Método e Verdade Nas Regras para A Direção Do Espírito de Descartes
Método e Verdade Nas Regras para A Direção Do Espírito de Descartes
Método e Verdade Nas Regras para A Direção Do Espírito de Descartes
Para Descartes, a noção de verdade está ligada ao método. É isso que se presencia, por
exemplo, no texto em questão, escrito inacabado de juventude do autor, publicado
postumamente. Embora incompleto, constitui fonte importante para compreender as
idéias de método, conhecimento e verdade, pois expõe com clareza os principais pontos
do pensamento cartesiano e seu programa para a ciência, caracterizando-se como uma
obra metodológica, e não de metafísica (BEYSSADE, 2001). Nesta obra, fica também
evidente a vocação prática da filosofia cartesiana, posto que a busca pela verdade
afigura-se como tentativa de asseguramento de um conhecimento que pode ser voltado à
boa condução da vida. Esta tese se comprova com o próprio Descartes (1999), quando
deixa claro que não há coisa mais útil em tal tratado, pois ensina que todas as coisas
podem ser postas em séries distintas quanto ao que umas se podem conhecer a partir de
outras, de tal modo que, quantas vezes ocorrer uma dificuldade, possa-se logo perceber
se será útil examinar primeiro algumas outras, quais e em que ordem.
O traço dessa vocação é o que encontramos no conteúdo dessas regras, quando propõem
um estudo cuja finalidade é a orientação do espírito, para que possamos formular juízos
firmes e verdadeiros sobre as coisas que se nos apresentam. Para tanto, segundo
Descartes (1999), seria preciso lidar exclusivamente com os objetos cujo conhecimento
é certo e indubitável. Desse modo, é tarefa investigar o que podemos apreender através
de uma intuição clara e evidente, ou que possamos deduzir com certeza, pois, de outro
modo, não se adquire um saber seguro. Portanto, o método é necessário à procura da
verdade.
O que presenciamos na enunciação acima, sobre o conteúdo das regras (em vista do
método), consiste unicamente na ordenação dos títulos das nove primeiras que serão
tratadas aqui (por isso, o caráter sintético que esta introdução assume) em títulos, que,
como podemos ver, uma vez ordenados, compõem um sumário das idéias, que serão
explicadas, uma a uma, em cada regra, sumário esse que expressa, de maneira clara, um
roteiro e nesse a ordem das idéias a serem tratadas na obra, o que torna evidente, desde
já, a importância que Descartes dá à ordenação para obtenção de um conhecimento.
Portanto, o que se segue é a apresentação das citadas primeiras regras e os comentários
pertinentes às mesmas, ilustrados por passagens do texto do autor.
Em sua Regulae I,[3] Descartes aponta a orientação a ser tomada pelo espírito para que
esse possa formular juízos firmes e verdadeiros sobre as coisas que se apresentam. Esta
já marca a diferença frente à ciência medieval, cujo procedimento ainda recorria a um
saber dogmático, pautado nas escrituras tradicionais da Igreja, como fontes de
revelação, em conhecimentos assumidos por Descartes como dignos de serem postos
em dúvida, por desconsiderarem o conhecimento natural de fontes, ditas, mundanas e,
principalmente, por não prezar por um estatuto racional de cognoscibilidade e
fundamentação. Portanto, é possível afirmar, desde já, que Descartes está preocupado
em dar ao conhecimento uma base na qual, enquanto sabedoria humana (humana
sapientia), pudesse ser aplicado em diversas circunstâncias de maneira irrestrita. Assim,
esse conhecimento possuiria uma fundamentação que permitiria sempre inferências
irrefutáveis, oferecendo uma certeza autêntica, quesitos sem os quais não se atinge a
premissa de que “ciência (scientia universalis) é um conhecimento certo e evidente”
(DESCARTES, 1999).
Resta ainda definir o modelo a ser tomado como fundamento. Movido por esse intuito,
Descartes afirma que “a aritmética e a geometria eram as únicas isentas de qualquer
defeito de falsidade ou de incerteza” (DESCARTES, 1999), o que já marca a convicção
de que, para esse autor, as ditas matemáticas podem, com efeito, servir de modelo às
outras ciências, dado a comprovarem, fundamentalmente, a eficácia do espírito humano.
Todavia, é preciso deixar bem claro que não se trata de “importar” procedimentos ou
operações das matemáticas, fazendo que todo e qualquer saber fique restrito ao cálculo
ou à comprovação desta por intermédio das matemáticas correntes. Essa interpretação é
descartada pelo próprio autor quando define o papel do matemático:
(…) qualquer um, contudo, que considerar minha idéia com atenção, perceberá
facilmente que não penso aqui em nada menos do que nas matemáticas comuns
(mathematica vulgaris), e que exponho uma outra disciplina da qual elas são antes as
vestes do que partes. Essa disciplina deve, de fato, conter os primeiros rudimentos da
razão humana e estender sua ação até fazer jorrar as verdades de qualquer assunto que
seja (DESCARTES, 1999, p. 23).
Ora, vemo-lo, não há quase ninguém, desde que mal tenha somente tocado o umbral das
escolas, que não distinga facilmente, dentre o que se lhe apresenta, o que pertence à
Matemática e o que pertence às outras disciplinas (…) Daí resulta que deve haver uma
ciência geral que explique tudo quanto se pode procurar referente à ordem e à medida,
sem as aplicar a uma matéria especial: essa ciência se designa, não pelo nome
emprestado, mas pelo nome, já antigo e consagrado pelo uso, Matemática universal,
porque ela encerra tudo o que fez dar a outras ciências a denominação de partes das
Matemáticas. Quanto a Matemática universal suplanta em utilidade e em facilidade
essas outras ciências que lhe são subordinadas,(…) É por isso que cultivei até agora essa
Matemática universal, na medida de minhas possibilidades, de sorte que creio poder
depois tratar de ciências mais elevadas, sem a elas me aplicar prematuramente
(DESCARTES, 1999, pp. 27-28).
Diversos autores concordam com esta tese, entre eles Foucault (1999), quando vê nesse
episódio a marca de uma nova concepção de saber, distanciado do que ele compreende
por época clássica (período no qual o conhecimento deixa de ser busca por semelhanças
para se tornar uma relação de ordem entre idéias).[4]
A última pergunta enumerada, durante sua resposta, cria condições para a reconstrução
teórica dos argumentos cartesianos contidos nas regras; oportunizando o seguinte
comentário de M. Gueròult, no qual o autor examina o papel do matemático no método
cartesiano, confirmando sua distinção frente à metafísica:
O método nos é revelado pelas Regulae (as quais se referem implicitamente ao Discurso
do Método). O caráter particular das Regulae é que a obra da ciência não é atrelada a
nenhum outro princípio que a faculdade humana de saber. Sem dúvida, as teses da
metafísica têm deixado entrever, por exemplo: a redução do mundo material à extensão
e ao movimento; a distinção real da extensão e do pensado; a teoria da imaginação,
faculdade corporal; a ligação da dúvida e do critério de evidência; a relação entre o
cogito e a posição de Deus: Sum, ergo Deus est etc. Todavia, essas concepções não
aparecem como exemplos nem como pontos de apoio. O método se apresenta tendo
uma validade independente da metafísica; é como se fundasse imediatamente sobre a
certeza imanente da razão humana em sua manifestação autêntica e original, a saber, as
matemáticas.(…) A ciência repousaria, para Descartes, sobre a faculdade humana do
conhecer, e a intrusão ulterior de questões metafísicas teriam transformado e
desnaturado a posição primeira do verdadeiro problema. Nas Regulae, Descartes se
remete apenas à inteligência. Nas Meditações aparece uma outra que Descartes apropria
de questões antigas. Esta concepção interpreta inexatamente as tendências do filósofo.
Na realidade, as Regulae se situam no ponto onde se trata de construir o método, mas os
problemas que serão assumidos por esse ainda não são aparentes. Surgirão do que esse
método teria absolutamente generalizado; quer dizer, posto em obra de maneira rigorosa
o princípio de não aceitar por verdadeiro a que não seja absolutamente evidente.
Descartes porá a questão de validade da evidência matamática em si, considerada antes
de tudo, para ele, suficiente por si mesma, sem outra justificação(…) (GUERÒULT,
1968, pp. 30-31).
(…) não a confiança instável dada pelos sentidos ou o juízo enganador de uma
imaginação com más construções, mas o conceito que a inteligência pura e atenta forma
com tanta facilidade e clareza que não fica absolutamente nenhuma dúvida sobre o que
compreendemos; ou então, o que é a mesma coisa, o conceito que a inteligência pura e
atenta forma, sem dúvida possível, conceito que nasce apenas da luz da razão e cuja
certeza é maior, por causa de sua maior simplicidade, do que a da própria dedução,
embora esta última não possa ser mal feita mesmo pelo homem (DESCARTES, 1999,
pp. 13-14)
É possível inferir a partir dessa passagem que a intuição intelectual (intuitus mentis) é o
modo com o qual o espírito vê. O mesmo ver que encontramos tratado na Segunda
Meditação como “percepção da verdade”,[5] guardando esse significado, o autor faz
questão de grifar que esse é o sentido a ser prezado, distanciando-se do significado de
revelação beatífica ou intuição mística, largamente utilizado na formação escolar de sua
época.
Não é de outro modo que conhecemos o vínculo que une o derradeiro anel que de uma
longa cadeia ao primeiro, conquanto um único e mesmo olhar seja incapaz de nos fazer
apreender intuitivamente todos os anéis intermediários que constituem esse vínculo:
basta que tenhamos percorrido sucessivamente e guardemos a lembrança de cada um
deles, desde o primeiro até o derradeiro, está preso aos que estão mais próximos dele.
Portanto, aqui distinguimos a intuição intelectual da dedução certa pelo fato de que,
nesta, concebe-se uma espécie de movimento ou de sucessão, ao passo que daquela não
se dá ao mesmo; ademais, a dedução não requer, como a intuição, uma evidência atual,
mas, ao contrário, extrai de certa maneira sua certeza da memória (…) Tais são as duas
vias que conduzem à ciência da maneira mais segura: não se deve admitir maior número
delas por parte do espírito, mas todas as outras devem ser rejeitadas como suspeitas e
sujeitas ao erro (DESCARTES, 1999, pp. 15-16).
O autor faz questão que se distingam estas duas estruturas do conhecimento e que se
ressalte sua real importância para a ciência. Destarte, como foi visto, a intuição
intelectual distingue-se da dedução necessária pelo fato de que, na dedução, se concebe
o movimento de sucessão das evidências. Ao passo que a intuição é só a apreensão da
certeza em uma enunciação em proposição veritativa, ou seja, em uma asserção sobre o
dado intuído. Desse modo, tanto a intuição quanto à dedução são caminhos seguros,
podendo-se dizer que são indispensáveis ao acesso à ciência, eliminando assim as
possibilidades de erro. Assim, podemos concluir que, para Descartes, a intuição e a
dedução necessária são as únicas operações intelectuais que asseguram a verdade pura
da ciência, trazendo em si mesmo a gênese da idéia de método (DESCARTES, 1999).
Assim, a expressão “caminhos mais seguros”, utilizada acima, já faz menção ao que o
filósofo compreende por método, compreensão revelada mesmo na etimologia do termo
oriundo do grego “méthodos” e composto pelas palavras “meta” e “hódos”, portanto,
possível de ser traduzido como caminho através do qual… (BAILLY, 1950), idéia que
podemos caracterizar com o seguinte trecho do texto cartesiano:
(…) regras certas e fáceis cuja exata observação fará que qualquer um nunca tome nada
de falso por verdadeiro, e que, sem despender inutilmente nenhum esforço de
inteligência, alcance, com um crescimento gradual e contínuo de ciência, o verdadeiro
conhecimento de tudo quanto for capaz de conhecer (DESCARTES, 1999, p. 20).
Essa definição de método confirma que, através de uma estipulação de regras, poder-se-
á fazer juízos acertados sobre as coisas que são objetos do conhecimento. Dentre estas
prescrições podemos identificar duas, que seriam a pilares de tal pensamento: a) não
tomar o falso pelo verdadeiro; b) aplicar as regras como princípios simples com o único
fim de atingir a ciência. Em vista dessas duas premissas, justifica-se a importância do
método, pelo fato de esse permitir uma explicação perfeita do uso da intuição intelectual
e do meio de encontrar deduções para o conhecimento de todas as coisas,
compreendendo o método como ordem, o conhecimento seguro é o que se dá a partir
desta ordenação. Nesses termos, pecar contra o método é ficar vulnerável ao erro.[6]
(…) contém em si a natureza pura e simples sobre a qual versa uma questão: por
exemplo, tudo o que se olha como independente, causa, simples, universal, uno, igual,
semelhante, reto, ou outras coisas desse tipo; e, ao mesmo tempo, eu chamo assim
mormente o que há de mais simples e de mais fácil, para utilizá-lo na solução das
questões.(…) relativo, é o que tem a mesma natureza ou pelo menos um de seus
elementos em participação, em virtude do que se pode reportá-lo ao absoluto e dele
deduzi-lo, construindo uma série; mas ele encerra, ademais, em seu conceito outras
coisas que chamo relações (DESCARTES, 1999, p. 32).
Estas coisas relativas se afastam tanto mais das coisas absolutas quanto mais relações
desse tipo, subordinadas umas às outras, elas contêm. Nossa regra nos adverte de que se
deve distinguir todas essas relações e tomar cuidado com sua conexão mútua e com a
ordem natural, de maneira que, partindo da última, possamos chegar ao que há de mais
absoluto, por intermédio de todas as outras (DESCARTES, 1999, p.32).
Assim, a distinção entre absoluto e relativo cabe, na mesma proporção, para o simples e
o complexo, para o essencial e o acidental, ao original e ao derivado, devendo-se notar
que existem poucas naturezas realmente puras e simples, que se pode acessar pela
intuição imediata da coisa que se apresenta e as demais que se apresentam não podem
ser deduzidas de outro modo senão das coisas simples. Donde se conclui que a dedução
deve avançar progressivamente das coisas simples às complexas, segundo a ordem de
suas essências, tornando claro, a partir dessas evidências: a) como cada intuição está
implicada; b) como a proporção e a ordem são atributos capazes de serem adquiridos a
partir da intuição e da dedução, respectivamente, em suas noções elementares no
interior do método; c) nesse modo de procedimento experimenta-se o fundamento
matemático do método como ordenação, ou seja, a matemática universal como a
essência da ordem.
A Regulae VII nos diz que é preciso examinar, com um movimento contínuo e jamais
ininterrupto, o pensamento das coisas que se relacionam com o nosso propósito e reuni-
las em uma enumeração suficiente e ordenada. Descartes introduz nesta regra o conceito
de enumeração, definindo-o como uma “investigação diligente e cuidadosa” no que se
refere a uma questão proposta, e que dela podemos concluir com certeza e evidência. A
enumeração tem caráter de indução, como o filósofo define:
(…) por enumeração suficiente ou indução, entendemos somente aquela que nos oferece
a verdade em sua conclusão com mais certeza do que qualquer outro gênero de prova,
exceto a simples intuição. Todas as vezes que não podemos reduzir à intuição algum
conhecimento, depois de ter rejeitado todos os vínculos dos silogismos, resta-nos
unicamente essa via à qual somos obrigados a dar total crédito (DESCARTES, 1999, p.
41).
Enumeração e indução são, pois, formas de obter a ordem, formas estas que encontram
prescrição com o próprio autor, quando esse afirma que a enumeração deve ser, umas
vezes completa, outras distinta e outras não fazem nem uma coisa nem outra; por isso,
somente diz ser suficiente. A enumeração ou indução é um modo proveitoso de garantir
o conhecimento, pois com ela adquire-se, a partir da ordem bem estabelecida; em pouco
tempo e com facilidade, uma série de tarefas que, à primeira vista, pareciam enormes.
Descartes utiliza um exemplo que alude ao uso desse procedimento na geometria,
quando, ao se calcular o perímetro de um único círculo, esse resultado pode ser
estendido aos demais círculos idênticos, sem que se precise repetir o procedimento em
cada um, singularmente. Assim, é possível afirmar, de maneira categórica, que
enumerar é ordenar,[7] pois, para tanto, basta propor uma ordem tal para examinar as
proposições que nunca se repita um número atribuído em classes previamente
determinadas. Entretanto, se, ainda assim, houver alguma coisa que impossibilite nosso
intelecto de intuir suficientemente bem, é preciso deter-se nesta até que se torne clara
(DESCARTES, 1999), não deixando esse intelecto obstaculizar-se com outras
faculdades do espírito, como a imaginação, os sentidos e a memória.
Bibliografia:
GUERÒULT, M. Descartes selón l’order de las rasions. Lâme et Dieu, Vol. I, Paris:
Aubier, 1968.