Povos Indígenas Na Constituinte de 1988

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Conselho Indigenista Missionário

Os Povos
Indígenas
ea
Constituinte1987-1988

Rosane Lacerda
Conselho Indigenista Missionário

Os Povos
Indígenas
ea
Constituinte
1987-1988

Rosane Lacerda

Brasília – 2008
Publicação do Conselho
Indigenista Missionário (Cimi),
órgão anexo à Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil (CNBB).

PRESIDENTE
Dom Erwin Kräutler

Endereço
SDS - Ed. Venâncio III, sala 309-314
CEP 70.393-902 - Brasília-DF
Tel: (61) 2106-1650
Fax: (61) 2106-1651
www.cimi.org.br

Os Povos Indígenas e a Constituinte – 1997/1998


Coordenação e pesquisa
Rosane Lacerda

Seleção de imagens
Aida Cruz

Revisão
Leda Bosi

Diagramação
Licurgo S. Botelho

Capa
Delegação Kayapó festeja a supressão do inciso que
tratava das terras dos “extintos aldeamentos”. 18/08/1988
Foto: Egon D. Heck/Arquivo Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC

APOIO

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação

Lacerda, Rosane.
Os Povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 / Rosane Lacerda.
– Brasília (DF) : CIMI – Conselho Indigenista Missionário, 2008.
240 p. il. ; 21 x 28 cm
Bibliografia
1. Povos Indígenas – Brasil. 2. Brasil – Constituinte. 3. Brasil – História.
I. Título.
CDU 34(=981)
A Dom Luciano Mendes de Almeida (in memorian),
ao Cacique Xicão Xukuru (in memorian),
aos Povos Indígenas e seus aliados,
e a todos aqueles e aquelas que acreditaram e trabalharam
para que esta virada histórica se tornasse possível.
“Eles vieram às
centenas das diversas
regiões do país, com
o aguerrido espírito
fundante, raiz profunda
dessa terra. Ocuparam
com seus gritos,
diversidade e beleza os
espaços do Congresso
Nacional.

Estavam armados
da determinação de
conquistarem seus
direitos fundamentais,
especialmente à terra,
aos recursos naturais
e à organização social.
Nunca antes, se vira
semelhante agitação no
espaço do poder”.

Egon D. Heck
14/10/1987 – Kayapó – Brasília – Foto: Egon D. Heck/Arquivo Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC
Sumário

Apresentação....................................................................................................................................8

Introdução......................................................................................................................................10

1 - Antecedentes.............................................................................................................................13
1.1. O assimilacionismo na história constitucional brasileira................................................13
1.2. A realidade indígena no contexto pré-constituinte.........................................................16
1.3. Povos indígenas e movimentos sociais nos anos 70 e 80...............................................27
1.4. Em busca de uma nova Constituição para o país............................................................31

2 – A preparação............................................................................................................................37
2.1. A Constituinte como prioridade da ação do Cimi...........................................................37
2.2. Articulações e mobilizações indígenas preparatórias.....................................................42
2.3. A questão indígena na Comissão Provisória de Estudos Constitucionais.......................45

3 – A participação indígena no processo Constituinte...................................................................51


3.1. As Subcomissões e Comissões........................................................................................55
3.2. Os embates na Comissão de Sistematização...................................................................88
3.2.1. A campanha do Estadão e a CPMI do Cimi...............................................................92
3.2.2. O 1.º Substitutivo do Dep. Bernardo Cabral..............................................................96
3.2.3. As “Emendas Populares”........................................................................................... 99
3.2.4. O 2.º Substitutivo do Dep. Bernardo Cabral............................................................. 106
3.3. O acompanhamento aos trabalhos no Plenário da ANC................................................109
3.3.1. O 1.º Turno de votações.........................................................................................109
3.3.2. O 2.º Turno de votações.........................................................................................130
3.4. Os povos indígenas no texto constitucional de 1988...................................................139

Referências bibliográficas.............................................................................................................143

Apêndice
Cronologia da questão indígena na Assembléia Nacional Constituinte.......................................146

Anexos
I – Falam os aliados da causa indígena
- Manuela C. da Cunha (ABA) – Subcomissão das Pop. Indígenas (23.04.87).......................154
- Florestan Fernandes (PT-SP) – Subcomissão das Pop. Indígenas (23.04.87).......................157
- Dom Erwin Kräutler (Cimi) – Subcomissão das Pop. Indígenas (29.04.87).........................160
- Carlos Marés (CPI-SP) – Subcomissão das Pop. Indígenas (29.04.87).................................163
- Vanderlino de Carvalho (Conage) – Subcomissão das Pop. Indígenas (29.04.87)..............167

6 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


- Marina Villas-Boas (CTI) – Subcomissão das Pop. Indígenas (29.04.87).............................169
- Mércio Gomes (IPARGE) – Subcomissão das Pop. Indígenas (29.04.87).............................170
- Eduardo V. de Castro (SBPC) – Subcomissão das Pop. Indígenas (05.05.87)......................174
- Manoel Cesário (Fiocruz) – Subcomissão das Pop. Indígenas (05.05.87)...........................175

II – Com a palavra, os povos indígenas


- Pangran Kubenkran-Krem (Kayapó) - Subcomissão das Pop. Indígenas (5.5.87)................177
- Nelson Saracura Pataxó – Subcomissão das Pop. Indígenas (5.5.87).................................177
- Gilberto Macuxi – Subcomissão das Pop. Indígenas (5.5.87).............................................178
- Davi Yanomami – Subcomissão das Pop. Indígenas (5.5.87)..............................................180
- Krumare Kayapó – Subcomissão das Pop. Indígenas (5.5.87)............................................182
- Pedro Kaingang – Subcomissão das Pop. Indígenas (5.5.87)..............................................183
- Valdomiro Terena – Subcomissão das Pop. Indígenas (5.5.87)...........................................186
- Hamilton Kaiowá – Subcomissão das Pop. Indígenas (5.5.87)...........................................188
- Antônio Apurinã – Subcomissão das Pop. Indígenas (5.5.87)............................................189
- Ailton Krenak – Subcomissão das Pop. Indígenas em (5.5.87)...........................................190
- Raoni Mentuktire (Kayapó) – Subcomissão da Nacionalidade em (7.5.87).........................193

III – A falsa “conspiração internacional”...


- Nota da CNBB à imprensa, em 10.08.87.............................................................................195
- Nota da CNBB à imprensa, em 14.08.87.............................................................................196
- Resolução n.º 3/87 do Congresso Nacional instala a CPMI.................................................197
- Relatório do Senador Ronan Tito à CPMI...........................................................................198

IV – Propostas de Emendas Populares


- Proposta de Emenda Popular n.º 40 sobre as “Populações Indígenas”..............................202
- Discurso de Ailton Krenak defendendo a Proposta de Emenda Popular n.º 40.................203
- Proposta de Emenda Popular n.º 39 sobre as “Nações Indígenas”....................................205
- Discurso de Julio Gaiger defendendo a proposta de Emenda Popular n.º 39....................207

V – Anais da Assembléia Nacional Constituinte


- Ata da 277ª sessão da ANC, de 1.º.06.1988.......................................................................217
- Ata da 279ª sessão da ANC, em 02.06.1988.......................................................................227
- Ata da 319ª Sessão da ANC, em 17.08.1988......................................................................229
- Ata da 320ª Sessão da ANC, em 18.08.1988......................................................................232
- Ata da 335ª Sessão da ANC, em 30.08.1988......................................................................235

VI – Os direitos indígenas no novo texto Constitucional.............................................................238

Lista de siglas e abreviaturas........................................................................................................240

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 7


Apresentação

Mémoria, Utopia e Libertação

Passadas duas décadas desde a promulgação da Constituição


Federal, onde os direitos dos povos indígenas no Brasil foram
assegurados, aguarda-se ainda o salto qualitativo da letra constitucional
para a realidade do chão concreto em que vivem, na Amazônia e
alhures, no centro e nas fronteiras.
Todavia devemos reconhecer o significado histórico desse
acontecimento que rompeu de uma vez por todas com a perspectiva
integracionista do Estado brasileiro, o que possibilitou aos povos
indígenas avançar em suas lutas concretas, encontrando no texto
constitucional amparo legal para suas reivindicações, em especial no
que se refere à demarcação de seus terrritórios tradicionais.
Mas para que esta vitória fosse alcançada, uma desafiante
batalha foi travada pelos povos indígenas e seus aliados no âmbito
da Assembléia Nacional Constituinte, entre os anos de 1987 e 1988.
Como forma de contribuir com o registro, a valorização e a divulgação
deste importante acontecimento histórico, o Conselho Indigenista
Missionário assumiu o compromisso de publicar este livro que, para
além de uma simples publicação, pretende ser uma prova da fidelidade
e do compromisso dos povos indígenas consigo mesmos, com a causa
indígena e com o país.
Abril-2006 – Acampamento Terra livre – Brasília – Foto: Jarno Gieteling

Mémoria, Utopia e Libertação caminham de mãos dadas, por


esse motivo, o livro também representa um incentivo às lutas pela
aprovação de um novo Estatuto dos Povos Indígenas e pela criação
do Conselho Nacional de Política Indigenista.
Para o Cimi, significa ainda a oportunidade de, mais uma vez,
confirmar a aliança historicamente celebrada com a causa indígena,
reafirmando a sua disposição em continuar a caminhar sempre junto
e ao lado de seus principais protagonistas, os povos indígenas.

D. Erwin Kräutler
Bispo do Xingu, presidente do Cimi

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 9


Introdução

Disse certa vez a poetiza de Goiás, Cora Coralina:1

“Alguém deve rever,


escrever e assinar
os autos do Passado
antes que o Tempo
passe tudo a raso”.
Foi com este espírito que aceitamos a incumbência que nos foi
dada pela direção nacional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), de
elaborar o presente trabalho. Passados 20 anos da promulgação do Texto
Constitucional de 1988, muito do que foi feito, dito e vivido em torno da
experiência de acompanhamento à Assembléia Nacional Constituinte de 1988,
começa lentamente a se apagar na memória daqueles que testemunharam ou
protagonizaram aqueles históricos acontecimentos. São memórias que precisam
e merecem ser registradas e compartilhadas com aqueles que vieram depois, e
com aqueles que ainda estão por vir.
Em 2006, por ocasião de nossas pesquisas de pós-graduação em
Direito, chamamos a atenção do Cimi para a importância de dar visibilidade ao
seu rico e precioso acervo documental e fotográfico relacionado à luta pelos
direitos indígenas na Constituinte. Ao mesmo tempo, salientamos a necessidade
de resgatar a memória não apenas da participação indígena naquele processo,
1988 – Kayapó na Constituinte – Foto: Egon Heck/Arquivo Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC.

mas também do papel desempenhado pela entidade através de sua direção


nacional, equipes regionais e assessorias.
Em nossa dissertação de mestrado, dedicamos um tópico à
reconstituição dos passos que levaram ao envolvimento do movimento indígena e
à vitória dos direitos indígenas na Constituinte, no tocante ao tema da capacidade
indígena. Porém, por termos tido o privilégio de haver acompanhado de perto
aquele processo, sabíamos que muito mais havia a ser contado. Mesmo hoje,
com um distanciamento de 20 anos em relação aos fatos, pouco interesse na
questão tem sido demonstrado por parte de historiadores ou documentaristas.
Pela relevância dos papéis desempenhados pela entidade e pela CNBB no palco
da ANC, compreendemos que caberia ao Cimi a grande responsabilidade de ao
menos impulsionar o início do preenchimento de tal lacuna.
Conversas com D. Thomaz Balduíno por ocasião do Seminário “Direito
à Memória”, e com Chico Whitaker, no “Seminário 20 anos da Constituição
Federal”, patrocinado pela Câmara e Senado, reforçaram-me a convicção quanto

1 CORALINA, Cora. Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. 4.ª Ed., Círculo do Livro,
p.9.

10 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


à importância deste resgate histórico. Como não poderia deixar de ser, o Cimi
resolveu encampar a proposta, e foi com grande contentamento que recebi o
convite para realizar o trabalho.
A obra encontra-se dividida em duas partes principais: a primeira é
dedicada ao contexto pré-constituinte, e a segunda aos acontecimentos que se
processaram no decorrer dos trabalhos da ANC. Na primeira parte, procuramos
situar a questão indígena quanto ao histórico paradigma assimilacionista
historicamente vigente, quanto aos principais aspectos da realidade à qual
encontravam-se submetidos no contexto da política indigenista, e quanto à sua
relação com os movimentos sociais na luta contra a ditadura e pela construção
de um constitucionalismo democrático. Na segunda parte, buscamos reconstruir
os principais momentos da trajetória das lutas do movimento indígena e de seus
aliados no processo constituinte, desde a instalação da ANC até a aprovação do
texto final do Capítulo “Dos Índios”.
É claro que não se trata de uma pesquisa exaustiva, de um trabalho
completo ou isento de falhas. Muito há ainda para ser resgatado, contado,
analisado e aprofundado. Pretendíamos, por exemplo, subsidiar nossas pesquisas
com entrevistas em vídeo, de personagens que protagonizaram aquele momento
histórico. Infelizmente um acidente de percurso nos impossibilitou de levarmos
adiante o trabalho que havíamos iniciado, de coleta de tais depoimentos.
Esperamos poder fazê-lo noutra oportunidade. Inclusive quanto aos episódios
jocosos, as gafes cometidas, as situações hilariantes – por que não? O fato é que
ocorreram, ao longo dos corredores e gabinetes, porém deles só têm registro
as nossas lembranças.
Esperamos que esta publicação seja útil a todos aqueles que se
interessarem por compreender como foi possível, no caso dos povos indígenas,
esta virada histórica no constitucionalismo brasileiro. É um trabalho que pode
servir de subsídio para o próprio movimento indígena, estudantes e profissionais
da área do Direito, Antropologia e Ciências Sociais em geral, militantes e
assessores dos movimentos sociais, e, obviamente, a todos aqueles que se
dedicam à causa dos direitos indígenas.
Por fim, agradecemos todo o apoio que nos foi dado pela direção
nacional do Conselho Indigenista Missionário, sobretudo através do Secretariado
Nacional da entidade, que nos disponibilizou os serviços de seu Setor de
Documentação e de sua Assessoria Jurídica, nas pessoas de Leda Bosi, Aida
Marize Cruz e Marluce Ângelo.
Brasília – DF, 1.º de novembro de 2008.
Rosane Freire Lacerda.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 11


Grupo de mulheres e crianças no pátio da aldeia Enawenê-Nawê, Mato Grosso – Foto: Egon D. Heck/Arquivo Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC

A perspectiva eurocêntrica presente no Brasil


desde a colonização atribuía ao Estado a tarefa de
integrar os indígenas, por meio de sua assimilação
religiosa, cultural, econômica e política.

12 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


1. ANTECEDENTES

1.1. O assimilacionismo na história constitucional brasileira


Ao longo dos seus mais de 180 anos de história no país, as constituições brasileiras foram
representativas não dos anseios dos diversos segmentos historicamente excluídos da sociedade, mas
dos interesses das elites, vinculadas a uma visão essencialmente européia de país.
Esta perspectiva eurocêntrica, presente na condução da vida política, econômica, religiosa e
cultural do Brasil desde o início da colonização, teve nos sucessivos textos constitucionais adotados o
seu equivalente etnocêntrico: não apenas européia, a sociedade brasileira haveria que ser essencialmente
“branca” se quisesse dar certo.
A consecução de um projeto de homogeneidade racial e cultural seria, sob este ponto de vista,
indispensável para a construção do novo país, que só seria viável caso lograsse atingir uma pretensa
unidade nacional.
Em relação aos povos indígenas isto significava atribuir-se ao Estado, de uma vez por todas,
a tarefa de trazê-los ao âmbito desta unidade, através de sua assimilação – racial, cultural, religiosa,
econômica e política.
É deste modo que a Constituição do Império do Brasil, outorgada por Pedro I em 24 de março
de 1824, embora omissa sobre o tratamento a ser dispensado à população indígena, inclui posteriormente
através do Ato Adicional de 1834, entre as competências legislativas das Províncias, a tarefa de dispor
sobre a catequese e civilização dos indígenas (art. 11, §5.º).
A Carta de 1824, assim como as que se seguiram, obviamente não contou com nenhum tipo de
participação popular em sua elaboração. As contribuições levadas ao âmbito dos trabalhos constituintes
relativamente à questão indígena (assim como de todo o resto) partiram de representantes de setores
da elite, a exemplo do padre Francisco Muniz Tavares (1793-1876), escritor, historiador e parlamentar;
de Domingos Borges de Barros (1780-1855), o Visconde de Pedra Branca; e José Bonifácio de Andrada
e Silva (1763-1838), o “Patriarca da Independência”2. Este último através de seus “Apontamentos para a
Civilização dos Índios Bravos do Império do Brasil”, apresentados em 1.º de junho de 1823. Nenhuma
destas contribuições, contudo, foi contemplada no texto outorgado em 1824.
Ausente do texto constitucional do Império, a questão indígena foi objeto, ao longo do século
XIX, de discussões que oscilaram entre duas posições principais: de um lado, a idéia defendida por
Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), o Visconde de Porto Seguro, da inviabilidade dos povos
indígenas e da necessidade de sua sujeição à força em benefício da consolidação das fronteiras do
Império. De outro, o pensamento difundido por José Bonifácio, da também inviabilidade dos povos
indígenas e da obrigação moral do Império em prover-lhes as condições para o seu ingresso no
projeto de unidade nacional brasileira. Embora divergentes em seus propósitos imediatos em relação
aos índios, ambos comungavam no entendimento de que os povos indígenas, em suas identidades
e modos próprios de vida, representavam formas de existência inferiores e, por isso, fadadas ao
desaparecimento.
Imbuídas da tarefa de “civilizar” os índios, as Assembléias Provinciais logo associaram a
definição, pela aparência, do seu pertencimento à “massa da população civilizada”, com a consolidação
do esbulho das terras indígenas.
Mais tarde, assim como na Carta do Império, a Constituição Republicana de 1891 também não
contou com a participação popular nas discussões que levaram à sua elaboração. As contribuições sobre
o tratamento a ser dado aos povos indígenas continuaram a sair de restritos círculos das elites, como
a proposta do Apostolado Positivista. Este propunha dividir o status jurídico dos índios entre “Estados
Ocidentais Brasileiros”, compostos por grupos miscigenados, e “Estados Americanos Brasileiros”,

2 cf. MOREIRA NETO, Carlos A. Os Índios e a Ordem Imperial. Brasília: CGDOC/FUNAI, 2005, p.247.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 13


compostos por “hordas fetichistas”. Mas a primeira Carta constitucional da República, a exemplo da do
Império, também sequer mencionou a existência de indígenas em território brasileiro3.
O ideal de branqueamento da população brasileira, essencial ao positivismo cientificista que
tanto marcou os círculos militares republicanos da época, não admitia, também, o reconhecimento
de qualquer tipo de diversidade que fizesse questionar o conceito de unidade nacional então
perseguido.
Algum tempo depois, a Constituição de 1934 também não conseguiu espelhar os interesses
amplos da sociedade em seus diversos setores. Também não teve participação popular na sua elaboração,
sendo como as demais fruto dos acordos políticos das oligarquias regionais.
É nela, contudo, que surge a primeira menção à existência de índios no país. Não de modo
a reconhecê-los como portadores de identidades próprias a serem respeitadas, mas como submetidos
a uma condição passageira (a de “silvícolas”), a serem conduzidos pelas mãos do Estado ao seio da
“comunhão nacional”. Assim, dizia:
Art. 5.º. Compete privativamente à União:
(...)
XIX – legislar sobre:
(...)
m) incorporação dos silvícolas à comunhão nacional. (Grifos nossos.)
A expressão “silvícola”, ou seja, “habitante da selva”, havia sido introduzida pelo Código
Civil de 1916 (Lei n.º3.071, de 1.º de janeiro de 1916), como representação de um conceito de “índio”
ainda não assimilado à sociedade envolvente. Na qualidade de “silvícolas”, os índios eram incluídos
entre os “incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer”, posição onde também se
encontravam os pródigos e os jovens entre 16 e 21 anos (art. 6.º).
Na visão do Código Civil de 1916, esta incapacidade cessaria à medida em que os índios fossem
se “adaptando à civilização”. Assim, a condição de “silvícola” seria transitória, tendendo a ser substituída
por uma nova condição, a de participante da civilização brasileira. É, pois, com esta perspectiva – a de
uma identidade indígena transitória, que fatalmente cederia lugar a um conjunto de valores culturais
tidos por superiores porque civilizados (os valores da comunhão nacional brasileira) – que a referência
aos índios é inserida no texto constitucional de 1934.
Com o advento do regime ditatorial denominado “Estado Novo” liderado por Getúlio Vargas,
a Carta de 1934 era revogada. Vargas fechara o Congresso Nacional e, nessa circunstância, elaborava
e outorgava a Constituição de 1937. À época o mundo estava à beira da 2.ª Grande Guerra. Setores
influentes do Estado Novo não conseguiam esconder uma forte simpatia pelos sentimentos de intolerância
que marcavam o nazismo na Alemanha, e o fascismo na Itália. Em relação à questão indígena, embora
contivesse um dispositivo prevendo o tratamento a ser dispensado às terras indígenas, a de 1937 omitiu-
se quanto ao lugar dos povos indígenas na sua relação com o Estado brasileiro e sua sociedade. Com
tal omissão, não previu a incorporação dos índios à comunhão nacional, mas também não cuidou do
reconhecimento de suas identidades próprias.
Com o fim da Segunda Grande Guerra em 1945 e a derrocada do nazi-fascismo, chegava ao
fim no Brasil o “Estado Novo”, que se prolongara por um período de 15 anos. Deposto o presidente e
findo o regime de exceção, o país necessitava de uma nova ordem constitucional.
Porém, apesar de marcar o fim de um período ditatorial, a nova Constituição que então seria
elaborada a (CF/1946) também não resultaria de participação popular. Como resumiria anos depois o
Prof. Dalmo Dallari4,

3 LACERDA, Rosane. Diferença não é Incapacidade: gênese e trajetória histórica da concepção da incapacidade indígena
e sua insustentabilidade nos marcos do protagonismo dos povos indígenas e do texto constitucional de 1988. Dissertação
(Mestrado em Direito) Orientador: Prof. José Geraldo de Sousa Júnior. _UnB, Brasília, 2007.
4 DALLARI, Dalmo de Abreu. “Constituição e Constituinte”. In: Arquidiocese de São Paulo (org.). Povo de Deus e Constituinte
– Constituição justa e para valer. II Semana “Fé e Compromisso Social”. São Paulo : Loyola, 1985, p. 30.

14 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


O presidente do Supremo Tribunal Federal assume a presidência e convoca a Constituinte. E
isso muito às pressas, sem dar tempo para esclarecer o povo, para que ele participasse. Foi
eleita a Constituinte que fez a Constituição. (...) a representação de São Paulo, diziam ser de
alto nível porque lá estavam doze professores de direito. Mas, o que acontecia, e infelizmente
ainda acontece muito, é que o professor de direito estava muito longe da realidade. E o
professor de direito conhecia o povo pelos livros, e não pela realidade. Um professor de direito
que nunca tinha ido a um bairro pobre, como poderia sentir os problemas, saber quais as
necessidades, quais as aspirações populares?
Isso levou a uma Constituição muito bonita, que em grande parte não se aplicou. (...)
Surgia então a Constituição de 1946, com um texto considerado avançado, mas que em sua
origem não espelhava a participação da sociedade, sobretudo das camadas populares.
No que se refere à questão dos direitos dos povos indígenas, cuja participação fora também
excluída, a Carta de 1946 reproduziu a previsão anterior do texto constitucional de 1934 acerca da
incorporação dos “silvícolas” à comunhão nacional, dizendo:
Art. 5.º. Compete privativamente à União:
(...)
XV – legislar sobre:
(...)
r) incorporação dos silvícolas à comunhão nacional. (Grifos nossos.)
Poucos anos depois, a perspectiva assimilacionista predominante no tratamento dispensado aos
povos indígenas no contexto internacional passou a fazer parte do primeiro instrumento internacional
relativo aos direitos indígenas: a Convenção 107, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Elaborada no contexto dos processos de descolonização, a Convenção 107 aprovada em 1957,
visava proteger e integrar os povos indígenas e tribais de países independentes.
Esta perspectiva integracionista da Convenção da OIT orientava as relações entre os estados
independentes e os povos indígenas no plano internacional, quando no Brasil a Constituição de 1967,
outorgada pelo governo militar de 1964, novamente repetiu o propósito incorporativista em relação
aos índios, presente em textos anteriores (1934 e 1946):
Art. 8.º. Compete à União:
(...)
XVII – legislar sobre:
(...)
o) (...) incorporação dos silvícolas à comunhão nacional. (Grifos nossos)
O propósito integracionista adotado pela Constituição de 1967 sintonizava-se então com
a perspectiva também integracionista predominante no plano internacional em relação aos povos
indígenas.
Imbuído deste mesmo espírito, o texto da Emenda Constitucional n.º 1, de 1969 repetiu as
cartas de 1934 e 1946 ao dizer:
Art. 8.º. Compete à União:
(...)
XVII – legislar sobre:
(...)
o) (...) incorporação dos silvícolas à comunhão nacional. (Grifos nossos.)
Pouco depois, em consonância com a EC n.º 1/69, a Lei n.º 6.001, de 19 de dezembro de 1973,
passava a dispor sobre o “Estatuto do Índio”, cujo propósito era cuidar de sua proteção, e concretizar a sua
integração à sociedade nacional envolvente. Considerando a identidade indígena como algo transitório,
o Estatuto dividia os índios entre “isolados”, “em vias de integração” e “integrados”, escala que valia
um tratamento diferenciado conforme o grau de integração do indígena. Enquanto não-integrados, os
índios eram sujeitos ao regime tutelar a ser exercido pela União através do órgão indigenista oficial, a

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 15


Fundação Nacional do Índio (Funai). Para a liberação do regime tutelar, que poderia ser requerida judicial
ou administrativamente pelo próprio indígena, o Estatuto estabelecia como requisitos a “idade mínima”
de 21 anos, o “conhecimento” (e não o domínio) da língua portuguesa, a habilitação para o exercício de
“atividade útil” (em que consistiria?) na sociedade brasileira, e uma “razoável compreensão” dos usos
e costumes da comunhão nacional (art. 9.º, incisos I a IV).
A fim de garantir o sucesso do processo de integração, o Estatuto estendia “à população
indígena, com as necessárias adaptações, o sistema de ensino em vigor no país” (art. 48). A lei não
deixava dúvidas. A educação escolar indígena deveria ser “orientada para a integração na comunhão
nacional” (art. 50).
No âmbito da assistência à saúde, a única distinção era a previsão de “estabelecimentos”
onde os poderes públicos deveriam dar “especial assistência” aos indígenas. Nenhuma consideração
às concepções de saúde e doença que possuíam cada comunidade era prevista, assim como qualquer
referência aos seus processos tradicionais de cura.
O aparente sucesso do paradigma assimilacionista foi decantado por quase todo o século XX,
e refletiu-se no discurso corrente dos índios e de suas culturas como personagens e contribuições de
um passado remoto, sem lugar próprio no Brasil contemporâneo.
Porém, a própria história cuidava de demonstrar que o assimilacionismo, ao contrário do que
se imaginava, dava sinais de “fazer água”. Aliás, há muito tempo já advertia Darcy Ribeiro:
Muito cedo perceberam os indigenistas de Rondon que não se estava alcançando o objetivo
assimilacionista. Grupos pacificados ou desapareciam rapidamente, vitimados por doenças e
pelas precárias condições de vida a que eram submetidos, ou, quando conseguiam sobreviver,
tendiam a preservar características culturais próprias, como a língua e os costumes
compatíveis com a nova vida de participantes diferenciados da sociedade nacional5. (Grifos
nossos.)

1.2. A realidade indígena no contexto pré-constituinte


Para se entender as motivações do movimento indígena e seus aliados, a força das propostas
que os mesmos levariam e defenderiam junto à Assembléia Nacional Constituinte de 87/88, e o grau
de resistência que enfrentariam por parte de determinados setores, é importante que se compreenda
que elementos cruciais para os povos indígenas em seu relacionamento com o Estado estavam postos
às vésperas daquele momento histórico.
O paradigma assimilacionista reprisado ao longo da história constitucional brasileira expressou-
se durante o século XX em três elementos principais, intimamente relacionados entre si: a) a manutenção
da concepção da incapacidade indígena; b) a disponibilização das suas terras e recursos naturais às
pressões econômicas; e c) a doutrina da segurança nacional. Vejamos aqui um resumo de como estes
elementos estavam colocados no momento em que a sociedade se preparava para a elaboração de uma
nova ordem constitucional.

a) a manutenção da concepção da incapacidade indígena.


A concepção da incapacidade indígena, ancorada no Código Civil de 1916 e, depois, no
Estatuto do Índio de 1973, consolidou-se como um estereótipo que marcou os povos indígenas em
diversos planos de sua vida, e não apenas no dos atos de sua vida civil. Ou seja, esta incapacidade era
vista tanto pela sociedade em geral quanto pelos agentes dos órgãos públicos como absolutamente
natural, extensiva ao âmbito da sua vida política (“índio vota?”) e da sua responsabilidade penal (“índio
pode ser preso?”).

5 RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização: a integração das populações indígenas ao Brasil moderno. 3.ª ed.
Petrópolis: Vozes; 1979, p.192.

16 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Esta visão dos índios como portadores de uma incapacidade natural, levou a que fossem vistos
também como naturalmente sem voz e inativos, sempre necessitando serem representados em seus
diversos interesses. Levou também à idéia de serem totalmente incapazes de sobreviver frente à suposta
superioridade do aparelho “civilizador” não-indígena. Os índios estariam, enfim, destinados a desaparecer
da face da terra. O tipo de tratamento recebido por parte do Estado ou da sociedade brasileira apenas
aceleraria ou retardaria tal processo. O seu ocaso, contudo, seria inevitável6.
Segundo levantamento divulgado por Darcy Ribeiro, no alvorecer do ano 1900 o Brasil contava
com cerca de 230 povos indígenas nas mais diversas regiões do país. Já no ano de 1957, 38 (26,5%)
destes povos eram dados como “integrados”, enquanto que outros 87 (37,8%) haviam desaparecido7.
Freqüentemente números como estes – que refletiam o extermínio de que eram vítimas os indígenas
– eram utilizados como reflexo da tendência “natural” que teriam ao desaparecimento.
Mas a classificação de povos indígenas como “integrados” ou “extintos”, marcava um grande
distanciamento entre índios “oficiais” e índios “reais”. Na lista dos que teriam sido extintos entre os anos
1900 e 1957 figuravam, por exemplo, povos como os Mondé (RO), Xipaya (PA), Kaxarari (AC), Krikati
(MA), Karipuna (RO) e Pataxó (BA), que mais tarde teriam os seus nomes retirados da lista. Além destes,
outros de regiões de mais antiga colonização eram já considerados extintos desde o final do século
XIX, quando governos provinciais haviam sido autorizados a decretar a extinção dos aldeamentos cujos
indígenas vivessem “confundidos com a massa civilizada da população”. É desse modo que nos estados
do Nordeste, no mencionado levantamento divulgado por Darcy Ribeiro no ano de 1957, constavam
apenas (como existentes porém “integrados”), os povos Fulni-ô (PE), Kapinawá (PE), Pankararé (BA),
Pankararu (PE), Potiguara (PB), Wakona (AL), Xokó (SE), Xukuru (PE) e Tuxá (BA)8.
Mais tarde, sobretudo nas décadas de 1970 e 1980, esta idéia do quase completo
desaparecimento dos povos indígenas no Nordeste era tão forte – inclusive nos meios acadêmicos –
que no mapa produzido por A. Ramos a região era completamente desprovida de qualquer indicação
de presença indígena9. Assim, durante toda a primeira metade do século XX, passando pelos anos da
ditadura militar de 1964, até as vésperas da Assembléia Nacional Constituinte, eram considerados extintos
na região os povos Atikum (PE), Geripankó (AL), Kaimbé (BA), Kalankó (AL), Kambiwá (PE), Kariri, Kiriri
(BA), Pankará (AL), Pipipã (PE), Tapeba (CE), Tremembé (CE), Pitaguari (CE) e outros.

Educação escolar

Essa concepção ideológica de uma incapacidade jurídica, política e até mesmo cultural dos
povos indígenas, possuía no plano formal da educação escolar o seu maior instrumento. Como dizia o
Estatuto do Índio de 1973, a educação “do índio” deveria ser “orientada para a integração na comunhão
nacional mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores da sociedade
nacional, bem como do aproveitamento de suas aptidões individuais” (art. 50). Este simples dispositivo,
por si só, já bastaria para dar uma idéia do caráter individualista das relações a ser privilegiado na
educação escolar prestada às comunidades indígenas (algo estranho aos padrões culturais de muitos
grupos lingüísticos no Brasil) e das estratégias a serem observadas para a concretização da plena passagem
da identidade indígena para uma identidade brasileira “não-indígena”.
A realidade, contudo, era bem mais adversa, como já constatavam os diversos encontros e
estudos realizados pelo movimento indígena e seus aliados. Mesmo instaladas em terras indígenas,
as “escolas indígenas” além de simples escolas rurais, que padeciam das mesmas carências comumente
vivenciadas pelas demais do gênero, consistiam também em unidades de reprodução das desigualdades
e da conformidade com relações estruturais de poder sob os quais viviam submetidos os povos
indígenas. Ao mesmo tempo, as experiências em curso de uma educação escolar indígena voltada

6 Daí o desenvolvimento, a partir da instalação do antigo Serviço de Proteção ao Índio, de uma política de moldes positivistas
que tinha por objetivo proteger os índios de possíveis agressões ou mudanças bruscas, proporcionando as condições para
que se integrassem “harmoniosamente” à sociedade nacional brasileira.
7 RIBEIRO, Darcy. Os Índios e a Civilização; op. cit., pp.231-242.
8 RIBEIRO, Darcy. Idem, p.236.
9 RAMOS, Alcida Rita. Sociedades Indígenas. São Paulo : Editora Ática, 1986, p.6.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 17


para o respeito à alteridade eram completamente ignoradas e até mesmo hostilizadas pelo sistema
formal. Apesar disso, como enfatizava a antropóloga Marta Azevedo10, “cada vez mais o direito à
educação é exigido pelos povos indígenas, o direito a uma escola específica que possa servir como
fortalecimento de suas culturas, identidades e que seja meio de participação no processo histórico
global a que estão inseridas”.
Nesse contexto o tema da educação escolar indígena chegava às vésperas da instalação ANC,
onde representaria um dos mais ricos a serem tratados.

b) a disponibilização econômica das


terras indígenas e seus recursos naturais.
Apesar de os textos constitucionais de 1934, 1937, 1946, 1967 e Emenda Constitucional de
1969, tratarem dos direitos territoriais indígenas, o paradigma assimilacionista sempre impôs grandes
limitações ao seu significado e alcance. Assim, embora se mandasse respeitar aos “silvícolas” a posse
de terras em que se achassem “permanentemente localizados” (CF.s /1934 e 1946) ou “localizados em
caráter permanente” (CF/1937), a única garantia constitucional contra a possibilidade de sua perda
decorria da simples proibição de que viessem a ser alienadas pelos próprios índios (limite esse dado
pela ideologia da “incapacidade” indígena)11.
Foi apenas sob a Carta de 1967 que a proteção às terras ocupadas pelos “silvícolas” passou a
contar com uma importante garantia: a de serem incluídas entre os bens da União Federal (art. 4.º, inc.
IV). O mesmo texto também inovou ao reconhecer aos índios “o seu direito ao usufruto exclusivo dos
recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes” (art.186).
Com a Emenda Constitucional de 1969 as terras “habitadas” pelos indígenas passaram a ser
“inalienáveis”, nos termos a serem postos pela lei ordinária federal (art.198, caput). A EC/69 declarou
também “a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza” que tivessem por objeto
seu domínio, posse ou ocupação (art. 198, § 1.º).
Mas a efetividade de tais garantias territoriais só faria sentido até o momento da pretendida
“incorporação dos silvícolas à comunhão nacional” (art. 8.º, inc. XVII, o). Daí em diante esperava-se que a
sua assimilação ao modelo social, econômico, cultural e político hegemônico da sociedade majoritária,
tornasse desnecessárias aquelas formas de proteção especiais constitucionalmente previstas.
Sob o manto do paradigma assimilacionista, as terras indígenas traduziam-se como locais de
confinamento: as “reservas”. Seria necessário demarcá-las não para se proteger os povos indígenas dos
riscos de um possível extermínio, mas para se liberar suas terras às demandas das oligarquias regionais
e das novas fronteiras econômicas.
Essa política de criação de “reservas”, predominante ao longo da história do antigo Serviço de
Proteção ao Índio (SPI), trabalhava com a tendência de redução e não de respeito aos limites das terras
indígenas. Estas, quando demarcadas, sofriam um sistemático processo de redução de seus limites, que
possibilitava não apenas a consolidação de esbulhos mais antigos (caso típico da região Nordeste), mas
também a implantação e o desenvolvimento de novas fronteiras de expansão econômica (caso típico
da região Sul no início do século XX, do Mato Grosso do Sul nos anos 1940 e da Amazônia legal a partir
da década de 1960).
A tendência de redução dos limites das terras indígenas, vista como normal ou natural pelos
dirigentes da política indigenista e pelos representantes de interesses econômicos em terras indígenas
nas décadas de 1970 e 1980, chegava às portas da ANC alimentada pelo discurso do “muita terra para
pouco índio”.

10 AZEVEDO, Marta.“Educação: o que mudar na Constituinte”. In: CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º 95, jan./fev.-87,
p.5
11 Além disso, tais textos constitucionais também não faziam qualquer previsão quanto à utilização dos recursos naturais
existentes naquelas terras.

18 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Demarcação

O mesmo discurso refletia-se também na extrema morosidade do andamento dos procedimentos


administrativos de demarcação daquelas terras. Segundo a Lei 6.001/73, a demarcação deveria ser
procedida “por iniciativa e sob orientação do órgão indigenista oficial”12 (art.19). Mas, sob pressão
dos interesses políticos e econômicos incidentes nas terras indígenas, a sistemática do procedimento
demarcatório passara por várias alterações, ampliando-se progressivamente o âmbito de interferência
desses mesmos interesses, em detrimento dos poderes decisórios antes conferidos ao “órgão indigenista”.
Tais alterações, feitas através de sucessivos decretos13, aumentavam ainda os obstáculos e as exigências
a serem vencidos para a conclusão dos procedimentos, e inseriam-se no contexto do crescente controle
militar sobre a questão agrária no país.
A lei 6.001/73 fixava ainda o prazo de cinco anos para que todas as terras indígenas estivessem
demarcadas, o que obviamente não ocorrera. Em documento datado de 17 de dezembro de 1985
apresentado ao presidente da Funai, o Cimi apresentava um extenso relato sobre a “trágica situação
das terras indígenas” em todas as regiões do país, revelando uma grande decepção com o governo da
“Nova República” 14. O documento informava estarem paralisadas as demarcações de diversas terras
indígenas nos estados do Acre, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará e Rondônia.
Mais tarde, em 1987, um levantamento do Centro Ecumênico de Documentação e Informação (Cedi)
e Museu Nacional do Rio de Janeiro, indicava que apenas 7,91% das terras indígenas encontravam-se
“regularizadas”, ou seja, com as demarcações homologadas e registradas em Cartório de Registro
Imobiliário e no Serviço do Patrimônio da União15.
Neste contexto acirravam-se cada vez mais os conflitos fundiários em torno das terras indígenas.
Com seus limites reduzidos ou simplesmente não demarcadas e sempre invadidas, tais terras ganhavam
visibilidade nos anos 70 e 80 como palcos de intensas disputas, marcados por freqüentes atos de violência
que vitimavam lideranças indígenas atuantes e seus aliados16.

Estradas

Especialmente na década de 1970, diante do boom desenvolvimentista do governo militar e de


seu “Plano de Integração Nacional” (PIN), a abertura de rodovias federais na região amazônica passou a
alcançar muitas das comunidades indígenas que possuíam na floresta a sua última barreira de proteção
contra o avanço das frentes expansionistas não-indígenas. Tais estradas rasgavam territórios indígenas
antes inalcançados, expondo suas populações a novas ondas genocidas.
Ao ser aberta no território dos Panará ou Kren-Akrôro (MT/PA), a Cuiabá – Santarém (BR-163)
levou ao extermínio de quase todo o grupo. Contactado em 1973 quando somava entre 300 e 600
pessoas, dois anos depois – devido às doenças adquiridas no contato com os construtores da estrada –

12 Órgão este que desde 1967 era a Fundação Nacional do Índio (Funai).
13 Inicialmente, pelo Decreto n.º 76.999, de 8 de janeiro de 1976 (DOU 09/01/1976, p.248), os trabalhos de coleta de provas
da ocupação indígena, avaliação e decisão em cada procedimento demarcatório eram atribuídos quase que exclusivamente
à Funai. Posteriormente, o Decreto n.º 88.118, de 23 de fevereiro de 1983 (DOU 24/02/1983, p.3009) passou a submeter
cada procedimento a um “Grupo de Trabalho” onde a Funai dividia assento com “outros órgãos federais ou estaduais
julgados convenientes”, além de representantes dos Ministérios do Interior e de Assuntos Fundiários, cabendo a estes
dois últimos a decisão final sobre cada demarcação.
14 CIMI-CNBB. “Bases para o Diálogo entre a Igreja Missionária e o Estado. Demarcação e garantia de território e o fim da
violência – exigências para uma nova política indigenista”. In: CIMI. Os Povos Indígenas e a Nova República. São Paulo
: Paulinas, 1986. pp.51-83.
15 CEDI/PETI/MNRJ. “Terras Indígenas no Brasil”. São Paulo : CEDI; Rio de Janeiro: PETI / MNRJ. 1987; p.12.
16 Entre as perdas de lideranças indígenas neste período, destacaram-se as mortes de Maiká Waimiri-Atroari (líder da
resistência contra a passagem da BR-174 e morto em 1972 provavelmente em decorrência de uma gripe disseminada
pelos invasores); de Simão Bororo (morto a tiros em 1976 numa invasão armada de fazendeiros à Missão Salesiana do
Merure, quando também foi assassinado o padre Rodolfo Luckenbein); do cacique Ângelo Pankararé (assassinado a
tiros em emboscada, em 1979, em meio a conflito com pequenos posseiros e líderes políticos regionais); de Ângelo Kretã
Kaingang (morto em “acidente” de carro nunca esclarecido, em 1980, em meio a conflitos com madeireira que explorava
araucária na terra indígena Mangueirinha); e de Marçal Tupã’i Guarani (assassinado a tiros em emboscada, em 1983,
em meio a conflitos com o fazendeiro invasor da Terra Indígena Pirakuá).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 19


estava reduzido a 79 indivíduos. Ao mesmo tempo a construção da Manaus – Caracaraí (BR-174) causava
a dizimação de parte dos Waimiri-Atroari (AM), à época considerado “arredio”. Hábeis guerreiros,
inicialmente conseguiram impedir o avanço da estrada fustigando com arcos e flechas os tratores da obra,
mas não resistiram às epidemias levadas pelas frentes de trabalhadores. De 6.000 indivíduos em 1968,
o grupo ficou reduzido a 400 pessoas menos de 20 anos depois. Também na mesma época a Perimetral
Norte (BR-210) causava o desaparecimento de 20 malocas comunais Yanomami que, no contato, foram
dizimados por doenças como a malária, a gripe e a tuberculose17. Não se poderia deixar de mencionar
também as conseqüências da Transamazônica (BR-230). Atravessando os estados da Paraíba, Piauí,
Maranhão, Pará e Amazonas, o traçado da rodovia, inaugurada em agosto de 1972, viria a atingir mais
de 20 povos indígenas, como os Parintintin (AM), Pirahã (AM), Tenharim (AM), Munduruku (PA), Arara
(PA), Assurini (PA), Juruna (PA), Kararahô (PA)Parakanã (PA) e Apinajé (TO), muitos dos quais vivendo
ainda isolados quando tratores passaram a rasgar as terras em que viviam. As conseqüências, como se
poderia imaginar, foram desastrosas para tais povos.
A previsão da abertura de estradas em territórios indígenas logo seria incorporada na Lei
6.001/73 (Estatuto do Índio), como hipótese de intervenção da União para a realização de obras públicas
de interesse do “desenvolvimento nacional” (art. 20, § 1.º, “d”).

Remoções

Mas o avanço das frentes de expansão econômica sobre as terras indígenas não se contentava
com a abertura de estradas. Muitas vezes a remoção definitiva de aldeias inteiras era posta em prática
pelos órgãos governamentais, para se garantir a liberação da terra aos seus novos ocupantes – fazendeiros,
mineradoras, projetos de colonização e usinas hidrelétricas. Foi o que ocorreu, por exemplo, com os
sobreviventes Kren-Akrôro, removidos de suas terras invadidas pela Cuiabá – Santarém, e transferidos
para o Parque Nacional do Xingu, onde foram forçados à convivência com os seus inimigos tradicionais,
os Txukarramãe. Também os Xavante de Marãewatsede ou Suyá Missu (MT) foram vítimas da tragédia
provocada pela remoção de suas terras. Em 1966, toda a comunidade, formada por 263 pessoas, foi
retirada à força em aviões da Força Aérea Brasileira (FAB) para a Missão Salesiana de São Marcos,
ao sul da terra indígena. Poucos dias depois, 83 índios estavam mortos, devido a uma epidemia de
sarampo adquirida com a transferência. A remoção teve por objetivo liberar a terra indígena para a
expansão da “Fazenda Suyá-Missu”, empreendimento agropecuário financiado pela Superintendência
do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam)18.
Pesadelo semelhante foi também foi vivido pelos Nambikwara (MT), do Vale do Guaporé, que
tiveram suas terras rasgadas no início da década de 1960 pela BR-364 (Cuiabá - Porto Velho). A fim de
ceder lugar a diversos empreendimentos agropecuários, também financiados pela Sudam, os índios
foram transferidos para uma reserva criada fora de seu território tradicional. Enquanto isso, certidões
negativas de ocupação indígena eram expedidas pela Funai sobre aquilo que por milhares de anos
fora seu habitat. Em 1971 uma epidemia de sarampo dizimou toda a população menor de 15 anos.
Extremamente debilitados, os sobreviventes foram removidos por helicópteros da FAB para as terras
da reserva, onde os aguardavam a fome e a desolação19. Além destes, vários outros casos de remoção
foram registrados, com resultados igualmente trágicos, a exemplo dos Waimiri-Atroari, transferidos
quando suas terras eram rasgadas pela BR-174 (Manaus - Boa Vista), revolvidas pela mina de Pitinga e
inundadas pela Hidrelétrica de Balbina.
Também a remoção dos índios de suas terras consistiu em prática que logo seria prevista
no Estatuto do Índio, de 1973 (art. 20. § 2.º, “c”), por força de intervenção da União Federal, em
hipóteses que incluíam a defesa da segurança nacional, a realização de obras públicas de interesse do

17 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º 95, jan./fev. -87,p.6.


18 DAVIS, Shelton. Victims of the Miracle: development and the Indians of Brazil. Cambridge: Cambridge University
Press, 1977, p.119.
19 CARELLI, Vincent & SEVERIANO, Milton. “Mão Branca contra o povo Cinza: vamos matar este índio?”. CTI, 1980,
p.12.

20 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


desenvolvimento nacional, a repressão à turbação e ao esbulho praticados pelos índios, e a exploração
de riquezas do subsolo (art.20, § 1.º).

Garimpo

Embora a Lei 6.001/73 fosse taxativa ao reservar apenas aos índios a exploração das riquezas
do solo (art. 44), o que se faria através das atividades de “garimpagem, faiscação e cata”, as invasões
das terras indígenas por garimpeiros eram cada vez mais freqüentes, algumas vezes contando com a
conivência direta de organismos e autoridades governamentais. Às vésperas da instalação da ANC surgiam
registros de novas ou de antigas invasões garimpeiras em diversas terras indígenas na Amazônia.
Uma das mais escandalosas ocorrera em 14 de fevereiro de 1985, quando um grupo de policiais
e particulares, utilizando fardas do Exército, pousou na serra do Surucucus, na terra Yanomami (RR/
AM), dominando a pista de pouso da Funai. A operação, realizada em oito vôos, nos quais chegaram 44
garimpeiros, partira “da Fazenda São Luiz, de propriedade da vereadora Maria de Lourdes Pinheiro, e
com envolvimento direto do empresário José Altino Machado e de políticos locais20.
Meses depois, ao avaliar a política indigenista da “Nova República”, o Secretariado Nacional
do Cimi21 denunciava que o empresário, inicialmente preso e indiciado em inquérito, permanecia em
liberdade e possuía “livre trânsito junto a Ministérios, especialmente o das Minas e Energia”. A cobiça pela
exploração garimpeira da Serra do Surucucus era encabeçada, no Congresso Nacional, pelos deputados
Mozarildo Cavalcanti (PFL-RR) e João Batista Fagundes (PDS-RR)22. A operação de invasão garimpeira
havia sido bloqueada, mas já provocara o início de surtos epidêmicos entre os índios, a exemplo de uma
misteriosa febre letal contraída no contato com garimpeiros vindos do Mato Grosso do Sul23.
Na área Kayapó do sul do Pará, a invasão que já somava mais de 3 mil garimpeiros, provocava
divisão interna entre as principais lideranças em torno da conveniência ou não do garimpo. A área padecia
de conseqüências negativas como poluição do rio e importantes alterações causadas pela introdução
indiscriminada de produtos industriais e supérfluos24. Além disso, os índios eram lesados também na
quantia auferida com a exploração. Das 1,8 toneladas de ouro já extraídas, que rendera 23 bilhões de
Cruzeiros, ficavam com apenas 0,01% do ouro extraído25.
Outra terra indígena afetada era o Alto Rio Negro (AM), lar de 22 diferentes povos pertencentes
às famílias lingüísticas Tukano, Aruak e Maku. Em novembro de 1983, após invadirem e descobrirem ouro
no rio Uaupés, os garimpeiros incentivaram os índios à prática do garimpo, acarretando o desequilíbrio
da estrutura política interna das comunidades. Também no Uaupés e no rio Içana, os índios chegaram a
apreender três balsas carregadas de instrumentos de garimpo, de propriedade da empresa Gold Amazon,
ligada ao então governador Gilberto Mestrinho. No ano de 1984, na Serra do Traíra, no rio Uaupés, já
se contabilizava a presença de cerca de 2 mil garimpeiros na terra indígena26.
No Parque Indígena do Tumucumaque (PA) diversas frentes de garimpo de ouro denominadas
“Garimpo 13 de Maio”, onde atuavam mais de 100 garimpeiros ilegais, levavam à introdução de

20 KRAUTLER, Erwin. “Os povos indígenas e a pastoral indigenista no atual momento histórico”. In: CIMI. Os Povos Indígenas
e a Nova República. São Paulo : Paulinas, 1986, p.11.
21 “A Política Indigenista da Nova República”.In: CIMI. Os Povos Indígenas e a Nova República. São Paulo : Paulinas, 1986,
pp.34-35.
22 O Deputado Cavalcanti chegara a propor na Câmara Federal o Projeto de Lei n.º 1.179/83, que pretendia autorizar o
Executivo a providenciar a abertura e a exploração do garimpo de cassiterita na serra do Surucucus, através de convênio
entre Funai e a Codesaima, com aproveitamento prioritário da “mão-de-obra disponível no território, inclusive a indígena”,
e destinando-se 20% dos lucros à Funai.
23 “Doença já matou dez”. FSP, 1.º.01.1985. Cf. CEDI, “Aconteceu Especial” n.º 15 – Povos Indígenas no Basil/1984,
p.96.
24 “Divergências sobre garimpos”. OESP, 26.06.84. Cf. CEDI, “Aconteceu Especial” n.º15, pp.160-161.
25 O Liberal (PA), 18 e 20/09/84.
26 GENTIL, Gabriel dos Santos e SAMPAIO, Álvaro F. “Febre do ouro no Alto Rio Negro”. In: CEDI, “Aconteceu Especial” n.º
15, p.68-69. Quatro anos depois, a invasão da terra Yanomami por dez mil garimpeiros, associada ao anúncio da divisão da
área em “florestas nacionais”, levaria à morte centenas de Yanomami, vitimados por ataques armados e surtos de malária,
tuberculose e outras doenças, inclusive sexualmente transmissíveis, um genocídio que escandalizaria o mundo.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 21


bebidas alcoólicas e doenças como a gripe e DST, além do clima de constantes richas e desordem nos
acampamentos27.

Mineração

Na região amazônica, desde a descoberta de extensas reservas minerais pelo projeto RADAM28
na década de 1970, as terras indígenas enfrentavam na mineração mecanizada uma nova e grave onda
de ameaças. A Lei 6.001/73 (Estatuto do Índio) permitia a possibilidade de intervenção da União Federal
em terras indígenas “para a exploração de riquezas do subsolo de relevante interesse para a segurança e o
desenvolvimento nacional” (art. 20, § 1.º, f), e submetia à legislação vigente as regras para a exploração
de tais riquezas (art. 45, caput). As pressões pela exploração mineral levaram então o governo Figueiredo
à edição do Decreto n.º 88.985, de 10 de novembro de 1983. Pretendendo regulamentar os arts. 44 e 45
da Lei 6.001/73, o decreto possibilitava a abertura das terras indígenas à exploração mineral mecanizada
(art. 5.º).
Em 10 de setembro de 1984, preocupado com a pressa demonstrada pelo governo na
regulamentação do decreto, um grupo de entidades formado pela União das Nações Indígenas (UNI),
Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Associação Nacional de Apoio ao Índio da Bahia (Anaí-BA),
Associação Nacional de Apoio ao Índio do Rio Grande do Sul (Anaí-RS), Comissão Pró-Índio de São Paulo
(CPI-SP), Cimi, Comissão Pela Criação do Parque Yanomami (CCPY) e Coordenação Nacional de Geólogos
(Conage), enviava ao presidente da Funai três manifestações contrárias às pretensões de exploração
mineral das terras indígenas: a primeira, um parecer jurídico, assinado pelo então presidente da Anaí-RS,
advogado Julio Gaiger, que considerava inconstitucionais desde os arts. 20 (§ 1.º, f) e 45 (§§ 1.º e 2.º) da
Lei 6.001/73, até o Decreto 88.985/83 e a minuta de portaria regulamentadora do mesmo29. A segunda,
um parecer antropológico sobre o decreto e minuta de portaria, concluindo serem ambos “totalmente
inadequados à condução de uma política indigenista coerente com a realidade pluriétnica do país e
com a igualdade e não discriminação que deve prevalecer entre as diversas etnias que o povoam”30.
Por último, uma análise política do significado e conseqüências do decreto, apontando-o não como
condição à soberania ou ao desenvolvimento nacional, nem à proteção dos direitos indígenas, mas
como base para o investimento do grande capital na Amazônia, levando a regulamentação do decreto
a “uma avalanche de empresas mineradoras em áreas indígenas”, conduzindo a sua sobrevivência física
e cultural a perdas irreparáveis31.
Logo se fez sentir no âmbito da questão da mineração em terras indígenas a repercussão
de setores da intelectualidade e da sociedade civil comprometidos com as causas populares e o
processo de redemocratização do país. O jurista Dalmo Dallari, ao mesmo tempo em que opinava pela
inconstitucionalidade da “operação mata-índio” – que via representada na tentativa de regulamentação
da exploração mineral – , denunciava como seu verdadeiro objetivo a facilitação dos interesses de
empresas estrangeiras. “É necessário”, dizia ele, “que a consciência brasileira reaja a essas investidas, que
levarão à morte e à degradação física e moral muitos índios, além de trazer prejuízos e não benefícios
ao povo brasileiro”32.
As mesmas preocupações possuía o Senador Severo Gomes, que apontava a exploração como
um atentado à soberania nacional, por satisfazer apenas os interesses do capital internacional, em
troca do “agravamento do processo de destruição da identidade física e cultural dos povos indígenas”.

27 Lúcia Hussak Van Velthem, 1985, in: CEDI “Aconteceu Especial” n.º 15, p.111.
28 Criado em outubro de 1970, no âmbito do Ministério das Minas e Energia (MME) e Departamento Nacional de Produção
Mineral (DNPM), com recursos do Plano de Integração Nacional (PIN), e o apoio de empresas estrangeiras como a Aero
Service Division of Litton Industries dos Estados Unidos, o Projeto RADAM (Radar na Amazônia) descobriu, através de
um sistema de mapeamento aero-fotográfico, extensas jazidas de ferro, manganês, bauxita, zircônio, ouro, diamantes e
outros minerais. Cf. DAVIS, Shelton. Op. cit., pp.64,90.
29 Cf. LOPES DA SILVA, Aracy et alli (org). A Questão da Mineração em Terra Indígena. Cadernos da Comissão Pró-Índio
de São Paulo, n.º 04. São Paulo : CPI-SP. pp. 34 e ss..
30 Cf. CPI-SP. A Questão da Mineração... op. cit., pp.55-56.
31 Cf. CPI-SP. A Questão da Mineração... op. cit., pp.61-62.
32 DALLARI, Dalmo. “Minérios, Índios e Independência”. FSP, 14.09.1984. Cf. CPI-SP. Idem, p.81.

22 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


“Esses mineradores”, dizia, necessitarão nas terras indígenas “de uma infra-estrutura de apoio – saúde,
educação, comércio – que trará novos colonos e ainda novas exigências”33, com mais perda territorial
para os índios. Pouco depois D. Luciano Mendes de Almeida assim resumia os efeitos devastadores das
experiências de exploração mineral em terras indígenas:
... depreda a flora e a fauna, acarreta a desintegração sócio-cultural das comunidades.
Eliminam-se lideranças tribais. Introduz-se a prática do alcoolismo. Degrada-se a mulher pela
prostituição. Disseminam-se doenças altamente contagiosas. É a fome e a morte. Acirram-se
os ânimos e cresce a violência34.
Este mesmo quadro desolador, sob o risco de ser consolidado pela regulamentação do Decreto
88.895/83, fora inclusive contextualizado pela filósofa Marilena Chauí, ao dizer que, juntamente com
diversas outras formas de opressão e exclusão como as frentes de trabalho nordestinas, os bóias-fias,
e a desnutrição e mortalidade infantis, simbolizava “o país da dizimação sistemática”, que para ela
atestava “o colossal desprezo da classe dominante brasileira pelo pilar da ideologia liberal – os direitos
do Homem e do Cidadão35.
Pouco depois, alegando ter sido afastado por se recusar a assinar a portaria de regulamentação
do decreto, o ex-presidente da Funai Jurandy Marques da Fonseca confirmava perante a “Comissão do
Índio” da Câmara dos Deputados, o interesse do capital internacional sobre as riquezas minerais das
terras indígenas: dentre os 296 pedidos de autorização para pesquisa mineral e lavra naquelas terras,
97 teriam sido apresentados por empresas de capital multinacional, e 33 de capital não identificado36. A
informação apenas corroborava a denúncia já efetuada pelo bispo da Prelazia do Xingu e presidente do
Cimi, D. Erwin Krautler que, considerando como um crime a presença de mineradoras em terras indígenas,
apontava “o capital internacional como o seu ‘principal elemento intensificador’”37.
Como prenúncio das pressões que se seguiriam durante os trabalhos da Assembléia Nacional
Constituinte, não faltaram manifestações favoráveis à exploração, vindas não apenas do setor mineral,
mas também de grandes grupos de comunicação social. No editorial de “O Globo”, de 13 de setembro
de 1984, o jornalista Roberto Marinho, após fazer pouco caso das denúncias de que a exploração mineral
acarretaria em “perigo da contaminação de doenças oriundas do branco civilizado”, dizia que “está se
pretendendo novamente impedir o progresso, restabelecer o clima que imobilizou o Brasil durante
séculos, deixando adormecidas no ventre da terra as riquezas que poderão salvar o País ...”. Também
o jornal “O Estado de São Paulo”, em editorial de 07 de outubro de 1984, referia-se aos índios como
“sentados em cima de trilhões de cruzeiros (sem nada fazer para aproveitá-los em benefício dos 125
milhões de brasileiros)”38. Por sua vez, as 21 empresas associadas à Associação Brasileira de Empresas
de Mineração (ABREMIN) 39, divulgava um comunicado recomendando ao governo “regulamentar a
exploração das riquezas minerais em terras indígenas, compatibilizando o desenvolvimento econômico
com o propósito de integrar as comunidades indígenas, progressiva e harmoniosamente, à comunhão
nacional”. (Grifos nossos)
Em 9 de janeiro de 1985 o presidente Figueiredo chegava a assinar novo Decreto autorizativo da
exploração mineral em terras indígenas, mas suspendia no dia seguinte a sua publicação, sob o argumento
de ter sido elaborado sem consulta prévia aos Ministros-Chefes do Gabinete Civil da Presidência da
República, e do Conselho de Segurança Nacional. A suspensão foi criticada pelo Instituto Brasileiro de

33 GOMES, Severo. “Entre Custer e Rondon”. FSP, 4/10/1984. Cf. CPI-SP. Idem, p.84.
34 ALMEIDA, Luciano M. de. “Em Defesa dos Povos Indígenas”. FSP, 12.01.1985. Cf. CPI-SP. Idem, p.90.
35 CHAUÍ, Marilena. “Dizimação”. FSP, 8/10/1984. Cf. CPI-SP. Idem, p.88.
36 Folha de São Paulo, 28/09/1984. Cf. CEDI. “Aconteceu Especial” n.º15, p.31.
37 Declaração durante o Seminário sobre os Grandes Projetos na Amazônia, realizado pelo Cimi em Manaus (AM). “A Notícia”.
Manaus, 17/9/1984. Cf. CEDI. “Aconteceu Especial” n.º15, p.37.
38 Cf. ambos os editoriais In. CEDI. “Aconteceu Especial” n.º 15, p.39.
39 Brasil Mineral, n.º 13, dez. de 1984, p. 24. Formando o Sistema Estadual de Mineração, A ABREMIN era composta das
empresas CRM (BRS), CODISC (SC), MINEROPAR (PR), PROMINERIOS (SP), CODESUL (MS), DRM (RJ), METAMIG
(MG), CBPM (BA), METAGO (GO), CODISE (SE), EDRN (AL), MINERIOS (PE), CDRM (PB), CDM (RN), CEMINAS (CE),
CONDEPI (PI), COPENAT (MA), COMIPA (PA), METAMAT (MT), CRM (RO), e CODESAIMA (RR). Cf. CEDI. “Aconteceu
Especial” n.º 15, p.39.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 23


Mineração (IBRAM), que teria declarado: “uma atitude como essa intranqüiliza os empresários, pois
a área mineral, em que os investimentos são de retorno a longo prazo, exige segurança jurídica com
projeções para o futuro” 40.
Contudo, parte dos estragos sobre terras indígenas já era perceptível. Em dezembro de 1985
o Cimi denunciava que os requerimentos de pesquisa de empresas mineradoras ao DNPM já incidiam
sobre 32% das terras indígenas no Pará, e 60% das terras indígenas no Amapá. Eram apontados como
mais preocupantes os casos das terras indígenas Waimiri-Atroari, no Amazonas (explorada pelo Grupo
Paranapanema), do rio Içana – parte do território Baniwa (sob pressão de garimpeiros aliciados pela
empresa Goldamazon), da terra indígena Yanomami, em Roraima (sob pressão de garimpeiros e da
empresa DOCEGEO – subsidiária da Companhia Vale do Rio Doce – CVRD), e do Vale do Javari, no
Amazonas (objeto de pesquisa pela PETROBRÁS) 41.
Um monitoramento mais sistemático da situação da mineração em terras indígenas na Amazônia
foi iniciado em 1986, pelo Cedi e Conage, cujos primeiros resultados eram apresentados já naquele ano
aos Ministros do Interior (Minter) e das Minas e Energia (MME). Na versão atualizada apresentada na
fase inicial dos trabalhos da Constituinte, denunciava-se que nove terras indígenas já reconhecidas em
procedimento demarcatório pelo GT Interministerial (GTI) haviam sido liberadas pelo Departamento
Nacional de Pesquisa Mineral (DNPM) à pesquisa e lavra:

TERRA EMPRESAS BENEFICIÁRIAS


UF POVOS AFETADOS
INDÍGENA COM AUTORIZAÇÕES DE PESQUISA E LAVRA

Makuxi e
Anta RR CPRM
Wapixana

1) Brascan; 2) Mineradora Rondon Ltda.; 3)


MT
Aripuanã Cinta Larga Empresa de Mineração Aripuanã; 4)CPRM; 5) Anglo
e RO
American/Simonsen.

Waiwai, Xirieu,
1) Paranapanema; 2) Best Metais e Soldas; 3)
Hixkaryana,
Nhamundá AM Brascan British Petroleum; 4) CPRM; 5) Promix
Kokuryana,
Mapuera e PA Produção de Minérios do Xingu; e 6) Mineradora
Katuena e
Ribeirão de Ourives.
Mawayara

1)Brascan British Petroleum; 2)Jaruana Mineração


Paru do
PA Wayana e Apalaí Indústria e Comércio Ltda; 3)Mineração Berimbau;
Leste
4) Progeo Projetos de Geologia e Mineração

Makuxi e
Pium RR CPRM
Wapixana

MT 1)Gerwarde Unde e 2)Matapu Companhia de


Roosevelt Suruí e Cinta Larga
e RO Mineração Ltda.

1)Anglo American / Simonsen; 2) Jaddo Barbosa


Sai Cinza PA Munduruku Babel; 3)Incospal Indústria de Concreto de São
Paulo S.A.; e 4)Mineração Manacapuá Ltda.

1)Brascan British Petroleum; 2)Best Metais e Soldas;


Tenharim AM Tenharim
e 3)Paranapanema.

1)Odilon Barcick; 2)Walter Pereira do Carmo; 3)


AP e
Waiãpi Waiãpi Newton de Almeida Rodrigues e 4)Reginaldo
PA
Sarcinelli.

40 “O Globo”, 12/01/1985. Cf. CEDI. “Aconteceu Especial” n.º 15, p.40.


41 CIMI-CNBB. “Bases para o Diálogo entre a Igreja Missionária e o Estado”. Op. Cit, p.76.

24 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Como objeto destas autorizações, reservas de zinco, columbita, ouro, paládio, titânio, nióbio,
tântalo, wolframita, tantalita, cassiterita, prata, molibdênio, enxofre, manganês, zinco, chumbo, cromo e cobre42.
No total, “mais de 17,6 milhões de hectares estavam requeridos ou concedidos para mineração em 77
terras indígenas, sob controle de 69 empresas ou grupos econômicos”43.
A tensão gerada no embate sobre a mineração em terras indígenas cairia mais tarde como
uma bomba no Congresso, influenciando os rumos das discussões na ANC. Mas além deste um outro
drama decorrente da cobiça pelos recursos naturais em terras indígenas também se desenrolava: o da
instalação de usinas hidrelétricas (UHE’s).

Exploração de recursos hídricos

Denominadas popularmente de “barragens”, as hidrelétricas passaram a afetar de modo


dramático a vida de diversos povos indígenas, pondo em evidência o falso discurso do desenvolvimento
versus direitos indígenas. Na região amazônica, UHE’s de grande porte como Tucuruí (PA) e Balbina (AM)
causaram impactos proporcionais nos povos Parakanã e Waimiri-Atroari (já atingido pela passagem da
BR-174 e pela exploração mineral em suas terras).
No Nordeste, a construção de hidrelétricas afetava diversos povos situados às margens do
rio São Francisco. Em 1987 o povo Tuxá (BA), tradicional habitante da Ilha da Viúva e de algumas ilhas
circunvizinhas, era forçado a abandonar as suas terras, submersas no lago da UHE de Itaparica. A mesma
barragem afetava também a vida dos povos Pankararé (BA) e Pankararu (PE), que viram crescer nos
limites de suas terras as pressões de populações deslocadas, atingidas pelo empreendimento.
Também na região Sul as UHE’s ocasionavam perdas territoriais a comunidades indígenas,
como os Guarani Nhandeva, desalojados pela Hidrelétrica de Itaipu.

c) a doutrina da segurança nacional.

Faixa de fronteira

O tratamento dado à região amazônica durante o regime militar dos anos 70 guiava-se pelas
perspectivas da segurança e da integração nacional. Para os militares brasileiros, a segurança do país
dependia de políticas de integração que retirassem a Amazônia de seu “isolamento”. Para tanto, nada
melhor do que programas de promoção e estímulo à sua ocupação por empresas e por uma mão-de-
obra de baixa qualificação (de preferência os desvalidos e sem-terra nordestinos44) a ser fixada no local
mediante projetos de colonização. As fronteiras da Amazônia com os países vizinhos, ou por serem
consideradas “anecúmenos” ou por serem habitadas por povos indígenas, eram vistas como áreas de
risco, extremamente vulneráveis. Daí o Plano de Integração Nacional (PIN) com suas rodovias, projetos de
colonização, usinas hidrelétricas, projetos de mineração, garimpos, etc., que arrastaram para a completa
dizimação muitos dos povos e comunidades indígenas que se encontravam em seu caminho.
É nesse contexto que, às vésperas da Constituinte, é ferrenha a oposição dos militares à
demarcação das terras indígenas em faixa de fronteira. É nesse contexto que surge uma “aliança e integral
apoio” entre Forças Armadas e “setores econômicos interessados no aproveitamento das riquezas naturais
existentes nas terras indígenas”45. Idéias delirantes como a expressa pelo General Bayma Denis, de
pressões pela criação, (“às custas do atual território brasileiro e venezuelano”) de um “Estado Yanomami”
46
, passaram a ser incorporadas também na política indigenista da “Nova República”.

42 Fonte: CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º 96, março.1987, p.5.
43 Cf. RICARDO, Fany & ROLLA, Alicia. Mineração em Terras Indígenas na Amazônia Brasileira. São Paulo : Instituto
Socioambiental, 2005, p. 5.
44 “Terra sem homens para homens sem terra”, dizia o slogan do regime militar na década de 70.
45 GUIMARÃES, Paulo M. “Militares conduzem política de ocupação”. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º113 nov.88,
p.3.
46 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º 93, nov.1986, p.5.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 25


Projeto Calha Norte

Em 1986 vinha a público a existência do “Programa de Desenvolvimento da Amazônia” (PDA),


formulado pela SUDAM, que pretendia fomentar o desenvolvimento econômico da região através do
estímulo a grandes projetos empresariais combinados com o aumento da presença do Estado na região
fronteiriça. Previsto para atingir 11 mil quilômetros de fronteiras com sete países latino-americanos47,
o PDA visava reforçar “os aspectos de soberania e controle efetivo do patrimônio nacional” e ao mesmo
tempo “tornar as fronteiras um lugar capaz de atrair colonos e empresários dos eixos tradicionais de
imigração48 como forma de aumentar a circulação econômica de riquezas”49. Tratava-se, como diziam
os seus idealizadores, de um plano de ocupação “racional” da região amazônica.
Em sua área de abrangência, o PDA incidia sobre 88 distintos povos indígenas, que
representavam uma população total de 78 mil indivíduos, e 33% da população indígena no Brasil50. Era
composto de quatro projetos específicos, sendo um deles o “Projeto de Desenvolvimento e Segurança
na Região ao Norte das Calhas dos Rios Solimões e Amazonas”, o Projeto Calha Norte.
Elaborado sigilosamente em junho de 1985 pelo general Rubens Bayma Denys – secretário-
geral do Conselho de Segurança Nacional (CSN) – o Projeto Calha Norte havia sido aprovado pelo
presidente José Sarney, recebendo sua formatação final dos Ministérios do Interior, Planejamento e
Relações Exteriores, e Conselho de Segurança Nacional51. Para o General, “o vazio demográfico da
região”, o seu “ambiente hostil e pouco conhecido”, e a “suscetibilidade da Guiana e do Suriname, à
influência ideológica marxista” tornariam “vulnerável a soberania nacional”, reforçando a necessidade
de implantação do “Calha Norte”52. Ao longo das fronteiras do Brasil com a Guiana, Suriname, Venezuela
e Colômbia, o Projeto afetaria diretamente 51 terras e mais de 50 povos indígenas53.
A divulgação do Projeto causou reação imediata por parte dos setores aliados à causa indígena.
Em nota divulgada à imprensa o Regional Norte I da CNBB apontava como conseqüências a destruição das
identidades indígenas em razão de sua integração à sociedade nacional, a contenção das demarcações,
a dizimação causada pela disseminação de surtos epidêmicos resultantes do contato com as novas
populações não-indígenas a serem fixadas na região, uma nova militarização da condução da política
indigenista, e uma guinada para o autoritarismo, em detrimento do processo de autonomia política
então emergente entre os povos indígenas54.

47 Bolívia, Colômbia, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname e Venezuela.


48 Entre os “eixos tradicionais de imigração” estava a região Nordeste, que na década de 1970 já havia fornecido uma grande
leva de colonos para as famosas “agrovilas”, implantadas ao longo da Transamazônica, experiência quer resultara num
retumbante fracasso em termos de desenvolvimento humano e social.
49 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano VIII, n.º 89, jul.1986, p.8.
50 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano VIII, n.º 89, jul.1986, p.8.
51 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º 93, nov.1986, p.4.
52 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º 93, nov.1986, p.4.
53 Terras (e povos) indígenas a serem afetados pelo Projeto Calha Norte: Galibi (Galibi), Juminá (Galibi-Uaçá e Karipuna),
Uaçá (Galibi-Uaçá, Palikur e Karipuna) e Waiãpy (Waiãpy); Tumucumaque (Waiãpy, Waiana, Apalai, Tirió e Kaxuiana), Rio
Paru do Leste (Waiana e Apalaí); Jacamin (Wapixana), Bom Jesus (Macuxi e Wapixana), Jabuti (Macuxi e Wapixana),
Recanto da Saudade (Macuxi e Wapixana), Canauanin (Wapixana), Malakaxeta (Wapixana), Tabalascada (Wapixana),
Mauá/Pium (Wapixana), Truaru (Wapixana), Serra da Moça (Wapixana), Barata Livramento (Macuxi e Wapixana),
Ouro (Macuxi), Pium (Wapixana), Ponta da Serra (Macuxi), Araçá (Macuxi e Wapixana), Raposa/Serra do Sol (Macuxi,
Wapixana, Ingarikó, Taurepang e Patamona), São Marcos (Macuxi, Wapixana e Taulipang) e Cajueiro (Macuxi); Santa
Inês (Macuxi), Wai-Wai (Wai-Wai e Carafaviana), Waimiri-Atroari (Waimiri, Atroari, Piriutiti, Tiriquiá, Hixkariana, Kaxuyana,
Wai-Wai, Katuena, Xeré, Mawyana e Carafaviana), Ilha Jacaré-Xipaçá (Sateré-Mawé e Maniqui); Ananás (Macuxi), Anta
(Wapixana), Aningal (Macuxi), Boqueirão (Macuxi e Wapixana), Mangueira (Macuxi), Sucuba (Macuxi), Raimundão
(Macuxi e Wapixana) e Yanomami (Yanomami, Iekuana e Earé); Içana-Xié (Eaniuá, Warecana e Baré), Cubate (Eaniuana,
Kuripaco, Uanano, Cubeu e Uarequena), Içana-Aiari (Babiwá, Kuripako, Uanano, Cubeu e Dessano) Taracuá-Uaupés
(Tariano, Tukano, Piratapuia, Maku, Arapaso, Karapanã, Koiuana), Yauareté (Tariano, Tukano, Piratapuia, Maku, Arapaso,
Karapanã, Koiuana), Pari Cachoeira (Tukano, Desana, Tuyuca, Maku, Barasano Baratucano, Karapanã, Merity-Tapuya),
Tikuna Evaré I (Tikuna), Tikuna Evaré II (Tikuna), Santo Antônio (Tikuna), Umariacu (Tikuna), Bom Intento (Tikuna),
Porto Espiritual (Tikuna), Lauro Sodré (Tikuna), Tikuna Feijoal (Tikuna), e São Leopoldo (Tikuna). Cf. CIMI. “Porantim”,
Brasília, ano IX, n.º94, dez. 1986, p.4.
54 Cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º94, dez.1986, p.4.

26 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


1.3. Povos indígenas e movimentos sociais a partir da
década de 1970: pautas para a “Abertura”
Com os processos de descolonização que se seguiram a partir da década de 1970, o viés
assimilacionista que sempre marcou a relação dos chamados Estados Nacionais com os povos indígenas
passou a encarar críticas profundas.
Um marco histórico neste processo foi o “Simpósio sobre a Fricção Interétnica na América do
Sul”, no qual antropólogos e sociólogos realizaram uma revisão crítica do tratamento dispensado aos
povos indígenas. Tais críticas foram condensadas na “Declaração de Barbados I”, de 30 de janeiro de
1971, que denunciava como “relação colonial de domínio” o tratamento que continuava a ser dispensado
aos povos indígenas tanto pelos Estados quanto pelas ciências sociais e pelas missões religiosas. A
Declaração colocava a necessidade de uma “ruptura radical” com as práticas colonialistas, através da
“criação de um estado verdadeiramente multi-étnico” no qual cada etnia tivesse “direito à autogestão
e à livre escolha de alternativas sociais e culturais”.
Para os subscritores de Barbados I, o Estado deveria garantir às populações indígenas “o direito
de serem e permanecerem elas mesmas, vivendo segundo seus costumes”, de “se organizarem e de se
governarem segundo sua própria especificidade cultural”, sem, contudo, impedir aos seus membros “o
exercício de todos os direitos do cidadão”. Considerava como direito inalienável dos indígenas, o de
serem protagonistas de suas próprias lutas de emancipação e seu próprio destino55.
Com a força questionadora da Declaração de Barbados, emergiu em diversos países latino-
americanos um crescente movimento de lideranças e intelectuais indígenas e indigenistas, pondo em
discussão pautas como autodeterminação, autonomia, respeito às instituições jurídicas próprias dos povos
indígenas, e reconhecimento do caráter pluriétnico e multicultural dos Estados.
Tal agenda, somada ao crescimento progressivo da participação indígena em fóruns de
discussão do sistema das Nações Unidas, acabou contribuindo com o processo de revisão, em 1986, da
perspectiva integracionista contida na Convenção 107 da OIT.
No Brasil, pouco depois da Declaração de Barbados I e em pleno período de recrudescimento
do regime militar, um grupo de 12 bispos e missionários católicos denunciava de forma contundente e
inédita a realidade de massacres e esmagamento cultural em que viviam os povos indígenas no país. No
documento intitulado “Y-Juca-Pirama – O índio: aquele que deve morrer”, de 25 de dezembro de 197356,
os religiosos exigiam profundas mudanças no trato da questão indígena e anunciavam:
Nada faremos em colaboração com aqueles que visam “atrair”, “pacificar” e “acalmar” os
índios para favorecer o avanço dos latifundiários e dos exploradores de minérios ou outras
riquezas. Ao contrário, tal procedimento será objeto de nossa denúncia corajosa ao lado
dos próprios índios. Com eles, não aceitaremos um tipo de ‘integração’ que venha apenas
transformá-los em mão-de-obra barata57.
Os compromissos assumidos pelos religiosos católicos de linha progressista no documento
Y-Juca-Pirama, marcaram o início de um trabalho de estímulo e de apoio a um processo crescente de
intercâmbio entre povos indígenas. Até então, estes viviam em situação de grande isolamento e de
sujeição ao poder tutelar tanto dos agentes governamentais, quanto das missões religiosas tradicionais.
Embora vivenciassem situações concretas de resistência contra o avanço do poder econômico sobre
suas terras e recursos naturais, os povos indígenas padeciam de uma situação de:
desconhecimento mútuo das realidades e problemas comuns ou específicos, e a conseqüente
ausência de articulação, entre si e com setores politicamente estratégicos da “sociedade

55 Declaração de Barbados I, cf. SUESS, Paulo. Em Defesa dos Povos Indígenas. Documentos e legislação. São Paulo
: Edições Loyola, 1980; pp.19-26.
56 Ao assumirem o documento, vários destes religiosos passaram e ser alvo de atos de repressão por parte dos militares,
então no poder. [cf. PREZIA, Benedito (Org.). Caminhando na Luta e na Esperança. Retrospectiva dos últimos 60 anos
da Pastoral Indigenista e dos 30 anos do Cimi. São Paulo : Edições Loyola : Cimi : Cáritas Brasileira. 2003; p.145].
57 PREZIA, Benedito. op. cit., p.139.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 27


envolvente”, tanto em torno destas mesmas lutas concretas, quanto de possíveis ou eventuais
propostas e reivindicações mais amplas ou comuns frente ao Estado58.
Logo assumida pelo Cimi como base de sua ação missionária, a proposta do Y-Juca-Pirama
impulsionou rapidamente o ressurgimento do protagonismo dos povos indígenas na conquista de direitos,
na reafirmação de suas identidades próprias e na definição de seus projetos de futuro.
Os primeiros passos para esta virada foram dados com a realização das chamadas Assembléias
de Chefes Indígenas, inicialmente organizadas pelas unidades regionais do Cimi. Levantamento efetuado
pela antropóloga Maria Helena Ortolan Matos informa que de 1974 a 1984 foram realizadas em todo o
país 57 destas assembléias indígenas59. Segundo Prezia, tais experiências marcaram “a volta não apenas
da fala do índio, mas também de sua organização”60.

Maio de. 1977. Assembléia de Chefes Indígenas. Aldeia S. Marcos (MT).


Foto: Antônio Carlos Moura. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – Setor de Documentação.

Ortolan Matos indica que, com a experiência das primeiras assembléias, os índios passaram a
perceber a importância da imprensa e da produção dos chamados “documentos finais” como eficazes
instrumentos de reivindicação e denúncia61. Com o tempo, perceberam também a importância do
estabelecimento de canais diretos de comunicação com os responsáveis pela política indigenista. Diz
a autora que
Ao circular pelos altos escalões do governo, os índios aprenderam a se impor como autoridades
políticas que deveriam ser recebidas e ouvidas pelos representantes do Estado brasileiro,
fosse ele presidente da Funai ou presidente da República62.
Não se limitando à simples discussão de problemas, as assembléias desaguaram numa série
de ações concretas, tais como retomadas de terra e ocupações de sedes de administrações da Funai,

58 LACERDA, Rosane. Diferença não é Incapacidade... op. cit.


59 ORTOLAN MATOS, Maria Helena. O Processo de Criação e Consolidação do Movimento Pan-Indígena no Brasil
(1970-1980). 1997. 357p. Dissertação (mestrado em Antropologia) _UnB, Brasília. p.222.
60 PREZIA, Benedito. op. cit., p.164.
61 ORTOLAN MATOS, Maria Helena. op. cit. pp.252-257.
62 ORTOLAN MATOS, Maria Helena. op. cit., p. 257.

28 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


como formas de protesto e reivindicação de direitos. Na seqüência, a partir dos protestos de um grupo
de estudantes indígenas residentes em Brasília (DF), era criada, em junho de 1980, a União das Nações
Indígenas (Unind)63.
Mas as lutas do movimento indígena e dos setores com ele comprometidos não se fizeram
isoladamente. Estavam inseridas no contexto das lutas dos movimentos sociais contra as brutalidades do
regime de exceção implantado pelo Golpe Militar de 1964, sobretudo em sua versão “anos de chumbo”
da década de 1970. Enquanto os missionários indigenistas diziam não à tradição assimilacionista da
Igreja em relação aos índios, o clero e o episcopado de linha progressista, por seu turno, diziam não
aos arbítrios da ditadura, denunciando-os. Enquanto os “chefes indígenas” realizavam os seus primeiros
encontros e assembléias, os movimentos sociais urbanos e camponeses, com o apoio das Comunidades
Eclesiais de Base, iam às ruas protestar contra o regime.
Assim, em 30 de março de 1973 um culto ecumênico na Catedral da Sé, em São Paulo, reunia
o Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, o Rabino Henry Sobel e o Reverendo James Wright, para protestar
contra o assassinato do líder estudantil Alexandre Vannucchi Leme, morto sob tortura em 17 de março
daquele ano nas dependências do DOI-CODI64.
Em 31 de outubro de 1975, novo culto reunia aqueles mesmos religiosos, D. Helder Câmara e
mais 8 mil pessoas em protesto contra o assassinato do jornalista Wladimir Herzog, também morto sob
tortura em 25 outubro daquele ano, numa sela do Comando do II Exército em São Paulo, onde havia sido
chamado para depoimento. Em 1976 era a vez de artistas e intelectuais lançarem um manifesto contra
a censura. Em 1978, na região do ABC, em São Paulo, eclodia um movimento grevista sem precedentes,
que logo se espalharia entre boa parte do operariado no estado. Em 8 de agosto daquele ano, na
Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), diante de uma multidão, o jurista Godofredo Telles
Jr. lançava a “Carta aos Brasileiros”, pedindo “Estado de Direito Já !”. Em 1979 era lançada a “Campanha
pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita” a todos os perseguidos e presos políticos do regime militar65. Em
1983, tinha início a campanha pelas “Diretas Já!”. A sociedade ultrapassava as barreiras do medo e do
conformismo, e rompia as grades do regime ditatorial. Como bem observa o sociólogo Eder Sader, no
final da década de 1970 “grupos populares irrompiam na cena pública reivindicando seus direitos, a
começar pelo primeiro, pelo direito de reivindicar direitos”66.
O mesmo processo de libertação ocorria também no âmbito da questão indígena.
Questionamentos à tradição de um estado uninacional e debates em torno do significado do
reconhecimento da autodeterminação dos povos indígenas, passavam a ser objeto de discussão por parte
de cientistas sociais e indigenistas no Brasil. Em meio a tais discussões, o reconhecimento dos grupos
indígenas como “nações” era proposto em 1979 pela Subcomissão de Antropologia da Universidade do
Amazonas, na Comissão Interministerial destinada a definir a política florestal do governo Figueiredo67.
Ao mesmo tempo, D. Luciano Mendes de Almeida, Secretário-Geral da CNBB, sugeria o “reconhecimento
da existência de nações indígenas, com suas características próprias e seu direito à sobrevivência”, e suas
terras demarcadas e protegidas68. Na mesma época, antropólogos e indigenistas reunidos em Brasília
(23-25 de agosto), avaliando os resultados da política indigenista oficial, anunciavam a necessidade da
“construção de um Brasil pluralista, isento de discriminação racial”69.
As reflexões sobre os direitos identitários dos povos indígenas faziam parte de um amplo
conjunto de reivindicações postas pelos segmentos historicamente excluídos da sociedade, que se
aglutinavam de modo mais ou menos organizado em torno da oposição à ditadura e à ideologia da

63 No ano seguinte rebatizada com a sigla “Uni” . cf. PREZIA, Benedito. op. cit.; p.66.
64 Destacamento de Operações de Informações (DOI) - Centro de Operações de Defesa Interna (CODI). Temido órgão de
inteligência e repressão do regime militar de 1964, criado em 1969 como parte da doutrina da Segurança Nacional, e sob
inspiração da Escola Superior de Guerra – ESG e da Escola de Guerra Norte-Americana.
65 Movimento que culminaria em 28 de agosto de 1979 com a aprovação da Lei n.º 6.683 (“Lei da Anistia”).
66 SADER, Eder. Quando Novos Personagens entram em Cena. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988, p.26.
67 cf. CIMI. “Porantim”, Manaus, ano II, n.º 10, ago.1979, p.15.
68 cf. CIMI. “Porantim”, Manaus, ano III, n.º 22, set.1980, p.5.
69 cf. CIMI. “Porantim”, Manaus, ano III, n.º 22, set. 1980, p.18.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 29


homogeneidade que esta representava. Assim, não apenas a população indígena, mas também os
afrodescendentes, camponeses sem-terra, mulheres, homosexuais, favelados, operários, moradores de
rua, e outros grupos tidos como “minoritários” ou “vulneráveis”, todos buscavam o respeito às diferenças
pari passu à superação das desigualdades.
A emergência do movimento indígena em torno dos seus direitos vem então num contexto
maior de emergência daquilo que Eder Sader denomina de “novos sujeitos coletivos”. Diz o autor que
no final da década de 1970 era perceptível a
irrupção de movimentos operários e populares que emergiam com a marca da autonomia e da
contestação à ordem estabelecida. Era o “novo sindicalismo”, que se pretendeu independente
do Estado e dos partidos; eram os “novos movimentos de bairro”, que se constituíram num
processo de auto-organização, reivindicando direitos e não trocando favores como os do
passado; era o surgimento de uma “nova sociabilidade” em associações comunitárias onde
a solidariedade e a auto-ajuda se contrapunham aos valores da sociedade inclusiva; eram os
“novos movimentos sociais”, que politizavam espaços antes silenciados na esfera privada. De
onde ninguém esperava, pareciam emergir novos sujeitos coletivos, que criavam seu próprio
espaço e requeriam novas categorias para sua inteligibilidade70. (Grifos nossos)
Entre os anos de 1978 e 1980, as lutas contra os projetos do regime militar de emancipação
compulsória dos índios, e definição de “critérios de identidade étnica”, acabaram representando um
marco histórico no processo de articulação entre o recém formado movimento indígena, e as forças
progressistas de apoio à causa indígena. Se a questão indígena era até então um tema restrito a
antropólogos e missionários, passava agora a abranger um círculo mais amplo de interessados, como
sociólogos, cientistas políticos e juristas. Todos envolvidos com a defesa dos Direitos Humanos e com
as lutas pela democratização do país.
A questão dos direitos indígenas ia assim ganhando corpo através de debates como a reunião
“O Índio Perante o Direito”, patrocinada pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
UFSC e Cultural Survival Inc.71 (outubro de 1980); a Mesa-Redonda realizada na 33.ª Reunião Anual da
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) – julho de 1981; a reunião “O Índio e os Direitos
Históricos”, patrocinada no mesmo ano pela CPI-SP e ABA; o Painel “O Índio e o Direito” promovido
pela OAB - RJ (novembro de 1981)72; a Mesa-Redonda “O Índio e a Cidadania” durante a 13.ª Reunião
da ABA (abril de 1982) 73; e o painel “A Cidadania e a Questão Étnica”, promovido pelo Departamento
de Sociologia da UnB74.
Em tais eventos punha-se em destaque a necessidade de superação da perspectiva
assimilacionista do Estado em relação aos povos indígenas, e o significado da posição dos índios como
cidadãos brasileiros. Assim,
vistos em suas identidades específicas, os povos indígenas passaram a ser apontados como
possuidores de opiniões e vontades próprias acerca da condução de seus destinos. Ao Estado
cobrava-se reconhecimento ao exercício daquele poder decisório, o que incluía proteger a
integridade dos seus territórios como locus indispensável à expressão de suas formas próprias
de organização social75.
Para estes segmentos, não bastava apenas restaurar a democracia. Esta deveria ser expressão
da pluralidade da sociedade brasileira. Também não bastava o acesso formal à cidadania. Esta deveria

70 SADER, Eder. op. cit.; pp.35-36.


71 cf. SANTOS, Sílvio Coelho dos (Org.). O Índio Perante o Direito. Ensaios. Prefácio de David Maybury-Lewis. Florianópolis
: Editora da UFSC, 1982.
72 cf. OAB-RJ. O Índio e o Direito. Série “OAB/RJ Debate” vol.I.,1981.
73 cf. VIDAL, Lux (Coord.). O Índio e a Cidadania. Comissão Pró – Índio de São Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1983.
74 cf. TEIXEIRA, João Gabriel Lima Cruz (Coord.). A construção da cidadania. Brasília : Editora Universidade de Brasília
: Programa Nacional de Desburocratização, 1986.
75 LACERDA, Rosane Freire. Diferença não é Incapacidade ... , op. cit.

30 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


ser compreendida como a possibilidade concreta de ativa participação política, não apenas individual,
mas coletivamente. Assim,
O movimento indígena e suas lutas por direitos territoriais e reconhecimento e respeito às suas
especificidades étnico-culturais, passou a ser visto, também, como participante ativo neste
processo de construção de um conceito de cidadania imbuído de um sentido emancipatório
mais profundo76.
O poder constituinte do povo estava desperto e sedento. Pela primeira vez na história, tinha
a expectativa de ocupar o seu lugar como protagonista de uma nova ordem constitucional.

1.4. Em busca de uma nova Constituição para o país


Com o fim do regime militar, os anseios da sociedade civil organizada pela construção de uma
democracia plural e participativa levaram à exigência do fim do “entulho autoritário”, expressão então
usada para denominar os resquícios antidemocráticos ainda presentes na legislação e nas práticas do
poder público.
Porém, mais do que isso, a virada de página do regime ditatorial para o estado democrático
impunha a necessidade de um novo marco constitucional. Os debates travados acerca das liberdades
democráticas e de um novo conceito de cidadania desaguavam na perspectiva de construção de um novo
modelo de estado. Seria necessário convocar uma Assembléia Nacional Constituinte, pondo fim à Emenda
Constitucional de 196977 e a tudo o que significava em termos de autoritarismo.
A idéia de convocação de uma Constituinte mobilizou as forças políticas democráticas e
setores da sociedade civil organizada, notadamente os chamados movimentos sociais populares. Para
tais setores, seria necessária uma Constituição que não se limitasse a declarar a igualdade formal. Uma
Constituição que, ao mesmo tempo em que reconhecesse as diferenças representativas da diversidade,
banisse todas as formas de discriminação e preconceito.
A luta por uma nova Constituição, contudo, não se fez sem a resistência dos setores mais
conservadores, alinhados ao regime de 1964. Embora reconhecessem o fim do período ditatorial, insistiam
que tal fato não significava a ruptura institucional necessária a uma nova Carta Política fundamental.
Mas as exigências da sociedade civil organizada e das forças populares e progressistas se
avolumavam, materializando-se num verdadeiro movimento pró-Constituinte, que discutia e aprofundava
as suas idéias através da realização de vários eventos em todo o país. A Arquidiocese de São Paulo, por
exemplo, entre os dias 9 e 11 de setembro de 1985, na II Semana “Fé e Compromisso Social”, discutia
o tema “Povo de Deus e Constituinte”.
Materiais didáticos, explicativos dos temas em debate para um público mais amplo,
especialmente os setores populares, eram elaborados e feitos circular de forma intensa, sobretudo por
parte da Igreja Católica, com grande envolvimento das CEB’s. Assim, por exemplo, a Arquidiocese de
São Paulo transformava em livreto as exposições dos participantes do II Encontro “Fé e Compromisso
Social” realizado em setembro de 1985, sublinhando: “o importante é que esse conteúdo seja estudado,
divulgado, e que ajude nossas comunidades, grupos de trabalho, leigos, sacerdotes, religiosos e religiosas
a participarem na elaboração da nova Constituição Brasileira”78.
Uma das demandas mais caras das forças populares em relação à instalação da nova Constituinte
era a exigência de que tivesse caráter exclusivo. Só uma Assembléia exclusivamente Constituinte, dizia
o jurista Dalmo Dallari, professor da USP e membro da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de

76 LACERDA, Rosane Freire. Diferença não é Incapacidade... , op. cit.


77 Aliás, sob a EC n.º1/69 não se podia dizer, a rigor, que se vivia sob um estado constitucional. Elaborada pela Junta Militar
composta pelos Ministros da Marinha de Guerra, Exército e Aeronáutica Militar, a Emenda não tinha força para fazer valer
os direitos fundamentais dos cidadãos nem dava garantias às instituições. Assim que, por exemplo, em 13 de abril de
1977 o General Ernesto Geisel mandara fechar o Congresso Nacional...
78 Arquidiocese de São Paulo (Org.). “Povo de Deus e Constituinte: Constituição justa e para valer”. São Paulo : Edições
Loyola, 1985, p.5.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 31


São Paulo, seria uma “Constituinte de verdade”. “É preciso”, explicava, “uma convenção da Constituinte
nestes termos: o povo vai às urnas para votar e escolher constituintes que terão a missão exclusiva de
fazer a Constituição. Terminada esta tarefa, eles voltam para suas atividades”79.
Este desejo de uma constituinte exclusiva consistira, conforme relembra Francisco (Chico)
Whitaker, uma das primeiras bandeiras de luta do movimento “Plenário Nacional Pró-Participação Popular
na Constituinte” e seus plenários estaduais:
Veio para o Congresso Nacional uma emenda constitucional para definir se a Constituinte
seria eleita exclusivamente com o objetivo de fazer a Constituição e não de misturar as 2
funções, ou se seria o Congresso eleito que assumiria essa tarefa constituinte.
A primeira mobilização desses plenários [Pró-Participação Popular na Constituinte] pelo
Brasil afora foi exatamente se posicionar pela Constituição exclusiva. (...) o Deputado
que foi Relator da Comissão Mista no Senado, Flávio Bierrenbach, (...) no dia em que foi
apresentar o relatório, ele fez um gesto, digamos, bastante visual: levou uma mala. Ele
dizia que havia recebido 70 mil telegramas, do Brasil inteiro, pela Constituinte exclusiva.
Abriu a mala, deixou cair todos os telegramas no chão e disse: “Eu estou respondendo a este
tipo de aspiração, de anseio”. Mas perdemos. Naquele tempo, com a correlação de forças
que existia, não houve jeito, e saiu a Constituinte não exclusiva, com o próprio Congresso
assumindo esse papel80.
Dallari defendia também a proposta de candidaturas avulsas ou independentes para o acesso à
ANC, candidaturas sem vínculo partidário, lançadas “por uma comunidade de base por uma associação,
por um grupo social”81.
Esta última proposta, de modo particular, guardava estreita sintonia com as discussões já
iniciadas em torno da questão da representatividade política dos grupos indígenas. Ainda em 1982, ao
se discutir a questão de candidaturas indígenas ao pleito daquele ano, ponderava o então Secretário
Executivo do Cimi, Pe. Paulo Süess:
Existe uma contradição fundamental, que é o fato desta democracia só funcionar na base de
uma sólida massa eleitoral. Aqui entra o problema da marginalidade. Como os marginais,
as minorias, se fazem representar nesta democracia (...)? Outra questão está na diferença de
níveis culturais. Alguém tem que se deslocar da sua aldeia para entrar nessa luta democrática
em busca de votos (de uma outra classe), mas esta luta se dá em outro nível cultural. Esse
alguém, o índio, tem que aprender todo o instrumental desta sociedade para se fazer ouvir
de uma tribuna onde se escuta pouco. É um processo violento de integração: na verdade, de
desintegração de sua cultura82. (Grifos nossos)
A questão seria enfrentada pela primeira vez pelo movimento indígena, em julho de 1985.
Reunidos pela UNI em Goiânia, com o apoio do Cimi, um grupo de líderes indígenas tinha por desafio
discutir o tema da representação de seus interesses na ANC. Eram líderes dos povos Sateré Mawé (AM),
Yawanawá (AM), Tukano (AM), Tikuna (AM), Manchineri (AM), Jaminawa (AC), Apurinã (AC), Kaxarari
(AC), Makuxi (RR), Suruí (RO), Karipuna (RO), Guajajara (MA), Tembé (PA), Munduruku (PA), Xokó (SE),
Kiriri (BA), Fulni-ô (PE), Guarani-Kaiowá (MS), Kaingang (PR, SC, RS), Terena (MS), Krenak (MG), Bororo
(MT), Xavante (MT), Pareci (MT), Umutina (MT), Irantxe (MT), Bakairi (MT), Tapirapé (MT), Ricbaktsa
(MT), e Apiaká (MT). Para a maioria, a participação na Constituinte deveria ocorrer “de forma direta,
com candidatos escolhidos pelas comunidades, sem vinculação partidária”83.

79 DALLARI, Dalmo de A. “Constituição e Constituinte”. Arquidiocese de SP (org.), op. cit., p.42.


80 WHITAKER, Francisco. Palestra no “Seminário 20 Anos da Constituição Federal”. Brasil. Câmara dos Deputados.
Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação. Núcleo de Redação Final em Comissões. Texto com Redação Final.
Brasília, 10 de junho de 2008. Disponível em: < http://www2.camara.gov.br/constituicao20anos/eventos/eventos-realizados/
Seminario%2020%20Anos %20CF> (Acessado em 20.agosto.2008).
81 DALLARI, Dalmo de A. “Constituição e Constituinte”, op. cit., p.45.
82 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º94, dez. 1986; p.8.
83 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano VIII, n.º77-78, jul./ago. 1985, pp.5-6. Como convidado estava presente Miguel Tankamash
Shuar (Equador), do Conselho Nacional de Coordenação das Nacionalidades Indígenas do Equador – Conaie.

32 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


09-13/07/85 – Centro de Formação da Diocese de Goiânia (GO). Reunião de lideranças indígenas
convocada pela UNI. Domingos Veríssimo Terena encaminha a discussão sobre a proposta de representação
especial indígena na Constituinte. Foto: Raílda Herrero. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

09-13/07/85 – Centro de Formação da Diocese de Goiânia (GO). Reunião de lideranças indígenas,


convocada pela UNI. Discussão sobre a proposta de representação especial indígena na Constituinte.
Foto: Raílda Herrero. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

Rapidamente a proposta de representação especial indígena na Constituinte ganhou a adesão


de setores simpáticos à causa indígena. O Departamento de Pesquisa e Documentação da OAB-RJ, por
exemplo, num estudo intitulado “As Populações Indígenas e a Constituinte” (1985), defendeu a adoção
de meios para a “representatividade indígena em caráter especial” na ANC, com representantes eleitos
“por sufrágio direto pelos próprios índios, segundo seus próprios processos políticos”, levando-se em
conta a magnitude numérica da população indígena e a sua composição pluriétnica84.
Já o Cimi, em sua VI Assembléia Geral (Goiânia – GO, de 28 de junho a 3 de julho de 1985),
defendia não apenas a participação especial indígena mas a convocação de “todos os segmentos da
sociedade a participarem na elaboração da nova Constituição”85.

84 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano VIII, n.º76, jun. 1985; p.12.


85 cf. PREZIA, Benedito. op. cit., p.266.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 33


Articuladores da UNI nas regiões passaram então à tarefa de envolver os povos e comunidades
indígenas nas discussões preparatórias ao processo constituinte. Foi o caso, por exemplo, da região
Nordeste. Seguindo os compromissos firmados na reunião da UNI em julho daquele ano em Goiânia, o
articulador da organização na região, o jovem cacique Apolônio Xokó, reunia de 5 a 9 de setembro de
1985, na Ilha de São Pedro, Terra Indígena Xokó, no lado sergipano do baixo São Francisco, os líderes
dos povos Xukuru-Kariri (AL), Kariri-Xokó (AL), Wassu (AL), Karapotó (AL), Pankararu (PE), Pankararé (BA),
Pataxó Hã-Hã-Hãe (BA), Pataxó de Boca da Mata (BA) e Pataxó de Coroa Vermelha (BA), além do próprio
povo local, e de convidados dos povos Kaingang, de Nonoai (RS) e Kayabi, do Xingu, além de Álvaro
Tukano, coordenador geral da UNI. Na pauta, além da questão da Assembléia Nacional Constituinte, a
Assembléia discutiu outros temas centrais da agenda indigenista no momento, como o Plano Nacional
de Reforma Agrária do governo da Nova República e a situação da Funai, bem como a própria avaliação
e consolidação da UNI na região.
Do encontro resultou a “Carta da Ilha de São Pedro”, que especificamente em relação à ANC,
estabelecia:

Assembléia Nacional Constituinte


- As áreas indígenas devem ser legalizadas em nome das comunidades indígenas. Não poderão ser
vendidas nunca, mesmo que acabe aquela comunidade. As áreas devem ter a proteção do Estado Brasileiro.
Exigimos que o órgão encarregado em proteger os índios tenha o poder de demarcar as terras indígenas.
Que ele esteja ligado diretamente à Presidência da República, planejado pelos próprios índios e com
funcionários de confiança das nações indígenas.
Queremos que acabe o artigo 8º da Constituição, que fala sobre a incorporação do índio à comunhão
nacional. Se emancipar o índio, o índio vira branco. Queremos que se crie um artigo que garanta aos
índios viver conforme seus costumes e tradições, sem ser emancipados. Nós, índios, exigimos participar
da Assembléia Nacional Constituinte, mas não aceitamos a participação através de partidos políticos,
porque as comunidades indígenas se organizam diferente dos brancos. Exigimos participar através de
um representante indígena por Estado, eleito pelas próprias comunidades indígenas em cada Estado. Os
índios querem uma Assembléia Nacional Constituinte com o objetivo único de elaborar a Constituição
brasileira.86

Mas as discussões prosseguiam. Em outubro de 1985, um retrato das diferentes opiniões era
dado pelo Jornal “Porantim”87. Ali o advogado J. Gaiger, então assessor jurídico da entidade, afirmava a
necessidade de se discutir a “representatividade das minorias – não só os índios”, pois os partidos políticos
não proporcionariam “um canal de representação legítimo” para as minorias. Essa idéia de participação
fora da via partidária tinha também o apoio de Aílton Krenak da Coordenação de Publicações da UNI.
Para ele, a representação através de partidos geraria “um processo de desgaste violento”, motivo pelo
qual os índios deveriam ter assentos específicos na ANC, em determinados grupos temáticos. Por sua
vez, o jurista Dalmo Dallari via a possibilidade de participação através da própria UNI e das entidades
destacadas “como verdadeiras defensoras dos índios”.
Naquele mês de outubro (10 e 11) as lideranças indígenas voltavam a se encontrar em Goiânia
sob convocação da UNI. Na pauta, a avaliação da atuação da entidade em suas regiões, e a discussão
sobre o tema “Os Índios e a Constituinte”. Ali, decidiram lutar pelo reconhecimento ao direito de
representação direta junto à ANC. “Decidimos participar da elaboração da nova Constituição, pois
essa lei trata de questões de interesse imediato dos povos indígenas”, dizia o documento final do
encontro. A representação se faria através de 10 indígenas, dois por cada região do país, escolhidos
pelas comunidades de cada região, e não submetidos “ao sufrágio universal e secreto e nem à forma
de representação partidária”88.

86 Cf. CEDI – Centro Ecumênico de Documentação e Informação. “Povos Indígenas no Brasil: 1985-1986”. Série “Aconteceu
Especial”, n.º 17. São Paulo: CEDI, 1987; pp.249-250.
87 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano VIII, n.º80, out. 1985, p.6.‑
88 “Uni estuda participação indígena na Constituinte”. In: CIMI. “Porantim”, Brasília, ano VIII, n.º81, nov.1985, p.3.

34 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


No dia 14 de outubro de 1985 o documento com as reivindicações das lideranças indígenas
era entregue ao Ministro da Justiça, Fernando Lyra, e aos deputados da Comissão Mista do Congresso
Nacional que discutia a questão da convocação da ANC.
A proposta foi também apresentada pelo Coordenador da UNI, Álvaro Tukano, no II Congresso
Nacional de Advogados Pró-Constituinte, promovido em Brasília pela OAB (16 a 19 de outubro). Bastante
aplaudida, a proposta foi acolhida pelos participantes do evento, fazendo parte de seu documento
final89.
A proposta de representação especial indígena foi encaminhada à Comissão Provisória de
Estudos Constitucionais – a famosa “Comissão de Notáveis” ou “Comissão Afonso Arinos”. Porém, acabou
rejeitada. Para Afonso Arinos, os índios deveriam ser representados pela Funai, “seu órgão tutor”90.
Enquanto os povos indígenas cobravam a possibilidade de terem assento direto e especial na
ANC, e os setores populares reivindicavam a eleição de uma Constituinte exclusiva, os encaminhamentos
dados pelas forças conservadoras rumavam em sentido diverso.
Na Mensagem n.º330, de 28 de junho de 1985 91, enviada ao Congresso Nacional, o Palácio
do Planalto encaminhava proposta de Emenda Constitucional (PEC n.º 43/85) na qual propunha a
convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte não exclusiva, onde houvesse “a investidura
de poder constituinte pleno nos Deputados Federais e Senadores escolhidos pelo sufrágio do povo
brasileiro”. A proposta foi alvo de duras críticas por parte dos movimentos sociais.
Enfim, a convocação da Assembléia Nacional Constituinte era aprovada em 27 de novembro
de 1985, pelas Mesas da Câmara e do Senado, através da Emenda Constitucional n.º 2692. A Emenda
frustrava profundamente os anseios dos movimentos sociais por uma Constituinte exclusiva. Em seu art.
1.º, atribuía a elaboração da nova Carta aos “membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal”,
com trabalhos a serem iniciados “no dia 1.º de fevereiro de 1987, na sede do Congresso Nacional”. Em
outras palavras, seriam constituintes apenas os deputados e senadores eleitos no pleito de novembro de
1986, além dos senadores denominados “biônicos”93. Com isso, jogava-se também por terra a expectativa
do movimento indígena de participar ativamente do processo constituinte através de assentos especiais,
não submetidos à disputa político-partidária.
Além disso, criticava-se também o fato de a EC n.º26/85, ao convocar a instalação da ANC, já
determinar de antemão as regras básicas para a aprovação do novo texto constitucional: “dois turnos
de discussão e votação, pela maioria absoluta dos Membros” (art. 3.º). A redação, proposta desde a
Mensagem enviada pelo presidente Sarney ao Congresso, já era alvo de críticas desde ante da aprovação
da PEC, uma vez que era vista como uma intromissão do Executivo e do Legislativo em assuntos da
Constituinte, que se queria soberana.
Porém, como apostava Maria Célia Paoli, seria no espaço da ANC, por paradoxal que pudesse
parecer pela sua “origem tão desmoralizante”, que os movimentos sociais poderiam “sonhar com uma
ordenação jurídica geradora da democracia prometida”. O espaço Constituinte, dizia a autora, seria a
instância capaz de organizar “a compatibilidade da divergência, do confronto, do debate que se desenha
como história aberta”94.

89 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano VIII, n.º81, nov. 1985; p.3.
90 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano VIII, n.º89, jul. 1986; p.6.
91 No Congresso Nacional, a Mensagem tomou o n.º 48, de 1985.
92 DOU de 28/11/1985, Seção 1, p.17422.
93 Senadores nomeados pelo governo Geisel, ainda no exercício de seus mandatos. A expressão “biônico” vinha de um seriado
norte-americano de TV, sucesso na época, onde um policial era mantido vivo artificialmente através de uma cirurgia que
adicionava equipamentos eletrônicos ao seu corpo. A existência dos senadores “biônicos” fora determinada pela Emenda
Constitucional nº 8, de 14 de abril de 1977, no bojo do famigerado “pacote de abril”, um conjunto de medidas autoritárias
que pretendia refrear as lutas dos movimentos sociais por liberdade. Foram escolhidos um por estado, em 1978, por um
período de oito anos. Só em 1980, através da Emenda Constitucional nº 15, de 19 de novembro, é que se restabeleceu o
sistema de voto direto nas eleições para senador da República e para governador de estado.
94 PAOLI , Maria Célia. Constituinte e Direito: um modelo avançado de legítima organização da liberdade ?. In: SOUSA
JÚNIOR, José Geraldo de (Org.). O Direito Achado na Rua. Brasília : Editora da Universidade de Brasília, 1987; p.144.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 35


Maio/1988 – Acampamento de indígenas durante a Constituinte – Foto: Egon D. Heck/Arquivo Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC

Lideranças indígenas de todo o Brasil se


organizaram, se informaram e se empenharam em
demonstrar para os constituintes que a Carta Magna deveria
garantir a integridade física e cultural de suas comunidades.

36 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


2. A PREPARAÇÃO

2.1. A Constituinte como prioridade da ação do Cimi


Uma das forças políticas mais atuantes em prol da liberdade e da justiça desde o recrudescimento
do regime militar, e agora atenta à importância histórica do novo momento constitucional brasileiro, a
CNBB, em sua 23.ª Assembléia Geral realizada em abril de 1985 – portanto sete meses antes da Emenda
Constitucional convocatória da Constituinte – elegia uma Comissão para acompanhamento da elaboração
da nova Constituição brasileira. Era composta pelos bispos D. Cândido Padin (Bauru – SP), D. Mauro
Morelli (Duque de Caxias – RJ), D. José Carlos de Oliveira (Rubiataba – GO) e D. Francisco Austregésilo
(Afogados da Ingazeira – PE).
Conforme Pérsio Barroso, a Comissão era apoiada por uma equipe executiva composta por
João Gilberto Lucas Coelho, os padres Virgílio Uchôa, e José Ernanne Pinheiro, os professores da UnB
José Geraldo de Sousa Junior e Nielsen de Paula Pires, Ivônio Barros Nunes e Gláucia Melasso Garcia,
como secretária. Segundo o autor,
As funções da equipe executiva eram de viabilizar a interação Congresso / Igreja, por meio
do contato com constituintes, articulação com outras entidades religiosas e populares,
recebimento de sugestões, repasse de informações aos organismos da Igreja sobre a marcha
dos acontecimentos do processo constituinte, promoção de encontros com constituintes
sobre temas específicos,divulgação aos constituintes dos documentos elaborados pela CNBB
e grupos afins95.
Em coletiva de imprensa96 anunciava D. Celso Pinto (Vitória da Conquista – BA) o compromisso
da Igreja Católica em defender uma ampla participação na Constituinte, e o empenho na divulgação do
tema através da publicação de cartilhas populares. “O fundamental”, dizia o Bispo, “é que não tenhamos
uma Constituição saída dos gabinetes, mas expressiva da vontade popular”.
No ano seguinte, em sua 24.ª Assembléia Geral realizada em abril de 1986 e portanto mesmo
após a decisão do Congresso Nacional por uma Constituinte não exclusiva, a CNBB mantinha a sua postura
de apoio à participação popular na elaboração da nova Carta. No documento intitulado “Por uma Nova
Ordem Constitucional”, dizia a entidade representativa do episcopado brasileiro:
... a Constituição deverá inverter a posição tradicional, que dá ao Estado a primazia de
iniciativa social. A sociedade deverá ganhar a condição de sujeito coletivo da transformação
social, conquistando instrumentos de exercícios de uma democracia que lhe permita organizar
e controlar a ação do estado, colocando-o a seu serviço97. (Grifos nossos.)
Em sintonia com a CNBB, o Cimi – na sua VI Assembléia-Geral, realizada em Goiânia (GO) de
28 de junho a 3 de julho de 1985 – , elegia como prioridades para o biênio (85/86) o apoio à Reforma
Agrária e o acompanhamento à Constituinte – ambas anunciadas pelo governo da “Nova República” – ,
pelo seu potencial de atingirem diretamente as comunidades indígenas:
A sociedade brasileira passa por um processo de reordenamento jurídico institucional
que objetiva superar a legislação autoritária. Os povos indígenas e os demais setores
marginalizados neste país reivindicam a ampliação de seus direitos além dos que já estão
assegurados em lei.
Uma Assembléia Nacional Constituinte livre, soberana e democrática é, sem dúvida, um
instrumento privilegiado para estabelecer uma nova ordem institucional no país98.

95 BARROSO, Pérsio Henrique. Constituinte e Constituição: Participação Popular e Eficácia Constitucional (1987-1997).
Florianópolis : UFSC, 1997 [Dissertação de Mestrado em Direito], p.109.
96 Folha de São Paulo, 14/04/1985. Cf. CEDI, “Aconteceu Especial” n.º 15, p.47.
97 CNBB. Declaração Pastoral : Por uma Nova Ordem Constitucional. São Paulo : Edições Loyola, abril de 1986; p.4
98 VI Assembléia Geral do Cimi. Cf. PREZIA, Benedito, op. cit., pp.265-266.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 37


Naquela mesma assembléia a entidade definia como tarefas a cumprir imediatamente, (a)
o incentivo e apoio ao movimento indígena “em aliança com os movimentos populares, entidades e
partidos”, com o objetivo de pressionar o Congresso a aprovar a convocação de “todos os segmentos
da sociedade a participarem na elaboração da nova Constituição”, e (b) o estímulo à organização de
“debates, encontros e simpósios de âmbito regional e nacional, onde os índios e representantes de
organizações populares e entidades nacionais possam amplamente discutir o tema, garantindo uma
participação eficaz” 99.
Lentamente o Cimi passou a organizar-se internamente e a articular-se a fim de cumprir com as
demandas relativas à Constituinte. No âmbito dos Regionais da entidade, o canal principal de discussão,
articulação e mobilização passava a ser, logo no início, o espaço proporcionado pelos Plenários Estaduais
do Movimento Nacional “Pró-Participação Popular na Constituinte”. Segundo Francisco Whitaker, o
plenário nacional era “a forma encontrada pelas pessoas e entidades da sociedade civil para participarem
desse processo. Elas achavam que a participação não era de cima para baixo, mas de baixo para cima.
Então, inventaram o tal plenário”100.
Vários Regionais do Cimi, como por exemplo os regionais Nordeste e Leste, passaram então
a participar dos plenários estaduais do movimento, que tinha um sugestivo lema: “Constituinte sem
povo não cria nada de novo”. Ainda conforme Whitaker, esses plenários:
Não eram nenhuma organização partidária. Não eram organização de nenhuma igreja, de
nenhum setor sindical especial. Eram um espaço em que as pessoas discutiam como fazer
para dar efetividade à participação. Sempre numa perspectiva de funcionamento em redes
horizontais, sem comandos, com bastante intercomunicação, num processo auto-alimentado.
Ninguém dava ordens. Todo mundo entrava na roda, se achasse que valia a pena101. (Grifos
nossos.)
E assim vários missionários e assessores do Cimi também “entravam na roda”, levando e
discutindo propostas relativas a direitos indígenas e apoiando matérias de interesse geral como questões
relativas a Direitos Humanos, reforma agrária, multiculturalismo, etc.
Como resultado, em 29 de junho de 1986 o Plenário Nacional Pró-Participação Popular na
Constituinte, ao aprovar a Plataforma mínima de propostas populares para a nova Constituição Brasileira,
fazia constar, “quanto a determinados conteúdos” (item IV), a proposta de que o Estado brasileiro
viesse a “reconhecer os direitos das nações indígenas no que se refere à demarcação e garantia de seu
território, ao usufruto do solo e do subsolo, à preservação de sua identidade cultural e garantias de plena
cidadania”102 (Grifos nossos).
Mais tarde, em setembro de 1986, diversos candidatos a parlamentares constituintes, reunidos
no Plenário Pró-Participação Popular, votaram a Plataforma Mínima de Propostas Populares para a nova
Constituição Brasileira, onde se incluía o reconhecimento aos “direitos das nações indígenas”. (Grifos
nossos)
Voltando à decisão da Assembléia Geral do Cimi em 1985, já naquele ano a assessoria jurídica
da entidade junto ao seu Secretariado Nacional em Brasília (DF) – então composta por apenas um
único assessor, o advogado Paulo Machado Guimarães – passava a dividir-se entre o atendimento
aos casos concretos relativos a direitos indígenas vindos das regiões, e as tarefas de preparação para
o acompanhamento à ANC que estava por ser instalada. Entre as tarefas então desenvolvidas neste
sentido, destacam-se a assessoria à reunião de lideranças indígenas em Goiânia (GO), sobre a Assembléia

99 cf. PREZIA, Benedito. op. cit., p.266. A idéia era, portanto, somar esforços junto aos setores populares nas pressões sobre
a tramitação da PEC 43/85, na busca pela aprovação de uma Constituinte de caráter exclusivo, representativa dos setores
historicamente excluídos. Mais tarde, aprovada pelo Congresso Nacional a convocação da Constituinte congressual, o
Cimi fazia coro com as entidades que denunciavam na medida uma manobra dos setores conservadores para se impedir
aos setores populares – inclusive aos povos indígenas, o seu avanço na elaboração da nova Constituição.
100 WHITAKER, Francisco. Palestra no “Seminário 20 Anos da Constituição Federal”, op. cit.
101 WHITAKER, Francisco. Idem.
102 cf. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. (org.). Os Direitos do Índio – ensaios e documentos. São Paulo: Brasiliense, 1987.
p.179.

38 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Nacional Constituinte e o relacionamento entre os povos indígenas e o Estado Brasileiro (9 a 13.6.1985); o
assessoramento ao “Encontro sobre Legislação Indigenista e Direito Indígena” no Regional Leste da entidade
(13 a 15.6.1985); a participação na reunião “Índio e Constituinte”, promovida pela UNI no Rio de Janeiro
(RJ) (12 a 13.8.1985) e a assessoria ao Encontro de Lideranças Indígenas do Nordeste, realizada na Ilha de
São Pedro, do povo Xokó, em Sergipe (outubro de 1985). Além disso, passou também à prática da
elaboração de escritos sobre o tema, como o “Subsídio sobre a discussão do problema referente à exploração
de minérios em áreas indígenas” (26.06.1985), e o “Subsídio sobre a Assembléia Nacional Constituinte”
(6.9.1985)103.
No ano seguinte (1986), a decisão da Assembléia-Geral do Cimi pelo investimento prioritário
na Constituinte refletiu-se na intensificação de seu apoio à União das Nações Indígenas. Assim, por
exemplo, o assessor jurídico do Secretariado Nacional participou da reunião realizada pela UNI em
maio daquele ano, que contou com a participação de juristas e representantes de diversas entidades
para a discussão dos direitos indígenas em face da ANC. Por sugestão do assessor Paulo Guimarães,
as conclusões extraídas dos grupos de trabalho durante a reunião foram sistematizadas em forma de
capítulo, denominado “Das Populações Indígenas”, posteriormente encaminhado à Comissão Provisória
de Estudos Constitucionais. Na mesma reunião o Cimi assumiu também a responsabilidade de compor
a coordenação nacional relativa à luta pelos direitos indígenas na Constituinte, em conjunto com a UNI,
o Inesc e o Cedi.
No mesmo ano a assessoria jurídica continuou com as suas atividades de preparação de
membros do Cimi e de lideranças indígenas para o acompanhamento à Constituinte, a exemplo do
assessoramento ao “Curso sobre legislação indigenista” patrocinado pelo Regional Norte II da entidade
(Pará e Amapá), realizado de 24 a 31 de janeiro de 1986, contribuindo também com a elaboração de
texto a ser apresentado pelo presidente do Cimi à Assembléia da CNBB, com o texto “A Questão Indígena
na Constituinte”104.
A decisão da VI Assembléia-Geral do Cimi refletiu-se também na escolha do tema para a “Semana
do Índio/87”. Criada em 1983 para incrementar a divulgação da realidade indígena e de seus direitos
para a sociedade civil, em especial os alunos da rede escolar, a “Semana” era realizada a cada ano com
um tema específico sobre a realidade indígena, inspirado na temática da “Campanha da Fraternidade”,
da CNBB.
Dessa forma, tendo em vista a importância da Constituinte, o Cimi quebrava a tradição
escolhendo tema diverso daquele da CNBB. Enquanto o episcopado brasileiro elegia para a Campanha
da Fraternidade o tema “Quem acolhe o menor, a mim acolhe”, o Cimi definia a própria questão dos direitos
indígenas na Constituinte como o mote da Semana do Índio de 1987: “Na Constituição os Direitos dos
Povos Indígenas”.

103 GUIMARÃES, Paulo M. “Relatório de Atuação do Assessor Jurídico do Cimi no Secretariado Nacional, no período
de Abril de 1985 a abril de 1986”. Brasília : Cimi, 1986 (mimeo) pp.3-4.
104 GUIMARÃES, Paulo Machado. Op cit. pp.3-5.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 39


Material da “Semana do Índio” de 1987,
dedicada à questão dos Direitos Indígenas na Constituinte:

Cartão Postal da “Semana


do Índio”/ 1987

Cartaz da “Semana do
Índio”/ 1987

Capa do “Texto-Base”
da Semana do Índio/1987

Como observava o jornalista Antônio Carlos Moura em editorial do “Porantim”, a intenção


da entidade era “martelar Brasil afora”, através dos subsídios da Semana dos Povos Indígenas daquele
ano, o “Programa Mínimo” para os direitos indígenas na Constituinte, elaborado pela UNI com o apoio
das entidades aliadas à causa indígena105. De fato, o “Texto-Base” da Semana do Índio daquele ano,
além de dados sobre a realidade dos povos indígenas, reproduzia e divulgava entre os leitores o texto
do “Programa Mínimo”.
Na sua tarefa de informar e conscientizar os povos indígenas, algumas iniciativas do Cimi
se destacaram durante o período. Um dos exemplos foi a edição especial do Jornal “Mensageiro”,
editado pelo Regional Norte II do Cimi, em Belém (PA). Em abril de 1987 o jornal circulava com a edição
“Constituinte. Vamos à Luta”, que depois de abordar aspectos da legislação indigenista vigente, tratava
das expectativas a respeito da nova Constituição.
Ainda no que se refere à organização interna do Cimi para a execução de demandas relativas à
ANC, é de se registrar a decisão do Conselho Nacional da entidade, que consistiu na designação de um
de seus assessores jurídicos para a tarefa específica de acompanhamento àquela temática prioritária.
Assim, o advogado Julio Gaiger passava a atuar, já no final de 1986, como assessor do Cimi para a
Constituinte, sendo portanto a “pessoa encarregada de acompanhar o desenvolvimento dos trabalhos
constituintes e por conseguinte assessorar os parlamentares na defesa de propostas e emendas de
interesse dos índios”106.

105 MOURA, Antônio Carlos. Direitos Indígenas na Constituinte. In: CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º96,
março.1987.
106 GUIMARÃES, Paulo M. “Relatório das Atividades da Assessoria Jurídica do Cimi no período compreendido no ano
de 1987 a setembro de 1988”. Brasília:Cimi, 1988 (mimeo) p.14.

40 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Conforme relato do assessor jurídico
Paulo Guimarães, “o acompanhamento dos
trabalhos da Constituinte e do Congresso em suas
atribuições ordinárias” não consistia “apenas em
assessorar seus membros através de informações
e análises técnicas”. Implicava, sobretudo, “no
desenvolvimento de constantes articulações
políticas”. Este trabalho, conforme Guimarães,
embora realizado por uma única pessoa,
representava sempre as “orientações políticas” da
entidade, “previamente debatidas”107.
Uma das atividades mais importantes
desta assessoria, sob o ponto de vista da informação
foi a elaboração do “Informe Constituinte”.
Iniciado em 9 de março de 1987 e concluído em
27 de setembro de 1988 (após o término dos
trabalhos da ANC), o Informe, composto de 46
edições, foi um importante esforço no sentido
de manter informados e articulados em torno do
que se passava no interior da ANC, não apenas os
regionais do Cimi, mas também as comunidades e
organizações indígenas, e outras entidades afins,
no Brasil e no exterior.
Em sua VII Assembléia Geral (Goiânia,
24 a 28 de junho de 1987), e portanto tendo já se
iniciado os trabalhos da ANC, o Cimi elegeu como
uma das suas prioridades “IV. Intensificar nossos
esforços, buscando influenciar na Assembléia
Nacional Constituinte e no reordenamento
institucional que a ela se seguirá”108.
Jornal “MENSAGEIRO”, edição de Abril de 1987 dedicada à
preparação dos povos indígenas para a Constituinte. Sobre esta intensificação de esforços
relata o assessor Paulo Guimarães:
O segundo semestre de 1987 foi, efetivamente, marcado pela luta política na Assembléia
Constituinte. Neste momento, o acompanhamento dos trabalhos constituintes, que se
fazia através de um dos assessores jurídicos designado pela Direção do Cimi, teve de ser
reforçado por mais um assessor jurídico e outros dirigentes da entidade, que atuaram
prioritariamente neste que se tornou o principal campo de enfrentamento para a defesa
dos interesses indígenas109.
Ou seja, a partir deste momento o trabalho da assessoria do Cimi na Constituinte passava a
contar com o reforço não apenas do assessor jurídico do Secretariado, como também dos membros da
direção da entidade nos Regionais.
Sobre o esforço de integração entre as duas assessorias, relata ainda Guimarães que: “a
assessoria jurídica, compreendida como órgão de assessoramento técnico da entidade, contribuía com
a Assessoria à Constituinte, desde o primeiro instante”. Esta contribuição ocorria “não só na preparação
de propostas e emendas”, mas também “por ocasião de votações”, momentos nos quais a assessoria
jurídica atuava também como assessoria à Constituinte110.

107 GUIMARÃES, Paulo M. “Relatório das Atividades da Assessoria Jurídica...”. op.cit. p.15.
108 VII Assembléia Geral do Cimi. Cf. PREZIA, Benedito, op. cit., pp.270.
109 GUIMARÃES, Paulo M. “Relatório das Atividades da Assessoria Jurídica...”. op.cit. p.4.
110 GUIMARÃES, Paulo M. “Relatório das Atividades da Assessoria Jurídica...”. op.cit. p.15.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 41


2.2. Articulações e mobilizações indígenas preparatórias.

Programa Mínimo
Em maio de 1986, em São Paulo, a UNI reúne-se novamente, desta vez para um estudo
mais aprofundado com vistas à elaboração de uma “proposta de Programa Mínimo de Campanha Pré-
Constituinte”. Na ocasião foram discutidos os temas “Terra: posse e domínio”; “Tutela: uma perspectiva
de avanço e conquista da cidadania plena”; e “Representação: a relação Estado e Nações Indígenas”. Além
dos coordenadores regionais da UNI, a reunião contou com a participação de juristas e de entidades
comprometidas com a causa dos direitos indígenas. Entre os presentes, os juristas Dalmo Dallari e Carlos
F. Marés de Sousa Filho (CPI-SP), a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, o assessor jurídico do Cimi
Paulo Machado Guimarães111.
Sobre a importância do resultado do encontro, avaliava à época o Jornal Porantim:
“a proposta de inclusão desse capítulo na Constituição, em si, já implica substancial mudança:
a extinção da previsão de incorporação dos índios à sociedade nacional e a inevitável extinção
da tutela. Esta é então substituída pelo reconhecimento do direito a uma proteção especial
ao índio, sem prejuízo da sua capacidade civil e política e respeitando sua especificidade
étnica e cultural”112.
O texto em forma de capítulo acabou servindo de base para o denominado “Programa Mínimo”
para os direitos indígenas na Constituinte. Encabeçado pela UNI, o documento recebeu a assinatura
de 29 entidades indigenistas, centrais sindicais e associações profissionais e científicas: ABA, Cimi,
Conage, SBPC, Anaí-RS, CPI-SP, CCPY, Cedi, Inesc, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag), Central Única dos Trabalhadores (CUT),
Central Geral dos Trabalhadores (CGT), Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic), Comissão
Pastoral da Terra (CPT), Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), Associação Nacional de Docentes
do Ensino Superior (Andes), Movimento Nacional de Defesa dos Direitos Humanos (MNDH), Comissão
Pró-Índio do Acre (CPI-AC), Comissão Pró-Índio de Sergipe (CPI-SE), Centro de Trabalho Indigenista
(CTI), CEI, Operação Anchieta (Opan), Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae (Cepis),
Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), Coordenadoria Ecumênica de Serviços
(CESE), Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) e Grupo de Trabalho Missionário
Evangélico (GTME).
Constituíam o “Programa Mínimo” os seguintes pontos: 1) O reconhecimento dos direitos
territoriais dos povos indígenas como primeiros habitantes do Brasil; (2) a demarcação e garantia das
terras indígenas; (3) o usufruto exclusivo das riquezas naturais das terras indígenas; (4) o reassentamento,
em condições dignas e justas, dos posseiros pobres que se encontravam nas terras indígenas, e (5) o
reconhecimento e respeito às organizações sociais e culturais dos povos indígenas com seus projetos
de futuro, além das garantias da plena cidadania.
O documento defendia ainda, com base na diversidade étnico-cultural dos povos indígenas,
que a nova Constituição Brasileira deveria:
incluir o reconhecimento das organizações sociais e culturais indígenas, assegurando-lhes a
legitimidade para defenderem seus direitos e interesses e garantindo-lhes a plena participação
na vida do país113.

111 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano VIII, n.º88, jun.1986, p.4.
112 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano VIII, n.º88, jun.1986, p.4.
113 cf. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os Direitos do Índio... op. cit., pp.160-170.

42 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Direitos indígenas: “Programa Mínimo”, União das Nações Indígenas (UNI), entidades
de apoio ao índio, centrais sindicais e associações profissionais e científicas, 1986114.
Este programa mínimo aponta para os direitos fundamentais dos povos indígenas, a serem
inscritos na nova Constituição do Brasil. A garantia dos direitos territoriais e culturais próprios dos
povos indígenas, bem como o acesso à plena participação na vida do país, são princípios básicos para
que se possa construir uma Constituição democrática.
Primeiros ocupantes desta terra, os índios foram os primeiros destituídos dos seus direitos
fundamentais. O resgate da dívida social no Brasil começa aqui.
1. RECONHECIMENTO DOS DIREITOS TERRITORIAIS dos povos indígenas como
primeiros habitantes do Brasil.
Os índios devem ter garantia à terra, que é o seu habitat, isto é, o lugar onde vivem
segundo sua cultura e onde viverão suas futuras gerações. Este direito deve ter primazia sobre
outros, por ter origem na ocupação indígena, que é anterior à chegada dos europeus.
2. DEMARCAÇÃO E GARANTIA DAS TERRAS INDÍGENAS. Conforme a Lei n.º
6.001/73, terminou em 21 de dezembro de 1978 o prazo para a demarcação de todas as
terras indígenas. Hoje, apenas 1/3 das terras está demarcado. Por isso, é necessário colocar
esta questão na nova Constituição Brasileira. Contudo, só a demarcação não basta: é preciso
que as terras, uma vez demarcadas, sejam efetivamente garantidas, para evitar as invasões
constantes que até hoje ocorrem.
3. USUFRUTO EXCLUSIVO, PELOS POVOS INDÍGENAS, das riquezas naturais
existentes no solo e subsolo dos seus territórios. De nada vale a demarcação e garantia de suas
terras, se os índios não puderem decidir livremente como usar as riquezas do solo e subsolo
de seus territórios. Eles têm direito, como povos diferenciados, de escolher como empregar
estas riquezas. O progresso do Brasil, até hoje, se fez às custas da destruição dos índios e da
invasão de suas terras. Agora, devem-se respeitar os povos que resistiram, assegurando-lhes
condições para uma vida digna e para a livre construção do seu futuro.
4. REASSENTAMENTO, EM CONDIÇÕES DIGNAS E JUSTAS, DOS POSSEIROS
pobres que se encontram em terras indígenas. Os índios não desejam resolver seus problemas
às custas dos trabalhadores rurais pobres, que foram empurrados para as terras indígenas. Por
isso, reivindicam que os posseiros pobres tenham garantido o reassentamento em condições
que não os desamparem ou os obriguem a invadir novamente territórios indígenas.
5. RECONHECIMENTO E RESPEITO ÀS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS E CULTURAIS
dos povos indígenas com seus projetos de futuro, além das garantias de plena cidadania.
O Brasil é um país pluriétnico, isto é, um país que tem sorte de abrigar, entre outros, 170
povos indígenas diferentes. Esta riqueza cultural precisa ser garantida em benefício das
gerações futuras de índios e não-índios. Para isso, a Constituição Brasileira deve incluir
o reconhecimento das organizações sociais e culturais indígenas, assegurando-lhes a
legitimidade para defenderem seus direitos e interesses e garantindo-lhes a plena participação
na vida do País. (UNI, MST, Contag, CUT, CGT, Conage, ABA, Cimi, Conic, CPT, Abra, SBPC,
Andes, MNDDH, Anaí-RS, CPI-SP, CPI-AC, CPI-SE, CTI, CCPY, CEI, Opan, Cedi, Inesc,
Cepis, Ibase, Fase, GTME).

Da reunião da UNI realizada em maio de 1986, resultava ainda a criação de uma coordenação
nacional, formada pela organização além do Cimi, Inesc e Cedi, para monitorar a evolução da discussão
sobre os direitos indígenas na Constituinte.

114  Cf. CARNEIRO DA CUNHA, Os Direitos do Índio..., op. cit. pp.169-170.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 43


Eleições
Mas com o golpe dado no ano anterior pela Emenda da Constituinte Congressual o movimento
indígena, vendo-se impedido de acessar a ANC pela via da representação especial, voltava também a
sua atenção para a tentativa de acesso à Câmara Federal através de candidaturas próprias nas eleições
proporcionais de 15 de novembro de 1986.
Ao todo, sete indígenas concorreram a vagas de deputados federais constituintes, sendo três
candidaturas independentes, e quatro escolhidas pelas respectivas comunidades com o apoio da UNI.
De modo independente candidataram-se Mário Juruna Xavante, Idjahuri Karajá e Marcos
Terena. Primeiro indígena eleito deputado federal na história do país, em 1982, Mário Juruna agora
tentava a reeleição, novamente pelo Partido Democrático Trabalhista, do Rio de Janeiro (PDT/RJ). Idjahuri
Karajá concorria pela primeira vez, pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), do estado
de Goiás. Marcos Terena, por sua vez, concorria pelo PDT do Distrito Federal (DF).
Destoando dos candidatos articulados pela UNI, que já haviam se decidido a lutar pela
aprovação de avanços no novo texto constitucional, Terena – um dos fundadores e ex-presidente da
organização e então assessor para assuntos indígenas do Ministério da Cultura – considerava muito
arriscado tentar garantir mais do que já estava assegurado no art. 198 da Emenda Constitucional de
1969. Seria “correr o risco de perdas”, dizia, reivindicar mais do que a manutenção daquele artigo, que
dispunha sobre a inalienabilidade das terras indígenas. O artigo 198 seria, segundo Terena, “imelhorável”.
Para o candidato, o “Programa Mínimo” formulado pela UNI em conjunto com as entidades pró-índio
consistiria uma temeridade por despertar a reação dos antiindígenas no Congresso Nacional. Além disso,
entendia que o programa não possuiria legitimidade, por faltar representatividade às entidades junto
às comunidades indígenas115.
Enquanto isso, escolhidos por suas comunidades e articulados pela UNI junto ao Partido dos
Trabalhadores (PT), estavam os candidatos Álvaro Tukano (candidato pelo Amazonas); Biraci Brasil
Yawanawá (candidato pelo Acre); Davi Yanomami e Gilberto Pedroso Lima Macuxi (candidatos por
Roraima)116.
Biraci Brasil Yawanawá, um dos fundadores da UNI no Acre e membro da Coordenadoria de
Assuntos Indígenas da Fundação Cultural daquele estado, foi indicado candidato a deputado federal
em abril de 1986, pela 3.ª Assembléia dos Povos Indígenas do Acre, entre eles os Kaxinawá, Katukina,
Poyanawa e Nekuini. Antes da assembléia havia visitado as aldeias, “mostrando o que é a Constituição,
quem poderá elaborá-la e o que é uma candidatura indígena”117.
Houve ainda o caso do Guarani Karaí Mirim, cuja candidatura pelo PT de São Paulo, definida
pelo Conselho Tribal Guarani, fora impugnada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por descumprimento
à lei do domicílio eleitoral, requisito ao qual havia requerido isenção.
Observe-se que, ainda antes do pleito, os candidatos indígenas apontavam como dificuldades
a falta de recursos e de experiência em disputas eleitorais118.
Apesar dos esforços, nenhum dos candidatos conseguiu se eleger. Avaliando a derrota, Aílton
Krenak – então coordenador da UNI –, levantava entre as possíveis causas: a) o choque direto das propostas
das candidaturas indígenas com poderosos interesses fundiários locais e regionais, o que não ocorreria
em grandes centros urbanos, cujo eleitorado ainda teria uma candidatura indígena na “mística do bom
selvagem, da proteção do meio-ambiente, etc.”; e b) a extrema desigualdade da disputa pelo Partido
dos Trabalhadores, frente à estrutura de partidos já consolidados como o PMDB e PFL, “que lançaram

115 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º106, mar.1987; p.9. Sobre a posição de M. Terena, veja-se também o seu artigo
“A nova Constituição e as Sociedades Indígenas Brasileiras” in ABREU, Maria Rosa, ed. Constituinte e Constituição.
Brasília : Editora da Universidade de Brasília, 1987; p.43.
116 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano VIII, n.º90, out.1986; p.8.
117 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º93, nov. 1986; p.9.
118 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º93, nov. 1986; p.9.

44 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


candidatos a todos os níveis com recursos imensos atingindo inclusive as comunidades indígenas com
uma campanha agressiva”119.
Não alcançando a participação na ANC pela via da representação partidária, o movimento
indígena passou a investir através da UNI, juntamente com entidades de apoio – especialmente Cimi,
Inesc, Cedi e CPI-SP –, na articulação do apoio parlamentar em torno do Programa Mínimo para os
direitos indígenas na Constituinte.
Antes, porém, que se levasse qualquer proposta ao palco da Constituinte, seria necessário
passar pela Comissão Preparatória de Estudos Constitucionais – a “Comissão Afonso Arinos”.

2.3. A questão indígena na Comissão Provisória


de Estudos Constitucionais
Instituída junto à Presidência da República pelo Decreto n.º 91.450, de 18 de julho de 1985,
e presidida pelo jurista Afonso Arinos, a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, composta por
50 membros120, tinha como propósito a realização de estudos e pesquisas “para futura colaboração aos
trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte” (art. 2.º).
Segundo o cientista político Bolívar Lamounier, um de seus membros, a primeira fase de
funcionamento da Comissão foi regionalizada, havendo o grupo de São Paulo, o grupo do Rio de Janeiro,
o grupo de Brasília, do Nordeste, de Minas, etc., o que tornava mais fácil o contato com a sociedade
para recebimento de propostas. Ainda conforme Lamounier, “realmente recebeu-se um volume até que
considerável” de sugestões, “sobre os mais variados assuntos, desde cartas individuais, de pessoas, até
documentos de setores organizados da sociedade”121. Posteriormente a Comissão foi dividida em dez
subcomissões temáticas, envolvendo questões relativas a direitos e garantias individuais e relações
internacionais (subcomissão 1); estrutura federativa e tributária (subcomissão 2); Poder Judiciário
(subcomissão 3); Poderes Executivo e Legislativo (subcomissões 4 e 5); educação, cultura e comunicações
(subcomissão 6); saúde e meio ambiente (subcomissão 7); ordem econômica (subcomissão 8); ordem
social (subcomissão 9) e finalmente os temas Estado democrático e segurança, envolvendo o papel das
Forças Armadas, Polícias, etc.
A existência da Comissão – muito embora bastante criticada por diversos setores que a viam
como uma “Comissão de Notáveis” a pretender substituir a vontade popular nos debates e propostas
em torno da Constituinte –, acabou, contudo, por possibilitar uma primeira experiência de articulação
e formulação de propostas concretas dos movimentos sociais, com aquela finalidade. Foi o caso, por
exemplo, das propostas do movimento indígena e setores aliados.
Em novembro de 1985 (portanto antes da existência do “Programa Mínimo” da UNI) um dos
membros da Comissão Provisória, o constitucionalista José Afonso da Silva, submetia à mesma uma
proposta de artigo, de n.º47, relativo a “Terras indígenas”, composto de seis itens:

119 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano IX, n.º94, dez. 1986; p.8.
120 Nos termos do Dec. 91.450/85 (DOU de 22.07.1985, p.10393), a Comissão era composta por Afonso Arinos de Melo
Franco (Presidente), Joaquim de Arruda Falcão Neto, Alberto Venâncio Filho, Jorge Amado, Antonio Ermírio de Moraes,
Josaphat Ramos Marinho, Barbosa Lima Sobrinho, José Afonso da Silva, Bolívar Lamounier, José Alberto de Assumpção,
Cândido Antônio Mendes de Almeida, José Francisco da Silva, Celso Furtado, José Meira, Cláudio Pacheco, José Paulo
Sepúlveda Pertence, Cláudio Penna Lacombe, José Saulo Ramos, Clóvis Ferro Costa, Laerte Ramos Vieira, Cristovam
Ricardo Cavalcanti Buarque, Luís Eulálio de Bueno Vidigal Filho, Edgar de Godoi da Mata-Machado, Luís Pinto Ferreira,
Eduardo Mattos Portella, Mário de Souza Martins, Evaristo de Moraes Filho, Mauro Santayana, Fajardo José Pereira Faria,
Miguel Reale, Padre Fernando Bastos de Ávila, Miguel Reale Júnior, Floriza Verucci, Odilon Ribeiro Coutinho, Gilberto de
Ulhoa Canto, Orlando M. de Carvalho, Gilberto Freyre, Paulo Brossard de Souza Pinto, Reverendo Guilhermino Cunha,
Raphael de Almeida Magalhães, Helio Jaguaribe, Raul Machado Horta, Helio Santos, Rosah Russomano, Hilton Ribeiro
da Rocha, Sérgio Franklin Quintella, João Pedro Gouvea Vieira, e Walter Barelli
121 SALINAS FORTES, Luiz Roberto & NASCIMENTO, Milton Meira do (orgs.). A Constituinte em Debate. Colóquio realizado
de 12 a 16 de maio de 1986, por iniciativa do Departamento de Filosofia da USP. São Paulo : Editora Sofia, 1987, p.91.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 45


Art. 47 – Terras indígenas122.
1. As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis, a eles cabendo a sua posse
permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto das riquezas naturais e minerais
e de todas as utilidades nelas existentes.
2. As riquezas naturais e minerais existentes nas terras habitadas pelos silvícolas só
podem ser exploradas por eles, cabendo à União tão-somente prestar assistência técnica e
financeira para tanto.
3. Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de qualquer natureza
que tenham por objeto o domínio, a posse, a ocupação ou a concessão de terras habitadas pelos
silvícolas ou das riquezas naturais e minerais nelas existentes.
4. A nulidade e a extinção de que trata a alínea anterior não dão aos possuidores, ocupantes
ou concessionários o direito de ação ou de indenização contra a União e a Fundação Nacional
do Índio.
5. Além da União e da Fundação Nacional do Índio, o Ministério Público, qualquer
instituição de proteção indígena e qualquer pessoa do povo serão partes legítimas para promover
ações judiciais em defesa dos interesses dos silvícolas previstos neste artigo e em lei.
6. Ações propostas por índios ou grupos de índios serão conhecidas e processadas,
cabendo ao Juiz da causa abrir vista ao Ministério Público que se incumbirá de dar seqüência
ao feito no interesse da comunidade indígena.
(Grifos nossos.)

Mais tarde, em 3 de dezembro daquele ano, a UNI e um grupo de entidades e personalidades


aliadas, sobretudo das regiões Sul e Sudeste123, ofereciam contra-proposta na qual, além dos direitos
territoriais, previam uma conceituação para as comunidades indígenas e o reconhecimento da
legitimidade processual ativa das comunidades e organizações indígenas e da organização social e
direitos culturais como prevalecentes sobre “as determinações legais comuns nos atos e negócios que
envolverem membros das comunidades”. Eis o texto:

Art. 1.º - As terras ocupadas pelos índios são inalienáveis, a eles cabendo a sua posse
permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo da riquezas naturais do
solo e subsolo e de todas as utilidades nelas existentes.
§ 1.º - São terras ocupadas pelos índios as terras por eles habitadas, as utilizadas para caça,
pesca, coleta, agricultura e outras atividades produtivas, bem como todas as áreas necessárias
à sua reprodução física e cultural segundo seus usos e costumes próprios, estando incluídas as
áreas necessárias à preservação do seu meio ambiente e de seu patrimônio histórico.
§ 2.º - As terras referidas no caput do artigo são bens públicos federais indisponíveis
sendo inalterável a sua destinação salvo em caso de catástrofe natural.
§ 3.º - Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de atos de qualquer
natureza que tenham por objetivo o domínio, a posse, o uso, a ocupação ou a concessão de terras
ocupadas pelos índios ou das riquezas naturais do solo e do subsolo nelas existentes.
§ 4.º - A nulidade e a extinção de que trata o parágrafo anterior não dão aos titulares
de domínio, possuidores, usuários, ocupantes ou concessionários o direito de ação ou de
indenização contra o Poder Público e os índios.

122 cf. CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Os Direitos do Índio... op. cit., p.175.
123 Especificamente CPI-SP, ABA, Uni - Sul, Anaí-RS, CTI, Coordenação de Terras Indígenas do Mirad, Grupo de Trabalho
Indígena da OAB/RJ, Programa de Etnias e Sociedade Nacional da Fundação Nacional Pró-Memória, Grupo de Terra da
Sudelpa, e os advogados Dalmo Dallari e Souza Filho.

46 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Art. 2.º - As comunidades indígenas, suas organizações, a União, o órgão oficial de
proteção aos índios, o Congresso Nacional e o Ministério Público são partes legítimas para
ingressarem em juízo em defesa dos interesses dos índios.
§ 1.º - São comunidades indígenas as que se consideram segmentos distintos da
sociedade nacional em virtude da consciência de sua continuidade histórica com sociedades
pré-colombianas. São índios os membros dessas comunidades.
§ 2.º - Nas ações propostas por comunidades ou suas organizações, ou contra elas, o juiz
dará vistas ao Ministério Público que participará no feito em defesa do interesse indígena.
Art. 3.º - Fica reconhecido o direito dos povos indígenas a se organizarem segundo
sua estrutura social, cujos usos, costumes, línguas e tradições prevalecerão sempre às
determinações legais comuns nos atos e negócios que envolverem membros das comunidades.
(Grifos nossos.)

Ao comentar o andamento dos trabalhos da Comissão Provisória, em maio de 1986, Lamounier


mencionava:
A preocupação com a mulher, com a família, com as populações indígenas, com as minorias
étnicas, tudo isso está muito presente na Comissão Afonso Arinos. E, a mim me parece que
o texto final será amplamente consagrador das reivindicações que se fazem nesse sentido,
ou seja, de maior proteção às populações indígenas contra a dizimação de que se acham
ameaçadas, (...)124.
Em 1.º de julho de 1986, a Comissão Afonso Arinos aprovava a sua proposta de Capítulo
Constitucional “Das Populações Indígenas”, onde previa o reconhecimento das populações indígenas
como “parte integrante da comunidade nacional” (art. 380), a extensividade dos direitos em geral a
tais populações “sem prejuízo dos seus usos e costumes específicos” (§ único, “a”) e a prestação de
assistência sócio-econômica e proteção às suas terras, instituições, pessoas, bens e trabalho, “bem como
à preservação de sua identidade” (§ único, “b”). Propunha também conferir legitimidade processual ativa
às comunidades indígenas e suas organizações para a “defesa dos interesses dos índios” (art. 383, caput).
Entretanto, ao que parece o Anteprojeto previa também a manutenção da restrição da capacidade civil
dos indígenas, uma vez que condicionava a validade jurídica dos contratos de interesse das comunidades
indígenas à “participação obrigatória de suas organizações federais protetoras” (art. 382, § 3.º).
Analisando o Anteprojeto da Comissão, o advogado e assessor jurídico do Cimi, Paulo Guimarães,
observava entre os seus aspectos mais importantes, a eliminação da perspectiva incorporativista, presente
até então nos textos constitucionais brasileiros, e a previsão de legislação com o propósito único de
proteção aos índios e seus direitos originários, conforme o caput do art. 380 do Anteprojeto.

Anteprojeto
da Comissão Provisória de Estudos Constitucionais
(Dec. n.º 91.450, de 18 de julho de 1985)
Apresentado em setembro de 1986125

(...)
Art. 71 – Incluem-se entre os bens da União:
(...)
VII – as terras ocupadas pelos índios;
(...)
Art. 380 – O Governo Federal, reconhecendo as populações indígenas como
parte integrante da comunidade nacional, proporá legislação específica com
vista à proteção destas populações e de seus direitos originários.

124 SALINAS FORTES & NASCIMENTO (orgs.). A Constituinte em Debate. op.cit., p. 95.
125 DOU, Seção I, Suplemento especial ao n.º 185. Brasília – DF, sexta-feira, 26.09.1986.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 47


Parágrafo único – Esta legislação compreenderá medidas tendentes a:
a) permitir que as referidas populações se beneficiem, em condições
de igualdade, dos direitos e possibilidades que a legislação brasileira
assegura aos demais setores da população, sem prejuízo dos seus usos e
costumes específicos;
b) promover o apoio social e econômico às referidas populações,
garantindo-lhes a devida proteção às terras, às instituições, ás pessoas, aos
bens e ao trabalho dos índios, bem como à preservação de sua identidade;
c) o apoio de que trata o inciso anterior ficará a cargo de um órgão
especifico da administração federal.
Art. 381 – As terras ocupadas pelos índios são inalienáveis e serão
demarcadas, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu
direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais do solo, do subsolo e de
todas as utilidades nelas existentes.
§ 1º – São terras ocupadas pelos índios as por eles habitadas, as
utilizadas para suas atividades produtivas, e as necessárias à sua vida
segundo usos e costumes próprios, incluídas as necessárias à preservação de
seu ambiente e do patrimônio histórico.
§ 2º – As terras referidas no caput do artigo pertencem à União, como
bens indisponíveis, sendo inalterável a sua destinação.
§ 3º – Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de
atos de qualquer natureza que tenham por objetivo o domínio, a posse, o uso,
a ocupação ou a concessão de terras ocupadas pelos índios ou das riquezas
naturais do solo e do subsolo nelas existentes.
§ 4º – A nulidade e a extinção de que trata o parágrafo anterior não dão
aos titulares do domínio, possuidores, usuários, ocupantes ou concessionários
o direito de ação ou de indenização contra os índios, e sim contra o Poder
Público, pelos atos por ele próprio praticados.
Art. 382 – A pesquisa, lavra ou exploração de minérios em terras
indígenas poderão ser feitas, como privilégio da União, quando haja relevante
interesse nacional, assim declarado pelo Congresso Nacional para cada caso,
e desde que inexistam reservas, conhecidas e suficientes para o consumo
interno, e exploráveis, da riqueza mineral em questão, em outras partes do
território brasileiro.
§ 1º – A pesquisa, lavra ou exploração mineral de que fala este
artigo dependem do registro da demarcação da terra indígena no Serviço do
Patrimônio da União e da prévia regulamentação a ser baixada pelo órgão
federal responsável pela política indigenista das condições em que se darão
a pesquisa, lavra ou exploração.
§ 2º – A exploração das riquezas minerais em áreas indígenas obriga
ao pagamento de percentual não inferior a cinco por cento do valor do
faturamento em beneficio das comunidades autóctones.
§ 3º – Os contratos que envolvam interesses das comunidades indígenas
terão a participação obrigatória de suas organizações federais protetoras e
do Ministério Público, sob pena de nulidade.
§ 4º – Ficam vedadas a remoção de grupos indígenas de suas terras e a
aplicação de qualquer medida coercitiva que limite seus direitos á posse e
ao usufruto previstos no art. 381.
Art. 383 – O Ministério Público, de ofício ou por determinação do
Congresso Nacional, as comunidades indígenas, suas organizações e o órgão
oficial de proteção aos índios são partes legítimas para ingressar em juízo
em defesa dos interesses dos índios.

48 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Parágrafo único – Nas ações propostas por comunidades indígenas ou suas
organizações, ou contra estas, o juiz dará vistas ao Ministério Público, que
participará do feito em defesa do interesse dos silvícolas.
(...)
(Grifos nossos.)

Em 18 de setembro de 1986 a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais teve encerrados


os seus trabalhos. Entretanto, contrariamente ao seu propósito, o Anteprojeto que produziu não
logrou ser sequer enviado pelo presidente Sarney à Assembléia Nacional Constituinte. Avaliado como
interferência indevida do Executivo em sua soberania, a ANC preferiu passar ao largo de qualquer
anteprojeto prévio126, considerando como marco zero das discussões as propostas apresentadas pelas
suas próprias comissões e subcomissões.
Embora não adotado como uma proposta formal, o texto da Comissão Afonso Arinos acabou
incorporando importantes elementos relativos às propostas que entrariam em debate sobre a questão
indígena, influenciando o trabalho dos constituintes.

126  CIMI. “Porantim”, Brasília, ano VIII, n.º 91, out. 1986, p.7.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 49


1988 – Lideranças dos povos Xukuru, Kapinawá, Potiguara e Karapotó. – Foto: Egon D. Heck/Arquivo Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC

A participação indígena na Constituinte destacou


não apenas a perseverança das lideranças diante dos
obstáculos, mas também a altivez, a disciplina, a capacidade de
organização e de composição política em meio à diversidade.

50 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


3. A PARTICIPAÇÃO INDÍGENA
NO PROCESSO CONSTITUINTE

A frustração ao desejo de uma Constituinte exclusiva gerou, para alguns setores dos movimentos
sociais, uma tal desconfiança com relação às possibilidades de atuação da ANC, que em alguns casos
não viria a ser superada.
Apesar disso, às vésperas da instalação da ANC uma expressiva maioria de intelectuais e
dirigentes políticos e dos movimentos sociais apostava no potencial da Constituinte como espaço
transformador, desde que devidamente ocupado pelas forças sociais desejosas de mudança. Assim, por
exemplo, ao abordar o ceticismo de diversos setores sociais sobre a Constituinte, causado sobretudo
pela decepção com a convocação de uma Constituinte Congressual, onde “o poder possivelmente
seria reforçado como exercício de dominação”, a filósofa Marilena Chauí127 chamava a atenção para a
importância dos movimentos sociais como elemento capaz de fazer a diferença. Então desdenhados por
uma concepção tradicional de instituições políticas, por seu caráter “não-institucional”, os movimentos
sociais, pela sua autonomia e busca pela criação e reconhecimento de direitos, eram apontados por
Chauí como fundamentais para o resgate do anseio da transformação política, histórica e cultural que
se desejava como resultado da Constituinte.
Se para o campo dos movimentos sociais em geral a forte participação popular a pressionar e
avaliar o andamento dos trabalhos da Constituinte era vista como indispensável, com a questão indígena
não seria diferente. Antes mesmo de instalada a ANC, o sociólogo Florestan Fernandes, então eleito
deputado constituinte pelo PT-SP, fazia um cálculo nada animador: a questão indígena só deveria contar
com o apoio de no máximo 25% dos constituintes, o que significava parlamentares do PT, PDT, PCB, PC
do B e os denominados “progressistas” do PMDB128. Isto deveria significar uma grave insuficiência de
votos para a aprovação das propostas relativas aos direitos indígenas, sobretudo junto ao Plenário.
Esta perspectiva de um fraco apoio aos direitos indígenas na Constituinte gerava para o
próprio movimento indígena e as entidades de apoio a necessidade de um amplo e intenso esforço de
acompanhamento da questão, com vistas à superação das dificuldades e a reversão da tendência apontada
por Florestan Fernandes. Seria necessário todo um trabalho de sensibilização política dos Constituintes
refratários ou sem opinião formada para a causa indígena, o que envolvia, necessariamente, uma presença
física constante nos corredores do Congresso e gabinetes dos parlamentares. Seria necessário, antes
disso, municiar os próprios indígenas a respeito da defesa de seus direitos naquele espaço institucional.
A tarefa não seria nada simples, a começar pelo fato de muitas aldeias situarem-se em locais de difícil
acesso. Além disso,
até aquele momento pouquíssimos indígenas possuíam algum conhecimento sobre as
estruturas jurídicas, políticas e administrativas do Estado Brasileiro. Muitos não tinham
vaga idéia do que seria um Legislativo Municipal, muito menos uma Constituição ou uma
Assembléia Nacional Constituinte. A maioria, entretanto, passava a afirmar uma certeza:
a grande lei dos “brancos” estava para ser escrita pelos políticos “lá em Brasília”, e, se os
índios não poderiam participar de sua elaboração com as próprias mãos, lutariam para que
pela primeira vez, em 500 anos, a lei dos “brancos” fosse escrita considerando a opinião e
a vontade dos povos indígenas 129.
Deste modo, caberia à UNI e às entidades de apoio à causa indígena não só as tarefas de
articulação política e permanente subsídio e acompanhamento aos trabalhos dos parlamentares
constituintes, mas também a incumbência de manter os povos indígenas permanentemente informados,
alertas e mobilizados. O trabalho envolvia também a necessidade freqüente de costuras políticas entre os

127 CHAUÍ, Marilena de Souza. O Ceticismo Sobre a Constituinte. In: SALINAS FORTES & NASCIMENTO (orgs.). A
Constituinte em Debate. op.cit., pp.157-165.
128 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º106, mar. 1987; p.9.
129 LACERDA, Rosane Freire. Diferença não é Incapacidade..., op. cit.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 51


próprios grupos étnicos envolvidos, tamanha
a sua diversidade cultural e lingüística, e
diferentes graus de contato com a sociedade
não-indígena.
Pelas suas dimensões e pela
natureza de seu trabalho, o Cimi teve um
papel destacado no cumprimento destas
demandas. Com um grande número de
equipes de área localizadas em boa parte
das aldeias indígenas, com coordenações
regionais sediadas nas capitais de diversas
Unidades da Federação e com um Secretariado
Nacional em Brasília – DF, além do apoio do
próprio clero e episcopado, o Cimi seria a
única instituição no país com condições reais
para uma atuação em cadeia, indo das aldeias
à Assembléia Nacional Constituinte. Logo
esta privilegiada capacidade de articulação
seria posta à prova.
Nos últimos dias de janeiro de 1987,
centenas de representantes de movimentos
sociais viajavam a Brasília, na esperança
de, em 1.º de fevereiro, poderem assistir
de perto à sessão solene de instalação da
Assembléia Nacional Constituinte.
Porém, o dia marcado traria para
as forças populares mais uma decepção. O
evento, realizado no Plenário da Câmara dos
Deputados, ficava restrito aos parlamentares
e convidados. Lá fora, no gramado do
Congresso Nacional, uma barreira de Policiais
Militares isolava o evento da tentativa de
aproximação dos populares e representantes
dos movimentos sociais, que, munidos
de faixas e cartazes, se aglomeravam no
1º/02/1987 - Instalação da Assembléia Nacional Constituinte. Policiais impedem
gramado do Congresso. O episódio era mais o acesso dos populares às dependências do Congresso Nacional. No primeiro
um sinal das barreiras que os movimentos plano, o Cacique Raoni Mentuktire Kayapó.
sociais teriam que vencer para a feitura de Foto: F. Gualberto. Arquivo: Cimi/Secretariado Nacional/Setor de Documentação.
uma Constituição de fato transformadora.
Entre os impedidos de acesso à “festa”, estavam muitos indígenas vindos de diversas regiões do país.
Um dos barrados, o Cacique Raoni Mentuktire.
No dia seguinte à instalação da ANC o deputado Ulisses Guimarães era eleito presidente da
Assembléia. O seu Regimento Interno só viria a ser aprovado no mês seguinte, em 19 de março.
Nos termos do Regimento, os trabalhos da ANC foram divididos em oito Comissões
Constitucionais. Cada Comissão temática possuía, por sua vez, suas próprias subcomissões, somando
um total de 24 Subcomissões temáticas específicas:

I – Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher:


Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais;
Subcomissão dos Direitos Políticos, dos Direitos Coletivos e Garantias;
Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais.

52 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


II – Comissão da Organização do Estado:
Subcomissão da União, Distrito Federal e Territórios;
Subcomissão dos Estados;
Subcomissão dos Municípios e Regiões.

III – Comissão da Organização dos Poderes e Sistema de Governo:


Subcomissão do Poder Legislativo;
Subcomissão do Poder Executivo;
Subcomissão do Poder Judiciário e do Ministério Público.

IV – Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantias das Instituições:


Subcomissão do Sistema Eleitoral e Partidos Políticos;
Subcomissão de Defesa do Estado, da Sociedade e de sua Segurança;
Subcomissão de Garantia da Constituição, Reforma e Emendas.

V – Comissão do Sistema Tributário, Orçamento e Finanças:


Subcomissão de Tributos, Participação e Distribuição das Receitas;
Subcomissão de Orçamento e Fiscalização Financeira;
Subcomissão do Sistema Financeiro.

VI – Comissão da Ordem Econômica:


Subcomissão de Princípios Gerais, Intervenção do Estado,
Regime da Propriedade do Subsolo e da Atividade Econômica;
Subcomissão da Questão Urbana e Transporte;
Subcomissão da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária.

VII – Comissão da Ordem Social:


Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos;
Subcomissão da Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente;
Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias.

VIII – Comissão da Família, Educação, Cultura, Esporte, Comunicação,


Ciência e Tecnologia:
Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes;
Subcomissão da Ciência e Tecnologia e da Comunicação;
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso.

IX – Comissão de Sistematização.

X – Comissão de Redação.

Ainda segundo o Regimento, o resultado final do trabalho de cada Comissão verteria para a
Comissão de Sistematização, que teve como presidente o Senador Afonso Arinos (PFL – RJ) e relator o
deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM).
Antes, porém, da instalação das Comissões temáticas, coube ao movimento indígena e às
entidades aliadas uma última reunião, para a formatação final da Proposta Unitária sobre os Direitos
Indígenas na Constituinte. Assim, nos dias 2 e 3 de abril de 1987, o escritório do Inesc em Brasília sediava
o encontro de representantes da UNI, Cimi, ABA, Cedi, CTI/Mirad, CCPY, Conage e da Procuradoria-geral
da República, juntamente com índios residentes em Brasília.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 53


A Proposta Unitária, a ser encaminhada à Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas,
Pessoas Deficientes e Minorias, da Comissão da Ordem Social, possuía a seguinte formulação:

“Das populações indígenas”.


Art. 1º São reconhecidas as comunidades indígenas, seus direitos originários sobre as
terras que ocupam, sua organização social, seus usos e costumes, línguas e tradições.
Parágrafo Único. A União garantirá a devida proteção, às terras, às instituições, às pessoas,
aos bens, à saúde e à educação dos índios.
Art. 2º As terras ocupadas pelos índios são inalienáveis, destinadas a sua posse
permanente, ficando reconhecidos seus direitos ao usufruto exclusivo das terras, das riquezas
naturais do solo, do subsolo, dos cursos pluviais e de todas as utilidades nelas existentes.
§ 1.º São terras ocupadas pelos índios, as por eles habitadas, utilizadas para pesca, caça,
extração, coleta, agricultura, outras atividades produtivas, bem como as áreas necessárias à
reprodução física e cultural de suas comunidades, segundo seus usos, costumes e tradições,
estando incluídas as áreas necessárias à preservação do meio-ambiente e do seu patrimônio
cultural.
§ 2.º As terras ocupadas pelos índios pertencem à União, são indisponíveis e inalterável
a sua destinação. São nulos e extintos e não produzirão efeitos jurídicos os atos de qualquer
natureza que tenham por objetivo o domínio, a posse, o uso, a ocupação ou a concessão de
terras ocupadas pelos índios ou das riquezas naturais do solo, do subsolo e dos cursos pluviais
nela existentes.
§ 3.º A nulidade e extinção de que trata o parágrafo anterior não dão direito de ação ou
indenização contra o poder publico ou dos índios. Na terra ocupada pelos índios é vedada
qualquer atividade extrativa de riquezas não renováveis, exceto, faiscação e garimpagem,
quando exercida pelas próprias comunidades indígenas.
§ 4.º Para melhor garantia das terras indígenas, ainda não demarcadas, a União as
demarcará, observado o disposto no § 1º deste artigo.
Art. 3º Os índios, as comunidades indígenas, suas organizações, o Congresso Nacional
e o Ministério Público são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa dos direitos
indígenas.
§ 1.º A competência para dirimir disputas sobre os direitos indígenas será sempre da
Justiça Federal. O Ministério Público tem a responsabilidade da defesa e a proteção desse direito
judicial e extrajudicial devendo agir de ofício, ou mediante provocação. A proteção compreende
a pessoa, o patrimônio material e imaterial ou interesse dos índios, bem como a preservação e
restauração de seus direitos, reparação de danos e promoção de responsabilidade dos ofensores.
Em toda a relação contratual de que puder resultar o prejuízo ao direito dos indígenas será
obrigatória a interveniência do Ministério Público sob pena de nulidade.
§ 2.º Os direitos e garantias reconhecidos neste capítulo são diretamente aplicáveis e
vincula a todos os poderes públicos. Compete à União, e de forma complementar aos Estados,
legislar sobre a garantia dos direitos previstos neste capítulo.

A Proposta Unitária, contudo, encerrava um conteúdo de alcance mais limitado do que aquele
que já vinha sendo defendido conjuntamente pelo Cimi e CNBB. De modo especial estas duas entidades
propunham o reconhecimento do caráter plurinacional do país, tema bastante avançado e polêmico no
qual as demais entidades, por uma questão de estratégia, evitavam ingressar.
Assim, como que a se possibilitar o avanço em duas frentes, concordou-se que o Cimi elaboraria
sua própria proposta, a ser entregue à Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações
Internacionais, abordando aspectos não previstos na proposta unitária, mantendo, contudo, a articulação
e o apoio que sempre dera a esta desde o início de sua elaboração.

54 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


3.1. O trabalho junto às Subcomissões
e Comissões Temáticas

Comissão da Ordem Social.

• Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas


Deficientes e Minorias.
No dia sete de abril de 1997, numa das salas do Anexo II do Senado Federal, numa sessão
marcada pela falta de quorum130 e pela completa ausência e desinteresse da imprensa, era instalada
a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Uma das três
pertencentes à Comissão da Ordem Social, a Subcomissão131 teve como presidente o constituinte Ivo
Lech (PMDB-RS), e como relator o constituinte Alceni Guerra (PFL-PR)132.
Em seu discurso de posse como presidente da Subcomissão, Ivo Lech manifestou a expectativa
de o tema das minorias não ser segregado “em um capítulo à parte da Constituição, o que seria uma
segregação legal”, mas que em cada capítulo da futura Carta o tema estivesse lá, “sem discriminação,
juntamente com direitos e garantias de todos os cidadãos”133.
Por sua vez, o relator Alceni Guerra assim expressou o reconhecimento da importância histórica
da temática objeto da Subcomissão:
O assunto que vamos abordar aqui, para incluir na nova ordem jurídica nacional, é um
assunto que foi menosprezado por gerações e gerações de brasileiros. Acho que cabe a nós,
nestes primeiros trinta dias, na feitura do nosso relatório, todos nós, e depois no prazo que
durarem os trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, resgatarmos essa dívida que a
Nação inteira, por um século e meio, tem com as minorias no Brasil134.
Envolvendo especificamente a questão dos direitos indígenas, a Subcomissão seria, naquela
primeira fase dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte, o principal palco – embora que não o
único – , dos debates em torno das propostas relativas ao tema indígena.
Na segunda reunião da Subcomissão, realizada em 9 de abril, ainda padecendo do problema
da falta de quorum, foi registrada a presença do indígena Jorge Terena, não como representante do
movimento indígena, mas da Assessoria para Assuntos Indígenas do Ministério da Cultura. Solicitando
a fala, Terena apoiava a sugestão naquele momento discutida pelos membros da Subcomissão, de se
convidar representantes dos segmentos diretamente relacionados à temática:
A iniciativa que o Sr. Presidente está colocando à Mesa de ouvir os membros das comunidades,
que esta Subcomissão está encarregada de levar todas as questões à Constituição, e também
da palavra do Constituinte Carlos Sabóia de realmente chamar as pessoas que estão
envolvidas nessas questões e que realmente estão convivendo com essas pessoas há muito

130 Presidida pelo Constituinte Nelson Seixas (PDT-SP), aquela primeira seção contara com a presença dos Constituintes
Benedita da Silva (PT-RJ), Edivaldo Motta (PMDB-PB), Hélio Costa (PMDB-MG), Ivo Lech (PMDB -RS), José Carlos
Sabóia (PMDB-MA), Nelson Seixas (PDT-SP), Renan Calheiros (PMDB-AL), Salatiel Carvalho (PFL - PE), Wilma Maia
(PDS- RN), Alceni Guerra (PFL-PR), Jalles Fontoura (PFL - GO), José Moura (PFL - PE) e Aécio de Borba (PDS - CE).
131 Aqui denominada apenas como “Subcomissão das Populações Indígenas”.
132 A Subcomissão tinha ainda como titulares os constituintes Doreto Campanari (PMDB-SP), Bosco França (PMDB-SE),
Ruy Nedel (PMDB-RS), Hélio Costa (PMDB-MG), José Carlos Sabóia (PMDB-MA), Mattos Leão (PMDB-PR), Mauro
Sampaio (PMDB-CE), Renan Calheiros (PMDB-AL), Jacy Scanagatta (PFL-PR), Lourival Baptista (PFL-SE), Salatiel
Carvalho (PFL-PE), Nelson Seixas (PDT-SP) e Benedita da Silva (PT-RJ).
133 BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias.
Anexo à Ata da 1.ª Reunião (Instalação), 07.04.87; p.1. Disponível em < http://www.congresso.gov.br/anc88/ > (Acessado
em 08.10.2008)
134 BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Subcomissão dos Negros, ... Idem, p.2.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 55


tempo, eu acho que é uma iniciativa muito importante. No nosso caso, por exemplo, no caso
dos índios, nós não temos nenhum representante legítimo aqui dentro desta Casa, mas nós
temos vários aliados, tanto Deputados como Senadores, porque realmente nós precisamos de
um maior número de aliados aqui dentro, para que nós possamos realmente conseguir colocar
dentro da Constituição os nossos direitos, o direito da nossa cidadania. Porque realmente
seria muito importante, como o Deputado João Carlos Sabóia disse, chamar as pessoas que
são líderes nessas entidades, não somente os líderes dos movimentos sociais, mas as próprias
pessoas que realmente são da comunidade, para que os parlamentares desta comissão também
possam sentir na sua pele o que eles estão sentindo, porque são eles que melhor sabem da
sua luta (...). E a minha sugestão é que realmente quando esta Comissão estiver tratando
de um assunto no tocante aos índios, por exemplo, que se chame alguns líderes indígenas,
e não somente os líderes indígenas, mas também os líderes dos movimentos que apóiam
os índios, se puderem fazer essa convocação para que essas pessoas possam chegar aqui e
realmente fazer as suas colocações concernentes às comunidades indígenas135.
A primeira grande presença indígena junto à Subcomissão das Populações Indígenas ocorreria
já na reunião seguinte, em 22 de abril de 1987, por ocasião da apresentação da Proposta Unitária relativa
aos direitos indígenas. Cerca de 40 lideranças indígenas, dos povos Krahô (GO), Krenak (MG), Kayapó
(PA/MT), Xavante (MT), Terena (MS) e alguns Xingüanos (MT), dirigiram-se ao local para acompanhar a
sessão. Entre as lideranças presentes encontravam-se os Caciques Celestino (Xavante), Aritana (Kamaiurá),
Raoni (Kayapó Mentuktire), Aleixo Pohi (Krahô), Inocêncio (Erikbaktsa), Alfredo Gueiro (Kaxinawá), além
de Ailton Krenak, presidente da UNI, Janaculá Kamaiurá – Chefe de Gabinete do presidente da Funai,
Marcos e Jorge Terena – ambos do Ministério da Cultura, e Idjarruri Karajá.

22/04/87 – Mais de 40 lideranças indígenas de diversos povos participam do ato de entrega da Proposta Unitária da
UNI à Subcomissão “das Populações Indígenas”. Foto: Cecé. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

135 BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Subcomissão dos Negros, ...; Anexo à Ata da 2.ª Reunião,09.04.87 ; p.8-9. Disponível
em < http://www.congresso.gov.br/anc88/ > (Acessado em:09.10.2008)

56 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


22/04/87 – Vista do Plenário da Subcomissão “das Populações Indígenas” durante o ato de apresentação da Proposta
Unitária da UNI. Foto: Cecé. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

Antes de dirigir-se ao local da Audiência, o grupo, liderado pelos Kayapó, ocupou a ante-sala
do gabinete do presidente da Constituinte, deputado Ulisses Guimarães. Ali,
os Gorotire e Txukarramãe, em sua maioria pintados, começaram a cantar e ameaçar alguns
passos de dança. Quando Ulysses abriu a porta e viu a manifestação, nada conseguiu falar.
Parou e, boquiaberto, ficou olhando. Um cocar foi colocado em sua cabeça e a proposta
em suas mãos 136.

Lideranças indígenas colocam um cocar na cabeça do presidente da Constituinte, deputado Ulisses Guimarães.
Foto: filme “Os Direitos Indígenas na Constituinte” (Cimi, 1989)

Depois, o grupo dirigiu-se ao gabinete do líder do PMDB, Senador Mário Covas, a quem
entregou um exemplar da Proposta Unitária. Subiu então a rampa do Congresso Nacional, e num gesto
simbólico, realizou uma pajelança no presidente da Subcomissão, deputado Ivo Lech, para permitir que
o espírito bom viesse e entrasse em sua cabeça e seu coração137.

136 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º108, mai. 1987; p.3.


137 cf. Idem, Ibidem; p.3.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 57


Instalada a reunião, que contara com a presença de 14 parlamentares138, a Proposta, subscrita
pelo deputado José Carlos Sabóia (PMDB-MA), foi apresentada à Subcomissão pelo indígena Idjarruri
Karajá – então Superintendente para Assuntos Indígenas do Estado de Goiás:
Sou lá da Ilha do Bananal. da tribo dos Carajás, lá do Araguaia, estão aqui meus
companheiros, o Cacique Raoni, da tribo dos Txucarramãe, Marcos Terena, da tribo dos
Terenas, e nosso companheiro também, o batalhador, ex-Deputado Federal Mário Juruna, o
Presidente da Uni, o nosso companheiro Airton Krenak.
Sr. Presidente de Subcomissão, Constituinte Ivo Lech. Srs. Constituintes. Meus Caciques
também aqui presentes que vieram de vários cantos do País. Srs. da Imprensa. Sras e Srs:
Neste momento, para nós solene, viemos em Comissão para entregar a proposta indígena
para a Assembléia Nacional Constituinte, que está trabalhando para fazer as novas leis,
viemos em Comissão. Não fomos felizes durante nossa campanha, tivemos vários candidatos
de diversos Estados brasileiros, mas nenhum foi eleito. Estamos aqui – não é por isso que
vamos ficar nas aldeias desanimados – em busca de apoio dos Constituintes para que o
Brasil venha garantir o respeito aos povos indígenas, venha garantir a nossa terra, porque
ela é a nossa sobrevivência. Está aqui a proposta indígena (...).
Essas são as propostas indígenas, Srs. Constituintes, nosso povo dizimado pela
irresponsabilidade de algumas autoridades ou por indefinições das leis brasileiras, embora
nós, pré-colombianos, até agora, tenhamos sido relegados a segundo plano, estamos aqui
esperançosos, confiantes nesses Constituintes que foram eleitos com a responsabilidade
muito grande de garantir a nossa sobrevivência. São os nossos agradecimentos e estamos
aqui à disposição139.
A respeito da apresentação da Proposta Unitária pelo índio Karajá, comenta o constituinte
José Carlos Sabóia, subscritor da proposta:
(...) é importante que neste momento (...) tenhamos uma concepção muito clara do que
significa essa simbologia, hoje, dos índios aqui presentes, (...) Foram 6 milhões no momento
da descoberta, são 220 mil índios, hoje, foram e continuam sendo dizimados, fora vitimas
de genocídios, de atrocidades, continuam sem ter seus direitos garantidos. A vida, a
dignidade passa pela conquista da terra, a vida, dignidade de uma nação passa pelo respeito
às diferenças étnicas das minorias; a dignidade de uma nação, a conquista da soberania
nacional, ela passa, neste momento, por esta proposta que os índios estão fazendo aqui.
Ou nós somos capazes de discutir politicamente, e destruirmos as bases do preconceito que
fazem com que as minorias étnicas, os negros, as pessoas portadoras de deficiência física e
todos os outros grupos vitimados pelos preconceitos e pelo estigma, que sejamos capazes de
discutir isso politicamente e deixar claro no texto constitucional, que daqui para a frente é
impossível ignorar a reivindicação de todas as Minorias deste País. Se não formos capazes
de entender o significado da presença das populações indígenas de todo o Brasil, aqui hoje
representadas nesta Subcomissão, não seremos capazes de dar um passo à frente, um passo
de democratizar este País: não haverá democracia neste País sem a presença dos índios
nesta sala, durante toda a realização da Constituinte e durante a realização da escrita do
novo texto constitucional. Não haverá democracia neste (...) A presença dos índios nesta
sala, Congressual, nesta Casa Constituinte, ela significa um momento de esperança para a
conquista de uma nova nacionalidade, de uma Nação livre e soberana140.

138 Nelson Seixas (PDT-SP), Lourival Baptista (PDS-SE), Edvaldo Motta (PMDB-PB), Vasco Alves (PMDB-ES), José Carlos
Sabóia (PMDB-MA), Benedita da Silva (PT-SP), Alceni Guerra (PFL-PR), Salatiel Carvalho (PFL-PE), Doreto Campanari
(PMDB-SP), Maurílio Ferreira Lima (PMDB-PE), José Moura (PFL-PE), Sarney Filho (PFL-MA), Severo Gomes (PMDB-
SP) e Jacy Scanagatta (PFL-PR).
139 BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Subcomissão dos Negros,...; Anexo à Ata da 3.ª Reunião, 22.04.87; pp.11-12.
Disponível em < http://www.congresso.gov.br/anc88/ > (Acessado em: 09.10.2008).
140 BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Subcomissão dos Negros,...; Anexo à Ata da 3.ª Reunião; Idem, p.12.

58 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Na ocasião o Cacique Raoni também fez uso da palavra, para dizer:
Queria falar que muitas vezes meu povo está morrendo nas mãos do seu povo, o que eu
não gostei. (...) Antigamente, há muitos anos atrás. não era tão complicado, quem nasceu
primeiro fomos nós. Hoje que tem gente muito complicada, a vida de vocês não é boa para
nós índios. Nós temos direito a terra, direito à mata, nós fomos criados dentro do mato.
Nós não queremos a casa de vocês, eu não quero a casa de madeira nem a terra ruim, onde
meu povo não pode entrar. Se o seu povo entrar como é que eu vou fazer com meu povo? Eu
tenho que tirar seu povo.(...). Por que seu povo não respeita meu povo? Meu trabalho é esse.
Estou querendo pedir para vocês guardar minha palavra. Vocês falaram muito bonito para
nós, eu gostei do que falaram para nós. Vocês têm que ter lembrança da nossa comunidade.
(...) Seu povo não pode matar mais o meu povo. Quando o seu povo mata o meu povo,
temos que lutar para matar. Vocês têm que acreditar nas minhas palavras, porque eu estou
acreditando muito nas palavras de vocês141.
Fato curioso é que nesta
reunião de 22 de abril de 2007, como
que a exemplificar o tratamento
discriminatório sofrido pelos índios, um
dos indígenas que se encaminhavam à
Subcomissão fora impedido de entrar
nas dependências do Congresso por
não estar – segundo o porteiro do
prédio – condignamente trajado. O caso
só fora resolvido com a intervenção do
presidente da Subcomissão, Ivo Lech,
junto à portaria da Casa, fazendo com
que fosse respeitado “o direito de um
cacique entrar no prédio do Congresso
Nacional, o prédio da Constituinte, sem
camisa, usando a sua indumentária
típica”142.

22/04/87 - O Constituinte José Carlos Sabóia (PMDB-MA) No dia seguinte, 23 de abril,


a quarta reunião da Subcomissão das
comenta a entrega da Proposta Unitária dos Direitos Indígenas à
Subcomissão “das Populações Indígenas”. Populações Indígenas143 era destinada à
Foto: Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC. apreciação de um painel, composto pela
antropóloga Manuela Carneiro da Cunha,
presidente da ABA – que tratou do desenvolvimento histórico do tratamento dado aos direitos indígenas,
pelo professor Paulo Roberto Moreira, economista, mestre em Filosofia e assessor do Ministério da
Cultura – que tratou das “aspirações dos portadores de deficiência física na nova Constituição”, e pelo
sociólogo e constituinte Florestan Fernandes – que tratou dos “aspectos sociais dos problemas dos
negros e indígenas”144.
Aspectos relativos à questão indígena seriam retomados e aprofundados na Oitava Reunião
da Subcomissão, realizada em 29 de abril, na sala da Comissão de Assuntos Regionais (Anexo II do
Senado). Na ocasião, foram ouvidos em audiência pública D. Erwin Krautler, Bispo de São Félix do
Xingu e presidente do Cimi, o prof. Carlos Frederico Marés, representando a CCPY e a CPI-SP, o geólogo

141 BRASIL. ANC (Atas de Comissões) Subcomissão dos Negros,...; Idem, p.13.
142 BRASIL. ANC (Atas de Comissões) Subcomissão dos Negros,...; Anexo à Ata da 3.ª Reunião; Idem; p.13.
143 Presentes à Sessão os Constituintes José Carlos Sabóia (PMDB-MA), Nelson Seixas (PDT-SP), Doreto Camparani
(PMDB-SP), Benedita da Silva (PT-RJ), Vasco Alves (PMDB-ES), Alceni Guerra (PFL – PR, Relator da Comissão) , Jacy
Scanagatta (PFL-PR), Salatiel Carvalho (PFL-PE), Florestan Fernandes (PT-SP), Luiz Inácio Lula da Silva (PT-SP), Bosco
França (PMDB-SE), Edivaldo Motta (PMDB-PB) e Haroldo Sabóia (PMDB-MA).
144 Vide reprodução integral dos expositores Manuela da Cunha e Florestan Fernandes no Anexo I.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 59


Vanderlino Teixeira de Carvalho, da Conage, e o antropólogo Mércio Gomes, do Instituto de Pesquisas
Antropológicas do Rio de Janeiro (Iparge)145.

29/04/1987 – D. Erwin Krautler, Presidente do Cimi, depõe em audiência pública da Subcomissão do Negro,
Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Ao lado os deputados José Carlos Sabóia (PMDB-MA) e Ivo Lech
(PMDB-RS). Foto: Arquivo Cimi/Secretariano Nacional/SEDOC.

Aproveitando a oportunidade, o representante do Conage apresentou a proposta da entidade


a respeito da questão da atividade minerária em terra indígena, na qual previa uma exploração mineral
em terras indígenas condicionada ao interesse da União, sem a participação das empresas mineradoras
privadas.

Proposta da Coordenação Nacional de Geólogos, apresentada na Audiência Pública de 29


de abril de 1987 perante a Subcomissão de Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes
e Minorias (Comissão da Ordem Social)
Parágrafo único – Fica declarada a nulidade de quaisquer direitos minerários referentes
ao subsolo das terras ocupadas pelos índios.
Isso é muito importante, se o Poder Constituinte tiver a prerrogativa de revogar eventuais
direitos anteriores existentes naquela área, de limpar áreas. Agora é que vem a questão delicada
que é a seguinte: Excepcionalmente, a pesquisa e lavra de recursos minerais em terras indígenas
poderão ser feitas como privilégio da União – quer dizer, não seria permitido nenhum interesse
empresarial na questão – “sem qualquer interesse empresarial, quando haja relevante interesse
nacional, assim declarado pelo Congresso Nacional, para cada caso, especificamente, desde
que inexistam reservas conhecidas e suficientes para o consumo interno economicamente
aproveitáveis da riqueza mineral, em questão, em outras partes do território brasileiro com a
devida aprovação da respectiva comunidade Indígena.
Parágrafo: No contexto do mapeamento geológico do País, a União poderá estender
sua execução para as terras indígenas com a devida aprovação das entidades representativas
nacionais das comunidades indígenas.

145 Presentes à Sessão os Constituintes Doreto Campanari (PMDB-SP), Alceni Guerra (PFL-PR), Benedita da Silva (PT-RJ),
José Carlos Sabóia (PMDB-MA), Nelson Seixas (PDT-SP), Salatiel Carvalho (PFL-PE), Vasco Alves (PMDB-ES), Plínio
Arruda Sampaio (PT-SP), Severo Gomes (PMDB-SP), Euclides Scalco (PMDB-PR), Benedicto Monteiro (PMDB-MA),
Haroldo Sabóia (PMDB-MA) e Osmir Lima (PMDB-AC).

60 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Parágrafo: A pesquisa e lavra de que fala este artigo também poderão acontecer para
qualquer bem mineral, desde que solicitadas pela respectiva comunidade indígena e aprovadas
pelo Congresso Nacional, sendo realizadas pela União sem interesse empresarial.
Art. O lucro resultante da lavra de bens minerais em terras indígenas será integralmente
revertido em benefício das comunidades indígenas.
Justificação
A História brasileira é testemunha do trágico destino que foi dado aos silvícolas nacionais
em face do choque cultural ocorrido em face da exploração desenfreada das riquezas existentes
em terras indígenas, com uma população estimada em cerca de 6 milhões de pessoas em 1500,
reduzindo-se para 220 mil, caracterizando um verdadeiro genocídio em menos de 500 anos de
convívio. Reverter esta terrível e desumana cadeia de extermínio é tarefa urgente e prioritária
de todos aqueles que defendem a liberdade, a democracia e a justa convivência entre as maiorias
e minorias nacionais.
No tocante à questão mineral em terras indígenas, tem sido detectado interesses
econômicos que estão à espreita de uma brecha na legislação minerária, para se apropriarem
de suas reservas minerais, com repercussões danosas aos silvícolas.
Por outro lado, os povos indígenas travam uma luta heróica para sua autodeterminação,
tendo como questão prioritária a demarcação de suas terras pela União e o usufruto exclusivo
das riquezas naturais do solo e dos subsolos. Os geólogos brasileiros entendem que tais direitos
dos índios devem ser assegurados, sendo contudo reservado à sociedade, como um todo a
possibilidade de realizar o aproveitamento de bens minerais fundamentais ao desenvolvimento
nacional, inexistentes na quantidade necessária em outras partes de território pátrio e existentes
em terras indígenas.
Dentro desta visão de reconhecimento do elevado nível de autonomia relativa às
comunidades indígenas, própria da aplicação da democracia à questão das minorias nacionais
é que estão propostos os artigos em questão, que inseridos no futuro texto constitucional,
transformariam os recursos minerais existentes em terras indígenas, em uma verdadeira reserva
nacional, somente utilizada em situações emergenciais, não colocando em risco a preservação
cultural dos silvícolas, na medida em que não haveria intromissão estranha em seus costumes
e tradições em larga escala.
Por outro lado, o interesse da sociedade brasileira ficaria também preservado com a
possibilidade do bem aproveitamento do mineral ocorrer, no caso de comprovada necessidade
para o País.
Estariam, assim, sendo estabelecidas relações democráticas entre a maioria e as minorias
nacionais na base do mútuo entendimento, não sendo prejudicado o processo de obtenção
do bem mineral, desde a fase do mapeamento geológico básico até aquele da produção
propriamente dita.
Além disso, pelo proposto, o eventual interesse dos silvícolas em aproveitar bens minerais
existentes em suas terras, fica preservado, tendo em vista o reconhecimento de que os índios têm
direito ao usufruto dos recursos minerais existentes em suas terras, o eventual aproveitamento
dos mesmos, deve ser feito com o privilégio da União, sem qualquer interesse empresarial.
Os lucros resultantes da operação sendo revertido em benefício de todas as comunidades
indígenas nacionais.
Finalmente, a introdução do Congresso Nacional e das comunidades indígenas como
instâncias decisórias acerca da questão mineral em terras indígenas, também se insere num
conjunto do relacionamento democrático entre a maioria e as minorias nacionais, devendo
também ser estendido para outras áreas do convívio da sociedade brasileira com as mesmas.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.89-90.]

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 61


Na semana seguinte, em sua 11.ª Reunião ordinária, realizada em 5 de maio de 1987 na sala da
Comissão de Assuntos Regionais (Anexo II do Senado), chegara a vez de as lideranças indígenas serem
ouvidas em audiência pública pela Subcomissão das Populações Indígenas146.
Tratava-se de uma sessão concorrida por lideranças vindas de vários pontos do país, desejosas
de falar aos Constituintes e aos “parentes”. Ao todo, 11 tiveram a palavra naquele momento: Pangran
Ubenkran-Grem (Kayapó), Estevão Taukane (Bakairi), Nelson Sarakura (Pataxó), Gilberto Macuxi (Macuxi),
Davi Kopenawa (Yanomami), Krumare Mentuktire (Kayapó), Pedro Kaingang (Kaingang), Valdomiro
Terena (Terena), Hamilton Lopes (Kaiowá), Antônio Apurinã (Apurinã) e Ailton Krenak147.
Nos relatos de todos, a presença constante da problemática da terra pela falta de demarcação,
pelas invasões fazendeiras, garimpeiras e madeireiras, acarretando mais violências, discriminações,
perseguições. Queixas contra o órgão indigenista oficial (Funai) por morosidade ou má-fé em
determinados procedimentos, e queixas também contra abusos praticados pelas Forças Armadas na
região de fronteira. Em muitas das falas, a preocupação contra a possibilidade de a Constituinte vir a
permitir a presença de mineradoras e barragens em terras indígenas. Em quase todos, relatos tristes
de massacres e humilhações a lembrar aos Constituintes a sua responsabilidade e a dívida histórica do
país para com os seus povos.
Ao denunciarem os dramas vividos em suas comunidades e regiões, várias das lideranças
expressaram também os seus desejos em relação aos trabalhos da ANC: nada do que violava os seus
direitos deveria receber guarida pelo novo texto constitucional. Foi o que se viu, por exemplo, na fala
de Antônio Apurinã:
Qual é o nosso destino daqui para frente? O índio, como um todo, precisa da força política,
precisa que os Constituintes reconheçam o massacre dos seus antepassados; hoje, precisamos
estar atentos para que isso não mais aconteça no futuro.
(...) nós pretendemos impor dentro da Constituinte o nosso respeito, do nosso povo índio, na
defesa da nossa terra. (...) Nós deveríamos ser mais respeitados, a Constituinte deveria assegurar
isto. Existe uma lei, mas essa lei não é cumprida, que é o Estatuto do Índio.
O que nos traz aqui é exatamente isso: é que sejamos respeitados, que as leis sejam cumpridas,
(...)148.
No mesmo sentido, a fala de Gilberto Macuxi, no longo discurso que fez relatando a situação
dos povos indígenas situados em Roraima, e já naquela época clamando pela demarcação contínua da
Raposa Serra do Sol:
Tem que ser respeitado o povo indígena. É preciso que a Lei 198 seja assegurada nesta Constituição
que está sendo feita, e seja respeitado o povo indígena de todo o Brasil. Eu, como Liderança
indígena, venho trazer esta proposta para a Assembléia Nacional Constituinte: não esquecer a
imagem do índio, não integrar o índio, não colonizar o índio, porque se colonizar, o índio vai
viver isolado, como já vem acontecendo, porque querem integrar o índio na sociedade branca
para aproveitar a fraqueza do índio porque já está integrado. Por isso, venho falar a respeito
disso, porque queremos respeito ao direito do índio. Estamos organizando um conselho regional,
um conselho territorial e isto tem que ser colocado na Constituição. Tem que ser aprovado o
respeito ao povo indígena. (...) Nós precisamos ter nossa demarcação nesta Constituição. Tem que
sair. Já chega de os índios sofrerem, os índios são um povo que tem consciência, não é um povo
que tem ganância, o branco tem ganância de tomar a terra do índio. O índio tem consciência,
porque ele não tem ganância de roubar nada que é do branco149.

146 A audiência das lideranças indígenas foi acompanhada pelos Constituintes Alceni Guerra (PFL-PL), Benedita da Silva (PT-
RJ), Edivaldo Motta (PMDB-PB), Jacy Scanasatta (PFL-PR), José Carlos Sabóia (PMDB-MA) , Nelson Seixas (PDT-SP),
Salatiel Carvalho (PFL-PE), Vasco Alves (PMDB-ES), José Moura (PFL-PE), Eunice Michiles (PFL-AM), Fábio Feldmann
(PMDB-SP) e Abigail Feitosa (PMDB-BA).
147 Vide depoimentos na íntegra em Anexo II – Com a Palavra, os Povos Indígenas.
148 Cf. BRASIL.ANC (Atas de Comissões). Subcomissão dos Negros,.... Ata da 11.ª Reunião (05.05.87) p.162. Vide texto na
íntegra no Anexo II.
149 Cf. BRASIL.ANC (Atas de Comissões). Idem; p.157-158. Vide texto na íntegra no Anexo II.

62 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Outros exemplos das expectativas práticas com relação à Constituinte foram dados nas falas
de Krumare Mentuktire Kayapó, Davi Kopenawa Yanomami, e Hamilton Kaiowá. “O meu primo, filho
do meu tio”, dizia Krumare, “ainda não marcou terra para ele”,
por isso nós viemos aqui pedir para Deputado olhar para a terra, marcar tudo junto no parque
para índio de Xingú, para marcar tudo no parque lá no Mato Grosso. (...) Agora a terra está
pouca para índio, igual casa de pombo, tá marcada, mas onde índio vai caçar? Onde índio vai
fazer festa? Onde ele vai fazer roça? Tem que marcar uma terra maior para índio, índio também
está aumentando, não é só branco que está aumentando, índio também. Índio vai crescer, vai
aumentar, cadê terra? Não dá, tem que marcar maior, não apertado, tem que marcar mais
longe, vai marcar mais longe de branco150. (Grifos nossos.)
Já a liderança Yanomami dizia:
viemos aqui para pedir aos Deputados a ajudarem a retirar os garimpeiros, antes de chegar o
Projeto Calha Norte. Se chegar esse projeto vai ser difícil para retirada dos garimpeiros. Então,
todos nós, índios do Brasil estamos pedir do apoio para Deputados e Senadores porque queremos
conseguir a demarcação de nossas terras para acabar essa briga, não é?. (...)
Queremos ficar lá só com o povo indígena, sem misturar com os brancos, porque se misturar
morar juntos com os brancos traz muitos problemas, muitos mesmo, muita doença, prejudica
nossa saúde, (...).Os tucháuas estão pedindo para falar da retirada dos garimpeiros aos que
estão aqui nos escutando e também que seja antes de crescer os garimpeiros. Eles estão levando
tratores para derrubar a nossa mata, derrubar e retirar madeira e vai acabando. Vão chegando
os brancos, “colonheiros”, caçadores, pescadores, e vão enchendo, crescendo. (...) Os militares
dizem que vão nós ajudar. Mas estamos sabendo que ninguém vai nos ajudar. Eles vão prejudicar
a nossa saúde, chegam para começar a proibir entrar na área indígena, começam a proibir
pescar, caçar, trabalhar para ficar de braços cruzados e não fazer nada151.
Por sua vez, Hamilton Kaiowá desabafava ao mesmo tempo em que depositava expectativas
na Constituinte:
primeiramente, durante toda essa década da Constituição passada, a população indígena foi
humilhada. (...) como será a próxima Constituição que vai ser elaborada? No Mato Grosso do
Sul, os Kaiowás e os Guaranis já foram humilhados muitas vezes (...)... os nossos bisavós já
morreram na esperança da demarcação que até hoje não foi feita. Nós pedimos às autoridades
aqui presentes, que realmente vão se empenhar na Constituição, que defendam os direitos do
povo indígena, porque se não defenderem os nossos direitos, brevemente seremos lembrados na
História em bibliotecas e nós não queremos que aconteça isso, (...) Onde está a justiça quando
assassinaram o Marçal por questão de terra? (...) Desde a época de 1500 nós não tivemos
liberdade. Nós sempre fomos humilhados, sempre fomos massacrados;(...). O que nós queremos
é justiça que realmente beneficie a todos nós, porque a luta não é só para nós, a luta é para o
futuro da juventude que vai crescer, porque muitos de nossos avós já morreram na esperança
da demarcação. (...). Nesta Constituinte nós queremos que realmente seja bem elaborado um
documento, de acordo com o que já foi enviado para esta Comissão: várias entidades apoiando o
direito ao reconhecimento territorial indígena. O outro é a demarcação, porque sem demarcação
nós não temos segurança nenhuma, (...). Com esta Constituinte, acredito que nós talvez
consigamos um espaço para que haja realmente justiça. Outra coisa: que nesta Constituinte, a
FUNAI realmente assuma o compromisso com o índio de não se omitir mais, quando os índios
são massacrados152.
Pedro Kaingang esboçou o leque de expectativas temáticas em relação aos trabalhos da
Constituinte relativos aos direitos indígenas:

150 Cf. BRASIL.ANC (Atas de Comissões). Idem; p.159. Vide texto na íntegra no Anexo II.
151 Cf. BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Subcomissão dos Negros,.... Ata da 11.ª Reunião (05.05.87), pp.158-159. Vide
texto na íntegra no Anexo II.
152 Cf. BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Idem, pp.161-162. Vide texto na íntegra no Anexo II.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 63


É preciso criar espaços na área de educação, como eu já disse em documento enviado à
Constituinte; demarcar imediatamente as terras indígenas; dar espaços e condições de educação;
melhorar a agricultura; preservar as matas e a cultura do índio; a língua; o artesanato, para
valorizar mais o índio como pessoa: é preciso que se crie espaços para que ele se desenvolva
por si próprio153.
Ainda na mesma audiência pública da Subcomissão das Populações Indígenas uma formulação
concreta de propostas foi levada por escrito e apresentada por Estevão Taukane, do povo Bakairi. Teriam
sido debatidas e elaboradas pela própria comunidade Bakairi, localizada no Mato Grosso:
– Sr. Presidente da Subcomissão de Negros e Populações Indígenas, Constituinte Ivo Lech.
Encaminharei aqui perante os meus amigos e companheiros líderes indígenas, que estão
representados aqui através de várias nações como Cinta-Larga, Kaiapó, Terena, Macuxi, (...).
Encaminharmos aqui a proposta do nosso grupo e gostaria, também, que, após à leitura desta
proposta, caso os Srs. Constituintes e líderes indígenas tivessem algo a acrescentar, pudessem
fazê-lo com toda a liberdade, porque esta proposta não visa ser global, geral a todas as populações
indígenas. E, como porta-voz do meu grupo, o grupo Bakairi, tenho a dizer que respeitamos a
posição de outros grupos. Então, o importante para nós, neste momento histórico da Constituinte,
é nos reunirmos e debatermos bastante os nossos problemas.
Este documento foi formulado em Cuiabá, a Capital de Mato Grosso, mas foi fruto de um
documento que foi debatido exaustivamente na área indígena Bakairi e foi encaminhado ao Exm°
Sr. Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, no Congresso Nacional, em Brasília154.
A seguir, Taukane fez a leitura da seguinte carta de apresentação da proposta Bakairi para a
Constituinte:
“Sr. Presidente, durante todo o período que precedeu a instalação da Assembléia Nacional
Constituinte, o povo Bakairi realizou debates sobre questões que dizem respeito ao índio e à
cidadania no contexto da sociedade multiétnica brasileira. Desses debates participaram homens e
mulheres de diferentes faixas etárias, representando as diversas aldeias Bakairi. Essas discussões
levaram ao estabelecimento de interesses e desejos comuns, traduzidos em propostas consideradas
fundamentais à democratização das relações entre Estado e povos indígenas.
Em anexo, encaminhamos a V. Ex.ª as conclusões desses debates, solicitando sejam incluídas
como ponto de pauta da Assembléia Nacional Constituinte.
Nesta oportunidade, desejamos a todos os integrantes da Assembléia Constituinte felicidades
em seus trabalhos, esperando sejam competentes na representação dos verdadeiros interesses
do povo brasileiro e das diversas etnias que o compõem.
Muito atenciosamente
Cacique Gilson, pelas lideranças das Aldeias Akuera, Aturua, Aiakoalo, Paxola, Painkum, Atuba
e Taiupa”.
Depois, fez a leitura da seguinte “Proposição do povo Bakairi de pontos para discussão na
Assembléia Nacional Constituinte”:
I – Princípios:
1) os direitos indígenas assegurados na Constituição de 1946 são mantidos e ampliados para
melhor definição da cidadania indígena;
2) os grupos indígenas são reconhecidos como sociedades e etnias diversas no conjunto da
sociedade nacional;
3) as línguas indígenas faladas no território nacional são reconhecidas como idiomas;

153 Cf. BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Subcomissão dos Negros,.... Ata da 11.ª Reunião (05.05.87); pp.159-160. Vide
texto na íntegra no Anexo II.
154 Cf. BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Idem; pp.156-157.

64 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


4) as terras da União, a saber, solo e subsolo, ocupadas por grupos indígenas e sua descendência,
são reconhecidas como sua propriedade coletiva;
5) a permissão e negociação de entrada de não-índios em territórios tribais são de direito exclusivo
dos povos indígenas;
6) A manutenção do ensino indígena é dever do Estado e responsabilidade da União;
7) a decisão sobre estradas de acesso de territórios tribais ao sistema rodoviário é reservada aos
grupos indígenas, cabendo à União a abertura e manutenção dessas vias;
8) as Unidades Federadas que possuam grupos tribais em sua área política administrativa deverão
implantar órgão próprio de encaminhamento de assuntos indígenas relativos a sua área em articulação
com o órgão central do Governo Federal.
II – Propostas:
1. Educação:
1.1 estender aos indígenas o direito a vagas especiais nas universidades à semelhança dos
convênios internacionais;
1.2 criar programas de apoio financeiro para a continuação de estudos fora das aldeias a nível
de 1°, 2°, 3° graus;
1.3 oficializar o ensino bilíngüe nas aldeias;
1.4 responsabilizar a União pela manutenção de escolas indígenas;
1.5 alocar percentual de recursos do orçamento da União decorrentes da aplicação da Emenda
Calmon à educação indígena.
2. Terra:
2.1 transferir a propriedade das terras ocupadas por grupos indígenas para os mesmos de forma
coletiva com registro próprio, sem prejuízo das obrigações do Estado com relação à proteção do
patrimônio indígenas.
3. Meio ambiente:
3.1 proibir a mineração em áreas indígenas;
3.2 criar programas federais de preservação dos mananciais e recuperação da sua vegetação
ciliar em áreas indígenas.
4. Saúde:
4.1 criar programas especiais de saúde para atendimento às populações indígenas, incluindo reservas
de leitos em hospitais próximos às terras indígenas para assegurar melhor atendimento.
5. Tutela:
5.1 redefinir a tutela com vistas ao estabelecimento de limites que resguardem aos índios o
exercício da cidadania, sem prejuízo de obrigações do Estado já estabelecidas.
6. Estradas:
6.1 incluir no orçamento do DNER recursos para abertura e manutenção das estradas que dão
acesso às redes e rodoviárias.
7. Administração estadual:
7.1 criar, a nível das Unidades Federadas, órgãos destinados ao tratamento de assuntos indígenas e
de articulação entre Governo Federal e Governos Estaduais sem exclusão, limitação ou transferência
do órgão competente a nível de administração federal.
Essas são as propostas155.

155 Cf. BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Subcomissão dos Negros,.... Ata da 11.ª Reunião (05.05.87), p. 156-157.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 65


Evidentemente a proposta apresentada por Taukane Bakairi à Subcomissão passara ao largo
das formulações articuladas pela UNI com o apoio das entidades indigenistas, o que, contudo, não a
invalidava.
Outra contribuição por escrito foi apresenta por Valdomiro Terena. A proposta resultara de
Encontro de Lideranças Indígenas realizado Campo Grande, Mato Grosso do Sul, nos dias 1.º e 2 de
maio de 1987. Contemplava 11 temas diferentes, porém, dentre todos, dizia Valdomiro, “a demarcação
da terra realmente é o que me parece vem sendo de relevante importância”. Em relação ao conjunto
dos temas discutidos, as lideranças indígenas do MS reivindicavam à Constituinte:
O primeiro tema trata do reconhecimento dos direitos territoriais dos índios. (...) fizemos
esta solicitação para que o reconhecimento dos direitos territoriais seja reconhecido para os
índios.
O segundo tema seria a demarcação.(...) como todos nós sabemos, é de vital importância (...).
No tema três tivemos a discussão, debatemos sobre o uso exclusivo pelos povos indígenas das
riquezas naturais. (...)
No tema quatro, tivemos a oportunidade, também, de discutir a inalienabilidade das terras
indígenas. (...)
No tema cinco, (...) Sabemos que existem as invasões, por isso, (...) solicitamos que esse tema
também fosse estudado para retirarmos imediatamente os posseiros das terras indígenas.
No tema seis, discutimos o reconhecimento e respeito às organizações sociais e culturais dos
povos indígenas.
No tema sete, a defesa da ecologia e meio ambiente.
[No tema oito] o reconhecimento do Estado brasileiro como Nação pluriétnica. (...) porque a
etnia faz parte do reconhecimento do Estado brasileiro sem a divisão do Território Nacional.
Fomos ao tema nove, que e o reconhecimento do Estado brasileiro da Nação multilíngua. (...)
Existem várias nações indígenas com várias línguas diferentes.(...).
No tema dez, (...), a inclusão das línguas indígenas na nova Constituição, porque ela é um
veículo de instrumento e educação das comunidades indígenas. (...)
E no tema onze, chegamos no direito político. Achamos que estender aos indígenas o instituto
do voto universal direto e secreto seria importante, (...) deve ser preservado, também, a maneira
e o costume das comunidades indígenas156.
Na tarde daquele mesmo 5 de maio, a Subcomissão das Populações Indígenas tomaria
também outros dois depoimentos, de especialistas em temas relacionados com a questão indígena: o
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, representando a posição da SBPC, e o pesquisador Manoel
Cesário, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), representando o Centro de Estudos e Saúde em Populações
indígenas.
Num discurso breve, o representante da SBPC enfatizou o estranho relacionamento do
Estado brasileiro com os povos indígenas, que os colocava como objeto de atenção não da Funai, mas
do Conselho de Segurança Nacional. O antropólogo via como irônico o fato de o Brasil recusar-se a
reconhecer os povos indígenas enquanto nações e, ao mesmo tempo, dar aos mesmos o tratamento de
nações inimigas. Na oportunidade, Viveiros de Castro apresentou à Subcomissão a proposta da SBPC
relativa aos direitos indígenas na Constituinte:

156 Cf. BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Idem, p.160-161. Vide texto na íntegra no Anexo II.

66 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Proposta da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
DAS POPULAÇÕES INDÍGENAS
Art. 1º O Governo Federal, reconhecendo as populações indígenas como parte integrante
da comunhão nacional, elaborará legislação específica com vistas à proteção destas populações
e de seus direitos originários, como primeiros habitantes do território nacional. A legislação
compreenderá medidas tendentes à:
I – permitir que as populações indígenas se beneficiem, em condições de igualdade, dos
direitos e possibilidades que a legislação brasileira assegura aos demais elementos da população,
sem prejuízo dos seus usos e costumes específicos;
II – promover o apoio social e econômico às referidas populações, garantindo a devida
proteção às terras, às instituições, às pessoas, aos bens e ao trabalho dos índios;
III – o apoio a que se refere o inciso II ficará a cargo de um órgão da administração
federal.
§ 1º A legislação prevista neste artigo criará possibilidades para um convívio justo e
pacífico das populações indígenas com o conjunto da sociedade nacional, garantindo condições
para a preservação de sua identidade.
§ 2º A legislação especial para as populações indígenas não deverá impedir que eles
gozem dos benefícios de toda a legislação nacional.
Art. 2º As terras ocupadas pelos índios são inalienáveis, a eles cabendo a sua posse
permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais,
do solo e subsolo, dos fluxos vivos da natureza (nascentes, aguadas e cursos d’água), assim
como de todas as utilidades nessas terras existentes.
§ 1º São terras ocupadas pelos índios as extensões territoriais por eles habitadas, as
utilizadas para caça, pesca, coleta, agricultura e outras atividades produtivas, bem como todas
as áreas necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos e costumes próprios,
estando incluídas as áreas necessárias à preservação de seu meio ambiente e de seu patrimônio
cultural.
§ 2º As terras ocupadas pelos índios são bens públicos federais indisponíveis, sendo
inalterável a sua destinação.
§ 3º Ficam declaradas a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de atos de qualquer
natureza que tenham por objeto o domínio, a posse, o uso, a ocupação ou a concessão de terras
ocupadas pelos índios ou das riquezas naturais do solo e do subsolo nelas existentes.
§ 4º A nulidade e a extinção não dão aos titulares de domínio, possuidores, usuários,
ocupantes ou concessionários, o direito de ação ou de indenização contra os índios e o poder
público, pelos atos por eles próprios praticados.
Art. 3º A União, o Congresso Nacional, o Ministério Público, as comunidades indígenas,
suas organizações e o órgão oficial de proteção aos índios são partes legítimas para ingressarem
em juízo em defesa dos interesses dos índios.
§ 1º São comunidades indígenas as que se consideram segmentos distintos da sociedade
nacional em virtude da consciência de sua continuidade histórica com sociedades pré-
colombianas
§ 2º Nas ações propostas que envolvam comunidades indígenas ou suas organizações, o
Juiz dará vistas ao Ministério Público que participará no feito em defesa do interesse indígena.
Estes são os pontos. Tenho apenas dois comentários a fazer.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 67


Justificação
A Nação brasileira tem uma grande dívida com os primitivos habitantes do nosso território.
Alguns milhões de indígenas que o habitavam no início da colonização estão hoje reduzidos a poucas
centenas de milhares. Foram escravizados e dizimados, e suas terras confiscadas sistematicamente
pela lei e pela força. Não obstante, legaram-nos grande parcela de descendentes hoje integrados na
sociedade nacional. Um riquíssimo patrimônio cultural está presente no nosso dia a dia, que também
é um legado indígena. Uma variada gama de estudiosos nacionais e estrangeiros têm contribuído para
o conhecimento da extensão e significado desse patrimônio, transformado pois em grande herança
social da humanidade.
Entretanto o processo predatório e dizimador desencadeado pela colonização continuam a ameaçar
o cotidiano das nações indígenas que se encontram em território nacional. Cabe à nova Constituição
dotá-las de uma legislação básica que garanta sua sobrevivência e identidade. As proposições aqui
sugeridas resultam de um trabalho conjunto de antropólogos e membros das nações indígenas.
Referi-me, em primeiro lugar, ao espírito que deveria orientar esta legislação, um espírito de
assegurar os direitos indígenas, sem prejudicar os direitos que eles têm como cidadãos brasileiros.
Quanto aos outros dois aspectos, um se refere à questão das terras indígenas, que, como é de
conhecimento mais do que público, o direito às terras é a condição indispensável, sine qua non de
preservação dessas populações.
Sublinho a importância de se atentar para a questão da garantia do usufruto exclusivo pelos
povos indígenas das riquezas do subsolo das terras que eles ocupam, que são da União. Este ponto
é fundamental, porque, como sabemos, há todo um conjunto de interesses, extremamente poderosos,
visando em nome de um interesse dito nacional, porque nada mais é, infelizmente, na maioria dos
casos, um nome que os que têm poder dão aos seus interesses privados, de se apropriar dos recursos
naturais existentes nas terras da União ocupada pelos índios, este ponto exige reflexão, exige definição
muito clara.
Por fim, o fato que o Ministério Público deve passar a ter o dever de assistir as populações
indígenas, as organizações indígenas na defesa dos seus interesses. É preciso que a legislação que
protege os direitos das populações indígenas não seja simplesmente tomada como um capítulo menor
do Código Civil e derivado para uma autarquia que tem, como sabemos, uma tristíssima trajetória
dentro da história indígena brasileira, tal como a FUNAI.
E um ponto importante, porque há necessidade, evidente, de uma legislação específica sobre
os povos indígenas, pois o existente sempre foi utilizado contra os povos indígenas, como forma de
limitação de seus direitos. Foi uma perversão da noção de proteção, isto é, a noção de que deve existir
uma legislação específica para uma minoria específica, e isto foi sempre sistematicamente pervertido e
transformado em mecanismo de repressão à representação política e à defesa dos interesses dos índios
pelos índios.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.171-172.]

Por último, o pesquisador Manoel Cesário levou à Subcomissão a questão da atenção em


saúde para as populações indígenas, assunto, como bem frisou, até então não levado à pauta. As
propostas apresentadas pelo representante da FIOCRUZ tinham como base os resultados da “VIII
Conferência Nacional de Saúde”, no subtema específico da Proteção à Saúde Indígena. Era “inspirado
nesse relatório final”, dizia o pesquisador, “e contando com o apoio da Comissão Nacional de Reforma
Sanitária”, que o mesmo encaminhava à Subcomissão a seguinte proposta, subscrita pelo Constituinte
Chico Humberto:

68 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


No art. 1º: É dever do Estado garantir o acesso das nações indígenas às ações e serviços
de saúde, bem como sua participação, na organização, gestão e controle dos mesmos.
Art. 2º O gerenciamento das ações e serviços de saúde para as nações indígenas será
de responsabilidade de uma agência específica, que contará com representação das referidas
nações.
§ 1º Cabe a esta agência integrar o sistema específico de saúde para os índios ao sistema
nacional.
§ 2º A agência mencionada no caput deste artigo será vinculada ao Ministério responsável
pela coordenação do Sistema Único de Saúde.
§ 3º O Estado assegurará o respeito às especificidades próprias de cada nação indígena,
garantindo que:
1º Ao nível local, os serviços se fundamentem na estratégia da atenção primária à saúde,
adaptando-se às especificidades etnoculturais e de localização geográfica.
2º Os serviços locais contem com os serviços de maior complexidade, localizados
preferencialmente a nível regional.
3º O nível regional seja o ponto de articulação entre os serviços específicos do Sistema
de Saúde para os índios e o Sistema Nacional de Saúde.”
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), p.173.]

Após ouvir os índios nas dependências do Congresso Nacional, chegara o momento de se


escutá-los na própria aldeia. No dia 6 de maio, dia seguinte à Audiência Pública no anexo II do Senado,
um grupo de constituintes da Subcomissão das Populações Indígenas viajava até a aldeia Gorotire,
no sul do Pará, a fim de realizar ali mesmo uma audiência extraordinária. Faziam parte da comitiva os
constituintes Ivo Lech (presidente), Benedita da Silva (PT-RJ), José Carlos Sabóia (PMDB-MA), Salatiel
Carvalho (PFL-PE) e Ruy Nedel (PDT-RS).

Segundo a ata daquela reunião extraordinária,


chegando ao local por volta das 9:30 horas a comitiva foi recebida
pelos caciques Kayapó e levada à casa dos Guerreiros. Ali, os
Constituintes ouviram daqueles líderes indígenas as principais
reivindicações da comunidade,
tais como: escritura definitiva das terras da reserva de conformidade
com o acordo firmado com o então Ministro do interior Ronaldo Costa
Couto, providências junto às autoridades competentes para impedir a
poluição dos rios com mercúrio proveniente da mineração do ouro em
garimpos encravados no interior da reserva e uma melhor assistência
médica157.
Entre os problemas detectados pela comitiva estaria:
06/05/1987 – Subcomissão das um desmatamento indiscriminado no interior da reserva por parte do
Populações Indígenas realiza audiência
Grupo Sebba, com conivência da FUNAI, em troca são oferecidas aos
pública na Aldeia Gorotire (PA).
Foto: Eduardo Leão/Arquivo Cimi/Secretariado
índios casas de alvenaria de valor muito aquém do real, visto que são
Nacional/SEDOC. extraídas madeiras nobres, aliada a este fato está uma cada vez mais
acelerada descaracterização dos costumes indígenas158.

157 BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias.
Ata da 12.ª Reunião (06.05.87); p. 175.
158 BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Idem; p. 175.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 69


Como parte da acolhida aos visitantes ilustres, os Kayapó presentearam o presidente da
Subcomissão com um cocar, e homenagearam o restante do grupo com a apresentação de suas danças
tradicionais.
Apesar de ter repercutido na imprensa o fato da realização da Audiência Pública na Aldeia
Gorotire, ou seja, de a Constituinte deixar as dependências do Congresso Nacional para ouvir os índios
em plena floresta, a riqueza das discussões havidas em particular na Subcomissão das Populações
Indígenas continuava não obtendo muita visibilidade por parte da imprensa em geral.
Assim, em 8 de maio de 1987, dizia a assessoria do Conselho Indigenista Missionário na
ANC:
a grande imprensa continua o seu trabalho de distorcer o que se passa na ANC. Ninguém
leia os jornais para saber o que está acontecendo, mas apenas para saber o que cada jornal
decidiu transmitir â população. O período que se encerrou foi extremamente rico, e desta
riqueza a grande imprensa não registrou sequer 10%159.
Semanas depois, em 25 de maio de 1987, na 16.ª Reunião ordinária da Subcomissão das
Populações Indígenas160, o relator Alceni Guerra apresentava o texto do Substitutivo, que resultara
de todo o processo de discussão sobre as temáticas dos direitos dos negros, indígenas, portadores de
deficiências e outras minorias. “Em função do número de emendas aceitas, aprovadas”, dizia Guerra,
“houvemos por bem redigir, um substitutivo que passamos a ler aos Srs. Constituintes, para que seja
submetido ao processo de votação pelo Sr. Presidente”.

25/05/87 – Reunião da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, pessoas Deficientes e Minorias, quando foi
votado e aprovado o texto do Substitutivo proposto pelo Relator Alceni Guerra.
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

Na parte relativas aos direitos indígenas, o Substitutivo teve o seguinte teor:

DIREITOS E GARANTIAS
Art 1º A sociedade brasileira é pluriétnica, ficando reconhecidas as formas
de organização nacional dos povos indígenas.
Art. 2º Todos, homens e mulheres, são iguais perante a lei, que punirá
como crime inafiançável qualquer discriminação atentatória aos direitos humanos
e aos aqui estabelecidos.

159 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 10. Brasília : Cimi, 08.mai.1987 (mimeo).
160 Presentes os Constituintes Doreto Campanari (PMDB-SP), Bosco França (PMDB-SE), Alceni Guerra (PFL-PR, Relator),
Benedita da Silva (PT-RJ), Jacy Scanagatta (PFL-PR), José Carlos Sabóia (PMDB-MA), Nelson Seixas (PDT-SP), Salatiel
Carvalho (PFL-PE), Ruy Nedel, Osmir Lima (PMDB-AC), Sandra Cavalcanti (PFL-RJ), Fábio Feldmann (PMDB-SP),
Vivaldo Barbosa (PDT-RJ), Narciso Mendes (PDS-AC) e Edmilson Valentin (PCdoB-RJ).

70 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


§ 1º Ninguém será prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento,
etnia, raça, cor, sexo, trabalho, religião, orientação sexual, convicções
políticas ou filosóficas, ser portador de deficiência de qualquer ordem e qualquer
particularidade ou condição social.
§ 2º O Poder Público, mediante programas específicos, promoverá a igualdade
social, econômica e educacional.
§ 3º Não constitui discriminação ou privilégio a aplicação, pelo Poder
Público, de medidas compensatórias, visando a implementação do princípio
constitucional de isonomia a pessoas ou grupos vítimas de discriminação
comprovada.
§ 4º Entendem-se como medidas compensatórias aquelas voltadas a dar
preferência a determinados cidadãos ou grupos de cidadãos, para garantir sua
participação igualitária no acesso ao mercado de trabalho, à educação, à saúde
e aos demais direitos sociais.
(...)
POPULAÇÕES INDÍGENAS
Art. 10. Os índios gozarão dos direitos especiais previstos neste capítulo,
sem prejuízo de outros instituídos por lei.
§ 1º Compete à União a proteção às terras, às instituições, às pessoas,
aos bens, à saúde e a garantia à educação dos índios.
§ 2º A educação de que trata o parágrafo anterior será ministrada, no
nível básico, nas línguas materna e portuguesa, assegurada a preservação da
identidade étnica e cultural das populações indígenas.
§ 3º São reconhecidos aos índios a sua organização social, seus usos,
costumes, línguas, tradições e seus direitos originários sobre as terras que
ocupam.
Art. 11. A execução da política indigenista, submetida aos princípios e
direitos estabelecidos neste capítulo, será coordenada por órgão próprio da
administração federal, subordinada a um Conselho de representações indígenas,
a serem regulamentados em lei.
Art. 12. As terras ocupadas pelos índios são inalienáveis, destinadas à
sua posse permanente, ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo
das riquezas naturais do solo e do subsolo, das utilidades nelas existentes e
dos cursos fluviais, assegurado o direito de navegação.
§1º São terras ocupadas pelos índios as por eles habitadas, as utilizadas
para suas atividades produtivas, e as áreas necessárias à sua reprodução física
e cultural segundo seus usos, costumes e tradições, incluídas as necessárias
à preservação do meio ambiente e do seu patrimônio cultural.
§ 2º As terras indígenas são bens da União, inalienáveis, imprescritíveis
e indisponíveis a qualquer título, vedada outra destinação que não seja à posse
e usufruto dos próprios índios.
§ 3º Aos índios é permitida a cata, faiscação e garimpagem em suas
terras.
§ 4º A pesquisa, lavra ou exploração de minérios e riquezas naturais,
somente poderão ser desenvolvidas como privilégio da União, no caso de exigir
o interesse nacional e de inexistirem reservas conhecidas e suficientes para o
consumo interno, e exploráveis, em outras partes do território brasileiro.
§ 5º A exploração de madeira prevista no parágrafo anterior implica na
obrigatoriedade de reflorestamento com árvores da mesma espécie.
§ 6º Exirgir-se-à a autorização das populações indígenas envolvidas e a
aprovação do Congresso Nacional, caso a caso, para o início de pesquisa, lavra
ou exploração de minérios nas terras por elas ocupadas.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 71


§ 7º Nos casos previstos no § 4º, o Congresso Nacional estabelecerá, caso
a caso um percentual do total da produção do material explorado necessário ao
custeio das despesas com a pesquisa, lavra exploração das riquezas minerais
e naturais nas terras indígenas, sendo que, o restante da produção será de
propriedade exclusiva dos índios. A comercialização desta produção far-se-á com
a interveniência do Ministério Público, sendo nula qualquer cláusula que fixe
preços ou condições inferiores àqueles vigentes no mercado interno. Caberá ao
Tribunal de Contas da União fiscalizar o fiel cumprimento do estabelecido neste
parágrafo, enviando ao Congresso Nacional relatório semestral fundamentado,
denunciando imediatamente qualquer irregularidade verificada.
Art. 13. A União dará início à imediata demarcação das terras “reconhecidas”
ocupadas pelos índios, devendo o processo estar concluído no prazo máximo de
4 (quatro) anos.
§ 1º Caberá ao Serviço Geográfico do Exército implantar a medida prevista
no caput, devendo, a cada ano, concluir, pelo menos a demarcação de 25% (vinte
e cinco por cento) das terras “reconhecidas” ocupadas pelos índios.
§ 2º As terras ocupadas pelos índios, e atualmente não “reconhecidas”,
terão, quando de seu reconhecimento, sua demarcação concluída no prazo máximo
de 1 (um) ano.
§ 3º Ficam vedadas a remoção de grupos indígenas de suas terras – salvo
nos casos de epidemia, catástrofes da natureza e outros similares, ficando
garantido seu retorno às terras quando o risco estiver eliminado e proibida,
sob qualquer pretexto, a destinação para qualquer outro fim, das terras
temporariamente desocupadas – e a aplicação de qualquer medida que limite seus
direitos à posse e ao usufruto exclusivo.
Art. 14. São nulos e extintos e não produzirão efeitos jurídicos os atos
de qualquer natureza, ainda que já praticados, que tenham por objeto o domínio,
a posse, o uso, a ocupação ou a concessão de terras ocupadas pelos índios.
§ 1º A nulidade e a extinção de que trata este artigo não dão direito de
ação ou indenização contra a União ou os índios, salvo quanto aos pretendentes
ou adquirentes de boa fé, em relação aos atos que tenha versado sobre terras
ainda não demarcadas, caso em que o órgão do poder público que tenha autorizado
a pretensão ou emitido título responderá civelmente.
§ 2º O exercício do direito de ação, na hipótese do parágrafo anterior,
não autoriza a manutenção do autor ou de seu litisconsorte na posse de terra
indígena.
§ 3º O disposto no parágrafo primeiro deste artigo não impede o direito
de regresso do órgão do poder público nem elide a responsabilização penal do
agente.
§ 4º Os atos que possibilitem, autorizem ou constituam invasões de terras
indígenas ou restrição ilegal a algum dos direitos aqui previstos, caracterizam
delito contra o patrimônio público da União.
Art. 15. Os índios, suas comunidades e organizações, o Ministério Público
e o Congresso Nacional, são partes legítimas para ingressar em Juízo em defesa
dos interesses e direitos dos índios.
Parágrafo único. A competência para dirimir disputas sobre os direitos
indígenas será sempre da Justiça Federal.
Art. 16. Ao Ministério Público compete a defesa e proteção dos direitos
dos índios, judicial e extrajudicialmente, devendo agir de ofício ou mediante
provocação.
§ 1º A proteção compreende a pessoa, o patrimônio material e imaterial, o
interesse dos índios, a preservação e restauração de seus direitos, a reparação
de danos e a promoção de responsabilidade dos ofensores.

72 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


§ 2º Em toda relação contratual de que puder resultar prejuízo aos
direitos dos índios, será obrigatório a interveniência do Ministério Público,
sob pena de nulidade.
Art. 17. Compete exclusivamente ao Congresso Nacional legislar sobre as
garantias dos direitos dos índios.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.179-180.]

Submetido a votação, o Substitutivo recebeu apenas algumas pequenas alterações, mantendo


quase intacta a proposta então formulada.
Em seus momentos finais, os trabalhos da Subcomissão receberam a seguinte avaliação da
Constituinte Sandra Cavalcanti (PFL- RJ):
Com relação às populações indígenas, é a primeira
vez também que deixam de ser tratados como
débeis mentais, necessitados de tutela, incapazes,
quando nós temos na população indígena, um
contingente de brasileiros a serem incorporados
a uma cidadania que jamais foi buscá-los como
forma de homens livres. É a primeira vez também.
Por isso é muito bonito este trabalho, estão todos
de parabéns, (...)161. (Grifos nossos.)

Para o Cimi, a avaliação do


resultado final do trabalho da Subcomissão
das Populações Indígenas não poderia ser
mais animador. Já em 18 de maio, o assessor
Julio Gaiger afirmava que “especificamente
em relação à Subcomissão de Populações
Indígenas, o relator” havia adotado “um
espírito de defesa dos direitos dos índios”,
e que, “no geral, seu relatório atendeu às
expectativas”. Apontava também como
surpreendente o fato de “a larga maioria das
25/05/87 – Deputada Constituinte Benedita da Silva (PT-RJ) propostas relativas aos índios ter conteúdo
discursa durante a votação do Substitutivo do Relator Alceni
positivo”. E completava: “Podem pecar por
Guerra, na Subcomissão do Negro, Populações Indígenas,
Pessoas Deficientes e Minorias. outras deficiências, mas o desejo de assegurar
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC. os direitos das populações indígenas é
praticamente unânime”162.

Mais tarde, aprovado o texto do substitutivo, observara mais uma vez a assessoria do Cimi
na Constituinte:
No que diz respeito às Subcomissões da Comissão da Ordem Social, há consenso de que
produziram os textos mais avançados da história parlamentar brasileira. Os anteprojetos
atenderam às reivindicações básicas dos diversos segmentos envolvidos, inclusive os índios.
O texto final do dep. Alceni Guerra é praticamente o anteprojeto original, com as emendas
propostas pelo movimento indígena/indigenista, através do dep. José Carlos Sabóia163.
(Grifos nossos)

161 BRASIL. ANC (Atas de Comissões). Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias.
Anexo à Ata da 16.ª Reunião (25.05.87); p. 194. Disponível em: <http://www.congresso.gov.br/anc88/ > (Acessado em:
09.10.2008).
162 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” s/n. Brasília : Cimi, 18.mai.1987 (mimeo).
163 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º13. Brasília : Cimi, 28.mai.1987 (mimeo).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 73


• Os trabalhos na Comissão da Ordem Social
Na tarde de 25 de maio de 1987, uma solenidade no Auditório Petrônio Portela do Senado
Federal marcava o início dos trabalhos da Comissão da Ordem Social, que teria como presidente o
constituinte Edme Tavares (PFL-PB), e como relator o constituinte Almir Gabriel (PMDB-PA)164.
A sessão solene contava com a presença do presidente da ANC deputado Ulysses Guimarães
e, entre os convidados, as pessoas de D. Luciano Mendes de Almeida, presidente da CNBB, e Aílton
Krenak, da UNI. Na ocasião, os presidentes das respectivas Subcomissões temáticas efetuaram a entrega
solene dos textos aprovados pela Subcomissão das Populações Indígenas, e uma apreciação geral dos
resultados dos trabalhos desenvolvidos.
Na Comissão de Ordem Social verificou-se uma
boa receptividade para as propostas benéficas aos povos
indígenas, conforme os anteprojetos das subcomissões
temáticas. Um dos principais pontos era, já no substitutivo
do Relator da Comissão, deputado Almir Gabriel, o
reconhecimento da sociedade brasileira como “pluriétnica”,
e das formas de organização próprias das “nações indígenas”
(art. 1.º, inc. V). Porém, como era de se esperar, propostas
desse tipo não deixariam de ser alvo de emendas supressivas
ou modificativas. Foi o que ocorreu, por exemplo, com
o dispositivo citado. Recebeu emendas supressivas dos
constituintes Stélio Dias (PFL-ES) e Bosco França (PMDB-SE),
que utilizaram-se da seguinte “justificativa”:
Há o reconhecimento histórico da formação
básica da nacionalidade brasileira ter
sua origem na plurietnia das três raças 14/06/87 – Deputados Constituintes Ivo
predominantes (branca, índia e negra). Desde Lech (PMDB-RS) e José Carlos Sabóia (PMDB-
MA), da Subcomissão de “Populações
o início da formação da sociedade brasileira Indígenas”, e Júlio Gaiger, assessor do Cimi
processou-se a miscigenação natural entre as para a Constituinte, acompanham a votação
três raças, que, de certa forma, está criando o do Anteprojeto da Comissão da Ordem
tipo brasileiro, ainda em desenvolvimento. Social.
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional
A inclusão no conceito de sociedade brasileira – SEDOC.
pluriétnica, na futura constituição, representa
uma tentativa artificial de estancar este desenvolvimento, que vem se processando
harmoniosamente ao longo dos tempos, sem conflitos entre as raças. Um outro ponto a ser
observado, quanto à inclusão do conceito supracitado na futura constituição, é que ele não
contribui para a desejável integração nacional, com a solidariedade entre seus membros,
sem preconceitos ou disparidades de qualquer natureza165. (Grifos nossos)

164 Eram membros titulares da Comissão da Ordem Social os constituintes Alarico Abib (PMDB-PR), Borges da Silveira
(PMDB-PR), Bosco França (PMDB-SE), Carlos Cotta (PMDB-MG), Carlos Mosconi (PMDB-MG), Célio de Castro
(PMDB-MG), Domingos Leoneli (PMDB-BA), Doreto Campanari (PMDB-SP), Ruy Nedel (PMDB-RS), Eduardo Moreira
(PMDB-SC), Fábio Feldmann (PMDB-SP), Francisco Küster (PMDB-SC), Paulo Macarini (PMDB-SC), Geraldo Alckmin
(PMDB-SP), Geraldo Campos (PMDB-DF), Helio Costa (PMDB-MG), Ivo Lech (PMDB-RS), João Cunha (PMDB-SP),
Joaquim Sucena (PMDB-MT), Jorge Uequed (PMDB-RS), José Carlos Sabóia(PMDB-MA), Julio Costamilan(PMDB-RS),
Mansueto de Lavor(PMDB-PE), Mário Lima (PMDB-BA), Mattos Leão (PMDB-PR), Mauro Sampaio (PMDB-CE), Max
Rosenmann (PMDB-PR), Raimundo Rezende (PMDB-MG), Renan Calheiros (PMDB-AL), Ronaldo Aragão (PMDB-RO),
Ronan Tito (PMDB-MG), Teotônio Vilela Filho (PMDB-AL), Vasco Alves (PMDB-ES), Alceni Guerra (PFL-PR), Dionísio
Dal-Prá (PFL-PR), Gandi Jamil (PFL-MS), Francisco Coelho (PFL-PE), Jacy Scanagatta (PFL-PR), João da Matta (PFL-
PB), Júlio Campos (PFL-MT), Levy Dias (PFL-MS), Lourival Batista(PFL-SE), Maria de Lourdes Abadia (PFL-DF), Orlando
Bezerra (PFL-CE), Osmar Leitão (PFL-RJ), Salatiel Carvalho (PFL-PE), Stélio Dias (PFL-ES), Adylson Motta (PDS-RS),
Cunha Bueno (PDS-SP), Osvaldo Bender (PDS-RS), Wilma Maia (PDS-RN), Floriceno Paixão (PDT- RS), Juarez Antunes
(PDT- RJ), Nelson Seixas (PDT- SP), José Elias Murad (PTB -MG), Mendes Botelho (PTB -SP), Benedita da Silva (PT-RJ),
Eduardo Jorge (PT-SP), Paulo Paim (PT-RS), Oswaldo Almeida (PL-RJ), Roberto Ballestra (PDC-GO), Edmilson Valetim
(PC do B - RJ) e Augusto Carvalho (PCB-DF).
165 BRASIL.ANC. VII – Comissão da Ordem Social. Emendas oferecidas ao Substitutivo. Centro Gráfico do Senado Federal;
junho de 1987. Disponível em: <http://www.congresso.gov.br/anc88/ > (Acessado em 25.10.2008).

74 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Mas o texto do substitutivo relativo à questão indígena acabou resistindo às emendas
supressivas e modificativas. Em 14 de junho o Anteprojeto da Comissão de Ordem Social era submetido
a votação, mantendo, no tocante à questão indígena, a integralidade do que se havia proposto no
substitutivo.

14/06/87 – Constituintes comemoram a aprovação do anteprojeto da Comissão da Ordem Social.


Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

O texto enfim aprovado pela Comissão trazia o reconhecimento da natureza “pluriétnica” da


sociedade brasileira e das formas de organização próprias das “nações” indígenas:

Anteprojeto da Comissão de Ordem Social


Título I – Da Ordem Social
Art. 1.º. (...)
V – A sociedade brasileira é plutiétnica. São reconhecidas as formas de
organização próprias das nações indígenas.
(...)
Capítulo III
Dos Negros, das Minorias e das populações Indígenas
Art. 100 – São reconhecidos aos índios seus direitos originários sobre
as terras que ocupam, sua organização social, seus usos, costumes, línguas,
crenças e tradições.
§ 1.º - Compete à União a proteção das terras, instituições, pessoas,
bens e saúde dos índios, bem como promover-lhes a educação.
§ 2.º - A educação de que trata o parágrafo anterior será ministrada, no
nível básico, na língua materna e na portuguesa, assegurada a preservação da
identidade étnica e cultural das populações indígenas.
§ 3.º - A política indigenista ficará a cargo de órgão próprio da
administração federal que executará as diretrizes e normas definidas por um
Conselho Deliberativo composto de forma paritária por representantes das
populações indígenas, da União e da sociedade.
Art. 101. As terras ocupadas pelos índios são destinadas à sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas naturais do solo e
do subsolo, das utilidades nelas existentes e dos cursos fluviais, ressalvado
o direito de navegação.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 75


§ 1.º - São terras ocupadas pelos índios as por eles habitadas, as
utilizadas para suas atividades produtivas, e as áreas necessárias à sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, incluídas
as necessárias à preservação do meio ambiente e do seu patrimônio cultural.
§ 2.º - As terras ocupadas pelos índios são bens da União, inalienáveis,
imprescritíveis e indisponíveis a qualquer título, vedada outra destinação que
não seja a posse e usufruto dos próprios índios, cabendo à União demarcá-las.
§ 3.º - Fica vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras,
salvo nos casos de epidemia, catástrofe da natureza e outros similares,
ficando garantido seu retorno às terras quando o risco estiver eliminado. Fica
proibida, sob qualquer pretexto, a destinação para qualquer outro fim das terras
temporariamente desocupadas.
Art. 102 – São nulos e extintos e não produzirão efeitos jurídicos os
atos de qualquer natureza, ainda que já praticados, que tenham por objeto o
domínio, a posse, o uso, a ocupação ou a concessão de terras ocupadas pelos
índios ou das riquezas naturais do solo e do subsolo nelas existentes.
§1.º - A nulidade e a extinção de que trata este artigo não dão direito de
ação ou indenização contra a União ou os índios, salvo quanto aos pretendentes
ou adquirentes de boa fé, em relação aos atos que tenham versado sobre terras
ainda não demarcadas, caso em que o órgão do Poder Público que tenha autorizado
a pretensão, ou emitido o título, responderá civilmente.
§ 2.º - O exercício do direito de ação, na hipótese do parágrafo anterior,
não autoriza a manutenção do autor ou do seu litisconsorte na posse da terra
indígena, não impede o direito de regresso do órgão do Poder Público, nem
elide a responsabilização penal do agente.
Art. 103 – A pesquisa, lavra ou exploração de minérios em terras indígenas
somente poderão ser desenvolvidas como privilégio da União, no caso de o exigir
o interesse nacional e de inexistirem reservas conhecidas e suficientes para o
consumo interno, e exploráveis, em outras partes do território brasileiro.
§ 1.º - A pesquisa, lavra ou exploração de minérios de que trata este
artigo dependem da autorização das populações indígenas envolvidas e da
aprovação do Congresso Nacional, caso a caso.
§ 2.º A exploração de riquezas minerais em terras indígenas obriga
à destinação de percentual não inferior à metade do valor dos resultados
operacionais á execução da política indigenista nacional e a programas de
proteção do meio ambiente, cabendo ao Congresso Nacional a fiscalização do
cumprimento da obrigação aqui estabelecida.
§ 3.º - Aos índios são permitidas a cata, a faiscação e a garimpagem em
suas terras.
Art. 104 – O Ministério Público Federal, de ofício ou por determinação
do Congresso Nacional, os índios, suas comunidades e organizações são partes
legítimas para ingressar em juízo em defesa dos interesses e direitos indígenas,
cabendo também ao Ministério Público Federal, de ofício ou mediante provocação,
defendê-los extrajudicialmente.
Parágrafo único – a competência para dirimir disputas sobre os direitos
indígenas será sempre da Justiça Federal.
Art. 105. Compete exclusivamente ao Congresso Nacional legislar sobre as
garantias dos direitos dos índios.
[Fonte: GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 15. Brasília: Cimi, 18.jun.1987 (mimeo). Grifos nossos.]

O texto da Comissão da Ordem Social levou a assessoria do Cimi na Constituinte a concluir que
a entidade estava realmente correta quando, mesmo sendo voto vencido em relação às demais entidades
do campo indigenista, apostara no conceito de nações indígenas. Hoje, dizia, “podemos estar certos
de que furtamos à ANC uma discussão mais ampla e enriquecedora”166. A idéia, contudo, seria investir

166 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º15. Brasília : Cimi, 18.jun.1987 (mimeo).

76 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


no resgate da discussão através da Proposta Popular de Emenda ao Projeto de Constituição sobre as
Nações Indígenas, que seria patrocinada pelo Cimi, Anaí-RS, MJDH, Opan e CNBB.
No final de junho, reunido em sua VII Assembléia Geral, o Cimi decidira manifestar-se pelo
apoio ao texto da Comissão, o que foi feito através de um documento enviado ao presidente da ANC,
deputado Ulisses Guimarães, ao Relator da Comissão de Sistematização, deputado Bernardo Cabral, e ao
Senador Mário Covas, líder do PMDB e da Maioria. No mesmo documento os participantes da Assembléia
também requeriam o apoio parlamentar à Proposta de Emenda Popular ao Projeto de Constituição,
patrocinada pelo Cimi, Opan e Anaí-RS.

Documento da VII Assembléia Geral do Cimi, subscrito por membros da assembléia, assessores e convidados,
dirigido ao Presidente da ANC, deputado Ulisses Guimarães. Versões com o mesmo teor foram enviadas também ao
Senador Mário Covas, líder do PMDB na ANC, e ao deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM), relator da Comissão de
Sistematização. Cimi – Secretariado Nacional – Sedoc.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 77


Documento da VII Assembléia Geral do Cimi, dirigido ao presidente da ANC deputado Ulisses Guimarães.
Cimi – Secretariado Nacional – Setor de Documentação.

78 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Documento da VII Assembléia Geral do Cimi, dirigido ao presidente da ANC deputado Ulisses Guimarães.
Cimi – Secretariado Nacional – Setor de Documentação.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 79


Comissão da Soberania e dos Direitos e
Garantias do Homem e da Mulher.

• Subcomissão da Nacionalidade,
Soberania e Relações Internacionais.
Pertencente à Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, a
Subcomissão da Nacionalidade, Soberania e Relações Internacionais era instalada em 7 de abril de 1987
na Sala D-1 do Anexo II da Câmara dos Deputados. Teve como presidente o deputado Roberto D’ Ávila
(PDT-RJ) e como relator o deputado João Hermann Netto (PMDB-SP)167.

Defendendo a idéia de que o momento constituinte poderia ensejar o reconhecimento do


caráter plurinacional do Estado brasileiro, o Cimi e a CNBB formularam proposta que seria apresentada
inicialmente perante a Subcomissão.
Exatamente um mês após a sua instalação, em reunião datada de 07 de maio de 1987168,
a Subcomissão ouvia em Audiência Pública o advogado e assessor jurídico do Cimi, Paulo Machado
Guimarães. Representando a entidade, o advogado defendia o reconhecimento da realidade plurinacional
e multiétnica do país.

07/05/1987 – Paulo M. Guimarães, advogado e assessor jurídico do Cimi, apresenta à Subcomissão da


Nacionalidade a proposta que dispõe sobre as “Nações Indígenas”.
Fotos extraídas do Filme “Os Direitos Indígenas na Constituinte” (Cimi, 1989).

A proposta, subscrita pelos constituintes Maria de Lourdes Abadia (PFL-DF), Benedita da Silva
(PT-RJ), Augusto Carvalho (PCB- DF) e Edmilson Valentin (PCdoB-RJ), tinha o seguinte teor:

167 Aluízio Bezerra (PMDB-AC), Aécio Neves (PMDB-MG), Geraldo Bulhões (PMDB AL), José Carlos Grecco (PMDB-SP),
Luiz Viana Neto (PMDB-BA), Manuel Viana (PMDB-CE), Maurício Nasser (PMDB-PR), Milton Barbosa (PMDB-BA), Milton
Lima (PMDB-MG), Paulo Macarini (PMDB-SC), Francisco Rollemberg (PMDB-SE), Antônio Ferreira (PFL-AL), Cleonâncio
Fonseca (PFL - SE), Odacir Soares (PFL -RO), Sarney Filho (PFL - MA) e Victor Trovão (PFL-MA).
168 Presentes os Constituintes Rubem Branquinho (PMDB-AC), José Carlos Sabóia (PMDB-MA), Haroldo Lima (PC do B –
BA) e Lídice da Mata (PC do B – BA).

80 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Proposta do Cimi à Assembléia Nacional Constituinte, apresentada à Subcomissão da
Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais, em 07 de maio de 1987.
Sugestão n.º
Dispõe sobre as Nações Indígenas
DA ORGANIZAÇÃO NACIONAL
Art. O Brasil é uma República Federativa e pluriétnica, constituída, sob o regime
representativo, pela unidade indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e
das Nações Indígenas.
Art. São bens das Nações Indígenas as terras por elas ocupadas, as riquezas naturais do
solo, do subsolo, dos cursos fluviais, dos lagos localizados nos seus limites dominiais, os rios
que nelas têm nascente e foz, as ilhas fluviais e lacustres.
§ 1.º São terras ocupadas pelas Nações Indígenas as por elas habitadas, as utilizadas para
caça, pesca, extração, coleta, agricultura e outras atividades produtivas, bem como as áreas
necessárias à reprodução física e cultural de suas comunidades, segundo seus usos, costumes
e tradições, estando incluídas as áreas necessárias à preservação do meio ambiente e de seu
patrimônio cultural.
§ 2.º É exclusivo das Nações Indígenas o usufruto dos seus bens.
§ 3.º Os bens das Nações Indígenas são indisponíveis e é inalterável sua destinação.
§ 4.º São nulos e não produzirão efeitos jurídicos os atos de qualquer natureza que tenham
por objeto o domínio, a posse, o uso, a ocupação ou a concessão de terras ocupadas pelas nações
indígenas ou das riquezas naturais do solo, do subsolo e dos cursos fluviais nelas existentes.
§ 5.º A nulidade e a extinção de que trata o parágrafo anterior não dão direito de ação
ou indenização contra o Poder Público ou as Nações Indígenas.
§ 6.º Nas terras ocupadas pelas Nações Indígenas é vedada qualquer atividade extrativa
de riquezas não renováveis, exceto cata, faiscação e garimpagem quando exercidas pelas
próprias Nações Indígenas.
DA UNIÃO
Art. Compete à União:
- Junto com as Nações Indígenas, demarcar as terras por eles ocupadas;
- através de órgão indigenista próprio, proporcionar assistência social, econômica,
educacional e médico-sanitária às Nações Indígenas, respeitando seus usos, costumes e
tradições;
- legislar sobre matérias referentes às Nações Indígenas;
- garantir a devida proteção às terras, às instituições, às pessoas, aos bens, à saúde e à
educação das Nações Indígenas.
DAS NAÇÕES INDÍGENAS
Art. As Nações Indígenas são personalidades jurídicas de direito público interno,
constituídas por comunidades, sociedades ou grupos étnicos, que se consideram segmentos
distintos em virtude da consciência de sua continuidade histórica com sociedades pré-
colombianas.
Art. São reconhecidos às Nações Indígenas seus direitos originários sobre as terras que
ocupam, sua organização social, seus usos, costumes, línguas, tradições e autonomia na gestão
dos bens e negócios que lhes dizem respeito.
Art. Os reconhecimentos a que se refere o artigo anterior serão considerados e respeitados
nas relações com os órgãos estatais, com as demais unidades Federadas e com pessoas físicas
e jurídicas.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 81


Art. É garantido às Nações Indígenas o uso oficial de suas respectivas línguas:
- nos Municípios limítrofes às suas terras;
- em todas as instâncias do Poder Judiciário;
- no órgão indigenista oficial;
- no Congresso.
Art. As Nações Indígenas, suas organizações, o Congresso e o Ministério Público Federal
são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa dos interesses das Nações Indígenas.
§ 1.º Compete à Justiça Federal processar as ações que envolvam direitos e interesses
das Nações Indígenas.
§ 2.º O Ministério Público Federal tem a responsabilidade da defesa e proteção desses
direitos, judicial e extra-judicialmente, devendo agir de oficiou ou mediante provocação.
§ 3.º A proteção compreende a pessoa, o patrimônio material e imaterial, o interesse dos
índios bem como a preservação e restauração de seus direitos, reparação de danos e promoção
de responsabilidade dos ofensores.
DO SISTEMA TRIBUTÁRIO
Art. Os bens e rendas das Nações Indígenas gozam de plena isenção tributária e
parafiscal.
DOS DIREITOS POLÍTICOS
Art. Lei complementar regulamentará a forma e o exercício da representação das Nações
Indígenas nos Poderes do Estado.
OUTRO DIREITO E GARANTIA
Art. Os membros das Nações Indígenas são isentos do serviço militar.
Justificativa
1. A realidade brasileira impõe a constatação de que, sob a genérica denominação de índios
ou comunidades indígenas emerge um fenômeno pluriétnico que necessita ser traduzido jurídico-
institucionalmente na Lei estruturadora do Estado brasileiro, sob pena de se persistir numa histórica
injustiça contra esse setor sócio-populacional, que se distingue étnica e culturalmente da sociedade que
forjou uma identidade própria, numericamente superior às várias sociedades indígenas e que se denomina
como nacional.
2. O Brasil, portanto, é um país pluriétnico. Essa circunstância precisa ser reconhecida
expressamente na Constituição, pois desse reconhecimento defluem outras conseqüências.
3. A principal delas refere-se ao conjunto de elementos que, por sua vez, forjam uma identidade
própria distinta entre cada sociedade ou grupo indígena.
4. É comprovado histórica e antropologicamente, que cada uma dessas comunidades possui cultura,
história e língua próprios constituídos e desenvolvidos sobre um espaço territorial identificado e específico,
onde sobrevivem, se reproduzem e produzem uma identidade étnica singular.
5. São enfim, distintas da nação brasileira que as envolve numericamente, mas que têm uma
expressão sociológica bem definida.
6. O Estado brasileiro é uma organização política articulada por uma nação brasileira e várias
nações numericamente inferiores, mas que não deixam de ter sua identidade própria.
7. No atual momento histórico, em que se busca reconstruir o Estado brasileiro, necessário se faz
romper uma histórica agressão às várias expressões nacionais existentes no território do Brasil.
8. Além disso, para que as garantias inerentes a integridade dessas nacionalidades sejam melhor
asseguradas, há que conferir-lhes a natureza jurídica de direito público interno, com autonomia idêntica
às demais figuras político-administrativas federadas.
9. Atualmente, como a rigor sempre ocorreu, cada Nação Indígena tem governo e administração
própria, segundo seus respectivos usos, costumes e tradições.

82 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


10. Acredita-se que uma das formas para que se respeite efetivamente os direitos indígenas seja
atribuir às Nações Indígenas condição idêntica à dos Estados, Municípios, Territórios e Distrito Federal.
As agressões institucionais, resultados da mais completa e criminosa desconsideração dos básicos requisitos
à vida de um povo, justificam a constante busca de mecanismo que, se não impedem, ao menos dificultam
que aconteçam.
11. Dessa forma, as terras por elas ocupadas, as riquezas naturais existentes no solo e no subsolo
das mesmas, os cursos fluviais, os lagos, rios e ilhas fluviais e lacustres existentes integralmente no
interior de suas terras passam a ser consideradas seus bens e não mais da União Federal, como é tratado
no atual texto.
12. Os parágrafos do artigo referido no item acima são a manutenção de garantias já asseguradas e
que ganham cada vez mais apoio em debates internacionais, como reflexo das necessidades cotidianamente
verificadas no trabalho de defesa dos interesses e direitos indígenas.
13. Dentre tais garantias há que se destacar a consideração de que todos os bens das Nações
Indígenas são indisponíveis e sua destinação é inalterável.
14. Por outro lado, apesar do status jurídico institucional ora proposto às Nações Indígenas,
a União Federal continua a ter obrigações em relação a essas nacionalidades minoritárias, tais como a
demarcação de seus territórios, que deverá ser feita juntamente com os direitos imediatos interessados,
a existência de um órgão indigenista para traduzir e adequar as políticas e as medidas administrativas
de assistência às Nações Indígenas, devido à diferença étnica e cultural de cada uma delas.
15. Posteriormente, no capítulo específico às Nações Indígenas não só formula-se a definição dessa
nova figura, como expressam-se aspectos que passam a ser reconhecidos como fonte de direito.
16. Na perspectiva de que através da comunicação e levando em consideração que as sociedades
indígenas possuem uma cultura eminentemente oral, não se concebe que uma de suas formas de afirmação
étnica seja constantemente agredida com a exigência de que expressem-se numa língua distinta da sua.
Não se trata de pugnar pela diluição da língua que unifique o Estado, mas no sentido de que a unidade
se dê de maneira mais sólida garantindo a diversidade.
17. Quanto à solução de conflitos que, naturalmente, serão regulamentados em legislação ordinária,
a jurisdição competente para apreciar tais questões deverá ser, coerentemente com o espírito de toda a
proposta, a Justiça Federal.
18. Na mesma linha de raciocínio e considerando que muitas Nações Indígenas não terão condições
suficientes para defenderem seus direitos em juízo do Estado brasileiro, atribui-se prioritariamente ao
Ministério Público Federal essa tarefa, bem como às organizações indígenas e ao Poder Legislativo.
19. No tocante ao exercício da cidadania dos membros das Nações Indígenas, que necessariamente
é diferente da dos membros da sociedade brasileira, devido a sua complexidade, e à importância de
que os membros das Nações Indígenas possam se manifestar especificamente a respeito do assunto,
remete-se a explicação de tal matéria a Lei Complementar. Ressalte-se, porém, que o mérito de tal
dispositivo é o de que no próprio texto constitucional deixar-se claro que a forma e o exercício dos
direitos políticos das Nações Indígenas é distinto dos da nação brasileira, na medida em que estarão
excepcionados cada regra geral.
20. Ao propor-se a isenção tributária e parafiscal aos bens, rendas e serviços das Nações Indígenas
pretende-se repor-lhes, ou melhor, retribuir a elas pelos inúmeros saques historicamente formulados.
Não se pretende inserir discriminação alguma entre esses cidadãos e os demais da nação brasileira, mas
retirar-lhes a obrigação de contribuir com o desenvolvimento do Estado, pois (sic) as perdas a que as
Nações Indígenas já foram submetidas.
21. Por fim, considera-se que a obrigatoriedade de serviço militar para os membros das Nações
Indígenas também é uma exigência que implica em submeter os índios a uma prática alheia à cultura e
organização social de cada nação a que se visa, com tal isenção, evitar.
Sala das sessões da Assembléia Nacional Constituinte em 06 de maio de 1987.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 83


Em meio aos parlamentares presentes, contudo, a proposta encontrou rejeições. O deputado
Francisco Rollemberg (PMDB-SE), por exemplo, proclamou que os índios teriam que “participar da vida
nacional”, e que todos, índios e não-índios, teríamos que “construir uma grande nação, dando-nos as
mãos, falando a mesma língua, invocando o mesmo Deus e a mesma religião”169. (Grifos nossos)
Após a fala do advogado Paulo Guimarães, a Subcomissão da Nacionalidade concedeu a palavra
ao Cacique Raoni Mantuktire, que perante os constituintes proferiu um antológico discurso170:

Eu vou falar uma coisa pra vocês ouvir. Minha


preocupação é muito séria. (...) Hoje temos muito
problema no meu povo. O povo dos senhores matava
o meu povo, coitado ! (...) Vocês tá pensando que avô
seu nasceu primeiro aqui ? (...) Nós nasceu primeiro,
aqui. Brasil inteiro. (...) Eu não quero que acaba a vida
do nosso índio, eu não quero que acaba a cultura do
índio. Eu quero que índio continua a vida do avô, o pai, a
mãe: pintar, passar urucum, dançar... Isso que eu quero.
(...) Eu tenho usado o meu botoque, minha vida, meu
documento. Minha orelha é documento também. (...)
vocês tem que brigar pro seu povo e tem que respeitar o
meu povo, coitado ! (...) Muito obrigado pra vocês171.

Em 22 de maio a Subcomissão aprovava por unanimidade o anteprojeto do relator Herman


Neto, no qual previa a manutenção do paradigma assimilacionista presente nos textos constitucionais
anteriores:
Artigo 24 Compete à União:
(...)
V- legislar sobre:
(...)
b) nacionalidade, cidadania, naturalização, incorporação dos silvícolas à comunhão nacional.
(Grifo nosso.)
Através da Emenda 100618-5, a Deputada Anna Maria Rattes propôs a modificação do texto
do dispositivo, removendo a proposta assimilacionista. Em sua justificativa, dizia Rattes:
a expressão “incorporação dos silvícolas à comunhão nacional”, copiada da Constituição
anterior, tem sentido dúbio se não capcioso. Em primeiro lugar, por tratar o indígena de
silvícola, como se o índio só tivesse essa condição na mata. Em segundo lugar, por deixar
transparecer uma incorporação forçada, sem respeito à condição nacional peculiar do índio.
É de reescrever o dispositivo para evitar esta herança de uma forma autoritária de ver o
indígena172.

169 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º 109, jun.1987; p.10.


170 Vide o discurso na íntegra no Anexo II.
171 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º109, jun. 1987; p.14.
172 BRASIL. ANC – Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher. Emendas Oferecidas à
Comissão. Brasília : Centro Gráfico do Senado Federal, junho de 1987; pp.149-150. Disponível em: <http://www.congresso.
gov.br/anc88/> (Acessado em: 25.10.2008).

84 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Comissão da Família, Educação, Cultura, Esporte,
Comunicação, Ciência e Tecnologia.

• Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes.


Pertencente à Comissão da Família, Educação, Cultura, Esporte, Comunicação, Ciência e
Tecnologia, a “Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes” tinha como presidente o deputado Hermes
Zaneti (PMDB-RS), e relator o deputado João Calmon (PMDB-ES)173.
Na Subcomissão, a questão da educação escolar indígena foi objeto de proposta específica
formulada conjuntamente pela UNI, CTI, CPI, Cimi, ABA, Opan e Abralin, e subscrita pelo Constituinte
Vasco Alves (PMDB-ES).
O conteúdo desta proposta, que iniciava por declarar o Brasil como um país “pluriétnico” e
“plurilíngüe”, foi apresentado e defendido em audiência pública realizada em 29 de abril de 1987, por
Marina Kahn Villas-Boas, assessora de educação do Centro de Trabalho Indigenista (CTI)174. Eis a proposta
relativa à educação escolar indígena:

O articulado que se segue expressa a reflexão sobre os aspectos envolvidos na questão


da educação indígena que devem ser inseridos dentro da problemática mais abrangente da
educação em geral – das seguintes entidades: União das Nações Indígenas – UNI; Centro de
Trabalho Indigenista – CTI; Comissão Pró-Índio – CPI; Conselho Indigenista Missionário –
Cimi; Operação Anchieta – OPAN; Associação Brasileira de Antropologia – ABA; Associação
Brasileira de Lingüística – ABRALIN.
Art. 1º O Brasil é um País pluriétnico e plurilíngüe.
§ 1º É vedada toda forma de racismo e discriminação social, cultural e lingüística no
processo educacional.
§ 2º A educação é diferenciada, considerada a diversidade ética e lingüística do País.
§ 3º É garantida às minorias lingüísticas autóctones escolarização em língua portuguesa
e em língua materna.
Art. 2º Todos os brasileiros têm direito à educação pública, gratuita em todos os níveis,
independentemente da raça, sexo, idade, língua, credo religioso ou convicções políticas.
Parágrafo único. É garantido, através da educação, o acesso aos conhecimentos locais,
regionais e universais, atendendo-se aos interesses de cada comunidade em particular e do País
em geral.
Justificação
Representando entidades que assessoram inúmeras populações indígenas brasileiras, fazemos questão
de encaminhar nossas sugestões com duplo propósito.

173 Eram membros titulares da Subcomissão da Educação os constituintes João Calmon (PMDB-ES), Louremberg Nunes
Rocha (PMDB-MT), Antônio de Jesus (PMDB-GO), Bezerra de Melo (PMDB-CE), Hermes Zaneti (PMDB-RS), Márcia
Kubitschek (PMDB-DF), Octávio Elísio (PMDB- MG), Osvaldo Sobrinho (PMDB- MT), Paulo Silva (PMDB-PI), Tadeu
França (PMDB-PR), Ubiratan Aguiar (PMDB-CE), Flávio Palmier da Veiga (PMDB- RJ), França Teixeira (PMDB-BA),
Átila Lira (PFL- PI), Cláudio Ávila (PFL- SC), José Moura (PFL-PE), José Queiroz (PFL-SE), Pedro Canedo (PFL-GO),
Agripino Lima (PFL- PB), Dionísio Hage (PFL- PA), Aécio Borba (PDS-CE), Chico Humberto (PDT-MG), Sólon Borges do
Reis (PTB-SP), Florestan Fernandes (PT – SP) e Álvaro Valle (PL- RJ).
174 Presentes à Audiência encontravam-se os Constituintes Hermes Zaneti (PMDB-RS), Pedro Canedo (PFL-GO), Bezerra de
Mello (PMDB-CE), Antônio de Jesus (PMDB-GO), Sólon Borges dos Reis (PTB-SP), Florestan Fernandes (PT-SP), João
Calmon (PMDB), Chico Humberto (PDG-MG), Octávio Elísio (PMDB-MG), Átila Lira (PFL-PI), Aécio de Borba (PDS-CE),
Tadeu França (PMDB-PR), Louremberg Nunes Rocha (PMDB-MT), Márcia Kubitschek (PMDB-DF) e Osvaldo Sobrinho
(PMDB-MT).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 85


Inicialmente, queremos somar nossas vozes na defesa de uma educação pública, gratuita e de
boa qualidade para todos os brasileiros. Assim sendo, ao darmos sugestões para o texto constitucional,
enfatizamos a questão da educação escolar indígena dentro da problemática mais abrangente da educação
referente a toda população brasileira, notadamente dos grupos sociais estigmatizados e alijados dos centros
de tomada de decisões do Poder e dos benefícios daí decorrentes. Neste contexto inserem-se também os
povos indígenas do Brasil.
Defendemos, assim, uma educação que garanta a consolidação de um espaço democrático a todos os
brasileiros, rompendo dessa forma com a discriminação que historicamente vem atingindo índios, negros
e outros grupos sociais minoritários que são, na verdade, os que compõem a grande maioria da população
brasileira.
Mas, sobretudo, queremos fazer realçar no texto constituinte, o respeito às diversidades e
especificidades culturais de um país pluriêtnico e plurilíngüe como o Brasil. Atualmente sabemos estarem
registradas no País cerca de 200 línguas diversas, sendo que aproximadamente 170 são indígenas e 30 de
origem européia, asiática e africana. O que temos verificado é que a situação demográfica, social e lingüística
dessas minorias é muito mal conhecida visto que a política oficial sempre se omitiu no reconhecimento dessa
realidade, onde, preconceituosamente, sempre se assumiu que apenas uma língua é falada em todo território.
Essa homogeneização se refletiu na política cultural que limitou, tanto do ponto de vista lingüístico como
educacional, a plena realização e revitalização da identidade dos indivíduos e grupos sociais existentes
no País. No caso dos povos indígenas esta omissão resultou na destruição lenta e decisiva de uma grande
parte do seu patrimônio sócio-cultural.
Deve-se tomar por base, portanto, para a elaboração de um texto constitucional, o princípio da
garantia e do respeito às especificidades culturais que caracterizam e constituem os diferentes grupos sociais
brasileiros. Muitos deles são portadores e produtores de cultura originais e valiosas na composição da cultura
brasileira, que deverão, portanto, estar evidenciadas, referidas e fortalecidas pelo sistema educacional. Este
não pode ser concebido simplesmente como conjunto de práticas pedagógicas, mas como uma das várias
dimensões da cultura de um país; é o espaço onde se permite a recriação e a transmissão de um conjunto
de saberes, técnicas e valores histórica e socialmente produzidos.
Um processo educativo definido e assumido em função da diversidade cultural do país reflete uma
atitude de respeito e co-participação nos valores, costumes e expressões culturais dos diversos grupos
étnicos que compõem a humanidade.
Essas considerações vêm sendo feitas em todos os países com populações minoritárias, e especialmente
indígenas. A última reunião da UNESCO, em abril deste ano, recomenda aos países membros que apóiem
constitucionalmente o reconhecimento político e jurídico das culturas nativas à etno-educação e etno-
desenvolvimento. A Declaração de Princípios da ONU (Genebra, julho de 1985) afirma ainda; “As nações
e povos indígenas têm direito a receber educação e a negociar com os Estados nas suas próprias línguas e
de criar suas próprias instituições educativas”.
O Brasil, no momento em que define sua nova Constituição, não deve se omitir nesse sentido; deve,
sim, garantir aos povos indígenas e demais minorias étnicas o acesso à estrutura jurídico-política do País,
de tal forma que estes povos e comunidades possam reproduzir sua identidade através do exercício efetivo
de seus direitos econômicos, políticos e culturais.

[Assembléia Nacional Constituinte (Atas das Comissões); p.194.]

Em seu depoimento a professora Villas-Boas foi acompanhada por Nieta Lindberg Monte
(CPI), Ruth Montserrat (ABA), Lucinda Ferreira Brito (Abralin e Comissão para a Defesa dos Direitos dos
Surdos), e pela professora e Religiosa Ir. Elisabeth Rondon Amarante (Cimi e Opan), todas especialistas
no campo da educação escolar indígena.
Ao longo do processo, foram diversas as manifestações das mais variadas instituições, e não
apenas das entidades indigenistas, pelo resguardo a especificidades na educação escolar indígena. Assim,
por exemplo, o direito dos indígenas à alfabetização bilíngüe, como uma ressalva ao ensino obrigatório
em língua portuguesa, foi objeto de propostas da Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior

86 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


(Andes)175, da Confederação de Professores do Brasil (CPB), do Conselho de Reitores das Universidades
Brasileiras (CRUB), do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), e do Fórum Nacional de
Educação na Constituinte. Ao mesmo tempo, foi sugerido pela Associação de Educação Católica (AEC),
como direito dos povos indígenas, a preservação de sua cultura e de sua língua na educação formal,
enquanto que partia do Centro de Estudos Afro-Brasileiros a proposta de que no ensino primário, se
estendesse às comunidades indígenas o aprendizado também em suas línguas maternas176.
A idéia de uma educação escolar indígena ministrada, no ensino básico, quer de modo bilíngüe
quer em suas línguas maternas, foi também objeto de oferecimento de emendas pelos deputados Roberto
Freire (PCB-PE), Augusto Carvalho (PCB-DF), Fernando Santana (PCB-BA), Ubiratan Aguiar (PMDB-CE),
Osvaldo Sobrinho (PMDB-MT) e Florestan Fernandes (PT-SP)177.
Em seu relatório, assim se posicionou o Relator da Subcomissão, deputado João Calmon, sobre
a questão do idioma de ensino:
No nosso entender a defesa da língua nacional é da maior relevância, levando-se em conta,
inclusive, que ela é precioso elemento coesivo da nacionalidade. Para tanto julgamos que
sua obrigatoriedade deve incidir sobre o ensino fundamental, a escola básica, comum c
todos os cidadãos. (...) Em qualquer caso, porém, devem ser ressalvadas às comunidades
indígenas, submetidas a iníquo processo de desintegração cultural desde o período Colonial.
Desta forma, não basta a alfabetização bilíngüe, mas urge estender o bilingüismo enquanto
necessário, para, ao mesmo tempo, proteger a cultura indígena e promover sua integração
na comunidade Nacional. Assim, acolhemos a essência da sugestão apresentada pela União
das Nações Indígenas e outras entidades a ela relacionadas178. (Grifos nossos)
Em 22 de maio o substitutivo do relator Calmon, submetido à votação, resultava no texto final
da Subcomissão, com o seguinte texto:
Art. 4.º O ensino, em qualquer nível, será ministrado em Português, assegurada às nações
indígenas179 a escolarização nas línguas Portuguesa e materna”.
(...)
Art. 19. (...)
1) O patrimônio e as manifestações da cultura popular, principalmente as indígenas e afro-
brasileiras terão a proteção especial do Estado, contra ações estranhas que violentem a sua
natureza e autenticidade;
(...)180. (Grifos nossos.)
Finalmente, em 25 de maio a Comissão da Família, Educação, Cultura, Esporte, Comunicação,
Ciência e Tecnologia, aprovava a seguinte redação relativa aos direitos indígenas nos planos da educação
e da cultura:
Art. 4.º - O ensino, em qualquer nível, será ministrado no idioma nacional, assegurado às
nações indígenas também o emprego de suas línguas e processo de aprendizagem.

175 A Andes, por exemplo, incluiu na sua “Plataforma Educacional” levada à Subcomissão (item 1.2.14), a previsão de
que “O ensino em qualquer nível será obrigatoriamente em língua nacional, sendo garantido aos indígenas o direito à
alfabetização em língua materna e portuguesa”. Cf. BRASIL. ANC (Atas das Comissões). Subcomissão da Educação,
Cultura e Esportes. Anexo à Ata da 12.ª Reunião (23.04.87); p.71. Disponível em: <http://www.congresso.gov.br/anc88/>
(Acessado em 25.10.2008).
176 BRASIL. ANC. Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Anteprojeto do Relator. Seção de Documentação
Parlamentar, vol. 207; p.12. Disponível em: <http://www.congresso.gov.br/anc88/> (Acessado em 25.10.2008).
177 BRASIL. ANC. Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Idem; p.11.
178 BRASIL. ANC. Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Idem; p.12.
179 Na ocasião o constituinte Florestan Fernandes anunciava tratar-se aquele de um momento histórico, entre outros motivos
pelo fato de o Relator João Calmon haver acolhido a expressão “nações indígenas”, expressão essa “que, até agora,
só era empregada pelos próprios indígenas”. BRASIL. ANC. Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Idem;
p.540.
180 BRASIL. ANC. Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes. Constituinte Fase C – Anteprojeto da Subcomissão.
Sessão de Documentação Parlamentar. Volume 209. Disponível em: <http://www.congresso.gov.br/anc88/> (Acessado
em 25.10.2008).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 87


(...)
Art.13. O Estado garantirá a cada um o pleno exercício dos direitos culturais...
Parágrafo único – O disposto no caput deste artigo será assegurado por:
(...)
VII – preservação e desenvolvimento do idioma oficial, bem como das línguas indígenas e
dos distintos falares brasileiros;
(...).
Art. 16. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência às identidades, à ação e
à memória dos diferentes grupos e classes formadores da sociedade brasileira, aí incluídas
as formas de expressão, os modos de fazer e de viver, as criações científicas, artísticas,
tecnológicas, obras, objetos, documentos, edificações, conjuntos urbanos e sítios de valor
histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, ecológico e científico.
Parágrafo único – O Estado protegerá, em sua integridade e desenvolvimento, o patrimônio
e as manifestações da cultura popular, das culturas indígenas, das de origem africana e
dos vários grupos imigrantes que participam do processo civilizatório brasileiro181. (Grifos
nossos)
No mês de junho a assessoria do Cimi na Constituinte chamava a atenção para a importância
do acompanhamento ao momento que estava por vir: a tramitação das propostas junto à Comissão de
Sistematização, sendo “a pressão popular” a “parte essencial deste acompanhamento”. A assessoria
ainda previa: na Sistematização, “a questão mineral será nosso principal problema”. Por fim, sugeria:
“Vale a pena estudar os momentos de trazer caravanas a Brasília, para pressionar diretamente a ANC. A
direita teme o povo. Para o jornal ‘O Globo’, o que o povo tem feito na ANC é ‘baderna’”182.

3.2. Os embates na Comissão de Sistematização


Instalada em 9 de abril de 1987 no Auditório Nereu Ramos (Anexo II da Câmara dos Deputados),
a Comissão de Sistematização foi presidida pelo Constituinte Afonso Arinos (PFL-RJ), e teve como relator
o deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM). Composta por 93 membros titulares, cabia a ela, nos termos
do art. 19 do Regimento Interno da ANC, receber os anteprojetos das Comissões temáticas e elaborar
o anteprojeto a ser enviado ao plenário.
Dando início às suas atividades a Sistematização recebeu, em 15 de junho de 1987, o resultado
dos trabalhos das oito Comissões, incluindo o anteprojeto aprovado pela Comissão da Ordem Social,
que dispôs sobre o capítulo “Dos Índios”.
O primeiro anteprojeto da Sistematização foi apresentado no início de julho. Com um texto
em geral mais progressista do que o esperado por setores ligados ao Palácio do Planalto, o trabalho da
Comissão passou a ser alvo de duras críticas por parte da imprensa183. Relativamente à questão indígena,
aquele primeiro anteprojeto deixava de fora o conteúdo do inciso V do art. 1.º do anteprojeto da Comissão
da Ordem Social, um dispositivo importante por reconhecer o caráter pluriétnico da sociedade brasileira
e as formas de organização próprias dos povos indígenas. A fim de resgatar o dispositivo, a assessoria
jurídica do Cimi apresentou emenda, subscrita pelo Constituinte José Carlos Sabóia (PMDB-MA).

181 BRASIL. ANC. Comissão da Família, Educação, Cultura, Esporte, Comunicação, Ciência e Tecnologia. Anteprojeto
da Comissão. Seção de Documentação Parlamentar, Vol.206. Disponível em: <http://www.congresso.gov.br/anc88/>
(Acessado em 25.10.2008).
182 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 15, op. cit.
183 Naquele momento, apesar dos avanços até então obtidos, observava a assessoria do Cimi, que certos setores do
movimento popular mantinham ainda uma posição de “descrença no chamado ‘jogo’ da Constituinte”, ao concluírem que
as elites não iriam “permitir uma Constituição que devolva o poder aos trabalhadores”. Uma avaliação, segundo o então
assessor Júlio Gaiger, “simplista, desmobilizadora e censora”. [cf. GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 16 .Brasília
: Cimi, 03. jul.1987 (mimeo)].

88 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Até o dia oito de julho, foram apresentadas à Sistematização 5.624 emendas de conteúdos
diversos. Uma análise da assessoria do Cimi junto à ANC identificou, dentre estas, a existência de 84
emendas contrárias aos interesses indígenas, sendo as mais numerosas as oferecidas pelos Constituintes
Nilson Gibson (PMDB-PE), José Richa (PMDB-PR), Ricardo Fiúza (PFL-PE) e Mozarildo Cavalcanti (PFL-RR).
As demais emendas “anti-índio” haviam sido apresentadas pelos constituintes Edivaldo Motta (PMDB-PB),
Renato Vianna (PMDB-SC), Siqueira Campos (PDC-GO), Darcy Pozza (PDS-RS), Inocêncio Oliveira (PFL-PE),
Roberto Balestra (PDC-GO), Christóvam Chiaradia (PFL-MG), Francisco Dornelles (PFL-RJ), Ronaldo Aragão
(PMDB-RO), Francisco Diógenes (PDS-AC), Irapuan Costa Júnior (PMDB-GO), Bosco França (PMDB-SE),
Oswaldo Almeida (PL-RJ), José Dutra (PMDB-AM), Arnaldo Martins (PMDB-RO), Raquel Cândido (PFL-RO),
Alfredo Campos (PMDB-MG), Arnaldo Prieto (PFL-RS) e Prisco Vianna (PMDB-BA).
As emendas favoráveis aos direitos indígenas foram apresentadas pelos constituintes Luis
Soyer (PMDB-GO), Wilson Martins (PMDB-MS), Lysâneas Maciel (PDT-RJ), Sandra Cavalcanti (PFL-RJ), José
Carlos Sabóia (PMDB-MA) e Almir Gabriel (PMDB-PA)184.
Em meados de julho, já tendo sido votadas tais emendas, ficava pronto o Projeto de Constituição
da Comissão de Sistematização, a ser apreciado pelo Plenário em primeiro turno de votação. Era o
seguinte o seu teor, especificamente nas matérias de interesse dos povos indígenas:

Comissão de Sistematização
Projeto de Constituição
(julho de 1987)
(...)
Art. 12. São direitos e liberdades individuais invioláveis:
III – A Cidadania.
(...)
d) a lei punirá como crime inafiançável qualquer discriminação atentatória
aos direitos e liberdades fundamentais, sendo formas de discriminação, entre
outras, subestimar, estereotipar ou degradar grupos étnicos, raciais ou de
cor ou pessoas a eles pertencentes, por palavras, imagens ou representações,
em qualquer meio de comunicação.
(...)
f) ressalvada a compensação para igualar as oportunidades de acesso aos
valores da vida e para reparar injustiças produzidas por discriminações não
evitadas, ninguém será privilegiado ou prejudicado em razão de nascimento,
etnia, raça, cor, idade, sexo, orientação sexual, estado civil, natureza do
trabalho, religião, convicções políticas ou filosóficas, deficiência física ou
mental, ou qualquer outra condição social ou individual;
(...)
Art. 22. A língua oficial do Brasil é o Português, e são símbolos nacionais
a Bandeira, o Hino, o Escudo, e as Armas da República, adotados na data da
promulgação da Constituição.
(...)
Art. 52. Incluem-se entre os bens da União:
(...)
X – as terras ocupadas pelos índios;
(...)
Art. 54. Compete à União:
(...)
XXIII – legislar sobre:
1) populações indígenas, inclusive garantia de seus direitos;
(...)

184 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 17. Brasília : Cimi, 10.jul.1987 (mimeo).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 89


Art. 100. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
(...)
XVIII – legislar sobre as garantias dos direitos dos índios;
(...)
Art. 209. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
XI – disputa sobre os direitos indígenas;
(...)
Art. 211. A lei disporá sobre a organização, a competência e o processo
da Justiça Agrária e atuação do Ministério Público, observados os princípios
desta Constituição e os seguintes:
I – compete à Justiça Agrária processar e julgar:
(...)
c) questões relativas às terras indígenas, ficando excluídos os dissídios
trabalhistas, salvo quando envolverem questões agrícolas;
(...)
Art. 233. São funções institucionais do Ministério Público, na área de
atuação de cada um dos seus órgãos:
(...)
IV – defender, judicial e extrajudicialmente, os direitos e interesses
das populações indígenas, quanto às terras que ocupam, seu patrimônio material
e imaterial, e promover a responsabilidade dos ofensores;
(...)
Art. 375. O ensino, em qualquer nível, será ministrado no idioma nacional,
assegurado às nações indígenas também o emprego de suas línguas e processos de
aprendizagem.
(...)
Art. 385. O Estado garantirá a cada um o pleno exercício dos direitos
culturais, a participação igualitária no processo cultural e dará proteção, apoio
e incentivo às ações de valorização, desenvolvimento e difusão da cultura.
Parágrafo único – O disposto no caput deste artigo será assegurado por:
(...)
III – reconhecimento e respeito às especificidades culturais dos múltiplos
universos e modos de vida da sociedade brasileira;
(...)
V – garantia da integridade e da autonomia das culturas brasileiras;
(...)
VIII – preservação e desenvolvimento do idioma oficial, bem como das línguas
indígenas e dos distintos falares brasileiros;
(...)
Art. 388. (...)
Parágrafo único – O Estado protegerá, em sua integridade e desenvolvimento,
o patrimônio e as manifestações da cultura popular, das culturas indígenas, das
de origem africana e dos vários grupos imigrantes que participam do processo
civilizatório brasileiro.
(...)
Título IX
Capítulo VIII – Dos Índios
Art. 424. São reconhecidos aos índios seus direitos originários sobre
as terras que ocupam, sua organização social, seus usos, costumes, línguas,
crenças e tradições.

90 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


§ 1.º – Compete à União a proteção das terras, instituições, pessoas,
bens e saúde dos índios, bem como promover-lhes a educação.
§ 2.º – A educação de que trata o parágrafo anterior será ministrada,
no nível básico, na língua materna e na portuguesa, assegurada a preservação
da identidade étnica e cultural das populações indígenas.
§ 3.º – A política indigenista ficará a cargo de órgão próprio da
administração federal, que executará as diretrizes e normas definidas por
um Conselho Deliberativo composto de forma paritária por representantes das
populações indígenas, da União e da sociedade.
Art. 425. As terras ocupadas pelos índios são destinadas à sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas naturais do solo e
do subsolo, das utilidades nelas existentes e dos recursos fluviais, ressalvado
o direito de navegação.
§ 1.º – São terras ocupadas pelos índios as por eles habitadas, as
utilizadas para suas atividades produtivas, e as áreas necessárias à sua
reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, incluídas
as necessárias à preservação do meio ambiente e do seu patrimônio cultural.
§ 2.º – As terras ocupadas pelos índios são bens da União, inalienáveis,
imprescritíveis e indisponíveis a qualquer título, vedada outra destinação
que não seja a posse e usufruto dos próprios índios, cabendo à União demarcá-
las.
§ 3.º – Fica vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo
nos casos de epidemia, catástrofe da natureza e outros similares, ficando
garantido seu retorno às terras quando o risco estiver eliminado. Fica
proibida, sob qualquer pretexto, a destinação para qualquer outro fim das terras
temporariamente desocupadas.
Art. 426. São nulos e extintos e não produzirão efeitos jurídicos os atos
de qualquer natureza, ainda que já praticados, que tenham por objeto o domínio,
a posse, o uso, a ocupação ou a concessão de terras ocupadas pelos índios ou
das riquezas naturais do solo e do subsolo nelas existentes.
§ 1.º – A nulidade e a extinção de que trata este artigo não dão direito de
ação ou indenização contra a União ou os índios, salvo quanto aos pretendentes
ou adquirentes de boa fé, em relação aos atos que tenham versado sobre terras
ainda não demarcadas, caso em que o órgão do Poder Público que tenha autorizado
a pretensão, ou emitido o título, responderá civilmente.
§ 2.º – O exercício do direito de ação, na hipótese do parágrafo anterior,
não autoriza a manutenção do autor ou do seu litisconsorte na posse da terra
indígena, não impede o direito de regresso do órgão do Poder Público, nem
elide a responsabilização penal do agente.
Art. 427. A pesquisa, lavra ou exploração de minérios e o aproveitamento
dos potenciais de energia hidráulica em terras indígenas somente poderão ser
desenvolvidas, como privilégio da União, no caso de o exigir o interesse nacional
e de inexistirem reservas conhecidas e suficientes para o consumo interno, e
exploráveis, em outras partes do território brasileiro.
§ 1.º – A pesquisa, lavra ou exploração de minérios e o aproveitamento
dos potenciais de energia hidráulica de que trata este artigo dependem da
autorização das populações indígenas envolvidas e da aprovação do Congresso
Nacional, caso a caso.
§ 2.º – A exploração de riquezas minerais em terras indígenas obriga
à destinação de percentual não inferior à metade do valor dos resultados
operacionais à execução da política indigenista nacional e a programas de
proteção do meio ambiente, cabendo ao Congresso Nacional a fiscalização do
cumprimento da obrigação aqui estabelecida.
§ 3.º – Aos índios são permitidas a cata, a faiscação e a garimpagem em
suas terras.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 91


Art. 428. O Ministério Público Federal, de ofício ou por determinação
do Congresso Nacional, os índios, suas comunidades e organizações são partes
legítimas para ingressar em juízo em defesa dos interesses e direitos indígenas,
cabendo também ao Ministério Público Federal, de ofício ou mediante provocação,
defendê-los extrajudicialmente.
Título X – Disposições Transitórias
Art. 489. O Poder Público reformulará, em todos os níveis, o ensino de
história do Brasil, com o objetivo de contemplar com igualdade a contribuição
das diferentes etnias para a formação multicultural e pluriétnica do povo
brasileiro.
Art. 491. A União demarcará as terras ocupadas pelos índios, ainda não
demarcadas, devendo o processo estar concluído no prazo de 5 (cinco) anos,
contados da promulgação desta Constituição.

[Fonte: GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º18. Brasília : Cimi, 13-14.jul.1987 (mimeo). Grifos nossos]

No início de agosto, corriam os prazos para o oferecimento das emendas ao Projeto, que tanto
poderiam ser aquelas a serem apresentadas pelos próprios constituintes, quanto as chamadas “Emendas
Populares”, das quais falaremos adiante. As discussões em torno das primeiras foram articuladas em três
grupos políticos distintos, constituídos no interior da ANC. O primeiro deles era o “grupo do consenso”,
também chamado de “grupo da biblioteca” uma vez que sempre se reunia na biblioteca. Pelas suas
posições, o grupo do consenso se autodenominava também de “esquerda positiva”. Mesmo para este
grupo, a perspectiva era a de que apenas uma negociação viabilizaria a aprovação de um novo texto
constitucional. O segundo era o “grupo dos 32”, também chamado “Tântalo” ou grupo do Instituto
Israel Pinheiro, local onde freqüentemente se reunia. O mais à direita e conservador de todos era o
grupo liderado por Amaral Netto (PDS-RJ), e ao qual pertenciam figuras como Roberto Cardoso Alves
(PMDB-SP), ligado à União Democrática Ruralista (UDR).
Segundo avaliação da assessoria do Cimi, no “grupo do consenso”, já eram “visíveis as
tentativas para bombardear o usufruto dos índios sobre as riquezas do subsolo de suas terras, abrindo-se
à mineração por empresas nacionais”, o que era visto como um indício de risco de perda das conquistas
até então obtidas. Quanto ao grupo “Tântalo”, a avaliação era de que o seu texto havia “pulverizado os
direitos à terra, adotando as teses do Conselho de Segurança Nacional”185.

3.2.1. A campanha do Estadão e a CPMI do Cimi.


No domingo 9 de agosto de 1987, a edição do jornal “O Estado de São Paulo”, também
conhecido como “Estadão”, de propriedade da família Mesquita, amanhecia com a seguinte chamada
de capa: “Os índios na nova Constituição – A conspiração contra o Brasil”. A matéria, em resumo, acusava o
Conselho Indigenista Missionário (Cimi) de servir de “testa-de-ferro” a interesses estrangeiros que, a fim
de evitar a concorrência da exploração mineral no Brasil, estaria tentando proibir a atividade mineraria
em terras indígenas. Afirmava a matéria que o Cimi seria representante no país de um tal “Conselho
Mundial de Igrejas Cristãs”, e que, a fim de concretizar os seus propósitos, estaria tentando influenciar
os rumos da Constituinte, através da proposta das “nações indígenas”, como forma de implantar no
país um conceito de soberania restrita, que mais tarde resultaria na internacionalização daquelas terras
e seu subsolo. A proteção aos interesses indígenas, dizia a matéria, seria um mero disfarce.
Mas as acusações não paravam aí. Tratava-se na verdade de uma série denominada “Os Índios
na Nova Constituição”, que circularia por dias seguidos. Em 11 de agosto a manchete era “Nem só de índios
vive o Cimi”. No dia 12 – data da entrega das Emendas Populares – , “O Cimi e seus irmãos do estanho”.

185 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 19. Brasília : Cimi, 07.ago.1987 (mimeo).

92 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


No dia 13, “Índios, o caminho para os minérios”. No dia
14, “Cimi propõe a divisão do Brasil”. E no dia 14 de
agosto, “O evangelho do Cimi: índio, ouro...”.

Já no dia 10 de agosto, a presidência da


CNBB, na pessoa de D. Luciano Mendes de Almeida,
divulgava nota rebatendo todas as acusações veicu-
ladas pelo jornal. O mesmo foi feito de forma mais
veemente em nota de 14 de agosto, onde acusava a
empresa jornalística de estar a serviço das estratégias
das mineradoras na Constituinte:

5. As acusações pretendem impedir que na Constituição


sejam incluídas normas de proteção aos territórios
indígenas que visam coibir a cobiça das companhias
mineradoras. Pretendem eliminar o caso, agora,
previsto no Projeto Constitucional de “pesquisa, lavra
ou exploração de minérios em terras indígenas, como
privilégio da União, quando exigidas por interesse
nacional e quando inexistirem reservas conhecidas e
suficientes para o consumo interno e exploráveis em outras
partes do território nacional”.
6. A virulência do ataque demonstra a intenção de causar
impacto na opinião pública e confundir os constituintes
nas vésperas da discussão e votação do substitutivo do
deputado Bernardo Cabral186. (Grifos nossos.)
Edições do jornal O Estado de S. Paulo com
manchetes difamatórias contra o Cimi.

10 ou 14/08/87 – D. Luciano Mendes de Almeida, tendo à direita o então secretário executivo do Cimi, Antônio Brand,
e à esquerda D. Tomaz Balduino, lê a nota da presidência da CNBB refutando as graves acusações feitas pelo jornal “O
Estado de São Paulo”. Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

186 Texto na íntegra in Anexo III.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 93


Apesar das refutações e dos esclarecimentos da CNBB – inclusive tornando claro tratar-se de
uma campanha urdida com o propósito de favorecer, na Constituinte, o acesso das mineradoras privadas
ao subsolo das terras indígenas – , rapidamente as matérias do “Estadão” foram acolhidas e replicadas
pela imprensa em todo o país. Com a mesma velocidade, as falsas acusações da campanha Estadão
/ mineradoras privadas passaram a alimentar os discursos antiindígenas na Constituinte, sobretudo
no tocante a questões como reconhecimento do caráter multiétnico e plurinacional do Estado, e das
salvaguardas à exploração do subsolo em terras indígenas.
No dia 13 de agosto, um grupo de treze parlamentares187, assinava Requerimento de instauração
de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, a fim de investigar:
as denúncias que vêm sendo formuladas pelo Jornal O Estado de S. Paulo, referentes a
uma conspiração internacional envolvendo restrições à soberania nacional sobre a Região
Amazônica, sob o pretexto de preservar as culturas das etnias silvícolas, a ecologia e as
riquezas minerais do subsolo daquela região188.
Neste contexto a questão da mineração em terras indígenas foi objeto de um importante
debate em 20 de agosto, no auditório da Comissão de Finanças do Senado. Realizado pela Fundação
Pedroso Horta, do PMDB, e idealizado pelo seu presidente, o Senador Severo Gomes, o debate reuniu
43 Constituintes, além de representantes da CNBB, Cimi, ABA, e Conage. O destaque foi para o
pronunciamento de D. Luciano Mendes de Almeida, presidente da CNBB, que refutou, ponto a ponto,
as acusações do Estado de São Paulo contra o Cimi189.

20/08/87 – Em debate promovido pela Fundação Pedroso Horta, Dom Luciano Mendes de Almeida (CNBB), ao lado
do ex-deputado federal Mário Juruna, faz um discurso veemente contra as acusações do “Estado de S. Paulo”.
Foto extraída do Filme “Os Direitos Indígenas na Constituinte”. (Cimi, 1989)

Dois dias depois do Seminário, em 22 de agosto, era publicada a Resolução n.º 3, do Congresso
Nacional, aprovando a instauração da CPMI, a ser integrada por 18 membros, e tendo 120 dias de prazo
para o seu funcionamento.
Em 3 de setembro de 1987 é então instalada a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
(CPMI), que tem como presidente o deputado Roberto Cardoso Alves – o famoso “Robertão” – (PMDB-
SP), e como relator o Senador Ronan Tito (PMDB-MG).
Os trabalhos investigativos da CPMI transcorreram durante todo aquele mês de setembro,
prolongando-se por quase todo o mês seguinte. Neste período a Comissão ouviu, entre outros, o diretor-
responsável pelo jornal “Estadão”, Sr. Júlio Mesquita Neto e o presidente da CNBB, D. Luciano Mendes
de Almeida, colheu documentos, efetuou perícias técnicas e científicas, e colheu informações junto a
diversas instituições, governamentais e não-governamentais, nacionais e internacionais.

187 Subscreveram o Requerimento de instauração da CPMI: Roberto Cardoso Alves (PMDB-SP), Plínio de Arruda Sampaio
(PT-SP), Ricardo Izar (PFL-SP), Dirce Tutu Quadros (PSC-SP), Rita Camata (PMDB-ES), Rodrigues Palma (PMDB-MT),
José Maurício (PDT-RJ), Amaral Netto (PDS-RJ), Gastone Righi (PTB-SP), Edésio Frias (PDT-RJ), Rose de Freitas
(PMDB-ES), Gumercindo Milhomem (PT-SP) e Gabriel Guerreiro (PMDB-PA).
188 Vide texto na íntegra in Anexo III.
189 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º101, set. 1987, p.10.

94 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Em 22 de outubro de 1987, com base
em todo esse apanhado, o relator Ronan Tito
apresentou relatório enfatizando ser o material
divulgado pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, e que
dera origem à investigação, “de origem duvidosa
e, certamente, elaborado com intuitos escusos e
práticas fraudulentas”, havendo “inexistência de
base documental idônea”, concluindo “não terem
fundamento as denúncias que objetivaram a criação
desta CPMI”. Ao mesmo tempo, propõe a adoção
das seguintes medidas: (a) a apresentação de
“Projeto de Resolução para apurar os fatos relativos
à exploração do subsolo amazônico, aos direitos
dos índios e à possibilidade de existir, de fato, uma
20/08/87 – Debate sobre a questão da Mineração em Terras Indígenas,
conspiração internacional envolvendo restrições
promovido pela Fundação Pedroso Horta, do PMDB.
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.
à nossa soberania”; e (b) o envio de “cópia deste
relatório e toda a documentação citada à autoridade
competente para abertura de um inquérito policial
(...) em face dos fortes indícios, aqui apontados, de
falsidade ideológica”190. (Grifos nossos)
Insatisfeito com o teor do relatório, o
presidente da CPMI, deputado Roberto C. Alves, lança
mão de um expediente anti-regimental, negando-se
a submetê-lo à votação pela Comissão. Alegando que
o texto do relatório refletia apenas a opinião pessoal
do relator, Cardoso Alves enviou o caso ao plenário
do Congresso Nacional, fazendo-o permanecer em
aberto o tempo suficiente para a votação do tema
20/08/87 – Vanderlino Teixeira, presidente da da exploração mineral em terras indígenas, pela
Conage, no debate sobre a questão da Mineração em Comissão de Sistematização. No mês de novembro,
Terras Indígenas, promovido pela Fundação Pedroso
porém, o presidente do Congresso Nacional, Senador
Horta, do PMDB. Em segundo plano a antropóloga
Manuela da Cunha. Humberto Lucena (PB), devolveu à própria Comissão
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC. o poder de decidir a votação do relatório do Senador
Ronan Tito191. Também naquele mês de novembro a
CNBB e o Cimi lançavam o livro “A Verdadeira Conspiração contra os Povos Indígenas, a Igreja e o Brasil”,
onde demonstrava, ponto a ponto, o caráter falso das acusações veiculadas pelo jornal “O Estado de S.
Paulo”, e os interesses econômicos das mineradoras privadas, que estariam por trás da campanha.

22/10/1987 - Senador Ronan Tito,


ladeado pelo Deputado Ricardo
Fiúza e pelo Deputado Roberto
Cardoso Alves, lê o relatório da
CPMI declarando sem fundamento
as denúncias publicadas no jornal
“O Estado de S. Paulo”.
Fotos extraídas do filme “Os Direitos
Indígenas na Constituinte” (Cimi, 1989).

190 Vide íntegra do Relatório do senador Ronan Tito no Anexo III. Observe-se que, de tempos em tempos, cópias de
tais documentos fraudulentos vêm novamente à tona, em campanhas contra a concretização dos direitos indígenas
constitucionalmente reconhecidos. Muitas vezes circulam na rede Internet, como “provas” de que a defesa destes
direitos, por parte das organizações indígenas e de entidades como o Cimi, nada mais seria do que um plano para se
“internacionalizar” a Amazônia.
191 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 25. Brasília : Cimi, 04. nov.1987 (mimeo).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 95


Em maio de 1988 o jornal Porantim anunciava que a
CPMI havia sido encerrada no dia 18 de março por “decurso de
prazo”, uma vez que o seu funcionamento, após a obstrução
ao relatório do senador Ronan Tito, não havia sido objeto de
prorrogação. Por último, informava o jornal:
Ao procurar o deputado Roberto Cardoso
Alves, para saber a conveniência ou não de
prorrogação do prazo da CPMI, o funcionário
que a secretariava, José Augusto Panisset,
ouviu uma resposta um tanto singular: “não,
porque se precisar, eu crio outra depois”192.
(Grifo nosso)

3.2.2. O 1º Substitutivo do deputado


Bernardo Cabral.
Em 26 de agosto de 1987, em meio aos escândalos
produzidos pela campanha difamatória contra o Cimi veiculada
pelo “Estadão”, e às vésperas da instalação da Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito destinada a apurar aquelas falsas
acusações de “conspiração internacional” contra a soberania
brasileira, o relator da Comissão de Sistematização, deputado Capa da publicação conjunta do Cimi e CNBB, publicada
Bernardo Cabral (PMDB-AM), apresentava o seu Primeiro originalmente em novembro de 1987, destinada a
Substitutivo ao Projeto de Constituição. Era o seguinte o seu esclarecer e refutar as acusações lançadas pela campanha
teor, na parte mais relacionada à questão indígena e afins: do Estado de São Paulo.

Projeto de Constituição – 1.º Substitutivo do Relator


(26 de agosto de 1987)
Art. 6.º (...).
(...)
§ 5.º – A lei punirá como crime inafiançável qualquer discriminação
atentatória aos direitos e liberdades fundamentais, sendo formas de
discriminação, entre outras, subestimar, estereotipar ou degradar pessoas por
pertencer a grupos étnicos ou de cor, por palavras, imagens ou representações,
em qualquer meio de comunicação.
( . . . )

Art. 12. A língua nacional do Brasil é a portuguesa, e são símbolos


nacionais a bandeira, o hino, o escudo e as armas da República.
(...)
Art. 30. Incluem-se entre os bens da União:
(...)
X – as terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados
os índios;
(...)

192 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano XI, n.º 108, maio. 1988, p.11.

96 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Art. 32. Compete privativamente à União legislar sobre:
(...)
XIII – populações indígenas;
(...)
Art. 155. Aos juízes federais compete processar e julgar:
XI – a disputa sobre direitos indígenas;
(...)
Art. 180. São funções institucionais do Ministério Público, na área de
atuação de cada um dos seus órgãos:
(...)
IV – defender, judicial e extrajudicialmente, os direitos e interesses
das populações indígenas, quanto às terras que ocupam, seu patrimônio material
e imaterial, e promover a responsabilidade dos ofensores.
(...)
Art. 232. O aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica e a
pesquisa e a lavra de recursos e jazidas minerais somente poderão ser efetuadas
por empresas nacionais, mediante autorização ou concessão da União, na forma
da lei, que regulará as condições específicas quando essas atividades se
desenvolverem em faixa de fronteira ou em terras indígenas e não poderão ser
transferidas sem prévia anuência do poder concedente.
Parágrafo único – A autorização ou concessão pela União, para exploração
dos recursos minerais em terras indígenas dependerá sempre da anuência das
populações indígenas envolvidas.
Art. 277. O ensino, em qualquer nível, será ministrado no idioma nacional,
assegurado às comunidades indígenas também o emprego de suas línguas em
processos de aprendizagem.
(...)
Art. 284 (...)
(...)
§ 2.º – O Estado protegerá em sua integridade o desenvolvimento, as
manifestações da cultura popular, das culturas indígenas, das de origem africana
e das de outros grupos de participarem do processo civilizatório brasileiro.
Título IX – Da Ordem Social
Capítulo VIII – Dos Índios.
Art. 302. São reconhecidos aos índios seus direitos originários sobre
as terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados,
sua organização social, seus usos, costumes, línguas, crenças e tradições,
competindo à União a proteção desses bens.
§ 1.º – Os atos que envolvam interesses das comunidades indígenas terão
a participação obrigatória de órgão federal próprio e do Ministério Público,
sob pena de nulidade.
§ 2.º – A exploração das riquezas minerais em terras indígenas só pode
ser efetivada com autorização destas (comunidades) e do Congresso Nacional e
obriga à destinação de percentual sobre os resultados da lavra em benefício
das comunidades indígenas e do meio-ambiente, na forma da lei.
Art. 303. As terras de posse imemorial dos índios são destinadas à sua
posse permanente, cabendo-lhes o usofruto (sic) exclusivo das riquezas naturais
do solo, dos recursos fluviais e de todas as utilidades nelas existentes.
§ 1.º – São terras de posse imemorial onde se acham permanentemente
localizados os índios aquelas destinadas à sua habitação efetiva, às suas
atividades produtivas e as necessárias à sua preservação cultural, segundo
seus usos, costumes e tradições.
§ 2.º – As terras referidas no parágrafo anterior são bens inalienáveis
e imprescritíveis da União, cabendo a esta demarcá-las.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 97


§ 3.º – Fica vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo nos
casos de epidemia, catástrofe da natureza e outros similares e de interesse
da soberania nacional, ficando garantido o seu retorno quando o risco estiver
eliminado.
Art. 304. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa dos interesses e direitos indígenas.
Art. 305. Os direitos previstos neste capítulo não se aplicam aos índios
com elevado estágio de aculturação, que mantenham uma convivência constante
com a sociedade nacional e que não habitem terras indígenas.
Título X – Disposições Transitórias.
Art. 37. O Poder Público reformulará, em todos os níveis, o ensino da
história do Brasil, com o objetivo de contemplar com igualdade a contribuição
das diferentes etnias para a formação multicultural e pluri-étnica do povo
brasileiro.
Art. 39. A União demarcará as terras ocupadas pelos índios, ainda não
demarcadas, devendo o processo estar concluído no prazo de cinco anos, contados
da promulgação desta Constituição.
[Fonte: GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 21. Brasília: Cimi,
31.ago.1987; p.2. (Grifos nossos)]

O retrocesso do Substitutivo em relação ao texto do Projeto era evidente. Mais ainda quando
comparado ao que havia sido aprovado pela Comissão da Ordem Social e pela Subcomissão das
Populações Indígenas. O relator Bernardo Cabral introduzia um conceito restritivo de terra indígena
que passava a ter como critério o caráter “imemorial” da posse, retrocedia aos termos das Cartas de
1934 e 1946 ao restringir o direito territorial indígena ao local onde se achassem “permanentemente
localizados”, declarava as comunidades indígenas como absolutamente incapazes, dependentes da
assistência obrigatória do órgão indigenista e do Ministério Público, criava uma distinção entre índios
“aculturados” e aqueles com “elevado estágio de aculturação”, excluindo estes últimos de quaisquer
direitos especificamente conferidos aos demais indígenas, e, enfim, abria o subsolo das terras indígenas
à exploração mineral privada. Os avanços obtidos na Subcomissão e na Comissão de Ordem Social eram
simplesmente ignorados.
Segundo a assessoria do Cimi para a Constituinte, Cabral simplesmente “adotou as teses do
“Grupo dos 32”, coordenado pelo senador José Richa (PMDB-PR), reduzindo drasticamente os direitos
indígenas”193.
Dois dias depois, em 28 de agosto de 1987, o presidente do Cimi – Dom Erwin Krautler,
divulgava a seguinte nota em coletiva de imprensa na sede da CNBB:
O Substitutivo apresentado pelo dep. Bernardo Cabral, no dia 26 deste mês, ignorou e
subverteu os debates e princípios que orientaram a redação dos dispositivos sobre os direitos
indígenas na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias,
e na Comissão da Ordem Social. Fez-se tabula rasa das decisões aprovadas pelo voto da
imensa maioria dos membros da Subcomissão e Comissão.
Invertendo a ótica fundamental das elaborações anteriores, que se propunham legislar para
assegurar aos índios um futuro digno, possibilitando-lhes o direito à preservação de sua
integridade física e cultural, o Substitutivo logrará apenas regulamentar o extermínio das
nações indígenas. No Substitutivo, o índio é aprioristicamente considerado uma espécie em
extinção.
O Cimi espera, porém, que prevaleça o senso de justiça na Constituinte, ensejando a
recuperação dos textos antes aprovados, assim como espera que o próprio dep. Bernardo
Cabral perceba o retrocesso jurídico e a perspectiva etnocida contida no Substitutivo194.

193 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 19. Brasília : Cimi, 07.ago.1987 (mimeo).
194 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 21. Brasília : Cimi, 31.ago.1987 (mimeo).

98 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Não era difícil identificar, no grave retrocesso que representava para a questão indígena o
primeiro Substitutivo do relator da Sistematização, alguns efeitos da virulenta e inescrupulosa campanha
movida dias antes contra o Cimi e contra a defesa dos direitos indígenas. Como se percebeu à época, a
campanha do Estadão não tivera o efeito de influenciar boa parte dos parlamentares, já suficientemente
precavidos e experientes para perceber que tudo não passava de um espécie de golpe publicitário contra
a proteção ao subsolo das terras indígenas. Contudo, o clima propiciado pela divulgação constante das
acusações fora visto como suficiente para encorajar o Relator Bernardo Cabral ao retrocesso.
Importante observar, em meio a tudo isso, a constante e explícita oposição da direção da Funai
ao protagonismo indígena na ANC e ao avanço das propostas do campo indigenista.
O então presidente do órgão, Romero Jucá Filho, inúmeras vezes procurou desqualificar
as pressões exercidas pelos índios sobre os parlamentares, sob o argumento de que seriam fruto de
manipulação exercida pelo Cimi. Certa ocasião, teria dito ao Tupinikim Roberto Marques (ES), que os
índios “deviam estar nas suas áreas, trabalhando, e não lutando por uma coisa sem sentido”195. A uma
das acusações de manipulação, respondeu certa ocasião Joventino Fulni-ô (PE): “Há 500 anos que nós
vem sofrendo; não é possível que a gente não conseguisse se organizar”196.
Em ofício aos Constituintes, Jucá Filho defendeu o primeiro Substitutivo de Bernardo Cabral,
mais a expressão “onde se acham permanentemente localizados” para a delimitação dos direitos
territoriais indígenas. Além disso, acusou “certas entidades que se autodenominam protetoras dos
índios”, de aplicarem:
costumeira e inescrupulosamente a pulverização das comunidades indígenas quebrando a
união destas comunidades, descaracterizando suas lideranças, sobrecarregando e onerando a
FUNAI, gerando conflitos com a sociedade envolvente, e o pior, utilizando o índio como massa
de manobra para finalidades espúrias, completamente dissociadas do interesse nacional, aí
englobando o interesse das comunidades indígenas197.
Numa referência indireta às propostas do Cimi, o presidente da Funai, no mesmo documento,
externava ainda a sua “satisfação ao ver sepultadas” no Substitutivo, “idéias nocivas aos interesses
nacionais, e à nossa própria soberania, como ‘plurinacional’, ‘nações indígenas’, a concessão do ‘subsolo’
aos índios, comunidades indígenas como ‘pessoas jurídicas de direito público interno’ e finalmente
‘terras ocupadas’”.
Neste clima, ao reforçar a necessidade de intensificação das pressões e da sensibilização sobre
os constituintes pelas equipes do Cimi e pelos movimentos sociais em geral, enfatizava a assessoria da
entidade “se os constituintes não se sentirem fiscalizados e apoiados pelo povo, a Constituição será o
resultado dos conchavos!”198.

3.2.3. As Propostas de “Emenda Popular”.


Um dos momentos mais importantes em termos de expressão da vontade popular junto à
Constituinte foi sem dúvida a apresentação das famosas Emendas de Iniciativa Popular. Como observa
Francisco Whitaker, vendo derrotada a possibilidade de uma Constituinte exclusiva, as forças ligadas aos
movimentos sociais, através dos plenários Pró-participação Popular na Constituinte, passaram a investir
na possibilidade de apresentação de propostas coletivas à ANC por parte dos cidadãos. Assim, “foram
feitas gestões junto a alguns Constituintes para que eles apresentassem uma emenda ao Regimento
Interno”, possibilitando a participação popular. A possibilidade foi então aberta através da apresentação
de Emendas Populares à Constituição. Mas a medida – comenta Whitaker, veio acompanhada de “uma
série de barreiras”:

195 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano XI, n.º109, jun. 1988; p.2.
196 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º103, nov. 1987; p.6.
197 Minter/Funai, CT 001/PRESI/n.º 635/97- Brasília, 25.09.1987.
198 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 16. Brasília : Cimi, 03.jul.1987 (mimeo).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 99


Já que a meninada está querendo tanto, vamos lá. Põe aí, mas põe uma dificuldade: 30 mil
assinaturas, no mínimo. Além do mais, vindo de pelo menos 5 Estados”. E ninguém podia
assinar mais do que 3 emendas. E outras barreiras desse tipo, como todas as indicações
de endereço, título de eleitor etc. Nada de RG, não. Era um negócio bem completo. E
tinham que ser apoiadas pelo menos por 3 entidades da sociedade civil, para realmente
dificultar199.

Barreiras à parte, o fato é que o espaço fora aberto e precisava ser ocupado. Assim, no mês
de abril, durante a sua Assembléia anual em Itaicy, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
se comprometia com a mobilização
em torno dos seguintes temas
objeto de Emendas Populares: a
previsão constitucional de formas
e instrumentos de participação
popular – proposta do Plenário
Nacional Pró-participação Popular
na Constituinte; a previsão
constitucional de Reforma Agrária
– proposta da Campanha Nacional
pela Reforma Agrária; e os direitos
das nações indígenas – proposta do
Conselho Indigenista Missionário
(Cimi).
Tendo por base o texto
apresentado em maio do ano
anterior perante a Subcomissão
da Nacionalidade, esta proposta
de Emenda Popular era patrocinada
também pela Anaí-RS, Movimento
Justiça e Direitos Humanos do Rio
Grande do Sul (MJDH-RS) e Opan.
Nela o Brasil era definido
como uma “República Federativa
e Plurinacional” (art. 1.º), sendo
os índios reconhecidos como
possuidores de “nacionalidades
próprias, distintas entre si e da
nacionalidade brasileira, sem
prejuízo de sua cidadania” (art.
2.º, § único). A proposta também
declarava as Nações Indígenas
como pessoas jurídicas de direito
público interno (art. 3.º); reconhecia
seus direitos territoriais como
originários, e a existência de suas
próprias formas de organização
social, usos, costumes, tradições,
línguas, “e autonomia na gestão
dos bens e negócios que lhes
dizem respeito” (art. 4.º); incumbia
à União Federal a proteção a estas Cópia fac-símile da Proposta de Emenda Popular n.º 39 ao Projeto de
terras, instituições, pessoas, bens, Constituição, dispondo sobre as Nações Indígenas

199 WHITAKER, Francisco. Seminário 20 Anos da Constituição Federal de 1988. Op. cit., p.62.

100 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


saúde e educação (parágrafo único); garantia às Nações Indígenas e seus membros o uso oficial de suas
línguas nos municípios limítrofes, no órgão indigenista federal, perante o Poder Judiciário e o Congresso
Nacional (art. 5.º), bem como a escolarização de seus membros em língua portuguesa e em suas línguas
maternas (art. 6.º); conferia a tais Nações e suas organizações a legitimidade processual ativa (art. 10);
incumbia ao Ministério Público Federal a proteção judicial e extrajudicial à pessoa dos indígenas, bem
como ao patrimônio material e imaterial de suas Nações (art. 10, § 3.º), e subordinava a um “conselho de
representações indígenas” o órgão da administração federal encarregado da coordenação da execução
da política indigenista (art. 11).

Cópia fac-símile da Proposta de Emenda Popular nº 40 ao Projeto de Constituição, dispondo


sobre as Populações Indígenas
Cópia fac-símile da Proposta de Emenda Popular nº 40 ao Projeto de Constituição, dispondo sobre as Populações Indígenas

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 101


Em sua justificativa, as entidades proponentes da Emenda informavam que a proposta espelhava
anseios que vinham sendo externados pelos indígenas, não só no Brasil, mas nos demais países da América
Latina, de que as lentes etnocêntricas através das quais eram historicamente vistos pelo Estado, fossem
enfim superadas, expurgando-se de seus objetivos o paradigma incorporativista, e substituindo-o pelo
respeito à alteridade indígena.
Os autores da Emenda viam então como “a melhor fórmula jurídica” para garantir tal objetivo,
o reconhecimento constitucional das Nações Indígenas, cujos membros possuiriam “nacionalidade
própria, sendo todos, porém, cidadãos brasileiros”. Enfatizavam, porém, que as garantias territoriais daí
decorrentes, inclusive ao subsolo, “e o pleno exercício de sua cidadania” não importariam em ameaças
à integridade física ou à soberania política do Estado brasileiro, “ao qual nacionais não-indígenas e
indígenas igualmente se submetem”. Concluíam então que deveriam ser incluídos no Texto Constitucional,
“mecanismos eficientes de defesa destes direitos”, e de “participação das Nações Indígenas em todas
as instituições e instâncias onde se tomem decisões que as afetem”200.
Além da Proposta de Emenda do Cimi/Opan/MDH-RS e Anaí-RS, o campo indigenista apresentava
também uma outra proposta, cuja coleta de assinaturas fora responsabilidade da ABA, Conage e SBPC.
Tratava-se da proposta da UNI, apoiada por outras 14 entidades201, dispondo sobre as “Populações
Indígenas”, e que seguia em linhas gerais o texto da proposta unitária apresentado à Subcomissão de
Populações Indígenas em 22 de abril de 1987.
Diferentemente da proposta de Emenda Popular encabeçada pelo Cimi, a proposta da UNI
reconhecia a sociedade brasileira, e não o Estado, como pluriétnica (art. 1.º). No mais, garantia aos índios
o gozo de direitos especiais sem prejuízo de outros (art. 2.º); reconhecia-lhes sua organização social,
usos, costumes, línguas, tradições e direitos originários sobre as terras que ocupavam (§ 1.º); incumbia
à União a proteção às suas terras, instituições, pessoas, bens, saúde e educação (§ 2.º); garantia a suas
comunidades e organizações a legitimidade processual ativa (art. 6.º); atribuía ao Ministério Público a
defesa judicial e extra-judicial (art. 7.º) de sua pessoa, patrimônio material e imaterial e interesses (§ 1.º);
e condicionava a validade das relações contratuais potencialmente causadoras de prejuízo aos direitos
indígenas, à interveniência obrigatória do Ministério Público (§ 2.º).
Em 18 de maio as duas edições do “Informe Constituinte” do Cimi alertavam para a necessidade
de início das campanhas de coleta de assinaturas para as Emendas Populares, e para o atendimento das
exigências contidas no art. 24 do Regimento Interno da ANC: mínimo de 30 mil eleitores brasileiros;
patrocínio (organização) por no mínimo três entidades associativas legalmente constituídas que se
responsabilizassem pela idoneidade das assinaturas (nome completo e legível, endereços e título
eleitoral). No mês seguinte, em 3 de julho, o “Informe Constituinte” n.º16 anunciava a tentativa de se
superar, para a Emenda Popular das Nações Indígenas, a marca das 220 mil assinaturas.
Dando seqüência às atividades de apoio à Emenda Popular elaborada pelo Cimi, a CNBB
preparou, para o dia 8 de julho, o encontro “Nações Indígenas na Constituinte”, a ser coordenado por
D. Erwin Krautler, presidente do Cimi. Para o evento, D. Luciano Mendes de Almeida, presidente da
CNBB, havia convidado, por sugestão do Cimi, 32 constituintes, quase todos membros da Comissão
de Sistematização. O objetivo do encontro era divulgar e debater o texto da Emenda Popular sobre as
Nações Indígenas, oferecer subsídios para a defesa deste enfoque e discutir uma estratégia conjunta
de apoio na ANC.
Sintomaticamente, dos 32 Constituintes convidados apenas quatro compareceram: Nélson
Jobim (PMDB-RS), José Carlos Sabóia (PMDB-MA), Alceni Guerra (PFL-PR) e Haroldo Lima (PC do B-BA).
Em 12 de agosto, em meio ao clima hostil alimentado pelas manchetes do “Estadão”, eram
protocoladas junto ao presidente da Comissão de Sistematização, deputado Afonso Arinos (PFL-RJ),
as Propostas de Emenda Popular n.º 39 (sobre as “Nações Indígenas”), e n.º 40 (sobre as “populações

200 Vide inteiro teor no Anexo IV.


201 A Emenda era apoiada pelas seguintes entidades: Anaí-BA, CCPY, Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões,
Cedi, Confederação Israelita do Brasil, CPI-AC, CPI-SP, CTI, Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB),
Igreja Metodista, Inesc, Igreja Presbiteriana Unida, Projeto Kaiowá-Ñandeva (PKN), e Sindicato dos Engenheiros no
Estado de São Paulo.

102 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


indígenas”). A primeira Proposta, encabeçada pelo
Cimi, atingira a marca das 44.171 assinaturas válidas
de eleitores, enquanto que a segunda, mobilizada
pela UNI, chegara a 35 mil assinaturas válidas.
O momento de entrega das propostas,
marcado com uma grande “festa” por parte dos
movimentos sociais, ocorreu numa sessão que
contou com a presença de lideranças dos povos
Makuxi, Yanomami, Kiriri, Pataxó Hã-Hã-Hãe,
Xavante e Rikbaktsa.
Neste mesmo 12 de agosto, as delegações
indígenas ali presentes participaram também
de outras duas reuniões. A primeira, na sede da
CNBB, com o senador Severo Gomes (PMDB-SP).
Na ocasião, o líder Xaranhum Xavante, da Reserva
Indígena de São Marcos (MT), afirmou: “Direito
nosso, precisa aprovar para demarcar a terra e
cuidar tradição, cuidar costume, ritual. Isto que
não podemos acabar até fim do mundo. Nossa
vida continuar, nascimentos. Isso é o que deseja
a comunidade”. Ao avaliar a evolução da questão
indígena na Constituinte, Severo Gomes observou
que, com “a campanha iniciada pelo jornal O Estado,
é necessário realizar um plano de ação para reagir”
202
. (Grifo no original.)
A segunda reunião das lideranças indígenas
naquele dia, ocorreria no Congresso Nacional, com o
12/08/87 – Estacionamento do Anexo III da Câmara. deputado Alceni Guerra, ex-relator da Subcomissão
Júlio Gaiger e Paulo Machado Guimarães, advogados das Populações Indígenas, que reafirmou o
e assessores jurídicos do Cimi, levam à Comissão de compromisso dos parlamentares que já vinham se
Sistematização as Emendas Populares das “Nações posicionando favoravelmente aos direitos indígenas,
Indígenas”. para que os povos indígenas viessem a ser “donos
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.
de suas terras e de suas vidas”203.
No dia quatro de setembro de 1987, chegara o momento da defesa das Emendas Populares,
perante o Plenário da Comissão de Sistematização. De todas as Emendas, as das “Nações Indígenas”
(n.º40) e das “Populações Indígenas” (n.º 39) foram as últimas a serem apresentadas, num plenário
esvaziado. Dos mais de 90 membros da Comissão, apenas 27 estiveram presentes204. Além destes, outros
20, não-membros, assistiram à sessão205.

202 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º101, set. 1987; p.8.
203 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º101, set. 1987; p.8.
204 Os constituintes Ademir Andrade (PMDB-PA), Adolfo Oliveira (PL-RJ), Alceni Guerra (PFL-PR), Aluisio Campos (PMDB-
PB), Arnaldo Prieto (PFL-RS), Artur da Távola (PMDB-RJ), Adylson Motta (PDS-RS), Antônio Mariz (PMDB-PB), Carlos
Sant’Anna (PMDB-BA), Délio Braz (PMDB-GO), Enoc Vieira (PFL-MA) , Euclides Scalco (PMDB-PR), Edme Tavares
(PFL-PB), João Calmon (PMDB-ES), José Freire (PMDB-GO), José Luiz Maia (PDS-PI), José Lourenço (PFL-BA), José
Tinoco (PFL-PE), Luiz Salomão (PDT-RJ), Mozarildo Cavalcanti (PFL-RR), Mário Lima (PMDB-BA), Nelton Friedrich
(PMDB-PR), Renato Vianna (PMDB-SC), Roberto Freire (PCB-PE), Rose de Freitas (PMDB-ES), Sigmaringa Seixas
(PMDB-DF), e Siqueira Campos (PDC-GO).
205 Dos Constituintes não pertencentes à Comissão de Sistematização, assistiram à apresentação das Emendas Populares:
Anna Maria Rattes (PMDB-RJ), Amaury Muller (PDT-RS), Antônio Britto (PMDB-RS), Carlos Alberto Caó (PDT-RJ),
Edmilson Valentim (PC do B-RJ), Chico Humberto (PDT-MG), Gabriel Guerreiro (PMDB-PA), Gerson Camata (PMDB-ES),
Humberto Souto (PFL-MG), Heráclito Fortes (PMDB-PI), José Carlos Sabóia (PMDB-MA), José Dutra (PMDB-AM), Maria
de Lourdes Abadia (PFL-DF), Mário Covas (PMDB-SP), Marcelo Cordeiro (PMDB-BA), Nelson Aguiar (PMDB-ES), Olívio
Dutra (PT-RS), Sólon Borges dos Reis (PTB-SP),Valter Pereira (PMDB-MS), e Wagner Lago (PMDB-MA).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 103


12/08/87 – Na frente do Congresso Nacional, os povos indígenas (em primeiro plano um grupo Xavante) e outros
setores dos movimentos sociais festejam a entrega das Emendas Populares.
Foto: Edson Gês. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

12/08/87 - No auditório da CNBB, o líder Xaranhum Xavante discursa para o Senador Constituinte Severo Gomes.
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

104 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Primeiro a falar, o Coordenador da UNI,
Ailton Krenak, fez a defesa da Emenda das “Popu-
lações Indígenas”. De paletó branco, ao discursar
perante o plenário da Sistematização206, Ailton
pintava o rosto com uma tinta negra à base de
genipapo e declarava, denunciando a campanha an-
tiindígena deflagrada pelo “Estadão” e o retrocesso
no Substitutivo do relator Bernardo Cabral: “querem
atingir, na essência, a nossa fé, a nossa confiança de
que ainda existe dignidade, de que ainda é possível
construir uma sociedade que sabe respeitar aos
mais fracos, (...)”. E finalizou: “Os senhores são tes-
temunhas”. Calou-se então, num silêncio eloqüente
perante o plenário207. Era uma cena de profundo
apelo simbólico chamaria a atenção dos órgãos de
imprensa em todo o país, e internacionalmente,
para a presença indígena na ANC.
Em seguida, representando o Conselho
Indigenista Missionário, usou a palavra o advogado
Julio Gaiger, em defesa da Emenda Popular das
“Nações Indígenas”, através da leitura de um longo
04/09/87 – Representando a UNI, Aylton Krenak texto208, no qual se reportou ao tratamento dado aos
faz a defesa da Emenda Popular .º 40, sobre as indígenas desde o início das conquistas espanholas
“populações indígenas” .
no século XVI.
Foto: Josimar Gonçalves – Jornal de Brasília. Arquivo: Cimi –
Secretariado Nacional – Setor de Documentação.
No meio de sua exposição, o defensor da
proposta do Cimi foi aparteado pelo deputado José
Dutra (PMDB-AM), que manifestou o seu descontentamento com a idéia de superação do paradigma
assimilacionista até então contido nos textos constitucionais. Alegando ser “descendente, em 5.ª geração,
de índios, dos Saterês-Mauês”, o Constituinte acusou a proposta do Cimi de isolacionista, ao dizer que,
se adotada, teria inviabilizado a sua participação na Assembléia Nacional Constituinte: “eu teria que
estar confinado a uma das malocas dos Saterês-Mauês, lá no meu Município de Barreirinha, no Estado
do Amazonas”, disse o parlamentar. Depois, passou a atacar a proposta de reconhecimento do caráter
plurinacional do Estado brasileiro, dizendo que:

Isso seria negar a luta, seria negar todo o passado de luta de nossos ancestrais, daqueles
como os bandeirantes, que invadiram o Oeste, buscando dilatar a nossa fronteira, preservando
os nossos interesses, para que hoje tivéssemos um País deste tamanho, falando a mesma
língua, o mesmo idioma, de norte a sul e de leste a oeste209. (Grifos nossos)

Agradecendo e dizendo entender a opinião do constituinte, Júlio Gaiger desdenhou da questão


colocada, respondendo simplesmente: “penso já ter antes produzido os esclarecimentos doutrinários
necessários ao deslinde da questão”. A resposta lhe valeu palmas prolongadas do plenário.
Nas duas semanas seguintes diversos membros dos Regionais do Cimi permaneceram em
Brasília, percorrendo gabinetes e auxiliando no contato com os Constituintes. Contudo, estes foram
poucos uma vez que grande parte dos parlamentares estava ausente da cidade, em razão do adiamento
do prazo de apresentação de emendas. Não se conseguiu então, naquele momento, uma avaliação mais
precisa sobre os impactos das propostas de emenda popular sobre a Comissão de Sistematização.

206 Vide discurso na íntegra em “Anexo IV”.


207 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º102, out. 1987; p.7.
208 Vide texto na íntegra em “Anexo IV”.
209 BRASIL. ANC (Atas das Comissões). Comissão de Sistematização. Ata da 23.ª Reunião Extraordinária (04.09.87);
p.564. Disponível em: <http://www.congresso.gov.br/anc88/> (Acessado em 25.10.2008).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 105


3.2.4. O 2º Substitutivo do deputado Bernardo Cabral.
No dia 18 de setembro, portanto 14 dias após a defesa das propostas de Emendas Populares,
o deputado Bernardo Cabral apresentava o texto do 2.º Substitutivo ao Projeto de Constituição da
Comissão de Sistematização:

Projeto de Constituição – 2.º Substitutivo do Relator


(18 de setembro de 1987)
Art. 12. A língua nacional do Brasil é a portuguesa, e são símbolos
nacionais a bandeira, o hino, as armas da República e o selo nacional já
adotados na data da promulgação desta Constituição.
(...)
Art. 14. É vedada a cassação de direitos políticos, e a perda destes
dar-se-á:
(...)
II – pela incapacidade civil absoluta;
(...)
Art. 19. Incluem-se entre os bens da União:
(...)
IX – as terras de posse imemorial, onde se achem permanentemente
localizados os índios;
(...)
Art. 21. Cabe privativamente à União legislar sobre:
(...)
XIV – populações indígenas;
(...)
Art. 28. Incluem-se entre os bens dos Estados:
(...)
V – as terras dos extintos aldeamentos indígenas;
(...)
Art. 55. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
(...)
XVIII – autorizar a exploração de riquezas minerais em terras
indígenas;
(...)
Art. 128. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
XI – disputas sobre direitos indígenas;
(...)
Art. 151. São funções institucionais do Ministério Público, na área de
atuação de cada um dos seus órgãos:
(...)
V – defender, judicial e extrajudicialmente, os direitos e interesses das
populações indígenas, quanto às terras que ocupam, seu patrimônio material e
imaterial, e promover a responsabilidade dos ofensores.
(...)
Art. 195. (...)
(...)

106 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


§ 3.º – O Estado organizará a atividade garimpeira em cooperativas,
levando em conta a proteção ao meio-ambiente e a promoção econômico-social do
garimpeiro, dando-lhes prioridade na autorização ou concessão para pesquisa e
lavra dos recursos e jazidas minerais, nas áreas onde já estejam atuando.
(...)
Art. 198. O aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica e a
pesquisa e a lavra de recursos e jazidas minerais somente poderão ser efetuadas
por empresas nacionais, mediante autorização ou concessão da União, na forma
da lei, que regulará as condições específicas quando essas atividades se
desenvolverem em faixa de fronteira ou em terras indígenas.
(...)
Art. 236. (...)
§ 1.º – O ensino, em qualquer nível, será ministrado na língua portuguesa,
assegurado às comunidades indígenas o uso também de suas línguas maternas e
processos próprios de aprendizagem.
(...)
Art. 243. (...)
Parágrafo único. O Estado protegerá em sua integridade e desenvolvimento as
manifestações da cultura popular, das culturas indígenas, das de origem africana
e das de outros grupos participantes do processo civilizatório brasileiro.
Título VIII – Da Ordem Social
Capítulo VIII – Dos Índios
Art. 261 – São reconhecidos aos índios seus direitos originários sobre
as terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados,
sua organização social, seus usos, costumes, línguas, crenças e tradições,
competindo à União a proteção desses bens.
§ 1.º – Os atos que envolvam interesses das comunidades indígenas terão
a participação obrigatória de órgão federal próprio e do Ministério Público,
sob pena de nulidade.
§ 2.º – A exploração das riquezas minerais em terras indígenas só pode
ser efetivada com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades
afetadas, e obriga à destinação de percentual sobre os resultados as lavra em
benefício das comunidades indígenas e do meio-ambiente, na forma da lei.
Art. 262. As terras de posse imemorial dos índios são destinadas à sua
posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas naturais do
solo, dos recursos fluviais e de todas as utilidades nelas existentes.
§ 1.º – São terras de posse imemorial onde se acham permanentemente
localizados os índios, aquelas destinadas à sua habitação efetiva, às suas
atividades produtivas e as necessárias à sua preservação cultural, segundo
seus usos, costumes e tradições.
§ 2.º – As terras referidas no parágrafo anterior são bens inalienáveis
e imprescritíveis da União, cabendo a esta demarcá-las.
§ 3.º – Fica vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo
nos casos de epidemia, catástrofe da natureza e outros similares e de interesse
da soberania nacional, ficando garantido o seu retorno quando o risco estiver
eliminado.
Art. 263. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa dos interesses e direitos indígenas.
Art. 264. Os direitos previstos neste capítulo não se aplicam aos índios
com elevado estágio de aculturação, que mantenham uma convivência constante
com a sociedade nacional e que não habitem terras indígenas.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 107


Título IX – Disposições Transitórias
Art. 35. O Poder Público reformulará, em todos os níveis, o ensino da
história do Brasil, com o objetivo de contemplar com igualdade a contribuição
das diferentes etnias para a formação multicultural e pluriétnica do povo
brasileiro.
Art. 37. Quando tal providência não houver sido efetivada anteriormente,
a União demarcará as terras ocupadas pelos índios, devendo o processo
estar concluído no prazo de cinco anos, contados da promulgação desta
Constituição.
(Fonte: GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 24, de 21 de setembro de 1987, p.3. Grifos nossos.)

No dia 21 de setembro, a assessoria do Cimi avaliava que o relator da Sistematização havia


conseguido “piorar o texto do 2.º Substitutivo”, indicando que o Constituinte poderia estar “com
manifesta má fé em relação ao tratamento da questão indígena na Constituinte”. Segundo o “Informe”,
havia ficado:
praticamente todo perdido o trabalho anterior das Subcomissões e Comissões, na medida em
que se deram excessivos poderes ao relator da Sistematização. Matérias que foram aprovadas
pelo voto, após exaustivas discussões e composições, foram completamente desvirtuadas, e
hoje figuram no texto pré-constitucional justamente as formulações que, antes, já haviam
sido derrotadas. Perdeu-se, portanto, a vantagem da concepção inicial, que previa uma
Constituição debatida a partir das propostas, de forma ampla e aberta210.
Em outubro (dias 5 a 7), os índios voltam a pressionar os Constituintes. Desta vez uma delegação
de 27 indígenas nordestinos, dos povos Fulni-ô (PE), Xukuru-Kariri (AL), Kariri-Xokó (AL) e Pankararu
(PE), somava-se a 8 mil trabalhadores rurais de todo o país que viajaram a Brasília a fim de pressionar
pela garantia da reforma agrária no texto constitucional. Empunhando a faixa com os dizeres “Terra dos
Índios, Direito Sagrado”, o grupo defendia a necessidade de reforma agrária, inclusive como forma de
eliminar as pressões sobre os territórios indígenas211.
Em 12 de novembro, ao aproximar-se o momento da votação do capítulo “Dos Índios”, a
assessoria jurídica do Cimi, visando a melhoria do texto do 2.º Substitutivo, trabalhou junto ao senador
Severo Gomes (PMDB-SP) a formulação de um acordo que pudesse atrair votos do bloco de centro-
direita. A tentativa, entretanto, esbarrava na resistência do deputado José Lourenço, que, seguindo a
orientação do Conselho de Segurança Nacional, procurava garantir a manutenção das teses postas no
Substituivo.
No sábado 14 de novembro encerrava-se o prazo final da Comissão de Sistematização para
a votação do Título VIII, relativo à Ordem Social. Contudo, a sessão encerrava-se sem a votação dos
capítulos “Do Meio Ambiente” (VI), “Da Família, Criança, Adolescente e Idoso” (VII), e “Dos Índios” (VIII).
A fim de garantir a votação destes capítulos, evitando que fossem remetidos sem votação ao Plenário
da ANC, chegou a ser apresentado um requerimento com o objetivo de se prorrogar a sessão. Contudo,
votado às 20:30 hs o requerimento foi rejeitado por 49 a 43 votos212.

210 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 24. Brasília : Cimi, 21.set.1987 (mimeo).
211 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º 103, nov. 1987; p.6.
212 Contra a prorrogação da sessão votaram os constituintes Aluízio Campos (PMDB-PB), Bernardo Cabral (PMDB-AM),
Cid Carvalho (PMDB-MA), José Geraldo (PMDB-MG), José Richa (PMDB-PR), José Ulisses de Oliveira (PMDB-MG),
Mário Lima (PMDB-BA), Milton Reis (PMDB-MG), Nilson Gibson (PMDB-PE), Raimundo Bezerra (PMDB-CE), Rodrigues
Palma (PMDB-MT), Theodoro Mendes (PMDB-SP), Daso Coimbra (PMDB-RJ), Délio Braz (PMDB-GO), José Tavares
(PMDB-PR), Márcio Braga (PMDB-RJ), Marcos Lima (PMDB-MG), Aloysio Chaves (PFL-PA), Arnaldo Prieto (PFL-RS),
Carlos Chiarelli (PFL-RS), Christóvam Chiaradia (PFL-MG), Eraldo Tinoco (PFL-BA), Francisco Benjamin (PFL-BA),
José Jorge (PFL-PE), José Santana de Vasconcelos (PFL-MG), José Thomaz Nonô (PFL-AL), Luiz Eduardo (PFL-BA),
Mário Assad (PFL-MG), Oscar Corrêa (PFL-MG), Osvaldo Coelho (PFL-PE), Paulo Pimentel (PFL-PR), Ricardo Fiúza
(PFL-PE), Sandra Cavalcanti (PFL-RJ), Annibal Barcellos (PFL-AP), Enock Vieira (PFL-MA), Jonas Pinheiro (PFL-MT),
José Lourenço (PFL-BA), Darcy Pozza (PDS-RS), Gérson Peres (PDS-PA), Jarbas Passarinho (PDS-PA), José Luiz Maia
(PDS-PI), Virgílio Távora (PDS- CE), Gastone Righi (PTB-SP), Ottomar Pinto (PTB-RR), Adolpho de Oliveira (PL-RJ) e
Siqueira Campos (PDC-GO).

108 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


E assim os capítulos mencionados foram aprovados por “decurso de prazo”, e remetidos
ao Plenário com a mesma redação dada pelo 2.º Substitutivo do relator Bernardo Cabral. Segundo a
assessoria do Cimi para a Constituinte, avaliava-se à época que havia condições para colocar em votação,
e com “boas possibilidades de vitória”, a proposta de melhoria do Substitutivo, articulada com o senador
Severo Gomes. Tal possibilidade, contudo, nem chegou a ser tentada, graças à derrota da prorrogação
daquela última sessão213.
As perspectivas negativas, contudo, não esfriaram o ânimo do movimento indígena. Em 19 de
novembro uma delegação de representantes de 21 povos e organizações indígenas da faixa de fronteira
da região Norte levou à ANC os seus protestos e reivindicações. O grupo formado por indígenas Marubo
(AM), Karipuna e Galibi (AP), Apurinã (AC), Kaxarari (RO), e membros do Conselho Indígena de Roraima
(CIR), Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN (AM), Associação das Mulheres
Indígenas do Alto Rio Negro (AM) e Conselho Geral das Tribos Tikuna – CGTT (AM), entregava aos
constituintes a “Carta dos Povos Indígenas na Faixa de Fronteira”. Em seu discurso, reivindicou Clóvis
Ambrósio Wapixana (RR): “Queremos que seja respeitado o direito do índio, como ele é, como ele vive,
(...). Só porque o índio usa relógio não é mais índio, porque fala o português não é mais índio. Mas na
casa dele é índio, vive como índio” 214. Protestando contra o teor do 2.º Substitutivo do relator Bernardo
Cabral, Pedro Inácio Tikuna (AM) denunciava:
dizem que Tikuna não é mais índios, porque usa sapato igual ao branco. E igual porque sabe
falar português e lê um pouquinho não são mais índio. Não é verdade. São índio porque
nós conhecemos a nossa história. Sabemos andar no mato, temos nossos remédio próprio.
E nossa tradição, nosso costume, nossa língua. Nós escrevemos na nossa própria língua. É
o próprio índio que são brasileiro215.

3.3. O acompanhamento aos trabalhos


no Plenário da ANC
Devido à ausência de votação na Comissão de Sistematização, o capítulo “Dos Índios” integrou
o Projeto de Constituição “A”, tal qual havia sido posto no segundo Substitutivo do Relator.
O Projeto de Constituição “A” deveria consistir, no início dos trabalhos do Plenário da Assembléia
Nacional Constituinte (ANC), no texto de referência a ser emendado e votado pelos constituintes. Contudo,
o “Centrão” havia imposto modificações ao Regimento Interno da ANC, que passara a dar primazia – para
o efeito de votação no Plenário – às chamadas “Emendas Coletivas” apresentadas pelo número mínimo
de 280 constituintes. O Projeto “A” passava então a ser substituído por tais emendas, todas apresentadas
pelo chamado “Centrão”. Em relação à questão indígena, as “Emendas Coletivas” do Centrão eram tão
ruins ou até mesmo piores que o texto do Projeto “A”, oriundo da Sistematização.

3.3.1. O 1.º Turno de votações.


Em 27 de janeiro de 1988 tem início o primeiro turno de votações no Plenário da ANC.
Diferentemente das etapas anteriores, as atenções agora são voltadas para os constituintes em geral,
sobretudo aqueles considerados indecisos ou até mesmo não simpáticos à causa indígena. Nesse sentido,
a fim de orientar o trabalho de sensibilização dos parlamentares, a assessoria do Cimi na ANC indicava
uma lista, por estados, daqueles que deveriam receber atenção preferencial das bases missionárias da
entidade, através de contatos pessoais e envio de cartas216.

213 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 27.Brasília : Cimi, 16.nov.1987 (mimeo).
214 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º104, dez. 1987; p.9.
215 cf. Idem, Ibidem; p.9.
216 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 30. Brasília : Cimi, 04. fev.1988 (mimeo).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 109


Do trabalho de levantamento das propostas dos constituintes junto ao Plenário, o Cimi destacou,
em fevereiro de 1988, uma série de parlamentares que se notabilizavam pelas posições contrárias aos
direitos indígenas217. Assim, por exemplo, mencionava: o constituinte Álvaro Valle (PL-RJ), autor de uma
emenda que visava suprimir o § 1.º do art. 243, que assegurava aos índios o ensino em suas línguas
maternas e o uso de seus processos próprios de aprendizagem; os constituintes Moisés Pimentel (PMDB-
CE), Cleonâncio Fonseca (PFL-SE) e Gustavo de Faria (PMDB-RJ) que propunham retirar a qualificação de
“originários” dos direitos indígenas, prevista no art. 269, e, no § 1.º, condicionar a validade dos atos
que envolvessem interesses indígenas à participação do órgão federal próprio; mencionava também o
deputado Jovanni Masini (PMDB-PR), que desejava condicionar a demarcação das terras indígenas (art.
26 das Disposições Transitórias) a lei complementar e limitar a homologação das demarcações apenas às
que já se encontrassem registradas em registros imobiliários até 1.º de fevereiro de 1987 (apenas 6,18%
das terras indígenas), e o deputado Marcelo Cordeiro (PMDB-BA), que defendia a retirada da exigência
de lei específica sobre mineração em terras indígenas.
Para fazer face às articulações do “Centrão” e da bancada “antiíndio” na ANC, chegou a ser
formada, em março de 1987, uma “Frente Parlamentar pró-Índio”, com o intuito de fazer na Constituinte
a defesa articulada das propostas relativas aos direitos indígenas. Composta inicialmente por 46
parlamentares de vários partidos, a “Frente” era coordenada pelo deputado Tadeu França (PDT-PR).
Além do encaminhamento de propostas na ANC, o grupo se propunha ainda a efetuar denúncias, dando
visibilidade a casos de violências contra os povos indígenas.
Em uma de suas reuniões, em 16 de março, a Frente Parlamentar tratou da questão da
exploração mineral em terras indígenas, tendo como subsídio os dados do Cedi, apresentados pelo
antropólogo Carlos Alberto Ricardo. Com o apoio de um grande mapa elaborado pela entidade, o
antropólogo informou aos constituintes que 25% do subsolo da região amazônica já seriam objeto
de requerimento de exploração mineral, o que equivaleria a “23 mil e 973 áreas”, perfazendo uma
extensão total de “1 milhão e 300 mil quilômetros quadrados” requeridos junto ao Departamento
Nacional de Produção Mineral (DNPM). Dizia ainda o antropólogo que a maior parte do subsolo da
Amazônia já estaria controlada por 21 grupos econômicos (51,5% do total) e que 33,5% da extensão
total das terras indígenas na região estariam com o subsolo reservado a empresas de mineração. Em
relação a estas terras, 560 Alvarás já estariam concedidos, havendo ainda 1 mil 685 requerimentos
em tramitação no DNPM 218.

16/03/88 – Frente Parlamentar do Índio debate a questão da mineração em terras indígenas.


Fotos: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

217 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 31. Brasília : Cimi, 11. fev. 1988 (mimeo).
218 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano XI, n.º107, abril.1988, p.5.

110 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


A essa altura, na seqüência dos dispositivos decididos pelo Plenário da ANC em primeiro turno,
quatro itens de interesse dos povos indígenas haviam sido votados. O primeiro, o inciso X do art. 22
enumerando os bens da União, assim aprovado:
Art. 22. Incluem-se entre os bens da União:
(...)
X – as terras ocupadas permanentemente pelos índios. (Grifos nossos.)
O segundo dispositivo votado, o item XIV do art. 22 dispondo sobre as competências legislativas
da União Federal, ficou assim aprovado:
Art. 24. Cabe privativamente à União legislar sobre:
(...)
XIV – Populações indígenas. (Grifos nossos.)
O terceiro, o item V do art. 28 que dispunha sobre os bens dos Estados da federação, que tanta
inquietação vinha trazendo aos povos indígenas, por incluir “entre os bens dos Estados”, as terras de
“extintos aldeamentos indígenas”, já não tivera uma votação tranqüila como as anteriores. Segundo o
“Informe Constituinte”, esta destinação havia sido originalmente proposta pela assessoria do senador
Mário Covas (PMDB-SP), preocupada com os casos existentes em São Paulo, de disputas judiciais entre o
estado e a União, envolvendo terras “que já foram indígenas (hoje não o são mais, pois todos os índios
foram exterminados)”. Contudo, observava que ainda na Comissão de Sistematização a redação dada
pelo relator Bernardo Cabral implicava:
em séria ameaça a muitas comunidades indígenas, principalmente no Nordeste, cujos
aldeamentos foram ilegalmente extintos no passado, apesar de os índios existirem até hoje.
Por outro lado, o dispositivo abre a possibilidade de que se volte à prática de extinção de
aldeamentos219.
No primeiro turno do Plenário da ANC, foram apresentadas duas emendas em relação a tal
dispositivo: uma supressiva e outra modificativa. Esta última, subscrita pelo líder do PMDB, senador Covas
(PMDB-SP), teve a preferência na votação. Havia sido trabalhada pela assessoria do Cimi junto à equipe
do senador, como redação alternativa que minimizasse os efeitos da redação dada pelo Substitutivo.
Infelizmente,
o Senador imaginou que esta emenda teria trânsito fácil, e deixou de incluí-la na discussão
para acordo.O resultado foi funesto. Como o Plenário sequer ficou sabendo que o dispositivo
emendado era, de certa forma, oriundo do próprio autor da emenda, setores de centro e
de direita entenderam a emenda como uma ameaça ao patrimônio dos Estados. O próprio
relator, dep. Bernardo Cabral, encaminhou contra a emenda (Mário Covas sequer tomou
o cuidado de conversar previamente com o relator). Assim, a emenda obteve apenas 250
votos favoráveis, e 188 votos contra. Exigem-se, no mínimo, 280 votos para aprovação das
emendas, e o texto foi mantido como estava, pela falta de 30 votos...220
Esta desarticulação serviu, contudo, para que os assessores do Cimi obtivessem da equipe de
Covas o compromisso de trabalhar o quanto antes para a supressão do dispositivo, no segundo turno
de votações em plenário.
O quarto e último dispositivo de interesse indígena votado até aquele momento havia sido
o inciso XVI do art. 59 que incluía, entre as hipóteses da competência exclusiva do Congresso Nacional,
“autorizar a exploração de riquezas minerais em terras indígenas”. Através de uma emenda modificativa
do deputado Rubem Figueiró (PMDB-MS), setores contrários pretendiam limitar a competência do
Congresso a “fiscalizar e controlar” a atividade mineraria em terras indígenas. Discursos favoráveis à
emenda foram feitos pelos deputados Gabriel Guerreiro (PMDB-PA) e Nilson Gibson (PMDB-PE). Pela
manutenção do texto falaram os deputados Octávio Elísio (PMDB-MG) e Virgildásio de Senna (PMDB-
BA). Este abriu na tribuna um enorme mapa, elaborado pelo Cedi, no qual era possível visualizar todas

219 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 32. Brasília : Cimi, 17. mar.1988 (mimeo).
220 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 30. Brasília : Cimi, 04. fev.1988 (mimeo).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 111


as concessões minerais na Amazônia, dentro e fora das terras indígenas. Podia-se também observar o
monopólio de grandes mineradoras, inclusive estrangeiras, sobre o subsolo amazônico. A visão do mapa
causou grande impacto no plenário221.
A emenda modificativa do deputado Rubem Figueiró foi finalmente rejeitada por 399
votos, obtendo apenas 35 votos favoráveis. Contudo, para tal resultado havia contribuído, também, o
entendimento do “Centrão”, contrário à alteração do texto.
Em 18 de março, a preocupação com a possibilidade de exploração mineral e com o art. 271
(incluído pelo relator da Comissão de Sistematização), que excluía da proteção específica os índios “em
elevado estágio de aculturação”, levava até o Congresso Nacional um grupo de 50 anciãos Kayapó das
aldeias do sul do Pará. Entoando seus cantos tradicionais, os indígenas acabaram levando o presidente
da Constituinte, deputado Ulisses Guimarães, a suspender os trabalhos de votação do plenário para
recebê-los.

221 Foram também distribuídos exemplares da publicação “Empresas de Mineração e Terras Indígenas na Amazônia”, reedição
de um estudo conjunto do Cedi e Conage.

112 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


18/03/88 – Anciãos Kayapó das aldeias do sul do Pará, em visita à Assembléia Nacional Constituinte, são recebidos
pelo presidente da ANC, deputado Ulysses Guimarães. Fotos: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

Através de Raoni Mentuktire, os Kayapó presentearam o presidente da Constituinte com um


cocar, e externaram as suas preocupações e desejos em relação ao texto em construção. Depois, o grupo
retirou-se executando cânticos e danças rituais, aplaudido pelos constituintes. Naquele momento, os índios
afirmavam que retornariam, na companhia de lideranças de vários outros povos de todo o país222.
No mês seguinte, o 1.º turno de votações no Plenário tratava do inciso V do art. 158, relativo
às funções institucionais do Ministério Público (MP). Uma emenda do “Centrão” retirava a previsão da
defesa extrajudicial constante no Projeto vindo da Sistematização, e remetia a atuação do MP em defesa
dos direitos indígenas à lei ordinária, “com o risco de se entender que a atuação do Ministério Público,
em se tratando da defesa dos direitos indígenas, devesse aguardar lei que a regulamentasse”223.
Temendo que o questionamento à redação do “Centrão” pusesse em risco as conquistas até
então obtidas nas negociações em torno das funções do MP, a liderança do PMDB havia preferido não
arriscar. Além disso, avaliava que a defesa extrajudicial já estaria incluída na judicial, entendendo ser
mais uma questão redacional a diferença entre o texto do “Centrão” e a formulação do Projeto. Foi então
que os deputados José Carlos Sabóia (PMDB-MA) e Haroldo Lima (PC do B-BA) tomaram a iniciativa de
procurar o deputado Bonifácio de Andrada (PDS-MG), interlocutor do “Centrão”, e obtiveram assim a
concordância para suprimir a expressão “na forma da lei”.
Após a votação, o texto ficou assim redigido:
Art. ... São funções institucionais do Ministério Público:
(...)
V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas.
Avaliando o episódio do ponto de vista político, disse à época a assessoria do Cimi na ANC:
A facilidade com que o dep. Bonifácio de Andrada aceitou suprimir a expressão “na forma
da lei” deixou-nos a impressão de que teria sido possível obter uma redação ainda melhor,
se tivéssemos procurado esse deputado com mais tempo. Inibiu-nos o receio da liderança do
PMDB, de arriscar outros pontos do acordo. O recuo da liderança do PMDB não se deve,
tanto, ao crescimento do Centrão (...). Deve-se, mais, às dissidências do próprio PMDB
que, afastando da liderança do partido (Ulysses Guimarães) parlamentares de expressão,
esvaziaram a força de negociação do PMDB. Não há, portanto, o fortalecimento do Centrão;
há o enfraquecimento do PMDB224.

222 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano XI, n.º107, abr. 1988; p.3.
223 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º33. Brasília : Cimi, 21.abr.1988 (mimeo).
224 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 33, op. cit.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 113


Ao mesmo tempo, informava também, quanto à proximidade da votação do capítulo “Dos
Índios”, já estar “encaminhando as gestões para consolidar o acordo” para a sua votação, “antecipando
conversas e propondo o ‘fechamento’ de posições” sobre as emendas apresentadas pelo deputado Alceni
Guerra (PFL-PR) e pelo Senador Jarbas Passarinho (PDS-PA), e sobre os destaques dos deputados Carlos
Cardinal (PDT-RS) e Fábio Feldman (PMDB-SP), e do senador Mário Covas (PMDB-SP). Solicitava, a seguir,
“pressão das bases, cobrando adesão” a tais emendas e destaques.
Entre o final de abril e o início de maio, a assessoria do Cimi afirmava, quanto à questão
da exploração mineral em terras indígenas, que se havia abandonado a tese da estatização daquela
atividade, “pois insistir nela poria em risco a possibilidade de se “resgatar a redação do capítulo sobre
os índios, conforme constou até o Primeiro Projeto de Constituição”. Assim, prosseguia, “as emendas
que formulamos, propositalmente, excluem qualquer referência à mineração em terras indígenas”225.
Em 28 de abril o Plenário aprovava o texto do art. 205, que nacionalizava (mas não estatizava)
a atividade minerária em terras indígenas. No placar constavam 343 votos favoráveis, 126 contrários,
17 abstenções e 73 ausências.
O texto aprovado resultava na seguinte formulação:
Art. 205. As jazidas, minas e demais recursos minerais e os potenciais de energia hidráulica
constituem propriedade distinta da do solo para efeito de exploração ou aproveitamento
industrial e pertencem à União, garantida ao concessionário ou autorizado a propriedade
do produto da lavra.
§ 1.º – É assegurada ao proprietário do solo a participação nos resultados da lavra; a lei
regulará a forma e o valor da participação.
§ 2.º – O aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica e a lavra de recursos e jazidas
minerais somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão da União, no
interesse nacional, por brasileiros ou empresa brasileira de capital nacional, na forma da
lei, que regulará as condições específicas quando estas atividades se desenvolverem em faixa
de fronteira ou terras indígenas.
§ 3.º – A autorização de pesquisa será sempre por prazo determinado e as autorizações
e concessões previstas neste artigo não poderão ser cedidas ou transferidas, total ou
parcialmente, sem prévia anuência do poder concedente.
§ 4.º – Não dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento do potencial de energia
renovável de capacidade reduzida. (Grifos nossos.)
Dias depois, no início de maio de 1988, os Kayapó cumpriam a promessa feita ao presidente da
ANC, deputado Ulysses Guimarães. Retornavam a Brasília juntamente com mais de cem outras lideranças
indígenas, de diversas regiões do país. As delegações indígenas vieram decididas a aguardar a votação
do capítulo “Dos Índios”. Acabariam permanecendo no local por três semanas seguidas, alojados pelo
Cimi na antiga Escola Santa Maria226, na quadra 905, da Asa Norte, local onde se dariam quase que
diariamente as reuniões de avaliação e planejamento com a assessoria da entidade.
Como parte de seu trabalho de sensibilização, os índios percorreram quase todos os gabinetes
dos constituintes. Para o jornal “Porantim”, eles souberam cativar as pessoas durante sua permanência
no cenário da ANC: “no Congresso, podiam-se ver nos corredores diversos funcionários, repórteres e
fotógrafos com o broche em favor da causa indígena pregado na lapela”. Até mesmo “a bandeira do Brasil
que carregaram algumas vezes em manifestações na Assembléia Nacional Constituinte foi oferecida por
uma escola de primeiro grau localizada próximo ao acampamento”227.
Em 10 de maio de 1988, um fato deixava bastante preocupada a assessoria do Cimi e os
demais apoiadores da causa indígena. Naquele dia, uma grande derrota era impingida à proposta da
Reforma Agrária. Através de um destaque para votação em separado (DVS) apresentado pelo “Centrão”,
225 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 34. Brasília : Cimi, s./d. [entre 28.abr. e 10. mai. 1988]. (mimeo).
226 Local onde hoje funciona a instituição Pontifícias Obras Missionárias (POM).
227 CIMI. “Porantim”, Brasília, ano XI, n.º109, jun. 1988; p.9.

114 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


era excluída a desapropriação das propriedades chamadas “produtivas”. Ali, “os progressistas não foram
capazes de reunir os 280 votos necessários para impedir a estratégia vitoriosa do Centrão”. Com isso,
chamava a atenção a assessoria do Cimi:
O resultado desta votação adverte-nos de que não serão poucas as dificuldades para garantir
os 280 votos necessários para a aprovação das emendas indigenistas relativas ao capítulo
sobre os índios. Estaremos tentando articular um acordo que seja assumido pelas lideranças,
mas são previstos obstáculos à supressão do art. 271. Neste sentido, os leitores do Informe
devem intensificar seus esforços para que os constituintes de sua região sejam incentivados
a apoiar as emendas pró-índio228. (Grifos nossos)

Manuel Moura
Tukano e
Nailton Pataxó
Hã-Hã-Hãe
discursam
perante a Frente
parlamentar
Pró-Índio.
Fotos: Filme “Os
Direitos Indígenas na
Constituinte” (Cimi,
1989).

Domingos Veríssimo Terena fala aos constituintes em Reunião da Frente Parlamentar Pró-Índio.
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – Setor de Documentação.

No dia 19 de maio chegara a vez da votação do Capítulo relativo à Educação, Cultura e Desporto,
que incluía dois importantes dispositivos para os povos indígenas: um, relativo a uma educação escolar
diferenciada, e outro que tratava da necessidade de proteção à diversidade cultural no país. Após a
votação, o texto ficou da seguinte forma:

228 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 35. Brasília : Cimi, 11.mai.1988 (mimeo).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 115


Enayê Mairê Guarani fala à Frente Parlamentar Pró-Índio.
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – Setor de Documentação.

Art. 244. O ensino regular será ministrado na língua portuguesa, assegurada às


comunidades indígenas a utilização também de suas línguas maternas e processos próprios
de aprendizagem, no ensino fundamental.
Art. 250. (...)
Parágrafo único. O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e
afro-brasileiras e das de outros grupos participantes do processo civilizatório brasileiro.
Ainda naquele dia, uma notícia vinda de organizações ligadas à Proposta de Emenda Popular
n.º 39, que tratara das “Populações Indígenas”, confirmava as preocupações lançadas anteriormente
pela assessoria do Cimi: o deputado Bonifácio de Andrada (PDS-MG), do “Centrão”, havia declarado
a representantes da UNI, ABA, CEDI e CPI-SP, que sua posição a respeito do capítulo sobre os índios
seria determinada pelo CSN. Outros constituintes vinculados explicitamente às teses do CSN eram os
deputados José Lins (PFL-CE), José Dutra (PMDB-AM), e Ottomar Pinto (PTB-RR)229. Não seria fácil conseguir
votos suficientes à aprovação do Capítulo “Dos Índios” conforme as teses indigenistas anteriormente
aprovadas na fase da subcomissão.
Foi então que o senador Severo Gomes (PMDB-SP) passou a assumir, entre as demais lideranças
partidárias, o papel de articulador de um acordo para aquele capítulo específico. O senador o fazia
em substituição ao deputado Artur da Távola (PMDB-RJ), que havia sido formalmente designado pela
liderança do partido a negociar todo o título da Ordem Social, porém não havia conseguido fazê-lo, ao
menos em relação ao capítulo “Dos Índios”.
A respeito dos esforços e das dificuldades na tentativa de se costurar acordos com representantes
do “Centrão” para se garantir o mínimo de 280 votos necessários, assim relatava o assessor do Cimi
para a Constituinte, o advogado Julio Gaiger:
Procurando diminuir as resistências do “Centrão”, pedimos a interferência direta de vários
Bispos, que conversaram com parlamentares centristas, explicando a necessidade de serem
apoiadas as emendas identificadas no livro “Os Índios Podem Viver: a Constituinte deve

229 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 36. Brasília : Cimi, 02.jun.1988 (mimeo).

116 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


assegurar este direito”, e buscando sensibilizá-los para estas teses. O Dep. Eraldo Trindade230
também acusou o recebimento de muitas mensagens, todas insistindo no apoio às emendas
pró-índio. Por outro lado, mantínhamos conversas diárias com o sen. Jarbas Passarinho,
discutindo as propostas que lhe eram formuladas pelo CSN. Chegamos a compartilhar a
sala de espera do senador com o comandante Afonso, do Conselho de Segurança Nacional,
aguardando a audiência. Após conversar conosco, aguardamos na sala de espera enquanto
o senador propunha ao comandante Afonso convidar-nos para uma conversa conjunta,
conforme havíamos combinado. Contudo, através de um assessor do senador, o comandante
informou-nos que tinha “instruções superiores” que o impediam de discutir a questão indígena
diretamente conosco231. (Grifo no original.)

Cartilha “Os Índios Podem Viver – A Constituinte deve assegurar este direito” produzida pelo Secretariado Nacional do
Cimi, com as propostas de Emendas pró-índio.

Chegara então o dia 24 de maio. A votação do capítulo “Dos Índios” no primeiro turno do
Plenário da ANC estava marcada para o dia seguinte. Acampados em Brasília desde os primeiros dias
daquele mês, os indígenas buscavam aproveitar aquelas últimas horas para obter visibilidade nas suas
reivindicações e marcar o apoio de importantes setores. Realizaram um extenso roteiro de visitas: foram
à Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, à Procuradoria-Geral da República (PGR), ao
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), à Presidência da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB) e à Reitoria da Universidade de Brasília (UnB).
No Ministério da Justiça os índios externaram uma série de insatisfações, relacionadas
diretamente com a postura da Funai. Queixaram-se da adoção da Portaria 520/88 (que estabelecia
“critérios de aculturação”), da criação de “colônias indígenas”, da expedição de certidões negativas de
presença indígena em benefício de projetos econômicos em suas terras, e da comercialização clandestina
de madeira de terras indígenas.

230 O Deputado Eraldo Trindade (PFL-AP) era autor de uma das emendas pró-índio.
231 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 36, op. cit.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 117


Delegações indígenas que acompanham a Constituinte chegam à Câmara dos Deputados.
Foto: Pedro Tariano. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

Delegações indígenas que acompanham a Constituinte chegam ao Senado Federal.


Foto: Pedro Tariano. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

Delegações indígenas que acompanham a Constituinte chegam ao Ministério da Justiça


Foto: Pedro Tariano. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

118 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Na Procuradoria-Geral da República os indígenas foram recebidos pelo Procurador-Geral, José
Paulo Sepúlveda Pertence, e pelo Procurador da República Cláudio Lemos Fonteles232. Para a comitiva
o Procurador-Geral afirmou ser inaceitável o dispositivo que previa “a extirpação do índio aculturado
da proteção do Estado”.

24/Maio/88 – Líderes indígenas são recebidos na Procuradoria-Geral da República pelo Procurador-Geral Sepúlveda
Pertence e pelo Procurador da República Cláudio Fonteles. Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

No Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a comitiva foi recebida pelo presidente
do órgão, o advogado Márcio Thomaz Bastos233, de quem receberam a promessa de uma “solidariedade
ativa” na defesa dos direitos indígenas.

24/Maio/88 - Líderes indígenas são recebidos no Conselho Federal da OAB pelo presidente Márcio Thomaz Bastos e
conselheiros. Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

232 Anos depois Sepúlveda Pertence viria a ocupar o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), enquanto Cláudio
Fonteles viria a ser nomeado Procurador-Geral da República.
233 Mais tarde, durante o primeiro mandato do Presidente Lula, Bastos viria a ocupar o cargo de Ministro da Justiça, pasta
à qual se encontram subordinadas a Fundação Nacional do Índio (Funai), e a demarcação das terras indígenas.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 119


Na UnB os índios foram recebidos pelo Reitor Cristóvam Buarque234, que colocou a importância
da presença permanente de representantes indígenas na Universidade, com palestras para alunos e
professores 235.

24/Maio/88 – Delegações de povos indígenas pedem o apoio do Reitor da UnB, Cristóvam Buarque,
às propostas indígenas na Constituinte. Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

Na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) os índios foram recebidos pelo presidente
da instituição, Dom Luciano Mendes de Almeida, que afirmou ser necessário ao país o reconhecimento
da “posse da terra” e da própria cultura indígena “como riqueza nacional”.

24/Maio/88 – Líderes indígenas são recebidos na sede da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)
por D. Luciano Mendes de Almeida. Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

Durante a visita à CNBB, ao comentar o fato de o discurso do líder Raoni Mentuktire


Txukarramãe ser feito em sua própria língua e sempre traduzido para o português pelo seu sobrinho
Paulo Payakã, a Guarani Enayê Maire, presente na comitiva, indagava: “Então, se esses índios que falam
o português perderem os direitos, o que vai ser dos outros que ainda não falam o português ?”236.

234 No primeiro mandato do Presidente Lula, Buarque ocuparia o cargo de Ministro da Educação.
235 cf. Cimi. “Porantim”, Brasília, ano 11, n.º109, jun. 1988; p.8.
236 cf. CIMI. “Porantim”, Ibidem; p.10.

120 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Chegava então o esperado dia 25 de maio 1988, previsto para a votação do seu capítulo
específico. Os índios acordaram cedo, auxiliaram-se mutuamente nas pinturas corporais e realizaram
uma pajelança para alcançar a vitória nas votações237, travando ao longo do dia discussões sobre os
detalhes e as estratégias de sensibilização dos constituintes ainda indecisos238.

25/05/88 – Delegação Kayapó prepara seus ornamentos e pinturas tradicionais para acompanhar o acordo de lideres
partidários e a votação do Capítulo “Dos Índios” no plenário da ANC. Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC.

25/05/88 – Delegação Kayapó ouve as últimas orientações do Cacique Raoni Mentuktire antes de se dirigir ao Congresso
Nacional para acompanhar a votação do Capítulo “Dos Índios”. Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC.

237 Segundo o jornal “Porantim”, “talvez uma das raras oportunidades em que tantas lideranças estiveram juntas num ritual
sagrado. (CIMI. “Porantim”, Brasília, ano XI, n.º109, jun. 1988; p.9)
238 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano XI, n.º109, jun. 1988; p.9.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 121


25/05/88 – Delegações indígenas, tendo à frente os Kayapó, segue pelo gramado da Esplanada dos Ministérios
rumo ao Congresso Nacional para acompanhar a votação do Capítulo “Dos Índios”.
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC.

25/05/88 –
Delegações
indígenas, tendo à
frente os Kayapó,
chega ao Congresso
Nacional para
acompanhar a
votação do Capítulo
“Dos Índios”.
Foto: Egon Heck. Arquivo:
Cimi/Secretariado Nacio-
nal/SEDOC.

No Congresso Nacional os índios formaram um corredor polonês à entrada do plenário da


Câmara, abordando os constituintes que chegavam com a distribuição de material em favor das emendas
e destaques favoráveis a seus direitos no Capítulo “dos Índios”. A estratégia arrancou aplausos por parte
dos representantes do movimento de servidores públicos, também em luta pelos seus interesses na
ANC. Aliás, como relatava à época a assessoria do Cimi para a Constituinte,

Na última semana antes da votação, os índios fizeram um “corredor polonês” no acesso ao


Plenário, abordando cada constituinte que passava. Todos os índios compenetraram-se em
dominar a proposta em detalhe e em conhecer as propostas contrárias. Para viabilizar a
participação indígena nesta fase decisiva do processo constituinte, o Cimi garantiu-lhes,
em Brasília, estadia, alimentação e transporte. Quase todos os dias, ao final da tarde, os
índios reuniam-se com os assessores do Cimi e, em seguida, entre eles mesmos, avaliando
os fatos e resultados obtidos em cada jornada, e planejando o dia seguinte239.

239 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 36, op. cit.

122 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


25/05/88 – Portando cartazes da “Semana do Índio” de 1987, e outros feitos à mão (ilegíveis na foto), as delegações
indígenas formavam um “corredor humano” à entrada do Plenário da Câmara dos Deputados, aguardando a votação
do Capítulo “Dos Índios”. Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC.

Após cânticos e danças rituais, os índios dirigiram-se ao auditório anexo da Liderança do PMDB,
onde o colégio de líderes iniciava as negociações em torno das emendas e destaques a serem votados
ao Projeto. No auditório, as lideranças indígenas discursaram em suas línguas e iniciaram uma longa
vigília aguardando o resultado das negociações em torno do seu capítulo específico.

25/05/88 – Guerreiros Kayapó do Gorotire aguardam no auditório anexo da liderança do PMDB pelo acordo das
lideranças partidárias em torno do Capítulo “Dos Índios”. Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 123


25/05/88 –
Guerreiros Kayapó
e lideranças de
diversos povos
aguardam no
auditório anexo
da liderança do
PMDB pelo acordo
das lideranças
partidárias em torno
do Capítulo “Dos
Índios”.
Foto: Egon Heck. Arquivo:
Cimi/Secretariado Nacio-
nal/SEDOC.

25/05/88 –
Aguardando no
auditório anexo da
liderança do PMDB
o acordo em torno
do Capítulo “Dos
Índios”, o Cacique
Kanhôk, do Gorotire,
cumprimenta
o constituinte
Ivo Lech, que
havia presidido
a Subcomissão
“das Populações
Indígenas”
Foto: Egon Heck. Arquivo:
Cimi/Secretariado Nacio-
nal/SEDOC.

Contudo, o início das negociações das lideranças partidárias em torno do capítulo “Dos Índios”
somente viria a se iniciar às 14:30 hs do dia seguinte, 26 de maio.

26 ou 31/05/88
– Reunião das
lideranças
partidárias na sala
da liderança do
PMDB, tenta chegar
a um acordo sobre
o Capítulo “Dos
Índios”.
Foto: Egon Heck. Arquivo:
Cimi/Secretariado Nacio-
nal/SEDOC.

124 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Uma vez iniciadas, as negociações não transcorreriam de forma tranqüila, como se pode ver
na narrativa do assessor do Cimi Júlio Gaiger, presente na sala da liderança do PMDB, onde ocorriam
as discussões:
Surpreendeu-nos novamente a intransigência dos interlocutores do Centrão que ignoravam
todos os entendimentos informais anteriores. Pretendiam, na voz do dep. José Dutra, repôr
no texto as condicionantes de “posse imemorial” e “localização permanente”, e tratar os
índios como “relativamente incapazes”. Queriam, além disso, retirar do texto a expressão
“originários”, que caracterizava os direitos indígenas. Com muita dificuldade, contando com
a participação ativa de Paulo Guimarães, assessor jurídico do Cimi, e do ex-deputado Márcio
Santilli, que ingressaram na sala de reuniões, e ainda contando com a pressão psicológica
dos índios reunidos no auditório ao lado, logrou-se uma redação satisfatória para o art.
268, ao qual se acrescentou um parágrafo único240.
Os índios permaneceram no auditório ao lado, aguardando o desenrolar dos debates, cujo
prolongamento “gerou situações de impaciência e cansaço entre os índios, entremeados de cantos de
guerra puxados pelos Kayapó e uma constante interpelação dos parlamentares que entravam e saíam
da sala de negociações”241.
Ao saírem da sala os deputados José Lins e Bonifácio Andrade, ambos representantes do
“Centrão” e defensores de propostas restritivas aos direitos indígenas, foram abordados pelo Cacique
Raoni Mentuktire, que perguntou ao deputado Lins: “a verdade, sem mentir, o que você está dizendo lá
dentro?”. Percebendo que o parlamentar tentava desconversar, Raoni conseguiu que os parlamentares
entrassem em detalhes, e se comprometessem com a defesa da causa indígena. “Em seguida, conduzindo-
os pela mão, Raoni os fez cumprimentar todos os caciques Kayapó presentes, num exercício de pedagogia
política invejável”242.
Na sala de reuniões, as discussões daquela tarde prolongaram-se até as 18:30 hs.

25/05/88 – Delegações de povos diversos aguardam no auditório anexo da liderança do PMDB o acordo em torno do
Capítulo “Dos Índios”. Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC.

240 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 36, op. cit., p. 6.


241 Enquanto isso, “assessores de várias organizações de apoio aos índios permaneceram na vigília acompanhando as
negociações e fazendo traduções e avaliações do andamento dos trabalhos para os índios”. CEDI. “Povos Indígenas
no Brasil: 1987/1988/1989/1990”. Série “Aconteceu Especial”, n.º 18. São Paulo: Cedi,1991, 592 p.; p.27.
242 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 36, op. cit. p.4.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 125


Animado pela vitória parcial obtida em momentos anteriores, o Cimi havia incentivado o
deslocamento a Brasília de mais delegações indígenas a fim de acompanharem as negociações das
lideranças e a votação do Capítulo. Os índios chegaram ao seu destino nos dias 30 (segunda-feira) e 31
(terça-feira). Ao todo, somavam no acampamento em Brasília, mais de 200 líderes, de diversas partes
do país, mobilizados na ANC.
Na sessão da terça-feira, 31 de maio, chegavam ao fim as negociações. Na manhã daquele
dia, antes da retomada da reunião pelo colégio dos líderes partidários, os indígenas regressaram ao
auditório da liderança do PMDB. Algumas lideranças, entre as quais Raoni Mentuktire e Prepori Kayabi,
entraram na sala de reuniões e realizaram uma pajelança, para que logo mais os bons espíritos influíssem
no acordo dos líderes.
Logo mais, às 14 horas, eram retomadas as discussões. Ocorreu então “mais uma surpresa:
o “Centrão” reabriu as discussões sobre o próprio art. 268, em função da expressão “originários”. O
assunto, contudo, foi deixado para ser retomado ao final, iniciando-se as discussões sobre o texto da
emenda do senador Jarbas Passarinho, que a defendeu magistralmente243.
As lideranças indígenas novamente permaneceram em vigília no auditório anexo, com os
Kayapó entoando cânticos rituais e alguns passos de dança.
Apenas às 18:30 h as discussões foram encerradas, selando-se o acordo, “um dos mais
exaustivamente construídos na história atual do processo constituinte”, e que tanto exigira do movimento
indígena e do campo indigenista:
Por três semanas, revezavam-se na visita aos parlamentares os assessores do Cimi e de
outras entidades de apoio à luta indígena, cruzando-se, nos corredores do Congresso, e às
vezes encontrando-se nas mesmas salas de espera com os agentes do Conselho de Segurança
Nacional, empenhados em captar votos para suas teses a respeito dos índios. (...) No mesmo
período, inicialmente quase 100, e afinal mais de 200 representantes indígenas de mais de
30 nações percorreram todos os gabinetes de deputados e senadores, levando o texto das
emendas que apoiavam para o capítulo sobre os índios (Alceni Guerra, Jarbas Passarinho,
Carlos Cardinal, Fábio Feldman e Eraldo Trindade)244.
Fechava-se ali o texto da Emenda-fusão substitutiva do Capítulo “Dos Índios”. A notícia
do resultado foi comunicada às lideranças indígenas ali presentes pelos próprios constituintes, que
“enfatizaram a vitória da persistência indígena”245.

31/05/88 – Lideranças e guerreiros Kayapó festejam o acordo ds Lideranças partidárias sobre o capítulo “Dos Índios”.
Fotos: Egon Heck. Arquivo: Cimi/Secretariado Nacional/SEDOC.

243 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 36, op. cit.


244 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 36, op. cit.
245 Falaram aos índios, comunicando o resultado do acordo, os constituintes Mário Covas (PMDB-SP), Jarbas Passarinho
(PMDB-PA), Tadeu França (PDT-PR), Ruy Nedel (PMDB-RS), Artur da Távola (PMDB-SP), Rose de Freitas (PMDB-ES),
Benedita da Silva (PT-SP), Amaury Muller (PDT-RS) e Plínio de Arruda Sampaio (PT-SP).cf. GAIGER, Júlio. “Informe
Constituinte” n.º 36, op. cit., pp.3-7.

126 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Na manhã do dia seguinte, 1.º de junho, a assessoria do Cimi dirigiu-se ao alojamento dos
índios onde explicou “em detalhes o texto do acordo, esclarecendo tanto as conquistas quanto as
restrições”246.
À tarde, acompanhados pelos assessores e dirigentes do Secretariado Nacional do Cimi, os
índios retornaram ao Congresso Nacional para acompanhar a votação do texto acordado da Emenda-fusão
substitutiva. Aguardando o momento de se dirigirem às galerias do Plenário da Câmara, onde ocorriam
as votações do primeiro turno, os indígenas concentraram-se inicialmente no auditório da liderança do
PMDB, onde haviam permanecido de vigília nos dias anteriores. Contudo, chegava a informação de que
não seria possível a obtenção de senhas de acesso para todos. Para garantir-lhes a presença naquele
momento histórico, “foram conduzidos por vários parlamentares para ocupar as galerias”, sendo que o
deputado Tadeu França (PDT-PR) chegou até a articular com a segurança da ANC uma “invasão” indígena
às galerias. Nesse momento, o índio Kayapó que vinha registrando numa câmara de vídeo-cassete toda
a mobilização na Constituinte, foi introduzido nas galerias privativas da imprensa247.
Enquanto os indígenas se acomodavam aguardando a votação, outra surpresa preocupante
chegava à assessoria do Cimi:
recebemos a notícia de que o dep. Gustavo de Faria (PMDB-RJ), que não havia participado
da reunião de acordo, pretendia manter seu destaque para a emenda que, além de retirar
do texto a expressão “originários”, também repunha as expressões “posse imemorial” e
“localização permanente”. Por isso, conversamos com o dep. Nélson Jobim (PMDB-RS),
preparando-o para possível encaminhamento contrário à emenda do dep. Faria248.
Contudo, o deputado Gustavo de Faria foi procurado pelo ex-deputado Márcio Santilli (PMDB-
SP) e acabou comunicando à Mesa a desistência do seu destaque.
Antes, porém, da votação da Emenda-fusão substitutiva, era necessário, conforme o Regimento
Interno da ANC, a aprovação da emenda coletiva do “Centrão” (Emenda Coletiva n.º 2.044), com o
seguinte teor:

CAPÍTULO VIII
Dos índios
Art. 263. São reconhecidos aos índios seus direitos originários sobre
as terras de posse imemorial onde se acham permanentemente localizados, e sua
organização social, seus usos, costumes, línguas, crenças e tradições serão
respeitados e protegidos pela União.
§ 1º Os atos que envolvam interesses das comunidades indígenas terão a
participação obrigatória de órgão federal próprio, na forma da lei, sob pena
de nulidade.
§ 2º O aproveitamento de recursos hídricos, inclusive dos potenciais
energéticos e a exploração das riquezas minerais em terras indígenas observada
a legislação específica, obriga à concessão de participação no resultado em
favor das comunidades indígenas, na forma da lei.
Art. 264. As terras de posse imemorial dos índios são destinadas à sua
posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas naturais do
solo e dos recursos fluviais nelas existentes.
§ 1º As terras referidas neste artigo são bens inalienáveis e imprescritíveis
da União, cabendo a esta demarcá-las, ouvido o Senado Federal.
§ 2º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo nos
casos de epidemia, catástrofe natural ou de relevante interesse público,
garantido o seu retorno quando o risco estiver eliminado.

246 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 36, op. cit.


247 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 36, op. cit.
248 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 36, op. cit.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 127


Art. 265. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa dos interesses e direitos indígenas, mediante
representação do Ministério Público.
Art. 266. Os direitos previstos neste Capítulo só se aplicam aos índios
que, efetivamente, habitem terras indígenas e não possuam elevado grau de
aculturação.

(Diário da Assembléia Nacional Constituinte, Ano II – n.º 254, quinta-feira, 2 de junho de 1988 Brasília-DF; p.20. Grifos nossos)

Submetida à votação, a Emenda Coletiva do “Centrão” era aprovada por 469 votos favoráveis
(condicionados à aprovação da emenda do acordo), cinco votos contrários e cinco abstenções. Bastante
ansiosos pela aprovação do acordo firmado no dia anterior, os indígenas acabaram aplaudindo, sem
perceber, a Emenda do “Centrão”.
Em seguida, o deputado José Lins (PFL-CE), pediu a palavra para desmentir notícia publicada
no Jornal do Brasil, segundo a qual teria declarado que os índios fedem. E concluiu externando: “Meus
cumprimentos aos índios brasileiros que nos assistem neste momento”249.
Após isso, o presidente Ulysses Guimarães anunciou o requerimento subscrito por 28
parlamentares, para a votação da Emenda-fusão substitutiva aprovada no dia anterior, cujo texto tinha
o seguinte teor:

TÍTULO VIII
CAPÍTULO VIII
Dos Índios
Art. 268. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarca-las, proteger e fazer
respeitar todos os seus bens.
Parágrafo único. O aproveitamento dos recursos hídricos, inclusive dos
potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras
indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas
as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada a participação nos resultados
da lavra, na forma da lei.
Art. 269. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são destinadas
à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo,
fluviais e lacustres nelas existentes.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles
habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas,
incluídas aquelas imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais
necessários ao seu bem-estar, e as áreas necessárias à sua reprodução física
e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são inalienáveis
e indisponíveis, e os direitos sobre elas são imprescritíveis.
§ 3º Fica vedada a remoção dos grupos indígenas das terras que
tradicionalmente ocupam, salvo, ad referedum do Congresso Nacional, nos casos
de catástrofe ou de epidemias que ponham em risco sua população e, nos casos
de interesse da soberania Nacional, após deliberação do Congresso Nacional,
garantido, em qualquer caso, o retorno imediato tão logo cesse o risco.

249 BRASIL. ANC. Ata da 277ª Sessão Plenária da ANC (01.06.88). Diário da Assembléia Nacional Constituinte, ano II – n.º
254, quinta-feira, 2 de junho de 1988; Brasília-DF. Disponível em: <http://www.congresso.gov.br/anc88/> (Acessado em
25.10.2008).

128 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


§ 4º São nulos e extintos, e não produzirão efeitos jurídicos os atos
que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras de que trata
o parágrafo primeiro deste artigo, ou a exploração das riquezas naturais do
solo, fluviais e lacustres nelas existentes, ressalvado relevante interesse
público da União, segundo o que dispuser lei complementar. A nulidade e
extinção de que trata este parágrafo não dão direito de ação ou indenização
contra a União, salvo quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé,
na forma da lei.
§ 5º Não se aplica nas terras indígenas, o disposto no § 3º do art.
203.
Art. 270. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas
para ingressar em juízo em defesa dos seus interesses e direitos, intervindo
o Ministério Público em todos os atos do processo.
(Diário da Assembléia Nacional Constituinte, Ano II – n.º 254, quinta-feira, 2 de junho de 1988 Brasília-DF; p.23.)

Em seguida, Ulysses Guimarães concedeu a palavra ao deputado Ruy Nedel (PMDB-RS) para
que encaminhasse a votação. Nedel, então, declamou em castelhano o poema “Maldición de Malinche”,
e pediu ao plenário um “uníssono ‘sim’ para este acordo”. Retomando a palavra, o presidente Ulysses
Guimarães pôs em votação a matéria, anunciando tratar-se “de fusão resultante de entendimento entre
as Lideranças e forças representativas junto à Assembléia Nacional Constituinte”250.

1º/06/88 – Deputado Ulysses


Guimarães preside a sessão de
votação, no Plenário da ANC,
do Capítulo “Dos Índios”.
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secre-
tariado Nacional – SEDOC.

1º/06/88 – Constituinte Mário


Covas, líder da Maioria, dá as
últimas orientações aos líderes
partidários sobre a votação
do Capítulo “Dos Índios”,
conforme o acordo selado no
dia anterior.
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secre-
tariado Nacional – SEDOC.

250 BRASIL. ANC. Ata da 277ª Sessão Plenária da ANC, op. cit.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 129


Finalmente o texto da Emenda-
fusão substitutiva foi aprovado, por 487 votos
contra cinco contrários, e dez abstenções.
Os votos contrários vieram dos constituintes
Ângelo Magalhães (PFL-BA), Assis Canuto (PFL-
RO), Francisco Diógenes (PDS-AC) e Irapuan
Costa Júnior (PMDB-GO), e as abstenções dos
constituintes Gilson Machado (PFL-PE), João
Menezes (PFL-BA), Jorge Bornhausen (PFL-SC),
Lúcio Alcântara (PFL-CE), Paes Landim (PFL-PI),
Paulo Zarzur (PMDB-SP), Roberto Campos (PDS-
MT), Victor Fontana (PFL-SC) e Waldeck Ornelas
(PFL-BA)251.
Assim, o Capítulo “Dos Índios” passava
a contar com um novo texto, momento em que
encerrava-se também a votação do Título VIII.
1.º/06/88 – Votação em Plenário da ANC,
Com isso, o presidente da ANC, deputado do Capítulo “Dos Índios”.
Ulysses Guimarães, suspendia a sessão. Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional - SEDOC.

Como disse à época a assessoria do Cimi na Constituinte, a partir daquele momento, para o
texto aprovado, “os índios deixaram de ser uma espécie em extinção”252. Contentes com o resultado,
os índios festejaram desde as galerias. Subiram a rampa do Congresso, onde dançaram mais uma vez.
Como bem lembrou à época o então advogado indigenista Julio Gaiger, naquele local, em 22 de abril
de 1987, os índios haviam dançado e feito pajelança invocando “o auxílio dos bons espíritos; desta vez,
retornavam agradecendo a estes mesmos espíritos”253.
O resultado espelhava fidelidade ao acordo selado pelo colégio de líderes partidários no dia
anterior. Mas as negociações que levaram a tal acordo, assim como a votação final, não teriam sido
possíveis sem toda a pressão efetuada pelas lideranças indígenas. Para estas, “foram dias de extrema
tensão e expectativa, a que reagiram com serenidade completa, sem, contudo, permitir a impressão de
estarem ou resignados ou desinteressados”254.
À noite, no alojamento, os índios comemoraram a seu modo, com cânticos, danças rituais e
mais de 140 kg de peixe assado e carne. Bem mais tranqüilos, muitos Kayapó retornaram às suas aldeias,
tendo em mãos o texto aprovado. A hora era de informar aos parentes que ficaram, o resultado dos
seus esforços em Brasília.
A principal batalha estava vencida, mas a guerra ainda não terminara.
Em 30 de junho encerrava-se o 1.º Turno de votações do Plenário da ANC. Mais uma etapa
viria pela frente.

3.3.2. O 2º Turno de votações.


Apesar da ampla e importante vitória relativa ao capítulo “Dos Índios”, havia ainda, no inciso V
do art. 26, uma formulação extremamente preocupante, que era a inclusão, entre os bens dos Estados,
das terras dos “extintos aldeamentos indígenas”. Os esforços da assessoria do Cimi passavam então a
se concentrar na tentativa de supressão do dispositivo. Porém, as perspectivas não eram animadoras,
como avaliava à época:

251 Vide a íntegra da Sessão de votação em Anexo V.


252 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 36, op. cit. p.3.
253 GAIGER, Júlio. “Informe Constituinte” n.º 36, op. cit. p.8.
254 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 36, op. cit.

130 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Prevê-se mais dificuldade para tentar a supressão, pura e simples, do dispositivo. Outras
emendas estarão sendo formuladas, após uma apreciação técnico-política do texto. Há que
se avaliar a oportunidade de mexer em preceitos que foram aprovados por uma margem
sólida de votos; e, de todo modo, seriam poucos os aspectos a abordar255.

Além disso, havia ainda outra preocupação, se bem que não surpreendente. Em 05 de julho
de 1988 o Relator da Comissão de Sistematização, deputado Bernardo Cabral (PMDB-AM) fez a entrega
oficial do Projeto de Constituição (B) ao presidente da ANC, deputado Ulysses Guimarães. Porém, o
“Projeto B” apresentava alterações anti-regimentais ao texto relativo aos índios. Tratava-se de uma redação
revisada e renumerada do que havia sido aprovado pelo Plenário da ANC no 1.º turno de votações, e
não a própria redação aprovada.
O Relator da Sistematização era então bastante criticado por produzir, no Projeto B, alterações
no mérito das decisões aprovadas no 1.ª Turno da ANC em relação aos direitos indígenas.

No texto da Emenda-fusão substitutiva aprovado no 1.º turno, o art. 269, ao dispor sobre o
usufruto exclusivo indígena, destinava as terras indígenas à sua posse permanente. Na redação dada
pelo deputado Bernardo Cabral, renumerada como art. 234, desaparecia essa importante referência a
tal destinação, que em nenhum outro dispositivo ficou estabelecida:

Texto da emenda-fusão aprovado no 1.º Turno Redação Bernardo Cabral (Projeto B)

Art. 269. As terras tradicionalmente ocupadas Art. 234. (...)


pelos índios são destinadas à sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto § 2.º – Cabe aos índios o usufruto exclusivo
exclusivo das riquezas naturais do solo, das riquezas do solo, fluviais e lacustres
fluviais e lacustres nelas existentes. existentes em suas terras.

Em seguida, no trecho relativo ao § 1.º do mesmo dispositivo aprovado na Emenda-fusão


substitutiva, empregava-se a expressão “as (terras) utilizadas” para suas atividades produtivas, etc. Na
redação do Projeto de Constituição “B” do deputado Bernardo Cabral, a expressão era substituída por
“as que utilizam”:

Texto da emenda-fusão aprovado no 1.º Turno Redação Bernardo Cabral (Projeto B)

Art. 269. (...) Art. 234. (...)


§ 1.º – São terras tradicionalmente ocupadas § 1.º – São terras tradicionalmente ocupadas
pelos índios, as por eles habitadas em caráter pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades permanente, as que utilizam para atividades
produtivas... produtivas...

Neste ponto, a assessoria jurídica do Cimi apresentava a seguinte crítica:


No texto original, o verbo utilizar estava no particípio, evitando referência temporal. Cabral
conjugou o verbo no presente, possibilitando uma apreensão estática do fator “terras
utilizadas para atividades produtivas”, pela qual subtraiam-se do conceito as áreas que, no
momento da sua identificação, não estejam sendo utilizadas para atividades produtivas,
embora o sejam em outros momentos256.

Por último, na parte relativa às Disposições Transitórias, ao referir-se ao prazo de cinco anos
para a demarcação, o relator omitiu o objeto, que eram as terras indígenas ainda não demarcadas:

255 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 38. Brasília : Cimi, 04.jul.1988 (mimeo).
256 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 39. Brasília : Cimi, 07.jul.1988 (mimeo).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 131


Texto da emenda-fusão aprovado no 1.º Turno Redação Bernardo Cabral (Projeto B)

Art. 25. DT. A União demarcará, no prazo de


Art. 74, DT. A União concluirá a demarcação
cinco anos, a partir da promulgação desta
das terras indígenas no prazo de cinco anos a
Constituição, as terras indígenas ainda não
partir da promulgação da Constituição.
demarcadas.

Com a nova redação dada pelo relator, deputado Bernardo Cabral, temia-se a interpretação
de que todas as terras indígenas devessem passar por um novo processo demarcatório, inclusive as já
demarcadas. Nesse caso, a perspectiva da assessoria do Cimi era, portanto, a elaboração de emendas
de omissão e de emendas de erro.
Os prazos previstos para o 2.º Turno de votações no Plenário iam se aproximando. A preocupação
com a questão dos “extintos aldeamentos”, que atingia de modo direto, mas não único, os povos
indígenas do Nordeste, levava à necessidade de uma grande mobilização daqueles povos, muitos dos
quais considerados extintos. Como os atos de extinção de aldeamentos haviam ocorrido de forma intensa
na segunda metade do século XIX, temia-se que a sua recepção no texto constitucional representasse a
legitimação definitiva do esbulho possessório que aqueles povos – que continuavam existindo e nunca
haviam abandonado as suas terras – vinham passando desde então. Se no caso dos povos indígenas da
região amazônica o grande embate era com as mineradoras, aqui os fortes interesses contrários aos
índios eram representados pelo latifúndio, pelas oligarquias rurais implantadas nas terras indígenas
desde o século XIX e que haviam sido beneficiadas com os atos de extinção dos aldeamentos.
Registre-se, aliás, que era exatamente sobre boa parte destas terras que aqueles
povos se encontravam, desde o final da década de 1970, num forte processo de recuperação
territorial e reivindicação demarcatória. Tal situação tinha como conseqüência inúmeros conflitos
fundiários e conseqüentes atos de violência contra as lideranças do movimento indígena, por parte de
jagunços e pistoleiros contratados.
Relativamente a outras regiões que não o Nordeste, ou que não haviam passado pelo processo
de extinção de aldeamentos do séc. XIX, havia ainda o temor de que expedientes fraudulentos viessem
resultar em situações de “extintos aldeamentos”, a fim de justificar, em seguida, o repasse das respectivas
terras indígenas aos Estados.
Rapidamente o Regional NE do Cimi passou a investir no trabalho de informação daquelas
comunidades indígenas e suas lideranças quanto aos riscos daquele dispositivo. As aldeias eram
percorridas, e as lideranças indígenas alertadas da necessidade de uma nova caravana a Brasília. Uma
boa idéia desse processo nos é dada por um relatório da época, enviado em 05 de setembro à CESE:
Durante os dias 30 e 31/07/88 esses representantes estiveram reunidos em Garanhuns PE,
na sede da FETAPE, onde refletiram sobre o Processo Constituinte e definiram com clareza
o objetivo da ida à Brasília, que foi a luta contra a permanência do Artigo 26, inciso V
do Texto Pré-Constitucional, que incluía entre os Bens dos Estados, as Terras dos Extintos
Aldeamentos.
Com facilidade os índios compreenderam o grande perigo que estariam correndo se
permanecesse no texto o inciso V do art. 26: “Tirar nós da proteção Federal e botar nas
mãos do Governo Estadual, é mesmo que entregar nossas terras aos fazendeiros” (Inaldo
Kapinawá). Esses povos têm muitas experiências ruins de lutas contra o poder político
local, que sempre defende os interesses dos grandes latifundiários, visto serem eles próprios
o Poder Constituído257. (Grifos nossos)
O relatório aborda inclusive interessantes aspectos da metodologia empregada, como o recurso
às dramatizações, como forma de preparação para o que os indígenas teriam pela frente no palco da
Assembléia Nacional Constituinte:

257 Cimi NE, “Relatório sobre a viagem dos índios à Assembléia Nacional Constituinte”. Garanhuns – PE, s./d.
(provavelmente 4 de setembro de 1988). Cimi NE, Setor de Documentação.

132 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


O Encontro foi assessorado por Missionários do CIMI, e a participação dos índios foi excelente.
Utilizou-se vários cartazes para ilustrar e facilitar a compreensão, foram feitas encenações
onde todos os índios participaram como atores: dividiu-se o plenário em 4 grupos, e cada
grupo representou a ida ao Congresso para conversar com os Constituintes, no final de
cada apresentação o plenário avaliava como foi a participação daquele Lobby Indígena e
apontava as falhas para serem corrigidas. Além de formativo, foi bastante divertido, todos
se envolveram258.
No início de agosto de 1988, chegava a Brasília a caravana dos povos indígenas do Nordeste,
formada por 36 representantes dos povos Potiguara (PB), Fulni-ô (PE), Kapinawá (PE), Xukuru (PE),
Geripankó (AL), Xukuru-Kariri (AL), Karapotó (AL) e Xokó (SE).

04/08/88 – Acompanhada por missionários do Cimi, delegação de povos indígenas do Nordeste chega ao
Anexo III da Câmara. Foto: Hegon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

Ainda conforme o citado relatório, o prazo inicialmente previsto de permanência da delegação


dos povos indígenas nordestinos em Brasília era de seis dias, até a votação do referido dispositivo. No
entanto, “devido à lentidão dos trabalhos da A.N.C. decidiu-se ampliar para 10 dias até a data da votação”.
Como esta acabara sendo adiada por duas vezes, “e como não fosse possível a permanência de todos em
Brasília, os índios elegeram uma Comissão com 10 pessoas para ficar até que o Artigo fosse votado”.

10/08/88 – Delegação indígena do Nordeste conversa com o deputado Constituinte Artur da Távola (PMDB-RJ)
e com o senador Marco Maciel (PFL-PE). Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

258 Cimi NE, Idem.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 133


Delegação indígena do Nordeste aborda o relator da Comissão de Sistematização, deputado Bernardo Cabral.
Foto extraída do Filme “Os Direitos Indígenas na Constituinte” (Cimi, 1989).

Desde o início de agosto, os povos indígenas do NE marcaram presença na Constituinte,


percorrendo os gabinetes dos parlamentares, e entrevistando-os também nos corredores e à entrada do
Plenário. Buscavam apoio à supressão do dispositivo que destinava aos Estados, as terras dos “extintos
aldeamentos”.

11/08/88 – Delegação de povos indígenas do Nordeste dança o Toré em frente ao Congresso Nacional.
À frente, o vice-Cacique Xicão Xukuru. Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado – SEDOC.

Mas os indígenas do Nordeste não ficariam sozinhos nesta fase da empreitada. A eles logo
se somariam os Kayapó, das aldeias do sul do Pará, e mais uma centena de indígenas do Sul, Centro-
Oeste e Norte do país, a exemplo dos Kaingang, Guarani, Xavante e Xerente259. Divididos em grupos,
os índios voltaram a percorrer os gabinetes dos parlamentares, e a executar suas danças rituais nos
corredores do Congresso.

259 Como ocorrera no primeiro turno, a mobilização indígena foi apoiada pelo Cimi, que providenciou transporte, alojamento,
alimentação e condução em Brasília, além de um constante assessoramento jurídico e político.

134 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


10/08/88 –
Delegação
indígena
formada por
representantes
dos povos
Kayapó (PA),
Geripankó (AL)
e Guarani (MS)
visita o gabinete
do deputado
Tadeu França
(PDT-PR).
Foto: Egon Heck.
Arquivo: Cimi –
Secretariado Nacional
– SEDOC.

A partir do dia 10 de agosto, as delegações indígenas voltavam a manter vigília no auditório


anexo à sala de reuniões da liderança do PMDB, aguardando o acordo das lideranças sobre a supressão
do inciso V do art. 26, que tratava dos “extintos aldeamentos”.

10/08/88 – Reunião das lideranças partidárias no gabinete do PMDB, discute o apoio à emenda supressiva
do dispositivo que destinava aos estados as terras dos “extintos aldeamentos”. No auditório ao lado, os índios
aguardavam o resultado da negociação. Fotos: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

Na sessão plenária da quarta-feira 17 de agosto, a Deputada Benedita da Silva (PT-RJ) comunicava


ter sido procurada por um grupo, preocupado com as conseqüências do dispositivo referente às terras
dos “extintos aldeamentos”. Tratava-se da “Coordenação Nacional Povos Indígenas na Constituinte”260,
que no dia 04 de agosto havia distribuído entre os constituintes um documento pela supressão do
mencionado dispositivo. Com base nos argumentos das entidades indigenistas e afins, Benedita da
Silva apelava ao plenário para que analisasse “positivamente a possibilidade de votar sim à emenda de
autoria do Constituinte Domingos Leonelli” (sem partido-BA).
Tratava-se da Emenda n.º 2T 00541-5, Destaque n.º 2D00979-9, que visava suprimir o Inciso
V, do Art. 26, a ser apreciada durante as votações do Título III. Havia sido redigida pela assessoria
do Cimi, que também trabalhara em permanente contato com lideranças partidárias, notadamente o
deputado Nelson Jobim, Líder do PMDB na ANC. Segundo o “Informe Constituinte” n.º 43, do Cimi, fora

260 Formado pela ABA, Anaí/BA, Cedi, CTI, Cimi, CPI-SP, Inesc; SBPC e UNI.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 135


marcante também a contribuição do ex-deputado Márcio Santilli, que “nos últimos dias antes da votação,
movimentou-se intensamente, e logrou obter o apoio de parlamentares que, no 1.º turno, haviam sido
contrários à simples modificação do dispositivo”.

17/08/88 – Delegações Kayapó e de povos do NE fazem vigília no auditório da liderança do PMDB, aguardando a
supressão do inciso V do art. 26, que transferia aos Estados as terras dos “extintos aldeamentos”.
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

Naquela quarta-feira os indígenas mantinham ainda a sua vigília no auditório da liderança do


PMDB, aguardando o acordo que não viria naquele dia. Na manhã do dia seguinte, novamente em vigília,
receberam a notícia do fechamento do acordo entre os líderes dos partidos políticos, que haviam resolvido
apoiar a emenda supressiva do deputado Leonelli. Contentes com o resultado, os mais de 150 indígenas
presentes dirigiram-se às galerias do Plenário, para aguardar a votação da proposta acordada.

18/08/88 – Delegação Kayapó aguarda no auditório da liderança do PMDB, a supressão do inciso V do art. 26, que
transferia às Unidades da Federação as terras dos “extintos aldeamentos”.
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

136 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Ao encaminhar a emenda supressiva, o deputado Leonelli disse apenas que a matéria havia
sido acordada por todos os partidos, contando “inclusive com a anuência do Líder Inocêncio Oliveira, do
PFL”. Esclareceu também que visava “corrigir a introdução, no texto constitucional, de uma figura que
já havia sido abolida desde o século passado, os aldeamentos indígenas”, que à época haviam servido
“a uma política genocida”. Finalizando, agradeceu e registrou a presença, nas galerias, dos guerreiros
Kayapó, e disse que “a Constituição que é dos cidadãos, dos miseráveis, é também a Constituição dos
índios”261.
Em seguida, o relator, deputado Bernardo Cabral, que antes havia oferecido parecer escrito
contrário à supressão, passou a apoiar a emenda, declarando:
acompanhei a evolução dos estudos feitos em derredor desta emenda (...). Depois, consegui
ouvir cada Liderança, isoladamente. Todos os Líderes com assento nesta Assembléia Nacional
Constituinte foram unânimes na opinião de que esta emenda merece ser acolhida. Sr.
Presidente, o relator acompanha e louva o trabalho do Constituinte Domingos Leonelli,
dando parecer pela aprovação262.
Na seqüência, todos os Líderes dos partidos manifestaram-se apelando às suas respectivas
bancadas para que votassem “sim” à emenda supressiva. Alguns de forma bastante enfática, como o
deputado Tadeu França (“o PDT, saudando as delegações dos índios de todo o Brasil aqui presentes, votará
‘sim’”), o deputado Eduardo Bonfim (“em defesa das terras indígenas, o PC do B votará ‘sim’ ”), o deputado
Siqueira Campos (“o Partido Democrata Cristão, saudando todas as nações indígenas do Brasil, votará ‘sim’”),
o deputado Artur da Távola (“os acordos feitos nesta Casa para a questão dos índios em geral, é um dos mais
altos momentos da Assembléia Nacional Constituinte. O voto é ‘sim’”), e o deputado Alfredo Oliveira (“o Partido
Liberal coloca-se ao lado dos brasileiros mais brasileiros que são os índios e vota ‘sim’”).
Antes de passar à votação, disse o presidente da Constituinte, deputado Ulysses Guimarães:
“quero, em nome de todos, saudar e cumprimentar o comportamento exemplar dos nossos patrícios
índios, que aqui se encontram, colaborando com a normalidade de nossos trabalhos”; no que foi seguido
por palmas. (Grifos nossos)
Então, das galerias do Plenário, as lideranças indígenas assistiram a mais uma vitória: o
dispositivo indesejado foi suprimido por 367 votos. Apenas três constituintes votaram pela sua
manutenção, e três se abstiveram263.
Encerrada a sessão, os índios subiram mais uma vez a rampa do Congresso Nacional onde
dançaram mais esta vitória. Depois, dirigiram-se ao auditório da Liderança do PMDB, e ainda marcaram
presença no ato público de solidariedade aos Tikuna (AM), que haviam se deslocado a Brasília para
exigir a agilização das investigações e punição dos responsáveis pelo chamado “Massacre do Capacete”,
ocorrido em 28 de março de 1988, quando 14 índios haviam sido assassinados.
Após a vitória na supressão do dispositivo relacionado aos “extintos aldeamentos”, comentava
o advogado Júlio Gaiger, assessor do Cimi para a Constituinte: “ao mesmo tempo em que aprendem
novas formas de luta, os índios também ensinam aos parlamentares e ao Brasil que sua participação em
todas as decisões que lhes dizem respeito, deverá ser uma constante daqui por diante”264. Pouco mais
tarde, a coordenação do Cimi Nordeste relatava que havia sido muito importante:
... a avaliação que cada povo fez, quando os representantes [indígenas] voltaram às
áreas. Todos ficaram satisfeitíssimos com a vitória alcançada (supressão do inciso V), mas
mesmo assim avaliaram com seriedade a participação de todos, inclusive dos assessores.
Essa mobilização portanto, trouxe grande contribuição para a organização indígena no
Nordeste265.

261 Vide anexo V – Anais da ANC.


262 Vide anexo V – Anais da ANC.
263 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano XI, n.º101, set. 1988, p.4; e GAIGER, Júlio. “Mais uma Vitória Indígena na Constituinte!
Suprimido o Inciso V do art. 26!”. “Informe Constituinte” n.º 43. Brasília : Cimi, 19. ago.1988 (mimeo).
264 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 43, op. cit., p.2.
265 imi NE, “Relatório sobre a viagem dos índios à Assembléia Nacional Constituinte”; op. Cit.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 137


18/08/88 – Delegação Kayapó festeja a supressão do inciso que tratava das terras dos “extintos aldeamentos”.
Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

Enfim, em 30 de agosto, 11 dias após a vitória na supressão do inciso V do art. 26, o Capítulo
“Dos Índios” era submetido ao 2.º Turno de votações no Plenário. Na ocasião o presidente da ANC,
deputado Ulysses Guimarães, colocava em votação a emenda proposta por um grupo de mais de
20 constituintes, tendo à frente o deputado Fábio Feldmann. O requerimento visava reunir e votar
simultaneamente diversas Emendas e Destaques relativos ao art. 224, §§ 1.º, 2.º e 3.º do Capítulo relativo
aos índios, tornando prejudicadas outras Emendas, cujos autores haviam subscrito o requerimento de
votação simultânea. A proposta dava a seguinte redação aos dispositivos mencionados:

Art. 234.........................................
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles
habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas,
as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu
bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são destinadas à
sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas dos solos,
fluviais e lacustres nelas existentes.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos
que tenham por objetivo a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se
refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, fluviais e
lacustres neles existentes, ressalvado relevante interesse público da União,
segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e extinção
direito a indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto
as benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.

138 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


Por se tratar de fruto de um acordo, o Relator posicionou-se favoravelmente à sua aprovação.
As Lideranças dos partidos conclamaram então as suas bancadas respectivas a votarem “sim” ao
requerimento266. Encerrada a votação, Ulysses Guimarães proclamava a aprovação da Emenda por 437
votos favoráveis. Oito constituintes votaram contra267, e sete abstiveram-se de votar268. Ficava assim
consolidada a vitória indígena na Assembléia Nacional Constituinte.
Infelizmente, este último ato não pode ser testemunhado pelas lideranças indígenas, embora
muitas houvessem retornado a Brasília para acompanhá-lo. Apenas Aílton Krenak – que possuía
autorização especial para ingressar nas galerias do Plenário, conseguiu assistir à votação. Uma demora
na concessão das autorizações às demais lideranças indígenas impediu que chegassem às galerias a
tempo269. Esta ausência foi, inclusive, lamentada no Plenário pelo deputado Tadeu França (PDT-PR), no
momento em que orientou a bancada do PDT a votar a favor da Emenda.
Mesmo assim, os índios festejaram. Pela primeira vez na história do País e do constitucionalismo
brasileiro, a elaboração da Carta Fundamental havia contado com a participação dos povos indígenas.
Não apenas isso, essa participação saíra indiscutivelmente vitoriosa.

3.4. Os povos indígenas no texto


constitucional de 1988
Para sedimentar a compreensão sobre o significado destes direitos na nova Constituição do
país, as suas implicações, as novas demandas que dali adviriam e os limites colocados, e atendendo a um
desejo expresso pelos índios desde a votação do capítulo específico no primeiro turno, o Secretariado
Nacional do Cimi realizou com os mesmos um encontro de estudos sobre o novo texto constitucional.
O encontro, realizado de 1.º a 04 de setembro, contou com a participação de cerca de 30 índios,
membros de 18 povos, além de cerca de 80 Kayapó, entre os quais três caciques, todos em Brasília para
o acompanhamento à votação do capítulo “Dos Índios” no 2.º turno270.

1.º a 04/09/88
– Brasília – DF,
Colégio Santa
Maria. Delegações
indígenas que
atuaram no processo
constituinte
participam do 1.º
encontro de estudos
e avaliação sobre o
texto constitucional
aprovado,
organizado pelo
Cimi.
Foto: Egon Heck. Arquivo:
Cimi – Secretariado Nacio-
nal – SEDOC.

266 Neste sentido se manifestaram os líderes Roberto Freire (PCB-PE), Mendes Ribeiro (PMDB-RS), Amaral Netto (PDS-RJ),
Benedita da Silva (PT-RJ), Tadeu França (PDT-PR), Sólon Borges dos Reis (PTB-SP), Haroldo Lima (PC do B-BA), José
Luiz de Sá (PL-RJ), Ademir Andrade (PSB-PA), José Maria Eymael (PDC-SP), José Lourenço (PFL-BA), e Octávio Elísio
(PSDB-MG).
267 Votaram contra o acordo os constituintes Arnaldo Martins (PMDB-RO), Eraldo Trindade (PFL-AP), Etevaldo Nogueira
(PFL-CE), França Teixeira (PMDB-BA), José Mendonça Bezerra (PFL-PE), Lavoisier Maia (PDS-RN), Rachid Saldanha
Derzi (PMDB-MS), Ricardo Fiúza (PFL-PE).
268 Além do Presidente da ANC, abstiveram-se os constituintes Álvaro Pacheco, Gilson Machado (PFL-PE), Irapuan Costa
Júnior (GO), Jesus Tajra (PFL-PI), Luís Eduardo (PFL-BA), Moysés Pimentel (PMDB-CE), Waldeck Ornélas (PFL-BA).
269 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 43, op. cit., p.1.
270 GAIGER, Julio. “Informe Constituinte” n.º 44. Brasília : Cimi, 05.set.1988 (mimeo).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 139


1.º a 04/09/88 – Brasília – DF, Colégio Santa Maria. Delegações indígenas que atuaram no processo constituinte
participam do 1.º encontro de estudos e avaliação sobre o texto constitucional aprovado, organizado pelo Cimi.
Fotos: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

O curso foi realizado com duas dinâmicas: uma para os Kayapó, que estavam em maior número
e cujo domínio da língua portuguesa é menor, e outra para os demais.

04/09/88 – Deputado Haroldo Lima (PC do B-BA) fala aos Kayapó no encontro de estudos sobre
o texto constitucional aprovado. Fotos: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC.

140 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


A participação indígena no cenário constituinte de 1987-1988 e o texto constitucional aprovado
marcaram o fim de uma era e o início de um novo capítulo na trajetória histórica de cinco séculos de
contato da sociedade não-indígena com tais povos. O sentimento dos índios em relação aos resultados de
seu protagonismo na ANC foi assim traduzido por Pedro Garcia Tariano, da Federação das Organizações
Indígenas do Rio Negro (FOIRN), e por Manoel Moura Tukano, da UNI-AM:
Quinhentos anos depois (...) apesar da sociedade envolvente pensar que este já foi exterminado
há muito tempo, houve uma surpresa na História do Brasil: ele se fez presente (...). Até o
momento, ninguém tinha reconhecido o índio como primeiro habitante, dentro da Constituição
brasileira, mas hoje ele manifesta sua sobrevivência e a existência de vários grupos étnicos,
indo para Brasília acompanhar de perto, no Congresso Nacional, todo o processo da
Constituinte, (...) e isso é a primeira vez na História. [o índio] sempre foi imaginado como
um animal irracional, incapaz de desenvolver e progredir conforme a sua decisão (...) sem
poder dar a opinião sobre o que ele próprio deseja. (...). A maior parte das lideranças ficou
satisfeita com a nova Constituição, por motivo de que dialogaram diretamente com aqueles
que eram responsáveis por toda a sociedade brasileira. Por motivo também de que tiveram
direito de opinar, através do projeto de lei, sobre como deve funcionar ou como deve ser o
futuro dos índios, e eles não são donos do seu destino. Não como antes, que o Conselho de
Segurança Nacional, juntamente com o Ministério do Interior e a Funai, tinha que decidir
quem é índio e quem não é índio, como ele deve viver, se é nu, com paletó, ou rico. Com
a sua presença na Constituinte, mostraram que quem é o dono do seu destino é o próprio
índio271. (Grifos nossos.)

271 cf. CIMI. “Porantim”, Brasília, ano XI, n.º110, jul./ago. 1988; p.2.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 141


Concretizara-se, então, aquela expectativa de Maria Célia Paoli de que a Constituinte, prenhe
da participação consciente e organizada dos movimentos sociais, pudesse de fato consistir numa
experiência de “legítima organização da liberdade”. Como bem resumiu o professor José Geraldo de
Sousa Júnior,
“O momento constituinte que se instaurou no Brasil abriu perspectivas avançadas para a
reorganização de forças sociais nunca inteiramente contidas nos esquemas espoliativos e
opressores de suas elites. Com efeito, a experiência da luta pela construção da cidadania que
nele se materializou, atualizou o seu sentido libertário e demarcou, no espaço constituinte,
o lugar do povo como sujeito histórico emergente no contexto das lutas sociais”272. (Grifos
nossos.)
E assim os índios, cuja humanidade havia sido questionada pelos conquistadores e colonizadores,
que povoavam o imaginário europeu ora como monstros físicos, ora como monstros morais, ou como
seres intelectualmente incapazes e culturalmente inferiores, passaram pela experiência de desempenhar
importante papel como protagonistas de um dos momentos políticos mais importantes da história do
país – a elaboração da “Constituição Cidadã” – , e contribuindo para com o avanço do Estado no sentido
de se reconhecer multicultural e pluriétnico.

04/09/88 – Hora de voltar para a aldeia ...


Foto: Egon Heck. Arquivo: Cimi – Secretariado Nacional – SEDOC

272 SOUSA JÚNIOR. José Geraldo. Ética, Cidadania e Direitos Humanos: a experiência constituinte no Brasil. Disponível
em: < http://www.dhnet.org.br/direitos/codetica/ textos/josegeraldo.html > (Acessado em: 25.09.2008).

142 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


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144 Os povos Indígenas e a Constituinte de 1987/1988


Periódicos Informes
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CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º102, out. 1987. (mimeo).
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CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º104, dez. 1987. (mimeo).

CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º106, mar.1987. _____. “Informe Constituinte” n.º 27.Brasília : Cimi, 16.nov.1987
(mimeo).
CIMI. “Porantim”, Brasília, ano XI, n.º107, abr.1988.
_____. “Informe Constituinte” n.º 30. Brasília : Cimi, 04. fev.1988
CIMI. “Porantim”, Brasília, ano X, n.º108, mai. 1987.
(mimeo).
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CIMI. “Porantim”, Brasília, ano XI, n.º110, jul./ago. 1988. 1988 (mimeo).
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mar.1988 (mimeo).
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(mimeo).
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“CPRM e garimpos no Tumucumaque”. Lúcia Hussak Van
(mimeo).
Velthem, ip 1985; in: CEDI. Série Aconteceu Especial n.º
15; Povos Indígenas no Brasil/1984; p.111. _____. “Informe Constituinte” n.º 43. Brasília : Cimi, 19.
“Divergências sobre garimpos”. OESP (SP), 26.06.84. In: CEDI. ago.1988 (mimeo).
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sil/1984, pp.160-161. (mimeo).
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Aconteceu Especial n.º 15 – Povos Indígenas no Bra-
sil/1984; p.96.
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12/01/1985. In: CEDI. Série Aconteceu Especial n.º 15;
Povos Indígenas no Brasil/1984; p.40.

Os povos Indígenas e a Constituinte de 1987/1988 145


Apêndice - Cronologia

1987

1.º fev. Instalada a Assembléia Nacional Constituinte

02 fev. Ulisses Guimarães é eleito presidente da ANC

19-20. Reunião, em Brasília, de plenários, comitês e movimentos pró participação popular na


fev. Constituinte

09.mar. Tem início o “Informe Constituinte” do Cimi.

19.mar. Aprovado o Regimento Interno da ANC.

27.mar. Recebimento de milhares de sugestões apresentadas por constituintes e entidades


06.mai. externas, para apreciação formal da Assembléia. 

Na sede do Inesc, em Brasília, reúnem-se representantes do Cimi, ABA, Cedi, UNI, CTI/
02-03. Mirad, CCPY, Coordenação Nacional dos Geólogos e da Procuradoria-geral da República,
abr. e índios residentes em Brasília, para discutir a forma final da proposta unitária sobre os
direitos indígenas a ser encaminhada à subcomissão de populações indígenas.

Instalada a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e


07.abr.
Minorias, e as demais Subcomissões.

09.abr. Instalada a Comissão de Sistematização.

Grupo Kayapó liderado por Raoni surpreende o Dep. Ulisses Guimarães na ante-sala de
seu gabinete, entrega a Proposta Unitária ao senador Mário Covas, e submete o dep. Ivo
Lech a uma pajelança.
22.abr.
Cerca de 40 lideranças dos povos Krahô (GO), Krenak (MG), Kayapó (PA/MT), Xavante (MT),
Terena (MS) e alguns Xingüanos (MT), participam da apresentação da proposta unitária à
Subcomissão dos Índios, subscrita pelo deputado José Carlos Sabóia (PMDB/MA).

Painel na Subcomissão das Populações Indígenas: Manuela da Cunha (ABA) e Florestan


23.abr.
Fernandes (PT-SP) falam sobre direitos indígenas.

Audiência pública da Subcomissão das Populações Indígenas: Falam Dom Erwin Krautler
(Cimi) Carlos Marés (CCPY e CPI-SP), Vanderlino Teixeira (Conage) e Mércio Gomes
(Iparge). Conage apresenta proposta sobre mineração.
29.abr.
Audiência Pública da Subcomissão de Educação trata da questão da educação escolar
indígena. Proposta redigida conjuntamente por várias entidades, inclusive o Cimi, foi
endossada pelo dep. Vasco Alves (PMDB-ES), e defendida por Marina Villas Boas.

Lideranças indígenas são ouvidas em audiência pública pela Subcomissão das


Populações Indígenas: Pangran Ubenkran-Grem (Kayapó), Estevão Taukane (Bakairi),
Nelson Sarakura (Pataxó), Gilberto Macuxi (Macuxi), Davi Kopenawa (Yanomami), Krumare
05.mai. Mentuktire (Kayapó), Pedro Kaingang (Kaingang), Valdomiro Terena (Terena), Hamilton
Lopes (Kaiowá), Antônio Apurinã (Apurinã) e Ailton Krenak. À tarde, a Subcomissão ouve
Eduardo Viveiros de Castro (SBPC) e Manoel Cesário (Fiocruz), que apresentam propostas
sobre direitos indígenas.

06.mai. Subcomissão das populações Indígenas faz audiência Pública na Aldeia Gorotire (PA).

146 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


1987

Advogado Paulo Guimarães (Cimi) presta depoimento em audiência pública da


Subcomissão da Nacionalidade, Soberania e Relações Internacionais, defendendo
07.mai. o reconhecimento da realidade plurinacional e multiétnica do país. O cacique Raoni
Mentuktire profere discurso antológico na Constituinte: “Minha orelha, esse é meu
documento”.

Assembléia da CNBB em Itaici (SP) decide pela mobilização em torno de três grandes
abril
temas, um deles a proposta de emenda popular do Cimi sobre os direitos indígenas.

Informe Constituinte Especial (Cimi) sobre as Emendas Populares a serem apresentadas


à Comissão de Sistematização esclarece as exigências do Regimento Interno da ANC
para a validade das Emendas: a) assinatura mínima de 30 mil eleitores brasileiros; b)
18.mai.
patrocínio por no mínimo três entidades associativas legalmente constituídas, que se
responsabilizarão pela idoneidade das assinaturas (nome completo e legível, endereços e
título eleitoral).

Subcomissão da Educação aprova as propostas de escolarização bilíngüe, e de proteção


22.mai.
especial do Estado às manifestações culturais indígenas.

Relator da Subcomissão das Populações indígenas apresenta o texto do substitutivo


específico.
25.mai.
Comissão da Educação aprova a previsão de alfabetização bilíngüe.
Início dos trabalhos da Comissão da Ordem Social.

14.jun. Aprovado o anteprojeto da Comissão da Ordem Social.

Comissão de Sistematização, presidida pelo dep. Afonso Arinos (PFL-RJ), recebe o


15.jun.
resultado dos trabalhos das 08 Comissões Temáticas.

16.jun. Lançamento da campanha nacional de apoio às Propostas de Emendas Populares.

Diz o Informe Constituinte n.º 15 (Cimi) que nas duas fases de emendas às Comissões,
18.jun. detectou-se uma “articulação anti-indígena que, tudo indica, é patrocinada ou inspirada
pelo Conselho de Segurança Nacional”.

VII Assembléia Geral do Cimi manifesta apoio ao anteprojeto da Comissão da Ordem


28.jun.
Social relativo aos direitos indígenas.

Apresentado o 1.º Anteprojeto da Comissão de Sistematização, excluindo o caráter


Início
pluriétnico da sociedade brasileira e as formas de organização das nações indígenas. O
de
dep. José Carlos Sabóia (PMDB-MA) apresenta emenda elaborada pelo Cimi, recuperando
julho
o conteúdo excluído.

Apresentadas 84 emendas contrárias aos direitos indígenas, à Comissão de


1-8.jul.
Sistematização.

Apenas 04 dos 32 constituintes convidados pela CNBB comparecem ao encontro “Nações


Indígenas na Constituinte”, organizado por D. Luciano Mendes de Almeida para divulgar
e debater o texto da Emenda Popular sobre as Nações Indígenas. O encontro teve a
08.jul.
coordenação de D. Erwin Krautler, presidente do Cimi. Compareceram os constituintes
Nélson Jobim (PMDB-RS), José Carlos Sabóia (PMDB-MA), Alceni Guerra (PFL-PR) e Haroldo
Lima (PCdoB-BA).

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 147


Apêndice - Cronologia

1987

13-14.
Fica pronto o Projeto de Constituição da Comissão de Sistematização.
jul.

17.jul. Dia nacional de Mobilização pela coleta de assinaturas às Emendas Populares.

Informe Constituinte n.º 19 (Cimi) afirma que dos três grupos que se formaram entre os
07.ago. constituintes, o “grupo dos 32” (do Instituto Israel Pinheiro, ou “Tântalo”) pulverizou os
direitos indígenas à terra, adotando as teses do Conselho de Segurança Nacional.

09.ago. Tem início a campanha do Jornal “O Estado de São Paulo” contra o Cimi

Nota do presidente da CNBB, Dom Luciano Mendes de Almeida rebate as acusações do


10.ago.
jornal “O Estado de São Paulo”

Ato público em Brasília – DF para a entrega das Emendas Populares. Com a participação
de lideranças Makuxi (RR), Yanomami (AM/RR), Kiriri (BA), Pataxó Hã-Hã-Hãe (BA), Xavante
12.ago. (MT) e Rikbaktsa (MT), são entregues as Emendas Populares dos direitos indígenas, ao
presidente da Comissão de Sistematização, Dep. Afonso Arinos. Os índios participam de
reunião, na sede da CNBB, com o senador Severo Gomes (PMDB-SP).

Grupo de parlamentares assina Requerimento de Instalação de CPI sobre as acusações de


13.ago.
“conspiração internacional” feitas pelo “Estado de S. Paulo” contra o Cimi.

Fundação Pedroso Horta (do PMDB) promove debate sobre a questão da mineração em
20.ago.
terras indígenas. São ouvidos representantes da CNBB, Cimi, ABA e Conage.

Resolução n.º 3-CN, aprova instauração da CPMI para apurar as acusações do “Estado de
22.ago.
S. Paulo” contra o Cimi.

Relator da Comissão de Sistematização, Dep. Bernardo Cabral, apresenta o 1.º


26.ago. Substitutivo ao Projeto de Constituição, adotando teses do “Grupo dos 32”, coordenado
pelo sen. José Richa (PMDB-PR), reduzindo drasticamente os direitos indígenas.

Em coletiva de imprensa na sede da CNBB em Brasília, o presidente do Cimi, D. Erwin


28.ago.
Krautler chama de etnocida o 1.º substitutivo do dep. Bernardo Cabral.

03.set Instalada a CPMI contra o Cimi.

Defesa das Emendas Populares no plenário da Comissão de Sistematização. As emendas


relativas às “Nações Indígenas” (n.º 039) e às “Populações Indígenas” (n.
04.set.
º 040) são as últimas apresentadas, num plenário esvaziado. O coordenador da UNI,
Ailton Krenak, pinta o rosto e protesta contra o Substitutivo do dep. Bernardo Cabral.

1.º-15. Representantes dos regionais do Cimi auxiliam no contato pessoal com os constituintes
set. em Brasília.

Dep. Bernardo Cabral apresenta o texto do 2.º Substitutivo ao Projeto de Constituição


18 set. da Comissão de Sistematização, substituindo matérias discutidas e aprovadas no voto
pelas Subcomissões e Comissões, por formulações antes derrotadas.

20.set. Presidente da Funai, Romero Jucá Filho, defende Substitutivo Bernardo Cabral.

148 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


1987

Delegação de 27 indígenas dos povos Fulni-ô (PE), Xukuru-Kariri (AL), Kariri-Xokó (AL) e
5a
Pankararu (PE), participa de manifestação de 8 mil trabalhadores rurais de todo o país
7.out.
em Brasília que pressionam pela reforma agrária no texto constitucional.

Senador Ronan Tito, Relator da CPMI do Cimi, apresenta relatório apontando a origem
22.out. duvidosa das acusações e “não terem fundamento as denúncias que levaram à criação da
Comissão de Inquérito.

Por decurso de prazo, Comissão de Sistematização deixa de votar o Título VIII (Da
Ordem Social), que inclui os capítulos sobre Meio Ambiente (VI), Família, Criança,
14.nov.
Adolescente e Idoso (VII) e dos Índios (VIII). Os capítulos não votados são remetidos ao
Plenário.

“Carta dos Povos Indígenas na Faixa de Fronteira” é entregue aos constituintes por uma
delegação formada por representantes dos povos Marubo (AM), Karipuna (AP), Galibi (AP),
19.nov.
Apurinã (AC), Kaxarari (RO), membros do Conselho Indígena de Roraima (CIR), FOIRN
(AM), Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AM) e CGTT (AM).

Mudança importante no Regimento Interno da Assembléia (defendida pelo grupo que


02.dez.
ficou conhecido como “Centrão”).

1988

Início do 1.º turno de votações do Plenário. O texto de referência deixa de ser o


27.jan. Projeto de Constituição A da Comissão de Sistematização, e passa a ser as “Emendas
Coletivas” do Centrão.

Informe Constituinte n.º 30 (Cimi) indica lista de constituintes que devem receber
04.fev. atenção preferencial das bases missionárias do Cimi, para contatos pessoais e envio de
cartas.

Informe Constituinte n.º31 (Cimi) traz a relação dos “inimigos” dos índios nesta fase da
11.fev.
ANC, “e os destaques respectivos, que devem ser desencorajados”.

Início de Criada a Frente Parlamentar Pró-Índio composta por 46 parlamentares de partidos


março. diversos e coordenada pelo deputado Tadeu França (PDT-PR).

Frente Parlamentar Pró-Índio discute a questão das Empresas de mineração em terras


16.mar. indígenas. Antropólogo Carlos Alberto Ricardo denuncia que 33,5% da extensão total
das terras indígenas na Amazônia têm o subsolo reservado a tais empresas.

O presidente da Constituinte Dep. Ulisses Guimarães suspende votação do plenário


para receber delegação de 50 anciãos Kayapó do sul do Pará. Os índios protestam
18.mar. contra o art. 271 do substitutivo do relator Bernardo Cabral (que exclui da proteção
constitucional os índios “em elevado estágio de aculturação”), e dizem não à exploração
mineral em terras indígenas.

Votado o item V do art. 158: “Art. ... São funções institucionais do Ministério Público:
19.abr.
(...) V – defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas”.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 149


Apêndice - Cronologia

1988

A assessoria do Cimi informa que está encaminhando gestões para consolidar o acordo
sobre o capítulo “Dos Índios”, antecipando conversas e propondo o “fechamento” de
21.abr.
posições em cima das emendas do dep. Alceni Guerra, sen. Jarbas Passarinho, destaques
do dep. Carlos Cardinal e sen. Mário Covas, e dep. Fabio Feldman.

28.abr. Votação da nacionalização da atividade minerária (art. 205).

Início. A tese da estatização da mineração em terra indígena era abandonada, para não se
Mai. por em risco a possibilidade de resgatar a redação original do capítulo dos índios.

Os Kayapó e delegações de outros povos somando mais de 100 lideranças indígenas,


acampam em Brasília onde permanecem por três semanas até a votação do capítulo
início “Dos Índios”. Percorrem gabinetes dos parlamentares, e visitam a Secretaria de Direitos
mai. Humanos do Ministério da Justiça, a Procuradoria-Geral da República, o Conselho
Federal da OAB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e a Universidade de
Brasília.

Com a derrota na votação sobre a Reforma Agrária, o “Informe Constituinte” n.º 35


adverte das dificuldades para se garantir os votos necessários à aprovação dos direitos
11.mai. indígenas no capítulo “Dos Índios”. Informa da tentativa de articular um acordo
entre as lideranças partidárias, e pede a intensificação de esforços das bases sobre os
constituintes nas regiões.

Votação do Capítulo III (Educação, Cultura e Desporto), incluindo dois dispositivos


importantes para os povos indígenas. O dep. Bonifácio de Andrada (PDS-MG), do
19.mai. “Centrão”, declara a representantes da UNI, ABA, CEDI e CPI-SP que sua posição a
respeito do capítulo sobre os índios seria determinada pelo Conselho de Segurança
Nacional.

Meados O sen. Severo Gomes (PMDB-SP) assume a articulação do acordo sobre o capítulo dos
de maio índios.

Lideranças indígenas acampadas em Brasília para acompanhar a Constituinte são


recebidas pelo presidente da OAB Márcio Tomás Bastos, pelo presidente da CNBB, D.
24.mai.
Luciano Mendes de Almeida, pelo Procurador-Geral da República Sepúlveda Pertence, e
pelo Reitor da UnB, Cristovam Buarque.

Dia previsto para a votação do capítulo “Dos Índios”. Estes realizam pajelança pela
25.mai. vitória nas votações, discutem estratégias para sensibilizar constituintes indecisos e
iniciam vigília aguardando o resultado das negociações em torno do capítulo.

14:30 hs: começam as negociações das lideranças partidárias em torno do capítulo.


Impacientes, os índios fazem vigília no auditório ao lado, aguardando o resultado das
discussões. Cantos de guerra são puxados pelos Kayapó. Constituintes que entram
26.mai.
e saem da sala são interpelados pelos índios. Assessores das organizações de apoio
acompanham as negociações e fazem traduções e avaliações do andamento dos
trabalhos para os índios.

30-31 Outras lideranças indígenas chegam ao acampamento em Brasília, somando mais de


mai. 200 índios, mobilizados na ANC.

150 Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988


1988

Os índios vão ao auditório da liderança do PMDB. Raoni Mentuktire e Prepori Kayabi


entraram na sala de reuniões e realizam uma pajelança. Às 14:00 hs são retomadas
as negociações. Os índios continuam a vigília no auditório anexo, com os Kayapó
31.mai.
entoando cânticos rituais e passos de dança. Às 18:30 hs é selado o acordo,
denominado Emenda-fusão substitutiva do Capítulo VIII (Dos Índios) do Título VIII (Da
Ordem Social).

O texto da Emenda-fusão Substitutiva é levado à votação no plenário. Os índios


tomam as galerias para acompanhar. O dep. Ruy Nedel pede que, em homenagem aos
1.º.jun. índios, não haja nenhum voto contrário. O texto é aprovado por 487 votos, contra
05 contrários, e 10 abstenções. Os índios festejam nas galerias e sobem a rampa do
Congresso onde dançam.

Votado e aprovado por 355 votos o texto do art. art. 25: “A União demarcará, no prazo
21.jun. de cinco anos, a partir da promulgação desta Constituição, as terras indígenas ainda não
demarcadas”.

30.jun. Encerramento do 1.º Turno de Votações.

Informe Constituinte do Cimi prevê dificuldades para se suprimir o dispositivo que


04.jul.
previa a destinação aos Estados, das terras dos “extintos aldeamentos”.

Relator Bernardo Cabral apresentava o Projeto de Constituição B, com alterações


05.jul.
negativas para alguns dispositivos aprovados.

Chega a Brasília caravana de 36 representantes de povos indígenas do NE: Potiguara


início.
(PB), Fulni-ô (PE), Kapinawá (PE), Xukuru (PE), Gerimpankó (AL), Xukuru-Kariri (AL),
ago.
Karapotó (AL) e Xokó (SE).

Líderes indígenas percorrem os gabinetes dos constituintes buscando a remoção do


artigo que destina aos Estados as terras dos “extintos aldeamentos”. Recebem o
9-12.
reforço de mais 100 índios das regiões Sul, Centro-Oeste e Norte, sobretudo guerreiros
ago.
Kayapó das aldeias do sul do Pará. Novamente “percorreram os gabinetes, e dançaram
nos corredores do Congresso”.

Nova vigília “no auditório da liderança do PMDB na Constituinte, junto à sala de


17.ago. reuniões”, aguardando acordo de líderes favorável a emenda supressiva, o que não
ocorrera naquele dia.

Os índios retornam à vigília no auditório, até receberem a notícia do acordo entre os


líderes dos partidos políticos, em apoio à emenda supressiva do Dep. Domingos Leoneli
(sem partido/BA). Os mais de 150 indígenas ocuparam as galerias do Plenário, onde
18.ago. puderam assistir a mais uma vitória: o dispositivo indesejado foi suprimido por 367
votos, contra três pela sua manutenção, e três abstenções.
Votado em 2.º turno o destaque à emenda supressiva do Inciso V do art. 26

O capítulo dos índios era submetido ao 2.º Turno de votações, e aprovado, com
30.ago. 437 votos favoráveis, oito contrários e oito abstenções, consolidando assim a vitória
indígena na Constituinte.

Os povos Indígenas e a Constituinte – 1987/1988 151


Anexos

19/08/1988 – Índio
Kayapó com Projeto de
Constituição (B) - 2º turno
nas mãos
Foto: Egon Heck/Arquivo
Cimi/Secretariado
Nacional/SEDOC.
Anexo I

Falam os aliados da causa indígena

Exposição da Antropóloga MANUELA CARNEIRO DA CUNHA


em Painel temático da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 23 de abril de 1987

– Agradeço ao Constituinte José Carlos Sabóia as palavras excessivas, bem como à Subcomissão
o convite que me foi feito para vir falar aqui, pedindo desculpas por ter que ser breve.
Abordarei diretamente algumas questões que me parecem talvez ser esclarecedoras da
questão das minorias, sobretudo da questão indígena.
Talvez eu deva falar rapidamente sobre o que é uma minoria. Minoria, já se observou, muitas
vezes, diz respeito a maioria populacionais. Existem minorias de mulheres que estão integradas na
maioria populacional.
E ser minoria, o que isso significa? Basicamente, significa que são sócias minoritárias de um
projeto de nação. É um problema que merece certa reflexão, na medida em que significa também que,
independentemente do peso demográfico sobre uma população, eles podem ser sócios das decisões
fundamentais que vão afetá-los.
Neste sentido, há que se pensar em como esta nova Carta Constitucional deve tratar aqueles
que não têm a força majoritária no País, quer dizer, qual é o papel que se deve dar àqueles estratos
populacionais. É este o sentido verdadeiro de minorias: não é um sentido demográfico. Enfatizo esta
questão.
No caso do indígena, a minoria indígena é também uma minoria fortemente demográfica. É
uma ínfima parcela da população, mas é também uma ínfima parcela daqueles 6 milhões de índios que
aqui habitavam quando o Brasil foi supostamente descoberto.
Isso da a medida do genocídio que foi praticado neste País.
Temos, hoje, algo em torno de 220 mil índios, distribuídos em 180 sociedades diferentes.
Representa uma riqueza cultura que é difícil de ser avaliada.
A tendência à homogeneização, que foi característica do começo deste século, por exemplo,
e veio até o pós-guerra, foi fortemente marcada também por essa expectativa de uma grande
homogeneização de que o Mundo seria uma aldeia global. Ao contrário, o que se viu foi o renascer
das especificidades e também os valores extraordinários que se começou a perceber em sociedades
diferentes.
O Brasil tem 180 sociedades diferentes, tem 180 línguas diferentes, e isso contribui para o
patrimônio cultural da Humanidade. Cada sociedade é uma forma original específica de convívio entre
seres humanos.
Significa, também, essa riqueza cultural ser um aspecto que é riqueza tecnológica. Talvez
seja bom lembrar: está saindo, nos próximos dias, um livro da antropóloga Berta Ribeiro, que trata
exatamente dessa contribuição tecnológica do índio. Não é apenas uma contribuição tecnológica
passada, quando desenvolveu coisas tão necessárias como, por exemplo, o cultivo da mandioca, é
também uma contribuição tecnológica atual, no manejo do território, em particular, do território
amazônico, de toda a Amazônia Legal, em que os índios detêm um conhecimento ecológico de
fundamental importância.

154 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Só para dar uma idéia do que isso significa, lembro que – tomando apenas um exemplo
particular – os Assurinis, do Pará, cultivavam 12 tipos diferentes de batata-doce, o que mostra a
domesticação e o conhecimento de muito mais espécies que os outros brasileiros conhecem. Eles
foram compelidos a fugir, e, nessa fuga, perderam-se várias espécies.
Os Ianomanis conhecem 354 plantas medicinais do seu habitat. Isso significa também uma
riqueza do conhecimento científico que não pode ser perdido, e não pode ser perdido, como dizia
ontem a Constituinte que aqui falou, para o futuro também. Não temos só um legado indígena,
temos um projeto de futuro em comum. Alguns direitos dos índios derivam da sua condição de
minoria, no sentido que eu estava colocando anteriormente, ou seja, as sociedades indígenas são
particularmente vulneráveis, todos sabemos disto. É por isso que o Marechal Rondon disse que o
Brasil tinha para com os índios uma grande dívida, a grande dívida de preservar a possibilidade de
eles sobreviverem.
Quando Rondon iniciou o Serviço de Proteção aos índios, debate que se travava era entre o
extermínio total dos índios e a possibilidade de lhes dar um futuro, e a política seguida, a partir daí,
foi a de preservar a possibilidade, ou seja, a possibilidade de sobrevida, a possibilidade de proteger o
encontro que sempre foi fatal quando travado diretamente entre a sociedade envolvente e os índios. O
Estado tomou para si a responsabilidade de uma proteção especial. Essa proteção especial é decorrente
da vulnerabilidade dos índios.
Há outra questão que não decorre da vulnerabilidade das sociedades indígenas, que é o
direito à terra. O direito à terra é um direito totalmente diferente da proteção especial que se dá às
sociedades indígenas. O direito à terra é o reconhecimento que vem desde a Colônia, de que os índios
são os primeiros ocupantes do Brasil. Isso foi reconhecido desde o século XVI quando se discutiu,
por exemplo, se o Papa Alexandre VI tinha o direito de ficar traçando a linha de Tordesilhas e dando
terras a leste e a oeste para Portugal e Espanha. Com que direito ele dava essas terras? E tratadista
do século XVI, em particular Francisco de Vitória, que é o fundador do Direito Internacional, foi muito
taxativo, quer dizer, não havia soberania do Papa para discutir essas terras. Ele podia dar um direito
de missão. As terras, na verdade, pertenciam aos índios. Era uma discussão que tinha um impacto
político evidente. Havia quem sustentasse, por exemplo, que os índios, não conhecendo a verdadeira
fé, não tinham verdadeira soberania, ou que, estando em estado de pecado, não podiam ter verdadeiro
domínio sobre suas terras. Apesar de muito conveniente para as Coroas portuguesa e espanhola se
negassem os direitos territoriais aos índios. Apesar disso prevaleceu no Direito, particularmente com
Francisco de Vitória, que os índios eram verdadeiros senhores de suas terras.
Estou enfatizando este ponto para mostrar que toda legislação colonial subseqüente para o
Brasil e para o Maranhão, durante toda a Colônia reconheceu esses direitos originários dos índios, pelo
simples fato de eles serem os primeiros ocupantes.
Na própria Lei das Terras, em 1850, está implícito, e quem o sustenta muito bem é João
Mendes Júnior em seu livro, um livro de 1912, que intitulava “Os Índios – Seus Direitos individuais e
Políticos”, os títulos indígenas sobre sua terras não necessitam de revalidação, eram títulos congênitos,
eram títulos originários. Não vou estender-me aqui, porque não teria tempo, mas é importante se
perceber que há dois tipos de direitos para os índios: um, que deriva, portanto, da vulnerabilidade das
suas sociedades, outro, que deriva da sua condição de primeiros ocupantes dessas terras, e que é uma
tradição.
Só queria lembrar aqui que é uma tradição jurídica brasileira, porque não só na Colônia, não
só no Império, nas Constituições brasileiras, desde 1934, 37, em 46, em 67 e em 69, todas elas têm um
artigo, um ou mais artigos até, sobre os Direitos Territoriais Indígenas. As terras ocupadas pelos índios
são de sua posse permanente, é o texto atual do art. 198. São, portanto, direitos históricos.
Qual é a natureza dessas terras indígenas? Estou enfatizando a questão das terras porque,
hoje, é basicamente uma questão de terras, uma questão de riquezas naturais, principalmente de
mineração, e uma questão de fronteiras.
Quanto às fronteiras, é muito irônico, que durante a Colônia, os índios fossem usados ao
mesmo tempo como problema de mão-de-obra escrava e também como problemas de fronteira.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 155


Ao inverso do que é hoje, os índios eram usados, durante toda a Colônia para garantir as fronteiras
brasileiras. Eles eram chamados de “as muralhas do sertão”. Ironicamente, hoje, se põe em dúvida
hoje.
Consta do Projeto Calha Norte, que está sendo implementado, que os índios não são bons
defensores das fronteiras, por isso, não se deve assegurar terras indígenas na faixa de fronteira. É uma
gritante injustiça, inclusive histórica.
Concentrar-me-ei mais diretamente na questão da terra. Os índios têm na terra o suporte
da sua identidade. A terra é absolutamente necessária à sua reprodução física e cultural também.
Este é ponto pacífico, que não necessita de mais explicações, mas é importante que se lembre que
as terras indígenas são um habitat, e, neste sentido, o Ministro Victor Nunes Leal, por exemplo, foi
muito explícito em vários dos seus pronunciamentos, entendendo, quando era Membro do Supremo
Tribunal Federal, que terra indígena é exatamente um habitat do grupo indígena, o que significa não
simplesmente o lugar em que mora, as suas casas, as suas roças, mas todo o seu meio ambiente.
Essa questão das terras indígenas tem sido objeto de alguma polêmica recentemente. No
recente encontro que houve entre empresários e o Presidente Sarney em Itatinga, no interior do Estado
de São Paulo, se mencionou, e soubemos isso pela “Coluna do Castello”, no Jornal do Brasil, que os
índios teriam 70 milhões de hectares de terra, e que isso era irracional e prejudicava o desenvolvimento
do País.
Antes de mais nada é incorreto, factualmente incorreto. O total de terras demarcadas é de 12
milhões de hectares, e a FUNAI demarcou apenas 32% das terras identifi cadas, regularizou plenamente,
ou seja, com decreto presidencial e registro no SPU, apenas metade dessas terras. Essas terras são 13,5%
do estoque total das terras dos estabelecimentos ditos produtivos. Estes são dados dos Censos, são
13,5% do estoque total das terras produtivas. As terras mantidas improdutivas pelos seus proprietários
são mais de 20 vezes essa quantidade. Enfim, poderíamos dar outras cifras, mostrando que existem
proprietários que detêm – não vou entrar nesses dados – existem terras de 1 proprietário, e não de
220 mil, que são muito mais extensas. O que isto significa? Em particular, significa que essa política de
não demarcação deixa a descoberto uma série de terras para as quais os índios têm atualmente direitos
constitucionais, e esperamos que a nova Constituição mantenha esses direitos.
Seria uma quebra de toda a tradição jurídica se esta Constituição democrática não desse as
mesmas garantias que Constituições autoritárias asseguraram. O que implica essa não demarcação? Por
que não se demarcou?
É bom que se diga. A demarcação estava prevista no Estatuto do Índio, que é de 1973, que
previa 5 anos para que se completassem todas as demarcações. No entanto, estamos em 87, e dei
as cifras atuais, 32% das terras identificadas apenas estão demarcadas. Não se demarca exatamente
porque os interesses são muito grandes. Há interesses contra a demarcação, ou então há interesses
em demarcar incorretamente, ou seja, reduzindo fortemente as terras que a Constituição garante aos
índios.
A Constituição atual prevê, no seu art. 198, que as terras são de posse permanente, e esse
dispositivo é auto-aplicável. Portanto, não há necessidade da demarcação para garantir esses direitos.
No entanto, sem demarcação o que acontece? Acontecem coisas, como a seguinte: alvarás de mineração
concedidos para áreas indígenas.
Há, atualmente, 137 alvarás de pesquisa mineral em áreas indígenas; 163 alvarás estão em
terras demarcadas; 364 em terras não demarcadas. É claro que a não demarcação favorece a invasão.
Por quê?
Porque se diz: “Se não há definição de terras indígenas, como é que se sabe que não se pode
dar um alvará de pesquisa mineral?”
Isto, enfim, leva à questão da mineração em áreas indígenas, que vai ser, certamente, um
lugar de grande tensão na discussão da questão indígena aqui. Só darei alguns dados para mostrar o
que foi que se conseguiu.

156 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Atualmente, a Constituição, em seu art. 198, reserva o usufruto exclusivo de todas as
riquezas naturais existentes aos índios nas suas terras. No entanto, outro artigo reserva a propriedade
do subsolo à União.
No fim do Governo Figueiredo, foi preparado um decreto prevendo a mineração em área
indígena. O Presidente Figueiredo foi levado a assinar esse decreto quando estava convalescendo de
uma operação, nos últimos dias do seu Governo. Suscitou uma tal celeuma esse decreto que não foi
publicado.
Demorou, mas ainda não foi regulamentado. Como acabei de mencionar, há 537 alvarás
de pesquisa concedidos para área indígena, grande parte no segundo semestre do ano de 1985. O
decreto assinado pelo Presidente Figueiredo previa que só se pudesse minerar em área indígena nas
seguintes condições: somente empresas estatais brasileiras poderiam minerar e, excepcionalmente,
empresas privadas nacionais. No entanto, o quadro de 537 alvarás de pesquisa mineral em áreas
indígenas mostra: apenas 10% dessas empresas são estatais brasileiras; 50% são nacionais brasileiras:
40% são multinacionais. Esse decreto não estava regulamentado quando foram concedidos os
alvarás. Estava tramitando uma representação de inconstitucionalidade desse decreto, acolhida pelo
Procurador-Geral da República. No entanto, o DNPM e o Ministério das Minas e Energia concederam
esses alvarás.
Vou ter que parar por aqui. Lamento. Sobre a questão da mineração são esses dados, e a
ganância de que está sendo alvo a sociedade brasileira.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões); pp18-19.]

Exposição do Sociólogo e Constituinte FLORESTAN FERNANDES


em Painel temático da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas,
Pessoas Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 23 de abril de 1987

O SR. CONSTITUINTE FLORESTAN FERNANDES: – Agradeço à minha companheira Constituinte


Benedita da Silva e ao Presidente desta Subcomissão, deputado Ivo Lech, um exemplo de coragem
humana, o convite. (...). Para ser franco com V. Ex.ª não sei bem sobre o que vim falar.
A Constituinte Benedita da Silva falou vagamente em questão de minoria. Ora, sou Professor
de Sociologia, ainda não me habituei com o papel de Constituinte, e não vim aqui para dar uma aula
sobre o conceito sociológico ou etnológico de minoria. O Professor José Sabóia poderia fazer isto até
melhor do que eu. Relatarei duas coisas que são importantes para mim e que marcaram minha vida
como pesquisador. Uma, diz respeito ao estudo do índio, outra, diz respeito ao estudo do negro.
Com referência a estes assuntos, tenho alguma coisa a dizer. (...) Com referência à minha
própria experiência humana como pesquisador, uma das descobertas que fiz – e não estudei índios
vivos, estudei índios desaparecidos, índios Tupi que viveram no Brasil no Século XVI e no Século XVII
– foi a controvérsia que existe entre a nossa consciência falsa na nossa História e a realidade histórica
viva. Gilberto Freire, um homem de grande valor intelectual, que escreveu obras que são fundamentais
na história da Sociologia, da Antropologia cultural no Brasil, afirma, por exemplo, que no Brasil não
houve uma política, como ocorreu na América espanhola e em outras áreas coloniais, não houve uma
política de exterminação dos indígenas, e a reação dos indígenas à colonização foi pacifica, porque os
brancos, por sua vez, trataram os indígenas de uma forma benigna.
Ora, esta é uma mitologia, não é ciência. Peguem um homem como Frei Vicente Salvador, que
escreveu uma história objetiva do Brasil, e vejam o que ele afirma ali. Peguem os livros dos cronistas
que descrevem situações concretas de contato entre índios e brancos, desde cronistas portugueses

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 157


e cronistas espanhóis, e ate um inglês como Anthony Nivert, e as cartas dos jesuítas, que são relatos
fidedignos, os documentos oficiais. A política colonial dos portugueses tinha que ser uma política
colonial. Os índios não resistiram, os indígenas nativos não resistiram a conquista, enquanto a conquista
não ameaçou a sobrevivência dos índios enquanto comunidades humanas organizadas.
Até o período das feitorias a convivência foi pacífica e os conflitos foram ocasionais. Em
seguida, quando se estabeleceu a política das donatários, aí entrou em jogo a questão da propriedade
da terra. Os indígenas começaram a ser expulsos da sua terra, começaram a perder a liberdade da sua
pessoa, foram reduzidos à escravidão, perderam o direito à mulher e à família, que eram incorporados
à encravaria do conquistador, e outras conseqüências que não vêm ao caso admitir aqui.
Então, o que aconteceu? Aconteceu que eles resistiram à conquista pelos meios de que
dispunham, e meios violentos. A chamada Confederação dos Tamoios, que de fato não era uma
Confederação dos Tamoios, era uma Confederação de Índios Tupi, e que é muito bem descrita nos
livros de Nóbrega. Anchieta e outros cronistas jesuítas, foi formada como uma tentativa última dos
indígenas de resistir à conquista.
O grande obstáculo que os indígenas encontraram para se defender contra a conquista
portuguesa estava no fato de que a organização tribal impedia a unidade deles, o aparecimento de
formações sociais que pudessem enfrentar a invasão portuguesa. Na medida em que eles não tiveram
condição de desenvolver uma formação social capaz de resistir ao branco, acabaram ficando expostos
a uma política de divisão que os brancos manejaram com muita habilidade, lançando grupos indígenas
contra outros, ajudando os brancos a dizimar as populações nativas, e foram vitimas também de
incursões montadas pelos brancos para o extermínio sistemático das populações nativas.
De modo que a política de extermínio do indígena e uma política que vem da era colonial,
e só encontrou uma barreira em conseqüência da interferência da Igreja Católica regulamentando
este assunto, não por causa do Brasil, mas por causa do que ocorreu no México, no Peru e na América
Espanhola de uma maneira geral. Na medida em que o Papa interferiu na natureza das violências que
foram praticadas nessas áreas, que foram ainda maiores que as praticadas aqui, porque eram áreas nas
quais existia ouro, existiam preciosidades, havia a possibilidade de usar o trabalho indígena, inclusive
na mineração, a política destrutiva acabou assumindo aspectos tão desumanos, que os próprios
padres acabaram tendo de tomar providência no sentido de levar à Coroa o problema concreto do que
representava essa destruição.
E hoje podemos avaliar. Há muitos estudos de antropólogos a respeito do assunto. Quanto
aos Tupis, posso constatar que a única maneira que os índios Tupis encontraram para fugir a escravidão
e à dizimação foi a da migração para novas áreas: aquilo que os cronistas chamavam de fuga para o
sertão. Na medida em que os brancos penetravam e ampliavam suas fronteiras, os indígenas tiveram de
recuar para conseguir, através do isolamento, condições de autoproteção e de autodefesa. E assistimos
hoje ao fim desse processo, os indígenas não têm hoje mais para onde fugir. Eles não podem fugir, não
existem mais áreas capazes de assegurar proteção.
Graças ao General Rondon e ao Serviço de Proteção ao Índio, surgiu uma legislação de
proteção ao índio, mas essa legislação nunca foi obedecida de forma construtiva. Vários antropólogos
fizeram estudos a respeito, mostrando que essa política de proteção ao índio não levou a nada, e,
por motivos diferentes, os brancos sempre desejaram as terras dos índios, às vezes para fazendas de
criação ou de plantação, outras vezes por causa de jazidas minerais. Chegamos ao extremo, hoje, de
o nosso Exército ser um instrumento usado por empresas nacionais e estrangeiras para desalojar os
indígenas das áreas em que estes ainda podem sobreviver. Inclusive se usa a artimanha de dizer que
e preciso dar cidadania plena ao indígena para que ele decida sobre o seu destino, possa dar uma
utilidade maior às suas terras, ate negocia-las.
É uma maneira de levar à destruição, a limites inconseqüentes.
Portanto, ai temos todo um conjunto de problemas muito graves, que temos que enfrentar
com coragem. A legislação a respeito das populações indígenas tem que seguir pautas novas.

158 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Durante esse período ditatorial, os indígenas acabaram desenvolvendo-se com a colaboração
de organizações, principalmente da Igreja Católica, e também de outras formas de organização,
assistência prestada, individualmente, por certos advogados.
Acabaram desenvolvendo várias formas de consciência da realidade, inclusive desenvolvendo
a idéia de defender o conceito de nacionalidade; de serem tratados não como minorias irresponsáveis,
mas como nações que vivem dentro do solo brasileiro e devem dispor e desfrutar das regalias e das
proteções de uma nação dentro do Pais.
Já ouvi exposições de alguns desses líderes. Fiquei impressionado, várias vezes, por conseguir
ouvir esses indígenas que falam em nome de seus companheiros: a articulação de seu pensamento, o
nível de informação que possuem, a objetividade com que descrevem a realidade. Se V. Ex.ª tomarem o
livro de um dos dois autores franceses que trataram dos Tupinambás do Norte e Nordeste, encontrarão
um diálogo com um chefe indígena. Esse chefe faz uma descrição das diferentes etapas seguidas pelo
processo de colonização, desde a ocupação da terra, desde a presença do branco como amigo, o
branco que era recebido e incorporado à família indígena e recebia uma mulher, ate o momento em que
ele tira o índio da terra e a fase posterior, em que ele acaba massacrando o indígena.
Esse chefe indígena mostra diversidade do indígena para penetrar nos assuntos concretos da
vida. Não podemos pensar que os seres humanos são irracionais porque nascem indígenas ou porque
nascem africanos, ou porque nascem asiáticos. Os indígenas têm essa capacidade, um documento
do século XVII o comprova. O trabalho desses indígenas que hoje se estão ocupando da liderança do
movimento indigenista, substituindo os antropólogos, pondo de lado qualquer tipo de assistencialismo
por parte da Igreja Católica ou de outras entidades, o trabalho deles e admi rável. Os índios são
os melhores advogados da sua própria causa, conhecem a natureza dos problemas que enfrentam
e defendem condições que a sociedade brasileira ainda não é suficientemente democratizada para
aceitar. Fomos criados na mentalidade de que o indígena é uma pessoa in natura. Escrevi um trabalho
comparando a criança, o indígena e o louco. Essa era a grande problemática das Ciêncas Sociais no
inicio do século XX. Combatia esse tema dizendo que envolvia muitos preconceitos contra as crianças,
contra o indígena e contra os loucos.
Na medida em que os antropólogos deste século comparavam os indígenas, a criança e
o louco, por aí já vemos a tendência do branco, mesmo do branco que é cientista, a discriminar a
capacidade perceptiva, cognitiva de explicação do mundo do indígena, do primitivo.
Se é primitivo, é primitivo em todos os sentidos, isto não é verdadeiro. O limite do ser
humano não se define pelo limite de sua civilização. É dado pela capacidade de acumular experiências,
enfrentar a experiência nova e de desenvolver, através dessas experiências concretas, sabedoria sobre
essas condições de vida que são enfrentadas pelo indivíduo.
Esses representantes das comunidades indígenas se autodesignam como nações indígenas,
são capazes de trazer para nos, aqui, uma contribuição inestimável, que coloca em xeque a questão de
estabelecer uma lagislação sobre minorias. Pensar em minorias é pensar que o Brasil está dividido, e
como se fosse uma colcha-de-retalhos. Minha avó gostava de fazer.
Era portuguesa, econômica. Então, tudo quanto era retalho que sobrava de vestido, disso ou
daquilo, ela guardava e depois fazia a colcha, forrava a colcha, e ficava uma coisa bonita. No entanto,
uma colcha-de-retalhos é uma composição em que as partes não interagem.
Considerar um grupo humano como uma minoria é, em certo sentido, dizer que pertence
a Nação, mas que, ao mesmo tempo, ele não tem a plenitude dos direitos civis e políticos que são
desfrutados por aqueles que formam a maioria desta Nação. Quer dizer, existem cidadãos de primeira
categoria e cidadãos que são parte das minorias, e que estão sujeitos a alguma forma de restrição,
inclusive constitucional, inclusive de proteção daqueles que se arvoram em consciência do outro.
Então, é preciso ir ao fundo desta questão, e os agrupamentos indígenas permitem isto. (...)

[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões); pp.22-23.]

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 159


Depoimento de D. ERWIN KRÄUTLER (CIMI)
em Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 29 de abril de 1987

– Excelentíssimo Senhor Deputado Ivo Lech. Digníssimo Presidente desta Subcomissão


Excelentíssimo Senhor Deputado Alceni Guerra. Digníssimo Relator desta Subcomissão. Excelentíssimos
Senhores Constituintes. Senhoras e Senhores.
O Conselho Indigenista Missionário é órgão anexo da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil, criado em 1972 com a missão de orientar a pastoral indigenista da Igreja Católica. Desde a sua
criação, o Cimi procurou realizar uma auto-crítica sincera das práticas tradicionais da Igreja junto aos
Povos Indígenas, forjando uma postura coerente com os postulados do Concilio Vaticano II e com as
Conferências Episcopais de Medellín e Puebla.
Neste sentido, um dos papéis mais importantes desempenhado pela Igreja Missionária é a
denúncia profética das atitudes que negam aos índios a sua dignidade de seres humanos e os seus
direitos à vida plena.
É no exercício desta função que o Cimi julgou importante trazer aos Srs. Constituintes
elementos que permitam avaliar o contexto em que se dá, hoje, o debate constitucional sobre os
direitos dos nossos irmãos índios.
Inicialmente, nunca é demais lembrar que os dados científicos disponíveis calculam a
população indígena no atual território brasileiro entre seis e dez milhões de pessoas, em 1.500, quando
da chegada da expedição de Cabral. Hoje, os índios estão reduzidos a no máximo, 300 mil pessoas.
O dado fala por si só. Descartada, por absurdo, a hipótese da auto-extinção, é forçoso concluir que a
história das relações entre os Povos Indígenas e a sociedade de origem européia caracterizou-se por
um impiedoso massacre contra os primeiros.
Os índios sobreviventes, porém, não sobreviveram apenas como indivíduos. Lograram resistir
como povos, afirmando sua identidade própria, e é com esta característica fundamental que ainda
convivem conosco os cerca de 170 Povos Indígenas no Brasil.
Herdeiros de modelos sociais que desconheciam a exploração do homem pelo homem; a
depredação da natureza e as distinções econômicas entre seus membros, índios são hoje testemunhas
vivas de alternativas que, em muitos aspectos, questionam nossa própria sociedade.
Se não por isto, pelo simples fato de constituírem experiências distintas de projeto humano,
os Povos Indígenas devem viver, enriquecendo as buscas da própria Humanidade.
É nosso dever, Srs. Constituintes, dizer que a sobrevivência destes povos está sendo colocada
em risco no Brasil.
Constata-se que as fórmulas legais atualmente vigentes, na Constituição outorgada ou em
leis ordinárias, não têm bastado para que, efetivamente, possam os índios viver em paz. Limitando-nos
no tempo ao período do atual Governo, e embora reconhecendo que os problemas são estruturalmente
anteriores a ele, precisamos denunciar as gravíssimas ameaças que pesam sobre o futuro dos índios.
Já em setembro de 1985, em documento distribuído à imprensa, o Cimi denunciava o uso
da repressão policial contra os Pataxó do sul da Bahia e os Rikbatsa do Mato Grosso. Em muitos
anos, inclusive sob o regime anterior, não se lançava a polícia contra os índios. Também no período
recente inaugurou-se a prática de impor aos Povos Indígenas acordos francamente prejudiciais aos seus
interesses, a pretexto de resolver problemas sociais estranhos a eles – como ocorreu com os Kayapó do
Pará – ou para a realização de obras de interesse do desenvolvimento do País, como acontecido com
os Kayabi e Apiaká.
Além disso, a insegurança em que vivem estes Povos, aliada às deficiências crônicas da
assistência que lhes devia ser prestada, torna-os presas fáceis das ofertas de empresas mineradoras.

160 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Impossibilitados de avaliar a transitoriedade e efeitos danosos das vantagens que lhes são oferecidas,
várias comunidades têm-se dobrado à insistência inescrupulosa de empresas, sem que o Governo tome
nenhuma providência para zelar pelos direitos indígenas.
Notável, neste mesmo período, tem sido o recrudescimento da violência contra índios e
missionários, sem que se penalizem os responsáveis.
Sempre em razão de conflitos relacionados com a terra, em 1985, foram assassinados 10
índios e 2 missionários; em 1986, foram mortos 4 índios, além de cerca de 10 Nambiquara arredios; e
até o final de fevereiro deste ano, haviam sido mortos 4 índios.
Apesar do quadro, a Polícia Federal, que tem o dever legal de defender a vida e a terra dos
índios, conforme o Decreto nº 73.332/73, vem-se negando sistematicamente a cumprir tal função,
mesmo quando solicitada por outros órgãos governamentais.
É igualmente grave a conivência do Governo com o esbulho das riquezas naturais existentes
nas terras indígenas. Em 1986, várias entidades de apoio ao índio – algumas aqui representadas
hoje – encaminharam a diversos Ministros um levantamento que identificou 537 alvarás de pesquisa
mineral, ilegalmente concedidos sobre áreas indígenas, solicitando sua imediata revogação. Até o
momento, contudo, inobstante se tenha suspendido a concessão de novos alvarás, aqueles não foram
revogados.
Outro aspecto fundamental para a sobrevivência dos Povos Indígenas relaciona-se com os
seus direitos territoriais. A lei ordinária, no caso a Lei n.º 6.001/73 – Estatuto do Índio – havia fixado
ao Poder Público o prazo de cinco anos para a demarcação de todos as terras indígenas, prazo este
escoado em 1978.
O atual Governo tem buscado caracterizar-se como virtual “campeão das demarcações” de
terras indígenas, chamando a si o mérito de ter demarcado mais, nestes dois anos, que todos os
governos anteriores.
É de se reconhecer que, de fato, muitas áreas foram demarcadas. A maioria, porém, das
comunidades assim beneficiadas, sofriam conflitos que atingiam o insuportável, e o Governo nada
mais fez senão cumprir a lei. Outras áreas demarcadas a o foram apenas mediante enorme pressão
da sociedade, através das organizações indigenistas: outras, finalmente, o foram, por exigência dos
bancos multilaterais, notadamente o Banco Mundial, que inclui a garantização das terras indígenas
entre as condições para os desembolsos dos recursos aprovados.
O fato é que se pretende ter demarcado, de 1985 até agora, 13 milhões de hectares de terras
indígenas, quando, em realidade, segundo os próprios dados oficiais, delimitou-se e/ou homologou-se
um total de pouco mais de 8 milhões de hectares.
O dado fica extremamente relativizado quando comparado com o total de terras ainda
por identificar e demarcar. Neste ponto, é oportuno advertir que a terra indígena não é mero fator
de produção mas o verdadeiro e insubstituível habitat do Povo que a habita. Ao falarmos das terras
indígenas, estamos mencionando as “pátrias” dos índios, incaracterizável pelo só significado econômico
que possam ter. Os territórios indígenas não são fazendas dos índios. Sua dimensão não se pode
reduzir, portanto, à mera e simplista relação família/hectare.
Em maio de 1986, o Cimi divulgava documento sobre a anunciada disposição do Conselho de
Segurança Nacional de não mais demarcar as terras indígenas situadas na faixa de 150 km de largura ao
longo das fronteiras internacionais brasileiras. Em 26 de janeiro deste ano, nas palavras de Chefe da Casa
Militar e Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional, General Rubens Bayma Denys, dirigidas a
este depoente, a Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom José Martins da Silva, além de outros membros
do Cimi, tal decisão seria irrevogável e de autoria do próprio Presidente da República – que a havia
tomado, afirmou expressamente o General, conquanto soubesse da ilegalidade que a vicia.
Alegou o General que a determinação presidencial prende-se a critérios de segurança nacional.
Segundo tal ótica, os Povos Indígenas não são capazes de garantir a ocupação efetiva das fronteiras
brasileiras, fenômeno somente alcançável através da ocupação econômica.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 161


Assim, para evitar que os territórios indígenas constituam obstáculos à pretendida ocupação
econômica, necessário é reduzir-lhes a dimensão, relativizando os direitos legalmente assinalados às
populações indígenas.
A pretensão dos advogados de tal ponto de vista é compatibilizar os princípios da legislação
indigenista com os critérios de segurança nacional, impondo-se aos Povos indígenas que vivem nas
fronteiras figuras jurídicas distintas da prevista na atual Constituição.
É desta forma que se explica a paralisação dos procedimentos legais demarcatórios de 24
áreas indígenas, que totalizam 4.120.753 hectares. Outras seis áreas estão também com sua tramitação
interrompida por iniciativa do Conselho de Segurança Nacional, somando, estas, 1.377.064 hectares.
A Igreja entende que a proteção das fronteiras internacionais do Brasil é um dever
inquestionável do Governo. Contudo, os cuidados com as fronteiras não se podem sobrepor aos, ou
violentar os direitos históricos dos Povos indígenas. A própria legislação de fronteiras – maior parte da
qual editada no regime anterior – não contém nenhum impedimento ao reconhecimento dos territórios
tribais.
Lembre-se, neste passo, que os índios sempre tiveram que ceder aos interesses da sociedade
dominante ou mais precisamente aos interesses dos segmentos dominantes da nossa sociedade. Desde
sempre brandiu-se o pretexto do progresso para justificar a opressão aos índios. Ultimamente, é a
segurança nacional que exige, mais uma vez, a violação dos direitos indígenas. Preocupa-nos que a
doutrina de segurança nacional permaneça intocada e possa valer tão desenvoltamente como motivo
do descumprimento das leis.
Dentro deste mesmo panorama inclui-se o Projeto Calha Norte, objeto de recentes polêmicas
noticiadas pela imprensa. Uma vez mais, reitere -se que a igreja não cabe questionar o aspecto militar
do Projeto. O que foi inutilmente reivindicado e que em sua execução o Projeto não agredisse os
Povos indígenas. A par disto, surpreendeu-nos que um projeto com tal dimensão política tenha sido
concebido às escondidas, à revelia do próprio Congresso Nacional e da população amazônica.
Na prática, a implementação do projeto tem trazido dissabores consideráveis aos Yanomami
– cujo território tem a demarcação sucessivamente procrastinada pelo Governo.
Por último, a Igreja sentiu-se particularmente preocupada com as metas propostas peio
Governo às populações indígenas. Na mesma reunião do dia 26 de janeiro, o zelo da Igreja com a
preservação dos Povos Indígenas foi rotulado de utopia, como se aos índios não restasse, de fato, outra
alternativa que não a inevitável incorporação à nossa sociedade. Aplica-se às relações humanas um
darwinismo confuso, mesclado de positivismo superado.
Precisamos reconhecer que nosso modelo social tem poucas atrações a oferecer aos povos
indígenas. Convivemos com gritantes desigualdades sociais; com constantes violações aos direitos
fundamentais da pessoa humana; com a espoliação desenfreada dos recursos naturais. É justo que os
povos indígenas questionem o destino que se lhes pretende já selado.
As recentes posturas e práticas governamentais, porém, podem ter inclusive o condão de
tornar inócuo o debate que se trava na Assembléia Nacional Constituinte, sobre os direitos dos índios.
Revela-se o inequívoco propósito de apressar a consumação de fatos que, tornando irreversível a
desestruturação dos povos indígenas, retirem da cena o destinatário das preocupações que, a partir
desta Subcomissão, envolvem os Srs. Constituintes.
Arriscamos testemunhar o mais intenso e doloso etnocídio da nossa História.
Apostamos, todavia, na resistência dos próprios índios: no apoio que lhes tributará a
sociedade brasileira e na coragem lúcida dos Srs. Constituintes, que saberão marcar nosso tempo com
um passo destemido na direção da paz com os povos de quem herdamos o Brasil.
Não é possível admitir que à margem da lei ou mercê das omissões de lei se continue com a
guerra sem quartel que se move aos índios desde os tempos coloniais. A Constituinte do alvorecer do
século XXI, deve ser o marco decisivo na história das nossas relações com os índios.

162 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


É preciso garantir-lhes o direito ao futuro. Para tanto, é indispensável considerar devidamente
as relações dos índios com a terra, reconhecendo-lhes os direitos originários sobre os territórios que
ocupam, sem matizar-lhes daquelas exceções que acabam por derrogar a regra. Por isso, o direito dos
índios à terra deve incluir seu direito também ao subsolo e ao usufruto de todas as riquezas naturais aí
existentes, incluindo os cursos fluviais.
Deve-se também garantir o respeito à próprias organizações indígenas, suas tradições,
costumes e línguas. À proteção dos direitos indígenas deve atribuir-se a instituição independente, que
reúna as condições para desincumbir-se adequadamente deste dever. A União, por outro lado, deverá
zelar pela proteção às terras, à vida, à educação dos índios, respeitada sua especificidade etnico-
cultural.
A proposta que foi divulgada no último dia 22 por representantes de vários povos indígenas
e de entidades indigenistas, entre as quais o Cimi, reflete o esforço que se fez para contemplar
devidamente os direitos mínimos que devem inscrever-se na futura Carta Constitucional.
Debatendo-a, e preservando seu espírito, podem estar os Srs. Constituintes plenamente
seguros de estarem resgatando uma das mais dolorosas dívidas da sociedade brasileira, ao mesmo
tempo em que lançarão a semente de uma verdadeira democracia étnica, de uma sociedade mais rica,
assentada no direito à diferença.
Muito obrigado.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.82-83.]

Depoimento de CARLOS MARÉS


em Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 29 de abril de 1987

– Sr. Presidente, Sr.s Constituintes:


Tenho que, antes de mais nada, dizer da honra de sentar nesta cadeira e fazer este
depoimento, logo depois de D. Erwin, a quem eu respeito, não só pelo que ele representa, hoje, aqui,
no trabalho do Cimi; o trabalho desenvolvido por gente que está preparada de forma permanente
com a questão indígena, mas, principalmente, pelo que ele representa pessoalmente neste País, de
forma permanente defendendo as causas da justiça e da humanidade e dos direitos neste País que
já foi tão violado.
Venho representando a Criação do Parque Yanomani e a Comissão Pró-Índio de São Paulo.
Essas duas organizações da sociedade civil têm como preocupação o apoio efetivo e concreto às causas
indígenas, aos problemas dos índios, onde se localizam.
Na qualidade de apoiar os problemas indígenas e as questões indígenas surgidas no dia-a-dia
concreto dessa Nação, é que tive a oportunidade, assessorando essas duas entidades, de ter contato
com o direito indígena e com as garantias que as leis brasileiras dão aos índios, e os problemas que os
índios têm perante a lei brasileira.
Em função disso, pediram-me essas duas entidades para que eu viesse aqui relatar um pouco
dessa experiência e contar aos Constituintes a vida jurídica do dia-a-dia, e o que acontece e o que é
necessário.
Por isso este meu relato é muito mais de experiência de vida, muito mais da experiência de
um advogado que tem tentado defender os direitos indígenas e que não raras vezes tem encontrado
intransponíveis barreiras, porque a própria lei brasileira restringe a possibilidade dessa defesa.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 163


Já que é um contar de experiências, gostaria de abrir com a frase de um índio e que na verdade
me foi uma grande e profunda aula de direito. Estava, eu justamente a pedido da Comissão Pró-índio de
São Paulo na área do Gavião, no sul do Pará, discutindo um problema gravíssimo, onde uma área estava
sendo inundada pela represa de Tucuruí – área indígena e – justamente na construção da barragem,
uns pilares da barragem se sentavam na montanha que dava nome à área e que era sagrada ao grupo
Gavião. E como não havia defesa possível dessa montanha sagrada, porque a lei brasileira não garantia
nenhum direito ao sítio sagrado, tentava eu explicar isso ao índio Tanharé. E depois de muita tentativa
de explicação do que era lei, como era a lei, porque a lei não dava esse direito, ele me perguntou “Essa
lei que você fala não é uma invenção dos brancos?” E eu, depois de toda a minha formação jurídico-
positivista, acabei tendo de reconhecer que realmente aquela lei era uma invenção dos brancos. E
ele respondeu: “Pois, então, o direito a essa montanha é um direito que nós, como Nação Gavião,
temos. Os brancos que inventem uma lei que reconheça esse direito”. E acho que é esse exatamente o
argumento da Constituinte.
A Nação brasileira inventa uma lei que necessariamente tem que reconhecer os direitos dos
índios. E isso tem sido talvez um dos maiores problemas que tenho enfrentado no dia-a-dia na defesa
dos direitos indígenas.
Infelizmente, muitas vezes o direito não é reconhecido porque não é estabelecido na
lei. O que temos de fazer é que transpareça claramente nessa nova Constituição o fato de que os
direitos dos índios são anteriores a própria lei e têm origem na própria existência dos índios, na sua
formação social, na sua existência enquanto sociedade, enquanto povo, enquanto Nação. Isso pelo
simples fato da sua organização social não ser uma organização estatal, e não estar assentada na lei
escrita, não significa que não haja para esta Nação direitos recíprocos entre eles e direitos à terra, à
vida e à cultura.
Nesse entendimento é básico e fundamental que o respeito às nações indígenas, o respeito
ao conjunto do que chamamos de grupo indígena, seja não apenas aqueles meros estabelecimentos
legais. Apenas quando se diz que a terra é garantida na medida em que for localizada: apenas quando
se diz que uma montanha sagrada ou um sítio onde enterram seus mortos será garantido se houver lei
que o respalde.
Essas coisas devem ser garantidas e reconhecidas na Constituição brasileira, pelo só fato de
estarem embutidas na cultura indígena daquele povo, naquele local e naquele momento.
É uma tradição do Direito brasileiro o entendimento de que esse direito é originário, de que
o direito dos índios venha antes da lei.
Mas embora seja uma tradição das Constituições e mesmo antes das Constituições, das
normas, desde o tempo da colônia, essa tradição quando encontra os tribunais e por ela não estar clara
e decididamente posta em texto, os tribunais têm dado entendimento diverso. Porque os tribunais
brasileiros, até pela formação que temos nas escolas jurídicas, têm uma formação positivista no sentido
de que só há direito quando a lei o estabelece.
Dentro dessa idéia de que é necessário defender os direitos indígenas por eles mesmo
anteriores e, portanto, de preexistir a conceituação legal, é necessário estender não apenas o direito
às terras, mas o direito à cultura, aos usos, às tradições e à língua. Acho que esses aspectos desses
direitos à vida indígena, ao modo de ser indígena, já bem tratados por D. Erwin. Mas é fundamental que
se entenda o que é terra indígena. É fundamental que quando se estabelece o direito à terra indígena,
se estabeleça com clareza o fato de que a terra indígena, como dizia D. Erwin Krautler, não é uma
fazenda de índios.
Se nós temos um conceito de terra urbana, que é um lote exclusivo para moradia, e não
incluímos na propriedade urbana, nem o lugar por onde caminhamos, nem o lugar por onde passeamos,
nem o lugar onde plantamos nossas árvores, nem o lugar onde enterramos nossos mortos, nem o
lugar onde veneramos nossos deuses – os índios assim entendem as suas terras. Se uma fazenda de
um fazendeiro capitalista não inclui a estrada e nem o cemitério e, nem sequer tem lugares especiais
sagrados onde o fazendeiro mantém, pelo simples respeito, aquele lugar, os índios incluem isso como
suas terras.

164 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Mas se fosse apenas isso, se fosse apenas a inclusão de lugares de diversão, dos lugares
de prece, dos lugares onde enterram seus mortos, as terras indígenas podiam ser colocadas apenas
àquelas terras onde se produz e se trabalha. E as terras sagradas, as terras dos mortos, as terras dos
deuses e as terras dos passeios e das diversões, poderiam, talvez, ser outro tipo de propriedade, que
servisse não só aos índios, mas servisse a toda a população. Não é bem assim. Todos esses conceitos
que acabo de emitir: de diversão, de passeio, de adoração aos Deuses e de veneração aos mortos, são
conceitos baseados e fundados na nossa cultura. Se interpretarmos isso a partir da cultura indígena,
a partir dos usos, costumes e tradições indígenas, por certo outro será o resultado. E, na verdade,
se damos mais valor à terra que produz, com certeza os índios darão mais valor às suas terras mais
sagradas. Se nos interessa a produtividade da terra, com uma produção de excedente, aos índios lhes
interessará mais aquelas terras onde são capazes de colher as suas flechas.
E assim o conjunto das terras indígenas, onde os índios pescam, caçam, vivem, produzem, e
são capazes de, no dia-a-dia, reproduzir o seu modo de vida, reproduzir a sua cultura, se isso é terra
indígena, não é possível estabelecermos a sua fixação a partir de critérios estabelecidos no Direito
Agrário brasileiro. Não são os módulos rurais e tampouco serão os princípios urbanos de apropriação
do solo. É claro que já existe, aqui, e imediatamente nos revela que a questão da terra indígena é
um capítulo especialíssimo do Direito brasileiro. Um capítulo onde o Direito Agrário não é suficiente
para responder e onde o Direito Civil é impotente para dar soluções. E isso se dá, não apenas pelo
seu conceito; não apenas porque o Direito brasileiro é absolutamente incapaz de responder como se
preserva uma montanha sagrada dos índios Gavião, às margens do rio Tocantins. Mas também porque
sequer o Direito brasileiro é capaz de dar uma suficiente de como se transmite a propriedade de uma
terra indígena exercer sobre a terra indígena? Será o Direito privado, entendido à nação indígena como
uma pessoa jurídica ou será o Direito Público, entendido à nação indígena como uma pessoa de Direito
Público, igual ao Estado, um município ou a Nação?
É claro que o Direito privado não é suficiente, é claro que o entendimento privado
não é suficiente pela só razão de que esse conjunto que forma a terra indígena não se transmite
individualmente. Uma família indígena, os filhos de uma família indígena, terão tanto direito a terra
indígena, quanto os filhos de outra família, ainda que uma tenha cinco filhos e a outra apenas um. Não há
uma hereditariedade no Direito, não há uma transmissão por sucessão do direito, além disso, as terras
são invendáveis e intransferíveis, porque pertencem à própria essência dessa terra, o uso específico,
segundo a cultura indígena. Se ela não é uma terra privada, ela há de ser, na posição antagônica ou
antinômica do Direito brasileiro, uma terra pública. Mas a terra pública tem algumas características que
não respondem às necessidades das nações indígenas.
Exatamente, por isso, a tradição Constitucional brasileira tem sido no entendimento de
entregar aos índios, o conceito civil de posse: entregando-lhes uma posse, que não possa de maneira
nenhuma ser modificada ainda que a propriedade não seja indígena.
E essa solução anterior, era possível a partir do entendimento de que a terra indígena tem
como direito, o direito à propriedade à terra indígena, originária dos povos indígenas, no sentido de
que não é estabelecido em lei.
A Constituição de 67, modificada em 69, traz a novidade de colocar a terra indígena como
propriedade da União. Isso é apenas um acréscimo na concepção da terra pública. Isso é apenas dizer
que a propriedade da terra é despida de qualquer característica. Ela não pode ser exercida, por quem
a detém. Isso deve ficar ainda mais claro na redação da nova Constituição.
Deve se observar também que a tendência do Direito moderno, de estabelecer a propriedade,
fundada e baseada num mundo social, e que a terra indígena, por seu próprio conceito, por sua própria
especificação imediata como ela é usada, se reveste dos mais profundos usos sociais possíveis. Uso
social não apenas no sentido de que ela é usada em benefício da sociedade toda, porque os índios não
usam a terra como uma exploração para excedentes, mas apenas para reprodução local. Acima de tudo
ela é social, no sentido de que os índios a utilizam socialmente como comunidade. Elas pertencem a
uma comunidade e são usadas como comunidade. Nesse tipo a comunidade indígena é muito mais
social, tem o uso muito mais social da terra do que tem qualquer cooperativa ou qualquer organização
coletiva.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 165


Se entendermos as terras indígenas fundadas nos usos, costumes, tradições indígenas e
entendemos que esse direito independe da lei, e estabelecemos na Constituição de que esses direitos
antecedem, precedem a própria lei e que não é necessário sequer a formulação de leis para garanti-
los, é, porém, absolutamente necessário que a lei se estabeleça e que esse direito se preserve. Porque
muitas vezes essa questão do direito originário dos direitos indígenas em geral, a questão de que os
índios têm previamente direito antes da lei, recente, a possibilidade de uso absoluto pelos índios,
inclusive em contratos danosos a si e à cultura. Contra isso o Estado tem que coibir. O Estado tem que
limitar a possibilidade de entradas em terras indígenas por invasão ou a exploração à terra indígena. E
a lei tem que estabelecer como serão dadas essas garantias.
Mas essas garantias tem que ir até o ponto exato onde não haja intervenção, ou seja, o
Estado tem que ser entendido como um aparelho protetor, e apenas protetor. No momento em que ele
passa barreira e passa a ser um aparelho interventor, ele está, evidentemente, ultrapassando os limites
das garantias constitucionais às terras e aos usos e costumes e tradições indígenas.
É necessário que se estabeleça, já, na Constituição, a possibilidade de defesa desses direitos
originários e eu digo com a experiência pessoal e a experiências de muitas vezes nós nos vemos
impossibilitados de agir, porque não há reconhecimento de direitos; o direito de ação é dado a poucas
pessoas na questão indígena. É dado, hoje, legalmente, às nações indígenas, mas essas nações, muitas
vezes, não têm sequer condição de constituir um advogado, como é o caso especificamente, da nação
Ianomami, cujo entendimento da língua brasileira, para não dizer do resto da cultura, os impede de
sequer contratar um advogado para impor-se com uma defesa judicial de suas terras ou de seus direitos
ameaçados ou seus direitos violados. Por isso, é necessário que se dê garantias a que organizações
índias não específicas, por exemplo, a União das Nações Indígenas ou de outras organizações que
se formem de índios, possam ingressar em juízo, para fazer com que o Judiciário se manifeste em
agressões a direitos indígenas. É necessário, também, que se dê, dentro da estrutura do Estado brasileiro,
possibilidade de que essa estrutura se movimente por si em defesa dos direitos. E nós entendemos que
para movimentar-se por si, dentro do Judiciário, ninguém mais do que o Ministério Público é capaz de
fazê-lo. Então, é necessário que a Constituição dê atribuições diretas ao Ministério Público para que
exerça, de forma obrigatória, a defesa dos direitos indígenas quando violados ou quando denunciada
a sua violação. Além disso, a proteção do Estado deve se estender à saúde a à educação, assim como
se estende a todos os brasileiros, mas de forma especial. Porque se a todos os brasileiros a profilaxia é
necessária, as temas, aos grupos indígenas, ela passa a ser ainda mais necessária, na medida em que o
contato com o branco leva, de forma desastrosa, enfermidades que não existem nas áreas indígenas. E,
contra isso, o Estado tem que estar permanentemente em prontidão, não permitindo que o extermínio
de grupos indígenas continue existindo pela inseminação de germes e de doenças que não existem nas
suas regiões.
Se a nova Constituição, ou a nova lei que está sendo inventada para o Brasil, no dizer do índio
Vaiaré, puder dar essas garantias de fazer com que as nações indígenas venham a ser efetivamente
respeitadas neste País, nós estamos cumprindo com a missão de resgate. A Nação brasileira começa
a se resgatar de todos os maltratos, e genocídio que cometeu nesses últimos 400 anos. Se a idéia da
defesa, do entendimento de que os direitos dos índios são originários prevalecem ou são anteriores a
lei é uma idéia que deve ser marcada, ela não é uma idéia nova.
Na Verdade, Bartolomeu de Las Casas já dizia da existência dessas nações diferenciadas,
com direitos diferenciados em 1530. Desde 1530, portanto, a sociedade brasileira tem a obrigação de
ter essa consciência. O extermínio, o massacre, o genocídio, se deu de forma consciente. É hora de,
conscientemente, revertermos o processo e encontrarmos uma solução para fazer deste País um país
em que índios possam conviver com a sociedade branca. E ao viverem as duas sociedades juntas possa
dar a possibilidade de que os índios não entrem na sociedade branca de um modo mais feio e mais
nefasto, que é a marginalidade, mas que os índios possam até entrar em nossa sociedade, integrar-se
com ela, mas integrar-se com a dignidade de um povo, integrar-se com a dignidade de nação. É isso
que nós esperamos dos Constituintes e temos certeza de que a qualidade dos Constituintes que se
apresentam assim o fará.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.85-86.]

166 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Depoimento de VANDERLINO T. DE CARVALHO (CONAGE)
em Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 29 de abril de 1987

– Sr. Presidente desta Subcomissão, Srs. Constituintes, demais componentes da Mesa,


Senhores e Senhoras:
A Coordenação Nacional dos Geólogos, entidade que congrega os geólogos do Brasil, vem,
com muita satisfação, prestar o seu depoimento perante esta Assembléia Nacional Constituinte, acerca
de uma questão extremamente importante para toda a sociedade brasileira.
Neste momento, queremos elogiar o papel desta Assembléia Nacional Constituinte em
permitir que a população brasileira, a sociedade brasileira tenha acesso aos trabalhos desta Assembléia
Nacional Constituinte, não somente apresentando proposta, mas tendo depoimentos e participando
efetivamente dos trabalhos desta Assembléia. Neste aspecto, eu acho que começa muito bem esta
Assembléia Constituinte em relação às de mais que se realizaram no País, tendo em vista este aspecto
particular.
A questão indígena, e aqui não venho dar esse depoimento, não venho na condição de
especialista da questão indígena: pouco entendo relativamente à complexidade da questão indígena.
Vim falar especificamente de um tópico que envolve a questão indígena que é muito ampla e
complexa.
Mas, como cidadão, como cidadão medianamente informado, tenho a lamentar, a angústia e
a tristeza, de ver o que a sociedade brasileira fez a outros homens que biologicamente são iguaizinhos
a nós, iguais, o único mal dessas criaturas é ter uma cultura diferente da nossa, quer dizer, somente não
fizemos o extermínio físico, mas estamos fazendo o extermínio cultural, que me parece mais grave ainda
do que o extermínio físico. Então como cidadão, sinto uma angústia dessa situação, eu ver, como por
exemplo na semana que passou, o Estado do nosso Relator, o Estado do Paraná, a televisão mostrando
um filme da década de 50 em que existiam centenas de índios, e mostra agora 5 sobreviventes desta
Nação; de 30 anos, de centenas e centenas de índios, somente restam 5 – quatro homens e uma
mulher, que já não está mais na idade de procriar. É dramática essa situação. Não podemos aceitar essa
situação. Então, como cidadão que não entende da questão indígena mas que sente que alguma coisa
deve ser feita, que temos que barrar essa situação, é que eu me dirijo aos Constituintes.
Em relação à questão mineral, nas nações indígenas, a situação é extremamente dramática, a
cobiça que se faz com relação a essas áreas. Embora não seja permitida a mineração em áreas indígenas
hoje, e, de certa forma, a legislação seja rigorosa em relação a essa questão, já existem 5.387 alvarás de
pesquisas, e a própria legislação dizia que seriam dadas única e exclusivamente a empresas estatais. No
entanto, depois, inclusive que o atual Ministro das Minas e Energia, Sr. Aureliano Chaves, no discurso de
posse do Diretor-Geral do DNPM praticamente tenha dito que só haveria mineração em área indígena
depois que se passasse por cima do cadáver dele, praticamente ele disse isso, mas, no Governo dele, na
gestão dele, no segundo semestre de 1985 foram concedidos 170 alvarás, de acordo com trabalho feito
pela Coordenação Nacional de Geólogos. Então, desses alvarás, somente 10% são de empresas estatais,
50% são de grandes grupos nacionais e 40% de empresas multinacionais. A própria lei, os próprios
decretos que foram criados não são obedecidos. É dramática essa questão.
Chega-se a um absurdo a questão indígena quando se vê a falsidade, apegar-se a questões
pretensamente técnicas e científicas para justificar determinadas situações.
O Presidente da República, na sua boa-fé de tentar resolver os problemas do País, convocou uma
reunião com empresários em Itatiba, a nata do empresário brasileiro que supõe o mais bem informado
possível, para ajudar as questões decisiva de resolver os problemas da Nação. E, no entanto, conforme
publicado pelo jornalista Castelo Branco, na Coluna do Castelo, o jornalista mais bem informado do
País, naquela reunião os empresários brasileiros teriam dito ao Sr. Presidente da República, entre outras
coisas que vou ler na íntegra: foi publicado no Jornal do Brasil no dia 29-3-87.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 167


“Juros e realismo na preservação de reservas indígenas, às quais para atender 200 mil silvícolas
dispõe de área de 70 milhões de hectares, enquanto toda a agricultura dispõe de apenas 52 milhões
de hectares. Atenção para a exploração racional das jazidas de ouro, da Calha Norte, superiores às da
África do Sul.” E critica o Ministro da Saúde, segundo o relato.
Ora, dizer a um empresário, e ter a coragem de dizer ao Presidente da República que na
Calha Norte tem reservas de ouro superiores às da África do Sul, isso é uma irresponsabilidade da
maior grandeza. A África do Sul detém 70% da produção mundial de ouro, e 70% das reservas de ouro
conhecidas no mundo.
Então, é dito tudo superficialmente, denotando uma perspectiva de ter reserva de ouro
na região da Calha Norte, agora vêm dizendo que são superiores às da África do Sul. Isso é uma
irresponsabilidade. Devia pedir-se a esses empresários, a essa nata do empresariado brasileiro, de
ter dignidade de serem mais responsáveis e se basearem em dados efetivamente técnico-científicos
que demonstrem que naquela região tem mais de 70% das reservas de ouro do mundo. Isso é uma
irresponsabilidade. Falo em nome de uma comunidade especializada no assunto.
Ainda mais. A perspectiva geológica de que efetivamente exista ouro naquela região é de um
tipo de jazimento diferente dos da África do Sul que, efetivamente, tem enormes reservas. Então, é
muito importante ficar caracterizado isso. É outro tipo de depósito que efetivamente é muito promissor
e importante, mas é totalmente diferente da África do Sul que, efetivamente, tem demonstrado, a nível
mundial, ter grandes reservas de ouro.
Então, isto demonstra a cobiça nessa área; já através de dados falsos, dados que não existem
ainda, se joga o Senhor Presidente da República, e se efetivamente existissem mais de 70% das reservas
do mundo, naquela região, realmente o Presidente da República estaria preocupado, como toda a
sociedade brasileira. Mas é um dado falso de que não existe ainda comprovação. Desafio aos empresários
que demonstrem que existe, naquela região, mais ouro do que na África do Sul. Provavelmente, tenho
certeza, de que não conseguirão demonstrá-lo.
Então dentro dessa questão complexa, que é a questão indígena, temos esse fato específico
da mineração em áreas indígenas.
A Coordenação Nacional dos Jovens, discutindo essa questão, formulou uma proposta
concreta no bojo das demais, referente ao setor mineral para a Assembléia Nacional Constituinte. E
aqui vamos discutir, especificamente, a questão da mineração em áreas indígenas.
A fase da formulação de nossa proposta foi no sentido de que os povos indígenas fossem
efetivamente tratados como minorias nacionais. Estas, por sua vez, existem em vários países do mundo,
centenas de minorias que conseguiram resolver, equacionar um relacionamento sadio, democrático com
suas minorias nacionais. Os índios, efetivamente, são uma minoria nacional e deve haver um relacionamento
do povo brasileiro com relação a ela, de forma democrática e sadia. Então, a nossa proposta é no sentido
de que eles sejam realmente considerados como minoria nacional com um relacionamento especial,
com uma elevada dose de autonomia. Não estou, aqui, defendendo a autodeterminação de que eles
tenham forças armadas, que tenham política externa, etc., o que defendo é que tenham um elevado grau
de autonomia e um bom relacionamento com o Governo brasileiro. Com relação á questão mineral, o
nosso relacionamento feriu-se em duas mãos. Se, eventualmente, o Brasil necessitasse, em caso extremo,
de um bem mineral existente em área indígena, consultaríamos aquele povo indígena, dizendo: “Olha,
necessitamos disso. O que vocês acham? Vocês permitem que aproveitemos disso?” Ao passo que a eles
caberia o mesmo direito. Se houver reservas minerais em suas terras e quiserem explorá-las, aproveitá-
las, também consultariam ao Estado brasileiro a respeito dessa possibilidade.
As terras ocupadas pelos índios são inalienáveis e serão demarcadas, a eles cabendo a sua
posse permanente, ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais do
solo e do subsolo e todas as utilidades nelas existentes.
Esta é a proposta da Comissão Afonso Arinos. Achamos que somente isso não é suficiente,
porque poderá ensejar que a legislação ordinária, depois, permita o aproveitamento mineral em terras
indígenas.
(...)

168 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Então, Srs. Constituintes, de acordo com a nossa proposta, acredito que no que diz respeito
às possibilidades auríferas do Brasil o ouro não é um metal essencial para o País na medida que tem
unicamente valor monetário, não tem valor industrial. O volume de ouro existente no mundo, já
extraído, daria para centenas de anos para o seu valor industrial; simplesmente valor monetário.
Com relação ao estanho, o Brasil é o segundo exportador mundial desse mineral. E há outras
reservas, outras áreas onde não há interesse nenhum em tirar estanho em terras indígenas. Porque são
dois metais hoje fundamentalmente mais visados em relação à questão das terras indígenas.
Acreditamos também que a questão indígena é também diversificada. Temos hoje povos
indígenas, no Sul do País, que já estão, de certa forma integrados à comunidade nacional, embora
extremamente prejudicados.
O aproveitamento de eventuais jazidas em suas terras pode ser benéfico a essas comunidades
indígenas.
Então, acho que essas comunidades indígenas devem ter os seus direitos assegurados. Porque
uma proibição total dos direitos dessas comunidades indígenas que já estão nesses Estados, no Sul do
País, na Bahia e em outros Estados, o direito deles seria prejudicado, se fosse totalmente proibido.
Entendo que eles têm o direito de reivindicar que seja aproveitado o bem mineral em suas terras, se
existentes.
Entretanto, cabe ao Congresso Nacional disciplinar o relacionamento entre a maioria e a
minoria. Não é tarefa do Poder Executivo. Este não pode ter um crédito da sociedade brasileira para
resolver esta questão. O passado do Poder Executivo não lhe autoriza a resolução dessa questão que
constitui uma atribuição, única e exclusivamente, do Congresso Nacional.
Quem representa o povo brasileiro é o Congresso Nacional, especificamente, a Câmara dos
Deputados, através dos seus representantes.
Então o Congresso Nacional é que tem que tratar do relacionamento com outras minorias
nacionais e não o Executivo.
Esta é a nossa proposta. (Palmas.)
Coloco-me à disposição dos Srs. Constituintes para o debate.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.88-90.]

Depoimento de MARINA KAHN VILLAS-BOAS (CTI)


em Audiência Pública da Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes (Comissão da
Família, Educação, Cultura, Esporte, Comunicação, Ciência e Tecnologia), em 29 de
abril de 1987

– Sr. Presidente da Subcomissão, Deputado Hermes Zaneti, Srs. Constituintes, aqui estamos
trazendo um documento que representa as entidades que apóiam a causa indígena, e contamos ainda
com a chegada do representante da União das Nações Indígenas, como foi explicado. Houve essa
coincidência de horários, mas creio que ele ainda vai-se apresentar.
Antes de tudo, queremos formar nossas vozes na defesa de uma educação pública gratuita e
de boa qualidade para todos os brasileiros.
Assim sendo, ao darmos sugestões para o texto constitucional, enfatizamos a questão da
educação escolar indígena, dentro da problemática mais abrangente da educação, referente a toda
população brasileira, notadamente dos grupos sociais mais estigmatizados e alijados do centro de
tomada de decisões do poder e dos benefícios daí decorrentes. Neste contexto, inserem-se os povos
indígenas do Brasil. Defendemos, assim, uma educação que garanta a consolidação de um espaço
democrático a todos os brasileiros, rompendo, desta forma, com a discriminação que historicamente
vem atingindo índios, negros e outros grupos sociais minoritários, que são, na verdade, os que

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 169


compõem a grande maioria da população brasileira. Sobretudo, queremos fazer realçar no texto
constitucional o respeito às diversidades e às especificidades culturais de um País pluriétnico e
plurilíngüe como o Brasil. Atualmente, sabemos estar registradas no País cerca de 200 línguas, sendo
que aproximadamente 170 são indígenas, e 30 de origem européia, asiática e africana. Temos verificado
que a situação social, demográfica e lingüística dessas minorias é muito mal conhecida, visto que a
política oficial sempre se omitiu no reconhecimento dessa realidade, onde, preconceituosamente,
sempre se assumiu que apenas uma língua é falada em todo o Território. Esta homogeneização se
refletiu na política cultural, que limitou, tanto do ponto de vista lingüístico como educacional, a
plena realização e revitalização da identidade dos indivíduos e grupos sociais existentes no País. No
caso dos povos indígenas, essa omissão resultou na destruição, lenta e decisiva, de uma grande parte
de seu patrimônio sócio-cultural.
Deve-se tomar por base, portanto, para a elaboração de um texto constitucional, o princípio
da garantia e do respeito às especificidades culturais que caracterizam e constituem os diferentes grupos
sociais brasileiros. Muitos deles são portadores e produtores de culturas originais e valiosas na composição
da cultura brasileira, que deverão, portanto, estar evidenciados, referidos e fortalecidos pelo sistema
educacional. Este não pode ser concebido simplesmente como um conjunto de práticas pedagógicas, e
sim como uma das várias dimensões da cultura de um país. É o espaço onde se permite a recriação e a
transmissão de um conjunto de saberes, técnicas e valores históricos socialmente produzidos.
Um processo educativo definido e assumido, em função da diversidade cultural do País,
reflete uma atitude de respeito e co-participação nos valores, costumes e expressões culturais dos
diversos grupos étnicos que compõem uma unidade. Essas considerações vêm sendo feitas em todos
os países com populações minoritárias, especialmente indígenas.
A última reunião da Unesco, em abril deste ano, recomenda aos países-membros apóiem
constitucionalmente o reconhecimento político e jurídico das culturas nativas, a etno-educação e o
etno-desenvolvimento. A Declaração de Princípios da ONU, definida em Genebra, em julho de 1985,
ainda afirma que as nações e povos indígenas têm direito a receber educação e a negociar com os
Estados nas suas próprias línguas, e a criar suas próprias instituições educativas.
No momento em que define sua nova Constituição, o Brasil não deve omitir-se neste sentido.
Deve, sim, garantir aos povos indígenas e às demais minorias étnicas o acesso à estrutura jurídica e
política do País, de tal forma que esses povos e comunidades possam reproduzir sua identidade através
do exercício efetivo dos seus direitos econômicos, políticos e culturais.
[Assembléia Nacional Constituinte (Atas das Comissões); pp.167-168]

Depoimento de Mércio P. Gomes (IPARGE)


em Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 29 de abril de 1987

– Muito obrigado, Sr. Presidente desta Subcomissão, Srs. Constituintes, Sr.as e Srs:
Represento o IPARGE, que é um conjunto de pesquisadores, antropólogos e indigenistas do
Rio de Janeiro, de São Paulo, Minas Gerais, Brasília e Maranhão, e a apresentação que vou fazer aqui é
decorrência de uma análise feita em conjunto e que foi sintetizada por mim, como representante desta
Instituição.
A proposta que venho fazer diante desta Comissão é de que estamos diante de uma ocasião
especial, em que se pode pensar em criar um pacto indigenista nacional. É essa a apresentação que eu
vou fazer, e que, em seguida, podemos levar adiante uma discussão mais ampla.
O momento da elaboração de uma nova Constituição brasileira é a ocasião ideal e propícia
para se firmar um pacto indigenista nacional, que represente a realidade dos acontecimentos que regem
as relações interétnicas em nosso País e que traduza os legítimos interesses dos povos indígenas, e as
grandes aspirações de liberdade e respeito racial e étnico do nosso povo. Estas são virtudes nacionais

170 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


conhecidas e propaladas, desde o século passado, por diversos visitantes estrangeiros e analisadas e
justificadas, histórica e antropologicamente, por grandes mestres brasileiros, como Gilberto Freire
e o saudoso Sérgio Buarque de Holanda. Os sentimentos do anti-racismo e da tolerância às etnias
autóctones e adventícias se operam no dia-a-dia das relações próximas e íntimas, numa espécie de
antropologia da convivência.
Porém, a realidade cultural mais forte se dá num plano social e política mais amplo, em que
os interesses econômicos se sobrepõem e dominam os desejos e aspirações humanitários e fraternos. É
a minha convicção de que somos um País de pessoas que amam o diálogo, e a convivência harmoniosa
com um alto grau de abertura ao novo e ao diferente, o que é uma representação clara de nossa
juventude enquanto Nação.
É a partir desse dado, tão entranhado quanto inefável, que guardo a esperança de que
esta Assembléia Constituinte se declarará determinada a produzir a legislação mais adequada para
resguardar esta tradição tão generosa e especial e elevá-la às condições legais e formais de sobreviver
à realidade mais forte, reformulando-a e transcendendo-a.
Sabemos que nenhum povo se orienta pelas determinações artificiais de uma elite ou um
punhado de pessoas que se arvora nesse status social. A Assembléia que ora se reúne não é uma elite,
nem se arvora nisso, mas vem e surge do povo, é uma representação clara e orgânica desse povo,
incluindo seus sentimentos particulares, regionais e nacionais, suas aspirações e esperanças. Portanto,
ela é legitimamente o povo brasileiro em essência e em síntese, porque nela estão depositadas as
nossas esperanças.
Como, perguntar-se-ia, pode um brasileiro não índio ousar falar sobre o índio?
Não acabou o tempo em que os índios precisavam de porta-vozes para veicular, à sociedade
mais geral, as suas necessidades, carências e projetos de vida? Não é na condição de portavoz dos
índios que me sinto na obrigação de vocalizar essas necessidades e projetos. Os índios, todos sabem
o que são e o que desejam e muitos deles poderiam e podem apresentar os seus problemas com
propriedade e justeza, aqui, nesta Subcomissão e na Assembléia Constituinte. Más, já apresentaram
uma grande proposta em união com várias entidades nacionais de apoio à sua causa, proposta essa
que tem a minha inteira solidariedade. Que venham outros índios mais, individual ou coletivamente e
apresentem os seus pontos de vista, mesmo que sejam os mais particulares possíveis, porque dessas
particularidades é que poderemos recolher os pensamentos gerais.
Os índios, como bons democratas e igualitaristas que são, acreditam tanto na sua individualidade
quanto nos direitos e nas representações coletivas e se esforçam sempre em transmitir para todos as suas
atitudes unívocas e operacionalmente dialéticas. A sua voz se fará entendida aqui – creio eu.
Na condição de brasileiro simples é que venho a esta Assembléia. O ser simples não é o
ser simplista ou humilde, ou com falsa modéstia, mas, sim, o sentimento de quem compartilha das
convicções e atitudes mais comuna ao povo brasileiro, no caso, a tolerância pelas diferenças raciais,
étnicas e culturais e a mente aberta para as experimentações sociais que representam o que há de mais
dinâmico em nossa sociedade.
Adicione-se a isso os mais de dez anos de contato íntimo e prolongado com diversos povos
indígenas do Brasil. Nessa convivência e esse interesse reforçaram em mim os sentimentos nativos
e nacionais, junto com o conhecimento que adquiri desses povos indígenas, de suas sociedades
igualitárias e harmoniosas e seu entrelaçamento respeitoso e engrandecedor com o meio ambiente, e o
seu conhecimento profundo e detalhado sobre os reinos da natureza, da sua filosofia de vida despojada
e generosa, e a sua visão de mundo e da natureza, tão importantes para o seu equilíbrio social.
Desta experiência é que me sinto legitimamente imbuído do espírito de quem partilha também
do ser indígena, que sente as alegrias que sua vida e cultura proporcionam e que sofre as amarguras
e a dor do seu martírio histórico, das imposições e esbulhos cotidianos e das incompreensões das
autoridades. Este meu sentimento de compartilhamento é também o de muitos brasileiros, na sua
grande maioria, creio eu.
O que diz respeito aos índios, também diz respeito aos outros brasileiros, eis a minha
tese fundamental e a minha principal justificativa para estar aqui presente. Falo como brasileiro

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 171


que está inserido no contexto da questão indígena, como todo e qualquer brasileiro, mesmo os
geograficamente mais distantes do contato com o índio. Porque essa questão nasceu com a descoberta
do País e se manterá enquanto houver um índio vivo e um brasileiro disposto a falar sobre ela.
A tragédia da questão indígena tem se desenvolvido inversamente ao desenvolvimento
de nosso País. Em outras palavras, o Brasil se desenvolveu às custas dos índios e nesse processo
em que os povos indígenas sofreram um decréscimo populacional da ordem de 96%, caindo de 5
milhões, aproximadamente, para pouco mais de 220 mil, o Brasil se debateu através de seus espíritos
mais generosos como o Patriarca José Bonifácio de Andrade e Silva, o poeta Gonçalves Dias, os
historiadores João Francisco Lisboa e Perdigão Malheiros, o General Couto de Magalhães, estes no
século passado, e o Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon e seu grupo de dedicados militares
e dentistas – o Brasil se debateu à procura de uma solução a essa questão, debateu-se como um
todo, arregimentando interesses a favor e contra, aventando todas as possibilidades existentes no
espectro da natureza política do homem.
Houve os assassinatos, a guerra bacteriológica – quiçá, a primeira vez que se fez na
história esse tipo de guerra, foi exatamente no Brasil, em 1810, em Caxias, no Maranhão, quando
as autoridades locais infectaram com varíola os índios Canela que visitavam a cidade em busca
de confraternização. Houve a expulsão de suas terras, a escravização real e disfarçada, enfim, o
genocídio. Mas, também, houve a luta para defender os índios ao longo dessa mesma história,
que começa com os jesuítas, começa com Montaigne; depois se cristaliza nos iluministas do século
passado, e a determinação em vencer resistências para assegurar os direitos legítimos e inalienáveis
às suas terras, à sua saúde e ao seu patrimônio cultural e humano.
O Marechal Rondon, que simbolizou e atualizou esse sentimento nacional de que os índios
são parte integrante da Nação e do povo brasileiro, o que era discutido no século passado – sabemos
muito bem das discussões históricas entre Adolfo de Vanhagen e João Francisco Lisboa e, portanto,
a partir dessa constatação reconheceu-se que o índio tem direito a sobreviver – foi o Marechal
Rondon quem elevou o humanismo brasileiro às suas maiores alturas, igualando-o ao mais altruísta
e profundo sentimento cristão, ao decretar e incutir entre os servidores do Serviço de Proteção aos
Índios que na defesa da vida indígena “mais vale morrer, se preciso for. Matar, nunca!”
As falhas enormes que existiram no antigo SPI, que é o Serviço de Proteção ao Índio, e
na política indigenista do Império, falhas de conteúdo e falhas de ação, não podem ofuscar a visão
de que essa tentativa era intrinsecamente fruto do lado mais generoso do nosso povo, esse lado
tolerante e aberto, que forçava as autoridades a se compatibilizar com seu pensamento e atitude e
isso se deu. A criação do SPI, em 1910, se deu através de uma luta nascida da sociedade civil, junto
com os militares nacionais, que foi encabeçada pelo Marechal Rondou, e era urna luta exatamente
contra propostas de extermínio dos índios, que nascia de cientistas inescrupulosos.
Com o conhecimento que adquirimos, nos últimos 30 anos, sobre as causas e motivos da
população indígena, tenho certeza de que aliada a essa propensão natural do nosso povo e de seus
representantes, teremos a elaboração de leis e determinações que corrigirão as falhas anteriores e
assentarão o caminho para a continuidade histórica dos povos indígenas no Brasil.
Portanto, é como brasileiro, e com orgulho, que falo sobre os índios, não em nome deles,
que têm a sua própria voz, falo agora, especificamente, como antropólogo, isto é, como cientista
que estuda com afinco e se dedica apaixonadamente a compreender esses povos, enquanto povos
específicos e enquanto povos existentes da entidade política que chamamos Brasil. Talvez, todo esse
prolegômeno não passasse, no final, de ingenuidade, de quem deseja fervorosamente que os índios
sobrevivam e constituam parte significativa do nosso povo. Não fosse o extraordinário fato, que
já foi colocado aqui pela Manuela e outras pessoas, de que muitos povos indígenas, antes fadados
por todos os modos e razões ao extermínio, estão, pelo contrário, não somente sobrevivendo, mas
aumentando suas populações.
No cômputo geral, segundo as melhores indicações que temos, os índios brasileiros eram
cerca de 120 a 150 mil, por volta de 1957 – que talvez tenha sido o tempo em que se alcançou o nadir
populacional dos povos indígenas, o nível mais baixo da sua população, por volta da década de 1950 –
e que agora somam, esses mesmos 120 ou 150, em mais de 220 mil.

172 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


É verdade que, nesse período, muitos povos indígenas perderam grandes contingentes de
suas populações, alguns beirando a extinção. O Dr. Carlos Marés falou sobre o caso dos Xê-tá, que
eram cerca de 120, em 1953, e que hoje não mais existe como povo, sendo apenas cinco indivíduos
espalhados pelos postos indígenas da região; quer dizer, virtualmente, como povo, como nação, como
cultura, como etnia, os Xê-tá estão extintos. É o caso dos Ava-canoiro de Goiás, apenas a 200 ou
300 quilômetros de Brasília, que somam dois ou três grupos, talvez 45 a 60 pessoas, continuamente
fugindo das investidas que lhes são feitas por fazendeiros e mineradores. E agora, ameaçados por
uma barragem que será feita naquela região e que, portanto, nem terras têm para descansar e pensar
melhor a sua existência. É o caso dos Guajajara, vivendo em bandos espalhados pelo Maranhão oriental
até o norte de Goiás, sem as suas terras demarcadas, diminuindo, constantemente a sua população e
relegados ao acaso e às circunstâncias envolventes.
Enfim, é o caso de outros povos cultural e socialmente autônomos, que ainda estão à mercê
de aventuras, de interesses econômicos e imediatistas e, portanto, ignorados pela responsabilidade do
órgão federal encarregado da questão indígena.
Por esses povos autônomos, talvez 50 ou 60, talvez até mais, há uma possibilidade de que
eles, sem contato, no Brasil, vivendo uma autonomia interna total, cheguem até a 90 deles: Por esses
povos pesa a maior responsabilidade do povo brasileiro como um todo – e aqui incluo o Estado e
a Igreja Católica e todos os sentimentos religiosos e humanitários existentes –, porque a sorte e o
destino desses povos dependem de uma decisão irrecusável de lutar pela sua sobrevivência contra
todas e quaisquer circunstâncias ou interesses que existirem.
Sabemos como fazê-lo, pois a experiência desses últimos 80 anos de trabalho indigenista,
programado e consciente, mostram o que não se deve fazer e apontam o que se tem de fazer. Se
falharmos nesse esforço não poderemos mais culpar o destino, ou o que se chamava a força inexorável
da civilização: as incontroláveis epidemias, ou que seja, o que aliviava a má consciência de todos nós,
porque essas desculpas já foram superadas e rebatidas pelos outros povos que sobreviveram, lutando
pelos seus direitos e interesses, ajudados pelas forças pró-indígenas do País.
Portanto, estamos, coincidentemente, no ponto crucial do reconhecimento da sobrevivência
dos povos indígenas, em sua maioria real e com possibilidade para todos, ao mesmo tempo em que nos
reunimos como Nação una para regularizar e regulamentar as novas condições para o relacionamento
harmônico dos povos indígenas com a totalidade dessa Nação.
Não poderia haver ocasião mais adequada para aqui, então, firmamos um verdadeiro pacto
indigenista nacional, tendo como componentes principais os povos indígenas, a sociedade nacional
e o Estado e, como balizas de pensamento em ação, a certeza da continuidade histórica dos povos
indígenas e a aceitação desse fato, integrados, dessa forma, aos sentimentos da nacionalidade geral
brasileira, não mais os povos indígenas fazerem parte desse ambígua lamentação de sua inviabilidade,
que ainda pesa na má consciência de todos nós.
A obrigação do Estado em assegurar-lhes o seu território e dar-lhes toda a atenção a sua saúde
e a determinação, por parte dos índios, em manter a sua especificidade cultural e a inviolabilidade
física e conceitual do seu território e de suas riquezas, como patrimônio coletivo e nacional, como
aval e caução do nosso futuro como Nação e como civilização maior, diante de quaisquer e terríveis
eventualidades históricas que se assomam no futuro da humanidade – é claro que aqui estou pensando
nas possíveis destruições do meio ambiente, nas destruições que poderão modificar totalmente o
ambiente da Terra.
A sobrevivência dos povos indígenas é, portanto, no meu entender, a certeza da nossa
sobrevivência, como experiência viva da evolução humana. Eis o sentido maior do pacto indigenista que
se propõe. Como efetivar esse pacto? A primeira instância, a fundamental e duradoura, deve ocorrer aqui
na Constituinte através da elaboração de leis mestras que nortearão o entendimento mútuo dos três
elementos do pacto. A segunda instância poderá se dar no Congresso e se fará concomitantemente ou
posteriormente, através da renovação do órgão federal encarregado da questão indígena, moralizando
e profissionalizando os seus quadros e abrindo o órgão para a participação efetiva e não paternalista e
não cooptadora dos índios, da sociedade civil e, naturalmente, do Estado.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 173


A Assembléia Constituinte, através das indicações que surgirem da presente Subcomissão de
Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, deverá formalizar esse pacto em, talvez,
três ocasiões específicas da Constituição: a primeira seria no capítulo que concerne à nacionalidade:
os índios deverão constar como cidadãos brasileiros natos, em função da sua territorialidade e da sua
historicidade apriorística ou originária. Em virtude disso, deverão ter os mesmos direitos genéricos
de todo cidadão e direitos específicos, garantidos pelo Estado. A segunda ocasião, deve determinar,
talvez no capítulo de disposições gerais, o direito específico ao território e a todas às riquezas nele
encontradas inalienáveis e invioláveis.
Nesse sentido, aprovo, integralmente, propostas apresentadas pelos índios e pelo Constituinte
José Carlos Sabóia, aqui, nesta Subcomissão, acrescentando, diante das discussões sobre as pressões
dos interesses mineradores e madeireiros – porque, aqui, também temos que colocar a questão das
madeireiras, que já foi colocada pela Dra. Manuela – de que haverá nessa lei um prazo determinado,
talvez de 50 a 100 anos, pelo qual será proibida a exploração dessas riquezas.
Após o término deste prazo, essas riquezas de valor estratégico para a sobrevivência do País
poderão vir a ser exploradas por decisão conveniada dos três Poderes constituídos e pelos índios.
Por fim, deverá constar constitucionalmente que a defesa da inviolabilidade do território
indígena deverá ser efetuada pelo Estado e pelos próprios índios que, dessa forma, jamais poderão
aliená-lo nem total, nem parcialmente. Em adição, caso haja oportunidade para tanto, caso se sinta
necessário, poderia constar no capítulo sobre saúde que uma assistência médica especial deverá ser
dada aos índios, já que a sua constituição física e sistema imunológico assim o requerem.
Quanto à reestruturação da FUNAI, que é o segundo ponto, ou outro órgão que venha a
substituí-la, adequando-a a uma política de entendimento e não mais paternalista, que leve em conta a
realidade dos novos tempos indígenas, é preciso que os Srs. Constituintes e Congressistas se inteirem
completamente de que esta é a grande oportunidade para efetuar esta mudança e encaminhem a sua
orientação na forma da lei.
O povo brasileiro já demonstrou, por diversas vezes, pela emoção e pela razão que encara a
permanência dos índios como um fato de importância capital para a afirmação do seu sentimento de
nacionalidade, tanto como raízes históricas quanto como matizes culturais de sua existência. Os índios,
ao se sentirem integrados nesse sentimento, poderão viver a sua vida com a determinação cultural que
possuem e com a certeza de sua perenidade.
Eis a razão transcendental da harmonização das relações interétnicas entre o nosso povo: a
ampliação do sentido da nacionalidade brasileira.
Espero que isso seja feito pela Lei Maior.
Muito obrigado a todos.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.95-97.]

Depoimento de EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO (SBPC)


na Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 5 de maio de 1987

– Sr. Presidente, em primeiro lugar, agradeço ao Representante da Federação Israelita este


empréstimo do tempo, que será o mais breve possível, até porque, também, tenho que tomar o avião.
Também peço desculpas por ter, de certa maneira, interrompido um debate, uma reflexão que estava
em curso.
Estou aqui como Representante da SBPC e encarregado de apresentar, expor a sua proposta.
A SBPC tem uma proposta ampla atinente e várias matérias da Constituinte. No caso, em
particular, vou expor apenas o capítulo referente às populações indígenas, tema que foi largamente

174 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


discutido esta manhã por representantes dos povos indígenas. O texto que lerei foi também elaborado
em diálogo com a União das Nações Indígenas, Órgão de representação dos povos indígenas.
Antes de iniciar esta exposição, mencionarei uma estranha ironia, o fato de o Estado brasileiro,
o Governo brasileiro sempre se recusar, por vários motivos, a admitir que as nações indígenas sejam
nações, que os povos indígenas constituam nações. Há todo um debate muito polêmico em torno
do termo nação e do uso do termo nação para designar os povos indígenas no Brasil. Não obstante,
ironicamente, trata esses povos indígenas como nações, apenas como nações inimigas. Todo o
tratamento dado pelo Estado brasileiro aos povos indígenas é efetivamente um tratamento de povo
inimigo, ou seja, um povo que tem que ser desterritorializado, tem que ser subjugado, controlado e,
de preferência, assimilado. Isto é, a noção de assimilação que, em linguagem mais polida, se transforma
na noção de integração, nada mais é do que uma variante do etnicídio. Este é o estado presente das
coisas.
Os povos indígenas, hoje, estão basicamente sob a tutela não da FUNAI, como se poderia
imaginar, mas do Conselho de Segurança Nacional. As terras indígenas são matéria de segurança nacional,
os índios são problemas de segurança nacional. E de se espantar, mas não são só eles. Os camponeses
também. Hoje quem decide sobre que terras os índios devem ter é o Conselho de Segurança Nacional.
Como se sabe, a política é de fragmentação, de dispersão, e não de demarcação. Uma série de medidas
muito claras, embora bastante obscuras, porque são muito pouco controladas pela sociedade, incide
atualmente sobre as terras indígenas e que exercem essas medidas, quem determina essas medidas
é o Conselho de Segurança Nacional, tais como: não demarcar terra indígena em área de fronteira,
não demarcar áreas indígenas contíguas, não demarcar terras indígenas próximas a cidades. Então,
os índios são tratados, efetivamente, como povos inimigos que ameaçam a integridade territorial do
Brasil, o que é, no mínimo, ingenuidade, e, no máximo, má-fé, o que é absurdo.
(...)
Era o que tinha a dizer. Agradeço.

[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.171-172.]

Depoimento de MANOEL CESÁRIO


(Fiocruz/ Centro de Estudos e Saúde em Populações indígenas) na Audiência Pública
da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias
(Comissão da Ordem Social) em 5 de maio de 1987

– Sr. Presidente, pretendo ser mais breve possível, devido ao adiantado da hora.
Agradecemos à Presidência desta Subcomissão e aos presentes a oportunidade que nos está
sendo dada de reforçar uma discussão amplamente encaminhada aqui, a discussão da causa indígena,
enfocando assunto que ainda não foi levado à pauta – saúde indígena.
A Fundação Oswaldo Cruz tem uma experiência muito grande na área de pesquisa, ensino e
prestação de serviços na área de saúde, mas sempre em populações brancas.
Em 1985, a partir de um interesse demonstrado pela FUNAI, foi feita uma primeira viagem à
área indígena e encaminhadas algumas propostas de trabalho junto à FUNAI, que não foram levadas a
termo, mas que também foram encaminhadas às populações do grupo indígena Ianomami, e ao Cimi –
Conselho Indigenista Missionário, onde chegamos a ministrar alguns cursos para os agentes de saúde,
não índios deste Conselho.
Em 1986, por ocasião da VIII Conferência Nacional de Saúde, no desdobramento do subtema
Proteção à Saúde Indígena, participamos, representando a Fundação, e também cooperamos na
elaboração do relatório final. E é inspirado nesse relatório final, e contando com o apoio da Comissão

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 175


Nacional de Reforma Sanitária, que tomamos a liberdade de encaminhar a esta Subcomissão da
Assembléia Nacional Constituinte, através do Constituinte Chico Humberto, um projeto de emenda ao
texto que trata da causa indígena. Esta é uma emenda muito pequena, que teria a liberdade de lê-la, e,
depois, encaminhá-la à Presidência desta Mesa, para que fosse acompanhada e apoiada.
“No art. 1º: É dever do Estado garantir o acesso das nações indígenas às ações e serviços de
saúde, bem como sua participação, na organização, gestão e controle dos mesmos.
Art. 2º O gerenciamento das ações e serviços de saúde para as nações indígenas será de
responsabilidade de uma agência específica, que contará com representação das referidas nações.
§ 1º Cabe a esta agência integrar o sistema específico de saúde para os índios ao sistema
nacional.
§ 2º A agência mencionada no caput deste artigo será vinculada ao Ministério responsável
pela coordenação do Sistema Único de Saúde.
§ 3º O Estado assegurará o respeito às especificidades próprias de cada nação indígena,
garantindo que:
1º Ao nível local, os serviços se fundamentem na estratégia da atenção primária à saúde,
adaptando-se às especificidades etnoculturais e de localização geográfica.
2º Os serviços locais contem com os serviços de maior complexidade, localizados
preferencialmente a nível regional.
3º O nível regional seja o ponto de articulação entre os serviços específicos do Sistema de
Saúde para os índios e o Sistema Nacional de Saúde.”
Esta nossa proposta não pretende ser inovadora. Ela é baseada no relatório final do Subtema
Proteção à Saúde do Índio, da VIII Conferência Nacional de Saúde, que contou com a presença de
representantes não só do Ministério da Saúde e da FUNAI, como também de todas as organizações
civis ligadas à causa indígena. E ela tem o respaldo da Comissão Nacional de Reforma Sanitária, na sua
proposta de emenda também constitucional, na medida em que os interesses não se chocam, mas se
sobrepõem e se completam.
Assim, tomo a liberdade de encaminhar à Presidência desta Mesa e pedir o interesse na
defesa de mais este aspecto da causa indígena.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), p.173.]
Anexo II

Com a palavra, os povos indígenas

Depoimento de PANGRAN KUBENKRAN-GREM (Kayapó)


na Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e
Minorias (Comissão da Ordem Social) em 5 de maio de 1987

– Senhores e Senhoras, eu tenho trabalhado há muito tempo lá na minha nação. Há muito


problemas lá na nossa reserva.
Eu falei com o Deputado para me ajudar, porque estou preocupado com todos os meus
parentes. Por quê? Porque não tem ainda a marcação. É outra nação. Lá é só mato, não têm brancos
para ajudar, a FUNAI também não ajuda.
Então, eu falei com o Deputado e ele vai ajudar.
O Cacique Mikoity, mora no outro rio... Estou pensando aqui... Hoje o meu parente resolveu
lá na minha aldeia que ele iria esperar pelo Deputado. O Cacique Gorotire e Sapiê vão todos se reunir
lá no Gorotire juntos com os Deputados. Os líderes de cada nação vão também se reunir lá no Gorotire,
para que Deputados e lideranças se conheçam e para que os Deputados possam ajudar o índio. Outro
parente meu está muito preocupado com a terra; madeireiras e fazendeiros entram na reserva. O nosso
líder está preocupado.
Por isso que hoje eu estou aqui junto com os Deputados para saber o dia da reunião lá no
Gorotire.
Há muitas nações, há muitas aldeias lá no Pará, no Xingu. É muito ruim lá nas nações.
Madeireiras e fazendeiros entram e garimpeiros também. É muito complicado.
Nós e nosso Cacique estamos preocupados porque, antigamente, o índio mesmo trabalhava
na terra dele. O meu avô e o meu pai nasceram na aldeia. A aldeia antiga era Katoti Todos os meus
parentes vão lá na reunião na Aldeia de Gorotire.
Era o que queria falar para vocês.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), p.156.]

Depoimento de NELSON SARACURA PATAXÓ


na Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 5 de maio de 1987

– Eu dou bom-dia para todos os meus parentes, Deputados que estão aqui nesta Casa.
Também trazemos a queixa que nós temos no Nordeste, lá de Bahia, os Coroa Vermelha, Caramuru,
não só os Caramuru e Cora Vermelha, mas todos os Pataxós do sul da Bahia e do Nordeste foram
todos prejudicados, porque não tem uma demarcação e também tem a FUNAI, que tenta toda a vida
conversar muito conosco e não resolve, e eu vivo muito chateado com esse problema, não posso nem
dar assistência aos meus filhos, ao meu povo, por causa do problema que está acontecendo na aldeia.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 177


Eu gostaria de pedir apoio de todos Deputados e comunidade de boa vontade para ajudar
o índio, parente, toda a comunidade indígena e ao branco também, para que reconhecessem o nosso
direito e fizessem com que o Governo, até mesmo o Presidente José Sarney, que é o Chefe maior de
Brasília, tomasse conhecimento do nosso problema e da terra dos nossos parentes indígenas, porque
a FUNAI está muito fraca, a FUNAI não está resolvendo o problema então quem sofre é o índio. O índio
está sofrendo muito.
Então eu gostaria que nossa terra fosse demarcada porque nossa terra é nossa vida, a terra
indígena é nossa vida, é dela que nós vivemos; nós não sabemos viver na cidade, a cidade não faz
bem.
Outra coisa, esse documento é prova, é testemunha, como na Bahia, na Coroa Vermelha, toda
a vida existiu índio, porque lá nesse lugar foi a primeira missa do Brasil, em terra firme. Sou vítima
desse negócio (e ela aqui também) como todos os meus parentes lá somos vítimas da primeira missa
no Brasil.
Agora, aparece esse documento e nós estranhamos como não é só esse documento, tem mais
documento e mais propostas deles contra nós Pataxós.
Há muito tempo venho lutando, e não falo só por Caramurus, falo por toda a comunidade
indígena que está sofrendo, e onde mexer com índio, mexe comigo também; então, já estou achando
que a FUNAI deve ter mais atenção e proibir esse povo de negociar com o nosso direito, com a terra
do índio, porque se lá é terra do índio, tem que ser respeitada; eu sou prova de que quando fomos
para lá não tinha ninguém. Aí, a Marinha, o turismo, porque lá é ponto de turista, e todos falavam que
seria bom que houvesse índio para contar a história. Aí, fomos para lá para contar a história e o turista
gostou, achou bom ter um índio que é o legítimo dono para contar a história de como foi o princípio
da exploração do Brasil, porque para nós, ele explorou toda a Nação indígena.
Todo esse tempo, nós vivíamos em paz, de pescaria e de caçada, com nossos costumes
indígenas. Depois bagunçou tudo; índio espalhou, índio morreu e a FUNAI não resolveu.
Nós gostaríamos que as autoridades tomassem atenção neste ponto e dessem ajuda, porque
nós estamos acostumados a viver na nossa aldeia e lá tem como índio viver. Eu gostaria que isso ficasse
bem claro para que as autoridades pudessem dar o apoio para nós e demarcassem aquela área, porque
ali não pode ser do branco, só pode ser do nosso povo. Se o turista chegar, pode andar no meio, porque
turista não tem bronca, mas para ajudar o índio, não para explorar o índio, como está explorando. Isso
é o que eu tinha a dizer, no momento aqui.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), p.157.]

Depoimento de GILBERTO MACUXI


na Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 5 de maio de 1987

– Bom dia, meus parentes, o índio que vive aqui em Mato Grosso, como o Xavante, como o Xingu
que aqui se encontra, Srs. Deputados, Parlamentares, gente que trabalha com índio que são missionários,
são povo que apóia o povo indígena. Então, quero relatar aqui a problemática do território de Roraima
que vem sendo há muito tempo esquecido de muitos anos; os índios vem lutando para sobreviver na
sua própria terra e nós vivemos marginalizados, escravizados, porque não temos nossa demarcação da
terra Macuxi, que é uma área que estamos lutando há muito tempo, uma área única que tem os Macuxi,
Wapyxana, Ingarikó, Taurepang, que vivem nessa área única Raposa-Serra do Sol e nós vivemos brigando,
há muito tempo, e a FUNAI não fez nada por nós; ainda somos isolados naquela parte do Território de
Roraima e esquecidos pelas autoridades que sempre vêm marginalizando o índio em favor do fazendeiro;
também os políticos ficam nos perseguindo em Roraima, dizendo que ali não tem índio, mas nós somos
índios nativos, fixo, originários naquela terra e somos os donos daquela terra.

178 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Quando o Brasil foi descoberto em 1500 pelos portugueses, os índios já existiam nesse tempo
e ele é o povo que fixou na terra.
Daquele tempo para cá os índios vêm sofrendo, vêm sendo escravos, esqueceram os índios,
as leis foram nos enrolando e sabemos que os Parlamentares, os Deputados que se encontram em
Brasília, têm de saber da problemática do povo indígena, porque há muito vem sofrendo. Precisamos
de demarcação de todas as áreas indígenas, principalmente em Roraima, porque somos esquecidos e
precisamos de ajuda. O povo indígena de Roraima como de outra nação, também. O que precisamos é
ter nossa terra, porque nossa terra é nossa vida, porque nós vivemos em cima dela.
Estou aqui representando 40 mil índios que existem no Território de Roraima.
Muito deles vêm dizendo que tem pouco índio ali, nunca andou de pé como a gente anda, lá
somos sofridos. Eu, pelo motivo de dizer, o policial do Território de Roraima vem perseguindo o índio,
sendo a favor do fazendeiro e contra o índio. Sabemos que muitas casas de índios foram destruídas,
queimadas, índios foram presos e a FUNAI nada resolve da demarcação das terras.
Vejo no jornal Homero Jucá Filho dizendo que demarcou várias terras indígenas. Roraima
nunca foi demarcada.
Precisamos que ele cumpra seu dever, como é de sua responsabilidade, como Presidente
que vem ganhando dinheiro na costa do índio, como funcionário que trabalha aqui em Brasília vive
ganhando dinheiro na costa do índio, sem fazer nada pelo índio. No Território de Roraima, a maioria
dos funcionários de lá é contra o povo indígena, negociando por fora com fazendeiro, fazendo acordos
sem consultar o índio.
Temos outros problemas que vêm caindo em cima da gente. A Calha Norte, que vem ali
preocupado com a fronteira; não é preocupado com a fronteira, é preocupação com mineração onde
foi explorado por eles ali dentro e não querem fazer a demarcação.
Nós, índios, estamos protestando Calha Norte, porque ali vai fazer invasão, fazer estradas
e vai acontecer como aconteceu de Manaus a Boa Vista, onde mataram muitos índios, os Waimiry –
Atroary que foram mortos através de abertura de estradas nas áreas indígenas. Tem que ser respeitado
o povo indígena. É preciso que a Lei 198 seja assegurada nesta Constituição que está sendo feita, e seja
respeitado o povo indígena de todo o Brasil.
Eu, como Liderança indígena, venho trazer esta proposta para a Assembléia Nacional
Constituinte: não esquecer a imagem do índio, não integrar o índio, não colonizar o índio, porque
se colonizar, o índio vai viver isolado, como já vem acontecendo, porque querem integrar o índio na
sociedade branca para aproveitar a fraqueza do índio porque já está integrado. Por isso, venho falar
a respeito disso, porque queremos respeito ao direito do índio. Estamos organizando um conselho
regional, um conselho territorial e isto tem que ser colocado na Constituição. Tem que ser aprovado o
respeito ao povo indígena. Vimos muito sofrimento, esquecidos, sem ter nada, tem que ter consciência
do índio brasileiro que é nativo e fixo. Índio, quando chegamos, já vivi nesta terra, nesta terra nós
vivemos como também vivem companheiros Yanomami, também, ali, onde estão fazendo o paredão
de usina elétrica. Protestamos contra isso, porque vai trazer outra marginalização do povo Yanomami,
Ingarikó, Wapichana, Taurepang, Mayongong, Xiriana, Macuxi, que formam nações de no máximo 40
mil índios. Por que a Calha Norte preocupou em dar cobertura para firmas mineradoras dentro das
áreas indígenas? Porque estão interessados em acabar com o povo indígena.
Nós precisamos ter nossa demarcação nesta Constituição. Tem que sair. Já chega de os índios
sofrerem, os índios são um povo que tem consciência, não é um povo que tem ganância, o branco tem
ganância de tomar a terra do índio. O índio tem consciência, porque ele não tem ganância de roubar
nada que é do branco.
Como no Território de Roraima, estou muito sofrido. Tenho quatro processos, brigando pelos
meus parentes; processos das autoridades de lá me perseguindo e os garimpeiros e os fazendeiros me
perseguindo; também os políticos me perseguem para que eu pare com a minha boca, mas eu não vou
parar. Vou lutar até o fim da minha vida pela demarcação das terras.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 179


Quero que os parlamentares, Deputados e Senadores, e o Presidente da República, José
Sarney, defina a nossa demarcação, porque já tivemos reunidos em assembléia aqui em Brasília, umas
13 nações indígenas, apoiando a demarcação Macuxi e a demarcação Yanomami, porque são povos
inocentes, que não sabem se defender.
Quero que os Parlamentares não consintam com o projeto Calha Norte, nós estamos
protestando Calha Norte. Nossa área está completamente esquecida no Território de Roraima. Queremos
ajuda dos parentes que se encontram aqui, queremos ajuda completamente, de coração, queremos
ajuda dos Deputados, queremos ajuda dos Senadores, queremos ajuda do Presidente, do Ministério do
Interior e ajuda dos militares, também, porque a Constituição está aí.
Querem derrubar a imagem do índio, mas nós precisamos de ter nossa vida. Calha Norte eu
considero como morte do índio vai matar os índios, porque é através dos militares.
Então, eu, como índio Gilberto Macuxi, estou fazendo esse depoimento, para que seja válido,
não seja esquecido, porque isso é um povo honesto, o índio que fala a verdade. Não adianta vir um
Deputado como o Mozarildo Cavalcanti, de Roraima, falar contra índios, como João Fagundes que vem
falar contra índio e como os outros mais. É preciso que tenha consciência do povo indígena de Roraima
e que seja lei, que seja assegurado o 198, para que nós vivamos.
Podemos negociar com os brancos, sim, mas desde que já demarquem as terras do índio,
porque ali têm minérios, mas ali é do índio, porque é usufruto exclusivo das riquezas naturais do solo
e subsolo que são do povo indígena.
Vou terminando por aqui deixando a demarcação da área única, após a Serra do Sol, que é
vizinha de Tacutu, Maú, Monte Roraima, Miãng e Surumu, têm as terras demarcadas com posseiros
dentro. Com o posseiro dentro têm as terras delimitadas, e a terra que está sub judice pelo juízo, não
define nem que é do índio, nem que é do fazendeiro. Mas é do índio, é preciso que os parlamentares,
eu quero muito apoio dos Senadores e Deputados que se encontram aqui presentes, como o branco,
também, que é missionário que trabalha com o índio.
Precisamos de todo o apoio para nós sobrevivermos, porque querem acabar com a nação
indígena.
Quero que o povo indígena resida, durante todo tempo eles viveram em seus locais, com seus
costumes e sua tradição. Muito obrigado a todos.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.157-158.]

Depoimento de DAVI YANOMAMI


na Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 5 de maio de 1987

– Sou um verdadeiro yanomami de Roraima. Quero conhecer vocês, porque todo índio está
aqui por causa do branco. E quem não me conhece, vai conhecer agora, dessa vez e eu quero conhecer
vocês todinhos, porque estamos lutando juntos para conseguir a nossa demarcação de terra.
Gostaria de contar um pouco de minhas notícias. Minhas notícias não são muito boas mas
vou contar para vocês saberem. Estamos aqui para escutar outras palavras dos parentes, e também para
os Deputados e Senadores aqui escutarem nossas notícias e também outros funcionários.
Então, na minha área do Yanomami, estamos todos sofridos porque está cheio de garimpeiro
entrando e invadindo as nossas terras, e a mineração também está levando os maquinários para fazer
estradas, e também fico muito triste porque os militares fizeram a vila militar em Surucucu. Todo
mundo sabe que os brancos estão aqui e estão sabendo também, e vocês também sabem que a notícia
vai longe.

180 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Os Yanomamis vão sofrer porque os militares estão implantando a vila militar. Isso é de muita
preocupação para os Yanomamis.
Queria também falar a nossa língua Yanomami, para acreditar que sou Yanomami verdadeiro
mesmo. Quero também pedir depois ao meu colega Paulo porque queria escutar a sua palavra, do
idioma. Vou falar um pouco em nossa língua... (Inicia explanação em linguagem Yanomami)...
Vou traduzir o que estou dizendo.
Estou dizendo que nós vamos lutar junto com todos os índios do Brasil para a gente
conseguir a demarcação da área indígena, para gente, para nossos filhos, porque nossos filhos vão
sofrer mais do que nós. Então, estamos lutando para nossos filhos a fim deles ficarem usando ainda...
o que eu falei eu traduzo.
Aos Deputados e Senadores brasileiros estamos pedindo apoio para os índios. O Deputado
que gosta do índio ajuda a nos dá apoio para lutar junto. E também falei que nossa área está toda
invadida pelos garimpeiros, colonos, fazendeiros, pescadores, caçadores – estou traduzindo o que eu
falei.
Os brancos dizem para gente que a terra não é do índio, mas estão enganados, porque
há muitos anos já vivem os índios, até hoje, por isso que estão até vendendo as nossas terras para
usar o povo indígena. E também os brancos falam que aquele que não falar a língua Yanomami, ele
não acredita que é índio. Eu falo a nossa língua, eu canto sou pajé, falo mais a nossa língua do que o
português. O português é outra língua, não sei falar bem. Uso melhor a nossa língua, essa língua que
estamos quase vendendo, também para não acabar, para os brancos não acabarem a nossa língua, para
nos tornarmos brancos. O índio nunca vai ficar branco.
Nós continuamos índio, nós não queremos mudar para o mundo do branco; nunca vamos
mudar e está traduzido o que eu falei na nossa língua. Aos Senadores e Deputados que estão aqui,
estão me conhecendo agora, porque é a primeira vez que eu falo em microfone, como os brancos falam
e então nós também queremos parar, também para escutar. Só que eu falo mais a nossa língua.
Os garimpeiros estão enchendo nossa área. Nós, índios Yanomamis estamos pedindo para
nos ajudar a retirar os garimpeiros, porque se não tirarem logo agora vai encher. Hoje, a área indígena
já tem dois mil garimpeiros homens.
Então, viemos aqui para pedir aos Deputados a ajudarem a retirar os garimpeiros, antes
de chegar o Projeto Calha Norte. Se chegar esse projeto vai ser difícil para retirada dos garimpeiros.
Muitos estão sabendo disso. E também a nossa parente Macuxi, Wapyxana e Karicó, têm a área deles
toda invadida, completamente invadida, por garimpeiros, pescadores, fazendeiros, eles não querem
mais deixar trabalhar gente no roçado, proibiram trabalhar, proibiram pescar, proibiram caçar, porque
os brancos já tomaram tudo, por isso os nossos parentes macuxis não vieram.
Estou aqui representando, porque sou de lá os macuxis apóiam a mim e meus parentes daqui
vamos apoiar os Yanomamis; os Yanomamis vão apoiar outra comunidade.
Queremos assim, todo mundo unido, para poder ficar forte. Ficando assim desunido não vai
para frente, não vai conseguir a demarcação de nossas terras. E também quando os brancos chegam às
nossas áreas indígenas levam as doenças para matar nossos parentes e prejudicam nossa saúde.
Por isso é que nós não queremos nada. E também a FUNAI está muito fraca. Sozinha ela
não pode resolver nada. Então, todos nós, índios do Brasil estamos pedir do apoio para Deputados e
Senadores porque queremos conseguir a demarcação de nossas terras para acabar essa briga, não é? Se
não resolve a demarcação da área indígena a luta vai continuar, não vai parar agora, vai continuar até
no fim, se não demarcarem as terras indígenas.
E também nós, Yanomamis, somos dois mil índios, temos outros Yanomamis lá parentes na
mesma situação que nós, sofrendo aqui no Brasil.
Fiquei também muito preocupado porque COMAR está mandando fazer campo de pousos
dentro da área indígena. Isso dá muita preocupação aos Yanomamis.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 181


Os militares falam que nos ajudam e dizer que vão nos proteger, que vão retirar os garimpeiros.
Então, é isso que estamos pedindo ao Deputados que estão aqui escutando a nossa palavra, para nos
ajudar a conseguir a demarcação da área indígena para todos os índios do Brasil. Queremos ficar
lá só com o povo indígena, ser misturar com os brancos, porque se misturar morar juntos com os
brancos traz muitos problemas, muitos mesmo, muita doença, prejudica nossa saúde, prende gente,
por isso nós índio não queremos isso. Também o Projeto Calha Norte, onde tem fronteira que eles
querem ocupar. Os brasileiros e o Presidente Sarney que diz que é difícil fazer a demarcação, mas tem
que demarcar. Há muito tempo que, estão falando em estudos, mas nós índios Yanomamis achamos
que não estão estudando, só falando, falando. Não sou tuchaua, mas sou lutador. Os tuchauas estão
pedindo para falar da retirada dos garimpeiros aos que estão aqui nos escutando e também que seja
antes de crescer os garimpeiros. Eles estão levando tratores para derrubar a nossa mata, derrubar e
retirar madeira e vai acabando. Vão chegando os brancos, “colonheiros”, caçadores, pescadores, e vão
enchendo, crescendo. A única maneira, o único caminho que eles acharam, foi a Polícia Militar que
achou. Essa é muita preocupação, porque há dez anos estamos sofrendo isso. Os militares dizem que
vão nós ajudar. Mas estamos sabendo que ninguém vai nos ajudar. Eles vão prejudicar a nossa saúde,
chegam para começar a proibir entrar na área indígena, começam a proibir pescar, caçar, trabalhar para
ficar de braços cruzados e não fazer nada.
Então, estamos pedindo apoio a vocês brancos que segurem aqui, e nós seguramos lá em
cima para não acontecer nada. Senão, em Surucucu vai acontecer como em Cachoeira, como lá no
Bomfim porque a polícia foi primeiro só, depois virou cidade. Essa é a minha preocupação porque vai
crescer Surucucu, porque vai família, vai trabalhador, vai empregado, vai doutor, vai enfermeira, vai
crescendo. Essa é a nossa preocupação. Eles falaram que iam nos ajudar, índio não vai esquecer essas
palavras que o branco falou, não vai esquecer.
Não estou falando muito bem porque sou índio verdadeiro mesmo, nasci na aldeia, vivi na
aldeia, o Deputado pediu para cantar em Yanomami, vou cantar um pouquinho (...)

[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.158-159.]

Depoimento de KRUMARE KAYAPÓ


na Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 5 de maio de 1987

– Está pedindo terra, ainda não marcaram a terra dele, mas para nós sabermos meu primo
nós somos parentes, mas ele ainda não marcou a terra.
Ele vem aqui, para pedir terra, nós pedimos terra para o Presidente da FUNAI. A cada
Presidente da FUNAI que entra, nós pedimos para marcar nossas terras.
Nós somos índio puro, nós não somos outra nação, nós somos uma língua só, somo caiapó;
meu parente está pedindo terra para marcar para ele, agora nós não somos índio brabo, não matamos,
por isso eu falo pouco, mas você fala bem. Então, se o Presidente da FUNAI não manda marcar, nós
continuaremos lutando. Nós brigamos até 3 meses, 4 meses, 5 meses, para ganhar terra. Ainda tem
mata pura. O meu primo, filho do meu tio, ainda não marcou terra para ele, por isso nós viemos aqui
pedir para Deputado olhar para a terra, marcar tudo junto no parque para índio de Xingú, para marcar
tudo no parque lá no Mato Grosso.
Estamos lutando para ganhar terra, vamos lutar mais para marcar terra do meu primo. Vamos
marcar tudo junto no parque para Gorotire, Origre, Kalaroâ – Maú, Kranahô, marcar tudo junto.Meu
primo está lá, mas ele não vem aqui para falar, meu sobrinho também está lá.
Eu falo pouco, eu ajudo vocês, eu ajudo a cada Nação, para falar com Presidente, Deputado.
Mas, o Presidente de FUNAI é fraco.

182 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Nós sempre pedimos para o Presidente da FUNAI mas demora, agora a terra está pouca para
índio, igual casa de pombo, tá marcada, mas onde índio vai caçar?
Onde índio vai fazer festa? Onde ele vai fazer roça? Tem que marcar uma terra maior para
índio, índio também está aumentando, não é só branco que está aumentando, índio também. Índio vai
crescer, vai aumentar, cadê terra? Não dá, tem que marcar maior, não apertado, tem que marcar mais
longe, vai marcar mais longe de branco.
Nós não queremos vender madeira. Nós não queremos garimpeiro, eles só querem brigar.
Já pedimos para a FUNAI, tirar ele. A polícia não vai, aí nós mesmos que vamos brigar, quem é que vai
segurar nós? Ninguém.
Vamos pedir para Presidente e Deputado mandar polícia tirar garimpeiro, tirar fazendeiro,
tirar madeireiro. Enquanto o Presidente não mandar, nós mesmo vamos brigar.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), p.159.]

Depoimento de PEDRO KAINGANG


na Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 5 de maio de 1987

– Comissão, índios presente, irmãos presentes, toda a nação. Eu ouvi atentamente todo o
pronunciamento do meu irmão, sei de toda a situação da terra e foi o que mais debateram. Parece até
vergonhoso em uma nação que vive uma democracia, o índio hoje aparecer aqui falando em luta, lutas
de guerra, me parece, porque está defendendo seu direito. Sinceramente emociona, e muito.
Eu sou monitor bilíngüe, falo a língua cairés, leciono na língua e escrevo na minha língua.
É uma das grandes preocupações do Sul hoje. Além disso, hoje eu exerço a função de Presidente do
Conselho Regional de Guarapuava, Estado do Paraná, Sul do País. Eu represento 8 caciques da minha
área, de aproximadamente 5 mil índios. Sou Kaingang. Esse conselho é representado por Kaingangs e
guaranis. Existe um outro em Londrina, lá, onde está presidindo um guarani chamado Euzébio Martins,
que me parece não esta presente; era interessante ouvir o depoimento dele.
Eu estou só representando o Sul. Mas gostaria que outro representante se fizesse presente,
talvez em outros encontros, conforme a nossa idéia futura. Parece-me que tanto à questão indígena,
eu até me emocionei quando o companheiro Yanomami falou no seu idioma. Impressionou-me porque
a minha língua é bem diferente, gostaria eu de entender a língua que ele falou, e tenho certeza de que
ele também gostaria de entender a minha língua.
Parece-me que está havendo uma falta de respeito à cultura indígena. Há o avanço da
mineração, avanço das grandes serrarias, os grandes e poderosos fazendeiros violentam e afetam
bastante a região Norte do País. Isso me preocupa. Eu quero deixar o Yanomani e o companheiro
Crumare, o outro cacique também representando, quero dizer que o meu Conselho, da minha parte
terá todo nosso apoio; só gostaria de conhecer melhor. O Nelson Saracura também me parece ter um
documento com respeito a uma área em questão. Eu também gostaria de levar comigo e apresentar aos
nossos caciques do Sul a questão da terra do Nelson Saracura.
Recentemente, estivemos no Rio de Janeiro, lá também existe índio guarani em duas áreas
em questão. E é uma questão política; sempre onde há interesse há também questão política. No
Rio de Janeiro tem duas áreas que estão nas mãos do Estado, estão na mão da FUNAI, estão na mão
do Governo Federal. Interessante: me parece que o índio tem questionado, existem leis, existem
legislações, existem termos de demarcação de terras, mas até hoje as leis não foram cumpridas. Temos
hoje uma formulação, talvez, das leis do País. Eu sempre digo e sempre direi, eu ainda tenho minhas
dúvidas. Nós, índios, pensamos de uma forma, mas a política, os interesses, a ganância pensam de
outra forma. Isso é uma grande preocupação, hoje, minha, como Presidente do Conselho. Parece-me

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 183


que enquanto nós não pensarmos em termos de povo, em termos de nação, porque considero o povo
indígena uma nação, uma nação dentro de uma outra nação, mas com a cultura, costumes e tradições
diferentes. Mas que me parece um grupo envolvente, ela é muito poderoso porque é em número muito
maior, então ela afeta muito mais a questão indígena. Hoje, o índio suplica, ele implora, eu acho que
isto não deveria ser assim. É uma obrigação do povo brasileiro atender, não é justo o índio vir a público
implorar, é interesse da Nação, é uma questão da Nação, é falta de cumprimento das leis. E possível o
homem botar a cabeça no lugar e questionar friamente as questões sobre leis, não adianta criarmos
leis e não cumpri-las. O índio não poderia estar hoje implorando e botando voz de guerra perante uma
questão sua que é a terra.
Outra questão que me emocionou foi também um colega, índio, que disse: “É preciso remarcar
terra”. Nós perguntamos: será que só essa tara serve para nós? E o futuro das crianças? Será que eu não
precisaria de um espaço maior para acomodação dessas crianças? É possível? É possível, mas é preciso
cumprir as leis. Sabemos que existe um órgão governamental que hoje é órgão tutelar do índio, a tutela
tem que desaparecer. O serviço do órgão tutelar foi colocado por vias políticas, essas vias políticas
têm me preocupado bastante, e muito. Porque ao índio não interessa uma questão político-social
envolvente, porque ele já tem uma estrutura e existe uma política social do próprio índio. E preciso
garantir o espaço do índio, é preciso dar espaço e condições a esse índio, o índio também é capaz. Se
não fosse capaz não estaríamos aqui, assim como outros representantes não estariam aqui. É preciso se
conscientizar de que existem normas, existem leis, mas é preciso abertamente que o Governo Federal
as cumpra, é preciso cumpri-las. Não adianta mudar as normas, não adianta mudar os homens, se
não cumprimos com as diretrizes do País. Sabemos que o Brasil é o País que tem mais leis de todo o
mundo, mas é o que menos cumpre. É preciso conscientizar toda política, é preciso conscientizar todo
o Senado, toda a Câmara dos Deputados, é preciso lutar conscientemente em defesa do povo. Esse
povo não pode ser reprimido, esse povo não pode ser espremido, esse povo não pode ser isolado,
esse povo tem que ser atendido. É uma obrigação da Nação, não é obrigação do índio vir a público
questionar uma questão, implorando.
Eu sou de uma tese, como o amigo acabou de falar: o Brasil não foi descoberto, ele foi
redescoberto. Ele foi redescoberto e, praticamente, o povo envolvente se apoderou de tudo, e a menor
parcela ficou para nós quando até hoje nós questionamos a questão de terra.
O Estatuto do índio deu um prazo para a demarcação das terras. Os Governos anteriores não
cumpriram com a promessa. Será que vão cumprir? É uma pergunta que fica no ar. Chega de aceitarmos
certas imposições. É preciso que o índio se organize e assuma os espaços, talvez dentro da sua própria
organização chamada FUNAI. É preciso que o índio tenha maior intercâmbio, se conheça melhor uns
aos outros, seja no Norte, Sul, Leste ou Oeste. É preciso que eu conheça melhor o Norte e que o Norte
conheça melhor o Sul, e, assim, por diante. É pena que o índio continue sendo minoria aqui presente.
É preciso que o índio amanhã seja maioria aqui.
É preciso que comecemos a nos organizar claro e fortemente, não com poder de briga, mas
com poder de decidir nossos próprios destinos. É preciso criar espaços na área de educação, como
eu já disse em documento enviado à Constituinte; demarcar imediatamente as áreas indígenas; dar
espaços e condições de educação; melhorar a agricultura; preservar as matas e a cultura do índio; a
língua; o artesanato, para valorizar mais o índio como pessoa: é preciso que se crie espaços para que
ele se desenvolva por si próprio.
Parece-me que até hoje, desde a criação do primeiro órgão, em 1910, o índio não teve
condições de assumir a presidência ou a superintendência de sua própria delegacia.
É preciso caminhar rapidamente, num esforço de todos os índios, entrelaçar os melhores
conhecimentos entre todos nós, ser mais firmes, mais positivos, mais irmãos. O momento não é de
ouvirmos essa ou aquela entidade; é preferível viver entre nós, porque é melhor. O índio precisa ser
ouvido e adquirir espaço, mas não apenas ser ouvido e sim ver cumpridas as suas exigências.
Sou um Kaingang. Encontro-me só, hoje, em Plenário. Mas gostaria que estivessem presentes
outros caciques, outras lideranças que pertencem à Região Sul: os Guaranis, os Xoklengs e os
Kaingangs.

184 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


É preciso reformular a própria FUNAI.
Enquanto não reformularmos a estrutura dos nossos órgãos dirigentes, jamais alcançaremos
o caminho. As mudanças constantes na estrutura da FUNAI têm prejudicado demais as comunidades
indígenas, porque todas têm políticas diferenciadas das outras. Isso não ocorre apenas dentro da
FUNAI, mas em todo o País. As mudanças constantes trazem prejuízos imensos às comunidades. Essas
crises me parecem violentas e a Nação não está conscientizada do que é melhor para o povo. É preciso
que isso ocorra. Está na hora de alguém chamar a atenção de todos, pois todos somos responsáveis. O
branco é responsável pelo índio, mas não deve ferir a cultura do índio, mas sim apoiá-la. Mas o índio
é minoria. Neste País ainda temos o preconceito muito forte. O branco já nasce com o preconceito e a
ganância, o que nos preocupa muito. Há muito interesse pessoal e não interesse ao trabalho.
Trago um pequeno documento. Tudo o que meus irmãos falaram, seja de que raça forem, mas
são índios. A mesma coisa está dentro desse documento, que fala sobre educação, terra, agricultura,
saúde, direito ao espaço, direito de participação. Só nos resta aguardar. Queremos acreditar na nova
Constituinte, mas vamos pensar em não ferir uma cultura, uma tradição e um povo.
Parece-me que esta Constituinte deverá ter consciência clara do que tenha que ser feito.
Não devemos pensar num todo. Há muitas questões iguais, mas alguns problemas são isolados. Não
poderemos comparar hoje a questão do índio do Norte com a do índio do Sul, Leste e Oeste. Todos nós
temos problemas diferentes. É preciso que a Constituinte faça o melhor, que não atenda à Região Sul e
prejudique a Região Norte, mas que atenda a todas em igualdade de condições.
Quero deixar a todos, ao Presidente, um documento a mais. Tenho certeza de que dentre
todos esses documentos, vindo de todas as nações indígenas, será tirado um. E tomara que seja o
melhor para nós, seja ele, em mais curto espaço de tempo, a demarcação de nossas terras. Mas é
preciso conscientizar a todos de que não é apenas isso o que interessa, mas o direito à segurança
dessas terras. Não adianta demarcarmos a terra e não estarmos conscientizados também de dar o
direito ao índio, com documentação entregue a ele. É possível fazer muita coisa, mas o que o índio
exige não é terra simplesmente, mas o direito de preservá-la e o direito de segurança nela.
Isso não cabe somente ao índio, mas a parte jurídica, aos Deputados, aos Senadores, ao
Presidente Sarney conceder o direito de posse permanente ao índio. É preciso preservar e segurar, dar
apoio ao índio.
De minha parte, agradeço por ter tido a oportunidade de estar aqui presente, em nome dos
índios do Sul do País. É uma pena que não estejam todos. Sinto muito, mas fui avisado na última hora.
Trouxe o que senti dos índios do Norte: o desespero! Tenho certeza de que eles darão todo o apoio. Já
falei ao Nelson Saracura para me dar a cópia para eu levar sobre a situação da área deles.
A maior preocupação deles é a questão da terra, a questão social e política que envolve o
índio na sociedade, atualmente.
Vou deixar ao Presidente esse documento, o que se fez, mas me parece que tudo o que
está escrito aqui já foi dito. É só mais um reforço, um apoio a tudo o que foi dito aos companheiros.
Sei que o PMDB já tem um programa, um documento, é do meu conhecimento que existe um livro,
inclusive, e ontem à noite, fiquei lendo-o até às duas horas da madrugada. Quero agradecer de
antemão pela preocupação do PMDB e também sei que é a preocupação de outros Partidos – mas me
parece que foi o único que entregou uma documentação quanto aos requisitos básicos da questão
indígena.
Eu ontem estive lendo e me parece que toda a documentação entregue pelos índios será
reavaliada e será reestudada e dentro desta, eu espero, Sr. Presidente, que queiram o melhor para
o índio,. porque da minha parte eu lhes entrego esta documentação. É mais um reforço ao que foi
entregue pelos demais índios de todo o País.
Eu quero agradecer a vocês e o meu muito obrigado.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.159-160.]

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 185


Depoimento de VALDOMIRO TERENA
na Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 5 de maio de 1987

– Primeiramente, Sr. Presidente, eu quero agradecer pela oportunidade de estar aqui com
todos vocês e prestar um depoimento também, mas quero, em primeira mão, saudar os meus irmãos
do Norte, Sul, Leste e Oeste, esses índios que também vieram com muito sacrifício, tenho certeza, para
participar deste grande encontro.
Eu também, neste momento quero agradecer à nossa Comissão Especial que foi formada
por oito índios e os Caciques que aqui estão representados pelo Sr. Marcelino, o Gabriel e os demais
Caciques presentes, que são os Terenas e, neste momento nós representaremos os kaiabis, guaranis,
terenas, guabirós e guapós.
Eu quero dizer que nós tivemos em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, o I Encontro de
Lideranças Indígenas para tratar de uma proposta que estivemos debatendo nos dias 1º e 2 de maio de
1987, que foi a semana passada, e vários assuntos foram debatidos, dentre os quais aquele principal
problema que hoje aflige a comunidade indígena. E nós, dentro desses dois dias, conseguimos debater e
discutir e, posteriormente, elaborar, também, uma proposta para a Constituinte para tentarmos, dentro
dessa nova Carta Magna, inserir esses problemas que realmente vêm preocupando as comunidades
indígenas.
Nós sabemos que o índio tem vários problemas e dentre esses problemas, queremos explicar
que a demarcação da terra realmente é o que me parece vem sendo de relevante importância, e
explicamos o porquê: O índio detém o usufruto da terra e ele realmente precisa da terra, porque é
na terra que o índio planta, é da terra que o índio retira a sua alimentação. Quer dizer, é da terra que
também o índio faz seu lazer e achamos que é preciso termos a colaboração, por isso que nós pedimos
à cúpula da Constituinte e ao Parlamentares que realmente, dêem uma olhada com todo o carinho
porque nós trazemos uma proposta, que me parece, trata de iguais problemas das outras nações aqui
presentes.
Nós tivemos a oportunidade de, dentre os vários problemas, discutir onze temas que
trouxemos em mãos, para apresentar ao Presidente da Mesa para que aprecie também esses outros
problemas da comunidade indígena:
O primeiro tema trata do reconhecimento dos direitos territoriais dos índios. Nós sabemos
que a terra é de direito da União. Então, fizemos esta solicitação para que o reconhecimento dos
direitos territoriais seja reconhecido para os índios.
O segundo tema seria a demarcação.
A demarcação, como todos nós sabemos, é de vital importância, porque tanto no Norte, Sul,
Leste e Oeste onde existem as comunidades indígenas, existe o problema principal da demarcação da
terra.
Então, solicitaríamos que fossem demarcadas essas terras, porque elas são de vital importância
– e nós sentimos e acreditamos que a maioria sabe da importância e prioridade desse tema.
Quer dizer, dentre todas as discussões e debates que fizemos, achamos que a prioridade
principal está na demarcação e garantia das terras indígenas.
No tema três tivemos a discussão, debatemos sobre o uso exclusivo pelos povos indígenas
das riquezas naturais. Acredito que o usufruto exclusivo seja, por exemplo, no que tange às riquezas
naturais, o uso das madeiras, a riqueza do subsolo, tudo aquilo que estiver na demarcação das áreas
indígenas.

186 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


No tema quatro, tivemos a oportunidade, também, de discutir a inalienabilidade das terras
indígenas. Nós sabemos que é de muita importância esse texto.
No tema cinco, surge o problema concernente à problemática das terras. Nós sabemos que
existem muitos posseiros na terra dos índios. Sabemos que existem as invasões, por isso, nós discutimos
muito a respeito e solicitamos que esse tema também fosse estudado para retirarmos imediatamente
os posseiros das terras indígenas.
No tema seis, discutimos o reconhecimento e respeito às organizações sociais e culturais dos
povos indígenas.
No tema sete, a defesa da ecologia e meio ambiente. Nós sabemos que não só para os índios,
mas para toda a comunidade brasileira é de importância vital a preservação da ecologia e do meio
ambiente, e nós sentimos, às vezes, quando presenciamos rios sem condições. Há um desrespeito
e nós temos hoje que lutar para conscientizar a comunidade não só indígena, mas a comunidade
brasileira, para a preservação, por exemplo, da natureza, do meio ambiente.
Não só é importante para nós, mas para todos, o reconhecimento do Estado brasileiro
como Nação pluriétnica. Isto nós sabemos que é também importante, porque a etnia faz parte do
reconhecimento do Estado brasileiro sem a divisão do Território Nacional.
Fomos ao tema nove, que e o reconhecimento do Estado brasileiro da Nação multilíngua.
Então, também sabemos que no Brasil existem vários idiomas, mas que o idioma principal é o que nós
falamos, e os que os índios falam não são reconhecidos.
Existem várias nações indígenas com várias línguas diferentes. Achamos que deve ser
reconhecido pelo Estado brasileiro esta característica de Nação multilíngue.
No tema dez, achamos também de vital importância para nós, das comunidades indígenas,
a inclusão das línguas indígenas na nova Constituição, porque ela é um veículo de instrumento e
educação das comunidades indígenas. Hoje nós sabemos que ela não é reconhecida oficialmente e para
nós ela representa muito, assim como a demarcação da terra, é muito importante a inclusão dentro da
nova Carta Magna.
E no tema onze, chegamos no direito político. Achamos que estender aos indígenas o
instituto do voto universal direto e secreto seria importante, já que nesta parte achamos que deve ser
preservado, também, a maneira e o costume das comunidades indígenas. Nós sentimos a oportunidade
valiosa para que pudéssemos participar e entregar nossas solicitações aos Constituintes que irão
elaborar a Carta Magna.
Tenho aqui em mãos essa proposta e gostaria de fazer a entrega ao Presidente, porque essa
proposta é uma esperança a mais. Acreditamos que é uma esperança que estaremos jogando aqui nas
mãos do Sr. Presidente, porque significa uma esperança de dias melhores não só para a comunidade
dos terenas, não só para as comunidades do Mato Grosso do Sul, mas acredito que será uma esperança
para todas as comunidades indígenas do Brasil.
Então, é com muita satisfação que fui incumbido de, nesta Comissão Especial, fazer a entrega
ao Presidente da Mesa desta proposta à Assembléia Nacional Constituinte.
Quero agradecer a todos vocês e também agradecer aos patrícios presentes. Muito
obrigado.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), p.160-161.]

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 187


Depoimento de HAMILTON KAIOWÁ
na Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 5 de maio de 1987

– Com toda a satisfação. Patrícios, companheiros da Mesa, que realmente estão interessados
em defender a questão indígena: primeiramente, durante toda essa década da Constituição passada, a
população indígena foi humilhada.
Hoje, nós estamos preocupadíssimos com a sobrevivência; como será a próxima Constituição
que vai ser elaborada?
No Mato Grosso do Sul, os Kaiowás e os Guaranis já foram humilhados muitas vezes e a Funai;
por sua vez, nunca se prontificou a ajudar a comunidade indígena dos Kaiowás e Guaranis. Tanto é que
aconteceu, nesses últimos anos, três despejos seguidos, praticamente: primeiro foi o de Maracaju,
inclusive uma funcionária da Funai confirmava que aquela área não era do índio, e sabemos muito bem
que não existia neste País nenhum fazendeiro.
Portanto, nós Kaiowás e Guaranis estamos preocupados com o restinho de nossa terra que
sobrou para nós e que não conseguimos até agora a demarcação. Nós temos a nossa terrinha que
sobrou, dos nossos antepassados, os nossos bisavós já morreram na esperança da demarcação que até
hoje não foi feita.
Nós pedimos às autoridades aqui presentes, que realmente vão se empenhar na Constituição,
que defendam os direitos do povo indígena, porque se não defenderem os nossos direitos, brevemente
seremos lembrados na História em bibliotecas e nós não queremos que aconteça isso, porque o nosso
coração está cheio de ódio por aqueles que tomaram as nossas terras, por aqueles latifundiários que
mandaram matar os líderes indígenas para tomar as suas terras, e hoje não houve um resultado pacífico.
Onde está a justiça? Onde está a justiça quando assassinaram o Marçal por questão de terra? O que
ocorreu com o Marçal ocorre com todos que lutam pelos seus direitos, pela sua terra.
O Presidente da República defende mais a questão dos latifundiários nas partes fronteiras,
porque talvez seja melhor para eles contrabandear. Nós, índios, não criamos fronteiras. Nós queremos
nossos direitos para que sempre vivamos em paz e em tranqüilidade.
Desde a época de 1500 nós não tivemos liberdade. Nós sempre fomos humilhados, sempre
fomos massacrados; tanto é que ultimamente, no último despejo, a FUNAI contribuiu muito com o
fazendeiro e com o Juiz da Comarca do Iguatemi, que é um juiz comum, para despejar os nossos
companheiros de sua área. Por sua vez, a FUNAI falou para nós, nos humilhando, que eles fariam de
acordo com a justiça. Mas a justiça a favor do índio nunca existiu! Existe a justiça a favor do fazendeiro,
a favor dos grandes empresários.
O que nós queremos é justiça que realmente beneficie a todos nós, porque a luta não é só
para nós, a luta é para o futuro da juventude que vai crescer, porque muitos de nossos avós já morreram
na esperança da demarcação.
Por exemplo, a violência. No Mato Grosso do Sul já morreram vários líderes e até hoje não se
deu o resultado de quem é o culpado. Agora, por exemplo, se um índio matasse um fazendeiro, eles
iriam mandar matar todos os índios e isso eu tenho certeza que aconteceria.
Nós, índios, não faremos esse tipo de ação, embora somos mais selvagens, nós somos mais
educados do que os brancos que têm cargos políticos, quer dizer, que têm o cargo para defender
a questão do mais humilde, da população indígena. Falando de modo geral, o próprio povo branco
massacra o seu povo. O índio, por sua vez, não tem defensor nenhum.
Nesta Constituinte nós queremos que realmente seja bem elaborado um documento,
de acordo com o que já foi enviado para esta Comissão: várias entidades apoiando o direito ao
reconhecimento territorial indígena. O outro é a demarcação, porque sem demarcação nós não temos
segurança nenhuma, como, por exemplo, bem claro aconteceu outro dia lá no Município de Amambaí,

188 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


em que os nossos patrícios, os Kaiowás, plantavam as suas roças, uma quantidade de alimento, e a
FUNAI não deu nenhuma atenção para a comunidade, o fazendeiro ganhou a questão, despejou-os,
agora eles não podem nem ir pegar o seu material lá da roça.
Então, realmente, nós estamos chorando dentro do coração, porque é partindo de cima, é o
próprio Presidente da República que tem que reconhecer os direitos do povo indígena e, daí, seguindo
a escala, o que não tem cumprido. Ele está se preocupando mais é com as multinacionais que não dão
futuro à pobreza que existe no Brasil.
Como também aconteceu no Taquaperi, Município de Amambaí, houve problemas raciais, em
que o DNER construiu uma rodovia dentro da comunidade, e a empresa não quis mais carregar o índio,
porque é índio. Então, a gente prefere fechar essa estrada e não deixar passar mais nenhum tipo de
carro, de transporte. Isso é ilegal, como o assassinato de líderes.
Com esta Constituinte, acredito que nós talvez consigamos um espaço para que haja
realmente justiça.
Outra coisa: que nesta Constituinte, a FUNAI realmente assuma o compromisso com o índio
de não se omitir mais, quando os índios são massacrados.
Por outro lado, nós temos na área de fronteira os Kaiowás e os Guaranis, na divisa do Paraguai
com o Brasil, em Mato Grosso do Sul. Outro dia, nós estávamos conversando com o Conselho de
Segurança Nacional e viemos a saber o motivo de terem tirado o nosso processo do “grupão”, porque
não tinha nada que ver com o Projeto Calha Norte com a área do Mato Grosso do Sul, e nós viemos
saber o motivo. Eles nos disseram que ali é uma área de fronteira.
Então, falei para eles que o Mato Grosso do Sul é mais do que habitado pelo latifundiário e
que existe um restinho das terras do índio que ainda não foi tomado e nem se preocuparam, eles só
se preocupam com o lado dos fazendeiros. Então companheiros, a nossa luta é essa. Nós estamos com
uma interrogação no pensamento ainda, mas tem uma coisa que não podemos nunca esquecer: é a
esperança!
O que tenho a dizer é isso e muito obrigado ao Presidente por esse momento, é a primeira
vez que participo de alguma coisa aqui na Constituinte.

[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.161-162.]

Depoimento de ANTÔNIO APURINÃ


na Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias (Comissão da Ordem Social) em 5 de maio de 1987

– Quero agradecer a presença de todos os patrícios e demais pessoas que lutam em defesa
do índio.
Primeiramente, Sr. Presidente, quero dizer que sou do Acre e estou representando aqui onze
povos indígenas que se encontram no Acre e deixar também registradas as dificuldades em que nos
encontramos dentro de todo povo indígena acreano.
O que me trouxe até aqui não foi só a questão indígena que está sendo debatida, a preocupação
é mais ampla, em forma de Constituinte: é a preocupação de que não se deve pensar em ficar esperando
a Grande Lei, que está sendo elaborada neste momento e que para nós, índios, representa muito mais,
porque nós somos brasileiros e devemos estar atentos e informados sobre as normas que se pretendem
dirigir a nós.
A pergunta, que já foi aqui discutida e que hoje é muito preocupaste é: qual é o nosso destino
daqui para frente? O índio, como um todo, precisa da força política, precisa que os Constituintes
reconheçam o massacre dos seus antepassados; hoje, precisamos estar atentos para que isso não mais
aconteça no futuro.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 189


A preocupação dos novos escolhidos e das pessoas mais conscientes é de que nós somos
iguais, devemos estar juntos, com toda a força, nos juntarmos cada vez mais e contar com a participação
do índio cada vez mais em qualquer demanda que diga respeito a nós.
E diria mais, que nós pretendemos impor dentro da Constituinte o nosso respeito, do nosso
povo índio, na defesa da nossa terra. E que não haja muita “bandidagem”, como hoje, dentro da nossa
área invadida pelos garimpeiros, invadida pelos madeireiros, invadida pelos pecuaristas, os grandes
latifundiários. Nós deveríamos ser mais respeitados, a Constituinte deveria assegurar isto. Existe uma
lei, mas essa lei não é cumprida, que é o Estatuto do Índio.
O que nos traz aqui é exatamente isso: é que sejamos respeitados, que as leis sejam cumpridas,
que o índio se comporte cada vez mais na sociedade e que cesse a matança incrível, porque ninguém
pôde fazer nada para que isso não acontecesse.
As autoridades não sabem, ninguém sabe, só quem sabe isso concretamente são os índios
que sofrem no dia-a-dia que estão ali vendo as coisas acontecerem.
Como as autoridades vão saber se elas não vão lá? Como é que as autoridades vão saber se
o grande explorador não as consulta? Como é que isso vai chegar se não tem nenhum conhecimento?
Se o índio chega e denuncia é mal ouvido? Isso deixa uma preocupação para nós, índios, tanto do Sul
como do Norte, e principalmente os acreanos que estão passando dificuldades incríveis e a nossa vida
vai continuar sempre assim.
Diria aqui para os irmãos índios e os amigos que pretendem lutar pela defesa do índio, que
devemos cada vez mais nos juntar, devemos contar com a participação de todos os movimentos que
digam respeito ao índio.
E hoje, como surgiu essa grande oportunidade, que acho de grande importância, nós devemos
estar atentos, nós devemos estar a par de toda essa questão. Apesar de a gente ter feito todo um
esforço de colocar alguém do nosso povo neste meio, mas isso não foi possível. Isso faz parte de uma
experiência que, no futuro, vai servir para mim e para mais alguém que se interesse pelo seu povo, não
só das suas idéias, mas, também, de toda a comunidade indígena, de um modo geral.
A cada vez mais os índios acreanos e do sul do Amazonas se juntam para discutir as suas
reivindicações, a sua luta, as formas de defesa e é por ai que nós devemos seguir...
Eu quero agradecer a todos, aos amigos índios, aos amigos parlamentares e encerro as minhas
palavras. Muito obrigado.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), p.162.]

Depoimento de AILTON KRENAK


na Audiência Pública da Subcomissão do Negro, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e
Minorias (Comissão da Ordem Social) em 5 de maio de 1987

– Bom dia, aos parentes que vieram de regiões diferentes do Brasil, ao pessoal que veio de
Mato Grosso do Sul, Paraná, Roraima, Mato Grosso e de outras regiões onde há populações indígenas
e que, nesta última audiência pública da Subcomissão, que está ouvindo as populações indígenas,
tiveram hoje a oportunidade de trazer a sua visão dos problemas que estão ocorrendo com a população
indígena.
As audiências que tivemos aqui nesta Subcomissão, desde a primeira semana de abril, onde
foram feitas as apresentações das questões gerais que envolvem a população indígena, onde foi feita
a apresentação de um documento com propostas das populações indígenas para a Constituinte; mas
sabemos que muitos dos representantes indígenas que se encontram nas suas regiões lutando, no
dia-a-dia, sofrendo violências, sofrendo constrangimentos, não poderiam ficar fora dessas audiências
públicas. Assim como os nobres Constituintes tiveram a oportunidade de ouvir uma proposta de certa

190 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


forma discutida, resultado de uma ampla discussão sobre a situação indígena atual, era fundamental
que também ouvíssemos os índios que pudessem estar aqui para relatarem questões regionais.
Acredito que, neste sentido, cumprimos o nosso papel, a nossa responsabilidade de vir aqui
e dizer aos Constituintes da nossa expectativa, expressar o nosso pensamento acerca do que deve ser
na Constituição os direitos da população indígena.
Nesta oportunidade, quero fazer uma síntese, tentar reunir as faltas do pessoal de Roraima,
que expressam a preocupação extrema com a brutalidade e a violência com que o Estado tem tratado
a questão das terras, a questão do direito da pessoa indígena.
Quero ressaltar aqui a questão dos parentes Kaiowás e Guaranis, do Mato Grosso do Sul,
que estão tendo suas últimas pequenas áreas obstruídas os processos administrativos do Estado;
que estão tendo de enfrentar uma seqüência de impedimentos e de obstruções dentro dos canais de
administração do Governo, dos órgãos de decisão do Governo acerca da demarcação de suas terras.
Isso tem a ver diretamente com a vida dessas pessoas, isso tem diretamente a ver com a situação da
saúde, com a condição de vida dessa gente como, por exemplo, o povo Yanomami, – que o Davi esteve
aqui falando – que não tem como avaliar as propostas que lhe são feitas, não tem como avaliar as
iniciativas que o Estado tem tomado e que tem implantado dentro de seu território, à sua revelia.
O povo brasileiro, a opinião pública nacional, não pode ficar alheia a isso: diz respeito à
consciência de cada um, diz respeito à responsabilidade do País, o destino que vai ser dado ao território
dessa gente indígena, a possibilidade de vida das populações indígenas.
Não estamos pedindo absolutamente nada a ninguém, estamos sim exigindo respeito, o
respeito por sermos os primeiros habitantes desta terra que hoje chamam de Brasil. Somos habitantes
originários deste lugar. O respeito e o acatamento ao nosso povo é o mínimo que nos devem. Há muita
gente neste País, hoje, e não podemos jogar todos vocês de volta ao mar, deveríamos ter feito isso em
1500, quando chegou uma só caravela, mas não fizemos por uma série de razões e resolvemos conviver
e construirmos, ao longo desses quatro séculos, uma dolorosa experiência de relação humana, uma
relação trágica que consumiu 90% de nossa população, dos aproximadamente 10 milhões de índios que
habitavam o litoral, não passamos hoje de uma pequena e reduzida seqüência de grupos indígenas,
em alguns casos, somando cinco, trinta, sessenta, duzentas, mil pessoas. A grande maioria dos grupos
étnicos do Brasil, hoje, somam menos de 800 pessoas.
Há cinco ou seis grandes grupos étnicos, com população expressiva, que são os tikunas do
Solimões, aproximadamente 20 mil; é o povo yanomami com aproximadamente 20 mil; são os índios
tukanos: tuiucas, baraçanos, deçanos, piratapuias, são os parentes tukanos de língua geral e diversas
que habitam o rio Negro, que somam aproximadamente 30 mil pessoas; são as populações que habitam
a região do Pará, que são os grupos mais expressivos. Somos hoje 180 grupos étnicos, 150 ficam na
faixa das 800 a mil pessoas. Fomos reduzidos a quase nada. A História do Brasil está lotada de sangue
indígena. Constituiu-se uma tradição de matança e espoliação do povo indígena neste País.
Procurei, todos os dias em que tive oportunidade de acompanhar os trabalhos desta
Subcomissão, pautar minha posição para a serenidade, respeito, e reconhecimento da complexidade
da situação que vivemos neste País; por uma posição de reconhecimento de que numericamente somos
muito poucos, por sua posição de reconhecimento de que somos apenas 0.16% da população nacional e
que não podemos impor políticas ao Estado. Sabemos que na contagem das questões nacionais, somos
muito poucos, pesamos muito pouco.
Vocês viram, há pouco, nesta sessão de audiência, tivemos a presença de uma parte do povo
brasileiro, que são as empregadas domésticas, pessoas que trabalham nas casas de famílias, na grande
maioria, nas casas das famílias ricas que podem pagar empregadas. Essa categoria soma, só em um Estado,
duas ou três vezes a população indígena do Brasil. Qualquer sindicato das empregadas domésticas
soma mais pessoas do que a população indígena inteira do Brasil. O sindicato dos metalúrgicos, em São
Paulo, tem 300 mil filiados, e a população indígena inteira do Brasil soma 220 mil. Não estou fazendo
esta contagem matematicamente, estou fazendo a contagem com uma estranha indignação da pouca
vergonha, do mau caráter, da índole criminosa que tem inspirado a relação do Estado brasileiro com a
população indígena.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 191


Fomos assassinados, fomos exterminados e não estou chorando por isso nem pedindo
desculpas. Estou chamando a atenção dos Srs. Porque qualquer pessoa que hoje tem a decisão, qualquer
pessoa que possa levantar a sua mão, aqui neste plenário, para votar, qualquer pessoa que poderá
baixar sua caneta num papel para votar, ela não estará fazendo nada diferente do que apontar um
trabuco para a cabeça dos índios, se essa pessoa não tiver o mínimo de respeito pelo povo indígena.
O que exigimos hoje é que tudo o que dissemos aqui, nestas audiências, e que os Srs. ainda
terão oportunidade de ver amanhã, no território indígena, consiga realmente inspirar os procedimentos
dentro desta Casa, possa pesar no coração de V. Exªs quando forem definir o seu voto, a sua posição, a
sua atitude diante da questão indígena na Constituinte.
Muitos parentes disseram aqui que sabem que a nossa questão vai muito além de uma
Constituição. Reconhecemos isso, mas é fundamental que esta Constituição reconheça os nossos
direitos. Precisamos entender que a grande maioria dos conflitos que cerca hoje a relação das populações
indígenas com o Estado Nacional se deve à truculência com que o Estado define a sua política. As
populações indígenas têm manifestado um enorme interesse, uma grande disposição, em conversar,
em apontar saídas, em buscar soluções. Hoje, os últimos territórios indígenas, que são ocupados por
populações indígenas, estão na mira das empresas mineradoras, estão na mira dos grupos que querem
tomar os territórios indígenas, estão na mira das madeireiras.
Não tenham dúvidas de que o resultado que sair deste trabalho, se for apenas aquele que
contemple o aspecto cultural, muito pouco índio haverá de sobrar parar contar a história do seu povo,
neste País.
Não adianta os Srs. formularem uma proposta culturalista, não adianta formular uma proposta
que venha a contemplar o direito do índio falar a sua língua, dançar a sua festa, e usar o seu cocar,
porque antes de tudo isso é preciso ter uma terra para pisar em cima. É impossível mexer com o que há
embaixo da terra sem mexer com o que está em cima dela. Sabemos da pressão que o Governo Federal
tem exercido no sentido de que os territórios indígenas sejam abertos à mineração. A abertura dos
territórios indígenas à atividade mineradora é a última pá de terra que o Estado Nacional poderia lançar
sobre a vida das populações indígenas.
Não brinquem com essa questão! Não brinquem com essa questão da mineração, porque
foi com isso que os Estados Unidos acabaram de arrasar com seus índios. A população indígena nos
Estados Unidos, hoje, está reduzida a pessoas extremamente miserabilizadas, extremamente destruídas,
apesar das empresas mineradoras pagarem a eles os royaties de milhões de dólares. Eles podem ter
helicópteros, podem ter hospitais, o que eles quiserem, mas eles não têm mais vida, não têm mais o
seu território, não têm a sua tradição, não têm mais sentido de viver. O que dá sentido de vida ao povo
indígena é o sentido sagrado de ocupar o seu território, o lugar onde Deus colocou o povo indígena, o
lugar onde a sua memória está vinculada e se alimenta, permanentemente. Não brinquem em cortar o
vínculo do povo indígena com os seus lugares sagrados, esse é o maior crime que poderia ser cometido
contra eles!
O Estado brasileiro não tem uma política para as populações indígenas. O Estado brasileiro
trata as populações indígenas como inimigos de guerra. Somos remanescentes de um processo de
guerra de extermínio, ainda não foi assinado um tratado de paz entre o Estado brasileiro e as populações
indígenas.
Que os Srs. que aqui estão, possam transmitir aos seus colegas que não estão aqui – e gostaria
que todos aqui estivessem, sei que os Srs. também lamentam que não esteja completo o quorum desta
sessão, mas seria muito bom que todos ouvissem – que a responsabilidade dos Constituintes de hoje é
a de fazer o que o Estado nunca fez, que é firmar um tratado de paz com o povo indígena, que será uma
pré-condição para a nossa vida, uma pré-condição para iniciarmos os entendimentos, para iniciarmos
a cooperação, porque até agora não houve condição para isso, até agora houve uma guerra surda, até
agora foi o Executivo agindo às escondidas contra o povo indígena.
Do total das terras ocupadas por populações indígenas, hoje, aproximadamente 50% estão
ameaçadas de não demarcação, por iniciativa do Conselho de Segurança Nacional, que recomenda a
não demarcação de territórios indígenas nas faixas de fronteiras.

192 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


As áreas indígenas de Mato Grosso do Sul têm sofrido restrições, o território Yanomami tem
sofrido restrição, as áreas macuxis também têm sofrido restrições. Há recomendações e iniciativas no
sentido de não se fomentar a demarcação dessas terras, não se propiciar o reconhecimento dessas
áreas.
Insistimos na questão que colocamos hoje para esta Assembléia Nacional Constituinte:
assinem um tratado de paz com o povo indígena, porque as gerações futuras não terão que ouvir uma
acusação de terem sujado as mãos no sangue do povo indígena.
Reconheçam os nossos direitos, respeitem os nossos direitos e o nosso povo. Queremos
assinar um tratado de paz com o Estado nacional e boa vontade para isso nós temos, o que falta é um
pouco de clareza de sentimento, um pouco de clareza política do Estado nacional, de boa vontade,
de limpar o coração e tratar com o povo indígena com a cara limpa, com o coração limpo, e não ficar
tratando o povo indígena às escondidas, o tempo inteiro.
Creio que se esta mensagem, que cada um dos parentes trouxe aqui, que foi uma declaração
permanente, foi uma denúncia permanente, desde a primeira semana de abril, foi um verdadeiro “Eu
Acuso” Os Senhores são testemunhas, são testemunhas de um processo: “Eu acuso” o Estado brasileiro
de cometer genocídio, etnocídio, exílio, extermínio.
Em 1808, foi decretada guerra de extermínio aos povos botocudos do Vale do Rio Doce.
Graças a Deus, sobrevivi, sou um remanescente botocudo do Vale do Rio Doce. Estou aqui
para dizer isso, foi assinado um documento, e o nome deste documento era “Guerra de extermínio
aos botocudos do Vale do Rio Doce”, uma iniciativa do Governo brasileiro. E não foi assinado nenhum
tratado de paz, depois desta proposta de guerra. Há uma sangria permanente. E uma tarefa da Nação
brasileira, de todas as pessoas conscientes que habitam este País, de, estancar esta sangria, de fazer
um tratado de paz com o povo indígena. Muito obrigado.
[Fonte: Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões), pp.162-164.]

Depoimento de RAONI MENTUKTIRE (Kayapó)


na Audiência Pública da Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações
Internacionais (Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantia do Homem e da
Mulher) em 7 de maio de 1987

– Eu vou falar uma coisa pra vocês ouvir. Minha preocupação é muito séria. Antigamente, não
tinha muita cidade aqui no Brasil. Meu pai contava muita história pra mim. Eu não esqueço aquelas
história antiga...
Nós nasceu primeiro, aqui no Brasil. O nome do homem era Iperere; na língua sua língua
chama Deus. Quem fez a terra pra nós foi esse homem que chama Iperere. Iperere fez terra pro nosso
índio.
O primeiro avô que morava aqui andava toda parte aqui no Brasil. Aqui não tinha briga, não
tinha complicação e confusão. Meu pai contava história antiga, contava sempre pra mim que branco
português veio do outro lado pra cá, rio e mar atravessando. Começou a brigar com o nosso avô,
matava muito, roubava mulher, criança,... Isso meu pai contava pra mim.
Então, sempre penso na palavra do meu pai. Ele era um grande homem, homem de peito,
homem guerreiro. Hoje temos muito problema no meu povo. O povo dos senhores matava o meu povo,
coitado !
Então, vou procurar explicar mais pra vocês, pra vocês ouvir a minha idéia. Minha idéia é
muito importante pro meu povo. Então, sempre tou vendo que o seu povo, polícia e soldados tão
mexendo na área do meu povo, tão querendo matar, atirar, acabar.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 193


Por quê ? Nós não é bicho. A polícia vai matar meu povo, vai assar, vai comer com farinha ?
Nós não acha isso bom. Eu não acho bom. Tenho que avisar todo mundo: a polícia tem que respeitar o
meu povo. Eu respeito vocês. Tou procurando explicar mais o que tou pensando.
Toda a terra do meu povo tá ocupada. Lá tem garimpo, tem madeireira, tem fazendeiro, que
tava mexendo na terra do meu povo, dentro da área. Eu tou explicando pra vocês, pra vocês lembrar
minhas palavra. Só eu respeito seu governador aqui?!
Vocês tão pensando que avô seu nasceu primeiro aqui ? Vocês tão pensando isso? Nós nasceu
primeiro, aqui. Brasil inteiro. O nome do homem, na língua nossa, Kaiapó, é Iperere. Iperere, na língua
sua, é Deus. Deus que nasceu primeiro. Na língua nossa, Kaiapó, chama Iperere, homem importante,
homem feito.
Antigamente não tinha nem comida boa. Hoje tem comida boa pra nós. Eu não quero que
acaba a vida do nosso índio, eu não quero que acaba a cultura do índio. Eu quero que índio continua
a vida do avô, o pai, a mãe: pintar, passar urucum, dançar... Isso que eu quero. Eu tenho explicado pra
vocês, pra vocês ouvir e lembrar a minha palavra. Vocês tem que pensar, vocês tem que respeitar meu
povo. Meu povo tava morrendo na mão do seu povo. Eu não aceito.
Nosso índio não é bicho. Vocês também não é bicho. Nós tem cara, a mesma coisa; nós tem
língua, nós tem orelha, nós tem olho, nós tem pé, a mesma coisa de vocês.
Eu tenho usado o meu botoque, minha vida, meu documento. Minha orelha é documento
também. Eu tava querendo entrar aqui e aquele presidente da Câmara não me deixou. Polícia não
me deixou. Quase eu bato na cara do polícia. A polícia tem que respeitar eu, tem que respeitar nossa
comunidade.
Eu tou falando sério pra vocês: vocês tem que lembrar minha palavra, vocês tem que respeitar
o meu povo, vocês tem que brigar pro seu povo e tem que respeitar o meu povo, coitado !
Aquele dia, o meu primo, a terra dele... A Policia Militar entrou lá na área dele, deu um tiro.
Criança e mulher foi correr no mato. Por quê? Então, qualquer dia, seu povo vai matar meu povo; eu
tenho que juntar pra matar seu povo também. Isto que estou pensando. Eu tenho que matar, assar,
comer com beiju.
Vocês tão pensando que nosso índio é mole? Vou só pedir uma coisa; pergunto uma coisa
pra vocês. Eu tenho medo da igreja de vocês. Igreja de vocês é muito mau, muito duro. Tão acabando
a vida de nós. Meu povo também tem que pensar bem. Ele tava casando com branco, misturando com
branco. O branco não respeita mais meu povo, coitado! Meu povo já perdeu a cultura, já perdeu a vida.
Hoje nós usamos camisa de vocês. Quando eu venho aqui na cidade, eu uso a camisa; quando eu chego
na aldeia, eu tenho de tirar a camisa e jogar fora. Pintar, dançar, isso que é coisa bom pra mim.
Eu não quero seu povo casa mais com meu povo. Seu povo não pode dar mais pinga, não
pode dar mais cachaça para meu povo. Meu povo não sabia que coisa seu é mau. Eu sei que vocês têm
muita força, têm muita gente; nós tamos acabando na mão de vocês. Eu tou querendo que vocês têm
que deixar nossa terra. Nós é dono da terra. Então, isso é que é.
Tenho que levar meu parente lá na presidente da Câmara. Muito obrigado pra vocês.
(cf. PORANTIM, jun.1987:14, grifos nossos)

194 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Anexo III

A falsa ”conspiração internacional”...

CNBB
Nota à imprensa1
Surpresos, tomamos conhecimento da matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo, em
sua edição de domingo, 09/08, afirmando que o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão anexo
à CNBB, estaria engajado em suposto projeto de conspiração internacional propugnando o conceito de
soberania restrita do Estado brasileiro sobre as áreas indígenas. A matéria revela leitura tendenciosa das
atividades da Igreja e se baseia em informações absolutamente falsas. Manifestamos o nosso veemente
repúdio às afirmações de “O Estado” que visam claramente varrer da futura Constituição a garantia dos
direitos indígenas.
1 – O Cimi nunca postulou junto à Assembléia Nacional Constituinte o estabelecimento do
estatuto de soberania restrita para as nações indígenas.
2 – O Cimi não é vinculado ao Conselho Mundial de Igrejas Cristãs e tampouco o representa.
Da mesma forma desconhece o documento identificado como “Diretriz Brasil n.º 4 – ano 0”. Quanto ao
citado documento de Barbados ele não foi assinado pela Igreja. O único brasileiro que o assinou foi o
conhecido antropólogo Darcy Ribeiro.
3 – O Cimi não possui nenhum arquivo secreto. Como qualquer organização privada ou oficial,
o órgão indigenista possui arquivo para pesquisas e documentação. O Cimi nega ainda a existência de
carta atribuída a seu secretário executivo.
4 – O relacionamento do Cimi com comunidades cristãs e entidades solidárias de outros
países objetiva o fortalecimento da solidariedade humana em torno da defesa da vida das comunidades
indígenas, sem nenhum propósito de incentivar ou propiciar ingerências indevidas na condução dos
assuntos internos do Brasil.
5 – A proposta do Cimi à Constituinte é de que o Brasil seja reconhecido como um Estado
pluriétnico sob cuja soberania convivem, além da sociedade majoritária, várias nações indígenas, a
exemplo de constituições modernas de outros países. Não corresponde à verdade a afirmação de que
o Cimi defende a soberania restrita da União sobre as terras indígenas.
O Cimi propõe ainda a demarcação das terras indígenas garantindo aos povos nativos o
usufruto das riquezas nelas existentes.
Essa proposta é fruto de debates e estudos interdisciplinares e visa garantir a sobrevivência
física e cultural das nações indígenas no Brasil, até hoje vítimas de um processo de extermínio que
envergonha o país e contra o qual já bradaram personalidades como José Bonifácio, Marechal Rondon
e muitos outros patriotas.
Todas as emendas encaminhadas pelo Cimi à Assembléia Nacional Constituinte privilegiam
claramente a União Federal, o que evidentemente não agrada às empresas de mineração e aos interesses
do capital internacional.
6 – O Cimi nunca se opôs a medidas militares que visem a garantia de nossas fronteiras como
está bem explicitado na nota oficial divulgada em outubro de 1986, quando se tornou público o Projeto
Calha Norte: “O Cimi, como as próprias comunidades indígenas, não se opõe a providências dirigidas

1  cf. CNBB-Cimi. A Verdadeira Conspiração contra os Povos Indígenas, a Igreja e o Brasil. Brasília : CNBB, p. 53.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 195


ao bem-estar da população amazônica e à guarda das fronteiras brasileiras. Não admite, porém, que
modelos autoritários de desenvolvimento sejam, mais uma vez, implementados às custas dos povos
indígenas”.
7 – Seria oportuno que o Congresso Nacional, a bem da verdade, constatasse a improcedência
das denúncias formuladas pelo jornal O Estado de São Paulo.
8 – A Presidência da CNBB aguardará as matérias posteriores anunciadas pelo O Estado para
proceder a seu exame total e tomar as providências cabíveis, inclusive a nível judicial, se for o caso.
Brasília, 10 de agosto de 1987.
Presidência da CNBB

CNBB
Compromisso com a causa indígena 2.
1. A Presidência da CNBB, no dia 10 de agosto, divulgou nota de repúdio ao artigo publicado
na véspera pelo jornal O Estado de São Paulo difamando a ação dos missionários do Cimi. Mais quatro
artigos foram ainda publicados distorcendo a verdade dos fatos e mentindo com a intenção de confundir
a opinião pública.
2. Neste contexto, reafirmamos o direito das populações indígenas à terra, à própria cultura
e ao seu pleno desenvolvimento. Garantia deste direito que deverá continuar a ser salvaguardado na
nova Constituição retrata o caráter pluriétnico de nosso país, e em nada limita a devida soberania do
Estado brasileiro sobre as nações indígenas.
3. O Cimi une seus esforços a outras instituições de defesa e promoção do índio para evitar
os danos irreparáveis causados pela exploração de minérios que atenta contra o meio ambiente e a vida
das populações indígenas.
4. O que se esconde atrás da escandalosa campanha difamatória contra os missionários do
Cimi não é a defesa dos interesses nacionais, como afirma o jornal, mas a ambição das companhias
mineradoras, decididas a remover qualquer salvaguarda legal à exploração dos minérios em áreas
indígenas.
5. As acusações pretendem impedir que na Constituição sejam incluídas normas de proteção
aos territórios indígenas que visam coibir a cobiça das companhias mineradoras. Pretendem eliminar o
caso, agora, previsto no Projeto Constitucional de “pesquisa, lavra ou exploração de minérios em terras
indígenas, como privilégio da União, quando exigidas por interesse nacional e quando inexistirem
reservas conhecidas e suficientes para o consumo interno e exploráveis em outras partes do território
nacional”.
6. A virulência do ataque demonstra a intenção de causar impacto na opinião pública e
confundir os constituintes nas vésperas da discussão e votação do substitutivo do deputado Bernardo
Cabral.
7. É lamentável que o jornal O Estado de São Paulo desrespeitando os princípios fundamentais
da moral se tenha prestado a esta campanha, assumindo os interesses das empresas de mineração em
detrimento das populações indígenas. É inadmissível o recurso à argumentação difamatória, deturpando
fatos, manipulando e forjando documentos, sem escrúpulos, a ponto de acusar os missionários de
conspiração contra a soberania e a unidade do país e afirmar, de modo gratuito e descabido, que a
Igreja pretende vantagens econômicas em sua ação evangelizadora.

2 Cf. CIMI – CNBB. A Verdadeira Conspiração ... idem; pp.54-55.

196 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


8. É necessário, portanto, para restaurar a verdade, tomar imediatas providências a fim de
assegurar o direito de resposta e promover, o quanto antes, a responsabilização penal pelas publicações
continuadas da matéria difamatória e injuriosa.
9. O que está em questão não é apenas a ação do Cimi, mas a própria sobrevivência das
nações indígenas ameaçadas de extermínio e genocídio pela invasão das empresas mineradoras.
É neste sentido que, por razões humanísticas e evangélicas, o Conselho Mundial de Igrejas 3
afirmou, em julho de 1982, seu compromisso com os povos indígenas, afastada qualquer pretensão de
interferir nos assuntos internos dos países.
10. No momento em que missionários e a própria Igreja são publicamente difamados a
Presidência da CNBB renova sua confiança em Deus, reafirma mais uma vez seu compromisso com
a causa dos índios na esperança de que seus direitos sejam plenamente assegurados, pelo voto dos
Constituintes, na Carta Magna do Brasil.
Brasília, 14 de agosto de 1987
Presidência da CNBB

Senado Federal
Subsecretaria de Informações
RESOLUÇÃO Nº 3, de 1987-CN4
Senhor Presidente:
Nos termos do art. 21, do Regimento Comum do Congresso Nacional, requeremos a constituição de
uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito para apurar as denúncias que vêem sendo formuladas pelo Jornal
O Estado de S. Paulo, referentes a uma conspiração internacional envolvendo restrições à soberania nacional
sobre a Região Amazônica, sob o pretexto de preservar as culturas das etnias silvícolas, a ecologia e as riquezas
minerais do subsolo daquela região. A Comissão será integrada por 18 membros e terá o prazo de 120 dias para
o seu funcionamento.
Brasília, 13 de agosto de 1987. Cardoso Alves, Plínio Arruda Sampaio, Ricardo Izar, Dirce Tutu
Quadros, Rita Camata, Rodrigues Palma, José Maurício, Amaral Netto, Gastone Righi, Edésio Frias, Rose
de Freitas, Gumercindo Milhomem, Gabriel Guerreiro.
DEPUTADOS – Cardoso Alves, Plínio Arruda Sampaio, Ricardo Izar, Dirce Tutu Quadros, Rita
Camata, Rodrigues Palma, José Maurício, Amaral Netto, Delfim Netto, Gastone Righi, Edésio Frias, Rose
de Freitas, Gumercindo Milhomem, Gabriel Guerreiro, Adroaldo Streck, Adylson Motta, Sólon Borges
dos Reis, Juarez Antunes, Nelson Seixas, Robson Marinho, Doreto Campanari, Ivo Vanderlinde, Eduardo
Moreira, Francisco Küster, Maurílio Ferreira Lima, Percival Muniz, Hélio Duque, José Genoino, Florestan
Fernandes, Miro Teixeira, Ervin Bonkoski, Ronaro Corrêa, Chico Humberto, Lael Varela, Geraldo Fleming,
Raul Ferraz – Antonio carlos Mendes Thame, Fernando Gasparian, Manoel Castro, Irajá Rodrigues,
Paulo Delgado, Alceni Guerra, Jayme Santana, Paulo Zarzur, Antônio Câmara, Samir Achôa, Antônio
Perosa, Paulo Macarini, Michel Temer, Ruy Nedel, Fernando Santana, Nelton Friedrich, Hermes Zaneti,
Gilson Machado, Hélio Rosas, Oswaldo Sobrinho, João Rezek, Roberto Balestra, Octávio Elísio, Ziza
Valadares, Pimenta da Veiga, José Ulisses de Oliveira, Mauro Campos, Cunha Bueno, Nyder Barbosa,
Carlos Mosconi, Abgail Feitosa, Virgílio Guimarães, Irma Passoni, Arnaldo Faria de Sá, Jorge Arbage,
Farabulini Júnior, Benedita da Silva, Olívio Dutra, Wilma Maia, Aécio Neves, Vitor Buaiz, Sérgio Werneck,
Raimundo Rezende, Afif Domingos, José Luiz de Sá, Simão Sessim, Francisco Dornelles, Genebaldo

3 Nada tendo a ver com o inexistente “Conselho Mundial de Igrejas Cristãs”, mencionado na documentação falsificada
utilizada como base para as mencionadas matérias do “Estadão”.
4 Publicado no Diário do Congresso Nacional de 22/08/1987, p. 262. Disponível in: <http://www6.senado.gov.br/legislacao/
ListaPublicacoes.action?id=131328> (acesso em 12.10.2008)

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 197


Correia, José Lourenço, Celso Dourado, Furtado Leite, Maluly Neto, Roberto Rollemberg, José Maria
Eymael, Antonio Salim Curiati, Osvaldo Macedo, Bezerra de Melo, José Dutra, Nelson Aguiar, Jorge
Uéqued, Nion Albernaz, Aloysio Chaves, Evaldo Gonçalves, Israel Pinheiro, Egídio Ferreira Lima, Vieira
da Silva, Arnold Fioravante, Theodoro Mendes, Amaury Müller, Beth Azize, Vivaldo Barbosa, Walmor de
Luca, Hélio Manhães, Luis Ignácio Lula da Silva, Humberto Souto, Roberto Brant, Luiz Gushiken, Nilso
Sguarezi, Wilson Campos, Joaquim Sucena, Maria de Lourdes Abadia, José Santana de Vasconcellos,
Rita Furtado, Arnaldo Prieto, Luiz Eduardo, Alysson Paulinelli, Rubem Medina, Haroldo Lima, Lídice
da Mata, José Mendonça de Morais, Rosa Prata, Moysés Pimentel, José Elias Murad, Myriam Portella,
Carlos Virgílio, Heráclito Fortes, Jutahy Júnior, Joaci Góis, Homero Santos, Gil César, Sigmaringa Seixas,
Cássio Cunha Lima, Ruberval Pilotto, Virgílio Galassi, Jofran Frejat, Lúcia Braga, Leopoldo Bessane,
Geraldo Alckmin Filho, Hélio Costa, Júlio Campos, Mendes Botelho, Luiz Roberto Ponte, Uldurico Pinto,
Plínio Martins, João Agripino, Prisco Viana, Oscar Corrêa, Valter Pereira, Gerson Peres, Firmo de Castro,
Paulo Roberto Cunha, José Carlos Martinez, Bonifácio de Andrada, Borges da Silveira, Antônio de Jesus,
José Geraldo Ribeiro, Manuel Viana, Nilson Gibson.
SENADORES – Lavoisier Maia, Jamil Haddad, Albano Franco, Francisco Rollemberg, Chagas
Rodrigues, Ruy Bacelar, Olavo Pires, Ronan Tito, Nabor Júnior, Louremberg Nunes Rocha, João Menezes,
Meira Filho, Wilson Martins, Áureo Mello, Nelson Wedekin, Márcio Lacerda, José Richa, Jutahy
Magalhães, Leite Chaves, Roberto Campos, Aluízio Bezerra, Mário Maia, Mauro Benevides, Jarbas
Passarinho, Gerson Camata.

Relatório à CMPI

Relatório do Senador Ronan Tito5 à CMPI destinada a apurar as denúncias formuladas


pelo Jornal O Estado de S. Paulo, referentes a uma conspiração internacional envolvendo restrições
à soberania nacional sobre a Região Amazônica, sob o pretexto de preservar as culturas das etnias
silvícolas, a ecologia e as riquezas minerais do subsolo daquela região:
A primeira reunião desta Comissão se realizou em 03.09.87, quando ficou deliberado colher,
inicialmente, o depoimento do diretor-responsável do jornal O Estado de S. Paulo, autor da denúncia
pública que motivou a formação desta Comissão de Inquérito. A seqüência dos atos a serem praticados
por esta Comissão dependeria desse depoimento e dos documentos que seriam apresentados pelo
jornal ou pelos jornalistas responsáveis pelas reportagens. Em sua edição de 09.09.87, o jornalista
afirma: “O ESTADO denuncia a grande conspiração, baseado em documentos fidedignos”.
Em 24.9.87, o jornal O Estado de São Paulo, em ofício assinado pelo Dr. Oliveira S. Ferreira,
encaminhou quatro documentos identificados pelo próprio signatário como “peças fundamentais” e,
“afora esses documentos, que são básicos, seguem outros”. Esses documentos básicos são os mesmos que
o Dr. Júlio Mesquita Neto, em seu depoimento, informou ter hesitado em publicar, entregando-os ao
Dr. Oliveira S. Ferreira para “que os examinasse e os discutisse comigo para que eu então pudesse decidir”
(Anexo n.º1).
São os seguintes os documentos enviados, conforme o ofício de O Estado de S. Paulo:
1. Diretriz n.º 4 – Brasil, ano 0, emitido pelo “Conselho Mundial de Igrejas Cristãs”;
2. Diretriz n.º 4 – Brasil, ano 06, assinado pelo Sr. Antônio Brand;
3. Carta de Antônio Brand a G. Loebens;
4. Digesto da reunião havida com o Sr. Mauro Nogueira.
II – Quanto ao documento de n.º1, “Diretriz n.º4 – Brasil, ano 0”, o Dr. Júlio de Mesquita
Neto esclareceu que a entidade denunciada pelo jornal como envolvida na trama internacional não era

5 Cf. CIMI – CNBB. A Verdadeira Conspiração ... idem; pp.47-50.

198 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


o conhecido Conselho Mundial de Igrejas, mas outra instituição denominada “Conselho Mundial de
Igrejas Cristãs”. Esse esclarecimento levou o relator desta Comissão a buscar contato com ambos os
conselhos, sendo informado da existência apenas do Conselho Mundial de Igrejas (World Council of
Churches), com sede em Genebra, Suíça – 150, Route de Ferney, telefone 91-6111.
O Conselho Mundial de Igrejas Cristãs não foi localizado e várias entidades arrogadas no
rodapé impresso no papel timbrado como integrantes (Membership) do mesmo, quando contactadas,
foram veementes em negar qualquer relação com ele, afirmando desconhecerem sua existência, seja
na Suíça, seja em qualquer outro país. Constam em anexo os desmentidos das seguintes entidades:
1. Instituto Indigenista Interamericano (The Inter-America Indian Institute), que informa ser
um organismo intergovernamental vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA), não tendo
relações ou conhecimento da existência do Conselho Mundial de Igrejas Cristãs. (Anexos n.ºs 2 e 3);
2. Grupo de Trabalho Internacional para Assuntos Indígenas (International Work Group for
Indigenous Affairs), que informa não pertencer e desconhecer a existência do Conselho Mundial de
Igrejas Cristãs, bem como afirma a sua independência em relação a “qualquer tendência ou partido
político ou qualquer organização religiosa”. (Anexos n.ºs 4,5 e 6);
3. Sobrevivência Internacional (Internacional Survival), que informa ter status de consultoria
junto à organização das Nações Unidas (ONU) e à Comunidade Européia, desconhecendo a existência e
negando vínculo ou contatos com o citado Conselho Mundial das Igrejas Cristãs (Anexo n.º 7);
4. Sobrevivência Cultural (Cultural Survival), que informa constituir-se em organização sem
fins lucrativos, não tendo relações com o Conselho Mundial de Igrejas Cristãs ou com mineradoras de
dentro ou de fora do Brasil (Anexo n.º 8).
O Relator recorreu, ainda, a diversos contatos, por telefone e telex, com pessoas e entidades
que, eventualmente, poderiam dar referências sobre o Conselho Mundial de Igrejas Cristãs, não havendo
nenhuma, em Genebra e em outras localidades, que tivesse conhecimento ou relação com o mesmo.
III – Quanto ao documento de n.º 2, “Diretriz Brasil n.º 4 ano 06”, a Comissão recebeu uma
carta, com firma reconhecida, enviada pelo secretário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Sr.
Antônio Brand, suposto signatário do documento em questão, negando ser ele o autor do subscritor,
esclarecendo, ainda, desconhecer o idioma alemão, em que a peça se encontra lavrada, e discordar do
seu conteúdo. (Anexo n.º9)
O jornal O Estado de S. Paulo anexou à documentação um laudo pericial assinado pelo Dr.
Antônio Carlos Villanova – perito criminalista – atestando a autoria da firma do Sr. Antônio Brand no
documento n.º 2. (Anexo n.º 10).
Em sua 2.ª sessão, realizada no dia 30.09.87, a CPMI colheu o depoimento do Dr. Antônio
Carlos Villanova. Este afirmou não ter periciado o documento n.º 2, citado pelo jornal, mas sim
outros três que não foram anexados ao processo e cujos conteúdos não se referem ao objeto desta
Comissão.
Posteriormente, através de pareceres técnico-periciais, elaborados a pedido do jornal O
Estado de S. Paulo, que verificou o engano do encaminhamento anterior, o mesmo perito criminalista
concluiu, analisando assinatura constante do documento n.º 2:
“Portanto, e ante o que ficou consignado, o perito signatário assinala que, inobstante as
semelhanças existentes entre elementos morfogenéticos do lançamento questionado e
dos padrões disponíveis, estes últimos se apresentam inadequados e insuficientes para um
confronto seguro, assim impossibilitando atingir qualquer conclusão definitiva quanto à
unidade ou diversidade de punhos, não sendo possível afirmar que a assinatura lançada no
documento questionado seja falsa, ou autêntica”. (Anexos n.ºs 11 e 12).
IV – Os documentos de n.ºs 3 e 4 não têm autoria. A carta de Antônio Brand a G. Loebens não
contém a assinatura do primeiro, mas apenas seu nome abreviado e datilografado, sendo que Brand
nega ter dela conhecimento.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 199


O Digesto, documento de n.º 4, não tem autoria assumida. Ele refere-se a uma suposta
reunião entre componentes da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Cimi (Conselho
Indigenista Missionário), CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação) e Biblioteca do
Desenvolvimento Econômico.
Consultado, o Cimi desmentiu a realização deste encontro, apenas afirmando a presença em
sua sede do Sr. Mauro Nogueira, da Biblioteca do Desenvolvimento Econômico.
O texto da reunião é transcrito em papel timbrado do CEDI que, por sua vez, esclarece,
através de carta datada de 02.10.87, assinada pelo seu presidente, Bispo Dom Paulo Ayres Mattos, que:
o CEDI não participou da suposta reunião; a Sraª Íris Leila Amaral, que teria representado a entidade no
episódio, nunca teve qualquer ligação com o órgão, não sendo sua funcionária ou colaboradora (Anexo
n.º 13).
Textos apócrifos não podem ser considerados documentação válida como prova de denúncias
objeto desta CPMI.
V – Em seu depoimento, o Dr. Júlio de Mesquita Neto admite dúvidas em se basear nos
documentos citados. São palavras suas: “Apesar do parecer do professor Oliveiros S. Ferreira concluir pela
credibilidade jornalística dos documentos e recomendar sua publicação, hesitei”.
O diretor-responsável do jornal O Estado de S. Paulo afirma ainda que só decidiu pela
publicação ao tomar conhecimento da chamada “emenda austríaca, a Iniciativa Popular n.º 01”, que
teria sido protocolada – e, na realidade nunca o foi – pela Assembléia Nacional Constituinte. Segundo
o depoente, “a emenda austríaca configurava clara intervenção de grupos não nacionais no processo
de elaboração da Constituição brasileira”.
De acordo com a resposta do relator da Comissão de Sistematização, deputado Bernardo
Cabral (PMDB-AM), o abaixo-assinado recebido da Áustria (Anexo n.º 14) não fora considerado um
atentado à soberania nacional e, ainda, fora aceito simplesmente como abaixo-assinado e não como
proposta de emenda constitucional, como consta da denúncia apresentada pelo jornal. (Anexo n.º 15)
VI – O objetivo expresso desta CPMI é “apurar denúncias que vêm sendo formuladas pelo jornal
O Estado de S. Paulo, referentes a uma conspiração internacional envolvendo restrições à soberania nacional da
região Amazônica”.
O jornal afirma basear suas denúncias em documentos fidedignos.
O Relator procurou elementos de convicção e colheu inúmeras indicações de que, ao
contrário, os documentos apresentados como “básicos” e “fundamentais” são apócrifos, ou de autoria
não confirmada por perícia de iniciativa do próprio jornal.
Constatou, ainda, o relator, que a instituição “Conselho Mundial de Igrejas Cristãs”, elemento-
chave das denúncias, não teve sua existência confirmada, apesar de suas gestões. A contrário, todas as
entidades consultadas negaram conhecer sua existência.
Acrescem-se depoimentos de outras instituições mencionadas, como CEDI, e Cimi.
Há outros documentos remetidos pelo Dr. Oliveiros S. Ferreira, cópias de textos publicados
em revistas, jornais e boletins.
Finalmente, foi considerado o abaixo-assinado de cidadãos austríacos e analisado seu
tratamento pelo relator da Comissão de Sistematização, deputado Bernardo Cabral.
Considerando o exposto, o relator está em condições de apresentar suas conclusões, como
se segue.
VII – O jornal O Estado de S. Paulo foi ludibriado em sua boa-fé e, fiel ao seu estilo combativo,
abriu seus espaços à divulgação de material de interesse jornalístico, mas de origem duvidosa e,
certamente elaborado com intuitos escusos e práticas fraudulentas.

200 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


O respeito que o Relator nutre pelo referido jornal, que, entre outras credenciais, desempenhou
relevante papel nos períodos mais difíceis da história política do Brasil, resistindo à censura e, ainda,
a plena convicção de que a liberdade de imprensa é um princípio maior e mais importante para a
democracia brasileira do que eventuais equívocos, levam-no a concluir pela boa-fé de seus diretores e
jornalistas neste episódio.
O Relator apresenta, diante da inexistência de base documental idônea, seu parecer conclusivo,
sustentando não terem fundamento as denúncias que objetivaram a criação desta CPMI.
No entanto, dada a gravidade das questões abordadas, e para que não se vejam frustrados
os parlamentares e a opinião pública no seu desejo de aprofundar as investigações aqui iniciadas, o
Relator propõe o encerramento desta etapa dos trabalhos, mas ao mesmo tempo propõe também,
em continuidade, o início de nova etapa. Com base no Artigo 175 do Regimento Interno do Senado
Federal, sugere seja apresentado um Projeto de Resolução para apurar, em toda sua amplitude, todos
os fatos relativos à exploração do subsolo amazônico, aos direitos dos índios e à possibilidade de
existir, de fato, uma conspiração internacional envolvendo restrições à nossa soberania.
Esta verificação deverá abranger a atuação de pessoas físicas e entidades nacionais ou
internacionais, tenham ou não em seus estatutos fins econômicos.
O Relator sugere ainda que a Comissão envie cópia deste relatório e toda a documentação
citada à autoridade competente para abertura de um inquérito policial. Isto se justifica em face dos
fortes indícios, aqui apresentados, de falsidade ideológica.
Isto posto, o relator submete à apreciação do presidente e à aprovação do Plenário da
Comissão, o conteúdo e as decisões deste relatório.
Brasília, 07 de outubro de 1987
Senador RONAN TITO
Relator (Grifos nossos)

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 201


Anexo IV

As propostas de Emendas Populares

PROPOSTA POPULAR DE EMENDA AO PROJETO DE CONSTITUIÇÃO


Capítulo das Populações Indígenas

Art. 1.º – A sociedade brasileira é pluriétnica.


Art. 2.º – Os índios gozarão dos direitos especiais previstos neste capítulo, sem prejuízo de
outros instituídos por lei.
§ 1.º. – São reconhecidos aos índios a sua organização social, seus usos, costumes, línguas,
tradições e seus direitos originários sobre as terras que ocupam.
§ 2.º. – Compete à União a proteção às terras, às instituições, às pessoas, aos bens, à saúde
e à educação dos índios.
Art. 3.º – As terras ocupadas pelos índios são inalienáveis,destinadas à sua posse permanente,
independendo de demarcação, ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas
naturais do solo e do subsolo, das utilidades nelas existentes e dos cursos fluviais, assegurado o direito
de navegação.
§ 1.º – São terás ocupadas pelos índios as por eles habitadas, as utilizadas para caça, pesca,
extração, coleta, agricultura e outras atividades produtivas, e as áreas necessárias à sua reprodução
física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, incluídas as necessárias à preservação do
meio ambiente e do seu patrimônio cultural.
§ 2.º – As terras indígenas são bens da União, inalienáveis, imprescritíveis e indisponíveis a
qualquer título, vedada outra destinação que não seja a posse e usufruto dos próprios índios.
§ 3.º – Aos índios é permitida a cata, faiscação e garimpagem em suas próprias terras,
§ 4.º – Excepcionalmente, a pesquisa e lavra de recursos minerais em terras indígenas
poderão ser feitas apenas pela União, em regime de monopólio, com prévia autorização dos índios
que as ocupam, quando houver relevante interesse nacional, assim declarado pelo Congresso Nacional
para cada caso, provada a inexistência de reservas conhecidas e suficientes para o consumo interno da
riqueza mineral em questão em outras partes do território brasileiro.
§ 5.º – Nos casos previstos no parágrafo anterior, o lucro resultante da lavra será integralmente
revertido aos índios.
Art. 4.º – A União, no prazo de quatro anos, formalizará o reconhecimento e executará a
demarcação das terras indígenas ainda não demarcadas, observado o disposto no § 1.º do art. 3.º.
§ 1.º – O disposto no caput não exclui, do reconhecimento e da demarcação pela União, as
terras dos índios contactados após o prazo de quatro anos.
§ 2.º – Ficam vedadas a remoção de grupos indígenas de suas terras e a aplicação de qualquer
medida que limite seus direitos à posse e ao usufruto exclusivo.

202 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Art. 5.º – São nulos e extintos e não produzirão efeitos jurídicos os atos de qualquer natureza,
ainda que já praticados, que tenham por objeto o domínio, a posse, o uso, a ocupação ou concessão
de terras ocupadas pelos índios.
§ 1.º – A nulidade e a extinção de que trata este artigo não dão direito de ação ou indenização
contra a União ou os índios.
§ 2.º – Os atos que possibilitem, autorizem ou constituam invasão de terras indígenas ou
restrição ilegal a algum dos direitos aqui previstos, caracterizam delito contra o patrimônio público da
União.
Art. 6.º – Os índios, suas comunidades e organizações, o Ministério Público e o Congresso
Nacional, são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa dos interesses e direitos dos índios.
Art. 7.º – Ao Ministério Público compete a defesa e proteção dos direitos dos índios, judicial
e extra-judicialmente, devendo agir de ofício ou mediante provocação.
§ 1.º – A proteção compreende a pessoa, o patrimônio material e imaterial, o interesse
dos índios, a preservação e restauração dos seus direitos, a reparação de danos e a promoção de
responsabilidade dos ofensores.
§ 2.º – Em toda relação contratual de que puder resultar prejuízo aos direitos dos índios, será
obrigatória a interveniência do Ministério Público sob pena de nulidade.
Art. 8.º – Compete exclusivamente ao Congresso Nacional legislar sobre as garantias dos
direitos dos índios.
JUSTIFICATIVA
Aos índios devem ser reconhecidos:
- O direito, enquanto brasileiros culturalmente diferenciados, a suas formas de organização
social;
- o direito, enquanto primeiros habitantes do Brasil, às terras que ocupam e a suas riquezas
naturais, do solo e do subsolo.
- o direito, enquanto vulneráveis sobreviventes de um extermínio e de uma espoliação
seculares, a uma proteção especial da União.

Discurso de AILTON KRENAK (UNI)


ao Plenário da Comissão de Sistematização, apresentando a Emenda Popular
n.º 40 sobre as “Populações Indígenas” (4 de setembro de 1987).

O SR. PRESIDENTE (Alceni Guerra): – Concedo a palavra ao Sr. Ailton Krenak, coordenador
da campanha dos índios na Constituinte. S. S.ª falará sobre a Emenda Popular nº 40, que versa sobre
populações indígenas. Na tribuna estará representando a Associação Brasileira de Antropologia, de São
Paulo, a Coordenação Nacional dos Geólogos, de Goiânia e a Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência, de São Paulo. V. S.ª tem a palavra por 20 minutos.
– Sr. Presidente, Srs. Constituintes, eu, com a responsabilidade de, nesta ocasião, fazer a
defesa de uma proposta das populações indígenas à Assembléia Nacional Constituinte, havia decidido,
inicialmente, não fazer uso da palavra, mas de utilizar parte do tempo que me é garantido para defesa de
nossa proposta numa manifestação de cultura com o significado de indignação – e que pode expressar
também luto – pelas insistentes agressões que o povo indígena tem indiretamente sofrido pela falsa
polêmica que se estabeleceu em torno dos direitos fundamentais do povo indígena e que, embora não
estejam sendo colocados diretamente contra o povo indígena, visam atingir gravemente os direitos
fundamentais de nosso povo.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 203


Não estamos chegando agora a esta Casa. Tivemos a honra de, desde a instalação dos trabalhos
da Assembléia Nacional Constituinte, sermos convidados a participar dos trabalhos na Subcomissão
dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias.
Essa Subcomissão teve a competência de tratar da questão indígena e, mais tarde, tivemos
também a oportunidade de participar da instalação dos trabalhos da Comissão da Ordem Social.
Ao longo desse período, a seriedade com que trabalhamos e a reciprocidade de muitos dos
Srs. Constituintes permitiram a construção, a elaboração de um texto que provavelmente tenha sido o
mais avançado que este País já produziu com relação aos direitos do povo indígena. Esse texto procurou
apontar para aquilo que é de mais essencial para garantir a vida do povo indígena. E muitas das pessoas
que estiveram envolvidas nesse processo de discussão aqui, na Assembléia Nacional Constituinte, se
sensibilizaram a ponto de levar além dos limites das paredes desta Casa o trabalho relativo aos direitos
indígenas, como foi na visita à área dos índios Caiapó, no Gorotire. Ouvindo ali, e tirando a impressão
dos índios que estavam na aldeia acerca do que sentem, do que desejam para si, das inquietações que
nós, indígenas, colocamos no sentido de ter um futuro, no sentido de ter uma perspectiva. Assegurar
para as populações indígenas o reconhecimento aos seus direitos originários às terras em que habitam
– e atentem bem para o que digo: não estamos reivindicando nem reclamando qualquer parte de nada
que não nos cabe legitimamente e de que não esteja sob os pés do povo indígena, sob o habitat, nas
áreas de ocupação cultural, histórica e tradicional do povo indígena.
Assegurar isto, reconhecer às populações indígenas as suas formas de manifestar a sua
cultura, a sua tradição, se colocam como condições fundamentais para que o povo indígena estabeleça
relações harmoniosas com a sociedade nacional, para que haja realmente uma perspectiva de futuro de
vida para o povo indígena, e não de uma ameaça permanente e incessante.
Os trabalhos que foram feitos até resultar no primeiro anteprojeto da Constituição significaram
lançar uma luz na estupidez e no breu que tem sido a relação histórica do Estado com as necessidades
indígenas. Avançou no sentido de avançar a perspectiva de um futuro para o povo indígena.
E, neste momento, insisto; eu havia optado mesmo por estar aqui e à semelhança da
manifestação de luto pela perda seja de um parente, seja da solidariedade, seja de um amigo e,
sobretudo, pela perda de um respeito que o nosso trabalho aqui dentro construído, o respeito que para
com esta Casa e que pudemos identificar também nas pessoas que se sensibilizaram com essa questão.
Queremos manifestar a nossa indignação com os ataques que estamos sofrendo e alertar esta Casa de
que ainda somos os interlocutores dos Srs., e que não confundam uma eventual campanha e possíveis
agressões ao povo indígena, com polêmicas que são construídas à nossa revelia.
Os Srs. sabem, V. Ex.ª sabem que o povo indígena está muito distante de poder influenciar
a maneira que estão sugerindo os destinos do Brasil. Pelo contrário. Somos talvez a parcela mais
frágil nesse processo de luta de interesse que se tem manifestado extremamente brutal, extremamente
desrespeitosa, extremamente aética.
Espero não agredir, com a minha manifestação, o protocolo desta Casa. Mas acredito que os
Srs. não poderão ficar omissos. Os Srs. não terão como ficar alheios a mais esta agressão movida pelo
poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um povo indígena.
O povo indígena tem um jeito de pensar, tem um jeito de viver, tem condições fundamentais
para a sua existência e para a manifestação da sua tradição, da sua vida, da sua cultura, que não coloca
em risco e nunca colocaram a existência, sequer, dos animais que vivem ao redor das áreas indígenas,
quanto mais de outros seres humanos. Creio que nenhum dos Senhores poderia jamais apontar atos,
atitudes da gente indígena do Brasil que colocaram em risco, seja a vida, seja o patrimônio de qualquer
pessoa, de qualquer grupo humano neste País.
Hoje somos alvo de uma agressão que pretende atingir, na essência, a nossa fé, a nossa
confiança. Ainda existe dignidade, ainda é possível construir uma sociedade que saiba respeitar os mais
fracos, que saiba respeitar aqueles que não têm dinheiro, mas mesmo assim, mantêm uma campanha
incessante de difamação. Um povo que sempre viveu à revelia de todas as riquezas, um povo que habita
casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser de forma nenhuma contra os

204 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


interesses do Brasil ou que coloca em risco qualquer desenvolvimento. O povo indígena tem regado
com sangue cada hectare dos oito milhões de quilômetros do Brasil. V. Ex.as são testemunhas disso.
Agradeço à Presidência, aos Srs. Constituintes, espero não ter agredido com as minhas
palavras os sentimentos dos presentes neste plenário. Obrigado.
[Assembléia Nacional Constituinte (Atas das Comissões); pp.557-558 ]

PROPOSTA DE EMENDA POPULAR AO PROJETO DE CONSTITUIÇÃO


DISPÕE SOBRE AS NAÇÕES INDÍGENAS
Inclua-se na Constituição Brasileira, onde couber:
Art. 1.º O Brasil é uma República Federativa e Plurinacional, constituída, sob o regime
representativo, pela união indissolúvel dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
Art. 2.º São cidadãos brasileiros natos os nascidos no Brasil, independentemente da sua
nacionalidade, e s filhos de estrangeiros, desde que os pais não estejam a serviço de outro país.
Parágrafo único – os membros das Nações Indígenas possuem nacionalidades próprias,
distintas entre si e da nacionalidade brasileira, sem prejuízo de sua cidadania brasileira.
Art. 3.º. As Nações Indígenas são pessoas jurídicas de direito público interno, constituídas
por sociedades, comunidades ou grupos étnicos que se consideram segmentos distintos em virtude de
sua continuidade histórica com sociedades pré-colombianas, da qual têm consciência.
Art. 4.º. São reconhecidos às Nações Indígenas os seus direitos originários sobre as terras
que ocupam, sua organização social, seus usos, costumes, tradições, línguas e autonomia na gestão dos
bens e negócios que lhes dizem respeito.
Parágrafo único – Compete à União a proteção às terras, às instituições, às pessoas, aos bens,
à saúde, e à educação das Nações Indígenas e seus membros.
Art. 5.º É garantido às Nações indígenas e seus membros o uso oficial de suas respectivas
línguas:
I – nos municípios limítrofes às suas terras;
II – no órgão indigenista da União;
III – no Poder Judiciário;
IV – no Congresso.
Art. 6.º É garantida às Nações Indígenas e seus membros escolarização em língua portuguesa
e em suas línguas maternas.
Art. 7.º São bens das Nações Indígenas as terras por elas ocupadas, as riquezas naturais do
solo e do subsolo, dos cursos fluviais, dos lagos localizados em seus limites dominiais, os rios que nelas
têm nascente e foz, e as ilhas fluviais e lacustres.
§ 1.º São terras ocupadas pelas Nações Indígenas as terras por elas habitadas, as utilizadas
para caça, pesca, extração, coleta, agricultura e outras atividades produtivas, e as áreas necessárias á
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições, incluindo as necessárias à
preservação do meio-ambiente e do seu patrimônio cultural.
§ 2.º Os bens e direitos das Nações Indígenas são gravados de inalienabilidade,
impenhorabilidade, imprescritibilidade e inalterabilidade de sua destinação, salvo quanto aos bens
móveis, que são alienáveis.
§ 3.º É vedada a constituição de usufruto sobre os bens das Nações Indígenas.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 205


§ 4.º São nulos, desprovidos de eficácia e não produzirão efeitos jurídicos os atos de qualquer
natureza, mesmo já praticados, que tenham por objeto o domínio, a posse, o uso, a ocupação ou a
concessão dos bens imóveis das Nações Indígenas.
§ 5.º A nulidade de que trata o artigo anterior não dá direito de ação ou indenização contra
o Poder Público ou as Nações Indígenas.
§ 6.º Nas terras ocupadas pelas Nações Indígenas é vedada qualquer atividade extrativa
de riquezas não renováveis, exceto cata, faiscação ou garimpagem, quando exercidas pelas próprias
Nações Indígenas.
§ 7.º Ficam vedadas a remoção das Nações Indígenas de suas terras e a aplicação de qualquer
medida que limite seus direitos às mesmas.
Art. 8.º A União demarcará administrativamente as terras ocupadas pelas Nações Indígenas,
observado o disposto no parágrafo primeiro do artigo 7.º, e garantida a participação das Nações
Indígenas em todo o procedimento.
Art. 9.º Compete exclusivamente ao Congresso legislar sobre as garantias aos direitos das
Nações Indígenas.
Art. 10.º As Nações Indígenas, suas organizações, o Ministério Público Federal e o Congresso
são partes legítimas para entrar em juízo na defesa dos direitos e interesses das Nações Indígenas.
§ 1.º Compete à Justiça Federal conhecer e pro cessar as ações que envolvam direitos e
interesses das Nações Indígenas.
§ 2.º Ao Ministério Público Federal cabe a defesa e proteção destes direitos, judicial e
extrajudicialmente, devendo agir de ofício ou mediante provocação.
§ 3.º A defesa e proteção compreendem a pessoa, o patrimônio material e imaterial, bem
como a preservação e restauração destes direitos, a reparação de danos e promoção da responsabilidade
dos ofensores.
Art. 11. A execução da política indigenista, submetida aos princípios e direitos estabelecidos
nesta Constituição em relação às Nações Indígenas, será coordenada por órgão próprio da administração
federal, subordinado a um conselho de representações indígenas, a serem regulamentados em lei.
Art. 12. A lei regulamentará a forma e o exercício da representação das Nações Indígenas nos
demais poderes do Estado.
Art. 13. Os atos que possibilitem, autorizem ou constituam invasão de terras das Nações
Indígenas ou restrição a algum dos direitos a elas atribuídos, ou que atentem contra a integridade física
ou cultural das Nações Indígenas e seus membros são crimes inafiançáveis.
Art. 14. A omissão do Poder Público a algum dos direitos das Nações Indígenas será
declarada inconstitucional pelo órgão competente do Poder judiciário, que determinará seu imediato
suprimento.
Art. 15. Os bens, rendas e serviços das Nações Indígenas gozam de plena isenção tributária
e parafiscal.
Art. 16. Os membros das Nações Indígenas são isentos do serviço militar.
JUSTIFICAÇÃO
“Nós nascemos primeiro, aqui no Brasil. Hoje temos muitos problemas no meu povo. O povo
dos senhores (dos brancos) matava o meu povo, coitado! Nós estamos acabando nas mãos
de vocês. Vocês têm que respeitar meu povo. Nós é dono da terra. Não me queriam deixar
entrar no Congresso. Pediram documento. Minha orelha furada – esse é documento”.
Estas são algumas das frases do discurso que o cacique Raoni Metuyktire fez na Subcomissão
da Nacionalidade, da Soberania e das Relações Internacionais, da Assembléia Nacional Constituinte, em
07 de maio de 1987.

206 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Desde a chegada dos primeiros europeus, em 1500, os índios passaram a sofrer uma história
de opressão que ainda não terminou. Hoje existem cerca de 170 Nações Indígenas diferentes, que
sobreviveram ao longo de quase 500 anos. Desde o início da conquista, os índios foram considerados
inferiores. Até hoje as leis para os índios, no Brasil, têm por objetivo fazer com que eles deixem de ser
índios, tornando-se brancos – como se este fosse o único e melhor destino para eles.
A Nações Indígenas que sobrevivem ao longo da história colonial e neo-colonial, foram
obrigadas a abrir mão de muitos direitos, riquezas e costumes. Contudo, continuam como Nações
Indígenas, fundamentalmente diferentes da sociedade não-indígena, porém não inferiores a ela. Esta
diferença pode-se observar na sua organização social, na sua cultura e nos seus conhecimentos e sua
sabedoria sobre a riqueza que precisa ser preservada.
Os índios têm direito a uma vida que preserva esta diferença, que é uma riqueza para o
país. O Brasil será muito mais brasileiro, se os índios puderem manter-se distintos da sociedade não-
indígena. Continuar sendo índio não significa deixar de ser brasileiro; os índios são, aliás, os brasileiros
mais autênticos.
Está na hora de parar a guerra da sociedade não-indígena contra as sociedades indígenas. Isto
pode ser feito se ficarem garantidos na Constituição os direitos indispensáveis para que eles possam
viver permanecendo índios.
Para isto, a melhor fórmula jurídica é a que reconhece que os índios constituem verdadeiras
Nações indígenas, cujos membros possuem nacionalidade própria, sendo todos, porém, cidadãos
brasileiros. Este é o princípio adotado nas Constituições de Espanha e Romênia – entre outras. O
reconhecimento constitucional das Nações Indígenas, as suas garantias territoriais, inclusive do subsolo,
e o pleno exercício de sua cidadania não ameaçam a integridade física ou a soberania política do Estado
Brasileiro, ao qual nacionais não-indígenas e indígenas atualmente se submetem.
Além disso, devem ficar garantidos seus direitos originários às terras que ocupam, à sua
organização social própria, aos seus costumes, tradições, usos e línguas próprios. Devem ser incluídos
na Constituição mecanismos eficientes de defesa destes direitos, e deve ser assegurada a participação
das Nações Indígenas em todas as instituições e instâncias onde se tomem decisões que as afetem.
Esta proposta de Emenda Popular, inspirada na história e nos anseios indígenas, não somente
no Brasil, mas em toda América Latina, confirmada pela palavra da Igreja (Por uma Nova Ordem
Constitucional, n.º 81-83; João Paulo II em Manaus, 10 de julho de 1980), e redigida com base em
outras constituições, e em estudos de juristas, antropólogos e documentos internacionais, dará uma
dimensão mais justa às relações entre índios e não-índios, abrindo caminho para a paz, a democracia
étnica e a verdadeira grandeza do Brasil.

Discurso de JÚLIO M. G. GAIGER (Cimi)


ao Plenário da Comissão de Sistematização, apresentando a Emenda Popular n.º
39 sobre as “Nações Indígenas” (4 de setembro de 1987).

O SR. PRESIDENTE (Alceni Guerra): – Esta Presidência recebe com muito respeito a
manifestação de V. S.ª e se alia às palavras dos Srs. Constituintes que o apartearam, sensibilizados com
essa chaga viva que é a forma com que a sociedade brasileira, através dos tempos, tratou do problema
da sua raça. Pede licença ao Sr. Ailton Krenak para conceder a palavra ao próximo orador inscrito, Júlio
Marcos Germany Gaiger, que falará sobre a Emenda Popular nº 39, que versa sobre as nações indígenas.
S. S.ª estará representando o Conselho Indigenista Missionário – Cimi, sediado em Brasília; Associação
Nacional de Apoio ao índio – ANAI, sediada em Porto Alegre, Rio Grande do Sul; e o Movimento de
Justiça e Direitos Humanos, também sediado em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Essa emenda popular
foi apresentada à Casa por 44.948 brasileiros. Tem V. S.ª a palavra por 20 minutos.
– Exmo. Sr. Presidente, Srs. Constituintes:

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 207


Em 1554 os “encomenderos” do Peru enviaram ao rei Carlos V um procurador, para propor a
compra perpétua das “encomiendas.”. O grande historiador latino-americano Sérgio Bagú ensina que
a “encomienda” era o instituto pelo qual os espanhóis obrigavam os índios à prestação de serviços
ou pagamento de produtos ou em dinheiro, em favor do “encomendero”. Geralmente se a outorgava
vitaliciamente ao favorecido, sem, contudo, supor o domínio das terras, aldeias ou pessoas, cuja
vinculação permanecia ao rei.
Na proposta dos “encomendadores” do Peru, porém, incluía-se a transferência da jurisdição
cível e criminal, e a própria terra, pelo preço de 5 milhões de ducados.
Argumentava-se que assim o rei ficaria livre dos encargos da administração do vice-reinado,
responsabilizando-se os “encomenderos” pela manutenção da ordem e da paz, pelos serviços
necessários ao desenvolvimento da terra e gentes, incluindo-se a difusão da fé e da fidelidade ao
próprio rei, e recebendo este dos mesmos “encomenderos” os tributos devidos. A coroa, portanto,
acenavam-se somente vantagens.
O rei encarregou uma junta de teólogos, juristas e políticos para dar um parecer, que resultou
favorável por dez votos a dois. A decisão favorável ao negócio foi mantida mesmo contra a opinião dos
membros do Conselho das Índias; em 1556, o novo rei, Felipe II, ordenava que o Conselho se abstivesse
de discutir a questão, e constituía uma comissão executiva, que chegou ao Peru em 1559.
Todavia, a partir daí as negociações começaram a arrastar-se em ritmo cada vez mais lento.
Ocorre que em 20 de julho de 1559, os caciques indígenas do Peru, reunidos, haviam constituído
seu procurador o Bispo de Chiapa, Frei Bartolomé de Las Casas, para que os representasse diante da
Corte para evitar a consumação do negócio, permitindo que os índios continuassem perpetuamente
submetidos diretamente à Coroa espanhola.
Desincumbindo-se do mandato, Bartolomé de las Casas escreveu uma das mais esplêndidas
obras, hoje mundialmente reconhecida como primeira sistematização dos princípios básicos do Direito
Internacional: De Imperatória Seu Regia Potestate, publicada primeiramente na Alemanha, em 1571.
Com este tratado, Las Casas colocou-se junto a Francisco de Vitória como os virtuais fundadores do
moderno Direito Internacional.
Contudo, a intenção de Las Casas era sustentar, a favor dos índios do Peru, que a proposta
dos “encomenderos” implicaria para o rei a perda das índias, e o regime das “encomiendas” significava,
para os índios, método de opressão e extermínio. Para isto, desenvolveu as teses da mais atual e
profunda democracia, partindo do pressuposto de que os índios do Peru eram livres, não havendo
nenhum título que justificasse a perda dessa liberdade natural – nem mesmo a doação pontifícia. Em
seguida, afirmou que qualquer limitação à liberdade daquelas gentes estava fundada em seu próprio
querer voluntário, e não em força ou violência que a elas se fizesse. Portanto, o próprio poder do Rei
sobre seus vassalos, assim incluídos os índios, também funda-se no consentimento voluntário dos
súditos, razão pela qual, uma vez consentindo na submissão a um senhor, não podem os súditos, à
revelia de sua própria vontade, ser colocados sob outro senhorio ou submissão.
Especificamente sobre a “encomienda”, sustentou que era um sistema ilegal e antipolítico,
pelo dano às pessoas e prejuízo à própria Coroa; que era injusto, por ser tirânico e terrível; e
intrinsecamente mau, por ofender a lei de Deus, causando tantos males que desacreditaria a fé que
era dos próprios opressores. Por isso, mesmo que a ele quisessem os índios submeter-se – o que, no
entanto, não era o caso – esta vontade seria nula e de nenhum valor. Assim, ao Rei somente restava
desterrar a “encomienda”.
Retomando a mesma primeira linha de raciocínio, no tratado Las Casas parte da liberdade
natural de todos os homens, definindo o poder político como serviço à defesa e promoção dos direitos
dos cidadãos. Assim, a soberania do Rei limitava-se por este pacto dos súditos com o soberano, de
modo que a origem do poder político é essencialmente democrática, e o povo sua causa eficiente.
Os súditos não se submetem propriamente ao Rei, mas sim às leis livremente consentidas, conquanto
estas objetivem o bem comum. Ao Rei se concede a potestade apenas para promover o bem do povo,
e o Rei é então o administrador que somente exerce sua autoridade em função deste bem.

208 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Avançando em suas teses, Las Casas sustentou que se não quiser degenerar em abuso de
poder, o Rei governará de acordo com as condições estabelecidas no momento de sua ascensão, e,
sem o consentimento expresso dos cidadãos diretamente afetados, não pode impor o sacrifício de
uma cidade ou território para o bem-estar de todo o reino, tampouco pode sacrificar um reino contra
a vontade dos cidadãos deste, para socorrer a outro reino. Em suma, não pode o Rei governar pelo
medo ou terror, nem dispor arbitrariamente dos bens dos povos a ele submetidos; não pode alienar
sua jurisdição, dispor dos bens dos súditos ou vender os ofícios ou empregos públicos, nem os bens do
Estado. O direito de reinar, concluiu Las Casas, estriba-se na vontade popular.
Há, portanto, em De Regia Potestate, a afirmação reiterada de três dogmas democráticos: o
poder político provém do povo; é outorgado aos governantes para que estes sirvam ao mesmo povo,
sob controle deste povo.
A fonte de tudo o que acabo de afirmar, Sr. Presidente, é a edição critica bilíngüe (latim/
espanhol) do Conselho Superior de Investigações Científicas de Madrid, de 1969, da obra De Regia
Potestate. Trata-se do volume VIII da coleção Corpus Hispanorum de Pace, editada sob a direção de
Luciano Pereña.
Por aí se vê que, muito antes de tratar daquilo hoje destinado à cogitação do Direito
Internacional, Frei Bartolomé de Las Casas assentou os princípios básicos e essenciais da democracia,
afirmando condições que ainda hoje lutamos para vermos praticadas no Brasil...
Hoje, Sr. Presidente, o que se discute nesta reunião? A que vem a lembrança de Las Casas?
Por incrível que nos pareça, 500 anos depois de Las Casas, nesta Assembléia Nacional
Constituinte, debatemo-nos com problemas idênticos aos que ele enfrentou, em sua defesa
comprometida dos direitos dos índios do Peru.
Neste ano de 1987 as mineradoras privadas, latifundiários e toda uma coorte de interesses
econômicos fazem à Assembléia Constituinte proposta igual à que fizeram os “encomenderos” do Peru,
em 1554. Propõe-se a alienação do subsolo das terras indígenas, dos bens naturais destas mesmas
terras e da mão-de-obra indígena; em troca, o Estado brasileiro ficará livre dos encargos de prestar
assistência a estas populações, cuja brasilidade e desenvolvimento serão assegurados pelas mesmas
empresas.
Não sei sob bênção de que junta de juristas, teólogos e políticos, o ilustre Relator desta
Comissão, Constituinte Bernardo Cabral, aceitou a proposta – como, em 1554 e 1556 o fizeram os reis
Carlos V e Felipe II –, consagrando-a no seu Substitutivo ao Projeto de Constituição.
Ali, ignorou-se todo o debate precedente ocorrido na Subcomissão dos Negros, Populações
Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, e na Comissão da Ordem Social, fazendo tábula rasa das
decisões aprovadas pelo voto dos Srs. Constituintes e contrariando a orientação fundamental que, a
respeito dos direitos indígenas, norteou a atividade constituinte precedente.
Juridicamente falando, o Substitutivo retroagiu ao regime de 1934, quanto às terras
indígenas; involuiu para além de 1916, quanto à capacidade civil dos índios; e a 1554, quanto aos seus
demais direitos, que foram reduzidos e alienados. Moralmente, involuiu-se muito mais, ao estabelecer
que os índios “em adiantado estágio de aculturação” já não fazem mais jus a quaisquer dos direitos
especiais consignados, mutiladamente, no Capítulo VIII do Título IX do Substitutivo. A perspectiva
assim subjacente ao texto do Substitutivo é a de que os índios, enquanto tais, um dia fatalmente
desaparecerão.
Sr. Presidente! Quisera neste momento um mínimo de inspiração do espírito de Las Casas,
para enfrentar à altura a ameaça que paira sobre o futuro dos índios no Brasil. Melhor, porém, será
confiar em que a escassez de meus conhecimentos se compense com os suprimentos da sensibilidade
e sentimento de justiça das Sras. e Srs. Constituintes.
Não tenho, como a teve Las Casas, procuração outorgada pelos caciques; tenho somente o
mandato de mais de 40 mil cidadãos eleitores brasileiros que subscreveram a Emenda Popular nº 39,
sobre as Nações Indígenas.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 209


Contudo, não seria necessário que me pusesse a falar em nome dos índios brasileiros.
Por um lado, precedeu-me nesta tribuna, falando pelos índios, um índio, filho da nação
Krenak, habitante do Vale do Rio Doce, atual território de Minas Gerais.
Por outro, em mais de uma ocasião, desde o histórico dia 22 de abril deste ano, os próprios
índios vieram a esta Assembléia, em delegações representativas de povos que habitam os mais
distantes recantos da Pátria, para manifestar, sem intermediários, seus sofrimentos, aspirações e
reivindicações. A Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias
esteve na aldeia dos Kayapó do Gorotire, onde também, sem intermediários nem meditações, escutou
a voz indígena.
Esta voz fez-se ouvir em audiência pública diante da Subcomissão, no dia 29 de abril e no dia
5 de maio. E no dia 7 de maio, perante a Subcomissão da Nacionalidade, da Soberania e das Relações
Internacionais, o cacique Raoni, dos Mentuktire, pronunciou discurso antológico.
Permitam-me lembrar trechos da alocução de Raoni, naquele 7 de maio. É ele quem fala:
“Toda a terra do meu povo tá ocupada. Lá tem garimpo, tem madeireira, tem fazendeiro,
que tava mexendo na terra do meu povo, dentro da área”. (...) Vocês tão pensando que avô seu nasceu
primeiro aqui? Vocês tão pensando isso? Nós nasceu primeiro, aqui. Brasil inteiro (...) Eu não quero que
acaba a vida do nosso índio, eu não quero que acaba a cultura do índio. Eu quero que o índio continua
a vida do avô, o pai, a mãe... (...)
Eu sei que vocês têm muita força, têm muita gente; nós tamo acabando na mão de vocês. Eu
tou querendo que vocês têm que deixar nossa terra. Nós é dono da terra...”
Sr. Presidente, eu falo em nome de mais de 40 mil cidadãos brasileiros eleitores, que vêm a
esta Assembléia secundar e apoiar a voz indígena. São os súditos não indígenas
que vêm a este órgão soberano dizer, juntamente com os súditos indígenas, que não desejam,
que repudiam as restrições que se querem impor aos índios.
E esta manifestação se realiza através deste sadio e oportuno instrumento, preconizado
naqueles tempos por Las Casas, que é a consulta popular, em nosso caso revestindo a forma de Proposta
de Emenda Popular ao Projeto de Constituição.
Nesta proposta, os cidadãos eleitores brasileiros pleiteiam que se renuncie ao colonialismo
que desde 1500 caracterizou as relações entre o Estado e os índios.
Retomo Las Casas (De Imperatoria vel Regia Potestate, na obra citada):
“Há efetivamente reis que desejando comprazer a palacianos e cortesãos e a seus parentes
que suspiram por esta sorte de doações, e sem ter em conta, como deveriam, as angústias e sofrimentos
intoleráveis dos habitantes do seu reino, alegam em sua defesa razões especiosas com as quais se
empenham em justificar, ou ao menos mitigar, tais alienações.”
É o que se tem feito na prática, Sr. Presidente. Para favorecer interesses particulares, que
sempre se apresentam como confundidos com os interesses do próprio País, espoliaram-se os índios,
expropriando-lhes as terras e violentando-lhes os direitos. Na expressão do Rei português Dom José
I, isto se fez “cavilando-se sempre pela cobiça dos interesses particulares às disposições destas leis”,
observando-se que o Rei referia-se, no preâmbulo da lei de 6 de junho de 1755, às determinações
anteriores que ordenavam preservar a liberdade das pessoas e bens dos índios.
O mal é, portanto, tão antigo quanto o é a chegada dos primeiros europeus nestas terras
brasileiras.
Nessa mesma lei de 1755, aduzia o Rei:
“... não bastaria (...) que os índios fossem restituídos à liberdade das suas pessoas na sobredita
forma, se com ela se lhes não restituíssem também o livre uso dos seus bens, que até agora se lhes
impediu com manifesta violência; ordeno que a esse respeito se execute logo a disposição do parágrafo
40 do Alvará do primeiro de abril de 1680, cujo teor é o seguinte:

210 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


“E para que os ditos Gentios (...) melhor se conservarem nas Aldeias, hei por bem que sejam
senhores de suas fazendas, como o são do sertão, sem lhes poderem ser tomadas nem sobre elas se
lhes fazer moléstia. (...) nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, ainda que
estejam dadas em sesmarias a pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o
prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero se entenda ser reservado o prejuízo e direito
dos índios, primários e naturais senhores delas...”
Leio, Sr. Presidente, trechos do texto transcrito pelo Desembargador Antônio Delgado da
Silva, na Coleção da Legislação Portuguesa desde a última compilação das Ordenações, legislação de
1750 a 1762, publicada em Lisboa, em 1830.
Inobstante estas providências régias, que inclusive mais de uma vez foram tão expressas
quanto inutilmente reiteradas, o que nos apresenta a história deste País, de 1500 até hoje, é um saldo
de mais de 5 milhões de índios mortos, sendo que, segundo Darcy Ribeiro, apenas de 1900 a 1957,
foram completamente extintos 87 grupos tribais!
Poderíamos entregar-nos à compunção sentimental se não houvesse mais índios. Não
teríamos escolha.
Ocorre, Sr. Presidente, que para glória do espírito humano os índios conseguiram sobreviver.
Aí estão conosco, ainda, mais de 170 nações indígenas, somando cerca de 250 mil pessoas, clamando
pelo final deste morticínio, reivindicando respeito às suas pessoas, bens e cultura, e manifestando sua
firme determinação de preservar suas identidades próprias.
O brado indígena impõe-nos um desafio.
Estamos superando mais de 20 anos de autoritarismo. Os brasileiros esperam que a chamada
transição leve-nos a bom porto, o porto da democracia plena, o porto da reconciliação.
Não, porém, reconciliação com a injustiça, com as desigualdades sociais ou com a opressão
aos índios; mas reconciliação com a justiça, com o verdadeiro patriotismo, que exige a reparação dos
males, a responsabilização dos que os causaram e o estabelecimento das garantias que inibam sua
repetição futura.
E nesta transição esta Assembléia Nacional Constituinte desempenha papel principal. Aqui
é que se determinarão as bases fundamentais para esta jornada, e são os Senhores quem possuem o
mandato popular para estabelecer os princípios e objetivos para a restauração do Brasil.
Neste contexto, o desafio que nos impõe o brado indígena é a opção entre as duas únicas
alternativas que se nos apresentam. Ou deixamos tudo como está, cerrando os olhos ao genocídio
e etnocídio historicamente praticados contra as populações indígenas, pretextando evitar o
sentimentalismo e, com isto, coonestando a aplicação de um darwinismo social tão anacrônico quanto
injusto, tão imoral quanto vergonhoso; ou renunciamos a este passado e dispomo-nos a resgatar esta
dívida histórica contraída junto aos índios, para usar expressão do Marechal Rondon.
Não nos iludamos, Sr. Presidente; já em 1755 o Rei português constatava a inoperância das leis,
e em 1987 a constatação guarda atualidade. Não basta, portanto, que se repitam, em bisonha falta de
criatividade, as disposições hoje vigentes. Elas não têm logrado impedir a opressão imposta aos índios.
É preciso avançar e inovar, decididos a suprir aquelas lacunas e omissões, corrigir os desvios
que deixam espaço à continuidade desta situação. Esta inovação, Sr. Presidente, pensávamos se
pudesse dar com o reconhecimento formal de que nosso País é um Estado Plurinacional, pois conosco,
brasileiros de origem adventícia, convivem ainda, sobreviventes ao massacre secular, mais de 170
nações indígenas.
Preciso, agora, fazer parênteses.
É do conhecimento de todos que nos últimos dias um jornal de razoável circulação veiculou em
suas páginas uma pretensa denúncia sobre uma conspiração contra o Brasil. Tal conspiração consistiria
em obter desta Assembléia, através do reconhecimento do caráter pluriétnico da nossa sociedade, a
possibilidade de fracionar o território brasileiro, aplicando-se um tal conceito de soberania restrita.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 211


Ao jornal muitos fizeram coro, inclusive nesta Casa.
O que porém agora já se sabe, Sr. Presidente, é que a alardeada denúncia prestava-se ao fim
de confundir não só a opinião pública, mas principalmente os Constituintes, criando-se as condições
para, a partir da desqualificação da proposta ora em discussão, desacreditar tudo o que, até agora, fora
votado sobre direitos indígenas nesta Assembléia.
Os alvos da manobra eram as restrições contidas nos textos pré-constitucionais anteriores,
sobre a exploração do subsolo em terras indígenas. Para isso, imaginou-se uma fantástica articulação
entre oligopólios internacionais de minérios e o Conselho Indigenista Missionário, uma das entidades
que co-patrocina esta Emenda Popular nº 39. Como alegada comprovação do que se denunciava,
apontava-se o fato de se propor, através desta emenda, o reconhecimento do Brasil como Estado
Plurinacional.
Já desmentidas às acusações assacadas pelas reportagens a que me referi, e já em andamento
providências inclusive policiais e judiciais para restabelecer a verdade, constata-se que a trama urdida
por interesses antiindígenas continua repercutindo na voz dos seus áulicos, dentro e fora desta Casa,
entre os últimos personagens reveladamente contaminados pelo ranço do autoritarismo. Nós, porém,
Sr. Presidente, repudiamos tais tentativas de se impor a esta Assembléia o obscurantismo como
horizonte único ao debate das idéias.
Portanto, em benefício da verdade e da clareza, lembro que de há muito a doutrina jurídica
fez as devidas distinções entre os conceitos de Estado e Nação; entre cidadania e nacionalidade.
Valho-me das lições de Vasco Taborda Ferreira, em “A Nacionalidade”, publicada em Lisboa,
em 1950; em De Plácido e Silva, no seu “Vocabulário Jurídico”, publicado pela Forense, neste ano; e
principalmente na erudição de Benjamin Akzin, em “Estado Y Nación”, publicado pelo Fondo de Cultura
Económica do México, em 1968. Estes autores, entre tantos outros, esclarecem que nação refere-se a
uma coletividade cujos componentes trazem consigo as mesmas características raciais, mantendo-se
unidos pelos hábitos, tradições, língua e religião e por um “querer viver coletivo”, pela consciência
de sua nacionalidade, ou, na expressão de Hauriou, em seu “Précis de Droit Constitutionel”, por uma
mentalidade comum.
Esclarece Vasco Taborda Ferreira que a nação impõe-se ao homem independentemente de
sua vontade, e De Plácido e Silva ensina que, portanto, encontram-se nações dispersas em mais de um
Estado, assim como encontram-se Estados que abrigam mais de uma nação.
É que o Estado vem a ser, precisamente, a forma política, adotada por uma nação ou por
várias nações, para que se submetam a um poder político soberano, emanado de sua própria vontade,
que lhes vem dar unidade política.
E a doutrina italiana, com Cavaglieri, Gaetano Morelli e outros, propõem que, ficando o
termo nacionalidade adstrito à vinculação do indivíduo com sua nação, empregue-se o termo cidadania
para designar o vínculo do indivíduo com o Estado. A atual Constituição italiana, por sinal, em nenhum
momento refere-se senão aos cidadãos da Itália, da forma como, aliás, o fazia a primeira Constituição
Republicana brasileira, em 1891.
Mais tarde, na esteira da doutrina francesa e estadunidense – para quem tais distinções ou
não tinham sentido prático ou não estavam na ordem do dia – é que se dotou para o Brasil a equivocada
sinonímia entre Nação e Estado.
Benjamin Akzin adverte que tal doutrina tem sido utilizada justamente para beneficiar a
ideologia da supremacia de uma nação sobre outras, identificando-se a nação dominante com o próprio
Estado, como se apenas esta fosse detentora do patriotismo ou da chamada consciência nacional. É
o que muitos têm afirmado em relação ao Brasil, opondo-se de antemão à Proposta que agora se
debate. Akzin, todavia, insiste em alertar que esta mal-disfarçada xenofobia é responsável pelas piores
barbaridades da história, tais como as cometidas durante o regime nazista; e, acrescentaria eu, como o
massacre perpetrado contra os índios no Brasil.

212 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


A Emenda Popular nº 39 afirma, categoricamente, que o reconhecimento das nacionalidades
específicas dos membros das nações indígenas não afeta a sua cidadania brasileira. E é isto que importa
à soberania do Estado: que se mantenha intacta a filiação política. Por outro lado, porém, admitir
o caráter plurinacional do Brasil implica renunciar ao colonialismo interno e abdicar da assimilação
forçada como destino único oferecido às populações indígenas.
Não se diga, Sr. Presidente, que a assimilação é futuro inevitável para os índios. A conclusão
dos que assim afirmam é fruto de observação muito superficial. Os elementos conformadores das
culturas indígenas – como, de resto, de qualquer cultura – são extremamente complexos, e não é a
renúncia a algum traço cultural em particular que define o abandono da cultura de origem.
Nós, brasileiros de origem européia, temos muito mais em comum com os alemães ou
italianos que com os índios.
Contudo, nem por isso se dirá que não temos uma cultura brasileira, distinta das culturas
alemã ou italiana.
Da mesma forma, não é o uso do rádio de pilha, do relógio ou do trator – ou de qualquer
técnica nova – que desindianiza os índios. Darcy Ribeiro tem, a propósito, estudos paradigmáticos
que confirmam nossas afirmações. O máximo a que se chega, conquanto não se elimine fisicamente
os índios, é a perda de suas especificidades culturais que distinguem os índios Kaingang dos índios
Xokleng. Índios, contudo, sempre se manterão, porque a filiação a uma nacionalidade, como diz Vasco
Taborda Ferreira, é algo que escapa à vontade humana.
Assim, o que os homens escolhem é a vinculação ao Estado, através da cidadania, esta sim
passível de alteração. No rigor científico, o que se distingue são os cidadãos natos dos cidadãos não-
natos, os que adquirem determinada cidadania; e se distinguem os cidadãos apenas titulares dos
direitos de cidadania dos que também chegam ao exercício de tais direitos.
Erradamente, alguma doutrina reserva o termo cidadão para os que exercem os direitos
inerentes à cidadania; contudo, assim como toda pessoa é sujeito de direitos desde o nascimento,
embora não os possa exercer, também há os cidadãos que, antes do implemento de determinadas
condições, não podem exercer os direitos da cidadania.
Não há, assim, Sr. Presidente, nenhum trauma, sequer mesmo muita novidade, em se propor
ao Brasil o reconhecimento do seu caráter plurinacional.
Tampouco se veja aí o início de uma progressão cujo ápice futuro seja, fatalmente, eventual
movimento de sucessão. As mais de 170 nações indígenas são, em realidade, micronações; nem
separada, nem conjuntamente, reúnem os elementos mínimos a que algum dia possam pleitear mais
que o respeito a suas identidades nacionais próprias. Jamais tal reivindicação terá conotação política.
Nem se pretende – e em nenhum momento se o afirma, sequer implicitamente – a adoção do
tal conceito de soberania restrita em prol das nações indígenas.
Criou-se, ou tenta-se criar, uma cortina de fumaça que obscureça o debate sobre a proposta
concreta e real, para com isto efetivamente atingir os demais direitos que se propõem às populações
indígenas. A trama nem mesmo é original: há três anos, na Venezuela, usou-se do mesmo expediente
em vã tentativa de acobertar os interesses de um invasor da terra dos índios Piaroa.
Lá, porém, o Congresso respondeu à altura, rejeitando a acusação de que a Igreja estaria
propondo a adoção daquele conceito; e, no final da história, o invasor que dera origem a toda celeuma foi
obrigado, por determinação governamental, a abandonar suas pretensões sobre as terras indígenas.
Aqui, porém, os interesses na alienação dos direitos indígenas têm maior fôlego, e sem dúvida
contam com maior número de acólitos.
Quando se elaborou a presente proposta de emenda popular, Sr. Presidente, imaginava-se
haver condições para um debate sereno e desapaixonado sobre o aspecto em questão. Serenidade e
isenção que, inobstante, não se poderia traduzir em descompromisso com o destino das populações
indígenas.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 213


Hoje, porém, forço-me a reconhecer que, talvez, as condições ideais para esta discussão
encontram-se comprometidas. Na Comissão da Ordem Social, em votação memorável, decidiu-se que
o reconhecimento das formas de organização próprias das nações indígenas, estabelecido no item V
do art. 1º do anteprojeto daquela Comissão, não apresentava nenhum risco à soberania do Estado
brasileiro.
Mas, ao contrário, significava fixar uma baliza primeira à atuação do Estado junto às nações
indígenas, legislando-se para lhes garantir o direito à autopreservação física a cultural, e não mais
para apenas administrar sua integração à sociedade dita “a nacional”. De fato, que desejo teriam os
índios de se integrar à sociedade das filas do INPS, das favelas, de tantas e tão gritantes desigualdades
sociais?
Que interesse teriam os índios de se assimilar a uma sociedade que não preza o meio ambiente
que os mesmos índios souberam manter intacto por milênios?
Não quer isto dizer que as sociedades indígenas se manteriam em redomas. A situação de
contato – ou, para utilizar a terminologia científica, a fricção interétnica – é um fato. Contudo, a inter-
relação entre as sociedades indígenas e a nossa sociedade pode dar-se em condições de respeito mútuo.
E o respeito implica, para nós, conduzir-nos segundo normas que evitem a agressão, intencional ou
não, às sociedades indígenas.
Aliás, com a farta literatura especializada hoje disponível, não se cogita de agressões não
intencionais. A toda ação corresponde um resultado cientificamente previsível, quanto às sociedades
indígenas. Cabe-nos apenas optar entre evitá-los ou não.
Há poucos anos um Ministro do Interior dizia que o progresso da Amazônia não se devia
deter por causa dos índios. No início do século, um jornal de Santa Catarina pregava ações militares
para o extermínio dos índios, apontados como obstáculos ao desenvolvimento da região.
Sr. Presidente, que progresso é este que em quase meio milênio de história sempre cobra seu
preço aos índios?
Tal modelo de progresso supõe a prática deliberada do que se denominou etnocídio, e é isto
que se tem feito no Brasil. Etnocídio que, em relação a incontáveis sociedades tribais, resultou na sua
completa destruição.
Confira-se, a respeito, a excelente obra de Jaulin, “La Paix Blanche”, editada pela Seuil de
Paris, em 1970.
Renunciar ao etnocídlo, à integração compulsória, ao colonialismo interno, este é o objetivo
que se tem em mente quando se propõe o reconhecimento do caráter plurinacional do Estado
brasileiro.
Se, contudo, as circunstâncias impedem a discussão serena deste aspecto, e se a pretexto
da cortina de fumaça que se levantou sobre ele, arrisca-se causar prejuízo ao debate sobre os direitos
essenciais à sobrevivência física e cultural das sociedades indígenas brasileiras, deixamos de tributar
relevância a este avanço conceitual.
O que importa aos mais de 40 mil signatários da Emenda Popular nº 39 é que se garantam aos
índios os direitos essenciais que lhes possibilitem o futuro.
O fundamental, nesta concepção, é que se estabeleçam no texto constitucional, de forma
adequada, os direitos mínimos sem os quais o etnocídio simplesmente prosseguirá com o nosso
beneplácito.
Retornando a Bartolomé de Las Casas, recorde-se que em sua condição de homens livres os
índios têm, efetivamente, direito às suas terras e ao respeito às suas culturas. Na lei, isto nunca foi
negado; contudo, na forma e limitações em que até hoje foram vazadas, as leis não têm bastado.
Por isso, Sr. Presidente, a justiça impõe-nos reconhecer aos índios seus direitos territoriais,
estabelecendo-se, na esteira de copiosa doutrina jurídico-antropológica e na memorável lição do
Ministro Victor Nunes Leal que a terra indígena define-se não sob critérios meramente econômicos,

214 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


mas contemplando-se em primeiro lugar os critérios culturais das próprias sociedades indígenas. A
terra é para o índio o espaço também das atividades produtivas, mas antes disso a base para o exercício
e reprodução de sua cultura.
Dir-se-á que, assim, as terras indígenas ocuparão proporção muito elevada do território
brasileiro. As estimativas mais extremadas – justamente as cifras oficiais – situariam esta proporção em
torno dos 9% da superfície do País. Lembre-se, porém, que muito mais que isto está hoje concentrado
em pouquíssimas mãos, para quem a terra é exclusivamente fator de produção, bem de mercado ou de
especulação.
Suponho que ontem, ao se discutirem as Emendas Populares sobre a reforma agrária se
tenham fornecido alguns dados sobre a concentração fundiária existente no Brasil.
Além disso, esta proporção ideal de terra indígena é similar à proporção idealmente possível
em outros países onde há também, sociedades indígenas minoritárias.
Segundo dados de Petersen, em “Aboriginal Land Rights: a Handbook”, editado em Canberra,
Austrália, em 1981, a proporção da terra aborígine na Austrália chegaria a 9,35% do território australiano,
para uma população aborígine de 1,19% da população total daquele país.
Nos Estados Unidos, segundo Curtis Berkey, do Indian Law Resource Center, as terras indígenas
poderão chegar a 8,4% do território, excetuando-se o Alasca desta projeção e a população indígena é
0,5% da população total.
Outro aspecto importante é o da exploração do subsolo das terras indígenas. O texto da
Emenda em discussão, coerente com sua abordagem inicial, propõe que os índios sejam proprietários
das terras e dos bens que nelas se contêm, cuja exploração será por eles decidida, quando e como lhes
convier.
Têm sido divulgadas informações profundamente distorcidas sobre o potencial mineral
contido nas terras indígenas. Não se ignora que na Amazônia há incidência de ouro e estanho,
principalmente, em terras ocupadas por sociedades indígenas, mas sua proporção não é maior que a
do potencial seguramente existente fora das terras dos índios.
Admite-se, contudo, que o eventual interesse do País determine a necessidade de se explorar
minérios em tais terras. Queremos, neste momento, expressar nosso inteiro apoio à formulação
aprovada pela Comissão da Ordem Social a este respeito, cuja origem é proposta não nossa, mas do IV
Encontro de Sindicatos de Engenheiros, posteriormente adotada também pela Coordenação Nacional
dos Geólogos, através de cujo Presidente chegou à Assembléia Nacional.
A formulação, a que nos referimos, restringe a exploração mineral em terras indígenas a
quatro condições básicas: interesse do País, inexistência do bem mineral em questão em outras partes
do território brasileiro, privilégio da União na sua execução e aprovação do Congresso Nacional,
caso a caso. Mantidos estes critérios, que compatibilizam os interesses do País como um todo com o
indeclinável dever de zelar pela integridade física e cultural das populações indígenas afetadas e do
meio ambiente em que vive, cremos não haver risco maior a temer. Se, contudo, for aceita a proposta
das mineradoras privadas, ávidas pelas possibilidades de locupletação ainda maior que lhes significa a
exploração das terras indígenas, estará sendo aceita concessão idêntica à que propuseram, nos idos do
século XVI, os “encomenderos” do Peru.
Há, ainda, que se respeitar e proteger as culturas indígenas como um todo, incluindo seus
usos, costumes, línguas, crenças e tradições.
As garantias especiais necessárias à compensação da desigualdade historicamente imposta
às sociedades indígenas não podem ter contraprestação na imposição de anacrônica e odiosa capitis
diminutio, como se os índios só pudessem ter direitos especiais na medida em que sejam considerados
menos capazes que as demais pessoas. Por isso, deve ficar estabelecida a sua plena capacidade para
todas as iniciativas necessárias à defesa de seus direitos e interesses, independentemente de qualquer
tutela civil.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 215


Por último, devem-se transpor os limites conceituais do igualitarismo apenas liberal. Os
direitos especiais assinalados aos índios não o são visando homogeneizá-los com outra sociedade,
supostamente superior e, por isso, colocada como estágio mais avançado e desejável para os mesmos
índios.
Ao contrário, deve-se legislar para garantir aos índios os direitos à preservação de suas próprias
identidades culturais. O pluralismo cultural, assim como o político, é enriquecedor; a homogeneização
é empobrecedora. Os índios devem ter assegurado o direito de construir seu próprio futuro, livres de
pressões assimilacionistas de qualquer ordem.
Sr. Presidente, no início do século, proferindo palestra no Instituto dos Advogados, Inglês
de Souza clamava contra a omissão da Constituição de 1891, que nada fizera constar sobre os índios.
Dizia ele que daquele milhão de brasileiros – população indígena estimada na época – não cogitara o
legislador, como de matéria vil que, após ter dado assunto para romances fora de moda, melhor é que
desaparecesse, antes que da sua existência se convencesse a Europa, para desdouro nosso...
Transcrevo literalmente as palavras do insigne jurista pátrio.
Pois de um milhão que eram, no início do século, os índios são agora 250 mil... Desde 1934,
o legislador constituinte tem cogitado deles, mas de forma evidentemente insuficiente e ineficaz.
O resultado do trabalho desta Assembléia fechará o século e o milênio, Sr. Presidente, e
por isso não se pode furtar de cogitar, com mais empenho, dos índios. Às tantas queixas havidas,
mercê do abaixo assinado da juventude católica austríaca, respondo apenas que, como previa Inglês
de Souza, deixamos que a Europa se convencesse da existência dos índios brasileiros. Pode-se, porém,
dar resposta à altura à preocupação solidária e humana da juventude da Áustria. Basta que o futuro
texto constitucional inclua entre seus preceitos as garantias essenciais à sobrevivência digna das
sociedades indígenas, reproduzindo os dispositivos que já constaram do Anteprojeto da Comissão da
Ordem Social. Assim, e somente assim, à entrada do terceiro milênio não haverá razões a ninguém para
lamentar omissões.
Cumpre a esta Assembléia lançar os fundamentos para que seja cessada a guerra inclemente
movida aos índios. Para as futuras gerações de brasileiros, índios e não-índios, pode esta Assembléia
legar a paz nunca antes obtida.
Não a paz dos cemitérios, Sr. Presidente, mas a paz da democracia étnica, a verdadeira
democracia para um País que tem a fortuna de abrigar, ainda, tantas sociedades e variedades
culturais.
Além do clamor indígena, é a reivindicação que fazem estes mais de 40 mil eleitores brasileiros
– não ao Rei, como no tempo de Las Casas, mas ao órgão soberano, que por isso mesmo deve ser
expressão máxima da vontade popular, que é esta Assembléia Nacional Constituinte. Muito obrigado.
[ Assembléia Nacional Constituinte (Atas de Comissões); pp.542-566.]

216 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Anexo V

Anais da Assembléia Nacional Constituinte

Diário da Assembléia Nacional Constituinte


Ano II – nº 254 Quinta-Feira, 2 de junho de 1988 Brasília-DF

1 – Ata da 277ª sessão da Assembléia Nacional Constituinte,


em 01 de Junho de 1988.

O SR. RUY NEDEL (PMDB – RS. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, solicito que V.
Ex.ª considere lida matéria sobre a questão indígena, somente acrescentando que às 21 h de ontem
concluímos as negociações com a fusão das emendas para o que seria um belo acordo se o § 4º do art.
269 tivesse permanecido. Abriu-se uma fresta – não uma porta – pela qual, no futuro, o índio poderá
pagar caro. Ficará para a nossa competência, na legislação complementar, manter a garantia do índio
como efetivamente desejamos.
MATÉRIA A QUE SE REFERE O ORADOR
A QUESTÃO INDÍGENA
A questão indígena sempre foi associada à questão da terra, convergindo aí os obstáculos que, até
hoje, protelaram uma justa e racional apreciação, uma vez que incorriam e ainda incorrem em rota
de colisão com as prioridades políticas e econômicas governamentais.
A omissão ou insensibilidade na análise por parte da Assembléia Nacional Constituinte, no momento
em que estamos elaborando a Magna Carta, remeterá – incondicionalmente – em crime de lesa-
Pátria, condicionando as comunidades indígenas à própria sorte.
Na discriminação racial – objeto do mais palpitante tema da atualidade – o índio, infelizmente, para
desgraça, principalmente sua e também da história, conseguiu ser o mais estigmatizado.
O índio acabou sem direito algum, não tendo, sequer, o da sobrevivência.
E hoje, na Organização das Nações Unidas, é a única raça que não tem representante.
Basta da indiferença, do verdadeiro atentado contra a soberania da outrora promissora e pacífica
nação indígena, hoje objeto dos mais hediondos crimes e degradações que inclui uma ampla espiral
que vai desde o incitamento ao consumo de bebidas alcoólicas até o recente massacre dos Ticuna, no
rio Solimões.
Não é do desconhecimento público que existem aldeias no Brasil onde as índias matam os filhos recém-
nascidos porque não há perspectiva de vida para os que nascem.
Há de se registrar, também, que existe a ameaça e o risco efetivo, se permanecer a redação como está
no Projeto de Constituição, de comunidades inteiras se imolarem em suicídio, e, este peso não pode
ficar na consciência da Assembléia Nacional Constituinte, até porque, depois do fato consumado, fica
o remorso.
O essencial é o homem, o homem de agora, o homem das gerações futuras. E a história, na questão do
índio, é bem nítida. Ela não é clara, mas é bem nítida. Não é clara porque foi escrita a sangue, na base

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 217


do lodaçal da vergonha, do assassinato, do crime, do roubo, da maior injustiça que a humanidade já
viu ao longe dos milênios do nosso globo terrestre.
A história, aqui no Brasil, se escreveu no pseudo-aculturamento. A aculturação do índio no Brasil e
no continente americano se fez menos com armas, é verdade, mas à base da cachaça, da varíola, do
sarampo e da blenorragia. O maior legado que o branco deixou para o índio foi a morte, nem sequer,
o desterro.
É chegado o momento de resgatarmos nossa história, manter viva a chama de nossos precursores.
O indígena deve ser reconhecido e repensado não como mero figurante do passado ou presente de
nossa história, mas deve fazer parte integrante, como co-autor, de nosso futuro.
O texto produzido pela Comissão da Ordem Social refletia os anseios dos povos indígenas, formulados
de forma a agasalhar a alentada esperança de que os seus direitos seriam respeitados.
Esbarrou, porém, nos interesses econômicos em terras indígenas decorrentes de exploração das
mineradoras, cuja ação predatória fora freada e vetada, no afã de, na nova redação, ser definitivamente
aprovada.
Como a atividade de mineração em terras indígenas estará subordinada à regulamentação legal,
caberá à lei dispor sobre a forma de consulta das comunidades indígenas, razão pela qual se retira do
texto constitucional a expressão “ouvidas as comunidades afetadas”.
Do texto que resultar poderá inibir e punir as contravenções dos direitos garantidos aos
índios, bem como criar condições desfavoráveis para que as comunidades indígenas se tornem presas
fáceis das promessas inconsistentes que lhes são feitas por grupos econômicos.
O pano de fundo que serve de parâmetro para os Projetos de Políticas Indigenistas até
agora mostraram-se frágeis e incompatíveis com os avanços de salvaguarda dos Direitos Humanos,
estabelecidas pelas nações mais desenvolvidas do mundo e que, até o momento, no Brasil, esculpiram
a já trágica luta dos índios por sua terra.
As nações indígenas estão saturadas das evasivas que freqüentemente lhe impingem, e nós,
Constituintes, não podemos incorrer, por omissão ou conivência, em erro maior capaz de precipitar o
completo genocídio.
O momento que antecede a votação do último capítulo sobre a ordem social é também o
último prazo destinado às tentativas de sensibilizar as lideranças partidárias para a questão do índio.
A palavra de ordem da Assembléia Nacional Constituinte deve ser, quando de sua votação
pela intransigente defesa da vida dos povos indígenas.
É no plenário que se travará o embate decisivo, quer para os interesses dos grupos econômicos
– antiindigenistas – quer para aqueles que estão comprometidos na defesa dos direitos dos índios,
mas, acima de tudo, estará em mate a sobrevivência de cerca de 180 povos ainda existentes no País.
Que tenhamos presente estes pensamentos para que não venhamos nos arrepender
amanhã.
(pp.11-12)
(...)
O SR. AGASSIZ ALMEIDA (PMDB – PB. Pronuncia o seguinte discurso): – Sr. Presidente Srs.
Constituintes: “querem que tragamos os gentios à fé, e que os entreguemos à cobiça; querem que tragamos
as ovelhas ao rebanho, e que as entreguemos ao cutelo; querem que tragamos os magos a Cristo, e que os
entreguemos a Herodes” (Padre Vieira, Sermão da Epifania, 1662).
Na sessão de hoje, esta constituinte se ocupa da questão do índio, talvez uma das mais
importantes se levarmos em conta o sentido ético que ela encerra, quando nos coloca, como
representantes de uma suposta “civilização”, com a responsabilidade de contribuir decisivamente ou
para a sobrevivência ou para a extinção dos derradeiros remanescentes de um povo que um dia foi o
dono absoluto e legítimo das terras brasileiras.

218 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Daquela histórica advertência do Padre Vieira aos nossos dias, a heróica raça, que jamais se
deixou escravizar pelos colonizadores dominados pela cobiça e sedentos de sangue, sofreu toda sorte
de perseguições e assistiu à dizimação cruel de sua gente.
Parecia consumar-se o trágico vaticínio de “Y Juca Pirama”, de Gonçalves Dias, o poeta do
holocausto indígena. “... condenados a morrer”.
A Igreja, em nosso País, que desde a piedosa catequese dos primórdios de nossa História
dedica especial atenção ao problema indigenista, tem prestado assinalado serviço na defesa dos
direitos dos silvícolas.
A CNBB e o Conselho Missionário Indigenista, em razão da nobre causa abraçada, têm sido
alvo de implacáveis ataques desferidos por grupos poderosos vivamente interessados em usurpar os
territórios dos índios, ali desenvolvendo projetos econômicos que graves danos causam às populações
autóctones, levando-lhes doenças, vícios e corrupção.
Esta Constituinte, Sr. Presidente, em junho de 1987, adotava um texto produzido pela
Comissão da Ordem Social que atendia aos direitos dos povos indígenas, oferecendo-lhes a perspectiva
de viverem em paz em suas terras.
Entretanto, o substitutivo do Relator, Deputado Bernardo Cabral, trouxe justificada inquietação,
ao fazer a distinção entre índios em “elevado estágio de aculturação” e índios “não aculturados”,
despojando os primeiros de seus legítimos direitos.
Em sua 26ª Assembléia Geral, realizada em abril último, em Itaici, São Paulo, a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil oferece à reflexão dos Srs. Constituintes valiosos subsídios, começando
por alertar sobre as limitações de um Congresso Nacional Constituinte em lugar de uma Assembléia
Constituinte exclusiva, o que veio favorecer a ação dos “grupos decididos a manter privilégios e garantir
a continuidade de velhas situações de dominação”.
Sobre o Substitutivo do Relator, a CNBB assim se manifesta:
“Ao redigir seus dois substitutivos desprezando totalmente o resultado das votações precedentes que
tinham dado origem ao texto, o Relator Bernardo Cabral concebeu a mais lesiva redação sobre direitos
indígenas de toda a história legislativa do Brasil. Coincidência, ou não, Bernardo Cabral incluiu no
capítulo sobre os índios a mesma distinção que depois seria adotada no Decreto 94.946, de 23 de
setembro de 1987, entre índios em “elevado estágio de aculturação” e índios “não aculturados”.
Porém o Conselho Indigenista Missionário – Cimi – conseguiu que fossem apresentados
emendas a restaurar o espírito original da formulação dos direitos desses povos, como constava da
proposta da Comissão da Ordem Social.
A manutenção do disposto no Projeto da Comissão de Sistematização, por ferir fundo os
direitos indigenistas, se transformaria numa triste página desta Constituinte. Carta Magna de país algum
pode condenar o que há de mais puro e autêntico de suas raízes culturais ao completo desaparecimento.
Estaríamos, nesse caso, nos acumpliciando com o genocídio que se perpetra há 500 anos na mais
absoluta impunidade, só que doravante sob o manto hipócrita de uma chamada Lei Maior.
Tenhamos, caros colegas, a grandeza suficiente para compreender o nosso papel.
Não nos coloquemos como réus desse bárbaro crime no julgamento das nações realmente
civilizadas e que, neste histórico momento, têm suas vistas voltadas para o nosso trabalho.
Não transformaremos este plenário no cutelo de indefesas vítimas e nem sejamos verdugos
no sacrifício das ovelhas trazidas ao rebanho.
(p.15)
(...)
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Vai-se passar à IV – ORDEM DO DIA. Vamos passar
à Emenda Coletiva nº 2.044, referente ao Capítulo VIII do Título VIII, que trata dos índios. A emenda se
refere ao capítulo que serve de base ao “Centrão”, sobre a qual houve entendimento geral. A fusão será
submetida posteriormente à consideração do Plenário.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 219


É o seguinte o texto a ser votado, ressalvados os destaques:

EMENDA Nº 2.044 Coletiva


CAPÍTULO VIII
Dos índios
Art. 263. São reconhecidos aos índios seus direitos originários sobre as terras de posse
imemorial onde se acham permanentemente localizados, e sua organização social, seus usos,
costumes, línguas, crenças e tradições serão respeitados e protegidos pela União.
§ 1º Os atos que envolvam interesses das comunidades indígenas terão a participação
obrigatória de órgão federal próprio, na forma da lei, sob pena de nulidade.
§ 2º O aproveitamento de recursos hídricos, inclusive dos potenciais energéticos e a exploração
das riquezas minerais em terras indígenas observada a legislação específica, obriga à concessão
de participação na resultado em favor das comunidades indígenas, na forma da lei.
Art. 264. As terras de posse imemorial dos índios são destinadas à sua posse permanente,
cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas naturais do solo e dos recursos fluviais nelas
existentes.
§ 1º As terras referidas neste artigo são bens inalienáveis e imprescritíveis da União, cabendo
a esta demarcá-las, ouvido o Senado Federal.
§ 2º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo nos casos de epidemia,
catástrofe natural ou de relevante interesse público, garantido o seu retorno quando o risco
estiver eliminado.
Art. 265. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em
juízo em defesa dos interesses e direitos indígenas, mediante representação do Ministério
Público.
Art. 266. Os direitos previstos neste Capítulo só se aplicam aos índios que, efetivamente,
habitem terras indígenas e não possuam elevado grau de aculturação.

O SR. JOSÉ GENOÍNO: – Sr. Presidente, peço a palavra para uma questão de ordem, com base
no art. 74.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra.
O SR. JOSÉ GENOÍNO (PT – SP. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, a questão de ordem
que formulo a V. Ex.ª é no sentido de colaborar para o bom andamento dos trabalhos desta Assembléia
Nacional Constituinte. Eu poderia levantá-la no início da votação das Disposições Transitórias, mas
preferi fazê-lo agora, exatamente porque há tempo para que V. Ex.ª possa examiná-la, já que a considero
importante.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Peço que as questões de ordem digam respeito a
cada parte a ser tratada. Do contrário, tumultuaremos nossos trabalhos.
O SR. JOSÉ GENOÍNO: – Serei breve, Sr. Presidente. É sobre o processo de votação, porque
isso é importante para os acordos que serão ou não feitos.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Vindo de V. Ex.ª, é sempre importante.
O SR. JOSÉ GENOÍNO: – Sr. Presidente, solicito paciência a V. Ex.ª.
O SR. ROBERTO JEFFERSON: – Sr. Presidente, V. Ex.ª já anunciou a votação. Vamos votar.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Vamos passar à votação, senão atrasaremos a
parte referente aos índios, que estão esperando há mais de dez dias a decisão a propósito do assunto.
(Palmas.)
O SR. JOSÉ GENOÍNO: – Sr. Presidente, a votação das Disposições Transitórias abrange vários
artigos autônomos e diferentes uns dos outros. Pergunto a V. Ex.ª se será votado artigo por artigo de

220 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


um texto-base, ou se será votado o título, porque elas não são um título, e nunca houve votação de
título. Certamente o Preâmbulo e o Título I não podem ser usados como argumento, porque tinham
uma unidade intrínseca, o que não acontece com as Disposições Transitórias. Cada artigo é autônomo
em relação a outro. Portanto, como será votado o texto-base das Disposições Transitórias? Artigo por
artigo, ou título?
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – A Presidência, no momento regimentalmente
oportuno, responderá à importante questão de ordem suscitada por V. Ex.ª (Palmas. Muito bem!)
O SR. ADOLFO OLIVEIRA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra pela ordem.
O SR. ADOLFO OLIVEIRA (PL – RJ. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, a bancada do PL,
tendo em vista o acordo firmado, vota “sim”.
O SR. INOCÊNCIO OLIVEIRA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra pela ordem.
O SR. INOCÊNCIO OLIVEIRA (PFL – PE. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, face ao
acordo, o Partido da Frente Liberal recomenda à sua Bancada que vote “sim”.
O SR. ROBERTO JEFFERSON: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra pela ordem.
O SR. ROBERTO JEFFERSON (PTB – RJ. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PTB votará
“sim”, acompanhando o acordo.
O SR. HAROLDO LIMA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª palavra pela ordem.
O SR. HAROLDO LIMA (PC do B. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, para viabilizar o
acordo, o PC do B votará “sim”.
O SR. AMARAL NETTO:
– Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra pela ordem.
O SR. AMARAL NETTO (PDS – RJ. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PDS votará
“sim”.
O SR. TADEU FRANÇA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra pela ordem.
O SR. TADEU FRANÇA (PDT – RJ. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PDT,
cumprimentando as 32 lideranças que representam nações indígenas de todo o País, aqui presentes,
em função do acordo, vota “sim”. (Palmas.)
O SR. PLÍNIO ARRUDA SAMPAIO:
– Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra pela ordem.
O SR. PLÍNIO ARRUDA SAMPAIO (PT – SP. Sem revisão do orador.): – Sr.
Presidente, o Partido dos Trabalhadores vota “sim”.
O SR. ROBERTO FREIRE: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra pela ordem.
O SR. ROBERTO FREIRE (PCB – PE. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PCB, em
função do acordo, vota “sim”.
O SR. SIQUEIRA CAMPOS: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra pela ordem.
O SR. SIQUEIRA CAMPOS (PDC – GO. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o Partido
Democrata Cristão votará “sim”, cumprindo o acordo.
O SR. ADEMIR ANDRADE: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 221


O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra.
O SR. ADEMIR ANDRADE (PSB – PA. Sem revisão do orador.):
– Sr. Presidente, o Partido Socialista Brasileiro, em função do acordo, votará favoravelmente.
O SR. MÁRIO COVAS: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra.
O SR. MÁRIO COVAS (PMDB – SP. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, a Liderança do
PMDB vota a favor.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Trata-se da votação do texto-base, resultado de
entendimento geral sobre a emenda que será votada posteriormente. Podem votar “sim”, “não” ou
“abstenção”.
(Procede-se à votação)
O SR. GONZAGA PATRIOTA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Concedo a palavra pela ordem a V. Ex.ª.
O SR. GONZAGA PATRIOTA (PMDB – PE. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o meu voto
é “sim”, mas registrei “não”. Gostaria que fosse retificado.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Está encerrada a votação.
A Mesa vai proclamar o resultado (votação nº 615):

SIM – 469
NÃO – 5
ABSTENÇÃO – 5
TOTAL – 479
A emenda coletiva foi aprovada.
VOTARAM OS SRS. CONSTITUINTES: (...)
O SR. JOSÉ LINS (PFL – CE. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o Jornal do Brasil traz
hoje em sua página 2, em matéria sob o titulo “Deputado Estranha o Cheiro de Índio”, declaração
supostamente minha que em absoluto é verdadeira. Sei que declarações desse tipo jamais encontram
ressonância nos jornais responsáveis. Mas, assim mesmo, não posso deixar de consignar meu protesto
em respeito aos índios que aí estão, com os quais trabalhei vários dias e que merecem a consideração
de uma declaração formal. Jamais em minha vida disse o que o Jornal a mim atribui. Digo a V. Ex.ª e
aos meus pares que o próprio jornalista pronunciou a referida frase e a colocou em meu nome. Espero,
pelo respeito que o Jornal do Brasil me merece, que esta inverdade seja corrigida e fique, assim,
restabelecido em relação aos índios brasileiros, que certamente é uma comunidade que tem cooperado
para a formação da brasilidade, todo o nosso apoio.
Meus cumprimentos aos índios brasileiros que nos assistem neste momento. (Palmas.)
(p.23)
(...)
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Vamos anunciar a fusão subscrita por 28 Srs.
Constituintes, resultante de entendimento geral a propósito dos direitos e prerrogativas concernentes
aos índios brasileiros. O texto tem a seguinte redação:
“Excelentíssimo Senhor Presidente da Assembléia Nacional Constituinte:
Os firmatários, autores dos destaques e emendas abaixo-assinados, vêm, requerer nos termos do §
2º do art: 3º da Resolução nº 3/88, a fusão das proposições para efeito de ser votada, como texto
substitutivo do art. 268 e segts., Cap. VIII, do Tít. VIII do Projeto (art. 263 e segts., do Subst.
2.044), a seguinte redação:

222 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


TÍTULO VIII
Dos Índios
Art. 268. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo
à União demarca-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Parágrafo único. O aproveitamento dos recursos hídricos, inclusive dos potenciais energéticos,
a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados
com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes
assegurada a participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
Art. 269. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são destinadas à sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, fluviais e lacustres nelas
existentes.
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, incluídas aquelas imprescindíveis
à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar, e as áreas necessárias à
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são inalienáveis e indisponíveis, e os
direitos sobre elas são imprescritíveis.
§ 3º Fica vedada a remoção dos grupos indígenas das terras que tradicionalmente ocupam,
salvo, ad referedum do Congresso Nacional, nos casos de catástrofe ou de epidemias que ponham
em risco sua população e, nos casos de interesse da soberania Nacional, após deliberação do
Congresso Nacional, garantido, em qualquer caso, o retorno imediato tão logo cesse o risco.
§ 4º São nulos e extintos, e não produzirão efeitos jurídicos os atos que tenham por objeto a
ocupação, o domínio e a posse das terras de que trata o parágrafo primeiro deste artigo, ou
a exploração das riquezas naturais do solo, fluviais e lacustres nelas existentes, ressalvado
relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar. A nulidade
e extinção de que trata este parágrafo não dão direito de ação ou indenização contra a União,
salvo quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé, na forma da lei.
§ 5º Não se aplica nas terras indígenas, o disposto no § 3º do art. 203.
Art. 270. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em
juízo em defesa dos seus interesses e direitos, intervindo o Ministério Público em todos os atos
do processo.
Sala das sessões, de maio de 1988.

– Mário Covas, D2127/D.2129/D.2130/D.2237 – Jarbas Passarinho, D.373/ E281 – Plínio


Arruda Sampaio, D.1812 – Haroldo Lima, D.1275 – José Carlos Sabóia, D.1100/E.907 – Tadeu França,
D.484/E.115 – Ruy Nedel, D.1212/E.505 – Alceni Guerra, D.1604/E.1471 – Carlos Cardinal, D.2180
– Fábio Feldman, D.1143 – Moysés Pimentel, D.69 e 1111/E.494 – Ézio Ferreira, D.1478/E.584 –
Benedita da Silva – Octávio Elísio – José Maria Eymael – Aldo Arantes – Marluce Pinto – Anna Maria
Rattes – José Dutra – Moema São Tiago – Vivaldo Barbosa – Amaury Müller – Ottomar Pinto – João
Paulo – Rose de Freitas – Arthur da Távola.
O SR. JOÃO AGRIPINO: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra.
O SR. JOÃO AGRIPINO (PMDB – PB. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, apelo para o
eminente Relator, a fim de que atente para a redação dos §§ 3º e 4º dessa fusão. O § 3º refere-se a casos
de catástrofe, no singular, e epidemias, no plural.
Entendo que catástrofe não deve ser somente uma, se epidemia pode ser mais de uma. E há
referência, duas vezes, ao congresso Nacional, no mesmo parágrafo. O § 4º diz que os atos são nulos

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 223


e extintos, e não produzirão efeitos jurídicos. Se são nulos, obviamente são extintos e não produzem
efeitos jurídicos.
Portanto, peço a atenção de V. Ex.ª para que na redação final sejam corrigidos, a meu ver,
essas questões de imperfeição redacional.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – O Relator informa que as tomará na devida conta,
para exame, e depois o próprio Plenário ponderará as alegações feitas por V. Ex.ª.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Concedo a palavra ao nobre Constituinte Ruy
Nedel, para encaminhar a votação.
O SR. RUY NEDEL (PMDB – RS. Sem revisão do orador.): –

Del mar los vieren llegar Ya todo estaba acabado


Los hermanos emplumados Y en este error entregamos
Eram los hombres barbados La grandeza del pasado
De la profecía esperada Y en este error nos quedamos
Se oye la voz del Monarca Trecientos anos esclavos
De que Dios habia Ilegado Se nos quedó el maleficio
Y los abrimos las puertas De brindar al extranjero
Por temor al ignorado Nuestra fe, nuestra cultura
Venían montados en bestias Nuestro pan, nuestro dinero
Como demonios del mal Aún hoy seguimos cambiando
Venían con fuego en sus manos Oro por cuentas de vidrio
Y cubiertos de metal Y damos nuestras riquezas por sus
Por el valor de unos cuantos Espejos com brillo
Se los opuso resistencia Aún hoy nos vienen Ilegando Gringos.
Y al vieren correr la sangre Nos curvamos y les llamamos Amigos.
Se llenarm de vergüenza Pero si viene um indio
Porque los dioses no comen Cansado de andar en Ia sierra
Ni gozan com el robado Lo humilamos y lo vemos como
Y cuando nos dimos cuenta Extraño em su tierra. (Palmas.)

Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Constituintes, este lamento secular ocorreu de Norte a Sul, da terra
dos Esquimós à Patagônia, em solo americano do litoral atlântico ao litoral pacífico. Não temos aqui o
acordo da matéria que gostaríamos de ver aprovada. Cedemos muito. Cedemos não só em sonhos, mas
em fatos concretos que poderiam ser aprovados.
Mas o fundamental era que, neste momento histórico, esta Assembléia Nacional Constituinte
salvasse do genocídio o que resta dos retalhos de aldeamentos indígenas que existem em nossa Pátria.
E foi isto o que procuramos, cedendo o tanto para não nos sentirmos realizados, mas o suficiente para
que o índio fosse resguardado e toda esta Assembléia Nacional Constituinte pudesse dar o uníssono
“sim” para este acordo.
Peço a V. Ex.as que não haja um “não” sequer, para que mostremos para a História que
queremos preservar uma raça que está em extinção.
Era isso, Sr. Presidente. (Palmas.)
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Em votação a matéria. Trata-se de fusão
resultante de entendimento entre as Lideranças e forças representativas junto à Assembléia Nacional
Constituinte.
Em votação o texto da fusão concernente aos índios.

224 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Peço aos Srs. Constituintes que ocupem os seus lugares.
O SR. INOCÊNCIO OLIVEIRA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Concedo a palavra ao nobre Constituinte.
O SR. INOCÊNCIO OLIVEIRA (PFL – PE. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, em face do
acordo havido entre todos os Líderes dos diferentes partidos com assento nesta Assembléia Nacional
Constituinte, a Liderança do Partido da Frente Liberal recomenda à sua bancada votar “sim”. (Palmas.)
A SRA. BENEDITA DA SILVA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Concedo a palavra a nobre Constituinte.
A SRA. BENEDITA DA SILVA (PT – RJ. Sem revisão da oradora.): – Sr. Presidente, pelo que foi
possível, dentro do acordo, o PT vota “sim”. (Palmas.)
O SR. AMARAL NETTO: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Concedo a palavra ao nobre Constituinte.
O SR. AMARAL NETTO (PDS – RJ. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, a Bancada do PDS
vota “sim”. (Palmas.)
O SR. HAROLDO LIMA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Concedo a palavra ao nobre Constituinte Haroldo
Lima.
O SR. HAROLDO LIMA (PC do B – Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PC do B considera
que o texto, ora em votação, significa um razoável avanço e o reconhecimento dos direitos legítimos e
originários da população indígena brasileira. Votará “sim”. (Palmas.)
O SR. GASTONE RIGHI: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Concedo a palavra ao nobre Constituinte Gastone
Righi.
O SR. GASTONE RIGHI (PTB – SP. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, a Liderança do
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro – votará “sim” à emenda.
O SR. TADEU FRANÇA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Concedo a palavra ao nobre Constituinte Tadeu
França.
O SR. TADEU FRANÇA (PDT – PR. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, em função de
alguns avanços, como a não restrição dos direitos constitucionais aos índios, havidos como aculturados
e outros similares, o PDT, reconhecendo as limitações, por entender que é um avanço, vota “sim”.
(Palmas e apupos.)
O SR. SIQUEIRA CAMPOS: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Concedo a palavra ao nobre Constituinte Siqueira
Campos.
O SR. SIQUEIRA CAMPOS (PDC – GO. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, a Constituinte
resgata a dívida que a Nação tem para com os índios. O PDC vota “sim”, satisfeito com o acordo.
(Palmas.)
O SR. ADOLFO OLIVEIRA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra.
O SR. ADOLFO OLIVEIRA (PL – RJ. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, em defesa de
nossos irmãos índios, o Partido Liberal vota “sim”.
O SR. ROBERTO FREIRE: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra.
O SR. ROBERTO FREIRE (PCB – PE. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o Partido
Comunista Brasileiro votará “sim”.
O SR. JOSÉ CARLOS SABÓIA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 225


O SR. JOSÉ CARLOS SABÓIA (PSB – MA. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PSB, em
respeito às lideranças indígenas e às minorias étnicas, votará “sim”.
O SR. MÁRIO COVAS: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem V. Ex.ª a palavra.
O SR. MÁRIO COVAS (PMDB – SP. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, a Liderança do
PMDB vota “sim”.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Srs. Constituintes, ocupem os seus lugares, pois
vamos começar a votação. O parecer do Relator é, obviamente, favorável. Há tempo ainda. Os que
se encontram de pé – e que não são poucos – podem sentar-se para votar. Façam o registro dos
códigos. Todos já sabem que se trata de fusão resultante de acordo geral. Podem votar “sim”, “não” e
“abstenção”.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Em votação a matéria. (Procede-se à votação)
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Está encerrada a votação.
A Mesa vai proclamar o resultado (votação nº 616):

SIM – 497 6
NÃO – 5 7
ABSTENÇÃO – 10 8
TOTAL – 512
A fusão foi aprovada”.

6 Votaram SIM os Constituintes: Abigail Feitosa; Acival Gomes; Adauto Pereira; Ademir Andrade; Adhemar de Barros Filho;
Adolfo Oliveira; Adroaldo Streck; Adylson Motta; Aécio de Borba; Aécio Neves; Affonso Camargo; Agassiz Almeida; Agripino
de Oliveira Lima; Airton Cordeiro; Airton Sandoval; Alarico Abib; Albano Franco; Albérico Cordeiro; Albérico Filho; Alceni
Guerra; Aldo Arantes; Alércio Dias; Alexandre Costa; Alexandre Puzyna; Alfredo Campos; Almir Gabriel; Aloísio Vasconcelos;
Aloysio Chaves; Aloysio Teixeira; Aluízio Bezerra; Aluízio Campos; Álvaro Antônio; Álvaro Pacheco; Amaral Netto; Amaury
Müller; Amilcar Moreira; Anna Maria Rattes; Annibal Barcellos; Antero de Barros; Antônio Britto; Antônio Câmara; Antônio
Carlos Franco; Antônio Carlos Mendes Thame; Antônio de Jesus; Antônio Ferreira; Antônio Gaspar; Antônio Mariz; Antônio
Perosa; Antônio Salim Curiati; Arnaldo Faria de Sá; Arnaldo Martins; Arnaldo Moraes; Arnaldo Prieto; Arnold Fioravante;
Arolde de Oliveira; Artenir Werner; Artur da Távola; Asdrubal Bentes; Átila Lira; Augusto Carvalho; Benedicto Monteiro;
Benedita da Silva; Benito Gama; Bernardo Cabral; Beth Azize; Bezerra de Melo; Bocayuva Cunha; Bonifácio de Andrada;
Bosco França; Brandão Monteiro; Caio Pompeu; Cardoso Alves; Carlos Alberto; Carlos Alberto Caó; Carlos Benevides;
Carlos Cardinal; Carlos Chiarelli; Carlos Cotta; Carlos De’Carli; Carlos Mosconi; Carlos Sant’Anna; Carlos Vinagre; Carrel
Benevides; Cássio Cunha Lima; Célio de Castro; Celso Dourado; César Cals Neto; César Maia; Chagas Duarte; Chagas
Neto; Chagas Rodrigues; Chico Humberto; Christóvam Chiaradia; Cid Sabóia de Carvalho; Cláudio Ávila; Cleonâncio
Fonseca; Costa Ferreira; Cristina Tavares; Cunha Bueno; Dalton Canabrava; Darcy Deitos; Darcy Pozza; Daso Coimbra;
Del Bosco Amaral; Delfim Netto; Délio Braz; Denisar Arneiro; Dionísio Dal Prá; Dionísio Hage; Dirce Tutu Quadros; Dirceu
Carneiro; Divaldo Suruagy; Djenal Gonçalves; Domingos Juvenil; Domingos Leonelli; Doreto Campanari; Edésio Frias;
Edison Lobão; Edivaldo Holanda; Edivaldo Motta; Edme Tavares; Edmilson Valentim; Eduardo Bonfim; Eduardo Moreira;
Egídio Ferreira Lima; Elias Murad; Eliel Rodrigues; Enoc Vieira; Eraldo Tinoco; Eraldo Trindade; Erico Pegoraro; Ervin
Bonkoski; Etevaldo Nogueira; Euclides Scalco; Eunice Michiles; Evaldo Gonçalves; Expedito Machado; Ézio Ferreira; Fábio
Feldmann; Fábio Raunheitti; Farabulini Júnior; Fausto Fernandes; Fausto Rocha; Felipe Cheidde; Felipe Mendes; Feres
Nader; Fernando Bezerra Coelho; Fernando Cunha; Fernando Gasparian; Fernando Henrique Cardoso; Fernando Lyra;
Fernando Santana; Firmo de Castro; Flávio Palmier da Veiga; Florestan Fernandes; Floriceno Paixão; França Teixeira;
Francisco Amaral; Francisco Benjamim; Francisco Carneiro; Francisco Coelho; Francisco Dornelles; Francisco Küster;
Francisco Rollemberg; Francisco Rossi; Furtado Leite; Gabriel Guerreiro; Gandi Jamil; Gastone Righi; Genebaldo Correia;
Genésio Bernardino; Geovah Amarante; Geovani Borges; Geraldo Alckmin Filho; Geraldo Bulhões; Geraldo Campos;
Geraldo Melo; Gerson Camata; Gerson Marcondes; Gerson Peres; Gidel Dantas; Gil César; Gonzaga Patriota; Guilherme
Palmeira; Gumercindo Milhomem; Gustavo de Faria; Haroldo Lima; Haroldo Sabóia; Hélio Costa; Hélio Duque; Hélio
Manhães; Hélio Rosas; Henrique Córdova; Henrique Eduardo Alves; Heráclito Fortes; Hermes Zaneti; Hilário Braun; Homero
Santos; Humberto Lucena; Humberto Souto; Iberê Ferreira; Ibsen Pinheiro; Inocêncio Oliveira; Irajá Rodrigues; Iram Saraiva;
Irma Passoni; Ismael Wanderley; Israel Pinheiro; Itamar Franco; Ivo Cersósimo; Ivo Lech; Ivo Mainardi; Ivo Vanderlinde;
Jacy Scanagatta; Jairo Azi; Jairo Carneiro; Jalles Fontoura; Jamil Haddad; Jarbas Passarinho; Jayme Paliarin; Jayme
Santana; Jesualdo Cavalcanti; Jesus Tajra; Joaci Góes; João Agripino; João Alves; João Calmon; João Carlos Bacelar;
João Castelo; João Cunha; João da Mata; João de Deus Antunes; João Lobo; João Machado Rollemberg; João Natal;
João Paulo; Joaquim Bevilacqua; Joaquim Francisco; Joaquim Hayckel; Joaquim Sucena; Jofran Frejat; Jonas Pinheiro;
Jonival Lucas; Jorge Arbage; Jorge Hage; Jorge Leite; Jorge Medauar; Jorge Uequed; Jorge Vianna; José Agripino; José
Camargo; José Carlos Grecco; José Carlos Sabóia; José Costa; José da Conceição; José Dutra; José Elias; José Fernandes;
José Freire; José Genoíno; José Guedes; José Ignácio Ferreira; José Jorge; José Lins; José Lourenço; José Luiz de Sá;

226 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Diário da Assembléia Nacional Constituinte
Ano II – nº 254 Quinta-Feira, 2 de junho de 1988 Brasília-DF
2 – Ata da 279ª sessão da Assembléia Nacional Constituinte,
em 2 de junho de 1988
(....)
“O SR. GERSON PERES (PDS – PA. Sem revisão do orador.): Sr. Presidente, Srs. Constituintes,
desejo fazer dois registros. O primeiro referente ao que aprovamos ontem nesta Casa, o capítulo que
trata da proteção ao índio.
Deixo aqui registrar a justiça que se deve fazer à iniciativa destas medidas, que avançaram,
porque se falou muito na proteção aos índios, mas não se destacou a Liderança importante na feitura,
na elaboração das normas que determinaram a mais ampla garantia aos direitos dos índios.
Esqueceram os oradores que falaram sobre a matéria, por uma omissão ou por um lapso, que
a fonte geradora deste capítulo que se inseriu na nossa Constituição vem do Presidente Nacional do
Partido Democrático Social, o Senador Constituinte Jarbas Passarinho.
Pois fique consignado nos Anais o poder da iniciativa principal, pois foi sobre esse trabalho
que as Lideranças se debruçaram para chegar a um acordo que satisfizesse as esperanças, os desejos
não só dos índios, como de toda a Nação brasileira”.
(p.111)

José Luiz Maia; José Maranhão; José Maria Eymael; José Maurício; José Melo; José Mendonça Bezerra; José Moura;
José Paulo Bisol; José Queiroz; José Richa; José Santana de Vasconcelos; José Serra; José Tavares; José Teixeira; José
Thomaz Nono; José Tinoco; José Ulísses de Oliveira; José Viana; Jovanni Masini; Juarez Antunes; Júlio Campos; Júlio
Costamilan; Jutahy Magalhães; Koyu Iha; Lael Varella; Lavoisier Maia; Leite Chaves; Lélio Souza; Leopoldo Bessone;
Leopoldo Peres; Leur Lomanto; Levy Dias; Lezio Sathler; Lídice da Mata; Louremberg Nunes Rocha; Lourival Baptista;
Luís Roberto Ponte; Luiz Alberto Rodrigues; Luiz Freire; Luiz Gushiken; Luiz Inácio Lula da Silva; Luiz Salomão; Luiz Soyer;
Luiz Viana; Luiz Viana Neto; Lysâneas Maciel; Maguito Vilela; Manoel Castro; Manoel Moreira; Manoel Ribeiro; Mansueto
de Lavor; Manuel Viana; Marcelo Cordeiro; Márcia Kubitschek; Márcio Braga; Márcio Lacerda; Marco Maciel; Marcos Lima;
Marcos Perez Queiroz; Maria de Lourdes Abadia; Maria Lúcia; Mário Assad; Mário Bouchardet; Mário Covas; Mário de
Oliveira; Mário Maia; Marluce Pinto; Matheus Jensen; Mattos Leão; Maurício Campos; Maurício Corrêa; Maurício Fruet;
Maurício Nasser; Maurício Pádua; Maurílio Ferreira Lima; Mauro Benevides; Mauro Borges; Mauro Campos; Mauro Miranda;
Mauro Sampaio; Max Rosenmann; Meira Filho; Mello Reis; Melo Freire; Mendes Botelho; Mendes Canale; Mendes Ribeiro;
Messias Góis; Messias Soares; Michel Temer; Milton Barbosa; Milton Lima; Milton Reis; Miraldo Gomes; Miro Teixeira;
Moema São Thiago; Moysés Pimentel; Mozarildo Cavalcanti; Mussa Demes; Myrian Portella; Nabor Júnior; Naphtali Alves
de Souza; Narciso Mendes; Nelson Aguiar; Nelson Carneiro; Nelson Jobim; Nelson Sabra; Nelson Seixas; Nelson Wedekin;
Nelton Friedrich; Nestor Duarte; Ney Maranhão; Nilson Sguarezi; Nilson Gibson; Nion Albernaz; Noel de Carvalho; Nyder
Barbosa; Octávio Elísio; Odacir Soares; Olívio Dutra; Onofre Corrêa; Orlando Bezerra; Oscar Corrêa; Osmar Leitão; Osmir
Lima; Osmundo Rebouças; Osvaldo Bender; Sim Osvaldo Coelho; Osvaldo Macedo; Osvaldo Sobrinho; Oswaldo Trevisan;
Ottomar Pinto; Paes de Andrade; Paulo Delgado; Paulo Macarini; Paulo Mincarone; Paulo Paim; Paulo Pimentel; Paulo
Ramos; Paulo Roberto; Paulo Roberto Cunha; Paulo Silva; Pedro Canedo; Percival Muniz; Pimenta da Veiga; Plínio Arruda
Sampaio; Plínio Martins; Pompeu de Sousa; Rachid Saldanha Derzi; Raimundo Bezerra; Raimundo Lira; Raimundo Rezende;
Raul Belém; Raul Ferraz; Renan Calheiros; Renato Bernardi; Renato Johnsson; Renato Vianna; Ricardo Fiúza; Ricardo
Izar; Rita Camata; Rita Furtado; Roberto Augusto; Roberto Balestra; Roberto Brant; Roberto D’Ávila; Roberto Freire; Roberto
Jefferson; Roberto Rollemberg; Roberto Vital; Robson Marinho; Rodrigues Palma; Ronaldo Aragão; Ronaldo Carvalho;
Ronaldo Cezar Coelho; Ronan Tito; Ronaro Corrêa; Rosa Prata; Rose de Freitas; Rospide Netto; Rubem Branquinho;
Rubem Medina; Ruben Figueiró; Ruberval Pillotto; Ruy Bacelar; Ruy Nedel; Sadie Hauache; Salatiel Carvalho; Samir
Achôa; Sandra Cavalcanti Santinho Furtado; Saulo Queiroz; Sérgio Brito; Sérgio Spada; Sérgio Werneck; Severo Gomes;
Sigmaringa Seixas; Sílvio Abreu; Simão Sessim; Siqueira Campos; Sólon Borges dos Reis; Sotero Cunha; Stélio Dias;
Tadeu França; Telmo Kirst; Teotônio Vilela Filho; Theodoro Mendes; Tito Costa; Ulbiratan Aguiar; Ulbiratan Spinelli; Uldurico
Pinto; Valmir Campelo; Valter Pereira; Vasco Alves; Vicente Bogo; Victor Faccioni; Victor Trovão; Vieira da Silva; Vilson
Souza; Vingt Rosado; Virgildásio de Senna; Virgílio Galassi; Virgílio Guimarães; Vitor Buaiz; Vivaldo Barbosa; Vladimir
Palmeira; Wagner Lago; Waldyr Pugliesi; Walmor de Luca; Wilma Maia; Wilson Martins; e Ziza Valadares.
7 Votaram NÃO os Constituintes: Ângelo Magalhães (PFL-BA); Assis Canuto (PFL-RO); Francisco Diógenes (PDS-AC) e
Irapuan Costa Júnior (PMDB-GO).
8 As ABSTENSÕES foram dos Constituintes: Gilson Machado (PFL-PE); João Menezes (PFL-BA); Jorge Bornhausen
(PFL-SC); Lúcio Alcântara (PFL-CE); Paes Landim (PFL-PI); Paulo Zarzur (PMDB-SP); Roberto Campos (PDS-MT); Victor
Fontana (PFL-SC) e Waldeck Ornélas (PFL-BA).

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 227


(...)
“O SR. ODACIR SOARES (PFL – RO. Pronuncia o seguinte discurso.): – Sr. Presidente, Srs.
Constituintes, o título “Da Ordem Social”, que agora vamos abordar, traz inovações bastante significativas,
sendo a primeira e mais evidente a metodologia que dispõe em capítulos as normas concernentes a
determinada matéria. Essa orientação permitiu enfocar um tema sob diferentes prismas, conferindo,
assim, maior rigor às normas prescritas.
(...)
O capítulo referente aos índios representa avanço bastante considerável com relação á
legislação vigente, sobretudo no que concerne a precisão com que procura tratar os direitos nele
assegurados. A propósito, é preciso reconhecer que o texto conseguiu vencer com bastante êxito os
pontos críticos que existiam em torno da matéria.
Às populações indígenas foram garantidos direitos sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, além de serem reconhecidas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições.
A redação que confere aos índios direito sobre as terras que ocupam conseguiu contornar
dois problemas que comumente tem envolvido a questão. Primeiramente, conseguiu afastar o conceito
juridicamente impreciso de “terras de posse imemorial”, que poderia suscitar ambigüidades na aplicação
da norma. Ao definir “terras tradicionalmente ocupadas”, o texto constitucional supera, ademais,
certa concepção simplista que pretendia estender aos índios o conceito de habitar da sociedade dita
civilizada.
À nossa compreensão, o tema é tratado com a necessária justiça, não configurando o direito
assegurado, o caráter descabido que alguns pretendem a ele imputar. Aos índios são garantidos direitos
especiais, compatíveis com a sua etnia, profundamente diversa daquela que conforma a sociedade
abrangente. Assim, as condições de inalienabilidade e de indisponibilidade das terras ocupadas
contemplam uma prerrogativa específica, diversa da propriedade, forma por excelência de possuir
bens na sociedade contemporânea.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que proporciona aos índios a posse permanente das
terras e o usufruto exclusivo das riquezas do solo, o texto ressalva a possibilidade de aproveitamento
dos recursos hídricos e das riquezas minerais, mediante autorização do Congresso Nacional, ouvidas as
comunidades afetadas. Da mesma forma, a remoção de grupos indígenas de suas terras dependem do
Congresso Nacional, ad referendum, nos casos de catástrofe ou epidemia, e, após deliberação, no caso
de interesse da soberania nacional.
Há de destacar-se por fim o reconhecimento de não somente os índios, mas também
suas comunidades e organizações serem partes legítimas para ingressar em juízo na defesa de seus
interesses e direitos, devendo o Ministério Público intervir em todas as fases do processo. A intervenção
desse órgão é de particular importância, uma vez que a legislação em vigor subordina, de maneira
incontestável, o índio à entidade tutelar.
Em síntese, no nosso entendimento, o capítulo contém disposições que podem assegurar às
populações indígenas o direito inalienável de viverem de acordo com os seus costumes, suas crenças e
suas tradições e de preservarem sua identidade étnica e cultural.
Finalmente, esperamos com esta análise dos temas que são objeto do Título VIII da Carta
em votação, estarmos contribuindo para uma reflexão que toda a sociedade brasileira deverá fazer a
respeito de seu futuro, das mudanças necessárias à modernização do País, enquanto nação democrática,
onde se procura a justiça social e o desenvolvimento racional.
Era o que tinha a dizer”.
(pp.152-155)

228 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Diário da Assembléia Nacional Constituinte
Ano II – nº 294. Quinta-feira, 18 de agosto de 1988. Brasília – DF
1 – Ata da 319ª Sessão da Assembléia Nacional Constituinte,
em 17 de agosto de 1988.
(...)
A SRA. BENEDITA DA SILVA (PT – RJ. Sem revisão da oradora.): – Sr. Presidente, Srs. Constituintes,
quero fazer dois registros que considero de suma importância. Um refere-se à comunidade indígena.
Nesta Casa, há alguns dias, um dos grupos que nos visitam mostrou-se preocupado com o dispositivo
que inclui entre os bens dos Estados as terras dos extintos aldeamentos indígenas. Esta preocupação
dá-se pelo fato de que este povo indígena – embora estejamos tentando da melhor forma possível
garantir-lhe o direito à terra – se sente hoje ameaçado. Daí pleitear que esta Casa, atenta, examine
positivamente a possibilidade de votar sim à emenda de autoria do Constituinte Domingos Leonelli.
Como sei que estamos na fase dos entendimentos e que a maioria do Plenário garantiu à comunidade
indígena, dentro da correlação de forças possível, os seus direitos, gostaria de chamar a atenção dos
Srs. Constituintes para que examinássemos, com carinho, a preocupação expressa na emenda do
Constituinte Domingos Leonelli. Portanto, peço a transcrição do manifesto que a comunidade indígena
distribuiu aos Srs. Constituintes. (...)
Documento a que se refere a oradora:

Brasília, 4 de agosto de 1988


Senhora Constituinte Benedita da Silva. As entidades abaixo assinadas, Integrantes da
“Coordenação Nacional Povos Indígenas na Constituinte”, e outras, manifestam o seu apoio à
Emenda nº 2T 00541-5, Destaque n.º 2D00979-9, de autoria do Constituinte Domingos Leonelli
(BA), que suprime o Inciso V, do Art. 26, e que será apreciada durante as votações do Título
III.
Este dispositivo inclui entre os bens dos estados, “as terras dos extintos aldeamentos
indígenas”.
A figura jurídica dos “aldeamentos indígenas extintos” é do Século XIX Não consta da legislação
brasileira atual. Não se refere às terras indígenas hoje existentes, mas àquelas que, à época,
sendo terras devolutas, foram destinadas para assentamentos de indígenas que haviam sido
expulsos do seu habitat original, e que, ainda no século passado, tiveram os seus aldeamentos
extintos.
Há um único caso típico de terras pertencentes a estes aldeamentos indígenas extintos, cuja
destinação judicial permanece pendente nos últimos dez anos, conforme consulta feita no
Supremo Tribunal Federal e no Tribunal Federal de Recursos. Este caso envolve terras hoje
pertencentes aos Municípios de Guarulhos e de São Paulo, cuja inclusão entre os bens do
Estado de São Paulo parece, no caso, uma solução adequada e, talvez, tenha motivado a
inclusão do Inciso V, do Art. 26 no Projeto de Constituição.
Mas ninguém pode afirmar quantos e quais serão os casos de aldeamentos indígenas extintos
no século XIX, a cujas terras já foram dadas outras destinações. Haverá casos em que estas
terras constituem, hoje, perímetros urbanos; outros em que constituem propriedades rurais; e
outras, ainda, que passaram a se constituir em reservas indígenas, após ter sido configurada a
extinção indevida dos aldeamentos indígenas nelas existentes.
A fixação do Inciso V, do Art. 26 como norma constitucional, embora possa resolver
satisfatoriamente esse caso paulista e, eventualmente, algum outro, criará uma enorme
confusão na situação fundiária de várias regiões do País. Isto vale, sobretudo, para o Nordeste
e para o Sul, onde havia, no passado, o maior número destes aldeamentos e onde, hoje, há
situações historicamente configuradas de.ocupação e de propriedade, que seriam atingidas
pela nova norma constitucional, que pretende integrar estas áreas aos patrimônios estaduais.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 229


Com a supressão deste dispositivo, as áreas que pertencem a aldeamentos indígenas extintos
e hoje se encontram ocupadas, não teriam a sua situação alterada.
Às áreas ainda hoje desocupadas, cujas destinação permaneçam indefinidas, poderá ser
dada, inclusive em lei, a destinação mais adequada a cada caso, até mesmo a de incorporá-
las aos bens dos estados, sem que para tanto se justifique o estabelecimento de uma norma
constitucional.
Reabilitar uma figura jurídica anacrônica do Direito brasileiro, como a dos aldeamentos
indígenas extintos, inscrevendo-a na nova Constituição, só faz sentido para quem pretenda
reabilitar a norma, de triste memória, de criar aldeamentos indígenas para depois extingui-
los.
No primeiro turno de votação, uma emenda (nº 1945-5, do Constituinte Mário Covas),
restringindo a norma constitucional às áreas urbanas, alcançou 250 votos do Plenário, sem
atingir a maioria absoluta. Por implicar em restrição de norma constitucional e em solução
de um caso tópico, a emenda teve, naquela oportunidade, parecer contrário do Relator. No
entanto, como norma constitucional abrangente, o Inciso V, do Art. 26 se transformará numa
abrangente irresponsabilidade, de nefastas conseqüências, cujo alcance é imprevisível.
Quanto aos direitos indígenas, este é o único dispositivo constitucional constante do Projeto
“B” de Constituição que não se coaduna com os demais e com os termos do Capítulo VIII –
“Dos índios”, aprovados, por acordo, por 497 Senhores Constituintes. Por esta razão, a emenda
Leonelli é a única supressão sobre a questão indígena apoiada pelas entidades signatárias
para o segundo turno de votação.
Vossa Excelência votou favoravelmente à correção do Inciso V, do Art. 26 no primeiro turno.
Pedimos a reafirmação do vosso voto e o vosso empenho na conquista de outros trinta
necessários para a supressão do referido dispositivo neste segundo turno.
Atenciosamente, – SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência; Cedi – Centro
Ecumênico de Documentação e Informação; Anaí/BA – Associação Nacional de Apoio ao Índio;
lnesc – Instituto de Estudos Sócio-Econômicos; ABA – Associação Brasileira de Antropologia;
CIMI – Conselho Indigenista Missionário; CTI – Centro de Trabalho Indigenista; UNI – União
das Nações Indígenas – CPI/SP – Comissão Pró-índio.
“Folha de S. Paulo,”
10 de agosto de 1988
ALDEAMENTOS EXTINTOS NA CONSTITUIÇÃO – PERIGO DE CAOS
Manuela Carneiro da Cunha
Está para ser votado na Constituição um estranho dispositivo: o que inclui entre os bens
dos estados as “terras dos extintos aldeamentos indígenas” (art. 26, inciso V). Nascido
aparentemente para terminar com uma longa pendência referente às antigas aldeias de São
Miguel e Guarulhos, em São Paulo, o dispositivo, ao matar o tico-tico, dispara um canhão
de conseqüências imprevisíveis: nada menos do que uma vastíssima desapropriação
indiscriminada, cujo alcance total ninguém parece capaz ainda de avaliar.
De que se trata? O que são as tais “terras de extintos aldeamentos indígenas”?
Aldeamentos foram, do século 16 ao século 19, assentamentos de índios atraídos ou forçados a
se instalarem de forma permanente em um lugar, sob a tutela seja de missionários, seja a partir
do Marquês de Pombal, de “diretores de índios”. Estes aldeamentos podiam ser fundados
perto de povoados de colonos, como reserva de mão-de-obra, perto de vias fluviais, para
assegurar remeiros, ou nas fronteiras da colônia, para que os índios as assegurassem para
Portugal.

230 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Podiam ser também, como o foram no século 19, simplesmente uma maneira de sedentarizar
e controlar grupos indígenas que resistiam à ocupação de seus territórios tradicionais. A
última leva de criação de aldeamentos é estimulada, em 1850, pela Lei das Terras, dentro
desta perspectiva.
Fosse qual fosse sua função, os aldeamentos indígenas sempre receberam terras, que embora
diminutas em relação às que os índios eram forçados a abandonar, acabaram muitas vezes
sendo valorizadas devido à sua proximidade com centros urbanos. Basta dizer que, no século
19, existiam ainda em São Paulo doze aldeamentos, entre os quais bairros ou subúrbios atuais
da capital, tais como Pinheiros, Carapicuíba, ltaquaquecetuba, M’Boi (Embu) e Barueri, sem
falar dos já mencionados São Miguel e Guarulhos. Escusado é dizer que, a partir da Lei de
Terras, em 1850, acirra-se uma disputa pelas terras dos aldeamentos. O instrumento usado
para torná-las acessíveis, inventado no século passado, é a extinção dos aldeamentos a pretexto
de que não havia mais índios ou de que estes se achavam “confundidos com a massa da
população”. Segue-se a isso uma querela que se arrasta de 1843 a 1888 sobre o destino a se dar
às terras assim liberadas, com o Império, as Províncias e as Câmaras Municipais disputando
direitos sobre elas.
Desde a República, não mais se extinguem aldeamentos. O próprio termo “aldeamento”
desaparece da legislação com o advento do Serviço de Proteção aos Indicie em 1910, que
pretende respeitar a localização dos grupos indígenas a abandonar a antiga prática de
remoção. A referência subsiste apenas em 1946, quando as terras dos extintos aldeamentos são
declaradas domínio da União no Decreto-Lei nº 9.760.
Nas terras dos aldeamentos extintos no século 19, hoje quase não moram índios. Na maioria,
são terras que já foram muitas vezes vendidas e parceladas: mito são sede de municípios. Um
bom exemplo é o do antigo aldeamento de São José de Mossâmedes, em Goiás: fundado em
1755, com índios Akroa deportados por causa de um levante em outro aldeamento, povoado
depois com índios Xavante, Carajá, Javaé, Carijó e Naudez, e posteriormente por Caiapó, o
aldeamento é extinto oficialmente a 19 de novembro de 1879.
Hoje as terras do extinto aldeamento são o próprio Município de Mossâmedes. História
semeIhante é a de Geru, em Sergipe, antigo aldeamento jesuítico, hoje município com a igreja
do aldeamento por matriz. O que significará atribuir aos estados essas terras?
A desapropriação de municípios inteiros e pelo País todo? Quando se pensa que, só em
Pernambuco, foram extintos nada menos que seis aldeamentos, percebe-se que não há como
avaliar o alcance real do dispositivo.
Percebe-se também que ele atingirá indisciplinadamente índios e não-índios, e provavelmente
mais a estes do que aqueles.
Verdade é que não se pode excluir a hipótese de que, encorajado pela inusitada reabilitação
de uma figura jurídica anacrônica, algum governo resolva reeditar a política indigenista do
século 19, que criava aldeamentos para depois extingui-los.
Não há sentido em, para resolver um caso particular, usar uma norma constitucional cujo
alcance não está quantificado e que certamente geraria o caos em várias áreas do País inteiro,
principalmente no Nordeste, no Centro-Sul e no Sul. Muito mais adequado seria reservar a
matéria para a legislação ordinária e para uma consideração caso a caso.
[pp.465-466]

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 231


Diário da Assembléia Nacional Constituinte
Ano II – nº 295. Sexta-feira, 19 de agosto de 1988. Brasília – DF
1 – Ata da 320ª Sessão da Assembléia Nacional Constituinte,
em 18 de agosto de 1988
(...)
PRESIDENTE – Requerimento de Destaques nº 979, Emenda nº 5415, do Constituinte
Domingos Leonelli, que visa à supressão do inciso V do art. 26, a propósito da inclusão das terras de
extintos aldeamentos indígenas entre os bens da União.
DOMINGOS LEONELLI – Encaminhamento da votação.
MANSUETO DE LAVOR (Pela ordem) – Retificação de voto.
VICTOR FONTANA (Pela ordem) – Retificação de voto.
PRESIDENTE – Resposta ao Constituinte Victor Fontana.
BERNARDO CABRAL (Relator) – Parecer pela aprovação da matéria.
PRESIDENTE – Início da votação.
PLÍNIO ARRUDA SAMPAIO (PT), TADEU FRANÇA (PDT), JARBAS PASSARINHO (PDS), ADEMIR
ANDRADE (PSB), EDUARDO BONFIM (PC do B), SIQUEIRA CAMPOS (PDC), ROBERTO FREIRE (PCB),
MENDES RIBEIRO (PMDB), GASTONE RIGHI (PTB), ARTUR DA TÁVOLA (PSDB), INOCÊNCIO OLIVEIRA
(PFL), ADOLFO OLIVEIRA (PL) – (Pela ordem) – Declaração de voto das respectivas bancadas.
(...)
PRESIDENTE – Cumprimentos aos índios presentes nas galerias pelo comportamento exemplar
no decorrer da sessão.
PRESIDENTE – Esclarecimentos sobre o processo eletrônico de votação.
(Procede-se à votação.)
DOMINGOS LEONELLI (Pela ordem)
– Destaque ao desempenho do Constituinte Márcio Santifica no que concerne à aprovação
da emenda votada.
VIRGÍLIO GUIMARAES (Pela ordem)
– Registro de voto contrário não constante do painel na votação anterior.
PRESIDENTE – Resposta ao Constituinte Virgílio Guimarães.
ALUÍZIO BEZERRA (Pela ordem) – Registro de voto “sim”.
PRESIDENTE – Resposta ao Constituinte Aluízio Bezerra.
PRESIDENTE – Encerramento da votação nº 818. Aprovação da Emenda nº 541.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Sobre a Mesa, requerimento de destaque nos
seguintes termos:
REQUERIMENTO DE DESTAQUE
Nº 979
Senhor Presidente:
Requeiro destaque para a Emenda nº 2T00541-5.
– Domingos Leonelli.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – É a seguinte a matéria destacada:
EMENDA Nº 541 Do Sr. Domingos Leonelli
Suprima-se o inciso V do artigo 26.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Destaque nº 979, do nobre
Constituinte Domingos Leonelli.

232 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


Diz o destaque:
“Art 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:
............................
V – as terras de extintos aldeamentos indígenas.”
É o texto do nobre Constituinte Domingos Leonelli, a quem concedo a palavra, para
encaminhar.
O SR. DOMINGOS LEONELLI (BA Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, vou dispensar uma
longa sustentação, limitando-me apenas a esclarecer que esta matéria, objeto de acordo geral de todos
os partidos, sem exceção, inclusive com a anuência do Líder Inocêncio Oliveira, do PFL, visa corrigir a
introdução, no texto constitucional, de uma figura que já havia sido abolida desde o século passado,
os aldeamentos indígenas, figura que serviu a uma política genocida no século passado e que só foi
retomada em 1946, mesmo assim com muitas ressalvas.
Desta forma, Sr. Presidente, agradeço e registro a presença dos guerreiros Caiapós, agradeço
a compreensão de todos os partidos nesta Casa e afirmo a V. Ex.ª que a Constituição que é dos cidadãos,
dos miseráveis, é também a Constituição dos índios.
(...)
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre relator.
O SR. BERNARDO CABRAL (Relator): – Sr. Presidente, Sras e Srs. Constituintes, acompanhei a
evolução dos estudos feitos em derredor desta emenda do eminente Constituinte Domingos Leonelli.
Depois, consegui ouvir cada Liderança, isoladamente. Todos os Líderes com assento nesta Assembléia
Nacional Constituinte foram unânimes na opinião de que esta emenda merece ser acolhida. Sr.
Presidente, o relator acompanha e louva o trabalho do Constituinte Domingos Leonelli, dando parecer
pela aprovação.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Vamos à votação.
O SR. PLÍNIO ARRUDA SAMPAIO: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. PLÍNIO ARRUDA SAMPAIO (PT – SP. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PT
votará “sim”.
O SR. TADEU FRANÇA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. TADEU FRANÇA (PDT – PR. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PDT, saudando
as delegações dos índios de todo o Brasil aqui presentes, votará “sim”.
O SR. JARBAS PASSARINHO: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. JARBAS PASSARINHO (PDS – PA. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PDS recebe
um apelo do seu Presidente nacional para que a sua bancada vote “sim”.
O SR. ADEMIR ANDRADE: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. ADEMIR ANDRADE (PSB – PA. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o Partido
Socialista Brasileiro votará “sim”.
O SR. EDUARDO BONFIM: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. EDUARDO BONFIM (PC do B – AL. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, em defesa
das terras indígenas, o PC do B votará “sim”.
O SR. SIQUEIRA CAMPOS: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 233


O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. SIQUEIRA CAMPOS (PDC – GO. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o Partido
Democrata Cristão, saudando todas as nações indígenas do Brasil, votará “sim”.
O SR. ROBERTO FREIRE: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. ROBERTO FREIRE (PCB – PE. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PCB votará
“sim”.
O SR. MENDES RIBEIRO: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. MENDES RIBEIRO (PMDB – RS. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PMDB,
votará “sim”.
O SR. GASTONE RIGHI: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. GASTONE RIGHI (PTB – SP. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, a Liderança do
PTB votará “sim”.
O SR. ARTUR DA TÁVOLA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB – RJ. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, os acordos
feitos nesta Casa para a questão dos índios em geral, é um dos mais altos momentos da Assembléia
Nacional Constituinte. O voto é “sim”.
O SR. INOCÊNCIO OLIVEIRA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. INOCÊNCIO OLIVEIRA (PFL – PE. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o Partido da
Frente Liberal recomenda a sua Bancada vote “sim”.
O SR. ADOLFO OLIVEIRA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. ADOLFO OLIVEIRA (PL – RJ. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o Partido Liberal
coloca-se ao lado dos brasileiros mais brasileiros que são os índios e vota “sim”.
(...)
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Antes da votação, como Presidente, quero, em
nome de todos, saudar e cumprimentar o comportamento exemplar dos nossos patrícios índios, que
aqui se encontram, colaborando com a normalidade de nossos trabalhos. (Palmas.)
Srs. Constituintes, queiram tomar os seus lugares. A disposição a respeito da emenda é do
conhecimento geral do caso.
(Procede-se à votação.)
O SR. DOMINGOS LEONELLI: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. DOMINGOS LEONELLI (BA. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, Srs. Constituintes,
antes mesmo de ser anunciado o resultado, faço o registro de uma omissão muito séria, na minha rápida
sustentação: é atribuída a responsabilidade dessa articulação, à atenção que foi dada à pesquisa feita
e à movimentação que se realizou, ao papel inestimável do Deputado Márcio Santillo, que, estando
conosco aqui, desempenhou papel importantíssimo na aprovação desta emenda. (Muito bem!)
(...)
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Está encerrada a votação. A Mesa vai proclamar o
resultado (votação nº 818):

234 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


SIM – 367
NÃO – 3 9
ABSTENÇÃO – 3 10
TOTAL – 373
A Emenda foi aprovada.
VOTARAM OS SRS. CONSTITUINTES:
Presidente Ulysses Guimarães – Abstenção
(...)
[pp.589-593]

Diário da Assembléia Nacional Constituinte


Ano XLIII – nº 304, Quarta-feira, 31 de agosto de 1988. Brasília – DF
Ata da 335ª Sessão, extraordinária vespertina,
em 30 de agosto de 1988
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Anuncio reunião de emendas, referentes aos índios,
encabeçada pelo nobre Constituinte Fábio Feldmann e mais cerca de 20 Constituintes.
É o seguinte o texto.
Excelentíssimo Senhor Presidente da Assembléia Nacional Constituinte.
Os constituintes que esta firmam, vêm requerer, nos termos regimentais, a reunião e votação
simultânea de Emendas e Destaques infra-referidos, relativos ao Capítulo “DOS ÍNDIOS” e que dizem
respeito ao art. 224, §§ 1º, 2º e 6º, restando prejudicadas as demais Emendas, cujos autores igualmente
abaixo assinam.
Sem que os demais dispositivos sejam alterados, resta o texto com a seguinte redação:

“Art. 234.........................................
§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação
dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física
e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios são destinadas à sua posse permanente,
cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas dos solos, fluviais e lacustres nelas
existentes.
§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objetivo a
ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas
naturais do solo, fluviais e lacustres neles existentes, ressalvado relevante interesse público da
União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e extinção direito a
indenização ou ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto as benfeitorias derivadas
da ocupação de boa-fé.
Sala das Sessões, de agosto de 1988.

9 Votaram “não” os constituintes Denisar Arneiro (PMDB-RJ), Ricardo Izar (PFL-SP) e Victor Fontana (PFL-SC)
10 Se abstiveram os constituintes Arnaldo Martins (PMDB-RO) e Manoel Castro (?).

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 235


– Fábio Feldmann, Emenda n.º 2T00767-1, Destaque n.º 2D01343-5 – José Carlos Sabóia,
Emenda n.º 2T00191-6, Destaque n.º 2D00350-2 – Ângelo Magalhães, Emenda n.º 2T01496-1,
Destaque n.º 2D00439-8 – Antero de Barros, Emenda n.º 2T01704-9, Destaque n.º 2D00561-1 –
Ruben Figueiró, Emenda n.º 2T01754-5, Destaque n.º 2D00458-4 – Lysâneas Maciel, Emenda
n.º 2T01665-4, Destaque n.º 2D00210-7 – Vasco Alves, Emenda n.º 2T00248-3, Destaque n.º
2D00109-7 – Anna Maria Rattes, Emenda n.º 2T01434-1, Destaque n.º 2D00117-8 – Ottomar
Pinto, Emenda n.º 2T01288-8, S/Destaque.

– O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – O Relator é favorável, por se tratar de


entendimento, de acordo.
Vamos aos votos.
O SR. ROBERTO FREIRE: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. ROBERTO FREIRE (PCB – PE. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PCB votará
“sim” pelo acordo, pelo retorno ao texto do primeiro turno.
O SR. MENDES RIBEIRO: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. MENDES RIBEIRO (PMDB – RS. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PMDB vota
“sim”.
O SR. AMARAL NETTO: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. AMARAL NETTO (PDS – RJ. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, com o acordo, o
PDS vota “sim”.
A SRª BENEDITA DA SILVA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
A SRA. BENEDITA DA SILVA (PT – RJ. Sem revisão da oradora.): – Sr. Presidente, com o acordo,
o PT vota “sim”.
O SR. TADEU FRANÇA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. TADEU FRANÇA (PDT – PR. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, em função do
acordo, lamentando apenas a ausência dos líderes indígenas que estão vindo para cá, mas que não
poderão assistir à sua última votação, o PDT vota “sim”.
O SR. SÓLON BORGES DOS REIS: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. SÓLON BORGES DOS REIS (PTB – SP. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PTB
vota “sim”.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – O PTB vota “sim”.
O SR. HAROLDO LIMA: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. HAROLDO LIMA (PC do B – BA. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PC do B
considera esta uma emenda positiva e que resguarda, no fundamental, os interesses dos índios. Por
isso, votará “sim.”
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Votará “sim” o PC do B.
O SR. JOSÉ LUIZ DE SÁ: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.

236 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


O SR. JOSÉ LUIZ DE SÁ (PL – RJ. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o Partido Liberal
vota “sim”.
O SR. ADEMIR ANDRADE: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. ADEMIR ANDRADE (PSB – PA. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PSB vota
“sim”.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – O PSB vota “sim”.
O SR. JOSÉ MARIA EYMAEL: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. JOSÉ MARIA EYMAEL (PDC – SP. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, nos termos
do acordo, o PDC vota “sim”.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – O PDC vota “sim”.
O SR. JOSÉ LOURENÇO: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. JOSÉ LOURENÇO (PFL – BA. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PFL vota
“sim”.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – O PFL vota “sim”.
O SR. OCTÁVIO ELÍSIO: – Sr. Presidente, peço a palavra pela ordem.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Tem a palavra o nobre Constituinte.
O SR. OCTÁVIO ELÍSIO (PSDB – MG. Sem revisão do orador.): – Sr. Presidente, o PSDB vota
“sim”.
O SR. PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Vamos à votação. Srs. Constituintes, queiram tomar
os seus lugares. A reunião de emendas tem parecer favorável. (Pausa). Queiram registrar os números
de códigos. (Pausa). Votem “sim”, “não” ou “abstenção”. Acionem, simultaneamente, o botão preto no
painel e a chave sob a bancada, mantendo-os pressionados, até que as luzes se apaguem. (Pausa).
(Procede-se à votação).
(...)
O SR PRESIDENTE (Ulysses Guimarães): – Está encerrada votação. A Mesa vai proclamar o
resultado (votação n.º 961):

SIM – 437
NÃO – 8 11
ABSTENÇÃO – 8 12
TOTAL – 453
A reunião foi aprovada.
VOTARAM OS SRS. CONSTITUINTES:
Presidente Ulysses Guimarães –Abstenção
(...)

[pp. 352-355]

11 Votaram contra o acordo os constituintes Arnaldo Martins (PMDB-RO), Eraldo Trindade (PFL-AP), Etevaldo Nogueira
(PFL-CE), França Teixeira (PMDB-BA), José Mendonça Bezerra (PFL-PE), Lavoisier Maia (PDS-
RN), Rachid Saldanha Derzi (PMDB-MS), Ricardo Fiúza (PFL-PE).
12 Álvaro Pacheco (?), Gilson Machado (PFL-PE), Irapuan Costa Júnior (GO), Jesus Tajra (PFL-PI), Luís Eduardo (PFL-BA),
Moysés Pimentel (PMDB-CE), Waldeck Ornélas (PFL-BA).

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 237


Anexo VI

Os direitos indígenas no novo texto Constitucional

Constituição da República Federativa do Brasil


Promulgada em 05 de Outubro de 1988

(Dispositivos relativos a direitos e interesses dos povos indígenas)

(...)
Art. 20. São bens da União:
(...)
XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
(...)
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
(...)
XIV - populações indígenas;
(...)
Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:
(...)
XVI - autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e
a pesquisa e lavra de riquezas minerais;
(...)
Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(...)
XI - a disputa sobre direitos indígenas.
(...)
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
(...)
V - defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas;
(...)
Art. 176. As jazidas, em lavra ou não, e demais recursos minerais e os potenciais de energia
hidráulica constituem propriedade distinta da do solo, para efeito de exploração ou aproveitamento, e
pertencem à União, garantida ao concessionário a propriedade do produto da lavra.
§ 1º A pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais a que
se refere o “caput” deste artigo somente poderão ser efetuados mediante autorização ou concessão
da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que
tenha sua sede e administração no País, na forma da lei, que estabelecerá as condições específicas
quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas. (Redação dada
pela Emenda Constitucional n.º 6, de 1995)
(...)
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar
formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

238 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


(...)
§ 2º - O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada
às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de
aprendizagem.
(...)
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes
da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
§ 1º - O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras,
e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.
(...)

CAPÍTULO VIII
DOS ÍNDIOS
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e
tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União
demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter
permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural,
segundo seus usos, costumes e tradições.
§ 2.º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente,
cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
§ 3.º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização
do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos
resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4.º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre
elas, imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do
Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no
interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer
hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto
a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas
naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da
União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a
indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da
ocupação de boa fé.
§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar
em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do
processo.
(...)

ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS


Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir
da promulgação da Constituição.

Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988 239


Lista de siglas e abreviaturas

AC: Avulso da Câmara


ABA: Associação Brasileira de Antropologia
ADCT: Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
Anaí: Associação Nacional de Apoio ao Índio
ANC Assembléia Nacional Constituinte
CCPY: Comissão pela Criação do Parque Yanomami
Cedi Centro Ecumênico de Documentação e Informação
CF: Constituição Federal
CGNT: Convenção para a Grafia de Nomes Tribais
Cimi: Conselho Indigenista Missionário
CNBB: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
Conage: Coordenação Nacional dos Geólogos
Conic: Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil
CPI-SP: Comissão Pró-Índio de São Paulo
CPMI: Comissão Parlamentar Mista de Inquérito
CSN: Conselho de Segurança Nacional
DCN: Diário do Congresso Nacional
D.O.U.: Diário Oficial da União
EC: Emenda Constitucional
Funai: Fundação Nacional do Índio
Inesc Instituto de Estudos Sócioeconômicos
Minter: Ministério do Interior
Mirad: Ministério da Reforma Agrária e Desenvolvimento
MP: Ministério Público
MPF: Ministério Público Federal
MJ: Ministério da Justiça
MN/RJ: Museu Nacional do Rio de Janeiro
OAB: Ordem dos Advogados do Brasil
OIT: Organização Internacional do Trabalho
Opan: Operação Anchieta
PCB: Partido Comunista Brasileiro
PCdoB: Partido Comunista do Brasil
PEC: Proposta de Emenda Constitucional
PDS: Partido Democrático Social
PFL: Partido da Frente Liberal
PMDB: Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PT: Partido dos Trabalhadores
SBPC: Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
SPI: Serviço de Proteção aos Índios
STF: Supremo Tribunal Federal
UNI: União das Nações Indígenas
UnB: Universidade de Brasília
UFSC: Universidade Federal de Santa Catarina

240 Os povos Indígenas e a Constituinte - 1987/1988


A participação dos povos indígenas no cenário
Constituinte de 1987-1988 e os novos
direitos que ajudaram a inscrever marcaram não
apenas a força criadora dos movimentos sociais
populares. Marcaram sobretudo a ruptura com
um modelo de cinco séculos de dominação
colonial. Os índios, cuja capacidade vinha sendo
questionada desde os primeiros colonizadores,
demonstraram com o seu destacado e exitoso
protagonismo na elaboração da “Constituição
Cidadã” que é possível e necessário lutar pela
construção de um país plural, democrático
e solidário, onde as desigualdades sejam
eliminadas e as diferenças sejam respeitadas.

w w w. c m c . n u

www.cimi.org.br

4 Os povos Indígenas e a Constituinte de 1987/1988

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