Critica Hermeneutica o Direito - Do Quadro Referencial Teorico A Articualçao de Uma Posição Filosofica Sobre o Direito
Critica Hermeneutica o Direito - Do Quadro Referencial Teorico A Articualçao de Uma Posição Filosofica Sobre o Direito
Critica Hermeneutica o Direito - Do Quadro Referencial Teorico A Articualçao de Uma Posição Filosofica Sobre o Direito
Resumo
O presente artigo, que é o resultado de projeto de pesquisa interinstitucional, apre-
senta as bases filosóficas da Crítica Hermenêutica do Direito, formulada por Lenio
Streck. Para tanto, recorrendo ao “método fenomenológico”, apresenta os conceitos
de quadro referencial teórico e de paradigma filosófico. Em seguida, oferece uma
revisão bibliográfica dos pensadores que, de certo modo, fundaram o paradigma fi-
losófico no qual se desenvolve a Crítica Hermenêutica do Direito: Martin Heidegger
e Hans-Georg Gadamer. Por fim, identifica alguns dos últimos desdobramentos da
Crítica Hermenêutica do Direito, entendida não como uma epistemologia tradicional,
ou ainda uma filosofia das ciências, mas como uma epistemologia hermenêutica.
Abstract
This article presents the philosophical bases of the Hermeneutic Criticism of Law,
formulated by Lenio Streck. In order to do so, it uses the concepts of theoretical
1
Esse artigo é resultado do projeto de pesquisa Constitucionalismo Hermenêutico, desenvolvido no biênio 2016-2017, em razão da parceria interinstitucional mantidas
entre os Programas de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP/SP) e do Centro Universitário FG (UniFG/BA).
2
Centro Universitário FG. Programa de Pós-Graduação em Direito. Av. Pedro Felipe Duarte, 4911, São Sebastião, 46430-000, Guanambi, BA, Brasil.
3
Universidade de Ribeirão Preto. Departamento de Ciências Jurídicas. Av. Costabile Romano, 2201, Unaerp, Bloco A, Ribeirânia, 14096-900, Ribeirão Preto, SP, Brasil.
Este é um artigo de acesso aberto, licenciado por Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional (CC BY 4.0), sendo permitidas reprodução, adaptação e distribuição
desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Trindade, Oliveira | Crítica Hermenêutica do Direito: do quadro referencial teórico à articulação de uma posição filosófica sobre o
Direito
ao mesmo tempo, pelo título de estatuto primário do co- sofia. Nas palavras de Streck (2011, p. 464), “a utilização
nhecimento de cada uma das disciplinas que compõem o da filosofia hermenêutica e da hermenêutica filosófica
universo da cultura: fala-se em crise do fundamento (Stein, dá-se na exata medida da ruptura paradigmática intro-
1997)4; poluição semântica (Stegmüller, 1977); e, até mes- duzida principalmente por Heidegger (e também por
mo, em um relativismo epistemológico (D’Agostini, 2003). O Wittgenstein) no anos 20-30 do século XX, a partir da
campo jurídico também é um terreno fértil para isso. O introdução do mundo prático na filosofia”.
século XX assistiu à construção de inúmeras propostas E, continuando, Streck ainda preleciona:
que procuravam cuidar de solucionar os problemas teó-
ricos e concretos da experiência jurídica. Essa alteração radical na estrutura do pensamento
Apenas no contexto cultural alemão, é possível proporcionou a ruptura com os paradigmas metafí-
mencionar: pandectística e pós-pandectística (jurispru- sicos clássico e moderno”. Demarcando as alterações
nas configurações de método e racionalidade no cam-
dência dos conceitos, jurisprudência dos interesses e
po da filosofia, ele também assevera: “o método não é,
jurisprudência dos valores); o normativismo lógico, de nem de longe, o fator determinante para a preparação
Hans Kelsen; o jusnaturalismo culturalista, de Gustav e formação de conhecimento válido. Há estruturas
Radbruch; e, já na segunda metade do século, a ascensão que se situam antes de qualquer aporte metodológico
das chamadas teorias não-positivistas ou pós-positivistas, que já constituem conhecimento (Streck, 2011, p. 465).
como é o caso da teoria da argumentação, de Robert
Alexy, e da metódica estruturante, de Friedrich Müller. Neste caso, a operação realizada por Streck,
No âmbito do direito anglo-saxão, o mesmo pe- quando articula suas considerações sobre o Direito a
ríodo presenciou as construções do positivismo utili- partir deste paradigma filosófico, adota alguns pressu-
tarista, de Bentham e Austin, bem como as críticas lan- postos. O primeiro remete à obra de Stein (2002b) e
çadas por Herbert Hart à posição destes autores, que às suas descobertas com relação à relação que se es-
acabou por ser considerada uma forma “moderada” do tabelece entre filosofia e conhecimento empírico. Para
positivismo jurídico. Ainda neste contexto, não se pode Stein, a partir de Heidegger, é possível pensar que a fi-
esquecer as objeções formuladas por Ronald Dworkin losofia e o conhecimento empírico movimentam-se em
ao Conceito de Direito de Hart, cujo eixo central encon- níveis distintos de reflexão, num procedimento circular,
tra-se vinculado à refutação da tese hartiana do poder de modo que a relação entre eles produz uma espécie
discricionário dos juízes para decidir sobre a chamada de circularidade virtuosa.
“textura aberta”, isto é, a “zona da franja” dos hard cases. Stein fala a partir de uma interpretação por meio
Diante desse aparente caos teórico, no interior da qual Heidegger começa a manifestar a ideia de que
do qual essas diversas posições – que podem até con- somos tomados, à certa altura, por uma determinada
fluir para um consenso em alguns pontos específicos concepção de ente e uma determinação da verdade que
– apresentam-se de maneira contraditória, o primeiro retêm o ser (a dimensão propriamente filosófica da re-
(e talvez o maior) esforço a ser empregado pelo jurista flexão), encobrindo-o (o que, no contexto da moder-
passa pela construção de ferramentas que lhe possibili- nidade ocorre em meio à investigação científica). Isso
tem encontrar algo que produza sentido. simplesmente acontece. E, porque o Ser-aí é histórico,
Neste contexto, o recorte produzido pela Crí- somos levados por este acontecer; um acontecer en-
tica Hermenêutica do Direito incide reflexivamente cobridor que por toda parte em que procura o ser – o
sobre o Direito a partir de um paradigma filosófico de- mais digno de ser pensado, o ser da diferença ontológica,
finido. No caso, o paradigma que condiciona a reflexão – portanto – só encontra o ente. Isso leva o filósofo a
no plano empírico, do Direito – é aquele que podemos falar da metafísica (onto-teo-lógica) como história do
nomear, de forma global, como paradigma hermenêutico. esquecimento do ser. É na viravolta que aquilo que ficou
Parte-se da constatação de que Heidegger (não apenas esquecido deverá ser pensado. Heidegger passará, en-
ele, mas principalmente ele) colocou a hermenêutica em tão, a investigar os textos da tradição e seus principais
um novo patamar e, com isso, acabou por provocar uma autores, buscando demonstrar como, em cada era da
ruptura com os paradigmas anteriores que presidiam Metafísica, ocorreu o esquecimento do ser. E como so-
os critérios de método, verdade e racionalidade na filo- mos levados por ele.
4
Nesse contexto, Stein (1997) afirma que a crise pela qual passou a filosofia no final do século XIX e no início do século XX gerou um processo de fragmentação
do pensamento de tal modo que foi possível a produção de vários modos de filosofar que competem – concomitantemente – pela solução dos problemas filosóficos.
Nesse livro, o filósofo traz um modo interessante de colocar esse problema ao apresentar ao leitor dez modos possíveis de se fazer filosofia no século XX.
É por isso que é possível falar em um Destino do samento um lance de olhos provisórios (pre-cursor)
ser que na história da metafísica acontece e que somos, àquilo que então se desvela como destino-do-ser
de alguma forma, levados por este acontecer5. (Heidegger, 2005b, p. 256-257).
Em um curso proferido em 1957, por ocasião de
uma análise da Ciência da Lógica, de Hegel, Heidegger faz Nessa história do “esquecimento do ser”, Heide-
menção expressa a essa destinação historial do ser. Diz gger identifica elementos que, em determinadas épocas,
ele que “somente atingimos a proximidade do que nos acabaram por oferecer à filosofia um polo de unificação;
vem do destino historial através do súbito instante de algum tipo de explicação última (ou fundamento) que, a
uma lembrança. Isto também vale para a experiência de pretexto de representar o “pensamento do ser”, dizia, na
cada cunho da diferença de ser do ente ao qual corres- verdade, o seu encobrimento; sua entificação. O filósofo
ponde uma particular interpretação do ente enquanto nomeia tais elementos como “princípios epocais”, não
tal” (2005a, p. 197). porque “presidiram uma era”, mas, sim, porque acarre-
No mesmo texto, o filósofo diz o seguinte a res- tavam uma “epoché”, ou seja, uma suspensão da diferença
peito da diferença ontológica: ontológica por meio de um pensamento objetificador.
Na interpretação de Stein (2000, p. 42-77), cada
Deixamos de lado opiniões e esclarecimentos; em um desses “princípios epocais” pode ser pensado como
vez disso, fixemos nossa atenção no seguinte: em um paradigma filosófico: ou seja, como um ambiente no
toda parte e sempre encontramos aquilo que é cha- interior do qual a reflexão filosófica era organizada e
mado diferença: no objeto do pensamento, no ente produzida a partir de uma ideia determinada de ver-
enquanto tal, e isto tão despojado de dúvidas, que dade, de racionalidade e de método, que acabava por
primeiro tomamos conhecimento desta constatação, se revelar através de um modo singular de dizer, por
enquanto tal. Nada nos obriga a fazer isto. Nosso
meio de uma linguagem. Heidegger, por sua vez, localiza
pensamento está livre para deixar impensada a dife-
cada um destes princípios epocais para demarcar o es-
rença ou para considerá-la propriamente enquanto
tal (Heidegger, 2005a, p. 197). paço de operação da dimensão de seu método fenome-
nológico, por ele denominado “destruição”. O filósofo
Existe, portanto, um espaço em que a diferença propõe uma espécie de “processo hegeliano invertido”:
continua impensada, sem que isso permaneça, para um em vez de a reflexão filosófica caminhar na direção do
conhecimento, um erro, ou uma falsidade no nível lógi- saber absoluto (situado no futuro), é preciso que acer-
co. Há uma espécie de renúncia, um esquecimento, que temos as contas com o passado, tentando superar os
acaba por não atentar para o fato de que o ser não pode soterramentos atuantes que a história da filosofia (en-
representar-se por um ente. quanto onto-teo-logia) impusera ao pensamento do ser.
Na conferência Tempo e Ser, Heidegger afirma: O caminhar é, na verdade, um caminhar em direção à
aurora da civilização.
O ser não possui história como uma cidade ou um A Crítica Hermenêutica do Direito aceita esse
povo tem sua história. O caráter historial da histó- encargo heideggeriano e procura localizar, no interior
ria do ser determina-se certamente a partir disto e da reflexão jurídica, posições que possam estar susten-
somente assim: como ser acontece, de acordo com tadas em paradigmas filosóficos objetificadores, isto é,
o que foi dito até agora, a partir da maneira como o paradigmas inseridos no contexto de algum princípio
ser se dá. [...] A sucessão das épocas no destino de ser epocal, para, a partir daí, buscar uma nova abertura para
não é nem casual nem se deixa calcular como neces- o acontecer da reflexão sobre o direito.
sária. Não obstante, anuncia-se no destino aquilo que
Mas, como organizar, teoricamente, essa massa
responde ao destino no comum pertencer das épocas
aquilo que convém. Estas épocas se encobrem, em sua
de informações?
sucessão, tão bem que a destinação inicial de ser como Uma ferramenta interessante, nesse sentido,
pré-s-ença é cada vez mais encoberta de diversas ma- é desenvolvida, contemporaneamente, por Puntel
neiras. Somente o desfazer destes encobrimentos – é (2008), a partir daquilo que, no contexto de sua obra,
isso que quer dizer a “destruição” – garante ao pen- vem sendo chamado de quadro referencial teórico6. Por
5
Como adverte Stein (2006, p. 28): “O projeto de Ser e Tempo, mediante a ideia da compreensão do ser, é um projeto que já sempre radica numa história do ser. Há
uma História da Filosofia que precede toda discussão da questão da verdade. E nós somos, na discussão da questão da verdade, herdeiros de uma longa história que
não conseguimos explicitar plenamente”.
6
Segundo Puntel (2008, p. 27), “a determinação minimal mas fundamental de filosofia, como entendida neste livro, diz que filosofia é uma atividade teórica, isto é, uma ati-
vidade que visa o desenvolvimento e a exposição de teorias. Para que o desenvolvimento e a exposição de uma teoria seja factível., devem ser reconhecidos e cumpridos
muitos requisitos específicos.A totalidade dos fatores que preenchem esses requisitos pode ser chamada de quadro referencial, mais precisamente quadro referencial teórico”.
certo, Puntel pensa esse quadro referencial para com- XVII e XVIII. No contexto do século XIX, a dogmáti-
posição de sua filosofia sistemática, que, embora com ca jurídica se organizará a partir de críticas lançadas
reformulações e novos contornos críticos, pretende ao método dos antigos glosadores, que basicamente
recompor uma unidade presente na tradição e que foi ficarão restritas ao problema da falta de sistematici-
perdida no contexto da radicalização da filosofia analí- dade dos estudos medievais. Ao mesmo tempo, seu
tica no século XX. trabalho será construído em torno dos códigos oito-
A construção desse quadro referencial teórico é centistas – que, por si só, já expressavam o ideal de
realizada por Puntel, com base em Carnap (1950), que sistematicidade –, de modo que ela passa a receber
introduziu – no âmbito da filosofia analítica – o conceito um caráter lógico-demonstrativo de um sistema de-
de linguistic framework, ou quadro referencial linguístico7. dutivamente fechado, cuja maior expressão será Ju-
Todavia, Puntel vai além de Carnap e oferece um con- risprudência dos Conceitos. Assim, pode-se identificar,
ceito que é, ao mesmo tempo, mais abrangente e mais como traços marcantes deste período de sedimenta-
preciso do que aquele. Como ressaltado, para Carnap, ção da dogmática jurídica, a primazia da lei e o caráter
o quadro referencial linguístico só era acionado no mo- sistemático do Direito.
mento em que alguém pretendia nomear uma nova es- Nesse aspecto, no caso da Crítica Herme-
pécie de entidades. nêutica do Direito, a pesquisa guia-se, primeiro, pela
Puntel rearticula o conceito da seguinte forma: hermenêutica tal qual esta se apresenta configurada
no século XX, com base nas obras de Heidegger e
Neste livro, o termo quadro referencial é empregado de Gadamer. De Heidegger, a pesquisa retira o modo
em um sentido teórico abrangente, a saber, no senti- absolutamente novo de se lidar com o problema da
do de quadro referencial teórico. O quadro referencial
história graças à sua operação de “desepistemologi-
como quadro teórico designa a totalidade de todos
aqueles quadros referenciais específicos (pensa-se
zação da filosofia”, com a superação da relação su-
principalmente no quadro referencial linguístico, no jeito-objeto a partir da descoberta do caráter auto-
lógico, no semântico, no conceitual, no ontológico) -interpretativo do Dasein. Além disso, o teorema da
que de uma ou outra maneira constituem os com- diferença ontológica possibilita uma forma positiva de
ponentes irrenunciáveis de um quadro referencial se relacionar com o passado, a partir de um modelo
compreensivo pressuposto por uma dada teoria. [...] de pensamento em que o passado é chamado a co-
o termo “quadro referencial teórico” não pode ser -filosofar com a filosofia atuante.
entendido no sentido de um sistema formal interpre- Por outro lado, a contribuição gadameriana tem
tado; um quadro teórico de cunho filosófico (e cien-
lugar a partir da afirmação do caráter metateórico ou
tífico) é, antes, um instrumento que permite apre-
ender, compreender e explicar algo (um nexo, um transdisciplinar de sua hermenêutica filosófica. Sem ter
domínio objetual...). Dentro de ou por intermédio de o caráter de fundamento e tampouco de método para
um quadro referencial teórico se faz referência a algo as ciências do espírito, a hermenêutica filosófica oferece
(Puntel, 2008, p. 30). uma espécie de cabedal comum para o universo das ci-
ências históricas e sociais.
Na perspectiva de se buscar um aprendizado Desse modo, observa-se que as pretensões
histórico para a conformação de quadros referen- de Gadamer com a sua hermenêutica são filosóficas.
ciais teóricos no âmbito do Direito, é possível seguir Portanto, é preciso saber explorar as consequências
os passos de Ferraz Jr. (1998) para mostrar o modo da diferenciação entre filosofia e ciência na perspec-
como se formou a tradicional dogmática jurídica. Pri- tiva de se pensar de forma adequada o relaciona-
meiramente, o autor aduz que a dogmática jurídica, mento entre esses níveis: o nível ontológico-funda-
nos moldes como hoje a conhecemos, é produto de mental da filosofia e o nível propriamente empírico
um processo histórico que só chega a cristalizar-se das ciências.
nos albores do século XIX, como resultado da agluti- Por isso, é importante analisar mais proxima-
nação de três elementos centrais: (a) a jurisprudência mente o modo como a Crítica Hermenêutica do Di-
dos romanos; (b) a dogmaticidade dos glosadores medie- reito costura essa imbricação, seguindo as trilhas do
vais; (c) o racionalismo sistemático-iluminista dos séculos pensamento de Heidegger e de Gadamer.
7
Dentro das pretensões da filosofia de Carnap, eis uma amostra do significado do conceito: “Se alguém deseja falar em sua linguagem sobre uma nova espécie de
entidades, deve introduzir um sistema de novos modos de falar, sujeito a novas normas; daremos a esse procedimento o nome de construção de um quadro referencial
linguístico para as novas entidades em questão – em tradução nossa” (Carnap, 1950, p. 21).
A reconstrução das bases filosóficas cendentais. Ocorre que, com o transcurso dos anos,
da Crítica Hermenêutica do desenvolveram-se duas fenomenologias: de um lado, a
fenomenologia transcendental, de Husserl; e, de outro, a
Direito: a filosofia hermenêutica e a fenomenologia hermenêutica, de Heidegger (D’Agostini,
hermenêutica filosófica 2002, p. 131-132.).
Ao contrário da fenomenologia husserliana, o
(a) Heidegger e sua Filosofia projeto fenomenológico de Heidegger exsurge voltado
Hermenêutica para questão do ser, de tal maneira que, pela primeira
vez na história da filosofia, pergunta-se pelas condições
Com a filosofia de Hegel, mais especificamente transcendentais do ser humano fora da subjetividade,
as inovações referentes à dialética e ao sistema abso- isto é, fora da representação.
luto, ocorre um importante rompimento na tradição Dito de outro modo, Heidegger é quem busca
filosófica da época, na medida em que se verifica a in- pensar uma nova forma de descrever o ser humano, por
suficiência das respostas apresentadas até então natu- meio da qual ele acentua o modo de ser humano, o que
ralmente com a marca da teologia8, permitindo que o resulta na sua analítica existencial, com a publicação, em
problema do conhecimento fosse colocado não mais no 1927, de Ser e tempo.
sentido kantiano, mas mediante novas formas e diferen- Entretanto, convém esclarecer, preliminarmente,
tes modos, o que redundou, ao final do século XIX, no que o termo hermenêutica era pouco difundido na fi-
nascimento da escola histórica, de inúmeras correntes losofia praticada durante o século XIX, de tal maneira
filosóficas – neo-aristotelismo, neotomismo, neokantis- que Schleiermacher e Dilthey consideram-na somente
mo, neo-hegelianismo – e, anos mais tarde, da filosofia uma disciplina auxiliar: da dialética, para o primeiro; e da
analítica e da fenomenologia (Stein, 2002c). psicologia, para o segundo10.
Apenas no século XX – especialmente no perío- Portanto, a filosofia hermenêutica levada a cabo
do entre guerras –, é que a história da filosofia ocidental por Heidegger representa, no século XX, uma nova
resta marcada de modo indelével, na medida em que se expressão, cuja origem se deve a uma nova elipse, na
perdem os referenciais teóricos e se esvaziam definiti- medida em que ocorre a substituição da expressão
vamente as respostas oferecidas na época pela metafísi- hermenêutica da faticidade, ainda vinculada às noções de
ca clássica e pela metafísica moderna. ontologia e hermenêutica, introduzidas pelo filósofo no
Isso tudo porque, sobretudo a partir dos anos início dos anos 20.
20 – também conhecidos como período da incerteza e do Stein (2002a) afirma que, historicamente, a her-
risco, em face da suspeita sobre o conhecimento e sobre menêutica estava ligada a diversas disciplinas, dentre
a origem dos conceitos9 –, entende-se que não existem as quais se encontravam as áreas da interpretação dos
mais critérios de verdade capazes de fundamentar o co- textos – bíblicos ou mesmo jurídicos – da tradição, de
nhecimento de uma maneira minimamente consistente, modo que ela era entendida como a doutrina da com-
sem incorrer em ambiguidades, o que, destaque-se, pro- preensão e a arte da interpretação do assim compreen-
duziu uma série de reflexos no irracionalismo e, depois, dido. Isso significa dizer que a hermenêutica praticada,
no totalitarismo. até Heidegger, nunca havia sido aplicada, efetivamente, a
Husserl – acompanhado de seu discípulo Heide- determinada realidade, a um campo objetivo e, menos
gger – transfere-se para Freiburg, onde procura conce- ainda, à filosofia.
ber uma nova maneira de desenvolver o problema do Com o desenvolvimento do seu projeto filosófico,
conhecimento, de modo que sua fenomenologia passou Heidegger assume uma posição inédita diante da história
da análise das questões lógicas para as questões trans- da filosofia, na medida em que transforma os conceitos
8
Destaque-se ser possível afirmar que Hegel, de alguma maneira, preconiza o começo daquilo que se convencionou chamar pós-modernidade, na medida em que liberta
sua filosofia – panteísta – da metafísica e da teoria da substância, rompendo, portanto, com a teologia.
9
Conforme Streck (2006, p. 426-430), duas tendências, fundamentalmente, assumem importância a partir dos anos 20: de um lado, a filosofia analítica, em que se destaca
Frege, voltada à lógica e à linguagem, através da qual se desenvolve, por exemplo, a Escola de Viena; e, de outro, a fenomenologia, cuja origem encontra-se vinculada
àqueles, dentre os quais se destaca Husserl que não aceitavam as explicações cientificistas ou puramente logicistas.
10
A respeito de Dilthey, especificamente, é possível perceber duas fases distintas em seu pensamento. No primeiro, que ainda se mantém, de algum modo, refém de
certo psicologismo e que acaba por ancorar todo o seu projeto de uma epistemologia das ciências do espírito em torno da psicologia; e há um Dilthey tardio, que,
já sob os influxos da fenomenologia, acaba por abandonar o projeto de fundamentação última em torno da psicologia, deslocando seu modelo epistêmico para uma
“centralidade hermenêutica”. É este segundo Dilthey que influenciará de forma mais impactante o pensamento do primeiro Heidegger, em especial para construção de
sua ideia de uma “hermenêutica da facticidade” (Tomaz de Oliveira, 2016).
de ontologia, de hermenêutica e de fenomenologia, introdu- ainda ocupam uma posição fixa com princípios estabe-
zindo a faticidade com um novo campo de investigação. lecidos, volta-se contra aquilo que denomina crítica da
Observa-se que Heidegger, ao propor sua onto- razão, isto é, para a desconfiança da razão em face da
logia como hermenêutica da faticidade, opera uma apro- percepção de seus limites e da crise da metafísica12.
ximação até então não pensada: de um lado, rejeitando Com efeito, o fim da modernidade pode ser en-
a definição tradicional, a hermenêutica é empregada, no tendido como o momento em que se torna insusten-
seu sentido originário, para denominar determinada tável a possibilidade de se fornecer, mediante um único
unidade de realização do hermeneuein (do participar de sistema filosófico, explicações que tenham eficácia em
alguém), isto é, a interpretação da faticidade que traz ao todos os domínios do saber humano: em nível cogniti-
encontro; e, de outro, sintetizando aquilo que é visado vo, em nível prático, em nível moral e, também, em ní-
pela ontologia fundamental, a faticidade procura dar con- vel subjetivo, em nível artístico etc. Em outras palavras:
ta do ser do ente privilegiado, isto é, do nível do ente em chegou-se ao fim da modernidade – cuja principal carac-
que nós somos (Dasein). terística é a ideia de razão, de ciência, de verdade – no
Todavia, não se pode olvidar que, de acordo momento em que se perdeu a unidade de um sistema, a
com Heidegger, a hermenêutica não é filosofia, mas ela referência a determinado princípio, ou, ainda, a possibili-
somente tem a pretensão de mostrar, aos filósofos da dade de haver um sistema filosófico capaz de explicar as
época, um objeto que até então se encontrava esqueci- diversas áreas do saber e do convívio humano.
do, aguardando por uma simpática atenção (Stein, 2002a). Assim sendo, na mesma linha do que fizeram
Isso significa dizer que a hermenêutica tem, para Marx e Wittgenstein, Heidegger também elaborou uma
Heidegger, uma intenção que é apenas adjetiva, visto que proposta para o fim da filosofia, a partir da confissão de
apenas explicita a faticidade como elemento constituti- que o conhecimento humano é posto dentro de limites.
vo do Dasein, porque na ontologia fundamental ele já Contudo, reconheceu a existência de um interesse ligado
sempre se compreende na medida em que compreen- ao conhecimento, do qual o indivíduo não consegue dar
de o ser. Ou melhor: em Heidegger, a fenomenologia é conta. Heidegger refere tal fenômeno como uma tendên-
hermenêutica, na medida em que trata de um compre- cia para o encobrimento, isto é, faz uma espécie de diag-
ender prévio do modo de ser do Dasein. Ela não possui nóstico de que o ser humano tem como característica
a autonomia de uma área do conhecimento, mas apenas implicitamente presente uma condição de fuga de si mes-
especifica uma espécie de procedimento – fenomenoló- mo. Daí o porquê de Heidegger insistir em que a raciona-
gico – voltado a uma estrutura ontológica que deve ser lidade simplesmente não dá conta da condição humana,
mostrada. Por isso, adverte Stein (2002a), é que se pode visto que existe, desde sempre, um elemento encobridor
falar que Heidegger desenvolve uma filosofia hermenêu- no próprio modo do homem ser e conhecer: naquilo
tica, em que pese tal adjetivo pudesse ser substituído que se pensa existe o impensado. Há, para Heidegger, algo
por inúmeros outros. maior que determina o que se consegue apanhar em cada
Isso tudo porque Heidegger é considerado por momento pelo conhecimento, e este algo maior é exata-
muitos o principal expoente da denominada crítica con- mente aquilo que situa o homem na finitude.
servadora11, ou crítica à metafísica, conforme assinala Stein Heidegger denuncia a modernidade como a úl-
(2001). Tal crítica sustenta que a modernidade chegou tima etapa da metafísica. Para ele, dos gregos até He-
ao fim quando a perda da unidade da razão tornou-se gel, houve um processo espantoso, cuja principal con-
irrecuperável, sendo, portanto, necessária a construção centração ocorreu na modernidade, que é o ápice do
de um novo projeto a partir de um novo paradigma filo- encobrimento do ser. Verificar isso é bastante simples.
sófico que transcendesse a mera racionalidade e desse Basta, para tanto, observar que, no transcorrer da histó-
conta da condição humana. ria ocidental, prevaleceram a nomeação e a objetificação
De acordo com Stein (2001), a crítica conservado- ao invés de se pensar aquilo que estava a se encobrir.
ra, que provém daqueles que ainda são metafísicos, que Conforme já referido, o ser, em Platão, chama-se ideia
11
Ao contrário da crítica progressista – assumida por Habermas –, que pretende continuar o projeto inacabado da modernidade, a crítica conservadora defende a existên-
cia de uma sucessão de momentos da história que não são apenas exteriores e formais, mas que têm conteúdo e substância. Como já referimos, Heidegger chamará
estes momentos de princípios epocais, de modo que cada época teve um princípio a partir do qual se determinava o que era arte, religião, moral, ciência, etc. Com o
fim da modernidade, o que se verifica é que, pela primeira vez, vive-se uma situação na qual não se tem mais um princípio único definidor destas instâncias da cultura
e da história humana. E mais: sequer se sabe como se faz esta passagem da modernidade para um outro começo, porque, afinal de contas, o homem desta virada de
século ainda é um ser de dois mundos.
12
Stein destaca que, para Heidegger, é necessário por um limite à ideia de racionalidade, visto que a epistemologia é uma exacerbação da subjetividade; ela decreta o
fim da filosofia.
ou eidos; em Aristóteles, substância ou ousia; na Idade dentro do sujeito, nos termos propostos por Freud, mas
Média, ens creatur; em Descartes, confunde-se com o sim para dentro do ser humano como condição de pos-
cogito cartesiano; em Kant, é o eu penso; em Hegel, o sibilidade do filosofar (Stein, 2001, p. 75).
eu absoluto; em Nietzsche, a vontade do poder. Isso tudo Nesse contexto, pode-se afirmar ser com a
evidencia que a questão essencial – que é a questão do publicação de Ser e tempo que Heidegger desenvolve
ser – se perdeu. aquilo que ele denomina ontologia fundamental13; inventa,
Assim, levando em consideração que a história a partir do método fenomenológico, uma filosofia her-
da filosofia tornou-se a história do esquecimento do ser, menêutica que é capaz de expor o desconhecido, e não
Heidegger entende que é preciso superar esse encobri- simplesmente articular de um outro modo o conheci-
mento: não se liberta o homem desta ilusão de sempre do, como o fazem as ciências. Este desconhecido, para
entificar de novo o ser, através da absolutização de cer- Heidegger, é aquilo que nunca se aceitou ou reconhe-
tos nomes; o homem não deixará de fazer isto enquan- ceu porque sempre esteve encoberto. É justamente na
to não perceber que a temporalidade é o horizonte no compreensão do ser que algo de novo exsurge: é o todo
qual toda a filosofia se movimenta. que se anuncia como algo de novo. E o método her-
No paradigma da filosofia hermenêutica, a ver- menêutico, enquanto hermenêutico existencial, é o que
dade apresenta-se, primeiro, em nível existencial. Nos §§ pretende trazer este novo. Contudo, este novo depende
43 e 44 de Ser e tempo, Heidegger busca demonstrar de do fato de o homem existir: não há verdades sem o ser
que modo e quais são as consequências da sua analítica humano (Stein, 2001, p. 77-78).
existencial na concepção dos dois conceitos básicos da Dessa forma, a concepção de hermenêutica for-
tradição metafísica: o de realidade e o de verdade. Para mulada por Heidegger não é proposta como uma teoria
Streck, é no conceito de verdade que Heidegger das ciências humanas e tampouco assume a expressão
de teoria da subjetividade. Ao introduzir um caráter an-
[...] mostra a dupla dimensão que tem o conhecimen- tropológico, com o qual visava a descobrir a ideia de
to: a dimensão hermenêutica trata da verdade exis- compreensão no próprio ser humano, construindo, as-
tencial; a dimensão apofântica lida com o conceito sim, sua visão filosófica, Heidegger irá se ocupar, primei-
de verdade lógica. Verdade (ontológica) primeiro é ramente, com a questão do ser. A busca pelo sentido do
abertura, clareira, é espaço em que se dá uma possível ser – sempre atenta aos equívocos em que incorriam as
relação sujeito-objeto [...] uma verdade ôntica, uma teorias metafísicas que equiparavam ser e ente – resulta
verdade lógica. Heidegger conclui, então, que não é o
na construção da hermenêutica como o elemento que
enunciado que é o lugar da verdade, mas a verdade
é que é o lugar do enunciado. Por isso ele vai falar permite ao homem compreender a si mesmo na medi-
de um acontecimento de verdade [...] isso quer dizer da em que compreende o ser. Esta autocompreensão
que o enunciado pressupõe de certo modo sempre já implica um interpretar-se a si mesmo, superando, desse
uma abertura onde ele pode ser proferido. Verdade, modo, o antigo problema da fundamentação. Em última
em síntese, é alteheia (Unverborgenheit), desvelamento análise: Heidegger entendia que a ontologia fundamental
(Streck, 2006, p. 428). deveria ser colocada por debaixo da práxis, visto que
possibilitaria qualquer tipo de conhecimento, isto é,
No reino da metonímia, ao contrário do que qualquer tipo de fundamentação.
ocorre no reino da metáfora, o todo não se espelha na Isso fica evidente logo na primeira seção da
parte: o todo é falado na parte, é dito na parte. Por isso, primeira parte de Ser e tempo, onde Heidegger desen-
a filosofia pode dizer que a parte, que é o ente, remete volve a analítica existencial, cuja função está ligada ao
ao todo enquanto ela encobre o todo. E é por isto que modo concreto do ser humano existir, denominado ser-
a tarefa da filosofia, através do método fenomenológico, -no-mundo, Dasein, formando o elemento unitário que
consiste justamente em des-velar o que está velado, em antecede todo o dualismo e, assim, possibilita a crítica
apontar para aquilo que vela o que está velado. O velado a toda a tradição metafísica baseada no fundamentum
é o ser; o que vela é o ente; o que se fala é o ente; o que inconcussum, conforme refere Streck (2006, p. 427-428).
está nas entrelinhas do que se fala é o ser. Em última ins- Heidegger entende que só é possível pensar o ser
tância, a filosofia é transposta não como um drama para enquanto ser dos entes.A noção de Dasein – ente privile-
13
A respeito de Ser e tempo, Stein sustenta que são seis as teses centrais que compõem a estrutura sistemática de Ser e tempo: “(1) no início da obra, Heidegger situa a
questão da ontologia fundamental, do sentido do ser; (2) a clarificação desta questão somente pode resultar do recurso ao único ente que compreende ser – o homem
(Dasein), o estar-aí; (3) o estar-aí é ser-no-mundo; (4) ser-no-mundo é cuidado, cura (Sorge); (5) cuidado é temporal (zeitlich); (6) a temporalidade do cuidado é temporalidade
extática que se distingue do tempo linear, objetivado” (Stein, 1988, p. 10-11).
giado que compreende o ser – vem designar esse modo de Sein und Zeit: o problema do ser, que desde Platão e
de ser no mundo, próprio do gênero humano, na medida Aristóteles foi pensado sempre como um ente privilegia-
em que o ser nele se manifesta e ele se manifesta huma- do e nunca como tal, em seu acontecer (Ereignen)”.
no, ao compreender o ser. O Dasein implica, portanto, a Aliás, merece destaque, aqui, que os dois teore-
ideia de que não apenas o homem é, mas de que ele per- mas fundamentais do pensamento filosófico de Heide-
cebe aquilo que ele é. Mais: é a natureza de ser-aí (Dasein) gger e de todos aqueles que o seguiram – a diferença
que Heidegger utiliza como pressuposto para descrever ontológica e o círculo hermenêutico, que se articulam em
o modo de ser-em (in-Sein), no que reside a condição de um mesmo e indivisível movimento14 – assume especial
possibilidade de qualquer teoria do conhecimento. importância no que diz respeito à compreensão da her-
Por tudo isso, Heidegger ressalta a necessidade menêutica filosófica, de Gadamer.
de desconstrução da ontologia clássica, mediante a in- Segundo Stein (2000), para que se compreenda
trodução de dois conceitos elementares: o cuidado (Sor- melhor a constituição circular do ser-aí, os conceitos de
ge), que é a estrutura básica da existência, marcada por diferença ontológica e de círculo hermenêutico não podem
sua tríplice dimensão – ser-adiante-de-si-mesmo (futu- ser pensados como prioridades ontológicas e, muito
ro), já-sempre-no-mundo (passado) e junto-das-coisas menos, cronológicas, pois a emergência da circularidade
(presente) –; e a temporalidade (Zeitlichkeit) – enquanto do ser-aí é a própria emergência da diferença ontológica e
futuro (existência), passado (faticidade) e presente (de- vice-versa: a circularidade impõe a diferença ontológica e
caída) –, que é o sentido do cuidado e, consequente- esta manifesta aquela. Dito de outro modo, a relação do
mente, o sentido do ser-aí: “Compreender é, pois, um ser com o homem e do homem com o ser que revela
existencial: não me pergunto por que eu compreendo; a circularidade constitui a diferença ontológica. E uma
essa pergunta chega sempre tarde; na verdade, eu já não se dá sem a outra.
compreendi. O cuidado – que é também um existencial Com isso, observa-se o caráter inovador do pen-
– é o ser do Dasein, assim como a temporalidade será o samento heideggeriano que, ao negar a modernidade e
sentido do Dasein” (Streck, 2006, p. 428). reivindicar a necessidade de um paradigma que trans-
Observa-se, desse modo, que Heidegger colo- cendesse a tradição metafísica, construindo sua filosofia
ca, então, a questão da temporalidade e da historici- hermenêutica, Heidegger fundou as bases para que Ga-
dade na segunda seção de Ser e tempo, onde pensa o damer desenvolvesse a hermenêutica filosófica, da qual o
homem como um ser histórico, marcando a conheci- Direito ainda deveria lançar mão para melhor compre-
da passagem do denominado primeiro Heidegger para ender os fenômenos jurídicos.
o segundo Heidegger. Em suma, embora Heidegger jamais tenha se de-
O segundo Heidegger – ao invés de pensar em dicado, ou mesmo preocupado, com o Direito (Kauf-
uma dimensão transcendental, que poderia se relacionar, mann e Hassemer, 2002, p. 121), sua produção teórica
ainda, a uma teoria da subjetividade –, introduz a noção funda bases através da quais é possível lançar um novo
de acontecer (Ereignen), ligada à teoria da história do ser. olhar sobre a hermenêutica jurídica e a própria compre-
A viravolta (Kehre), portanto, ocorre em face do dilema ensão do direito. Isso fica ainda mais evidente se levada
que se coloca na terceira seção da primeira parte de Ser em consideração a virada ontológica proporcionada por
e tempo. O projeto de pensar o tempo como horizonte seu principal discípulo – Gadamer –, cujas investigações
de sentido do ser realiza-se apenas na medida em que o têm as raízes atreladas aos teoremas fundamentais da
segundo Heidegger passa a abordar a história do ser, bus- filosofia hermenêutica, a partir da qual é possível a su-
cando descobrir, a partir do encobrimento do ser, a sua peração do esquema sujeito-objeto que, historicamen-
verdadeira história, que sustenta todo e qualquer pensa- te, predomina no interior do pensamento jurídico, na
mento dos entes, conforme assinala Streck (2006, p. 429): medida em que este ainda oscila entre os paradigmas
“É, portanto, tarefa do segundo Heidegger realizar aquilo aristotélico-tomista (objetivista) e da filosofia da cons-
que o primeiro Heidegger se propôs na segunda parte ciência (subjetivista), como conclui Streck:
14
“O círculo hermenêutico e a diferença ontológica são os teoremas que sustentam a teoria heideggeriana da realidade e do conhecimento, isto é, a teoria da funda-
mentação do conhecimento [...] A ideia de ser de Heidegger, na medida em que é vinculada com a compreensão do ser, caminho para pensar o ente, se revela como
uma dimensão operatória: compreendendo-me no mundo e na relação com os entes, compreendo o ser. Naturalmente, essa compreensão do ser não é temática e
deve ser explicitada. É precisamente essa explicitação que é a meta buscada pela analítica existencial ou ontologia fundamental, cujos teoremas se expressam no círculo
hermenêutico e na diferença ontológica. O ser heideggeriano torna-se o elemento através do qual se dá o acesso aos entes, ele é sua condição de possibilidade. Isso
é a diferença ontológica. Como esta condição só opera através da compreensão pelo Dasein, pelo ser humano que se compreende, a fundamentação (condição de
possibilidade) sempre se dá pelo círculo hermenêutico” (Stein, 2000, p. 104).
Compreender não é um modo de conhecer, mas um Ocorre que, levando em conta os diversos pon-
modo de ser. Por isso – essa circunstância ficará bem tos de contato entre a filosofia hermenêutica, de Hei-
explicitada na hermenêutica gadameriana desenvolvida degger, e a hermenêutica filosófica, de Gadamer, muitas
em Wahrheit und Methode – compreender, e, portanto, aproximações têm sido realizadas entre os pensamen-
interpretar (que é explicitar o que se compreendeu)
tos desses dois autores. Entretanto, as distinções fun-
não depende de um método, saltando-se, assim, da epis-
temologia da interpretação para a ontologia da com-
damentais que se podem verificar entre ambos exigem
preensão. Quando Heidegger identifica um duplo nível que se atente para a impossibilidade de uma simples – e
na fenomenologia [hermenêutico e apofântico], abre as inconsequente – sobreposição.
possibilidades para a desmi(s)tificação das teorias argu- Isso tudo porque, como se verá a seguir, algu-
mentativas de cariz procedimental. Na verdade, coloca mas das diferenças não apenas fazem com que Gadamer
em xeque os modos procedimentais de acesso ao co- não seja Heidegger e tampouco o repita, mas apontam,
nhecimento, questão que se torna absolutamente rele- sobretudo, para a possibilidade de que Gadamer tenha
vante para àquilo que tem dominado o pensamento dos dado um passo importante e talvez adiante de Heideg-
juristas: o problema do método, considerado como su- ger. É por isso que se mostra necessário abordar de que
premo momento da subjetividade e garantia da correção
modo a filosofia hermenêutica está relacionada à her-
dos processos interpretativos. Uma hermenêutica jurídica
que se pretenda crítica, hoje, não pode prescindir dos
menêutica filosófica. Tal relação pode ser nitidamente
dois teoremas fundamentais formulados por Heidegger: evidenciada a partir de uma análise linguística, conforme
o círculo hermenêutico, de onde é possível extrair a assinala Stein (2002a).
conclusão de que o método (ou o procedimento que Se, por um lado, na filosofia hermenêutica, a pala-
pretende controlar o processo interpretativo) sempre vra hermenêutica aparece como um simples adjetivo da
chega tarde, porque o Dasein já se pronunciou de há palavra filosofia, de modo que fica nítida a pretensão hei-
muito tempo, e a diferença ontológica, pela qual o ser é deggeriana de apresentar uma modificação da concep-
sempre o ser de um ente, rompendo-se a possibilidade ção da filosofia, sem renunciar a um projeto completo
de subsunções e deduções, uma vez que, para Heide- da filosofia; por outro lado, na hermenêutica filosófica, a
gger, o sentido é um existencial do Dasein, e não uma
palavra hermenêutica exsurge como substantivo, sendo a
propriedade colada sobre o ente, colocado atrás deste
ou que paira não se sabe onde, em uma espécie de reino
palavra filosófica apenas um adjetivo, o que aponta na di-
intermediário (Streck, 2006, p. 429-430). reção de que o interesse gadameriano não está, simples-
mente, em manter uma posição filosófica determinada.
Tanto é assim que Heidegger não emprega com
(b) Gadamer e sua frequência a expressão hermenêutica ao longo de Ser e
Hermenêutica Filosófica tempo, o que demonstra que tal conceito foi utilizado
porque permitia a exploração da história hermenêutica,
Tendo em vista o espaço conquistado pela filoso- a partir de seus elementos, o que reforça a visão segun-
fia hermenêutica – que, em face da pergunta pelo sen- do a qual a hermenêutica constituiria um dos passos
tido do ser, é guindada à posição de doutrina filosófica do projeto filosófico heideggeriano, mediante o qual ele
fundamental – e, consequentemente, a abertura por ela procura analisar a história da filosofia (Stein, 1991, p. 90).
proporcionada no interior da filosofia contemporânea, Já no que se refere a Gadamer, o emprego da
houve a natural difusão do pensamento heideggeriano palavra hermenêutica como substantivo e da palavra fi-
e a expansão de suas investigações – algumas vezes, in- losófica como adjetivo aponta, de alguma maneira, para
clusive, para além de suas ideias –, através da produção uma diminuição do caráter filosófico da hermenêutica
teórico-filosófica de seus seguidores. gadameriana. Mais: poder-se-ia inclusive afirmar que a
Entre os discípulos de Heidegger, Stein (1986) hermenêutica de Gadamer não pode ser considerada
considera Gadamer o mais importante de todos, seja uma filosofia no sentido como Heidegger a fez15.
por causa da sua ampla formação intelectual, seja pela Todavia, não se pode esquecer que o próprio
inauguração das bases sobre as quais vai desenvolver Gadamer (2003) reconhece que seu vínculo com a obra
uma nova corrente do pensamento contemporâneo: a de Heidegger poder ser analisado, fundamentalmente,
hermenêutica filosófica. sob três aspectos.
15
Conforme esclarece Stein (2002a, p. 22, 28) a investigação levada a cabo por Gadamer conduz, inevitavelmente, a uma questão que parece central em seu projeto:
“é a hermenêutica filosófica uma filosofia? Essa é também a questão central do autor de Verdade e método. É por essa razão que Gadamer, depois da primeira parte que
trata da exibição da questão da verdade na experiência da arte e depois da preparação histórica, primeira secção da segunda parte, em que trata da ampliação da questão da
verdade para o compreender nas ciências do espírito, se concentra na elaboração do esboço e uma teoria hermenêutica da experiência”.
O primeiro aspecto refere-se ao desenvolvimento da a historicidade através do ser, tendo em vista que a
do problema hermenêutico universal, seguindo o pro- intenção fundamental gadameriana era demonstrar que
jeto fenomenológico heideggeriano16, de um lado, na “ser que poder ser compreendido é linguagem” (Gada-
crítica oposta à filosofia transcendental e, de outro, na mer, 2003, p. 567-568).
viravolta de Heidegger, em que pese recorra ao concei- Isso tudo porque Gadamer se interessava, funda-
to de hermenêutica do jovem Heidegger, segundo o qual mentalmente, pela historicidade como algo irrecuperá-
hermenêutica não é filosofia. vel na sua radicalidade, visto que sua pretensão estava
O segundo aspecto, por sua vez, diz respeito à cir- relacionada justamente à compreensão dos fenômenos
cunstância de Gadamer reconhecer que a investigação da cultura, da história e da linguagem dentro dos hori-
a partir da qual propõe sua matriz hermenêutica seria zontes finitos da faticidade e da historicidade, em que é
inversa ao interesse de Heidegger, isto é, ele substitui a impossível a recuperação do sentido último.
ontológica heideggeriana da pré-estrutura do compre- Nessa linha, Stein (2002a) entende que a herme-
ender pela historicidade do compreender17. nêutica filosófica dedica-se a dimensões que não são
Destaque-se, aqui, o alerta feito por Stein (2002a, puramente uma análise da cultura, mas se volta para di-
p. 29) no sentido de que o conceito de compreender mensões nas quais toda a cultura humana – linguagem,
proposto por Gadamer (2002, p. 320) apresentaria uma arte, poesia, história – mergulham na dimensão da histo-
diferença fundamental daquele sustentado por Heideg- ricidade, que se dá sempre como um pré-compreender.
ger: se, para este, o compreender é um existencial, pois Aliás, cumpre referir, aqui, que Gadamer é o ho-
constitui uma das estruturas do Dasein; para aquele, o mem da pré-compreensão, ainda que tal noção apareça
compreender é fundamentalmente um operar, que se dá algumas vezes em Ser e tempo, não sendo, porém, su-
tanto no nível do ser que é compreendido na linguagem, ficientemente apresentada por Heidegger. Portanto, ao
como também no nível em que aquele ser que é jamais contrário do verificado na filosofia hermenêutica, Ga-
poderá ser compreendido em sua totalidade. damer assume a pré-compreensão como um elemen-
O terceiro aspecto, por fim, consiste no fato de to decisivo nas análises que desenvolve em Verdade e
que Gadamer segue o caminho trilhado por Heidegger método, ligadas à verdade da obra de arte, da história e,
porque entende mais conveniente substituir a investi- especialmente, da linguagem. Isso tudo porque a inten-
gação transcendental husserliana pela hermenêutica da ção primordial de Gadamer está ligada à abertura de um
faticidade, através da qual transfere a indepassabilidade espaço da pré-compreensão, no qual sempre se movem
da faticidade para a compreensão da tradição histórica, todos aqueles que operam no campo dos enunciados as-
o que vai resultar, em última e complexa análise, na her- sertóricos predicativos, verdadeiros e falsos, das diversas
menêutica filosófica (Stein, 2002a, p. 29-30). ciências e dos mais variados campos da cultura humana
Nesse sentido, talvez pelo fato de carregar toda (Bleicher, 2002; Almeida et al, 2000; Grondin, 1999).
uma formação clássica filológica da tradição é que Ga- De qualquer modo, cumpre referir alguns daque-
damer tenha adotado da filosofia hermenêutica justa- les que podem ser considerados os temas heideggeria-
mente o conceito de faticidade – que lhe acompanhará nos influentes e determinantes para o desenvolvimento
e será fundamental durante toda a sua obra –, entendi- da hermenêutica proposta por Gadamer: (a) o conceito
do como aquilo que é irretrocedível, indepassável, enfim, mais originário de compreensão, ligado ao modo de ser-
que é a condição humana fundamental de existir. -no-mundo, e não mais aos processos intelectivos atra-
Entretanto, Gadamer procura conciliar esse con- vés dos quais um sujeito precisa apreender os objetos
ceito de faticidade – retirado do primeiro Heidegger – para conhecê-los; (b) o projeto de destruição da meta-
com conceitos do segundo Heidegger, no qual é trabalha- física, voltado à sedimentação das camadas de sentido
16
Cumpre referir, entretanto, que Gadamer, de certa maneira, mantém-se fiel a uma fenomenologia que não chama nem de transcendental, no sentido husserliano, nem
de hermenêutica, no sentido heideggeriano, mas, sim, adota o conceito de fenomenologia como uma ferramenta descritiva do processo que sempre está subentendido
e pré-compreendido em todo conhecimento e em toda cultura humana. O o que dá a entender o conceito (de índole neokantiana) abandonado por Heidegger se
conserva, de certo modo, em Gadamer, assumindo efeitos importantes na descrição e aplicação. Nessa mesma linha, Stein (2002a, p. 32) observa que, ao colocar a
linguagem como horizonte e reconhecer a faticidade como elemento que, de certa maneira, produz a historicidade do sentido, Gadamer não tem mais em vista aquilo
que era pretendido pela fenomenologia: uma base para a pretensão de validade do conhecimento. Em última análise, pode-se dizer que, na hermenêutica filosófica,
não se encontram mais vestígios da intenção heideggeriana de resolver o problema do conhecimento, na medida em que, durante o desenvolvimento do seu conceito
fundamental de autocompreensão, Gadamer renuncia aos elementos transcendentais da fenomenologia em seu sentido original, seja de no sentido husserliano, seja
no sentido heideggeriano.
17
“Heidegger sólo entra en la problemática de la hermenéutica y críticas históricas con el fin de desarrollar a partir de ellas, desde el punto de vista ontológico, la prees-
tructuram de la comprensión. Nosotros, por el contrario, perseguiremos la cuestión de como, una vez liberada de las inhibiciones ontológicas del concepto científico
de la verdad, la hermenêutica puede hacer justicia a la historicidad de la comprensión” (Gadamer, 2003, p. 331-338).
que foram sobrepostas e, assim, estabilizaram-se sobre a prática do Direito, visto que o domínio das ciências
os conceitos, ao longo da história; (c) o problema da humanas dependerá de uma apropriada compreensão
essência da verdade, colocado como algo que, origina- da relação entre a universalidade dos conceitos e as
riamente, estaria mais próximo e afeto à questão das condições singulares em que eles se aplicam, conforme
artes do que, propriamente, à questão da lógica. assinala Duque-Estrada (2006, p. 374).
Nesse sentido, inclusive, Duque-Estrada (2006, p. Portanto, pode-se afirmar, na esteira de Stein
373) sinaliza para o fato de que esses três temas irão (2004, p. 165-166), que a hermenêutica filosófica gada-
convergir na obra de Gadamer, dando sustentação ao meriana oferece uma lição nova e definitiva, na medida
projeto de sua hermenêutica filosófica, voltado, de um em que sustenta que uma coisa é estabelecer uma práxis
lado, para a possibilidade de uma coexistência legítima de interpretação opaca como princípio, ao passo que ou-
e não-dogmática entre o iluminismo inerente à rela- tra, bem diferente, é inserir a interpretação num contex-
ção filosófica, e, de outro, para a esfera sempre já pré- to, ou de caráter existencial, ou com as características do
-existente do sentido, ligada à noção de tradição, que se acontecer da tradição na história do ser, em que interpretar
constitui pela mediação da linguagem. permite ser compreendido progressivamente como uma au-
Para tanto, Gadamer apresenta, em Verdade e mé- tocompreensão de quem interpreta. Neste segundo modo,
todo, os três momentos – representados por meio das é possível vislumbrar o alcance da revolução levada a
três grandes seções da obra – em que pensa o processo cabo por Heidegger na aplicação que Gadamer propõe
mediante o qual se propaga e se transmite a tradição, ao campo jurídico.
entendida como a constante recepção de conceitos, Assim sendo, tanto o sentido da lei como o sen-
costumes e práticas a que o homem se encontra per- tido de um texto literário qualquer ou, ainda, de um
manentemente exposto pela linguagem: (i) na primeira fragmento histórico do passado apresentam, sob a óti-
parte, Gadamer aborda o modelo da verdade da obra ca gadameriana, uma mesma característica: o momento
de arte, conforme pensado por Heidegger, de tal manei- normativo da lei, do texto e do fragmento histórico, isto
ra que a obra de arte não pode ser reduzida a qualquer é, aquele momento que diz respeito a eles próprios, em
fator que lhe seja externo, pois sua verdade – aquilo que que eles querem dizer por si mesmos, jamais pode ser
a torna uma obra de arte – é algo da ordem do acon- cindido do momento cognitivo em que eles, de fato, são
tecimento, isto é, simplesmente acontece, sendo per- aplicados, lidos e investigados, respectivamente. Isso sig-
cebida, preservada e transmitida de uma geração para nifica dizer, em última análise, que um momento per-
a outra, na medida em que produz seus efeitos; (ii) na tence ao outro, de tal maneira que ambos formam uma
segunda parte, tomando como ponto de partida a ideia unidade inseparável, que está diretamente ligada à estru-
de que o ser afetado pelo encontro com uma obra de tura universal da experiência hermenêutica.
arte pode igualmente ser pensado e desdobrado de um É por isso que se torna impossível continuar a
modo mais amplo, Gadamer aplica a efetividade da obra acreditar que haja uma disponibilidade da lei, em si mes-
de arte à história, passando-se à efetividade histórica ma, que preceda a toda e qualquer aplicação que dela
e, posteriormente, ao conceito de consciência históri- se faça: essa será a cruzada da hermenêutica filosófica
ca ou consciência dos efeitos históricos; (iii) na terceira aliada com a teoria do direito contemporânea, empre-
parte, por fim, Gadamer revela que tudo isso ocorre no endida por Streck desde os anos 1990.
interior da linguagem, na medida em que esta exerce o
papel de antecipar e organizar o modo de ser, isto é, o Às voltas com uma epistemologia
modo de pensar e de se relacionar com o mundo, com
as coisas, com os outros, enfim, com tudo aquilo que diz
hermenêutica: a Crítica
respeito ao modo de ser humano. Hermenêutica do Direito e sua
Ocorre que, ao contrário do que desenvolve interpretação
Heidegger, em sua investigação, Gadamer aproxima-se
do campo do Direito, na medida em que faz uma sé- Com base nesses pressupostos filosóficos, a
rie de considerações acerca da importância que a ex- Crítica Hermenêutica do Direito insere-se em meio ao
periência hermenêutica assume na fundamentação-in- reino de objetos que caracteriza o Direito na forma de
terpretação-aplicação judicial (Fernandéz-Largo, 1991; uma epistemologia hermenêutica. Nesse contexto, Stre-
Streck, 2015a). ck a apresenta, desde a terceira edição de seu Verdade
Isso porque, segundo Gadamer, a hermenêuti- e consenso, como uma Teoria da Decisão, construída a
ca filosófica pode contribuir para uma reflexão sobre partir de uma imbricação entre Gadamer e Dworkin.Tal
proposta está inserida no contexto do constitucionalismo Em Verdade e consenso (Streck, 2011), ocorre
contemporâneo que redefiniu o Direito Público, a par- uma “virada teórica” no pensamento do autor e o pro-
tir de uma reconstrução de todo fenômeno jurídico na blema da decisão judicial – que já aparecia no ambiente
senda do Direito Constitucional. Assim, procura-se es- de obras anteriores – passa a ser o ponto de referência
tabelecer o horizonte teórico adequado para que as de- de suas preocupações teóricas.
cisões judiciais construam respostas adequadas à Cons- Assim, seguindo a advertência de Dworkin (2006,
tituição. Enfatiza o autor que a obtenção de respostas p. 132) de que “não conseguiremos encontrar uma fór-
adequadas à Constituição manifesta-se como direito fun- mula para garantir que todos os juízes cheguem à mes-
damental do cidadão na medida em que a Constituição ma resposta em processos constitucionais complexos,
estabelece, expressamente, o dever de fundamentação inéditos ou importantes”, Streck dedica-se a uma teoria
das decisões judiciais. da decisão de modelo construtivista, vale dizer, uma teoria
O percurso para a construção dessa teoria da que onera o intérprete no momento de construir seu
decisão inicia-se com a obra Hermenêutica jurídica e(m) argumento, exigindo a construção de uma justificação
crise, cuja primeira edição é de 1999, na qual o autor faz adequada à constituição do ajuste por ele realizado en-
um diagnóstico da crise de dupla face que acomete o tre as circunstâncias concretas do caso e o contexto
Direito e a dogmática jurídica nos países de modernida- normativo do Direito da comunidade política.
de tardia e, a partir daí, procura apontar novas perspec- Nesse sentido, teorias procedimentais – que
tivas para a exploração do Direito. procuram estabelecer critérios prévios para correção
A primeira face desta crise é de natureza episte- da decisão judicial – como a formulada por Robert Ale-
mológica e aparece no momento em que nos damos con- xy, são, de plano, rechaçadas.
ta de que o pensamento jurídico continua refratário às Na defesa de sua tese, Streck (2011) insiste na
conquistas produzidas pelo linguistic turn (viragem linguís- importância paradigmática da noção gadameriana de
tica) e pelo giro ontológico operado pela filosofia her- applicatio. Com ela, o Direito se liberta da velha arma-
menêutica e pela hermenêutica filosófica. Diante disso, dilha presente nas teorias tradicionais sobre a herme-
os juristas permanecem prisioneiros da vetusta relação nêutica que acreditavam na possibilidade de separar
sujeito-objeto, tal como a descreveu a metafísica clássi- o fenômeno interpretativo – e, no limite, o decisional
ca e a filosofia da consciência, sem se darem conta de – em partes ou fatias. Na verdade, no campo do conhe-
que, após essa guinada, não é possível acessar os objetos cimento do Direito, é preciso ter claro que nenhum
senão através da linguagem. Por outro lado, a partir do processo lógico-argumentativo pode acontecer sem a
giro ontológico, mostra-se como que a interpretação de pré-compreensão.
um texto jurídico traz consigo todas as implicações da Por outro lado, Streck (2011) também acentua
faticidade e da historicidade daquele que interpreta tais que a hermenêutica, ao ampliar o espaço de legitima-
textos. Isso porque o homem é um animal formador de ção dos processos cognitivos, estabelece as condições
mundo, sendo desnecessário procurar uma ponte entre necessárias para dar conta desse complexo pré-com-
sujeito e objetos.Assim, sua existência o atira, desde sem- preensivo, determinando seus limites e sua pretensão
pre, para dentro de um mundo, no interior do qual ele de universalidade, possibilitando, assim, determinar a va-
lida com objetos, os compreendendo e os interpretando lidade daquilo que foi obtido por meio da interpretação.
a partir de uma estrutura – compartilhada por todos de Da teoria de Dworkin, especialmente de sua no-
um modo apriorístico – chamada pré-compreensão. ção de direito como integridade, retiram-se os elementos
A segunda face da crise é uma crise de paradig- necessários para compor os padrões mínimos que de-
mas. A partir dela, busca-se demonstrar como o pen- vem estar presentes em toda decisão judicial. Esses pa-
samento jurídico dominante continua lidando com o drões compõem algo que pode ser chamado de história
fenômeno jurídico ao modo do paradigma liberal ab- institucional do Direito e têm nos princípios os marcos
senteísta próprio do legalismo econômico reinante ao definidores de seu caminho. Assim, “quando Dworkin
tempo do Estado liberal-burguês. Esse fator obnubila as diz que o juiz deve decidir lançando mão de argumentos
possibilidades de sentido projetadas pelo paradigma do de princípio e não de políticas, não é porque esses prin-
Estado Democrático de Direito, no qual o Direito assu- cípios sejam ou estejam elaborados previamente, à dis-
me um caráter transformador, que transcende a simples posição da “comunidade jurídica” (Streck, 2011, p. 485)
conservação do status quo, permitindo a transformação como enunciados assertórios ou categorias. Na verda-
profunda da sociedade e do modo de composição de de, quando sustenta essa necessidade, apenas aponta
suas relações. para “os limites que devem haver no ato de aplicação
judicial (por isso, ao direito não importa as convicções (ii) Estabelecer as condições hermenêuticas para a
pessoais/morais do juiz acerca da política, sociedade, realização de um controle da interpretação constitucional.
esportes etc.; ele deve decidir por princípios)” (Streck, Trata-se, aqui, de firmar uma posição no âmbito da dis-
2011, p. 485). cussão em torno dos limites da interpretação consti-
Esse compromisso passa pela reconstrução da tucional. Para o autor, o fato de não existir um método
história institucional do Direito e pelo momento de co- que garanta a “correção” do processo interpretativo,
locação do caso julgado dentro da cadeia da integridade não autoriza o intérprete a escolher um sentido que
do direito. Portanto, a decisão jurídica não se apresenta lhe seja mais conveniente, segundo os ditames de sua
como um processo de escolha do julgador das diversas “consciência”.
possibilidades de solução da demanda. Mas, sim, como (iii) Garantir o respeito à integridade e à coerência
um processo em que o julgador deve estruturar sua in- do direito. Na linha da proposta dworkiniana do Direito
terpretação – como a melhor, a mais adequada – de como integridade, Streck afirma que a fundamentação
acordo com o sentido do direito projetado pela comu- das decisões judiciais – e o consequente respeito pela
nidade política (Streck, 2015b). história institucional do direito – deve ser alçada à con-
A exortação desse compromisso (pré-compre- dição de direito fundamental do cidadão.
endido) pode ser acessada pelo investigador do direito (iv) Estabelecer que a fundamentação das decisões
a partir de uma determinada estratégia metodológica. É é um dever fundamental dos juízes e tribunais. Corolário
preciso salientar que, quando falamos em princípios e do princípio anterior, o presente princípio se apresenta
em decidir por princípios, nos movemos na ordem do como a contrapartida do “direito fundamental à fun-
a priori e, portanto, fazemos um esforço de explicitação damentação” colocando-a como um dever, no sentido
de algo que, com algumas ressalvas, poderíamos chamar forte do termo.
de transcendentalidade jurídica. Os princípios são, de al- (v) Garantir que cada cidadão tenha sua causa jul-
gum modo, os marcos dessa transcendentalidade. Isso gada a partir da Constituição e que haja condições para
significa que há um plano, materialmente válido, no qual aferir se essa resposta está ou não constitucionalmente
as decisões jurídicas se assentam e que não depende da adequada. Esse último princípio tem por finalidade pre-
escolha isolada de uma única pessoa. Trata-se de uma servar a força normativa da Constituição e o caráter
espécie de tecido básico, na expressão de Elias (1993), deontológico dos princípios.
que acarreta um elo de interdependência entre as pes- Por fim, Streck oferece um catálogo contendo as
soas e que se encontram nos mais diversos movimentos seis situações que tornariam possível ao julgador deixar,
da sociedade (no caso de Elias, aquilo que ele chamou legitimamente, e aplicar uma lei. Para ele, o acentuado
de processo civilizador) e que pode ser percebido de um grau de autonomia alcançado pelo Direito e o respei-
modo privilegiado no direito a partir da experiência dos to à produção democrática das normas faz com que se
princípios jurídicos (constitucionais). possa afirmar que o Poder Judiciário somente pode deixar
A teoria propõe um redimensionamento do pa- de aplicar uma lei ou dispositivo de lei nas seguintes hipóte-
pel da doutrina que, além das clássicas atribuições de ses (Streck, 2014):
sistematização do conhecimento jurídico, deveria efe- (i) quando a lei (o ato normativo) for inconstitu-
tuar um efetivo papel de “censora” das decisões dos cional, caso em que deixará de aplicá-la (controle difuso
Tribunais: uma verdadeira censura epistemológica das de constitucionalidade stricto sensu) ou a declarará in-
decisões (Streck, 2015b). constitucional mediante controle concentrado;
A necessidade da construção de respostas ade- (ii) quando for o caso de aplicação dos crité-
quadas à Constituição levam o autor a elaborar cinco rios de resolução de antinomias. Nesse caso, há que
princípios que representariam uma espécie de minimum se ter cuidado com a questão constitucional, pois, v.g.,
applicandi no momento de afirmação da decisão judicial a lex posterioris, que derroga a lex anterioris, pode ser
(Streck, 2011, p. 585-588). Tais princípios são: inconstitucional, com o que as antinomias deixam de
(i) Preservar a autonomia do direito. Nos termos ser relevantes;
deste princípio a decisão deve se pautar por argumen- (iii) quando aplicar a interpretação conforme a
tos de princípio (direito) e não de política, moral ou Constituição (verfassungskonforme Auslegung), ocasião
economia. Vale dizer, a decisão adequada deve se as- em que se torna necessária uma adição de sentido ao
sentar em solo jurídico e não veicular questões que artigo de lei para que haja plena conformidade da norma
acabam por fragilizar o caráter de garantia sustentado à Constituição. Neste caso, o texto de lei (entendido na
pelo direito; sua “literalidade”) permanecerá intacto; o que muda é o
seu sentido, alterado por intermédio de interpretação tativista de Dworkin; aparato conceitual, composto por
que o torne adequado a Constituição; categorias e definições próprias; método determinado,
(iv) quando aplicar a nulidade parcial sem re- no caso o “método” fenomenológico-hermenêutico –,
dução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextredu- servindo de referencial para a construção de inúmeras
zierung), pela qual permanece a literalidade do dispo- teses e dissertações em programas de pós-graduação
sitivo, sendo alterada apenas a sua incidência, ou seja, em todo o país (Trindade e Morais, 2011).
ocorre a expressa exclusão, por inconstitucionalidade, Neste artigo, buscou-se resgatar as raízes filo-
de determinada(s) hipótese(s) de aplicação (Anwendun- sóficas do pensamento jurídico de Lenio Streck, espe-
gsfälle) do programa normativo sem que se produza cialmente porque a hermenêutica permanece sendo um
alteração expressa do texto legal. Assim, enquanto na tema bastante agreste para a maioria dos juristas, que
interpretação conforme há uma adição de sentido, na prefere habitar a esfera da dogmática jurídica e reprodu-
nulidade parcial sem redução de texto ocorre uma ab- zir o senso comum teórico. Como diz Streck, a escolha
dução de sentido; pela fenomenologia representa a superação da metafísica
(v) quando for o caso de declaração de inconsti- no campo do Direito, de tal modo que uma abordagem
tucionalidade com redução de texto, ocasião em que a hermenêutica – e, portanto, crítica – do Direito jamais
exclusão de uma palavra conduz à manutenção da cons- pretenderá ter a última palavra. E isso já é uma grande
titucionalidade do dispositivo. vantagem, sobretudo no paradigma da intersubjetividade.
(vii) nos casos em que uma regra estiver em si-
tuação de contrariedade com os princípios, situação em Referências
que a regra cede em favor da força deontológica dos
princípios constitucionais. ALMEIDA, C.L.S.; FLICKINGER, H.-G.; ROHDEN, L. 2000. Hermenêuti-
ca filosófica: nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre, Edipucrs,
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