Psicologia Da Saúde
Psicologia Da Saúde
Psicologia Da Saúde
v.24 n.3 Brasília set. 2004
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ARTIGOS
RESUMO
Essas diferenças fizeram-nos refletir sobre a nossa própria formação e prática profissional, o
que fez surgir algumas perguntas:
De acordo com a definição do órgão que rege o exercício profissional do psicólogo no Brasil, o
CFP (2003a), o psicólogo especialista em Psicologia Hospitalar tem sua função centrada nos
âmbitos secundário e terciário de atenção à saúde, atuando em instituições de saúde e
realizando atividades como: atendimento psicoterapêutico; grupos psicoterapêuticos; grupos
de psicoprofilaxia; atendimentos em ambulatório e unidade de terapia intensiva; pronto
atendimento; enfermarias em geral; psicomotricidade no contexto hospitalar; avaliação
diagnóstica; psicodiagnóstico; consultoria e interconsultoria.
É importante ressaltar que nós nos deparamos com dificuldades para encontrar material
teórico e pesquisas na literatura científica internacional sobre a Psicologia Hospitalar como
campo específico. Uma das razões seria que essa denominação é inexistente em outros
países além do Brasil (Sebastiani, 2003; Yanamoto, Trindade & Oliveira, 2002). Yanamoto,
Trindade e Oliveira (2002) e Chiattone (2000), inclusive, explicam que o termo Psicologia
Hospitalar é inadequado porque pertence à lógica que toma como referência o local para
determinar as áreas de atuação, e não prioritariamente às atividades desenvolvidas. Se já
existe fragmentação das práticas e dispersão teórica da Psicologia, a adoção do termo
Psicologia Hospitalar caminha no sentido oposto à busca de uma identidade para o psicólogo
como profissional da saúde que atua em hospitais (Yanamoto, Trindade & Oliveira, 2002).
Chiattone (2000) ressalta, contudo, que, muitas vezes, o próprio psicólogo não tem
consciência de quais sejam suas tarefas e papel dentro da instituição, ao mesmo tempo em
que o hospital também tem dúvidas quanto ao que esperar desse profissional. Se o psicólogo
simplesmente transpõe o modelo clínico tradicional para o hospital e verifica que este não
funciona como o esperado (situação bastante freqüente), isso pode gerar dúvidas quanto à
cientificidade e efetividade de seu papel. Desse modo, segundo a autora, o distanciamento da
realidade institucional e a inadequação da assistência mascarada por um falso saber pode
gerar experiências malsucedidas em Psicologia Hospitalar.
A partir das definições expostas de Psicologia da Saúde, que pode se confundir com a
Psicologia Clínica e com a Psicologia Hospitalar, encontramos semelhanças no que tange às
formas de atuação prática dos especialistas dessas distintas áreas. A psicoterapia individual
ou grupal, por exemplo, é uma tarefa que pode ser desenvolvida dentro dos três campos
citados. Contudo, percebemos também particularidades fundamentais. A Psicologia Clínica
propõe um trabalho amplo de saúde mental nos três níveis de atuação – primário, secundário
e terciário - e a Psicologia da Saúde também propõe um trabalho abrangente nesses mesmos
níveis, mas aplicada ao âmbito sanitário, enfatizando as implicações psicológicas, sociais e
físicas da saúde e da doença. No que diz respeito à Psicologia Hospitalar, sua atuação poderia
ser incluída nos preceitos da Psicologia da Saúde, limitando-se,entretanto, à instituição-
hospital e, em conseqüência, ao trabalho de prevenção secundária e terciária.
Para que o psicólogo esteja capacitado a trabalhar em saúde, é imprescindível refletir se sua
formação lhe dá as bases necessárias para essa prática. A aprendizagem não deve ser só
teórica e técnica, pois o psicólogo tem que ser comprometido socialmente, estar preparado
para lidar com os problemas de saúde de sua região e ter condições de atuar em equipe com
outros profissionais.
Segundo Sebastiani, Pelicioni e Chiattone (2002), a formação do psicólogo na América Latina
e no Brasil está vinculada basicamente ao tratamento individual baseado no modelo clínico,
que é a base de sua identidade profissional. Entretanto, devido à grande demanda de
trabalho existente no âmbito sanitário, muitas vezes profissionais mal- preparados seguem
trabalhando no antigo modelo clínico individual e atuam na área da saúde sem ter
conhecimento das ferramentas necessárias para uma atuação coletiva de prevenção e
intervenção.
A falta de pesquisas na área também não privilegia ações de prevenção de saúde e, sim,
ações emergenciais. Tal situação distorce o trabalho profissional, provoca o afastamento
entre acadêmicos e profissionais e não contribui para a ampliação da prática e para a
incorporação de psicólogos recém-formados que querem trabalhar na área. Com a
necessidade crescente de demonstração das evidências dos resultados das intervenções
psicológicas – o que se chama prática baseada em provas – o desenvolvimento da pesquisa
básica e aplicada é imprescindível (Ulla & Remor, 2003). As evidências dos bons resultados
das intervenções psicológicas, além de propiciarem avanços no atendimento direto às
pessoas, também abrem campo de trabalho ao psicólogo. Um exemplo seria o caso de alguns
governos de países europeus que decidiram custear o tratamento psicológico através da
saúde pública sempre que se cumpram critérios de eficácia, efetividade e eficiência.
Então, qual seria a formação indicada para os psicólogos que desejam trabalhar no âmbito da
saúde? Besteiro e Barreto (2003) afirmam que a formação do psicólogo da saúde deve
contemplar conhecimentos sobre: bases biológicas, sociais e psicológicas da saúde e da
doença; avaliação, assessoramento e intervenção em saúde, políticas e organização de saúde
e colaboração interdisciplinar; temas profissionais, éticos e legais e conhecimentos de
metodologia e pesquisa em saúde. Com relação ao psicólogo da saúde que atua
especificamente em hospitais, é indispensável um bom treinamento em três áreas básicas:
clínica, pesquisa e programação. Com relação à a área clínica, o psicólogo deve ser capaz de
realizar avaliações e intervenções psicológicas. Na área de pesquisa e comunicação, é
necessário saber conduzir pesquisas e comunicar informações de cunho psicológico a outros
profissionais. Por fim, quanto à área de programação, o profissional deve desenvolver
habilidades para organizar e administrar programas de saúde. Com essa formação integrada,
é possível melhorar a qualidade da atenção prestada, garantir que as intervenções
implantadas sejam as mais eficazes para cada caso, diminuir custos e aumentar os
conhecimentos sobre o comportamento humano e suas relações com a saúde e a doença
(Ulla & Remor, 2003).
Neste momento em que somos incitados a refletir sobre nossa profissão para aperfeiçoar
nossos modelos de atuação profissional, como ocorre com a Psicologia da Saúde, é
importante considerar sempre o aspecto social em que estamos inseridos, compreendendo a
realidade do nosso país. O Brasil é o país das contradições, ao mesmo tempo em que é a
décima primeira economia mundial, portanto, um país rico, ao passo que 1/3 de sua
população é pobre, melhor dito, miserável (WHO, 2003). Um terço de aproximadamente 170
milhões de pessoas significa que 55 milhões vivem abaixo da linha da pobreza. Para termos
uma dimensão ainda mais clara dessa dura realidade, podemos pensar que é como se toda a
população dos nossos vizinhos Argentina, Chile e Uruguai fossem miseráveis, isto é, aqueles
que não possuem as condições mínimas de moradia, alimentação, educação e saúde. O Brasil
também é o país das contradições em si mesmo, ou seja, são também gigantescas as
diferenças econômicas e educacionais da Região Sul/Sudeste e da Norte/Nordeste/Centro-
Oeste. Enfim, é uma nação rica com muitos pobres, como ilustra a tabela:
Como podemos observar a partir desses dados, a situação do nosso país é alarmante devido
principalmente às desigualdades existentes. Isso exige de nós, como profissionais e cidadãos
brasileiros, em primeiro lugar, um conhecimento profundo dessa triste realidade. Conhecendo
a situação que se apresenta, a consolidação de um trabalho de promoção da saúde pode
tornar-se efetivo. Entretanto, nós, enquanto profissionais da saúde, estamos preparados para
essa realidade? Acreditamos que, em muitos aspectos, não. Parece-nos, às vezes, que os
profissionais da Psicologia são um “retrato” da desigualdade da sociedade brasileira, com
suas práticas elitistas que beneficiam uma pequena parcela da população. Um exemplo seria
a utilização indiscriminada da prática da psicoterapia individual, em contextos em que a
população ou tem outras necessidades mais básicas, ou até não chega à instituição por falta
de recursos. Confirma essa idéia a recente pesquisa realizada sobre o perfil do psicólogo
brasileiro (CFP, 2003b), mostrando que 54,9% dos psicólogos que exercem a profissão
trabalham na clínica em consultório particular, enquanto apenas 12,4% dos profissionais
atuam em Psicologia da Saúde e 0,6% são pesquisadores.
Nesse sentido, Moura (2003), refletindo sobre “a psicologia que temos e a psicologia que
queremos”, analisa essa prática tradicionalmente empreendida pelos psicólogos. Com a
diminuição da procura de clientes para os seus consultórios particulares devido ao
empobrecimento da população, os psicólogos foram obrigados a trabalhar com pessoas cada
vez mais carentes. Isso gerou o que a autora denominou uma “crise na Psicologia”, a partir
da discrepância entre as propostas terapêuticas e a realidade do Brasil. A prática profissional
passou a ser questionada no que tange à eficácia e adequação da Psicologia frente às
questões de ordem social. Dimenstein (2000) afirma, ainda, que muitos dos problemas dos
quais o psicólogo passou a deparar-se escapam do domínio da clínica, pois referem-se às
condições de vida da população. Tais dificuldades passaram a ser um entrave para as
atividades de assistência pública à saúde tendo em vista a falta de preparo nessa área.
Para mostrar tais discrepâncias, dois estudos empíricos relatam a prática de psicólogos no
contexto hospitalar. No primeiro estudo (Yanamoto & Cunha, 1998), foram entrevistadas
cinco psicólogas, no segundo (Yanamoto, Trindade &Oliveira, 2002), participaram 25, todos
atuando em hospitais no Rio Grande do Norte. Foram analisados os seguintes aspectos:
formação acadêmica, trajetória profissional, caracterização das atividades realizadas e
avaliação do trabalho realizado nos hospitais. Dentre os resultados principais, aparece uma
formação universitária deficitária e não condizente com a prática profissional, condições
adversas de trabalho e práticas que, muitas vezes, não se distinguem do fazer clínico
tradicional em consultório privado. Observa-se que todos os profissionais que trabalham
diretamente com os pacientes desenvolvem atividades psicoterápicas em suas diversas
modalidades: breve, de apoio, individual ou grupal .
O relato de Miyazaki et al. (2002) esclarece como pode ocorrer um processo de mudança
permitindo maior inserção profissional de acordo com a realidade do País. Descrevendo o
desenvolvimento e estágio atual do serviço de Psicologia de um hospital em São José do Rio
Preto, os autores explicam a evolução de uma equipe de psicologia eminentemente clínica
individual para um trabalho dentro dos moldes do que seria a Psicologia da Saúde. A
intervenção individual não dava conta da demanda, e então foi instalado um programa
denominado Aprimoramento em Psicologia da Saúde. Este possuía duração de dois anos e
combinava a prática à pesquisa em Psicologia da Saúde. Segundo o relato, a atuação foi
realizada em equipes interdisciplinares, abrangendo os níveis primário, secundário e terciário
de atendimento. As intervenções se davam no ambulatório, no hospital, em centro de saúde-
escola e na comunidade, sempre combinadas com pesquisas que justificassem suas ações. O
hospital, na atualidade (2002), possuía 40 psicólogos (docentes, contratados e
aprimorandos).
A partir dessas idéias, evidencia-se o quanto urgem revisões e atualizações, tanto ao nível de
formação profissional quanto de estratégias de inserção dos psicólogos. É preciso romper
com a “prática do silêncio”, que compreende o indivíduo isolado da sociedade (Moura, 2003),
e elaborar um modelo profissional que considere a ação histórica dos homens. A Psicologia é
uma ciência jovem, e sua participação histórica nos programas de saúde tende a ser tímida.
Queremos destacar a importância de podermos discutir, compreender e assumir a função e o
papel que nos cabe para transformar a realidade sanitária no País. O próprio psicólogo
necessita dessas reflexões para que, efetivamente, torne seu trabalho vetor nos programas
de saúde e abra espaço para a atuação de novos profissionais nessas equipes.
Em última análise, acreditamos que, se o indivíduo não pode vir até o psicólogo, o psicólogo
pode ir até ele. Isso significa entrar em contato com a dura realidade do nosso país.
Conhecendo a população brasileira, os psicólogos podem utilizar seus conhecimentos para
chegar a todos, independentemente de seus recursos: os que têm condições e desejam um
tratamento particular, e também aqueles que nem sequer sabem o quanto poderiam ser
ajudados por profissionais dessa área.
Considerações Finais
A polêmica sobre a existência de uma área única abrangente ou de duas áreas distintas,
Psicologia Clínica ou Psicologia da Saúde, é tema de debate internacional (Yanamoto,
Trindade & Oliveira, 2002), e claro, deve ser prioritariamente nacional. Nossa inquietude
frente às mencionadas contradições das áreas de especialização e ainda da existência de uma
Psicologia Hospitalar brasileira foi a mola propulsora para a presente reflexão. Estando fora
do Brasil, vimos “de longe”, e assim, de maneira distinta, nossa realidade, tanto de país
quanto de profissão. Justamente por acreditarmos no desenvolvimento do Brasil e da
Psicologia propomos este questionamento. Mais que respostas, temos perguntas. Mais que
certezas, temos inquietações. Mais que conformismo, temos a esperança neste país, dito em
desenvolvimento, em que existem realidades de primeiro e terceiro mundo que se chocam
constantemente.
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