Das Flores À Angústia
Das Flores À Angústia
Das Flores À Angústia
Resumo
A proposta deste artigo é analisar as modificações formuladas por Lacan ao esquema óptico
de Bouasse, para ressaltar dois momentos distintos de seu ensino, que metaforicamente se tor-
nam imagens no espelho. O primeiro momento é quando Lacan retoma os textos freudianos,
início de seus seminários mais voltado ao Simbólico, e o segundo, quando forja seu conceito
de objeto a e avança em suas formulações sobre o Real.
[...] o estádio do espelho é um drama cujo a caixa está fechada. Todavia, como reflete a
impulso interno precipita-se da insuficiência imagem das flores que estão dentro da caixa,
para a antecipação – e que fabrica para o su- o espelho côncavo a inverte e a coloca sobre
jeito, apanhado no engordo da identificação o vaso. Isso permite ao observador ver o vaso
espacial, as fantasias que se sucedem desde (objeto real) com as flores (imagem real).
uma imagem despedaçada do corpo até uma O corpo do bebê é uma construção feita
forma de sua totalidade que chamaremos de a partir de algo que provém do Outro, como
ortopédica – e para a armadura enfim assu- metaforicamente Lacan propõe pensar a par-
mida de uma identidade alienante, que mar- tir do esquema em questão. A especificidade
cará com sua estrutura rígida todo o seu de- óptica do espelho côncavo proporcionaria a
senvolvimento mental. Assim, o rompimento experiência de quem desempenha a função
do círculo do Innenwelt para o Umwelt gera a materna, ou seja, quando posicionado desse
quadratura inesgotável dos arrolamentos do lugar específico, como na experiência do bu-
eu (Lacan, [1949] 1998, p. 100). quê, pode ver o vaso com a imagem das flores.
A mãe como o Outro primordial, portanto, lo-
Lacan ([1949] 1998) destaca, todavia, que calizada precisamente nesse ponto, seria capaz
na assunção jubilatória – no instante em que de uma antecipação da imagem do eu do bebê
a criança reconhece sua imagem no espelho e de tudo aquilo que o constitui. Isso literal-
– manifesta-se de maneira clara uma matriz mente permite a ela ver o que ainda não está lá.
simbólica. O eu precipita-se em sua forma pri-
mordial e constitui-se como símbolo de sua O Outro primordial, a mãe, faz, nesse sentido,
imagem no mundo. Então, quando retoma o um verdadeiro esforço: toma o peito como
estádio do espelho em seu primeiro seminá- dom, o cocô como presente, a voz como cha-
rio, Lacan ([1953-1954] 1986) se utiliza do mado, o olhar como interpelação (Jerusa-
esquema óptico de Bouasse, a experiência do linsky, 2004, p. 26).
buquê invertido, para modificá-lo e demons-
trar como se dá a articulação do Imaginário Nessa perspectiva, Lacan colocará no
com o Simbólico na constituição do sujeito. lugar do observador, daquele que pode ver
o vaso unificado com as flores, um espelho
plano como o olhar do Outro primordial
(A), representando, assim, a função materna.
O “olho” permanece no esquema, mas agora
muda de lugar e não representa mais o olho
da mãe, como anteriormente, e sim passa a
representar aquele que vê a própria imagem
refletida no interior do espelho plano (A); ou
Fonte: Lacan, [1953-1954] 1986, p. 94. seja, o olho agora é o do bebê. Além disso,
Lacan inverte a posição dos objetos e coloca
O esquema de Bouasse consiste em uma o vaso dentro da caixa e as flores sobre ela.
experiência na qual o observador, se posi-
cionado em um ponto específico, devido às
propriedades ópticas do espelho côncavo,
consegue ver o vaso com a imagem das flores
projetada sobre este. O vaso está sobre uma
caixa em frente ao observador – o olho –,
mas as flores, a princípio, seriam inacessíveis
a sua visão, já que na posição do observador Fonte: Lacan, [1953-1954] 1986, p. 147.
Para Lacan, nesse esquema, o narcisismo Portanto, nesse primeiro momento de seu
primário, fonte do eu ideal, se localiza do ensino, por meio da introdução do espelho
lado esquerdo: plano e de sua interpretação suis generis do
esquema óptico de Bouasse, Lacan literal-
[...] ao nível da imagem real do meu esque- mente dá imagem ao texto freudiano Sobre
ma, na medida em que ela permite organizar o narcisismo: uma introdução (1914). Assim,
o conjunto da realidade num certo número de ele transmite de forma notável, com o entre-
quadros pré-formados (Lacan, [1953-1954] laçamento do Imaginário no Simbólico, con-
1986, p. 148). ceitos freudianos como eu ideal, ideal do eu,
narcisismo primário e narcisismo secundá-
E em seguida, prossegue ele, do lado di- rio. Todavia, alguns anos mais tarde, com o
reito: amadurecimento teórico e clínico, ele propõe
outras modificações no esquema óptico que
[...] a reflexão no espelho manifesta uma pos- vão refletir, segundo Miller (2005), o início
sibilidade noética original, e introduz um de um segundo tempo do ensino de Lacan,
segundo narcisismo (Lacan, [1953-1954] um momento mais inclinado para o Real.
1986, p. 148).
O desejo do Outro:
Nessa perspectiva noética, que introduz uma torção por meio do objeto a
o narcisismo secundário, o sujeito se vê so- No Seminário 10: a angústia, Lacan ([1962-
mente pelo reflexo do Outro, do ideal do eu, 1963] 2005) repensou de forma radical seu
que se coloca como tela para projeção do eu ensino. Podemos propor, em analogia com
ideal. Freud, que esse seminário representa para o
Portanto, o espelho plano que representa ensino lacaniano o que o texto Além do prin-
o Outro reflete a imagem unificada do vaso cípio do prazer, de 1920, representou para a
com as flores. O vaso no interior da caixa re- obra freudiana; ou seja, um verdadeiro mo-
presenta o organismo, ao qual o sujeito não mento de torção na teoria e na prática clínica.
tem acesso, e as suas bordas pulsionais; já No seminário em questão, Lacan sistema-
as flores representam os objetos do sujeito. tizou o Real como aquilo que escapa à pala-
Tais objetos, unificados e refletidos no inte- vra e à imagem. O Real será constituído en-
rior do espelho plano representam a imagem quanto objeto a, objeto que determina tanto
idealizada, i’(a), na qual o bebê se reconhe- o desejo como causa, quanto os modos de
ce. Assim, o que Lacan frisa é que o eu ideal, gozo do sujeito.
imaginário, se forma no interior do espelho Ao formalizar o objeto a como Real, La-
plano (A), que é simbólico; ou seja, o espelho can atribui a ele sua expressão psíquica por
plano funciona como a tela do ideal do eu, meio da angústia, um afeto que não engana.
onde o eu ideal pode ser projetado. O objeto a é o que cai do encontro do ser
com a linguagem e se relaciona à castração
Então, uma síntese da leitura do esquema óp- da própria linguagem, uma castração an-
tico poderia ser: o sujeito se mira no ideal de terior ao Édipo e à aquisição do falo como
eu (espelho plano), de modo que esse espelho significante Φ, que se dá, portanto, em um
faz função do outro como lugar simbólico. tempo mítico, mas que marca o sujeito e de-
É através dessa tela do espelho plano que o marca o objeto a como resto.
eu pode se reconhecer na imagem do outro,
pode se projetar (sua imagem) numa relação O a é algo que cai e não se sabe a quem per-
que pode ser lida como projeção de um eu tence, se pertence ao Outro ou ao sujeito. Mas
ideal (Greco, 2011, p. 8). ao Outro, na medida em que se produz o ob-
jeto a, algo falta, caso contrário não deseja- da ausência, eis a segurança da presença. O
ria nada e, na medida em que algo lhe falta, que há de mais angustiante para criança é,
a barra também cai sobre ele (Rabinovich, justamente, quando a relação com base na
2005, p. 32). qual essa possibilidade se instituiu, pela fal-
ta que a institui como desejo, é perturbada,
Do encontro do ser com o desejo do Ou- e ela fica perturbada ao máximo quando não
tro, o objeto a é o resto dessa operação, que há possibilidade de falta, quando a mãe está
vai demarcar a castração primordial e locali- o tempo todo nas costas dela, especialmente
zar a angústia. Nesse contexto, Lacan ([1962- ao lhe limpar a bunda, modelo da demanda,
1963] 2005) afirma que o objeto a é a garantia da demanda que não pode falhar (Lacan,
da alteridade do Outro. O Outro que, ao ser [1962-1963] 2005, p. 64).
barrado, faz com que o sujeito nunca saiba
qual é o desejo daquele. Enigma que reenvia Retornando ao esquema dos espelhos, no
o sujeito ao insuportável da castração, ao en- Seminário 10: a angústia, a partir dessa nova
contro com o desejo do Outro, que estrutura perspectiva apresentada por Lacan para a
a pergunta Que queres? castração e sobre o próprio objeto a como
Assim, Lacan ([1962-1963] 2005) se uti- Real, ele vai encontrar os elementos neces-
liza de uma metáfora para relacionar a an- sários para reformular também seu esquema
gústia ao desejo do Outro a partir da expe- óptico e acrescentar elementos novos, (-φ) e
riência de encontro com um louva-a-deus a, em três lugares diferentes.
gigante. Explica que, com a máscara de um
louva-a-deus macho, depara-se com um lou-
va-a-deus fêmea, um animal de verdade e gi-
gantesco, que talvez possa identificá-lo como
parceiro sexual e devorá-lo. Diante disso,
busca a própria imagem refletida no globo
ocular do inseto, mas não vê nada e, com
isso, se depara com a angústia pela opacida-
de que remete ao enigma do olhar do Outro. Fonte: Lacan, [1962-1963] 2005, p. 105.
A angústia é aquilo que pode paralisar o
sujeito, entretanto, como frisa Lacan, tam- O (-φ) do lado esquerdo coloca-se como
bém pode mediar o desejo. Nesse caso, é um resto; presente porém imperceptível:
preciso que a falta possa circular e sustentar
a posição desejante. Por outro lado, quando [...] em tudo que é demarcação imaginária, o
a angústia é mobilizada pelo desejo do Ou- falo virá a partir daí, sob a forma de uma falta
tro que se revela voraz, isso pode colocar o (Lacan, [1962-1963] 2005, p. 49).
sujeito em uma posição de objeto e levá-lo
ao gozo do Outro, que satura sua falta, algo O campo da imagem real em i(a) é cor-
extremamente angustiante. tado, e esse corte não alcança representação
no nível imaginário. Trata-se de uma castra-
O que provoca a angústia é tudo aquilo que ção imaginária, uma perda de gozo no nível
nos anuncia, que nos permite entrever que da imagem: resto não figurado e enigmático,
voltaremos para o colo. Não é, ao contrário que segundo Lacan assume a posição de re-
do que se diz, o ritmo nem a alternância da serva libidinal.
presença-ausência da mãe. A prova disso é Dessa forma, o elemento permanece in-
que a criança se compraz em renovar esse vestido apenas no registro do Real, como
jogo de presença–ausência. A possibilidade uma
Sobre os atores