O Corpo Erótico Nas Poesias de Conceição Evaristo
O Corpo Erótico Nas Poesias de Conceição Evaristo
O Corpo Erótico Nas Poesias de Conceição Evaristo
Doutoranda em Letras: Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), bolsista PBPG da
UFJF. Mestre em Letras: Literatura Brasileira pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). Graduada
em Letras: Português/Inglês pelo (CES/JF).
E-mail: [email protected]
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filósofo evidencia que é esse poder quem define a individualidade do corpo (DELEUZE, 2002,
p.128). Trazendo esse debate para as poesias de Conceição Evaristo, chamamos a atenção para
esse diálogo de o corpo afetar e de ser afetado, pois a partir dessa possibilidade, percebemos
que isso é uma recorrência em sua obra. Reconhecemos, portanto, a importância de
sublinharmos o poder como elemento preponderante no limiar dessa discussão.
Ainda nessa ambiência, Deleuze pondera sobre as consequentes transformações que nos
impossibilitam reconhecer o mesmo indivíduo no mesmo corpo após ter passado,
circunstancialmente, pelo crescimento, pela doença e pela velhice. No que diz respeito a essas
mudanças, ele elucida que “insensíveis ou bruscas, na conexão que caracteriza um corpo são
também constatáveis no seu poder de ser afetado, como se poder e conexão gozassem de uma
margem, de um limite, no qual se formam e deformam” (DELEUZE, 2017, p. 246-247).
É interessante também realçarmos, aqui, a vulnerabilidade do corpo no instante em que
ele é exposto às ações do tempo. Em entrevista concedida à Denise Bernuzzi de Sant’Anna,
George Vigarello, especialista em história das imagens e práticas corporais, percebemos o corpo
como um arquivo que abriga em si a inscrição de uma memória social, histórica e geográfica
(2000, p. 225). Sendo arquivo e reflexo, é importante não nos esquecermos de que,
paradoxalmente, o corpo revela, e também esconde (VIGARELLO, 2000, p. 225). Mais do que
entendido como uma espécie de arquivo, o corpo apresenta uma multiplicidade que confere a
ele inúmeras finalidades. Nesse sentido, o especialista francês destaca que
o corpo não é algo unificado. [...] O corpo é um objeto múltiplo, que pode representar
dimensões bastante diferentes da vida, tais como a sensibilidade, a expressão ou uma
verdadeira mecânica ligada ao trabalho. Ele evoca numerosas imagens, sugere
múltiplas possibilidades de conhecimento. Além disso, o corpo é sempre algo
inabarcável. Todavia, desde que se saiba ele não é um objeto homogêneo, é importante
estudá-lo pois, em muitos casos, é por meio dele que nós revelamos como o mundo é
construído (VIGARELLO, 2000, p. 229).
Como já vimos, o corpo pode tanto afetar quanto ser afetado. Para tanto, existe uma
força de poder capaz de motivar essas pulsões. Evidentemente, isso faz com que ele adquira
características plurais e representações múltiplas.
Como podemos perceber, na sua essência, o corpo pode conferir um novo significado
ao sujeito, uma vez que ele pode ir muito além da materialidade biológica. Isso equivale a
dizermos que ele pode ser afetado, mas também moldado por fatores externos e internos que,
incisivamente, podem modelá-lo, modificá-lo e transformá-lo na subjetividade e no reflexo da
própria imagem. Com efeito, diante do exposto, a relação de afeto contribuirá no processo de
sua própria ressignificação do corpo.
Nessa mesma direção, a filósofa Judith Butler, ao tecer uma análise minuciosa sobre o
corpo, reconhece que “as pessoas não são seus corpos, mas fazem seus corpos” (2019, p. 216).
Dessa forma, temos que reconhecer, portanto, a noção de que de que o corpo está em construção
e em devir.
Gostaríamos de sublinhar que, ao avançar na percepção do corpo, a filósofa defende o
ponto de vista de que ele está além de ser um espaço que abriga uma individualidade. Isso
porque, para ela, há um nós e não apenas um eu na construção do corpo (BUTLER, 2019, p.
216). Em consonância com esse pensamento, o antropólogo David Le Breton nos diz que “o
corpo constitui um alter ego, um duplo, um outro si mesmo, mas disponível a todas as
modificações” (2013, p. 28). A partir desse duplo aspecto da existência corporal e em face dessa
noção de afeto, pressupomos que é na relação de alteridade que o corpo negro será afetado e,
da mesma maneira afetará também outros corpos sem, contudo, deixar de impedir que sua
individualidade seja constantemente ameaçada. Até porque, estruturalmente, o corpo mergulha
em experiências coletivas que, inevitavelmente, lhes são frequentemente incorporadas.
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Outro ponto bastante relevante e, particularmente, representativo nas poesias de
Conceição Evaristo é o corpo expressando o erotismo, a sensualidade e o desejo em suas obras.
Sobre a presença do erotismo na literatura, genuinamente, Bataille compara o erotismo à poesia.
Segundo ele,
a poesia conduz ao mesmo ponto como cada forma do erotismo; conduz à indistinção,
à fusão dos objetos distintos. Ela nos conduz à eternidade, à morte, e pela morte, à
continuidade: a poesia é l’éternité. C’est la mer allée avec le soleil (1987, p. 18, grifos
do autor).
Assim, quando Bataille cita os versos de Arthur Rimbaud, através das imagens, ele nos
elucida acerca da fusão de “objetos distintos” tão presentes no erotismo quanto na poesia. Nesse
sentido, temos que ficar atentos a essa fusão que pode ocorrer de maneira sutil, mas sempre em
corpos distintos e em uma relação alteritária.
Gostaríamos de sublinhar que Lucia Castello Branco distingue a produção pornográfica
da erótica. Para tanto, ela observa que essa última “em contraposição à produção pornográfica
poderia ser batizada de erografia (a escrita de Eros), vai funcionar sobretudo como elemento
questionador e denunciador da hipocrisia, da tirania e da miséria social (e sexual) em que
vivemos” (2004, p. 57, grifos da autora). Notamos, portanto, que o erotismo é orientado por
uma pulsão e que, no bojo da sexualidade, ele pode propor uma representação e um
questionamento que vão muito além do desejo e do ato sexual.
Trazendo essa proposição para os poemas de Conceição Evaristo, mais adiante, em
“Coisa de pertença”, veremos como a erografia, ou seja, “a escrita de Eros” pode se manifestar.
Cumpre também esclarecermos que, aqui, optamos por investigar o corpo feminino negro que,
na estrutura patriarcal, ao sofrer as injunções do poder, foi estigmatizado como objeto,
mercadoria, animalizado, coisificado e, portanto, entendido como um lócus de abjeção e de
estereótipos. Nesse sentido, o corpo também pode ser reconhecido como objeto de desejo que,
como explica Bataille, “é diferente do erotismo. Não é todo o erotismo, mas é atravessado por
ele” (1987, p. 95). Tem-se, portanto, em Conceição Evaristo o erotismo entrecortando o corpo.
Quando questionada sobre a presença do erotismo e do homoerotismo, em suas obras, a poeta
nos revela que
talvez o erotismo e o homoerotismo não sejam muito perceptíveis nos meus textos
porque, quem sabe os leitores e mesmo pesquisadores vão para esses textos,
notadamente, procurando ler textos que girem em torno da questão social, da questão
racial, da problemática do coletivo. E talvez haja uma pouca percepção da
subjetividade dos personagens ou da subjetividade do eu lírico em se tratando de
poesia. E também porque, quando os meus textos que trazem o erotismo e o
homoerotismo, é uma linguagem também muito cuidada, quero dizer, não é uma
linguagem explícita. É preciso, às vezes, prestar atenção ao texto. [...] Acho que o
erotismo, o homoerotismo, tenho falado muito, né, a pulsão sexual, ela é uma pulsão
de vida, como a pulsão do afeto, a busca pelo afeto, é uma pulsão de vida. Então, eu
gosto de tratar desses temas com muito cuidado para não criar personagens
vulgarizadas, estereotipadas (EVARISTO, 2020, p. 15).
Na sociedade, o erotismo disputa espaço com uma corrente antierótica que busca tolir
as manifestações do desejo, do erotismo e do homoerotismo. A esse rigor, cumpre ressaltarmos
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que, desde sempre, as estruturas rígidas de poder influenciaram e contribuíram veementemente
para o fortalecimento desse pensamento. A exemplo, Octavio Paz observa que “em todas as
religiões e civilizações a imagem humana sempre foi venerada como sagrada e por isso, em
algumas, era proibida a representação do corpo” (1994, p. 143).
Comumente, encontramos o erotismo associado à pornografia e, na maioria das vezes,
sem que haja distinção entre eles. Não ignoramos, portanto, que tal fato contribua para que o
erotismo seja compreendido de maneira negativa, suscitando juízos e valores moralizantes.
Do mesmo modo, o homossexualismo ainda representa um tabu por parte da sociedade.
Entretanto, se pensarmos nele a partir do sistema interseccional, veremos que a mulher negra
sofre uma opressão muito maior do que os homens (brancos e negros) e mulheres brancas.
Nesse sentido, é importante sinalizarmos os possíveis conflitos inerentes à diferença até mesmo
dentro do mesmo grupo étnico. Sobre esse aspecto, Audre Lorde evidencia que “as diferenças
existentes entre mulheres negras também são deturpadas usadas para nos separar uma das
outras” (2019, p. 149). Nesse sentido, Lorde nos alerta pra o fato de que “embora elementos
dessas atitudes existam para todas as mulheres, há ressonâncias da heteronormatividade e da
homofobia que são específicas entre as mulheres negras” (2019, p. 150).
Trazendo esse debate para o âmbito político, veremos que ele ganha uma proporção
muito maior. Isso se deve ao fato de, em determinado momento, as mulheres homossexuais
estarem se aproximando dos homens heterossexuais e homossexuais (negros e brancos), bem
como das mulheres brancas e das mulheres homossexuais. Nessa percepção deturpada, isso
equivale a dizermos que as mulheres negras homossexuais podem ser, então, compreendidas
como neutras dentro dos movimentos e, consequentemente, responsáveis pelo enfraquecimento
dos propósitos iniciais dele. Em contrapartida, é necessário refletirmos, portanto, que tal postura
traz consequências seriíssimas, como por exemplo, medo e solidão. Para tanto, Audre Lorde
destaca que “o medo que sentem das lésbicas, ou de serem tachadas de lésbicas, tem levado
muitas mulheres negras a deporem contra si mesmas. Tem levado algumas de nós a fazer
alianças destrutivas, e outras ao desespero e ao isolamento” (2019, p. 150). Coadunando com
esse pensamento, Collins declara que “para a mulheres negras que já são vistas como o Outro
em virtude de raça e gênero – , a ameaça do rótulo de lésbicas tem efeitos negativos sobre a
maneira como as mulheres negras se veem e se relacionam umas com as outras” (2019, p. 282).
Ainda em consonância com essa concepção, no contexto das mulheres afro-americanas,
Collins observa a questão da homofobia e analisa que
mulheres negras que antes insistiam que o lesbianismo era um problema das mulheres
brancas agora argumentam que as lésbicas negras são uma ameaça à nação negra,
estão de conluio com o inimigo, são basicamente não-negras. Essas acusações, vindas
das mesmas mulheres a quem procuramos em busca de uma compreensão real e
profunda, têm feito com que muitas lésbicas negras se escondam, encurraladas entre
o racismo das brancas e a homofobia de suas irmãs (p. 151).
Muito provavelmente, esse é um ponto que deve ser revisto e analisado nos movimentos
sociais, a fim de fortalecer e de unificar mais ainda os grupos étnicos sem, contudo, fragmentá-
los.
Em O que é erotismo (2004), Lucia Castello Branco explica que o vocábulo pornografia
vem “do grego pornos (prostituta) + grafo (escrever), o termo pornografia designa a escrita da
prostituição. [...] Essa ideia de comércio é encontrada já na palavra pornos, derivada do verbo
pernemi, que significa vender” (p. 22). Outro ponto significativo observado por Branco nos
elucida que
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solitário [...], as relações exclusivamente sexuais, que de preferência não contenham
nenhuma carga de amor ou de afeto (2004, p. 27).
No artigo “A poesia erótica nos Cadernos negros”, Luiz Silva (Cuti) observa que, na
literatura brasileira, o erotismo “tomou as feições derivadas da ‘moral e bons costumes’ do ‘faça
o que eu digo mas não faça o que eu faço’” (2015, p. 271, grifos do autor). É interessante
notarmos que Cuti toca numa questão bastante sensível no que diz respeito ao corpo negro: o
poder.
A essa altura, pensarmos nas relações de poder nos leva também a crer, uma vez mais,
que “a uns foi dado todo o poder e que aos outros este lhes foi negado” (PIZA, 2019, p. 71). No
corpus da literatura de autoria negra, isso se torna bastante evidente. De certo modo, essa é,
sem dúvida, uma das formas que os detentores do poder encontram para exercer o controle, o
domínio e a repressão. Não por acaso, sobretudo quando se fala em literatura de autoria negra
e erótica.
A esse respeito, Lucia Castello Branco nos afirma que “seria de se esperar que os
mecanismos de poder tentassem sufocar o erotismo, regulamentar a sexualidade, varrer da
literatura os corpos nus, vestindo-os com palavras de bom tom e figurinos de bom gosto” (1985,
p. 19). Analisando esse aspecto pelo viés da militância, Cuti admite, portanto, que o Movimento
Negro se posicionou de maneira puritana e indiferente à sexualidade “não a enxergando em sua
análise do racismo, a não ser como denúncia à ‘exploração sexual da mulher negra’” (SILVA,
2015, p. 273, grifo do autor). Por meio da compreensão que temos do corpo, por outro lado,
Cuti sinaliza a vertente da produção da poesia negra quando afirma que
Há, portanto, outra questão pontuada por Cuti que também gostaríamos de assinalar, e
que não pode deixar de ser incluída nesse debate sobre a violência e o erotismo na poesia negra:
“miséria significa também ausência de prazer, incluindo aqui o sexual” (SILVA, 2015, p. 277,
grifos do autor). Para ilustramos tal assertiva, chamamos a atenção para o poema “Coisa de
pertença”. Nele, Conceição Evaristo apresenta a crítica à violência contra a mulher e o
desamparo que, sem dúvida, denotam a vulnerabilidade feminina:
nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, "feridos até o
coração", e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e
consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que
poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado
um ato de resistência para os Afro-Americanos. Mas ao fazer essa escolha, muitos de
nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber amor (hooks, 2006, p. 189).
Por sua vez, coadunando com esse mesmo pensamento, na obra A dominação
masculina: a condição feminina e a violência simbólica (2014), Pierre Bourdieu observa que
uma violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce
essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento,
ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento, ou, em última
instância, do sentimento ( p. 12).
A dominação do patriarcado é, sem dúvida, responsável por grande parte dessa violência
física e simbólica instituída historicamente sobre o corpo da mulher que, socialmente e
culturalmente, por muito tempo, pertenceu ao homem. Desvencilhar-se dessa construção
equivocada representa, ainda hoje, um grande desafio. Nesse sentido, Lucia Castelo Branco
declara que
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suicídio. Os amantes, quando se deparam com a impossibilidade da posse real do ser
amado, terminam, muitas vezes, por preferir sua morte à sua perda (1985, p. 63).
No poema, é bastante nítido o intertexto com o provérbio popular “quem como a carne
que roa também os ossos”. Embora modalizado, ele possibilita a construção da imagem que irá
de certa forma sustentar a relação entre o amor e a morte. Ora, uma vez mais, chamamos a
atenção para o fato de o sujeito libertino comer a carne da mulher e de algum modo selar o
destino dela. Essa expressão erótica pode ser compreendida no sentido metafórico, expressando
o ato sexual violento, seguido do comportamento canibalístico. Consequentemente, o ato sexual
sádico anula o corpo da mulher que passa, então, a ser percebido apenas como um objeto
erótico, nesse poema.
Por essa via, falar de amor pode significar também um ato político. Dessa forma, ler os
poemas de Evaristo a partir desse olhar nos faz perceber o amor como parte também do
cotidiano das mulheres negras e compreender que seus corpos podem estar dissociados das
imagens de objetificação, de abjetificação, de ódio e de violência que, constantemente, estão
atreladas às mulheres negras na literatura.
Para corroborarmos tal concepção, gostaríamos de salientar que a construção do erótico
como forma de poder fica bastante evidente também em Audre Lorde quando ela reflete sobre
a importância de sua origem que, para ela, “tem firmes raízes no poder de nossos sentimentos
reprimidos e desconsiderados” (2019, p. 67).
Segundo Elódia Xavier (2007), o corpo erotizado é aquele que experimenta o prazer, as
sensações e o erotismo. Como já observamos, nos poemas de Conceição Evaristo, isso se deve
ao fato da voz lírica vivenciar a sexualidade e de representá-la não apenas como dor, mas
também como possibilidade e manifestação de prazer. Para tanto, bell hooks assinala que
várias pessoas têm dificuldade em apreciar mulheres negras da maneira que somos,
porque querem impor uma identidade a nós, baseada em vários estereótipos negativos.
Esforços difundidos para continuar a desvalorização da mulheridade negra torna
extremamente difícil, e muitas vezes impossível, para mulheres negras, desenvolver
um autoconceito positivo (2019, p. 144).
Nesse sentido, a poesia de Conceição Evaristo vem contribuir para esse aspecto positivo
em relação à mulher negra. Genuinamente, ela o faz através do erótico que, sem dúvida, revela
também as características de um corpo livre para sentir prazer e experimentar o erotismo.
Uma vez mais, encontramos respaldo em Audre Lorde que, ao relatar sua experiência
de mulher negra com o erótico, nos declara que: “eu me torno menos disposta a aceitar a
impotência, ou aqueles outros estados do ser que nos são impostos e que não são inerentes a
mim, tais como a resignação, o desespero, o autoapagamento, a depressão e a autonegação”
(2019, p. 73). Desse modo, Lorde acentua a importância de compartilharmos a experiência
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erótica e de legitimarmos nosso poder. De certo modo, ela nos aponta a urgência de dominarmos
nossos próprios corpos que, por tanto tempo, foram violados e abusados sexualmente.
Constatamos que, movido por uma espécie de pulsão, é no espaço corporal do sujeito
lírico que o desejo acontece. Entretanto, é possível percebermos que ele é, então, provocado
pelo Outro, ou seja, há que se considerar também a relação alteritária entre os sujeitos que irá
incidir no vínculo de dependência entre eles.
Na relação entre o eu e o Outro, percebemos a importância da presença de dois corpos
para que haja, de fato, a concretização do desejo. Isso equivale a dizermos que o erotismo requer
a intersubjetividade. Entretanto, Octavio Paz nos assegura que “o erotismo é singular” (1994,
p. 190). Ademais, ele o define também como interpessoal. Desse modo, fica bastante evidente
que ele só acontece a partir da atração de um corpo por outro corpo.
Outro ponto a ser observado é que, no encontro erótico, é necessário que haja
reciprocidade entre os dois corpos. Afinal de contas, “a sensação se converte em afeto,
sentimento e paixão. O elemento afetivo nasce do corpo, mas é alguma coisa mais do que
atração física” (PAZ, 1994, p. 153). Por sua vez, a voz lírica do poema “Do fogo que em mim
arde” já admite no título do poema o seu desejo:
Pela estratégia de escolha da imagem do fogo, o desejo é tão somente representado por
ele de maneira metafórica. No entanto, esse elemento figura a imagem do Outro que pode
também ser entendido, simbolicamente, como o fogo que alimenta a escrita. Seguindo essa
linha de raciocínio, compreendemos que apesar da pulsão erótica, não estamos apenas diante
de um desejo e de um fogo profano, mas de um elemento sagrado, capaz de cunhar a escrita e
a face do eu lírico.
Já no título do poema “M e M”, percebemos o tom misterioso expresso nas iniciais de
dois possíveis nomes. Entretanto, no decorrer dos versos, percebemos a presença do
homoerotismo manifestando-se através das figuras femininas “Maria e Maria”.
Chamamos, portanto, a atenção para o fato de que o homoerotismo é também percebido
como uma manifestação de afeto nas relações sociais, bem como uma forma de resistência.
Dentro do contexto das mulheres afro-americanas, Patricia Hill Collins vai nos dizer que o ato
de resistir à opressão “politiza o amor e o retira do lugar individualizado e banalizado que ocupa
hoje. Relações afetivas autodefinidas e publicamente expressas entre mulheres negras – tenham
elas expressão sexual ou não – são uma forma de resistência” (2019, p. 287). Nesse sentido,
concordamos com essa assertiva de Collins que, certamente, coaduna com o ativismo de
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Conceição Evaristo no âmbito literário. Desse modo, acreditamos que tal pensamento possa ser
aplicado também nesse poema de Evaristo.
A mulher quedou-se
e na quietude
encontrou a sua nova veste
que suavemente se desfaz
em corpos iguais
que se roçam.
Maria e Maria,
espelho único,
onde a outra face
é ela e ela (2017, p. 72).
Considerações finais
Referências
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1987.
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[Entrevista cedida a] Marisa Loures. Tribuna de Minas, Juiz de Fora, ano XL, n. 8452, 9 set.
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Horizonte: Nandyala, 2008.
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HOOKS, bell. E eu não sou uma mulher?: mulheres negras e feminismo. Tradução Bhuvi
Libanio. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2019.
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C. (orgs.). O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe. Rio de
Janeiro: Pallas/Criola, 2006. p. 188-198.
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Stephaine Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 62-74.
PAZ, Octavio. A dupla chama. Tradução Wladir Dupont. São Paulo: Siciliano, 1994.
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