Artigo Montanha 7 Patamares Merton

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ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005.

A Montanha dos Sete Patamares e a Casa Azul:

escrita de si em Thomas Merton e Alceu Amoroso Lima

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Marcelo Timotheo da Costa - UFF

Introdução: entre a precocidade e o silêncio

Na presente comunicação, evoco um tipo particular de narrativas autobiográficas: os

relatos de convertidos ao cristianismo. Textos que se inserem em antiga tradição. Afinal,

como apontam inúmeros especialistas, a obra Confissões, elaborada por Santo Agostinho

há cerca de 1600 anos, constituiu-se paradigma maior do gênero, na literatura ocidental.2

Mais especificamente, desejo lançar luz sobre dois autores cristãos

contemporâneos: o leigo brasileiro Alceu Amoroso Lima (1893-1983) e o monge trapista

norte-americano Thomas Merton (1915-1968). Homens que, inspirados em Agostinho,

pretenderam prestar contas de suas vidas pela escrita e por ela testemunhar sua opção

religiosa nos tempos modernos.

Projeto efetivamente realizado por Merton, em A Montanha dos Sete Patamares,

editada em 1948, quando o autor tinha 33 anos. Quanto a Amoroso Lima, ele também

quis redigir sua autobiografia. Contudo, mesmo com o trabalho iniciado e já tendo definido

até seu título, A Casa Azul e Outras Casas, tal obra jamais veio a lume.

Uma autobiografia prematura, outra não realizada. Minha intervenção pretende,

ainda que de forma resumida, sugerir as razões que moveram Merton a registrar suas

memórias e Amoroso Lima a renunciar a tal ação.

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ANPUH – XXIII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA – Londrina, 2005.

Diários de uma viagem particular

Mas, antes de seguir adiante, ressaltando diferenças, devem ser frisadas

confluências nas trajetórias de nossos autores.

Ambos nasceram em famílias abastadas; tiveram bem cuidada educação e, desde

cedo, revelaram-se leitores vorazes; mantinham com a cultura francesa vínculo especial;

aproveitaram, cada a um a seu modo, os prazeres de uma juventude despreocupada.

E, muito importante para o presente argumento: depois de terem infância e a

mocidade (ou parte dela, no caso de Merton) sem maior preocupação religiosa, os dois, já

adultos, abraçaram a fé católica. Alceu converteu-se em 1928, aos 35 anos incompletos.

Thomas, em 1938, aos 23 anos.

Ou, em termos bem próprios ao universo cristão: Amoroso Lima e Merton

percorreram a “estrada de Damasco”, expressão que remete ao episódio da conversão de

São Paulo, anterior à opção religiosa de Agostinho e tão paradigmática quanto ela.

“Percorrer o caminho de Damasco”. A metáfora piedosa é reveladora. Lembra ao

analista do pensamento cristão um dos traços básicos deste credo: seu caráter

teleológico. Para o fiel, a vida terrena pode ser representada como um metafísico

peregrinar à Jerusalém Celeste, um exercício ascensional.

Representação finalista mais antiga que o nome “cristianismo”: os primeiros

seguidores de Jesus, antes mesmo de serem conhecidos por “cristãos”, identificam-se

como “O Caminho”.3

Representação incorporada, no século XX, por nossos autores. Alceu, p. ex., em

seu último livro, Tudo é Mistério, diz que o homem, ao buscar aperfeiçoar sua conduta,

pratica “alpinismo espiritual”.4 Quanto a Merton, o título de sua autobiografia basta:

inspirado na Montanha dos Sete Patamares da Divina Comédia, ele, ao relatar sua vida,

vai apresentá-la como árdua e contínua escalada ao Céu.

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Assim, os textos autobiográficos de Amoroso Lima e Merton, concluídos ou não,

podem ser vistos como relatos de viagem especiais. Exposições públicas de um itinerário

maravilhoso, discernível somente pelas lentes da fé, mas testemunhado diante de fiéis e

não crentes. Enfim, memórias que revelam identidades e projetos bem nítidos.5

Tempos Modernos e Fé: o contexto vital de Amoroso Lima e Merton

Isto posto, cabe indagar em que tempo e condições nossos autores testemunharam

suas opções religiosas e de vida.

Merton e Amoroso Lima foram homens do século XX, época com freqüência

apresentada como de crescente dessacralização e de questionamento da fé –

particularmente, das religiôes institucionalizadas.6

Nos primeiros decênios do século XX, quando Amoroso Lima e Merton abraçaram o

catolicismo (o primeiro em 1928, o segundo exatamente dez anos depois), ambos

pareciam “nadar contra a corrente” da laicização e do indiferentismo religioso. Como

escreveu Peter Gay, em trecho sobre o século XIX mas que pode ser estendido ao século

seguinte: “A estrada procedente de Damasco estava repleta de viajantes, a estrada para

Damasco bem menos.”7

Numa era tomada como indiferente ou hostil à crença religiosa, profissões escritas

de fé adquirem grande valor para a causa dos crentes. O caso de Merton é um bom

exemplo. Em 1941, poucos anos após converter-se, ele decide tornar-se monge trapista,

internando-se na Abadia do Gethsemani, no Kentucky.8 No claustro, Merton tem

autorização superior para escrever. Seu primeiro livro será A Montanha dos Sete

Patamares, que, um ano após seu lançamento, alcançou a marca de 600 mil exemplares

vendidos, tornando-se também sucesso de crítica nos EUA e diversos países.

Sucesso em parte atribuído ao interesse despertado entre o público pela escolha

radical de Merton e seu manifesto propósito de explicá-la ao homem da sociedade

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contemporânea. Mas, tal qual Agostinho, Merton tinha muito mais a confessar em sua

autobiografia.

A Montanha dos Sete Patamares: um lastro para o viajante

Mesmo sabendo-se que trajetórias individuais não são lineares, a ziguezagueante

experiência mertoniana surpreende bastante.

Nascido na França, filho de pai neozenlandês e mão norte-americana, Thomas ficou

órfão cedo, sendo acolhido por familiares na Inglaterra e, depois, nos Estados Unidos. Na

juventude foi boêmio, freqüentou a noite de Nova York, ouvindo jazz e entregando-se ao

spirits. Cinéfilo, dizia ter visto todos os filmes produzidos entre 1934 e 1937. Namorador,

foi expulso do Clare College, da Universidade de Cambridge, provavelmente por ter

engravidado moça solteira. Interessou-se por política, alistou-se por pouquíssimo tempo

na Young Communist League. Formou-se em Humanidades, em Columbia, em 1938. No

ano seguinte, obteve o grau de mestre em Literatura Inglesa, com tese sobre o poeta e

pintor inglês William Blake (1757-1827).

Sua conversão ao catolicismo também seguiu caminhos pouco usuais: nela,

exerceu forte influência um místico hindu, que o aconselhou a ler clássicos da tradição

cristã. Convertido, seu itinerário continuou acidentado: desejou ser sacerdote franciscano

e teve seu pleito recusado (acredita-se que o episódio de Cambridge motivou tal

negativa). Tentará de novo ingressar na Igreja, sendo aceito pelos trapistas, em 1941.

É neste período que ele redige A Montanha dos Sete Patamares, título lançado em

1948, dez anos após converter-se. A inspiração mertoniana vem de Agostinho, que, em

sua famosa autobiografia, rogou a Deus para que conseguisse “com memória fiel”

percorrer os “desvios passados dos meus erros”.9

Impossível detalhar aqui o argumento de A Montanha dos Sete Patamares. Por

essenciais, desejo assinalar dois pontos.

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Em primeiro lugar, a observação mais trivial: como nas Confissões agostinianas,

Merton expõe em A Montanha dos Sete Patamares numerosas ações passadas,

interpretadas como pecaminosas à luz do credo que adotara. Ele, a certa altura de A

Montanha ..., afirma que, antes da conversão, era um “perfeito filho do século”.10 Tendo

empreendido a fuga mundi monacal, tratou de proclamar sua mudança. Merton, pela

escrita de si, procurou confirmar sua transformação. Enfim, utilizando papel e tinta, ele

como que “petrifica” sua nova imagem.

Porém – e este é o segundo ponto que desejo registrar – não se está diante de uma

simples ladainha de desvios de conduta.

Creio que a listagem mertoniana de ações condenáveis pretéritas visava permitir

controlar presente e futuro. O movimento, mais uma vez, é análogo ao de Agostinho.

Entre os antigos, o exercício do controle de si pela rememoração das faltas era

conhecido pelo termo confessio (o título agostiniano, aliás, não é casual). Através da

confessio, o homem reconhecia sua natureza pecadora e a necessidade da intervenção


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divina para a remissão de sua alma. Reconhecimento este que levaria à sabedoria.

Lembre-se que, da filosofia estóica, o cristianismo adotou o ideal de disciplinarização de si

a partir do pensamento sistemático e da meditação.12

Assim, acessando Agostinho e o pensamento clássico cristianizado, Merton redige

sua precoce autobiografia. A Montanha dos Sete Patamares deve ser entendida, então,

como uma tentativa de fixar uma nova imagem para o Merton “renascido na fé”.

“Petrificação” que não é feita apenas para exorcizar fantasmas passados. Ao

escrever A Montanha ..., meditando e exercitando-se, o monge busca também controlar

os riscos de sua viagem metafísica. Viagem que, ele admitiu na última linha desta obra,

estava sempre em aberto.13 A escrita de si funcionaria, portanto, como uma espécie de

lastro.14

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Valendo-me de vocabulário caro aos católicos romanos: Merton, navegando na

Barca de Pedro, procurou um porto seguro para lançar âncora. Não sem motivo, a âncora

é o símbolo teologal da Esperança.

A Casa Azul e Outras Casas: as memórias inacabadas de Amoroso Lima

Ao contrário de Merton, Alceu jamais terminou sua autobiografia – a despeito de

fazer alusões a ela, ao menos desde fins da década de 40. Em entrevista a Paulo Mendes

Campos, em dezembro de 1949, Amoroso Lima afirmou que gostaria de “acabar suas

memórias”, para as quais já dispunha até de título: A Casa Azul e Outras Casas.15

Declaração que leva a crer em certo adiantamento no trabalho de composição do livro em

questão, já no último ano dos 40.

E Amoroso Lima viveu (e escreveu) até 1983, trinta e quatro anos e mais de

quarenta livros depois da entrevista a Paulo Mendes Campos. E, segundo pude apurar,

Alceu mencionou seu projeto autobiográfico até o final da vida.16 Todavia, não o

concretizou. Por quê? Duas possibilidades me vêm à mente.

Creio que, em primeiro lugar e ao contrário do Merton de A Montanha dos Sete

Patamares, o intelectual brasileiro não quis “petrificar” sua imagem, temendo produzir,

pelo texto “acabado” da autobiografia, uma visão por demais esquemática ou idealizada

de sua vida. Como disse um de seus colaboradores, Amoroso Lima era cauteloso em

relação a juízos definitivos.17 Compreensível, então, que sentisse certo desconforto

mesmo quando o assunto era sua própria biografia, protelando indefinidamente o término

de A Casa Azul e Outras Casas.

Adiamento explicável também (e talvez seja este o motivo mais importante) porque,

à medida que o tempo passava, uma biografia nos moldes tradicionais agostinianos

parecia a Alceu cada vez menos aplicável a seu percurso.

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Percurso de alguém que, da conversão em fins dos anos 20 até meados dos 40,

caracterizou sua atuação na Igreja por um apostolado combativo, que reagia ao mundo e

à modernidade. É o tempo das certezas, os anos do neoconverso, do cruzado tridentino,

preocupado em caçar comunistas e recristianizar o Brasil. Mas também nosso autor, a

partir da metade da década de 40, vai, lentamente e de forma não linear, abraçando uma

eclesiologia mais liberal, dialogante com o século.

Em outras palavras: Amoroso Lima torna-se mais franciscano, menos agostiniano.

Assim, se Agostinho e o Merton de A Montanha dos Sete Patamares apresentam o

mundo como decaído, Alceu, aproximando-se de determinada teologia da alegria advinda

das ordens mendicantes da Idade Média, reabilita o século e a matéria.

Transformação de registro eclesiológico que, sim, tem seus riscos – sendo o

primeiro deles a incompreensão de católicos reacionários, na hierarquia e entre os leigos.

Católicos que se tornam críticos implacáveis deste Alceu mais liberal. Daí resulta que a

referida transformação amorosiana, por arriscada, deveria ser organizada com cautela.

Controle cuidadoso que Amoroso Lima – um fiel que revê sua fé e conseqüente

atuação na sociedade – fará pela escrita. Porém, não há conexão com o Merton de A

Montanha dos Sete Patamares. Este buscou disciplinar seu caminhar pela confessio de

erros passados. Já Alceu teria modelado e disciplinado seu self através das dezenas de

obras que escreveu, proclamando as transformações que incorporava na caminhada,

calculando os perigos, perscrutando a melhor rota a ser seguida.

Desta maneira, como aponta Antônio Cândido, ao construir sua extensa bibliografia,

Alceu “[...] não cessaria de se construir e se reconstruir [...] percorrendo as mais variadas

contradições […].”18

Assim, se Amoroso Lima não finalizou A Casa Azul e Outras Casas, encobrindo

parte de seu itinerário, ele, modelando-se diante de seu público, numa relação dinâmica

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entre trajeto pessoal e testemunho escrito, expôs a si e a sua conjuntura de forma

notável.

1
Doutor em História, professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
2
Para a importância de Confissões, ver, p. ex., GUSDORF, Georges – “Conditions and Limits of
Autobiography”, in OLNEY, James (org.) – Autobiography: Essays Theoretical and Critical, Princeton,
Princeton University Press, 1980, pp. 28-48.
3
Cf. in CWIEKOWSKI, Frederick J. – The Beginnings of the Church, Nova York, Paulist Press, 1988, p. 79.
4
In Tudo é Mistério, Petrópolis, Vozes, 1983, p. 109.
5
Para maior aprofundamento, ver o capítulo “Memória, Identidade e Projeto” de VELHO, Gilberto - Projeto e
Metamorfose: Antropologia das sociedades complexas, RJ, Zahar, 1994.
6
Para este ponto, há vasta e diversificada bibliografia. Cf., entre outros, in ARMSTRONG, Karen – Uma
História de Deus, SP, Cia das Letras, 1994; in DELUMEAU, Jean – O que Restou do Paraíso?, SP, Cia das
Letras, 2003 e in LIBÂNIO, João Batista – Teologia da Revelação a partir da Modernidade, SP, Loyola, 1992.
7
In GAY, Peter – O Coração Desvelado: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud, SP, Cia das
Letras, 1999, p. 140.
8
Os trapistas são religiosos da Ordem Cisterciense da Estrita Observância, uma reforma do monaquismo
cisterciense que visa guardar a Regra de São Bento da forma mais rigorosa. O nome “trapista” vem da Abadia
francesa de La Trappe, local onde o Abade Armand-Jean de Rancé fundou a Ordem, em 1664.
9
Cf. in Confissões, IV,1.
10
In A Montanha dos Sete Patamares, p. 200. Utilizo a edição da Itatiaia (Belo Horizonte, 1997).
11
Cf. in BROWN, Peter – Santo Agostinho: uma biografia RJ, Record, 2005, pp. 214-15.
12
Cf. in HADOT, Pierre – Philosophy as a Way of Life: Spiritual Exercises from Socrates to Foucault
Oxford/Cambridge, Blackwell, 1995 e in VEYNE, Paul – “La Medication Interminable” in Sénèque – De la
Tranquillité de l’âme, Paris/Marselha, Rivages, 1988, pp. 7-64.
13
Sit finis libri, non finis quaerendi. Uma tradução livre possível da frase latina é: “O livro pode ter acabado,
não terminou a busca.”
14
Proteção que, continuada nos journals, diários que Merton manteve até a morte, ser-lhe-á útil, inclusive,
para que operasse, com segurança, a transformação de seu registro eclesial, durante a década de 60,
tornando-se entusiasta do movimento ecumênico e de causas progressistas.
15
Cf. in AMOROSO LIMA, A. – Memorando dos 90: entrevistas e depoimentos coligidos e apresentados por
Francisco de Assis Barbosa, RJ, Nova Fronteira, 1984, p. 28.
16
AMOROSO LIMA, Ir. Maria Teresa, entrevista ao autor, 12/09/1999.
17
Refiro-me a Luiz Alberto Gómez de Sousa que, como jovem sociólogo, assessorou Amoroso Lima na
década de 60. Entrevista ao autor, 15/02/2000.
18
In MELLO E SOUZA, Antônio Cândido de – Recortes, SP, Cia das Letras, 1993, p. 77.

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