Artigo Montanha 7 Patamares Merton
Artigo Montanha 7 Patamares Merton
Artigo Montanha 7 Patamares Merton
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Marcelo Timotheo da Costa - UFF
como apontam inúmeros especialistas, a obra Confissões, elaborada por Santo Agostinho
pretenderam prestar contas de suas vidas pela escrita e por ela testemunhar sua opção
editada em 1948, quando o autor tinha 33 anos. Quanto a Amoroso Lima, ele também
quis redigir sua autobiografia. Contudo, mesmo com o trabalho iniciado e já tendo definido
até seu título, A Casa Azul e Outras Casas, tal obra jamais veio a lume.
ainda que de forma resumida, sugerir as razões que moveram Merton a registrar suas
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ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005.
cedo, revelaram-se leitores vorazes; mantinham com a cultura francesa vínculo especial;
mocidade (ou parte dela, no caso de Merton) sem maior preocupação religiosa, os dois, já
São Paulo, anterior à opção religiosa de Agostinho e tão paradigmática quanto ela.
analista do pensamento cristão um dos traços básicos deste credo: seu caráter
teleológico. Para o fiel, a vida terrena pode ser representada como um metafísico
como “O Caminho”.3
seu último livro, Tudo é Mistério, diz que o homem, ao buscar aperfeiçoar sua conduta,
inspirado na Montanha dos Sete Patamares da Divina Comédia, ele, ao relatar sua vida,
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ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005.
podem ser vistos como relatos de viagem especiais. Exposições públicas de um itinerário
maravilhoso, discernível somente pelas lentes da fé, mas testemunhado diante de fiéis e
não crentes. Enfim, memórias que revelam identidades e projetos bem nítidos.5
Isto posto, cabe indagar em que tempo e condições nossos autores testemunharam
Merton e Amoroso Lima foram homens do século XX, época com freqüência
Nos primeiros decênios do século XX, quando Amoroso Lima e Merton abraçaram o
escreveu Peter Gay, em trecho sobre o século XIX mas que pode ser estendido ao século
Numa era tomada como indiferente ou hostil à crença religiosa, profissões escritas
de fé adquirem grande valor para a causa dos crentes. O caso de Merton é um bom
exemplo. Em 1941, poucos anos após converter-se, ele decide tornar-se monge trapista,
autorização superior para escrever. Seu primeiro livro será A Montanha dos Sete
Patamares, que, um ano após seu lançamento, alcançou a marca de 600 mil exemplares
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contemporânea. Mas, tal qual Agostinho, Merton tinha muito mais a confessar em sua
autobiografia.
órfão cedo, sendo acolhido por familiares na Inglaterra e, depois, nos Estados Unidos. Na
juventude foi boêmio, freqüentou a noite de Nova York, ouvindo jazz e entregando-se ao
spirits. Cinéfilo, dizia ter visto todos os filmes produzidos entre 1934 e 1937. Namorador,
engravidado moça solteira. Interessou-se por política, alistou-se por pouquíssimo tempo
ano seguinte, obteve o grau de mestre em Literatura Inglesa, com tese sobre o poeta e
exerceu forte influência um místico hindu, que o aconselhou a ler clássicos da tradição
cristã. Convertido, seu itinerário continuou acidentado: desejou ser sacerdote franciscano
e teve seu pleito recusado (acredita-se que o episódio de Cambridge motivou tal
negativa). Tentará de novo ingressar na Igreja, sendo aceito pelos trapistas, em 1941.
É neste período que ele redige A Montanha dos Sete Patamares, título lançado em
1948, dez anos após converter-se. A inspiração mertoniana vem de Agostinho, que, em
sua famosa autobiografia, rogou a Deus para que conseguisse “com memória fiel”
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interpretadas como pecaminosas à luz do credo que adotara. Ele, a certa altura de A
Montanha ..., afirma que, antes da conversão, era um “perfeito filho do século”.10 Tendo
empreendido a fuga mundi monacal, tratou de proclamar sua mudança. Merton, pela
escrita de si, procurou confirmar sua transformação. Enfim, utilizando papel e tinta, ele
Porém – e este é o segundo ponto que desejo registrar – não se está diante de uma
conhecido pelo termo confessio (o título agostiniano, aliás, não é casual). Através da
sua precoce autobiografia. A Montanha dos Sete Patamares deve ser entendida, então,
como uma tentativa de fixar uma nova imagem para o Merton “renascido na fé”.
os riscos de sua viagem metafísica. Viagem que, ele admitiu na última linha desta obra,
lastro.14
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Barca de Pedro, procurou um porto seguro para lançar âncora. Não sem motivo, a âncora
fazer alusões a ela, ao menos desde fins da década de 40. Em entrevista a Paulo Mendes
Campos, em dezembro de 1949, Amoroso Lima afirmou que gostaria de “acabar suas
memórias”, para as quais já dispunha até de título: A Casa Azul e Outras Casas.15
E Amoroso Lima viveu (e escreveu) até 1983, trinta e quatro anos e mais de
quarenta livros depois da entrevista a Paulo Mendes Campos. E, segundo pude apurar,
Alceu mencionou seu projeto autobiográfico até o final da vida.16 Todavia, não o
Patamares, o intelectual brasileiro não quis “petrificar” sua imagem, temendo produzir,
pelo texto “acabado” da autobiografia, uma visão por demais esquemática ou idealizada
de sua vida. Como disse um de seus colaboradores, Amoroso Lima era cauteloso em
mesmo quando o assunto era sua própria biografia, protelando indefinidamente o término
Adiamento explicável também (e talvez seja este o motivo mais importante) porque,
à medida que o tempo passava, uma biografia nos moldes tradicionais agostinianos
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Percurso de alguém que, da conversão em fins dos anos 20 até meados dos 40,
caracterizou sua atuação na Igreja por um apostolado combativo, que reagia ao mundo e
partir da metade da década de 40, vai, lentamente e de forma não linear, abraçando uma
Católicos que se tornam críticos implacáveis deste Alceu mais liberal. Daí resulta que a
referida transformação amorosiana, por arriscada, deveria ser organizada com cautela.
Controle cuidadoso que Amoroso Lima – um fiel que revê sua fé e conseqüente
atuação na sociedade – fará pela escrita. Porém, não há conexão com o Merton de A
Montanha dos Sete Patamares. Este buscou disciplinar seu caminhar pela confessio de
erros passados. Já Alceu teria modelado e disciplinado seu self através das dezenas de
Desta maneira, como aponta Antônio Cândido, ao construir sua extensa bibliografia,
Alceu “[...] não cessaria de se construir e se reconstruir [...] percorrendo as mais variadas
contradições […].”18
Assim, se Amoroso Lima não finalizou A Casa Azul e Outras Casas, encobrindo
parte de seu itinerário, ele, modelando-se diante de seu público, numa relação dinâmica
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ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005.
notável.
1
Doutor em História, professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
2
Para a importância de Confissões, ver, p. ex., GUSDORF, Georges – “Conditions and Limits of
Autobiography”, in OLNEY, James (org.) – Autobiography: Essays Theoretical and Critical, Princeton,
Princeton University Press, 1980, pp. 28-48.
3
Cf. in CWIEKOWSKI, Frederick J. – The Beginnings of the Church, Nova York, Paulist Press, 1988, p. 79.
4
In Tudo é Mistério, Petrópolis, Vozes, 1983, p. 109.
5
Para maior aprofundamento, ver o capítulo “Memória, Identidade e Projeto” de VELHO, Gilberto - Projeto e
Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas, RJ, Zahar, 1994.
6
Para este ponto, há vasta e diversificada bibliografia. Cf., entre outros, in ARMSTRONG, Karen – Uma
História de Deus, SP, Cia das Letras, 1994; in DELUMEAU, Jean – O que Restou do Paraíso?, SP, Cia das
Letras, 2003 e in LIBÂNIO, João Batista – Teologia da Revelação a partir da Modernidade, SP, Loyola, 1992.
7
In GAY, Peter – O Coração Desvelado: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud, SP, Cia das
Letras, 1999, p. 140.
8
Os trapistas são religiosos da Ordem Cisterciense da Estrita Observância, uma reforma do monaquismo
cisterciense que visa guardar a Regra de São Bento da forma mais rigorosa. O nome “trapista” vem da Abadia
francesa de La Trappe, local onde o Abade Armand-Jean de Rancé fundou a Ordem, em 1664.
9
Cf. in Confissões, IV,1.
10
In A Montanha dos Sete Patamares, p. 200. Utilizo a edição da Itatiaia (Belo Horizonte, 1997).
11
Cf. in BROWN, Peter – Santo Agostinho: uma biografia RJ, Record, 2005, pp. 214-15.
12
Cf. in HADOT, Pierre – Philosophy as a Way of Life: Spiritual Exercises from Socrates to Foucault
Oxford/Cambridge, Blackwell, 1995 e in VEYNE, Paul – “La Medication Interminable” in Sénèque – De la
Tranquillité de l’âme, Paris/Marselha, Rivages, 1988, pp. 7-64.
13
Sit finis libri, non finis quaerendi. Uma tradução livre possível da frase latina é: “O livro pode ter acabado,
não terminou a busca.”
14
Proteção que, continuada nos journals, diários que Merton manteve até a morte, ser-lhe-á útil, inclusive,
para que operasse, com segurança, a transformação de seu registro eclesial, durante a década de 60,
tornando-se entusiasta do movimento ecumênico e de causas progressistas.
15
Cf. in AMOROSO LIMA, A. – Memorando dos 90: entrevistas e depoimentos coligidos e apresentados por
Francisco de Assis Barbosa, RJ, Nova Fronteira, 1984, p. 28.
16
AMOROSO LIMA, Ir. Maria Teresa, entrevista ao autor, 12/09/1999.
17
Refiro-me a Luiz Alberto Gómez de Sousa que, como jovem sociólogo, assessorou Amoroso Lima na
década de 60. Entrevista ao autor, 15/02/2000.
18
In MELLO E SOUZA, Antônio Cândido de – Recortes, SP, Cia das Letras, 1993, p. 77.