Proust Quadrinho
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TITULARES
SUPLENTES
Agradeço aos meus pais, Luísa e Sérgio, por serem quem são e por me incentivarem a
estudar e a Isildinha e Euclides pelo amor incondicional.
Aos meus amigos que sempre estiveram ao meu lado nos momentos alegres e tristes da
realização deste trabalho: Regiane Roda, Clarissa Picolo, Winnie Wouters, Laura
Lopes, Fabiano Costa, Guilherme Mariano, Guilherme Silveira e Alessandra Rondini.
.Com certeza esqueci alguém, mas todos estão no meu coração.
Aos meus alunos da UNILAGO que me ensinam a amar cada dia mais o que faço.
Aos professores Norma Wimmer, Arnaldo Franco Júnior e Márcio Scheel pela
dedicação ao que fazem.
Aos funcionários da Unesp de São José do Rio Preto, sempre muito prestativos.
À Marize Hattnher pelas conversas, pelo empréstimo da sala para a feitura desta
dissertação e pela amizade.
A Fernando Aparecido Poiana, minha fortaleza, que me deu todo o amor e todo o apoio
para que eu não esmorecesse.
Ao professor Álvaro Luiz Hattnher que aceitou me orientar nesta empreitada e que
esteve sempre ao meu lado.
À Capes pela concessão de bolsa de estudos, o que permitiu a realização deste trabalho.
RESUMO
Este estudo oferece uma discussão crítica da adaptação para narrativas gráficas do
primeiro volume de Em busca do tempo perdido: No caminho de Swann (2006), de
Marcel Proust, feita por Stéphane Heuet. Tenciona-se estudar a relação entre o primeiro
volume da Recherche e a sua versão quadrinhística para analisar como o narrador do
romance proustiano foi recriado através do uso de imagens e palavras no texto de Heuet.
Tendo isso em mente, a presente pesquisa utiliza as reflexões sobre adaptação de Linda
Hutcheon em Uma teoria da adaptação (2011) como fundamentação teórica. Por fim, a
hipótese investigada é que imagens e palavras são interdependentes na obra de Heuet.
Palavras-chave: Marcel Proust; Stéphane Heuet; narrativa gráfica; narrador; linha clara.
ABSTRACT
This study offers a critical discussion on the graphic novel adaptation of the first volume
of Marcel Proust’s In Search of Lost Time: Swann’s Way, by Stéphane Heuet. It aims to
look into the relationship between the first volume of the Recherche and its graphic novel
version in order to analyse how the narrator from Proust’s novel was recreated through
the uses of images and words in Heuet’s text. Bearing that in mind, the present research
uses Linda Hutcheon’s reflections on adaptation in A Theory of Adaptation as its
theoretical background. In the end, the hypothesis investigated is that images and words
are interdependent in Heuet’s work.
Keywords: Marcel Proust; Stéphane Heuet, graphic novel; narrator; clear line.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................ 9
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................158
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................160
ANEXOS.......................................................................................................................166
9
Introdução
A reprodução de desenhos na Idade Média utilizava a xilogravura, técnica na qual
as gravuras eram feitas em relevo sobre madeira. No início do século XIX, usava-se a
técnica da litografia que, por sua vez, permitia a reprodução pictórica da vida quotidiana
por meio de um processo que consistia no uso da prensa para imprimir um desenho ou
um escrito sobre papel. Para tanto, usava-se tinta graxenta sobre placa metálica. Apesar
de mais antiga, a invenção da imprensa, no século XV, revolucionou não somente a
reprodução escrita, mas também a de imagens. A partir de então, a reprodução técnica
desenvolveu-se a tal ponto que transformou o conceito de obra de arte. Walter Benjamin
(1892-1940) diz que, em sua essência,
1
Toda tradução será de minha autoria a não ser que expresse o contrário.
10
2
« Adaptations are alwayas interpretations – and interpretations are always adaptations. »
11
3
Escolhi trabalhar com as adaptações em português para tornar a leitura deste trabalho mais
fluida, mas, nos anexos, a partir da página 182, podem ser encontradas as imagens dos quadrinhos
originais em francês com a mesma numeração indicativa que está no corpo do trabalho, mas
acompanhadas da letra “a”.
4
Doravante chamo Em busca do tempo perdido de Recherche.
12
Neste capítulo, minha orientação não se pautará por aquilo que Hattnher (2010) chama
de “vetor original” em adaptação, ou seja, literatura cinema. Isso porque adaptações
da Recherche proustiana foram feitas para os mais variados meios e suportes, sendo eles
verbais ou mesmo não verbais. Apesar das críticas e resenhas muitas vezes indevidamente
duras e radicalmente conservadoras que marcaram a recepção imediata de muitos desses
trabalhos, o fato é que as adaptações do romance proustiano têm suscitado pesquisas
acadêmicas sérias e metodologicamente rigorosas, como a produção de ensaios,
dissertações de mestrado e teses de doutorado. Tendo isso em mente, o intuito deste
capítulo é, portanto, apresentar ao leitor a variedade de mídias para as quais o romance
proustiano foi adaptado e dissertar, brevemente, sobre cada uma dessas adaptações.
Sempre que possível ou pertinente, os comentários de outros críticos e analistas a respeito
dessas adaptações será mencionado, de modo a problematizar a maneira como elas têm
sido recebidas.
Filho de mãe judia e pai professor da Faculdade de Medicina de Paris, Valentin
Louis George Eugène Marcel Proust nasceu em Auteuil-Neuilly-Passy. Por pertencer a
uma família abastada, Proust frequentou excelentes colégios, como a Escola Livre de
Ciências Políticas, e também a Sorbonne, a universidade mais antiga da França. Dono de
uma saúde frágil e, por isso, protegido pela mãe e pela avó materna, Proust nunca de fato
trabalhou, tendo sempre vivido da fortuna da família. Toda essa afluência econômica lhe
garantiu passe-livre nos salões mundanos parisienses e também o convívio com inúmeros
artistas e pessoas da alta sociedade, sem falar que a riqueza também lhe possibilitou ter
tempo para se dedicar ao trabalho literário e ao cultivo de seu interesse por questões de
arte.
Marcel Proust é considerado um dos grandes escritores não só da literatura
francesa, mas também da literatura mundial. Antes de escrever sua obra-prima, Em busca
do tempo perdido, ou À la Recherche du Temps Perdu, no original francês, ele publicou
crônicas, artigos e críticas para o Figaro, um dos jornais mais tradicionais da França.
Alguns deles foram republicados em Pastiches et Mélanges (1919). Proust também
traduziu obras do escritor e crítico de arte inglês John Ruskin (1819-1900) para a língua
14
francesa, além de ser o autor de uma coletânea de crítica literária chamada Contre Saint-
Beuve (publicada postumamente em 1954) e de um romance inacabado, Jean Santeuil,
no qual ele trabalhou entre 1896 e 1900 e, também, publicado em período subsequente à
sua morte, mais precisamente me 1956. Nesse romance, que conta a história do jovem
entusiasta por literatura e poesia, Jean Santeuil, desde a sua infância até o seu encontro
com a vida adulta, a relação entre a figura do escritor e a sociedade é tematizada, tendo
como pano de fundo a alta sociedade parisiense do final do século XIX.
Em busca do tempo perdido é considerado uma das maiores realizações literárias
do século XX, ao lado de Ulysses (2012), do romancista, contista e poeta irlandês James
Joyce (1882-1941). Em suas mais de três mil páginas, a Recherche aborda temas até então
incomuns na literatura francesa, como a homossexualidade, as flutuações da memória
afetiva e o esnobismo da sociedade mundana na França da chamada Belle Époque. Por
sua linguagem extremamente sensível e sua grande ambição estética, a Recherche acabou
tendo grande influência na produção literária subsequente à sua publicação, e, em muitos
sentidos, acabou fundando uma espécie de matriz narrativa para alguns romancistas que
acabaram, em seu trabalho, enveredando para o campo de uma ficção que toma a memória
como um elemento central de construção. Como exemplo disso, cito Gabriel Garcia
Marquez (1927-2014) e sua obra-prima Cem anos de solidão.
A Recherche de Proust rompe com a tradicional narrativa cronológica e é
centralizada na memória do narrador, jovem sensível, com saúde debilitada e oriundo de
uma família burguesa parisiense. Desviado de seu objetivo por tentações mundanas, por
uma doença respiratória e por ter atravessado eventos históricos marcantes e traumáticos,
como a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), esse narrador descobre a vaidade do
mundo e das coisas. Sendo assim, como uma espécie de redenção de si mesmo, ele busca
incessantemente recuperar o tempo gasto com as frivolidades da alta sociedade
parisiense, tornando-se, para tanto, um escritor que tenta, pela palavra salvadora,
recuperar os traços de memória afetiva que o remetem à sua vida pregressa.
Romance considerado um monumento literário, a Recherche tenta, a partir disso,
alcançar a verdade da alma por meio da arte narrativa, na qual o narrador tenta alcançar
uma existência plena enquanto ser humano e escritor. Por isso há nesse livro uma tentativa
incessante, por parte do protagonista, de se tornar escritor, de modo que, na Recherche,
escrita e memória chegam mesmo a se sobrepor. Ou seja, o narrador-protagonista do
romance de Proust usa as flutuações da memória afetiva que se manifestam por
intermédio da madeleine, dos pilriteiros de Combray e dos campanários de Martinville
15
para dar forma e força expressiva ao seu relato. Com isso, a narrativa proustiana passeia
pelo passado e pelo presente incessantemente, fazendo vir à tona acontecimentos
importantes da vida do seu narrador, e que estavam abaixo do limiar de sua consciência.
É nesse processo, portanto, que a memória involuntária se faz presente e, em razão disso,
ela se constitui como um procedimento central para toda a narrativa da Recherche. Gilles
Deleuze (1925-1995), em Proust e os signos, aborda a memória involuntária no seguinte
trecho:
Essa identidade sobre a qual fala Deleuze é análoga àquela que nos aproxima de sensações
que experimentamos no decorrer da vida e que, por nos serem caras, fazem com que nos
sintamos plenos em nossa existência. Essa identidade pode ser estabelecida com uma
pessoa, com um local, com uma sensação, que são sempre familiares e identificados com
momentos da nossa experiência, entendida aqui como a vivência imediata. Além disso,
na narração do romance proustiano também se misturam lugares conhecidos do autor,
lembranças de sua infância, reflexões sobre a arte e sobre o amor, as diversas
manifestações dos ciúmes e também questionamentos sobre as formas de existência e de
percepção do tempo. De fato, a preocupação com a questão do tempo é um tema caro a
Proust, que teve contato com a obra do filósofo Henri Bergson (1859-1941), um estudioso
do tempo filosófico e das relações entre matéria e memória. Na verdade, a Recherche
pode, em muitos aspectos, ser lida como uma problematização profunda, no plano
ficcional, da ideia de memória pura desenvolvida por Bergson, noção à qual Proust
contrapõe o funcionamento da memória afetiva ou involuntária. É desse questionamento
que surge a ideia da memória involuntária mencionada por Deleuze na citação acima, e
que aproxima o atual e o antigo no instante da rememoração, o que só é possível pela
mediação da linguagem. Antes de Deleuze, no entanto, Walter Benjamin já havia tratado
do funcionamento da memória involuntária em Proust e da importância desse
procedimento para a narrativa da Recherche. Como Benjamin menciona em “A imagem
de Proust”, publicado originalmente em 1929, o valor do tempo entrecruzado é aquele
que se manifesta no processo da reminiscência de modo mais explícito.
A eternidade que Proust nos faz vislumbrar não é a do tempo infinito, e
sim a do tempo entrecruzado. Seu verdadeiro interesse é consagrado ao
16
fluxo do tempo sob sua forma mais real, e por isso mesmo mais
entrecruzada, que se manifesta da maneira mais direta na rememoração
(internamente) e no envelhecimento (externamente) (2012, p. 46-47).
Romance moderno, o livro de Proust é voltado para a realidade verdadeira, integral e não
teatral, como diz Erich Auerbach (1892-1957) em “Proust, o romance do tempo perdido”
(2007, p. 335). Essa realidade verdadeira da qual fala Auerbach está ligada à criação e à
existência do homem e das coisas em um contexto não imaginário e sim efetivo,
aniquilando qualquer resquício de falsidade da arte.
Em linhas bastante gerais, portanto, pode-se dizer que a narrativa do romance de
Proust está voltada para sua realidade interior e tem o seu ritmo ditado pelo resgate dos
acontecimentos de uma vida “rememorada por quem a viveu” (BENJAMIN, 2012, p. 38).
17
Sendo assim, a Recherche não é uma autobiografia, no sentido que Philippe Lejeune
(1938) dá ao termo, a saber, uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real
faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a
história de sua personalidade” (2008, p. 14). De acordo com Gérard Genette (1930), “a
linha principal da história [da Recherche] é a autobiografia [do narrador]” (1979, p. 49),
o que desautoriza qualquer aproximação direta entre a vida de Proust e os acontecimentos
narrados no seu romance, por mais que algumas semelhanças possam ser levantadas. A
esse respeito, inclusive, é importante termos em mente que a mistura de fatos reais com
reminiscências e criações narrativas perfaz um novo caminho do gênero romance na
literatura mundial, dando atenção, no caso da Recherche, ao fluxo temporal sob uma
forma mais introspectiva, cruzando rememoração e envelhecimento, a vida interior e a
exterior, destacando os acontecimentos mais frívolos do dia-a-dia, desde um passeio de
charrete pelos Champs Élysées até a descrição mais pormenorizada de um encontro
fortuito em um salão mundano.
Romances como a Recherche são considerados canônicos, pois pertencem a um
seleto grupo de narrativas ficcionais que gozam de prestígio estético e crítico no panteão
da literatura universal. Contudo, há que se manter no horizonte de análise a ideia de que
a constituição do cânone literário em uma determinada cultura não acontece de modo
natural e desinteressado. Dito de outro modo, as obras canônicas não geram descendentes
que se tornarão, por sua vez, também textos canônicos, uma vez que existem vários
fatores que contribuem para a integração e valorização de uma obra a tal ponto que ela
faça parte de determinado patrimônio cultural. Dentre esses fatores, incluem-se o período
histórico no qual a obra foi publicada, os valores estéticos e culturais predominantes nesse
período e, em última instância, as ideologias predominantes numa determinada época.
Considerando esses fatores, pode-se inferir que a noção de cânone é vazada por questões
histórico-político-econômico-culturais. Assim, os paradigmas do que pode ou não ser
inserido no cânone são passíveis de alterações radicais a partir do momento em que
qualquer uma dessas questões pelas quais o conceito de cânone é permeado entra em
crise.
Quando uma obra canônica como a Recherche é adaptada para um suporte diverso
daquele de sua origem, o leitor é muitas vezes subtraído de sua “zona de conforto” e
colocado em outro patamar no que diz respeito à sua forma de ver e interpretar essa
mesma obra. Dito de outro modo, o indivíduo que entra em contato com o produto de
uma adaptação acaba sendo forçado a não vê-la como antes via o texto fonte, seja ele
18
canônico ou não. Isso ocorre porque a relação que se instaura entre os dois objetos é
inteiramente nova, uma vez que o processo adaptativo necessariamente produz outra obra
autônoma, que não depende do texto-base para existir em si, mesmo que a adaptação
ainda guarde vínculos com a obra adaptada.
Essa criação muitas vezes é apressadamente considerada uma cópia, e, por
conseguinte, a ela é atribuída uma conotação de derivação ou mesmo de inferioridade.
Um romance como o de Proust, por ser canônico, esbarra em alguns obstáculos de ordem
valorativa e ideológica para que sua adaptação seja feita. A aceitação de sua “cópia” é
uma delas, mas a ausência de momentos-chave, de suspense no desenrolar das tramas
paralelas pode constituir um empecilho ainda maior em uma adaptação para uma estrutura
dramática como é o caso de um filme ou de uma peça de teatro, por exemplo. Isso
acontece porque cada uma dessas mídias ou formatos tem características e possibilidades
expressivas intrínsecas que demandam adequações específicas. Ou seja, a adaptação não
é um processo estritamente mecânico de transposição ipsis litteris do que está na página
para o palco, a tela ou o quadrinho. Ao falar sobre as peculiaridades do drama enquanto
forma de expressão artística que utiliza a palavra e performance como elementos centrais,
por exemplo, Martin Esslin (1918-2002) explica que a transmissão de emoções, de
sabedoria, de poesia e o divertimento são elementos primordiais para captar a atenção de
uma plateia e mantê-la por toda a duração de um espetáculo (1978, p. 47). Em outras
palavras, essa afirmação de Esslin parece corroborar a ideia de que cada mídia tem seus
próprios recursos ficcionais e dramáticos para criar e transmitir essas emoções e captar a
atenção do leitor e do público de um modo geral.
Adaptar uma obra canônica, portanto, desperta diversas reações, por vezes
intempestivas, em quem tem contato com o resultado desse processo. Ao mesmo tempo
em que a adaptação pode ser uma via de acesso a um texto muitas vezes considerado
inacessível, seja por sua dificuldade lexical ou mesmo pela extensão de sua leitura, ela
também corre o risco de ser vista como uma dessacralização da obra adaptada. Isso
porque ainda é bastante difundida a ideia de que algumas obras são interditadas às
adaptações, já que o processo de recriação de um trabalho literário e seus resultados
seriam uma espécie de ultraje à criação do gênio individual, não chegando, assim, à altura
de um ídolo considerado “intocável”. A esse respeito, no entanto, deve-se atentar para o
fato de que o processo de adaptação de uma obra canônica, na verdade, apenas confirma
seu status no panteão de uma dada literatura nacional ou mesmo no da chamada literatura
universal.
19
Uma adaptação oriunda de uma obra amplamente conhecida atrai mais a atenção
do público do que a adaptação de um livro desconhecido. Os cânones seriam obras mais
“confiáveis” por sua legitimidade e valor estético sendo, desse modo, criticamente
reconhecidos. Segundo Linda Hutcheon, as obras adaptadas trazem “[...] o prazer da
repetição [do contato com a obra] com variação” (2011, p. 44). Além disso, a teórica
canadense afirma que experienciar uma adaptação traz consigo o reconhecimento e a
lembrança de uma obra já existente, mesmo que desse processo façam parte o prazer e o
risco (2011, p. 44). Por isso, adaptações de obras canônicas podem, ao mesmo tempo, ser
mais chamativas para a audiência do que a recriação, em um novo suporte, de uma obra
desconhecida. Por exemplo, Hamlet de William Shakespeare já foi adaptado para diversas
mídias diferentes: cinema, televisão, quadrinhos, entre outras. A história de vingança do
príncipe da Dinamarca, mesmo com mais de quatrocentos anos de existência, é ainda
adaptada, pois o público já validou a existência da obra shakespeariana5 e isso facilita a
atração de novos “consumidores” para as adaptações e, consequentemente, para o texto-
fonte.
Muitas vezes, ao se falar em adaptação, relaciona-se apressadamente o resultado
do processo a uma mera cópia do original. Por isso, acaba-se criando a ideia errônea de
que a adaptação é inferior. Na esteira dessa noção de inferioridade que é, em última
análise, um juízo de valor precipitado, surgem outros problemas como o da noção de
perda e de traição ao original, essa última vazada pela noção de fidelidade que paira sobre
muitas discussões acerca do tema. Na verdade, no processo de adaptação há sempre um
grau de condensação do texto-fonte em sua transferência para outro suporte. Como
explica Hutcheon: “[adaptações podem envolver diversas mídias] que são recodificadas,
transportadas intersemioticamente de um sistema de signos (palavras) para outro
(imagens)” (2011, p. 39). Em outras palavras, as adaptações são recriações de obras já
existentes em um novo formato e que levam em conta as adequações que o novo suporte
demanda. Ainda segundo Hutcheon, histórias podem evoluir por meio da adaptação,
considerando-se o fato de que elas não são imutáveis e que podem alcançar públicos que
não atingiriam se não fossem adaptadas. Dito isto, passo agora a uma consideração um
pouco mais detida das adaptações da Recherche para outras mídias. Além disso, trato
brevemente do modo como, em cada uma delas, o adaptador trouxe à adaptação seu ponto
5
Exemplo dado pelo Prof. Dr. Alvaro Luiz Hattnher na disciplina Tópicos Especiais – Teorias
da adaptação: literatura, cinema e outras arquiteturas textuais ministrada de agosto a dezembro
de 2012 na UNESP – São José do Rio Preto.
20
6
« Visconti ne pouvait qu’accepter. S’il refusait, quelqu’un d’autre, de toute façon, réaliserait le
film […]. »
21
Além desses problemas de ordem médica, Visconti era demasiado exigente com
seu próprio trabalho e teria pressentido outro empecilho para realizar a adaptação
cinematográfica do romance proustiano: ele não conseguia entrever um equivalente
cinematográfico à frase proustiana. Sobre isso, o diretor teria dito:
Ainda segundo Kravanja, o trabalho de adaptação de Suso e Visconti não oferecia maiores
detalhes sobre a feitura do filme.
7
« Je ne dois pas faire une transposition littéraire. Evidemment il y aura des choses qui se
perdront, sûrement une espèce de musicalité proustienne. Mais en échange, je crois pouvoir, avec
une image, pénétrer dans cet espèce de labyrinthe profond de Proust, pour vous expliquer un
sentiment, une position, une attitude, une tristesse, un moment de jalousie. J’userai de tout ce qui
est possible pour rester fidèle au sentiment proustien, pas au style. »
8
« Le scénario tiré de la Recherche ne permet toutefois pas d’imaginer le film qu’aurait donné
cette adaptation, puisqu’il ne contient aucune indication technique. N’y figurent que les dialogues,
dont la plupart sont des citations assez exactes du roman – ce qui permet de vérifier à quel point
Proust a su restituer le langage parlé –, et des descriptions narratives. »
23
encenado e entrou para o repertório da Ópera Nacional de Paris tornando-se, desde então,
um dos clássicos dessa companhia.
A adaptação de Roland Petit da Recherche para o balé divide-se em dois atos
intitulados Quelques images des paradis proustiens [Algumas imagens dos paraísos
proustianos] e Quelques images de l'enfer proustien [Algumas imagens do inferno
proustiano]. Segundo Marion Schmid (2013), o espetáculo apresenta uma estrutura
díptica, refletindo as experiências intermitentes do protagonista na alegria e no
sofrimento. Para Schmid, esse díptico espelhado refletiria esses dois estados de espírito
no decorrer das duas partes da adaptação do coreógrafo francês. No interior dos dois atos,
somam-se treze quadros e, ao analisar o programa do espetáculo,9 pode-se ver que cada
quadro se inspira em passagens do texto proustiano ou mesmo na correspondência pessoal
do próprio Proust com amigos mais próximos. Esses quadros propõem uma leitura da
obra Recherche por meio de seus movimentos coreográficos e evocam alguns dos temas
mais relevantes do romance tais como a frivolidade da alta sociedade, a vaidade da
existência humana, as múltiplas (des)ilusões do amor, o poder do ciúme, a gradual
decomposição de um relacionamento e a procura pelo prazer carnal de forma
autodestrutiva. A sucessão dos quadros segue, geralmente, o desenrolar da narrativa
proustiana, que vai da adolescência do narrador até sua vida adulta e perpassa períodos
históricos importantes da França como a Belle Époque e a Primeira Guerra Mundial.
Abaixo temos algumas imagens do espetáculo Les Intermittences du Coeurs em
sua versão reencenada em 2007. A primeira à esquerda (Figura 2) mostra o narrador, no
primeiro quadro do espetáculo, em um salão mundano. A segunda à direita (Figura 3)
apresenta Swann e Odette em seu ritual de “fazer catleia”. A figura 4 mostra a imagem
de Marcel contemplando o sono de Albertine, que depois tentará fugir de seu domínio.
9
O referido programa pode ser encontrado no DVD do espetáculo. A referência está abaixo das
imagens 2 a 4.
24
Pinter, Losey e Bray trabalharam juntos na adaptação da Recherche para as telas. Mesmo
cortando cenas consideradas essenciais, como a da madeleine, e apesar da ausência de
alguns personagens como Tia Léonie, Elstir, Bloch, Berma, por exemplo, o roteiro
adaptado abarcou uma parte considerável da narrativa proustiana. Pinter privilegiou
episódios como a cena da ópera encontrada no livro No caminho de Guermantes – que
aparece entre a cena do deitar em Combray e os passeios pelo lado de Méseglise e
Guermantes. A viagem de trem, acontecida antes de chegar a Balbec, vem depois de sua
estadia na estancia balneária. Dois episódios pertencentes a Gomorra aparecem quase que
simultaneamente: a profanação de Montjouvain – encontro furtivo entre Mademoiselle
Vinteuil e uma amiga, presenciado pelo narrador – e a confissão de Odette a Swann de
que ela já tinha estado com mulheres “duas ou três vezes”. Episódios mostrando a vida
social dos Verdurin, dos Cambremer, dos Guermantes são muito parecidos com os que
são relatados no romance de Proust. Os amores do narrador – troca de olhares com
Gilberte, paixão platônica pela duquesa de Guermantes e o romance conturbado com
Albertine – têm destaque na trama, mas não com o mesmo peso. Albertine é retratada
com maior importância na vida do narrador, pois ela foi seu mais intenso relacionamento.
A adaptação de Pinter foi originariamente escrita em inglês, e contava com 455
planos e duração prevista de mais de cinco horas e meia. Os custos de produção
afugentavam os investidores, pois além das filmagens, havia os cenários, os figurinos e
toda uma adequação física à época na qual a história se passa. Em 1976, três anos após a
escrita do roteiro, os custos de produção estavam estimados em torno de 11 milhões de
dólares segundo Kravanja (2003, p. 28). A dificuldade em conseguir o dinheiro para o
financiamento do filme adiava a realização do projeto. Losey conseguiu uma audiência
com o presidente da França na época, Valéry Giscard d’Estaing (1926); no entanto, este
10
« L’auteur dramatique anglais et ses collaborateurs se mirent d’accord pour construire le film
sur deux principes directeurs contrastés : il s’agissait de mettre longuement l’accent sur la
désillusion et par intermittence de faire entrevoir le salut causé par la révélation du Temps
Retrouvé. »
26
não acreditava no talento do produtor para conduzir o projeto. Ainda segundo Kravanja,
para d’Estaing, uma tarefa de tal magnitude, adaptar o autor dos autores franceses para o
cinema, deveria ser feita por um francês. Além do mais, o governo da França impôs a
condição de que o filme fosse falado em língua francesa para que ajudasse na produção.
Com a negativa de Losey, a única verba angariada por ele foi junto à produtora
cinematográfica francesa Gaumont, na quantia de dois milhões de dólares. Isso era pouco
e não havendo mais investidores interessados, o projeto foi cancelado.
Nicole Stéphane tentou produzir uma adaptação para a televisão, mas Pinter não
estava interessado em trabalhar na condensação do roteiro em cinco partes de cinquenta
minutos cada uma, como gostaria a produtora. O dramaturgo inglês publicou o roteiro em
1978 e concedeu um sexto dos direitos autorais a Barbara Bray e a Joseph Losey. Pinter
revisitou seu roteiro no começo do século XXI e adaptou-o para o teatro com a
colaboração do diretor de teatro inglês Di Travis. O espetáculo Remembrance of Things
Past estreiou no Cottesloe11, que faz parte do Royal National Theatre, em 23 de novembro
de 2000.
11
Esse teatro encerrou suas atividades em 2013 e reabriu as portas em 2014 como Dorfman
Theatre.
12
Em francês Monsieur Proust (1973).
27
dos senhores que o adulavam chegando, muitas vezes, a irritá-lo. A governanta, no filme,
também conhece as aventuras mundanas de Proust, que lhe são contadas sem pudores por
seu senhor. Céleste, por sua vez, conta ao patrão alguns momentos vividos por ela no
interior da França antes de se mudar para Paris com seu esposo Odilon, motorista que
prestava serviços a Proust.
Adlon também aborda as excentricidades proustianas em seu filme. À medida que
o enredo se desdobra, o espectador descobre que o escritor francês era adepto de rituais
que denotavam um comportamento bastante idiossincrático. Como exemplo disso cito o
fato de que Proust costumava fazer sua higiene bucal com furor obsessivo e jamais saía
de casa sem antes se certificar de que estava impecavelmente vestido. No vídeo
Cinegrafia ‘Los Trazos de un Filme’ – Céleste de Parcy Adlon (1994),13 o diretor alemão
responsável pelo filme descreve essas extravagâncias do autor francês com “respeitosa
ironia”. Outra amostra desse caráter excêntrico pode ser conferida em uma cena
específica do filme. Ao ganhar um importante prêmio literário, o Prix Goncourt em 1919,
por À l’Ombre des Jeunes Filles en Fleur [À sombra das raparigas em flor], segundo
volume da Recherche, Proust convida, pagando com parte do prêmio recebido e em
dinheiro, um conjunto musical para ir a seu apartamento interpretar o quarteto de cordas
de César Franck (1822-1890), um de seus compositores preferidos.
Com o tempo, Proust e Céleste criam laços afetivos tão fortes ao ponto de palavras
não precisarem mais ser ditas, pois já eram, em muitos casos, intuídas. O escritor francês
reescrevia incessantemente seus textos, de modo que, frequentemente, as margens das
páginas ficavam repletas de anotações e correções. De fato, fotos dos manuscritos da
Recherche mostram o quão obstinado e perfeccionista o autor francês realmente era.
Vendo isso, Céleste sugeriu que Proust passasse a colar papelotes com as alterações e
correções desejadas nas páginas que ele pretendia modificar. No final da sua vida, já
bastante debilitado por causa de suas fortes crises de asma, Proust, sem forças para redigir
por si só, costumava ditar partes da Recherche para Céleste, que escrevia tudo de próprio
punho e relia para que o autor pudesse se certificar de que os trechos haviam sido
adequadamente redigidos.
Adlon termina seu filme com um retrato da agonia final de Proust provocada pela
asma que perseguiu o romancista desde os nove anos de idade. O diretor de cinema
13
O referido material está disponível em: <http://interfaz.cenart.gob.mx/video/cinegrafia-los-
trazos-de-un-filme/#top>. Acesso em 10 fev. 2015.
28
Céleste foi muito bem recebido pelos críticos. Maurice Elia em sua resenha
“Céleste de Percy Adlon, 1981: Le Jornal d’une Femme de Chambre” afirma que
A interação é completa entre os dois atores [...]. Eva Mattes, sutil, dotada
de uma bondade nunca excessiva, mas sempre à flor da pele; Jürgen
Arndt que, por sua vez, convence-nos que é Marcel Proust, o dandy, o
prodígio, o homem de quem sempre se espera tudo [...] (2001, p. 37) .14
14
« L'osmose est complète entre les deux acteurs aussi. Eva Mattes, subtile, d'une bonté jamais
excessive, mais toujours à fleur de peau ; Jürgen Arndt qui, de son côté, nous convainc qu'il est
Marcel Proust, le dandy, le prodige, l'homme dont on attend toujours tout […]. »
29
alemão Volker Schlöndorff (1939) a tarefa de rodar a película. O diretor alemão tinha
experiência na transposição de histórias das páginas para a tela, pois ele já havia
trabalhado com adaptações de romances para o cinema como Baal (1970), de Bertold
Brecht (1898-1956), e Die Blechtrommel [O tambor] (1979), de Günter Grass (1927-
2015). Schlöndorff começou sua carreira como assistente de direção e trabalhou com
Alain Resnais (1922-2014) em O ano passado em Marienbad (1961). Esse filme, cujo
roteiro original fora escrito por Alain Robbe-Grillet (1922-2008), ficou bastante
conhecido por apresentar uma narrativa na qual realidade e ficção são deliberadamente
misturadas.
A narrativa cinematográfica dessa adaptação baseou-se, primordialmente, em
“Um amor de Swann”, segundo capítulo de No caminho de Swann, primeiro volume da
Recherche. Esse capítulo constitui uma narrativa independente da história do narrador-
protagonista, pois conta a vida de Charles Swann, rico e culto burguês parisiense,
estimado pela alta sociedade, sobretudo pelo duque de Guermantes, sua esposa Oriane e
o irmão dela, o barão de Charlus. O filme de Schlöndorff também mostra Swann e seus
encontros furtivos com mulheres das mais variadas classes sociais até o momento em que
ele conhece Odette de Crécy, inculta prostituta de luxo. Os dois personagens são
apresentados no salão de Madame Verdurin, burguesa sem classe, que mantém em torno
de si convivas das mais variadas estirpes. Ao frequentar diariamente o salão dos Verdurin,
Swann desenvolve progressivamente uma paixão por Odette, que acaba se transformando
em ciúme doentio.
A ação de Um amor de Swann acontece em Paris e é resumida em um único dia.
Nesse relato o leitor entra em contato com a vida mundana de Swann, o momento em que
é apresentado a Odette, o primeiro encontro furtivo entre os dois, os questionamentos de
Swann sobre a vida pregressa de sua amante, o distanciamento entre eles e a consequente
separação, bem como o epílogo, que apresenta um Swann envelhecido, à beira da morte,
casado com Odette, agora Madame Swann. Na parte final do filme pode-se perceber que
a ação se passa no início do século XX. Os veículos automotores presentes na película
evidenciam isso.
Em sua adaptação, Schlöndorff reúne várias passagens da narrativa de Proust em
somente uma cena, num claro exemplo daquilo que muitos teóricos da adaptação chamam
de condensação. Além de abarcar a totalidade do capítulo “Um amor de Swann”, o filme
do diretor alemão retira trechos de No Caminho de Guermantes (2007) e de O Tempo
Redescoberto (2013), respectivamente, volumes três e sete da Recherche para construir
30
sua narrativa cinematográfica. A imagem abaixo (Figura 6) corresponde a uma das cenas
de Um amor de Swann na qual aparecem Swann, interpretado por Jeremy Irons (1948), e
Charlus, por Alain Delon (1935), tomando café da manhã. Nela podemos notar não só
um cuidado bastante rigoroso com a caracterização física dos personagens, como também
um trabalho detalhado de transposição das descrições proustianas do ambiente e dos
espaços físicos para o suporte cinematográfico.
15
« Le réalisateur chevronné qu’est Ruiz a en effet choisi des décors, des paysages, des objets et,
pour ses acteurs, des vêtements appropriés, et surtout il les a mis en valeur grâce à une
photographie superbe, spectaculaire même. Il a donc su utiliser la technique cinématographique
à son avantage pour rendre concret et définitif ce que littérature ne peut que suggérer. »
16
« Cette liberté du réalisateur qui fait de l’auteur un acteur intradiégétique de son histoire et le
met au même niveau d’existence que les personnages qu’il a inventés non seulement crée une
situation absurde et inexplicable mais encore anéantit les efforts du vrai Marcel Proust qui n’a
cessé de se distancier de son héros-narrateur. »
32
O que parece ter escapado a muitos críticos, no entanto, é o fato de que por se
concentrar no último volume da Recherche, Ruiz acabou encontrando uma maneira
coerente de fazer certas escolhas adaptativas que lhe permitiram, enquanto diretor, não
só ter uma visão de conjunto abrangente sobre a narrativa sendo adaptada, mas também,
e como consequência direta disso, ser capaz de fazer referências aos episódios que deram
forma e substância às memórias involuntárias recuperadas nesse tempo passado,
redescoberto no presente.
17
« Les effets du temps et les caprices de la mémoire, particulièrement le phénomène de la
mémoire involontaire, développés et expliqués si minutieusement dans le roman que le lecteur ne
peut les appréhender qu’au prix d’un certain travail intellectuel, sont ainsi transposés
cinématographiquement de manière beaucoup plus efficace puisque le spectateur peut les
ressentir instantanément et donc comprendre mieux et plus rapidement les expériences ou les
sentiments du protagoniste. De même, les odeurs et les saveurs étant difficilement transposables
au cinéma, Ruiz fait un usage judicieux des sons, comme le bruit de la cuiller contre le verre, pour
créer des effets qui n’en restent pas moins proustiens. »
33
De fato, obsessão, posse e ciúmes são temas centrais no filme de Akerman, assim
como ocorre no livro de Proust no qual La Captive foi baseado. Além disso, o fato de a
diretora ter optado por ambientar a matriz narrativa de A prisioneira na Paris
contemporânea chama atenção para o fato de que podem existir mais pontos de
convergência entre a moral burguesa do século de XIX e as relações entre homem e
mulher no século XX do que aparentemente se pode querer reconhecer ou admitir num
primeiro instante.
18
« […] the intimate bourgeois relationship between Simon and Ariane. Simon’s obsessive love
for Ariane saturates much of the film. His rendition of love showcases his relentless struggle to
comprehend, and eventually have bourgeois ownership over, every aspect of her life. […] The
beginning of the film leaves the audience wondering what their relationship is, and if they even
know each other at all. It is soon revealed that they exist in an awkward upper-class relationship,
largely devoid of sex or reciprocal intimacy. Simon’s neurosis leaves a cold and distant stain on
their interactions […]. Simon’s obsession culminates with Arian’s death/ disappearance into the
ocean. »
34
Figura 9 - Cena do filme La Captive (2000) com Stanislas Merhar e Sylvie Testud.
Disponível em :<http://www.allocine.fr/film/fichefilm-
24733/photos/detail/?cmediafile=30081>. Acesso em: 15 ago. 2014.
19
Fundada na década de 1990 no seio da editora francesa L'Association por alguns artistas e
teóricos de quadrinhos como Patrice Killoffer, François Ayroles, Jochen Gerner, Anne Baraou,
Thierry Groensteen, Gilles Ciment, Étienne Lécroart, Jean-Christophe Menu et Lewis
Trondheim, OuBaPo é a sigla de L'Ouvroir de bande dessinée potentielle (em tradução livre
'Oficina da História em Quadrinhos Potencial'). Segundo a pesquisadora Maria Clara da Silva
Ramos Carneiro (2012, p. 105), esse coletivo de criação de quadrinhos adota os mesmos
princípios de criação que a L'Association: “[...] quadrinhos como laboratório de valorização da
sua própria linguagem, quadrinhos como invenção constante.”
35
passagem do tempo está na presença, na terceira vinheta, de malas que apontam para as
viagens realizadas pelo protagonista do romance de Proust a Balbec, Combray e Veneza,
por exemplo. Além disso, esse tempo que se perde nos espaços da memória é também
representado, no segundo e quarto quadrinhos, pela louça na mesa que é alterada de
acordo com a ocasião: um simples jantar, uma pequena reunião, referência à recepção na
casa da duquesa de Guermantes ou então um jantar em Combray.
Por fim, na última vinheta, temos a remissão da memória que nos leva
diretamente ao início da ação, quando o narrador percebe, no final do livro, que está
pronto para escrever a sua história, que, como o leitor da Recherche percebe, é a respeito
de tudo o que já havia sido contado no decorrer da narrativa. Ou seja, essa vinheta recria
o primeiro, e no processo de condensação que ele contém, sintetiza a problemática do
narrador do romance de Proust quando ele reconta a sua vida a partir das construções da
memória involuntária as quais dão forma e vazão à essas experiências que se fazem,
novamente, presentes no âmbito do tempo recuperado.
20
JONES, K. My Life With Albertine, the Musical That Would Make Proust Sing, Opens Marc
13. Disponível em: <http://www.playbill.com/news/article/my-life-with-albertine-the-musical-
that-would-make-proust-sing-opens-march--112050>. Acesso em: 20 fev. 2015.
37
Entre 2004 e 2005, o grupo de teatro holandês Ro Theater fez uma adaptação do
romance de Proust em uma série de quatro espetáculos. Essa adaptação foi realizada pelo
diretor de teatro Guy Cassiers (1960), que já tinha adaptado outras obras, como o romance
Orlando, de Virginia Woolf (1882-1941), e peça Macbeth, de William Shakespeare
(1564-1616), a qual, na versão do diretor holandês, recebeu o título de MCBTH. Além de
Cassiers, trabalharam também no projeto o dramaturgo Erwin Jans (1963), e Eric de
Kuyper (1942), um dos roteiristas de La Captive de Chantal Akerman. Nessa adaptação,
o Ro Theater trabalha com a representação teatral dos atores juntamente com tecnologia
audiovisual. Segundo o site da companhia, a seleção do material adaptado foi radical.
Em outras palavras, algumas personagens tiveram suas características mescladas com as
de outras figuras fictícias. A recriação do texto de Proust levada a cabo pelo Ro Theater
concentra-se tanto nas personagens quanto em acontecimentos específicos.21
Nos quatro espetáculos, a função dramatúrgica do aparato humano e do
tecnológico para representar aspectos da narrativa proustiana no tecido teatral têm a
mesma importância. Cada uma dessas representações teatrais que adaptam a narrativa
proustiana para o palco confere destaque a um personagem em particular. Proust 1, por
exemplo, atem-se à figura de Charles Swann, enquanto Proust 2 dedica maior atenção à
personagem Albertine. Proust 3 e Proust 4, por sua vez, enfatizam, respectivamente, o
Barão de Charlus e Marcel, o narrador-protagonista. Diante da organização e focalização
apresentada pelo conjunto desses espetáculos, podemos perceber que eles visam, na sua
totalidade, contemplar os ciclos mais importantes da narrativa proustiana a partir de uma
atenção mais detida em personagens-chave dentro da Recherche. Embora sejam
complementares, quando vistas em sua totalidade, cada uma das partes do ciclo de Proust
pode ser vista separadamente, pois não há entrelaçamento entre as histórias apresentadas
em cada espetáculo. Ou seja, cada uma dessas adaptações é independente e pode ser
assistida separadamente, sem prejuízo para a compreensão global do espetáculo.
21
As informações sobre o processo de adaptação e as sinopses dos espetáculos estão disponíveis
em: <http://rotheater.nl/proust-1>. Acesso em: 15 fev. 2015.
38
22
« Playing with size and scale, presence and absence, live and mediatized, creating simultaneity
and intermediality […]. By opposing live video to the physical present actor, the negative space
in-between the image and the process of creating that image – the intermedial – is located. The
‘empty’ space functions as a platform, a stage on which the individual experiences of all
participants in the live performance can be staged and the invisible, or ‘the forgotten’, can be
remembered and made visible. »
39
Quando Albertine decide morar com Marcel em seu apartamento em Paris, o amor
dos dois degenera ainda mais, uma vez que Marcel a transforma em sua prisioneira. Para
que a complexidade (ou mesmo a confusão) da personalidade das personagens ficasse
ainda mais emblemática, os roteiristas decidiram que dois atores representariam Marcel
e duas atrizes, Albertine, numa tentativa de estabelecer uma conexão mais intrínseca entre
a forma da representação dramática e o seu conteúdo.
40
23
JAURES, C. Nina Companeez Sous le Charme de Proust. La Croix. Disponível em:
<http://www.la-croix.com/Culture/Actualite/Nina-Companeez-sous-le-charme-de-Proust-
_NG_-2011-01-28-562651>. Acesso em 15 jan. 2015.
44
privilegiada por ter conduzido o projeto, já que cineastas prestigiados haviam recusado o
trabalho antes.
A adaptação feita por Companeez é rica em cenários e figurinos, e prima por uma
cuidadosa reconstituição de época a partir dos elementos presentes no texto de Proust.
Além do mais, ela optou em dividir a sua adaptação e nomeá-la a partir dos livros que
compõem a Recherche. Sendo assim, a primeira recebeu o nome de À sombra das
raparigas em flor (2006), que foi seguida por No caminho de Guermantes, Sodoma e
Gomorra (2008), A prisioneira, A fugitiva (2012) e, finalmente, O tempo redescoberto.
No caminho de Swann não foi alvo de adaptação completa, pois a cineasta considerou
que esse romance é demasiado descritivo e faltam-lhe ações suficientes para que ele fosse
adaptado em sua totalidade. Diante dessa peculiaridade da narrativa de No caminho de
Swann, Companeez preferiu pulverizar flashbacks de alguns acontecimentos relevantes
desse volume à medida que a história narrada se desenrolava nas suas adaptações.
Em entrevista concedida ao site da revista semanal francesa Télérama e publicada
em 29 de janeiro de 2011, na ocasião do lançamento do filme, o repórter Samuel Douhaire
perguntou à Companeez se essa divisão em capítulos nomeados com os títulos dos
volumes da Recherche não era algo “escolar”. A diretora, por sua vez, respondeu que
24
tencionava, com essa divisão, “[...] guiar a leitura dos futuros leitores de Proust. ”
chamando-lhes a atenção para a organização da narrativa proustiana.
Companeez também considerou primordial, em sua adaptação, a figura do
narrador. Ela não inseriu no filme cenas nas quais ele não era testemunha de ações, pois
a diretora considerou que no romance proustiano todas as ações são pensadas e vistas por
esse narrador. Na mesma entrevista citada anteriormente, concedida ao semanário francês
Télérama, Companeez afirma que “o que mais me interessa na Recherche é o itinerário
do narrador. Como um jovem doente, caprichoso, insuportável, mundano, torna-se um
escritor por meio de um olhar estranho que tudo analisa” (2011).25
24
« […] guider les futurs lecteurs de Proust. »
25
« Ce qui m'intéresse le plus dans la Recherche, c'est l'itinéraire complet du narrateur. Comment
un jeune homme maladif, capricieux, assez insupportable, mondain, devient un écrivain à travers
un regard incroyable qui analyse tout. » COMPANEEZ, N. Proust est un auteur comique.
Entretien. Télérama. Disponível em: <http://television.telerama.fr/television/proust-est-un-
auteur-comique,64997.php>. Acesso em 15 jan. 2015.
45
26
Os títulos citados foram traduzidos para o português e publicados pela editora LP & M
Pocket.
46
A partir da exposição feita até agora, pode-se notar que existe uma grande quantidade de
adaptações da Recherche para os mais variados suportes; isto reforça a necessidade, como
mencionado no início desse capítulo, de tentar abordar esse fenômeno não somente a
partir da relação entre literatura e cinema. Um outro ponto interessante é a presença do
narrador proustiano, bem delineado em algumas delas. Nesse sentido, não é de
surpreender que haja uma adaptação do romance proustiano para o formato da narrativa
gráfica, como é o caso do trabalho realizado por Heuet. Entretanto, para entender como
se dá o processo de criação do desenhista francês e quais os procedimentos que esse autor
utiliza, é importante considerarmos os pormenores estéticos e históricos que contribuíram
47
27
« Le seul fait de dessiner un objet implique un changement radical de la nature de ce dernier.
Cet objet n’est plus objet, mais l’image de cet objet. »
49
28
« A vinheta é a representação, através da imagem, de um espaço e de um tempo da ação narrada.
Podemos dizer que a vinheta é a unidade mínima de siginificação da história em quadrinhos »
(ACEVEDO, 1990, p. 69).
29
Prancha é a totalidade de vinhetas contidas em uma página.
30
Segundo Eisner (2010, p. 4-5), o letreiramento « funciona como uma extensão da imagem.
Neste contexto, ele fornece o clima emocional, uma ponte narrativa, e a sugestão de som. »
31
O papel do balão de fala é « representar o som em meio estritamente visual » (McCloud, 2010,
p. 134).
32
O recordatório será definido mais detidamente no capítulo 3 deste trabalho.
33
« […] principal inventeur du récit séquentiel. »
50
Töpffer é conhecido por ter criado um estilo de desenho limpo, sem muitos detalhes e
dotado de aspectos burlescos. Além disso, ele separava seus desenhos por traços,
esboçando assim o que mais tarde seria conhecido dentro da metalinguagem
quadrinhística como requadros. Suas imagens satíricas com traçados descontínuos e estilo
econômico apresentavam, também, um delineamento marcado por hachuras.34 Além
disso, as sequências narrativas criadas por Töpffer eram claras e de fácil compreensão.
No século XIX ainda não havia a noção de balão tal qual a teoria dos quadrinhos
a conhece atualmente. Nesse sentido, percebe-se que a ideia de balão na moderna teoria
dos quadrinhos corresponde a um procedimento criativo cuja força reside na sua
capacidade de provocar uma simbiose profunda entre texto e imagem. Diante da
inexistência desse recurso composicional na época em que criou sua obra, Töpffer
escrevia pequenas legendas sob as imagens que desenhava para expressar a parte verbal
de sua narrativa sequencial e, desse modo, estabelecer as relações estético-temáticas entre
traço e texto no seu trabalho. Essas legendas eram feitas com o mesmo material que ele
utilizava para criar os seus desenhos: o bico de pena.
O artista visual suíço submetia suas histórias curtas ao crivo do escritor alemão
Johann W. Goethe (1749-1832), seu amigo, que o encorajava a continuar desdenhando-
as. Goethe teria feito, segundo um excerto de uma carta endereçada a Töpffer, “um elogio
entusiasmado a esses estranhos livrinhos” dizendo que “nunca tinha encontrado nada
mais original do que isso.” (BLONDEL; MIRABAUD, 1886, apud GROENSTEEN;
35
PEETERS, 1994, p. viii) A primeira história em quadrinhos teria sido escrita por
Töpffer e publicada em 1833, em seu país natal, sob o nome de L’Histoire de Monsieur
Jabot (Figura 20). 36 Além do seu pioneirismo como quadrinhista, Töpffer também foi o
primeiro teórico do que ele próprio chamava de “literatura em gravuras”
(GROENSTEEN, 2005, p. 5).37 Em 1845, Töpffer escreveu Essai de Physiognomonie
[Ensaio sobre a fisionomia], trabalho no qual expõe a importância de expressar com
34
« Hachura é uma técnica usada em desenhos e gravuras que consiste em traçar linhas finas e
paralelas, retas ou curvas, muito próximas umas das outras, criando um efeito de sombra. »
Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo57/hachura>. Acesso em: 29 jun.
2015.
35
« […] un éloge enthousiaste de ces ‘étranges petits livres […] », « […] jamais rencontré de plus
original. »
36
A referida obra pode ser encontrada no site da Biblioteca Nacional da França. Disponível em:
<http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b8529023n/f1.item>. Acesso em: 15 mai. 2015.
37
« littérature en estampes. »
51
exatidão o semblante dos personagens para que suas emoções possam ser bem
compreendidas pelo leitor.
38
« […] il ne donne de l’objet que ses caractères essentiels, en supprimant ceux qui sont
accessoires. »
39
« L’auteur de bande dessinée classique sait qu’il s’adresse à des lecteurs […] qui se contenteront
d’aller chercher dans le dessin les informations nécessaires et suffisantes à l’intelligibilité de la
situation. » Disponível em : <http://neuviemeart.citebd.org/spip.php?article690>. Acesso em: 10
abr. 2015.
52
primeiros desenhistas a se preocupar com a fluidez de leitura de sua história, pois evitava
passagens que, por excesso de detalhe, dificultassem a compreensão da narrativa. O
objetivo era conservar uma leitura fluida e constante que conduzisse o leitor à conclusão
da história. Portanto, o desenhista suíço, além de criar sua “literatura em gravuras”,
refletiu sobre o processo de feitura de suas narrativas visuais, buscando um didatismo
verbal e não verbal.
Adotando um estilo parecido ao de Töpffer, Emmanuel Poiré (1858-1909), de
ascendência soviética, deu continuidade ao estilo satírico adotado pelo artista suíço no
início de sua carreira. Diferentemente de Töpffer, no entanto, Poiré começou a trabalhar
como desenhista na imprensa satírica francesa adotando o pseudônimo “Caran d’Ache”,
uma transcrição fonética de karandach que significa “lápis” em russo. Considerado “[...]
40
um grande desenhista de histórias em imagens” (1969, p. 150) pelo historiador dos
quadrinhos Gérard Blanchard (1927-1998), Caran d’Ache colaborou, ao longo de sua
carreira, com vários jornais franceses entre eles Le Courrier Français, Le Figaro,
L’Illustration, La Revue Illustrée, La Chronique Parisienne ou La Caricature. Em 1903,
devido a uma neurastenia, o quadrinhista abandonou progressivamente sua atividade de
desenhista, passando a colaborar somente com o Figaro. Ele tinha um projeto de fazer as
ilustrações para uma edição das Fábulas de La Fontaine (1621-1695), mas a extenuante
amplitude do trabalho o fez abandonar a empreitada.
A importância de Caran d’Ache para os quadrinhos franco-belgas é devida ao fato
de ele ter modernizado o traço de Töpffer. O artista tinha a ambição de levar ao
conhecimento do público algo considerado revolucionário para a época: uma história
visual em capítulos que seria publicada no Figaro. Seriam 300 pranchas de uma narrativa
chamada Maestro, um “romance sem texto” segundo o termo criado pelo próprio Caran
d’Ache e que foi chamado por Groensteen no blog Neuvième Art de “história muda”.41 A
carta do quadrinhista, propondo o projeto, enviada ao jornal francês foi encontrada por
Groensteen junto aos croquis do projeto que hoje integram o acervo do Museu da História
42
em Quadrinhos de Angoulême. Do projeto inicial, restaram somente 120 pranchas
publicadas sob a responsabilidade do museu francês. Maestro (Figura 21) conta a história
de um jovem músico talentoso protegido por um rei megalomaníaco. Essa tentativa de
40
« [...] un grand dessinateur d’histoires en images. »
41
O texto do qual foi retirado os termos originais « roman sans texte » e « histoire muette » está
disponível em: <http://www.citebd.org/spip.php?article5495>. Acesso em: 10 abr. 2015.
42
Um dos mais importantes acervos de quadrinhos franco-belgas do mundo juntamente com o
Museu da História em Quadrinhos na cidade de Bruxelas.
53
Caran d’Ache de fazer um romance sem diálogos foi mais um passo para que as histórias
em imagens se transformassem na “arte sequencial” (EISNER, 2010, p. IX) conhecida
atualmente. A inovação desse projeto está na presença de um argumento a ser
desenvolvido no decorrer das pranchas sequenciadas, privilegiando, assim, a existência
de uma unidade narrativa. Caran d’Ache também ficou conhecido pelo uso que fez do
decalque43 como procedimento, uma técnica largamente utilizada depois pelo desenhista
Hergé, no século XX e por ter emprestado seu nome a uma indústria suíça de materiais
para desenhistas.
Outro artista também influenciado por Töpffer foi o francês Georges Colomb
(1856-1945), mais conhecido como Christophe, que se dedicou a escrever histórias para
o público infantil. Ele publicava semanalmente no Le Petit Francais Illustré as narrativas
ilustradas de Le Savant Cosinus [O sábio cosseno], Le Sapeur Camember [O soldado
Camember]44 e La Famille Fenouillard [A família Fenouillard]. 45 Christophe dedicou-
43
Decalque é uma técnica na qual se reproduz um desenho sobre um papel transparente que o
recobre.
44
Algumas histórias de Le Sapeur Camember podem ser lidas em: <
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6356474v/f9.image.r=le%20sapeur%20camember.langPT>
. Acesso em: 15 mai. 2015.
45
A integralidade dessa série está disponível para leitura em: <
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k106164q.r=la+famille+fenouillard.langPT>. Acesso em: 10
abr. 2015.
54
se aos quadrinhos com tamanha seriedade que acabou sendo um precursor de conteúdos
ilustrados destinados a crianças na imprensa, e consagrou o jornal como suporte maior
para a publicação de suas histórias ilustradas.
Christophe era, originalmente, professor de ciências naturais e autor de livros
didáticos sobre botânica, ilustrados por ele mesmo. Foi professor de Marcel Proust no
Liceu Condorcet. Em 1889, publicou as primeiras histórias de La Famille Fenouillard. A
partir desse mesmo ano, adotou o pseudônimo que o tornou conhecido, referência ao
navegador italiano Cristovão Colombo.46 Segundo Ciment e Groensteen, Christophe não
foi um desenhista notável, pois "alguns especialistas em quadrinhos julgavam que as
feições de seus personagens estavam entre as mais pobres que se podiam encontrar em
toda a história dos quadrinhos" (2010, p. 62).47 A meu ver, o traço de Christophe é claro
e ilustrativo, pois adota um estilo caricatural, caracterizado pela economia de detalhes na
representação das feições, o que não significa que seus personagens sejam “pobres”
graficamente.
Christophe criava legendas tipográficas para suas histórias e as colocava embaixo
48
de suas vinhetas, que, em geral, tinham sarjetas enormes separando-as. O conteúdo
dessas legendas era muito bem elaborado, rico em referências históricas, culturais e, até
mesmo, científicas. Outro destaque no trabalho do quadrinhista era a sugestão aos leitores
para que fizessem imagens mentais de suas narrativas. Na próxima página apresento uma
vinheta (Figura 22) pertencente a Deuxième Histoire de la Famille Fenouillard [A
segunda história da família Fenouillard] publicada, originalmente em preto e branco, pela
editora francesa Armand Colin em 1893. Na legenda, o autor discorre sobre a saída da
família Fenouillard do trem em que viajava para almoçar. Para bem digerir a refeição,
eles decidiram fazer a sesta e não viram quando o comboio partiu. No término de sua
legenda, Christophe sugere aos leitores que imaginem os rostos dos personagens, que, na
vinheta, aparecem de costas. As elaboradas legendas do artista francês transformam o
leitor em agente importante na interpretação das cenas, acionando o conhecimento de
mundo de cada um para poder imaginar o desfecho da narrativa.
O único elemento na vinheta analisada que dá indício do estado de espírito dos
personagens é o fato de que as mãos das filhas Artémise e Cunégonde e da mãe da família,
46
Christophe Colombe em francês.
47
« Certains spécialistes du neuvième art jugent que les expressions de ses visages sont parmi
les plus pauvres qu'on puisse trouver dans toute l'histoire de la bande dessinée. »
48
A sarjeta, segundo McCLoud (2005, p.66), « é o espaço entre os quadros. »
55
Léocadie, estão abertas, com as palmas viradas para baixo, demonstrando a surpresa dos
personagens ao verem o trem ao longe. Christophe escreve na legenda sob a vinheta que
a partida “[...] pode produzir em fisionomias diferentes a mesma expressão de
desapontamento" (CHRISTOPHE apud CIMENT; GROENSTEEN, 2010, p. 62).49 Com
isso, o quadrinhista coloca o leitor em uma posição ativa em relação à cena, o que faz
com que passe de mero espectador a testemunha efetiva da reação dos personagens ao
verem o distanciamento progressivo do trem.
Além disso, há uma diferença entre o primeiro e o segundo planos da vinheta,
detalhando, mesmo que precariamente, o cenário no qual se desenvolve a narrativa. O
uso da cor preta destaca a fumaça do trem e os chapéus dos dois adultos. Além do mais,
o preto da fumaça cobre o comboio, do mesmo modo que o preto dos chapéus cobre as
cabeças do pai e da mãe Fenouillard. O uso dessa cor escura poderia ser interpretado
como uma nuvem negra que passa na vida da família, acentuando o problema de terem
sido deixados para trás pelo trem.
A seguir tem-se a mesma vinheta, desta vez numa versão colorida, e publicada
também pela Armand Colin (1990). Nela (Figura 23), a fumaça que sai do trem em
movimento está em um tom mais cinza, possivelmente para não haver um alto contraste
49
« [...] peut produire sur des physionomies différentes la même expression de désappointement. »
56
com as outras cores utilizadas no desenho. A escolha das tonalidades deve ser destacada,
mesmo não havendo uma grande gama de tons. Somente as roupas das personagens são
coloridas, em pequenas variações de laranja, rosa e verde. O preto aparece também nos
chapéus do pai e da mãe. Essa estratégia de colorir a parte inferior com cores mais claras
auxiliaria na percepção dos detalhes da indumentária das personagens que,
provavelmente, não seriam notados se as roupas possuíssem tons escuros. Do lado
esquerdo da imagem, o verde da grama tem a mesma tonalidade das vestimentas da mãe
e das filhas. O céu é colorido com algumas pinceladas de azul claro, mas as nuvens
permanecem brancas. Pode-se notar, portanto, que somente os membros da família
Fenouillard e a natureza são coloridos. O trem permanece em preto e branco,
representando o sentimento negativo da família ao ver sua partida.
Devido a sua grande contribuição para essas revistas, acabou publicando mais de
duzentos álbuns em francês, alguns dos quais foram traduzidos para o inglês. Em 1898,
Rabier escreveu, com a colaboração de Fred Isly, Tintin-Lutin [Tintin-terrível], que
marcou o começo de sua longa carreira como autor de livros infantis.50 Além disso, Rabier
participou, em 1906, da ilustração de 240 fábulas de La Fontaine, projeto que havia sido
inicialmente recusado por seu contemporâneo Caran d’Ache. A partir dos anos 1920, o
artista francês deixa de colaborar com jornais e passa a dedicar-se à escritura de álbuns
para editoras como Tallandier e Garnier. Esta última publicou, entre 1923 e 1939,
dezesseis narrativas do pato Gédéon, um personagem infantil criado pelo desenhista
francês que, ao longo de sua carreira, especializou-se em desenhar animais.
Rabier tinha um estilo considerado de fácil assimilação, o que agradava,
sobretudo, os editores que publicavam trabalhos para o público infantil. Seu estilo era
nítido e desprovido de elementos acessórios que ele considerava desnecessários. Dito de
outro modo, Rabier não trabalhava exaustivamente os mínimos detalhes dos cenários que
criava, e desenhava somente o que ele considerava essencial para a compreensão da
narrativa visual. Para expressar as diferentes emoções no rosto de suas personagens, por
exemplo, Rabier utilizava variadas formas de linhas e, também, de pontos. Além do mais,
ele usava cores pouco carregadas, concentrando-se, principalmente, nas cores primárias
e secundárias em suas narrativas sequenciais. Ademais, as legendas criadas por Rabier
eram tipográficas e, geralmente, compostas por pequenos poemas com rimas alternadas.
Na imagem da próxima página (Figura 24), pertencente a uma prancha intitulada
Le Chat et les Canetons e publicada pela tradicional gráfica francesa Imagerie d’Épinal51
em 1913, Rabier conta a história de um gato que, no galho de uma arvore, cobiçava alguns
patinhos que subiam em uma prancha de madeira para mergulharem em um lago e
nadarem com a mamãe pata. Ao calcular mal seu salto, o gato cai na água, projetando
para o alto os patinhos que ele pretendia apanhar. Em seguida, o felino sai correndo,
atordoado. O cenário criado nessa imagem é, como se pode perceber, muito simples e
mostra, sobretudo, um foco bem definido no primeiro plano da ação. Não há uma projeção
detalhada do segundo plano, cuja existência é sugerida somente pela presença de alguns
arbustos e árvores. Além disso, as cores dos elementos que compõem a cena dão um ar
50
O nome Tintin ficará famoso no trabalho de outro quadrinhista, Hergé.
51
Gráfica francesa fundada em 1796 e especializada na publicação de imagens d’Épinal, gravuras
com motivos populares e cores vivas. Essas imagens foram assim nomeadas, pois o tipógrafo
Jean-Charles Pellerin foi o primeiro a imprimí-las em sua gráfica em Épinal, cidade francesa.
58
de leveza ao conjunto das imagens. Nesse contexto, percebe-se ainda que somente o gato
apresenta a cor preta, aludindo, assim, ao perigo que representava à vida dos patinhos. De
fato, à medida que a ação se desenvolve, Rabier muda a feição não só do gato, mas
também a dos patinhos, mostrando que a situação de calmaria e paz inicial havia se
transformado no ambiente tenso, permeado pelo medo dos patinhos de serem atacados
52
pelo felino. O artista francês também explora o uso de linhas cinéticas para marcar
tanto o movimento de queda do gato na água, quanto o deslocamento dos patinhos no ar
e o da mamãe pata que tenta nadar com o intuito de salvar seus filhotes. Além de todas
essas informações imagéticas, vale a pena mencionar que as legendas dessa vinheta
apresentam um esquema de rimas alternadas no estilo A/B/A/B:
52
De acordo com Acevedo (1990, p. 57), « as linhas cinéticas servem para indicar movimento. »
53
Mas tendo mal calculado sua empreitada/ O felino cai do seu salto/ Mesmo no montinho de
terra,/ Apenas entre o primeiro e o segundo,/ Ao balançar a prancha no riacho/ Projeta os patinhos
da mesma forma que o malicioso felino.
59
54
« […] Hergé reconnut son influence sur sa ‘ligne claire’. Sa rencontre avec l’œuvre du
dessinateur […] lui donna le goût pour ‘un dessin clair et simple, un dessin qui soit compris
instantanément. »
55
« Dans ma jeunesse, j’ai beaucoup admiré Benjamin Rabier. Et j’avais un tel souvenir de ses
dessins que j’ai dû y penser (…) en dessinant mes animaux. »
56
« [...] le créateur de la bande dessinée moderne en France et même en Europe continental. »
57
« [...] précurseur des émissions pour la jeunesse à la radio. »
60
uma publicidade. Com isso, apareceram, pela primeira vez, Zig et Puce, os personagens
infantis que acabariam se tornando os mais famosos dentre aqueles criados pelo
quadrinhista francês.
Segundo Groensteen, “precursor da linha clara, Saint-Ogan tem um traço mais dançante
que o de Hergé [...]” (2010, p. 190).58 O uso de diversos tons de azul e também da cor
laranja, elementos predominantes em Zig et Puce, ainda segundo Groensteen “[...]
confere às imagens um charme obsoleto [aos quadrinhos de Saint-Ogan] que autoriza a
simplificação extrema do cenário [...]” (2010, p. 190).59 Além disso, Pierre Couperie
também destaca que a composição imagética de Saint-Ogan, além do traço “dançante” de
seus personagens, possui
uma eficácia que vai direto ao ponto usando uma admirável economia
de meios: imagens simples, nas quais os personagens são retratados com
uma clareza magistral em um fundo liso ou mesmo reduzido ao mínimo
– e, no entanto, tão significativo -; silhuetas e sequências mudas são
outros aspectos presentes nessa economia. Outra característica: o ritmo
de muitas imagens e o ar frequentemente dançante de seus personagens,
além do senso de atitude e de posição [desses personagens]” (1969, p.
39).60
58
« Précurseur de la ligne claire, Saint-Ogan a un trait plus dansant que celui d’Hergé […]. »
59
« [...] elle confère un charme désuet à ses images, l’autorise à simplifier son décor à l’extrême
[…]. »
60
« [...] une efficacité qui va droit au but avec une économie de moyens souvent étonnante :
images simples, où les personnages sont placés avec netteté magistrale sur un fond uni ou réduit
au minimum – et pourtant si évocateur – ; silhouettes et séquences muettes sont d’autres aspects
de cette économie. Autre caractère : le rythme de beaucoup d’images et l’air très souvent dansant
de ses personnages, outre le sens de l’attitude et de la pose […]. »
61
história em quadrinhos – que ainda não era chamada de Nona Arte (2007,
p. 7). 61
61
« Du point de vue formel, Saint-Ogan cesse dès 1930 d’inventer. La bande dessinée se fige
entre ses mains dans un état qui, de moderne qu’il était d’abord, devient rapidement archaïque.
[…] Auteur pour l’enfance, Saint Ogan incarne exemplairement une certaine enfance de la bande
dessinée – que l’on n’appelait pas encore le Neuvième Art. »
62
« [...] tant par sa vision du monde dont elle procède que par la désinvolture qui caractérise la
narration généralement improvisée sur une trame des plus lâches. »
62
dois veículos de comunicação diferentes e a ser criada por dois autores distintos ao mesmo
tempo.
A Figura 25, logo abaixo, apresenta The Yellow Kid expressando-se por meio do
balão em formato inconstante e o rabicho,63 marcado por um traço que sai da boca do
menino e do bico do papagaio, mostrando de onde partem as falas das personagens.
Figura 25 – Detalhe de The Yellow Kid and His New Phonograph. Publicado
originalmente no New York World. 25 out. 1896. Disponível em:
http://xroads.virginia.edu/~ma04/wood/ykid/imagehtml/yk_phonograph.htm. Acesso
em: 10 abr. 2015
Outro artista a utilizar balões de fala no início do século XX foi Edmond Tapissier
(1861-1943), mais conhecido como Rose Candide.64 O desenhista teve somente um
álbum publicado na França, Sam et Sap (1908). 65 Embora, infelizmente, os personagens
não tenham obtido sucesso, o pequeno legado de Candide ficou para sempre na história
em quadrinhos de expressão francesa, uma vez que essa série também foi uma das
primeiras a usar balões para marcar e delimitar as falas dos personagens. Diferentemente
dos balões de Outcault, contudo, os balões de fala de Sam et Sap têm formatos variados,
“encaixando-se” nas imagens, como mostra a figura 26, na próxima página. O rabicho,
por sua vez, é feito com uma linha traçada em direção à boca do personagem, o que marca
63
A composição de um balão de fala é feita « de um ‘corpo’ ou forma delimitada em que estão
contidos o texto do diálogo [...], além de um ‘rabicho’ que indica o personagem que exprime esse
conteúdo » (ACEVEDO, 1990, p. 100).
64
Além de Rose Candide, Pierre McOrlan, Albert Mourlan e Raymond Cazanave utilizaram
timidamente o balão de fala na França antes de Alain Saint-Ogain.
65
A integralidade deste álbum foi digitalizada pela Cité Internationale de la Bande dessinée et de
l’Image. Disponível em: < http://www.citebd.org/spip.php?article7169>. Acesso em: 10 abr.
2015.
63
outra diferença fundamental entre Candide e Outcault no tocante ao modo como as falas
eram inscritas e representadas nos seus desenhos.
Além de adotar balões como forma de expressar a parte verbal de suas narrativas
em imagens, Saint-Ogan também usava outro recurso verbal: os recordatórios. O
quadrinhista francês valia-se deles com o intuito de introduzir um elemento discursivo na
narrativa para descrever algo considerado importante para o seu leitor, mas que não
caberia necessariamente na fala direta desse ou daquele personagem.
Com temática explicitamente futurística, essa série utilizou os motivos e temas
próprios à ficção científica como carro-chefe de sua narrativa. Nesse sentido, podemos
dizer que Zig et Puce também foi uma série tematicamente pioneira, visto que o
tratamento desse tipo de assunto era raro nas histórias em quadrinhos da época. Na figura
27, intitulada Zig et Puce au XXIe Siècle [Zig e Puce no século XX] e publicada em 1935,
os dois protagonistas da história fazem uma viagem no tempo e acabam na moderníssima
Paris do ano 2000. Essa viagem temporal faz com que Zig et Puce vivam inúmeras
aventuras na cidade-luz, inclusive visitando o túmulo do próprio autor da série que,
segundo a narrativa visual, teria falecido em 1994. Depois de várias peripécias, os dois
garotos conseguem retornar à época na qual vivem.
De fato, essa não foi a primeira vez que Saint-Ogan inseriu-se numa de suas
histórias. Existem desenhos nos quais ele dialoga com Zig et Puce em suas pranchas e
eles, em contrapartida, o reconhecem nesses diálogos como o autor da série. Nesse
64
66
São cores únicas que não variam em tonalidade. Sendo assim, aparecem em imagens
uniformemente e sem variação de nuances.
65
e a disposição das vinhetas não seguir uma ordem “canônica”, ou seja, não são utilizadas
seis vinhetas de mesmo tamanho por prancha como visto comumente nas histórias em
quadrinhos. Ao invés disso, pode-se notar a presença de cinco vinhetas, sendo que, na
central, o desenhista francês estabelece as linhas demarcatórias para que o desfile de
carros antigos possa acontecer sem ser afetado pela contenção espacial marcada pelos
traços que separam uma ação da outra.
Além disso, a direção para a qual os carros seguem não configura um percurso ou
ordem de leitura padrão de uma página de quadrinhos. Dito de outro modo, a disposição
dos elementos gráfico-verbais nessa vinheta impõe uma leitura que começa de baixo para
cima, e não de cima para baixo, que é a orientação espacial adotada, de modo geral, por
desenhistas de quadrinhos. Com isso, o leitor, culturalmente habituado a fazer a leitura
da prancha da esquerda para a direita e de cima para baixo, se vê obrigado a realizar um
caminho interpretativo que passa por uma ordem reversa de leitura, imposta pela
construção interna do quadrinho. Após ler as três primeiras vinhetas, o leitor deve ir ao
pé da página e voltar seu olhar para a parte inferior da prancha, acompanhando o fluxo
dos carros, de baixo para cima, num processo de leitura que poderia ser chamado de
desautomatizado. Em outras palavras, a disposição dos elementos constitutivos desse
quadrinho leva o olhar de quem o lê a voltar-se novamente para baixo e, à direita, tem-se
o desfecho da história. Esse tipo de vinheta, que impõe uma leitura contrária à ordem
considerada “canônica”, foi largamente explorado na obra do desenhista francês.
De fato, Saint-Ogan não apenas tem uma importância inegável para o
desenvolvimento formal das histórias em quadrinhos no mercado franco-belga, mas,
também, teve papel fundamental na divulgação dessa arte nesse contexto. Isso porque o
quadrinhista francês foi presidente do primeiro Festival de Quadrinhos de Angoulême,
evento quadrinhístico que acontece anualmente no sul da França, no final do mês de
janeiro e início de fevereiro, e concede um dos principais prêmios do mercado mundial
dos quadrinhos, a fauve d’or [fava de ouro]. Por isso tudo, é possível dizer que a influência
de Saint-Ogan na produção quadrinhística franco-belga é bastante presente e claramente
demarcada.
Um dos artistas mais claramente influenciados pelo trabalho de Saint-Ogan é
Georges Remi (1907-1983), mais conhecido como Hergé, que foi o grande expoente da
escola franco-belga de quadrinhos. Nascido em Etterbeek, cidade perto de Bruxelas,
Hergé foi uma criança inquieta apenas silenciada quando lhe davam lápis e papel. Em sua
adolescência, Hergé começou a praticar o escotismo e, nessa época, já desenhava suas
66
próprias histórias com imagens. Em 1922, seu nome apareceu pela primeira vez em uma
revista chamada Le Boy-Scout Belge, para a qual ele contribuía com histórias centradas
no personagem Totor, um escoteiro. De fato, as histórias envolvendo esse personagem
fazem parte do que hoje pode ser considerada a primeira fase do trabalho de Hergé como
desenhista. Em linhas gerais, pode-se dizer que nesse período inicial de sua carreira,
Hergé cultivava, como característica de seu estilo, a limpeza do traço, o uso de imagens
sinuosas, sem muitos detalhes, de espessura regular e quase sem a utilização de sombras,
desenhando somente os elementos estritamente necessários à legibilidade da história.
O apelido Hergé, que acabou se tornando o seu nome artístico, é uma derivação a
partir das iniciais de seu sobrenome e de seu nome, respectivamente. Georges Remi
utilizou esse apelido pela primeira vez como assinatura para uma de suas histórias em
1924. Em 1925, Hergé começou a trabalhar no jornal Le XXe Siècle, publicação dedicada
majoritariamente ao público juvenil da época. Ele abandonou o jornal pouco tempo
depois, voltando apenas em 1927, após ter cumprido suas obrigações com o serviço
militar. Ao retornar ao Le XXe Siècle, o desenhista belga começou a dedicar-se ao Petit
Vingtième, suplemento juvenil do jornal, no qual trabalhava e pelo qual era inteiramente
responsável.
Nesse período, Hergé ilustrou Les Aventures de Flup, Nénesse, Poussette et
Cochonnel [As aventuras de Flup, Nénesse, Poussette e Cochonnel], uma série que ele
mesmo considerava, de acordo com Benoît Peeters (2004, p. 14), “lenta”,67 e cujos textos
foram escritos curiosamente por um redator esportivo do XXe Siècle. Hergé cansou-se
rapidamente dessa série e retomou Totor, dando-lhe um topete à la Tintin e um cão de
estimação, um fox-terrier chamado Milou, que se tornaria famoso nas aventuras de outro
personagem hergeano. Além de Les Aventures de Flup, Nénesse, Poussette et Cochonnel
e Totor, Hergé dedicou-se à criação de Quick et Flupke (1930), Popol et Virginie (1931),
Les aventures de Jo, Zette et Jocko [As aventuras de Jo, Zette e Jocko] (1935), série esta
encomendada pelo semanário francês Coeurs Vaillants. Além desses projetos, o
quadrinhista belga também realizou inúmeros trabalhos ilustrando, principalmente, capas
de livros.
Hergé estreou seu personagem mais famoso em 10 de janeiro de 1929, numa
aventura chamada Tintin au Pays de Soviets [Tintin no país dos sovietes], publicada no
Petit Vingtième. Visando criar a história de um jovem repórter que viaja à antiga União
67
O termo usado originalmente é «poussive », que pode ser traduzido por lenta, calma, vagarosa.
67
Em outras palavras, com a criação de Tintin, Hergé fundou uma nova estética
quadrinhística na qual sua concepção da imagem como ilustração da história narrada dá
lugar a uma visão mais intrincada da composição quadrinhística, que prevê uma interação
maior entre texto e imagem na produção de sentido e possibilidade interpretativas.
Outra influência de Hergé, a partir da década de 1930, foi o americano Georges
McManus (1884-1954). O quadrinhista belga teve contato com a obra de McManus pela
primeira vez por intermédio de um colega de trabalho, Leon Degrelle (1906-1994), que,
em viagem ao México, comprou-lhe exemplares de Bringing Up Father,70 série mais
famosa do desenhista americano e peça-chave na expansão dos quadrinhos americanos
no mercado europeu (GARCIA, 2012). Ainda segundo Garcia, a influência de McManus
na obra hergeana foi
[...] muito duradoura: mais que as histórias que o jovem Hergé não podia
ler, trata-se do traço e da organização da imagem, de uma clareza na
68
« […] Tintin au Pays de Soviets qui semble par moments n’être rien d’autre qu’une adaptation
en bande dessinée de certains chapitres de Moscou Sans Voiles. »
69
« […] nous y voyons s’inventer la bande dessinée selon Hergé. Sous l’influence des comics
américains, l’auteur est passé de la conception illustrative qui était encore la sienne au moment
de Totor à celle d’un langage nouveau où texte et image se complètent sans se répéter. »
70
Em português a série de McManus chamou-se de Pafúncio e Marocas e em francês La Famille
Illico.
68
Dito de outro modo, a maior influência de McManus sobre Hergé se manifesta no plano
do traço e não propriamente no plano do texto. De fato, é o sistema de leitura imposto
pela estética de McManus, com o estabelecimento de uma sequência clara e ordenada de
quadros que mais interessa a Hergé do ponto de vista da composição, o que fica evidente
na série que fez o quadrinhista francês mundialmente famoso.
Nascido em Saint-Louis, McManus gostava, quando criança, de ir ao teatro no
qual o pai trabalhava para assistir, escondido, aos espetáculos. Um dia, ele viu uma peça
que contava a história de um imigrante irlandês pobre que fôra morar nos Estados Unidos
e acabara enriquecendo. Diante dessa ascensão econômica do protagonista, sua mulher e
sua filha não queriam mais que ele continuasse a ver seus amigos pobres, já que agora a
família deveria pertencer a um círculo social mais abastado. O irlandês, contudo,
querendo manter suas raízes e antigas amizades, fugia de casa para jogar pôquer com os
velhos companheiros. McManus gostou tanto dessa história que, alguns anos depois,
baseou-se nela para criar o argumento de sua série mais famosa, Bringing Up Father, que
começou a ser publicada em 1913 nos Estados Unidos e, logo depois, também na Europa.
Os personagens dessa história eram Jiggs, o ex-operário que ficou rico por ganhar na
loteria, Maggie, sua esposa e antiga lavadeira de roupas, e Nora, a filha do casal. Quanto
aos aspectos técnicos da composição de Bringing Up Father, pode-se observar que o
desenhista americano escrevia tiras com quatro vinhetas, terminando, invariavelmente,
com um efeito cômico. Após a morte de McManus, a série continuou sendo produzida
por quadrinhistas como Vernon Greene (1908-1965), Hal Campagna (1912-2014) e Frank
Jonhson (1931), dentre outros até ser descontinuada em 2000. Abaixo (Figura 28), uma
tira de Bringing Up Father.
69
Nessa tira, Jiggs recebe um cão que foi dado de presente à sua esposa, Maggie. O
personagem que lhe entrega o cachorro explica-lhe que, embora não quisesse se desfazer
do animal, ele teria de fazê-lo visto que estava indo para o exterior. O humor está no fato
de que Jiggs associa a mudança do personagem para outro país aos cuidados que o
cachorro demandaria, o que é reforçado pela última tira, na qual o protagonista é mostrado
chamando a carrocinha, o que sugere que estava tentando, de modo bastante pragmático,
se livrar do cachorro que havia acabado de ganhar.
Pode-se notar no traço do desenhista americano, segundo Pierre Fresnault-
Deruelle, “[...] uma economia gráfica [...] que anunciava a linha clara de Hergé, cuja
virtude reside no fato de que o esboço (das coisas) e a caricatura (dos personagens) podem
coexistir perfeitamente no perímetro das vinhetas” (2010, p. 156).71 Sendo assim, a
71
« Cette économie graphique […] annonce la ‘ligne claire’ d’Hergé, dont la vertu tient en ceci
que l´épure (les choses) et la caricature (les personnages) peuvent coexister sans heurts dans le
périmètre des cases. »
70
À esquerda (Figura 29) o escoteiro Totor e, à direita (Figura 30) Tintin e Milou em Tintin
au Pays des Soviets (1929). Imagens disponíveis em: <www.tintin.com>. Acesso em: 10
abr. 2015.
Em suas primeiras aventuras, o jovem repórter do Petit Vingtième viaja para vários
lugares do mundo, como a Rússia (na época ainda União Soviética), o Congo na aventura
Tintin au Congo [Tintin no Congo] (1930), os Estados Unidos aparecem em Tintin en
Amérique [Tintin na América] (1931) e o Oriente em Les Cigares du Pharaon [Os
charutos do faraó] (1932). Nas palavras de Peeters, as quatro primeiras aventuras de
Tintin apresentavam
como cantor. Entretanto, devido aos impactos da Segunda Guerra, acabou sendo levado
ao mundo dos desenhos, começando a trabalhar na equipe de Hergé na década de 1940,
colaborando, primeiramente, com a revista Tintin.72 Ao perceber o talento gráfico de
Jacobs, Hergé o catapultou à condição de seu primeiro assistente. Diante disso, Jacobs
passou a trabalhar não só com os elementos decorativos das histórias de Tintin, mas
também com a coloração desses desenhos, utilizando em seu trabalho a técnica de
73
impressão em quadricromia, a partir da qual uma grande gama de tons é produzida
partindo de quatro cores básicas: ciano, magenta, amarelo e preto. Os álbuns Les 7 Boules
de Christal [As sete bolas de cristal] (1948) e Le Temple du Soleil [O templo do sol]
(1949) levam a marca característica de Jacobs, que também colaborou ativamente para
que Hergé melhorasse sua técnica artística, criando histórias com roteiros bem elaborados
e desenhos primorosos.
Além de sua colaboração com as histórias de Hergé, Jacobs também trabalhou em
criações próprias como Le Rayon U [O raio U] (1943), publicada na revista semanal
Bravo! e posteriormente em álbum, e a série Blake et Mortimer (1951-1977). De fato,
Jacobs concebia narrativas com desenhos ricamente detalhados, com caracterização
cuidadosa de personagens e também uma distinção bastante clara entre primeiro e
segundo planos, além de um cuidado especial com o plano de fundo. Além do mais, há
em seus quadrinhos uma forte presença de cores chapadas e bem delineadas,
responsáveis, em muitos casos, por dar o tom às histórias que flertavam com gêneros
variados, como o policial, o fantástico e a ficção científica. Jacobs chegou inclusive a
abordar temas como o ocultismo em uma de suas histórias em quadrinhos – chamada Le
Mystère de la Grande Pyramide [O mistério da grande pirâmide] (1954-1955).
Um aspecto bastante característico da obra de Jacobs é o uso frequente de um
recurso de que Hergé lançava mão somente de maneira esporádica: o recordatório. De
fato, essa é uma característica fundamental quando se trata de marcar os pontos de
divergência estética entre Jacobs e o autor de Tintin. Ao contrário de Hergé, Jacobs usava
em seus trabalhos um grande número de recordatórios e balões de fala que, muitas vezes,
tomavam conta de quase toda a vinheta. A imagem abaixo (Figura 31) é, nesse sentido,
72
Criada em 1946, uma edição semanal publicava séries como Blake et Mortimer de Jacobs, Alix
de Jacques Martin (posteriormente citado neste trabalho), Les Aventures de Tintin et Milou [As
aventuras de Tintin e Milou e Quick e Flupke] e Quick et Flupke de Hergé, entre outras. A
publicação encerrou suas atividades em 1988.
73
Esta técnica é conhecida internacionalmente e o processo de impressão utiliza a sigla CMYK,
que remete aos nomes das cores supracitadas em inglês.
73
um exemplo que ilustra bem o modo como Jacobs utilizava esse recurso. Nela, podemos
observar uma vinheta na qual o balão de fala é ‘invadido’ pelos personagens e acaba
tomando conta de quase todo o espaço da ação.
L’Île Noire [A ilha negra] em 1966, solicitada pelo editor inglês das histórias do jovem
repórter.
Assim como Jacobs, De Moor também criou suas séries próprias com estilos
estéticos diferentes. Ele é criador do detetive Barelli (1956-1989), uma série totalmente
influenciada pela linha clara, e também da série Cori le Moussaillon [Cori, o marujo]
(1951-1993), um afresco marítimo que é uma referência das histórias em quadrinhos
históricas na Europa. Ainda sobre essas séries, vale notar que apresentam estéticas
completamente díspares. As duas foram publicadas primeiramente na revista Tintin e,
posteriormente, em álbuns. Após a morte de Hergé, De Moor esperava ser escolhido para
finalizar o álbum inacabado Tintin et l’Alpha-Art [Tintin e a alfa-arte], mas o testamento
do quadrinhista belga deixava claro que nenhuma história de Tintin poderia ser escrita
após seu desaparecimento. Além de todos os trabalhos que desenvolveu em sua carreira
solo e em parceria com Hergé, De Moor também finalizou a última aventura de Blake et
Mortimer, Les Trois Formules du Professeur Sato 2 [As três fórmulas do professor Sato
2](1990), obra inacabada de Jacobs.
A partir do que foi discutido até o momento, podemos afirmar que Hergé, Jacobs
e De Moor são os maiores responsáveis pelo estabelecimento da estética da linha clara
como recurso imagético para a narrativa dos quadrinhos de vertente franco-belga. A linha
clara teve seu apogeu dos anos 1930 até 1950. Segundo Dan Mazur e Alexander Danner
(2014, p. 145), “[a estética da linha clara] foi rejeitada pela primeira onda de artistas de
bande dessinée adulta na década de 1960.” Nesse período, os comix surgiram com novas
temáticas e novo estilo gráfico e artistas como Robert Crumb (1943), Spain Rodriguez
(1940-2012) e Art Spiegelman influenciaram, principalmente, os quadrinhos holandeses.
Além disso, revistas como Métal Hurlant, L’Écho de Savanes, (A Suivre), por exemplo,
também chamaram a atenção dos leitores adultos com propostas ousadas relacionadas
tanto à estética imagética quanto aos temas abordados nas histórias. A linha clara não era,
nesse momento, um estilo gráfico usado tão largamente pelos quadrinhistas europeus
como antes.
Contudo, a partir da década de 1970, surgiu um movimento na Holanda que
marcou o ressurgimento desse ideal gráfico. No final da mesma década, o reaparecimento
dessa estética imagética chegou à França. Sobre essa nova guinada da linha clara, Mazur
e Danner afirmam que
Esse renascimento teve seu ponto de partida na percepção de que a ligne
Claire [linha clara] tinha uma base ideológica fundamental. Precisa,
75
Essa visão de mundo metódica e otimista era diversa do que propunham os comix,
mas mesmo com propostas diferentes, o underground influenciou a história em
quadrinhos holandesa. Nesse sentido, portanto, o reaparecimento da linha clara foi um
oásis para os órfãos desse estilo que, talvez, não se tenham habituado às novidades
estéticas e temáticas propostas nesse período.
O ressurgimento do estilo gráfico usado por Hergé ficou marcado na história das
histórias em quadrinhos, mas, por mais incrível que possa parecer, ainda não tinha sido
oficialmente nomeado. Reconhecido pelo grande público e amplamente utilizado nos
quadrinhos franco-belgas, esse recurso artístico acabou sendo “batizado” como linha
clara pelo desenhista holandês Joost Swarte (1947). De acordo com Groensteen
Em 1977, Swarte, Har Brok e Ernst Pommerel, esses dois últimos historiadores e
colecionadores de histórias em quadrinhos, organizaram a exposição Kuifje in Rotterdam
[Tintin em Roterdã]. Ao todo, Swarte criou quatro catálogos para essa exposição (figura
32). O primeiro deles denominado Oostindisch blind [Leste da Índia cego] do qual não
tenho maiores informações sobre seu conteúdo; o segundo Kuifje, Zijn Vrienden, Zijn
Vijanden [Tintin: seus amigos, seus inimigos] versa sobre os principais quadrinhistas que
fundaram as bases estéticas da linha clara (E. P. Jacobs, Bob de Moor, Jacques Martin,
Willy Vandersteen entre outros.); o terceiro e quarto, respectivamente De Klare Lijn [A
linha clara] e Kuifje is Geen Enigst Kind [Tintin não é a única criança] tratam da linha
clara, preconizando esse ideal estético imortalizado por Hergé e seu personagem mais
famoso, Tintin.
74
« De tous les styles que l’on peut rencontrer dans la bande dessinée, il en est un seul qui a reçu
un nom adopté par le grand public, au point d’être passé dans l’usage courant. [...] Traduite du
néerlandais (De klare lijn), l’expression a été inventée par le dessinateur Joost Swarte à la faveur
d’un catalogue d’exposition. »
76
75
« L’idéal de lisibilité et de transparence, que se traduisait notamment par le refus de l’ombre,
la linéarisation du trait de contour et le réalisme schématique des décors. »
76
« [...] réflexions sur la ligne, l’apparence, le simulacre. »
77
Theo Van den Boogard (1948) começou sua carreira desenhando diversos estilos
diferentes. Sob a influência do belga Willy Vandersteen (1913-1990), do francês André
Franquin (1924-1997), de Hergé e também de alguns desenhistas americanos, ele
construiu um estilo próprio, calcado na liberdade de criação. De acordo com Groensteen,
Van den Boogard “definiu-se primeiramente como um imitador de gênio, capaz de
dominar qualquer estilo à perfeição” (1985, p. 174).77 De fato, no começo dos anos 1970,
Van den Boogard desenvolveu a escola underground dos quadrinhos holandeses com a
publicação de séries eróticas como Witje en Gert e Ans en Hans. Além disso, o artista
holandês também fez desenhos humorísticos e publicitários, sem mencionar que fez
contribuições com ilustrações para revistas homossexuais holandesas e americanas.
Além de seu envolvimento com todos esses projetos, o encontro de Van den
Boogard com o roteirista Win T. Schippers resultou numa parceria que levou à criação
do personagem Sjef Van Oekel (em holandês, Leon, o Terrível), em 1976. Um
personagem de TV de mesmo nome foi a inspiração dessa série que obteve
reconhecimento internacional, e a figura do ator holandês Dolf Brouwers (1912-1997) foi
o modelo para a caracterização de Van Oekel. Nessa época, Van den Boogard já adotara
a clareza e a legibilidade da linha clara como recurso expressivo e procedimento de
construção. A imagem a seguir (Figura 34), apresenta uma tira de Léon-La-Terreur
[Leon, o terrível], publicada pela Éditions Albin Michel em 1983. Intitulada Léon no
acostamento, em tradução livre, a tira apresenta o personagem Léon caminhando
inadvertidamente por uma autoestrada quando a polícia o aborda e pergunta o porquê de
ele estar fazendo um passeio pelo acostamento. Léon responde, surpreso, que havia
esquecido seu carro. A linha clara é evidente nos traços de Van den Boogard,
principalmente pela presença de cores chapadas e também devido ao traçado linear dos
personagens e dos cenários. Aliás, a obra de Van den Boogard é repleta de cenários
realistas sem contudo serem exageradamente detalhistas. Outro aspecto que merece
destaque na estética desse autor tem a ver com a ausência de sombra em seus desenhos,
outra característica inerente a essa linguagem imagética das histórias em quadrinhos.
O personagem de Van den Boogard é, sobretudo, um anticonformista, uma vez
que Léon não aceita os excessos da sociedade moderna. Seu humor é ácido e penetra em
todas as camadas da sociedade, corroendo-as com suas tiradas nonsense. De acordo com
77
« [Théo Van den Boogard] se definit d’abord comme un pasticheur de génie, capable d’épouser
n’importe quel style à la perfection. »
79
Groensteen, “as pranchas de Léon [...] destacam-se antes de tudo pela gesticulação
burlesca e propriamente insana do protagonista, vestido com um imutável terno preto e
uma gravata borboleta” (1985, p. 175).78
78
« Les planches de Van Oekel [...] se signalent avant tout par la gesticulation burlesque et
proprement insensée du protagoniste, vêtu d’un inaltérable complet-veston noit et d’un noeud
papillon. »
79
« […] le fils moderne d’Hergé […] »
80
(1976), adaptou as aventuras do detetive Nestor Burma (1982), de Léo Malet, para o
formato de novela gráfica e ainda ilustrou o romance do escritor francês Loius-Ferdinand
Céline, Voyage au Bout de la Nuit [Viagem ao fim da noite], publicado em 2006.
A história familiar de Tardi foi diretamente marcada pela primeira grande guerra,
uma vez que seu avô vivera os horrores do fronte no começo do século XX. Desse modo,
e obcecado pela dimensão aterrorizante e traumatizante do conflito, Tardi fez da Primeira
Guerra Mundial uma fonte de inspiração e tema recorrente de sua obra quadrinhística. De
fato, títulos como C’Était la Guerre des Tranchées (1993) [Era uma guerra de
trincheiras], Putain de Guerre: 1914-1915-1916 (2008) [Guerra de merda: 1914-1915-
1916 ] e Putain de Guerre: 1917-1918-1919 (2009) [Guerra de merda: 1917-1918-1919],
com roteiro de Jean-Pierre Verney (1946), especialista na história do primeiro conflito
mundial, exemplificam muito claramente as preocupações e interesses estéticos desse
quadrinhista que busca na dinâmica da vida no fronte o material necessário para a
elaboração de sua obra artística.
Além de ter dedicado um número razoável de obras às temáticas relacionadas à
Primeira Guerra, Tardi também usou a Segunda Guerra Mundial como tema para outras
de suas obras. Esse conflito, por exemplo, forma o pano de fundo para 120, Rue de la
Gare (1988) [Rua da Estação, número 120]. Com o personagem Nestor Burma e também
com o livro biográfico em dois volumes Moi, René Tardi, Prisonnier au Stalag II B
(2012) e Moi, René Tardi, prisonnier au Stalag II B - Mon retour en France (2014)
[respectivamente, Eu, René Tardi, prisioneiro em Stalag II B e Eu, René Tardi, prisioneiro
em Stalag II B – Meu retorno à França], que conta a história de seu pai, René Tardi, ex-
prisioneiro de guerra, o quadrinhista também revisita o tema e o conjunto de preocupações
estético-humanísticas em relação à Segunda Guerra.
Foi com Adèle Blanc-Sec, no entanto, que Tardi obteve grande sucesso. Os dois
primeiros episódios de Adèle foram publicados na forma de álbuns originalmente pela
editora Casterman em 1976. Posteriormente, no início da década de 1980, esses álbuns
foram republicados na revista (A Suivre). Além de ter mais de dez álbuns, a série conta
com uma adaptação para o cinema feita pelo cineasta francês Luc Besson em 2010. A
história de Adèle se passa no início do século XX, mais precisamente entre 1911 e 1922.
Misturando o fantástico e o suspense, a série utiliza “efeitos dramáticos absolutamente
ligados ao tratamento dos cenários” (FRESNAULT-DERUELLE, 2010, p. 210).80
80
« […] effets dramatiques, immanquablement liés au traitement des décors. »
81
Apesar da simplicidade imposta pela linha clara, Tardi conseguiu incorporar esse
ideal estético à sua maneira de desenhar de um jeito bastante próprio. Nesse sentido,
Adèle é um exemplo do preciosismo do trato com o desenho, uma vez que, como afirma
Fresnault-Deruelle no parágrafo acima, o quadrinhista usa efeitos dramáticos que beiram
o realismo, detalhando separadamente cada perspectiva espacial relacionada aos planos
de visão. Suas cores oscilam entre o claro e o escuro, principalmente para dar
verossimilhança ao clima de suspense e fantasia quando, por exemplo, a personagem atrai
aborrecimentos para sua vida. Sozinha em Paris, Adèle sofre os mais diversos tipos de
atentados, chegando mesmo a ser perseguida, algumas vezes, por monstros pré-históricos
e por seitas da Antiguidade. A protagonista da série já foi até mesmo assassinada, mas
acabou voltando à vida graças à experimentos científicos. De fato, em muitos aspectos,
esse viés fantástico de Adèle parece atrair para si toda sorte de personagens que
representam a insignificância humana.
Na prancha apresentada na página 82 (Figura 35), extraída do álbum Le
Labyrinthe Infernal (2007) [O labirinto infernal], nono volume das aventuras da
personagem, Adèle caminha tranquilamente por uma rua da periferia de Paris,
completamente alheia ao fato de que está sendo perseguida por dois motoqueiros
armados. O que interessa nesse exemplo é a originalidade de Tardi, manifesta na maneira
como ele representa a ação na prancha. A prancha toda é composta por um total de seis
vinhetas, sendo que a última é permeada de duas vinhetas redondas, que retratam a visão
dos motoqueiros na perseguição à Adèle, que decide, por sua vez, tomar algo em um café.
Essas vinhetas redondas introduzem, no quadrinho, um jogo complexo de perspectiva, e
que, ao mesmo tempo, podem representar mais diretamente a visão dos homens que
perseguem a protagonista. Essas vinhetas também podem representar os olhos do leitor,
criando um efeito de aproximação no qual o ponto de vista do receptor da história se torna
mais próximo da cena.
82
Ainda segundo Mazur e Danner, Ted adotava o suspense como temática, mas de
forma peculiar (2014). O quadrinhista escreveu Berceuse Électrique (1982) [Cadeira de
balanço elétrica] e Cité Lumière (1986) [Cidade luz], dois trabalhos que estrelam o
detetive Ray Banana e cuja ação se passa em um futuro hipotético na cidade de Los
Angeles, que, no entanto, mais se parecia com o passado da cidade norte-americana na
década de 1950. Ainda de acordo com Mazur e Danner, “Benoit habita a fantasia brilhante
futuro-retrô para a qual a ligne claire é tão perfeitamente adequada, mas na versão de
Benoit, é um paraíso insano e sórdido, cheio de vigaristas, loucos, adeptos de seitas e
fraudadores” (2014, p. 148). Nesse sentido, seria possível até mesmo falar em uma tensão
entre o conteúdo temático insano de suas histórias e a forma de expressão organizada e
sem excessos da linha clara.
Desenhista meticuloso, Ted não se dedica somente às histórias em quadrinhos,
mas também à ilustração, trabalhando para o mercado publicitário. Além disso, ele
também escreveu L’Affaire Francis Blake (1996) [O caso Francis Blake] e L’Étrange
Rendez-Vous (2001) [O encontro bizarro], duas aventuras de Blake et Mortimer após o
falecimento de Jacobs. Na próxima página (Figura 36), podem-se observar as sete
vinhetas da página 18 de Cité Lumière. A história de Ray Banana nesse volume segue os
passos de um pintor estoniano que faz um retrato misterioso do detetive. Banana procura-
o no meio artístico no qual vive, em Paris, e acaba se envolvendo numa história de
espionagem e tráfico de drogas. Nas vinhetas selecionadas, Ray parte em busca desse
pintor misterioso e acaba por acertar uma obra de arte em seu companheiro Lamarck.
Pode-se notar nas vinhetas 3 a 6, por exemplo, que há “uma lógica decomposição de ações
quadro a quadro” (MAZUR; DANNER, 2014, p. 148), detalhando o processo de queda
do personagem até o sofá. Também podemos notar nessa imagem que as vinhetas
aumentam de tamanho na medida em que o personagem cai, facilitando, assim, a
percepção visual do leitor do local onde esse personagem se estatelará.
84
Figura 36 – Detalhe de Cité Lumière. Fonte: BENOIT, T. Cité Lumière. Bruxelles : Casterman,
1986. p. 18
Não somente no século XX que a linha clara fez história. Ela também tem seus
adeptos no século XXI. O principal deles é o artista americano Franklin Christenson Ware
(1967), mais conhecido como Chris Ware, e que adota um ideal gráfico clássico da clareza
de exposição na composição de suas histórias. Ware foi o criador de Acme Novelty
Library, série com periodicidade irregular publicada desde 1993. Foi nessa publicação
criada por Ware que apareceu pela primeira vez o personagem Jimmy Corrigan. A história
do personagem tímido e patético, fechado em si mesmo, lembra a figura de um anti-herói
que foi publicada em álbum em 2000. Essa narrativa gráfica foi um marco na história dos
quadrinhos, pois foi nesse álbum que o quadrinhista americano redefiniu a quantidade de
vinhetas que uma prancha poderia conter, abrangendo, assim, desde os menores
movimentos, como o detalhamento de um virar de pescoço até um movimento maior,
85
como, por exemplo, as tomadas em plano geral da cena. Essa profusão de vinhetas
apresentada pelos trabalhos de Ware reorientou o olhar do leitor para uma nova
perspectiva gráfica, a saber, a da leitura da prancha em “zigue-zague” e trouxe, assim,
uma orientação de leitura imprevisível em cada página. A partir disso, diria que o trabalho
de Ware é carregado do que seria uma “estética do detalhe”, já que as ações são divididas
em cada prancha do mesmo modo como se olha o quadro a quadro na projeção de um
filme em slow-motion. A propósito da concepção gráfica e textual do trabalho do
desenhista americano, Groensteen afirma que
81
« Elle se caractérise tout d’abord pour un emploi parcimonieux du texte. Sauf dans de rares
séquences, le verbal ne compose pas, comme dans la bande dessinée classique, une ‘bande son’
plus ou moins continue, accompagnant et redoublant l’image. Il se limite ici à de brefs énoncés,
qui viennent rompre une narration le plus souvent silencieuse, un discours purement visuel. En
outre, une proportion importante de ces énoncés consistant en propos délibérément banals, en
bribes de conversations languissantes, en répliques convenues. La gêne, l’incompréhension, le
bégaiment, le non-dit, voilà ce qui fait le fond du dialogue chez Chris Ware. »
86
Figura 37 – Detalhe de Jimmy Corrigan: The Smartest Kid on Earth. Disponível em:
< https://enanenescollectione.files.wordpress.com/2010/04/jimmyc1.jpg>. Acesso em
03 mai. 2015.
Além de Jimmy Corrigan, obra pela qual Ware recebeu inúmeros prêmios, ele
também criou Quimby The Mouse [Quimby, o rato], Potato Guy [O garoto batata] e
Sparky [Faísca], todas publicadas no Acme Novelty Library em 1994. Além de Building
Stories [Construindo histórias] (2012), uma revolucionária novela gráfica que contem 260
páginas separadas em 14 livretos e folhetos de tamanho diferentes. Pode-se dizer que essa
narrativa gráfica é praticamente uma história em quadrinhos em formato de quebra-
cabeças, já que não há uma ordem de leitura sugerida pelo autor ou imposta pelo texto.
Na França do século XXI, a linha clara também continua a ser utilizada como
procedimento estético. Stéphane Heuet tem chamado a atenção do público e da crítica
pelo uso dessa estética imagética na sua adaptação para o suporte de histórias em
quadrinhos do romance de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido (2006-2013). Em
linhas gerais, podemos dizer que o estilo de Heuet é tributário, principalmente, dos
trabalhos de Hergé e de Jacobs, quadrinhistas que já foram discutidos anterioremente
neste capítulo. Quanto ao estilo gráfico, Heuet é bastante influenciado pelo traço de
87
Hergé, embora o próprio autor dos quadrinhos proustianos reconheça que optar por
personagens à la Tintin que, no fim das contas, poderia impor planos de fundo
simplificados ou mesmo incompatíveis com as descrições proustianas relacionadas a
cenários, lugares e paisagens. Quanto à parte verbal, Heuet é marcadamente influenciado
pelo trabalho de Jacobs em Blake et Mortimer, trabalho que lhe fez perceber a importância
dos recordatórios, que poderiam ser inseridos dentro das vinhetas numa narrativa
gráfica.82 De fato, os recordatórios usados por Heuet nas suas adaptações são tão extensos
quanto os de Jacobs, o que, como será mostrado mais adiante, acabam se tornando um
elemento crucial para que a voz do narrador do romance de Proust possa ser inserida
dentro da narrativa gráfica em questão.
Publicitário de profissão, e sem nenhuma experiência prévia no campo das
adaptações de clássicos da literatura para quadrinhos, e muito menos experiência como
quadrinista, Heuet aventurou-se em transferir o romance proustiano para o formato de
narrativa gráfica, o que lhe rendeu críticas iniciais nem um pouco favoráveis. Entretanto,
a veemência excessiva das primeiras resenhas acabou se convertendo em publicidade
gratuita para o seu trabalho, visto que outros resenhistas acabaram lendo os albums de
Heuet e publicando, consequentemente, comentários mais receptivos à arte desse
quadrinhista. Desse seu projeto de adaptação do romance de Proust, resultaram até o
momento seis narrativas gráficas, que foram publicadas no Brasil entre 2003 e 2014.83
Esses volumes adaptam a integralidade de No caminho de Swann (2006) e dois capítulos
de À sombra das raparigas em flor (2006), respectivamente primeiro e segundo volumes
da Recherche. As narrativas gráficas receberam os seguintes nomes em ordem de
publicação no Brasil: No caminho de Swann: Combray (2004), À sombra das raparigas
em flor – Parte 1 (2004), À sombra das raparigas em flor – Parte 2 (2004), Um amor de
Swann – parte 1 (2007), Um amor de Swann – parte 2 (2011) e Nomes de lugares (2014).
Em 2007, Heuet foi agraciado com dois prêmios: Madeleine d’Or, em 2001, concedido
pelo Círculo Literário Proustiano de Cabourg-Balbec, por sua contribuição à divulgação
82
Esta e outras informações sobre os procedimentos adaptativos da Recherche em HQ podem ser
encontradas em La Recherche en BD [A Recherche em HQ], conferência proferida por Heuet na
Associação dos Amigos de Marcel Proust na Holanda, que está nos anexos deste trabalho.
83
Na França, as adaptações foram publicadas entre 1998 e 2013 com os seguintes títulos:
Combray (1998), À l'Ombre des Jeunes Filles en Fleurs – tome 1 (2000), À l'Ombre des Jeunes
Filles en Fleurs – tome 2 (2002), Un Amour de Swann – tome 1 (2006), Un Amour de Swann –
tome 2 (2008) e Noms de Pays : Le Nom (2013). Em 2013, na França, um volume único com as
adaptações de Du Côté de Chez Swann foi lançado em comemoração do centenário da publicação
do primeiro volume da Recherche. Todas foram publicadas pela editora Delcourt.
88
do romance proustino, e o Prix des Écrivains du Sud por Um Amor de Swann – volume
1. Segundo artigo publicado pelo jornal francês Le Figaro, em 23 de abril de 2007,
segundo prêmio é concedido “[à] publicação de uma obra em língua francesa notável por
sua valorização da literatura, não importando seu gênero e sua forma.” 84 O fato de Heuet
ter recebido um prêmio de tamanha importância para o mercado editorial francês não só
confirma a ideia de que os quadrinhos já são um objeto cultural legitimado na França,
mas também de que o mercado francês tem se mostrado cada vez mais receptivo às
adaptações de obras literárias ditas canônicas para o formato de narrativas gráficas. Em
2010, no hiato entre lançamentos das adaptações da Recherche, Heuet escreveu La
Bibliothèque Maritime Idéale [A biblioteca marítima ideal], livro no qual selecionou 18
excertos com temas marítimos de obras de escritores famosos como Victor Hugo, Ernest
Hemingway e Robert Louis Stenvenson e os ilustrou utilizando um estilo gráfico um
pouco diferente daquele usado em suas adaptações do romance proustiano. Em 2014,
Heuet ilustrou o livro infantil Le Fantôme du Petit Marcel : À la Recherche du Titre
Perdu [O fantasma do pequeno Marcel: em busca do título perdido], de Elyane Dezon-
Jones, o qual conta a história de duas crianças que viajam no tempo e vão a Belle Époque
para ajudar o menino Marcel a encontrar um título para o livro que está escrevendo. Na
própria capa do livro há uma frase introduzindo seu conteúdo: “E se nós contássemos
Proust às crianças...” 85
Feito esse histórico da estética da linha clara a partir de suas principais
características, suas origens, variações e também dos principais representantes, desde os
primórdios dos quadrinhos até a contemporaneidade, é possível perceber que esse é um
estilo cuja essência é, apesar das diferenças encontradas no uso que cada desenhista faz
desse recurso, a presença de contornos bem delineados e de cores chapadas. Nesse
sentido, a adoção da linha clara por esses autores examinados consiste num procedimento
de criação contendo uma estratégia narrativa na qual a narração da história é privilegiada
em detrimento do detalhamento excessivo do cenário. A premissa básica da linha clara é,
nesse sentido, a da economia de meios para privilegiar o traço. Com isso, ela dá maior
ênfase ou foco à ação no intuito de compô-la sem exageros gráficos. No próximo
84
« […] la publication d'une œuvre de langue française remarquable pour sa mise en valeur de la
littérature, quels que soient le genre et la forme de l’œuvre. » Stéphane Heuet, prix des écrivains
du Sud. Disponível em: <http://recherche.lefigaro.fr/recherche/access/lefigaro_print-
afficher.php?archive=BszTm8dCk78Jk8uwiNq9TxAyuU4Vf1TJ8Asa246%2BgwdzEqpaVeIh3
4i1mGQ1gdYU>. Acesso em 26 dez. 2013.
85
« Et si nous racontions Proust aux enfants… »
89
[...] a Recherche du temps perdu é em todos sentida como não sendo “já
inteiramente um romance”, como a obra que, ao seu nível, fecha a história
do gênero (dos gêneros) e inaugura, com alguns outros, o espaço sem
limites e como que indeterminado da literatura moderna (1979, p. 257-
258).
ao material linguístico que tem à sua disposição. Essas questões devem sempre ser
levadas em consideração tanto na análise do texto proustiano propriamente dito quanto
na adaptação desse romance para o formato de narrativas gráficas, o que nos levará a
retomar essa reflexão mais adiante.
O escritor francês escreveu a Recherche entre 1908 e 1922, ano de sua morte. No
início da escrita do romance, Proust já havia projetado as partes que o comporiam,
mostrando, claramente, que o seu processo de escrita era altamente cerebral. Prova desse
esmero composicional é a grande quantidade de cadernos de esboço nos quais ele anotava
a história e fazia inúmeras correções e acréscimos.86 Inicialmente Proust chamaria seu
romance de As intermitências do coração, e não Em busca do tempo perdido. O romance
seria composto, originalmente, de duas partes simétricas: O tempo perdido e O tempo
recuperado. Com o advento da Primeira Guerra Mundial e um romance publicado em
1913, No caminho de Swann, Proust viu-se obrigado a cessar a publicação do restante de
seus volumes, por causa das austeridades impostas pelo conflito. Proust teve seu primeiro
trabalho recusado por editoras, principalmente a Gallimard, na qual gostaria de ver seu
livro de estreia publicado. Por isso, o escritor decidiu, ele mesmo, custear a edição e a
publicação de No caminho de Swann, pagando um subsídio para que a pequena Grasset
lançasse o livro.
As circunstâncias adversas impostas pela Primeira Guerra acabaram levando
Proust a decidir por aumentar consideravelmente o tamanho do seu projeto. De fato, os
quatro anos do conflito fizeram o escritor francês repensar seu desejo inicial de um
romance bipartido. Ele o expandiu e, em 1919, finda a guerra, Proust publicou À sombra
das raparigas em flor, livro pelo qual recebeu o Goncourt, seu único prêmio literário.
Por sua vez, o livro O caminho de Guermantes foi publicado em dois volumes entre 1920
e 1921. Sodoma e Gomorra também teve sua publicação, em dois volumes, entre 1921-
1922. Proust faleceu em 18 de novembro de 1922, deixando três volumes para publicação
póstuma: A prisioneira (1923), A fugitiva (1927) e O tempo redescoberto (1927). A
publicação dessas edições ficou a cargo do irmão do escritor, Robert Proust (1873-1935)
e do diretor da editora La Nouvelle Revue Française, Jacques Rivières (1886-1925).
Como afirma o estudioso da obra proustiana Marcel Muller, enquanto “no
romance tradicional o leitor era convidado a seguir uma intriga, a interessar-se por uma
86
Esses cadernos, assim como a Recherche, já foram amplamente estudos, tanto na França quanto
no exterior. No Brasil, por exemplo, podemos mencionar os estudos realizados pelo professor
Philippe Willemart (USP) e pela professora Carla Cavalcanti e Silva (UNESP/Assis).
92
87
« Dans le roman traditionnel, le lecteur restait convié à suivre une intrigue, à s'intéresser à une
action dont les personnages étaient les agents responsables ou les victimes. »
88
« Le narrateur est essentiellement sans état civil établi et il est pourvu d'une personnalité peu
marquée par rapport à celle de Proust. Il a le manque de volonté, la sensibilité maladive, l'ambition
artistique de son créateur. »
89
« […] n'a pas été supporté par un journal intime. »
93
escrita íntima, uma autobiografia, ou melhor, um romance pessoal” (1971, p. 17).90 Nesse
sentido, a análise de Tadié é diametralmente oposta à de Benjamin. Ou seja, embora o
romance do escritor francês parecesse apresentar fatos da vida de seu autor, não se pode
afirmar que o livro seria autobiográfico. Ao dizer que a Recherche não é um diário íntimo
de seu autor, o estudioso francês do romance proustiano reafirma a cisão completa entre
a pessoa empírica do autor e o universo ficcional criado em sua obra. Além disso,
Em outros termos, podemos afirmar a partir desse comentário que, longe de se tratar de
uma autobiografia de Proust, a Recherche revisita a realidade que inscreve em suas
páginas a partir do modo como o seu protagonista se lembrava de tê-la vivido. De fato,
como afirma a pesquisadora espanhola Marta Saiz Sánchez,
Quando o narrador da Recherche diz eu, não é o escritor Marcel Proust
quem diz eu: o narrador é um ser de ficção completamente externo ao
90
« […] une fois [la Recherche publiée], et jusqu’à nos jours, des lecteurs, des critiques trompés
par la présence d’un récit à la première personne y ont vu un écrit intime, une autobiographie, au
mieux, un roman personnel. »
91
« Si son œuvre lui apparaît échapper au genre intime, à la confession, c'est qu'il ne s'identifie
pas totalement au héros principal: l'existence de celui-ci restreint et déborde la sienne propre; c'est
aussi que la composition même du livre exclut l'autobiographie. »
94
mundo real. No romance o narrador conta sua própria história, ele mesmo
se coloca como personagem principal (1973, p. 443). 92
Desse modo, esse romance faz dessa lembrança e dos caprichos do tempo o elemento
central do seu projeto artístico. Além disso, a separação entre o autor empírico e obra
ficcional é um forte traço de modernidade que o autor francês utiliza no seu romance.
Essa modernidade de Proust foi reconhecida e comentada por estudiosos de seu
romance. Erich Auerbach afirma que o romance proustiano “[...] não é apenas moderno,
mas tornou-se textualmente imutável, inconfundível” (2007, p. 334). A teia narrativa
criada por Proust foi algo inédito para seu tempo, o começo do século XX. Nunca antes
alguém havia se atrevido a criar uma narrativa tão complexa do ponto de vista temático,
mas que, ao mesmo tempo, não apresentasse preciosismos linguísticos indecifráveis.
Além disso, pode-se mesmo afirmar que a Recherche é paradigmática, pois Proust tratou
em sua romance de assuntos não abordados anteriormente na literatura francesa, como a
questão da homossexualidade e a forte ênfase na memória afetiva como elemento-chave
da narrativa.
Para o crítico Gaëtan Picon, a Recherche também é moderna porque ela não
esconde suas intenções. Para ele, o romance de Proust tem a noção do encantamento que
sua narrativa provoca, sem, contudo, ter a pretensão de ser uma obra hermética. Para
Picon, “a obra de Proust não é daquelas que desejam dissimular seus segredos. Fiel a esta
‘autocontemplação’ na qual vê o signo da modernidade artística, torna-se consciente,
caminhando na sua própria abordagem” (1963, p. 123).93 Dito de outro modo, é
justamente por ser consciente da sua própria natureza ficcional que o romance de Proust
suscita discussões acerca de sua modernidade. Isso ocorre porque a narrativa proustiana
constitui um novo paradigma de criação literária, calcado na rememoração involuntária
da vida do seu narrador, que é, ao mesmo tempo, o protagonista da história. Segundo
Genette, “a Recherche é fundamentalmente uma narrativa autodiegética, onde o herói-
narrador não cede por assim dizer nunca a quem quer que seja [...] o privilégio da função
narrativa” (1979, p. 246). Isso significa que a narrativa autodiegética sobre a qual disserta
o crítico e teórico literário francês é aquela na qual o narrador homodiegético, ou seja,
92
« Quand le narrateur de la Recherche dit je, ce n’est pas l’écrivain Marcel Proust qui dit je : le
narrateur est un être de fiction tout à fait externe au monde réel. Dans le roman le narrateur raconte
sa propre histoire, il se pose lui-même comme personnage principal. »
93
« L’œuvre de Proust n’est pas de celles qui souhaitent dissimuler leur secret. Fidèle à cette
« auto-contemplation » où elle voit le signe de la modernité artistique, elle prend conscience en
marchand de sa propre démarche. »
95
romance e seu tema central constitui um passo importante na análise desse livro. Além
disso, esse caráter retrospectivo da narração em primeira pessoa no romance de Proust, e
que sobrepõe narrador e protagonista, permite afirmar que a figura desse narrador
específico constituiu uma importante chave de leitura para a o romance em questão. Ou
seja, a tensão entre tempo presente e tempo rememorado somente se instaura na figura do
narrador-protagonista, sem a qual tal tensão não seria possível. A memória involuntária,
no texto de Proust, apenas se manifesta a partir das impressões muito pessoais de um
narrador que é, ao mesmo tempo, sujeito e objeto do relato, ou melhor, o tempo perdido
que é buscado ao longo do romance é o tempo da memória afetiva que, como tal, só pode
dizer respeito àquela memória que foi vivida e esquecida, sendo relegada ao espaço
perdido que se situa fora do alcance da consciência. Desse modo, o narrador de Proust
não poderia sair em busca de um tempo perdido que não fosse aquele das suas próprias
vivências e experiências individuais, isto é, não há memória involuntária ou afetiva
narrada em terceira pessoa, simplesmente porque o romancista teria de fazer um esforço
descomunal para criar uma contextualização que, na prática, não surtiria o efeito
desejado, pois seria demasiadamente artificial e, portanto, inverossímil.
Parece claro, portanto, que há uma relação direta entre ponto de vista narrativo e
tempo subjetivo no romance proustiano. Novamente, é Genette quem esclarece bem essa
relação, ao dizer que as prolepses são frequentes na Recherche e que elas “são
testemunhos sobre a intensidade da recordação atual, que vêm, de alguma maneira,
autenticar a narrativa do passado.” (1979, p. 68). Novamente, a antevisão e a antecipação
que a prolepse enquanto recurso narrativo implica são reforçadas quando aquele que narra
é também aquele sobre o qual se conta a história, o que, mais uma vez, reforça a
importância da figura do narrador-protagonista para o entendimento do romance de
Proust. Desse modo,
94
« Le passage ex abrupto de l'imparfait au présent et de je à on […] marque la volonté d'enlever
au je le monopole de son souvenir. Dans l'espace de la narration faite au nom de la première
personne, une zone est créée qui jouit d'un statut ambivalent de souveraineté et de temporalité.
Cette enclave est le domaine de on, c'est-à-dire à la fois du je et du non-je. Elle reste baignée dans
le temps concret où est situé le Héros, tout en participant d'une temporalité abstraite, pareille à
l'espace abstrait des triangles exemplaires d'un manuel de géométrie. »
95
« Sans verser dans de faciles jeux de mots, on peut dire en effet que l'imparfait est le temps de
l'action imparfaite, de la répétition au sens ordinaire […]; le passé défini présente l'action comme
douée de contours temporels, achevée, mise au point [...]. »
99
Por conseguinte, dada essa dimensão de imagem do pensamento construída pela narrativa
proustiana, pode-se dizer que, nesse romance, a memória involuntária "intervêm como
meio de aprendizado que a ultrapassa tanto por seus objetivos quanto por seus princípios.
A Recherche é voltada para o futuro e não para o passado" (DELEUZE, 1987, p. 4). De
fato, Deleuze tem razão ao explicar que a Recherche proustiana, ao contrário de uma
narrativa calcada na memória pode sugerir numa primeira leitura, “não é voltada para o
passado e as descobertas da memória, mas para o futuro e os progressos do aprendizado”
(1987, p. 25). Ainda de acordo com ele,
descrições detalhadas não só de pessoas ou lugares, mas também dos afetos que são
recuperados quando os lampejos de memória voluntária se manifestam.
Em La Recherche en BD, que me foi gentilmente enviada por e-mail pelo
quadrinhista, 96 Heuet afirma
Ao ter essa percepção de que o romance de Proust era fortemente visual, Heuet decidiu
transpor a atmosfera criada discursivamente pela narrativa proustiana para o formato de
narrativas gráficas. Ele começou, então, a trabalhar na adaptação do primeiro capítulo de
No caminho de Swann, intitulado “Combray” e, em seguida, procurou grandes editoras
de quadrinhos para publicar sua adaptação. Por ser a transposição de um romance
canônico para narrativa gráfica, Heuet pensava que seria fácil ter seu trabalho publicado.
Contudo, aconteceu o inverso do esperado, de modo que portas e mais portas se fecharam
a ele. Curiosamente, a mesma dificuldade encotrada por Proust para publicar No caminho
de Swann também foi sentida pelo adaptador do referido livro para quadrinhos. A única
editora a aceitar publicar a Recherche adaptada por Heuet foi a pequena Delcourt; esta,
finalmente, acabou publicando o primeiro volume da adaptação quadrinhística do
romance de Proust no segundo semestre de 1998.
De fato, o histórico das dificuldades de Heuet em publicar o seu primeiro álbum
com a Recherche adaptada serve como um indicativo forte da maneira como as
adaptações de textos literários canônicos para outros suportes como o da narrativa gráfica
tendem a sofrer uma recepção por vezes hostil e mesmo superficial, do ponto de vista da
leitura crítica. Além disso, a adaptação para outro suporte de textos literários criticamente
consagrados, como é o caso do romance de Proust, costuma suscitar todo tipo de reação
96
Nos anexos estão inseridos os e-mails trocados entre a autora deste trabalho e o quadrinhista-
adaptador da Recherche.
97
« J’ai découvert l’humour, le charme, la finesse et la justesse d’analyse de Proust ; j’ai surtout
découvert que ce que Proust écrivait, c’est ce que nous ressentons tous sans jamais savoir
l’exprimer ; et j’ai découvert avec délice combien ce livre était “visuel”, à quel point la peinture,
l’art en général, y étaient présents (sic) du reste, l’évocation visuelle de Proust est telle que j’ai
toujours l’impression d’avoir affaire à un peintre qui décrit ses tableaux. »
102
Proust 100 ao afirmar que há pessoas obstinadas na vida e que Heuet parece ser uma delas,
pois o quadrinhista francês insiste em continuar adaptando a Recherche para o formato
de história em quadrinhos. Saint-Hilaire afirma, ainda, que “[...] o olho de Stéphane
Heuet, ou mais exatamente sua mão desenhista, é, digamos, inábil.” 101 Assim como havia
feito na resenha anterior, esse crítico não faz questão nenhuma de abrandar o seu discurso
quando se trata de comentar a adaptação do romance proustiano para narrativas gráficas
e, em vários momentos, passa mesmo a impressão de estar fazendo uma crítica arbitrária.
Ironicamente, no entanto, a resenha de Saint-Hilaire, publicada no jornal Le
Figaro e que deveria ter sido meramente uma crítica negativa e biliosa à Recherche em
quadrinhos, acabou se convertendo em publicidade gratuita para o trabalho de Heuet. De
fato, as resenhas de Saint-Hilaire acabaram dando ao quadrinhista em questão os meios e
condições de que ele necessitava para divulgar sua obra e vender sua adaptação. Em
outras palavras, o ataque colérico do conservador Saint-Hilaire se converteu, talvez
mesmo a contragosto do próprio resenhista, em uma forma eficiente de publicidade
negativa que só serviu mesmo para alavancar as vendas de uma obra que, até bem pouco
tempo, antes daquele período, tinha encontrado sérias dificuldades de publicação e que
estava praticamente encalhada nas prateleiras das livrarias.
Além das resenhas de Saint-Hilaire, textos publicados por outros veículos de
comunicação, como o jornal Libération, dividiram opiniões sobre o sucesso estético da
transposição da Recherche para o suporte dos quadrinhos. Ao contrário dos textos de
Saint-Hilaire, a resenha do Libération apresenta um discurso mais modulado e, a despeito
das críticas que faz ao quadrinho de Heuet, acaba revelando em suas entrelinhas que,
apesar do preconceito existente em relação ao produto de uma adaptação, o trabalho final
pode ser objeto de uma apreciação crítica séria e responsável e que seja capaz de enxergar
os acertos do artista presentes na obra final. Nessa resenha, intitulada “Longtemps, J’ai
Bullé de Bonne Heure” [Durante muito tempo, eu desenhei balões de fala cedo]102, o
jornalista e crítico Mathieu Lindon ressaltou o estilo gráfico de Heuet, as frases passadas
100
SAINT-HILAIRE, H. La Deuxième Mort de Proust. Le Figaro. 20/02/2000. Disponível em:
<http://recherche.lefigaro.fr/recherche/access/lefigaro_print-
afficher.php?archive=BszTm8dCk78Jk8uwiNq9T8CoS9GECSHi4vx5b%2FHZhdM1ZCtRD%
2FyXjXHWkYZwpjaB4mgfPaFEGAmZy6BaSOXVcw%3D%3D>. Acesso em: 26 dez. 2013.
101
« [...] l’oeil de Stéphane Heuet, ou plus exactement sa main dessinatrice, est […] maladroit. »
102
LINDON, M. Longtemps, J’ai Bullé de Bonne Heure. Libération. Edição de 3 de setembro
de 1998. Disponível em: <http://www.liberation.fr/livres/1998/09/03/longtemps-j-ai-bulle-de-
bonne-heure-en-mettant-la-recherche-en-cases-et-en-bulles-stephane-heuet-s-a_24739>. Acesso
em: 01 fev. 2014.
104
nos quadrinhos do discurso indireto para o direto, enfatizando que a primeira adaptação
do desenhista francês do romance de Proust “[tinha] tudo para surpreender os
proustianos.” 103
O jornal Le Monde comentou o lançamento da segunda adaptação, À sombra das
raparigas em Flor – parte 1 (2000), ignorando a primeira, e aproveitou para dizer que os
professores aprovaram a iniciativa de Heuet, pois, desse modo, puderam facilitar a
entrada dos alunos ao mundo proustiano, considerado difícil. Os leitores, segundo o
jornalista do Le Monde, também aprovaram a primeira adaptação feita por Heuet,
Combray.104 Além disso, o jornalista Daniel Couty ressaltou o trabalho adaptativo do
quadrinhista francês, destacando o uso dos recordatórios para a contenção da exposição
do narrador proustiano, do preciosismo dos desenhos que, segundo ele, “dá forma às
palavras.” 105
Não somente na França a imprensa manifestou-se sobre a adaptação de Heuet. O
jornal norte-americano The New York Times publicou uma resenha destacando as críticas
feitas pelo Le Figaro, mas também ressaltando o cuidadoso trabalho de pesquisa e
preparação feito por Heuet para a composição de sua adaptação. Nessa resenha, o
jornalista e crítico Alan Riding ressalta o fato de que Proust não é o primeiro autor
canônico francês a ser adaptado para o suporte quadrinhístico e, logo de início, lança a
provocação contra os mais conservadores ou puristas ao questionar por que a Recherche
não poderia ser transformada em quadrinhos se isso já havia sido feito com outros grandes
nomes da literatura francesa como Victor Hugo, Alexandre Dumas, Honoré de Balzac e
Gustave Flaubert. Além disso, o texto de Riding cita trechos de uma entrevista com o
quadrinhista francês na qual ele diz que, com suas adaptações, espera proporcionar ao
leitor uma porta de entrada para a leitura do texto-fonte proustiano. 106
Na Inglaterra, a London Book Review citou, em resenha publicada no mesmo ano
de lançamento de Combray, outra adaptação do romance de Proust, o filme Um amor de
Swann (1984) de Völker Schlöndorf e o esquete feito pelo grupo inglês de humor Monty
Python na década de 1970 o qual ironiza a extensão do romance proustiano fazendo uma
103
« […] a tout pour surprendre les proustiens. »
104
COUTY, D. Proust en Images. Le Monde. 24/03/2000. Disponível em:
<http://www.lemonde.fr/archives/article/2000/03/24/proust-en
images_3687951_1819218.html?xtmc=stephane_heuet&xtcr=3>. Acesso em: 2 fev. 2014.
105
« […] donne forme aux mots. »
106
RIDING, A. A Debut to Remember in the Comics. The New York Times. 03/10/1998.
Disponível em: <http://www.nytimes.com/1998/10/03/books/a-debut-to-remember-in-the-
comics.html>. Acesso em: 01 fev. 2014.
105
107
GROENSTEEN, T. Affaire Heuet (1): de l’Inconscience Personnelle à l’Aveuglement
Collectif. Neuvième Art. Disponível em:
<http://neuviemeart.citebd.org/spip.php?page=blog_neufetdemi&id_article=245>. Acesso em :
10 jun. 2014.
108
« [...] désastreux, consternant. »
109
GROENSTEEN, T. Affaire Heuet (2): Helás !. Disponível em;
<http://neuviemeart.citebd.org/spip.php?page=blog_neufetdemi&id_article=246>. Acesso em:
10 jun. 2014.
106
de Heuet é, ao mesmo tempo, muito cuidadosa e dura e, nesse sentido, constitui uma das
primeiras críticas que se concentra detidamente no quadrinho e evita o tipo de
ressentimento crítico que é notório nas resenhas de Saint-Hilaire e que deriva da
dificuldade por parte do resenhista em aceitar que um romance como o de Proust seja,
como qualquer outra obra literária, passível de adaptação para outros suportes, inclusive
as histórias em quadrinhos.
Ainda segundo Groensteen “[Nos álbuns de Heuet] não é o desenho que vem
explicar o texto, é o texto que vem salvar o desenho tentando emprestar-lhe um pouco de
espessura que tão cruelmente lhe falta.”110 Quando lido em comparação com os outros
textos desse teórico sobre o trabalho de Heuet, essa afirmação reforça, mais uma vez, a
opinião de Groensteen sobre o que, para ele, é uma inadequação entre desenho e discurso
e uma prova de que o traço do quadrinhista francês é vacilante e impreciso. Se o texto,
como afirma Groensteen num tom que até soa exageradamente duro, precisa emprestar
espessura ao traço, a densidade que a informação gráfica não apresenta, então poder-se-
ia concluir que o desenho de Heuet é, no limite, imaturo. Todavia, Groensteen parece
confundir a função que o desenho e o texto têm no quadrinho, visto que não é função do
desenho explicar o texto, como também não é a função do texto salvar o desenho. Na
verdade, o fato de Groensteen relutar em tentar enxergar uma interação entre texto e
imagem que não pressuponha hierarquizações é o que lhe impede de ver que, na verdade,
a opção estilístico-imagética na adaptação do romance de Proust é mais coerente do que
uma rápida leitura pode revelar.
Não contente em escrever esses dois textos duramente críticos sobre a adaptação
heutiana, Groensteen escreveu ainda, em maio de 2010, um terceiro intitulado “Affaire
Heuet (3): Pour en Finir avec la BD Prétexte” [Caso Heuet 3 – para terminar com a
pretensa história em quadrinhos].111 Nesse texto, Groensteen não fala diretamente sobre
os procedimentos de construção da adaptação heutiana da Recherche, mas concentra sua
fala na utilização da história em quadrinhos como instrumento pedagógico. Desde 2002,
a França reconhece os quadrinhos como arte e os adota como instrumento de auxílio na
aprendizagem escolar. Na escola, segundo o crítico, não se analisa os quadrinhos pela sua
110
« Dans ces albums, ce n’est pas le dessin qui vient éclairer le texte, c’est le texte qui vient
sauver le dessin en essayant de lui prêter un peu de l’épaisseur qui lui manque si cruellement. »
111
GROENSTEEN, T. Affaire Heuet (3): Pour en Finir avec la BD Prétexte. Disponível em:
<http://neuviemeart.citebd.org/spip.php?page=blog_neufetdemi&id_article=247>. Acesso em:
10 jun. 2014.
107
112
« L’idée qu’il serait de bon aloi, dans une pédagogie bien pensée, d’éveiller le goût des élèves
en les exposant de préférence à des œuvres d’une certaine élévation de pensée et témoignant d’une
réussite artistique semble assez étrangère au mode de pensée de l’Éducation nationale et de ses
officiants, qui s’intéressent prioritairement au sujet [...]. C’est donc l’approche thématique qui est
encore et toujours privilégiée […]. »
113
« Stéphane Heuet a eu le toupet de marier deux impensables : le texte visuel le plus épuré, la
ligne claire, et le texte écrit le plus dense […]. »
108
explicação convincente sobre os motivos pelos quais a linha clara e o texto visual bem
cuidado são irreconciliáveis, muito menos explica porque o texto denso do qual ela fala
estaria em desacordo com o traço econômico da linha clara. Sobre o primeiro volume da
Recherche adaptado para quadrinhos, No caminho de Swann: Combray, Enjolras afirma
ainda que
114
« En 1998 s’empilait chez les libraires une édition des plus osées : élégante, élancée, désuète
de sobriété dans sa pâle gangue paillée, […] anorexique de soixante-douze feuillets, Combray,
première livraison de Proust en BD, paraissait. »
115
« L’entreprise, d’envergure, est en soi une gageure insensée : transformer les quelques trois
mille pages du chef-d’œuvre de Proust en une poignée de planches BD. »
116
« […] s’harmonise: les couleurs s’optimisent, le trait s’intensifie. Il a le souci du détail et celui
de la minutie. Il aspire à l’authenticité. [...]. Il a consulté des sources vives et ouvrages patentés
[…]. Son travail, certes, est soigné. »
109
Mas ela comete um equívoco: em todo seu trabalho, coloca o romance proustiano
como algo superior à adaptação de Heuet. De acordo com a pesquisadora francesa, a
escrita de Proust é a "manifestação de uma expressão artística impressionista sem
precedentes. E a história em quadrinhos seria uma espécie de antinomia [dessa
117
manifestação]" (2006, p. 16). Além de considerar o texto-fonte proustiano superior,
Gobin se equivoca ao tentar explicar o título de seu livro ao dizer que
117
« […] manifestation d'une expression artistique impressionniste unique". Et la bande dessinée
serait une sorte d'antilogie. »
118
« […] la désignation "Proust en B.D." véhicule-t-elle l'idée du transfert d'une information de
A vers B, cependant, elle attire attention sur le point d'arrivée, sans relever le point de départ,
comment se fait le passage du fait littéraire au visuel, de l'invisible au visible, autrement dit,
d'après quels principes se fait l'émission du sens et son organisation. »
110
119
« [...] au service du texte proustien. »
120
« Il s’agit plutôt d’un livre illustré que d’une bande dessinée qui s’inspire de la Recherche
suivant ses propres principes et ses propres possibilités […]. »
111
121
« [...] la Recherche illustrée par Heuet, c’est Tintin au Pays de Guermantes. »
122
« [...] son crayon est parvenu à faire de Marcel un enfant puis un adolescent sans visage
(comme Tintin), le visage souvent réduit au seul regard, étonné, incrédule ou stupéfait. »
123
« Proust méritait un dessinateur créatif, et non un illustrateur académique, un tintinophile
kitsch. »
112
parâmetros que fazem jus a cada meio de difusão. Nesse sentido, pensar numa adaptação
como algo simplista e inferior é o mesmo que julgar o conteúdo de um livro pela sua capa.
Muitas vezes ela pode ser bem executada, mas o conteúdo é nulo. Outras vezes, a capa
não dá ideia do conteúdo do livro, mas, lendo a história, verifica-se que sua relevância é
maior do que se imaginava.
As narrativas gráficas de Heuet já foram traduzidas para mais de dez línguas,
incluindo o inglês, o italiano, o português o chinês e o japonês. Em cada mercado editorial
os romances gráficos ganharam diferentes capas e até mesmo páginas explicativas sobre
o contexto cultural francês. Isso, obviamente, acaba criando a necessidade da utilização
de diferentes elementos paratextuais. Para os fins desse trabalho, deve-se levar em conta
a noção de paratexto definida por Genette como “[...] aquilo por meio de que um texto se
torna livro e se propõe como tal a seus leitores, e de maneira mais geral ao público” (2009,
p. 9). A essa noção, Genette acrescenta outra igualmente importante para a nossa análise,
que é a ideia de peritexto. Para ele,
Nas imagens da próxima página (Figuras 38 a 41), há as quatro capas das edições
brasileiras correspondestes à adaptação do primeiro volume da Recherche, No caminho
de Swann. Em sentido horário, temos No caminho de Swann: Combray, Um amor de
Swann – parte 1, Um amor de Swann – parte 2 e Nomes de lugares.
113
Outro recurso utilizado na edição brasileira e elaborado pelo tradutor André Telles
é a seção “Em busca do contexto” (Figura 43). Nele, há uma contextualização histórica e
cultural da França no período em que se passa a história. Além disso, a seção inclui
informações e curiosidades sobre Proust e a Recherche para que o leitor possa melhor
aproveitar a leitura.
115
As guardas, como são chamadas as páginas que vêm logo após a capa e antes da
contracapa, também foram alvo de mudanças significativas na edição brasileira. Em No
caminho de Swann: Combray há uma árvore genealógica com os principais personagens
desse volume e que tem relação direta com o narrador. Além do mais, nela figuram outros
personagens secundários ou que só aparecem uma única vez no volume. A figura 44
apresenta a guarda do primeiro volume da adaptação de Heuet lançada no Brasil.
116
nutre uma paixão adolescente, e de sua mãe Odette, por quem tem uma forte admiração,
contrariamente à sua família que a repudia por seu passado de meretriz.
revela mais claramente no fato de que essa concepção equivocada a respeito do que é a
arte dos quadrinhos desconsidera a ideia básica de que a interpretação de uma imagem
aciona um complexo repertório do leitor, que extrapola os limites simbólicos
determinados pela arbitrariedade do signo linguístico, ao mesmo tempo em que se utiliza
dele no processo interpretativo. Nesse sentido, portanto, tratar como “menores” obras que
articulam o signo verbal com o signo visual como seu procedimento criativo central é um
erro metodológico, que, em última análise, só reforça a necessidade de uma construção
de metalinguagem mais rigorosa e que dê conta das nuances estéticas de uma forma de
arte que utiliza imagens não como meras ilustrações de seu conteúdo, mas como
mecanismo de produção de sentido, que pode ou não ser recuperado pelo leitor.
Ao discutir o papel da imagem nas histórias em quadrinhos, Paulo Ramos
questiona se “as ilustrações integram as páginas da história ou apenas exemplificam
trechos da parte escrita” (2009, p. 18). Com isso, Ramos abre um debate que não só
abrange a função das imagens dentro de um romance gráfico, mas também indaga sobre
as potencialidades estético-criativas da utilização desses procedimentos de composição
que são intrínsecos à narrativa quadrinhística. Sendo assim, apenas uma leitura
superficial e apressada da adaptação da Recherche feita por Heuet, por exemplo, poderia
considerar seu trabalho imagético mera exemplificação do texto verbal, como de fato o
fazem alguns dos resenhistas já mencionados anteriormente nesse trabalho. A rigor, esse
uso da imagem como exemplificação do discurso nem sequer existe na obra de Heuet,
pois o cuidado estético que ele demonstra ao recriar cenas em que os meandros da
memória involuntária permeiam o seu desenvolvimento e ditam o ritmo da narração
fornecem elementos suficientes para demonstrar que imagem e palavra se articulam de
maneira orgânica em seu trabalho adaptativo.
Além disso, adaptar uma obra literária de um suporte para outro pressupõe,
necessariamente, que escolhas e recortes sejam feitos. O próprio Heuet em La Recherche
en BD faz um resumo do seu processo de adaptação:
125
« Au fil de la lecture, crayon à la main, le texte peut avoir quatre destinées : devenir des
dialogues (des bulles), la voix off (le texte dans les cases couleur coquille d’œuf), des images (les
121
Nesse sentido, disputas sobre o grau de fidelidade da obra adaptada acabam sendo
contraproducentes do ponto de vista crítico-analítico, e revelam, em última análise, um
reacionarismo estéril que, no limite, sufoca o debate crítico e impede a apreciação daquilo
que a adaptação pode ter de revigorante enquanto realização formal de uma ideia artística.
Portanto, como adaptador, Heuet é antes de tudo um leitor crítico da Recherche, pois
precisa pensar não somente nos elementos que deverão ser escolhidos para compor sua
adaptação, nos efeitos narrativos e estéticos, mas também na expectativa criada pelo leitor
ao entrar em contato com os romances gráficos. Isso porque o leitor, ao se deparar com
uma adaptação, espera encontrar nela elementos do texto-fonte, pois isso faz com que
suas expectativas de leitura sejam atendidas. Segundo Linda Hutcheon, “antes de ser um
criador, o adaptador é um intérprete” (2011, p. 43), o que implica na localização do
adaptador numa posição intermediária entre dois meios de expressão – nesse caso, a
literatura e a narrativa gráfica – num primeiro momento distintos. Desse modo, esperar
que uma adaptação seja extremamente fiel ao original é, no mínimo, ingênuo, para não
dizer redutor. Afinal, o resultado do processo de adaptação é, antes de mais nada, um
texto autônomo. Como tal, portanto, ele não mantém qualquer relação de subordinação
com o texto-fonte.
Como obra autônoma, e, portanto, livre de qualquer compromisso com a
fidelidade ao texto-fonte, a Recherche de Heuet pode valer-se dos elementos adaptativos
escolhidos pelo quadrinhista e que melhor realizam a visão interpretativo-criativa adotada
por seu autor no momento da composição dos álbuns. Os recursos pictóricos usados por
Heuet na adaptação de No caminho de Swann para quadrinhos conseguem mobilizar
mecanismos que adaptam o texto-fonte de Proust e produzem sentido ao reproduzi-lo em
suas narrativas gráficas. Esses elementos, que serão discutidos mais detalhadamente logo
adiante, recuperam trechos e fatos do romance proustiano e os recriam em outro suporte,
auxiliando, assim, a perpetuação da narrativa proustiana. Afinal, “as histórias podem
evoluir por meio da adaptação” (HUTCHEON, 2011, p. 58), e muitas vezes isso ocorre
porque o leitor da adaptação acaba tendo sua curiosidade aguçada pelo texto adaptado e,
assim, vai em busca do texto-fonte para enriquecer sua experiência de leitura, procurando
outra forma de contar a narrativa à qual esse leitor já terá sido familiarizado em certa
medida.
dessins dans les cases), ou disparaître, et c’est parfois terrible, car il m’arrive de devoir privilégier
des phrases “utiles” à la narration, au détriment de phrases magnifiques. »
122
Ainda segundo Hutcheon, “as adaptações contam histórias a seu próprio modo”
(2011, p. 24), fazendo, assim, seleções a partir daquilo que seus suportes lhe oferecem
enquanto recursos de (re)criação. Que tal seleção implicaria em simplificação, o que é
diferente de um reducionismo simplista, parece bastante plausível. Contudo, é preciso
reconhecer que o processo de adaptação também implica em uma ampliação do texto
adaptado, não só porque mobiliza recursos estéticos que seriam inconcebíveis do ponto
de vista da execução dentro do suporte literário – pensemos, por exemplo, na trilha sonora
de um filme, ou mesmo nas informações gráficas e nos recursos visuais que são parte
fundamental das histórias em quadrinhos –, mas também levando-o a públicos distintos,
muitas vezes alheios à existência do texto-fonte. De fato, por pertencer ao cânone da
literatura mundial, um romance como o de Proust pode afastar o leitor por carregar o
"peso" de ser um clássico. Nesse sentido, as adaptações podem ser uma porta de entrada
para um leitor que, num primeiro momento, poderia não estar disposto ou interessado em
ler as três mil páginas da Recherche. Por outro lado, a adaptação como produto é,
geralmente, vista pelo senso comum como algo inferior, e acaba padecendo, em muitos
casos, do mesmo tipo de recepção superficial que, em certa medida, marcou a trajetória
das publicações das histórias em quadrinhos.
Além dessas questões apresentadas anteriormente, não se pode deixar de
considerar o fato de que a adaptação de um romance para outra mídia pressupõe um
trabalho cuidadoso de pesquisa para criar a atmosfera narrativa desejada pelo adaptador.
Antes de transpor os personagens proustianos para as vinhetas e deixá-los se expressar
por meio de imagens, balões e recordatórios, Heuet cercou-se de diversos cuidados para
fazer sua adaptação. Além da leitura da Recherche propriamente dita, ele visitou lugares
citados nos livros de Marcel Proust a fim de buscar referências para desenhar paisagens,
monumentos e a arquitetura da época. Além disso, Heuet afirma ter feito extensas
pesquisas bibliográficas para conceber, com detalhes, o mobiliário de época e, também,
as receitas apreciadas no período em que se passa a história narrada no romance
proustiano. Na primeira e na quarta adaptações heutianas da Recherche, No caminho de
Swann: Combray e Um amor de Swann – volume 1, o quadrinhista lista a bibliografia
utilizada para suas pesquisas: Les Promenades de Marcel Proust [Os passeios de Marcel
Proust] (1997), de Nadine Beauthéac e François-Xavier Bouchart, que versa sobre os
lugares pelos quais Proust passou; Dominique Camus escreveu Guide des Maisons
d’Artistes et d’Écrivains en Région Parisienne [Guia das casas de artistas e escritores na
região parisiense] (1995), livro que descreve os locais onde moraram artistas e escritores
123
famosos na região parisiense; Marcel Proust (1992), de Diane de Margerie, que retrata a
vida do escritor francês; Anne Borrel e colaboradores escreveram Proust, La Cuisine
Retrouvée (Proust, a cozinha redescoberta] (2008), 126 livro que lista as receitas familiares
do escritor francês e, também, as mais comuns preparadas nas famílias burguesas no
início do século XX; Proust par Lui-Même [Proust por ele mesmo] (1953) escrito por
Claude Mauriac, trata da vida de Proust desde a infância até seus últimos momentos;
Shinichi Saiki publicou Paris Dans le Roman de Proust [Paris no romance de Proust]
(1996), obra que descreve a Paris do final do século XIX e do ínicio do século XX
retratada por Proust na Recherche.
Outro dado importante a ser considerado é que o quadrinhista também se serviu
de diversas fotos de Félix Tournachon, mais conhecido como Nadar, fotógrafo que
retratou Proust e sua família, além de artistas e membros da alta sociedade parisiense no
fim do século XIX e começo do século XX. Novamente, revela-se aqui um enorme
esforço de pesquisa por parte de Heuet para compor o aspecto físico e o figurino de seus
personagens. O quadrinhista, por fim, analisou diversos estudos sobre a Recherche com
o intuito de melhor compreender as nuances da trama e da narrativa desse romance. Isso
tudo demonstra que, de fato, Heuet fez um cuidadoso trabalho de pesquisa que mostra,
em certa medida, uma tentativa de contrabalancear sua inexperiência como desenhista de
histórias em quadrinhos com a busca por informações de ordem estética, biográfica e
também sócio-histórica que pudessem auxiliar de algum modo na execução desse projeto
adaptativo.
Nas imagens abaixo (Figuras 51 e 52), apresento o esboço da adaptação de uma
prancha de Um amor de Swann – parte 2, que serve como um exemplo bastante didático
do método de trabalho adotado por Heuet. Pode-se notar, a partir do exame do esboço em
comparação com o resultado final, que o quadrinhista primeiramente separava os textos
que lhe convinha adaptar e só depois esboçava os desenhos a lápis. Concluída essa etapa,
passava para a próxima, na qual fazia o contorno dos desenhos com nanquim (Figura 53)
e, finalmente, digitalizava-os com o intuito de colori-los com o uso do programa de
computador Photoshop.
Esse livro foi traduzido em português e publicado pela editora Sextante com o título de À
126
de Heuet, que nas adaptações quadrinhísticas publicadas até o presente momento ainda
não é nomeado, e a imagem do próprio Proust (Figuras 54 e 55). De fato, essa predileção
de Heuet por retratar o narrador-protagonista assimilando-o à figura do escritor da
Recherche é um recurso que pode suscitar, pelo menos, duas interpretações diferentes do
ponto de vista do seu alcance e de sua intenção. Por um lado, a adoção da imagem da
pessoa de Proust poderia atrair a atenção dos leitores para o texto original a partir de uma
tendência biografista que dificilmente se sustenta do ponto de vista da análise textual,
seja do romance, seja do quadrinho. Por outro lado, no entanto, essa associação direta
acabaria denunciando uma tentativa de aproveitar a figura empírica de Proust para
“validar” a adaptação quadrinhística enquanto obra de arte, criando, assim, uma espécie
de filiação que, novamente, não se sustenta do ponto de vista da análise dos
procedimentos de construção do romance gráfico em questão.
tempo verbal mais usado nos balões de fala é o presente do indicativo; este, no conjunto
da narrativa gráfica de Heuet, adquire uma função contrastiva entre a narração da cena e
a distância temporal de sua ocorrência; isto deve ficar mais claro no exame das
propriedades do discurso contido nos recordatórios. Abaixo (Figura 56), pode-se notar
um exemplo do uso dos verbos no presente na fala de Françoise, governanta de Léonie, a
tia em cuja casa o narrador-protagonista passa suas férias na cidade de Combray.
Não somente o protagonista conta sua história por meio dos balões, mas também
ele é o narrador da trama. Heuet aproveita-se de um recurso verbal comumente utilizado
por Edgar P. Jacobs para dar voz a esse narrador-protagonista: o recordatório. Segundo
Groensteen, esse recurso gráfico pode ser definido como um “espaço emoldurado que
acolhe um comentário a respeito de uma ação ou uma intervenção do narrador” (2005, p.
59).127 Segundo Santos (2002, apud Ramos, 2009, p. 53), os recordatórios são vistos
como um recurso que resume a ação, com o intuito de informar sobre a “simultaneidade
de eventos.” Eles utilizam, prioritariamente, tempos verbais no passado, principalmente
o pretérito imperfeito. Esse tempo verbal, em sua gênese, marca a atemporalidade da
ação, ou seja, não se sabe, ao certo, em que momento do passado narrado essas ações
ocorreram.
Nesse sentido, os recordatórios marcam esteticamente, no nível do procedimento,
a cisão no tempo cronológico que possibilita a sobreposição entre passado e presente
127
“Espace encadré accueillant un commentaire sur une action ou une intervention du narrateur.”
127
protagonista, que participa da narrativa junto aos demais personagens, os diálogos entre
as personagens devem vir inseridos nos balões de fala. Esse recurso de adaptar o discurso
indireto para o direto é comum em adaptações como as de Heuet nas quais o narrador é
também participante da história. Isso porque, para que possa ser protagonista e narrador
ao mesmo tempo, quem narra precisa estar necessariamente inserido discursivamente no
contexto ao qual a sua narração vai se reportar diretamente. Como exemplo, cito uma
passagem em discurso indireto de No caminho de Swann na qual pode-se notar o narrador-
protagonista conversando com Françoise sobre tia Léonie
Combray.
129
posto, dada a articulação que o discurso estabelece com a imagem do jovem protagonista
conversando com Françoise, em contato direto com a cena sendo narrada. Nesse sentido,
pode-se mesmo dizer que a descrição minuciosa, típica da prosa proustiana, ganha uma
nova dimensão de instantaneidade e um caráter momentâneo que pode mesmo remeter às
condições de manifestação da memória involuntária, que pode ser despertada de maneira
circunstancial e até mesmo fortuita. Aliás, cabe ao leitor resgatar, na articulação entre
imagem e palavra que a cena lhe oferece, os detalhes que escapam ao olhar automatizado
que se volta sobre o fragmento que um trecho como esse representa.
Como citado anteriormente, os recordatórios têm papel fundamental na narrativa
heutiana, pois são um dos meios pelo qual o narrador expressa sua voz na Recherche
adaptada para narrativas gráficas. Além disso, esse é um recurso imprescindível para essa
adaptação no sentido de que, ao contrário do que é possível afirmar no caso da linguagem,
a imagem não é um espaço de memória por excelência. Ou seja, uma imagem, por si só,
não se converte em um espaço de memória no sentido de que o seu alcance gráfico ou
pictórico não é capaz de possibilitar as múltiplas reinscrições entre passado e presente
que a linguagem verbal e literária possibilitam como meio. Nesse sentido, os
recordatórios adicionam outra dimensão temporal às imagens com as quais se articulam,
pois esse recurso de construção cria, por meio do uso que faz do discurso, nesse caso,
literário, o espaço de mediação entre o leitor e a imanência da imagem que se apresenta
a ele. Desse modo, as informações gráficas e discursivas de cada vinheta trabalham juntas
no sentido de direcionar a leitura da imagem a partir da abstração temporal que o uso da
linguagem possibilita e reforça. O recordatório, nesse sentido, é o espaço de memória por
excelência na narrativa gráfica de Heuet, o que o torna um recurso indispensável numa
trama que toma a passagem do tempo e as oscilações da memória como seus elementos
fundamentais.
Como exemplo disso, pode-se observar a sequência de imagens nas páginas 132
a 136 e também nas páginas 138 e 139 (Figuras 59 a 65) que retrata a célebre cena da
madeleine. O trecho do romance de Proust no qual a cena acontece é o seguinte:
Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o
drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por um dia de
inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio,
ofereceu-me chá, coisa que era contra meus hábitos. A princípio recusei,
mas, não sei por que, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses
bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que me parecem
moldados na valva estriada de um concha de São Tiago. Em breve,
maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de
mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei ao lábio uma colherada
130
Esse trecho é paradigmático justamente porque mostra, com a riqueza dos detalhes que é
próprio ao procedimento narrativo proustiano, o modo como a memória involuntária
opera durante toda a Recherche. De fato, fica claro nesse trecho que a verdade buscada
pelo narrador não está nos objetos ou situações que ocasionam os disparos mnemônicos
nele, mas antes dentro dele mesmo, nas lembranças que se escondem sob o limiar da sua
própria consciência. Ainda na mesma passagem, o narrador-protagonista medita sobre
essa experiência rememorada, perdida, num primeiro momento, para além dos limites da
consciência, bem como sobre a sua manifestação súbita ao dizer que
Por certo, o que assim palpita no fundo de mim deve ser a imagem, a
recordação visual que, ligada a esse sabor, tenta segui-lo até chegar a
mim. [...] Chegará até a superfície de minha clara consciência essa
recordação, esse instante antigo que a atração de um instante idêntico
veio de tão longe solicitar, remover, levantar no mais profundo de mim
mesmo? Não sei. [...] E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto
era do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray
(pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Léonie
me oferecia, depois de o ter mergulhado em seu chá da Índia ou de tília,
quando eu ia cumprimenta-la em seu quarto. O simples fato de ver a
madalena não me havia evocado coisa alguma antes que a provasse;
talvez, porque, daquelas lembranças abandonadas por tanto tempo fora
da memória, nada sobrevivia, tudo se degradara [...] (PROUST, 2006, p.
72-73).
pequeno pavilhão que dava para o jardim e que fora construído para meus
pais aos fundos dela (esse truncado trecho da casa que era só o que eu
recordava até então); e, com a casa, a cidade toda, desde a manhã à noite,
por qualquer tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço,
as ruas por ponde eu passava e as estradas que seguíamos quando fazia
bom tempo. E, como nesse divertimento japonês de mergulhar numa
bacia de porcelana cheia d’água pedacinhos de papel, até então
indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se
cobrem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens
consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores de nosso jardim
e as do parque do sr. Swann, e as ninfeias do Vivonne, e a boa gente da
aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e a toda a Combray e seus
arredores, tudo isso que toma forma e solidez, saiu, cidade e jardins, de
minha taça de chá (PROUST,2006, p. 74).
Nessa sequência pode-se verificar que Heuet cria as condições para que o leitor
possa imergir nesse processo de rememoração por meio, sobretudo, da representação não
verbal que o uso de imagens acaba criando. Temos na primeira vinheta da página 15
(Figura 61) o narrador-protagonista, num plano médio, sentando-se à mesa com sua mãe.
Ele admira-se da existência da madeleine sobre a mesa ao dizer “Ora, uma Madeleine?”
Um dado importante a respeito dessa passagem é que essa frase não existe no texto-fonte
proustiano. E tampouco a resposta de sua mãe: “É, Nicolas passou na confeitaria.” Uma
possível explicação para a inserção dessa breve conversa nesse trecho pode ser o fato de
que Heuet, como adaptador, tenha pretendido dar verossimilhança à cena com esse
pequeno diálogo, já que na narrativa proustiana não há algo que remeta ao sentar à mesa
134
chá com madeleine antes de o protagonista ir à missa, mas também pelas ruas da cidade
nas quais ele brincava durante a infância.
Mesmo possuindo somente três vinhetas, essa página impõe um ritmo de leitura
muito peculiar. Isso porque, como afirmou Acevedo, “a escolha de um formato [de
vinheta] depende do espaço e do tempo que se quer representar” (1990, p. 87). De fato,
Acevedo chama a atenção, nesse seu comentário, para um aspecto importante da
composição quadrinhística, o tipo de relação que se busca estabelecer entre o conteúdo
a ser abordado numa determinada página e os procedimentos que vão efetivamente dar
forma e expressão a esse conteúdo. Na prancha em questão, Heuet representou, no espaço
onírico, cuja sugestão já havia sido dada na prancha anterior, a recuperação do tempo
passado na vida do narrador-protagonista. O tom rememorativo da passagem fica
explícito logo no recordatório que abre a prancha e no qual se lê “e de repente a lembrança
surgiu”. Há, nessa declaração, uma sugestão de rapidez e de fugacidade que contrastam
radicalmente com o ritmo lento de leitura que as vinhetas grandes e detalhadas acabam
ditando ao leitor.
Dessa forma, o esforço de leitura que essas três vinhetas demandam é muito maior
do que um primeiro contato pode sugerir. Isso porque o leitor precisa levar em conta a
passagem, nada simples, do presente da narração para o passado narrado, que ocorre entre
a primeira e a segunda vinhetas, bem como atentar para os detalhes visuais oferecidos
pelo desenho e que não podem ser lidos de maneira dissociada do discurso que lhes é
concomitante. A prancha toda, nesse sentido, é uma representação gráfico-discursiva
muito intrincada do lampejo de memória involuntária que acomete o narrador-
protagonista no momento em que ele prova a madeleine. Além disso, o vapor que se
desprende de sua colher reforça o ambiente onírico estabelecido a partir desse lampejo de
memória do narrador-protagonista, e estabelece uma sutil ligação entre a prancha anterior,
quando se depara com a madeleine e a prancha seguinte, na qual a cena é concluída.
Novamente, o recordatório cria as condições para uma cisão clara entre passado e
presente, ao mesmo tempo em que garante que o narrador em primeira pessoa esteja no
controle da narração durante todo o desenrolar da cena, uma vez que a perspectiva pela
qual as imagens se constroem na página nunca é posta em questão.
138
as paisagens e a igreja, bem como o rio Vivonne são relembrados pela memória
involuntária. Um passado esquecido, morto para a consciência do narrador-protagonista,
mas que foi revivido por intermédio do disparo mnemônico produzido pela madeleine.
129
HAMADA, Y. Remarques sur la Structure d’À la Recherche du Temps Perdu : La Position du
Narrateur Dans le Temps et la Structure Circulaire. 1978. p. 1-29. Disponível em :
http://hdl.handle.net/10236/9096. Acesso em: 20 jul. 2014.
130
« […] Proust a voulu rendre plus intime la perspective de Swann amoureux. »
131
Doravante chamo a narrativa gráfica de Heuet Um amor de Swann – parte 1 de Swann 1.
132
« [...] le narrateur nous le raconte en décrivant la psychologie fort intérieure de Swann par,
disons, le ‘biais littéraire’. »
141
tratamento que tanto Proust quanto Heuet dão à memória em suas respectivas obras. Isso
porque, uma vez que tudo o que o narrador relata foi-lhe contado por outra pessoa que
poderia ter vivido esses fatos, mas não se sabe se, de fato, ela os vivenciou ou não. Seria
incongruente do ponto de vista narrativo precipitar a figura do narrador no meio de uma
situação que foi anterior à sua própria existência. Esse tipo de equívoco instauraria um
anacronismo grave no coração da Recherche, o que seria ainda mais problemático num
romance, seja ele tradicional ou gráfico, no qual o tema principal é a passagem do tempo
e os processos e mecanismos de reativação da memória involuntária.
Na vinheta da príxma página (Figura 66), em um plano de visão em plongé, ou
seja, em uma perspectiva da cena vista de cima para baixo, tem-se um exemplo dessa
narração em terceira pessoa notada pela presença dos recordatórios. De fato, a própria
escolha do plano reforça o distanciamento que o foco narrativo em terceira pessoa
imprime ao relato, e a vista panorâmica dessa vinheta até mesmo sugere um traço bastante
marcado que se instaura a partir da escolha dessa perspectiva narrativa. A situação
descrita na cena é a realização de um jantar na casa dos Verdurin, onde um pianista toca
a sonata de Vinteuil, uma das preferidas de Swann. Como é possível observar na
disposição das personagens nessa vinheta, Swann está sentado ao lado de Odette,
apreciando a execução da peça musical.
Nas imagens das páginas 144 e 146 (figuras 67 e 68), nota-se dois
metaquadrinhos. No primeiro deles, Swann começa a ouvir a peça tocada ao piano quando
tem um lampejo de memória, que o faz recordar de um sarau ao qual tinha ido no ano
anterior. Nesse evento, Swann ouvira outra peça ao piano e ao violino que o fizera
143
perceber o quanto a música lhe tocara a alma, enfeitiçara-o, mesmo ele não tendo
educação musical. A cada frase da melodia, representada na vinheta por notas musicais
saindo de um violino e de um piano, Swann deixava-se levar pela música, associando-a
à figura de Odette. De fato, esse é um dado importante acerca do funcionamento da
memória no romance de Proust e que Heuet consegue recriar: a possibilidade de
associações livres que podem ocorrer no espaço da memória e da rememoração. Não há
nada na música que a ligue à figura de Odette, por exemplo, ou que estabeleça uma
relação direta entre o sentimento de Swann por essa mulher. Contudo, é o valor afetivo
atribuído à peça, por Swann, que torna essas associações possíveis, bem como o resgate
dessas sensações no momento do disparo mnemônico que a audição dessa música
especificamente provoca.
Dentro do metaquadrinho há três mini-vinhetas que mostram detalhes do
semblante de Swann ao pensar como a música lhe proporcionava um sentimento a cada
mudança de frase musical. Essas alterações súbitas o faziam lembrar da melodia que
ouvira naquele sarau e que lhe havia tocado a alma e como Odette fazia o mesmo com
ele nesse momento. No trecho abaixo, Proust dá voz ao narrador-onisciente:
No fundo da grande vinheta, podemos observar uma casa com luzes acesas, rodeada de
árvores, arbustos e várias roseiras brancas, uma paisagem de contos-de-fada. No meio da
vinheta há duas grandes rosas que poderiam remeter à delicadeza de Odette. Essas flores
seriam uma metáfora que remeteria à figura de Odette, já que Swann queria tocá-la, estar
perto dela.
144
na cabeça de Swann e consegue ver seus sentimentos, deixa claro que a partir desse
momento o burguês francês, que não se prendia a ninguém, passara a ter uma afeição
especial pela cortesã Odette.
As duas mini-vinhetas que mostram detalhes do rosto de Swann ajudam a perceber
a vibração que cada nota e cada compasso produz nele, ditando, assim, o ritmo da sua
rememoração. As notas musicas também permeiam toda a vinheta, que apresenta um
fundo bucólico, com cores suaves, mostrando uma montanha rodeada de uma floresta e
um lago. Uma das sugestões interpretativas que esse cenário produz seria a de que ele
remeteria à sensação de encantamento experimentada por Swann ao ouvir a peça. Pode-
se dizer, ainda, que a combinação desse cenário bucólico, com as falas do narrador
presentes no recordatório, criam a sugestão de um desejo, por parte dele, de capturar um
momento de felicidade suprema, que lhe invade a consciência por meio da sugestão
musical que abre a cena, e mantem na mente, através de uma suspensão temporal própria
do tempo psicológico da narrativa, a imagem que traduz aquele instante sublime. A esse
desejo, contudo, opõe-se a fugacidade dessa ocasião, que prova que tal vontade de
manutenção não é possível de ser realizada. Pode-se observar essa impossibilidade no
recordatório em que o narrador comenta sobre a falta que sente dessa mulher:
Era como um homem em cuja vida uma mulher fugazmente vislumbrada
na rua acaba de fazer ingressar a imagem de uma beleza inédita que
confere à sua própria sensibilidade um valor mais elevado, sem que ele
saiba sequer se um dia voltará a encontrar a pessoa já amada e de quem
ignora até mesmo o nome (HEUET; PROUST, 2007, p. 19).
133
Doravante chamo de Swann II a segunda parte da adaptação heutiana de Um amor de Swann.
147
Essas notas conduzem o leitor à próxima página, na qual pode-se ver Swann, nas
três primeiras vinhetas (Figura 70), percebendo a pequena frase da sonata de Vinteuil.
Esse tema o faz lembrar-se do tempo em que havia se apaixonado por Odette. As notas
musicais permeiam essas três vinhetas, criando, assim, a imagem da manifestação da
memória.
Tais encantos de uma tristeza íntima, era a eles que ela tentava imitar e
recriar, e até a sua própria essência, que consiste em serem
incomunicáveis e parecerem frívolos a qualquer outra pessoa que não
seja a que os experimenta, a pequena frase a havia captado e tornado
visível (PROUST, 2006, p. 419).
Nas próximas três vinhetas (Figura 74), Swann, num completo estado letárgico,
entregue à tristeza que o invadira, já não mais sabia se aquela frase que ouvia, era, de
fato, real, pois via nela algo que transcendia o humano, chegando mesmo ao sobrenatural.
O primeiríssimo plano presente nessas vinhetas reforça a ideia da percepção da música
em Swann como algo desencadeador de sofrimento.
151
Passo à última narrativa gráfica lançada por Heuet e que encerra a adaptação do
primeiro volume da Recherche, No caminho de Swann. Essa narrativa transpõe o último
capítulo do referido livro, “Nomes de Lugares”, encerrando o primeiro ciclo do romance
proustiano.
Na adaptação de Heuet para esse capítulo, também intitulada Nomes de lugares,
o narrador mantém a mesma posição no tempo e no espaço que tem no começo do
romance. A narrativa, que volta a partir desse momento a ser narrada em primeira pessoa,
se passa inteiramente em Paris, na casa do narrador-protagonista, nos Champs-Élysées e
no Bois de Boulogne. De acordo com Genette, “[...] doravante o movimento está
adquirido e a narrativa, nas suas grandes articulações, torna-se praticamente regular e
conforme à ordem cronológica” (1979, p. 43). Não há mais aqui divagações sobre a
infância do narrador-protagonista, pois esse volume retrata sua adolescência e fase adulta.
Além disso, o volume também trata da obsessão do narrador pelo nomes de pessoas e,
principalmente, de lugares.
No início da narrativa, o narrador-protagonista sonha em viajar por várias
localidades, repetindo esses nomes em sua cabeça. Em razão do aparecimento de uma
doença, que não é especificada, o protagonista não mais pode fazer viagens, e deve
frequentar somente a avenida dos Champs-Élysées em companhia de Françoise. Limitado
ao espaço e às experiências da avenida parisiense, o narrador-protagonista tinha ordens
expressas de não se cansar, pois sua doença poderia reaparecer como consequência do
esforço físico. Nessa avenida, o narrador encontra Gilberte, que já tinha visto rapidamente
em Combray, e começa uma amizade com a jovem, que logo se transforma em amor
platônico. Ao ser ignorado por ela, o ele passa, então, a prestar atenção em sua mãe,
Odette, que havia se casado com Swann. O narrador-protagonista acompanha o ir e vir da
senhora Swann, admirando sua elegância discreta, mas que atraia olhares, principalmente
masculinos.
Ao final da narrativa, o narrador-protagonista discorre sobre as mudanças que a
sociedade parisiense sofre no começo do século XX. Ele fala das vestimentas e dos
152
[As sombras chinesas] são, ao meu ver, uma espécie de hieróglifo, sinais
tipográficos no meio-termo entre letras de imprensa e desenho. [Essas
sombras] anunciam, portanto, a duração de um estado ou a prática regular
de uma atividade. São também indicações que, como uma fermata,
ressoam no fim de uma cena, prolongando-a (2012). 134
134
« Ce sont dans mon esprit comme des hiéroglyphes, des signes typographiques comme des
lettres, à mi-chemin entre caractère d’imprimerie et dessin. [Ces ombres] énoncent donc la durée
d’un état ou la pratique régulière d’une activité. Ce sont aussi des signes qui, comme un point
d’orgue, résonnent à la fin d’une scène en la prolongeant […]. »
155
Nesse capítulo pôde ser visto que o narrador proustiano é uma instância
importante na narração da Recherche porque é por meio de suas memórias que a escrita
da sua vida como ele se lembra dela acontece no tempo. Ou seja, todo o relato se concentra
nas memórias desse narrador e se constitui a partir da rememoração voluntária e,
principalmente, involuntária. O tempo perdido que é buscado pelo narrador, e que dá
título ao romance, é o tempo perdido para a consciência do protagonista da história
rememorada e narrada.
Sendo assim, dada a centralidade da figura do narrador na Recherche proustiana,
é possível afirmar que a escolha de Heuet pela linha clara em sua adaptação ajuda a
reforçar o protagonismo desse narrador. Isso acontece porque essa estética imagética,
com sua economia de detalhes e representação, consegue por em evidência a figura do
narrador na HQ em questão. Nesse sentido, a utilização desse recurso abre espaço para
que o leitor preste mais atenção ao texto, e principalmente aos recordatórios que dão voz
ao narrador, do que às imagens em si. Ou seja, o traço econômico adotado por Heuet não
só evita acrescentar preciosismos excessivos à linguagem literária já bastante intrincada
da frase proustiana, mas também cumpre a função composicional de direcionar a atenção
do leitor para as memórias do narrador da história, que são recontadas por meio dos
inúmeros recordatórios encontrados na HQ. Desse modo, se por um lado é função desses
recordatórios dar voz ao narrador que conta a sua vida como ele se lembra de tê-la vivido,
por outro lado é função das imagens se articular com essa narração para ao mesmo tempo
criar uma representação pictórica de parte dessas memórias e chamar a atenção para o
texto quando essa representação por imagens não está presente. Não se trata, portanto, de
subordinar a imagem ao texto ou vice-versa. Trata-se, antes disso, de uma articulação
bem pensada entre texto e imagem, que se complementam como um todo orgânico na
adaptação da Recherche para o suporte dos quadrinhos.
158
Considerações finais
Uma das constatações deste trabalho é que ainda há muito o que pesquisar sobre
as HQs de Heuet. De fato, o recorte feito na presente dissertação conseguiu cobrir apenas
os primeiros trabalhos do quadrinhista francês, de modo que o exame dos recursos
utilizados por Heuet para transpor o narrador da Recherche para o quadrinho, e as
soluções adaptativas encontradas por ele podem e devem ser investigadas mais a fundo
nas demais adaptações que ele já lançou e que ainda pretende lançar. O modo como o
traço heutiano tem se alterado, e mesmo evoluído, entre uma HQ e outra, por exemplo,
constitui um campo de pesquisa riquíssimo e pouquíssimo explorado por trabalhos
acadêmicos de maior fôlego como dissertações e teses. Apenas alguns resenhistas
mencionaram, bastante en passant, essa evidência de evolução no trabalho de Heuet, mas
nenhum deles chegou a desenvolver a questão e formular os termos dessa mudança de
maneira metódica e teoricamente fundamentada.
Outro rumo de pesquisa que pode ser apontado pelo presente trabalho, e que
poderia ser explorado mais detidamente em estudos futuros, tem relação direta com a HQ
franco-belga. Poderia ser formulada uma investigação a respeito da linha clara, suas
características estéticas e alterações ao longo do tempo. De fato, pode-se mesmo pensar
nos termos de uma evolução desse estilo à medida que a linha clara passou a ser usada
por diferentes autores. Nesse sentido, o segundo capítulo dessa dissertação pode ser de
especial interesse para pesquisadores que queiram realizar estudos futuros sobre a “nova”
linha clara, inaugurada a partir do final da década de 1970. Artistas como Jacques Tardi,
Ted Benoit, Joost Swarte, Theo van den Boogard, citados neste trabalho, usam a linha
clara como alicerce de sua produção, mas modificam essa estética imagética, imprimindo
nela seus próprios parâmetros artísticos. Isso equivale a dizer que eles acrescentam à essa
estética tradicional seus próprios estilos de composição. Sendo assim, um estudo de mais
fôlego comparando a estética da linha clara mais “tradicional” com a “nova” linha clara
mereceria ser feito.
Conclui-se, a partir da análise crítico-comparativa entre o texto da Recherche e as
HQs que o adaptam, que o narrador de Proust e o narrador de Heuet não são instâncias
completamente distintas, mas o meio pelo qual são representados o são. Isso porque
Proust e Heuet criam suas obras em suportes totalmente diferentes e, por conseguinte,
dispõem de meios totalmente distintos para criar a trama de suas obras, ou seja, Proust
tem a linguagem verbal à sua disposição para representar as idas e vindas da memória
159
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VALÈRY, Paul. Degas, dança, desenho. Trad. Christina Murachco e Célia Euvaldo.
São Paulo: Cosac Naify, 2012.
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WERTHAM, F. Seductions of The Innocent. New York: Reinhart & Company: 1954.
WOOD, M. ‘Tiens! Une madeleine?’ London Book Review. n. 20, v. 23, p.14-15, 1998.
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ANEXOS
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LA RECHERCHE EN BD
Stéphane Heuet
L’histoire
Âgé d’une vingtaine d’années quand j’étais dans la Marine militaire, j’avais eu l’occasion
de commencer à lire À la recherche du temps perdu : la cheville fracturée sur un navire
en Océan Indien, j’avais tout mon temps, et la bibliothèque du bord disposait de
l’ensemble des livres de La Recherche. Mais j’ai honte d’avouer qu’après la lecture des
quinze premières pages de Combray, le livre m’est tombé des mains d’ennui. Et c’est
ainsi que j’ai renoncé à lire cette œuvre dont on faisait tant de cas et dont je ne comprenais
pas même l’intérêt.
Cette idée, un peu farfelue j’en avais conscience, était toutefois étayée par la
conviction que la Bande Dessinée était un moyen efficace de faire découvrir Proust à ceux
qui étaient effrayés par sa réputation de difficulté, tout en restant fidèle au texte, ce qui
me semblait impératif tant le style est une composante importante du plaisir de la lecture
de ce livre. Je pensais par ailleurs que l’illustration documentaire permettrait à beaucoup
de ceux qui ont déjà lu La Recherche de voir à quoi pouvaient ressembler les lieux et
monuments qui ont inspiré Combray, Balbec, Doncières, le Paris de Swann, ainsi que la
rue La Pérouse, les œuvres d’art évoquées ou partiellement inventées etc.
C’est ainsi que j’ai pris un congé sabbatique d’un an (cela fait donc en quelque
sorte quinze ans que je suis en congé sabbatique) et ai commencé, seul, à scénariser, puis
dessiner. Ce n’était pas mon métier (je considère toujours que ce n’est pas mon métier :
j’adapte Proust en Bandes Dessinées, et quand ce sera terminé, je ferai probablement autre
chose que de la Bande Dessinée). Une fois une vingtaine de pages scénarisées, dessinées
et mises en couleurs, j’ai demandé les autorisations aux ayants-droit, puis ai proposé mon
projet à tous les éditeurs de Bandes Dessinées renommés. Tous ont refusé, sauf Guy
Delcourt qui, à l’époque, était un éditeur peu connu (il est depuis devenu l’un des plus
importants d’Europe). Il est aussi devenu mon ami.
A la sortie de Combray, le premier album, est paru dans grand quotidien un terrible
article, très critique, le premier article sur cette Bande Dessinée, qui m’a anéanti. Il y avait
des erreurs importantes dans cet article, mais je ne les voyais presque pas, je ne voyais
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que la mise en miettes de mon travail de trois ans. Et surtout, surtout, je ne comprenais
pas que c’était au contraire une chance immense : la véhémence un peu excessive de
l’auteur de cet article avait attiré l’attention d’autres journalistes qui, intrigués, ont lu
l’album, et publié des papiers très positifs en France dans la Presse Nationale, mais
d’autres aussi au Japon, aux États-Unis, en Grande-Bretagne etc. Depuis, et j’imagine
grâce à cette publicité que je ne souhaitais pourtant pas, ces albums sont édités dans une
vingtaine de langues dont le japonais, les deux chinois, l’indonésien, le coréen, le serbo-
croate…
La méthode d’adaptation
Il s’agit de sélectionner et d’équilibrer les parties à illustrer par rapport au texte.
Au fil de la lecture, crayon à la main, le texte peut avoir quatre destinées : devenir des
dialogues (des bulles), la voix off (le texte dans les cases couleur coquille d’œuf), des
images (les dessins dans les cases), ou disparaître, et c’est parfois terrible, car il m’arrive
de devoir privilégier des phrases “utiles” à la narration, au détriment de phrases
magnifiques. Je respecte scrupuleusement le déroulement de “l’histoire” et travaille mot
après mot pour rabouter les propositions, les “bouchées de souffle” en cherchant la
fluidité, avec bien sûr le souci de rester grammaticalement correct. En français, je
m’emploie à ne jamais couper les mots ce qui, allié au choix d’une typo proche de celle
de Tintin, donne un aspect facile à la lecture.
Les dimensions des cases sont déterminées par la longueur de ces propositions
grammaticales. Parfois, je répartis une même phrase en plusieurs bulles pour une lecture
fluide et un aspect moins massif du texte, et les dessins sont réalisés en fonction de la
disposition de ces bulles qui déterminent taille et forme des cases. En somme, je travaille
à l’envers par rapport à mes collègues auteurs de BD : textes d’abord, dessins
ensuite...Enfin, les textes en “voix off” sont inscrits dans des cases de couleur coquille
d’œuf.
Ces cases “coquille d’œuf”, c’est dans Blake et Mortimer, d’Edgar. P. Jacobs que
j’ai compris qu’elles pouvaient être importantes. Importantes parce qu’elles permettaient
d’inscrire un récitatif dans les cases, et importantes… en taille. Car si dans Tintin je
trouvais bien des “Pendant ce temps…” ou des “Le lendemain…”, dans Blake et
Mortimer, je lisais des “paperolles” somptueuses du genre : “Pendant que Blake volait
vers le Caire, ignorant les terribles dangers qui l’attendaient, Mortimer, déterminé à
contrecarrer les sombres desseins de l’impitoyable Olrik, se débattait avec l’énigme du
Boson de Higgs dont la formule pouvait sauver l’Humanité ”…
173
C’est dans ces cases coquille d’œuf que j’ai placé régulièrement, comme une sorte
de ponctuation, des ombres chinoises qui, apposées au texte, lui donnent un caractère
d’imparfait itératif. Ce sont dans mon esprit comme des hiéroglyphes, des signes
typographiques comme des lettres, à mi-chemin entre caractère d’imprimerie et dessin.
C’est ainsi qu’il y a les hiéroglyphes “fille de cuisine enceinte”, ou “accessoires de tenue
de soirée de Swann”, qui énoncent donc la durée d’un état ou la pratique régulière d’une
activité. Ce sont aussi des signes qui, comme un point d’orgue, résonnent à la fin d’une
scène en la prolongeant, ou annoncent, comme les trois coups du brigadier, le rideau qui
va se lever sur un nouvel acte.
Le travail graphique
Pour représenter les personnages, je m’appuie bien sûr sur les descriptions de Proust lui-
même, ou par l’imaginaire que ces descriptions suscitent. Je me sers beaucoup des photos
de Félix Tournachon (dit Nadar) qui a exécuté les portraits de Proust et sa famille mais
surtout du monde de Proust, des photos de tous les artistes et membres de la haute société
dont il s’est servi pour créer ses personnages. Et puis certains personnages se sont imposés
à moi lors de la lecture, comme Françoise, les tantes Céline et Flora, l’oncle Adolphe,
d’autres encore.
Certains passages ont été délicats, et d’autres, nombreux, le seront peut-être plus
encore. Je me souviens de certains passages redoutables : la scène des Jeunes Filles en
Fleurs où Andrée saute par-dessus le banquier a nécessité une construction complexe,
avec un retournement de point focal (j’avais besoin pour les situer de les montrer devant
le Grand-Hôtel donc, puisque elles venaient de l’ouest, allant de droite à gauche avec
l’hôtel en arrière-plan, puis de retourner le point de vue pour que le mouvement soit
dynamique, de gauche à droite). Dans Un amour de Swann, inventer la topographie de
l’hôtel particulier d’Odette pour permettre le jeu des fenêtres, ou créer le tableau “le Port
de Carquethuit” … oui, il y a des difficultés. Mais c’est toujours passionnant.
un par un, et les mets en couleurs en indexant très précisément les milliers de tons afin
qu’ils restent bien identiques d’un dessin à l’autre.
La place des bulles est très étudiée. Je travaille leur emplacement, leur taille, les
queues de bulles avec soin. Leur situation les unes par rapport aux autres est aussi pour
moi très importante, je ne veux pas, comme j’en ai parfois le déplaisir en tant que lecteur,
lire une réponse avant une question, ou simplement voir le rythme de la lecture, sa fluidité,
mise à mal par une hésitation sur la bulle à lire en premier.
Même si le texte, aussi bien que le dessin, expriment souvent déjà sans ambigüité
la colère, la surprise ou le doute, j’ajoute souvent points d’exclamation et d’interrogation,
comme dans les bandes dessinées moins littéraires ; j’imagine que c’est un code de la
bande dessinée qu’il faut respecter pour obtenir cet effet expressionniste, très explicite,
une forme de théâtralité à la Eisenstein.
Ce n’est pas parce qu’il s’agit de Bande Dessinée qu’il faut bâcler la typographie.
J’applique les règles typo, elles n’ont été fixées que pour une bonne intelligence de
lecture, et les espaces après les virgules, les petites capitales après les lettrines, les bas-
de-casse après les deux-points ou les points-guillemets et j’en passe, ça oui, c’est ma tasse
de thé !
Mais tout ce soin que j’essaie d’apporter à la forme du texte, aux bulles, aux règles
grammaticales, ce souci de ne pas couper les mots, rien ne doit être senti, le travail doit
être invisible. Je veux juste aider le lecteur à lire Proust facilement, sans qu’aucune
intervention “post-Proust” soit susceptible d’en altérer la lisibilité ; et ce doit être,
j’imagine, le même état d’esprit qui anime les éditeurs de La Recherche dans les éditions
classiques.
Cette série de Bandes Dessinées est ainsi un parcours où les initiés vont découvrir des
indices, des repères. Dans A l’ombre des jeunes filles en fleurs tome 2 page 14, par
exemple, sont dissimulées des références à Hergé : les Dupond-t dans le costume de
matelots du Secret de la Licorne, Milou dans la rue, l’échelle de Wagner dans le jardin,
le vase du Lotus bleu dans l’atelier ; et dans cet atelier, la panoplie de pinceaux, la palette
et le canapé sont une réplique de l’atelier de Monet à Giverny. Dans le même tome, page
22, parmi les invités à la petite matinée d’Elstir, peintre imaginaire, on reconnaît Monet,
Madeleine Lemaire, Delacroix, Courbet, Degas, Renoir, Boudin et Jongkind. La cuisine
de Swann, Quai d’Orléans, est celle de Claude Monet à Giverny, quant à la maison
d’Elstir, elle est en partie inspirée de la maison de Zola à Médan. Et je ponctue les albums
de nombreux de ces clins d’œil, de ces références à la peinture ou au cinéma, non par
“hommage”, mais pour multiplier les chances du lecteur de les identifier, de se sentir dans
175
un monde culturel connu. Tel indice remarqué par un lecteur ne le sera pas par son voisin
qui en remarquera un autre.
Pour dessiner les personnages, j’ai fait le choix improbable du style en “ligne
claire” pour les laisser les plus abstraits possible, afin que le lecteur puisse se glisser plus
facilement dans la peau du narrateur. J’avais été frappé par la démonstration du
philosophe Michel Serre passant la tête dans le rond découpé de la tête de Tintin (“Tintin,
c’est nous”). Et Scott McCloud a également montré que plus un personnage BD est
graphiquement simple, plus l’identification par les lecteurs, même de sexe opposé, est
possible. En réalité, c’est ce narrateur seul pour lequel cette simplification des traits
s’avérait nécessaire, ce qui permettait également de lui conserver un âge variable, voire
une identité physique indistincte, en évolution permanente ; et c’est pour harmoniser les
personnages de ces albums avec ce personnage unique que tous, à des degrés parfois
divers, ont cet aspect “BD Belge”. De fait, il n’est pas difficile de retrouver à Combray,
chez les Verdurin ou à Balbec des Nestor, des Séraphin Lampion ou des Senor de
Olivera…
Mes auteurs de référence, mes maîtres absolus sont donc Hergé pour les personnages, et
Edgar.P Jacobs pour les décors et les longs textes en voix “off” dans des cases coquille
d’œuf. Et pour le rêve Hugo Pratt, maître en aquarelle et encre de Chine.
Le projet
Pour l’instant, c’est à un pas de sénateur que je continue ce projet. Cette lenteur m’est
nécessaire. Certes, il reste beaucoup de travail à accomplir pour adapter toute La
Recherche, c’est évident, et il faudra que je vive très longtemps et en bonne santé pour y
parvenir. Mais au fond, que j’y arrive ou non n’est pas si important, le faire est un bonheur
quotidien. J’ai toujours été heureux professionnellement, mais jamais comme depuis que
j’ai entrepris cette adaptation.
D’autres œuvres littéraires sont, j’en suis convaincu, susceptibles d'être illustrées
en Bandes Dessinées ; des centaines : je pense à celles de Barbey d’Aurevilly, de Mauriac,
à tant d’autres… il y a du travail pour des dizaines d’années et pour quantité de scénaristes
et de dessinateurs. Ce n’est pas un effet de mode, c’est la maturité du public (donc du
marché, et des auteurs), qui permettra d’accomplir ce travail pour que survivent certaines
œuvres tombées en désuétude ; le temps qu’elles redeviennent à la mode, ou que ces
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adaptations elles-mêmes les ramènent à la lumière. Mais il faut que cela soit fait par des
passionnés de ces œuvres, c’est la condition sine qua none.
A RECHERCHE EM QUADRINHOS
Stéphane Heuet
A história
O método de adaptação
135
A edição integral de No caminho de Swann adaptada para narrativas gráficas foi publicada no
final de 2013 na França. Ainda não há previsão de lançamento no Brasil. N.T.
178
O trabalho gráfico
136
Cena na qual Swann, achando que Odette o traía, olhava para várias janelas do prédio onde
ela morava para tentar descobrir com quem a cortesã estaria. N. T.
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de Marville, uma verdadeira mina de ouro. Eu tenho, também, à disposição mapas muito
precisos de Paris antes dos trabalhos de urbanização do barão de Hassmann.
Tecnicamente, em relação à coloração, uso o Photoshop na maioria dos desenhos
feitos folha por folha. Eu os escaneio um por um e faço a coloração, escolhendo os tons
de forma precisa para que fiquem idênticos uns aos outros.
O local onde os balões são colocados é estudado minuciosamente. A localização,
o tamanho e os rabichos são inseridos com cuidado, pois todos esses elementos são
importantes uns em relação aos outros. Eu não gosto, como leitor, de ter o desprazer de
ler em um balão uma resposta antes de uma pergunta ou simplesmente ver o ritmo e a
fluidez da leitura do balão minados por uma hesitação colocada em locar incorreto.
Mesmo se o texto, e também o desenho, expressam, frequentemente, sem
ambiguidade, a cólera, a surpresa ou a dúvida, insiro com frequência pontos de
exclamação e de interrogação, como pode ser visto em histórias em quadrinhos menos
literárias. Eu imagino que esse seja um código dos quadrinhos que deve ser respeitado
para obter um efeito impressionista explícito, uma forma de teatralidade à Eisenstein.
Não é porque se trata de história em quadrinhos que é necessário descuidar da
tipografia. Eu adoto regras para isso. Elas só foram fixadas para que a leitura seja
inteligível: uso espaços depois das vírgulas, as letrinhas maiúsculas devem vir depois das
capitulares, as minúsculas depois de dois pontos ou de aspas. Isso, para mim, é um prato
cheio!
Mas todo esse cuidado que eu tento trazer à forma do texto, aos balões, às regras
gramaticais, essa preocupação de não cortar as palavras, nada deve ser sentido. O trabalho
deve ser invisível. Eu só quero ajudar o leitor a ler Proust facilmente, sem que nenhuma
percepção “pós-Proust” seja suscetível de alterar a legibilidade da obra. Esse deve ser o
mesmo estado de espírito, imagino, que entusiasma os editores da Recherche em edições
clássicas.
Eu procuro o mesmo prazer inconsciente do leitor, chamando a atenção para sua
cultura cinematográfica. Numerosos são os empréstimos feitos do cineasta italiano Luigi
Visconti como, por exemplo, Morte em Veneza nas Raparigas, O leopardo em Um amor
de Swann. Há empréstimos de outros filmes como de Titanic (tenho certeza de que os
estudantes perceberam) ou mesmo de O mensageiro de Joseph Losey. Esse movimento
também me anima na escolha dos planos de fundo que evocam quadros impressionistas:
os leitores da história em quadrinhos, como aqueles do texto original, devem ser
coniventes com isso, compreender as referências, localizá-las. A Recherche, quando a
leitura produz o efeito esperado, torna-se o livro pessoal do leitor. Como explica Proust,
o leitor deve ler-se a si mesmo.
Essa série de quadrinhos é, dessa forma, um percurso no qual os iniciados vão
descobrir indícios, marcas. Em À sombra das raparigas em flor – volume 2, na página 14,
são dissimuladas referências ao quadrinhista Hergé: os Dupond-t com traje de marujo em
O segredo do Licorne; Milou na rua, a escada de Wagner no jardim, o vaso do Lotus azul
no ateliê. Nesse local, a panóplia de pincéis, a paleta de cores e o sofá são uma réplica do
ateliê de Monet em Giverny. No mesmo volume, na página 22, dentre os convidados
matinais casa de Elstir, pintor imaginário, reconhece-se Monet, Madeleine Lemaire,
Delacroix, Courbet, Degas, Renoir, Boudin et Jongkind. A cozinha de Swann no Quai
d’Orléans é a de Monet em Giverny. Em relação à casa de Elstir, ela é, em parte, inspirada
na morada de Zola em Médan. Eu pontuo meus álbuns com várias referências gerais e,
também, à pintura e ao cinema. Faço isso não para homenagear as obras, mas para que o
leitor tenha chances de identificar essas referências, de sentir-se em um mundo cultural
conhecido. Cada leitor descobrirá referencias diferentes.
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O projeto
Por ora, é a passo de tartaruga que eu continuo esse projeto. Essa lentidão é
necessária para mim. Certamente há muito trabalho a ser feito para adaptar a totalidade
da Recherche. Será necessário que eu viva muito tempo e tenha uma boa saúde para
terminar isso, mas, no fundo, se eu conseguir ou não, nem é tão importante assim, pois
fazê-lo é uma felicidade diária. Eu sempre fui feliz profissionalmente, mas nunca fui tão
feliz desde que comecei essa adaptação.
Estou convencido de que outras obras literárias são suscetíveis de serem ilustradas
em HQ. Centenas, eu acho. Eu penso nas obras de Barbey d’Aurevilly, de Mauriac, e
tantos outros autores. Há trabalho para dezenas de anos e para uma boa quantidade de
roteiristas e desenhistas. Isso não é resultado de moda, é a maturidade do público (quer
dizer, do mercado e dos autores) que permitirá a realização desse trabalho para que certas
obras que caíram no ostracismo possam sobreviver. O tempo faz com que essas
adaptações voltem à moda, dando-lhes luz. Isso, entretanto, deve ser feito por
apaixonados por esses livros. Essa condição é sine qua non.
Proust, por usa vez, nunca sai de moda.
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182
Figura 75a - À la Recherche du Temps Perdu 6: Noms de Pays : Le Nom. Paris : Delcourt,
2013. p. 41.
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Figura 76a - À la Recherche du Temps Perdu 6: Noms de Pays : Le Nom. Paris : Delcourt,
2013. Vinhetas 1 e 2. p. 42.
198
Figura 77a - À la Recherche du Temps Perdu 6: Noms de Pays : Le Nom. Paris : Delcourt,
2013. Vinhetas 4 e 5. p. 43.
Figura 78a - À la Recherche du Temps Perdu 6: Noms de Pays : Le Nom. Paris : Delcourt,
2013. Detalhe da p. 46.