Florbela Espanca
Florbela Espanca
Florbela Espanca
como Cesário Verde, impossível situá-la junto à poesia de seu século (caso
único e independente – ultrarromantismo? Massaud Moisés (2011) situa-a no
“interregno”.
Livro de Mágoas (1919) e Livro de Sóror Saudade (1922) publicados em vida
Reliquae (1931), Charneca em Flor (1934) publicações póstumas.
Sua poesia, produto de uma sensibilidade exacerbada por fortes impulsos
eróticos, corrresponde a um verdadeiro diário intimo.
poesia-confissão, por meio da qual ganha relevo toda a experiência de uma
mulher superior pelos dotes naturais, fadada a uma espécie de donjuanismo
feminino.
A poesia denuda-a por dentro, sem pejo ou preconceito, e a poetisa confessa
sua natureza de mulher apaixonada.
o modo como procede, a temperatura da confidência amorosa, os reptos e
fulgores de uma paixão incontrolável e escaldante só encontra semelhante nas
Cartas Portuguesas de Mariana Alcoforado.
na base do seu perfil moral e filosófico está o amor: dele brota a inspiração
poética “Deus fez os nossos braços para prender/E a boca fez-se sangue para
beijar “Exaltação” (Poesia de Florbela Espanca, vol.2, p. 53, O livro de sóror
Saudade)
Não sabe escrever senão sobre o amor, mesmo quando este a ludibria–
“Procurei o amor, que me mentiu” - “Inconstância” –Poesia de Florbela
Espanca, vol.2, p. 31, O livro de sóror Saudade)
neurastenia
sede de infinito – tormento de ideal
Juvenília – fase tateante ainda, mas onde já se vislumbra o encontro de um
caminho autêntico, de uma dicção ´poética pessoal e forte. inclui Trocando
Olhares e O livro d’ ele
O Livro de Sóror Saudade – amadurece liricamente o soneto, descoberto por ela
como a forma ideal de se exprimir, cultiva-o largamente, embora sob a influencia
sensível dos sonetos anterianos. (pessimism à Schopenhauer, que exprime a
alma de Florbela – como o poema “Tormento do Ideal, em que Quental escreve:
Conheci a beleza que não morre/E fiquei triste
Conquistava assim, o veículo que mais lhe permitia confessar o drama íntimo
num estilo cada vez mais límpido.
Feliciano Ramos, em História da Literatura Portuguesa diz que Florbela
“escolheu o soneto para exprimir a sua perturbante e sombria interioridade .
Dentro dessa pequinina fórmula métrica e estrófica, Florbela move-se e realiza-
se com todo à-vontade: crê-se que os seus versos registram com estridencia
dramática, o cruciante viver de sua “alma trágica e doente”.”Ao vento” (Poesia
Completa de Florbela Espanca, vol. 1, p. 155 – Livro das Mágoas) E no entanto,
embora os sonetos sejam tão angustiosos e contagiantes, ela tristemente
verifica a impossibilidade de efetuar a comunicação integral de sua desventura.
No soneto Impossível escreve que a sua dor é tão que não caberia “nem em
cem milhões de versos, caso os viesse a escrever”
Agitada por eterna ansiedade está sempre longe de encontrar o que espera “o
meu reino fica para além” – pede constantemente a vida mais do que ela pode
dar – inquietação de exilada.
com a definição do sentimento conflitivo, ganha energia a expressão
correspondente.
érotica e emocionalmente insatisfeita, sofre por que a sociedade não lhe
compreende o conflito interior, e põe-se a escorraçá-la de apetências que
catalogam de imorais, sem lhes compreender o alcance e a altitude.
mais do que a hipócrita condenação social, o que faz a poetisa sofrer a ausência
de um “Outro”, que lhe satisfaça a procura de um amor mais forte que a vontade
e as convenções burguesas.
obsessiva e poderosa capacidade de amor, mas incorrespondida “O amor dum
homem? Terra tão pisada/ - Gota de chuva ao vento baloucada.../ - Um homem?
– Quando eu sonho amor dum Deus!” (Poesia de Florbela Espanca, vol 2 p. 82
“Ambiciosa”, do livro Charneca em Flor).
volta-se para a Natureza, em tom panteístico, logo transformado em ternura
melancólica pela terra-mãe
exaustos de suplicar um amor integral, seus sentidos pedem um repouso no solo
de onde provinha toda a demoníaca força que lhe vai na entranhas. O anseio
pela morte substitui o seu anterior apreço pela vida: Deixai entrar a morte, a
iluminada,/A que vem pra mim, pra me levar,/Abri todas as partas par em
par/Com asas a bater em revoada (Poesia de Florbela Espanca vol. 2, p. 146,
“Deixai entrar a morte”, de Riliquae).
Em Chareca em Flor e Reliquiae, ainda que menos impressionante e comovente
como estado confessional, pois o relativo apaziguamento da luta interior vem
acompanhado de renúncia e prostração, corresponde ao àpice artístico de sua
carreira de poetisa.
Seus sonetos atingem um refinamnento e uma imediata força comunicativa,
próprios de uma sensibilidade que subutilizou o amor a pouco e pouco, até
assumir olímpica resignação.
fingimento, máscaras, natureza teatral e fictícia
Jorge de Sena (1946) poesia de Florbela como expressão do feminino; não uma
poesia restrita pelos limites impostos à mulher no início do século XX, mas um
poesia pulsante, que abala as estruturas tradicionais e revela o poder da mulher
José Régio (1998) “poesia viva”, “superior”. “Ináscessível, portanto, as condições
do tempo e do espaço”.
crise de identidade do sujeito lírico, apontada por José Régio
Dal Farra, no livro “Apresentação à Florbela Espanca”, escreve que a poética
florbeliana inverte a posição cultural da vassalagem amorosa e “desmascara um
mito social: não é a mulher o objeto do serviço amoroso, mas sim o homem”.
Assumindo o pensamento de Dal Farra, Luzia Noronha reforça essa ideia e
afirma que Florbela, em seu desempenho poético, “busca se impor como sujeito
autônomo, vivenciando um traço inaugural da condição feminina, que,
historicamente, se estratificara como apêndice social do homem”.
Dal Farra observa, ainda, que os passos adotados por Florbela “na travessia
poético-amorosa têm o pendor de questionar os papéis culturais oferecidos à
mulher, enquanto regras do pacto social. E, da maneira como são percorridos
pela sua poesia a partir do Livro de Mágoas, tendem a constituir-se numa via
arguta de busca de identidade”.
erotismo, o questionamento da condição feminina e a busca de identidade, a
afirmação do desejo feminino e a afirmação do poder dessa mulher sobre seu
amado são temas recorrentes.
Florbela inventa a si mesma o que ela faz, afirma Haquira Osakabe (2003, p. 13-
14), “criando-se figura de uma grande convenção que é o teatro dentro do qual
são peças de autocaracterização seus sonetos, seus contos e, pasmem, seu
próprio diário”.
O aspecto teatralizante da obra de Florbela, evidenciado pela adoção de uma
multiplicidade de máscaras, é referido por Renata Junqueira (2003, p. 18) como
um traço que aproxima a poetisa de autores modernistas como Mário de Sá-
Carneiro, Fernando Pessoa e Almada Negreiros. “”E uma análise cuidadosa do
aparato de máscaras, das poses e dos artifícios retóricos na obra de Florbela
pode mostrar que tanto a sua poesia quanto a sua prosa se revestem daquela
mesma teatralidade que constitui uma das mais importantes características dos
movimentos de vanguarda no princípio do século XX”.
É a atitude esteticista de Florbela, “que tende a louvar tudo o que seja
ostensivamente factício” (JUNQUEIRA, 2003, p. 18, o que permite colocá-la ao
lado dos modernistas.
“toda a escrita de Florbela revela-se-nos prenhe, enfim, de uma teatralidade que
se realiza na pintura de seres e objetos deliberadamente artificiais, visivelmente
estereotipados, produtos de uma hábil sofisticação da linguagem”.
Ao inventar a si mesma, assumindo a teatralidade, Florbela percorre um
caminho literário marcado pelo que Dal Farra (2007, p. 42) define como uma
“faculdade de divisão interna simultânea que, de propósito, ilumina e justifica a
imagem que Florbela construiu para si mesma no transcorrer da sua poética”.
No Livro de mágoas, primeira obra publicada por Florbela, em 1919, já se
observa uma reflexão sobre a condição feminina, expressando uma contínua
busca de identidade que, no entanto, revela-se infrutífera. Esse procedimento
atravessa o Livro de Sóror Saudade e acentua-se em Charneca em flor.
Alguns dos sonetos do Livro de mágoas são construídos metalinguisticamente,
expressando o desejo de ser “a poetisa eleita” Tais sonetos, revelam um ser que
se debate com sua condição feminina, sem alcançar o poder de expressar
objetivamente o que sente. Essa aparente fragilidade, sintoma da crise de
identidade do eu lírico, revela a força poética de Florbela.
A busca da identidade presente no poema “Eu...” (p. 133), reflete a condição de
marginalidade do sujeito poético: “Eu sou a que no mundo anda perdida, / Eu
sou a que na vida não tem norte, / Sou a irmão do Sonho, e desta sorte / Sou a
crucificada... a dolorida ...”. É neste soneto que inicialmente se revela a busca de
si no outro: “Sou talvez a visão que alguém sonhou”, mas aí também ocorre a
“tragédia do desencontro” (SENA, 1946, p. 135) de que nos fala Jorge de Sena:
“Alguém que veio ao mundo para me ver, / E que nunca na vida me encontrou!”.
A impossibilidade de se encontrar conduz o eu lírico a uma comunhão com a
própria “Dor”, a única certeza que possui e a única que tem por companheira: É
dessa comunhão que nascem as identidades que se afirmam com grande
convicção: a castelã (“Castelã da Tristeza, vês?... A quem?!...” (p. 134)) e a
monja. Esta presente, por exemplo, em “Lágrimas ocultas” (p. 136): “Toma a
brandura plácida dum lago / O meu rosto de monja de marfim...”
Em Livro de Sóror Saudade a crise de identidade do sujeito poético permanece
sem solução. Como num palco, aí desfilam as mais variadas e contrastantes
personagens: a monja, a princesa, a mendiga, a poetisa, a mãe, a irmã, a
amante etc. A tentativa de identificação com essas diversas imagens reflete a
condição labiríntica do sujeito que busca a autoafirmação, mas descobre-se à
beira do abismo, da total anulação de si próprio.
A necessidade de autonomeação evidencia-se no uso reiterado do pronome eu
(expresso ou elíptico), tão relevante na construção poética de Florbela que
constitui, com uma pequena variação, os títulos de dois poemas: o primeiro
(“Eu...”) no Livro de mágoas, e o segundo (“Eu”) no Charneca em flor.
Entretanto, a tentativa de desdobrar-se numa outra imagem que seja o reflexo
do “eu”, conduz à introdução do “tu”, não como um outro que o nomeia, mas
como um outro de si mesmo: “És aquela que tudo te entristece, / Irrita e
amargura, tudo humilha; / Aquela a quem a Mágoa chamou filha; / A quem aos
homens e a Deus nada merece.” (“O que tu és...” (p. 170)).
A busca de identidade que se manifesta na poética florbeliana está intimamente
ligada à temática do amor. O amor, que possui o poder de nomear o eu
feminino, possui também a capacidade de fazê-lo ainda mais desencontrado de
si mesmo. Nesse sentido, são significativos os sonetos “Fanatismo” (p. 171)
(“Minh’alma de sonhar-te anda perdida.”) e “Fumo” (p. 173) (“Longe de ti são
ermos os caminhos,”).
São muitas as figuras femininas construídas em paralelo com a temática do
amor, desde a monja que renuncia à mocidade e aos apelos carnais do mundo,
conforme observamos em “Renúncia” (p. 194) (“A minha mocidade outrora eu
pus / No tranqüilo convento da tristeza / (...) / Lá fora, a Lua, Satanás, seduz!”), à
amante ardente, numa entrega ao prazer, que identificamos em “A noite
desce...” (p. 179) (“A noite põe-me embriagada, louca! / E a noite vai descendo,
muda e calma... / Meu doce Amor, tu beijas a minh’alma / Beijando nesta hora a
minha boca!”).
Apesar do que sugere o título Livro de Sóror Saudade, reforçado pelo soneto
inicial, a imagem simbólica que se sobressai nessa obra não é apenas a da
mulher passiva e abnegada, mas também a de um sujeito feminino que se
afirma como agente, expressando livremente o seu desejo.
A imagem da mulher sedutora multiplica-se em diversas máscaras. A primeira a
ganhar evidência é a da poetisa, que reflete a sedução da palavra: “Deixa dizer-
te os lindos versos raros / Que foram feitos para te endoidecer!" (“Os versos que
te fiz” (p. 176)).
A inconstância amorosa, que sempre foi atributo masculino, revela uma mulher
orgulhosa e livre, que ama não um homem, mas o próprio amor, o prazer de
amar: “Passei a vida a amar e a esquecer... / (...) / E este amor que assim me
vai fugindo / É igual a outro amor que vai surgindo, / Que há de partir, também...
nem eu sei quando...” (“Inconstância” (p. 181)).
A ausência de sofrimento frente aos relacionamentos desfeitos indica o
despojamento do sujeito feminino em relação aos amores conquistados, espécie
de donjuanismo3: “Amar-te a vida inteira eu não podia. / A gente esquece
sempre o bem dum dia. / Que queres, meu Amor, se é isto a Vida!...” (“A vida”
(p. 195)). A face donjuanesca desse sujeito aponta para a simulação do desejo
pelo amado, uma vez que é o próprio eu feminino o objeto desejado.
A esse respeito, José Régio (1998, p. 21) afirma: “Florbela gosta demasiado de
si mesma (...) e sem dúvida poderemos pensar que, em vários dos seus sonetos
considerados de amor, ela é que é o verdadeiro motivo; e o pretenso amado um
pretexto.”
“O outro mal de Florbela foi ser ela demais para uma só. Também, lendo a sua
poesia, se nos impõe esta impressão de não caber ela em si: de transbordar,
digamos, dos limites de sua personalidade”.
Em Charneca em flor assistimos a um espetáculo de imagens através das quais
o eu lírico procura afirmar sua identidade. As múltiplas faces assumidas pelo
sujeito poético, segundo Dal Farra “parecem comprovar a hipótese de uma
personalidade capaz de desdobrar-se ao infinito, como uma dramaturga de si
mesma, ou, mais que isso, como um drama cujo palco é a própria mente”.
O soneto inicial, intitulado “Charneca em flor” estabelece uma relação dialógica
com a obra anterior, especialmente com o poema de abertura, “Sóror Saudade”.
Como a resumir a trajetória existencial do eu poético, o soneto apresenta uma
espécie de metamorfose do sujeito.
Abandonando a identidade da Sóror, marcada pelo recolhimento, pela clausura
e pelo silêncio, o eu feminino desperta para um mundo de novas sensações: “E,
nesta febre ansiosa que me invade, / Dispo a minha mortalha, o meu burel, / E,
já não sou, Amor, Sóror Saudade...”.
Assumindo a imagem da charneca, o eu lírico afirma a sua condição de amante,
de sujeito feminino movido pelo prazer, o prazer de amar, amar o outro, amar a
si mesmo, amar o amor: “Olhos a arder em êxtases de amor; / Boca a saber a
sol, a fruto, a mel: / Sou a charneca rude a abrir em flor!”.
A figura da “Charneca rude a abrir em flor” simboliza a mulher que converte a
sua condição marginal em potência individualizadora. Esse é o processo que
caracteriza a busca de identidade em Charneca em flor.
Em “Versos de Orgulho”, essa mulher é aquela a que o mundo quer mal porque
“tem asas”, porque “Deus” a “fez nascer Princesa entre plebeus”. Fazendo jus ao
título, ela afirma veementemente: “Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém!”.
Em seu imenso orgulho, ela afirma-se superior a tudo: “O mundo! O que é o
mundo, ó meu Amor? / − O jardim dos meus versos todo em flor...”,
A imagem que emerge desses sonetos é a da mulher erótica, que expressa o
seu desejo, subvertendo o papel feminino determinado pela sociedade burguesa
da época.
Semelhante ao processo observado em Livro de Sóror Saudade, o amor que
possibilita a afirmação de uma identidade é o mesmo que proporciona a
sensação de niilismo, de desencontro, de sacrifícios vãos: “Quis Deus fazer-me
tua... para nada! / − Vãos os meus braços de crucificada, / Inúteis, esses beijos
que te dei!” (“O meu condão”
Mas, se a impossibilidade de comunhão com o outro a torna um ser sem
identidade, também o amado, sem ela, não será ninguém (“Vê que para além de
mim já não há nada.” (“Espera...” e cometerá uma heresia, desobedecendo às
determinações divinas: “Deus fez-me atravessar o teu caminho... / − Que contas
dás a Deus indo sozinho, / Passando junto a mim, sem me encontrares?
Esses versos revelam a ascensão do eu poético, que deixa de ser simplesmente
aquele cuja identidade é fornecida pela fusão com o outro, para ser o que detém
o poder de definir o caminho a ser seguido pelo amado, convertendo-o em sua
própria sombra: “Espera... espera... ó minha sombra amada...” (“Espera...”)
Temos aí, novamente, a imagem do eu lírico feminino cheio de grandeza, que
identificamos nos sonetos iniciais e que figura ainda em muitos outros. Em
“Contos de fadas” por exemplo, desfilam arquétipos de uma tradição pagã: a
feiticeira, a princesa, a ninfa, entre outras;
Não falta no conjunto de imagens femininas extraordinárias evocadas em
Charneca em flor a figura da poetisa, tão constante na obra de Florbela. “Ser
poeta” expressa a superioridade dessa figura: “Ser poeta é ser mais alto, é ser
maior / Do que os homens!”. Encontra-se na poesia um ser que tem “fome” e
“sede de infinito”, que deseja “condensar o mundo num só grito” e que tem o
poder de imortalizar o amado através de seus versos: “E é amar-te, assim,
perdidamente... / É seres alma e sangue e vida em mim / E dizê-lo cantando a
toda a gente!”.
Sobre a postura poética de Florbela em Charneca em flor, Cláudia Pazos Alonso
afirma que “a auto-confiança na sua força interior como poeta permite-lhe (...)
libertar-se da imagem disseminada pela sociedade da mulher como ser
recatado, manso e mudo”. Por essa razão, a poetisa “torna-se capaz de
expressar a sua insatisfação perante a falta de retribuição amorosa” e “passa a
exprimir a sua sensualidade duma maneira como nunca havia sido expressa
publicamente até então por uma mulher em Portugal”.
A afirmação de uma identidade única e definitiva revela-se impossível na poesia
de Florbela. Se o eu feminino em alguns poemas percorre um caminho em
busca dessa identidade, em sonetos como “Lembrança” descortina-se o desejo
de ser múltiplo. A mendiga, a princesa, a musa, a sereia são algumas faces que
o eu lírico possuiu. Mas nenhuma delas se afirma definitivamente, restando a
confissão: “Ah, quem me dera ser Essas que eu fui, / As que me lembro de ter
sido... dantes!...”. O mesmo desejo é expresso em “A minha piedade” (p. 248):
“Tenho pena de mim... pena de ti... / (...) / De não ser Esta... a Outra... e mais
Aquela... / De ter vivido e não ter sido Eu...”
A busca de identidade presente na obra de Florbela não se restringe ao
questionamento da condição feminina, embora este seja um dos pontos centrais
da poética florbeliana. O tecer de seus poemas, afirma Fabio Mario da Silva,
“ultrapassa esse indignar-se, buscando uma condição de existencialidade, a
partir de seus sentimentos e da visão de seu mundo”.
Em muitos poemas, as reflexões do eu lírico ultrapassam a questão do gênero e
expressam a crise do sujeito moderno, cuja ausência de identidade resulta no
conflito consigo próprio e com o mundo, que se lhe apresenta esfacelado, sem
sentido.
A saudade de uma identidade perdida no passado ou não assumida está
insistentemente presente nos poemas de Charneca em flor. A perda da
identidade revela um sujeito entregue ao vazio e à escuridão: “Ah! Não ser mais
que a sombra duma sombra / Por entre tanta sombra igual a mim!” (“Nostalgia”)
e determina o intenso desejo de retornar “[...] à inocência / Das cousas brutas
[...]” (“Não ser”) e a suplicar o acolhimento na última morada: “Sou um pobre de
longe, é quase noite, / Terra, quero dormir, dá-me pousada!...” (“Pobre de
Cristo”)
A segunda edição de Charneca em flor, publicada ainda em 1931, é acrescida
de vinte e oito sonetos inéditos que compõem o Reliquiae. Também esses
sonetos expressam a crise do sujeito, revelada na contínua busca de identidade
que observamos na obra de Florbela Espanca.
O estado de perturbação interior do eu poético é evidente a partir do título. Os
primeiros versos expressam a ausência de sentido do mundo: “Tudo cai! Tudo
tomba! Derrocada / Pavorosa! Não sei onde era dantes”. São versos fortes, que
dão o tom do poema, anunciando a ausência de estabilidade do ser.
Os sonhos de grandeza, a febrilidade do desejo, a ânsia das paixões que tudo
arrebata compõem a imagem efervescente do sujeito movido pela “sede de
infinito”: “Meu solar, meus palácios, meus mirantes! / (...) / Passa em tropel febril
a cavalgada / Das paixões e loucuras triunfantes! / Rasgam-se as sedas,
quebram-se os diamantes!”. Mas tudo é finito e vão. Essa consciência niilista é
declarada no último verso da primeira e da segunda estrofe, que espelham a
desesperadora situação do sujeito que se depara com o vazio: “Não sei de nada,
Deus, não sei de nada!... / Não tenho nada, Deus, não tenho nada!...”
O primeiro terceto reforça a perturbadora condição do sujeito anunciada pelo
título e revelada ao longo do poema: “Pesadelos de insônia, ébrios de anseio! /
Loucura a esboçar-se, a enegrecer / Cada vez mais as trevas do meu seio!”.
Na última estrofe, a condição paradoxal do sujeito é expressa no espetáculo da
multiplicação, o qual, na verdade, denuncia o conflito insolúvel da autoafirmação,
que resulta na despersonalização, na total ausência de unidade do ser: “Ó
pavoroso mal de ser sozinha! / Ó pavoroso e atroz mal de trazer / Tantas almas
a rir dentro da minha!”.