Five Nights at Freddy’s:
Os Distorcidos
Esta é uma tradução gratuita, elaborada e disponibilizada pela equipe da
Phantasie Translate. Se você pagou por ela, você foi enganado.
CONTEÚDOS
CAPA
PARTE 1: Os Distorcidos
CAPÍTULO UM
CAPÍTULO DOIS
CAPÍTULO TRÊS
CAPÍTULO QUATRO
CAPÍTULO CINCO
CAPÍTULO SEIS
CAPÍTULO SETE
CAPÍTULO OITO
CAPÍTULO NOVE
CAPÍTULO DEZ
CAPÍTULO ONZE
CAPÍTULO DOZE
CAPÍTULO TREZE
CAPÍTULO QUATORZE
PARTE 1
Os Distorcidos
tradução por:
Phantasie
CAPÍTULO UM
— Não confiem em seus olhos.
A Dra. Treadwell andava de um lado para o outro pela plataforma
diante do auditório. Seus passos eram lentos e constantes, quase
hipnotizantes.
— Seus olhos os enganam todos os dias, preenchendo por você os
espaços vazios em um mundo de sobrecarga sensorial. — Uma imagem se
iluminou na tela de lona atrás dela, apresentando uma série de formas
geométricas ofuscantes. — E quando eu digo “sobrecarga sensorial”, me
refiro ao sentido literal. A todo instante, seus sentidos recebem muito mais
informação de uma só vez do que podem processar, e sua mente é forçada a
escolher em quais sinais deve prestar atenção. Ela faz isso baseando-se nas
suas experiências, nas suas expectativas do que é normal. As coisas com as
quais estamos familiarizados são coisas que podemos, no geral, ignorar.
Isso se torna mais evidente quando falamos sobre fadiga olfativa: seu nariz
deixa de perceber um cheiro quando ele se faz presente por um certo
tempo. Talvez devêssemos ser gratos por esse fenômeno, dependendo dos
hábitos de nossos colegas de quarto.
A turma deu uma risada comportada, e então voltou a ficar quieta
quando outra imagem multicolorida surgiu na tela.
A professora abriu um sorriso contido e continuou.
— Sua mente cria movimento onde não há. Preenche cores e trajetos
baseando-se em coisas que você já viu antes, e calcula o que
você devia estar vendo. — Outra imagem surgiu na tela. — Se sua mente
não fizesse isso, então o mero ato de sair de casa e se deparar com uma
árvore já consumiria toda a sua energia mental, sem deixar nenhum recurso
para quaisquer outras coisas. Para que você possa funcionar neste mundo,
sua mente preenche os espaços ocupados por essas árvores com seus
próprios galhos e folhas. — Uma centena de lápis escreveram todos de uma
vez, preenchendo a sala de aula com o que parecia o som de ratos correndo
apressados. — É por isso que quando entramos em uma casa pela primeira
vez, experienciamos um momento de ofuscação. Nossa mente está
processando mais coisas que o normal. Está traçando uma planta do local,
criando uma paleta de cores, e salvando todo um inventário de imagens
para desenhar depois, para que não tenhamos que passar por todo esse
exaustante processo de absorção toda vez. Na próxima vez que entrarmos
naquela casa, já saberemos onde estamos.
— Charlie! — Uma voz tomada por urgência sussurrou seu nome a
centímetros de distância. Charlie continuou escrevendo. Estava olhando
diretamente para a tela na frente da sala. Conforme continuava com a aula,
a Dra. Treadwell ia falando cada vez mais rápido, ocasionalmente erguendo
um braço em direção à tela para ilustrar sua explicação. Suas palavras
pareciam ficar para trás enquanto sua mente viajava adiante; já no segundo
dia de aula, Charlie percebera que a professora costumava parar no meio de
uma frase, apenas para terminar com outra completamente diferente. Era
como se ela repassasse o texto em sua cabeça, lendo algumas palavras
perdidas aqui e ali. A maioria dos alunos em sua turma de robótica achava
isso enlouquecedor, mas Charlie gostava. Fazia com que a aula fosse como
montar um quebra-cabeças.
A imagem na tela mudou outra vez, mostrando agora uma variedade
de peças mecânicas e o diagrama de um olho.
— Isso é o que vocês devem recriar. — A Dra. Treadwell se afastou
da imagem, virando-se para olhá-la junto com a turma. — As bases da
inteligência artificial baseiam-se em controle sensorial. Vocês não lidarão
com uma mente que consegue filtrar essas coisas sozinha. Vocês devem
criar programas capazes de reconhecer formas básicas, enquanto descartam
informação inútil. Devem fazer pelos seus robôs o que suas mentes fazem
por vocês: criar um conjunto de informações simples e organizado, baseado
no que é relevante. Vamos começar vendo alguns exemplos de
reconhecimento de formas básicas.
— Charlie — voltou a assobiar a voz, e ela balançou o lápis
impacientemente para a figura à espreita por cima de seu ombro, seu amigo
Arty, no intuito de fazê-lo ficar quieto. O gesto lhe custou um momento
que a deixou meio passo atrás da professora. Ela correu para alcança-la,
ansiosa com a ideia de não perder uma palavra sequer.
O papel diante dela estava coberto de fórmulas, anotações nas
margens, rascunhos e diagramas. Ela queria colocar no papel tudo de uma
vez só: não só a matemática, mas todas as coisas nas quais ela a fazia
pensar. Se conseguisse ligar novos fatos a coisas das quais já sabia, seria
muito mais fácil de fixar. Fazia aquilo com voracidade, alerta, observando
cada novo petisco de informação como um cachorro sob a mesa do jantar.
Um garoto perto da frente levantou a mão para fazer uma pergunta, e
Charlie sentiu um breve surto de impaciência. Agora toda a turma teria que
parar enquanto Treadwell voltava para explicar um conceito simples.
Charlie deixou sua mente divagar, rabiscando distraidamente nas margens
de seu caderno.
John chegaria dentro de — ela olhava incansavelmente para o relógio
— uma hora. Eu disse pra ele que algum dia nós nos veríamos novamente.
Acho que hoje é algum dia. Ele tinha ligado completamente de repente: “Só
vou dar uma passadinha”, disse, e Charlie nem sequer se preocupou em
perguntar como ele sabia onde ela estava. É claro que ele sabia. Não havia
razão para não se encontrar com ele, e ela notou que estava alternando
entre animação e pavor completo. Agora, enquanto rabiscava
distraidamente formas retangulares pelo canto do papel, seu estômago
pulou, num espasmo nervoso. Parecia fazer uma eternidade desde a última
vez que o vira. Às vezes, era como se o houvesse visto ontem, como se o
último ano não tivesse passado. Mas é claro que passara, e tudo novamente
havia mudado para Charlie.
Em maio, na noite do seu aniversário de dezoito anos, os sonhos
começaram. Charlie já estava muito bem acostumada com pesadelos, os
piores momentos de seu passado forçados a subir por sua garganta como
bile, transformados em versões distorcidas de memórias que já eram
terríveis demais para lembrar. Ela empurrava esses sonhos para o fundo de
sua mente pela manhã e os deixava trancados, sabendo que eles só
escapariam novamente quando a noite caísse.
Mas esses sonhos eram diferentes. Quando acordava, estava
fisicamente exausta: não só esgotada como sensível, os músculos fracos.
Suas mãos ficavam duras e doloridas, como se houvessem passado horas
fechadas em punhos. Esses novos sonhos não vinham toda noite, mas
quando vinham, interrompiam seus pesadelos normais e tomavam controle.
Não importava se ela estivesse correndo ou gritando por sua vida, ou
vagando sem rumo por uma coletânea sem grassa dos vários lugares em
que esteve durante a semana. De repente, no meio do nada, ela o sentia:
Sammy, seu irmão gêmeo perdido, estava perto.
Sabia que ele estava presente da mesma forma que sabia
que ela estava presente, e independente de qual sonho fosse, tudo
desaparecia — pessoas, lugares, luzes e som. Passava a procurar por ele em
meio à escuridão, chamando-lhe pelo nome. Ele nunca respondia. Ela caía
de joelhos no chão, sentindo o caminho a seguir pelas trevas, deixando que
sua presença a guiasse até chegar em uma barreira. Era suave e frio, de
metal. Não conseguia enxergar, mas bateu nela com força, ouvindo o
ressoar metálico.
— Sammy? — chamava por ele, batendo com mais força. Parada,
tentou encontrar uma forma de subir na superfície lisa, mas era alta demais.
Bateu com os dedos contra a barricada até que começasse a doer. Gritou
pelo nome do irmão até que a garganta ficasse seca, até que caiu contra o
chão e se inclinou contra o metal sólido, apertando a bochecha contra a
superfície gelada na esperança de ouvir um sussurro vindo do outro lado.
Ele estava lá — ela sabia com tanta certeza que era como se fizesse parte
dela.
Sabia nesses sonhos que ele estava presente. Pior que isso, quando
acordava, sabia que ele não estava lá.
Em agosto, Charlie e a tia Jen tiveram sua primeira briga. As duas
sempre haviam sido distante demais para discutir de verdade. Charlie nunca
sentira necessidade de ser rebelde, porque Jen nunca fora realmente
autoritária. E Jen nunca levara nada que Charlie fazia para o lado pessoal,
nem tentara impedir que ela fizesse qualquer coisa, não enquanto ela
estivesse segura. Desde o dia em que Charlie se mudou para morar com ela
aos sete anos, tia Jen lhe disse muitas vezes que ela não era uma substituta
para os pais de Charlie. Agora, Charlie já tinha idade para entender que Jen
dissera isso num gesto de respeito, como uma forma de garantir a Charlie
que seu pai não seria esquecido, que ela sempre seria filha dele. Mas na
época, lhe parecera uma reprimenda. Não espere que eu vá agir como se
fosse sua mãe. Não espere ser amada. E Charlie não esperou. Jen sempre
cuidou muito bem de Charlie. Charlie nunca ficou necessitada de comida
ou de roupa, e Jen a ensinou a cozinhar, cuidar da casa, administrar seu
dinheiro e consertar o próprio carro. Você precisa ser independente,
Charlie. Precisa saber como cuidar de si mesma. Precisa ser mais forte do
que— ela sempre parava por aí, mas Charlie sabia como a frase
terminava. Do que seu pai.
Charlie sacudiu a cabeça, tentando se libertar dos próprios
pensamentos.
— Qual é o problema? — disse Arty, ao seu lado.
— Nada — sussurrou. Passou o lápis de novo e de novo por cima das
mesmas linhas: para cima, para o lado, para baixo, para o lado, o tracejado
de grafite ficando cada vez mais grosso.
Charlie havia dito a Jen que ia voltar para Hurricane, e o rosto de Jen
enrijeceu, sua pele ficando imediatamente pálida.
— Por que iria querer fazer isso? — Ela perguntou com uma
perigosa calma na voz. O coração de Charlie bateu mais rápido. Porque foi
lá que eu o perdi. Porque eu preciso dele mais do que preciso de você. A
ideia de voltar a incomodava a meses, ficando mais forte a cada semana
que passava. Ela acordou uma manhã e a decisão foi tomada,
definitivamente, assentada em sua mente com um peso sólido.
— Jessica vai fazer faculdade na St. George. — disse à tia. — Ela
vai começar no semestre do verão, então vou poder ficar com ela enquanto
estiver lá. Eu quero ver a casa de novo. Ainda tem tanta coisa que eu não
entendo. Me parece... importante. — Ela parou de falar com a voz fraca,
hesitando conforme os olhos de Jen, azuis escuros, como mármore, se
fixavam sobre ela.
Jen não respondeu por um longo momento, até que simplesmente
disse:
— Não.
Por que não? Charlie poderia ter dito, certa vez. Você me deixou ir
antes. Mas depois do que acontecera no ano anterior, quando ela, Jessica e
os outros voltaram à Freddy’s e descobriram a terrível verdade por trás dos
assassinatos na velha pizzaria de seu pai, as coisas mudaram entre elas.
Charlie havia mudado. Agora ela encarava o olhar de Jen, determinada.
— Eu vou — disse, tentando manter a voz firme.
E então tudo explodiu.
Charlie não sabia qual das duas havia começado a gritar primeiro,
mas gritou até que a garganta estivesse inflamada e dolorida, atirando
contra sua tia toda e qualquer dor que ela já lhe houvesse causado, toda
mágoa que não conseguira impedir. Jen gritava de volta, dizendo que tudo
o que fazia era porque queria cuidar de Charlie, que sempre fizera o seu
melhor, lançando contra elas palavras reconfortantes que, de alguma forma,
pingavam de veneno.
— Tô indo embora! — gritou Charlie, por fim. Olhou para a porta,
mas Jen a agarrou pelo braço, puxando-a de volta com violência. Charlie
tropeçou, quase caindo antes de se segurar na mesa da cozinha, e Jen soltou
a mão com uma expressão chocada. Ficaram em silêncio e então Charlie
deixou o local.
Fez uma mala, sentindo como se, de alguma forma, tivesse se
desviado da realidade, rumo a um mundo paralelo impossível. Então,
entrou no carro e saiu dirigindo. Não contou a ninguém que estava
partindo. Seus amigos não eram assim tão próximos — não havia ninguém
a quem devesse uma explicação.
Quando chegasse à Hurricane, Charlie pretendia seguir direto para a
casa de seu pai, ficar lá durante os próximos dias, até que Jessica chegasse
ao campus. Mas quando foi alcançando os limites da cidade, algo a
deteve. Não posso, pensou. Eu nunca vou poder voltar. Ela deu a volta com
o carro e dirigiu diretamente à St. George, onde dormiu no carro por uma
semana.
Charlie havia acabado de pegar no sono quando Jessica abriu a porta
com uma expressão tão alarmada que a fez perceber que nunca chegara a
mencionar seus planos para Jessica, de quem dependiam completamente.
Ela contou tudo, e Jessica, hesitante, ofereceu que ela ficasse. Charlie
dormiu no chão durante todo o resto do verão e, quando o semestre do
outono foi se aproximando, Jessica não a pediu para sair.
— É bom ter alguém aqui que me conheça — dissera ela, e, saindo
completamente do seu normal, Charlie a abraçou.
Charlie nunca se importara com o colégio. Não costumava prestar
muita atenção às aulas, mas sempre tirava boas notas. Nunca pensou muito
a respeito de gostar ou desgostar de suas matérias, embora de vez em
quando um professor ou outro acabasse despertando nela uma fagulha de
interesse durante um ano.
Charlie não havia pensado muito no que fazer quando o verão
terminasse, mas enquanto folheava aleatoriamente o catálogo de cursos de
Jessica, acabou se deparando com cursos de robótica e tudo pareceu se
encaixar. St. George era uma das faculdades que a haviam aceitado mais
cedo naquele ano, embora ela não estivesse particularmente interessada em
cursar qualquer uma delas. Agora, no entanto, passava diariamente no
escritório administrativo para solicitar sua admissão, até que finalmente a
colocaram na grade, ainda que o prazo limite para a solicitação fosse de
meses antes. Ainda há tanta coisa que eu não compreendo. Charlie queria
aprender, e as coisas que queria aprender eram muito específicas.
Obviamente, havia coisas que precisaria aprender antes que um curso
de robótica fosse fazer o menor sentido para ela. Matemática sempre fora
uma espécie de jogo objetivo e funcional para Charlie — você
simplesmente fazia o que precisava fazer e obtinha a resposta. Mas nunca
havia sido um jogo muito interessante. Era divertido aprender algo novo,
mas depois precisava continuar fazendo a mesma coisa por semanas ou
meses, o que a fazia morrer de tédio. Isso era no ensino médio. Mas na sua
primeira aula de cálculo, algo aconteceu. Era como se tivesse passado anos
apenas colocando tijolinho em cima de tijolinho, forçada a trabalhar
lentamente, sem ver nada além do cimento e da espátula. E então, de
repente, alguém a havia puxado alguns passos para trás e dito: “Aqui, olha
só, você estava construindo esse castelo. Vá brincar lá dentro!”
— E isso é tudo por hoje — disse a professora Treadwell, por fim.
Charlie olhou para seu papel, adiante, percebendo que não havia parado de
mover o lápis. Havia desgastado tanto o papel com suas linhas pretas que o
atravessara, desenhando diretamente na mesa. Esfregou as marcas de leve
com a manga da blusa, e então abriu o fichário para guardar suas anotações.
Foi quando Arty lançou a cabeça por cima de seu ombro, e ela fechou o
fichário com pressa, mas ele já havia conseguido dar uma boa olhada.
— O que é isso? Um código secreto? Arte abstrata?
— É só matemática — disse Charlie, um pouco seca, e guardou o
fichário na mochila. Arty era fofo, de um jeito bobalhão. Tinha um rosto
bonito, olhos escuros, e cabelos castanhos ondulados que pareciam ter vida
própria. Estava em três de suas quatro aulas e a seguia desde o início do
semestre como um patinho perdido. Para sua surpresa, Charlie percebeu
que não se importava.
Enquanto Charlie seguia rumo ao auditório, Arty tomou seu já
habitual lugar a seu lado.
— E aí, já se decidiu sobre o projeto? — perguntou.
— Projeto? — Charlie se lembrava vagamente sobre um projeto no
qual ele queria trabalhar junto com ela. Ele assentiu, esperando que ela
captasse.
— Lembra? Temos que projetar um experimento pra aula de
química. Achei que podíamos trabalhar juntos. Você sabe, com o seu
cérebro e a minha beleza... — Ele parou de falar, com um sorriso no rosto.
— É, acho que isso seria... eu tenho que me encontrar com alguém
— concluiu, interrompendo a si mesma.
— Você nunca se encontra com ninguém — disse ele, surpreso,
corando como um pimentão no instante em que as palavras deixaram sua
boca. — Não foi o que eu quis dizer. Não que seja da minha conta, mas
com quem você vai se encontrar? — Abriu um largo sorriso.
— John — disse Charlie, sem elaborar a resposta. Arty pareceu
cabisbaixo por um momento, mas logo se recuperou.
— Aham, claro, o John. Cara legal — disse, zombeteiro. Ergueu as
sobrancelhas, incitando-a a dar mais detalhes, mas ela não o fez. — Não
sabia que você estava... que tinha um... tudo bem. — Arty cuidou para que
sua expressão ficasse neutra. Charlie o fitou com estranheza no olhar. Não
quis insinuar que ela e John eram um casal, mas também não sabia como
corrigi-lo. Não saberia explicar quem John era para ela sem contar a Arty
mais do que queria que ele soubesse.
Caminharam em silêncio por um minuto, atravessando o pátio
central, uma pequena área gramada rodeada por edifícios de tijolos e
concreto.
— Então, esse John é da sua cidade natal? — perguntou Arty, por
fim.
— Minha cidade natal fica a trinta minutos daqui. Esse lugar é quase
que uma extensão dela — disse Charlie. — Mas sim, ele é de Hurricane. —
Arty hesitou, mas então se inclinou mais para perto dela, olhando em volta
como se alguém pudesse estar escutando.
— Eu sempre quis te perguntar — disse.
Charlie o encarou com um olhar fatigado. Não pergunta sobre
aquilo.
— Tenho certeza que todo mundo tá sempre perguntando sobre isso,
mas vai... você não pode me culpar por ficar curioso. Todo aquele papo
sobre os assassinatos, é tipo uma lenda urbana por aqui. Quer dizer, não só
por aqui. Por todo canto. A Freddy Fazbear’s Pizza...
— Para. — De súbito, o rosto de Charlie ficou imóvel. Ela sentia que
para movê-lo, para fazer qualquer expressão que fosse, precisaria de uma
habilidade arcana que não possuía mais. O rosto de Arty também mudou. O
sorriso ligeiro havia desaparecido. Ele parecia quase aterrorizado. Charlie
mordeu o interior do lábio, querendo que sua boca se movesse.
— Eu era só uma criança quando tudo aquilo aconteceu — disse ela,
em voz baixa. Arty assentiu, rápido e inquieto. Charlie fez com que seu
rosto se movesse, de forma a produzir um sorriso. — Tenho que falar com
a Jessica — mentiu. Tenho que me afastar de você. Arty assentiu
novamente, como um daqueles bonecos que abanam a cabeça. Ela se virou
para seguir rumo aos dormitórios e não olhou para trás.
Charlie piscou diante da luz do sol. Imagens do que havia acontecido
na Freddy’s no ano anterior se chocavam contra ela, fragmentos de
memórias dedilhando em suas roupas com dedos de ferro frio. O gancho
acima de sua cabeça, pronto para atacar — sem escapatória. Uma figura à
espreita atrás do palco; pelagem de um vermelho fosco, mal conseguindo
ocultar os ossos metálicos da criatura assassina. Ajoelhada no escuro, em
meio ao chão de azulejos gelados do banheiro, e então — aquele olho de
plástico gigante, olhando pelo vão da porta, o miasma quente de sua
respiração pútrida em seu rosto. E a outra memória, mais antiga: o
pensamento que lhe causava uma dor tão profunda que não sabia exprimir
em palavras, o sofrimento a preenchendo como se o houvessem forjado em
seus ossos. Ela e Sammy, seu outro eu, seu irmão gêmeo, estavam
brincando quietamente no calor familiar do depósito de fantasias. Foi
quando a figura apareceu diante da porta, encarando-os. E então, Sammy
se foi, e o mundo acabou pela primeira vez.
Charlie estava diante da porta de seu quarto no dormitório, quase
sem saber como havia chegado lá. Devagar, ela tirou as chaves do bolso e
entrou no quarto. As luzes estavam apagadas; Jessica ainda estava na aula.
Charlie fechou a porta atrás de si, checando duas vezes para garantir que
realmente estava trancada, e apoiou as costas contra ela. Respirou
fundo. Agora acabou. Ela ajeitou a postura, decidida, e acendeu a luz,
preenchendo o quarto com uma forte iluminação. O relógio ao lado da
cama dizia a Charlie que ela ainda tinha pouco menos que uma hora antes
que John chegasse — era hora de trabalhar em seu projeto.
Charlie e Jessica haviam dividido o quarto com um pedaço de fita
adesiva depois de sua primeira semana morando juntas. Jessica havia feito
a sugestão de brincadeira, dizendo que havia visto em um filme, mas
Charlie abriu um sorriso e a ajudou a medir o quarto. Ela sabia que Jessica
estava desesperada para manter a bagunça de Charlie longe do seu lado. O
resultado era um quarto que mais parecia um anúncio publicitário
mostrando o “antes e depois” de um serviço de limpeza ou de uma arma
nuclear, dependendo de para qual lado você olhasse primeiro.
Na mesa de Charlie, uma fronha repousava sobre duas formas
indistintas. Ela foi até a mesa e a removeu, dobrando-a cuidadosamente e
deixando-a sobre a cadeira. Olhou para o projeto.
— Olá — disse suavemente.
Sobre a mesa, dois rostos mecânicos estavam içados em uma
estrutura metálica que, por sua vez, estava presa a uma superfície plana.
Suas feições eram indistintas, como estátuas antigas desgastadas pela
chuva, ou argila nova, ainda não esculpida. Eram feitos de plástico
maleável, e no lugar onde deveria ficar suas nucas, havia toda uma rede de
gabinetes, microchips e fios.
Charlie se inclinou sobre eles, analisando cada milímetro de sua
criação, como se quisesse ter certeza de que estava tudo como havia
deixado. Ela apertou um botãozinho preto e pequenas luzinhas piscaram —
pequenos coolers começaram a girar.
Eles não começaram a se mexer imediatamente, mas houve uma
mudança. As feições vagas pareceram ganhar propósito. Os olhos cegos
não se voltaram para Charlie: olhavam apenas um para o outro.
— Tu — disse o primeiro. Seus lábios se moveram para simular a
forma da sílaba, mas não chegaram a se separar. A boca não era projetada
para abrir.
— Eu — respondeu o segundo, com o mesmo movimento suave e
contido.
— Tu és — disse o primeiro.
— Eu sou? — disse o segundo.
Charlie observava, sua mão pressionada sobre a boca. Estava
segurando o fôlego, com medo de perturbá-los. Continuou esperando, mas
eles pareciam ter terminado, e agora ficavam apenas olhando um para o
outro. Eles não enxergam, Charlie lembrou a si mesma. Ela os desligou e
virou a superfície ao contrário para poder dar uma olhada na parte traseira.
Levou uma mão à parte interna e ajustou um fio.
Uma chave passou pela fechadura da porta, e Charlie levou um susto
com o som. Ela puxou a fronha e a jogou por cima dos rostos assim que
Jessica entrou no quarto. Jessica ficou parada junto à porta com um sorriso
no rosto.
— O que foi isso? — perguntou.
— O quê? — disse Charlie, fingindo inocência.
— Vai, eu sei que você tava trabalhando naquela coisa que nunca me
deixa ver. — Largou a mochila no chão e então se atirou dramaticamente
sobre a cama. — Enfim, eu tô exausta! — anunciou. Charlie riu, e Jessica
se sentou. — Vem cá, fala comigo — disse. — Quê que rolou entre você e
o John?
Charlie se sentou em sua própria cama, transversal à de Jessica.
Apesar de seus estilos de vida diferentes, ela gostava de morar com a outra
garota. Jessica tinha um jeitão caloroso e alegre, e embora sua forma
relaxada de ver o mundo ainda intimidasse Charlie, ela agora sentia que
fazia parte de tudo aquilo. Talvez ser amiga da Jessica a fizesse absorver
um pouco da sua confiança.
— Eu ainda não me encontrei com ele. Tenho que sair... — Ela
espiou o relógio por cima do ombro de Jessica. — Em quinze minutos.
— Está ansiosa?
Charlie deu de ombros.
— Acho que sim — disse.
Jessica riu.
— Não tem certeza?
— Estou ansiosa — admitiu Charlie. — É que já faz muito tempo.
— Não faz tanto tempo assim — salientou Jessica. Então, pareceu
ficar pensativa. — Se bem que é como se fizesse, eu acho. Está tudo tão
diferente desde a última vez que o vimos.
Charlie pigarreou.
— Então, você quer mesmo ver o meu projeto? — perguntou,
surpreendendo a si mesma.
— Sim! — declarou Jessica, quase pulando da cama. Seguiu Charlie
até sua mesa. Charlie ativou a energia e então removeu a fronha como se
fosse uma mágica. Jessica arfou e, sem perceber, recuou um passo. — O
que é isso? — perguntou, sua voz cautelosa. Mas antes que Charlie pudesse
responder, o primeiro rosto falou.
— Eu — disse.
— Tu — respondeu o outro, e ambos ficaram em silêncio
novamente. Charlie olhou para Jessica. Sua amiga tinha uma expressão
estranha no rosto, como se tentasse conter algo bem lá no fundo.
— Eu — disse o segundo rosto.
Charlie correu para desligá-los.
— Por que tá fazendo essa cara? — disse.
Jessica respirou fundo e abriu um sorriso.
— É que eu ainda não almocei — disse, mas havia algo no fundo de
seus olhos.
Jessica observou enquanto Charlie pousava a fronha carinhosamente
por cima dos rostos, como se estivesse colocando uma criança para dormir.
Ela olhou ao redor do quarto, sentindo-se desconfortável. A metade de
Charlie era um desastre: roupas e livros estavam espalhados por todos os
lados, mas havia também fios e peças de computador, ferramentas,
parafusos e pedaços de plástico e metal que Jessica não reconhecia, tudo
jogado e misturado, um por cima do outro. Não era só uma bagunça — era
uma confusão caótica onde se poderia perder qualquer coisa. Ou se poderia
esconder qualquer coisa, ela se deu conta, sentindo-se levemente culpada
pelo pensamento. Jessica voltou sua atenção para Charlie outra vez.
— Você tá programando eles para fazerem o quê? — perguntou, e
Charlie sorriu, orgulhosa.
— Não estou exatamente programando eles para fazerem nada. Estou
ajudando eles a aprenderem sozinhos.
— Certo, claro. É óbvio — disse Jessica, devagar. E então, algo lhe
chamou a atenção: um par de olhos brilhantes de plástico e grandes orelhas
caídas se projetavam para fora de uma pilha de roupa suja. — Ei, nunca
notei que você tinha trazido o Theodore, seu coelhinho robô! — exclamou,
feliz por ter se lembrado do nome do brinquedinho de infância de Charlie.
Antes que Charlie pudesse responder, ela pegou o bichinho de pelúcia pelas
orelhas... e o que saiu do monte de roupas foi apenas a sua cabeça.
Jessica deu um grito e a derrubou, levando uma mão à boca.
— Desculpa! — disse Charlie, recolhendo rapidamente a cabeça do
coelho do chão. — Eu o desmontei para estudar. Estou usando algumas de
suas peças no meu projeto. — Apontou para a coisa em sua mesa.
— Ah — disse Jessica, tentando esconder seu assombro. Deu uma
olhada ao redor do quarto e, de repente, notou que as peças do coelho
estavam por toda parte. Seu rabo em forma de bola de algodão estava no
travesseiro de Charlie, e uma perna estava pendurada em uma luminária
disposta em sua mesa. Seu tronco estava jogado em um canto, quase fora
de vista, aberto de forma selvagem. Jessica fitou o rosto alegre e
rechonchudo da amiga, com seu cabelo cacheado na altura do ombro.
Jessica fechou os olhos por um longo momento.
Ai, Charlie, o que há de errado com você?
— Jessica? — disse Charlie. Os olhos da garota estavam fechados,
sua expressão aflita. — Jessica? — Dessa vez, ela abriu os olhos, um
sorriso grande e brilhante surgindo subitamente em seu rosto, como se uma
torneira de ânimo houvesse sido aberta. Era desconcertante, mas Charlie
havia se acostumado.
Jessica piscou com força, como se estivesse tentando resetar o
cérebro.
— Então, está nervosa com esse seu encontro com o John? —
perguntou. Charlie pensou por um momento.
— Não. Digo, por que deveria? É só o John, né? — Charlie tentou
rir, mas desistiu. — Jessica, eu não sei sobre o que conversar! — exclamou
de repente.
— Como assim?
— Eu não sei sobre o que conversar com ele! — disse Charlie. — Se
não tivermos sobre o que conversar, vamos começar a conversar sobre... o
que aconteceu ano passado. E eu não posso.
— Certo. — Jessica pareceu pensativa. — Talvez ele não toque no
assunto — sugeriu.
Charlie suspirou, voltando o olhar, inquieta, para o experimento
coberto.
— É claro que ele vai. É tudo o que temos em comum. — Sentou-se
na cama com tudo, jogando-se de costas no colchão.
— Charlie, você não precisa conversar sobre nada que não quiser
conversar — disse Jessica, com um tom gentil. — Se quiser, você pode
cancelar com ele. Mas eu não acho que o John vá te colocar contra a
parede. Ele se importa com você. Duvido muito que esteja interessado no
que aconteceu em Hurricane.
— O que quer dizer com isso?
— Eu só... — Cuidadosamente, Jessica empurrou uma pilha de roupa
suja para o lado e se sentou junto a Charlie, pondo uma mão em seu joelho.
— Só quis dizer que talvez esteja na hora de vocês dois deixarem isso pra
trás. E acho que o John está tentando.
Charlie desviou o olhar, fitando fixamente a cabeça de Theodore,
cujo rosto estava voltado para o chão. Você quer que eu supere tudo isso?
Como é que eu sequer começo a fazer isso?
A voz de Jessica se suavizou.
— Você não pode mais continuar vivendo apenas em derredor disso.
— Eu sei — Charlie suspirou. Decidiu, então, mudar de assunto. —
Enfim, como foi a sua aula? — Charlie passou a mão nos olhos, esperando
que Jessica entendesse sua intenção.
— Demais. — Jessica se levantou e alongou, inclinando-se para
tocar os pés, o que por acaso deu a Charlie uma chance de se recompor.
Quando Jessica se ergueu novamente, ela já estava com um largo sorriso
novamente, de volta à personagem. — Você sabia que cadáveres podem ser
preservados em pântanos, que nem múmias?
Charlie torceu o nariz.
— Agora eu sei. Então é isso que você vai fazer quando se formar?
Rastejar por aí em pântanos atrás de corpos?
Jessica deu de ombros.
— Talvez.
— Vou te dar uma daquelas roupas de proteção contra materiais
perigosos como presente de formatura — brincou Charlie. Olhou para o
relógio. — Hora de ir! Deseje-me sorte. — Ajeitou os cabelos com as
mãos, dando uma olhada no espelho pendurado atrás da porta. — Me sinto
um trapo.
— Você tá ótima.
— Tenho feito umas abdominais — disse Charlie, desconfortável.
— O quê?
— Esquece. — Charlie pegou sua mochila e seguiu rumo à porta.
— Vai lá e dá um trato nele! — Jessica gritou conforme Charlie saía.
— Não sei o que quer dizer com isso! — respondeu Charlie,
deixando que a porta fechasse antes que terminasse de falar.
Charlie o viu assim que se aproximou da entrada do campus. John
estava inclinado na parede, lendo um livro. Seu cabelo castanho estava
bagunçado como sempre e ele estava vestindo uma camiseta azul e calça
jeans, mais casual que da última vez que o havia visto.
— John! — chamou, sua relutância se dissipando no instante que o
viu. Ele guardou o livro, abrindo um largo sorriso, e correu até ela.
— E aí, Charlie — disse. Ficaram parados em um momento de
desconforto, e então Charlie ergueu os braços para abraçá-lo. Ele a apertou
com força por um momento, antes de soltá-la de forma abrupta.
— Você cresceu — disse ela, acusadora, e ele riu.
— Cresci — admitiu. Ele a fitou de cima a baixo. — Já você, parece
exatamente a mesma — disse, dentre um sorriso intrigado.
— Eu cortei o cabelo! — disse Charlie, fingindo raiva. Passou a
mão pelo cabelo, exibindo-o.
— Ah é! — disse ele. — Eu gostei. O que quis dizer é que você
continua a mesma menina da qual eu me lembro.
— Eu tenho feito abdominais — disse Charlie, dentre o pânico
crescente.
— Hã? — John a fitou com um olhar confuso.
— Esquece. Tá com fome? — perguntou Charlie. — Tenho cerca de
uma hora antes da minha próxima aula. Podíamos comer um hambúrguer.
Tem um refeitório não muito longe daqui.
— Sim, seria ótimo — disse John. Charlie apontou para o pátio
adiante.
— Por aqui, vem.
— Então, o que está fazendo aqui? — disse Charlie, quando se
sentaram com suas bandejas. — Desculpa, — acrescentou, — isso soou
rude?
— Que rude que nada, embora eu também fosse aceitar algo como
“John, a que circunstância devo o prazer desta adorável reunião?”.
— Claro, é totalmente a minha cara — disse Charlie, seca. — Mas,
sério, o que está fazendo aqui?
— Arranjei um emprego.
— Na St. George? — perguntou. — Por quê?
— Em Hurricane, na verdade — disse ele, sua voz conscientemente
casual.
— Você não tá cursando nenhuma faculdade?
John corou, baixando o olhar na direção de seu prato por um
momento.
— Eu ia, mas... é grana demais pra gastar lendo livros, sendo que um
cartão de biblioteca é grátis, sabe? Meu primo me arranjou um emprego na
área de construção, e sempre que consigo um tempo, trabalho na minha
escrita. Me dei conta que não é porque eu quero ser um artista que tenho
que passar fome. — Para ilustrar o que dizia, deu uma grande mordida em
seu hambúrguer. Charlie deu uma risadinha.
— Tá, e por que aqui? — insistiu ela, e ele levantou um dedo
enquanto terminava de mastigar.
— A tempestade — disse. Charlie assentiu. A tempestade havia
atingido Hurricane pouco antes de Charlie chegar em St. George, e as
pessoas falavam dela com letras maiúsculas: A Tempestade. Podia não ser
a pior que a região já tinha visto, mas chegava perto. Um tornado havia se
erguido do meio do nada e arrasou cidades inteiras, derrubando toda uma
fileira de casas com precisão sinistra, enquanto as casas ao lado
permaneciam intocadas. St. George não sofrera muito dano, mas Hurricane
viu o que significa destruição de verdade.
— Foi tão ruim assim? — perguntou Charlie, mantendo o tom leve.
— Você não esteve lá? — disse John, incrédulo, e foi a vez de
Charlie de desviar o olhar, sentindo-se desconfortável. Ela balançou a
cabeça. — Foi bem ruim em alguns lugares — disse. — Principalmente nas
redondezas da cidade. Charlie... achava que você tinha ido lá. — Ele
mordeu o lábio.
— Que foi? — Algo na expressão dele a estava preocupando.
— A casa do seu pai, foi uma das que foram atingidas — disse.
— Oh. — Charlie sentiu um forte peso se formando em seu peito. —
Eu não sabia.
— Você não chegou nem a passar lá pra dar uma olhada?
— Nem pensei nisso — disse Charlie. Isso não é verdade. Tinha
pensado em voltar à casa de seu pai milhares de vezes. Mas nunca lhe
ocorreu que a casa pudesse ter sido atingida pela tempestade. Em sua
cabeça, era inexpugnável, imutável. Sempre estaria lá, do jeito que seu pai
a deixara. Fechou os olhos e a imaginou. Os degraus da frente totalmente
acabados, mas a casa em si assomava adiante, como uma fortaleza,
protegendo tudo lá dentro. — Ela... não está mais lá? — perguntou Charlie,
as palavras fracas.
— Não — disse John, rápido. — Não, ela não foi derrubada, só
danificada. Não sei o quanto; só passei de carro pela frente. Não achei que
devia entrar lá sem você.
Charlie assentiu, ouvindo apenas parcialmente. Sentia-se distante.
Conseguia ver John, ouvi-lo, mas era como se tivesse uma camada de
alguma coisa entre os dois, entre ela e todo o resto, tudo menos a própria
casa.
— Eu tinha pensado... a sua tia não te contou o que aconteceu? —
perguntou John.
— Tenho que ir para a aula — disse Charlie. — É pra lá. — Apontou
vagamente.
— Charlie, você está bem? — Ela não olhou para ele, e John pôs a
mão por cima da dela. Ela continuou de rosto abaixado. Não queria olhá-lo
no rosto.
— Bem — repetiu ela, tirando a mão de debaixo da dele e
balançando os ombros para cima e para baixo, como se quisesse tirar algo
das costas. — Eu fiz aniversário — disse, e finalmente nivelou seu olhar
com o dele.
— Me desculpa por ter perdido — disse John.
— Não, não, não é isso... — Balançou a cabeça de um lado para o
outro, como se também pudesse nivelar seus pensamentos. — Lembra que
eu tinha um irmão gêmeo?
— O quê? — John pareceu confuso. — Claro que eu me lembro.
Desculpa, Charlie, era disso que você tava falando quando mencionou seu
aniversário? — Ela assentiu, apenas com movimentos leves. John lhe
ofereceu a mão novamente, e ela a segurou. Conseguia sentia a pulsação
dele pelo polegar.
— Desde que fomos embora de Hurricane... Sabe aquela história de
que irmãos gêmeos possuem uma conexão, uma espécie de ligação
especial?
— Claro — disse ele.
— Desde que fomos embora... desde que eu descobri que ele era
real... tenho sentido que ele está lá comigo. Sei que não está. Ele está
morto, mas durante todo esse último ano, eu não me senti mais sozinha.
— Charlie — John apertou sua mão ao redor da dela. — Você sabe
que não está sozinha.
— Não, quero dizer que eu realmente não estou sozinha. Como se eu
tivesse um outro eu: alguém que é parte de mim e que está sempre comigo.
Já tinha sentido isso antes, mas era algo que ia e vinha, e eu não prestava
muita atenção. Não sabia que significava alguma coisa. Mas então, quando
descobri a verdade, e as memórias começaram a voltar... John, eu me
senti completa de uma forma que não sei nem descrever. — Seus olhos
começaram a lacrimejar e ela puxou sua mão de volta para secar as
lágrimas.
— Ei — disse ele, a voz suave. — Tá tudo bem. Isso é ótimo,
Charlie. Fico feliz que você se sinta assim.
— Não. Não, esse é o problema. Eu não me sinto! — Ela o olhou nos
olhos, desesperada para que ele entendesse o que estava tentando dizer,
ainda que suas palavras saíssem de forma tão desconfortável. — Ele
desapareceu. A sensação de completude sumiu.
— O quê?
— Aconteceu no meu aniversário. Eu acordei e me senti... —
Suspirou, como se estivesse procurando pela palavra certa. Não parecia
existir uma.
— Sozinha? — disse John.
— Incompleta. — Ela respirou fundo, tentando se recompor. — Mas
a questão é que não é só uma sensação de perda. É... é como se ele
estivesse preso em algum lugar. Às vezes, sonho que posso senti-lo do
outro lado de alguma coisa, como se ele estivesse bem perto de mim, mas
não conseguisse sair de algum lugar. Como se estivesse numa caixa, ou
como se eu fosse a caixa. Não sei dizer.
John olhou para ela, momentaneamente atônito. Antes que pudesse
encontrar o que dizer, Charlie se levantou de forma abrupta.
— Preciso ir.
— Tem certeza? Você ainda nem comeu — disse ele.
— Desculpa... — Ela o interrompeu. — John, foi muito bom ver
você. — Hesitou, mas então virou as costas para deixa-lo para trás,
possivelmente para sempre. Sabia que o decepcionaria.
— Charlie, quer sair comigo hoje à noite? — A voz de John pareceu
rígida, mas seu olhar era caloroso.
— Claro, seria ótimo — disse, abrindo um meio sorriso. — Mas
você não tem que voltar ao trabalho amanhã?
— Fica só a meia hora daqui — disse John. Ele pigarreou. — Mas
veja bem, eu perguntei se você quer sair comigo.
— E eu disse que sim — repetiu Charlie, levemente irritada.
John suspirou.
— Quis dizer num encontro, Charlie.
— Ah. — Charlie olhou para ele por um momento. — Certo. —
Você não tem que fazer nada que não quiser fazer. A voz de Jessica
ecoava em sua cabeça. Mas... ela notou que estava sorrindo.
— Hm, sim. Sim, um encontro. Tá, tudo bem. Tem um cinema na
cidade? — disse, em pânico, lembrando vagamente que as pessoas
costumavam ir ao cinema em encontros.
John assentiu de forma vigorosa, aparentemente tão perdido quanto
ela, uma vez que a pergunta havia sido feita.
— Podemos jantar primeiro? Tem aquele restaurante de comida
tailandesa mais pra baixo. Posso te encontrar lá pelas oito?
— Sim, por mim tudo bem. Tchau! — Charlie agarrou sua mochila e
saiu apressada pela porta do refeitório, percebendo apenas quando já estava
sob a luz do sol que o havia deixado limpando a mesa sozinho. Desculpa.
Conforme cruzava o pátio rumo a sua próxima aula, os passos de
Charlie pareceram ficar mais cheios de propósito. Era aula de bases da
ciência da computação. Escrever códigos não era tão entusiasmante quanto
o que a Dra. Treadwell ensinava, mas Charlie gostava mesmo assim. Era
um trabalho detalhado, envolvente. Um único erro poderia arruinar
tudo. Tudo? Ela pensou em seu encontro iminente. A ideia de que um único
erro poderia arruinar tudo lhe pesou de uma forma terrível.
Charlie subiu correndo os degraus que levavam ao prédio, mas teve
que parar quando um homem bloqueou seu caminho.
Era Clay Burke.
— Oi, Charlie. — Ele abriu um sorriso, mas seus olhos estavam
sérios. Charlie não via o detetive de polícia de Hurricane, pai de seu amigo
Carlton, desde a noite em que escaparam juntos da Freddy’s. Vendo agora
a tensão em seu rosto, ela sentiu uma onda de medo tomar-lhe o corpo.
— Sr. Burke, uh, Clay. O que está fazendo aqui?
— Charlie, você tem um segundo? — perguntou ele. O coração de
Charlie acelerou.
— O Carlton está bem? — perguntou ela, com urgência na voz.
— Sim, ele está bem — garantiu Burke. — Venha comigo. Não se
preocupe com o atraso. Te dou um bilhete de dispensa para a aula. Bom,
pelo menos eu acho que um agente responsável pela aplicação da lei tenha
autoridade para fazer isso. — Ele piscou, mas Charlie não sorriu. Havia
algo errado.
Charlie o seguiu, descendo as escadas. Quando já estavam a vários
passos de distância do edifício, Burke parou e a fitou nos olhos, como se
procurasse alguma coisa.
— Charlie, encontramos um corpo — disse. — Quero que você dê
uma olhada.
— Você quer que eu dê uma olhada?
— Preciso que você o veja.
Eu. Ela disse a única coisa que pôde:
— Por quê? Tem alguma coisa a ver com a Freddy’s?
— Não quero dizer mais nada antes que você veja — disse Burke.
Começou a andar outra vez, e Charlie se apressou para alcançar seus passos
largos. Ela o seguiu até o estacionamento ao lado do portão principal, e
entrou em seu carro sem dizer uma palavra sequer. Charlie se acomodou no
banco do carona, um estranho temor tomando-a por dentro. Clay Burke
olhou para ela, que respondeu acenando a cabeça de forma breve e firme.
Ele pôs o carro na estrada, seguindo de volta à Hurricane.
CAPÍTULO DOIS
— E aí, está gostando das aulas? — perguntou Clay Burke, com um
tom bastante jovial.
Charlie lhe lançou um olhar sardônico.
— Bom, esse é o primeiro assassinato do semestre. Acho que as
coisas estão indo bem.
Burke não respondeu, aparentemente percebendo que não adiantaria
tentar aliviar o clima. Charlie olhou pela janela. Vez ou outra, se pegava
pensando em voltar à casa do pai, mas sempre que as memórias do lugar
surgiam, ela as empurrava de volta ao fundo do cérebro, quase que usando
força física, de forma a deixá-las apertadas nos menores recantos de sua
mente, juntando poeira. Agora, alguma coisa estava se mexendo nesses
recantos empoeirados, e Charlie tinha medo de não conseguir deixá-la lá
por muito tempo.
— Delegado Burke... Clay — disse Charlie. — Como está o Carlton?
Ele abriu um sorriso.
— O Carlton está ótimo. Tentei convencê-lo a ficar por aqui para
fazer faculdade, mas ele e a Betty foram inflexíveis. Agora está lá pros
lados da costa leste, fazendo teatro.
— Teatro? — Charlie deu uma risada, surpresa.
— Bom, ele sempre gostou muito de pregar peças — disse Clay. —
Imaginei que teatro fosse o próximo passo lógico.
Charlie sorriu.
— Ele alguma vez... — Ela virou o rosto para a janela novamente. —
Você e ele já chegaram a conversar sobre o que aconteceu? — perguntou,
sem olhar para ele. Via apenas o reflexo de Clay, que aparecia de leve na
janela, distorcido pelo vidro.
— O Carlton fala mais com a mãe do que comigo — disse, sem
rodeios. Charlie esperou que falasse mais alguma coisa, mas ele
permaneceu em silêncio. Embora ela e Jessica morassem juntas, fizeram
desde o início uma espécie de pacto implícito de nunca falarem sobre a
Freddy’s, ou falarem somente o mínimo necessário. Não sabia se, vez ou
outra, Jessica também era consumida por memórias, assim como ela.
Talvez Jessica também tivesse pesadelos.
Mas Charlie e Clay não tinham esse pacto. Com a respiração rápida e
constante, ficou esperando para ouvir até onde ele iria.
— Acho que o Carlton fica sonhando com tudo aquilo — disse Clay,
por fim. — Às vezes, pela manhã, ele descia as escadas parecendo que não
dormia há semanas, mas nunca me contou o que estava acontecendo.
— E quanto a você? Fica pensando nessas coisas? — Embora
estivesse indo rápido demais com a conversa, Clay não parecia
incomodado.
— Tento não pensar — disse ele, a voz séria. — Sabe, Charlie,
quando coisas terríveis assim acontecem, só há duas coisas que se possa
fazer: você pode deixá-las para trás ou deixar que elas te consumam.
Charlie trincou os dentes.
— Não sou o meu pai — disse ela.
Clay pareceu ficar imediatamente contrito.
— Eu sei, não foi o que quis dizer — disse. — O importante é que
você deve olhar para frente. — Abriu um sorriso nervoso. — É claro,
minha esposa diria que há uma terceira coisa que se possa fazer: você pode
processar essas coisas terríveis e superá-las. Ela deve estar certa.
— Deve estar — disse Charlie, distraída.
— E quanto a você? Como tem passado, Charlie? — perguntou Clay.
Ela praticamente havia solicitado a pergunta, mas não sabia como
respondê-la.
— Costumo sonhar com tudo isso, eu acho — murmurou.
— Você acha? — perguntou ele, a voz assumindo um tom bastante
cuidadoso. — Que tipo de sonhos?
Charlie olhou pela janela outra vez. Sentia um peso no peito. Que
tipo de sonhos?
Pesadelos, mas não sobre a Freddy’s. Uma sombra junto à porta do
depósito de fantasias onde estamos brincando. Sammy não o viu; está
brincando com seu caminhãozinho. Mas eu ergui o olhar. A sombra tem
olhos. Então tudo começou a se mexer — cabides derrubados e fantasias
sacudidas. Um caminhão de brinquedo caiu com força no chão.
Estou sozinha. O ar está ficando mais fino. Está ficando mais difícil
de respirar e eu vou morrer desse jeito, sozinha no escuro. Começo a bater
na parede do depósito, pedindo ajuda. Sei que ele está lá. Sammy está do
outro lado, mas não responde meus gritos, e então eu começo a sufocar,
arfando em busca de ar. Está muito escuro para enxergar, mas embora
minha visão esteja ficando mais escura e meu coração esteja batendo mais
devagar, cada batida me enche de dor enquanto eu luto para gritar seu
nome mais uma vez...
— Charlie? — Clay tinha estacionado o carro e puxado o freio de
mão sem que ela notasse. Agora, fitava a menina com aquele seu olhar
penetrante de detetive. Ela o fitou por um instante antes de finalmente se
lembrar de como responder, então forçou um sorriso.
— No geral, tenho focado mais na faculdade — disse.
Clay sorriu para ela, mas não moveu os olhos. Parecia
preocupado. Ele queria não ter me trazido, pensou ela.
Ele abriu a porta do motorista, mas não saiu do carro. O sol havia
começado a se pôr enquanto estava ao volante, e agora já estava
escurecendo. A seta ainda estava ligada, iluminando a estrada com uma luz
amarela. Charlie a observou por um momento, hipnotizada. Sentia que
nunca mais conseguiria voltar a se mexer, que ficaria apenas sentada ali,
observando o piscar constante e contínuo daquela luz. Clay desligou a seta
e Charlie piscou, como se o feitiço houvesse sido quebrado. Ajeitou a
coluna e tirou o sinto de segurança.
— Charlie — disse Clay, sem olhar diretamente para ela. — Me
desculpe por pedir isso, mas você é a única pessoa que pode me dizer se
isso é o que penso que é.
— Certo — respondeu ela, subitamente alarmada. Clay suspirou e
saiu do carro. Charlie o seguiu de perto. Havia uma cerca de arame farpado
junto à estrada, e várias vacas pastavam no campo do outro lado. Ficavam
lá, paradas, mastigando e olhando para o longe com aquele olhar vazio
típico das vacas. Clay ergueu o arame farpado e Charlie passou por cima da
cerca com todo o cuidado. Quando foi a última vez que tomei vacina de
tétano?, pensou ela quando farpa se prendeu de leve em sua camiseta.
Não teve que perguntar onde estava o corpo. Havia um holofote e
uma barreira improvisada feita com faixa de segurança amarrada a postes
que se assomavam do chão aqui e ali, numa formação bem dispersa.
Charlie ficou parada enquanto Burke passava pela cerca atrás dela, e os
dois examinaram a área.
O campo era bastante plano e a grama era curta e cheia de falhas,
desgastada diariamente por dezenas de cascos. Havia uma única árvore ao
longe, onde a cena do crime havia sido marcada. Charlie imaginava tratar-
se de um carvalho. Seus galhos eram compridos e muito antigos, pesados
com todas aquelas folhas. Havia algo errado com o ar — junto ao cheiro de
esterco de vaca e lama, um odor mais agudo, metálico, pairava pelo local:
sangue.
Por algum motivo, Charlie olhou para as vacas outra vez. Não
estavam tão calmas quanto havia imaginado. Ficavam se virando de um
lado para o outro, juntando-se em grupos. Nenhuma delas ousava se
aproximar do holofote. Como se sentisse seu olhar, uma delas soltou um
mugido alto e lúgubre. Charlie ouviu Clay respirar fundo.
— Talvez devêssemos perguntar pra elas o que aconteceu — disse
Charlie. Em meio ao silêncio profundo, sua voz ecoou. Clay avançou em
direção ao holofote. Charlie o foi seguindo de perto, sem querer ficar muito
para trás. Não eram só as vacas; aquele lugar tinha uma atmosfera estranha,
como se algo estivesse errado. Não havia som algum, apenas aquela
quietude do choque que costuma vir após um terrível ato de violência.
Clay parou ao lado da área demarcada e conduziu Charlie mais para
perto, sem dizer nada. Charlie observou.
Era um homem, estirado no chão de um jeito bizarro, seus membros
contorcidos de uma forma impossível. Sob aquela luz ofuscante e
inorgânica, a cena parecia armada — podia muito bem ser um boneco
gigante. Seu corpo inteiro estava vermelho, encharcado de sangue. Suas
roupas estavam rasgadas, quase que aos trapos, e por entre os buracos
abertos, Charlie pensou ter visto pele retalhada, ossos, e outras coisas que
não conseguia identificar.
— O que me diz? — disse Clay, a voz suave, como se tivesse medo
de incomodá-la.
— Preciso chegar mais perto — disse ela. Clay passou por cima da
faixa amarela, e Charlie o seguiu. Ajoelhou-se ao lado da cabeça do
homem, mergulhando os joelhos no terreno lamacento. Era velho, branco,
de cabelos curtos e grisalhos. Felizmente, seus olhos estavam fechados. O
resto do rosto estava relaxado de um jeito que quase poderia parecer um
estado de sono, mas não parecia. Ela se inclinou para examinar o pescoço
do homem e sentiu o sangue gelar, mas não virou o rosto.
— Charlie, você está bem? — perguntou Clay, e ela ergueu uma
mão.
— Estou bem. — Ela conhecia aquelas feridas; já vira as cicatrizes
que deixavam. Em cada um dos lados do pescoço do cadáver, havia um
corte curvo e profundo. Havia sido aquilo que o matara. Devia ter sido uma
morte instantânea. Ou talvez não. De repente, imaginou Dave, o guarda da
Freddy’s, o assassino. Havia testemunhado sua morte. Acionara as travas
de mola e vira seus olhos sobressaltados quando as travas perfuraram seu
pescoço. Assistira seu corpo se contorcer e revirar enquanto a fantasia
enfiava lascas de metal através de todos os seus órgãos vitais. Charlie
continuou a olhar para as feridas do estranho diante de si. Aproximou o
passou o dedo pela borda do corte em seu pescoço. O que você estava
fazendo?
— Charlie! — disse Clay, alarmado, e Charlie puxou a mão de volta
para perto do corpo.
— Desculpa — disse ela, tomando consciência do que fizera, e então
limpou os dedos, agora ensanguentados, na calça jeans. — Clay, foi um
deles. O pescoço dele, ele morreu que nem... — Parou de falar. Clay
estivera lá; seu filho quase havia morrido da mesma forma. Mas se aquilo
estava acontecendo de novo, ele precisava saber com o que estava
lidando. — Você se lembra de como o Dave morreu, certo? — perguntou.
Clay assentiu.
— Difícil de esquecer. — Ele balançou a cabeça, esperando
pacientemente que ela fosse direto ao assunto.
— Aquelas roupas, como a de coelho que o Dave estava vestindo,
elas podem ser usadas como fantasias. Mas também podem ser colocadas
para se mexer sozinhas, como robôs completamente funcionais.
— Claro, é só colocar a fantasia em um robô — disse Clay.
— Não exatamente... Os robôs estão sempre dentro das roupas; são
feitos de peças interligadas que podem ser travadas no revestimento interno
das fantasias por meio de um mecanismo de travas de mola. Quando quiser
um animatrônico, é só acionar essas travas que as peças robóticas se soltam
lá dentro, preenchendo a roupa.
— Mas se tiver alguém dentro da roupa quando o mecanismo é
destravado... — disse Clay, acompanhando o raciocínio.
— Exato. Milhares de peças de metal afiado atravessam todo o seu
corpo. Tipo, bem... isso — concluiu, apontando para o homem no chão.
— E quais as chances de alguém acionar essas travas de mola por
acidente? — perguntou Clay.
— Depende da roupa. Se for bem cuidada, é bem difícil. Se for
velha, ou mal projetada... pode acontecer. E se não for um acidente...
— Foi isso o que aconteceu aqui?
Charlie hesitou. A imagem de Dave lhe voltou à cabeça, dessa vez
vivo, quando despiu o torso para mostrar a eles suas cicatrizes. Dave
sobrevivera uma vez a um esmagamento como aquele, mas a segunda vez
acabou por matá-lo. De alguma forma, ele havia sobrevivido ao
destravamento letal de uma daquelas fantasias, algo que deveria ser
impossível. Mas aquilo lhe deixara marcas. Ela pigarreou antes de voltar a
falar:
— Preciso ver o peito — disse. — Pode tirar a camisa dele?
Clay assentiu e tirou um par de luvas de plástico do bolso. Jogou as
luvas para Charlie, que não reparou e acabou deixando com que caíssem no
chão.
— Se soubesse que ia enfiar os dedos no cadáver, tinha te dado elas
antes — disse ele, seco. Pôs um par de luvas nas próprias mãos e tirou uma
faca de algum lugar do cinto. O homem estava usando uma camiseta. Clay
se ajoelhou e a segurou pela ponta, começando a cortar o tecido. O som de
tecido molhado sendo rasgado tomou o campo silencioso feito um grito
desesperado de dor. Quando finalmente terminou, puxou a camiseta. Havia
sangue seco preso ao tecido, e quando Clay puxou, o corpo veio junto,
dando uma breve impressão, embora falsa, de que estava vivo. Charlie se
aproximou, imaginando as cicatrizes de Dave. Comparou o padrão com as
feridas que estava vendo agora. Isso foi o que aconteceu com o Dave. Os
cortes na carne do homem pareciam uma série de golpes fatais; cada um
deles poderia ter perfurado algo vital, ou era simplesmente profundo o
suficiente para que ele sangrasse até a morte dentro de minutos. O que
restava dele era algo grotesco.
— Foi um deles — disse Charlie, olhando para Clay pela primeira
vez desde que chegaram ao corpo. — Ele devia estar usando uma das
fantasias. Só assim poderia acabar desse jeito. Mas... — Charlie parou para
examinar o campo outra vez. — Onde estará a fantasia?
— O que alguém estaria fazendo vestido numa dessas coisas em um
lugar como esse? — disse Clay.
— Talvez não estivesse vestido por vontade própria — respondeu
Charlie.
Clay se aproximou e pegou as pontas abertas da camisa do homem,
fechando-as novamente da melhor forma possível. Juntos, eles se
levantaram e voltaram ao carro.
Enquanto Clay a levava de volta para o campus, Charlie ficou
observando a escuridão do lado de fora da janela.
— Clay, o que aconteceu com a Freddy’s? — perguntou ela. — Ouvi
dizer que o lugar foi demolido. — Sentindo-se nervosa, Charlie foi
passando as unhas pelo banco do carro. — É verdade?
— Sim. Bom, começaram, pelo menos — disse Clay, devagar. —
Demos uma geral naquele lugar, limpando tudo. Foi engraçado; não
conseguimos encontrar o corpo daquele guarda, o Dave. — Fez uma pausa
e olhou diretamente para Charlie, como se esperasse que ela dissesse
alguma coisa.
Charlie sentiu o calor se esvair de seu rosto. Ele está morto. Eu o vi
morrer. Fechou os olhos por um momento e se forçou a manter o foco.
— Se bem que aquele lugar mais parecia um labirinto. — Clay
voltou o olhar casualmente de volta para a estrada. — O corpo dele deve ter
ficado preso em algum buraco lá dentro e ninguém vai conseguir encontrar
por anos.
— É, provavelmente ficou soterrado em meio aos escombros. — Ela
baixou o olhar, tentando tirar aqueles pensamentos da cabeça por um
momento. — E quanto às fantasias, os robôs? — Clay hesitou. Você já
devia saber que eu perguntaria sobre isso, pensou Charlie, levemente
irritada.
— Tudo o que encontramos na Freddy’s foi descartado ou queimado.
Tecnicamente falando, eu deveria ter tratado tudo isso como o que
realmente era: uma nova pista para o caso das crianças desaparecidas, de
mais de uma década atrás. Mas ninguém teria acreditado no que aconteceu
lá, no que vimos. Então tomei algumas liberdades. — Ficou olhando para
Charlie, aquele olhar suspeito desaparecendo de seu rosto, e ela assentiu
para que ele continuasse. Clay respirou fundo. — Tratei simplesmente
como o assassinato do meu policial; imagino que deva se lembrar do
policial Dunn. Recuperamos seu corpo, fechamos o caso e eu solicitei que
o prédio fosse demolido.
— Mas e quanto a... — Charlie parou de falar, tentando esconder a
frustração. — E quanto ao Freddy, o Bonnie, a Chica e o Foxy? — E
quanto às crianças, as crianças que foram assassinadas e escondidas
dentro de cada um deles?
— Estavam todos lá — disse Clay, a voz séria. — Estavam
inanimados, Charlie. Não sei mais o que dizer. — Charlie não respondeu.
— Até onde a equipe de demolição sabia, tudo o que encontraram foram
fantasias velhas, robôs quebrados e duas dúzias de mesas dobráveis. E eu
não os corrigi — disse ele, cheio de hesitação na voz. — Você sabe como
funcionam essas coisas. Seja para construir ou demolir alguma coisa,
sempre demora. Pelo que ouvi falar, depois daquela tempestade, eles de
repente passaram a ser mais necessários em tudo quanto é lugar; a
demolição teve que ser interrompida.
— Então ainda continua tudo no mesmo lugar? — perguntou
Charlie, e Clay a fitou com um olhar de advertência.
— Algumas partes ainda estão de pé, mas, para todos os propósitos,
o lugar já era. E nem pense em voltar lá. Não há razão para isso e você vai
acabar se matando. Como eu disse, tudo o que interessava lá foi descartado.
— Eu não quero voltar lá — disse Charlie, a voz suave.
Quando chegaram ao campus, Clay a deixou onde a havia
encontrado. Ela só havia se distanciado do carro alguns passos, no entanto,
quando ele a chamou da janela do motorista:
— Sinto que preciso te contar mais uma coisa — disse. —
Encontramos sangue na cena do crime, na sala de jantar onde o Dave... —
Ele olhou ao redor, receoso. Parecia indecoroso falar sobre algo tão
grotesco em meio ao ambiente de refúgio oferecido pelo campus. — Não
era sangue de verdade, Charlie.
— Do que você tá falando? — Charlie deu um passo de volta na
direção do carro.
— Era salgue falso, daqueles que se usa para fantasias ou em filmes.
Mas era bem convincente. Não percebemos que era falso até que a perícia
examinasse no microscópio.
— Por que está me contando isso? — perguntou Charlie, embora já
soubesse a resposta. A terrível possibilidade martelava sua mente como
uma enxaqueca.
— Ele sobreviveu uma vez — disse Clay, mantendo a voz tão neutra
quanto possível.
— Bom, não sobreviveu na segunda — Charlie lhe deu as costas e
começou a se afastar.
— Sinto muito por tê-la envolvido nisso — gritou Clay.
Charlie não respondeu. Baixou o olhar para a calçada e trincou os
dentes. Sem dizer mais nada, Clay ergueu a janela do carro e partiu.
CAPÍTULO TRÊS
Charlie checou o relógio: ainda tinha tempo para ir ao encontro com
John, estava até adiantada. Passou por baixo de um poste de luz e deu uma
olhada em suas roupas. Essa não. Os joelhos de suas calças jeans estavam
cheios de lama, e havia uma mancha escura no ponto onde havia limpado
os dedos sujos com o sangue do cadáver. Não posso aparecer coberta de
sangue. Ele já me viu assim vezes até demais. Ela suspirou e deu a volta.
Felizmente, Jessica não estava quando voltou ao quarto. Charlie não
queria falar sobre o que acabara de acontecer. Clay não havia dito
especificamente para que mantivesse segredo, mas ela tinha certeza de que
não queria transmitir ao mundo sua visita particular a uma cena de crime.
Charlie lançou um olhar aos rostos cobertos pela fronha, mas não foi até
eles. Queria mostrar seu projeto a John, mas, como Jessica, talvez ele não
entendesse.
Abriu a gaveta de uma cômoda e examinou o conteúdo sem registrar
nada. Continuava vendo o corpo em sua cabeça, seus membros estirados
como se ele simplesmente houvesse sido jogado ali. Cobriu o rosto com as
mãos, respirando fundo. Já havia visto as cicatrizes, mas jamais vira as
feridas causadas por travas de molas assim tão frescas. Agora, os olhos de
Dave lhe vieram à mente, aquele olhar chocado em seu rosto pouco antes
de cair. Charlie havia sentido as travas em suas mãos, sentido que estavam
resistindo, até por fim cederem e se soltarem. Foi isso que aconteceu. Foi
isso que eu fiz. Engoliu em seco, e então passou a mão pelo pescoço.
Charlie balançou a cabeça como um cachorro balançando o pelo
molhado. Olhou de volta para a gaveta aberta, tentando se concentrar.
Preciso trocar de roupa. O que é tudo isso? A gaveta estava cheia de
roupas fortemente coloridas, todas estranhas para ela. Charlie se
sobressaltou, um pânico indistinto tomando conta de si. O que é tudo
isso? Pegou uma camiseta e depois a guardou novamente, forçando-se a
respirar fundo. Jessica. São da Jessica. Havia aberto a gaveta errada.
Recomponha-se, Charlie, disse a si mesma, com firmeza, e, por
algum motivo, parecia a voz de tia Jen em sua cabeça. Apesar de tudo o
que havia acontecido entre ela e sua tia, bastava imaginar sua voz fria e
autoritária que Charlie já ficava um pouco mais calma. Assentiu para si
mesma e pegou o que precisava: uma camiseta e uma calça jeans limpas.
Vestiu-se com pressa, e então saiu para se encontrar com John, o estômago
embrulhado, um pouco por conta da ansiedade, mas um pouco por estar
enjoada. Um encontro, pensou. E se não for bem? Pior que isso, e se for?
Conforme se aproximava do restaurante tailandês, viu que John já
estava lá. Estava esperando do lado de fora, mas não parecia impaciente.
Não chegou a vê-la de imediato, e Charlie desacelerou o passo por um
momento, observando-o. Parecia tranquilo, olhando para o longe com uma
expressão vaga e aprazível. Passava um ar de confiança que não possuía
um ano antes. Não que ele não estivesse seguro de si na época, mas agora
parecia... adulto. Talvez fosse porque começou a trabalhar diretamente
depois do ensino médio. Talvez seja por conta do que aconteceu ano
passado na Freddy’s, pensou Charlie, com uma inveja que não esperava
sentir. Embora tivesse se mudado sozinha e tivesse agora um novo lar e
uma nova faculdade, sentia que a experiência havia feito dela mais criança,
não menos. Não no sentido de ser uma criança bem cuidada ou protegida,
mas uma que estava vulnerável e desamparada. Uma criança que havia
olhado embaixo da cama e visto os monstros.
John a notou e acenou para ela. Charlie acenou de volta e abriu um
sorriso, a expressão espontânea — encontro ou não, era bom vê-lo.
— Como foi sua última aula? — disse ele para cumprimenta-la, e
Charlie deu de ombros.
— Sei lá. Aula normal. Como foi o resto do trabalho?
Ele abriu um sorriso.
— Trabalho normal. Tá com fome?
— Sim — disse Charlie, decididamente. Os dois entraram no
restaurantes e foram levados a uma mesa.
— Já veio aqui antes? — perguntou John, e Charlie balançou a
cabeça.
— Não costumo sair muito — disse ela. — Não venho muito nem
aqui para a cidade. A faculdade já é meio que um mundinho próprio, sabe?
— Posso imaginar — disse John, a voz alegre. Agora que o segredo
de que não estava frequentando uma faculdade fora revelado, ele
aparentemente perdera o desconforto de antes. — Não é um pouco...? —
Ele parecia procurar as palavras. — Você não se sente um pouco isolada?
— Na verdade não — disse Charlie. — Se é uma cadeia, não é das
piores.
— Não quis comparar com uma cadeia! — disse John. — Tá, vai, o
que você tá estudando?
Charlie hesitou. Não havia porque não contar a John, mas parecia
cedo demais, arriscado demais, anunciar que estava seguindo os passos do
pai com tamanha avidez. Não queria lhe contar que estava estudando
robótica até ter uma ideia de como ele reagiria. Assim como com seu
projeto.
— A maioria das faculdades dá uma relação de matérias pré-
definidas no primeiro ano: inglês, matemática, esse tipo de coisa — disse,
esperando que aquilo parecesse uma resposta. De repente, Charlie não
queria falar sobre a faculdade; na verdade, não sabia se seria capaz de
conversar sobre qualquer coisa que fosse. Olhou para John e, por um
momento, imaginou as feridas de travas de mola em seu pescoço.
Esbugalhou os olhos e mordeu o interior da bochecha, tentando se firmar.
— Conta mais sobre o seu trabalho — disse, vendo a própria hesitação
espelhada no rosto dele.
— Bom, eu gosto do trabalho — disse ele. — Mais do que achei que
ia gostar, na verdade. Parece que alguma coisa no trabalho físico meio que
liberta a minha mente. Tipo uma meditação. Mas é difícil, bem difícil. Esse
pessoal que trabalha com construção faz parecer fácil, mas a verdade é que
demora um tempo pra ficar musculoso daquele jeito. — Ele esticou os
braços por cima da cabeça de forma cômica, e Charlie deu uma risada,
embora não pudesse deixar de notar que ele estava claramente a caminho
de conseguir os músculos dos quais falara. Querendo fazer piada, John se
inclinou para a esquerda e deu uma cheiradinha na axila, simulando uma
cara de constrangimento. Charlie olhou para o cardápio e deu uma
risadinha.
— Já sabe o que vai querer? — disse ela. Foi quando a garçonete
apareceu, do meio do nada, como se os estivesse escutando de algum lugar
ali perto.
John fez o pedido e Charlie congelou. Havia dito aquilo apenas para
dizer alguma coisa, mas ainda não sabia o que pedir. De repente, reparou
nos preços. Tudo no cardápio era terrivelmente caro. Não havia nem
pensado no dinheiro quando aceitou o convite de John, mas agora seu
cérebro pulou diretamente para sua carteira e conta bancária praticamente
zerada.
Interpretando sua expressão de forma errônea, John se intrometeu:
— Se nunca comeu comida tailandesa, o pad thai é muito bom —
sugeriu. — Eu devia ter perguntado antes — disse, sentindo-se
constrangido. — Se vou pagar o jantar para uma dama, tenho que me
certificar de que ela vai gostar da comida! — Ele parecia encabulado, mas
Charlie estava submersa em alívio. Pagar o jantar para uma dama.
— Não, tenho certeza que vou gostar — disse ela. — Pad thai, por
favor — disse à garçonete, e então olhou para John com escárnio. — Quem
você tá chamando de dama? — disse, a voz em tom de brincadeira, e John
riu.
— Qual é o problema disso?
— É que é estranho, você me chamar de dama — disse Charlie. —
Mas enfim, o que você faz todo dia, além de meditar?
— Bom, eu passo bastante tempo no trabalho, e como tinha dito,
ainda continuo escrevendo, então tem isso. Mas é estranho estar de volta à
Hurricane. Não queria criar raízes.
— Criar raízes?
— É, tipo, entrar pra uma equipe de boliche ou algo assim. Me
envolver com a comunidade, esse tipo de coisa.
Charlie assentiu. Ela, de todas as pessoas, compreendia a necessidade
de se afastar.
— Então por que pegou o trabalho daqui? — perguntou. — Sei que
precisavam de gente por causa da tempestade, mas você não tinha que vir,
né? Ainda tem gente construindo coisas em outros lugares.
— Isso é verdade — admitiu. — Pra ser honesto, foi mais para fugir
de onde eu estava.
— Parece familiar — murmurou Charlie, baixo demais para que ele
ouvisse.
A garçonete voltou com a comida. Charlie pegou uma garfada do
macarrão de arroz e queimou a boca imediatamente. Agarrou o copo
d’água e bebeu um gole.
— Nossa, como isso tá quente! — disse. — E aí, do que você tava
querendo fugir, exatamente? — Fizera a pergunta de forma bastante casual,
como se fosse algo simples de se responder. Você também tem
pesadelos? Segurou as palavras, esperando que ele falasse.
John hesitou.
— Bom... era de uma garota, na verdade — disse. Fez uma pausa,
procurando por uma reação no rosto dela. Charlie parou de mastigar;
aquela não era nem de longe a resposta que estava esperando. Engoliu a
comida, assentindo com um entusiasmo inibido. Após um silêncio
torturante, John prosseguiu: — Começamos a namorar no verão depois...
depois da Freddy’s. Tinha dito a ela que não queria nada sério, e ela disse
que também não queria. E então, de repente, seis meses haviam se passado,
e tínhamos algo sério. Eu tinha acabado de começar a trabalhar. Tinha me
mudado para morar sozinho, e aquele relacionamento mais adulto... Foi um
choque, mas acho que um choque bom. — Parou de falar, sem saber se
devia prosseguir. Charlie também não sabia se queria lhe dar essa
permissão.
— Conta mais sobre ela — disse Charlie, a voz tranquila, evitando
contato visual.
— Ela era... digo, é. Não estou mais com ela, mas não é como se
estivesse morta. O nome dela é Rebecca. É bem bonita, eu acho.
Inteligente. É um ano mais velha que eu, cursa inglês na faculdade; tem um
cachorro. Então, é, era de boa.
— E o que aconteceu?
— Sei lá — disse ele.
— Sério? — disse Charlie, com um ar sério, e ele sorriu.
— Não. É que... eu me sentia em alerta quando estava com ela.
Como se houvesse coisas que eu não poderia contar pra ela, coisas que
ela nunca entenderia. Não foi por causa dela. Ela era uma pessoa incrível.
Mas sabia que eu estava escondendo alguma coisa; só não sabia o que era.
— E o que será que era? — perguntou Charlie, a voz baixa. Era uma
pergunta retórica; os dois sabiam a resposta.
John sorriu.
— Bom, enfim, ela terminou comigo e eu fiquei arrasado, blá, blá,
blá. Na verdade, acho que nem fiquei tão arrasado assim. — John baixou o
olhar, fitando a comida sem tocá-la. — Mas e você, já tentou contar a
alguém sobre a Freddy’s? — disse, erguendo o olhar novamente e
apontando o garfo para Charlie. Ela balançou a cabeça. — E não é só o que
aconteceu lá — prosseguiu. — Não consigo me imaginar contando essa
história pra ela e ela acreditando, mas não é só isso. É claro, queria que ela
soubesse dos fatos por trás de tudo, mas vai além, queria contar a ela como
isso me afetou. Como me mudou.
— Mudou todos nós — disse Charlie.
— Sim, e não só o ano passado. Tudo que aconteceu, desde o início.
Eu não tinha percebido até nos separarmos outra vez o quanto aquele lugar
tinha... me seguido. — Olhou para Charlie. — Desculpa, deve ter sido
ainda mais estranho pra você.
Charlie encolheu os ombros, desconfortável.
— Talvez. Acho que só foi diferente.
Sua mão estava sobre a mesa, ao lado do copo d’água, e John se
inclinou para tocá-la. Charlie enrijeceu, e ele se afastou novamente.
— Desculpa — disse. — Eu sinto muito.
— Não é você — disse Charlie, depressa. O rosto desfalecido, a pele
morta de sua garganta. Mal havia notado na hora, perplexa com toda a
experiência, mas agora a sensação de tocar o pescoço do cadáver voltara a
ela. Era como se o estivesse tocando naquele exato momento. Podia sentir
sua pele, frouxa e gelada, e pegajosa com o sangue; podia sentir o sangue
em seus dedos. Esfregou as mãos. Estavam limpas, sabia que estavam, mas
ainda podia sentir o sangue. Está sendo dramática. — Já volto — disse,
levantando-se antes que John pudesse responder.
Deu a volta nas mesas e foi para o banheiro aos fundos do
restaurante. O banheiro tinha três cabines — felizmente, estava
completamente vazio. Charlie foi direto para a pia e abriu a torneira no
máximo, acionando a água quente. Passou sabonete nas mãos e as esfregou
por um bom tempo. Fechou os olhos e focou na sensação da água quente e
do sabonete, até que, aos poucos, a memória do sangue foi desaparecendo.
Enquanto secava as mãos, olhou para si mesma no espelho: de alguma
forma, seu reflexo parecia errado, estranho, como se não estivesse vendo a
si mesma, mas uma cópia. Alguém vestido dela. Recomponha-se,
Charlie, pensou, tentando ouvir as palavras na voz da tia Jen, como antes.
Fechou os olhos. Recomponha-se. Quando os abriu novamente, estava de
volta ao espelho. Era o seu próprio reflexo outra vez.
Charlie ajeitou o cabelo e voltou para a mesa, onde John esperava
por ela com uma expressão preocupada.
— Tá tudo bem? — perguntou, inquieto. — Eu fiz alguma coisa?
Charlie balançou a cabeça.
— Não, claro que não. Foi um dia longo, só isso. — São apenas
meias-palavras, pensou ela. Olhou para o relógio. — Ainda temos tempo
para o cinema? — perguntou. — São quase oito e meia.
— Sim, podemos ir — disse John. — Já terminou?
— Já, estava muito bom, obrigada. — Ela lhe abriu um sorriso. — A
“dama” gostou. — John sorriu de volta, claramente tranquilizado. Foi ao
caixa para pagar, e Charlie saiu do restaurante, esperando por ele na
calçada. A noite já havia caído, e o ar estava gelado. Por um instante,
Charlie desejou ter trazido um moletom. Após um momento, John se juntou
a ela.
— Pronta?
— Sim — disse Charlie. — Onde fica?
Ele a fitou por um momento e então balançou a cabeça.
— O cinema tinha sido ideia sua, lembra? — Deu uma risada.
— Como eu disse, não costumo sair muito. — Charlie baixou a
cabeça, olhando para os pés.
— Vem, fica só a umas quadras daqui.
Caminharam em silêncio por um tempo.
— Eu descobri o que aconteceu com a Freddy’s — disse Charlie,
sem pensar, e John desviou o olhar para ela, surpreso.
— Sério? O que aconteceu?
— Estavam demolindo o lugar. Mas aí teve a tempestade e foi todo
mundo chamado para fazer outras coisas. Agora, uma metade da
construção tá de pé, e a outra tá demolida. Mas parece que tiraram tudo de
dentro — acrescentou, vendo que a pergunta estava surgindo nos olhos de
John. — Não sei o que fizeram... com eles. — Era mentira. Charlie não
podia contar o que realmente havia acontecido sem contar como ficara
sabendo. Todas as perguntas levavam de volta ao mesmo lugar: o cadáver
no campo. Quem era você?
— E quanto à casa do seu pai? — perguntou John. — Chegou a
perguntar sobre ela pra sua tia? O que a Jen pretende fazer com ela?
— Não sei — disse Charlie. — Não falo com ela desde agosto. —
Ficou em silêncio, sem olhar para John conforme iam andando.
Chagaram ao destino, um cinema surrado, de uma só sala, chamado
O Grande Palácio. Ou o nome era uma ironia, ou uma ambição. Estampado
no letreiro estava o nome da atração atual: Zumbis vs. Zumbis!
— Acho que é sobre zumbis — brincou John, enquanto entravam no
estabelecimento.
O filme já tinha começado. Havia uma mulher gritando na tela,
enquanto o que pareciam ser zumbis vinham de todos os lados. Estava
cercada. As criaturas se agacharam como cães selvagens, prontas para
saltar e devorá-la. Estavam a ponto de atacar — quando um homem a
agarrou pelo braço e a puxou para um lugar seguro.
— Charlie — sussurrou John, tocando-lhe no braço. — Ali. —
Apontou para a fileira dos fundos. O lugar estava meio cheio, mas a última
fileira estava vazia, e foram seguindo furtivamente para o meio dela.
Sentaram-se, e Charlie voltou sua atenção para a tela. Graças aos
céus, pensou. Talvez finalmente possamos relaxar.
Acomodou-se em seu assento, deixando que as imagens da tela
passassem por ela como borrões. Gritos, tiros e músicas vibrantes
preenchiam o silêncio entre os dois. Do canto do olho, viu John olhar para
ela, nervoso. Charlie focou a atenção no filme. Os personagens principais,
um homem e uma mulher com aquela beleza genérica das telonas,
disparavam armas automáticas contra uma horda de zumbis. Quando os das
primeiras fileiras foram mortos, — não mortos, detidos; embora houvessem
sido partidos ao meio pelas armas, continuavam se remexendo no chão, —
os de trás passaram por cima de seus correligionários caídos. A câmera
voltou ao homem e à mulher, que pularam por cima de uma cerca e saíram
correndo. Atrás deles, os zumbis continuavam vindo, fazendo força para
avançar, alheios aos corpos mortos-vivos por cima dos quais iam passando.
A música era tensa, com uma batida agitada que mais parecia o pulsar de
um coração artificial, e Charlie relaxou em seu assento, absorta em meio a
tudo aquilo.
O que ele estava fazendo ali? A imagem do cadáver retornou a ela.
Algo naquelas feridas a incomodava, mas não havia conseguido tocá-
las. Eu reconheci as feridas. Eram iguais às que eu me lembrava, mas
tinha alguma coisa diferente. O que era?
Sentiu um movimento ao seu lado, e viu que John estava tentando
pôr o braço ao redor de seus ombros. Sério isso?, pensou.
— Precisa de mais espaço? — perguntou, afastando-se sem esperar
uma resposta. Ele parecia encabulado com a situação, mas ela desviou o
olhar, pousando o cotovelo no outro braço do assento e olhando fixamente
para a tela.
Mais espaço, é isso. Fechou os olhos, concentrando-se na imagem
em sua cabeça. As feridas eram levemente maiores e mais espaçadas. A
roupa que ele estava usando era maior que as roupas da Freddy’s. O
sujeito provavelmente media um metro e setenta ou um metro e oitenta, o
que significa que a roupa deveria medir pelo menos uns dois metros e dez.
Na tela, o filme ficou em silêncio outra vez, mas durou pouco.
Charlie continuava assistindo, hipnotizada, enquanto a terra parecia se abrir
sozinha, mexendo-se como mágica, conforme os zumbis iam se
levantando. Não seria assim, pensou Charlie, conclusiva. Não é tão fácil
sair de uma cova. A essa altura, os zumbis na tela já estavam com metade
do corpo para fora, arrastando-se para a superfície, olhando ao redor com
aqueles olhos pastosos e irracionais. Não dá pra sair tão rápido
assim. Charlie piscou e balançou a cabeça, tentando se manter focada.
Zumbis. Seres desprovidos de vida. O depósito estava cheio de
fantasias, desprovidas de vida, mas sempre atentas, observando a tudo com
seus olhos de plástico e membros pendurados, mortos. Por algum motivo,
aqueles olhares cadavéricos nunca a haviam incomodado, nem a Sammy.
Eles gostavam de tocar a pelugem, às vezes a colocavam na boca e davam
risada da sensação estranha. Algumas já estavam velhas e foscas; outras
eram novas e macias.
O depósito era o cantinho deles, um lugar só para os dois. Às vezes,
ficavam balbuciando palavras que só faziam sentido para eles — às vezes,
ficavam brincando sozinhos, um ao lado do outro, perdidos em mundos de
faz-de-conta separados. Mas estavam sempre juntos. Sammy estava
brincando com seu caminhãozinho quando a sombra surgiu. Corria de um
lado para o outro, junto ao chão, sem notar que a faixa de luz que os
iluminava havia sido cortada. Charlie se virou e viu a sombra, tão imóvel
que parecia até uma ilusão, apenas outra fantasia fora do lugar.
Mas então, houve um movimento súbito, um caos de tecido e olhos.
O caminhão retiniu ao cair no chão, e depois disso: solidão. Um escuro
tão absoluto que ela chegou a acreditar que nunca chegara a enxergar
qualquer coisa antes. As memórias que tinha de visão não passavam de um
sonho, um truque daquela negritude completa. Tentou chamar seu nome —
podia sentir que estava por perto — mas tudo ao seu redor eram paredes
sólidas. “Pode me ouvir? Sammy? Me deixa sair! Sammy!” Mas ele havia
partido, e nunca mais voltaria.
— Charlie, você está bem?
— O quê? — Charlie olhou para John. Notou que havia puxado os
pés para cima do assento e estava abraçando os joelhos junto ao peito.
Voltou a se sentar, levando os pés de volta ao chão. John continuava
olhando para ela, preocupado. — Estou bem — sussurrou, apontando para
a tela.
John a tocou no antebraço.
— Tem certeza que tá tudo bem? — perguntou.
Charlie continuou olhando para frente. Agora, várias pessoas corriam
pela tela, os zumbis os seguindo de perto, a passos trôpegos.
— Não faz sentido — murmurou Charlie, quase que para si mesma.
— O quê? — John se inclinou mais para perto.
Charlie não se mexeu, mas repetiu o que havia dito:
— Não faz sentido. Zumbis não fazem sentido; se estão mortos, o
sistema nervoso central já era, e eles não poderiam fazer nada disso. Agora,
se eles têm um sistema nervoso central funcional, que de alguma forma se
deteriorou ao ponto em que apenas movimentos e pensamentos são
possíveis, embora severamente comprometidos, beleza. Se isso faz deles
violentos, beleza. Mas por que eles iriam querer comer cérebros? Não faz
sentido.
Aquele homem não teria conseguido andar sozinho numa roupa tão
grande. Não foi ele que andou até o campo — foi a roupa. O animatrônico
o estava carregando dentro de si. Ele foi até o campo por si só.
— Talvez seja simbólico — sugeriu John, ávido para conversar com
ela, ainda que fosse uma conversa estranha como aquela. — Sabe? Tipo a
ideia de que você come o coração do seu inimigo para ganhar sua força.
Talvez os zumbis comam o cérebro do inimigo para ganhar... seu sistema
nervoso central? — Olhou para Charlie, mas ela mal estava escutando.
— Sei — disse ela. Estava irritada com o filme, e agora ficara
irritada com a conversa que ela mesma havia começado. — Já volto —
disse a John, levantando-se sem esperar que ele respondesse. Saiu da
fileira, passando pelo saguão, e deixou o cinema. Na calçada, respirou
fundo e sentiu um forte alívio com o banho de ar fresco. Sonhos sobre
enclausuramento são comuns, lembrou a si mesma. Havia procurado a
respeito quando eles começaram. Eram apenas um pouco menos comuns
que sonhos sobre estar pelado na sala de aula, sobre estar despencando de
um lugar muito alto, ou sobre todos os seus dentes de súbito começarem a
cair da boca. Mas não parecia um sonho.
Charlie empurrou os pensamentos de volta ao presente, onde mesmo
uma cena de crime grotesca parecia ser um lugar mais seguro para mantê-
los.
Deve haver algum rastro. Ele não andou até lá sozinho. Tem que
haver um indício que indique o que o carregou até aquele campo, e de
onde essa coisa veio.
Charlie estremeceu. Entrou no estabelecimento novamente. O John
vai achar que eu tô ficando maluca. Chegou às portas vai e vem da sala e
parou — não conseguiria. Precisava saber. Havia um rapaz na lanchonete, e
ela lhe perguntou se havia algum telefone público por ali. Sem dizer nada,
ele apontou para a sua direita, e Charlie foi até lá, procurando nos bolsos
por uma moeda e pelo cartão do delegado Burke.
Discou com cuidado, fazendo uma pausa entre os números para
checar o cartão novamente, como se o que estava escrito pudesse mudar de
uma hora para a outra. Clay Burke atendeu na terceira chamada.
— Burke.
— Clay? É a Charlie.
— Charlie? Qual é o problema? — Ele ficou imediatamente alerta;
Charlie pôde imaginá-lo se levantando, pronto para correr.
— Não é nada, estou bem — assegurou a ele. — Está tudo bem, eu
só queria saber se você descobriu mais alguma coisa.
— Até agora não — disse a ela.
— Oh. — Burke deixou que o silêncio se estendesse entre eles, até
que Charlie finalmente o rompeu. — Tem mais alguma coisa que você
possa me contar? Sei que é confidencial, mas foi você quem me trouxe até
esse ponto. Por favor, se souber de mais alguma coisa. Se tiver descoberto
mais alguma coisa, ou souber alguma coisa sobre o homem... a vítima.
— Não — disse Clay, devagar. — Quer dizer, eu te aviso quando
descobrirmos alguma coisa.
— Certo — disse Charlie. — Obrigada.
— Entrarei em contato.
— Certo. — Charlie desligou o telefone antes que ele pudesse se
despedir. — Não acredito em você — disse ela, para o telefone na parede.
De volta ao cinema, seus olhos demoraram um momento para se
adaptar conforme ia avançando gradualmente em direção à fileira dos
fundos, rumo a seu assento, cuidando para não fazer barulho. John a fitou
com um sorriso no rosto enquanto ela se sentava, mas não disse nada.
Charlie sorriu de volta com uma expressão determinada, e se acomodou
novamente em seu assento, ajeitando-se de forma a encostar o ombro no
dele. Atrás de sua cabeça, ouviu um suspiro surpreso, e então ele também
se ajeitou, pondo o braço ao redor de seus ombros. Ele a apertou com força
por um momento, quase um abraço, e Charlie se apoiou em seu corpo, sem
saber muito bem como retribuir.
E se alguém o colocasse naquela fantasia, como uma espécie de
armadilha mortal de dar corda? Preso dentro daquela coisa, que sairia
andando até que as travas de mola fossem acionadas. Mas quem saberia
como fazer isso? Por que alguém faria isso?
— Perdi alguma coisa? — perguntou Charlie, embora não tivesse
prestado atenção a nada da última metade do filme. Já era dia na tela, e
parecia haver mais pessoas, todas enfiadas em uma espécie de abrigo.
Charlie não conseguia se lembrar quais deles eram os personagens
originais. Charlie se contorceu no assento; o braço de John havia relaxado
ao seu redor, mas agora o braço do assento estava cutucando suas costelas.
Ele começou a se afastar, mas ela se acomodou outra vez. — Não, pode
ficar — sussurrou, e o braço dele foi começando a envolvê-la novamente.
— Anda logo com isso — disse, frustrada. John se sobressaltou.
— Desculpa, não queria ser muito agressivo.
— Não, não você — Charlie apontou para a tela. — Eles deviam
montar um campo minado ao redor do abrigo e esperar que eles todos
explodissem. Fim.
— Acho que é bem isso que eles fazem na sequência, mas vamos ter
que esperar para ver. — Deu uma piscadinha para ela.
— Tem outro? — Charlie suspirou.
Quando os créditos começaram a rolar, juntaram suas coisas e
seguiram para a saída com o restante da plateia diminuta, sem falar nada
até chegarem lá fora. Na calçada, pararam um ao lado do outro.
— Foi muito bom — disse John, parecendo que, de alguma forma,
estava sendo sincero, e Charlie deu uma risada. Dentre um suspiro, ela
cobriu o rosto com ambas as mãos.
— Foi horrível. Foi o pior encontro de todos. Sinto muito. Mas
obrigada por mentir.
John abriu um sorriso inseguro.
— Foi muito bom poder vê-la — disse, a voz com uma leveza
bastante cuidadosa.
— Olha... podemos conversar em algum outro lugar?
John assentiu, e Charlie foi seguindo de volta ao campus com ele a
seguindo de perto.
O pátio costumava ficar vazio tarde da noite, ou pelo menos quase
vazio. Sempre tinha alguém passando por ali, algum aluno terminando um
trabalho noturno no laboratório, ou um casal dando uns amassos em algum
canto escuro. Charlie se sentou sob uma árvore e John fez o mesmo,
esperando que ela falasse alguma coisa. Por algum tempo, no entanto, ficou
apenas observando o vão entre os dois prédios, por onde quase dava para
ver a floresta.
Por fim, ele a incitou:
— E aí?
— Certo. — Ela o olhou nos olhos. — O Clay veio falar comigo
hoje. — John arregalou os olhos, mas não disse nada. — Ele me levou para
ver um corpo — prosseguiu Charlie. — O homem havia morrido dentro de
uma das fantasias das mascotes.
John franziu o cenho — ela quase conseguia enxergar seus
pensamentos, tentando compreender o que aquilo significava, e como
Charlie estaria envolvida.
— Não é tudo: o Clay me disse que encontraram sangue na sala de
jantar da Freddy’s. Sangue falso.
John ergueu a cabeça.
— Você acha que o Dave está vivo?
Charlie deu de ombros.
— O Clay não chegou a dizer que está. Mas todas aquelas
cicatrizes... ele já tinha sobrevivido às travas de molas de uma fantasia de
mascote antes. Ele devia saber como fugir do prédio.
— Pra mim não pareceu que ele fugiu.
— Ele pode ter forjado tudo; isso explicaria o sangue.
— Tá, mas e aí? O Dave está vivo e enfiando pessoas em roupas com
travas de mola para matá-las?
— Se eu pudesse voltar ao restaurante mais uma vez, só pra
conferir... — Charlie se calou, subitamente notando a irritação crescente no
rosto de John.
— Conferir o quê? — perguntou ele, sisudo.
— Nada. O Clay tem tudo sob controle. É melhor deixar tudo com a
polícia. — Ela trincou o maxilar, fitando o horizonte.
A Jessica vai comigo.
— Certo — disse John, com um olhar surpreso. — É, você tá certa.
Charlie assentiu com um entusiasmo forçado.
— O Clay tem homens para esse tipo de coisa — prosseguiu ela, a
testa franzida. — Tenho certeza que eles vão resolver tudo isso.
John tocou os ombros de Charlie devagar.
— E eu tenho certeza que não é o que você está pensando que é —
disse, num tom caloroso e reconfortante. — Tem muitos crimes nesse
mundo que não envolvem fantasias de robôs felpudas que se auto
implodem. — Ele deu uma risada, e Charlie forçou um sorriso. — Vamos.
— John lhe estendeu uma mão, e Charlie a segurou. — Eu te levo até o seu
dormitório.
— Agradeço o gesto — disse ela. — Mas a Jessica está lá, e teríamos
que passar por toda uma reunião, sabe?
John riu.
— Tá bom, vou te salvar da Jessica e sua camaradagem implacável.
Charlie sorriu.
— Meu herói. Mas onde é que você vai passar a noite, afinal?
— Naquele motelzinho que você ficou no ano passado, na verdade
— disse John. — Nos vemos amanhã, talvez?
Charlie assentiu e o ficou observando enquanto ia embora, então
voltou para o próprio quarto. Embora o encontro em si houvesse sido
excruciante, a última meia hora lhe parecera um retorno aos velhos tempos.
Eram ela e John novamente — era algo familiar outra vez.
— Só precisávamos de um bom e velho assassinato — disse ela, em
voz alta, e uma mulher que passeava com o cachorro lhe lançou um olhar
desconfiado e desviou de seu caminho. — Eu tava assistindo um
filme, Zumbis vs. Zumbis! — gritou Charlie, apática, vendo que ela estava
dando meia-volta. — Eles não colocam minas ao redor do abrigo, alerta de
spoiler!
Charlie meio que esperava que Jessica estivesse dormindo, mas
quando chegou ao quarto, viu que as luzes ainda estavam acesas. Ela abriu
a porta antes que Charlie tirasse a chave do bolso, o rosto corado.
— E aí? — indagou Jessica.
— E aí o quê? — perguntou Charlie, rindo consigo mesma. — Ei,
antes de começar com isso, preciso te pedir uma coisa.
— Você sabe o quê! — exclamou Jessica, ignorando a pergunta. —
Conta sobre o John. Como foi?
Charlie sentiu o canto da boca se contorcer.
— Ah, você sabe — disse, da forma mais casual que conseguiu. —
Olha, eu preciso que você vá num lugar comigo amanhã de manhã.
— Charlieee! Você tem que me contar! — carpiu Jessica, de forma
exagerada, e se jogou de costas na cama. Então deu um pulo, posicionando-
se de forma a ficar sentada. — Vem cá e me conta! — Charlie sentou,
puxando as pernas para debaixo de si.
— Foi estranho — admitiu. — Eu não sabia o que dizer. Encontros
parecem tão... desconfortáveis. Mas sobre o que eu tava falando...
— Mas é o John! Isso não devia aliviar a parte do “encontro”?
— Bom, não aliviou — disse Charlie. Olhou para o chão. Sabia que
o rosto estava ruborizado, e de repente se pegou desejando que não tivesse
contado nada à Jessica.
Jessica pôs as mãos nos ombros de Charlie e a fitou com um olhar
sério.
— Você é incrível, e se o John não estiver caidinho por você, o
problema é dele.
Charlie deu uma risadinha.
— Acho que ele meio que está. E isso é parte do problema. Mas tem
mais uma coisa que eu preciso contar, se você me escutar aqui por um
segundo.
— Ah, tem mais? — Jessica riu. — Charlie, sua danada, você precisa
guardar alguma coisa pro segundo encontro, sabia?
— O quê? Não, não. Não! Preciso que você vá num lugar comigo
amanhã de manhã.
— Charlie, eu tenho um monte de coisa pra fazer; as provas tão
chegando aí e...
— Eu preciso de você... — Charlie trincou o maxilar por um
momento. — Preciso que me ajude a escolher umas roupas novas para o
próximo encontro — disse, com cuidado, e então esperou para ver se
Jessica acreditaria em alguma palavra do que dissera.
— Charlie, tá de brincadeira? Vamos amanhã bem cedinho! — Num
pulo, ela deu um gigantesco abraço em Charlie. — Vai ser o nosso dia das
garotas! Vai ser demais! — Jessica se jogou de volta na cama. — Mas
agora é hora de dormir.
— Não vai te incomodar se eu trabalhar um pouco no meu projeto,
vai?
— De forma alguma. — Jessica acenou de leve, e então caiu no
sono.
Charlie acendeu sua luminária de trabalho: formava um único e
brilhante facho de luz, focado o suficiente para não iluminar o quarto
inteiro. Ela descobriu os rostos — estavam em repouso, as feições
tranquilas, como se estivessem dormindo, mas não os ligou de imediato. Os
botões que faziam com que eles se mexessem e falassem eram apenas uma
parte do todo. Havia outro componente: a parte que os fazia escutar sempre
ficava ligada. Tudo o que ela e Jessica disseram, cada palavra dita no
quarto, no lado de fora da janela, ou mesmo no corredor, eles ouviam. Toda
palavra nova entrava em seu banco de dados, mas não como uma palavra
por si só, mas em todas as suas possíveis formas. Todas as novas peças de
informação se ligavam a outra peça de informação semelhante; tudo de
novo se formava com base em algo antigo. Eles estavam sempre
aprendendo.
Charlie ligou o componente que permitia que eles falassem. Suas
feições se ondularam de leve, como se estivessem se alongando.
— Eu sei — disse o primeiro, mais rápido que o normal.
— Eu o quê? — disse o segundo.
— Sabe o quê?
— Você aí sabe o quê?
— Sei o quê?
— Agora o quê?
— Como, agora?
— Agora, por quê?
Charlie os desligou, observando enquanto os coolers iam parando.
Isso não fez sentido. Olhou para o relógio. Já devia estar dormindo há mais
de três horas. Trocou de roupa depressa e se enfiou debaixo das cobertas,
deixando os rostos a mostra. Sua última conversa fora um tanto quanto
inquietante. Havia sido mais rápida do que nunca, e o contexto não fazia
sentido, mas algo nela lhe soava familiar — foi quando percebeu.
— Estavam brincando? — perguntou. Os rostos não podiam
responder, então ficaram apenas encarando um ao outro, os olhos
completamente vazios.
CAPÍTULO QUATRO
Ela removeu a fronha gentilmente, cuidando para que não prendesse
em nada. Por debaixo do sudário, os rostos, inexpressivos e com olhares
vazios, pareciam plácidos — era como se pudessem esperar, apenas
ouvindo, por toda a eternidade. Charlie os ligou, inclinando-se para
observá-los enquanto começavam a movimentar as bocas de plástico, sem
emitir qualquer som, apenas para praticar.
— Onde? — disse o primeiro, por fim.
— Aqui — disse o segundo.
— Onde? — disse o primeiro novamente. Charlie se afastou. Havia
algo de errado com a voz; ela parecia tensa.
— Aqui — repetiu o segundo.
— Onde? — disse o primeiro com um tom elevado, como se estivesse
ficando nervoso.
Isso não devia acontecer!, pensou Charlie, alarmada. Eles não
deviam conseguir modular suas vozes.
— Onde? — lamuriou a primeira, e Charlie deu um passo para trás.
Abaixou-se devagar para olhar embaixo da mesa, como se pudesse
encontrar um emaranhado de fios enrolados que explicasse o
comportamento estranho. Enquanto procurava, perplexa, um bebê
começou a chorar. Levantou de uma só vez, batendo com a cabeça
dolorosamente na beira da mesa.
De repente, os dois rostos pareciam mais humanos, e mais infantis.
Um estava chorando, e o outro o observava com um olhar atônito.
— Está tudo bem — disse o rosto mais calmo.
— Não me abandone! — lamuriou o outro, voltando-se para Charlie.
— Não vou te abandonar! — gritou Charlie. — Vai ficar tudo bem!
— O som do choro aumentou, mais alto e profundo do que vozes humanas
deveriam ser, e Charlie cobriu os ouvidos, olhando ao redor, desesperada,
em busca de alguém que pudesse ajudá-la. Seu quarto havia escurecido,
com coisas pesadas penduradas no teto. Sentiu o toque de uma pelagem
opaca no rosto e seu coração disparou: as crianças não estão seguras.
Ela se virou, mas, de alguma forma, um amontoado de tecido e pelos
havia surgido entre ela e os bebês em prantos.
— Eu vou encontrá-los! — gritou, avançando aos poucos,
tropeçando nos membros que se arrastavam pelo chão. As fantasias
balançavam freneticamente, como árvores em uma tempestade, e um pouco
mais adiante, algo caiu no chão dentre uma forte pancada. Por fim, ela
chegou à mesa, mas eles haviam sumido. Os berros continuavam, tão altos
que Charlie mal conseguia ouvir os próprios pensamentos, mesmo quando
percebeu que quem estava gritando era ela mesma.
Charlie se sentou com uma arfada alta e oca, como se realmente
estivesse gritando.
— Charlie? — Era a voz de John. Charlie olhou ao redor, a visão
ainda um pouco turva, e deparou-se com uma cabeça espiando por uma
brecha na porta do quarto.
— Me dê um minuto! — gritou Charlie, endireitando-se na cama. —
Sai daqui! — berrou, e a cabeça de John recuou; a porta se fechou. Sentia-
se trêmula, os músculos fracos. Os havia tensionado demais durante o sono.
Troco de roupa rapidamente, vestindo algo limpo, e tentou escovar os
cabelos levemente enrolados para que ficassem um pouco mais
comportados, para só então abrir a porta.
John enfiou a cabeça pela fresta outra vez, dando uma olhada
cuidadosa ao redor.
— Vem, pode entrar. Não é uma cilada, embora bem que poderia ser
— brincou Charlie, dando uma risadinha. — Como entrou aqui?
— Bom, estava aberto e eu... — John parou de falar enquanto
assimilava o quarto ao seu redor, momentaneamente distraído com a
bagunça. — Achei que podíamos tomar café da manhã juntos, que tal?
Tenho que ir trabalhar do outro lado da cidade dentro de uns quarenta
minutos, mas ainda tenho um tempinho.
— Oh, que atencioso da sua parte. Mas eu... — disse ela. —
Desculpa pela bagunça. É o meu projeto, eu meio que fico tão absorvida
nele que acabo esquecendo... de limpar. — Voltou o olhar para a mesa. A
fronha estava onde devia estar, as silhuetas indistintas dos rostos
parcamente visíveis sob ela. Foi só um sonho.
John encolheu os ombros.
— Ah é? De que é o projeto?
— Hã, de linguagem. Algo assim. — Deu uma olhada no quarto,
curiosa. Onde Jessica tinha se metido? Charlie sabia que John suspeitaria
de seu interesse súbito e sem precedentes em sair para comprar roupas, e
esperava poder evitar explicações. — Programação de linguagem natural
— continuou. — Estou fazendo... aulas de programação de computadores.
— No último momento, algo a impediu de dizer a palavra robótica. John
assentiu. Ainda olhava para a bagunça, e Charlie não sabia dizer o que
havia chamado sua atenção. Voltou à explicação: — Então, estou
trabalhando no ensino da linguagem... linguagem falada... para
computadores. — Andou em direção à porta a passos largos, e deu uma
olhada no corredor.
— Mas computadores já não sabem linguagem? — perguntou John.
— Bom, sim — disse Charlie, voltando para o quarto. Olhou para
John. Seu rosto havia mudado, assumindo um aspecto um pouco mais
adulto. Mas ainda conseguia enxergá-lo como no ano anterior, cativado
com os velhos brinquedos mecânicos dela. Posso contar para ele.
Mas então, um olhar de alarme tomou o rosto de John. Lançou-se em
direção à sua cama, parando a apenas alguns centímetros dela. Apontou
para alguma coisa.
— Essa é a cabeça do Theodore? — perguntou ele, escolhendo as
palavras com cuidado.
— Sim — disse Charlie. Foi até a janela e espiou por entre as
persianas, tentando encontrar o carro de Jessica.
— Então quer dizer que você foi lá na casa?
— Não. Bom, sim. Voltei lá uma vez — confessou. — Pra pegar ele.
— Desviou o olhar de volta para John, sentindo-se culpada.
Ele balançou a cabeça.
— Charlie, não precisa se explicar — disse ele. — É a sua casa. —
Pegou a cadeira junto à mesa e se sentou. — Por que o desmontou?
Charlie estudou o rosto dele, inquieta, imaginando se ele já estava se
fazendo a próxima pergunta óbvia: Será que é de família?
— Queria ver como ele funcionava — disse Charlie. Falava com
cuidado, sentindo que precisava parecer o mais racional possível. — Teria
pego o Stanley e a Ella também, mas, você sabe.
— Estão presos ao chão?
— Tipo isso, pois é. Então só peguei o Theodore; na verdade, estou
usando algumas das peças dele no meu projeto. — Charlie voltou o olhar
para a cabeça de coelho sem corpo, fitando os olhos de vidro
inexpressivos. Desmontá-lo. Usar suas peças. Parece racional.
Havia pegado Theodore na casa do pai pouco antes das aulas
começarem. Jessica não estava no dormitório na ocasião. Não era muito
tarde, estava apenas começando a escurecer, e Charlie contrabandeou
Theodore dentro de sua mochila. Tirando-o de lá, ela o pôs sentado em sua
cama e apertou o botão que o fazia falar. Como antes, não ouviu nada além
de um barulho sufocado: “...mo... lie...”, os resquícios deteriorados e
decadentes da voz de seu pai. Charlie sentiu uma pontada de raiva de si
mesma por sequer ter tentado.
— Sua voz está terrível — disse para Theodore, a voz áspera, mas
ele ficou apenas olhando de volta para ela, os olhos vazios, imune à
reprimenda. Charlie revirou a bolsa de ferramentas e peças, que ainda não
haviam tomado conta da sua metade do quarto. Encontrou sua faca de
utilidades e voltou obstinadamente para a cama, onde o coelho aguardava.
— Vou te trazer de volta quando tiver terminado. Exatamente.
Voltou a olhar para John agora, no presente, e viu seu rosto tomado
por dúvidas. Ou talvez fosse preocupação, assim como Jessica.
— Desculpa, sei que tá tudo uma bagunça — disse, ouvindo as
pontadas na própria voz. — Acho que eu também tô uma bagunça —
acrescentou, a voz baixa. Colocou a cabeça do coelho no travesseiro, ao
lado de uma parte de sua perna. — E aí, ainda quer ver o meu projeto? —
perguntou.
— Sim. — Ele abriu um sorriso reconfortante, seguindo-a até a
mesa.
Charlie hesitou, olhando para a fronha. Só um sonho.
— Certo — disse ela, nervosa. Com todo o cuidado, Charlie se
certificou de ligar tudo antes de descobrir os rostos. Luzes começaram a
piscar, e coolers começaram a girar. Voltou o olhar para John outra vez,
tirando o pano que os cobria.
Os rostos se mexiam com um padrão de movimentos curtos, como se
estivessem se alongando após uma noite de sono, embora não pudessem
alongar muita coisa. Charlie engoliu em seco, nervosa.
— Você, eu — disse o primeiro, e Charlie ouviu John fazer um som
de surpresa atrás dela.
— Eu — disse o segundo. Charlie segurou o fôlego, mas os rostos
ficaram em silêncio.
— Desculpa, eles costumam falar mais — disse Charlie. Pegou um
pequeno objeto de cima da mesa: era uma peça de plástico transparente,
com um formato estranho e cheia de fios por dentro. John franziu o cenho
por um momento.
— Isso é um aparelho auditivo? — perguntou ele, e Charlie assentiu,
entusiasmada.
— Era. Estou usando para fazer uns experimentos: eles escutam o
tempo todo, captam tudo que é dito ao seu redor, mas apenas coletam os
dados, não interagem com eles. — Parou de falar, esperando por um sinal
de que John havia entendido. Ele assentiu, e então ela continuou: — Ainda
estou trabalhando nas falhas, mas essa coisa deve fazer com que a pessoa
que o estiver usando... seja visível para eles. Não literalmente, quer dizer...
eles não vão de fato enxergar. Mas reconhecerão a pessoa usando o
dispositivo como um deles. — Olhou para John, cheia de expectativa.
— Por quê...? O que isso significa...? — perguntou ele, parecendo
procurar pelas palavras. Charlie fechou a mão sobre o auscultador,
frustrada. Ele não entende.
— Eu os criei. Quero interagir com eles — disse ela. John ficou com
uma expressão mais pensativa, e ela desviou o olhar, subitamente
arrependida de ter mostrado o objeto para ele. — Enfim, ainda não está
finalizado. — Ela disparou até a porta e deu uma olhada no lado de fora.
— É bem legal — disse John, atrás dela. Quando Charlie voltou do
corredor, ele a fitou com um olhar estranho. — Tá tudo bem?
— Sim. Mas é melhor você ir logo. Vai se atrasar para o trabalho. —
Charlie se aproximou dos rostos. Observou as criações com uma expressão
pensativa no rosto, e depois suspirou, pegando a fronha para cobri-los
novamente. Assim que o fez, o segundo rosto se mexeu.
Deu um solavanco para trás no suporte e girou, fixando os olhos
vidrados nos de Charlie. Ela o encarou de volta. Era como olhar para um
estátua; os olhos não passavam de protuberâncias elevadas no plástico
moldado. Mas Charlie engoliu em seco, sentindo-se presa ao chão. Estudou
o olhar vazio até que John pôs a mão em seu ombro. Deu um pulo,
assustando-o também, e então voltou o olhar para o auscultador em sua
mão.
— Ah, é verdade — murmurou Charlie, apertando o pequeno botão
de energia na lateral do dispositivo. Pôs o auscultador com cuidado por
cima da bagunça na gaveta de sua mesa, e então a fechou. O rosto
continuou parado por um momento, até que foi voltando lentamente à
posição original. E assim permaneceu, espelhando o olhar de sua cópia,
como se nunca tivesse se mexido. Charlie os cobriu e desligou, deixando-os
apenas com energia o suficiente para escutarem.
Por fim, voltou o olhar para John.
— Desculpa! — disse.
— Então quer dizer nada de café da manhã?
— Tenho planos para essa manhã — disse Charlie. — Eu e a Jessica.
Você sabe, coisa de menina.
— Sério? — disse John, a voz baixa. — Coisa de menina? Você?
— Sim! Coisa de menina! — chiou Jessica, entrando no quarto toda
animada. — Compras; eu finalmente convenci a Charlie que vale à pena
experimentar as roupas antes de comprá-las. Podemos até conseguir passar
direto pelas calças jeans e coturnos! Está pronta?
— Pronta! — Charlie sorriu, e John a olhou de esguelha.
Jessica começou a escoltá-lo gentilmente até a porta.
— Certo — disse John. — Então nos vemos mais tarde, Charlie?
Charlie não chegou a responder, mas Jessica lhe abriu um largo
sorriso enquanto fechava a porta atrás dele.
— Muito bem. — Jessica bateu as mãos uma contra a outra. — Por
onde quer começar hoje?
Quando chegaram ao estacionamento do shopping abandonado, já
era quase de tarde.
— Charlie, não era isso que eu tinha em mente — clamou Jessica,
enquanto saíam do carro. Charlie se dirigiu à entrada, mas Jessica não a
seguiu. Quando Charlie se virou para olhar para ela, viu que estava
encostada no carro com os braços cruzados. — O que estamos fazendo
aqui? — perguntou ela, as sobrancelhas erguidas.
— Temos que olhar lá dentro — disse Charlie. — Tem vidas que
podem estar em jogo, que dependem disso. Só quero ver se restou alguma
coisa da Freddy’s, e depois podemos ir embora.
— A vida de quem está em jogo? E por que agora, tão de repente? —
perguntou Jessica.
Charlie olhou para os sapatos.
— Só quero dar uma olhada — disse. Sentia-se como uma criança
desaforada, mas simplesmente não conseguia contar toda a história à
Jessica.
— Isso tudo é porque o John tá aqui? — perguntou Jessica, de
repente, e Charlie ergueu o olhar, surpresa.
— O quê? Não.
Jessica suspirou e descruzou os braços.
— Tá tudo bem, Charlie. Eu entendo. Você não o via desde que tudo
aquilo aconteceu, e aí ele vai e aparece de novo; é claro que isso traz tudo à
tona outra vez.
Charlie assentiu, sentindo vontade de agarrar esse raciocínio com
toda a gratidão. Era mais fácil que esconder a verdade dela.
— Se bem que eu duvido que ainda tenha muita coisa — disse ela.
— Só quero dar uma passada por lá para me lembrar que...
— Que realmente acabou? — concluiu Jessica. Abriu um sorriso, e o
coração de Charlie despencou.
Não, ainda não acabou. Nem de longe. Ela forçou um sorriso.
— Algo assim.
Charlie atravessou o shopping depressa, mas Jessica vinha logo atrás.
O lugar parecia completamente diferente. A luz do sol invadia o ambiente
através de buracos massivos nas paredes e no teto, ainda inacabados.
Pequenos fachos de luz entravam também por frestas menores, formando
pequenos pontos iluminados em cima de pilhas de placas de concreto.
Charlie via mariposas — ou talvez borboletas — voando junto às janelas, e
conforme avançavam pelos corredores vazios à caminho da Freddy’s,
ouviu o pio dos pássaros. O silêncio mortal do qual se lembrava, a sensação
avassaladora de medo, tudo havia desaparecido. No entanto, enquanto
olhava para as vitrines ainda em construção, Charlie não pôde deixar de
pensar que o lugar ainda parecia assombrado, talvez até mais que antes. Era
um tipo diferente de assombração — não dava medo. Mas Charlie sentia
que algo estava presente, como se estivesse pisando em terra santa.
— Olá? — disse Charlie, a voz baixa, sem saber ao certo com quem
estava falando.
— Você ouviu alguma coisa? — Jessica desacelerou o passo.
— Não. Me parece menor. — Charlie fez um gesto em direção às
bocas escancaradas das lojas de departamento que nunca chegaram a abrir,
indicando o final do corredor adiante. — Parecia tão intimidador da última
vez.
— Na verdade, até que passa uma sensação de paz. — Jessica deu
um giro onde estava, respirando fundo o ar que vinha lá de fora e fluía
livremente pelo espaço aberto.
Jessica seguiu Charlie pela entrada e ambas pararam imediatamente,
ofuscadas pela luz brilhante do sol. A Freddy’s havia sido demolida.
Algumas paredes continuavam de pé, — a parte mais ao fundo ainda
parecia intacta, — mas havia um verdadeiro campo de destroços diante
delas. Tijolos velhos e quebrados se misturavam em meio aos escombros.
As duas agora estavam sobre uma placa de concreto que assava sob o
sol. A entrada do restaurante, junto a toda a parede lateral, já não estava
mais lá. As paredes e o teto eram apenas uma linha de entulho em meio às
árvores. A calçada de concreto continuava lá, escurecida pelos anos de
umidade e vazamentos que pingavam dos canos mais acima.
— Parece que a Freddy’s já era — disse Jessica, a voz apressada, e
Charlie assentiu.
Foram avançando em meio aos escombros. Charlie conseguiu
identificar onde costumava ficar a sala de jantar, mas não havia nada lá. As
mesas e cadeiras, as toalhas de mesa xadrez, os chapéus de festa, tudo
havia sido removido. O carrossel fora arrancado, deixando nada além de
um buraco no chão e alguns fios soltos. O palco em si havia sido atacado,
mas não removido. Deviam estar prestes a fazê-lo quando tiveram que
parar o trabalho. Havia tábuas quebradas por toda a área diante do palco, e
o lance de escadas da esquerda não estava mais lá. O que restava da parede
atrás do palco estava quebrado na parte de cima, feito montanhas dentadas
que se assomavam rumo ao céu.
— Você está bem? — Jessica olhou para Charlie.
— Sim. Não é o que eu esperava, mas estou bem. — Ela parou para
pensar por um momento. — Quero ver o que ainda tem aqui. — Charlie fez
um gesto em direção ao palco, e as duas cruzaram o que restava da área de
jantar.
O assoalho rangia, as placas de linóleo quebradas. Jessica deu uma
olhada, sob uma pilha de pedras que impediam a passagem, na área onde
costumavam ficar as máquinas de fliperama. As máquinas que antes se
assomavam como lápides não estavam mais lá, mas ainda era possível ver
os contornos de cada uma delas. Manchas quadradas continuavam
demarcadas no chão, nos pontos de onde as máquinas haviam sido
arrancadas. Nos cantos, diversos cabos soltos estavam amontoados em
pequenas pilhas. Charlie voltou sua atenção para o palco principal outra
vez. Subiu para onde os animais animatrônicos costumavam se apresentar.
— Cuidado! — gritou Jessica. Charlie assentiu, vagamente indicando
que ouvira o que ela havia dito. Parou em um dos lados, lembrando-se de
como tudo ficava disposto. Aqui era onde ficava o Freddy.
As tábuas haviam sido quebradas no ponto a sua frente e em mais
outros dois lugares; a destruição ali fora causada quando removeram as
placas giratórias que prendiam as mascotes ao palco.
Não que eles tenham permanecido presos por muito tempo, pensou
Charlie, irônica. Os animais estavam realizando seus movimentos padrões,
o que haviam sido programados para fazer, mas começaram a ir cada vez
mais rápido, até ficarem claramente fora de controle. Moviam-se de um
jeito selvagem, como se estivessem com medo. E então, enquanto
balançavam em seus lugares, dentre o terrível som de madeira se partindo,
Bonnie ergueu o pé aparafusado e se lançou para fora do palco, livre.
Charlie balançou a cabeça, tentando se livrar da imagem. Foi até os
fundos do palco. Não havia mais lâmpadas para iluminar o ambiente, mas
um esqueleto de vigas expostas entrecortava o céu aberto que ocupava o
lugar onde elas costumavam ficar.
— Jessica! — gritou. — Cadê você?
— Aqui embaixo!
Ela seguiu a voz da garota. Jessica estava agachada junto ao local
onde ficava a sala de controle, espiando a abertura abaixo do palco.
— Nada? — perguntou Charlie, sem saber ao certo qual resposta
estava esperando.
— Foi esviscerada — disse Jessica. — Nada de monitores, nada de
nada. — Charlie se abaixou ao lado dela, e ambas ficaram olhando juntas.
— É onde ficamos presos juntos da outra vez — disse Jessica, a voz
baixa. — Eu e o John. Tinha alguma coisa do outro lado da porta, e a trava
emperrou. Pensei que nunca mais conseguiríamos sair dessa sala e... — Ela
olhou para Charlie, que apenas assentiu. Os horrores daquela noite haviam
sido únicos para cada um deles. Os momentos que os assombravam durante
o sono, ou assolavam seus pensamentos sem aviso, no meio do dia, eram
particulares.
— Vamos — disse Charlie, de forma abrupta, seguindo em direção
ao monte de entulho onde o fliperama costumava ficar. Charlie se agachou
para passar por debaixo de uma grande placa de concreto inclinada, que
servia como uma porta para o que restava do lugar.
— Parece perigoso. — Jessica passou pelo pedaço de pedra solto na
ponta dos pés.
A maior parte do chão continuava coberta por carpetes, e Charlie viu
as marcas pesadas nos locais onde as máquinas ficavam. Ela se jogou
contra a máquina e, de alguma forma, foi o suficiente. Ela balançou de
forma precária e então caiu, levando Foxy consigo e prendendo-o no chão.
Ela começou a correr, mas ele foi mais rápido: a pegou pela perna,
atravessando a carne com seu gancho; ela gritou, olhando maxilar de
metal torcido que estalava sob os olhos prateados ardentes. Ouviu um
barulho, quase uma lamúria, e percebeu que era ela mesma. Cobriu a boca
com ambas as mãos.
— Eu achei que íamos todos morrer — sussurrou Jessica.
— Eu também — disse Charlie. Olharam uma para a outra por um
momento, uma quietude sinistra tomando os escombros sob a luz do sol.
— Ei, esse lugar provavelmente vai acabar caindo nas nossas
cabeças, então... — Jessica quebrou o silêncio, apontando para as várias
placas de concreto que as cercavam. Charlie voltou engatinhando por onde
haviam vindo e se levantou. Seus joelhos formigavam. Ela os esfregou e
pisou com força no chão.
— Quero dar uma olhada na sala de fantasias, ver se tem alguma
coisa lá — disse Charlie, inexpressiva.
— Ou ver se tem alguém lá? — Jessica balançou a cabeça.
— Eu preciso saber. — Charlie passou as mãos nas calças uma
última vez e seguiu para lá.
A sala estava fora da área demolida, sozinha e intacta. Era o lugar
onde as fantasias eram guardadas, e onde Carlton havia sido mantido como
prisioneiro. Charlie enfiou a cabeça para dentro com cuidado, estudando os
detalhes físicos ao redor: a tinta lascada nas paredes, o carpete que alguém
começara a remover, mas parara no meio. Não pense na última vez. Não
pense no que aconteceu aqui. Permitiu que seus olhos se adaptassem ao
escuro por mais um momento, e então entrou.
A sala estava vazia. Fizeram uma busca superficial, mas tudo havia
sido removido — não restava nada além das paredes, do chão e do teto.
— Bem que o Clay disse que tinham se livrado de tudo — disse
Charlie.
Jessica lhe lançou um olhar incisivo.
— O Clay? Quando?
— Quer dizer, ele disse que iria — disse Charlie, depressa, para
acobertar o deslize. — No ano passado.
Deram uma última olhada em volta. Quando estavam para sair,
Charlie notou um brilho que parecia vir de alguma coisa no canto. Era um
olho de plástico de uma mascote animatrônica desconhecida. Charlie estava
a ponto de pegá-lo quando se deteve.
— Não tem nada aqui — disse.
Sem esperar por Jessica, voltou em meio aos escombros, olhando
para os pés conforme passava por cima de tijolos, pedras e vidro quebrado.
— Ei, espera! — gritou Jessica, correndo atrás dela. — É a Baía
Pirata, Charlie! Olha! — Charlie parou. Assistiu Jessica se pendurar em
uma viga de aço e subir cuidadosamente nos restos de uma parede
demolida. Diante dela, havia uma cortina jogada entre o que parecia ser
uma pilha de destroços. Charlie foi atrás dela, e, quando a alcançou, viu
que a cortina ocultava uma passagem em meio às ruínas. Pedaços de
cadeiras brilhantes apareciam aqui e ali, soterradas pelas pedras. Uma
fileira de lâmpadas, antes utilizadas para iluminar o palco, pendia sobre a
cortina, segurando-a no lugar.
— Até que está bem conservada, se comparada ao resto do lugar —
disse Jessica. Charlie não respondeu. Havia um pôster sujo jogado ao chão,
retratando um Foxy cartunesco entregando pizza para crianças felizes.
— Jessica, olha. — Charlie apontou para o chão.
— Parecem marcas de garra — disse Jessica, após um momento.
Um enorme tracejado de riscos e arranhões cobria o chão, dentre
marcas escuras que pareciam rastros de sangue.
— Parece que alguém foi arrastado por aqui. — Jessica se levantou e
seguiu os arranhões. Eles levavam para detrás da cortina, além da área onde
a Baía Pirata costumava ficar. — O palco — disse Jessica.
Quando moveram a cortina para o lado, viram que o palco tinha uma
pequena portinhola nos fundos.
— Um depósito — murmurou Charlie. Tentou puxá-la, mas a
portinhola não abria.
— Tem que ter um trinco em algum lugar — disse Jessica. Limpou a
poeira e tirou os restos de madeira quebrada da base do palco, encontrando
uma tranca que entrava no chão. Ela a puxou, liberando a porta, que se
abriu com tudo, como se algo estivesse inclinado contra ela.
Um rosto caiu em meio à escuridão, os olhos vazios avançando para
cima delas. Jessica deu um grito e caiu para trás. Charlie recuou um passo.
O rosto mascarado pendia, inerte, de uma fantasia de pelos apodrecidos.
Havia uma fantasia de mascote inteira lá dentro, atulhada em um espaço
pequeno demais para ela. Charlie parou, o corpo entorpecido com o
choque, olhando para a coisa com um terror que a consumia desde que se
entendia por gente.
— O coelho amarelo — sussurrou.
— É o Dave. — Jessica arfou. Charlie respirou fundo, forçando-se a
voltar ao presente.
— Vem, me ajuda — disse ela, dando um passo em frente e
agarrando o tecido, tentando puxá-lo da melhor forma que conseguia.
— Tá de brincadeira? Não vou encostar nessa coisa.
— Jessica! Vem logo! — mandou Charlie, e, relutante, Jessica foi até
ela.
— Ui, ui, ui. — Jessica tocou na roupa, apenas para recuar
novamente. Olhou para Charlie com cara de paisagem e tentou outra vez,
tirando as mãos assim que encostou no tecido. — Ui — repetiu, a voz
baixa, e então finalmente fechou os olhos e agarrou a fantasia.
Elas puxaram juntas, mas nada aconteceu.
— Acho que está preso — disse Jessica.
Trocaram de posição e finalmente conseguiram arrancar a mascote
do espaço diminuto. O tecido ficou preso em pregos e madeira quebrada,
mas Charlie continuou puxando. Por fim, a criatura estava fora, todo o seu
peso estirado no chão.
— Eu definitivamente não acho que o Dave tenha forjado a própria
morte.
— E se não for ele? — Jessica fitava o rosto cuidadosamente.
— É ele. — Charlie observou o sangue seco impregnado nos dedos
da mascote. — As travas de mola podem não tê-lo matado imediatamente,
mas ele morreu aí dentro.
Podiam ver o corpo de Dave pelos buracos da fantasia, e as grandes
aberturas que serviam como os olhos da cabeça da mascote revelavam seu
rosto. Sua pele estava desidratada e murcha, os olhos esbugalhados, o rosto
completamente pálido e inexpressivo. Charlie se aproximou novamente. O
choque inicial havia passado, e agora estava curiosa para ver mais dele. A
princípio, foi tocando com cuidado, caso alguma trava de mola lá dentro
ainda pudesse estar esperando para ser acionada, mas estava claro que já
haviam causado todo o dano que podiam causar. As travas haviam
penetrado tão profundamente em sua pele que suas bases estavam niveladas
ao pescoço do homem — pareciam parte dele.
Charlie examinou o peito da fantasia. Várias lacerações grandes e
profundas cobriam o tecido amarelo, que ficara verde e rosa em alguns
pontos, manchado pelo mofo. Segurou a roupa pelos lados e abriu o vão o
máximo que pode. Jessica assistia, fascinada, cobrindo a boca com as
mãos. Hastes de metal atravessavam todo o corpo, mortiço e encrustado de
sangue. E havia partes mais complexas, com tripas entrelaçadas a várias
camadas do maquinário que O tecido da roupa também estava duro com o
sangue acumulado, e, ainda assim, o homem não parecia ter apodrecido,
mesmo após um ano inteiro ter se passado.
— É como se ele tivesse se fundido com a roupa — disse Charlie.
Puxou a cabeça da mascote, tentando remover a máscara, mas logo
desistiu. Os olhos vazios pareciam fitá-la, com o rosto do cadáver do outro
lado. Diretamente iluminada por um feixe de luz, a pele de Dave parecia
enferma e descolorida. Charlie sentiu uma súbita onda de náusea.
Empurrou o corpo de volta para o chão e olhou de volta para Jessica.
— Tá, e agora? — disse Jessica. — Quer fazer uma massagem no pé
dele também? — Ela virou o rosto de forma abrupta, rindo da própria
piada.
— Olha, minha aula só começa dentro de... — Charlie examinou o
relógio. — Cerca de uma hora. Ainda quer fazer umas compras?
— Por que não posso ter amigos normais? — gemeu Jessica.
CAPÍTULO CINCO
— Estamos sempre aprendendo. Inclusive, é de se esperar que pelo
menos alguns de vocês estejam aprendendo aqui mesmo, nessa aula. — Os
alunos da Dr. Treadwell deram uma risada nervosa, mas ela continuou, sem
dar atenção; aparentemente, não havia sido uma piada. — Quando
aprendemos, nossas mentes devem decidir onde armazenaremos essa
informação. Inconscientemente, nós determinamos para qual grupo de
coisas a informação é mais relevante e a conectamos a esse grupo. Essa,
claro, é apenas uma explicação bastante rudimentar. Quando computadores
fazem isso, chamamos de árvore de informação...
Charlie não estava prestando muita atenção ao que era dito; já sabia
daquilo e estava fazendo suas anotações no piloto automático. Desde sua
expedição à Freddy’s no dia anterior, não conseguia tirar a imagem do
corpo de Dave de sua cabeça: seu tronco e o grotesco manto de cicatrizes
que o cobria. Quando estava vivo, havia mostrado as cicatrizes para ela.
Embora não houvesse dito o que acontecera, devia ter sido um
acidente. Ele usava essas roupas o tempo todo. Conseguia enxergá-lo
agora, antes de todos os assassinatos, vestido de coelho amarelo e dançando
alegremente ao lado de um urso amarelo... Balançou a cabeça de súbito,
tentando se livrar da imagem.
— Você tá legal? — sussurrou Arty. Ela assentiu, sem querer
conversa.
Mas o homem morto no campo... aquilo não foi um acidente. Alguém
o colocou lá dentro à força. Mas por quê? Charlie batia com os dedos na
mesa, inquieta.
— Isso é tudo por hoje. — A Dr. Treadwell baixou o giz e deixou o
palco do auditório com passos determinados. Seu assistente de professor,
um rapaz graduado frustrado, lançou-se adiante para recolher o dever de
casa.
— Ei, tem um tempo pra gente repassar umas coisas? — Arty
perguntou à Charlie enquanto guardavam suas coisas. — Estou quase
perdendo a cabeça com essa matéria.
Charlie parou. Havia prometido que compensaria John pelo primeiro
encontro, mas ainda tinha uma hora antes de se encontrar com ele. Agora
que tinha ido à Freddy’s, Charlie quase sentia que estava em território
familiar, ainda que o mesmo estivesse coberto de sangue.
— Tenho um tempinho agora — disse a Arty, que abriu um sorriso.
— Ótimo! Muito obrigado, podemos trabalhar lá na biblioteca?
Charlie assentiu.
— Claro. — Ela o seguiu ao longo do campus, pouco engajada
enquanto ele explicava suas dificuldades com o material.
Encontraram uma mesa e Charlie abriu seu fichário nas páginas que
havia escrito naquele dia, tirando-as para que Arty pudesse dar uma olhada.
— Na verdade, será que eu posso me sentar do seu lado? —
perguntou ele. — Fica mais fácil se nós dois estivermos olhando para a
mesma coisa, né?
— Ah, sim. — Charlie pegou as anotações de volta e ele deu a volta
para se sentar a seu lado, puxando sua cadeira de metal mais para perto da
dela, alguns centímetros mais perto do que ela teria preferido. — Tá, onde
você se perdeu? — perguntou.
— Eu tava te contando no caminho pra cá — disse ele, com uma
ponta de reprovação em sua voz, mas então pigarreou. — Acho que eu só
entendi o início da aula, quando ela estava revisando o material da semana
passada.
Charlie riu.
— Então, basicamente, você quer revisar todo o conteúdo novo de
hoje.
Arty assentiu, encabulado. Charlie começou do princípio, apontando
para as anotações conforme prosseguia. Enquanto passava pelas páginas,
notou os próprios rabiscos nas bordas. Charlie se inclinou levemente,
tentando ver mais de perto os contornos agressivos de retângulos alinhados
à parte inferior da página. Eram todos coloridos por dentro, como placas de
granito. Olhou para eles com uma sensação de déjà vu: eram
importantes. Não me lembro de ter desenhado isso, pensou, inquieta. Mas
então: São só rabiscos. Todo mundo faz rabiscos.
Virou a página para a próxima parte da aula, e sentiu uma estranha
pontada de alerta na nuca, como se alguém a estivesse observando. Havia
ainda mais rabiscos na borda daquela página, e na da página seguinte
também. Eram todos retângulos. Alguns eram grandes, outros eram
pequenos, alguns mais rabiscados e outros delineados com tanta firmeza
que a caneta desgastara o papel e o rasgara naqueles pontos. Todos eram
desenhados na vertical, mais altos do que largos. Charlie os observou,
inclinando a cabeça para ver de ângulos diferentes, até que algo pareceu
sibilar dentro dela.
Sammy, pensou, então, é você? Isso significa algo que eu não
compreendo? Charlie desviou o olhar para Arty — ele também estava
olhando para o papel. Enquanto o observava, ele virou a página outra vez.
As próximas páginas eram exatamente iguais. Estavam preenchidas com
anotações claras e impecáveis, mas com pequenos retângulos encaixados
em cada recanto disponível: espremidos no espaço entre os tópicos,
amontoados nas bordas, e entulhados ao final das linhas, nos espaços onde
não cabiam mais palavras. Arty voltou depressa à página anterior. Olhou
para ela e abriu um sorriso, mas tinha receio no olhar.
— Por que não tenta resolver o primeiro problema aqui? — sugeriu
Charlie.
Arty se inclinou sobre suas folhas de exercícios, e Charlie fitou as
folhas em seu fichário. Seu cérebro ficava retornando à casa do pai, e as
formas que desenhava só deixavam o impulso mais forte.
Preciso voltar lá.
— Você tá bem? — disse Arty, aproximando-se com cautela. Charlie
continuava olhando para as folhas. Agora que notara os retângulos, eles
pareciam mais proeminentes que as próprias anotações; não conseguia
focar em mais nada. Preciso voltar lá.
Charlie fechou o fichário e piscou com força. Ignorou a pergunta de
Arty e enfiou o fichário em sua mochila.
— Tenho que ir — disse ela, levantando-se.
— Mas eu ainda tô preso no primeiro problema — disse Arty.
— Sinto muito, de verdade! — gritou por cima do ombro enquanto
se afastava, às pressas. Esbarrou em duas pessoas enquanto passava pelo
balcão principal, mas estava frustrada demais para pedir desculpas.
Quando chegou à porta, parou, sentindo as entranhas retorcidas. Tem
algo errado. Hesitou por um momento, as mãos suspensas no ar, como se
algo estivesse bloqueando seu caminho. Finalmente segurou a maçaneta, e
sua mão pareceu instantaneamente estar fundida a ela, como se por uma
corrente elétrica. Não conseguia girá-la e também não conseguia soltá-la.
De repente, a maçaneta se mexeu sozinha — alguém estava abrindo a porta
pelo outro lado. Charlie puxou a mão de volta e deu um passo para trás,
quando um garoto com uma enorme mochila nas costas passou por ela.
Voltando ao momento presente, ela deixou a biblioteca antes que porta se
fechasse novamente.
Charlie seguiu em direção à Hurricane, tentando se acalmar enquanto
dirigia. A janela estava bem aberta, o vento entrando com força. Lembrou-
se da aula que Treadwell dera mais cedo naquela semana. A todo instante,
seus sentidos recebem muito mais informação de uma só vez do que podem
processar. Talvez esse fosse o problema de Arty em sala. Charlie fitou as
montanhas adiante, os campos abertos que se estendiam dos dois lados da
estrada. Ficou olhando para eles conforme avançava e sentiu como se sua
inibição tivesse diminuído. Vinha passando tempo demais no quarto ou na
sala de aula, e quase não saía mundo afora. Isso a estava deixando nervosa,
deixando o seu jeito estranho de sempre ainda mais exagerado.
Abriu a janela ainda mais, deixando o ar entrar. No campo à sua
direita, viu alguns pássaros circulando o ar — não. Charlie parou o
carro. Tem algo errado. Ela desceu, sentindo-se ridícula, mas os últimos
dias a haviam deixado de gatilho sensível. Os pássaros eram grandes
demais.
Notou que eram urubus-de-cabeça-vermelha, e alguns deles já
estavam no chão, aproximando-se cuidadosamente do que parecia uma
figura prona. Pode ser qualquer coisa. Ela se inclinou no carro.
Provavelmente só um animal morto. Após outro momento, virou-se de
volta para o carro, frustrada, mas não entrou.
Não é um animal morto.
Trincou os dentes e seguiu para o ponto onde os urubus estavam
circulando. Quando se aproximou o suficiente, os pássaros no chão bateram
as asas diante de sua presença e saíram em disparada. Charlie se ajoelhou.
Era uma mulher. A primeira coisa na qual Charlie bateu os olhos
foram suas roupas. Estavam rasgadas, assim como as do cadáver que Clay
lhe havia mostrado.
Inclinou-se um pouco mais para perto, examinando o pescoço da
mulher como se já soubesse o que iria encontrar. Estava repleto de feridas
feias e profundas, provenientes das travas de mola de um traje
animatrônico. Mas antes que pudesse analisá-las de perto, Charlie parou,
horrorizada.
Ela é igualzinha a mim. O rosto da mulher estava contundido e
arranhado, o que encobria suas feições. Charlie balançou a cabeça. Era
mais fácil imaginar que a semelhança era maior do que realmente era. Mas
seus cabelos eram castanhos, com um corte similar ao de Charlie, e seu
rosto tinha o mesmo formato arredondado, com o mesmo tom de pele. As
feições eram distintas, mas não tanto assim. Charlie se levantou e se
afastou um passo da mulher, subitamente percebendo como estava exposta
naquele campo aberto. Clay. Preciso ligar para o Clay. Olhou para o céu,
desejando uma forma de manter os urubus longe, de proteger o corpo.
— Sinto muito — sussurrou para a mulher morta. — Eu vou voltar.
Charlie seguiu de volta para o carro, primeiro andando, mas então
começou a correr pelo campo cada vez mais rápido, como se houvesse
alguma coisa logo atrás dela. Entrou no carro e bateu a porta, trancando-a o
mais rápido possível.
Profundamente ofegante, Charlie parou para pensar por um segundo.
Estava a cerca de meio caminho de distância da faculdade e de Hurricane,
mas havia um posto de gasolina na estrada, de onde poderia ligar para Clay.
Dando uma última olhada no ponto onde o corpo estava jogado, Charlie
seguiu adiante.
O posto de gasolina parecia estar vazio. Quando chegou, Charlie se
deu conta de nunca havia de fato visto alguém abastecer ali. Será que o
posto funciona? O lugar era velho e surrado, e embora notasse sua presença
quando passava por ali, nunca havia parado para dar uma olhada. As
bombas de gasolina, ainda que antigas, pareciam funcionar, e não havia
uma cobertura em cima delas. Estavam meramente posicionadas sobre
blocos de concreto em meio a um acesso de cascalho, expostas ao clima.
A pequena construção ligada ao posto devia ter sido pintada de
branco algum dia, mas a tinta se desgastara, expondo tábuas cinzentas por
baixo dela. Parecia levemente inclinada, como se estivesse caindo de suas
fundações. Havia uma janela, mas estava imunda, quase do mesmo tom de
cinza que as paredes externas da construção. Charlie hesitou, então foi até a
porta e bateu. Quem atendeu a porta foi um jovem rapaz, com mais ou
menos a mesma idade de Charlie, vestindo uma camiseta da faculdade St.
John e calças jeans.
— Sim? — disse ele, encarando-a com um olhar vazio.
— Vocês estão... abertos?
— Sim. — Estava mascando chiclete e secou as mãos em um pano
encardido. Charlie respirou fundo.
— Eu preciso muito usar o seu telefone. — O garoto abriu a porta e a
deixou entrar. O lugar era mais espaçoso do que ela imaginava. Além do
balcão, havia uma loja de conveniências, embora a maioria das prateleiras
estivesse vazia e a fileira de refrigeradores nos fundos estivesse sem
energia. O rapaz olhava para Charlie, ansioso.
— Posso usar seu telefone? — perguntou ela outra vez.
— O telefone é só para clientes — disse ele.
— Tá. — Charlie olhou de volta para o carro. — Eu abasteço na
saída.
— A bomba tá quebrada; por que não pega algo do congelador? —
disse, apontando com a cabeça para um congelador encardido com um
tampo de vidro de correr, e uma mancha desbotada de tinta vermelha que
um dia deve ter sido um logotipo. — Temos picolés.
— Não quero um... tá, eu levo um picolé — disse Charlie.
— Pode pegar o que quiser.
Charlie se inclinou sobre o congelador.
Olhos pálidos e pastosos a encararam de volta. Abaixo deles, um
focinho peludo e vermelho, com a boca aberta, parecia pronto para atacar.
Charlie deu um grito e se jogou para trás, esbarrando na prateleira
atrás de si. Várias latas acabaram caindo e foram rolando pelo chão. O som
ecoou pelo espaço vazio.
— O que é isso? — berrou Charlie, mas o garoto estava gargalhando
tanto que mal conseguia respirar. Espiando lá dentro outra vez, Charlie
notou que alguém havia colocado um animal empalhado no congelador,
talvez um coiote.
— Essa foi boa! — Ele finalmente conseguiu dizer. Charlie se
reergueu, tremendo de raiva.
— Gostaria de usar o telefone agora — disse ela, fria.
O garoto a dirigiu ao balcão, todo sorrisos, e a entregou um telefone
de disco.
— Mas nada de longa distância — avisou. Charlie lhe virou as costas
e discou o número, caminhando até o congelador enquanto a ligação
chamava. Deu uma olhada por cima do tampo, examinando o canino
empalhado de um ângulo mais alto.
— Clay Burke aqui.
— Clay, é a Charlie. Escuta, preciso que você me encontre. É outro...
— Ela olhou para o jovem atrás do balcão, que a observava com toda a
atenção, sem tentar esconder o fato de que estava ouvindo a conversa. — É
tipo aquela coisa que você me mostrou antes, com as vacas.
— O quê? Charlie, onde você está?
— Estou num posto de gasolina há poucos quilômetros de onde você
está. Parece um banheiro externo com uma pintura mal feita.
— Ei! — O garoto atrás do balcão se ergueu por um momento,
ofendido.
— Certo, sei onde é. Já chego aí. — Ouviu um estalo do outro lado.
— Obrigada pelo telefone — disse Charlie, a contragosto, e saiu sem
esperara uma resposta.
Charlie se agachou novamente junto ao cadáver da mulher. Ficava
olhando para a estrada, ansiosa para ver o carro de Clay, mas ele não
aparecia. Ao menos os urubus não tinham voltado.
Eu podia ficar no carro até ele chegar, pensou. Mas Charlie não saiu
do lugar. Aquela mulher tinha morrido de um jeito terrível e fora
abandonada em um campo. Agora, pelo menos, não precisaria mais ficar
sozinha.
Quanto mais Charlie olhava para ela, mais difícil ficava de ignorar a
semelhança. Charlie tremeu, ainda que o sol quente estivesse batendo em
suas costas. Sentia um pavor gelado, que se arrastava dentro dela.
— Charlie?
Charlie deu um giro, deparando-se com Clay Burke, e então
suspirou, balançando a cabeça.
— Desculpa, cheguei o mais rápido que pude — disse ele, a voz
suave.
Ela sorriu.
— Tudo bem. Só estou um pouco tensa hoje. Acho que é a terceira
vez que dou um pulo quando alguém fala o meu nome.
Clay não estava ouvindo. Seu olhar estava voltado para o corpo.
Ajoelhou-se cuidadosamente ao lado dele, escrutinando-o. Charlie quase
conseguia vê-lo preenchendo cada lacuna. Prendeu o fôlego, a fim de não
perturbá-lo.
— Você tocou o corpo? — perguntou ele, incisivo, sem tirar os olhos
do cadáver.
— Sim — admitiu. — Queria ver se ela tinha as mesmas feridas que
o homem.
— E tinha?
— Sim. Eu acho... não, tenho certeza de que foi morta da mesma
maneira.
Clay assentiu. Charlie o observou enquanto se levantava e dava a
volta na mulher, abaixando-se novamente para examinar mais de perto a
cabeça, e depois os pés. Finalmente, voltou a atenção para Charlie outra
vez.
— Como a encontrou? — perguntou.
— Eu vi pássaros... urubus... circulando o campo. Vim dar uma
olhada.
— E por que quis dar uma olhada? — Seu olhar era rígido, e Charlie
sentiu uma pontada de medo. Clay certamente não suspeitava dela.
Por que não suspeitaria?, pensou. Quem mais sabe operar as travas
de mola? Aposto que ele poderia criar um milhão de teorias a meu
respeito. Garota perturbada vinga a morte do pai. Atua com base no
psicodrama. Hoje, no Globo Repórter. Respirou fundo, fitando os olhos de
Clay.
— Por causa do corpo que você me mostrou. Ele estava num
campo... Achei que pudesse ser outro. — Manteve a voz o mais estável que
pôde. Clay assentiu, o rosto carrancudo dando lugar a uma expressão de
preocupação.
— Charlie, essa garota se parece com você — disse ele, sem rodeios.
— Nem tanto assim.
— Vocês poderiam até ser gêmeas — disse Clay.
— Não — disse Charlie, mais áspera do que pretendia. — Não se
parece nem um pouco com o meu gêmeo. — Clay a fitou com um olhar
confuso, mas então pareceu compreender.
— Sinto muito. Você tinha um gêmeo, não é? Seu irmão.
— Mal me lembro dele — disse ela, suavemente, e então engoliu em
seco. Ele é tudo do que consigo me lembrar. — Sei que ela se parece
comigo — acrescentou, a voz fraca.
— Estamos logo ao lado de uma cidade universitária — disse Clay.
— Ela é uma moça jovem de cabelos castanhos... Digo, você não tem nada
de muito especial, Charlie. Sem ofensa.
— Acha que é uma coincidência?
Clay não olhou para ela.
— Nós encontramos outro corpo hoje pela manhã — disse.
— Outra garota?
— Na verdade, sim. Estava morta já há algum tempo, provavelmente
assassinada duas noites atrás. — Charlie o encarou, alarmada.
— Quer dizer que isso vai continuar acontecendo?
— A menos que você ache que possamos impedir — disse ele.
Charlie assentiu.
— Eu posso ajudar — disse. Olhou para o rosto da mulher
novamente. Ela não se parece comigo. — Me deixa entrar na casa dela —
acrescentou de forma abrupta, tomada por um súbito impulso de provar
seus pensamentos, reunir evidências de que ela e a vítima não eram iguais.
— O quê? Na casa dela? — disse Clay, fitando-a com um olhar
suspeito.
— Você pediu a minha ajuda — disse Charlie. — Me deixe ajudar.
Clay não respondeu — ao invés disso, revistou os bolsos da mulher,
um a um, em busca de sua carteira. Teve que mover o corpo para fazê-lo, e
ela foi se sacudindo um pouco durante o processo, como uma marionete
sinistra. Charlie aguardou, até que ele voltou com a carteira dela. Entregou
a carteira de motorista à Charlie.
— Tracy Horton — leu. — Ela não tem cara de Tracy.
— Pegou o endereço? — Clay examinou a estrada, para ver se havia
alguma viatura da polícia por perto. Charlie deu uma lida rápida e devolveu
a carteira de motorista. — Vou te dar vinte minutos antes de informar o que
aconteceu pelo rádio — disse ele. — Aproveite-os.
Tracy Horton morava em uma casinha aos fundos de uma rua
secundária. As casas dos vizinhos mais próximos eram visíveis, mas
Charlie não imaginava que eles poderiam ouvi-la gritar. Havia um pequeno
carro azul de frente para a garagem, mas se Tracy havia sido levada de
casa, — já que ela era fácil presumir que não estava simplesmente vagando
por aquele campo, — aquele provavelmente era o carro dela.
Charlie encostou atrás do carro e se dirigiu à porta da frente. Bateu,
imaginando o que faria se alguém a atendesse. Devia ter pensado melhor a
respeito. Não poderia ser ela quem informaria a um pai, marido ou irmão
sobre a morte de uma jovem mulher. Por que imaginei que ela morava
sozinha?
Ninguém atendeu. Charlie tentou novamente, e quando ainda assim
não houve resposta, tentou abrir a porta. Estava destrancada.
Charlie foi andando pela casa, em silêncio, sem saber ao certo o que
estava procurando. Olhou para o relógio — dez de seus vinte minutos já
tinham passado enquanto dirigia até lá, e tinha que imaginar que a polícia
chegaria mais rápido que ela. Por que fui seguir o limite de velocidade no
caminho pra cá? A sala e a cozinha estavam limpas, mas não lhe
forneceram nenhuma informação. Charlie não sabia o que paredes cor-de-
pêssego diziam sobre uma pessoa, nem o fato de que havia apenas três
cadeiras na mesa de jantar, ao invés de quatro. Havia dois quartos. Um
tinha o ar estéril de um quarto de hóspedes que aos poucos estava se
tornando um depósito; a cama estava arrumada e havia toalhas limpas
dobradas na cômoda, mas diversas caixas de papelão preenchiam um
quarto do cômodo.
O outro quarto parecia habitado. As paredes eram verdes, a colcha
azul clara, e havia pilhas de roupas jogadas no chão. Charlie ficou parada
na porta por um momento, e se deu conta de que não conseguiria
entrar. Nem sei o que estou procurando. A vida daquela mulher seria
peneirada até o último grão por investigadores treinados. Seu diário seria
lido, se tivesse um — seus segredos seriam revelados, se tivesse algum.
Charlie não precisava fazer parte disso. Virou as costas para o quarto e
seguiu depressa, mas em silêncio, de volta para a entrada da casa, quase
correndo para descer as escadas da frente. Parada junto ao carro, checou o
relógio outra vez. Seis minutos para que Clay chamasse a força.
Charlie foi até o pequeno carro azul e deu uma espiada lá dentro.
Como a casa, estava impecável. Havia roupas lavadas a seco penduradas na
janela de trás, e um refrigerante pela metade no suporte de copos. Deu a
volta nele, procurando alguma coisa — lama nos pneus, arranhões na
pintura, mas não havia nada de incomum. Cinco minutos.
Passou rapidamente pela grama desalinhada que rodeava as laterais
da casa, seguindo para os fundos. Quando chegou ao quintal, parou de
súbito. Diante dela, havia três grandes buracos no chão, mais altos que
largos. Pareciam covas, mas olhando novamente, notou que eram tortuosos,
os contornos traçados sem o menor esmero.
Charlie deu uma volta ao redor deles. Estavam alinhados, um ao lado
do outro, e eram rasos, mas a terra no fundo parecia solta. Charlie pegou
um galho no chão e cutucou o buraco do meio: desceu cerca de trinta
centímetros antes de ser detido por solo mais denso. A terra que havia sido
cavada dos buracos estava espalhada por todos os lados; quem quer que os
tivesse cavado apenas a jogara negligentemente para cá e para lá, sem se
dar ao trabalho de empilhá-la.
Dois minutos.
Charlie hesitou por mais um momento, e então entrou no buraco do
meio. Seu pé afundou na terra solta e ela teve que lutar para se restabilizar,
recuperando o equilíbrio. Não era tão profundo. As paredes batiam na
altura de sua cintura. Ajoelhou-se e pôs a mão na parede da
cova — do buraco, lembrou a si mesma. A terra ali também estava solta, e
a parede era dura.
Alguma coisa havia se escondido ali, embaixo do chão. O ar está
ficando mais fino. Estou ficando sem oxigênio, e vou morrer assim,
sozinha, no escuro. Charlie sentiu o peito apertar; era como se não
conseguisse respirar. Saiu do buraco, escalando de volta à grama do quintal
de Tracy Horton. Charlie respirou fundo, focando toda a atenção na
tentativa de se livrar daquela sensação de pânico. Quando sentiu que estava
livre, checou o relógio outra vez.
Menos um minuto. Ele já os chamou. Mas algo parecia mantê-la ali,
algo familiar. A terra solta. O cérebro de Charlie foi à mil. Alguma coisa
saiu de dentro desses buracos.
Ao longe, uma sirene começou a soar; chegaria ali dentro de
instantes. Charlie correu até o carro e deixou o local, virando a primeira
esquina que encontrou, sem se importar com para onde estava indo. A
imagem dos buracos permaneceu em sua mente, feito uma mancha em sua
superfície.
CAPÍTULO SEIS
Charlie desacelerou o carro. Com metade dos policiais de Hurricane
cobrindo a área, aquela não era a hora de ser detida por excesso de
velocidade. Estava encardida com a terra do quintal da mulher morta, e
tinha a incómoda sensação de que estava se esquecendo de alguma coisa.
John, lembrou. Devia se encontrar com ele — checou o relógio no
painel — quase duas horas atrás. Seu coração apertou. Ele vai achar que eu
dei um bolo nele. Não, vai achar que estou morta, corrigiu. Dado o
histórico periculoso de seu relacionamento, ele provavelmente acharia que
a segundo opção era mais provável.
Quando chegou ao local que haviam planejado se encontrar, um
pequeno restaurante italiano do outro lado da cidade, Charlie saiu correndo
do estacionamento à toda a velocidade. Derrapou até parar diante da
anfitriã adolescente, que a recebeu com um olhar frustrado.
— Posso ajudar? — perguntou à Charlie, dando um passo para trás.
Charlie deu uma olhada em si mesma através do espelho atrás do
balcão da anfitriã. Seu rosto e suas roupas estavam cheios de manchas de
terra; não havia pensado em se limpar primeiro. Rapidamente esfregou as
bochechas com as mãos, antes de responder a garota.
— Eu ia me encontrar com alguém. Um cara alto, de cabelos
castanhos. Tem tipo... — Fez um gesto bastante vago sobre sua cabeça,
tentando indicar o caos habitual que era o cabelo de John, mas a anfitriã
continuou apenas a fita-la, inexpressiva. Charlie mordeu o lábio,
frustrada. Ele deve ter ido embora. É claro que foi. Você está duas horas
atrasada.
— Charlie? — disse uma voz. John.
— Você ainda tá aqui? — gritou ela, alto demais para o restaurante
silencioso, e ele apareceu por detrás da anfitriã, parecendo profundamente
aliviado.
— Já que estava aqui, resolvi que podia aproveitar para comer. —
Ele engoliu o que estava em sua boca e deu uma risada. — Você tá legal?
Achei que... talvez você não viesse.
— Estou bem. Onde está sentado? Quer dizer, ainda está sentado?
Bom, digo, é óbvio que não está sentado, você tá de pé. Mas antes de ter se
levantado, onde estava sentado? — Charlie passou a mão pelos cabelos e
apertou os dedos junto ao couro cabeludo, tentando reorganizar os
pensamentos. Murmurou um pedido de desculpas para a sala, sem saber ao
certo de com quem estava se desculpando.
John olhou ao redor, nervoso, e então indicou uma mesa perto da
cozinha. Havia nela um prato quase vazio, com um gressino pela metade,
além de uma xícara de café e um segundo prato, intocado.
Sentaram-se e ele a observou com um olhar avaliativo. Então, John
se inclinou sobre a mesa, perguntando com a voz baixa:
— Charlie, o que aconteceu?
— Você não acreditaria se eu te contasse — disse ela, a voz fraca.
Seu rosto permaneceu apreensivo.
— Você tá imunda. Por acaso caiu no estacionamento?
— Sim — disse Charlie. — Caí no estacionamento e rolei colina a
baixo até parar num lixão, aí caí do lixão e tropecei no caminho pra cá.
Feliz? Para de olhar pra mim desse jeito.
— Que jeito?
— Como se tivesse o direito de me reprimir. — John recuou em sua
cadeira, os olhos escancarados. Ficou ali, piscando para ela, e Charlie
suspirou.
— John, me desculpa. Vou te contar tudo. Só preciso de um tempo;
um tempo para reunir os pensamentos e me limpar. — Ela riu, um som
exausto e abatido, então enterrou o rosto nas mãos.
John se inclinou para trás, sinalizando para que a garçonete trouxesse
a conta. Com a respiração pesada, Charlie deu uma olhada ao redor do
restaurante. Estava quase vazio. A anfitriã e a garçonete estavam
conversando alguma coisa junto à porta, sem nenhum interesse aparente em
nada que seus clientes estivessem fazendo. Havia uma família de quatro
pessoas junto à janela da frente, as crianças recém-saídas das fraudas. Uma
ficava escorregando da cadeira e indo para o chão toda vez que a mãe
desviava a atenção. A outra, uma menina, desenhava alegremente na toalha
de mesa com um marcador. Ninguém parecia ligar para o que estava
acontecendo. Mas o vazio do lugar fazia com que Charlie se sentisse
exposta.
— Vou me limpar — disse ela. — Banheiro? — John apontou para o
local.
Charlie se levantou e deixou a mesa no momento em que a garçonete
chegou com a conta de John. Havia um telefone público no corredor, e
Charlie parou junto a ele, hesitante. Esticou o pescoço para ver se John
estava olhando, mas do lugar onde estava, tudo o que conseguia enxergar
era um cantinho da mesa. Depressa, ela ligou para o escritório de Clay
Burke.
Para a sua surpresa, ele atendeu.
— Você viu o quintal dela — disse ele. Não era uma pergunta.
— Pode me dar os outros endereços? — perguntou Charlie. — Pode
haver um padrão... alguma coisa.
— Certamente pode — disse ele, seco. — Foi por isso que voltei à
delegacia ao invés de ficar para examinar os buracos. Tem uma caneta?
— Espera. — A anfitriã havia deixado seu posto por um instante, e
Charlie aproveitou a oportunidade para largar o telefone, que deixou
pendurado pelo cabo de metal, e correr até o palanque, onde pegou uma
caneta e um panfleto com o cardápio do restaurante. Tratou de voltar
correndo ao telefone. — Clay? Pode falar. — Ele recitou os nomes e
endereços, e ela os escreveu zelosamente nas bordas do cardápio. —
Obrigada — disse, assim que terminou, e desligou o telefone sem esperar
que ele respondesse. Dobrou o cardápio e o guardou no bolso de trás.
No banheiro, Charlie passou água nas manchas de terra, lavando-se
da melhor forma que conseguia. Não dava para limpar as roupas, mas pelo
menos o rosto estava esfregado e os cabelos reordenados de uma forma um
pouco mais apresentável.
Quando estava para sair do banheiro, uma imagem subitamente
tomou conta de seus pensamentos. Era o rosto da mulher morta.
Vocês poderiam até ser gêmeas, ouviu Clay dizer, com sua voz baixa
e autoritária.
Charlie balançou a cabeça. É só uma coincidência. Ele está certo.
Quantas mulheres de cabelos castanhos e com idade universitária existem
por aqui? A primeira vítima foi um homem. Não quer dizer nada. Segurou
a maçaneta, pronta para sair, mas congelou. Foi como na biblioteca. Charlie
soltou a maçaneta, que girou devagar, de volta à posição original, fazendo
um terrível estalido no processo.
As fantasias se mexiam, e o estalido fora tão baixo e cuidadoso que
ela mal o havia escutado. Charlie ergueu o olhar, parando com sua
brincadeira: havia uma figura junto à porta.
Charlie olhou ao redor de forma desordenada, tentando voltar ao
presente. Com um pânico crescente, Charlie puxou a porta do banheiro,
mas, de alguma forma, ela havia se trancado.
Eu sei que está aí. Estou tentando chegar até você.
— Eu tenho que entrar! — berrou. A porta abriu com tudo, e Charlie
caiu nos braços de John.
— Charlie!
Ela caiu de joelhos. Ergueu o olhar, vendo aquele punhado de
clientes todos olhando para ela. John fitou o banheiro atrás dela, e então
logo voltou sua atenção de volta para Charlie, ajudando-a a se levantar.
— Estou bem, estou bem. — Ela se soltou de suas mãos. — Estou
bem. A porta estava travada. Me sentindo muito quente lá dentro. —
Charlie abanou o rosto, tentando transformar a cena em uma história
sensata. — Vem, vamos para o carro. — Ele tentou segurá-la pelo braço
outra vez, mas ela se soltou. — Estou bem!
Charlie tirou as chaves do bolso e seguiu direto para a porta, sem
esperar por ele. Uma senhora mais velha a encarava abertamente, o garfo
suspenso no ar. Charlie a encarou de volta.
— Intoxicação alimentar — disse, sem rodeios. O rosto da mulher
empalideceu, e Charlie passou pela porta.
Quando chegaram ao carro dela, John se sentou no banco do
passageiro e olhou para Charlie, na expectativa de entender o que estava
acontecendo.
— Tem certeza que você está bem?
— Foi um dia difícil, só isso. Eu tô legal.
— O que houve?
Conte o que aconteceu, pensou Charlie.
— Quero ir à casa do meu... à minha velha casa — concluiu, para sua
própria surpresa. Seja honesta, dizia sua voz interior, ríspida. Você sabe
que tipo de criatura está fazendo isso, e sabe quem a construiu. Mantenha
o foco.
— Certo — disse ele, suavizando a voz. — Você não chegou a vê-la
depois da tempestade. — Ela assentiu. Ele acha que eu quero ver os
danos. Tinha se esquecido da tempestade até então, mas a súbita doçura na
voz de John a deixou nervosa. Será que ainda tem alguma coisa lá?
Imaginou a casa demolida em meio ao chão, e sentiu uma sensação
estranha, como se uma parte de si houvesse sido arrancada. Nunca pensara
na casa como nada além de uma casa, mas agora, enquanto dirigia rumo ao
que restava dela, sentiu um doloroso nó no estômago. Era onde ficavam
todas as memórias mais claras que tinha de seu pai: suas mãos grossas
construindo seus brinquedos, mostrando a ela suas novas criações em sua
oficina, e abraçando-a firme quando ficava com medo. Eles moravam ali,
juntos, só os dois, e aquele fora o lugar onde ele finalmente morrera.
Charlie sentia que a alegria, o pesar, o amor e a angústia de toda a vida dos
dois preenchessem as próprias fundações da casa. A ideia de que ela
pudesse ter sido destruída por uma tempestade era uma terrível violação.
Balançou a cabeça e agarrou o volante com mais força, subitamente
ciente de como estava com raiva. Seu amor pela casa, até mesmo por seu
pai, nunca seria algo simples. Ambos a haviam traído. Mas agora havia um
novo monstro lá fora. Trincou o maxilar, tentando lutar contras as lágrimas
que se formavam em seus olhos. Pai, o que você fez?
Assim que saíram do centro da cidade, Charlie acelerou. Clay estaria
ocupado por um tempo, tendo que lidar com a vítima mais recente, mas
eventualmente também acabaria pensando em visitar a casa de seu pai. Só
esperava conseguir conectar os pontos antes. Vocês estão do mesmo
lado. Charlie pôs a mão na cabeça e massageou as têmporas. O impulso de
proteger a reputação de seu pai do que vinha pela frente era visceral, mas
também não fazia sentido.
A pouco mais de um quilômetro de distância da casa, passaram por
um estaleiro de obras. Era muito afastado da estrada para que Charlie
enxergasse do que se tratava, mas parecia abandonado no momento.
— Eu fiz um trabalhinho ali quando vim pra cá — disse John. — Um
projeto de demolição enorme. — Deu uma risada. — Tem umas coisas bem
estranhas por aqui; não dá pra saber só de olhar. — Examinou o campo por
um momento.
— Pois é — disse Charlie, sem saber se havia mais algo que podia
dizer. Ainda estava tentando se acalmar.
Finalmente, chegaram à estrada de acesso à sua garagem. Encostou o
carro com os olhos no cascalho, a casa apenas um uma mancha negra em
sua visão periférica. Da última vez que estivera ali, Charlie havia entrado e
saído correndo, sem parar para olhar para nada. Tudo o que queria era
Theodore, então apenas o pegou e foi embora. Agora se arrependia de sua
pressa, desejando uma última imagem mental. Você não está aqui para
dizer adeus. Desligou o carro, tomou forças e ergueu o olhar.
A casa era cercada por árvores, e pelo menos três delas haviam
despencado no telhado. Uma delas caíra diretamente sobre a área dianteira,
esmagando as paredes com seu peso. Charlie conseguia ver a sala de estar
por entre as vigas quebradas e o gesso estilhaçado — tudo o que havia do
outro lado eram destroços.
A porta da frente estava intacta, embora os degraus que levavam até
ela estivessem lascados e quebradiços. Pareciam que iam ceder assim que
pisassem neles. Charlie saiu do carro e seguiu até lá.
— O que está fazendo? — A voz de John parecia alarmada. Charlie o
ignorou. Ouviu a porta do lado dele se fechando e ele a segurou pelo braço,
puxando-a para trás.
— O que foi? — disparou ela.
— Charlie, olha pra esse lugar. Essa casa vai desmoronar a qualquer
momento.
— Não vai desmoronar — disse ela, direta, mas ergueu o olhar outra
vez. A casa parecia estar inclinada para o lado, embora pudesse ser apenas
uma ilusão de ótica; a fundação em si não podia ter ido a baixo. — Saio de
lá antes de morrer, prometo — disse, a voz mais gentil, e ele assentiu.
— Vá devagar — disse ele.
Subiram os degraus cuidadosamente até a varanda, mantendo-se
próximos às laterais, mas a madeira estava mais sólida do que aparentava.
Podiam ter dado três passos para a direita e entrado pela parede aberta, mas
Charlie pegou sua chave e destrancou a porta, enquanto John esperava
pacientemente, deixando que ela prosseguisse com o ritual desnecessário.
Lá dentro, ela parou no pé da escada para o segundo andar. Os
buracos no teto abriam caminho para os finos feixes da luz do sol, já fraca
devido ao sol que se punha. Charlie desviou o olhar dos buracos e fitou o
topo das escadas — seu quarto.
Como fizera com os degraus do lado de fora, ela se manteve na
lateral da escada, segurando-se no corrimão. O dano causado pela água era
visível por toda parte. Havia manchas pretas e áreas laceadas na madeira.
Charlie ergueu a mão para tocar um ponto onde a tinta havia formado
bolhas na parede, deixando uma bolsa de ar.
De repente, ouviu um barulho de madeira quebrando atrás de si e se
virou. John estava agarrado ao corrimão, lutando para se segurar enquanto
a escada cedia embaixo dele. Charlie foi até ele, mas John conseguiu se
equilibrar, ainda que sem muita firmeza. Com um chiado, ele trincou os
dentes.
— Meu pé tá preso — disse, fazendo um gesto com a cabeça. Charlie
viu que seu pé tinha atravessado a madeira por completo, e agora as pontas
dentadas estavam cravando em seu tornozelo.
— Tá, calma aí — disse Charlie. Agachou-se até conseguir alcançá-
lo no degrau de baixo, embora o ângulo estranho deixasse mais difícil que
ela mantivesse o equilíbrio. A madeira só estava podre em alguns pontos,
enquanto que em outros continuava intacta. Segurou as partes menores,
puxando-as com cuidado para afastá-las do pé de John, as mãos ficando
vermelhas por conta da superfície áspera e cheia de farpas.
— Acho que agora eu consigo — disse John, enfim, flexionando o
tornozelo.
Ela ergueu o olhar, dentre um sorriso.
— E você achando que eu ia acabar me matando.
John abriu um breve sorriso.
— Que tal nós dois sairmos dessa vivos?
— Certo.
Subiram o resto dos degraus muito mais devagar, ambos testando se
aguentavam o peso antes de dar o próximo passo.
— Cuidado — advertiu John, quando Charlie chegou ao topo.
— Não vamos ficar aqui por muito tempo — disse Charlie. Estava
muito mais ciente do perigo agora. A instabilidade da casa ficava mais
óbvia a cada passo que davam; a própria fundação parecia oscilar de um
lado para o outro conforme iam se mexendo.
Seu velho quarto ficava na parte da casa que ainda estava intacta —
ou do lado que pelo menos não tinha sido atingido pelas árvores. Charlie
parou junto à porta, e John se aproximou atrás dela. Havia vidro espalhado
pelo chão. Alguma coisa havia quebrado a janela, e o vidro quebrado fora
atirado por todo o quarto.
Ela respirou fundo, e foi então que viu Stanley. O unicórnio
animatrônico que costumava dar a volta no quarto sobre seus trilhos. Ele
agora estava caído de lado. Charlie foi até ele e se sentou, pondo sua
cabeça no colo e acariciando sua bochecha enferrujada. Ele parecia ter sido
arrancado violentamente de seus trilhos. As pernas estavam torcidas e
faltavam pedaços de seus cascos. Quando deu uma olhada no quarto,
encontrou as partes que faltavam, ainda presas aos encaixes no chão.
— O Stanley já teve dias melhores — disse John, com um sorriso
cheio de pesar.
— Sim — disse Charlie, distante, enquanto colocava a cabeça do
brinquedo de volta no chão. — John, pode girar aquele timão? — Charlie
apontou para a manivela soldada junto ao pé de sua cama. Ele concordou,
cruzando o cômodo de uma forma angustiosamente lenta. Charlie conteve a
impaciência. Ele girou a manivela e ela esperou que a menor das portas de
armário se abrisse, mas nada aconteceu. John olhou para Charlie, na
expectativa.
Charlie se levantou e foi até a parede onde ficavam os três armários,
fechados e aparentemente intocados pelas intempéries do tempo. Mesmo a
tinta continuava brilhante e imaculada. Charlie hesitou, como se pudesse
estar perturbando algo que não pertencia mais a ela, mas então forçou a
porta menor até abri-la.
Lá estava Ella, a boneca que era do mesmo tamanho de Charlie
quando era mais nova. Assim como Stanley, costumava se mover em um
trilho, e ainda parecia estar presa a ele. Estava perfeitamente intacta. Seu
vestido estava limpo, e a bandeja que carregava diante de si permanecia
firme em suas mãos imóveis. Seus olhos grandes estiveram fitando a
escuridão desde a última vez que Charlie a vira.
— Oi, Ella — disse Charlie, a voz suave. — Acho que você não
pode me dizer pelo que eu tô procurando, né? — Deu uma rápida
examinada na boneca e esfregou seu vestido. — Só quer ficar aqui dentro
de agora em diante, é? — Charlie observou a pequena armação ao redor da
porta. — Não te culpo.
Fechou a porta do armário outra vez, sem dizer adeus.
— Então — disse, voltando-se para John outra vez. Ele parecia
perdido em pensamento, fitando alguma coisa em suas mãos. — O que é
isso? — perguntou Charlie.
— Uma foto sua, de quando ainda era do tamanho dela. — John
sorriu, apontando para a porta de Ella, e depois entregou a foto para
Charlie.
Parecia uma fotografia de escola. Uma menina baixinha e gorducha
abria um sorriso cheio de dentes para a câmera — um dos dentes estava
faltando. Charlie sorriu de volta para ela.
— Não me lembro disso.
— Vou te falar, é um pouco assustador, aquela boneca ali parada
dentro do armário — disse John. — Me dá uns calafrios, tenho que admitir.
— Só esperando por uma festa do chá — disse Charlie, a voz
amarga. — Que sinistro. — Começou a sair do quarto, mas quando tocou
na armação da porta com a mão, parou. Portas. Deu um passo de volta para
o quarto, e olhou por um longo momento para cada uma das portas
retangulares dos armários. — John — sussurrou.
— O quê? — John ergueu o olhar, tentando seguir os olhos de
Charlie.
— Portas — sussurrou Charlie. Deu vários passou para trás,
estudando toda a parede de uma só vez. Os rabiscos espalhados por todas
as suas anotações tinham a forma de dezenas, centenas de retângulos. Ela
os desenhava sem pensar, como se estivessem atravessando sua mente,
tentando escapar de seu subconsciente. Haviam conseguido. — São portas
— repetiu.
— Sim. São, eu tô vendo. — John inclinou a cabeça, curioso. —
Você está bem?
— Sim, estou bem. Quer dizer, não tenho certeza. — Correu os olhos
pela parede dos armários novamente. Portas. Mas não essas portas.
— Vem, vamos dar uma olhada na oficina — disse John. — Talvez a
gente encontre alguma coisa lá.
— Certo. — Charlie abriu um sorriso aflito. Deu uma última olhada
para os três armários silenciosos.
John assentiu e os três desceram de volta pelas escadas com todo o
cuidado, testando cada passo antes de prosseguir. Do lado de fora, pararam
junto ao carro. A oficina ficava invisível de onde haviam estacionado,
escondida atrás da casa. O quintal costumava ser cercado de árvores,
um pequeno bosque que servia como cerca.
— Não vá para o bosque, Charlie — disse ela, abrindo um sorriso
para John. — Era o que ele sempre me dizia, como algo tirado de um conto
de fadas. — Avançaram um pouco mais, esmagando alguns gravetos
conforme caminhavam. — Mas o bosque tinha apenas três metros de
comprimento — disse, ainda fitando as árvores, como se algo pudesse sair
de lá a qualquer momento. Quando era criança, aquelas árvores lhe
pareciam impenetráveis, um bosque no qual poderia se perder para sempre,
caso ousasse vagar por ali. Ficou observando o que ainda restava delas, até
que parou quando viu onde algumas das árvores derrubadas haviam caído.
A oficina de seu pai havia sido esmagada. Um tronco enorme
atingira o teto na oficina bem no meio, e outros menores haviam caído
junto a ele em todos os lados. A parede mais próxima da casa ainda estava
de pé, mas estava inclinada sob o teto caído.
Quando se mudaram para lá, aquela costumava ser uma garagem,
mas então se tornou o mundo de seu pai: um lugar de luz e sombras que
cheirava a metal quente e plástico queimado. Charlie observou a madeira
apodrecida e o vidro quebrado com toda a atenção, procurando algo que
poderia passar despercebido.
— A gente definitivamente não vai entrar aí — disse John.
Mas Charlie já estava erguendo um pedaço de placa de metal que
costumava pertencer ao telhado. Ela o atirou violentamente para o lado, e
ele caiu no chão dentre um terrível ruído. Tenso, John manteve a distância
enquanto Charlie ia arremessando coisas para cá e para lá.
— O que você... o que estamos procurando?
Charlie arrancou um brinquedo do meio dos escombros e o jogou no
chão atrás de si, indiferente, continuando a erguer as placas de metal e
jogá-las para o lado.
— Charlie — murmurou John, recolhendo o brinquedo delicado e
segurando-o no colo como um bebê. — Ele deve ter feito isso pra você.
Charlie o ignorou.
— Tem que ter mais alguma coisa aqui. — Foi avançando com
dificuldade pela oficina, tombando uma viga de madeira que estava em seu
caminho. Sua mão escorregou na madeira, e notou que estava molhada; seu
braço estava sangrando. Esfregou a mão nas calças. Com o canto do olho,
viu John colocar o brinquedo no chão com todo o cuidado e começar a
segui-la.
Por mais incrível que pudesse parecer, ainda havia prateleiras e
mesas inteiras, com ferramentas e retalhos de tecido onde seu pai os havia
deixado. Charlie os ficou observando por um momento, então passou o
braço por cima da mesa mais próxima, jogando tudo no chão. Não parou
para ver o que havia caído, indo diretamente para as prateleiras. Começou a
recolher as coisas da prateleira mais próxima, uma de cada vez,
inspecionando-as para então jogá-las no chão. Quando a prateleira estava
vazia, pegou a própria tábua com ambas as mãos, puxando-a
violentamente, na tentativa de arrancá-la da parede. Quando não se soltou,
começou a martelá-la com os punhos.
— Para! — John correu até ela e agarrou suas mãos, prendendo-as
junto ao corpo.
— Tem que te alguma coisa aqui! — berrou ela. — Era pra eu
vir pra cá, mas não sei o que eu devia encontrar.
— Do que você tá falando? Tem muita coisa aqui. Olha pra tudo
isso! — Ele ergueu o brinquedo de volta para ela.
— Não se trata da tempestade, John. Não se trata de memórias
felizes, ou de dar um desfecho a tudo isso, ou seja lá o que você acha que
eu precise. Trata-se dos monstros. Eles estão lá fora, e estão matando
pessoas. E você e eu sabemos que só há um lugar de onde eles podem ter
vindo: este.
— Você não pode afirmar isso — disse John. Charlie o encarou com
uma fúria pétrea, impedindo-o de continuar.
— Estou cercada de monstros, e assassinatos, e morte, e espíritos. —
Diante da última palavra, sua fúria se atenuou, e ela virou as costas para
John, vasculhando a oficina. Não sabia dizer agora quais danos haviam sido
causados pela tempestade e quais eram culpa dela. — Só o que tenho
conseguido pensar é no Sammy. Consigo senti-lo. Agora mesmo, posso
senti-lo neste lugar, mas ele está... entrecortado. Isso nem sequer faz
sentido. Ele morreu antes do meu pai e eu nos mudarmos para cá. Mas eu
sei que estou aqui por um motivo. Há algo que eu preciso encontrar. Está
tudo conectado, mas eu não sei como. Talvez tenha algo a ver com as
portas... não sei dizer.
— Ei, tá tudo bem. Vamos encontrar juntos. — John foi até ela. A
força de Charlie pareceu se esvair de seu corpo e ela permitiu que John se
aproximasse, pressionando o rosto contra sua camisa. — Sei que é difícil
ver tudo destruído desse jeito — disse ele. A raiva de Charlie havia sido
drenada, dando lugar à exaustão. Repousou a cabeça no ombro de John,
desejando que pudesse ficar daquele jeito só mais um pouco.
— Charlie — disse John, a voz alarmada, e Charlie recobrou a
atenção. Ele estava olhando por cima de seu ombro, na direção da casa.
Toda a parte traseira da casa estava aberta, como se alguém houvesse
derrubado a parede com uma marreta gigantesca; dentro, havia apenas
escuridão.
— Isso é logo abaixo do seu quarto, não é? Podíamos ter caído pelo
chão — disse John.
— Devia ser a sala de estar — disse Charlie, esfregando a manga no
rosto.
— Devia, só que não é. — John olhou para ela, na expectativa.
— Isso não faz nem parte da casa — disse ela. Uma súbita fagulha
de esperança reviveu dentro dela. Havia algo diferente. Isso significava que
havia algo a ser encontrado.
Charlie se aproximou das ruínas, e John não tentou impedi-la
enquanto ia subindo por entre várias placas de concreto quebrado. John
permaneceu um passo atrás, perto o suficiente para segurá-la caso
escorregasse. Charlie se virou para ele antes de entrar.
— Obrigada — disse.
John assentiu.
— Nunca vi esse cômodo antes — sussurrou Charlie, adentrando o
espaço vazio. As paredes eram feitas de concreto escuro, e a sala pequena,
sem nenhuma janela, era como uma caixa comprimida no meio da casa,
selada dos outros cômodos. Não havia decorações, e nada que indicasse o
que havia guardado ali. Apenas um chão de terra e três buracos grandes,
profundos e retangulares, como covas.
— Esses buracos não parecem ter sido feitos pela tempestade —
disse John.
— Não foram. — Charlie se aproximou da borda do buraco mais
próximo, olhando dentro do mesmo.
— Era isso... o que esperava encontrar?
Aqueles buracos eram mais fundos do que os que havia encontrado
na casa de Tracy Horton. Talvez fosse por conta do ambiente sombrio, mas
aqueles pareciam covas de verdade. Eram cerca de trinta centímetros mais
fundos que os encontrados antes e estavam parcialmente preenchidos com
terra solta.
John estava parado pacientemente ao lado dela, esperando por uma
resposta.
— Eu já os vi antes — admitiu. — Atrás da casa da mulher morta.
— Do que você está falando?
Charlie suspirou.
— Teve outro corpo. Eu a encontrei hoje, no meio de um campo.
Liguei para o Clay, e então fui para a casa dela enquanto ele esperava que
os outros policiais aparecessem. Havia buracos como esses no quintal dela.
— Era isso que você não queria me contar? Outro corpo? — John
parecia magoado, mas sua expressão de tristeza durou apenas alguns
segundos, antes de desaparecer. Voltou a examinar o cômodo, os olhos
atentos às paredes e ao chão.
Isso, e o fato de que ela parecia comigo, pensou Charlie.
— E o que você acha que são os buracos? — perguntou ele, enfim.
Charlie mal o havia escutado. Seu olhar estava vidrado na parede de
concreto vazia do outro lado da sala. Não tinha nada lá — a parede fora
coberta de cal e deixada para escurecer com a poeira e o mofo. Mas algo a
atraía para ela. Deixando John sozinho com as covas abertas, Charlie foi
andando até ela, devagar, atraída por uma súbita sensação de familiaridade.
Era como se acabasse de se lembrar de uma palavra que estivera na ponta
da língua há dias.
Hesitou, mantendo as mãos erguidas, paradas a menos de três
centímetros da parede, sem saber o que a estava contendo. Juntou forças e
pôs as palmas das mãos na parede. Estava fria. Sentiu um leve choque de
surpresa, como se esperasse sentir calor vindo do outro lado. John estava
falando alguma coisa, mas para ela não passavam de murmúrios distantes.
Virou a cabeça e posicionou o ouvido delicadamente sobre a superfície,
fechando os olhos. Movimento?
— Ei! — A voz de John quebrou seu foco, despertando-a como se
tivesse estado em transe. — Olha aqui!
Ela se virou. John estava inclinado sobre o monte de terra junto a
mais distante das covas. Charlie começou a seguir em sua direção, mas ele
levantou uma mão para detê-la.
— Não, vem pelo outro lado.
Deu a volta cuidadosamente pelo perímetro da sala até chegar do seu
lado. A princípio, não conseguiu entender o que estava tentando lhe
mostrar. Havia algo quase visível, velado por uma fina camada de terra,
misturado ao chão como se estivesse deliberadamente camuflado.
Mas ela eventualmente conseguiu enxergar — o metal enferrujado e
o brilho de um olho de plástico, voltado para o vazio. Olhou para John, que
olhou de volta para ela. Aquele agora era o território dela. Charlie cutucou
a cabeça da coisa, praticamente enterrada, com a ponta do tênis, mas então
puxou o pé de volta. A coisa não se mexeu.
— Que diabos é isso? — perguntou John, olhando ao redor do
cômodo. — E por que está aqui?
— Nunca vi isso antes — disse Charlie. Ajoelhou-se, a curiosidade
sobrepujando seu medo, e então usou as mãos para escavar um pouco da
terra, liberando mais uma parte do rosto da criatura. Atrás dela, John
inspirou fundo, sobressaltado. Charlie apenas ficou olhando. A criatura não
tinha pelos, e o rosto era liso. Tinha um focinho curto e orelhas ovais
pendiam das laterais da cabeça. Tinha a aparência geral da cabeça de um
animal, embora fosse muito maior que os animais animatrônicos da
Freddy’s. Charlie não sabia dizer qual animal devia representar. Ao longo
do meio de seu rosto, havia uma divisória reta, com cabos expostos e uma
série de estruturas metálicas. Havia um material de plástico grosso preso ao
rosto, feito grandes remendos. Talvez, em algum momento, estivera
embalado nesse material.
— Consegue reconhecê-lo? — perguntou John, a voz baixa.
Charlie balançou a cabeça.
— Não — conseguiu dizer, após um momento. — Tem algo errado
com ele. — Tirou um pouco mais de terra e notou que ela se soltava com
facilidade. A coisa havia sido apenas parcialmente enterrada no chão; isso,
ou quase conseguira escapar. Começou a cavar em meio à terra, tentando
tirá-lo do que restava da cova.
— Só pode estar de brincadeira. — John suspirou e então se ajoelhou
para ajudá-la, encaixando as mãos onde quer que conseguisse. Num esforço
concentrado, puxaram a coisa para cima, conseguindo tirar da terra a maior
parte do tronco. Deixaram-no cair e então sentaram no chão para examiná-
lo, prendendo o fôlego enquanto o faziam.
Assim como o rosto, o corpo era mais liso que os dos animatrônicos
com os quais Charlie estava acostumada. Não tinha pelo, rabo, nem
quaisquer outras extremidades animais. Era grande demais para que um ser
humano vestisse, devia medir cerca de dois metros e meio de pé. Ainda
assim, Charlie não conseguia deixar de sentir que reconhecia aquela
criatura. Foxy.
Havia algo doentio na criatura, uma sensação estranha que a
arrastava a seus instintos mais básicos e primitivos e urrava: Isso está
errado. Charlie fechou os olhos por um momento. Sentia algo estranho na
pele, como se alguma coisa estivesse rastejando por ela. É só um boneco
gigante. Inspirou e respirou fundo, deliberadamente, e abriu os olhos,
aproximando-se um pouco mais para examinar a coisa de perto.
Quando sua mão tocou a criatura, uma onda de náusea a atingiu, mas
durou apenas uma fração de segundo. Prosseguiu. Virou a cabeça para o
lado, embora suas articulações resistissem. O lado esquerdo da cabeça
havia sido esmagado. Charlie podia ver que o interior estava danificado,
metade dos cabos partidos. Logo ao lado do olho, do lado que antes estava
completamente enterrado, faltava uma parte do revestimento. Conseguia
enxergar uma massa de plástico conectada a um emaranhado de cabos que
iam e vinham. Algo havia derretido uma das placas de circuito. Descendo
devagar pelo corpo, Charlie examinou as articulações: um braço parecia
bom, mas no outro, tanto a articulação do ombro quanto a do cotovelo
estavam retorcidas, deformadas. Charlie ergueu o olhar para John, que a
observava com uma expressão preocupada.
— Algo familiar?
— Não o reconheço. Não é algo que meu pai já tenha me mostrado
— disse Charlie.
— Talvez seja melhor enterrarmos ele outra vez e dar o fora daqui.
Sinto que isso foi um erro.
— Mas lá dentro... — Charlie o ignorou. — Os mecanismos, as
articulações... é uma tecnologia mais antiga. Será que ele os criou antes?
Não sei dizer.
— Como sabe?
— Reconheço algumas coisas aqui do trabalho do meu pai. —
Franziu o cenho e apontou para a cabeça da criatura. — Mas muita coisa
me é estranha. Alguém mais deve ter tido o dedo nisso. Não tenho certeza
se foi o meu pai quem fez ou não, mas sinto que foi ele que o enterrou.
— Não dá pra acreditar que tenha sido projetado para ir ao palco. É
medonho. — John estava claramente nervoso, e agora colocava a mão no
braço de Charlie. — Vamos sair daqui. Esse lugar me dá calafrios.
— Me dá calafrios — disse Charlie, a voz suave. — Quem diz isso?
Vou tentar desenterrar o resto do corpo dele. Só quero ver... — Ela se
soltou do toque de John, abaixando-se novamente para cavar junto ao corpo
da criatura.
— Charlie! — berrou John e, no mesmo instante, um terrível estalo
metálico ecoou pelo ambiente.
Os braços do animatrônico se ergueram e seu peito se abriu como um
portão de ferro. Suas peças de metal abriram caminho para revelar uma
grande fissura negra, com diversas pontas afiadas e travas de mola
parcamente visíveis. Era uma armadilha esperando para ser acionada. Ao
mesmo tempo, de forma desnorteante, ainda outra coisa se transformou na
criatura: sua pele artificial se tornou luminescente, e seus movimentos
ficaram fluidos e firmes. Subitamente, o revestimento pareceu estar coberto
por pele e pelos, embora estivessem difusos, tremeluzindo, como um truque
de luz.
Charlie deu um pulo para trás, mas era tarde demais: a coisa já a
havia agarrado e agora a erguia em meio ao ar. Estava puxando-a em sua
direção. Ela bateu no braço torto e danificado, mas o outro braço a forçava
com firmeza mais para perto da cavidade torácica da criatura. John
cambaleou por um momento, inclinando-se para frente com uma mão na
boca, como se tivesse sido tomado por uma onda de náusea.
Charlie lutava para se soltar, mas sua força não se comparava à da
criatura. Pelo canto do olho, viu John se lançando contra a fera. Ele a
agarrou na cabeça, puxando-a, tentando forçá-la para o lado. Embaixo de
Charlie, o animatrônico começou a sofrer espasmos, um movimento
descontrolado e balbuciante. Perdendo a força, a criatura acabou por soltá-
la, sacudindo os braços desenfreadamente. Charlie tentou retomar o
equilíbrio, mas suas pernas escorregaram na terra. A criatura a agarrou
outra vez, e seus dedos gelados a foram levando cada vez mais para perto.
Charlie fincou os pés no chão, tentando pegar impulso, mas estava
sendo puxada por uma força sem igual. De repente, estava cara a cara com
a fera, seus ombros já dentro de sua cavidade torácica. A coisa a pressionou
ainda mais para perto, mas então, de súbito, deu um solavanco e a soltou.
Ela rolou para longe e pôde ouvir o som de travas de mola sendo acionadas.
A criatura convulsionou no chão diante dela, sem mais a cabeça. Charlie
desviou o olhar para John — estava segurando a cabeça da coisa em suas
mãos, os olhos esbugalhados por conta do choque. Ele a soltou e chutou
para o outro lado da sala.
— Você está bem? — John correu até ela, aos tropeços. Charlie
assentiu, olhando para a cabeça quebrada do animatrônico. Ainda parecia
vivo. Seus pelos estavam eriçados e a pele se mexia, como se houvesse
músculos e tendões por baixo.
— O que diabos acabou de acontecer aqui?
John ergueu ambas as mãos, dando de ombros.
Charlie pegou a grande cabeça com cuidado, virando-a de cabeça
para baixo, e espiou pela abertura da base, no ponto onde John a havia
arrancado do pescoço.
— Ugh. — John se curvou, pondo as mãos nos joelhos. Seu rosto
estava pálido. Abafou o som da ânsia de vômito.
Charlie foi até ele, surpresa.
— Qual é o problema? Você já viu coisa pior.
— Não, não é isso. Não sei o que houve. — Ajeitou-se, apenas para
tombar contra a parede, tentando se segurar. — É como se tivesse um
cheiro horrível no ar, só que sem o cheiro.
Charlie pôs a mão junto ao ouvido, prestando atenção. Havia um leve
ruído no ar, tão agudo e silencioso que era quase imperceptível.
— Acho que tem alguma coisa... ligada — disse ela. Pôs a cabeça de
volta no chão. John também levou uma mão ao ouvido, tentando escutar,
mas quando ela se voltou para ele, balançou a cabeça.
— Não ouço nada.
Charlie voltou ao corpo da criatura e analisou sua enorme cavidade
torácica.
— Tudo bem aí? — perguntou ela, indiferente, sem tirar os olhos do
robô.
— Sim, me sinto um pouco melhor. — John se reergueu e Charlie
virou o olhar para ele. Seu rosto estava retorcido e o braço apertava o
estômago. — Acho que está passando — disse, mas então se arqueou,
quase não conseguindo dizer a última sílaba.
— Essa coisa. — Charlie trincou os dentes e começou a se sacudir de
um lado para o outro, tentando arrancar alguma coisa da cavidade torácica.
— Charlie, se afasta disso! — John deu um passo em sua direção,
mas cambaleou de volta para trás, como se estivesse amarrado à parede. —
Tem algo muito errado com essa coisa.
— Agora sim, isso eu já vi antes — disse Charlie, finalmente
conseguindo tirar o objeto lá de dentro. Era um disco liso,
aproximadamente do tamanho de uma moeda. Ela o aproximou do ouvido.
— Nossa, que som agudo. Mal dá pra escutar. É isso que tá fazendo você
se sentir mal.
Charlie enfiou a unha em uma pequena ranhura na lateral do objeto e
apertou um botãozinho minúsculo. John respirou fundo várias vezes, e
então voltou a se reerguer, devagar, testando seus limites. Olhou para
Charlie.
— Parou — disse ela.
— Charlie — murmurou John, apontando com a cabeça para a fera
caída no chão. Charlie olhou para ela e sentiu uma onda de choque lhe
tomar o corpo. A ilusão de pelo e pele havia desaparecido. Não passava de
um robô quebrado com feições inacabadas.
John pegou a cabeça outra vez, virando o rosto da criatura para eles.
— Essa coisa, ela fez alguma coisa — disse John, indicando com a
cabeça o dispositivo nas mãos de Charlie. — Liga outra vez. — Ele ergueu
a cabeça da criatura um pouco mais alto e encarou seus olhos redondos e
inertes.
Tem certeza que é uma boa ideia?, estava prestes a perguntar, mas a
curiosidade falou mais alto. John podia aguentar mais um pouco de náusea.
Enfiou a unha de volta na ranhura e apertou o botãozinho. Diante de seus
olhos, o rosto quebrado e desgastado se tornou fluido e liso, assumindo
uma aparência mais realista. John soltou a cabeça e deu um pulo para trás.
— Está vivo!
— Não, não está — murmurou Charlie, apertando o botão
novamente. Deixou o estranho dispositivo na palma da mão, fitando-o,
fascinada. — Quero saber mais sobre isso. Temos que voltar ao dormitório.
— Ela se levantou. — Já vi algo desse tipo. Quando voltei para buscar o
Theodore, peguei algumas coisas e coloquei numa caixa para estudar
depois. Tenho certeza de que vi algo assim lá.
Por um longo momento, John não disse nada. Charlie sentiu uma
onda de vergonha. Ele estava olhando para ela da mesma forma que
Jessica, da mesma forma que olhara quando viu seu experimento. De
repente, o pequeno disco na mão de Charlie parecia a coisa mais importante
do mundo. Ela fechou a mão ao seu redor.
— Muito bem, então — disse John, sem rodeios. — Vamos. — Seu
tom era calmo e pegou Charlie de surpresa. John estava sendo
deliberadamente agradável. Não sabia exatamente o porquê, mas era
reconfortante mesmo assim.
— Certo. — Charlie sorriu.
CAPÍTULO SETE
Quando voltaram à faculdade, Charlie seguiu direto para o
dormitório.
— Ei, devagar! — John mal conseguia acompanhá-la.
— Está com o disco?
— Claro. — Ele deu uma batidinha no bolso.
— Tenho certeza que eu vi algo assim antes — disse ela. — Vou te
mostrar. — Olhou para John enquanto o deixava entrar no quarto que
dividia com Jessica, mas seu rosto permaneceu impassível. Ele já havia
visto a bagunça. Mas John não olhou na direção da mesa de Charlie, com
os rostos cobertos.
— Pode tirar as coisas da cadeira — disse Charlie, empurrando uma
pilha de livros para fora do caminho. Arrastou-se por debaixo da cama e
emergiu um momento depois com uma grande caixa de papelão. John
estava ao lado da cadeira, perplexo. — Eu disse que pode tirar as coisas —
repetiu.
— Certo. — Havia uma pilha de livros no assento e um monte de
camisetas penduradas nas costas da cadeira. Charlie pegou as camisetas e
as jogou na cama. Colocou a caixa sobre a cama e se sentou de pernas
cruzadas atrás dela, para que John também pudesse olhar.
— E o que é tudo isso? — Ele se inclinou por cima da caixa
enquanto Charlie a vasculhava, tirando as peças que estavam lá dentro, uma
de cada vez, e posicionando-as na cama em uma linha reta.
— Coisas da casa do meu pai: peças mecânicas e eletrônicas. Coisas
de animatrônicos, do trabalho dele. — Desviou o olhar para ele, nervosa.
— Sei que eu disse que só voltei para pegar o Theodore, e é verdade. Mas
posso ter pego mais umas coisinhas enquanto estava saindo. Eu queria
aprender, e essas aulas... John, você sabe que algumas das tecnologias com
as quais o meu pai trabalhava eram ultrapassadas. São praticamente
ridículas agora. Mas ele compensava isso com suas criações; pensava em
coisas únicas, coisas que ninguém ainda tinha pensado. Eu queria tudo isso.
Queria entender. Por isso, voltei e peguei o que pude.
— Você revirou a casa atrás de peças, eu entendi. — John deu uma
risada enquanto pegava a pata arrancada de Theodore, refletindo a respeito
de tudo aquilo. — Até o seu brinquedo preferido? Não acha isso um
pouco... cruel?
— Cruel? — Charlie pegou uma peça na caixa, uma articulação de
metal, e a pesou com a mão. — Eu peguei o Theodore porque queria
entendê-lo, John. Essa não é a atitude mais amorosa de todas?
— Talvez eu deva reconsiderar todo esse lance de encontros — disse
John, os olhos arregalados.
— Ele era importante pra mim porque meu pai fez ele pra mim, não
porque tinha sido montado para que parecesse um coelho. — Descartou a
articulação, deixando-a na cama, logo a seu lado. Voltou a atenção para a
caixa novamente, pegando as peças uma a uma e enfileirando-as. Tinha
certeza de que reconheceria o que precisava quando visse.
Charlie olhava para cabos e circuitos, articulações de metal e
revestimentos de plástico, examinando cada peça com todo o cuidado. Algo
gritaria para ela, como havia feito a fera animatrônica, com aquela terrível
sensação de que havia algo errado. Mas após um tempo, seu pescoço
cansou de ficar arqueado sobre a caixa. Sua visão já estava começando a
ficar embaçada. Descartou uma peça de metal que estava segurando,
atirando-a na pilha cada vez maior que se formava em sua cama. Diante do
estalido metálico, John ergueu o olhar para ela.
— Onde é que você dorme? — perguntou ele, indicando não só a
pilha crescente de peças mecânicas e eletrônicas, mas também as roupas, os
livros, e outros montes menores de peças semelhantes.
Charlie deu de ombros.
— Sempre tem um espaço pra mim — disse ela, a voz tranquila. —
Nem que seja pequeno.
— Tá, mas e quando você se casar? — O rosto de John corou antes
que sequer terminasse a frase. Charlie desviou o olhar para ele, uma das
sobrancelhas levemente erguida. — Algum dia — disse John, depressa. —
Com alguém. Outra pessoa. — Seu rosto assumiu uma expressão mais
soturna. Charlie sentiu a sobrancelha se erguer ainda mais, como se por
conta própria. — Tá, o que estamos procurando mesmo? — John franziu o
cenho e levou a cadeira mais para perto da cama, espiando dentro da caixa.
— Isso. — Avistando um leve brilho em meio à pilha, Charlie enfiou
a mão e pegou um pequeno disco, colocando-o cuidadosamente na palma
da mão. Ela o ergueu para que John pudesse ver. Era exatamente igual ao
disco metálico que encontraram no corpo do animatrônico, mas um dos
lados havia sido danificado, revelando uma curiosa estrutura de metal do
lado de dentro. Vários cabos se projetavam dela, conectados a um painel
negro não muito maior que o próprio disco.
— Engraçado — disse Charlie, rindo consigo mesma.
— O quê?
— Da última vez que vi isso, estava mais interessada no painel. —
Abriu um sorriso. — É uma ferramenta de diagnóstico bem comum.
Alguém devia estar testando o disco.
— Ou tentando descobrir o que ele é — acrescentou John. — Essa
coisa não se parece com mais nada de dentro da caixa; igual a como aquele
monstro que encontramos não se parecia com nada que o seu pai já fez.
Digo, ele meio que lembrava o Foxy, mas não o que o seu pai fez. Era
como uma versão distorcida do Foxy.
Ela tirou uma articulação mais pesada da caixa.
— Isso também não devia estar aqui.
— Por quê, o que há de errado?
— Era para ser um cotovelo, mas olha. — Ela flexionou a articulação
para um lado, até o final, então a flexionou de volta, dando uma volta
completa. Depois, desviou o olhar para John, esperando que dissesse
alguma coisa.
Seu olhar estava vazio.
— Quê que tem?
— Meu pai não usaria algo assim. Ele sempre colocava travas, para
que as articulações não fizessem coisas que seres humanos não podem
fazer.
— Será que não está inacabada?
— Está completa. Mas não é só isso... é a forma como o metal foi
cortado, a forma como foi montado. É como... Você escreve, né? Então,
você lê o trabalho de outras pessoas? — Ele assentiu. — E se eu arrancasse
várias páginas de alguns livros e te entregasse uma pilha de folhas, pedindo
pra você separar só as que foram escritas pelo seu autor preferido, você não
conseguiria fazê-lo, baseado apenas no estilo dele?
— Sim, claro. Quer dizer, eu poderia errar uma coisa ou outra, mas
sim.
— Bom, esse é o mesmo caso. — Ela ergueu a peça pesada outra
vez, para mostrar o que queria dizer. — Meu pai não escreveu isso.
— Tá, mas o que isso significa? — perguntou John. Desconectou o
disco quebrado do painel de diagnóstico e tirou o segundo disco, o do
monstro, de dentro do bolso. Foi mexendo nele com cuidado, até que
finalmente conseguiu desencaixar um lado do outro. Franzindo o rosto,
concentrado, ligou os cabos do painel no novo disco. Quando terminou,
hesitou. — Não quero acionar esses interruptores — disse. — Não sei se o
meu estômago aguenta.
— É, não mexe em nada ainda. Depois do que aconteceu na casa,
não é bom presumir que sabemos o que tudo isso faz. — Charlie pôs a
caixa no chão e começou a revirar a peças outra vez, observando os
padrões, tentando notar alguma coisa nelas. — Tem que ter alguma coisa
aqui que eu não reparei.
— Charlie — disse John. — Desculpe interromper sua conversa
consigo mesma, mas olha. — Passou para ela o disco quebrado que havia
acabado de desconectar. — Olha atrás.
A parte traseira já havia sido lisa, mas fora bastante arranhada desde
sua concepção. Charlie olhou para ela por um minuto, até que finalmente
viu: havia algo escrito junto a uma das bordas. Teve que colocar a peça de
plástico bem próximo ao rosto para distinguir as letras. Eram minúsculas,
escritas em letra corrida, com um estilo bastante antiquado. Estava
escrito: Afton Robotics, Ltda. Charlie soltou o disco imediatamente.
— Afton? William Afton? Esse é o antigo parceiro do meu pai. É o...
— É o nome verdadeiro do Dave — concluiu John. Charlie ficou
sentada em silêncio por um momento, sentindo como se algo muito grande
e pesado tivesse sido enfiado em sua cabeça.
— Pensei que ele fosse só um parceiro de negócios da Freddy’s —
disse ela, devagar.
— Acho que ele fez um pouco mais que isso.
— Mas ele está morto. Não é como se pudéssemos perguntar alguma
coisa pra ele. Temos que entender o que está acontecendo agora. — Pegou
a caixa de papelão e guardou as outras peças, as que haviam sido feitas por
seu pai, empurrando-a então para debaixo da cama outra vez. John saiu do
caminho enquanto ela se movimentava pelo espaço apertado.
— E como você acha que podemos fazer isso? — perguntou ele. —
O que está acontecendo agora? Já foram encontrados dois corpos até
agora, ambos mortos por alguma coisa tipo a que acabamos de encontrar.
— Três corpos — disse Charlie, levemente corada. John cobriu o
rosto com as mãos por um momento e respirou fundo.
— Tá, três. Tem certeza que não são quatro?
— Eu não vi o terceiro. O Clay acabou de me contar a respeito, logo
depois que ela foi encontrada. Estava morta já há algum tempo, acho que
foi a primeira.
— E por que eles? Esses robôs decidiram sair numa onda de
matança? Por que fariam isso? Charlie, tem mais alguma coisa sobre isso
que você não tá me contando? — Charlie mordeu o lábio, hesitante. — É
sério. Estou nessa com você, mas se eu não souber o que está acontecendo,
não posso te ajudar.
Charlie assentiu.
— Não sei se significa alguma coisa. O Clay disse que é só uma
coincidência. Mas a mulher que eu encontrei no campo... John, ela se
parecia comigo.
A expressão em seu rosto se obscureceu.
— Como assim, se parecia com você?
— Não exatamente comigo. Cabelo castanho, quase da mesma
altura. Sei lá, se você me descrevesse para alguém e pedisse que essa
pessoa me procurasse no meio de uma plateia, a pessoa poderia acabar
trazendo ela. Teve uma hora, quando olhei para ela, que foi horrível, como
se estivesse olhando para mim mesma.
— O Clay disse que não quer dizer nada?
— Ele disse que é uma cidade universitária; tem várias garotas de
cabelos castanhos por aqui. Uma das outras duas vítimas era um homem,
então...
— Então provavelmente foi uma coincidência — sugeriu John.
— É — disse Charlie. — Acho que foi só... desconcertante.
— Deve ter alguma outra coisa que ligue esses casos. Outra pessoa,
um trabalho, talvez um local. — John olhou pela janela. Charlie viu que ele
estava sorrindo, e a expressão de John foi ficando mais lúcida, como se de
repente estivesse mais seguro de si.
— Você está gostando disso — disse ela.
— Não. — Deu de ombros. — Eu não diria dessa forma. Não quero
mais corpos. Mas... é um mistério, e uma desculpa para passar mais tempo
com você. — Abriu um sorriso, mas logo ficou com o rosto sério outra vez.
— Mas e quanto aos corpos? Onde foram encontrados?
— Bem... — Charlie tirou o cabelo do rosto, um pouco distraída. —
Foram todos encontrados em campos, quilômetros de distância de um para
o outro. O primeiro, que acabaram de encontrar, estava lá do outro lado de
Hurricane, e a garota que encontrei hoje foi deixada perto da estrada na
divisa daqui com Hurricane.
— Em que ponto da estrada? Quão longe daqui?
— Mais ou menos na metade do caminho... — De repente, seus
olhos se arregalaram. — Esqueça os campos. Ou não esqueça. Eles não são
a questão, ou pelo menos não são toda a questão. Os buracos atrás da casa
da mulher. Eles os pegam de suas casas. Esses são os pontos de partida; é
por onde devemos começar também. — Ela seguiu para a porta, e John foi
atrás.
— Espera, o quê? Aonde vamos?
— Meu carro. Quero dar uma olhada num mapa.
Quando chegaram ao carro, Charlie tirou uma pilha de papéis do
porta-luvas e começou a folheá-la, até que tirou um mapa ali do meio e o
entregou a John.
— Me dá uma caneta. — Charlie ergueu a mão, e John tirou duas do
bolso da frente, entregando-lhe uma. Charlie abriu o mapa no capô do carro
e os dois se inclinaram sobre ele. — A casa da mulher era aqui — disse ela,
circulando o local. — O Clay me deu os endereços dos outros. — Tirou o
cardápio agora um tanto encardido do bolso e o entregou para John. —
Procura esse aqui — disse, mantendo a voz baixa.
Embora ambos conhecessem bem a área, traçar as ruas das casas das
vítimas levava mais tempo do que Charlie esperava.
— Encontrei — anunciou John.
— A Rua Oak, número 1158, fica bem... aqui. — Charlie circulou o
local e deu um passo para trás.
— O que é isso? — disse John, apontando para algo rabiscado mais a
baixo. Charlie ergueu a borda do mapa e seu coração pulou uma batida. Era
outro daqueles desenhos de retângulos. Não se lembrava de tê-lo feito. É
uma porta. Mas que porta? Ficou olhando para ela. Não tinha maçaneta ou
trinco, nada que indicasse como poderia fazer para entrar. Ou onde
ficava. Do que adianta saber o que estou procurando se não sei por que,
nem como encontrar?
— Só um rabisco — disse ela, com firmeza, tentando redirecionar
sua atenção. — Vai, se concentra.
— Certo — disse John. Ao menos o padrão ficou instantaneamente
claro; as casas formavam uma linha torta que saía de Hurricane e ia em
direção a St. George, e parara na metade do caminho.
— Ficam todas a mais ou menos a mesma distância uma da outra —
disse Charlie, um temor crescente se formando em seu peito. John assentia,
como se compreendesse. — O que isso significa? — perguntou ela, a voz
cheia de urgência.
— Estão seguindo em uma direção específica, percorrendo
aproximadamente a mesma distância todas as vezes. — Fez uma pausa. —
E matando.
— Quem tá matando quem? — disse uma voz atrás deles.
Charlie arfou e deu uma volta, o coração palpitando. Jessica estava
atrás dela, carregando uma pilha de livros junto ao peito. Estava com os
olhos vidrados, e um grande sorriso cheio de animação lhe cruzou o rosto.
— Certo, claro. — Jessica assentiu para John com uma seriedade
falsa e desviou o olhar para Charlie. — E aí, Charlie, pra quê o mapa? —
perguntou, gesticulando para ele de forma exagerada. — Oh, tem alguma
coisa a ver com a Freddy’s? — disse, a voz cheia de entusiasmo. John se
voltou para Charlie com suspeita no olhar. — Você contou pra ele? —
Jessica olhou para John, e John olhou de volta para Charlie, ansioso para
ouvir o restante.
— Jessica, agora provavelmente não é a melhor hora — disse
Charlie, a voz fraca.
— Nós passamos na Freddy’s ontem — disse Jessica, num tom
apressado, embora não houvesse mais ninguém por perto.
— Ah, é mesmo? Engraçado, a Charlie não mencionou. Isso foi antes
ou depois de irem às compras? — John cruzou os braços.
— Eu ia te contar — murmurou Charlie.
— Charlie, às vezes eu acho que você tá tentando se matar. — John
pôs a mão no rosto.
— Tá, e pra quê o mapa? — repetiu Jessica. — O que estamos
procurando?
— Monstros — disse Charlie. — Novos... animatrônicos. Estão
matando pessoas, aparentemente de forma aleatória — continuou, não
completamente convencida do que estava dizendo.
Jessica ficou com uma expressão solene no rosto, mas os olhos ainda
tinham uma fagulha de anseio enquanto dava a volta no carro para jogar os
livros no banco de trás.
— Como? De onde eles vieram? Da Freddy’s?
— Não, não são da Freddy’s. Achamos que eles vieram da casa do
meu pai. Mas não eram dele, Jessica. Ele não os construiu. Achamos que
foi o Dave... o Afton... seja lá qual for seu nome. — As palavras vieram
todas de uma vez só, uma atropelando a outra, de forma disparatada, e John
interveio, na tentativa de explicar melhor.
— O que ela quer dizer é...
— Não, eu entendi. — Jessica o cortou. — Não tem que falar comigo
como se eu fosse leiga. Eu também estava na Freddy’s no ano passado,
lembra? Vi umas coisas bem malucas. Mas e aí, o que vamos fazer? —
Desviou o olhar para Charlie, o rosto reluzindo com a expressão de quem
estava pronta para o jogo. Parecia muito mais recomposta do que a própria
Charlie.
— Ainda não sabemos ao certo o que nada disso significa — disse
John. — Estamos meio que investigando.
— Por que você não me contou? — perguntou Jessica. Hesitante,
Charlie a fitou por um momento.
— Só não queria que fosse como da última vez — disse. — Não há
porque colocar todo mundo em risco.
— É, só eu. — John deu um sorrisinho.
— Posso entender — disse Jessica. — Mas depois do que aconteceu
da última vez, quer dizer... Estamos nessa juntos.
John se recostou no carro, olhando ao redor para ver se não havia
ninguém que pudesse estar escutando.
— Então... — Jessica deu a volta por ela para dar uma olhada no
mapa. — O que estamos fazendo?
Charlie se inclinou mais para perto voltou o olhar para a legenda de
escalas do mapa.
— Tem cerca de cinco quilômetros entre cada local. — Estudou o
mapa novamente por um instante, e então desenhou outro círculo. — Essa é
a minha casa... a casa do meu pai. — Olhou para John. — O que quer que
esteja por aí matando pessoas veio de lá. Deve ter saído... — Sua voz
falhou.
— Quando a tempestade quebrou a parede — murmurou John.
— O quê? — perguntou Jessica.
— Uma parte da casa estava selada até que veio a tempestade e abriu
caminho para lá.
Com riscos firmes, Charlie desenhou uma linha reta saindo da casa
de seu pai, passando pelas três casas das vítimas, e continuou traçando a
linha pelo mapa.
— Isso não pode estar certo — disse Jessica, quando viu onde a linha
finalmente terminava. John espiou por cima do ombro de Charlie.
— Não é a faculdade de vocês? — perguntou.
— Sim, é o nosso dormitório. — A voz de Jessica já não estava mais
animada. — Isso não faz sentido.
Charlie não conseguia tirar os olhos do papel. Sentia como se tivesse
desenhado o trajeto para a própria morte.
— Não era uma coincidência — disse.
— Do que está falando?
— Não entende? — Deu uma risada fraca que não conseguiu conter.
— Sou eu. Estão vindo atrás de mim. Sou eu que eles estão procurando!
— O quê? Quem são eles? — Jessica olhou para John.
— Tinham três... covas vazias na casa do pai dela. Então, deve haver
três deles em algum lugar por aí.
— Eles se movem à noite — disse Charlie. — Quer dizer, não
podem sair andando por aí de dia. Então procuram um lugar para se
enterrar até o anoitecer.
— Ainda que você esteja certa e eles realmente estejam atrás de
você, — disse John, inclinando-se para tentar olhá-la nos olhos, — agora já
sabemos que estão vindo. E levando isso em consideração, podemos ao
menos estimar para onde devem ir a seguir.
— Aonde quer chegar com isso? Do que importa? — Charlie podia
ouvir a própria voz entrecortada.
— Importa porque essas coisas estão por aí, nesse exato momento,
enterradas no quintal de alguém. E quando o sol se pôr, vão matar outra
vez, da forma mais terrível possível. — Charlie não disse nada, a cabeça
abaixada. — Olha. — John esticou o mapa e o pôs no colo de Charlie, para
que ela se obrigasse a ver. — Em algum lugar por aqui. — Apontou para a
próxima área circulada da linha. — Podemos detê-los se os encontrarmos
primeiro — disse John, a voz cheia de urgência.
— Certo — Charlie respirou fundo. — Mas não temos muito tempo.
John pegou o mapa e todos entraram no carro.
— Só me diga aonde ir — disse Charlie, a voz apreensiva.
John analisou o mapa.
— Então é para cá que precisamos ir? — confirmou, apontando para
o quinto círculo, e Charlie assentiu. Ele virou o mapa e piscou. — Vire à
esquerda quando sair do estacionamento e depois pegue a primeira direita.
Conheço esse lugar. Já passei por lá enquanto dirigia. É um complexo de
apartamentos. Está bem acabadinho, pelo que me lembre.
Jessica se apoiou nos bancos da frente, enfiando a cabeça entre eles.
— Esses círculos não me parecem muito precisos; poderia ser em
qualquer lugar dessa área.
— Sim, mas imagino que será no lugar com três covas recém-
cavadas no quintal — disse John.
Charlie os fitou por um segundo, um de cada vez, antes de fixar o
olhar na estrada novamente. Quanto mais fossem, mais seguro seria. No
ano anterior, quando ficaram presos juntos na Freddy’s, havia sido Jessica
quem os colocara para dentro do restaurante. Ela era corajosa, mesmo
quando não queria ser, e isso significava mais que qualquer noção de
romance que John estava nutrindo.
— Charlie, vira à direita! — exclamou John. Ela puxou o volante,
conseguindo fazer a curva por pouco. Foco. Assassinato iminente primeiro,
todo o resto depois.
Havia um gigantesco campo aberto adiante, com terrenos
demarcados e preparados para construção e projetos futuros que nunca
chegaram a ser concluídos. Alguns sequer haviam começado. Placas de
concreto estavam empilhadas aqui e ali, quase completamente obscurecidas
devido a infiltrações. Alguns terrenos mais adiante, vigas de aço haviam
sido içadas para fazer fundações que nunca foram preenchidas. O lugar se
deteriorara antes mesmo que estivesse completo.
No terreno mais distante, havia um aglomerado do que pareciam ser
complexos de apartamentos finalizados. Entretanto, a grama e as ervas
daninhas cresciam desenfreadamente ao seu redor, subindo pelas próprias
paredes — pareciam anos de crescimento. Era difícil dizer se havia alguém
morando ali. Anos atrás, a cidade estivera se preparando diligentemente
para uma explosão populacional que nunca chegou a acontecer.
— Tem mesmo gente que mora por aqui? — disse Jessica, olhando
pela janela.
— Deve ter. Tem carros estacionados. — John ergueu o nariz. — Ou
pelo menos eu acho que são carros. Mas não sei onde temos que procurar.
— Acho que é só darmos uma volta com o carro. — Charlie
desacelerou enquanto cruzavam a rua que levava aos prédios.
— Talvez não — disse John. — Aposto que deve estar em algum
lugar nos limites do projeto. A maioria das pessoas provavelmente
chamaria a polícia se visse monstros de quase três metros cavando buracos
no quintal de alguém. Tem muita visibilidade aqui.
— É claro — disse Charlie, a voz cheia de horror. — Estão
enterrados, fora de vista, estrategicamente posicionados para que não sejam
encontrados. — Olhou para John, cheia de expectativa, mas ele só olhou de
volta para ela. — Eles são inteligentes — explicou. — Acho que eu teria
preferido se só estivessem vagando pelas ruas, sem propósito. Pelo menos
alguém poderia chamar a guarda nacional ou coisa do tipo. — Charlie
mantinha os olhos no campo.
Foram dirigindo devagar ao redor das áreas mais afastadas do
projeto, observando os quintais de cada uma das casas. Alguns dos prédios
pareciam abandonados, as janelas vedadas com tábuas ou completamente
arrancadas, expondo o apartamento às intempéries do tempo. A tempestade
causara seu dano, mas pouco havia sido feito para repará-lo. Uma árvore
caíra em meio a uma rua sem saída, bloqueando completamente o acesso a
um dos prédios. Mas não parecia haver ninguém para tentar entrar ou sair;
a árvore apodreceu no mesmo lugar onde havia caído. Havia lixo espalhado
pelas ruas abandonadas, acumulado nos bueiros e subindo pelo meio-fio.
Talvez um a cada cinco apartamentos tivesse uma cortina na janela.
Vez ou outra, passavam por um carro estacionado ou um triciclo
tombado na grama irregular. Ninguém saía nas ruas, mas Charlie pensou ter
visto uma cortina se fechando quando passaram por ela. Em dois dos
quintais, havia piscinas elevadas cheias de água da chuva, e uma delas
tinha um grande trampolim, as molas enferrujadas e a prancha quebrada.
— Só um segundo. — Charlie freou o carro e saiu correndo quando
se aproximou de uma cerca de madeira alta. Era alta demais para pular por
cima, mas havia uma única tábua que se soltara do prego junto à base. Ela
se agachou e a empurrou para o lado, espiando para ver o que havia lá
dentro.
Dois olhos negros e redondos a encararam de volta.
Charlie congelou. Os olhos pertenciam a um cachorro, uma coisa
gigantesca que começou a latir, seus dentes rangendo e as correntes tinindo.
Charlie colocou a tábua de volta no lugar e voltou ao carro.
— Tá, vamos continuar.
— Nada? — perguntou Jessica, dúbia, e Charlie balançou a cabeça.
— Talvez não tenham vindo tão longe.
— Acho que vieram — disse Charlie. — Acho que estão fazendo
exatamente o que era para fazerem. — Charlie estacionou o carro no
acostamento da estrada sinuosa e olhou para os complexos de apartamentos
em ambos os lados. — Esse lugar podia ter sido tão gostoso de se morar —
disse, a voz suave.
— Por que estamos parando? — John parecia confuso.
Charlie se recostou em seu assento e fechou os olhos. Presa numa
caixa, uma caixa escura e apertada, não consigo me mexer, não consigo
ver, não consigo pensar. Me deixa sair! Seus olhos se abriram e ela agarrou
a maçaneta da porta do carro, em pânico. Começou a puxá-la com força.
— Está trancada — disse John. Inclinou-se por cima dela para puxar
o pino de trava.
— Sei disso — disse ela, furiosa. Saiu e fechou a porta atrás de si.
John fez menção de segui-la, mas Jessica pôs a mão em seu ombro.
— Deixe-a sozinha por um minuto — disse.
Charlie se inclinou sobre o porta-malas, apoiando o queixo sobre as
mãos. O que não estou conseguindo enxergar, pai? Ergueu-se novamente,
esticando os braços sobre a cabeça, virando o corpo inteiro para estudar os
arredores.
Havia um terreno vazio além do projeto, não muito longe de onde
estavam. Era demarcado por postes telefônicos, dos quais apenas um tinha
cabeamento. A brisa arrastava os fios soltos pela terra, espalhando o
cascalho ao redor. A área não parecia ter sido asfaltada. Em um dos cantos,
havia um rolo de arame farpado da altura de Charlie — nunca havia sido
utilizado. Latas vazias e embalagens de fast-food estavam espalhadas pelo
chão, os papéis sacudindo e as latas fazendo barulho com o vento tranquilo,
como se sentissem algo terrível. Foi quando o vento soprou mais forte por
detrás de Charlie, passando por ela e seguindo em direção ao campo,
chacoalhando os papéis e as latas e enviando lufadas por entre os
segmentos de grama acastanhada. Tem algo errado plantado ali.
Preenchida por uma nova energia, Charlie abriu a porta do carro
apenas o suficiente para se inclinar lá dentro.
— Aquele terreno. Temos que dar uma olhada.
— O que você viu? Parece tão fora de mão — disse John.
Charlie assentiu.
— É como você disse. Se um monstro de quase três metros cavasse
buracos no quintal de um vizinho, alguém notaria. Além disso, eu tive... um
pressentimento.
Jessica saiu do carro sobre os saltos, e John a seguiu de perto.
Charlie já havia aberto o porta-malas. Tirou de lá uma pá, a grande lanterna
Maglite que sempre mantinha por perto, e um pé-de-cabra.
— Só tenho uma pá — explicou, deixando claro que ficaria com ela
para si. Jessica pegou a lanterna e a balançou no ar, como se praticasse um
ataque a um agressor invisível.
— Por que você sequer tem uma pá? — perguntou Jessica, com um
tom desconfiado.
— Tia Jen — explicou John.
Jessica riu.
— Bom, nunca se sabe quando você vai precisar escavar um robô.
— Vamos — disse Charlie, jogando o pé-de-cabra para John e
seguindo adiante. Ele o agarrou com facilidade e correu atrás dela,
aproximando-se para falar sem que Jessica ouvisse:
— Por que eu não fiquei com a pá?
— Imaginei que você conseguiria bater com um pé-de-cabra mais
forte que eu.
Ele abriu um sorriso.
— Faz sentido — disse, confiante, segurando o pé-de-cabra com um
novo propósito.
Quando chegaram aos limites do terreno, John e Jessica pararam,
fitando o chão sob seus pés, como se estivessem com medo do que
poderiam pisar. Charlie cruzou a área coberta por terra solta, agarrando a
pá com força. O solo era quase inteiramente árido, cheio de pilhas de
cascalho e terra abandonadas há tanto tempo que a grama começara a
crescer sobre elas.
— Deviam usar esse lugar como uma espécie de área de descarte
quando ainda estavam construindo — disse John. Avançou mais alguns
passos pelo terreno, desviando de uma garrafa de vidro quebrada.
Na extremidade oposta, podiam ver os limites do que parecia um
bosque. Charlie o estudou minuciosamente, memorizando o caminho de
volta à direção de onde tinham vindo.
John se ajoelhou junto a uma pilha de cascalho e a cutucou
cuidadosamente com o pé-de-cabra, como se algo pudesse saltar ali do
meio. Jessica havia seguido rumo a um conjunto de arbustos. Agachou-se
para pegar alguma coisa, mas logo a soltou e esfregou as mãos na camisa.
— Charlie, esse lugar é nojento! — berrou.
Charlie chegara aos limites do bosque e começou a caminhar em
paralelo a ele, examinando o solo.
— Viu alguma coisa? — gritou John, do outro lado do terreno.
Charlie o ignorou. Havia marcas profundas no chão, que saíam do
bosque e passavam por entre os arbustos. As grandes rochas ao redor
estavam todas lascadas com marcas recentes de cortes e arranhões.
— Não são exatamente pegadas — sussurrou Charlie, seguindo as
marcas no chão. Foi quando pisou em terra macia, um súbito contraste com
o solo duro e árido do resto do terreno. Deu um passo para trás. A terra
diante de seus pés estava descolorida, familiar.
Charlie cravou a pá no chão e começou a cavar, o metal raspando na
terra misturada ao cascalho, dentre um barulho terrível. Jessica e John
correram até ela.
— Cuidado — alertou John, aproximando-se. Ergueu o pé-de-cabra
feito um taco de baseball em suas mãos, pronto para atacar. Jessica se
manteve um pouco mais afastada. Charlie viu que os nós dos dedos dela já
estavam ficando brancos em torno da lanterna, mas seu rosto permanecia
calmo e determinado. Finalmente, a lâmina da pá atingiu uma peça de
metal com um tinido oco e sonoro, e todos deram um pulo. Charlie
entregou a pá para John e se ajoelhou em meio à confusão de terra
espalhada, tirando o restante com as mãos.
— Cuidado! — disse Jessica, a voz mais aguda que o normal, e John
voltou a dizer o mesmo.
— Essa foi uma péssima ideia — murmurou, examinando a área. —
Cadê uma viatura da polícia quando você precisa dela? Ou qualquer outro
carro?
— Ainda é dia, temos mais algum tempo — disse Charlie, distante,
os olhos vidrados no chão conforme passava as mãos por ele, removendo
pedras e torrões de terra, cavando para encontrar o que se escondia nas
profundezas.
— Sim, ainda é dia. Mas também era dia quando aquele Foxy
distorcido te atacou mais cedo, lembra? — disse John, a voz mais urgente.
— Espera, o quê?! — exclamou Jessica. — Charlie, afaste-se daí!
Vocês não me contaram isso! — Ela se voltou para John com um olhar
acusador no rosto.
— Olha, tem acontecido muita coisa, beleza? — John ergueu ambas
as mãos, as palmas voltadas para cima.
— É, mas se vão me colocar no meio disso, então precisam me
contar esse tipo de coisa! Vocês foram atacados?
— Te colocar no meio disso? Foi você que saiu entrando no caso na
primeira menção a assassinato! Você praticamente se convidou.
— Me convidei? Você fala como se eu tivesse estragado o seu
encontro, mas também não fez nada pra recusar a minha ajuda. — Jessica
fincou as mãos nos quadris.
— Charlie — suspirou John. — Pode, por favor, falar com
a... caramba! — Deu um pulo para trás, e Jessica fez o mesmo assim que
olhou para baixo. Diante deles, com o olhar erguido em meio à terra solta,
havia um gigantesco rosto de metal, os olhos voltados para o sol. Charlie
não disse nada. Ainda estava ocupada removendo a terra das extremidades,
revelando duas orelhas redondas na parte de cima da cabeça.
— Charlie. Esse é... o Freddy? — Jessica arfou.
— Não sei. Acho que era para ser. — Charlie podia ouvir a
ansiedade em sua voz enquanto fitava o urso, enorme e inerte, com aquele
sorriso perpétuo. A estrutura metálica crua era revestida por uma camada
de plástico gelatinoso, dando a ele uma aparência orgânica, quase
embrionária.
— É enorme — disse John, ofegante. — E não tem pelos.
— Assim como o outro Foxy. — As mãos de Charlie estavam
ficando machucadas. Tirou o cabelo do rosto de se levantou.
Era o Freddy, mas, de alguma forma, não era. Os olhos do urso
estavam abertos, fitando o vazio com aquele olhar inanimado e desprovido
de vida que Charlie conhecia tão bem. O urso estava em suspensão, por
ora.
— Charlie, temos que ir — disse John, em tom de advertência. Mas
não se moveu; continuava olhando para baixo. Ajoelhou-se ao lado do
rosto e começou a escavar a terra sobre sua testa, abrindo caminho até que
finalmente fosse visível: um chapéu preto, já bastante avariado e imundo.
Charlie sentiu um sorriso querendo começar a se formar em sua boca, mas
mordeu o lábio.
— É melhor ligarmos para o Burke — disse Jessica. — Agora.
Enquanto davam as costas para o projeto, o vento voltou a soprar
com mais força, passando por eles e sacudindo a grama alta. A terra
continuava imóvel, e o sol afundava cada vez mais em meio às colinas no
horizonte.
CAPÍTULO OITO
Charlie jogou suas chaves para John.
— Você vai — disse ela. — Tem um posto de gasolina a alguns
quilômetros para trás, na direção de onde viemos. Pode ligar de lá.
John assentiu, balançando as chaves em sua mão.
— Vou ficar com você — disse Jessica, no mesmo instante.
— Não — disse Charlie, com mais violência do que pretendia. — Vá
com o John. — Jessica pareceu confusa por um momento, mas finalmente
assentiu, seguindo em direção ao carro.
— Tem certeza? — perguntou John. Charlie balançou a mão para
ele, indicando para que fosse de uma vez.
— Alguém precisa ficar aqui com ele. Vou manter distância.
Prometo. Não vou perturbar... essa coisa.
— Certo. — Como Jessica, John hesitou por um momento. E então
deixaram Charlie sozinha no terreno vazio. Após um minuto, ouviu o motor
sendo ligado e o barulho do carro foi se afastando aos poucos, conforme os
dois seguiam pelas ruas vazias.
Charlie se sentou no monte de terra de onde havia desenterrado o
urso deformado e ficou olhando para ele.
— O que você sabe? — murmurou. Levantou-se, avançando
lentamente rumo aos outros dois lotes de terra remexida, imaginando o que
haveria lá embaixo. O urso era aterrorizante, com uma forma estranha, uma
imitação de Freddy criada por outra pessoa. Era uma variação estranha,
algo para que seu pai nunca teria dado vida. Mas William Afton — Dave —
deu. O homem que projetou aquelas coisas era o mesmo homem que havia
raptado e assassinado seu irmão.
De repente, um pensamento lhe surgiu à mente, uma pergunta que já
a havia visitado diversas vezes antes: Por que ele levou o Sammy? Charlie
já havia feito essa pergunta infinitas vezes, para si mesma, para o vento, e
até mesmo para os sonhos. Por que ele levou o Sammy? Mas o que queria
dizer sempre havia sido: Por que não eu? Por que fui eu quem sobreviveu?
Encarou o solo sob seus pés, visualizando o rosto estranho, embrionário, do
urso. As crianças assassinadas na Freddy Fazbear’s haviam permanecido
vivas após suas mortes, seus espíritos hospedados dentro das fantasias
animatrônicas que os mataram. Poderia, de alguma forma, o espírito de
Sammy estar preso atrás de uma grande porta retangular?
Charlie estremeceu e se levantou, subitamente querendo se distanciar
o máximo possível daquele Freddy distorcido enterrado no solo. A imagem
de seu rosto voltou a sua cabeça, e, dessa vez, fez sua pele coçar. Será que
os outros montes também ocultavam criaturas semelhantes? Haveria um
coelho deformado em meio à terra ao lado? Uma galinha agarrando um
cupcake junto ao peito grotesco? A coisa que tentou me matar... que tentou
me engolir... foi criada com o intuito de matar. Pode ter qualquer coisa
enterrada aí embaixo, apenas esperando pelo anoitecer. Ela podia olhar,
escavar os outros montes e ver o que repousava lá embaixo. Mas assim que
pensou nisso, quase pôde sentir as garras de metal se prendendo em seus
braços, forçando-a para daquele peito cavernoso e mortal.
Charlie se afastou mais alguns passos dos montes, desejando só um
pouco que tivesse deixado que Jessica ficasse.
— Como tem sido a sua visita pra ver a Charlie? — perguntou
Jessica, em tom conspiratório, enquanto davam a última curva, saindo da
área de projetos e avançando pela rua principal.
John não tirou os olhos da estrada.
— É bom vê-la novamente. Você também — acrescentou, e ela deu
uma risada.
— Claro, você sempre me amou. Não se preocupe, sei que está aqui
para vê-la.
— Estou aqui a trabalho, na verdade.
— Sei — disse Jessica. Ela se virou e olhou pela janela. — Você
acha que a Charlie mudou? — perguntou de modo abrupto.
John ficou em silêncio por um momento, visualizando em sua mente
o quarto que Charlie transformara numa pilha de sucata, e Theodore,
dilacerado e partido aos pedaços. Pensou na tendência que ela tinha de se
fechar em si mesma, de perder vários minutos como se estivesse
brevemente perdida no tempo e espaço. Eu acho que ela mudou?
— Não — disse, finalmente.
— Também não acho. — Jessica suspirou.
— O que vocês encontraram na Freddy’s? — perguntou John.
— O Dave — disse Jessica, franca, esperando um momento antes de
olhar para John. — Exatamente onde o deixamos.
— E tem certeza que ele estava morto? — John abaixou o olhar.
Jessica engoliu em seco, subitamente vendo o corpo mais uma vez
em sua mente. Podia ver a pele descolorida, a fantasia que havia afundado
em sua pele apodrecida, fundindo o homem à mascote em uma eternidade
grotesca.
— Estava morto sim — disse ela, a voz abafada.
O posto de gasolina era logo adiante. John parou no pequeno
estacionamento e saiu do carro sem esperar por Jessica. Ela o seguiu em
seus saltos.
— Que lixão. — Jessica deu um giro, admirada com os arredores. —
Certamente havia um lugar melhor para... — Jessica parou onde estava,
subitamente notando o adolescente atrás do balcão. Estava olhando para o
vazio, observando alguma coisa atrás deles, mais a esquerda.
— Com licença — disse John. — Você tem um telefone público? —
O garoto balançou a cabeça.
— Não, público não — disse, fazendo um gesto em direção ao
aparelho.
— Podemos usá-lo? Por favor?
— É só para clientes.
— Eu pago pela ligação — disse John. — Olha, é importante. — O
garoto os fitou por um momento, seus olhos finalmente entrando em foco,
como se só agora tivesse registrado sua presença. Ele assentiu, devagar.
— Certo, mas você vai ter que comprar alguma coisa enquanto ela
liga.
John deu de ombros, sem ter como discutir com as regras da
gerência.
— John, me dá o número — disse Jessica. Ele tirou do bolso e
entregou para ela. Enquanto ela seguia para detrás do balcão, John
examinou as prateleiras, impaciente, procurando pelo que houvesse de mais
barato.
— Temos picolés — disse o garoto.
— Não, obrigado — disse John.
— São de graça. — Ele apontou para o congelador.
— Ora, do que vai me ajudar se são de graça?
— Eu deixo contar como uma compra. — O garoto piscou para ele.
John trincou o maxilar e abriu a tampa do congelador, estremecendo
de leve ao ver o coiote empalhado escondido lá dentro.
— Brilhante. Foi você que empalhou? — perguntou, a voz alta.
O garoto riu, um som súbito e resfolegante. Foi quando John agarrou
a carcaça pela cabeça e puxou o bicho para fora do congelador.
— Ei! — gritou o garoto. — Ei! Você não pode fazer isso!
John correu até a porta, saiu em direção ao estacionamento e atirou a
criatura morta no meio da estrada.
— Ei! — gritou o garoto outra vez, correndo em meio à estrada e
desaparecendo dentre uma nuvem de poeira.
— John? — disse Jessica, dando a volta no balcão. — O Clay está
vindo.
— Ótimo. — Seguiu com ela em direção ao carro.
Charlie continuava andando em círculos, olhando para o horizonte a
cada poucos segundos. Sentia-se como uma sentinela ou uma vigilante.
Não conseguia parar de pensar nos animatrônicos enterrados ali, o que quer
que fossem. Não estavam em caixas, nem protegidos da terra — ela
entraria em cada poro e articulação, preencheria todo o corpo deles. Podiam
abrir as bocas para gritar, mas a terra implacável simplesmente entraria por
elas, rápido demais para que o som escapasse.
Charlie estremeceu e esfregou os braços, erguendo o olhar para o
céu. Estava ficando alaranjado, e as sombras das ervas daninhas
começavam a se alongar pelo chão. Olhando para os montes de relance, foi
andando a passos largos para o outro lado do terreno, em direção ao único
poste de telefone com fios soltos. Estavam pendurados feito os galhos de
um salgueiro-chorão, arrastando na terra. Enquanto ia se aproximando,
Charlie viu pequenas formas escuras junto à base do poste. Examinou mais
de perto: eram ratos, todos caídos no chão, duros e mortos. Ficou olhando
para eles por um longo momento, mas então deu a volta, assustada, diante
do som de carros que se aproximavam.
John e Jessica haviam retornado, e Clay estava logo atrás deles. Já
devia estar pela área.
— Cuidado com o poste — disse Charlie, recebendo-os. — Acho
que os fios estão energizados.
John deu uma risada.
— Ninguém toque nos fios! — disse. — Que bom que você está
bem.
Clay nada disse — estava ocupado examinando os segmentos de
terra. Deu a volta neles como havia feito Charlie, observando-os de cada
ângulo possível, até que finalmente parou quando deu a volta completa.
— Vocês escavaram um deles? — perguntou, e Charlie pôde sentir a
tensão por detrás de sua voz.
— Não — disse John, depressa. — Só descobrimos uma parte, mas
então enterramos de volta.
Clay baixou o olhar novamente.
— Não sei se isso melhora ou piora as coisas — disse, os olhos ainda
vidrados nos montes.
— Ele parecia o Freddy — disse Charlie, a voz urgente. — Um
Freddy estranho e deformado. Tinha alguma coisa errada com ele.
— O que tinha de errado? — perguntou Clay, gentilmente. Ele a
fitava com um olhar sério.
— Não sei — disse Charlie, desamparada. — Mas tem algo de
errado com todos eles.
— Charlie — disse Clay, ainda focado nela. — Se puder me contar
mais alguma coisa sobre essas coisas, então agora é a hora. Temos que
partir do princípio de que, como a Jessica me contou pelo telefone, elas vão
matar de novo essa noite.
Charlie se ajoelhou novamente junto ao lugar onde haviam
encontrado o Freddy distorcido e começou a cavar outra vez.
— O que está fazendo? — protestou John.
— O Clay precisa ver — murmurou.
— Mas que diabos — disse Clay, aproximando-se para examinar o
rosto, e então deu um grande passo para trás, a fim de observar os lotes de
terra remexida, medindo o tamanho das coisas que estavam enterradas sob
seus pés.
— Temos que evacuar esses prédios — disse John. — Do contrário,
o que vamos fazer quando essas coisas levantarem? Pedir que voltem pra
cama? Não tem muitos apartamentos nessa área que de fato tenham pessoas
morando. Deve ter um, talvez dois prédios no quarteirão inteiro que
pareçam estar ocupados — concluiu, apontando para as construções
abandonadas ao redor.
— Certo, vou checar para ver quem está em casa. Vocês ficam de
olho nessas coisas. — Clay examinou a fileira de prédios e seguiu em
direção a eles.
— Então ficamos esperando — disse John.
Charlie continuou observando o horizonte. Nuvens escuras
começavam a cobrir o sol, fazendo parecer que a noite havia caído mais
cedo.
— Ouviram isso? — murmurou Jessica.
Charlie se ajoelhou junto ao rosto de metal parcialmente enterrado no
chão e virou o ouvido em sua direção.
— Charlie! — berrou John, sobressaltado. Ela ergueu a cabeça e
olhou para o rosto novamente. Ele havia mudado de um momento para o
outro. Suas feições se suavizaram, pareciam menos cruas. Voltou o olhar
para John, os olhos vidrados. — Ele está mudando!
— Espera, o quê? O que isso significa? — disse Jessica, horrorizada.
— Significa que algo está muito errado — disse ele. Jessica esperou
que ele explicasse. — Não estamos mais na Freddy’s. — Foi tudo o que
pôde oferecer.
Clay voltou do outro lado do campo.
— Todos pra dentro do carro — gritou.
— Do meu carro? — perguntou Charlie.
Clay balançou a cabeça.
— Do meu. — Charlie estava a ponto de protestar, mas Clay a fitou
com um olhar intransigente. — Charlie, a menos que o seu carro tenha uma
sirene e você tenha treinamento de perseguição em alta velocidade, não se
intrometa. — Ela assentiu.
— O que disse a eles? — perguntou Jessica, de repente.
— Disse que havia um vazamento de gás nessa área — explicou
Clay. — Assustador o suficiente para que saíssem de casa, mas não tanto a
ponto de ficarem em pânico. — Jessica assentiu. Parecia quase
impressionada, como se estivesse tomando notas mentais.
Empilharam-se no carro de Clay, Jessica rapidamente pegando o
banco da frente, embora Charlie suspeitasse de que ela só queria deixá-la a
sós ao lado de John. O veículo estava nos limites do terreno, tão longe dos
montes de terra quanto era possível sem pegar a estrada principal. Quando
o sol se pôs além da linha do horizonte e os últimos raios de luz se foram
em meio à escuridão, um único poste de luz se acendeu, a luz bruxuleante.
Era bastante antigo, a luz alaranjada, crepitando em curtos intervalos, como
se pudesse se apagar a qualquer momento. Charlie a observou por um
tempo, identificando-se com ela.
John estava ocupado olhando para o outro lado do campo, os olhos
vidrados, sem piscar, mas conforme a hora foi passando, começou a relaxar
no assento. Bocejou, mas logo tratou de voltar a seu estado de alerta. Um
cotovelo o atingiu nas costelas e ele se virou para ver Charlie com um
amontoado de cabos no colo, estudando alguma coisa com todo o cuidado.
— O que está fazendo? — perguntou, e então voltou a fitar o campo.
— Estou tentando descobrir o que exatamente essa coisa faz. —
Charlie segurava o disco de metal com firmeza em sua mão. Era o que
haviam arrancado do monstro mais cedo naquele dia. Estava tentando
conectá-lo de forma apropriada ao pequeno painel e tela do equipamento de
diagnóstico. — Beleza, John, não vomite em mim. — Abriu um sorriso, o
dedo pronto para acionar o interruptor.
— Darei o melhor de mim — resmungou, tentando se concentrar no
campo parcamente iluminado.
— Encontramos dentro do animatrônico que nos atacou hoje — disse
Charlie, ávida para explicar. Jessica se inclinou para ver mais de perto. —
Emite algum tipo de sinal; não sabemos do que se trata.
— Ele muda a aparência daquelas coisas. — John virou o rosto da
janela com um olhar enjoado.
— Ele muda a nossa percepção da aparência deles — corrigiu
Charlie.
— Como? — Jessica parecia fascinada.
— Ainda não tenho certeza, mas talvez possamos descobrir. —
Charlie cravou a unha na ranhura e apertou o botão. — Ugh, já consigo até
ouvir.
John suspirou.
— E eu consigo sentir.
— Eu não consigo... — Jessica inclinou a cabeça, tentando ouvir. —
Ou talvez consiga. Não sei.
— É muito agudo. — Charlie girava os pequenos botões de controle
no painel portátil, tentando conseguir uma leitura do dispositivo.
— Ele entra na sua cabeça. — John esfregou a fronte. — Quase me
deixou doente, hoje de manhã.
— É claro — sussurrou Charlie. — Entra na sua cabeça.
— O quê? — Jessica se virou para ela.
— Essas leituras não pareciam fazer sentido no início. Achei que
tinha algo errado.
— E? — disse John, impaciente, quando Charlie subitamente se
calou.
— Na aula, a gente aprendeu quando o cérebro recebe estímulos
demais, ele preenche as lacunas por você. Por exemplo, digamos que você
passe por uma placa octogonal vermelha na rua, completamente vazia, e
alguém te pergunte o que estava escrito nela. Você diria “PARE”. E
imaginaria que havia visto a palavra. Conseguiria visualizar a placa de pare
exatamente da forma como ela devia ser. Isso, é claro, se estivesse
devidamente distraído e não notasse uma placa obviamente vazia. Essa
coisa nos distrai. De alguma forma, faz com que nossos cérebros
preencham as lacunas com experiências anteriores, com coisas que
pensamos que devíamos estar vendo.
— Como ele faz isso? O que há nesse sinal? — John desviou o olhar
novamente, sem prestar muita atenção.
— É como se tivesse um padrão pré-definido. Mais ou menos. —
Charlie se recostou no banco, relaxando os braços, o dispositivo ainda
embalado em suas mãos. — O dispositivo emite cinco ondas sonoras que
variam consecutivamente em uma determinada frequência. Primeiro, batem
uma com a outra, depois não batem mais; sempre que estão a ponto de
formar uma sequência previsível, elas se harmonizam e desarmonizam
novamente, seguindo um rumo completamente diferente.
— Não entendi. Então não tem um padrão? — disse John.
— Não tem, mas é justamente essa a questão. Quase faz sentido, mas
não exatamente. — Charlie fez uma pausa, pensando por um momento. —
A flutuação dos tons acontece tão rápido que só é detectada pelo nosso
subconsciente. Sua mente começa a enlouquecer tentando dar sentido a
tudo isso; ela fica imediatamente sobrecarregada. É meio que o oposto do
ruído branco: você não consegue acompanhá-lo, nem dessintonizá-lo.
— Então os animatrônicos não estão mudando de forma. Só estamos
sendo distraídos. Mas qual é o propósito disso? — John dera as costas para
a janela, desistindo da pretensão de ignorar a conversa.
— Para ganharem a nossa confiança. Para parecerem mais
amigáveis. Para parecerem mais reais. — Conforme as possibilidades se
acumulavam, uma imagem sinistra se formou na cabeça de Charlie.
John riu.
— Para parecerem mais reais, talvez. Mas eles com certeza não me
parecem nada amigáveis.
— Para atraírem crianças mais para perto — continuou Charlie. O
carro ficou em silêncio.
— Por ora, vamos apenas focar em viver mais um dia, tudo bem? —
disse Clay, no banco da frente. — Ainda não posso reportar nada desse
jeito. Nesse momento, é apenas lixo enterrado num campo. Mas se vocês
estiverem certos, e alguma coisa começar a se mexer ali... — Ele não
terminou a frase. John se recostou na porta do carro, apoiando a cabeça na
janela para que pudesse continuar olhando.
Charlie inclinou a cabeça para trás, deixando com que os olhos se
fechassem apenas por alguns momentos. Do outro lado do campo, a
lâmpada alaranjada continuava a tremeluzir, dentre um pulso quase
hipnótico.
Os minutos se passaram, e então quase mais uma hora. Clay olhou
para os adolescentes. Todos haviam caído no sono. Charlie e John estavam
recostados um no outro de forma embaraçosa. Jessica se encolhera com os
pés no banco, abaixo do corpo, e a cabeça apoiada na estreita borda da
janela. Parecia um gato, ou um humano que acordaria com sérias dores de
pescoço. Clay alongou os ombros, mexendo-os para cima e para baixo,
tomado pela estranha sensação de alerta que sempre tinha quando era a
única pessoa acordada.
Quando Carlton ainda era um bebê, ele e Betty acordavam em turnos
para cuidar dele. Mas embora Betty se sentisse exausta com isso, mal
conseguindo ficar de pé no dia seguinte, Clay se sentia quase energizado.
Gostava de ser o único caminhando pelo mundo quando não havia ninguém
mais de pé. Fazia com que ele sentisse que podia proteger a todos eles, que
podia fazer com que tudo ficasse bem. Ah, Betty. Piscou algumas vezes, a
luz alaranjada parecendo subitamente mais brilhante diante dos olhos
umedecidos. Respirou fundo, recuperando o controle. Não havia nada que
eu pudesse ter dito, não é verdade? Sem que pudesse evitar, a memória de
sua última conversa — sua última briga — se projetou espontaneamente
em sua cabeça.
— Todas as horas da noite. Isso não é saudável. Você está
obcecado!
— Você fica tão absorta no trabalho quanto eu. É algo que temos em
comum, lembra? Algo que amamos um no outro.
— Isso é diferente, Clay. Está me deixando preocupada.
— Você está sendo irracional.
Ela riu, um som que parecia um vidro se quebrando.
— Se você acha isso, então não estamos vivendo na mesma
realidade.
— Talvez não estejamos.
— Talvez não.
A luz mudou. Clay olhou ao redor, completamente focado no
presente outra vez. A luz alaranjada estava quase falhando, piscando cada
vez mais rápido. Enquanto ele a observava, a lâmpada se acendeu por uma
última vez, heroica, e então se apagou por completo.
— Droga — praguejou em voz alta. Jessica estremeceu, ainda
adormecida, fazendo um leve som de protesto. Em silêncio, porém
depressa, Clay saiu do carro, pegando a lanterna que guardava atrás de seu
banco. Fechou a porta e seguiu em direção aos montes, o facho de luz
frenético balançando pelo campo até desaparecer.
Charlie acordou. Seu coração estava acelerado, mas não sabia dizer
se era por conta do despertar repentino ou pelos resquícios do sonho do
qual já não conseguia mais se lembrar. Balançou John pelo braço.
— John. Jessica. Tá acontecendo alguma coisa. — Antes que
tivessem a chance de responder, Charlie já estava correndo do lado de fora
do carro, seguindo em direção aos montes de terra. — Clay! — gritou. Ele
deu um pulo ao som de sua voz.
— Eles sumiram — disse Clay, e Charlie arfou, tropeçando na terra
revirada. Ele já estava correndo em direção ao prédio mais próximo. —
Volte para o carro! — berrou por cima do ombro. Charlie correu atrás dele,
olhando para trás na tentativa de localizar John e Jessica. Os olhos de
Charlie ainda não tinham se ajustado ao escuro, e a lanterna de Clay
parecia mergulhar na escuridão adiante. Tudo o que Charlie podia fazer era
seguir o som de seus passos conforme corria pela grama baixa.
Finalmente chegou a uma parede de tijolos e deu a volta pelo
primeiro dos edifícios. Clay já estava na porta. Batia nela com força,
espiando impacientemente pela janela mais próxima. Ninguém
respondeu — não havia ninguém lá dentro.
Um grito cortou a noite, e Charlie congelou. Era agudo e humano,
reverberando pelas paredes das casas. Outro grito. Clay apontou a lanterna
na direção do som.
— Deixamos alguém passar! — exclamou. Lançou-se pela lateral da
casa, atravessando o campo às cegas. O grito parecia estar em movimento,
avançando rapidamente rumo às árvores negras mais adiante.
— Ali! — gritou Charlie, passando direto por Clay e correndo em
direção a um movimento indistinto em meio ao escuro.
— Charlie! — A voz de John atravessou a noite, distante, mas
Charlie não esperou por ele. O som do cascalho sob seus pés era
ensurdecedor. Parou de forma abrupta, percebendo que não sabia para onde
estava correndo.
— Charlie! — gritou alguém, ao longe. O restante se perdeu em
meio ao farfalhar das árvores, cujas folhas balançavam com a brisa da
noite. Tentou manter os olhos abertos mesmo com os grãos de areia que lhe
acertavam o rosto. Foi quando o vento finalmente se acalmou, e outro
farfalhar soou dos galhos próximos, e dessa vez não era algo proveniente
da natureza. Charlie correu em direção ao som, aos tropeços, mantendo os
braços na frente do corpo até que conseguisse enxergar novamente.
E lá estava ele. Nos limites do bosque, uma figura deformada estava
curvada em meio à escuridão. Charlie parou a menos de um metro da
criatura, completamente imóvel, subitamente ciente de que estava sozinha.
A coisa deu uma guinada para o lado, e então parou diante dela, revelando
um focinho esguio. Uma crina de lobo cobria sua cabeça e costas. Estava
levemente inclinado, um braço torcido para baixo enquanto o outro se
erguia num solavanco. Talvez seu controle sobre os membros fosse
impreciso. Estava olhando para Charlie, e ela o fitou nos olhos: eram de um
azul penetrante e se autoiluminavam.
No entanto, embora os olhos tivessem um brilho constante, o resto da
criatura reverberava, transformando-se de uma forma desnorteante, mesmo
enquanto ela o observava. Em um momento, era uma figura ágil e bem
cuidada, coberta de pelos prateados, e no seguinte, uma estrutura de metal
esfarrapada, parcialmente revestida por uma pele de borracha translucida.
Seus olhos eram bulbos completamente brancos. A criatura se encolhia e
convulsionava, até que finalmente permaneceu em sua aparência de metal
cru. Charlie respirou fundo, e o lobo desviou o olhar.
Os espasmos foram ficando cada vez mais fortes, e a criatura se
curvou. Seu peito se abriu, reclinando-se para fora como uma terrível boca
de metal. As peças emitiram um som abrasivo e excruciante. Charlie
sufocou um grito, sem conseguir se mexer. A criatura deu mais uma
guinada, e algo caiu de seu interior, aterrissando com força no chão. O lobo
tombou ao lado do que quer que fosse o que havia derrubado, e depois
estremeceu, perdendo toda a movimentação.
— Essa não. — Clay se aproximou de Charlie por trás, olhando para
o corpo humano caído em meio à grama, completamente retorcido.
Charlie permaneceu imóvel, seduzida pelos pequenos pontos de luz
lupinos que olhavam para ela. A coisa abaixou a cabeça, e então, de
repente, a crina prateada reapareceu sobre ela, balançando com o vento.
Suas orelhas compridas e sedosas se retraíram, e a criatura então deu um
salto para trás, desaparecendo em meio ao bosque. Puderam ouvir o
farfalhar das árvores se distanciando, até que finalmente se foi.
Assim que Jessica chegou correndo até eles, Clay enfiou a lanterna
em suas mãos.
— Segura! — bradou Clay, e então se ajoelhou junto ao corpo
retorcido, caído na grama, checando o pulso. — Ela está viva! — disse,
mas sua voz estava tensa. Inclinou-se por cima dela, procurando outra
coisa.
— Charlie! — Era John, puxando seu ombro. — Charlie, vem, temos
que ajudar!
John saiu correndo e Charlie o seguiu, mais devagar, incapaz de tirar
os olhos da mulher que parecia estar morrendo no chão. A voz de Clay
parecia definhar em meio à escuridão atrás deles.
— Moça, você está bem? Moça? Pode me ouvir?
CAPÍTULO NOVE
A professora Treadwell parecia impaciente. Seu rosto estava
tranquilo como sempre, mas enquanto seus alunos faziam a prova, ela
andava de um lado para o outro na plataforma do auditório, os saltos de
seus sapatos reproduzindo um estalido incessante. Arty cutucou Charlie,
apontou com a cabeça para a professora e fingiu que estava gritando.
Charlie abriu um sorriso e voltou a atenção para o questionário. Não se
importava com o barulho. Os passos firmes e regulares da professora eram
como um metrônomo, marcando o tempo.
Ela releu a primeira questão: Descreva a diferença entre um ciclo
condicional e um ciclo infinito. Charlie suspirou. Ela sabia a resposta; só
parecia desnecessário colocá-la no papel. Um ciclo condicional ocorre
apenas quando certas condições, começou a escrever, mas então rabiscou
as palavras e suspirou outra vez, olhando vagamente por cima das cabeças
dos outros alunos.
Conseguia ver o rosto do lobo novamente, tremeluzindo sob a luz do
luar, cada uma de suas duas faces se sobrepondo à outra: a ilusão e a
estrutura debaixo dela. Seus olhos haviam fitado os dela, como se estivesse
lendo alguma coisa no ponto mais profundo de seu interior. Quem é você?
Quem era pra você ser?, pensou. Ela nunca o havia visto antes, e isso a
preocupava. A Freddy Fazbear’s Pizza não tinha um lobo.
Charlie tinha uma memória quase que fotográfica — percebera isso
no ano anterior. Era por esse motivo que conseguia se lembrar de coisas
que aconteceram mesmo na primeira infância. Mas não se lembrava do
lobo. Não seja boba, disse a si mesma. Tem muita coisa da qual você não
se lembra. Em compensação, suas memórias da oficina de seu pai eram tão
fortes: o cheiro, o calor. Seu pai recurvado sobre a bancada onde
trabalhava, e o lugar no canto para onde ela não gostava de olhar. Estava
tudo tão presente dentro de si, tão imediato. Mesmo as coisas das quais não
se lembrava sem que fossem incitadas, como o velho Fredbear’s Family
Diner, se tornavam instantaneamente familiares no momento em que batia
os olhos nelas. Essas criaturas, no entanto, não tinham a menor base de
apoio em suas memórias. Ela não as conhecia, mas elas claramente a
conheciam.
Por que foram sepultados nos fundos da casa daquele jeito? Por que
não foram simplesmente destruídos? O apego profundo de seu pai por suas
criações jamais sobrepujara seu pragmatismo. Se alguma coisa não
funcionava, ele a desmontava para reaproveitar as peças. Fizera o mesmo
com os próprios brinquedos de Charlie.
Ela piscou, subitamente imersa em suas memórias.
Ele o entregou em suas mãos, um sapo verde com óculos com aros
de tartaruga por cima de seus olhos esbugalhados. Charlie ficou olhando
para ele, incrédula.
— Não — disse ela.
— Não quer ver o que ele faz? — protestou o pai, e ela cruzou os
braços e balançou a cabeça.
— Não — murmurou. — Não gosto desses olhos grandes. — Apesar
dos protestos, seu pai pôs o sapo no chão, diante dela, e apertou um botão
escondido sob o plástico em seu pescoço. Ele girou a cabeça de um lado
para o outro, e então, de repente, saltou em meio ao ar. Charlie gritou e
deu um pulo para trás, e seu pai correu para pegá-la no colo.
— Sinto muito, amorzinho. Está tudo bem — sussurrou. — Não era a
intenção que ele te assustasse.
— Não gosto desses olhos — disse ela, soluçando em seu pescoço, e
ele a segurou por um longo momento. Depois a colocou no chão e recolheu
o sapo.
Ele o colocou em sua bancada de trabalho, tirou uma faca curta da
estante ao lado, e cortou sua pele ao meio, de uma ponta à outra. Charlie
pôs a mão sobre a boca dentre um pequeno chiado, observando com os
olhos vidrados enquanto ele removia cuidadosamente o revestimento verde
do robô. O plástico se partia dentre um estalido alto que preenchia toda a
oficina silenciosa. As pernas do sapo chutavam, impotentes.
— Não era sério — disse ela, a voz rouca. — Desculpa, não era
sério! Papai! — Estava tentando falar alto, mas só o que saía de sua boca
era ar. De alguma forma, sua voz se refreara, como em sonhos, quando
tentava gritar, mas não saía nada. Seu pai estava atento a seu trabalho e
não parecia escutá-la.
O robô dissecado estava no balcão, prostrado diante dele. Ele o
pressionou, e o brinquedo se contraiu de uma forma terrível, suas pernas
traseiras chutando em vão, repetindo o movimento que faziam para que
saltasse no ar. Voltou a tentar, desesperadamente, como se estivesse
sofrendo de dor.
— Espera. Não machuca ele, papai — oralizou Charlie, tentando
forçar o som a sair, mas falhou. Seu pai selecionou uma pequena chave de
fenda e começou a trabalhar na cabeça do sapo, habilmente
desenroscando alguma coisa em ambos os lados. Removeu a parte traseira
do crânio, de forma a alcançar a área interna. Todo o corpo da criatura
convulsionou. Charlie correu até o lado do pai e agarrou sua perna,
puxando a calça na altura do joelho. — Por favor! — gritou, a voz
finalmente retornando.
Ele desconectou alguma coisa e o esqueleto pareceu murchar por
completo. Articulações que antes estavam rijas caíram dentre um colapso
de peças. A luz em seus olhos, que Charlie sequer notara que estavam
iluminados, foram escurecendo, piscando, até que finalmente se apagaram.
Ela soltou o pai e recuou em direção aos fundos da oficina, pondo ambas
as mãos sobre a boca outra vez, de forma que ele não a escutasse chorar
enquanto ia metodicamente desmontando o sapo.
Charlie balançou a cabeça, tentando voltar ao presente. Ainda
conseguia sentir aquela mesma culpa de quando criança, como um penso
em seu peito. Pôs a mão sobre ele e o pressionou, gentilmente. Meu pai era
pragmático, pensou. As peças eram caras, e ele não queria desperdiçá-las
com coisas que não funcionavam. Forçou a mente a pensar sobre o
problema em questão.
Então por que os teria enterrado vivos?
— Enterrado quem vivo? — sibilou Arty, e ela se virou para ele,
sobressaltada.
— Você não devia estar ocupado fazendo alguma coisa? — disse ela,
depressa, mortificada por ter dito aquilo em voz alta.
As criaturas haviam sido enterradas naquela câmara que mais parecia
um mausoléu, oculta dentre as paredes da casa. Por algum motivo, seu pai
não quis destruí-las, e quis mantê-las por perto. Por quê? Para que ficasse
de olho nelas? Ou sequer sabia que estavam lá? Será que, de alguma
forma, o Dave as colocou lá sem seu conhecimento? Balançou a cabeça.
Não importava. O que importava era o que as criaturas fariam a seguir.
Fechou os olhos novamente, tentando visualizar a criatura lupina. Só
a vira naquele momento, enquanto regurgitava a mulher de dentro de si e
alternava entre seus dois estados, a ilusão tremeluzindo como uma lâmpada
avariada. Charlie reteve a imagem, a manteve congelada em sua mente. Ela
primeiro se focara na vítima, depois nos olhos do lobo, mas ainda tinha
visto o restante. Agora que estava visualizando a cena, ignorou o olhar do
lobo, ignorou o pânico que a havia tomado, os outros gritando e correndo a
seu redor. Ficou assistindo enquanto tudo se repetia em sua cabeça, de
novo e de novo, imaginando o peito que se abria, uma costela de cada vez,
como presas dentro de uma boca gigantesca, e então a mulher caía lá de
dentro.
Percebeu que tinha uma imagem melhor da mesma coisa guardada
em sua memória: a criatura na cova, pouco antes de tentar engoli-la.
Visualizou seu peito se abrindo, vasculhando sua mente na tentativa de ver
o que se escondia além daquela boca terrível, dentro do peito cavernoso.
Então curvou a cabeça por cima do caderno de questões e começou a
desenhar.
— Tempo — disse um dos alunos formados. Os outros três
começaram a marchar por entre os corredores, coletando os cadernos azuis,
um a um.
Charlie só tinha escrito metade da resposta da primeira pergunta, e
ainda a havia riscado — o restante do caderno era uma bagunça de
mecanismos e monstros. Pouco antes do assistente da professora chegar até
ela, enfiou o caderno debaixo do braço em silêncio e saiu pelo outro lado
da fileira, misturando-se aos alunos que já haviam terminado. Não falou
com ninguém enquanto estava saindo, mais se deixando levar do que
andando de fato, focando em seus próprios pensamentos enquanto o corpo
era carregado sem rumo pelo corredor já tão familiar. Encontrou um banco
e se sentou. Ficou olhando para os alunos que passavam a seu redor,
conversando uns com os outros ou perdidos em pensamentos particulares.
Era como se um muro tivesse sido erguido, isolando-a por completo de
tudo a seu redor.
Abriu o caderno de exercícios outra vez, na página em que passara
todo o tempo da prova rabiscando. Ali, fitando-a de volta, estavam os
rostos que ela compreendia: os rostos de monstros e assassinos, com olhos
vazios que pareciam atravessá-la, ainda que fossem de seus próprios
rascunhos. O que estão tentando me dizer? Levantou-se, fechando o
caderno, e então deu uma última olhada em seus arredores.
Era como se estivesse dando adeus a um capítulo de sua vida, outro
trecho que se tornaria nada além de uma memória assombrosa.
— Charlie — disse a voz de John, vinda de algum lugar ali perto. Ela
olhou ao redor, tentando encontrá-lo em meio ao denso fluxo de alunos que
deixavam o prédio. Finalmente o avistou lá fora, ao lado das escadas.
— Ah, oi — disse, seguindo até ele. — O que está fazendo aqui?
Não que eu não esteja feliz em vê-lo, só pensei que você tinha que trabalhar
— acrescentou, depressa, tentando assentar o turbilhão de pensamentos em
sua cabeça.
— O Clay me ligou. Tentou ligar no seu dormitório, mas acho que
você estava aqui. A mulher que a gente... de ontem à noite. Ela vai ficar
bem. Ele disse que foi para a próxima área, o próximo ponto marcado no
mapa, e deu uma volta por ali com o carro. — John desviou o olhar para a
multidão de alunos que passavam por eles, indo todos de um lado para o
outro, e abaixou o tom da voz. — Você sabe, o próximo lugar pra onde eles
vão...
— Eu sei — disse Charlie, depressa, evitando a explicação. — O que
ele encontrou?
— Bom, no geral é só um monte de campos e terrenos baldios. Um
lote para projetos futuros, mas está completamente vazio. Ele acha que é
melhor nos focarmos em amanhã. Ele tem um plano. — Charlie olhou para
ele com uma expressão vaga. — Teremos que enfrentá-los — disse, por
fim. — Ambos sabemos disso. Mas não será esta noite.
Charlie assentiu.
— Mas e aí, o que fazemos esta noite? — perguntou, sentindo-se
impotente.
— Jantar? — sugeriu John.
— Você não pode estar falando sério. — Charlie baixou o tom da
voz.
— Sei que tem acontecido muita coisa ultimamente, mas ainda temos
que comer, não é verdade?
Charlie olhou para o chão, reagrupando os pensamentos.
— Claro. Jantar. — Abriu um sorriso. — Essa tem sido uma
experiência terrível. Talvez seja bom tirar minha cabeça um pouco de tudo
isso, nem que seja só por uma noite.
— Certo — disse ele, assumindo uma expressão embaraçada. —
Sendo assim, vou dar uma passadinha em casa para me trocar. Não vou
demorar.
— John, nada disso tem que envolver você — disse Charlie, a voz
suave. Segurou as alças da mochila com ambas as mãos, como se elas a
estivessem puxando para o chão.
— Do que está falando? — John a fitou, sua inibição desaparecendo
do olhar.
— Não tem que envolver ninguém. É a mim que eles estão
procurando.
— Não temos certeza disso — disse ele, pondo a mão em seu ombro.
— Você tem que tirar isso da cabeça um pouco. Vai acabar enlouquecendo.
— John abriu um breve sorriso, embora ainda parecesse preocupado. —
Tenta fazer alguma coisa relaxante, tirar um cochilo ou algo do tipo. Vejo
você no jantar, tá certo? Mesmo restaurante às sete?
— Tá certo — repetiu ela. Ele a fitou com um olhar desamparado e
abriu um sorriso aflito, depois virou as costas e partiu.
Jessica não estava no quarto quando Charlie voltou ao dormitório.
Ela fechou a porta atrás de si, sentindo uma onda de alívio. Precisava de
silêncio. Precisava pensar, e precisava se mexer. Olhou ao redor, paralisada
por um momento. Seu sistema de empilhar tudo conforme ia usando era
funcional no dia-a-dia, mas quando procurava por algo que não tocava há
semanas, o sistema ruía.
— Onde está? — murmurou, examinando o quarto. Seus olhos
esbarraram na cabeça de Theodore, tombada junto ao pé da cama. Ela a
recolheu e passou a mão para tirar a poeira, esfregando suas grandes
orelhas até ficarem limpas, embora foscas e remendadas. — Você
costumava ser tão delicado — disse à cabeça do coelho. Ela o pôs na cama,
apoiado em seu travesseiro. — Acho que eu também costumava —
acrescentou, dentre um suspiro. — Você viu a minha bolsa de lona? —
perguntou ao brinquedo desmembrado. — Talvez embaixo da cama? —
Ajoelhou-se para conferir. Lá estava ela, bem no fundo, esmagada por uma
pilha de livros e roupas que haviam caído pelo vão entre a cama e a parede.
Charlie se esgueirou por debaixo da cama até finalmente conseguir agarrar
a alça e puxá-la para fora, pondo-a do lado de cima.
Estava vazia — havia despejado seu conteúdo pelo quarto no
momento em que chegara lá, um presságio dos hábitos caóticos que
desenvolveria. Pegou a escova e a pasta de dente e as guardou no
compartimento lateral da bolsa.
— Eu menti para o John — disse. — Não, não é verdade. Eu deixei
que ele mentisse para mim. Ele tem que saber que eles estão vindo atrás de
mim. Todos sabemos. E isso não vai parar. — Pegou uma muda do que
acreditava ser a pilha de roupas limpas, tirando uma camiseta, uma calça
jeans, meias e roupas de baixo, e as colocou na bolsa de forma veemente,
sem parar de falar. — Por que outro motivo estariam vindo nessa direção?
— perguntou ao coelho. — Mas... como sequer saberiam onde estou?
Jogou dois livros didáticos na bolsa e apalpou os bolsos,
certificando-se de que o disco e o painel de diagnóstico estavam lá. Fechou
a bolsa e inclinou a cabeça, olhando para os olhos de plástico de Theodore.
— Não é só isso — disse. — Essa coisa... — Observou o disco em
sua mão e o analisou novamente. — Ela deixou o John doente. Mas para
mim, é como se fosse uma música. — Parou de falar, incerta sobre o que
aquilo significava a respeito de si. — Não sei se eu já tive tanta certeza
assim sobre alguma coisa — disse, a voz baixa. — Mas eu preciso fazer
isso. Foi o Afton quem os criou. E o Afton levou o Sammy. Quando estava
com o John, eu senti... alguma coisa na casa. Tinha que ser ele; era como se
a minha parte perdida estivesse lá, mais perto que nunca. Só não conseguia
alcançá-la. E eu acho que esses monstros são as únicas coisas no mundo
que podem ter respostas.
Theodore olhava de volta para ela, imóvel.
— Sou eu quem eles querem. Ninguém mais vai morrer por minha
causa. — Suspirou. — Pelo menos eu tenho você para me proteger, né? —
Pendurou a bolsa nas costas e deu a volta para partir, mas então parou.
Pegou a cabeça de Theodore pelas orelhas e a ergueu na altura dos olhos.
— Acho que hoje eu vou precisar de todo o apoio possível — sussurrou.
Ela o enfiou na bolsa e deixou o dormitório às pressas, seguindo em
direção ao carro.
O mapa estava no porta-luvas. Charlie o tirou de lá e o abriu diante
de si, examinando-o por um momento antes guardá-lo novamente,
convicta. Saiu do estacionamento devagar. Embora passasse por outros
carros e pessoas no caminho, sentia que era apenas uma parte do cenário,
invisível ao mundo. Quando ela e seu carro saíssem de vista, seria
imediatamente esquecida.
O céu estava nublado — era como se o mundo estivesse apenas
esperando. Charlie sentia que tinha a estrada apenas para si, e a paz a
consumia. Estivera preocupada com o isolamento mais cedo, mas a
velocidade e o ar livre eram reconfortantes. Não se sentia sozinha. Da
janela, observava as árvores que beiravam os campos, notando como
pareciam correr pela grama, uma ilusão criada pela velocidade do carro.
Começou a sentir que havia algo à espreita em meio às árvores, tão rápida
quanto ela, avançando pelos galhos indistintos, uma companhia silenciosa,
alguém vindo para lhe contar tudo o que sempre quis saber. Estou
chegando, pensou consigo mesma.
A rua se reduziu de uma rodovia a uma estrada rural, e então a uma
trilha de cascalho que percorria uma colina sinuosa, e enquanto ia subindo
devagar pela mesma, Charlie viu os aglomerados de casas e carros ao
longe, em áreas mais populosas. Fez uma curva e deixou tudo para trás: não
havia mais casas, nem carros. As fileiras de árvores foram substituídas por
tocos enfileirados e pilhas de arbustos, acompanhados pelos letreiros vazios
que algum dia provavelmente anunciariam o que estava por vir. Placas de
concreto e estradas parcialmente pavimentadas interrompiam a paisagem
da área rural, assim como a enorme escavadeira abandonada ao longe.
Charlie tirou a cabeça de Theodore da bolsa e a pôs no banco do
passageiro.
— Fique alerta — disse.
Foi quando ela a viu: uma única casa ao estilo rancho, bem no meio
de tudo, rodeada por terra escavada e pelos esqueletos desnudos de casas
construídas pela metade, ainda erguidos em meio ao chão. Estava muito
deslocada: pintada, cercada, e até mesmo com flores plantadas no jardim.
Foi quando tudo fez sentido. Uma casa modelo, que seria usada para
mostrar o tipo de casa que fariam aqui.
A trilha terminava a alguns metros da construção, substituída por
uma via desgastada em meio a terra, por onde os maquinários iam e
vinham. Charlie reduziu a velocidade até parar o carro.
— Nem você pode me seguir agora — disse à cabeça do coelho, e
então saiu do carro e fechou a porta, abrindo um sorriso para Theodore do
outro lado da janela.
Charlie seguiu pela via devagar. As carcaças colossais e inacabadas
das casas ao redor pareciam observá-la com olhos reprovadores conforme
trespassava a propriedade. Em meio ao silêncio, o cascalho fazia um
terrível barulho enquanto era esmagado sob seus pés. Não havia sequer
uma brisa — estava tudo imóvel. Parou quando chegou ao topo da colina,
inspecionando os arredores por um momento. A atmosfera ali parecia
agitada. Era como se algo ali não estivesse certo. Ergueu o olhar quando
um pássaro passou por cima de sua cabeça, parcamente visível devido ao
quão alto estava voando. Voltou a olhar para o descampado.
— Vocês estão em algum lugar por aqui, não estão?
Finalmente chegou à porta da única casa finalizada. Estava
localizada bem ao centro de um quadrado de grama perfeitamente aparada,
assomando-se sobre seus vizinhos alquebrados e ainda pela metade. Charlie
olhou para o gramado por um momento antes de perceber que devia ser
falso, assim como qualquer mobilha que houvesse lá dentro.
Não tentou abrir a porta de imediato; ao invés disso, deu a volta em
direção ao quintal. O gramado tinha uma disposição quadrada e era bem
aparado, assim como na frente, mas a ilusão ali havia sido arruinada. Faixas
estilhaçadas de grama haviam sido arrancadas do chão. O lugar irradiava
uma atmosfera de perigo, agora assustadoramente familiar. Charlie ficou
apenas observando por um momento, a certeza tomando seu corpo. Trincou
o maxilar, e então deu a volta novamente, em direção à porta da frente. Ela
se abriu tranquilamente, sem sequer o som de um sussurro, e Charlie
entrou.
A casa estava escura. Tentou ligar um interruptor, e o lugar se
iluminou por inteiro no mesmo instante. Foi recebida por uma sala
completamente mobiliada, contando com poltronas de couro e um sofá, e
até mesmo velas sobre a cornija da lareira. Começou a fechar a porta atrás
de si, mas estão hesitou, deixando-a entreaberta. Adentrou ainda mais na
sala de estar, onde havia um sofá em L e uma TV de tela plana. Me
surpreende que não tenha sido roubada, pensou. Mas quando se
aproximou, viu o porquê — não era real. Não havia fios ou cabos saindo
dela. O lugar inteiro tinha uma qualidade surreal, quase uma caricatura.
Seguiu devagar em direção à sala de jantar, cada passo terrivelmente
ruidoso sobre o piso de madeira de lei. Lá dentro havia uma linda mesa de
mogno, posta com um belo jogo de jantar. Charlie se curvou para olhar a
parte de baixo da mesa.
— Madeira de balsa — disse, rindo consigo mesma. Era uma
madeira leve, suave, feita para ser usada para modelos de avião, não para
mobilha; provavelmente conseguiria erguer a mesa sobre sua cabeça, se
quisesse.
Passando por um pequeno corredor aos fundos da sala de jantar
ficava a cozinha, reluzente com seus eletrodomésticos novinhos em folha,
ou pelo menos imitações deles. Havia também uma porta dos fundos na
cozinha. Ela a destrancou e abriu pela metade, inclinando-se para fora e
observando novamente o terreno amplo e torturado. Havia vários degraus
de pedra ali, que levavam a um pequeno jardim. Ela voltou para dentro,
certificando-se de deixar a porta entreaberta.
Havia um segundo corredor na sala de estar, esse mais comprido.
Levava aos quartos e uma pequena sala feita para representar um escritório
ou uma espécie de toca, que contava com tudo, estantes de livros, uma
mesa e até uma bandeja de correspondências cheia de pastas vazias. Charlie
se sentou na cadeira junto à mesa, encantada com aquela imitação
absolutamente perfeita, embora superficial, da vida. Girou na cadeira uma
vez, mas depois se levantou — não queria se distrair. Também havia uma
porta ali que levava para o lado de fora, embora estivesse curiosamente
posicionada ao lado da mesa. Charlie a abriu, mexendo no trinco até ter
certeza de que permaneceria aberta. Continuou seu trajeto, dando a volta na
casa sistematicamente, destrancando e abrindo cada janela pela qual
passava. Então desceu ao porão, onde encontrou as portas de um abrigo
contra tempestades sobre um lance de escadas de pedra bastante íngreme.
Ela também as abriu, deixando-as escancaradas. Do lado de fora, a noite
havia caído.
O lugar tinha vários quartos, cada um deles mobiliado e arrumado,
com cortinas reluzentes e lençóis de seda, além de um grande banheiro com
pias de mármore. Charlie abriu a torneira para ver se tinha água, mas nada
aconteceu, nem mesmo o som dos canos tentando bombear a água e
falhando. Havia um quarto principal com uma cama enorme, um quarto de
hóspedes que por algum motivo parecia menos aconchegante que o resto da
casa, e um quarto infantil com uma coleção de animais em tamanho real
pintada na parede e um móbile pendurado sobre um berço. Charlie deu uma
olhada em todos, e depois voltou ao quarto principal.
A cama era enorme, coberta por um dossel com mosquiteiro branco.
As cobertas também eram brancas, e a luz do luar entrava pela janela,
iluminando os travesseiros. Tinha um efeito sinistro, como se quem
dormisse ali faria parte da exposição. Charlie foi até a janela e se reclinou
no batente, respirando o ar noturno, fresco e tranquilizante. Olhou para o
céu. Ainda estava nublado; apenas algumas estrelas eram visíveis. Até
então, vinha agindo com uma energia impulsiva e aterradora, mas aquela
parte seria agonizante. Várias horas se passariam antes que alguma coisa
acontecesse, e tudo o que podia fazer era esperar. Sentiu uma palpitação
nervosa preencher seu estômago. Queria andar, ou até fugir, mas fechou os
olhos e trincou o maxilar. É a mim que eles querem.
Por fim, Charlie se afastou da janela. Havia colocado um pijama na
bolsa enquanto estava no carro, mas aquela casa estéril, cheia de enfeites e
imitações, tinha uma atmosfera estranha demais para que ela se sentisse à
vontade para se trocar. Ao invés disso, apenas tirou os tênis e considerou
que seu ritual para a hora de dormir estava completo. Deitou-se na cama e
conjurou seus pesadelos, reunindo aqueles últimos momentos com Sammy
e mantendo-os por perto, como um talismã. Aguenta firme, pensou. Estou
chegando.
John checou o relógio. Ela só está atrasada. Mas também estava
atrasada na última vez. A garçonete o olhou nos olhos, e ele balançou a
cabeça. Claro, na última vez ela apareceu toda coberta de terra. Já havia
ligado para o quarto dela no dormitório, mas o telefone ficou apenas
chamando. Havia visto o que acreditava ser uma secretária eletrônica
quando esteve lá, mas foi apenas enquanto esperava que ela atendesse que
se deu conta de que podia ser mais um dos projetos de Charlie, ou
simplesmente uma peça de lixo descartada. A garçonete encheu seu copo
d’água, e ele lhe abriu um sorriso.
Ela balançou a cabeça.
— Mesma garota? — perguntou, a voz gentil.
John deu uma risada involuntária.
— Sim, mesma garota — disse. — Mas tá tudo bem. Ela não me deu
bolo, só está... ocupada. Coisas da faculdade, você sabe.
— É claro. Me avise se quiser fazer seu pedido. — Ela o fitou mais
uma vez com um olhar de pena e então o deixou sozinho. Ele balançou a
cabeça.
De repente, visualizou as mãos de Charlie nas alças da mochila,
apertando com tanta força que as articulações ficaram brancas. Estão vindo
atrás de mim, ela havia dito. Charlie não era do tipo de pessoa que ficaria
apenas esperando que algo acontecesse com ela.
Ele se levantou e seguiu em direção ao telefone público nos fundos
do restaurante a passos largos e urgentes. Clay atendeu no primeiro toque.
— Clay, é o John. Ouviu alguma coisa da Charlie?
— Não. Qual é o problema?
— Nenhum — disse John, pensativo. — Quer dizer, eu não sei. Ela
ia me encontrar e está... vinte e quatro minutos atrasada. Sei que não é
muito, mas ela disse uma coisa mais cedo que está me incomodando. Acho
que ela pode fazer uma coisa muito idiota.
— Onde você está? — perguntou Clay, e John lhe passou o
endereço. — Já chego aí — disse, desligando o telefone antes que John
tivesse a chance de responder.
CAPÍTULO DEZ
Nos primeiros minutos, Charlie manteve os olhos fechados, fingindo
que estava dormindo, mas depois de um tempo, eles começaram a palpitar
sozinhos. Apertou os olhos com força, tentando forçá-los a permanecerem
fechados, mas aquilo foi se tornando insuportável. Voltou a abri-los em
meio à escuridão e finalmente se sentiu aliviada.
A casa esfriara com a caída da noite. O ar fresco e puro invadia o
cômodo pela janela aberta. Respirou fundo, tentando se acalmar a cada
nova exalação. Estava mais impaciente que ansiosa. Anda logo, pensou. Sei
que estão aí fora.
Mas só havia silêncio e sossego.
Tirou o disco do bolso e olhou para ele. Estava muito escuro para
enxergar os detalhes, não que houvesse alguma coisa ali que ela já não
houvesse memorizado. Uma pequena luz iluminava o ambiente, provinda
da lua lá fora, mas as sombras nos cantos eram profundas, como se
houvesse algo escondido neles, comendo a luz. Esfregou a lateral do disco
com o polegar, sentindo as protuberâncias das letras. Se não soubesse que
estavam lá, mal conseguiria notar.
Afton Robotics, Ltda. Havia visto fotos de William Afton, o homem
que Dave costumava ser: fotos dele com seu pai, sorrindo e dando risada.
Mas só se lembrava dele como o homem na fantasia de coelho. Meu pai
devia confiar nele. Não devia nem suspeitar. Nunca teria construído um
segundo restaurante com o homem que assassinou um de seus filhos. Mas
aquelas criaturas — ele tinha que saber que estavam enterradas embaixo
da casa. Charlie trincou os dentes, suprimindo um súbito impulso delirante
de sorrir.
— É claro que tinha um cemitério de robôs secreto embaixo do meu
quarto — murmurou. — É claro que tinha que ser justo ali. — Cobriu o
rosto com as mãos. Tudo aquilo parecia se emaranhar em sua mente.
Começou a se lembrar da cena de forma involuntária. A criatura
junto à porta. Primeiro era uma sombra bloqueando a luz, depois era um
homem vestido de coelho, e mesmo nesse momento, Charlie não sentiu
medo. Ela conhecia aquele coelho. Sammy nem o havia notado ainda.
Continuava brincando com seu caminhãozinho de brinquedo, empurrando-
o de um lado para o outro pelo chão, como se estivesse hipnotizado.
Charlie olhou para a coisa junto à porta, e sentiu um frio se formar na
boca do estômago. Não era o coelho que ela conhecia. Seus olhos iam e
vinham, sutis, de um gêmeo para o outro, bem devagar: decidindo-se.
Quando os olhos pousaram sobre Charlie, o frio pareceu se espalhar por
todo o seu corpo, e então ele desviou o olhar outra vez, para Sammy, que
ainda não havia sequer se virado. Então, um movimento súbito, e as
roupas nos cabides pareceram saltar todas de uma vez só, cobrindo-a de
tal forma que não conseguia enxergar. Ouviu o caminhão de brinquedo
cair no chão e girar no lugar por um instante, e então tudo ficou quieto.
Estava sozinha, uma parte vital de si havia sido levada.
Charlie se sentou, sacudindo o corpo para tentar se livrar daquelas
memórias. Havia se acostumado a dividir o quarto com Jessica. Fazia muito
tempo desde a última vez que estivera completamente sozinha com seus
pensamentos no escuro.
— Tinha me esquecido como era difícil ficar quieta — sussurrou, a
voz tão leve quanto uma respiração. Voltou a olhar para o disco estranho
em sua mão, como se fosse ele o que lhe estava trazendo aquelas visões.
Ela o arremessou do outro lado do quarto, em um canto escuro fora de
vista.
Foi quando escutou. Havia alguma coisa dentro da casa.
O que quer que fosse, estava sendo cauteloso. Ouvia os rangidos de
algum lugar ao longe, mas eram lentos e abafados. Na sequência, tudo
ficou em silêncio; o que quer que fosse o que havia se mexido estava
esperando que o som fosse esquecido. Charlie saiu da cama a passos lentos
e se aproximou da porta com cuidado, abrindo-a um pouco mais e
inclinando-se para fora de forma agonizantemente devagar, até que pudesse
enxergar a sala de estar e a sala de jantar mais adiante. Uma parte de si
continuava voltando ao pensamento de que estava na casa de outra pessoa,
de que era uma intrusa.
— Olá? — disse, quase esperando uma resposta, ainda que uma
resposta furiosa, questionando o que estava fazendo ali. Talvez o John
respondesse, feliz por encontrá-la, e viria correndo em meio à escuridão.
Apenas o silêncio respondeu seu chamado, mas Charlie sabia que
não estava mais sozinha.
Alargou os olhos, o coração batendo feito um tambor em seu peito,
dificultando a respiração. Foi pisando com cuidado nos ladrilhos de pedra,
seguindo pelo corredor curto em direção à entrada da sala de estar, onde
parou para escutar novamente. Um relógio ainda anunciava as horas em
algum outro cômodo. Charlie seguiu até os limites da sala de estar e parou
novamente. Podia ver a maior parte da casa dali e examinou a área em
busca de algo que estivesse fora do lugar. Havia portas por todos os lados,
cercando-a como bocas escancaradas, o ar noturno entrando pelas janelas
abertas por ela.
No canto mais distante da sala de estar, havia um grande corredor
que levava a outro quarto. Era um dos poucos lugares para o qual não tinha
um campo de visão claro. Deu a volta por um sofá de couro diante de si e
atravessou um tapete redondo que preenchia a maior parte do cômodo.
Conforme avançava, conseguia ver mais do corredor se revelando para ela.
E ele continuava em frente, como se não tivesse fim.
Charlie parou no meio do caminho. Agora conseguia ver o quarto do
outro lado. Tinha várias janelas e estava completamente preenchido pela
luz azulada da lua, mas algo obstruía sua visão, algo que não havia notado
enquanto estava se mexendo. Agora a silhueta era inconfundível. Charlie
olhou ao redor novamente, com cuidado, os olhos ainda se ajustando aos
arredores. À sua direita, outra porta gigantesca levava a um único degrau
que descia rumo à grande toca. As enormes estantes de livros alcançavam o
teto, e o cômodo emanava um ar putrefato. Do outro lado das estantes,
havia outra sombra que não devia estar ali. Charlie esbarrou numa
luminária e se assustou. Não havia sequer percebido que estava andando
para trás.
A porta da frente estava escancarada. Charlie quase disparou em sua
direção para que pudesse escapar, mas se deteve. Respirou fundo e voltou
para o quarto a passos leves, olhando por cima do ombro enquanto
prosseguia. Seguiu em direção à cama, deslizando os pés desnudos pelo
piso de madeira, de forma que seus passos não fizessem barulho, e subiu no
colchão devagar, cuidando para que as molas não estalassem. Charlie se
deitou, fechou os olhos e esperou.
Seus olhos se contraíram, todos os seus instintos gritando a mesma
coisa: Abra os olhos! Fuja! Charlie procurava estabilizar a respiração,
tentando amolecer o corpo, tentando parecer estar adormecida. Tem alguma
coisa se mexendo. Contou os passos. Um, dois, um, dois — não.Eram
levemente assíncronos: não era apenas um. Havia dois, talvez três deles
dentro da casa. Um par de passos passou pela porta, e ela permitiu que os
olhos se abrissem numa breve palpitação, apenas por um instante, o
suficiente para uma sombra indistinta atravessando de um lado para o outro
pelo vão da porta entreaberta.
O outro par de passos parecia estar no corredor mais ao lado,
enquanto que o terceiro...
Fechou os olhos com toda a força. Os passos pararam bem diante de
sua porta. Sua respiração estava entrecortada; estava quase soluçando
quando inspirava, então prendeu ambos os lábios dentro da boca. A porta
foi se abrindo. Seus pulmões se apertaram, implorando por ar, mas ela se
recusava. Segurou o fôlego como se fosse sua última respiração. Eu vou te
encontrar. Cerrou os punhos, determinada a continuar imóvel.
Os passos haviam entrado pela porta, cruzando o chão com uma
passada pesada. Permaneceu estática. O ar acima dela pareceu estremecer
e, por detrás de suas pálpebras, viu a escuridão ficar ainda mais escura.
Charlie abriu os olhos e inspirou.
O espaço acima dela estava vazio; não havia nada olhando para ela.
Virou a cabeça devagar, espiando o corredor aberto à sua esquerda.
Os barulhos tinham parado.
De repente, as cobertas foram arrancadas de cima dela, puxadas do
pé da cama. Charlie se ergueu e finalmente viu o que havia vindo atrás
dela. Uma enorme cabeça repousava o queixo junto a seus pés. Parecia uma
coisa saída de uma atração de circo, os olhos virando de um lado para o
outro, estalando a cada movimento. A cartola completamente negra
empoleirada em sua cabeça, levemente inclinada para o lado, as bochechas
gigantes e o nariz de botão o entregaram imediatamente. Freddy.
Não era mais a cabeça lisa e indefinida que havia desenterrado no
terreno abandonado. A cabeça estava vívida e cheia de movimento, coberta
de pelos marrons ondulados e com bochechas saltitantes. No entanto, havia
algo desconexo naquilo tudo, como se cada parte de seu rosto se mexesse
de forma independente.
Charlie lutava para permanecer imóvel, mas seu corpo se mexia por
conta própria, se contorcendo e retraindo, tentando se afastar da boca que
se abria em sua direção. O rosto de Freddy deslizou pela cama como uma
jiboia. A cabeça foi perdendo a forma conforme suas extremidades se
abriam, agarrando seu pé e começando a engoli-la, erguendo-se bem
devagar por cima de suas pernas, enquanto ela lutava para não gritar ou
reagir. Um braço gigante se ergueu e agarrou o lado da cama, balançando o
quarto como se tivesse se ancorado, e puxou o corpo gigantesco para cima.
A mandíbula de Freddy fazia pequenos movimentos de mastigação, o rosto
distorcido puxando as pernas de Charlie ainda mais para dentro. Suas
bochechas e queixo se deslocavam cada vez mais adiante. Já não lembrava
mais uma coisa viva.
O pânico a consumiu e Charlie gritou. Cerrou os punhos, mas já não
havia mais rosto para bater. Havia apenas um turbilhão apertado e
espiralado de pelos, dentes e cabos. Antes que pudesse reagir, seus braços
ficaram presos rentes ao corpo, enclausurados dentro da coisa. Apenas a
cabeça continuava livre. Charlie tomou um último fôlego e foi
violentamente puxada, consumida pela criatura.
Clay Burke parou o carro sem desacelerar. Os freios chiaram
enquanto os pneus derrapavam pela terra. John saiu do carro antes mesmo
que Clay conseguisse estabilizá-lo, correndo pela colina em direção à casa.
— Pelos fundos — disse Clay, correndo atrás de John, a voz baixa e
severa. Deram a volta na casa, em direção à porta dos fundos, que estava
escancarada. — Olhe daquele lado. — Clay apontou para a direita e correu
para a esquerda. John se manteve junto à parede, examinando os cômodos
conforme passava pelas portas adiante.
— Charlie! — gritou.
— Charlie! — repetiu Clay, entrando no quarto principal.
— CHARLIE! — John correu de quarto em quarto, movendo-se
mais rápido. — CHARLIE! — Chegou à porta da frente. Ele a abriu com
tudo e foi para fora, meio que esperando pegar alguém fugindo da cena.
— Clay, conseguiu encontrá-la? — gritou, voltando lá para dentro.
Clay voltou rapidamente à sala de estar, balançando a cabeça.
— Não, mas ela esteve aqui. A cama estava desarrumada e tinha
terra por todo o chão. Além disso... — Clay ergueu os tênis de Charlie.
John assentiu penosamente, apenas então notando os rastros de terra
espalhados pela casa. Olhou para a porta da frente outra vez.
— Ela se foi — disse John, sua voz ficando presa na garganta. Olhou
para o outro. — E agora? — perguntou.
Clay apenas olhou para o chão, sem dizer nada.
CAPÍTULO ONZE
— Clay! — repetiu John. Seu pânico crescia conforme o homem
mais velho continuava a analisar as tábuas do assoalho, aparentemente
perdido em pensamentos. John pôs uma mão em seu braço, e Clay se
assustou. Era como se acabasse de se dar conta de que não estava sozinho.
— Temos que encontrá-la — disse John, com urgência na voz.
Clay assentiu, de volta à realidade. Saiu correndo, e John o seguiu de
perto, mal conseguindo se acomodar no banco do passageiro antes que
Clay desse a partida no carro e partisse, acelerando pela estrada inacabada.
— Aonde vamos? — gritou John. Ainda estava lutando para fechar a
porta em meio ao vento. Ela balançava como uma asa gigantesca, sendo
forçada para o lado oposto enquanto Clay descia a colina a toda velocidade.
Por fim, John conseguiu puxá-la e a fechou.
— Não sei — disse Clay, soturno. — Mas sabemos até
aproximadamente onde eles podem ir. — Foi dirigindo desenfreadamente
de volta pela colina, seguindo para a estrada principal, onde ligou as
sirenes. Percorreram cerca de um quilômetro e meio quando fez a curva em
uma pequena via não pavimentada.
John foi lançado contra a porta com força, e acabou batendo com o
ombro. Pegou o sinto de segurança enquanto seguiam pela pista aos
trancos, os galhos soltos do mato ao redor arranhando as laterais do carro e
batendo no para-brisa.
— Eles têm que passar por aqui — disse Clay. — Esse campo fica
bem no meio do caminho entre a casa e a próxima área do mapa. Só
precisamos esperar por eles. — Ele parou o carro de forma abrupta, e John
foi empurrado para frente.
Juntos, os dois saíram do carro. Clay havia parado na beira de um
campo aberto. Havia algumas árvores aqui e ali, e a grama era alta, mas não
havia plantações ou gado pastando. John avançou pelo descampado e
observou a relva balançar como água em meio ao vento.
— Acha mesmo que eles vão passar por aqui? — perguntou John.
— Se continuarem seguindo na mesma direção que estavam antes —
disse Clay. — Precisam passar.
Vários minutos se passaram. John andava de um lado para o outro na
frente do carro. Clay estava mais próximo do meio do campo, pronto para
correr de imediato em qualquer direção que fosse.
— Já deviam estar aqui a essa altura — disse John. — Tem algo
errado. — Olhou para Clay, que assentiu.
O som do motor de um carro começou a soar ao longe, ficando cada
vez mais alto. Ambos congelaram na mesma hora. Quem quer que fosse,
estava vindo rápido; John podia ouvir os galhos batendo na carroçaria do
carro numa percussão irregular. Alguns segundos depois, o carro veio
disparando pela via, derrapando até parar.
— Jessica — disse John, andando até o carro.
— Cadê a Charlie? — perguntou Jessica, saindo em meio à grama.
— Como nos encontrou? — indagou Clay.
— Eu liguei para ela — interveio John, depressa. — Do restaurante,
logo depois de falar com você.
— Estive dirigindo por toda parte. Tive sorte de encontrar vocês. Por
que estão parados aqui?
John olhou para Clay, e nenhum dos dois parecia seguros.
— Eles já estão com ela, não é? — disse Jessica. — Então por que
continuariam seguindo em direção ao dormitório? — Clay fechou os olhos,
levando a mão às têmporas.
— Não continuariam — disse ele. Olhou para o céu, o vento batendo
no rosto erguido com um toque áspero.
— Então podem estar indo para qualquer lugar agora — acrescentou
Jessica.
— Não dá mais para prever o que vão fazer — disse John. — Eles já
têm o que queriam.
— E ela queria isso? Ela planejou isso? — Ela se voltou para John
outra vez. — Talvez eles nem estivessem atrás dela. Podia ser qualquer
um! Por que ela tinha que ir até lá como se fosse algum tipo de...
— Sacrifício — disse John, a voz baixa.
— Ela não pode estar morta — murmurou Jessica, a voz trêmula sob
a respiração entrecortada.
— Não podemos pensar assim — disse John, com firmeza.
— Vamos formar um perímetro. — disse Clay. — Jessica, você e
John pegam o seu carro e começam a dirigir por ali. — Apontou para o
lado. — Eu vou dar a volta pela outra direção. Vamos contornar a área e
torcer para encontrá-los. Não consigo pensar em nenhuma outra maneira.
— Voltou o olhou para os adolescentes, impotente. Ninguém se mexeu,
apesar do novo plano de Clay. John podia sentir a atmosfera ao redor deles;
todos haviam se rendido. — Não sei mais o que fazer. — A voz de Clay
havia perdido a força.
— A gente podia... — disse John, de forma abrupta, a ideia se
formando enquanto falava. — Talvez possamos perguntar a eles.
— Quer perguntar a eles? — disse Jessica, a voz sarcástica. — Claro,
vamos ligar para eles e deixar uma mensagem. “Por favor, retornem a
ligação explicando seus planos assassinos assim que possível!”
— Exatamente — disse John. — Clay, as mascotes da Freddy’s:
todas elas já eram? Quando você disse que foram descartadas, o que isso
significa? Podemos ter acesso a elas? — Voltou-se para Jessica. — Eles
nos ajudaram antes, ou pelo menos tentaram, quando pararam de tentar nos
matar. Eles podem saber de alguma coisa, sei lá, ainda que estejam num
ferro velho por aí, deve ter restado alguma coisa. Clay?
Clay virou o rosto para o céu novamente. Jessica o encarou com um
olhar incisivo.
— Você sabe, não é? — disse. — Você sabe onde eles estão.
Clay suspirou.
— Sim, eu sei onde eles estão. — Ele hesitou por um instante. —
Não pude deixar que fossem destruídos — prosseguiu. — Não sem saber o
que eram, quem haviam sido. E não ousaria simplesmente deixar que
fossem descartados desse jeito, considerando o que são capazes de fazer.
Jessica abriu a boca, a ponto de fazer uma pergunta, mas se deteve.
— Eu... eu os guardei. — disse Clay. Havia um estranho tom de
incerteza em sua voz.
— Você o quê? — John deu um passo adiante, subitamente alerta.
— Eu os guardei. Todos eles. Mas não sei com relação ao fato de
fazermos perguntas. Desde aquela noite, eles não moveram um dedo
sequer. Estão quebrados, ou pelo menos passam muito bem essa impressão.
Já estão sentados no meu porão há mais de um ano. Tomei o cuidado de
deixá-los a sós. Me parecia que não deviam ser perturbados.
— Bom, vamos ter que perturbá-los — disse Jessica. — Temos que
tentar encontrar a Charlie.
John mal escutou o que ela havia dito. Olhava para Clay com os
olhos vidrados.
— Vamos — disse Clay. Seguiu em direção ao carro com o olhar
pesado, como se alguma coisa tivesse acabado de ser tirada dele.
John e Jessica trocaram um olhar, e então foram atrás. Antes que
chegassem ao carro de Jessica, Clay já estava avançando rumo à estrada
principal. Jessica pisou no acelerador, alcançando-o assim que Clay fez
uma curva fechada à direita.
Eles não conversaram. Jessica estava atenta à pista e John estava
jogado em seu banco, repensando tudo. Adiante, Clay havia acendido as
luzes da sirene, mas sem o toque.
Enquanto prosseguiam, John ficou olhando para a escuridão lá fora.
Talvez pudesse acabar encontrando a Charlie. Manteve a mão a postos
sobre a maçaneta, pronto para pular para fora, para correr e salvá-la. Mas
só havia uma infinidade de árvores, dispersas dentre as janelas alaranjadas
das casas ao longe, suspensas na colina como enfeites numa árvore de
natal.
— Chegamos — disse Jessica, mais cedo do que John esperava.
John se ergueu no banco e olhou pela janela.
Ela virou à esquerda e desacelerou o carro, e enquanto o fazia, John
reconheceu o lugar. A casa de Carlton estava alguns metros mais adiante,
cercada por uma baía de árvores. Clay parou em frente à garagem e os dois
foram atrás dele. Jessica estacionou a alguns centímetros de seu para-
choque.
Clay ia balançando as chaves, nervoso, enquanto se aproximavam da
casa — parecia um homem mudado, não mais o delegado de polícia seguro
de si, que sempre estava em controle de toda situação. Ele destrancou a
porta, mas John ficou parado. Queria que Clay entrasse primeiro.
Clay os guiou até a sala de estar, e Jessica arfou de surpresa. Clay se
voltou para ela com um olhar encabulado.
— Desculpem pela bagunça — disse.
John olhou ao redor. O cômodo estava praticamente igual ao que se
lembrava, com os mesmos sofás e poltronas da última vez, todos
posicionados ao redor da lareira. Mas ambos os sofás estavam cheios de
pastas abertas, uma por cima da outra, além de pilhas de jornais e o que
pareciam roupas sujas. Em um dos cantos da mesa, havia seis canecas de
café reunidas, uma junto da outra. John sentiu o coração apertar ao notar
duas garrafas de whisky caídas de lado entre uma cadeira e a brasa da
lareira. Deu uma rápida passada de olhos pelo local e encontrou outras
duas. Uma havia rolado para debaixo do sofá; a outra ainda estava pela
metade, ao lado de um copo com uma tonalidade distintamente amarelada.
John desviou o olhar para Jessica, que mordeu o lábio.
— O que aconteceu aqui? — perguntou ela.
— A Betty foi embora — disse Clay, sem rodeios.
— Oh.
— Sinto muito — disse John. Clay balançou a mão para ele, a fim de
evitar mais tentativas de confortá-lo. Pigarreou.
— Acho que ela estava certa. Ou pelo menos fez o que era certo para
ela. — Ele forçou uma risada, fazendo um gesto para a bagunça ao redor.
— Todos fazemos o que temos que fazer. — Sentou-se numa cadeira
verde, o único assento completamente livre de papelada e lixo, e então
balançou a cabeça.
— Posso tirar daqui? — perguntou John, apontando para os papéis
que enchiam o sofá no lado oposto a Clay. Clay não respondeu, então John
os empilhou e os colocou mais para o lado, tomando cuidado para não
derrubar nada. Sentou-se, e, após um momento, Jessica fez o mesmo,
embora olhasse para o sofá como se estivesse empesteado.
— Clay... — John começou a dizer, mas o mais velho começou a
falar outra vez, como se nem tivesse parado:
— Depois que vocês saíram... quando já estavam todos seguros... eu
voltei lá. Eu e a Betty decidimos que seria uma boa hora para o Carlton sair
da cidade por um tempo, então ela o levou para ficar com sua irmã durante
algumas semanas. Para ser honesto, não me lembro se foi ela que sugeriu
eu se fui eu que coloquei a ideia na cabeça dela. Mas assim que os vi
saindo da garagem e sumindo no horizonte, fui ao trabalho. A Freddy’s
estava completamente lacrada. Haviam removido o corpo do policial Dunn
e finalizado as buscas, tudo seguindo minuciosamente às minhas diretrizes,
é claro. Chegaram a pegar algumas amostras, mas nada mais foi retirado
das instalações, pelo menos não até aquele momento. Estavam esperando
que eu desse o sinal verde. O lugar sequer estava sob vigilância... afinal,
não tinha nada perigoso lá dentro, certo? Então, esperei que as coisas se
acalmassem. Depois fui até St. George e aluguei um caminhão de mudança.
Estava chovendo, na ocasião, e quando cheguei à Freddy’s, o mundo
começou a desabar, uma tempestade de raios daquelas, ainda que nada
constasse na previsão do tempo. Eu estava com as chaves; tudo ali era
agora de jurisdição da polícia, então entrei sem problema nenhum. Sabia
onde os encontraria... ou pelo menos sabia onde os havia deixado, e rezei
para que ainda estivessem lá. Estavam todos amontoados, um junto do
outro, naquela sala com o palco menor.
— A Baía Pirata — disse Jessica, a voz quase um sussurro.
— Eu meio que esperava que já não estivessem mais lá, mas estavam
sentados pacientemente, como se estivessem a minha espera. Eles são
enormes, sabem disso. Mais de cem quilos de metal e seja lá o que mais
tinha lá dentro, então tive que arrastá-los um por um. Por fim, consegui
carregar todos no caminhão. Pensei em colocá-los para dentro pelo abrigo
contra tempestades, mas quando cheguei em casa, as luzes estavam acesas
e o carro da Betty estava na garagem. Parecia que ela tinha voltado da
viagem mais cedo.
— E o que você fez? — perguntou Jessica. Ela se curvou, apoiando o
queixo nas mãos. John balançava a cabeça, ligeiramente entretido. Estavam
gostando da história.
— Fiquei esperando do outro lado da rua. De olho nas luzes,
sondando minha própria casa. Quando a última luz se apagou, levei o
caminhão até a entrada da garagem e comecei a arrastar aquelas coisas
novamente, colocando-as no abrigo, uma a uma. Levei o caminhão de volta
a St. George e voltei para casa sem que ninguém me visse. Nunca teria
dado certo se eu não tivesse os raios e trovões para me mascararem o que
eu estava fazendo. Quando cheguei, estava encharcado e com o corpo todo
dolorido. Tudo o que eu queria era subir para o quarto e ficar com a minha
esposa... — Pigarreou. — Mas não ousei. Peguei uma coberta e dormi na
frente da porta do porão, no caso de alguma coisa tentar sair.
— E saiu? — perguntou Jessica. Clay balançou a cabeça devagar, de
um lado para o outro, como se ela tivesse ficado mais pesada.
— De manhã, eles estavam exatamente como eu os havia deixado.
Depois disso, passei a descer lá todas as noites, depois que a Betty dormia.
Eu os observava, e às vezes até... falava com eles, tentando provocá-los de
alguma forma. Queria ter certeza de que eles não nos matariam enquanto
estivéssemos dormindo. Repassei os arquivos do caso, tentando entender
como perdemos o Afton. Como ele tinha conseguido voltar sem que
ninguém suspeitasse? A Betty percebeu que tinha algo errado. Algumas
semanas depois, ela acordou e começou a me procurar... e me encontrou,
junto com eles. — Burke fechou os olhos. — Não me lembro exatamente
como foi a conversa, mas ela partiu novamente na manhã seguinte, e, dessa
vez, não voltou mais.
John se ajeitou no sofá, inquieto.
— Eles não se mexem desde então?
— Continuam sentados lá embaixo, como brinquedos quebrados. Já
nem penso mais neles.
— Clay, a Charlie tá em perigo — disse John, levantando-se. —
Temos que dar uma olhada neles.
Clay assentiu.
— Muito bem, então vamos dar uma olhada. — Ele também se
levantou, fazendo um gesto em direção à cozinha.
A última que John estivera na cozinha dos Burke fora na manhã após
todos escaparem da Freddy’s. Clay estava fazendo panquecas e fazendo
piadas. Betty, a mãe de Carlton, estava sentada junto ao filho, como se
tivesse medo de sair do seu lado. Estavam todos eufóricos com o alívio de
que o tormento havia terminado, mas John conseguia ver que cada um
deles, todos a sua própria maneira, também lutavam contra outras emoções.
Alguns paravam de falar no meio da frase, esqueciam o restante, ou
ficavam apenas encarando o vazio adiante por vários instantes. Ainda
estavam todos tentando se recuperar. Mas a cozinha em si estava radiante.
As luzes brilhavam por cima dos balcões, e o cheiro de café e panquecas
era reconfortante, uma conexão com a realidade.
Mas agora, John foi atingido com força pelo contraste. Podia sentir
um cheiro rançoso, e viu imediatamente do que se tratava: os balcões e a
mesa estavam cobertos de pratos sujos, todos incrustados com restos de
refeições. A maior parte mal havia sido comida. Havia mais duas garrafas
vazias na pia da cozinha.
Clay abriu a porta do que parecia ser um armário, mas se tratava da
escada para o porão. Acionou um interruptor, acendendo a luz turva da
lâmpada que iluminava a escada, e indicou para que entrassem. Jessica deu
um passo em frente, mas John pôs a mão de leve em seu braço, detendo-a.
Clay foi primeiro, guiando-os pela descida, e John o seguiu, conduzindo
Jessica atrás de si.
As escadas eram estreitas e um pouco íngremes demais. Toda vez
que John descia um degrau, sentia uma leve inquietação, o corpo
despreparado para uma possível queda. Dois degraus abaixo, o ar mudou:
ficou mais úmido, com cheiro de mofo.
— Cuidado com esse aí — disse Clay. John baixou o olhar e viu que
uma das tábuas estava faltando. John passou por cima do buraco com
cuidado e se virou para trás, oferecendo a mão para Jessica, enquanto a
mesma se preparava para dar o salto, desconfortável com a situação. — É
uma das muitas coisas na minha lista de afazeres — improvisou Clay.
O porão em si não havia sido terminado. O chão e as paredes não
passavam da superfície interna não pintada do próprio alicerce da casa.
Clay apontou para um canto escuro onde a caldeira espreitava, maciça.
Jessica arfou.
Estavam todos ali, enfileirados junto à parede. No final da fileira
estava Bonnie, recostado na caldeira. O pelo azul do coelho enorme estava
manchado e fosco, e suas orelhas compridas estavam caídas para frente,
quase ocultando o rosto grande e quadrado. Ainda segurava o baixo
vermelho em uma das mãos gigantescas, embora estivesse maltratado e
quebrado. Metade de sua gravata borboleta vermelha havia sido arrancada,
dando a impressão de que seu rosto estava desproporcional.
A seu lado estava Freddy Fazbear. Sua cartola e gravata borboleta
combinando, ambas pretas, continuavam intactas, o material apenas
levemente arranhado. E embora seus pelos castanhos estivessem
esfarrapados, ele continuava sorrindo para uma plateia inexistente. Seus
olhos azuis estavam arregalados e as sobrancelhas estavam erguidas, como
se algo empolgante estivesse a ponto de acontecer. Estava sem seu
microfone, os braços abertos, completamente rijos diante de si, sem segurar
absolutamente nada.
Chica estava inclinada contra Freddy, a cabeça caída para o lado.
Todo o peso de seu corpo amarelo — inexplicavelmente coberto por pelos,
não por penas — parecia jogado sobre ele. Suas pernas de galinha,
compridas e alaranjadas, estavam estiradas diante do corpo, e pela primeira
vez John notou as garras prateadas em seus pés, com alguns centímetros de
comprimento e afiadas como uma faca. O babador que estava sempre
pendurado em seu peito havia sido rasgado. Estava escrito LET’S
EAT!!!, mas as letras foram desbotando com o tempo, devido à umidade e o
mofo do porão.
John a observou com os olhos semicerrados. Estava faltando mais
alguma coisa.
— O cupcake — disse Jessica, oralizando seus pensamentos.
Foi quando ele o viu.
— Ali no chão — disse ele. Estava posicionado logo ao lado de
Chica, quase que encolhido junto a ela, seu sorriso maquiavélico passando
a mesma impressão maníaca e patética de sempre.
Um pouco mais separado dos três estava o Freddy amarelo, o que
salvara todas as suas vidas. Ele parecia com Freddy Fazbear, mas ao
mesmo tempo não parecia. Havia algo diferente nele além de sua cor, mas
se alguém perguntasse a John o que era, ele não conseguiria responder.
Jessica e John olharam para ele por um longo momento. John sentiu uma
leve sensação de terror percorrer seu corpo enquanto examinava o urso
amarelo. Nunca cheguei a te agradecer, quis dizer. Mas percebeu que
estava com muito medo para se aproximar.
— Cadê o... — Jessica começou a dizer, mas então se deteve.
Apontou para o canto onde Foxy estava apoiado na parede, oculto nas
sombras, mas ainda visível. John sabia o que veria ali: um esqueleto
robótico coberto de pelos rúbeos, mas apenas dos joelhos para cima. Estava
danificado desde a época em que o restaurante ainda estava aberto. Foxy
tinha seu próprio palco na Baía Pirata. Agora, enquanto olhava para ele,
John podia ver mais lugares onde o pelo que o cobria havia se rasgado,
deixando à mostra a carcaça de metal do outro lado. O tapa-olho, por sua
vez, continuava fixo no mesmo lugar. Enquanto um dos braços estava caído
ao lado do corpo, o braço com o grande gancho afiado estava erguido sobre
sua cabeça, posicionado para um golpe certeiro.
— Foi assim que você os deixou? — perguntou John.
— Sim. Exatamente como os deixei — respondeu Clay, mas pareceu
inseguro das próprias palavras.
Jessica se aproximou de Bonnie com cuidado e se agachou, de forma
que seus olhos ficassem nivelados com os do enorme coelho.
— Você tá aí? — sussurrou. Não houve resposta. Jessica ergueu a
mão devagar, para lhe tocar o rosto. John ficou observando, tenso, mas
quando Jessica afagou o coelho, nem mesmo a poeira pareceu se mover em
meio ao porão embolorado. Por fim, ela se ergueu e deu um passo para trás,
olhando para John com um olhar desamparado. — Não tem nada...
— Shh — ele a interrompeu. Um barulho lhe chamou a atenção.
— O que foi?
John curvou a cabeça, inclinando-a mais para perto do som, embora
não soubesse dizer ao certo de onde estava vindo. Era como uma voz em
meio ao vento, as palavras levadas embora antes que pudesse pegá-las, de
forma que ele não tinha certeza de que realmente se tratava de uma voz.
— Tem alguém... aqui? — murmurou. Olhou para Freddy Fazbear,
mas enquanto tentava focar sua atenção, o som se situou. Voltou o olhar
para a fantasia de Freddy amarela. — Você tá aqui, não é? — perguntou ao
urso.
Foi até o animatrônico e se agachou diante dele, mas não tentou tocá-
lo. John o fitou nos olhos brilhantes, procurando por algum resquício do
centelho de vida que vira naquela noite, quando o urso dourado entrou na
sala e todos tiveram absoluta certeza, como fato irrefutável, de que
Michael, seu amigo de infância, estava lá dentro. John não conseguia se
lembrar de como exatamente soube disso: não havia nada atrás dos olhos
de plástico, nada fisicamente diferente. Era apenas uma certeza absoluta.
Fechou os olhos, tentando puxar a memória de volta à sua mente. Talvez se
recordasse da essência de Michael, conseguia conjurá-lo ali outra vez. Mas
não conseguia captá-la, não conseguia sentir a presença de seu amigo como
sentira naquela noite.
John abriu os olhos e olhou para todos os animatrônicos, um por um,
lembrando de quando estavam vivos e se mexendo. Outrora, as crianças
sequestradas por William Afton o fitavam de volta, lá de dentro. Será que
continuavam lá agora, num estado de suspensão? Era terrível pensar que
ficaram apodrecendo ali embaixo, olhando apenas para a escuridão.
Algo cintilou no olho do urso amarelo, quase que
imperceptivelmente, e John respirou fundo, segurando o fôlego. Olhou para
trás, procurando por uma luz que pudesse ter refletido na superfície de
plástico duro, mas não havia nenhuma fonte evidente. Volte, implorou em
silêncio, esperando ver o brilho novamente.
— John. — A voz de Jessica o trouxe de volta à realidade. — John,
não sei se essa é uma boa ideia. — Ele se voltou para a voz dela e então se
levantou, sentindo as pernas dormentes. Quanto tempo passara ali, fitando
os olhos vazios da mascote?
— Acho que ainda tem alguém ali dentro — disse, devagar.
— Talvez, mas isso não me parece certo. — Ela desviou o olhar de
John, voltando-se novamente para as fantasias.
Suas cabeças haviam se mexido — ergueram-se de uma forma quase
que sobrenatural, os rostos voltados na direção de John e Jessica.
Jessica berrou e John se ouviu gritar algo ininteligível, pulando para
trás como se tivesse sido ferroado. Estavam todos olhando diretamente para
ele. John tentou dar três passos para a esquerda, e eles pareciam segui-lo:
os olhos permaneciam fixos nele, e apenas nele.
Clay havia agarrado uma pá e a empunhava como um taco de
baseball, pronto para atacar.
— Acho que é hora de irmos — disse ele, pondo-se a frente dos
outros.
— Para, tá tudo bem! — exclamou John. — Eles sabem que não
somos inimigos. Que estamos aqui porque precisamos de sua ajuda. —
John estendeu as palmas das mãos em direção às criaturas.
Clay abaixou a pá, embora continuasse com a mesma a postos. John
olhou para Jessica, que assentiu depressa.
John se voltou para as mascotes outra vez.
— Estamos aqui porque precisamos de sua ajuda — repetiu. Os
animatrônicos o fitavam com um olhar vazio. — Lembram-se de mim? —
perguntou, sentindo-se um tanto desconfortável. Eles continuavam a
encará-lo, tão congelados nas novas posições quanto estavam nas
anteriores. — Por favor, escutem — prosseguiu. — A Charlie, vocês se
lembram dela, né? Têm que lembrar. Ela foi levada por... criaturas como
vocês, só que diferentes.
Desviou o olhar para Jessica, mas ela estava apenas observando de
longe, ansiosa, confiando tudo aquilo a ele.
— Eram trajes animatrônicos, enterrados embaixo da casa da
Charlie. Não sabemos por que estavam lá. — Parou por um momento,
respirando fundo. — Não achamos que tenha sido o Henry quem os
construiu; achamos que foram construídos por William Afton.
Assim que John disse o nome, os robôs começaram a tremer,
convulsionando no lugar onde estavam. Era como se seus mecanismos
tivessem sido ligados à força, por uma corrente forte demais que os
sistemas internos comportassem.
— John! — berrou Jessica.
Clay se aproximou e agarrou John pelo ombro.
— Temos que dar o fora daqui — disse Jessica, cheia de urgência na
voz. As mascotes se debatiam de forma selvagem, sacudindo os braços e as
pernas. As cabeças se chocavam com a parede dos fundos, dentre uma
sequência de baques terríveis. John permaneceu completamente imóvel,
dividido entre o impulso de correr até eles, para que pudesse tentar ajudá-
los, e o ímpeto de fugir dali.
— Saiam daqui, agora! — gritou Clay, por cima do barulho, e puxou
John para trás. Subiram de volta pelas escadas do porão, Clay cuidando da
retaguarda, a pá empunhada na defensiva. John continuou a observar as
mascotes convulsionando no chão até que ficassem fora de vista.
— Precisamos da sua ajuda para encontrar a Charlie! — gritou uma
última vez, e Clay imediatamente bateu a porta do porão e travou três
trancas novas e reluzentes.
— Vamos — disse Clay. Foram atrás dele, perseguidos pelos
terríveis estampidos e batidas parcamente abafados pelo chão sob seus pés.
Ele os levou de volta à sala de estar, e estão seguiu para um pequeno
escritório mais adiante, onde fechou e trancou a porta.
— Estão subindo — disse John, examinando minuciosamente o chão
abaixo de si. Ouviu o que parecia ser metal triturando metal; e então houve
um estrondo, como se alguma coisa tivesse sido atirada contra a parede. O
eco reverberou pelo chão.
— Bloqueiem a porta — ordenou Clay, erguendo um dos lados da
mesa no canto. John ergueu o outro lado enquanto Jessica abria caminho
para eles, arrastando duas cadeiras e uma luminária que estavam na frente.
Eles a posicionaram na frente da porta, enquanto que, abaixo deles, algo
parecia raspar o concreto, como se estivesse se arrastando.
Passos pesados começaram a sacudir a estrutura da casa. O chiado
agudo de peças eletrônicas avariadas preencheu o ar, quase agudo demais
para que pudessem ouvir. Jessica esfregou os ouvidos.
— Estão vindo atrás da gente?
— Não. Quer dizer, eu acho que não — disse John. Olhou para Clay,
em busca de uma confirmação, mas os olhos de Clay estavam vidrados na
porta. O chiado se intensificou e Jessica cobriu os ouvidos com as mãos. Os
passos foram ficando mais altos. Ouviram o som do que pareciam estalidos
na madeira.
— A porta — murmurou Clay. Ouviram uma batida alta, depois
outra. John, Jessica e Clay se enfiaram debaixo da mesa, como se ela
pudesse melhor escondê-los. Outra batida reverberou, e então ouviram o
som de madeira sendo quebrada. Os passos de tremer o chão se
aproximaram. John tentou contá-los, para ver se as criaturas estavam todas
juntas, mas estavam muito sobrepostos. Pareciam vir um por cima do outro,
fazendo seus dentes tremerem e seu peito apertar. Era como se o som por si
só pudesse quebrá-lo em pedaços.
Mas então, sem demora, os passos foram se afastando, até finalmente
não poderem mais ouvi-los. John tomou fôlego, percebendo só então que
estivera segurando a respiração. Olhou para os outros. Os olhos de Jessica
estavam fechados, e estava segurando uma mão contra a outra com tanta
força que as pontas dos dedos ficaram brancas. John se aproximou e lhe
tocou o ombro, e Jessica deu um pulo, arregalando os olhos. Clay já estava
de pé, puxando a mesa.
— Vem, John — disse. — Me ajude a tirar isso da frente.
— Certo — disse ele, ainda se recuperando. Juntos, eles a
empurraram para o lado e correram rumo ao corredor. A porta da frente
estava escancarada para a noite. John correu até lá e deu uma olhada.
A grama do lado de fora havia sido devastada na área por onde as
mascotes passaram. Os rastros eram óbvios e fáceis de seguir, levando
diretamente para o bosque mais adiante. John saiu correndo atrás deles, e
Clay e Jessica foram logo atrás. Quando já podiam se esconder em meio às
árvores, diminuíram o passo. Ao longe, John viu um borrão de movimento
por um único instante, e indicou para que os outros esperassem. Eles os
seguiriam, mas não queriam ousar ser vistos pelo que quer que os estivesse
guiando.
CAPÍTULO DOZE
O mundo parecia trovejar ao redor de Charlie, balançando-a
ritmicamente, de um lado para o outro, enquanto objetos estranhos iam se
cravando nela, cada vez mais fundo, toda vez que era sacudida. Charlie
abriu os olhos e lembrou onde estava. Ou melhor, no que estava dentro. A
terrível imagem do Freddy deformado puxando-a para dentro de sua boca
como se fosse uma espécie de cobra lhe veio à cabeça, e ela fechou os
olhos outra vez, puxando os lábios para dentro da boca para que não
gritasse. Os estrondos eram passos, percebeu: os animatrônicos estavam em
movimento.
Sua cabeça latejava a cada baque, o que dificultava sua linha de
raciocínio: Devo ter ficado inconsciente quando ele me jogou aqui dentro,
pensou. O torso da coisa se conectava à cabeça por um pescoço bastante
largo, quase na mesma altura do dela — a cabeça, no entanto, continuava
por mais cerca de trinta centímetros acima dela. Era como olhar para o
interior de uma máscara: a lacuna de um focinho protuberante, as esferas
vazias que eram a parte de trás dos olhos. Erguendo a cabeça com cuidado,
pôde ver até mesmo o parafuso que prendia a cartola preta no lugar.
As pernas de Charlie estavam apertadas e dobradas em ângulos
estranhos, pressionadas dentre várias peças de maquinário. Devia estar
presa daquele jeito há algum tempo, mas não tinha como saber há quanto.
Seus braços estavam enclausurados, pendurados ao lado do corpo, dentro
dos braços do animatrônico. Seu corpo inteiro estava coberto de pequenas
áreas doloridas, cheio de hematomas e cortes causados por pequenas peças
de plástico e metal que entravam mais fundo toda vez que batiam nela.
Charlie podia sentir o sangue escorrendo pela pele em meia dúzia de
lugares. Ela se contorceu para tentar se soltar, mas não sabia o quanto podia
se mexer sem acionar as travas. Sua mente voltou à primeira vítima dos
assassinatos, às lacerações que cobriam seu corpo de forma quase
decorativa. Pensou nos gritos de Dave enquanto morria, e no cadáver
inchado que estava preso atrás do palco da Baía Pirata. Aquilo não vai
acontecer comigo. Eu não posso morrer desse jeito!
Charlie havia dito a Clay que entendia dos trajes com mecanismos de
travas de mola. As peças animatrônicas recuavam, abrindo espaço para
uma pessoa entrar e usá-la como uma fantasia, ou então ocupavam toda a
extensão da roupa, de forma que a mascote funcionasse como robô. Mas
isso era o que Charlie sabia a respeito do Fredbear’s Family Diner —
aquela criatura era diferente. Estava dentro de uma cavidade feita para
comportar um ser humano, mas a roupa continuava se mexendo com total
autonomia. Seu interior era cheio de cabos e estruturas de metal, exceto no
espaço ocupado por Charlie.
O animatrônico virou para o lado de repente, e Charlie foi jogada
novamente contra a parede pontiaguda com toda a força. Dessa vez, sem
conseguir se conter, ela deu um grito, mas não houve pausa no progresso de
Freddy. Ou a criatura não a tinha ouvido, ou não se importava. Charlie
trincou os dentes, tentando suprimir as marteladas em sua cabeça.
Aonde estamos indo? Virou o pescoço de um lado para o outro,
tentando olhar por entre os buracos da roupa esfarrapada do animatrônico.
Havia apenas alguns buracos, pequenos e posicionados nas laterais do
torso. Tudo o que conseguia identificar era uma floresta: árvores passando
por ela em meio à escuridão enquanto avançavam em direção ao destino
misterioso. Charlie suspirou, frustrada, as lágrimas escorrendo pelo
rosto. Cadê você? Estou me aproximando de você? Sammy, é você?
Desistiu de procurar por pistas do lado de fora e começou a analisar
o interior do traje. Mantenha a calma, disse a voz de tia Jen em sua
cabeça. Mantenha sempre a calma. Essa é a única forma de ficar com a
cabeça limpa. Voltou o olhar novamente para a máscara, para as feições
internas daquele Freddy distorcido.
De repente, as esferas vazias giraram para trás, dando lugar aos olhos
da criatura, que a fitaram com um olhar plástico, impassível. Charlie gritou
e se jogou para trás. Foi quando algo junto a suas costas estalou, açoitando
uma peça de metal feito um chicote contra suas costelas. Ela congelou,
aterrorizada. Não, por favor, não. Nada mais foi acionado, e então, após
um momento, ela se posicionou novamente no lugar onde estava, tentando
não focar nos olhos azuis brilhantes logo acima dela. A costela onde a peça
de metal havia atingido pulsava de dor toda vez que ela respirava.
Começou a imaginar, alarmada, se podia estar quebrada. Antes que pudesse
ter certeza, o animatrônico virou para o lado de novo, e Charlie acabou
sendo atirada junto a ele, batendo a cabeça com tanta força que o impacto
reverberou por todo o corpo. Sua visão escureceu, fechando feito um túnel,
e enquanto perdia a consciência, tudo o que conseguia ver eram os olhos de
Freddy, fitando-a lá de cima.
Os pulmões de John estavam começando a queimar, suas pernas
perdendo a força conforme continuavam a correr pela floresta. Estavam
correndo pelo que pareciam horas, embora soubesse que não podia ser. Era
apenas sua exaustão lhe pregando uma peça. O rastro havia desaparecido.
Quando entraram na floresta, as árvores se tornaram suas guias. Seguiam os
destroços de galhos, ou até mesmo raízes, que haviam sido arrancados,
esfarrapados e quebrados, pisoteados pelos pés incautos e gigantescos das
criaturas.
Mas os sinais foram ficando cada vez mais distantes, até que
finalmente desapareceram por completo. Agora John corria na direção para
onde as criaturas pareciam estar seguindo.
Na verdade, podia estar perdido.
Conforme disparava por entre as árvores, subia e descia pequenas
colinas ou mesmo tropeçava no terreno desnivelado, John começou a
perder completamente a noção de para onde estava indo. Mais adiante,
Jessica continuava em frente, confiante. Ele a seguiu, mas até onde sabia,
podiam muito bem estar correndo em círculos.
Atrás dele, os passos de Clay estavam desacelerando, sua respiração
pesada. Jessica, alguns passos à frente, se alongou e começou a correr
parada no lugar, como se estivesse esperando que os dois a alcançassem.
— Vamos, gente, estamos quase lá! — disse, a voz cheia de energia.
— Quase onde? — perguntou John, lutando para manter a voz em
um tom estável.
— Só estou tentando ser positiva — disse. — Passei três anos na
equipe de cross country, na época do colégio.
— Bom, eu focava mais no trabalho pesado, sabe — disse John,
ofegante, subitamente na defensiva.
— Vamos, Clay, você consegue! — gritou Jessica. John olhou para
trás. Clay havia parado de correr e agora estava reclinado, as mãos
pousadas sobre os joelhos, respirando com certa dificuldade. Sentindo-se
um pouco aliviado, John diminuiu o passo e foi até ele. Jessica suspirou,
frustrada, e o seguiu em direção a Clay.
— Você tá bem? — perguntou John.
O homem mais velho assentiu, balançando a mão para ele.
— Estou legal — disse. — Vão na frente, eu alcanço vocês.
— Não há aonde “ir na frente” — disse John. — Estamos correndo
às cegas. Quando foi a última vez que você viu o rastro deles?
— Faz um tempo — disse Clay. — Mas eles estavam vindo nessa
direção, e isso é tudo o que temos para nos basear.
— Mas não dá pra usar isso como base! — John elevou a voz,
frustrado. — Não há porque acreditar que eles vieram pra cá!
— Vem, nós vamos perdê-los — disse Jessica, com urgência na voz.
Continuava correndo parada, seu rabo de cavalo balançando como um
animalzinho nervoso atrás dela. Clay balançou a cabeça.
— Não, nós já os perdemos.
Jessica parou de correr, mas continuou alternando de um pé para o
outro.
— E agora? — perguntou ela.
Foi quando ouviram um farfalhar nas árvores mais adiante. Jessica
agarrou o braço de John, mas então o soltou, depressa, parecendo
constrangida. Ouviram novamente, e John seguiu em direção ao som,
erguendo uma mão para indicar para que os outros ficassem. Avançou
pelas árvores com cuidado, e então olhou para trás, notando que Jessica e
Clay o estavam seguindo de perto, apesar de sua tentativa de fazê-los ficar.
Alguns metros à frente, as árvores deram em um campo aberto;
haviam chegado aos limites do bosque. Jessica arfou, e John notou apenas
um segundo depois. Bem no meio da clareia, havia uma figura parada na
escuridão. Parecia uma silhueta uniforme, desprovida de qualquer traço
notável, pouco diferente das sombras que a cercavam. John estreitou os
olhos, para se certificar de que realmente estava vendo aquilo. Fios
elétricos negros se erguiam no chão, como que para formar uma tenda
sobre ele, mas fora os fios, o campo estava vazio. Embora estivesse escuro,
não havia como se aproximar da figura sem que ela os visse.
Então, John acertou a postura e seguiu devagar em sua direção.
O campo parecia abandonado, a grama alta raspando os joelhos de
John enquanto avançava. Atrás dele, Jessica e Clay burburinhavam a cada
novo passo. O vento fazia com que a grama chicoteasse suas pernas,
soprando com cada vez mais voracidade à medida que avançavam. Quase
chegando à metade do campo, John parou, intrigado. A figura continuava
lá, mas parecia tão longe quanto quando começaram. Olhou de volta para
Jessica.
— Está se mexendo? — murmurou. Ele assentiu, avançando
novamente, sem tirar os olhos da figura entre as sombras. — John, ele não
parece... o Freddy?
— Eu não sei o que é — respondeu John, atento. — Mas acho que
quer que o sigamos.
Não consigo respirar. Charlie tossiu e engasgou, acordando de
súbito. Estava deitada de costas, sentindo terra caindo em cima de si.
Estava enchendo sua boca, tampando o nariz e cobrindo os olhos. Cuspiu,
sacudindo a cabeça e piscando depressa. Tentou erguer as mãos, mas não
conseguia movê-las. Lembrou de repente que estavam presos dentro dos
braços do traje e que seriam mutilados se ela tentasse soltá-los.
Enterrada viva! Estou sendo enterrada viva. Abriu a boca para gritar
e mais terra entrou, caindo no fundo da garganta e fazendo com que se
engasgasse novamente. Charlie conseguia sentir a pulsação na garganta,
sufocando-a por dentro tanto quanto a terra sufocava pelo lado de fora. Seu
coração batia rápido demais, e ela começou a se sentir zonza. Tentou tomar
fôlego, inspirando mais rápido, na vã tentativa de encher os pulmões, mas
apenas remexeu a terra e acabou por inalá-la. Cuspiu, puxando a terra do
fundo da garganta, antes que a engolisse, e então virou a cabeça para o
lado, desviando o rosto do solo que caía como chuva. Respirou com
dificuldade, sentindo o peito estremecer, e continuou a fazê-lo. Está
hiperventilando, disse a si mesma, sisuda. Você precisa parar. Precisa se
acalmar. Precisa da cabeça limpa. O último pensamento veio na voz da tia
Jen. Fitou a lateral do traje, agora familiar, e respirou fundo, ignorando a
terra que se acumulava em seu ouvido e que caía pelo pescoço, até que o
coração acelerado se acalmou, e ela voltou a respirar quase que
normalmente.
Charlie fechou os olhos. Você precisa soltar seus
braços. Concentrou toda a sua atenção no braço esquerdo. Sua camiseta
deixava a pele do braço completamente exposta à fantasia, então podia
sentir tudo que a tocava. Com os olhos fechados, Charlie começou a
desenhar um mapa. Tem algo nas articulações dos ombros, dos dois os
lados, e um espaço vazio logo abaixo. Uma fileira de metal pontiagudo
cobre toda a parte de trás do meu cotovelo, enquanto que na parte da
frente... o que é isso? Roçou o braço nos objetos devagar, balançando-o de
um lado para o outro, como se tentasse visualizá-los. Não são travas de
mola. Voltou a ficar imóvel, focando novamente no ponto onde o braço se
ligava ao torso. ESSAS são travas de mola. Tá, vou chegar até elas.
Mãos. Flexionou os dedos de leve. Os braços do animatrônico eram largos,
e suas mãos — que mal chegavam aos cotovelos da criatura — estavam
menos travadas que todo o resto.
Cuspiu mais um pouco de terra, tentando não focar no fato de que a
mesma estava entrando aos montes, cobrindo-a quase que por
inteiro. Respire. Enquanto ainda pode. Trincou o maxilar, visualizando o
braço que enclausurava o seu próprio, e começou lentamente a tirá-lo de lá.
Abaixou o ombro, deu um impulso para frente, prendeu o fôlego — e
puxou o braço cerca de sete centímetros para fora. Charlie suspirou, a
respiração entrecortada. Seu ombro estava livre do mecanismo de
molas. Essa era a parte mais difícil. O resto do meu braço não vai tocar
nas travas se eu tomar cuidado. Seguiu em frente, evitando as coisas que
ela acreditava que poderiam estalar ou apunhalá-la.
Quando já estava na metade do caminho, seu cotovelo na altura da
junta do ombro, girou o braço rápido demais e ouviu um estalo. Olhou para
o ombro do traje, aterrorizada, mas não era a trava de mola. Havia acionado
alguma coisa menor lá dentro, e agora podia sentir a queimação de um
novo corte em sua pele. Tudo bem. Tá tudo bem. Voltou ao trabalho.
Minutos depois, seu braço estava livre. Ela o flexionou para frente e
para trás no espaço diminuto, meio que sentindo como se nunca tivesse tido
um braço. Agora o outro. Limpou o rosto com a mão, tirando toda a terra, e
então fechou os olhos, recomeçando o processo com o braço direito.
Demorou menos tempo para se livrar do segundo braço, mas a fadiga
e os montes de terra cada vez maiores a seu redor deixaram Charlie
distraída. Por duas vezes, ela acionou pequenos mecanismos que a
machucaram dolorosamente, mas não rasgaram sua pele. Ela puxou o braço
para se soltar com toda a velocidade, esbarrando nos mecanismos de mola e
conseguindo por muito pouco tirar a mão antes que as travas fossem
acionadas. O braço pulou e deu um solavanco enquanto o esqueleto
robótico lá dentro se desprendia com um ruído similar a uma bombinha de
ano novo. Charlie pôs a mão no peito, apertando-a junto ao coração
palpitante enquanto olhava para ela. Podia ter sido como... Não foi. Não
era eu. Foco. Pernas.
Suas pernas não estavam enclausuradas em um determinado ponto
como estavam os braços. Estavam simplesmente em uma posição estranha,
encravadas entre hastes de metal que percorriam o corpo da mascote. Sem
o peso do corpo sobre elas, era fácil manobra-las. Tomando todo o cuidado,
Charlie ergueu a perna direita no ar, puxando-a por cima da haste e
trazendo-a para o centro do torso. Nada foi acionado, então fez a mesma
coisa com a perna esquerda.
Com os membros livres, Charlie baixou o olhar pelo corpo do
animatrônico, fitando a porta de sua cavidade torácica. O trinco ficava do
lado de fora, mas aquelas criaturas eram velhas — suas peças estavam
fracas e enferrujadas. Aproximou os braços e tocou o metal com as mãos,
em busca de molas ou outros dispositivos. Não conseguia enxergar muito
bem de onde sua cabeça estava presa, e também não conseguiria se abaixar
em segurança. A não ser...
A terra já havia formado pilhas de quase trinta centímetros dos dois
lados de sua cabeça, e cobrira a metade inferior de seu corpo. Charlie
soltou a porta por um momento, começando a mexer na terra bem
lentamente. Suspendeu a cabeça de leve, empurrando o monte de terra com
as mãos, de modo que a mesma ocupasse o espaço que havia deixado para
trás. Sacudiu o corpo de um lado para o outro, usando as mãos para arrastar
a terra para baixo de si, até que pudesse se deitar sobre ela como uma cama
fina. Aquilo não a protegeria caso as travas do traje fossem acionadas, mas
lhe daria um amortecimento adicional, tornaria mais difícil esbarrar em
alguma coisa e acabar empalada viva. Olhou para o braço da fantasia que
havia se desprendido, agora preenchido de colunas de metal e peças de
plástico duro. Um calafrio lhe subiu a espinha.
Começou a descer até que conseguisse ver as chapas no peito, e
então pôs as mãos no meio e começou a empurrá-las para cima com toda a
força. Após um momento, elas se separaram e uma onda de terra caiu com
tudo em cima dela. Charlie tossiu e virou a cabeça, mas continuou
empurrando enquanto a terra despencava. Conseguiu afastar as chapas
cerca de trinta centímetros uma da outra, então se agachou entre elas e
parou por um momento. Quão fundo eu estou?, pensou, pela primeira vez.
Se estivesse a quase dois metros do chão, poderia estar escapando apenas
para sufocar na reta final. O que mais eu posso fazer? Charlie fechou os
olhos, respirou fundo, e prendeu o fôlego. Então empurrou o corpo contra a
abertura que fizera e começou a cavar para fora da cova.
As camadas de terra não estavam muito compactadas, mas ainda
assim, não foi uma tarefa fácil: continuou cavando e cavando, usando
apenas as próprias mãos, e enquanto sentia as feridas se abrindo nas pontas
dos dedos e o sangue escorrer por entre as mãos sujas de terra, desejou que
tivesse uma ferramenta para fazer aquilo em seu lugar. Conforme abria
caminho pela terra, seus pulmões começaram a queimar e se apertar,
tentando obrigá-la a respirar. Foi empurrando o rosto para cima com toda a
força que conseguia juntar, cavando cada vez mais rápido. Você está aí?
Estou chegando, mas, por favor, eu preciso sair dessa. Por favor, não
posso morrer aqui, enterrada vi—
Sua mão chegou à superfície, e ela a puxou de volta para junto do
corpo, em estado de choque. Ar. Sentindo a gratidão tomar seu corpo,
inalou uma grande lufada de ar, até que não sentisse mais a abstinência de
oxigênio. Depois, fechou os olhos e enfiou os punhos no pequeno buraco
que abrira sobre sua cabeça, quebrando as laterais até que ficasse largo o
suficiente para se esgueirar por ele. Apoiou os pés nas portas parcialmente
abertas e saiu do buraco aos tropeços, arrastando-se para cima. Caiu ao
lado do mesmo, tremendo de exaustão. Ainda não está segura, disse a si
mesma, em tom de bronca. Você precisa se levantar. Mas não conseguia
obrigar o corpo a se mexer. Fitou o buraco de onde havia escapado,
aterrorizada, o rosto encharcado de lágrimas.
Os minutos foram se passando, talvez até mesmo horas; perdeu
completamente a noção do tempo. Finalmente juntando as forças, Charlie
se ergueu até conseguir se sentar, e então limpou o rosto. Não sabia dizer
onde estava, mas o ar era gelado e estava tudo muito quieto. Estava dentro
de algum tipo de construção, e conseguia ouvir o som de água corrente em
algum lugar ao longe. Sem mais a onda de adrenalina lhe tomando o corpo,
sua cabeça voltou a doer, pulsando junto aos batimentos de seu coração. E
não era só a cabeça — tudo doía. Estava coberta de hematomas, as roupas
manchadas de sangue, e agora que não estava sufocando, voltou a sentir a
punhalada que levara na caixa torácica toda vez que inspirava. Charlie
pressionou as costelas, tentando sentir se algo parecia fora do lugar. Os
hematomas já estavam roxos, especialmente nas áreas onde o traje a havia
atingido, mas nada estava quebrado.
Charlie se levantou, a dor recuando o suficiente para que pudesse se
mexer e examinar os arredores. Quando olhou ao redor, seu sangue gelou.
Era a Freddy Fazbear’s Pizza.
Não pode ser. A onda de pânico se elevou novamente. Virou-se de
um lado para o outro, desenfreada, e deu um passo para trás, afastando-se
do buraco no chão. As mesas, o carrossel, o palco — as toalhas de mesa
são azuis.
— As toalhas de mesa da Freddy’s não eram azuis — disse, mas seu
alívio foi rapidamente substituído por confusão. Então que lugar é esse?
A sala de jantar era maior que a da Freddy’s, mas havia menos
mesas. O chão era de azulejo preto e branco, exceto em determinadas áreas
onde faltavam azulejos, revelando lotes de terra batida. Era estranhamente
incoerente com todo o resto; tudo ali parecia concluído e novo, embora
empoeirado. Quando se voltou para a parede oposta, viu que estava sendo
observada. Grandes olhos de plástico a fitaram de volta, em meio ao
escuro, encarando Charlie, parecendo identificá-la como uma intrusa. Um
conjunto de pelos, bicos e olhos estava posicionado mais adiante, junto à
parede, feito um pequeno exército.
Por um grande momento, ela ficou completamente parada, em
choque, agarrada a si mesma. Mas os animatrônicos não se mexeram.
Charlie deu um pequeno passo para um lado, depois para o outro, mas seus
olhos não a seguiram. As criaturas estavam olhando para frente,
inexpressivas, os olhos voltados para um ponto fixo. Alguns de seus rostos
eram de animais, e alguns pareciam pintados como palhaços. Outros
pareciam perturbadoramente humanos. Charlie se aproximou e viu no que
estavam empoleirados. Ao longo da parede, havia uma fileira de máquinas
de fliperama e o que pareciam atrações de circo, cada uma com sua fera
guardiã ou um rosto gigante fixados em cima. Suas bocas estavam
escancaradas, como se estivessem todos rindo e aclamando algum festival
invisível. Enquanto examinava a escuridão, Charlie notou que os animais
estavam em posições estranhas, seus corpos torcidos de formas que
nenhum animal devia ser capaz de se torcer. Observou os rostos de bocas
abertas outra vez, e sentiu um calafrio. Com os corpos tortuosamente
recurvados, eles pareciam estar gritando de dor.
Charlie respirou fundo algumas vezes. Enquanto tentava manter a
calma, percebeu que tinha uma música tocando nos autofalantes junto ao
teto. Era bem baixa, familiar; mas não sabia dizer qual era.
Aproximou-se da atração mais próxima. Uma criatura gigantesca e
contorcida, com o aspecto de um pássaro e um grande bico curvado,
presidia sobre um grande estande com um lago falso. Havia fileiras de
patos posicionados na água de papel, esperando que as bolas de borracha os
derrubassem. Charlie ergueu o olhar novamente para a criatura empoleirada
em cima da atração. Suas asas estavam abertas e a cabeça jogada para cima,
no que parecia uma dança bem elaborada. Fazia sombra bem na frente da
atração, exatamente no ponto onde o jogador devia ficar. Charlie virou as
coisas, sem mais se aproximar.
Além do lago dos patos, havia três máquinas de fliperama alinhadas
uma ao lado da outra, as telas cheias de poeira, cada uma delas com um
macaco agachado ao topo, as pontas dos dedos dos pés agarrando as bordas
acima das telas. Seus braços estavam erguidos, congelados em meio a um
movimento, e os dentes estavam expostos, fosse por júbilo, raiva, ou talvez
medo. Charlie olhou para os dentes por um momento; eram grandes e
amarelados.
Algo nos fliperamas a incomodava. Ela os examinou de cima a
baixo, minuciosamente, mas nada lhe veio à memória. Nenhum deles
estava ligado, e não eram jogos que já tivesse visto antes. Limpou a poeira
da tela da máquina do meio, revelando uma tela preta lustrosa. Seu rosto,
distorcido pelo vidro curvado, tinha apenas uma pequena ferida e poucos
cortes visíveis. Charlie ajeitou o cabelo, autoconsciente.
Espera. Na Freddy Fazbear’s, havia imagens fantasmagóricas
gravadas nas telas das máquinas devido aos muitos anos de jogo. Apertou
alguns botões, apenas para testar. Estavam firmes e brilhantes — intocados.
— É por isso que parece tão vazio — disse ao chimpanzé acima de
si. — Ninguém nunca esteve aqui, não é verdade? — O grande primata não
respondeu.
Charlie olhou a sua volta. Havia uma porta à sua esquerda, um brilho
azulado de uma luz negra emanava da sala do outro lado. Charlie seguiu
em direção à luz, passando pela porta e chegando à outra sala de jogos e
atrações. As daquele lugar também eram vigiadas por mascotes, alguns
mais identificáveis que outros. Charlie cambaleou por um momento, e
então pôs a mão na cabeça.
— Estanho — sussurrou, recobrando o equilíbrio. Olhou de volta
para o caminho de onde viera. A luz deve estar me deixando tonta, pensou.
— Olá? — disse uma voz suave ao longe. Sobressaltada, Charlie
girou onde estava, como se alguém tivesse gritado em seu ouvido. Segurou
o fôlego, esperando que dissesse mais alguma coisa. Era uma voz alta e
assustada, uma criança. A súbita impressão de vida naquele lugar a chocou,
como se houvesse despertado de um sonho.
— Olá! — respondeu. — Oi, você está bem? Não vou te machucar.
Olhou ao redor da sala. O som de água corrente era mais alto ali, o
que dificultava saber de quão longe havia vindo a voz. Passou pela sala
depressa, ignorando as criaturas de olhos esbugalhados e as atrações
estranhas e berrantes. Uma mesa bastante simples, arrumada com uma
toalha que ia até o chão, lhe chamou a atenção no canto da sala, e Charlie
seguiu até ela a passos largos. Agachou-se, cuidando para manter o
equilíbrio, e levantou a toalha de mesa. Um par de olhos a fitou de volta, e
ela levou um susto, mas então se acalmou.
— Está tudo bem — sussurrou, jogando a toalha por cima da mesa.
Em meio à luz turva, o brilho dos olhos desapareceu. Não havia ninguém
ali, afinal.
Charlie levou as mãos à testa e pressionou por um momento,
tentando acabar com a dor crescente em suas têmporas.
Passou por outra porta, agora sem muita certeza de onde havia vindo,
e finalmente descobriu a fonte da água corrente. Jorrando do meio da
parede a sua esquerda estava uma cachoeira. A água caía de uma superfície
rochosa elevada, juntando-se ao leito de um rio logo abaixo. Parecia vir de
um grande cano apenas parcialmente coberto pelas rochas. O córrego
formado devia ter cerca de um metro de largura. Ele cruzava a sala,
dividindo o chão em dois, e desaparecia em meio à boca aberta de uma
caverna.
Charlie observou aquilo por um momento, fascinada pela água. Após
um instante, notou um espaço apertado junto à superfície rochosa atrás da
cachoeira, largo o suficiente para que uma pessoa se esgueirasse.
— Olá? — disse Charlie novamente, mas sem muito ânimo; o ruído
da água ali era muito mais alto que em qualquer outro lugar. Após um
momento, no entanto, notou que se tratava de uma gravação, suprimindo o
som da água de verdade.
Examinou o resto da sala: exceto pela cachoeira e pelo riacho, estava
completamente vazia, mas notou que havia uma borda cinza no chão. Não,
é uma trilha. Era mais estreita que uma calçada, pavimentada com blocos
de paralelepípedo cinzas. A trilha acompanhava a parede curva, traçando
um caminho até a cachoeira, levando a uma fenda estreita no espaço atrás
da queda d’água. Charlie se agachou para tocar os blocos: pareciam feitos
de plástico duro, mas com um acabamento rústico. Aparentemente, a trilha
havia sido feita para quando o lugar recebesse outras atrações; ela
provavelmente poderia apenas passar direto pela sala. Provavelmente.
Charlie foi pisando nos blocos com cuidado, na expectativa de que
cedessem sob seu peso, mas eles a aguentaram. A rigidez elaborada para a
superfície dos blocos era acentuada — doía andar por cima deles. Charlie
seguiu o caminho diligentemente, mantendo-se próxima à parede. Tinha a
vaga impressão de que seria perigoso pisar fora da trilha.
Quando chegou à cachoeira, seguiu pelo espaço apertado e tocou a
superfície rochosa com toda a cautela. Era feita do mesmo plástico que os
paralelepípedos. Assim como a trilha, o rochedo era feito de plástico,
bastante sólido, mas como tinha a aparência de pedra de verdade, passava a
impressão de algo insubstancial ao toque. Charlie afastou as mãos e as
limpou nas calças. Seguiu cuidadosamente para o lado, saltando em direção
ao buraco atrás da cachoeira. A caverna tinha poucos metros de
comprimento, mas parou por um instante, bem no meio. Sentiu-se presa na
escuridão, como se não enxergasse luz em nenhum dos lados. Presa. Seu
peito se apertou, e ela fechou os olhos com toda a força. Acalme-se. Foque
no que há à sua volta, pensou. Charlie respirou bastante fundo, procurando
se acalmar, e então começou a escutar.
Parada do outro lado da cachoeira, notou que a gravação havia sido
abafada. Conseguia ouvir a própria água, correndo por cima de sua cabeça
e caindo diante dela, embora não a estivesse vendo. Havia também mais
alguma coisa, um som baixo, porém distinto. Em algum lugar acima de si,
ou talvez atrás, Charlie conseguia ouvir o chiar de engrenagens girando.
Tinha uma máquina movendo a água, mantendo o fluxo em um ciclo
gigantesco, fazendo com que tudo ali continuasse funcionando. O som do
maquinário ativo a acalmou; o pânico crescente diminuiu, e ela abriu os
olhos.
Deu outro passo para o lado, aproximando-se da luz, e bateu com o
pé em algo duro. Uma onda de dor percorreu seu corpo. O objeto caiu no
chão, dentre um ruído terrível e estrondoso. Trincando os dentes, esperou
um momento para que o pé parasse de doer, e então se abaixou. Era um
galão de combustível. Para a cachoeira, percebeu, dentre o ruído do
maquinário sobre sua cabeça. Havia vários outros, todos perfeitamente
organizados junto à parede, mas aquele estava bem no meio do caminho.
Se estivesse indo mais rápido, teria caído por cima dele. Charlie o
posicionou com firmeza junto aos outros, e seguiu rapidamente para a outra
metade da sala.
— Olá? — disse novamente a mesma voz de antes, dessa vez um
pouco mais alta. Charlie ajeitou a postura, imediatamente em alerta. Viera
de algum lugar adiante. Dessa vez, não respondeu; apenas seguiu em sua
direção, com toda a cautela, mantendo-se na trilha, bem junto à parede.
O corredor deu lugar a outra lada. As luzes eram mais fracas ali. No
canto oposto ao que Charlie estava havia pequeno um carrossel, mas não
parecia haver muito mais. Charlie examinou a sala, e então prendeu a
respiração. Lá estava a criança, imóvel, quase oculta nas sombras do outro
lado da sala.
Charlie se aproximou devagar, com medo do que poderia encontrar.
Piscou e sacudiu a cabeça com força, a tontura ressurgindo. A sala parecia
girar a sua volta. Quem é você? Está tudo bem?, quis perguntar, mas
continuou em silêncio. Aproximou-se mais alguns passos, e a figura foi
ficando mais nítida. Era só mais um animatrônico, ou talvez um brinquedo
normal, feito para parecer um menininho vendendo balões.
Tinha cerca de um metro de altura, com uma cabeça e um corpo
redondos, os braços quase tão compridos quanto as pernas robustas. Vestia
uma camisa listrada azul e vermelha, e um chapéu de hélice combinando.
Era feito de plástico, mas o rosto brilhante parecia um tanto antiquado.
Suas feições imitavam bonecos de contos de fadas que eram talhados na
madeira. Seu nariz era triangular e suas bochechas pareciam coradas, feitas
com dois círculos protuberantes de um rosa empoeirado. Seus olhos azuis
eram enormes, largos, como se a estivessem fitando, e sua boca estava
aberta num sorriso que expunha todos os seus dentes perfeitamente brancos
e uniformes. Suas mãos eram bolas sem dedos, cada uma delas segurando
um objeto: em uma, carregava um balão vermelho e amarelo, quase tão
grande quanto ele, pendurado em uma vara. Na outra, erguia uma placa de
madeira onde estava escrito BALÕES!
Não era nada parecido com as criaturas que o pai de Charlie fazia,
nem mesmo com os animatrônicos que a raptaram. Embora fossem
terríveis, ela os reconhecera como cópias distorcidas do trabalho de seu pai.
Aquele garoto era algo novo. Deu uma volta a seu redor, tentada a tocar e
cutucar, mas se conteve. Não arrisque acionar alguma coisa.
— Até que você não é nada mal — murmurou Charlie, cuidando
para não tirar os olhos dele. Ele continuava sorrindo, os olhos arregalados,
para a escuridão adiante. Voltando a atenção para o resto da sala, Charlie
fitou o carrossel, pensativa. Era a única coisa ali além do menino. Estava
longe demais para distinguir os animais.
— Olá? — disse a voz, logo atrás dela. Ela girou para trás bem a
tempo de ver o menino dar um único passo para virar em sua direção.
Charlie gritou e saiu correndo pelo caminho de onde viera, mas sentiu a
terra estremecer debaixo de seus pés. Ela se agitou, como se algo lá
embaixo estivesse tentando subir. A terra remexeu mais uma vez, e Charlie
cambaleou para trás enquanto alguma coisa irrompia em direção à
superfície.
Charlie correu em direção ao carrossel, o único esconderijo da sala.
Mergulhou atrás dele, deitando-se de barriga para baixo, de forma que o
corpo ficasse escondido atrás da base do brinquedo. Ficou olhando para o
chão enquanto escutava os sons abafados de batidas e arranhões,
provenientes de alguma criatura que se estava deixando sua cova. A
sensação de tontura a tomou outra vez. Os azulejos pretos e brancos
pareciam dançar embaixo dela. Tentou se erguer para espiar por cima do
carrossel, mas sentia a cabeça pesada. O peso a empurrava para baixo,
ameaçando pregar suas costas ao chão. Tem algo errado com essa
sala. Charlie trincou os dentes e puxou a cabeça para cima — levantou-se
aos tropeços, recobrando o equilíbrio junto ao carrossel, e então saiu
correndo por onde havia vindo, sem olhar para trás.
A sala de atrações com a luz negra exagerada também lhe deixava
tonta, e a mesma se alastrava por todas as direções. Tudo parecia mais
longe que antes, as paredes a quilômetros de distância. Sua mente estava
entorpecida. Estava tendo dificuldade para se lembrar onde estava, não
conseguia dizer que caminho era qual. Seguiu adiante, cambaleante, e outro
monte de terra começou a se erguer a sua frente. Foi quando notou um
brilho em meio à escuridão. Seus olhos discerniram as silhuetas das
máquinas de fliperama, suas superfícies refletivas agindo como faróis
dentre as sombras.
Cambaleou em sua direção, a cabeça oscilando, tão pesada que mal
conseguia mantê-la erguida. As paredes pareciam se mexer, como se algo
rastejasse por elas. Havia várias pequenas coisas espalhadas pelo teto de
forma desconexa, mas não conseguia ver o que eram — estavam se
revirando embaixo da tinta. A superfície ondulava de forma caótica. Havia
um estranho chiado no ar, e embora só o houvesse registrado agora,
percebeu que estivera reverberando desde o princípio. Parou onde estava e
começou a procurar desesperadamente pela fonte, mas sua visão estava
ficando turva e seus pensamentos estavam lentos. Mal conseguia nomear as
coisas que via. Retângulo, pensou, zonza. Círculo. Não. Esfera. Olhava de
uma forma indistinta para a outra, tentando lembrar seus nomes. O esforço
pareceu distraí-la, a ponto de esquecer de ficar em pé, e Charlie caiu no
chão dentre um sonoro baque. Tentou se sentar, mas a cabeça a puxava
para baixo, ameaçando derrubá-la.
— Olá? — Podia ouvir uma voz falando com ela novamente.
Pôs as mãos na cabeça, forçando-a para trás, e ergueu o olhar, vendo
diversas crianças a sua volta, todas com corpinhos pequenos e gorduchos,
com vastos sorrisos estampados em seus rostos. Sammy? Começou a andar
até eles, instintivamente. Estavam desfocados, e por isso não conseguia
distinguir suas feições. Piscou, mas a visão não clareou. Não confie nos
seus sentidos. Tem algo errado.
— Para trás! — Charlie gritou para eles. Ainda aos tropeços, se
forçou a ficar de pé e cambaleou em direção às sombras lançadas pelas
alterosas máquinas de fliperama. Lá, finalmente conseguiria se esconder de
quaisquer coisas piores que estivessem à espreita na sala.
As crianças foram atrás dela, correndo a seu redor em trilhas
coloridas que entravam e saíam de seu campo de visão. Mais pareciam
flutuar que andar. Charlie manteve o olhar focado nas máquinas; as
crianças a distraíam, mas ela sabia que havia algo pior por perto. Podia
ouvir o terrível tilintar do metal, o plástico retorcido, e um ruído áspero
bastante familiar. Garras afiadas raspavam o chão, abrindo buracos em
meio ao piso de azulejos.
Manteve-se agachada, voltando os olhos para a porta aberta mais
próxima, e foi tomada por uma súbita certeza de que aquele era o caminho
por onde havia entrado. Ainda encolhida, seguiu para a porta
desesperadamente, movendo-se o mais rápido que podia sem que se
erguesse por inteiro. Por fim, acabou cedendo para o próprio peso e caiu
outra vez sobre o piso de azulejos. Você tem que levantar, agora! Charlie
gritou e se ergueu novamente. Correu de cabeça em direção à sala adiante,
mal conseguindo manter o equilíbrio, e derrapou até parar. A sala estava
cheia de mesas de jantar e atrações de circo; era o local de onde começara,
mas algo havia mudado.
Todos os olhos estavam voltados para ela. As criaturas estavam se
mexendo, a pele esticada de forma orgânica, as bocas estalando. Charlie
correu para a mesa de jantar no meio da sala, a maior de todas, com uma
toalha de mesa que quase tocada o chão de todos os lados. Deslizou para o
chão e engatinhou para debaixo dela, encolhendo-se em uma bola e
abraçando as pernas junto ao corpo. Por um momento, não houve nada
além de silêncio, até que as vozes recomeçaram.
— Olá? — disse uma voz de algum lugar próximo. A toalha de mesa
se agitou.
Charlie segurou o fôlego. Ficou olhando para o pequeno vão entre a
toalha de mesa e o chão, mas conseguia ver apenas o brilho prateado dos
azulejos pretos e brancos. Alguma coisa passou depressa, rápida demais
para ver, e Charlie arfou, lançando-se para trás, esquecendo de ficar em
silêncio. A toalha se agitou outra vez, levemente maneada para dentro.
Havia alguma coisa tentando penetrá-la. Charlie se lançou sobre as mãos e
os joelhos, sentindo como se tivesse uma infinidade de braços e pernas. A
toalha se mexeu novamente, e dessa vez um turbilhão de cor surgiu e
desapareceu em meio ao vão. As crianças. Elas a haviam encontrado. A
toalha de mesa balançou mais uma vez, mas agora se mexia de todos os
lados, as crianças sacudindo-a para cima e para baixo. Os estranhos e
coloridos rastros de movimento apareciam e desapareciam nas bordas ao
redor de todo o seu esconderijo, cercando-a como um muro de bonecas de
papel vivas.
— Olá? Olá? Olá?
Agora, várias delas falavam juntas, mas não em coro. Suas vozes se
sobrepunham uma a outra, até que a palavra se tornou uma camada de som
sem sentido, tão indistinto quanto as próprias crianças flutuantes.
Virou o rosto para o lado. Uma das crianças a fitou de volta —
estava debaixo da toalha de mesa, olhando para ela com um sorriso
permanente e olhos vidrados. Charlie deu um pulo, batendo com a cabeça
no tampo da mesa. Olhou ao redor, desesperada. Estava cercada: um rosto
difuso e sorridente olhando para ela de todos os lados. Um, dois, três,
quatro, quatro, quatro. Deu uma volta completa por cima das mãos e dos
joelhos, sentindo-se terrivelmente perturbada. Duas das crianças zombaram
dela, dando pequenos pulinhos para fingir que estavam prestes a atacar.
Deu a volta novamente, e a próxima criança se jogou contra ela,
mergulhando sob a toalha de mesa dentre um brilhante vulto azul e
amarelo. Charlie congelou. O que eu faço? Tentava esmiuçar o cérebro
letárgico, desesperada para trazê-lo de volta à vida. Outro borrão de cor
disparou em sua direção, todo roxo, e seu cérebro despertou: CORRA.
Charlie engatinhou aos tropeços rumo à toalha de mesa, e então a
agarrou, arrancando-a da mesa enquanto se levantava. Ela a atirou atrás de
si e saiu correndo, sem olhar para trás, enquanto alguém voltava a dizer:
— Olá?
Disparou em direção a uma placa disposta no meio da sala,
derrubando-a enquanto passava correndo. Foi quando uma sombra junto ao
palco lhe chamou a atenção, e Charlie se voltou para ela. Tropeçou em uma
cadeira e mal conseguiu se segurar em outra mesa. A cabeça continuava
pesada demais. Ela a puxava para baixo, e Charlie empurrou a mesa para o
lado, procurando recobrar o equilíbrio. Chegou ao palco e, em meio a
sombra, havia uma porta.
Charlie segurou a maçaneta, mas era esponjosa, macia demais para
girar. Ela a agarrou com ambas as mãos, usando toda a força do corpo para
movê-la, até que finalmente conseguiu: a porta se abriu. Passou correndo e
a fechou atrás de si, passando a mão em busca de algum tipo de tranca.
Encontrou uma e a travou imediatamente, e, enquanto o fazia, esbarrou a
mão em um interruptor de luz.
Uma lâmpada tremeluziu por um momento, até que se acendeu,
bastante turva, um único facho brilhante de luz alaranjada iluminando o
cômodo. Charlie a observou por um minuto, esperando pelo resto das
lâmpadas. Nenhuma outra se acendeu.
Recostou-se em um armário ao lado da posta e deslizou até se sentar
no chão, levando as mãos às têmporas, como se pudesse empurrá-la de
volta à normalidade. A escuridão quase absoluta a tranquilizou. Fitou o
chão, esperando que o que quer que fosse o que estava acontecendo
consigo estivesse quase terminando. Ergueu o olhar, e a sala pareceu
oscilar de uma forma que a deixou nauseada. Ainda não terminou. Charlie
fechou os olhos, respirou fundo o ar envelhecido, e então os abriu
novamente.
Pelos. Garras. Olhos. Levou as mãos à boca para se impedir de
gritar. Uma onda de adrenalina contornou a tontura por um instante. A sala
estava cheia de criaturas, mas ela não conseguia discriminá-los. Havia um
braço de primata jogado no chão, os pelos escuros a apenas alguns
centímetros de seus pés, mas várias molas e fios desencapados jorravam
dele. O resto do primata não estava à vista.
Havia uma coisa grande e cinzenta no chão, logo a sua frente, um
torso com braços e as mãos palmadas de um anfíbio, mas não tinha cabeça.
Ao invés disso, alguém equilibrara uma grande caixa de papelão no lugar
onde devia ficar o pescoço. Mais adiante, atrás do torso, havia várias outras
figuras, uma falange de sombras. Enquanto as observava, elas foram se
tornando algo compreensível. Eram mascotes inacabadas, tão distorcidas
quanto as do lado de fora.
Havia um coelho nos fundos. Sua cabeça era marrom como a de uma
lebre, e suas orelhas estavam jogadas para trás, mas os olhos eram apenas
buracos vazios. O corpo do coelho estava curvado para o lado, e seus
braços eram curtos, erguidos como se estivesse se rendendo. Havia duas
estruturas de metal diante dele. Uma delas não tinha cabeça, enquanto que
a outra tinha a cabeça de um cachorro babão de olhos vermelhos, os pelos
negros e as presas salientes, fora da boca. Charlie fixou os olhos na criatura
por um momento, mas ela não se mexeu. Logo ao lado—
Charlie se encolheu e abaixou a cabeça, cobrindo o rosto com as
mãos. Nada aconteceu. Com cuidado, ela baixou as mãos e olhou
novamente.
Era o Freddy — o Freddy deformado que estava enterrado. Charlie
voltou o olhar para a porta, e então de volta para o Freddy. Ele estava
olhando diretamente para frente, os olhos vazios e o chapéu torto. Não
pode ser ele, disse a si mesma. É só outra fantasia. Mas continuou
encolhida, tentando parecer menor.
Foi quando algo lhe tocou delicadamente no topo da cabeça. Charlie
gritou e deu um pulo para longe. Virou-se para se deparar com um braço
humano desmembrado na prateleira em cima de onde estava agachada. Sua
mão havia se projetado apenas o suficiente para lhe tocar a cabeça. Havia
outros braços empilhados por cima e ao redor daquele, alguns cobertos de
pelos e outros não. Alguns tinham dedos e outros apenas terminavam,
cortados no que seria o pulso. As outras prateleiras estavam cheias de
coisas semelhantes: uma com peliças cobertas de pelos, outra com pilhas de
pés soltos. Um tinha dezenas de fios de extensão enrolados em um ninho
terrivelmente feio.
Do lado de fora da porta, Charlie ouviu a voz outra vez:
— Olá?
A maçaneta sacudiu. Charlie se esgueirou por entre as máquinas de
fliperama mutiladas e peças decepadas, trincando os dentes enquanto se
arrastava por cima de coisas macias que chiavam sob seu peso. Tentou
recuar, mas acabou batendo com o ombro em uma das estruturas de metal,
a que não tinha cabeça. Ela balançou sobre seus pés submersos no piso,
ameaçando cair. Charlie tentou tomar distância, mas a estrutura ficou presa,
bamboleando enquanto a menina brigava para soltar sua mão. Finalmente,
ela a jogou de volta, abaixando-se enquanto diversas outras estruturas de
metal tombavam no chão.
Agachou-se ao lado de uma das grandes máquinas de fliperama. O
revestimento de plástico estava tão rachado que as palavras e figuras
estavam completamente ofuscadas. Logo ao lado, à apenas centímetros de
distância, estavam as robustas pernas de Freddy. Charlie se encolheu,
pressionando o corpo contra a máquina como se pudesse se fundir a
ela. Não se vire, pensou, fitando o urso imóvel. A luz turva parecia se
mexer feito um holofote. Reluziu nos olhos vermelhos do cachorro, depois
nas presas brilhantes, e então em alguma coisa pontiaguda nos fundos da
cavidade oca do coelho.
Alguma coisa nos limites de seu campo de visão se mexeu. Charlie
balançou a mão depressa, mas não havia nada a seu redor. Do canto do
olho, pôde ver o coelho endireitar a coluna. Virou para ele, desesperada,
mas o viu curvado na mesma posição tortuosa de antes. Devagar, Charlie
olhou a sua volta em uma meia lua, mantendo as costas voltadas para o
fliperama.
— Olá?
A maçaneta sacudiu outra vez. Fechou os olhos e pressionou os
dedos contra as têmporas. Não tem ninguém aqui, não tem ninguém
aqui. Algo farfalhou diante de si, e Charlie arregalou os olhos
imediatamente. Com dificuldade para respirar, assistiu enquanto o Freddy
ganhava vida. Um som terrivelmente distorcido tomou conta da sala, e o
torso de Freddy começou a se virar.
— Olá?
Os olhos de Charlie se voltaram para a porta por um segundo, e
quando olhou para Freddy outra vez, o urso estava completamente
imóvel. Tenho que sair daqui.
Tirou um momento para analisar o caminho, olhando primeiro para a
porta e depois para o Freddy diante de si, mapeando a rota difusa.
Finalmente, seguiu em frente, olhando apenas para as mãos e nada mais
enquanto se arrastava com firmeza ao redor das pernas estáticas dos
animatrônicos ali parados e dentre os fliperamas que mais pareciam
criaturas bestiais. Não olhe para cima. Enquanto avançava, alguma coisa
pareceu esbarrar em sua perna, e ela continuou em frente, a cabeça
abaixada. Então, algo a agarrou pelo tornozelo.
Charlie deu um grito, mas a voz falhou, enquanto tentava soltar o pé,
mas a garra de ferro apertou ainda mais forte. Olhou freneticamente por
cima do ombro: Freddy estava abaixado atrás dela, a luz tremeluzindo em
seu rosto, fazendo parecer que estava abrindo um sorriso. Charlie puxou o
pé com toda a força, mas Freddy puxava ainda mais forte, trazendo-a cada
vez mais para perto. Charlie agarrou o pé de uma máquina de pinball, e
tentou se erguer sobre seus joelhos. Enquanto Freddy tentava puxá-la de
volta mais uma vez, a máquina balançava e tremia, como se estivesse a
ponto de tombar. Agarrando-se a ela com toda a força, Charlie lançou o
corpo para cima e para frente. As garras de Freddy rasgaram sua pele
quando ela finalmente se libertou, caindo por cima da máquina de pinball.
Freddy se lançou em sua direção, aquela terrível boca insana outra
vez, como a de uma cobra gigantesca. Agachou-se, aproximando-se dela de
forma sinuosa. Charlie saiu correndo aos tropeços por cima da máquina
quebrada e disparou em direção à porta. Atrás dela, ouviu o terrível ruído
de algo sendo destruído, mas não parou para olhar. Com as mãos na
maçaneta, Charlie parou quando a sala a sua volta começou a oscilar. O
barulho atrás de si foi ficando mais alto, mais próximo, e ela se virou para
ver Freddy arrastando-se em sua direção como um predador prestes a atacar
sua presa. Sua boca se escancarou. Jorrava terra de dentro dela em um
fluxo constante.
— Olá? Charlie? — disse uma voz do lado de fora. Mas era uma voz
diferente; não era da criança animatrônica. Charlie se atrapalhou tentando
abrir a porta, a sensação de tontura em sua cabeça piorando conforme
Freddy se aproximava devagar, objetivo. A sala oscilou novamente, e
Charlie fechou a mão na maçaneta, finalmente conseguindo girá-la.
Empurrou a porta com tudo, cambaleando em direção à luz.
— Charlie! — gritou alguém, mas ela não ergueu o olhar. A
claridade repentina era contundente, e teve que erguer o braço para
proteger os olhos enquanto fechava a porta novamente atrás de si. O chiado
não havia parado enquanto estava no depósito, mas agora estava ainda mais
alto. Entrava em seus ouvidos como um espeto, penetrando seu cérebro
inchado. Caiu de joelhos, envolvendo a cabeça com os braços, tentando
protegê-la. — Charlie, você está bem? — Alguma coisa a tocou, e ela se
retraiu, fechando os olhos em meio à luz. — Charlie, sou eu, o John —
disse a voz, passando pelo terrível chiado, e ela sentiu algo dentro de si se
tranquilizar.
— John? — sussurrou, a voz rouca. A terra da cova havia ficado
presa em sua garganta.
— Isso — respondeu.
Ela virou a cabeça e olhou entre o escudo que formava com os
braços. A luz ardente foi se abrandando aos poucos, e Charlie viu um rosto
humano. John.
— Você é de verdade? — perguntou, sem saber que tipo de resposta
poderia convencê-la. Ele lhe tocou o braço novamente, e, dessa vez, ela não
se afastou. Piscou, e sua visão clareou um pouco. Ergueu o olhar, sentindo
que estava se deixando vulnerável a um ataque. Seus olhos focaram em
outras duas pessoas, e sua mente alerta imediatamente os nomeou: —
Jessica...? Clay?
— Sim — disse John. Colocou a mão sobre a dele e tentou focar a
visão. Conseguiu enxergar Jessica, que estava recurvada, cobrindo os
ouvidos com as mãos.
— O barulho — disse Charlie. — Ela também está ouvindo o
barulho. Você não? — O chiado ficou mais alto, sobrepondo-se a resposta
de John, e Charlie agarrou sua mão. Real. Isso é real.— As crianças! —
gritou, de repente, enquanto uma faixa de cores ondulantes surgia de
debaixo das mesas. Pareciam voar, os pés sem tocar o chão, os corpos
deixando trilhas de cor atrás de si, feito cometas. — Está vendo? — Charlie
murmurou para John.
— Jessica! — gritou ele. — Cuidado! — Jessica se reergueu,
abaixando as mãos, e gritou algo indistinto. As crianças se lançaram em sua
direção, todas de uma vez, dançando a sua volta, se aproximando e
afastando logo em seguida, como se fosse um jogo, ou uma emboscada.
Dois correram para cima de Clay, que os encarou até que se encolhessem e
dessem a volta, juntando-se à roda ao redor de Jessica.
— As luzes! — gritou Jessica, sobrepondo a voz ao terrível e
doloroso chiado. — Clay, o barulho está vindo das luzes nas paredes! —
Apontou para cima, onde Charlie só conseguia distinguir uma grande fileira
de lâmpadas decorativas de várias cores, espaçadas equidistantemente.
Um disparo ecoou em meio à confusão, e Charlie agarrou a mão de
John mais forte. Jessica cobriu os ouvidos com as mãos novamente. As
crianças pararam onde estavam, mas continuaram a se mexer — era um
movimento nervoso, trêmulo. Clay estava de costas para elas, a arma
apontada para a parede. Charlie observou, os olhos vidrados, enquanto o
delegado mirava novamente, atirando na lâmpada da segunda luminária. A
sala ficou um pouco mais escura, e ele seguiu em direção à terceira, depois
à próxima, e então à próxima. Conforme um disparo ecoava atrás do outro,
a cabeça de Charlie começou a encontrar equilíbrio, como se o que quer
que fosse o que a estava preenchendo ao ponto de transbordar estivesse
agora, aos poucos, sendo drenado. A sala foi caindo na escuridão, uma
lâmpada de cada vez.
Bang. Charlie voltou o olhar para John.
— É mesmo você — disse ela, a voz ainda engasgada por conta da
terra. Bang.
— Sou mesmo eu — concordou ele.
Bang.
O movimento trêmulo das crianças foi diminuindo, permitindo que
vislumbrassem seus braços, pernas e rostos. Jessica tirou as mãos dos
ouvidos.
Bang.
Clay atirou na última lâmpada, e as crianças pararam de tremer.
Pareceram reverberar por um último instante, à beira da solidez, uma
nauseante ondulação de luzes piscando sem qualquer harmonia, até que
finalmente ficaram imóveis. A sala estava em silêncio. Ainda era iluminada
pelas lâmpadas no teto, mas todas as outras haviam sido destruídas. Jessica
olhou a sua volta, o rosto tomado por horror e confusão intermitentes. As
crianças não eram mais crianças. Eram brinquedos de dar corda, meninos
de plástico com camisas listradas e chapéus de hélice, oferecendo balões
com sorrisos de plástico estampados em seus rostos.
— Jessica, venha cá — disse Clay, a voz baixa, erguendo a mão para
ela. Ela seguiu em sua direção, olhando atentamente para os garotos dos
balões enquanto passava entre eles. Ele a segurou pela mão e a ajudou a
passar, como se a estivesse tirando de um abismo.
Charlie foi soltando a mão de John devagar, e então levou ambas as
mãos às têmporas, querendo se certificar de que tudo continuava lá. Sua
cabeça já não doía mais; sua visão estava clara. O que quer que fosse o que
havia se apossado dela já tinha passado.
— Charlie — disse Jessica. — Você está bem? O que está
acontecendo aqui? Estou me sentindo... drogada.
— Essas coisas não são reais. — Charlie recobrou o equilíbrio e foi
se levantando, devagar. — Quer dizer, são reais, mas não são como as
estamos vendo. Esse lugar inteiro é uma ilusão. Está sendo distorcido.
Essas coisas... — Fez um gesto em direção à parede onde estavam as luzes
nas quais Clay atirara. — Essas coisas são como o disco que encontramos.
Emitem uma espécie de sinal que distorce o que vemos. — Charlie
balançou a cabeça. — Temos que sair daqui — disse. — Tem algo pior que
eles aqui.
Empurrou um dos garotos dos balões, e o derrubou sem muito
esforço. Sua cabeça se soltou assim que tombou no chão, e saiu rolando
pelo espaço adiante.
— Olá? — murmurou a cabeça, bem mais baixo que antes.
CAPÍTULO TREZE
John deu um leve pontapé na cabeça de plástico do garoto dos
balões. Ela rolou um pouco mais adiante, mas não voltou a falar.
— Charlie? — disse Jessica, a voz trêmula. — Cadê eles? Os
grandões?
— Não sei. Minha cabeça ainda está girando. — Charlie olhou ao
redor, depressa, e então se aproximou dos outros enquanto examinavam a
sala. Tudo mudou quando Clay destruiu as lâmpadas. As feras realistas e as
criaturas de aparência hedionda haviam desaparecido, dando lugar a
versões estranhas e sem pelos de si mesmas. Não tinham mais olhos,
apenas caroços lisos e protuberantes, feitos de plástico.
— Até parecem cadáveres — disse John, a voz suave.
— Ou algum tipo de molde — disse Clay, pensativo. — Não
parecem estar terminados.
— São as luzes — disse Charlie. — Estavam criando uma ilusão,
igual ao chip.
— Do que você tá falando? — disse Jessica. — Que chip?
— É... É um tipo de transmissor, integrado a um disco — disse
Charlie. — Ele embaralha o seu cérebro, sobrecarregando-o com coisas
sem sentido, fazendo com que você veja o que espera ver.
— Então por que eles não ficam desse jeito? — Clay apontou para os
vários pôsteres nas paredes, retratando um Freddy Fazbear bastante
contente, com bochechas rosadas e um sorriso caloroso.
— Ou daquele. — John havia encontrado outro pôster, retratando
Bonnie, tocando alegremente seu baixo vermelho, tão brilhante que parecia
um doce.
Charlie pareceu pensativa por um momento.
— Porque não viemos aqui antes. — Ela seguiu em direção aos
pôsteres. — Se você fosse uma criancinha e visse aqueles comerciais
bonitinhos, e então visse pôsteres, brinquedos e todo esse tipo de coisa,
então acho que eles seriam exatamente desse jeito.
— Porque você já teria essas imagens na cabeça — disse John.
Arrancou um pôster do Freddy da parede e o fitou por um momento, antes
de deixá-lo cair no chão. — Mas nós sabemos o que eles são de verdade.
Sabemos que são monstros.
— E temos medo deles — disse Charlie.
— E por isso os vemos exatamente como o que eles são — concluiu
John.
Clay seguiu em direção às mascotes do fliperama outra vez, a arma
ainda em punho. Andou de um lado para outro diante das telas,
observando-as de vários ângulos diferentes.
— Como foi que me encontraram? — perguntou Charlie, de súbito.
— Vocês chegaram como a cavalaria... e bem na hora. Como sabiam que
eu estava aqui? Como sabiam que tudo isso estava aqui?
Ninguém respondeu imediatamente. John e Jessica olharam para
Clay, que corria os olhos pela sala, resoluto — parecia procurar alguma
coisa em específico.
— Nós os seguimos... — começou a dizer o delegado, mas então
parou.
Charlie olhou para os três, um de cada vez.
— Quem? — indagou Charlie. Mas assim que o disse, a porta do
depósito se abriu com tudo, batendo na parede em meio a um terrível
estrondo. O Freddy distorcido que havia pegado Charlie saiu da sala dentre
um estardalhaço descomunal, sua boca ainda assustadoramente insana,
mexendo-se de forma nada natural. Era uma versão tenebrosa do Freddy
que conheceram quando crianças, com olhos vermelhos ardentes e a
musculatura de um monstro — uma visão verdadeiramente saída de um
pesadelo. Virou a cabeça de um lado para o outro com toda a ferocidade, o
maxilar saltando e estalando.
— Corram! — gritou Clay, balançando os braços na tentativa de
conduzi-los juntos em direção à porta. Charlie, no entanto, estava
imobilizada, incapaz de desviar os olhos da boca da criatura.
— Espera! — gritou Jessica, de repente. — Clay, esses não estão
possuídos como os outros... não são crianças perdidas!
— O quê? — disse ele, parando seus movimentos frenéticos por um
instante, um olhar de total confusão lhe tomando o rosto.
— Atira nele! — berrou Jessica. Clay trincou o maxilar e então
ergueu a arma, mirando na boca aberta de Freddy. Atirou uma vez. O
disparo passou a apenas alguns centímetros do ouvido de Charlie, e foi
ensurdecedor. Freddy recuou um passo, a mandíbula que mais parecia a de
uma cobra se contraindo, e, por um único instante, sua imagem se
distorceu, brevemente indistinta. A gigantesca boca sobrenatural começou
a se fechar, mas antes que conseguisse, Clay atirou novamente, três
disparos seguidos, em uma rápida sucessão. A cada tiro, a criatura parecia
travar: sua imagem ficava embaçada, as extremidades tremeluzindo. A
boca de Freddy pareceu se enrolar em si mesma, sem se fechar, apenas se
contraindo enquanto o urso se curvava para cobrir as feridas. Clay atirou
uma última vez, mirando na cabeça de Freddy. Finalmente, o animatrônico
tombou para frente, a cabeça deformada caindo com tudo no chão.
A imagem de Freddy começou a tremular como a estática de uma
televisão. A cor foi se esvaindo de seus pelos, até que tudo que fazia dele
um Freddy desapareceu, deixando em seu lugar apenas uma figura de
plástico liso. Parecia o resto dos animais na sala, um manequim vazio,
desprovido de quaisquer características. Charlie se aproximou
cuidadosamente da coisa que era o Freddy. O chiado em seus ouvidos
estava começando a se dissipar. Agachou-se junto à criatura, inclinando a
cabeça para o lado.
— Não é como os outros mascotes da Freddy’s — disse ela. — Esses
aqui não são feitos a partir de pelos e tecido, são feitos a partir de nós...
distorcendo nossas mentes. — As palavras saíram em meio a uma
repugnância inesperada.
— Charlie — disse John, suavemente. Aproximou-se um passo, mas
ela o ignorou. Tocou a pele uniforme da criatura. Parecia algo entre
plástico e pele humana: uma substância estranha e maleável, um pouco
macia e lisa demais. A sensação de tocá-la a deixou enjoada. Charlie
ignorou sua aversão e se reclinou sobre o corpo, enfiando os dedos em um
dos buracos de bala. Escavou ao redor do material escorregadio e
inorgânico da cavidade no peito, fingindo não ouvir os protestos de Jessica
e Clay, até que finalmente encontrou. Seus dedos tocaram o disco, que
estava dobrado ao meio, quase quebrado. Charlie mexeu em uma segunda
peça de metal que estava encravada logo ao lado.
Levantou-se e a mostrou para os outros; estava com uma bala na
palma da mão.
— Você atirou no chip — disse. — Você matou a ilusão.
Ninguém disse nada. Em meio ao silêncio momentâneo, Charlie
subitamente notou a algazarra que haviam acabado de fazer naquele lugar
tão acostumado à quietude. O silêncio foi quebrado por um terrível
estalido: o som de garras arranhando azulejos.
Todos se viraram para ver o que estava acontecendo, e do que
parecia ser um canto escuro vazio, uma figura lupina surgiu em meio às
sombras e avançou contra eles, ereto, porém curvado para frente, como se
não soubesse se devia andar como uma fera ou como um humano.
Os quatro recuaram como um só. Charlie notou que Clay estava para
tropeçar no corpo caído de Freddy.
— Cuidado! — gritou. Ele parou, virando-se para olhar, e seus olhos
se alargaram diante de alguma coisa atrás de Charlie.
— Vejam! — exclamou, disparando um tiro contra a escuridão.
Todos se viraram: tratava-se de um Bonnie deformado, a contraparte em
forma de coelho da criatura caída no chão, bloqueando a porta atrás deles.
Sua cabeça era grande demais para o corpo, com olhos incandescentes
brilhando no escuro. Sua boca estava aberta, revelando várias fileiras de
dentes reluzentes. Clay atirou novamente, mas as balas não pareciam fazer
efeito.
— Quantas balas você ainda tem? — disse John, avaliando as duas
ameaças ainda na sala.
Clay disparou mais três tiros contra Bonnie, e então abaixou a arma.
— Três — disse, a voz seca. — Tinha três balas. — Do canto do
olho, Charlie viu John e Jessica se aproximarem um do outro, ligeiramente
atrás de Clay. Ficou parada enquanto os outros recuavam, paralisada pela
visão das duas criaturas que avançavam em sua direção: o lobo e o coelho.
Começou a andar até eles.
— Charlie — disse John, em tom de advertência. — O que está
fazendo? Volta aqui!
— Por que me trouxeram para cá? — perguntou Charlie, olhando de
uma criatura para a outra. Seu peito estava apertado e os olhos doíam,
como se estivesse segurando lágrimas há horas. — O que querem de mim?
— gritou. Eles a fitaram com seus olhos de plástico implacáveis. — Que
lugar é esse? O que vocês sabem sobre o meu irmão? — berrou, e sentiu a
garganta arranhar. Lançou-se em direção ao lobo, arremessando o corpo
contra a criatura gigantesca como se pudesse destruí-la com as próprias
mãos. Alguém a agarrou pela cintura. Mãos humanas a ergueram e
puxaram de volta, e Clay murmurou em seu ouvido:
— Charlie, temos que ir, agora. — Ela se soltou de suas mãos, mas
continuou parada onde estava. Sua respiração estava instável. Queria gritar
até que os pulmões saíssem pela boca. Queria fechar os olhos e ficar ali
sentada, bem quietinha, e nunca mais emergir da escuridão.
Ao invés disso, olhou novamente de Bonnie para o lobo sem nome e
perguntou, a voz tão calma que chegou a lhe dar calafrios só de ouvir:
— Por que vocês querem a mim?
— Eles não estão nem aí para você. Fui eu quem a trouxe aqui —
disse uma voz que parecia vir do mesmo canto escuro de onde emergira o
lobo. O coelho e o lobo corrigiram a postura, como se respondessem ao
comando do orador.
— Eu conheço essa voz — sussurrou Jessica. Uma figura foi se
aproximando, langorosa, oculta em meio à escuridão. Ninguém se mexeu.
Charlie notou que estava segurando o fôlego, mas também não ouviu
ninguém mais respirando em meio ao silêncio que se apossou do ambiente;
o único som era o farfalhar irregular do que quer que fosse o que estava se
aproximando. Independente do que fosse, tinha o tamanho de um homem.
Seu corpo estava contorcido, inclinado para o lado enquanto avançava
tortuosamente em direção ao grupo.
— Você tem algo que me pertence — disse a voz, e a figura surgiu
em meio à área iluminada. Charlie arfou, ouvindo também a respiração
acelerada de John.
— Impossível — murmurou Charlie. Sentiu John dando um passo
para ficar a seu lado, mas não ousou tirar os olhos do homem parado a sua
frente.
Seu rosto estava obscurecido, inchado de fluídos, a cor desbotada e
cheia de manchas — as bochechas que antes eram fundas estavam agora
dilatadas por conta da deterioração. Os olhos estavam injetados de sangue,
os vasos capilares estourados percorrendo os globos oculares que pareciam
um pouco translúcidos demais. Havia algo de errado dentro deles; era como
se fossem feitos de gelatina. Na base de seu pescoço, Charlie conseguia ver
duas peças de metal brilhantes. Estendiam-se de dentro do pescoço,
protuberâncias retangulares que se projetavam de sua pele manchada.
Estava vestido no que um dia fora um traje de mascote de pelos amarelos,
embora o que restava dele estava agora esverdeado, devido ao mofo.
— Dave? — disse Jessica, ofegante.
— Não me chame assim — ralhou. — Já não sou Dave há muito
tempo. — Ele ergueu as novas mãos: encharcadas de sangue e eternamente
seladas dentro de uma roupa apodrecida.
— William Afton, então? Da Afton Robotics?
— Errado outra vez — sibilou. — Eu aceitei a nova vida que você
me deu. Você me tornou um com a minha criação. Sou uma armadilha de
molas; meu nome é Springtrap! — O homem que um dia fora Dave bradou
o nome com uma satisfação roufenha, e então comprimiu o rosto, de forma
a encará-los. — Sou mais do que o Afton jamais foi, e muito mais do que o
Henry.
— Bom, você fede — gracejou Jessica.
— Desde que a Charlie me refez, abriu as portas para o meu destino,
eu me tornei o mestre de todas essas criaturas. — Encurvou os dedos e fez
um gesto para frente. Em perfeita sincronia, Bonnie e o lobo deram dois
passos adiante.
— Vê? Todos os animatrônicos estão conectados; era um sistema
projetado para controlar as coreografias de suas apresentações. Agora, eu
controlo o sistema. Eu controlo a coreografia. Tudo isso é meu.
Springtrap avançou a passos trôpegos, e Charlie recuou, encolhida.
— Tenho ainda outro débito de gratidão a você — disse. — Estava
aprisionado naquela tumba atrás do palco, mal conseguia me mexer, capaz
de enxergar apenas através dos olhos de minhas criaturas. — Fez um gesto
em direção dos dois animatrônicos que continuavam atrás de si. — Mas
pelo que podia ver, estava completamente enclausurado. Eventualmente, é
claro, eles teriam me libertado, mas ter você fazendo isso foi uma surpresa
maravilhosa. — Fitou Charlie nos olhos, e um músculo se contorceu na
bochecha da menina.
Afaste-se de mim, não chegue mais perto. Como se lendo seus
pensamentos, ele se esgueirou ainda mais para perto. Poderia sentir a
respiração em seu rosto, se ele ainda respirasse.
Springtrap ergueu uma das mãos recurvadas. O tecido da roupa
estava rasgado, revelando a pele humana por entre os buracos. Ela podia
ver os pontos onde os pinos e hastes de metal perfuravam ossos e tendões,
formando um esqueleto negro e enferrujado. Tocou o rosto de Charlie com
as costas da mão, acariciando sua bochecha como se a menina fosse uma
criança muito amada. Do canto do olho, Charlie viu John avançar um
passo.
— Não, tá tudo bem — se forçou a dizer.
— Não vou machucar seus amigos, mas preciso de algo de você.
— Só pode estar brincando — disse ela, a voz entrecortada.
Sua boca se contorceu para formar algo grotesco que lembrava um
sorriso.
John ouviu um leve estalido, e se virou a tempo de ver Clay
carregando uma bala silenciosamente em sua arma. Clay deu de ombros.
— Nunca se sabe quando um cadáver pode sair das sombras com
uma roupa de coelho — murmurou o delegado.
Sem perder tempo, ergueu o braço, mirou e disparou.
Springtrap recuou.
— Crianças! — gritou Clay. — A porta! — Charlie desviou os olhos
de Springtrap quase que dolorosamente, como se o mesmo estivesse
exercendo algum tipo de força hipnótica sobre ela. Bonnie havia
abandonado a saída, deixando-a livre. Clay, John e Jessica começaram a
correr. Charlie olhou para trás, relutante, mas então se juntou aos outros.
Correram de volta pelo caminho de onde haviam vindo, Clay
guiando-os enquanto serpenteavam dentre as atrações de circo as mascotes
desprovidas de feições que se assomavam por todos os lados. Avançava de
forma resoluta, como se conhecesse o trajeto. Charlie se lembrou da
pergunta que ninguém respondeu. Como foi que me encontraram?
Estavam sendo perseguidos pelos sons: metal se arrastando pelo
caminho e o estalido das garras do lobo. Em meio ao espaço aberto, os
ruídos ecoavam de uma forma estranha, parecendo vir de todos os lados.
Era como se um exército estivesse atrás deles. Charlie se voltou para John,
em busca de reconforto, mas seus olhos estavam vidrados em Clay,
correndo mais adiante.
Chegaram à sala com a cachoeira, e Clay novamente sabia o
caminho. Seguiu diretamente para a passagem junto ao rochedo, de onde a
água emergia. Esgueiraram-se por ela, um de cada vez. Clay e John eram
altos demais passa andar ali dentro sem se abaixarem, e Charlie sentiu uma
leve pontada de alívio. Os monstros não vão caber. No meio da passagem,
Clay fez uma pausa, permanecendo imóvel em uma posição esquisita.
Ergueu o pescoço, examinando alguma coisa fora de vista.
— Clay! — sibilou Charlie.
— Tenho uma ideia — disse ele. Duas sombras emergiram do outro
lado da sala. Jessica voltou o olhar para o túnel adiante, iluminado apenas
por uma luz negra, pronta para sair correndo. Mas Clay balançou a cabeça.
Ao invés disso, guiou o grupo de volta, e nenhum deles tirou os olhos dos
monstros. Tudo que os protegia agora era o rio que bifurcava a sala. Os
animatrônicos se aproximaram da água, hesitantes. O lobo a cheirou e
sacudiu os pelos, enquanto que Bonnie apenas se curvou e olhou para ela.
— Não corram — disse Clay, com firmeza na voz.
— Eles não podem atravessar essa coisa, certo? — disse Charlie.
Como se em resposta a sua deixa, as duas mascotes puseram os pés
na água, a passos trôpegos. Jessica arfou, e Charlie recuou um passo
involuntário. Lenta e deliberadamente, os animatrônicos avançaram em sua
direção pela água na altura da cintura. O lobo tropeçou no fundo
escorregadio e caiu. Afundou completamente embaixo da água por um
momento, antes de finalmente se jogar para o lado, cambaleando
violentamente. Bonnie também perdeu o equilíbrio, mas conseguiu se
agarrar à margem do rio e voltou a se firmar, continuando em frente.
— Não é possível — disse Charlie. Atrás de si, uma estrondosa
risada ecoou, e a menina deu a volta.
Era Springtrap, os olhos parcamente visíveis, fitando-os em meio à
luz negra do túnel mais adiante.
— Qual era o seu plano? — disse ele, incrédulo. — Achou que
os meus robôs seriam tão mal projetados quanto os do seu pai?
— Ora essa, então imagino que também os tenha feito à prova de
fogo! — exclamou Clay. Sua voz reverberou pela sala vazia e cavernosa.
Springtrap franziu o cenho, atónito, e então olhou para a água no riacho.
Estava reluzindo em meio à luz turva, uma faixa de cor dançando em sua
superfície, dentre pequenos redemoinhos brilhantes, como se fosse...
— Gasolina. — Charlie se virou para encarar Springtrap. Os galões
de gasolina estavam todos abertos, alinhados junto às paredes, alguns
tombados no chão; todos estavam vazios.
Clay acendeu um isqueiro e o jogou na água. A parte de cima do rio
pegou fogo, uma chama crescente como uma onda gigantesca, encobrindo
os animatrônicos dentre suas labaredas. As criaturas lutaram para chegar à
outra margem do rio, emitindo urros agudos e guturais. Conseguiram se
arrastar até o leito, mas já era tarde demais. Suas ilusões haviam se
desativado. As peles de plástico estavam expostas, liquefeitas, escorrendo
do corpo e formando pequenas poças flamejantes no chão. Charlie e os
outros assistiram enquanto as criaturas que se desmanchavam caíam,
contorcendo-se dentre berros de dor e agonia.
Ficaram todos paralisados, mesmerizados com o espetáculo grotesco.
Então, de algum ponto atrás de si, Charlie ouviu um leve farfalhar. Deu a
volta a tempo de ver Springtrap sumir dentre a boca da caverna estreita e
iluminada apenas por aquela luz negra. Saiu correndo atrás dele, guiada
pela iluminação sinistra.
— Charlie! — gritou Clay. Começou a persegui-la, mas as criaturas
em chamas haviam se arrastado pelo chão, talvez na tentativa de alcançar
seu mestre, possivelmente em um desespero insano, e estavam agora
bloqueando a entrada da caverna com seus restos em chamas. Charlie
continuou com os olhos vidrados no caminho adiante. Não podia se
permitir olhar para trás.
A passagem era apertada e cheirava a coisa velha e molhada. O chão
parecia de pedra sob seus pés descalços, mas embora fosse desnivelado,
não a machucava. A superfície estava desgastada e macia. Quando a
escuridão começou a se intensificar, mais ao fundo da caverna, sentiu uma
fagulha provinda de seus sonhos: um chamado de algo tão similar a ela que
era ela, sangue chamando sangue.
— Sammy? — sussurrou. Seu nome ricocheteou nas paredes da
caverna, envolvendo-a em seu som. O vazio dentro de si a levou adiante,
guiando-a em direção à promessa de preenchimento. Tem que ser
você. Charlie correu mais depressa, seguindo o chamado que vinha de
dentro de si.
Podia ouvir o eco distante das risadas espaçadas de Springtrap, mas
não conseguia vê-lo a sua frente. Ocasionalmente, pensava ter tido um
vislumbre dele, mas ele sempre sumia antes que seus olhos tivessem tempo
de focar em meio ao brilho desnorteante da luz negra. A caverna se
distorceu e reverberou até que ela já não fazia mais ideia de para qual
direção estava seguindo, mas continuou a correr.
Charlie piscou quando viu algo se mover de soslaio, fora de seu
campo de visão. Balançou a cabeça e seguiu em frente, mas então
aconteceu de novo. Uma forma anormal, com um brilho de neon, saiu da
parede, deslizando até o chão, e passou bem do seu lado, contorcendo-se.
Charlie parou, levando a mão à boca para que não gritasse. A coisa
subiu pela parede novamente, ondulando, movendo-se como uma enguia,
embora estivesse subindo numa pedra. Quando chegou ao teto,
desapareceu, mas Charlie não conseguia enxergar uma fenda na rocha por
onde pudesse ter entrado. Apenas continue em frente. Começou a correr
outra vez, mas, de repente, várias daquelas coisas começaram a brotar das
junções na base da parede. Dezenas de formas retorcidas foram se
arrastando e dançando, movendo-se pelo chão da caverna como se
estivessem no fundo do mar. Três deles dispararam na direção de Charlie.
Foram se contorcendo ao redor de seus pés, e ela deu um grito, mas
enquanto a circulavam, mordiscando curiosamente as pontas de seus pés,
ela se deu conta de que não estava sentindo nada.
— Vocês não são reais — disse. Deu um chute neles, e seu pé
simplesmente os atravessou, acertando o espaço vazio adiante: as criaturas
desapareceram. Charlie trincou os dentes e continuou a correr.
Adiante, grandes criaturas brilhantes que mais pareciam dançarinas
feitas de névoa foram surgindo e desaparecendo, uma atrás da outra.
Atravessavam a passagem de um lado para o outro, como se estivessem
percorrendo um caminho que por acaso se cruzava com aquele. Quando
Charlie estava quase perto o suficiente para tocá-las, a que estava mais
próxima começou a crepitar, até que por fim se desfez. Charlie seguiu em
frente, escutando o som da risada maníaca de Springtrap, na esperança de
que aquilo fosse o suficiente para guiá-la.
Fez uma curva, mas então a passagem dava uma volta extremamente
acentuada para o lado oposto. Charlie deu de cara na parede, segurando-se
com as mãos no último segundo. Deu a volta, procurando pelo caminho
que a levaria adiante. O baque havia sido o suficiente para distraí-la. Não
sabia dizer de que lado havia vindo. Charlie respirou fundo e fechou os
olhos. Conseguia ouvir uma voz suave em meio ao ar. Esquerda. Começou
a correr novamente.
Uma enxurrada de luz azul quase a cegou quando uma forma
gigantesca se assomou dentre a escuridão. Charlie gritou, lançando-se de
costas contra a parede da caverna e erguendo os braços para proteger o
rosto. A coisa diante dela era uma enorme boca aberta, cheia de dentes com
uma luminescência azulada. A boca gigante disparou em sua direção.
— É uma ilusão — sussurrou Charlie. Deu um salto adiante,
tentando rolar pelo espaço estreito. Bateu com o ombro em uma pedra, e
ficou com o braço dormente. Charlie o apertou instintivamente, e então
ergueu o olhar: não havia nada lá.
Pressionou as costas contra a parede da caverna, respirando fundo
enquanto voltava a sentir o braço.
— É só outro transmissor — disse a si mesma. — Nada que eu vejo
aqui é real. — Sua voz soava fraca em meio à passagem rochosa, mas dizer
aquelas palavras em voz alta era o suficiente para fazê-la se levantar outra
vez. Fechou os olhos. A conexão que havia sentido estava ficando mais
forte conforme avançava, a sensação de que estava correndo em direção a
uma parte perdida de si mesma. Era avassaladora, mais forte que o ímpeto
de enfrentar ou fugir do perigo. Era maior que a fome, mais profunda que a
sede, e penetrava no âmago de seu ser. Não podia virar as costas, da mesma
forma que não podia parar de respirar. Saiu correndo novamente, lançando-
se ainda mais fundo dentro da caverna.
Ao longe, a risada de Springtrap continuava a ecoar.
— Charlie! — gritou John novamente, mas era inútil. Ela já havia
saído de vista há muito, correndo para as profundezas da caverna, e o que
restava de Bonnie e do lobo continuava em chamas diante da entrada.
— Temos que ir! — exclamou Clay. — Podemos encontrar outro
caminho! — Jessica agarrou o braço de John, e ele cedeu, seguindo Clay
em direção à entrada do fliperama.
Assim que chegaram à porta, o Freddy distorcido surgiu em meio às
sombras, quase tombando no chão. Jessica gritou e John congelou,
paralisado com a visão da criatura. Sua ilusão crepitava aqui e ali,
ativando-se apenas para se desativar novamente logo em seguida. Um dos
braços parou de piscar, expondo o plástico liso que havia por baixo. Então,
o pelo se desfez e torso ficou uniforme, revelando os buracos de bala e o
tenebroso metal retorcido por baixo de sua carcaça de plástico. O pior era o
rosto. Não só a ilusão se havia desfeito, mas o material por baixo dela
também não estava lá. De cima a baixo, todo o lado esquerdo do rosto de
Freddy havia sido arrancado, revelando placas de metal e cabos retorcidos.
Seu olho vermelho brilhava com uma luz vermelha em meio ao maquinário
exposto, enquanto que o olho direito estava completamente apagado.
Um ruído atrás deles despertou John de seu devaneio pavoroso.
Olhou para trás e viu que Bonnie e o lobo haviam se levantado, ainda
fumegantes. Os revestimentos de plástico haviam derretido quase que por
completo, ainda gotejando lentamente de seus corpos, mas os mecanismos
robóticos embaixo pareciam continuar intactos. Foram se aproximando a
passos constantes, posicionando-se de forma a deixar John, Clay e Jessica
cercados.
— Tem alguma bala sobrando? — John perguntou a Clay, a voz
baixa. Clay balançou a cabeça devagar. Deu uma volta completa, cauteloso,
correndo o olhar de um animatrônico para o outro, como se tentasse avaliar
qual atacaria primeiro.
Charlie continuava correndo, obstinada, os olhos vidrados no
caminho adiante. Fez outra curva e então piscou. Alguma coisa brilhava
dentre uma forte luz azul diante de si. Não é real, disse a si mesma. Parou
por um momento, mas as formas brilhantes não se mexeram. Seguiu em
frente, notando enquanto se aproximava que a passagem estava se
alargando, finalmente dando lugar a uma pequena cúpula onde o brilho
azul se tornou mais claro.
O chão estava coberto de canteiros de cogumelos, os píleos brilhando
com um intenso azul fluorescente em meio à luz negra. Diminuiu o passo,
seguiu em direção ao agrupamento mais próximo e se abaixou para tocar os
cogumelos. Puxou a mão de volta, surpresa, quando sentiu uma substância
esponjosa.
— Eles são reais, ou quase — disse.
— Sim — disse uma voz atrás de si, ao lado de seu ouvido, e então
ela começou a engasgar. Springtrap a agarrou pelo pescoço, esmagando sua
traqueia. Charlie só entrou em pânico por um momento, antes de voltar a si,
a mente mais lúcida. Estendeu o braço o máximo que pôde, e então o
puxou de volta, batendo com o cotovelo em seu plexo solar com toda a
força que conseguiu reunir. Suas mãos soltaram a garganta de Charlie, que
saltou para a liberdade, virando-se para encará-lo enquanto o mesmo
apertava a área machucada.
— As coisas mudaram desde que você morreu — disse Charlie,
surpresa pelo sereno desprezo em sua voz. — Eu, por exemplo, tenho feito
abdominais!
— Acho que é isso — disse Jessica, a voz baixa, girando onde estava
enquanto os três monstros se aproximavam, sem qualquer abertura para
fuga. John sentiu seu peito apertar, o corpo protestando contra aquela ideia.
Mas ela estava certa. Pôs a mão em seu ombro.
— Talvez possamos nos fingir de mortos — disse.
— Acho que não vamos precisar fingir — disse Jessica, conformada.
— Costas juntas — berrou Clay, e os três se juntaram em um
pequeno triângulo, cada um olhando para uma das criaturas. O lobo estava
curvado, pronto para atacar.
John o fitou nos olhos. Continuavam crepitando, a ilusão indo e
vindo: uma hora, eram negros e malévolos, enquanto que no estante
seguinte, ficavam completamente vazios. A coisa recuou um passo, prestes
a dar o bote, e John enrijeceu. Jessica agarrou sua mão, e ele apertou a dela
com força. O lobo saltou... e então caiu no chão, guinchando de dor após
receber um golpe brutal em seu rosto.
A figura, invisível em meio às sombras, agarrou o pé do lobo e o
puxou para trás, arrastando-o para longe de suas presas humanas aos uivos,
enquanto o mesmo raspava o chão com suas garras. A criatura balançou as
patas traseiras até finalmente conseguir se libertar, e partiu novamente para
o ataque. Jessica deu um grito, acompanhada por John, mas então os dois
assistiram esbaforidos enquanto o lobo era agarrado pelos pés outra vez. A
coisa que o segurava o virou de costas para baixo e saltou em cima dele. O
novo predador parou por um instante, fitando-os nos olhos dentre um brilho
prateado, e Jessica arfou.
— Foxy — disse John, ofegante. Como se impulsionado pelo som de
seu nome, Foxy cravou o gancho no peito do lobo e começou a lacerar seus
mecanismos expostos. O ruído de metal rasgando metal tomou seus
ouvidos. Foxy continuou cavando furiosamente, abrindo um buraco no lobo
enquanto seus cabos e peças iam caindo do céu. Estalou as mandíbulas em
meio ao ar e disparou em meio ao estômago do lobo, arrancando suas
entranhas mecânicas e jogando-as longe com uma eficiência brutal. Uma
vez sobrepujado, os membros do lobo balançaram, impotentes, até que ele
finalmente caiu no chão, dentre um terrível estrondo.
Atrás deles, outro grito inumano ecoou pelo ambiente. John se virou
a tempo de ver o Bonnie chamuscado cair de bruços, progressivamente
arrastado em direção às sombras. Seus olhos piscavam, a luz acendendo e
apagando em um padrão aterrorizado e inútil. Urrou novamente, um som
assombroso e excruciante, enquanto era dilacerado pelo que quer que fosse
o que se escondia nas sombras. Peças de metal e plástico retalhado se
espalharam pelo chão, atiradas diante do coelho caído, de forma que
pudesse ver os restos de sua própria metade inferior. Berrou outra vez,
ancorando suas garras em um azulejo, num última e fútil tentativa de
defesa, apenas para ser arrastado para escuridão enquanto as garras
raspavam o chão, como se estivesse em um triturador automático. Na
escuridão, quatro luzes se acenderam. John piscou, notando que se tratavam
de olhos. Cutucou Jessica.
— Posso vê-los — murmurou. — Chica e Bonnie! Os nossos Chica e
Bonnie!
Do outro lado do rio, Foxy havia arrancado os membros do lobo de
seu corpo. Saltou do torso devastado e assumiu posição de ataque diante do
gigantesco Freddy distorcido, que se contorceu e crepitou por um
momento, mas então baixou a cabeça enorme e se lançou contra ele. Foxy
saltou, golpeando o Freddy distorcido no rosto com toda a força, jogando-o
de costas no chão, e então disparou contra a cavidade em sua cabeça,
lacerando o que restava de seu rosto distorcido com todo o entusiasmo.
Algo segurou John pela perna e o tirou de seu transe. O Bonnie
distorcido o havia agarrado com um braço de metal exposto, mas os olhos
no escuro subitamente surgiram atrás dele. O Bonnie original agarrou o
torno do Bonnie distorcido e o atirou para o lado, onde Chica aguardava —
ela agarrou a cabeça do coelho deformado e a arrancou em uma chuva de
faíscas.
John protegeu os olhos. Quando a fumaça baixou, tudo o que restava
era o cadáver vazio e queimado de um monstro inidentificável. Bonnie e
Chica havia desaparecido em meio às sombras.
Charlie saiu correndo em direção à boca da passagem, mas
Springtrap se lançou contra ela com uma velocidade preternatural. Ele a
derrubou e seguiu novamente em direção a seu pescoço com suas mãos
inchadas. Charlie rolou para fora do caminho e esbarrou em alguma coisa
com a nuca. Levou a mão ao que quer que fosse o que havia atingido e o
chapéu de um cogumelo voltou com ela. Levantou-se sobre os joelhos
enquanto Springtrap voltava a se erguer, rodeando-a, procurando uma
abertura. Baixou o olhar: uma estaca de metal robusta segurava o chapéu
do cogumelo em seu lugar. Envolveu a base da estaca com a mão, usando o
corpo para bloquear a visão de Springtrap.
Charlie ergueu o olhar para ele, fitando-o nos olhos gelatinosos,
desafiando-o a atacar. Como se aquela fosse sua deixa, ele se lançou contra
a menina, os braços abertos, novamente estendidos em direção à sua
garganta. No último momento, Charlie abaixou a cabeça e empurrou a
estaca para cima com toda a força. A mesma parou com um baque quando
lhe atingiu o peito, mas Charlie a pressionou para dentro, ignorando os
berros balbuciantes que dava enquanto inutilmente tentava afastá-la.
Levantou-se, as mãos tremendo enquanto penetrava a estaca o mais fundo
que conseguia. Springtrap tombou para trás, e ela rapidamente se ajoelhou
a seu lado, dando mais um empurrão na estaca de metal.
— Diga por quê — sibilou. Era a pergunta que a consumia, o fato
que continuava a atormentá-la em seus pesadelos. Ele não respondeu, e
Charlie puxou a estaca e a cravou novamente em seu peito. Deu um grito
de dor engasgado. — Diga por que você o levou! Por que o escolheu? Por
que você levou o Sammy?
— Para a caverna! — gritou John. — Temos que achar a Charlie!
Correram em direção à abertura, mas um ruído estranho e esmagador
começou a vir lá de dentro. Todos recuaram um passo quando uma horda
de garotos dos balões emergiu da caverna, sacudindo de um lado para o
outro em seus pés trôpegos, os dentes afiados rangendo alto enquanto
cambaleavam em sua direção com olhos vidrados.
— De novo não! Eu odeio essas coisas! — gritou Jessica. Clay
assumiu uma posição de luta, mas John podia ver que seriam sobrepujados.
Havia algo diferente nas crianças agora, algo coordenado. Embora
sacudissem e cambaleassem, não parecia mais um sinal de fraqueza. Ao
invés disso, John imaginava guerreiros fazendo barulho com seus escudos:
a ameaça antes da batalha.
— Temos que fugir — disse. — Clay!
Foi quando alguma coisa balançou a terra, — um estrondo, talvez
passos, — e uma sombra se assomou sobre eles. John ergueu o olhar e viu
um Freddy Fazbear sorridente se aproximando, o chapéu casualmente
inclinado para o lado enquanto balançava os braços maciços diante do
corpo.
— Essa não! Ele voltou! — berrou Jessica.
— Não, espera! Esse é o nosso Freddy! — John agarrou Jessica e a
protegeu com seus braços. Freddy passou por eles a passos arrastados, e se
lançou em direção ao grupo de garotos dos balões. Com uma única
investida de ambos os braços, estilhaçou parte do grupo em uma
ensurdecedora balbúrdia de metal e plástico. O ar se encheu de braços,
pernas e peças quebradas. Freddy se ergueu e agarrou um dos garotos dos
balões como se não pesasse nada, esmagando sua cabeça com uma só mão.
Freddy atirou o corpo no chão e o pisoteou, seguindo então atrás dos
outros, que agora estavam fugindo. Tinham se separado, e Freddy os
perseguiu a toda velocidade, o ruído de plástico estilhaçado ressoando pela
sala.
— Vamos, para a caverna! — berrou Clay, por cima do alvoroço, e
os três correram para a passagem. Avançaram às pressas pelo caminho
estreito, Clay na frente e John cuidando da retaguarda, certificando-se de
que não estavam sendo seguidos. De repente, Clay parou, e Jessica e John
quase deram de cara em suas costas. Aglomerando-se ao lado dele, viram
porque havia parado: o caminho se dividia em dois, e não havia sinal de
Charlie.
— Ali — disse Jessica, de repente. — Tem uma luz.
John piscou. Era fraca, mas conseguia vê-la. Em algum lugar mais ao
fundo da passagem, havia uma espécie de brilho azul, embora fosse
impossível dizer a que distância estava.
— Vamos — disse ele, implacável, esgueirando-se para passar por
Clay e assumir a dianteira.
— Por que você levou o Sammy?! — gritou Charlie novamente.
Springtrap tossiu, respirando ruidosamente, e então abriu um sorriso, mas
nada falou.
Charlie segurou sua cabeça com ambas as mãos, desesperada de
fúria. Ergueu a cabeça e a bateu com tudo contra a pedra na qual estava
apoiada. Springtrap deu outro grunhido agudo de dor, e ela repetiu o
processo. Dessa vez, algo começou a gotejar da parte de trás de sua cabeça,
um líquido espesso que escorreu pela pedra.
— O que fez com ele? — indagou Charlie, aos gritos. — Por que
você o levou? Por que o escolheu?
Springtrap ergueu o olhar para ela; uma de suas pupilas engolira a
íris de seu olho. Sorriu vagamente.
— Eu não o escolhi.
Um par de mãos agarraram os ombros de Charlie, erguendo e
afastando-a do semiconsciente Springtrap. Ela deu um grito e se virou para
reagir, detendo-se apenas quando viu que se tratava de Clay. Os outros
estavam logo atrás dele. Virou-se novamente, tremendo de raiva.
— Eu vou te matar! — berrou. Ergueu Springtrap pelos ombros e o
atirou de volta na pedra onde estava. Sua cabeça balançou e tombou para o
lado. — Como assim você não o escolheu? — disse Charlie, inclinando-se
junto a ele, como se pudesse ler as respostas em seu rosto acabado. —
Você o tirou de mim! Por que você o levou?
Os olhos descompassados de Springtrap pareceram se alinhar por um
minuto, e mesmo ele pareceu ter dificuldade para dizer suas próximas
palavras:
— Eu não o levei. Eu levei você.
Charlie o encarou, perdendo a força nos dedos, que por fim soltaram
a roupa mofada de Springtrap. O quê? A fúria a preencheu de tal forma que
Charlie se sentiu esgotada. Sentia-se como se houvesse perdido sangue
demais e estivesse entrando em choque. Springtrap não tentou fugir —
continuou apenas ali deitado, tossindo e ofegando, os olhos descoordenados
outra vez, fitando um vazio que Charlie não podia ver.
De repente, o chão se agitou sob seus pés. As paredes começaram a
balançar e logo toda a caverna estava tremendo, enquanto um urro
mecânico ecoava do outro lado da parede. Os sons de metal sendo
despedaçado preencheram o ar.
— Está um verdadeiro deus nos acuda lá fora! — gritou Clay. —
Esse lugar vai desmoronar!
Charlie desviou o olhar para ele, e assim que virou a cabeça, sentiu
Springtrap escapulir de seus dedos. Virou-se novamente, o mais rápido que
pôde, bem a tempo de vê-lo rolar por uma alçapão aberto na base de uma
gigantesca pedra alguns metros adiante. Charlie deu um salto para correr
atrás dele, mas o chão chacoalhou violentamente. Perdeu o equilíbrio,
quase caindo quando metade da parede da caverna veio abaixo. Parou por
um instante, olhando ao redor, verdadeiramente confusa: terra e pedras de
verdade estavam caindo sobre suas cabeças.
— Não é a caverna falsa que está tombando! — exclamou para os
outros. — É o prédio inteiro!
— Tá todo mundo bem? — gritou Clay. Charlie assentiu, e viu que
John e Jessica ainda estavam de pé. — Temos que ir!
Uma luz brilhava em meio a uma fenda na parede mais à frente. Clay
correu até ela, indicando para que os outros o seguissem. Charlie hesitou,
incapaz de tirar os olhos do último lugar onde havia visto Springtrap. John
pôs uma mão em seu braço.
As paredes da caverna já haviam caído quase que por completo, e
agora podiam ver o verdadeiro interior do complexo.
— Por ali! — gritou Clay, apontando por um pequeno corredor de
manutenção que parecia se esticar infinitamente para algum lugar mais ao
longe. — Nenhuma daquelas coisas vai caber ali! — Clay e Jessica
correram para a entrada do corredor, mas Charlie não conseguiu tirar os pés
do chão.
— Charlie, podemos lidar com ele outro dia — gritou John, por cima
dos terríveis estrondos. — Mas temos que sobreviver a isso primeiro! — O
chão sacudiu outra vez, e John olhou para Charlie. Ela assentiu, e os dois
saíram correndo.
— Clay, temos que parar — gritou Jessica, apertando as costelas
com as mãos, como se estivesse sentindo muita dor.
— Estou vendo alguma coisa logo em frente. Acho que estamos
quase pondo um fim a tudo isso. Vejam! — O corredor acabava em uma
grande porta de metal entreaberta, apenas uma pequena fresta, e Clay
acenou para John, pedindo que ele o ajudasse a abri-la. Ela rangeu e
protestou, até que finalmente cedeu, abrindo caminho para uma pequena
sala, muito simples, feita de concreto escuro. Uma das paredes tinha sido
derrubada, e a sala estava completamente aberta em meio ao ar gelado da
noite.
John olhou para Charlie.
— Saímos! Estamos bem! — Deu uma risada.
— Não está vendo onde estamos? — murmurou ela. A passos lentos,
atravessou o cômodo, gesticulando em direção aos quatro enormes buracos
no chão, um dos quais continha um robô sem cabeça, parcialmente
enterrado. — John, essa é a casa do meu pai. É aquela sala que nós
encontramos.
— Vamos, Jessica. — Clay estava ajudando Jessica a passar pelo
buraco na parede desmoronada. Parou e olhou de volta para John.
— Tá tudo bem — disse John. — Já chegamos aí. — Clay assentiu.
Ajudou Jessica a passar e os dois saíram de vista.
— O que é isso? — Charlie pôs a mão no estômago, um súbito mal-
estar se apossando de si.
— Qual é o problema? — perguntou John. Alguma coisa pareceu
tremeluzir ao redor deles, um lampejo desnorteante, rápido demais para que
pudesse dizer de onde havia vindo. Um baque estrondoso ecoou do
corredor de onde haviam acabado de sair. — Charlie, acho que devíamos ir
com o Clay.
— Sim, já estou indo. — Charlie seguiu em direção ao buraco na
parede, logo atrás de John, que já estava subindo por ele.
— Certo, vamos — vociferou John, erguendo a mão para ela do que
costumava ser seu próprio quintal. Ela olhou para frente, mas parou quando
as luzes piscaram outra vez. O que é isso?
Eram as paredes. O concreto coberto de cal começou a piscar,
surgindo e desaparecendo de forma intermitente, sua existência falhando
como uma lâmpada quebrada. Era a parede pela qual Charlie se sentira
atraída desde a primeira vez que foram àquele lugar. Podia agora sentir a
mesma atração que sentira na caverna. Estava mais forte agora do que
jamais fora, mesmo nos sonhos que a deixavam esgotada e dolorida. Estou
aqui. Deu um passo em direção à parede e sentiu mais uma pontada no
estômago. Aqui. Sim, aqui.
— Charlie! — gritou John, mais uma vez. — Charlie!
— Eu preciso — disse ela, a voz suave. Foi até a parede e a tocou
com suas mãos, assim como fizera antes. Mas dessa vez, o concreto estava
quente, e, de alguma forma, parecia macio, apesar do acabamento
rústico. Preciso entrar. Por um momento, sentiu que estava em dois lugares
ao mesmo tempo: ali, dentro daquela salinha, e do outro lado da parede,
desesperada para sair. Recuou subitamente, tirando as mãos da parede
como se ela a tivesse queimado. A ilusão crepitou, e então desapareceu por
completo.
A parede de concreto era feita de metal, e no centro havia uma porta.
Charlie a fitou, paralisada com o choque. Essa é a porta. Ela a
estivera desenhando sem sequer saber do que se tratava. Aproximando-se
cada vez mais de algo que nunca havia visto. Deu um passo em frente mais
uma vez, pondo as mãos em sua superfície. Continuava quente. Pressionou
a bochecha contra ela.
— Você está aí dentro? — perguntou baixinho. — Preciso te tirar
daí.
Seu coração batia com força, o sangue percorrendo as veias em seu
ouvido tão alto que mal conseguia ouvir qualquer outra coisa.
— Charlie! Charlie! — Tanto John quanto Jessica chamavam por ela
do lado de fora, mas suas vozes pareciam uma memória distante.
Continuou ali parada, sem tirar as mãos do metal, mas começou a traçar
uma linha imaginária com os dedos ao longo da parede. Sentia que se
afastar dela por um segundo que fosse a causaria uma dor insuportável.
Levou as mãos à fissura na parede: não tinha alça, maçaneta, dobradiças.
Era apenas um contorno, e começou a passar o polegar por ele, de cima a
baixo, tentando encontrar um engate, uma forma de abrir a porta e deixá-la
passar.
Ouviu John entrar na sala novamente e se aproximar dela devagar,
mantendo a distância, como se pudesse espantá-la.
— Charlie, se você não sair daqui, você vai morrer. O que quer que
haja atrás dessa porta, não vai trazer de volta a sua família. Você ainda
tem a gente. — Charlie olhou para John. Seus olhos estavam largos e
aterrorizados. Aproximou-se um passo dele. — Já perdemos muita coisa.
Por favor, não me faça perder você também — implorou John. Charlie
olhou para o teto, que continuava a tremer com cada vez mais força;
nuvens de fumaça vazavam do corredor de onde haviam saído. John tossiu
com força; estava engasgando. Olhou para ele. Estava apavorado, não
queria chegar mais perto do que já estava.
Virou-se novamente, e o mundo desvaneceu ao seu redor — não
conseguia ouvir John atrás de si, ou sentir o cheiro da fumaça em meio ao
ar. Espalmou a mão contra a parede. Um coração. Sinto um coração
batendo. Embora não tenha feito nenhum movimento intencional, seu
corpo se virou para o lado. Retesou o corpo, comprometida a ficar onde
estava, sem sequer tomar essa decisão. Ouviu um assobio vindo de algum
lugar: era o suave e constante som de ar sendo liberado. Um estalido
rítmico começou a soar da base da porta. Charlie fechou os olhos.
— Charlie! — John a agarrou e a virou a força em sua direção,
balançando-a para tirá-la daquele estupor. — Olha pra mim. Eu não vou te
deixar aqui.
— Eu tenho que ficar.
— Não, você tem que vir conosco! — berrou. — Você tem que
vir comigo.
— Não, eu... — Charlie sentiu sua voz entrecortada; estava perdendo
a força.
— Eu te amo — disse John. Os olhos de Charlie pararam de divagar:
ela os focou nele. — Vou levar você comigo, agora. — Ele a segurou pela
mão com firmeza. Era forte o bastante para arrastá-la dali à força, Charlie
sabia disso, mas estava esperando que ela tomasse consciência do que
havia dito e o seguisse por vontade própria.
Ela o olhou nos olhos, tentando deixá-los levá-la de volta à realidade.
Era como tentar acordar de um sonho. O olhar de John era uma âncora, e
Charlie se agarrou a ela, deixando que ele lhe estabilizasse, que a levasse
de volta para ele.
— Certo — disse ela, a voz baixa.
— Certo — repetiu John, dentre um suspiro aliviado. Estivera
segurando o fôlego até então. Voltou por onde havia vindo, guiando-a pelo
caminho.
Charlie subiu pela parede quebrada e então parou, procurando se
defender da insistente atração da porta e do que quer que houvesse atrás
dela. Respirou fundo — e então foi puxada para trás por uma força
colossal. Foi arrastada de volta por entre as pedras, os braços presos junto
ao corpo por alguma coisa. Charlie gritou, contorcendo-se para se libertar.
Podia ouvir vagamente os gritos de John, de algum lugar próximo a ela.
Enquanto balançava o corpo de um lado para o outro na tentativa de
se soltar do que fosse o que a havia agarrado, Charlie vislumbrou a imensa
criatura. Lá estava ele, o Freddy distorcido, olhando para frente com olhos
vazios, ou pelo menos o que restava dele. Estava segurando-a com um
braço; o outro havia sido arrancado, e tudo o que restavam eram cabos
pendurados em seu ombro, feito extensões adicionais de nervos e tendões.
Seu revestimento de plástico havia derretido, e só o que restava eram placas
e suportes de metal, um esqueleto com protuberância irregulares e buracos
em sua estrutura nos pontos em que o desmoronamento o esmagara. Seu
rosto era um buraco aberto, regurgitando dentes e cabos que ficavam
pendurados em uma massa disforme. Charlie não conseguia ver suas
pernas, e, após um segundo, percebeu que não estavam lá. Ele havia se
arrastado com um único braço em meio aos escombros. Diversos cabos
pareciam vazar de seu corpo, como entranhas, e quando viu seu estômago,
Charlie congelou, aterrorizada.
Toda a área do peito havia se aberto no meio. Dentes irregulares e
afiados alinhados de ambos os lados. Charlie chutou o animatrônico, mas
não adiantou: ele instantaneamente a forçou em direção ao abismo. A coisa
a abraçava, empurrando-a cada vez mais para dentro do peito, e os dois
tombaram de costas, juntos. As costelas de metal em forma de jaula se
fecharam sobre ela: estava presa.
— Charlie! — John se ajoelhou ao lado dela, que estendeu o braço
entre os suportes de metal. Ele agarrou sua mão. — Clay! — gritou. —
Jessica!
Jessica chegou em segundos; Charlie podia ver Clay forçando a
entrada pela abertura estreita.
— Espera! — gritou Charlie quando Jessica tentou enfiar a mão para
abrir a cavidade torácica. — Os mecanismos de trava de mola. Eles vão me
matar se você mexer na coisa errada.
— Mas se não te tirarmos daí, você vai morrer do mesmo jeito! —
berrou Jessica. Foi só então que Charlie notou, pela primeira vez, que a
boca de ferro não havia terminado de se fechar. Parecia ser feita de
camadas, e as placas de metal começaram a se desdobrar sobre ela, como as
pétalas de uma flor assombrosa. John começou a se levantar, mas Charlie
apertou sua mão com mais força.
— Não me solta — gritou ela, em pânico. Ajoelhou-se novamente,
puxando sua mão para junto do peito. Charlie olhou para ele, mesmo
enquanto as placas de metal se fechavam sobre ela, ameaçando selá-la para
sempre. Jessica tentou travá-las delicadamente, sem acionar as travas de
mola. — John...! — Charlie arfou.
— Não — disse ele, a voz áspera. — Estou aqui com você.
As placas continuaram a se fechar, encontrando-se no meio. O braço
de Charlie ficou preso no canto da boca estranha, projetando-se pelo único
buraco onde as placas não haviam se juntado. Olhou ao redor, desesperada:
outra camada começara a se fechar. Estava comprimida ao acaso dentro do
traje, o corpo completamente atulhado no torso de Freddy, e não enxergava
nada além de imagens ofuscadas conforme cada vez mais camadas de
plástico e metal se fechavam sobre ela. Do outro lado, Jessica tentava
impedir que a próxima camada emergisse, e Charlie sentiu o corpo
mutilado de Freddy se mexer.
— Jessica! Cuidado! — gritou a plenos pulmões. Jessica deu um
pulo para trás bem a tempo de evitar a violenta investida do braço de
Freddy. O animatrônico estava de costas, mas começou a golpear o espaço
aberto diante de si aleatoriamente, jogando Jessica e Clay para trás. Seu
corpo balançava de um lado para o outro, e Charlie examinou as molas e
peças robóticas a sua volta: puxou os joelhos para junto do peito, tentando
ficar menor.
John soltou sua mão, e ela segurou o vazio. Não conseguia mais ver
o que acontecia do lado de fora.
— John! — gritou.
O corpo de Freddy estremeceu, atingido por um golpe massivo.
— Solta ela! — gritou John. Clay içara uma barra de metal que havia
encontrado em meio ao chão e agora batia com ela na cabeça de Freddy. O
urso distorcido tentou atacar com seu braço remanescente. Clay se abaixou
para sair do caminho e golpeou novamente do outro lado, fora de seu
alcance. Jessica havia voltado para junto do peito da criatura, tentando
encontrar uma abertura que pudesse puxar, mas todas as camadas pareciam
perfeitamente unidas. Não havia nada em que segurar. John se aproximou
dela, tentando ajudar. Clay continuava atingindo a cabeça, de novo e novo,
fazendo todo o corpo de Freddy reverberar a cada novo golpe.
— Não consigo alcançá-la! — gritou Jessica. — Ela vai sufocar! —
Tentou estabilizar a mão trêmula de Charlie. Clay atingiu a cabeça de
Freddy mais uma vez e, dentre um estrondo sonoro, ouviram o som de
metal se partindo quando a cabeça caiu do corpo da criatura.
— Podemos tirá-la pelo pescoço? — perguntou John, a voz urgente.
O braço de Freddy continuava a se debater, mas havia perdido a força, e
agora apenas se erguia e caía, parecendo balançar sem um propósito.
— Clay, ajuda aqui! — gritou Jessica. Assumindo o controle, Clay
correu até ela, fincando os dedos entre as placas na tentativa de forçá-las.
Jessica continuou segurando a mão de Charlie, que havia ficado flácida. —
Charlie! — berrou. A mão de Charlie se fechou na dela novamente, e
Jessica suspirou de alívio. — John, Clay, ela tá bem! Rápido! Charlie,
consegue me ouvir? — Não parecia vir nenhum som de dentro do peito
fechado de Freddy, mas Charlie continuava segurando a mão de Jessica
com firmeza, enquanto os outros trabalhavam obstinadamente na tentativa
de libertá-la.
De repente, um único estalido agudo reverberou pelo ar. John e Clay
congelaram, as mãos ainda pairando sobre o peito de Freddy. Por um
momento, o tempo pareceu parar, mas então o corpo de metal convulsionou
violentamente. Deu um pulo do chão, e um ruído aterrador de metal contra
metal cortou o ar. Os três recuaram instintivamente. Clay e John deram um
salto para se afastar da coisa, enquanto que Jessica cambaleou para trás,
soltando a mão de Charlie.
O traje caiu novamente, completamente imóvel. O braço estava
estendido no chão em um ângulo estranho.
— Charlie? — disse John, a voz suave, e então ficou pálido. Correu
até o lugar onde o braço estava exposto, jogando-se de joelhos com tudo, e
agarrou a mão com ambas as suas. Estava flácida. John a sacudiu e deu
tapinhas de leve com os dedos. — Charlie? Charlie!
— John — disse Jessica, bem baixinho. — O sangue.
O garoto voltou o olhar para ela, confuso, ainda segurando a mão de
Charlie. Foi quando algo molhado escorreu por entre seus dedos. Havia
sangue vazando pelo traje, escorrendo pelo braço de Charlie. Sua pele
estava ensopada e vermelha, exceto a mão que ele estava segurando. Ficou
olhando para o sangue, incapaz de desviar o olhar enquanto escorria do
traje sem cessar, empoçando-se no chão e começando a permear suas
calças. Cobria suas mãos e a dela, até que sua pele foi ficando escorregadia
e ele começou a perder a firmeza. Ela estava escorregando por entre seus
dedos.
Sirenes começaram a soar por perto, e John vagamente se deu conta
de que as estivera ouvindo desde que estavam bem mais longe. Voltou o
olhar para Clay, ainda aturdido.
— Mandei um rádio para eles — disse. — Não estamos seguros aqui.
— Clay desviou o olhar do traje e olhou para cima, examinando o teto.
Estava curvado e rachado, a ponto de desmoronar. John não se mexeu.
Havia pessoas gritando do lado de fora, lanternas apontando para cima e
para baixo enquanto corriam em direção à casa em ruínas. Jessica lhe tocou
o ombro. Podiam ouvir os estalos e rachaduras ecoarem pelo ambiente.
— John, temos que ir. — Como se para ratificar suas palavras, o
chão voltou a tremer sob seus pés, e um terrível estrondo ribombou não
muito longe. A mão de Charlie não se mexeu.
Um policial uniformizado se ergueu pela fenda na parede.
— Delegado Burke?
— Thomson. Temos que tirar essas crianças daqui, agora. —
Thomson assentiu e seguiu em direção à Jessica.
— Venha, senhorita.
— John, vem... — Jessica conseguiu dizer, e um pavoroso ruído
ecoou de algum lugar atrás deles. Clay olhou para o policial outra vez.
— Tire-os daqui. — Thomson segurou o braço de Jessica e ela
tentou afastá-lo.
— Não me toque! — gritou, mas o policial a ergueu com firmeza em
meio aos escombros, quase que arrastando-a para o lado de fora. John mal
ouviu a comoção, quando as mãos de alguém também o pegaram pelo
ombro. Bateu nelas, sem olhar para trás.
— Vamos embora — disse Clay, a voz baixa.
— Não sem a Charlie — respondeu John. Clay respirou fundo.
John o viu fazer sinal para alguém de soslaio, e então foi agarrado à
força por dois homens enormes que o arrastaram em direção à abertura.
— Não! — gritou. — Me soltem! — Brutos, eles o atiraram por cima
da parede quebrada sem o menor cuidado, e Clay saiu logo depois.
— Saíram todos? — perguntou outra policial.
— Sim — disse Clay, hesitante, mas em tom de autoridade.
— NÃO! — berrou John. Conseguiu se soltar dos policiais que o
seguravam e correu novamente em direção à abertura.
Tinha passado um pé pela fenda quando ficou completamente
paralisado — viu uma lanterna iluminar a sala diante de si, vasculhando-a
por um único instante.
Uma mulher de cabelos escuros se ajoelhou ao lado da poça de
sangue, segurando a mão flácida de Charlie. Ergueu o rosto subitamente, e
então fitou seus olhos com um olhar negro e penetrante. Antes que John
pudesse se mexer ou falar qualquer coisa, um par de mãos agarrou seus
ombros novamente, arrastando-o de volta enquanto a casa inteira
desmoronava diante de seus olhos.
CAPÍTULO
QUATORZE
— Não sabemos ao certo — disse Jessica, posicionando com firmeza
o garfo com o qual estivera brincando na mesa da lanchonete. Fez um
mísero estalido, bem decepcionante.
— Para com isso — advertiu John. Não ergueu o olhar do cardápio,
embora não tivesse lido uma única palavra desde que o pegara.
— É que tudo o que vimos foi, você sabe, sangue. As pessoas
sobrevivem a um monte de coisa. O Dave... ou Springtrap, ou seja lá como
queira ser chamado... ele sobreviveu a uma dessas roupas, duas vezes. Até
onde sabemos, ela pode estar presa nos escombros. Devíamos voltar.
Podíamos...
— Jessica, para. — John fechou o cardápio e o largou sobre a mesa.
— Por favor, não posso escutar essas coisas. Ambos vimos acontecer.
Ambos sabemos que ela não poderia ter... — Jessica abriu a boca outra vez,
a ponto de interrompê-lo. — Eu disse para. Não acha que eu quero
acreditar que ela tá bem? Eu também me importava com ela. O que eu mais
quero é que ela tenha dado um jeito de escapar. Que venha dirigindo
naquele carro antigo e saia toda furiosa, dizendo algo como “Ei, por que me
deixaram pra trás?”. Mas nós vimos o sangue: era muito sangue. Eu segurei
a mão dela, e não senti nada. Assim que a toquei, eu... Jessica, eu soube. E
você também sabe.
Jessica pegou o garfo novamente e o girou entre os dedos, sem olhá-
lo nos olhos.
— Sinto que estamos esperando que algo aconteça — disse, a voz
baixa.
John pegou o cardápio de novo.
— Eu sei. Mas acho que é normal sentir isso. — Atrás dele, ouviu a
garçonete se aproximar pela terceira vez. — Ainda não sabemos — disse,
sem erguer o olhar. — Por que estou olhando pra isso, afinal? — John
soltou o cardápio e cobriu o rosto com as mãos.
— Posso me juntar a vocês? — John ergueu o olhar. Um jovem
desconhecido de cabelos castanhos se sentou ao lado de Jessica, de frente
para ele.
— Oi, Arty — disse Jessica, com um sorriso fraco.
— Oi — disse ele, desviando o olhar dela para John e então de volta
para ela. John não disse nada. — Todo mundo bem? — perguntou Arty,
finalmente. — Ouvi dizer que houve algum tipo de acidente. Cadê a
Charlie?
Jessica baixou o olhar, batendo com o garfo na mesa. John fitou o
recém-chegado nos olhos, e então balançou a cabeça. Arty ficou pálido, e
John olhou pela janela. O estacionamento lá fora se ofuscou quando o
garoto focou o olhar no vidro riscado e manchado.
— A última coisa que ela me disse foi... — John tocou com o punho
na mesa, bem de leve. — “Não me solta”. — Desviou o olhar da janela.
— John — sussurrou Jessica.
— Mas eu não fiz o que ela pediu. Eu a soltei. E ela morreu sozinha.
— Ficaram em silêncio por alguns momentos.
— Não acredito nisso — disse Arty, franzindo o cenho. — Tínhamos
acabado de começar a namorar, sabiam disso?
Jessica continuou inexpressiva, e John metralhou Arty com o olhar.
O garoto gaguejou.
— Quer dizer, íamos começar. Eu acho. Seja como for, ela tava tão
na minha. — Voltou o olhar para Jessica, que assentiu.
— Ela gostava de você, Arty — disse. John se voltou para a janela
outra vez.
— Tenho certeza que sim — disse, mantendo a voz uniforme.
Pensamentos aleatórios remoeram sua mente. O quarto bagunçado. A
pontada de preocupação que sentiu quando viu seu brinquedo da infância,
Theodore, o coelho de pelúcia, feito aos pedaços. Charlie, o que havia de
errado? Havia tanta coisa que queria lhe perguntar. Aqueles rostos cegos,
com faces macias e feições quase que indistintas, e seus jogos de palavras
em pares. Alguma coisa — tudo — a respeito deles o havia incomodado, e
agora que os visualizava novamente em sua cabeça, se sentiu incomodado
por outro motivo. Pareciam os modelos de William Afton — rostos vazios e
sem olhos. Charlie, o que fez você pensar naquilo?
Jessica deu um grito indistinto e saiu correndo, o que assustou John e
o trouxe de volta ao presente. Viu que Jessica estava seguindo em direção à
porta, onde Marla havia aparecido. Levantou-se um pouco mais devagar, e
então a seguiu, com uma sensação de déjà vu. Estava esperando sua vez
enquanto Marla abraçava Jessica apertado, passando a mão em seu cabelo e
sussurrando algo que John não conseguiu ouvir.
Marla soltou Jessica e se voltou para ele.
— John — disse, segurando ambas as suas mãos. Foi o pesar em
seus olhos que partiu seu coração. Inclinou-se mais para perto e a abraçou
com força, escondendo o rosto em seu cabelo até que conseguisse se
recompor. Quando finalmente estabilizou a respiração, e o empurrou para
trás gentilmente, segurando-lhe no braço. Todos voltaram para mesa onde
Arty estava esperando, espiando inseguro pelo canto da cabine. Voltaram a
se sentar. Marla se sentou ao lado de John e voltou o olhar dele para
Jessica. — Vocês precisam me contar o que aconteceu — disse, a voz
baixa. Jessica assentiu, deixando o cabelo cair por cima do rosto por um
minuto, feito uma cortina castanha e brilhante.
— É, eu também quero saber — interveio Arty, e Marla olhou para
ele como se só então houvesse registrado sua presença.
— Oi — disse ela, parecendo levemente intrigada. — Me chamo
Marla.
— Arty. A Charlie e eu éramos... — Olhou para John. — Éramos
bons amigos.
Marla assentiu.
— Bom, queria que estivéssemos nos conhecendo sob circunstâncias
diferentes. Jessica? John? Por favor, contem pra mim.
Olharam um para o outro. John desviou o olhar para a janela outra
vez. Já se contentaria em deixar Jessica explicar, mas sentia uma
obrigação... não de falar com Marla, mas de falar sobre Charlie.
— A Charlie estava atrás de alguma coisa do seu passado — disse
John, a voz calma. — Ela encontrou, e seja lá o que fosse, não a deixou ir
embora.
— Houve um desmoronamento — acrescentou Jessica. — A casa do
pai dela.
— A Charlie não conseguiu sair — disse John, a voz áspera.
Pigarreou e pegou o copo d’água diante de si.
John ouviu vagamente enquanto Marla e Jessica trocavam palavras
de conforto, mas sua mente estava em outro lugar. A mulher, ajoelhada na
poça de sangue de Charlie, segurando sua mão. Tinha tido um único
vislumbre dela, apenas por um momento; parecera quase tão surpresa em
vê-lo quando ele em vê-la. Mas havia algo familiar nela.
Virou as costas para os outros novamente e fechou os olhos, tentando
visualizá-la. Cabelos e olhos escuros. Parecia séria e destemida, mesmo
com o chão tremendo e a casa tombando sobre sua cabeça. Eu a
conheço. A mulher da qual se lembrava parecia diferente, mais nova, mas o
rosto era o mesmo...
Foi quando se deu conta. O último dia que eu te vi, Charlie, quando
ainda éramos crianças. Ela foi te buscar na escola, e você não estava lá no
dia seguinte, nem no dia seguinte, e nem no dia seguinte àquele. Então
mesmo nós, crianças, começamos a ouvir os rumores, de que seu pai havia
feito o que fez. E foi quando eu percebi que nunca mais a veria
novamente. John estremeceu.
— John, qual é o problema? — disse Marla, incisiva, e então corou.
— Digo, no que está pensando?
— A tia dela estava lá — disse ele, devagar. — A tia Jen.
— O quê? — disse Marla. — Onde?
— Elas não se falavam há meses — disse Jessica, dúbia.
— Eu sei — disse John. — Mas ela estava lá. Quando corri de volta
para a casa, pouco antes de me puxarem de lá, eu a vi. Com a Charlie.
A memória o atingiu como um golpe bem no meio do peito, e ele
olhou pela janela outra vez, de forma a não precisar fitar ninguém nos
olhos.
— A tia Jen estava lá com a Charlie — repetiu para a superfície de
vidro suja.
— Talvez o Clay tenha ligado para ela — sugeriu Jessica. John não
respondeu. Ninguém falou por um longo momento.
— Acho que é melhor não procurar mais mistérios — disse Marla,
devagar. — A Charlie ia...
— Todos prontos para fazer o pedido? — perguntou a garçonete,
radiante. John se voltou para ela com um olhar impaciente, mas Marla o
interrompeu.
— Quatro cafés — disse, com firmeza. — E quatro ovos com
torradas. Ovos mexidos.
— Obrigado, Marla — murmurou John. — Mas não sei se consigo
comer.
Ela desviou o olhar para os demais. Arty a fitou por um instante,
como se quisesse dizer alguma coisa, mas então baixou o olhar para a
mesa. A mulher partiu, e Marla olhou ao redor.
— Todos temos que comer. E não podemos ficar sentados o dia todo
numa lanchonete sem pedir nada.
— Fico feliz que esteja aqui, Marla — disse John. Ela assentiu.
— Todos amamos a Charlie — disse ela, fitando um de cada vez. —
Nunca tem uma coisa certa a dizer, não é verdade? Nada fará com que
fique tudo bem, porque não está tudo bem.
— Todos aqueles experimentos malucos — disse Jessica, de repente.
— Eu não entendia, mas ela estava tão animada com eles, e agora nunca
vai conseguir terminá-los.
— Não é justo — disse Marla, a voz suave.
— E o que fazemos agora? — disse Jessica, com um tom lamurioso
na voz. Olhou para Marla como se ela tivesse a resposta.
— Jessica, querida — disse Marla. — Tudo o que podemos fazer é
guardar a Charlie que todos amávamos em nossos corações.
— Acabou — disse John, a voz rouca, virando-se de janela de forma
abrupta. — Aquele... aquele psicopata a matou, assim como fez com o
Michael e todas aquelas outras crianças. Ela era a pessoa mais fascinante, a
pessoa mais incrível que eu já tinha conhecido, e morreu por nada.
— Ela não morreu por nada! — disparou Marla, inclinando-se em
sua direção. A fúria percorria seus olhos. — Ninguém morre por nada,
John. A vida de todos tem um significado. Todos morrem, e eu odeio que
tenha sido ela. Está me ouvindo? Eu odeio. Mas não podemos mudar esse
fato. Tudo o que podemos fazer é nos lembrar da Charlie, e honrar sua
vida, do começo ao fim.
John encarou seus olhos furiosos por um longo momento, até que
desviou o olhar para os braços, cruzados sobre a mesa. Ela fez o mesmo,
colocando uma mão sobre a dele.
De repente, Jessica arfou, e John voltou a atenção novamente para a
mesa, sentindo-se exausto.
— O que foi, Jessica? — perguntou.
Sua energia nervosa estava começando a fatigá-lo. Ela não
respondeu, mas desviou o olhar para ele, incrédula, antes de olhar para a
janela outra vez. Marla se inclinou diante de John, erguendo o pescoço para
que conseguisse enxergar. Relutante, ele também deu uma olhada, focando
os olhos pela primeira vez no estacionamento do lado de fora da janela, e
não na própria vidraça.
Era um carro. A mulher ao volante desligou o motor e saiu. Era alta e
magra, com cabelos lisos e castanhos que brilhavam ao sol. Estava com um
vestido vermelho, brilhante, na altura dos joelhos, além de um coturno de
combate preto, e seguiu em direção à lanchonete à passos firmes. Todos
ficaram olhando, completamente estáticos, como se o menor dos sons
pudesse acabar com a ilusão e mandá-la embora. A mulher estava quase na
porta. Arty foi o primeiro a falar:
— Charlie?
Marla balançou a cabeça. Levantou-se num pulo e se virou, gritando
de seu assento:
— Charlie! — Saiu correndo em direção à porta, e Jessica disparou
em cima dos saltos, gritando atrás dela. Foram até a porta às pressas,
encontrando-a enquanto ainda estava entrando.
John ficou onde estava, erguendo o pescoço para olhar a porta. Arty
pareceu confuso, a boca levemente aberta e a testa franzida. John observou
a cena por instante contínuo, mas então se virou novamente, resoluto,
olhando para o outro lado da mesa com uma expressão séria. Não falou
nada até que Arty o fitou nos olhos.
— Essa não é a Charlie.