SUMÁRIO
Nota à nova edição brasileira
Prefácio do autor
O fim da infância
Extras
• Capítulo 1 – Versão revisada pelo autor (1989)
• Anjo da Guarda (conto que deu origem ao livro)
NOTA À NOVA EDIÇÃO BRASILEIRA
Escrito por Arthur C. Clarke, um dos mestres da literatura de ficção
científica, O fim da infância – editado pela primeira vez em 1953 – é
considerado um dos livros mais importantes do gênero.
Nesta nova edição brasileira, além de uma nova tradução, a
Editora Aleph oferece ao leitor dois textos extras nunca antes
integrados à obra: uma nova versão do primeiro capítulo, atualizada
por Clarke em 1989 e que acabou sendo abandonada pelo autor,
que preferiu manter o texto original; e o conto Anjo da Guarda,
originalmente escrito em 1946 e, anos mais tarde, em 1952,
expandido para se tornar a primeira parte do livro.
A publicação total desse material é inédita no mundo e foi
especialmente autorizada pela família do autor em 2008 para esta
edição.
PREFÁCIO DO AUTOR
O fim da infância foi escrito entre fevereiro e dezembro de 1952, e
então amplamente revisado na primavera de 1953. A primeira seção
é baseada em um conto anterior, “Anjo da Guarda”, publicado em
1950, depois de um bocado de edição criativa por parte de James
Blish.
Menciono as datas para pôr a narrativa em perspectiva histórica,
já que a maioria dos leitores de hoje sequer tinha nascido quando a
primeira edição saiu pela editora Ballantine, em 24 de agosto de
1953. O primeiro satélite da Terra ainda estava quatro anos no
futuro, embora nem mesmo o mais otimista dos entusiastas do
espaço sonhasse que estivesse tão perto; “pelo fim do século” era o
máximo que ousávamos esperar. Se alguém tivesse me dito que,
antes do final da década seguinte, eu estaria a dez quilômetros da
primeira nave espacial a decolar para a Lua, eu teria rido dessa
pessoa.
A despeito disso, este livro já tinha dezesseis anos de idade
quando Armstrong e Aldrin pousaram no Mar da Tranquilidade e a
corrida entre Estados Unidos e União Soviética foi definitivamente
vencida. Em 1989, eu atualizei a abertura para levar a narrativa
adiante para o próximo século; estava no meio do trabalho quando,
no vigésimo aniversário do pouso da Apollo 11, o presidente Bush
anunciou que Marte seria a próxima meta do programa espacial
americano. Tratou-se de uma meta que, infelizmente, foi logo
esquecida.
Para esta edição, reverti à abertura original, mas também ofereço
a de 1989 como um apêndice, em parte por razões sentimentais. Há
cinco anos, tive o privilégio de visitar a Cidade das Estrelas, um dos
primeiros ocidentais a fazê-lo, graças à influência do meu amigo, o
cosmonauta Alexei Leonov. Estive diante daquela famosa estátua e
visitei o escritório de Yuri Gagarin, onde o relógio está parado na
hora de sua morte.
Quando este livro foi escrito, no início dos anos 1950, eu ainda
estava muito impressionado pelos indícios do que era chamado,
genericamente, de paranormal, e o usei como um dos temas
principais deste romance. Quatro décadas depois, após gastar
alguns milhões de dólares dos fundos da Yorkshire Television em
pesquisas para os meus programas Mundo misterioso e Estranhos
poderes, tornei-me um cético quase total. Vi alegações demais
dissolverem-se no ar, e um número excessivo de demonstrações
serem desmascaradas como fraudes. Foi um aprendizado longo e,
às vezes, embaraçoso.
Quando O fim da infância apareceu pela primeira vez, muitos
leitores ficaram estupefatos com a advertência de abertura: “As
opiniões expressadas neste livro não são as do autor”. Isso não foi,
de todo, uma brincadeira: um ano antes, eu havia publicado A
exploração do espaço, e pintado um quadro otimista de nossa futura
expansão pelo Universo. Agora, havia escrito um livro que dizia que
“as estrelas não são para o Homem”, e não queria que ninguém
pensasse que havia mudado repentinamente de ideia.
Hoje, eu gostaria de mudar o alvo da advertência para cobrir 99%
do “paranormal” (não pode ser tudo bobagem... ou pode?) e 100%
dos chamados “encontros” com OVNIs. Eu ficaria muito infeliz se este
livro viesse a contribuir ainda mais para a sedução dos ingênuos,
hoje cinicamente explorados por todos os meios de comunicação.
Livrarias, bancas de jornais e o espectro eletromagnético estão
todos poluídos com um esgoto de fazer apodrecer a mente a
respeito de OVNIs, poderes psíquicos, astrologia, energias das
pirâmides, mediunidade... escolha o nome e alguém estará
comercializando isso, em um arroubo final de decadência fin-de-
siècle...
Isso significa que O fim da infância (que trata tanto do
paranormal quanto de visitantes do espaço) não tem mais nenhuma
relevância? De jeito nenhum; é um trabalho de ficção, céus! Ainda
podemos apreciar A guerra dos mundos, a despeito do fato de que
os marcianos não reduziram Woking a churrasquinho em 1898, ou,
por falar nisso, Nova Jersey, em 1938. E, como já repeti mais vezes
do que consigo me lembrar, duvido pouco de que o Universo esteja
repleto de vida. A SETI (a busca por inteligência extraterrestre) é
agora uma área plenamente aceita da astronomia. O fato de que se
trata, ainda, de uma ciência sem um objeto de estudo não deve ser
surpreendente e nem causa de desapontamento. Apenas durante
metade da duração de uma única vida humana é que tivemos a
tecnologia para ouvir as estrelas.
Logo após a publicação, O fim da infância foi vendido para o
cinema; desde então, passou por inúmeras mãos, e foi adaptado por
incontáveis roteiristas. Por algum tempo eu colaborei com um
refugiado da vergonhosa era McCarthy, Howard Koch, mais
conhecido por Casablanca e Apenas uma mulher, estrelado por Keir
Dullea, de 2001! Adorei quando Howard vendeu, por uma bela soma
de seis dígitos, o notório roteiro de rádio com o qual ele e Orson
Welles aterrorizaram os Estados Unidos (refiro-me a A guerra dos
mundos, explicado no parágrafo anterior).
Segundo a mais recente informação dos gulags de Hollywood, o
preço atual de O fim da infância é várias centenas de vezes a
remuneração perfeitamente satisfatória que recebi em 1956. E,
mesmo que nunca chegue à tela grande, milhões de pessoas
assistiram a uma versão bem impressionante da abertura, no
estouro de bilheteria Independence day.
Então, quando/se O fim da infância finalmente chegar ao cinema,
a turma da pipoca certamente vai pensar que estamos plagiando
Independence day. No entanto, Theodore Sturgeon obteve o
copyright da ideia há muito tempo. Lá em 1947 (sim, 47!) ele
escreveu um conto com o título e a última linha inesquecíveis: “O
céu estava cheio de naves”.
Meia década antes do conto de Ted, eu de fato testemunhei uma
cena assim. Não, não fiquei de repente maluco de tanto escrever
ficção científica...
Era um belo anoitecer de verão em 1941, e eu ia de carona para
Londres com meu melhor amigo, o falecido Arthur Valentine Cleaver,
o engenheiro-chefe da Divisão de Foguetes da Rolls-Royce e, como
eu, um membro entusiástico da Sociedade Interplanetária Britânica.
O Sol se punha às nossas costas, e a cidade estava trinta
quilômetros adiante. Chegamos ao alto de uma colina e lá havia
uma vista tão incrível que Val parou o carro. Era, ao mesmo tempo,
belo e amedrontador, mas nenhuma futura geração jamais verá a
cena de novo: a tecnologia a superou, para o bem ou para o mal.
Dezenas, centenas de brilhantes balões de barragem prateados
estavam ancorados no céu sobre Londres. Enquanto suas formas
de torpedo atarracado capturavam os últimos raios do Sol,
realmente parecia que uma frota de naves alienígenas estava
suspensa sobre a cidade. Por um longo momento sonhamos com o
futuro distante e expulsamos todos os pensamentos a respeito do
perigo imediato contra o qual aquela cerca aérea fora erguida para
guardar a cidade.
Talvez, naquele instante, O fim da infância tenha sido concebido.
ARTHUR C. CLARKE
Colombo, Sri Lanka
17 de junho de 2000
Para Marilyn,
por me deixar ler as provas em nossa lua de mel.
I
A TERRA E OS SENHORES SUPREMOS
1
“O vulcão que erguera Taratua das profundezas do Pacífico já
dormia há meio milhão de anos. Ainda assim, muito em breve”,
pensou Reinhold, “a ilha seria banhada por um fogo muito mais
intenso do que as chamas que testemunharam seu nascer.” Olhou
em direção à plataforma de lançamento, e seu olhar escalou a
pirâmide de andaimes que ainda cercava a Colombo. Sessenta
metros acima do solo, a proa da nave apanhava os últimos raios do
Sol poente. Esta seria uma das últimas noites que ela veria: logo
estaria flutuando no dia eterno do espaço.
Aqui, debaixo das palmeiras, no alto da crista rochosa da ilha,
imperava o silêncio. O único som do Projeto era o queixume
esporádico de um compressor de ar, ou o grito indistinto de um dos
operários. Reinhold aprendera a gostar destas palmeiras
amontoadas: ao anoitecer, quase sempre vinha ali para contemplar
o seu pequeno império. Entristecia-o pensar que elas seriam
reduzidas a átomos quando a Colombo se erguesse para as
estrelas, em meio a uma fúria flamejante.
A dois quilômetros dos recifes, o James Forrestal com seus
holofotes vasculhava as águas escuras. O Sol agora já
desaparecera de todo, e a rápida noite tropical vinha correndo do
leste. Reinhold imaginava, com um leve sarcasmo, se o porta-aviões
esperava encontrar submarinos russos tão perto da costa.
Pensar na Rússia fez com que se lembrasse, como sempre, de
Konrad e daquela manhã na desastrosa primavera de 1945. Mais de
trinta anos se passaram, mas a memória daqueles últimos dias,
quando o Reich se desintegrava sob as ondas do Leste e do Oeste,
nunca se desvanecera. Ainda conseguia ver os olhos azuis
cansados de Konrad, e a barba dourada por fazer em seu queixo,
quando apertaram as mãos e se despediram na cidadezinha
prussiana arruinada, enquanto uma torrente ininterrupta de
refugiados passava por eles. Fora uma despedida que simbolizava
tudo o que acontecera desde então com o mundo: a divisão entre o
Leste e o Oeste, pois Konrad escolhera a estrada para Moscou.
Reinhold o considerara um tolo, mas agora não tinha tanta certeza.
Por trinta anos, imaginara que Konrad estivesse morto. Apenas
na semana passada o coronel Sandmeyer, da Inteligência Técnica,
havia lhe dado a notícia. Reinhold não gostava de Sandmeyer, e
tinha certeza de que o sentimento era mútuo. Contudo, nenhum
deles deixava que isso interferisse no trabalho.
– Sr. Hoffmann – o coronel começara, em seu melhor tom oficial
–, acabo de receber algumas informações alarmantes de
Washington. É claro que são extremamente secretas, mas
resolvemos revelá-las para o pessoal de engenharia, para que
compreendam a necessidade da pressa. – Fez uma pausa
dramática, gesto que não surtiu efeito em Reinhold. De algum modo,
já sabia o que viria a seguir.
– Os russos estão quase empatados conosco. Conseguiram um
tipo de propulsão atômica. Pode até ser mais eficiente do que a
nossa. E estão construindo uma nave às margens do Lago Baikal.
Não sabemos até onde chegaram, mas a Inteligência acredita que
ela possa ser lançada este ano. O senhor sabe o que isso significa.
“Sim”, pensou Reinhold, “eu sei. A corrida começou... e podemos
perder.”
– Sabe quem é o chefe da equipe deles? – havia perguntado,
sem esperar de fato uma resposta. Para sua surpresa, o coronel
Sandmeyer empurrara sobre a mesa uma folha datilografada e, no
alto dela, estava o nome: Konrad Schneider.
– O senhor conheceu muitos desses homens em Peenemünde,
não foi? – perguntou o coronel. – Isso pode nos dar uma ideia dos
métodos que usam. Gostaria que o senhor me preparasse notas
sobre o maior número deles que puder: as especialidades, as ideias
brilhantes que tiveram e assim por diante. Sei que estou pedindo
muito, depois de todo esse tempo... Mas veja o que pode fazer.
– Konrad Schneider é o único que importa – Reinhold
respondera. – Ele era brilhante. Os outros, apenas engenheiros
competentes. Só Deus sabe o que ele pode ter feito em trinta anos.
Não se esqueça de que ele deve ter visto cada um dos nossos
resultados, e nós não vimos nenhum dos dele. Com isso, tem uma
tremenda vantagem sobre nós.
Não pretendera, com aquilo, criticar a Inteligência, porém, por um
momento, pareceu que Sandmeyer ficaria ofendido. Mas então o
coronel deu de ombros.
– Tem suas vantagens e desvantagens, como o senhor mesmo
me disse. O nosso livre intercâmbio de informações significa um
progresso mais rápido, mesmo se deixamos escapar alguns
segredos. Os departamentos de pesquisa russos não devem saber
o que seu próprio pessoal faz durante metade do tempo. Vamos
mostrar pra eles que a democracia pode chegar primeiro à Lua.
“Democracia... Besteira!”, pensou Reinhold, mas não era louco
de dizer. Um Konrad Schneider valia um milhão de eleitores. E o
que Konrad já teria feito a esta altura, com todos os recursos da
URSS por trás dele? Quem sabe, neste mesmo instante, sua nave já
estivesse se afastando da Terra...
O Sol que desertara Taratua ainda estava alto sobre o lago Baikal
quando Konrad Schneider e o Comissário-assistente de Ciência
Nuclear afastaram-se, caminhando lentamente, da plataforma de
teste do motor. Seus ouvidos ainda pulsavam, doloridos, embora os
últimos ecos ensurdecedores tivessem morrido no lago dez minutos
antes.
– Por que essa cara? – perguntou, de súbito, Grigorievitch. –
Deveria estar feliz agora. Em um mês estaremos a caminho, e os
ianques vão ficar se mordendo de raiva.
– Você é um otimista, como sempre – disse Schneider. – Mesmo
com o motor funcionando, não é tão fácil. É verdade que não
consigo ver nenhum obstáculo sério agora... Mas estou preocupado
com os informes de Taratua. Eu disse como Hoffmann é bom, e tem
bilhões de dólares por trás dele. As fotografias da nave dele não
estão muito nítidas, mas parece não faltar muito para terminar. E
sabemos que testou o motor faz cinco semanas.
– Não se preocupe – riu Grigorievitch. – São eles que vão ter
uma grande surpresa. Não se esqueça de que não sabem nada de
nós.
Konrad Schneider imaginou se isso seria verdade, mas decidiu
que era muito mais seguro não expressar dúvidas. Poderia fazer
com que a mente de Grigorievitch começasse a explorar canais
tortuosos demais e, se tivesse havido um vazamento de informação,
seria bem difícil provar a própria inocência.
O guarda fez continência no momento em que Schneider
retornou ao edifício administrativo. “Havia quase tantos soldados
aqui”, pensou, mal-humorado, “quanto técnicos.” No entanto, era
assim que os russos faziam as coisas, e desde que se mantivessem
fora do caminho, estava tudo bem por ele. No geral, com algumas
exceções irritantes, as coisas haviam se saído praticamente como
esperado. Apenas o futuro poderia dizer quem, entre ele e Reinhold,
havia feito a melhor escolha.
Ele já estava trabalhando em seu relatório final quando foi
perturbado pelo som de vozes gritando. Por um momento sentou-se
imóvel à mesa, não conseguindo imaginar que possível
circunstância seria capaz de perturbar a rígida disciplina do campo.
Então caminhou para a janela e, pela primeira vez em sua vida,
soube o que era o desespero.
As estrelas estavam em toda a sua volta quando Reinhold
desceu o morro. Lá no mar, o Forrestal ainda vasculhava as águas
com seus dedos de luz, enquanto, mais perto da praia, os andaimes
em torno da Colombo haviam se transformado em uma árvore de
natal iluminada. Apenas a proa saliente da nave era como uma
sombra escura, ocultando as estrelas.
Um rádio alto tocava música dançante nos alojamentos e, sem
perceber, os pés de Reinhold se aceleravam de acordo com o ritmo.
Havia quase alcançado a estrada estreita que beirava a areia
quando uma premonição, um movimento apenas vislumbrado, fez
com que parasse. Perplexo, desviou o olhar da terra para o mar, e
do mar para a terra. Passou-se algum tempo antes que pensasse
em olhar para o céu.
Nesse momento, Reinhold Hoffmann soube, ao mesmo tempo
que Konrad Schneider, que havia perdido a corrida. E soube que a
perdera não por poucas semanas ou meses, como vinha temendo,
mas por milênios. As sombras enormes e silenciosas que se
moviam entre as estrelas, mais quilômetros acima de sua cabeça do
que se atrevia a imaginar, superavam sua pequena Colombo tanto
quanto ela superava as canoas de tronco do homem paleolítico. Por
um momento, que pareceu durar para sempre, Reinhold observou,
da mesma maneira que todo o planeta estava fazendo, enquanto as
grandes naves desciam em sua avassaladora grandiosidade, até
que, por fim, pôde ouvir o grito indistinto de sua passagem pelo ar
rarefeito da estratosfera.
Não lamentou que o trabalho de uma vida tivesse se perdido.
Batalhara para levar os homens às estrelas e, em seu momento de
triunfo, as estrelas, distantes e indiferentes, tinham vindo até ele.
Este era o momento em que a história prendia a respiração, e o
presente se destacava do passado da mesma forma que um iceberg
se rompe dos despenhadeiros gelados que lhe dão origem para
navegar pelo oceano, solitário e orgulhoso. Tudo o que as gerações
passadas haviam conquistado era, agora, como nada. Um único
pensamento se repetia na mente de Reinhold:
“A raça humana não estava mais só”.
2
O Secretário-geral das Nações Unidas mantinha-se imóvel junto à
grande janela, os olhos fixos no trânsito que se arrastava pela Rua
43. Às vezes, se questionava se era bom que um homem
trabalhasse em tal altura, tão acima de seus semelhantes.
Distanciamento era aceitável, mas seria fácil demais transformá-lo
em indiferença. Ou estaria simplesmente tentando racionalizar a sua
aversão a arranha-céus, que em nada diminuíra, mesmo depois de
vinte anos em Nova York?
Ouviu a porta se abrir às suas costas, mas não se virou quando
Pieter Van Ryberg entrou. Houve a inevitável pausa enquanto Pieter
olhava, com desagrado, para o termostato, pois não era de hoje que
se brincava que o Secretário-geral gostava de viver em uma
geladeira. Stormgren aguardou até que o assistente se juntasse a
ele na janela, e só então se obrigou a desviar os olhos do panorama
familiar, mas sempre fascinante, abaixo. Disse:
– Estão atrasados. Wainwright devia ter chegado há cinco
minutos.
– A polícia acabou de avisar. Ele está com um verdadeiro cortejo,
o que engarrafou o trânsito. Deve chegar a qualquer momento.
Van Ryberg fez uma pausa e então acrescentou, abruptamente:
– Ainda acha mesmo que é uma boa ideia falar com ele?
– Receio que agora seja um pouco tarde para recuar. Afinal de
contas, eu concordei. Embora você saiba que a ideia não partiu de
mim.
Stormgren caminhara até a mesa e ficou mexendo com seu
famoso peso de papel de urânio. Não se sentia nervoso, apenas
indeciso. Também estava satisfeito por Wainwright estar atrasado, já
que isso lhe daria uma pequena vantagem moral quando a reunião
começasse. Trivialidades assim desempenhavam um papel muito
mais importante nas questões humanas do que gostaria qualquer
pessoa apegada à lógica e à razão.
– Aí estão eles! – disse Van Ryberg, de repente, encostando o
rosto na janela. – Estão vindo pela avenida. Mais de três mil, eu
diria.
Stormgren pegou o bloco de notas e voltou para junto do
assistente. A quase um quilômetro dali, uma multidão pequena, mas
decidida, movia-se, devagar, na direção do Edifício do Secretariado.
Carregavam faixas que eram ilegíveis àquela distância, mas
Stormgren já conhecia muito bem a mensagem. Logo pôde ouvir,
elevando-se acima do barulho do trânsito, o ritmo ameaçador de
vozes em coro. Sentiu uma onda repentina de aversão tomar conta
de si. Certamente o mundo já tivera o bastante de turbas em marcha
e frases inflamadas!
A multidão chegara à frente do edifício. Deviam saber que o
Secretário-geral os observava, pois aqui e ali, de um modo um tanto
tímido, punhos agitavam-se no ar. Não se tratava de um desafio a
Stormgren, embora não houvesse dúvida de que os manifestantes
desejassem que o gesto fosse visto por ele. Como pigmeus
ameaçando um gigante, os punhos irados se erguiam contra o céu,
cinquenta quilômetros acima de suas cabeças: contra a cintilante
nuvem prateada que era a nave capitânia da frota dos Senhores
Supremos.
“Com certeza”, pensou Stormgren, “Karellen assistia a tudo e se
divertia imensamente, já que a reunião nunca ocorreria se não
tivesse sido instigada pelo Supervisor.”
Era a primeira vez que Stormgren se reunia com o dirigente da
Liga da Liberdade. Deixara de se perguntar se isso seria prudente,
pois os planos de Karellen muitas vezes eram sutis demais para a
mera compreensão humana. Na pior das hipóteses, Stormgren não
via como algum dano adicional poderia ser feito. Caso tivesse se
recusado a ver Wainwright, a Liga teria usado o fato como munição
contra ele.
Alexander Wainwright era um homem alto e elegante, de quase
cinquenta anos. Era, Stormgren sabia, honesto de cabo a rabo e,
por conseguinte, duplamente perigoso. Contudo, a sua sinceridade
óbvia tornava difícil não gostar dele, quaisquer que fossem as
opiniões que se tivesse sobre a causa que defendia... e sobre
alguns dos seguidores que atraía.
Stormgren não perdeu tempo após as apresentações, breves e
um pouco tensas, feitas por Van Ryberg.
– Presumo que o principal objetivo de sua visita seja registrar um
protesto formal contra o projeto da federação. Estou correto?
Wainwright fez que sim com a cabeça, sério.
– Esse é o meu principal protesto, senhor Secretário. Como
sabe, durante os últimos cinco anos temos procurado despertar a
raça humana para o perigo a que está exposta. A tarefa tem sido
difícil, já que a maioria das pessoas parece satisfeita em deixar que
os Senhores Supremos governem o mundo como melhor lhes
convêm. No entanto, mais de cinco milhões de patriotas, em todos
os países, assinaram nosso abaixo-assinado.
– Não é um número muito impressionante, em uma população de
dois bilhões e meio.
– É um número que não pode ser ignorado. E, para cada pessoa
que assinou, há muitas que têm sérias dúvidas quanto à sensatez,
para não falar da justiça, desse plano da federação. Mesmo o
Supervisor Karellen, com todos seus poderes, não pode apagar mil
anos de história com uma canetada.
– O que é que alguém sabe dos poderes de Karellen? – retrucou
Stormgren. – Quando eu era menino, a Federação Europeia era um
sonho. Mas, quando cresci, ela se tornara realidade. E isso foi antes
da chegada dos Senhores Supremos. Karellen está apenas
concluindo o trabalho que começamos.
– A Europa era uma entidade cultural e geográfica. O mundo,
não. Essa é a diferença.
– Para os Senhores Supremos – replicou Stormgren, sarcástico
–, a Terra deve ser muito menor do que a Europa parecia aos
nossos pais. E a visão deles, eu diria, é mais madura do que a
nossa.
– Não discordo, necessariamente, da federação como um
objetivo final, embora muitos de meus simpatizantes possam não
concordar. Só que deve partir de dentro, e não ser imposta de fora.
Precisamos tentar resolver nosso próprio destino. Não deve haver
mais interferência nos assuntos humanos!
Stormgren suspirou. Já ouvira tudo aquilo uma centena de vezes,
e sabia que só podia dar a velha resposta que a Liga da Liberdade
se recusava a aceitar. Tinha fé em Karellen, e eles, não. Essa era a
diferença fundamental, e não havia nada que pudesse fazer a
respeito. Felizmente, tampouco a Liga podia fazer qualquer coisa.
– Deixe-me fazer algumas perguntas – disse Stormgren. – Pode
negar que os Senhores Supremos trouxeram segurança, paz e
fartura ao mundo?
– É verdade. Só que nos tiraram a liberdade. Nem só de pão...
– ...vive o homem. Sim, eu sei. Mas esta é a primeira época em
que todos os homens têm a certeza de conseguir, pelo menos, isso.
De qualquer maneira, quanta liberdade perdemos em comparação
com a que os Senhores Supremos nos deram, pela primeira vez na
história da humanidade?
– A liberdade de controlar as nossas próprias vidas, guiados por
Deus.
“Finalmente”, pensou Stormgren, “chegamos ao ponto. No fundo,
trata-se de um conflito religioso, por mais que se tente disfarçá-lo.
Wainwright nunca deixa ninguém esquecer que já foi sacerdote.
Embora já não usasse mais o colarinho clerical, de algum modo
sempre deixava a impressão de que ele ainda estava ali.”
– No mês passado – observou Stormgren – uma centena de
bispos, cardeais e rabinos assinou uma declaração conjunta dando
apoio à política do Supervisor. As religiões do mundo estão contra o
senhor.
Wainwright balançou a cabeça, em uma negação indignada.
– Muitos dos líderes estão cegos. Foram corrompidos pelos
Senhores Supremos. Quando perceberem o perigo, poderá ser
tarde demais. A humanidade já terá perdido a iniciativa, e se tornado
uma raça de vassalos.
Houve um instante de silêncio. E então Stormgren respondeu:
– Daqui a três dias vou me reunir de novo com o Supervisor. Vou
explicar a ele suas objeções, visto que é meu dever representar os
pontos de vista do mundo. Mas isso não vai mudar nada, posso
garantir.
– Há uma outra questão – falou Wainwright, devagar. – Temos
muitas objeções aos Senhores Supremos, mas, acima de tudo,
abominamos essa insistência em se ocultarem. O senhor é o único
ser humano que já falou com Karellen e, mesmo assim, nunca o viu!
É de se admirar que duvidemos dos motivos dele?
– Apesar de tudo o que ele tem feito pela humanidade?
– Sim, apesar disso. Não sei o que nos ofende mais: a
onipotência de Karellen ou sua reclusão. Se não tem nada a
esconder, por que nunca se mostra? Da próxima vez que falar com
o Supervisor, sr. Stormgren, faça-lhe essa pergunta!
Stormgren ficou em silêncio. Não havia nada que pudesse dizer.
Nada que convenceria o outro. Às vezes Stormgren não tinha
certeza se ele mesmo realmente se convencera.
Era, obviamente, apenas uma operação muito pequena, do ponto
de vista deles, mas, para a Terra, era o maior acontecimento da
história. Não houvera nenhum aviso antes de que as grandes naves
se precipitassem das profundezas desconhecidas do espaço. O dia
fora descrito inúmeras vezes, em ficção, mas ninguém havia
realmente acreditado que chegaria. Agora, por fim, esse dia
nascera: as formas cintilantes e silenciosas, suspensas sobre todas
as terras, simbolizavam uma ciência que o Homem não poderia ter a
esperança de igualar por séculos. Por seis dias flutuaram, imóveis,
sobre suas cidades, sem dar a entender que sabiam de sua
existência. Mas não era preciso: não seria apenas por coincidência
que as poderosas naves teriam parado tão precisamente sobre
Nova York, Londres, Paris, Moscou, Roma, Cidade do Cabo, Tóquio,
Camberra...
Antes mesmo do fim desses dias aterradores, alguns homens
tinham adivinhado a verdade. Não se tratava do primeiro e hesitante
contato de uma raça que nada sabia da humanidade. Dentro das
naves silenciosas e imóveis, mestres da psicologia estudavam as
reações da humanidade. Quando a curva de tensão atingisse o
máximo, eles agiriam.
E no sexto dia, Karellen, Supervisor para a Terra, fez-se
conhecer pelo mundo em uma transmissão que se sobrepôs a todas
as frequências de rádio. Falou em um inglês tão perfeito que a
controvérsia que iniciou assolaria os dois lados do Atlântico por uma
geração. Mas o contexto do discurso foi ainda mais surpreendente
do que a forma. Por quaisquer padrões, era a obra de um gênio
insuperável, mostrando um domínio completo e absoluto dos
assuntos humanos. Não poderia haver dúvida de que sua erudição
e virtuosismo, os vislumbres tentadores de um conhecimento ainda
inexplorado, haviam sido concebidos de caso pensado para
convencer a humanidade de que estava na presença de um poder
intelectual esmagador. Quando Karellen terminou, as nações da
Terra souberam que seus dias de soberania precária haviam
terminado. Os governos locais, internos, ainda conservariam seus
poderes, mas, no campo mais amplo dos assuntos internacionais,
as decisões supremas haviam deixado as mãos humanas.
Discussões, protestos... tudo era inútil.
Dificilmente se poderia esperar que todas as nações do mundo
se submetessem, de maneira dócil, a uma tal limitação de seus
poderes. No entanto, a resistência ativa apresentava dificuldades
desconcertantes, pois a destruição das naves dos Senhores
Supremos, mesmo que fosse possível, aniquilaria as cidades abaixo
delas. Apesar disso, uma das grandes potências fizera uma
tentativa. Talvez os responsáveis esperassem matar dois coelhos
com um só míssil atômico, já que o seu alvo flutuava sobre a capital
de uma nação vizinha e hostil.
Enquanto a imagem da grande nave se expandia na tela do
televisor na sala de controle secreta, o pequeno grupo de
autoridades e técnicos deve ter sentido diversas emoções
contraditórias. Se tivessem sucesso, que ação as naves restantes
iriam adotar? Poderiam também ser destruídas, deixando a
humanidade voltar a seu próprio caminho? Ou Karellen desfecharia
uma terrível vingança sobre os agressores?
A tela ficara subitamente vazia quando o míssil se destruiu com o
impacto, e a imagem passou de imediato para uma câmera aérea, a
muitos quilômetros de distância. Nessa fração de segundo, a bola
de fogo já deveria ter se formado e estar enchendo o céu com suas
chamas solares.
Contudo, não acontecera absolutamente nada. A grande nave
pairava incólume, banhada pela luz bruta do Sol, na fronteira do
espaço. Não apenas a bomba falhara em tocá-la, mas também
ninguém jamais conseguiria chegar a uma conclusão sobre o que
acontecera ao míssil. Além do mais, Karellen não tomara qualquer
medida contra os responsáveis, ou sequer demonstrara ter se dado
conta do ataque. Ignorara-os com desdém, deixando que se
preocupassem com uma vingança que nunca viria. Havia
dispensado um tratamento muito mais eficiente, e muito mais
desmoralizante, do que qualquer medida punitiva. Algumas
semanas depois, o governo responsável se esfacelara
completamente em meio a recriminações mútuas.
Houve também alguma resistência passiva à política dos
Senhores Supremos. Quase sempre, Karellen era capaz de lidar
com isso deixando os envolvidos fazer o que quisessem, até
descobrirem que só prejudicavam a si mesmos com a recusa em
cooperar. Apenas uma vez tomara medidas diretas contra um
governo recalcitrante.
Durante mais de cem anos, a República da África do Sul havia
sido o centro de rivalidades raciais. Homens de boa vontade, de
ambos os lados, haviam tentado construir uma ponte, mas em vão:
os temores e preconceitos tinham raízes profundas demais para
permitir qualquer cooperação. Os sucessivos governos só haviam
diferido no grau de intolerância. O país estava envenenado pelo
ódio e pelas consequências da guerra civil.
Quando se tornou claro que nenhuma tentativa seria feita para
pôr fim à discriminação, Karellen dera seu aviso. Apenas
especificara uma data e um horário; nada mais. Houve apreensão,
mas pouco medo ou pânico, pois ninguém acreditava que os
Senhores Supremos adotariam uma medida violenta ou destrutiva
que atingisse tanto inocentes quanto culpados.
E não adotaram. Tudo o que aconteceu foi que, no momento em
que passava pelo meridiano da Cidade do Cabo, o Sol
desapareceu. Apenas um fantasma pálido e arroxeado, que não
fornecia calor nem luz, continuou visível. De alguma forma, no
espaço, a luz do Sol fora polarizada por dois campos transversais,
de modo que nenhuma radiação pudesse passar. A área afetada
tinha quinhentos quilômetros de diâmetro, e era perfeitamente
circular.
A demonstração durou trinta minutos. Foi o suficiente: no dia
seguinte, o governo da África do Sul anunciou que direitos civis
plenos seriam restituídos à minoria branca.
Exceto por incidentes isolados, a raça humana aceitara os
Senhores Supremos como parte da ordem natural das coisas. Em
um tempo surpreendentemente curto, o choque inicial desapareceu
e o mundo voltou a seguir seu curso. A maior mudança que um Rip
van Winkle recém-desperto teria notado seria certa esperança
silenciosa, uma atitude mental de apreensão e expectativa,
enquanto a humanidade aguardava que os Senhores Supremos se
mostrassem e descessem de suas naves cintilantes.
Cinco anos depois, ainda aguardava. “Isso”, pensou Stormgren,
“era a causa de todos os problemas.”
Havia o habitual círculo de curiosos, com as câmeras prontas,
quando o carro de Stormgren entrou no campo de lançamento. O
Secretário-geral trocou algumas palavras de última hora com o
assistente, apanhou a maleta e passou pelo meio da roda de
espectadores.
Karellen nunca o deixava esperando muito. Houve um súbito
“Oh!” da multidão e uma bolha prateada expandiu-se no céu com
uma velocidade de tirar o fôlego. Uma rajada de ar agitou as roupas
de Stormgren quando a minúscula nave pousou a cinquenta metros
de distância, flutuando, com suavidade, alguns centímetros acima
do solo, como se temesse ser contaminada pela Terra. À medida
que avançava lentamente, Stormgren viu o casco metálico inteiriço
vincar-se de modo familiar e, logo a seguir, teve diante de si a
abertura que tanto desconcertara os melhores cientistas do mundo.
Entrou por ela no único compartimento da nave, suavemente
iluminado. A entrada se fechou como se nunca tivesse existido,
bloqueando todo som e toda luz vindos de fora.
Voltou a se abrir cinco minutos depois. Não houvera sensação de
movimento, mas Stormgren sabia que estava, agora, cinquenta
quilômetros acima da Terra, bem no interior da nave de Karellen.
Estava no mundo dos Senhores Supremos: à sua volta, eles
cuidavam de seus negócios misteriosos. Chegara mais perto deles
do que qualquer outro homem. Não sabia, porém, mais sobre sua
natureza física do que os milhões de habitantes do mundo abaixo.
A pequena sala de reuniões, ao final do pequeno corredor de
ligação, não era mobiliada, exceto por uma cadeira e uma mesa sob
a tela do visor. Como esperado, não dizia absolutamente nada a
respeito das criaturas que a construíram. A tela do visor estava
vazia agora, como sempre estivera. Às vezes, em sonhos,
Stormgren imaginava que ela de repente se acendia, revelando o
segredo que atormentava todo o planeta. No entanto, o sonho
nunca se tornara realidade: por trás do retângulo de escuridão,
ocultava-se um mistério completo. Contudo, havia também poder e
sabedoria. E, talvez o principal, um afeto imenso e bem-humorado
pelas criaturinhas que rastejavam no planeta abaixo.
Da grade oculta veio a voz calma e nunca apressada que
Stormgren conhecia tão bem, embora o mundo só a tivesse ouvido
uma vez na história. Sua profundidade e ressonância davam a única
pista que existia a respeito da natureza física de Karellen, pois
deixavam uma impressão marcante de puro tamanho. Karellen era
grande. Talvez muito maior que um homem. Era verdade que alguns
cientistas, após terem analisado a gravação da sua única fala,
tinham sugerido que a voz era a de uma máquina. Isso, porém, era
algo em que Stormgren jamais poderia acreditar.
– Sim, Rikki, eu estava ouvindo a sua pequena reunião. A que
conclusão chegou sobre o sr. Wainwright?
– É um homem honesto, mesmo que muitos de seus
simpatizantes não sejam. O que vamos fazer? A Liga em si não é
perigosa, mas alguns de seus extremistas estão pregando a
violência abertamente. Estive pensando se deveria pôr uma guarda
em casa. Mas espero que não seja preciso.
Karellen esquivou-se do assunto como, às vezes, de modo
irritante, fazia.
– Os detalhes da federação mundial já foram divulgados há um
mês. Houve um aumento substancial nos sete por cento que não me
aprovam, ou nos doze por cento de indecisos?
– Ainda não. Mas isso não tem importância. O que realmente me
preocupa é um sentimento generalizado, mesmo entre seus
simpatizantes, de que já é hora de essa reclusão acabar.
O suspiro de Karellen foi tecnicamente perfeito, embora, de certa
maneira, lhe faltasse convicção.
– Também acha isso, não é?
A pergunta era tão retórica que Stormgren não se deu ao
trabalho de responder.
– Pergunto-me se realmente compreende – prosseguiu, sem
meias palavras – como este estado de coisas dificulta meu trabalho.
– Não que ajude o meu – replicou Karellen, com certo vigor. –
Gostaria que as pessoas parassem de pensar em mim como um
ditador e se lembrassem de que sou apenas um funcionário público,
tentando pôr em prática uma política colonial de cuja formulação
não participei.
Isso, pensou Stormgren, era uma descrição bem interessante.
Queria saber o quão verdadeira ela era.
– Não pode pelo menos nos dar algum motivo para a sua
reclusão? Porque não conseguimos entendê-la, ela nos aborrece e
gera um boato atrás do outro.
Karellen deu aquela sua gargalhada, intensa e profunda, um
pouco ressonante demais para ser completamente humana.
– O que acham que sou agora? A teoria do robô ainda é a
principal? Preferiria ser uma massa de válvulas eletrônicas do que
algo como uma centopeia. Ah, sim, vi a charge no Chicago Tribune
de ontem! Estou pensando em solicitar o original.
Stormgren contraiu os lábios visivelmente. “Havia momentos”,
pensou, “em que Karellen tratava seus deveres de modo leviano.”
– Isto é sério – disse Stormgren, em tom de reprovação.
– Meu caro Rikki – Karellen retrucou –, é só por não levar a raça
humana a sério que consigo manter os vestígios que ainda possuo
de meus outrora consideráveis poderes mentais!
Mesmo sem querer, Stormgren sorriu.
– Isso não me ajuda muito, não é? Tenho que descer lá e
convencer meus semelhantes de que, embora você não vá se
mostrar, não tem nada a esconder. Não é trabalho fácil. A
curiosidade é um dos traços mais marcantes da humanidade. Não
vai poder afrontá-la para sempre.
– De todos os problemas com que nos defrontamos quando
viemos para a Terra, esse foi o mais difícil – admitiu Karellen. –
Vocês têm confiado em nossa sabedoria em outros assuntos. Com
certeza também podem confiar neste!
– Eu confio – disse Stormgren –, mas Wainwright não, e nem os
simpatizantes dele. Pode mesmo culpá-los se interpretam mal a sua
relutância em se mostrar?
Houve silêncio por um momento. Então Stormgren ouviu o som
fraco (seria um estalido?) que poderia ter sido causado pelo
Supervisor movendo ligeiramente o corpo.
– Sabe por que Wainwright e os outros como ele têm medo de
mim, não sabe? – perguntou Karellen. Sua voz era sóbria agora,
como um grande órgão soltando notas da nave alta de uma
catedral. – Vai achar homens desses em todas as religiões do
mundo. Sabem que representamos a razão e a ciência e, apesar da
confiança que têm em suas crenças, temem que derrubemos seus
deuses. Não necessariamente por um ato deliberado, mas de uma
maneira mais sutil. A ciência pode destruir a religião ignorando-a,
tanto quanto refutando suas doutrinas. Ninguém jamais demonstrou,
ao que eu saiba, a inexistência de Zeus ou de Thor, só que eles têm
poucos seguidores hoje. Os Wainwrights também temem que
saibamos a verdade sobre a origem de suas fés. Perguntam-se: Por
quanto tempo estivemos observando a humanidade? Será que
vimos Maomé começar a Hégira, ou Moisés dando as leis aos
judeus? Será que sabemos tudo o que há de falso nas histórias em
que acreditam?
– E sabem? – murmurou Stormgren, meio para si mesmo.
– Esse, Rikki, é o medo que os atormenta, embora jamais o
reconheçam abertamente. Creia-me, não temos nenhum prazer em
destruir as fés dos homens, só que as religiões do mundo não
podem estar todas certas, e eles sabem disso. Cedo ou tarde, o
homem vai ter que saber a verdade; mas o momento ainda não
chegou. Quanto à nossa reserva, que você acusa corretamente de
agravar nossos problemas, é uma questão que está além do meu
controle. Lamento a necessidade desta reclusão tanto quanto você,
mas há razões suficientes para isso. No entanto, vou tentar
conseguir uma declaração dos meus... superiores... que talvez o
satisfaça e, quem sabe, acalme a Liga da Liberdade. Agora,
podemos voltar à nossa pauta e recomeçar a gravação?
– Bem? – perguntou Van Ryberg, ansioso. – Teve sorte?
– Não sei – respondeu, cansado, Stormgren, enquanto atirava as
pastas de arquivo sobre a mesa e se deixava cair na cadeira. –
Karellen está consultando os superiores dele agora, sejam quem, ou
o quê, forem. Não quis fazer promessas.
– Escute – disse Pieter, abruptamente –, acabo de pensar em
algo. Que motivo temos para acreditar que haja alguém acima de
Karellen? E se todos os Senhores Supremos, como os apelidamos,
estiverem bem aqui na Terra, nas naves? Quem sabe não tenham
para onde ir, mas escondem isso da gente.
– É uma teoria bem bolada – sorriu Stormgren. – Só que vai de
encontro ao pouco que sei, ou penso que sei, sobre o passado de
Karellen.
– E quanto você sabe?
– Bem, ele sempre fala da posição dele aqui como algo
temporário e que não o deixa se dedicar ao seu verdadeiro trabalho,
que deve ser algum tipo de matemática. Uma vez, mencionei a
citação de Acton sobre o poder corromper e o poder absoluto
corromper absolutamente. Queria ver qual seria a reação dele. Ele
deu uma daquelas risadas cavernosas e disse: “Não há perigo de
acontecer comigo. No primeiro caso, quanto antes terminar meu
trabalho aqui, mais cedo vou poder voltar para o meu lugar, a muitos
anos-luz. No segundo, não tenho poder absoluto, de jeito nenhum.
Sou apenas um... Supervisor”. É claro que podia estar me
enganando. Nunca vou ter certeza.
– Karellen é imortal, não é?
– Sim, pelos nossos padrões, embora haja algo no futuro que
parece temer. Não consigo imaginar o que seja. E isso é mesmo
tudo o que sei sobre ele.
– Não é muito conclusivo. Minha teoria é que a flotilha dele se
perdeu no espaço e está procurando um novo lar. Não quer que a
gente saiba que seus camaradas são poucos. Quem sabe todas as
outras naves são automáticas, e não tem ninguém nelas. Quem
sabe são só uma fachada imponente.
– Você – disse Stormgren – anda lendo ficção científica demais.
Van Ryberg sorriu sem graça, um pouco embaraçado.
– A “invasão do espaço” não saiu bem como o previsto, não é?
Minha teoria certamente explicaria por que Karellen nunca se
mostra. Não quer que a gente saiba que não tem nenhum outro
Senhor Supremo.
Stormgren sacudiu a cabeça, discordando, bem-humorado.
– A sua explicação, como quase sempre, é bem bolada demais
para ser verdade. Embora só tenhamos como inferir sua existência,
deve haver uma grande civilização por trás do Supervisor. E uma
que sabe a respeito da humanidade há muito tempo. O próprio
Karellen deve ter nos estudado por séculos. Veja o seu domínio do
inglês, por exemplo. Ele me ensinou a usar expressões idiomáticas!
– Você já descobriu alguma coisa que ele não sabe?
– Ah, sim, muitas... mas só coisas triviais. Acho que tem uma
memória absolutamente perfeita, mas tem certas coisas que não se
importou em aprender. Por exemplo, o inglês é a única língua que
entende com perfeição, embora nos últimos dois anos tenha
aprendido bastante de finlandês, só pra me atazanar. E não se
aprende finlandês correndo! Ele consegue citar grandes trechos do
Kalevala, enquanto tenho vergonha de dizer que só conheço alguns
versos. Também sabe as biografias de todos os estadistas vivos e,
às vezes, consigo identificar as referências que ele usou. O
conhecimento dele de história e de ciência parece completo. Você
sabe o quanto já aprendemos com ele. No entanto, tomados um de
cada vez, não creio que seus dotes intelectuais estejam muito além
do alcance das conquistas humanas. Só que nenhum homem
conseguiria fazer todas as coisas que ele faz.
– Essa é mais ou menos a conclusão a que já cheguei –
concordou Van Ryberg. – Podemos discutir eternamente sobre
Karellen, mas no final sempre voltamos à mesma pergunta: por que
o diabo não se mostra? Até que ele apareça, vou continuar fazendo
teorias e a Liga da Liberdade vai continuar berrando.
Ergueu um olho rebelde para o teto.
– Numa noite escura, sr. Supervisor, espero que um repórter
pegue um foguete para sua nave e suba pela porta dos fundos com
uma câmera. Que furo isso seria!
Se Karellen estava escutando, não deu sinal. Mas, é claro, nunca
dava.
No primeiro ano de sua chegada, o advento dos Senhores
Supremos causara menos mudanças na estrutura da vida humana
do que seria de se esperar. A sombra deles estava em toda parte,
mas era uma sombra discreta. Embora houvesse poucas cidades
grandes na Terra onde os homens não pudessem ver uma das
naves prateadas resplandecendo no zênite, após algum tempo elas
começaram a ser vistas como parte tão integrante da paisagem
quanto o Sol, a Lua ou as nuvens. A maioria das pessoas
provavelmente tinha apenas uma vaga consciência de que o seu
padrão de vida cada vez melhor se devia aos Senhores Supremos.
Quando paravam para pensar nisso, o que era raro, percebiam que
as naves silenciosas haviam trazido paz para todo o mundo pela
primeira vez na história, e ficavam devidamente gratas.
No entanto, esses eram benefícios por exclusão e não
espetaculares, aceitos e logo esquecidos. Os Senhores Supremos
permaneciam distantes, escondendo seus rostos da humanidade.
Karellen poderia despertar respeito e admiração, mas não
conquistar nada mais profundo enquanto prosseguisse com sua
política atual. Era difícil não sentir rancor contra os Olimpianos que
se dirigiam à humanidade apenas por meio dos circuitos de
radioteletipo na sede das Nações Unidas. O que ocorria entre
Karellen e Stormgren nunca vinha a público e, às vezes, o próprio
Stormgren se perguntava por que o Supervisor considerava as
reuniões necessárias. Talvez sentisse a necessidade de contato
direto com pelo menos um ser humano. Talvez percebesse que
Stormgren precisava dessa forma de apoio moral. Se essa era a
explicação, o Secretário-geral ficava grato. Não se importava que a
Liga da Liberdade o chamasse, com desprezo, de “office-boy de
Karellen”.
Os Senhores Supremos nunca se envolveram com países e
governos individuais. Haviam tomado a Organização das Nações
Unidas como a encontraram, dado instruções para a instalação do
equipamento de rádio necessário e emitido suas ordens pela boca
do Secretário-geral. O delegado soviético observara, com
propriedade, longa e repetidamente, que o procedimento não estava
de acordo com a Carta da ONU. Karellen não parecia preocupado.
Era assombroso como tantos abusos, loucuras e males podiam
ser desfeitos por aquelas mensagens do céu. Com a chegada dos
Senhores Supremos, as nações souberam que não precisavam
mais temer umas às outras, e adivinharam (antes mesmo de
experimentar) que as armas existentes certamente seriam inúteis
contra uma civilização capaz de atravessar o abismo entre as
estrelas. Dessa maneira, o maior obstáculo individual à felicidade da
raça humana fora removido de imediato.
Os Senhores Supremos pareciam bastante indiferentes a formas
de governo, desde que não fossem opressivas ou corruptas. A Terra
ainda tinha democracias, monarquias, ditaduras benevolentes,
comunismo e capitalismo. Isso foi motivo de grande surpresa para
muitas almas simples, que estavam completamente convencidas de
que o seu era o único modo de vida possível. Outros achavam que
Karellen apenas esperava para introduzir um sistema que iria varrer
do mapa todas as formas existentes de sociedade e, por isso, não
se incomodava com reformas políticas menores. Isso, porém, como
todas as outras suposições a respeito dos Senhores Supremos, era
pura especulação. Ninguém sabia os motivos deles. E ninguém
sabia para que futuro estavam conduzindo a humanidade.
3
Stormgren vinha dormindo mal nas últimas noites, o que era
estranho, já que em breve estaria pondo de lado as inquietações do
cargo para sempre. Servira à humanidade por quarenta anos, e aos
senhores dela por cinco. Poucos homens poderiam olhar para trás e
contemplar uma vida com tantas ambições conquistadas. Talvez
fosse esse o problema: nos anos de aposentadoria, não importando
quantos fossem, não teria novas metas para dar gosto à vida.
Desde a morte de Martha, e depois que os filhos constituíram as
próprias famílias, seus laços com o mundo pareciam ter se
enfraquecido. Podia ser, também, que estivesse começando a se
identificar com os Senhores Supremos, distanciando-se, assim, da
humanidade.
Esta era mais uma daquelas noites insones em que seu cérebro
continuava a girar como uma máquina cujo regulador estivesse
quebrado. Sabia que não adiantava mais tentar dormir e, relutante,
saiu da cama. Vestindo rapidamente o roupão, foi dar uma volta no
jardim do terraço de seu modesto apartamento. Não havia um só de
seus subordinados diretos que não tivesse alojamentos muito mais
luxuosos, mas o lugar era mais do que suficiente para as
necessidades de Stormgren. Chegara a uma posição em que nem
posses materiais, nem cerimônias oficiais podiam acrescentar algo à
sua estatura.
A noite estava quente, quase sufocante, mas o céu estava claro
e uma Lua brilhante pendia baixa, a sudoeste. A dez quilômetros
dali, as luzes de Nova York ardiam no horizonte como uma aurora
congelada no ato de irromper.
Stormgren ergueu os olhos acima da cidade adormecida,
escalando novamente as alturas a que apenas ele, dentre os
homens vivos, ascendera. Embora estivesse muito longe, podia ver
o casco da nave de Karellen reluzindo ao luar. Ficou imaginando o
que o Supervisor estaria fazendo, pois não acreditava que os
Senhores Supremos sequer dormissem.
Muito acima, um meteoro forçou sua lança brilhante através da
abóbada celeste. A trilha luminosa brilhou fraca por algum tempo, e
então definhou, deixando apenas as estrelas. Um lembrete brutal:
dali a cem anos, Karellen ainda guiaria a humanidade rumo à meta
que só ele podia ver, mas em quatro meses outro homem seria o
Secretário-geral. Não que Stormgren se importasse muito. Mas isso
queria dizer que lhe restava pouco tempo se desejava descobrir o
que havia por trás da tela reforçada.
Só nos últimos dias ousara admitir que a reclusão dos Senhores
Supremos começava a obcecá-lo. Até há pouco, sua fé em Karellen
o mantivera livre de dúvidas. Agora, porém, pensou com certa
ironia, os protestos da Liga da Liberdade estavam começando a
afetá-lo. Era verdade que a propaganda sobre a escravização do
Homem não passava de propaganda. Poucas pessoas acreditavam
mesmo nisso, ou desejavam, de fato, voltar aos velhos tempos. Os
homens tinham se acostumado ao governo imperceptível de
Karellen. Todavia, estavam ficando impacientes para saber quem os
governava. E quem podia culpá-los?
Embora fosse de longe a maior, a Liga era apenas uma das
organizações que se opunham a Karellen e, por conseguinte, aos
humanos que cooperavam com os Senhores Supremos. As
objeções e políticas desses grupos variavam muito: alguns
assumiam o ponto de vista religioso, enquanto outros apenas
expressavam um sentimento de inferioridade. Sentiam-se, com toda
a razão, mais ou menos como um indiano culto do século dezenove
deveria ter se sentido ao contemplar o Raj do Império Britânico. Os
invasores haviam trazido paz e fartura à Terra. No entanto, a qual
custo? A história não era tranquilizadora: mesmo os contatos mais
pacíficos entre povos de níveis culturais muito diferentes tinham
resultado, quase sempre, na destruição da sociedade mais
atrasada. Nações, assim como pessoas, podiam perder o gosto pela
vida quando encaravam um desafio do qual não davam conta. E a
civilização dos Senhores Supremos, embora envolta em mistério,
era o maior desafio que o Homem já enfrentara.
O fax na sala adjacente emitiu um clique suave ao ejetar o
resumo de notícias enviado, de hora em hora, pela Central News.
Stormgren voltou para dentro e folheou as páginas, sem muita
atenção ou entusiasmo. Do outro lado do mundo, a Liga da
Liberdade inspirara uma manchete não muito original. “MONSTROS
GOVERNAM O HOMEM?”, perguntava o jornal, e prosseguia com a
citação: “Discursando em um comício hoje em Madras, o dr. C. V.
Krishnan, presidente da Divisão Oriental da Liga da Liberdade,
disse: ‘A explicação para o comportamento dos Senhores Supremos
é muito simples. A sua forma física é tão alienígena e repugnante
que não se atrevem a se mostrar à humanidade. Desafio o
Supervisor a negar isso’. ”
Stormgren jogou a folha no chão, aborrecido. Mesmo que a
acusação fosse verdade, que importava? A ideia era velha, mas
nunca o preocupara. Não acreditava que houvesse uma forma
biológica, por mais estranha, que ele não pudesse aceitar com o
tempo e, quem sabe, até achar bela. A mente, não o corpo, era tudo
o que contava. Se pudesse convencer Karellen disso, os Senhores
Supremos talvez mudassem suas diretrizes. Com certeza não
chegavam nem perto do horror dos desenhos muito criativos que
haviam enchido os jornais logo após sua chegada à Terra!
No entanto, Stormgren sabia que não era apenas consideração
por seu sucessor o que o deixava ansioso para ver o fim desse
estado de coisas. Era honesto o bastante para admitir que, em
última análise, seu principal motivo era simples curiosidade humana.
Passara a reconhecer Karellen como pessoa, e nunca ficaria
satisfeito até que descobrisse também que tipo de criatura ele
poderia ser.
Quando Stormgren não chegou no horário habitual na manhã
seguinte, Pieter Van Ryberg ficou surpreso e um pouco incomodado.
Embora o Secretário-geral muitas vezes fizesse algumas visitas
antes de ir para o escritório, sempre deixava um aviso. Nesta
manhã, para piorar as coisas, havia várias mensagens urgentes
para Stormgren. Van Ryberg ligou para meia dúzia de
departamentos tentando localizá-lo, e então desistiu, nervoso.
Ao meio-dia já estava alarmado, e enviou um carro até a
residência de Stormgren. Dez minutos depois, foi apanhado de
surpresa pelo uivo de uma sirene, enquanto um carro de patrulha
vinha correndo pela Roosevelt Drive. As agências de notícias
deviam ter amigos naquela viatura, pois ao mesmo tempo em que
Van Ryberg observava a aproximação, o rádio dizia ao mundo que
ele não era mais apenas Assistente, mas, sim, Secretário-geral em
Exercício das Nações Unidas.
Se Van Ryberg tivesse menos problemas nas mãos, teria achado
interessante estudar as reações da imprensa ao desaparecimento
de Stormgren. No mês anterior, os jornais do mundo haviam se
dividido em dois grupos bem definidos. A imprensa ocidental, no
geral, aprovava o plano de Karellen de tornar os homens cidadãos
do mundo. Os países do Oriente, por outro lado, estavam passando
por violentos, embora altamente artificiais, espasmos de orgulho
patriótico. Alguns tinham sido independentes por pouco mais de
uma geração, e agora se sentiam ludibriados. As críticas aos
Senhores Supremos eram generalizadas e vigorosas: depois de um
período inicial de extrema cautela, a imprensa logo descobrira que
podia ser tão grosseira com Karellen quanto desejasse, que nada
aconteceria. Agora, estava se excedendo.
A maior parte dos ataques, embora sem papas na língua, não
representava a grande massa dos povos. Ao longo das fronteiras
que, em breve, desapareceriam para sempre, as guarnições tinham
sido redobradas, mas os soldados fitavam-se com uma cordialidade
ainda muda. Os políticos e os generais podiam gritar e berrar, mas
os milhões que aguardavam em silêncio achavam que, muito em
breve, um capítulo longo e sangrento da história chegaria ao fim.
E agora Stormgren se fora, e ninguém sabia para onde. O ruído
diminuiu de repente, quando o mundo se deu conta da perda do
único homem por meio de quem os Senhores Supremos, por suas
próprias e estranhas razões, falavam com a Terra. Uma paralisia
pareceu assaltar os comentaristas da imprensa e do rádio, mas em
meio ao silêncio podia-se ouvir a voz da Liga da Liberdade,
ansiosamente protestando inocência.
Estava escuro como breu quando Stormgren acordou. No início,
sentia tanto sono que não se dava conta de como isso era estranho.
Então, quando a consciência plena retornou, sentou-se com um
sobressalto e procurou o interruptor ao lado da cama.
Em meio às trevas, sua mão encontrou uma parede de pedra
nua, fria ao toque. Imobilizou-se de imediato, a mente e o corpo
paralisados pelo choque do inesperado. Então, mal acreditando em
seus sentidos, ajoelhou-se na cama e começou a explorar, com a
ponta dos dedos, a parede tão surpreendentemente desconhecida.
Fazia isso há apenas um momento quando ouviu um clique
repentino e parte do negrume deslizou para o lado. Viu, de relance,
a silhueta de um homem contra um fundo de luz fraca. Em seguida,
a porta tornou a se fechar e a escuridão voltou. Aconteceu tão
depressa que não teve chance de ver nada do aposento em que se
encontrava.
Um instante depois, foi ofuscado pela luz intensa de uma
lanterna elétrica. O feixe de luz passou sobre seu rosto, fixou-se
nele por um instante e, em seguida, desceu para iluminar toda a
cama, que era, ele via agora, nada mais que um colchão apoiado
em tábuas rústicas.
Da escuridão, uma voz suave dirigiu-se a ele em um inglês
excelente, mas com um sotaque que Stormgren, a princípio, não
conseguiu identificar.
– Ah, sr. Secretário. Fico satisfeito em vê-lo acordado. Espero
que se sinta cem por cento bem.
Havia algo nessa última frase que chamou a atenção de
Stormgren, de modo que as perguntas indignadas que estivera a
ponto de fazer morreram em seus lábios. Cravou os olhos na
escuridão e retorquiu calmamente:
– Por quanto tempo estive inconsciente?
O outro riu, divertido.
– Vários dias. Prometeram que não haveria efeitos colaterais. É
bom ver que era verdade.
Em parte para ganhar tempo, em parte para testar as próprias
reações, Stormgren girou as pernas para fora da cama. Ainda vestia
as roupas de dormir, mas estavam bem amarrotadas e pareciam ter
acumulado uma boa quantidade de pó. Ao se mexer, sentiu uma
ligeira tontura. Não o bastante para ser desagradável, mas o
suficiente para convencê-lo de que, de fato, tinha sido drogado.
Voltou-se para a luz.
– Onde estou? – perguntou, sem meias palavras. – Wainwright
sabe disto?
– Calma, não fique agitado – respondeu o vulto nas sombras. –
Não vamos falar sobre esse tipo de coisa, por enquanto. Aposto que
está morrendo de fome. Troque de roupa e venha jantar.
A oval de luz deslizou pelo aposento e, pela primeira vez,
Stormgren teve uma ideia de suas dimensões. Mal chegava a ser
um quarto, pois as paredes pareciam rocha nua polida.
Compreendeu que estava debaixo do solo, talvez a uma grande
profundidade. E, se estivera inconsciente por vários dias, podia
estar em qualquer parte da Terra.
A lanterna iluminou uma pilha de roupas dobradas sobre um
caixote.
– Essas roupas devem bastar ao senhor – disse a voz, na
escuridão. – O serviço de lavanderia é um tanto problemático aqui,
de modo que apanhamos alguns dos seus ternos e meia dúzia de
camisas.
– Isso – disse Stormgren, mal-humorado – foi muita consideração
de sua parte.
– Sentimos muito pela ausência de mobília e de luz elétrica. Este
lugar é conveniente de algumas formas, mas deixa a desejar em
outros aspectos.
– Conveniente para quê? – perguntou Stormgren, enquanto se
enfiava em uma camisa. A sensação do tecido familiar em seus
dedos era estranhamente tranquilizadora.
– Apenas... conveniente – disse a voz. – E, a propósito, já que é
provável que passemos um bom tempo juntos, pode me chamar de
Joe.
– Apesar da sua nacionalidade? – retrucou Stormgren. – Você é
polonês, não é? Acho que seria capaz de pronunciar seu nome
verdadeiro. Não pode ser pior do que muitos nomes finlandeses.
Houve uma pequena pausa, e a luz oscilou por um instante.
– Bem, eu devia ter esperado por isso – disse Joe, conformado. –
Deve ter bastante prática nesse tipo de coisa.
– É um passatempo útil para um homem na minha posição.
Posso apostar que você foi criado nos Estados Unidos, mas não
saiu da Polônia até...
– Isso – disse Joe, com firmeza – é mais do que o suficiente.
Como parece que já terminou de se vestir... Obrigado.
A porta foi se abrindo à medida que Stormgren aproximava-se
dela, sentindo uma ponta de alegria com sua pequena vitória.
Enquanto Joe se punha de lado para deixá-lo passar, Stormgren
imaginou se o seu captor estaria armado. Quase certamente sim, e,
de qualquer forma, teria amigos por perto.
A luz do corredor era fraca e vinha de lampiões a óleo, dispostos
a intervalos. Pela primeira vez, Stormgren pôde ver Joe com
clareza. Era um homem de cerca de cinquenta anos, e que devia
pesar mais de cem quilos. Tudo nele era extragrande, desde a farda
manchada de combate, que podia ter vindo de meia dúzia de forças
armadas, até o anel de sinete espantosamente grande na mão
esquerda. Um homem com um físico nessa escala podia muito bem
não se dar ao trabalho de carregar uma arma. Não devia ser difícil
rastreá-lo, pensou Stormgren, se algum dia saísse deste lugar.
Ficou um pouco desanimado ao compreender que Joe também
devia ter plena consciência do fato.
As paredes ao redor, embora aqui e ali revestidas de concreto,
eram, no geral, rocha nua. Ficou claro para Stormgren que estava
em uma mina abandonada, e dificilmente poderia imaginar uma
prisão mais eficaz. Até então, o fato de seu sequestro não o havia
preocupado tanto. Tinha imaginado que, acontecesse o que
acontecesse, os imensos recursos dos Senhores Supremos em
breve o localizariam e resgatariam. Agora, já não estava tão certo.
Estava desaparecido há vários dias... e nada acontecera. Devia
existir um limite até mesmo para os poderes de Karellen e, se de
fato estivesse enterrado em algum continente remoto, toda a ciência
dos Senhores Supremos poderia ser incapaz de rastreá-lo.
Havia mais dois homens sentados à mesa na sala simples e mal
iluminada. Ergueram os olhos com interesse e uma boa dose de
respeito, enquanto Stormgren entrava. Um deles empurrou sobre a
mesa um saco de sanduíches, que Stormgren aceitou, afoito.
Embora sentisse muita fome, teria preferido uma refeição mais
atraente, mas seus captores não deviam ter desfrutado de coisa
melhor.
Enquanto comia, olhou de relance para os três homens à sua
volta.
Joe era, de longe, a figura que mais se destacava, e não só na
questão do porte físico. Ficava óbvio que os demais eram seus
ajudantes: homens comuns, cujas origens Stormgren seria capaz de
descobrir quando os ouvisse falar.
Alguém colocara um pouco de vinho em um copo não lá muito
higiênico, e Stormgren o usou para empurrar o último dos
sanduíches pela garganta.
Sentindo-se agora mais senhor da situação, voltou-se para o
enorme polonês.
– Bem – disse, com voz calma –, quem sabe possa me dizer do
que se trata tudo isto, e exatamente o que esperam conseguir.
Joe limpou a garganta e respondeu:
– Gostaria de deixar uma coisa clara. Isto não tem nada a ver
com Wainwright. Ele vai ficar tão surpreso quanto todo mundo.
Stormgren meio que já esperava isso, embora não entendesse
por que Joe estava confirmando suas suspeitas. Achava, havia
tempos, que existia um movimento extremista dentro, ou às
margens, da Liga da Liberdade.
– Só por curiosidade – ele disse –, como foi que me
sequestraram?
Não tinha muita esperança de obter uma resposta, e foi com
certo espanto que percebeu a boa vontade, até mesmo o
entusiasmo, com que o outro respondeu:
– Foi como num thriller hollywoodiano – disse Joe, esfuziante. –
Não tínhamos certeza se Karellen o mantinha sob vigilância, por
isso tomamos algumas precauções um tanto complexas. O senhor
foi nocauteado por um gás no ar-condicionado. Fácil. Em seguida,
foi levado para o carro. Moleza. Tudo isso, devo dizer, não foi feito
por nenhum dos nossos. Contratamos... profissionais para o serviço.
Karellen talvez os pegue. De fato, deve pegar. Só que não vai
conseguir nada deles. Quando saiu da sua casa, o carro entrou num
túnel comprido, a menos de mil quilômetros de Nova York. Voltou a
sair, no tempo esperado, na outra extremidade, ainda transportando
um homem drogado e muito parecido com o Secretário-geral. Bem
mais tarde, um grande caminhão carregado de caixas metálicas saiu
do túnel na direção oposta e dirigiu-se para um aeroporto onde as
caixas foram carregadas em um cargueiro, numa transação cem por
cento legítima. Tenho certeza de que os donos ficariam horrorizados
se soubessem como usamos as caixas deles.
– Enquanto isso – continuou Joe –, o carro que realmente tinha
feito o serviço seguiu em frente, com uma série de manobras
evasivas, indo para a fronteira canadense. Quem sabe, Karellen já o
tenha apanhado. Não sei e nem quero saber. Como vê, e espero
que aprecie minha franqueza, todo o plano dependia de uma única
coisa. Temos uma boa certeza de que Karellen pode ver e ouvir tudo
o que se passa na superfície da Terra. Só que, a menos que use
magia, e não ciência, não pode ver debaixo dela. Dessa maneira,
não vai saber da mudança dentro do túnel. Pelo menos, não antes
que seja tarde demais. É claro que nos arriscamos, mas houve
também uma ou duas salva-guardas que não contarei agora.
Podemos querer usá-las de novo, e seria uma pena abrir mão delas.
Joe narrara toda a história com um prazer tão evidente que
Stormgren mal pôde deixar de sorrir. No entanto, também ficara
muito preocupado. O plano fora engenhoso, e era bem possível que
Karellen tivesse sido enganado. Stormgren sequer tinha certeza se
o Senhor Supremo mantinha alguma forma de guarda protetora
sobre ele. Nem, como estava claro, tinha Joe. Quem sabe fosse
esse o motivo de tanta franqueza: queria testar as reações de
Stormgren. Muito bem, tentaria parecer confiante, não importando
quais fossem seus verdadeiros sentimentos.
– Vocês devem ser uns tontos – disse Stormgren, fazendo pouco
caso – se acham que podem enganar os Senhores Supremos assim
tão fácil. De qualquer maneira, o que é que acham que vão
conseguir?
Joe lhe ofereceu um cigarro, que Stormgren recusou, e, em
seguida, acendeu um e sentou-se na borda da mesa. A madeira deu
um estalo e ele saltou depressa.
– Os nossos motivos – disse ele – devem estar na cara. Nos
demos conta de que discutir é inútil, então tivemos que tomar outras
medidas. Houve movimentos clandestinos antes, e até mesmo
Karellen, quaisquer que sejam os poderes que tenha, não vai achar
fácil lidar conosco. Estamos dispostos a lutar pela nossa
independência. Não me entenda mal. Não vai ser nada violento... no
começo, pelo menos. Só que os Senhores Supremos têm que usar
agentes humanos, e nós podemos tornar a vida deles bem
desconfortável.
“Começando comigo, pelo jeito”, pensou Stormgren. Ficou então
imaginando se o outro lhe contara mais do que uma fração da
história toda. Será que achavam mesmo que esses métodos de
bandidos teriam qualquer influência, por menor que fosse, sobre
Karellen? Por outro lado, era bem verdade que um movimento de
resistência bem organizado poderia tornar a vida um inferno. Pois
Joe havia posto o dedo no único ponto fraco do governo dos
Senhores Supremos. No final das contas, todas as suas ordens
eram levadas a cabo por agentes humanos. Se esses agentes
fossem aterrorizados ao ponto de desobediência, todo o sistema
poderia ruir. Era apenas uma vaga possibilidade, pois Stormgren
tinha confiança de que Karellen logo encontraria uma solução.
– Que pretendem fazer comigo? – perguntou, por fim. – Sou um
refém, ou o quê?
– Não se preocupe. Vamos cuidar do senhor. Esperamos
algumas visitas daqui a uns dias e, até lá, vamos tentar hospedá-lo
da melhor maneira possível. – Acrescentou algumas palavras em
seu próprio idioma, e um dos outros tirou do bolso um baralho
novinho.
– Compramos este só por causa do senhor – explicou Joe. – Li
outro dia na Time que era um bom jogador de pôquer. – Sua voz
engrossou de repente. – Espero que tenha bastante dinheiro na
carteira – disse, ansioso. – Nunca pensamos em olhar. Afinal, não
vamos poder aceitar cheques.
Chocado, Stormgren encarou, impassível, seus captores.
Depois, à medida que o verdadeiro humor da situação penetrava
sua mente, ocorreu-lhe de repente que todas as responsabilidades e
preocupações do cargo haviam evaporado de seus ombros. De
agora em diante, o show era de Van Ryberg. O que quer que
acontecesse, não havia absolutamente nada que pudesse fazer. E
agora, estes fantásticos criminosos esperavam, ansiosos, para jogar
pôquer com ele.
De supetão, jogou a cabeça para trás e riu como não fazia há
anos.
“Não havia dúvida”, pensou Van Ryberg, abatido, “Wainwright
estava dizendo a verdade.” Podia ter suspeitas, mas não sabia
quem havia sequestrado Stormgren. Nem aprovava o sequestro em
si. Van Ryberg tinha a impressão de que já fazia algum tempo que
os extremistas na Liga da Liberdade vinham pressionando
Wainwright para que adotasse uma política mais ativa. Agora,
estavam tomando as coisas em suas próprias mãos.
O sequestro fora maravilhosamente organizado, sem sombra de
dúvida. Stormgren podia estar em qualquer lugar da Terra, e parecia
haver pouca esperança de encontrá-lo. No entanto, algo precisava
ser feito, decidiu Van Ryberg, e rápido. A despeito das piadas que
sempre fazia, seu sentimento real por Karellen era um intenso temor
reverencial. A ideia de abordar diretamente o Supervisor o deixava
apreensivo, mas parecia não haver alternativa.
O Departamento de Comunicações ocupava todo o andar
superior do grande edifício. Fileiras de aparelhos de fax, alguns
quietos, outros estalando, ocupados, estendiam-se na distância. Por
meio deles derramavam-se intermináveis fluxos de estatísticas:
números de produção, resultados de censos e toda a contabilidade
de um sistema econômico mundial. Em algum lugar da nave de
Karellen devia haver o equivalente a esta enorme sala... e Van
Ryberg imaginou, com um arrepio na espinha, que formas se
moviam para lá e para cá, recolhendo as mensagens que a Terra
enviava aos Senhores Supremos.
Hoje, porém, não estava interessado nos aparelhos nem nos
negócios de rotina com que lidavam. Caminhou para a pequena sala
particular na qual apenas Stormgren devia entrar. Conforme suas
instruções, a fechadura havia sido forçada e o Diretor de
Comunicações o aguardava lá.
– É um teletipo comum, com um teclado padrão – ele informou. –
Também tem um aparelho de fax, caso deseje enviar imagens ou
informações em tabelas, mas o senhor disse que não ia precisar
disso.
Van Ryberg assentiu, distraído, e respondeu:
– Isso é tudo. Obrigado. Não espero ficar muito tempo. Depois
volte a trancar a sala, e me entregue todas as chaves.
Aguardou até que o Diretor de Comunicações saísse e, em
seguida, sentou-se diante do aparelho. Sabia que fora usado
pouquíssimas vezes, pois quase todos os assuntos entre Karellen e
Stormgren eram tratados nas reuniões semanais. Visto que este
era, de certa maneira, um recurso de emergência, esperava uma
resposta não muito demorada.
Após um momento de hesitação, começou a bater sua
mensagem com dedos destreinados. O aparelho ronronou baixinho
e as palavras brilharam por alguns segundos na tela escura.
Então, recostou-se na cadeira e aguardou a resposta.
Em pouco mais de um minuto, o aparelho voltou a zumbir. Não
pela primeira vez, Van Ryberg se perguntou se o Supervisor alguma
vez dormia.
A mensagem foi tão breve quanto inútil:
NENHUMA INFORMAÇÃO. DEIXO TUDO INTEIRAMENTE A SEU CRITÉRIO. K.
Bastante amargurado, e sem absolutamente nenhuma
satisfação, Van Ryberg deu-se conta de quanto poder recaía sobre
si.
Nos três dias seguintes, Stormgren analisara seus captores com
certa profundidade. Joe era o único que tinha alguma importância.
Os outros eram meros figurantes: a gentalha que se poderia esperar
às margens de qualquer movimento ilegal. Os ideais da Liga da
Liberdade nada significavam para eles: sua única preocupação era
ganhar a vida com um mínimo de esforço.
Joe era uma pessoa mais complexa, de modo geral, embora às
vezes lembrasse a Stormgren um bebê gigante. As intermináveis
partidas de pôquer eram entremeadas de violentas discussões
políticas, e logo ficou claro para Stormgren que o enorme polonês
jamais pensara a fundo nas causas pelas quais estava lutando. A
emoção e o conservadorismo extremo nublavam todas as suas
opiniões. A longa batalha de seu país pela independência o
condicionara tão completamente que ainda vivia no passado. Um
curioso atavismo. Era uma dessas pessoas que jamais veriam graça
em uma vida normal. Quando o seu tipo desaparecesse, se é que
isso se daria, o mundo seria um lugar mais seguro, embora menos
interessante.
Havia pouca dúvida agora, pelo menos para Stormgren, de que o
Supervisor não conseguiria localizá-lo. Tentara blefar, mas não
convencera seus captores. Tinha quase certeza de que o
mantinham ali para ver se Karellen agiria. E, como nada acontecera,
podiam seguir com seus planos.
O Secretário-geral não se surpreendeu quando, quatro dias após
sua captura, Joe lhe disse que aguardasse visitas. Por algum tempo
o pequeno grupo mostrara um nervosismo crescente, e o prisioneiro
adivinhou que os líderes do movimento, tendo visto que a barra
estava limpa, viriam enfim apanhá-lo.
Já estavam aguardando, reunidos em torno da mesa precária,
quando Joe, educadamente, fez um sinal para que viesse até a sala
de estar. Stormgren observou, divertido, que seu carcereiro agora
usava, bem visível, uma enorme pistola, que nunca vira antes. Os
dois capangas haviam desaparecido, e o próprio Joe parecia um
tanto contido. Stormgren, de imediato, pôde ver que agora se
defrontava com homens de calibre muito maior. O grupo à sua frente
lembrava-lhe muito uma foto que certa vez vira de Lênin e seus
camaradas nos primeiros dias da Revolução Russa. Havia a mesma
força intelectual, a mesma determinação férrea, a mesma
inflexibilidade nesses seis homens. Joe e seus colegas eram
inofensivos. Ali estavam os verdadeiros cérebros da organização.
Com um breve aceno de cabeça, Stormgren encaminhou-se para
a única cadeira vaga e tentou aparentar calma. Enquanto se
aproximava, o homem idoso e atarracado, no lado oposto da mesa,
inclinou-se para a frente e encarou-o com olhos cinzentos e
penetrantes, deixando Stormgren tão pouco à vontade que ele falou
primeiro, coisa que não pretendera fazer.
– Suponho que tenham vindo discutir as condições. De quanto é
o meu resgate?
Percebeu que, ao fundo, alguém tomava nota de suas palavras
em um caderno de taquigrafia. Tudo muito profissional.
O líder respondeu com um sotaque galês cadenciado.
– Pode pôr as coisas nesses termos, sr. Secretário-geral. Só que
estamos interessados em informações, não em dinheiro.
“Então é isso”, pensou Stormgren. “Sou um prisioneiro de guerra
e este é meu interrogatório.”
– O senhor conhece nossos motivos – prosseguiu o outro, com
sua voz levemente musical. – Pode nos chamar de um movimento
de resistência, se quiser. Acreditamos que, cedo ou tarde, a Terra
terá que lutar pela independência. Mas compreendemos que a luta
só poderá se dar por meios indiretos, como a sabotagem e a
desobediência. Sequestramos o senhor, em parte, para mostrar a
Karellen que não estamos de brincadeira e que somos bem
organizados, e sobretudo porque é o único homem que pode nos
dizer algo a respeito dos Senhores Supremos. O senhor é um
homem razoável, sr. Stormgren. Coopere conosco e poderá ter a
sua liberdade.
– Exatamente o quê desejam saber? – perguntou Stormgren,
cauteloso.
Os olhos extraordinários pareciam estar vasculhando as
profundezas de sua mente. Eram diferentes de qualquer coisa que
Stormgren já tinha visto. Logo a voz cantada respondeu:
– O senhor sabe quem, ou o quê, os Senhores Supremos
realmente são?
Stormgren quase sorriu.
– Pode acreditar – disse –, estou tão ansioso quanto vocês para
descobrir isso.
– Então, vai responder às nossas perguntas?
– Não prometo nada. Mas pode ser que sim.
Houve um tênue suspiro de alívio, vindo de Joe, e um ruge-ruge
de antecipação perpassou pela sala.
– Temos uma ideia geral – prosseguiu o outro – das
circunstâncias em que o senhor se reúne com Karellen. Mas
gostaríamos que as descrevesse minuciosamente, sem deixar de
fora nada de importante.
“Isso parece inofensivo”, pensou Stormgren. Já o fizera muitas
vezes antes, e daria a impressão de que estava cooperando. Ali
havia mentes argutas e que poderiam descobrir algo de novo.
Ficaria feliz de lhes dar qualquer informação que pudessem extrair...
desde que viessem a compartilhá-la. Não acreditou, nem por um
momento, que isso pudesse prejudicar Karellen.
Stormgren apalpou os bolsos e retirou um lápis e um envelope
velho. Esboçava algo rapidamente, ao mesmo tempo em que falava:
– Sabem, é claro, que uma pequena máquina voadora, sem
nenhum meio visível de propulsão, vem me buscar em intervalos
regulares e me leva para a nave de Karellen. Ela entra no casco, e é
claro que já viram os filmes telescópicos que foram feitos dessa
operação. A porta volta a se abrir, se é que pode ser chamada de
porta, e entro em um pequeno aposento com uma mesa, uma
cadeira e uma tela de visor. O layout é parecido com isto.
Empurrou o envelope pela mesa para o velho galês, mas os
olhos estranhos nunca se voltaram para o papel. Ainda estavam
fixos no rosto de Stormgren e, enquanto o Secretário os observava,
algo pareceu mudar em suas profundezas. A sala tornara-se
completamente silenciosa. Por trás dele, porém, Stormgren ouviu
Joe respirar fundo, de repente.
Sem entender nada e sem paciência, Stormgren retribuiu o olhar
fixo do outro e, ao fazê-lo, começou a compreender. Em seu
embaraço, amassou o envelope em uma bola de papel e a esmagou
debaixo do pé.
Sabia agora por que os olhos cinzentos o afetavam de modo tão
singular: o homem do outro lado da mesa era cego.
Van Ryberg não fizera mais nenhuma tentativa de entrar em
contato com Karellen. Muito do trabalho de seu departamento, como
o fluxo das informações estatísticas, os resumos da imprensa
mundial e coisas assim, prosseguira de modo automático. Em Paris,
os legisladores ainda se degladiavam sobre a proposta da
Constituição Mundial, mas, por enquanto, isso não era de sua conta.
Ainda faltava uma quinzena para a data de entrega do anteprojeto
final ao Supervisor. Caso o trabalho não estivesse pronto a essa
altura, sem dúvida Karellen tomaria a medida que achasse
apropriada.
E ainda não havia nenhuma notícia de Stormgren.
Van Ryberg estava ditando quando o telefone “Somente
Emergências” começou a tocar. Agarrou o aparelho e ouviu com
pasmo cada vez maior, largando-o em seguida e correndo para a
janela aberta. A distância, gritos de assombro se elevavam das
ruas, e o trânsito parava aos poucos.
Era verdade: a nave de Karellen, símbolo imutável dos Senhores
Supremos, desaparecera do céu. Vasculhou o firmamento até onde
a vista alcançava, e não encontrou o menor vestígio. Então, de
súbito, pareceu que a noite caía rapidamente. Vinda do norte, o
vulto de seu ventre negro como uma nuvem de trovoada, a grande
nave arremetia em baixa altitude sobre as torres de Nova York. Sem
perceber, Van Ryberg se afastou do monstro em disparada. Sempre
soubera do tamanho gigantesco das naves dos Senhores
Supremos... mas uma coisa era vê-las distantes, no espaço, e outra
bem diferente assistir a uma delas passar sobre sua cabeça como
uma nuvem tangida por um demônio.
Na escuridão do eclipse parcial, assistiu até que a nave e sua
monstruosa sombra desaparecessem no sul. Não houve som algum,
nem mesmo um sussurro no ar, e Van Ryberg compreendeu que, a
despeito da proximidade aparente, a nave passara pelo menos um
quilômetro acima de sua cabeça. Então o edifício estremeceu uma
vez, enquanto a onda de choque o atingia, e de algum lugar veio o
tinido de vidros se quebrando, enquanto uma janela implodia.
No escritório às suas costas, todos os telefones começaram a
tocar, mas Van Ryberg não se mexeu. Permaneceu apoiado na
borda da janela, ainda olhando para o sul, paralisado pela presença
de um poder sem limites.
Enquanto Stormgren falava, tinha a sensação de que sua mente
estava operando em dois níveis ao mesmo tempo. Por um lado,
tentava desafiar os homens que o capturaram, ainda que, por outro,
tivesse a esperança de que pudessem ajudá-lo a desvendar o
segredo de Karellen. Era um jogo perigoso, mas, para sua surpresa,
estava gostando.
O galês cego conduzira a maior parte do interrogatório. Era
fascinante ver aquela mente ágil tentar uma entrada depois da
outra, testando e rejeitando todas as teorias que o próprio
Stormgren abandonara há tanto tempo. Então, jogou-se para trás
com um suspiro.
– Não estamos chegando a lugar nenhum – ele disse, resignado.
– Queremos mais fatos, e isso significa ação, não discussão. – Os
olhos cegos pareciam fitar Stormgren, pensativos. Por um instante,
tamborilou nervosamente na mesa: era o primeiro sinal de indecisão
que Stormgren notava. Depois, prosseguiu:
– Estou um pouco surpreso, sr. Secretário, que nunca tenha feito
nenhum esforço para saber mais a respeito dos Senhores
Supremos.
– O que sugere? – perguntou Stormgren friamente, tentando
disfarçar seu interesse. – Já lhe disse que há apenas um modo de
sair do aposento em que falo com Karellen, e que leva direto de
volta para a Terra.
– Pode ser possível – refletiu o outro – projetar instrumentos que
nos ajudem a descobrir algo. Não sou cientista, mas podemos
investigar o assunto. Se lhe dermos a liberdade, o senhor estaria
disposto a nos ajudar em um plano desses?
– De uma vez por todas – disse Stormgren, zangado –, quero
deixar a minha posição perfeitamente clara. Karellen está
trabalhando por um mundo unido, e não farei nada para ajudar seus
inimigos. Não sei qual o objetivo final dele, mas acredito que seja
bom.
– Que provas concretas temos disso?
– Tudo o que ele fez, desde que as naves apareceram no céu.
Desafio qualquer um a citar um só ato que, no final das contas, não
tenha sido benéfico.
Stormgren fez uma pausa, deixando sua mente passear pelos
últimos anos. Então sorriu.
– Se quiser uma só prova do... como direi, caráter
essencialmente benévolo dos Senhores Supremos, pense na ordem
contra a crueldade com animais, que deram um mês depois da
chegada. Se eu tinha qualquer dúvida a respeito de Karellen antes,
essa medida a dissipou, mesmo que ela tenha me causado mais
problemas do que qualquer outra coisa que ele já fez!
“Isso, de fato, não era um exagero”, pensou Stormgren. Todo o
incidente fora extraordinário, a primeira revelação de que os
Senhores Supremos abominavam a crueldade. Isso, e a paixão que
nutriam por justiça e ordem, pareciam ser as emoções dominantes
em suas vidas, pelo menos até onde se podia julgar pelos seus
atos.
Karellen mostrara raiva apenas uma vez. Ou, pelo menos,
aparentara. “Podem matar uns aos outros, se quiserem”, dizia a
mensagem. “Esse é um assunto entre vocês e suas próprias leis.
Mas se matarem, exceto para alimentação ou em autodefesa, os
animais com quem compartilham o mundo, terão de prestar contas a
mim.”
Ninguém sabia exatamente qual a abrangência do decreto ou o
que Karellen faria para impor seus termos. A humanidade, porém,
não teve de esperar muito.
A Plaza de Toros estava cheia quando os matadores e seus
auxiliares entraram em desfile. Tudo parecia normal: o Sol brilhante
ardia, impiedoso, sobre as vestes tradicionais, a grande multidão
saudou seus favoritos como fizera uma centena de vezes antes. No
entanto, aqui e ali havia rostos ansiosos que se voltavam para o
céu, para a altiva forma prateada, cinquenta quilômetros acima de
Madri.
Então os picadores assumiram suas posições e o touro entrara,
bufando, na arena. Os cavalos magros, suas ventas dilatadas de
terror, giraram à luz do Sol enquanto os cavaleiros forçavam-nos a ir
de encontro ao inimigo. A primeira lança voou como um raio,
acertou e, nesse momento, surgiu um som jamais ouvido antes na
Terra.
Era o som de dez mil pessoas gritando com a dor do mesmo
ferimento. Dez mil pessoas que, quando se recuperaram do choque,
descobriram-se completamente ilesas. Aquele, porém, foi o fim da
tourada e, de fato, de todas as touradas, pois a notícia se espalhou
depressa. Vale registrar que os torcedores ficaram muito abalados,
a ponto de só um em cada dez pedir o dinheiro de volta, e também
que o Daily Mirror de Londres tornara as coisas ainda piores,
sugerindo que os espanhóis adotassem o críquete como novo
esporte nacional.
– O senhor pode ter razão – replicou o velho galês. – Quem sabe
os motivos dos Senhores Supremos sejam bons... de acordo com os
padrões deles, que podem, às vezes, coincidir com os nossos. Só
que são intrusos. Nunca pedimos que viessem aqui e virassem
nosso mundo de ponta-cabeça, destruindo ideais, sim, e países, que
gerações lutaram para proteger.
– Vim de um pequeno país que teve que lutar por sua liberdade –
retrucou Stormgren. – Mesmo assim, sou a favor de Karellen. Vocês
podem incomodá-lo, podem até retardar a conquista de suas metas,
só que, no final, não fará diferença. Tenho certeza de que são
sinceros em suas crenças. Posso entender o seu temor de que as
tradições e culturas das pequenas nações sejam esmagadas com a
chegada do Estado Mundial. Só que estão errados, não adianta se
agarrar ao passado. Mesmo antes de os Senhores Supremos
chegarem à Terra, o Estado soberano estava moribundo. Eles
apenas apressaram o fim. Ninguém vai poder evitar a sua extinção
agora... e ninguém devia tentar.
Não houve resposta. O homem do outro lado da mesa não se
mexeu nem falou. Ficou sentado, com os lábios entreabertos, os
olhos, agora, sem vida, além de sem visão. Ao seu redor, os outros
estavam da mesma forma imóveis, congelados em posições
forçadas e anormais. Com um grito sufocado de puro horror,
Stormgren levantou-se e recuou em direção à porta. Enquanto isso,
o silêncio foi subitamente quebrado:
– Um belo discurso, Rikki. Obrigado. Agora, acho que podemos
ir.
Stormgren girou nos calcanhares e olhou para o corredor às
escuras. Flutuando à altura dos olhos, havia uma pequena esfera
uniforme: sem dúvida, a fonte da misteriosa força que os Senhores
Supremos haviam colocado em ação. Era difícil ter certeza, mas
Stormgren imaginou ouvir um zumbido fraco, como o de uma
colmeia em um dia calmo de verão.
– Karellen! Graças a Deus! Mas o que foi que fez?
– Não se preocupe, está tudo bem com eles. Pode chamar de
paralisia, mas é muito mais sutil do que isso. Estão simplesmente
vivendo mil vezes mais devagar do que o normal. Quando tivermos
ido, nunca vão saber o que aconteceu.
– Vai deixá-los aqui até a polícia chegar?
– Não. Tenho um plano muito melhor. Vou deixá-los ir embora.
Stormgren teve uma sensação de alívio que o surpreendeu.
Lançou um olhar de despedida ao pequeno aposento e seus
ocupantes congelados. Joe estava sobre um pé só, olhando de
maneira tremendamente idiota para o nada. De repente, Stormgren
riu e remexeu nos bolsos.
– Obrigado pela hospitalidade, Joe. Acho que vou deixar uma
lembrança.
Mexeu nos pedacinhos de papel até encontrar os números que
desejava. Então, em uma folha mais limpa, escreveu, com cuidado:
BANK OF MANHATTAN
Pagar a Joe a quantia de cento e trinta e cinco dólares e
cinquenta centavos (US$ 135,50).
R. Stormgren.
Enquanto colocava a tira de papel ao lado do polonês, a voz de
Karellen indagou:
– Exatamente o que está fazendo?
– Nós, Stormgrens, sempre pagamos nossas dívidas. Os outros
dois trapacearam, mas Joe jogou limpo. Pelo menos, nunca o
apanhei roubando.
Enquanto caminhava para a porta, sentia-se muito alegre e
despreocupado, além de quarenta anos mais jovem. A esfera de
metal moveu-se para o lado para deixá-lo passar. Presumiu que
fosse uma espécie de robô, o que explicava como Karellen havia
conseguido alcançá-lo através de sabe-se lá quantas camadas de
rocha acima.
– Siga direto em frente por uns cem metros – disse a esfera,
falando com a voz de Karellen. – Depois vire à esquerda até eu lhe
dar mais instruções.
Stormgren avançou em passos largos, animado, embora se
desse conta de que não havia necessidade de pressa. A esfera
permanecia suspensa no corredor, supostamente cobrindo sua
retirada.
Um minuto depois, encontrou uma segunda esfera, aguardando
por ele em uma bifurcação do corredor.
– Tem meio quilômetro pela frente – disse ela. – Mantenha-se à
esquerda, até nos encontrarmos de novo.
Por seis vezes deparou com as esferas em seu caminho para o
céu aberto. A princípio imaginou se, de alguma forma, o robô estava
dando um jeito de se manter à frente dele. Depois, concluiu que
devia haver uma série de máquinas mantendo um circuito completo
até as profundezas da mina. Na entrada, um grupo de guardas
formava uma inusitada coleção de estátuas, vigiadas por ainda outra
das ubíquas esferas. No declive da colina, a alguns metros de
distância, repousava a pequena máquina voadora na qual
Stormgren fizera todas as viagens até Karellen.
Stormgren ficou piscando por um momento, à luz do Sol. Então
viu o maquinário de mineração arruinado à sua volta e, logo depois,
uma ferrovia abandonada, descendo a encosta. Vários quilômetros
adiante, uma floresta densa dava a volta na base da montanha e,
muito distante, pôde ver o lampejo da água de um grande lago.
Concluiu que estava em algum lugar da América do Sul, embora
não soubesse precisar o que lhe dava essa impressão.
Enquanto subia na pequena máquina voadora, Stormgren teve
um último vislumbre da entrada da mina e dos homens congelados
ao redor dela. Em seguida, a porta se fechou às suas costas e, com
um suspiro de alívio, ele afundou na poltrona familiar.
Aguardou por um instante até ter recuperado o fôlego. Então,
pronunciou uma sílaba, única e sincera:
– Bem?
– Sinto muito não ter podido resgatá-lo antes. Mas compreende
como era de extrema importância aguardar que todos os líderes
estivessem ali reunidos.
– Quer dizer – gaguejou Stormgren – que sabia onde eu estava o
tempo todo? Se eu achasse...
– Não seja tão precipitado – respondeu Karellen. – Pelo menos,
deixe-me acabar de explicar.
– Muito bem – disse Stormgren, de mau humor. – Estou ouvindo.
– Estava começando a suspeitar de que não passara de uma isca
em uma complexa armadilha.
– Já faz algum tempo que eu tinha um... talvez a melhor palavra
seja “rastreador”... em você – começou Karellen. – Embora seus ex-
amigos estivessem corretos em pensar que eu não poderia segui-lo
debaixo da terra, fui capaz de rastreá-lo até que o trouxessem para
a mina. A transferência no túnel foi engenhosa, mas, quando o
primeiro carro parou de reagir, denunciou o plano e logo voltei a
localizá-lo. Depois, foi só aguardar. Sabia que uma vez que
tivessem a certeza de que eu o perdera, os líderes viriam até aqui e
eu poderia apanhá-los.
– Mas está deixando todos soltos!
– Até agora – disse Karellen – eu não tinha como saber quais,
dos dois bilhões e meio de homens neste planeta, eram os
verdadeiros líderes da organização. Agora que foram identificados,
posso seguir seus movimentos em qualquer lugar da Terra, e vigiar
suas ações de perto, se assim desejar. Isso é muito melhor do que
prendê-los. Se fizerem qualquer coisa, denunciarão os demais
camaradas. Estão, com efeito, neutralizados, e sabem disso. O seu
resgate vai lhes parecer completamente inexplicável, pois você
desapareceu diante dos olhos deles.
A gargalhada profunda ecoou no diminuto compartimento.
– De certa maneira, toda a coisa foi uma comédia, só que com
uma finalidade séria. Não estou preocupado apenas com as poucas
dezenas de homens dessa organização. Tenho que pensar no efeito
moral sobre os outros grupos existentes.
Stormgren ficou em silêncio por um instante. Não estava
inteiramente satisfeito, mas compreendia o ponto de vista de
Karellen, e uma parte da sua raiva havia se evaporado.
– É uma pena ter que fazer isso nas minhas últimas semanas no
cargo – disse, depois de algum tempo –, só que, de agora em
diante, vou ter uma guarda na minha casa. Pieter que seja
sequestrado, da próxima vez. Aliás, como ele tem se virado?
– Observei-o de perto durante a última semana, e evitei ajudá-lo,
de propósito. No geral, saiu-se muito bem... Mas não é o homem
para assumir o seu lugar.
– Sorte dele – disse Stormgren, ainda um tanto ressentido. – E, a
propósito, já recebeu uma resposta de seus superiores a respeito de
se mostrar? Agora tenho a certeza de que esse é o mais forte
argumento dos seus inimigos. Vezes e vezes sem conta, disseram-
me: “Nunca vamos confiar nos Senhores Supremos até podermos
vê-los”.
Karellen deu um suspiro.
– Não. Não recebi nada. Mas sei qual deverá ser a resposta.
Stormgren não insistiu no assunto. Outrora poderia tê-lo feito,
mas agora, pela primeira vez, a sombra tênue de um plano
começava a se formar em sua mente. As palavras do interrogador
se repetiam em sua memória. Sim, talvez fosse possível projetar
instrumentos...
O que se recusara a fazer à força, Stormgren poderia ainda
tentar de livre e espontânea vontade.
4
Nunca teria ocorrido a Stormgren, alguns dias antes, que ele
pudesse ter levado a sério a ideia de executar a ação que planejava
agora. Esse sequestro ridiculamente melodramático que, em
retrospecto, parecia um drama de TV de terceira categoria, devia
estar bastante ligado à sua nova postura. Tinha sido a primeira vez
na vida em que Stormgren se vira exposto a um ato de violência
física, em oposição às batalhas verbais das salas de reuniões. O
vírus devia ter entrado em seu sangue, ou então ele estava
simplesmente chegando à segunda infância mais depressa do que
esperava.
Curiosidade pura e simples também era um forte motivo, bem
como a determinação de ir à forra pela peça que haviam lhe
pregado. Estava mais do que óbvio, agora, que Karellen o usara
como isca e, mesmo que isso tivesse sido pela melhor das razões,
Stormgren não se sentia inclinado a perdoar o Supervisor de
imediato.
Pierre Duval não mostrou surpresa quando Stormgren entrou,
sem avisar, em seu escritório. Eram velhos amigos e não havia nada
de incomum em o Secretário-geral fazer uma visita pessoal ao
Diretor da Divisão de Ciência. Karellen certamente não acharia isso
estranho se ele ou um de seus subordinados, por acaso, voltassem
os instrumentos de vigilância para este ponto.
Por algum tempo os amigos falaram de negócios e trocaram
fofocas políticas. Em seguida, Stormgren, um tanto hesitante, tocou
no assunto. À medida que o visitante falava, o velho francês se
reclinava na cadeira e suas sobrancelhas subiam cada vez mais,
milímetro a milímetro, até quase se enroscarem na mecha de
cabelos que lhe caía sobre a testa. Uma ou duas vezes pareceu a
ponto de falar, mas acabou desistindo.
Quando Stormgren terminou, o cientista olhou, com nervosismo,
em volta da sala.
– Acha que ele está ouvindo? – perguntou.
– Não creio que possa. Tem o que chama de um rastreador em
mim, para minha proteção. Mas não funciona debaixo da terra, o
que é uma das razões que me trouxeram até esta sua masmorra.
Teoricamente, é blindada contra todas as formas de radiação, não
é? Karellen não é mágico. Ele sabe onde estou, mas isso é tudo.
– Espero que esteja certo. Mas, além disso, não vai haver
problema quando ele descobrir o que você estava tentando fazer?
Porque ele vai, você sabe.
– Vou aceitar o risco. Além do mais, nós nos entendemos muito
bem.
O físico brincou com o lápis e ficou olhando para o nada por um
momento.
– É um problema muito interessante. Gosto dele – disse, sem
afetação. Em seguida, meteu-se em uma gaveta e tirou dela um
enorme bloco de notas, com certeza o maior que Stormgren já vira.
– Certo – disse, escrevinhando furiosamente no que parecia ser
uma espécie de taquigrafia particular. – Quero ter certeza de que
tenho todos os fatos. Conte tudo o que puder sobre o lugar onde
vocês têm as reuniões. Não deixe nenhum detalhe de fora, por mais
trivial que pareça.
– Não há muito o que descrever. É de metal, e tem cerca de oito
metros quadrados e quatro de altura. A lateral da tela do visor tem
cerca de um metro e há uma mesa, logo abaixo. Dê-me, vai ser
mais rápido se eu desenhar pra você.
Rapidamente, Stormgren fez um esboço do pequeno
compartimento que conhecia tão bem e passou o desenho a Duval.
Ao fazer isso, lembrou-se, com um ligeiro tremor, da última vez em
que fizera algo parecido. Ficou curioso sobre o que teria acontecido
ao galês cego e seus camaradas, e como teriam reagido à sua
partida inesperada.
O francês, de testa franzida, estudou o desenho.
– E isso é tudo o que pode me dizer?
– Sim.
Duval bufou, descontente.
– E a iluminação? Ou você fica sentado no escuro? E quanto à
ventilação, o aquecimento...
Stormgren sorriu com a explosão típica.
– Todo o teto é luminoso e, pelo que sei, o ar vem pela tela do
alto-falante. Não sei por onde sai. Talvez a corrente se inverta às
vezes, mas nunca notei. Não há sinal de aquecedor, mas o lugar
está sempre numa temperatura normal.
– O que significa, creio, que o vapor de água congelou, mas o
gás carbônico, não.
Stormgren fez o possível para sorrir da piada velha.
– Acho que já disse tudo – concluiu. – Quanto à máquina que me
leva até a nave de Karellen, o compartimento em que viajo é tão
desinteressante quanto uma cabine de elevador. Se não fosse pela
poltrona e a mesa, podia muito bem ser uma.
Houve alguns minutos de silêncio enquanto o físico enfeitava o
bloco de notas com garranchos meticulosos e microscópicos.
Enquanto assistia, Stormgren conjecturava por que um homem
como Duval, cuja mente era muito mais brilhante do que a dele,
nunca deixara uma marca maior no mundo da ciência. Lembrou-se
de um comentário, indelicado e que devia estar longe da verdade,
de um amigo do Departamento de Estado dos EUA: “Os franceses
são os melhores do mundo em ficar em segundo lugar”. Duval era o
tipo de homem que justificava essa afirmação.
O físico balançou a cabeça para si mesmo, satisfeito, inclinou-se
para a frente e apontou o lápis para Stormgren.
– O que o faz pensar, Rikki – perguntou –, que a tela do visor de
Karellen, como você a chama, é mesmo o que parece ser?
– Nunca pensei nisso. É igualzinha a qualquer uma. Mas, enfim,
o que mais seria?
– Quando diz que lembra uma tela de visor, quer dizer que
lembra uma das nossas, não é?
– Claro.
– Isso já me parece suspeito. Aposto que os Senhores Supremos
não usam equipamentos tão grosseiros quanto uma tela física. É
mais provável que materializem as imagens diretamente no ar. Mas,
enfim, por que Karellen iria se dar ao trabalho de usar um sistema
de TV? A solução mais simples é sempre a melhor. Não parece
muito mais provável que a sua “tela de visor” seja, na verdade, algo
tão simples como um espelho de um lado só?
Stormgren estava tão aborrecido consigo mesmo que ficou
calado por um momento, reconstituindo o passado. Desde o início,
jamais duvidara do que Karellen dizia... No entanto, agora que
olhava para trás... quando o Supervisor lhe dissera que usava um
sistema de TV? Era uma simples suposição. Tudo não passara de
um embuste psicológico, e ele fora completamente enganado. Isso,
é claro, supondo que a teoria de Duval estivesse correta. No
entanto, estava, mais uma vez, tirando conclusões precipitadas:
ninguém ainda provara nada.
– Se você estiver correto – ele disse –, tudo o que tenho a fazer é
quebrar o vidro...
Duval deu um suspiro.
– Esses leigos sem ciência! Acha que a tela é feita de algo que
você possa quebrar sem explosivos? E, mesmo que conseguisse,
qual a chance de Karellen respirar o mesmo ar que nós? Não seria
uma maravilha, para vocês dois, se ele viver numa atmosfera de
cloro?
Stormgren sentiu-se um tanto tolo. Devia ter pensado naquilo.
– Bem, o que você sugere? – perguntou, um tanto exasperado.
– Quero pensar bem. Em primeiro lugar, temos que descobrir se
a minha teoria está correta e, se estiver, descobrir algo sobre o
material da tela. Vou pôr alguns dos meus técnicos no trabalho. A
propósito, imagino que você leve uma maleta quando se reúne com
o Supervisor, certo? É essa mesma que você trouxe?
– Sim.
– Deve ser o bastante. Não queremos chamar a atenção,
trocando-a por outra, ainda mais se Karellen já se acostumou com
ela.
– Que é que você quer que eu faça? – perguntou Stormgren. –
Que leve um aparelho de raios X escondido?
O físico deu um sorriso irônico.
– Não sei ainda, mas vamos pensar em algo. Daqui a quinze dias
eu digo.
Deu uma pequena gargalhada.
– Sabe o que tudo isso me faz lembrar?
– Sei – respondeu de pronto Stormgren. – A época em que você
construía aparelhos de rádio clandestinos, durante a ocupação
alemã.
Duval pareceu desapontado.
– Bem, acho que já toquei nesse assunto uma ou duas vezes.
Mas tem mais uma coisa...
– O quê?
– Quando você for apanhado, eu não sabia para que você queria
o aparelho, certo?
– Ora, depois de toda a tempestade que você fez uma vez sobre
a responsabilidade social do cientista pelas suas invenções?
Realmente, Pierre, que vergonha!
Stormgren largou a pasta espessa, cheia de folhas
datilografadas, com um suspiro de alívio.
– Graças a Deus que isso está resolvido, enfim! – disse ele. – É
estranho pensar que estas centenas de páginas contêm o futuro da
humanidade. O Estado Mundial! Nunca pensei que viveria para vê-
lo!
Deixou a pasta cair dentro da maleta, cuja superfície estava a
menos de dez centímetros do retângulo escuro da tela. De tempos
em tempos seus dedos percorriam os fechos, em uma reação
nervosa mais ou menos consciente, mas não tinha a intenção de
apertar o interruptor oculto até que a reunião estivesse terminada.
Havia a chance de que algo pudesse dar errado. Embora Duval
tivesse jurado que Karellen não detectaria nada, nunca se podia ter
certeza.
– Então, você disse que tinha novidades para mim – prosseguiu
Stormgren, com uma ansiedade mal dissimulada. – É sobre...
– Sim – disse Karellen. – Recebi uma decisão algumas horas
atrás.
“O que ele queria dizer com aquilo?”, perguntou-se Stormgren.
Decerto não teria sido possível ao Supervisor se comunicar com seu
planeta distante, através do número desconhecido de anos-luz que
o separava de sua base. Ou, quem sabe, e esta era a teoria de Van
Ryberg, ele tivesse apenas consultado um vasto computador, capaz
de prever o resultado de qualquer ação política.
– Não creio – prosseguiu Karellen – que a Liga da Liberdade e
seus camaradas fiquem muito satisfeitos, mas deverá ajudar a
reduzir a tensão. A propósito, não vamos gravar isso.
– Tantas e tantas vezes você me disse, Rikki, que não importa o
quanto sejamos diferentes no aspecto físico, a raça humana logo se
acostumará conosco. Isso mostra uma falta de imaginação de sua
parte. Talvez fosse verdade no seu caso, mas não se esqueça de
que a maior parte do mundo ainda é inculta por quaisquer padrões
razoáveis, além de estar cheia de preconceitos e superstições, cuja
erradicação poderá levar décadas.
– Você deve concordar que conhecemos um pouco de psicologia
humana. Sabemos, com bastante precisão, o que aconteceria se
nos revelássemos ao mundo em seu atual estágio de
desenvolvimento. Não posso entrar em detalhes, mesmo com você,
de modo que precisa aceitar minha análise na base da confiança.
Podemos, no entanto, fazer uma promessa definida, que deverá lhe
dar alguma satisfação. Em cinquenta anos, daqui a duas gerações,
vamos descer de nossas naves e a humanidade finalmente verá
como somos.
Stormgren ficou em silêncio por algum tempo, absorvendo as
palavras do Supervisor. Sentiu apenas um pouco da satisfação que
a fala de Karellen teria lhe proporcionado, no passado. De fato, ficou
um pouco confuso com o sucesso parcial e, por um momento, sua
firmeza de propósito vacilou. A verdade viria com a passagem do
tempo. O plano era desnecessário e, quem sabe, insensato. Se
ainda fosse adiante, seria apenas pelo motivo egoísta de que não
estaria vivo em cinquenta anos.
Karellen devia ter percebido sua indecisão, pois prosseguiu:
– Sinto muito se isso o desaponta, mas pelo menos os problemas
políticos do futuro próximo não serão de sua responsabilidade.
Talvez você ache que nossos temores são infundados, mas acredite
quando digo que temos provas convincentes do perigo de qualquer
outro curso.
Stormgren inclinou-se para a frente, respirando fundo.
– Então já foram vistos pelo Homem!
– Eu não disse isso – Karellen respondeu, de pronto. – O seu
mundo não é o único que supervisionamos.
Karellen não se livraria de Stormgren tão facilmente.
– Há muitas lendas que sugerem que a Terra foi visitada no
passado por outras raças.
– Eu sei. Li o relatório da Divisão de Pesquisas Históricas. Faz a
Terra parecer a encruzilhada do Universo.
– Pode ter havido visitas sobre as quais vocês não sabem nada –
disse Stormgren, ainda jogando verde. – Mas, como vocês devem
estar nos observando há milhares de anos, creio que essa
possibilidade seja bastante improvável.
– Creio que seja – replicou Karellen, em seu tom menos solícito.
E, nesse momento, Stormgren tomou sua decisão.
– Karellen – disse ele, abrupto –, vou redigir a declaração e
enviá-la para a sua aprovação. Mas me reservo o direito de
continuar a infernizá-lo e, se vir alguma oportunidade, farei o
possível para descobrir o seu segredo.
– Estou perfeitamente ciente disso – replicou o Supervisor, com
uma risadinha bem-humorada.
– E não se importa?
– De modo algum. Embora trace os limites em armas nucleares,
gás venenoso ou qualquer outra coisa que possa abalar a nossa
amizade.
Stormgren perguntou-se o que Karellen adivinhara, se é que
adivinhara alguma coisa. Por trás dos gracejos do Supervisor,
Stormgren reconhecera um tom de compreensão, quem sabe... e
quem poderia dizer... até de incentivo.
– Fico feliz de saber – replicou Stormgren, com a voz mais
uniforme que conseguiu. Levantou-se ao mesmo tempo em que
fechava a maleta. Seu polegar deslizou ao longo da lingueta.
– Vou redigir a declaração agora mesmo – repetiu Stormgren –, e
enviá-la ainda hoje pelo teletipo.
Enquanto falava, apertou o botão... e viu que todos os seus
medos tinham sido infundados. Os sentidos de Karellen não eram
mais sutis do que os do Homem. O Supervisor não podia ter
detectado nada, já que não houve mudança alguma em sua voz
quando se despedia e falava o código que abria a porta da câmara.
Mesmo assim, Stormgren sentiu-se como um ladrão saindo de
uma loja de departamentos sob o olhar do segurança, e deu um
suspiro de alívio quando a porta se fechou às suas costas.
– Admito – disse Van Ryberg – que algumas das minhas teorias
não deram muito certo. Mas me diga o que acha desta.
– Preciso mesmo? – suspirou Stormgren.
Pieter pareceu não ter notado.
– Na verdade, a ideia não é minha – disse ele, modesto. –
Roubei de uma história de Chesterton. E se os Senhores Supremos
estiverem escondendo o fato de que não têm nada a esconder?
– Isso me soa um tanto complicado – disse Stormgren,
começando a se interessar.
– O que eu quero dizer é isto – prosseguiu Van Ryberg, ansioso.
– Acho que, no aspecto físico, eles são seres humanos como nós.
Concluíram que toleraríamos ser governados por criaturas que
imaginamos ser... bem, alienígenas e superinteligentes. Só que,
sendo a raça humana como é, simplesmente não aceitaria ordens
de criaturas da mesma espécie.
– Bastante criativa, como todas as suas teorias – disse
Stormgren. – Seria bom se você as numerasse, para eu
acompanhá-las. As objeções a esta... – Nesse momento, porém,
Alexander Wainwright foi introduzido na sala.
Stormgren perguntou-se o que ele estaria pensando. Perguntou-
se, também, se Wainwright teria feito contato com os homens que o
haviam sequestrado. Duvidava disso, já que acreditava que a
postura de Wainwright contra a violência era cem por cento sincera.
Os extremistas em seu movimento haviam perdido toda a
credibilidade, e levaria muito tempo para que o mundo voltasse a
ouvir falar deles.
O líder da Liga da Liberdade ouviu com atenção enquanto a
minuta era lida. Stormgren esperava que ele apreciasse o gesto,
que tinha sido ideia de Karellen. Ainda levaria doze horas para que
o resto do mundo soubesse da promessa feita a seus netos.
– Cinquenta anos – disse Wainwright, refletindo. – É muito tempo
para esperar.
– Talvez para a humanidade, mas não para Karellen – respondeu
o Secretário-geral.
Só agora Stormgren começava a se dar conta da elegância da
solução dos Senhores Supremos. Dava a eles o espaço de manobra
que acreditavam precisar, ao mesmo tempo que minava os alicerces
da Liga da Liberdade. Não imaginava que a Liga fosse capitular,
mas sua posição ficaria seriamente enfraquecida. Com certeza,
Wainwright também se dava conta do fato.
– Em cinquenta anos – disse Wainwright com amargor – o
estrago já estará feito. Os que poderiam lembrar da nossa
independência estarão mortos. A humanidade terá esquecido seu
legado.
“Palavras. Palavras vazias”, pensou Stormgren. As palavras
pelas quais os homens outrora lutaram e morreram, e pelas quais
nunca mais morreriam ou lutariam. E o mundo ficaria melhor assim.
Enquanto assistia à saída de Wainwright, Stormgren tentava
imaginar quais novos problemas a Liga da Liberdade ainda causaria
nos próximos anos. “Isso, porém”, pensou com alívio, “seria um
problema para seu sucessor.”
Havia coisas que só o tempo poderia curar. Homens maus
podiam ser destruídos, mas nada podia ser feito com homens bons,
mas iludidos.
– Aqui está a sua maleta – disse Duval. – Está como nova.
– Obrigado – respondeu Stormgren, inspecionando-a com
atenção. – Agora, quem sabe você me conta o que foi que
aconteceu, e o que vamos fazer depois.
O físico parecia mais interessado em seus próprios
pensamentos.
– O que não consigo entender – disse ele – é a facilidade com
que escapamos. Pois se eu fosse Kar...
– Só que não é. Vá direto ao ponto, homem. O que descobrimos?
– Ai de mim, essas raças nórdicas tensas e ansiosas! – suspirou
Duval. – O que fizemos foi construir um tipo de aparelho de radar de
baixa potência. Além de ondas de rádio de altíssima frequência,
usamos infravermelho distante... de fato, todas as ondas que
certamente nenhuma criatura poderia ver, por mais estranho que
fosse seu olho.
– Como é que pôde ter certeza disso? – perguntou Stormgren,
não conseguindo deixar de se interessar pelo problema técnico.
– Bem... não pudemos ter certeza absoluta – admitiu Duval,
relutante. – Mas Karellen vê você sob condições normais de
iluminação, não é? Então, os olhos dele devem ser mais ou menos
similares aos nossos em alcance espectral. Seja como for,
funcionou. Provamos que há uma grande sala por trás da sua tela. A
tela tem cerca de três centímetros de espessura, e o espaço atrás
tem pelo menos dez metros de largura. Não conseguimos detectar
nenhum eco da parede oposta, mas nem esperávamos muito, com a
baixa potência que foi o máximo que nos atrevemos a usar. No
entanto, captamos isto.
Empurrou pela mesa uma folha de papel fotográfico, na qual
havia uma única linha ondulante. Em um ponto da linha havia um
pequeno pico, como o autógrafo de um terremoto em miniatura.
– Vê este pico?
– Sim. O que é?
– Apenas Karellen.
– Meu Deus! Tem certeza?
– É um bom palpite. Ele está sentado, ou em pé, ou seja lá o que
for que eles façam, a cerca de dois metros do lado oposto da tela.
Se a resolução fosse um pouco melhor poderíamos até calcular o
seu tamanho.
Os sentimentos de Stormgren dividiram-se ao contemplar a curva
quase invisível no traço. Até então, nunca houvera evidências de
que Karellen sequer tivesse um corpo material. O indício ainda era
indireto, mas ele o aceitava sem discussões.
– A outra coisa que tivemos que fazer – disse Duval – foi calcular
a propagação da tela para a luz comum. Achamos que conseguimos
uma ideia razoável disso. Mas não importa se errarmos, mesmo que
por uma ordem de grandeza. Você entende, é claro, que não existe
um verdadeiro espelho de um lado só. É apenas uma questão de
posicionamento das luzes. Karellen fica sentado em um recinto às
escuras, você fica no claro. É só isso. – Duval riu, divertindo-se. –
Bem, nós vamos mudar isso!
Com a empáfia de um mágico tirando do nada uma ninhada
inteira de coelhos brancos, estendeu o braço para dentro da
escrivaninha e tirou dali uma enorme lanterna. A extremidade se
abria em um bocal largo, de modo que o aparelho lembrava o
aspecto geral de um bacamarte.
Duval sorriu.
– Não é tão perigoso quanto parece. Tudo o que você tem a fazer
é forçar o bocal contra a tela e apertar o gatilho. Emite um feixe
muito intenso, que dura dez segundos, e durante esse tempo vai
poder girá-lo pela sala e ter uma boa visão. A luz toda vai atravessar
a tela e iluminar maravilhosamente o seu amigo.
– Vai machucar Karellen?
– Não, se você apontar para baixo e depois fizer a varredura para
cima. Isso dará tempo para que os olhos dele se adaptem. Presumo
que tenha reflexos como os nossos, e não queremos que fique
cego.
Stormgren olhou para a arma, indeciso, e sentiu seu peso na
mão. Nas últimas semanas, sua consciência o perseguira. Karellen
sempre o tratara com uma afeição inegável, a despeito de sua
ocasional franqueza devastadora. E, agora que seu tempo juntos
chegava ao fim, Stormgren não desejava fazer nada que pudesse
estragar esse relacionamento. O Supervisor, porém, fora
devidamente avisado, e Stormgren estava convencido de que, se a
escolha fosse dele, Karellen teria, há muito, se mostrado. Agora, a
decisão seria tomada por ele: quando sua última reunião chegasse
ao fim, Stormgren olharia bem no rosto de Karellen.
Isso, é claro, se Karellen tivesse um.
O nervosismo que Stormgren havia sentido no início, tinha
passado há tempos. Praticamente só Karellen falava, criando
períodos que eram tramas intricadas, um recurso que, em certas
ocasiões, parecia gostar de usar. Algum tempo atrás, isso havia
impressionado Stormgren como o mais maravilhoso e, sem dúvida,
o mais inesperado dos talentos de Karellen. Agora já não lhe
parecia assim tão esplêndido, pois sabia que, como ocorria com a
maior parte das capacidades do Supervisor, tratava-se de puro
poder intelectual, não de qualquer talento extraordinário.
Karellen tinha tempo de sobra para a composição literária
quando desacelerava seus pensamentos até a velocidade da fala
humana.
– Não há necessidade de você ou seu sucessor se preocupar
muito com a Liga da Liberdade, mesmo quando ela tiver se
recuperado da atual letargia. Ela esteve muito quieta durante o mês
passado e, embora vá voltar à ativa, não será uma ameaça por
alguns anos. De fato, visto que é sempre valioso saber o que seus
oponentes estão fazendo, a Liga é uma instituição muito útil. Caso
algum dia passe por dificuldades financeiras, posso até ter que
subsidiá-la.
Stormgren muitas vezes achava difícil saber quando Karellen
estava brincando. Manteve o rosto impassível e continuou a ouvir.
– Muito em breve a Liga perderá outro de seus argumentos. Têm
ocorrido muitas críticas, todas um tanto pueris, quanto à posição
especial que você tem mantido nos últimos anos. Considerei-a muito
valiosa no período inicial de minha administração, mas agora que o
mundo está seguindo o curso que planejei, ela pode deixar de
existir. No futuro, todas as minhas tratativas com a Terra serão
indiretas, e o posto de Secretário-geral poderá voltar a ser algo que
lembre sua forma original. Durante os próximos cinquenta anos
haverá muitas crises, mas serão passageiras. Os contornos do
futuro estão claros o bastante, e um dia todas essas dificuldades
serão esquecidas... mesmo para uma raça com uma memória tão
prolongada quanto a sua.
As últimas palavras foram ditas com uma ênfase tão especial que
Stormgren congelou de imediato na poltrona. Karellen, ele tinha
certeza, nunca cometia lapsos involuntários de linguagem: mesmo
suas indiscrições eram calculadas, e com precisão de várias casas
decimais. No entanto, não houve tempo para perguntas, que
certamente não seriam respondidas, pois o Supervisor já mudava,
mais uma vez, de assunto.
– Você sempre me perguntou sobre os nossos planos de longo
prazo – ele prosseguiu. – O estabelecimento do Estado Mundial é,
naturalmente, apenas o primeiro passo. Você viverá para ver sua
conclusão. Mas a mudança, quando vier, será tão imperceptível que
poucos se darão conta. Depois disso, haverá um período de
consolidação lenta, enquanto sua raça se prepara para nós. E,
então, chegará o dia que prometemos. Sinto muito que você não vá
estar presente.
Os olhos de Stormgren estavam abertos, mas seu olhar fixava-se
bem além da barreira escura da tela. Olhava para o futuro,
imaginando o dia que nunca veria, quando as grandes naves dos
Senhores Supremos por fim descessem à Terra e se abrissem para
o mundo que as aguardava.
– Nesse dia – prosseguiu Karellen –, a raça humana
experimentará o que pode ser chamado apenas de uma
descontinuidade psicológica. Mas não haverá dano permanente. Os
homens dessa época serão mais estáveis do que seus avós.
Teremos sido sempre parte de suas vidas e, quando nos
conhecerem, não vamos parecer tão... estranhos quanto seríamos
para vocês.
Stormgren nunca vira Karellen em um estado de espírito tão
contemplativo, mas isso não o surpreendeu. Acreditava que nunca
tivera contato com mais do que umas poucas facetas da
personalidade do Supervisor. O verdadeiro Karellen era
desconhecido, e talvez fosse incompreensível para os seres
humanos. E, mais uma vez, Stormgren teve a sensação de que os
verdadeiros interesses do Supervisor estavam em outro lugar, de
que ele governava a Terra com uma mera fração de sua mente, com
a mesma facilidade com que um mestre de xadrez tridimensional
jogaria uma partida de damas.
– E depois? – perguntou Stormgren, em voz baixa.
– Aí poderemos começar nosso verdadeiro trabalho.
– Tantas vezes me perguntei qual seria ele. Pôr nosso mundo em
ordem e civilizar a raça humana é apenas um meio... Vocês também
devem ter um fim. Será que algum dia seremos capazes de sair pelo
espaço e ver o seu universo... Quem sabe, até ajudá-los em seu
trabalho?
– Pode-se dizer que sim – disse Karellen, e agora sua voz
continha um tom de tristeza claro, ainda que inexplicável, que
deixou Stormgren estranhamente perturbado.
– Mas, e se, apesar de tudo, o seu experimento com o Homem
falhar? Sabemos que isso pode acontecer, pelos nossos contatos
com raças humanas primitivas. Claro que vocês também tiveram
seus fracassos?
– Sim – disse Karellen, em uma voz baixa que Stormgren mal
pôde ouvir. – Tivemos os nossos fracassos.
– E o que fazem, nesses casos?
– Aguardamos... e tentamos de novo.
Houve um silêncio que durou talvez cinco segundos. Quando
Karellen voltou a falar, suas palavras foram tão inesperadas que, por
um momento, Stormgren não reagiu.
– Adeus, Rikki!
Karellen o havia passado para trás. Já devia ser tarde demais. A
paralisia de Stormgren durou apenas um segundo. Em seguida, com
um único movimento rápido e bem ensaiado, sacou a arma de luz e
pressionou-a contra o vidro.
Os pinheiros chegavam quase à margem do lago, deixando, ao
longo da borda, apenas uma faixa estreita de grama, de alguns
metros de largura.
Sempre que o fim de tarde se mostrava quente o bastante,
Stormgren, a despeito de seus noventa anos, caminhava ao longo
da faixa até o desembarcadouro, assistia à luz do Sol morrer sobre
as águas e logo voltava para casa, antes que o vento gélido da noite
viesse da floresta. O ritual simples lhe dava muita satisfação, e ele o
seguiria enquanto tivesse forças.
A uma grande distância, no lago, alguma coisa estava vindo do
oeste, voando baixo e rápido. Eram raras as aeronaves nesta
região, exceto pelos grandes aviões de carreira transpolares, que
deviam passar bem acima a cada hora do dia e da noite. Contudo,
nunca havia nenhum sinal de sua presença, salvo por uma
ocasional trilha de vapor bem alta, destacada contra o azul da
estratosfera. O aparelho de agora era um helicóptero pequeno, e se
aproximava com óbvia determinação. Stormgren olhou ao redor,
para a praia, e viu que não havia por onde escapar. Então deu de
ombros e sentou-se no banco de madeira, na cabeceira do píer.
O repórter foi tão respeitoso que deixou Stormgren surpreso.
Quase esquecera de que não era apenas um velho estadista, mas,
fora de seu próprio país, quase uma figura mítica.
– Sr. Stormgren – o intruso começou –, sinto muito incomodá-lo,
mas gostaria de saber se o senhor comentaria algo que acabamos
de ouvir a respeito dos Senhores Supremos.
Stormgren franziu ligeiramente a testa. Depois de todos esses
anos, ainda compartilhava o desgosto de Karellen por aquela
expressão.
– Não acho – ele disse – que possa acrescentar grande coisa ao
que já foi escrito.
O repórter o observava com uma curiosidade profunda.
– Achei que poderia. Acabamos de ficar sabendo de uma história
bem estranha. Parece que, há quase trinta anos, um dos técnicos
da Divisão de Ciências preparou um aparelho fora do comum para o
senhor. Gostaríamos de saber se poderia nos falar a respeito.
Por um momento, Stormgren ficou em silêncio, sua mente voltou
ao passado. Não era surpresa que o segredo tivesse vazado. De
fato, era surpreendente que tivesse durado tanto tempo.
Ficou em pé e começou a caminhar de volta ao longo do píer,
com o repórter seguindo-o alguns passos atrás.
– Isso – ele disse – tem uma pitada de verdade. Na minha última
visita à nave de Karellen, levei comigo um aparelho, na esperança
de poder ver o Supervisor. Foi algo bem tolo de minha parte, mas...
bem, eu tinha só sessenta anos na época.
Deu uma risada para si mesmo e prosseguiu:
– Não é lá grande história para trazer você até aqui. Sabe, não
funcionou.
– O senhor não viu nada?
– Não, absolutamente nada. É uma pena, mas parece que você
vai ter que esperar. Mas, enfim, faltam só vinte anos!
Só vinte anos. Sim, Karellen tinha razão. A essa altura o mundo
já estaria preparado, como não estivera quando Stormgren contara
a mesma mentira para Duval, há trinta anos.
Karellen confiara nele e Stormgren não traíra sua fé. Tinha
certeza de que o Supervisor soubera de seu plano desde o começo,
e previra cada segundo do ato final.
Por qual outro motivo a enorme cadeira já estaria vazia quando o
círculo de luz a iluminara? No mesmo momento, ele começara a
girar o feixe, temendo que fosse tarde demais. A porta de metal,
com o dobro da altura de um homem, fechava-se depressa quando
ele a notou... Fechava-se depressa, mas não depressa o bastante.
Sim, Karellen confiara nele, não desejara que passasse o longo
crepúsculo de sua vida perseguido por um mistério que jamais
poderia desvendar. Karellen não se atrevera a desafiar os poderes
desconhecidos acima dele (seriam eles da mesma raça?), mas
fizera todo o possível. Se houve desobediência, nunca poderiam
provar. Era a demonstração definitiva, Stormgren sabia, da amizade
que Karellen nutria por ele. Embora pudesse ser a amizade de um
homem por um cão dedicado e inteligente, não era por isso menos
sincera, e a vida dera a Stormgren poucas satisfações maiores.
“Tivemos os nossos fracassos.”
Sim, Karellen, isso era verdade. E teria sido você a fracassar,
antes da alvorada da história humana? Deve ter sido um grande
fracasso, pensou Stormgren, pois seus ecos se propagaram pelas
eras, para assombrar a infância de cada uma das raças da
humanidade. Mesmo em cinquenta anos, será que você conseguiria
subjugar o poder de todos os mitos e lendas do mundo?
No entanto, Stormgren sabia que não haveria um segundo
fracasso.
Quando as duas raças voltassem a se encontrar, os Senhores
Supremos teriam conquistado a confiança e a amizade da espécie
humana, e nem mesmo o choque do reconhecimento poderia
estragar esse trabalho. Seguiriam juntas para o futuro, e a tragédia
desconhecida que havia coberto de sombras o passado ficaria
perdida para sempre nos corredores obscuros dos tempos pré-
históricos.
E Stormgren esperava que, quando Karellen estivesse livre para
voltar a caminhar pela Terra, fosse um dia àquelas florestas boreais,
e se detivesse, por um momento, junto à sepultura do primeiro
homem que fora seu amigo.
II
A ERA DE OURO
5
“É hoje!”, sussurravam os rádios em uma centena de línguas. “É
hoje!”, diziam as manchetes de mil jornais. “É hoje!”, pensavam os
operadores de câmeras, enquanto conferiam e reconferiam a
aparelhagem reunida em torno do amplo espaço vazio onde a nave
de Karellen iria descer.
Agora havia apenas aquela única nave, suspensa sobre Nova
York. De fato, como o mundo acabara de descobrir, as naves acima
das outras cidades jamais haviam existido. No dia anterior, a grande
esquadra dos Senhores Supremos havia se dissolvido no nada,
desvanecendo como a cerração sob a luz da aurora.
As naves de suprimentos, indo e vindo pelo espaço sideral,
tinham sido bem reais. No entanto, as nuvens prateadas que haviam
pairado, durante uma vida inteira, sobre quase todas as capitais da
Terra, tinham sido uma ilusão. Como o truque fora executado,
ninguém sabia, mas acredita-se que cada uma das naves não
passara de uma imagem da própria nave de Karellen. No entanto,
fora bem mais do que uma questão de jogo de luzes, visto que o
radar também havia sido enganado, e havia ainda gente viva que
jurava ter ouvido o grito do ar sendo rasgado quando a esquadra
penetrou os céus da Terra.
Isso, porém, não era importante: tudo o que importava era que
Karellen não sentia mais a necessidade dessa exibição de força.
Havia jogado fora suas armas psicológicas.
“A nave está se mexendo!”, veio a notícia, enviada de imediato
para todos os cantos do planeta. “Está indo para o oeste!”
A menos de mil quilômetros por hora, descendo lentamente das
alturas vazias da estratosfera, a nave dirigia-se para as grandes
planícies e para seu segundo encontro marcado com a história.
Aquietou-se, obediente, diante das câmeras que a aguardavam e
dos milhares de espectadores aglomerados, dos quais
pouquíssimos conseguiam ver tão bem o que se passava quanto os
milhões reunidos em torno de seus aparelhos de TV.
O chão deveria ter se rachado e tremido debaixo do peso
espantoso, mas a nave ainda estava sob o controle de quaisquer
que fossem as forças que a conduziam entre as estrelas. Beijou a
terra com a suavidade de um floco de neve cadente.
A parede curva, vinte metros acima do solo, parecia ondular e
tremeluzir. Onde antes havia uma superfície lisa e reluzente, surgiu
uma grande abertura. Nada era visível dentro dela, mesmo aos
olhos perscrutadores das câmeras. Estava tão escura e sombria
quanto a entrada de uma caverna.
Uma rampa larga e brilhante saiu pelo orifício e tomou impulso,
com determinação, rumo ao solo. Parecia uma folha sólida de metal,
com corrimãos ao longo das laterais. Não tinha degraus. Era tão
inclinada e lisa quanto um tobogã e, alguém poderia pensar,
igualmente impossível de subir ou descer de qualquer modo
convencional.
O mundo estava atento ao portal negro, dentro do qual nada
ainda se movia. Então a inesquecível, mesmo que poucas vezes
ouvida, voz de Karellen desceu com suavidade de alguma fonte
oculta. Sua mensagem dificilmente poderia ter sido menos
esperada:
– Há algumas crianças ao pé da rampa. Gostaria que duas delas
subissem e se encontrassem comigo.
Houve silêncio por um momento. Em seguida, um menino e uma
menina saíram da multidão e caminharam, sem acanhamento
nenhum, na direção da rampa e da história. Outras se seguiram,
mas pararam ao ouvir o riso maroto de Karellen vir da nave.
– Duas são o bastante.
Ansiosas pela aventura, as crianças, de não mais que seis anos,
pularam no escorregador de metal. Então o primeiro milagre
aconteceu.
Acenando esfuziantes para a multidão lá embaixo e para os pais
aflitos (que, tarde demais, deviam agora estar pensando na lenda do
flautista de Hamelin), as crianças começaram a subir com rapidez a
rampa inclinada. Mesmo assim, suas pernas não se mexiam, e logo
também ficou claro que seus corpos estavam posicionados em
ângulos retos em relação àquela rampa incomum, que possuía uma
gravidade própria, uma força capaz de ignorar a atração da Terra.
As crianças estavam se divertindo com a experiência inédita e
imaginando o que as puxava para cima, quando desapareceram
para dentro da nave.
Um grande silêncio cobriu todo o mundo durante vinte segundos,
embora, mais tarde, ninguém pudesse acreditar que o tempo tivesse
sido tão curto. Logo a escuridão da grande abertura pareceu se
deslocar para a frente, e Karellen saiu para o sol. O menino estava
sentado em seu braço esquerdo, a menina, no direito. Os dois
estavam ocupados demais, brincando com as asas de Karellen,
para repararem na multidão que os assistia.
O fato de que apenas umas poucas pessoas desmaiaram foi um
verdadeiro tributo à psicologia dos Senhores Supremos, e a seus
anos de cuidadosa preparação. No entanto, em todo o mundo, deve
ter sido ainda menor o número de pessoas que não sentiu, por um
momento tenebroso, o toque do terror ancestral roçar suas mentes,
antes que a razão o banisse para sempre.
Não havia engano. As asas de couro, os pequenos chifres, a
cauda pontuda... tudo estava lá. A mais terrível de todas as lendas
tornara-se real, vinda do passado desconhecido. No entanto, agora,
ali estava ela, sorrindo, em sua majestade de ébano, com a luz do
Sol cintilando sobre o enorme corpo e uma criança humana
sentada, sem medo, em cada braço.
6
Cinquenta anos é tempo mais que suficiente para mudar um mundo
e seu povo, a ponto de quase não serem reconhecidos. Tudo o que
é preciso é um bom conhecimento de engenharia social, uma visão
clara do objetivo desejado... e poder.
Essas coisas os Senhores Supremos possuíam. Embora seu
objetivo fosse secreto, o conhecimento dos Senhores Supremos era
evidente... assim como seu poder.
Esse poder assumia muitas formas, poucas das quais notadas
pelos povos cujos destinos os Senhores Supremos agora
governavam. O poder sacramentado em suas grandes naves tinha
sido claro o bastante para que todos vissem. Por trás daquela
exibição de força adormecida, porém, estavam outras armas, muito
mais sutis.
– Todos os problemas políticos – Karellen certa vez dissera a
Stormgren – podem ser resolvidos pela correta aplicação do poder.
– Parece um comentário bastante cínico – Stormgren retrucara,
em tom de dúvida. – Parece demais com “Quem pode, manda”. No
nosso próprio passado, o uso do poder fracassou clamorosamente
para resolver o que quer que fosse.
– A palavra-chave é correta. Vocês nunca tiveram poder de
verdade, ou o conhecimento necessário para aplicá-lo. Como em
todos os problemas, existem abordagens eficientes e ineficientes.
Suponha, por exemplo, que uma de suas nações, liderada por
algum governante fanático, tentasse se revoltar contra mim. A
resposta mais ineficiente a uma ameaça dessas seriam bilhões de
cavalos-vapor na forma de bombas atômicas. Se usasse bombas
suficientes, a solução seria completa e definitiva. Mas seria também,
conforme observei, ineficiente, mesmo que não tivesse nenhum
outro defeito.
– E a solução eficiente?
– Uma que exigisse tanta energia quanto um pequeno
transmissor de rádio... e habilidades similares de operação. Pois o
que conta é a aplicação do poder, não a quantidade. Quanto tempo
acha que a carreira de Hitler como ditador da Alemanha teria
durado, se, onde quer que ele fosse, uma voz ficasse falando
baixinho em seu ouvido? Ou se uma nota musical invariável, alta o
bastante para abafar todos os outros sons e impedir o sono,
ocupasse o cérebro dele, noite e dia? Nada brutal, perceba. Ainda
assim, em última análise, tão irresistível quanto uma bomba de trítio.
– Entendo – disse Stormgren. – E não haveria onde se
esconder?
– Nenhum lugar para onde eu não pudesse enviar os meus...
eh... dispositivos, se realmente quisesse. E é por isso que nunca
terei de usar métodos drásticos de verdade para manter minha
posição.
As grandes naves, portanto, nunca foram mais do que símbolos,
e agora o mundo sabia que todas, exceto uma, haviam sido
fantasmas.
Ainda assim, com sua mera presença, tinham mudado a história
da Terra. Agora sua tarefa estava concluída, e elas deixavam seu
feito para trás, para ecoar ao longo dos séculos.
Os cálculos de Karellen foram precisos. O choque de
repugnância passara depressa, embora houvesse muitos que se
orgulhassem de serem livres de superstições e que, mesmo assim,
não conseguiam encarar um dos Senhores Supremos. Havia algo
de estranho nisso, que ia além de toda a razão ou lógica.
Na Idade Média, as pessoas acreditavam no diabo e o temiam.
Este, porém, era o século XXI: seria possível que, no fim das contas,
houvesse algo como uma memória racial?
Todos, é claro, presumiam que os Senhores Supremos, ou seres
da mesma espécie, haviam entrado em um conflito violento com o
homem do passado. O encontro devia ter sido em um passado
remoto, pois não deixara vestígios na história escrita. Aqui estava
outro enigma, e Karellen não ajudaria a resolvê-lo.
Os Senhores Supremos, embora já tivessem se mostrado ao
homem, raramente saíam da única nave remanescente. Talvez
sentissem desconforto físico na Terra, pois seu tamanho, além da
existência de asas, indicava que vinham de um mundo de gravidade
muito inferior. Nunca eram vistos sem um cinturão repleto de
mecanismos complexos que, a maioria acreditava, controlava o seu
peso e permitia a comunicação uns com os outros. A luz direta do
Sol era--lhes dolorosa, e nunca permaneciam nela mais que alguns
segundos. Quando tinham de sair ao ar livre durante algum tempo,
usavam óculos escuros, o que lhes dava uma aparência um tanto
incongruente. Embora parecessem capazes de respirar o ar
terrestre, às vezes carregavam pequenos cilindros de gás, com os
quais se revigoravam de tempos em tempos.
Quem sabe esses problemas puramente físicos fossem
responsáveis pelo seu distanciamento. Apenas uma pequena fração
da raça humana já vira de fato um Senhor Supremo em carne e
osso, e ninguém fazia ideia de quantos estavam a bordo da nave de
Karellen. Nunca foram vistos mais do que cinco juntos ao mesmo
tempo, mas podia haver centenas, até milhares deles naquela
enorme nave.
De muitas formas, o aparecimento dos Senhores Supremos
criara mais problemas do que resolvera. Sua origem ainda era
desconhecida, sua biologia, uma fonte inesgotável de especulações.
Eles divulgavam informações sobre muitos assuntos, mas, em
outros, seu comportamento podia ser descrito apenas como
reservado. No geral, porém, isso não irritava ninguém, a não ser os
cientistas. O homem comum, embora pudesse preferir não
encontrar os Senhores Supremos, agradecia-lhes pelo que haviam
feito pelo mundo.
Pelos padrões das eras passadas, era a Utopia. A ignorância, a
doença, a pobreza e o medo haviam praticamente deixado de
existir. A lembrança da guerra se desvanecia no passado, como um
pesadelo que se dissolve com a alvorada. Em breve, ela estaria fora
da experiência de qualquer pessoa viva.
Com as energias da humanidade dirigidas para canais
construtivos, a face do mundo fora refeita. Era, quase literalmente,
um novo mundo. As cidades que haviam sido boas o bastante para
as gerações anteriores haviam sido reconstruídas... ou
abandonadas e transformadas em peças de museu, nos casos em
que deixaram de servir a qualquer propósito útil. Muitas cidades já
haviam sido abandonadas dessa maneira, pois todo o modelo de
indústria e comércio havia mudado completamente. A produção
tornara-se, em grande medida, automática: as fábricas-robôs
despejavam bens de consumo em fluxos incessantes tais que todas
as necessidades básicas da vida eram, para todos os efeitos,
gratuitas. Os homens trabalhavam pensando nos artigos de luxo
que desejavam. Ou, simplesmente, não trabalhavam.
Era um Mundo Unificado. Os velhos nomes dos velhos países
ainda eram usados, mas não passavam de divisões postais
convenientes. Não havia ninguém na Terra que não soubesse
inglês, que não soubesse ler, que não tivesse acesso a um aparelho
de televisão, que não pudesse visitar o outro lado do planeta em
vinte e quatro horas.
O crime praticamente desaparecera. Tornara-se tanto
desnecessário como impossível. Quando não falta nada a ninguém,
não há motivo para roubar. Além disso, todos os criminosos em
potencial sabiam que não havia como escapar à vigilância dos
Senhores Supremos. Nos primeiros tempos de seu governo, eles
haviam atuado de modo tão eficaz em prol da lei e da ordem que a
lição nunca fora esquecida.
Os crimes passionais, embora não realmente extintos, eram
quase desconhecidos. Agora que tantos de seus problemas
psicológicos haviam sido removidos, a humanidade era muito mais
sensata e menos irracional. O que, em eras passadas, seria
chamado de depravação, agora não passava de excentricidade...
ou, no pior caso, maus modos.
Uma das mudanças mais notáveis fora uma desaceleração do
ritmo louco que caracterizara tão completamente o século XX. A vida
era mais pausada do que fora por gerações. Por conseguinte, para
uns poucos tinha menos sabor, mas, para a maioria, tinha mais
placidez. O homem ocidental reaprendera algo que o resto do
mundo nunca esquecera: que não havia nada de pecaminoso no
lazer, desde que não degenerasse em mera indolência.
Quaisquer que fossem os problemas que o futuro pudesse trazer,
o tempo ainda não custava a passar para a humanidade. A
educação, agora, era muito mais profunda e prolongada. Poucas
pessoas saíam da faculdade antes dos vinte. E esse era apenas o
primeiro estágio, visto que era normal voltarem aos vinte e cinco
para pelo menos mais três anos, depois que as viagens e a
experiência tivessem aberto suas mentes. Mesmo então, era
provável que fizessem cursos de atualização, de tempos em
tempos, pelo resto da vida, sobre as matérias que mais lhes
interessassem.
Essa extensão do aprendizado humano para tão além do início
da maturidade física causara diversas mudanças sociais. Algumas
eram necessárias há gerações, mas os períodos anteriores haviam
se recusado a encarar o desafio... ou fingido que ele não existia. Em
particular, o modelo de moralidade sexual, se é que podemos dizer
que existia um só modelo, havia se alterado de maneira radical.
Tinha sido praticamente despedaçado por duas invenções, que
foram, por ironia, de origem cem por cento humana e nada deviam
aos Senhores Supremos.
A primeira foi um contraceptivo oral totalmente seguro. A
segunda, um método, igualmente infalível, de identificação do pai de
qualquer criança, tão preciso quanto impressões digitais e com base
em uma análise muito detalhada do sangue. O efeito dessas duas
invenções na sociedade humana só poderia ser descrito como
devastador, e elas varreram os últimos vestígios da aberração
puritana.
Outra grande mudança foi a mobilidade extrema da nova
sociedade. Graças ao aperfeiçoamento do transporte aéreo, todos
eram livres para ir a qualquer lugar quando bem desejassem. Havia
mais espaço nos céus do que jamais houvera nas estradas, e o
século XXI repetira, em maior escala, a grande conquista americana
de pôr uma nação sobre rodas. Dera asas ao mundo.
Mesmo que não literalmente. O veículo voador, ou carro aéreo
particular comum, não tinha nenhum tipo de asa, nem ao menos
uma superfície de controle visível.
Até as desajeitadas pás giratórias dos velhos helicópteros
haviam sido banidas. Apesar disso, o homem não descobrira a
antigravidade: apenas os Senhores Supremos dominavam esse
supras-sumo dos segredos. Os carros aéreos eram movidos por
forças que os irmãos Wright teriam compreendido. A reação a jato,
usada tanto diretamente como sob a forma mais sutil de controle de
camada-limite, impelia os veículos para a frente e os mantinha no ar.
Como nenhuma lei ou decreto dos Senhores Supremos poderia ter
feito, os pequenos e onipresentes carros aéreos haviam dado cabo
das últimas barreiras entre as diferentes tribos da humanidade.
Coisas mais profundas também se passaram. Esta era uma
época totalmente secular. De todas as fés religiosas que haviam
existido antes da chegada dos Senhores Supremos, apenas uma
forma de budismo purificado, talvez a mais austera das religiões,
ainda sobrevivia. Os credos que se baseavam em milagres e
revelações tinham desmoronado por completo. A elevação do
padrão educacional da humanidade já vinha dissolvendo essas
crenças há tempos, mas os Senhores Supremos haviam se
demorado a tomar partido no assunto. Embora Karellen fosse
seguidamente provocado a manifestar seu ponto de vista religioso,
tudo o que dizia era que as crenças de um homem eram uma
questão privada, desde que não interferissem na liberdade dos
outros.
No entanto, talvez as velhas fés tivessem perdurado ainda
durante algumas gerações, se não fosse pela curiosidade humana.
Sabia-se que os Senhores Supremos tinham acesso ao passado, e
mais de uma vez os historiadores haviam recorrido a Karellen para
que dirimisse certa controvérsia imemorial. Pode ser que ele tenha
se cansado dessas perguntas, mas é mais provável que soubesse
muito bem qual seria o resultado de sua generosidade...
O instrumento que cedera, por empréstimo permanente, à
Fundação da História Mundial, nada mais era do que um receptor de
televisão dotado de um complexo conjunto de controles para a
determinação de coordenadas no tempo e no espaço. Devia estar,
de algum modo, ligado a outra máquina, muito mais complexa,
operando com base em princípios que ninguém podia imaginar, a
bordo da nave de Karellen. Era necessário apenas ajustar os
controles para que se abrisse uma janela para o passado. Quase
toda a história humana dos últimos cinco mil anos se tornava
acessível em um instante. A máquina não alcançava épocas
anteriores, e em todas as eras havia desconcertantes períodos em
branco. Talvez tivessem causa natural, ou fossem fruto de censura
deliberada dos Senhores Supremos.
Embora sempre tivesse sido óbvio, para qualquer mente racional,
que todas as escrituras religiosas do mundo não poderiam ser
verdadeiras, o choque foi, mesmo assim, profundo. Aqui estava uma
revelação que ninguém podia colocar em dúvida ou negar: aqui,
vistas através da misteriosa magia da ciência dos Senhores
Supremos, estavam as verdadeiras origens de todas as grandes fés
do mundo. A maior parte delas era nobre e inspiradora. Isso, porém,
não bastava. Em alguns dias, todos os numerosos messias da
humanidade haviam perdido o caráter divino. Sob a luz incisiva e
impassível da verdade, as religiões que haviam sustentado milhões
de pessoas por dois milhares de anos desapareceram como o
orvalho da manhã. Todo o bem e todo o mal que haviam feito foram
subitamente varridos para o passado, e não mais podiam tocar as
mentes dos homens.
A humanidade perdera seus deuses ancestrais: e já era velha o
bastante para prescindir de novos.
Embora ainda poucos se dessem conta, a queda das religiões
tinha sido acompanhada por um declínio da ciência. Havia técnicos
de sobra, mas poucos trabalhavam na extensão das fronteiras do
conhecimento humano. A curiosidade persistia, e havia tempo para
perder com ela, mas o ânimo para as pesquisas científicas
fundamentais se fora. Parecia inútil passar uma vida inteira
pesquisando segredos que os Senhores Supremos deviam ter
desvendado séculos antes.
Esse declínio havia sido, em parte, disfarçado por um imenso
florescimento das ciências descritivas, como a zoologia, a botânica
e a astronomia observacional. Nunca houvera tantos cientistas
amadores coligindo fatos para deleite pessoal. Entretanto, havia
poucos teóricos correlacionando esses fatos.
O fim das lutas e dos conflitos de todos os tipos significara,
também, quase que o fim da arte criativa. Havia miríades de artistas,
amadores e profissionais, mas nenhuma obra nova que realmente
saltasse aos olhos havia aparecido por uma geração, fosse de
literatura, música, pintura ou escultura. O mundo ainda vivia das
glórias de um passado que não voltaria.
Ninguém se preocupava com isso, exceto alguns filósofos. A raça
estava concentrada demais em saborear sua recém-descoberta
liberdade para enxergar além dos prazeres do presente. A Utopia,
por fim, estava aqui; a atração do novo não havia sido, ainda,
assaltada pelo inimigo supremo de todas as Utopias: o tédio.
Quem sabe os Senhores Supremos tivessem uma resposta para
isso, como tinham para todos os outros problemas. Ninguém sabia.
Como tampouco se soubera, ao longo de toda uma vida humana
após os Senhores Supremos terem chegado, qual era seu objetivo
final. A humanidade passara a confiar neles e a aceitar, sem
questionamentos, o altruísmo sobre-humano que mantivera Karellen
e seus companheiros afastados de seus lares por tanto tempo.
Isso se, de fato, fosse altruísmo, pois ainda havia alguns que se
indagavam se as políticas dos Senhores Supremos continuariam a
coincidir, para sempre, com o verdadeiro bem-estar da humanidade.
7
Quando Rupert Boyce enviou os convites para sua festa, eles
percorreram uma quilometragem impressionante. Para mencionar
apenas a primeira dúzia de convidados: havia os Foster, de
Adelaide; os Shoenberger, do Haiti; os Farran, de Stalingrado; os
Moravia, de Cincinnati; os Ivanko, de Paris; e os Sullivan, mais ou
menos na vizinhança da Ilha de Páscoa, mas uns quatro
quilômetros abaixo, no leito oceânico. Foi uma consagração para
Rupert o fato de que, embora tivesse convidado trinta pessoas, mais
de quarenta comparecessem... mais ou menos a proporção que ele
esperava. Apenas os Krause o deixaram na mão, e isso só porque
esqueceram da Linha Internacional de Data e chegaram com vinte e
quatro horas de atraso.
Por volta do meio-dia, uma imponente coleção de carros
voadores se acumulara no estacionamento, e os que chegavam
depois tinham de andar uma boa distância após encontrar um local
para o pouso. Pelo menos, parecia uma boa distância, sob o céu
claro e com o mercúrio marcando quarenta e três graus centígrados.
Os veículos ali reunidos iam desde os Flitterbugs individuais até os
Cadillacs tamanho família, que mais pareciam palácios aéreos do
que máquinas voadoras práticas. Nesta época, porém, não se podia
deduzir nada a respeito do status social dos convidados observando
seus meios de transporte.
– Mas que casa feia – disse Jean Morrel, enquanto seu Meteor ia
descendo, em espiral. – Parece mais uma caixa que pisaram em
cima.
George Greggson, que tinha uma aversão antiquada pelos
pousos automáticos, reajustou o controle da taxa de descida antes
de responder.
– Não é lá muito justo criticar a casa deste ponto de vista –
respondeu, com sensatez. – Vista do chão, pode ser bem diferente.
Ah, meu Deus!
– Que é?
– Os Foster estão aqui. Dá pra reconhecer o esquema de cores
em qualquer lugar.
– Bem, não precisa falar com eles, se não quiser. Essa é uma
das vantagens das festas de Rupert: sempre dá pra se esconder na
multidão.
George selecionara um local de pouso e se dirigia resolutamente
para ele. Planaram até descer entre outro Meteor e alguma coisa
que nenhum dos dois foi capaz de identificar. “Parecia muito rápido”,
Jean pensou, “e muito desconfortável. Um dos amigos técnicos de
Rupert”, ela concluiu, “devia ter construído para si mesmo”. Ela
achava que havia uma lei contra esse tipo de coisa.
O calor os atingiu como o sopro de um maçarico, assim que
saíram do carro. Parecia sugar a umidade de seus corpos, e George
ficou a ponto de achar que sentia a pele rachando. É claro que era,
em parte, culpa deles mesmos. Haviam saído do Alasca há três
horas, e deviam ter se lembrado de ajustar a temperatura da cabine
de acordo.
– Que lugar pra viver! – falou Jean, ofegante. – Pensei que este
clima fosse controlado.
– E é mesmo – retrucou George. – Antigamente, isto tudo era
deserto. Olhe só agora. Vem. Lá dentro vai estar fresquinho!
A voz de Rupert, um pouco amplificada, trovejou, com bom
humor, nos ouvidos deles. Seu anfitrião estava parado ao lado do
carro, um copo em cada mão, olhando-os de cima para baixo, com
uma expressão maliciosa.
Olhava-os dessa maneira pela simples razão de que tinha quase
quatro metros de altura. Além disso, era semitransparente. Dava
para ver por meio dele sem muita dificuldade.
– Bela pegadinha para receber seus convidados! – protestou
George. Tentou apanhar as bebidas, que estavam bem ao alcance.
Sua mão, é claro, passou através delas. – Espero que tenha algo
mais substancial pra gente quando chegarmos aí!
– Não se preocupem! – riu Rupert. – É só fazer o pedido agora,
que estará pronto quando chegarem.
– Duas cervejas grandes, geladas com ar líquido – respondeu
prontamente George. – Já, já estamos aí.
Rupert concordou, colocou um dos copos em uma mesa invisível,
ajustou um controle igualmente invisível e, de pronto, desapareceu
de vista.
– Bem! – disse Jean. – É a primeira vez que vejo uma dessas
engenhocas em ação. Como foi que o Rupert arranjou uma? Pensei
que só os Senhores Supremos tivessem.
– Já viu o Rupert não conseguir o que quer? – replicou George. –
É o brinquedo perfeito pra ele. Pode ficar confortavelmente sentado
no seu escritório enquanto dá uma volta por metade da África. Nada
de calor, nem de insetos, nem de cansaço, e com a geladeira
sempre logo ali. Imagino o que Stanley e Livingstone teriam achado.
O Sol impediu que prosseguissem com a conversa até chegarem
à casa. À medida que se aproximavam da porta da frente (que não
era muito fácil de distinguir do restante da parede de vidro voltada
para eles), ela se abriu de modo automático, com um toque de
trombetas. Jean imaginou, corretamente, que antes do fim da festa
já estaria enjoada até a medula de tanto ouvir trombetas.
A atual sra. Boyce os recebeu no delicioso frescor do saguão. Ela
era, a bem da verdade, a principal razão da presença maciça de
convidados. Talvez metade deles tivesse vindo, de qualquer jeito, só
para ver a casa nova de Rupert. Os indecisos tinham se decidido
por causa dos relatos sobre a nova esposa de Rupert.
Havia apenas um adjetivo que a descrevia com justiça:
desconcertante. Mesmo em um mundo onde a beleza era quase
lugar-comum, os homens viravam a cabeça quando ela entrava na
sala. Teria, George supôs, um quarto de sangue negro. Suas feições
eram praticamente helênicas, e o cabelo era comprido e lustroso.
Apenas a textura rica e morena de sua pele, que só podia ser
descrita pela tão abusada palavra “chocolate”, revelava a
ascendência mestiça.
– Vocês são Jean e George, certo? – ela disse, estendendo a
mão. – É um prazer conhecê-los. O Rupert está fazendo alguma
coisa complicada com as bebidas. Venham, vou apresentar vocês
para os outros convidados.
Tinha uma voz agradável de contralto, que dava arrepios ao
longo das costas de George, como se alguém estivesse tocando
flauta com sua espinha. Ele olhou aflito para Jean, que se esforçava
para exibir um sorriso um tanto artificial, e, enfim, recuperou a voz.
– É... é um grande prazer conhecê-la – ele disse, com a voz
falhando. – Estávamos ansiosos por esta festa.
– Rupert sempre dá essas festas maravilhosas – interveio Jean.
Pela maneira com que destacou o “sempre”, dava para ver muito
bem que estava pensando “toda vez que se casa”. George
enrubesceu um pouco e dirigiu a Jean um olhar de repreensão, mas
não havia sinal de que a anfitriã tivesse percebido a farpa. Ela foi a
gentileza em pessoa enquanto os conduzia para o saguão principal,
já meio lotado por uma coleção representativa dos vários amigos de
Rupert. O próprio Rupert estava sentado ao console do que parecia
ser uma unidade de controle de um engenheiro de televisão. George
presumiu que fosse o aparelho que projetara a imagem que os
recebera. Estava ocupado demonstrando o aparelho,
surpreendendo mais duas visitas que acabavam de descer no
estacionamento, mas fez uma pausa longa o suficiente para
cumprimentar Jean e George e pedir desculpas por ter dado suas
bebidas a outra pessoa.
– Vai achar muito mais ali – disse ele, apontando vagamente para
trás com uma mão, enquanto ajustava os controles com a outra. –
Apenas sintam-se em casa. Vocês conhecem a maior parte do
pessoal. Maia vai apresentar os outros. Que bom que vieram.
– Que bom que nos convidou – respondeu Jean, sem muita
convicção. George já partira rumo ao bar e ela abriu caminho atrás
dele, trocando cumprimentos, vez ou outra, com algum conhecido.
Cerca de três quartos dos presentes eram completos estranhos, o
que representava o estado normal das coisas em uma das festas de
Rupert.
– Vamos explorar – ela disse a George, depois de terem bebido
alguma coisa e acenado para todos os conhecidos. – Quero dar
uma olhada na casa.
George, com um olhar mal dissimulado por cima dos ombros
para Maia Boyce, seguiu-a. Havia no rosto dele uma expressão
distante de que Jean não estava gostando nada. Era tão aborrecido
que os homens fossem, fundamentalmente, polígamos. Por outro
lado, se não fossem... É, quem sabe seja melhor assim, no fim das
contas.
George voltou depressa ao normal enquanto bisbilhotavam as
maravilhas da nova residência de Rupert. A casa parecia muito
grande para duas pessoas, mas isso era bom, tendo em vista as
sobrecargas frequentes que teria de acomodar. Havia dois andares,
o superior muito maior, de modo que se projetava sobre o térreo e
dava sombra ao redor. O grau de mecanização era considerável, e a
cozinha era uma boa aproximação da cabine de um grande avião de
passageiros.
– Pobre Ruby! – disse Jean. – Ela teria adorado este lugar.
– Pelo que ouvi dizer – retrucou George, que não simpatizava lá
muito com a última sra. Boyce –, ela está bem feliz com o namorado
australiano.
Isso era tão bem sabido que seria difícil para Jean discordar, de
modo que mudou de assunto:
– Ela é terrivelmente bonita, não é?
George estava alerta o suficiente para evitar a armadilha.
– Ah, acho que sim – ele respondeu, indiferente. – Isto é, claro,
para quem gosta de morenas.
– E você não gosta, suponho – disse Jean, amável.
– Não seja ciumenta, querida – riu George, acariciando seu
cabelo platinado. – Vamos dar uma olhada na biblioteca. Em que
andar você acha que fica?
– Tem que ser aqui em cima. Não tem lugar lá embaixo. Além
disso, combina com o projeto geral: todo o espaço para convivência,
alimentação e sono relegado para o térreo. Este é o departamento
de jogos e diversões... embora eu ainda ache uma loucura ter uma
piscina aqui em cima.
– Deve ter alguma razão pra isso – falou George,
experimentando abrir uma porta. – O Rupert deve ter falado com
gente que entende do assunto quando construiu a casa. Tenho
certeza de que não ia conseguir fazer uma casa destas sozinho.
– Você deve ter razão. Se ele conseguisse, a casa ia ter quartos
sem portas, e escadas levando a lugar nenhum. De fato, eu teria
medo de entrar numa casa que o Rupert tivesse projetado sozinho.
– Aqui estamos – disse George, com o orgulho de um navegador
ao avistar terra. – A fabulosa Coleção Boyce, em seu novo lar. Só
fico pensando quantos deles Rupert já leu mesmo!
A biblioteca estendia-se por toda a largura da casa, mas era
praticamente dividida em meia dúzia de pequenos compartimentos
pelas grandes estantes que a cortavam. Elas continham, se a
memória de George não falhava, cerca de quinze mil volumes:
quase tudo de importância que já fora publicado nos campos
nebulosos da magia, da pesquisa psíquica, dos vaticínios, da
telepatia e de toda a gama de fenômenos elusivos amontoados na
categoria da parafísica. Era um hobby bastante excêntrico para
alguém cultivar nesta idade da razão. Presumia-se que fosse
apenas a modalidade particular de escapismo de Rupert.
George percebeu o cheiro no momento em que adentrou o
aposento. Era fraco, mas penetrante. Mais intrigante do que
desagradável. Jean também reparou: sua testa estava franzida no
esforço de identificação. Ácido acético, pensou George, isso era o
mais próximo. No entanto, tinha mais alguma coisa...
A biblioteca terminava em um pequeno espaço aberto, grande o
bastante apenas para uma mesa, duas cadeiras e alguns
almofadões. Em teoria, era o lugar onde Rupert ficava lendo.
Alguém estava ali, agora, lendo sob uma luz estranhamente fraca.
Jean segurou um grito e agarrou a mão de George. A reação
dela foi, de certa forma, desculpável. Uma coisa era ver uma
imagem na televisão, e outra, bem diferente, deparar-se com a
realidade. George, que quase nunca se surpreendia com algo, de
pronto mostrou-se à altura das circunstâncias.
– Espero não termos perturbado o senhor – disse ele, educado. –
Não fazíamos ideia de que havia alguém aqui. Rupert não falou
nada...
O Senhor Supremo baixou o livro, inspecionou-os com os olhos e
recomeçou a leitura. Nada havia de grosseiro no gesto, quando
vinha de uma criatura capaz de ler, falar e, ao que tudo indicava,
fazer várias outras coisas ao mesmo tempo. Apesar disso, para
observadores humanos, a cena era perturbadoramente
esquizofrênica.
– Meu nome é Rashaverak – informou o Senhor Supremo, sendo
afável. – Sinto muito não estar sendo muito sociável, mas é muito
difícil escapar da biblioteca de Rupert.
Jean conseguiu reprimir um risinho nervoso. O companheiro de
festa inesperado estava, ela notou, lendo à velocidade de uma
página a cada dois segundos. Não duvidava de que estivesse
assimilando cada palavra, e imaginou se seria capaz de ler um livro
com cada olho. “E então, é claro”, ela pensou consigo mesma,
“poderia também aprender braile, de modo a usar os dedos...” A
imagem mental resultante era cômica demais para ser confortável,
de modo que tratou de suprimi-la, entrando na conversa. Afinal de
contas, não era todo dia que surgia a oportunidade de falar com um
dos senhores da Terra.
George deixou Jean falar à vontade, depois de ter feito as
apresentações, com a esperança de que ela não dissesse nada
indelicado. Como Jean, ele nunca vira um Senhor Supremo em
carne e osso. Embora interagisse socialmente com autoridades do
governo, cientistas e outros que trabalhavam com eles, George
nunca ouvira falar de um deles presente em uma festa particular
corriqueira. Uma conclusão seria de que esta festa não era tão
particular quanto parecia. O fato de Rupert estar de posse de um
equipamento dos Senhores Supremos também dava a entender
isso, e George começou a se perguntar, com letras maiúsculas,
“EXATAMENTE, O QUE ESTÁ HAVENDO?”. Teria de pegar Rupert de jeito e
perguntar sobre o assunto, quando tivesse a chance de arrastá-lo
para um canto.
Visto que as cadeiras eram pequenas demais para ele,
Rashaverak estava sentado no chão, no que parecia bem à
vontade, já que não ligara para as almofadas, a apenas um metro
de distância. Como resultado, sua cabeça estava a meros dois
metros do chão, e George tinha uma chance única de estudar a
biologia extraterrestre. Infelizmente, como sabia pouco sobre
biologia terrestre, não foi capaz de ir muito além. Apenas o odor
ácido, peculiar e de modo algum desagradável, era novo para ele.
Tentou imaginar como seria o cheiro dos humanos para os
Senhores Supremos, e esperou que fosse bom.
Rashaverak não tinha nada realmente de antropomórfico. George
conseguia entender como, vistos de longe por selvagens ignorantes
e apavorados, os Senhores Supremos podiam ter sido confundidos
com homens alados, e assim podiam ter dado origem ao retrato
convencional do Diabo. De tão perto assim, porém, parte da ilusão
desaparecia. Os pequenos chifres (“qual seria a função?”, se
perguntava George) estavam fiéis à descrição, mas o corpo não era
nem de um homem, nem de nenhum animal que a Terra já tivesse
conhecido. Vindos de uma árvore evolucionária totalmente
alienígena, os Senhores Supremos não eram nem mamíferos, nem
insetos, nem répteis. Não se tinha nem a certeza de que fossem
vertebrados: sua couraça externa e rígida podia muito bem ser a
única estrutura de suporte.
As asas de Rashaverak estavam dobradas, de modo que George
não podia vê-las com clareza. A cauda, por outro lado, semelhante a
um pedaço de mangueira encouraçada, estava caprichosamente
enroscada sob ele. A famosa ponta não parecia tanto uma ponta de
flecha, mas mais um grande losango achatado. Seu propósito, a
maioria agora concordava, era proporcionar estabilidade no voo,
como as penas da cauda de um pássaro. A partir de uns poucos
fatos e de suposições como essas, os cientistas concluíram que os
Senhores Supremos vinham de um mundo de baixa gravidade e
atmosfera muito densa.
A voz de Rupert de repente gritou, vinda de um alto-falante
oculto:
– Jean! George! Onde diabos estão escondidos? Desçam e
participem da festa! As pessoas estão começando a comentar.
– Quem sabe seja melhor eu ir também – disse Rashaverak,
recolocando o livro na prateleira. Fez isso com bastante facilidade,
sem sair do chão, e George percebeu, pela primeira vez, que ele
tinha dois polegares opositores, com cinco dedos entre eles. “Eu
detestaria ter que fazer contas”, George pensou, “em um sistema de
base quatorze.”
Ver Rashaverak levantar-se era uma coisa impressionante, e
quando o Senhor Supremo se curvou para evitar o teto, ficou óbvio
que, mesmo se estivessem ansiosos para se integrar com os
humanos, haveria muitas dificuldades práticas.
Várias novas levas de convidados haviam chegado na última
meia hora, e a sala agora estava bem apinhada. A chegada de
Rashaverak piorou bastante as coisas, pois todos que estavam nas
salas adjacentes acorreram para vê-lo. Rupert, é claro, estava
satisfeitíssimo com a comoção. Jean e George se sentiram muito
menos gratificados, uma vez que ninguém reparava neles. De fato,
poucas pessoas podiam vê-los, já que estavam posicionados atrás
do Senhor Supremo.
– Venha cá, Rashy, conhecer o povo – gritou Rupert. – Sente no
divã. Assim vai poder parar de ficar arranhando o teto.
Rashaverak, com a cauda passada por cima do ombro,
atravessou a sala como um quebra-gelo abrindo caminho pela
banquisa. Quando se sentou ao lado de Rupert, a sala pareceu
voltar a ser bem maior, e George deu um suspiro de alívio.
– Senti claustrofobia quando ele estava de pé. Não consigo
imaginar como Rupert botou as mãos nele... Parece que vamos ter
uma festa animada!
– Dá pra acreditar? O Rupert tratando ele desse jeito, e em
público! Só que ele não pareceu se importar. Isso tudo está muito
estranho – comentou Jean.
– Aposto que ele se importou. O problema com o Rupert é que
gosta de se exibir; e não tem nenhum tato. E isso me lembra...
Algumas perguntas que você fez!
– Quais?
– Bem... “Faz quanto tempo que o senhor está aqui?” “Como se
dá com o Supervisor Karellen?” “Gosta daqui da Terra?”
Francamente, querida! Não se fala com os Senhores Supremos
desse jeito!
– Não vejo por que não. Já era hora de alguém fazer isso.
Antes que a discussão pudesse ficar feia, foram abordados pelos
Schoenberger e logo ocorreu a fissão: as garotas foram para um
lado discutir sobre a sra. Boyce; os homens foram para o outro e
fizeram exatamente a mesma coisa, embora de um ponto de vista
diferente. Benny Schoenberger, que era um dos mais antigos
amigos de George, estava bem inteirado do assunto.
– Pelo amor de Deus, não conte pra ninguém – ele disse. – Ruth
não sabe disso, mas fui eu quem apresentou ela pro Rupert.
– Acho – George comentou, com inveja – que ela é boa demais
pro Rupert. Mas não acho que vá durar. Ela logo vai se encher dele.
– Essa ideia pareceu alegrá-lo bastante.
– Nem pense nisso! Além de ser uma beldade, ela é uma pessoa
realmente maravilhosa. Já era hora de alguém se encarregar do
Rupert, e ela é a garota certa pra isso.
Rupert e Maia estavam agora sentados ao lado de Rashaverak,
recebendo os convidados com grande pompa. As festas de Rupert
raramente tinham um foco, já que consistiam, quase sempre, em
meia dúzia de grupos independentes, concentrados em seus
próprios assuntos. Desta vez, porém, toda a multidão estava
polarizada para um centro de atração.
George sentia um pouco de pena de Maia. Este devia ter sido o
dia dela, mas Rashaverak a eclipsara em parte.
– Escute – disse George, beliscando um sanduíche. – Como
diabos o Rupert arrumou um Senhor Supremo? Nunca ouvi falar de
algo assim... Só que ele age como se fosse tudo normal. Nem
sequer mencionou o fato, quando nos convidou.
Benny riu, divertido.
– Só mais uma das suas surpresinhas. Acho melhor você
perguntar pra ele. Mas, afinal de contas, não é a primeira vez que
isso acontece. Karellen já foi a festas na Casa Branca e no Palácio
de Buckingham, e...
– Diacho, isto é diferente! O Rupert é um cidadão comum.
– E quem sabe Rashaverak seja um Senhor Supremo de nível
inferior. Mas é melhor perguntar pra eles.
– Vou fazer isso – disse George – assim que encontrar o Rupert
sozinho.
– Então vai ter que esperar um bom tempo.
Benny tinha razão, mas, como a festa agora estava esquentando,
era fácil ter paciência. A ligeira paralisia que o aparecimento de
Rashaverak lançara sobre a multidão já tinha desaparecido. Havia
ainda um pequeno grupo em torno do Senhor Supremo, mas, nas
outras partes, ocorrera a fragmentação de costume, e todos se
comportavam de maneira bastante natural. Sullivan, por exemplo,
descrevia sua última pesquisa submarina a um público interessado.
– Ainda não temos certeza – ele dizia – do tamanho exato a que
podem chegar. Tem um desfiladeiro, não muito longe da nossa
base, onde mora um gigante de verdade. Vi de relance uma vez, e
diria que os tentáculos abertos cobrem quase trinta metros. Vou
atrás dele na semana que vem. Alguém quer um bicho de estimação
bem original?
Uma das mulheres soltou um gritinho de horror.
– Argh! Fico arrepiada só de pensar nisso! O senhor deve ser
muito corajoso.
Sullivan pareceu bastante surpreso:
– Nunca pensei nisso. É claro que tomo as precauções
necessárias, mas nunca corri perigo de verdade. As lulas sabem
que não podem me comer e, desde que eu não chegue perto
demais, elas nem prestam atenção. A maior parte das criaturas
marinhas não incomoda as pessoas, a não ser quem se mete com
elas.
– Mas, com certeza – alguém perguntou –, mais cedo ou mais
tarde, o senhor vai acabar topando com uma que o ache apetitoso?
– Ah – replicou Sullivan, alegre –, isso acontece de vez em
quando. Tento não machucar os bichinhos, pois, afinal, tudo o que
eu quero é fazer amigos. Então, só coloco os jatos em potência total
e, quase sempre, leva apenas um ou dois minutos para ficar livre.
Quando estou ocupado demais para parar e brincar, posso dar um
choque de duzentos volts. Isso resolve tudo, e nunca mais me
perturbam.
Não havia dúvida de que se conhecia gente interessante nas
festas de Rupert, pensou George, enquanto seguia para o próximo
grupo.
O gosto literário de Rupert podia ser especializado, mas suas
amizades eram bem variadas. Sem se dar ao trabalho de virar a
cabeça, George pôde ver um famoso produtor de cinema, um poeta
menor, um matemático, dois atores, um engenheiro atômico, um
guarda-caça, o editor de um semanário, um estatístico do Banco
Mundial, um virtuose do violino, um professor de arqueologia e um
astrofísico. Não havia nenhum outro representante da própria
profissão de George, designer de estúdios de televisão; o que era
bom, pois queria ficar longe do trabalho. Amava sua profissão e, de
fato, nesta era, pela primeira vez na história humana, ninguém
trabalhava em algo de que não gostasse. No entanto, George ficava
satisfeito de mentalmente trancar as portas do escritório às suas
costas no fim do dia.
Conseguiu, por fim, encurralar Rupert na cozinha, onde ele fazia
experiências com bebidas. Parecia uma pena trazê-lo de volta à
Terra quando tinha uma expressão tão distante nos olhos, mas
George sabia ser implacável quando necessário.
– Olhe aqui, Rupert – começou, tomando assento na mesa mais
próxima –, acho que deve uma explicação pra todo mundo.
– Ahn – disse Rupert, pensativo, passando a língua em torno da
boca. – Só um pouquinho de gim demais, eu acho.
– Não desvie do assunto e não finja que não está mais sóbrio,
porque sei muito bem que você está. De onde veio esse seu amigo
Senhor Supremo, e o que é que ele está fazendo aqui?
– Não te contei? – disse Rupert. – Pensei que tinha explicado pra
todo mundo. Você não devia estar por perto... Ah, claro, estavam se
escondendo na biblioteca. – Riu de uma maneira que George achou
ofensiva. – Foi a biblioteca, você sabe, que trouxe Rashy aqui.
– Que coisa espantosa!
– Por quê?
George ficou um instante em silêncio, percebendo que a situação
requeria tato. Rupert tinha muito orgulho de sua coleção singular.
– Eh... bem, quando você pensa no que os Senhores Supremos
sabem sobre ciência, é difícil imaginar que se interessem por
fenômenos psíquicos e absurdos desse tipo.
– Absurdos ou não – retrucou Rupert –, eles estão interessados
na psicologia humana, e tenho uns livros que podem ensinar muita
coisa pra eles. Pouco antes de me mudar pra cá, um Senhor
Subssupremo, ou um Subssenhor Supremo Assistente, entrou em
contato comigo e perguntou se eu podia emprestar uns cinquenta
dos meus volumes mais raros. Parece que um dos curadores da
Biblioteca do Museu Britânico o colocou no meu rastro. É claro que
você sabe o que eu respondi.
– Não posso nem imaginar.
– Bem, respondi, bastante educado, que tinha levado vinte anos
para formar a biblioteca. Que eles eram bem-vindos para examinar
os livros, mas que de jeito nenhum iam tirá-los daqui. Então Rashy
apareceu aqui e tem absorvido uns vinte volumes por dia. Adoraria
saber a opinião dele sobre os livros.
George pensou no assunto, mas logo deu de ombros, com
aversão.
– Sinceramente – ele disse –, minha opinião a respeito dos
Senhores Supremos caiu. Achei que tivessem coisas melhores para
fazer.
– Você é um materialista incurável, não é? Acho que Jean não
concordaria nem um pouquinho. Só que, mesmo do seu ponto de
vista tão cheio de pragmatismo, a coisa ainda faz sentido. É claro
que você ia estudar as superstições de qualquer raça primitiva com
que estivesse fazendo contato!
– É, acho que sim – disse George, não muito convencido. O
tampo da mesa era duro a ponto de incomodar, de modo que se
levantou. Rupert já estava satisfeito com a mistura das bebidas e se
encaminhava de volta aos convidados. Já se podiam ouvir vozes
queixosas, exigindo sua presença.
– Ei! – protestou George. – Antes que suma, mais uma pergunta:
como conseguiu botar as mãos na engenhoca de televisão
bidirecional que tentou usar para assustar a gente?
– Só uma pequena negociação. Mencionei como algo assim seria
útil para um trabalho como o meu, e Rashy levou a sugestão às
autoridades competentes.
– Desculpe a minha ignorância, mas qual é o seu novo trabalho?
Suponho, é claro, que tenha algo a ver com animais.
– Isso mesmo. Sou um veterinário-supervisor. Meus pacientes
cobrem uns dez mil quilômetros quadrados de selva e, já que eles
não vêm me procurar, eu é que preciso ir atrás deles.
– Isso é que é um trabalho em período integral.
– Ah, é claro que não seria prático se preocupar com a raia
miúda. Só com os leões, elefantes, rinocerontes e assim por diante.
Toda manhã ajusto os controles para uma altura de cem metros,
sento na frente da tela e saio patrulhando o território. Quando
encontro alguém com problemas, entro no carro voador e espero
que a minha cara de médico funcione. Às vezes, é um pouco
complicado. Os leões e quetais são fáceis... mas tentar espetar um
rinoceronte do ar, com um dardo anestésico, dá um trabalho dos
diabos.
– Rupert! – alguém gritou da sala contígua.
– Olhe só o que você fez! Me fez esquecer os convidados. Ali,
pegue aquela bandeja. São os com vermute. Não quero misturar.
Foi pouco antes do pôr do Sol que George achou o caminho para
o telhado. Por uma série de excelentes razões, tinha uma ligeira dor
de cabeça e queria escapar do barulho e da confusão lá embaixo.
Jean, que dançava muito melhor do que ele, ainda parecia estar se
divertindo muito e recusava-se a ir embora. Isso aborreceu George,
que começava a se sentir alcoolicamente amoroso, e então decidiu
ficar emburrado e em silêncio sob as estrelas.
Ia-se ao telhado pegando a escada rolante para o primeiro andar
e então subindo a escada em espiral em torno da entrada do ar-
condicionado. Isso levava, através de um alçapão, para a ampla
laje. O carro voador de Rupert estava estacionado em uma ponta. A
área central era um jardim, com as plantas já começando a crescer
como mato, e o resto não passava de uma plataforma de
observação com algumas espreguiçadeiras. George deixou-se cair
em uma delas e avaliou os arredores com um olho imperial. Sentia-
se exatamente como o soberano de tudo ao seu redor.
Era, para dizer o mínimo, uma senhora vista. A casa de Rupert
fora construída na borda de uma grande depressão, que descia na
direção do leste até formar pantanais e lagos a cinco quilômetros de
distância. Para oeste, a terra era plana e a selva chegava quase à
porta dos fundos de Rupert. Depois da selva, porém, a uma
distância que devia ser de pelo menos cinquenta quilômetros,
estendia-se uma linha de montanhas, como uma grande muralha,
até sumir de vista, ao norte e ao sul.
Os picos estavam raiados de neve, e as nuvens acima se
transformavam em fogo à medida que o Sol descia, nos últimos
minutos de sua jornada diária. Contemplando os baluartes remotos,
George ficou tão impressionado a ponto de sentir-se repentinamente
sóbrio.
As estrelas que saltaram à vista com uma pressa despudorada
no momento em que o Sol se pôs eram completamente estranhas
para George. Procurou pelo Cruzeiro do Sul, mas sem sucesso.
Embora soubesse muito pouco de astronomia e pudesse
reconhecer apenas algumas constelações, a ausência das amigas
familiares era perturbadora. Da mesma forma que os ruídos que
vinham da selva, tão próximos a ponto de incomodar. “Chega deste
ar fresco”, pensou George. “Vou voltar para a festa antes que um
morcego-vampiro ou outra coisa tão agradável venha voando
investigar.”
Mal começara a caminhar de volta quando outro convidado
emergiu do alçapão. Agora estava tão escuro que George não
conseguia ver quem era, de modo que gritou:
– Oi. Também está farto da festa?
Seu companheiro invisível riu.
– O Rupert está começando a mostrar os filmes dele. Já vi todos
antes.
– Aceita um cigarro? – George perguntou.
– Obrigado.
À luz da chama do isqueiro (George adorava essas
antiguidades), ele agora conseguia reconhecer seu colega de festa,
um jovem negro muito atraente, cujo nome lhe fora dito, mas que
George esquecera na hora, como fizera com o de vinte outros
completos estranhos na festa. No entanto, parecia haver algo de
familiar nele e, de súbito, George adivinhou o que era:
– Creio que não fomos realmente apresentados, mas você não é
o novo cunhado do Rupert?
– Isso mesmo. Sou Jan Rodricks. Todo mundo diz que eu e Maia
somos muito parecidos.
George ficou em dúvida se devia lhe dar os pêsames pelo
parente recém-adquirido. Resolveu deixar o pobre coitado descobrir
sozinho. Afinal, mesmo que improvável, era possível que Rupert,
desta vez, sossegasse.
– Sou George Greggson. É a primeira vez que você vem a uma
das famosas festas do Rupert?
– É. Dá pra conhecer mesmo um monte de gente nova desse
jeito.
– E não só humanos – acrescentou George. – Esta é a primeira
chance que eu tive de ter contato social com um Senhor Supremo.
O outro hesitou por um momento antes de responder, e George
queria saber qual ponto sensível teria tocado. A resposta, porém,
nada revelou.
– Também nunca tinha visto um. Exceto na TV, é claro.
Aí a conversa definhou, e, após um momento, George percebeu
que Jan desejava ficar sozinho. De qualquer modo, estava
esfriando, então se despediu e voltou para a festa.
Agora a selva estava tranquila. Enquanto Jan se encostava na
parede curva da entrada de ar, o único som que podia ouvir era o
suave murmúrio da casa enquanto ela respirava através de seus
pulmões mecânicos. Sentia-se extremamente só, que era como
desejava estar. Também se sentia extremamente frustrado. E isso
era algo que não desejava de modo algum.
8
Nenhuma Utopia jamais poderá dar satisfação a todo mundo, o
tempo todo.
À medida que suas condições materiais melhoram, os homens
aumentam suas expectativas e vão ficando descontentes com os
poderes e posses que, antes, pareciam estar além de seus sonhos
mais loucos. E, mesmo quando o mundo exterior lhes tiver
concedido tudo o que é possível, ainda permanecem as inquirições
da mente e os anseios do coração.
Jan Rodricks, embora raramente apreciasse sua sorte, teria
ficado ainda mais descontente em uma era anterior. Um século
antes, sua cor teria sido uma tremenda desvantagem, talvez até
impossível de suportar. Hoje, ela nada significava. A forçosa reação,
que dera aos negros do início do século XXI um ligeiro senso de
superioridade, já desaparecera. A útil palavra “preto” não era mais
tabu na sociedade civilizada, mas sim usada sem constrangimento
por todos. Não guardava mais teor emocional do que rótulos como
republicano ou metodista, conservador ou liberal.
O pai de Jan fora um escocês encantador, embora um tanto
displicente, que obtivera fama considerável como mágico
profissional. Sua morte prematura, aos quarenta e cinco anos, fora
agravada pelo consumo excessivo do produto mais famoso de seu
país. Embora Jan nunca tivesse visto o pai bêbado, não estava
certo de um dia tê-lo visto sóbrio.
A sra. Rodricks, ainda bem viva, lecionava teoria avançada das
probabilidades na Universidade de Edimburgo. Era típico da
extrema mobilidade do século XXI que a sra. Rodricks, negra retinta,
tivesse nascido na Escócia, enquanto seu marido, expatriado e loiro,
tivesse passado quase toda a vida no Haiti. Maia e Jan nunca
tiveram uma casa fixa, mas viveram oscilando entre as famílias dos
pais como duas pequenas petecas. Essa criação fora bem divertida,
mas não ajudara a corrigir a instabilidade que ambos herdaram do
pai.
Aos vinte e sete anos, Jan ainda tinha vários anos de vida
universitária pela frente antes que precisasse pensar a sério na
carreira. Fizera o bacharelado sem nenhuma dificuldade, seguindo
um currículo que teria parecido muito estranho um século antes.
Suas áreas de concentração tinham sido matemática e física, mas
estudara, como matérias auxiliares, filosofia e apreciação musical.
Mesmo para os altos padrões da época, ele era um pianista amador
de primeira linha.
Em três anos, faria o doutorado em física aplicada à engenharia,
com astronomia como segundo diploma. Isso exigiria uma boa dose
de trabalho duro, mas Jan até que gostava. Estudava no que talvez
fosse a instituição de ensino superior mais bem situada do mundo: a
Universidade da Cidade do Cabo, aninhada aos pés do Monte
Mesa.
Não tinha preocupações materiais, mas mesmo assim estava
insatisfeito e não via cura para essa condição. Para piorar as coisas,
a própria felicidade de Maia, embora ele não se ressentisse dela de
maneira alguma, havia salientado a principal causa de seus próprios
problemas.
Pois Jan ainda sofria da ilusão romântica, causa de tanto
sofrimento e de tanta poesia, de que todo homem tem apenas um
amor verdadeiro em sua vida. Em uma idade atipicamente tardia,
apaixonara-se, pela primeira vez, por uma dama mais conhecida
pela beleza do que pela constância. Rosita Tisen dizia, e era
verdade, que tinha o sangue dos imperadores manchus correndo
nas veias. Ainda possuía muitos súditos, incluindo a maior parte da
Faculdade de Ciências do Cabo. Jan fora aprisionado por sua
delicada beleza floral, e o namoro avançara o bastante para deixar o
término ainda mais amargo. Jan não conseguia imaginar o que tinha
dado errado...
É claro que ele passaria por cima disso. Outros homens haviam
sobrevivido a catástrofes similares sem danos irreparáveis, haviam
até chegado ao estágio em que conseguiam dizer: “Tenho certeza
de que nunca conseguiria sentir algo sério de verdade por uma
mulher dessas!”. Tal desapego, porém, ainda se encontrava no
futuro distante, e, no momento, Jan estava desgostoso com a vida.
Seu outro motivo de descontentamento era menos fácil de
remediar, pois se tratava do impacto dos Senhores Supremos sobre
suas próprias ambições. Jan era um romântico não apenas no
coração, mas também na mente. Como tantos outros jovens, desde
que a conquista do ar fora assegurada, deixara seus sonhos e sua
imaginação passearem pelos mares inexplorados do espaço.
Um século antes, o Homem pusera o pé na escada que poderia
levá-lo às estrelas. E, nesse exato momento (podia ser
coincidência?), a porta para os planetas fora batida em sua cara. Os
Senhores Supremos haviam imposto poucas proibições absolutas a
qualquer forma da atividade humana (as guerras sendo, talvez, a
grande exceção), mas a pesquisa espacial tinha praticamente
cessado. O desafio apresentado pela ciência dos Senhores
Supremos era grande demais. No momento, pelo menos, a
humanidade perdera o ânimo e se voltara para outras áreas. Não
havia sentido em projetar foguetes quando os Senhores Supremos
tinham meios de propulsão infinitamente superiores, baseados em
princípios dos quais nunca haviam dado nenhuma pista.
Algumas centenas de homens tinham visitado a Lua, a fim de
estabelecer um observatório lunar. Haviam viajado como
passageiros de uma pequena nave, emprestada pelos Senhores
Supremos... e impelida por foguetes. Era óbvio que pouco se
poderia aprender de um estudo daquele veículo primitivo, mesmo
que seus proprietários o entregassem, sem restrições, aos curiosos
cientistas terrestres.
O ser humano ainda era, por conseguinte, um prisioneiro em seu
próprio planeta. Era um planeta muito mais agradável, mas muito
menor do que fora um século antes. Quando os Senhores
Supremos aboliram a guerra, a fome e as doenças, aboliram
também a aventura.
A Lua, em ascensão, começava a pintar o céu oriental com um
tênue brilho leitoso. Lá em cima, Jan sabia, ficava a base principal
dos Senhores Supremos, dentro dos contrafortes de Platão. Embora
as naves de abastecimento provavelmente estivessem indo e vindo
há mais de setenta anos, foi apenas na época de Jan que todo o
segredo fora abandonado e elas fizeram sua partida claramente à
vista da Terra. No telescópio de duzentas polegadas, as sombras
das grandes naves podiam ser vistas com nitidez quando o Sol da
manhã ou do fim da tarde as projetava por quilômetros sobre as
planícies lunares. Como tudo o que os Senhores Supremos faziam
era de enorme interesse para a humanidade, suas vindas e idas
eram acompanhadas com atenção, e começava a surgir um padrão
para seu comportamento (embora não as suas razões). Uma
daquelas grandes sombras desaparecera há algumas horas. Isso
significava, Jan sabia, que em algum lugar próximo da Lua uma
nave dos Senhores Supremos repousava no espaço, levando a
cabo qualquer que fosse a rotina necessária antes de começar a
jornada para sua origem distante e desconhecida.
Jan nunca vira uma dessas naves em retorno se lançar rumo às
estrelas. Se as condições estivessem boas, a cena era visível à
metade do mundo, mas Jan nunca tivera sorte. Nunca se podia
dizer exatamente quando seria a partida; e os Senhores Supremos
não anunciavam o fato. Decidiu esperar mais dez minutos e, então,
reingressar na festa.
O que era aquilo? Apenas um meteoro deslizando através de
Eridanus. Jan relaxou, descobriu que o cigarro havia acabado, e
acendeu outro. Estava na metade deste quando, a meio milhão de
quilômetros, o impulso estelar foi acionado. Acima do centro do luar
que se espalhava, uma minúscula centelha começou a subir em
direção ao zênite. A princípio, seu movimento era tão vagaroso que
mal se percebia, mas a cada segundo ganhava velocidade. À
medida que subia, aumentava de brilho, até que, de repente, sumiu
de vista. Um momento depois, reapareceu, ganhando velocidade e
brilho. Avivando-se e extinguindo-se com um ritmo peculiar, subia
cada vez mais rápido no céu, traçando uma linha de luz flutuante
entre as estrelas. Mesmo que não se soubesse sua distância real, a
impressão de velocidade era arrebatadora. Quando se tinha
conhecimento de que a nave que partia estava em algum lugar além
da Lua, a mente ficava aturdida diante da velocidade e energia
envolvidas.
Jan tinha ciência de que o que agora via era um subproduto
insignificante dessas energias. A nave em si estava invisível, já
muito à frente da luz ascendente. Da mesma forma que um jato
voando a grande altitude pode deixar uma trilha de vapor para trás,
a nave dos Senhores Supremos que se despedia deixava sua
própria esteira peculiar. A teoria geralmente aceita (e parecia haver
pouca dúvida de sua veracidade) era de que a imensa aceleração
do impulso estelar provocava uma distorção local do espaço. O que
Jan estava vendo, ele sabia, era nada mais do que a luz de estrelas
distantes, reunida e concentrada em seu olho nos pontos em que as
condições fossem favoráveis ao longo da trilha da nave. Era uma
prova clara da relatividade: a curvatura da luz na presença de um
gigantesco campo gravitacional.
Agora, a ponta da vasta lente, fina como um lápis, parecia estar
se movendo mais devagar, mas isso era apenas devido à
perspectiva. Na realidade, a nave ainda ganhava velocidade: seu
caminho estava apenas se comprimindo à medida que ela se
arremessava rumo às estrelas. Jan sabia que muitos telescópios a
acompanhavam, com os cientistas da Terra tentando descobrir os
segredos do impulso. Dezenas de artigos já haviam sido publicados
sobre o assunto. Certamente os Senhores Supremos os haviam lido
com o maior interesse.
A luz fantasma estava começando a se esvaecer. Agora era um
risco que definhava, apontando para o centro da constelação de
Carina, como Jan sabia que ia fazer. O planeta dos Senhores
Supremos ficava em algum lugar por ali, mas poderia orbitar
qualquer uma dentre os milhares de estrelas daquele setor do
espaço. Não havia como saber sua distância do Sistema Solar.
Tudo terminara. Embora a nave mal tivesse começado sua
jornada, não havia nada mais que os olhos humanos pudessem ver.
Na mente de Jan, porém, a memória da trilha luminosa ainda estava
acesa, um farol que nunca enfraqueceria enquanto ele tivesse
ambições e desejos.
A festa terminara. Quase todos os convidados já haviam voltado
ao céu e estavam, agora, debandando para os quatro cantos do
globo. Havia, porém, algumas exceções.
Uma era Norman Dodsworth, o poeta, que se embriagara de
maneira desagradável, mas fora sensato o bastante para perder a
consciência antes que uma medida violenta se tornasse necessária.
Depositaram-no, não com muita delicadeza, no gramado, onde se
esperava que uma hiena lhe proporcionasse um rude despertar. Por
conseguinte, para todos os fins práticos, podia ser considerado
ausente.
Outros dos convidados restantes eram George e Jean. O que
não era ideia de George, de modo algum. Queria ir para casa.
Desaprovava a amizade entre Rupert e Jean, mas não pelos
motivos de praxe. George orgulhava-se de ser uma pessoa prática e
equilibrada, e considerava o interesse que unia Jean e Rupert como
não apenas infantil, nesta era da ciência, mas também doentio.
Parecia-lhe incrível que alguém ainda desse crédito à
paranormalidade, e encontrar Rashaverak na festa abalara a sua fé
nos Senhores Supremos.
Agora estava óbvio que Rupert planejara alguma surpresa,
provavelmente com a conivência de Jean. George resignou-se,
pessimista, a qualquer que fosse a besteira que estava por vir.
– Experimentei todo tipo de coisa antes de me decidir por isto –
disse Rupert, orgulhoso. – O grande problema é reduzir a fricção, de
modo a conseguir uma liberdade completa de movimentos. O
esquema do copo na mesa encerada dos velhos tempos não é ruim,
só que já faz séculos que vem sendo usado e eu tinha certeza de
que a ciência moderna podia fazer melhor. E aqui está o resultado.
Tragam as cadeiras. Tem certeza mesmo que não quer
experimentar, Rashy?
O Senhor Supremo pareceu hesitar por uma fração de segundo,
mas logo sacudiu a cabeça. “Teriam aprendido esse gesto na
Terra?”, George se perguntou.
– Não, obrigado – respondeu ele. – Prefiro observar. Alguma
outra ocasião, quem sabe.
– Muito bem, vai ter bastante tempo para mudar de ideia.
“Ah, é mesmo?”, pensou George, olhando, pessimista, para o
relógio.
Rupert congregara os amigos em torno de uma mesa pequena,
porém pesada, de forma perfeitamente circular. Tinha um tampo de
plástico, que ele ergueu de modo a revelar um mar cintilante de
rolamentos esféricos, apinhados juntinhos. A borda ligeiramente
erguida da mesa impedia que escapassem, e George não
conseguia imaginar a sua finalidade. As centenas de pontos de luz
refletida formavam um padrão fascinante e hipnótico; George sentiu
que estava ficando um pouco tonto.
Enquanto traziam as cadeiras, Rupert tateou debaixo da mesa e
tirou de lá um disco de uns dez centímetros de diâmetro, que
colocou sobre a superfície das esferas.
– Aqui está! – disse ele. – Coloquem os dedos em cima disto e
ele vai se mover pra lá e pra cá, sem resistência alguma.
George observou o dispositivo com profunda desconfiança.
Notou que as letras do alfabeto estavam dispostas a intervalos
regulares, embora desordenadamente, ao redor da circunferência
da mesa. Além disso, havia os números de um a nove, espalhados
ao acaso entre as letras, e duas placas, com as palavras “SIM” e
“NÃO”. As placas estavam em lados opostos da mesa.
– Pra mim, parece um monte de besteira mística – resmungou. –
Fico espantado de que alguém leve isso a sério, na nossa época. –
Sentiu-se um pouco melhor após esse leve protesto, dirigido tanto a
Jean quanto a Rupert. Este não alegava ter mais do que um
interesse científico neutro nesses fenômenos. Tinha a mente aberta,
mas não era crédulo. Jean, por outro lado... bem, George às vezes
se preocupava um pouco. Ela parecia acreditar mesmo que havia
algo de real nesse negócio de telepatia e segunda visão.
Só depois de ter feito o comentário é que George percebeu que
também implicava uma crítica a Rashaverak. Nervoso, deu uma
olhadela em torno, mas o Senhor Supremo não demonstrava
qualquer reação. O que, é claro, não provava nada.
Todos já haviam tomado suas posições. No sentido horário, ao
redor da mesa, estavam Rupert, Maia, Jan, Jean, George e Benny
Schoenberger. Ruth Schoenberger estava sentada fora do círculo,
com um caderno. Parecia que ela tinha alguma objeção a tomar
parte nos procedimentos, o que levou Benny a dar algumas indiretas
sobre gente que ainda levava o Talmude a sério. No entanto, ela
parecia perfeitamente à vontade para atuar como secretária.
– Agora, escutem – começou Rupert. – Para os céticos como
George, vamos deixar claro: quer haja ou não algo de sobrenatural
nisto, funciona. Pessoalmente, acho que há uma explicação cem por
cento mecânica. Quando colocamos as mãos em cima do disco,
mesmo que a gente tente evitar influenciar os movimentos, nosso
subconsciente começa a brincar conosco. Analisei várias dessas
sessões e nunca consegui respostas que alguém do grupo não
soubesse ou não fosse capaz de adivinhar, embora às vezes não
tivesse consciência do fato. No entanto, gostaria de levar a cabo a
experiência nestas... circunstâncias bem peculiares.
A “circunstância peculiar” os observava em silêncio, embora, sem
dúvida, não com indiferença. George ficava se perguntando
exatamente o que Rashaverak achava dessa palhaçada. Seriam
suas reações as de um antropólogo, assistindo a algum rito religioso
primitivo? A situação, como um todo, era extremamente insólita, e
George nunca se sentira tão idiota em toda a vida.
Se os outros se sentiam da mesma forma, escondiam suas
emoções. Apenas Jean parecia vermelha e agitada, embora isso
pudesse ser por causa da bebida.
– Tudo pronto? – perguntou Rupert. – Muito bem. – Fez uma
pausa para causar impacto e, em seguida, dirigindo-se a ninguém
em especial, perguntou em voz alta: – Tem alguém aí?
George pôde sentir o disco sob seus dedos tremer um pouco.
Não era de se espantar, considerando a pressão exercida sobre ele
pelas seis pessoas no círculo. Deslizou um pouco, formando um
oito, e, em seguida, voltou a parar no centro.
– Tem alguém aí? – repetiu Rupert. Em um tom de voz mais
coloquial, acrescentou: – É comum que leve dez ou quinze minutos
pra começar. Mas, às vezes...
– Psiu! – fez Jean.
O disco estava se movendo. Começou a oscilar em um grande
arco entre as placas rotuladas “SIM” e “NÃO”. Com alguma
dificuldade, George segurou uma risada. “O que aquilo provaria”,
indagou-se, “caso a resposta fosse ‘NÃO’?” Lembrou-se da velha
piada: “Não tem ninguém aqui, só nós galinhas, sinhô...”
Todavia, a resposta foi “SIM”. O disco voltou rapidamente para o
centro da mesa. De alguma maneira, agora parecia vivo,
aguardando a próxima pergunta. A contragosto, George começou a
ficar impressionado.
– Quem é você? – perguntou Rupert.
Já não havia mais hesitação enquanto as letras eram soletradas.
O disco disparava sobre a mesa como um objeto senciente,
movendo-se tão rápido que George, às vezes, tinha dificuldade em
manter os dedos em contato. Podia jurar que não estava
contribuindo para o movimento. Olhando de relance em torno da
mesa, não conseguiu ver nada de suspeito no rosto dos amigos.
Pareciam tão concentrados, e tão curiosos, quanto ele mesmo.
– SOUTODOS – soletrou o disco, e voltou ao seu ponto de
equilíbrio.
– “Sou todos” – repetiu Rupert. – É uma resposta típica. Evasiva,
mas estimulante. Deve querer dizer que não há nada aqui, exceto
nossas mentes combinadas. – Fez uma pausa momentânea,
deixando claro que estava decidindo sobre a próxima pergunta. Em
seguida, dirigiu-se mais uma vez ao ar:
– Tem uma mensagem para alguém aqui?
– NÃO – respondeu o disco, de imediato.
Rupert olhou em torno da mesa.
– É com a gente. Às vezes, ele dá informações sem ninguém
pedir, mas desta vez vamos ter que fazer perguntas precisas.
Alguém gostaria de começar?
– Vai chover amanhã? – perguntou George, por brincadeira.
De imediato, o disco começou a oscilar de lá para cá sobre a
linha do SIM-NÃO.
– Foi uma pergunta boba – repreendeu Rupert. – É claro que vai
chover em algum lugar e, em outro, não. Não façam perguntas com
respostas ambíguas.
George sentiu-se devidamente repreendido. Decidiu deixar que
outro fizesse a próxima pergunta.
– Qual a minha cor favorita? – perguntou Maia.
– AZUL – foi a resposta imediata.
– Corretíssimo.
– Só que isso não prova nada. Pelo menos três pessoas aqui
sabem disso – observou George.
– Qual a cor favorita de Ruth? – perguntou Benny.
– VERMELHO.
– Está certo, Ruth?
A secretária levantou os olhos do caderno.
– Sim, é isso. Só que Benny sabe disso, e ele está no círculo.
– Eu não sabia – retrucou Benny.
– Pois bem que devia. Eu já disse um monte de vezes.
– Memória subconsciente – murmurou Rupert. – Isso sempre
acontece. Mas será que alguém pode fazer alguma pergunta mais
inteligente? Agora que começamos tão bem, não quero perder o
pique.
Curiosamente, a própria trivialidade do fenômeno estava
começando a impressionar George. Tinha certeza de que não havia
nenhuma explicação sobrenatural: como Rupert dissera, o disco
estava apenas reagindo aos movimentos musculares inconscientes
deles.
Esse fato em si, porém, já era surpreendente e impressionante.
Ele nunca teria acreditado que se pudessem obter respostas tão
rápidas e precisas. Uma vez tentou ver se conseguia influenciar a
mesa, fazendo-a soletrar o seu próprio nome. Conseguiu o “G”, mas
foi só isso: o resto veio sem nexo. Era praticamente impossível,
concluiu, que uma só pessoa assumisse o controle sem que o
restante do círculo soubesse.
Depois de meia hora, Ruth anotara mais de uma dúzia de
mensagens, algumas delas bem longas. Apareciam alguns erros de
ortografia e estranhezas gramaticais, mas eram raros. Qualquer que
fosse a explicação, George já se convencera de que não contribuíra
de maneira consciente para os resultados. Diversas vezes, quando
uma palavra estava sendo soletrada, ele antecipara a próxima letra
e, em consequência, o significado da mensagem. E, em cada uma
das ocasiões, o disco tomara uma direção completamente
inesperada e soletrara algo totalmente diferente. E visto que não
havia pausa para indicar o final de uma palavra e o início da
seguinte, algumas vezes, de fato, toda a mensagem ficava sem
sentido até ser concluída e Ruth lê-la para todos.
A experiência como um todo deu a George uma perturbadora
sensação de estar em contato com alguma mente autônoma e
determinada. E, mesmo assim, não havia nenhuma prova
conclusiva em um sentido ou no outro. As respostas eram tão
triviais, tão ambíguas. O que, por exemplo, se podia tirar de:
ACREDITEMNOHOMEMANATUREZAESTACOMVOCES.
Mesmo assim, às vezes havia indicações de verdades profundas,
e até perturbadoras:
LEMBREMSEOHOMEMNAOESTASOPERTODOHOMEMESTAANACAODEOUTROS.
Mas é claro que todos sabiam disso. Contudo, poderiam ter
certeza de que a mensagem se referia apenas aos Senhores
Supremos?
George estava ficando muito sonolento. “Estava mais do que na
hora”, pensou, “de irem para casa.” Tudo isto era muito intrigante,
mas não levava a lugar nenhum e já estava começando a ficar
repetitivo. Olhou em torno da mesa. Benny parecia estar se sentindo
da mesma forma, Maia e Rupert pareciam ter os olhos ligeiramente
vidrados, e Jean... bem, ela levara a coisa a sério demais o tempo
todo. Sua expressão preocupava George; era quase como se ela
estivesse com medo de parar... e, ao mesmo tempo, com medo de
continuar.
Sobrava apenas Jan. George se indagava o que ele acharia das
excentricidades do cunhado. O jovem engenheiro não fizera
nenhuma pergunta, nem demonstrara nenhuma surpresa diante de
qualquer das respostas. Parecia estar estudando o movimento do
disco, como se fosse apenas mais um fenômeno científico.
Rupert despertou da letargia em que parecia ter caído.
– Vamos fazer só mais uma pergunta e, depois, encerramos o
dia. Que tal você, Jan? Ainda não perguntou nada.
Para surpresa de George, Jan não hesitou. Era como se tivesse
feito sua escolha muito tempo atrás, e estivesse esperando a
oportunidade. Olhou, de relance, para o vulto impassível de
Rashaverak e então perguntou, em voz clara e firme:
– Qual estrela é o sol dos Senhores Supremos?
Rupert conteve um assobio de surpresa. Maia e Benny não
mostraram absolutamente nenhuma reação. Jean fechara os olhos
e parecia adormecida. Rashaverak inclinara-se para a frente, de
modo a poder olhar dentro do círculo, por cima do ombro de Rupert.
E o disco começou a se mover.
Quando voltou à posição de repouso, houve uma breve pausa e,
em seguida, Ruth perguntou, com voz intrigada:
– O que NGS 549672 quer dizer?
Não obteve resposta pois, no mesmo instante, George pediu,
aflito:
– Ajudem-me com a Jean. Acho que desmaiou.
9
– Esse homem, Rupert Boyce – disse Karellen. – Conte-me tudo
sobre ele.
É claro que o Supervisor não usou realmente essas palavras, e
os pensamentos que expressou foram muito mais sutis. Um ouvinte
humano teria escutado uma curta rajada de sons modulados em alta
velocidade, semelhante a um transmissor morse muito rápido em
ação. Embora tivessem sido gravadas diversas amostras da língua
dos Senhores Supremos, todas elas desafiavam qualquer análise,
devido a sua extrema complexidade. A velocidade da transmissão
proporcionava a certeza de que nenhum intérprete, mesmo que
dominasse os elementos da língua, jamais poderia acompanhar os
Senhores Supremos em suas conversas normais.
O Supervisor da Terra estava de costas para Rashaverak, fitando
o outro lado do abismo multicolorido do Grand Canyon. A dez
quilômetros dali, ainda pouco ocultadas pela distância, as paredes
em terraço captavam o Sol em sua plenitude. Descendo centenas
de metros da encosta sombreada em cuja borda Karellen estava,
uma tropa de mulas serpenteava devagar em seu caminho para as
profundezas do vale. Era estranho, pensou Karellen, que tantos
seres humanos ainda aproveitassem cada oportunidade que
tivessem para um comportamento primitivo. Podiam chegar ao
fundo do canyon em uma fração do tempo, e com muito mais
conforto, se quisessem. No entanto, preferiam ser chacoalhados ao
longo de trilhas que deviam ser mesmo tão inseguras quanto
pareciam.
Karellen fez um gesto imperceptível com a mão. O grande
panorama desapareceu de vista, deixando apenas uma claridade
vaga de profundeza indefinida. As realidades do cargo e da posição
voltavam a pressionar o Supervisor.
– Rupert Boyce é uma figura um tanto rara – respondeu
Rashaverak. – Profissionalmente, está encarregado do bem-estar
animal em uma seção importante da principal reserva africana. É
bastante eficiente, e se importa com o trabalho. Como precisa
manter vigilância sobre milhares de quilômetros quadrados, ele tem
um dos quinze visores panorâmicos que fornecemos como
empréstimo, com as salvaguardas de praxe, é claro. É, aliás, o
único com capacidade plena de projeção. Ele nos deu um bom
motivo para isso, de modo que permitimos.
– Qual foi a alegação dele?
– Queria aparecer aos diversos animais selvagens, de modo que
se acostumassem a vê-lo e não o atacassem quando fisicamente
presente. A teoria tem funcionado muito bem com animais que se
valem da visão em lugar do olfato... embora ele deva acabar morto,
mais cedo ou mais tarde. E, é claro, há outro motivo pelo qual
deixamos que ficasse com o aparelho.
– Torná-lo mais cooperativo?
– Exato. Entrei em contato com ele, no início, porque possui uma
das melhores bibliotecas do mundo de parapsicologia e assuntos
afins. De modo educado, mas firme, recusou-se a emprestar
qualquer um deles, assim nada pude fazer além de visitá-lo. Já li
cerca de metade dos livros da biblioteca. Tem sido uma grande
provação.
– Nisso eu posso acreditar muito bem – disse Karellen,
secamente. – E descobriu alguma coisa no meio de toda a
bobagem?
– Sim. Onze casos claros de evolução parcial, e vinte e sete
prováveis. Mas o material é tão seletivo que não é possível usá-lo
para fins de amostragem. E os indícios estão muito confundidos
com misticismo, talvez a principal aberração da mente humana.
– E qual a postura de Boyce para com tudo isso?
– Tenta passar a imagem de ter a mente aberta e ser cético, mas
está claro que nunca teria gasto tanto tempo e esforço nesse campo
a não ser que tivesse alguma fé subconsciente. Eu o questionei
sobre isso e ele admitiu que eu devia estar certo. Ele gostaria de
encontrar alguma prova convincente. É por isso que está sempre
levando a cabo esses experimentos, mesmo que finja serem apenas
jogos.
– Tem certeza de que ele não suspeita que o seu interesse é
mais do que acadêmico?
– Absoluta. Sob muitos aspectos, Rupert Boyce é
tremendamente obtuso e simplório. Isso torna suas tentativas de
pesquisar esse campo bastante patéticas. Não há necessidade de
qualquer medida especial no que lhe diz respeito.
– Entendo. E sobre a moça que desmaiou?
– Esse é o aspecto mais interessante de todo o caso. Jean
Morrel foi, quase com certeza, o canal por onde as informações
vieram. Mas ela tem vinte e seis anos: velha demais para ser um
contato primário, a julgar por toda a nossa experiência prévia. Deve
ser, portanto, alguém muito ligado a ela. A conclusão é óbvia. Não
vamos ter muitos anos mais de espera. Precisamos transferi-la para
a Categoria Púrpura: ela pode ser o mais importante ser humano
vivo.
– Farei isso. E sobre o rapaz que fez a pergunta? Foi uma
curiosidade ao acaso, ou teve algum outro motivo?
– Ele apareceu por acaso, a irmã acabou de se casar com Rupert
Boyce. Não conhecia nenhum dos outros convidados. Estou certo
de que a pergunta não foi premeditada, sendo inspirada pelas
circunstâncias incomuns... e, pelo jeito, pela minha presença. Dados
esses fatores, não é de surpreender que tenha agido dessa
maneira. Seu grande interesse é a astronáutica: é o secretário do
grupo de viagens espaciais da Universidade da Cidade do Cabo e,
obviamente, pretende fazer desse campo o estudo de sua vida.
– Sua carreira deve ser interessante. Entretanto, que atitude você
acha que ele vai tomar, e o que devemos fazer a seu respeito?
– Com certeza vai fazer algumas verificações, assim que puder.
Mas não há como provar a veracidade da informação. E, por causa
da sua origem peculiar, é muito improvável que a publique. Mesmo
que ele o faça, isso afetará as coisas de alguma forma?
– Vou mandar avaliar ambas as situações – respondeu Karellen.
– Embora seja parte de nossa diretiva não revelar nossa base, não
há como a informação ser usada contra nós.
– Concordo. Jan Rodricks terá uma informação de veracidade
duvidosa, e sem valor prático.
– Assim parece – disse Karellen. – Mas não fiquemos tão certos.
Os seres humanos são notavelmente engenhosos e, não raro, muito
persistentes. Nunca é seguro subestimá-los, e será interessante
acompanhar a carreira do sr. Rodricks. Preciso pensar mais nesse
assunto.
Rupert Boyce nunca chegou realmente ao fundo da coisa.
Quando seus convidados partiram, com bem menos tumulto do que
de costume, ele, zeloso, empurrara a mesa de volta a seu canto. A
leve neblina mental provocada pelo álcool impediu qualquer análise
profunda do que ocorrera, e até os fatos reais já estavam um tanto
borrados. Tinha uma ideia não muito nítida de que alguma coisa de
grande mas elusiva importância acontecera, e estava em dúvida se
deveria discutir isso com Rashaverak. Pensando melhor, concluiu
que poderia ser indelicado. Afinal de contas, seu cunhado causara o
problema, e Rupert sentia-se um pouco aborrecido com o jovem
Jan. No entanto, fora culpa de Jan? Fora culpa de alguém?
Sentindo-se meio culpado, Rupert lembrou-se de que tinha sido o
seu experimento. Então decidiu, com razoável convicção, esquecer
a coisa toda.
Quem sabe ele pudesse ter feito algo se a última página do
caderno de Ruth tivesse sido encontrada, mas ela desaparecera na
confusão. Jan sempre alegara inocência... e, bem, ninguém se
arriscaria a acusar Rashaverak. E ninguém conseguia se lembrar
exatamente do que fora soletrado, apenas que não parecia fazer
nenhum sentido.
A pessoa mais imediatamente afetada fora George Greggson.
Não poderia esquecer a sensação de terror que sentiu quando Jean
caiu em seus braços. O súbito desamparo da garota a transformara,
naquele momento, de uma companheira divertida em um objeto de
ternura e afeto. Desde tempos imemoriais as mulheres desmaiavam
(nem sempre sem planejamento prévio), e os homens sempre
reagiam da maneira desejada. O colapso de Jean fora totalmente
espontâneo, mas não poderia ter sido mais bem planejado. Naquele
instante, como George percebeu mais tarde, ele chegara a uma das
mais importantes decisões de sua vida. Jean era, sem dúvida, a
garota que importava, a despeito de suas ideias esquisitas e de
seus amigos mais esquisitos ainda. Não tinha a intenção de
abandonar totalmente Naomi ou Joy ou Elsa ou... qual era o nome
dela?... Denise. Mas já era hora de algo mais estável. Não tinha
dúvidas de que Jean concordaria com ele, pois seus sentimentos
foram bastante óbvios desde o início.
Por trás de sua decisão, havia outro fator, do qual ele nem
desconfiava. A experiência daquela noite enfraquecera seu
desprezo e ceticismo pelos interesses peculiares de Jean. Ele
nunca reconheceria isso, mas era verdade. E removera a última
barreira entre os dois.
Olhou para Jean enquanto ela repousava, pálida, mas serena, no
banco reclinável do carro aéreo. Embaixo, havia a escuridão; acima,
as estrelas. George não tinha ideia, com precisão maior do que mil
quilômetros, de onde poderiam estar. Nem se importava. Isso era
trabalho do robô que os levava para casa e os aterrissaria, conforme
anunciava o painel de controle, daqui a cinquenta e sete minutos.
Jean sorriu de volta para George e, suavemente, desalojou sua
mão da dele.
– Deixe a circulação voltar, pelo menos – ela pediu, esfregando
os dedos. – Queria que acreditasse em mim quando digo que estou
perfeitamente bem agora.
– Então o que é que você acha que aconteceu? Deve se lembrar
de alguma coisa.
– Não... é simplesmente um vazio total. Ouvi Jan fazer a
pergunta... e depois todos vocês estavam fazendo uma tempestade
em copo d’água sobre mim. Tenho certeza de que foi alguma
espécie de transe. Afinal...
Fez uma pausa e, em seguida, decidiu não contar a George que
esse tipo de coisa já acontecera. Sabia como ele pensava sobre
essas questões, e não desejava deixá-lo mais preocupado do que já
estava... e, quem sabe, espantá-lo de vez.
– Afinal... o quê? – George perguntou.
– Ah, nada. Fico imaginando o que aquele Senhor Supremo
pensou da coisa toda. Acho que demos a ele mais material do que
esperava.
Jean teve um leve arrepio, e seus olhos ficaram nublados.
– Tenho medo dos Senhores Supremos, George. Ah, não quero
dizer que sejam malignos, ou qualquer besteira assim. Tenho
certeza de que têm boas intenções e de que estão fazendo o que
acham ser melhor pra gente. Só me pergunto, quais são os planos
deles de verdade?
George remexeu-se, desconfortável, e disse:
– Os homens têm se perguntado isso desde que eles chegaram
à Terra. Eles vão nos contar quando estivermos prontos. E,
francamente, não estou curioso. Além disso, tenho coisas mais
importantes pra me preocupar. – Voltou-se para Jean e agarrou as
mãos dela. – Que tal irmos até o cartório amanhã e assinarmos um
compromisso de matrimônio por... digamos... cinco anos?
Jean olhou intensamente para ele e decidiu que, no geral,
gostava do que via.
– Melhor dez – ela respondeu.
Jan deu tempo ao tempo. Não havia pressa, e ele queria pensar.
Era quase como se estivesse com medo de fazer qualquer
verificação, receando que a esperança fantástica que lhe viera à
mente fosse destruída com tal rapidez. Enquanto ainda vivesse na
incerteza, podia pelo menos sonhar.
Além disso, para tomar qualquer medida nesse sentido, teria de
falar com a bibliotecária do Observatório. Ela conhecia Jan e seus
interesses muito bem, e por certo ficaria intrigada com seu pedido.
Não deveria fazer nenhuma diferença, mas Jan estava decidido a
não deixar nada ao acaso. Haveria uma oportunidade melhor na
próxima semana. Sabia que estava sendo supercauteloso, mas isso
acrescentava um entusiasmo juvenil à aventura. Além disso, Jan
temia o ridículo tanto quanto qualquer coisa que os Senhores
Supremos pudessem fazer para detê-lo. Se ele estava caçando
ilusões, ninguém mais precisava saber.
Tinha uma razão perfeitamente aceitável para ir a Londres; os
preparativos tinham sido feitos há semanas. Embora fosse jovem
demais e pouco qualificado para ser um representante, era um dos
três estudantes que tinham dado um jeito de entrar na delegação
oficial que iria à assembleia da União Astronômica Internacional. As
reservas estavam feitas, e seria uma pena desperdiçar a
oportunidade, já que não visitava Londres desde a infância. Sabia
que pouquíssimos artigos, dentre as dezenas a serem apresentados
à UAI, teriam interesse para ele, mesmo que fosse capaz de
entendê-los. Como qualquer delegado em um congresso científico,
assistiria às conferências que pareciam promissoras e passaria o
resto do tempo batendo papo com outros entusiastas ou,
simplesmente, fazendo turismo.
Londres sofrera uma enorme transformação nos últimos
cinquenta anos. Agora mal continha dois milhões de pessoas, e cem
vezes isso em máquinas. Não era mais um grande porto, pois, com
cada país produzindo quase tudo o que precisava, todo o padrão de
comércio mundial fora alterado. Ainda havia produtos que certos
países faziam melhor, mas eram transportados diretamente pelo ar
a seus destinos. As rotas comerciais que outrora convergiam para
os grandes portos e, mais tarde, para os grandes aeroportos,
haviam enfim se dispersado em uma intricada teia que cobria o
mundo inteiro, sem pontos nodais mais importantes.
Entretanto, algumas coisas não haviam mudado. A cidade ainda
era um centro administrativo, artístico e educacional. Nessas áreas,
nenhuma das capitais da Europa podia competir com ela. Nem
mesmo Paris, a despeito das muitas afirmações em contrário.
Mesmo um londrino de um século atrás ainda saberia se orientar,
pelo menos na área central, sem dificuldade. Havia novas pontes
sobre o Tâmisa, mas nos velhos lugares. As enormes e sujas
estações ferroviárias haviam desaparecido, banidas para os
subúrbios. As Casas do Parlamento, porém, estavam inalteradas. O
olho solitário de Nelson continuava a fitar Whitehall. A cúpula de
Saint Paul ainda se erguia sobre Ludgate Hill, embora houvesse
agora edifícios mais altos para desafiar sua preeminência.
E a guarda ainda marchava defronte ao Palácio de Buckingham.
Todas essas coisas, pensou Jan, podiam esperar. Era época de
férias, e ele estava alojado, com os dois colegas, em um dos
albergues da Universidade. Bloomsbury também não mudara seu
jeito de ser no último século: ainda era uma ilha de hotéis e
pensões, embora já não se acotovelassem com tanta intensidade,
nem formassem fileiras tão idênticas e intermináveis de tijolos
revestidos de fuligem.
Foi só no segundo dia do Congresso que Jan teve a
oportunidade. Os principais artigos estavam sendo lidos na grande
sala de reuniões do Centro de Ciências, não longe do Concert Hall
que tanto contribuíra para fazer de Londres a metrópole musical do
mundo. Jan queria ouvir a primeira conferência do dia, que, segundo
os boatos, derrubaria completamente a teoria atual sobre a
formação dos planetas.
Podia ser, mas Jan havia entendido muito pouco até o momento
em que saiu, depois do intervalo. Desceu apressadamente até a
lista telefônica e procurou os quartos que desejava.
Algum funcionário público com senso de humor colocara a
Sociedade Astronômica Real no último andar do grande edifício, um
gesto que os membros do Conselho apreciaram com gratidão, pois
lhes dava uma vista magnífica da outra margem do Tâmisa e de
toda a parte norte da cidade. Não parecia haver ninguém por perto,
mas Jan, apertando seu cartão de sócio como se fosse um
passaporte, para o caso de ser questionado, não teve dificuldade
em localizar a biblioteca.
Levou quase uma hora para encontrar o que desejava e para
aprender a manipular os grandes catálogos estelares, com seus
milhões de entradas. Tremia um pouco ao se aproximar do fim de
sua busca, e estava feliz de que não houvesse ninguém por perto
para perceber seu nervosismo.
Colocou o catálogo de volta entre seus parelhos e ficou sentado,
quieto, por um longo tempo, contemplando cegamente a parede de
livros à sua frente. Em seguida, dirigiu-se sem pressa para os
corredores silenciosos, passou pelo escritório do funcionário (havia
alguém ali, agora, ocupado, abrindo caixas de livros) e desceu a
escada. Evitou o elevador, pois queria se sentir livre e desimpedido.
Havia outra conferência que gostaria de ter assistido, mas ela não
tinha mais importância.
Seus pensamentos ainda estavam em um torvelinho quando
passou para o calçadão beira-rio e deixou que seus olhos
acompanhassem o Tâmisa em sua marcha lenta para o mar. Era
difícil para qualquer pessoa com sua formação em ciência ortodoxa
aceitar o indício que agora estava em suas mãos. Nunca teria
certeza de sua veracidade, mas a probabilidade era esmagadora.
Andando lentamente ao lado do muro ribeirinho, reviu os fatos, um a
um.
Fato um: ninguém na festa de Rupert poderia ter imaginado que
ele iria fazer aquela pergunta. Ele próprio não sabia. Fora uma
reação espontânea às circunstâncias. Por conseguinte, ninguém
podia ter preparado uma resposta, ou já tê-la adormecida na mente.
Fato dois: “NGS 549672” não devia querer dizer nada para
ninguém, exceto para um astrônomo. Embora o grande
Levantamento Geográfico Nacional tivesse sido concluído meio
século antes, sua existência era conhecida apenas por alguns
milhares de especialistas. E, pegando um número qualquer ao
acaso, ninguém poderia ter dito em que região do céu ficava aquela
estrela específica.
No entanto – e este era o fato número três, o qual apenas agora
ele descobrira –, a pequena e insignificante estrela conhecida como
NGS 549672 estava precisamente no lugar certo. Ficava no coração
da constelação de Carina, no fim da trilha brilhante que o próprio
Jan vira, tão poucas noites atrás, levando para fora do Sistema
Solar e através das profundezas do espaço.
Era uma coincidência impossível. A NGS 549672 tinha de ser o
sistema natal dos Senhores Supremos. Aceitar esse fato, porém,
violava todas as ideias que Jan acalentara sobre o método
científico. “Muito bem, que sejam violadas.” Ele precisava aceitar o
fato de que, de alguma forma, o fantástico experimento de Rupert
havia acessado uma fonte de conhecimento até agora ignorada.
Rashaverak? Essa parecia a explicação mais provável. O Senhor
Supremo não estivera no círculo, mas isso era um fato de menor
importância. No entanto, Jan não estava preocupado com o
mecanismo da parafísica, mas apenas em usar os resultados.
Muito pouco se sabia sobre a NGS 549672. Nunca houvera nada
que a distinguisse de um milhão de outras estrelas. No entanto, o
catálogo fornecia sua magnitude, suas coordenadas e tipo espectral.
Jan teria de pesquisar um pouco e fazer alguns cálculos simples.
Então ele saberia, pelo menos aproximadamente, a que distância o
mundo dos Senhores Supremos estava da Terra.
Um sorriso espalhou-se sem pressa pelo seu rosto, enquanto ele
se afastava do Tâmisa, de volta para a fachada branquíssima do
Centro de Ciências. Conhecimento era poder... e Jan era o único
homem na Terra que sabia a origem dos Senhores Supremos.
Como usaria esse conhecimento, ainda não fazia ideia. Ficaria
armazenado em segurança dentro de sua mente, aguardando o
momento certo.
10
A raça humana continuou a se deleitar na longa e ensolarada tarde
de verão de paz e prosperidade. Voltaria a haver um inverno? Era
impensável. A Idade da Razão, prematuramente acolhida pelos
líderes da Revolução Francesa, dois séculos e meio atrás, agora
realmente chegara. Desta vez, não havia engano.
É claro que houve algumas desvantagens, embora fossem
aceitas de boa vontade. Era preciso ser muito velho, de fato, para
perceber que os jornais, que o teledifusor imprimia em cada
residência, eram bem tediosos. Já se fora o tempo das crises que,
outrora, geravam manchetes garrafais. Não havia assassinatos
misteriosos para deixar a polícia perplexa e despertar em um milhão
de corações a indignação moral que muitas vezes não passava de
inveja reprimida. Os poucos assassinatos que aconteciam nunca
eram misteriosos: bastava apenas girar um controle... e o crime era
reconstituído. A existência de instrumentos capazes dessas
façanhas causara, a princípio, considerável pânico entre pessoas
até que bastante cumpridoras da lei. Isso era algo que não fora
antecipado pelos Senhores Supremos, que haviam dominado
quase, mas não todos os aspectos da psicologia humana. Foi
preciso deixar perfeitamente claro que nenhum bisbilhoteiro seria
capaz de espionar seus semelhantes, e que os pouquíssimos
instrumentos em mãos humanas ficariam sob estrito controle. O
projetor de Rupert Boyce, por exemplo, não podia funcionar além
dos limites da Reserva, de modo que ele e Maia eram as únicas
pessoas dentro de seu alcance.
Mesmo os poucos crimes sérios que ocorriam não ganhavam
atenção especial da imprensa, pois, afinal de contas, pessoas bem-
educadas não se interessavam em ler sobre as gafes dos outros.
A semana de trabalho média agora era de cerca de vinte horas...
mas essas vinte horas não eram moleza. Restava pouco trabalho de
caráter rotineiro, mecânico. A mente dos homens era valiosa demais
para ser desperdiçada em tarefas que podiam ser feitas por alguns
milhares de transistores, algumas células fotoelétricas e um metro
cúbico de circuitos impressos. Havia fábricas que funcionavam por
semanas sem a visita de um único ser humano. Os homens eram
necessários para resolver problemas, para tomar decisões, para
planejar novos empreendimentos. Os robôs faziam o resto.
A existência de tanto lazer teria criado enormes problemas um
século antes. Contudo, o ensino havia superado a maior parte deles,
pois uma mente bem fornida está a salvo do tédio. O padrão geral
de cultura chegara a um nível que outrora teria parecido fantástico.
Não havia indícios de que a inteligência da raça humana tivesse
aumentado. Entretanto, pela primeira vez, todos recebiam as mais
completas oportunidades para usar os miolos que tinham.
A maioria das pessoas tinha duas residências, em partes
amplamente dispersas do mundo. Agora que as regiões polares
haviam se tornado acessíveis, uma fração considerável da raça
humana oscilava entre o Ártico e a Antártida em intervalos
semestrais, buscando o longo verão polar desprovido de noites.
Outros humanos tinham ido para os desertos, subido as montanhas
ou, até, entrado no mar. Não havia lugar no planeta onde a ciência e
a tecnologia não pudessem fornecer um lar confortável, caso a
pessoa realmente quisesse.
Alguns dos domicílios mais excêntricos proporcionavam as
poucas notícias empolgantes. Até na sociedade mais bem
organizada sempre haverá acidentes. Quem sabe fosse um bom
sinal que as pessoas achassem que valia a pena arriscar o pescoço
e, às vezes, quebrá-lo, para ter uma aconchegante casa de campo
pregada debaixo do cume do Everest, ou para poder olhar pela
janela através do borrifo das cataratas Vitória. Como resultado,
alguém sempre estava sendo resgatado de algum lugar. Tornara-se
uma espécie de jogo, quase um esporte planetário.
As pessoas podiam se permitir esses caprichos, pois tinham
tanto o tempo como o dinheiro. A abolição das forças armadas
havia, de uma hora para outra, quase que dobrado a riqueza efetiva
do mundo, e o aumento da produção fizera o resto. Como resultado,
era difícil comparar o padrão de vida do homem do século XXI com o
de qualquer de seus predecessores. Tudo era tão barato que as
necessidades da vida eram gratuitas, oferecidas como serviços
públicos pela comunidade tal como as estradas, a água, a
iluminação pública e os esgotos eram fornecidos antigamente. Um
homem podia viajar para onde quisesse, comer o que desejasse...
sem tirar dinheiro do bolso. Ganhara esse direito por ser um
membro produtivo da comunidade.
Havia, é claro, alguns vadios, mas o número de pessoas com a
força de vontade necessária para se abandonar a uma vida de
completa inatividade era muito menor do que em geral se suporia.
Sustentar esses parasitas era um fardo consideravelmente menor
do que manter os exércitos de cobradores de passagens,
balconistas de lojas, caixas de bancos, corretores e assim por
diante, cuja principal função, quando se olhava do ponto de vista
global, era transferir itens de uma coluna para outra, em um livro
contábil.
Quase um quarto da atividade total da raça humana – alguém
estimara – era agora empregado em esportes de vários tipos, indo
desde ocupações tão sedentárias como o xadrez até práticas letais,
como planar com esquis em vales montanhosos. Um resultado
inesperado disso foi a extinção dos atletas profissionais. Havia um
excesso de amadores brilhantes, e as condições econômicas
alteradas tornaram o velho sistema obsoleto.
Depois do esporte, o entretenimento, em todas as suas
variedades, era o maior setor da economia. Por mais de um século
houvera gente acreditando que Hollywood era o centro do mundo.
Agora, podiam defender essa tese melhor do que nunca, mas era
possível dizer, com certeza, que a maior parte das produções da
década de 2050 teriam parecido incompreensivelmente cerebrais na
década de 1950. Tinha havido algum progresso: a bilheteria já não
era a soberana de tudo o que via.
Contudo, em meio a todas as distrações e diversões de um
planeta que agora parecia estar bem a caminho de se transformar
em um vasto parquinho, havia os que ainda achavam tempo para
repetir uma velha pergunta, nunca respondida:
“Daqui, para onde vamos?”
11
Jan se apoiou no elefante e repousou as mãos sobre a pele, áspera
como uma casca de árvore. Olhou para as grandes presas e para a
tromba curva, apreendida pela habilidade do taxidermista em um
momento de desafio ou saudação. “Que criaturas ainda mais
estranhas”, pensou, “de que mundos ainda desconhecidos, um dia
olhariam para este exilado da Terra?”
– Quantos animais já mandou para os Senhores Supremos? –
perguntou a Rupert.
– Mais de cinquenta, embora, é claro, este seja o maior. É
magnífico, não é? Na maior parte, os outros eram pequenos:
borboletas, cobras, macacos e assim por diante. Mas consegui um
hipopótamo no ano passado.
Jan deu um sorrisinho irônico.
– É uma ideia mórbida, mas imagino que, a esta altura, eles
devem ter um belo grupo empalhado de Homo sapiens na coleção.
Fico imaginando, quem teve a honra?
– Deve ter razão – respondeu Rupert, um tanto indiferente. –
Seria fácil arrumar nos hospitais.
– O que aconteceria – prosseguiu Jan, pensativo – se alguém se
oferecesse para ir como um espécime vivo? Supondo que houvesse
garantia de retorno, é claro.
Rupert riu, embora com simpatia.
– Está se oferecendo? Quer que fale pro Rashaverak?
Por um momento, Jan pensou sobre a ideia com algo próximo da
seriedade. Mas então abanou a cabeça.
– Hmm... não. Estava só pensando em voz alta. Tenho certeza
de que não iam me querer. A propósito, tem visto Rashaverak
ultimamente?
– Ele me ligou faz umas seis semanas. Tinha acabado de achar
um livro que eu estava procurando. Muito gentil da parte dele.
Jan contornou lentamente o monstro empalhado, admirando a
perícia que o congelara para sempre neste instante de maior vigor.
– Descobriu o que ele estava procurando? Quero dizer, parece
tão difícil conciliar a ciência dos Senhores Supremos com um
interesse no oculto.
Rupert olhou para Jan com certa suspeita, imaginando se o
cunhado estaria caçoando de seu passatempo.
– A explicação dele me pareceu boa. Como antropólogo, estava
interessado em todos os aspectos da nossa cultura. Lembre-se, eles
têm tempo de sobra. Podem se aprofundar mais do que qualquer
pesquisador humano. Ler toda a minha biblioteca deve ter exigido
só um pequeno esforço de Rashy.
Talvez essa fosse a resposta, mas Jan não estava convencido.
Algumas vezes pensara em confiar seu segredo a Rupert, mas
sua precaução natural o deteve. Quando voltasse a se encontrar
com seu amigo Rashaverak, Rupert ia acabar deixando alguma
coisa escapar. A tentação seria grande demais.
– Aliás – disse Rupert, mudando radicalmente de assunto –, se
você acha que este é um trabalho grande, devia ver a encomenda
que o Sullivan recebeu. Ele se comprometeu a entregar as duas
maiores criaturas de todas: um cachalote e uma lula-gigante. Vão
ser exibidas abraçadas, em combate mortal. Que quadro vivo vão
formar!
Por um momento, Jan ficou em silêncio. A ideia que explodira em
sua mente era chocante demais, fantástica demais para ser levada
a sério. No entanto, devido à própria ousadia, poderia ter sucesso.
– O que há? – perguntou Rupert, preocupado. – O calor está
acabando com você?
Jan se sacudiu, forçando-se de volta à realidade presente, e
respondeu:
– Estou bem. Estava só imaginando como os Senhores
Supremos vão fazer para apanhar um pacotinho desses.
– Ah – respondeu Rupert –, uma dessas naves de carga deles
vai descer, abrir uma escotilha e içar tudo pra dentro.
– Foi exatamente o que pensei – disse Jan.
Poderia ser a cabine de uma nave espacial, mas não era. As
paredes estavam cobertas de medidores e instrumentos. Não havia
janelas, apenas uma grande tela à frente do piloto. A embarcação
podia carregar seis passageiros. No momento, porém, Jan era o
único.
Observava atentamente a tela, absorvendo cada vislumbre
daquela região estranha e desconhecida enquanto ela passava
diante de seus olhos. Desconhecida, sim. Tão desconhecida quanto
qualquer coisa que poderia encontrar além das estrelas, caso o seu
plano louco tivesse êxito. Estava entrando em um reino de criaturas
de pesadelo, que se caçavam umas às outras em meio a uma
escuridão que não era perturbada desde a origem do mundo. Era
um reino acima do qual os homens vinham navegando por milhares
de anos. Ficava a menos de um quilômetro abaixo das quilhas de
seus navios. No entanto, até os últimos cem anos, eles sabiam
menos a respeito dele do que sobre a face visível da Lua.
O piloto estava descendo das alturas do oceano em direção à
vastidão ainda inexplorada da Bacia do Pacífico Sul. Jan sabia que
ele estava seguindo a grade invisível de ondas sonoras criada por
sinalizadores no fundo do oceano. Ainda navegavam tão acima
desse fundo quanto as nuvens ficavam acima da superfície da
Terra...
Havia muito pouco para se ver; os sensores do submarino
estavam vasculhando as águas em vão. A perturbação causada
pelos jatos devia ter assustado os peixes menores. Se alguma
criatura viesse investigar, seria tão grande a ponto de não saber o
que era medo.
A minúscula cabine vibrava com a energia. Uma energia capaz
de manter afastado o imenso peso das águas sobre suas cabeças e
de criar esta bolhinha de luz e ar dentro da qual os homens podiam
viver. Se essa energia falhasse, pensou Jan, eles se tornariam
prisioneiros em um túmulo de metal, enterrados profundamente nos
sedimentos do leito oceânico.
– Hora de verificar a posição – disse o piloto.
Acionou um conjunto de interruptores e o submarino foi parando
com um suave surto de desaceleração, à medida que os jatos
cessavam o impulso. A embarcação estava imóvel, flutuando em
equilíbrio, como um balão flutua na atmosfera.
Levou apenas um momento para verificar a posição na grade do
sonar. Ao terminar a leitura de seus instrumentos, o piloto observou:
– Antes de religar os motores, vamos ver se dá para ouvir
alguma coisa.
O alto-falante inundou o compartimento pequeno e silencioso
com um murmúrio baixo e contínuo. Não havia nenhum som que se
destacasse e que Jan pudesse distinguir do restante. Era um ruído
de fundo uniforme, no qual todos os sons individuais estavam
misturados. Jan sabia que escutava a conversa de incontáveis
criaturas do mar falando ao mesmo tempo. Era como se estivesse
no meio de uma floresta fervilhante de vida. Exceto que lá ele teria
reconhecido algumas das vozes individuais. Aqui, nem um fio da
tapeçaria de sons podia ser desembaraçado e identificado. Era tão
estranho, tão distante de qualquer coisa que ele já conhecera, que o
deixava de cabelos em pé. E ainda assim, isso era parte de seu
próprio mundo...
O grito cortou o vibrante ruído de fundo como o lampejo de um
raio diante de uma nuvem escura de tempestade. Rapidamente
perdeu força até se tornar o gemido de uma banshee, uma
ondulação que foi minguando e morrendo, para se repetir, um
momento depois, vinda de uma fonte mais distante. E então um coro
de gritos irrompeu, um pandemônio que fez com que o piloto
estendesse rapidamente a mão para o controle do volume.
– Que diabo foi isso? – soltou Jan.
– Esquisito, não é? Um grupo de baleias, a uns dez quilômetros
daqui. Sabia que estavam na vizinhança e achei que você ia gostar
de ouvir.
Jan estremeceu.
– E eu que sempre pensei que o mar fosse silencioso! Por que é
que elas fazem um barulhão desses?
– Devem estar falando umas com as outras, eu acho. Sullivan
pode te responder. Dizem que ele consegue até identificar algumas
das baleias individualmente, embora eu ache difícil de acreditar. Ei,
temos companhia!
Um peixe de mandíbulas mais que exageradas apareceu na tela
de visualização. Parecia ser bem grande, mas, como Jan não sabia
qual a escala da imagem, era difícil de avaliar. Pendendo de um
ponto logo abaixo das guelras, havia uma longa gavinha,
terminando em um órgão inidentificável, com o formato de um sino.
– Estamos vendo no infravermelho – disse o piloto. – Vamos dar
uma olhada na imagem normal.
O peixe desapareceu por completo. Apenas o pingente
permaneceu, brilhando com sua própria fosforescência vívida.
Então, apenas por um instante, o contorno da criatura tremeluziu de
volta à visibilidade, à medida que uma linha de luzes piscava ao
longo de seu corpo.
– É um peixe-diabo. Aquilo é a isca que usa para atrair outros
peixes. Fantástico, não é? O que não entendo é... Como é que a
isca não atrai peixes grandes o bastante para comer ele? Mas não
podemos esperar aqui o dia todo. Olhe como ele corre quando eu
ligo os jatos.
A cabine voltou a vibrar, à medida que a embarcação movia-se
para a frente. O grande peixe luminoso piscou subitamente todas as
suas luzes, em um frenético sinal de alarme, e partiu como um
meteoro para a escuridão do abismo.
Foi só depois de mais vinte minutos de lenta descida que os
feixes invisíveis do sonar apanharam o primeiro vislumbre do leito
oceânico. Muito abaixo passava uma cadeia de colinas, seus
contornos curiosamente suaves e arredondados. Quaisquer
irregularidades que um dia tivessem possuído há muito tinham sido
eliminadas pela chuva incessante que caía das alturas aquáticas.
Mesmo aqui, no meio do Pacífico, longe dos grandes estuários que
varriam lentamente os continentes para o mar, essa chuva nunca
cessava. Vinha dos flancos dos Andes, rasgados pelas
tempestades, dos corpos de bilhões de criaturas vivas, da poeira de
meteoros que tinham vagado pelo espaço durante eras e que, por
fim, descansavam. Aqui, na noite eterna, estavam sendo
assentados os alicerces das terras futuras.
Os montes ficaram para trás. Eram os postos de fronteira, como
Jan podia ver nos mapas, de uma vasta planície que jazia a uma
profundidade grande demais para ser alcançada pelo sonar.
O submarino prosseguiu em seu suave voo de descida. Agora,
outra imagem começava a se formar na tela. Por causa do ângulo
de visão, levou algum tempo para que Jan pudesse interpretar o que
via. Percebeu então que estavam se aproximando de uma
montanha submersa que se erguia da planície ainda invisível.
A imagem agora estava mais clara. A esta curta distância, a
definição dos sonares melhorava e a vista era quase tão nítida
quanto seria se a imagem estivesse sendo formada por ondas de
luz. Jan conseguia ver pequenos detalhes, ver os estranhos peixes
que perseguiam uns aos outros por entre as rochas. A certa altura,
uma criatura de aspecto maligno e mandíbulas escancaradas
percorreu sem pressa uma fenda semioculta. Em uma velocidade
tão grande a ponto de o olhar não conseguir acompanhar o
movimento, um longo tentáculo surgiu e arrastou o peixe, que se
debatia, para a morte.
– Quase lá – disse o piloto. – Em um minuto você vai poder ver o
laboratório.
Estavam passando devagar sobre um espigão rochoso que se
destacava da base da montanha. A planície abaixo já estava ficando
visível. Jan calculou que não estavam a mais de algumas centenas
de metros acima do leito marinho. Então viu, mais ou menos um
quilômetro à frente, um aglomerado de esferas apoiadas em tripés e
unidas entre si por tubos de conexão. Pareciam muito com os
tanques de alguma fábrica de produtos químicos, e, de fato, haviam
sido projetadas seguindo os mesmos princípios básicos. A única
diferença era que aqui as pressões sofridas vinham de fora, não de
dentro.
– Que é aquilo? – soltou Jan, de supetão.
Apontou um dedo vacilante para a esfera mais próxima. O
curioso padrão de linhas em sua superfície havia se dissolvido em
uma rede de tentáculos gigantes. À medida que o submarino se
aproximava, ele pôde ver que terminavam em uma grande bolsa
flácida, da qual emergia um par de olhos enormes.
– Aquilo – disse o piloto, indiferente – deve ser Lúcifer. Alguém
deve estar dando comida pra ele de novo. – Acionou um interruptor
e inclinou-se sobre a mesa dos controles.
– S.2 chamando Laboratório. Vou conectar. Podem espantar o
bichinho de estimação de vocês?
A resposta veio logo em seguida:
– Laboratório para S.2. Tudo bem. Vá em frente e faça contato.
Luci vai sair do caminho.
As paredes curvas de metal começaram a preencher a tela. Jan
teve um último vislumbre de um braço gigante, salpicado de
ventosas, batendo-se para longe com a aproximação deles. Logo
em seguida, houve um clangor surdo e uma série de ruídos de metal
arranhado, à medida que os acopladores procuravam os pontos de
trava no casco liso e oval do submarino. Em poucos minutos, a
embarcação estava firmemente comprimida contra a parede da
base, as duas portinholas de entrada estavam encaixadas e
avançavam pelo casco do submarino na ponta de um parafuso
gigante e oco. Então se ouviu o sinal de “pressão equalizada”, as
escotilhas se deslacraram e o caminho para o Laboratório Mar
Profundo Um estava aberto.
Jan encontrou o professor Sullivan em um pequeno
compartimento desarrumado, que parecia combinar os atributos de
escritório, oficina e laboratório. Estava olhando, em um microscópio,
para o que parecia ser uma pequena bomba. Supostamente, era
uma cápsula de pressão contendo algum espécime de vida do fundo
do mar, ainda nadando feliz em suas condições normais de
toneladas por centímetro quadrado.
– Bem – disse Sullivan, afastando-se lentamente da ocular. –
Como vai o Rupert? E o que podemos fazer por você?
– O Rupert está bem – respondeu Jan. – Mandou um abraço e
disse que ia adorar fazer uma visita, se não fosse pela claustrofobia.
– Então aqui embaixo ele ia ficar mesmo um pouquinho aflito,
com cinco quilômetros de água por cima. Aliás, isso não te
preocupa?
Jan deu de ombros.
– Não mais do que viajar de estratojato. Se algo saísse errado, o
resultado seria o mesmo, em qualquer dos casos.
– Essa é a atitude inteligente, mas é surpreendente como pouca
gente vê as coisas assim.
Sullivan brincou com os controles do microscópio e, em seguida,
disparou a Jan um olhar inquisidor e disse:
– Fico muito feliz em mostrar-lhe tudo aqui, mas confesso que
fiquei um pouco surpreso quando Rupert me passou o seu pedido.
Não consegui entender por que um de vocês, maníacos espaciais,
se interessaria pelo nosso trabalho. Não está indo no sentido
contrário? – Deu uma risada divertida. – Pessoalmente, nunca
entendi por que vocês têm tanta pressa de sair do planeta. Vai levar
séculos para termos tudo dos oceanos mapeado e classificado
como se deve.
Jan respirou fundo. Estava satisfeito que Sullivan tivesse tido a
iniciativa de puxar o assunto, pois tornaria a sua tarefa muito mais
fácil. Apesar da zombaria do ictiologista, ambos tinham muito em
comum. Não deveria ser muito difícil construir uma ponte, angariar a
simpatia e a ajuda de Sullivan. Era um homem de imaginação, ou
nunca teria explorado este mundo submarino. Jan, porém, teria de
ser cauteloso, pois o pedido que ia fazer era, para dizer o mínimo,
um tanto fora do normal.
Havia um fato que lhe dava confiança. Mesmo que Sullivan se
recusasse a colaborar, decerto guardaria o segredo de Jan. E aqui,
neste pequeno escritório silencioso no leito do Pacífico, não parecia
haver perigo de que os Senhores Supremos (quaisquer que fossem
os estranhos poderes que tivessem) fossem capazes de ouvir a
conversa.
– Professor Sullivan, se o senhor estivesse interessado no
oceano, mas os Senhores Supremos se recusassem a deixar que
chegasse perto dele, como ia se sentir?
– Muitíssimo aborrecido, sem dúvida.
– Tenho certeza disso. E suponha que, um dia, tivesse uma
chance de alcançar a sua meta, sem que eles soubessem. O que
faria? Ia aproveitar a oportunidade?
Sullivan não hesitou, nem por um segundo:
– Claro que sim. E discutiria depois.
“Bem nas minhas mãos!”, pensou Jan. “Não pode recuar agora...
a menos que tenha medo dos Senhores Supremos. E duvido que
Sullivan tenha medo de qualquer coisa.” Inclinou-se sobre a mesa
atravancada e preparou-se para apresentar seu caso.
O professor Sullivan, porém, não era tolo. Antes que Jan
pudesse falar, seus lábios se torceram em um sorriso sarcástico.
– Então esse é o seu jogo? – disse ele devagar. – Muito, muito
interessante! Agora, seja direto e me diga por que acha que devo
ajudar você.
12
Uma época anterior teria considerado o professor Sullivan um luxo
dispendioso. Suas operações custavam o mesmo que uma pequena
guerra. De fato, ele poderia ser comparado a um general que
liderasse uma campanha perpétua contra um inimigo que nunca
descansava. O inimigo do professor Sullivan era o mar, que o
combatia com as armas do frio, da escuridão e, acima de tudo, da
pressão. Por sua vez, o professor se contrapunha ao adversário
com a inteligência e a perícia da engenharia. Conquistara muitas
vitórias, mas o mar era paciente, podia esperar. Um dia, Sullivan
sabia, ele cometeria um erro. Pelo menos, tinha o consolo de saber
que nunca se afogaria. Seria rápido demais.
Recusara-se a se posicionar, quer positiva ou negativamente,
quando Jan fizera o pedido, mas ele sabia qual seria a resposta.
Aqui estava a oportunidade para um experimento muito
interessante. Era uma pena que ele nunca ficaria sabendo do
resultado. Não obstante, isso acontecia muitas vezes na pesquisa
científica, e ele iniciara outros projetos que levariam décadas para
serem concluídos.
O professor Sullivan era um homem corajoso e inteligente, mas,
tomando em retrospecto a sua carreira, estava ciente do fato de que
ela não lhe trouxera o tipo de fama que carrega o nome de um
cientista com segurança ao longo dos séculos. Aqui estava uma
chance, totalmente inesperada e, por isso mesmo, ainda mais
atraente, de gravar de fato seu nome nos livros de história. Não era
uma ambição que iria admitir a qualquer um e, para lhe fazer justiça,
teria ajudado Jan mesmo que sua participação na trama ficasse
secreta para sempre.
Quanto a Jan, estava agora com dúvidas. O ímpeto de sua
descoberta original o levara até este ponto quase sem esforço.
Fizera as investigações, mas não tomara medidas efetivas para
transformar o sonho em realidade. Em alguns dias, porém, teria de
se decidir. Caso o professor Sullivan concordasse em colaborar, não
haveria como recuar. Precisaria encarar o futuro que escolhera, com
todas as suas consequências.
O que finalmente o fez se decidir foi a ideia de que, se deixasse
passar esta incrível oportunidade, nunca se perdoaria. Todo o resto
de sua vida seria desperdiçado em um remorso inútil... e nada
poderia ser pior do que isso.
A resposta de Sullivan chegou algumas horas mais tarde, e Jan
soube que a sorte estava lançada. Devagar, pois ainda havia muito
tempo, começou a colocar seus assuntos em ordem.
Querida Maia, isto será, para dizer o mínimo, uma grande
surpresa para você. Quando receber esta carta, eu já não estarei na
Terra. Com isso, não quero dizer que terei ido para a Lua, como
muitos outros têm feito. Não; estarei a caminho do mundo de origem
dos Senhores Supremos. Serei o primeiro homem a deixar o
Sistema Solar.
Vou entregar esta carta ao amigo que está me ajudando. Ele vai
guardá-la até saber se meu plano teve êxito (em sua primeira fase,
pelo menos) e até que seja tarde demais para os Senhores
Supremos interferirem. Estarei tão longe, e viajando a uma
velocidade tão grande, que duvido que qualquer mensagem de
ordem de retorno possa me alcançar. E mesmo que possa, acho
muito difícil que a nave seja capaz de voltar à Terra. E, de qualquer
forma, duvido muito que eu seja tão importante assim.
Em primeiro lugar, deixe-me explicar o que me levou a isto. Você
sabe que sempre me interessei pelo voo espacial, e sempre me
senti frustrado por nunca nos terem permitido ir a outros planetas,
ou saber qualquer coisa sobre a civilização dos Senhores
Supremos. Se eles nunca tivessem interferido, a esta altura quem
sabe tivéssemos chegado a Marte e a Vênus. Admito que é
igualmente provável que tivéssemos nos destruído com bombas de
cobalto e outras armas globais que o século XX estava
desenvolvendo. No entanto, às vezes tenho esse desejo enorme de
que tivéssemos tido a chance de andar com as próprias pernas.
Os Senhores Supremos devem ter suas razões para nos manter
no berçário, e devem ser razões muito boas. Mas, mesmo que eu
soubesse quais são, duvido que fizesse muita diferença para meus
próprios sentimentos... ou para minhas ações.
Tudo começou mesmo naquela festa do Rupert. (A propósito, ele
não sabe disto, embora tenha me colocado na trilha certa.) Lembra
daquela sessão boba que ele preparou, e de como terminou quando
aquela moça (esqueci do nome) desmaiou? Eu tinha perguntado de
que estrela os Senhores Supremos tinham vindo, e a resposta foi
“NGS 549672”. Não esperava nenhuma resposta e, até aquele
momento, havia tratado tudo como piada. Mas, quando percebi que
aquele código era um número em um catálogo estelar, resolvi
examinar o assunto. Descobri que a estrela estava na constelação
de Carina... e um dos poucos fatos que sabemos com certeza a
respeito dos Senhores Supremos é que eles vêm dessa direção.
Agora, não tenho a pretensão de entender como essa informação
chegou até nós, ou qual a origem dela. Será que alguém leu a
mente de Rashaverak? Mesmo que tivesse, seria muito difícil que
ele soubesse o número de referência de seu sol em um dos nossos
catálogos. É um mistério total, e vou deixá-lo para que pessoas
como Rupert o solucionem... se puderem! Contento-me em receber
a informação, e usá-la.
Já sabemos bastante agora, pelas observações das suas
partidas, sobre a velocidade das naves dos Senhores Supremos.
Elas saem do Sistema Solar com uma aceleração tão grande que se
aproximam da velocidade da luz em menos de uma hora. Isso
significa que os Senhores Supremos devem ter algum tipo de
sistema de propulsão que atua por igual em cada um dos átomos de
suas naves, de modo que nada a bordo seja instantaneamente
esmagado. Por que será que usam essas acelerações colossais,
quando têm todo o espaço para brincar, e poderiam esperar para
ganhar velocidade?
Minha teoria é de que conseguem, de alguma forma, aproveitar
os campos energéticos em torno das estrelas, e por isso têm que
acelerar e desacelerar enquanto estão mais ou menos próximos de
um sol. Mas tudo isso são digressões...
O fato importante foi que soube a distância que eles tinham que
percorrer e, dessa forma, quanto tempo a viagem demora. A estrela
NGS 549672 fica a quarenta anos-luz da Terra. As naves dos
Senhores Supremos alcançam mais de noventa e nove por cento da
velocidade da luz, de modo que a viagem deve demorar quarenta
anos do nosso tempo. Nosso tempo: esse é o “X” do problema.
Ora, como você deve ter ouvido falar, acontecem coisas
estranhas quando a gente se aproxima da velocidade da luz. O
próprio tempo começa a fluir em um ritmo diferente, a passar mais
devagar, de modo que, o que seriam meses na Terra, não seriam
mais do que dias a bordo das naves dos Senhores Supremos. O
efeito é bastante básico: foi descoberto pelo grande Einstein há
mais de cem anos.
Fiz alguns cálculos, com base no que sabemos sobre o impulso
estelar, e usando os resultados bem estabelecidos da teoria da
relatividade. Do ponto de vista dos passageiros de uma das naves
dos Senhores Supremos, a viagem a NGS 549672 não vai demorar
mais que dois meses, embora, pelas contas da Terra, terão se
passado quarenta anos. Sei que isso parece um paradoxo e, se for
algum consolo, tem intrigado os melhores cérebros do mundo desde
que foi anunciado por Einstein.
Quem sabe este exemplo mostre-lhe o tipo de coisa que pode
acontecer, e lhe dê um retrato mais claro da situação. Caso os
Senhores Supremos me enviem direto de volta para a Terra, deverei
chegar apenas quatro meses mais velho. Só que, na própria Terra,
terão se passado oitenta anos. Dessa forma, Maia, como vê, não
importa o que aconteça, isto é um adeus.
Tenho poucos laços me prendendo aqui, como você bem sabe,
de forma que posso partir com a consciência tranquila. Ainda não
contei pra mãe. Ela ficaria histérica, e não consigo enfrentar isso. É
melhor deste jeito. Embora eu tenha tentado não levar a mal, desde
que o pai morreu... Ah, não adianta voltar a falar naquilo tudo agora!
Terminei meus estudos e informei às autoridades que, por razões
familiares, estou me mudando para a Europa. Tudo ficou resolvido e
não deve haver nada com que você precise se preocupar.
A esta altura, você deve estar achando que estou louco, já que
parece impossível pra qualquer um entrar numa das naves dos
Senhores Supremos. Só que eu descobri um jeito. Não acontece
muitas vezes e, depois disto, pode nunca mais acontecer, pois tenho
certeza de que Karellen não comete o mesmo erro duas vezes.
Sabe a lenda do cavalo de madeira que os soldados gregos usaram
para entrar em Troia? Mas tem uma história do Velho Testamento
que é um paralelo ainda mais próximo...
– Você com certeza vai ficar muito mais confortável do que Jonas
– disse Sullivan. – Nenhum testemunho diz que ele teve luz elétrica
ou instalações sanitárias à disposição. Mas vai precisar de um
bocado de mantimentos, e vejo que vai levar oxigênio. Consegue
levar o bastante para uma viagem de dois meses, em um espaço
pequeno desse?
Bateu com a ponta do dedo nos esboços cuidadosos que Jan
colocara na mesa. O microscópio atuava como peso de papéis em
uma das pontas, o crânio de algum peixe fantástico segurava a
outra.
– Espero que não precise do oxigênio – disse Jan. – A gente
sabe que eles conseguem respirar na nossa atmosfera, mas não
parecem gostar muito, e pode ser que eu não consiga respirar na
deles. Quanto ao problema dos suprimentos, a narcosamina
resolve. É perfeitamente segura. Quando estiver a caminho, vou
tomar uma injeção que vai me deixar fora do ar por seis semanas.
Estarei quase lá a essa altura. A bem da verdade, não é a comida e
o oxigênio que me preocupam, mas sim mais o tédio.
O professor Sullivan fez que sim, pensativo.
– Sim, a narcosamina é segura o bastante, e pode ser dosada de
modo bem preciso. Mas tenha em mente que vai precisar ter
bastante comida à mão: vai estar morrendo de fome quando
acordar, além de fraco como um gatinho. Imagine se você morrer
por não ter força para usar um abridor de latas!
– Já pensei nisso – disse Jan, um pouco ofendido. – Vou me
recuperar aos poucos, com açúcar e chocolate, como se costuma
fazer.
– Ótimo. Fico contente de ver que você pensou bem no
problema, em vez de tratar o assunto como alguma aventura da
qual possa desistir se não gostar de como as coisas estão indo. É a
sua vida que vai estar em jogo, mas eu ia detestar sentir que estou
te ajudando a se suicidar.
Distraído, apanhou o crânio e o ergueu nas mãos. Jan agarrou o
esboço, para impedir que se enrolasse.
– Felizmente – continuou o professor Sullivan – os equipamentos
de que precisa são todos mais ou menos padrão, e a nossa oficina
pode montar tudo em algumas semanas. E, se resolver mudar de
ideia...
– Não vou – disse Jan.
Já pensei em todos os riscos que estou assumindo, e o plano
parece não ter nenhuma falha. Depois de seis semanas vou
aparecer, como qualquer clandestino, e me entregar. A essa altura,
no meu tempo, é claro, a viagem vai estar quase no fim. Vamos
estar a ponto de pousar no mundo dos Senhores Supremos.
É claro que o que vai acontecer daí em diante depende deles.
Acho que vão me mandar pra casa na próxima nave... mas, pelo
menos, tenho a esperança de ver alguma coisa. Vou levar uma
câmera de quatro milímetros e milhares de metros de filme. No que
depender de mim, vou usá-la. Mesmo na pior das hipóteses, terei
provado que o homem não pode ser mantido em quarentena para
sempre. Terei criado um precedente que vai forçar Karellen a tomar
alguma medida.
Isto, minha querida Maia, é tudo o que tenho a dizer. Sei que não
vai sentir muita falta de mim. Vamos ser sinceros e admitir que
nunca tivemos laços muito fortes, e agora que você se casou com
Rupert, vai se sentir muito feliz em seu próprio universo privado.
Pelo menos, assim espero.
Adeus, então, e boa sorte. Não vejo a hora de conhecer os seus
netos... cuide pra que eles saibam de mim, está bem?
Com um abraço do seu irmão,
Jan.
13
Quando Jan a viu pela primeira vez, achou difícil pôr na cabeça que
não estava assistindo à montagem de um pequeno avião de
passageiros. O esqueleto metálico tinha vinte metros de
comprimento, era perfeitamente aerodinâmico e estava cercado de
andaimes leves, nos quais os operários subiam com suas
ferramentas elétricas.
– Sim – disse Sullivan, respondendo à pergunta de Jan. –
Usamos técnicas-padrão de aeronáutica, e a maior parte dos
homens é da indústria aeronáutica. É difícil acreditar que uma coisa
deste tamanho pudesse estar viva, não é? Ou que pudesse se atirar
com o corpo todo pra fora da água, como já vi elas fazerem.
Tudo aquilo era mais que fascinante, mas Jan tinha outras coisas
em mente. Seu olhar percorria o enorme esqueleto, para ver se
encontrava um bom esconderijo para sua pequena câmara: o
“caixão com ar-condicionado”, como Sullivan a batizara. Em um
aspecto ficou logo tranquilo: no que dissesse respeito a espaço,
haveria capacidade para uma dúzia de clandestinos.
– A armação parece quase completa – disse Jan. – Quando é
que vão colocar a pele? Suponho que já tenham apanhado a baleia,
ou não iam saber de que tamanho fazer o esqueleto.
Sullivan pareceu achar muita graça nesse comentário.
– Não temos a menor intenção de pegar uma baleia. De qualquer
maneira, elas não têm pele, no sentido comum da palavra. Seria
praticamente impossível cobrir a armação com uma manta de
gordura grossa de vinte centímetros. Não, a coisa toda vai ser
imitada com plástico e, depois, pintada de modo a parecer de
verdade. Quando tivermos terminado, ninguém vai ser capaz de
notar a diferença.
Nesse caso, pensou Jan, faria mais sentido se os Senhores
Supremos tivessem tirado fotografias e fabricassem o modelo em
escala real eles mesmos, lá em seu planeta natal. No entanto, quem
sabe as naves de suprimentos voltassem vazias, e uma coisinha,
como um cachalote de vinte metros, mal se fizesse notar. Quando
alguém tinha tanto poder e tantos recursos, não podia se deixar
incomodar com economias sem importância.
O professor Sullivan estava ao lado de uma das grandes
estátuas que tanto haviam desafiado a arqueologia desde que a Ilha
de Páscoa fora descoberta. Rei, deus ou o que quer que fosse, seu
olhar cego parecia acompanhar o dele, enquanto apreciava seu
trabalho. Tinha orgulho do que fizera: parecia uma pena que, em
breve, esse trabalho viesse a ser banido para sempre da vista
humana.
O quadro poderia ter sido a obra de algum artista louco em um
delírio psicodélico. No entanto, era uma cópia meticulosa da vida:
aqui, a própria natureza fora o artista. Era uma cena que, até o
aperfeiçoamento da televisão submarina, poucos homens haviam
sequer vislumbrado e, mesmo assim, apenas por alguns segundos,
nas raras ocasiões em que os gigantescos antagonistas haviam se
jogado para a superfície. Essas batalhas eram travadas na noite
eterna das profundezas oceânicas, onde os cachalotes caçavam
sua comida. Era uma comida que resistia com veemência a ser
devorada viva.
Marcas lívidas de ventosas, com vinte ou mais centímetros de
diâmetro, haviam sarapintado a pele da baleia nos pontos em que
os tentáculos haviam se prendido. Um deles já era um toco
incompleto, e não podia haver dúvida quanto ao resultado final da
batalha. Quando os dois maiores animais da Terra se defrontavam,
a baleia era sempre a vencedora. Pois, mesmo com a enorme força
de sua floresta de tentáculos, a única esperança da lula estava em
fugir, antes que a mandíbula, que triturava sem trégua, acabasse
por serrá-la em pedaços. Seus olhos grandes e inexpressivos, de
meio metro de diâmetro, fitavam o algoz... embora, muito
provavelmente, nenhuma das criaturas pudesse ver a outra na
escuridão abissal.
A peça toda tinha mais de trinta metros de comprimento, e agora
estava envolvida por uma gaiola de vigas de alumínio, às quais o
equipamento de elevação fora conectado. Tudo estava pronto,
aguardando a vontade dos Senhores Supremos. Sullivan queria que
fossem rápidos: o suspense estava começando a incomodar.
Alguém saíra do escritório para a luz intensa do Sol, claramente
procurando por ele. Sullivan reconheceu o escrevente-chefe, e
caminhou para encontrá-lo.
– Oi, Bill. O que é que há?
O outro segurava um formulário de mensagem e parecia bem
satisfeito.
– Boas notícias, professor! Uma honra pra gente! O Supervisor
em pessoa quer vir dar uma olhada no nosso quadro, antes que seja
embarcado. Pense só na publicidade que vamos ganhar? Vai ajudar
muito, quando a gente pedir a nova subvenção. Estava mesmo
torcendo por uma coisa dessas.
O professor Sullivan engoliu em seco. Nunca tivera nada contra
publicidade, mas dessa vez estava com medo de conseguir mais do
que gostaria.
Karellen postou-se junto à cabeça da baleia e ergueu os olhos
para o grande nariz rombudo e a mandíbula cravejada de marfim.
Sullivan, disfarçando sua apreensão, tentava adivinhar o que o
Supervisor estaria pensando. Seu comportamento não indicava
nenhuma suspeita, e a visita podia facilmente ser explicada como
uma coisa normal. Sullivan, porém, ficaria muito feliz quando
terminasse.
– Não temos criaturas tão grandes assim em nosso planeta –
disse Karellen. – Essa é uma das razões por que pedimos que
construísse este conjunto. Meus... compatriotas... vão achá-lo
fascinante.
– Com sua baixa gravidade – respondeu Sullivan –, eu imaginaria
que vocês tivessem alguns animais bem grandes. Afinal, olhe como
vocês são muito maiores do que nós!
– Sim... mas não temos oceanos. E quando se trata de tamanho,
a terra nunca pode competir com o mar.
Isso era uma verdade incontestável, pensou Sullivan. E, pelo que
sabia, este era um fato nunca antes revelado sobre o mundo dos
Senhores Supremos. Jan, maldito seja, ficaria muito interessado.
Naquele momento, o rapaz estava sentado em uma cabana, a
um quilômetro dali, observando ansiosamente a inspeção, através
de binóculos. Ficava repetindo para si mesmo que não tinha nada a
temer.
Nenhuma inspeção da baleia, mesmo atenta, poderia revelar seu
segredo. No entanto, sempre havia a chance de que Karellen
suspeitasse de algo... e estivesse brincando com eles.
Era essa a suspeita que crescia na mente de Sullivan, enquanto
o Supervisor espiava dentro da cavernosa garganta.
– Na sua Bíblia – disse Karellen –, há uma história notável de um
profeta hebreu, um certo Jonas, que foi engolido por uma baleia e
transportado a salvo para a terra, depois de ter sido lançado de um
navio. Acha que uma lenda dessas pode ter base em fatos?
– Creio – respondeu Sullivan, cauteloso – que exista um caso
razoavelmente comprovado de um baleeiro que foi engolido e
depois regurgitado sem efeitos desfavoráveis. É claro que, se
tivesse ficado dentro da baleia por mais de alguns segundos, teria
se asfixiado. E deve ter tido muita sorte para escapar dos dentes. É
uma história quase inacreditável, mas não totalmente impossível.
– Muito interessante – disse Karellen. Ficou mais um momento
contemplando a enorme mandíbula e, em seguida, passou a
examinar a lula. Sullivan esperou que ele não tivesse ouvido seu
suspiro de alívio.
– Se soubesse pelo que eu ia passar – disse o professor Sullivan
–, teria jogado você pra fora do escritório assim que tentou me
contaminar com sua loucura.
– Sinto muito – replicou Jan. – Mas escapamos dessa.
– Assim espero. De qualquer forma, boa sorte. Se quiser mudar
de ideia, ainda tem pelo menos seis horas.
– Não vou precisar delas. Só Karellen pode me impedir agora.
Obrigado por tudo o que tem feito. Se algum dia voltar e escrever
um livro a respeito dos Senhores Supremos, a dedicatória será para
o senhor.
– Muita vantagem vou tirar disso! – disse Sullivan, brusco. – Vou
estar morto há anos.
Para sua surpresa e ligeira consternação, pois não era um
homem sentimental, Sullivan descobriu que a despedida estava
começando a afetá-lo. Tinha se afeiçoado a Jan durante as
semanas em que conspiraram juntos. Além disso, começara a temer
que pudesse ser cúmplice de um complexo suicídio.
Segurou a escada de mão enquanto Jan subia na grande
mandíbula, evitando, com cuidado, as fileiras de dentes. À luz da
lanterna elétrica, viu Jan voltar-se e acenar; depois, sumir dentro do
buraco cavernoso. Ouviu o som da escotilha da comporta sendo
aberta e fechada. E, depois disso, o silêncio.
Ao luar, que transformara a batalha congelada em uma cena de
pesadelo, o professor Sullivan retornou lentamente ao escritório.
Pensava no que havia feito, e em qual seria o resultado. Só que
isso, é claro, nunca saberia. Jan poderia voltar a caminhar neste
mesmo lugar, sem ter perdido mais que alguns meses de sua vida
na viagem ao planeta dos Senhores Supremos e de volta à Terra. E,
no entanto, se o fizesse, estaria do outro lado da barreira
intransponível do tempo, pois seriam oitenta anos no futuro.
As luzes se acenderam no minúsculo cilindro de metal logo que
Jan fechou a porta interna da comporta. Não se permitiu tempo livre
para mudar de ideia, começando, de imediato, a verificação de
rotina que já praticara. Todos os suprimentos e provisões tinham
sido carregados alguns dias antes, mas uma verificação final o
colocaria no estado de espírito adequado, garantindo-lhe que nada
fora deixado por fazer.
Uma hora depois, estava satisfeito. Recostou-se no assento de
borracha esponjosa e recapitulou seus planos. O único som era o
leve sussurro do relógio-calendário elétrico, que o avisaria quando a
viagem estivesse próxima do fim.
Sabia que não poderia esperar sentir nada aqui em sua câmara,
pois, quaisquer que fossem as enormes forças que impelissem as
naves dos Senhores Supremos, elas deviam ser perfeitamente
compensadas. Sullivan verificara isso, destacando que seu quadro
vivo desmoronaria caso fosse sujeito a mais que algumas
gravidades. Seus... clientes... lhe asseguraram que não haveria
perigo neste sentido.
Haveria, porém, uma alteração significativa na pressão
atmosférica. O que não tinha importância, visto que os modelos
ocos podiam “respirar” através de vários orifícios. Antes de sair da
câmara, Jan teria de equalizar a pressão, e presumira que a
atmosfera dentro da nave dos Senhores Supremos fosse
irrespirável. Um simples conjunto de máscara e oxigênio cuidaria
disso; não havia necessidade de nada complexo. Se pudesse
respirar sem auxílio mecânico, melhor ainda.
Não havia razão para esperar mais; isso só iria sobrecarregar
seus nervos. Apanhou a pequena seringa, já cheia com a solução
cuidadosamente preparada. A narcosamina fora descoberta durante
pesquisas em hibernação animal. Não era verdade, como se
acreditava popularmente, que gerasse animação suspensa. Tudo o
que provocava era uma grande desaceleração dos processos vitais,
embora o metabolismo prosseguisse, em um nível reduzido. Era
como se alguém tivesse abafado o fogo da vida, de modo que
continuasse a arder sem chamas, sem ser visto. No entanto,
quando, depois de semanas ou meses, o efeito da droga se
enfraquecesse, esse fogo voltaria à plena energia e o adormecido
despertaria para a vida. A narcosamina era perfeitamente segura. A
natureza a usara por um milhão de anos para proteger muitos de
seus filhos de um inverno sem provisões.
Então, Jan adormeceu. Não sentiu o puxão dos cabos de
içamento quando a enorme estrutura de metal fora erguida para
dentro do compartimento da nave cargueira dos Senhores
Supremos. Não ouviu as escotilhas se fecharem, para não se
abrirem novamente por trezentos trilhões de quilômetros. Não ouviu,
bem distante e atenuado através das paredes robustas, o grito de
protesto da atmosfera da Terra, à medida que a nave rapidamente
se elevava de volta a seu elemento natural.
E não sentiu quando o impulso estelar foi acionado.
14
A sala de imprensa ficava sempre abarrotada nessas reuniões
semanais, mas hoje estava tão apinhada que os repórteres tinham
dificuldade em escrever. Queixavam-se uns com os outros, pela
centésima vez, do conservadorismo e da falta de consideração de
Karellen. Em qualquer outra parte do mundo, poderiam ter levado
câmeras de TV, gravadores e todas as demais ferramentas de seu
ofício altamente mecanizado. Aqui, porém, tinham de contar com
dispositivos arcaicos como lápis e papel, e, até mesmo, por incrível
que pareça, com a taquigrafia.
Houvera, é claro, várias tentativas de contrabandear gravadores
para a sala. Também haviam conseguido removê-los
clandestinamente, mas um simples olhar para o interior fumegante
dos aparelhos mostrava a futilidade da tentativa. Naquele momento,
todos compreenderam por que sempre haviam sido advertidos de
que, para o seu próprio bem, seria melhor deixar relógios e demais
objetos metálicos do lado de fora da sala de imprensa.
Para tornar as coisas ainda mais injustas, o próprio Karellen
gravava tudo. Repórteres culpados de negligência, ou de distorção
evidente dos fatos (embora esta última fosse muito rara), tinham
sido convocados para reuniões curtas e desagradáveis com
subordinados de Karellen, e obrigados a ouvir com atenção às
gravações do que o Supervisor havia realmente dito. Era uma lição
que jamais precisara ser repetida.
Era estranho como a notícia se espalhava. Não havia um anúncio
de antemão, mas a casa sempre ficava lotada quando Karellen tinha
uma declaração importante a fazer. O que acontecia, em média,
duas ou três vezes ao ano.
O silêncio desceu sobre o burburinho da multidão quando a
grande porta se abriu e Karellen encaminhou-se para o palanque.
Aqui, a luz era fraca, decerto similar à do sol tão longínquo dos
Senhores Supremos, de modo que o Supervisor da Terra dispensara
os óculos escuros que normalmente usava ao ar livre.
Respondeu ao coro dissonante de cumprimentos com um formal:
– Bom dia a todos.
Depois, virou-se para a figura alta e distinta à frente da multidão.
O sr. Golde, decano do Clube de Imprensa, podia ter sido o
inspirador original da frase do mordomo: “Três repórteres, meu
senhor, e um cavalheiro do Times”. Vestia-se e se comportava como
um diplomata da velha guarda. Ninguém hesitaria em confiar nele, e
ninguém jamais se arrependeu de fazê-lo.
– Uma porção de gente hoje, sr. Golde. Acho que estão sem
notícias.
O cavalheiro do Times sorriu e limpou a garganta.
– Espero que possa corrigir isso, senhor Supervisor.
Observou com atenção enquanto Karellen pensava na resposta.
Parecia tão injusto que os rostos dos Senhores Supremos, rígidos
como máscaras, não deixassem escapar nenhum sinal de emoção.
Os grandes olhos bem abertos, as pupilas extremamente
contraídas, mesmo nesta luz medíocre, fitavam, insondáveis, os
olhos francamente curiosos do humano. Os orifícios respiratórios
gêmeos em cada bochecha, se é que aquelas curvas estriadas de
basalto podiam ser chamadas de bochechas, emitiam um levíssimo
zunido enquanto os hipotéticos pulmões de Karellen labutavam com
o ar rarefeito da Terra. Golde podia entrever a cortina de minúsculos
pelos brancos se agitando para a frente e para trás, mantendo-se
precisamente fora de fase, enquanto reagiam ao ciclo respiratório
rápido e de dupla ação de Karellen. Acreditava-se que eram filtros
contra pó, e complexas teorias sobre a atmosfera do planeta natal
dos Senhores Supremos tinham sido elaboradas com base nesse
pequeno detalhe.
– Sim, tenho algumas notícias. Como devem saber, uma de
minhas naves de suprimentos deixou recentemente a Terra para
voltar à sua base. Acabamos de descobrir que havia um clandestino
a bordo.
Uma centena de lápis estacaram de súbito. Uma centena de
pares de olhos se fixaram em Karellen.
– Um clandestino, o senhor disse, sr. Supervisor? – perguntou
Golde. – Podemos saber quem foi... e como conseguiu embarcar?
– O nome é Jan Rodricks. Um estudante de engenharia na
Universidade da Cidade do Cabo. Mais detalhes, os senhores sem
dúvida poderão descobrir sozinhos, através de seus tão eficientes
canais.
Karellen sorriu. O sorriso do Supervisor era uma coisa curiosa. A
maior parte do efeito repousava nos olhos. A boca, inflexível e
desprovida de lábios, quase não se mexia. Seria este, Golde se
indagou, outro dos muitos costumes humanos que Karellen copiara
com tanta habilidade? Pois o efeito como um todo era, sem dúvida,
o de um sorriso, e a mente logo o aceitava como tal.
– Quanto a como ele partiu – continuou o Supervisor –, isso é
secundário. Posso lhes garantir, ou a qualquer outro astronauta em
potencial, que não há possibilidade de se repetir a façanha.
– O que vai acontecer com esse jovem? – insistiu Golde. – Será
mandado de volta à Terra?
– Isso está fora da minha jurisdição, mas espero que volte na
próxima nave. Ele acharia as condições demasiado... alienígenas
para ficar em conforto onde está. E isso me leva ao principal motivo
deste nosso encontro.
Karellen fez uma pausa e o silêncio tornou-se ainda mais
profundo.
– Alguns humanos mais jovens e mais românticos da Terra têm
reclamado por que o espaço sideral lhes foi interditado... Tivemos
um motivo para fazer isso. Não impomos proibições por prazer. Mas
já pararam para pensar, se me perdoam uma analogia pouco
lisonjeira, o que um homem da idade da pedra sentiria se, de
repente, se encontrasse em uma cidade moderna?
– Decerto – protestou o repórter do Herald Tribune –, que há uma
diferença fundamental. Nós estamos acostumados à ciência. Em
seu mundo, há, sem dúvida, muitas coisas que podemos não
entender, mas que não nos pareceriam sobrenaturais.
– Tem certeza mesmo disso? – perguntou Karellen, em um tom
de voz tão baixo que era difícil ouvir as palavras. – Apenas uma
centena de anos separa a era da eletricidade da era do vapor, mas
o que pensaria um engenheiro da era vitoriana de um televisor, ou
de um computador eletrônico? E por quanto tempo ele viveria, se
começasse a investigar seu funcionamento? O abismo entre duas
tecnologias pode facilmente se tornar tão grande a ponto de ser...
fatal.
(– Ei! – murmurou o repórter da Reuters para o da BBC. –
Estamos com sorte. Ele vai fazer uma declaração política
importante. Conheço os sintomas.)
– E há outras razões pelas quais restringimos a raça humana à
Terra. Observem.
As luzes se enfraqueceram até desaparecer. À medida que
desvaneciam, uma opalescência leitosa se formava no centro da
sala, coagulando-se em um redemoinho de estrelas: uma galáxia
espiral, vista de um ponto muito além de seu sol mais externo.
– Nunca antes olhos humanos presenciaram esta cena – disse a
voz de Karellen, vinda da escuridão. – Estão olhando, de uma
distância de meio milhão de anos-luz, para seu próprio Universo, a
galáxia insular da qual seu Sol faz parte.
Fez-se longo silêncio. Depois, Karellen prosseguiu, e agora sua
voz continha algo que não era inteiramente pena, nem precisamente
desprezo.
– A sua raça demonstrou uma notável incapacidade de lidar com
os problemas de seu próprio não tão grande planeta. Quando
chegamos, estavam prestes a se destruir com os poderes que a
ciência havia, inadvertidamente, lhes oferecido. Sem a nossa
intervenção, a Terra hoje seria um deserto radioativo. Agora, vocês
têm um mundo em paz, e uma raça unida. Em breve, serão
civilizados o bastante para conduzir seu planeta sem a nossa
assistência. Quem sabe possam, um dia, lidar com os problemas de
todo um sistema solar... digamos, de cinquenta luas e planetas. Mas
vocês acham mesmo que poderiam algum dia lidar com isto?
A nebulosa expandiu-se. Agora, as estrelas individuais passavam
correndo, aparecendo e desaparecendo tão rápido quanto centelhas
de uma forja. E cada uma daquelas breves centelhas era um sol,
com sabe-se lá quantos mundos à sua volta...
– Só nesta nossa galáxia – murmurou Karellen – há oitenta e
sete bilhões de sóis. Mesmo esse número lhes dá apenas uma leve
ideia da imensidão do espaço. Ao desafiá-lo, vocês seriam como
formigas tentando rotular e classificar todos os grãos de areia em
todos os desertos do mundo. A sua raça, em seu atual estágio de
evolução, não pode enfrentar um desafio tão grande. Um de meus
deveres tem sido protegê-los dos poderes e forças que existem
entre as estrelas. Forças além de qualquer coisa que possam vir a
imaginar.
A imagem do turbilhão de névoas incandescentes da galáxia se
desvaneceu. A luz voltou ao súbito silêncio da grande sala.
Karellen se virou para partir. A audiência terminara. Na porta, fez
uma pausa e voltou a olhar para a multidão silenciosa.
– É uma ideia terrível, mas precisam encará-la. Os planetas, um
dia, talvez vocês conquistem. Mas as estrelas não são para o
Homem.
“As estrelas não são para o Homem.” Sim, eles não gostariam
nada de dar com a cara nos portais celestes fechados. Contudo,
precisavam aprender a enfrentar a verdade... Ou tanto da verdade
quanto, piedosamente, podia ser lhes dada.
Das solitárias alturas da estratosfera, Karellen contemplou o
mundo e as pessoas que haviam sido entregues à sua guarda
relutante. Pensou em tudo o que estava por vir, e no que este
mundo seria em uma mera década.
Nunca saberiam como tinham tido sorte. Por um período igual à
duração de uma vida, o Homem alcançara tanta felicidade quanto
qualquer raça poderia vir a conhecer. Fora a Era Dourada.
Entretanto, essa era também a cor do ocaso, do outono. E só os
ouvidos de Karellen podiam captar os primeiros lamentos das
tempestades de inverno.
E só Karellen sabia com que inexorável rapidez a Era Dourada
se aproximava do fim.
III
A ÚLTIMA GERAÇÃO
15
– Olhe isto! – explodiu George Greggson, atirando o jornal na
direção de Jean. Apesar dos esforços dela para interceptá-lo, o
jornal foi pousar, desconjuntado e espalhado, sobre a mesinha de
café. Com enorme paciência, Jean raspou a geleia e leu o trecho
que indignara George, fazendo o melhor que podia para mostrar
desaprovação. Não era muito boa nisso, pois volta e meia
concordava com os críticos. Quase sempre guardava para si essas
opiniões heréticas; e não só em nome da paz e da tranquilidade.
George estava perfeitamente pronto a aceitar elogios dela (ou de
qualquer pessoa), mas, se ela arriscasse alguma crítica a seu
trabalho, receberia uma aula massacrante sobre sua ignorância
artística.
Leu a resenha duas vezes, e então desistiu. Parecia bastante
favorável, e foi o que ela disse.
– Parece que ele gostou da apresentação. Do que você está
reclamando?
– Disto – George falou entre dentes, batendo com o dedo no
meio da coluna. – Leia de novo.
– “Foram especialmente agradáveis para os olhos os delicados
tons de verde do cenário do número de balé.” E daí?
– Daí que não tinha verde nenhum! Gastei um tempão pra
conseguir aquela tonalidade exata de azul! E tudo pra quê? Ou
algum maldito engenheiro da sala de controle estragou o balanço de
cores, ou esse idiota do resenhista tem uma televisão com defeito.
Ei, que cor parecia na nossa TV?
– Ah... não lembro – confessou Jean. – A Lindinha começou a
gritar na hora, e tive que ir ver o que estava acontecendo.
– Oh! – disse George, recaindo em um silêncio de fervura lenta.
Jean sabia que podia esperar uma nova erupção a qualquer
momento. No entanto, quando veio, foi até que suave.
– Inventei uma nova definição para a TV – resmungou ele,
sorumbático. – Cheguei à conclusão de que é um aparelho para
atrapalhar a comunicação entre o artista e o público.
– E o que você pretende fazer a respeito? – retrucou Jean. –
Voltar ao teatro ao vivo?
– E por que não? – perguntou George. – É exatamente nisso que
estive pensando. Sabe aquela carta do pessoal de Nova Atenas?
Me escreveram de novo. Desta vez, vou responder.
– É mesmo? – disse Jean, um pouco alarmada. – Acho que são
um bando de malucos.
– Bem, só há um jeito de descobrir. Pretendo ir lá, fazer uma
visita na próxima quinzena. Adianto que o material de divulgação
deles parece perfeitamente sensato. E conseguiram gente muito
boa por lá.
– Se você acha que vou começar a cozinhar num fogão a lenha,
ou me vestir com peles, está muito...
– Ah, não seja boba! Essas histórias são só besteira. A colônia
tem tudo que é preciso de verdade pra uma vida civilizada. Só não
acreditam em luxos supérfluos. De qualquer maneira, faz uns dois
anos que não vou para o Pacífico. Será uma boa viagem pra gente.
– Aí concordo com você – disse Jean. – Mas não pretendo deixar
o garoto e a Lindinha virarem dois selvagens polinésios.
– Não vão – disse George. – Posso lhe dar a minha palavra.
E tinha razão, embora não do jeito que planejara.
– Como devem ter notado quando aterrissavam – disse o
homenzinho, no outro lado da varanda –, a colônia é formada por
duas ilhas, unidas por uma ponte. Esta é Atenas. Chamamos a
outra de Esparta. É uma ilha bastante rústica e rochosa, e é um
lugar ótimo para esportes, ou para se exercitar. – Seu olhar vacilou
por um momento sobre a cintura do visitante, e George se remexeu
um pouco, embaraçado, na cadeira de palhinha. – Aliás, Esparta é
um vulcão extinto. Ou, pelo menos, é o que os geólogos dizem. Ha-
ha.
– Mas, de volta a Atenas. A ideia da colônia, como deve ter
percebido, é formar um grupo cultural independente e estável, com
suas próprias tradições artísticas. Devo destacar que fizemos muita
pesquisa antes de começarmos este empreendimento. É, na
verdade, um trabalho de engenharia social aplicada, com base em
uma matemática tão complexa que nem sonho entender. Tudo o
que sei é que os sociólogos matemáticos calcularam o tamanho que
a colônia devia ter, quantos tipos de pessoas ela devia conter e,
acima de tudo, o tipo de constituição que devia ter para ser estável a
longo prazo.
– O nosso governo é um conselho de oito diretores,
representando produção, energia, engenharia social, arte,
economia, ciência, esporte e filosofia. Não temos um presidente fixo
do conselho, nem um presidente da nação. O cargo de presidente
do conselho é ocupado a cada ano por um dos diretores, em
revezamento.
– Nossa população atual é de pouco mais de cinquenta mil, o
que está um pouco abaixo do ideal desejado. É por isso que ficamos
de olhos abertos para novatos. E, é claro, há certa perda. Ainda não
somos totalmente autossuficientes em alguns dos talentos mais
especializados.
– Aqui, nesta ilha, estamos tentando preservar alguma coisa da
independência da humanidade, suas tradições artísticas. Não
somos contra os Senhores Supremos. Apenas queremos ficar em
paz para seguir nosso próprio caminho. Quando destruíram as
velhas nações e o estilo de vida que o Homem conhecera desde o
princípio da história, eles descartaram muitas coisas boas junto com
as más. O mundo agora está quieto, maçante e morto do ponto de
vista cultural: nada de realmente novo foi criado desde que os
Senhores Supremos chegaram. E a razão é óbvia. Não sobrou mais
nada para almejar, e temos distrações e entretenimentos demais. Já
se deu conta de que, a cada dia, algo como quinhentas horas de
rádio e TV são jogadas no ar pelos vários canais? Mesmo que você
não dormisse e não fizesse mais nada, ia conseguir acompanhar
menos de um vigésimo do entretenimento disponível ao girar de um
botão! Não é de admirar que as pessoas estejam se transformando
em esponjas passivas: absorvendo, mas nunca criando. Sabia que o
tempo médio que uma pessoa passa assistindo TV, agora, é de três
horas por dia? Daqui a pouco as pessoas não vão mais viver suas
próprias vidas. Vai ser um trabalho de tempo integral se manter a
par dos diversos seriados de família na TV!
– Aqui, em Atenas, o entretenimento fica no seu devido lugar.
Além disso, é ao vivo, não enlatado. Numa comunidade deste
tamanho, dá para ter uma participação quase completa do público,
com tudo o que isso implica para os realizadores e artistas. Aliás,
formamos uma orquestra sinfônica muito boa. Talvez entre as seis
melhores do mundo.
– Mas não quero que aceite a minha palavra sobre tudo isso. O
que costuma acontecer é que os candidatos a cidadãos ficam aqui
alguns dias, sentindo o lugar. Caso decidam que gostariam de se
juntar a nós, deixamos que façam a bateria de testes psicológicos,
que são, na verdade, nossa principal linha de defesa. Cerca de um
terço dos candidatos é rejeitado, em geral por razões que não são
culpa deles, e que não fariam diferença lá fora. Os que passam vão
para casa por tempo suficiente para colocar os negócios em ordem
e, depois, voltam para cá. Às vezes, mudam de ideia nesse estágio,
só que isso é muito raro e, quase sempre, por razões pessoais fora
do controle deles. Nossos testes agora são quase cem por cento
confiáveis: as pessoas que passam são as que querem mesmo vir
para cá.
– E se alguém mudar de ideia depois? – perguntou Jean,
preocupada.
– Ele pode ir embora. Não há nenhum impedimento. Já
aconteceu, uma ou duas vezes.
Fez-se um longo silêncio. Jean olhou para George, que passava
os dedos, pensativo, pelas costeletas, atualmente em alta nos
círculos artísticos. Desde que não queimassem as pontes por trás
deles, ela não se preocuparia à toa. A colônia parecia um lugar
instigante e, com certeza, não tão excêntrico quanto ela temera. E
as crianças iam adorar. E isso, no final das contas, era tudo o que
importava.
Mudaram-se para lá seis semanas depois. A casa térrea era
pequena, mas bastante adequada para uma família que não
pretendia ultrapassar os quatro membros. Todos os aparelhos
básicos destinados a poupar trabalho estavam à vista. Pelo menos,
Jean reconheceu, não havia o perigo de voltar à idade das trevas da
labuta doméstica. Contudo, foi um tanto perturbador descobrir que
havia uma cozinha. Em uma comunidade deste tamanho, seria
normal ligar para a central de alimentos, esperar cinco minutos e
receber a refeição escolhida. Individualismo era uma coisa ótima,
mas cozinhar, Jean suspeitava, podia ser levar as coisas um pouco
longe demais. Ficou imaginando, preocupada, se teria de fabricar as
roupas da família, além de preparar as refeições. Contudo, não
havia roca de fiar entre a máquina lava-pratos e o forno a radar, de
modo que não era tão mau assim...
É claro que o resto da casa ainda parecia muito nu e cru. Eram
os primeiros ocupantes, e levaria algum tempo antes que todo esse
aspecto asséptico de coisa nova se convertesse em um lar com
calor humano. As crianças, sem dúvida, seriam eficazes
catalisadores do processo. Já havia (embora Jean ainda não
soubesse) uma desafortunada vítima de Jeffrey expirando na
banheira, como resultado da ignorância do rapaz sobre a diferença
básica entre água doce e salgada.
Jean aproximou-se da janela, ainda sem cortinas, e percorreu a
colônia com os olhos. Era um belo lugar, não havia dúvida. A casa
ficava na encosta oeste da colina que dominava, graças à falta
absoluta de concorrentes, a ilha de Atenas. Dois quilômetros para o
norte, ela podia ver a ponte, fina como o fio de uma faca partindo as
águas, que levava a Esparta. A ilha rochosa, com seu sorumbático
cone vulcânico, contrastava de tal maneira com este lugar pacífico
que às vezes a assustava. Queria saber como os cientistas podiam
ter tanta certeza de que ele não voltaria a despertar, acabando com
todo mundo.
Seu olhar foi atraído para uma silhueta oscilante, subindo a
encosta, mantendo-se estritamente à sombra das palmeiras a
despeito da linha da estrada. George estava voltando de sua
primeira palestra. Estava na hora de parar de sonhar acordada e se
ocupar das coisas da casa.
Um estrondo metálico anunciou a chegada da bicicleta de
George.
Jean se perguntava quanto tempo levaria para os dois
aprenderem a andar de bicicleta. Este era mais um aspecto
inesperado da vida na ilha. Carros particulares não eram permitidos
e, de fato, não eram necessários, visto que a maior distância que se
podia percorrer em linha reta era inferior a quinze quilômetros. Havia
diversos veículos a serviço da comunidade: caminhões,
ambulâncias e carros de bombeiros, todos limitados, exceto em
casos de real emergência, a cinquenta quilômetros por hora. Como
resultado, os habitantes de Atenas podiam fazer bastante exercício,
as ruas eram descongestionadas... e não havia acidentes de
trânsito.
George deu um beijinho mecânico em sua mulher e desabou,
com um suspiro de alívio, na poltrona mais próxima.
– Puxa! – disse, enxugando a testa. – Todo mundo me deixou pra
trás na subida da colina, portanto, deve ser questão de hábito. Acho
que já perdi dez quilos.
– Como foi seu dia? – perguntou Jean, dedicada. Tinha
esperanças de que George não estivesse exausto demais para
ajudá-la a desempacotar as coisas.
– Muito estimulante. É claro que não lembro da metade das
pessoas que me apresentaram, mas pareceram todas muito
agradáveis. E o teatro é tão bom quanto eu esperava. Na semana
que vem, vamos começar a trabalhar em Volta a Matusalém, de
Shaw. Vou ter controle total dos cenários e do projeto do palco. Vai
ser uma novidade não ter uma dúzia de pessoas pra me dizer o que
não posso fazer. É, acho que vamos gostar daqui.
– Mesmo com as bicicletas?
George reuniu energia suficiente para sorrir com ironia.
– É – disse ele. – Daqui a duas semanas não vou nem notar esta
nossa pequena colina.
Não acreditava mesmo nisso, mas era a mais pura verdade. No
entanto, mais um mês se passou antes que Jean deixasse de ansiar
pelo carro e descobrisse todas as coisas que se podia fazer quando
se tinha uma cozinha própria.
Nova Atenas não era um afloramento natural e espontâneo,
como a cidade cujo nome ostentava. Tudo na colônia fora muito
bem planejado, como resultado de muitos anos de estudos, por um
grupo de homens mais do que notáveis. Começara como uma
conspiração aberta contra os Senhores Supremos, um desafio
implícito a suas políticas, se não a seu poder. A princípio, os
patrocinadores da colônia haviam tido uma boa certeza de que
Karellen habilmente frustraria seus planos, mas o Supervisor nada
fizera. Absolutamente nada. Isso não era tão tranquilizador quanto
se poderia esperar. Karellen tinha tempo de sobra: podia estar
preparando um contra-ataque de efeito retardado. Ou podia estar
tão certo do fracasso do projeto que não sentia necessidade de
tomar nenhuma medida contra ele.
A maioria das pessoas previra que a colônia fracassaria. Apesar
disso, mesmo no passado, muito antes que houvesse qualquer
conhecimento real de dinâmica social, tinham existido muitas
comunidades devotadas a fins religiosos ou filosóficos. De fato, a
taxa de mortalidade delas havia sido alta, mas algumas haviam
sobrevivido. E os alicerces de Nova Atenas eram os mais seguros
que a ciência moderna podia fornecer.
Houve muitas razões para a escolha de uma ilha. Acima de tudo,
as psicológicas. Em uma era de transporte aéreo universal, o
oceano não significava nada como barreira física, mas ainda
transmitia uma sensação de isolamento. Além disso, uma área
terrestre limitada tornava impossível que gente demais vivesse na
colônia. A população máxima foi fixada em cem mil. Mais do que
isso, as vantagens inerentes de uma comunidade pequena e
compacta seriam perdidas. Um dos objetivos dos fundadores era
que todos os membros de Nova Atenas conhecessem todos os
demais cidadãos que compartilhassem de seus interesses, além de
mais um ou dois por cento dos restantes.
O homem que fora a locomotiva por trás de Nova Atenas era um
judeu. E, como Moisés, não vivera para entrar em sua terra
prometida, pois a colônia fora fundada três anos após a sua morte.
Nascera em Israel, a última nação independente a surgir e, por
conseguinte, a de vida mais curta. O fim da soberania nacional fora
sentido lá, talvez, com mais amargura do que em qualquer outro
lugar, pois é difícil abrir mão de um sonho que havia sido alcançado
há tão pouco tempo, depois de séculos de luta.
Ben Salomon não era um fanático, mas as lembranças de sua
infância devem ter influenciado, e não pouco, a filosofia que ele
colocaria em prática. Lembrava-se muito do que o mundo tinha sido
antes do advento dos Senhores Supremos, e não desejava voltar
àquilo. Como muitos outros homens inteligentes e bem-
intencionados, era capaz de apreciar tudo o que Karellen fizera pela
raça humana, ao mesmo tempo em que se sentia angustiado em
relação aos planos finais do Supervisor. Seria possível, ele às vezes
se questionava, que, a despeito de toda a sua colossal inteligência,
os Senhores Supremos não compreendessem de fato a
humanidade, e estivessem cometendo um terrível engano, partindo
do melhor dos motivos? E se, em sua paixão altruísta por justiça e
ordem, estivessem determinados a reformar o mundo, mas não
tivessem se dado conta de que estavam destruindo a alma do
homem?
O declínio mal havia começado, mas os primeiros sintomas da
decadência não eram difíceis de perceber. Salomon não era um
artista, mas tinha uma percepção aguda da arte e sabia que sua
época não estava à altura, em nenhum campo individual, das
realizações dos séculos anteriores. Talvez as coisas entrassem nos
eixos no devido tempo, quando o choque do encontro com a
civilização dos Senhores Supremos tivesse se enfraquecido.
Contudo, podia ser que não, e um homem prudente estudaria a
possibilidade de fazer uma apólice de seguro.
Nova Atenas era essa apólice. Sua fundação consumira vinte
anos e alguns trilhões de libras decimais. Ou seja, uma fração
relativamente trivial da riqueza total do mundo. Nada acontecera nos
primeiros quinze anos. Tudo acontecera nos últimos cinco.
A tarefa de Salomon teria sido impossível se não tivesse sido
capaz de convencer um punhado dos artistas mais famosos do
mundo de que seu plano tinha uma base sólida. Eles haviam
simpatizado com o plano porque agradava a seus egos, não porque
fosse importante para a raça. Uma vez convencidos, porém, o
mundo os escutara e dera apoio, tanto moral como material. Por trás
da fachada espetacular de artistas temperamentais, os verdadeiros
arquitetos da colônia haviam traçado seus planos.
Uma sociedade consiste em seres humanos cujo
comportamento, como indivíduos, é imprevisível. No entanto, se
tomarmos um número suficiente de unidades básicas, certas leis
começam a aparecer, como fora descoberto, muito tempo atrás,
pelas empresas de seguro de vida. Ninguém pode dizer quais
pessoas vão morrer em determinado período, mas o número total de
mortes pode ser previsto com considerável precisão.
Existem outras leis, mais sutis, divisadas no começo do século XX
por matemáticos como Weiner e Rashavesky. Eles diziam que
eventos como as depressões econômicas, os resultados de corridas
armamentistas, a estabilidade de grupos sociais, as eleições
políticas e assim por diante podiam ser analisados por técnicas
matemáticas apropriadas. O grande problema era o imenso número
de variáveis, muitas das quais difíceis de definir em termos
numéricos. Não era possível traçar um conjunto de curvas e dizer
com certeza: “Quando esta linha for alcançada, significará guerra”. E
nunca se podia levar totalmente em conta eventos tão imprevisíveis
como o assassinato de uma figura-chave, ou os efeitos de alguma
nova descoberta científica. Menos ainda de catástrofes naturais,
como terremotos ou enchentes, que podiam ter um efeito profundo
em um grande número de pessoas e nos grupos sociais nos quais
viviam.
E, mesmo assim, podia-se conseguir muito, graças aos
conhecimentos pacientemente acumulados durante os últimos cem
anos. A tarefa teria sido impossível sem o auxílio dos gigantescos
computadores, capazes de realizar o trabalho de mil calculistas
humanos em questão de segundos. Esses auxílios haviam sido
usados ao máximo quando a colônia fora planejada.
Mesmo assim, os fundadores de Nova Atenas podiam apenas
fornecer o solo e o clima nos quais a planta que desejavam alentar
poderia, ou não, vir a florescer. Como o próprio Salomon comentara:
“Podemos ter a certeza do talento, mas apenas orar por um gênio”.
Contudo, era razoável esperar que em uma sociedade tão
concentrada ocorressem algumas reações interessantes. Poucos
artistas prosperam na solidão, e nada é mais estimulante do que o
conflito de mentes com interesses similares.
Até o momento, o conflito gerara bons resultados na escultura,
na música, na crítica literária e no cinema. Ainda era cedo demais
para ver se o grupo que trabalhava em pesquisa histórica
corresponderia às esperanças de seus fomentadores, cujo objetivo
aberto era restaurar o orgulho da humanidade em suas próprias
realizações. A pintura ainda definhava, o que reforçava o ponto de
vista dos que consideravam que as formas de arte estáticas e
bidimensionais não tinham mais possibilidades a explorar.
Embora ainda não houvesse nenhuma explicação satisfatória
para tal, era perceptível que o tempo desempenhava um papel
essencial nas mais bem-sucedidas realizações artísticas da colônia.
Mesmo suas esculturas quase nunca eram estáticas. Os intrigantes
volumes e curvas de Andrew Carson mudavam com lentidão
enquanto eram observados, de acordo com padrões complexos que
a mente podia apreciar, mesmo que não fosse capaz de
compreendê-los de modo pleno. De fato, Carson afirmava, com
certa verdade, ter levado os móbiles de um século atrás à sua
conclusão definitiva, e dessa forma ter unido a escultura ao balé.
Muitas das experiências musicais da colônia se preocupavam,
não por coincidência, com o que se poderia chamar de “duração do
tempo”. Qual era a nota mais breve que a mente podia captar, ou a
mais longa que ela podia tolerar sem tédio? O resultado poderia ser
variado pelo condicionamento, ou pelo uso de uma orquestração
apropriada? Problemas como esses eram discutidos vezes sem fim,
e as discussões não eram apenas acadêmicas: tinham resultado em
algumas composições de extremo interesse.
Contudo, fora na arte do cinema de animação, com suas
possibilidades ilimitadas, que Nova Atenas realizara seus
experimentos mais bem-sucedidos. Os cem anos decorridos desde
a época de Disney haviam deixado muito por fazer nessa mídia tão
flexível. Do lado puramente realista, podiam-se gerar resultados
indistinguíveis de fotografias (para grande desprezo dos que
desenvolviam animações seguindo linhas abstratas).
O grupo de artistas e cientistas que até agora menos criara era o
que atraía o maior interesse... e o maior alarde. Era a equipe que
trabalhava com “identificação total”. A história do cinema dava uma
pista para suas ações: primeiro, o som, depois a cor, depois a
estereoscopia, depois o Cinerama haviam tornado as antigas
“imagens em movimento” cada vez mais parecidas com a própria
realidade. Como terminaria a história? Sem dúvida, o estágio final
seria atingido quando o público se esquecesse de que era um
público, e se tornasse parte da ação. Conseguir isso envolveria a
estimulação de todos os sentidos e, quem sabe, também, a hipnose,
mas muitos acreditavam que era possível. Quando essa meta fosse
alcançada, a experiência humana seria imensamente enriquecida.
Um homem poderia se transformar, por algum tempo, pelo menos,
em outra pessoa, e poderia tomar parte em qualquer aventura
concebível, real ou imaginária. Poderia até ser uma planta ou
animal, caso a captura e o registro das impressões sensoriais de
outras criaturas vivas se tornassem possíveis. E, quando o
“programa” terminasse, ele teria adquirido uma recordação tão
vívida quanto qualquer experiência de sua vida real. De fato,
indistinguível da própria realidade.
As perspectivas eram fascinantes. Muitos também as achavam
horripilantes, e esperavam que o empreendimento fracassasse.
Entretanto, no fundo sabiam que, uma vez tendo a ciência declarado
uma coisa possível, não havia como evitar sua realização, mais
cedo ou mais tarde...
Assim era Nova Atenas e alguns de seus sonhos. Esperava se
tornar o que a antiga Atenas poderia ter sido, caso tivesse máquinas
em vez de escravos, ciência em vez de superstição. Contudo, ainda
era muito cedo para dizer se o experimento teria sucesso.
16
Jeffrey Greggson era um ilhéu que, até agora, não se interessara
por estética ou ciência, as duas grandes preocupações dos mais
velhos. Mesmo assim, aprovava de coração a colônia, por razões
estritamente pessoais. O mar, nunca a mais de alguns quilômetros
em qualquer direção, fascinava o menino. A maior parte de sua
curta existência fora vivida bem longe do mar, e ainda não estava
acostumado à novidade de ficar rodeado de água. Era um bom
nadador e, muitas vezes, saía de bicicleta com os amiguinhos,
levando seus pés de pato e a máscara, para explorar as águas
menos profundas da laguna. No início, Jean não ficara muito
satisfeita com isso, mas depois de ela mesma ter dado alguns
mergulhos, perdera o medo do mar e de suas estranhas criaturas, e
deixara Jeffrey divertir-se à vontade, com a única condição de
jamais nadar sozinho.
Outro membro da família Greggson que também aprovara a
mudança era Fey, a linda golden retriever que, oficialmente,
pertencia a George, mas que poucas vezes se desgrudava de
Jeffrey. Os dois eram inseparáveis, tanto de dia como, se Jean não
tivesse batido o pé, de noite. Apenas quando Jeffrey saía de
bicicleta é que Fey permanecia em casa, deitada, sem fazer nada,
defronte à porta e contemplando a estrada com olhos úmidos e
pesarosos, o focinho repousando entre as patas.
Isso era um tanto humilhante para George, que pagara um preço
salgado por Fey e seu pedigree. Parecia que ia ter de esperar pela
próxima ninhada, prevista para dali a três meses, antes que
pudesse ter um cão seu. Jean tinha outra opinião sobre o assunto.
Gostava de Fey, mas achava que um cão por domicílio era mais do
que o suficiente.
Apenas Jennifer Anne ainda não se decidira se gostava ou não
da colônia. Isso, porém, não era de espantar, pois até agora nada
vira do mundo além dos painéis plásticos de seu berço, e tinha, até
o momento, pouquíssima suspeita de que existisse tal lugar.
George Greggson não costumava pensar muito no passado.
Estava ocupado demais com planos para o futuro, absorvido demais
pelo trabalho e pelos filhos. De fato, era raro que sua mente
voltasse através dos anos para aquela noite na África, e nunca
tocou no assunto com Jean. Por concordância mútua, o evitavam e,
desde aquele dia, nunca mais visitaram os Boyce, apesar dos
repetidos convites. Ligavam para Rupert com novas desculpas
várias vezes por ano e, nos últimos tempos, ele parara de
incomodá-los. Seu casamento com Maia, para surpresa de todos,
parecia ter dado certo.
Um resultado daquela noite fora que Jean perdera toda a
vontade de se envolver em mistérios nas fronteiras da ciência.
Desaparecera completamente aquela admiração ingênua e
indiscriminada que a atraíra para Rupert e seus experimentos.
Quem sabe tivesse se convencido, e não quisesse mais provas.
George preferia não perguntar. Era possível também que as
preocupações da maternidade tivessem expulsado esses interesses
de sua mente.
George sabia que não fazia sentido se preocupar com um
mistério que jamais poderia ser resolvido. No entanto, às vezes, no
silêncio da noite, acordava e ficava pensando. Lembrava-se de seu
encontro com Jan Rodricks, na laje da casa de Rupert, e das
poucas palavras que eram tudo o que conversara com o único ser
humano que tivera sucesso em desafiar a interdição dos Senhores
Supremos. “Nada no reino do sobrenatural”, pensava George,
“podia ser mais assustador do que o fato puramente científico de
que, embora quase dez anos tivessem se passado desde que falara
com Jan, aquele viajante, agora tão afastado, tivesse envelhecido
só alguns dias.”
O Universo era vasto, mas esse fato o apavorava menos do que
seu mistério. George não era uma pessoa que pensasse a fundo
nesses assuntos, mas às vezes lhe parecia que os homens eram
como crianças, divertindo-se em um playground cercado, protegidos
das terríveis realidades do mundo exterior. Jan Rodricks ressentira-
se dessa proteção e escapara dela... para ninguém sabia o quê.
Neste assunto, porém, George se vira ao lado dos Senhores
Supremos. Não desejava enfrentar fosse o que fosse que estivesse
espreitando nas trevas desconhecidas, logo além do pequeno
círculo de luz projetado pela lâmpada da ciência.
– Como é – queixou-se George – que Jeff está sempre fora, em
algum lugar, quando acontece de eu estar em casa? Aonde ele foi
hoje?
Jean levantou os olhos do tricô, uma ocupação arcaica que fora
recentemente revivida com grande sucesso. Essas modas iam e
vinham na ilha com certa rapidez. O principal resultado desta mania
específica era que todos os homens já haviam sido presenteados
com suéteres multicor, quentes demais para usar de dia, mas bem
úteis depois do pôr do Sol.
– Foi a Esparta com uns amigos – Jean respondeu. – Prometeu
voltar pro jantar.
– Vim pra casa pensando em trabalhar um pouco – disse George,
pensativo. – Só que o dia está tão bonito, então acho que também
vou lá nadar. Que tipo de peixe você quer que eu traga?
George nunca pescara nada, e os peixes da laguna eram
espertos demais para serem apanhados. Jean estava a ponto de
dizer isso, quando o silêncio da tarde foi quebrado por um som que
ainda tinha o poder, mesmo nesta era pacífica, de gelar o sangue e
deixar o couro cabeludo formigando de apreensão.
Era o uivo de uma sirene, subindo e descendo, espalhando sua
mensagem de perigo em círculos concêntricos, na direção do mar.
Durante quase cem anos, as pressões estiveram aumentando
lentamente, aqui na escuridão ardente, muito abaixo do leito
oceânico. Embora o canyon submarino tivesse se formado muitas
eras geológicas atrás, as rochas torturadas nunca se reconciliaram
com suas novas posições. Vezes sem conta, os estratos haviam
rangido e se deslocado, à medida que o peso inimaginável da água
perturbava o seu precário equilíbrio. E, mais uma vez, estavam
prontos para se mover.
Jeff estava explorando as piscinas rochosas ao longo da praia
estreita de Esparta, uma ocupação que ele achava de extremo
interesse. Nunca se podia saber que criaturas exóticas poderiam ser
encontradas, abrigadas das ondas que avançavam umas atrás das
outras pelo Pacífico para esgotarem-se contra os recifes. Era um
reino de fadas para qualquer criança e, naquele momento, Jeff era
seu único proprietário, pois seus amigos haviam subido para as
colinas.
O dia estava calmo e pacífico. Não soprava vento nenhum, e
mesmo o eterno murmúrio de além dos recifes havia se reduzido a
um som abafado ao fundo. Um sol escaldante pendia do céu, já na
metade da descida, mas o corpo castanho-mogno de Jeff agora era
praticamente imune aos seus ataques.
A praia, aqui, era um cinturão estreito de areia, com uma forte
inclinação próxima da laguna. Olhando para dentro da água
cristalina, Jeff podia ver as rochas submersas que lhe eram tão
familiares quanto as formações em terra. Cerca de dez metros
abaixo, as vigas cobertas de algas de uma antiga escuna curvavam-
se para cima, em direção ao mundo que deixara quase dois séculos
atrás. Jeff e seus amigos haviam explorado o naufrágio muitas
vezes, mas as esperanças de um tesouro escondido foram
frustradas. Tudo o que tinham recuperado fora uma bússola
incrustada de cracas.
Com muita firmeza, alguma coisa se apossou da praia e deu um
único e repentino puxão nela. O tremor passou tão depressa que
Jeff ficou em dúvida se o teria imaginado. Quem sabe, tivesse sido
uma tontura passageira, pois tudo à sua volta permanecia
completamente inalterado. As águas da laguna estavam calmas, o
céu, vazio de nuvens ou ameaças. E, então, algo muito estranho
começou a acontecer.
Mais rápido do que qualquer maré vazante, a água recuava da
costa. Jeff observou, profundamente intrigado, mas nem um pouco
assustado, enquanto as areias molhadas eram expostas, cintilando
ao Sol. Acompanhou o oceano em retirada, determinado a
aproveitar ao máximo aquele milagre que abrira o mundo submarino
à sua inspeção. Agora, o nível baixara tanto que o mastro partido do
velho naufrágio se erguia no ar, com as algas pendendo dele,
flácidas, à medida que perdiam seu apoio líquido. Jeff avançou com
pressa, ansioso por ver que maravilhas seriam reveladas em
seguida.
Foi então que reparou no barulho dos recifes. Nunca ouvira algo
parecido antes, e parou para pensar no assunto, os pés descalços
afundando devagar na areia úmida. Um grande peixe se debatia, em
agonia, a poucos metros de distância, mas Jeff mal o notou. Ficou
parado, alerta e ouvindo, enquanto o barulho do recife aumentava
cada vez mais à sua volta.
Era um som de sucção, gorgolejante, como o de um rio correndo
por um canal estreito. Era a voz do mar em retirada contra a
vontade, zangado por perder, mesmo que por um momento, as
terras que eram suas por direito. Através das graciosas ramificações
do coral, através de cavernas submarinas ocultas, milhões de
toneladas de água estavam sendo drenadas da laguna para a
vastidão do Pacífico.
Muito em breve, e com grande velocidade, elas retornariam.
Horas mais tarde, um dos grupos de resgate encontrou Jeff sobre
um grande bloco de coral que fora arremessado vinte metros acima
do nível normal da água. Não parecia lá muito assustado, embora
estivesse preocupado com a perda da bicicleta. Também sentia
muita fome, já que ficara isolado de casa pela destruição parcial da
ponte. Quando foi resgatado, estava pensando em nadar de volta a
Atenas e, a menos que as correntes tivessem mudado
drasticamente, era certo que teria feito a travessia sem grandes
problemas.
Jean e George tinham testemunhado toda a sequência de
eventos de quando o tsunami atingira a ilha. Embora os danos
tivessem sido graves nas áreas baixas de Atenas, não houve
nenhuma vida perdida. Os sismógrafos tinham sido capazes de dar
apenas quinze minutos de advertência, mas isso fora o suficiente
para que todos viessem para cima da linha de perigo. Agora, a
colônia se recuperava e reunia uma massa de lendas que se
tornariam cada vez mais apavorantes nos anos seguintes.
Jean irrompeu em lágrimas quando lhe devolveram o filho, pois
estava completamente convencida de que ele fora levado pelo mar.
Assistira, com olhos cheios de horror, enquanto o negro paredão de
águas encimado por espuma se movera do horizonte, rugindo, para
cobrir a base de Esparta com espuma e borrifos. Parecia incrível
que Jeff pudesse ter alcançado um lugar seguro a tempo.
Não era de espantar que ele não fosse capaz de fazer uma
descrição racional do que acontecera. Quando já havia se
alimentado e estava em segurança na cama, Jean e George se
reuniram ao seu lado.
– Agora durma, querido, e esqueça tudo – disse Jean. – Está
tudo bem agora.
– Mas foi legal, mãe – protestou Jeff. – Não deu medo, de
verdade.
– Ótimo – disse George. – Você é um rapaz corajoso, e ainda
bem que teve juízo e correu a tempo. Já ouvi falar desses
maremotos. Muita gente se afoga por sair para a praia descoberta,
pra ver o que aconteceu.
– Foi isso que eu fiz – confessou Jeff. – Quem será que me
ajudou?
– Que quer dizer? Não tinha ninguém com você. Os outros
garotos estavam no alto da colina.
Jeff parecia intrigado.
– Mas alguém me disse pra correr.
Jean e George se entreolharam, ligeiramente alarmados.
– Você quer dizer... que imaginou ter ouvido algo?
– Ah, não amole ele agora – disse Jean, ansiosa, e um pouco
apressada demais. George, porém, era teimoso.
– Quero chegar ao fundo disto. Conte exatamente o que
aconteceu, Jeff.
– Bem, eu estava lá embaixo na praia, pertinho daquele navio
velho afundado, quando a voz falou.
– E que foi que ela disse?
– Não lembro bem, mas foi algo assim: “Jeffrey, suba a colina o
mais rápido que puder. Se ficar aqui, vai morrer afogado”. Tenho
certeza de que a voz me chamou de Jeffrey, e não Jeff. Então, não
pode ter sido ninguém que eu conheço.
– Era uma voz de homem? E de onde vinha?
– Parecia bem pertinho, do meu lado. E parecia voz de homem...
– Jeff hesitou por um momento, e George o estimulou:
– Vá em frente... Só imagine que está de volta na praia e diga
exatamente o que aconteceu.
– Bem, não era como ninguém que eu tivesse ouvido falar antes.
Acho que era um homem bem grande.
– Foi só isso que a voz disse?
– Foi... até que comecei a subir a colina. Aí aconteceu outra
coisa engraçada. Sabe a trilha que sobe pelo rochedo?
– Sei.
– Eu estava correndo, subindo por ela, porque era o caminho
mais rápido. Já sabia o que estava havendo, porque tinha visto a
ondona vindo. Também fazia um barulho de dar medo. E aí eu
descobri que tinha uma pedra enorme no caminho. Não estava lá
antes, e eu não tinha por onde passar.
– Deve ter caído com o terremoto – disse George.
– Psiu! Continue, Jeff.
– Não sabia o que fazer, e dava pra ouvir a onda chegando. Aí, a
voz disse: “Feche os olhos, Jeffrey, e ponha a mão na frente do
rosto”. Parecia uma coisa engraçada pra se fazer, mas tentei. E aí
teve um brilho enorme, dava pra sentir no corpo todo. E, quando
abri os olhos, a pedra tinha sumido.
– Sumido?
– Isso mesmo, não estava mais lá. Comecei a correr de novo, e
foi aí que quase queimei os pés, porque a trilha estava quente pra
caramba. A água assobiou quando passou ali, mas não conseguiu
me pegar, eu já estava bem pra cima no rochedo. E foi só isso.
Desci de volta quando não tinha mais ondas. Aí, vi que a minha
bicicleta tinha sumido, e que a estrada pra casa tinha desabado.
– Não se preocupe com a bicicleta, querido – disse Jean,
apertando o filho, grata. – A gente arranja outra. A única coisa que
importa é que você está a salvo. Não vamos nos preocupar com
como aconteceu.
Isso, é claro, não era verdade, pois a discussão começou tão
logo saíram do quarto das crianças. Não chegaram a uma
conclusão, mas a conversa teve duas consequências. No dia
seguinte, sem dizer nada a George, Jean levou o filhinho ao
psicólogo infantil da colônia, que ouviu com atenção enquanto Jeff
repetia sua história, nem um pouco intimidado pelo novo ambiente.
Em seguida, enquanto o menino, que nem desconfiava que estava
lá como paciente, rejeitava em série os brinquedos na sala ao lado,
o médico tranquilizou Jean:
– Não tem nada no histórico dele que sugira alguma anomalia
mental. Temos que levar em conta que ele passou por uma
experiência aterradora, e se saiu dela melhor do que era de se
esperar. É uma criança cheia de imaginação, e deve acreditar na
própria história. Então, apenas aceite a história, e não se preocupe,
a não ser que haja outros sintomas depois. Nesse caso, me avise
na hora.
À noite, Jean transmitiu o veredicto ao marido. George não
pareceu tão aliviado quanto ela esperava, e Jean atribuiu isso à
preocupação com os estragos sofridos por seu querido teatro. Ele
apenas grunhiu “Tudo bem”, e se acomodou com o último número
da Palcos e Ateliês. Parecia que ele tinha perdido o interesse no
assunto como um todo, e Jean ficou vagamente aborrecida.
Três semanas depois, porém, no dia em que a ponte foi reaberta,
George e sua bicicleta partiram em ritmo ligeiro para Esparta.
A praia ainda estava coberta de coral despedaçado, e o próprio
recife parecia ter sido rompido em um ponto. George ficou pensando
quanto tempo as miríades de pólipos pacientes levariam para
reparar os estragos.
Havia apenas um caminho subindo pela frente do rochedo e,
assim que recobrou o fôlego, George começou a escalar. Alguns
fragmentos secos de alga, aprisionados entre as rochas, marcavam
o limite alcançado pelas águas em ascensão.
Por um longo tempo, George Greggson ficou ali, parado naquela
trilha solitária, contemplando a mancha de rocha fundida debaixo de
seus pés. Tentou dizer a si mesmo que era alguma bizarrice do
vulcão há muito extinto, mas logo abandonou essa tentativa de
autoilusão. Sua mente retornou àquela noite, anos atrás, quando ele
e Jean haviam participado do tolo experimento de Rupert Boyce.
Ninguém jamais entendera realmente o que havia acontecido
naquela noite, e George sabia que, de alguma maneira insondável,
os dois estranhos eventos estavam ligados. Primeiro fora Jean,
agora o filho dela. Não sabia se devia ficar feliz ou com medo e, do
fundo do coração, proferiu uma oração silenciosa:
– Obrigado, Karellen, por seja lá o que a sua gente tenha feito
por Jeff. Mas queria saber por que fizeram isso.
Desceu lentamente para a praia, e as grandes gaivotas brancas
ficaram fazendo curvas em torno de George, aborrecidas por ele
não ter trazido comida para lhes jogar enquanto circulavam no céu.
17
O pedido de Karellen, embora fosse de se esperar a qualquer
momento desde a fundação da colônia, caiu como uma bomba.
Como todos sabiam muito bem, representava uma crise nos
assuntos de Atenas, e ninguém conseguia determinar se resultaria
em algo de bom ou de ruim.
Até agora, a colônia seguira seu caminho sem qualquer
interferência dos Senhores Supremos. Haviam deixado a ilha
totalmente à vontade, da mesma maneira como ignoravam a maior
parte das atividades humanas que não fossem subversivas, nem
ofendessem seus códigos de conduta. Se os objetivos da colônia
podiam ou não ser chamados de subversivos, era duvidoso. Eram
apolíticos, mas representavam uma busca de independência
intelectual e artística. E, a partir daí, quem sabe o que poderia
resultar? Os Senhores Supremos podiam muito bem ser capazes de
prever o futuro de Atenas mais claramente que seus fundadores... e
poderiam não gostar dele.
É claro que se Karellen desejasse enviar um observador, inspetor
ou como quer que se quisesse chamá-lo, não havia nada que
pudesse ser feito. Vinte anos antes, os Senhores Supremos
anunciaram que tinham suspendido a utilização de seus aparelhos
de vigilância, de modo que a humanidade não precisava mais se
considerar espionada. No entanto, o fato de esses aparelhos ainda
existirem significava que nada podia ser escondido dos Senhores
Supremos, se eles realmente quisessem ver.
Algumas pessoas da ilha recebiam com alegria esta visita, como
uma chance de solucionar um dos problemas menores da psicologia
dos Senhores Supremos: sua postura em relação às artes. Será que
as consideravam uma aberração infantil da raça humana? Será que
têm alguma forma de arte deles mesmos? Nesse caso, a finalidade
desta visita seria puramente estética, ou os motivos de Karellen
seriam menos inocentes?
Todas essas questões foram debatidas incessantemente,
enquanto os preparativos estavam em andamento. Nada se sabia a
respeito do Senhor Supremo visitante, mas presumia-se que
pudesse absorver cultura em quantidades ilimitadas. O experimento
seria, pelo menos, tentado, e as reações da vítima, observadas com
interesse por uma junta de mentes das mais aguçadas.
O atual presidente do conselho era o filósofo Charles Yan Sen,
um homem irônico, mas no fundo bem-humorado, que ainda não
chegara aos sessenta e estava, portanto, no auge da vida. Platão o
teria aprovado como um exemplo do filósofo-estadista, embora Sen
não aprovasse totalmente Platão, que suspeitava ter deturpado
grosseiramente as ideias de Sócrates. Ele era um dos ilhéus
decididos a tirar o máximo da visita, nem que fosse apenas para
mostrar aos Senhores Supremos que os homens ainda tinham
bastante iniciativa e ainda não estavam, como ele dizia,
“completamente domesticados”.
Em Atenas, nada se fazia sem um comitê, essa marca registrada
definitiva do método democrático. De fato, alguém certa vez definira
a colônia como um sistema de comitês interligados. No entanto, o
sistema funcionava graças aos pacientes estudos dos psicólogos
sociais que tinham sido os verdadeiros fundadores de Atenas. Visto
que a comunidade não era grande demais, todo mundo tinha a
chance de participar um pouco de sua administração e ser um
cidadão, no sentido mais verdadeiro da palavra.
Era quase inevitável que George, como um líder da hierarquia
artística, fizesse parte do comitê de recepção. Ele, porém, se
garantiu duplamente, mexendo alguns pauzinhos. Se os Senhores
Supremos queriam estudar a colônia, George também queria
estudá-los. Jean não ficou muito satisfeita com isso.
Desde a noite na casa dos Boyce que sentia uma vaga
hostilidade para com os Senhores Supremos, embora não tivesse,
de fato, razão para isso. Apenas desejava lidar com eles o mínimo
possível, e um dos principais atrativos da ilha fora, para ela, a
esperança de independência. Agora, temia que essa independência
pudesse estar ameaçada.
O Senhor Supremo chegou sem nenhuma cerimônia, em um
carro aéreo de fabricação humana, para frustração dos que
esperavam algo mais espetacular. Podia ser o próprio Karellen, pois
ninguém jamais conseguira distinguir um Senhor Supremo de outro
com qualquer grau de certeza. Todos pareciam duplicatas, saídas
de um único molde-mestre. E quem sabe, graças a algum processo
biológico desconhecido, fossem mesmo.
Depois do primeiro dia, os ilhéus deixaram de prestar muita
atenção quando o carro oficial passava, murmurando, em seus
roteiros turísticos. O nome correto do visitante, Thanthalteresco, se
mostrou inconveniente demais para o uso geral, e logo ele foi
apelidado de “Inspetor”. Era um nome preciso, visto que sua
curiosidade e apetite por estatísticas eram insaciáveis.
Charles Yan Sen estava exausto quando, bem depois da meia-
noite, acompanhou o Inspetor de volta ao carro aéreo que lhe servia
de base. Ali, sem dúvida, ele continuaria a trabalhar durante toda a
noite, enquanto seus anfitriões humanos se rendiam à fraqueza do
sono.
A sra. Sen recebeu o marido com ansiedade na volta.
Era um casal amoroso, a despeito do hábito brincalhão dele de
tratá-la por Xantipa sempre que recebiam convidados. Ela há muito
ameaçara revidar de acordo, preparando-lhe uma xícara de cicuta,
mas, felizmente, essa erva era menos comum na Nova Atenas do
que fora na antiga.
– Foi tudo bem? – perguntou ela, enquanto o marido se
acomodava para uma refeição tardia.
– Acho que sim... só que a gente nunca pode ter certeza do que
se passa naquelas mentes incríveis. Ele ficou mesmo interessado,
foi até lisonjeiro. A propósito, pedi desculpas por não o convidar
para vir aqui. Ele disse que entendia muito bem, e não tinha a
menor vontade de bater com a cabeça no nosso teto.
– O que mostrou para ele hoje?
– O lado do ganha-pão da colônia, que ele não pareceu achar tão
chato quanto eu sempre acho. Fez todo tipo de perguntas que você
possa imaginar sobre produção, como equilibramos nosso
orçamento, nossos recursos minerais, a taxa de natalidade, como
conseguimos nossa comida, e assim por diante. Ainda bem que eu
estava com o secretário Harrison, e ele veio preparado com todos
os relatórios anuais desde o início da colônia. Você devia ter visto os
dois trocando estatísticas... O Inspetor pediu os relatórios
emprestados, e aposto que, quando nos virmos amanhã, vai ser
capaz de citar qualquer número pra gente. Acho esse tipo de
exibição mental tão deprimente!
Bocejou e começou a ciscar a comida, sem muito entusiasmo.
– Acho que amanhã vai ser mais interessante. Vamos visitar as
escolas e a Academia. É aí que vou fazer umas perguntas, pra
variar. Queria saber como é que os Senhores Supremos criam os
filhos... supondo, claro, que tenham filhos.
Essa seria uma pergunta que Charles Sen jamais veria
respondida, mas, em outros pontos, o Inspetor foi bastante prolixo.
Esquivava-se de perguntas constrangedoras de tal maneira que
dava gosto de ver, e então, sem que ninguém esperasse, se abria
totalmente.
O primeiro momento de verdadeira intimidade ocorreu quando
estavam indo embora da escola, que era um dos grandes orgulhos
da colônia.
– É uma grande responsabilidade – comentou o dr. Sen – treinar
essas mentes jovens para o futuro. Ainda bem que os seres
humanos são muito resistentes. É preciso uma criação bem ruim
para causar um dano permanente. Mesmo que nossos objetivos
estejam errados, nossas pequenas vítimas deverão superar isso. E,
como viu, elas parecem bem felizes.
Ficou em silêncio por um momento e, em seguida, levantou os
olhos marotos para o vulto imponente de seu passageiro. O Inspetor
estava completamente coberto com uma espécie de tecido prateado
refletor, de modo que nem um centímetro do seu corpo expunha-se
à luz ardente do sol. O dr. Sen estava ciente dos grandes olhos por
trás dos óculos escuros, observando-o sem emoção... ou com
emoções que ele jamais poderia compreender.
– Imagino que nosso problema na educação dessas crianças
seja muito semelhante ao de vocês, com relação à raça humana.
Não concorda?
– Sob certos aspectos – admitiu, gravemente, o Senhor
Supremo. – Sob outros, talvez uma melhor analogia possa ser
encontrada na história das suas potências coloniais. Por esse
motivo, os Impérios Romano e Britânico sempre foram de muito
interesse para nós. O caso da Índia é em especial instrutivo. A
principal diferença entre nós e os ingleses na Índia é que eles não
tinham motivos concretos para ir lá. Isto é, não tinham objetivos
conscientes, exceto razões triviais e temporárias, como comércio e
hostilidade para com outras potências europeias. Viram-se donos de
um império antes de saberem o que fazer com ele, e nunca ficaram
satisfeitos de verdade até terem se livrado dele.
– E os Senhores Supremos – perguntou o dr. Sen, incapaz de
resistir à ocasião – vão se livrar do seu império quando chegar a
hora?
– Sem a menor hesitação – retrucou o Inspetor.
O dr. Sen não insistiu no assunto. A franqueza da resposta não
era muito lisonjeira. Além disso, já haviam chegado à Academia,
onde os pedagogos, reunidos, aguardavam para afiar suas mentes
em contato com um Senhor Supremo, real e ao vivo.
– Como nosso distinto colega deve ter mencionado – disse o
professor Chance, reitor da Universidade de Nova Atenas –, nosso
principal objetivo é manter as mentes de nosso povo alertas, e
permitir que desenvolvam todas as suas potencialidades. Fora desta
ilha – e seu gesto indicava, e rejeitava, o resto do globo –, receio
que a raça humana tenha perdido a iniciativa. Tem paz, tem
abundância... só não tem horizontes.
– Enquanto que aqui, é claro...? – interrompeu o Senhor
Supremo, afável.
O professor Chance, que não tinha senso de humor e estava
vagamente ciente do fato, olhou, desconfiado, para o visitante, e
prosseguiu:
– Aqui não padecemos da antiquada obsessão de que o lazer é
um pecado. Mas também não achamos que a recepção passiva de
entretenimento seja tudo. Todo mundo nesta ilha tem uma ambição,
que pode ser resumida de maneira muito simples: fazer algo, por
menor que seja, melhor do que qualquer outra pessoa. É claro que
se trata de um ideal que nem todos atingimos. Mas, neste mundo
moderno, já é uma grande coisa ter um ideal. Alcançá-lo é muito
menos importante.
O Inspetor não pareceu inclinado a fazer comentários. Havia
descartado a roupa protetora, mas ainda usava óculos escuros,
mesmo na luz branda do Salão de Conferências. O reitor
desconfiava se seriam necessários por motivos fisiológicos, ou se
eram mera camuflagem. O certo era que tornavam praticamente
impossível a já difícil tarefa de ler os pensamentos dos Senhores
Supremos. Não pareceu, contudo, opor-se às afirmações, um tanto
duras, que lhe haviam sido lançadas, ou às críticas implícitas à
política de sua raça com relação à Terra.
O reitor estava a ponto de insistir no ataque quando o professor
Sperling, diretor do Departamento de Ciências, resolveu transformá-
lo em um combate de três frentes.
– Como o senhor decerto sabe, um dos grandes problemas de
nossa cultura tem sido a dicotomia entre arte e ciência. Gostaria
muito de conhecer sua opinião sobre o assunto. Concorda com a
visão de que todos os artistas são anormais? Que o trabalho deles,
ou, pelo menos, o impulso por trás desse trabalho, seja o resultado
de algum descontentamento psicológico profundo?
O professor Chance limpou a garganta, deliberadamente, mas o
Inspetor se antecipou a ele:
– Disseram-me que todos os homens são artistas até certo
ponto, de modo que todo mundo é capaz de criar algo, mesmo que
em um nível rudimentar. Por exemplo, ontem, em suas escolas,
observei a ênfase dada à autoexpressão no desenho, na pintura e
na modelagem. O impulso parecia bastante universal, mesmo entre
os que claramente estão destinados a ser especialistas em ciências.
Por isso, se todos os artistas são anormais, e todos os homens são
artistas, temos aí um interessante silogismo...
Todos ficaram aguardando que ele o concluísse. Contudo,
quando isso servia às suas finalidades, os Senhores Supremos
sabiam ser impecavelmente diplomáticos.
O Inspetor passou pelo concerto sinfônico com esmero, o que
era bem mais do que podia ser dito de muitos membros humanos do
público. A única concessão ao gosto popular fora a Sinfonia dos
Salmos, de Stravinsky; o resto do programa mantivera-se
ferrenhamente modernista. Quaisquer que fossem os pontos de
vista de cada um sobre seus méritos, a apresentação fora soberba,
pois a alegação da colônia quanto a ter alguns dos melhores
músicos do planeta não era falsa. Houve muita disputa entre os
diversos compositores rivais pela honra de serem incluídos no
programa, mesmo que alguns cínicos questionassem se isso seria
mesmo uma honra. Embora tudo o que se sabia indicasse o
contrário, os Senhores Supremos podiam ter ouvido duro.
No entanto, foi observado que, após o concerto, Thanthalteresco
procurou os três compositores que estavam presentes e os
cumprimentou pelo que chamou de “grande engenhosidade”. Isso
fez com que se retirassem com expressões satisfeitas, mas
vagamente perplexas.
Foi só no terceiro dia que George Greggson teve a oportunidade
de se encontrar com o Inspetor. O teatro providenciara uma espécie
de grelhado misto em vez de um único prato: duas peças de um ato,
um quadro cômico de um imitador de fama mundial e uma
sequência de balé. Mais uma vez, tudo foi esplendidamente
executado e a previsão de um crítico (“Agora, pelo menos, vamos
descobrir se os Senhores Supremos são capazes de bocejar.”) foi
refutada. De fato, o Inspetor riu várias vezes, e nos pontos certos.
E mesmo assim... ninguém podia ter certeza. Ele podia estar
também representando um esplêndido ato, acompanhando a
apresentação apenas pela lógica, com suas estranhas emoções
completamente insensíveis, como um antropólogo que tomasse
parte em um ritual primitivo. O fato de que tivesse emitido os sons
apropriados, e reagido como esperado, no fundo não provava coisa
nenhuma.
Embora George tivesse a firme intenção de conversar com o
Inspetor, fracassou totalmente. Depois do espetáculo, trocaram
algumas palavras de apresentação e, em seguida, o visitante foi
conduzido para longe. Seria impossível isolá-lo de sua comitiva, e
George foi para casa em um estado de extrema frustração. Não
tinha certeza do que pretendia dizer, mesmo que tivesse tido a
oportunidade. De alguma maneira, porém, tinha a certeza de que
teria conseguido conduzir a conversa para Jeff. E, agora, a
oportunidade se fora.
Seu mau humor durou dois dias. O carro aéreo do Inspetor já
partira, em meio a muitos protestos de respeito mútuo, antes que a
consequência surgisse. Ninguém pensara em perguntar a Jeff, e o
menino devia ter pensado muito no assunto, e por um bom tempo,
antes de abordar George.
– Papai – disse ele, pouco antes de ir para cama. – Sabe esse
Senhor Supremo que veio ver a gente?
– Sei – respondeu George, sem demonstrar emoção.
– Bem, ele foi na nossa escola, e ouvi ele falar com uns
professores. Não deu pra entender o que ele falava... mas acho que
já ouvi a voz dele. Foi ele quem disse para eu correr, quando veio
aquela ondona.
– Tem certeza?
Jeff hesitou por um momento.
– Não muita... Mas, se não foi ele, foi outro Senhor Supremo.
Não sabia se devia agradecer. Mas ele já foi, né?
– Já – respondeu George. – Infelizmente, já. Mesmo assim,
quem sabe a gente tenha outra chance? Agora, vá pra cama como
um bom menino e não se preocupe mais com isso.
Quando teve a certeza de que Jeff estava longe, e Jenny estava
pronta para dormir, Jean voltou e sentou-se no tapete, ao lado da
poltrona de George, inclinando-se contra suas pernas. Era um
hábito que ele achava irritantemente sentimental, mas pelo qual não
valia a pena criar caso. Apenas enrijecia os joelhos, para que
ficassem bem desconfortáveis.
– O que é que você acha agora? – perguntou Jean, com uma voz
cansada e monótona. – Acredita que aconteceu de verdade?
– Aconteceu – replicou George –, mas talvez seja bobagem a
gente se preocupar. Afinal, a maioria dos pais ficaria grata... E, é
claro que eu estou grato. A explicação pode ser muito simples. A
gente sabe que os Senhores Supremos ficaram interessados na
colônia, de modo que, com certeza, estão observando a ilha com
seus instrumentos... apesar de terem feito aquela promessa.
Imagine que um estava só patrulhando por aí com aquele aparelho
de visualização, e viu a onda a caminho. Seria muito natural avisar
qualquer um que estivesse em perigo.
– Mas ele sabia o nome de Jeff, não se esqueça disso. Não, eles
estão nos observando. Tem algo de esquisito na gente, alguma
coisa que atrai a atenção deles. Sinto isso desde a festa do Rupert.
É engraçado como aquilo mudou a vida da gente.
George baixou os olhos para ela com pena, mas só isso. Era
estranho o quanto a gente podia mudar em tão pouco tempo. Tinha
carinho por ela; ela dera à luz os seus filhos e era parte de sua vida.
Contudo, o quanto restara do amor que uma pessoa do passado
distante, chamada George Greggson, certa vez sentira por um
sonho passageiro chamado Jean Morrel?
Seu amor agora se dividia entre Jeff e Jennifer de um lado... e
Carolle do outro. Não acreditava que Jean soubesse de Carolle, e
pretendia contar-lhe antes que alguém mais o fizesse. Entretanto,
por algum motivo, jamais conseguira.
– Muito bem... Jeff está sendo vigiado... ou melhor, protegido.
Não acha que devíamos ficar orgulhosos? Talvez os Senhores
Supremos tenham planejado um grande futuro pra ele. Fico
imaginando o que pode ser.
Sabia que estava falando aquilo para tranquilizar Jean. Ele
próprio não se sentia muito preocupado, só intrigado, sem saber o
que pensar. E, de repente, outro pensamento lhe ocorreu, algo em
que devia ter pensado antes. Seus olhos voltaram-se
automaticamente para o quarto do bebê.
– Será que estão atrás só do Jeff? – perguntou.
No devido tempo, o Inspetor apresentou seu relatório. Os ilhéus
teriam dado tudo para vê-lo. Todas as estatísticas e registros foram
para as memórias insaciáveis dos grandes computadores, que eram
apenas alguns dos poderes invisíveis por trás de Karellen. Contudo,
antes mesmo que essas mentes elétricas impessoais tivessem
chegado a suas conclusões, o Inspetor fizera suas próprias
recomendações. Expressas por meio dos pensamentos e da língua
da raça humana, elas seriam assim:
Não precisamos tomar medidas em relação à colônia. É um
experimento interessante, mas que não pode, de maneira alguma,
afetar o futuro. Suas realizações artísticas não nos dizem respeito, e
não há indício de que alguma das pesquisas científicas esteja
enveredando por caminhos perigosos.
Como planejado, consegui ver o histórico escolar do Indivíduo
Zero, sem despertar curiosidade. As estatísticas pertinentes estão
anexas, e pode-se observar que ainda não há sinais de qualquer
desenvolvimento incomum. Contudo, como sabemos, um salto
evolucionário raramente fornece grande aviso prévio.
Conheci também o pai do Indivíduo e tive a impressão de que ele
desejava falar comigo. Felizmente, fui capaz de evitar isso. Não há
dúvida de que suspeita de algo, embora, é claro, não tenha como
deduzir a verdade, nem de afetar, de qualquer maneira, o resultado
final.
Fico cada vez com mais pena dessa gente.
George Greggson teria concordado com o veredicto do Inspetor,
de que não havia nada de incomum sobre Jeff. Apenas aquele
incidente confuso, tão alarmante quanto um trovão isolado em um
dia calmo e de céu claro. E depois disso... nada.
Jeff tinha toda a energia e curiosidade de qualquer outro menino
de sete anos. Era inteligente (quando se esforçava), mas não corria
perigo de se tornar um gênio. “Às vezes”, pensava Jean, um pouco
cansada, “ele correspondia perfeitamente à definição clássica de um
menino pequeno: ‘um barulho cercado de sujeira’.” Não que fosse
muito fácil constatar a sujeira, que precisava se acumular por tempo
considerável antes de ficar visível sobre o bronzeado usual de Jeff.
Alternadamente, ele podia ser afetuoso ou rabugento, reservado
ou efervescente. Não demonstrava preferência por um dos pais em
relação ao outro, e a chegada da irmãzinha não gerara nele nenhum
sinal de ciúme. Seu histórico médico era imaculado: nunca, em sua
vida, ficara um só dia doente. Nesta época e neste clima, porém,
isso não era nada incomum.
Ao contrário de alguns garotos, Jeff não se fartava depressa da
companhia do pai nem o trocava, sempre que possível, por amigos
da sua própria idade. Era evidente que compartilhava dos talentos
artísticos de George, e quase desde que começara a andar se
tornara um visitante habitual dos bastidores do teatro da colônia. De
fato, o teatro o adotara como mascote não oficial, e ele já tinha
muita prática em oferecer flores a visitantes famosos do palco e da
tela.
Sim, Jeff era um garoto perfeitamente normal. Assim George se
tranquilizava, enquanto saíam para passeios a pé ou de bicicleta
pelo terreno um tanto limitado da ilha. Ficavam conversando como
pais e filhos fazem desde o começo dos tempos. Exceto que, nesta
época, havia muito mais sobre o que falar. Embora Jeff nunca
saísse da ilha, podia ver tudo o que desejasse do mundo
circundante, através do olho ubíquo da tela da televisão. Como
todos os colonos, sentia certo desdém pelo resto da humanidade.
Eles eram a elite, a vanguarda do progresso. Levariam a
humanidade às alturas que os Senhores Supremos haviam
atingido... e, quem sabe, além. Não amanhã, claro, mas um dia.
Nunca imaginaram que esse dia viria cedo demais.
18
Os sonhos começaram seis semanas depois.
Na escuridão da noite subtropical, George Greggson nadou
lentamente para cima, rumo à consciência. Não sabia o que o
acordara e, por um momento, ficou em uma espécie de letargia
confusa. Em seguida, percebeu que estava sozinho. Jean se
levantara e fora, em silêncio, para o quarto das crianças. Estava
falando em voz baixa com Jeff, baixo demais para que ele ouvisse o
que dizia.
George levantou da cama e se juntou a ela. A Lindinha tornara
essas excursões noturnas bastante comuns, mas naquela época
não havia como ele continuar dormindo em meio à confusão. Isto
era algo inteiramente diferente, e ele queria saber o que perturbara
Jean.
A única luz no quarto das crianças vinha dos desenhos com
fluoretinta nas paredes. À luz desse brilho tênue, George podia ver
Jean sentada ao lado da cama de Jeff. Quando ele entrou, ela se
voltou, e sussurrou:
– Não acorde a Lindinha.
– Qual o problema?
– Sabia que Jeff precisava de mim, e isso me acordou.
A própria sinceridade trivial da afirmação fez com que George
tivesse uma sensação desagradável de apreensão. “Sabia que Jeff
precisava de mim.” “Sabia como?”, ele ficou imaginando. No
entanto, tudo o que perguntou foi:
– Ele tem tido pesadelos?
– Não tenho certeza – respondeu Jean. – Parece estar bem,
agora. Mas estava assustado quando cheguei.
– Não estava assustado, mãe – surgiu uma vozinha indignada. –
Mas era um lugar tão estranho!
– Que lugar? – perguntou George. – Conte-me tudo.
– Tinha montanhas – disse Jeff, sonhador. – Eram tão altas, e
não tinham neve em cima, como nas montanhas que já vi. Algumas
estavam pegando fogo.
– Quer dizer, vulcões?
– Na verdade, não. Estavam pegando fogo inteiras, com um fogo
azul engraçado. E enquanto eu estava olhando, o Sol apareceu.
– Continue... Por que parou?
Jeff voltou os olhos intrigados para o pai.
– Essa é a outra coisa que eu não entendo, pai. Ele nasceu tão
rápido, e era grande demais. E... a cor estava errada. Era um azul
tão bonito.
Fez-se um longo silêncio, de gelar o coração. Por fim, George
perguntou baixinho:
– Isso foi tudo?
– Foi. Comecei a me sentir meio sozinho, e foi aí que a mamãe
veio e me acordou.
George bagunçou o cabelo desleixado do filho com uma mão,
enquanto apertava o roupão contra o corpo com a outra. Sentiu-se,
de repente, pequeníssimo e com muito frio. Apesar disso, não havia
nenhum sinal disso em sua voz, quando falou com Jeff.
– Foi só um sonho bobo. Você comeu demais no jantar. Esqueça
tudo e tente dormir. Isso, bom garoto.
– Vou dormir, pai – Jeff respondeu. Ficou em silêncio por um
momento e acrescentou, pensativo: – Acho que vou tentar voltar lá.
– Um sol azul? – disse Karellen, não muitas horas depois. – Isso
deve ter deixado a identificação bastante fácil.
– Sim – respondeu Rashaverak. – É, sem dúvida, Alphanidon 2.
As Montanhas de Enxofre o confirmam. E é interessante observar a
distorção da escala do tempo. O planeta tem uma rotação
razoavelmente lenta, de modo que ele deve ter observado muitas
horas em alguns minutos.
– É só isso que consegue descobrir?
– Sim, sem interrogar diretamente a criança.
– Não nos atrevemos a fazer isso. Os eventos têm de seguir seu
curso natural, sem nossa interferência. Quando os pais dele nos
abordarem... então, talvez, possamos interrogá-lo.
– Pode ser que eles nunca nos procurem. E, quando o fizerem,
pode ser tarde demais.
– Isso, infelizmente, não pode ser evitado. Não devemos nunca
esquecer este fato: nestes assuntos, nossa curiosidade não tem
importância. É menos importante, ainda, do que a felicidade dos
Homens.
Estendeu a mão para interromper a conexão.
– Prossiga com a vigilância, claro, e me comunique todos os
resultados. Só não interfira, de modo algum.
A despeito de tudo, enquanto estava acordado, Jeff ainda parecia
o mesmo de sempre.
Isso, ao menos, pensou George, era algo pelo qual podiam ser
gratos. O medo, porém, crescia em seu coração.
Para Jeff, era só uma brincadeira. Ainda não o assustava. Um
sonho não passava de um sonho, por mais estranho que fosse. Não
se sentia mais solitário nos mundos que o sono lhe abria. Só na
primeira noite sua mente chamara por Jean, atravessando
quaisquer que fossem os abismos desconhecidos que os cercavam.
Agora, ele entrava sozinho e destemido no universo que se abria
diante dele.
Nas manhãs, os pais o interrogavam, e o menino lhes contava
tudo o que conseguia se lembrar. Às vezes, suas palavras
tropeçavam e falhavam, ao tentar descrever cenas que não só
estavam além de toda a sua experiência, mas também da
imaginação humana. Eles o estimulavam com palavras novas,
mostravam-lhe imagens e cores para refrescar sua memória, e
depois formavam o padrão que conseguissem a partir das
respostas. Muitas vezes não conseguiam chegar a nenhum
resultado, embora tudo indicasse que, na própria mente de Jeff,
seus mundos oníricos fossem perfeitamente simples e nítidos.
Apenas era incapaz de comunicá-los aos pais. Apesar disso, alguns
eram bastante claros...
Espaço... nenhum planeta, nenhuma paisagem em volta, nenhum
mundo sob os pés. Apenas as estrelas na noite aveludada e,
pendendo contra elas, um grande sol vermelho que batia como um
coração. Enorme e tênue em um momento, encolhia-se lentamente,
ao mesmo tempo em que ficava mais brilhante, como se um novo
combustível estivesse alimentando suas chamas internas. Subia ao
longo do espectro e parava à beira do amarelo. Depois, o ciclo se
invertia, a estrela se expandia e se resfriava, tornando-se outra vez
mais como uma nuvem de bordas difusas, vermelha como o fogo.
(– Típica variável pulsante – disse Rashaverak, ansioso. – Vista,
além disso, sob tremenda aceleração temporal. Não posso
identificá-la com precisão, mas a estrela mais próxima que se
encaixa na descrição é Rhamsandron 9. Ou pode ser Pharanidon
12.
– Qualquer que seja – replicou Karellen –, ele está se afastando
mais.
– Muito mais! – concordou Rashaverak. . . .)
Podia bem ser a Terra. Um sol branco pairava em um céu azul,
sarapintado de nuvens que corriam à frente de uma tempestade.
Uma colina descia, suavemente, para um oceano que se abria em
borrifos, sob a força de um vento avassalador. Mesmo assim, nada
se movia: a cena estava congelada, como se fosse vista de relance
em meio ao clarão de um relâmpago. E longe, muito longe no
horizonte, havia algo que não era da Terra: uma fileira de colunas
enevoadas, afunilando-se levemente à medida que se elevavam do
mar e se perdiam entre as nuvens. Estavam espaçadas, com
perfeita precisão, ao longo da beira do planeta. Enormes demais
para serem artificiais, mas regulares demais para serem naturais.
(– Sideneus 4 e os Pilares do Alvorecer – disse Rashaverak, com
assombro na voz. – Ele chegou ao centro do Universo.
– E mal começou sua jornada! – respondeu Karellen.)
O planeta era perfeitamente plano. Sua gigantesca gravidade há
muito reduzira a um nível uniforme as montanhas de sua ardente
juventude... montanhas cujos picos mais altos jamais tinham
ultrapassado alguns metros de altura. Contudo, aqui havia vida, pois
a superfície estava coberta por uma miríade de padrões
geométricos que se arrastavam, se moviam e mudavam de cor. Era
um mundo de duas dimensões, habitado por seres que não teriam
mais que uma fração de centímetro de espessura.
E em seu céu havia um sol como nenhum consumidor de ópio
jamais poderia ter imaginado em seus sonhos mais desvairados.
Quente demais para ser branco, era como um fantasma
cauterizante nas fronteiras do ultravioleta, queimando seus planetas
com radiações que seriam imediatamente fatais a todas as formas
de vida terrestres. Por milhões de quilômetros à sua volta,
estendiam-se grandes véus de gás e poeira, fluorescendo em
inúmeras cores, à medida que as rajadas de ultravioleta abriam
caminho. Era uma estrela contra a qual o pálido Sol da Terra teria
parecido tão débil quanto um vaga-lume ao meio-dia.
(– Hexanerax 2, não pode ser outra coisa no Universo conhecido
– disse Rashaverak. – Apenas um punhado de nossas naves já
chegou lá... e nunca se arriscaram a pousar. Afinal, quem poderia
imaginar que pudesse haver vida nesses planetas?
– Parece – retrucou Karellen – que vocês, cientistas, não foram
tão meticulosos como achavam. Se esses... padrões são
inteligentes, o problema da comunicação deverá ser fascinante.
Será que eles têm alguma ideia da terceira dimensão?)
Era um mundo que nunca poderia ter conhecido o significado do
dia e da noite, dos anos ou das estações. Seis sóis coloridos
compartilhavam o céu, de modo que só havia mudanças de luz,
jamais escuridão.
Por meio dos choques e do cabo de guerra dos campos
gravitacionais em conflito, o planeta viajava ao longo dos laços e
das curvas de sua órbita incrivelmente complexa, nunca
percorrendo o mesmo caminho. Cada momento era único: a
configuração que os seis sóis agora detinham nos céus não se
repetiria deste lado da eternidade.
E mesmo aqui existia vida. Embora o planeta pudesse ser
calcinado pelas chamas centrais em uma era, e congelado nos
rincões exteriores em outra, mesmo assim era o lar de uma
inteligência. Os grandes cristais multifacetados se agrupavam em
intricados padrões geométricos, imóveis nas eras de frio, crescendo
sem pressa ao longo dos veios de minério quando o mundo voltava
a se aquecer. Não importava que levassem mil anos para completar
um pensamento. O Universo ainda era jovem e o tempo estendia-se
adiante sem fim...
(– Procurei em todos os nossos registros – disse Rashaverak. –
Não temos conhecimento de um mundo desses, ou de uma
combinação de sóis assim. Se ele existisse dentro do nosso
Universo, os astrônomos já o teriam detectado, mesmo que ficasse
fora do alcance de nossas naves.
– Então, ele saiu da Galáxia.
– Exato. Com certeza não falta muito agora.
– Quem sabe? Ele só está sonhando. Quando acorda, continua o
mesmo. É só a primeira fase. Vamos saber em breve, quando a
mudança começar.)
– Já nos conhecemos, sr. Greggson – disse o Senhor Supremo,
solene. – Meu nome é Rashaverak. Decerto o senhor se lembra.
– Claro – respondeu George. – Naquela festa do Rupert Boyce.
Acho que nunca vou esquecer. E imaginei que devíamos nos ver de
novo.
– Diga-me... por que pediu esta entrevista?
– Acho que já sabe.
– Talvez. Mas será mais fácil, para nós dois, se me disser com
suas próprias palavras. Pode ser uma grande surpresa para o
senhor, mas também estou tentando compreender e, sob certos
aspectos, minha ignorância é tão grande quanto a sua.
George, perplexo, encarou o Senhor Supremo. Essa era uma
ideia que nunca lhe ocorrera. De modo subconsciente, partira do
princípio de que os Senhores Supremos possuíam conhecimento e
poder absolutos, que entendiam, e, provavelmente, eram os
responsáveis pelas coisas que vinham acontecendo com Jeff.
– Suponho – George prosseguiu – que tenha visto os relatórios
que entreguei ao psicólogo da ilha, de modo que deve saber dos
sonhos.
– Sim, sabemos deles.
– Nunca acreditei que fossem apenas a imaginação de uma
criança. Eram tão incríveis que... sei que parece ridículo, mas...
tinham que ser baseados em alguma realidade.
Olhou ansioso para Rashaverak, não sabendo se devia desejar
uma confirmação ou uma negativa. O Senhor Supremo ficou em
silêncio, limitando-se a observá-lo com seus grandes olhos serenos.
Estavam sentados praticamente cara a cara, já que a sala,
obviamente planejada para essas entrevistas, tinha dois planos, e a
enorme poltrona do Senhor Supremo ficava mais de um metro
abaixo do nível em que George se sentava. Era um gesto amigável,
para tranquilizar os homens que solicitavam essas entrevistas e que
raramente se encontravam em um estado de espírito de calma.
– A princípio, ficamos preocupados, mas não assustados de
verdade. Jeff parecia perfeitamente normal quando acordava, e não
parecia perturbado pelos sonhos. Até que, uma noite... – hesitou e
olhou, defensivo, para o Senhor Supremo. – Nunca acreditei no
sobrenatural. Não sou cientista, mas acho que existe uma
explicação racional para tudo.
– E existe – disse Rashaverak. – Sei o que viu. Eu estava
assistindo.
– Sempre suspeitei disso. Mas Karellen tinha prometido que não
iam mais espionar a gente com seus instrumentos. Por que quebrou
essa promessa?
– Não quebrei. O Supervisor disse que a raça humana não ficaria
mais sob vigilância. Essa é uma promessa que foi mantida. Estava
vigiando os seus filhos, não vocês.
Passaram-se vários segundos antes que George entendesse no
que implicavam as palavras de Rashaverak. Em seguida, a cor
abandonou lentamente seu rosto.
– Quer dizer?… – ele ofegou. Sua voz sumiu e ele teve de
começar de novo. – Então, em nome de Deus, o que são os meus
filhos?
– Isso – respondeu Rashaverak, solene – é o que estamos
tentando descobrir.
Jennifer Anne Greggson, também conhecida como Lindinha,
estava deitada de costas e com os olhos bem fechados. Não os
abrira por muito tempo; nunca mais os abriria, pois a visão era,
agora, tão supérflua para ela quanto para as criaturas de muitos
sentidos das profundezas sem luz do oceano. Estava ciente do
mundo que a rodeava. De fato, estava ciente de muito mais do que
isso.
Restara um reflexo de sua breve infância, por algum engano
inexplicável do desenvolvimento. O chocalho, que antes a
encantara, agora soava sem parar, marcando um ritmo complexo e
sempre variado em seu berço. Era uma síncope estranha, que
despertara Jean e a levara, correndo, para o quarto das crianças.
Contudo, não fora apenas o som que a fizera começar a gritar por
George. Fora a visão daquele chocalho comum, de cores vivas,
batendo constantemente no ar, a meio metro de qualquer apoio,
enquanto Jennifer Anne, os dedos rechonchudos entrelaçados,
ficava deitada com um sorriso calmo no rosto.
Ela começara mais tarde, mas estava progredindo depressa.
Logo ultrapassaria o irmão, pois tinha muito menos para
desaprender.
– Foi prudente – disse Rashaverak – não tocar no brinquedo. –
Não acredito que pudesse tê-lo movido. Mas, se tivesse sucesso,
ela poderia ter se aborrecido. E, então, não sei o que aconteceria.
– Quer dizer – perguntou George, entorpecido – que não pode
fazer nada?
– Não vou enganá-lo. Podemos estudar e observar, como já
estamos fazendo. Mas não podemos interferir, porque não
conseguimos entender.
– Então, que vamos fazer? E por que essa coisa aconteceu com
a gente?
– Tinha que acontecer com alguém. Não tem nada de
excepcional com vocês, não mais do que há com o primeiro nêutron
que começa a reação em cadeia numa bomba atômica. Apenas
acontece de ser o primeiro. Qualquer outro nêutron teria servido.
Exatamente como Jeffrey poderia ter sido qualquer um no mundo.
Chamamos isso de Evolução Total. Não há mais necessidade de
guardar segredo agora, o que me deixa muito feliz. Estivemos
esperando que isso acontecesse desde que chegamos à Terra. Não
havia como saber quando e onde começaria... até que, por puro
acaso, nos encontramos na festa de Rupert Boyce. Então eu tive
quase certeza de que os filhos de sua mulher seriam os primeiros.
– Mas... na época não éramos casados. Não tínhamos nem...
– Sim, eu sei. Mas a mente da srta. Morrel foi o canal que,
embora apenas por um instante, deixou passar conhecimentos que
ninguém que estivesse vivo, naquele momento, poderia ter. Esses
conhecimentos podiam ter vindo apenas de outra mente,
intimamente ligada à dela. O fato de que era uma mente ainda não
nascida não tem importância, pois o tempo é muito mais estranho
do que vocês pensam.
– Estou começando a entender. Jeff sabe essas coisas... pode
ver outros mundos e dizer de onde vocês são. E, de alguma forma,
Jean captou os pensamentos dele, mesmo antes de ele ter nascido.
– Há muito mais por trás disso... mas não creio que você vá,
algum dia, chegar muito mais perto da verdade. Por toda a história
existiram pessoas com poderes inexplicáveis, que pareciam
transcender o espaço e o tempo. Nunca foram compreendidas.
Quase sem exceção, as tentativas de explicação eram absurdas.
Bem sei... li o bastante delas! Mas há uma analogia que é... bem,
sugestiva e útil. Ela ocorre amiúde na sua literatura. Imagine que a
mente de cada homem seja uma ilha, rodeada pelo oceano. Cada
uma parece isolada, mas, na realidade, todas estão ligadas pelo
leito rochoso de onde brotaram. Se os oceanos desaparecessem,
seria o fim das ilhas. Todas seriam parte de um continente, mas sua
individualidade teria desaparecido. A telepatia, como vocês a
chamam, é algo assim. Em circunstâncias propícias, as mentes
podem se fundir, compartilhar os conteúdos umas das outras e
trazer consigo memórias da experiência, quando voltam a se isolar.
Em sua forma mais elevada, esse poder não fica sujeito às
limitações usuais do tempo e do espaço. Foi por isso que Jean pôde
explorar o conhecimento de seu filho ainda por nascer.
Seguiu-se um longo silêncio, enquanto George lutava com essas
ideias assombrosas. O padrão estava começando a tomar forma.
Era um padrão incrível, mas que tinha sua própria lógica. E
explicava, se é que essa palavra podia ser usada para algo tão
incompreensível, tudo o que acontecera desde a noite na casa de
Rupert Boyce. Também explicava, ele compreendia agora, a própria
curiosidade de Jean pelo sobrenatural.
– O que começou essa coisa? – perguntou George. – E para
onde vai nos levar?
– Isso é algo para o que não tenho respostas. Mas há muitas
raças no Universo, e algumas delas descobriram esses poderes
muito antes de a sua espécie, ou de a minha, entrar em cena.
Raças que têm estado à espera de que vocês se juntem a elas, e
agora o momento chegou.
– Então, onde vocês entram na história?
– É provável que, como a maior parte dos homens, o senhor
tenha sempre nos considerado como seus mestres. Isso não é
verdade. Nunca fomos mais do que guardiões, cumprindo um dever
que nos foi imposto... de cima. Esse dever é difícil de definir. Quem
sabe seja melhor pensar em nós como parteiras, ajudando em um
parto difícil. Estamos ajudando a trazer algo novo e magnífico para o
mundo.
Rashaverak hesitou. Por um momento, parecia quase como se
tivesse ficado sem palavras.
– Sim, nós somos as parteiras. Mas, nós mesmos, somos
estéreis.
Nesse instante, George entendeu que estava na presença de
uma tragédia que transcendia a sua própria. Era incrível... e, mesmo
assim, de certa forma, justo. A despeito de todos os seus poderes e
inteligência, os Senhores Supremos estavam presos em um beco
sem saída evolutivo. Aqui estava uma raça admirável e nobre,
superior à humanidade em quase todos os aspectos; entretanto, não
tinha futuro e sabia disso. Diante daquilo, os problemas de George
pareceram, de uma hora para outra, triviais.
– Agora eu sei por que vocês têm observado Jeffrey. Ele foi a
cobaia dessa experiência.
– Exatamente... embora a experiência estivesse além de nosso
controle. Não a começamos... estávamos apenas tentando observar.
Não interferimos, exceto quando necessário.
Sim, pensou George... o tsunami. Seria inaceitável deixar que um
espécime valioso fosse destruído. Todavia, logo sentiu vergonha de
si mesmo; um amargor desses era indigno dele.
– Tenho só mais uma pergunta. O que devemos fazer com
nossos filhos?
– Aproveitem a companhia deles enquanto puderem – respondeu
Rashaverak com brandura. – Não serão seus por muito tempo.
Era um conselho que poderia ter sido dado a qualquer pai, em
qualquer época. Só que, agora, continha uma ameaça e um terror
que nunca tinham estado ali antes.
19
Chegou um momento em que o mundo dos sonhos de Jeffrey já não
se diferenciava com clareza de sua existência cotidiana. Já não ia à
escola, e para Jean e George a rotina da vida também estava
completamente despedaçada, da mesma maneira como, em breve,
desmoronaria por todo o mundo.
Evitavam todos os amigos, como se já soubessem que, em
breve, nenhum teria compaixão de sobra para eles. Às vezes, na
quietude da noite, quando havia poucas pessoas em volta, saíam
para longas caminhadas juntos. Estavam, agora, mais apegados do
que tinham estado desde os primeiros dias de casamento. De novo
unidos, em face da tragédia ainda desconhecida que logo os
devastaria.
No começo, deixar as crianças dormindo sozinhas em casa lhes
trouxera um sentimento de culpa, mas agora percebiam que Jeff e
Jenny podiam tomar conta de si mesmos por meios além do
conhecimento de seus pais. E, é claro, os Senhores Supremos
também estariam vigiando. Esse pensamento era tranquilizador:
sentiam que não lidavam sozinhos com o problema, mas que olhos
sábios e solidários compartilhavam de sua vigília.
Jennifer dormia. Não havia outra palavra para descrever o seu
estado. Em todos os aspectos visíveis, ainda era um bebê, mas à
sua volta, agora, havia uma sensação de poder tão assustadora que
Jean não conseguia mais entrar no quarto das crianças.
E não era mais necessário. A entidade que fora Jennifer Anne
Greggson ainda não estava plenamente desenvolvida, mas mesmo
naquele estado de crisálida adormecida já possuía suficiente
controle do ambiente para tomar conta de todas as suas
necessidades. Jean apenas uma vez tentara alimentá-la, sem
sucesso. Ela preferia nutrir-se no momento de sua escolha, e à sua
própria maneira. Porque os alimentos desapareciam do freezer em
um fluxo lento, porém contínuo, apesar de Jennifer Anne nunca sair
do berço.
O barulho do chocalho cessara, e o brinquedo descartado
repousava no chão do quarto, onde ninguém se atrevia a tocá-lo,
com receio de que Jennifer Anne voltasse a precisar dele. Às vezes,
ela fazia com que a mobília se mexesse, formando padrões
peculiares, e George tinha a impressão de que a fluoretinta da
parede estava ficando mais brilhante do que jamais fora.
Ela não dava trabalho; estava além da assistência dos pais, e
além de seu amor. Aquilo não podia demorar muito mais e, no
tempo que lhes restava, apegavam-se, desesperados, a Jeff.
Ele também estava mudando, mas ainda os reconhecia. O
menino, cujo crescimento acompanharam desde as névoas informes
da primeira infância, estava perdendo a personalidade, que se
dissolvia mais a cada hora, diante dos olhos dos pais. Contudo, às
vezes ainda falava com eles como sempre fizera, e falava de seus
brinquedos e amigos, como se não soubesse o que estava por vir.
Na maior parte do tempo, porém, não os via, nem mostrava
nenhuma consciência da presença deles. Não dormia mais, como
os pais eram forçados a fazer, a despeito da necessidade
desesperadora de perder o mínimo possível daquelas horas
derradeiras.
Ao contrário de Jenny, ele não parecia ter poderes anormais
sobre objetos físicos. Talvez porque, sendo já mais crescido, tais
poderes fossem menos necessários. Sua estranheza residia apenas
na vida mental, da qual os sonhos eram, agora, só uma pequena
parte. Ficava completamente parado por horas a fio, os olhos bem
fechados, como se estivesse escutando sons que ninguém mais
pudesse ouvir. Sua mente estava sendo inundada de
conhecimentos, vindos de algum lugar ou de alguma época.
Conhecimentos que, em breve, esmagariam e destruiriam a criatura
semiformada que fora Jeffrey Angus Greggson.
E Fey ficava sentada, vigilante, erguendo para ele olhos trágicos
e intrigados, sem saber para onde o dono fora, e quando voltaria
para ela.
Jeff e Jenny haviam sido os primeiros em todo o planeta, mas
logo não estavam mais sozinhos.
Como uma epidemia que se espalhasse em ritmo acelerado de
uma região para outra, a metamorfose infectou toda a raça humana.
Praticamente não afetava ninguém acima dos dez anos, e
praticamente ninguém abaixo dessa idade escapava. Era o fim da
civilização, o fim de tudo pelo que os homens haviam lutado desde o
começo dos tempos. No prazo de alguns dias, a humanidade
perdera seu futuro, pois o coração de qualquer raça é destruído, e
seu desejo de sobreviver é de todo subjugado, quando dela se
retiram as crianças.
Não houve pânico, como teria acontecido um século antes. O
mundo estava entorpecido, as grandes cidades paradas e
silenciosas. Apenas as atividades essenciais continuavam a
funcionar. Era como se o planeta estivesse enlutado, lamentando
por tudo o que agora jamais poderia ser.
E então, como já fizera certa vez, em uma época já esquecida,
Karellen falou pela última vez à humanidade.
20
– Meu trabalho aqui está quase terminado – disse a voz de Karellen,
através de um milhão de rádios. – Por fim, depois de uma centena
de anos, posso lhes dizer qual era ele.
– Há muitas coisas que tivemos de esconder de vocês, da
mesma forma que nos ocultamos durante metade de nossa
permanência na Terra. Sei que alguns de vocês achavam aquela
ocultação desnecessária. Estão acostumados à nossa presença,
não são mais capazes de imaginar como os seus ancestrais teriam
reagido a nós. Mas, pelo menos, podem entender a finalidade de
nossa ocultação, e saber que tínhamos uma razão para o que
fizemos.
– O segredo supremo que guardamos foi nosso propósito ao vir à
Terra... o propósito sobre o qual vocês têm especulado
continuamente. Não podíamos contar até agora, pois o segredo não
era nosso para ser revelado.
– Um século atrás, viemos ao seu mundo e os salvamos da
autodestruição. Não creio que ninguém vá negar esse fato... mas
qual seria essa autodestruição, isso vocês nunca suspeitaram.
– Como banimos as armas nucleares e todos os outros
“brinquedos” mortíferos que vocês acumulavam em seus arsenais, o
perigo da aniquilação física foi removido. Vocês pensavam que esse
fosse o único perigo. Fizemos com que acreditassem nisso, mas
nunca foi verdade. O maior perigo que os confrontava era de uma
índole inteiramente diferente... e não dizia respeito apenas à sua
raça.
– Muitos planetas chegaram à encruzilhada do poderio nuclear,
evitaram a catástrofe, prosseguiram construindo civilizações
pacíficas e felizes... e depois foram completamente destruídos por
forças sobre as quais nada sabiam. No século XX, vocês começaram
a mexer a sério com essas forças. Foi por isso que uma ação se
tornou necessária.
– Durante todo aquele século, a raça humana foi se aproximando
lentamente do abismo... sem ao menos suspeitar de sua existência.
Sobre o abismo, há apenas uma ponte. Poucas raças conseguiram
encontrá-la sem ajuda. Algumas recuaram enquanto ainda havia
tempo, evitando tanto o perigo quanto o prêmio. Seus mundos
tornaram-se ilhas paradisíacas de contentamento sem esforço,
deixando de desempenhar um papel na história do Universo. Esse
nunca seria o seu destino... ou a sua sorte. Sua raça tinha vigor
demais para isso. Teria mergulhado na ruína e levado outras junto,
pois vocês nunca teriam encontrado a ponte.
– É uma pena, mas quase tudo o que tenho a dizer agora terá
que ser feito por meio de analogias. Vocês não têm palavras, nem
conceitos, para muitas das coisas que desejo lhes dizer... e nosso
próprio conhecimento delas também está longe da perfeição.
– Para entender, precisam voltar ao passado e recuperar muita
coisa que seus ancestrais teriam achado familiar, mas que vocês
esqueceram... Que nós, de fato, deliberadamente os ajudamos a
esquecer. Pois toda a nossa curta passagem por aqui se baseou em
um enorme embuste, em um acobertamento de verdades que vocês
não estavam preparados para encarar.
– Nos séculos anteriores à nossa vinda, seus cientistas
descobriram os segredos do mundo físico e os conduziram da
energia do vapor até a energia do átomo. Deixaram a superstição de
lado; a ciência era a única religião de fato da humanidade. Era a
dádiva da minoria ocidental ao restante da humanidade, e havia
destruído todas as outras fés. As que ainda existiam, quando
chegamos, já estavam moribundas. Acreditava-se que a ciência
podia explicar tudo. Não havia forças que escapassem a seu
escopo, nem acontecimentos que ela não conseguisse explicar, em
última análise. A origem do Universo poderia ficar para sempre
desconhecida, mas tudo o que acontecera depois obedecia às leis
da física.
– Não obstante, os seus místicos, embora perdidos nas próprias
ilusões, enxergaram parte da verdade. Existem poderes da mente, e
poderes além da mente, que a sua ciência nunca conseguiria
encaixar em sua estrutura sem despedaçá-la por completo. Ao
longo das eras, houve inúmeros relatos de fenômenos estranhos:
poltergeists, telepatia, precognição... a que vocês deram nomes,
mas nunca explicaram. A princípio, a ciência os ignorou, até mesmo
negou a sua existência, a despeito do testemunho de cinco mil
anos. Mas eles existem, e nenhuma teoria do Universo pode estar
completa sem explicá-los.
– Durante a primeira metade do século XX, alguns dos seus
cientistas começaram a investigar esses assuntos. Não sabiam,
mas estavam brincando com o fecho da caixa de Pandora. As forças
que eles poderiam ter libertado transcendiam qualquer perigo que o
átomo pudesse representar. Pois os físicos conseguiriam, no
máximo, arruinar a Terra, enquanto os parafísicos poderiam ter
levado a devastação às estrelas.
– Isso não podia ser permitido. Não posso explicar a natureza
plena da ameaça que vocês representavam. Não teria sido uma
ameaça para nós e, por isso, não a compreendemos. Digamos que
vocês poderiam ter se tornado um câncer telepático, uma
mentalidade maligna que, em sua inevitável dissolução, teria
envenenado outras mentes, maiores.
– E por isso viemos... fomos enviados... à Terra. Interrompemos o
seu desenvolvimento em todos os níveis culturais, mas em especial
bloqueamos todo trabalho sério sobre fenômenos paranormais.
Estou bem ciente do fato de que também inibimos, pelo contraste
entre nossas civilizações, todas as outras formas de realização
criativa. Mas isso foi um efeito secundário, e não tem importância.
– Agora, devo lhes dizer algo que podem achar muito
surpreendente, quem sabe quase incrível. Todas essas
potencialidades, todos esses poderes latentes... nós não os
possuímos, nem os compreendemos. Nossos intelectos são muito
superiores aos seus, mas existe algo em suas mentes que sempre
nos escapou. Temos estudado vocês desde que chegamos à Terra.
Aprendemos muito, e vamos aprender ainda mais, mas duvido que
descubramos toda a verdade.
– Nossas raças têm muito em comum... e por isso fomos
escolhidos para esta tarefa. Mas, em outros aspectos,
representamos os pontos finais de duas evoluções diferentes. As
mentes de nossa raça chegaram ao fim de seu desenvolvimento. Da
mesma maneira que as da sua, em sua forma atual. No entanto,
vocês podem dar o salto para o próximo estágio, e é nisso que
reside a diferença entre nós. Nossas potencialidades estão
esgotadas, mas as suas ainda não foram exploradas. Elas estão
ligadas, de maneiras que nós não compreendemos, aos poderes
que mencionei... os poderes que agora estão despertando em seu
mundo.
– Seguramos os ponteiros do relógio, fizemos com que
marcassem passo enquanto esses poderes se desenvolviam, até
que pudessem fluir, em torrentes, pelos canais que estavam sendo
preparados para eles. O que fizemos para melhorar o seu planeta,
para elevar o seu padrão de vida, para trazer justiça e paz à Terra...
teríamos feito essas coisas em quaisquer circunstâncias, uma vez
que fomos forçados a intervir nos seus assuntos. Mas toda essa
vasta transformação desviou a atenção de vocês da verdade e, por
conseguinte, colaborou para atingirmos o nosso objetivo.
– Não somos mais seus guardiões. Muitas vezes vocês devem
ter se perguntado qual a posição da minha raça na hierarquia do
Universo. Da mesma forma como estamos acima de vocês, também
há algo acima de nós, usando-nos para seus próprios fins. Nunca
descobrimos o que é, embora sejamos seu instrumento há eras e
não ousemos desobedecer. Vezes sem conta, temos recebido
nossas ordens, ido para algum mundo no primeiro desabrochar de
sua civilização, e o conduzido ao longo da estrada que nunca
poderemos seguir... a estrada que vocês estão percorrendo agora.
– Vezes sem conta, estudamos o processo que fomos enviados
para promover, esperando poder aprender a escapar de nossas
próprias limitações. Mas conseguimos vislumbrar apenas os vagos
contornos da verdade. Vocês nos chamaram de Senhores
Supremos, sem imaginar a ironia desse título. Digamos que acima
de nós está a Mente Suprema, que nos usa assim como o oleiro usa
a roda. E a sua raça é o barro que está sendo moldado nessa roda.
– Acreditamos, apenas como teoria, que a Mente Suprema esteja
tentando crescer, estender seus poderes e seu conhecimento do
Universo. A esta altura, deve ser a soma de muitas raças. Há muito
tempo deixou para trás a tirania da matéria. Ela tem consciência da
inteligência, em toda parte. Quando soube que vocês estavam
quase prontos, nos enviou para cumprir suas ordens, a fim de
prepará-los para a transformação que agora se aproxima.
– Todas as mudanças anteriores que sua raça conheceu levaram
eras sem fim. Mas esta é uma transformação da mente, não do
corpo. Pelos padrões da evolução, será cataclísmica, instantânea. E
já começou. Vocês têm que encarar este fato: a sua é a última
geração do Homo sapiens.
– Quanto à natureza da mudança, podemos dizer muito pouco.
Não sabemos como ela é gerada, que gatilho a Mente Suprema
dispara quando decide que o momento chegou. Tudo o que
descobrimos foi que começa com uma única pessoa, sempre uma
criança, e depois se espalha de maneira explosiva, como a
formação de cristais em torno do primeiro núcleo em uma solução
saturada. Os adultos não serão afetados, pois suas mentes já estão
solidificadas em uma matriz inalterável.
– Em alguns anos, tudo estará terminado, e a raça humana terá
se dividido em duas. Não há como retroceder, e nenhum futuro para
o mundo que vocês conhecem. Todas as esperanças e sonhos da
sua raça terminam aqui. Vocês deram à luz seus sucessores, e a
sua tragédia é que nunca os entenderão, nunca conseguirão sequer
se comunicar com suas mentes. De fato, eles não terão mentes, no
sentido que vocês compreendem. Serão uma só entidade, assim
como vocês mesmos são a soma de suas incontáveis células.
Vocês não pensarão neles como humanos, e estarão certos.
– Contei tudo isso para que saibam o que os espera. Em
algumas horas a crise estará sobre nós. Minha tarefa e meu dever
são proteger aqueles a quem fui enviado para guardar. A despeito
do despertar de seus poderes, eles poderiam ser destruídos pelas
multidões ao redor. Sim, até mesmo pelos pais, quando se dessem
conta da verdade. Preciso levá-los comigo e isolá-los, para proteção
deles, e para a sua. Amanhã, minhas naves começarão a remoção.
Não os culparei se tentarem interferir, mas será inútil. Poderes
maiores que os meus estão agora despertando; sou apenas um de
seus instrumentos.
– E, depois... que é que vou fazer com vocês, os sobreviventes,
quando sua finalidade tiver sido atingida? Talvez o mais simples e
misericordioso fosse matá-los... como vocês mesmos matariam um
animal de estimação amado que estivesse mortalmente ferido. Mas
isso, não posso fazer. Seu futuro pertence a vocês para que o
decidam nos anos que lhes restam. Minha esperança é que a
humanidade siga para seu descanso em paz, sabendo que não
viveu em vão. Pois o que vocês trouxeram para o mundo pode lhes
ser completamente estranho, pode não compartilhar nenhum de
seus desejos ou esperanças, pode encarar as suas maiores
conquistas como brinquedos de criança... mesmo assim, será algo
maravilhoso, e uma criação de vocês.
– Quando nossa raça estiver esquecida, uma parte da sua ainda
existirá. Por isso, não nos condenem pelo que fomos obrigados a
fazer. E lembrem-se disto: nós sempre os invejaremos.
21
Jean já havia chorado, mas agora não chora mais. A ilha jazia,
dourada sob o Sol inclemente e insensível, quando a nave
apareceu, devagar, por sobre os picos gêmeos de Esparta. Naquela
ilha rochosa, não há muito, seu filho escapara da morte por um
milagre que ela, agora, entendia muito bem. Às vezes, pensava se
não teria sido melhor se os Senhores Supremos tivessem se
omitido, deixando-o entregue ao destino. A morte era algo que ela
podia encarar, como já encarara antes. Era a ordem natural das
coisas. Isto, porém, era mais estranho do que a morte... e mais
definitivo. Até este dia, os homens morriam, mas a raça continuava.
As crianças não faziam nenhum barulho, nem se mexiam.
Estavam em grupos dispersos ao longo da areia, e não mostravam
mais interesse umas nas outras do que nos lares que deixavam
para sempre. Muitas carregavam bebês pequenos demais para
andar... ou que não desejavam fazer uso dos poderes que tornavam
o caminhar desnecessário. Porque, com certeza, pensou George, se
eram capazes de mover a matéria inanimada, também podiam
movimentar os próprios corpos. De fato, por que as naves dos
Senhores Supremos as recolhiam?
Não importava. Estavam indo embora, e esta era a forma que
escolheram para ir. Foi então que George deu-se conta do que
estivera incitando sua memória. Em algum lugar, há muito tempo,
vira um cinejornal, de um século atrás, de um êxodo idêntico. Devia
ter sido no começo da Primeira Guerra Mundial... ou da Segunda.
Viam-se longas filas de trens, abarrotados de crianças, saindo com
lentidão das cidades ameaçadas, deixando para trás seus pais que
muitas jamais voltariam a ver. Poucas choravam: algumas estavam
confusas, agarrando com aflição seus pequenos pertences, mas a
maioria parecia ansiosa, ávida por alguma grande aventura.
E, no entanto... a analogia era falsa. A história nunca se repetia.
Os que agora partiam não eram mais crianças, o que quer que
pudessem ser. E, desta vez, não haveria reencontro.
A nave pousara ao longo da orla, afundando bastante na areia
macia. Em perfeita sincronia, a linha de grandes painéis curvos
deslizou para cima e as pranchas de embarque se estenderam em
direção à praia, como se fossem línguas de metal. Os vultos
dispersos e indizivelmente solitários começaram a convergir, a se
concentrar em uma multidão que se movia exatamente como uma
multidão humana faria.
Solitárias? George não sabia por que teria pensado assim. Pois
isso era justamente o que elas nunca mais seriam. Só as pessoas
podem se sentir solitárias... só os seres humanos. Quando as
barreiras tivessem, enfim, caído, a solidão desapareceria ao mesmo
tempo em que a personalidade se apagava. As inúmeras gotas de
chuva teriam se misturado ao oceano.
Sentiu a mão de Jean aumentar a pressão sobre a sua, em um
repentino espasmo de emoção.
– Olhe ali – murmurou ela. – Estou vendo o Jeff. Perto daquela
segunda porta.
A distância era grande, o que tornava bastante difícil dizer que o
via ao certo. Havia uma névoa diante dos olhos de George,
dificultando a visão. Mas era Jeff, ele tinha certeza. George
conseguia reconhecer o filho agora, parado e já com um pé na
prancha metálica.
E Jeff virou-se e olhou para trás. Seu rosto era apenas uma
mancha branca. A esta distância, não havia como dizer se continha
um sinal de reconhecimento, uma lembrança de tudo o que deixava
para trás. E George também jamais saberia se Jeff se voltara para
eles por puro acaso... ou se soube, nos últimos momentos em que
ainda era o filho deles, que seus pais estavam assistindo enquanto
ele ingressava na terra onde jamais poderiam entrar.
As grandes portas começaram a se fechar. E, nesse momento,
Fey ergueu o focinho e soltou um uivo baixo e desolado. Levantou
os belos e límpidos olhos para George, e ele soube que ela perdera
o dono. Ele já não tinha mais rival.
Para os que haviam ficado, havia muitos caminhos, mas apenas
um destino. Alguns diziam: “O mundo ainda é belo. Um dia vamos
ter que deixá-lo, mas para que apressar a partida?”.
Outros, porém, que davam mais valor ao futuro do que ao
passado, e haviam perdido tudo o que fazia a vida valer a pena, não
desejavam ficar. Despediram-se sozinhos, ou com amigos, de
acordo com sua índole.
Foi assim com Atenas. A ilha nascera das chamas; nas chamas
escolheu morrer. Os que desejaram partir, partiram, mas a maior
parte ficou, para encontrar o fim entre os fragmentos de seus
sonhos despedaçados.
Ninguém deveria saber quando seria o momento. Apesar disso,
Jean acordou na quietude da noite e ficou deitada por um momento,
olhando para a luz espectral do teto. Em seguida, estendeu o braço
e agarrou a mão de George. Ele tinha um sono profundo, mas,
desta vez, acordou de imediato. Não falaram nada, pois as palavras
que desejavam dizer não existiam.
Jean já não estava assustada, nem mesmo triste. Conseguira
chegar às águas calmas e agora estava além das emoções.
Contudo, ainda havia algo a ser feito, e ela sabia que mal tinham
tempo para isso.
Ainda sem trocarem uma palavra, George seguiu-a pela casa
quieta. Atravessaram a mancha de luar que entrava pelo teto do
ateliê, movendo-se tão silenciosamente quanto as sombras que
projetavam, até chegarem ao quarto abandonado das crianças.
Nada mudara. Os fluoredesenhos que George pintara com tanto
esmero ainda brilhavam nas paredes. E o chocalho, que uma vez
pertencera a Jennifer Anne, ainda estava onde ela o deixara cair,
quando sua mente se voltara para a distância inconcebível que
agora habitava.
Ela deixara os brinquedos para trás, pensou George, mas os
nossos irão conosco. Lembrou-se dos filhos imperiais dos faraós,
cujas bonecas e bolinhas haviam sido enterradas com eles, cinco
mil anos atrás. Mais uma vez, seria assim. Ninguém mais, disse a si
mesmo, amará nossos tesouros; vamos levá-los conosco, não
vamos nos desfazer deles.
Jean voltou-se lentamente para ele e pousou a cabeça em seu
ombro. George apertou os braços em torno da cintura dela e o amor
que uma vez sentira voltou, fraco, mas nítido, como um eco de
montanhas distantes. Agora era tarde demais para dizer tudo o que
devia, e os remorsos que sentia eram menos por suas infidelidades
do que pela indiferença do passado.
Nesse momento, Jean disse baixinho:
– Adeus, meu amor – e apertou os braços em volta dele.
Não houve tempo para George responder, mas mesmo nessa
hora final ele sentiu um breve assombro, enquanto pensava em
como ela sabia que o momento chegara.
Bem nas profundezas rochosas, os segmentos de urânio
começaram a se aproximar em busca da união que eles nunca
alcançariam.
E a ilha ergueu-se ao encontro da alvorada.
22
A nave dos Senhores Supremos veio deslizando por sua trilha
meteórica através do coração de Carina. Iniciara a louca
desaceleração em meio aos planetas exteriores, mas mesmo ao
passar por Marte ainda possuía uma fração considerável da
velocidade da luz. Aos poucos, os imensos campos em volta do Sol
absorviam a energia cinética, enquanto as energias extraviadas do
impulso estelar pintavam os céus com fogo ao longo de um milhão
de quilômetros para trás da nave.
Jan Rodricks voltava para o lar, apenas seis meses mais velho,
para o mundo que deixara há oitenta anos.
Desta vez, não mais era um clandestino, escondido em uma
câmara secreta. Estava atrás dos três pilotos (“Por que”, ele se
perguntava, “precisavam tantos?”) observando os padrões surgirem
e desaparecerem na grande tela que dominava a sala de controle.
As cores e formas que ela exibia nada significavam para Jan.
Presumia que apresentavam informações que, em uma nave
projetada por humanos, teria sido exibida em conjuntos de
medidores. Às vezes, porém, a tela mostrava os campos de estrelas
circundantes e, ele esperava, em breve mostraria a Terra.
Estava satisfeito em voltar para casa, apesar do esforço que
dedicara a escapar de lá. Nesses poucos meses, ele amadurecera.
Vira tanto e viajara tão longe que agora só desejava seu próprio
mundo familiar. Compreendia, agora, por que os Senhores
Supremos haviam isolado a Terra das estrelas. A humanidade ainda
tinha um longo caminho antes que pudesse desempenhar um papel
na civilização que ele vislumbrara.
Podia ser – embora Jan se recusasse a aceitar isso – que a
humanidade nunca pudesse ser mais do que uma espécie inferior,
conservada em um zoológico afastado, com os Senhores Supremos
como zeladores. Quem sabe fosse isso o que Vindarten quisera
dizer ao lhe dar aquele aviso ambíguo pouco antes de sua partida:
“Muita coisa pode ter acontecido no tempo que decorreu em seu
planeta. Pode ser que não reconheça o seu mundo quando voltar a
vê-lo”.
Talvez não, pensou Jan. Oitenta anos era muito tempo e, embora
ele fosse jovem e adaptável, poderia achar difícil compreender todas
as mudanças que haviam ocorrido. De uma coisa, porém, estava
certo: os homens iriam querer ouvir sua história e saber o que ele
entrevira da civilização dos Senhores Supremos.
Tinha sido bem tratado, como havia suposto. Da viagem de ida,
nada soubera. Quando a injeção parou de fazer efeito e ele
despertou, a nave já estava entrando no sistema dos Senhores
Supremos. Saíra de seu fantástico esconderijo e descobrira, para
seu alívio, que o equipamento de oxigênio não era necessário. O ar
era espesso e pesado, mas ele podia respirar sem dificuldade.
Encontrara-se no gigantesco compartimento de carga da nave,
iluminado em vermelho, entre inúmeros outros caixotes e demais
bagagens que se poderia esperar em uma nave espacial ou em um
navio de carga. Levara quase uma hora para encontrar o caminho
até a sala de controle e se apresentar à tripulação.
A falta de surpresa dos Senhores Supremos o deixara intrigado.
Sabia que eles demonstravam poucas emoções, mas esperara
alguma reação. Em vez disso, haviam simplesmente prosseguido
com o trabalho, atentos à grande tela e mexendo nos inúmeros
botões dos painéis de controle. Foi então que Jan soube que
estavam pousando, pois, de quando em quando, a imagem de um
planeta, maior a cada vez, aparecia por um instante na tela.
Apesar disso, nunca houve a menor sensação de movimento ou
aceleração, apenas uma gravidade perfeitamente constante, que ele
avaliava como sendo mais ou menos um quinto da terrestre. As
forças imensas que impeliam a nave deviam estar sendo
compensadas com uma precisão admirável.
E então, em sincronia, os três Senhores Supremos haviam se
levantado de seus assentos, e ele soubera que a viagem terminara.
Não falaram com o passageiro ou entre si e, quando um deles fez
sinal para que o seguisse, Jan deu-se conta de algo em que devia
ter pensado antes. Podia muito bem não haver ninguém aqui, nesta
extremidade da incrivelmente longa linha de suprimentos de
Karellen, que entendesse uma palavra de inglês.
Eles o observaram, sérios, enquanto as grandes portas se
abriam ante seus olhos ansiosos. Este era o momento supremo de
sua vida: agora seria o primeiro ser humano a olhar para um mundo
iluminado por outro sol. A luz vermelho-viva da estrela NGS 549672
inundou a nave e, diante dele, estava o planeta dos Senhores
Supremos.
O que esperara? Não tinha certeza. Vastos edifícios, cidades
cujas torres se perdiam entre as nuvens, máquinas além da
imaginação... nada disso o teria surpreendido.
No entanto, o que viu foi uma planície uniforme, estendendo-se
para um horizonte estranhamente próximo e interrompido apenas
por mais três naves dos Senhores Supremos, a alguns quilômetros
de distância.
Por um momento, Jan sentiu uma onda de frustração. Depois,
encolheu os ombros, percebendo que, afinal de contas, era de se
esperar que um espaçoporto estivesse em uma região tão remota e
desabitada quanto esta.
Fazia frio, mas não a ponto de causar desconforto. A luz do
grande sol vermelho que descia baixo no horizonte era mais do que
suficiente para olhos humanos, mas Jan se preocupava com quanto
tempo levaria até que estivesse ansioso por verdes e azuis. Então,
viu o crescente enorme e delgado, erguendo-se no céu como um
grande arco posto ao lado do sol. Não tirou os olhos dele por um
longo tempo, até dar-se conta de que sua jornada não chegara
realmente ao fim. Aquele era o mundo dos Senhores Supremos.
Este devia ser seu satélite, uma simples base a partir da qual as
naves operavam.
Levaram-no para o planeta em uma nave não maior do que um
avião de passageiros terrestre. Sentindo-se um pigmeu, subira em
um dos grandes assentos para tentar, através das janelas de
observação, ver alguma coisa do planeta que se aproximava.
A jornada foi tão rápida que Jan teve tempo de observar apenas
alguns detalhes do globo que se expandia abaixo. Ao que parecia,
mesmo tão próximos de casa, os Senhores Supremos usavam um
tipo de impulso estelar, pois em questão de minutos estavam
despencando através de uma atmosfera profunda e sarapintada de
nuvens. Quando as portas se abriram, desembarcaram em uma
câmara abobadada, com um teto que devia ter se fechado
rapidamente por trás deles, pois não havia sinal de qualquer entrada
acima.
Levou dois dias para que Jan saísse desse prédio. Era uma
remessa inesperada, e não tinham onde colocá-lo. Para piorar as
coisas, nenhum dos Senhores Supremos entendia inglês. A
comunicação era praticamente impossível, e Jan descobriu, do pior
modo, que entrar em contato com uma raça alienígena não era tão
fácil quanto a ficção costumava indicar. A linguagem de sinais
mostrou-se especialmente inútil, pois dependia demais de um
conjunto de gestos, expressões e posturas que os Senhores
Supremos e a humanidade não tinham em comum.
Seria mais do que frustrante, pensou Jan, se os únicos Senhores
Supremos que falavam sua língua estivessem todos lá na Terra. Só
lhe restava aguardar e esperar pelo melhor. Sem dúvida algum
cientista, algum especialista em raças alienígenas, apareceria para
tomar conta dele! Ou seria ele tão desimportante que ninguém se
daria ao trabalho?
Não havia como sair do prédio, pois as grandes portas não
tinham controles visíveis. Quando um Senhor Supremo ia até elas,
as portas simplesmente se abriam. Jan tentara o mesmo truque,
agitara objetos alto no ar para interromper um eventual feixe de luz
controlador, tentara tudo o que pudera imaginar... e nada de
resultados. Percebeu que um homem da Idade da Pedra, perdido
em uma cidade ou prédio moderno, ficaria da mesma maneira
desamparado. Uma vez, tentara sair junto com um Senhor
Supremo, mas fora, de modo gentil, enxotado de volta. Como estava
muito receoso de irritar seus anfitriões, não insistira.
Vindarten chegou antes que Jan começasse a se desesperar. O
Senhor Supremo falava um inglês muito ruim, além de rápido
demais, porém melhorara com uma velocidade incrível. Em poucos
dias, podiam conversar, com dificuldades mínimas, sobre qualquer
assunto que não exigisse um vocabulário especializado.
Depois que Vindarten encarregou-se dele, Jan não teve mais
preocupações. Também não teve a chance de fazer as coisas que
desejava, pois quase todo o seu tempo era consumido em reuniões
com cientistas dos Senhores Supremos, ansiosos em levar a cabo
testes obscuros, com instrumentos complicados. Jan ficava com um
pé atrás em relação àquelas máquinas e, depois de uma sessão
com uma espécie de aparelho hipnótico, tivera uma dor de cabeça
de rachar, que durou várias horas. Estava totalmente disposto a
colaborar, mas não tinha a certeza de que os pesquisadores se
davam conta de suas limitações, tanto mentais quanto físicas. De
fato, levou muito tempo para que pudesse convencê-los de que
precisava dormir a intervalos regulares.
Entre essas sessões de pesquisa, teve rápidos vislumbres da
cidade e compreendeu como teria sido difícil (e perigoso)
movimentar-se por ela. Praticamente não havia ruas, e parecia não
haver transporte de superfície. Era o lar de criaturas que podiam
voar, e que não temiam a gravidade. Era muito comum deparar-se,
sem qualquer aviso, com um vertiginoso desnível de várias
centenas de metros, ou descobrir que a única entrada para uma
sala era uma abertura no alto da parede. De uma centena de
maneiras, Jan começou a perceber que a psicologia de uma raça
com asas tinha de ser fundamentalmente diferente daquela das
criaturas presas ao chão.
Era estranho ver os Senhores Supremos voando como grandes
pássaros entre as torres de sua cidade, as asas movendo-se em
batidas lentas e poderosas. E havia um problema científico nisso.
Este era um planeta grande, maior do que a Terra. No entanto,
sua gravidade era baixa, e Jan não compreendia como podia ter
uma atmosfera tão densa. Interrogou Vindarten sobre isso e
descobriu, como já meio que esperava, que este não era o planeta
original dos Senhores Supremos. Haviam evoluído em um mundo
bem menor e depois conquistado este, alterando não só a sua
atmosfera, como também a gravidade.
A arquitetura dos Senhores Supremos era friamente funcional:
Jan não viu ornamentos, nada que não tivesse um propósito,
embora esse propósito muitas vezes estivesse além de seu
entendimento. Se um homem da era medieval tivesse tido a chance
de ver esta cidade iluminada em vermelho, e os seres que nela se
moviam, com certeza teria acreditado estar no Inferno. Mesmo Jan,
com toda a sua curiosidade e isenção científica, às vezes se
descobria à beira de um terror irracional. A ausência de um único
ponto de referência familiar pode ser absolutamente aterradora, até
mesmo para a mente mais fria e lúcida.
E havia tanto que ele não compreendia, e que Vindarten não
podia ou não queria tentar explicar. O que eram as luzes cintilantes
e as formas cambiantes, as coisas que tremulavam pelo ar tão
depressa que ele nunca conseguiu ter certeza de sua existência?
Podiam ser algo espantoso e impressionante... ou tão espetacular e,
ao mesmo tempo, tão trivial quanto os anúncios de néon da
Broadway de antigamente.
Jan também ficara com a impressão de que o mundo dos
Senhores Supremos estava cheio de sons que ele não podia ouvir.
Uma ou outra vez, percebia padrões rítmicos complexos, subindo e
descendo em disparada pelo espectro audível, para desaparecer no
limite superior ou inferior da audição. Vindarten não parecia
entender o que Jan queria dizer com música, de modo que nunca foi
capaz de esclarecer esse problema a contento.
A cidade não era muito grande. Com certeza, era bem menor do
que Londres ou Nova York tinham sido no auge. De acordo com
Vindarten, havia vários milhares dessas cidades espalhadas pelo
planeta, cada uma planejada para algum fim específico. Na Terra, o
paralelo mais próximo teria sido uma cidade universitária... exceto
que, ali, o grau de especialização havia avançado muito mais. Esta
cidade inteira se dedicava, como Jan logo descobriu, ao estudo de
culturas alienígenas.
Em uma das primeiras excursões para além da câmara nua em
que Jan vivia, Vindarten levara-o ao museu. Descobrir-se em um
lugar cujo propósito era capaz de entender plenamente
proporcionara a Jan um estímulo psicológico muito necessário.
Excetuando-se a escala em que fora construído, este museu bem
poderia ficar na Terra. Tinham levado muito tempo para chegar lá,
descendo sem parar em uma grande plataforma que se movia como
um pistão em um cilindro vertical de comprimento desconhecido.
Não havia controles visíveis, e a sensação de aceleração no início e
no fim da descida era bastante notável. Ao que parecia, os
Senhores Supremos não esbanjavam seus aparelhos de campo
compensador com uso doméstico. Jan imaginou se todo o interior
deste mundo estaria crivado de escavações. E por que teriam
limitado o tamanho da cidade, estendendo-a para baixo, em vez de
para os lados? Esse foi apenas mais um dos enigmas que ele nunca
solucionou.
Podia-se passar toda uma vida explorando aquelas câmaras
colossais. Aqui estava o produto da pilhagem de planetas, as
conquistas de mais civilizações do que Jan poderia imaginar.
Entretanto, não havia tempo para ver muito. Vindarten colocou-o,
com cuidado, sobre uma faixa do piso que, à primeira vista, parecia
um padrão ornamental. Jan, porém, lembrou-se de que não havia
ornamentos ali... ao mesmo tempo em que algo invisível o agarrou
suavemente e o lançou para a frente. Estava passando diante de
itens em exibição, de paisagens antigas de mundos inimagináveis, a
uma velocidade de vinte ou trinta quilômetros por hora.
Os Senhores Supremos haviam resolvido o problema da fadiga
em museu. Não havia necessidade de andar.
Deviam ter percorrido vários quilômetros antes que o guia de Jan
o agarrasse de novo e, com um movimento enérgico das grandes
asas, o erguesse para longe da força desconhecida que os impelia.
Diante deles se estendia um enorme salão, meio vazio e iluminado
por uma luz familiar que Jan não via desde que saíra da Terra. Era
uma luz débil, de modo a não ferir os olhos sensíveis dos Senhores
Supremos, mas era, sem sombra de dúvida, a luz do Sol. Jan nunca
teria acreditado que algo tão simples ou tão corriqueiro pudesse
evocar tanta saudade em seu coração.
Então, esta era a exposição da Terra. Caminharam alguns
metros, passando por uma bela maquete de Paris, por tesouros de
arte de uma dezena de séculos agrupados de maneira
incongruente, por modernas máquinas calculadoras e por machados
paleolíticos, por receptores de TV e pela turbina a vapor de Heron de
Alexandria. Uma grande porta se abriu à frente deles, e estavam no
escritório do Curador para a Terra.
“Será que estava vendo um ser humano pela primeira vez?”, Jan
se perguntou. “Será que já tinha ido à Terra, ou ela seria apenas um
dos muitos planetas a seu cargo, de cuja localização exata nem
tinha muita certeza?”
O certo é que não falava nem entendia inglês, e Vindarten teve
de atuar como intérprete.
Jan passou várias horas ali, falando para um dispositivo de
gravação, enquanto os Senhores Supremos lhe apresentavam
diversos objetos terrestres. Muitos deles, descobriu, para sua
vergonha, ser incapaz de identificar. A ignorância que tinha em
relação a sua própria raça e a suas realizações era gigantesca.
Ficou imaginando se os Senhores Supremos, apesar de todos os
seus extraordinários dotes mentais, seriam mesmo capazes de
apreender todo o esquema da cultura humana.
Vindarten o levou para fora do museu por uma rota diferente.
Mais uma vez, flutuaram sem esforço por grandes corredores
abobadados, mas desta vez moviam-se por entre criações da
natureza, não da mente consciente. “Sullivan”, pensara Jan, “teria
dado a vida para estar aqui, para ver as maravilhas que a evolução
havia gerado em uma centena de mundos. Mas Sullivan já devia
estar morto”, se lembrou.
Depois, sem nenhum aviso, viram-se em um balcão bem alto,
acima de uma grande câmara circular, com talvez cem metros de
largura. Como de costume, não havia parapeito de proteção e, por
um momento, Jan hesitara em se aproximar da borda. Vindarten,
porém, estava de pé bem na beirada, olhando calmamente para
baixo, de modo que Jan avançou, cauteloso, ao encontro dele.
O chão estava apenas vinte metros abaixo... perto, perto demais.
Mais tarde, Jan teve a certeza de que seu guia não pretendera
espantá-lo, e fora tomado de surpresa pela sua reação. Pois Jan
deu um tremendo berro e pulou para trás, fugindo da borda do
balcão, em um esforço involuntário para ocultar o que havia
embaixo. Só quando os ecos abafados de seu grito haviam morrido
na espessa atmosfera é que ele tomara coragem o bastante para se
aproximar de novo.
Aquela coisa estava morta, é claro... e não olhando
conscientemente para ele, como pensara naquele primeiro momento
de pânico. Ocupava quase todo o grande espaço circular, e a luz
vermelho-viva brilhava e tremulava nas suas profundezas de cristal.
Era um único olho gigante.
– Por que fez esse barulho? – perguntou Vindarten.
– Fiquei assustado – confessou Jan, com embaraço.
– Mas por quê? Decerto não imaginou que pudesse haver algum
perigo aqui?
Jan ficou pensando se conseguiria explicar o que era um ato
reflexo, mas decidiu não tentar.
– Qualquer coisa que seja completamente inesperada é
assustadora. Até que uma situação inédita seja analisada, é mais
seguro presumir o pior.
O coração de Jan ainda batia forte quando voltou a olhar para
aquele olho monstruoso. É claro que podia ter sido um modelo,
extremamente ampliado, como micróbios e insetos nos museus
terrestres. No entanto, mesmo enquanto fazia a pergunta, Jan sabia,
com uma certeza repugnante, que não era maior do que o original.
Vindarten pouco pôde lhe dizer; este não era seu campo de
estudo, e ele não era lá muito curioso. A partir da descrição do
Senhor Supremo, Jan montou uma imagem de uma fera ciclópica
vivendo em meio aos escombros dos asteroides de algum sol
distante, seu crescimento jamais inibido pela gravidade e
dependendo, para comer e viver, do alcance e do poder de
resolução de seu único olho.
Parecia não haver limites para o que a Natureza podia fazer
quando pressionada, e Jan sentiu um prazer irracional em descobrir
algo que os Senhores Supremos não tentariam. Haviam trazido uma
baleia em tamanho natural da Terra... mas não haviam ousado fazer
o mesmo com aquilo.
E uma vez ele subira, subira sem parar, até que as paredes do
elevador se desvanecessem, em opalescência, até uma
transparência de cristal. Era como se estivesse de pé, apoiado em
nada, entre os mais elevados picos da cidade, sem nada para
protegê-lo do abismo. Não sentiu, porém, mais vertigem do que se
estivesse em um aeroplano, pois não havia a sensação de contato
com o chão distante.
Estava acima das nuvens, compartilhando o céu com alguns
pináculos de metal ou pedra. Um mar vermelho-rosado, a camada
de nuvens se deslocava devagar abaixo de Jan. Havia duas luas
pálidas e minúsculas no céu, não distantes do Sol mortiço. Próximo
do centro do disco vermelho e inchado via-se uma pequena sombra
escura, perfeitamente circular. Podia ser uma mancha solar, ou
outra lua em trânsito.
Jan, sem pressa, deslocou o olhar ao longo do horizonte. A
cobertura de nuvens estendia-se até a beira deste mundo enorme,
mas em uma direção, a uma distância impossível de se calcular,
havia um trecho sarapintado, que podia marcar as torres de outra
cidade. Fitou-o por um longo tempo e, em seguida, prosseguiu com
sua cuidadosa vistoria.
Quando já havia dado meia-volta, viu a montanha. Não estava no
horizonte, mas além dele: um único pico denteado, erguendo-se por
sobre a borda do mundo, as encostas mais baixas ocultas tal como
a parte principal de um iceberg, escondida abaixo da linha da água.
Tentou estimar seu tamanho e fracassou totalmente. Mesmo em
um mundo com gravidade tão baixa quanto este, era difícil acreditar
que montanhas assim pudessem existir. Jan imaginou se os
Senhores Supremos se divertiam em suas encostas e passavam
roçando, como águias, em torno desses imensos contrafortes.
E, então, aos poucos, a montanha começou a mudar. Quando a
viu pela primeira vez, era de um vermelho-fosco e quase sinistro,
com algumas marcas tênues próximas do topo, que Jan não
conseguia distinguir claramente. Estava tentando colocá-las em
foco, quando percebeu que se moviam...
A princípio, não pôde acreditar em seus olhos. Depois, forçou-se
a lembrar que todas as suas ideias preconcebidas eram inúteis ali;
não podia permitir que sua mente rejeitasse qualquer mensagem
que os sentidos levassem à câmara oculta do cérebro. Não devia
tentar entender... apenas observar. A compreensão viria mais tarde,
ou nunca.
A montanha (continuava a pensar nela como uma montanha,
pois não conhecia nenhuma outra palavra que servisse) parecia
estar viva. Lembrou-se daquele olho monstruoso na câmara
subterrânea... mas, não, isso era inconcebível. Não era vida
orgânica o que observava. Não era nem mesmo, suspeitava,
matéria como a conhecia.
O vermelho sombrio estava ficando mais claro, assumindo um
tom mais inflamado. Apareceram listras de amarelo-vivo, de modo
que, por um momento, Jan pensou estar olhando para um vulcão
despejando torrentes de lava sobre a terra abaixo. Mas as torrentes,
como podia ver pelas manchas e pontinhos que apareciam de vez
em quando, estavam correndo para cima.
Agora, algo mais se erguia das nuvens vermelho-vivas em torno
da base da montanha. Era um enorme anel, perfeitamente
horizontal e perfeitamente circular. Tinha a cor de tudo o que Jan
deixara tão para trás, pois os céus da Terra nunca contiveram um
azul mais adorável. Em nenhum outro lugar do mundo dos Senhores
Supremos ele tinha visto tons desses, e sua garganta se apertou
com a saudade e a solidão que evocavam.
O anel se expandia à medida que ia subindo. Agora, estava mais
alto do que a montanha, e seu arco mais próximo se lançava
rapidamente em direção a Jan. “Sem dúvida”, ele pensou, “deve ser
um vórtice de algum tipo... um anel de fumaça já com muitos
quilômetros de largura”. No entanto, não mostrava nada da rotação
que Jan esperava, e não parecia ficar menos sólido à medida que o
tamanho aumentava.
Sua sombra passou correndo muito antes que o anel em si
passasse voando, majestosamente, sobre a cabeça dele, ainda
erguendo-se para o espaço. Jan ficou observando até que se
reduzisse a um fiozinho de azul, difícil de pôr em foco em meio à
vermelhidão circundante do céu. Quando, por fim, desapareceu, já
devia ter muitos milhares de quilômetros de largura. E ainda crescia.
Voltou a olhar para a montanha. Agora estava dourada, e
despida de qualquer marca. Talvez fosse sua imaginação (podia
acreditar em qualquer coisa a essa altura), mas parecia mais alta e
mais estreita, e dava a impressão de estar girando como o funil de
um tornado. Foi só então, ainda entorpecido e com o raciocínio
quase suspenso, que Jan se lembrou de sua câmera. Levou-a ao
nível do olho e a apontou para aquele enigma impossível a ponto de
abalar a mente.
Vindarten moveu-se, rápido, para sua linha de visão. Com uma
firmeza implacável, as grandes mãos cobriram a torreta da lente e o
forçaram a abaixar a câmera. Jan não tentou resistir. Não porque, é
claro, teria sido em vão, mas sim porque sentiu um repentino temor
mortal daquela coisa lá, na beira do mundo, e não queria mais nada
com ela.
Não houve mais nada, em todas as suas viagens, que eles não o
deixassem fotografar, e Vindarten não deu nenhuma explicação.
Ao contrário, passou muito tempo fazendo com que Jan
descrevesse, nos mínimos detalhes, o que testemunhara.
Foi então que ele deu-se conta de que os olhos de Vindarten
haviam visto algo totalmente diferente. E foi então que intuiu, pela
primeira vez, que os Senhores Supremos também tinham os seus
senhores.
Agora Jan estava indo para casa, e toda admiração, medo e
mistério haviam ficado para trás. Era a mesma nave, ele achava,
embora com certeza não a mesma tripulação. Por mais longas que
fossem suas vidas, era difícil acreditar que os Senhores Supremos
se isolassem de bom grado de seu lar por todas as décadas
consumidas em uma viagem interestelar.
É claro que o efeito da dilatação do tempo da relatividade
funcionava em ambos os sentidos. Os Senhores Supremos
envelheceriam apenas quatro meses na viagem de ida e volta, mas,
quando voltassem, seus amigos estariam oitenta anos mais velhos.
Caso desejasse, Jan sem dúvida poderia ter ficado ali pelo resto
da vida. Vindarten, porém, o avisara de que não haveria outra nave
para a Terra durante muitos anos, e aconselhara-o a aproveitar a
oportunidade. Talvez os Senhores Supremos compreendessem que,
mesmo neste período relativamente curto, a mente de Jan quase
alcançara o seu limite. Ou, quem sabe, ele tivesse se tornado um
mero estorvo, e não quisessem lhe dedicar mais tempo.
Para Jan isso já não tinha mais importância, pois a Terra estava
ali bem à frente. Já a vira assim uma centena de vezes, mas sempre
através do olho mecânico e remoto de uma câmera de televisão.
Agora, por fim, estava no espaço, enquanto o último ato de seu
sonho se desdobrava. E a Terra girava, lá embaixo, em sua eterna
órbita.
A grande meia-lua verde-azulada estava em seu quarto
crescente: mais de metade do disco visível ainda se encontrava na
escuridão. As nuvens eram poucas, algumas faixas, espalhadas ao
longo da linha de ventos alísios. A calota ártica resplandecia
intensamente, mas era de longe ofuscada pelo reflexo deslumbrante
do Sol no Pacífico Norte.
Era possível imaginar que se tratava de um mundo de água: este
hemisfério era quase destituído de terra. O único continente visível
era a Austrália, uma neblina mais escura em meio à névoa
atmosférica ao longo da orla do planeta.
A nave se dirigia para o grande cone de sombra da Terra. O
brilhante crescente minguou, encolheu-se até um arco
incandescente de fogo e desapareceu em um piscar. Abaixo, a
escuridão e a noite.
O mundo dormia.
Jan percebeu então o que estava errado. Havia terra, lá embaixo,
mas onde estavam os cintilantes colares de luzes, onde estavam os
pontos de luzes brilhantes que foram as cidades dos homens? Em
todo o hemisfério sombrio, não havia uma única centelha para
afastar a noite. Sem deixar vestígio, os milhões de quilowatts que
outrora eram lançados sem o menor cuidado em direção às estrelas
tinham desaparecido. Era como se estivesse olhando para a Terra
como ela fora antes da chegada do Homem.
Esta não era a volta ao lar que Jan esperara. Tudo o que podia
fazer era assistir, enquanto o medo do desconhecido crescia dentro
de si. Algo acontecera... algo inimaginável. E, mesmo assim, a nave
descia de forma determinada em uma longa curva que a levava de
volta ao hemisfério iluminado pelo Sol. Nada viu do pouso, pois a
imagem da Terra sumiu de repente e foi substituída por aquele
padrão de linhas e luzes sem sentido. Quando a vista foi restaurada,
já estavam no solo. Havia a distância grandes prédios, máquinas
movendo-se de um lado para o outro e um grupo de Senhores
Supremos que as observava.
De alguma parte veio o rugido abafado do ar, enquanto a nave
igualava as pressões e, em seguida, o som das grandes portas se
abrindo. Jan não aguardou; os gigantes silenciosos observaram-no,
com tolerância ou indiferença, enquanto ele corria para fora da sala
de controle.
Estava de volta ao lar, enxergando outra vez com a luz cintilante
de seu próprio Sol familiar, respirando o ar que primeiro banhara
seus pulmões. A prancha de desembarque já fora baixada, mas ele
teve de esperar um momento até que o clarão de fora deixasse de
cegá-lo.
Karellen estava parado, um pouco afastado de seus colegas, ao
lado de um grande veículo de transporte carregado de caixotes. Jan
não parou para pensar como reconhecera o Supervisor, nem ficou
surpreso em vê-lo completamente inalterado. Essa era quase a
única coisa que saíra como ele havia planejado.
– Tenho estado à sua espera – disse Karellen.
23
– Nos primeiros dias – disse Karellen – era seguro andar entre eles.
Mas não precisavam mais de nós. Nosso trabalho foi concluído
quando os recolhemos e demos um continente só para eles. Olhe.
A parede diante de Jan desapareceu. Em vez dela, passou a
contemplar, de uma altitude de algumas centenas de metros, uma
região agradavelmente arborizada. A ilusão era tão perfeita que teve
de lutar contra uma vertigem momentânea.
– Isso foi cinco anos depois, quando a segunda fase começou.
Havia vultos movendo-se lá embaixo, e a câmera arremeteu
sobre eles como uma ave de rapina.
– Isso vai te dar aflição – disse Karellen. – Mas lembre-se de que
os seus padrões não se aplicam mais. Não está vendo crianças
humanas.
Entretanto, foi essa a impressão imediata que veio à mente de
Jan, e lógica nenhuma seria capaz de desfazê-la. Podiam ter sido
selvagens, envolvidos em alguma complicada dança ritual. Estavam
nus e imundos, os cabelos grudados cobrindo os olhos. Pelo que
podia ver, eram de todas as idades entre cinco e quinze anos, mas
todos se moviam com a mesma velocidade, precisão e completa
indiferença para com os arredores.
Foi então que Jan viu os rostos. Engoliu em seco e forçou-se a
não desviar os olhos. Estavam mais vazios do que os rostos dos
mortos, pois até um cadáver tem, em suas feições, alguma marca
entalhada pelo cinzel do tempo, que fala quando os próprios lábios
estão mudos. Não havia mais emoção ou sentimento aqui do que no
rosto de uma cobra ou de um inseto. Os próprios Senhores
Supremos eram mais humanos do que isto.
– Você está procurando algo que não está mais lá – disse
Karellen. – Lembre-se: eles não têm mais identidade do que as
células que formam o seu corpo. Mas, unidos, são algo muito maior
do que você.
– Por que ficam andando desse jeito?
– Chamamos de Longa Dança – respondeu Karellen. – Nunca
dormem, sabe, e durou quase um ano. Trezentos milhões deles,
movendo-se em um padrão controlado, por um continente inteiro.
Analisamos sem parar esse padrão, mas não quer dizer nada, talvez
porque só possamos ver a parte física... a pequena porção que está
aqui, na Terra. Há a chance de que aquilo que chamamos de Mente
Suprema ainda os esteja treinando, moldando-os em uma unidade
antes que possa incorporá-los integralmente em seu ser.
– Mas como se viram com a comida? E o que acontece quando
encontram obstáculos, como árvores, penhascos ou água?
– A água não faz diferença; não poderiam se afogar. Quando
encontravam obstáculos, às vezes se machucavam, mas nem
notavam. Quanto à comida... bem, tinham toda a caça e fruta de que
precisavam. Mas agora deixaram essa necessidade para trás, como
tantas outras, pois os alimentos são, em grande medida, uma fonte
de energia, e eles aprenderam a acessar fontes mais vastas.
A imagem tremulou, como se uma onda de calor passasse sobre
ela. Quando voltou a ficar nítida, o movimento embaixo cessara.
– Veja de novo – disse Karellen. – Três anos depois.
Os pequenos vultos, tão desamparados e tocantes para alguém
que desconhecesse a verdade, estavam imóveis, espalhados pelas
florestas, clareiras e planícies. A câmera passeou, impaciente, de
um para o outro: “seus rostos”, pensou Jan, “já estavam se fundindo
em um molde comum”. Certa vez vira algumas fotografias feitas por
meio da superposição de dezenas de imagens, para produzir um
rosto “médio”. O resultado fora tão vazio, tão sem personalidade
quanto isto.
Pareciam estar dormindo ou em êxtase. Tinham os olhos bem
fechados, e não demonstravam ter mais noção do que os cercava
do que as árvores acima deles. “Que pensamentos”, imaginou Jan,
“estariam ecoando através da complexa rede da qual suas mentes
não eram agora nada mais (e nada menos) do que os fios
individuais de uma grande tapeçaria?” E uma tapeçaria, ele se dava
conta agora, que cobria muitos mundos e muitas raças... e que
ainda estava crescendo.
Aconteceu com uma rapidez que deslumbrava a vista e
atordoava o cérebro. Em um momento, Jan olhava para uma terra
bela e fértil, sem nada de estranho, exceto as inúmeras pequenas
estátuas espalhadas, embora não a esmo, sobre todo o seu
comprimento e largura. E, em seguida, em um instante, todas as
árvores e o mato, todas as criaturas vivas que habitavam aquela
terra, cintilaram para fora da existência e desapareceram. Ficaram
apenas os lagos parados, os rios serpenteantes, as suaves colinas
castanhas, agora despidas de seu tapete verde... e os vultos
silenciosos e indiferentes que haviam gerado toda essa destruição.
– Por que fizeram isso? – Jan engasgou.
– Talvez a presença de outras mentes os tenha perturbado...
mesmo as mentes rudimentares das plantas e animais. Acreditamos
que, um dia, também possam achar o mundo material incômodo. E,
então, quem sabe o que vai acontecer? Agora, você compreende
por que nos retiramos quando concluímos nosso dever. Ainda
estamos tentando estudá-los, mas nunca entramos na terra deles,
nem mesmo enviamos nossos instrumentos. Só nos atrevemos a
observar do espaço.
– Isso foi há muitos anos – disse Jan. – O que aconteceu desde
então?
– Muito pouco. Nunca se moveram durante todo esse tempo nem
procuraram tomar conhecimento se é dia ou noite, verão ou inverno.
Ainda estão testando seus poderes: alguns rios mudaram de curso e
há um que corre ladeira acima. Mas não fizeram nada que pareça
ter qualquer finalidade.
– E não ligam a mínima pra vocês?
– Sim, embora isso não seja de surpreender. A... entidade da
qual fazem parte sabe tudo de nós. Não parece se importar quando
tentamos estudá-la. Quando desejar que partamos, ou tiver uma
nova tarefa para nós, em outro lugar, vai deixar seus desejos bem
claros. Até lá, ficaremos aqui, de modo que nossos cientistas
possam acumular o máximo possível de conhecimento.
Então isto – pensou Jan, com uma resignação que estava além
de toda a tristeza – era o fim do Homem. Era um fim que nenhum
profeta jamais previra... um fim que repudiava igualmente o
otimismo e o pessimismo.
No entanto, era adequado: tinha a inevitabilidade sublime de uma
grande obra de arte. Jan vislumbrara o Universo em toda a sua
terrível imensidão, e sabia que não era lugar para o homem.
Percebia, por fim, como fora vão, em última análise, o sonho que o
atraíra para as estrelas. Pois o caminho para as estrelas bifurcava-
se e nenhuma das duas direções conduzia a um destino que
levasse em conta as esperanças ou os temores humanos.
No fim de um dos caminhos estavam os Senhores Supremos.
Haviam preservado sua individualidade, seus egos independentes.
Tinham autoconsciência e o pronome “eu” possuía significado em
sua língua. Tinham emoções, pelo menos algumas das quais
compartilhadas pela humanidade. No entanto, Jan entendia, agora,
que estavam encurralados em um beco, do qual nunca
conseguiriam escapar. Suas mentes eram dez, quem sabe cem
vezes mais poderosas que as dos homens. No cômputo geral, isso
não fazia diferença. Ficavam igualmente desamparados, igualmente
esmagados pela inimaginável complexidade de uma galáxia de cem
bilhões de sóis e de um cosmos de cem bilhões de galáxias.
E no final do outro caminho? Ali estava a Mente Suprema, o que
quer que fosse, que estava para o homem assim como o homem
estava para as amebas. Potencialmente infinita, além da
mortalidade. Por quanto tempo estivera absorvendo raça após raça
enquanto se alastrava pelas estrelas? Teria também desejos,
objetivos dos quais tinha uma noção vaga, mas que podia nunca
atingir? Agora, puxara para dentro de si tudo o que a raça humana
já conquistara. Não era uma tragédia, mas uma realização. Os
bilhões de centelhas transitórias de consciência que haviam
formado a humanidade não mais piscariam como vaga-lumes na
noite. Não tinham, porém, vivido inteiramente em vão.
Jan sabia que o último ato ainda estava por vir. Podia acontecer
amanhã, ou daqui a séculos. Nem mesmo os Senhores Supremos
tinham certeza.
Agora, Jan compreendia o objetivo deles, o que tinham feito com
o Homem e por que ainda estavam na Terra. Sentia uma grande
humildade em relação a eles, assim como admiração pela paciência
inflexível que os mantivera aguardando aqui por tanto tempo.
Nunca descobriu toda a história da estranha simbiose entre a
Mente Suprema e seus servos. De acordo com Rashaverak, nunca
houve uma época na história de sua raça em que a Mente Suprema
não tivesse estado com eles, embora não os usasse até que
atingissem uma civilização científica e pudessem se deslocar pelo
espaço para cumprir suas ordens.
– Mas por que a Mente Suprema precisa de vocês? – perguntou
Jan. – Com todos os enormes poderes que ela tem, com certeza
poderia fazer o que bem entendesse.
– Não – disse Rashaverak. – Ela tem limites. Sabemos que, no
passado, tentou atuar de forma direta sobre as mentes de outras
raças e influenciar o desenvolvimento cultural delas. Sempre
fracassou, talvez porque o abismo seja grande demais. Somos os
intérpretes... os guardiões. Ou, para usar uma de suas próprias
metáforas, lavramos o campo até que as plantas estejam maduras.
A Mente Suprema colhe a safra... e nós seguimos para outra tarefa.
Esta é a quinta raça cuja apoteose testemunhamos. A cada vez,
aprendemos um pouco mais.
– E não se incomodam de serem usados como instrumentos da
Mente Suprema?
– Esse esquema tem algumas vantagens. Além disso, nenhuma
pessoa inteligente se incomoda com o inevitável.
Essa máxima, Jan refletiu com ironia, nunca fora muito bem
aceita pela humanidade. Havia coisas além da lógica que os
Senhores Supremos nunca compreenderiam.
– Parece estranho – disse Jan – que a Mente Suprema tenha
escolhido vocês para executar o trabalho dela, se não têm nenhum
resquício dos poderes parafísicos latentes na humanidade. Como
ela se comunica com vocês e os informa de seus desejos?
– Essa é uma pergunta que não posso responder... e não posso
dizer qual a razão de ocultar os fatos. Um dia, talvez, você saberá
uma parte da verdade.
Jan ficou intrigado por um momento, mas sabia que era inútil
seguir esta linha de investigação. Teria de mudar de assunto e
esperar conseguir pistas depois.
– Então me diga isto, que é uma coisa que nunca explicaram.
Quando a sua raça chegou à Terra pela primeira vez, lá no passado
distante, o que deu errado? Por que se tornaram o símbolo do medo
e do mal para nós?
Rashaverak sorriu. Não fazia isso tão bem quanto Karellen, mas
era uma boa imitação.
– Ninguém nunca suspeitou, e agora você vai entender por que
nunca pudemos contar. Havia só um acontecimento que podia ter
causado um impacto desses sobre a humanidade. E esse
acontecimento não foi na alvorada da história, mas no seu exato
final.
– Que quer dizer? – perguntou Jan.
– Quando nossas naves penetraram os céus deste planeta, um
século e meio atrás, esse foi o primeiro encontro das duas raças,
embora, é claro, tivéssemos estudado vocês a distância. E, mesmo
assim, vocês nos temeram e nos reconheceram, como sabíamos
que fariam. Não era exatamente uma recordação. Você já pôde
comprovar que o tempo é mais complexo do que a sua ciência
alguma vez imaginou. Pois essa lembrança não era do passado,
mas sim do futuro... dos anos finais, quando a sua raça soube que
tudo estava perdido. Fizemos o que pudemos, mas não foi um final
tranquilo. E, por estarmos presentes, fomos identificados com a
morte da sua raça. Sim, mesmo ela estando ainda dez mil anos no
futuro! Era como se um eco distorcido tivesse reverberado pelo
círculo fechado do tempo, do futuro para o passado. Não chamemos
de recordação, mas de premonição.
A ideia era difícil de aceitar e, por um momento, Jan lutou com
ela em silêncio. No entanto, já devia estar preparado: recebera
provas suficientes de que causa e efeito podiam inverter sua
sequência normal.
Devia haver algo como uma memória racial, e essa memória era,
de alguma forma, independente do tempo. Para ela, o futuro e o
passado eram um só. E foi por isso que, milhares de anos atrás, os
homens já haviam vislumbrado uma imagem distorcida dos
Senhores Supremos, em meio a uma névoa de medo e terror.
– Agora entendo – disse o último homem.
O Último Homem! Jan achava muito difícil pensar em si mesmo
dessa forma. Quando fora ao espaço, aceitara a possibilidade de
um exílio eterno da raça humana, e a solidão ainda não recaíra
sobre ele. À medida que os anos passassem, o desejo de ver outro
ser humano poderia crescer e tomar conta de sua mente, mas, por
enquanto, a companhia dos Senhores Supremos evitava a
sensação de estar absolutamente só.
Houvera homens na Terra até dez anos atrás, mas eram
sobreviventes degenerados, e Jan nada perdera por não tê-los
encontrado. Por razões que os Senhores Supremos não podiam
explicar, mas que Jan suspeitava fossem em grande parte
psicológicas, não existiram crianças para substituir as que haviam
partido. O Homo sapiens estava extinto.
Quem sabe, perdido em uma das cidades ainda intactas,
estivesse o manuscrito de algum Gibbon moderno, registrando os
últimos dias da raça humana. Se assim fosse, Jan não tinha certeza
de que faria questão de lê-lo. Rashaverak lhe contara tudo o que
desejava saber.
Aqueles que não tinham se matado haviam buscado o
esquecimento em atividades cada vez mais febris, em esportes
violentos e suicidas que muitas vezes não se distinguiam de
pequenas guerras. À medida que a população decaía com rapidez,
os sobreviventes, envelhecidos, haviam se agrupado, um exército
derrotado cerrando fileiras em sua última retirada.
O ato final, antes que a cortina descesse para sempre, deve ter
sido iluminado por lampejos de heroísmo e sacrifício, e obscurecido
por crueldade e egoísmo. Quer tenha terminado em desespero ou
em resignação, Jan nunca saberia.
Havia muito com o que ocupar a mente. A base dos Senhores
Supremos ficava a cerca de um quilômetro de uma casa de campo
abandonada, e Jan passara meses instalando nela equipamentos
que pegara na cidade mais próxima, a uns trinta quilômetros de
distância. Voara até lá com Rashaverak, cuja amizade, ele
suspeitava, não era completamente altruísta. O psicólogo dos
Senhores Supremos ainda estudava o último espécime do Homo
sapiens.
A cidade devia ter sido evacuada antes do fim, pois as casas e
até mesmo vários dos serviços públicos ainda estavam em ordem.
“Não teria sido difícil religar os geradores, de modo que as largas
ruas voltassem a brilhar com a ilusão da vida”. Jan brincou com a
ideia, mas logo a abandonou como sendo mórbida demais. A coisa
que menos desejava era remoer o passado.
Aqui havia tudo de que precisava para se manter pelo resto da
vida, mas o que mais queria era um piano eletrônico e certos
arranjos de Bach. Nunca tivera tanto tempo para a música quanto
desejara, e agora iria compensar. Quando não estava tocando ele
mesmo, ouvia fitas das grandes sinfonias e concertos, de modo que
a casa nunca ficava em silêncio. A música tornara-se seu talismã
contra a solidão que, um dia, certamente tomaria conta do seu ser.
Muitas vezes saía para longas caminhadas pelas colinas,
pensando em tudo o que acontecera nos poucos meses decorridos
desde que vira a Terra pela última vez. Nunca imaginara, ao dizer
adeus a Sullivan, oitenta anos terrestres atrás, que a última geração
da humanidade já estava no útero.
Que jovem tolo ele fora! Não tinha certeza, porém, de que se
arrependera daquele ato. Caso tivesse ficado na Terra, teria
testemunhado os anos derradeiros, que o tempo agora ocultava. Em
vez disso, pulara aqueles anos, indo para o futuro, e ficara sabendo
as respostas de perguntas que nenhum outro homem jamais
saberia.
Sua curiosidade estava quase satisfeita, mas, às vezes, ficava
imaginando o que os Senhores Supremos estariam aguardando, e o
que aconteceria quando sua paciência fosse, por fim,
recompensada.
Na maior parte do tempo, porém, com a resignação satisfeita,
que normalmente vem a um homem apenas no final de uma vida
longa e ativa, sentava-se diante do teclado e enchia o ar com seu
querido Bach. Quem sabe estivesse se iludindo, quem sabe fosse
algum truque misericordioso da mente, mas Jan agora tinha a
impressão de que era isso o que sempre desejara fazer. Sua
ambição secreta, por fim, ousara se manifestar à luz plena da
consciência.
Jan sempre fora um bom pianista. Agora, era o melhor do
mundo.
24
Foi Rashaverak quem lhe deu a notícia, mas ele já a antecipara.
Durante a madrugada, havia sido acordado por um pesadelo e não
conseguira mais dormir. Não se lembrava do sonho, o que era muito
estranho, pois achava que todos podiam ser lembrados, se a
pessoa se esforçasse o bastante, logo depois de acordar. Tudo de
que conseguia lembrar do sonho era que voltara a ser um
menininho, em uma vasta planície vazia, e ouvia uma voz formidável
que gritava em uma língua estranha.
O sonho o perturbara. Ficou cismado se este seria o primeiro
assalto da solidão sobre sua mente. Inquieto, saíra da enorme casa
para o gramado negligenciado.
A Lua cheia banhava o cenário com uma luz dourada tão
brilhante que era possível enxergar com perfeição. O cilindro imenso
e reluzente da nave de Karellen estava pousado logo depois dos
prédios da base dos Senhores Supremos, erguendo-se acima deles
e reduzindo-os a proporções de algo feito pelo homem. Jan olhou
para a nave, tentando recordar as emoções que ela outrora lhe
despertara. Tinha havido uma época em que a nave fora uma meta
inatingível, um símbolo de tudo o que jamais esperara realmente
alcançar. E, agora, não significava nada.
Como estava tranquila e silenciosa! Os Senhores Supremos, é
claro, estavam tão ativos como sempre, embora, no momento, não
houvesse sinais deles. Jan poderia estar sozinho na Terra. Como,
de fato, em um sentido muito real, estava. Olhou de relance para a
Lua, buscando uma vista familiar na qual seus pensamentos
pudessem repousar.
Ali estavam os antigos mares, que sabia de cor. Estivera a
quarenta anos-luz da Terra, mas nunca caminhara por aquelas
planícies poeirentas e silenciosas, a menos de dois segundos-luz de
distância. Por um momento, divertiu-se tentando localizar a cratera
Tycho. Quando a descobriu, ficou intrigado em ver que a mancha
reluzente ficava mais afastada da linha central do disco do que
pensara. E foi então que se deu conta de que a oval escura do Mare
Crisium havia desaparecido completamente.
A face que o satélite da Terra agora apresentava ao planeta não
era aquela que contemplara o mundo desde a aurora da vida. A Lua
começara a girar em seu eixo.
Aquilo só podia significar uma coisa: do outro lado da Terra, na
região que haviam despido de vida tão abruptamente, eles estavam
saindo de seu longo transe. Da mesma forma que uma criança ao
acordar pode estirar os braços para acolher o dia, também estavam
flexionando os músculos e brincando com seus poderes recém-
descobertos...
– Sua conclusão está correta – disse Rashaverak. – Não é mais
seguro para nós ficar aqui. Pode ser que eles continuem a não dar
atenção à nossa presença, mas não podemos correr o risco. Vamos
partir logo que nossos equipamentos possam ser embarcados. Ao
que tudo indica, em duas ou três horas.
Olhou para o céu, como se estivesse temeroso de algum novo
milagre a ponto de se desencadear. Tudo, porém, estava em paz: a
Lua se pusera, e apenas algumas nuvens passavam no alto com o
vento oeste.
– Não importa muito se eles mexerem com a Lua – Rashaverak
acrescentou –, mas, e se começarem a interferir com o Sol? Vamos
deixar para trás alguns instrumentos, é claro, de modo que
possamos saber o que acontece.
– Vou ficar – disse Jan, de súbito. – Já vi o bastante do Universo.
Agora, só tenho curiosidade sobre uma coisa... e é o destino do meu
próprio planeta.
Com muita brandura, o chão tremeu sob seus pés.
– Já esperava isso – Jan prosseguiu. – Se alteram a rotação da
Lua, o momento angular precisa ir para algum lugar. Por isso a Terra
está indo mais devagar. Não sei o que me intriga mais: como estão
fazendo isso, ou por quê.
– Ainda estão brincando – disse Rashaverak. – Que lógica há
nos atos de uma criança? E, sob muitos aspectos, a entidade em
que sua raça se transformou ainda é uma criança. Ainda não está
pronta para se unir à Mente Suprema. Mas muito em breve estará, e
então a Terra será toda sua.
Não complementou a frase, e Jan a concluiu por ele:
– Se, é claro, ainda houver uma Terra.
– Vejo que percebe o perigo... e, mesmo assim, prefere ficar?
– Prefiro. Já estou aqui há cinco... ou seis anos. Aconteça o que
aconteça, não vou reclamar.
– Tínhamos a esperança – começou Rashaverak, devagar – de
que preferisse ficar. Há algo que pode fazer por nós...
O clarão do impulso estelar foi se extinguindo até morrer, em
algum lugar além da órbita de Marte. Por aquela estrada, pensou
Jan, apenas ele viajara, dentre todos os bilhões de seres humanos
que viveram e morreram na Terra. E nenhum outro jamais a
percorreria novamente.
O mundo era dele. Tudo de que precisasse, todos os bens
materiais que alguém jamais pudesse desejar, eram dele, bastando
pegar. Contudo, não estava mais interessado. Não temia a solidão
do planeta abandonado, nem a presença que ainda se encontrava
ali nos últimos momentos, antes de partir em busca de sua herança
desconhecida. No rastro inconcebível dessa partida, Jan não
esperava que ele e seus problemas sobrevivessem por muito
tempo.
E isso era bom. Fizera tudo o que desejara fazer, e prolongar
uma vida sem sentido, neste mundo vazio, teria sido um anticlímax
insuportável. Poderia ter partido com os Senhores Supremos, mas
com que finalidade? Sabia, como ninguém jamais soubera, que
Karellen falara a verdade quando havia dito: “As estrelas não são
para o Homem”.
Voltou as costas à noite e passou pela vasta entrada da base dos
Senhores Supremos. O porte dela não o afetava em nada; a
imensidão em si já não tinha nenhum poder sobre sua mente. As
luzes avermelhadas estavam acesas, acionadas por energias que
poderiam alimentá-las ainda por eras. De cada lado havia máquinas
cujos segredos ele jamais saberia, abandonadas pelos Senhores
Supremos em retirada. Passou por elas e escalou, desajeitado, os
grandes degraus, até chegar à sala de controle.
O espírito dos Senhores Supremos ainda se demorava ali: suas
máquinas ainda estavam vivas, cumprindo as ordens de seus
mestres, agora tão distantes. “O que ele poderia acrescentar”,
pensou Jan, “às informações que elas já lançavam ao espaço?”
Jan subiu na enorme cadeira e se posicionou do jeito mais
cômodo que pôde. O microfone, já ligado, aguardava por ele.
Alguma coisa que seria o equivalente a uma câmera de TV devia
estar observando, mas não foi capaz de descobri-la.
Do outro lado da mesa e de seus painéis de instrumentos sem
sentido, as amplas janelas contemplavam a noite estrelada, uma
ponta a outra de um vale adormecido sob uma Lua quase cheia,
além de uma longínqua cordilheira. Um rio serpenteava pelo vale,
reluzindo aqui e ali quando o luar batia em algum trecho de água
agitada. Tudo era tão pacífico. Devia ter sido desse jeito na origem
do Homem, como era agora, em seu fim.
Lá fora – e não se sabe quantos milhões de quilômetros no
espaço – Karellen estaria aguardando. Era estranho pensar que a
nave dos Senhores Supremos estava em retirada para longe da
Terra quase tão rapidamente quanto seu sinal poderia correr atrás
dela. Quase... mas não tão rapidamente. Seria uma perseguição
demorada, mas suas palavras alcançariam o Supervisor e Jan teria
redimido a dívida que contraíra.
“Quanto disto”, pensou Jan, “fora planejado por Karellen, e
quanto seria uma improvisação magistral? Teria o Supervisor, de
caso pensado, permitido que ele fugisse para o espaço, quase um
século atrás, de modo a voltar e desempenhar o papel que agora
cumpria?” Não, isso parecia fantástico demais. Jan, porém, tinha
agora a certeza de que Karellen estava envolvido em alguma vasta
e intricada conspiração. Mesmo enquanto a servia, estava
estudando a Mente Suprema com todos os instrumentos a seu
dispor. Jan suspeitava que não fosse apenas curiosidade científica o
que inspirava o Supervisor. Quem sabe os Senhores Supremos
sonhassem um dia fugir daquela servidão peculiar, quando tivessem
aprendido o bastante sobre os poderes a que serviam.
Parecia difícil de acreditar que Jan pudesse acrescentar algo a
esses conhecimentos com o que estava fazendo agora. “Conte-nos
o que você vir”, Rashaverak dissera. “As imagens que chegarem a
seus olhos serão duplicadas por nossas câmeras. Mas a mensagem
que entrar no seu cérebro pode ser muito diferente, e pode nos dizer
muito.”
Bem, faria o melhor que pudesse.
– Ainda nada a informar – começou. – Alguns minutos atrás, vi a
trilha da sua nave desaparecer no céu. A Lua acabou de entrar na
fase minguante, e quase a metade do seu lado familiar está agora
voltado para longe da Terra... Mas acho que vocês já sabem disso.
Jan fez uma pausa, sentindo-se um tanto ridículo. Havia algo
incongruente, até mesmo um pouco absurdo, no que estava
fazendo. Aqui estava o clímax de toda a história. No entanto, ele
agia como se fosse um comentarista de rádio em um hipódromo ou
ringue de boxe. Deu de ombros e pôs a ideia de lado. Em todos os
momentos de grandeza, Jan suspeitava, o anticlímax estava sempre
por perto... e, com certeza, apenas ele podia sentir sua presença
aqui.
– Houve três pequenos tremores na última hora – prosseguiu. –
O controle deles sobre a rotação da Terra deve ser incrível, mas não
cem por cento perfeito. Sabe, Karellen, vai ser bem difícil dizer algo
que seus instrumentos já não tenham te contado. Teria sido útil se
tivessem me dado alguma ideia do que poderia acontecer, e me
dissessem por quanto tempo posso ter que esperar. Se nada
ocorrer, voltarei a informar em seis horas, conforme combinamos...
– Alô! Eles deviam estar esperando que vocês fossem embora.
Alguma coisa está começando a acontecer. As estrelas estão
perdendo o brilho. É como se uma grande nuvem estivesse subindo,
muito rápido, cobrindo todo o céu. Só que não é uma nuvem de
verdade. Parece ter algum tipo de estrutura... consigo perceber uma
rede nebulosa de linhas e faixas que ficam mudando de posição. É
quase como se as estrelas estivessem emaranhadas numa teia de
aranha fantasma.
– A rede toda está começando a brilhar... a pulsar com luz,
exatamente como se estivesse viva. E acho que está. Ou será
alguma coisa tão além da vida quanto aquilo está acima do mundo
inorgânico?
– O brilho parece estar se deslocando para uma só parte do
céu... esperem um minuto enquanto passo para a outra janela.
– Sim... Já devia ter desconfiado. Tem uma enorme coluna de
fogo, como uma árvore de chamas, acima do horizonte, a oeste.
Está a uma grande distância, do outro lado do mundo. Sei de onde
ela brota: eles estão, por fim, a caminho de se tornarem parte da
Mente Suprema. O período de experiência terminou. Estão deixando
os últimos vestígios de matéria para trás.
– À medida que o fogo se espalha para cima a partir da Terra,
posso ver a rede se tornar mais firme e menos nebulosa. Em alguns
pontos, parece quase sólida... mesmo que as estrelas ainda brilhem
um pouco através dela.
– Acabo de perceber. Não é exatamente o mesmo, mas a coisa
que vi disparando para o alto no seu mundo, Karellen, era muito
parecida com isto. Será que era parte da Mente Suprema? Acho
que me esconderam a verdade para que não tivesse ideias
preconcebidas... para que fosse um observador isento. Queria saber
o que as suas câmeras estão mostrando agora, para comparar com
o que meu cérebro imagina que estou vendo!
– É desse jeito que ela fala com vocês, Karellen? Com cores e
formas assim? Lembrei das telas de controle nas suas naves e dos
padrões que passavam por elas, falando com vocês em um tipo de
linguagem visual que os seus olhos podiam ler.
– Agora, ela se parece exatamente com as cortinas da aurora,
dançando e tremeluzindo entre as estrelas. Ora, mas é isso mesmo
que é na verdade: uma grande tempestade de aurora. A paisagem
inteira está iluminada... está mais claro do que de dia... vermelhos,
amarelos e verdes correm uns atrás dos outros pelo céu... ah, não
tenho palavras, não parece justo que seja o único a ver isso... nunca
imaginei essas cores.
– A tempestade está passando, mas a grande rede nebulosa
continua lá. Acho que a aurora era só um subproduto das energias
que estão sendo desprendidas lá em cima, na fronteira do espaço.
– Só um minuto; reparei em outra coisa. Meu peso está caindo. O
que isso quer dizer? Soltei um lápis no ar... está caindo devagar.
Alguma coisa aconteceu com a gravidade, tem um vento forte
começando, dá para ver as árvores balançando os galhos lá
embaixo no vale.
– É claro... A atmosfera está escapando. Galhos e pedras estão
se erguendo no céu, quase como se a própria Terra estivesse
tentando ir atrás deles no espaço. Há uma grande nuvem de pó,
batida pela ventania. Está ficando difícil de ver... Quem sabe clareie
daqui a pouco.
– Sim... Assim está melhor. Tudo o que não estava preso foi
arrancado... As nuvens de poeira desapareceram. Não sei por
quanto tempo este prédio vai aguentar. E está ficando difícil de
respirar... preciso tentar falar mais devagar.
– Dá para ver com clareza de novo. A coluna de fogo enorme
ainda está lá, mas está se contraindo, se estreitando... parece o funil
de um tornado, prestes a se recolher nas nuvens. E... Oh, é difícil
descrever, mas acabo de sentir uma grande onda de emoção tomar
conta de mim. Não é alegria ou tristeza. É uma sensação de
satisfação, de conquista. Imaginação? Ou será que veio de fora?
Não sei.
– E agora... Isto não pode ser só imaginação... O mundo dá a
sensação de estar vazio. Totalmente vazio. É como escutar um rádio
que fica mudo de repente. E o céu está limpo de novo... A teia
nebulosa sumiu. Para que mundo ela vai agora, Karellen? E você,
estará lá para continuar a servi-la?
– Estranho: tudo ao meu redor está inalterado. Não sei por quê,
mas pensei que...
Jan ficou em silêncio. Por um momento, teve dificuldade em
achar as palavras e, em seguida, fechou os olhos em um esforço
para recuperar o controle. Agora não havia lugar para medo ou
pânico. Tinha um dever a cumprir: um dever para com o Homem, e
um dever para com Karellen.
A princípio devagar, como um homem acordando de um sonho,
começou a falar:
– Os prédios em torno de mim, o chão, as montanhas... tudo
parece de vidro... posso ver através deles. A Terra está se
dissolvendo. Meu peso já se foi quase todo. Vocês estavam certos:
eles terminaram com seus brinquedos.
– Só faltam alguns segundos para o fim. Lá se vão as
montanhas, como se fossem fumaça. Adeus, Karellen,
Rashaverak... Sinto muito por vocês. Apesar de não ser capaz de
entender, vi o que minha raça se tornou. Tudo o que já fizemos
subiu para as estrelas. Quem sabe fosse isso o que as velhas
religiões queriam dizer. Mas numa coisa todas erraram: pensavam
que a humanidade era tão importante, mas somos apenas uma raça
em... vocês sabem quantas? E, ainda assim, nos transformamos em
algo que vocês nunca poderiam ser.
– Lá se vai o rio. Mas o céu continua igualzinho. Mal posso
respirar. É estranho ainda ver a Lua brilhando lá em cima. Que bom
que a deixaram, mas agora vai ficar solitária...
– A luz! Vem de baixo de mim, de dentro da Terra, brilhando para
cima, através das rochas, do solo, de tudo, ficando cada vez mais
brilhante, mais brilhante, ofuscante...
Com um choque mudo de luz, o núcleo da Terra liberou suas
energias acumuladas. Por um breve instante, as ondas
gravitacionais atravessaram o sistema solar de um lado a outro e de
volta, perturbando um quase nada da órbita dos planetas. Logo, os
filhos remanescentes do Sol voltaram a seguir seus velhos
caminhos, como rolhas flutuantes em um lago plácido superam as
minúsculas ondulações provocadas por uma pedra que cai.
Não sobrara nada da Terra. Eles haviam sugado os últimos
átomos de sua substância. Ela os nutrira durante os momentos
extremos de sua inconcebível metamorfose, da mesma forma que o
alimento armazenado em um grão de trigo alimenta o broto
enquanto ele ascende em direção ao Sol.
Seis bilhões de quilômetros além da órbita de Plutão, Karellen
estava sentado diante de uma tela subitamente escurecida. O
registro estava concluído, a missão, terminada; ele voltava para o
mundo que deixara há tanto tempo. Os séculos pesavam sobre ele,
além de uma tristeza que nenhuma lógica poderia afastar. Não
lamentava pelo Homem: sua dor era por sua própria raça, para
sempre privada da grandeza por forças que não poderia vencer.
“Apesar de todas as suas conquistas”, pensou Karellen, “apesar
de seu domínio do universo físico, seu povo não era melhor do que
uma tribo que tivesse passado toda a existência em alguma planície
rasa e poeirenta. Ao longe ficavam as montanhas, a morada do
poder e da beleza, onde o trovão alardeava acima das geleiras e o
ar era limpo e penetrante. Lá o Sol ainda caminhava, transfigurando
os picos com sua glória, enquanto toda a terra abaixo era envolvida
pela escuridão. E eles podiam apenas olhar e se admirar. Jamais
poderiam escalar as alturas.”
No entanto, Karellen sabia, aguentariam firmes até o fim.
Aguardariam sem desespero seu destino, qualquer que fosse.
Serviriam à Mente Suprema porque não tinham escolha, mas,
mesmo ao servi-la, não perderiam suas almas.
A grande tela de controle cintilou por um momento com uma luz
escura, vermelho-viva. Sem nenhum esforço consciente, Karellen
leu a mensagem nos padrões em constante mudança. A nave
estava deixando os limites do Sistema Solar. As energias que
alimentavam o impulso estelar estavam declinando em ritmo
acelerado, mas tinham feito seu trabalho.
Karellen ergueu a mão, e a imagem mudou mais uma vez. Uma
única estrela radiante brilhava no centro da tela. Ninguém saberia,
desta distância, que o Sol alguma vez possuíra planetas, ou que um
deles estava agora perdido. Por um longo tempo, Karellen manteve
os olhos fixos naquele abismo que se alargava em ritmo acelerado,
ao mesmo tempo em que muitas lembranças corriam por sua vasta
e labiríntica mente. Em um adeus silencioso, saudou os homens que
conhecera, quer o tivessem atrapalhado ou ajudado em sua meta.
Ninguém ousou perturbá-lo ou interromper seus pensamentos.
Logo depois, virou as costas para o Sol que se encolhia.
EXTRAS
Capítulo 1
Versão revisada pelo autor (1989)
Anjo da Guarda
Conto que deu origem ao livro
Em 1989, o autor atualizou o primeiro capítulo de O fim da infância
para refletir a crença comum de que os russos (e não os alemães)
seriam os pioneiros no espaço. Após o colapso da União Soviética,
ele decidiu reverter para o texto original. O que segue é a versão
revisada de 1989.
1
Antes de voar para o local do lançamento, Helena Lyakhov sempre
passava pelo mesmo ritual. Ela não era o único cosmonauta a fazê-
lo, embora poucos sequer falassem a respeito.
Já estava escuro quando ela deixou o Edifício Administrativo e
caminhou pelos pinheiros, até chegar à famosa estátua. O céu
estava límpido como cristal, e uma Lua cheia brilhante havia
acabado de nascer. Automaticamente, os olhos de Helena se
concentraram no Mare Imbrium, e sua mente voltou para as
semanas de treinamento na Base Armstrong, agora mais conhecida
como Pequeno Marte.
– Você morreu antes de eu nascer, Yuri... Nos dias da Guerra
Fria, enquanto nosso país ainda estava debaixo da sombra de
Stalin. O que você acharia, se ouvisse todos os sotaques
estrangeiros na Cidade das Estrelas de hoje? Acho que ficaria muito
feliz...
– Sei que você ficaria feliz, se pudesse nos ver agora; você seria
um homem velho, mas ainda poderia estar vivo. Que tragédia
você... o primeiro a entrar no espaço... não ter vivido para ver
homens andarem na Lua! Mas você também deve ter sonhado com
Marte... E agora estamos prontos para ir lá, e abrir a Nova Era com
que Konstantin Tsiolkovsky sonhou, cem anos atrás. Quando nos
encontrarmos de novo, terei muito para contar.
Ela já estava na metade do caminho de volta ao escritório
quando um ônibus cheio de turistas retardatários parou de repente.
As portas se abriram, derramando passageiros para fora, câmeras
preparadas. Não havia nada que a vice-comandante da Expedição
Marte pudesse fazer além de evocar seu sorriso público.
Então, antes que uma única foto fosse tirada, todos começaram a
gritar e a apontar para a Lua. Helena se voltou a tempo de vê-la
sumir por trás de uma gigantesca sombra que deslizava pelo céu; e
pela primeira vez na vida, a cosmonauta temeu a Deus.
O comandante da missão, Mohan Kaleer, estava na borda da
cratera, olhando por sobre o mar de lava congelada para a borda
distante da caldeira. Era difícil apreender a escala da cena, ou
imaginar as forças que haviam reinado aqui enquanto as marés de
rocha derretida subiam e desciam, criando os paredões e terraços
espalhados diante dele. E, mesmo assim, tudo o que ele via poderia
se perder no interior do vulcão que estaria encarando em menos de
um ano. O Kilauea era apenas um modelo em escala do Olympus
Mons, e todo o treinamento ainda poderia deixá-los
irremediavelmente despreparados para a realidade.
Ele se lembrava de como, na cerimônia de posse de 2001, o
presidente dos Estados Unidos havia ecoado a promessa feita
quarenta anos atrás por Kennedy, “Precisamos ir à Lua!”, ao
proclamar que este seria o “Século do Sistema Solar”. Antes que
2100 chegasse, ele havia predito com convicção que os homens
teriam visitado todos os mais importantes corpos que orbitavam o
Sol... e estariam vivendo, de forma permanente, em pelo menos um
deles.
Os raios do Sol que acabara de nascer brilhavam nos fiapos de
vapor que emergiam de rachaduras na lava, e o dr. Kaleer se
lembrou das névoas matutinas que se acumulavam no Labirinto da
Noite. Sim, era fácil imaginar que já estivesse em Marte, com
colegas de meia dúzia de países. Desta vez nenhuma nação queria
(ou, de fato, podia) ir sozinha.
Ele estava voltando ao helicóptero quando algum
pressentimento, algum movimento entrevisto pelo canto do olho, o
fez parar. Intrigado, lançou o olhar de volta para a cratera; isso foi
um pouco antes de pensar em olhar para o céu.
Então, Mohan Kaleer percebeu, tal como Helena Lyakhov o fez
nesse mesmo momento, que a história como os homens a
conheceram havia chegado ao fim. Os monstros reluzentes
navegando além das nuvens, mais quilômetros acima de sua
cabeça do que ele se atrevia a adivinhar, faziam o pequeno enxame
de espaçonaves lá em cima, em Lagrange, parecerem tão primitivas
quanto canoas de tronco. Por um momento que pareceu durar para
sempre, Mohan assistiu, da mesma forma que todo o planeta estava
fazendo, as grandes naves que desciam em sua avassaladora
grandiosidade.
Não lamentou que o trabalho de uma vida tivesse se perdido.
Batalhara para levar os homens às estrelas e, em seu momento de
triunfo, as estrelas, distantes e indiferentes, tinham vindo até eles.
Este era o momento em que a história prendia a respiração, e o
presente se destacava do passado da mesma forma que um iceberg
se rompe dos despenhadeiros gelados que lhe dão origem para
navegar pelo oceano, solitário e orgulhoso. Tudo o que as eras
passadas haviam conquistado era, agora, como nada. Um único
pensamento se repetia na mente de Mohan:
“A raça humana não estava mais só”.
Publicado pela primeira vez na revista Famous Fantastic Mysteries,
em abril de 1950. Reunido na antologia The Sentinel.
Escrito originalmente em 1946, Anjo da guarda foi recusado por
John W. Campbell, editor da Astounding. Após diversas outras
negativas, meu agente, Scott Meredith, pediu a James Blish que
reescrevesse a história, o que ele fez acrescentando um novo final,
depois do quê o conto foi vendido para a Famous Fantastic
Mysteries. Eu achei que o novo desfecho era muito bom, mas não
soube dele por muito tempo. Isso foi uma travessura de Scott. Mais
tarde, em 1952, Anjo da guarda foi expandido para se tornar a Parte
1 – A Terra e os Senhores Supremos – de O fim da infância.
ANJO DA GUARDA1
Pieter Van Ryberg tremeu, como sempre fazia, ao entrar no
escritório de Stormgren. Olhou para o termostato e encolheu os
ombros, numa paródia de resignação.
– Sabe, chefe – disse ele –, embora eu vá lamentar a sua perda,
é bom saber que a taxa de morte por pneumonia cairá em breve.
– E como você sabe? – Stormgren sorriu. – O próximo
Secretário-geral poderá bem ser um esquimó. Quanto alarde
algumas pessoas fazem por causa de uns poucos graus
centígrados!
Van Ryberg riu e andou até a janela dupla em curva. Ele ficou
parado e em silêncio por um momento, olhando para a avenida de
grandes edifícios brancos, ainda parcialmente incompletos.
– Bem – disse ele, com uma súbita mudança de tom –, você vai
recebê-los?
– Sim, acho que vou. Geralmente evita problemas no longo
prazo.
De repente, Van Ryberg enrijeceu e grudou o rosto no vidro.
– Estão aqui! – disse. – Estão vindo pela Avenida Wilson. Não
tantos quanto eu esperava... diria que cerca de dois mil.
Stormgren foi até o lado do Secretário-assistente. A um
quilômetro dali, uma multidão pequena, porém determinada,
carregava cartazes pela avenida, em direção ao Edifício do Quartel-
General. Agora ele podia ouvir, mesmo com o isolamento acústico, o
som funesto das vozes entoando palavras de ordem. Sentiu uma
onda de repugnância percorrer seu corpo. Com certeza o mundo já
estava farto de turbas em marcha e slogans furiosos!
A multidão agora estava diante do prédio: devia saber que ele
estava olhando, pois cá e lá havia punhos cerrados agitando-se no
ar. Eles não o desafiavam, embora o gesto tivesse a intenção de ser
visto por ele. Como pigmeus que pudessem ameaçar um gigante, os
punhos irados erguiam-se contra o céu, cerca de oitenta quilômetros
acima de sua cabeça.
“E muito provavelmente”, pensou Stormgren, “Karellen olhava
para baixo, para a coisa toda, e divertia-se enormemente.”
Esta era a primeira vez que Stormgren se reunia com o líder da
Liga da Liberdade. Ele ainda se perguntava se seria sábio fazê-lo.
Em última análise, só havia aceitado porque a Liga usaria qualquer
recusa como munição contra ele. O Secretário-geral sabia que o
abismo era largo demais para que qualquer acordo saísse dessa
reunião.
Alexander Wainwright era um homem alto mas levemente
encurvado, perto dos sessenta anos. Parecia inclinado a desculpar-
se pelos mais barulhentos de seus seguidores, e Stormgren foi pego
de surpresa por sua óbvia sinceridade e, também, por seu
considerável charme pessoal.
– Suponho – disse Stormgren – que o objetivo principal de sua
visita seja registrar um protesto formal contra o Esquema da
Federação. Estou certo?
– Este é meu objetivo principal, senhor secretário. Como sabe,
pelos últimos cinco anos temos tentado despertar a raça humana
para o perigo que a confronta. Devo admitir que, pelo nosso ponto
de vista, a resposta tem sido desapontadora. A grande maioria
parece satisfeita em permitir que os Senhores Supremos governem
o mundo como lhes apraz. Mas esta Federação Europeia é tão
intolerável quanto será inviável. Nem mesmo Karellen pode apagar
dois mil anos de história mundial com uma canetada.
– Então você considera – interrompeu Stormgren – que a
Europa, e todo o mundo, devem continuar indefinidamente divididos
em dezenas de Estados soberanos, cada um com sua própria
moeda, forças armadas, alfândegas, fronteiras e todo o resto
dessa... dessa parafernália medieval?
– Não tenho nada contra a federação como um objetivo final,
embora alguns de meus apoiadores possam discordar. Meu ponto é
que ela deve vir de dentro, não ser imposta de fora. Temos de
resolver nosso próprio destino... Temos o direito à independência.
Não deve mais haver interferências nos assuntos humanos!
Stormgren suspirou. Tudo isso ele já havia ouvido uma centena
de vezes antes, e sabia que só tinha a oferecer as velhas respostas
que a Liga da Liberdade tinha se recusado a aceitar. Ele tinha fé em
Karellen, e eles, não. Essa era a diferença fundamental, e não havia
nada que ele pudesse fazer a respeito. Por sorte, não havia nada
que a Liga pudesse fazer, também.
– Deixe-me fazer algumas perguntas – disse ele. – Você nega
que os Senhores Supremos trouxeram segurança, paz e
prosperidade ao mundo?
– É verdade. Mas eles tiraram nossa liberdade. Nem só de pão...
– Vive o homem. Sim, eu sei... Mas esta é a primeira época em
que todo homem tem certeza de conseguir pelo menos isso. De
qualquer maneira, que liberdade perdemos comparada à que os
Senhores Supremos nos deram, pela primeira vez na história
humana?
– Liberdade para controlar nossas vidas, sob a orientação de
Deus.
Stormgren balançou a cabeça.
– No mês passado, quinhentos bispos, cardeais e rabinos
assinaram uma declaração conjunta, comprometendo-se a apoiar as
políticas do Supervisor. As religiões do mundo estão contra você.
– Porque muito poucas pessoas percebem o perigo. Quando se
derem conta, poderá ser tarde demais. A humanidade terá perdido a
iniciativa e se tornado uma raça de vassalos.
Stormgren não parecia ouvir. Observava a multidão lá embaixo,
movendo-se sem rumo, agora que havia perdido o líder. Quanto
tempo, perguntou-se, até que o homem deixasse de abandonar a
razão e a identidade quando mais que uns poucos se reuniam?
Wainwright podia ser um homem sincero e honesto, mas não se
poderia dizer o mesmo de muitos de seus seguidores.
Stormgren retornou ao visitante.
– Dentro de três dias vou me reunir com o Supervisor
novamente. Explicarei suas objeções a ele, já que é meu dever
representar as opiniões do mundo. Mas isso não mudará nada.
Um tanto lentamente, Wainwright recomeçou.
– Isso me traz a outro ponto. Uma de nossas principais objeções
aos Senhores Supremos, você sabe, é seu sigilo. Você é o único ser
humano que já falou com Karellen... e nem mesmo você jamais o
viu. É de surpreender que muitos de nós tenhamos suspeitas quanto
aos motivos dele?
– Você ouviu seus discursos. Eles não são convincentes o
bastante?
– Francamente, palavras não bastam. Não sei o que causa mais
ressentimento... a onipotência de Karellen ou sua ocultação.
Stormgren ficou quieto. Não havia nada que ele pudesse
responder – nada, de qualquer modo, que fosse convencer o outro.
Ele, às vezes, se perguntava se havia, de fato, convencido a si
mesmo.
Era, obviamente, apenas uma operação muito pequena, do ponto
de vista deles, mas, para a Terra, era o maior acontecimento de
todos os tempos. Não houvera nenhum aviso, mas uma grande
sombra caíra, repentinamente, sobre duas dezenas das maiores
cidades do mundo. Erguendo os olhos de suas mesas de trabalho,
um milhão de homens viu, naquele instante de gelar o coração, que
a raça humana não estava mais só.
As vinte naves eram símbolos inquestionáveis de uma ciência
que o Homem não poderia ter a esperança de igualar por séculos.
Por sete dias elas flutuaram, imóveis, sobre suas cidades, sem dar a
entender que sabiam de sua existência. Mas não era preciso: não
seria apenas por coincidência que as poderosas naves teriam
parado tão precisamente sobre Nova York, Londres, Paris, Moscou,
Camberra, Roma, Cidade do Cabo, Tóquio...
Antes mesmo do fim dos dias inesquecíveis, alguns homens
haviam adivinhado a verdade. Não se tratava de uma primeira
tentativa de contato por parte de uma raça que não sabia nada do
Homem. Dentro das naves silenciosas e imóveis, mestres
psicólogos estudavam as reações da humanidade. Quando a curva
de tensão atingisse o pico, eles agiriam.
E no oitavo dia, Karellen, Supervisor da Terra, fez-se conhecer
pelo mundo; em inglês impecável. Mas o conteúdo do discurso foi
ainda mais surpreendente que a forma. Por quaisquer padrões, era
a obra de um gênio insuperável, mostrando um domínio completo e
absoluto dos assuntos humanos.
Não poderia haver nenhuma dúvida de que sua erudição e
virtuosismo, os vislumbres tentadores de um conhecimento ainda
inexplorado, tinham sido deliberadamente concebidos para
convencer a humanidade de que estava na presença de um poder
intelectual esmagador. Quando Karellen terminou, as nações da
Terra souberam que seus dias de soberania precária estavam
acabando. Os governos locais, internos, ainda conservariam seus
poderes, mas, no campo mais amplo dos assuntos internacionais,
as decisões supremas haviam abandonado as mãos humanas.
Discussões, protestos, tudo era inútil. Nenhuma arma seria capaz
de tocar os gigantes soturnos, e mesmo se pudessem, a queda das
naves destruiria por completo as cidades abaixo. Da noite para o
dia, a Terra havia se tornado um protetorado de algum obscuro
império estelar, além da compreensão humana.
Em pouco tempo o tumulto passou, e o mundo voltou a tratar de
seus assuntos. A única mudança que um Rip Van Winkle
subitamente despertado notaria era a expectativa reprimida, uma
atitude mental de apreensão, enquanto a humanidade aguardava
que os Senhores Supremos se mostrassem e descessem de suas
naves brilhantes.
Cinco anos mais tarde, ainda aguardava.
A sala era pequena e, exceto por uma única cadeira e pela mesa,
sob a tela do visor, não estava mobiliada. Como era a intenção,
nada dizia a respeito das criaturas que a haviam construído. Havia
uma única entrada, que conduzia diretamente à escotilha no flanco
recurvado da grande nave. Pela escotilha apenas Stormgren,
apartado de todos os homens vivos, já havia entrado para se reunir
com Karellen, Supervisor da Terra.
A tela do visor estava vazia agora, como sempre estivera. Atrás
daquele retângulo de trevas havia um mistério absoluto – mas
também afeição, e uma compreensão imensa e tolerante da
humanidade. Uma compreensão que, Stormgren sabia, só poderia
ter sido adquirida por meio de séculos de estudo.
Da grade oculta veio a voz calma e nunca apressada, com seu
tom implícito de humor – a que Stormgren conhecia tão bem,
embora o mundo só a tivesse ouvido três vezes na história.
– Sim, Rikki, eu estava ouvindo. O que pensa do sr. Wainwright?
– É um homem honesto, a despeito do que sejam seus
seguidores. O que vamos fazer com ele? A Liga em si não é
perigosa, mas alguns de seus extremistas estão pregando a
violência abertamente. Andei me perguntando se deveria pôr uma
guarda na minha casa. Mas espero que não seja preciso.
Karellen fugiu do assunto com o jeito irritante que, às vezes,
tinha.
– Os detalhes da Federação Mundial já foram divulgados há um
mês. Houve um aumento substancial nos sete por cento que não me
aprovam, ou nos nove por cento de indecisos?
– Ainda não, a despeito das reações na imprensa. O que me
preocupa é um sentimento generalizado, mesmo entre seus
simpatizantes, de que já é hora dessa reclusão acabar.
O suspiro de Karellen foi tecnicamente perfeito, embora, de
alguma forma, lhe faltasse convicção.
– Você sente a mesma coisa, não é?
A pergunta era tão retórica que Stormgren não se deu ao
trabalho de responder.
– Você realmente compreende – prosseguiu, sem meias palavras
– como este estado de coisas dificulta meu trabalho?
– Não que ajude o meu – replicou Karellen, com certo vigor. –
Gostaria que as pessoas parassem de pensar em mim como um
ditador e se lembrassem de que sou apenas um funcionário público,
tentando pôr em prática uma política colonial um tanto idealista.
– Não pode pelo menos nos dar alguma razão para a sua
reclusão? Porque não conseguimos entendê-la, ela nos aborrece e
gera todo tipo de boato.
Karellen deu aquela sua gargalhada, intensa e profunda, um
pouco musical demais para ser completamente humana.
– O que acham que sou agora? A teoria do robô ainda é a
principal? Preferiria ser uma massa de engrenagens a rastejar pelo
chão feito uma centopeia, como alguns tabloides parecem imaginar.
Stormgren soltou um palavrão finlandês que tinha uma boa
certeza de que Karellen não reconheceria – embora nunca fosse
possível estar absolutamente certo nessas questões.
– Você não pode levar isso a sério?
– Meu caro Rikki – Karellen retrucou –, é só por não levar a raça
humana a sério que consigo manter os fragmentos que ainda
possuo de meus outrora consideráveis poderes mentais.
Mesmo sem querer, Stormgren sorriu.
– Isso não me ajuda muito, não é? Tenho que descer lá e
convencer meus semelhantes de que, embora você não vá se
mostrar, não tem nada a esconder. Não é trabalho fácil. A
curiosidade é uma das características humanas mais marcantes.
Não vai poder afrontá-la para sempre.
– De todos os problemas com que nos defrontamos quando
viemos para a Terra, esse foi o mais difícil – admitiu Karellen. –
Vocês têm confiado em nossa sabedoria em outros assuntos. Com
certeza também podem confiar em nós neste!
– Eu confio em vocês – disse Stormgren –, mas Wainwright não,
nem os simpatizantes dele. Pode realmente culpá-los se interpretam
mal sua relutância em se mostrar?
– Ouça, Rikki – Karellen respondeu, por fim. – Essas questões
estão além do meu controle. Acredite-me, lamento a necessidade
dessa reclusão, mas os motivos são... suficientes. No entanto,
tentarei obter uma declaração de meu superior que poderá
satisfazer a você e, talvez, aplacar a Liga da Liberdade. Agora, por
favor, podemos voltar à pauta e recomeçar a gravação? Só
chegamos ao item 23, e quero ter um desempenho melhor que o de
meus predecessores dos últimos milhares de anos em resolver a
questão do meio...
– Teve sorte, chefe? – perguntou Van Ryberg, ansioso.
– Não sei – respondeu, cansado, Stormgren, enquanto atirava as
pastas de arquivo sobre a escrivaninha e se deixava cair na cadeira.
– Karellen está consultando o superior dele agora, seja quem, ou o
quê, for. Não quis fazer promessas.
– Escute – disse Pieter, abruptamente –, acabo de pensar em
algo. Que motivo temos para acreditar que haja alguém além de
Karellen? Os Senhores Supremos podem ser um mito. Você sabe
como ele odeia o título.
Cansado como estava, Stormgren endireitou-se abruptamente na
cadeira.
– É uma teoria engenhosa, mas entra em choque com o pouco
que sabemos do passado de Karellen.
– E quanto é isso?
– Bem, ele era um professor de astropolítica em um planeta
chamado Skyrondel, e resistiu o máximo que pôde antes que lhe
impusessem este serviço. Ele finge detestá-lo, mas na verdade
gosta do que faz.
Stormgren fez uma breve pausa, e um sorriso bem-humorado
suavizou suas feições enrugadas.
– De qualquer modo, certa vez ele disse que administrar um
zoológico particular é uma boa diversão.
– Hummm. Um cumprimento um tanto ambíguo. Ele é imortal,
não é?
– Sim, de certo modo, embora haja algo, milhares de anos
adiante, que parece temer. Não consigo imaginar o que seja. E isso
realmente é tudo o que sei sobre ele.
– Ele pode ter inventado isso. Minha teoria é que a flotilha dele
se perdeu no espaço e está procurando um novo lar. Não quer que
a gente saiba que seus camaradas são poucos. Talvez todas as
outras naves sejam automáticas, e não haja ninguém nelas. Talvez
seja apenas uma fachada imponente.
– Você – disse Stormgren – anda lendo ficção científica demais
durante o trabalho.
Van Ryberg sorriu sem graça.
– A “Invasão do Espaço” não saiu exatamente como o previsto,
não é? Minha teoria certamente explicaria por que Karellen nunca
se mostra. Não quer que a gente saiba que não há Senhores
Supremos.
Stormgren sacudiu a cabeça, discordando, bem-humorado.
– A sua explicação, como quase sempre, é engenhosa demais
para ser verdade. Embora só possamos inferir sua existência, deve
haver uma grande civilização por trás do Supervisor. E uma que
sabe a respeito da humanidade há muito tempo. O próprio Karellen
deve ter nos estudado por séculos. Veja o seu domínio do inglês,
por exemplo. Ele me ensinou a usar expressões idiomáticas!
– Às vezes, acho que ele foi um pouco longe demais – riu Van
Ryberg. – Você já descobriu qualquer coisa que ele não soubesse?
– Ah, sim, muitas vezes... mas só coisas triviais. No entanto,
tomados um de cada vez, não creio que seus dotes intelectuais
estejam muito além do alcance das conquistas humanas. Só que
nenhum homem poderia fazer todas as coisas que ele faz.
– Isso é mais ou menos o que já concluí – concordou Van
Ryberg. – Podemos discutir sobre Karellen para sempre, mas no
final sempre voltaremos à mesma pergunta: por que o diabo não se
mostra? Até que ele o faça, vou continuar teorizando e a Liga da
Liberdade vai continuar berrando.
Ergueu um olho rebelde para o teto.
– Uma noite escura, sr. Supervisor, espero que um repórter
pegue um foguete para sua nave e suba pela porta dos fundos com
uma câmera. Que furo isso seria!
Se Karellen estava escutando, não deu sinal. Mas, é claro, nunca
dava.
Estava completamente escuro quando Stormgren acordou. No
início, sentia tanto sono que não se deu conta de como isso era
estranho. Então, quando a consciência plena retornou, sentou-se
com um sobressalto e procurou o interruptor ao lado da cama.
Na escuridão, sua mão encontrou uma parede de pedra nua, fria
ao toque. Imobilizou-se de imediato, a mente e o corpo paralisados
pelo impacto do inesperado. Então, mal acreditando em seus
sentidos, ajoelhou-se na cama e começou a explorar, com a ponta
dos dedos, a parede tão surpreendentemente desconhecida.
Fazia isso há apenas um momento quando ouviu um clique
repentino e parte da escuridão deslizou para o lado. Viu, de relance,
a silhueta de um homem contra um fundo de luz fraca. Em seguida,
a porta tornou a se fechar e a escuridão voltou. Aconteceu tão
depressa que não teve chance de ver nada do aposento em que se
encontrava.
Um instante depois, foi ofuscado pela luz intensa de uma
lanterna elétrica. O feixe de luz passou sobre seu rosto, fixou-se
nele por um instante e, em seguida, desceu para iluminar toda a
cama, que era, ele via agora, nada mais que um colchão apoiado
em tábuas rústicas.
Da escuridão, uma voz suave dirigiu-se a ele em um inglês
excelente, mas com um sotaque que Stormgren, a princípio, não
conseguiu identificar.
– Ah, sr. Secretário. Fico satisfeito em vê-lo acordado. Espero
que se sinta bem.
As perguntas indignadas que estivera a ponto de fazer morreram
em seus lábios. Cravou os olhos na escuridão e retorquiu
calmamente:
– Por quanto tempo estive inconsciente?
– Vários dias. Prometeram-nos que não haveria efeitos
colaterais. É bom ver que era verdade.
Em parte para ganhar tempo, em parte para testar as próprias
reações, Stormgren girou as pernas para fora da cama. Ainda vestia
as roupas de dormir, mas estavam bem amarrotadas e pareciam ter
acumulado uma sujeira considerável. Ao se mexer, sentiu uma
ligeira tontura. Não o bastante para ser desagradável, mas o
suficiente para convencê-lo de que, de fato, tinha sido drogado.
A oval de luz deslizou pelo aposento e, pela primeira vez,
Stormgren teve uma ideia de suas dimensões. Compreendeu que
estava debaixo do solo, talvez a uma grande profundidade. E, se
estivera inconsciente por vários dias, podia estar em qualquer parte
da Terra.
A lanterna iluminou uma pilha de roupas dobradas sobre um
caixote.
– Essas roupas devem bastar ao senhor – disse a voz, na
escuridão. – O serviço de lavanderia é um tanto problemático aqui,
de modo que apanhamos alguns dos seus ternos e meia dúzia de
camisas.
– Isso – disse Stormgren, sem humor – foi muita consideração de
sua parte.
– Sentimos muito pela ausência de mobília e de luz elétrica. Este
lugar é conveniente, mas deixa a desejar em conforto.
– Conveniente para quê? – perguntou Stormgren, enquanto se
enfiava em uma camisa. A sensação do tecido familiar em seus
dedos era estranhamente tranquilizadora.
– Apenas... conveniente – disse a voz. – E, a propósito, já que é
provável que passemos um bom tempo juntos, pode me chamar de
Joe.
– Apesar da sua nacionalidade? – retrucou Stormgren. – Você é
polonês, não é? Acho que seria capaz de pronunciar seu nome
verdadeiro. Não pode ser pior do que muitos nomes finlandeses.
Houve uma pequena pausa, e a luz oscilou por um instante.
– Bem, eu devia ter esperado por isso – disse Joe, conformado. –
Deve ter bastante prática nesse tipo de coisa.
– É um passatempo útil para um homem em minha posição.
Suponho que você nasceu na Polônia, e aprendeu inglês na Grã-
Bretanha durante a Guerra? Imagino que tenha ficado um bom
tempo na Escócia, pelo jeito que pronuncia os erres.
– Isso – disse Joe, com firmeza – é mais do que o suficiente.
Como parece que já terminou de se vestir... Obrigado.
As paredes ao redor, embora aqui e ali revestidas de concreto,
eram, no geral, rocha nua. Ficou claro para Stormgren que estava
em uma mina abandonada, e dificilmente poderia imaginar uma
prisão mais eficaz. Até então, a ideia de ter sido vítima de sequestro
não chegara, por algum motivo, a preocupá-lo demais. Tinha
imaginado que, o que quer que acontecesse, os recursos imensos
do Supervisor em breve o localizariam e resgatariam. Agora, já não
estava tão certo. Devia existir um limite até mesmo para os poderes
de Karellen e, se de fato estivesse enterrado em algum continente
remoto, toda a ciência dos Senhores Supremos poderia ser incapaz
de rastreá-lo.
Havia outros três homens sentados à mesa na sala simples, mas
intensamente iluminada. Ergueram os olhos com interesse e uma
boa dose de respeito, enquanto Stormgren entrava. Joe era, de
longe, o personagem mais interessante – e não apenas pelo
tamanho. Os demais eram indivíduos comuns, provavelmente
europeus também. Ele seria capaz de determinar seus locais de
origem quando falassem.
– Bem – disse ele, com voz neutra –, agora, talvez, vocês me
digam do que se trata, e o que esperam obter com isso.
Joe pigarreou.
– Quero deixar uma coisa clara – disse ele. – Isso não tem nada
a ver com Wainwright. Ele vai ficar tão surpreso quanto o resto do
mundo.
Stormgren tinha esperado por isso. Dava-lhe pouca satisfação
confirmar a existência de um movimento extremista dentro da Liga
da Liberdade.
– Só por curiosidade – ele disse –, como foi que me
sequestraram?
Não tinha muita esperança de que contassem, e foi com certo
espanto que recebeu a boa vontade, até mesmo o entusiasmo, com
que o outro respondeu.
– Foi como num dos velhos filmes de Fritz Lang – disse Joe,
esfuziante. – Não tínhamos certeza se Karellen mantinha você sob
vigilância, por isso tomamos algumas precauções um tanto
complexas. O senhor foi nocauteado por um gás no ar-
condicionado. Fácil. Em seguida, foi levado para o carro. Moleza.
Tudo isso, devo dizer, não foi feito por nenhum dos nossos.
Contratamos... profissionais para o serviço. Karellen talvez os
pegue. De fato, deve pegar. Mas não vai descobrir nada. Quando
saiu da sua casa, o carro entrou num longo túnel, a menos de mil
quilômetros de Nova York. Voltou a sair, no tempo esperado, na
outra extremidade, ainda transportando um homem drogado e muito
parecido com o Secretário-geral. Quase ao mesmo tempo, um
grande caminhão carregado de caixas metálicas saiu do túnel na
direção oposta e dirigiu-se para o aeroporto onde as caixas foram
carregadas em um cargueiro. Enquanto isso, o carro que realmente
havia feito o serviço prosseguiu, em uma série de manobras
evasivas, rumo à fronteira canadense. Quem sabe, Karellen já o
tenha apanhado. Não sei.
– Como vê – continuou Joe –, e espero que aprecie minha
franqueza, todo o nosso plano dependia de uma única coisa. Temos
uma boa certeza de que Karellen pode ver e ouvir tudo o que
acontece na superfície da Terra. Mas, a menos que use magia, e
não ciência, não pode ver debaixo dela. Dessa forma, não vai saber
da transferência dentro do túnel. É claro que assumimos um risco,
mas houve também uma ou duas etapas em sua remoção de que
não falarei agora. Podemos querer usá-las de novo, e seria uma
pena entregá-las.
Joe narrara toda a história com um prazer tão evidente que
Stormgren teve dificuldade em sentir a fúria apropriada. No entanto,
também se sentia muito perturbado. O plano fora engenhoso, e
parecia mais que provável que, qualquer que fosse a guarda que
Karellen mantivesse sobre ele, ela tivesse sido enganada pela finta.
O polonês observava as reações de Stormgren de perto. Ele teria
de parecer confiante, quaisquer que fossem seus sentimentos reais.
– Vocês devem ser uns tontos – disse Stormgren, fazendo pouco
caso – se acham que podem enganar os Senhores Supremos
assim, tão fácil. De qualquer modo, que benefício isso pode trazer?
Joe lhe ofereceu um cigarro, que Stormgren recusou, e, em
seguida, acendeu um.
– Os nossos motivos – começou – são óbvios. Constatamos que
discutir é inútil, então tivemos que tomar outras medidas. Karellen,
quaisquer que sejam os poderes que tenha, não vai achar fácil lidar
conosco. Estamos dispostos a lutar pela nossa independência. Não
me entenda mal. Não vai ser nada violento... no começo, pelo
menos. Mas os Senhores Supremos têm que empregar agentes
humanos, e nós podemos tornar a vida deles bem desconfortável.
“Começando comigo, pelo jeito”, pensou Stormgren.
– Que pretendem fazer comigo? – perguntou, por fim. – Sou um
refém, ou o quê?
– Não se preocupe. Vamos cuidar do senhor. Esperamos
algumas visitas daqui a um ou dois dias e, até lá, procuraremos
hospedá-lo o melhor que pudermos.
Acrescentou algumas palavras em seu próprio idioma, e um dos
outros tirou do bolso um baralho novinho.
– Compramos este especialmente para o senhor – explicou Joe.
– Sua voz tornou-se subitamente grave. – Espero que tenha
bastante dinheiro vivo – ele disse, ansioso. – Afinal, dificilmente
poderíamos aceitar cheques.
Chocado, Stormgren encarou, inexpressivo, seus captores. E
então ocorreu-lhe, de repente, que todas as responsabilidades e
preocupações do cargo haviam evaporado de seus ombros. O que
quer que acontecesse, não havia absolutamente nada que pudesse
fazer a respeito. E agora, estes fantásticos criminosos queriam jogar
pôquer com ele.
De modo abrupto, jogou a cabeça para trás e riu como não fazia
há anos.
Nos três dias seguintes, Stormgren analisou seus captores com
certa profundidade. Joe era o único que tinha alguma importância,
os outros eram nulidades: a gentalha que se poderia esperar na
periferia de qualquer movimento ilegal.
Joe era uma pessoa mais complexa, de modo geral, embora às
vezes lembrasse a Stormgren um bebê gigante. As intermináveis
partidas de pôquer eram entremeadas de violentas discussões
políticas, mas logo ficou claro para Stormgren que o enorme
polonês jamais pensara a fundo na causa pela qual estava lutando.
A emoção e o conservadorismo extremo nublavam todas as suas
opiniões. A longa batalha de seu país pela independência o
condicionara tão completamente que ele ainda vivia no passado.
Era um curioso atavismo, uma dessas pessoas que jamais veriam
graça em uma vida normal. Quando o seu tipo desaparecesse, se é
que isso se daria, o mundo seria um lugar mais seguro, mas menos
interessante.
Havia poucas dúvidas agora, pelo menos para Stormgren, de que
o Supervisor não conseguira localizá-lo. Não se surpreendeu
quando, cinco ou seis dias após sua captura, Joe lhe disse que
esperasse visitas. Já há algum tempo que o pequeno grupo vinha
mostrando um nervosismo crescente, e o prisioneiro adivinhou que
os líderes do movimento, tendo visto que a barra estava limpa,
finalmente viriam apanhá-lo.
Já estavam aguardando, reunidos ao redor da mesa precária,
quando Joe, educadamente, fez um sinal para que viesse até a sala
de estar. Os três capangas haviam desaparecido, e o próprio Joe
parecia um tanto contido. Stormgren, de imediato, pôde ver que
agora se defrontava com homens de calibre muito maior. Havia
força intelectual, determinação férrea e inflexibilidade nestes seis
homens. Joe e seus colegas eram inofensivos. Ali estavam os
verdadeiros cérebros da organização.
Com um breve aceno de cabeça, Stormgren se dirigiu a uma
cadeira e tentou aparentar calma. Enquanto se aproximava, o
homem idoso e atarracado, no lado oposto da mesa, inclinou-se
para a frente e encarou-o com olhos cinzentos e penetrantes. Eles
deixaram Stormgren tão pouco à vontade que ele falou primeiro,
coisa que não pretendera fazer.
– Suponho que tenham vindo discutir as condições. De quanto é
o meu resgate?
Percebeu que, ao fundo, alguém tomava nota de suas palavras
em um caderno de taquigrafia. Tudo muito profissional.
O líder respondeu com um sotaque galês cadenciado.
– Pode pôr as coisas nesses termos, sr. Secretário-geral. Mas
estamos interessados em informações, não em dinheiro. O senhor
conhece nossos motivos. Pode nos chamar de um movimento de
resistência, se quiser. Acreditamos que, cedo ou tarde, a Terra terá
que lutar pela independência. Sequestramos o senhor, em parte,
para mostrar a Karellen que não estamos de brincadeira e que
somos bem organizados, mas principalmente porque o senhor é o
único homem que pode nos dizer algo sobre os Senhores
Supremos. O senhor é um homem razoável, sr. Stormgren. Coopere
conosco, e poderá recuperar a sua liberdade.
– Exatamente o que desejam saber? – perguntou Stormgren,
cauteloso.
– O senhor sabe quem, ou o quê, os Senhores Supremos
realmente são?
Stormgren quase sorriu.
– Pode me acreditar – disse –, estou tão ansioso quanto vocês
para descobrir isso.
– Então, vai responder às nossas perguntas?
– Não prometo nada. Mas pode ser que sim.
Houve um tênue suspiro de alívio, vindo de Joe, e um ruge-ruge
de antecipação passou pela sala.
– Temos uma ideia geral – prosseguiu o outro – das
circunstâncias em que o senhor se reúne com Karellen. Mas
gostaríamos que as descrevesse minuciosamente, sem deixar de
fora nada de importante.
Aquilo parecia bastante inofensivo, pensou Stormgren. Já o fizera
muitas vezes antes, e daria a impressão de que estava cooperando.
Stormgren apalpou os bolsos e retirou um lápis e um envelope
velho. Esboçando rapidamente, ao mesmo tempo em que falava,
começou:
– Sabem, é claro, que uma pequena máquina voadora, sem
nenhum meio visível de propulsão, vem me buscar em intervalos
regulares e me leva para a nave de Karellen. Há somente uma
pequena sala na máquina, e é bem vazia, exceto por uma poltrona e
uma mesa. A disposição é mais ou menos esta.
Enquanto Stormgren falava, tinha a sensação de que sua mente
estava operando em dois níveis ao mesmo tempo. Por um lado,
tentava desafiar os homens que o capturaram, ainda que, por outro,
tivesse a esperança de que pudessem ajudá-lo a desvendar o
segredo de Karellen.
O galês conduziu a maior parte do interrogatório. Era fascinante
ver aquela mente ágil tentar uma abertura depois da outra, testando
e rejeitando todas as teorias que o próprio Stormgren abandonara
há tanto tempo. Então, jogou-se para trás com um suspiro.
– Não estamos chegando a lugar nenhum – ele disse, resignado.
– Queremos mais fatos, e isso significa ação, não discussão. – Os
olhos penetrantes fitavam Stormgren, pensativos. Por um minuto,
tamborilou nervosamente na mesa: era o primeiro sinal de indecisão
que Stormgren notava. Depois, prosseguiu:
– Estou um pouco surpreso, sr. Secretário, que nunca tenha feito
nenhum esforço para saber mais sobre os Senhores Supremos.
– O que sugere? – perguntou Stormgren friamente, tentando
disfarçar seu interesse. – Já lhe disse que há apenas um modo de
sair do aposento em que falo com Karellen, e que leva direto para a
escotilha.
– Pode ser viável – refletiu o outro – projetar instrumentos que
nos ajudem a descobrir algo. Não sou cientista, mas podemos
investigar o assunto. Se lhe dermos a liberdade, o senhor estaria
disposto a nos ajudar em um plano assim?
– De uma vez por todas – disse Stormgren, zangado –, quero
deixar a minha posição perfeitamente clara. Karellen está
trabalhando por um mundo unido, e não farei nada para ajudar seus
inimigos. Não sei quais são seus planos finais, mas acredito que
sejam bons. Vocês podem incomodá-lo, vocês podem até atrasar a
conquista de seus objetivos, mas nada disso fará diferença no final.
Vocês podem ser sinceros nas crenças que têm: posso entender
seu temor de que as tradições e culturas dos pequenos países
serão esmagadas quando o Estado Mundial chegar. Mas vocês
estão enganados: é inútil agarrar-se ao passado. Mesmo antes de
os Senhores Supremos chegarem à Terra, o Estado soberano
estava moribundo. Ninguém pode salvá-lo agora, e ninguém deveria
tentar.
Não houve resposta. O homem do outro lado da mesa não se
mexeu nem falou. Ficou sentado, com os lábios entreabertos, os
olhos, agora, sem vida e cegos. Ao seu redor, os outros estavam
igualmente imóveis, congelados em posições forçadas e anormais.
Com um grito sufocado de puro horror, Stormgren levantou-se e
recuou em direção à porta. Enquanto o fazia, o silêncio foi
subitamente quebrado:
– Um belo discurso, Rikki. Obrigado. Agora, acho que podemos
ir.
– Karellen! Graças a Deus! Mas o que foi que você fez?
– Não se preocupe, está tudo bem com eles. Pode chamar de
paralisia, mas é muito mais sutil do que isso. Estão simplesmente
vivendo mil vezes mais lentamente do que o normal. Quando
tivermos ido, nunca vão saber o que aconteceu.
– Vai deixá-los aqui até a polícia chegar?
– Não. Tenho um plano muito melhor. Vou deixar que partam.
Stormgren teve uma sensação de alívio que preferiu não analisar.
Lançou um olhar de despedida ao pequeno aposento e seus
ocupantes congelados. Joe estava sobre um pé só, olhando de
maneira tremendamente idiota para o nada. De repente, Stormgren
riu e remexeu nos bolsos.
– Obrigado pela hospitalidade, Joe – ele disse. – Acho que vou
deixar uma lembrança.
Mexeu nos pedacinhos de papel até encontrar os números que
desejava. Então, em uma folha razoavelmente limpa, escreveu, com
cuidado:
BANK OF MANHATTAN
Pagar a Joe a quantia de quinze dólares e trinta e cinco
centavos (US$ 15,35).
R. Stormgren.
Enquanto punha a tira de papel ao lado do polonês, a voz de
Karellen indagou:
– Exatamente o que está fazendo?
– Pagando uma dívida de honra. Os outros dois trapacearam,
mas acho que Joe jogou limpo.
Enquanto caminhava para a porta, sentia-se muito alegre e
despreocupado. Flutuando do lado de fora estava uma grande
esfera lisa de metal, que se moveu para o lado para deixá-lo passar.
Presumiu que fosse uma espécie de robô, o que explicava como
Karellen havia conseguido alcançá-lo através de sabe-se lá quantas
camadas de rocha acima.
– Siga direto em frente por uns cem metros – disse a esfera,
falando com a voz de Karellen. – Depois vire à esquerda até eu lhe
dar mais instruções.
Ele correu, ansioso, embora se desse conta de que não havia
necessidade de pressa. A esfera permaneceu suspensa no corredor
e Stormgren supôs que fosse o gerador do campo de paralisia.
Um minuto depois, encontrou uma segunda esfera, aguardando
por ele em uma bifurcação do corredor.
– Tem um quilômetro pela frente – disse ela. – Mantenha-se à
esquerda, até nos encontrarmos de novo.
Por seis vezes ele achou as esferas em seu caminho para o céu
aberto. A princípio imaginou se, de alguma forma, o primeiro robô
havia se adiantado a ele. Depois, concluiu que devia haver uma
cadeia, mantendo um circuito completo até as profundezas da mina.
Na entrada, um grupo de guardas formava uma inusitada natureza
morta, vigiada por ainda outra das ubíquas esferas. No declive da
colina, a alguns metros de distância, repousava a pequena máquina
voadora na qual Stormgren fizera todas as suas viagens até
Karellen.
Stormgren ficou piscando por um momento, à luz do Sol.
Enquanto entrava na pequena nave, teve um último vislumbre da
entrada da mina e dos homens congelados ao redor. De repente,
uma fileira de esferas de metal voou às pressas para fora da
abertura, como balas de canhão prateadas. Em seguida, a porta se
fechou às suas costas e, com um suspiro de alívio, ele afundou na
poltrona familiar.
Aguardou por um instante até ter recuperado o fôlego. Então,
pronunciou uma sílaba, única e sincera:
– Bem?
– Sinto muito não ter podido resgatá-lo antes. Mas você
compreende como era de extrema importância aguardar que todos
os líderes estivessem ali reunidos.
– Quer dizer – gaguejou Stormgren – que sabia onde eu estava o
tempo todo? Se eu achasse...
– Não seja tão precipitado – respondeu Karellen. – Pelo menos,
deixe-me acabar de explicar.
– É melhor que seja uma boa explicação – disse Stormgren, de
mau humor. Estava começando a suspeitar de que não passara de
uma isca em uma complexa armadilha.
– Já faz algum tempo que eu tenho um rastreador em você –
começou Karellen. – Embora seus ex-amigos estivessem corretos
em pensar que eu não poderia segui-lo debaixo da terra, fui capaz
de rastreá-lo até que o trouxessem para a mina. A transferência no
túnel foi engenhosa, mas, quando o primeiro carro deixou de reagir,
a jogada ficou clara e logo voltei a localizá-lo. Depois, foi só
aguardar. Sabia que uma vez que tivessem a certeza de que eu o
perdera, os líderes viriam até aqui e eu seria capaz de apanhá-los.
– Mas está deixando todos soltos!
– Até agora – disse Karellen – eu não tinha como saber quais,
dos dois bilhões de homens neste planeta, eram os verdadeiros
líderes da organização. Agora que foram localizados, posso seguir
seus movimentos em qualquer lugar da Terra. Isso é muito melhor
do que prendê-los. Estão efetivamente neutralizados, e sabem
disso.
A gargalhada profunda ecoou no diminuto compartimento.
– De certa maneira, toda a coisa foi uma comédia, mas com uma
finalidade séria. Será uma lição prática importante para outros
conspiradores.
Stormgren ficou em silêncio por um instante. Não estava
inteiramente satisfeito, mas compreendia o ponto de vista de
Karellen, e uma parte da sua raiva se evaporara.
– É uma pena ter que fazer isso nas minhas últimas semanas no
cargo – disse –, mas, de agora em diante, vou ter uma guarda na
minha casa. Pieter que seja sequestrado, da próxima vez. Aliás,
como ele tem se virado? A confusão é tão grande quanto eu
imagino?
– Você ficaria desapontado em saber o quanto foi pequeno o
efeito de sua ausência. Observei Pieter cuidadosamente durante a
última semana, e evitei ajudá-lo, de propósito. No geral, saiu-se
muito bem... Mas não é o homem para assumir o seu lugar.
– Sorte dele – disse Stormgren, ainda um tanto ressentido. – E já
recebeu uma resposta de seu superior, a respeito... a respeito de se
mostrar? Agora tenho a certeza de que esse é o mais forte
argumento dos seus inimigos. Vezes e vezes sem conta, eles
disseram-me: “Nunca vamos confiar nos Senhores Supremos até
podermos vê-los”.
Karellen deu um suspiro.
– Não. Não recebi nada. Mas sei qual deverá ser a resposta.
Stormgren não insistiu no assunto. Outrora ele poderia tê-lo feito,
mas agora, pela primeira vez, a sombra tênue de um plano
começava a se formar em sua mente. O que se recusara a fazer sob
coação, Stormgren poderia ainda tentar de livre e espontânea
vontade.
Pierre Duval não mostrou surpresa quando Stormgren entrou,
sem avisar, em seu escritório. Eram velhos amigos e não havia nada
de incomum em o Secretário-geral fazer uma visita pessoal ao
Diretor da Divisão de Ciência. Karellen certamente não acharia isso
estranho se, por acaso, voltasse sua atenção para este canto do
mundo.
Por algum tempo os amigos falaram de negócios e trocaram
fofocas políticas. Então, um tanto hesitante, Stormgren tocou no
assunto. À medida que seu visitante falava, o velho francês se
reclinava na cadeira e suas sobrancelhas subiam cada vez mais,
milímetro a milímetro, até quase se enroscarem na mecha de
cabelos que lhe caía sobre a testa. Uma ou duas vezes pareceu a
ponto de falar, mas acabou desistindo.
Quando Stormgren terminou, o cientista olhou, com nervosismo,
em volta da sala.
– Acha que ele está ouvindo? – perguntou.
– Não creio que possa. Este lugar é, supostamente, blindado
contra tudo, certo? Karellen não é mágico. Ele sabe onde estou,
mas isso é tudo.
– Espero que esteja certo. Mas, além disso, não vai haver
problema quando ele descobrir o que você está tentando fazer?
Porque ele vai, você sabe.
– Vou aceitar o risco. Além do mais, nós nos entendemos muito
bem.
O físico brincou com o lápis e ficou olhando para o nada por um
momento.
– É um problema muito interessante. Gosto dele – disse, sem
afetação. Em seguida, meteu-se em uma gaveta e tirou dela um
enorme bloco de notas, o maior que Stormgren já vira.
– Certo – disse, escrevinhando furiosamente. – Quero ter certeza
de que tenho todos os fatos. Conte tudo o que puder sobre a sala
em que vocês têm as reuniões. Não deixe nenhum detalhe de fora,
por mais trivial que pareça.
Por fim, o francês, de testa franzida, estudou suas anotações.
– E isso é tudo o que pode me dizer?
– Sim.
Duval bufou, descontente.
– E a iluminação? Ou você fica sentado no escuro? E quanto à
ventilação, o aquecimento...
Stormgren sorriu com a explosão típica.
– Todo o teto é luminoso e, pelo que sei, o ar vem pela tela do
alto-falante. Não sei por onde sai. Talvez a corrente se inverta às
vezes, mas nunca notei. Não há sinal de aquecedores, mas o lugar
está sempre numa temperatura normal. Quanto à máquina que me
leva à nave de Karellen, é tão sem graça quanto uma cabine de
elevador.
Houve vários minutos de silêncio enquanto o físico enfeitava o
bloco de notas com garranchos meticulosos e microscópicos.
Ninguém poderia dizer que, por trás da testa ainda quase sem
rugas, o melhor cérebro tecnológico do mundo trabalhava com a fria
precisão que o tornara famoso.
Então Duval balançou a cabeça para si mesmo, satisfeito,
inclinou-se para a frente e apontou o lápis para Stormgren.
– O que o faz pensar, Rikki – perguntou –, que a tela do visor de
Karellen, como você a chama, é mesmo o que parece ser? Não lhe
parece muito mais provável que a sua “tela de visor”, na verdade,
seja nada mais complexo que um espelho de um lado só?
Stormgren estava tão aborrecido consigo mesmo que ficou
calado por um momento, reconstituindo o passado. Desde o início,
jamais duvidara do que Karellen dizia... No entanto, agora que
olhava para trás... quando o Supervisor lhe dissera que usava um
sistema de televisão? Era uma simples suposição. Tudo não
passava de um embuste psicológico, e ele fora completamente
enganado. Tentou consolar-se com o pensamento de que, nas
mesmas circunstâncias, até Duval teria caído na armadilha.
– Se você estiver correto – disse Stormgren –, tudo o que tenho a
fazer é quebrar o vidro...
Duval deu um suspiro.
– Esses leigos em tecnologia! Acha que a tela é feita de algo que
você possa quebrar sem explosivos? E, mesmo que conseguisse,
qual a chance de Karellen respirar o mesmo ar que nós? Não seria
uma maravilha, para vocês dois, se ele viver numa atmosfera de
cloro?
Stormgren empalideceu.
– Bem, o que você sugere? – perguntou, um tanto exasperado.
– Quero pensar bem. Em primeiro lugar, temos que descobrir se
a minha teoria está correta e, se estiver, descobrir algo sobre o
material da tela. Vou pôr alguns dos meus melhores homens no
trabalho. A propósito, imagino que você leve uma maleta quando se
reúne com o Supervisor, certo? É essa mesma que você trouxe?
– Sim.
– É um tanto pequena. Você pode arrumar uma que tenha pelo
menos dez centímetros de espessura, e passar a usá-la de agora
em diante, para que ele se acostume a vê-la?
– Muito bem – disse Stormgren, soando duvidoso. – Quer que eu
leve um aparelho de raios X escondido?
O físico deu um sorriso irônico.
– Não sei ainda, mas vamos pensar em algo. Você vai ficar
sabendo daqui a um mês.
Deu uma pequena risada.
– Sabe o que tudo isso me faz lembrar?
– Sei – respondeu de pronto Stormgren. – A época em que você
construía aparelhos de rádio clandestinos, durante a ocupação
alemã.
Duval pareceu desapontado.
– Bem, acho que já toquei nesse assunto uma ou duas vezes.
Stormgren largou a pasta espessa, cheia de folhas
datilografadas, com um suspiro de alívio.
– Graças a Deus que isso está resolvido, enfim! – disse ele. – É
estranho pensar que estas centenas de páginas contêm o futuro da
Europa.
Deixou a pasta cair dentro da maleta, cuja superfície estava a
vinte centímetros do retângulo escuro da tela. De tempos em
tempos seus dedos percorriam os fechos, em uma reação nervosa
mais ou menos consciente, mas não tinha a intenção de apertar o
interruptor oculto até que a reunião estivesse terminada. Havia a
chance de que algo pudesse dar errado – embora Duval tivesse
jurado que não havia como Karellen detectar algo, era impossível ter
certeza.
– Agora, você disse que tinha novidades pra mim – prosseguiu
Stormgren, com uma ansiedade mal dissimulada. – É sobre...
– Sim – disse Karellen. – Recebi a decisão do Comitê de
Políticas algumas horas atrás, e estou autorizado a fazer uma
importante declaração. Não creio que a Liga da Liberdade vá ficar
muito satisfeita, mas deverá ajudar a reduzir a tensão. A propósito,
não vamos gravar isso.
– Você me disse com frequência, Rikki, que não importa o quanto
sejamos diferentes no aspecto físico, a raça humana logo se
acostumará conosco. Isso mostra uma falta de imaginação de sua
parte. Talvez fosse verdade no seu caso, mas não se esqueça de
que a maior parte do mundo ainda é inculta por quaisquer padrões
razoáveis, além de estar cheia de preconceitos e superstições, cuja
erradicação poderá levar mais cem anos.
– Você há de concordar que conhecemos um pouco de
psicologia humana. Sabemos, com bastante precisão, o que
aconteceria se nos revelássemos ao mundo em seu atual estágio de
desenvolvimento. Não posso entrar em detalhes, mesmo com você,
de modo que precisa aceitar minha análise na base da confiança.
Podemos, no entanto, fazer uma promessa definida, que deverá lhe
dar alguma satisfação. Em cinquenta anos, daqui a duas gerações,
vamos descer de nossas naves e a humanidade finalmente verá
como somos.
Stormgren ficou em silêncio por algum tempo, absorvendo as
palavras do Supervisor. Sentiu pouco da satisfação que a fala de
Karellen teria lhe proporcionado no passado. De fato, ficou um
pouco confuso com o sucesso parcial e, por um momento, sua
firmeza de propósito vacilou. A verdade viria com a passagem do
tempo, toda a conspiração era desnecessária e, quem sabe,
insensata. Se ainda fosse adiante, seria apenas pelo motivo egoísta
de que não estaria vivo em cinquenta anos.
Karellen devia ter percebido sua indecisão, pois prosseguiu:
– Sinto muito se isso o desaponta, mas pelo menos os problemas
políticos do futuro próximo não serão de sua responsabilidade.
Talvez você ainda ache que nossos temores são infundados, mas
acredite quando digo que temos provas convincentes do perigo de
qualquer outro curso.
Stormgren inclinou-se para a frente, respirando fundo.
– Eu sempre imaginei isso! Então já foram vistos pelo Homem!
– Eu não disse isso – respondeu Karellen, depois de uma pausa
curta. – O seu mundo não é o único que supervisionamos.
Karellen não se livraria de Stormgren tão facilmente.
– Há muitas lendas que sugerem que a Terra foi visitada no
passado por outras raças.
– Eu sei. Li o relatório da Divisão de Pesquisas Históricas. Faz a
Terra parecer a encruzilhada do Universo.
– Pode ter havido visitas sobre as quais vocês não sabem nada –
disse Stormgren, ainda jogando verde. – Mas, como vocês devem
estar nos observando há milhares de anos, creio que isso seja bem
improvável.
– Creio que seja – replicou Karellen, em seu tom menos solícito.
E, nesse momento, Stormgren tomou sua decisão.
– Karellen – disse ele, abrupto –, vou redigir a declaração e
enviá-la para que a aprove. Mas me reservo o direito de continuar a
infernizá-lo e, se vir alguma oportunidade, farei o possível para
descobrir o seu segredo.
– Estou perfeitamente ciente disso – replicou o Supervisor, com
uma ponta de riso.
– E não se importa?
– De modo algum. Embora trace os limites em bombas atômicas,
gás venenoso ou qualquer outra coisa que possa abalar a nossa
amizade.
Stormgren perguntou-se o que Karellen adivinhara, se é que
adivinhara alguma coisa. Por trás dos gracejos do Supervisor,
Stormgren reconhecera um tom de compreensão, quem sabe... e
quem poderia dizer?... até de incentivo.
– Fico feliz de saber – replicou Stormgren, com a voz mais
uniforme que conseguiu. Levantou-se, ao mesmo tempo em que
fechava a maleta. Seu polegar deslizou ao longo da lingueta. – Vou
redigir a declaração agora mesmo – repetiu –, e enviá-la ainda hoje
pelo teletipo.
Enquanto falava, apertou o botão... e viu que todos os seus
medos tinham sido infundados. Os sentidos de Karellen não eram
mais sutis do que os do Homem. O Supervisor não podia ter
detectado nada, pois não houve mudança alguma em sua voz
enquanto se despedia e pronunciava o código que abria a porta da
câmara.
Mesmo assim, Stormgren sentiu-se como um ladrão saindo de
uma loja de departamentos sob o olhar do segurança, e deu um
suspiro de alívio quando as portas da escotilha se fecharam às suas
costas.
– Admito – disse Van Ryberg – que algumas das minhas teorias
não deram muito certo. Mas me diga o que acha desta.
– Preciso mesmo? – suspirou Stormgren.
Pieter pareceu não ter notado.
– Na verdade, a ideia não é minha – disse ele, modesto. –
Roubei de uma história de Chesterton. Suponha que os Senhores
Supremos estão escondendo o fato de que não têm nada a
esconder.
– Isso me soa um tanto complicado – disse Stormgren, com
interesse.
– O que eu quero dizer é isto – prosseguiu Van Ryberg, ansioso.
– Eu acho que, no aspecto físico, eles são seres humanos como
nós. Concluíram que toleraríamos ser governados por criaturas que
imaginamos ser... bem, alienígenas e superinteligentes. Mas sendo
a raça humana como é, simplesmente não aceitaria ordens vindas
de criaturas da mesma espécie.
– Bastante engenhosa, como todas as suas teorias – disse
Stormgren. – Gostaria que você as enumerasse, para eu
acompanhá-las. As objeções a esta...
Mas, neste momento, Alexander Wainwright foi introduzido na
sala.
Stormgren perguntou-se o que ele estaria pensando. Perguntou-
se, também, se Wainwright teria feito contato com os homens que o
haviam sequestrado. Duvidava disso, pois acreditava que a postura
de Wainwright contra a violência era totalmente sincera. Os
extremistas em seu movimento haviam perdido toda a credibilidade,
e levaria muito tempo para que o mundo voltasse a ouvir falar deles.
O líder da Liga da Liberdade ouviu com atenção, enquanto a
minuta era lida. Stormgren esperava que ele apreciasse o gesto,
que tinha sido ideia de Karellen. Ainda levaria doze horas para que
o resto do mundo soubesse da promessa feita a seus netos.
– Cinquenta anos – disse Wainwright, refletindo. – É muito tempo
para esperar.
– Não para Karellen nem para a raça humana – respondeu
Stormgren, que só agora começava a se dar conta da elegância da
solução dos Senhores Supremos. Dava a eles o espaço de manobra
que acreditavam precisar, ao mesmo tempo em que minava os
alicerces da Liga da Liberdade. Ele não imaginava que a Liga fosse
capitular, mas sua posição ficaria seriamente enfraquecida.
Com certeza, Wainwright também se dava conta do fato, como
também devia se dar conta de que Karellen o estaria observando,
pois falou muito pouco, e saiu o mais cedo possível. Stormgren
sabia que não voltaria a vê-lo durante seu mandato. A Liga da
Liberdade ainda poderia ser um incômodo, mas seria um problema
de seu sucessor.
Havia coisas que só o tempo poderia curar. Homens maus
podiam ser destruídos, mas nada podia ser feito com homens bons,
mas iludidos.
– Aqui está a sua maleta – disse Duval. – Parece nova em folha.
– Obrigado – respondeu Stormgren, inspecionando-a com
atenção. – Agora, quem sabe você me conta o que foi que
aconteceu, e o que vamos fazer depois.
O físico parecia mais interessado em seus próprios
pensamentos.
– O que não consigo entender – disse Duval – é a facilidade com
que escapamos. Pois se eu fosse Kar...
– Mas não é. Vá direto ao ponto, homem. O que descobrimos?
Duval empurrou para a frente um registro fotográfico que, para
Stormgren, parecia o autógrafo de um terremoto moderado.
– Vê este pico?
– Sim. O que é?
– Apenas Karellen.
– Meu Deus! Tem certeza?
– É um bom palpite. Ele está sentado, ou em pé, ou seja lá o que
for que eles façam, a cerca de dois metros do lado oposto da tela.
Se a resolução fosse um pouco melhor, poderíamos até calcular o
seu tamanho.
Os sentimentos de Stormgren dividiram-se ao contemplar a
deflexão quase invisível no traço. Até agora, nunca existiram
evidências de que Karellen sequer tivesse um corpo material. O
indício ainda era indireto, mas ele o aceitava com poucas dúvidas.
A voz de Duval cortou seu devaneio.
– Compreenda – disse ele –, que não existe, de fato, algo como
um vidro que só é transparente de um lado. A tela de Karellen,
descobrimos ao analisar os resultados, transmite luz com cerca de
cem vezes mais facilidade para um lado do que para o outro.
Com o ar de um mágico tirando do nada uma ninhada de
coelhos, estendeu o braço para dentro da escrivaninha e tirou dali
um objeto parecido com uma arma, com uma boca flexível em forma
de sino. Fez Stormgren pensar em um bacamarte de borracha, e ele
foi incapaz de imaginar o que seria.
Duval sorriu da perplexidade do outro.
– Não é tão perigoso quanto parece. Tudo o que você tem a fazer
é forçar o bocal contra a tela e apertar o gatilho. Emite um feixe
muito intenso, que dura dez segundos, e durante esse tempo vai
poder girá-lo pela sala e ter uma boa visão. A luz toda vai atravessar
a tela e iluminar maravilhosamente o seu amigo.
– Vai machucar Karellen?
– Não, se você apontar para baixo e depois fizer a varredura para
cima. Isso dará a ele tempo para se adaptar. Presumo que tenha
reflexos como os nossos, e não queremos cegá-lo.
Stormgren olhou para a arma, indeciso, e sentiu seu peso na
mão. Nas últimas semanas, sua consciência o perseguira. Karellen
sempre o tratara com uma afeição inegável, a despeito de sua
ocasional franqueza devastadora. E, agora que seu tempo juntos
chegava ao fim, Stormgren não desejava fazer nada que pudesse
estragar esse relacionamento. Mas o Supervisor fora devidamente
avisado, e Stormgren estava convencido de que, se a escolha fosse
dele, Karellen teria, há muito, se mostrado. Agora, a decisão seria
tomada por ele: quando sua última reunião chegasse ao fim,
Stormgren olharia bem no rosto de Karellen.
Isso, é claro, se Karellen tivesse um.
O nervosismo que Stormgren havia sentido, no início, tinha
passado há tempos. Praticamente só Karellen falava, tecendo as
sentenças longas e intricadas de que tanto gostava. Algum tempo
atrás isso havia impressionado Stormgren como o mais maravilhoso
e, certamente, o mais inesperado dos talentos de Karellen. Agora já
não lhe parecia assim tão esplêndido, pois sabia que, como ocorria
com a maior parte das capacidades do Supervisor, tratava-se de
puro poder intelectual, não de qualquer talento extraordinário.
Karellen tinha tempo de sobra para a composição literária
quando desacelerava seus pensamentos até a velocidade da fala
humana.
– Não se preocupe – disse ele – com a Liga da Liberdade. Ela
esteve muito quieta durante o mês passado e, embora vá voltar à
vida, não será mais uma ameaça. De fato, uma vez que é sempre
valioso saber o que seus oponentes estão fazendo, a Liga é uma
instituição muito útil. Caso algum dia passe por dificuldades
financeiras, posso até ter que subsidiá-la.
Stormgren muitas vezes achava difícil saber quando Karellen
estava brincando. Manteve o rosto impassível.
– Muito em breve a Liga perderá outro de seus argumentos mais
fortes. Têm ocorrido muitas críticas, todas um tanto pueris, quanto à
posição especial que você tem mantido nos últimos anos.
Considerei-a muito valiosa no período inicial de minha
administração, mas agora que o mundo está seguindo o curso que
planejei, ela pode cessar. No futuro, todas as minhas tratativas com
a Terra serão indiretas e o posto de Secretário-geral poderá se
tornar novamente o que deveria ter sido originalmente.
– Durante os próximos cinquenta anos – continuou Karellen –
haverá muitas crises, mas serão passageiras. Dentro de quase uma
geração atingirei o ponto mais baixo de minha popularidade, pois
planos que não poderão ser completamente explicados precisarão
ser implementados a essa altura. É possível que haja, até mesmo,
tentativas de me destruir. Mas o padrão do futuro é claro o bastante,
e um dia todas essas dificuldades estarão esquecidas... mesmo por
uma raça de memória tão longa quanto a sua.
As últimas palavras foram ditas com uma ênfase tão especial que
Stormgren congelou de imediato na cadeira. Karellen nunca cometia
lapsos involuntários de linguagem, e mesmo suas indiscrições eram
calculadas com várias casas decimais de precisão. Mas não houve
tempo para perguntas, que certamente não seriam respondidas,
pois o Supervisor já mudava, novamente, de assunto.
– Você sempre me perguntou sobre os nossos planos de longo
prazo – ele prosseguiu. – O estabelecimento do Estado Mundial é,
naturalmente, apenas o primeiro passo. Você viverá para ver sua
conclusão. Mas a mudança, quando vier, será tão imperceptível, que
poucos se darão conta. Depois disso, haverá uma pausa de trinta
anos, enquanto a nova geração atinge a maturidade. E então
chegará o dia que prometemos. Sinto muito que você não vá estar
presente.
Os olhos de Stormgren estavam abertos, mas seu olhar fixava-se
bem além da barreira escura da tela. Olhava para o futuro,
imaginando o dia que nunca veria.
– Nesse dia – prosseguiu Karellen –, a raça humana
experimentará uma de suas raras descontinuidades psicológicas.
Mas não haverá dano permanente. Os homens dessa época serão
mais estáveis que os avós. Teremos sido sempre parte de suas
vidas e, quando nos conhecerem, não vamos parecer tão...
estranhos quanto seríamos para vocês.
Stormgren nunca vira Karellen em um estado de espírito tão
contemplativo, mas isso não o surpreendeu. Acreditava que nunca
tivera contato com mais do que umas poucas facetas da
personalidade do Supervisor. O verdadeiro Karellen era
desconhecido, e talvez fosse incompreensível para os seres
humanos. E, mais uma vez, Stormgren teve a sensação de que os
verdadeiros interesses do Supervisor estavam em outro lugar.
– E então haverá uma nova pausa, só que desta vez mais curta,
pois o mundo estará ficando impaciente. Homens desejarão viajar
às estrelas, ver os outros mundos do Universo e se juntar a nós em
nosso trabalho. Pois este é apenas o início... nem um milésimo dos
sóis da Galáxia já foram visitados pelas raças que conhecemos. Um
dia, Rikki, seus descendentes, em suas próprias naves, levarão a
civilização aos mundos que estiverem prontos para recebê-la...
como estamos fazendo agora.
Karellen havia silenciado, e Stormgren teve a impressão de que
era observado atentamente.
– Trata-se de uma grande visão – disse, suavemente. – Vocês a
levam a todos os mundos?
– Sim – disse Karellen. – Todos que são capazes de
compreendê-la.
Do nada, um pensamento estranhamente perturbador penetrou
na mente de Stormgren.
– Suponha que, apesar de tudo, o seu experimento com a
humanidade falhe? Conhecemos isso no nosso próprio
relacionamento com outras raças. Claro que vocês também tiveram
seus fracassos?
– Sim – disse Karellen, em uma voz baixa que Stormgren mal
pôde ouvir. – Tivemos os nossos fracassos.
– E o que fazem, nesses casos?
– Aguardamos... e tentamos de novo.
Houve um silêncio que durou talvez dez segundos. Quando
Karellen voltou a falar, suas palavras foram tão inesperadas que, por
um momento, Stormgren não reagiu.
– Adeus, Rikki!
Karellen o havia passado para trás. Já devia ser tarde demais. A
paralisia de Stormgren durou apenas um momento. Então, sacou a
arma de luz e pressionou-a contra o vidro.
Teria sido uma mentira? O que ele havia realmente visto? Não
mais, estava certo, do que Karellen pretendia. Ele tinha toda a
certeza possível de que o Supervisor soubera de seu plano desde o
início, e havia previsto cada momento.
Por qual outro motivo a cadeira enorme já estaria vazia quando o
círculo de luz ardeu sobre ela? No mesmo momento ele começara a
girar o feixe, mas já era tarde. A porta metálica, com o dobro da
altura de um homem, fechava-se rapidamente quando ele a viu pela
primeira vez – rapidamente, mas não rápido o bastante.
Karellen confiara nele, e não desejara que fosse para o longo
entardecer de sua vida ainda atormentado por um mistério que
jamais poderia resolver. Karellen não ousara desafiar o poder
desconhecido acima dele (seria da mesma raça, também?), mas
fizera todo o possível. Se houve desobediência, nunca poderiam
provar.
Tivemos nossos fracassos.
Sim, Karellen, isso era verdade – e teria sido você a fracassar,
antes da aurora da história humana? Mesmo em cinquenta anos,
poderia você sobrepujar o poder de todos os mitos e lendas do
mundo?
Ainda assim, Stormgren sabia que não haveria um segundo
fracasso. Quando as duas raças se reencontrassem, os Senhores
Supremos teriam conquistado a amizade e a confiança da
humanidade, e nem mesmo o choque do reconhecimento poderia
desfazer esse trabalho.
E Stormgren também sabia que a última coisa que veria, ao
fechar os olhos para a vida, seria aquela porta que girava
rapidamente, e a longa cauda negra que desaparecia por trás dela.
Uma cauda célebre e inesperadamente bela.
Uma cauda com ponta de flecha.
1 Traduzido por Carlos Orsi.
O FIM DA INFÂNCIA
TÍTULO ORIGINAL:
Childhood’s end
TRADUÇÃO DO CONTO “ANJO DA GUARDA”:
Carlos Orsi
CONSULTORIA DE TRADUÇÃO:
Lizbeth Ager
PREPARAÇÃO DE TEXTO:
Carlos Orsi
REVISÃO:
Angela Maisonnette
Mônica Reis
Hebe Ester Lucas
CAPA:
Mateus Acioli
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO:
Desenho Editorial
DIAGRAMAÇÃO DE E-BOOK E REVISÃO DA VERSÃO ELETRÔNICA:
Calil Mello Serviços Editoriais
DIREÇÃO EXECUTIVA:
Betty Fromer
DIREÇÃO EDITORIAL:
Adriano Fromer Piazzi
DIREÇÃO DE CONTEÚDO:
Luciana Fracchetta
EDITORIAL:
Daniel Lameira
Andréa Bergamaschi
Renato Ritto
COMUNICAÇÃO:
Nathália Bergocce
Alexandre Nuns
COMERCIAL:
Giovani das Graças
Lidiana Pessoa
Roberta Saraiva
Gustavo Mendonça
FINANCEIRO:
Roberta Martins
Sandro Hannes
CHILDHOOD’S END © ROCKET PUBLISHING COMPANY LTD, 1953
COPYRIGHT © EDITORA ALEPH, 2010
(EDIÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA PARA O BRASIL)
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.
PROIBIDA A REPRODUÇÃO, NO TODO OU EM PARTE, ATRAVÉS DE QUAISQUER
MEIOS.
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Tel.: [55 11] 3743-3202
www.editoraaleph.com.br
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Clarke, Arthur C., 1917-2008.
O fim da infância [livro eletrônico] / Arthur C. Clarke ; tradução Carlos Angelo.
-- São Paulo : Aleph, 2015
581 Kb; ePUB
Tradução de: Childhood’s end
ISBN: 978-85-7657-256-5
1. Ficção científica inglesa I. Título.
14-05278 CDD 823.914
ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:
Literatura inglesa : Ficção científica 823.91
Literatura inglesa : Ficção científica 821.111-3
2001: Uma odisséia no espaço
Clarke, Arthur C.
9788576571711
336 páginas
Compre agora e leia
Em 1968 chegava aos cinemas o épico espacial que marcaria para
sempre a indústria cinematográfica, 2001: Uma Odisseia no Espaço,
considerado um dos mais importantes e influentes filmes da história.
A obra teve seu roteiro escrito a quatro mãos, pelo autor de ficção
científica Arthur C. Clarke e pelo cineasta Stanley Kubrick. O filme
revolucionou a indústria do cinema com suas cenas inesquecíveis e
efeitos visuais pioneiros para a época. O que poucos sabem é que
2001 é um dos raros casos em que o filme acabou por inspirar um
autor a estender sua história para as páginas de um livro. Enquanto
trabalhava com Kubrick nos detalhes do roteiro a ser utilizado pelo
diretor, Clarke encaminhava, em paralelo, uma versão mais extensa
e detalhada da história, que foi lançada no mesmo ano, logo após a
exibição do filme. A edição da Aleph traz os extras: uma nota de
Clarke na ocasião do falecimento do Kubrick (às vésperas da
chegada do tão esperado ano de 2001); as traduções dos contos A
Sentinela e Encontro no Alvorecer, fundamentais na composição
deste clássico (informação confirmada pelo próprio autor em sua
nota à Edição Comemorativa do Milênio, também contida neste
livro). O romance, assim como o filme, inicia-se no alvorecer da
humanidade, a fome e os predadores já ameaçavam de extinção a
incipiente espécie humana. Até que a chegada de um objeto
impossível, além da compreensão das mentes limitadas do homem
pré-histórico, prenunciasse o caminho da evolução. Milhões de anos
depois, a descoberta de um enigmático monólito soterrado na Lua
deixa os cientistas perplexos. Para investigar esse mistério, a Terra
envia para o espaço uma nave tripulada por uma equipe altamente
treinada, assistida por um computador autoconsciente. Do passado
distante ao ano de 2001, da África a Júpiter, dos homens-macacos à
inteligência artificial HAL 9000, penetre a visão de um futuro que
poderia ter sido, uma sofisticada alegoria sobre a história do mundo
idealizada pela mente brilhante de Clarke e imortalizada nas telas
de cinema por Kubrick.
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Box Fundação - Trilogia
Asimov, Isaac
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693 páginas
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Obra máxima do escritor Isaac Asimov, os três livros que compõem
a — Trilogia da Fundação 'Fundação', 'Fundação e Império' e
'Segunda Fundação' —, foram eleitos, em 1966, a melhor série de
ficção científica e fantasia de todos os tempos, superando
concorrentes de peso como O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien.
A trilogia conta a história da humanidade, em um ponto distante no
futuro, no qual o visionário cientista Hari Seldon prevê a destruição
total do império humano e de todo o conhecimento acumulado por
milênios. Incapaz de impedir a tragédia, ele arquiteta um plano
ousado, no qual é possível reconstruir a glória dos homens. Se tudo
correr como planejado. Esta edição é inédita no Brasil, pois além da
nova tradução, traz as modificações feitas pelo autor nos anos 1980,
quando decidiu integrar todas as suas obras em uma única
continuidade temporal. Este box contém os livros: 'Fundação',
'Fundação e Império' 'Segunda Fundação'.
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O eneagrama completo
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O eneagrama é um dos mais antigos e poderosos sistemas de
autoconhecimento e desenvolvimento pessoal, profissional e
espiritual. Com base na milenar figura geométrica, essa sabedoria
revela os 9 tipos de personalidade do ser humano, cada qual com
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para se trilhar o caminho mais árduo do trabalho interior: perceber,
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Escrito pelo prof. Pierluigi Piazzi, Aprendendo Inteligência é um
manual dedicado aos estudantes de todos os níveis. Com dicas
simples e fáceis de por em prática, o livro contraria o conceito de
que a inteligência é um fator inato e ensina o leitor a usar a própria
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preciosas dicas, Aprendendo Inteligência também apresenta um
panorama do que há de errado nas escolas e na maneira como os
alunos encaram os estudo, mostrando que os erros mais comuns
podem ser evitados e o tempo pode ser melhor aproveitado,
possibilitando que se estude menos e se aprenda muito mais!
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Laranja mecânica
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Narrada pelo protagonista, o adolescente Alex, esta brilhante e
perturbadora história cria uma sociedade futurista em que a
violência atinge grandes proporções e provoca uma resposta
igualmente agressiva de um governo totalitário. Ao lado de 1984, de
George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, Laranja
Mecânica é um dos ícones literários da alienação pós-industrial que
caracterizou o século 20. Adaptado com maestria para o cinema em
1972 por Stanley Kubrick, o livro é uma obra marcante que
atravessou décadas e se mantém atual.
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