Fenomenologia e Memória
Fenomenologia e Memória
Fenomenologia e Memória
Fernanda Alexandre2
Sandra de Fátima Oliveira3
RESUMO: Com este artigo objetiva-se discutir e refletir como podemos a partir da valorização da
memória, alicerçada em uma vertente sócio ambiental da pesquisa fenomenológica, pensar o processo
de Educação Ambiental (EA). Ressalta-se nossa intenção em refletir e dialogar, buscando contribuir
com as pesquisas que perpassam esta abordagem. Ao se trabalhar com as informações contidas na
memória, por meio da narrativa dos antigos moradores de uma determinada localidade prioriza-se a
historicidade do ambiente local. Esses sujeitos acompanharam a idealização e a concretização do novo
arranjo sócio-espacial e atualmente guardam as lembranças de como esse processo aconteceu e quais
foram as mudanças (materiais ou simbólicas) ocorridas no âmbito do lugar, além de terem imbuídas na
subjetividade simbologias do imaginário social dos lugares. A memória é um importante instrumento
de análise ambiental, pois, dentre outas caracteristicas é um nivél da consciência, assim como a
imaginação, a lembrança e a representação social, sendo que a memória é capaz de revelar o ambiente
local, de dar significados e valores aos lugares e de despertar o sentimento de pertencimento, um dos
pilares da EA.
Palavras-Chave: Memória, Fenomenologia, Educação Ambiental.
ABSTRACT: This article aims to discuss and to reflect how we can, from the memory
valuation, based in a environmental social slope of the phenomenological research, think the
Environmental Education (EA) process. It highlights our intention in reflecting and
dialoguing, searching to contribute with the researches that permeate this approach. When we
work with the informations contained in memory, trough the narrative, of the previous
residents of a determined location the priority is the local environment historicity. These
subjects followed the new socio-spatial arrangement idealization and completion and
currently they keep the memories of how this process took place and what were the changes
1
Artigo proveniente das discussões embasadoras da disciplina Tópicos em Educação Ambiental, oferecida no
Programa de Pós-Graduação em Geografia – IESA, no ano de 2008.
2
Licenciada em Geografia pela UFMS/CPTL, mestranda do programa de Pós-Graduação em Geografia IESA –
Goiânia – Go. Email: [email protected]
3
Prof.ª Drª. Docente do IESA – Graduação e Pós-Graduação – Goiânia – GO. Email: [email protected].
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(material or symbolic) occurred in the lieu extent, also they have them imbued on the
symbolic subjectivity of the places social imaginary. Memory is an important tool to the
environmental analysis, because, among other characteristics, it is a conscience level as well
as the imagination, the remembrance and the social representation, and memory is capable of
revealing the local environment; of giving meanings and values to the places and of arouse the
belonging sentiment, one of the EA pillars.
Keywords: Memory, Phenomenology, Environmental Education.
Introdução
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vivenciaram o processo de mudança material e simbólica nos seus lugares. Sob essa ótica, são
aptos portadores dos historicos válidos para a percepção das mudanças e dos impactos
ambientais encontrados nos lugares.
A pessoa idosa é detentora de um saber guardado na memória, uma memória, por sua
vez coletiva. Com isso, ela se destina a ser a guardiã do passado do grupo social no qual está
inserido, uma vez que as mudanças que ocorrem nas relações sociais e que refletem na
paisagem, são percebidas e capturadas pela mémoria por meio das representações sociais de
forma parcial ou totalizada. As transformações vivenciadas no ambiente não são armazenadas
em compartimentos, como ocorre muitas vezes com a maioria das pesquisas científicas.
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Essa historicidade dos sujeitos que é narrada, descrita, com o auxílio da linguagem
falada, revela a complexidade da relação existente entre signo/significado/significante e
contexto cultural. A Fenomenologia, dentre outras atribuições, contribui para compreensão
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linguística. A linguagem transmite o que está sendo dito a luz da experiência vivida, a
descrição é um texto à espera da interpretação.
O método fenomenológico procura apreender, por meio dos acontecimentos e dos
fatos empíricos, as essências, ou seja, as significações ideais percebidas diretamente pela
intuição. Trabalha com os dados fornecidos através da descrição. No entanto, vai além dos
dados, propõe análise e interpretação dos mesmos, sendo que estes são vistos, sentidos,
vividos e experiênciados pelos sujeitos. Na pesquisa de pressuposto fenomenológico -
quantitativo, de acordo com (TRIVINOS, 1987, p. 122) “o comportamento humano tem mais
significados do que os fatos pelos quais ele se manifesta. Com ênfase na idéia dos
significados latentes do comportamento humano”.
Essas pesquisas são eminentemente sociais e relacionadas ao interacionalismo
simbólico que segundo Moreira (2002, p. 47) “pode ser visto como o estudo dos modos pelos
quais as pessoas enxergam o sentido nas situações que vivem” (...). Não se trabalha com
hipóteses, porém com dúvidas que apenas os colaboradores poderão explicar. Por isso, deve-
se ir ao encontro do fenômeno como naquilo que se manifesta por si através do sujeito que
experiencia a situação. E como nos indica o autor a seguir o dado qualitativo é uma
representação simbólica.
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referenda uma relação estabelecida pelo ser humano emocionalmente de acordo com as suas
experiências espaciais. Assim, o espaço não é somente percebido, sentindo ou representado,
mas também vivido”. (KOZEL, 2007, p. 117).
A memória da sociedade guarda seu próprio passado. Na memória, as imagens das
paisagens, dos espaços e dos lugares estão em processo dinâmico e são marcadas por tensões,
sucessos e fracassos, ou seja, formam o registro da história de uma sociedade. Nela podemos
encontrar marcas significativas da transformação histórica de um povo, reconstruindo assim, o
espaço dos fixos e fluxos que já se foram.
Segundo Bosi (1987) existem dois tipos de memórias, um que está relacionado à
denominada memória hábito e faz parte de nosso contexto cultural e da percepção, presente e
incorporada às práticas do dia-a-dia e outro que está relacionada mais à imagem lembrança de
caráter não mecânico, mais evocativo, ligada mais ao inconsciente, tem data certa, se
referindo a uma situação definida, individualizada.
Meinhy (2005) por sua vez menciona três tipos de memórias: as individuais, as sociais
e as coletivas. O autor trás a idéia de que as memórias individuais primeiramente se
diferenciam das memórias grupais, sendo que a memória individual serve apenas para dar
sentido ás situações sociais, convém lembrar que esta é prevalecente a grupal. Ressalta ainda
que a memória social/coletiva é sempre relativa a um grupo muito amplo, reunido em torno de
fatores afins, e por sua vez a memória cultural é mais restrita.
Com a apreensão da memória de sujeitos, constituída por longo período e lugar
específico, podemos entender como esses sujeitos perceberam e registraram como imagens as
lembranças e as modificações desse lugar que compõe o seu imaginário. Pela memória, o ser
humano registra e transmite os elementos de transformação do espaço no tempo, esses
interligam uma estrutura cronológica com outra espacial.
A memória é formada e influenciada pela percepção do meio físico e social. No
entanto, ela não é apenas uma percepção pura, e sim concreta e complexa. A percepção é o
filtro da lembrança. Para (HALBAWACHAS, 2006). “A Lembrança é a sobrevivência do
passado. O passado, conservado no espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma
de imagens-lembranças. A sua forma pura seria a imagem presente nos sonhos e nos
devaneios”. (grifo nosso). A memória seria a reconstituição do passado.
Para Bachelard (1993) a memória é discutida em relação com a imaginação,
ressaltando que, a imaginação pode ter dados captados pelos sentidos no momento presente e
evocar imagens do passado. E Meinhy (2005, p.63) nos apresenta o conceito de memória
como sendo “lembranças organizadas segundo uma lógica subjetiva que seleciona e articula
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elementos que nem sempre correspondem aos fatos concretos, objetivos e materiais”. A
memória liga a interação do ser humano com o ambiente, na medida em que a contemplação
de determinadas paisagens induz às relações nostálgicas que despertam valor afetivo.
Podemos dizer que a memória é um dos componentes da topofilia, pois, se constrói da
experiência histórica de interação.
Marin (2003) argumenta que Maciel (2000) “considera que não é possível pensar o
espaço habitado sem levar em conta o fato de que ele se constitui no mesmo movimento em
que se dá a organização social, e que esse movimento, por sua vez, é inseparável da
memória”. A memória tem influência direta na maneira como o ser humano entende e se
relaciona com o meio, pois, os processos estão profundamente inter-relacionados, desenhados,
tanto no discurso proferido pelos sujeitos mergulhados em suas concretudes, quanto nas ações
empreendidas na configuração do ambiente.
A memória é definida por Bello (2004) assim como outras ações do ser humano, como
vivências, podem ser ao mesmo tempo fenômenos culturais e (ou) sociais, ressalvando que
estas estruturas possuem conteúdos diferenciados:
O idoso tem uma forte ligação com o lugar. Afinal, todas as lembranças
estão enraizadas em seu espaço, em sua paisagem habitual. A modificação
da paisagem do qual faz parte sua vida – a velha casa do velho amigo, que
não resistiu as velhas paineiras que se enfileiravam na rua de sua casa, onde
ao entardecer os pássaros faziam algazarra, o velho rio, hoje morto, que
rendia boas pescarias e boas prosas com os amigos nos finais de semana,
todos continuam vivos, preservados em sua memória, na memória de seu
grupo (ALMEIDA, 2004, p. 43).
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carga de afetividade. É vista também como um refugio da realidade exterior, ligando-se aos
pensamentos. “Também o fato de que não há pensamento sem imagem nos convida a entender
as imagens que estão em construção em nós e em nossas obras” (...). (PITTA, 2005, p.103).
As imagens são datadas pelo trajeto antropológico de cada sujeito que é influenciado
por fatores do biologismo, psiquismo, da pulsão e sócio-culturais. Pode ser designada também
como uma faceta da representação social referendada por signos, que por sua vez também são
construções sociais.
As representações sociais possibilitam “compreender como o indivíduo ou a
coletividade interpreta a realidade de uma sociedade, expressando o conhecimento de cada
pessoa ou grupo sobre um determinado tema”. (ROCHA & AMORAS, 2006, p. 149). Elas
podem nos revelar os conhecimentos dos ambientes locais e as formas de relações dos sujeitos
com o ambiente, considerando a ligação das mesmas com os seguintes fatores: experiências
remetentes à memória, ao imaginário e as simbologias, as vivencias cotidianas na interação
social e ao conhecimento popular.
A apreensão dos elementos armazenados nas memórias, narrados pelos anciões
históricos da sociedade, nos revela as faces dos processos que ainda não estão expostos. Os
valores ambientais de uma sociedade capitalista são constituídos pela lucratividade e a busca
da reprodução do capital não equipara e avalia se as conseqüências de uma determinada
atividade são ou não apropriadas para determinada comunidade. Os reflexos do global
atingem cada vez mais os locais, e os sujeitos em formação cultural se constituem sujeitos-
todo, sem particularidades, sem histórias e sem elementos para relembrar sua historicidade.
A transmissão das experiências dos sujeitos é possível se fazendo uso da narração,
como enfatiza (BOSI, 1987) “a arte na narração não está confinada nos livros, seu veio épico
é oral”. O narrador tira o seu conteúdo ao narrar sobre a própria experiência e a transforma em
experiência dos que escutam. Entender como essas experiências de vida se configuram por
meio das representações dos sujeitos que a vivenciaram é um recurso a ser utilizado com os
idosos , pois, “quando os velhos se assentam à margem do tempo já sem presa - seu horizonte
é a morte –floresce a narrativa” (BOSI, 1987).
Em estudos pautados em narrativas da memória, não se analisa a narrativa enquanto
composição sintática ou semântica das palavras, e sim a interpretação do que ficou registrado
na mente da pessoa. O conteúdo de uma narrativa deve ser analisado considerando-se as
circunstâncias e sendo composto pelos seguintes elementos: “a narrativa, que sempre nasce da
memória e se projeta na imaginação, que, por sua vez, depois de articular estratégias
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que por sua característica define o espaço enquanto projeta uma ação, que só é consolidada
como ação em um espaço, pois é este que dá forma á ação complexa e dinâmica.
Breves apontamentos
REFERÊNCIAS:
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Recebido em 29/04/2009
Aprovado em 18/06/2009
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