A Etnocenologia Na Amazônia

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Repertório, Salvador, nº 25, p.13-23, 2015.

A ETNOCENOLOGIA NA
AMAZÔNIA
Trajetos-Projetos-Objetos-
Afetos
THE ETHNOSCENOLOGY IN THE AMAZON
Paths-Projects-Objects-Affects

Miguel Santa Brigida1

Resumo: A partir da construção teórica e metodoló- Abstract: From the theoretical and methodological
gica da etnocenologia realizada por artistas pesquisa- construction of Ethnoscenology held by Amazonian
dores da Amazônia em mais de uma década, o artigo researchers artists in more than a decade, the article
apresenta as principais contribuições de um coletivo presents the main contributions of a collective of ar-
de artistas-pesquisadores da UFPA e a singularidade tists-researchers from UFPA and the uniqueness of its
de suas contribuições epistemológicas na edificação da epistemological contributions in building the etnoceno-
teoria etnocenológica no Brasil que celebra, em 2015, lógica theory in Brazil celebrating, in 2015, twenty years
vinte anos de sua inserção no universo da pesquisa em of his inclusion in the research universe in theater arts.
artes cênicas. Tendo como fulcro investigativo desta et- With the fulcrum of this investigative ethnoscience
nociência três eixos temáticos, a saber: a Etnocenologia three main themes, namely: Etnocenologia and Ethno-
e Questões Etnográficas, Etnocenologia e Práticas Reli- graphic Issues, Etnocenologia and Religious Practices
giosas e Etnocenologia e Processos criativos; a investida and Etnocenologia and creative processes; Amazon
etnocenológica amazônica desenha contornos originais etnocenológica invested draws original contours in the
na afirmação da autonomia do pensamento dos artistas affirmation of autonomy of thought of the Brazilian
cênicos brasileiros. scenic artists.

Palavras-chave: Etnocenologia. Artista Cênico. Epis- Keyworks: Ethnoscenology. Scenic artist. Epistemolo-
temologia. gy.

1
Mestre em Artes Cênicas (UFBA/2003), Doutor em Na última década do século XX o mundo aca-
Artes Cênicas (UFBA, 2006), Pós-Doutor em Artes dêmico e artístico testemunhou o aparecimento da
Cênicas (UNIRIO/2011), líder do Grupo de Pesquisa etnocenologia, disciplina que transformou a cria-
TAMBOR – Grupo de Pesquisa em Carnaval e Etnoce- ção, fruição e reflexão das artes cênicas já consa-
nologia (CNPq-2008), Consultor Ad Hoc CAPES em gradas, das festas, dos rituais e de outros correla-
Etnocenologia e coordenador do GETNO – Grupo tos. Lançada na Universidade Paris VIII em 1995,
de Estudos em Etnocenologia. Vice-coordenador PP- liderada por Jean-Marie Pradier, esta nova vertente
GARTES/UFPA.
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das etnociências, chegou ao Brasil em 1997 pela gica, apontou caminhos e proposições para seus
UFBA, através do Programa de Pós-Graduação desdobramentos na academia paraense. Potenciali-
em Artes Cênicas (PPGAC), inaugurando um zou também a organização e participação dos pes-
novo paradigma teórico-metodológico e promo- quisadores da instituição convidados a apresentar
vendo um singular avanço da pesquisa artística no o pensamento etnocenológico da Amazônia no 9º
ambiente universitário brasileiro, por meio de um Colóquio Internacional de Etnocenologia, ocorri-
dos principais propositores e pensadores, o Prof. do em Paris em 2013.
Dr. Armindo Bião, criador do referido programa O encontro teve como convidados o Prof. Dr.
e da ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa Armindo Bião (UFBA), a Prof.ª Dr.ª Leda Martins
em Artes Cênicas. (UFMG), além da participação de pesquisadores
Na Amazônia, a etnocenologia aportou em da UFPA, UFBA, UFMG, UEPA, IFPA e ofer-
2002 através de um convênio MINTER-Artes Cê- tou palestras, seminários, mesas redondas, espeta-
nicas, celebrado entre a UFBA e UFPA que for- cularidades ao vivo, rituais de passagem e rituais
mou 17 mestres e desdobrou-se em um DINTER de celebração e dois painéis de trabalhos: A Et-
que qualificou 12 doutores. Dentre as pesquisas nocenologia na Amazônia - 10 anos de Pesquisa e
apresentadas pelos novos mestres e doutores, um Construção de Conhecimento e A Espetacularida-
denso campo de conhecimento sobre práticas es- de Afro-Brasileira.
petaculares da Amazônia se desenvolveu e vem se Ao reunir artistas, pesquisadores, professores,
alargando pelas proposições da etnocenologia. alunos, mestres das culturas populares na cidade
Desde sua inserção no universo da pesquisa por meio da UFPA, o TAMBOR reconheceu, ce-
em Artes Cênicas na academia da Amazônia, a lebrou e comungou com a sociedade a riqueza de
etnocenologia – enquanto Etnociência das Artes um dos principais pilares da etnocenologia que é a
e Formas de Espetáculo –vem engendrando um indissociabilidade do conhecimento científico e da
singular corpus teórico e metodológico, revelado sabedoria dos praticantes revelada nas múltiplas e
nos projetos, objetos e fenômenos de pesquisa por diversas formas espetaculares da Amazônia.
ela acolhidos, que sublinham uma importante con- Dentre as demandas acolhidas da plenária de
tribuição na construção epistemológica e na afir- encerramento do encontro, foi organizado, a partir
mação da autonomia do pensamento dos artistas- de 2013, o GETNO (Grupo de Estudos em Etno-
-pesquisadores brasileiros. cenologia) com o objetivo de estudar e sistematizar
Na UFPA, para além da pesquisa, a etnoceno- a teoria etnocenológica. O grupo de estudos traba-
logia passou a integrar os currículos dos cursos de lha em duas frentes: GETNO I, coordenado pela
Graduação em Teatro, de Especialização em Es- Prof.ª Dr.ª Maria Ana Azevedo, que reúne alunos da
tudos Contemporâneos do Corpo, do PARFOR e Graduação em Dança e Teatro, e dos Cursos Téc-
do Mestrado em Artes do PPGARTES/ICA, ge- nicos de Teatro e Dança da ETDUFPA. E o GE-
rou em 2008 o TAMBOR - Grupo de Pesquisa em TNO II, coordenado pelo Prof. Dr. Miguel Santa
Carnaval e Etnocenologia/CNPq, e desde 2012 o Brigida, que reúne pesquisadores do PPGARTES/
grupo de Consultores Ad-Hoc da Capes possui ICA e de outros programas de pós-graduação.
um pesquisador da UFPA em seu quadro. Desde Em 2014 o grupo realizou o II Encontro Para-
sua criação o TAMBOR constituiu-se no principal ense de Etnocenologia com o tema Corpo Lugar
propositor e articulador dos estudos etnocenoló- de Festas, partindo do fundamento apresentado
gicos na Amazônia, promovendo, dentre diversas no Manifesto de lançamento da disciplina, no qual
ações na pesquisa e na extensão, o Encontro Pa- Pradier anunciou o corpo em sua equivalência do
raense de Etnocenologia que ocorre bienalmente. ceno como “lugar em que a alma habita tempo-
Em 2012 o grupo de pesquisa realizou o I En- rariamente”. O coletivo dos pesquisadores refletiu
contro Paraense de Etnocenologia com o tema sobre o corpo como lugar de festas, linguagens,
Práticas Espetaculares da Amazônia, que avaliou objetos, saberes, hibridismos e fazeres, promoven-
uma década de estudos etnocenológicos na região, do um avanço na edificação epistemológica da et-
refletiu sobre sua singular construção epistemoló- nocenologia na Amazônia.
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O Encontro homenageou o Prof. Dr. Armindo A Etnocenologia e Questões Etnográficas


Bião, falecido em 2013, e teve como convidados a
Prof.ª Dr.ª Helena Teodoro (RJ), Prof. Dr. Graça A ETNOCENOLOGIA E O CAMPO ET-
Veloso (DF) e Prof. Dr. João de Jesus Paes Lourei- NOGRÁFICO
ro (PA). Durante quatro dias o evento reuniu artis-
tas, pesquisadores, professores, estudantes e a co- A Etnocenologia vem traçando caminhos so-
munidade externa numa intensa programação que bre a espetacularidade humana na observação de
contemplou três mesas redondas, três palestras, diversas práticas e comportamentos. Entre eles,
cinco espetáculos, seis solos de artistas-pesquisa- fenômenos antes observados por antropólogos
dores, vinte comunicações de pesquisa, três rituais que estavam à procura de sociedades excêntricas.
de passagem e um cortejo carnavalesco. Utilizando o prefixo Etno, a Etnocenologia e a Et-
Como fulcro das discussões, refletiu-se sobre nografia se diferem em muitos aspectos e se apro-
o corpo em suas dimensões físicas, biológicas, ar- ximam em outros. As duas estão inseridas em con-
tísticas e espirituais integradas às festas, partindo textos humanos que oferecem fontes de pesquisas
de três eixos temáticos que nortearam o encontro: únicas e conversam sobre pontos substanciais.
Etnocenologia e Questões Etnográficas, Etnoce- A Etnocenologia surge para salientar pesqui-
nologia e Práticas Religiosas e Etnocenologia e sas sobre o corpo e suas muitas possibilidades de
Processos Criativos. estudo dentro da proposta de espetacularidade e
A partir destes eixos, o GETNO vem aprofun- teatralidade discutida pela disciplina. Para tanto,
dando três abordagens principais como fulcro de adentra em territórios visitados por antropólogos
suas investigações, que neste artigo apresentamos que antes da Etnocenologia já se interessavam por
de forma separadas, mas que marcam, também, tais fenômenos. Então elas apresentam diferenças?
uma indissociabilidade como signo da operação Sim, primeiramente porque as duas se comunicam,
integrativa e interdisciplinar da etnocenologia em mas diferem em pontos decisivos. Bião (2011, p.
sua proposição investigativa dos fenômenos espe- 348) em texto que escreveu sobre a Etnocenolo-
taculares circunscritos na tradição e na contem- gia e suas aproximações deixa claro essa questão:
poraneidade. Os textos apresentados a seguir são a própria referência matricial da Etnocenologia
resultantes das reuniões de estudo, das sessões de ratifica que a base etnocenológica vem da palavra
orientação e das contribuições dos pesquisadores. skéne - cena, banquete. Do substantivo feminino
No eixo A Etnocenologia e Questões Etno- surge o masculino skeno - corpo, festas. “[...] o cor-
gráficas apresentamos as reflexões de Ana Clau- po humano, enquanto abrigo para a alma que nele
dia Moraes de Carvalho no texto A Etnocenologia reside temporariamente. De alguma maneira, o “ta-
e o Campo Etnográfico e de Fernanda Sales dividido bernáculo da alma”, o invólucro da psyché” (PRA-
em três tópicos: O Artista-pesquisador-participante no DIER apud BIÃO, 2011, p. 348). A Etnocenologia
Frete, O trabalho de Campo e o Corpo do Pesquisador e O valoriza o corpo e suas identificações. Ideologi-
Corpo e a Bebida. No segundo eixo Etnocenologia camente está construída com base na alteridade,
e Práticas Religiosas, temos a reflexão de Sandra contrapondo-se a noções etnocêntricas e a noção
Perlin no texto Pontuando o Sagrado num Estado Sin- estática de identidade.
gular. No terceiro eixo Etnocenologia e Processos A Etnocenologia garante a voz da comunidade,
Criativos Rafael Cabral apresenta suas reflexões tendo o cuidado de não nomear o que já é nomea-
nos tópicos O Artista-etno-pesquisador, Questões indíge- do pelas pessoas que fazem o fenômeno, que são o
nas e o corpo do pesquisador na tribo e O corpo alterado do próprio fenômeno. Nos estudos da Etnocenologia
pesquisador em campo. Amazônica a descrição etnográfica, por ela reali-
zada, garante a inteireza pelo “[...] respeito à histó-
ria, ao fazer, ao sentido, a visão de mundo do seu
sujeito, aquele que detém o conhecimento e que é
fonte do estudo do corpo, da cena [...]” (CARVA-
LHO, 2014, p. 75). Pela Etnografia, a Etnocenolo-
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gia consegue adentrar nas comunidades e perceber (que foram doados por amigos, vizinhos...) para
de forma minuciosa os detalhes na descrição do serem servidos. Na frente da casa, há um grupo
fenômeno na pesquisa das manifestações espeta- de homens que joga baralho e dominó para distrair
culares humanas. aquelas pessoas que acompanham aquele momen-
A Etnografia ajuda o pesquisador etnocenológi- to de despedida. Estes grupos de pessoas foram
co a perceber detalhes preciosos e importantes para organizados por Ana Lúcia Farias, conhecida em
a pesquisa enquanto matéria-prima no estudo subs- Abade por “Dona do frete”.
tancial sobre o corpo e suas especificidades. Muitas O segundo momento do frete é o cortejo no dia
pesquisas acadêmicas foram traçadas com base na seguinte: quatro homens tiram o caixão da casa e
Etnocenologia e ancoradas na Etnografia para se junto a outros, revezam-se em levá-lo até o Ponto
adensarem. A pesquisa etnocenológica resguarda o da Mangueira, local em que um grupo de mulheres
cuidado que devemos ter para não viabilizarmos, o levará até a porta do cemitério. Durante este per-
pela linguagem, questões etnocêntricas comuns em curso a Dona do frete pede coleta aos participantes
muitas pesquisas sobre o comportamento humano. do cortejo e a quem assiste a passagem do féretro.
Bião (2011, p. 353) assim nos alerta para um dos Ela organiza todas as ações dos acompanhantes,
paradoxos dos vários que possamos encontrar na quem foge às regras é suspenso por dois fretes. Ao
aplicabilidade de pesquisas etnocenológicas: chegar à porta do cemitério as mulheres entregam
o caixão aos quatro homens que o tiram da casa.
Talvez aí resida um de nossos paradoxos (dos et- Não entra bebida no cemitério que é um campo
nocenológos, em particular, e de todos os seres santo, quem quiser fica no bar, no lado de fora.
humanos, em geral): somos humildes a ponto de Todos entram para se despedir, em um momento
querermos conhecer e valorizar o outro e arro- de tristeza. Na volta para casa os participantes do
gantes ao imaginarmos que o compreenderemos
frete, muitos embriagados, estão cansados da ca-
como ele se compreende a si próprio.
minhada de 5 km e de carregar o caixão. Após o
frete a família do morto se organiza para os rituais
Para além de paradoxos como esse, também
seguintes, dependendo de suas religiões.
nós, pesquisadores etnocenológicos, podemos dia-
Através de estudos da Etnocenologia foi pos-
logar com teorias e práticas como a da Etnografia,
sível visualizar o frete em seu corpo (enquanto es-
porém sem causar confusões epistemológicas, bem
trutura), participantes e nomenclaturas. Armindo
como metodológicas, a fim de não confundirmos
Bião (2009a) elucida-nos que a Etnocenologia é
as noções traçadas pela Etnocenologia e os con-
formada por: ETNO, o sentido de diversidade cul-
ceitos já enraizados por outras referências teóricas.
tural, CENO está para além do corpo biológico e
A Etnocenologia discute e conversa com diversas
vai para o espaço espetacular em que se estrutura,
áreas do conhecimento com o objetivo de se apro-
com seus participantes em uma relação com a cena
ximar da essência humana em suas organizações
e LOGIA, relação de aprendizagem no ambiente
espetaculares visualizadas em seus corpos sociais.
dos praticantes. Assim, no frete, percebem-se as
nomenclaturas dadas pelos praticantes como frete
O ARTISTA-PESQUISADOR-PARTICI-
(ritual fúnebre) e Dona do frete (Ana Lúcia Farias,
PANTE NO FRETE
organizadora do ritual fúnebre). Para o artista-pes-
quisador-participante (SANTA BRIGIDA, 2009)
Na dissertação “Lágrimas e cachaça: a espetacu-
foi possível apresentar as nomenclaturas: equipe-frete
laridade do cortejo fúnebre do frete em São João
(homens e mulheres que participam da feitura das
do Abade, Curuçá-PA”, conhecemos o frete, ritual
comidas e que jogam baralho e dominó durante o
fúnebre realizado por um grupo de pessoas da po-
velório), corpos-frete (homens e mulheres que carre-
voação São João do Abade. No frete, o velório é na
gam o morto durante o cortejo fúnebre) e corpo-
casa do falecido, com a família deste recepcionan-
-fretado (o morto que é levado ao cemitério).
do os amigos que chegam para visitá-lo. Na cozi-
O frete é um macroevento que ultrapassa a roti-
nha, um grupo de mulheres prepara os alimentos
na, sendo extracotidiano, Espetacular (BIÃO, 2009b),
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sendo visualizados em seus participantes fixos (fami- nheiro trocado (R$2,00-R$5,00), depois observar
liares, amigos e quem sempre acompanha) e partici- e registrar através de fotografias a saída do caixão.
pantes momentâneos (pessoas que passavam pelo local Era necessário revezar o uso da câmera fotográfica
durante o cortejo e algumas em suas casas). Duran- e a filmadora para não perder o dito e o não dito
te o frete os participantes fixos são carregadores naqueles momentos. O cortejo era de 5 km, mas
de caixão, garçons para as bebidas, já nos microeven- o percorrido pela pesquisadora eram em média
tos do cotidiano, na Teatralidade (BIÃO, 2009b) são 7km, pois depois que registrava todo o percurso,
pescadores, vendedores, garis... era necessário retornar ao início para se verificar a
Dez fretes foram registrados pela artista-pesqui- troca dos homens no Ponto da mangueira para as
sadora-participante, destes registros três etnografias mulheres assumirem o cortejo. Além de visualizar
foram apresentadas: o frete que veio de barco, por a estrutura do macroevento era necessário correr
atravessar o Rio Muriá para Abade e se verificar as para acompanhar o frete, que é muito rápido, ho-
regras vigentes neste cortejo dividido (além do nor- mens correm com o caixão.
mal) por terra e água. O frete de uma evangélica, Durante o velório, utilizaram-se câmera foto-
para verificar se com diferentes religiões diferen- gráfica, filmadora e caderneta de anotações para
ciava-se também o ritual fúnebre, e por último, o registrar o que ocorresse, já no cortejo fúnebre
maior frete vivido durante a pesquisa. Para registros somente câmera fotográfica, filmadora e gravador
destes fretes foram necessários como procedimen- de voz, era impossível anotar algo na caderneta,
tos metodológicos: câmera fotográfica, filmadora, era preciso correr para não perder nenhuma infor-
gravador de voz, entrevistas não estruturadas com mação. Necessitou-se, também, realizar pesquisas
religiosos, familiares e amigos dos mortos e pesqui- bibliográfica e documental para se compreender a
sas bibliográficas e documentais. história dos rituais fúnebres em Curuçá, além da
formação da povoação São João do Abade. Entre-
O TRABALHO DE CAMPO E O CORPO vistas não estruturadas foram necessárias para se
DO PESQUISADOR analisar o frete estruturalmente, suas regras, conhe-
cer seus participantes, além de frases ditas durante
Para registrar, analisar e viver o frete a artista- o evento.
-pesquisadora-participante precisou vencer seu Para a artista-pesquisadora-participante além de
medo de rituais fúnebres, pois esta vivia em um utilizar os procedimentos metodológicos supraci-
momento de Morte Selvagem (ARIÈS, 1990) que tados, também acompanhou os velórios, conver-
quanto mais distante da morte melhor, contudo a sou com as pessoas e até com o morto. Serviu-se
pesquisa exigia acompanhar o frete, conhecer a po- das comidas, acompanhou o cortejo andando, cor-
voação São João do Abade, seus habitantes e sua rendo, carregando o morto (a partir do ponto da
história. Para começar, fez-se necessário conhecer mangueira), riu das piadas, chorou com as perdas,
quem organizava os rituais fúnebres na povoação, ouviu os discursos, ficou com inchaços pelo corpo,
foi através da amizade com Ana Lúcia Farias que após o cortejo. Fez registros daqueles momentos e
se possibilitou adentrar este universo em Abade. foi registrada também. O mais importante de tudo
No início, era difícil ir a velórios, conversar com foi viver o frete em toda sua relação de alteridade
as pessoas neste momento de dor e principalmen- com os abadienses em realizar a última homena-
te perceber o quão diferente eram as concepções gem ao seu ente querido.
de morte, para a pesquisadora: velórios em capelas
mortuárias, choros contidos, pessoas representan- O CORPO E A BEBIDA
do o luto com roupas pretas... Em Abade pessoas
sorrindo, jogando dominó e baralho, servindo-se A povoação São João do Abade está localizada a
de mingaus de arroz e milho, vatapá, bolo, salgados, 5km do centro do município de Curuçá, seu terri-
refrigerante, cervejas, cachaça, peixes assados... tório está dividido por uma ponte, marco divisório
No outro dia o cortejo fúnebre, como acompa- (imaginário) para seus habitantes. Povoação que
nhá-lo? Primeiro para a coleta tinha que levar di- está na frente de um braço de mar (Rio Muriá) que
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dá acesso à Ilha de Fora (com várias localidades). Etnocenologia e Práticas Religiosas


Os abadienses, em sua maioria, estão ligados à pes-
ca, com seu mercado municipal exportando muito PONTUANDO O SAGRADO NUM ES-
pescado para todo país. Um povo de homens com TADO SINGULAR
os corpos marcados pelo trabalho no mar, que uti-
lizam chapéus de palha, camisetas, chinelos e ber- Os estudos da Etnocenologia no Pará têm avan-
mudas. Vestimenta que não é diferente durante o çado na área da sacralidade, buscando na espetacu-
frete, não há uma roupa especial, com cores dife- larização da teatralidade dessas ações rituais, não
rentes para representar o luto. O que vemos na rua mais a sacralidade em oposição ao profano, mas,
são pessoas com suas roupas do cotidiano, prote- o apontamento dessa sacralidade, independente
gendo-se do sol (bonés, chapéus, sobrinhas...). desse antagonismo. Nossa orientação tem cami-
Homens e mulheres que se dividem em carre- nhado cada vez mais nessa direção porque perce-
gar o caixão, dar dinheiro na coleta, servir as be- bemos que quando se dá voz ao objeto, sendo ele
bidas, rir, brincar, gritar, caminhar, correr... No único, e já reconhecemos isso, corremos o risco de
início do percurso homens levam o caixão, ainda ao apontarmos o profano para a iluminação do que
contritos pela dor e corpos sóbrios, mulheres com nos interessa dizer o que é o sagrado, no profa-
flores caminham, seguindo os homens que levam no apontado por nós, para a iluminação de nosso
o morto. Após a ingestão de cachaça ou vinho, os objeto, corremos o risco de profanarmos outras
corpos começam a ficar altivos, homens brigam sacralidades e aí nos colocarmos numa condição
para levar o caixão, mulheres gritam, dizem frases etnocêntrica. Para muitos estudiosos da área dos
que fazem parte do cortejo... Há neste momento estudos da religião, no apontamento do sagrado,
uma consciência clara do olhar do outro na rua, justamente para desenhá-lo, é comum o profano
há a espetacularidade de corpos embriagados não aparecer como delimitação fronteiriça nesse recor-
só de cachaça, mas da dor quase que insuportável te, muitas vezes para o apontamento de um mesmo
de levar seu ente querido para a nova morada. A ritual. Na necessidade desse apontamento, o pes-
bebida funciona com uma força que o faz esquecer quisador nem percebe que acaba demarcando uma
o momento de dor da perda e lhe fortalece para fronteira, que para os estudos da Etnocenologia es-
aguentar o peso do caixão e a caminhada exaustiva. tão embaçados, misturados, inexistentes. O profa-
Para a artista-pesquisadora-participante houve no dentro de um entendimento de que não existem
um momento em que os registros fotográficos e religiões mortas e sim transformadas, pode ser en-
fílmicos já estavam feitos, as entrevistas realizadas, contrado mais adiante, como aquilo denominado
as pesquisas bibliográficas e documentais conclu- profano, na própria sacralidade apontada. Estando
ídas, contudo faltava verificar aquele corpo que o profano, na própria sacralidade apontada, trazida
se alterava na rua durante o frete, com a ingestão pelo movimento da existência, e aí é tudo que se
de cachaça. Com o corpo sóbrio, a artista sofreu movimenta, o antes denominado profano, aparece
com o percurso (para ela de 7km) em que ora ca- como sagrado.
minhava, ora corria, carregando o caixão e regis- Esse princípio de não apontamento do profa-
trando o evento. Passado estes momentos chegou no para canonizar o sagrado é-nos permitido ex-
a vez de sentir no corpo a alteração da ingestão perimentar, porque estamos construindo um novo
de bebidas alcoólicas: leveza, alegria, energia, força paradigma que, segundo Bião pretende evacuar os
sempre para mais uma dose... Naquele momento preconceitos etnocêntricos e positivistas, tendo a
o corpo sentia o amortecimento, ouvia os gritos e Etnocenologia como um de seus pilares, articula-
gritava também, além de mais um ponto de aceita- dos na alteridade. E aqui precisamos perceber, que,
ção como alguém que faz parte do frete. A Artista- se no primeiro parágrafo, apontamos o perigo de
-pesquisadora-participante passou a fazer parte no mesmo objeto, como parâmetro comparativo
dos corpos-frete e participantes fixos. apontarmos sagrado/profano, agora indicamos
esse perigo em relação ao outro, numa prática, que
eu chamaria de ostensiva ou tosca. É o instante em
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que, de dentro de nós mesmos, olhamos para o tribuição para as artes cênicas como indutor de re-
outro e percebemos o diferente de nós, nessa não flexões pertinentes ao processo de reafirmação de
aceitação a sentença: teus deuses são diferentes do minha identidade étnica mebengokre.
meu, teu ritual é estranho e teus símbolos estão A partir deste momento entro em contato com
errados porque não me dizem nada. Ora, se a prá- aldeias da etnia mebengokre localizadas no sul
tica da alteridade, é justamente reconhecer que o do Pará e norte do Mato Grosso. Este percurso
diferente não necessariamente está diferente por- se mistura com o encontro da história de minha
que está contra mim, nem tão pouco a favor, então, família. O encontro familiar aconteceu logo após
perceber o outro como único e sagrado em suas o convite da Fundação Nacional do Índio para a
ações, por mais distantes que elas estejam da mi- realização da cobertura fotográfica da I Feira de
nha, é reconhecer que, dentro do que é sagrado, só Sementes Mebengokre na aldeia de Moikarako, lo-
o sagrado pode ser apontado. calizada no município de São Felix do Xingu, Pará,
Diferente é perceber a profanação: denomi- Brasil.
namos de profanação exatamente a não prática A história denomina a etnia mebengokre como
da alteridade na expressão do outro, destruindo a kayapo, que significa “cara de macaco” na língua
experimentação daquilo que é diferente de mim e tupi. Esta etnia se autodenomina mebengokre
hierarquizando o mesmo em relação a quem sou. (povo do buraco d’água ou da nascente do rio) e
Quando reconhecemos o não apontamento do está localizada no tronco linguístico Jê. O termo
profano, e sim a profanação daquilo que em algum “kayapo” se popularizou por antropólogos e pes-
tempo ou lugar é sagrado, exercemos com plenitu- quisadores sem a devida preocupação de como es-
de a expressão do que queremos enunciar, porque tes povos se autodenominavam. A partir de então
falamos de nós, a partir de nós, sem necessidade de abrindo reflexões sobre a alteridade indígena em
usar o outro como escada para nossas elevações, seu processo histórico, político e social.
apontando a sacralidade da situação e não mais o A etnocenologia permitiu a construção de pro-
profano como moldura delimitante dessa sacrali- cessos metodológicos e reflexivos sobre o percur-
dade. As setas de nossa pesquisa, em relação ao so de colonização europeia. Assim, com o objetivo
sagrado, apontam nessa direção. de contribuir para a valorização e fortalecimento
da cultura indígena por meio da espetacularidade
Eixo Etnocenologia e Processos Criativos em sua dimensão ética e estética, mergulho na cos-
movisão da etnia mebengokre a partir das pinturas
O ARTISTA-ETNO-PESQUISADOR corporais cotidianamente realizadas por mulheres
desta etnia.
A construção do conhecimento epistemológi- Na utilização de dispositivos de registros au-
co acompanha saberes fortalecidos pelo repasse de diovisual, identifico por meio de fotografias e ví-
procedimentos científicos de análise e identificação deos pinturas corporais que aparecem em maior
de objetos que privilegiam a tensão epistêmica do frequência nas aldeias. Este material foi registrado
saber europeu em sua valorização estética; possibi- durante meu percurso de encontro e afeto com a
litando a reafirmação de saberes hegemônicos que aldeia Moikarako e Apexti.
autorizam cientificamente a reprodução de técni- Estas aldeias estão localizadas ao longo do Rio
cas e métodos que se aplicam na vida por meio de Fresco e mantêm sua forma ancestral de organiza-
Práticas e Comportamentos Humanos Espetacula- ção. Todas as aldeias construídas em círculos e com
res Organizados. um centro político denominado de “ngobe" (casa
Em meu processo de identificação de meu ob- do guerreiro). A ngobe é onde acontecem todas as
jeto/sujeito a etnocenologia torna-se fundamental decisões políticas da aldeia, que são primeiramente
no desbravamento de um campo epistemológico acordadas pelos homens e logo após estas decisões
onde práticas culturais seguem o fluxo contrário retornam às suas casas, para as mulheres poderem
do saber hegemônico em sua hierarquização epis- dar suas opiniões, e, daí sim, os guerreiros voltam
têmica. Este percurso é essencial em minha con- a ngobe para ser decidido o que estava em pauta.
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O percurso criativo da pesquisa no trabalho de movimentos para possibilitar um encontro com


conclusão de curso da Graduação em Teatro na práticas corporais ligadas às necessidades artísticas
Universidade Federal do Pará com o título “Ame- em estabelecer relação com os níveis baixo, médio
ríndios mex: um estudo da preparação corporal e alto, assim como o aquecimento que denomino
para atores a partir da representação mítica dos gra- “círculo de pukatoti”.
fismos mebengokre da aldeia de apexti do Xingu” Este processo de criação em arte acompanha o
começa na intenção de possibilitar o contato com a amadurecimento de meu percurso acadêmico na
forma de vida indígena em seu caráter étnico e es- Especialização em Filosofia da Educação, na rela-
tético. Assim, foi criado o Grupo Ameríndios Mex, ção da construção da corporeidade indígena me-
coordenado por Rafael Cabral e orientado pelo Dr. bengokre, e no tempo atual, no Programa de Mes-
Miguel Santa Brigida. trado em Artes na Universidade Federal do Pará.
Este grupo foi fundamental para que alunos da Experimentando neste movimento o percurso do
Escola de Teatro e Dança da Universidade Fede- estudo realizado no trabalho final da graduação em
ral do Pará entrassem em contato com Prática e meu processo criativo de experimentos artísticos
Comportamentos Humanos Espetaculares Orga- por meio da circularidade e dos estados alterados
nizados do qual vivenciei no percurso de mergu- de corpo e consciência identificados nas festas da
lho etnocenológico em aldeias mebengokre do sul etnia mebengokre.
do estado do Pará. No processo criativo do gru-
po, possibilitava o encontro tanto de técnicas do QUESTÕES INDÍGENAS E O CORPO
corpo, na dança, no canto e em suas dimensões DO PESQUISADOR NA TRIBO
simbólicas do percurso criativo deste objeto/sujei-
to de investigação, como no percurso histórico da Em meu percurso como artista, práticas cor-
etnia mebengokre. porais nunca deixaram de existir no processo de
Neste processo identifico no corpo e delimito a ensino nas artes cênicas. Sorte do acaso ou obra
investigação a partir da relação grafismo=animal, do destino me fez estar na maioria dos processos
destacando qualidades de movimento intuído por de criação de peças teatrais ou experimentos cêni-
pinturas corporais como kapran ok (jabuti), kukoj cos, imerso em algum tipo de treinamento corporal
ok (macaco), akre ok (gavião), krori ok (onça) para sistematizado por algum pesquisador da área. Em
criação de princípios para o treinamento corporal alguns processos criativos me dei conta da possibi-
de atores, que auxiliem o contato corporal existente lidade de criação de um treinamento que estivesse
na espetacularidade indígena da etnia mebengokre, ligado com minhas necessidades e limitações para
abrindo portas para o encontro de uma metodolo- a atuação cênica.
gia que denomino como corpografismo. Este proce- Na Graduação em Teatro da Universidade Fe-
dimento metodológico poderá auxiliar professores deral do Pará me confronto com teóricos que me
e artistas do corpo que tenham a intenção de en- deram possibilidade de argumentação e reflexão de
trar em contato com práticas corporais que estejam quais caminhos poderia percorrer no processo de
conectadas com princípios étnicos e estéticos da minha proposta do treinamento. Nesse confronto
cultura indígena. de teorias deparo-me com o universo ameríndio do
Enquanto movimento criador proponho prin- Xingu e com as contribuições epistemológicas da
cípios para o treinamento, do qual não se tem a etnocenologia
intenção de se tornar um modelo fechado, e sim, No contato com aldeias da etnia mebengokre,
um disparador para diferentes processos de atu- desenlaço um nó histórico. Fato este que ocasio-
ação e repasse de conhecimentos pertencentes à na o esquecimento da identidade étnica do povo
cosmovisão indígena mebengokre. Neste momen- brasileiro. A perda da identidade indígena de mi-
to sistematizo princípios corporais encontrados nha família foi silenciada no processo histórico de
na cultura indígena em uma tradução artística que colonização e globalização do Brasil. Indo atrás de
valorize características presentes da etnia meben- vestígios históricos encontro parentes em aldeias
gokre em sua cosmovisão. Neste sentido, criando mebengokre (CABRAL, 2013).
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Neste momento percebo o caminho potente percurso da festa eu era surpreendido por diversos
para reflexões e contribuições epistemológicas em momentos de dança, canto e movimento de cor-
meu processo de investigação do corpo na arte e pos com diferentes traços de pinturas corporais.
na vida, auxiliando a apropriação de conteúdos re- A movimentação dos corpos durante quase duas
flexivos para favorecer a valorização e o fortale- semanas, começava no pôr do sol terminando a
cimento da cultura indígena aliando a necessidade cada dia em uma intermitente relação do corpo no
artística no processo de construção de uma poética espaço, na dança e no canto.
ameríndia da Amazônia. O evento reuniu diferentes aldeias da etnia me-
Estabelecer conexões diretas com a realidade bengokre, entre encontros e afetos com indígenas
indígena é o ponto de partida, percebendo que desta etnia que durante os dias, dançavam, canta-
suas peculiaridades são importantíssimas para o vam, comiam e bebiam. Percebia que ao longo dos
nosso reconhecimento e para encontrar soluções dias a relação de afetos no meio de reuniões públi-
no convívio em sociedade e harmonia com a natu- cas sobre a situação indígena na Amazônia se mis-
reza, pois cada etnia carrega consigo uma gama de turava com cenas que ressoavam em cada corpo
conhecimentos tradicionais e costumes peculiares indígena e não indígena.
a elas que se difere entre demais grupos indígenas. Esta primeira experiência abriu aspectos de
A importância de legitimar saberes performativos minha sensorialidade do qual vivenciava naque-
e simbólicos presentes em culturas tradicionais é le momento que se tornaram fundamentais para
essencial para fortalecer redes de trocas e experiên- minha descoberta como artista-etno- pesquisador.
cias sustentáveis na vida. No percurso desta alteração ao longo dos dias do
No caminho para I Feira de Sementes Tradicio- evento meu corpo ia se modificando com o auxí-
nais Mebengokre realizado na aldeia de Moykarako2 lio das pinturas corporais ou mesmo dos colares,
em setembro de 2012, um barulho do motor guiava penas e acessórios que iam sendo incorporados ao
a expedição, som do vento atravessando as folhas meu corpo durante os dias do evento.
que ecoava na estrada, na levada do cheiro da flores- A alteração de meu corpo me modificava a cada
ta, tranquilizando a viagem por quase oito horas em momento e fazia me perguntar de onde vinham
estrada de chão. Ao longe era possível ver grandes aqueles arrepios e sensações que nunca havia sen-
morros presentes nas diversas regiões montanhosas tido? Entre sonhos e sensações de prazer e fami-
do sul do estado do Pará. Muitas subidas e descidas liaridade com toda a estética que se apresentava e
em um transe a caminho da floresta. Navegando movimentava minhas sensações e emoções. Ten-
a caminho da mata ao encontro de meu primeiro tando encontrar explicações identificava a possibi-
contato com os indígenas da etnia mebengokre. lidade da interpretação de todo aquele “exotismo”
O evento foi promovido pela Associação Flores- que neste primeiro movimento transformador se
ta Protegida em parceria com a Fundação Nacional apresentava para mim até então.
do Índio. O caminho para a aldeia de Moykarako, Porém ao longo das marcações entre passos,
saindo de Belém, são quase vinte e quatro horas de pinturas e afetos ia se construindo o começo de
ônibus até a cidade de Tucumã, sul do Pará. Logo um tessitura que alterava tempo e espaço no ritual
depois é preciso viajar por mais dez horas em es- da festa da I Feira de Sementes Mebengokre. Este
trada de chão. Quando o nível do rio aumenta fica evento tem como objetivo a troca de sementes en-
impossível o acesso à aldeia por estrada. tre diferentes aldeias mebengokre. Com isso mui-
Este momento foi fundamental para vivenciar tos indígenas estavam reunidos e juntos entoavam
e sentir no corpo faculdades perceptivas que coli- cantos e danças nunca vistos antes com essa proxi-
diam com minha percepção do espaço=tempo. No midade por mim. O que me chamava mais a aten-
ção era o modo como estes corpos se organizavam
para o olhar do outro em sua concentração e muita
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Aldeia está localizada na Terra Indígena Kayapo, no atenção no momento da dança e do canto.
municipio de São Felix do Xingu, nas margens do Rioz- Era lua cheia, todos os corpos visualmente
inho. A aldeia possui cerca de 600 indígenas. apresentados de forma “mei”. O conceito meben-
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gokre “mei” está relacionado como forma própria meçava a me organizar e a organizar meu corpo,
e “bonita” de se apresentar para o olhar do outro e por horas ficando tonto.
em respeito ao ritual. Este movimento foi bastante Algo nestes movimentos havia me conectado
transformador para expandir uma percepção e me a profundas memórias de minha consciência no
retornar para algo de muito familiar que pudesse momento de retorno a aldeia. Neste momento em
ter vivido em outra vida. Apexty, fiquei tentando justificar ou encontrar res-
postas para tais alterações sofridas durante os dias.
O CORPO ALTERADO DO PESQUISA- Voltando para Belém do Pará percebia que exis-
DOR EM CAMPO tia algo diferente. Fiquei tentando justificar a for-
ma de apresentação do meu corpo ao retornar da
A I Feira de Sementes Mebengokre foi um dis- aldeia, entre cheiros, pinturas e algo que aparecia
parador da sensorialidade vivenciada durante os neste processo que despertava os olhos. Os urucum
dias do evento. Este disparo foi importante para e jenipapo estavam muito presentes no meu corpo.
meu processo de recuperação de minha identidade Este retorno foi fundamental em um fluxo inter-
étnica e da história de minha família. Este primei- mitente de mudança. Fui tomado pelas sensações
ro contato possibilitou o alinhamento de relações e por estas alterações que se tornavam presentes,
que iriam me possibilitar o contato posterior a es- entre tonturas e sonhos. Neste fluxo pensava que
tas aldeias, haja vista que além das experiências de esse encontro me trazia muitas responsabilidades
fascínio neste primeiro movimento, estabelecia as e meu percurso como artista neste estudo da vida.
dificuldades de burocracias institucionais que po-
deria encontrar no futuro. AFETOS CONCLUSIVOS
Porém esta dificuldade foi minimizada em mi-
nha segunda visita a aldeia de Apexty. Neste mo- Como singularidade das pesquisas aqui apresen-
mento já havia procurado informações, em Belém tadas e suas práticas etnocenológicas investigadas
do Pará com minha avó. Ela me contou que duran- na Amazônia, remarco a relação do corpo do artis-
te o percurso inicial de sua vida, desde o seu nas- ta-pesquisador-participante na metodologia etnoce-
cimento, morou junto com seu pai, não indígena, nológica como paradigma fundante desta investida,
e sua mãe, indígena mebengokre, em suas aldeias sublinhando o pesquisador dionisíaco “que inaugu-
que originaram outras posteriormente. As aldeias ra linhas originais de indagação. Sabe apenas a dire-
de Gorotire e Kubenkrangkeng foram as que ge- ção a tomar em busca do desconhecido. Chega a ser
raram, até a cisão da aldeia de Apexty, onde me banal a pergunta: que seria da ciência sem o aspecto
encontrava neste momento. aventuroso da mente, sem uma iniciativa propria-
Neste percurso em meu primeiro campo de mente dionisíaca?” (MAFFESOLI, 1998, p. 48).
investigação, encontro na aldeia de Apexty o pajé Minhas proposições enquanto orientador e
da aldeia chamado Tukakatho. Esta pessoa com professor buscam privilegiar de maneira impera-
o auxilio de um tradutor não indígena, responde tiva por parte do pesquisador a sua compreensão
perguntas do qual eu trazia da conversa com mi- e investida no CORPO DA PESQUISA, no que
nha avó. Este momento foi muito importante, pois se refere ao seu corpo teórico enquanto estrutura
encontrava sentado ao chão no meio de uma gran- do pensamento científico em seu fluxo argumenta-
de casa feita de palha, a história de minha família tivo, sua organização textual, conteudística e for-
materna. mal, privilegiando a dimensão poética da mesma.
Ao longo dos dias a vida ia se tornando mais O MEU CORPO na pesquisa refere-se ao envol-
clara com esse encontro, começando a estabelecer vimento físico, emocional e espiritual do pesqui-
minhas alterações corporais em um mantra na flo- sador etnocenológico nos princípios, processos e
resta. Muitos sons, muita cor em uma só harmonia. produtos da pesquisa. E O MEU CORPO COMO
O canto e a batida dos pés eram as únicas musica- PESQUISA referente aos artistas-pesquisadores
lidades ali presentes que se tornavam mantras nos quando apresentam o seu próprio corpo como fe-
momentos, alterando meu olhar e a forma, eu co- nômeno e objeto na pesquisa.
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Como aspectos relevantes a serem considerados ______. Estética performática e cotidiano. In:
nesses processos criativos das pesquisas aqui ana- ______. Etnocenologia e a cena baiana: textos reuni-
lisados, sobressai de maneira especial o afeto en- dos. Prefácio de Michel Maffesoli. Salvador: P & A
quanto substância fundante para o resultado qua- Gráfica e Editora, 2009b, p. 161-169.
litativo e original dessas travessias na construção CABRAL, Rafael Ribeiro. Ameríndios Mex: um
do pensamento e da teoria etnocenológica. Afeto estudo da preparação corporal de atores a partir
enquanto amálgama da energia do corpo pesqui- da representação mítica do grafismo dos animais
sante no envolvimento com o objeto e fenômeno sagrados dos Mebengokrês da Aldeia de Apexti.
de pesquisa, seus sujeitos, seu contexto e suas rela- Monografia (Graduação). Universidade Federal do
ções humanas. Afeto comungado, somado, dividi- Pará. Instituto de Ciências da Arte, Escola de Te-
do e multiplicado como dimensão criativa, operati- atro e Dança da UFPA, Curso Licenciatura Plena
va e espiritualizada para a pesquisa em artes cênicas em Teatro, 2013.
brasileiras a partir da Amazônia. CARVALHO, Ana Claudia Moraes. Odo Iya: da es-
petacularidade do Yle Ase Oba Okuta Ayra Yntyle
REFERÊNCIAS ao corpo-cena. Dissertação (Mestrado). 101 f. Uni-
versidade Federal do Pará. Instituto de Ciências da
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Tradução: Arte, Programa de Pós-graduação em Artes, Be-
Luiza Ribeiro. Volume II. Rio de Janeiro: F. Alves, lém, 2014.
1990. MAFFESOLI, Michel. Conhecimento Comum: Com-
BIÃO, Armindo Jorge de Carvalho. A Presença pêndio de Sociologia Reflexiva. São Paulo: Brasi-
do Corpo em Cena nos Estudos da Performance liense, 1998.
e na Etnocenologia. R. bras. est. pres., Porto Alegre, SANTA BRÍGIDA, Miguel de. A Etnocenologia
v.1, n.2, p. 346-359, jul./dez., 2011. Disponível em como desígnio de um novo caminho para a pesqui-
<http://www.seer.ufrgs.br/presenca>. Acesso sa acadêmica – ampliação do modo e lugar de ver a
em: 22 mai. 2014. cena contemporânea. In: BIÃO, Armindo Jorge de
______. Estética performática e cotidiano. In: Carvalho (Org.). Anais do V Colóquio Internacional de
______. Etnocenologia e a cena baiana: textos reuni- Etnocenologia. Universidade Federal da Bahia, Pro-
dos. Prefácio de Michel Maffesoli. Salvador: P & A grama de Pós Graduação em Artes Cênicas. Salva-
Gráfica e Editora, 2009a, p. 123-139. dor: Fast designer, 2007. p. 199-203.

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