Aula 04 - Matéria Grave (Revisando)

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Confissão

Matéria Grave
ANTÔNIO DONATO

Aula 4

[versão provisória]
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor, não cite nem divulgue esse material.

Na aula passada estávamos falando da distinção do que é pecado grave ou mortal e do que é pecado
leve ou venial. Estávamos falando que a Confissão nos obriga a nos arrependermos, a fazermos
propósito e a nos acusarmos de todos os pecados mortais, sem exceção. A Confissão nesse sentido
tem de ser universal. Não se pode arrepender-se de parte dos pecados graves e ser perdoado, por
ocasião de estar confessando-se, para somente depois de absolvido, arrepender-se da outra parte dos
pecados graves. No caso dos pecados mortais, tem de ser tudo ou nada – é uma ruptura definitiva.
Falamos que existem outros pecados, que se chamam veniais, que seria muito bom que nos
arrependêssemos e fizéssemos o mesmo propósito. Mas para muitas pessoas, principalmente as que
estão começando, isso seria um peso impossível de ser contornado, uma barreira impossível de ser
vencida. Isso impossibilitaria que a maioria das pessoas se confessassem, impossibilitaria a
conversão.
Porém, de fato, não é por causa disso; não é esse o verdadeiro motivo. De fato, pela natureza das
coisas, veremos que não há absolutamente a necessidade, para que possamos receber a graça, de nos
arrependamos e fazermos propósito de [abandonar] todos os pecados veniais, sem a absoluta exceção.
Se fosse obrigatório, seria um absurdo abrir-se uma exceção. Se fosse de necessidade intrínseca da
coisa, eu teria de dizer que é dificílimo, que não tem outra maneira: ou é assim, ou você está perdido.
Mas de fato não é. Para que possamos receber a graça, o sacramento da Confissão e o perdão dos
nossos pecados, basta nos arrependermos de todos os pecados mortais, sem exceção alguma.
Exatamente por causa disso, é muito importante entendermos a natureza do que é pecado grave e
distingui-la do que é pecado leve, para que possamos fazer as coisas direito. Dentro dessa linha, na
aula passada, estávamos dizendo que, para haver pecado grave, tem de haver plena advertência, pleno
consentimento e matéria grave. Isso é doutrina do catecismo, é doutrina universal da Igreja e tem de
ser sabido de cor, porque são elementos da doutrina cristã que todos os cristãos saber sem
esquecimento para a própria facilidade de seu adiantamento espiritual. Na aula passada, falamos do
que é plena advertência e pleno consentimento. Portanto, falta-nos falar do que é matéria grave.
Esta aula tem mais de filosofia, mais de conteúdo doutrinário, teológico-filosófico. É muito
importante que a entendamos bem porque isso vai ser uma bússola para orientar os nossos passos no
início da vida espiritual.
O que se chama de matéria grave normalmente se distingue de matéria leve, também de outra coisa
que chama-se imperfeição. De modo geral, o que chamamos de pecado é uma transgressão da ordem
proveniente de Deus. A ordem do universo, a ordem da natureza, a ordem das coisas, a ordenação
que existe dentro da alma humana, da natureza humana para com todo o universo, isso tudo vem de
um primeiro princípio que é Deus. Então, em última análise, quando transgredimos a ordem, estamos
indo contra Deus. A ordem da natureza vem do primeiro princípio, que é Deus.
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São Tomás de Aquino fala dos modos pelos quais podemos provar a existência de Deus, das cinco
vias. A primeira via é a do movimento, que demonstra que tudo que se move, é movido por outro;
então se chega a um primeiro motor. A segunda via é a da causalidade. A terceira via é a contingência.
A quarta via é a dos graus do ser. A quinta via é a da ordem. Isso tudo eu só estou citando a título de
resumo. Discutir as vias é uma coisa muito profunda. Entretanto, podemos demonstrar que todas as
cinco se baseiam na primeira via, quer dizer, a verdadeira maneira do ser humano poder provar que
Deus existe por argumentos racionais, é através demonstração da via do movimento. Se sofisticarmos
essa via, caímos na via da causalidade. Se sofisticarmos a via da causalidade, caímos na via da
contingência. Se sofisticarmos a via da contingência, caímos na via dos graus do ser. E se
sofisticarmos a via dos graus do ser, caímos na via da ordem. Essa via da ordem, que é a mais ampla,
mais profunda e mais complexa, que se baseia, contudo, sem que percebamos, na primeira via, é
normalmente aquela maneira intuitiva pela qual as pessoas em geral percebem que Deus existe. Os
camponeses, as pessoas simples, principalmente aquelas que tiverem contato com a natureza e não
foram deformadas ideologicamente por uma escola, quando elas veem a natureza, quando veem a
ordem das coisas, elas percebem que todas as vezes que as coisas estão ordenadas, alguém assim as
fez, elas percebem que não existem coisas inteligentemente ordenadas sem haja um ordenador. Então,
vendo que existe na natureza uma ordem muito maior, elas dizem: “Alguém fez isso”. Esse primeiro
princípio que botou essa ordem na natureza das coisas, o princípio dessa ordem, é Deus.
Na verdade, sem reduzirmos isso à primeira via, o argumento não é muito convincente, pois às vezes
pode haver uma ordem casual. Apesar de quê, quanto mais a ordem é complexa, a chance de haver
uma causalidade é cada vez menor. Ou seja, em última análise, para mostrarmos toda a força
probatória disso, é preciso reduzir isso a primeira via. Porém, para as pessoas simples, as que não são
capazes dessas sutilezas, elas normalmente se convencem; elas têm o sentimento racional de que
existe Deus [apenas estando] diante da ordem do universo. Esse sentimento é correto, lícito e válido.
Só que geralmente as pessoas não têm a profundidade metafísica [0:10] para, reduzindo à primeira via,
perceber que esse argumento é plenamente válido. Quer dizer, esse sentimento que as pessoas têm da
ordem para com Deus é totalmente legítimo.
Voltando ao que estávamos falando. Quando dizemos que um pecado é uma transgressão da ordem,
como essa ordem está intimamente relacionada com Deus – ela não existiria se não fosse Deus, é
através dessa ordem que o homem simples vê a Deus –, transgredir essa ordem, é ir contra Deus –
dependendo, claro, de como a entendemos, isto é, se a entendemos enquanto ordem da natureza
mesma. A interface do homem que vive em graça com Deus é a fé. A interface do homem comum,
racional, independentemente da fé, é a ordem da natureza. A interface do homem sábio que não
necessariamente vive a vida da graça, seria a metafísica, no qual ele mergulharia nas primeiras vias
– se é que pode existir uma coisa dessas; na prática, não é possível um sábio sem a graça, estamos
aqui supondo que existisse. De qualquer maneira, o que estou querendo dizer é que colocarmos o
pecado como transgressão da ordem é muito válido e equivale a colocar o pecado como uma
transgressão de Deus. A propósito, de fato, nós não conseguimos transgredir contra Deus, pois Ele é
inatingível. O que podemos é transgredir a interface com Ele, que é justamente a ordem.
Isso é importante porque podemos dizer o seguinte: todas as vezes que existir uma transgressão contra
a ordem natural, há um pecado. Notem, pecado é uma transgressão da ordem. Nesse sentido,
poderíamos dizer que o que chamamos de pecado venial necessariamente é uma transgressão da
ordem. Ou seja, todo pecado venial é uma transgressão de alguma ordem. A ordem da natureza, a
natureza humana, a natureza das coisas, a natureza da sociedade era tal e houve uma ruptura com ela.
No mínimo isso é um pecado venial.
Falamos que o pecado venial está entre a imperfeição e o pecado mortal. O que é a imperfeição? A
imperfeição não é a transgressão de uma ordem. A imperfeição ocorre quando se pode fazer
determinada coisa de melhor maneira do que se está fazendo e não se faz. Contudo, na imperfeição
não é visível nenhuma transgressão de ordem.
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Coloquemos isso tudo em exemplos, de maneira bem simples. Digamos que você é um entregador de
pizza contratado pela pizzaria. Você vai, entrega a pizza, pega o dinheiro [do cliente] e devolve o
troco para a pizzaria. Digamos que você entrega no horário certo. Dentro da ordem que havia sido
acordada entre você e a pizzaria, você fez o que lhe pediram. Em nenhum momento você foi contra
a ordem. Você estaria indo contra a ordem, se te mandassem entregar a pizza e você a entregasse duas
horas depois, a pizza estando gelada – não era isso o que se esperava. Você estaria indo contra a
ordem, se você não entregasse a pizza. Você estaria indo contra a ordem, se você chegasse e dissesse
para o cliente que a pizza é R$ 30, sendo que, na verdade, era R$ 20, isto é, você furtou R$ 10. Tudo
isso que eu disse é transgressão de ordem. Isso com certeza é pecado; no mínimo, venial.
Digamos que tem um outro sujeito entregador de pizza que costuma ser educado com os clientes:
“Bom dia, como vai a senhora? Aqui está a pizza, quentinha”. E a cliente diz: “Mas que entregador
agradável! Como ele é bom! Da próxima vez eu vou chamar ele novamente” – o sujeito está
acrescentando coisas, ele está fazendo a entrega de maneira mais perfeita. Agora, digamos que ele
tenha um colega que não faz nada disso: “Pizza! É R$ 20. Tchau!” – ele apenas cumpriu o dever dele,
ele não transgrediu nenhuma ordem. Da próxima vez o cliente vai preferir obviamente aquele que foi
gentil. Se você percebe que pode fazer melhor, que isso não lhe custa nada, mas você não faz, isso é
uma imperfeição – apesar de você estar fazendo exatamente o que faz parte da ordem. Ou seja, você
não foi indelicado, não foi chato, não falou de modo ríspido, você simplesmente não quis ir além das
suas atribuições – “Não estão me pagando por isso. Para que eu vou me esforçar mais?”. Isso é um
exemplo de imperfeição.
Dentro da vida espiritual, imperfeição é algo muito sério. A vida espiritual é algo que deve se
desenvolver de uma maneira absolutamente extraordinária. Sendo assim, aquelas pessoas que na
verdade só evitam o pecado grave, que não querem saber de evitar o pecado leve, [essas pessoas] são
aquelas que não vão se santificar. O mesmo vale para as pessoas que somente evitam o pecado leve
e não evitam a imperfeição, aquelas pessoas que não querem fazer as coisas direitinho, que não
querem se dedicar ao máximo, essas pessoas não são aquelas que irão se santificar.
O que é mais ou menos o que acontece também na vida acadêmica, por exemplo. Quem vão ser os
grandes gênios da música? Quem vão ser os grandes médicos? Não é aquele que diz: “O que está
sendo exigido de mim? Estudar isso, isso e isso? Tudo bem, já fiz isso. Agora eu quero me divertir,
eu quero ir ao cinema”. Enquanto tem outro que diz: “Não, isso é muito profundo. Eles estão exigindo
isso, mas eu quero aprender mais. Eu quero pesquisar, eu quero ver o porquê disso etc.”. Ou seja, esse
último está indo além da ordem. São estes que virarão os grandes cirurgiões, os grandes engenheiros,
os grandes cientistas, os grandes músicos etc. É o sujeito que não está contente em não encontrar a
ordem, ele quer mais. E isso vale, por excelência, em todas as artes. Quanto mais uma coisa é arte,
mais isso vale. Os grandes artistas são os que, dentro da ordem dele, não toleram imperfeição, que
querem tudo ao máximo, que se interessam por tudo. E a arte das artes é a vida espiritual e o ensino
da vida espiritual.
Então, na verdade essas distinções são importantes para sabermos nos guiar. No exemplo da pizza,
inclusive porque o dono da pizzaria não é nenhum santo, ele é cheio de imperfeiçoes, ou seja, ele está
pouco se lixando com o serviço dele, ele só quer dinheiro, ele não quer fazer a pizza perfeita: “O que
dá dinheiro é assim. Para que eu vou fazer melhor se as pessoas não reconhecem?”. Como é um
contexto onde não existe arte, [0:20] é tudo pessoas vendendo produtos e vendendo a si mesmas, então
tanto faz entregar a pizza melhor ou pior, não faz tanta diferença. Mas numa arte, faz diferença. E na
arte das artes, que é a vida espiritual, faz toda a diferença. Por isso é importante percebermos a
diferença. Entre a imperfeição e o pecado venial, há uma diferença gigantesca e temos de ter
consciência disso.
Toda vez que identificarmos claramente uma ordem natural ou sobrenatural, toda vez que
identificarmos uma ordenação natural ou sobrenatural das coisas, que em última análise vêm de Deus,
e formos contra, estamos cometendo um pecado. Quando não estamos indo contra a ordem de algo,
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mas podemos fazer esse algo melhor e não o fazemos porque não queremos, isso é uma imperfeição
– isso não é pecado. Apesar de isso não ser pecado, enquanto não nos corrigirmos dessas coisas, no
plano espiritual, com certeza será muito difícil percorrermos as moradas de Santa Teresa.
O que mais nos importa agora, o que é mais importante neste momento é diferenciarmos o que é
pecado grave. O pecado grave é aquilo que é absolutamente intolerável para a vida espiritual. Se você
comete pecado grave, você está fora [da vida espiritual]. O pecado grave também se chama mortal
porque é como se quem o cometesse estivesse morto, como se ele morresse para a vida da graça. São
violações intoleráveis da ordem, violações da ordem que teriam tolerância zero – o que também dá
para percebermos que existem mesmo nesses exemplos.
Voltemos ao exemplo do entregador de pizza. Você é um entregador de pizza. Você entrega a pizza,
faz o que deve, mas poderia fazer melhor. Mas há um outro que faz a entrega muito melhor. No fundo,
um dia, o dono da pizzaria, se for um homem sensato dentro da linha do negócio, ele vai mandar
embora todos aqueles que só fazem o dever e vai manter aqueles que fazem a coisa de uma maneira
brilhante. E se ele mesmo adotar essa política para a pizzaria, essa será a melhor pizzaria do mundo.
Agora, tem certas coisas que são absolutamente intoleráveis. Se você for entregar a pizza e, na hora
que o cliente for lhe pagar, ele lhe der uma nota suja e você der um tabefe nele, você está despedido.
É tolerância zero. Você cometeu um pecado mortal – digo, para a pizzaria, notem bem; não estou
dizendo pecado mortal diante de Deus. Na hora em que o cliente telefonar para o dono e dizer: “Vocês
vieram me entregar a pizza, mas o entregador me deu uma surra”. “O quê? Ele fez isso? Eu vou
despedi-lo já!” – respondi o dono da pizzaria. Aí não adianta mais pedir perdão: “Desculpa, patrão”.
“Como desculpa, patrão? Eu mando você entregar uma pizza e você dá uma surra no cliente. Você
ainda quer que eu continue pagando você? Você está despedido” – é isso o que o patrão vai dizer.
A mesma coisa, por exemplo, ocorre dentro do matrimônio. Dentro do matrimônio, tem certas coisas
que dão separação imediata – caso seja um matrimônio sério, né. Digamos que você é casado, que
gosta da sua mulher. De repente acontece algo e você espanca a sua mulher. A não ser que ela seja
uma santa e o perdoe, ou que seja um matrimônio de maloqueiro, [isso é o fim do matrimônio]. Num
matrimônio bem feito, socialmente tradicional, num matrimônio verdadeiramente cristão, poderíamos
pensar em perdão. Mas num matrimônio comum, se você dá uma surra na sua mulher, a mulher te
pede separação na mesma hora – isso é um pecado mortal diante do matrimônio. Numa sociedade
tradicional, um adultério também é um pecado mortal diante do matrimônio. Se você sabe que a sua
mulher o atraiu, dentro de um matrimônio cristão pode se recomendar o perdão. Mas normalmente,
socialmente falando, numa sociedade mais tradicional e conservadora, se o marido trair a mulher,
acabou, é separação. Se a mulher trair o marido, acabou, terminou o matrimônio. Isso é o que seria
pecado mortal.
Em toda a ordem, existem transgressões que são intoleráveis. São transgressões de tamanha
magnitude que se rompe com a própria ordem. Não é que se está simplesmente indo contra a ordem,
ainda que, digamos, estando dentro dela. Se a quebrou, morreu para ela. O matrimônio acabou. O
emprego morreu. E assim por diante.
Por exemplo, normalmente, na sociedade comum, a gente tolera que as pessoas se xinguem. Mas,
digamos que haja um diplomata, que é um embaixador, que é mandado para ser o representante do
Brasil na França, digamos que ele recebe o presidente da França e xinga para a ele um palavrão: ele
está despedido na mesma hora. Normalmente não despedimos ninguém por falar um palavrão. Mas
se um diplomata fala um palavrão para um chefe de Estado, estando ele exercendo uma representação
nacional, está acabada a carreira dele; não adianta pedir desculpas. Se fosse numa pizzaria, o dono
até aceitaria um pedido de desculpas. Mas na diplomacia, um pecado destes é grave, é mortal. Ele
não morreu, claro, mas a carreira dele morreu.
Em toda ordem existem essas coisas. Existem certos pontos que, se transgredidos, quebram-se a
ordem inteira, e a gente está de fora. Os pecados graves são ditos mortais por causa disso.
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Os pecados veniais, que são os leves, são ditos veniais porque, em latim, “vênia”, significa “perdão”.
Veniais são pecados perdoáveis. Notem bem, não é no sentido de que Deus não esteja disposto a
perdoar os pecados mortais. Ele está disposto a perdoar os mortais se houver um arrependimento
sincero. A Confissão existe justamente para perdoar os pecados mortais. Porém, os veniais, a doutrina
diz que eles acabam sendo perdoados muitas vezes sem a necessidade de nenhum sacramento. Às
vezes os pecados veniais são perdoados pela própria vida da pessoa – ela vai melhorando e a caridade
vai aumentando, por exemplo. O próprio exercício do mandamento do amor acaba perdoando os
pecados veniais e a pessoa não sabe como.
O que é mais ou menos o que acontece no caso do entregador de pizza. Digamos que ele faz um
monte de bobagem, e o dono vai tolerando. De repente, ele começa a ser um super funcionário e aí o
dono esquece [das suas faltas passadas] sem que o tenha perdoado formalmente. Ele perdoa os
defeitos, os erros que ele tinha cometido antes. O funcionário ficou tão bom que a própria vida
posterior dele já apaga os erros anteriores, isto é, o dono esqueceu, essa é uma outra época [na história
da pizzaria]. Agora, num caso desses, do diplomata [0:30] que xingou o outro, do sujeito que cometeu
adultério, do sujeito que surrou a mulher dele, se esse sujeito virou uma alguém maravilhoso, [isso
ainda não redime a transgressão]. Normalmente, dentro de uma sociedade como tal, essas pessoas
diriam: “Ele pode ser uma pessoa maravilhosa, mas aquilo não se faz. Eu não caso mais com ele” –
diria a esposa. “Ele virou o maior empresário do mundo, mas para corpo diplomático ele não volta”
– diria o ministro das relações exteriores. Isso é o que seria a diferença do pecado mortal para o venial.
Com a diferença de que, nos pecados mortais, ao contrário desses exemplos, Deus está sempre
disposto a receber o pecador de volta, desde que haja o arrependimento sincero. Para isso, Ele exige
a Confissão. Ele exige que haja a celebração do sacramento da Penitência. Ainda que o
arrependimento seja grande, ainda que ele possa estar perdoado mesmo antes da celebração do
sacramento da Penitência, como às vezes acontece, ainda assim, Ele exige o sacramento da Penitência
para que o pecador possa se reintegrar à Igreja, aos sacramentos, à Eucaristia etc.
Então, em tese, as diferenças são essas. O que temos de ver agora é, quais são esses pecados mortais.
Pois já o vimos no seu conceito. A ideia para entendermos quais são os pecados mortais é muito
simples. Vemos que em todos esses exemplos que vos estou dando, os pecados mortais são uma
transgressão da própria essência da ordem que se está transgredindo. Ou seja, é uma transgressão tão
grande que, na verdade, se está desmontando a ordem inteira.
No caso do casamento, a essência do casamento é que haja uma comunhão de pessoas que vivam sob
o mesmo teto. Se a esposa não cozinha direito, se ela faz cara feia [para o marido], isso é uma
transgressão de uma ordem, mas isso não quebra a essência da ordem. É possível conviver com uma
pessoa que faz cara feia, que não faz a comida com o capricho que deveria; que até mesmo se recusa
a fazer comida, que comem fora, num restaurante, por exemplo. Agora, se alguém o espanca, não dá
para conviver matrimonialmente com uma pessoa que o espanca. Também não dá para conviver
matrimonialmente com uma pessoa que comete adultério. Isso daí transgride a própria essência da
coisa.
No exemplo da pizza, é a mesma coisa. Pode-se tolerar que um entregador saia um pouco atrasado,
que não esteja vestido tão direitinho; que ele vá com a roupa um pouco suja, mas se ele espanca o
cliente, não tem como continuar um serviço assim, você está indo contra a própria natureza das coisas.
E a diplomacia é a mesma coisa: diplomacia é ter boas relações e fazer o máximo para preservá-las.
Se um diplomata xinga, se ele diz um palavrão ao representante do governo onde ele está fazendo a
representação, não tem diplomacia possível. Nesse caso, o indivíduo vai contra a essência da coisa.
Portanto, aquelas transgressões da ordem que significam a própria dissolução da ordem, isto é, que
não são toleráveis, [são pecados mortais]. Aquelas dissoluções da ordem que contudo permitem que
a ordem fique de pé, essas são pecados veniais – dá pra perdoar, dá para tolerar alguém assim. Ou,
seja, transgressões da ordem que significam a própria abolição da ordem onde se está, são
intoleráveis: ou você ou a ordem. O entregador de pizza que surra os clientes, não dá para tolerar: ou
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é ele ou é a pizzaria. “O mundo é muito pequeno para nós dois. Isso não é um defeito que se possa
aguentar. Se aguentarmos um sujeito como você, iremos à falência. Ou morre você, ou morre nós”:
diria o dono da pizzaria. Em relação ao diplomata que faz isso, a mesma coisa: acabou a diplomacia.
Um diplomata que fizesse isso, é melhor não ter diplomacia. Então, ou ele cai fora, ou acaba a
diplomacia. Portanto, aquilo que vai diretamente contra a essência da ordem, de tal maneira que
signifique a própria anulação da ordem, isso é pecado grave e mortal. Quer dizer, o fulano tem de cair
fora por uma exigência interna.
Nesse sentido, temos de entender qual é a ordem da vida espiritual, qual é a essência do que Jesus
veio fazer, qual é a essência da ordenação divina. Um dia perguntaram a Jesus qual era o maior de
todos os mandamentos. Para entendermos o que significa isso, temos de entender que, quando Deus
criou o homem, segundo a Bíblia, Ele não deu nenhuma ordem explícita. O homem tinha de cumprir
a lei natural, a lei escrita na natureza. Deus não revelou através de uma formalidade escrita, de um
texto, de uma ordem formal, qual era a ordem natural. Ele deixou que o homem mesmo a enxergasse.
E o primeiro homem era capaz de a enxergar. Deus só deu uma única ordem: “[...] não comas do fruto
da árvore da ciência do bem e do mal, porque no dia em que dele comeres, certamente morrerás”.1
Aparentemente, Ele confiava que o homem entenderia a ordem natural e a cumpriria; sem que fosse
necessário ensiná-lo explicitamente, apesar de essa daí – a de não comer desse fruto – ser mais difícil
de entender. Ele não disse que não podia matar, que não podia roubar, que não podia cometer
adultério, que não podia mentir etc. Ele não disse essas coisas, não porque fosse permitido ao homem
fazer essas coisas, mas porque Ele imaginava que isso o homem entenderia facilmente. Ele também
não disse que tinha de reconhecer a Deus, que tinha de amar a Deus em primeiro lugar, pois tudo isso
Ele imaginou que o homem entenderia facilmente, por estar num estado mais “preservado”.
Bom, evidentemente, Ele só deu uma ordem e o que fosse contra essa ordem seria pecado grave.
Inclusive, porque quando o home rompeu com isso, Ele o expulsou [do Paraíso]. Por algum motivo,
por ser essa uma linguagem figurada, não sabemos exatamente qual é essa ordem. Com certeza, não
deve ser uma árvore e uma fruta. Isso deve ser uma linguagem figurada, que não a compreendemos
– pelo menos eu não vejo nenhuma interpretação clara disso até hoje. Mas na essência, temos uma
ordem clara que Deus não admitia que fosse rompida. É como a história da pizzaria, o homem assim
o fez, e aí caiu fora do Paraíso.
Depois que o homem caiu fora do Paraíso, ainda continuou a vigorar a lei natural. Deus continuou
dando-nos alguns preceitos. Vemos que antes de Moisés, Deus deu alguns preceitos, [descritos] no
Velho Testamento; alguns poucos preceitos que são mais ou menos os preceitos da lei natural, só que
mais explicitados. Quando veio Moisés, ele deu [um corpo de leis] que, além dos Dez Mandamentos,
tinha outra grande quantidade de leis – algo em torno de 600. Esses mandamentos é o que os judeus
entendiam como lei, como preceitos. Então, na época [0:40] de Jesus, pela lei mosaica, havia em torno
de 600 mandamentos. Quando perguntaram a Jesus qual era o maior mandamento, a pergunta queria
dizer “qual desses preceitos é o maior de todos”. E Jesus disse: “Amarás ao Senhor teu Deus de todo
o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu espírito”.2 Só que Jesus aproveitou a ocasião e em
vez de se limitar a responder essa pergunta, disse também: “Eis aqui o segundo: Amarás o teu próximo
como a ti mesmo”.3 Ele foi além da pergunta que o rabino tinha feito. E aí ele acrescentou outra coisa:
“Nesses dois mandamentos se resumem toda a lei e os profetas”.4 Quando Ele disse isso, Ele disse
que todas as mais de 600 leis de Moisés se resumem nessas duas. Quando Ele falou dos profetas, Ele
se referiu à Bíblia. Notem que nós a chamamos assim, de “Bíblia”, na tradição cristã; mas na tradição
judaica, não havia essa palavra. O que nós chamamos de Bíblia, na tradição judaica é chamado de
“Lei”, “Profetas” e “Outros Escritos”, que em hebraico se chama Torah, Neviim e Ketuvim,
respectivamente. Se você comprar uma Bíblia em hebraico, não vai estar escrito “Bíblia”, vai estar

1
Gn 2:17
2
Mt 22:37
3
Mt 22:39
4
Mt 22:40
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escrito “Torah, Neviim, Ketuvim”. Quando Jesus diz o primeiro Mandamento, indubitavelmente o
maior de todos, e depois o segundo, para em seguida dizer que nesses dois consiste toda a lei e os
profetas, Ele está dizendo que nesses dois mandamentos consiste toda a Bíblia. Então, toda a Lei
Divina está arquitetada em torno desses dois mandamentos, isso é a essência, é o miolo da coisa.
Voltando ao exemplo da pizzaria. A pizzaria foi organizada para entregar pizza. O que impede a
pessoa de entregar a pizza, acaba com a pizzaria – é mortal. O que bagunça o negócio, mas não impede
a entrega de pizza, é venial – dá para perdoar, porque o serviço continua, isto é, se o patrão quiser, dá
para manter o funcionário que os comete sem que isso impeça a entrega das pizzas. Então, se fulano
vai diretamente contra a ordem, de tal maneira que é impossível continuar a entrega, isso é mortal.
No exemplo da diplomacia. A essência da diplomacia é manter boas relações com os governos
estrangeiros: é possível tolerar qualquer coisa, desde que não vá diretamente contra a essência.
Então, Jesus, nessa passagem, do ponto de vista da lei, do ponto de vista da ordem, disse a essência
de toda a Bíblia. No fundo, o que chamamos de “lei” é uma explicitação da ordem interna de tal coisa.
Uma lei que vai contra a ordem interna da coisa, não é uma lei válida. As coisas, para funcionarem,
têm de ter uma ordem. Quando explicitamos isso, para ficar mais claro, ou para instituir uma ordem
dentro da ordem, isso é o que chamamos “lei”. Quando, no meio das leis de Moisés, Jesus disse quais
são as maiores, Ele explicitou a ordenação da vida de comunhão com Deus, Ele disse o miolo dessa
ordem. O que for diretamente contra o miolo dessa ordem, é intolerável dentro dela, é pecado mortal.
O que não vai contra isso, o que vai contra a ordem sem destruir a sua raiz, é o que chamamos “pecado
venial”.
Em cima dessa sentença de Jesus é que se pode explicar claramente o que é pecado mortal. Jesus
disse que a essência da ordem de toda a Sagrada Escritura é o amor a Deus e ao próximo. Portanto, o
que for diretamente contra isso, é pecado mortal. No caso da pizzaria, a essência do negócio da
pizzaria é vender pizza; o que for diretamente contra isso e impedir a entrega de pizza, é pecado
mortal. No caso da ordem divina, o que for diretamente contra o amor a Deus e ao próximo, é pecado
mortal. Não adianta o fulano dizer que é cristão: se ele fizer isso, ele não é cristão.
Portanto, a partir daqui eu vou desenvolver um raciocínio que, na sua essência, está contido nos
escritos de São Tomás de Aquino, sobretudo nas Questões Disputadas, um livro escrito por ele, o
mais complexo. O livro mais profundo de São Tomás de Aquino é a Suma Teológica, mas esse está
escrito numa linguagem simples. O mais complexo, apesar de não ser o mais profundo, é as Questões
Disputadas, esse é onde ele vai mais a fundo nas coisas, apesar de não chegar tão longe. Mais ou
menos, o que depreendemos do que está escrito nele, é que o pecado mortal é aquilo que vai
diretamente contra a lei de Deus. Ora, a lei de Deus consiste no amor a Deus e ao próximo. Então, o
que for contra o amor de Deus e ao próximo, é pecado mortal. Vejamos, então, o que vai contra o
amor a Deus e contra o amor ao próximo.
Quanto a ir contra o amor a Deus, isso não é muito difícil de entender, pois contra Deus não podemos
fazer nada praticamente. Ele é todo-poderoso, inatingível, inacessível etc., nós não podemos fazer
quase nada para prejudicá-Lo. O que vai contra Deus é basicamente termos raiva de Deus, odiar a
Deus, blasfemar contra a Deus, não crer em Deus – quando Ele está nos dando os instrumentos da fé
para cheguemos até ele. Notem, nós vamos até Deus através da fé. Recusar a fé, quando ela já está
suficiente clara, é pecado grave.
Vocês devem ter visto no Catecismo, nos livros básicos, que as virtudes teologais são a fé, a esperança
e a caridade. Para nos aproximarmos de Deus, temos de crer. Se a pessoa peca diretamente contra a
fé, recusando-a, ela está rompendo o caminho de aproximação de Deus. Isso é contra o amor de Deus.
Os pecados contra a fé, são pecados graves. Pecados contra a esperança, se dão pelo mesmo motivo.
O que é esperança? É sabermos, uma vez que cremos, que Deus nos ama, que Ele nos espera e que
Ele quer que cheguemos até Ele. “Eu acredito, mas eu estou perdido. Eu nunca vou chegar lá. Então,
eu desisto. Eu já sei que vou para o Inferno, já estou conformado” – isso daí é diretamente contra o
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amor de Deus. O pecado contra a esperança é como, dentro de uma família, um filho dizer: “Eu sou
tão ruim que a melhor coisa que eu posso fazer é me suicidar. Assim, meus pais ficam livres de mim”
– se os pais ouvirem isso, para eles, isso vai ser um golpe mortal. Ou seja, é obvio que os pais querem
os filhos, independentemente [0:50] da imperfeição que eles tenham; os pais querem ajudá-los. Pecar
contra a esperança, se desesperar da salvação, é ir diretamente contra o amor de Deus. É evidente que
o sujeito que permanece nisso está fora da vida espiritual. Como pode estar dentro da vida espiritual
um sujeito que acredita que está fora? Que cisma, por um negócio da cabeça dele, que está fora e que
não vai fazer mais nada para estar dentro? Os pecados que vão diretamente contra a fé, contra a
esperança e contra a caridade – os meios pelos quais nos unimos com Deus – são pecados graves.
Desrespeitar as coisas sagradas enquanto tais, são contra Deus. Digamos que, em frente a uma igreja,
você diz: “Como esta igreja está suja, está imunda!”. Você não está desrespeitando uma coisa sagrada.
Você está desrespeitando a arquitetura dela, o arquiteto, o fulano que faz a limpeza etc. Você não está
querendo atingir o próprio Deus, nem o respeito que devemos para Ele. Às vezes a igreja pode estar
imunda mesmo. Pode ser que você tenha sido indelicado [ao falar isso]. A indelicadeza pode até ser
um pecado grave contra o próximo, mas com certeza não é contra Deus, porque você está falando
coisas injuriosas contra um templo, mas não enquanto coisa sagrada. As coisas que desrespeitam as
coisas sagradas enquanto tais, são contra Deus.
Também as coisas que, indiretamente, no fundo, são explicitamente contra Deus. Por exemplo, dizer:
“O mundo inteiro foi criado todo errado. Quem fez o mundo é um idiota. Se eu tivesse feito o
universo, eu faria de outro jeito. A melhor coisa [a se fazer] seria explodir o mundo inteiro e construí-
lo de novo com outras leis”. Ninguém faz isso, claro. Mas se fizesse, seria um pecado contra Deus.
A ordem do universo enquanto tal é uma expressão da sabedoria de Deus. Ir contra isso é ir
diretamente contra Deus.
Nesses pontos, não tem muita dificuldade. Em relação ao próximo é que a coisa começa a ficar um
pouco mais delicada. O segundo mandamento é amar ao próximo como a si mesmo. Então, os pecados
diretamente contra o amor ao próximo são pecados mortais. O próprio Jesus colocou, segundo as Suas
razões, que o amor a Deus e ao próximo fazem parte da essência da ordem da vida sobrenatural.
Normalmente, quando estamos começando a vida espiritual, não percebemos porque tem de ser
assim. A nós, parece apenas que há uma certa lógica. Mas, Jesus sabia o que estava falando. O amor
ao próximo faz parte da essência da vida espiritual. O problema é entendermos o que é amar o
próximo. Nós pensamos que [pecar] contra o amor ao próximo é causar dano ao próximo, pensamos
que matar o próximo é evidentemente um pecado grave. Cortar uma perna, furar um olho, incendiar
a casa de um pobre coitado, é evidente que isso vai contra o amor ao próximo. É mais ou menos por
aí. Causar prejuízo contra o próximo, é pecado contra o próximo; assim, se eu não causar prejuízo,
eu não cometo pecado nenhum. Mas, na verdade, não é assim.
Vemos no Evangelho, quando Jesus explica o amor que devemos ao próximo, que devemos amar os
inimigos. Mais ainda, a frase que talvez Ele explique de maneira mais clara o que é o amor ao próximo
é onde Ele diz que devemos rezar pelos nossos inimigos. Quando Ele exige que perdoemos os nossos
inimigos 490 vezes (70 x 7) e que rezemos por eles, para bom entender, isso explica tudo.56 Só tem
sentido rezar se estamos pedindo a vida eterna. Quem reza, é porque quer o Paraíso, é porque quer se
aproximar de Deus, é porque quer ser amigo de Deus para sempre. Rezar para os inimigos, rezar para
qualquer um só tem sentido se você reza pela salvação e pela vida eterna dele. Ora, isso é o maior
bem do mundo. Isso é muito mais do que se você pedisse a terra inteira para ele, ou o reino da
Inglaterra, ou a presidência da república, ou a fortuna de um Bill Gates etc. As coisas mais fantásticas
que se possa desejar para uma pessoa é nada, perto do que é desejar para ela o Céu. Um casamento
feliz, uma família numerosa, cheia de riquezas, cheia de propriedades, cheia de prosperidade, com
boa fama, benquisto, cuja a imprensa falasse bem, que se ele se candidatasse a presidência, ganhasse

5
Mt 18:21,22
6
Mt 5:44
9

no primeiro turno, que se ele candidatasse para ONU, seria o secretário-geral, tudo isso, se você não
desejar para ele a vida eterna, é nada.
Então, rezar pelo os inimigos significa que temos de querer para eles um bem absolutamente
inimaginável. Quando Jesus diz que temos de rezar pelo inimigo, isso é muito mais do que desejar
para ele tudo o que de bom e de melhor pode lhe acontecer nessa vida. Isso, na verdade, significa uma
benevolência incomum. Significa que, se para a pior das pessoas você tem de desejar o maior de todos
os bens, mais ainda o tem de desejar para os outros que não são as piores das pessoas. Então, Jesus
pede a benevolência para com todos. Amar o próximo significa desejar, de coração, para o próximo,
o maior de todos os bens. No fundo, só pode amar o próximo, quem ama Deus. Porque amar o
próximo verdadeiramente é querer o bem dele, a vida eterna, o próprio Deus. Se você não ama a Deus,
você não tem como estimar esse bem. Se você não ama Deus, você não pode desejar Deus para os
outros, porque para você mesmo Ele não significa nada. Nesse caso, então, você não ama o próximo.
Você pode ter por ele uma simpatia, mas verdadeiramente você não é alguém que quer o verdadeiro
bem dele. Então, o amor ao próximo está indissoluvelmente ligado ao amor a Deus.
Pois bem, se o amor ao próximo significa uma benevolência enorme, tudo o que vai diretamente
contra essa benevolência, é pecado grave. Por exemplo, xingar, de um modo como quem está
querendo machucar e não de maneira vã. Digamos que você reconhece que um determinado sujeito
é incompetente, que ele não trabalha direito e você diz: “Não contrate essa pessoa, ele é um ignorante”
– nesse caso, você está fazendo uma avaliação técnica; isso não supõe malevolência. Poderia até
mesmo ser o seu filho, esse sujeito. Digamos que você tem um filho retardado e um grande empresário
quer contratá-lo porque, uma vez que você, o pai dele, é inteligente, ele pensa que filho também o
deve ser. Porém, você diz ao empresário: “Desculpe, eu amo meu filho. Eu quero o que há de melhor
para ele. Mas, infelizmente, você não sabe o que acontece, ele nasceu retardado. Ele é um ignorante.
É um débil mental literalmente falando” – nesse caso, você não está xingando-o, você está contando
a verdade. Você quer o bem [1:00] de seu filho, você deseja o Céu para ele, mas você tem de reconhecer
uma avaliação técnica. Então, não é nesse sentido que Jesus nos está falando. Agora, digamos que
você xinga uma pessoa porque você perdeu a benevolência para com ela: você pode, em teoria, desejar
que ela vá para o Céu, mas na prática você não quer isso muito profundamente. Você está chateado
com ela, você quer que ele vá para aquele lugar. Nesse caso, se isso for sincero, é pecado grave. E
isso está escrito no próprio Evangelho: “Vocês ouviram o que está escrito no Antigo Testamento,
‘Não matarás’. Então, vocês acham que, quando matamos, é um pecado grave: vocês têm razão. Mas
eu, Jesus, digo a vocês: aquele que chamar o seu próximo de cretino, será réu do fogo do inferno”.7
Ele está assemelhando a atitude de quem xinga à de quem mata. Só que como ele, o que xinga, não
quer sujar as mãos de sangue, não quer ficar depois com remorso de saber que matou, de ser
reconhecido por todo mundo como assassino, como ele não quer ir para o inferno, como ele não quer
chegar a essas coisas porque dá trabalho matar uma pessoa, enfim, como ele não quer chegar às vias
de fato, ele apenas xinga: isso Jesus ensina que é pecado grave.
A melhor maneira de entendermos esse ponto, a melhor de todas as descrições disso, é um texto da
Teologia Moral de Santo Afonso de Ligório, onde ele comenta o amor ao inimigo. Este texto é tão
importante que foi traduzindo para o português e colocado na página cristianismo.org.br. Lá está
explicado exatamente o que é o amor de benevolência para com o próximo. Lá diz que tudo aquilo
pelo o qual você suprime um amor de amizade com alguém e equivale a um sinal de inimizade, é
pecado grave. Por exemplo, o pai está discutindo com o filho e o filho diz: “Ah, velho quadrado, para
de encher o saco!”. Isso evidentemente são palavras que magoam, e a pessoa sabe disso. Naquele
momento, isso é uma declaração de inimizade. Ele não é verdadeiro inimigo no sentido de que vão
brigar entre si a vida inteira. Mas, naquele momento, o filho não se comportou como alguém que quer
uma sociedade com o pai para a vida eterna: ele aceitou a provocação e xingou-o.

7
Mt 5:21,22
10

Lá diz também, por exemplo, que quando alguém briga com você e você não cumprimenta mais esse
alguém de caso pensado, isso daí é também pecado grave. Isso significa você dizer: “Essa pessoa está
fora da lista dos meus amigos”. Porém, algum dia essa pessoa pode se converter e entrar no Céu.
Quando você chegar lá, São Pedro vai dizer: “Que bom que você chegou. Tem um fulano aqui que é
muito seu amigo”. Vai chegar essa pessoa [que você excluiu da lista de amigos] diante de ti e você
vai dizer: “O quê? Você? Eu não quero conversa com você!”. São Pedro vai te dizer: “O que é que
você falou? Você não quer conversa com ele? Então sinto muito, não tem lugar aqui para você”. No
Céu, a felicidade é perfeita. Todo mundo que está lá é irmão de todo mundo. Não tem classes dentro
do Céu. “Você está aqui e eu estou lá. E nós não nos falamos. Eu não me misturo com você. Inclusive,
eu estou com bronca de você desde que estávamos na Terra. Já que você está aqui, ótimo! Mas é você
lá e eu aqui. Nós não nos falamos por toda a eternidade” – isso aí é inconcebível! Então, nós temos
de tratar as pessoas como se nós já estivéssemos no Céu. Tudo o que for contra isso, é pecado grave.
Agora, digamos que você exclui alguém da sua lista de amigos por motivos técnicos, porque o sujeito
é uma pessoa perigosa, porque você tem de evitar, para a segurança sua ou da sua família, isso é outra
coisa. Quando você estiver no Céu e encontrá-lo lá, [no caso de ele ter se convertido], você vai dizer:
“Veja, eu não falava com você porque naquela época você era um assassino”, por exemplo, “Mas
agora que você está aqui: Me dá um abraço! Eu sempre quis que você viesse para cá”. Ou seja, é outra
história. Foi um motivo técnico, não foi por rancor.
Digamos, por exemplo, que você faz parte de uma lista de pessoas que se formaram e que você
convida todo mundo dessa lista para uma festa de 50 anos de formatura, por exemplo. Digamos que
tem alguém que brigou com você no passado e você não o convida de propósito: isso também é
pecado grave. Você o excluiu da lista de amigos. Agora, se na última festa que teve, ele ficou bêbado
e quebrou todas as janelas e portas, por exemplo; se for esse o caso, você o está excluindo porque
você não quer detonar com a própria casa, isto é, não é por falta de benevolência.
Roubar também, a mesma coisa. Quando você rouba, é evidente que você vai causar prejuízo para a
pessoa. O roubo é pecado porque você inclusive causa um prejuízo concreto, um prejuízo material.
Quando você causa um dano para alguém de caso pensado, não há a menor dúvida; todo mundo
entende isso. O problema é entender que, quando se rompe com a benevolência que se deve para com
alguém, se está cometendo pecado grave. Se alguém o rouba, você pode entrar na justiça para reaver
as coisas roubadas e pode denunciá-lo para que ele não roube mais. Mas isso não é por desejo de
vingança. Se houver desejo de vingança, será pecado grave.
Se alguém estupra, deve ser denunciado. Porque essa pessoa vai querer estuprar outras pessoas.
Denunciá-lo, inclusive, faz parte do amor que se deve às outras pessoas. Isso se faz não porque se
está com raiva do indivíduo, mas porque há de se querer o bem dele. Da mesma maneira o juiz: ele
pode e deve condenar os réus à pena justa, mas não por ódio, mas porque isso é necessário para a
defesa da sociedade contra a desordem e o crime.
Por exemplo, suponha que um juiz julgará o estuprador de sua própria filha – na prática, parece que
isso não é possível, porque a lei impede que um juiz julgue um caso no qual ele está envolvido na
coisa. Se ele, no coração dele, disser que já perdoou esse homem, que quer tudo de bom para ele, que
quer que ele se converta, que mude de vida, que seja um homem de bem, ele ainda assim tem de
condená-lo à cadeia, pois isso é o que está na lei e isso é para proteção da própria sociedade. Inclusive,
porque o estuprador ainda não se converteu, ou seja, se o juiz o soltar, ele vai estuprar outra pessoa.
Então, se o juiz fizer assim, está tudo correto. Ele é um juiz justo, correto. Ele é virtuoso e está
cumprindo o dever dele. Agora, se ele se aproveita do julgamento e diz: “Esse é o estuprador de minha
filha. Agora eu vou ter o gosto da vingança. Mas, como eu sou um juiz justo, eu vou dar a pena
correta, apesar de eu odiá-lo. Para mim, a maior vingança foi eu mesmo ter dado a condenação para
ele” – isso daí é pecado grave. [1:10] Isso é pecado grave, ele está odiando o inimigo. Ele perdeu a
benevolência para com o inimigo. Ele não quer o bem do inimigo dele. Ele não seria capaz de rezar,
pedindo a salvação desse inimigo. Ou então, se ele o fizesse, seria uma coisa irrisória, porque ele quer
11

a salvação dele, que ele não entende exatamente o que é, e ele não consegue perceber que está pedindo
mais do que todos os bens possíveis que ele poderia estar pedindo. Isso é pecado grave. Toda vez que
vamos contra o amor a Deus e contra a benevolência com o próximo, estamos cometendo um pecado
grave.
A ira, de modo geral, só é pecado grave quando ele vai dirigida contra o próximo. A ira, quando não
vai dirigida contra o próximo, é apenas uma desordem. E isso ilustra muito bem a diferença de um
pecado mortal para um venial. Por exemplo, digamos que você perdeu o emprego de uma maneira
injusta, que você está revoltado, que você não se conforma com a situação. Digamos que você passou
dois dias só pensando nisso. Você não comeu direito, não dormiu direito. No meio da rua, você chutou
uma pedra contra a parede. Tudo isso é uma desordem. Ora, se você já perdeu o emprego, não tem
mais o que fazer. Se você pode consertar isso na justiça, entre na justiça e recupere o seu emprego.
Se você não pode fazer isso, então acabou. Qualquer revolta interior é uma desordem. A nossa
psicologia não foi feita para isso. A psicologia humana foi feita para fazer o bem, para se elevar até
Deus, para pensar em coisas maravilhosas e louvar a Deus. Aqueles dois dias que você passou se
angustiando à toa, porque não ia resolver nada, foram dias de vida espiritual que você perdeu, que
jogou na latrina. Isso é evidente desordem, apesar de não estar indo contra Deus e contra o próximo.
Portanto, não dá para ser pecado mortal dentro dessa linha. Não é matéria grave, porque não vai contra
o “edifício”. É uma coisa tolerável. É como o entregador de pizza que chega constantemente atrasado,
mas faz o trabalho dele. Está indo contra a ordem, mas é tolerável.
Agora, se num determinado momento você está revoltado contra a injustiça, chutou a pedra, etc., você
fala: “Eu queria estrangular o fulano que fez isso. Se ele estivesse aqui na minha frente, eu acabaria
com a vida dele”. Mesmo que isso não fosse verdade, mesmo se ele estivesse na sua frente, você
jamais o estrangulasse nem acabasse com a sua vida, isso já foi contra a benevolência, isso é pecado
grave. Claro, desde que fosse plenamente advertido e plenamente consentido. O que, numa pessoa
que vive no temor a Deus, não é difícil de acontecer, quer dizer, a plena advertência e o pleno
consentimento advertem logo quando acontece. Então, é muito fácil de evitar, é muito fácil
percebermos se temos de evitar ou não. A distinção de se fizemos uma coisa que é pecado grave ou
não é clara aí.
Só que tem um problema nisso tudo, que é São Tomás de Aquino quem adverte. Há coisas implícitas
aí. Em princípio, pecado grave não é só isso – ir contra Deus e contra a benevolência do próximo.
São Tomás de Aquino nos adverte que existe outro capítulo na questão dos pecados graves que são
os pecados contra a sexualidade. Esses não estão na lista de Jesus. Lembremo-nos que Jesus falou
que “toda a lei de Deus se resume no amor a Deus e no amor ao próximo”. Aí, não parece estar a
sexualidade. São Tomás de Aquino é quem nos diz que de fato não parece, mas está; a sexualidade
está dentro do amor ao próximo. Hodiernamente, levamos uma vida tão desregrada, o mundo está tão
desregrado, que as pessoas já desvincularam uma coisa da outra. As pessoas não percebem que a
sexualidade está contida dentro do amor ao próximo. Os motivos principais são dois.
Primeiro, a sexualidade envolve a vida humana. A sexualidade não é como comer um bombom de
chocolate, ou como escutar uma música, que é um prazer quase que em si. Apesar de um bombom
alimentar, ele não alimenta quase nada. Chupar uma bala ou comer um bombom é mais pelo prazer
do que pela alimentação, mas nesse caso não se pode dizer que envolve uma vida humana. Escutar
uma música é um prazer em si. Agora, o prazer sexual envolve uma vida humana. É evidente que o
órgão reprodutor foi feito para que produza uma família, para que, através dele, não só geremos um
ser humano, mas formemos uma família.
Na sexualidade humana não basta gerar o ser humano para lhe dar a vida. É preciso gerar e cuidar da
criança. A galinha pode gerar um pintinho. Quando ele sair da casca do ovo, ele vai se virar sozinho
ou quase sozinho. Muitos animais fazem o ovo e não esperam nem que o ovo choque: eles vão embora
e quando a prole nasce, se viram sozinhos. [Com o ser humano é diferente.] Não basta, através da
sexualidade, reproduzir o ser humano. Depois disso, esse ser humano tem de ser mantido numa
12

família para que ele possa se desenvolver plenamente. A família só existe onde houver sexualidade,
isto é, a família é uma consequência natural do amor entre os esposos, que provém de uma intimidade
sexual. Todo o amor e o carinho que devemos aos filhos dependem do amor dos esposos e o amor
dos esposos depende da sexualidade. Portanto, a sexualidade inclui a dignidade da pessoa humana.
Primeiro, porque ela é biologicamente necessária para gerar o ser humano. A dignidade que o ser
humano tem – isso são palavras de São Tomás de Aquino – é compartilhada pela dignidade da
sexualidade. A sexualidade contém, em parte, a dignidade que a vida humana contém. A sexualidade
contém uma participação da dignidade da vida humana. Então, a vida sexual humana tem uma
dignidade que é parcialmente a mesma dignidade da vida humana em si. Se a vida humana é detentora
de direitos humanos, se a vida humana tem uma dignidade que tem de ser respeitada, a sexualidade
humana, por conter a vida humana em potência, contém também grande parte dessa mesma dignidade
que a vida humana tem em si. O respeito que devemos ao próximo, devemos também à sexualidade.
Sendo assim, a sexualidade não pode ser um objeto que possamos usar e desusar à vontade assim
como o ser humano não é um objeto que se possa usar e desusar à vontade – como muita gente faz.
Muitos ditadores, muitos imperadores, muitos patrões – caso não havendo leis trabalhistas – tratam
os seus empregados como se eles fossem um mero objeto. Eles se esquecem que eles não são um
mero objeto e que tem dignidade humana. Hoje nós fazemos com a sexualidade a mesma coisa que
alguns grandes empresários faziam com os empregados, quando não havia leis trabalhistas; que
imperadores faziam com os seres humanos, [1:20] a tratamos como se não tivesse dignidade alguma,
como se fosse um objeto do nosso prazer. O respeito à sexualidade humana, diz São Tomás de
Aquino, está contido dentro do mandamento do amor ao próximo. O amor ao próximo se baseia na
dignidade da vida humana, e a sexualidade humana compartilha dessa dignidade porque ela já é o ser
humano em potência. Então, esse é o primeiro argumento. Nessa mesma linha [de raciocínio], existe
outro argumento, ainda mais forte, principalmente para os cristãos.
O segundo argumento é o seguinte. Nós vimos que devemos respeito à sexualidade humana não só
porque ela pode reproduzir o ser humano, mas porque esse ser humano precisa de uma família e essa
não se mantém, se não houver uma vida sexual regrada. Onde há uma vida sexual desregrada, não se
consegue constituir uma família ordenada para o ser humano. Então, tem uma questão muito
importante aí que é a do matrimônio e da família. Nesse sentido, para explicarmos toda a relação da
vida sexual com o mandamento do amor ao próximo, temos de colocar alguns pontos de teoria que
são chaves para entendermos.
Primeiro ponto-chave. O que é o matrimônio? Vimos que a família e o matrimônio estavam
envolvidos. Vamos olhar mais de perto, como que com uma lente de aumento, o que é o matrimônio.
Vamos entrar dentro disso para ver toda a relação que a vida sexual tem com o amor ao próximo.
Filosoficamente e teologicamente o que é o matrimônio? O matrimônio foi elevado à sacramento
depois que veio Jesus. Antes de Jesus, o matrimônio existia, mas não era sacramento. Para
entendermos o que é matrimônio, à luz da doutrina cristã, temos de separar claramente o que é o
matrimônio antes de Jesus e o que é o matrimônio depois de Jesus.
O matrimônio existe desde que a humanidade foi criada. O matrimônio foi criado no paraíso terrestre
na linguagem da Bíblia. Adão estava no paraíso terrestre, não era o paraíso terrestre, não era a visão
de Deus face a face, era uma vida física natural, só que em um grau de espiritualidade muito maior
do que temos hoje; nos privilégios do paraíso terrestre, não havia ainda a visão de Deus face a face.
Se Adão perseverasse até o fim, com todas aquelas facilidades espirituais do paraíso terrestre, ele
mereceria ver Deus face a face, ele seria admitido um dia à visão de Deus no paraíso que entendemos
hoje, que é a visão de Deus a face a face. Nesse paraíso terrestre não-celeste, Adão não se sentia bem.
Ele sentiu falta de uma companhia. Aí, Deus criou uma companheira e os uniu em matrimônio
dizendo: “Isso aqui é carne da tua carne, sangue do seu sangue. O homem deixará o seu pai e sua
mãe, viverá com a sua esposa e os dois não serão mais dois, mas serão uma só carne”. Então, dali
para frente, o ser humano começou a se casar. E mesmo decaído do paraíso, havia o matrimônio. É o
13

que chamamos “matrimônio de direito natural”. Desse ponto de vista, o matrimônio faz parte da
ordem da natureza, o que é muito fácil de entender; ele está inscrito na ordem natural. O matrimônio
é um contrato de direito natural entre duas pessoas, pelos quais eles dão uma ao outro o direito sobre
os próprios corpos para o uso daqueles atos que a natureza estabeleceu, para a procriação da prole.
Isso é o matrimônio de direito natural, o contrato de direito natural: você é dono do seu corpo e a sua
esposa é dona do corpo dela, você doa para ela o seu corpo e ela doa para você o corpo dela para que
ambos realizem aqueles atos que, segundo a ordem natural, são os atos que a natureza instituiu como
sendo capazes de gerar a prole. Aqui é o ato sexual normal.
Qual é a finalidade desse contrato? Isso é um contrato da natureza porque o próprio ser humano se
casa movido por um instinto natural. O próprio Adão sentia falta de uma companheira, não é que
Deus inventou isso e ele não estava sabendo de nada. Então, é isso o que ocorre com os seres humanos.
Você chega a certa idade, você sente falta de uma companheira. E o relacionamento que você deseja
com a companheira é um relacionamento que inclui atividade sexual normal, que é aquela atividade
que vai, por sua natureza, ser capaz de produzir a prole. Isso é o casamento. Mas qual é a finalidade
disso?
Pela doutrina tradicional, existem três finalidades do casamento. A primeira finalidade é a formação
de uma família, a geração de uma prole. A segunda finalidade é o auxílio mútuo dos esposos. Nesse
sentido, portanto, pode se casar também uma pessoa que sabe que não vai ter filhos, desde que ele
não exerça atos que não são os que a natureza instituiu para produzir a prole. Mesmo que o marido
saiba que já é velho e que não vai ter mais filhos, ou porque a esposa é velha, ou porque a esposa não
é fértil, ele pode se casar porque a finalidade do matrimônio não é só a procriação da espécie, é
também o socorro mútuo. Só que, pelo direito natural, ele não pode exercer atos que não sejam aqueles
que a natureza instituiu para produzir a prole, mesmo que ele saiba que a prole não vai sair. Nesse
sentido, o matrimônio não prevê o coito anal, não prevê o coito interrompido, não prevê formas de
atividade sexual que não seja o ato sexual normal. Isso não está dentro do acordo da lei natural. Está
dentro do acordo natural as pessoas que exercem esses atos, ainda que saibam que a esposa é estéril,
o que não é culpa deles. Se ele esteriliza a esposa ou esteriliza a si mesmo, ele está indo contra a
ordem da natureza. É por isso que anticoncepção, quando ela modifica o ato sexual que a natureza
fez, esterilizando propositalmente ou temporariamente uma parte, isso é uma violação do direito
natural.
A terceira finalidade é o que chamamos tecnicamente de “remédio da concupiscência”. Certas pessoas
estão muito bem de vida, têm servos, têm criados, não precisam do auxílio de uma esposa e não
sentem falta da companhia delas porque são egoístas etc. Elas também não querem ou não podem ter
prole, ou porque são estéreis, ou porque estão velhas etc. [1:30] Mas, eles percebem que não conseguem
ficar sem sexo. Se eles não casarem, eles vão estuprar as pessoas, vão adulterar ou vão ser perseguidos
por pensamentos obsessivos o tempo todo. E aí eles resolvem casar, ou resolveriam casar, porque
senão eles vão ter uma vida sexual desregrada. Isso não é uma coisa ilícita, isso é correto. Apesar de
que, não seria bom que a pessoa casasse assim.
O casamento de direito natural pleno é o que engloba os três: o fulano deseja formar uma família,
deseja ter a alegria de ter uma companheira que o ajude nas dificuldades, ele deseja também ajudá-la
e ele faz isso também para que ele possa praticar a castidade de uma maneira melhor, isto é, tendo
uma esposa, em vez de ficar caindo em irregularidades. No direito natural, a pessoa pode se casar
tendo um desses motivos como principal. O ideal seria que o principal motivo fosse o que citamos
primeiro, pois esse de fato é o primeiro principal motivo. E que o segundo motivo também fosse
importante. O fulano que, sem excluir os outros motivos, se casar principalmente por remédio da
concupiscência, ele não está errado, desde que não exclua os outros motivos que também fazem parte
do contrato.
Se colocássemos tudo junto, um contrato de direito natural seria a pessoa que se entrega a outra, de
uma maneira única, exclusiva – não vai ser com vários parceiros – e indissolúvel, isto é, significa que
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é até a morte. Ou seja, o contrato de direito natural é permanente, único e é com uma só companheira;
ele entrega o direito sobre o próprio corpo e vice-versa, naqueles atos que a natureza instituiu capazes
de produzir a prole. Isso tudo tendo por finalidade, em primeiro lugar, formar uma família, em
segundo lugar, o auxílio mútuo dos esposos e, em terceiro lugar, o remédio da concupiscência, se for
necessário – normalmente, dentro do direito natural, é necessário porque, sem a ajuda da graça, não
é possível evitar o pecado. As pessoas que não são religiosas não vão conseguir evitar o pecado contra
a castidade se elas não se casarem. Então, [o casamento] é um remédio natural. Mas, mesmo se
casando, sem a ajuda da graça, não dá para evitar pecar contra a castidade – apesar de ser esse o
remédio que a natureza instituiu, isto é, o remédio da natureza vai até aí. Para suprir [totalmente esse
pecado], tem de ser o outro, [a graça], mas [esse também] é um remédio correto. Ou seja, o fulano
que não é religioso, que não segue uma vida religiosa, uma vida monástica, uma vida de católico
praticamente, de doação plena a Deus, ele não consegue evitar o pecado contra a castidade, se não se
casar. Então, dentro dos recursos da natureza, é o recurso que ela dispõe. Isso é o casamento do ponto
de vista do direito natural.
Esse casamento não é obrigado que seja feito em cartório, não é obrigado que seja feito com
cerimônia, não é obrigado a cerimônia religiosa, cívica, social, nada. Pela doutrina cristã, antes de
Jesus e antes que a Igreja exigisse que o casamento entre cristãos fosse celebrado na Igreja, qualquer
acordo sério, valia. Digamos que você quisesse se casar com alguém e em segredo dissesse: “Eu te
amo. Eu te adoro. Eu quero formar uma família com você. Você quer se juntar comigo?”. Ela
pergunta: “Isso é por um tempo ou é para sempre?”. Você responde: “É para sempre. Eu vou ser fiel
na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, até que a morte nos separe”. Ela pergunta de novo:
“Você promete mesmo? Eu posso confiar?”. E você responde: “Claro! Eu te amo. É a verdade”. Ela
desconfia: “Mas você não vai sair com outras mulheres?”. Você a acalma: “Não! Só com você. Você
vai ser a minha única esposa”. Ela aceita: “Se for assim, eu aceito”. Você: “Ótimo, vamos morar
junto”. Segundo a doutrina cristã, essas pessoas já estão casadas e indissoluvelmente ligadas. Eles
fizeram um contrato sério e dentro dos termos da natureza.
A Igreja hoje, pelo direito canônico, exige que as pessoas façam isso diante do padre e de testemunhas.
A natureza é tão fraca que as pessoas prometem e depois tentam se esquivar da promessa. São capazes
de dissimular que não se lembram de terem feito as coisas. Também acontece de às vezes
conversarmos determinado assunto com uma pessoa e depois ela, sinceramente, não se lembrar de
nada disso. Dentro da história da Igreja, chegou um momento em que a Igreja disse: “Vamos parar
com isso! Agora para ser válido, tem de ser na frente do padre, com assinatura, com testemunha,
padrinho e madrinha. Se a pessoa disser que não lembra, vamos lá consultar o arquivo”. Uma
cerimônia pública, dentro da igreja, todo mundo viu, como a pessoa pode não se lembrar? Quem é
que casou na igreja e pode dizer que não lembra? Só se ela tiver com Alzheimer. Mas nesse caso a
foto prova, o documento prova; aí não adianta mais essa desculpa.
Até Jesus [o matrimônio] era isso. Normalmente, como as pessoas percebiam que isso era uma coisa
sagrada, a cerimônia do casamento virou uma cerimônia religiosa praticamente em todas as religiões.
Pois isso é uma coisa tão séria, que tem de ser clara, explícita. Para ser válido, um casamento privado,
tem de ser uma coisa clara como essa, senão não sabemos se é uma aventura ou um contrato
verdadeiro.
Adão e Eva e os primeiros seres humanos, antes de se depravarem, eles provavelmente sabiam, eles
tinham uma consciência mais clara do direito natural. A humanidade foi se depravando em
consequência dos próprios pecados.
Mas, em princípio, o matrimônio, o contrato de direito natural, é isso: duas pessoas que dão uma à
outra o direito aos próprios corpos para exercerem os atos que a natureza instituiu para a continuação
da prole, dentro de um acordo onde eles vão formar uma família. E esse acordo, onde vai se formar
uma família, exige a unicidade entre os esposos; exige a perpetuidade até a morte, senão não tem
família, senão ela vai se dissolver rapidamente; exige que isso seja para constituir uma família, para
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a reprodução; exige o auxílio mútuo dos esposos, porque senão não vai ter família, o filho vai ser
gerado, mas não vai ser educado; e também pressupõe o remédio da concupiscência. Isto é o
matrimônio como contrato de direito natural.
O grande problema é que [1:40] o matrimônio como está aí, no presente estado de humanidade decaída,
impede o desenvolvimento da vida espiritual. A pessoa que se casa nesse matrimônio de contrato
natural pode esquecer a vida espiritual. Na prática, o matrimônio é uma coisa passional, cheia de
ciúme, cheia de problemas, cheia de confusões, de doença de filho, de falta de emprego, disso e
daquilo. Não existe espaço dentro da família para rezarmos, para nos desenvolvermos
espiritualmente. As pessoas que se casam podem esquecer da santidade. Se elas forem simples
católicas praticantes, já está muito bom. Quer dizer, a vida espiritual profunda deveria ser para os
celibatários, para pessoas que buscam só a Deus, se entregam completamente a Deus. Os casados não
têm condições de vida espiritual dentro desse regime.
Vejam, isso tudo é contra o que Jesus veio pregar. Jesus veio chamar todo mundo para a salvação.
Vemos claramente, lendo o Evangelho, lendo o Novo Testamento, lendo o Evangelho de São João,
que não estão sendo chamados à comunhão com Deus somente os celibatários, os monges – que à
época não existiam, é claro; os primeiros monges na história da Igreja começaram 250 anos após o
Cristianismo, após a vinda do Cristo, quer dizer, os primeiros cristãos eram todos casados. Desde o
início da pregação, muitos se consagravam e não tinham perspectiva de se casarem; viviam uma vida
celibatária, ainda que não monástica. Então, o Evangelho não está se dirigido aos celibatários. Ele
está se dirigindo indistintamente a todos os homens – solteiros e casados, consagrados e celibatários;
não existe distinção. O que existe é um convite, muito explícito, a abraçar a castidade perfeita e o
celibato. No capítulo sete da primeira epístola aos coríntios é onde está mais explícito na Bíblia o
convite a abraçar uma vida consagrada de união com Deus através do celibato. Mas, o Evangelho
como um todo não é dirigido só a essas pessoas. Evidentemente, uma pessoa casada, dentro desse
contexto – que é muito parecido, se os observarmos, com os casamentos que vemos hoje em dia,
ainda que sendo sacramentos – é impedida de ter uma vida espiritual.
Sendo assim, Jesus aparentemente está incorrendo numa contradição. Ele deveria falar claramente:
“Toda essa maravilha é para os celibatários, os casados estão de fora. Acontece que o mundo não
pode ficar sem os casados – porque senão acabaria a humanidade – e, portanto, vocês façam esse
sacrifício [de se casarem]. Vocês estão fora do Evangelho. Vocês vão entrar no Paraíso pela porta dos
fundos. Nós precisamos de vocês, mas temos de admitir a realidade: a perfeição é para os celibatários,
para os casados não dá, pois é tanta preocupação, tanto ciúme, tanta intriga, tanta desarmonia entre
as psicologias do homem e da mulher, tanto problema que não tem jeito de vocês continuarem uma
vida espiritual a fundo. Não vai ter como vocês permanecerem na vida de oração, na presença de
Deus, na doação de si e etc.”. Do contrário, Ele está a contar-nos uma mentira, ou seja, na prática só
os casados não têm vez e eles vão morrer sem saber o porquê.
Porém, Jesus resolveu isso da seguinte maneira: elevou o matrimônio a um sacramento. Essa foi a
grande saída que Jesus encontrou. Ele resolveu o problema, mas ainda assim convida insistentemente
ao celibato – como está lá na Epístola aos Coríntios. São Paulo já sabia que o matrimônio era um
sacramento, já sabia que dentro do caráter sacramental a vida espiritual era possível [no matrimônio].
Entretanto, ainda assim ele diz: “Quem puder abraçar o celibato e viver como eu [vivo], [assim] eu
preferiria; porém ninguém está excluído”. Por que não está excluído? O que é um sacramento?
Segundo a doutrina cristã, para o matrimônio ser um sacramento, basta que os cônjuges, que fazem o
contrato natural, sejam batizados. No momento em que uma pessoa batizada celebra um contrato de
direito natural de matrimônio com outra pessoa batizada, por causa do batismo dos dois, ele se torna
um sacramento. Se, por acaso, eles já eram casados no paganismo e depois o marido se converte, vira
cristão, e se batiza e depois a esposa se converte, vira cristã, e se batiza – ou vice-versa, que é o que
costumava acontecer com mais frequência: primeiro se convertia a mulher e depois se convertia o
homem –, no momento que o segundo cônjuge for batizado, aquele contrato deixa de ser um contrato
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de direito natural somente e se torna também uma sacramento. O que faz o matrimônio ser um
casamento é o batismo dos dois cônjuges, seja previamente, seja posteriormente ao contrato.
Primeiramente temos de entender, para compreender uma coisa dessas, que não é uma mera
formalidade e não é apenas para apagar o pecado original que uma pessoa se batiza. O batismo nos
transforma em cristãos, em filhos de Deus. Se supõe que uma pessoa que é batizada, que ela quer ser
santa; não que apenas ela quer entrar no Céu, não que apenas ela queira cumprir os mandamentos.
“Eu cumpro os mandamentos e Você me dá o Céu. É toma lá, dá cá. Como num contrato de compra
e venda” – não é assim. A pessoa batizada está desejando a santidade. Duas pessoas casadas batizadas,
ambas desejam a santidade.
E aqui nos lembramos de quando falamos – logo na primeira aula, quando estávamos falando o que
era um sacramento – que todo sacramento era um símbolo eficaz de uma coisa que ele representa. O
sacramento representa e produz aquela coisa. Então, o batismo representa uma lavagem, um banho.
A pessoa está lá sendo mergulhada dentro da água, estão passando a água sobre a cabeça dela – isso
é o ato de lavar e ele produz o que ele significa: a regeneração espiritual pela graça que ele produz.
A Penitência é uma imitação de um tribunal. Ele simboliza um tribunal e ele realmente é um tribunal,
onde a pessoa está sendo absolvida dos seus pecados. A Eucaristia é uma refeição espiritual: ela
também simboliza um sacrifício – que realmente se constitui na missa, mas isso é outra história – e
também simboliza uma refeição, pois tem o pão e o vinho que produzem, na nossa alma, uma refeição
espiritual da graça e do amor. E o Matrimônio, sendo um sacramento, deve também significar alguma
coisa que ele de fato produz. Pela doutrina cristã, o Matrimônio simboliza a união entre Cristo e a
Igreja, a união entre Jesus e os santos, [1:50] o seu corpo místico. Por causa disso, ele produz o que
realmente significa na pessoa dos esposos. É por isso que na epístola escrita aos efésios São Paulo
diz: “Maridos, amai as vossas mulheres como Cristo amou a Igreja. E mulheres, amai os vossos
maridos como a Igreja amou o Cristo”. Dentre outras coisas, isso significa que se acrescentou uma
outra finalidade ao matrimônio que não havia no contrato natural; que a graça sacramental produz
aquilo que ela realmente significa, ela dá o auxílio para que isso se cumpra. Isso significa, se fôssemos
trocar em miúdos, que o marido tem de amar a esposa como Jesus amou a Virgem Maria, a São
Francisco, ou aos maiores santos; que a esposa deve amar o marido como a Virgem Maria, São
Francisco ou os maiores santos amaram Jesus. Colocado mais explicitamente, isso significa que a
esposa deve receber seu marido, quando o mesmo chega em casa, como se ela estivesse recebendo a
Eucaristia; e o marido tem de sentar à mesa que a esposa preparou como se ele tivesse recebendo a
hóstia sagrada ou como se a Virgem Maria estivesse diante dele.
Isso significa uma coisa que no contrato de direito natural não havia. No contrato de direito natural
se casa para ter uma família, para ter uma companheira e para se moderar na castidade. No
Matrimônio se casa para aprender a amar o cônjuge com o mesmo amor que tem de se amar a Deus.
No Matrimônio se deve, digamos, treinar com o cônjuge o amor que se deve dar a Deus na oração, o
amor que se deve dar a Deus na Eucaristia. Toda vez que o esposo(a) estiver diante de sua esposa(o),
ele(a) tem de se portar como se estivesse diante de Deus, tem de praticar o amor a Deus.
Na vida de oração, uma das coisas que temos de aprender a conquistar é, através da união da fé e da
caridade, morar permanentemente na presença de Deus. Se tratamos a esposa dessa maneira, uma vez
tenhamos a graça sacramental – que o contrato de direito natural confere às pessoas que estão se
casando, no caso de elas serem batizadas –, o Matrimônio passa a ser um caminho de perfeição, em
vez de ser uma arapuca. A própria vida matrimonial passa a ser muito parecida com a vida de
comunhão com Deus. Em vez de ela o distrair da vida espiritual, ela vai concentrá-lo na vida
espiritual. Para amar a sua esposa(o) dessa maneira, temos de fazer com ela os mesmos tipos de
práticas que fazemos para aprendermos a amar a Deus na oração.
Tudo aquilo que estamos falando durante as aulas de quinta-feira – sobre a união da fé e da caridade,
sobre como desenvolvemos na vida espiritual as práticas de oração, os caminhos etc. –, nós podemos
aplicar ao cônjuge. Além disso, nós temos a ajuda da graça para fazer isso, a graça especial do
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sacramento – claro, desde que saibamos aproveitá-la, que é justamente o que as pessoas não sabem.
Além das três razões para casar, que há no direito natural, há essa razão sobrenatural transcendente,
essa ordem maior. Transcende não no sentido de que a anula, pois ela as conserva. Transcende no
sentido de que as reabsorve em uma ordem maior. Para a pessoa que realmente faz assim, o
Matrimônio não é mais uma arapuca, é um caminho, é como o sacerdócio. O sacerdócio é um caminho
para Deus.
Seria mais fácil ser um monge? Seria mais fácil nem ser sacerdote? Seria mais fácil simplesmente
dedicar-se de todo à oração? Pode ser que sim, depende de cada vocação. Mas o sacerdócio não
atrapalha. Se o sacerdócio for bem trabalhado como um caminho para Deus, num certo sentido, é
mais poderoso do que a pura vida monástica.
Hoje praticamente pode não ser que o sacerdócio seja assim tão poderoso, porque hoje a Igreja está
uma bagunça. Para ser um sacerdote bom, é preciso um grau de consciência difícil de se conseguir
num seminário comum. Mas, em tese, um sacerdócio, bem ordenado, é maior do que a simples vida
monástica – a não ser que na vida monástica o monge seja também um sacerdote. Na vida sacerdotal,
a pessoa se envolve com uma série de coisas que representam Deus. Coisas que não são a própria
vida de oração, mas vão aperfeiçoando-a para a vida de oração, e não pouco. E o Matrimônio a mesma
coisa. Apesar de tudo isso, apesar de São Paulo saber de tudo isso, ele ainda aconselha: quem for
capaz da perfeita castidade, eu preferiria que vocês fossem assim, mas não está mais fechado.
Voltando à questão da moral e dos pecados contra a castidade. É evidente que o Matrimônio, como
sacramento, pressupõe o matrimônio como contrato. O Matrimônio, como sacramento, não anula o
matrimônio, como contrato, ele pressupõe. Tudo o que há no matrimônio como contrato, há no
Matrimônio como sacramento, só que tem mais. Se observarmos o Matrimônio sem o observarmos
também como contrato, abolimos o Matrimônio como sacramento também, pois ele foi suposto.
O matrimônio como contrato pressupõe a vida sexual. Não existe matrimônio sem vida sexual. Pode
haver matrimônio sem atividade sexual, mas não pode haver matrimônio sem sexualidade. Senão se
poderia casar-se com qualquer coisa: homem com homem, mulher com mulher, humano com um ET.
Mas isso não adianta. Isso não dá certo. Pois só é possível apaixonar-se, ter um amor que leve ao
matrimônio, com uma pessoa do sexo oposto – mesmo que, como no caso da Virgem Maria, não haja
uma vida sexual ativa; mesmo que fosse de avançada idade e não quisesse mais uma vida sexual. Tem
de ser necessariamente com uma pessoa de outro sexo, a sexualidade tem de estar lá presente. Sem
atividade sexual pode haver matrimônio, mas sem sexualidade não.
Para a esmagadora maioria das pessoas, esse é o caminho ordinário de santificação. Queira ou não
queira, ao que tudo indica, a maioria esmagadora das pessoas não vão ser pessoas de vida consagrada.
A esmagadora maioria das pessoas na Igreja serão casadas – hoje em dia é assim. Pode ser que algum
dia a espiritualidade esteja tão elevada [na humanidade], que a maioria das pessoas sejam de
consagradas e a minoria de casadas [2:00] – ainda assim os casados existirão. Para essas pessoas, não
existirá nenhuma outra via de salvação a não ser através da vivência do sacramento do Matrimônio.
O Matrimônio é uma faca de dois gumes: ou você o vive como sacramento, ou então não tem
santificação. Como hoje a maioria esmagadora dos cristãos se casam, a única chance de eles se
santificarem é através da sacramentalidade do Matrimônio. Essa sacramentalidade pressupõe a vida
sexual regrada. Se desregrar a vida sexual, acaba a única chance desse total de 99% de pessoas de se
santificarem. Não adianta dar doutrina a elas, elas não vão se santificar nunca – o próprio matrimônio
acaba com isso. Elas até podem ser católicas praticantes, mas se não conseguirem viver o Matrimônio
como sacramento, elas não vão conseguir se santificar.
Portanto, estamos vendo que a sexualidade tem alguma coisa a ver com o amor ao próximo, com o
amor sublime ao próximo. A santificação do Matrimônio supõe um amor ao próximo, entre os
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cônjuges, absolutamente sublime. A possibilidade dessa sublimidade exige uma sexualidade. E se ela
não existir, acabou.
A maioria dos cristãos, e hoje em dia praticamente a totalidade deles, mais de 99%, se casam. A única
chance de eles se santificarem é através do Matrimônio, que para ter toda a sua eficácia exige um
amor absolutamente transcendente entre os cônjuges. E esse amor só se realiza dentro de um contexto
de Matrimônio. É um amor que não se pode dar a todo mundo. É um amor que só se pode dar para o
próprio cônjuge. Um amor desses não se pode dar nem para um grande amigo. Tem de ser para o
cônjuge, o companheiro de outro sexo. Portanto, o contrato matrimonial, o sacramento matrimonial,
pressupõem a sexualidade.
Estávamos anteriormente falando que a vida sexual está contida no amor ao próximo porque ela
contém a vida em potência. Considerando a natureza do Matrimônio, podemos dizer que a vida sexual
está dentro do amor ao próximo, porque não existe outra via para uma pessoa casada se santificar a
não ser através da vivência sacramental do Matrimônio. Isso supõe uma sublimidade de amor ao
próximo, algo que vai ser uma plataforma para aprender a amar a Deus. Isso pressupõe uma vida
sexual regrada. O imbecil que detona a própria sexualidade, está detonando aquela que talvez seja a
única chance d’ele se santificar. Ele está detonando a possibilidade de amar o cônjuge, algo que Deus
pede dentro do sacramento da Confissão. Isso vai contra o amor ao próximo, que é muito semelhante
ao amor a Deus.
O que a doutrina fala é que qualquer pecado contra a castidade, seja por pensamentos, seja por
palavras, seja por obras, que seja plenamente advertido e plenamente consentido, é pecado grave –
por menor que ele seja. Não existem pecados contra a castidade leves em si. Se for plenamente
consentido e plenamente advertido, é grave. Isso está claramente no Evangelho: “Vocês ouviram o
que foi dito aos antigos: não cometerás adultério”. No sexto mandamento do Decálogo está escrito:
“Não cometerás adultério”. Esse mandamento, era tido pelos judeus como um pecado contra a
castidade. Porém, Jesus disse: “Na verdade, Eu vos digo, não é só quem comete adultério que
transgrediu os mandamentos da lei de Deus. Todo aquele que olhar para uma mulher com um olhar
impuro, já cometeu adultério no coração”. Ele está comparando um mau pensamento com o pecado
do adultério, algo que para os judeus era gravíssimo. Então, um pensamento contra a castidade é tão
grave quanto o mais grave de todos. Da mesma maneira, em seguida Jesus fala do pecado do contra
o respeito ao próximo: “Vocês ouviram o que foi dito aos antigos: não matarás. Mas Eu digo: quem
chamar o irmão de cretino, já é réu do fogo do inferno”. Ou seja, Ele pisou em cima da castidade e
do respeito ao próximo, ele sublinhou fortissimamente ambos.
E por que acontece isso? Existem muitas e muitas maneiras de explicar isso por argumentos mais
convincentes para as pessoas de hoje. Um dos que parece mais convincente para as pessoas de hoje
não é a verdadeira razão, mas exemplifica muito bem. Por exemplo, ver filme ou imagem
pornográfica, ver a imagem de mulheres em trajes menores: que mal pode haver nisso? Primeiro, isso
é uma coisa que viciante. A pessoa que apreciou uma mulher em trajes menores, que viu uma imagem
pornográfica, depois vai querer ver outra, o desejo acende, aí ele vê outra, vê outra etc. É grande a
possibilidade de ele se tornar um viciado nisso. O viciado não significa apenas aquela pessoa que não
consegue fazer mais nada sem isso, que nem trabalhar consegue. Aqui eu falo daquela pessoa que
está habituada a isso, que não consegue mais dizer “não” definitivamente.
Esse ato de ver uma imagem pornográfica, o que significa? Normalmente as pessoas que fazem
pornografia colocam mulheres bonitas, modelos, as mulheres mais lindas que existem. Quando vemos
uma imagem pornográfica, na verdade estamos tendo um “encontro” sexual com essas mulheres
lindas. Geralmente se vê aquilo durante uns 30 segundos, 1 minuto, e aí descarta, vai ver outra, isto
é, nunca se resume a mesma. Vê outra, aprecia por 30 segundos, 1 minuto, e as descarta. As próprias
revistas que fazem essas coisas não são nunca com a mesma mulher, senão não comprariam mais.
Sempre tem uma mulher diferente, cada uma mais linda do que a outra. Isso se dá até o fulano ficar
acostumado a ter uma relação sexual incipiente com as mulheres, a pegar a mulher mais linda, usar
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por 30 minutos, e largar. Depois vem a mulher mais linda do que a mais linda, usa-a, e joga fora
depois de 30 minutos. A pessoa se acostuma à vida inteira pegar as mulheres mais lindas, cada uma
mais linda do que a outra, usar por 30 minutos e depois jogar fora. Ela já não consegue nem mais ser
fiel àquela figura, já se cansou dela, quer ver mais e mais e mais. Um dia esse rapaz vai encontrar
uma namorada e vai se casar com ela. Com toda a certeza, ela não será tão linda quanto aquelas que
ele viu. Ele já vai estar acostumado [2:10] com mulheres muito mais lindas que ela, a usá-las por 30
minutos e depois jogar fora. Por mais linda que ela seja, ela vai estar muito mais abaixo do que todas
as que ele viu; ele vai prometer para ela que serão felizes na alegria e na tristeza, na saúde e na doença,
até que a morte os separe, que nunca vai pensar em outra a não ser nela: conversa fiada pura.
Ele jogou fora a base física e biológica de se santificar através do Matrimônio. Com muita dificuldade,
ele se aguenta na primeira morada. Daí, não passa. Ou então, para passar, é com uma dificuldade
muito maior que aquela que as pessoas têm na prática. Porque vemos, nas aulas que damos, que,
quando se fala desses temas, as pessoas nem se interessam. Se elas se interessassem, de todas as que
vão à Igreja, elas viriam a essas aulas. Mas não vêm, são poucas. As próprias poucas que vêm, têm
uma dificuldade enorme para essas coisas; em grande parte, justamente por causa dos pecados contra
a castidade que cometeram.
Outra coisa. Os pecados contra a castidade, quando se instalam na pessoa, viram hábitos programados
biologicamente. Fica realmente muito difícil largar daquilo. Eu vou dar um exemplo. Eu não tenho
certeza disso, mas pelo o que tenho lido... Muita gente que é homossexual, não nasceu homossexual;
alguém os obrigou ou os colocou em contato com relações homossexuais. No princípio, eles podem
não ter gostado, mas depois se acostumaram. Depois que se acostumaram, não quiseram ter outro tipo
de vida sexual. Também as pessoas que na infância têm contato com uma forma depravada de vida
sexual, ou que alguém as abusou e as acostumou a um modo anormal de vida sexual, essas pessoas
depois que se casam ainda desejam aquela forma de vida sexual, mas às vezes não têm coragem de
propor para a esposa, pois não têm coragem de revelar aquilo. Mas, na verdade, aquilo não as larga.
Então, os desvios da vida sexual, mesmo que sejam pequenos, grudam na pessoa de uma maneira
terrível. Isso tudo provoca um dano tremendo à vida espiritual.
Além da sexualidade totalmente livre que se prega, hoje em dia estão tentando inculcar a ideologia
de gênero nas pessoas, tentando colocar isso nas escolas. Querem programar biologicamente os
corpos das pessoas para formas totalmente anômalas de vida sexual que não têm nada a ver com o
Matrimônio. Isso, se não for coisa proposital do maligno, que sabe que 99% da santificação do gênero
humano depende do Matrimônio, eu não sei o que é. É evidente que, sob essa perspectiva, o
Cristianismo tem razão: todo o pecado plenamente consentido e advertido conta a sexualidade é
grave. Seja por pensamento, seja uma pornografia, seja um ato de masturbação, seja uma carícia
avançada entre pessoas que não são casadas, uma carícia avançada pelo desejo do prazer, isso tudo é
pecado grave e não se pode tolerar. Se alguém faz isso, está fora da vida espiritual, foi contra a ordem
sobrenatural que Deus veio trazer para a alma humana. Se ela faz isso, não dá para se santificar. Não
dá para permanecer na graça, está fora. E como as pessoas que fazem isso nunca estiveram dentro [da
ordem sobrenatural de Deus], elas não entendem isso. A maioria das pessoas que estão em pecado
grave nunca estiveram dentro da vida da graça, da vida espiritual. Elas não conseguem entender a
relação presente aí. Nós falamos disso, mas só quem está lá dentro enxerga claramente isso. Isso é
uma lástima. As pessoas hoje em dia estão fazendo cada vez mais para poderem detonar isso de uma
maneira definitiva.
Olhando sob esse ponto de vista, temos uma ideia mais ampla do que é pecado grave. Ou seja,
podemos dizer que pecado grave é tudo aquilo que vai diretamente contra o amor de Deus, contra a
benevolência com o próximo e contra a castidade. O resto, em princípio, se é uma desordem, é pecado
venial, [porque] não vai diretamente contra o edifício. Nesse caso, digamos, a pessoa não dinamitou
os alicerces, ela sujou uma parede, que depois pode ser limpa. Mesmo com a parede suja, é possível
morar no edifício. Mas, se a pessoa, dinamitar o alicerce, aí não dá para morar lá dentro. Aí ela tem
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de sair fora antes que o prédio caia. E o que não é uma desordem do sistema, mas é algo que podia
ser feito melhor, que não foi feita de melhor maneira por falta de vontade, é uma imperfeição. Por
exemplo, a parede do edifício podia ser pintada uma cor mais bonita, mas a pessoa não quis e pintou
de uma cor que estava dentro do padrão. Dentro do edifício, isso pode até não ter tantas
consequências. O edifício deixou de ficar mais bonito, mas ainda funciona bem. Porém, dentro da
vida espiritual, isso pode ser um problema muito sério, pois isso é um outro tipo de ordem. Ainda
assim, temos de ter consciência clara de que a imperfeição não é pecado. Para ser pecado, deve haver
uma desordem que tem de ir contra o amor a Deus, contra a benevolência ao próximo ou contra a
castidade.
Antes de colocar mais uma coisa, eu quero chamar a atenção para como isso é uma coisa sábia. Desde
Aristóteles, desde Tomás de Aquino, a filosofia entendeu claramente que o ser humano tem paixões
desordenadas. E as paixões se agrupam em dois tipos: as do concupiscível e as do irascível. As
paixões do concupiscível são a gula, o alcoolismo, o sexo – são as que nos inclinam a ir atrás de um
prazer. As paixões do irascível são as que o ser humano tem para se proteger dos perigos de vida.
Quando alguém o ameaça de morte, a adrenalina sobe, aí ou você se defende ou sai correndo. É algo
que simula um perigo de morte, é alguém que xingou os seus pais, que bateu em você e você fica com
raiva. As paixões do irascível são relacionadas com a raiva, com a ira. Originalmente o irascível tem
a função de nos proteger do perigo de morte, mas o ser humano no estado presente a usa para outras
coisas. Basicamente, todas as paixões humanas ou seguem o modelo do concupiscível ou seguem o
modelo do irascível, [2:20] isto é, ou são de um tipo ou são de outro. Inclusive, do ponto de vista
fisiológico, a origem delas é diferente.
As paixões humanas desregradas são aquelas que impedem a inteligência humana de funcionar. A
inteligência humana, ao buscar a verdade, precisa da ajuda do imaginário. Só que o imaginário não é
movido só pela inteligência, ele é movido também pelas paixões. Quando temos raiva de alguém,
pensamos o pior dele. Quando cobiçamos uma mulher, pensamos em mil fantasias. De modo geral,
as paixões não deixam o nosso imaginário ficar quieto. Esse é um dos motivos de a inteligência
humana não poder se desenvolver bem, nós nos distraímos apaixonadamente por outras coisas. As
paixões, inclusive, muitas vezes sequestram a inteligência para o seu próprio serviço. O fulano que
ama o seu próprio ego sequestra a inteligência não para se elevar à verdade, mas para alcançar o
poder; a inteligência dele fica a serviço disso. Em vez de ele estar livre para enxergar as coisas como
elas são, ele acaba enxergando o mundo como ele gostaria que fosse. Enquanto não se ordena as
paixões, permanece a dificuldade de entender a natureza da vida espiritual, pois a inteligência se
encontra sequestrada. As paixões se agrupam nesses dois grandes tipos. Não existem paixões
humanas que não estão ou na linha do concupiscível ou na linha do irascível.
Jesus, do ponto de vista concreto e operacional da vida espiritual, ao colocar a doutrina dessa maneira,
simplificou toda a doutrina religiosa de uma maneira muito grande. Ele aboliu todos aqueles
seiscentos e poucos mandamentos da lei de Moisés e os reduziu a dois, que no fundo são esses três:
amar a Deus, amar ao próximo e a castidade – onde a castidade está incluída no amor ao próximo.
Além do amor a Deus, que é a busca das coisas mais elevadas, o amor ao próximo exige o respeito;
a prática da benevolência, exige o controle do irascível; a prática da castidade exige o controle da
mais forte das paixões do concupiscível, o apetite sexual. O fulano que sabe se controlar no respeito
ao próximo, que sabe manter a castidade, ele adquire o domínio completo das suas paixões; inclusive
sem precisar se dedicar muito a analisar as demais. O fulano que realmente é casto por virtude,
também não vai se viciar em bebida, não vai se viciar em droga, não vai se viciar em jogo de cavalo,
dificilmente será um guloso, dificilmente terá sede de glória, entre outras coisas. O fulano que é casto
tem o domínio da mais forte das paixões do concupiscível e domina as outras brincando. Ele só não
domina a do irascível, que é outro departamento.
No irascível, a mais difícil paixão a ser dominada é o medo da morte eminente, do perigo de vida
eminente. É difícil treinar essas coisas porque, primeiro, nos dias de hoje é raro que alguém ameace
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imediatamente a nossa vida. Para isso, teríamos de procurar algum trabalho que nos colocasse em
risco de vida o tempo todo. Só que aí também não vamos poder treinar isso muito tempo, porque se
tivermos um trabalho desses, nossa vida será muito breve, vamos morrer treinando. Na prática, para
treinar o irascível, é justamente praticar o respeito ao próximo. O indivíduo que respeita o próximo
sinceramente, não só externamente, mas internamente, o perdoando, sendo amável, não julgando mal
as pessoas e assim por diante, ele acaba adquirindo o controle perfeito do irascível. Inclusive, no dia
em que ele tiver de arriscar a vida, ele vai arriscar a vida com cavalheirismo, virtuosamente,
honradamente – uma vez que todas as paixões e virtudes estão interligadas.
A moral cristã é muito suave em relação a moral de outras religiões – do Islã, do Judaísmo –, que
exigem uma infinidade de coisas. A moral cristã, no fundo, é rígida só em dois pontos: castidade e
respeito ao próximo – nisso ela é intransigente. No resto, quase todas as outras transgressões são
veniais. Se você é preguiçoso e dorme além da conta, se isso não prejudicar gravemente a alguém,
isso é pecado venial. Se você comer e já estiver satisfeito, se você comer um bombom, algo que não
precisava, isso é uma desordem; ordinariamente isso não é pecado grave – a não ser que você
prejudique seriamente alguém; a não ser que você seja um diabético e isso possa colocá-lo em risco
de vida, nesse caso você está pecando contra a sua própria vida. Então, o Cristianismo é muito
leniente, muito condescendente com a moral toda, exceto nesses dois pontos, onde ele é
absolutamente severo.
Antes da próxima aula, vocês têm de ler o texto de Santo Afonso de Ligório, O amor aos inimigos. É
leitura obrigatória e está lá no site cristianismo.org. Desrespeitar o próximo daquela maneira ou
cometer um pecado contra a castidade, é matéria grave de confissão. Temos de fazer o exame de
consciência, temos de nos arrepender, temos de fazer propósito, temos de nos acusar e não voltar a
fazer mais. Com a graça da Confissão, realmente conseguimos não voltar a fazer mais. Isso liberta a
nossa mente de uma maneira fora do comum. A pessoa que é verdadeiramente paciente e
verdadeiramente casta, começa a ter o gosto das coisas de Deus. Ela adquire uma liberdade interior
absolutamente estupenda. Ela está livre para buscar as moradas interiores de Santa Teresa. Além da
questão moral, esse é um objetivo ascético, um objetivo espiritual de estudo. Ao adotarmos esse
sistema de ver as coisas, a Confissão nos prepara para a vida espiritual, que é o verdadeiro objetivo
da vida cristã.
Colocada a coisa dessa maneira, [vemos] o bem que isso faz de fato. É um fato tão extraordinário
que, para a perfeita ordenação [da pessoa], nos seus vários aspectos, [apenas] essas duas coisas sejam
tão graves e as outras não – o que [denota] que não é um mero capricho, que não foi algo que escolhido
a esmo, como se pode ver. Portanto, podemos dizer que, via de regra, é pecado mortal o que vai contra
o amor a Deus, contra a benevolência ao próximo e contra a castidade.
Tem mais uma coisinha que precisamos acrescentar, para completar o quadro. Jesus, quando esteve
na Terra, ao sagrar a Pedro como o primeiro pontífice, ao dizer que Pedro é pedra, que sobre essa
pedra construiria a Sua igreja, que as portas do inferno não prevaleceriam sobre ela, [2:30] que tudo o
que ele ligasse na Terra seria ligado no Céu e tudo o que desligasse na Terra seria desligado no Céu,
Ele deu autoridade para a Igreja e para o Sumo Pontífice de acrescentar ou retirar algumas coisas à
lei divina – desde que não desrespeitando-a como tal – e que essas coisas tivessem força de lei. Ou
seja, Ele deu autoridade à Igreja para fazer algumas leis que valessem tanto no Céu, como na Terra,
de tal modo que elas equivalessem às leis de Deus – isso, claro, para o benefício dos fiéis.
A Igreja, durante a sua história, fez algumas leis que se acrescentam às leis divinas. Ela tem direito a
fazer isso sob pena de pecado grave. Essas leis, sobretudo para os leigos, são muito poucas e na prática
se reduzem a cinco. São leis que em si não deveriam ser [classificadas como] pecado grave, mas o
são porque a Igreja assim o exige. Todas elas são muito simples e, inclusive, são fáceis de se
observarem. Lembremo-nos que é da natureza do Cristianismo não haver muitas leis, isto é, essa é
uma característica própria. Jesus reduziu praticamente toda a legislação judaica ao amor a Deus, a
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benevolência ao próximo e à castidade. A Igreja tem, no seu total, cinco mandamentos que vamos
comentar depois, ao longo das aulas.
A título de exemplo, um dos mandamentos da Igreja é o de assistirmos à missa aos domingos e dias
santos. Nesses dias, é obrigatório assistir a missa, sob pena de pecado grave. Isso não deveria ser
pecado grave, porque Jesus não pediu para assistirmos a missa aos domingos. Ele pediu para a
celebrarmos e assisti-la, mas não disse quando. No entanto, a Igreja entendeu por bem especificar que
é no domingo. Então, faltar à missa no domingo é pecado grave, caso a pessoa seja batizada. Quem
ainda não é batizado, a obrigação só começa após o batismo. Quem é criança pequena, pela própria
lei da Igreja, a obrigação só começa a partir dos sete anos de idade.
Outra lei da Igreja é de que devemos nos confessar uma vez ao ano. Na verdade, isso daí não seria
obrigação. Jesus institui a Confissão para aqueles que caem em pecado grave. Se alguém passa cinco,
seis, ou dez anos sem cometer pecado grave, ele não deveria ser obrigado a se confessar. Mas, a Igreja
entendeu que, para o bem geral dos fiéis, os mesmos têm de se confessar ao menos uma vez ao ano.
A outra lei nos diz que devemos comungar ao menos uma vez ao ano. Um bom cristão, que quer ser
santo, deveria comungar com a maior frequência possível. Exigir que se comungue uma vez ao ano
é quase uma piada. Mas, para o bem dos fiéis, principalmente para os que são tão relapsos que às
vezes não comungam nem uma vez por ano, a Igreja colocou essa obrigação. E, por incrível que
pareça, hoje em dia isso quase não faz sentido, porque a maioria das pessoas estão fora da Igreja. Os
que estão realmente dentro não precisam dessa lei, [pois] comungam muitas vezes. Porém, na época
em que a sociedade inteira era cristã, havia todo tipo de cristãos: aqueles bem praticantes que queriam
se santificar e os que ficavam à margem. Na prática, todo mundo era cristão, inclusive os que estavam
afastados da Igreja. As pessoas, quando morriam, sempre pediam ao padre para se confessar. Quando
vinha o padre, ele percebia que a pessoa sabia como se confessar corretamente. Há uns cem anos
atrás, era uma época em que a sociedade, sobretudo na Europa, era totalmente cristã. Então, tinha
uma grande quantidade de fiéis que cumpria exatamente o que a Igreja falava, mas não fazia mais
porque tinham medo de não fazer isso. Então, para essas pessoas, esse mandamento era
importantíssimo porque tinha gente que só se confessava e só comungava porque era obrigatório
[fazê-lo] uma vez por ano. Senão, eles iam deixar passar um, dois, três anos. Iam à missa, mas não
comungavam. Ou seja, são mandamentos sábios que a Igreja colocou para o bem dos fiéis. Todos
eles são muito fáceis [de se cumprir]. É comungar uma vez por ano, confessar-se uma vez por ano, ir
à missa todos os domingos e alguns outros.
Colocada as coisas assim, está completo o quadro.
Em suma, o que seria pecado grave? Tudo aquilo que vai diretamente contra o amor a Deus, contra a
benevolência ao próximo, contra a castidade e contra algum mandamento que a Igreja instituiu através
do poder recebido de ligar e desligar. Os mandamentos da Igreja são para o bem dos fiéis. Se ela
quisesse, poderia revoga-los. Mas, enquanto ela não revoga, nós, batizados, somos obrigados a
obedecer justamente porque Jesus pediu [que fosse] dessa maneira. São poucos, são todos razoáveis
e sensatos, como veremos depois.
Na prática, esses quatro critérios não nos eximem de estudar Teologia Moral. Esses critérios são mais
para termos visão de conjunto e princípios que ordenem o assunto. Na prática, muitas vezes há coisas
que estão implícitas dentro das outras. Por exemplo, quem diria que a castidade está implícita dentro
do mandamento do amor ao próximo? Eu já vi sacerdote, malformado, infelizmente, que, quando o
catequista foi explicar para as crianças sobre o pecado contra a castidade, o sacerdote falou: “Como
você pode fazer isso? Para com isso! Pecado é ir contra o amor a Deus e contra o amor ao próximo.
Não há nada de castidade. Eu não quero que você fique colocando minhoca na cabeça das crianças”
– infelizmente isso acontece, o sacerdote mesmo não a enxerga.
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Existem coisas que estão implícitas nas outras. Por exemplo, os pecados de superstição: adivinhação,
práticas divinatórias e coisas do tipo. Pelo o que estamos falando, teoricamente, práticas divinatórias
não vai nem contra o amor a Deus, nem contra o amor ao próximo, nem contra a castidade, nem
contra os cinco mandamentos da Igreja. Portanto, deveria ser pecado venial, porque é uma desordem.
Não há maneira de adivinhar o futuro com práticas divinatórias, senão não poderia haver o livre-
arbítrio, o destino humano já estaria predeterminado. Só Deus pode saber o futuro, caso Ele queira
revelá-lo com certeza absoluta. Então, prática divinatória é uma desordem, porque se está fazendo
uma coisa que não está dentro da ordem natural. Como é apenas uma desordem, deveria ser um
pecado venial. Entretanto, a doutrina cristã diz que há aí certas coisas implícitas que as colocam de
encontro com o mandamento do amor a Deus. Na verdade, as práticas divinatórias são um chamariz
para maus espíritos, que de fato existem, e descambam muito facilmente para isso. [2:40] Muitas vezes
eles se infiltram nesse meio e fulano começa a adivinhar o futuro de fato. Na verdade,
conscientemente ou não, elas envolvem espiritualmente uma tentativa de relacionamento com maus
espíritos e isso é pecado contra o primeiro mandamento. Se relacionar com o demônio ou fazer
alguma coisa que foi feita ou que é canal para isso, vai contra o primeiro mandamento.
Em linhas gerais é isso. Esse esquema é excelente para sabermos diferenciar o que é matéria grave
do que não é. Mas isso está sob a forma de princípios. Existem muitas coisas que na prática é preciso
uma análise para se reduzir a esses princípios. Ou seja, não estamos autorizados a praticar qualquer
coisa simplesmente porque, sob exame, elas não se encaixaram naqueles quatro princípios. Pode
acontecer de não conseguirmos enxergar como elas se encaixam. Na verdade, não existem quatro
princípios, existem dois: o amor a Deus e o amor ao próximo. Porém, existem esses dois outros
princípios, que decorrem tão imediatamente desses primeiros, que podemos coloca-los como sendo
quatro: o amor a Deus, a benevolência ao próximo, a castidade e os mandamentos da Igreja. Então,
esses estão tão próximos, que podemos colocar juntos.
Existem coisas implícitas que só com estudo e com a prática é que se vai pegando. Não é válido dizer:
“Ah, então tudo isso aqui não vale nada. Eu entendi tudo isso, mas tem coisa que está aí que parece
que não está”. Na verdade, isso tudo vale muito, pois isso coloca a lógica da coisa, coloca a arquitetura
da coisa. É essa a arquitetura da coisa, pelo que depreendemos de São Tomás de Aquino, pelo o que
vemos em coerência com todo o resto que a Igreja, a tradição cristã e a Sagrada Escritura sempre
ensinaram.
Essa é a melhor explicação que eu já encontrei até hoje para mostrarmos claramente a natureza do
pecado grave; para mostrarmos como ela difere do pecado venial e da imperfeição, de um ponto de
vista prático, de um ponto de vista da essência da coisa, sem entrarmos em detalhes, sem especificar
o que é cada coisa. É possível definir de uma maneira mais refinada, mas nesse caso, apesar de mais
profunda, a coisa fica muito abstrata, fica num plano que não conseguimos enxergar concretamente
– que é o que queremos para agora. Essa é uma maneira teológica mais profunda de definirmos
exatamente o que é matéria grave. Estamos aqui a definindo operacionalmente, que é o que interessa.
A outra maneira, a mais profunda, pode ter alcances teológicos maiores, mas serve para
contemplarmos os mistérios de Deus. A outra definição serve maravilhosamente bem do ponto de
vista da contemplação, da vida espiritual, mas o que estamos querendo aqui é desenvolver os
princípios operacionais da moral. Sendo assim, sob o ponto de vista operacional, eu nunca vi uma
explicação melhor do que esta [que vos estou dando].
Espero que isso fique bem claro, pois é muito básico. Se vocês não querem ser demitidos da pizzaria
imediatamente, nunca cometam um pecado grave contra a pizzaria. Se vocês não querem estar fora
da vida sobrenatural, nunca caiam numa dessas. Caiu, está fora, é despedido na hora. A diferença da
pizzaria é que você nunca mais volta [a trabalhar lá]. Aqui, [na vida da graça], se nos arrependermos
com humildade e se nos comprometermos a respeitar tudo novamente, voltando com a ajuda da graça,
Deus nos acolhe novamente. Mas se pisar na bola de novo, está fora outra vez. Enquanto estiver se
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arrependendo com sinceridade total, haverá N chances de voltar. Mas ai de nós se morrermos
enquanto estivermos fora.
A moral da história é esta: se você quer manter o emprego na pizzaria, tem certas coisas que não pode
cometer jamais. Se você quer viver na graça de Deus, tem certas coisas que você não pode cometer
nunca e deve se fazer todo o esforço para isso.
Os sacramentos estão planejados por Jesus para nos ajudar a não cair nisso. É uma vida maravilhosa,
porque Deus demarcou exatamente o lugar onde você não pode ir, está tudo direitinho demarcado
com segurança. Se você se mantiver dentro, para fora você não cai. Se você tiver boa vontade, para
dentro você só cresce. Não existe coisa mais maravilhosa do que isso. Isso não é uma tirania. É como
alguém que vai fazer um caminho muito difícil e um amigo, sabendo disso e querendo proteger essa
pessoa, coloca um monte de placas, um monte de avisos, um monte de alarmes e um monte de
remédios para essa pessoa não cair fora [do caminho]. A pessoa só cai fora se quiser ir lá. Ainda que
esteja escrito que não pode, se a pessoa põe o pé para fora, o alarme soa. “Ah, mas eu sou livre” – ela
responde. Bem, não se pode dizer que o amigo a está perseguindo. O amigo a está amando. Se ela se
jogar lá, é porque quis. Então, na verdade, não é para prender o indivíduo, é para libertar o indivíduo.
Não é regra para prender a pessoa, é regra para libertar a pessoa. Para que ela possa ter uma vida livre,
plenamente humana, plenamente desenvolvida. Para que possa se desenvolver espiritualmente tanto
quanto ela puder. [2:47:10]

Transcrição: Jussara Reis


Revisão: Rahul Gusmão

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