PAUL BERTRAND - UM CODA NA SEÇÃO DOS SURDOS DO CONGRESSO DE PARIS (1900) E SUA EXPERIÊNCIA COMO INTÉRPRETE Revisto

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PAUL BERTRAND: UM CODA1 NA SEÇÃO DOS SURDOS DO CONGRESSO DE

PARIS (1900) E SUA EXPERIÊNCIA COMO INTÉRPRETE

Eliane Telles de Bruim Vieira (UFES)2


José Raimundo Rodrigues (UFES)3
Katiuscia Gomes Barbosa Olmo (UFES)4
Lucyenne Matos da Costa Vieira Machado (UFES)5

RESUMO:
O “Congresso Internacional para o estudo de questões de assistência e de educação de surdos-mudos” ,
ocorrido de 06 a 08 de outubro de 1900, na cidade de Paris, foi organizado em duas seções: uma de ouvintes e
outra de surdos. Tal evento permanece pouco discutido no Brasil e, as atas da seção de surdos, ainda não foram
traduzidas para língua portuguesa. O evento de Paris (1900) impulsiona as pesquisas sobre educação de surdos
desde um horizonte que coloca em questão o Congresso de Milão (1880), sugerindo a necessidade de uma outra
narrativa sobre a educação de surdos. Diante disso, propomos como objetivo geral comentar o texto de Paul
Bertrand, coda e intérprete, intitulado “Reformas para o melhoramento social e intelectual dos surdos-mudos”,
apresentado na seção de surdos. Temos por objetivos específicos: analisar como o autor apresenta a história da
educação de surdos; rever os métodos utilizados e discutir como se estabelecia uma orientação para a vida social.
Servindo-nos do referencial teórico-metodológico foucaultiano, consideramos os documentos como monumentos
e tomamos o conceito-ferramenta de matriz de experiência para analisar o texto de Bertrand. A oportunidade de
traduzir e divulgar parcialmente o Congresso de Paris (1900) sugere futuras pesquisas em torno do que um coda
e intérprete apontou como questões essenciais para a educação dos surdos.

PALAVRAS-CHAVE: Paul Bertrand, CODA, Intérprete língua de sinais, História da educação de surdos,
Congresso de Paris (1900).

INTRODUÇÃO

Em 1900, na cidade de Paris, ocorreu o “Congresso Internacional para o estudo de questões de


assistência e de educação de surdos-mudos”. Tal congresso dá continuidade à prática já bastante
consolidada, no século XIX, de fazer coincidir reuniões científicas com exposições universais. Se, por
um lado, as exposições eram ocasiões de se publicizar os mais novos inventos das diversas partes do

1 Acerca do termo CODA, acrônimo de “child of deaf adult”, Maitê Silva (2019, p. 38) comenta: “Inicialmente,
é necessário compreendermos a origem do termo a partir da sigla em inglês CODA, que tem como significado a
expressão ‘filhos de pais surdos’. [...] no Brasil, não foi criada outra sigla ou palavra específica para nomear
esses sujeitos.”
2 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE). E-mail:
[email protected]
3 Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE). E-mail:
[email protected]
4 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (PPGE). E-mail:
[email protected]
5 Pós-doutorado em Educação pela UNISINOS; docente do PPGE-UFES. E-mail
[email protected]
mundo, os congressos completavam essa busca do conhecimento, focando, especificamente, nos
avanços teóricos, metodológicos e práticos de algumas áreas. Este evento pouco conhecido no
contexto mais amplo da história da educação de surdos reserva uma série de preciosidades que vão
desde a sua organização, passando pela sua realização e seus desdobramentos nos diversos países.

Uma das particularidades do Congresso de Paris (1900) é que nele se explicita muito
claramente a oposição entre surdos e professores de surdos, em sua maioria de tradição oralista e
defensores das deliberações tomadas no Congresso de Milão 6 (1880). Apesar da insistente tentativa
dos surdos de se realizar um encontro único ou que, ao menos, em um momento surdos e professores
de surdos pudessem dialogar sobre seus respectivos posicionamentos, o que se assistiu em Paris de 06
a 08 de outubro foi uma reunião dividida em duas seções: a de ouvintes e a de surdos. Evidencia-se
aqui, claramente, o acontecimento como um acontecimento discursivo no sentido de que o discurso se
faz uma ferramenta de poder nesse enredo poder-saber. Nas palavras de Foucault (2013, p. 137) “os
discursos são efetivamente acontecimentos, os discursos têm uma materialidade”. Sendo, então, um
evento, ou melhor uma acontecimento onde deve-se olhar para o discurso “o discurso da verdade,
como procedimento retóricos, maneiras de vencer, de produzir acontecimentos, de produzir decisões,
de produzir batalhas, de produzir vitórias” (FOUCAULT, 2013, p. 138).

No Brasil, somente as atas da seção de ouvintes foi publicada na Série Histórica do Instituto
Nacional de Educação de Surdos (INES)7. É no contexto de uma reunião intensa de debates e de
apresentações em que os surdos proporão vinte resoluções bastante distintas daquelas dos
congressistas ouvintes, que encontramos o texto de Paul Bertrand: Reformas para o melhoramento
social e intelectual dos surdos-mudos.

Assim, baseados na leitura de Bertrand (1900), podemos articular a formação de saberes, a


condução das formas de comportamento e a constituição dos modos de ser do sujeito que possibilitam
sua transformação a partir da experiência, ou seja, “a experiência como o que, a uma só vez, qualifica
o sujeito, o ilumina sobre si e sobre o mundo e, ao mesmo tempo, o transforma” (FOUCAULT, 2014,
p. 106).

Para Foucault (2011), a noção de matriz de experiência está fundamentada nos três eixos:
saber, poder e subjetivação. O autor enfatiza que a experiência é uma fabricação histórica, um produto

6 O Congresso de Milão, realizado na cidade italiana que dá nome ao evento, entre os dias 06 a 11 de Setembro
de 1880, considerou, após a deliberação entre os participantes, o método oral puro como o único e ideal para a
instrução dos surdos-mudos (VIEIRA; RODRIGUES, 2019).
7 A Seção dos surdos-mudos ainda não possui uma publicação em língua portuguesa, mas Rodrigues (2018) a
analisou em sua dissertação de mestrado. Cf. RODRIGUES, J. R. As seções de surdos e de ouvintes no
Congresso de Paris (1900): problematizações sobre o pastorado e a biopolítica na educação de surdos.
Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós-graduação em Educação - Centro de Educação -
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória-ES, 2018.
das relações, dos espaços, do entrecruzamento de saber e poder nesta trama se forja o sujeito dos jogos
de verdade.

Dito de outro modo, a partir do conceito-ferramenta da matriz da experiência, é possível


compreender o lugar no intérprete de língua de sinais, no final do século XIX, como um indivíduo a
ser transformado e conduzido pelas ações resultantes das deliberações do Congresso de Paris (1900). É
válido mencionar que, neste texto, e tendo como referência analítica a matriz da experiência propomos
comentar o texto de Paul Bertrand, coda e intérprete.

Uma aproximação biográfica

Por vezes os documentos históricos nos fornecem vestígios, rastros. Não constam nas atas da
seção dos surdos os dados biográficos dos participantes. Alguns sequer têm seus nomes completos
listados ou, como na situação das mulheres, apresentadas apenas como esposas, tendo somente
referência aos sobrenomes masculinos. É o texto mesmo de Bertrand que nos permite conhecer um
pouco de sua biografia.

As atas trazem após o título do trabalho de Paul Bertrand os designativos que o qualificavam a
se pronunciar no evento: Secretário-intérprete da Associação de Surdos-Mudos da Normandia e
membro da Federação Francesa de Surdos-Mudos. A condição de intérprete de Bertrand nos coloca
em contato com certa profissionalização da função. Ele exerce um cargo oficial, em nome de uma
instituição, possivelmente, atendendo às diversas demandas dos surdos da região. Há, portanto, um
deslocamento do exercício da interpretação de maneira informal para a ocupação e reconhecimento de
um cargo, talvez remunerado, em uma associação.

Mas o que qualifica Bertrand para o trabalho como intérprete? Bertrand é um coda, como se
depreende de sua afirmação ao final de seu estudo onde se posiciona sobre o casamento entre surdos.
Dessa condição de suposto “intérprete natural”, Bertrand, cuja idade na época não é mencionada,
coloca-se noutro patamar ao sair da mediação de seus pais com a sociedade e, certamente, de outros
surdos, para ocupar o lugar de mediador entre os surdos da associação e a sociedade. A referência à
Associação Fraterna de Surdos-Mudos da Normandia, criada em 1891 por Louis Capon (GAILLARD,
1894) aponta para uma organização resistente por parte dos surdos no período pós-Milão,
preocupando-se, para além das questões linguísticas com as questões de empregabilidade dos surdos 8.

8 “O Sr. Louis Capon começou fundando uma casa educacional para surdos-mudos que poderia competir com o
Instituto Nacional de Paris, se não em tamanho, pelo menos em qualidade. Mas dedicar-se exclusivamente à
educação dos surdos-mudos parecia-lhe uma obra incompleta; também buscou meios para patrociná-los e
garantir colocação social quando saíssem de seu estabelecimento, para auxiliá-los em caso de doença ou
desemprego, auxiliá-los com seus conselhos em assuntos graves, como processos, etc.; enfim, dar-lhes meios de
se sustentar quando a velhice os condenar à inércia e até mesmo assegurar-lhes um sepultamento adequado para
Bertrand também é apresentado como membro da Federação das Sociedades Francesas de
Surdos-Mudos. Sugere-se, pois, seu vínculo com um movimento mais amplo. Assim, atuando
localmente na Associação de Surdos da Normandia e a nível nacional na Federação Francesa, Paul
Bertrand nos sugere uma organização dos surdos bastante coesa no final do século XIX. Pretendemos
recorrer ao conceito-ferramenta de matriz da experiência para analisar o texto de Bertrand e as práticas
que possibilitaram sua constituição como intérprete e coda (ou coda e intérprete), a análise das
normativas de comportamento no contexto em que estava inserido, as ações do governo e as práticas
de condução que o levaram ser subjetivado a ser um mediador na comunicação entre os surdos e não
surdos.

Esses vestígios da biografia de Bertrand nos ajudam a compreender como a resistência surda
estava organizada e como as associações permitiam a união dos surdos e a preservação das línguas de
sinais. Caso contrário, não se necessitaria de um intérprete. A menção à federação nacional comprova
ainda que havia uma rede bastante integrada entre os surdos, dando-lhes certa visibilidade e também
respaldo quando apresentavam suas demandas. Essa institucionalização de espaços testemunha o
caminho feito pela comunidade surda e parte de uma história a ser ainda melhor valorizada. Da
biografia de Bertrand passemos aos conteúdos do que ele nos apresenta em seu texto.

Um herdeiro da história da educação de surdos

Bertrand, de forma sucinta, retoma a história da educação de surdos manifestando sua


felicidade por perceber que em 1900 os surdos tinham acesso à educação. Na sua concepção isso
significava um progresso civilizatório que contrastava com o contexto anterior às primeiras iniciativas
do abade L’Épée quando os surdos estavam alijados da escolarização.

Apesar de ver os avanços da escolarização dos surdos, permitindo-lhes o acesso a diversas


profissões, retoma criticamente a legislação francesa e sua inaplicabilidade. Bertrand menciona a
Resolução da Convenção Nacional 9, de 28 de junho de 1793, que assumia a criação de seis escolas
para surdos, adotando-os como filhos da França. Contudo, em 1900, apenas três das seis escolas
haviam sido construídas. Recorda ainda um decreto da assembleia constituinte de 1791 10 em que se

a morte. Para tanto, para esses fins, devemos dizer, porque, como podemos ver, seus objetivos são múltiplos, ele
fundou a Associação de Surdos da Normandia, que é um modelo do gênero.” (GAILLARD, 1893, p. 67-68)
9 Essa resolução é retomada em vários documentos acerca de projetos de criação de escolas, como por exemplo,
BAGUER, G. Écoles pour sourds-muets et aveugles. In: La Revue Philanthropique. Paris: Masson et Cie,
1904, p. 427. Conforme Alezrra (1986, p. 9), “a implementação desta decisão foi decepcionante. Nenhuma
escola é construída, apenas duas instituições existentes tornam-se instituições nacionais”. Não conseguimos
localizar tal Resolução. Acreditamos que, possivelmente, trata-se de alguma deliberação que complementava a
declaração de direitos apresentada na Convenção Francesa de 1793.
10 Bertrand refere-se ao Decreto relativo ao abade L’Épée e ao seu estabelecimento em favor dos surdos-
mudos e dos nascidos cegos, datado de 21 de julho de 1871. In: WATTEVILLE, A. de. Législation charitable,
ou Recueil des lois, arrêtés, décrets, ordonnances royales, avis au Conseil d'État: circulaires, décisions et
fazia menção em transformar a escola do abade L’Épée em instituto nacional. As citações dessas
deliberações governamentais mostram como Bertrand compreendia o movimento dos surdos numa
continuidade histórica entre relações de poder permeadas por uma busca de apoio na legislação.

Em 1900, Bertrand, enquanto coda, resgata o passado, sente-se herdeiro de uma comunidade,
assumindo junto com os surdos um processo em que a luta pela educação não se concretizou conforme
proposto e ainda trazia um obstáculo antigo em relação à administração das escolas de surdos: “De
onde vem que suas escolas, suas instituições, sejam colocadas nas atribuições do Ministério do Interior
e não no da Instrução Pública e, portanto, consideradas como instituições de caridade?” (BERTRAND,
1900, p. 216). Os surdos eram considerados como sujeitos destinados a uma educação especial feita
nos institutos. Percebe-se como a verdade acerca da educabilidade dos surdos desde um horizonte
biomédico influenciava nessa questão.

O sujeito dizendo a verdade, se manifesta, e com isso quero dizer, representa a si mesmo e é
reconhecido pelos outros, como dizendo a verdade. Não se trataria, de modo algum, de analisar
quais são as formas do discurso, tais como ele é reconhecido como verdadeiro, mas sim: sob que
forma, em seu ato de dizer a verdade. o indivíduo se constitui e é constituído pelos outros como
sujeito que pronuncia um discurso de verdade, sob que forma se apresenta, aos seus próprios olhos
e aos olhos dos outros, quem diz a verdade, [qual é] a forma do sujeito que diz a verdade.
(FOUCAULT, 2011, p.4)

Paul Bertrand, enquanto sujeito da verdade, sujeito que está no jogo de verdades, protesta
contra uma situação que se arrastava por anos e que acreditava poderia receber apoio em um evento de
porte nacional como o congresso de surdos. Ao tratar especificamente sobre o ensino, Bertrand afirma
que a instrução só se tornará obrigatória para os surdos quando as escolas destinadas aos surdos
estiverem sob jurisdição do Ministério da Instrução. Portanto, discute a subjetivação dos surdos não
mais como sujeitos “anormais” destinados a uma educação distinta, mas como sujeitos capazes de
aprender e a quem se deferia oferecer uma educação outra.

Bertrand usa o recurso da estatística para mostrar que proporcionalmente à percepção do


número de surdos pelo mundo seria necessário pensar meios adequados para educá-los:

A superfície do globo carrega uma população de 1.200.000 surdos, dos quais uma parcela de
500.000 apenas para a China, 80.000 para a Alemanha, 50.000 para a França, etc., e o número está
aumentando a cada dia. Os meios a serem empregados para a melhoria de sua sorte devem,
consequentemente, corresponder à lamentável eloqüência dos números. (BERTRAND, 1900, p.
116)

Essa citação sugere-nos que o lugar de intérprete na associação de surdos e sua


vinculação com a federação francesa de surdos possibilitou a Bertrand amplo acesso a

instructions des ministres de l'Intérieur et des Finances, arrêts de la Cour des comptes, etc., etc., qui régissent les
établissements de bienfaisance. Paris: Paul Dupont, 1843, p. 9-10.
informações sobre a situação dessa parcela da população no mundo. Demonstra ainda como
havia uma rede de comunicações entre institutos, associações e federações, permitindo um
intercâmbio de ideias e de práticas. E, por fim, mostra como no jogo de saberes se fazem
necessários argumentos que se reportem à verdade biopolítica.

Podemos dizer que Bertrand é sobretudo o sujeito da experiência, sujeito no sentido de


assujeitado a partir de atravessamentos em si, de vivências. Vivência familiar, enquanto coda,
vivência profissional enquanto secretário-intérprete e vivência militante enquanto vinculado a
associação e federação, bem como, participante de eventos nacionais e internacionais sobre a
condição educacional e social das pessoas surdas. Sendo ele, subjetivado a partir dos modos
como se relacionou nos espaços e nos jogos saber e poder que produz em si um efeito, sujeito
de um resultado histórico, fabricado no emaranhado das relações que fabricam suas verdades,
suas práticas e conduzem seu comportamento...em sua interioridade - “experiência de si”:

[...] o resultado de um complexo processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os


discursos que definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu comportamento e as
formas de subjetividade nas quais se constitui sua própria interioridade. [...] A experiência de si,
historicamente constituída, é aquilo a respeito do qual o sujeito se oferece seu próprio ser quando
se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se julga, se narra, se domina, quando faz
determinadas coisas consigo mesmo etc. E esse ser próprio sempre se produz com relação a certas
problematizações e no interior de certas práticas. (LARROSA,1994, p. 43)

Foucault (2013, p.145) apresenta como somos atravessados pela relação de poder, “a
relação de poder passa por nossa carne, nosso corpo, nosso sistema nervoso.” Dobrado e
conduzido pelas práticas nesse enredo que traduz-se por jogos de verdades, Bertrand é sujeito
assujeitado ao seu tempo, pelas forças poder-saber que o constituem. Neste espaços
acontecimento de 1900, ambiente fértil para o governamento, a partir da fabricação de
verdades que visa conduzir os indivíduos surdos. Foucault, apresenta esse engendramento
entre a manifestação da verdade e o exercício do poder como:

[n]um conjunto de procedimentos verbais ou não, através dos quais é atualizada a consciência
individual do soberano e o saber de seus conselheiros; um conjunto de procedimentos verbais ou
não através dos quais atualiza-se qualquer coisa que é afirmada, ou melhor, colocada como
verdadeiro, seja por oposição a um falso que foi eliminado, discutido, refutado etc., mas que é
também colocado como verdadeiro por revelação ou ocultação, por dissipação disso que é
esquecido, por conjuração do imprevisível (FOUCAULT, 2010, p.35).

Uma retrospectiva dos métodos de educação de surdos e materiais


Bertrand compreende que a educação destinada aos surdos deve ser a mesma ofertada aos
ouvintes para que possam ingressar na vida social e estabelecerem relações não só com outros surdos,
mas com a sociedade em geral. Se esse direito parecia assentar-se numa decisão aceita por todos, a
questão dos métodos permanecia como um dilema.

A retrospectiva dos métodos utilizados na educação de surdos, apresentada por Bertrand,


coloca-nos diante de elementos pouco conhecidos 11. Bertrand menciona São João de Beverley que, por
volta do ano 700, teria ensinado um surdo a falar; Rodolphe Agricola que, em 1495, relata um surdo
que se comunicava pela escrita; Juan Pablo Bonet que, em 1620, publica A arte de ensinar os surdos
a falar. Essas três referências históricas servem para Bertrand apontar para uma trajetória que,
passando por L’Épée, e pela valorização dos sinais, culmina em Milão com a opção pelo método oral
puro:

Por uma compreensão natural, fomos tentados a fazer o surdo-mudo falar assim que reconhecemos
que só havia silêncio porque havia surdez, e que a fala podia ser feita. Oficialmente então, sobre a
fé dos relatos, porém, cheios de erros, uma vez que não levam em conta as inteligências e os
diferentes casos de surdos-mutismos, assim forçou-se o ensinamento exclusivo pelo método oral
puro. (BERTRAND, 1900, p. 217)

Na compreensão de Bertrand, jamais um método deveria ser assumido como o único a ser
utilizado por todos os surdos. O surdo, por sua condição, é quem deveria definir o melhor método para
sua instrução. Assim, ele sugere a seguinte alternativa:

1º- Que a instrução pelo método oral puro deve ser aplicada ao aluno que já falou em sua infância
e que uma causa acidental, mais tarde, o tornou surdo; 2º- Que o método misto seja usado para a
pessoa nascida surda-muda, mas com várias aptidões; 3º- Que a linguagem apenas pelos sinais seja
o meio de instrução daquele a quem uma natureza duplamente madrasta teria recusado qualquer
faculdade de emissão de sons inteligíveis. (BERTRAND, 1900, p. 218)

Bertrand manifesta uma preocupação pedagógica ao se deter sobre as questões da escola, do


livro, do professor e dos externatos. Para Bertrand, a escola para surdos deveria se assemelhar a um
museu, ou seja, a educação se daria, prioritariamente, pela valorização do aspecto visual, permitindo
que os surdos pudessem ver e tocar os diversos objetos. Tem-se aqui a apropriação de uma relação
entre órgãos da visão e inteligência que permitiria o melhor desenvolvimento dos surdos. Portanto,
sugere também um modo de subjetivação dos surdos.

O livro didático deveria ser conciso e ilustrado ou com exemplos, possibilitando que os surdos
compreendessem melhor os conteúdos propostos. Bertrand serve-se da questão do livro para fazer uma
comparação acerca do papel do professor: “Mas ainda assim, o melhor livro escolar é o próprio
professor, que deve se concentrar no grau de inteligência de cada aluno; existe uma tarefa difícil, mas
nobre, a ser cumprida; não pode ser uma profissão, mas um apostolado como seu papel”

11 Importante notar que a história da educação de surdos permanece como terreno ainda a ser aprofundado. As
menções feitas por Bertrand descortinam um horizonte historiográfico rico, mas que devido a pouca pesquisa e
ao fato de a maioria das fontes estar em língua estrangeira, constitui-se ainda um desafio no Brasil.
(BERTRAND, 1900, p. 219). O professor é valorizado enquanto essencial para a escolarização dos
surdos, mas, apesar da crítica que Bertrand faz ao fato dos institutos estarem vinculados a instituições
de caridade, lança sobre o papel do professor essa dimensão caritativa. Novamente, não se trata apenas
de subjetivação dos surdos, mas também dos que com eles atuam.

Sobre os externatos, Bertrand os pensa como substitutos dos internatos e como forma concreta
de socializar os surdos. Para ele, seria necessário que nas cidades existissem escolas mistas com aulas
especiais para surdos, possibilitando, por exemplo no recreio, as trocas entre surdos e ouvintes. A
preocupação com a inclusão na sociedade se verifica ainda mais no último argumento de Bertrand a
favor dos externatos:

O estudante surdo-mudo poderia sair da escola todos os dias para morar com a família na mesma
proporção que os outros. Esta é a melhor maneira de oferecer-lhe um relacionamento constante
com os ouvintes-falantes e, assim, oferecer-lhe os melhores serviços para o futuro. (BERTRAND,
1900, p. 219)

A preocupação com o futuro dos surdos, na compreensão de Bertrand, passa pela educação.
Por isso, critica a falta de uma educação profissional e, diante da lentidão para se solucionar o
problema, que os surdos pudessem fazer estágios nas escolas profissionalizantes já existentes e
também participar de alguns cursos nas escolas de Belas Artes. E, adentrando na dimensão social,
afirma:

Todas as profissões são boas para os surdos-mudos. Algumas, no entanto, estão fechadas para ele
porque a audição é um órgão indispensável às vezes. O melhor, e que elimina qualquer
inconveniência deste tipo, são as profissões de escultor, desenhista, tipógrafo, contador, etc. O
trabalho do tipógrafo é especialmente instrutivo, pois ele aprende a se familiarizar com a
linguagem literária. (BERTRAND, 1900, p. 219-220)

As associações de surdos: único progresso dos últimos anos do século XIX

Bertrand se dedica a pensar a vida dos surdos na sua totalidade. Após ter falado sobre a vida
escolar e também sobre a carreira profissional, ele se detém nas associações de surdos. Elas
representam um apoio para os surdos que concluíram os estudos nos institutos e se vêem colocados em
meio à sociedade. Ele sugere que os surdos as procurem para que, através delas, consigam
encaminhamento para postos de trabalho. Seria, portanto, tarefa das associações estabelecer contatos
com industriais e mediar aquilo que a escola não realizou para os surdos. O acesso ao trabalho,
constituído em meio a relações de poder, exigiria essa iniciativa.

As associações seriam espaços também de intercâmbio entre surdos e ouvintes: “Essas


associações, melhor entendidas, seriam um encontro de surdos e ouvintes. Os surdos sozinhos seriam
favorecidos pelos estatutos. Os ouvintes seriam membros honorários admitidos como amigos e
assistentes de fala” (BERTRAND, 1900, p. 220). Numa sociedade em que ser surdo constituía-se
como certa anomalia a ser corrigida, Bertrand sugere uma proximidade que rompa com essa
perspectiva e produza novas relações e novas subjetivações.

O lugar do intérprete reaparece claramente na sugestão de Bertrand de que cada associação


tivesse um secretário-intérprete a quem competiria “fazer conferências, representá-las em seus
encaminhamentos, divulgá-las e recrutar membros honorários e por toda a vida” (BERTRAND, 1900,
p. 220). Após onze anos de eventos organizados pelos surdos, na leitura de Bertrand, ao mencionar os
dois primeiros congressos internacionais, o de Paris (1889) e o de Chicago (1893), bem como o
congresso nacional de Viena12, conclui que as associações foram o único progresso perceptível em
relação aos surdos, pois as demais deliberações parecem não terem se concretizado. Podemos, pois,
concluir que as associações foram naquele período, especificamente, uma forma de resistência em
relação às deliberações aprovadas em Milão (1880).

A vida matrimonial

Ainda ao tratar da vida social dos surdos, Bertrand discorre sobre os casamentos. É justamente
dessa parte que podemos depreender que se trata de um coda. Nosso intérprete coloca-se a favor dos
casamentos mistos, ou seja, aqueles entre surdo(a) e ouvinte. Ele se justifica recordando que “um dos
cônjuges supera a desvantagem do outro” (BERTRAND, 1900, p. 221). É digna de nota essa assertiva
de Bertrand de que no casamento misto, ambos os cônjuges, seja o ouvinte ou o surdo sofrem de
alguma desvantagem. Bertrand não vê o membro surdo do casamento como mais debilitado que o
ouvinte, mas os considera em situação de igualdade.

O argumento de Bertrand a favor dos casamentos mistos se alicerça ainda nas facilidades que
eles trariam para a vida profissional dos surdos e para a educação dos filhos, sejam surdos ou ouvintes.
Por fim, ao falar de sua experiência pessoal como filho de uma casal de surdos, condena a união de
dois surdos por considerar que causa prejuízos para os filhos. Estaria aí uma subjetivação coda
marcada por uma angústia em relação ao ser “intérprete natural”? Bertrand não o explicita.

Considerações finais

O texto de Bertrand nos coloca em contato com a realidade de um coda e intérprete e sua
compreensão acerca da educação de surdos e sua inserção na sociedade. São poucas as referências
históricas sobre a função de intérprete de língua de sinais, mas parece-nos que no relato de Bertrand se
confirma certa associação imediata do poder, saber e subjetivação sob a perspectiva analítica

12 Bertrand não menciona a data deste congresso. Ao que nos consta em 1874 foi realizado em Viena um
congresso de surdos.
foucaultiana na experiência de ser coda e ser intérprete.

No decorrer de sua narrativa compreendemos as relações de poder permeadas por uma busca e
apoio na legislação educacional francesa em favor da educação dos surdos. É possível dizer que, no
âmbito das associações de surdos, considerado por Bertrando um espaço de intercâmbio, imperavam
práticas de normatização que marcavam o lugar surdo e do ouvinte na sociedade. Ao depreendermos
que Bertrand era coda, herdeiro das lutas e das vivências dos surdos, somos levados a entender as
práticas que o levaram a ser subjetivado como coda e intérprete de língua de sinais naquele contexto.

Dentre a riqueza de informações que um texto tão conciso oferece, Bertrand nos permite
compreender que o desejo de oralizar os surdos foi se constituindo dentro de uma regularidade, não
sendo algo dado apenas em Milão, no ano de 1880. A sua clara opção pelo método misto sugere-nos
que, ao ter o surdo como centro da decisão sobre os métodos, Bertrand valoriza o uso de sinais, mas
também entende que os surdos devem se apropriar daquilo que melhor lhes conduza à plena
escolarização e inserção social.

Para Bertrand, a escola é espaço de preparação para o mundo do trabalho e, por isso, os surdos
deveriam ter acesso à mesma educação que os ouvintes recebiam. Além disso, há uma clara
preocupação com a vida profissional e, diante das dificuldades, Bertrand não apenas prospecta sobre a
vida dos surdos como sugere intervenções concretas a serem feitas para que possam conseguir um
trabalho que os sustente e assegure dignidade profissional e familiar.

Por fim, o texto de Bertrand nos aproxima de uma forma clara de resistência da comunidade
surda. Se Milão (1880), para muitos foi uma investida na oralização dos surdos via escolarização, o
texto de Bertrand nos mostra que as associações de surdos se constituíram como legítimos espaços de
conservação e apropriação das línguas de sinais, em intercâmbio com outras associações, formando
um grupo bastante coeso que, aberto também aos ouvintes, procurava maneiras outras de ser na
sociedade a despeito da precária educação que lhes era oferecida, das relações e correlações de saber-
poder e jogos de verdade que os constituíam.

REFERÊNCIAS

ALEZRRA, Michèle. Les enfants infirmes: a Lyon au XIXe siécle. (Memoire de maitrise d’histoire
contemporaine) Université Lyon - Lyon, 1986.

BAGUER, G. Écoles pour sourds-muets et aveugles. In: La Revue Philanthropique. Paris: Masson et
Cie, 1904,

BERTRAND, Paul. Réformes pour l'amélioration sociale et intellectuelle des sourds-muets. In:
GAILLARD, H.; JEANVOINE, H. Congrès International pour l’Etude des Questions d’Assistence
et d’Education des Sourds-Muets (section des sourds-muets). Compte rendu des débats et relations
diverses. Paris: Imprimerie D’ouvriers Sourds-muets, 1900. p. 215-221.

GAILLARD, H. Le Second Congrès International des Sourds-muets: Chicago - 1893. Paris: Aux
bureaux du Journal des sourds-muets, 1893.

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