao roteiro da entrevista inicial. Após esse primeiro encontro,
as díades foram avaliadas na faixa etária dos três, seis, nove, 12, 18, 24, 36 e 48 meses de
vida.
Nesses encontros foram realizadas filmagens e avaliações, enfocando na qualidade da
interação mãe-bebê, quanto a presença ou ausência de sinais de risco à constituição psíquica e
de aquisição da linguagem. As avaliações foram realizadas a partir da observação e interação
com a díade, sendo os roteiros aplicados antes do início de cada uma das filmagens (com
exceção da AP-3). E, quando necessário, os dados foram confirmados pela pesquisadora e sua
orientadora através da observação das imagens captadas.
Os resultados dos Sinais PREAUT, IRDI, SEAL foram coletados e armazenados e
um banco de dados do Excel da pesquisa maior, permitindo que as informações dos bebes
referentes às avaliações pudessem ser resgatadas. Os resultados obtidos a partir da aplicação
da AP-3 foram registrados em documento do Word.
As avaliações utilizando os roteiros IRDI e PREAUT na faixa etária dos três, seis,
nove e 13 meses coletadas no período em que a pesquisadora cursava o mestrado. A avaliação
dos 18 e 24 meses, onde foram utilizados os roteiros SEAL e Bayley-III, foi realizada por
uma fonoaudióloga e uma fisioterapeuta, respectivamente, capacitadas e integrantes do grupo
de pesquisa dessa tese. As avaliações aos 36 e 48 meses foram realizadas pela pesquisadora
no curso do doutorado e a avaliação do Bayley-III na faixa etária dos 36 meses foi realizada
pela mesma fisioterapeuta da avaliação anterior.
Diferentemente das avaliações anteriores, a avaliação da AP-3, aos 48 meses, foi mais
longa, tendo uma duração de aproximadamente uma hora e 20 minutos realizada pela
pesquisadora. Inicialmente, foi realizada uma entrevista semiestruturada, baseada na
entrevista inicial, com o objetivo de atualizar as informações do bebê e de seu núcleo familiar.
Além disso, perguntaram-se para as mães informações acerca dos hábitos diários do bebê,
bem como avanços no desenvolvimento. Após essa avaliação, foi realizado um último
78
encontro com o objetivo de oferecer uma devolução à mãe a respeito dos resultados obtidos
com as avaliações e possíveis encaminhamentos quando necessário.
A possibilidade de elaboração de uma hipótese inicial de funcionamento de linguagem
e sua relação com a constituição psíquica em curso foi elaborada em diferentes momentos das
avaliações sugerindo a necessidade da continuidade do acompanhamento e intervenção.
Em relação às intervenções, ressalta-se que em todos os três casos elas foram
propostas a partir de demandas singulares, com objetivos próprios e em tempos distintos.
Além disso não fizeram parte da análise desta tese, já que houve distinções metodológicas em
relação ao que se propõe aqui. Entretanto, acredita-se ser importante ressaltar que tais sujeitos
não ficaram desassistidos ao longo do período em que foram avaliados, sendo proposta a
intervenção em virtude das evidências de sofrimento psíquico. Cabe ainda sinalizar que a
coordenadora da pesquisa não supervisionou as intervenções dos casos. Elas ocorreram a
partir da disponibilidade de clínicos do NIDI. Por isso, apenas resumimos o histórico de modo
a informar o que foi oferecido terapeuticamente:
• Aurora: Foi proposta uma escuta à mãe após a primeira avaliação. Maria esteve em
terapia psicanalítica entre os três e os 13 meses de sua filha, porque na ocasião, esse
era o modo de intervenção disponível pelo serviço. Não houve, portanto, uma
intervenção a tempo no sentido utilizado nesta tese, embora tenha tido efeitos
positivos no laço mãe- bebê.
• Sol: A equipe de pesquisa convidou a mãe e a bebê para participar de grupos de
musicalização como forma de acompanhamento da dupla rumo a uma possível
intervenção a partir da avaliação de doze meses, mas só se estabeleceu a demanda para
a intervenção de uma fonoaudióloga e de uma psicanalista, a partir dos 36 meses.
Salienta-se que os sintomas de linguagem já haviam sido verificados em avaliações
anteriores pela equipe de pesquisa. Foi apenas na avaliação dos 36 meses, quando a
mãe se queixou de não entender o que a filha falava, além de Sol ser uma criança
muito agitada, agressiva e que não aceitava limites, é que Léia aceitou a intervenção
proposta. Na ocasião, a pesquisadora identificou risco psíquico, além de impasses no
processo de aquisição de linguagem. A terapia fonoaudiológica foi realizada com
utilização de atividades lúdicas livres por meio das quais a terapeuta sustentava um
lugar de fala para Sol, buscando favorecer a emergência de estratégias disjuntivas,
79
descritas por Silva (2009). A mãe participava das sessões brincando em conjunto e
dialogando na medida de sua possibilidade. A terapia psicanalítica, a partir do brincar,
teve como direção de tratamento a sustentação de operações psíquicas fundantes,
contribuindo para que Sol pudesse fazer uso da linguagem para sustentar uma posição
subjetiva e ser reconhecida enquanto tal.
• Pedro: Foi proposta à mãe uma escuta a partir da primeira avaliação de Pedro.
Todavia, ela aceitou intervenção para Pedro apenas aos nove meses quando o menino
apresentou sinais evidentes de que se encontrava em sofrimento psíquico. Pedro
recebeu intervenção com Terapeuta Ocupacional com formação em psicanálise entre
os nove e 12 meses, mas apesar de melhora inicial de seu quadro, com
desenvolvimento inicial de alguma intersubjetividade e melhora na comunicação entre
Pedro e sua mãe, o mesmo não permaneceu em terapia, por situações que a equipe de
pesquisa não teve acesso à época do desligamento. A intervenção foi interrompida e
Pedro retomou a terapia com outra terapeuta ocupacional com foco no
desenvolvimento de atenção compartilhada, simbolismo e experiências que facilitem a
integração sensorial para diminuir a restrição alimentar e a constipação intestinal, a
partir da avaliação dos 36 meses. Na ocasião foi evidenciado um quadro de autismo,
restrição alimentar grave, além de impasses consistentes na dimensão sensorial e na
aquisição da linguagem. A possibilidade de escuta da mãe sempre esteve ofertada pela
autora desta tese e em alguns momentos a mesma recorreu a tal escuta, mas não se
estabeleceu a transferência para um trabalho continuado com a mãe.
• Sinal comunicativo 1 (S1): O bebê procura “se fazer” olhar por sua mãe (ou
substituto) na ausência de qualquer solicitação dela;
• Sinal comunicativo 2 (S2): o bebê procura suscitar a troca jubilatória com sua mãe (ou
com seu substituto) na ausência de qualquer solicitação dela.
Para a presente pesquisa foram utilizados os IRDI referentes às Fases I, II, III e IV. Os
dados referentes a fase I, II e III já foram coletados na pesquisa de Roth (2016) e incluídos no
banco de dados da pesquisa maior que também apresenta os resultados da fase IV, coletados
pelo grupo de pesquisa NIDI. A coleta se deu, a exemplo dos Sinais PREAUT na observação
durante entrevista inicial e continuada, e conferência nas filmagens pela pesquisadora e
orientadora deste trabalho.
A seguir, o quadro 4 apresenta os indicadores das quatro fases a serem considerados
na presente pesquisa.
83
A avaliação AP-3 (Kupfer et al., 2008b, p. 137) permite uma minuciosa avaliação dos
diferentes fenômenos do processo de constituição subjetiva, articulado ao desenvolvimento da
criança, e podendo ser aplicado até os seis anos de idade nos mais diferentes contextos
clínicos. Nesta pesquisa foi aplicado parcialmente aos 36 meses e em sua íntegra entre 44 e
48 meses. Esta última avaliação foi computada na pesquisa. As três díades participantes do
estudo qualitativo foram contatadas durante suas terapias, realizadas com membros da equipe
de pesquisa e agendado horário de avaliação.
A avaliação é dividida em duas partes. Na primeira, há uma entrevista com os pais.
Com a criança são verificadas questões da criança, dos pais e da interação a partir do Roteiro
para Avaliação Psicanalítica de Crianças de três anos – AP-3 (Apêndice B). Depois do
encontro, o avaliador deve responder a Síntese da avaliação diagnóstica (Apêndice C) e a
Tabela de sintomas clínicos (Apêndice D).
Segundo Kupfer et al. (2008b, p. 137), a avalição deve durar em torno de 1 hora e 20
minutos, sendo o tempo dividido em 50 minutos com a criança na presença dos pais e meia
hora só com a criança em atividade lúdica. A avaliação deve ser realizada por um
psicanalista/avaliador que deve conduzir e intervir na avaliação com o objetivo de promover
algumas situações de brincadeira. Dentre as intervenções realizadas, tem-se a proposta de que
a criança desenhe a si mesma. Diferentemente da avaliação da AP-3 proposta por Kupfer et al.
(2008b), que sugere que o avaliador/psicanalista não conheça a criança e não pode saber como
ela está em relação aos IRDI, aqui, isso não foi possível, tendo em vista que avaliadora
acompanhou as crianças desde os primeiros meses. Mesmo assim, entendeu-se que a
utilização do roteiro fazia-se pertinente para fins avaliativos e que poderia contribuir para
compreender os casos.
São previstos dois desfechos clínicos ao final da aplicação da AP-3: a) presença ou
ausência de problemas de desenvolvimento propriamente dito para a criança; ou, b) presença
ou ausência de problemas de desenvolvimento com risco psíquico para a constituição do
sujeito (Kupfer et al., 2018, p. 561).
Foram utilizados os seguintes materiais para a avaliação (Kupfer et al., 2008b, p. 138):
família, banheirinho, ambientes do lar, material de desenho (folha sulfite, giz de cera grosso),
2 carrinhos, joguinho de chá, animais, fantoches e massa de modelar, uma bola pequena e
85
espelho pequeno que caiba na caixa. O material deve ficar disponível para uso desde o início
da avaliação e, caso a produção de desenhos e o uso do espelho não aconteçam, o avaliador
deve incentivar a criança a tal, pois são instrumentos importantes para a análise da
consciência corporal.
Fonte: Fattore (2018); Oliveira (2018); Crestani (2016). Em negrito os sinais que foram estatisticamente
significativos na identificação de fatores por fase.
Após a coleta dos dados, foi construído um banco de dados no Excel que permitiu a
análise estatística por meio do teste do Qui-Quadrado com o objetivo de verificar possíveis
relações entre o desempenho das crianças com e sem sofrimento psíquico em relação à
89
linguagem, considerando cada sinal enunciativo coletado nas quatro faixas etárias do SEAL.
Na análise foi utilizado o programa Statistica 9.1, considerando-se um nível de significância
de 5% (p < 0,05).
(.) um ponto entre parênteses Indica que há uma pausa curta intra e interturnos
(...) três pontos entre Indicam que há uma pausa longa intra ou interturnos
parênteses
PALAVRA letra maiúscula Indica fala com intensidade acima da fala que a rodeia
Palavra- hífen Indica corte abrupto de fala
( ) Parênteses vazios Indicam que o transcritor foi incapaz de transcrever o
que foi dito – segmento ininterpretável.
(( )) Parênteses duplos Indicam comentários do transcritor sobre o contexto
enunciativo restrito
Fonte: Flores (2006).
91
4 RESULTADOS
Tabela 1 – Média percentual de SEAL ausentes nos grupos com e sem sofrimento psíquico (n=70)
Roteiro IRDI Sinais PREAUT
Percentual de sinais ausentes % sem risco % com risco % sem risco % com
por categoria (n=32) (n = 38) (n=61) risco
(n=9)
SEAL total bebê 31,58% 38,92% 33,24% 47,36%
SEAL total interlocutor 16,87% 26,84% 20% 37,77%
SEAL 1º ano bebê 14,93% 30,41% 21,66% 27,16%
SEAL 1º ano interlocutor 27,08% 20,17% 23,33% 22,22%
SEAL 2º ano bebê 45,93% 46,57% 45,07% 61,66%
SEAL 2º ano interlocutor 26,98% 36,84 31,74% 58,33%
Fonte: Autores.
92
Verificou-se que, em relação ao SEAL total por grupo, a média percentual de ausentes
foi maior nos casos em que os sujeitos apresentaram sinais de sofrimento psíquico pelo roteiro
IRDI e pelos Sinais PREAUT, exceto em relação aos sinais do interlocutor no primeiro ano de
vida, em que a média do grupo sem risco foi um pouco maior.
Quanto aos resultados obtidos com o teste Qui-Quadrado para verificar associação
entre a presença de risco no roteiro IRDI (Tabela 2) e no PREAUT (Tabela 3) para cada um
dos 24 sinais do SEAL, obtiveram-se os seguintes resultados.
PREAUT
SEAL NÃO RISCO (%) RISCO (%) P
1 AUSENTE 4 (6,5%) 2 (25,0%) 0,078*
PRESENTE 58 (93,5%) 6 (75,0%)
2 AUSENTE 7 (11,3%) 1 (12,5%) 0,919*
PRESENTE 55 (88,7%) 7 (87,5%)
3 AUSENTE 4 (6,5%) 2 (25,0%) 0,078*
PRESENTE 58 (93,5%) 6 (75,0%)
4 AUSENTE 4 (6,5%) 2 (25,0%) 0,078*
PRESENTE 58 (93,5%) 6 (75,0%)
5 AUSENTE 24 (38,7%) 6 (75,0%) 0,051*
PRESENTE 38 (61,3%) 2 (25,0%)
6 AUSENTE 4 (6,5%) 4 (50,0%) 0,000*
PRESENTE 58 (93,5%) 4 (50,0%)
7 AUSENTE 7 (11,3%) 0 (0,0%) 0,316*
PRESENTE 55 (88,7%) 8 (100,0%)
8 AUSENTE 12 (19,4%) 3 (37,5%) 0,239*
PRESENTE 50 (80,6%) 5 (62,5%)
9 AUSENTE 22 (35,5%) 6 (75,0%) 0,099*
PRESENTE 39 (62,9%) 2 (25,0%)
10 AUSENTE 25 (40,3%) 6 (75,0%) 0,063*
PRESENTE 37 (59,7%) 2 (25,0%)
11 AUSENTE 22 (35,5%) 5 (62,5%) 0,140*
PRESENTE 40 (64,5%) 3 (37,5%)
12 AUSENTE 7 (11,3%) 2 (25,0%) 0,276*
PRESENTE 55 (88,7%) 6 (75,0%)
13 AUSENTE 58 (93,5%) 8 (100,0%) 0,459*
PRESENTE 4 (6,5%) 0 (0,0%)
14 AUSENTE 62 (100,0%) 8 (100,0%) -
PRESENTE 0 (0,0%) 0 (0,0%)
15 AUSENTE 25 (40,3%) 5 (62,5%) 0,233*
PRESENTE 37 (59,7%) 3 (37,5%)
16 AUSENTE 13 (21,0%) 3 (37,5%) 0,295*
PRESENTE 49 (79,0%) 5 (62,5%)
17 AUSENTE 25 (40,3%) 4 (50,0%) 0,601*
PRESENTE 37 (59,7%) 4 (50,0%)
18 AUSENTE 21 (33,9%) 4 (50,0%) 0,370*
PRESENTE 41 (66,1%) 4 (50,0%)
19 AUSENTE 21 (33,9%) 3 (37,5%) 0,839*
PRESENTE 41 (66,1%) 5 (62,5%)
20 AUSENTE 15 (24,2%) 4 (50,0%) 0,122*
PRESENTE 47 (75,8%) 4 (50,0%)
21 AUSENTE 13 (21,0%) 4 (50,0%) 0,072*
PRESENTE 49 (79,0%) 4 (50,0%)
22 AUSENTE 19 (30,6%) 4 (50,0%) 0,273*
PRESENTE 43 (69,4%) 4 (50,0%)
23 AUSENTE 24 (38,7%) 5 (62,5%) 0,199*
PRESENTE 38 (61,3%) 3 (37,5%)
24 AUSENTE 19 (30,6%) 4 (50,0%) 0,273*
PRESENTE 43 (69,4%) 4 (50,0%)
TOTAL 62 (100%) 8 (100%)
Fonte: autores. *Teste aplicado Qui-quadrado.
95
Quanto aos Sinais PREAUT, verificou-se que houve associação estatística com o sinal
5 (A criança inicia a conversação ou protoconversação) e sinal 6 (A criança e a mãe ou sua
substituta trocam olhares durante a interação). Isso indica que crianças com alterações nos
Sinais PREAUT naõ iniciam a conversação ou protoconversação e não trocam olhares com
sua mãe ou substituta de modo significativamente maior quando comparadas às crianças com
pontuação 15 nos Sinais PREAUT.
Cabe ressaltar que os sinais de linguagem significativamente mais ausentes nas
crianças com risco no roteiro IRDI incluem tanto sinais do bebê quanto das mães. Já nos
Sinais PREAUT apenas sinais relativos ao comportamento da criança estiveram ausentes de
modo importante, o que confirma algumas previsões de estudos anteriores e traz alguns
pontos para discussão, o que será abordado no próximo capítulo.
Na próxima seção os resultados do estudo 2 serão apresentados.
Para a análise qualitativa foram relatados os resultados apresentados nas avaliações dos três
sujeitos de acordo com a idade avaliada, bem como a transcrição ortográfica de algumas cenas
filmadas da díade, com o objetivo de sustentar a proposta a ser lançada. Considerou-se, para a
análise da interação das díades, os processos de homologia e interpretância, bem como de
estratégias conjuntivas e disjuntivas. Os resultados obtidos com tais análises foram
confrontados com o roteiro IRDI, os Sinais PREAUT e os Sinais Enunciativos de Aquisição
da Linguagem e discutidos à luz da avaliação psicanalítica realizada aos três anos.
Os pais de Aurora, Maria e Jonas, eram casados há cinco anos quando engravidaram
sem planejamento. Ao descobrirem que estavam à espera de um bebê, vibraram com a notícia
ao lado da avó paterna, Neli. Apesar disso, ao longo da gestação, Maria relatou que
apresentava diariamente sintomas de tristeza, ansiedade e, principalmente, medo. Segundo
ela, medo de não saber o que fazer quando se tornasse mãe.
96
Maria também relatou que sentia-se abandonada por sua mãe pois, quando tinha
menos de três anos, havia sido entregue aos cuidados dos avós paternos. Pouco conseguia
lembrar-se dela e, muito menos, falar sobre a mãe que um dia teve. Sua avó que tanto queria
bem, já era falecida. Seu avô, já com mais de oitenta anos, permanecia na cidade onde Maria
crescera.
Segundo o relato de Maria, a história que seu pai contara é que sua mãe havia deixado
ela e a irmã aos cuidados dos avós paternos porque a relação conjugal não estava mais
funcionando e ela não teria condições para sustentar as duas meninas. Isso aconteceu quando
Maria tinha seis meses e a irmã dois anos. Maria conta que veio a conhecer a mãe apenas com
19 anos. As meninas moraram até a vida adulta com os avós porque o pai casou-se
novamente, apesar de todos viverem na mesma cidade. Mesmo assim, mantiveram até hoje
uma relação boa com a madrasta.
Nascida no dia 28 de dezembro de 2014 de parto cesárea, pesando 2,485 kg e Apgar 7
e 10, Aurora foi trazida por seus pais para a avaliação do Teste da Orelhinha dez dias após seu
nascimento. Na ocasião, Aurora chegou dormindo no colo de sua mãe. Quando a
fonoaudióloga iniciou a avaliação, a menina começou a chorar sem parar. Maria ficou muito
nervosa e prontamente entregou seu bebê ao pai, o que, na concepção de Maria, reforçava
mais uma vez seu fracasso enquanto mãe. Maria alimentou Aurora com leite materno e
complementação com leite artificial a partir dos 15 dias de vida da menina. O fato da bebê
precisar complemento não foi um fator que produziu questionamentos ou sofrimento evidente
à mãe.
Maria foi convidada a participar desta pesquisa e de pronto aceitou. Ao longo da
entrevista inicial, começou a falar sobre as dificuldades que estava enfrentando no papel de
mãe. Segundo ela, “ela não sabia ser mãe”. Quando seu bebê chorava, “não sabia como
acalmá-la ou o que ela queria”. E, por não conseguir supor nada a respeito dos motivos que
faziam sua filha chorar, preferia entregá-la a Jonas, o pai de Aurora.
O maior medo de Maria era o risco de ficar sozinha com sua bebê. Assim, diante da
eminência de seu marido retornar ao trabalho, ela se sentia ainda mais triste com o fato de ser
obrigada a passar os dias com a sua sogra com quem não tinha muita afinidade. Para ela, as
tentativas de Neli em ajudá-la com Aurora eram sempre impositivas, anulando sua opinião,
reiterando seu sentimento de fracasso como mãe.
97
Segundo Maria, Aurora fora alimentada com leite materno e leite artificial desde o
décimo quinto dia, pois acreditava que tinha pouco leite e tinha medo que sua filha passasse
fome. Aurora apresentou refluxo nos primeiros meses que desapareceram gradualmente.
Na avaliação do terceiro mês foi realizada uma entrevista continuada para atualizações
de dados da díade, aplicação dos roteiros IRDI Fase I e PREAUT, análise dos mecanismos
enunciativos e a filmagem da interação. Na data, Aurora seguia pouco responsiva às
iniciativas de Maria. Parecia um bebê sério, apesar de atenta à situação e às avaliadoras. A
pouca responsividade de Aurora às investidas de Maria ficaram evidentes na baixa pontuação
dos sinais PREAUT e na ausência de dois dos cinco indicadores iniciais do roteiro IRDI,
levantando a suspeita de risco de autismo, além dos indícios de que Maria apresentava sinais
de sofrimento psíquico.
Em relação aos sinais PREAUT, Aurora apresentou uma pontuação final de 8. E,
dentre os sinais Preaut ausentes evidenciados em Aurora, tem-se: 2. O bebê procura “se fazer”
olhar por sua mãe (ou pelo substituto dela): A) na ausência de qualquer solicitação da mãe,
vocalizando, gesticulando ao mesmo tempo em que a olha intensamente; B) quando ela fala
com ele (protoconversação); 3. Sem qualquer estimulação de sua mãe (ou de seu substituto):
A) Ele olha para sua mãe (ou para seu substituto), B) Ele sorri para sua mãe (ou para seu
substituto), C) O bebê procura suscitar uma troca prazerosa com sua mãe (ou seu substituto),
por exemplo, se oferecendo ou estendendo em sua direção os dedos do seu pé ou da sua mão;
4. Depois de ser estimulado por sua mãe (ou pelo seu substituto): C) O bebê procura suscitar a
troca jubilatória com sua mãe (ou com seu substituto), por exemplo, se oferecendo ou
estendendo em sua direção os dedos do seu pé ou da sua mão?
Tais resultados puderam mostrar que apesar da baixa pontuação, quando a avaliadora
se propôs a falar com Aurora, a menina movimentou seu corpo intencionalmente, observou a
avaliadora de forma atenta e mostrou-se responsiva à fala melodiosa da avaliadora apesar de
não sorrir. Tal fato pôde ser verificado no resultado positivo para a presença dos sinais 1A e
1B: 1. O bebê procura olhar para você? a) Espontaneamente, b) Quando você fala com ele
98
A cena do quadro 8 sugere que Maria lançava pequenas frases à Aurora e aguardava
sua reação, mas Aurora parecia alheia. Maria parecia não conseguir fisgar Aurora, pois não
demonstrava prazer em estar com a filha por meio de sorrisos, manhês ou contato físico.
Acredita-se que tal fato poderia contribuir para a pouca responsividade da filha. Tais questões
são expressas no quadro 9 que ilustra uma cena na sequência da filmagem onde a mãe
também se queixa da pouca responsividade da filha sugerindo que a menina evita o contato
visual com ela.
Após quase três minutos de interação mãe-bebê verifica-se uma primeira manifestação
de sorriso por parte de Aurora em resposta à mãe. Na cena, Maria canta para a filha sorrindo
101
e, quando a filha lhe sorri em retorno, a mãe fica muito feliz e segue cantando, sorrindo e
olhando para Aurora na tentativa de sustentar a interação, como é ilustrado no quadro 10.
É apenas no terceiro minuto, cantando “atirei o pau no gato” e quando o rosto materno
transmite júbilo, que a menina finalmente responde com um sorriso. Na cena, Maria está feliz
e pode-se perceber a sua satisfação ao conseguir fazer sua filha sorrir pela primeira vez desde
o início da interação musical. Entende-se que, nos primeiros minutos poderia haver alguma
inbição por parte de Maria para cantar e captar a atenção da filha, mas considerando que a
queixa de Maria quanto à pouca responsividade de Aurora era frequente nos primeiros meses
pode-se supor que a cena ilustra a queixa de Maria em relação às interações com a filha.
Observa-se que, mesmo na cena do quadro 10, a protoconversação não se sustenta, e que o
processo de homologia e intepretância se interrompe rapidamente. Tal fato evidencia que há
uma dificuldade de conjunção eu-tu, exceto diante de uma solicitação intensa que se dá pela
música. Em termos de estratégias do primeiro mecanismo enunciativo, tal como propõe Silva
(2009a; 2009b) e que podem ser verificados nas três cenas, destaca-se a ausência das quatro
estrátegias previstas, pois Aurora não apresentava estruturas sonoras indistintas a partir da
convocação de Maria; Maria não conseguia utilizar-se de estruturas rotineiras da família para
102
instanciar as manifestações corporais de Aurora, a fim de que ela também preenchesse seu
lugar enunciativo; Aurora não solicitava Maria; e, Aurora não mostrava reconhecer os efeitos
do reconhecimento do seu lugar enunciativo sobre Maria, apesar de sorrir em resposta na
última cena. Portanto, não haviam emergido ainda muitas estratégias do primeiro mecanismo
enuciativo, sobretudo as de conjunção mãe-bebê que marcam o encontro na protoconversação.
Na avaliação dos seis meses foi realizada a entrevista continuada para atualização dos
dados, aplicação dos roteiros IRDI Fase II e SEAL Fase I, análise dos mecanismos
enunciativos, além das filmagens da díade. Em relação ao roteiro IRDI na fase II, Aurora
apresentou um resultado mais positivo, inclusive na possibilidade de Maria dirigir-se à Aurora
utilizando-se da fala melodiosa do manhês e demonstrando com suas expressões faciais e seus
gestos a alegria de estar interagindo com a filha. Apesar disso, ainda estiveram ausentes os
indicadores: 7. A criança utiliza sinais diferentes para expressar suas diferentes necessidades;
8. Criança solicita a mãe e faz um intervalo para aguardar sua resposta; 11. Criança procura
ativamente o olhar da mãe; e 13. Criança pede a ajuda de outra pessoa sem ficar passiva.
Aurora apresentou quatro indicadores que sugeriram avanço positivo na relação com a
mãe e na sua constituição psíquica. Assim, estiveram presentes os indicadores: 6. Criança
começa a diferenciar dia e noite; 9. A mãe fala com a criança dirigindo-lhe pequenas frases;
10. Criança reage (sorri, vocaliza) quando a mãe ou outra criança está se dirigindo a ela; 12. A
mãe dá suporte às iniciativas da criança sem poupar-lhe o esforço.
Em relação ao SEAL da fase I, evidenciou-se que a observação do diálogo de Aurora
com a mãe apresentou apenas um sinal ausente entre os considerados importantes na análise
fatorial do SEAL (CRESTANI, 2016) que foi o sinal 7. A mãe atribui sentido às
manifestações verbais e não verbais do bebê, sustentando a protoconversação, ou seja, mais
relacionado à posição discursiva da mãe no diálogo. Os outros três sinais ausentes foram: 2. A
criança preenche seu lugar na interlocução com sons verbais como vogais e/ou consoante; 5.
A criança inicia a conversação ou protoconversação; e, 8. A mãe utiliza o manhês falando
com a criança de modo sintonizado ao que está acontecendo no contexto e aguardando as
respostas do bebê. Ressalta-se que, desses sinais ausentes, o sinal 7 evidencia uma forte
103
Observa-se na cena do quadro 11, Maria capta a atenção de Aurora. E, por sua vez,
Aurora olha e sorri em resposta para a avaliadora e para a mãe, especialmente quando ela
canta. Na filmagem, a mãe parece mais tranquila e segura, mesmo quando Aurora lhe desvia o
olhar.
Nas linhas 16 e 17, percebe-se que Maria consegue interpretar o desejo de Aurora de
sair do bebê conforto, apesar de impedí-la, estabelecendo um certo limite para a menina.
Apesar da cena ilustrar um momento em que se pode identificar a presença do sinal 7 do
SEAL, considerou-se este como ausente porque esse é único momento, ao longo de toda a
filmagem, que a mãe consegue estabelecer uma relação de interpretação, além de não chegar a
nomear a manifestação de Aurora apesar de compreender e responder. Esses avanços
permitem verificar que a protoconversação começa a aparecer, mas ainda não pode ser
considerada uma protoconversação que se sustenta sem o dispêndio de um investimento
105
Na avaliação dos nove meses foi realizada uma entrevista continuada para atualização
dos dados da rotina, filmagem da díade, análise dos mecanismos enunciativos, além da
aplicação dos roteiros PREAUT, IRDI fase III e SEAL fase II. Nessa avaliação, Aurora
apresentou resultados ainda mais positivos, apesar de ter um somatório de 7 nos sinais
PREAUT, em virtude da ausência do sinal 2. O bebê procura “se fazer” olhar por sua mãe (ou
pelo substituto dela): A) na ausência de qualquer solicitação da mãe, vocalizando,
gesticulando ao mesmo tempo em que a olha intensamente. Ressalta-se que o sinal 2A é o que
tem a maior pontuação no roteiro em virtude de elucidar, de forma clara, o terceiro tempo do
circuito pulsional.
Em relação ao roteiro IRDI na fase III, percebe-se que o resultado dos sinais PREAUT
foi correlato com a ausência dos indicadores: 15. Durante cuidados corporais, a criança busca
ativamente jogos e brincadeiras amorosas com a mãe; 17. Mãe e criança compartilham uma
linguagem particular; e 20. A criança faz gracinhas.
Percebeu-se que Maria começou a criar suposições acerca das perguntas feitas a ela a
respeito de Aurora. Por exemplo, quando lhe perguntado a respeito dos indicadores 15 e 20,
Maria disse que Aurora era uma criança séria, como ela, que brincava no banho com seus
bichinhos. Reforçando que Aurora ainda apresentava certa dificuldade de um terceiro tempo
pulsional, porém, Maria já conseguia supor em sua filha um traço de semelhança. Além disso,
na ocasião, a mãe foi capaz de fazer outras suposições a respeito de sua filha, reconhecendo,
por exemplo, a presença dos indicadores: 14. Mãe percebe que alguns pedidos da criança
podem ser uma forma de chamar sua atenção; 16. A criança demonstra gostar ou não de
106
alguma coisa; 18. A criança estranha pessoas desconhecidas para ela; 19. A criança possui
objetos prediletos; 21. A criança busca olhar de aprovação do adulto; 22. A criança aceita
alimentação semissólida, sólida e variada.
Considerando a importância do indicador 18 como evidência de que a criança já
construiu alguma representação da família, e também a presença do indicador 14, pode-se
dizer que Aurora já havia dado alguns passos rumo à alienação, embora ainda não houvesse
um compartilhamento de prazer mais amplo com a mãe. A mãe, por sua vez, já começara a
saber algo da filha.
Na avaliação do SEAL, fase II, percebeu-se que três sinais estiveram ausentes: 9. A
criança preenche seu lugar na interlocução (enunciado) com sons verbais (sílabas com vogais
e consoantes variadas – ao menos dois pontos e dois modos articulatórios de consoantes); 10.
A criança esboça a produção de protopalavras por espelhamento à fala da mãe (ou substituto);
e, 11. A criança esboça a produção de protopalavras espontaneamente. O sinal 11 é
considerando o mais importante na diferenciação de grupos de crianças na análise fatorial da
pesquisa de Crestani (2016), evidenciando, desse modo, a possibilidade de um atraso na
aquisição da linguagem. Todavia, acredita-se que tal atraso poderia ser decorrente da
dificuldade materna, nos primeiros meses, em considerar Aurora como um locutor, ela mesma
como alocutário e vice-versa. Apesar disso, verificou-se que a mãe já apresentava um
movimento de reverter tal quadro e de lançar-se no diálogo com a filha, tal como evidenciado
com a presença do sinal 12. Quando a mãe (ou substituta) é convocada a enunciar pela
criança, a mesma reproduz seu enunciado e aguarda a resposta da criança. A presença desse
sinal também sugere que Maria estava muito mais atenta no diálogo com a filha, com o
objetivo de compreendê-la e dialogar com ela.
A seguir, nos quadro 12 e 13 são ilustradas algumas cenas em que se percebe ainda
uma dificuldade de responsividade de Aurora frente às investidas de Maria. Quando Maria se
volta para a filha sorrindo, cantando, transparecendo a alegria que sente por estar na cena, a
filha lhe responde com vocalizações e balbucios. Todavia, não ficou evidente a possibilidade
de Aurora convocar a mãe o que permitiria verificar a presença do terceiro tempo do circuito
pulsional.
107
É importante salientar que nas cenas dos quadros 12 e 13 fica evidente o interesse de
Aurora pela sua imagem refletida no espelho. E, enquanto na primeira, Maria não nomeia a
imagem como sendo a de Aurora, contribuindo para a construção da imagem corporal da
menina, na cena seguinte, Maria já o faz, apesar de nomeá-la como sendo o “nenê”.
As duas cenas mostram que, quando Maria chamava a filha com rosto e voz sérios, a
filha não lhe respondia, todavia quando Maria sorria, falando com Aurora de modo mais
agudo e melodioso, a menina sorria de volta e lhe olhava nos olhos. Mesmo assim, Aurora
não apresentava o terceiro tempo pulsional sendo apenas responsiva nos momentos em que a
mãe lhe chamava e transmitia alegria em dialogar com a filha.
Pode-se dizer que os processos de homologia e interpretância começam a operar e que
a protoconversação entre mãe e bebê começa a apresentar mecanismos conjuntivos de eu-tu,
mas ainda não dos mecanismos disjuntivos eu/tu, especialmente porque Aurora ainda não
lançava demandas à Maria, iniciando o diálogo e marcando a presença de um terceiro tempo
pulsional. Mesmo assim, podem-se perceber aqui algumas das primeiras estratégias dos
mecanismos enunciativos que tratam da possibilidade de preenchimento do lugar na estrutura
enunciativa pela criança, tal como propõe Silva (2009a). Nesses termos, verifica-se que
Aurora começa a apresentar estruturas sonoras a partir da convocação de Maria, por sua vez,
Maria também começa a instanciar estruturas rotineiras da família para Aurora que preenche
seu lugar enunciativo como resposta através de gestos e vocalizações (ainda aqui não seja
verbalização). Todavia, Aurora ainda apresenta dificuldades para solicitar Maria e de
reconhecer os efeitos do seu lugar enunciativo sobre Maria.
Nesse encontro com a díade foi realizada uma entrevista continuada, filmagem da
díade, bem como a aplicação dos roteiros IRDI fase IV e SEAL fase III. De acordo com a
avaliação do roteiro IRDI na fase IV, Aurora teve ausente apenas o indicador 28. A criança
gosta de brincar com objetos usados pela mãe e pelo pai. Esse indicador foi considerado não
foi apresentado de acordo com o relato materno, porque, mesmo que Aurora se interessasse
109
pelos objetos maternos, a mãe ainda não reconhecia em si um valor capaz de encantar a filha.
Entretanto, estiveram presentes os indicadores: 27. A criança olha com curiosidade para o que
interessa à mãe, pois foi testemunhado o interesse de Aurora pelo que chamava a atenção da
mãe em sessão. Além desse, todos os demais indicadores estiveram presentes ressaltando que
apesar desse tempo inicial, Aurora estava constituindo-se enquanto sujeito psíquico e de
linguagem. Tais indicadores são: 23. A mãe alterna momentos de dedicação à criança com
outros interesses; 24. A criança suporta bem as breves ausências da mãe e reage às ausências
prolongadas; 25. A mãe oferece brinquedos como alternativas para o interesse da criança pelo
corpo materno; 26. A mãe já não se sente mais obrigada a satisfazer tudo que a criança pede;
29. A mãe começa a pedir à criança que nomeie o que deseja, não se contentando apenas com
gestos; 30. Os pais colocam pequenas regras de comportamento para a criança; e, 31. A
criança diferencia objetos maternos, paternos e próprios.
Em relação ao SEAL, fase III, estiveram ausentes os sinais: 13. A criança nomeia de
modo espontâneo e inteligível ao adulto interlocutor, objetos que estão ausentes no contexto;
14. A criança nomeia de modo espontâneo, mas não inteligível ao adulto interlocutor, objetos
que estão ausentes no contexto, buscando na prosódia uma forma de ser compreendida; 18. A
criança conversa com diferentes interlocutores adultos (pai, mãe, examinador); e, 19. O adulto
interlocutor atribui um sentido possível às produções verbais da criança, ou seja, de modo
sintonizado. Excetuando o sinal 13 e 18, os demais foram considerados importantes como
indiciários de atraso na aquisição da linguagem na análise fatorial desta fase (FATTORE,
2018).
No entanto, Aurora apresentou outros sinais importantes que evidenciaram boas
possibilidades para o diálogo e a aquisição da linguagem, tais como os sinais: 15. A criança
nomeia de modo espontâneo e inteligível ao adulto interlocutor, objetos, pessoas, ações, que
estão presentes no contexto enunciativo; 16. A criança faz gestos para tentar fazer-se entender
quando o adulto interlocutor não a compreende; 17. A criança repete o dizer do adulto
interlocutor como forma de organizar ou reorganizar sua enunciação, por exemplo,
aprimorando a forma sintática, ou fonológica, ou a escolha do item lexical ou mesmo
acentuando algum item prosodicamente. Destes apenas o sinal 16 não foi relevante na análise
fatorial. O domínio gramatical de Aurora estava evoluindo pela possibilidade de nomeação
(indicador 15) e também de reorganizar sua fala a partir da comparação dela com a fala do
adulto interlocutor (indicador 17). No entanto, a dificuldade no diálogo aparecia no indicador
110
18, pois não conversava com distintos interlocutores. Isso pode ter sido um efeito tardio da
subjetivação, pois Aurora recém se reconhecia e a sua mãe, portanto, estava iniciando o
reconhecimento de desconhecidos. Em relação a sua mãe ainda tinha dificuldade de atribuir
sentido às produções verbais de Aurora em alguns momentos, mas o indicador 19 já poderia
ser considerado presente em boa parte das cenas.
A seguir, nos quadros 14, 15 e 16, são apresentadas cenas da filmagem da díade. Na
cena, Aurora e a mãe estão sentadas uma de frente para a outra com a caixa de brinquedos
entre elas.
Nessa cena do quadro 14, observa-se que Aurora e Maria estão sintonizadas no
diálogo e que, a partir do brincar, a mãe apresenta enunciados em que interpreta as
manifestações corporais de Aurora, traduzindo seu movimento (linhas 4 e 5) e marcando na
linguagem sua função. Em seguida, na linha 12, Aurora responde e ela mesma faz de conta
que está amamentando o bebê, tal como havia lhe dito a mãe. Ressalta-se também que é nessa
cena que Aurora apresenta, pela primeira vez, um brincar de faz-de-conta, como pode ser
visto na linha 12, marcando o funcionamento do registro simbólico.
Na avaliação dos 17 meses não foi realizada a aplicação de nenhum roteiro. A díade
foi filmada em interação livre com acesso a uma caixa de brinquedos tal como na avaliação
113
Percebe-se que nas cenas do quadros 17 e 18 fica evidente, além do diálogo entre a
díade, o brincar compartilhado e a possibilidade de Aurora brincar de faz-de-conta. Tais
indícios são importantes para se pensar a qualidade do laço entre Aurora e Maria, bem como a
constituição psíquica da menina.
sentidos diferentes. Os resultados do SEAL foram confirmados pela escala Bayley-III, tendo
em vista que não houve risco tanto para a avaliação cognitiva (90 pontos) quanto para a
linguagem (79 pontos). A seguir, os quadros 19, 20 e 21 ilustram cenas da díade em interação:
Nos quadros 20 e 21, pode-se perceber duas cenas em que fica evidente o segundo
mecanismo enunciativo de Silva (2009a), tais como: repetição do dizer do tu no discurso do
eu (linhas 3 e 4 do quadro 20), nomeação de objetos como “paipá” para o cavalo (linhas 4 e 5
do quadro 21), parecendo reproduzir uma onomatopeia que realizou com a mãe na avaliação
anterior e ajustes de sentido entre eu e tu: repetição do eu diante do não entendimento do tu
(linhas 5, 6 e 7 do quadro 21).
Na avaliação dos 36 meses foi realizada uma entrevista continuada onde foram
atualizadas informações a respeito da dinâmica familiar, se a criança estava em escola regular
e características de Aurora.
117
Segundo Maria, Aurora estava frequentando a escola em turno integral, ela e seu
marido seguiam trabalhando no mesmo local. Aurora estava bem, gostava de ir para a escola
e, ao final do dia, as duas se encontravam para brincar e realizar as atividades de rotina.
De acordo com a avaliação do Bayley-III, na faixa etária dos 36 meses, Aurora não
apresentou atraso cognitivo ou de linguagem. A avaliação cognitiva de Aurora alcançou a
pontuação 100 e, na avaliação de linguagem, a pontuação foi de 106. Tais resultados foram
importantes porque, ao longo do segundo ano de vida, foi verificada a ausência de certos
sinais do SEAL que poderiam sugerir um impasse no processo de aquisição da linguagem.
A seguir, nos quadros 22 e 23 são apresentadas cenas de interação entre Aurora e
Maria. Na cena, a dupla está sentada, uma de frente para a outra, com a mesma caixa de
brinquedos disponível nas avaliações anteriores.
Aqui, ressalta-se que é Aurora que se lança a brincar de interpretar seu bebê a partir da
sustentação dialógica e psíquica que recebeu de sua mãe.
Na avaliação psicanalítica dos três anos (AP3), pôde-se evidenciar cenas em que
Aurora sustentava Maria na posição materna, ao mesmo tempo em que Maria maternava sua
filha e ancorava suas investidas na linguagem. Nas conversas, Maria apenas relatou que a
filha fazia trocas entre os fonemas “fru” e “pu”, por exemplo, ainda falava “putinha” ao invés
de “frutinha”, processo considerando típico para a faixa etária de Aurora (LAMPRECHT et
al, 2004). Ambas dirigiam enunciados uma a outra, lançando demandas e aguardando
resposta, além de estabelecer um diálogo durante a exploração dos objetos, a partir do brincar
livre.
A seguir são comentados os resultados da AP-3 a partir dos quatro eixos avaliados: o
brincar e a fantasia, o corpo e sua imagem, manifestação diante das normas e posição frente à
lei e posição na linguagem.
Em relação ao brincar e à fantasia, Maria diz que Aurora é uma menina que gosta de
brincar de tudo, ela é muito carinhosa, vaidosa, já está tomando banho sozinha e é muito
apegada a ela. Maria conta que as duas são companheiras, que nos momentos em que o pai
119
viaja a trabalho, elas ficam bem sozinhas. Quando pergunto a Maria o que ela supõe que
sejam os brinquedos preferidos de Aurora, a menina responde: “Eu gosto de caminhão,
boneca e carrinho”. E, depois que Aurora silencia, Maria complementa: “Ela gosta de muitas
coisas. De massa de modelar, pintar, dar comida para as bonecas, desenhar”. Mas ela relata
que Aurora não é muito cuidadosa com os brinquedos e, com frequência, quebra-os ou perde
peças. A mãe ressalta também que Aurora faz uma grande bagunça com os brinquedos e
recusa-se a coloca-los de volta no lugar.
Ao longo da entrevista, Aurora ficou brincando com o jogo de chá e, de tempos em
tempos, interrompia a fala materna ou a minha, participando e opinando sobre o que estava
sendo tratado. Quando queria pegar um novo brinquedo, olhava para mim e pedia autorização.
Outra atitude importante a ser salientada é que ela mostrava os objetos que lhe interessavam
para a mãe, compartilhando com ela e deixando-a satisfeita.
Na entrevista com Aurora, pôde-se verificar que, na saída da mãe da sala de avaliação,
a menina aceitou bem a separação, seguindo a brincadeira e desenhando espontaneamente
com a avaliadora. A menina adaptou-se bem a nova cena não sendo solicitado o retorno da
mãe. Durante o período com a avaliadora, quando lhe foi negado algum pedido ou imposto
algum limite, Aurora, de início resistiu, mas depois aceitou. Isso ficou evidente quando lhe foi
pedido que ajudasse a guardar os brinquedos. Na ocasião, Aurora disse que ia seguir
brincando com outra coisa. Apenas quando a avaliadora repetiu o pedido, Aurora decidiu
ajudar.
Na entrevista com Aurora, verificou-se que a menina dirige demandas à
entrevistadora. Ao longo do período que a menina esteve sozinha com a avaliadora, ela
convidou para brincar de boneca, em frente ao espelho, além disso, desenhou sua própria
imagem a pedido da avaliadora, relatando o que estava ilustrando.
Em relação ao corpo e sua imagem, Maria relata que todos falam que Aurora é
fisicamente parecida com ela, mas na sua opinião, “o gênio é do pai”. Quando lhe questiono o
que quer dizer com isso, ela responde que eles não sabem perder, quando tenta ensinar algo,
“ela parece que quer saber mais do que a gente”. Mesmo assim, ela respeita o pai, ele é visto
como a última instância.
Aurora não apresenta tiques ou movimentos marcantes. Quanto a sua saúde, Maria
relata que a menina apresenta alergias respiratórias que ficam evidentes no período da
primavera. Aos olhos da mãe, Aurora é “chata para comer”. Isso porque, ela come arroz,
120
feijão e massa. Somente este ano aceitou carne bovina, mas não experimenta nenhum tipo de
legume ou vegetal. Ela aceita bem todos os tipos de frutas, sucos e pães.
Na entrevista com Maria, ela relatou que, diferente dela, Aurora é muito vaidosa.
Segundo a mãe, a menina gosta de pintar as unhas, de fazer penteados, usar cremes e escolher
suas roupas. A mãe também relatou que Aurora já se veste e começou a tomar banho sozinha,
mas persiste em utilizar chupeta (o que preocupa a mãe). Ela também utiliza o banheiro
sozinha e prefere usar o vaso do banheiro de sua avó porque lá é só de menina.
Ao longo da entrevista, Aurora se mirou no espelho por várias vezes e, no momento
com o avaliador, brincou de fazer caretas em frente ao espelho. Maria relata que, tal como a
mãe, Aurora é “nojenta com sujeira”.
Foi pedido para Aurora que desenhasse uma imagem de si mesma. Num primeiro
momento ela desenhou a mãe em uma folha A3. Ela fez o desenho da mãe muito pequeno e,
ao lado, se desenhou ainda menor. Ao interrogar-lhe porque havia feito um desenho tão
pequeno em uma folha tão grande ela me respondeu: “É porque eu e a mamãe somos
pequenas”. De fato as duas apresentam uma estatura bem baixa.
Pedi então que ela tentasse fazer um desenho maior dela mesma para aproveitar o
espaço da folha, Aurora então desenhou a si mesma como uma “bailarina colorida amiga do
unicórnio do arco-íris”. No relato, Aurora diz que deseja usar muitas cores porque adora tudo
muito colorido. Interessante ressaltar que ela desenhou a menina em vermelho (“porque sou
do inter”), sorrindo e com marcação do umbigo. Por fim, ao lado da bailarina, Aurora
desenhou o contorno da própria mão com as unhas pintadas.
Aurora e a avaliadora brincaram também de fazer caretas em frente ao espelho e de
“agora eu era”, uma brincadeira de faz-de-conta que cada vez uma fazia de conta que era um
animal diferente. Aurora não apresentou rigidez no brincar ou dificuldades de concentração,
participando de modo criativo da atividade.
Em relação às manifestações diante das normas e posição frente à lei, quando lhe foi
perguntado sobre preocupações que poderia ter em relação às escolhas de Aurora, Maria
salientou que a menina ainda usava bico e ela não sabia como fazer para que ela largasse esse
hábito. Ela também relatou que, em dado momento, Aurora começou a bater nos pais, quando
se sentia contrariada, mas que após um tempo, o comportamento passou. Ela contou que
supôs que algo estivesse acontecendo na escola, mas a partir de conversas com ela, ela foi se
acalmando e não agiu mais dessa forma.
121
Outra situação que preocupava Maria era o fato de que, quando vão ao mercado,
Aurora não aceitava ser contrariada e começava a gritar. Ela não sabia como faze-la parar e,
em certa vez, deu-lhe um “beliscão”. Aurora respondeu alto em frente a outros consumidores:
“Para mãe, não me belisca!”
Enquanto Maria falava dos comportamentos errados de Aurora, a menina a
interrompia, de tempos em tempos, dizendo: “Mãe, isso não é verdade!” Na ocasião, lhe
pergunto: Ah! Você escuta sua mãe quando ela lhe pede para parar?” Aurora me respondeu:
“Sim”. Eu lhe respondo: “Então porque você não para?”. E ela me retruca: “Porque eu não
escuto com o corpo!”
Nessas interrupções, Maria falava com Aurora de forma clara, perguntando para ela
porque achava que a mãe estava mentindo ou recordando de algum evento passado. Mesmo
diante do relato do mau comportamento, Maria falava: “parece que ela está ficando mais
velha, que seu comportamento está mudando”.
Segundo Maria, Aurora apresentava grande dificuldade para esperar. A menina dorme
a noite toda em um colchão ao lado da cama dos pais. Apesar de aceitar ficar bem na sala e,
no dia-a-dia permanecer sem encontrar a mãe, frequentemente precisa se reassegurar com
contatos corporais feitos a partir do pedido de “colo”. Às vezes, diz para sua mãe: “não vai
trabalhar, tô sentindo tua falta”.
Maria, conta que sustenta o tempo necessário para Aurora articular alguma coisa
mesmo quando ela apresenta dificuldades. Por outro lado, Aurora costuma interromper os pais
quando deseja falar. E, assegura que a palavra de Aurora tem peso no contexto familiar. Na
entrevista com Aurora, verificou-se que ela prestava atenção ao que era dito pelo
entrevistador e pela mãe, participando da conversa e as contrariando quando não concordava.
Maria falou que ela e o marido sempre foram muito companheiros e ele sempre
participou muito da vida delas. Em sua opinião, sua relação se sustenta para além de Aurora.
Às vezes o casal diverge porque ela acha que ele é ríspido com Aurora, ameaçando bater nela,
quando ele acha que ela fez algo errado. Mas, muitas das vezes, ela não fez nada de errado,
apenas estava brincando.
Ela conta que Aurora é ciumenta e quando avista seus pais abraçados, corre e os
abraça dizendo: “abraço de família”. Mas é braba como o pai. E, quando a mãe tenta lhe
colocar limites, ela grita. Antes, se jogava no chão, agora grita. A mãe tenta manejar
122
acalmando e conversando. Ao final, Aurora entende. Ela conta que nessas situações tenta
dizer para Aurora os motivos pelos quais não pode fazer isso ou aquilo.
Em relação à posição na linguagem, Aurora sustentou o diálogo tanto com sua mãe
quanto com a avaliadora, participando da conversa e sustentando sua posição questionando
sua mãe quando discordava de algum comentário. Na maioria das vezes, ela se fazia entender,
mas em uma ou outra vez, sua mãe traduzia algumas palavras ainda imprecisas
articulatoriamente. Ela apresentou uma fala diversificada, trazendo elementos de sua vida
diária. Aurora se referia a si mesma como “eu”, utilizava frases e dominava os elementos
gramaticais da língua, atestando o que havia sido observado nas avaliações do SEAL e do
Bayley-III aos 24 meses e 36 meses.
A partir de uma perspectiva enunciativa, foi possível visualizar elementos do segundo
mecanismo enunciativo em combinações sintáticas e ótimo vocabulário; e do terceiro
mecanismo enunciativo como o aparelho das funções como intimação (Mãe não me belisca;
Mãe isso não é verdade) ou em respostas à interrogação, a instanciação do eu de diversas
formas (Porque eu não escuto com o corpo; É porque eu e a mãe somos pequenas; Mãe não
me belisca). A capacidade imaginativa com a linguagem (segunda enunciação) também está
presente ao se indicar como uma “bailarina colorida amiga do unicórnio do arco-íris”.
As avaliações iniciais de Aurora, bem como o relato materno, sugerem que havia a
necessidade de se investigar a sua constituição psíquica, especialmente em relação ao
processo de alienação. Enquanto a mãe apresentava sintomas de uma depressão pós-parto que
alimentava sua insegurança em relação à maternidade, a filha, por sua senbilidade,
apresentava uma conduta evitante.
Entende-se que Aurora contava com uma figura paterna que se mostrava presente e
atenta às suas demandas, dando suporte a Maria nos cuidados da filha. A ausência da maioria
dos indicadores do roteiro IRDI da fase I que evidenciaram dificuldade de Maria lançar uma
demanda ao bebê, a partir do saber que supõe sobre ele. Um exemplo seria quando Aurora
chorava, Maria a entregava aos cuidados do marido.
Maria era silenciosa e, quando falava com Aurora, chegava a propor algo para a
menina, mas o fazia de modo diretivo. Nesses casos, apesar de aguardar uma resposta da filha
123
(sinal 9 do SEAL), Aurora não lhe respondia (indicador 3 do IRDI e sinal 2 do SEAL) ou
iniciava uma protoconversação (sinal 5 do SEAL). O que reforçava ainda mais hipótese de
que Maria não sabia nada sobre como ser a mãe da própria filha. Mesmo assim,
evidenciavam-se troca de olhares entre as duas e as reações de Aurora ao pai e à examinadora
diziam de um potencial encontro entre mãe e filha.
Tais resultados foram também constatados com a avaliação dos sinais PREAUT e
permitem questionar o quanto a díade estabelecia interações prazerosas que poderiam
sustentar o diálogo. Percebe-se em Aurora que os sinais de sofrimento psíquico verificados
nas primeiras avaliações estavam relacionados com essa impossibilidade de circulação
pulsional entre ela e a mãe, o que parecia ser alimentado pela condição materna e pelo
evitamento de Aurora.
Note-se que nos momentos de interação com o pai ou com a avaliadora, Aurora sorria
e olhava de modo vivaz após certo tempo de investimento, reforçando a necessidade de
promover uma avaliação do caso para um possível encaminhamento ao tratamento.
Partindo da observação da protoconversação entre a díade, a hipótese inicial de
funcionamento de linguagem que se faz é de que havia dificuldade no aparecimento de
mecanismos conjuntivos que poderiam articular as manifestações corporais de Aurora
enquanto sistema semiótico corporal e os signos ofertados por sua mãe. Considerando o
potencial do laço entre a díade, principalmente nos momentos em que Maria sorria ou cantava
e Aurora lhe dava atenção, entendeu-se que os mecanismos de homologia e interpretância
poderiam funcionar nas protoconversações iniciais. Esses momentos de júbilo foram mais
frequentes a partir dos nove meses.
Tais informações trazem para questionamento o sofrimento de Maria e de Aurora em
função do desencontro inicial. E, tal como sugere Laznik (2009, p. 68), a questão aqui não é
apontar o sofrimento materno como causa do evitamento de Aurora, mas sim reconhecer que
esse fato poderia despertar “na criança alguma coisa de análogo e intolerável para ela”.
Acredita-se que tanto a escuta oferecida a Maria quanto a potência presente em Aurora,
permitiram compreender porque as protoconversações entre a díade, a partir dos 13 meses,
tornaram-se cada vez mais intensas e prazerosas.
Nesse sentido, percebeu-se que, aos 13 meses, Aurora já possuía estruturas sonoras e
interjeições com as quais evidenciava-se a passagem da dependência discursiva para a
percepção do que suas manifestações causavam no outro. Emergiram também as primeiras
124
Os pais de Sol, Léia e Luís, foram namorados durante um ano. Engravidaram “por
descuido” e se viram na posição de casar em virtude dos preceitos religiosos defendidos pela
comunidade que faziam parte. Na ocasião, Léia se recorda que o marido costumava questioná-
la se o filho era seu, cogitando, inclusive, a possibilidade de fazer um teste de DNA.
Léia vinha de uma família de mulheres donas-de-casa, entendia que isso aconteceria
um dia, só não esperava que fosse antes dela conseguir estudar e cursar um faculdade. Mesmo
assim, nos primeiros meses, Léia mostrava-se bastante apaixonada pela filha, interpretando
suas manifestações, falando a respeito dela quando lhe era questionado, sugerindo que sua
possibilidade de estabelecer relações de conjunção eu-tu estavam postas desde os primeiros
tempos.
Sol nasceu de parto vaginal, pesando 3,100 kg e Apgar 10 e 10. Ela foi alimentada
com leite artificial desde o nascimento porque, segundo a mãe, ela tinha pouco leite e Sol
tinha fome. Nos encontros com a díade era perguntado à Léia a respeito do pai, de sua
participação na dinâmica familiar, bem como de outros personagens que faziam parte da
rotina de Sol. Léia falava vagamente, sugerindo que apenas Luís fazia parte da rotina da
díade, mas ele apenas dormia em casa, passando o dia fora e não exercendo qualquer espécie
de influência nas decisões acerca de Sol, para além de provê-las financeiramente.
Quando era questionado à Léia a respeito da relação matrimonial, a mãe apenas
comentava que era difícil porque eles pensavam diferente. E quando lhe era pedido mais
detalhes, ela ria, dizia que não sabia explicar, mas que eles não conseguiam se acertar. Ela
dizia que Luís passou a se relacionar melhor com Sol a medida que a menina foi crescendo,
126
isso por volta dos dois anos, mas que ele culpava Léia por algumas características negativas
que reconhecia na filha como: o fato da menina falar sozinha num “idioma” que não se podia
compreender, não brincar com outras crianças, não parar quieta e, por vezes, ser violenta
chegando a morder as tias ou crianças que estivessem na volta. Luís dizia que essas coisas
aconteciam porque Léia não colocava limites para a filha, deixando que a menina fizesse o
que bem entendesse sem impor certas regras e limites à Sol. E, mesmo diante dos fatos,
segundo relato de Léia, Luís se eximia de qualquer responsabilidade nos cuidados da própria
filha, transmitindo-lhe tais limites, porque acreditava que sua obrigação era apenas provê-las
financeiramente.
Nesses termos, entende-se que Sol havia se tornado o destino de Léia. Destino
solitário e que, diferentemente do que mãe planejara para si, reduziu Léia à posição de mãe.
Os impasses que Sol enfrentava para ser reconhecida enquanto sujeito de linguagem e sujeito
em constituição psíquica – o que implicava a separação em relação à posição materna – foram
tornando-se cada vez mais evidentes a medida que a menina crescia. Isso também era
verificado devido a própria dificuldade de Sol em assumir uma posição enunciativa ou de
conseguir se haver com os limites que lhe eram impostos e que não faziam qualquer marcação
de uma castração simbólica para a menina, como se verá a seguir.
Em todas as avaliações, Léia e Sol vieram sozinhas. Especialmente, nas três primeiras
avaliações, Léia mostrava-se bastante tímida e silenciosa, apesar de estar sempre atenta e
cuidadosa com seu bebê e cantar-lhe músicas infantis. A partir do primeiro ano e, em especial,
do segundo ano, percebe-se que Léia vai tendo mais dificuldade de estabelecer um laço com
Sol. E, na leitura materna, a interpretação que se fazia era de que a menina não entendia nada
do que ela dizia. Por isso, os limites que ela tentava colocar não faziam qualquer sentido para
a filha.
Na avaliação do terceiro mês, foi realizada uma entrevista continuada, a aplicação dos
roteiros PREAUT e IRDI fase I, bem como a análise dos mecanismos enunciativos, a partir da
127
Na cena do quadro 25, Sol solicita a mãe com as perninhas permitindo verificar que o
terceiro tempo pulsional já está em curso. Apesar da mãe não interpretar seu ato como
129
endereçado a ela, Léia percebe o ato de Sol. E Sol, por sua vez, reconhece o efeito do
preenchimento de seu lugar enunciativo no outro, mesmo que sua manifestação tenha sido
corporal e não vocal. Os resultados dessa primeira avaliação permitiram verificar que Sol
estava se estruturando psíquica e linguistimente de modo típico.
Na segunda avaliação, foi realizada uma entrevista continuada, aplicação dos roteiros
IRDI fase II e SEAL fase I, além da análise dos mecanismos enunciativos, a partir da
filmagem da díade. Em relação aos IRDI avaliados na fase II, verifica-se que Sol apresentou:
6. Criança começa a diferenciar dia e noite; 7. A criança utiliza sinais diferentes para
expressar suas diferentes necessidades; 8. Criança solicita a mãe e faz um intervalo para
aguardar sua resposta; 9. A mãe fala com a criança dirigindo-lhe pequenas frases; 10. Criança
reage (sorri, vocaliza) quando a mãe ou outra criança está se dirigindo a ela; 11. Criança
procura ativamente o olhar da mãe; e, 12. Mãe dá suporte às iniciativas da criança sem
poupar-lhe o esforço. Apesar dos resultados positivos, na segunda fase começa a se verificar
que Sol apresentava uma agitação bastante potencializada.
Em relação ao SEAL, fase I, todos os sinais estiveram presentes. Verificou-se a
presença dos sinais: 1. A criança reage ao manhês, por meio de vocalizações, movimentos
corporais ou olhar; 2. A criança preenche seu lugar na interlocução com sons verbais como
vogais e/ou consoantes; 3. A criança preenche seu lugar na interlocução com sons não verbais
de modo sintonizado ao contexto enunciativo (sorriso, grito, choro, tosse, resmungo); 4. A
criança preenche seu lugar na interlocução silenciosamente apenas com movimentos corporais
e olhares sintonizados ao contexto enunciativo; 5. A criança inicia a conversação ou
protoconversação; 6. A criança e a mãe (ou sua substituta) trocam olhares durante a interação;
7. A mãe (ou sua substituta) atribui sentido às manifestações verbais e não verbais do bebê, e
sustenta essa protoconversação ou conversação, quando o bebê a inicia; e, 8. A mãe (ou sua
substituta) utiliza o manhês falando com a criança de modo sintonizado ao que está
acontecendo no contexto e aguardando as respostas do bebê.
Na avaliação dos seis meses, diferentemente da maioria dos outros bebês, Sol já
sentava sozinha sem necessitar de bebê conforto, tal fato permite confirmar que, em termos de
desenvolvimento motor, Sol havia alcançado um marco importante.
130
A cena do quadro 26 é marcada pelo júbilo de Léia e Sol diante da música. Sol ainda
não vocaliza, mas manifesta com o seu rosto e na tentativa de bater as mãos no ritmo da mãe,
em acompanhar e demonstrar sua satisfação com a cena. Léia, por outro lado, não sinalizava
no diálogo o reconhecimento da iniciativa de Sol. Seria possível pensar que, novamente Sol
apresentava o terceiro tempo pulsional em curso, principalmente porque quando a mãe faz
uma pausa, ela retoma o movimento dos bracinhos como fazia anteriormente. Por outro lado,
Sol apresentou um potencial para responder às demandas maternas com o seu sistema
semiótico corporal e suas primeiras manifestações de linguagem endereçadas à mãe, como
pode ser visto no quadro 27 (linha 9).
Na terceira avaliação foi realizada uma entrevista continuada, aplicação dos roteiros
PREAUT, IRDI fase III e SEAL fase II, além da análise dos mecanismos enunciativos, a
partir da filmagem da díade. Em relação ao PREAUT, Sol apresentou a pontuação total de 15.
Quanto aos IRDI fase III, estiveram presentes: 14. Mãe percebe que alguns pedidos da criança
podem ser uma forma de chamar sua atenção; 15. Durante cuidados corporais, a criança busca
132
ativamente jogos e brincadeiras amorosas com a mãe; 16. A criança demonstra gostar ou não
de alguma coisa; 18. A criança estranha pessoas desconhecidas para ela; 19. A criança possui
objetos prediletos; 20. A criança faz gracinhas; 21. A criança busca olhar de aprovação do
adulto; e, 22. A criança aceita alimentação semissólida, sólida e variada. Em contrapartida,
esteve ausente o indicador 17. Mãe e criança compartilham uma linguagem particular.
Em relação ao SEAL fase II, todos os sinais estiveram presentes: 9. A criança
preenche seu lugar na interlocução (enunciado) com sons verbais (sílabas com vogais e
consoantes variadas - ao menos dois pontos e dois modos articulatórios de consoantes); 10. A
criança esboça a produção de protopalavras por espelhamento à fala da mãe (ou substituto); e,
12. Quando a mãe (ou substituta) é convocada a enunciar pela criança, a mesma reproduz seu
enunciado e aguarda a resposta da criança. Acredita-se que esteve ausente o sinal 11 porque
não foi verificada a produção de protopalavras espontaneamente, apenas o espelhamento.
A seguir, na cena do quadro 28, Sol e a mãe estão sentadas de frente uma para outra e
Sol está, inicialmente, tentando posicionar-se para engatinhar. A mãe acha engraçado e sorri
enquanto observa a filha.
A cena demonstra, assim como na avaliação anterior, que Sol já apresenta estratégias
do segundo mecanismo enunciativo, tal como repetir o discurso de Léia (linhas 4 e 5; linhas 9
133
e 10). Todavia, Léia novamente apresenta dificuldades em reconhecer a fala de Sol quando
ela se dirige à mãe. Mesmo assim, percebe-se que Sol repete sua fala nas linhas seguintes na
tentativa de fazer Léia compreender a tentativa de Sol em chamar o pai, mas Léia repete
“dadá” sem traduzi-lo para papai. Tal fato, novamente coloca em questão a possibilidade de
Léia ancorar Sol enquanto um sujeito de linguagem que lhe endereça um dizer, o que
justificaria a ausência do indicador 17 do IRDI, apesar de Sol preencher seu lugar de fala com
manifestações verbais.
Nessa avaliação foi realizada uma entrevista continuada para atualização dos dados,
aplicação dos roteiros IRDI fase IV e SEAL fase III, além da análise dos mecanismos
enunciativos, a partir da filmagem da díade. Em relação aos IRDI, estiveram presentes: 25. A
mãe oferece brinquedos como alternativas para o interesse da criança pelo corpo materno; 27.
A criança olha com curiosidade para o que interessa à mãe; e, 28. A criança gosta de brincar
com objetos usados pela mãe e pelo pai. Por outro lado, estiveram ausentes os IRDI: 23. A
mãe alterna momentos de dedicação à criança com outros interesses; 24. A criança suporta
bem as breves ausências da mãe e reage às ausências prolongadas; 26. A mãe já não se sente
mais obrigada a satisfazer tudo que a criança pede; 29. A mãe começa a pedir à criança que
nomeie o que deseja, não se contentando apenas com gestos; 30. Os pais colocam pequenas
regras de comportamento para a criança; e, 31. A criança diferencia objetos maternos,
paternos e próprios. Salienta-se que todos os indicadores do roteiro IRDI da fase III
apresentam o eixo função paterna, sugerindo que já nessa faixa etária Sol começava a
apresentar os primeiros indícios de que poderia apresentar impasses com o que concerne à
posição paterna.
Em relação ao SEAL fase III, estiveram presentes os sinais: 15. A criança nomeia de
modo espontâneo e inteligível ao adulto interlocutor, objetos, pessoas, ações, que estão
presentes no contexto enunciativo; 16. A criança faz gestos para tentar fazer-se entender
quando o adulto interlocutor não a compreende; e, 19. O adulto interlocutor atribui um sentido
possível às produções verbais da criança, ou seja, de modo sintonizado. Estiveram ausentes:
13. A criança nomeia de modo espontâneo e inteligível ao adulto interlocutor, objetos que
estão ausentes no contexto; 14. A criança nomeia de modo espontâneo, mas não inteligível ao
134
adulto interlocutor, objetos que estão ausentes no contexto, buscando na prosódia uma forma
de ser compreendida; 17. A criança repete o dizer do adulto interlocutor como forma de
organizar ou reorganizar sua enunciação, por exemplo, aprimorando a forma sintática, ou
fonológica, ou a escolha do item lexical ou mesmo acentuando algum item prosodicamente; e,
18. A criança conversa com diferentes interlocutores adultos (pai, mãe, examinador). A
ausência do sinal 18 se conecta com as dificuldades na posição paterna, pois o interlocutor
com quem Sol conversava era a mãe.
A seguir, no quadro 29 são ilustradas duas cenas de interação entre Sol e Léia. Na
ocasião, a díade está sentada uma de frente para a outra tendo uma caixa de brinquedos de
plástico disponível para o livre manuseio.
Na ocasião foi realizada uma entrevista continuada, bem como a análise dos mecanismos
enunciativos, a partir da filmagem da díade. A seguir, no quadro 30 é ilustrada uma cena entre
a díade. Na cena, Léia e Sol estão sentadas, uma em frente a outra, explorando a caixa de
brinquedos de plástico.
136
Na avaliação aos 18 meses foi evidente o silenciamento de Sol, ao longo dos quinze
minutos de avaliação, Sol não ocupou seu espaço no diálogo com vocalizações, onomatopeias
ou mesmo palavras. Entende-se que tal conduta chamou a atenção da avaliadora porque o
ambiente de avaliação, a sala, os objetos e mesmo a rotina da avaliação eram familiares à Sol.
E, ao longo do tempo, Léia se propôs a interpretar as ações de Sol que, por sua vez, manteve-
se indiferente às interpretações materna. Em termos de estratégias enunciativas, percebeu-se
que Sol utilizou-se principalmente de seu corpo para marcar seu desejo e interesse, não
evidenciando sinais esperados do segundo mecanismo enunciativo como a nomeação ou
produção de protopalavras.
137
A cena do quadro 31 permite verificar que Léia, por vezes, ocupava os turnos de fala
sem dar chance a Sol. Todavia, quando Léia se silenciava, Sol também não ocupava seu lugar
de fala como fez nas avaliações anteriores. Ao conversar com Léia, a mãe disse que Sol era
bastante silenciosa e não falava muitas palavras. Em contrapartida, era muito agitada e, por
vezes, batia nas pessoas. Nessa avaliação fica claro que a mãe não supunha que Sol pudesse
ocupar seu lugar de fala de modo satisfatório, ou seja, com fala.
Percebe-se, a partir do quadro 32, que na avaliação dos 23 meses fica evidente a
capacidade de Sol em lançar-se no discurso a partir de estratégias do segundo mecanismo
enunciativo (SILVA, 2009a). Na cena, Sol começa a utilizar-se de onomatopéias para nomear
os animais e já diferencia a zebra da vaca a partir do “Muuuu” e do “Buuu” (linhas 2 e 4).
Todavia, entende-se que Sol poderia estar apresentando melhores resultados no âmbito da
aquisição da linguagem, considerando a pouca diversidade das estratégias utilizadas para
ocupar seu lugar de fala em uma faixa etária em que as crianças já possuem mais estratégias
do segundo recurso enunciativo como nomear. Por outro lado, é interessante observar que o
diálogo está fluindo mais entre Léia e Sol.
Diferentemente das duas avaliações anteriores, a avaliação dos 36 meses foi realizada
pela pesquisadora. Tendo estabelecido uma relação transferencial desde os primeiros meses
de Sol, apesar do intervalo entre o último encontro e a avaliação em questão, Léia pode falar
139
sobre suas impressões a respeito de Sol, seus temores e dificuldades. Léia relatou que, até
então, não achava que Sol precisava de ajuda porque acreditava que bebês não sabiam falar e
isso seria resolvido com o tempo. Porém, Léia conta que Sol seguia não falando, mordia as
pessoas quando era contrariada e acabava brincando sozinha na maior parte do tempo. Ela
conta que Sol não brincava de boneca ou panelinha, como suas outras sobrinhas. Segundo
Léia, Sol não parava quieta para isso e não compreendia as brincadeiras de faz-de-conta. Em
contrapartida, Sol corre sem paradeiro pela casa, pelo pátio e, inclusive, pelos corredores do
prédio onde a avaliação se deu.
A escala do Bayley-III evidenciou que a pontuação da análise cognitiva foi média
baixa (85 pontos), ao passo que a análise de linguagem apresentou pontuação limítrofe,
indicando risco (recepção 22 pontos e expressão 74 pontos). Considerando a importância do
estranhamento materno às manifestações de Sol, tal como sugere Muratori (2015), após a
observação da filmagem da interação da díade, pode-se verificar que Sol transitava de um
brinquedo a outro sem criar minimamente um enredo, apenas os nomeando. A mãe percebia
que ela possuía dificuldades de compreensão da linguagem o que poderia explicar a agitação.
Mesmo assim, parecia se entreter no diálogo com a mãe. Nas cenas ilustradas a seguir, Sol e
Léia estão sozinhas em uma sala com a mesma caixa de brinquedos das avaliações anteriores.
É proposto a elas um brincar livre.
A cena do quadro 34 ilustra, tal como no relato materno, que Sol tinha muita
dificuldade em escutá-la quando a mãe tentava impedi-la de fazer algo. Além disso, tal como
Léia menciona na entrevista, percebeu-se que Sol nomeou os objetos, mas pouco os explorou
ou brincou de faz-de-conta, passando de objeto a objeto sem se deter e mordendo os alimentos
de plástico ou mamando na mamadeira do bebê.
Nessa avaliação pode-se perceber que Léia havia elaborado uma demanda de
intervenção para Sol. Segundo a mãe, Sol não entendia o que ela diz e, por isso, não aceita os
limites que ela impõe. Tais dificuldades apareciam na seletividade alimentar, na dificuldade
em limitar o uso do telefone celular, de fazê-la parar quieta, de dormir na própria cama ou
mesmo de brincar com outras crianças porque não entende o que as crianças falam.
Sol recebeu intervenção ao longo dos dez meses seguintes. Compreendeu-se que, neste
caso, os impasses estavam relacionados, principalmente, às dimensões simbólica e imaginária.
Isso pode ser constatado porque Sol não se apoiava na linguagem para estabelecer relações
com a mãe ou com os outros, ou mesmo utilizava-se da linguagem no brincar para se
apropriar da realidade.
Além disso, Sol apresentava sinais importantes de impasses na construção de uma
imagem corporal e sua mãe havia feito relatos de que ela, ainda aos três anos, costumava ser
agressiva com as pessoas quando era contrariada e apresentava uma agitação motora
significativa que a impedia de se concentrar.
Nesse momento, Sol utilizava-se de palavras isoladas para comunicar-se e, em
paralelo à intervenção com psicanalista, estava começando atendimentos fonoaudiológicos.
Por esse motivo, nesse período, a menina ainda dependia completamente de sua mãe para ter
algo a ser dito sobre ela mesma.
No início das intervenções com Sol, a menina apresentava uma agitação motora tão
intensa que ela chegava a sair correndo pelos corredores do serviço de saúde sem paradeiro,
batendo-se nas paredes e nas pessoas. No início do trabalho, Sol chegava a pegar frutas de
plástico, tal como tomate e banana e nomeava-os mostrando para a mãe e para a terapeuta,
mas não formava frases ou elaborava brincadeiras com os objetos. Segundo Léia, Sol não
142
brincava com outras crianças porque “não conseguia entender o que elas diziam” e, em
algumas vezes, acabava mordendo ou batendo quando não concordava com algo.
Somente após nove meses de tratamento com Sol que o pai aceitou vir para sessão. Na
ocasião, ele disse que estava vindo porque não entendia se era normal o fato da Sol brincar e
conversar muito sozinha como se estivesse acompanhada, cantar. Sentia vergonha da sua
pergunta, mas estava assustado porque parecia que Sol estava “vendo coisas”. Ele relatou que
percebia que Sol havia conseguido melhorar em muitas questões como escutar mais, brincar
mais com os brinquedos, fazendo as bonecas nanarem, ou telefonar. Além disso, reconhecia
que Sol já estava formando frases, falando mais com as pessoas e aceitando ir para a escola.
As professoras diziam que ela ainda tinha dificuldade com limites, bem como seus pais
relataram, mas estavam melhorando. O pai conta que acreditava que apesar de ter muita
energia, Sol não era mais agitada como antes, mas seguia sem entender se era normal o modo
de Sol agir ou ela estava “vendo coisas”. Outra questão importante a ser ressaltada é que Sol
passou a ser mais vaidosa, gostando de escolher seus penteados, roupas e mostrando-os
quando chegava na sessão. Todavia, quando era pedido que Sol desenhasse a si mesma, ela
não o fazia. E quando a proposta era livre, Sol desenhava após grande insistência mas negava-
se a narrar algo a respeito de sua criação.
Avanços foram feitos ao longo do ano, sua brincadeira começou a apresentar um
pouco mais de enredo, mas ainda era pobre para a sua faixa etária. Além disso, Sol ainda
transitava de um brinquedo a outro, ao longo da sessão, com rompantes de euforia.
Após as festas de final de ano, Sol e sua mãe retornam para terapia e lhes é proposto a
aplicação da AP-3. Na ocasião, Léia conta que o marido se mudou para São Paulo para
estudar e tornar-se pastor na igreja que frequentam.
A avaliação AP-3 de Sol foi realizada após o período de recesso de final de ano. No
final do ano anterior, Sol havia recebido alta da fonoaudióloga e seguia em atendimento com
psicanalista. Na ocasião da avaliação, Léia informou que o esposo havia se mudado para São
Paulo nos primeiros dias após o ano novo para tornar-se pastor na igreja Evangélica. Tal fato
foi dito à avaliadora no momento da chegada, na tentativa de justificar o comportamento de
Sol que, segundo Léia, havia piorado novamente. Ela relata que Sol estava bem mais agitada,
irritada e impaciente em virtude dessa separação. E, ao longo da avaliação a impossibilidade
de Sol separar-se de sua mãe foi tão intensa que a menina não aceitou que a mãe deixasse a
sala sendo, por isso, a segunda parte da AP-3 aplicada com a mãe ainda na sala.
143
Léia tem um jeito muito silencioso e paciencioso com a filha. Quando lhe pergunto
sobre a ida do marido para São Paulo ela diz que achou “ruim, mas ele quis ir... não tinha o
que fazer”. Alegando que não havia gostado, mas não teria opinado sobre tal decisão. Ela
conta que depois da ida o casal voltou a se dar bem.
Em relação ao brincar e à fantasia, Léia relata que, comparado ao ano anterior, Sol
estava brincando melhor com as crianças, se comunicava mais, não agredia as pessoas e
parecia entender mais o que as crianças propunham nas brincadeiras. Mas seguia agitada,
destruindo seus brinquedos e preferindo atividades de correr ao invés de “brincar de neném ou
de fazer comidinha”.
Desde o ano anterior, Sol havia começado a frequentar a escola durante meio turno.
Entretanto, desde o final do ano anterior, em função do recesso da escola, Sol permanecia
direto em casa com a mãe. E, segundo Léia, depois da viagem do pai, Sol mostrou-se muito
colada à mãe, não sustentando a saída da mesma da sala de avaliação quando lhe foi proposto
e alegando que não queria brincar com a avaliadora porque era “amiga só da minha mãe”.
Léia conta que com a viagem do pai, Sol voltou a dormir na cama com ela e que as
duas ficam o dia todo juntas. A única vez que Léia foi fazer uma limpeza e Sol ficou com uma
tia, a menina chorou muito. Esse fato ficou evidente ao longo da avaliação, pois não foi
possível que Léia saísse da sala. E Sol, por outro lado, brincou todo o tempo perto da mãe,
chorando quando lhe é proposto a separação entre a díade.
Durante a avaliação, Léia pede para Sol não estragar ou jogar os giz-de-cera no chão,
mas menina não a escuta. Léia ri e comenta: “ela te obedece mais do que a mim. Tu sabes dar
limites pra ela, eu não consigo”. Léia conta que Sol não tem nenhum objeto que não queira se
separar. Ela não usa bico. Ela é cuidadosa com o corpo, sem problemas com sujeira. O brincar
de Sol ainda tem pouco “faz-de-conta”, ela ainda transita pelos objetos sem se ater a qualquer
um. Ela pega as panelinhas e diz que vai fazer comidinha, mas nunca chega a fazer. Passando
em seguida para a bola. Ela explora os objetos sozinha, pegando as coisas sem pedir, mas não
cria cenas no brincar, apenas passa de um brinquedo a outro sem construir narrativas. E, em
certos momentos, chega a se colocar em risco sem perceber. E, apesar de se divertir com a
própria imagem no espelho. Sob a ameaça da saída da mãe da sala, Sol interrompe qualquer
atividade e não sai mais do colo dela.
Em relação ao brincar, pode-se verificar sintomas como: I.1. Violência no brincar, I.4.
Inconstância, 1.8. Dificuldade de diferenciar fantasia de realidade, com excesso de fantasia e
144
I.9. Pobreza simbólica. Ressalta-se que tais sintomas clínicos evidenciam que Sol segue
apresentando impasses na constituição psíquica, apesar das intervenções psicanalíticas
decorridas no ano anterior
Em relação ao corpo e sua imagem quando pergunto à Léia com quem ela acha que
Sol se parece, ela diz: “comigo quando jovem, mas eu fui ser rebelde desse jeito na
adolescência, ela está sendo assim desde muito pequena”. Léia fala sobre as questões do
esposo, do comportamento de Sol e dos modos como o casal dialogava e discutia em frente à
menina, supondo que ela nos os entendia.
Léia conta que, para sua surpresa, Sol deixou as fraldas facilmente. Segundo a mãe,
“ela começou a pedir para tirar as fraldas durante o dia e pronto!”. Isso foi por volta dos dois
anos e meio. Todavia, em relação aos hábitos alimentares, Sol segue sendo bastante difícil
porque não quer saber de comer nada além de “porcarias” e, com insistência, aceita massa,
ovo e carne. Prefere sempre chocolate e sorvete. Léia conta que quando começa a dar muita
atenção para esses comportamentos de Sol, a menina começa a agir como um bebê. Nessas
situações, Léia fala que Sol é uma menina, que não pode se comportar mais como um bebê:
“tu não é mais bebê, tu é uma mocinha, não pode falar como bebê”.
E quando lhe é questionado sobre as descobertas de Sol, Léia reforça o quanto a filha
tem se mostrado vaidosa, que gosta de escolher as próprias roupas, fazer seu próprio cabelo,
pintar suas unhas. E que, mesmo quando a roupa escolhida não combina, Sol se acha linda e
usa mesmo assim. Em casa, Sol gosta muito de ajudar a lavar a louça. E quando suas
demandas são satisfeitas, Sol fica muito eufórica.
Sol brincou no espelho de se ver e fazer caretas, de esconde/aparece com o avaliador e
fez desenhos depois que o avaliador insistiu. A avaliadora solicitou a Sol que desenhasse a si
mesma. Ela, depois de muita insistência, desenhou um boneco que ela nomeou de “papai”.
Depois fez outros dois ao lado que seriam ela e a mãe. Num segundo momento, quando foi
lhe solicitado que desenhasse apenas a si mesma, Sol novamente fez o desenho do “papai”.
Por fim, quando a avaliadora elogiou o seu vestido, Sol desenhou um vestido com uma cabeça
que ela disse que “essa é a Sol”.
Em relação aos sintomas clínicos verificados na AP-3, constatou-se principalmente:
II.2. Agitação motora, II.3. Atuações agressivas e II.6. Colagem no corpo da mãe, II.13.
Exposição a perigos, II.14. Demanda insistente do olhar do outro e II.19. Alterações do sono
(após a partida do pai).
145
Em relação às manifestações diante das normas e posição frente à lei, Léia relata
que Sol estava muito “nervosa e estressada”. A mãe relata que tenta negociar com Sol quando
ela faz algo de errado ou precisa fazer algo que não queira, mas a menina não consegue
negociar e grita de raiva. Nessas situações, Sol fica agitada, grita, joga as coisas na mãe e
ameaça bater no rosto dela. A mãe supõe que ela esteja fazendo isso em reação a mudança do
pai. Léia também comenta que Sol vem fazendo coisas erradas e quando a questiona, Sol diz
que não fora ela. Léia relata que tenta ser a melhor mãe que pode, senta Sol na cadeira quando
ela faz algo errado, lhe explica, coloca no quarto de castigo, mas nada parece ter efeito sobre a
filha. A única explicação que consegue lançar é que Sol não a entende.
Léia conta que quando Luís Gustavo estava em casa, ele conseguia colocar mais
limites. Mas o casal discordava porque ela sentia que o esposo era impaciente e agressivo com
Sol, que aquela também não era a melhor forma de educar a menina. Luís Gustavo por outro
lado, alegava que Léia era muito permissiva e que a “menina comandava a mãe”.
Léia conta que Sol não tem qualquer possibilidade de esperar. Ela até tenta negociar
com a filha, sugerindo presenteá-la. A menina aguenta alguns segundos, mas logo começa a
se mexer e exigir que seu desejo se realize imediatamente. Sol vem dormindo com a mãe na
cama do casal desde a viagem do pai. A mãe se envergonha para relatar tal fato, mas justifica
“sobrou só nós duas”. Quando é sugerido que a mãe espere no lado da fora da sala de
avaliação, Sol começa a chorar, chama a avaliadora de chata e que não quer brincar com ela e
volta-se para o colo da mãe. Sol permanece no colo da mãe até o final da sessão. E não aceita
sair com medo de que a mãe a deixe. Mas antes disso, foi capaz de dirigir demandas à
avaliadora, inclusive, a chamando de “tia Antônia”.
Léia relata que o casal se uniu em função da gravidez de Sol e que permaneceram
juntos até hoje por causa dela. Mas quando lhe pergunto se Sol era mais da mãe ou mais do
pai ela me responde: “nunca pensei em dividi-la”. Ela conta que o marido até opinava sobre as
questões de Sol, mas saia de manhã e voltava à noite. Então, no fim da história, diz Léia, ela
sempre fez o que achava certo. E, quando estava em casa, não concordava com a forma de
Luís Gustavo colocar limites à Sol, pois “ele logo pegava a cinta”.
Léia conta que Sol sempre foi muito ciumenta, querendo dormir no meio do casal. Ela
diz que não sabe de quem Sol puxou a agressividade porque ela não era sim nessa idade. Mas
reconhece na filha a “rebeldia” de como vivia na sua adolescência, de não aceitar que lhe
146
dissessem o que fazer, de não aceitar “não” ou respeitar a mãe. Mas se surpreende com o fato
de Sol fazer isso desde muito pequena, sem chance de negociação.
Como já mencionado, Sol não aceitou separar-se da mãe na hora da avaliação. E, a
partir do momento em que lhe é sugerida a separação, Sol se fecha, não aceitando mais
brincar com a avaliadora e pedindo para ir embora. Sol conseguiu falar “Eu não quero brincar
contigo”; “a mamãe é só minha amiga”.
Quanto aos sintomas clínicos evidenciados pela AP-3 no que diz respeito ao eixo das
relações às manifestações diante das normas e posição frente à lei, evidenciou-se: III.1. Birras
prolongadas, III.2. Criança tem que ser castigada para obedecer, III.3. Confusão e angústia
frente à lei, III.4. Desobediência Desafiadora, III.7. Recusa do não e III.9. Indiferença às
regras, limites e lei. Importante salientar a intensidade de sintomas clínicos de Sol referentes
às manifestações da lei, sugerindo que há impasses significativos que permanecem referentes
à função paterna, apesar da intervenção psicanalítica já ter sido iniciada desde a avaliação
anterior.
Em relação à posição na linguagem, Léia acreditava que Sol não a entendia na maior
parte das vezes. Segundo ela, muitas vezes ela fala com a menina, a repreende e Sol parece
não entender. Emburra-se, ameaça bater nela mas não muda. Segue fazendo as mesmas coisas
erradas.
Léia conta que costuma interpretar as atitudes de Sol como algo sem resposta. Que Sol
não sabe, não compreende e não entende o que lhe é dito. Mas afirma que considera que a
partida do pai deve ser o motivo para o agravo do comportamento da menina. Ela conta que,
às vezes, Sol fala com ela e ela não entende. Nessas ocasiões, pede para a filha repetir, tenta
adivinhar ou vai alcançando as coisas até que acerte.
A partir da avaliação, pode-se verificar que Sol é capaz de sustentar brevemente o
diálogo. Usa frases curtas e impositivas para interagir. Mas entende-se o que a menina fala.
Não foi necessário que sua mãe traduzisse sua fala, mas Sol apenas mostrou objetos, pediu
água e deu ordens à mãe e à avaliadora. Sol refere-se a si mesma a partir do nome próprio. E
se refere à mãe como mamãe e a avaliadora como Tia Antônia. Ela presta atenção ao que lhe é
dito e, quando não concorda, costuma manifestar sua desaprovação com agitações motoras ou
ameaça de agressão física. Não foi verificada a possibilidade de Sol negociar, através do
diálogo, nas situações que estava insatisfeita.
147
fazer tudo o que a filha queria e sentia que era inócuo tentar dizer-lhe “não” ou estabelecer
qualquer espécie de interdito às investidas da filha.
Em termos de análise da linguagem, a hipótese inicial de funcionamento de linguagem
que se propõe é de que Léia, desde os primeiros meses, estabelecia relações de conjunção eu-
tu falando por Sol. Entretanto, quando se pensa nos processos disjuntivos, não se
identificavam muitas situações em que Léia tomava Sol como um sujeito de linguagem capaz
de compreender suas demandas e endereçar-lhe outras.
Na cena dos 12 meses (quadro 29) é possível verificar um momento em que o diálogo
se estabelece e que Léia interpreta o dizer de Sol, inclusive supondo que havia algo sobre a
filha que ela não sabia. Entretanto, em nenhum momento Léia indagava a filha do motivo que
levou a menina a não querer incluí-la na brincadeira. Pode-se confirmar tal proposição com os
resultados do SEAL, onde verificou-se que Sol foi capaz de nomear objetos que estavam na
cena, mas não conseguiu nomear de modo espontâneo objetos ausentes, a repetição do dizer
do adulto acontecia, mas acredita-se que não tinha como objetivo reorganizar a enunciação ou
relançar o diálogo. Além disso, Sol apresentava grande dificuldade de estabelecer um diálogo
com outros interlocutores além da própria mãe.
Evidencia-se, desse modo, que a função materna operava enquanto alienação
imaginária, real e simbólica tal como proposta por Laznik (2013a). No entanto, a função
paterna ainda não estava operando a ponto de inscrever Sol na lógica da castração. Em termos
de linguagem, esses impasses puderam ser confirmados quando se percebia que, apesar de
Léia estabelecer relações de conjunção com Sol, ao tenter produzir interpretações às
manifestações corporais do bebê desde os primeiros meses, na hora de reconhecer a posição
enunciativa de Sol e sua singularidade, havia dificuldade em sustentação deste lugar, fosse por
dificuldades na operação da função paterna, fosse pelas dificuldades de linguagem de Sol, já
que Léia identificava uma dificuldade de compreensão da linguagem oral na filha.
Na ocasião, Sol foi encaminhada para uma avaliação psicológica, mas Léia optou por
não levar sua filha. Tal decisão também coloca a problemática do desejo dos pais do produzir
uma mudança no sintoma familiar e nos lugares que cada um ocupava. Acredita-se que,
naquela ocasião, o fato de Sol estar ocupando uma posição de falo materno, representando a
razão da existência da mãe, o fato da menina não falar ou “não entender” o que lhe era
endereçado não produzia obstáculos, pelo contrário, permitia que a mãe falasse em seu nome.
149
Foram necessários meses para que essa conformação familiar produzisse ruído nos
modos como Sol estabelecia laço com os pais e com o mundo. E, só a partir de então,
começou a tornar-se insustentável para Léia suas tentativas frustradas de tentar fazer Sol
“parar quieta” ou “entender” o que lhe era dito. Isso aconteceu por volta da avaliação dos 36
meses, momento em que as avaliações com psicanalista e fonoaudióloga foram aceitas.
Acredita-se que a mudança de postura de Léia também está relacionada com a sua
possibilidade de elaborar uma demanda de terapia para a filha, tal como sugerem Schumaker e
Souza (2017), e que neste caso estavam relacionadas ao comportamento de Sol e seu atraso de
fala.
Aqui, assim como no caso de Aurora, percebe-se que os impasses também ficam
evidentes no laço. Em relação a uma hipótese inicial de funcionamento da linguagem,
percebe-se, principalmente que os impasses apareciam quando se tratava de relações de
disjunção. Assim, entende-se que Léia estabelecia relações de homologia e interpretância ao
sistema semiótico corporal de Sol, o que poderia ser pensado em termos de conjunção, mas
quando chegava o momento de haver uma separação e Léia perceber Sol em separado, a mãe
fracassava porque supunha que Sol não era capaz de compreender-lhe e de sustentar uma
posição diferente em separado da mãe. A dificuldade em Léia reconhecer um saber em Sol
trouxe consequências importantes para a possibilidade de a menina assumir uma posição no
discurso que permitiria uma apropriação do aparelho da linguagem. Mesmo assim, ao longo
dos primeiros meses, Sol apresentou estratégias do primeiro e do segundo mecanismo
enunciativos, tal como propõe Silva (2009a), sugerindo seu potencial para avançar. Isso
indica que Sol tinha condições para aquisição do conhecimento linguístico, apesar das
dificuldades de compreensão iniciais para as quais os exames eletrofisiológicos auditivos e
também o comportamento de Sol em sessão com a fonoaudióloga não demonstravam
quaisquer razão orgânica.
Pedro nasceu em setembro de 2014 de parto cesárea pesando 2,905 kg e Apgar 9 e 10.
Pedro foi alimentado com leite materno e leite artificial desde o sétimo dia de vida. A mãe
relatou que o menino sofria de refluxos desde os primeiros dias e a decisão de alimentá-lo
com leite artificial foi em virtude dela achar que tinha pouco leite e o menino chorar de fome.
150
Seus pais haviam se conhecido há um ano em uma academia onde Lúcio era instrutor.
Quando o casal descobriu que estavam esperando um bebê, decidiram morar juntos.
Entretanto, ao longo da gestação, Laís descobriu que o namorado havia engravidado outra
mulher ao mesmo tempo. Apesar das tentativas de manter a relação, o período da gestação e
todo o primeiro ano de vida de Pedro foi marcado por idas e vindas do casal. Até que, por
volta dos dez meses de Pedro, Lúcio vai embora da casa de Laís, perdendo o contato com o
Pedro. Em virtude da magoa, Laís sempre preferiu que Pedro não tivesse contato com o pai.
Por esse motivo, não insistiu em exigir pensão alimentícia ou qualquer participação de Lúcio
na vida do filho.
Laís relata que depois que foi morar com Lúcio começou a perceber que precisava
pedir para ele fazer tudo. Inclusive falar com o próprio filho. Ela dizia: “fala algo, ele precisa
ouvir tua voz”, mas o pai não conseguia, apenas observava. Ela conta que depois do
nascimento de Pedro, Lúcio seguiu com suas atividades sem abrir mão de nada pelo bebê. Ela
conta que sentia que tinha duas crianças em casa quando Lúcio estava.
Pedro apresentou sinais de risco desde a primeira avaliação. Todavia, na ocasião, Laís
não aceitou a proposta de intervenção porque acreditava que todo o problema estava no fato
de Lúcio ter a traído e não exercer sua função como pai, suposição da avó materna também.
Nesse período, Pedro começou a frequentar a casa da avó materna, pessoa responsável pelos
cuidados do menino nos momentos em que Laís trabalhava.
Pedro foi um bebê que Laís nomeia de “irritado” e “chucro”. Ela conta que desde os
primeiros meses, Pedro chorava muito, não se acalmava com nada e se incomodava com luzes
e barulhos. Ela diz que Pedro não gostava de estar perto das pessoas, aceitando apenas a
presença da mãe e dos avós maternos. Por vezes, quando não havia o que o confortasse,
precisava se fechar com o menino em um quarto escuro para que ele se acalmasse.
A partir da avaliação dos nove meses, Laís já estava separada, adaptada à sua nova
vida sem a presença de Lucio e dividindo os cuidados de Pedro com a avó materna do
menino. Nessa terceira avaliação, os sinais de sofrimento psíquico permaneciam muito
evidentes em Pedro e Laís, desta vez, foi capaz de elaborar uma demanda de intervenção,
aceitando a proposta de trabalho. Na ocasião, Laís seguia sem compreender por que o filho
chorava sem parar.
Além disso, ela se surpreendia que o menino não aceitava ficar com mais ninguém a
não ser ela e seus pais. Nem mesmo a madrinha dele. Outra coisa que a assustava era o fato de
151
Pedro não querer que outras crianças o tocassem e quando iam a um lugar público,
diferentemente das outras crianças, Pedro não tinha qualquer interesse em interagir com
outras pessoas da sua idade. Laís conta que nunca entendia os motivos que levavam a criança
chorar, nos primeiros meses, supunha que eram em função do pai mas, por volta dos nove
meses, percebia que era um “choro sem rumo”, que lhe dava a sensação de que ela estava
“errando” como mãe, pois não sabia o que ele queria.
Laís conta que Pedro sempre foi muito agitado para dormir e, a partir dos 18 meses
começou a se ferir. Acordava aos berros e começava a se bater ou bater na própria mãe sem
qualquer explicação. Nessas ocasiões, Laís se via obrigada a conter o próprio filho com medo
dele se machucar. Ela também relata que ele não se interessa por muita coisa. Que costuma
pegar seus carrinhos e coloca-los ordenados lado a lado. Por outro lado, Laís diz que Pedro é
inteligente. Que ele sabe quando seu avô se aproxima por causa do assobio. Ou, em outras
situações, aprende com os erros, como no caso de quando bate a cabeça em algum lugar e, a
partir de então, passa a ser mais cuidadoso.
Laís também relata que Pedro sempre teve muita resistência em comer. Que, por
vezes, era alimentando, mas não engolia o alimento, até o momento que cuspia uma grande
quantidade que havia reservado nas laterais da boca. Pedro não comia qualquer tipo de fruta
ou vegetais. Aceitava apenas pão, massa e carne. Alimentos que potencializavam ainda mais
sua prisão de ventre. Além disso, Pedro aceitava leite com achocolatado. Mas recusava-se a
escovar os dentes. E, com isso, por volta dos 36 meses, Pedro apresentava caries na maior
parte dos dentes.
Ela conta que ele sempre sofreu com muito refluxo e prisão de ventre. Quando bebê
usava supositórios porque ficava até cinco dias sem evacuar. E, a partir dos doze meses, a
médica pediatra começou a ministrar laxantes para ajudar-lhe com esse mal estar. Laís conta
que, desde os quatro meses, Pedro costumava enrijecer as pernas quando queria fazer cocô. E,
segundo a mãe, desde os seis meses, por vezes, Pedro fazia tanto força para defecar que chega
a romper algum “vazinho” e sangrava muito. Na avaliação dos 36 meses as restrições
alimentares decorrentes do mal-estar em virtude do trato gastrointestinal permaneciam o que
fez a equipe de pesquisa insistir com a mãe para buscar gastropediatra e iniciar avaliação e
terapia com terapeuta ocupacional especializada em restrição alimentar.
É interessante pontuar que Pedro não teve dificuldades para engatinhar, caminhar ou
mesmo fazer xixi, mas tudo a que se refere ao trato gastrointestinal foi permeado de
152
A seguir são apresentados os resultados das avaliações realizadas com Pedro e Laís ao
longo dos primeiros 36 meses de vida do menino. Mais uma vez, percebe-se que aqui os
impasses se mostram no laço que se estabelece entre a díade.
Na avaliação do terceiro mês foi realizada uma entrevista continuada, a aplicação dos
roteiros PREAUT e IRDI fase I, bem como a análise dos mecanismos enunciativos, a partir da
filmagem da interação da díade. Nessa avaliação, esteve presente apenas o IRDI 4 (A mãe
propõe algo à criança e aguarda sua reação). Todos os demais IRDI estiveram ausentes: 1.
Quando a criança chora ou grita, a mãe sabe o que ela quer; 2. A mãe fala com a criança num
estilo particularmente dirigido a ela (manhês); 3. A criança reage ao manhês. ED; e, 5. Há
trocas de olhares entre a criança e a mãe.
Em relação aos sinais PREAUT, Pedro alcançou um somatório de seis, estando
ausentes os sinais: 1. O bebê procura olhar para você: A) O bebê procura olhar para você
espontaneamente; 3. Sem qualquer estimulação de sua mãe (ou de seu substituto): A) Ele olha
153
para sua mãe (ou para seu substituto); B) Ele sorri para sua mãe (ou para seu substituto); C) O
bebê procura suscitar uma troca prazerosa com sua mãe (ou seu substituto), por exemplo, se
oferecendo ou estendendo em sua direção os dedos do seu pé ou da sua mão; 4. Depois de ser
estimulado por sua mãe (ou pelo seu substituto): C) bebê procura suscitar a troca jubilatória
com sua mãe (ou com seu substituto), por exemplo, se oferecendo ou estendendo em sua
direção os dedos do seu pé ou da sua mão.
Os resultados da primeira avaliação chamaram a atenção pelo fato de apenas um
indicador do roteiro IRDI estar presente (IRDI 4 - A mãe propõe algo à criança e aguarda sua
reação). Tal preocupação foi reforçada com a pontuação do PREAUT. Essas questões ficam
ainda mais evidentes na análise da cena de interação entre Laís (L) e Pedro (P) no quadro 35.
sonora indistinta, mas nesse caso, parece não endereçar mais à mãe, colocando como questão
a possibilidade de Pedro de preencher seu lugar de fala com fala mas nem sempre perceber os
seu efeitos sobre Laís.
Por fim, a cena do quadro 37 que também ocorre na sequência das duas anteriores,
mostra a tentativa contínua de Laís em estabelecer relações de homologia e interpretância para
o sistema semiótico corporal de Pedro mesmo que ele mantenha-se completamente indiferente
a ela. A questão do evitamento do olhar segue evidente em toda a filmagem, bem como as
tentativas de Laís em chamar a atenção do filho.
Na terceira avaliação, foi realizada uma entrevista continuada, aplicação dos roteiros
IRDI fase II e SEAL fase I, além da análise dos mecanismos enunciativos, a partir da
filmagem da díade. Em relação aos IRDI avaliados na fase II, verificou-se a presença dos
IRDI: 6. Criança começa a diferenciar dia e noite; 9. A mãe fala com a criança dirigindo-lhe
pequenas frases; e, 12. Mãe dá suporte às iniciativas da criança sem poupar-lhe o esforço.
Os IRDI ausentes foram: 7. A criança utiliza sinais diferentes para expressar suas
diferentes necessidades; 8. Criança solicita a mãe e faz um intervalo para aguardar sua
resposta; 10. Criança reage (sorri, vocaliza) quando a mãe ou outra criança está se dirigindo a
ela; 11. Criança procura ativamente o olhar da mãe; e, 13. Criança pede a ajuda de outra
pessoa sem ficar passiva. Ressalta-se que, apesar do quadro 38 ilustrar uma cena em que
Pedro reage à Sol, o item 11 foi considerado ausente porque, ao longo de toda a avaliação,
este foi o único momento em que Pedro respondeu às iniciativas da mãe, sugerindo a
necessidade de Léia chamar-lhe muitas vezes para que o menino lhe respondesse.
Em relação ao SEAL fase I, verificou-se a presença de: 1. A criança reage ao
manhês, por meio de vocalizações, movimentos corporais ou olhar; 4. A criança preenche seu
lugar na interlocução silenciosamente apenas com movimentos corporais e olhares
sintonizados ao contexto enunciativo; e, 7. A mãe (ou substituta) atribui sentido às
157
Na avaliação aos seis meses, Pedro apresentava-se um pouco mais sintonizado com
sua mãe. E, apesar dela precisar chamá-lo algumas vezes até que ele respondesse, Pedro
reagia às iniciativas da mãe por meio de olhares e movimentos corporais. Nesses momentos,
Laís percebia o esforço de Pedro e demonstrava sua alegria com sorrisos e com uma
158
entonação mais aguda, tal como no quadro 38 (linhas 4 e 5). Mas, assim como a avaliação
anterior, fica evidente o quão fugaz são esses momentos de trocas de olhares e de interação
entre a díade. Afinal, Laís precisava chamar Pedro muitas vezes até que ele respondesse. E,
quando finalmente o fazia, a interação não durava mais que segundos, pois Pedro já volta sua
atenção para os objetos inanimados da sala. Percebeu-se também que, tal como a avaliação
anterior, em nenhum momento foi Pedro quem iniciou a protoconversação, o que permitiria
verificar o terceiro tempo pulsional no bebê.
Na avaliação dos nove meses foi realizada uma entrevista continuada para atualização
dos dados da rotina, filmagem da díade, análise dos mecanismos enunciativos, além da
aplicação dos roteiros PREAUT, IRDI fase III e SEAL fase II. Em relação aos IRDI,
estiveram presentes: 14. Mãe percebe que alguns pedidos da criança podem ser uma forma de
chamar sua atenção; 16. A criança demonstra gostar ou não de alguma coisa; e, 19. A criança
possui objetos prediletos.
Por outro lado, percebeu-se a ausência dos IRDI: 15. Durante cuidados corporais, a
criança busca ativamente jogos e brincadeiras amorosas com a mãe; 17. Mãe e criança
compartilham uma linguagem particular; 18. A criança estranha pessoas desconhecidas para
ela; 20. A criança faz gracinhas; 21. A criança busca olhar de aprovação do adulto; e, 22. A
criança aceita alimentação semissólida, sólida e variada.
Em relação aos sinais PREAUT, Pedro atingiu o somatório de sete, não apresentado os
seguintes sinais: 1. O bebê procura olhar para você: A) Espontaneamente; 2. O bebê procura
“se fazer” olhar por sua mãe (ou pelo substituto dela): A) na ausência de qualquer solicitação
da mãe, vocalizando, gesticulando ao mesmo tempo em que a olha intensamente; 3. Sem
qualquer estimulação de sua mãe (ou de seu substituto): B) Ele sorri para sua mãe (ou para
seu substituto); C) O bebê procura suscitar uma troca prazerosa com sua mãe (ou seu
substituto), por exemplo, se oferecendo ou estendendo em sua direção os dedos do seu pé ou
da sua mão; 4. Depois de ser estimulado por sua mãe (ou pelo seu substituto): C) O bebê
procura suscitar a troca jubilatória com sua mãe (ou com seu substituto), por exemplo, se
oferecendo ou estendendo em sua direção os dedos do seu pé ou da sua mão?
Marcando que Pedro mostrou-se mais responsivo nessa avaliação, pode-se verificar,
diferentemente da avaliação no terceiro mês, que Pedro apresentou o sinal: 3. Sem qualquer
estimulação de sua mãe (ou de seu substituto): A) Ele olha para sua mãe (ou para seu
substituto).
160
O quadro 40 ilustra uma cena em que Pedro apresenta estruturas sonoras indistintas a
partir da convocação de Laís. Percebe-se que ainda não são protopalavras, mas Pedro já
responde à Laís de forma sintonizada à situação (linhas 5 e 6). Nessa cena também fica
evidente que Pedro apresenta alguma espécie de desconforto, enrijecendo suas pernas e
demonstrando seu descontentamente. E, Laís, por sua vez, percebe a irritação de Pedro mas
não consegue interpretar sua manifestação corporal enquanto sinal de dor. Aqui, percebe-se
novamente o fracasso das tentativas de homologia e interpretância, pois mesmo endereçando-
se a Pedro sugerindo que ele está brabo (linha 9), ela não consegue perceber que ele está
sentindo dor.
A avaliação dos nove meses também permitiu começar a perceber as dificuldades de
Pedro em relação às questões gastrointestinais, apesar da mãe até então não estabelecer
relações com suas manifestações de irritação e desconforto.
Além disso, na avaliação pode-se perceber que Pedro era extremamente sensível a
barulhos, mantinha uma atitude de evitamento em relação a pessoas e lugares, além de uma
seletividade alimentar importante. Em virtude de suas questões psicomotoras,sensoriais e
dificuldades intersubjetivas (risco para autismo), Pedro foi avaliado por terapeuta ocupacional
com formação psicanalítica e, a partir dos dez meses, recebeu intervenção. Na avaliação da
T.O. foi possível observar que Pedro:
162
É um menino bastante angustiado. Não olha para o rosto da mãe e da avó. Não
antecipa algo que queira pelo olhar, pela voz, ou mostrando, apontando. Ele vai em
direção aos objetos sem conhecer o ambiente. Quando a angústia aparece ele procura
o colo da mãe ou da avó. Caso elas não o peguem, ele escala, já resmungando num
início de choro. Apesar de as duas iniciarem uma oferta ansiosa de coisas para
pegar, ou para olhar, ou para comer, tentando evitar que comece chorar, elas não são
bem sucedidas. Ele chora.
O choro é estridente, desesperado e agitado. O que chamou a atenção foi exatamente
o corpo em constante agitação, se torcendo por vezes como se quisesse sair do colo
(elas o colocam o chão e ele se desespera mais ainda, buscando o colo). (...)
Esperneia como se fosse andar ali no colo delas. Ou para, repentinamente, de agitar-
se, continua chorando e olhando para os lados e para cima, como se estivesse
perdido.
(...)
O primeiro choro durou cinco minutos e o segundo durou oito. Depois disso, ele
dormiu. Quando acordou a terapeuta conseguiu seu primeiro contato, quando foi
possível observar também que o menino atendia pelo nome ao chamamento da mãe.
(...)
Não utilizou nenhum dos brinquedos com a função destes, muito menos criou uma
função para eles (...) como por exemplo bater um no outro, botar na boca, jogar
longe.
(...)
No único contato frutífero com a terapeuta, o menino seguiu a trajetória dela
enquanto se escondia, e antecipava o aparecimento dela, olhando para o local.
Aceitou passivamente a brincadeira. Divertiu-se, olhou para a terapeuta, porém não
pediu para que a brincadeira se repetisse. (PERUZZOLLO, 2016, p. 155-156).
conduzir Pedro até a universidade para os atendimentos semanais, o menino pára de receber
intervenção. Somente, após a avaliação dos 36 meses é que Pedro volta a receber atendimento
especializado por uma outra profissional T.O. com ênfase em integração sensorial e
constituição do psiquismo, como será descrito na avaliação de 36 meses.
Nesse encontro com a díade foi realizada uma entrevista continuada, filmagem da
díade, bem como a aplicação dos roteiros IRDI fase IV e SEAL fase III. Em relação ao roteiro
IRDI, foram verificados como presentes: 23. A mãe alterna momentos de dedicação à criança
com outros interesses; 24. A criança suporta bem as breves ausências da mãe e reage às
ausências prolongadas; 25. A mãe oferece brinquedos como alternativas para o interesse da
criança pelo corpo materno; 26. A mãe já não se sente mais obrigada a satisfazer tudo que a
criança pede.
Por outro lado, foram verificados como ausentes os indicadores: 27. A criança olha
com curiosidade para o que interessa à mãe; 28. A criança gosta de brincar com objetos
usados pela mãe e pelo pai; 29. A mãe começa a pedir à criança que nomeie o que deseja, não
se contentando apenas com gestos; 30. Os pais colocam pequenas regras de comportamento
para a criança; e, 31. A criança diferencia objetos maternos, paternos e próprios.
No SEAL fase III, apesar da necessidade de muito investimento materno, foi possível
verificar a presença dos seguintes sinais: 15. A criança nomeia de modo espontâneo e
inteligível ao adulto interlocutor, objetos, pessoas, ações, que estão presentes no contexto
enunciativo; e, 19. O adulto interlocutor atribui um sentido possível às produções verbais da
criança, ou seja, de modo sintonizado. Cabe destacar que as nomeações ainda eram em
pequena escala mas já estavam presentes. Todos os demais sinais estiveram ausentes: 13. A
criança nomeia de modo espontâneo e inteligível ao adulto interlocutor, objetos que estão
ausentes no contexto; 14. A criança nomeia de modo espontâneo, mas não inteligível ao
adulto interlocutor, objetos que estão ausentes no contexto, buscando na prosódia uma forma
de ser compreendida; 16. A criança faz gestos para tentar fazer-se entender quando o adulto
interlocutor não a compreende; 17. A criança repete o dizer do adulto interlocutor como forma
de organizar ou reorganizar sua enunciação, por exemplo, aprimorando a forma sintática, ou
fonológica, ou a escolha do item lexical ou mesmo acentuando algum item prosodicamente;
164
18. Acriança conversa com diferentes interlocutores adultos (pai, mãe, examinador). Verifica-
se que os sinais 14, 15, 17 e 19 foram sinais considerados preditores de risco à linguagem
segundo Fattore (2018), confirmando os impasses de Pedro na linguagem tal como nas
avaliações anteriores.
Na cena do quadro 40 a díade está sentada de frente um para o outro e, atrás de Pedro,
há um espelho posicionado. Na ocasião, Laís oferece uma mamadeira com leite para Pedro
durante a filmagem mesmo a díade tendo acesso há uma caixa de brinquedos posicionada ao
lado deles.
A cena do quadro 41 permite verificar que, após a intervenção da T.O., Pedro parecia
apresentar mais momentos de interação com a mãe como partilhar o olhar, repetição de
movimento ou mesmo nomeando um objeto a partir da fala materna (linhas 23 e 24). Percebe-
se que, apesar dos avanços, Pedro é uma criança que demanda muito investimento da mãe
para que ele responda. Tal fato também deixa evidente que Pedro ainda não demonstrava
iniciativas que poderiam dizer de um terceiro tempo pulsional de modo sustentado fora das
sessões da terapeuta ocupacional (PERUZZOLO, 2016).
Em relação à possibilidade de assumir uma posição enunciativa, percebe-se que Pedro
permanece com estratégias do primeiro mecanismo, tendo ainda dificuldades em avançar no
diálogo enquanto sujeito da enunciação. A produção de “nhe nhe” na linha 24 parece mais
uma protopalavra do que uma palavra efetiva, mas que permite uma interpretação materna
rumo a produção de palavras.
166
partir de objetos que possam trazer referências do dia-a-dia de Pedro, como é o caso da
cachorrinha Magie.
resultados foram confirmados com a baixa pontuação com a avaliação a partir do Bayley-III,
cujos resultados apresentaram pontuação de 65 para a avaliação cognitiva e 47 para a
avaliação da linguagem. Ambos os resultados sugerem risco grave ao desenvolvimento.
Apesar de Pedro apresentar todos os SEAL ausentes na faixa etária avaliada, percebe-
se que Laís seguia buscando dar sentido às manifestações do menino, pedindo-lhe
esclarecimentos (linha 3) ou mesmo interpretando a vocalização de Pedro enquanto prenuncio
de choro (linha 7). Mas, permanecem evidentes as dificuldades de Pedro em assumir uma
posição no diálogo ou mesmo perceber os efeitos de sua fala sobre Laís.
Na avaliação dos 36 meses foi realizada uma entrevista continuada onde foram
atualizadas informações a respeito da dinâmica familiar e pode-se descobrir que Pedro seguia
169
sob os cuidados da avó materna enquanto sua mãe trabalhava fora e ainda não havia
começado a frequentar a escola. De acordo com Laís, Pedro não tinha contato com o pai
desde o último ano e a mãe ressalta que preferia dessa forma.
Laís conta que estava mais preocupada com Pedro porque ele havia começado a se
agredir com maior frequência e ainda não conseguia demonstrar para ela o que desejava ou o
que o perturbava. O menino mantinha uma seletividade alimentar severa, passando dias sem
conseguir evacuar e dependendo do uso de laxantes.
De acordo com a avaliação do Bayley-III, nessa faixa etária, Pedro apresentou uma
pontuação extremamente baixa tanto na avaliação cognitiva (55 pontos) quanto na avaliação
da linguagem (47 pontos).
Diferentemente de Aurora e Sol, a avaliação de 36 meses de Pedro precisou ser
realizada na residência de sua avó materna, local onde Pedro passa seus dias. Segundo Laís,
tirá-lo de sua rotina poderia trazer complicações para ela depois, pois desloca-lo sozinha ao
centro de ônibus poderia ser muito difícil. Na cena do quadro 45, Pedro e Laís estão sentados
de frente um para o outro e ambos têm acesso a mesma caixa de brinquedos utilizada nas
avaliações anteriores.
A cena do quadro 45 ilustra a primeira vez em que se verifica uma brincadeira de faz-
de-conta por parte de Pedro. Percebe-se que na cena, Pedro também faz vocalizações na qual
Laís tenta interpretar e devolver-lhe na tentativa de confirmação, mas entende-se que, de
acordo com sua faixa etária, seus impasses na linguagem e na constituição psíquica são
importantes. Ficou evidente na entrevista o quanto a questão gastrointestinal apresentava-se
como principal empecilho na vida diária de Pedro, atrapalhando ainda mais sua dificuldade de
interação, alimentação e mesmo exploração do ambiente e do mundo.
Para compreender melhor a situação de Pedro e conseguir convencer a família a investir
em nova intervenção, a orientadora deste trabalho realizou quatro sessões domiciliares nas
quais observou a angústia da avó em relação à dificuldade alimentar, a dificuldade da mãe e
demais membros da família em buscar uma solução médica para a solução do problema
gastrointestinal. Enquanto fonoaudióloga, observou que o potencial linguístico de Pedro era
bom quando estavam em um dia de maior conforto gastrointestinal, podendo inclusive
apresentar terceiro tempo pulsional, chama-la de “tia”, olhar um livro em conjunto. Por isso, a
partir de conversa com a família foram estabelecidas algumas metas: investigação médica do
problema gastrointestinal com orientação da família sobre como buscar os atendimentos
médicos na unidade básica de saúde e no hospital universitário, oferta de um suplemento por
uma nutricionista no leite alimento melhor aceito por Pedro, de modo a diminuir a inserção
de alimentos em sua boca durante todo o dia pela avó. Pedro deveria ter a nutrição garantida
pela mamadeira e se alimentar do que desejasse durante o dia sentando à mesa e participando
com iniciativa própria para sua alimentação e início de um trabalho de integração sensorial e
auxílio na subjetivação com terapeuta ocupacional especializada no tema.
Após essa avaliação foi proposto novamente uma intervenção com T.O. especializada
em integração sensorial, apostando que os impasses gastrointestinais, bem como a
hipersensibilidade sensorial seguiam produzindo obstáculos à possibilidade de Pedro assumir
uma posição no diálogo e constituir-se enquanto sujeito psíquico e de linguagem.
Na avaliação dos 48 meses, Pedro mostrou-se mais confiante, menos tímido, falava
pequenas frases como: “qué suco” ou “olha aí”, embora ainda não utilize nenhum pronome
pessoal. A mãe confirma esse fato e também afirma que ele não utiliza o nome próprio. Ele
172
resistindo a variação na alimentação. Segundo Laís, a seletividade alimentar é tão rígida que
Pedro chega a vomitar quando sente o cheiro do cozimento de alimentos como alho e feijão.
Vale salientar que a seletividade alimentar de Pedro não sofreu deslocamentos importantes a
partir das intervenções na visão de Laís.
Em relação ao brincar e à fantasia, segundo Laís, Pedro seguia brincando com os
mesmos brinquedos que o interessavam desde muito pequeno. Ele gostava de carrinhos e os
colocava enfileirados em uma prateleira, além de gostar de brincar de encher caminhões de
areia no pátio. Mais recentemente começou a se interessar pelos trabalhos de marcenaria do
avô e costuma o acompanhar em seus afazeres. Ela comenta que o menino não tinha muito
contato com outras crianças, mas quando ela o levava na pracinha, ele já demonstrava maior
interesse em interagir. Todavia, ainda tinha a tendência de brincar sozinho, com exceção das
vezes em que encontra um amigo que lhe diz como agir.
Pedro se interessou pelos objetos que estavam disponíveis para avaliação, mas em
nenhum momento mostrou suas descobertas para a mãe ou para o avaliador. Não foi
verificada qualquer brincadeira de fantasia ou “faz-de-conta”. Pedro apenas ordenava os
animais sem incluir alguém na cena. Laís conta que ele se coloca em risco em algumas
situações porque ainda não tem noção de perigo.
Em relações aos sintomas clínicos, percebeu-se: I.2. Ausência de enredo; I.3. Inibição;
I.4. Inconstância; I.6. Falta de iniciativa, passividade e falta de curiosidade; I.7. Manipulação
mecânica dos brinquedos; H I.9. Pobreza simbólica; e, I.10. Atividade ou movimentos
repetitivos.
Em relação ao corpo e sua imagem, Laís conta que o filho não apresentou
dificuldades em tirar a fralda, mas costuma utilizá-las durante a noite. Mesmo assim, por
vezes, Pedro lhe pede: “mãe, penico”. E a mãe o leva para fazer xixi antes de dormir. Pedro já
mostrava-se mais independente, pedia suco, água, comida e falava “agora chega” quando
estava satisfeito. Laís diz que ele não conseguia ainda dizer o pronome “eu” ou mesmo formar
frases como “O Pedro quer...”, mas utilizava-se de palavras para sinalizar o que desejava
comer, beber ou alcançar. Segundo ela, ele é inteligente, passa muito tempo assistindo
televisão ou brincando no celular, aprendendo muito através desses equipamentos. Ela conta
que ele não gosta que cantem para ele e são poucas as músicas que ele escuta que não o
deixam irritado, o que foi constatado nas avaliações das fonoaudiólogas da equipe que
identificaram sensibilidade auditiva exacerbada.
174
Percebe-se que Laís reconhece a irritação de Pedro em si mesma. Ela achava que ele
puxou essa “irritação e falta de paciência” dela, mas sua fala a respeito do filho é muito
permeada pelo fato dele ser autista. Ela usa o diagnóstico como justificativa de todos os
comportamentos do menino. Apresentando dificuldade em verificar traços que são próprios
dele. Apesar disso, reconhece que já conhece mais os motivos que o levam a chorar quando se
irrita e, mesmo quando não entende, pede que ele lhe explique o que o está fazendo sofrer. Ela
conta que em muitas ocasiões não consegue entender, mas, às vezes, ele fala que quer
“memédio”, para sinalizar que algo está lhe fazendo sofrer.
Como já mencionado, Pedro seguia tendo episódios de constipação graves que lhe
traziam grande desconforto e mal estar. Laís demonstrou ter mais conhecimento a respeito de
Pedro, principalmente por um saber teórico a respeito do autismo. Mas, por exemplo, ela
falava dessas questões na presença do filho como se ele não estivesse ouvindo. E, quando ele
se manifestava ao longo da conversa, ela ria e dizia, “mamãe está conversando”. Ela considera
as particularidades de Pedro, como o humor irritadiço, o apreço pelo avô e a preferência por
carros, mas sempre ressaltava o autismo.
Outra questão indagada foi se Pedro gostava de desenhar ou pintar. Ela apenas disse
que não. Que ele chegou a dar umas rabiscadas mas nunca se interessou. Sua fala pareceu que
ninguém mostrou para ele como desenhar ou sustentou suas iniciativas rumo à construção de
uma imagem de si porque não supunham que ele poderia se interessar.
Percebe-se nos relatos de Laís que Pedro seguia sendo uma criança de difícil “leitura”,
que não se deixava supor os motivos que o levavam a ter “ataques de choro furiosos” a ponto
agredir a si mesmo. Ela seguia sem entender muitas de suas escolhas do filho, principalmente
a respeito dos alimentos que aceitava comer, do porque se balançava incessantemente em uma
cadeira de balanço ou porque enrijecia os braços “como um galinho de asinhas abertas”
quando ficava nervoso com alguma situação. Ela tentava lhe perguntar, mas ele raramente lhe
respondia. E quando o fazia, apenas dizia uma ou outra palavra. Vale salientar que Laís não se
questionava se o menino entendia e sabia nomear o que sentia ou o que o deixava insatisfeito,
amedrontado, ela supunha que ele saiba. Apenas, não consegue dizer. Mas ela supunha que
essas dificuldades eram em virtude do “autismo” e não algo do próprio menino ou do laço.
Além do balanço repetitivo na cadeira e no movimento bizarro de enrijecimento dos
braços quando nervoso, Pedro também apresentava flapping e movimentos repetitivos dos
dedos em frente aos olhos “entortando os dedinhos”.
175
Laís conta que Pedro não apresentava sinais de vaidade ou de cuidados com o próprio
corpo. Ela conta que supõe que ele entendia as posições: em cima, embaixo, dentro, fora.
Mas ele não costumava usá-las. Pedro não demonstrava interesse pela imagem no espelho,
mesmo depois da insistência. Ele também não aceita fazer um desenho, apesar das tentativas
do avaliador.
Laís conta que ele ia ao banheiro sozinho fazer xixi, tomava banho, vestia-se sozinho
com uma roupa da sua escolha, mas o cocô ainda era um problema.
Ele não fez referência a um objeto do qual Pedro não quisesse se separar, mas
mantinha uma relação de dependência com a cadeira de balanço da casa da avó que o
acalmava toda a vez que ficava nervoso. Em relação aos sintomas clínicos, evidenciou-se: I.1.
Dificuldades no controle esfincteriano; II.2. Agitação motora; II.3. Atuações agressivas; II.4.
Ausência do reconhecimento de si como menino ou menina; II.7. Dificuldades alimentares:
alimentação seletiva e recusa do alimento; II.13. Exposição a perigos; II.15. Passividade;
II.16. Falhas no reconhecimento de si no espelho; II.17. Impossibilidade de suportar o olhar
do outro; II.19. Alterações do sono; e, II.20. Autoagressão.
Em relação às manifestações diante das normas e posição frente à lei, segundo Laís,
o avô materno é a referência de pai que Pedro tem. Ele, inclusive, chama o avô de pai. E
quando ele o encontra, despede-se da mãe e da avó lhes acenando e dizendo: “tchau, tchau”.
Laís conta que desde a última avaliação, por volta dos 36 meses, momento em que
Pedro foi novamente encaminhado para tratamento de sensoriomotricidade com uma T.O.,
Pedro vem fazendo avanços. Ele já reconhece a terapeuta, pede para andar de ônibus (porque
sabe que isso o levará até a sessão de terapia). Ele também começou a ter menos sensibilidade
com texturas, maior atenção compartilhada, interesse em brincar com outras pessoas e de
utilizar os brinquedos para atividades que não apenas de ordenação.
Quanto ao avaliador, Pedro se mostrou indiferente. E, quando se dirigia aos pais,
Pedro seguia em suas atividades. Por vezes, interrompia a mãe quando ela estava falando, mas
não no sentindo de participar da conversa ou expor ideias, era mais no sentido de desviar a
atenção da mãe de volta para ele. Em nenhum momento mostrou-se irritado, apenas
indiferente, mesmo quando a entrevistadora se voltava para ele e lhe fazia perguntas. Pedro
não se voltava para a mãe para lhe pedir auxílio ou para ver como ela reagia, ele apenas
seguia manipulando os objetos que tinha em suas mãos, como se ninguém houvesse lhe
chamado, excluindo o entrevistador da cena.
176
Laís em nenhum momento fala de algum traço que Pedro poderia lembrar o pai dele.
Diego era bastante silencioso, observador e, era tão fechado que ela mesma se questionava se
ele também não era autista. Mas que ela desiste de pensar nessa possibilidade quando pensa
que ele se engraçava para as alunas. Mas nunca queria estar com ela e o filho ou abrir mão de
algo da sua rotina para ficar com a família.
Quanto aos sintomas clínicos, evidenciou-se: III.1. Birras prolongadas; III.7. Recusa do
não; e, III.9. Indiferença às regras, limites e lei.
Em relação à posição na linguagem, como já mencionado anteriormente, a demanda
de Pedro é tomada no “concreto”, “ao pé da letra”. Ele pede suco, água, massa, carrinho. São
objetos específicos, sem qualquer possibilidade de deslocamento de interpretação de sua
escolha ou de sua atitude. Nesse sentido, suas demandas não são tomadas como enigmas, mas
sim, demandas que já ilustram precisamente o desejo que está implícito.
A alimentação segue sendo um momento muito ruim e delicado para Pedro. E, tal
como a mãe relata, não se trata de uma experiência prazerosa para ele. Invariavelmente vai
representar um mal-estar relacionado à prisão de ventre. Segundo Laís, Pedro não compartilha
suas descobertas com ela ou sua mãe. Poderia se dizer que ele é tão “apaixonado” pelo avô
que haveria ali algo de um compartilhar, mas ainda assim, é o avô que faz isso com Pedro e
não o contrário.
Laís conta que tenta entender o que Pedro quer e, por vezes, ele sai embaralhando as
palavras e ela não o entende. Mas ele tenta e ela fica tentando adivinhar o que ele está
dizendo. Ela não parece curiosa com as descobertas de Pedro porque o menino passa os seus
dias na casa da avó, lugar que a mãe supõe ser previsível e ela já sabe o que Pedro pode vir a
fazer. Ela conta que já consegue estabelecer pequenas regras com Pedro, mas geralmente ele
só faz o que querer. E, quando suas demandas são satisfeitas, ele apenas segue, sem grande
alarde ou demonstração de felicidade, como se aquilo fosse suficiente apenas para ele não
chorar e se desesperar e não para sorrir ou celebrar.
Pedro não dialogou com a avaliadora. Com a mãe e a avó materna, dirigiu palavras
com o objetivo de conseguir algo. Nesses termos, entendia-se o que ele queria. Mas a mãe
conta que, em muitas situações, não consegue compreender o que o filho quer. Pedro não usa
pronomes pessoais ou o nome próprio para se referir. Mas escuta o que sua mãe tem a dizer,
apesar da mãe dizer que ele é muito teimoso e “não escutá-la”. Mas não foi verificada a
possibilidade de Pedro questionar sua mãe.
178
Quanto aos sintomas clínicos, percebe-se: IV.1. Ausência de pronomes pessoais; IV.2
Repetição ecolálica; IV.4. Fala infantilizada; IV.6. Linguagem incompreensível sem busca de
interlocução; IV.7. Pobreza expressiva; IV.8. Pobreza de vocabulário; IV.10. Fala traduzida
pelo cuidador; IV.14. Não forma frases (pobreza simbólica).
Acredita-se que tais manifestações de sofrimento expressas por Pedro diziam mais de
sintomas em decorrência de questões gastrointestinais e do próprio desenvolvimento da
sensorialidade global (BUSNEL; HERON, 2011) que apresentava impasses em termos de
integração sensorial dos diversos estímulos que chegavam até ele. A partir de então,
questiona-se o quanto habitar um corpo com dor fazia obstáculo ao seu acesso à linguagem a
partir da operação de alienação.
Percebe-se que o sofrimento gastrointestinal era tão forte e potencializador da
exclusão do Outro que, nos momentos em que Pedro sentia-se melhor e seu organismo
“estava funcionando”, como dizia a mãe, Pedro conseguia responder a algumas demandas
maternas após suas investidas. Mesmo assim, desde muito pequeno, era frequente Pedro ser
levado por Laís para um lugar familiar e silencioso para acalmá-lo quando estava “nervoso”.
E, mesmo que ele respondesse para ela em certas situações, em nenhum momento dentre
todas as avaliações foi verificado a possibilidade de ele convoca-la. Apesar de, quando
sentindo-se bem, ele respondia à algumas das investidas maternas.
O tempo da alienação apresenta-se com um impedimento para Pedro e sua mãe. E, tal
como Laznik (2013a) supõe os três tipos de alienação, acredita-se que a alienação imaginária
falha porque Pedro não se aliena no olhar do Outro, falha também a alienação real porque
Pedro não se faz objeto da pulsão do Outro no real, o que marcaria o fechamento do circuito
pulsional. Por fim, a alienação simbólica também não se dá porque a mãe tenta dirigir-lhe
significantes que possam inscrever seu corpo no campo da linguagem, mas Pedro não os
registra.
Vale ressaltar que, aos 48 meses, Pedro já é capaz de usar palavras para expressar
necessidades. Por exemplo, ele é capaz de pedir suco, comida e penico, o que marca um
progresso importante em um menino que não queria se alimentar e se esquivava de ir ao
banheiro. Todavia, Pedro não utiliza a linguagem para endereçar-se a alguém no diálogo e são
poucas as estratégias do segundo mecanismo enunciativo que ele utiliza. Em termos de
terceiro mecanismo, foi verificado que apenas a intimação se estabeleceu como função.
Percebe-se também que, apesar dos avanços com as intervenções, Pedro permaneceu
com impasses no terceiro tempo pulsional, tal como propõe Laznik (2013c), pois, apesar de
uma intervenção a tempo ter sido estabelecida aos 10 meses ela não continuou pelo tempo
necessário para que a alienação se desse. Pedro era capaz de olhar, até mesmo de sorrir, mas
Pedro não “se fazia” objeto de júbilo de sua mãe ou de qualquer outra pessoa.
180
Pensando nos registros fundantes do campo pulsional no primeiro ano de vida do bebê,
tem-se o registro da oralidade como estando fortemente prejudicado, cristalizado com a marca
da exclusão do Outro o que pode ser constatado com sua seletividade alimentar (por exemplo,
desde o início da introdução alimentar com a recusa de alimentos não pastosos como era o
caso dos grãos), sua dificuldade de aceitar qualquer espécie de medicação oral ou, ainda, as
dificuldades que sua mãe enfrentava quando precisava cuidar da higiene bucal do menino. Ao
contrário, por suas dificuldades sensoriais e gastrointestinais, o registro oral foi sempre de
desconforto e dor, o que põe em questão a importância da assistência médica adequada muito
difícil no caso em questão, apesar dos esforços da família e da equipe de pesquisa para
encaminhar Pedro aos atendimentos médicos.
Aos 36 meses, Pedro ainda não tinha conseguido ser avaliado por um dentista porque,
nas vezes em que a mãe o havia levado, Pedro entrava em surto, batia em todos e não se
deixava ser examinado. Quanto aos médicos pediatras da unidade de saúde foram indicados
medicamentos que atacaram o sintoma mas não houve um direcionamento de Pedro para
especialista para investigar as causas dos problemas gastrointestinais. Apenas após o episódio
de encoprese grave houve um agendamento, ainda muito lento, no hospital universitário para
a investigação mais profunda do caso.
Em relação à pulsão invocante, ressalta-se a potência do manhês (CATÃO, 2009),
enquanto esse dito vindo do Outro marcado por frases simples, curtas, ritmadas e com pausas
e repetições bem marcadas. Todavia, era necessário convocar Pedro muitas vezes até que ele
lhe dirigisse a atenção. Na maior parte das vezes, o olhar e a voz materna não faziam efeito
sobre seu ele. E, mesmo que a mãe de Pedro tentasse inscrever os diferentes registros
pulsional, inclusive, a partir da pulsão invocante, de modo muito mais frequente, consistente e
lúdico do que a mãe de Aurora, as investidas de Laís não eram reconhecidas pelo filho.
Considerando os impasses sensório-motores de Pedro e diante da inconsistência de
registros pulsionais do olhar e dos discursos maternos, percebe-se o quanto a construção de
uma imagem corporal, perceptível através do estádio do espelho, ficou debilitada. Por isso,
percebe-se que, juntamente com a dimensão simbólica, no caso de Pedro, o encontro do Real
com o Imaginário também fracassa.
A avaliação de Peruzzollo (2016, p. 168) confirmou as dificuldades que Pedro
enfrentava para a elaboração de uma imagem corporal. E ainda ressalta o quanto a imagem
que a família pode construir de Pedro o marcava enquanto um menino “chucro”, “irritado” e
181
que não aceita outras pessoas a não ser a mãe, o pai e os avós maternos. Além disso, o
sintoma psicomotor de Pedro de choro e agitação motora, sem rumo, estaria pela ordem de
que ele também não sabia o que fazer com o próprio corpo, que, entre outros aspectos, era
fonte de dor.
Atualmente, Pedro segue em atendimento com uma outra T.O. com foco na integração
sensorial. Segundo a profissional, Pedro chegou para atendimento com a demanda de
seletividade alimentar e agitação psicomotora. Desde então, a intervenção ocorre em uma sala
especializada, com equipamentos apropriados e visa a organização sensorial de Pedro, a partir
dos sistemas vestibular, proprioceptivo e tátil, para que ele possa dar conta da agitação
psicomotora, concentrar-se e aumentar os momentos de contato visual e interação.
Entende-se que Pedro ainda apresenta uma maior defasagem no sistema tátil,
resistindo a diferentes texturas, o que potencializa suas questões de seletividade alimentar.
Mas, avanços importantes vêm sendo conquistados, considerando a dimensão simbólica,
articulando de forma lúdica o ato de comer e visando também uma integração desses
diferentes sistemas. Além disso, os momentos de contato visual são cada vez mais frequentes,
a responsividade quando é chamado pelo nome, bem como a permanência e interesse em
brincadeiras simbólicas e compartilhadas com a avaliadora.
A equipe segue a demanda por uma avaliação médica que solucione melhor os
problemas gastrointestinais o que tem sido o aspecto mais desafiador no cuidado do caso
porque não temos um nutrólogo especializado no tema na realidade de Santa Maria.
182
183
5 DISCUSSÃO
Considerando a organização desta tese em dois estudos, neste capítulo, será feita a
discussão de cada estudo e, posteriormente, as contribuições de ambos para o tema proposto.
Assim, a partir da comparação dos resultados do estudo quantitativo os resultados
evidenciaram que houve associação estatística entre a ausência de certos sinais com a
presença de risco no roteiro IRDI e nos Sinais PREAUT. O que se pôde verificar é que a
presença de risco para o IRDI, considerando risco a ausência de dois ou mais indicadores,
apresentou associação estatisticamente significativa com os SEAL: 1 (A criança reage ao
manhês, por meio de vocalizações, movimentos corporais ou olhar), 2 (A criança preenche
seu lugar na interlocução com sons verbais como vogais e/ou consoantes), 3 (A criança
preenche seu lugar na interlocução com sons não verbais de modo sintonizado ao contexto
enunciativo), 4 (A criança preenche seu lugar na interlocução silenciosamente apenas com
movimentos corporais e olhares sintonizados ao contexto enunciativo), 5 (A criança inicia a
conversação ou protoconversação), 7 (A mãe ou substituta atribui sentido às manifestações
verbais e não verbais do bebê, e sustenta essa protoconversação ou conversação, quando o
bebê a inicia) e 16 (A criança faz gestos para tentar fazer-se entender quando o adulto
interlocutor não a compreende).
Segundo Crestani (2016), os sinais 3, 4 e 7 foram considerados críticos no processo de
aquisição da linguagem. E, ao confrontar resultados obtidos com o SEAL no primeiro ano de
vida e os resultados do roteiro IRDI aplicados no mesmo período, Crestani (ibidem) também
se observou correlação significativa entre risco psíquico e risco à aquisição da linguagem. Tal
resultado reforça os resultados encontrados por Crestani et al. (2015) de que a presença de
risco psíquico tem efeito sobre as produções infantis, tendo em vista que bebês sem risco
produziam praticamente o dobro de palavras entre 13 e 18 meses, do que aqueles com risco
nos primeiros meses de vida.
Ainda, pode-se inferir, a partir dos resultados de associação estatisticamente
significante entre o roteiro IRDI e os sinais 2, 3 e 4 do SEAL, que avaliam a qualidade da
participação da criança na conversa, que pode estar afetada tanto em uma criança com risco
para quadro de autismo quanto para uma criança com risco psíquico de outra natureza. Nesse
sentido cabe destacar que na comparação dos sinais do SEAL alterados nos casos de risco e
sem risco pela avaliação dos Sinais PREAUT não houve alteração significativa dos sinais 2,3
184
da fala e compreensão da linguagem. Portanto, este resultado demonstra que esta pode ser um
boa porta de entrada para solicitação de bebês em risco de autismo no processo de intervenção
a tempo, como atestam relatos clínicos de Laznik (2013).
Em relação ao protocolo PREAUT, ressalta-se ainda a necessidade de uma
interpretação clínica pautada na avaliação dos sinais à luz da singularidade de cada caso. Isso
porque, enquanto Aurora não apresentava apenas o sinal 2A, sugerindo que ela não
apresentava o terceiro tempo do circuito pulsional, mas que olhava para a avaliadora, e
quando estimulada pela avaliadora era responsiva e observadora, tal como expresso pela
presença dos sinais 1A e 1B, Pedro não apresentava nenhum dos três, tendo como presente
apenas o sinal 2B. No caso de Pedro, como a pontuação somou 3, foi necessário a realização
das perguntas 3 e 4. Desse modo, percebe-se que apesar dos dois bebês terem um somatório 7,
a partir da análise dos sinais ausentes, pôde-se verificar que uma mesma pontuação pode
representar bebês com condições subjetivas diferentes.
Especificamente em relação ao estudo qualitativo, observou-se nos três casos clínicos,
que a hipótese inicial de funcionamento de linguagem pôde contribuir para a compreensão da
constituição psíquica do bebê e verificação da qualidade do laço que se estabelecia entre o
bebê e o cuidador (mãe ou pessoa de referência primordial).
Partindo da premissa proposta por Lacan de que o Inconsciente é “estruturado como
uma linguagem” (LACAN, 1964/1988) e que “é toda a estrutura da linguagem que a
experiência psicanalítica descobre no inconsciente” (LACAN, 1957/1998, p. 498), pode-se
pensar que, de fato, as operações de homologia e interpretância (SOUZA, 2015), bem como
dos mecanismos conjuntivos e disjuntivos (SILVA, 2009) contribuíram para a análise das
protoconversações.
Segundo Benveniste (1969/1989, p. 57), “a linguagem serve de sistema interpretante
principal em relação aos demais (sistema artístico, por exemplo) pelo seu caráter semiótico”,
por isso, é possível pensar em termos de sistemas semióticos diferentes quando utilizados os
conceitos de homologia e interpretância na identificação da existência de conjunção. Deste
modo, foi possível perceber que as protoconversações se configuram em uma forma
discursiva que ocorre no laço e que é passível de análise e escuta analítica.
Parte-se da premissa de que o bebê é tomado no discurso materno por uma rede
simbólica estruturante que preexiste a ele, mas que ele também contribui ativamente nas
protoconversações, tal como evidenciam estudos atuais (NAGY et al., 2017; LAZNIK;
186
Essa proposição pode ser lida à luz dos casos, como se percebe, por exemplo, em
Aurora. Entender o laço que se estabelecia entre ela e Maria, a partir da análise do diálogo,
permitiu supor como estavam em funcionamento as operações de alienação e separação, bem
como os impasses enfrentados. Em virtude de Maria apresentar sintomas de depressão pós-
parto que alimentava sua insegurança em relação à maternidade e Aurora, por sua vez, ser um
bebê sensível com sintomas de evitamento de sua mãe, nos primeiros meses era possível
verificar impasses nas relações de homologia e interpretância propostas pela mãe e que, em
termos de constituição psíquica, pode-se pensar em impasses na alienação.
Percebeu-se também que, tanto Aurora quanto Maria, apresentavam sinais de
sofrimento psíquico diante do encontro que se estabelecia entre ambas, pois Maria sentia-se
frustrada com seu desempenho no exercício maternal e, Aurora em contrapartida, não
encontrava em sua mãe manifestações de júbilo e alegria nas cenas de diálogo que a
convocavam ao laço e, em resposta, apresentava uma atitude desviante.
Essa suposição também aparece na fala materna, como, por exemplo, quando ela diz à
filha, na avaliação dos três meses, “não quer cantar com a mamãe?”. Ou mesmo quando a
chama inúmeras vezes sem que Aurora lhe devolvesse uma resposta com olhar ou
vocalização. Entende-se que Aurora apresentava sinais de um sofrimento psíquico, pois
quando em interação com o pai ou com a avaliadora, Aurora sorria e olhava de modo
endereçado após alguma estimulação, apesar de ainda não ser capaz de “provocar” a mãe ou
outro interlocutor. Inicialmente, ela não era capaz de provocar o interlocutor, algo visível na
ausência no sinal 2A, embora pudesse apresentar o 1A e 1B após algum investimento. No
segundo semestre de vida, esse sinal emergiu logo após à saída de Maria do processo
depressivo.
Diante desses desafios, no caso de Aurora, a hipótese inicial de funcionamento de
linguagem pôde ser pensada em termos de impasses nas operações de homologia e
interpretância e de operações conjuntivas eu-tu entre Aurora e Maria. Ambas não conseguiam
articular um diálogo que se retroalimentasse. Isso porque, de um lado, Aurora compreendia
que sua mãe estava triste e não reconhecia em seu olhar, em sua voz e em seu gesto
manifestações que a convocavam para a relação e, por outro lado, Maria endereçava
demandas à Aurora, mas não via respostas e interpretava o comportamento da menina como
um evitamento que confirmava seu fracasso no exercício materno.
188
Aqui, entende-se que a intervenção com a díade poderia ser pensada no sentido de
contribuir para sustentar essa tradução entre os diferentes sistemas semióticos e que reiterasse
o papel ativo de cada uma, restituindo-as na importância de cada uma no diálogo. Acredita-se
que dessa forma haveria a possibilidade do aparecimento de mecanismos conjuntivos nas
protoconversações, tal como ficou evidente nos momentos de júbilo entre Maria e Aurora
cada vez mais frequentes com o passar dos meses e pela escuta oferecida à Maria ao longo
dos primeiros meses.
Diferentemente do caso de Aurora, Sol não apresentou sinais de impasses à
constituição psíquica nos primeiros meses de vida, tanto na análise por meio do roteiro IRDI
quanto dos Sinais PREAUT. Todavia, à medida que os meses foram passando, vários
indicadores do roteiro IRDI estiveram ausentes, sobretudo aqueles relacionados com a função
paterna. Tais indícios sugerem que Sol apresentava impasses à constituição psíquica,
especialmente ao tempo da separação, tal como se pôde perceber na análise do diálogo entre
ela e Léia.
Na análise enunciativa ficou evidente que Léia conseguia estabelecer relações de
homologia e interpretância ao sistema semiótico corporal de Sol, alimentando mecanismos
conjuntivos eu-tu falando pela menina. Todavia, quando se tratavam de relações disjuntivas
eu/tu, por meio das quais Sol poderia assumir uma posição discursiva em separado da mãe,
isso não acontecia, pois ao mesmo tempo em que Léia não reconhecia Sol como sujeito de
linguagem capaz de expressar-se, Sol também não ocupava sua posição no discurso.
Percebe-se então que novamente as dificuldades evidentes no laço entre Sol e Léia, e
que a hipótese inicial de funcionamento da linguagem que se lança refere-se aos impasses nas
relações de disjunção em virtude de Léia não reconhecer um saber em Sol ao mesmo tempo
em que Sol também resistia a apropriar-se do aparelho da linguagem, apesar de apresentar, ao
longo dos primeiros meses, estratégias do primeiro e do segundo mecanismo enunciativos.
No caso de Sol, levantou-se como questão, em termos de constituição psíquica, o
quanto a Função Paterna e a operação de separação faziam função, marcando uma falta em
Léia, um não saber a respeito de sua filha que somente a menina poderia lhe responder,
colocando em ação a dialética necessidade-demanda-desejo (NETO, 2009).
No terceiro caso do estudo qualitativo, a análise da linguagem permitiu colocar em
questionamento as condições que o bebê aporta no momento de encontro com o sistema
semiótico materno. Isso porque, diferentemente dos casos anteriores, no caso de Pedro
189
para a relação, “fazendo-se” para o Outro (LAZNIK, 2013c), percebe-se a importância das
pulsões invocante, escópica e tátil nas cenas analisadas.
No caso de Aurora, a pontuação dos Sinais PREAUT aos nove meses sugeriu que ela
não apresentava o terceiro tempo do circuito pulsional quando avaliada com a mãe.
Entretanto, acredita-se que sua dificuldade era oriunda da fragilidade do laço que as duas
sustentavam, pois, no momento em que ambas conseguiram experimentar de forma prazerosa
o encontro com a outra, começou-se a verificar situações em que a pulsão invocante, a
escópica e a tátil circulavam na cena. Essa melhora não foi verificada no caso de Pedro.
Percebe-se que, mesmo quando Laís lançava demandas ao filho, ela raramente recebia um
olhar ou um gesto do menino. Pedro nunca a convocava ou fazia-se ser olhado pela mãe. Essa
constatação a partir dos Sinais PREAUT, verificada na análise dos diálogos, reforçou a
preocupação em relação ao menino. Enquanto as relações conjuntivas e disjuntivas foram
emergindo nos diálogos de Aurora com Maria, elas não emergiram no caso de Pedro e Laís.
As contribuições de uma hipótese inicial de funcionamento de linguagem à avaliação
psíquica foram confirmadas com os resultados obtidos com comparação dos resultados no
SEAL entre crianças com e sem sofrimento psíquico no estudo quantitativo. Isso porque o
SEAL é um instrumento que foi construído a partir dos mecanismos enunciativos de Silva
(2009a), considerando as operações de conjunção e disjunção, bem como de homologia e
interpretância. Embora coerente com o SEAL, o dispositivo proposto diferencia-se dele
porque, além de fornecer indícios, permite uma leitura mais individualizada de cada caso e
conjunta da participação do bebê e da mãe no diálogo.
Quanto à AP-3, percebeu-se que a sua utilização contribuiu para a elucidação e
compreensão de diferentes dimensões da constituição psíquica em curso nas crianças.
Entretanto, mais uma vez percebe-se o quanto a possibilidade de uma análise enunciativa
contribuir para o eixo “posição do sujeito na linguagem”. Isso porque a possibilidade de se
pensar a avaliação da constituição psíquica em conjunto com uma abordagem teórica de
linguagem que seja efetiva para pensar a posição do sujeito na linguagem apresentou-se um
caminho de maior compreensão dos casos e também que pode fornecer direções de
intervenção. A abordagem enunciativa proposta por estudos que deslocaram Benveniste para
estudar a linguagem de bebês e para a clínica com bebês permite criar dispositivos de análise
da linguagem mais potentes porque diferenciam o domínio gramatical e o processo de
semantização da língua, a partir do qual se pode apreender a dinâmica entre os participantes
191
6 CONCLUSÃO
A presente tese de doutorado teve como objetivo geral discutir a formulação de uma
hipótese inicial de funcionamento de linguagem como dispositivo analítico na avaliação da
constituição psíquica de bebês e do lugar de enunciação que ele ocupa no diálogo mãe-bebê.
Para tal, comparou os perfis enunciativos de crianças com e sem sofrimento psíquico
considerando os fatores materno e da criança.
Para sustentar tais formulações foram realizados dois estudos. No Estudo 1 foram
realizados testes estatísticos buscando associações entre o perfil enunciativo de crianças com
e sem risco nos IRDI e no PREAUT, considerando os fatores materno e da criança a partir da
análise do SEAL. Pode-se concluir que houve associação estatística entre a presença de risco
à constituição psíquica e o processo de aquisição da linguagem.
Ainda, no Estudo 2 foi proposta a análise do funcionamento da linguagem das díades,
podendo-se formular uma hipótese inicial de funcionamento de linguagem associada à
constituição psíquica, a partir de seu confronto com os roteiros IRDI, Sinais PREAUT e
SEAL. O estudo permitiu verificar aspectos enunciativos da protoconversação inicial. Tais
resultados evidenciaram a efetividade do instrumento no processo de detecção a tempo de
sofrimento psíquico em bebês.
Tais resultados permitem pensar, no contexto dos serviços de puericultura do Serviço
Único de Saúde, a possibilidade de avaliação dos bebês a partir dos instrumentos utilizados
(IRDI, Sinais PREAUT e SEAL) na atenção primária.
Por fim, cabe destacar que a potência desse dispositivo, em um contexto de
transferência, pode auxiliar a formulação de uma a hipótese de funcionamento do psiquismo
em um processo clínico de intervenção, que embora não abordado nesta tese, pode indicar a
continuidade desta investigação em trabalhos futuros.
194
195
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__________________________ __________________________
Assinatura do participante Assinatura do responsável pelo estudo
__________________________
Nº identidade
209
ENTREVISTA INICIAL
VARIÁVEIS SOCIODEMOGRÁFICAS
Nome da mãe: Idade:
Estado civil: Solteira( ) Casada( ) Divorciada( ) Viúva( )
Escolaridade materna: EFI( ) EFC( ) EMI( ) EMC( ) ESI( ) ESC( )
Profissão materna: Dona de casa( ) Outra( ) Especificar:
Situação profissional: Licença maternidade( ) Desempregada( ) Não trabalha( )
Número de filhos: Idade dos filhos:
Nome do pai: Idade:
Estado civil: Solteiro( ) Casado( ) Divorciado( ) Viúvo( )
Escolaridade paterna: EFI( ) EFC( ) EMI( ) EMC( ) ESI( ) ESC( )
Profissão paterna:
Número de filhos: Idade dos filhos:
Outro cuidador: Idade:
Parentesco do bebê: Profissão:
Estado civil: Solteiro( ) Casado( ) Divorciado( ) Viúvo( )
Escolaridade: EFI( ) EFC( ) EMI( ) EMC( ) ESI( ) ESC( )
Número de pessoas que residem na casa: 2 a 4( ) 5 a 7( ) 8 a 10( ) Mais de 11( )
Renda familiar: Até R$500,00( ) Até R$1.000,00( ) Até R$2.000,00( ) R$3.000,00 ou mais( )
Residência: Própria( ) Alugada( ) Cedida/Emprestada( ) Outros( )
Possui iluminação elétrica: SIM( ) NÃO( )
Como você avalia a iluminação da sua casa: Muito escura( ) Escura( ) Clara( ) Muito clara( )
Possui (nº): Televisão( ) Vídeo cassete/DVD( ) Rádio( ) Geladeira( ) Freezer( ) Máq. Lavar( )
Carro( ) Moto( ) Banheiro( ) Empregada mensalista( ) Diarista( )
VARIÁVEIS OBSTÉTRICAS:
Pré-natal: SIM( ) NÃO( )
Número de consultas: Nenhuma( ) 1( ) 2( ) 3( ) 4( ) 5( ) 6( ) 7( ) 8( ) 9( ) 10( )
A partir de: 0 - 3 meses( ) 4 - 6 meses( ) 7 - 9 meses( )
Intercorrências na gestação: SIM( ) NÃO( ) Qual(is):
Ruptura prematura da membrana (bolsa): SIM( ) NÃO( ) Quando:
Uso de medicamento(s): SIM( ) NÃO( ) Qual(is):
Uso de drogas( ) Uso de álcool( ) Fumo( )
INFECÇÕES INTRA-UTERINAS (identificação em meses):
Citomegalovírus( ) Quando: Rubéola( ) Quando:
Herpes( ) Quando: Toxoplasmose( ) Quando:
Sífilis( ) Quando: HIV( ) Quando:
Outros: Quando:
HISTÓRICO OBSTÉTRICO (considerar o bebê avaliado na contagem):
Número de gestações: 1( ) 2( ) 3( ) 4( ) 5( ) 6( ) 7( ) 8 ou mais( )
Número de partos: 1( ) 2( ) 3( ) 4( ) 5( ) 6( ) 7( ) 8 ou mais( )
Histórico de aborto: SIM( ) NÃO( ) Quantos: Observações:
Histórico de parto prematuro: SIM( ) NÃO( ) Quantos: Observações:
Planejamento da gestação do bebê avaliado: Planejada( ) Não planejada( ) Desejada( ) Indesejada( )
DADOS DO NASCIMENTO:
Tipo de parto do bebê avaliado: Vaginal( ) Cesárea( )
Peso ao nascer: Pagar: 1’: 5’:
Etnia: Branco( ) Negro( ) Hispânico( ) Asiático( ) Índio( )
INTERCORRÊNCIAS NEONATAIS: SIM( ) NÃO( )
UTI neonatal: SIM( ) NÃO( ) Tempo de UTI: ≤5 dias( ) ›5 dias( )
Ventilação mecânica: SIM( ) NÃO( ) Tempo ventil: ≤5 dias( ) ›5 dias( )
Medicação ototóxica: SIM( ) NÃO( ) Qual: Penicilina( ) Gentamicina( ) Amicacina( ) Agentes
quimioterápicos( ) Ceftriaxone( ) Outros( )
Hiperbilirrubinemia: SIM( ) NÃO( ) Nível: Leve( ) Discreto( ) Infeccioso( )
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ENTREVISTA CONTINUADA
Atualizações sobre a rotina da família:
1.A rotina da casa mudou desde a chegada do bebê? SIM ( ) NÃO ( ) De que maneira?
2.E na vida do casal? SIM ( ) NÃO ( ) De que maneira?
3.Antes da chegada do bebê você estava trabalhando? SIM ( ) NÃO ( ) Em qual atividade?
4.Você já retomou ou pretende retomar suas atividades profissionais? SIM ( ) NÃO ( )
5.De que maneira pretende organizar-se para retomar o trabalho e cuidar do bebê?
6.Houve alguma mudança profissional significativa na vida do casal? SIM ( ) NÃO ( ) Qual?
7.Quem permanece a maior parte do tempo com o bebê?
8.Alguém lhe ajuda nos cuidados diários do bebê? SIM ( ) NÃO ( ) Quem? Como?
9.Como você está se sentindo no papel materno? Mto feliz( ) Bem/feliz( ) Conformada/indiferente( )
Infeliz/triste( ) Deprimida( ) Ansiosa( ) Por quê?
10.E como você percebe o pai? Mto feliz( ) Bem/feliz( ) Conformado/indiferente( ) Infeliz/triste( )
Deprimido( ) Ansioso( ) Por quê?
11. O bebê tem irmão(s)? SIM ( ) NÃO ( ) Qual a idade dele(s)?
12.Como está(ão) se sentindo em relação a chegada do bebê? Mto feliz(es)( ) Bem/feliz(es)( )
Conformado(s)/indiferente(s)( ) Infeliz(es)/triste(s)( ) Deprimido(s)( ) Ansioso(s)( )
Enciumado(s)( ) Por quê?
13.Está enfrentando alguma crise situacional: SIM( ) NÃO( )
Atualizações sobre a residência:
14.Como você considera o espaço de sua casa? Pequeno ( ) Razoável/moderado ( ) Grande/amplo ( )
15.Há uma área externa para que seu filho possa brincar/mover-se livremente? SIM ( ) NÃO ( )
Terreno ( ) Grama ( ) Concreto ( ) Madeira ( ) Areia ( ) Rampa ( ) Degraus ( )
16.No espaço interno, há possibilidades da criança mover-se livremente? SIM ( ) NÃO ( )
Atualizações sobre os hábitos do bebê
17.Usa chupeta? SIM ( ) NÃO ( )
Com que frequência? Sempre ( ) Às vezes ( ) Especificar:
18.Tem hábito de roer unhas? SIM ( ) NÃO ( )
19.E chupar o(s) dedo(s)? SIM ( ) NÃO ( )
20.Ele já está sentando? SIM ( ) NÃO ( ) Desde quando?
21.Engatinhando? SIM ( ) NÃO ( ) Desde quando?
22.E andando? SIM ( ) NÃO ( ) Desde quando?
23.Ele já está fazendo “sonzinhos” com a boca? SIM ( ) NÃO ( ) Desde quando?
24.E falando alguma palavra? SIM ( ) NÃO ( ) Especificar:
25.Ele já reconhece outros membros da família além do papai e da mamãe? SIM ( ) NÃO ( )
Quem? Como é a relação do bebê com ele(s)?
26.Ele age diferente com pessoas estranhas? SIM ( ) NÃO ( ) De que forma?
27.Algo mudou na vida do bebê desde a última vez que nos encontramos? SIM ( ) NÃO ( )
Ele está tendo contato com outras pessoas/crianças ( ) Está indo na escola/creche ( )
Se interessa por músicas ( ) Está saindo para passear ( ) Explora mais a casa/pátio ( )
28.Quando acordado o bebê permanece a maior parte do tempo:
Deitado de barriga para baixo( ) Deitado de barriga para cima( ) Sentado com apoio( ) Sentado sem
apoio( ) Livre para movimentar-se( ) Onde:
29.Como ele gosta de ficar: Deitado de barriga para baixo( ) Deitado de barriga para cima( ) Sentado
com apoio( ) Sentado sem apoio( ) Livre para movimentar-se( ) Onde:
30.Ele experimenta diferentes posições quando acordado: SIM( ) NÃO( ) Qual(is): Sentado( )
Deitado com barriga para baixo( ) Deitado com barriga para cima( ) De lado( )
31.Ele chama você: SIM( ) NÃO( )
Como: Chora( ) Grita( ) Resmunga( ) Vocaliza algum som( ) Olha( )
32.Você o chama: SIM( ) NÃO( ) Como:
33.Ele responde ao seu chamado: SIM( ) NÃO( ) Como: Olha( ) Vocaliza( ) Se movimenta ( )
34.Você conversa com o seu bebê: SIM( ) NÃO( ) Sempre( ) Às vezes( ) Nunca( )
35.Em que situação(ões)? Sempre que acordado( ) Quando o troca( ) Quando o alimenta( ) Quando o
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SUPOSIÇÃO DE SUJEITO
Trata-se de verificar, na relação da criança com a mãe ou responsável, se essa criança ocupa efetivamente um
lugar de sujeito no discurso e nas relações familiares
ROTEIRO SUGESTÕES
Na entrevista com os pais, verificar:
1. Verificar o que os pais dizem da criança e Fala-se dessa criança, como uma criança singular com
como o fazem suas particularidades, seus hábitos, suas preferências,
sua história singular? Contam-se episódios nos quais
se expressam essas particularidades?
2. Verificar como os pais veem os eventuais Os sintomas são motivos de incomodo ou sugerem
sintomas da criança enigma sobre o que acontece com a criança, ou
ambos?
4. Verificar se a criança é vista dentro de um A criança é comparada com os pais, irmãos, tios, avós,
cenário de filiação etc.?
6. Os pais demonstram ter conhecimento sobre Conhecem a atividade lúdica da criança, suas
a criança? preferencias, cuidados ou não com os brinquedos?
Sabem como ela se comporta com outras crianças?
(Compartilha, isola-se, é agressiva etc.?)
8. Observar como se dão as relações entre os Os pais suportam que a criança desenvolva
pais, o entrevistador e a criança. espontaneamente a relação com o entrevistador, seja
ela positiva ou negativa, ou interferem?
ESTABELECIMENTO DA DEMANDA
Trata-se de verificar a dinâmica entre os pais e a criança no que diz respeito às demandas e contrademandas.
ROTEIRO SUGESTÕES
Na entrevista com os pais, verificar:
9. Como os pais tomam a demanda da criança? Os pais tomam a demanda da criança ao pé da letra ou
supõe algo além dela?
10. Frente às demandas de controle dos Os pais estão interessados nas descobertas da criança?
esfíncteres, quais foram as intercorrências?
11. Nas situações de alimentação, como a criança Os pais dirigem demandas à criança ou só dão ordens?
reage?
12. A criança mostra interesse em compartilhar Quando as demandas são satisfeitas, a criança
com os pais as suas descobertas, ou se isola? expressa satisfação ou acha isso natural? Tem reações
de birra?
ALTERNÂNCIA PRESENÇA-AUSÊNCIA
Trata-se, nesta faixa etária, de verificar, tanto do lado da criança como dos pais, se há uma relação de sujeito
para sujeito, o que implica dar espaço para a palavra e a ação do outro.
ROTEIRO SUGESTÕES
215
13. Como é a capacidade, tanto dos pais como da Quando a criança apresenta dificuldades em articular
criança, para esperar? alguma coisa, os pais suportam esperar que ela
conclua, ou se antecipam, tentando articular para a
criança?
FUNÇÃO PATERNA
Trata-se de verificar as relações de filiação estabelecidas.
ROTEIRO SUGESTÕES
Na entrevista com os pais, verificar:
16. Como a criança é situada na relação do casal? A criança é colocada como representante da relação
do casal ou é “só da mamãe” ou “só do papai”?
17. O pai sente que sua palavra tem peso para a O pai mostra-se interessado em transmitir sua
mãe ou se sente desautorizado por ela? masculinidade no caso de um menino? Acha que a
cumplicidade é com a mãe no caso da menina? Ou há
inversão dessa relação?
18. No caso de irmãos, como é a relação? Há ciúmes? É muito intenso, é administrável? Como
os pais manejam a situação?
19. Em relação aos sintomas eventuais, É agressivo como o pai, é medroso como a mãe, etc.?
reconhece-se algum tipo de filiação?
216
20. Como a criança reage aos limites colocados A criança reconhece limites? Como reage,
pelo entrevistador e pelos pais? negociando, chorando, transgredindo?
22. Quando a criança transgride as regras, como Frente às transgressões, os pais reagem apontando
os pais reagem? para a lei, ou transmitem, nos gestos e expressões,
uma secreta admiração pelo ato transgressivo?
23. O pai participa da entrevista? Ele interage com a criança? Dá informações sobre a
criança ou acrescenta/corrige alguma coisa nas
informações dadas pela mãe?
SUPOSIÇÃO DE SUJEITO
Trata-se de verificar, na relação da criança com a mãe ou responsável, se essa criança ocupa efetivamente um
lugar de sujeito no discurso e nas relações familiares
ROTEIRO SUGESTÕES
Na entrevista com a criança, verificar:
ESTABELECIMENTO DA DEMANDA
Trata-se de verificar a dinâmica entre os pais e a criança no que diz respeito às demandas e contrademandas.
ROTEIRO SUGESTÕES
Na entrevista com a criança, verificar:
ALTERNÂNCIA PRESENÇA-AUSÊNCIA
Trata-se, nesta faixa etária, de verificar, tanto do lado da criança como dos pais, se há uma relação de sujeito
para sujeito, o que implica dar espaço para a palavra e a ação do outro.
ROTEIRO SUGESTÕES
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FUNÇÃO PATERNA
Trata-se de verificar as relações de filiação estabelecidas.
ROTEIRO SUGESTÕES
Na entrevista com a criança, verificar:
ROTEIRO SUGESTÕES
Na entrevista com os pais, verificar:
35. Mostra algum interesse por sua imagem no Faz, por exemplo, brincadeiras no espelho? (Se não
espelho? Como? aparecer espontaneamente, incentivar o uso do
espelho)
36. Como está em relação à sua autonomia? Como a criança está em relação aos seus hábitos
diários e autonomia (ir ao banheiro, vestir-se,
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cuidados)?
37. Tem um objeto de que não quer se separar? A criança pode se separar da mãe?
43. Apresenta uma persistência repetitiva ou Pula para uma brincadeira para outra constantemente?
mecânica nas suas brincadeiras? E nos seus
desenhos?
44. Há insistência de um jeito próprio no seu Encarna personagens? Nessas “encarnações” faz
brincar? Como? atuações reais ou encenações?
46. Que tipo de cenas faz nas suas brincadeiras? Que tipo de delimitação a criança introduz para
separar a brincadeira/fantasia da realidade?
LINGUAGEM
ROTEIRO SUGESTÕES
47. A criança sustenta um diálogo? Como se refere a si mesma (usa o “eu”)?