Monografia Adriano
Monografia Adriano
Monografia Adriano
BELO HORIZONTE
2021
ADRIANO DE SOUZA ALVES
BELO HORIZONTE
2021
ADRIANO DE SOUZA ALVES
Aprovação:
( ) Aprovado ( ) Reprovado
Banca Examinadora:
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Prof. Dr. André Luiz Freitas Dias
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Prof.ª Dr.ª Maria Madalena Magnabosco
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Prof.ª Esp. Saleth Salles Horta
RESUMO
O presente estudo teve como objetivo analisar o existir enquanto pessoa (no sentido de Ser)
LGBTQIA+ e sua relação com condições de vulnerabilização capazes de produzir dano
existencial. O dano existencial compreende um dano à vida de relação e ao projeto de vida
do sujeito. Apresenta-se também a reflexão de que o alto índice de suicídio de pessoas
LGBTQIA+, especialmente de adolescentes e jovens, possa estar relacionado a um possível
dano existencial sofrido, resultado da violência física, verbal e psicológica, homofobia,
segregação e negação da alteridade, exposição ao discurso cisheteronormativo e à violação
de direitos humanos a que são submetidos os membros dessa comunidade. Consideramos o
aflorar do desejo e da sexualidade como uma condição humana não passível de escolha,
mudança, correção ou controle por parte dos sujeitos. Ser um dissidente da
cisheteronormatividade é algo que coloca pessoas LGBTQIA+ em condições de
vulnerabilização, uma vez que o discurso familiar, social e religioso são cisheteronormativo,
não reconhecendo, aceitando e tolerando outras formas de expressão da sexualidade, podendo
ainda impactar diretamente na construção da personalidade desses sujeitos e aumentar o risco
de depressão e suicídio nesse grupo.
The present study aimed to analyze the exist as a person (in the sense of being) LGBTQIA+
and its relationship with conditions of vulnerability capable of producing existential damage.
The existential damage includes a damage to the life’s relationship and the person’s life
project. There is also a reflection that the high suicide rate of LGBTQIA+ people, especially
teenagers and young people, may be related to a possible existential damage suffered, due to
physical, verbal and psychological violence, homophobia, segregation and denial of otherness,
exposure to cisheteronormative discourse and the violation of human rights that members of
this society are subjected to. We consider the emergence of desire and sexually as a human
condition not susceptible to choice, change, correction or control by the subjects. Being a
dissident of cisheteronormativity is something that puts LGBTQIA+ people in a vulnerability
condition, since the familiar, social, religious discourse are cisheteronormative, not
recognizing, accepting and tolerating other ways of sexuality expressions, may also directly
impact on the construction of personality of these people, and increase the risk of depression
and suicide in this group.
1 APRESENTAÇÃO ............................................................................................................ 6
9 REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 32
6
1 APRESENTAÇÃO
1
A sigla LGBTQIA+ surge como uma tentativa de incluir e legitimar outras manifestações da sexualidade humana,
para além da cisheteronormativa. Inclui lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queers,
intersex, agêneros, assexuados e mais. O símbolo + deixa a sigla em aberto, sugerindo que podem ocorrer a
inclusão de novas expressões de sexualidade (BORTOLETTO, 2019).
2
O termo cisheteronormatividade compreende uma correspondência entre o sexo biológico e a expressão do gênero
esperada para aquele sexo. Assim, se uma pessoa nasce com pênis, será definida como macho, homem, masculino,
se nasce com uma vagina, será definida como fêmea, mulher, feminino. Considera também que a expressão de sua
sexualidade será limitada a essa definição, portanto, se macho, homem, masculino, se relacionará com fêmea,
mulher, feminino e vice-versa, sendo a heterossexualidade a única possibilidade de vivência da sexualidade.
Assim, a cisheteronormatividade é naturalizada e desde que nascemos somos inseridos em uma cultura que, através
do controle dos copos e das subjetividades, espera que sejamos cisgêneros e heterossexuais, punindo aqueles que
são dissidentes dessa norma (ROSA, 2020).
7
condenação legal a quem quer que seja, mas propor uma análise reflexiva acerca dos danos que
podem ser causados ao outro quando seu Ser é negado, gerando um sofrimento existencial
infligido aos LGBTQIA+ apenas por apresentarem uma forma de expressão da sexualidade
divergente daquela que foi convencionada como sendo a única natural, correta e possível.
Também não pretendemos generalizar nossas considerações, afirmando que, pelo fato
de muitos LGBTQIA+ experienciarem violência, homofobia, negação de sua alteridade, essas
pessoas estariam condenadas à depressão e ao suicídio. Muitos são capazes de ressignificar suas
histórias, construir e ou reconstruir projetos de vida, de se ajustarem criativamente de forma
saudável e congruentes com quem são. Mas, não podemos fechar os olhos para um grande
número daqueles que não conseguem superar feridas existências profundas. Não podemos ser
insensíveis à constatação da Organização Mundial da Saúde (apud Frazão e Fukumitsu, 2017,
p. 77), de que “o suicídio é a segunda maior causa mundial de mortes de jovens entre 15 e 19
anos”, sendo em sua maioria, jovens da comunidade LGBTQIA+.
Acreditamos que o suicídio possa ter relação com um dano existencial sofrido e que o
simples fato de serem (no sentido de Ser) LGBTQIA+ já as colocariam em uma situação de
vulnerabilização e de risco. Assim, propomos uma análise reflexiva sobre como a vivência das
sexualidades não cisheteronormativas atravessam as existências de pessoas LGBTQIA+,
afetando sua vida de relação e seu projeto de vida e sua relação com a autoaniquilação.
8
As leis foram criadas pelo homem para atender a uma demanda existencial de vida em
sociedade. Para tanto foi necessária a criação de normas de conduta que seriam capazes de
proporcionar a coexistência, devendo ser cumpridas por todos, garantindo justiça e paz para que
as pessoas pudessem construir e buscar a realização do seu projeto de vida
(SESSAREGO,1996).
Principalmente a partir dos desdobramentos e atrocidades cometidas na segunda guerra
mundial, sobretudo com o nazismo, viu-se a necessidade de se estabelecer uma legislação que
garantisse o direito da pessoa à dignidade, sendo esse um valor superior e que deveria ser
respeitado.
Tendo esse princípio, o da dignidade da pessoa humana, como pedra angular, surge
em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos (PIOVENSAN; COMPARATO apud
HACHEM & BONAT, 2017). Segundo Piovensan (apud Hachem&Bonat, 2017, p.79), os
direitos humanos deveriam ser reconhecidos por todas as pessoas, sendo a condição humana e
um “requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como
essencialmente moral, dotado de unicidade e dignidade”.
O princípio da dignidade da pessoa humana, se refere à integridade física, à proteção
biológica, ao autossustento financeiro, ao gozo dos direitos sociais, econômicos e culturais, à
integridade psíquica e ao bem-estar psicológico. Essas garantias dão sustento às suas escolhas
e realização de atividades que atribuem sentido à vida (FROTA & BIÃO, 2010).
Inspirada pelo desenvolvimento desse princípio, a Corte Interamericana de Direitos
Humanos (CIDH) tem ratificado por meio de suas sentenças, principalmente a partir de 1990,
o direto de todo ser humano ao desenvolvimento de um projeto de vida consonante às suas
aspirações, valores, crenças e autonomia pessoal.
O impedimento ao exercício dessas liberdades, impactaria diretamente nos planos e
metas pessoais de casa sujeito, impedindo-o de desenvolver plenamente a sua personalidade e
de atingir seus objetivos, podendo ocasionar um dano ao projeto de vida (HACHEM &
BONAT, 2017).
Entretanto, a definição e compreensão do que vem a ser dano ao projeto de vida
é algo relativamente recente no campo jurídico, fazendo com que Sessarego (1996, p. 660) nos
apresentasse a seguinte problematização: “¿Cómo proteger jurídicamente lo que no se conoce
9
o se conoce limitadamente?3”.
O conceito de Dano existencial é de origem jurídica e designa um conjunto de danos
não materiais sofridos pela vítima. Tal dano lesa o projeto de vida do sujeito de tal sorte, que o
mesmo se vê impossibilitado de retomá-lo de alguma forma, impedindo-lhe de prosseguir com
o mesmo e até mesmo de reconstruí-lo. O dano existencial compreende o dano à vida de relação
e o dano ao projeto de vida (FROTA apud OLIVEIRA & DIAS, 2020).
O dano existencial diz respeito a tudo aquilo que cerceia a liberdade de escolha e, por
consequência, pode impedir a realização do projeto de vida daquele que o planejou. O dano é
dito existencial em razão de causar um vazio existencial no sujeito, comprometendo seu próprio
sentindo de existir, afetando a sua vida de relações e o seu projeto de vida (FROTA, 2011).
Segundo Frota (apud Oliveira & Dias, 2020), a vida de relação compreende as relações
interpessoais do sujeito, as interações sociais estabelecidas nos diversos espaços em que vive,
dividindo pensamentos, sentimentos, projetos em comum. Refere-se aos seus vínculos sociais
e afetivos construídos ao longo da vivência de sua vida de relação. Envolve as experiências que
o sujeito estabelece nas relações familiares, sociais, culturais e afetivas, que possibilitam ao
sujeito a construção de sua história vivencial, de experienciar um desenvolvimento pessoal ao
compartilhar pensamentos, sentimentos, desejos, afinidades, emoções, atitudes próprias da
experiência humana. Relaciona-se ainda com a diversidade de experiências que englobam
opiniões, comportamentos e culturas que possibilitam o crescimento pessoal. O dano à vida de
relação diz respeito a um prejuízo nas relações pessoais em diversos ambientes e contextos.
De acordo com Frota (2011, p. 246), o dano existencial comprometerá essa
experiência, impedindo de maneira mais ou menos abrangente, temporária ou permanente a
vida de relação da pessoa, materializando-se “como uma renúncia involuntária as atividades
cotidianas de qualquer gênero, em comprometimento das próprias esferas de desenvolvimento
pessoal”.
O dano existencial obriga, portanto, a um abandono das relações específicas do ser e
da personalidade, afetando o seu desenvolvimento pessoal, social e o que o sujeito definiu como
pertinente às suas necessidades, podendo modificar a sua conduta e seus interesses (FROTA &
BIÃO, 2010).
Segundo Rago (apud Neto 2016, p. 28), o dano existencial nasce no Direito a partir de
uma necessidade de legislar sobre danos que não se enquadram no dano patrimonial ou dano
não patrimonial, deixando uma lacuna sobre questões existenciais como: “lesão e humilhação
3
Como proteger legalmente o que não é conhecido ou é conhecido de forma limitada?
10
Projeto de vida e vida de relação estão intimamente relacionados uma vez que não é
possível a construção de um projeto de vida sem vida de relação. A partir da coexistência, das
relações, da vida como seres-no-mundo-com-os-outros, nossos objetivos de vida, que dão
sentido à nossa existência, são planejados, construídos, adaptados, ressignificados. O projeto
de vida é uma construção pessoal e livre de cada pessoa, mas que necessita da contribuição dos
outros com os quais convivemos em sociedade (FROTA, 2011).
Situações que possam vir a impossibilitar relacionamentos familiares, afetivo-sexuais
e profissionais (dano a vida de relação) e ou impedir ou destruir objetivos de vida ligados à
autorrealização (dano ao projeto de vida), que possibilitam o comprometimento do próprio
sentido da vida do sujeito, podem ser caracterizados com dano existencial. Situações como
abandono parental em período importante do processo de desenvolvimento, violência ou terror
psicológico na intimidade familiar podem causar dano existencial, uma vez que afetam tanto a
construção e concretização do projeto de vida, quanto a vida de relação do sujeito (FROTA,
2011).
Segundo Sessarego (1996), uma das formas de reparação possíveis para o dano ao
projeto de vida seria o reconhecimento público da violação dos direitos humanos e do
impedimento do exercício da liberdade das vítimas. O restabelecimento e reconhecimento da
4
Há um dano especial que transcende o que conhecemos e designamos como integridade psicossomática do
sujeito. É um dano radical e profundo que compromete, em certa medida, o próprio ser do homem.
Consequentemente, é um dano que afeta a liberdade da pessoa e que, portanto, perturba ou frustra o projeto de
vida que cada pessoa formula livremente e por meio do qual se "realiza" como ser humano. É um dano que trunca
o projeto de vida, o que consequentemente impede a pessoa de desenvolver livremente sua personalidade (...) um
dano que, por ter como origem um dano à saúde, impede a pessoa de cumprir, total ou parcialmente, com seu
projeto de vida (...) A perda do 'sentido' da vida, a impossibilidade de experimentar e expressar certos valores em
condutas, que imprimem uma marca particular e exclusiva no curso existencial, não tem remédio conhecido.
12
dignidade, o amparo aos familiares e o compromisso social de que essa violação aos diretos
humanos e à liberdade não voltem a acontecer.
Importante ressaltar aqui o caso Atala Riffo y niñas versus Chile. No caso em questão,
o Estado retirou a guarda das duas filhas de Atala Riffo em razão de sua orientação sexual. A
Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) entendeu que houve, por parte do Estado,
uma conduta discriminatória e arbitrária sobre a vida privada da família. Conforme destaca
Falcón (2015, p. 77) a Corte compreendeu que, “o direito a não discriminação por orientação
sexual inclui sua expressão e consequências necessária no projeto de vida das pessoas”. A
orientação sexual estaria diretamente relacionada a liberdade e autodeterminação do sujeito,
ligada as opções e convicções da pessoa, em consonância com as escolhas que darão sentindo
a sua vida. Neste caso, a Corte afirmou o direto de toda pessoa escolher e construir o seu projeto
de vida que está também intimamente ligado à orientação sexual de cada indivíduo e ao seu
pleno direito de experienciá-la (FALCÓN, 2015).
Esta mesma Corte afirma ainda que ao Estado é proibida a prática de ações que venham
a cercear as liberdades das pessoas, impedindo-as de planejar um projeto de vida e,
consequentemente, almejar a realização pessoal através do mesmo, alcançando assim a sua
realização existencial (HACHEM & BONAT, 2017).
A CIDH considerou a questão no âmbito do Estado, mas poderíamos estender essa
discussão às relações intrafamiliares, tendo em vista contextos em que pessoas têm sua
liberdade cerceada por familiares, impedidas de desenvolverem um projeto de vida a partir de
suas reais aspirações e desejos.
Poder-se-ia considerar que uma pessoa que, desde muito cedo, percebe-se não
legitimada enquanto ser, experimentando julgamentos que a definem como desajustada, errada,
doente, pecadora, suja, imoral, pode desenvolver um falso eu numa tentativa de se ajustar, de
ser aceita no seio da família.
Isso pode causar uma negação/rejeição de um aspecto importante da vida, a orientação
sexual, algo extremamente relevante na construção de um projeto de vida. Práticas como a
homofobia familiar podem ser um importante agente cerceador das liberdades, afetando ainda
o desenvolvimento da personalidade.
13
3 A QUESTÃO DA LIBERDADE
gozar de lazer, saúde, tendo a oportunidade de construir e usufruir de uma vida digna, sendo
“essa a agenda do ser humano: caminhar com tranquilidade, no ambiente em que sua vida se
manifesta rumo ao seu projeto de vida” (NETO, 2016, p. 33).
Podemos considerar a liberdade como o principal atributo do ser humano, sendo ela o
que o diferencia dos outros animais. O ser humano é o único animal da natureza capaz de
organizar projetos, de projetar-se num futuro e essa capacidade está relacionada com sua
capacidade de escolher quem, como e o que quer ser (SESSAREGO, 1995).
A partir do momento em que o homem é lançado ao mundo, que existe no mundo,
precisa construir a sua identidade na relação com os outros. Na identificação e reconhecimento
das diferenças, no diálogo que se estabelece entre essas diferenças o humano vai se
constituindo, se reconhecendo, se construindo, se legitimando e sendo legitimado. Assim, vai
se constituindo naquilo que se é ou no que pode ser (FERNANDES, 2015).
Em nosso processo de construção da autoimagem, necessitamos do olhar e da
legitimação do outro para que este possa nos dar um feedback do que é percebido, é dessa forma
que conseguimos construir uma percepção mais realista sobre nós mesmos, sobre quem somos.
O próprio desenvolvimento do self5 está diretamente relacionado às percepções que o
sujeito experiencia, ou seja, o self se constitui nas relações interpessoais, na nossa vida de
relação (MACEDO & SILVEIRA apud OLIVEIRA & DIAS, 2020).
Pessoas LGBTQIA+ que vivenciam a homofobia familiar desde muito cedo, podem
experimentar uma autoimagem enfraquecida, tendo uma percepção de si mesmos distorcida.
Não raro, a pessoa que tem seu desenvolvimento atravessado pela experiência da homofobia
experimenta uma negação da sua alteridade, o olhar do outro não o legitima, ao contrário, o
nega.
5
Compreendido a partir da perspectiva fenomenológica, relacionado às percepções que o sujeito experiencia. Um
produto das relações interpessoais construído a partir das relações do sujeito com o meio, desenvolvendo uma
noção de eu que irá nortear suas ações (MAIA, GERMANO & MOURA JR; MACEDO & SILVEIRA, apud
OLIVEIRA & DIAS, 2020).
15
Nega a sua existência, nega sua possibilidade de ser-no-mundo, de realizar seu projeto
de vida, de exercer seu direito a liberdade de fazer escolhas genuínas quando estas são
entremeadas pela sua sexualidade. Na relação do sujeito LGBTQIA+ com a família e a
sociedade homofóbica falta a presença. Segundo Fernandes (2015, p. 41), “presença é o modo
de ser que se interessa pelo ser, que se dispõe para a escuta de seu apelo, para a resposta a sua
interpelação, para a correspondência à sua solicitação”.
Voltando às decisões proferidas pela CIDH, considera-se que o projeto de vida “se
associa ao conceito de realização pessoal, e que o mesmo sustenta-se nas opções que o sujeito
pode ter para conduzir sua vida, e alcançar o destino que se propõe” (FALCÓN, 2015, p. 51).
Percebe-se que este conceito está estreitamente relacionado ao conceito de liberdade,
que, para esta Corte, está condicionada às opções que a pessoa possuiu para escolher, definir a
sua existência, buscando sua realização plena. Se ao sujeito é negada a possibilidade de
escolher, dentre suas aptidões, projetos, desejos, aqueles mais coerentes com seu modo de ser
no mundo, não podemos considerar que ele goze de liberdade (FALCÓN, 2015).
6
A realização do "projeto de vida" está legalmente protegida porque, como já foi dito, está em jogo o próprio
destino de cada ser humano. O maior dano que pode causar à pessoa, portanto, é a frustração, prejuízo ou atraso
na realização do «projeto de vida» pessoal.
16
A liberdade seria então o próprio ser do homem, o pilar ontológico de sua unidade psíquica
(SESSAREGO, 1996).
O planejamento e execução/concretização do projeto de vida é a maior manifestação
da liberdade para o ser humano e um dano infringido a esse exercício da liberdade é o mais
grave que o ser humano pode sofrer, (SESSAREGO, 1996; SESSAREGO, 2010).
(...) ¿cual outro daño puede superar las consecuencias devastadoras para la
vida de una persona que la frustración de su propio destino, la pérdida de
sentido de su vida? Truncar, en mayor o menor medida, el «proyecto de vida»
supone crear un vacío existencial que puede conducir a la persona a una
profunda depresión, a una aguda e irreparable postración anímica. Y, lo que
es más grave, es posible que se genereen la persona adicción a las drogas y,
en un caso límite, puede ser hasta causa del suicídio7 (SESSAREGO, 1996,
p.681).
A violação à liberdade de escolha que provoca uma série de frustrações e que impedem
o desenvolvimento pleno das vocações e do desenvolvimento pessoal, familiar, profissional,
afetivo-sexual, podem afetar o próprio sentido da vida do sujeito. Podemos afirmar então que o
projeto de vida está intimamente relacionado o sentido existencial da vida, atendendo a
concepção de realização pessoal (FROTA, 2011).
De acordo com Sessarego (1996), a concretização do projeto de vida pode ser
dificultada ou mesmo impedida de se realizar, tanto por questões de foro íntimo do sujeito,
quanto por questões relacionadas ao mundo exterior na relação com os outros. Ou seja, a
realização do projeto de vida pode ser comprometida ou impedida devido a pessoas com as
quais se convive.
É o que pode acorrer à pessoa LGBTQIA+ ao existir em um ambiente familiar e social
homofóbicos, ao ter sua singularidade negada e violentada, sua liberdade cerceada, impedido
de desenvolver-se de forma autêntica, de exercer sua liberdade de escolha a partir daquilo que
tenha significado para si. É uma espécie de dano que atinge a liberdade do sujeito. E de acordo
com Sessarego (1996), o tipo de dano que atinge o corpo é diferente do que atinge a liberdade
da pessoa. Suas consequências são diferentes, assim como devem diferir seus critérios de
reparação.
7
Que outro dano pode superar as consequências devastadoras para a vida de uma pessoa do que a frustração de
seu próprio destino, a perda do sentido de sua vida? Truncando, em maior ou menor grau, o "projeto de vida"
supõe criar um vazio existencial que pode levar a pessoa a uma depressão profunda, a uma prostração mental aguda
e irreparável. E, o que é mais grave, é possível que conduza pessoa ao vício das drogas e, em um caso extremo,
pode até ser a causa de suicídio.
17
4 O SER E A SEXUALIDADE
8
Optamos por usar o termo LGBTQIA+fobia por ser mais inclusivo e abranger o preconceito, a intolerância e a
violência contra a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queers, intersex,
agêneros, assexuados e mais. No texto, quando usarmos a palavra homofobia estaremos nos referindo também à
comunidade LGBTQIA+ como um todo e não apenas à comunidade homossexual.
19
5 HOMOFOBIA (LGBTQIA+FOBIA)
São assassinados no Brasil aproximadamente 200 gays e lésbicas por ano, cerca de
40% com idades entre 16 e 29 anos. Essa estatística coloca o Brasil entre os primeiros países
do mundo em que mais ocorrem crimes relacionados a homofobia. Somando-se esses dados aos
altos índices de suicídio, o número de adolescentes LGBTQIA+ ultrapassa os mil/ano, valor
acima da média internacional, números que revelam uma sociedade extremamente hostil à
população LGBTQIA+, uma sociedade que discrimina, violenta e nega a possibilidade de
existência em razão da orientação sexual (SOUZA, 2016).
A discussão sobre o suicídio de pessoas LGBTQIA+ envolve um duplo tabu social. O
20
desqualificação das subjetividades. O suicídio, segundo Nagafuchi (2018, p. 112), pode ser
compreendido com uma ruptura, “algo que corrompe a vida, ou suas condições”, resultando em
uma “perda de um futuro imaginado”.
23
6 HOMOFOBIA FAMILIAR
A organização familiar como a conhecemos hoje foi consolidada durante o século XIX.
Esse processo de organização familiar teve sua origem com a expansão do império Romano.
Com a conquista de diversos povos pelos romanos, os diversos tipos de organização familiar
foram sendo homogeneizados pela Igreja, que agiu como um mecanismo de repressão,
principalmente sobre a sexualidade e sobre a moralidade das mesmas (SANTOS, 2004).
Os pais tendem a planejar a vida de seus filhos dentro de uma suposta normalidade
heteronormativa, assim todos os sonhos e projetos para esse filho são pensados para um sujeito
que corresponderá a essa normalidade. Mesmo que de maneira inconsciente, os pais e, a família,
apresentam um temor de que o filho seja homossexual e, desde a mais tenra idade, adotam
práticas no sentido de moldar a orientação sexual desse sujeito (SOUZA, 2016).
Entretanto, muitas das vezes a família não consegue oferecer esse suporte ao familiar
homossexual, reproduzindo o preconceito e a segregação social, excluindo e rejeitando esse
sujeito. Processo esse chamado de homofobia intrafamiliar (NASCIMENTO & SCORSOLINI,
2018).
Uma das variantes da homofobia é a chamada homofobia familiar, a família pode ser
considerada como o primeiro lugar onde as pessoas aprendem a homofobia. Esse aprendizado
pode ser no sentindo daquele que infligi a violência a outrem ou àquele que a sofre. A
homofobia familiar é algo comum na vida de pessoas LGBTQIA+, entretanto, negada e
invisibilizada tanto no mundo privado das famílias como socialmente (TOLEDO & FILHO,
2013).
De acordo com Schulman (2012, p. 70), o grupo familiar pode criar mecanismos de
controle e punição sobre seus pares homossexuais que variam desde “pequenos desrespeitos a
graus variados de exclusão, chegando a ataques brutais que deformam a vida da pessoa gay, ou
até a crueldades diretas e indiretas”.
As famílias, ainda que de forma inconsciente, buscam valorizar a heteronormatividade
e educam e estimulam seus filhos a fazerem a correspondência entre a performance de gênero
com seu sexo biológico, buscando dessa forma que esses filhos se tornem heterossexuais
(TOLEDO & FILHO, 2013).
Durante o seu processo de desenvolvimento, ao menor indício de comportamentos que
não são considerados adequados pela sociedade heteronormativa, a criança e o adolescente são
expostos ao discurso homofóbico e várias outras práticas de violência, que têm como objetivo
reprimir e coagir esses sujeitos a adotarem a postura socialmente desejada (NATARELLI et al.,
24
2015).
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) preconiza que nenhuma criança e
adolescente deve ser vítima de violência ou discriminação dentro ou fora do seio familiar.
Entretanto, a homofobia pode interferir no processo de socialização, hábitos, comportamentos,
lazer, saúde, acarretando uma série de prejuízos no desenvolvimento social e afetivo da criança
ou adolescente vítima dessa prática (NATARELLI et al., 2015).
De acordo com Schulman (2012), há ao menos duas experiências comuns na vida de
grande parte de pessoas homossexuais. A primeira delas é o de se assumir enquanto pessoa
homossexual, experiência essa que não encontra qualquer correspondente na vida de pessoas
heterossexuais. A segunda é de que, em algum momento de suas vidas, foram estigmatizadas,
inferiorizadas e discriminadas pelo simples fato de serem quem e o que são, pessoas
homossexuais.
O modelo heteronormativo dominante tem feito com que pessoas da comunidade
LGBTQIA+ venham sendo punidas na intimidade da vida familiar, ainda que esse sistema
perverso de controle, coerção e violência não tenham qualquer justificativa, trazendo
consequências dolorosas que comprometem o desenvolvimento afetivo-sexual e a própria
existência dessas pessoas (SCHULMAN, 2012).
Isso acontece porque na maioria das vezes ninguém da família se identifica ou é como
ela, por esse motivo se tornam alvos fáceis para que sejam projetados sobre elas todas as
deficiência e ressentimentos pessoais, tornando-se bodes expiatórios perfeitos (SCHULMAN,
2012).
Faz-se também necessário compreender as causas que levam as famílias, muitas vezes
a assumirem uma postura deliberadamente agressiva, preconceituosa e excludente em relação
ao familiar LGBTQIA+. Buscando investigar essas causas poder-se-ia pensar em ações capazes
de fortalecer os vínculos familiares e reduzir a homofobia intrafamiliar e social (ALVES &
MOIZ, 2015).
Diante da revelação da não heteronormatividade de um familiar, seus membros
buscam recursos para lidar/resistir a essa mudança que é entendida como prejudicial para o
bem-estar da família. O entendimento da homossexualidade como uma escolha faz com que a
família assuma uma posição de resistência a esse familiar, enxergando-o como um causador de
problemas para todo o núcleo familiar, problemas esses causados de forma voluntária por esse
membro dissidente (ALVES & MOIZ, 2015).
O entendimento da orientação sexual como uma escolha, como algo que pode ser
corrigido e ou curado, ganhou muita força a partir dos ataques políticos que grupos LGBTQIA+
25
têm sofrido. Os poucos direitos conquistados vêm sendo ameaçados e pautas que possam
garantir proteção e direitos têm sido sabotadas politicamente.
Esse fenômeno passou a ocorrer com mais intensidade principalmente a partir de 2003,
com a entrada de políticos pentecostais e neopentecostais que construíram uma Frente
Parlamentar Evangélica (FPE), apresentando pautas de cunho moral, atravancando o avanço da
discussão sobre diretos sexuais como casamento entre pessoas do mesmo sexo, combate e
criminalização da homofobia, descriminalização do aborto, direto das pessoas trans, etc. (DIAS,
2017).
O principal eixo que justifica o discurso moralista defendido pela FPE é a defesa da
família. A família aparece como um conceito-chave em propagandas eleitorais, nas audiências
públicas e em projetos legislativos. A família apregoada nesse discurso é o modelo da família
patriarcal, heteronormativa, cisgênero, com papeis de gênero bem definidos, imutáveis e
desvalorização e subserviência da mulher e do feminino.
A naturalização, da família nuclear, patriarcal e heterossexual, por meio do discurso
político-religioso, produz uma desqualificação de quaisquer outros modelos familiares e,
principalmente, de famílias não heterossexuais, normalizando e justificando a violência e o
desamparo contra toda configuração divergente do modelo família-nuclear-patriarcal-
heterossexual-cisgênero em nome da defesa e proteção daquilo que é considerado natural
(DIAS, 2017).
Arraigado ao conceito de família, estão também os conceitos de solidariedade,
amizade, respeito, cooperação, crescimento mútuo. É fundamental para o desenvolvimento do
sujeito e a construção da sua identidade. Para a pessoal LGBTQIA+, ao revelar sua dissidência
do padrão heteronormativo, desejado e esperado pela família, vê esses laços serem fragilizados
ou até mesmo rompidos, encontrando-se em uma situação de extrema vulnerabilidade (ALVES
& MOIZ, 2015). A fragilização e até o rompimento desses laços podem trazer profundas
consequências para a vida da pessoa LGBTQIA+.
Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), os fatos que violam os
diretos da pessoa, causando dano ao projeto de vida podem afetar o próprio desenvolvimento
pessoal da mesma, com consequências que podem ser não passíveis de reparação. Assim, “a
própria existência da pessoa acaba sendo modificada por fatores alheios a ela, que lhe são
impostos de forma injusta e arbitrária” (HACHEM & BONAT, 2017, p. 81).
Ampliando a reflexão acima, seria plausível considerarmos que uma criança que nasce
em uma família, um grupo social extenso, uma sociedade homofóbicos, e apresente no futuro
um desenvolvimento da sexualidade como uma pessoa LGBTQIA+, experimente uma miséria
26
como um todo e produz uma sensação de não ser suficiente da forma como se é. Já a culpa é
um sentimento que tem como causa algo de ruim, uma infração moral ou legal, real ou
imaginária que a pessoa julga ter cometido. Comportamentos, sentimentos e impulsos (ainda
que não realizados) de agressão e sexualidade podem ser desencadeadores de culpa quando
aquele que os apresenta julga que são inadequados e ou interditados dentro de um dado sistema
cultural (YONTEF, 1998).
O sentimento de vergonha vai ganhando força na medida em que, na relação com as
figuras de referência, o olhar do outro desabona, desqualifica, comunica que aquele sujeito não
é digno, não é merecedor de amor. Aquele self que se apresenta tal como é não é merecedor de
amor e respeito, não tem direitos e nem é digno de realizações (YONTEF, 1998).
Sob o domínio da vergonha, pessoas LGBTQIA+ que vivem uma vida inautêntica em
que socialmente, no mundo das relações, assumem uma conduta diversa daquele experimentada
na intimidade, podem sofrer estados dissociativos em razão do conflito e ruptura entre o sentir
e o agir. Isso pode trazer consequências danosas à vida dessas pessoas.
Pesquisas realizadas no Canadá, Austrália, França e EUA apontam que adolescentes
homossexuais tem até quatorze vezes mais risco de cometerem suicídio e, aproximadamente a
metade de jovens que tentam suicídio o fazem por questões relacionadas à sexualidade. Sendo
que muitas vezes essas tentativas por parte dos jovens são diagnosticadas/notificadas como
depressão, invisibilizando a real causa de sofrimentos (LEONE, 2011).
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Inicio a apresentação deste texto afirmando que o tema se relacionada com minha
própria história de vida. Como um homem gay cisgênero, pude experienciar ao longo da minha
trajetória muitas das angústias, medos, culpas, tentativas desesperadas de ajustar-me a
heteronormatividade, um esforço sobre-humano para negar-se a si mesmo, para ser o que não
se é.
Não há muito tempo, assisti ao filme “Orações para Bobby”, que narra a história de
um jovem gay que vivencia experiências tão comuns, corriqueiras para grande parte de pessoas
LGBTQIA+, a homofobia familiar e social, o abandono, a condenação religiosa, o sentimento
de viver uma vida errada, marginal e todo um sofrimento existencial que se torna tão
insuportável que culminam com o suicídio do personagem. Ao ver aquela história, quantos
conteúdos que estavam no fundo emergiram como figura, situações inacabadas com pais,
amigos, afetos, gestaltens abertas que necessitavam um fechamento.
Ao estudar sobre o Dano Existencial (dano à vida de relação e dano ao projeto de vida)
fui novamente provocado a refletir acerca de tantas existências interrompidas diante da
impossibilidade do existir, do ser quem se é. Assim como Bobby, houve momentos em que a
dor foi insuportável, não era possível vislumbrar um novo projeto de vida, não havia nada a ser
reconstruído. Mas, encontrei pessoas na minha trajetória que me estenderam os braços, me
deram o heterossuporte que precisa para recomeçar.
Pensar em tantos outros que não tiveram a mesma oportunidade, que não conseguiram
identificar o heterossuporte no meio e o autossuporte em sim mesmos, encontrando no suicídio
a única saída é algo que me emociona profundamente, principalmente quando penso que eu
poderia ter sido mais um não conseguir.
Quantos mais? Quantos LGBTQIA+ ainda terão que vivenciar a dor por simplesmente
serem quem são? Quantas relações familiares ainda serão destruídas pela incompreensão, pelo
preconceito? Acredito que, como uma profilaxia, precisamos discutir essas questões em família,
na sociedade, em escolas, espaços religiosos, etc.
É inaceitável que pessoas continuem tendo suas vidas marcadas pela dor causada por
serem quem são, que continuem morrendo por serem que são, que sejam impedidas de construir
um projeto de vida de acordo com seus desejos, de acordo com sua personalidade ou que tenham
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9 REFERÊNCIAS
GOMES, A. Opção versus orientação sexual: o que de fato pode ser escolhido? In: MARRAS,
M. (Org.). Angústias contemporâneas e Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2020. p. 136-
167.
SESSAREGO, C. F. Apuntes para una distinción entre el daño al "proyecto de vida" y el daño
". Themis:Revista De Derecho, n. 32, p. 161-164, 1995. Disponível em:
<http://revistas.pucp.edu.pe/index.php/themis/article/view/11543>. Acesso: em 19 ago. 2020.
YONTEF, G. M. Processo, diálogo, awareness. 3. ed. São Paulo: Summus, 1998. 412p.
ZINKER, J. Processo criativo em Gestalt-terapia. 2. ed. São Paulo: Summus, 2007. 304p.