MARTINS, MarceloThadeuQuintanilha. A Civilização Do Delegado. Tese. USP. 2012

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

A CIVILIZAÇÃO DO DELEGADO
Modernidade, polícia e sociedade em São Paulo nas
primeiras décadas da República, 1889-1930
Marcelo Thadeu Quintanilha Martins

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em História Social do
Departamento de História da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, para a
obtenção do titulo de Doutor em História.

De acordo, _______________________________________________

Orientador: Prof. Dr. Carlos de Almeida Prado Bacellar


(versão corrigida)

2012
Resumo

Durante as décadas iniciais da República a polícia paulista foi ampliada,


profissionalizada e a sua ação se disseminou pelo espaço público como um dos pilares da
nova ordem. O presente estudo busca examinar a modernização da polícia como parte
importante das transformações pelas quais passou a sociedade paulista em um momento em
que São Paulo despontava no cenário internacional como maior pólo exportador de café do
planeta. Nesse mesmo momento, as polícias dos principais centros urbanos do mundo
também se modernizavam com o objetivo de proteger e propagar uma concepção
dominante de ordem social, que dava sustentação às transformações socioeconômicas
ocorridas ao longo do século XIX. Abraçando uma perspectiva transnacional, este estudo
pretende lançar luz sobre conexões e interações que contribuem para a compreensão do
complexo processo de sedimentação de uma cultura policial em São Paulo e as suas
imbricações com a emergência de novos atores sociais.

Abstract
During the early decades of the Republic São Paulo police has been expanded,
become more professional and its authority have spread throughout the public space as one
of the pillars of the new order. This study intends to comprehend the modernization of the
police as part of significant transformations which reached all society in a time when São
Paulo was raising on the international stage as a major export hub of coffee on the planet.
In the meantime, the police of the major urban centers of the world also have been
modernized in order to protect and propagate a dominant conception of social order, which
backed the socioeconomic changes that occurred throughout the nineteenth century.
Embracing a transnational perspective, this study aims to shed light on connections and
interactions that contribute to understanding the complex process of sedimentation of a
police culture in São Paulo and its overlapping with the emergence of new social actors.
Agradecimentos

A realização deste trabalho, como não poderia deixar de ser, só foi possível com o
suporte intelectual e prático de várias pessoas, cabendo ao meu orientador, o professor
Carlos de Almeida Prado Bacellar, um agradecimento especial pela ajuda e estímulo.
Minha gratidão se estende às professoras Sara Albieri, Maria Odila Leite da Silva Dias,
Antonia Terra de Calazans Fernandes e ao professor Robert Sean Purdy pelas ideias e
conselhos imprescindíveis para este trabalho.
Aos colegas e diretores do Arquivo Público do Estado de São Paulo agradeço
muito o auxílio e a paciência. Sou muitíssimo grato também à Dra. Elisabeth Massuno,
delegada zelosa, que durante anos cuidou e preservou a documentação acumulada na
Delegacia Geral de Polícia. Sua generosidade e auxílio foram fundamentais para o
aprofundamento da minha pesquisa. Cabe aqui um agradecimento aos delegados e
funcionários da polícia que eu tive a oportunidade de conhecer, os quais abriram as portas
da sua instituição, de suas casas e até mesmo de suas vidas, permitindo que eu entendesse
um pouco o que é a polícia. À dona Armenuí e ao Sérgio, reitero os meus agradecimentos
pela acolhida no Museu da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”, onde se
encontra abrigada parte significativa da memória policial.
Por fim, é difícil encontrar palavras para agradecer minha amiga Cida pelas
inúmeras leituras, revisões e sugestões, e à Andréia por seu amor e apoio nos momentos
difíceis. Todo este trabalho dedico a uma pessoa que faz com que lutemos por um mundo
mais justo e acolhedor: meu filho André.
SUMÁRIO

Introdução.............................................................................. 01

1. Polícia e política................................................................. 23

2. Polícia e civilização............................................................ 80

3. Polícia e cidade.................................................................. 114

4. Polícia e trabalho............................................................... 160

5. Polícia e criminalidade....................................................... 213

6. Epílogo e conclusão........................................................... 268

Fontes e Bibliografia.............................................................. 289


Introdução

Os primeiros passos do estudo aqui apresentado tiveram início há doze anos, a


partir de uma pesquisa de campo para conhecer o trabalho policial com foco na
investigação de crimes contra a vida. Foram três anos frequentando a Divisão de
Homicídios do Departamento de Homicídio e de Proteção à Pessoa (DHPP) da polícia de
São Paulo, acompanhando a apuração de mortes a esclarecer, visitando locais de crime,
estudando manuais de investigação, presenciando o cotidiano de um departamento
especializado de polícia, o desgaste pessoal e emocional dos seus funcionários, a política
de bastidores e a exploração midiática de casos impactantes. Vi casos onde filhos
mataram os país; pais mataram os filhos; companheiros mataram suas parceiras; esposas
tramaram o assassinato do marido; parentes, vizinhos e amigos tiraram a vida de pessoas
próximas por questões banais; traficantes executaram desafetos por pouco ou nada em
locais sem saneamento, asfalto ou piedade; crimes sem solução; pilhas e pilhas de
inquéritos. Em 2000, foram assassinadas 12.638 pessoas no estado de São Paulo, destas
5.327 na Capital.1
Intrigava o fato de todos os envolvidos serem moradores de uma mesma
Cidade, que de alguma forma tinham suas vidas afetadas um pelo outro. Dificilmente um
morador de São Paulo passa um dia sem ver um policial ou assistir matérias policiais pela
televisão. A polícia é parte do cotidiano e a criminalidade, uma das maiores preocupações
da população. Tanto que São Paulo possui o maior contingente policial do país, cerca de
140 mil policiais, que recebem o segundo maior orçamento do estado, 11 bilhões de reais
em 2010. São aproximadamente 96 mil policiais militares, 37 mil civis e 7 mil da polícia
científica.2 Essa realidade acaba alimentando os programas televisivos que transmitem
notícias de crimes repetidamente, produzindo um meio ambiente ameaçador que os
antropólogos chamam de medo social. A repercussão dessas histórias afeta o cotidiano de
todos e as formas como se constroem as relações de poder e sociabilidade. 3 Teresa

1
Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa, DHPP – Anuário 2001. São Paulo: Editora Roca, 2001, p.52-53.
2
Joyce Luziara Corrêa e Valdir Assef Júnior. "Segurança Pública: construindo espaços de diálogo". In: Revista Brasileira de
Segurança Pública, ano 4, edição 7, ago/set 2010, p.121.
3
Luzia Fátima Baierl. Medo Social: Da violência visível ao invisível da violência. São Paulo: Editora Cortez, 2004; Susana Rotker

1
Caldeira, em sua pesquisa sobre crime e segregação na Cidade de São Paulo, observou
que o medo do crime se misturava com ansiedades geradas por problemas econômicos,
decadência social e preconceitos de todo tipo. Cada moradia de São Paulo havia se
transformado numa fortaleza, construída para defender seus ocupantes das outras pessoas.
A maior ameaça na Cidade eram os outros. Os muros estavam por toda parte porque as
ameaças estavam em toda parte.4 Essa realidade coloca o historiador diante da questão de
como nos transformamos em uma sociedade acossada pelo medo e profundamente
policiada. E mais: por que a polícia tão presente no nosso cotidiano não aparece na
história de São Paulo?
O historiador Marcos Luiz Bretas costuma dizer que a polícia tornou-se um não-
assunto, um tema desprezado e menos nobre para alguns, talvez por envolver aspectos
perturbadores da vida social, mas em grande medida porque seus acervos históricos não
se encontram organizados e acessíveis.5 Por tudo isso, a história da polícia paulista ainda
permanece fragmentada e incompleta. Logo, o objetivo primeiro desse trabalho é trazer a
polícia para o centro do palco histórico. Até 1980, pouco se sabia do desenvolvimento da
polícia paulista e do seu trabalho, exceto por algumas obras de caráter institucional.6 A
historiografia sobre polícia é, portanto, bastante recente, devendo muito ao clima
contestador dos anos 1960 e 1970 que “descobriu” a polícia, por assim dizer. Em aulas
lotadas no Collège de France, Michel Foucault (1926-84) associava o "nascimento da
polícia" ao processo de urbanização e concentração de poder ocorrido no século XVII.
Para ele, a polícia era "um golpe de Estado permanente", elaborado para eliminar a
desordem e assegurar as relações de produção "dentro dos princípios da razão de
Estado".7 Do outro lado do Atlântico, em Princeton, Robert Storch publicou um artigo
polêmico sobre o papel histórico da polícia, descrevendo o policial inglês como um
"missionário doméstico", concebido para reprimir costumes populares e incutir valores
morais na massa trabalhadora.8 Storch se alinhava a um grupo de historiadores norte-

(Ed.). Citzens of Fear: Urban Violence in Latin America. New Jersey: Rutgers University Press, 2002.
4
Teresa Pires do Rio Caldeira. Cidades de Muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000.
5
Marcos Luiz Bretas. Ordem na Cidade: O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997, p.10; Thaís Battibugli. Polícia, Democracia e Política em São Paulo (1946-1964). São Paulo: Humanitas, 2010, p.21.
6
A mais consultada e detalhada história da polícia de São Paulo é a obra de Hermes Vieira e Oswaldo Silva. História da Polícia Civil
de São Paulo. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955. Essa obra foi encomendada pelo Dr. Oswaldo Silva, diretor
administrativo da polícia, para comemorar os 50 anos da criação da polícia de carreira em São Paulo.
7
Michel Foucault. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.457.
8
Robert D. Storch (1976). "The Policeman as Domestic Missionary: Urban Discipline and Popular Culture in Northern England,
1850-1880". In: Paul Lawrence (Ed.). The New Police in the Nineteenth Century. Farnham, UK: Ashgate, 2011, p.267-295.

2
americanos envolvido pelos movimentos de direitos civis, que voltava seu olhar para a
polícia. Em aspectos gerais, houve um consenso entre eles de que as metrópoles
americanas haviam criado forças policiais modernas para conter os imigrantes e produzir
uma população mais ordeira e apropriada a uma nação "civilizada e competitiva".9
No Brasil, o fim da ditadura militar e os altos índices de criminalidade atraíram
a atenção dos estudiosos para a polícia e a violência urbana, abrindo um vasto campo de
debate e pesquisa para sociólogos, antropólogos e historiadores.10 A polícia do Rio de
Janeiro foi tema de alguns historiadores estimulados pela leitura de Foucault, Marx e
Weber.11 Em São Paulo, parte dos estudos concentrou seu olhar na atuação policial diante
dos problemas urbanos e da formação de uma mão de obra assalariada na Cidade de São
Paulo.12 Dois desses trabalhos, o de Sidnei Munhoz e o de Marco Antônio Cabral dos
Santos, tiveram como fonte primária latas recheadas de correspondências encaminhadas
aos chefes de polícia e conservadas no Arquivo Público do Estado de São Paulo
(APESP).
Essa documentação classificada como "Polícia", que se estende do período
imperial até as primeiras décadas do período republicano, permitiu aos historiadores
entrar em contato com aquilo que Arlette Farge denominou de "retalhos da realidade".13
Os maços de documentos recolhidos no APESP colocam à mostra uma face pouco
conhecida dos órgãos policiais: a de repositório das mais variadas demandas por parte da
população e outros órgãos da administração pública, tornando patente que a organização
da vida cotidiana passava invariavelmente pelas mãos da polícia. Esta constatação levou

9
Allan Silver. "The demand for order in civil society". In: David J. Bordua (Ed.). The Police: Six Sociological Essays. New York:
Wiley,1967, p.1-24; Roger Lane. Policing the City of Boston, 1822-85. Cambridge: Harvard University Press, 1967; Wilbur R.
Miller. Cops and Bobs: Police Authority in New York and London, 1830-70. Columbus: Ohio State University Press,1999 (1973);
Robert M. Fogelson. Big-City Police. Cambridge: Harvard University Press, 1979 (1977); Eric H. Monkkenen. Police in Urban
America, 1860-1920. New York: Cambridge University Press, 2004 (1981).
10
Paulo Sérgio Pinheiro (Org.). Crime, Violência e Poder. São Paulo: Brasiliense, 1983; Mariza Corrêa. Morte em Família. Rio de
Janeiro: Graal, 1983; Boris Fausto. Crime e Cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Brasiliense, 1984.
11
Gizlene Neder et al.. A Polícia na Corte e no Distrito Federal (1831-1930). Rio de Janeiro: PUC, 1981; Elizabeth Cancelli, op.cit.;
Gizlene Neder. Discurso Jurídico e Ordem Burguesa no Brasil. Porto Alegre: Fabris Editor, 1995; Thomas H.Holloway. Polícia no
Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: FGV, 1997.
12
Heloisa F. Cruz. "Mercado e Polícia em São Paulo (1890-1915)". In: Revista Brasileira de História. vol.7, nº14. São Paulo: 1987;
Sidnei J. Munhoz. Cidade do Avesso: desordem e progresso em São Paulo, no limiar do século XX. São Paulo, 1997. Tese de
Doutorado apresentada ao Departamento de História da USP; Luís Antônio Francisco de Souza. Poder de Polícia, Polícia Civil e
práticas policiais na cidade de São Paulo (1889-1930). São Paulo, 1998. Tese de Doutorado apresentado ao Departamento de
Sociologia da USP; Marco Antônio Cabral dos Santos. Paladinos da Ordem: Polícia e Sociedade na virada do século XIX ao XX.
São Paulo, 2004. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da USP.
13
Arlette Farge. O Sabor do Arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.

3
os pesquisadores a reverem o significado do papel desempenhado pela polícia como
agente do Estado e nicho produtor de uma cultura particular.14
Nos anos 1990, as interpretações estruturais começaram a abrir espaço para as
abordagens socioculturais.15 O historiador Jacques Revel, da quarta geração dos Annales,
mostra que a polícia de Paris, enfrentando motins em 1750, não parecia um grande
aparelho regulador que tudo via e tudo ordenava; parecia mais reflexo de uma crise que
se espalhava. Ao investigar uma série de revoltas ocorridas na Paris pré-revolucionária, o
historiador francês percebe que a população a atacava não pelo fato de odiar a polícia,
mas porque ela não trazia segurança para os moradores da cidade e parecia alheia às suas
necessidades.16 Revel argumentou, baseado no trabalho da antropóloga britânica Mary
Douglas (1921-2007), que a polícia não deve ser tratada como um órgão exterior ao
campo social, pois ela traduz e explicita formas de dependências recíprocas que ligam
valores, normas, condutas e papéis, funcionando de modo a regular a sociedade.17 De
fato, escreveu Revel, as instituições são inseparáveis da configuração do jogo social, o
que significa que os homens precisam de instituições para se orientar e se deslocarem
pelo interior do mundo social, o que é uma maneira de dizer que eles se servem delas
tanto quanto as servem.18
O livro de Revel faz parte de uma renovação historiográfica que se deslocou dos
esquemas estruturais em direção ao comportamento dos atores, colocando o agente social
de volta no cenário da análise histórica. Não mais como o velho protagonista heróico,
mas como uma nova maneira de entender as estruturas, a ação individual e coletiva, e
suas relações mútuas. No Brasil, duas teses inovadoras buscaram descortinar este cenário
ainda pouco conhecido das relações entre a polícia e o público. A primeira foi a de
Marcos Luiz Bretas, que realizou um amplo estudo sobre a polícia carioca entre 1907 e

14
André Rosemberg e Luís Antônio Francisco de Souza. "Notas sobre o uso de documentos jurídicos e policiais como fonte de
pesquisa histórica". In: Patrimônio e Memória. vol.5, nª2, Dez. 2009, p.168-182.
15
Clive Emsley. The English Police: A Political and Social History. New York: Longman, 1996 (1991); Jean-Marc Berlière. Le
Monde des Police en France. Bruxelles: Editions Complexe, 1996; Christopher P. Wilson. Cop Knowledege: Police Power and
Cultural Narrative in Twentieth-Century America. Chicago: The University of Chicago Press, 2000; Haia Shpayer-Makov. The
Making of a Policeman: A social history of a labour force in metropolitan London, 1829-1914. Aldershot: Ashgate, 2001; John
Merriman. Police Stories: Building the French State, 1815-1851. New York: Oxford University Press, 2006; Klaus Mladek. Police
Forces: A Cultural History of an Institution. New York: Palgrave, 2007.
16
Arlette Farge & Jacques Revel. The Vanishing Children of Paris: Rumor and Politics before the French Revolution. Cambridge:
Harvard University Press, 1991.
17
Mary Douglas. How Institutions Think. New York: Syracuse University Press, 1986.
18
Jacques Revel. "A instituição e o social". In: id. História e Historiografia: exercícios críticos. Curitiba: UFPR, 2010, p.117-140.

4
1930.19 A segunda é a de André Rosemberg, que pesquisou a polícia paulista no final do
Império.20 Ambos perceberam a polícia como uma construção sociocultural, atentando
para os seus agentes: pessoas de carne e osso, com nome, sobrenome e origem social.
Rosemberg explica que a polícia funciona ao mesmo tempo como um ramo essencial do
Estado e um cadinho de experiências socioculturais, o que faz dela um objeto importante
de estudo para compreendermos a evolução da burocracia, das mudanças que sofriam e
da interação deles com o restante da sociedade.21
Seguindo o caminho destes dois trabalhos e com o objetivo de dar rosto aos
policiais paulistas do início do período republicano, procuramos os prontuários ainda
existentes no Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD), o
departamento de identificação da Polícia Civil do Estado de São Paulo. O prontuário é
uma das principais ferramentas da polícia, onde ficam registradas informações do
cidadão, de criminosos e dos seus próprios integrantes. Os prontuários dos delegados

Exemplo de um prontuário de delegado de polícia


(IIRGD)

19
Marcos Luiz Bretas, op.cit..
20
André Rosemberg. Polícia, policiamento e o policial na província de São Paulo no final do Império: a instituição, prática cotidiana
e cultura. São Paulo, 2008. Tese apresentada ao Departamento de História da USP.
21
Idem, p.10-13.

5
contêm dados pessoais, a carreira do titular, despachos internos e uma parte da sua
correspondência. É possível notar que a importância do delegado se reflete no volume do
prontuário, recheado de ofícios, recortes de jornais, homenagens e elogios. Com esta
fonte documental, mais os relatórios e livros de despachos encontrados na Delegacia
Geral de Polícia (DGP), somados ao vasto acervo do APESP, foi possível remontar a
estrutura da polícia paulista nas primeiras décadas do século XX, evidenciando que ela
estava subordinada a um pequeno grupo de bacharéis, representantes de parte da elite
europeizada que arvorou para si a tarefa de construir uma polícia moderna no estado mais
rico da nação.
Esses bacharéis, que se encastelaram nos postos chave da instituição até serem
aposentados compulsoriamente nos anos 1950, servem para acompanharmos a
transformação da polícia de São Paulo. A partir das primeiras décadas do século XX, a
polícia paulista começou a ganhar contornos modernos, que podem ser resumidos na
profissionalização dos seus membros, na adoção de padrões reconhecidos de
policiamento, na divisão e especialização das suas atividades e no desenvolvimento de
técnicas cientificas de investigação. Esta modernização fez parte das transformações
pelas quais passou a sociedade paulista nas décadas iniciais da República. Com a
expansão do trabalho assalariado, dos investimentos em infraestrutura e do despontar de
São Paulo como maior pólo exportador de café do planeta, as elites paulistas passaram a
discutir sua integração no mundo do progresso e da civilização.
Durante o período republicano houve um salto nas relações de interdependência
entre fazendeiros e colonos, patrões e empregados, político e eleitores, e entre população
e polícia. A instituição policial foi ampliada, profissionalizada e a sua ação se disseminou
pelo espaço público como um dos pilares da nova ordem. Campos Salles defendeu a
mudança afirmando que "uma boa polícia é condição de um bom governo". O mesmo
discurso tinha o deputado Roberto Moreira, que dizia: "nenhum serviço nas sociedades
modernas sobreleva o da polícia", pois "sem ordem nada é possível na vida social, porque
teríamos o caos, a ignorância, a delinquência, o desfibramento do caráter".22

22
Pronunciamento de Campos Salles feito em 15 de janeiro de 1896. In: Eugênio Êgas. Galeria dos Presidentes de São Paulo –
Período Republicano 1889-1920. Vol.2. São Paulo: Seção de Obras d'O Estado de S. Paulo, 1927, p.92; Discurso do chefe de polícia
Roberto Moreira. In: Gabinete de Investigações e Escola de Polícia: Breve notícia sobre a inauguração oficial e 4 de julho de 1927.
São Paulo: Typ. da Escola de Polícia, 1927, p.4.

6
Lendo relatórios policiais e jornais, percebe-se que durante a República se
acentuou em São Paulo aquilo que Robert Reiner denominou "fetichismo de polícia", ou
seja, a pressuposição ideológica de que uma sociedade moderna deveria possuir uma
polícia eficiente, sem a qual o caos se instalaria. Por eficiente, entendia-se uma polícia
aparelhada para manter a ordem, aplicar a lei e deter a criminalidade. As polícias foram,
no seu entender, "instituições chave nas sociedades modernas", introduzidas para
propagar e proteger uma concepção dominante de ordem social que surgiu junto das
transformações socioeconômicas e culturais que da Europa se alastravam para o mundo.23
O século XIX assistiu a um assalto disciplinar, particularmente contra aqueles
segmentos que ameaçavam os pilares da ordem construída pelos Estados nacionais.
Buscando fortalecer sua autoridade, as classes proprietárias criaram leis para reprimir e
controlar aqueles que relutavam em aderir ao trabalho assalariado, às normas recém
criadas ou, simplesmente, eram excluídos do mercado de trabalho.24 O temor em relação
à instabilidade social e o aumento descontrolado do número de miseráveis nos grandes
centros urbanos serviram de justificativa para ações duras contra grupos rotulados de
"classes perigosas". Contra a ameaça de revolução e distúrbio da ordem, criaram-se
várias linhas de defesa. A primeira delas e mais recente era a polícia urbana, organizada
para impor ordem nas metrópoles européias. Seus dois principais modelos foram os
sergents de ville de Paris e os bobbies de Londres, ambos criados em 1829. Esse modelo
de polícia racional, uniformizada e disciplinada, serviu de inspiração para cidades como
Nova York (1845) e Berlim (1848).25
Uma segunda linha de defesa eram os corpos militarizados que faziam o
policiamento das áreas rurais. Esses corpos, inspirados no modelo francês, eram
conhecidos como gendarmerie. Seus integrantes eram ex-soldados e oficiais militares
encarregados de combater o contrabando, perseguir desertores, reprimir o banditismo e
fazer as leis serem obedecidas por todo o território nacional. Diversos Estados, entre eles
a Prússia (1812), o Piemonte (1814), a Rússia (1826), a Bélgica (1830), a Dinamarca
(1839), a Espanha (1844) e o México (1857), criaram gendarmeries para auxiliar nas

23
Robert Reiner. A Política da Polícia. São Paulo: Edusp, 2004, p.19; Tim Newburn and Robert Reiner. "Policing and the Police". In:
Mike Maguire et al. (Ed.). The Oxford Handbook of Criminology. New York: Oxford University Press, 2007, p.910-915.
24
Clive Emsley, Eric Johnson, and Peter Spierenburg (Ed.). Social Control in Europe, 1800-2000. Columbus: Ohio State University
Press, 2004, p.1-19.
25
Robert Gildea. Barricades and Borders: Europe 1800-1914. New York: Oxford University Press, 2003, p.123-124.

7
reformas políticas e econômicas.26 Uma terceira linha de defesa eram as milícias locais
ou Guardas Nacionais, criadas pelos proprietários durante a Revolução Francesa para se
protegerem da violência popular e do próprio Estado. Essas forças eram vistas com muita
reserva pelos governos. A Guarda Nacional de Paris, por exemplo, foi dispersa em 1827 e
as milícias inglesas, em 1814. Desde que a polícia foi pensada, no século XVII, até a sua
maturação como instituição encarregada da ordem pública e do controle e prevenção de
crimes, em meados do século XIX, ocorreu o mesmo: modelos de polícia diferentes
atuando em conjunto. A historiografia mostra que houve muita experimentação e
recriação de modelos ao redor do mundo. Xavier Rousseaux avalia que a principal
característica aplicada à polícia foi a sua capacidade de adaptação a diferentes culturas,
espaços geográficos, práticas judiciárias e regimes políticos.27
Num ensaio publicado em 2005, o historiador Clive Emsley escreveu que a
história das polícias e dos sistemas penais tem por hábito focar um país apenas, sem levar
em conta o que ocorre ao seu redor. Para Emsley, uma história interconectada torna
possível uma visão de conjunto mais apurada, lançando luz sobre conexões e interações
que se formam intencionalmente ou devido a uma sucessão de acontecimentos. Ao tomar
consciência desse quadro, o pesquisador percebe que focar na história puramente local é
perder algo.28 Ao editar uma coletânea de estudos sobre a formação das polícias
européias em 1991, Emsley observou que havia uma forte interação entre polícias de
diferentes países, com práticas, organização e leis distintas. Os estudos revelavam que,
embora cada polícia apresentasse características próprias, formaram-se entre elas canais
de comunicação formais e informais, com o objetivo de trocar experiências como se todas
elas fossem responsáveis pela manutenção de uma ordem comum.29 Cidades tão
diferentes quanto Bolonha e Hamburgo enviaram observadores para conhecer a famosa
polícia de Londres. O parlamento italiano chegou a debater as virtudes do bobby inglesi,
mas concluiu que a população da península, recém unificada, não estava preparada para
ter um policial desarmado patrulhando suas ruas.

26
Clive Emsley. Gendarmes and the State in Nineteenth-Century Europe. New York: Oxford University Press, 2002; Paul J.
Vanderwood. Disorder and Progress: Bandits, Police, and Mexican Development. Lanham: SR Books, 2009.
27
Xavier Rousseaux. "La police ou l'art de s'adapter: Adapter les odres ou s'adpter aux menaces". In: Jean-Marc Berlière et al. (Dir.).
Métiers de Police: Être policier en Europe, XVIII-XX siècle. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008, p.303-313.
28
Clive Emsley. "The changes in policing and penal policy in nineteenth-century Europe". In: Barry Godfrey and Graeme Dunstall
(Ed.). Crime and Empire 1840-1940: Criminal justice in local and global context. Devon: WP, 2005, p.8-24.
29
Clive Emsley and Barbara Weinberger (Ed.). Policing Western Europe: Politics, Professionalism, and Public Order, 1850-1940.
Westport: Greenwood Press, 1991.

8
Unindo estas polícias estava a necessidade de controlar o fluxo enorme de
pessoas que se deslocavam dos campos e cidades, atravessando fronteiras e oceanos em
busca de oportunidade e melhores condições de vida. A imigração de milhões de
trabalhadores para atender as exigências do mercado, dependente da circulação livre de
mercadorias, capital e mão de obra trouxe instabilidade às formas tradicionais de
dominação, provocando reação por parte das classes privilegiadas. A modernização das
polícias européias, norte-americanas e sul-americanas, num mesmo momento histórico,
foi uma resposta dos Estados às transformações globais. A polícia precisou ser
reinventada para controlar populações heterogêneas, flutuantes, ameaçadoras e
potencialmente revolucionárias. Construiu-se um verdadeiro pavor das multidões. O livro
de Charles-Marie Gustave Le Bon (1841-1931), Psicologia das Multidões, publicado em
1895 e traduzido em mais de dezesseis línguas, alertava que:

"A idade em que entramos será verdadeiramente a era das


multidões. (…) Hoje as reivindicações das multidões tornam-se cada
vez mais claras e tendem a destruir completamente a sociedade atual
para reconduzi-la ao comunismo primitivo, que era o estado normal
de todos os grupos humanos antes da aurora da civilização."30

A política sentia-se cada vez mais pressionada pelas massas, a imprensa, os


atentados anarquistas, as multidões e as greves gerais. O estudo da sociedade e dos
problemas sociais ganhou destaque e viu emergir um conceito de defesa social que
transpôs fronteiras como demonstram as coletâneas de trabalhos organizados por Ricardo
Salvatore, Carlos Aguirre, Gilbert Joseph e Frank Dikötter.31 Estudando suas práticas
dentro do Império Britânico, o pesquisador Barry Godfrey concluiu que a administração
colonial utilizava forças policiais para afirmar a superioridade da civilização ocidental e
inculcar formas de disciplina nos nativos.32 Na periferia do Império Britânico, foram as
elites locais que implementaram reformas visando controlar melhor a população e impor

30
Gustave Le Bon. Psicologia das Multidões. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.20-21.
31
Ricardo D. Salvatore et al. (Ed.). Crime and Punishment in Latin America. Durham: Duke University Press, 2001;
Frank Dikötter and Ian Brown (Ed.). Cultures of Confinement: A History of the Prison in Africa, Asia, and Latin America.
New York: Cornell University Press, 2007.
32
Barry Godfrey and Graeme Dunstall, op.cit., p.1-6.

9
padrões de comportamento valorizados por estas elites. O historiador Lyman Johnson
considera que, na medida em que o comércio mundial aproximou países, os governos
viram-se obrigados a impor novos mecanismos de controle que atendessem a novas
formas de exploração do trabalho.33
O argumento desse trabalho é que a modernização da polícia paulista é parte de
um fenômeno transnacional, ligado às transformações globais e ao projeto modernizador
das suas elites. As elites enriquecidas pelo café e a elas associadas procuraram impor aos
milhares de estrangeiros e nacionais que aqui aportaram padrões de comportamento e
disciplina percebidos como civilizados. Desejosa de adotar o padrão europeu como
modelo para a sociedade brasileira, estas elites se empenharam na construção de um
aparato moderno de segurança pública para enfrentar os desafios de uma nova era
pautada pela aceleração das mudanças. Buscando prevenir um colapso nas relações de
dominação, elas adotaram padrões de policiamento que possibilitavam intervir na vida
social controlando multidões, identificando indivíduos perigosos à ordem vigente e
estabelecendo um regime de verdade, isto é, modos de agir, pensar e viver.
O historiador C.A. Bayly, entre outros, sugere olhar para as transformações
globais como fenômenos interligados, que afetaram a forma das pessoas viverem em
sociedade.34 Para captar esse processo é preciso ir além do espaço local e enxergar
movimentos, conexões e trocas, ampliando o olhar do historiador, alargando fronteiras e
sugerindo caminhos para se pensar na modernização da polícia em São Paulo sob uma
ótica transnacional, mas sem perder de vista a força das realidades historicamente
situadas. Nos últimos anos, historiadores de diversas nacionalidades têm discutido a
elaboração de uma história voltada para a compreensão de processos, fluxos e conexões
que ultrapassam as fronteiras nacionais. Um dos seus expoentes, o professor de história
em Harvard, Akira Iriye, defende que a circulação de bens, capital e mesmo de ideias,
deveria ser observada mais como um fenômeno transnacional do que propriamente
internacional. Em outras palavras, o fluxo de bens e ideias colocou em contato, direta ou
indiretamente, indivíduos e grupos sociais de diferentes partes do mundo, alimentando

33
Lyman L. Johnson (Ed.). The Problem of Order in Changing Societies: Essays on Crime and Policing in Argentina and
Uruguay, 1750-1940. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1990, p.xi-xii.
34
C.A. Bayly. The Birth of the Modern World, 1780-1914. Malden, MA: Blackwell, 2005, p.1-21.

10
transformações culturais importantes que mudaram modos de pensar, agir e sentir
simultaneamente em diversos países.35
De maneira geral, os estudos transnacionais estão associados a esse fluxo,
característico daquilo que se convencionou chamar de modernidade. As historiadoras
australianas Ann Curthoys e Marilyn Lake definem a história transnacional como um
estudo dedicado à compreensão da forma como eventos e vidas passadas foram moldados
por processos que transcendem fronteiras políticas e geográficas. Para elas, a
compreensão histórica requer um movimento para além das fronteiras sedimentadas pelas
histórias nacionais, explorando conexões entre pessoas, ideias e eventos normalmente
pensados de forma distinta e separados.36 Respondendo a esse chamamento, um grupo de
350 acadêmicos de 25 países colaborou na edição do Palgrave Dictionary of
Transnational History. Nele, a polícia aparece como uma das instituições fundamentais
do mundo moderno, através da qual o Estado atuou sobre o espaço público para dirigir e
controlar as pessoas. Criada na França absolutista, mas reformada no século XIX a fim de
ordenar uma sociedade que vivia mudanças profundas, a polícia foi ocupando espaços até
tornar-se parte da vida dos grandes centros urbanos, de Xangai a Buenos Aires.37
O presente trabalho pretende estudar a polícia paulista através da sua ação, do
seu crescimento, dos seus discursos e da sua intervenção na vida de milhares de pessoas
nas primeiras décadas do século XX, quando se consolidou em São Paulo um aparato
policial profissionalizado para controlar e vigiar o espaço público, das ruas centrais da
metrópole até os rincões do estado, durante uma fase que chegou a ser chamada por
alguns escritores de "civilização do delegado". Na maior parte do texto, buscamos
mesclar análise com narrativa, reunindo experiências individuais e transformações
estruturais, tentando responder a questão de quem é policiado, por quem, de que maneira
e com que justificativa.
A apresentação do texto está organizada em um conjunto de painéis temáticos
que se sobrepõem para dar mais nitidez a um quadro que procura apreender, dentro do
possível, as relações tensas entre polícia e sociedade no interior de um projeto voltado

35
Akira Iriye. "Internationalizing International History". In: Thomas Bender (Ed.). Rethinking American History in a Global Age.
Berkeley: University of California Press, 2002, p.47-62.
36
Ann Curthoys and Marilyn Lake (Ed.). Connectes Worlds: History in Transnational Perspective. Canberra: The Australian National
University Press, 2005, p.4-6.
37
Akira Iriye and Pierre-Yves Saunier (Ed.). The Palgrave Dictionary of Transnational History. New York: Palgrave, 2009,
p.837-839.

11
para o progresso de São Paulo. O Capitulo 1 inicia examinando o desenvolvimento da
polícia no Brasil e o contexto político que contribuiu para a criação de uma polícia
profissionalizada e aparelhada em São Paulo. Discute a centralização política e o
fortalecimento do seu aparato estatal, o perfil das elites, dos chefes de polícia e as crises
que marcaram as primeiras décadas da República.
O Capitulo 2 trata da mitificação da polícia e o combate ao banditismo rural.
Descreve a dura realidade da polícia de carreira no interior do estado, o jogo político na
arena municipal e a vivência dos delegados num ambiente cercado de incertezas e
assassinatos por encomenda, o que resultou no crescimento de um espírito de corpo entre
eles. O Capitulo 3 entra no aspecto da organização urbana e da ordem social na Cidade
de São Paulo, aborda os conflitos entre nacionais e imigrantes, a violência policial, o
aumento dos crimes, as prisões, o discurso das autoridades, o crescimento urbano e o
trabalho policial no cotidiano da população. Já o Capitulo 4 versa sobre o controle do
mundo do trabalho, a criminalização da vadiagem e dos movimentos operários, o impacto
da grande imigração em São Paulo e no mundo para atender a economia de mercado.
Examina a difusão do anarquismo, os atentados contra chefes de Estado e a reação das
polícias pelo globo, implantando sistemas de identificação pessoal e acordos de
cooperação internacionais.
O Capitulo 5 analisa a modernização da polícia no imaginário público, a
contratação de especialistas estrangeiros para instruir a polícia paulista e discute a
atuação policial no processo de construção das representações que fazemos sobre crime e
criminosos, atentando para o movimento contínuo de discursos e práticas que ao serem
incorporados, ganhavam novos significados e passavam a fazer parte de um conjunto de
valores que modelava condutas, organizava as relações sociais e consolidava projetos
políticos, experiências coletivas e futuros imaginados. O Capítulo 6 encerra o nosso
estudo com a Revolução de 1930 e a afirmação da polícia como um órgão essencial para
estabilizar as relações entre grupos sociais conflitantes, estabelecendo padrões de ordem e
coesão exigidos pela sociedade industrial.

12
Polícia e modernidade
A palavra chave aqui é modernidade. O Brasil não seria um país moderno, não
se tornaria um país civilizado, se não se aculturasse adotando tecnologia e conhecimento
europeu. Portanto, como afirmou Ângela Castro Gomes, a República "Velha" foi um
tempo de intensa busca de modernidade.38 C.A. Bayly insiste que a modernidade do fin-
de-siècle era uma aspiração, um processo de emulação e adoção de ícones do progresso
que não conhecia fronteiras. Nesse sentido, o Egito de Mehmed Ali Pasha (1769-1848)
era moderno porque sua elite assim o via, celebrando uma ruptura com o passado e
idolatrando as novidades do ocidente.39 Para Le Goff, a ideia de modernidade está
fortemente associada à um sentimento de ruptura com o passado, escorado em um
conjunto amplo e visível de modificações econômicas, políticas e culturais.40
Entre 1870 e 1914, o número de ferrovias pelo mundo mais do que triplicou.
Passageiros podiam viajar de Pequim a Yokohama e de lá até Nova York, Londres, Paris
e Bruxelas, cruzar a Sibéria ou atravessar o continente africano, utilizando linhas
ferroviárias, canais e navios a vapor. As ferrovias transcontinentais complementavam as
rotas marítimas possibilitando o transporte de mercadorias e pessoas num tempo menor e
a um custo acessível. A engenharia, o aço e a dinamite mudaram a face do mundo unindo
pontos distantes do planeta.41 Jornais, revistas e produtos até então exóticos se
espalharam por todas essas linhas como artigos de consumo em massa. Entre 1880 e
1910, a produção de bananas cresceu de 30 mil para 1.8 milhões de toneladas; o cacau, de
60 mil para 227 mil toneladas e a borracha de 11 mil para 87 mil toneladas.42 As relações
de mercado que comandavam a economia mundial forjaram novas relações de produção
na Ásia, América do Sul e África, multiplicando o número de profissionais ligados a estas
transformações, como advogados, médicos e engenheiros treinados em escolas européias
ou que seguiam um mesmo corpo de conhecimento. O globo adquiriu assim uma natureza
multifacetada e interligada, levando o revolucionário Leon Trotsky (1879-1940) – que

38
Ângela de Castro Gomes. A República, a História e o IHGB. Belo Horizonte: Argumentum, 2009, p.21.
39
C.A. Bayly, op.cit., p.10.
40
Jacques Le Goff. História e Memória. Campinas: Unicamp, 2008, p.173-204.
41
Alexis Gregory. The Golden Age of Travel, 1880-1939. London: Cassell, 1998; Stephen R. Brown. A Most Damnable Invention:
Dynamite, Nitrates, and the Making of the Modern World. New York: St Martin's Press, 2005.
42
Jeffry A. Frieden. Global Capitalism: Its Fall and Rise in Twentieth Century. New York: Norton, 2006, p.22.

13
nasceu no interior da Rússia e morreu no México – a formular sua teoria sobre
desenvolvimento combinado e desigual.43
O mundo chamado hoje de Era da Informação começou em 1850 com o
telégrafo. Antes da sua invenção, uma carta demorava de cinco a oito meses para ir da
Índia até a Inglaterra. Mesmo depois que os navios a vapor se encarregaram do serviço
postal, a correspondência demorava em média seis semanas para fazer o mesmo percurso.
Com a instalação de uma linha telegráfica ligando Calcutá a Bombaim em 1854, as
notícias passaram a chegar no mesmo dia. O telégrafo conectou os mercados aos centros
financeiros, tornando as crises e os pânicos globais. O telégrafo também foi um
instrumento de poder, consolidando impérios e intensificando a supremacia da cultura
européia. Em 1892, havia 150 mil milhas de cabos submarinos ligando os quatro cantos
do planeta. A noção de tempo, espaço e informação sofreu mudanças conjuntamente com
as nações, os impérios e os indivíduos.44
Ao lado da circulação de informação, o público assistiu maravilhado a
circulação de imagens, primeiro fotográficas, depois cinematográficas. A fotografia
aproximou pessoas e lugares, estabeleceu identidades e povoou a imaginação popular. O
cinema, como explicou Georges Méliès (1861-1938), possibilitou às pessoas viajar por
lugares distantes sem sair da poltrona. Uma família francesa podia ver as paisagens da
Índia, China, Rússia ou África em troca de um ingresso. Tudo podia ser filmado:
cascatas, picos nevados, desertos e tribos nativas para serem exibidos a um público que se
dava conta que o mundo lhe pertencia.45 As inovações tecnológicas propiciaram o
desabrochar de uma consciência global difundida por pessoas educadas nos grandes
centros urbanos e econômicos. Entre eles haviam historiadores que se correspondiam,
organizavam congressos e refletiam sobre as mudanças globais na perspectiva do tempo.
O alemão Hans Helmolt (1865-1929) publicou em 1899 uma "História
Mundial" em nove volumes, onde se lê que o mundo havia de tornado pequeno depois
dos acordos internacionais de proteção intelectual, postagem, moeda e fuso horário.
Helmolt argumentava que as necessidades comerciais exigiam horários, medidas,

43
Leon Trotski. A História da Revolução Russa. Rio de Janeiro: Saga, 1967.
44
Daniel R. Headrick. The Tentacles of Progress: Technology Transfer in the Age of Imperialism, 1850-1940. New York: Oxford
University Press, 1988, p.97; Deep Kanta Lahiri Choudhury. Telegraphic Imperialism: Crisis and Panic in the Indian Empire, c.
1830. New York: Palgrave, 2010, p.1-8.
45
Hannu Salmi. Nineteenth-Century Europe: A Cultural History. Cambridge, UK: Polity, 2010, p.99.

14
contratos e moedas coordenados em nível global; logo, não havia mais partes do globo
isoladas.46 Missões cientificas, conferências internacionais, trocas de programas, projetos
e revistas especializadas aproximaram escritores, acadêmicos e cientistas. O século XIX
assistiu a emergência de um corpo híbrido de discursos conectados por uma elite
transcultural que, na maioria das vezes, havia estudado na Europa. Essa elite representava
um minúsculo pedaço de um gigantesco fluxo de pessoas que se deslocava pelas
fronteiras políticas e geográficas.47
Calcula-se que pelo menos 50 milhões de pessoas deixaram a Europa rumo à
América entre 1845 e 1914. A maior parte, 32 milhões, foi para os Estados Unidos,
servindo de mão de obra nas ferrovias, minas e indústrias; quatro milhões vieram para o
Brasil e outros seis milhões procuraram a Argentina. Três milhões de ingleses se
dirigiram para a Austrália e a Nova Zelândia. Um milhão e meio de alemães partiram
para a Rússia czarista em busca de trabalho e terra. Ao mesmo tempo, outros 48 milhões
de chineses, indianos e russos migraram para a Manchúria e o Sudoeste Asiático. A
China viveu um grande êxodo: meio milhão de chineses seguiu para Cingapura; 250 mil
trabalharam na extração de borracha na Malásia; 300 mil abriram estradas de ferro na
América do Norte; 117 mil foram para o Peru substituir trabalhadores mortos numa
epidemia; 64 mil tornaram-se mineiros na África do Sul; 42 mil desembarcaram na
Austrália durante a corrida do ouro; enquanto Cuba importou mais de 138 mil chineses
para trabalhar nos seus canaviais.48
O enorme contingente imigrante e de pessoas que abandonavam o campo rumo
aos centros urbanos necessitava ser controlado. Na América Latina, o surgimento de
polícias equipadas com tecnologias modernas de vigilância, identificação e comunicação
iguais às adotadas na Europa, acompanhou o ritmo do desenvolvimento atrelado à
exportação de matérias primas para as nações industrializadas. Regimes tão diversos
quanto os do México, Argentina, Brasil e Peru investiram na criação de polícias
modernas e deram a elas uma posição central na burocracia estatal. A polícia recebeu a

46
Matthias Middell. "World Orders in World Histories before and after World War I". In: Sebastian Conrad and Dominic
Sachsenmaier (Ed.). Competing Visions of World Order: Global Moments and Movements, 1880-1930s. New York: Palgrave,
2008, p.103-107.
47
Akira Iriye and Pierre-Yves Saunier, op.cit., p.547-550.
48
Eric R. Wolf. Europe and the People Without History. Berkeley: University of California Press, 1997, cap.12; Sebastian Conrad and
Dominic Sachsenmaier, op.cit., p.10; Akira Iriye and Pierre-Yves Saunier (Ed.), op.cit., p.205-208 e p.322-323.

15
missão de erguer as fronteiras da ordem – cada vez mais fluídas – e, ao mesmo tempo,
difundir novos hábitos entre a população.49
A modernização e a implantação efetiva de um policiamento em São Paulo
estão inseridas neste processo histórico mais amplo batizado por Karl Polanyi (1886-
1964) de a "Grande Transformação", cuja origem estava na Revolução Industrial. 50 Na
primeira metade do século XIX, a Inglaterra, principal centro industrial do mundo, viu-se
obrigada a abrir o mercado para os grãos produzidos fora do país. Tal medida visava
combater a inflação e manter o preço dos seus produtos competitivos, baixando o custo
da alimentação e dos salários. Esta foi uma grande oportunidade para os proprietários de
terra na América Latina se associarem ao mercado mundial e terem acesso aos seus bens.
A Argentina foi o exemplo mais bem sucedido dessa integração. Graças à abundância de
terra fértil, investimento estrangeiro e um mercado europeu generoso, o país alcançou
uma posição econômica invejável. Exportando basicamente trigo e carne congelada, e
importando bens industrializados, o padrão de vida em Buenos Aires chegou a exceder o
de algumas capitais européias.51
O Brasil também encontrou uma oportunidade dentro do comércio mundial,
mas com outro produto: o café. Da mesma forma que o chá, o cacau e o tabaco, o café
passou a ser largamente consumido, transformando-se no principal elo entre os países
produtores e a economia mundial.52 O consumo de bebidas estimulantes estava
intimamente associado à "Grande Transformação" pela qual passavam os países
industrializados. Durante o processo de mudança nas relações de trabalho, a Inglaterra
havia enfrentado um problema sério com o consumo de bebida alcoólica. A ingestão de
gim alcançou proporções de epidemia, precisando ser combatida com o aumento de taxas,
a regulamentação dos bares e a introdução de uma outra bebida formadora de hábito
menos danosa: o chá.53

49
Carlos A. Aguirre and Robert Buffington (Ed.). Reconstructing Criminality in Latin America. Wilmington, DE: SR Books, 2000;
Pablo Piccato. City of Suspects: Crime in Mexico City, 1900-1931. Durham: Duke University Press, 2001; Carlos Aguirre. The
Criminals of Lima and their Worlds: The Prision Experience, 1850-1935. Durham: Duke University Press, 2005.
50
Karl Polanyi. A Grande Transformação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000 (1944).
51
Victor Bulmer-Thomas. The Economic History of Latin America since Independence. New York: Cambridge University Press,
2003; David Rock. Politics in Argentina 1890-1930: The rise and fall of Radicalism. New York: Cambridge University Press, 2009.
52
William Roseberry et al.(Ed.). Coffe, Society, and Power in Latin America. Baltimore: Johns Hopkins University Press,1995.
53
Wolfgang Schivelbush. Tastes of Paradise: A Social History of Spices, Stimulants and Intoxicants. New York: Vintage
Books,1993, cap.5; Jessica Warner. Craze: Gin and Debauchery in an Age of Reason. New York: Random House, 2003.

16
Os altos níveis de embriaguez e violência interpessoal haviam se tornado
intoleráveis para as sociedades industrializadas, pois o trabalho de cada um dependia do
comportamento previsível do outro, demandando sobriedade, atenção e regularidade. A
Revolução Industrial e a sua concomitante revolução demográfica exigiram um
comportamento mais ordeiro e disciplinado que o sistema econômico anterior, onde
lavradores, artesãos e negociantes operavam com relativa liberdade e em um ritmo
próprio.54 Numa sociedade industrial, na qual o trabalho de um número crescente de
pessoas precisava ser sincronizado, a teia de ações teria que se organizar de forma mais
rigorosa e precisa. O indivíduo foi compelido a regular sua conduta de maneira mais
uniforme e estável, assim o Estado foi convocado para disciplinar uma população que
precisava se adequar aos novos meios de produção e sociabilidade. Da prática de esportes
à punição dos delitos, a população teve que se adaptar a um comportamento dito
civilizado.55
O café, como um produto estimulante e formador de hábito, encontrou nos
países industrializados um amplo mercado consumidor, a ponto de se tornar um produto
de consumo em massa. Seu potencial atraiu ricos investidores e, em 1882, Nova York
criava sua bolsa de café, seguida por Le Havre, Hamburgo e Londres. A instalação de
cabos telegráficos submarinos integrou definitivamente os mercados sul-americanos,
norte-americanos e europeus. Nesse momento, o Brasil era responsável por 60% da
produção mundial de café; cifra que se aproximou dos 90% em 1926.56 O capital
estrangeiro fluiu, trazendo novidades, bens de consumo e tecnologia, contribuindo para a
modernização do país.
Os fazendeiros do Centro Oeste paulista, capturados pelo ritmo intensivo da
economia industrial, investiram seus lucros na construção de ferrovias e em máquinas
para beneficiar café. Tal medida estimulou o emprego de mão-de-obra livre, pois
acreditava-se que o trabalho escravo, cada vez mais difícil de ser adquirido, era
incompatível com as máquinas. Para suprir os braços nos cafezais, os cafeicultores

54
E. P. Thompson. "Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial'. In: Id. Costumes em Comum: Estudos sobre a cultura
popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.267-304.
55
sobre o tema, vale ler Norbert Elias, op.cit., 1993, p.196; J. Carter Wood. Violence and Crime in Nineteenth-Century England: The
shadow of our refinement. New York: Routledge, 2004; e Anna Vemer Andrzejewski. Building Power: Architecture and
Surveillance in Victorian America. Knoxville: The University of Tennessee Press, 2008.
56
Steven Topik and Mario Samper. "The Latin American Coffee Commodity Chain: Brazil and Costa Rica".In: Steven Topik et al.
(Ed.). From Silver to Cocaine: Latin America commodity chains and the building of world economy,1500-2000. Durham: Duke
University Press, 2006, p.122 e 136.

17
pressionaram o governo pedindo subsídios para atrair imigrantes. O trabalho livre, sujeito
ao mercado, portanto mais barato e produtivo, desbancou o velho sistema escravista. A
modernização dos meios de produção ajudou a converter o trabalho escravo numa
instituição desmoralizada diante dos ideais europeus de civilização e progresso. Logo a
escravidão passou a significar uma excrescência no olhar daqueles que se incomodavam
com a sensação de atraso do país.57
As transformações tecnológicas e culturais da segunda metade do oitocentos
mudaram o modo das elites ilustradas enxergarem o país e a sua inserção no mundo. As
questões nacionais começaram a ser debatidas calorosamente através de um arsenal de
novas ideias retiradas do repertório liberal europeu. Gradualmente, o espaço público foi
sendo ampliado, surgindo associações, clubes, livrarias e jornais. Os meetings, a política
feita na rua, e a mobilização popular animaram os atores sociais a extravasar o desejo de
mudança.58 Cantando a Marselhesa em comícios, arautos do progresso como Silva
Jardim (1860-91) denunciavam o regime monárquico como um entrave para o
desenvolvimento da nação. Alimentados por teorias evolucionistas em voga na Europa,
essa elite contestadora defendia a República como sendo o regime do mundo moderno e o
único capaz de transformar o Brasil numa nação desenvolvida, sem abalar as bases da
ordem social. Evolução, não revolução, era a palavra de ordem dos líderes republicanos.59
Para uma parcela considerável da opinião pública, a monarquia havia se
transformado em um regime esclerosado, sem projeto, empurrado pelos acontecimentos.
Revistas ilustradas publicavam caricaturas do Imperador, sempre sonolento, sobre um
caramujo, com os dizeres: "Aqui repousa o progresso social do Império". 60 O estado
doentio de D. Pedro II agravava ainda mais a situação, pois retirava do sistema político o
seu principal sustentáculo. Por fim, a inabilidade do regime em lidar com as reformas
pedidas levou a uma crise política que culminou no golpe de 1889. No dia 15 de
novembro, militares insatisfeitos, apoiados por um grupo de cafeicultores, depuseram o
Imperador proclamando a República. Apesar do golpe não ter encontrado resistência, a

57
Emília Viotti da Costa. Da Monarquia à República. São Paulo: Unesp, 2007, cap.7.
58
Maria Teresa Chaves Mello. A República Consentida: cultura democrática e cientifica no final do Império. Rio de Janeiro: FGV,
2007.
59
Maria Fernanda Lombardi Fernandes. A Esperança e o Desencanto: Silva Jardim e a República. São Paulo: Humanitas, 2008;
Sérgio Buarque de Holanda (Dir.). História Geral da Civilização Brasileira. Vol.7. Do Império à República. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2005, p.303.
60
Maria Teresa Chaves Mello, op.cit., p.128-129.

18
situação se deteriorou rapidamente. Banqueiros e comerciantes, temendo um cenário de
instabilidade, enviaram fortunas para o exterior, provocando um colapso na Bolsa de
Valores do Rio de Janeiro.61 A derrubada do regime monárquico acabou trazendo
instabilidade, indefinição e, consequentemente, insegurança. O Brasil precisava de ordem
e regras claras. Ciente disto, o Governo Provisório formou uma comissão para elaborar
um projeto de Constituição. Houve pressa nos trabalhos. Boatos de golpes, rebeliões e
surtos de febre amarelada apressaram os constituintes.62
No dia 24 de fevereiro de 1891, a Assembléia Constituinte aprovou uma nova
Constituição, garantindo a autonomia dos estados e a eleição direta para presidente da
República. A medida beneficiava sobretudo os fazendeiros de café do Sudoeste, pois o
sistema federalista assegurava-lhes não só o controle dos seus rendimentos, mas também
dava condições a eles de usar o seu poder econômico para decidir os destinos da jovem
República. A liberdade de expressão, a propriedade privada e o investimento financeiro
foram constitucionalmente assegurados, enquanto se proibia terminantemente a
intervenção do Estado nas relações trabalhistas com a finalidade de garantir uma mão-de-
obra barata e sem custos.63 O Congresso criava defesas para o livre mercado sem levar
em conta a realidade do país, marcada por uma profunda desigualdade no campo social e
econômico. A preocupação dos constituintes parecia ser unicamente a de garantir
instituições que proporcionassem um desenvolvimento econômico subordinado ao
mercado mundial, mesmo que ele alimentasse a disparidade entre ricos e miseráveis.
Quanto a isso, o relator da Constituição, o sergipano Gumercindo Bessa (1859-1913),
declarava:

"Sei que o que choca dolorosamente o ânimo desses


idealistas é o grande escândalo das desigualdades sociais. Mas essas
desigualdades nem foi o Direito que as criou, nem cabe ao Direito o
poder de destruí-las. (…) A grande riqueza de poucos, a profunda
miséria da maioria, é resultante de uma lei natural, inelutável como a

61
John Schulz. A Crise Financeira da Abolição. São Paulo: Edusp, 1996, p.82.
62
Agenor de Roure. A Constituinte Republicana. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1920.
63
O historiador Stephen Haber ressalta o cuidado dos republicanos em aprovar leis que garantissem a entrada de capital no país. Ver
Stephen Haber. "Financial Markets and Industrial Development: a comparative study of governmental regulation, financial
innovation, and industrial structure in Brazil and Mexico, 1840-1930". In: id (Ed.), How Latin America Fell Behind: Essays on
Economic Histories of Brazil and Mexico, 1800-1914. California: Stanford University Press, 1997, p.146-178.

19
da gravitação. (…) O homem não pode ser coagido a praticar o bem;
o Estado não pode suprimir a miséria. Pode e deve fundar asilos e
hospitais, não pela direta motivação da caridade, mas por força da sua
ação preventiva do desequilíbrio da ordem legal."64

Bessa fazia parte de uma intelectualidade que se alimentava de autores


estrangeiros e era composta basicamente de bacharéis que dominavam a vida política, a
administração pública, os fóruns e a imprensa. Longe de constituírem um grupo
homogêneo, esses intelectuais tinham em comum a convicção de que as instituições
brasileiras precisavam se adaptar às mudanças do mundo.65 Somente uma reforma
institucional seria capaz de converter uma população indigente numa nação harmoniosa,
progressista e civilizada. Portanto, o que estava em jogo era a construção de uma nação
de trabalhadores ordeiros, pacatos e sóbrios. Cidadãos moralizados pelas leis e o
trabalho.66 Por conta disso, o marechal Deodoro da Fonseca (1827-92), chefe do Governo
Provisório, agiu com determinação, afirmando que "para assegurar a prosperidade e o
prestígio das novas instituições, o principal dever da autoridade é executar a lei sem
vacilação, e o do cidadão o de obedecer-lhe sem condição".67
Nada era tão importante naquele momento quanto a sinalização de que o país
tinha comando. No Rio de Janeiro, a polícia agiu prontamente prendendo desocupados,
deportando capoeiras e derrubando cortiços. A modernização da capital da República
serviu de justificativa para o governo mover uma perseguição feroz contra a população
pobre e indisciplinada da cidade.68 Nestas ações transparecia a necessidade de mostrar
autoridade e impor ordem. Desde os anos 1870, emergia no Rio de Janeiro uma massa
urbana formada de escravos, libertos, imigrantes, soldados desmobilizados e pequenos
infratores, chamados pelos jornais de "gente desclassificada". Essa multidão assolada
pela carestia, a falta de moradia e as péssimas condições sanitárias, se impunha através

64
Sílvio Romero. Ensaio de Filosofia do Direito. São Paulo: Landy, 2001 (1895), p.124-125.
65
Lilia Moritz Schwarcz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001; Ângela M. Alonso. Ideias em Movimento: a geração 70 na crise do Brasil Império. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2002.
66
Iraci Galvão Salles. República: A Civilização dos Excluídos. Representações do trabalhador nacional 1870-1919. São Paulo, 1995.
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História da USP.
67
Mensagem dirigida ao Congresso Nacional pelo Generalíssimo Manoel Deodoro da Fonseca, chefe do governo provisório da
República dos Estados Unidos do Brasil, em 15 de novembro de 1890. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1890, p.9.
68
Sidney Chalhoub. A Guerra contra os Cortiços. Cidade do Rio, 1850-1906. Campinas: Unicamp, 1999.

20
dos quebra-quebras. As revoltas populares explodiam e se dissipavam trazendo à tona
conflitos sufocados por longo tempo.69 O governo republicano tentava reprimir com vigor
essas manifestações, ao mesmo tempo em que discutia formas de educar e inculcar
valores cívicos na população. O ministro da Instrução Pública avaliava:

"Para fundar a República não basta proclamá-la e decretar a


liberdade. É necessário criar o meio que a torne viável, e para esse fim
procurar fazer penetrar em todas as camadas sociais as ideias justas e
morais para que, bem compreendida a liberdade, possam subsistir as
instituições republicanas."70

Contudo, os descrentes alertavam que a formação do cidadão era lenta e difícil.


Não havia escolas ou professores suficientes no Brasil, não havia material nas escolas,
além disso, o analfabetismo se impunha como um sério obstáculo ao seu
aprimoramento.71 Nesse contexto, os mais realistas defendiam que a verdadeira "reforma
do povo" teria que vir da imposição de leis e normas carregadas de um imenso sentido
simbólico. A modernização da sociedade brasileira não se faria somente nas salas de aula,
mas no dia a dia do cidadão, através de um código de leis. Por conta disso, coube à
polícia o papel de auxiliar na reforma dos costumes, sem a qual o país não atingiria o tão
almejado progresso; um progresso desigual e dissociado da melhoria das condições de
vida das pessoas comuns.
Há tempos vinham sendo implementadas mudanças nas instituições penais e
policiais, porém a República deu uma maior velocidade às reformas. "Cumpria
acompanhar o progresso que segue rápido e não espera por ninguém", escrevia o
Visconde de Taunay (1843-99).72 O desejo em transformar a capital da República em um
cartão postal aos olhos estrangeiros levou as autoridades a investirem no policiamento do
Rio de Janeiro. Era preciso apagar os sinais de atraso e reconstruir a cidade mais

69
Ronaldo P. de Jesus. Visões da Monarquia: escravos, operários e abolicionismo na Corte. Belo Horizonte: Argumentum, 2009,
p.123-138.
70
Relatório apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Dr. João Barbalho Uchoa Cavalcanti, Ministro
de Estado dos Negócios de Instrução Pública, Correios e Telegraphos, em maio de 1891. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891,
p.4.
71
Ângela de Castro Gomes, op.cit., p.85-105.
72
Visconde de Taunay. O Encilhamento. São Paulo: Melhoramentos, 1930, p.27.

21
importante do país. A jovem República pretendia fazer do seu principal porto uma porta
de entrada da nação. Os velhos obstáculos que se colocavam à frente do progresso foram
devassados pelos planos urbanistas e médico-sanitários. A polícia ocupou uma posição
destacada dentro do projeto modernizador republicano, controlando o uso do espaço
público, impondo regras de conduta e reprimindo toda e qualquer manifestação contrária
à ordem.73
A polícia do Rio de Janeiro foi alvo de reformas continuadas com o objetivo de
fazer dela um instrumento efetivo de uma ordem estabilizadora. São Paulo não ficou atrás
do Rio de Janeiro. No espaço de duas décadas, o aparelho policial paulista foi convertido
em uma instituição modelar. Investindo em uma polícia moderna e equipada, as elites
paulistas pretendiam erguer as fronteiras da ordem e impor um "choque de civilização"
nos milhares de imigrantes e pessoas desenraizadas que fugiam da miséria e se
amontoavam nos seus centros urbanos, tornando-se operários, sapateiros, tipógrafos,
carroceiros, carregadores, pedreiros, ferroviários, empregados domésticos, vendedores de
jornal, biscateiros e até mesmo policiais.74

73
Marcos Luiz Bretas, op.cit., p.49-57.
74
ver Ana Montoia. "O ideal de cidade: a reforma dos costumes e a gênese do cidadão em São Paulo no século XIX". In: Paula Porta
(Org.). História da Cidade de São Paulo. Vol.2. São Paulo: Paz e Terra, 2004, p.153-185.

22
1. Polícia e política

"Cada vez mais se confirma que o atual regime fornece ao


estado os mais amplos e eficazes elementos de felicidade e riqueza,
em pleno gozo de uma esplendida civilização, desde que a sua
atividade se desenvolva pacificamente, livre de agitações e abalos
que perturbem o seu andamento".
Bernardino de Campos 1

Com estas palavras, Bernardino de Campos (1841-1915) externava sua convicção


na manutenção da ordem como condição essencial do progresso e da civilização. Uma
ordem imposta de cima para baixo, preservando-se a antiga estrutura social baseada no
monopólio dos instrumentos de poder e riqueza. Os indivíduos mais ricos e poderosos de
São Paulo haviam acumulado fortunas com a agricultura e o comércio, procurando proteger
seus investimentos e patrimônio através da política. Eleito governador de São Paulo em
1892, Bernardino ressaltava que São Paulo tinha agora uma "organização policial forte",
que "se aperfeiçoava diariamente" para garantir a tranquilidade pública e o
desenvolvimento econômico.2
O governador sabia que o regime anterior fora marcado por um policiamento
deficiente, alvo de críticas e reclamações por parte daqueles que se sentiam inseguros
diante das mudanças que ocorriam na sociedade. As transformações econômicas e sociais
ocorridas ainda durante o Império haviam levado fazendeiros e parte dos habitantes das
cidades e vilas a apoiarem-se cada vez mais no Estado para controlar uma população que
crescia ano a ano. Num momento específico da nossa história, em que o regime escravista
se desarticulava e promovia-se uma imigração em massa para atender a necessidade de mão
de obra, a polícia despontava como uma mediadora importante dessa integração conflituosa

1
Mensagem apresentada ao Congresso de S. Paulo, a 7 de Abril de 1893, pelo Dr. Bernardino de Campos, Presidente do Estado. São
Paulo: Typ. do Diário Official, 1916, p.20.
2
Idem, p.41.

23
entre a modernização desejada e a manutenção das relações de poder que garantiam as
hierarquias sociais.
De fato, a sociedade paulista passou a conviver com uma força policial
permanente e estável somente a partir das décadas finais do Império, o que não significa
que ela fosse completamente despoliciada. Havia, desde o período colonial, quadrilheiros e
inspetores de quarteirão escolhidos por juizes locais que tinham poder para convocar
milícias ou uma guarnição do exército para salvaguardar a ordem. O caráter pessoal
paternalista das relações sociais e o convívio orgânico próprio dos pequenos perímetros
urbanos retardaram o processo de institucionalização da polícia em São Paulo até chegarem
levas de imigrantes para atender a economia cafeeira, disputando espaço com os milhares
de ex-escravos e pessoas pobres que improvisavam estratégias de sobrevivência nas franjas
da sociedade.3

A formação da polícia no Brasil


Quando a Independência foi formalizada em 1822, a polícia estava ausente do
cotidiano das pessoas em grande parte do território brasileiro. À exceção da Corte no Rio
de Janeiro, que possuía uma Intendência Geral de Polícia, criada por D. João VI em 1808,
as cidades e vilarejos careciam de qualquer força policial. A Intendência de Polícia era uma
cópia do Lieutenant-Général de Police de Paris, instituído por Luís XIV em 1667. Com a
transferência da família real para o Brasil, o rei achou por bem instalar aqui uma instituição
que servia a Coroa portuguesa há quase meio século. Cabia ao Intendente de Polícia
transformar o Rio de Janeiro em um lugar digno da Corte portuguesa. Seu poder era
praticamente ilimitado e a sua vontade só era freada pela vontade do rei. Estava em suas
mãos desde o abastecimento da cidade até as obras públicas e da limpeza e iluminação das
ruas até a internação dos mendigos. Na visão dos teóricos iluministas, a polícia era um
órgão essencial da administração da cidade, para atender o desenvolvimento econômico e
de tudo que estava relacionado com o bem estar geral.4

3
Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995; Lílian Lisboa Miranda.
Gentes de Baixa Esfera em São Paulo: Quotidiano e Violência no Setecentos. São Paulo, 1997. Dissertação de Mestrado em História
Social na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP; Denise A. Soares de Moura. Sociedade Movediça: economia,
cultura e relações sociais em São Paulo, 1808-1850. São Paulo: Unesp, 2007.
4
Thomas H. Holloway, op.cit., p.46-51; George S. Rigakos et al. (Ed.). A General Police System: Political Economy and Security in the
Age of Enlightenment. Ottawa: Red Quill Books, 2009, p.1-28.

24
A Intendência Geral de Polícia abraçava poderes jamais vistos e o seus ocupantes
eram fidalgos da mais extrema confiança do rei. A polícia de Paris serviu de modelo para as
cortes européias, a começar por São Petersburgo (1718), depois Berlim (1742), Viena
(1751), Nápoles (1779) e Madri (1782).5 Em 1760, um alvará do rei português criou a
Intendência Geral de Polícia, com o propósito declarado de implantar a "boa ordem" em
Lisboa.6 A criação de intendências de polícia nas principais cortes européias estava ligada
ao que Foucault chamou de governamentalidade, uma mudança na forma dos governantes
lidarem com os problemas de abastecimento, moradia e concentração urbana, ou seja, um
conjunto de procedimentos que teve como alvo principal a população. Por
governamentalidade, Foucault entendia um processo, uma linha de força pelo qual o Estado
medieval converteu-se em um Estado administrativo a partir do século XVIII. O sociólogo
alemão Norbert Elias (1897-1990) descreve este mesmo processo, no qual o Estado passou
a operar um controle maior sobre a vida dos indivíduos – cobrando taxas, reprimindo a
violência privada, administrando a justiça e punindo os infratores exemplarmente – de
outro modo. Para Elias, a complexidade crescente nas relações econômicas e de processos
cada vez mais intensos de diferenciação funcional culminaram na formação do Estado
absolutista. Toda essa reorganização de relacionamentos humanos se fez acompanhar de
mudanças igualmente intensas nos hábitos e na estrutura da personalidade das pessoas, cujo
resultado foi o estabelecimento de normas de conduta e sentimentos tidos como
"civilizados". Esse foi um processo de longa duração que Elias chamou de processo
civilizador, através do qual operou-se uma centralização dos poderes coercitivos dos
Estados que permitiu a concentração de capital e o surgimento de uma economia de
mercado.7
No Brasil, a abertura dos portos em 1808 integrou a antiga colônia em um novo
sistema econômico internacional que tinha na Inglaterra seu centro vital. O aprofundamento
do processo de Independência, por sua vez, intensificou a reforma das instituições herdadas
do período colonial para consolidar o novo arranjo de poder. O predomínio de uma classe

5
David Bayley. Padrões de Policiamento. São Paulo: Edusp, 2001, p.51; Clive Emsley, op.cit., 2007, p.64; Catherine Denys et al. (Dir.).
Réformer la Police: Les mémoires policiers en Europe au XVIII siècle. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009.
6
João Mendes de Almeida Júnior. O Processo Criminal Brasileiro. Rio de Janeiro: Batista de Souza, 1920, p.157; Flávio Borda d'Água.
Catástrofe e ordem pública: o terremoto de 1755 e a criação da Intendência Geral de Polícia da Corte e do Reino. Disponível em:
<http://unige.academia.edu/FlavioBordadAgua>. Acesso em 7 de junho de 2011.
7
Michel Foucault. Estratégia, Poder-Saber. Org. Manoel Barros da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003, p.281-305;
Nobert Elias. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.

25
de proprietários, cujos interesses se identificavam com as necessidades do Estado, foi
decisivo para a manutenção da unidade nacional e do sistema escravista no Brasil, embora
não houvesse consenso sobre qual seria o arranjo institucional mais conveniente para os
vários grupos dominantes. Após a abdicação de D. Pedro I, prevaleceu o fortalecimento dos
poderes locais, deixando a cargo das províncias o policiamento da população. Em 1831, a
questão é abraçada pelo ministro da justiça Diogo Feijó (1784-1843), que alertava sobre a
necessidade de uma organização policial por todo o país para debelar os motins e o
sentimento de anarquia que ameaçavam a unidade do território nacional.8
Examinando processos e relatórios, Ivan de Andrade Vellasco chegou à conclusão
que na maior parte do território nacional, à exceção da Corte e de algumas poucas capitais
de província, parece ter existido uma sociedade sem policiamento ou, pelo menos, muito
pouco policiada.9 Com o aprofundamento do processo de independência no período da
Regência, foram instituídas várias forças para defender a ordem nas províncias, como a
Guarda Nacional, as Guardas Municipais e os Corpos Policiais Permanentes, além de um
Código de Processo Penal que procurava fortalecer os poderes locais. O Código
concentrava o poder de polícia nas mãos dos juizes de paz eleitos nas localidades. O juiz de
paz era uma pessoa na maioria das vezes sem formação bacharelesca, sem remuneração e
que acumulava amplos poderes para prender, formar culpa e nomear inspetores de
quarteirão pelo seu distrito. Na prática, o juiz de paz era uma extensão do poder de
potentados locais, arbitrando disputas e exercendo uma forma de paternalismo sobre as
classes inferiores que se apoiava em uma rede de dependências. Os críticos deste sistema
alegavam que o juizado de paz trazia um ingrediente de instabilidade preocupante, pois ao
invés de aplacar as tensões locais, ele acirrava as disputas políticas. De qualquer modo, o
período Regencial sofreu uma série de rebeliões que aproximaram liberais e conservadores
em torno da necessidade de avançar no processo de centralização da máquina
administrativa e fortalecimento das instituições.10
Em 1841, o Conselho de Estado foi restabelecido e o Código de Processo
Criminal, modificado, retirando os poderes dados aos juizes de paz e colocando-os nas

8
Relatório do Exmo. Ministro da Justiça Diogo Antônio Feijó, ano de 1831, p.5.
9
Ivan de Andrade Vellasco. "Policiais, pedestres e inspetores de quarteirão: algumas questões sobre as vicissitudes do policiamento na
província de Minas Gerais (1831-50). In: José Murilo de Carvalho (Org.). Nação e Cidadania no Império: novos horizontes. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.239-265.
10
Thomas Flory. El juez de paz y el jurado en el Brasil imperial. México: Fondo de Cultura Economica, 1986, p.168-169.

26
mãos de delegados de polícia indicados pelo governo central. Todo o aparelho
administrativo e judiciário voltou à esfera do governo central. Cada capital de província
passou a ter um chefe de polícia nomeado pelo Imperador. Na prática, as nomeações
partiam do ministro da justiça, que escolhia os chefes de polícia entre juízes,
costumeiramente de fora da província. Cabia ao chefe de polícia nomear e fiscalizar os
delegados, que tinham poder para dar buscas, prender, investigar, pronunciar e conceder
fiança. Além disso, os delegados nomeavam escrivães, subdelegados, inspetores de
quarteirão e organizavam a lista dos jurados.11 O posto de delegado não exigia diploma,
não recebia remuneração e a sua rotatividade era extremamente alta. Em praticamente todos
os relatórios dos chefes de polícia de São Paulo a queixa era a mesma: o cargo de delegado
era difícil e espinhoso, sendo evitado por pessoas de melhor condição social. “Os cargos
policiais não são ambicionados por cidadãos honestos. Há muita dificuldade em conseguir
que homens respeitáveis e independentes aceitem e exerçam tais cargos”, lamentava o
chefe de polícia Sebastião José Pereira em 1871.12
A centralização política, conhecida na historiografia como Regresso, criou uma
estrutura efetiva de polícia, centralizada e coesa, sob controle de um chefe de polícia em
cada província.13 Políticos que perdiam com o esvaziamento da autonomia provincial
reagiram contra a sua criação. O senador liberal José de Alencar (1829-77) denunciou em
plenário que: “quem quer a centralização (…) são os que aspiram aos postos e a
governança, porque querem ter bastante clientela e muitos pretendentes que deles
dependam para conseguirem empregos”.14 Nas palavras de Tavares Bastos (1839-75),
montava-se uma máquina que ia do Imperador ao inspetor de quarteirão, privilegiando
aqueles que desfrutavam de contatos na Corte.15
Ainda assim, a polícia estava longe de ser uma burocracia moderna no sentido
weberiano.16 As nomeações e promoções eram feitas na base do apadrinhamento,
inexistindo qualquer sistema de avaliação ou mérito. A distribuição de empregos públicos

11
José Antônio Pimenta Bueno, op.cit., p.24; Aparecida Sales Linares Botani. Justiça e Polícia na Administração Provincial. Manuscrito
sem notas tipográficas. 285 p. (APESP).
12
Relatório da Repartição de Polícia da Província de São Paulo, 1871. São Paulo: Typographia Americana, 1872, p.16.
13
Ivan de Andrade Vellasco. As Seduções da Ordem: violência, criminalidade e administração da justiça. Minas Gerais, século 19.
Bauru: Edusc, 2004, p.133-147.
14
Miriam Dolhnikoff. O Pacto Imperial: origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Editora Globo, 2005, p.142.
15
Tavares Bastos. A Província: estudo sobre a descentralização no Brazil. São Paulo: Editora Nacional, 1937 (1870), p.159.
16
Max Weber. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 2002, p.138-170; Fernando Luiz Abrucio, Paula Pedroti e Marcos Vinicius
Pó. "A formação da burocracia brasileira: a trajetória e o significado das reformas administrativas". In: Maria Rita Loureiro et al.
(Org.). Burocracia e Política no Brasil: Desafios para a ordem democrática no século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2011, p.27-71.

27
garantia apoio político e prestígio social não criando impedimento algum ao nepotismo.
Fazendeiros, políticos e comerciantes monopolizavam as nomeações, consolidando seu
domínio sobre o restante da população. Ter um padrinho bem posicionado ou pertencer a
uma família de prestígio garantia acesso ao cargo de chefe de polícia, servindo de degrau
para se atingir posições de maior relevo, como presidente de província, um assento nos
tribunais superiores ou até mesmo um ministério.17 Na visão de Emilia Viotti da Costa, a
burocracia imperial, da qual a polícia e o judiciário eram parte integrante, serviu sobretudo
para reforçar o sistema de clientela e perpetuar o poder das elites senhoriais.18
O Código de Processo Penal de 1841 estabeleceu que os delegados ficariam
incumbidos de auxiliar a justiça, apurando crimes e elaborando inquéritos. Por outro lado, o
policiamento preventivo continuaria sendo objeto da província, que respondia pelas forças
locais para garantir a manutenção da ordem, o patrimônio e auxiliar os delegados de
polícia. Esse arranjo esbarrou na falta de recursos crônica em que vivia a maior parte das
províncias. São Paulo tinha uma gendarmerie ostensiva, ainda que pouco numerosa, que
recebeu o nome de Corpo Policial Permanente. Criada para servir de contraponto à Guarda
Nacional, como forma de garantir um corpo militar que pudesse confrontar as milícias
locais, o seu contingente era pequeno, mal pago e composto de pessoas indisciplinadas, de
físico mirrado, saúde fragilizada e cor amorenada, descreve André Rosemberg. Por conta
da falta de recursos, quase tudo nela era precário, dos recrutas ao equipamento.19
A precariedade da ação policial aparece repetidamente nos relatórios. Em um
deles, datado de 1875, o ministro da justiça dá a saber:

"Mencionar a insuficiência de força como uma das causas,


senão a principal, dos resultados negativos da polícia, é reproduzir o que
a evidência demonstra a cada instante e por toda a parte. As províncias
não têm recursos para prover esta necessidade; e são constantes as
requisições de forças de linha, que nem sempre o governo pode

17
José Murilo de Carvalho. A Construção da Ordem: a elite política imperial. Brasília: Unb, 1980. O relatório do Ministro da Justiça de
1873 traz, em seus anexos, uma tabela com nomes de todos os juizes, desembargadores e chefes de polícia do país. Esse quadro permite
visualizar um interessante painel da burocracia encarregada de prover a ordem no Brasil.
18
Emília Viotti da Costa, op.cit., p.250-253.
19
André Rosemberg, op.cit., p.201. Seu contingente, segundo Rosemberg, variou de 400 a 1500 homens entre 1870 e 1889, torndo-se a
“materialização do poder e da presença do Estado nas regiões mais remotas da província”. Ver André Rosemberg. “Significados do
militarismo na Força Pública de São Paulo (1870-1924)”. Paper apresentado no XXVI Simpósio Nacional de História, 2011.

28
satisfazer. É manifestamente exíguo o auxílio dos cofres gerais. (…) A
força pública disponível é diminuta, mal remunerada, inapta para a sua
especialidade, e portanto falecem os meios de execução, sem os quais se
inutilizam os esforços das autoridades, e tornam-se infrutíferas as
diligências."20

São Paulo, ao que tudo indica, fazia parte desse quadro. Em 1870, a delegacia da
Capital contava com um único delegado, um professor da Faculdade de Direito (que se
apegou ao cargo e nele permaneceu por quase trinta anos), além de um secretário e quatro
amanuenses. Quando um deles adoecia, atrasava-se todo o serviço. Havia, segundo o
relatório de 1871, 744 processos pendentes na delegacia.21 Para dar conta do serviço,
aumentando o número de delegados ou serventes, o chefe de polícia precisava recorrer ao
ministro da justiça, visto que a delegacia de São Paulo estava classificada, em termos de
recursos, abaixo da Bahia, Pernambuco, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Maranhão,
equiparada apenas à da província da Paraíba do Norte.22 As verbas dependiam da Corte,
motivando queixas que reforçavam a propaganda republicana. Em 1875, o Correio
Paulistano criticava numa nota ácida o tratamento dispensado a São Paulo:

“Tratem os capitalistas de aferrolhar seus cofres. O governo


imperial que há bem pouco decidiu-se auxiliar a manutenção das forças
policiais das províncias, eliminou entretanto o número de auxiliares da
força policial deste querido S. Paulo. Porquê?
A razão é obvia: porque a província tem rios de dinheiro e não
precisa de favores, ou então não precisa de polícia.” 23

20
Relatório apresentado à Assembléia Geral Legislativa na primeira sessão da décima sexta legislatura pelo Ministro e Secretário de
Estado dos Negócios da Justiça Conselheiro Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque. Rio de Janeiro: Instituto Typographico do
Direito, 1877, p.34.
21
Relatório da Repartição da Polícia da província de S.Paulo apresentado pelo chefe de polícia Sebastião José Pereira em 7 de janeiro de
1871. São Paulo: Typographia Americana, 1871, p.21. Sobre o delegado de São Paulo, o Conselheiro Francisco Maria de Souza
Furtado de Mendonça (1812-90) ver Geraldo Cardoso de Mello. "Conselheiro Furtado". In: Investigações, nº28, abril de 1951, p.103-
106; Maria Cristina Cortez Wissenbach, Sonhos Africanos, Vivências Ladinas: escravos e forros em São Paulo (1850-80). São Paulo:
Hucitec, 1998, p.43.
22
Relatório apresentado ao Ilmº e Exº Snr. Dr. Sebastião José Pereira presidente da província de São Paulo pelo chefe de polícia bacharel
Elias Antonio Pacheco Chaves aos 25 de janeiro de 1877. São Paulo: Typ. Jorge Seckler, 1877, p.43; Relatório apresentado ao Ilmº e
Exmº Snr. Dr. João Batista Pereira presidente da província de S.Paulo pelo chefe de polícia Joaquim de Toledo Piza e Almeida. São
Paulo, 10 de novembro de 1878. Santos: Typ. do diário de Santos, 1879, p.23.
23
Correio Paulistano, 7 de novembro de 1875.

29
O protesto acontecia no momento em que São Paulo, sede de uma província em
acelerada expansão econômica, tentava a implantar um policiamento preventivo na Cidade.
Para esse fim, foi criado em 1875 o corpo de Urbanos. Pensou-se até no uniforme dos seus
praças: uma túnica simples de cor escura, discreta, com botões prateados. Caberia a eles
prevenir os crimes e fazer valer as normas dispostas nos códigos municipais. O seu
regulamento revela posturas inspiradas na polícia londrina, tratando do aspecto e do
comportamento dos seus recrutas. Fica bastante evidente o desejo de se montar uma polícia
compatível com as novas demandas do progresso e da modernidade, porém não havia
dinheiro para mantê-los. O seu contingente era pequeno e mal pago; faltava-lhes tudo, até
calçados.24 Num relatório, o comandante da guarda comentou que as pessoas mais
instruídas estavam empregadas nas ferrovias ou em trabalhos melhor remunerados e só os
25
excluídos iam para as suas fileiras.
A partir da década de 1870, os jornais passaram a noticiar roubos e furtos quase
que diariamente. Os jornais destacavam que os delinquentes eram, na maioria dos casos, de
fora da província.26 Em 1879, o novo chefe de polícia, pressionado pela opinião pública,
recomenda o desmembramento da delegacia da Capital em dois distritos para atender as
reclamações da população.27 O que acabou sendo feito, mas sem uma melhora nas
condições de trabalho. O chefe de polícia interino, Salvador Antonio Moniz Barreto de
Aragão, queixava-se que a quantia enviada pela Corte destinada à compra de papel, tinta,
pena e livros, não dava para cobrir um semestre de expediente e se não fosse o auxílio da
província, o trabalho ficaria paralisado.28 O chefe de polícia Manuel Juvenal Rodrigues da
Silva, em seu relatório do ano de 1886, reclamava que as delegacias ficavam em prédios
"sem asseio nem decência", afastados das ruas principais e próximos a estábulos
malcheirosos. Ele dizia que era obrigado a trabalhar ouvindo o grito dos ébrios e loucos
trancafiados na cadeia, abaixo da sua sala.29 Num desabafo, o chefe de polícia escreveu:

24
André Rosemberg, op.cit., p.46-49; Heloisa Rodrigues Fernandes. Política e Segurança. Força Pública do Estado de São Paulo:
Fundamentos Histórico-Sociais. São Paulo: Alfa-Omega, 1973, p.101-102.
25
Heloisa Rodrigues Fernandes, op.cit, p.117.
26
A Província de São Paulo, 27 de janeiro de 1876; 10 de junho de 1877; 3 de julho de 1877; 14 de julho de 1877; 27 de março de 1878;
Correio Paulistano, 3 de março de 1876; 8 de junho de 1877; 17 de julho de 1877; 24 de outubro de 1877; 22 de outubro de 1878.
27
Relatório apresentado ao Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor Doutor Laurindo Abelardo de Brito presidente da província de S. Paulo
pelo chefe de polícia João Augusto de Pádua Fleury. S. Paulo, 10 de dezembro de 1879. Santos: Typ. do Diário de Santos, 1879, p.46.
28
Relatório apresentado ao Ilm. e Exm. Snr. Dr. Francisco de P. Rodrigues Alves presidente da província de São Paulo pelo chefe de
polícia interino Salvador Antonio Moniz Barreto de Aragão. São Paulo, 31 de dezembro de 1887, p.33.
29
Relatório apresentado ao Ilm. e Exm. Snr. Barão de Parnahyba presidente da província de São Paulo pelo chefe de polícia interino Luís
Lopes Baptista dos Anjos Junior. São Paulo: Typographia Jorge Seckler & C., 1887, p.35.

30
"Faltam à polícia todos os meios de ação e repressão. A força
pública, de que pode a polícia dispor, é tão diminuta, que conviria antes
não dar-lhe nenhuma; porque assim todos os cidadãos procurariam
defender-se como pudessem, sem esperarem por um auxílio ou socorro,
que a polícia não lhes pode dar, por falta de meios avarentamente
recusados pelos poderes competentes (…)."30

A expansão da produção cafeeira impulsionou as transformações na província.


Milhares de famílias atraídas da Europa para trabalhar nas fazendas de café desembarcavam
no porto de Santos, trazendo novos hábitos, sonhos e muitas incertezas. Essa mudança
colocava em xeque o tipo de controle social construído durante o Império, pensado para
uma sociedade escravocrata, onde o senhor vigiava os seus escravos e escravos vigiavam
escravos – que moravam no território do senhor, portanto, sob sua vista. A relação entre
senhor e escravo era constantemente negociada, trocando-se privilégios por fidelidade,
trabalho por renda. Todo o controle social se dava em torno da relação senhor-escravo,
onde o lugar de cada um na sociedade era determinado pelo nascimento, posse de bens,
cargos, assim como laços de compadrio e proteção com os demais membros do seu círculo
social. Preservar a estabilidade daquele mundo hierarquizado tornou-se uma obsessão para
as classes dominantes, diante do aumento do número de forros e da chegada de gente livre
em busca de meios de sobrevivência e até fortuna.31

A polícia republicana
Com a República e a implantação do sistema federalista, a polícia imperial foi
descentralizada, voltando para o controle dos estados. Foi adotado, em regra, o princípio da
livre nomeação de delegados e chefes de polícia pelos governadores. Em São Paulo,
Bernardino de Campos, presidente em exercício do Partido Republicano Paulista, foi
nomeado chefe de polícia logo após o golpe. Assumindo o cargo de chefe de polícia,

30
Idem, p.4.
31
Alzira Lobo de Arruda Campos. "População e sociedade em São Paulo no século XIX". In: Paula Porta (Org.), op.cit., vol.2, p.55;
Cacilda Machado. A Trama das Vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do Brasil escravista. Rio de
Janeiro: Apicuri, 2008.

31
Bernardino de Campos criou cinco delegacias em São Paulo; uma para cada distrito da
Capital: Norte da Sé, Sul da Sé, Santa Ifigênia, Consolação e Brás. E dotou-as de pessoal.
Seu primeiro e mais urgente ato foi aumentar o número de policiais na Cidade e nomear
delegados por todo o estado.32
Os delegados continuaram não sendo remunerados, mas agora o cargo era tratado
como um posto de honra, reservado apenas aos “dignos de confiança”, ou seja, membros ou
pessoas ligadas ao PRP. Para ocupar a 1ª delegacia da Capital, Bernardino de Campos
nomeou seu colega Francisco de Assis Peixoto Gomide; em Araraquara, Theodoro Dias de
Carvalho Júnior, genro do coronel Antônio Joaquim de Carvalho, recebeu o posto de
delegado de polícia; em Piraju, na Alta Sorocabana, o major Mariano Leonel Ferreira, pai
de Ataliba Leonel, foi nomeado delegado; em Ribeirão Preto, o coronel Joaquim Cunha
Diniz Junqueira entregou o posto para um afilhado; e em Piracicaba, Manuel de Moraes
Barros, irmão de Prudente de Moraes, assumiu a delegacia da cidade.33
A nomeação dos delegados de polícia permitiu ao PRP dominar os municípios e
garantir as eleições de 1892. Bernardino de Campos comemorou a vitória do PRP nas urnas
e a sua própria, elogiando a polícia por assegurar um pleito "sem incidentes dignos de
nota".34 O PRP era reconhecidamente o mais forte e unido partido de todo o Brasil. Sua
força estava associada ao desenvolvimento material de São Paulo, que agrupou famílias
poderosas em torno de interesses comuns. Eram membros proeminentes desse grupo
grandes cafeicultores, como Campos Salles, Rodrigues Alves, Prudente de Moraes e Jorge
Tibiriçá, ou bacharéis como Bernardino de Campos. Estes homens usavam o prestígio
político para conciliar os interesses da cafeicultura com o capital internacional. Muitos,
senão a maioria absoluta, tornaram-se sócios de casas bancárias ou conselheiros de grandes
empresas. Bernardino, por exemplo, representava os interesses de investidores estrangeiros

32
Norberto de Castro. Organização Policial do Estado de São Paulo. São Paulo: Sociedade Imprensa Paulista, 1929, p.63-64; Hermes
Vieira e Oswaldo Silva, op.cit., p.183-187; Cândido Motta Filho, Uma Grande Vida: Biografia de Bernardino de Campos. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1941, p.67.
33
Hermes Vieira e Oswaldo Silva, op.cit., p.184; Eugênio Êgas, op.cit, vol.3, p.387; Rodolpho Tellarolli. "Os Sucessos de Araraquara":
Estudo em torno de um caso de coronelismo em fins do século XIX. São Paulo, 1975. Dissertação de Mestrado apresentada ao
Departamento de História da USP, p.234; Rodolpho Tellarolli. A Organização Municipal e o Poder Local no Estado de São Paulo na
Primeira República. São Paulo, 1981. Tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de História da USP, 1981, p.627; Thomas
W.Walker e Agnelo de Souza Barbosa. Dos Coronéis à Metrópole. Ribeirão Preto: Palavra Mágica, 2000, p.39-43; Aureliano Leite.
Retratos a Pena. São Paulo: Editora Limitada, 1930, p.127.
34
Mensagem apresentada ao Congresso de S. Paulo, a 7 de Abril de 1893, pelo Dr. Bernardino de Campos, Presidente do Estado. São
Paulo: Typ. do Diário Official, 1893, p.20.

32
do porte da São Paulo Tramway, Light & Power e da São Paulo Railway, que exploravam
serviços essenciais de transporte, água e luz na Cidade.35
O PRP nunca foi um bloco monolítico, mas um colegiado dos principais chefes
regionais de São Paulo. Seu órgão máximo era a comissão diretora, formada por líderes
influentes. Estes líderes trocavam seu apoio por cargos, sem nenhum acanhamento, gerando
invariavelmente atritos e cisões dentro do partido. Devido a isso, desde cedo, os mais fortes
dentre os correligionários do PRP decidiram restringir as decisões políticas a um pequeno
grupo, reforçando assim a dependência dos que orbitavam ao seu redor.36 Os vários grupos
presentes nas classes proprietárias paulistas acostumaram a se agrupar em torno de uma
pequena elite e, muitas vezes, na figura de um mesmo indivíduo, que congregava interesses
agrários, financeiros e industriais.37
Numa sociedade acostumada ao privilégio e o clientelismo, o PRP foi muito hábil
em expandir sua base política trocando votos por favores, apoio por empregos, ajuda
financeira e contratos públicos por fidelidade.38 O memorialista Jorge Americano (1891-
1969), que foi procurador da Fazenda e testemunhou a atuação do PRP, deixou registrado:

"O eleitorado sabia a quem se dirigir, o chefe (político do


PRP) obtinha as nomeações de agente do correio, escrivães e
professores do grupo escolar. Daí a aglomeração efetiva do eleitorado
ao seu redor. No lugar, ele elegia vereadores e prefeito, internava
doentes na Santa Casa, servia de mediador nas divergências entre os
amigos políticos e apaziguava brigas de casais. Se havia oposição local,
procurava suavizá-la dando-lhe, tanto quanto possível, parte da
vereança." 39

A comissão diretora assegurava o continuísmo indicando ela própria os


candidatos aos cargos eletivos. Escolhido o nome, a eleição estava praticamente decidida,

35
Joseph Love. A Locomotiva: São Paulo na Federação Brasileira 1889-1937. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982, capítulo 5.
36
José Ênio Casalecchi. O Partido Republicano Paulista: Política e Poder (1889-1926). São Paulo: Brasiliense, 1987, cap.5.
37
Renato M. Perissinoto. "Classes dominantes, Estado e os conflitos políticos na Primeira República em São Paulo: sugestões para se
pensar a década de 20". In: Helena Carvalho de Lorenzo & Wilma Pereira da Costa (Org.). A década de 1920 e as origens do Brasil
moderno. São Paulo: Unesp, 1997, p.37-69.
38
James P. Woodard. A Place in Politics: São Paulo, Brazil, from Seigneurial Republicanism to Regionalist Revolt. Durham: Duke
University Press, 2009.
39
Jorge Americano. São Paulo nesse Tempo (1915-1935). São Paulo: Melhoramentos, 1962, p.359.

33
pois o processo eleitoral era manipulado desde o alistamento dos eleitores até o
reconhecimento dos eleitos. Essa situação, aliás, não foi uma invenção republicana, mas o
prolongamento de um quadro que vinha desde o Império, embora a autonomia dos estados
tenha agravado as disputas eleitorais.40 Os constituintes de 1891 garantiram o direito de
voto a todo brasileiro com mais de 21 anos que soubesse ler e escrever, porém, na prática, o
eleitor precisava ser reconhecido por uma junta presidida por um juiz de paz, apresentar
atestados e ser aprovado pelo conselho municipal. Um processo trabalhoso e sujeito a todo
tipo de manipulação. Consequentemente, o eleitorado era pequeno e controlado pela
distribuição de favores.41
Para assegurar que o pleito transcorresse sempre de acordo com aquilo que fora
traçado em reuniões dentro do PRP, contava-se com o apoio irrestrito da polícia, pois cabia
a ela autorizar reuniões e todo tipo de manifestação pública. Os chefes políticos sabiam que
o apoio da polícia era essencial para garantir seu prestígio, por isso a nomeação de
delegados e subdelegados era uma das mais valiosas moedas de troca nos acordos políticos.
Um delegado podia favorecer ou obstruir o desempenho de um líder local. Ficava a cargo
dele, por exemplo, expedir licenças para o porte de arma, apurar crimes contra pessoas
influentes ou contestar a posse de terras num momento em que a grilagem era um dos
principais meios dos fazendeiros estenderem seus domínios. Nessa barganha, o chefe
político que não se compusesse com a comissão diretora do PRP tinha muito a perder, o
que colocou a polícia na posição de peça chave do jogo político.

Crise e reforma
Os primeiros anos do período republicano foram tumultuados, não só em relação
às revoltas militares e à crise econômica que ameaçavam o futuro da nação, como também
no tocante à estruturação da máquina pública. O estado de convulsão vigente no final do
governo do marechal Floriano Peixoto (1839-95) levou os paulistas a assumirem a
presidência da República em 1894. Prudente de Moraes (1841-1902), no comando do país,
sufocou os esforços dos grupos radicais defensores de projetos reformistas e
revolucionários. Em seguida, pacificou o Rio Grande do Sul, controlou os quartéis e

40
Raymundo Faoro, Os Donos do Poder. São Paulo: Globo, 2001, p.700.
41
Rodolpho Telarolli. Eleições e Fraudes Eleitorais na República Velha. São Paulo: Brasiliense, 1982; José Cláudio Barriguelli.
O pensamento político da classe dominante paulista: 1873-1928. São Carlos: UFSCar, 1986.

34
esmagou o arraial de Canudos em 1897. Com isso, a instabilidade reinante foi controlada.
Foi nessa conjuntura que Campos Salles (1841-1913), ao assumir o governo de São Paulo
em 1896, realizou uma grande reforma na organização policial, pensando em criar uma
ordem claramente percebida pelos imigrantes, investidores e o resto do país. São Paulo
precisava de instituições que perpetuassem o progresso material do estado e assegurassem
as estruturas de poder que mantinham a sua elite unida e os estranhos longe das esferas de
decisão. Mesmo antes de assumir o governo do estado, Campos Salles demonstrava ter uma
ideia firme sobre o papel da polícia na ordem que ele propunha instalar. No seu programa
de governo, ele apregoou:

"Entre as responsabilidades que pesam sobre um governo bem


constituído, sobreleva o dever de manter a ordem, garantir a segurança
individual, salvaguardar a propriedade, defender a moral pública e
reprimir os vícios que com a deturpação dos costumes, acarretam a
ruína dos mais respeitáveis interesses, afetando a um tempo a família e a
sociedade. É à polícia que está confiada esta delicada missão, e tanto
basta para caracterizar a sua assinalada importância no organismo
administrativo. Uma boa polícia é condição de um bom governo."42

Por meio de decreto, Campos Salles determinou que o serviço policial continuasse
sendo dirigido por um chefe de polícia, mediante a superintendência do secretário dos
negócios da justiça e sob inspeção do presidente do estado. Para o cargo de chefe de polícia
seriam nomeados juízes e desembargadores, mantendo o costume adotado desde o Império,
reatando assim os laços do poder executivo com o judiciário.43 Campos Salles nomeou o
ministro do Tribunal de Justiça, José Xavier de Toledo (1846-1918), seu chefe de polícia,
com um salário igual ao dos demais secretários de Estado.44
Xavier de Toledo possuía uma longa carreira na magistratura, tendo exercido a
chefia de polícia nas províncias do Espírito Santo e Santa Catarina, além de pertencer a

42
Pronunciamento feito em 15 de janeiro de 1896. In: Eugênio Êgas, op.cit., v.2, p.92.
43
Regulamento Policial do Estado de São Paulo: Decreto nº494 de 30 de outubro de 1897. São Paulo: Typographia do Diário Official,
1898.
44
Hermes Vieira e Oswaldo Silva, op.cit., p.188.

35
uma família tradicional.45 Assim que assumiu, ele criou os cargos de 1º e 2º delegados
auxiliares para ajudá-lo nas suas obrigações, pois a polícia tinha crescido de tal forma que
não era mais possível para o chefe de polícia comandá-la sozinho. Os delegados auxiliares
ficavam hierarquicamente acima dos delegados distritais e tinham entre suas atribuições
fiscalizar o trabalho das delegacias. Para conseguir nomes de peso para o cargo, o chefe de
polícia acenou com uma gratificação expressiva. Não demorou e a medida foi estendida aos
delegados da Capital, Santos e Campinas, como forma de cobrar-lhes mais empenho.46
O policiamento da Capital também foi alvo de reforma. A Repartição Central de
Polícia ganhou novas atribuições e mais pessoal para fiscalizar os divertimentos públicos, a
circulação de veículos, os hotéis e as associações de classe.47 Uma Guarda Cívica foi criada
para substituir o antigo corpo de Urbanos. O novo destacamento exibia um uniforme
vistoso, propositalmente semelhante ao dos policiais londrinos: chapéus cônicos,
fardamento azul escuro, colarinhos altos e cassetetes brancos. 48 A visão deles denotava
progresso. De Londres a Buenos Aires, o policial tinha a mesma aparência, transmitindo

Fardamento das polícias urbanas:


(da esq. para a dir.)

- Londres, 1902
- São Paulo, 1909
- Boston, 1905
- Buenos Aires, 1900

45
Frederico de Barros Brotero, Tribunal de Relação e Tribunal de Justiça de São Paulo sob o ponto de vista genealógico. São Paulo:
Graf Paulista, 1944, p.204-205.
46
Norberto de Castro. Organização Policial do Estado de São Paulo. São Paulo: Sociedade Impressora Paulista, 1929, p.10-11.
47
Almanak Administrativo Commercial e Profissional do Estado de São Paulo para 1896. São Paulo: Editora Companhia Industrial de
São Paulo, 1896, p.113-114.
48
Regulamento da Guarda Cívica da Capital. São Paulo: Typographia do Diário Official, 1897; Heloisa Rodrigues Fernandes, op.cit.,
p.150-152.

36
aos viajantes a impressão de estarem num ambiente civilizado.49
A reforma do Corpo Policial Permanente, por outro lado, gerou debates
acalorados na Câmara dos Deputados. Em abril de 1896, esse órgão, rebatizado de Força
Pública, recebeu um novo regulamento e o seu efetivo foi elevado para 5.178 homens. Um
decreto do governador especificava que a Força Pública seria comandada por um oficial do
exército, efetivo ou reformado, sob as ordens diretas do presidente do estado e à disposição
do chefe de polícia.50 Numa carta reservada ao governador Bernardino de Campos, escrita
em 1892, Campos Salles já o aconselhava a ter uma força de uns 5 mil homens sob um
regime “rigorosamente militar” para ser usada diante de qualquer eventualidade. 51 O
político paulista acreditava que um aparato militar dissuasivo daria a São Paulo condições
de se afirmar diante dos outros estados. Pensando assim, o antigo Corpo Policial
Permanente foi transformado num verdadeiro exército. Enquanto o presidente da
República, Prudente de Moraes, pacificava o exército nacional, colocando-o à margem da
política, os governantes de São Paulo investiam na construção de uma força armada bem
aparelhada.52
O custo de montar e manter essa tropa era evidentemente alto, mas o estado tinha
condições de arcar com ele. Graças à sua Força Pública, São Paulo afastou a ameaça de
intervenção federal e interveio em outros estados quando quis. Foi assim nas campanhas da
guerra civil (1893-94), na expedição de Canudos (1897) e no episódio da Revolta da
Vacina no Rio de Janeiro (1904), quando dois batalhões da Força Pública foram enviados
para controlar os motins e auxiliar na repressão.53 Durante o período de revoltas militares
nos anos 1920, batalhões da Força Pública seguiram para os estados do Paraná, Mato
Grosso e Rio Grande do Sul em perseguição às forças rebeldes.54
A Força Pública foi um símbolo da autonomia e independência paulista, mas
também das preocupações que assombravam suas elites. Os primeiros anos da República
transcorreram em meio a crises gravíssimas. Uma guerra civil havia pulverizado as finanças

49
Clive Emsley, op.cit., 2007, p.163
50
Regulamento da Força Pública do Estado de São Paulo: Decreto nº348 de 6 de abril de 1896. São Paulo: Typographia do Diário
Official, 1896.
51
Dalmo de Abreu Dallari, op.cit., p.36.
52
Dainis Karepovs (Coord.). Prudente de Moraes: Parlamentar da Província de São Paulo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004.
53
Mensagem dirigida ao congresso do Estado, a 7 de Abril de 1905, pelo presidente do Estado de S. Paulo Dr. Jorge Tibiriçá. São Paulo:
Typ. do Diário Official, 1905, p.5.
54
Mensagem apresentada pelo presidente do estado Carlos de Campos ao Congresso Legislativo em 14 de julho de 1926. São Paulo: Typ.
do Diário Official, 1926, p.

37
públicas, uma revolta popular na Bahia apavorava os cidadãos do sudeste, ao mesmo tempo
em que a superprodução e a crise financeira internacional derrubavam o preço do café. São
Paulo já havia recebido 727 mil imigrantes, transformados em uma população movediça em
busca de sustento.55 Os discursos proferidos na Câmara dos Deputados dão a medida desse
temor:

"Ninguém desconhece, senhor presidente, o incremento


extraordinário que nestes últimos anos tem tido o pujante estado, com a
imigração de elementos estrangeiros de diversas procedências, de todos
os países, pode-se dizer, e de elementos nacionais de outros estados da
República. Com uma população assim constituída, são inevitáveis
atritos, que se transformam facilmente em tumultos graves. Daí a
necessidade de ter o governo sempre a sua disposição uma força
arregimentada, capaz de abafar de pronto qualquer movimento
perturbador do sossego público."56

O medo do caos e da multidão serviu de mecanismo indutor e justificativa para a


montagem de um aparato de segurança pública intimidador. "É preciso que todos aqui
possam viver tranquilos sob a vigilância da autoridade", declarou Campos Salles ao
certificar que depositava grande confiança na Força Pública.57 Campos Salles construiu um
aparato de segurança pública robusto, mantendo praticamente a mesma estrutura herdada
do Império. De fato, o governador manteve intactos os mecanismos clientelistas que
determinavam a nomeação dos delegados e sustentavam um delicado equilíbrio político,
muito provavelmente devido à necessidade de cooptar apoio político para o seu projeto
estabilizador. A modernização da polícia e o reconhecimento profissional dos seus
integrantes viriam somente uma década depois, em dias menos tumultuados, na forma de
uma aspiração dos seus próprios delegados.

55
Paula Beiguelman. A Crise do Escravismo e a Grande Imigração. São Paulo: Brasiliense, 1981, p.39.
56
Anais da Câmara dos Deputados, 17 de novembro de 1896, citado em: Omar José da Silveira Júnior. "A ordem antes do progresso. A
militarização da Força Pública paulista e a sua inserção na política estadual de segurança (1892-1905)". In: Esmeralda Blanco
Bolsonaro de Moura e Vera Lucia Amaral Ferlini (Ed.). História econômica: agricultura, indústria e populações. São Paulo: Alameda,
2006, p.131.
57
Mensagem de 7 abril de 1897. In: Eugenio Êgas, op.cit., vol.2, p.105.

38
A polícia de carreira
Os delegados das grandes cidades, como São Paulo, Campinas e Santos eram
jovens recém saídos dos bancos da faculdade. O escritor Frederico de Barros Botelho
lembra dos anos que seguiram a consolidação da República. Ele e seus colegas da
Faculdade de Direito eram "cheios de ardor cívico e entusiasmo juvenil". Segundo Botelho,
a geração anterior havia lutado pela Abolição e a República; a nova pretendia ocupar seu
espaço preenchendo a administração pública.58 Pelágio Lobo (1888-1952), outro
memorialista da Faculdade de Direito, cita vários colegas que teriam sido delegados antes
de migrar para postos de maior prestígio. Entre eles estavam José Manoel Lobo, que deixou
a delegacia para assumir uma cadeira de deputado estadual; Paulo Machado Florence, que
da polícia passou à promotoria pública; e Raul Soares de Moura, que foi delegado antes de
tornar-se senador.59
O cargo de delegado era honorário e entendido como um gesto de lealdade a um
padrinho ou amigo. Assim sendo, a cada mudança na chefia de polícia a quase totalidade
dos delegados pedia exoneração. A grande maioria não dependia do cargo para sobreviver e
via na atividade policial apenas um degrau para deslanchar na vida pública ou nos
negócios, embora nem todos tivessem condições de alçar vôos mais altos. Além disso,
havia delegados que simplesmente desenvolviam paixão pelo ofício ou se apegavam ao
cargo. Entre estes, cresceu o desejo de atuar numa polícia semelhante àquelas das capitais
européias. No começo de 1902, estas demandas já aparecem nos relatórios de José Cardoso
de Almeida (1866-1931), convidado pelo governador Rodrigues Alves (1848-1919) para
ocupar o cargo de chefe de polícia.
Ao contrário dos seus antecessores, quase todos juízes, Cardoso de Almeida era
político, vice-presidente da Assembléia Legislativa e filho de fazendeiros da região de
Botucatu.60 Os jornais referiam-se a ele como um "diligente auxiliar do governo,
mostrando sempre o desejo de acertar, de cumprir sinceramente seu dever". 61 Apesar disso,
o que nele mais chamava a atenção eram os seus modos refinados. Cardoso de Almeida se

58
Frederico de Barros Brotero. Bacharéis de 1896. São Paulo: 1947.
59
Pelágio Lobo. "Precursores da Polícia de Carreira". In: Investigações, ano I, nº3, março de 1949, p.18-24.
60
O Estado de São Paulo, 6 de janeiro de 1902; Agnelo Rodrigues de Melo."O Dr. José Cardoso de Almeida e a Polícia de São Paulo em
1902". In: APCSP,vol.XV,1ºsemestre,1948, p.387.
61
Pedro Ferraz do Amaral. Celso Garcia. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1972, p.162.

39
vestia como um lorde inglês, sempre visto de fraque, cartola, polainas e uma bengala com
cabo de ouro. Não foi à toa que a revista O Pirralho apelidou-o de “Doutor Cartola” e o
escritor Moacir Piza chamava-o de “Colbert de Botucatu”, comparando-o em tom de
deboche ao poderoso ministro de Luís XIV.62 O primeiro desafio do novo chefe de polícia
foi convencer os delegados a permanecerem nos seus postos pelo menos até ele conseguir
bons nomes para substituí-los.
O novo chefe de polícia pediu para os dois delegados auxiliares continuarem ao
seu lado; um declinou o convite, o outro aceitou. Quem aceitou foi Jesuíno Cardoso de
Mello (1865-1950), tido entre os memorialistas policiais como “a mais capaz autoridade de
São Paulo”. Jesuíno foi um dos que se afeiçoaram ao cargo, apesar de ter diante de si as
portas abertas para deslanchar na advocacia ou na política. Ele pertencia a uma família que
ocupara por gerações altos postos na magistratura, tendo seu pai e seu avô exercido cargo
de chefe de polícia no tempo do Império.63 Além disso, ele era casado com a filha de Luís
Pereira Barreto (1840-1923), um republicano combativo e semeador das idéias de Comte
em São Paulo. Pereira Barreto estudou na Europa, tornou-se sócio de grandes empresários
agrícolas e foi um dos responsáveis por encontrar os melhores sítios para o cultivo do café
no interior do estado.64
Para substituir os delegados que exprimiram o desejo de deixar os seus postos,
Cardoso de Almeida recorreu aos amigos e escritórios de advocacia. Chamou seu colega e
antigo sócio, Ascânio Cerqueira (1877-1946), o qual trouxe consigo um outro nome, Artur
Xavier Pinheiro Prado (1866-1916), filho de desembargador e irmão de um dos advogados
mais respeitados da Capital. Chamado de “Pinheirinho” desde os tempos de faculdade,
Pinheiro Prado era promotor público numa comarca no sul de Minas Gerais. Insatisfeito,
aceitou prontamente o chamado do colega.65 Assim é que os chefes de polícia preenchiam
as delegacias da Capital, convidando amigos e conhecidos pertencentes ao seu círculo
social.

62
Cândido Motta Filho, Dias Lidos e Vividos. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1977, p.127-128; Moacyr Piza, Roupa Suja. São Paulo:
1923, p.140.
63
"Dr. Jesuíno Cardoso". In: APCSP, vol.XXI, 1ºsemestre, 1951, p.433-450.
64
Rodrigo Soares Júnior. Jorge Tibiriçá e sua Época. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958, p.204; Thomas W. Walker e
Agnaldo de Souza Barbosa, op.cit., p.40; Aureliano Leite. A História de Sam Paulo. São Paulo: Livraria Martins, 1944, p.96.
65
José Augusto Fernandes. "Pinheiro Prado". In: APCSP, vol.II, 2ºsemestre, 1941, p.419-425; Frederico Barros Brotero, op.cit., 1944,
p.42-43.

40
Mas em 1903, Cardoso de Almeida proporia uma mudança radical na forma de
nomeação dos delegados. No seu relatório anual, ele propôs a criação de uma polícia
remunerada e profissional. "Recorrendo às fontes estrangeiras, não para copiá-las e sim
para aproveitar-lhes os princípios, compatíveis com nossas tradições e com o nosso meio
social", ele pensou numa polícia hierarquicamente bem definida, onde os delegados seriam
estáveis e cuja nomeação constituiria um atributo exclusivo do governador.66 Era notório
que a constante troca de delegados prejudicava o trabalho ordenado dentro da polícia; os
novos delegados estavam sempre por aprender aquilo que os que saíam tinham absorvido e
levavam consigo. Essa situação impedia o planejamento e o desenvolvimento dos serviços
policiais. Como se isso não bastasse, a constante substituição dos delegados acabava por
deixar as delegacias nas mãos dos funcionários subalternos, que permaneciam enquanto os
“doutorzinhos” passavam. Cardoso de Almeida observou que, cada vez mais, a polícia
estava entregue a subdelegados e escrivães.
Mas, ao que parece, a proposta do chefe de polícia teve outra motivação, pois ela
surgia em meio a uma nova crise política. Em agosto de 1902, o jornal Estado de São
Paulo classificou de "Graves Ocorrências" o movimento que se alastrou pelo interior
paulista, provocando desordem e depredações.67 Chamado pelos jornais de “Rebelião
Monarquista”, o movimento na realidade visava protestar contra a política econômica
restritiva conduzida por Campos Salles, em função da renegociação da dívida externa com
os bancos ingleses. A revolta foi debelada, mas pegou o governo de surpresa.68 A
capacidade de mobilização dos chefes políticos, descontentes com as decisões do governo
estadual e federal, mostrou-se preocupante e, embora Cardoso de Almeida não tenha sido
explícito em seu relatório, a criação de uma polícia profissional serviria para colocar um
freio na independência destes atores. Uma polícia de carreira obediente ao governador
alteraria substancialmente a balança de forças dentro do estado, o que levou Cardoso de
Almeida a argumentar que a criação dessa polícia, tendo em vista todas as "circunstâncias
recentes", era inadiável.69

66
Relatório apresentado ao Secretário do Interior e justiça pelo chefe de polícia de São Paulo José Cardoso de Almeida. São Paulo:
Typographia do Diário Official, 1903, p.4-6; Agnelo Rodrigues de Melo. "O Dr. José Cardoso de Almeida e a polícia de São Paulo
em 1902". In: APCSP, … p.387-390.
67
O Estado de São Paulo, 24 de agosto de 1902.
68
José Ênio Casalecchi, op.cit., p.116-121.
69
Relatório de 1903, op.cit., p.5.

41
A crise econômica ocasionada pela negociação da dívida externa brasileira com os
bancos ingleses provocou uma enorme recessão no país. Contra ela articularam-se vários
grupos desgostosos com a situação política e econômica, que só se acalmaram em 1903,
diante da indicação de Jorge Tibiriçá (1855-1928) para a presidência do estado.
Republicano histórico e um dos maiores e mais ricos cafeicultores de São Paulo, Tibiriçá
acenava com uma proposta de subsidiar a lavoura.70 Membro da família Almeida Prado,
Tibiriçá era casado com sua prima-irmã, filha do barão de Parnaíba, outro grande
cafeicultor, pioneiro no uso de trabalho imigrante nas fazendas e um dos proprietários da
Estrada de Ferro Mogiana.71
Tibiriçá reatou com os dissidentes, unindo o PRP. Após a posse, o governador
convidou Cardoso de Almeida para assumir a secretaria da justiça, provavelmente pensando
em aproveitar sua experiência. Ele aceitou, e para o seu lugar na chefia de polícia indicou o
delegado Antônio de Godoy Moreira e Costa (1873-1905), que defendia ardorosamente a
profissionalização da polícia. Godoy pertencia a um grupo de jovens bacharéis que
acompanhava, entre muitos outros interesses, os debates da criminologia européia. Essa
elite leu Lombroso, Ferri, Tarde, Garofolo e defendia reformas na legislação penal e na
prática policial, sendo Godoy um defensor entusiasmado da chamada polícia científica.
A polícia científica era um modelo baseado em técnicas e procedimentos
modernos de investigação, estimulado pela linguagem do conhecimento científico que
encarnava um tipo ideal de sociedade e de criminosos. Auxiliados por descobertas recentes,
como a fotografia e a antropometria, os policiais foram aos poucos construindo práticas
para classificar os delinquentes em "tipos criminais" de acordo com suas atividades,
registrando-os em prontuários que podiam ser consultados a qualquer momento. Era o que
os franceses chamavam de technique policiére.72 Em seu relatório de 1904, Godoy escreveu
que “à polícia empírica de ontem sucedeu a polícia científica de hoje”, alertando que esse
avanço somente seria possível com a criação de uma organização policial fundamentada na
estabilidade funcional e na remuneração, pois “policiais habilitados não se improvisam”. A
polícia, ele não cansava de repetir, deveria ser um corpo técnico e especializado.73

70
José Ênio Casalecchi, op.cit., p.123-124.
71
Joseph Love, op.cit., p.234; Rodrigo Soares Júnior, op.cit., p.210-211.
72
Ilsen About. "La police scientifique en quête de modèles: institutions et controverses en France et en Italie (1900-1930)". In: Jean-
Claude Farcy et al. (Dir.). L'enquête judiciaire en Europe au XIX siècle. Paris: Creaphis, 2007, p.257-269.
73
Relatório apresentado ao Secretário do Interior e da Justiça pelo Chefe de Polícia Antônio de Godoy, 1904. São Paulo: Typographia

42
Antônio de Godoy carregava o sobrenome de uma família tradicional de
Pindamonhangaba repleta de viscondes, barões e comendadores. Seu pai era um respeitado
ministro do Tribunal de Justiça, com uma carreira sedimentada durante o Império.74
Conhecido na Faculdade de Direito como um poeta de saúde frágil e atingido por uma
sucessão de doenças, Antônio de Godoy, pouco antes de ser nomeado delegado pelo chefe
de polícia José Xavier de Toledo, amigo e colega de turma de seu pai, escreveu:

“Deixo em branco a seção da fantasia,


Vou tratar de Direito e coisas sérias;
Só falarei agora em poesia,
Quando voltar de novo às férias.” 75

Godoy permaneceu delegado de 1896 até 1901, deixando a polícia para viajar pela
Europa. Quando retornou, foi procurado por Cardoso de Almeida que estava em busca de
auxiliares competentes para preencher os postos vagos. Godoy estava trabalhando no
Correio Paulistano quando foi convencido a reingressar na
atividade policial. Nomeado chefe de polícia, contam que era
costume seu reunir-se no final do expediente com os
delegados Jesuíno, Pinheiro Prado e outros, no terraço da
Repartição Central de Polícia, para discutir literatura. O poeta
e escritor Amadeu do Amaral, seu secretário particular, lia
para os presentes trechos do romance Quo Vadis, enquanto
eles admiravam o pôr-do-sol na várzea da Barra Funda, então
um descampado visto dos fundos do prédio.76 Antonio de Godoy

Contudo, a passagem de Antonio de Godoy pela chefia de polícia foi breve. Numa
semana chuvosa no final de abril de 1905, Godoy não saiu de casa. Ele era solteiro e
morava com os pais. Logo espalhou-se a notícia que o chefe de polícia havia contraído
tuberculose. Ele faleceu no dia 29 de abril, aos 32 anos de idade. A elite paulista
compareceu em peso ao seu velório. Além do governador e autoridades, estiveram

Espindola, Siqueira & Comp., 1905, p.3-4.


74
Frederico de Barros Brotero, op.cit., 1944, p.222-226.
75
Suplemento Literário do Estado de São Paulo, 6 de agosto de 1963.
76
José Augusto Fernandes. "Antônio de Godoi". IN: APCSP, vol.I, 1ºsemestre, 1941, p.327-335.

43
presentes Dona Veridiana Prado, o engenheiro Ramos de Azevedo, o industrial Francisco
Matarazzo e o administrador de estradas de ferro Charles Miller. Jornais importantes
dedicaram suas primeiras páginas à notícia do seu falecimento. 77 Antonio de Godoy morreu
sem ver a polícia de carreira concretizada. Semanas antes, o governador, assessorado por
Cardoso de Almeida, havia mandado um projeto de lei à Assembléia Legislativa tratando
da matéria. A proposta foi apresentada pelo líder do governo, Herculano de Freitas (1865-
1926), pessoa bem conhecida dos delegados de polícia, pois era professor da Faculdade de
Direito. Na verdade um professor faltoso, que raramente aparecia nas aulas. O motivo era a
política. Herculano de Freitas era genro de Francisco Glicério (1846-1916), um dos
poderosos chefes da comissão diretora do PRP, que abriu-lhe as portas para a carreira
política.78 O projeto decretava que:

"Para melhorar o funcionamento das instituições policiais urge


estabelecer a polícia de carreira, incumbindo o serviço a pessoal
escolhido, de aptidões especiais, mediante um sistema regular de
promoções que permita obter nos cargos superiores o concurso de
auxiliares experientes, conhecedores pela prática de todas as
particularidades do importante ramo da administração pública,
destinado a manter a segurança individual e da propriedade."79

Pelo projeto, os delegados de polícia ficariam distribuídos em seis classes. No


topo da carreira continuariam os delegados auxiliares; abaixo deles, os delegados que
serviam na Capital, Santos, Campinas e Ribeirão Preto, considerados 2ª classe. Depois
destes vinham os que ocupavam cargos em cidades de menor importância, e assim por
diante. O último grau da escala, a 6ª classe, não era remunerada e ficava distribuída pelos
pequenos municípios. O projeto argumentava que esta era uma medida de economia e
necessidade. Todos os demais delegados seriam remunerados e só podiam ascender na
carreira de uma classe à outra. A nomeação dos delegados constituiria um atributo privativo

77
Correio Paulistano e O Estado de São Paulo, 29 de abril de 1905.
78
Pelágio Lobo, op.cit., 1953, p.13-14.
79
Eugênio Êgas, op.cit.,vol.2, p.182.

44
do governador e o cargo passaria a ser vitalício como o dos juízes, não podendo o delegado
ser afastado ou demitido, salvo por motivo estabelecido por lei ou sentença judicial.80
Como era de se esperar, o projeto encontrou resistência no plenário. O deputado
Antônio Martins Fontes Júnior atacou a proposta alegando que ela criava um sério
obstáculo à administração pública, pois o cargo de delegado deveria ser de absoluta
confiança do chefe do executivo. Sendo assim, não era razoável o governador ter plena
liberdade de nomeação e demissão do chefe de polícia, mas não estar livre para fazer a
remoção e demissão dos delegados quando achasse oportuno.81 A vitaliciedade do cargo
acabou rejeitada, mas as garantias de estabilidade e progressão funcional permaneceram.
Os debates prosseguiram até o final do ano, quando o próprio Jorge Tibiriçá empenhou-se
na aprovação do projeto. Vitorioso por uma margem segura de votos, o projeto virou lei e
foi publicado no dia 23 de dezembro de 1905. Tibiriçá comemorou a criação da polícia de
carreira como um sinal do progresso paulista, que deu luz a uma instituição nova "filha da
justiça e defensora do direito".82
Em mensagem enviada para o Congresso Legislativo, Tibiriçá foi enfático em
afirmar que grandes foram os benefícios da polícia de carreira para o Estado, reunindo
delegados de reconhecida “competência profissional” para “garantir e assegurar a
liberdade, a honra, a vida e a propriedade”. Além disso, as remoções, quando necessárias,
podiam ser feitas “sem abalo para a vida pública e com enorme proveito para a
tranquilidade do Estado”, como “um simples pormenor da administração”.83 Percebe-se
então que a polícia de carreira trouxe grandes frutos ao governador, restando aos chefes
políticos negociar a remoção ou nomeação do delegado da sua comarca diretamente com o
chefe do executivo, não mais com o PRP.
Fica claro, como notou Renato Perissinotto, que à medida que o Estado tomava
para si determinadas responsabilidades – no caso, a defesa do café – consolidava-se um
processo de burocratização e centralização administrativa que se colocava acima dos
interesses paroquiais.84 Em 25 de fevereiro de 1906, Tibiriçá firmou um pacto conhecido

80
Hermes Vieira e Oswaldo Silva, op.cit., p.201-207.
81
Idem, p.215.
82
Lei nº 979 de 23 de dezembro de 1905; Eugênio Êgas, op.cit.,vol.3, p.10.
83
Mensagem enviada ao Congresso Legislativo, a 14 de julho de 1907, pelo Dr. Jorge Tibiriçá, Presidente do Estado. São Paulo: Typ. do
Diário Official, 1916, p.339.
84
Renato M. Perissinotto. "Tradição e Modernidade no state-building paulista durante a Primeira República (1889-1930). In: Nilo Odalia
e João Ricardo de Castro Caldeira (Org.). História do Estado de São Paulo/ A Formação da Unidade Paulista. Vol.2 República. São
Paulo: Unesp, 2010, p.207-231.

45
como Convênio de Taubaté, acertando medidas para tutelar e proteger o preço do café. Ao
mesmo tempo, consolidou um compromisso com os políticos mineiros, donos do maior
número de cadeiras no Congresso Federal. Este conjunto de acertos, da criação da polícia
de carreira até a distribuição de ajuda financeira, pretendia garantir a estabilidade do
negócio agro-exportador. O objetivo de Tibiriçá sempre foi acabar com a insegurança. Ele e
seu grupo julgavam que a estabilidade era a mais fundamental necessidade para São Paulo,
pois a incerteza política poderia provocar a perda de confiança dos investidores
estrangeiros, o que resultaria na evasão de capital e numa avaria do crédito que
movimentava a economia paulista. Os acordos e leis costurados por Tibiriçá pretendiam
salvaguardar um governo longo e sem sobressaltos para a economia paulista.85
Logo após a aprovação da lei que instituiu a polícia de carreira, sentindo-se
desprestigiado por Tibiriçá e outros membros do governo, Cardoso de Almeida pediu
demissão do cargo.86 Tibiriçá aceitou o pedido e, em reunião com o seu vice, o fazendeiro
João Batista de Mello Oliveira (1845-1908), decidiu nomear alguém que tivesse vínculos
mais sólidos com o seu tronco familiar. Mello de Oliveira, membro da comissão diretora do
PRP, tinha interesses na lavoura, na indústria e no comércio, e era ligado a Tibiriçá por
laços de casamento. O vice-governador sugeriu o nome de um deputado, esposo da filha da
Baronesa de Piracicaba, sua irmã e prima de Tibiriçá. O nome do deputado era Washington
Luís Pereira de Souza (1869-1957).87

A criação da Secretaria da Segurança Pública


A expansão agrícola, a implantação da política de proteção do café, a aquisição de
ferrovias e a política imigratória impulsionaram a ampliação da máquina pública paulista.88
O projeto de modernização desenhado pela elite paulista dependia de um fluxo constante de
capitais externos, consequentemente, de um ambiente estável para a aplicação de capitais,

85
Renato M. Perissinotto. Classes Dominantes e Hegemonia na República Velha. Campinas: Unicamp, 1994, p.69-77.
86
Correio Paulistano, 11 de março de 1906; Pedro Ferraz do Amaral, op.cit., p.250.
87
Eugênio Êgas, op.cit., vol.3, p.401-402; Célio Debes. Washington Luís. São Paulo: Imprensa Oficial, 1994, p.60.
88
Sobre a burocratização progressiva da administração pública paulista, ver o Dec. nº28 de 1 de março de 1892, que organizou as
Secretarias do Interior, da Justiça e da Agricultura, Comércio e Obras Públicas. Ver também a Lei nº63 de 16 de agosto de 1892 que
estabeleceu a Secretaria da Fazenda e reorganizou o Tesouro do Estado; a Lei nº43 de 18 de julho de 1892 que organizou o serviço
sanitário e o Dec. nº346 de 25 de março de 1896 que deu regulamento aos chefes de seções, diretores e funcionários das secretarias.
Em 1907, Carlos Botelho, secretário da Agricultura, primo de Tibiriçá e cunhado de Washington Luís, realizou uma ampla reforma da
sua pasta, criando diretorias e seções especializadas para coordenar as obras de infraestrutura e desenvolvimento econômico do estado,
como definido no Dec. nº1.459 de 10 de abril de 1907. Ver Luís Carlos Cintra. "A evolução da estrutura administrativa da Secretaria
da Agricultura: 1889/1930". In: Cadernos Fundap, ano 5, nº9, maio-1985, p.21-29. Essa reforma ocorreu paralelamente às
transformações nas Secretarias da Justiça e Segurança Pública, como veremos.

46
por isso os esforços na construção de mecanismos de pacificação interna da sociedade.
Washington Luís aceitou a nomeação de secretário da justiça ciente dos encargos que teria.
Estava em suas mãos fazer com que a polícia de carreira se tornasse uma realidade. O
delegado e escritor Amando Soares Caiuby (1886-1973) relata que Washington Luís
iniciou fazendo uma depuração rigorosa dos delegados. Demitiu uma parte, removeu outra
e nomeou o restante, num trabalho árduo e incessante. Um ano após assumir o cargo, ele
extinguiu a sexta classe e conseguiu verba para aumentar o salário dos novos delegados e
assim atrair candidatos de maior prestígio social. Washington Luís igualou a faixa salarial
dos delegados à dos magistrados, o que constituiu motivo de grande atrativo para a nova
carreira.89
O passo seguinte no fortalecimento do poder executivo
foi a criação da Secretaria da Justiça e Segurança Pública,
instituída na esteira do aumento das greves em serviços essenciais.
A escalada do movimento de luta dos trabalhadores estava
diretamente ligado à mobilidade de grandes contingentes humanos
que trouxe consigo uma circulação intensa de propostas de luta e
formas de organização sindical. Anarquistas, sindicalistas e
socialistas cruzavam oceanos, fundavam jornais, trocavam
experiências e contribuíam para transmitir o sentimento de que os
Washington Luis
trabalhadores faziam parte de um conjunto maior, uma classe explorada cuja luta
ultrapassava fronteiras geográficas.90 Em resposta à ameaça revolucionária, os Estados
coordenaram sua ação, reorganizando as forças mantenedoras da ordem e investindo em
novas práticas policiais, especialmente na esfera da identificação individual. A
modernização das polícias tornou-se uma necessidade urgente que foi abraçada por
Washington Luís com afinco.
A criação da Secretaria da Justiça e Segurança Pública ocorreu poucos meses após
uma greve paralisar as linhas ferroviárias do estado. Em maio de 1906, uma onda de
paralisações se alastrou pela malha ferroviária impedindo o café de escoar para o porto de

89
Amando Caiuby. "Washington Luís e a Polícia de Carreira". In: Washington Luís (visto pelos contemporâneos no primeiro centenário
de seu nascimento). São Paulo: IHGSP, 1969, p.109-110.
90
Edilene Toledo. Travessias Revolucionárias: ideias e militantes sindicalistas em São Paulo e na Itália (1890-1945). Campinas:
Unicamp, 2004.

47
Santos. Houve enfrentamento e depredações.91 Washington Luís foi incumbido de reprimir
o movimento operário usando todos os meios, inclusive a Força Pública que Tibiriçá havia
equipado com armamento moderno e oficiais franceses contratados para treinar a tropa. O
governador, que nasceu em Paris, tinha grande admiração pelo exército francês. Seus tios,
irmãos de sua mãe, uma francesa da Alsácia, eram todos oficiais do exército formados na
célebre Escola Militar de Saint Cyr. Em março de 1906, o coronel Paul Balagny
desembarcou em São Paulo acompanhado dos seus auxiliares. A Força Pública de São
Paulo chegou a contar com 14 mil soldados, armados com metralhadoras, canhões, trens
blindados e até uma esquadrilha de aviões.92 Eugênio Lefevre, diretor da secretaria da
Agricultura, revela que os custos com a Força Pública atingiam algarismos altíssimos na
folha de despesas do Estado, "só explicáveis pela necessidade de manter-se um pequeno
exército, para a defesa do estado e das instituições em caso de rebelião".93
A implantação da polícia de carreira fez com que o judiciário, que por muito
tempo comandou o aparelho policial, perdesse espaço no arranjo político estadual. A crise
piorou quando Tibiriçá proclamou que a atividade policial receberia orientação direta do
governador, sem precisar se submeter ao escrutínio de membros do judiciário. 94 Logo em
seguida, em setembro de 1906, Washington Luís aboliu o cargo de chefe de polícia,
afastando definitivamente os juízes da polícia e convertendo a sua pasta em Secretaria da
Justiça e Segurança Pública. O secretário alegou que a chefia de polícia duplicava
inutilmente o trabalho burocrático e enfraquecia a sua autoridade.95 Com a medida, a
polícia tornava-se um braço exclusivo do poder executivo, consolidando a centralização da
administração pública paulista. No ano seguinte, o governador atingiu em cheio a
independência do judiciário, estabelecendo mecanismos de controle sobre os magistrados.
Há tempos juízes vinham tendo atritos com o executivo e Tibiriçá não demorou a enquadrá-
los em seu projeto político, fornecendo ao secretário da segurança poderes para afastar e
aposentar compulsoriamente juízes, assim como nomear promotores e serventuários dos
fóruns.96

91
O Estado de São Paulo, 18 de maio de 1906.
92
Euclides de Andrade e Hely F. da Câmara, op.cit.; Rodrigo Soares Júnior, op.cit., p.500-502.
93
Eugenio Lefevre, A Administração do Estado de São Paulo na República Velha. São Paulo: Typ. Cupolo, 1937, p.104.
94
Mensagem enviada ao Congresso do Estado a 14 de julho de 1906 pelo Dr. Jorge Tibiriçá, Presidente do Estado. São Paulo: Diário
Official, 1906, p.15-16.
95
Lei nº 1.006 de 17 de setembro de 1906; Célio Debes, op.cit., 1994, p.61.
96
Lei nº 1.084 de 14 de setembro de 1907; Andrei Koerner. Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira. São Paulo:
Hucitec, 1998, p.218-223.

48
Terminado o seu mandato, Tibiriçá impôs um sucessor e passou a ocupar uma
cadeira na comissão diretora do PRP.97 Joseph Love observa que, desse momento em diante
os governadores passaram a escolher livremente seus sucessores, concentrando ainda mais
o poder na mão de um grupo seleto. O grande capital cafeeiro, aquele que tinha expandido e
diversificado seus negócios, investindo em ferrovias, montando firmas atravessadoras
ligadas ao comércio de importação e exportação, fundando bancos e indústrias, e
estendendo seus interesses no mercado de terras e imóveis, estava agora solidamente
assentado, ditando os rumos de São Paulo.98
Washington Luís continuou à testa da Secretaria de Segurança Pública,
permanecendo seis anos à frente da polícia paulista. Sua gestão foi marcada por uma grande
modernização do aparelho policial, importando equipamentos, criando novos
departamentos e estabelecendo práticas sofisticadas de identificação e vigilância, em
consonância com as polícias mais avançadas da Europa. Em 1909, ele criou a 3ª e 4ª
delegacias auxiliares. O 3º delegado auxiliar ficou incumbido de fiscalizar os veículos e
carretos que transitavam pela Cidade, assim como inspecionar os divertimentos públicos. O
4º delegado auxiliar ficou encarregado de dirigir o Gabinete de Investigações, um
departamento criado para centralizar o trabalho de identificação e captura de pessoas
procuradas. O 1º delegado auxiliar passou a coordenar as cinco delegacias da Capital,
enquanto o 2º delegado auxiliar supervisionava as delegacias do interior do estado.99
Robson Mendonça Pereira descreve Washington Luis como um dos mais eminentes
políticos da geração "modernizante" do PRP, um empreendedor público identificado com
as inovações técnicas e cientificas, acreditando na utopia republicana da ordem regulada
pela racionalidade moderna.100 Em 1912, Washington Luis deixou o cargo para aceitar uma
vaga de deputado estadual. No ano seguinte, com o apoio da comissão diretora do PRP, ele
foi indicado para concorrer à prefeitura de São Paulo.
Num dia chuvoso de fevereiro de 1914, registra O Estado de São Paulo, um grupo
de umas duas mil pessoas reuniu-se na frente da casa da Baronesa de Piracicaba, onde se
achava o novo prefeito eleito da Capital. À frente do grupo, o estudante de direito Armando

97
Joseph Love, op.cit., p.164-165 e p.235.
98
Renato M. Perissinotto, op.cit., p.113-115.
99
Mensagem enviada ao Congresso Legislativo a 14 de Julho de 1910 por Fernando Prestes, vice-presidente do Estado. São Paulo:
Duprat & Comp., 1910, p.11-12.
100
Robson Mendonça Pereira. Washington Luis na administração de São Paulo (1914-1919). São Paulo: Unesp, 2010, p.288.

49
Prado elogiou o prefeito, lembrando que Washington Luís era fluminense, mas tinha "a
alma bandeirante!" Da sacada, o prefeito agradeceu as palavras, respondendo que quem
penetra no íntimo da alma paulista "se identifica com ela de tal modo que até se admira de
não haver nascido em São Paulo". Prestigiando o evento estava o 1º delegado auxiliar João
Batista de Souza, acompanhado de outros delegados, oficiais da Força Pública e
funcionários da polícia, empunhando seus guarda-chuvas.101 O apoio deles indica que a
"polícia sem política e imparcial", proclamada por Tibiriçá em seus discursos, não ia além
da retórica.102

Hierarquia, obediência e lealdade


A criação da polícia de carreira não foi comemorada por todos. Logo após a sua
implantação em 1906, o ex-juiz Antônio Brás de Oliveira Arruda, advogado em Ribeirão
Preto, criticava-a duramente na Revista da Faculdade de Direito de São Paulo:

"A chamada polícia de carreira é mil vezes pior que a antiga


dos coronéis. (…) A antiga tinha medo da responsabilidade, mas a nova
composta de bacharéis descrentes, e que conhecem a relaxação geral,
que atualmente há na nossa sociedade, não recua diante de nenhum
abuso, de nenhuma violência."103

Parece claro que a polícia de carreira representava uma ameaça para alguns
setores da sociedade. Se, por um lado, ela simbolizava a modernidade, o progresso do
aparelho de segurança pública e um passo importante na profissionalização dos seus
membros, por outro, ela ampliava demasiadamente o poder do chefe do executivo paulista.
Apesar de Tibiriçá chamá-la de "filha da justiça e defensora do direito", a polícia de
carreira foi um instrumento crucial para a consolidação do seu grupo político. A
modernização da polícia foi parte de um projeto que buscava integrar o maior número
possível de atores sociais dentro de uma nova ordem, subordinada ao governador.

101
O Estado de São Paulo, 13 de fevereiro de 1914.
102
O discurso de Tibiriçá enaltecendo a polícia de carreira está registrado na sua Mensagem enviada ao Congresso Legislativo, a 14 de
julho de 1907. São Paulo: Diário Official, 1907, p.339.
103
Dr. João Arruda. "A Luta contra o Delito". In: Revista da Faculdade de Direito de São Paulo. vol.XIV. São Paulo: Augusto Siqueira
& Comp., 1907, p.78-79.

50
Desde a sua criação em 1906 até 1930, pelo o que pudemos averiguar, a Secretaria
da Segurança foi dirigida por pessoas do círculo social ou familiar dos governadores. Eloy
de Miranda Chaves (1875-1964), por exemplo, era pessoa da mais absoluta confiança da
família Rodrigues Alves. Indicado para assumir a Secretaria da Segurança em outubro de
1913, ele era o que se podia chamar de self-made man, uma pessoa com qualidades
empresariais. Filho de um
diplomata que perdeu o
posto com o fim da
monarquia e sobrevivia
de um emprego nos
correios, Eloy Chaves
conseguiu uma nomeação
de promotor público em
Jundiaí. Lá fez um bom
Eloy Chaves, de chapéu coco, com aspirantes da Força
casamento e aventurou-se Pública, 1918. (coleção particular)

na política. Preocupado
em garantir o futuro,
convenceu parentes e amigos a investirem na construção de uma hidroelétrica. O futuro de
São Paulo estava na energia, dizia ele. Através dos negócios e da política tornou-se amigo e
sócio do filho de Rodrigues Alves e por meio dele foi indicado para ocupar a Secretaria da
Segurança. Por essa época, o governador Rodrigues Alves mostrava sinais de estar com a
saúde debilitada, circulando o rumor que verdadeiro mandante do executivo era o seu filho,
Oscar.104
Em 1916, Eloy Chaves, alegando excesso de trabalho, criou o cargo de delegado
geral. Ao que tudo indica, para dispor de mais tempo para cuidar dos seus negócios. O
cargo de delegado geral equivalia ao de chefe de polícia, entretanto, ele foi criado para
comportar a nomeação de delegados escolhidos entre os mais graduados, demonstrando o
prestígio que a nova carreira tinha alcançado em poucos anos.105 O primeiro a assumir o
posto foi o delegado auxiliar Franklin de Toledo Piza (1881-1950), um policial enérgico,

104
Afonso Arinos de Melo e Franco. Rodrigues Alves: apogeu e declínio do presidencialismo. vol.2. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1973;
Hermes Pio Vieira. Eloy Chaves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978; O Parafuso, 20 de março de 1915.
105
Norberto de Castro, op.cit., p.16.

51
que tinha a qualidade de ser filho de uma das mais respeitadas estirpes paulistas. Piza
nasceu em São Carlos, entrando para a polícia em 1907. Por sua atuação nos "rincões do
estado", foi logo promovido por Washington Luís. Dos seus quatro irmãos, um era também
delegado e os outros, juizes. Um tio seu, Joaquim de Toledo Piza, fora chefe de polícia em
1878 e ocupava o posto de ministro do Supremo Tribunal Federal; outro tio, Gabriel,
positivista fanático, era embaixador do Brasil na França e amigo do chefe de polícia de
Paris, Louis Lépine. Os Toledo Piza estavam ligados ao grande capital cafeeiro, assim
como os Silva Prado, Penteado, Souza Queiroz, Paes de Barros e Mello de Oliveira.106

O delegado Frankilin de Toledo Piza, chefe do Gabinete


de Investigações (o 2º em pé da esq. para a dir.), posando
ao lado dos seus secretas após prender o falsificador de
moedas, João Astori, na Rua do Bispo, na Vila Mariana.
Setembro de 1916. (coleção particular)

A criação da delegacia geral premiou os delegados de carreira, especialmente


aqueles que pertenciam a famílias ilustres ou tinham bom trânsito entre elas. Entretanto, em
1925, o cargo voltou a ter a antiga denominação de chefe de polícia, por determinação do
governador Carlos de Campos (1866-1927), filho e herdeiro de Bernardino de Campos. O
governador aboliu a delegacia geral para acomodar um político de sua inteira confiança, o

106
Ficha Funcional do Dr. Franklin Piza: Escola de Polícia do Estado de São Paulo; Frederico de Barros Brotero, op.cit., p.409-410;
Carlos Eduardo de Almeida Barata e Antônio Henrique da Cunha Bueno. Dicionário das Famílias Brasileiras. vol.II. São Paulo:
Editora Árvore da Terra, 2001, p.2202-2203; Marcelo Piza. "Joaquim de Toledo Piza e Almeida". In: Revista do IHGSP, s.d.; Renato
M. Peressinotto, op.cit., p.37.

52
deputado Roberto dos Santos Moreira (1887-1964), que exercia a liderança do governo na
Assembléia Legislativa. A nomeação do deputado parece não ter criado constrangimentos
porque, como alega um comentador, ele era “estimado entre os delegados”.107 Dois anos
depois, quando deixou a chefia de polícia para se reeleger, o governador recém-eleito
nomeou um delegado de carreira para sucedê- lo. O governador Júlio Prestes de
Albuquerque (1882-1946) escolheu para chefe de polícia o delegado Mário Bastos Cruz
(1895-1946), filho do coronel João Batista Cruz, de Avaré, um antigo aliado político de sua
família.108
Apesar das modificações ocorridas no decorrer dos anos, o poder de nomear,
demitir e remover delegados nunca deixou as mãos do governador, fato que assegurava a
obediência e a lealdade dos delegados de polícia. Insubordinações ou desavenças jamais
eram toleradas, sendo punidas severamente. Amando Caiuby conta uma passagem que o
marcou quando delegado da Capital. Certo dia, ele teve uma discussão acalorada com o
delegado geral João Batista de Souza. Washington Luís era então o governador de São
Paulo. No dia seguinte, ele recebeu ordens de ir ao Palácio, onde esperou longos minutos
para ser atendido. Ao entrar parou diante da escrivaninha do governador e aguardou.
Silêncio. Washington Luís, ignorando-o, escrevia como se não percebesse a sua presença.
Foram minutos angustiantes. O governador fincou a pena no tinteiro e olhou-o duro, sem
retribuir o cumprimento:

" – Aproxime-se. O que aconteceu com o delegado geral ?


– Ele disse grosserias insultuosas… Reagi !
– O senhor não conhece a disciplina? Não respeita os superiores
hierárquicos ?
– Conheço. Sempre respeitei ordens e chefes. Mas se o Doutor
permite, direi apenas que nunca fui censurado desabridamente, em
público, e nunca permiti grosserias assim. Se não reagi com violência
foi porque era meu superior.
– O senhor ainda fala em violência…

107
"Cem Anos de Polícia". In: APCSP, vol.V, 1ºsemestre, 1943, p.85; Cantinho Filho, Gabinete de Investigações: esboço histórico
(1909-1927). São Paulo: Casa Garraux, 1927, p.15.
108
"Dr. Mário Bastos Cruz". In: APCSP, vol.XI, 1ºsemestre, 1946, p.427-430.

53
– Conheço bem o grande governador e sei que ele procederia do
mesmo modo.
– Chega ! Vá pedir desculpas ao seu chefe.
Percebendo a minha relutância, levantou-se e disse:
– Esse será o procedimento de uma autoridade educada, culta e de
serviços ao Estado.
Fez gesto de despedida. Cumprimentei-o com a cabeça, saí
mudo, cabisbaixo e arrasado. Fui para casa dormir sobre o caso; no dia
seguinte, hora da reunião geral, contei o acontecido, desculpei-me com
o ex-amigo e chefe …" 109

Ali não estava em questão os motivos da discussão ou quem tinha razão, mas a
obediência de um subordinado ao seu superior hierárquico. O mundo de Washington Luís e
seus pares era um mundo hierarquizado, onde a obediência era essencial. Nesse mundo, a
cultura do mando e da subserviência não podia ser afrontada, sob o risco de ruir todo o
prédio sobre o qual ela fora construída.
Em 1922, o delegado Emilio Castelar Gustavo, uma autoridade com dezessete
anos de serviço, intimou a criada de uma mansão para prestar depoimento na sua delegacia.
A empregada havia testemunhado o atropelamento de uma criança e o seu depoimento era
imprescindível para o inquérito. Como ela não se apresentava na delegacia, o delegado
mandou dois inspetores buscarem-na. Pouco depois, o patrão dela invade a delegacia, se
dirige ao delegado e lhe passa um sermão na frente dos seus subalternos: "Foi o senhor que
mandou uns indivíduos à minha casa intimar as criadas a virem depor aqui na delegacia?
Uns estrangeiros estúpidos, porque se eles fossem brasileiros saberiam que não se invade
assim uma casa de família!" O delegado tentou fazê-lo entender que o depoimento da sua
criada era importante para a conclusão do inquérito, mas foi desacatado pelo patrão, um
alto funcionário da Secretaria da Agricultura. Castelar mandou prendê-lo no mesmo
momento. Em seguida, mais calmo, ordenou que o soltassem.
À noite, ele foi chamado na residência do secretário da segurança. Ao chegar
recebeu ordens de assinar sua demissão. O secretário explicou que o cidadão fora se

109
Amando Cauiby, op.cit., 1969, p.111-112.

54
queixar diretamente com o governador e não havia o que fazer. O Dr. Washington Luís
ficara aborrecidíssimo, dizia o secretário. Abatido, Castelar respondeu que tinha família e a
polícia era seu único meio de sustento, por isso não podia assinar a demissão. No dia
seguinte, ele tomou conhecimento que fora exonerado pelo governador, o que indica que a
estabilidade funcional dos delegados não era tão estável assim. O jornal Folha da Noite
descreveu o delegado como "um homem honrado que teve a infelicidade de ter vindo ao
mundo com um nome desconhecido e não dispor, para ampará-lo num transe delicado da
sua vida de funcionário público, do prestígio político com que tudo, infelizmente, se
consegue."110
Um delegado de polícia não podia ameaçar alguém que estivesse acima da sua
posição hierárquica. Para as elites paulistas, o senso de hierarquia dava sentido à sociedade.
A obediência e o respeito estavam na base da estrutura policial, onde uma disciplina rígida
percorria toda a cadeia de comando, de cima para baixo, ficando represada nas mãos dos
delegados. Encarregados de zelar pela a disciplina dos seus auxiliares, os delegados tinham
o poder de punir qualquer subordinado com multa, suspensão, prisão e até demissão
sumária.111 A disciplina era muito valorizada pela alta hierarquia policial, como
comprovam os despachos do delegado Cantinho Filho (1881-1951), chefe do Gabinete de
Investigações. Existem guardados na polícia livros com as chamadas Ordem do Dia, do
Gabinete de Investigações (1926-27). Estes despachos eram publicados diariamente pelo
chefe do Gabinete, com ordens, recomendações, escalas de plantão e, principalmente,
elogios e punições para servirem de exemplo a todos os funcionários. O delegado Rafael
Cantinho Filho era filho de um juiz que chegou a ministro do Tribunal de Justiça. Nascido
em Piracicaba, Cantinho Filho fora um daqueles jovens bacharéis recrutados por
Washington Luís, em 1906, para formar a polícia de carreira. Depois de galgar todos os
postos da carreira, foi nomeado chefe do Gabinete de 1925 até o final de 1927, terminando
sua carreira como delegado auxiliar.112
Os despachos revelam que os inspetores tinham que se apresentar para o trabalho
de terno e gravata, com o cabelo aparado e as unhas limpas. O encarregado passava-os em
revista toda manhã. Eles tinham a obrigação de cumprimentarem-se e aos superiores com
110
Folha da Noite, 23 de janeiro de 1922; "Dr. Emilio Castelar Gustavo". In: APCSP, vol.XII, 2ºsemestre, 1946, p.471-472.
111
Manuel Gomes de Oliveira. Guia Policial do Estado de S.Paulo. São Paulo: Saraiva, 1924, p.20-47.
112
Frederico de Barros Brotero, op.cit.,1944, p.359-360; Acadêmia de Ciências, Letras e Artes dos Delegados de Polícia do Estado de
São Paulo, Anuário: 1987-1999. São Paulo: 1999, p.111.

55
cortesia. Qualquer falta era punida com advertência ou suspensão. O inspetor Synésio
Barbosa foi advertido por entrar no Gabinete de chapéu na cabeça e não saudar os
colegas.113 Os funcionários eram proibidos de ficarem "estacionados" nos corredores sem
nada fazerem, ou de interrogarem as partes, o que cabia exclusivamente às autoridades
policiais.114 Delitos considerados graves estavam sujeitos a demissão sumária. Os
inspetores e escrivães não tinham estabilidade na carreira, bastando uma desaprovação do
delegado para serem demitidos.
O delegado Cantinho Filho era severo na disciplina, exonerando um motorista que
sempre se atrasava e um investigador faltoso que vinha prejudicando "o bom andamento do
serviço deste gabinete".115 Também foi demitido o Inspetor José Garcia que, embriagado,
dirigiu palavras ofensivas ao comissário da Delegacia de Vigilância e Capturas dentro de
um teatro.116 O inspetor Eugênio Lara foi exonerado "a bem da moralidade" por avisar a
companheira de um ladrão que este achava-se preso, ter se oferecido para arranjar-lhe um
advogado e ainda ter-lhe feito "propostas desonestas".117 Outro inspetor, Jorge Elias, foi
exonerado por ser "mau elemento", visto que tinha amizade com um arrombador havia anos
e só quando tornou-se seu inimigo é que o denunciou ao Gabinete.118 Em outro despacho,
vamos encontrar um inspetor de 2ª classe perdendo sua licença para tratamento de saúde
porque chegou ao conhecimento do chefe que o mesmo passava as noites nos cabarés.119
Em outra circular, o delegado Cantinho Filho destituiu do cargo o inspetor de 1ª
classe Jorge Guimarães por ele ter chutado um preso "sem motivo".120 Até a violência era
disciplinada no Gabinete, não sendo tolerada sem o consentimento dos superiores.
Comportamentos e crenças que na visão do delegado não cabiam a um empregado do
departamento eram igualmente punidos. O inspetor Francisco Gagliano perdeu seu
emprego por ficar apurado em inquérito administrativo que o mesmo praticava espiritismo
em sua residência, onde dava consulta mediante pagamento.121 Também encontramos
diversos elogios e prêmios em dinheiro para inspetores que, "com o risco da própria vida,

113
Ordem do Dia, 4 de setembro de 1926.
114
Idem, 12 de agosto de 1926.
115
Idem, 9 de abril de 1927.
116
Idem, 19 de março de 1927.
117
Idem, 22 de agosto de 1926.
118
Idem, 16 de outubro de 1926
119
Idem, 4 de dezembro de 1926.
120
Idem, 2 de outubro de 1926.
121
Idem, 26 de janeiro de 1927.

56
cumpriam o seu dever". Os inspetores João Bueno, Francisco Napolitano e Ramon Guerra
Rubio receberam 200 mil réis cada um pela atuação no esclarecimento de um homicídio
ocorrido no Sacomã.122 Além de uma disciplina severa, havia uma rígida divisão de classes
dentro da polícia, observou o criminalista suíço Rodolphe Reiss, contratado para instruir a
polícia de São Paulo em 1913. Criticando o que viu, o suíço disse:

"(…) que me seja permitido fazer uma outra pequena


observação: muitos dentre vocês não têm seu pessoal subalterno à mão,
ele vos escapa. A causa disso é que, embora vocês sejam uma
República, vocês são ainda profundamente aristocráticos. Existe aqui
uma completa separação de classes. Não passaria jamais pela cabeça da
maioria endereçar uma boa palavra a um soldado ou um agente.
Senhores, seus agentes, seus soldados, não se interessarão por seus
trabalhos a menos que vocês os considerem como colaboradores e não
como simples obreiros. Com uma boa palavra podem ter um homem
apegado a vocês por toda a vida. Durante o serviço é necessária uma
disciplina férrea; se há falta, façam uma reprimenda, justa, talvez
contundente, mas esquecida após cinco minutos. Sobretudo se o
indivíduo mostra vontade de reparar a sua falta; porém fora do trabalho
é preciso tratar bem os subalternos." 123

Mesmo acostumado à polícia francesa, conhecida por seu elitismo, Reiss nunca
havia presenciado uma separação estanque entre superiores e subalternos. Os policiais
franceses eram recrutados entre ex-soldados, a maioria proveniente do meio rural. Esses
policiais podiam chegar ao cargo de comissário. Na polícia inglesa, todos os policiais
passavam pelos postos inferiores e as promoções aconteciam exclusivamente por mérito.
Aqui, a hierarquia policial refletia a divisão social: os delegados eram de uma classe e os
subalternos de outra. Não havia qualquer possibilidade de se cruzar aquela linha.

122
Idem, despacho do delegado Juvenal Piza ao Chefe do Gabinete de Investigações datado de 23 de dezembro de 1926.
123
A.R.Reiss. Polícia Scientifica, vol.5, p.135-136. As palestras do criminalista suíço se encontram guardadas na Biblioteca da
ACADEPOL, em francês.

57
Os prontuários e os relatos de antigos policiais revelam que os inspetores de
polícia eram na grande maioria oriundos das classes baixas. Tinham pouca ou nenhuma
instrução e procuravam na polícia um emprego seguro, atrelado ao governo. Um policial
aposentado contou que grande parte dos inspetores que conheceu queria fugir do trabalho
pesado e repetitivo das fábricas.124 No APESP, encontram-se cartas de pessoas sem
ocupação definida enviadas ao chefe de polícia pedindo para serem admitidos como agentes
de polícia. Um destes pedidos é do italiano Gennaro Giribono, que dizia ter servido na
Guardie di Finanza, na Itália. Outro a fazer uma solicitação semelhante, datada de 1900, é
Vicente Miraglia, explicando que morava em São Paulo havia cinco anos e tinha sido
empregado na loteria do sr. Grimoni, onde desempenhou com bastante zelo suas funções.125
Em comum, tinham o fato de ser todos indivíduos sem patrimônio, sem um nome que, se
aceitos na instituição, passariam a desfrutar de direitos e uma identidade no teatro social.

Carteira de inspetores de polícia, 1907-1913 (APESP)

124
Entrevista com o delegado aposentado Sérgio Serafim da Silva em 25 de maio de 2007.
125
Marco Antônio Cabral dos Santos, op.cit., p.246. Estas cartas encontram-se nas latas sob o título genérico de "Polícia". (APESP)

58
As carteiras funcionais de alguns inspetores guardadas no acervo permanente do
APESP revelam que a maioria exercia atividades reservadas às classes baixas como pintor,
copeiro, cocheiro, tipógrafo e operário. Tinham pouca instrução e vinham de fora da
Cidade, de outros estados ou mesmo do exterior. Contudo, suas carteiras portavam fotos
cuidadosamente ensaiadas, assim como assinaturas caprichadas.126 Como observou André
Rosemberg, o engajamento no corpo policial funcionava para muitos como um passaporte
para a sua efetiva existência no mundo formal e um meio de fugir da instabilidade e
insegurança que marcavam o cotidiano da maioria dos trabalhadores.127
O prontuário do inspetor Antônio Fidêncio de Lima é o mais detalhado dos que
pudemos encontrar.128 Nascido em Itatiba em 1910, Lima passou sua infância entre
cafezais, ajudando o pai no trabalho. A família, muito pobre, mudava constantemente de
residência. Sua mãe enviuvou cedo, e ele passou a trabalhar como carteiro para sustentar a
família. Ajudado por um clínico, Lima conseguiu um emprego de eletricista numa firma em
São Paulo. Ele trouxe a mãe para morar consigo, porém viu suas responsabilidades
aumentadas com a morte do irmão, que deixou dois sobrinhos para ele cuidar. Como suas
despesas aumentaram, Lima combinou com o patrão de colocar um dos sobrinhos no seu
lugar enquanto ele aceitava um cargo de servente na polícia, indicado por um amigo. Um
ano e meio depois, Lima era nomeado inspetor da Delegacia de Ordem Política e Social. Já
casado e com filhos, pediu para o delegado Joaquim Secco, seu superior, uma vaga de
telefonista para sua esposa ajudar no sustento da casa. Em maio de 1940, Fidêncio de Lima
trabalhava no setor de vigilância de hotéis e estradas de ferro, quando matou a tiros um
colega ao saber de uma possível traição da esposa. O inspetor foi absolvido, permanecendo
na polícia até aposentar-se. A origem social de Antônio Fidêncio de Lima não era diferente
da maioria dos outros inspetores. O famoso inspetor Luís Apolônio, que ingressou na
polícia em 1928 e foi chefe de investigações do DOPS por décadas, numa entrevista ao
professor Paulo Emílio Sales Gomes (1916-77), diria: "vim de muito baixo, não me
envergonho disso e foi com o suor de meu corpo franzino que me tornei um modesto
paulista."129

126
Fundo da Secretaria da Segurança, caixa C09487. (APESP)
127
André Rosemberg, op.cit., p.133.
128
Prontuário nº1824. (IIRGD)
129
Paulo Emilio Salles Gomes. Cemitério. São Paulo: Cosacnaify, 2007, p.31.

59
Modernidade e conservadorismo
Apesar do desenvolvimento material, a elite dirigente paulista procurou de todas
as formas manter seu mecanismo de dominação através do paternalismo e do clientelismo.
O sentimento de classe era algo cristalizado nela, cujos membros tinham laços fortíssimos
de parentesco e casamento unindo-os. Educados em escolas particulares, criadas e dirigidas
por professores europeus, os filhos desta classe dominavam outras línguas, como francês,
alemão e inglês. Eram todos aparentados, quase todos bacharéis, colegas de turma ou
amigos desde a infância. Davam-se todos, uns com os outros. Mesmo disputando espaço
político e negócios altamente lucrativos, eles se viam como uma classe dotada de
"superioridade moral, clarividência e tipo prático".130 Seus filhos casavam-se entre si,
reafirmando os laços; homens poderosos apadrinhavam os mais desafortunados,
controlando sua renda e até mesmo seu futuro. Era o caso dos delegados e seus auxiliares.
Essa cadeia, multiplicada, formava um emaranhado de lealdades que pareciam naturais e
espontâneas, onde muitos preferiam se incorporar à classe dominante por meio do sistema
de clientela, ao invés de se oporem a ela.131 Joseph Love, estudando essa elite, chega a um
número assustadoramente pequeno de membros que ocuparam postos importantes no
governo de São Paulo entre 1889 e 1937: 263 pessoas. Mais de um terço deles apresentava
uma complexa rede de interligações econômicas e de parentesco.132
Parte considerável da fortuna dessa elite estava ancorada na venda de café e na
intermediação de capital. Paulo Prado (1869-1943), herdeiro do conselheiro Antônio da
Silva Prado (1840-1929), prefeito de São Paulo por longos anos e dono da Casa Prado,
Chaves & Cia., intermediava empréstimos do governo de São Paulo com bancos
estrangeiros.133 A elite paulista atuava em conjunto com os grupos dominantes do mundo
desenvolvido, mas sem ser uma marionete desses interesses. Os magnatas paulistas eram
independentes o suficiente para, em interesse próprio, criar esquemas de valorização do
café envolvendo acionistas e banqueiros europeus em prejuízo de grupos norte-americanos.
Em 1908, o governo de São Paulo conseguiu captar recursos na Europa para vender seus
estoques diretamente a comerciantes estabelecidos nos Estados Unidos que se

130
Telésphoro de Souza Lobo. São Paulo na Federação. São Paulo: 1924, p.104-105.
131
Francisco Antônio Doria. Os Herdeiros do Poder. Rio de Janeiro: Revan, 1995; Emília Viotti da Costa, op.cit., cap.6.
132
Joseph Love, op.cit., p.215-234.
133
Danilo José Zioni Ferretti. "Paulo Prado e o uso político do passado paulista". In: Nilo Odalia/ João Ricardo de Castro Caldeira (Org.).
História do Estado de São Paulo/ Formação da Unidade Paulista. Vol.2 República. São Paulo: Unesp, 2010, p.313.

60
comprometiam a não entregá-lo à Bolsa, o que tornava o produto mais escasso e,
consequentemente, mais caro. Esquemas sofisticados como este, que contrariavam as regras
de mercado e as leis anti-truste norte-americanas, eram possíveis apenas porque a elite
dirigente paulista sabia manipular os mecanismos financeiros dos centros desenvolvidos.134
Joseph Love assinala que, graças à expansão da economia exportadora, a elite
paulista construiu laços efetivos com a Europa. Um em cada onze membros dela era
acionista ou gerente de uma empresa estrangeira e praticamente o mesmo número já havia
sido condecorado por governos estrangeiros, provavelmente em retribuição a serviços
prestados.135 As grandes famílias enriquecidas pelo café desfrutavam do que havia de
melhor nas capitais européias. A família Penteado, por exemplo, fazia todos os anos uma
viagem de passeio pela Europa. Ignácio Penteado (1865-1914), um rico comissário de café,
morou seis anos em Paris. Dizia-se que o salão dos Penteado era um prolongamento da
embaixada brasileira. Ali promovia-se festas para congregar escritores franceses com
intelectuais brasileiros, que viviam ao redor dos magnatas paulistas. A família Penteado
tinha também uma casa magnífica na rua Conselheiro Nébias, em São Paulo, onde a
matriarca da família, Dona Olívia Penteado (1872-1934), promovia as artes e o convívio
social das classes privilegiadas paulistas. Dona Olívia mantinha-se atualizada lendo os
melhores magazines de moda, arte e cultura enviados da França e da Inglaterra.136 No início
da década de 1920, depois de uma viagem a Paris, ela reformou sua casa para acolher
artistas modernistas que também viajavam frequentemente para a Europa, de onde traziam
ideias para transformar a vida cultural da Cidade.137
Para essa elite, Paris era uma capital cultural mundial. Walter Benjamin (1892-
1940) batizou-a de capital do século XIX.138 Palco de uma renovação urbanística pioneira
que serviu de modelo para cidades como Londres, Viena e Berlim, Paris resultou numa
cidade "espetacular" como nenhuma outra, atraindo artistas, escritores e cientistas, além da
fina flor da sociedade mundial. Todas as inovações tecnológicas pareciam desfilar por
Paris: cinema, eletricidade, automóveis e aeroplanos. A identidade da cidade tinha a marca

134
Clodoaldo Bueno. Política Externa da Primeira República: Os anos de apogeu - de 1902 a 1918. São Paulo: Paz e Terra, 2003,
p.374-382.
135
Joseph Love, op.cit., p.222.
136
Godoffredo Telles Júnior, op.cit., p.13-17.
137
Maria Eugenia Boaventura. O Salão e a Selva: uma biografia de Oswald de Andrade. Campinas: Unicamp, 1995; Aracy A. Amaral.
Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2010.
138
Walter Benjamin. Passagens. São Paulo: Editora UFMG, 2009, p.53.

61
das exposições universais. Seu maior cartão postal – a Torre Eiffel – era resultado de um
desses eventos. Visitantes e turistas utilizavam as redes de transporte moderno, ligando a
França a todos os cantos do mundo, para visitar suas exposições. Os pavilhões da
Exposição Universal de 1900 atraíram mais de 50 milhões de pessoas. O governo francês
subsidiava as atrações culturais, enquanto a imprensa devotava grandes espaços para os
debates literários e os movimentos avant-garde, transmitindo para um público distante a
impressão de estar participando da efervescência da Cidade Luz.139
A historiadora Heloisa Barbuy descreve a expansão da cultura industrial européia
como uma teia cujos fios foram se estendendo progressivamente, do centro para a periferia,
prolongando sua malha mundo afora, atingindo a América Latina, o Brasil e a Cidade de
São Paulo.140 A elite cafeicultora procurava romper sua ligação com as tradições do mundo
rural, lembrança de um Brasil atrasado, numa ânsia por contemporaneidade que era buscada
num estilo de vida pungente, inspirado no modo de vida europeu. O que alimentava essa
elite era a ideia de modernidade. Os homens da segunda metade do século XIX possuíam
uma clara consciência de viver uma ruptura com o passado, vivenciado em um conjunto
amplo de transformações cumulativas e profundas nas esferas econômica, política e
cultural. A modernidade carregava consigo um modo de ser, uma visão de mundo que
intensificava a ordem industrial, embora ela não tenha sido sentida e interpretada por todos
intelectuais da mesma forma. Mas foi vivida profundamente por todos eles.141
Jacques Le Goff observou que os ícones do progresso como a iluminação elétrica,
o motor de combustão, a turbina a vapor, o aeroplano, o transatlântico, os gramofones e
telefones, transmitiram um sentimento de ruptura dos indivíduos e das sociedades com o
passado, mas constituiu também e paradoxalmente um movimento de integração de países e
grupos sociais em torno de uma ordem imaginada.142 Nesse sentido, a modernidade não
conhecia fronteiras. No decorrer do longo século XIX, um número crescente de pessoas
passou a se ver como modernas ou a enxergar um mundo moderno ao seu redor. O
historiador C.A. Bayly considera que a sociedade européia sentia-se moderna precisamente
porque um número considerável de intelectuais, estadistas e cientistas viam a si mesmos

139
Akira Iriye and Pierre-Yves Saunier (Ed.), op.cit., p.234-237; Patrice Hugonnet. Paris: Capital of the World. Cambridge, MA:
Harvard University Press, 2002.
140
Heloisa Barbuy. A Cidade-Exposição: Comércio e Cosmopolitismo em São Paulo, 1860-1914. São Paulo: Edusp, 2006, p.225-228.
141
Martin Daunton & Bernhard Rieger (Ed.). Meanings of Modernity: Britain from Late-Victorian Era to World War II. Oxford: Berg,
2001.
142
Jacques Le Goff. História e Memória. Campinas: Unicamp, 2008, p.173-204.

62
como modernos, isto é, superiores às populações de suas colônias. Ao mesmo tempo,
pensadores asiáticos, africanos e latino americanos compreendiam que o mundo como eles
conheciam estava erodindo. Alguns viam esse processo com bons olhos, acreditando que
fosse necessário para a humanidade atingir um outro patamar, e que um sopro de
modernidade melhoraria suas vidas e seu futuro.143
Descrevendo esse processo onde "tudo que era sólido se desmancha no ar",
Marshall Berman escreveu que os ambientes e experiências modernos cruzaram todas as
fronteiras unindo a humanidade num único período, marcado pela modernidade.144
Testemunhando a obsessão da elite paulista por tudo que fosse moderno, um francês que
morou em São Paulo por volta de 1914 escreveu:

"(O brasileiro moderno) estima que sua civilização atual, as


ferrovias, as grandes cidades de aspecto londrino, parisiense ou
berlinense, a eletricidade profusa, os incontáveis bondes, os hospitais-
modelo, os teatros monumentais, as universidades gigantes, as escolas
exemplares, as inigualáveis instalações higiênicas e policiais, merecem
exclusivamente admiração. (…) A glória do paulista é ser avançado. Ele
despreza os países atrasados; esses que somam menos trilhos, menos
estações, menos mobiliário vienense em madeira recurvada, menos
eletricidade nas luminárias das lojas, mais casas antigas cor-de-rosa,
azuis, marrons e brancas com arcadas, mais cadeirões em jacarandá
maciço e entalhado, mais igrejas azuis e brancas (…)."145

A Cidade de São Paulo foi palco de um programa ambicioso de construção de


edifícios institucionais, arruamento e instalação de serviços de água, luz e gás articulado
por engenheiros treinados na Europa e nos Estados Unidos, como Antônio Francisco de
Paula Souza (1843-1917), filho e neto de políticos eminentes do Império, e defensor de
uma reforma territorial e urbana radical, centrada nas ferrovias, no saneamento e num

143
C.A. Bayly, op.cit., p.10-11; Jorge Larrain. Identity and Modernity in Latin America. Cambridge, UK: Polity, 2000, p.70-91.
144
Ver a introdução de Marshall Berman. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
145
Heloisa Barbuy, op.cit., p.33.

63
ensino público condizente com os ideais do novo regime.146 Os discursos enaltecedores
descreviam São Paulo como uma locomotiva a puxar vagões vazios, que representavam os
outros estados da nação. Não por acaso, o brasão da Cidade, criado pelo poeta Guilherme
de Almeida (1890-1969) e Wasth Rodrigues (1891-1957) em 1917, simbolizava o
voluntarismo paulista no desenho de um braço armado empunhando a bandeira da Ordem
de Cristo, estandarte dos bandeirantes, sob o lema emblemático: "Não sou conduzido,
conduzo".147
Raymundo Faoro (1925-2003) observou que a modernização chegou à sociedade
brasileira por meio de um grupo condutor que, privilegiando-se, procurou moldar sobre o
país, pela ideologia e pela coação, uma política de mudança economicamente orientada,
porém profundamente conservadora.148 Washington Luís, um personagem símbolo da
época, afiançava que o seu desejo era "dotar São Paulo de tudo quanto o progresso e a
civilização exigem que haja aqui".149 Modernizar era criar meios de se chegar à
modernidade, era transformar o atraso, romper com o passado, construir prédios, portos,
ferrovias, fábricas e impor novas formas de sociabilidade e disciplina na população. Esse
discurso a favor da modernização se estendeu à esfera da administração pública,
promovendo a burocratização estatal, sobretudo da polícia paulista, reformada para ser uma
polícia moderna em consonância com as polícias dos países desenvolvidos. Entre 1907 e
1913, a polícia paulista recebeu investimentos incessantes; montou um gabinete de
identificação moderno; instalou alarmes telegráficos pelas ruas centrais da Cidade; adquiriu
uma frota motorizada; implementou o registro fotográfico das cenas de crime para
aprimorar os inquéritos policiais; aperfeiçoou seu corpo de bombeiros; construiu uma
novíssima penitenciária e contratou técnicos estrangeiros renomados para treinar a polícia
de carreira e a Força Pública.150 Estas práticas traduziam o espírito das elites paulistas que
reforçavam sua posição no espaço social ao impor mudanças que, ao mesmo tempo em que
transformavam a sociedade, legitimavam as hierarquias e as relações de dominação.

146
Cristina de Campos. Ferrovias e Saneamento em São Paulo: O engenheiro Antônio Francisco de Paula Souza e a construção da rede
de infraestrutura territorial e urbana paulista, 1870-1893. Campinas: Pontes Editores, 2010.
147
Elias Thomé Saliba. "Historias, memórias, tramas e dramas da identidade paulistana". In: Paula Porta (Org.), op.cit., vol.3, p.569-577.
148
Raimundo Faoro. Existe um pensamento político brasileiro? São Paulo: Ática, 1994, p.99.
149
Eugenio Egas, op.cit., vol. 3, p.11.
150
Sobre os “progressos da polícia” ver o álbum comemorativo mandado imprimir na Itália: A Polícia de S. Paulo. Roma: officina di
Fotoincisione nell Instituto di S.Michele Zagnoli & Anastasi, 1912.

64
Polícia e eleição nos anos 1920
Um dos mitos repetidos sobre os efeitos da modernização da polícia de São Paulo
foi que ela "saiu das mãos dos políticos locais, para as mãos seguras de uma plêiade de
bacharéis, completamente alheios aos negócios de campanário". Pouco a pouco, diziam, "a
polícia partidária e perra retraiu-se, desaparecendo,
sucumbindo, para dar lugar à polícia imparcial e pronta,
filha da justiça e defensora do direito".151 Porém, são fartas
as evidências de que a policia paulista nunca se separou da
política. A polícia tinha meios de influir no resultado
eleitoral e o fazia sem constrangimento, favorecendo o
governador e seus aliados. Durante o pleito, os delegados
podiam prender qualquer um, calando opositores e
afastando eleitores, proteger aliados políticos ou Charge do parafuso (1915) mostrando
policiais inertes diante da violência dos cabos
simplesmente ignorar os abusos de certos chefes políticos. eleitorais governistas.

Em fevereiro de 1924, o governador Washington Luís enfrentou a dissidência


impondo um sucessor. Para tal, ele exonerou ou removeu todos os delegados e
subdelegados dos municípios onde não tinha apoio, intervindo nos comitês distritais e
ordenando que inspetores e delegados de polícia acompanhassem a votação.152 Tão
importante quanto isso era o delegado deixar os cabos eleitorais livres para atuar.
Recordando os anos vinte, o jornalista Paulo Duarte (1899-1984) escreveu:

"O PRP degenerou mesmo depois da proclamação da


República, e degenera cada vez mais. A fraude eleitoral é que o
sustenta. Os seus cabos eleitorais são tipos do mais baixo nível moral e
intelectual, pois sem eles as eleições não se ganhariam. Eles e a
polícia."153

Denúncias de fraudes e violências cometidas durante as eleições enchiam os


jornais, onde reinava uma desilusão com o sistema político. A máquina política perrepista

151
Eugenio Egas, op.cit., vol. 3, p.10.
152
José Ênio Casalecchi, op.cit., p.163-164.
153
Paulo Duarte. Memórias: miséria universal, miséria nacional e minha própria miséria. vol.7. São Paulo: Hucitec, 1978, p.297.

65
dependia dos cabos eleitorais para conquistar eleitores e apoio aos seus candidatos. Os
cabos eleitorais intermediavam a relação de troca entre as pessoas comuns e os líderes do
PRP. Eram indivíduos como o advogado Mário do Amaral, do Cambuci, ou o empreiteiro
Estanislau Pereira Borges, de Santa Ifigênia.154 Mas, o maior cabo eleitoral da Cidade de
São Paulo era o major José Molinaro (1872-1928), líder dos cocheiros e presidente do
Centro dos Motoristas que funcionava no Bom Retiro. Paulo Duarte comenta que as
macarronadas na casa de Molinaro eram famosas; o major tinha um excelente coração,
recebia a todos muito bem, mas isso não o impedia de mandar dar uma surra na pessoa no
dia seguinte.155
Molinaro veio ainda criança para o Brasil, acompanhado do padrasto, irmãos e
irmãs. Chegou nas primeiras levas de imigrantes em 1886. Sua família trabalhou em várias
fazendas até estabelecerem-se em Ribeirão Preto. Ali, seu padrasto comprou dois carroções
para fazer carreto para os sitiantes. No começo do século, a família veio para a Capital,
onde Molinaro ficou conhecido transportando carga e passageiros na Estação da Luz. 156 O
advogado Múcio de Oliveira Costa, em depoimento prestado no inquérito que apurou a
morte de Molinaro, contou que o conhecia desde que ele era carregador na Luz. Sabia
também, por informações de vários delegados, inclusive do ex-delegado geral João Batista
de Souza, que Molinaro esteve preso inúmeras vezes como desordeiro e membro da
"Camorra da Luz". No seu prontuário constavam mais de cinquenta prisões, que
desapareceram quando ele tornou-se cabo eleitoral do PRP, disse o advogado em
depoimento.157
A atividade de Molinaro permitiu-lhe, com sua agressividade, organizar os
carroceiros, colocando-se como um intermediário dos imigrantes que buscavam
reconhecimento profissional e os governantes interessados em controlar a Cidade. Molinaro
logo percebeu que o voto era uma das mercadorias mais preciosas que ele poderia fornecer.
Organizando seus vizinhos e compadres, ele conseguiu incitar um bom número de
imigrantes a votar nos candidatos do PRP, com a promessa de que os eleitos ajudariam a
ele e ele aos seus companheiros. Tendo em mãos os títulos eleitorais dos seus protegidos,

154
James P. Woodard, op.cit., p.38.
155
Paulo Duarte, op.cit., vol.7, p.297.
156
Marilia Pamplona Moreira D'Elia. "Major Molinaro: vida, paixões e sorte". In: Revista Leitura, 4 de agosto de 1985;
Antônio D'Elia, "O Major Molinaro e o Voto Múltiplo". In: Revista do Arquivo Municipal, p.47-54. (FFLCH)
157
Depoimento do Dr. Múcio de Oliveira Costa datado de 23 de agosto de 1929. Inquérito policial sobre a morte de José Molinaro.
(ATJSP)

66
Molinaro possibilitou a eleição de vereadores, deputados e senadores do PRP, alcançando
prestígio e fortuna. Segundo Marília D'Elia, Molinaro chegou a "possuir" nove mil eleitores
no distrito do Bom Retiro, suplantando a Sé, Brás e Santa Ifigênia.
Em troca, Molinaro recebeu a patente de major da Guarda Nacional e viu seus
negócios prosperarem. Ele aumentou sua frota de táxis, multiplicou suas garagens, oficinas,
e investiu em postos de gasolina. Chegou até a transformar-se em revendedor da Ford em
São Paulo. Molinaro exercia na Cidade, mais especificamente no bairro do Bom Retiro, um
poder que só era possível com a cumplicidade da polícia, obediente ao maior interessado na
existência de gente como ele. A trajetória desse imigrante serve para descortinar uma face
ainda pouco conhecida da história política paulista.
Acompanhando a eleição de 1928 pelos jornais, podemos observar que, naquele
ano, o PRP não era mais o senhor absoluto dos votos na Capital. O Partido Democrático,
uma dissidência formada por membros da elite excluídos do poder e insatisfeitos com os
rumos do país, empenhava-se em conseguir uma vitória nas urnas. Atentos contra as
fraudes, fiscais do PD exigiram ver os boletins completos dos eleitores. Um mesário do
distrito da Sé fugiu com os livros, iniciando o tumulto. A imprensa conta que militantes do
Partido Democrático invadiram as salas de votação para apreender os boletins. Nesse
momento chegou o delegado auxiliar Otávio Ferreira Alves, que tentou acalmar os ânimos
negociando a entrega parcial dos boletins. Ao saber da invasão, o major Molinaro cercou o
local com seus capangas. Segundo um jornal, o major foi repelido com socos e chutes
quando, em seu auxílio, apareceu o deputado Sílvio de Campos (1884-1962), irmão do
falecido governador Carlos de Campos, que desfechou tiros contra a multidão, obrigando-a
a se dispersar sem conseguir as atas de votação.158
Nem Molinaro, muito menos o deputado Sílvio de Campos, foram detidos pela
polícia. Sílvio de Campos servia na comissão diretora do PRP e era o deputado eleito com
maior votação na história de São Paulo. Conhecido por seus ímpetos violentos, às vezes
misturados com o álcool, o deputado era acusado de cometer e ordenar várias violências.
Paulo Duarte conta que a política da Capital estava nas mãos dele desde a ascensão do
irmão à presidência do estado. "Sílvio não hesitava diante da violência e, muitas das vezes,
ele não se contentava em organizar seus planos fora da lei, mais ainda ia, como homem

158
Diário Nacional, 31 de outubro de 1928.

67
destemido que era, comandar a violência pessoalmente." O jornalista, que o conheceu de
perto, afirmava que o pior defeito de Sílvio de Campos era o "uso ou abuso do álcool que
não o tornava um bêbado, mas um homem perigoso e desatinado até". 159 Sua façanha mais
comentada ocorreu em 1937 quando, sentindo-se insultado e traído, invadiu a redação do
Correio Paulistano com seus capangas e deu um tiro na boca do jornalista Alberto
Americano. O deputado controlava parte do PRP, era advogado da Light e diretor da
Companhia de Cimento Portland.160
A política era inseparável da violência. O delegado que investigou o assassinato
do major Molinaro chegou a conclusão que o chefe político do Bom Retiro atraíra a cobiça
e a inveja dos seus próprios correligionários.161 No dia 27 de dezembro de 1928, após o
horário do almoço, Molinaro encontrava-se na frente da Assembléia Legislativa, na Praça
João Mendes, quando um funcionário de cartório pediu para lhe falar em particular. Sem
dizer uma palavra, o funcionário sacou um revolver e atingiu o major no abdômen. O major
tentou se defender segurando a arma do agressor, mas foi novamente baleado e caiu. O
assassino, então, mirou na cabeça do major e desfechou mais três tiros. Molinaro morreu no
hospital. O assassino, Eduardo Benatti, mesário do PRP e ex-sócio do major, foi preso em
flagrante. Alegando que estava sendo perseguido pelo poderoso cabo eleitoral, Benatti
terminou absolvido pelo júri em novembro de 1930. Contrariando os indícios de complô
apresentados no inquérito policial, o júri decidiu, por quatro votos a três, que o réu foi
levado a matar por desespero.162

O temor à desordem
O agravamento da crise econômica e dos conflitos entre patrões e empregados
corroeu as bases da Republica. O tom da maioria dos intelectuais era de crítica e desânimo.
A conclusão era que não havia um governo representativo, não havia democracia, não havia
partidos, não havia República.163 A mobilização em torno da campanha presidencial de
1919 já trazia sintomas do descontentamento que aumentaria nos anos seguintes. Pela

159
Paulo Duarte. Memórias: apagada e vil mediocridade.v.5. São Paulo: Hucitec, 1977, p.207.
160
Israel Beloch e Alzira Alves de Abreu (Coord.), op.cit.,vol.1, p.596; Paulo Duarte, op.cit.,vol.5, p.205-209; Wladimir de Toledo
Piza. Por Quem Morreu Getúlio Vargas. Rio de Janeiro: Ampersand, 1998, p.73.
161
Relatório do inquérito policial datado de 1 de janeiro de 1929. (AJSP)
162
Laudo do assassinato de José Molinaro. In: Corpos de Delicto, livro nº 8004 - Dezembro 1928; Diário da Noite, 12 de novembro de
1930.
163
ver Vicente Licinio Cardoso (Org.). À Margem da História da República. Brasília: Unb, 1981 (1924).

68
primeira vez, um candidato fez uma campanha voltada para os eleitores, realizando
comícios pelas principais cidades do país. Um número expressivo de jornais apoiou a
candidatura de Rui Barbosa, que prometia mudanças políticas, sociais e econômicas. A
euforia foi grande e a derrota para o candidato oficial serviu para alimentar ainda mais o
descrédito nas urnas.164
Entre alguns militares de baixa patente, cresceu a convicção que somente uma
ação radical poderia reconduzir o país para o caminho traçado pelos propagandistas da
República. Em 5 de julho de 1922, fracassou uma tentativa de levante organizada por
tenentes no Rio de Janeiro, e o presidente eleito, Artur Bernardes (1875-1955), assumiu em
novembro decretando estado de sítio. Dois anos depois, eclodiu um novo movimento
dentro dos quartéis. Dessa vez, o foco da revolta foi na Cidade de São Paulo. Na
madrugada do dia 5 de julho de 1924, unidades rebeldes do exército e da Força Pública
ocuparam as ruas do centro da Capital paulista. Alertado, o comandante da 2ª região militar
conseguiu reverter a situação, prendendo alguns líderes da insurreição e tomando o Quartel
da Luz. Os revolucionários revidaram bombardeando o Palácio do Governo e o prédio da
Repartição Central de Polícia. Após três dias de luta, o governador Carlos de Campos
abandonou a Cidade indo se abrigar junto das tropas federais em Guaiaúna. A polícia
inteira acompanhou o governador como uma guarda pretoriana, deixando a Cidade
completamente abandonada. Até o major Molinaro acompanhou a debandada com o seu
pessoal. A notícia da fuga do governador se espalhou e os saques tiveram início. A falta de
alimento e o temor que a luta continuasse indefinidamente levaram populares a invadir os
armazéns das firmas Matarazzo.165
O presidente da Associação Comercial de São Paulo, José Carlos de Macedo
Soares (1883-1968), assistiu horrorizado as pilhagens, comparando-a mais tarde com o
prelúdio da insurreição bolchevista na Rússia.166 Após o saque, Macedo Soares promoveu
uma reunião em sua casa com o chefe revolucionário, o general Isidoro Dias Lopes (1865-
1949), para que se restabelecesse a ordem e o policiamento da Capital. O general rebelde
colaborou com o presidente da Associação Comercial, pois sua luta não era contra a ordem,
mas contra as "oligarquias" que, segundo ele, desvirtuaram os ideais republicanos. A

164
James P. Woodard, op.cit., p.93-104.
165
Ilka Stern Cohen. Bombas sobre São Paulo: A Revolução de 1924. São Paulo: Unesp, 2007, p.32-33; Vany Pacheco Borges e Ilka
Stern Cohen. "A Cidade como palco: os movimentos armados de 1924, 1930 e 1932". In: Paula Porta (Org.), op.cit., vol.3, p.291-308.
166
Ilka Stern Cohen, op.cit., p.41.

69
primeira providência tomada foi organizar um serviço de policiamento, composto
principalmente de estudantes, cuja tarefa era proteger os prédios públicos e inibir os saques.
No dia 11 de julho, as forças legalistas concentradas nos arredores da Cidade
iniciaram um bombardeio serrado. A estratégia dos governistas consistia em desmoralizar o
comando rebelde e, ao mesmo tempo, atemorizar a população para que ela não tivesse
ânimo em aderir ao movimento. Seguindo essa estratégia, os bairros elegantes da elite
paulista foram poupados pela artilharia, que bombardeou sem dó os bairros operários. Num
telegrama dirigido à Câmara dos Deputados, Carlos de Campos declarou: "Estou certo de
que S. Paulo prefere ver destruída a sua formosa Capital do que destruída a legalidade no
Brasil."167 Isolados e sem qualquer esperança de levar adiante seus planos, os
revolucionários deixaram a Capital na noite do dia 27 de julho, partindo na direção do sul
do país, onde uniram-se a outras colunas rebeldes.
Com o retorno do governador à Capital, tiveram início os processos e
perseguições. Foram presos centenas de militares e civis, inclusive o presidente da
Associação Comercial de São Paulo, acusado de conluio com os revolucionários. Seu
primo, Bráulio de Mendonça Filho, delegado regional em Sorocaba, foi demitido acusado
de fornecer um passe em branco a um "revolucionário". Inconformado, o delegado entrou
na Justiça contra a medida abusiva e injusta do governador, porém seu processo
permaneceu esquecido no tribunal.168 Todo estrangeiro suspeito de auxiliar os rebeldes era
preso, deportado para os confins do Acre e largado ao abandono. O boato de que "batalhões
estrangeiros", formados por operários imigrantes, teriam se unido aos revoltosos, serviu
como pretexto para uma repressão impiedosa contra os trabalhadores. Agremiações de
operários foram fechadas e seus membros encarcerados, mesmo não tendo elas participado
do movimento armado. Até a Liga Nacionalista, um grupo conservador e moralista formado
por funcionários liberais, teve suas atividades proibidas.169
O desespero de algumas vítimas da investida policial pode ser sentido nesta carta,
datada de 21 de outubro de 1925, dirigida ao major Molinaro por um dos seus eleitores:

"Prezado amigo:

167
Paulo Duarte. Agora Nós! (originariamente publicado em 1927). São Paulo: Imprensa Oficial, 2007, p.92.
168
Aureliano Leite, op.cit., 1944, p.132; Prontuário nº104.
169
Paulo Sergio Pinheiro. Estratégias da Ilusão. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.99-102, p.106-109.

70
Uma vizinha da fábrica, Sra. Gloria, tem o marido preso sob
imputação de revoltoso, desde o fim de maio p.p., e ela por várias vezes
pediu-me para solicitar ao amigo Major Molinaro, a sua intervenção para
ver se possível de libertar o seu marido.
Por este fim venho com a presente para pedir ao amigo de
interessar-se e pedir ao Ilmo. Sr. Dr. Andrelino de Assis, se for possível
soltar o Alberto Lopse marido da Sra. Gloria. Estou certo que o Ilmo. Sr.
Dr. Andrelino, que é muito atencioso e cumpridor escrupuloso da lei, se
for possível não recusará esse favor, visto que quem sofrem mais são a
esposa do preso que tem três filhinhos, o maior dos quais ainda não tem 5
anos de idade. Pode estar certo que se não for por isso não vinha
incomodar o amigo. Como sabe sou eleitor com mais os meus dois filhos
maiores, e em breve terei outro, e nunca abusei do velho amigo, pedindo
favores, estando certo que por esta vez procurará em quanto lhe for
possível satisfazer o meu pedido."170

A resposta do governador Carlos de Campos à população, ainda atordoada com a


destruição da Cidade, foi anunciar novas reformas na polícia procurando dotá-la de mais
recursos. Em 30 de dezembro de 1924, o governador aumentou o aparelho policial paulista.
O Gabinete de Investigações recebeu sete novas delegacias especializadas, voltadas para a
repressão e investigação de furtos, roubos, homicídios,
falsificações, crimes contra os costumes e atividades
subversivas contra a ordem. O decreto criou dentro do
Gabinete de Investigações a Delegacia de Ordem Política e
Social, para vigiar o crescente operariado em São Paulo e estar
atenta contra as tentativas de sublevação. Novos funcionários
foram admitidos na polícia e o número de delegacias regionais
foi ampliado. Às delegacias da Capital foi dado um crédito
Roberto Moreira
suplementar de 25 mil contos; outro de 650 mil contos foi destinado à manutenção das
prisões do estado. No total, foram gastos mais de dois milhões na reorganização do aparato
170
Carta do sr. Felice Lucattelli, datada de 21 de outubro de 1925, anexada no inquérito que investigou o assassinato do major Molinaro,
com o fim de demonstrar que ele era uma pessoa estimada e prestativa.

71
policial. Por fim, o governador revogou o cargo de delegado geral para colocar, como chefe
de polícia, um íntimo colaborador da sua família: o deputado Roberto Moreira,
frequentador da sua casa e advogado de importantes empresas estrangeiras como a Nestlé e
a Portland.171
O pânico suscitado pela rebelião militar provocou uma devassa nas fileiras da
Força Pública. Foram expulsos da tropa todos os oficiais e praças suspeitos de participar da
sublevação. O contingente da Força foi dramaticamente reduzido de 14.079 para 8 mil
praças. Os soldados leais, entretanto, foram homenageados com a medalha da legalidade. E
atendendo a um velho pedido da Força, o governador contratou um aviador norte-
americano para organizar uma esquadrilha que recebeu seis novos aeroplanos em 1930.172
Para compensar a redução do efetivo da Força Pública, a polícia civil teve o seu corpo
reforçado com a criação da Guarda Civil, uma nova corporação destinada a substituir a
Guarda Cívica da Capital. Criada por decreto em 1926, a Guarda Civil seria totalmente
independente da Força Pública, garantindo à polícia um destacamento inicial de mais de mil
homens subordinados diretamente ao 3ª delegado auxiliar, um servidor fiel do governo.173
A despesa com a segurança pública atingiu um recorde em 1925, como podemos
aferir observando o seguinte quadro:

1897 9. 067:340 $ 416


1905 19. 478:213 $ 828
1907 10. 766:024 $ 326
1910 12. 572:713 $ 497
1917 20. 264:895 $ 548
1919 20. 828:714 $ 838*
1921 23. 054:931 $ 000*
1925 36. 716:397 $ 773*
Fonte: Mensagens dos governadores de São Paulo dos anos de
1897, 1905, 1907, 1910, 1917, 1919, 1921, 1925. (APESP)

171
Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo em 14 de julho de 1925, pelo Dr. Carlos de Campos, presidente do Estado de São
Paulo. São Paulo: Diário Oficial, 1925, p.97-101; Hermes Vieira e Oswaldo Silva, op.cit., p.238-241; Israel Beloch e Alzira Alves
de Abreu (Coord.), op.cit., vol.3, p. 2291.
172
Mensagem de 1925, op.cit., p.99 e 104; Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo em 14 de julho de 1930, pelo Dr. Heitor
Teixeira Penteado, vice-presidente do Estado de São Paulo. São Paulo: Diário Oficial, 1930, p.163.
173
Hermes Vieira e Oswaldo Silva, op.cit., p. 238-244.

72
O quadro reflete o gasto crescente da Secretaria de Justiça, órgão que centralizava
as despesas com a ordem pública. Na folha de despesas da Secretaria estão o judiciário, a
polícia civil, o sistema penitenciário e a Força Pública. Os anos de 1919, 1921 e 1925,
marcados com um asterisco, representam somas gastas somente com a polícia civil, a Força
Pública e o presídio do estado. Através desse montante podemos ter uma idéia do aumento
substancial de gastos com a atividade policial após 1917, ano da grande greve. Nesse
período, o efetivo policial quintuplicou, ao passo que as despesas aumentaram mais de sete
vezes. O poder judiciário, enquanto isso, não chegou a dobrar em termos de pessoal e
custo.174
Outro fato que chama a atenção é que, após 1905, São Paulo deixou de mostrar
um superávit nas suas contas para apresentar déficits cada vez maiores no seu orçamento,
ou seja, o Estado estava gastando mais do que arrecadava. Para o diretor geral da secretaria
da Agricultura, Eugenio Lefevre, a causa principal desses déficits foram os gastos enormes
com a compra de ferrovias, empréstimos externos e internos, amortização da dívida e,
sobretudo, o subsídio à agricultura.175 A crença geral daqueles que comandavam o estado
parecia ser que, desde que houvesse ordem, a conjuntura se prolongaria indefinidamente e
as dívidas seriam roladas. Como resultado, gastava-se cada vez mais com a manutenção da
ordem.
Num momento de grave crise política e social, voltava com muita força o discurso
que associava polícia com progresso, desenvolvimento com ordem. Durante a inauguração
do novo prédio do Gabinete de Investigações, no dia 4 de julho de 1927, o chefe de polícia
Roberto Moreira discursou:

"Nenhum serviço, nas sociedades modernas, sobreleva o da


polícia. Dada a complexidade das relações humanas na sociedade
contemporânea, a ordem é um elemento inelutável para tornar possível a
vida social, assegurando a garantia do trabalho e promovendo o
desenvolvimento das atividades dos homens. Sem ordem é impossível a
produção industrial, artística e literária. Sem ordem, não pode haver
elevação moral; sem ordem, nada é possível na vida social, porque
174
Andrei Koerner, op.cit., p.237-239.
175
Eugenio Lefevre, op.cit., p.96-97.

73
teríamos o caos, a ignorância, a delinquência, o desfibramento do caráter,
a subversão da pátria!"176

Para Moreira, a polícia constituía "a fibra central da organização pública",


necessitando de investimentos contínuos para combater os "elementos nocivos que não
conhecem outra ação, além da ruína das instituições".177 Parece que o chefe de polícia não
enxergava, ou não compreendia, que a polícia estava empenhada numa guerra que ela não
podia vencer de modo permanente ou definitivo.

São Paulo e as polícias estaduais


Fatores políticos e econômicos tiveram grande peso na modernização da polícia
paulista. A capacidade de arcar com custos consideráveis pesou também na implantação de
polícias equipadas e treinadas por todo o país. As mensagens dos governadores revelam que
pouquíssimas regiões tinham suporte financeiro para formar um corpo policial moderno e
caro como o paulista. Além disso, a inexistência, fora de São Paulo, de um partido forte
como o PRP e as lutas sangrentas entre grupos políticos rivais criaram sérios obstáculos
para a formação de polícias de carreira em outros estados.
Em Minas Gerais, por exemplo, o governador Venceslau Brás (1868-1966) tentou
formar uma polícia de carreira em 1911, criando as primeiras delegacias remuneradas, mas
foi obstruído na Assembléia Legislativa. Tudo indica que os chefes políticos mineiros não
estavam dispostos a permitir a intromissão de delegados estranhos nas suas áreas de
influência.178 No Paraná, onde as condições políticas eram outras, o governador teve força
para levar adiante um projeto de reforma policial. Convencido de que havia somente uma
maneira de "tornar mais eficaz e uniforme a sua ação", o governador paranaense aprovou
uma lei criando a polícia de carreira em 1922. Entretanto, por falta de recursos, os
primeiros bacharéis foram nomeados somente dois anos depois.179

176
Discurso do chefe de polícia Roberto Moreira. In: "Gabinete de Investigações e Escola de Polícia: Breve notícia sobre a inauguração
oficial em 4 de julho de 1927". São Paulo: Typ. da Escola de Polícia, 1927, p.4.
177
Idem, p.4-7.
178
Mensagem dirigida pelo Presidente do Estado, Dr. Delfim Moreira da Costa Ribeiro, ao Congresso Mineiro em sua 2ª sessão
ordinária da 7ª Legislatura no anno de 1917. Bello Horizonte: Imprensa Official do Estado de Minas Gerais, p.24.
179
Mensagem dirigida ao Congresso Legislativo pelo Dr. Caetano Munhoz da Rocha, Presidente do Estado, ao instalar-se a 1ª Sessão
da 16ª Legislatura. Curityba: 1ºde fevereiro de 1922, p.79; Mensagem dirigida ao Congresso Legislativo pelo Dr. Caetano Munhoz
da Rocha, Presidente do Estado, ao instalar-se a 1ª Sessão da 17ª Legislatura. Curituba: 1º de fevereiro de 1924, p.79.

74
Nos estados do Nordeste, as condições para impor uma polícia de carreira foram
ainda mais difíceis. Na Paraíba, o chefe de polícia reclamava que os delegados, além de não
possuírem diploma, eram submissos aos chefes locais. Em seu relatório, ele afirma que o
problema maior da polícia estava no fato de os delegados estarem "vinculados às
conveniências locais", ou seja, eram apadrinhados de coronéis que protegiam cangaceiros e
faziam oposição ao governo. Em meio a uma disputa de poder, mais do que um combate
efetivo ao banditismo, o chefe de polícia da Paraíba optou por contar com uma polícia
militar a uma civil. Segundo ele, a polícia militar era mais disciplinada e obediente ao
governador.180
Algo parecido ocorreu em Alagoas, onde o governador afastou os delegados e
nomeou no lugar deles policiais militares, alegando que os comissionados civis eram
incapazes e comprometidos com interesses locais.181 A desconfiança em relação à polícia
civil e a dificuldade de controlar o sertão levou os estados do Nordeste a privilegiarem o
investimento em polícias militares.182 Mesmo enfrentando uma escassez de recursos, o
investimento em polícias militares foi predominante na região Nordeste. Alguns estados,
como Pernambuco, conseguiram montar um corpo militar bem equipado com mais de 2.200
praças, enquanto Sergipe mal podia contar com seus 500 soldados, pois metade deles estava
deslocada para auxiliar os agentes do fisco na cobrança de impostos.183 Mas isso não
significou um avanço. Depoimentos dão conta de que os soldados eram desprezados pela
população que os chamava de "macacos". Esses soldados formavam as famosas "volantes",
grupos de combate ao banditismo mais temidos que os próprios cangaceiros.184
No Rio de Janeiro a situação era excepcional. A polícia do Distrito Federal tinha
dinheiro e muitos bacharéis, porém a política fez dela um instrumento particular dos
ministros da justiça, que a usavam sem nenhum pudor para dar emprego a afilhados e

180
João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque. "Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa na abertura da 2ª reunião da 10ª
legislatura". Parahyba: [s.n.],1929, p.45.
181
Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo do Estado de Alagoas, no dia de sua instalação, a 15 de abril de 1918, pelo
governador Engenheiro Civil João Batista Accioly Junior. Maceió: typ. da Imprensa Official, 1918, p.31; Relatório apresentado ao
Exm. Sr. Dr. João Baptista Accioly Júnior, Governador do Estado, pelo bacharel José quintella Cavalcanti, secretário dos Negócios do
Interior, no dia 15 de Março de 1918. Maceió: Typographia Oriental, 1918, p.36.
182
Rômulo C. Wanderley. História do Batalhão de Segurança: A polícia militar do Rio Grande do Norte, de 1834 a 1968. Natal: Walter
Pereira S.A., 1969.
183
Mensagem do Exmo. Sr. Dr. Sergio T. Lins de B. Loreto, governador do Estado, lida ao instalar-se a 3ª sessão da 11ª legislatura do
congresso Legislativo de Pernambuco, aos 6 de marco de 1924. Pernambuco: Oficinas graphicas da penitenciaria de Recife, 1924,
p.29; Mensagem apresentada à Assembléia Legislativa do Sergipe em 7 de setembro de 1913, na instalação da 2ª sessão ordinária
da 11ª Legislatura pelo presidente do Estado Exm. Sr. General Dr. Jose de Siqueira Menezes. Aracaju: Typ. Do Estado de Sergipe,
1913, p.8.
184
Gregg Narber. Entre a Cruz e a Espada: violência e misticismo no Brasil rural. São Paulo: Terceiro Nome, 2003, p.146-147.

75
protegidos. A capital da República viu a sua polícia ser loteada entre mineiros, baianos e
paulistas, que se revezavam enquanto tentava-se profissionalizar os cargos subalternos.
Astolpho Rezende, um delegado mineiro que deixou a polícia carioca em 1910, disse a um
jornal que a polícia do Rio de Janeiro lembrava "uma hospedaria, pouso transitório de
bacharéis em direito, em trânsito para mais cômodas e cobiçadas posições, ou, como já se
disse, pavilhão de festas que se ergue e desmonta no começo de cada período
presidencial".185 O resultado, esclarece Marcos Luiz Bretas, foi que o Rio de Janeiro viu
nascer um sistema policial que não teve reconhecido seu status social:

"As elites dominantes não tinham interesse em controlar a


polícia, quanto menos se envolvessem em assuntos desagradáveis
melhor pensavam elas, e esperavam apenas que a ordem pública fosse
mantida com regularidade (…). Se a polícia abusasse dos seus poderes,
não se esperasse que as classes dominantes se sentissem responsáveis
por esse comportamento, afinal era do conhecimento geral que a polícia
era integrada por tipos de baixa categoria".186

A polícia de São Paulo tomou outro caminho porque tinha recursos e havia no
estado uma elite poderosa disposta a investir em uma instituição que servisse de vitrine da
superioridade paulista. O processo de modernização do aparelho policial paulista encontrou
respaldo de vários dirigentes interessados em fortalecer o seu poder decisório sobre os
chefes políticos locais e as demais forças organizadas da sociedade, inclusive os
agricultores. Esse quadro confirma, de certa forma, a hipótese do cientista político David H.
Bayley que, depois de estudar as polícias de diferentes países, chegou à conclusão que
embora cada polícia responda às realidades econômicas e sociais específicas, elas se
mantêm essencialmente um instrumento político do Estado. Explicando este elo, Bayley
usou uma metáfora famosa: "a polícia está para o governo, assim como a lâmina para a
faca".187

185
Boletim Policial, ano VIII, nº1, janeiro de 1914, p.45.
186
Marcos Luiz Bretas, op.cit.,p.205-213.
187
David H. Bayley. Padrões de Policiamento. São Paulo: Edusp, 2001, p.203.

76
Washington Luis assistindo a um desfile da Força Pública
paulista em homenagem ao ministro francês Georges
Clemenceau, em 1911. (coleção particular)
Abaixo, uma volante sergipana preparada para trilhar o
sertão. (Gregg Naber)

Bayley argumenta que as


polícias, seja na Alemanha, Japão,
Inglaterra ou Itália, emergiram junto
da construção do Estado moderno,
carregando no seu bojo a situação
doméstica de cada país. Para ele,
crescimento populacional, urbanização e industrialização criaram
condições para a construção de policiais profissionais, ainda que o fator determinante para a
consolidação destes aparatos tenha sido a emergência de um poder político incontestável.188
Para Bayley, o modelo policial europeu emergiu de processos associados à formação dos
Estados nacionais e a maneira como cada elite nacional reagiu às ameaças percebidas à sua
hegemonia por parte de outros grupos sociais. Sendo assim, o desenvolvimento das polícias
modernas está diretamente associado às transformações ocorridas no campo político que,
por sua vez, estavam ligadas às transformações mais amplas nas estruturas sociais e
econômicas. Esse enfoque tem o mérito de chamar a nossa atenção para o fato de que a
manutenção da ordem é uma questão fundamentalmente política, uma questão na qual os
governos têm grande interesse porque sabem que sua própria existência depende disso.

188
Id. "The Police and Political Development in Europe". In: Charles Tilly (Ed.). The Formation of National States in Western Europe.
New Jersey: Princeton University Press, 1975, p.328-379.

77
Considerações finais
Embora se possa falar, no Brasil, de um monopólio progressivo do uso da força
pelo Estado desde a Independência, o caráter pessoal paternalista das relações sociais
fundadas no trabalho escravo, e o convívio próprio dos pequenos núcleos urbanos,
retardaram o processo de institucionalização da polícia em São Paulo. De fato, a sociedade
paulista começou a conviver com uma polícia estável e inspirada no modelo europeu,
somente a partir da década de 1870. Ainda assim, antes de 1906, os delegados eram
professores, advogados ou comerciantes afilhados de algum poderoso local, que exerciam o
cargo concomitantemente a outras ocupações. Dificilmente algum deles se conformava em
ser policial por muito tempo. A partir do governo de Jorge Tibiriçá, bacharéis tornaram-se
delegados de carreira, isto é, policiais por um tempo considerável das suas vidas. Essa
transformação deu lastro para a consolidação de um Estado moderno baseado em um
sistema tributário centralizado, forças coercitivas permanentes e uma administração
burocrática racional.
O medo do caos e da multidão, durante os anos tumultuados que se seguiram a
proclamação da República, redefiniu o papel da polícia no cenário institucional. O
ambicioso projeto de modernização implantado em São Paulo exigia instituições adequadas
para a criação de estruturas que assegurassem o desenvolvimento econômico do estado.
Houve uma reforma ousada da máquina estatal que criou secretarias novas, aprofundando
processos de controle administrativo e contratando engenheiros, médicos, professores,
técnicos e advogados para operar às recém criadas repartições especializadas em
saneamento, vacinação, obras, agricultura, imigração, indústria, comércio, pesquisa e
segurança pública.
Desde o início, a modernização da polícia paulista esteve ligada a um projeto que
procurou integrar o maior número possível de atores sociais dentro de uma nova ordem,
subordinada aos interesses de uma fração da sua elite dirigente reunida em torno do grande
capital cafeeiro. No espaço de pouco mais de duas décadas, a elite política que se
encastelou no comando do estado exercendo o monopólio dos cargos públicos, treinou,
equipou e profissionalizou seus corpos policiais para garantir a ordem, os investimentos
estrangeiros, alavancar a economia e, sobretudo, amparar os acordos políticos. A política de
valorização do café levou o setor cafeeiro a depender cada vez mais do Estado e,

78
consequentemente, daqueles que controlavam os cofres do estado. O concentração de poder
desse grupo levou a um fortalecimento do poder executivo em detrimento dos poderes
locais, possibilitando a transformação da polícia paulista em uma burocracia estável e fiel
ao Estado, na qual os delegados deixavam de ser cargos improvisados, ligados a interesses
dispersos, para se tornarem carreiras sólidas com linhas hierárquicas bem definidas e
carregadas de prestígio social, o mesmo ocorrendo com a Força Pública.
A biografia dos chefes de polícia e dos principais líderes políticos paulistas
confirma esse deslocamento de poder e indica que, se por um lado, a reforma policial
representou um passo importante na transformação das relações do público com o Estado,
de outro ela serviu para sustentar os vínculos paternalistas que marcavam há muito tempo
as relações de poder no Brasil. Nesse ponto, podemos dizer que a modernização da polícia
foi mais um espelho dos valores das elites paulistas do que de um verdadeiro rompimento
com o passado. Ainda assim, não podemos desprezar as transformações globais que
proporcionavam sentido ao projeto das elites paulistas. É preciso ressaltar que as elites
paulistas acreditavam no discurso do progresso e sentiam-se integradas ao mundo moderno.
Portanto, a metamorfose da polícia de São Paulo foi um processo histórico local, porém
pensado por pessoas profundamente afinadas com um discurso de progresso e civilização
que ultrapassava fronteiras, alimentando teorias econômicas, filosóficas e científicas que
prometiam transformar tudo ao seu redor.

79
2. Polícia e civilização

"Se a gente fosse especificar um pouco mais o


desenvolvimento social do interior paulista, podíamos reconhecer a
existência duma fase digna de ser apelidada 'civilização do
delegado'. Houve um momento em nossa vida, em que uma espécie
de criação de vergonha nos elementos de carreira, fez com que os
delegados decidissem acabar com os caudilhismos locais. Pelo
menos na manifestação escravocrata dona de vida e de morte que
esse caudilhismo tinha."
Mário de Andrade 1

Em 1929, o escritor Mário de Andrade (1893-1945) usou numa crônica a


expressão "civilização do delegado", para descrever uma fase na qual o interior paulista
teve que se submeter a uma "ordem civilizadora", imposta pela polícia de carreira. Em sua
crítica ao mandonismo, o escritor escolheu o termo civilização porque ele se contrapunha
ao quadro de violência e impunidade que infestava o interior paulista. Ser civilizado era ser
adiantado, culto, urbano e instruído, ensinavam os compêndios gramaticais. Nesse sentido,
civilização se opunha a barbárie. Laudelino Freire (1873-1937) conceituava civilização
como um estado de adiantamento cultural e social. Citando Rui Barbosa (1849-1923), o
filólogo dizia: "Quem civiliza o selvagem, doutrina o ignorante".2
A ideia de civilização, incorporando nações inteiras e pessoas de diversas classes
sociais, não apenas estratos privilegiados, foi uma ideia chave do século XIX, que uniu pelo
mundo grupos sociais afinados com um discurso modernizador. Para Fernand Braudel
(1902-85), não há dúvida que essa palavra surgiu porque dela se tinha necessidade para
reforçar os vínculos entre as nações desenvolvidas e justificar o seu domínio sobre

1
Mário de Andrade. "Caso em que entra bugre" (conto de 1929). In: Ernani Silva Bruno. O Planalto e os Cafezais. São Paulo: Cultrix,
1959, p.245-246.
2
Laudelino Freire. Grande e Novíssimo Dicionário de Língua Portuguesa. Vol. II. Rio de Janeiro: José Olympio, 1954, p.1422.

80
populações inteiras.3 O historiador indiano Deep Kanta Lahiri-Choudhury prefere pensar a
ideia de civilização como uma "comunidade imaginada" em larga escala, estruturadora de
hierarquias, nações, culturas e identidades; portanto, por definição, multicultural, embora
ela tenha sido usada para subjugar povos e regiões inteiras. 4 Pessoas cultas, estadistas ou
mesmo simples trabalhadores defendiam a missão civilizadora dos seus países. O jovem
Charles Darwin (1809-82), por exemplo, escreveu em 1836 que era impossível para um
inglês percorrer colônias distantes sem sentir orgulho e satisfação. Abrigar a bandeira
inglesa, disse ele, de muitas formas trazia consigo riqueza, prosperidade e civilização.5
O conceito de civilização equivalia ao de progresso, modernidade e ordem. Todo
aquele que se dizia civilizado absorvia tecnologia e hábitos distintos, consequentemente,
civilizar-se era ocidentalizar-se, isto é, integrar-se às regras de mercado, adotar padrões e
valores europeus. Confessando sua atração por essa ideia magnífica, Joaquim Nabuco
(1849-1910) escreveu: "Sou antes um espectador do meu século do que do meu país: e a
peça é para mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade,
ligados hoje pelo telégrafo".6 Surgida na França da segunda metade do século XVIII, a
palavra civilização passou imediatamente a denotar aquilo que faz a superioridade de uma
sociedade sobre outra, do presente sobre o passado, da Europa sobre o resto do mundo. No
século seguinte, o conceito contido na ideia de civilização passou a ressaltar o progresso
das ciências e da produção de bens materiais que, por sua vez, eram fonte de
aperfeiçoamento moral, social e artístico na visão dos porta-vozes da superioridade
européia.7
No entanto, enquanto o mundo se tornava demograficamente maior e
geograficamente menor, em outro sentido, ele caminhava para uma divisão clara entre
regiões ricas e pobres, modernas e atrasadas. Essa constatação reforçava a noção de que
existia uma hierarquia entre as civilizações, no topo da qual estava o Império Britânico.
Traçar uma linha evolutiva, colocando as nações industrializadas no seu topo, de certa
forma naturalizava o domínio e a exploração dos povos atrasados em benefício do
desenvolvimento da humanidade. Toda nação periférica para se impor precisava ocupar um

3
Fernand Braudel. Gramática das Civilizações. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.25-30.
4
Akira Iriye and Pierre-Yves Saunier (Ed.), op.cit., p.152-157.
5
Hannu Salmi, op.cit., p.114.
6
Joaquim Nabuco. Minha Formação. Brasília: Unb, 1963 (1900), p.33.
7
Enciclopédia Einaudi. vol.38. Sociedade-Civilização. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999, p.385.

81
lugar no panteão das nações civilizadas. Assim fez o Japão ao derrotar a China e a Coréia
em 1894, alegando que lutava contra elites decadentes em prol da civilização. Seis anos
depois, o Japão enviou tropas em auxílio das potências ocidentais durante a Rebelião
Boxer, reafirmando seu lugar ao lado das nações civilizadas.8 No final do século XIX, a
palavra civilização estava estabelecida nos compêndios gramaticais como sinônimo de
superior, adiantado e culto.
Fazendo ver o peso desse conceito, o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-
1917) ensinava aos seus alunos que o grau de civilização de um povo tinha reflexos na taxa
de homicídios. Para validar sua assertiva, ele exibia estatísticas mostrando que na Europa o
maior número de homicídios ocorriam justamente nos países mais atrasados: Itália, Hungria
e Espanha. Para Durkheim, o painel moral das "sociedades absolutamente inferiores"
contrastava com o das "nações de alta cultura", como Alemanha, Inglaterra, França e
Bélgica, cujas taxas de homicídios eram as menores do continente. As primeiras estavam
ainda imersas no mundo rural, enquanto as segundas tinham experimentado "avanços nos
sentimentos coletivos, no ideal humano, nos bens tanto material como moral do
indivíduo".9 Por outro lado, lamentava o sociólogo francês, a fraude, o calote, a bancarrota
e os roubos aumentavam com a civilização. A mesma convicção tinha o positivista
mexicano Miguel Salvador Macedo (1856-1929), que via nas altas taxas de homicídio do
seu país o indício de "um país bárbaro, longe da civilização".10 No Brasil, intelectuais
seduzidos pelas teorias européias e por uma sensação de pertencimento a uma comunidade
imaginada – a Civilização Ocidental – enxergavam no país dois cenários opostos, ainda que
ligados organicamente: o cenário do progresso, representado pelas cidades; e o cenário
rural, o sertão, onde reinava o arbítrio, a violência e o atraso.11
Na Capital paulista, o interior era descrito nos jornais como uma terra selvagem.
Chamar aquelas terras de "sertão" era uma das formas de caracterizá-lo como um local
inóspito, distante da civilização, um território que precisava ser conquistado. Em 1904, o

8
Akira Iriye. Cultural Internationalism and World Order. Baltimore: John Hopkins University Press, 1997, p.36
9
Émile Durkheim. Lições de Sociologia. (aulas ministradas entre 1890-1912). São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.158-159.
10
Robert M. Buffington. Criminal and Citizen in Modern Mexico. Lincoln, NE: University of Nebrasca Press, 2000, p.52-53.
11
Em discurso na Câmara dos Deputados do Rio de Janeiro, Afrânio Peixoto declarava que os "sertões do Brasil começavam no fim da
Avenida Central”. Ver Carlos Monarcha. Brasil Arcaico, Escola Nova: Ciência, técnica e utopia nos anos 1920-1930. São Paulo:
Unesp, 2009, p.91; Margarida Souza Neves. "Os cenários da República. O Brasil na virada do século XIX para o século XX". In: Jorge
Ferreira e Lucilia de Almeida Neves Delgado (Org.)., op.cit., vol.I, p.15-41; Cléria Botelho da Costa. "Progresso e desordem: o
alvorecer da República brasileira". In: Amadeu Carvalho Homem et al. (coord.). Progresso e Religião: A República no Brasil e em
Portugal, 1889-1910. Maia: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2007, p.55-86; Nicolau Sevcenko. Literatura como Missão:
Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

82
então deputado Washington Luís, lembrava em um discurso que "descobrir, conquistar e
apossar" foi a missão do paulista no passado, e "civilizar, construindo benfeitorias", era a
missão do paulista no presente. Solicitando recursos para abrir estradas no "sertão
desconhecido", Washington Luís declarou diante do plenário:

"Ninguém ignora como a civilização para lá tem avançado;


tem feito o bem como faz a cirurgia, cortando, mutilando, amputando, e
o gentio tem recuado, mas a ferro e fogo. Mas o gentio também mata.
Nas divisas da barbaria com a civilização lembramo-nos com horror o
fim trágico do monsenhor Claro Monteiro, trucidado nas margens do rio
Feio."12

O crime aparece como uma marca, uma nódoa do sertão. Os jornais da Capital
descreviam os assassinatos ocorridos no interior de São Paulo como os mais violentos e
repugnantes, alimentando o imaginário dos leitores com bandidos sanguinários e figuras
tenebrosas chamadas pela grande imprensa de "facinorosos".13 Saídos dos bancos da
faculdade de direito, os delegados seguiam para o interior como se estivessem levando para
a parte mais atrasada da sociedade a prevalência de lei sobre o mandonismo local, ou seja, a
própria essência do Estado moderno. De fato, o cenário rural, cercado de ameaças e
assassinatos por encomenda, acabou por nutrir um espírito de corpo entre os delegados que
se colocavam como imbuídos de uma "missão civilizadora".

Sertão e banditismo
No início de março de 1897, um verdadeiro pânico tomou conta dos jornais. A
notícia do fracasso da expedição do coronel Moreira César (1850-97) em Canudos deixou a
opinião pública perplexa. Figura eminente do Exército, Moreira César havia sido morto
pelos "fanáticos de Antônio Conselheiro" no sertão da Bahia. Canudos passou então a ser
considerado uma séria ameaça à estabilidade do regime republicano, nas mãos do seu

12
Eugênio Êgas, op.cit., vol.3, p.8-9.
13
Exemplos de "crimes bárbaros" e "cenas de revoltante perversidade muito comum em localidades do interior" podem ser lidos no
Jornal D'Oeste de Ribeirão Preto, 5 de julho de 1897; Correio Paulistano, 2 e 9 de fevereiro de 1897; Estado de São Paulo, 9 de maio
de 1902.

83
primeiro presidente civil, o paulista Prudente de Moraes. Entre homenagens ao coronel
morto e vivas à pátria, o Correio Paulistano brandia: "A República não cairá; a República
continuará a exercer sua missão civilizadora!"14 Em discurso perante o Congresso, Prudente
de Moraes respondia que "a causa da legalidade e da civilização em breve vencerá a
ignorância e o banditismo".15 A guerra contra Canudos havia se tornado decisiva para o
destino político da República, na qual os jornais tiveram uma participação destacada,
retratando Canudos como um resíduo de barbárie e seus moradores como degenerados
avessos ao projeto de modernização do país.16
Em São Paulo, o Correio Paulistano, ainda sob o impacto da notícia da morte do
coronel Moreira César, noticiou que a quadrilha do bandido paulista João Brandão
pretendia dirigir-se à Bahia para juntar-se à jagunçada de Antônio Conselheiro, como se as
forças do caos e da desordem estivessem se unindo para derrubar a República.17 Os jornais
da Capital reclamavam uma ação dura contra o banditismo que infestava o interior do
estado, citando as quadrilhas de Chico Tanoeiro e outros "facinorosos" que praticavam
depredações impunemente pela região de Jaú.18 No final de abril, o Dr. Francisco
Martiniano da Costa Carvalho, chefe de polícia, anunciou uma repressão vigorosa contra o
banditismo, determinando a captura do temido Dioguinho. O jornal Estado de São Paulo
rotulava-o como "um elemento de índole perversa", com 21 mortes, que cortava o rosto das
suas vítimas para que não fossem reconhecidas, arrancando as vísceras e esquartejando os
corpos antes de jogá-los em algum rio. Segundo o jornal, Dioguinho era "protegido por
alguns abastados fazendeiros do Oeste deste estado".19
A fama de Diogo da Rocha Figueiredo (1863-97), o Dioguinho, ia de Ribeirão
Preto a Jaboticabal, estendendo-se até Araraquara. Para ser exato, Dioguinho não era um
bandido no sentido de viver de roubos, mas um homem violento a serviço dos poderosos. E
não era o único, havia muitos iguais a ele. Só para citar alguns, havia Anselmo Barreira
Barcelos, de Batatais; Benedito Oliveiro, vulgo "Cachoeira", de Casa Branca; Bernardino
Prata, a "Fera de Rio Grande", que matava e rezava por suas vítimas; Eduardo Urquiza de

14
Correio Paulistano, 11 de março de 1897.
15
Dawid Danilo Bartelt. Sertão, República e Nação. São Paulo: Edusp, 2009, p.185.
16
Idem, p.93-233. Canudos acabou destruída em 5 de outubro de 1897, provocando cenas eufóricas por todo o país. Segundo Bartelt, a
vitória deu uma maior estabilidade à República, que provou ser capaz de governar e impor um projeto modernizador para o país.
17
Correio Paulistano, 13 de março de 1897.
18
Idem, 31 de janeiro, 9, 12 e 17 de fevereiro de 1897.
19
O Estado de São Paulo, 29 de abril, 7 e 9 de maio de 1897.

84
Andrade, acusado de inúmeros crimes e acoitado pelos coronéis de Mococa; e Benedito
Padeiro, autor de pelo menos quatro homicídios em Ipaussu.20
Dioguinho, apesar da fama, era oficial de justiça em São Simão, uma pessoa que
vivia no seio das instituições encarregadas de preservar a ordem, convivendo com
autoridades e pessoas importantes. Ele cuidava da cadeia, prendia, soltava e ia ao
casamento de cidadãos influentes da região. Um processo de 1888 informa que Dioguinho e
seu irmão eram amigos do juiz e do delegado. Nesse processo, onde ele foi acusado de
espancar soldados, testemunharam a seu favor várias autoridades, deixando transparecer
que a violência era um meio usual de impor ordem na zona rural, uma ordem que
beneficiava os proprietários de terra e da qual gente como Dioguinho fazia parte.21
Testemunhas de um dos processos narram que Dioguinho teria se apaixonado por um rapaz
de Batatais, motivo pelo qual teria se indisposto com o pai do rapaz e preparado uma tocaia
contra ele. Essa informação, no entanto, não aparece no retrato do bandido construído pela
imprensa, provavelmente porque ela não se encaixava na imagem de bandido sanguinário.22
Em abril de 1897, a vida do oficial de justiça sofreu uma reviravolta após o chefe
de polícia recolher depoimentos de uma infeliz que ele teria desfigurado em São Simão.
Balbina Maria de Jesus, ex-amásia do fazendeiro Manuel Ferreira da Silva, declarou ter
sido torturada e amarrada num tronco de árvore. Seu cabelo foi arrancado enquanto
Dioguinho ameaçava retalhar seus seios, nariz e lábios. Atendendo aos gritos da imprensa e
a indignação geral, o chefe de polícia deu ordens para o delegado Antônio de Godoy
capturar o terrível facínora. O delegado embarcou para Ribeirão Preto levando consigo um
destacamento da Força Pública. Sua primeira providência foi dar buscas nas fazendas dos
protetores de Dioguinho. Na fuga, o bandido deixou para trás cartas e um diário com
anotações comprometedoras. Baseado no conteúdo delas, o delegado pediu a prisão de
deputado, juiz de paz, ex-delegado de polícia e alguns fazendeiros por darem abrigo ao
criminoso.23

20
Selma Siqueira Carvalho. Dioguinho (1863-1897): Estudo de caso de um bandido paulista. São Paulo, 1988. Dissertação de mestrado
em Ciências Sociais pela PUC-SP, p.xiii-xiv.
21
Idem, p.82-86 e p.28.
22
Auto do processo em que Dioguinho foi denunciado por tocaiar José Venâncio de Azevedo Leal, datado de 22 de fevereiro de 1897. In:
João Amoroso Neto. Dioguinho. São Paulo: 1949, p.300-305.
23
Correio Paulistano, 26 e 29 de abril; 5, 7, 8, 9 e 10 de maio e 11 de junho de 1897; O Estado de São Paulo, 5, 6, 7, 9, 10, 16, 17 e 23
de maio; 20 de junho e 25 de julho de 1897; Diário Popular, 7, 11 e 17 de maio de 1897.

85
Sem proteção, Dioguinho desesperou-se, procurando esconderijo com parentes.
Uma informação do seu paradeiro chegou ao destacamento da Força Pública que armou
uma emboscada. Ao atravessar um rio numa canoa, Dioguinho foi morto a tiros junto do
irmão mais novo. O Correio Paulistano chegou a exibir publicamente os despojos do
"famigerado e tristemente célebre Dioguinho".24 Os protetores do temido bandido foram à
julgamento. Defendidos por Alfredo Pujol (1865-1930), um dos mais caros advogados de
São Paulo, e com pareceres de Rui Barbosa e Pedro Lessa, eles foram absolvidos pelo júri.
A defesa argumentou que Dioguinho não era um fugitivo da justiça no momento em que
esteve na propriedade dos acusados, além do mais não se podia confundir dar asilo a um
malfeitor com "hospitalidade", uma virtude nobre e cristã dos réus.25
A caçada do bandido ocorreu num momento tenso da República. No plano
nacional, o regime republicano e o poder dos cafeicultores paulistas estavam sendo
desafiados por uma revolta popular nos confins da Bahia. No plano estadual, um crime
hediondo respingava na figura de Campos Salles, símbolo maior do projeto republicano em
São Paulo. O crime dizia respeito ao assassinato do coronel Antônio Joaquim de Carvalho
(1838-97), colega de Faculdade de Campos Salles e presidente do diretório local do PRP
em Araraquara. O coronel Carvalho foi morto por um jovem sergipano no dia 30 de janeiro
de 1897. Conta-se que o assassino, Rozendo de Souza Brito, teria se tornado um adversário
ferrenho do coronel após passar num concurso público de professor, mas ver outro ser
nomeado no seu lugar. A partir de então, o moço dedicou-se a afrontar o poder dominante
na cidade através de artigos de jornal.26
O coronel foi morto ao agredir o sergipano junto do tio dele, dentro de uma
farmácia. Tio e sobrinho foram presos. Na madrugada de 6 de fevereiro, após a missa de
sétimo dia, um grupo de vinte pessoas encapuzadas invadiu a cadeia pública, trucidando os
dois sergipanos. Os corpos dilacerados das vítimas foram abandonados no centro de
Araraquara à vista de todos. Uma testemunha que participou da invasão da cadeia disse em
depoimento à justiça que só acompanhou os filhos do coronel porque era "muito grato ao
falecido" por este ter conseguido o perdão da pena que estava cumprindo e por dever

24
Correio Paulistano, 8 de maio de 1897.
25
"Asylo a Assassinos e Roubadores". In: Revista de Jurisprudência. São Paulo: 1898, p.11-38.
26
Rodolpho Tellarolli. Os Sucessos de Araraquara: Estudo em torno de um caso de coronelismo em fins do século XIX. São Paulo,
1975. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de História da USP.

86
muitos favores ao seu ex-patrão.27 A opinião pública ficou estarrecida com o linchamento.
Os jornais da Capital logo assumiram posição contra ou a favor do governo, ainda que
todos reprovassem a brutalidade das mortes que colocavam em dúvida "a civilização e os
costumes paulistas".28 O jornal monarquista Commercio de São Paulo viu no crime uma
excelente oportunidade para responsabilizar a República por todos os desvios e violências
ocorridos no país, conclamando as autoridades a punir os culpados por tão repugnante
crime:

"Faça-se justiça – sejam descobertos e punidos os culpados, os


mandatários do infame linchamento, cuja notícia, transpondo os confins
do estado de São Paulo e a República brasileira, se alastrará pelos países
da velha Europa, escurecendo o bom nome do Brasil e fazendo
responsável toda a nação por este ato de inaudita ferocidade (…)".29

Com o incentivo de alguns jornalistas, organizaram-se meetings pela Cidade para


pedir a punição dos linchadores. O Correio Paulistano, órgão do PRP, colocou-se
frontalmente contra as manifestações, criticando aqueles que se aproveitavam da "tragédia"
para "explorar o descontentamento público" e semear a "descrença na ação da justiça". 30 O
principal acusado de planejar o linchamento era o Dr. Theodoro Dias de Carvalho Júnior
(1858-1928), genro do chefe político assassinado e figura de alta projeção no PRP.
Carvalho Júnior havia sido chefe de polícia e depois secretário da agricultura durante o
governo de Bernardino de Campos. Por conta disso, o escândalo tomou grandes
proporções, obrigando o governador a se pronunciar sobre o crime. Numa nota vazada para
o Correio Paulistano, comentava-se que Campos Salles, muito abalado, "impôs silêncio ao
coração lacerado para que pudesse agir livre, desafogada, a razão suprema do Estado".31
O governador, procurando mostrar isenção, nomeou delegados, juízes e
promotores para apurarem o crime, mas não foi pedida a prisão preventiva de ninguém. O
Tribunal decretou segredo de justiça para evitar que detalhes dos depoimentos vazassem

27
Idem, p.5.
28
O Estado de São Paulo, 8 de abril de 1897.
29
Commercio de São Paulo, 11 de março de 1897.
30
Correio Paulistano, 2 de março de 1897.
31
Idem, 20 de fevereiro de 1897.

87
para a imprensa. Mesmo assim, o Dr. Carvalho Júnior teve liberdade para ocupar páginas e
páginas de jornais, defendendo-se da acusação de ser o mandante da chacina dos Britos. No
julgamento, ocorrido em julho de 1897, compareceu um grande número de autoridades.
Representando o Dr. Theodoro Carvalho Júnior estavam dois mestres da Academia de
Direito, o conselheiro Duarte de Azevedo e o Dr. Herculano de Freitas, além do
respeitabilíssimo Dr. Cerqueira César, que apenas emprestou à defesa o seu nome.
Cerqueira César era cunhado de Campos Salles e ex-vice-presidente do estado. Todos
sabiam a quem ele representava ali sentado. Na primeira fila do tribunal estava também o
Dr. Carlos de Campos, filho de Bernardino e secretário da justiça. A defesa recebeu
aplausos da platéia que se levantava em respeito às figuras públicas presentes, inclusive o
réu. No final dos debates, o júri decidiu pela absolvição dos acusados.32
A caçada a Dioguinho e a prisão dos seus protetores aconteceram num momento
de aparente fraqueza do governo. Selma de Carvalho revela que, pouco antes do chefe de
polícia ordenar a captura de Dioguinho, vândalos haviam depredado propriedades da
Companhia Mogiana em São Simão e nas cidades vizinhas, supostamente seguindo ordens
de fazendeiros incomodados com a estrada de ferro. A perseguição a Dioguinho colocou
um fim nas depredações.33 Dentro desse contexto, a eliminação de Dioguinho pode ser
interpretada como um sinal às lideranças insubordinadas que o governo estadual e as
instituições estavam unidos e não podiam ser desdenhados. O episódio dava também
mostras que a polícia era um instrumento eficaz para o governador impor sua presença
diante das lideranças locais.

A polícia no interior paulista


Nos anos anteriores a Abolição, a polícia passou a ter um papel relevante no
interior paulista, a despeito da insuficiência de meios. O aumento da fuga de escravos e da
rebeldia nas fazendas corroeram lentamente o controle dos senhores, ameaçando os planos
de manter essa população na escala da dependência e da submissão social. O cortejo de
conflitos e o desafio à ordem senhorial atemorizavam as populações das cidades cafeeiras e

32
Rodolpho Tellarolli, op.cit., 1975, p.159-172.
33
Selma Siqueira de Carvalho, op.cit., p.56-58. Em 18 de fevereiro de 1897, a Companhia se defendia das críticas no Correio Paulistano.
Três meses depois, ainda no calor das notícias envolvendo a morte do "célebre facínora", a Companhia, de propriedade de Jorge
Tibiriçá e seu sogro, publicou um relatório comemorando os seus resultados financeiros no jornal Estado de São Paulo, 11 de maio
de 1897.

88
perturbavam o sono dos fazendeiros, que não tinham meios de dar conta do problema sem
ajuda do Estado. Ao mesmo tempo, aumentava o temor dos moradores das vilas e cidades
em relação à presença de ex-escravos, perambulando de um lado para outro em busca de
meios para driblar as dificuldades de sustento, e dos imigrantes que chegavam em grande
número para trabalhar na construção de ferrovias e na colheita de café. O ingresso de gente
desenraizada e sem laços com a sociedade local reclamava uma presença maior da polícia
para controlar essas pessoas. Escravos, libertos e imigrantes constituíam a preocupação
maior da polícia, que precisava ser urgentemente ampliada para atender aos anseios de
ordem no interior paulista.34
Em algumas décadas, o número de delegacias no estado mais que dobrou
acompanhando a criação de novos municípios. Em 1892, havia 98 delegacias na zona rural;
em 1924, o número aumentou para 227 delegacias. Esse crescimento obrigou a criação de
regionais para fiscalizar o trabalho das delegacias. Criadas por decreto em 1916, as
delegacias regionais tinham por objetivo facilitar o trabalho de supervisão do secretário da
segurança e aumentar o controle sobre os municípios. Foram criadas inicialmente sete
delegacias regionais distribuídas pelas cidades de Santos, Campinas, Ribeirão Preto,
Guaratinguetá, Botucatu, Araraquara e Itapetininga. A elas caberia supervisionar e
assessorar entre 10 a 25 delegacias espalhadas pela sua comarca.35
As regionais respondiam ao 2º delegado auxiliar. O telégrafo e as ferrovias
permitiam monitorar aquela imensa extensão de terra a partir da Capital, gerando um
volume considerável de rolos de fitas telegráficas e ofícios guardados no seu arquivo
corrente.36 A 2ª delegacia auxiliar contava ainda com um pelotão de capturas da Força
Pública para cumprir as determinações do chefe de polícia. Comandado pelo tenente
Galinha, que tinha prazer em cultivar a fama de "caçador de homens", o pelotão servia
como um braço longo da polícia paulista, encarregada de anunciar a presença do Estado no
seu hinterland. Vindo da pobreza e obscuridade, o tenente João Antônio de Oliveira (1869-
1913), apelidado de tenente Galinha, ingressou moço no antigo Corpo Policial Permanente.

34
Maria Helena Machado. O Plano e o Pânico: os movimentos sociais na década da Abolição. São Paulo: Edusp. 1994, p.67-86; André
Rosemberg, op.cit., p.360-371; Karl Monsma, op.cit., 2008; Karl Monsma. Conflito Simbólico e Violência Interética: Europeus e
Negros no Oeste Paulista, 1888-1914. Trabalho preparado para o VII Encontro Estadual de História em Pelotas, 2004.
35
Rodolpho Tellarolli, A Organização Municipal e o Poder Local no Estado de São Paulo na Primeira República. São Paulo, 1981.Tese
de Doutoramento apresentada ao Departamento de História da USP, p.375-377.
36
Parte do arquivo corrente da polícia de São Paulo, sob guarda do APESP, tornou-se um grupo de documentos chamado de "Coleção
Polícia", que perfazem um total aproximado de 474 caixas e 40 livros.

89
Era um soldado sem instrução e filho de mãe ignorada. Sua origem social não o distinguia
daqueles a quem caçava, exceto que ele representava o Estado. Célebre por suas aventuras,
o tenente conseguiu uma longa folha de serviços recheada de elogios "pelo tino e alta
coragem" na captura de "criminosos de importância".37 Sua fama fez com que ele
merecesse um enterro com honras militares. As mais altas autoridades do Estado
carregaram solenemente as alças do seu caixão. O tenente Galinha morreu em sua cama,
dormindo, alvejado por tiros. O seu assassinato virou escândalo depois da polícia descobrir
que a esposa do tenente, auxiliada pelo amante, um inspetor de polícia amigo da vítima,
planejara o crime.38
O interior do estado tinha uma importância estratégica para o governo estadual,
pois era ali que estava concentrado cerca de 80% do eleitorado. A maioria dos paulistas
morava na zona rural, onde mantinham laços de dependência bastante estreitos com os
chefes políticos locais. Portanto, não foi coincidência o fato das delegacias regionais terem
sido criadas exatamente no centro dos grandes colégios eleitorais. São Paulo era dividida
em dez zonas eleitorais, cada uma com características próprias, população e economias nem
sempre ligadas ao café. Todas, entretanto, tinham máquinas políticas ligando-as com a
Capital, através da comissão diretora do PRP.39 Os diretórios locais abrigavam fazendeiros
de grande notoriedade, como Vicente de Almeida Prado, de Jaú; Manoel Bento da Cruz, de
Bauru; o coronel Bento de Abreu, de Araraquara e o coronel Joaquim "Quinzinho" da
Cunha Diniz Junqueira, de Ribeirão Preto. Governadores poderosos como Washington Luís
e Carlos de Campos deviam muito a estes fazendeiros, cujo poder estava na extensão de
terras que eles controlavam. Nestas terras vivia um eleitorado formado por chefes políticos
menores, fazendeiros, comerciantes, pequenos proprietários e colonos. A capacidade desses
homens de angariar apoio e votos garantia a eles acesso facilitado às benesses dos cargos e
recursos nas mãos dos governos estadual e federal.40

37
Vicente Mário Gigliotti, "Da Cambada do Inferno a um novo Pelotão de Capturas" em SSP: Revista Mensal da Polícia de S.Paulo,
nº19, maio de 1969, p.22-24.
38
A Gazeta, 24 e 29 de abril de 1913; Correio Paulistano, 25 de abril de 1913.
39
Joseph Love, op.cit., p.41-51.
40
César Mucio Silva. Poder político e distribuição orçamentária em São Paulo na Primeira República (1890-1920). São Paulo, 2006.
Tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de História da USP, p.84-93; José Henrique Artigas de Godoy. Da Opulência à
Ganância: Coronelismo e mudança social no Oeste Paulista (1889-1930). São Paulo, 2006. Tese de Doutoramento apresentada ao
Departamento de Ciência Política da USP, p.660.

90
Fotos de recordação do delegado
Vicente de Paula Neto, do tempo
em que serviu em Buri, Descalvado,
Delegacia Regional de Sorocaba, Salto Grande e Pirassununga.
1924 (ACADEPOL) Década de trinta.
(coleção particular)

Delegado regional de Sorocaba, Afonso Celso de


Paula Lima, em 1924. (ACADEPOL)

A mercadoria de troca que unia chefes locais, chefes de diretório e o governo do


estado era o voto. O chefe político capaz de "fazer" as eleições era o mais cortejado, sem
importar os meios pelos quais ele se valia. A vitória nas urnas coroava o político, provando
sua força e competência. Este foi o sistema que deu sustentação à República, mas que se
transformou também em seu ponto fraco, pois as disputas tornavam-se intensas e ninguém
estava livre de ser obscurecido por outro chefe político. Nesse embate, a violência era o
recurso daqueles que queriam conquistar ou manter um espaço político. O foco das disputas
era o município. Conquistar uma prefeitura significava controlar seus servidores, conceder
favores, isentar impostos e autorizar licenças.41 Com um município na mão, o político

41
Thomas W.Walker e Agnaldo de Souza Barbosa, op.cit., p.56-58.

91
crescia em prestígio diante dos eleitores e das lideranças do PRP. Isso bastava para
justificar lutas sangrentas.
No dia 29 de abril de 1922, o coronel Antônio Evangelista da Silva, conhecido
como Tonico Lista, estava postado na frente da Câmara municipal em Santa Cruz do Rio
Pardo observando a fila de eleitores. Era um expediente comum levar o maior número de
eleitores para votar, todos juntos, reduzindo a possibilidade dos opositores exercerem seu
voto, pois as urnas fechavam depois de um determinado horário. De repente, dois capangas
alvejaram o coronel. "Foi o sinal para a chacina", escreveu um jornalista. Outros pistoleiros
alvejaram à queima roupa João Paula Garcia, aliado do coronel, que se achava encostado
numa árvore, “de braços cruzados ainda com um palito à boca”, pois acabara de almoçar.
"Generalizando o conflito, foram disparados mais de cem tiros, saindo em cena as carabinas
que os capangas da oposição traziam escondidos sob suas vestes".42
Após receber a notícia da chacina, o delegado regional de Botucatu ocupou a
cidade. Num telegrama expedido para o secretário da segurança, o delegado garantiu que
tinha pedido a prisão preventiva dos suspeitos e que a "cidade hoje está na mais completa
paz".43 Denunciando os interesses políticos que estariam por trás do assassinato do coronel
Tonico Lista, o Diário Popular listou, sem dar nomes, um membro da comissão diretora do
PRP, ex-presidente do estado; um líder do governo; um lente da Faculdade de Direito; além
do juiz e do delegado da cidade, que teriam conspirado contra o falecido coronel.44 Todas
as autoridades, de um modo ou de outro, acabavam envolvidas nas disputas.
Em dia de eleição, delegados e subdelegados eram vistos ao lado de capangas
armados, vigiando as urnas. Os jornais de oposição acusavam a polícia de ser conivente
com as fraudes e os abusos. A partir da campanha civilista de 1910, a moralização dos
costumes políticos ganhou intensidade, obrigando o PRP e a polícia a intervirem no sentido
de pôr em desuso a violência.45 O delegado Amando Caiuby lembra que sua carreira deu
um salto em 1916, depois que ele foi convocado pelo presidente do estado para pacificar a
cidade de Itu, convulsionada por uma luta entre duas facções políticas rivais.46 Delegados

42
O Estado de São Paulo, 3 de maio de 1922.
43
Idem, 7 de maio de 1922.
44
Idem, 14 de dezembro de 1922.
45
José Ênio Casalecchi, op.cit., p.219-223.
46
Amando Caiuby. "Washington Luis e a Polícia de Carreira". In: Washington Luís (visto pelos seus contemporâneos no primeiro
centenário de seu nascimento), op.cit., p.110.

92
eram enviados da Capital para garantir a ordem nos municípios. O delegado Juvenal Toledo
Piza (irmão de Franklin Toledo Piza) relatou:

"Em 24 de fevereiro deste ano (1927), estive em Piracicaba para


assistir as eleições de deputados e senadores federais e manter a ordem,
durante o pleito eleitoral. A Câmara Municipal mantinha uma guarda
municipal, composta de vários homens suspeitos, malencarados e cuja
missão, era antes a de intimidar os inimigos políticos, que não
comungavam as ideias do Partido Democrático. Nessas condições,
desarmei os guardas municipais, arrecadando as respectivas armas
(…)".47

Apesar dos editoriais inflamados e dos discursos moralizadores, as eleições ainda


representavam o momento de medir forças com os adversários. Foi o que se viu na
chamada "Chacina de Palmital". No dia 12 de dezembro de 1922, durante as eleições
municipais, o coronel José Machado, acompanhado dos seus correligionários, foi fuzilado a
caminho da Câmara municipal em Palmital. Sete pessoas foram mortas, três da família do
coronel. A chacina fora comandada pelo fazendeiro Candinho Dias de Mello, descrito pelo
jornal Estado de São Paulo como um "homem da mais completa rusticidade, mal sabendo
traçar o seu nome".48 Sentindo-se fraco para competir com o prestigiado chefe político da
região, ele não viu outra forma de se impor a não ser através da eliminação do seu
adversário político. Novamente os jornais culparam a polícia e o governo do estado por não
terem evitado a tragédia. O Correio Paulistano respondeu às acusações minimizando as
ocorrências durante as eleições:

"São Paulo pode orgulhar-se da sua cultura e alta educação


cívica de seu povo. É prova disso a imperturbada ordem que reinou em
todo o estado, com a acidental exceção de duas localidades, apenas,
durante um pleito em que tomaram parte 212 municípios (…)".49

47
Relatório do delegado Juvenal Piza datado de 9 de maio de 1927. (DGP)
48
O Estado de São Paulo, 21 de dezembro de 1922.
49
Correio Paulistano, 16 de dezembro de 1922.

93
As duas localidades eram Palmital e Pitangueiras, onde um mesário levou um tiro
na testa durante a briga entre adversários políticos. O que o jornal não comenta é que a
violência foi generalizada, mesmo não se registrando outras mortes. Parentes das vitimas
afirmavam que uma chacina de tal porte nunca teria ocorrido sem contar com a aprovação
de políticos poderosos. A "Chacina de Palmital", acusavam os parentes, contou com o
beneplácito de Ataliba Leonel (1875-1934), o poderoso chefe político da Alta Sorocabana.
Ataliba Leonel chegou a ser denunciado no inquérito policial como co-autor intelectual do
crime, mas a Câmara dos Deputados em São Paulo negou licença para ele ser processado.
Do alto da tribuna, o deputado Júlio Prestes, presidente da Câmara, defendeu o acusado que
teve o processo arquivado.50
Ataliba Leonel iniciou na política com apenas 23 anos de idade, herdando o
prestígio político do pai e do sogro, chefes atuantes em Piraju. Suas qualidades foram
reconhecidas pelo coronel Fernando Prestes de Albuquerque (1855-1937), com quem sua
família mantinha relações de amizade e respeito. Com o apoio de Fernando Prestes, Ataliba
Leonel ganhou um acento na comissão diretora do PRP, sendo indicado para ocupar a
chapa oficial do Partido. Sua posição na Câmara dos Deputados permitiu-lhe levar rede de
água e esgoto, iluminação elétrica, linhas de bonde e um ramal da Sorocabana para o seu
município. Em 1925, ele era apontado como "dono" do maior colégio eleitoral do estado,
cem mil votos, os quais ele garantiu a Júlio Prestes, filho do seu antigo protetor.51
A vida de Ataliba Leonel e dos seus parentes foi uma sucessão de cargos ligados à
ordem pública. Ele foi promotor; seu pai foi intendente, delegado de polícia e juiz de paz;
seu sogro foi delegado de polícia e juiz de paz; seu irmão, Mariano Leonel Ferreira, foi
delegado de polícia, juiz de paz e fiscal municipal.52 O jornalista Paulo Duarte conheceu
Ataliba Leonel numa das visitas que o governador Washington Luís fez ao interior paulista.
A comitiva partiu da Capital num trem de luxo, levando jornalistas, autoridades e políticos.
Todos os rincões do estado receberam a visita do presidente de São Paulo. Em Piraju,
"feudo de Ataliba Leonel", vários Fords alinhados em frente da estação ferroviária

50
O Estado de São Paulo, 17 de dezembro de 1922; Rodolpho Telarolli, op. cit., 1981, p.624-626.
51
Rodolpho Telarolli, op.cit., 1981, p.594-610.
52
Idem, p.627.

94
aguardavam a comitiva, que foi levada para almoçar numa das fazendas do coronel. Sobre
Ataliba Leonel, Paulo Duarte escreveu:

"Contava-se façanhas terríveis dele. Mas, pessoalmente,


Ataliba Leonel era um homem agradável, formado em Direito por São
Paulo, mas todo o seu jeitão era de um caboclo mais educado. A
Faculdade o polira bastante, mas não o suficiente. Era amável e
discreto, falava baixo, ria gostosamente nas ocasiões oportunas, o riso
(…) mostrava duas presas com coroa de ouro. (…) Recebeu-nos em sua
casa fidalgamente. Não fez nenhum discurso, nem mesmo no banquete
oferecido a Washington Luís e Heitor Penteado. Deixou isso a cargo do
juiz e do promotor. Depois do banquete levou-nos para o parque atrás
da casa (…). Aí chegamos, fez-se uma roda. Um tipo grandalhão, alto,
cheio de corpo, aproximou-se. Ataliba foi buscá-lo no grupo em que se
encontrava. Ataliba repreendeu-o por não ter vindo para o banquete.
Risonho, o tipo desculpou-se. Chegara tarde da fazenda.
– Venha comigo. E Ataliba o trouxe pelo braço até onde
estávamos.
Apresentou-o ao presidente e os demais. Washington Luís era
seu amigo íntimo e Ataliba o tratava de você com toda intimidade:
– Olhe, Washington Luís, este é o coronel tal, de quem falei.
Um amigo de todas as horas, companheiro firme, um dos homens de
maior prestígio em toda a zona.
Washington Luís estendeu-lhe a mão com um riso simpático.
E o coronel, com a maior e risonha naturalidade:
– Não acredite no que diz o Dr. Ataliba, senhor Presidente. Ele
é muito exagerado. Eu não passo de um bosta!"53

O jornalista conta que o presidente de São Paulo ficou mudo, até ouvir a risada de
Ataliba Leonel. Washington Luís reatou o sorriso e riu. Só aí os demais tiveram licença

53
Paulo Duarte, op.cit., vol.8, p.207-208.

95
para rir também… Em seu depoimento, Paulo Duarte revela que a aliança do PRP com os
chefes políticos locais trouxe tudo, menos civilização:

"(…) duas coisas penetraram primeiro no sertão que começa a


ser desvendado: a pinga e o politiqueiro. Com este vem sempre o
grileiro, quando não é ele próprio chefe dos ladrões da terra. Aliás, o
próprio Washington Luís incentivava o grilo. Ele achava que se não
fosse o grileiro, as terras teriam ficado ao abandono durante muito
tempo depois da estrada de ferro. O grileiro vinha, brigava, apoderava-
se das terras devolutas do Estado, mas dividia em grandes lotes e
incentivava a abertura de novas fazendas. Esquecia-se, entretanto, de
que eram incentivados também o furto, o roubo, e os assassínios pela
capangada de que necessitavam os grileiros. (…) O grilo de terras vinha
se tornando um fenômeno natural do desenvolvimento. Talvez
progresso, sim, mas civilização e o mais tudo negativo. Já àquele
momento, os jornais de São Paulo estavam cheios de discussões, de
seção livre, de grupos de grileiros contra outros grileiros e de notícias de
tocaias fatais, onde algum deles e seus mandatários caiam varados pelas
balas de outros grileiros."54

Nesse cenário, o delegado de polícia cumpria um papel ambíguo. Com a


obrigação de apurar crimes, reprimir a desordem e ao mesmo tempo acatar os pactos
políticos do governador, o delegado aprendia cedo a desviar o olhar para sobreviver ou
fazer carreira. Mas haviam também delegados que se colocavam acima da política,
prendendo capangas e desordeiros sem abaixar a cabeça pra os chefes locais. Um deles foi
o delegado Laudelino de Abreu, que empreendeu uma campanha contra grileiros da região
de Ribeirão Preto. Quando a atuação do delegado começou a incomodar o chefe político
local, o advogado João Alves Meira Júnior, um dos principais articuladores políticos do
coronel "Quinzinho" da Cunha Diniz Junqueira, escreveu uma carta pedindo a intervenção
do poderoso chefe político da Alta Mogiana:

54
Idem, p.206.

96
"Estamos encontrando muitas dificuldades por causa do caso
dos últimos atos do Delegado – que já não respeita as ordens de habeas
corpus, burlando-as. Ele muito deseja ir para a Capital (…). Veja se o
promove já."55

A carta era datada de janeiro de 1927, em maio Laudelino foi promovido titular da
1ª delegacia da Capital, assumindo, pouco depois, a chefia da Delegacia de Ordem Política
e Social por indicação de Washington Luís.56 As boas relações do ex-governador paulista
com o chefe político da Alta Mogiana são conhecidas. Foi na região comandada pelo
coronel "Quinzinho" que Washington Luís começou sua carreira política. Mas os
problemas não se resolveram aí. Em outra carta, no mês seguinte, o advogado alertava:

"Acabo de ser informado que o atual delegado regional vai


entrar em gozo de férias (…). Em sendo assim, enquanto durarem as
férias, o substituto dele será o comissário Dr. João Martins, o qual foi
educado na escola do Laudelino e do qual os meus amigos tem queixas.
Seria bom que renunciando o Dr. Barros Monteiro, o atual regional,
viesse outro daí – com instruções de brandura no modo de tratar o
pessoal de que eleitoralmente estamos dependendo. O que não convêm
é por em exercício o Martins – que se acha moralmente obrigado a
sustentar a ação do Laudelino, i é, e continua a fazer o que fazia quando
este era o delegado."57

Depois de algum tempo parece que o assunto ficou resolvido. O Dr. Meira
escreveu para o coronel "Quinzinho" relatando:

"O novo delegado de polícia procurou-me domingo à noite


para assentarmos a orientação a seguir sobre os assuntos que

55
José Henrique Artigas de Godoy, op.cit., p.673.
56
Prontuário nº504. (IIRGD)
57
José Henrique Artigas de Godoy, op.cit., p.679.

97
ultimamente nos tem causado algum incômodo. Chegamos a perfeito
acordo parecendo-me que o problema ficou definitivamente resolvido
para a política e a polícia e também para os amigos."58

Não havia contradição na existência de delegados como Laudelino de Abreu. Esse


quadro era até desejado, pois dava uma margem de manobra para o chefe do executivo
barganhar. Delegados austeros obrigavam os chefes políticos a bater na porta do
governador pedindo a sua remoção ou transferência. Quanto à violência, a prudência
aconselhava o governo do estado a não se envolver nas disputas locais para evitar desgaste,
aguardando surgir um vencedor para então entabular negociações. Para os chefes políticos
era fundamental que o mais forte se distinguisse dos outros, visto que a distribuição de
cargos e favores era limitada. Para o governador, o importante era ter ao seu lado os
coronéis mais fortes. A estabilidade do sistema exigia essa troca, mesmo a custa de mortes.
Esse cenário tornava a vida dos delegados irremediavelmente insegura, pois eles
permaneciam expostos às lutas entre facções. Foi o que o ocorreu em Pirajuí, durante o
pleito de 1924. Pirajuí era um município novo, perto de Bauru, onde acontecia uma disputa
feroz pelo poder. No domingo, dia 20 de abril, o delegado Edmundo José de Lima foi
avisado que a banda da cidade tinha sido impedida de tocar no coreto da praça. Capangas
trazidos de Bauru e espalhados pela cidade ameaçavam atirar nos músicos se eles se
atrevessem a tocar. Um dia antes, o dono de um jornal local fora surrado por eles. O bando
estava a serviço de alguns vereadores em luta contra o prefeito. O delegado se postou na
praça dando garantia de que não haveria violência. Quando a banda começou a tocar,
correu a notícia de que um grupo de homens armados pretendia invadir o clube onde o
prefeito e seus correligionários se divertiam. O delegado José de Lima mandou o chefe dos
capangas dispersar o grupo. Embriagado, ele respondeu que só recebia ordens do patrão. O
delegado lhe deu voz de prisão e sacou o revólver. O capanga fez o mesmo. Iniciou-se um
tiroteio. Os dois caíram feridos, o delegado ainda tentou se proteger atrás de um automóvel,
mas foi atingido por disparos vindos de todos os lados. Removido para a Santa Casa de
Bauru, o delegado não resistiu aos ferimentos. O jornal Estado de São Paulo lamentou o

58
Idem, p.675.

98
incidente, declarando que ele "vem rebaixar o nível de nossa civilização".59 O delegado
regional de Bauru instaurou um inquérito para apurar as responsabilidades, mas o caso
acabou arquivado por falta de testemunhas e envolver pessoas influentes.

O delegado regional de Rio Preto, de bengala, acompanhado de


assistentes e testemunhas, vistoriando o local de uma tocaia na
Fazenda Moraes. Junho de 1929. (ATJSP)

A civilização do delegado
O contraste entre o hinterland rural, descrito como um lugar atrasado e bárbaro, e
a Capital moderna, marcada pelo progresso e a civilização, permitiu àqueles que se
esforçavam para comandar os destinos do estado arvorar-se de uma missão civilizadora.
Nessa tarefa não faltaram delegados dispostos a trabalhar pelo "engrandecimento" de São
Paulo. Saídos das fileiras da orgulhosa elite agro-exportadora ou capturados pela sua rede
clientelista, esses delegados julgavam que, ao assumir uma delegacia no interior do estado,
estavam levando para a parte mais atrasada da sociedade paulista a prevalência da lei e a
primazia do interesse geral sobre o mandonismo local, em suma, a própria essência do
Estado moderno.
Em 1903, o delegado Antônio de Godoy publicou um romance intitulado
Dioguinho, usando o pseudônimo de João das Mattas. Nele, o autor descreve o interior
paulista como uma região atrasada nos costumes e dominada por figuras perversas que

59
O Estado de São Paulo, 23 de abril de 1924.

99
imprimiam terror na população. Dioguinho é apresentado pelo narrador como um celerado
que ria enquanto praticava crimes. Os desvarios de Dioguinho só têm um fim quando o
chefe de polícia é informado dos seus crimes terríveis e envia uma escolta para prendê-lo
"custasse o que custasse". A força era comandada pelo "seu doutor Godoy", um "mocinho
desempenado", "resoluto", "com cara de alemão e olhinhos vivos", descreve o autor a si
mesmo, colocando-se no centro de uma aventura que exprimia a luta em prol da justiça e do
progresso contra a barbárie e o atraso.60
Para Godoy, a violência disseminada pelo interior estava vinculada ao atraso
moral e social da região. Essa visão de mundo enviesada e a serviço de si mesma permitiu a
uma parte da elite paulista reorganizar o tecido social em nome do progresso, usando as
instituições públicas como ferramentas à consecução dos seus objetivos. A ideologia
civilizatória forneceu à polícia de carreira uma missão que convinha ao jogo de forças entre
os ocupantes do governo estadual e as lideranças locais. O mito da "civilização do
delegado" provavelmente difundiu-se primeiro entre os bacharéis e depois entre jornalistas
e escritores, como Antônio Tavares de Almeida, que escreveu um estudo sobre o Oeste
Paulista. Em seu estudo, ele afirma que o delegado de carreira foi o "saneador moral da
sociedade sertaneja onde não havia repulsa ao crime, notadamente contra a segurança
pessoal, confundido e exaltado como bravura".61 Tavares de Almeida validava assim, junto
de outros escritores que sonhavam com uma sociedade mais avançada socialmente e
culturalmente, a fabulação da "civilização do delegado", idealizada por Antônio de Godoy e
celebrizada pelo escritor modernista Menotti Del Picchia.
Menotti Del Picchia (1892-1988) mantinha ligações estreitas com o Partido
Republicano Paulista. Filho de um bem sucedido empreiteiro italiano que se instalara no
interior paulista, Del Picchia cursou a Faculdade de Direito e casou-se com a filha de uma
família tradicional, tornando-se fazendeiro de café. Após perder sua safra na grande geada
de 1918, mudou-se para São Paulo onde assumiu uma vaga de cronista no Correio
Paulistano. Durante a campanha de Washington Luís para governador, passou a escrever na
seção política, tratando dos editoriais pessoalmente com o candidato. Segundo Ana Claudia
Veiga de Castro, Del Picchia incorporou na sua atividade jornalística a função de ideólogo
das elites intelectuais, particularmente daquelas ligadas ao PRP, afirmando através dos seus
60
João das Mattas. Dioguinho: narrativa de um cúmplice em dialeto. Ribeirão Preto: Livraria Central, 1903, p.77 e 96.
61
A. Tavares de Almeida. Oeste Paulista: a experiência etnográfica e cultural. Rio de Janeiro: Alba Editora, 1943, p.204.

100
textos os ideais de uma classe que procurava selar uma união com o progresso que se
processava fora das fronteiras nacionais.62
Em 1923, ele publicou o romance Dente de Ouro, cujo herói era um delegado de
polícia recém-nomeado que vai para o interior enfrentar um perigoso facínora. Lá tudo
primava pelo atraso e a falta de lei. Ainda no trem um fazendeiro riu do delegado
afirmando: "o senhor não está ainda a par dos nossos costumes…".63 O delegado é descrito
como um bacharel cheio de sonhos, filho de um fazendeiro falido que perdera suas terras
com a queda brusca dos preços do café. O pai do personagem, preocupado com o futuro do
filho, havia solicitado a um amigo uma colocação que o deixasse "a coberto das
necessidades". Assim nomearam-no delegado:

"Vinte e dois anos, sonhos enormes, intuição vaga de


predestinações, de grandes destinos, tudo parecia acabar, abruptamente,
no recinto acaçapado e sórdido de uma sala de delegacia, recém-criada
num dos rincões longínquos e alarmantes do estado! (…) O exílio que
antevia, no meio de caboclos famanazes na desordem e no crime, tinha,
no fundo, um acre sabor de uma partida para a guerra…"64

Menotti Del Picchia escreveu de forma pitoresca a saga da ocupação do "interior


selvagem" pela polícia de carreira. No prefácio do livro, o autor revela ter se inspirado em
Dioguinho e nas histórias do seu cunhado: o delegado João Queiroz de Assumpção Filho
que, como todo delegado, teve que "batalhar no sertão" antes de ser promovido.65 Pensou
também em bandidos como João Brandão, que ele vira morto em Itapira durante a infância.
E relembra que estava na redação do Correio Paulistano quando Ataliba Leonel, o
poderoso chefe político da Alta Sorocabana, contou-lhe sobre um tal "Dente de Ouro",
assassino valente como um tigre, mas manso como um carneiro diante da esposa.66

62
Ana Claudia Veiga de Castro. A São Paulo de Menotti Del Picchia. São Paulo: Alameda, 2008, p.25.
63
Menotti Del Picchia. "Dente de Ouro". In: Ernani Silva Bruno, op.cit., p.199.
64
Idem, pp.197-198.
65
Prontuário nº 120: nasc. em 1886, foi professor em Taubaté antes de ingressar na polícia em 1916, logo após receber o diploma de
advogado. Em 1925 aceitou o posto de comissário no Gabinete de Investigações para se estabelecer na Capital. Em 1931, torna-se
delegado titular do 5º distrito na Liberdade.
66
Menotti Del Picchia. Dente de Ouro e o Crime Daquela Noite. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1949, p.16-22.

101
No final do livro, morto o facínora, a cidade retoma sua tranquilidade e o
delegado ganha respeito por toda a região: "Quando eu passava, descobriam-se, reverentes,
os caboclos e eu lhes lia nos olhos a gratidão e o respeito". 67 O mito da "civilização do
delegado" frutificou com a ajuda dos próprios delegados, que deixavam os bancos da
Faculdade e entravam para a polícia, começando seu noviciado nas cidades pequenas do
interior. O perigo aproximou-os, moldando neles um espírito de corpo. Para muitos
delegados, senão a maioria, o sertão serviu como um rito de passagem, uma experiência
comum que os uniu em torno de uma identidade. Num almoço realizado em São Paulo, em
1935, onde compareceu um grande número de delegados para comemorar a aposentadoria
de um dos seus primeiros membros, as mortes dos colegas que serviram no sertão foram
lembradas com emoção.
O 3º delegado auxiliar, o Dr. Costa Neto, levantou-se e pediu licença para proferir
algumas palavras sobre o homenageado, o delegado Emilio Castellar Gustavo, reconduzido
ao seu cargo depois de 1930 (ver capitulo 1). O delegado auxiliar começou dizendo que o
homenageado, como todos ali, iniciara a carreira no sertão, mal saído dos bancos da
Faculdade de Direito:

"Ao deixar os bancos acadêmicos, vemo-lo, já se vão trinta


anos, seguir com o título de nomeação de delegado de polícia para o
longínquo município de Agudos, que não passava naquela época, de
uma vaga e indecisa expressão de lugarejo perdido no mapa geográfico
de São Paulo. (…) E assim, numa peregrinação penosa, numa via crucis
que durou treze anos, Castellar Gustavo andou daqui pra ali, por Tatuí,
Araraquara, Botucatu, Guaratinguetá.
Não será preciso descrever-vos, meus caros colegas, porque
conheceis tão bem, quiçá melhor do que eu, o que seja a vida de um
delegado de polícia no interior. É a deficiência de meios. A saudade do
lar. O desconforto do ambiente. A remoção inesperada de um extremo a
outro do estado. A luta contínua contra as expansões do mandonismo
absorvente, do quero porque quero… A intriga serpejante. A cilada

67
Idem, p.202.

102
tecida na sombra. A insegurança da própria vida, no contato, por dever
de ofício, com bandidos de toda a sorte, com sicários de toda a
espécie."68

Em seguida, o orador lembra aos colegas, com profunda emoção, dos


companheiros assassinados no interior do estado:

"Em Penápolis, Álvaro Sevilha tomba numa emboscada


covarde, sendo os seus assassinos defendidos pela rabulagem sem
escrúpulos e absolvidos como inocentes. Em Rio Claro, Negreiros
Guimarães é estupidamente abatido, pela sua própria ordenança.
Em Campinas, os profissionais da batota eliminam João de
Martin. Em Pederneiras, Idelburque Carneiro Leal é trucidado. Em
Olímpia, acutilado pelas costas cai sem vida Elias Luiz de Oliveira,
quando presidia, na própria frisa da polícia, a um espetáculo público.
Tive oportunidade então, no relatório que me coube fazer,
como delegado regional de Araraquara, de redigir estas palavras: 'O Dr.
Elias Luiz de Oliveira vinha mantendo uma campanha enérgica contra o
banditismo no município de Olímpia. Criou antipatias, ódios e rancores,
fez inimigos acérrimos. O assassínio do Dr. Elias Luiz de Oliveira é
evidente obra de vingança, inspirada por indivíduos saturados de
maldade, instigada e fomentada por descontentes da sua ação social'."69

O delegado encerrou declarando: "O interior, vós todos sabeis, é o cadinho por
onde tem de passar todo o delegado da Capital. Assim, quando uma autoridade ascende a
São Paulo, o menos que se poderá dizer é que ela o mereceu, por ser digna". As falas do
almoço comemorativo revelam que a zona rural serviu de escola para os novatos. Os
veteranos tinham o sertão como formador de delegados. Ali, sozinho e sem recursos, o
quinta classe precisava aprender a se impor para sobreviver e enfrentar os desafios à sua

68
"Homenagem ao Dr. Castellar Gustavo". In: Archivos de Polícia e Identificação, vol.I. São Paulo: Typ. do Gabinete de Investigações,
1936, p.171-172.
69
Idem.

103
frente. A lógica dentro da polícia era mostrar desempenho em condições adversas para ser
reconhecido e promovido. Devido a isso, todo delegado da Cidade de São Paulo
considerava-se, antes de tudo, uma pessoa tarimbada e merecedora da sua posição. Ocupar
uma delegacia da Capital era considerado um prêmio da sua capacidade.

Os "empreiteiros de mortes"
Um dos maiores temores dos delegados eram as tocaias. Relatos dão conta que a
tocaia era um meio de se resolver qualquer disputa no cenário rural, uma dívida, um insulto,
questões políticas. Vivendo diante da incerteza e tomados por um sentimento de
autoproteção, os delegados acabaram por nutrir um ódio visceral contra os matadores que
viviam de tocaias. "Repugnante" era o termo usado pelo delegado Francisco de Assis
Carvalho Franco (1887-1953) para descrever essa classe de assassinos. O delegado atribuía
as tocaias ao "partidarismo político" e o cenário "de civilização ainda incompleta", que
dominava o "sertão paulista".70 O interior estava infestado de tipos assim porque era mais
fácil – sobretudo mais cômodo – livrar-se de um desafeto pelas mãos desses assassinos do
que pelas próprias mãos.
Carvalho Franco foi um delegado de carreira típico, daqueles que contribuíram
com o mito da "civilização do delegado". Tendo entrado na polícia em 1912, quatro anos
após concluir a Faculdade de Direito, Carvalho Franco tinha um profundo interesse por
genealogia e heráldica, exibindo para os mais próximos um brasão atribuído à sua linhagem
familiar. Durante seus momentos de folga, escreveu Os Camargos de São Paulo, Os
Companheiros de D. Francisco de Souza e Dicionário de Bandeirantes e Sertanistas
Brasileiros. Ele era considerado um grande conhecedor da história paulista, particularmente
da história das famílias ilustres de São Paulo, aquelas consagradas no livro Nobiliarquia
Paulista de Pedro Taques. Solteiro convicto, Carvalho Franco morou em uma casa ampla
em Perdizes, cercado de sua biblioteca de aproximadamente quatro mil obras, muitas delas
raras, a qual foi adquirida pela Biblioteca Municipal de São Paulo pouco antes do seu
falecimento. Na sua coleção encontram-se livros com dedicatória ao amigo da maioria dos
escritores modernistas.71

70
"Os crimes de emboscada – homicidas profissionais – pelo Dr. Carvalho Franco". In: Arquivos de Medicina Legal e Identificação,
nº10, Rio de Janeiro: agosto de 1934, p.171.
71
Setor de livros raros da Biblioteca Mário de Andrade: Inventário de Francisco de Assis Carvalho Franco. Sobre a carreira literária do

104
O delegado Carvalho Franco (o 5º da esq. para a dir.)
examinando um local de tocaia. Ribeirão Preto, 1926.
À direita, o brasão que ele apresentava como sendo
da sua família. (coleção particular)

Carvalho Franco permaneceu quatorze anos no interior do estado. Sua primeira


delegacia foi Itaporanga, passando por mais onze cidades até ser nomeado delegado
regional de Ribeirão Preto, em 1921.72 Nesse tempo, ele investigou dezenas de tocaias que
ficaram vivas em sua memória. Num artigo escrito em 1942, o delegado conta como
chegou a prender um destes assassinos, contratado para matar um chefe político em
Barretos. A única pista que ele tinha eram os restos de almôndega encontrados perto do
local da tocaia. Percorrendo todas as casas de hospedagem da região, o delegado chegou até
aquela que fez os bolinhos de carne para servir no almoço. Tendo a descrição do matador, o
delegado usou o telégrafo para interceptar o fugitivo que embarcara num trem para Minas
Gerais. Lamentavelmente, dizia o delegado, a quase totalidade desses assassinos acabavam
absolvidos pelo júri devido a influência de políticos locais ou pelo temor que os jurados
tinham deles.73
O delegado batizou essa classe de matadores de "empreiteiros de mortes". Numa
palestra realizada no Rio de Janeiro em 1934, Carvalho Franco explicou o modo deles
atuarem:

delegado, ver também Silveira Peixoto. Falam os Escritores. Vol.3. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1971.
72
Prontuário nº 113. (IIRGD)
73
Carvalho Franco. "Casos de Polícia". In: APCSP, vol. III, 1º semestre, 1942, p.69-71.

105
"A (…) quase absoluta impunidade, trouxe como efeito lógico
a formação de uma classe especialíssima de delinquentes: os homicidas
profissionais, os denominados vulgarmente 'empreiteiros de mortes'.
São criminosos que matam pelo dinheiro, tendo tal como
único meio de subsistência. Constituem tipos delinquentes
perfeitamente caracterizados, formando, com seus auxiliares, um
agrupamento criminoso sui generis, ainda muito pouco observado. São
como os profissionais de outros misteres. Aqueles que necessitam,
ajustam serenamente os seus 'serviços'. A 'tocaia' é o termo popular da
espera assassina. E para construir uma 'tocaia' é mister conhecimentos
técnicos que somente eles possuem.
Na emboscada permanecem apenas o 'matador' e um ou outro
'escora', ou auxiliar do primeiro. Todos os demais passos tendentes à
execução do homicídio, são executados pelo 'espia', que é o encarregado
de seguir a vítima, de tudo informando os 'tocaieiros'.
Pela simples enunciação aqui feita, percebe-se tratar duma
classe de delinquentes com organização própria, exigindo sempre que o
'mandante', figura máxima da empreitada sinistra, tenha recursos
suficientes para dela se utilizar. Difere também assim do tipo conhecido
do 'capanga', um guarda costas permanente, fixo no lugar de residência
do seu chefe. O 'matador' é ordinariamente um estranho, um
desconhecido ido buscar longinquamente, tendo como única finalidade
o assassinato."74

Sentindo-se ameaçados por esse tipo de matadores, os delegados não poupavam


esforços em combate-los. Foi o que motivou o delegado Álvaro Martins Sevilha a realizar
um inquérito rigoroso envolvendo um crime de encomenda imediatamente após assumir o
seu cargo em Penápolis. O crime ocorrera no primeiro dia do ano de 1926. Conforme o
delegado apurou, a vítima foi baleada no quintal de sua casa, numa tocaia típica. Uma
semana depois, o delegado tinha esclarecido o delito, inclusive pedindo a prisão do

74
“Os crimes de emboscada”, op.cit., p.171-172.

106
mandante do crime, o fazendeiro Domingos Vieira da Silva, ex-sócio do comerciante
morto. O fazendeiro, avisado do pedido de prisão, desapareceu. Por sua atuação enérgica, o
delegado novato esperava um elogio dos seus superiores, entretanto, o que ele conseguiu
foi ser ele próprio tocaiado na porta de uma pensão. Alvejado por cinco tiros, ele ainda
sacou seu revolver e deu um disparo a esmo antes de morrer. O inquérito policial relata que
o delegado morreu "surpreso com a brutal agressão". Sangrando muito, ele faleceu em
poucos minutos "sem proferir uma palavra", contaram as testemunhas.75
Ao ser notificado da ocorrência, o chefe de polícia determinou que um delegado
do Gabinete de Investigações partisse imediatamente para Penápolis. O Dr. Aquiles
Guimarães, da Delegacia de Segurança Pessoal, chegou à cidade em poucos dias. Penápolis
já estava ocupada pelo delegado regional. O delegado do Gabinete de Investigações
examinou o local e ouviu as testemunhas ao lado da sua equipe. Antes do anoitecer, ele
soube que o mandante do crime fora o mesmo fazendeiro que arranjou a tocaia do ex-sócio.
Para a população da cidade, a identidade do mandante não era segredo. O delegado
Guimarães realizou uma busca na casa do fazendeiro, apreendendo uma lista de
pagamentos e um bilhete avisando-o que o delegado Sevilha pediria a sua prisão. O bilhete
fora escrito por Amélio Duarte Coutinho, uma pessoa que fizera amizade com o delegado,
chegando a se oferecer para carregar uma das alças do seu caixão. Por ordem do delegado,
Coutinho foi levado para a delegacia e brutalmente interrogado. Ele confessou participação
no crime e revelou onde estava escondido o mandante da tocaia. O fazendeiro Domingos
Vieira havia se abrigado nas matas da sua propriedade.
Seguindo ordens do delegado, Coutinho marcou um encontro com o fazendeiro
dizendo que tinha um recado da esposa para ele. No momento do encontro, o delegado deu-
lhe voz de prisão. O mesmo estratagema foi usado para prender o matador e seus
cúmplices. Com eles a polícia apreendeu armas, que foram enviadas a São Paulo para
serem periciadas. As balas no corpo do delegado Sevilha e as armas apreendidas
possibilitaram ao perito Moisés Marx fazer um laudo atestando a origem dos tiros.76
Durante o julgamento, o advogado de defesa de Domingos Vieira acusou a polícia de ter
torturado o seu cliente e os demais. Domingos Vieira teve o nariz quebrado, a traquéia
deslocada e os testículos esmagados, declarou o advogado ao juiz. Alegou também, em
75
Relatório do inquérito policial, datado de 6 de fevereiro de 1926. (SIPESP); A Platéia, 30 de janeiro de 1926.
76
Laudo da Delegacia de Technica Policial, datado de 1 de fevereiro de 1926 (SIPESP).

107
favor do réu, que a Constituição garantia o sigilo das correspondências, portanto as provas
apresentadas pela polícia não teriam validade diante do tribunal. 77 O fazendeiro foi
absolvido, enquanto o matador e seus auxiliares foram condenados. O advogado apelou, o
julgamento foi anulado e, em nova sentença, todos terminaram absolvidos pelo júri.

Autoridades policiais e curiosos na frente da casa onde ocorreu a


tocaia que vitimou o delegado Sevilha, 15 de janeiro de 1926.

Mandante e matadores do
delegado. Fotos anexadas ao
inquérito policial. (SIPESP)

77
Defesa de Domingos Vieira da Silva, anexada no processo criminal, p.220 a 226 (SIPESP).

108
Considerações finais
Os casos relatados indicam que o grande responsável pelo grau de violência no
interior de São Paulo não eram os costumes atrasados, mas a política. O emprego de força
física, intimidação e contratação de pistoleiros, associados ao cerceamento de justiça, eram
dispositivos fundamentais para os chefes locais manterem sua autoridade ou ampliar o seu
espaço político, enquanto para o governador o que importava era ter os mais fortes ao seu
lado. Ainda assim não se pode falar que a zona rural era um lugar atrasado ou desprovido
de civilização. O próprio desenvolvimento econômico do interior paulista e o afluxo de
imigrantes se encarregaram de mudar as estruturas locais. Entre 1880 e 1929, a região da
Mogiana chegou a concentrar de um quarto a um terço de todo o café produzido no país,
somando cerca de 20% do PIB nacional. A cidade de Ribeirão Preto alcançou a maior taxa
de crescimento populacional do Brasil, quase o dobro do verificado no estado de São Paulo.
No final da década de 1920, o município possuía uma faculdade de farmácia e odontologia,
quatro instituições de ensino técnico, cinco ginásios e 52 escolas públicas. Por todo o
estado, a riqueza gerada pelo café contribuiu para o surgimento de outros setores
econômicos nas áreas industrial, comercial e de serviços. Esse crescimento se deu de forma
desigual, porém acentuada.78
José Henrique de Godoy observa que na esteira do desenvolvimento econômico, o
interior paulista viu aparecer outras lideranças, especialmente provenientes das classes
médias urbanas e sem vínculos com os cafeicultores. Lentamente, a margem de manobra
clientelista dos chefes políticos tradicionais começou a diminuir enquanto crescia a
exigência de eleições limpas, serviços públicos e direitos políticos mais equânimes.79
Assim, à medida que aumentavam as funções sociais e a multiplicidade de atividades, mais
apertada se tornava a teia de interdependências entre pessoas que dependiam de um
monopólio estável de força, isto é, de espaços sociais pacificados livres de atos de
violência. Desse modo, a presença dos delegados foi sendo gradualmente consolidada no
cenário rural.
Parte do antigo arquivo corrente da polícia, abrigado no APESP, mostra delegados
lotados em cidades do interior recolhendo "dementes" e os encaminhando para a Capital,
78
Carlos de Almeida Prado Bacellar. “O Apogeu do Café na Alta Mogiana”. In: Carlos de Almeida Prado Bacellar e Lucila Reis Brioschi
(Org.). Na Estrada do Anhangüera: uma visão regional da história paulista. São Paulo: Humanitas, 1999, p.118-163; Thomas W.
Walker e Agnaldo de Souza Barbosa, op.cit., p.43-50; Joseph Love, op.cit., p.41-53.
79
José Henrique Artigas de Godoy, op.cit., p.730.

109
providenciando passagens para crianças mordidas por cães hidrófobos se tratarem no
Instituto Pasteur e apaziguando brigas de vizinhos.80 Nele podemos encontrar também
abaixo-assinados solicitando policiamento regular em diversas localidades, como Ourinhos
e Brotas, assim como pedidos de substituição de praças violentos ou desleixados.81 Um
jornal de Santa Cruz do Rio Pardo, datado de 21 de dezembro de 1913, por exemplo,
reprova o comportamento dos soldados da Força Pública estacionados na cidade, acusando-
os de "falta de urbanidade para com os cidadãos".82 As queixas de moradores do interior
destinadas aos órgãos de segurança pública e aos jornais indicam que a população esperava
da polícia um comportamento "civilizado" e prestativo. Um advogado acusou o delegado
de Bebedouro de penetrar na sua casa "de chapéu na cabeça, descortemente, faltando aos
mais comezinhos preceitos de civilidade".83 Em telegramas, a população de Limeira
manifestava sua indignação diante da prisão arbitrária de um exibidor de filmes, durante
uma sessão de cinema, por não ter licença.84 Em face da tensão provocada pelas eleições,
alguns eleitores pediram ao delegado de Santa Bárbara do Sul "moderação, tolerância e
isenção".85 Todos esses exemplos indicam que a civilidade era um valor compartilhado
coletivamente, não uma condição imposta de fora. Portanto, o chamado "sertão" paulista
não pode ser retratado como um lugar destituído de civilização por conta do seu "atraso".
No entanto, essa caracterização continuou mesmo após 1930, quando o Gabinete
de Investigações, chefiado por Carvalho Franco, iniciou uma campanha sem tréguas contra
os assassinos de empreitada, que pareciam pela primeira vez fragilizados por não poder
contar com a estrutura política que até então os protegia. Carvalho Franco organizou uma
lista com fotos e impressões digitais de todos os matadores foragidos, distribuindo-a para
os estados vizinhos durante o Congresso Nacional de Polícia, organizado pelo chefe de
polícia do Distrito Federal, o capitão Filinto Strubing Müller (1900-73), em 1934. O chefe
do Gabinete de Investigações defendia a adoção de instrumentos novos para reprimir os
matadores de aluguel, tais como igualar o crime de matar por dinheiro a matar pelo

80
Caixas C3175 e C3181 (APESP).
81
Abaixo-assinados de 8 e 28 de agosto de 1913, caixa C3195 (APESP).
82
Caixa C3195 (APESP).
83
Carta do advogado G. Maldonado, datada de 11 de dezembro de 1907. Caixa C3162 (APESP).
84
Carta com queixa escrita e recortes de jornal, datada de 19 de maio de 1919. Caixa C3175 (APESP).
85
Carta datada de 20 de outubro de 1919. Caixa C3175 (APESP).

110
dinheiro, transformando o homicídio praticado por encomenda em latrocínio, abolindo
dessa forma o julgamento diante de um corpo de jurados.86
A conclamação do delegado acontecia num momento propício. Não apenas em
São Paulo, mas por todo o Brasil a eliminação de bandos armados havia se tornado uma
imposição do governo central, como forma de fortalecer sua imagem diante da opinião
pública. A partir de 1935, as forças policiais dos estados nordestinos, abastecidas com
armas automáticas e equipamentos de rádio, eliminaram sumariamente importantes chefes
de grupos, como Manuel Torquato no Rio Grande do Norte; os irmãos Engracia em
Alagoas; Medalha, Suspeita, Limoeiro e Fortaleza também em Alagoas; José Baiano em
Sergipe; Mariano, Pai Velho e Zepelim também em Sergipe; e Paizinho Báio no agreste
pernambucano.87 Em 28 de julho de 1938, Lampião, o Rei do cangaço, foi morto com seus
companheiros na grota de Angico, na margem sergipana do rio São Francisco. Do cangaço
sobrará apenas pequenos grupos, a maioria entregando suas armas em troca de uma anistia
do governo federal.88
Em São Paulo, o diretor do Gabinete de Investigações mobilizou grandes esforços
para capturar Aníbal Vieira de Andrade, matador de encomenda e chefe de bando. Natural
de Mococa, onde nasceu em 1906, Aníbal Vieira era o mais temido "empreiteiro" do
interior paulista. Indiciado por oito crimes e suspeito da morte do delegado Elias Luiz de
Oliveira, Aníbal sempre escapou da ação da justiça contando com a proteção de políticos,
ameaça de jurados e fugas de cadeias. Em uma foto obtida pelo delegado de Olímpia,
Aníbal Vieira aparece ao lado do seu bando usando
um chapéu enorme, lenço amarrado em volta do
pescoço e uma cartucheira na cintura como os
artistas de Hollywood: um Tom Mix caipira. A
perseguição policial obrigou Aníbal a se refugiar no
Mato Grosso. Em 1937, informações davam conta
que ele havia se estabelecido no sul de Minas.

Alertada pelo Gabinete de Investigações, a força


Foto de Aníbal e seus comparsas guardada pelo delegado
policial mineira cercou Aníbal, matando-o depois Carvalho Franco. (Arquivos de Medicina Legal e Identificação)

86
Dr. Carvalho Franco, “os crimes de emboscada”, op.cit., p.171-174.
87
Élise Grunspan-Jasmin. Lampião, Senhor do Sertão: Vidas e Mortes de um Cangaceiro. São Paulo: Edusp, 2006, p.284-285.
88
Frederico Pernambucano de Mello. Guerreiros do Sol: o banditismo no nordeste do Brasil. Recife: Editora Massangana, 1985.

111
de um intenso tiroteio.89 Terminado o confronto, a polícia mineira enviou um telegrama
para o Gabinete de Investigações comemorando a morte do "Lampião paulista".90
No Mato Grosso e em Goiás, as polícias também fecharam o cerco contra os
bandos armados que vagavam pelo cerrado. Silvino Jacques, o mais temido bandido mato-
grossense foi perseguido e morto em maio de 1939.91 Comemorando o feito, o interventor
do Mato Grosso enviou um telegrama para Getúlio Vargas, assim como fez o interventor de
Alagoas ao saber da morte de Lampião. À medida em que o governo central se fortalecia,
extinguiam-se os grupos armados que proliferaram entre 1910 e 1930. O fim desse tipo de
atividade revela que o Estado estava atingindo espaços até então livres da sua mão. Artigos
publicados nos jornais comemoravam a eliminação destes grupos como resquícios do
passado que não resistiram a modernização do país.92
Esse discurso enfatizava o papel da polícia em assegurar a ordem e banir todos
aqueles que a ameaçavam, reforçando a convicção que a sociedade só se civilizaria
pressionada pelas instituições. Tal discurso perpetuava a ideologia que deu vida ao mito da
"civilização do delegado". Nos anos 1930, o imaginário dominante ainda privilegiava a
missão civilizadora européia, embora o sociólogo Norbert Elias tenha desenvolvido uma
outra percepção a respeito do significado de civilização. Para o sociólogo alemão, o
processo civilizador constituía uma mudança nos padrões de conduta e sentimentos dos
indivíduos, colocado em marcha por uma série histórica de eventos que tiveram lugar
particularmente na Europa. Elias explica tal processo como uma marcha de longa duração
permeada de avanços e retrocessos que se nutre de uma dinâmica autônoma, impulsionada
pela teia de relacionamentos que obrigam as pessoas a conviver consigo mesmas e com os
outros seres humanos. Nessa complexa rede de interdependências, a constituição do homem
"civilizado" ocorreu lado a lado com a necessidade dos seres humanos sintonizarem sua
conduta com a de outros, criando instituições e monopólios de poder a fim de que cada
ação individual desempenhasse uma função social.93

89
O Estado de São Paulo, 28 de dezembro de 1937.
90
Prontuário nº 234.259 (IIRGD).
91
Valmir Batista Correa. Coronéis e Bandidos em Mato Grosso (1889-1943). São Paulo, 1981. Tese de Doutoramento apresentada ao
Departamento de História da USP, p.190.
92
Élise Grunspan-Jasmin, op.cit., p.162.
93
Norbert Elias, op.cit., 1993, p.193-207; Jonathan Fletcher. Violence & Civilization: an introduction to the work of Norbert Elias.
Malden, MA: Polity, 2005.

112
O estudo de Elias, publicado em 1939, ofereceu uma percepção inovadora do
conceito de civilização. Na sua argumentação, o processo civilizador era uma lenta e
prolongada construção do próprio homem, enquanto para os defensores da ideologia
civilizatória que dominava o discurso hegemônico, ele era uma transformação imposta pelo
progresso. Em Elias não há progresso, um sentido evolutivo em linha reta, mas uma série
de avanços e recuos imprevisíveis. Nessa trajetória, os homens usam as instituições para se
guiarem pelo mundo social, portanto elas traduzem e explicitam formas de dependência
recíprocas, ainda que povoadas de lutas e conflitos pela apropriação dos recursos e
oportunidades produzidos pela sociedade. Nesse novelo de processos emaranhados, a
significação de civilização não aparece como exterior ao campo social, nem pode ser
imposta a ele de fora, pois o processo civilizador é inseparável da configuração do jogo
social, não uma qualidade de pessoas pretensamente modernas e evoluídas.
O ponto central é compreender que o discurso que deu alento ao mito da
"civilização do delegado" foi uma apropriação de uma ideia fortíssima que permeava o
mundo, dando sentido à ordem política e econômica que rompia fronteiras e sustentava
impérios. Um mundo cada vez mais interconectado por tecnologias e ideologias, onde todos
– escritores, delegados e até mesmo pistoleiros – procuravam se inserir de algum modo.

113
3. Polícia e cidade

"(…) ao lado da grande massa de trabalhadores honestos


que chegavam à Paulicéia, vinham maltas de vagabundos,
aventureiros, desajustados, criminosos e prostitutas. Essa fauna de
maus elementos deu nova feição à nossa criminalidade,
enriquecendo-a com modalidades delituosas até então
desconhecidas por nós ou agravando outras já existentes. E assim,
a provinciana Paulicéia, relativamente pacata, viu-se sobressaltada
diante da onda de crimes e violência que se abateu sobre ela."
Guido Fonseca 1

O delegado Guido Fonseca (1934-96) escreveu uma vasta obra sobre a


criminalidade em São Paulo, utilizando documentos reunidos nos cartórios das delegacias e
arquivos dos tribunais. O delegado, que ocupou o cargo de diretor da Academia de Polícia,
pintou o seu quadro da Paulicéia baseado nos relatórios dos chefes de polícia. Os mesmos
relatórios que utilizamos como fonte – literalmente os mesmos, pois o delegado tinha o
costume de grifar os documentos guardados na biblioteca da Delegacia Geral de Polícia
com lápis coloridos para depois reproduzi-los em seus livros. Lemos os mesmos relatórios,
mas com outro olhar. Todo documento tem um propósito e se apóia numa interpretação do
real, merecendo por isso uma leitura cuidadosa. Mesmo cobertos de estatísticas e números,
os relatórios não espelham a realidade em si, mas a visão oficial sobre crime e
criminalidade. Por isso são documentos tão interessantes. Manuseando-os podemos sentir
os chefes de polícia imersos num mundo em ebulição, potencialmente explosivo e povoado
de conflitos. Ocupados em instituir uma ordem urbana, eles deixaram assinalado seus
esforços em controlar, classificar, conter e reprimir uma população que fornecia riqueza e
inspirava medo.

1
Guido Fonseca. Crimes, criminosos e criminalidade em São Paulo (1870-1950). São Paulo: Resenha Tributaria, 1988, p.45.

114
A expansão da produção cafeeira fez da Cidade de São Paulo seu centro dinâmico,
enervado por ferrovias, grandes bancos, casas comerciais, firmas estrangeiras e as primeiras
indústrias. A instauração do trabalho assalariado e do projeto republicano acelerou o ritmo
das transformações na Cidade. O simples dado populacional atesta a intensidade das
mudanças: em 1872 a população da Cidade era de 26.040; em 1886 atinge 47.697 e em
1890 supera 69.934 habitantes.2 Em 1893, o censo da recém-criada Repartição de
Estatística registrou que a população da Cidade atingira 130.775 habitantes, 55% deles
estrangeiros, a maioria de origem italiana. A população concentrava-se nos arredores do
Centro. O bairro mais populoso era o de Santa Ifigênia, seguido pelo Brás e Sé, sendo esse
último já considerado o distrito comercial da Cidade. O relatório faz menção à quantidade
de cortiços onde morava grande parte dos imigrantes. Neles, as condições de vida eram
precárias e as epidemias frequentes.3
Havia na Cidade de São Paulo uma presença abundante de trabalhadores pobres
que excedia largamente as necessidades do mercado. Essa massa humana contribuía para
manter os salários a níveis extremamente baixos, multiplicando a pobreza. A grande
imigração, responsável por formar uma reserva de mão de obra barata, favorecia mais os
grandes fazendeiros do que aqueles que só tinham sua força de trabalho para vender. Uma
grande parte dos trabalhadores, sem possibilidade de arranjar emprego, inaproveitados,
vivia precariamente do trabalho temporário, dedicando-se ao pequeno artesanato e ao
comércio ambulante de gêneros de consumo, aceitando qualquer oferta casual de trabalho. 4
Os mendigos, notava um jornal em 1892, eram quase todos estrangeiros que não
encontraram por aqui a oportunidade almejada.5 Em 1901, o prefeito Antônio da Silva
Prado, incomodado com o número de criaturas errantes vivendo à beira da indigência, pede
ao chefe de polícia que proíba as pessoas de recolher lixo pelas ruas, impedindo assim o
aumento de famílias que sobreviviam dessa prática.6

2
Memória Urbana: A Grande São Paulo até 1940. vol.2. São Paulo: Arquivo do Estado/ Imprensa Oficial, 2001, p.26-27.
3
Relatório apresentado ao cidadão Dr. Cesário Motta Jr. secretário dos negócios do interior do Estado de São Paulo pelo diretor da
Repartição de Estatística e Arquivos, Sr. Antônio Toledo Piza em 13 de julho de 1894. São Paulo: Typ. Espindola Siqueira & Comp.,
1894, p.65-75. (APESP)
4
Maria Inez Machado Borges Pinto. Cotidiano e Sobrevivência: A Vida do Trabalhador Pobre na Cidade de São Paulo (1890-1914).
São Paulo: Edusp, 1994, p.30-31.
5
O Diário Popular, 30 de abril de 1892, citado em Richard Morse. Formação Histórica de São Paulo. São Paulo: Difusão Européia,
1970, p.242.
6
Correspondência do prefeito para o chefe de polícia, citado por Março Antônio Cabral dos Santos, op.cit., p.71.

115
O crescimento extraordinário tornou São Paulo uma cidade densa e concentrada,
acirrando todo tipo de tensão e propiciando o aparecimento de uma economia marginal
ocupada por aqueles a quem o delegado Guido Fonseca chamou de "vagabundos,
aventureiros, desajustados, criminosos e prostitutas".7 O impacto desse crescimento
produziu uma espiral de mudanças que imprimiu uma direção a várias reformas na
organização policial, que passou a demandar um contingente maior, assim como novos
prédios para alojar uma série de novos departamentos.

As delegacias da Capital
A função das delegacias era clara: zelar pela tranquilidade pública. 8 As delegacias
ficavam em casarões alugados, grandes e espaçosos o suficiente para acomodar
autoridades, cartório e celas.9 Cada delegacia tinha um delegado titular e três suplentes,
subdelegados, escrivães, escreventes, "secretas", além de um pequeno destacamento da
Força Pública incumbido de guardar a delegacia e cumprir as ordens do delegado. Isso sem
contar os serventes, condutores e carcereiros. Os suplentes eram encarregados de substituir
os titulares em caso de necessidade ou doença. Os delegados, subdelegados e suplentes
eram nomeados e demitidos pelo chefe de polícia.
Os delegados, como vimos anteriormente, eram bacharéis em direito, mas não tinham
estabilidade funcional ou direito a remuneração. Somente a partir de 1897, os delegados das
principais cidades paulistas passaram a receber salário. Já os subdelegados eram pessoas
leigas, ou seja, não precisavam possuir diploma de advogado, embora coubesse a eles
proceder diligências. Os subdelegados eram, via de regra, pessoas influentes no bairro,
motivo pelo qual eram considerados de muita utilidade para os distritos policiais. Criados
pela lei de 1841, juntamente com os delegados de polícia, os subdelegados tinham poder
para prender, invadir residências e dar buscas. Até o início da década de 1960, ainda havia
subdelegados na polícia. O delegado aposentado Roberto Mauricio Genofre lembra:

7
Comparando os cortiços de Nápoles com os daqui, o Correio Paulistano de 14 de abril de 1893 julgou São Paulo a cidade mais "densa"
do mundo; ver também Teresa Pires do Rio Caldeira, op.cit., p.213.
8
Regulamento Policial do Estado de São Paulo: Decreto nº494 de 30 de Outubro de 1897. São Paulo: Typographia do Diário Official,
1898, p.16-29.
9
Relatório apresentado ao vice-presidente do Estado pelo secretário de negócios da justiça de São Paulo José Getúlio Monteiro relativo
ao ano de 1897. São Paulo: Typ. Espindola, Siqueira & Comp., 1898, p.186-187.

116
Delegacia típica dos anos 1920, mostrando
serventes, escrivães e escreventes.
(ACADEPOL)

Fotos dos subdelegados da Vila Leopoldina e


da Pompéia. (Livro de termos de
compromisso da 3ª delegacia da Capital)

"Os subdelegados nomeados, sem qualquer tipo de


remuneração, nem formação policial, eram auxiliares, pessoas do povo
que funcionavam como uma espécie de informantes e, dependendo do
bairro, tinham muito prestígio junto às comunidades, ostentando sempre
a carteirinha com distintivo, que usavam na lapela, quando saiam em
diligência junto com as autoridades policiais. As nomeações eram
políticas e as indicações eram feitas pelos chefes políticos ao chefe de
gabinete da Segurança Pública, ou por indicação do delegado titular dos
distritos ou delegacias."10

Notícias envolvendo subdelegados em atos de violência e desvios de conduta


eram comuns. No início de 1900, o jornal Estado de São Paulo relata o caso de um
condutor de bonde violentamente agredido por um subdelegado na frente dos passageiros.
10
"Polícia e política: as marcas de história de São Paulo". Delegado Roberto Genofre, entrevistado por Ana Maura Tomesani e Juliana
Vinutu. In: Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 4, edição 7, agosto/setembro 2010, p.137.

117
Depois de uma freada brusca, houve uma troca de ofensas entre o condutor e o genro do
subdelegado. Isso bastou para o subdelegado espancá-lo com sua bengala. Ele justificou a
agressão dizendo que o condutor resistira à voz de prisão.11
Em outro caso, ocorrido em 1902, a colônia síria redigiu um abaixo-assinado
pedindo ao chefe de polícia a exoneração do subdelegado do Norte da Sé, Jorge Riskallah,
acusado de fazer uso do cargo para extorquir e lesar seus compatriotas. Os jornais dão conta
de que ele era conhecido na colônia por falsificar documentos e corromper funcionários de
cartório "arrogando ter uma influência que não tem". O chefe de polícia atendeu ao pedido,
fazendo com que o subdelegado perdesse o cargo.12 Em 1906, O Commercio de São Paulo
publicou um abaixo-assinado festejando a demissão do capitão Pereira Borges, um
subdelegado que só "praticava vinganças e perseguições".13
Havia também subdelegados elogiados pelos veículos de imprensa. Entre eles
estavam Nicolau Matterazzo, diretor de uma associação de imigrantes no Bom Retiro, que
recebeu do chefe de polícia o encargo de descobrir fabricantes de moeda falsa dentro da
colônia italiana; Lincoln de Albuquerque, responsável pela primeira prisão do ladrão Gino
Meneghetti; e Pamphilo Marmo, cujo filho pequeno era considerado milagroso pelos
moradores da Cidade. Doente e de saúde frágil, o menino faleceu aos doze anos, em 1930.
Antoninho da Rocha Marmo era considerado na vizinhança um "santinho que caiu do céu".
Filas de pessoas pobres faziam vigília na porta da casa do subdelegado em Santa Ifigênia,
onde ele construiu uma capelinha para o filho.14 Em São Paulo, o número de subdelegados
em cada delegacia variava conforme a sua área de abrangência e o tamanho da população
local. A delegacia da Sé, por exemplo, tinha seis subdelegados, enquanto a de Santa
Ifigênia tinha onze.15
Nas delegacias, os funcionários de melhor formação depois dos delegados eram os
escrivães. Eram exigidos exames para a contratação dos escrivães, inclusive de caligrafia.16
Muitos já haviam trabalhado em cartório e foram para a polícia em busca de uma melhor
remuneração. Os escrivães eram responsáveis pela feitura do inquérito policial, colhendo

11
O Estado de São Paulo, 28 de março de 1900.
12
Idem, 5 e 11 de janeiro de 1902.
13
Marco Antônio Cabral dos Santos, op.cit., p.131.
14
Boris Fausto. Trabalho Urbano e Conflito Social (1890-1920). São Paulo: Difel, 1986, p.35; Marco Antônio Cabral dos Santos, op.cit.,
p.266; O Estado de São Paulo, 31 de março de 1914; Folha da Noite, 12 de março de 1947.
15
Norberto de Castro, op.cit., p.69.
16
Hermes Vieira e Oswaldo Silva, op.cit., p.187.

118
depoimentos e procedendo interrogatórios, segundo ordens do delegado. Além disso,
tinham a responsabilidade de organizar mapas de estatística, lavrar portarias e outras ordens
expedidas pelas respectivas autoridades. Abaixo deles estavam os escreventes, a quem
cabia a escrituração e a organização dos arquivos da delegacia. O controle de uma
repartição policial se fazia através de livros. Só para se ter uma idéia, o Guia Policial do
Estado de São Paulo de 1924 lista os seguintes livros obrigatórios: Registro de Inquéritos
Policiais e Processos Contravencionais; Carga de Inquéritos Policiais, Processos e
Sindicâncias; Registro Geral de Presos; Registro de Criminosos Foragidos; Registro de
Inventário e Tombo; Registro de Correspondência Recebida; Registro de Correspondência
Expedida; Registro de Editais e Portarias; Registro de Termos de Compromisso; Registro
de Prostitutas; e Registro de Termos de Tomar Ocupação. Ao todo, declara o autor, uma
delegacia contava com no mínimo 17 livros, distribuídos em vários volumes.17
Por fim, auxiliando delegados e subdelegados na investigação de crimes, estavam
os agentes secretos, os famosos “secretas”, assim chamados por não usarem uniforme e
misturarem-se à multidão. A origem destes auxiliares é ignorada, porém eles já existiam no
Império, como atesta o Livro Caixa das Despesas Secretas da Polícia (1880-84), guardado
no APESP. Ali podemos encontrar pagamentos efetuados a três "agentes secretos" por seus
serviços.18 Os administradores republicanos aumentaram o número de secretas, embora não
os considerassem funcionários da polícia, mas auxiliares com direito a uma “gratificação e
uma disciplina especial.”19 Esse cuidado provavelmente estava ligado à origem dos seus
membros, descritos por um delegado como "homens rudes, sem nenhuma instrução,
recrutados a maior parte das vezes entre veteranos do crime".20 Muitos secretas talvez
fossem “alcaguetes”, apelido dado aos informantes. Este parece ser o caso do espanhol
Manuel Iglesias, demitido após chegar aos ouvidos do chefe de polícia que ele era gatuno e
fazia receptação de jóias roubadas.21 É comum no trabalho policial encontrarmos, em
delegacias sobrecarregadas de trabalho, pessoas que auxiliam a polícia sem serem
funcionários. São indivíduos que conhecem a vizinhança e um certo número de

17
Manuel Gomes de Oliveira. Guia Policial do Estado de São Paulo. São Paulo: Saraiva & C., 1924; Arino Tapajós Coelho Pereira.
Manual de Prática Policial. São Paulo: Serviço Gráfico da Secretaria de Segurança Pública, 1962, p.15-16.
18
Livro Caixa das Despesas Secretas da Polícia (1880-84), E1569. (APESP)
19
Decreto nº 9, de 31 de dezembro de 1891.
20
Declaração do delegado Otávio Ferreira Alves. "Polícia de S. Paulo" in Revista de Criminologia e Medicina Legal, ano I, nº1, julho
de 1928. São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1928, p.69.
21
O Estado de São Paulo, 7 de junho de 1896.

119
delinquentes, mantendo o delegado informado sobre o que ocorre na região.22 Alguns têm
ficha criminal, outros não, mas o que importa é que são pessoas que sobrevivem dessa
relação ambígua entre a marginalidade e a lei. Em 1896, o jornal Estado de São Paulo
registrou o pouco apreço que a imprensa e a população tinham pelos secretas:

"O Dr. chefe de polícia está reorganizando o corpo de agentes,


e já expulsou 40 indivíduos, substituindo por outros que se apresentam
com boas recomendações. (…) Muito estimaremos que S.Ex. consiga
elevar o nível moral dos secretas, que tanto desgostos causaram sempre
às autoridades, praticando abusos de toda casta, por serem, em sua
quase totalidade, indivíduos mal preparados para o desempenho de tão
melindrosas funções."23

Naquele ano, depois de um expurgo nos seus quadros, os secretas receberam a


denominação de Agentes de Segurança e foram incluídos entre os funcionários policiais.24
Ainda assim a fama desses agentes não melhorou.25
Além do seu corpo de funcionários, as delegacias contavam com um bom número
de inspetores de quarteirão. Essa categoria remontava à época colonial e era resquício de
um sistema de dominação pessoal privado e paternalista que ainda permeava a sociedade de
alto a baixo. Seus integrantes não recebiam salário. Entre suas atribuições estava a de fazer
um cadastro do quarteirão e manter o delegado informado das ocorrências locais.26 Os
inspetores de quarteirão precisavam ter suas “licenças” renovadas periodicamente pelo
delegado. Era uma atividade quase informal, baseada na confiança, da qual os dois lados
tiravam proveito. As autoridades ganhavam na medida em que ampliavam seu número de
auxiliares, e os inspetores, ao serem reconhecidos na comunidade como ligados às
autoridades. Essa relação foi trabalhada pelo delegado Amando Caiuby num conto
publicado em 1921. Um dos personagens do conto é um inspetor de quarteirão chamado

22
sobre alcaguetes ver Pamphilo Marmo. Memórias Policiais. São Paulo: Casa Vanorden, 1927, p.32; Guaracy Mingardi. Tiras, Gansos
e Trutas. São Paulo: Scritta, 1992, p.21-31.
23
O Estado de São Paulo, 7 de junho de 1896.
24
Guido Fonseca. "Do Investigador de Polícia". In: Arquivos da Polícia Civil, vol.XXXIII, 2ºsemestre, 1979, p.100.
25
Relatório de 1896, op.cit., p.561.
26
Dr. João Lúcio de Bittencourt Filho. Consolidação das Leis Policiais em vigor no Estado de São Paulo. São Paulo: Livraria Zenith,
1931, p.219.

120
Tibúrcio, que recebe do delegado uma garrafa de uísque em retribuição pela prisão de um
anarquista. O inspetor fica admirado com aquela bebida "que só inglês rico e brasileiro
viajado sabiam apreciar."27
A necessidade urgente de ordem nos
primeiros anos da República aumentou o
efetivo policial sem trazer mais segurança ou
tranquilidade para a Cidade. Choques entre
policiais e populares enchiam os jornais com
notícias de secretas acusados de achacar
transeuntes, subdelegados espancando
cidadãos, praças embriagados provocando
tumultos e policiais gravemente feridos por
gatunos ou populares.28

Termo de compromisso de um inspetor de


quarteirão de Pirituba. (Livro de termos de
compromisso da 3ª delegacia da Capital)

A cidade como espaço de conflitos


O secretário do interior, Cesário Motta Júnior (1847-97), dá uma mostra de como
os administradores da Cidade enxergavam o mundo à sua volta. Em 1894, durante a
inauguração da Escola Politécnica de São Paulo, o secretário fez um discurso salientando os
desafios impostos à ordem social:

"Nas convulsões políticas e sociais deste fim de século,


ninguém pode prever o dia de amanhã; novas doutrinas levantam-se em
debate contra as velhas; as crenças subdividem-se; as igrejas vão
perdendo autoridade moral para enlaçar as consciências; aos governos
falta, em geral, a força para dominar os instintos individuais nas massas
inconscientes; o salário disputa com o capital e a anarquia interpõe-se

27
Amando Caiuby. "Assombração" em Ernani Silva Bruno, O Planalto e os Cafezais. São Paulo: Cultrix, 1959, p.180.
28
Sidnei Munhoz. Imigrantes e Policiais em São Paulo na Passagem do Século XIX para o XX. São Paulo: CEDHAL/USP, 2001.

121
como instrumento cego, nivelador, magnífico como a tormenta, feroz
como o ódio, cruel como a inveja, voraz como a fome."29

O espaço urbano era palco de conflitos violentos, particularmente entre a polícia e


os estrangeiros que se instalavam na Cidade. Os jornais indicam que a população imigrante
reagia ao ser desrespeitada ou ia à forra quanto surgia uma oportunidade. A comunidade
italiana, fragmentada e dividida por integrantes que falavam apenas seu dialeto, parecia agir
solidariamente quando um italiano era perseguido ou agredido pela polícia. Em 1892, um
jornal da colônia publicou uma carta aberta endereçada ao chefe de polícia protestando
contra a ação da polícia, a quem classificou de "bandidos" e "súcia de bêbados". O redator
do jornal foi intimado a se explicar diante do delegado.30 O chefe de polícia Bento Pereira
Bueno (1869-1954), que trabalhara em vários jornais republicanos antes de atuar na polícia,
chamava esses jornalistas, que davam visibilidade a novos sujeitos sociais, de "indivíduos
desautorizados" que aqui fundavam suas "empresas jornalísticas para fomentarem a
discórdia e o descrédito das autoridades".31
Em 25 de agosto de 1893, houve uma manifestação no Largo do Paissandu em
protesto a atos de violência da polícia contra italianos no porto de Santos. A passeata
descambou em um conflito de rua com tiroteio e feridos.32 Em 1896, novamente os
imigrantes organizaram manifestações para protestar contra uma lei que os transformava
em brasileiros sem consulta prévia. Grupos de italianos e estudantes de direito se
enfrentaram provocando uma verdadeira batalha na Capital. Foram três dias de luta pelas
ruas que se transformaram numa "caça aos italianos", denunciou o cônsul da Itália em São
Paulo. Procurando evitar mais confrontos, o diplomata desaconselhou a Câmara Italiana de
Comércio em São Paulo a incentivar a participação política de seus membros,
especialmente como candidatos.
Era notório que a disputa pelos postos de trabalho acirrava os conflitos entre
estrangeiros e nacionais. O fato de haver uma abundância de braços ocasionava não só a
deterioração dos salários, mas também as tensões étnicas, levando muitos brasileiros a

29
Cássio Motta. Cesário Motta e seu Tempo. São Paulo: 1947, pp.12-13.
30
Sidnei Munhoz, op.cit., 2001, p.8.
31
Relatório apresentado ao secretário dos negócios da justiça do Estado de São Paulo pelo chefe de polícia Bento Pereira Bueno em 31 de
janeiro de 1896. São Paulo: Typ. Espindola, Siqueira & Comp., 1896, p.4.
32
O Estado de São Paulo, 25 de agosto de 1893.

122
culpar os imigrantes pelo seu infortúnio. Para o cônsul, existia no ânimo dos brasileiros
uma "desconfiança contra o italiano", que se transformava "em ódio e passava à violência
ao primeiro pretexto".33
Em dezembro de 1898, um bate-boca no meio da rua motivou a prisão do
motorneiro Alberto Michelotti. O subdelegado Rufino Tavares de Almeida, sentindo-se
ofendido pelo condutor, mandou que o prendessem e o espancassem na delegacia. O caso
alcançou a imprensa. Colegas do italiano preso organizaram uma greve em sinal de
protesto. A polícia tentou impedir o movimento que terminou numa luta violenta. Entidades
representativas dos imigrantes pressionaram as autoridades do seu país a tomar
providências e o caso chegou ao parlamento italiano.34 As tensões atingiram tal ponto que,
em 1902, o governo italiano proibiu a imigração para o Brasil alegando maus-tratos a que
seus cidadãos estavam expostos.35
A violência indisciplinada contrariava os anseios por ordem na Cidade. Em 1895,
o jornal Estado de São Paulo criticava o comportamento da polícia, considerando-o
inadmissível:

"Decididamente, é indispensável acabarmos com isso por uma


vez. A nossa população, extremamente pacífica, que se aglomera em
grandes massas nos dias festivos sem provocar um conflito, sempre
pacata, alegre e ordeira, não pode estar sujeita à selvageria brutal da
soldadesca sem disciplina nem consciência dos deveres que tem a
desempenhar. (…) Medidas enérgicas e severíssimas é preciso que
sejam tomadas para a repressão desses contínuos abusos."36

A nota repudiava uma briga entre soldados da cavalaria e praças do batalhão


policial durante os festejos carnavalescos na Praça da Sé. O confronto deixou várias
pessoas feridas. O jornal cobrava das autoridades o fim da violência desordenada. Até um
ministro italiano, visitando São Paulo em 1899, reclamou da brutalidade policial que ele

33
Michael Hall. "Imigrantes na Cidade de São Paulo". In: Paula Porta (org.), op.cit., pp.123-126; Aureliano Leite, op.cit., 1944, p.111-
114; Sidnei J.Munhoz, op.cit.,1997, p.154-161.
34
Correio Paulistano, 29 de dezembro de 1898; Sidnei Munhoz, op.cit., 2001, p.10-11.
35
Michael Hall, op.cit., 2004, p.14.
36
O Estado de São Paulo, 26 de fevereiro de 1895.

123
descreveu como "fatos verdadeiramente reprováveis e insuportáveis num país civilizado".37
Sidnei Munhoz, que realizou um trabalho resgatando esses conflitos, notou que a maioria
dos casos denunciados resultou em punição para os policiais.38 A quantidade de queixas
enviadas às autoridades indica que a população queria uma polícia que a respeitasse e
garantisse uma convivência livre de perigos e ameaças; uma polícia pronta para socorrê-la
num momento de necessidade. Havia uma demanda por segurança na Cidade, o que explica
o número de cartas que o chefe de polícia recebia denunciando ilegalidades ou pedindo o
afastamento de subdelegados e inspetores de quarteirão. Conscientes desse desejo, as
autoridades se esforçaram para disciplinar a polícia e dar a ela a legitimidade que lhe
faltava como protetora do cidadão.
Em 1902, Cardoso de Almeida tomou providências ordenando que os delegados
auxiliares investigassem todas as denúncias contra policiais e demitissem sumariamente os
culpados. A notícia que o subdelegado da Barra Funda praticava "toda sorte de tropelias"
irritou o chefe de polícia. Um empregado da Casa Prado Chaves foi preso sem motivo
justificado e espancado no posto policial por ordem do subdelegado. O fato foi comunicado
ao chefe de polícia, que encarregou o delegado Ascânio Cerqueira de apurar os fatos.39 O
subdelegado foi afastado e todos os inspetores de quarteirão da delegacia da Barra Funda
tiveram suas licenças canceladas. Com isso, garantiam os jornais, pretendia-se excluir
aqueles contra os quais pesavam acusações sérias. Outras delegacias fizeram o mesmo.40
No relatório de 1903, Cardoso de Almeida explicava a necessidade dessas medidas:

“(…) procurei, desde o momento que assumi as funções do


cargo, para o qual fui nomeado, tornar a polícia uma instituição
estimada, acatada pelo público, e, fazendo grande cabedal do predicado
da honestidade, que lhe há de granjear o respeito dos cidadãos, e
aumentar o prestígio, estabeleci a mais severa fiscalização sobre o
procedimento de todos os auxiliares.
Tem sido minha preocupação assídua a de conquistar para a
polícia (…) o apreço que deve merecer das diversas classes sociais, (…)
37
Michael Hall. "O movimento operário na Cidade de São Paulo: 1890-1954". In: Paula Porta (org.), vol.3, op.cit., p.267.
38
Sidnei Munhoz, op.cit., 2001, p.14.
39
O Estado de São Paulo, 4 de julho de 1902.
40
Idem, 22 e 30 de julho de 1902.

124
porque nisso se encerra um meio poderoso de serem atendidos
eficazmente os altos interesses da manutenção da ordem.”41

O chefe de polícia pensava na eficácia e na manutenção da ordem, em disciplinar


seus comandados para então disciplinar a sociedade. Persistindo nesse objetivo, ele treinou
um destacamento da Guarda Cívica para patrulhar desarmada as ruas centrais da Cidade.
“Era uma justa homenagem aos hábitos civilizados da Cidade de São Paulo", escreveu. O
chefe de polícia assegurava que com um patrulhamento educado e desarmado, a Cidade
mostrava que, além do seu desenvolvimento material, ela também aperfeiçoava os seus
costumes.42
Washington Luís prosseguiu no caminho de procurar fazer da polícia uma
instituição respeitada por estrangeiros e nacionais. A criação da polícia de carreira foi
anunciada como um passo decisivo para superar o passado. O professor Antônio Carneiro
Leão (1887-1966), um entusiasta do progresso paulista, escreveu que "a polícia de carreira
é um corretivo certo", pois ela não podia continuar sendo "uma profissão para domesticar
criminosos ou dar o que fazer a vagabundos".43 O delegado Amando Caiuby foi outro a
defender a tese que a polícia de carreira mudou a imagem da polícia perante os
estrangeiros:

"Era fito do governo libertar o Poder de Polícia, pertencente ao


Estado executivo, do Poder da Política – então dominante em todos os
tempos no Brasil. Somente com essa independência poderiam as nações
do Velho Mundo ter confiança na justiça de São Paulo sobre seus filhos
imigrantes. Pois, com autoridades formadas em direito, com a nobreza
dos estudos superiores sociais e jurídicos, haveria a necessária garantia
da ordem, segurança e aplicação das leis aos colonos. Assim, a
imigração tornou-se respeitada e vitoriosa na produção das riquezas
agrícola-industriais."44

41
Relatório de 1903, op.cit., p.4.
42
Idem, p.7.
43
Carneiro Leão. S. Paulo em 1920. São Paulo: 1920, p.117.
44
Amando Caiuby, "Washington Luís e a Polícia de Carreira", op.cit., p.109.

125
A despeito da opinião do delegado, não há indícios de que a polícia de carreira fez
os imigrantes se sentiram mais seguros. A simples constatação do número de imigrantes
naturalizados na Cidade, apenas 1,2% em 1920, indica que eles sentiam-se mais protegidos
sendo cidadãos estrangeiros.45 O consulado costumava ser um porto seguro para aqueles
que se sentiam ameaçados. Em 1895, o impressor Raimundo Fossati foi preso acusado de
falsificar notas do Tesouro. Colocado em liberdade graças à intervenção de compatriotas,
ele procurou desesperado a ajuda das autoridades italianas. Vendo o seu pedido negado,
Fossati se atirou da janela do consulado. No seu relatório, o chefe de polícia se queixa que a
imprensa culpou a polícia pela tragédia, acusando-a de perseguir um inocente.46
Em 1899, o negociante austríaco Antônio Bujacich reclamou ao cônsul que sua
casa foi invadida por policiais que o mantiveram preso seis horas até o delegado chegar e
mandar soltá-lo. Os policiais ainda agrediram seu filho e o ameaçaram. O cônsul da
Áustria-Hungria pediu providências enérgicas ao chefe de polícia.47 Ofícios de consulados
estrangeiros reclamando de violências policiais e pedindo providências são comuns nas
correspondências recebidas pelo chefe de polícia. Num ofício de 21 de janeiro de 1897, o
representante da Itália reclamava ao chefe de polícia a prisão infundada de Gasparini
Giovanni na Estação da Luz; no mesmo mês, o cônsul espanhol denunciava as agressões
sofridas por uma família imigrante em São Carlos do Pinhal; em agosto de 1897, o vice-
consul português pedia a punição dos soldados responsáveis por agredir o súdito português
Manoel da Costa, no Bom Retiro.48 Em 1902, o barbeiro Pedro Pattetucci foi preso acusado
pela polícia de ter matado uma prostituta espanhola. A meretriz morava em um cômodo
alugado pelo barbeiro na Ladeira do Carmo, esquina com a Vinte Cinco de Março.
Desesperada, a esposa do barbeiro pediu ajuda ao cônsul e ele foi libertado, sendo mais
tarde inocentado.49 Em 1907, já com a polícia de carreira implantada, a família de outro
italiano pede ajuda ao consulado na esperança de esclarecer a morte de um parente,
encontrado boiando no rio Tietê. Atendendo ao pedido do cônsul, o secretário da segurança
mandou realizar várias diligências; suspeitava-se de latrocínio, mas ninguém foi preso.50
Em 1909, o cônsul da Itália avaliava que a polícia paulista era violenta e agressiva, embora

45
Michael Hall, op.cit., 2004, p.123.
46
O Estado de São Paulo, 10 de julho de 1895; Relatório de 1895, op.cit., p.11.
47
processo crime nº ref. 2528. (APESP)
48
Manuscritos, caixa C2856. (APESP)
49
O Estado de São Paulo, 9 e 27 de maio de 1902, e 17 de maio de 1903.
50
Correio paulistano, 28 de janeiro de 1907.

126
seus chefes fossem pessoas cultas e tranquilas.51 Com isso, fica evidente que a polícia de
carreira não trouxe alívio para a maioria dos imigrantes, nem os fez sentirem-se mais
seguros ou menos ameaçados.
Ainda em 1906, persistindo no propósito de fazer da polícia um órgão bem-
conceituado, Washington Luís criou o Gabinete de Queixas e Objetos Achados para atender
os queixosos e enviar ao secretário todas as denúncias e reclamações contra a polícia, tanto
verbais quanto escritas. Um apanhado das reclamações mostra que das 111 queixas verbais
realizadas durante o ano de 1907, 47 eram contra autoridades da Capital. Os motivos das
queixas eram, em primeiro lugar, as arbitrariedades e violências, seguidas da falta de
providências. No mesmo período, houve 127 queixas escritas, 96 delas contra autoridades
do interior. As queixas diziam respeito igualmente à arbitrariedade, violência e falta de
providências. Entre os jornais, o Gabinete recolheu 2.147 reclamações contra a Secretaria
de Segurança; 1.448 eram voltadas à polícia. As notas criticavam a falta de policiamento
em regiões afastadas, o número de vagabundos e desordeiros pelas ruas, os dementes
abandonados, a gatunagem, a jogatina e a prostituição. O Gabinete, além de ser uma
espécie de ouvidoria, era também depositário dos objetos perdidos encontrados pela
Cidade, fazendo publicar nos jornais uma lista desses objetos, procurando dessa maneira
servir a sociedade.52
Em 1910, Washington Luís realizou uma reestruturação no corpo de Agentes de
Segurança, que passou a ser chamado de Corpo de Inspetores numa tentativa de enterrar a
má fama anterior e imprimir respeito pelos seus membros.53 Medidas como essa visavam
aproximar a polícia da população para assegurar uma maior eficácia no controle público.
Entretanto, a polícia nunca deixou de ser temida entre os moradores mais pobres. Todos
sabiam da existência das "geladeiras", como eram apelidados os cárceres das delegacias do
Cambuci, Liberdade e Vila Mariana, que infundiam terror entre a população. Os detidos
eram levados para os distritos e trancados em cubículos de cimento sem luz, imundos e
estreitos, onde ficavam amontoados, incomunicáveis, às vezes nus, definhando no chão frio

51
Michael Hall, "O movimento operário na Cidade de São Paulo: 1890-1954", op.cit., p.267.
52
Relatório apresentado ao Dr. Jorge Tibiriçá presidente do Estado pelo secretário da justiça e segurança pública Washington Luís P. de
Souza. Anno de 1907. São Paulo; Typographia Brasil de Rothschild & Cia., 1908, pp.124-126.
53
Norberto de Castro, op.cit., p.92.

127
por semanas.54 A polícia justificava as prisões como necessárias para descobrir criminosos
ou afastar "elementos perniciosos do seio de gente honesta".55
Durante a perseguição aos anarquistas, os cárceres ficaram apinhados de pessoas
"suspeitas" recolhidas pelas ruas. A prisão policial, sem processo, por tempo indetermina-
do, agravada pelos maus-tratos, ficou sendo o meio usual de incutir ordem entre a
população. Em 1924, após a rebelião militar que tentou derrubar o presidente Artur
Bernardes, centenas de pessoas foram presas e desterradas para o Acre sem qualquer
formalidade judicial.56 Quando a polícia se dispunha a recolher aqueles que ela entendia
serem uma ameaça à ordem, nem lares, nem vidas, nem a lei eram obstáculos à ação
policial. A repressão não tinha barreiras e parecia crescer à medida que a população se
organizava para protestar.
A violência policial e a arbitrariedade marcaram as décadas iniciais da República.
Um caso demonstrativo do modo como a polícia trabalhava no dia a dia é o do tipógrafo
italiano Alexandro Barelli, empregado de uma litografia na rua Brigadeiro Tobias. Suspeito
de falsificar letras de câmbio no estabelecimento do patrão, Barelli foi preso à noite em sua
casa e levado para o distrito policial. No caminho foi esbofeteado sem saber do que era
acusado. Chegando ao distrito, o delegado o interrogou. Barelli apanhou, foi colocado
despido numa solitária escura e ficou dias sem comer levando banhos gelados. O próprio
delegado lhe deu chutes e socos. No final, Barelli assinou uma confissão, negando-a mais
tarde diante do juiz.57 Em 1907, o Commercio de São Paulo resumia o que muitas pessoas
pensavam da ação policial:

"Quando se trata de gente humilde, sem tradições


nobiliárquicas, sem o prestígio da fortuna, a mais leve suspeita, o mais
insignificante indício são bastantes para que a polícia exerça a sua
missão com um rigor que toca as raias da crueldade. Os infelizes sobre
quem recaem essa suspeita ou esse indício são sequestrados da sua
liberdade, postos incomunicáveis, e, se algum advogado impetrar um
habeas-corpus, a polícia, mentindo como uma criança apanhada em
54
O Estado de São Paulo, 3 de setembro de 1919.
55
Idem, 9 de abril de 1919.
56
Paulo Sérgio Pinheiro, op.cit., 1991, p.90-91.
57
O Estado de São Paulo, 19 de maio de 1903.

128
falta, esconde o preso nalguma delegacia distante, fazendo-o passear de
posto em posto (até ser solto)."58

Cardoso de Almeida e Washington Luís procuraram disciplinar o uso da


violência. "Não prender sem motivo, não prender sem processar" era o lema do secretário
da segurança Washington Luís.59 Gradativamente, os chefes de polícia tomaram medidas
para regrar o uso da violência, diminuindo o nível de tensão. Os conflitos e enfrentamentos
violentos dos primeiros anos foram substituídos por uma hostilidade perene entre aqueles
que policiavam e quem era policiado. O memorialista Jorge Americano lembra das
altercações entre policiais e moradores pelas ruas de São Paulo:

"Há um bate-boca, degenera em briga, a polícia intervêm e


prende um homem. Junta gente, um grito: Não Pode!
Toda gente grita: não pode! Pergunta-se porque, ninguém sabe
porque não pode, todos são contra a polícia.
Se chega reforço em tempo, a prisão é mantida.
Se não chega, intervêm um do povo, falando ao guarda sobre a
arbitrariedade, vem outro guarda: – o senhor também está preso!
– Você sabe com quem está falando? Nós vamos ver isso na
polícia! O guarda tem mulher e filhos, tem medo da ameaça, pede
desculpas, relaxa a prisão, o outro guarda também tem mulher e filhos,
o primeiro preso é solto."60

Discurso e ação policial


Os relatórios oficiais descreviam os conflitos na Cidade como uma batalha
permanente entre o império da lei contra o império da barbárie, dando ênfase à sua missão
civilizadora. Em 1898, o procurador-geral do Estado de São Paulo, "alarmado com o

58
O Commercio de São Paulo, 13 de março de 1907.
59
Relatório apresentado ao Dr. M. J. de Albuquerque Lins, presidente do estado, pelo secretário da justiça e segurança pública
Washington Luís Pereira de Souza – Anno 1908. São Paulo: Typ. Brasil de Rotschild & Cia., 1909, p.62.
60
Jorge Americano, op.cit., p.159.

129
aumento dos crimes", culpa os imigrantes e sua cultura pelas "cenas bárbaras" descritas nos
jornais diários:

"Não posso deixar de acreditar que a grande aglomeração na


cidade de homens, que trazem da sua pátria o costume de andar sempre
armados, concorre grandemente para o aumento do crime de violência
contra a pessoa. (…) O nosso estado, nas cidades de maior movimento,
está infestado de quadrilhas de roubadores e gatunos, que mais audazes
se tornam diariamente, não obstante o enorme trabalho da polícia,
desgraçadamente o mais das vezes infrutífero. De entre os crimes que
continuam a despertar a opinião pública, não posso deixar de assinalar
os crimes contra os bons costumes, avultando infelizmente os
defloramentos brutais e atentados ao pudor de meninas menores, com
especialidade nas cidades mais populosas, devendo sem dúvida estes
resultados serem atribuídos à grande quantidade de homens, despidos
dos mais elementares princípios de educação, que as necessidades
urgentes da vida tem atirado ao nosso estado, em busca de alimento e
sustento de cada dia."61

Não há dúvida que o crescimento populacional aumentou o número de delitos;


contudo, devemos ter cautela ao ler os mapas estatísticos da polícia. É bem provável que as
joalherias e casas de comércio tenham atraído arrombadores profissionais, assim como a
circulação de dinheiro favoreceu a ação dos gatunos pelas ruas centrais da Cidade.62
Gatunagem era o nome genérico dado àqueles que furtavam carteiras ou objetos de valor
sorrateiramente. Havia na Cidade uma família conhecidíssima de gatunos oriundos da
Calábria. Eram os irmãos Paschoal, Felício e Salvador Carlomagno, filhos do "velho
Carlomagno". Todos bandidos, afirmava o delegado Franklin de Toledo Piza. O caçula,
Salvador, chamado de "planta daninha" pelo delegado, com quatorze anos liderava uma
quadrilha de vinte menores no bairro da Consolação. Preso inúmeras vezes, ele foi enviado

61
Relatório citado em Luís Antônio Francisco de Souza, op.cit., p.121.
62
O Estado de São Paulo, 22 de junho e 1 de agosto de 1900; Correio Paulistano, 25 de julho de 1900.

130
para o Instituto Disciplinar em 1903, de onde evadiu-se. Sua carreira prosseguiu até 1913,
quando foi expulso do território nacional do mesmo modo que seus irmãos.63
Muitos dos acusados de
gatunagem eram pessoas que não tinham
emprego ou domicílio certo. Gente como o
espanhol João Perez e o italiano João
Sanghinetti, presos em 1894 por
circularem pelas ruas em "atitude
suspeita".64 Outros, eram como Sebastião
Manoel Ricardo, de 40 anos, que dizia ter
vindo para São Paulo à procura de
emprego. Acusado por um comerciante de
espreitar as casas da rua, ele foi preso
vagando a altas horas da noite em frente
ao Mercado Municipal.65 Na madrugada
do dia 24 de julho de 1900, três jovens
maltrapilhos foram presos enquanto
caminhavam pela várzea do Bom Retiro. Fotos do prontuário de Salvador Carlomagno, preso a primeira vez
oos oito anos de idade. (IIRGD)
Os três foram detidos pela polícia e
levados para a Repartição Central de Polícia, onde foram "reconhecidos" como gatunos.
"Eram dois pretos e um branco", relatou o jornal. Com um deles foi encontrada uma faca. O
jornal relata que os "ladrões" negaram, de pés juntos, a autoria dos assaltos ocorridos na
região, mas sem sucesso.66 No mapa geral das detenções e prisões, coligido em 1903, a
maioria dos presos por gatunagem eram estrangeiros. Ao lado dos seus dados pessoais,
aparece a rubrica "nada tinha", indicando que os detidos não portavam objetos roubados;
exceção do espanhol José Martin, flagrado com 34 anéis, 14 brincos, 15 correntes, 3
relógios, 26 piteiras, 1 broche, 27 espelhos e 47 mil réis.67

63
Relatório do delegado Franklin Toledo Piza datado de 4 de novembro de 1913, anexado no prontuário nº18541. (IIRGD)
64
Processos crime nº ref. 2448 e 2449. (APESP)
65
Processo crime nº ref. 2589. (APESP)
66
O Estado de São Paulo, 24 de julho de 1900.
67
Mapa Geral das Detenções e Prisões de 30 de julho a 31 de agosto de 1903. Caixa C9487. (APESP)

131
Outro delito que chamava a atenção eram os crimes contra a pessoa, resultado de
agressões, rixas, brigas, conflitos familiares e troca de insultos na rua. No Brás, o italiano
Alfredo Taccini e o brasileiro Balthazar de Barros travaram uma luta de facas em plena via
pública por causa de um burro.68 Na Vila Cerqueira César, uma italiana discutiu com o
vizinho, Afonso do Espírito Santo, porque as galinhas dele invadiram seu quintal.
Inconformada com os palavrões que ouviu, a italiana armou-se de um revólver e atirou no
vizinho ferindo-o levemente.69 Em outro caso, o sapateiro Vicente Pelegrini teve uma
discussão na Praça da Sé, se exaltou e anavalhou um compatriota por causa de uma dívida
em dinheiro.70 O chefe de polícia Theodoro Dias de Carvalho atribuía o grande número de
incidentes deste tipo à "carência de educação, própria do meio baixo em que vive essa
gente".71
A despeito do julgamento pessoal do chefe de polícia, a violência se manifestava
por toda parte, independentemente de origem social ou nível de instrução. Em 1906, por
exemplo, o senador Peixoto Gomide (1849-1906) atirou na sua filha para impedir que ela se
casasse com alguém considerado por ele inferior à sua condição social. Em seguida,
suicidou-se com um tiro. Os jornais limitaram-se a divulgar uma extensa lista de pessoas
enlutadas.72 Em 1923, o escritor Moacir Piza matou uma jovem prostituta em plena avenida
Angélica, dentro de um táxi e, em seguida, desfechou um tiro contra o seu peito. Os
jornalistas culparam a prostituta pela tragédia.73 Em 1926, o coronel Afro Marcondes de
Rezende, comandante da Força Pública, matou sua esposa no meio de uma discussão, na
qual ela tentava impedir que ele internasse a filha, apaixonada por um moço pobre, numa
casa de saúde. O relatório médico registra que a vítima recebeu tiros no rosto.74
A antropologia compreende a violência como um meio de expressar poder, um
comportamento socialmente construído que reflete os valores dominantes da sociedade.75
Roberto DaMatta concebe a violência como um mediador de várias dimensões da vida
social, do universo doméstico ao controle das massas trabalhadoras.76 Cabe lembrar que até

68
Relatório de 1895, op.cit., p.298.
69
O Estado de São Paulo, 9 de maio de 1902.
70
Idem, 17 de maio de 1903.
71
Relatório do ano de 1894, op.cit., p.257.
72
Idem, 21 de janeiro de 1906.
73
O Combate, 23 de outubro de 1923.
74
Folha da Manhã, 17 de novembro de 1926; Relatório do inquérito policial datado de 30 de novembro de 1926. (ATJSP)
75
Anton Blok. "The Meaning of Senseless Violence". In: Id. Honour and Violence. Cambridge, UK: Polity, 2001, p.103-114.
76
Roberto DaMatta. "As raízes da violência no Brasil: reflexões de um antropólogo social". In: Maria Célia Paoli et al.. A Violência
Brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982, p.11-44.

132
a década de 1930 era comum pais e professores usarem métodos violentos para "corrigir" as
crianças. O uso de palmatórias e outros castigos físicos em sala de aula eram de uso
corriqueiro em todas as escolas públicas.77 Relatos de brigas e até mortes em bailes ou
partidas de futebol eram frequentemente noticiados nos jornais. A violência era um fato da
vida, aceita e até esperada em certos casos. Um terço dos homicídios envolvia pessoas da
mesma família: situações nas quais o marido mata a esposa alegando infidelidade;
familiares discutem e se agridem, ou membros de uma mesma família, ofendidos por
alguém de fora, vingam-se do ultraje.78
No dia 19 de agosto de 1908, o advogado André de Toledo Lara foi a julgamento
por ter baleado seu sogro após uma discussão. Ele justificou a agressão alegando motivos
íntimos. Enquanto os advogados faziam sua defesa, seu cunhado entrou no tribunal e
desfechou-lhe um tiro na nuca. Toledo Lara morreu ali mesmo, na frente do juiz, das
demais pessoas presentes e da esposa, irmã do assassino, que aos gritos precisou ser contida
e levada para fora do tribunal. O assassino, Riolando de Almeida Prado, foi julgado e
absolvido pelo júri. Vingara seu pai.79
Numa terça-feira de carnaval, num hotel elegante próximo a Galeria Cristal no
centro da Cidade, a professora Albertina Barbosa assassinou o advogado Arthur Malheiro
com um tiro e depois cortou seu pescoço com um punhal. Após o crime, realizado com a
ajuda de um cúmplice, o professor Elisiário Bonilha (colega e depois marido da
professora), ela mandou chamar a polícia e assumiu o homicídio alegando que a vítima
"desgraçara sua vida". A professora contou que o advogado abandonou-a grávida, sem
prestar qualquer auxílio. No julgamento, ocorrido em 1909, a ré foi inocentada pelo júri que
reconheceu o direito dela "lavar sua honra".80 Apesar dos casos alegando "desafronta de
honra", a maioria dos homicídios eram atos explosivos, sem premeditação, como observou
Boris Fausto em Crime e Cotidiano.81 A violência se manifestava no bojo das relações
cotidianas, cujo estopim eram tensões muito mais profundas. As armas eram aquelas que o
agressor tinha em mãos, na maioria das vezes, facas ou navalhas. As cenas mais noticiadas
pela imprensa aconteciam em cortiços, bares e ruas dos bairros populares.

77
Maria Luiza Marcílio. História da Escola em São Paulo e no Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005, p.84, 328, 329.
78
Boris Fausto, op.cit., 1984, p.112-116.
79
Correio Paulistano, 20 de agosto de 1908.
80
O Estado de São Paulo, 24 e 28 de fevereiro de 1909; O Malho, 6 de março de 1909.
81
Boris Fausto, op.cit., 1984, p.119-124..

133
Os dados que temos permitem atestar que São Paulo era uma cidade violenta.
Boris Fausto calculou um coeficiente de 10.7 homicídios por 100.000 habitantes entre 1910
e 1916. Chicago, uma cidade reconhecidamente conflituosa, tinha um coeficiente de 9.3 em
1920.82 A violência entre negros nos guetos de Nova York chegava a 28 por 100.000
habitantes, cifra que, ainda assim, estava longe da Cidade do México, tida como a cidade
mais perigosa do mundo. Em 1897, o México exibia taxas de 100 homicídios por 100.000
habitantes.83 Em comum, todas elas apresentavam um crescimento urbano desordenado,
tensões étnicas, pobreza e um longo histórico de violência interpessoal.
O quadro geral de prisões, relacionado aos anos em que o procurador-geral
denunciava um aumento alarmante dos crimes, ajuda a completarmos o cenário e
compreendermos melhor a atuação policial na Cidade:

MOTIVO DAS
PRISÕES
1893 1895 1899
Averiguação - 908 874
Desordem 1.465 2.312 2.237
Embriaguez 360 722 686
Gatunagem 910 772 1.085
Vadiagem 509 579 503
Caftinagem 27 30 23
Homicídio 21 31 23
Defloramento 3 16 4
(fonte: relatórios dos chefes de polícia relativos aos anos de 1893, 1895 e 1899)

O quadro revela que a maioria das prisões não foi motivada pela ocorrência de
crimes contra a pessoa ou o patrimônio, mas para controlar padrões de comportamento. As
prisões para averiguação, desordem, embriaguez e vadiagem eram formas de enquadrar o
comportamento urbano dentro dos valores estabelecidos pelas classes dominantes. Muitos
dos detidos eram simplesmente "suspeitos" que iam presos para "averiguação", sem terem
praticado nenhum crime. Nesses casos eram presos indivíduos que, segundo o Diário
Popular, "por aí andam e que a gente não sabe o que querem, de onde vieram e para onde
vão".84 Outros eram trabalhadores temporários, gente pobre, que vivia em volta dos

82
Idem, p.95; Jeffrey S. Adler. First in Violence, Deepest in Dirt: Homicide in Chicago, 1875-1920. Cambridge, MA: Harvard University
Press, 2006, p.273.
83
Randolph Roth. American Homicide. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2009, p.401; Robert M. Buffington, op.cit., p.53.
84
Diário Popular, 29 de janeiro de 1892, citado em Boris Fausto, op.cit., 1984, p.13.

134
mercados esperando uma oportunidade de serviço como carregadores ou empilhadores.
Grupos de trabalhadores negros e mulatos, que gostavam de se exibir medindo forças com
um companheiro e provocando uns aos outros enquanto aguardavam serviço, eram alvo das
prisões por desordem.85
Os relatórios policiais registram que 66% dos presos em 1893 eram estrangeiros,
cifra que atinge 68% em 1895.86 Esse número, divulgado pelas autoridades, reforçava o
preconceito contra os estrangeiros e servia para mantê-los numa posição subalterna,
limitada pelo espaço físico, social e simbólico. Apesar do discurso do procurador-geral em
1899, denunciando o "aumento alarmante dos crimes", a Cidade de São Paulo fora sempre
violenta. Em meados do século XIX, a Cidade convivia com crimes tão chocantes quanto
os apontados pelo procurador-geral, embora não passasse de uma vila de pouca expressão
econômica.87 Naquele momento, o aumento dos crimes era atribuído ao caráter dos negros
– "bárbaros e violentos" – e à falta de educação religiosa.88 Estes atributos, antes reservados
aos escravos, agora voltavam-se contra os imigrantes, "homens despidos dos mais
elementares princípios de educação", dizia o procurador. O fato deles não terem ainda um
lugar definido na rede de dependência que caracterizava a sociedade fazia do imigrante
uma ameaça potencial à ordem estabelecida.
O relatório do procurador-geral pode ser compreendido como uma peça
reveladora da intranquilidade que assaltava as elites paulistas diante de uma sociedade mais
diversificada em costumes e ideias. Por outro lado, discursos assim legitimavam a repressão
e a ação policial. O Diário Popular, ecoando o temor das elites paulistas, incentiva a polícia
a prender:

"Não desanime a polícia, seja a polícia forte, e mesmo que seja


violenta às vezes, que importa? – afim de restabelecer os créditos de
São Paulo gravemente comprometidos por celerados sem nome,
prendendo-os, e de assegurar o sossego de todos, detendo os viciosos,

85
Maria Inez Machado Borges Pinto, op.cit., p.145-146.
86
Relatório do ano de 1893, op.cit., p.44; Relatório do ano de 1895, op.cit., p.463.
87
Alzira Lobo de Arruda Campos, "População e sociedade em São Paulo no século XIX". In: Paula Porta (org.), op.cit., vol.2, p.15-55;
Maria Cristina Cortez Wissenbach, op.cit., p.44-51.
88
Relatório da Repartição da Polícia da Província de São Paulo, 1871. S.Paulo: Typographia Americana, 1872, p.7; Lilia Moritz
Schwarcz. Retratos em Branco e Negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987; Célia Marinho Azevedo. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites no século XIX. São Paulo: Paz e
Terra, 1987.

135
desocupados e mendigos, cogumelos nacionais e importados que vivem
à sombra do trabalho alheio."89

Para "assegurar o sossego de todos", um dos expedientes mais utilizados pela


polícia nos primeiros anos da República foram as prisões em massa. Os alvos preferenciais
eram os mendigos e os desempregados. Em 1895, o chefe de polícia Pereira Bueno culpava
os vadios e mendigos por comprometerem o "aspecto e o sossego da Cidade", chamando-os
de "flagelo" e "fonte de crimes de toda espécie".90 Boa parte dessas prisões eram
notificadas como sendo para averiguação. Boris Fausto mostra detalhadamente o grande
número de prisões deste tipo ocorridas em São Paulo entre 1892 e 1916. Em 1893, são
presas 3.466 pessoas, registrando-se a abertura de apenas 329 inquéritos; em 1905, os
presos são 11.036 e os processos 794; aproximadamente 80% das prisões eram para
averiguação ou por contravenção, como embriaguez ou desordem, ocorrências que em sua
grande maioria não davam origem à abertura de um inquérito policial. 91
Em 1904, o chefe de polícia ordenou a prisão em massa das pessoas pobres que
circulavam pelo perímetro central da Capital. Foram presas 12.839 pessoas, dentre elas
2.044 mulheres e 1.784 menores. Deste total, mais da metade, 7.137, era composta de
estrangeiros. A maior parcela dos presos foi detida no Centro, pelo 1º distrito policial:
3.149 pessoas; em seguida estava o distrito de Santa Ifigênia com 2.729; da Luz com 2.457
e o da Liberdade com 2.333 presos. Os jornais deixaram registrada a preocupação das
autoridades em livrar o centro da Cidade, onde ficavam os prédios públicos e o grande
comércio, de uma população vista como perigosa e indesejável.92
Essas prisões eram úteis também para a polícia conhecer a marginalidade. As
detenções em massa, possíveis graças ao instituto da prisão para averiguação, permitiram à
polícia identificar ladrões, gatunos e vigaristas, formando uma vasta rede de informantes no
tecido social. Como a maioria dos detidos negociava sua soltura em troca de informações,
estabelecia-se entre a polícia e os delinquentes uma relação de conveniência e troca de
favores. Sobre a utilidade dos informantes, um delegado escreveu:

89
Diário Popular, 29 de janeiro de 1892, citado em Boris Fausto, op.cit., 1984, p.13.
90
Relatório apresentado ao secretário dos negócios da justiça do Estado de São Paulo pelo chefe de polícia Bento Pereira Bueno em 31 de
janeiro de 1896. São Paulo: Typ. Espindola, Siqueira & Comp., 1896, p.3-4 e 173-174.
91
Boris Fausto, op.cit., 1984, p.31.
92
Correio Paulistano, 2 de fevereiro de 1904.

136
“São úteis, os alcaguetes, na prevenção criminal, quando suas
informações permitem que sejam evitados crimes (…), também e
principalmente, quando facilitam e possibilitam o conhecimento de
novos ou desconhecidos criminosos, porque não se pode esperar,
indefinidamente, que só por flagrantes se revelem delinquentes ainda
não conhecidos, os quais surgem todos os dias, e aqueles outros que
vêm de outros lugares e países, para atuar em nosso meio.93

Num livro intitulado Memórias de um Rato de Hotel, escrito por João do Rio
(1881-1921) em 1912, encontramos a visão do ladrão. Ele, ao ser preso pela primeira vez,
suspeito de roubo, diz:

“Era a minha cara dada para todos os agentes, era cada dia a
certeza de que aqueles sujeitos não me deixariam mais, era claramente o
decreto que não poderia mais operar sutilmente, e só; mas que teria de
dar bola a todos os molossos, que me olhavam com aquele olhar de
secretas”.94

O linguajar dos marginais foi compilado para facilitar o contato e a troca de


informações. O subdelegado Lincoln de Albuquerque, em seu livro A Vida dos Ladrões
(1920), revela aspectos interessantes dessa gíria, composta de estrangeirismos usados pelos
marginais argentinos, italianos, espanhóis, franceses e portugueses.95 Alcaguete (delator),
achacador (vigarista) e chorro (ladrão) eram expressões encontradas também na Argentina
e Uruguai. Vento (dinheiro) era uma expressão usada aqui e em Portugal. Conta-se que ela
apareceu da boca dos punguistas (batedores de carteira), que referiam-se aos melhores
pontos para fazerem o seu serviço como sendo aqueles onde “batia vento”. Foi também
nesse momento que o inspetor de polícia passou a ser chamado de “tira”, que significa
aquele que tem tirocínio, que sabe “tirar”, sabe deduzir rápido. Para o subdelegado

93
Coriolano Nogueira Cobra. Manual de Investigação Policial. São Paulo: Saraiva, 1987 (1956), p.50.
94
Dr. Antônio. Memórias de um Rato de Hotel. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2000, p.73.
95
Lincoin de Albuquerque. A Vida dos Ladrões. São Paulo: Diário Español, 1920, p.7-32.

137
Pamphilo Marmo, o bom agente policial era aquele que sabia "tirar a pinta", ou seja,
reconhecia um ladrão com um simples "golpe de vista".96
Com a ajuda de inúmeras proibições, posturas e regulamentos, a polícia agia para
impedir que parte da mão de obra inaproveitada conseguisse sobreviver afastada do
mercado de trabalho, desenvolvendo outra cultura que não aquela voltada para o trabalho e
a disciplina. Ao mesmo tempo, ela mantinha as ruas livres e limpas para a circulação de
bens e pessoas de melhor condição social transitarem sem medo de sobressaltos. Como
testemunhou um delegado que atuou na virada do século: “A polícia pensa em função de
prender. A ordem, para ela, é uma consequência das prisões, ou melhor, da severidade
policial.”97

A Repartição Central de Polícia


Em 1918, um ano após a greve que parou São Paulo, a polícia da Capital foi
reorganizada em oito distritos na tentativa de acompanhar o crescimento urbano. Na Zona
Leste, os bairros industriais da Mooca, Brás e Belenzinho formavam um mundo à parte do
centro comercial da Cidade, um mundo regido pelo apito das fábricas, que se estendia pelas
várzeas do Pari, Ipiranga e Barra Funda; todas regiões baixas, atravessadas por ferrovias e
descampados. Suas ruas eram enlameadas e as construções, simples.98 As delegacias
ficaram distribuídas pelo Centro, Luz, Santa Ifigênia, Consolação, Liberdade, Cambuci,
Mooca e Brás. Portanto, a polícia deslocava-se dos bairros centrais para avançar sobre o
território dos operários.99
As delegacias distritais respondiam ao 1º delegado auxiliar que controlava a
Cidade da sua sala na Repartição Central de Polícia, também conhecida como Polícia
Central. Criada logo após a proclamação da República, ela foi descrita por um chefe de
polícia como a "artéria principal da segurança pública". 100 O prédio da Repartição Central
ficava no Largo do Palácio, ao lado da sede do governo, junto dos prédios das Secretarias
do Tesouro e da Justiça, portanto, no centro do poder. Construída pelo engenheiro Ramos

96
Pamphilo Marmo, op.cit., p.7-13.
97
Cândido Motta Filho. Dias Lidos e Vividos. Rio de Janeiro: José Olimpio,1977, p.6.
98
Raquel Rolnik, "São Paulo, início da industrialização: o espaço e a política". In: Lúcio Kowarick (Org.). As Lutas Sociais e a Cidade.
São Paulo: Paz e Terra, 1994, p.95-110; Cândido Malta Campos, op.cit., p.91.
99
Norberto de Castro, op.cit., p.65-69.
100
Relatório apresentado ao senhor Manoel Pessoa de Siqueira Campos, M.D. Secretário da Justiça deste Estado, pelo chefe de polícia
Theodoro Dias de Carvalho Júnior, 1893. São Paulo: Typ. Espindola & Comp., 1894, p.55.

138
de Azevedo (1851-1928) em 1896, a polícia tinha ganho finalmente um prédio próprio,
obra do mesmo arquiteto encarregado de erguer o Teatro Municipal e as Escolas Modelo da
Capital.101 Um viajante francês declarou que a visão do Largo do Palácio transmitia uma
imagem de "severidade, elegância e robustez", acrescentando que o bom gosto das
construções era digno de qualquer cidade da Europa.102 Antes da sua construção, a polícia

Vista parcial do Largo do Palácio, atual Pátio do Colégio, vendo-se ao fundo


a Repartição Central de Polícia. (Álbum Lembrança de São Paulo. Fundação
Patrimônio Histórico da Energia de São Paulo, Gaensly & Lidermann)

esteve alojada em imóveis alugados em péssimo estado, localizados em ruas sem


calçamento, pois não havia dinheiro para alugar casarões nas vias centrais da Cidade. Em
1896, a polícia estava instalada num prédio imponente, a poucos passos do palácio do
governador. Nada podia ser tão dignificante quanto ter um prédio ao lado de onde
despachava o governador e seus secretários.
A Repartição Central abrigava órgãos importantes da polícia.103 No prédio
ficavam alojados o secretário da segurança, o chefe de polícia, o 1º delegado auxiliar e seu
diretor administrativo. No andar de baixo ficavam o plantão e a Assistência Policial.

101
Cândido Malta Campos, op.cit., p.62-63 e 88-89.
102
citado em Maria Stella Bresciani, "Imagens de São Paulo: Estética e Cidadania". In: Antonio Celso Ferreira (Org). Encontros com a
História: Percursos históricos e historiográficos de São Paulo. São Paulo: Unesp, 1999, p.32.
103
Almanach do Estado de São Paulo para 1891. São Paulo: Editora Companhia Industrial de São Paulo, 1891, p.131. O Almanach de
1896 mostra como, num curto espaço de tempo, a Repartição foi reestruturada e ganhou novas atribuições.

139
Estacionados na Assistência Policial, médicos contratados pelo chefe de polícia atendiam
casos graves levados ao conhecimento da autoridade. Cabia a eles prestar atendimento de
emergência aos acidentados e doentes, além de encaminhar os necessitados para asilos,
hospitais ou casas de caridade.104 Em 1892, foi organizado o primeiro plantão policial e a
Repartição Central deixou de fechar nos feriados e finais de semana.105 Ela era a única
delegacia a funcionar 24 horas, com uma escala de plantão, enquanto as demais fechavam
ao anoitecer. A Repartição Central era responsável também pela fiscalização de veículos,
fazer as posturas municipais serem obedecidas, recolher animais pelas ruas, assim como
abrigar loucos e dementes. Este último serviço causou uma troca de cartas entre o chefe de
polícia e o Dr. Franco da Rocha (1864-1933), responsável pelo Asilo do Juquerí. Numa
correspondência de 1901, o médico reclamava para o chefe de polícia que não lhe
remetesse mais nenhum louco, pois não tinha mais espaço para eles. O chefe de polícia
notificou o secretário do interior que desde que se divulgou que a polícia se incumbiria de
cuidar dos loucos, "particulares começaram a abandoná-los pelas ruas".106
Os chamados "divertimentos públicos", como teatros, bailes, esportes e outras
atividades também eram regulados pela Repartição Central. Cabia à polícia conceder
alvarás de funcionamento para os clubes dançantes, agremiações, associações, além da
fiscalização e censura das peças teatrais. Os clubes precisavam submeter seus estatutos à
Repartição Central, conjuntamente com o nome dos sócios. O alvará só era deferido depois
que a polícia investigava os propósitos do clube e os antecedentes dos seus sócios. Todos
os anos, os membros do Congresso dos Fenianos enviavam ofícios pedindo autorização
para realizar os festejos carnavalescos, assim como a Societá Populare Emiliana solicitava
licença para promover seus bailes.107 A posição da Repartição Central de Polícia na
regulação do espaço urbano e das atividades públicas refletia o modo como o Estado foi
alargando o seu controle sobre a Cidade.

104
José Libero. "O Exercício da Medicina Legal em São Paulo". In: APCSP, vol.V, 1ºsemestre, 1943, p.67.
105
Relatório do ano 1893, op.cit., p.79.
106
Marco Antônio Cabral dos Santos, op.cit., p.52-53.
107
Os pedidos dos Fenianos datam de 1896 a 1898, da Societá é de 13 de agosto de 1897. Estão juntos de outros pedidos na caixa
C2856. Sobre propostas de estatutos, ver C3257; ver também Livro de Expedição de licenças do Chefe de Polícia-1905, E1622.
(APESP)

140
O plantão policial
Em 1906, iniciaram-se planos para a modernização da Repartição Central. Em
1910, Washington Luís inaugurou um sistema de aviso telegráfico e telefônico importado
de Nova York. O sistema Gamewell Fire Alarm Telegraph permitia aos policiais nas ruas
comunicarem-se imediatamente com a Central de Polícia, por meio de caixas de ferro
instaladas nos postes da Cidade com chaves para vários tipos de emergência. No caso de
um desastre, por exemplo, o policial acionava uma chave que dispararia um alarme na
Central acendendo uma luz verde. Os plantonistas saberiam que se tratava de um desastre e
enviariam uma ambulância para o local. Num homicídio ou incêndio,
acendiam-se luzes de outra cor. As caixas de alarme foram instaladas na
Vila Mariana, Ipiranga, Vila Prudente, Penha, Santana, Freguesia do Ó,
Lapa, Pinheiros e Matadouro. Para dar uma estrutura de apoio a esse
serviço, o secretário de segurança comprou mais três ambulâncias e
cinco outros carros, contratou mais médicos e construiu uma garagem
para abrigar a frota policial. A instalação do sistema Gamewell acontecia
no mesmo momento em que a Cidade inaugurava seu grande teatro e as
ruas centrais recebiam uma iluminação elétrica moderna.108
Caixa de alarme Gamewell
Em 1923, o delegado Amando Caiuby publicou o livro Noites de Plantão,
relatando experiências vividas no plantão na Repartição Central de Polícia, misturando
casos que ficaram célebres no noticiário com episódios vividos por ele. O livro começa
com o delegado levando um amigo para acompanhar seu plantão. Ao chegar ele diz: "É
aqui que se resolvem as encrencas da Cidade. Quem aguenta essa joça, das cinco da tarde
até amanhã às onze, sou eu."109 Logo que eles entram, o convidado pergunta sobre o som
estridente das campainhas. O delegado responde que é um sinal para a Assistência; socorro
a um doente em casa ou um acidente na rua. Em seguida, um ordenança ingressa na sala do
delegado trazendo um torcedor envolvido numa briga de futebol. Interrompendo o
delegado, surge um imigrante implorando ajuda. Diz que mora ali perto, na rua do Carmo,
tem uma prole enorme para cuidar, sogra, sogro, e para ajudar nas despesas sublocou um
quartinho, mas o inquilino é uma pessoa violenta que já ameaçou os seus filhos com uma
108
Relatório apresentado ao Dr.M.J. de Albuquerque Lins presidente do Estado pelo secretário da justiça e segurança pública Washington
Luís P. de Souza. Anno de 1911. São Paulo: Typographia Brasil de Rothschild & Cia., 1911, p.157-162; Palmira Petratti-Teixeira,
"Empreendedores na Cidade de São Paulo: dos primórdios aos grandes empresários". In: Paula Porta (org.), op.cit., vol.1, p.305.
109
Amando Caiuby. Noites de Plantão. São Paulo: 1923, p.11.

141
faca. Por caridade, pede ao delegado que tire o inquilino da sua moradia. O delegado manda
um inspetor intimar o inquilino. Mal ele termina de atendê-lo, aparece um tuberculoso
cuspindo sangue no assoalho. Inconformado, o delegado reclama para o médico: "Esse
sujeito entendeu de morrer aqui!".110

Viaturas do plantão policial expostas ao público na frente da Secretaria


da Agricultura, no Largo do Palácio, 1911. (Álbum de fotos da polícia-
APESP)

Assim, no decorrer do livro, Amando Caiuby descreve um outro lado da Cidade,


revelado nos plantões policiais, onde os personagens eram imigrantes necessitados,
prostitutas exploradas, egressos do hospício e trabalhadores sem recursos. Relatando uma
das jornadas de trabalho, o personagem do delegado cita uma moça que bebera veneno por
desilusão amorosa; um "pau d'água" esmagado por um automóvel; um incêndio numa
fábrica de graxa; um guarda noturno baleado ao ser confundido com um ladrão; uma
criança acidentalmente afogada num balde de água fervida, e "uma infinidade de coisas
estafantes".111 Tudo entrecortado pelas campainhas do sistema Gamewell. O tempo todo
carros de polícia saem e ambulâncias chegam. Um casal, que se beijava na rua e insultou o

110
Idem, p.14.
111
Idem, p.148.

142
soldado que os advertiu, é preso e leva um pito do delegado: "Deixem de escândalo! A
polícia é coisa séria! O soldado cumpre ordens, não pode ser maltratado de mondrongo. Há
xadrez para isso." Liberando o casal, após a bronca, o delegado ainda adverte:
"Desenrosque-se, moça!"112
Num outro dia, o delegado atendeu a um italiano de cabelos brancos, "cara de
desânimo, gordo e amarrotado", que explica ter uma mãe caduca de 80 anos que provoca
seus vizinhos de cortiço, atirando objetos e xingando o mulherio. Há três anos ele luta para
pôr a mãe num Asilo de Inválidos ou na Santa Casa, mas como não tinha "proteção, não era
político, não conseguia nada". O delegado, condoído com as lágrimas do italiano, prometeu
arranjar uma internação.113 Em outro capítulo, a ambulância da Assistência vai até um
botequim recolher um bêbado prostrado. O dono do bar diz que o rapaz era de "boa
família" e dá o endereço dele. A ambulância vai até o palacete, pede licença e coloca o
rapaz na cama. Aparece então a dona da casa afirmando que aquele não era seu filho. O
médico, desconcertado, leva-o então para o xadrez.114 Pelo que se deduz, os alcoolizados de
"boa família" eram conduzidos para suas casas e os de baixa condição social dormiam na
cadeia.
No capítulo final do livro, a Cidade é vítima de um forte aguaceiro. A Repartição
de Polícia ficou encharcada, auxiliares e escrivães se acomodam nos andares superiores, a
delegacia de trânsito teve que desocupar o prédio e os médicos subiram para a sala do
delegado. Os bairros populares, localizados próximos à várzea dos rios, foram inundados. A
cheia atingiu vários bairros. Atendendo uma ocorrência provocada pelas chuvas, o delegado
narra:

"Enchente, miséria, fome, doença e morte. Já no fim, quando


os céus tiveram piedade dessas pobres famílias desabrigadas e as águas
baixaram, doeu-me uma cena. Fui ver uma criança afogada que dera as
costas no Bom Retiro. Teria quatro anos quando muito. Caíra da cama e
sumira nas águas. Ao examinar o corpinho tumefacto, a ordenança
chamou-me a atenção para o outro lado da rua: um enterro saía de certa

112
Idem, p.80-81.
113
Idem, p.105.
114
Idem, p.187-189.

143
porta. Homens imersos até as coxas, puxavam, na cabeça, o caixão
negro. E o caixão saiu da casa e lá veio carregado sobre as cabeças, até
o começo da rua. Informaram-me então que era daquele italiano
gigantesco, apoplético e caritativo, que fora o amparo de centenas de
infelizes e que morrera de tifo, desamparado num alto girão da pobre
residência…" 115

A São Paulo descrita em Noites de Plantão não era mais aquela dos primeiros
anos da República, mas ainda era tensa, desigual e permeada de conflitos. A Cidade vivia
uma realidade segregante: as classes populares, "deseducadas e turbulentas", ficavam
empilhadas em cortiços ou nos terrenos baixos, mais baratos e sem nenhuma infraestrutura;
as classes privilegiadas, de boa educação e hábitos considerados corretos, moravam nos
bairros altos, higienicamente mais favoráveis, com acesso a iluminação pública, transporte
e rede de esgotos.116 A Cidade de São Paulo foi, como apreende o sociólogo José de Souza
Martins, edificada sobre uma política de classes que gerou "uma ordem espacial
segmentadora, apoiada em confinamentos invisíveis e ideológicos".117
Vigiando esses espaços estavam os distritos policiais, cuja rotina não era diferente
daquela narrada em Noites de Plantão, pois grande parte do seu trabalho era o de atender ao
público. Livres de investigar os crimes de autoria desconhecida, como roubos e homicídios,
que eram encaminhados ao Gabinete de Investigações, as delegacias deveriam manter um
registro rigoroso do que ocorria na sua área, concentrando-se no atendimento à população
do bairro. As queixas chegavam através de reclamações feitas pelos moradores em busca de
solução para os seus problemas. As agressões, rixas com vizinhos, furtos e ameaças
encabeçavam a lista de queixas. Havia também reclamações contra a perturbação da ordem
e a presença incomoda de "vagabundos". Os relatórios dos chefes de polícia mostram que
nas delegacias distritais predominavam os casos de agressões, seguidos pelos acidentes de
trabalho, desastres, defloramentos e furtos:

115
Idem, p.184.
116
Raquel Rolnik. "São Paulo, início da industrialização: o espaço e a política". In: Lúcio Kowaric (Org.), op.cit., p.95-107.
117
José de Souza Martins. "O migrante brasileiro na São Paulo estrangeira". In: Paula Porta (Org.), op.cit., vol.3, p.186.

144
Relatório do ano de 1920
Delegacias Centro Luz S.Ifigênia Consolação Liberdade Cambuci Mooca Brás
Total de 331 316 107 219 389 132 338 232
Inquéritos
Furto 48 12 7 9 - 10 14 3
Desastres 52 32 - - 50 20 19 47
Homicídio 6 - 9 - - 2 8 2
Defloramento 16 42 8 19 - 29 22 33
Agressão 47 29 60 47 - 41 78 57
Acidentes de 140 126 142 65 41 76 147 167
trabalho
Prisões 1.335 1.242 736 1.326 459 1.423 1.143 1.274
(fonte: Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Washington Luis Pereira de Souza presidente do estado pelo secretário da justiça e da
segurança pública Francisco Cardoso Ribeiro. Anno de 1920. S. Paulo: Casa Garraux, 1921, p.101-106.)

Relatório do ano de 1929


Delegacias Centro Luz S.Ifigênia Consolação Liberdade Cambuci Mooca Brás
Total de 568 730 571 395 403 518 388 581
Inquéritos
Furto 18 2 9 7 10 9 4 12
Desastres 84 94 53 43 43 63 44 74
Homicídio 10 8 7 5 5 2 5 7
Defloramento 11 59 27 17 43 22 12 -
Agressão 159 198 148 107 97 119 135 164
Acidentes de 234 266 276 159 114 255 153 292
trabalho
Prisões 501 490 358 375 387 563 233 993
(fonte: Relatório apresentado ao excelentíssimo senhor Dr. Julio Prestes de Albuquerque presidente do estado pelo secretário da
segurança pública Mario Bastos Cruz. Anno de 1929. São Paulo: Typographia do Gabinete de Investigações, 1930, p.85-104.)

Os desastres ocorriam, logicamente, nas áreas de maior movimento de veículos,


bondes e carroças. Os furtos, como podemos notar, eram mais noticiados nas áreas
dedicadas ao comércio, enquanto os homicídios não têm uma explicação que justifique seus
números, exceto a densidade populacional. Eles aparecem distribuídos quase que

145
igualitariamente pela Cidade. As agressões, por outro lado, eram mais frequentes onde
havia concentração de pessoas, o que oferecia oportunidades de desentendimento. As
prisões eram mais numerosas nos locais mais populosos, especialmente nas áreas onde
havia uma concentração de mendigos e desempregados. Os defloramentos eram registrados
predominantemente nas áreas residenciais.

Policiais fardados aguardando a presença do delegado


em um cortiço no Bom Retiro. Fevereiro de 1917.
(Correio Paulistano)

Os juristas não faziam uma distinção clara entre defloramento, sedução e


desvirginamento. Sueann Caulfield, que estudou os processos de defloramento ocorridos no
Rio de Janeiro entre 1918 e 1940, nos ajuda a entender esses casos. Segundo ela, "moças da
classe trabalhadora, ou mais frequentemente seus pais ou responsáveis, recorriam à polícia
e à justiça para que intermediassem os conflitos que envolviam a perda da virgindade,
geralmente com a esperança de que as autoridades forçassem os defloradores a se casar".
Quase todas as moças afirmavam que os defloradores haviam feito promessas de
casamento.118 Os casos de defloramento registrados no relatório mais detalhado que temos,
datado de 1895, confirma o quadro levantado por Caulfield. A autoridade policial

118
Sueann Caulfield. Em Defesa da Honra: Moralidade, Modernidade e Nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Unicamp,
2000; ver também: Marcos Luiz Bretas, op.cit., p.176-189.

146
formalizava os depoimentos e encaminhava o casal para o juiz de paz celebrar o casamento.
Com isso os casos aparecem como solucionados.119
Outra queixa muito comum eram os acidentes de trabalho. O trabalhador, ao
registrar sua queixa, buscava uma assistência, uma indenização ou compensação pela
inatividade, mas as chances eram pequenas. O professor Antônio de Almeida Júnior (1892-
1971) revela que para se obter uma indenização o trabalhador "precisava provar que
houvera dolo ou culpa do patrão". Prova difícil e cara, pois "quase sempre o dano provinha,
não do dolo nem da culpa do patrão, mas de caso fortuito ou de culpa do operário."120 A
maioria dos inquéritos, como podemos aferir, são queixas de esfera privada, vindos de
pessoas que exigiam algum tipo de reparação. Assim sendo, as delegacias assumiam o
papel de primeira instância judiciária, intimando, mandando prender, arbitrando disputas,
efetivando as leis e as normas sociais. As delegacias tinham por isso um papel relevante na
manutenção da ordem e daquilo que, aos olhos do sociólogo inglês Anthony Giddens, é um
importante meio de manter as estruturas da sociedade: a rotina. Para Giddens, a rotina
constitui um elemento básico da atividade social e até mesmo vital para os mecanismos
psicológicos estruturarem um senso de segurança e confiança que é projetado para o
futuro.121 Portanto, as delegacias tinham um papel fundamental na mediação de conflitos
em uma sociedade tão complexa e desenraizada.

A Cidade em transformação
Entre 1900 e 1925, o número de habitantes da Cidade triplicou, saltando de 240
mil para 750 mil. Em 1920, em pleno boom financeiro, a Cidade viveu um momento
especial como pólo de atração de investimentos. Empresas estrangeiras como a fábrica de
cimento Portland, a Ford, a General Motors e a indústria química Rhodia instalaram linhas
de produção nos arredores da Cidade.122 Dentro desse quadro, a Cidade de São Paulo era
subproduto de um processo gigantesco, estabelecido pela expansão da economia de
mercado. Para o historiador Nicolau Sevcenko, São Paulo "não era uma cidade de negros
nem de brancos e nem de mestiços; nem de estrangeiros e nem de brasileiros; nem

119
Relatório de 1895, op.cit., p.228, 234, 235, 242 e 333.
120
A.Almeida Júnior. Lições de Medicina Legal. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1948, p.217.
121
Anthony Giddens. A Constituição da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.69-85.
122
Pierre Monbeig. "O Crescimento da Cidade de São Paulo". In: Tamás Szmrecsányl, História Econômica da Cidade de São Paulo. São
Paulo: Globo, 2004, p.73.

147
americana, nem européia, nem nativa"; ela era algo novo. A metrópole emergente era um
fenômeno surpreendente para todos.123
Marcada pelo desenraizamento de seus habitantes, a Cidade de São Paulo havia se
tornado um cenário vivo de conflitos por sustento, identidade, inclusão social e espaço
político. Nesse cenário, as elites dominantes se esforçavam para impor seus valores e seu
ideal de vida, tentando eliminar as diferentes culturas existentes e erradicar os hábitos
populares vistos como atrasados ou perigosos.124 A polícia foi um instrumento poderoso
nesse processo, impondo padrões de comportamento e sociabilidade, ao mesmo tempo em
que procurava mediar os conflitos. Em 1917, o jornal Estado de São Paulo publicou uma
das muitas cartas reclamando mais policiamento:

"O serviço de policiamento da rua Rodrigues dos Santos é


péssimo. Pode-se mesmo dizer que durante o dia todo aquela via
pública fica completamente ao abandono. Prevalecendo-se disso,
confiantes em que a polícia não os pode incomodar, um sem número de
garotos vão todos os dias por ali, e ali ficam horas inteiras a praticar
todas as diabruras que bem entendem. (…) O pior é quando os
moleques dão para jogar football. Então – dizem os moradores daquela
rua – os que passam por ali e tem a felicidade de não ser atingido por
nenhuma bola perdida propositalmente, não escapam de ouvir
palavrões, e dos mais pesados."125

Para boa parte da população, o comportamento impróprio dos moleques da rua era
problema de polícia, pois era função sua resguardar o sossego dos cidadãos. Demandas
desse tipo enchiam as delegacias, que recebiam milhares de pedidos de providências dos
moradores da Cidade. No ano de 1921 foram 4.852 queixas, número que subiu para 7.441
em 1929.126 A população de São Paulo havia incorporado o policiamento urbano como uma

123
Nicolau Sevcenko. Orfeu Extático na Metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p.31.
124
Margareth Rago. "A invenção do cotidiano na metrópole: sociabilidade e lazer em São Paulo, 1900-1950". In: Paula Porta (Org.),
op.cit., vol.3, p.387-435.
125
O Estado de São Paulo, 4 de setembro de 1917.
126
Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Washington Luis Pereira de Souza Presidente do Estado pelo Secretário da Justiça e
Segurança Pública Francisco Cardoso Ribeiro. Anno 1921. São Paulo: Typ. Casa Garraux, 1922, p.101-108; Relatório do ano de 1929,
op.cit., p.85-104.

148
necessidade, simbolizando uma certa segurança em um mundo povoado por medos,
fantasias e sentimento de vulnerabilidade em relação à multidão anônima que coabitava a
Cidade.
O medo dos habitantes da Cidade era reforçado pelos jornais que noticiavam
crimes diariamente, pedindo sempre mais policiamento. Nos anos vinte os jornais passaram
a dar destaque para os traficantes de entorpecentes, notadamente os estrangeiros.127 O
Diário da Noite publicou em 1926 uma série de reportagens denunciando o "veneno
branco" que inundava a Capital paulista. Dois paraguaios presos com 23 frascos de cocaína,
10 de ópio e 35 doses de pantopon (um derivado da morfina) tiveram sua foto estampada
sobre um texto que misturava horror e devassidão, lembrando o caso do estudante Horácio
Martins, que morreu depois de consumir uma dose elevada de cocaína num quarto sórdido
em companhia de uma prostituta.128
Em 1920, era possível para qualquer pessoa adquirir uma pequena quantidade de
cocaína, haxixe, morfina e seus derivados em qualquer grande centro urbano. O historiador
David T. Courtwright chamou de "revolução psicoativa" esse salto na capacidade das
pessoas consumirem substâncias de efeito estimulante cada vez mais potentes e originárias
de lugares remotos. Este fenômeno foi impulsionado pelo consumo de cocaína em bordéis,
bares e salões elegantes. Refinada em 1860 para fins terapêuticos e anestésico a partir de
folhas de coca cultivadas no Peru, o uso e abuso de cocaína se alastrou rapidamente.
Sintetizada em laboratórios na Holanda e na Alemanha, a cocaína tornou-se um ingrediente
básico de vários tônicos, remédios e bebidas populares, como qualquer outra commodity
num mundo cada vez mais interconectado, no qual transitavam hábitos, prazeres e
sensações novas.129
O consumo de drogas estimulantes encontrou grande freguesia nos centros
urbanos. Em 1896, calculava-se que havia 16 milhões fumantes de ópio na China e 25 mil
só em Nova York. No centro de Manhattan podia-se encontrar casas de ópio exclusivas
para a clientela branca, onde era proibida a entrada de chineses. Apesar disso, a
criminalização do uso e venda de entorpecentes teve um impacto mínimo no consumo.

127
Guido Fonseca. O Submundo dos Tóxicos em São Paulo. São Paulo: Resenha Tributaria, 1994, p.100-103.
128
Diário da Noite, 15 e 18 de julho, "Morfina – romance de horror e paixão", e 7 de agosto de 1926; Correio Paulistano, 19 de
dezembro de 1923. Ler também "Vítimas dos vícios elegantes – Alguns casos escandalosos", Jornal do Commercio, 30 de setembro
de 1921.
129
David T. Courtwright. Forces of Habit: Drugs and the Making of the Modern World. Cambridge, MA: Harvard University Press,
2000, p.46-52.

149
Segundo os jornais de Nova York, o consumo de heroína aumentou com a proibição do
ópio, em parte porque ela era acessível e fácil de transportar, mas havia também o gosto por
sensações novas.130 Em São Paulo, o delegado Juvenal Piza do Gabinete de Investigações
relatava que os tóxicos entravam na Capital pelas mais diversas vias:

"Primeiro pelos portos de Santos e Rio de Janeiro, trazidos a


bordo de navios estrangeiros e negociados por estivadores dessas
cidades marítimas; em segundo pelo Rio Grande do Sul, pela estrada
São Paulo - Rio Grande (…) Pela República do Paraguai também
penetra o tóxico que é vendido em Mato Grosso e zona Nordeste do
Brasil (…) droguistas e viciados tem mandado vir da Europa pequenas
quantidades de tóxicos e até dentro de jornais chineses tem entrado ópio
no Brasil."131

Ao lado das manchetes sobre o "mais repugnantes dos delitos" (o tráfico de


drogas), narravam-se crimes horripilantes praticados por pedófilos, atentados anarquistas e
assaltos praticados por delinquentes que buscavam refúgio em São Paulo.132 Afluíam para
cá, escreveu o jornalista Sylvio Floreal (1862-1929), tipos que foram escroques em Paris,
batedores de carteira em Monte Carlo, contrabandistas no Havre, falsários em Londres e
Nova York, cáftens na Rússia, Polônia e adjacências.133 O medo construído socialmente
através dos jornais e dos discursos oficiais afetava a todos, definindo uma política de
segurança basicamente repressiva. A polícia respondeu às ameaças reais e imaginadas, de
um lado mantendo seu amplo poder de arbítrio, praticando prisões sem consulta judicial e,
de outro, especializando-se cada vez mais. Especialização parecia ser a resposta para a
complexidade da vida moderna.

130
Timothy J. Gilfoyle. A Pickpocket's Tale: The Underworld of Nineteenth-Century New York. New York: W.W. Norton, 2006,
p.153-156.
131
Folha da Manhã, 10 de janeiro de 1928.
132
A Gazeta, "Os Crimes de um Monstro", 5 de janeiro de 1927; Diário da Noite, "Outra Besta-Fera", 19 de janeiro de 1927; Correio
Paulistano, "Explosão de uma Máquina Infernal: o anarquismo em São Paulo", 19 de outubro de 1919; O Estado de São Paulo,
"Bomba Infernal", 20 de outubro de 1919; Diário da Noite, "São numerosos os punguistas e vigaristas que a polícia tem prendido, mas
são mais numerosos os que andam a solta", 10 de agosto de 1926; Cantinho Filho. Gabinete de Investigações (esboço histórico).
São Paulo: Typ. Garraux, 1927, p.13.
133
Sylvio Floreal. Ronda da Meia-Noite. São Paulo: Typ. Cupollo, 1925, p.54.

150
O grande modelo no campo das inovações era a polícia de Paris. Dirigida por
Louis Lépine (1846-1933), um administrador competente com um raro tino publicitário, a
velha polícia parisiense passou por uma reforma profunda, reconciliando-a com a
população e a imagem da cidade. Lépine instaurou procedimentos modernos de
identificação e investigação, aperfeiçoou o treinamento dos seus recrutas e promoveu as
relações com o público. As reformas iniciadas por Lépine culminaram em 1907, com a
criação de um grupo de escol especializado em investigação, conhecido como Brigade
Criminelle.134 A polícia tornava-se visivelmente mais técnica e profissional, mas não
apenas na França. Em Berlim foi criado um departamento de investigações com equipes
para investigar cada tipo de delito – homicídio, roubo, fraude, lenocínio – com subdivisões
para roubo de veículos, roubo a residência, roubo de estabelecimentos comerciais etc. O
mesmo se deu nas cidades norte-americanas, a exemplo de Nova York, Detroit e Chicago,
onde surgiram esquadrões especializados na investigação de homicídio, roubo, narcótico,
pessoas desaparecidas etc.135
O Gabinete de Investigações paulista foi o exemplo maior desse tipo de
especialização. Dividido em delegacias especializadas para investigar crimes específicos, a
ele estava "confiada a guarda e garantia das pessoas; a fiscalização dos bons costumes; a
garantia da propriedade pública e privada; a vigilância da ordem política e social e a
seleção dos reincidentes", esclarecia seu diretor, o delegado Otávio Ferreira Alves, em
1928.136 O Gabinete era o departamento mais especializado da polícia, mas não foi o único
a se modernizar. O policiamento da Capital foi igualmente remodelado para atender as
mudanças.
Em 1926, a Capital paulista ganhou uma nova guarda. Criada pelo governador
Carlos de Campos, empenhado em reformar o policiamento preventivo de São Paulo e
compensar a redução da Força Pública após a rebelião de 1924, a Guarda Civil procurou
estimular uma relação de apreço e aproximação com a população. 137 O regulamento da
corporação ordenava ao guarda prestar atenção especial às senhoras, idosos, enfermos e
crianças, fornecendo seu braço para auxiliá-los na travessia das ruas. Recomendava-se ao

134
Jean-Marc Berlière et René Lévy. Histoire des Polices en France. Paris: Nouveau Monde éditions, 2011, p.59 e p.109-119.
135
Sace Elder. Murder Scenes: Normality, Deviance, and Criminal Violence in Weimar Berlin. Ann Arbor: University of Michigan Press,
2010, p.47-52; Richard Bessel. "Policing, Professionalisation and Politics in Weimar Germany". In: Clive Emsley and Barbara
Weinberger, op.cit.,p.196-199; Robert M. Fogelson, op.cit., p.78-90.
136
Otávio Ferreira Alves. "A Polícia de S. Paulo", op. cit., p.68.
137
Hermes Vieira e Oswaldo Silva, op.cit., p.242-244.

151
policial manter a dignidade na vida privada, para assim ter o reconhecimento esperado dos
cidadãos. A aparência física do guarda era muito importante, assim como as suas
vestimentas. O uniforme deveria estar sempre impecável e em perfeita ordem. Um guarda
civil deveria apresentar-se aos seus superiores e ao público com todo o garbo possível.138
Conta um ex-guarda:

"O guarda civil tinha de ficar fora da calçada, não podia entrar
em bar, não podia entrar em restaurantes. Ele ficava no posto
aguardando o rondante, e esse rondante é que ficava no lugar dele
enquanto ele fazia suas necessidades, tomava água etc. Tinha dez
minutos e era algo muito rígido. O guarda civil, para dirigir-se a
qualquer pessoa, tinha que estar em posição de sentido; não podia
sequer apresentar-se com um cigarro na mão, nem mesmo se estivesse
conversando com alguém."139

O uniforme da Guarda era todo azul, com duas fileiras de


botões, cinto e sapatos engraxados. O quepe era do estilo norte-
americano, alto com um disco prata da corporação. No peito ficava o
distintivo esmaltado com o número do policial. Nas ruas centrais da
Cidade, não faltavam as luvas brancas combinando com o cassetete.
Um apito dourado, preso numa correntinha dava mais charme ao
uniforme. Altos e garbosos, não é exagero dizer que eles eram a
atração nos principais cruzamentos de avenidas da Cidade. O
memorialista Jorge Americano escreveu que na Praça do Patriarca
havia dois guardas a cavalo, impecáveis, como se estivessem na
Trafalgar Square.140 O novo corpo contou com um efetivo inicial de
mil homens, depois ampliado para mais dois mil policiais espalhados
por todo o estado.

138
Instruções destinadas ao Serviço de Vigilância e Policiamento a cargo da Guarda Civil. Elaborado pelo coronel Alexandre Gama sob a
orientação do diretor Dr. Antônio Pereira Lima. São Paulo: 1928.
139
Frente Negra Brasileira: Depoimentos. São Paulo: Quilombhoje,1998, p.88-89.
140
Jorge Americano, op.cit., p.79.

152
Entretanto, a nova Guarda apresentava uma contradição. Se por um lado o seu
regulamento exprimia respeito pelo cidadão, por outro, ela excluía os negros das suas
fileiras. Como revela um ofício, os guardas deveriam ser brancos, ter não menos de 1,75m
de altura, bom comportamento moral e civil, saber ler e escrever, ter mais de 21 anos e
menos de 45, não ter nenhum defeito físico ou moléstia.141 Segundo o documento, os
negros não eram aptos para representar o policiamento da Capital. Relegados às posições
mais subalternas da sociedade, prestando serviços como carregadores, ensacadores e
empregados domésticos, a população negra da Cidade não era digna de representar o
Estado, emprestando seus rostos a uma guarda moderna. Entidades de filhos e netos de
escravos protestaram contra a medida, mas o que predominou na Guarda foi o recrutamento
de uma maioria esmagadora de brancos e estrangeiros.142
Entre os recrutas da Guarda Civil havia um bom número de imigrantes letões,
lituanos, polacos, alemães e austríacos, que haviam deixado uma Europa em frangalhos
para reiniciar a vida em terras brasileiras. Os delegados tinham uma estima especial por
estes recrutas obedientes, de ar marcial e visceralmente anticomunistas. A corporação
apresentava com orgulho alguns filhos de barão e antigos membros da corte vienense que
serviam nas suas fileiras.143 A Guarda Civil ficava sob supervisão do 3º delegado auxiliar
Artur Rudge Ramos (1875-1941). Filho da fina flor das famílias paulistas, Rudge Ramos
era reconhecido pelo semblante sério, bigode aparado, chapéu coco, bengala e polainas
lustrosas. Jovens delegados que serviram com ele lembram-no como "disciplinado e
disciplinador". Rudge Ramos entrou para a polícia em 1902, como delegado substituto.
Galgou toda a hierarquia até chegar a delegado de 1ª classe na movimentada delegacia da
Consolação. Titular de distrito, começou fiscalizando carroças, cuidando das placas e
intervindo nos cruzamentos do seu distrito. Tempos depois, tal controle tornou-se um
monopólio seu, o qual ele exercia com prazer e bastante rigor.144

141
Circular "reservada" comunicando os requisitos para a admissão dos candidatos à Guarda Civil, datada de 30 de dezembro de 1926.
Ordem do Dia (1926-27). (DGP)
142
Flávio Gomes. Negros e Política (1888-1937). Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
143
Diário da Noite, 5 de outubro de 1927.
144
"Dr. Artur Rudge Ramos". In: APCSP, vol.II, 2ºsemestre, 1941, p.445-446. Rudge Ramos escreveu o primeiro "Regulamento para
Trânsito nas Ruas e Praças da Capital", datado de 10 de janeiro de 1911. Caixa C3181. (APESP)

153
Em 1915, o governador colocou-lhe nas mãos
outra tarefa: a reforma da Estrada do Mar. Para tanto, o
secretário da segurança Eloy Chaves regulamentou uma
lei que permitia o uso dos presos nas obras públicas. A
idéia foi defendida como um meio de reabilitar os
sentenciados através do trabalho.145 Na prática, porém, o
que se viu foram presos esfarrapados, doentes e sem
alimentação, trabalhando de sol a sol, enquanto a
empreiteira que os explorava parecia estar satisfeita com
o uso da mão-de-obra carcerária, muito mais em conta do
que a livre.146 Distante das críticas, Rudge Ramos
preocupava-se apenas com a estrada. Um delegado Artur Rudge Ramos

contou que ele sempre descia por ela para pescar no final de semana. Durante o trajeto, o
delegado aproveitava para inspecionar o calçamento e pedir reparos.
O 3º delegado auxiliar era responsável também por propor medidas para organizar
o trânsito da Capital. Trânsito que só piorou com a crise energética em São Paulo. A
energia elétrica produzida pelas usinas da Light era insuficiente para atender ao crescimento
urbano. Em função disso, diminuíram o número de bondes e aumentou consideravelmente o
número de carros e ônibus pelas ruas.147 A Cidade começou então a conhecer um outro tipo
de realidade: a dos atropelamentos e do caos urbano. Tomar chá na Confeitaria Vienense ou
no Mappin da Praça Patriarca exigia o máximo de cuidado, pois tornara-se perigoso
atravessar a rua. Os jornais reclamavam que a Cidade transformara-se numa "praça de
guerra". Em 1920, o Estado de São Paulo promoveu uma campanha contra os acidentes e o
descaso das autoridades. Num dos seus editoriais, podemos ler:

"Vão se repetindo ultimamente, com frequência apavorante, os


desastres de automóveis, funestos muito deles, e ocasionados quase que
sempre pelo abuso da velocidade, praticado pelos chauffeurs. (…) Não
se pode conceber que em São Paulo tenham os condutores de automóvel

145
Hermes Pio Vieira. Eloy Chaves. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p.196-197.
146
O Parafuso, nº131, 11 de fevereiro de 1919; Idem, nº147, 3 de junho de 1919.
147
Raquel Ronik. A Cidade e a Lei. São Paulo: Studio Nobel, 1997, p.160.

154
a liberdade que ostentam de transformar as ruas da cidade em pista
indisputável para as desabaladas correrias a que despejada e
impunemente se entregam quando que tais exercícios lhes dêem gana. É
inacreditável, a quem nunca residiu em São Paulo, o ponto a que
chegam os chauffeurs na vertigem da velocidade a que se entregam nos
trechos mais populosos da cidade. E, à noite, quem tiver ocasião de
transitar pela Avenida Paulista, pela Angélica e outras longas vias
públicas mais fartamente iluminadas, verá atemorizado, passarem
furiosamente inúmeros automóveis que, rugindo estrepitosamente pelos
motores desimpedidos, voam sobre o asfalto ou sobre o calçamento em
doidas e fantásticas arremetidas, levando a morte e o desmantelo às
pessoas ou veículos que acaso tentem transpor aquelas avenidas."148

Criou-se na cidade moderna uma disputa entre os pedestres e os novos veículos.


Qualquer percurso exigia atenção máxima, a velocidade das máquinas modernas
demandava uma precaução redobrada. Costumava-se dizer que andar com elegância e às
pressas era "andar à americana".149 Em uma cidade moderna, onde a tecnologia, ao mesmo
tempo em que revolucionava, atemorizava a todos, eram os homens e mulheres que
deveriam se adaptar ao ritmo da aceleração do progresso, e não o contrário. As delegacias
ficaram encarregadas de investigar os acidentes com a ajuda de laudos periciais modernos.
A Diretoria do Serviço de Veículos, subordinada ao 3º delegado auxiliar, ficou responsável
por fiscalizar, multar, registrar os autos, assim como prover as cartas de habilitação. 150 No
relatório de 1930, a polícia informava ter aberto 948 inquéritos sobre acidentes de trânsito e
realizado 1.052 corpos de delito. A 3ª delegacia calculava que 34.920 veículos circulavam
pela Capital, incluindo os bondes e as 4.079 bicicletas.151

148
O Estado de São Paulo, 4 de dezembro de 1920, citado em Nicolau Sevcenko, op.cit.,2000, pp.76-77.
149
Nicolau Sevcenko, "A Capital Irradiante: Técnica, Ritmos e Ritos do Rio". In: Nicolau Sevcenko (Org.), op.cit., 2006, p.550-551.
150
Relatório de 1929, op.cit., p.70-78. O Museu do Crime na ACADEPOL ainda guarda copias de muitos desses laudos periciais.
151
Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo, em 14 de julho de 1930, pelo Dr. Heitor Teixeira Penteado, vice-presidente em
exercício do Estado de São Paulo. São Paulo: Imprensa Official, 1930, p.168-169.

155
Fotos dos laudos da Polícia Técnica. (ACADEPOL)

As fotos dos anos 1920 e 1930 revelam uma Cidade


caótica, cujo transito misturava veículos, carroças, animais
e pessoas disputando espaço por ruas estreitas e
escorregadias, transformando crianças, idosos e animais
nas maiores vitimas.

Para coordenar tamanho movimento de veículos, o 3º delegado auxiliar sonhava


com a implantação de semáforos automáticos na Cidade. Há muito ele vinha estudando a
necessidade desse tipo de sinalização, enviando relatórios pormenorizados aos seus

156
superiores.152 Os primeiros semáforos luminosos surgiram em Cleveland, no verão de 1914,
para ordenar o tráfico caótico de veículos que começavam a ser produzidos em massa nos
Estados Unidos. Detroit adotou os semáforos em 1920, adicionando uma luz amarela de
atenção entre as luzes verde e vermelha. Visitantes europeus ficaram impressionados ao ver
motoristas respeitando aquelas luzes. Paris (1922) foi a primeira capital européia a
introduzir semáforos de trânsito, seguida de Berlim (1924) e Londres (1931).153
Como se vê, o delegado Rudge Ramos estava atualizado no que se referia ao
tráfego de veículos pelas principais cidades do mundo. Em 1926, ele finalmente recebeu
verba para instalar os seus semáforos, mas, ao que parece, o governador não ficou satisfeito
com o resultado. O deputado Aureliano Leite (1886-1976) conta que o governador Júlio
Prestes achou um absurdo ter que parar nos cruzamentos ao voltar para sua casa.
Imediatamente ele telefonou para o 3º delegado auxiliar ordenando que todos os semáforos
no caminho da sua residência fossem desligados assim que ele deixasse o Palácio. O
delegado Rudge Ramos obedeceu, mas quase teve um infarto.154 Pelo visto, os faróis de
trânsito em São Paulo não eram para todos.

Considerações finais
A necessidade urgente de instituir uma ordem urbana nos primeiros anos da
República levou a um aumento do efetivo policial sem com isso trazer mais segurança para
os moradores da Cidade. A violência policial e a arbitrariedade marcaram as relações entre
a polícia e o público. De um lado, os jornais intervinham pedindo medidas disciplinares
para punir policiais violentos ou corruptos; de outro, os consulados estrangeiros, em
resposta às reclamações dos seus concidadãos, exigiam medidas para controlar a
brutalidade policial. Pressões internas e externas levaram as autoridades a disciplinar o uso
da violência, mas sem abrir mão dela. A prisão sem processo, por tempo indeterminado,
agravada pelos maus-tratos, continuou sendo o meio usual da polícia incutir ordem entre a
população.
Os deslocamentos populacionais e as mudanças drásticas transformaram São
Paulo em expressão concentrada dos problemas que afligiam a sociedade como um todo,

152
Diário da Noite, 13 de julho de 1926; Relatório de 1929, op.cit., p.78.
153
Akira Iriye and Pierre-Yves Saunier, op.cit., p.1043.
154
Aureliano Leite. Páginas de uma Vida. São Paulo: 1955, p.53.

157
entre eles a pobreza e a desigualdade. Tensões iminentes vinham à tona na forma de
tumultos e conflitos étnicos. O encontro de milhares de imigrantes de diferentes
procedências, migrantes rurais e negros que aqui viviam constituía um dos principais
fatores das tensões sociais e dos incidentes, uma vez que ela colocava em contato e em
competição populações que apresentavam grandes diferenças culturais, em disputa por
recursos e espaço social. A Cidade era local da inovação, do comércio, da produção e da
concentração de capital, mas igualmente do crescimento desordenado, da pobreza e da
criminalidade. O medo da multidão heterogênea perturbava governantes e moradores da
Cidade. O antigo pânico de uma revolta escrava foi substituído pelo temor em relação aos
anarquistas, criminosos e degenerados, na sua maioria “estrangeiros”.
Novos temores substituíram os velhos, transformando a metrópole do café em
lugar da insegurança e da incerteza, um lugar onde se faz necessário uma polícia. Para o
sociólogo polonês Zygmunt Bauman, quando a solidariedade comum das formas de
agrupamento pré-capitalista foi substituída pela competição, os indivíduos se sentiram
abandonados e cresceu o sentimento de rancor pelos estranhos, em especial pelos
imigrantes que, de modo vívido e claro, lembram que os muros podem ser derrubados, as
fronteiras invadidas, o entorno transformado e a ordem contestada.155 O incrível
deslocamento populacional, tanto de populações internas quanto estrangeiras em busca de
melhores condições de vida, produziu uma espiral de mudanças que imprimiu uma direção
a várias das reformas na organização policial. As queixas direcionadas ao chefe de polícia,
registradas em relatórios, notas de jornal e na massa documental depositada no APESP,
indicam que a população demandava uma polícia que a respeitasse e a acudisse em
momentos de necessidade. Por conta dessa demanda, a Cidade ganhou plantões policiais e
um serviço médico de emergência para atender a população dia e noite. As delegacias
tornaram-se locais para o cidadão buscar auxílio à doença, assistência e reparação em
relação a desastres, acidentes de trabalho, rixas, agressões e defloramentos, enquanto para
os excluídos da nova ordem urbano-industrial sobravam a prisão e a expulsão dos espaços
de circulação das elites. Os relatórios revelam que a maioria das prisões não eram
motivadas pela ocorrência de crimes contra a pessoa ou o patrimônio, mas para reprimir
padrões de comportamento enquadrados como desordem, embriaguez e vadiagem.

155
Zygmunt Bauman. Confiança e Medo na Cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p.21.

158
Delegacias foram criadas em bairros afastados do Centro; montou-se uma guarda
urbana nos moldes europeus para patrulhar as vias centrais da Cidade; instalaram-se caixas
de alarme nos bairros mais populosos, conectadas diretamente com a Repartição Central de
Polícia; disciplinou-se o trânsito de carros, carroças, bondes elétricos e pessoas com a ajuda
de normas e procedimentos comuns aos grandes centros urbanos; e, por fim, criou-se
delegacias especializadas para direcionar a repressão dos delitos que mais preocupavam os
administradores da Cidade, entre eles homicídio, roubo, falsificação de moeda, tráfico de
drogas, crimes contra os costumes e contra a ordem social. Dessa forma, o crescimento
urbano e demográfico promoveu mudanças na organização policial e ela, por sua vez, no
habitus dos moradores da Cidade, isto é, nas atitudes e inclinações dos indivíduos para
perceber, sentir, fazer e pensar as regras coletivamente orquestradas. Todo esse esforço
promovido pelas elites paulistas pode ser visto como uma forma de impor ordem no
tumultuado cotidiano da Cidade, cujo móvel era produzir um poder simbólico aceito como
legítimo, justo e necessário para o progresso social.

159
4. Polícia e trabalho

"O seu erro, meu caro Amadeu, provém da falta de


educação republicana, em que você medrou, com irressarcível
dano para o seu formoso espírito. Não conheci seu pai. Imagino
que foi um homem à antiga, cheio de preconceitos de honra, e que o
mandou para um mestre-escola, quando de preferência, deveria tê-
lo mandado ao Sr. Rodolfo de Miranda, que era, já naquele tempo,
o decurião-mor da democracia. E supunha, talvez, que, para fazê-lo
um bom cidadão, bastava instruí-lo, dar-lhe hábitos de trabalho,
incutir-lhe o respeito das leis e das autoridades."
Moacir de Toledo Piza1

Em 1923, o escritor Moacir Piza (1891-1923) publicou um panfleto satírico


desmoralizando a elite política paulista. Escrito em forma de uma carta debochada ao seu
amigo, o também escritor Amadeu Amaral (1875-1929), Moacir Piza ensinava
sarcasticamente que o bom cidadão era aquele que respeitava as leis, as autoridades e,
acima de tudo, cultivava o hábito do trabalho. Respeito às autoridades e ao trabalho, nisso
se resumia a educação republicana na visão crítica do escritor que atacava o falso
moralismo dos políticos que comandavam o estado.
Por trás da sua roupagem moderna e civilizadora, a República impunha condições
de trabalho escorchantes para a maioria dos empregados, muitos dos quais imigrantes que
fugiam da miséria e vinham para o Brasil em busca de um futuro mais generoso. O
trabalho, no discurso das autoridades, era uma obrigação moral e todo aquele que não
trabalhasse, ou fosse contra os contratos vigentes entre patrões e empregados, era um
inimigo da sociedade. A jovem República brasileira, a exemplo de outras nações, impôs
uma sociedade contratual partindo do pressuposto que o cimento da sociedade estava nos
contratos, principalmente naqueles que regiam as relações de trabalho. Estas relações
1
Moacyr Piza. Roupa Suja. São Paulo: 1923, p.4.

160
deveriam ser estáveis e respeitadas para manter a sociedade unida. Nesse mundo, o bom
cidadão era o bom trabalhador, e preservar a ordem do trabalho equivalia a preservar a
ordem pública.2 Em 1912, Washington Luís, discursando para uma platéia formada por
representantes das polícias de todo o país, exaltou que o principal papel de uma "polícia
preventiva" era "garantir a ordem do trabalho", reprimindo "os que podem e não querem
trabalhar" (os vadios); "os que querem e não podem trabalhar" (devido às greves); e aqueles
que "não podem e não querem trabalhar" (os dementes e as crianças abandonadas). Os
primeiros eram encaminhados para as colônias correcionais, para mais tarde serem
restituídos à sociedade "regenerados e com hábitos de trabalho"; os segundos iam para a
prisão e os últimos para os manicômios ou institutos disciplinares. Este era o papel
esperado de uma polícia moderna, declarou o secretário da segurança de São Paulo.3
A atuação na preservação da ordem do trabalho e em todas as ocupações
remuneradas na Cidade, mesmo aquelas consideradas imorais, como a prostituição e o jogo
do bicho, tiveram um grande peso na atividade policial, motivo pelo qual merecem um
exame em separado. Nas décadas iniciais da República, sindicalismo, anarquismo e
imigração estiveram intimamente ligados. A imigração foi fundamental para a classe
empreendedora paulista criar um mercado de mão de obra capitalista no campo e na cidade;
e o anarquismo foi uma ideologia importada que, tendo vindo com uma parcela de
imigrantes, influiu na formação dos sindicatos e na organização dos operários. Este
fenômeno, que se multiplicou mundo afora, concorreu para a consolidação de um aparato
policial especializado na repressão de ideias revolucionárias e na vigilância de populações
flutuantes. O combate ao anarquismo possibilitou que policiais de diversos países,
acossados pelos mesmos problemas, estreitaram laços, trocassem informações e
elaborassem práticas de identificação para conter e controlar a massa de migrantes e novos
trabalhadores que se articulavam nas sombras da modernidade.

2
Elciene Azevedo et al. (Org.). Trabalhadores na Cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro e em São Paulo, séculos XIX e XX.
Campinas: Unicamp, 2009.
3
Annaes do Primeiro Convênio Policial Brasileiro realizado em S. Paulo, de 7 a 12 de abril de 1912. São Paulo: Typographia Brazil de
Rothschild & cia, 1912, p.7.

161
A repressão à vadiagem
Às vésperas do fim da escravidão, a repressão à vadiagem foi intensificada.
Pensando na grande massa de libertos que se recusavam a permanecer vivendo em
condições precárias na lavoura, os legisladores criaram figuras penais com o objetivo de
punir os resistentes ao novo regime de trabalho e disciplinar um amplo segmento da
sociedade.4 O vadio era acusado de não ter interesse em produzir o bem comum nem
respeito pelo trabalho. O Código Penal de 1890 classificava como vadio todo aquele que
não tinha "profissão, ofício ou qualquer mister em que se ganhe a vida não possuindo meio
de subsistência e domicílio certo". Além disso, o Código incluía entre os vadios todos
aqueles que sobreviviam "por meio de ocupação proibida por lei ou manifestamente
ofensiva da moral e dos bons costumes".5
A vadiagem era considerada um "problema" antigo no Brasil. Marginalizados
desde os tempos coloniais, os homens livres e pobres, brancos, negros ou mulatos, que
vagueavam pelos campos e cidades, eram vistos pela sociedade organizada como uma corja
inútil que preferia o ócio ao trabalho. Vivendo num mundo onde todas as atividades
econômicas baseavam-se no trabalho compulsório, no qual agregados ou empregados mal
pagos eram tratados da mesma forma que os escravos, restavam poucas alternativas para o
crescente contingente de homens livres e libertos que começava a se avolumar à margem da
sociedade.6 Em 1871, o chefe de polícia da província, Sebastião José Pereira, lamentava:
“Entre nós não há proletários; há, porém, uma classe mais perigosa, a qual, dia a dia, tem
notável aumento: é a dos vadios.” O chefe de polícia de São Paulo reclamava que a lei era
completamente ineficaz contra esse mal e, no momento em que o Estado fazia "oneríssimos
sacrifícios com a aquisição de colonos", era inaceitável que gente ociosa vivesse ao léu por
aí sem trabalhar. "O trabalho é um dever; quem a ele não se sujeita de bom grado, seja
compelido por meios coercitivos, porém enérgicos", defendia o chefe de polícia.7
Os legisladores brasileiros buscaram inspiração no código francês, reconhecido
como o mais rigoroso em matéria de repressão à vadiagem. Entre 1873 e 1896, a economia
global viveu uma grande depressão provocada pela queda dos preços agrícolas. A produção

4
Sidney Chalhoub. Trabalho, Lar e Botequim. Campinas: Unicamp, 2008, p.66-75.
5
Art. 399 do Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil, 1890. Quarta edição. Rio de Janeiro: Garnier, 1908.
6
Lucio Kowarick. Trabalho e Vadiagem: A Origem do Trabalho Livre no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1987; Laura de Mello e Souza.
Norma e Conflito: aspectos da história de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: UFMG, 2006, p.99-102.
7
Relatório de 1871, op.cit., p.23-24.

162
de excedentes agrícolas na Austrália, Estados Unidos e América do Sul derrubou os
mercados, provocando uma diminuição das importações no mundo todo. Essa crise atingiu
especialmente a França que, apesar dos seus ícones de modernidade, era um país ainda
basicamente rural. A crise no campo contaminou a indústria, que reduziu drasticamente
seus investimentos, deixando milhares de trabalhadores desempregados. Por fim, o sistema
financeiro quase ruiu quando a Argentina, em outubro de 1890, incapaz de honrar seus
compromissos, declarou uma moratória levando bancos importantes a uma situação de
insolvência. Essa crise teve consequências desastrosas, inclusive no Brasil, que vivia uma
bolha especulativa sem precedentes.8
Na França, a solução para conter aqueles que não tinham trabalho nem esperança
foi interná-los em colônias por longos períodos, sujeitos a uma disciplina severa. O médico
francês Théodore Homberg (1802-85), um defensor radical da medida, afirmava que o
vagabundo era o "mais perigoso inimigo da sociedade", um amoral que rejeitava o trabalho
e se entregava facilmente à bebida e outros vícios. A campanha contra a vadiagem usou o
discurso médico para convencer o legislador e a sociedade que o vadio era um anormal que
trazia consigo o germe da sua condição, desviando o debate dos problemas sociais. Assim
se despolitizou a questão, poupando o governo de intervir na economia e nos interesses dos
grandes investidores.9
O Código Penal de 1890 copiava alguns dos procedimentos do código francês.
Pela lei, a autoridade policial podia prender os vadios que bem entendesse, sujeitando-os a
uma pena de trinta dias de prisão. O condenado era obrigado a assinar um termo
comprometendo-se a encontrar ocupação dentro de quinze dias. Se esse termo fosse
quebrado, o infrator seria enviado para uma colônia correcional, fundada em ilhas ou nas
fronteiras do território nacional, ficando internado de um a três anos.10 Os jornais e os
relatórios policiais mostram que a Cidade de São Paulo estava apinhada de pessoas pobres
sem ocupação ou vivendo na informalidade. A crise no campo e a procura por melhores
condições de vida empurravam as pessoas para o cenário urbano, onde elas se deparavam

8
Jeffry A. Frieden, op.cit., p.7-10; Robert A. Nye. Crime, Madness & Politics in Modern France. New Jersey: Princeton University
Press, 1984, p.54-55; James Foreman-Peck. A History of the World Economy: International Economic Relations since 1850. Harlow,
UK: Prentice Hall/Financial Times, 1995, p.166-167. Sobre as consequências no Brasil, ver Gustavo H.B. Franco. "A Primeira Década
Republicana". In: Marcelo de Paiva Abreu (Org.). A Ordem do Progresso: Cem anos de política econômica republicana, 1889-1989. Rio
de Janeiro: Elsevier, 1990, p.11-30.
9
Timothy B.Smith. "Assistence and Repression: rural exodus, vagabondage and social crises in France (1880-1914)". In: Journal of
Social History, summer-1999; Robert A. Nye, op.cit., p.51-73.
10
Otávio Goulart de Camargo."A Vadiagem no Brasil". In: Investigações, ano I, nº3, março de 1949, p.145.

163
com o desemprego. A oportunidade limitada de postos de trabalho e a instabilidade no
emprego criavam uma multidão de desempregados vivendo de bicos ou esmolas pelas ruas
da Cidade.11
A polícia reagia a essa situação realizando prisões em massa. Segundo apurou
Boris Fausto, entre 1892 e 1916, foram presas 21.422 pessoas por vadiagem na Capital. A
porcentagem desse tipo de prisão cresceu de 18%, em 1892, para quase 27%, em 1916. 12 A
razão desse aumento estava certamente associada às crises sucessivas provocadas pela
queda do preço do café, que afetava todos os setores da economia. Em 1919, a revista O
Parafuso denunciava: "Cada cidadão que não é parasita dos cofres públicos, está sujeito de
um momento para outro a desempregar-se. Ser desempregado no dia de hoje é ser
considerado vagabundo", correndo o risco de ir preso e passar semanas jogado numa cela
infecta.13
Trabalhadores informais com aparência miserável eram considerados vadios pela
polícia.14 A aparência e a condição social eram determinantes para que a polícia prendesse
alguém. Os negros engrossavam a multidão dos detidos, segundo um delegado, porque
eram "inadaptados às novas condições sociais, deseducados e ignorantes das novas
necessidades da civilização industrial". Na opinião do delegado Otávio Goulart de
Camargo, muitos negros diziam ser vendedores ambulantes somente para encobrir a
"vadiagem franca".15 Entre os detidos, podemos encontrar pessoas como a lavadeira Maria
Antonia da Conceição, presa em 1896 e condenada a cumprir 22 dias de prisão. Em sua
defesa, ela alegou que não era vagabunda "e sim trabalhadeira e se há dois meses não
trabalha é porque não tem encontrado serviço". Porém, testemunhas afirmavam que ela
vivia bêbada pelas ruas, provocando desordens.16 O espanhol José Guerrero, um sapateiro
de 42 anos vindo de Málaga, foi preso naquele mesmo ano. Em sua defesa, ele exibiu as
mãos calejadas ao juiz, dizendo que estava em busca de emprego quando foi preso pelo
subdelegado do Brás. Testemunhas alegaram que o espanhol era um vagabundo conhecido
que dormia pela rua em estado de embriaguez.17 Outro preso foi Florentino Francisco, de

11
Wilson Cano. Raízes da Concentração Industrial em São Paulo. Rio de Janeiro: Difel, 1977; Maria Inez Machado Borges Pinto,
op.cit., cap.2.
12
Boris Fausto, op.cit., 1984, p.37.
13
O Parafuso, nº142, 29 de abril de 1919.
14
Maria Inez Machado Borges Pinto, op.cit., p.110.
15
Otávio Goulart de Camargo, "A Vadiagem no Brasil", op.cit., p.145.
16
Processo crime nºref.4026. (APESP)
17
Processo crime nºref.2558. (APESP)

164
30 anos, proveniente do Rio de Janeiro. "Como este vagabundo", declarou o delegado do
Brás, "muitos outros estão sendo processados nesta delegacia, que é o distrito para onde
afluem em massa, todos os desordeiros e desocupados da capital".18 Os processos criminais
indicam que desemprego, embriaguez e pobreza andavam de mãos dadas na São Paulo do
final do século.
Em 1902, em plena crise cafeeira, os indigentes tinham se tornado uma realidade
embaraçosa para a Capital. No dia 29 de abril, poucos meses depois de Cardoso de Almeida
assumir o cargo de chefe de polícia, o jornal Estado de São Paulo descreve uma cena
desconcertante: o mendigo Alexandre Duarte Vieira, passando em frente da Repartição
Central de Polícia, encantou-se com o cavalo de um dos ordenanças do chefe de polícia e,
"como bom cavaleiro", montou no animal, saindo em disparada pelas ruas do Centro. Atrás
dele toda a guarnição policial. O mendigo só foi detido na rua Florêncio de Abreu, quando
precisou desviar de um bonde.19 Cardoso de Almeida não comenta o incidente no seu
relatório, mas com certeza ele deve ter influenciado o chefe de polícia a redobrar os
esforços para "banir os vadios" da Cidade.
No seu relatório, Cardoso de Almeida discute providências para reprimir a
vadiagem, comenta as legislações estrangeiras e recomenda a construção urgente de uma
colônia correcional. Só prender não constituía solução para o problema, alegava. A situação
requeria "um regime mais de disciplina do que rigorosamente de punição e castigo",
escreveu o chefe de polícia.20 Decidido a solucionar um problema crônico da Cidade,
Cardoso de Almeida se deslocou até o litoral paulista para vistoriar suas ilhas. Após
encontrar uma que lhe pareceu perfeita para instalação de uma colônia correcional, ele
comunicou o fato ao governador Rodrigues Alves, que aprovou o projeto. Euclides da
Cunha (1866-1909), engenheiro da Superintendência de Obras Públicas, foi designado para
fazer as medições do local.21
Surgia então outro problema: como identificar os reincidentes? Como saber com
certeza que o vadio advertido continuava a reincidir? A utilização de nomes falsos e
apelidos era uma estratégia dos detidos para burlar a lei. Contra eles, na maioria das vezes,
tinha-se apenas o depoimento de um secreta, o que era pouco para os juízes condenarem

18
Processo crime nº ref.2525. (APESP)
19
O Estado de São Paulo, 29 de abril de 1902. Sobre algumas das atividades do escritor como engenheiro ver C4476. (APESP)
20
Relatório de 1903, op.cit., p.13.
21
O Estado de São Paulo, 23 de fevereiro de 1902.

165
alguém recolhido pelas ruas. A primeira resposta para o problema foi fotografá-los, como já
se fazia com escravos fugidos, mas essa medida trouxe problemas. A polícia fotografava
ladrões desde 1891, porém o Ministério Público recorreu contra a prática, pois as fotos
expostas em locais de grande concentração de pessoas, como praças
e estações de trem, provocavam muita confusão. Sempre havia
pessoas semelhantes àquelas expostas, e pior: os punguistas
aproveitavam a distração do público para bater carteiras.22
A fotografia não garantia a identificação, por isso recorreu-
se à bertillonnage, técnica francesa que permitia identificar o
indivíduo através de um sistema de medição cuidadoso. O sistema
francês partia do registro de medidas corporais e traços particulares
inspirado na classificação de animais, flores e insetos. Implantado João Sanghinetti, preso e
fotografado como
vagabundo, 1894. (APESP)
oficialmente em 1882, o método ficou conhecido como bertillonnage
em homenagem ao seu inventor, Alphonse Bertillon (1856-1914), um funcionário da
Préfecture de Police de Paris, pertencente a uma família respeitada de médicos,
antropólogos e matemáticos.23 Seu avô materno, Achille Guillard (1799-1876), era
demógrafo; seu pai foi um dos fundadores da Escola de Antropologia Francesa e seu irmão
dirigia o serviço de estatística de Paris. Bertillon dava expediente na seção de identificação
e registros como um simples escrevente, no meio de uma montanha caótica de fichas. O
volume de fichas e fotos refletiam práticas ultrapassadas de reconhecimento e catalogação.
O costume dos deliquentes de inventar nomes falsos e dos policiais de fichá-los sem critério
sobrecarregava os arquivos da polícia. Para Bertillon, acostumado ao rigor das pesquisas
cientificas, tornou-se uma obsessão converter aquele trabalho em uma atividade prática,
precisa e racional.24
Bertillon baseou-se no principio de que nada na natureza tinha dois espécimes
absolutamente iguais. Se isso era verdade, ele poderia demonstrá-lo com os seres humanos;
e recordava do avô explicando como era possível classificar um vegetal, inicialmente

22
Justiniano Lisboa. Breve Notícia da Organização do Serviço de Identificação Judiciária de São Paulo. São Paulo: Casa Duprat, 1919,
p.4-6.
23
Le Petit Parisien, 28 Février 1892.
24
Jürgen Thorwald, The Century of the Detective. New York: Harcourt, Brace & World Inc, 1965, p.6-13; Jean-Marc Berlière. Le Monde
des Polices en France. Bruxelles: Editions Complexe, 1996, p.43; Martine Kaluszynski. "Republican Identity: Bertillonage as
Government Technique". In: Jane Caplan and John Torpey (Ed.). Documenting Individual Identity: The Development of State
Practices in Modern World. New Jersey: Princeton University Press, 2001, p.123-138.

166
colocando-o numa classe, depois numa família, num gênero, até chegar à espécie. Tudo
podia ser classificado na natureza: plantas, animais e insetos.25 Bertillon começou então a
fazer uma série de experimentos, medindo pessoas – mãos, braços, antebraços, pés – e foi
comparando os resultados. Descobriu pontos essenciais, como a circunferência da cabeça, o
nariz, a orelha e a cor dos olhos. Seus superiores não o levaram à sério até seu pai ver sua
descoberta. Bertillon conseguiu uma entrevista com o chefe de polícia, que deu-lhe a
oportunidade de pôr em prática sua invenção. Em fevereiro de 1883, ele determinou a
identidade do primeiro recidivista e, no final daquele ano, seu trabalho somava 7.336
medições e 49 recidivistas identificados.26
O invento de Bertillon surgiu num momento em que a França adotava medidas
extremas contra os vadios. Tais medidas culminaram na lei Waldeck-Rousseau de 27 de
maio de 1885, que instituiu a deportação dos "incorrigíveis" para colônias penais na Guiana
Francesa e no Pacífico, expulsando quase dez mil condenados do território francês.27
Bertillon tornou-se famoso e, em 1892, ganhou as manchetes dos principais jornais
franceses ao colaborar na prisão de Ravachol, um anarquista responsável por dinamitar
apartamentos de magistrados. Usando informantes, a polícia descobriu que o autor das
explosões já havia cumprido pena por roubo. Bertillon pode assim localizar a ficha de
Ravachol e confeccionar uma descrição detalhada do suspeito aos jornais. Ravachol foi
reconhecido por um garçom que atentou para sua cicatriz na mão esquerda. O anarquista foi
julgado e condenado à guilhotina e Bertillon, condecorado. A publicidade dada ao caso fez
dele uma celebridade internacional. Em 1894, A revista norte-americana McClure's
Magazine alertava que nenhum criminoso identificado por Bertillon poderia estar a salvo da
ação da justiça, mesmo foragido. Onde ele fosse, afirmava o artigo, sua descrição o
acompanharia até a captura. A fama de Bertillon ultrapassou fronteiras, levando o
comissário de polícia de Dresden, Robert Heindl (1883-1958), a declarar: "Paris
transformou-se na Meca da polícia e Bertillon, em seu profeta".28
A bertillonnage se apoiava na confecção sistemática de fichas signaléticas com o
formato de 14,6 x 15 cm. Cada ficha trazia duas fotografias do indivíduo, uma de frente e

25
Pierre Darmon, Médicos e Assassinos na Belle Époque. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p.216.
26
Jean-Marc Belière, op.cit, p.45.
27
Robert A. Nye, op.cit., pp.78-89; Michelle Perrot, Os Excluídos da História. São Paulo: Paz e Terra, 2001, pp.235-273; Jean-Pierre
Allinne et Mathieu Soula (Dir.). Les Récidivistes: Représentations et traitements de la récidive XIX-XXI siècle. Rennes: Presses
Universitaires de Rennes, 2010.
28
Dorothy & Thomas Hoobler. The Crimes of Paris. Lincoln: University of Nebraska Press, 2010, p.174-176.

167
outra de perfil; além de observações antropométricas (altura, peso, envergadura do crânio,
largura da testa, mensuração da orelha, do antebraço esquerdo, do pé esquerdo e do dedo
médio esquerdo); características cromáticas (cor dos olhos, barba e cabelo) e uma descrição
geral da pessoa (contorno do nariz, orelha, face, sobrancelhas, disposição corporal). No
verso da ficha, anotavam-se os sinais particulares (cicatrizes, tatuagens, furúnculos, etc.) e
os dados pessoais (nome, sobrenome, idade, apelidos, data de nascimento, nome dos pais,
nacionalidade, profissão, endereço e condenações anteriores.).29 As fichas de Bertillon
exigiam uma descrição pormenorizada e um culto ao detalhe. Essa prática contribuiu para a
profissionalização da polícia, que investiu na formação de um corpo técnico para catalogar
e arquivar um número extraordinário de fichas e prontuários acessíveis à consulta.

Bertillon medindo um preso com


métodos e instrumentos que ele
mesmo criou.

Uma aula de identificação judiciária ministrada sob supervisão de Bertillon, 1895.


Fotos do Musée de la Préfecture de Police de Paris. (Jean-Baptiste Bourrat et Sophie de Sivry)

29
R.A.Reiss. Manuel Portrait Parlé. Paris: TH.Sack Libraire Éditeur, 1905.

168
A bertillonnage percorreu as Feiras Universais de Paris (1889) e de Chicago
(1893). Polícias do mundo todo adotaram o sistema francês, a começar por Buenos Aires
(1890), Cidade do México (1892), Londres (1893), Bucareste (1893), Rio de Janeiro
(1894), Nova York (1895), Berlim (1896) e Madri (1896).30 São Paulo começou a empregar
a bertillonnage em 1898, mas somente dentro das prisões. No seu trabalho diário, a polícia
paulista carecia de um serviço de identificação, assim como de pessoal habilitado para fazê-
lo. Cardoso de Almeida procurou sanar essa deficiência montando um Gabinete
Antropométrico nas dependências da Repartição Central de Polícia. No dia 17 de julho de
1902, várias autoridades foram convidadas para assistir sua inauguração. Um especialista
vindo do Rio de Janeiro fez uma demonstração para ensinar aos paulistas as técnicas da
bertillonnage. Diante de todos, inclusive dos jornalistas, ele tirou as medidas do gatuno
Artur Ramos. Era um processo visivelmente trabalhoso, porém "fruto da mais absoluta
ciência". Depois de medido com instrumentos próprios para esse fim, Ramos foi
fotografado de frente e de perfil. O estúdio fotográfico, que antes ficava nos fundos da
Repartição, agora ocupava as janelas frontais do prédio, permitindo uma iluminação mais
adequada e uma melhor qualidade das fotos. A cerimônia terminou deixando um sorriso de
satisfação no rosto das autoridades, enquanto o gatuno retornava para o xadrez sem
pronunciar uma palavra. A polícia de São Paulo colocava-se assim ao lado dos grandes
centros urbanos.31

Mobilidade, imigração e controle policial


No dia 15 de maio de 1906, o conselheiro Antônio da Silva Prado, presidente da
Companhia Paulista de Estradas de Ferro, fazendeiro, industrial e prefeito de São Paulo,
recebeu a notícia de que os ferroviários da sua Companhia haviam interrompido o
transporte de café para o porto de Santos, exigindo o fim da redução dos salários e dos
descontos na folha de pagamento. O conselheiro, depois de conversar com o governador
Jorge Tibiriçá, seu primo, recusou-se a negociar com os grevistas. "O único vencedor nessa
luta será a força", declarou o empresário.32 Nos dias seguintes, a paralisação se alastrou

30
Ilsen About et Vincent Denis. Histoire de l'identification des personnes. Paris: La Découverte, 2010, p.79.
31
O Estado de São Paulo, 17 de julho de 1902; Ricardo Gumbleton Daunt. "História da Evolução do Serviço de Identificação do
Gabinete de Investigações de São Paulo". In: Arquivos de Polícia e Identificação,vol.II, nº1, 1938-1939, p.77.
32
Michael Hall, "O movimento operário na Cidade de São Paulo: 1890-1950", op.cit, p.270; O Estado de São Paulo, 19 de maio de 1906.

169
pela malha ferroviária, recebendo a solidariedade de estudantes do Largo São Francisco. A
polícia prendeu centenas de trabalhadores, proibiu reuniões, fechou a Liga Operária e
impediu manifestações nas ruas da Capital. Dois grevistas e um soldado morreram durante
os confrontos em Jundiaí. Os jornais anunciaram que dois cruzadores da marinha, o
Barroso e o Tiradentes, partiriam do Rio de Janeiro em direção ao porto de Santos, com
ordens de ficarem a postos para enfrentar os grevistas. No dia 29 de maio, a Federação
Operária, temendo um massacre, decretou o fim da greve.33
Numa carta endereçada ao ministro da justiça, Washington Luís manifestou sua
opinião sobre as greves em São Paulo:

“ (…) tive a honra de enviar hoje ao Exº Sr. Ministro do


Interior da União um volumoso inquérito no qual está provado que os
três principais agitadores anarquistas, em São Paulo, são especuladores
de baixa espécie que vivem de greves e que exploram no elemento
estrangeiro o desejo de desforra de males que sofreram lá fora (…). A
presença dessa gente aqui produz grandes preocupações econômicas e
mesmo perturbações materiais da ordem.” 34

A fala do secretário da segurança expressava a preocupação dos setores


conservadores com a massa de imigrantes que se instalava na Cidade, fugindo da miséria e
das condições duras de trabalho nas fazendas de café. A maioria das greves ocorridas em
São Paulo naquele momento tinham um número significativo de imigrantes entre seus
organizadores. Reunidos em torno de várias associações e jornais, eles instigavam a massa
proletária a exigir melhorias nas condições de vida e trabalho. As ideias destes militantes,
que tornavam explícita a contradição entre os interesses dos empregados e empregadores,
eram rotuladas pelas autoridades de "exóticas", trazidas por estrangeiros dedicados a
subverter a ordem. Ao mesmo tempo, todos aqueles que as apregoavam eram chamados
pelas autoridades e pelos jornais de "agitadores", "desordeiros" e "incendiários".35

33
O Estado de São Paulo, 20, 21, 23, 26 e 29 de maio de 1906.
34
Carta de Washington Luís dirigida ao ministro Afonso Pena em 7 de maio de 1907, citada por Lená Medeiros de Menezes, op.cit.,
p.205-206.
35
Boris Fausto. Trabalho Urbano e Conflito Social (1890-1920). São Paulo: Difel, 1977, p.62.

170
Este fenômeno não foi apenas local, mas de grande envergadura. A importação de
mão de obra para desenvolver economias protegidas por Estados competitivos provocou
uma grande migração ao redor do mundo. Portos, ferrovias e indústrias foram construídos
com mão de obra estrangeira. O cultivo agrícola e a exploração de minério tiveram um salto
graças ao trabalho de milhões de pessoas transplantadas de sua terra natal. Camponeses
desesperadamente pobres da Polônia e da Itália foram trabalhar em fábricas do norte da
França; outros milhares de necessitados da Europa Oriental seguiram para as indústrias
alemãs, enquanto os Estados Unidos tiveram sua força de trabalho reforçada por mais de 30
milhões de indivíduos das mais diversas nacionalidades. França, Alemanha, Estados
Unidos, Brasil e Argentina se desenvolveram industrialmente com a ajuda de milhões de
imigrantes dispostos a trabalhar em fábricas, minas, moinhos e fazendas.36
Criou-se então um paradoxo, pois ao mesmo tempo em que o êxodo de
trabalhadores alimentava o crescimento econômico, seus efeitos contribuíam para
desestabilizar antigas formas de controle social tuteladas pela Igreja e pelo Estado,
acostumados a lidar com grupos mais homogêneos etnicamente e culturalmente. A grande
mobilidade de trabalhadores significou em muitos casos uma ruptura violenta dos laços
tradicionais, o isolamento, a incerteza e a desorganização do tecido social. Significou
também a criação de novos laços com grupos de compatriotas em torno de associações,
clubes e jornais. A imigração em massa estimulou a construção de novas identidades – ser
trabalhador e estrangeiro, e se reconhecer como tal, era construir laços e forjar uma
identidade em torno de esperanças em comum –, e estimulou a comunicação através de
uma intensa troca de correspondência. As redes de solidariedade e a circulação de cartas,
jornais e panfletos contribuíram para a difusão de ideias revolucionárias que se propagavam
pelo mundo, fragmentadas em diferentes ideologias e propostas de luta, transmitindo aos
trabalhadores a sensação de que faziam parte de uma classe cuja luta contra a injustiça
ultrapassava os limites das fronteiras nacionais. O anarquismo foi uma destas correntes, que
atravessou oceanos e se estabeleceu em metrópoles que acolhiam imigrantes de origens
diversas como Budapeste, Chicago, Barcelona e Buenos Aires.37

36
Leslie Page Moch. Moving Europeans: Migration in Western Europe since 1650. Bloomington: Indiana University Press, 2003,
p.102-160; Patrick Manning. Migration in World History. New York: Routledge, 2008, p.132-155.
37
Akira Iriye and Pierre-Yves Saunier, op.cit., p.40; Paul Avrich. Anarchist Portraits. New Jersey: Princeton University Press, 1988.

171
O anarquismo fazia uma crítica radical à sociedade disciplinar imposta pelo
modelo urbano-industrial europeu. Para os seus simpatizantes, a vida não deveria ser
controlada por patrões, pelo Estado ou pela Igreja; ela deveria ser construída pelo desejo de
todos e pela participação direta de todos na escolha de um caminho novo. Alguns
anarquistas resumiam seu credo de maneira simples:

"Para nós não existia senão um rumo, que devíamos seguir


para atingir o nosso ideal: a justiça social. Mas, se era difícil dizer onde
ela se encontrava exatamente, nós sabíamos onde residia a injustiça
social, que gerava miséria, dor, sofrimento, morte."38

Após tentativas fracassadas de revolução na Espanha (1868) e na Itália (1873),


vários anarquistas emigraram para a América. No México, Argentina, Chile e Brasil, o
anarquismo fincou raízes nas colônias estrangeiras. Nos Estados Unidos, o movimento
anarquista era quase todo estrangeiro, formado por alemães, russos, italianos e judeus. 39 Em
São Paulo, o jornalista Everardo Dias (1883-1966) descreveu os velhos militantes italianos
e espanhóis que conheceu como sendo abstêmios, poucos fumavam e alguns eram até
vegetarianos. A palavra deles era branda e sempre amiga. O ódio era apenas contra a ordem
existente que, na opinião deles, servia apenas para os ricos explorarem ao máximo os
pobres. Por conta disso, eram radicalmente contra o Estado. A quase totalidade dos
anarquistas eram imigrantes ou pessoas que se sentiam excluídas da riqueza produzida pela
sociedade. Os mais exaltados discursavam em qualquer lugar, transformando os locais de
trabalho, as ruas e praças em espaços de protesto.40
Nos subúrbios pobres de Paris, Barcelona e Praga, o ódio contra a sociedade
burguesa transformou-se numa onda de violência. Entre 1892 e 1894, onze bombas
mataram nove pessoas em Paris; uma explosão durante uma procissão de Corpus Christi em
Praga e outra em um teatro em Barcelona resultaram em dezenas de mortos, semeando
terror nos cafés e na imprensa. A onda de atentados devia muito aos avanços da química e à
invenção da dinamite, criada para ajudar na abertura de túneis, construção de canais e

38
Everardo Dias. História das Lutas Sociais no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1977, p.36.
39
William G. Martin (Coord.). Making Waves: Worldwide Social Movements, 1750-2005. Boulder, CO: Paradigm, 2007, p.65-68.
40
Everardo Dias, op.cit., p.7-8.

172
exploração de minas. Enfim, criar mais riqueza. De fácil manejo e transporte, a dinamite
podia ser roubada e escondida de várias formas.41 Para alguns, os atentados representavam
um sinal de desespero diante da
indiferença das massas ao apelo
revolucionário; para outros, era um sinal
que a revolução estava próxima. Na sua
maior parte, os atentados foram atos
individuais ou de pequenos grupos
radicais.42 O líder anarquista Enrico
O atentado contra o rei Humberto I em
Malatesta (1853-1932) lamentava estas 1900. (Le Petit Journal) Mala do
anarquista Ravachol repleta de
ações dizendo que não era mais o amor explosivos apreendida após a explosão
da rua Clichy, 1892. (Jean-Baptiste
à humanidade que guiava esses atos, Bourrat et Sophie de Sivry)

mas um sentimento descontrolado de vingança contra a sociedade.43 Os ataques vitimando


presidentes, reis, ministros e rainhas alcançaram 16 países, da Austrália à Argentina.
Segundo um estudo da época, somente entre 1897 e 1902, ocorreram 59 atentados contra
chefes de Estado.44
O Brasil acompanhou com preocupação esses atentados. Rui Barbosa manifestou
seu repúdio aos gestos anarquistas tachando-os de "odiosos e degenerados".45 A imprensa
diária brasileira deu grande destaque aos atentados, assim como às execuções dos
anarquistas condenados.46 A onda de atentados projetou sobre todo imigrante um olhar
suspeito. Em 1894, os jornais paulistas comemoraram a prisão de nove anarquistas
italianos, frustrando "seus sinistros intentos". O chefe de polícia atribuiu a essa "raça de
gente perigosa, verdadeiros homens fera", a responsabilidade pelos conflitos entre
imigrantes e nacionais que tomavam as ruas de São Paulo.47 No ano seguinte, o chefe de
polícia Bento Pereira Bueno escreveu que a população imigrante era insuflada por alguns
"maus elementos, a começar por certos estrangeiros" que aqui fundam suas empresas

41
Frederic S. Zuckerman. The Tsarist Secret Police Abroad: Policing Europe in a Modernising World. New York: Palgrave, 2003, p.4-5.
42
John Merriman. The Dynamite Club: How a bombing in fin-de-siècle Paris ignited the age of modern terror. New York: Harcourt,
2009.
43
Nunzio Pernicone. Italian Anarchism, 1864-1892. Oakland: AK Press, 2009, p.275.
44
John Merriman, op.cit., 2009, p.4; Paul Knepper, op.cit., p.131.
45
Rui Barbosa. Criminologia e Direito Criminal (Seleções e Dicionário de Pensamentos). Campinas: Romana, 2003, p.77.
46
Claudia Leal. "Subversivos Italianos em São Paulo: vigilância e controle policiais nos anos 1890". In: Maria Tucci Carneiro et al.
(Org.). História do Trabalho e Histórias da Imigração. São Paulo: Edusp, 2010, p.105-132.
47
Relatório apresentado ao secretário da justiça do Estado de São Paulo pelo chefe de polícia Theodoro Dias de Carvalho Jr. em 31 de
janeiro de 1895. São Paulo: Typ. Espindola & Comp., 1895, p.5; Correio Paulistano, 27 de junho de 1894.

173
jornalísticas para fomentarem "a discórdia e o descrédito" nas autoridades.48 Os comissários
de imigração, instalados nos principais portos da Europa para fazer propaganda e
acompanhar seleção dos imigrantes, receberam instruções para ficarem atentos ao
embarque de anarquistas para o Brasil.49
O auge da histeria ocorreu no dia 10 de setembro de 1898, quando um anarquista
italiano solitário esfaqueou a imperatriz da Áustria numa estação ferroviária. Uma semana
depois, o ministro da justiça da Itália convidou representantes de 22 países da Europa para
uma Conferência em Roma. O monitoramento de suspeitos e a necessidade de uma ação
conjunta foram discutidas a portas fechadas. Ficou acertado que as polícias trocariam
prontuários e informações para refrear a circulação de indivíduos fichados e coibir a
propaganda radical. Mais importante ainda, a Conferência de Roma identificou um inimigo
comum de todas as nações – o anarquista – e estreitou laços entre as polícias européias,
com vistas a refrear o espírito de revolta que se alastrava entre alguns segmentos da
sociedade.50
No final do século XIX, o crescimento de comunidades estrangeiras em seus
territórios parecia uma ameaça aos Estados nacionais. O choque cultural, as crises
econômicas cíclicas e os conflitos entre capital e trabalho levaram um número cada vez
maior de países a adotar passaportes e leis segregacionistas. O anarquista, o cáften e o
criminoso comum eram apontados como faces de um mesmo problema. Eram todos
considerados criminosos e uma ameaça ao progresso da sociedade. Os relatos ampliados de
que os criminosos haviam se internacionalizado, deslocando-se facilmente pelas fronteiras,
usando o anonimato para se misturarem à multidão e praticar seus intentos sinistros, foi
disseminado pelos jornais, tornando-se tema de tramas policiais. As célebres coleções de
Arthème Fayard, como Fantômas, fizeram sucesso extraordinário na França. Fantômas era
um criminoso sem rosto que envenenava perfumes em lojas de departamento, sequestrava
trens de metrô, explodia navios transatlânticos e decapitava pessoas, desaparecendo na
multidão. Este símbolo do criminoso internacional parecia estar em todos os lugares,
ameaçando a vida de qualquer um.51

48
Relatório do ano de 1895, op.cit., p.3-4.
49
Claudia Leal, op.cit., p.108. ver lista de passageiros suspeitos em C3223. (APESP)
50
Paul Knepper, op.cit., p.153-155; Mathieu Deflem, op.cit., p.66-68; Frederic S. Zuckerman, op.cit., p.60-61; Hsi-Huey Liang, op.cit.,
p.163-166.
51
Dominique Kalifa. L'encre et le sang: Récits de crimes et société à la Belle Époque. Paris: Fayard, 1995, p.32-52.

174
Por trás de enredos assim havia o medo real provocado
pelo aumento do número de estranhos nas cidades, que não parava
de crescer. Em 1851, metade dos ingleses e alemães moravam em
centros urbanos. A população da Europa havia aumentado de
aproximadamente 205 milhões para 414 milhões de indivíduos,
entre 1800 e 1900.52 A circulação de pessoas e a migração dentro
da Europa reforçou em alguns países o racismo e o preconceito
contra os estrangeiros. Aumentou a necessidade de se estabelecer
Capa de uma das edições do formas de identificação individual para os governantes controlarem
Fantômas. (Dominique Kalifa)
melhor a população e conhecer seus contribuintes, trabalhadores,
conscritos e delinquentes. A identificação individual não podia mais ser construída sobre
relações familiares e de classe. O indivíduo precisava ter uma identidade em relação à
multidão, um documento útil para o controle do Estado e que assegurasse seus direitos
como cidadão, concedendo-lhe uma identidade oficial.53 Vários experimentos foram feitos
com fotografias e documentos descritivos. Na França, prover a identidade individual
converteu-se numa tarefa de Estado, colocando a bertillonnage no centro de uma política
governamental que buscava monitorar e manter sob vigilância uma população flutuante,
constituída sobretudo de estrangeiros e pessoas excluídas do mercado de trabalho. 54 Os
franceses diziam que o lema da Pátria dali em diante seria: "liberdade, igualdade e carteira
de identidade".55
Não obstante, fora da França, a bertillonnage era alvo de crítica por ser trabalhosa
e sujeita a erros. Os ingleses queixavam-se de que a bertillonnage não servia para
identificar indianos, chineses ou malaios. Para o olhar britânico os nativos eram totalmente
desarmônicos, tinham olhos e pele escura, além de traços físicos diferentes daqueles
catalogados por Bertillon. Para contornar o problema, os policiais ingleses adotaram uma
prática de identificação disseminada no Oriente que usava a impressão dos dedos da mão.
A impressão da ponta dos dedos era utilizada há séculos como forma de assinar trabalhos
artesanais ou garantir um contrato. Da China, ela migrou para o Japão, Tibet e Índia,

52
Hannu Salmi. Nineteenth-Century Europe: A Cultural History. Cambridge, UK: Polity, 2010, p.89; T.C.W. Blanning. The Nineteenth
Century. New York: Oxford University Press, 2000, p.1.
53
John Torpey. The Invention of the Passport: Surveillance, Citzenship and the State. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.
54
Clifford Rosemberg. Policing Paris: The origins of modern immigration control between the wars. Ithaca: Cornell University Press,
2006, p.2-5; Martine Kaluszynski. "Republican Identity: Bertillonage as Government Technique", op.cit., p.123-138.
55
Jean-Marc Berlière, op.cit., 1996, p.67.

175
atraindo a curiosidade dos exploradores europeus. Em Bengala, funcionários britânicos
aprenderam a usar as impressões digitais para forçar os nativos a dar cumprimento às
obrigações contratuais. A impressão digital tornou-se objeto de estudo dos ingleses no seu
esforço para controlar e restringir a circulação dos nativos no subcontinente indiano.56
No ano da coroação de Eduardo VII, em 1902, o Império Britânico possuía 400
milhões de súditos, distribuídos pelas Ilhas inglesas até os confins da Ásia. A administração
do Império dependia de um exército de servidores civis encarregados de fiscalizar desde
escolas, hospitais e linhas telegráficas, até a produção de biscoito para alimentar a marinha
real. O policiamento das colônias era comandado por oficiais ingleses prontos para assumir
qualquer posto dentro do Império, fosse no Quênia, em Malta ou na Nova Zelândia. Na
prática, o policiamento das colônias e protetorados britânicos era uma extensão do
policiamento metropolitano e não uma categoria separada.57 Em 1895, o inspetor chefe de
polícia em Bengala, Edward Henry (1850-1931), experimentou um sistema de identificação
criado por dois auxiliares indianos, Azizul Haque e Hem Chandra Bose, que usava uma
combinação de letras e números para descrever os padrões dos desenhos papilares. 58 Dois
anos depois, o governador geral aprovou a utilização do sistema nos presídios e nas
repartições policiais da Índia. Em 1897, Henry levou essa prática para a África do Sul, onde
organizou a polícia de Johannesburgo e Pretoria, publicando um livro sobre classificação de
impressões digitais antes de ser promovido chefe do bureau de identificação da Scotland
Yard.
Em 1901, a polícia metropolitana londrina adotou o sistema datiloscópico de
Henry. Quase que imediatamente, outros países europeus se interessaram pelo invento. A
Áustria-Hungria adotou um fichário datiloscópico baseado no sistema inglês em 1902,
sendo copiada pela Dinamarca, Espanha, Suíça e Alemanha. O sistema inglês chegou aos
Estados Unidos e, em 1906, foi implementado pela Suécia, Noruega, Itália e Rússia.

56
Simon A. Cole. Suspect Identities: A History of Fingerprinting and Criminal Identification. Cambridge: Havard University Press,
2002, p.60-73.
57
Mandy Banton. Administering the Empire, 1801-1968. London: Institute of Historical Research/The National Archives of the UK,
2008; Paul Knepper, op.cit., p.57; Mike Brodgen. "The emergence of the police – the colonial dimension". In: Tim Newburn. Police
Key Readings. Devon: WP, 2006, p.69-87; Georgina Sinclair. At the End of the Line: Colonial policing and the imperial endgame,
1945-80. New York: Palgrave, 2010.
58
Os dois funcionários da polícia indiana pediram, em 1924, o reconhecimento e uma compensação pela criação do sistema datiloscópico
inglês, no que foram parcialmente atendidos pelo governo britânico. Ver G. S. Sodhi and Jasjeet Kaur. "The forgotten Indian pioneers
of fingerprint science". In: Current Science, vol.88, nº1, 10 january 2005, p.185-191.

176
Curiosamente, a América Latina adotou nessa mesma época um sistema
datiloscópico próprio, criado na Argentina por um imigrante croata antes da instituição do
método inglês.59 O inventor do sistema de identificação argentino chamava-se Ivan Vucetic
(1858-1925), imigrante nascido na Dalmácia que desembarcou na Argentina em meados de
1884, adotando o nome Juan Vucetich. Quatro anos depois, ele estava empregado na
Polícia de la Provincia de Buenos Aires, em La Plata.60 Em 1891,
seu chefe o incumbiu de estudar os sistemas de identificação
usados na Europa. Junto do material que lhe foi entregue, havia
um exemplar da Revue Scientifique com um artigo sobre
datiloscopia assinado pelo inglês Francis Galton (1822-1911).
Vucetich ficou maravilhado com o que leu. Galton explicava que
as impressões dos dedos eram únicas e não mudavam durante toda
a vida do indivíduo. Esta constatação trazia a possibilidade de se
criar um sistema de identificação barato e confiável. O problema
Juan Vucetich era que não existia uma forma prática de classificar as impressões
digitais de modo a permitir que elas fossem armazenáveis e úteis para o serviço policial.
Vucetich decidiu tentar essa classificação por conta própria. Depois de meses de tentativas,
ele estabeleceu um método simples e engenhoso. Pondo-o em prática, conseguiu identificar
21 infratores reincidentes e ajudar na solução de um caso de homicídio ao examinar uma
impressão digital borrada de sangue.61 Apesar do sucesso, demorou uma década para os
cientistas argentinos aceitarem aquele novo método, pretensiosamente superior a um
sistema criado na França.62
Em 1901, Vucetich foi a um congresso em Montevidéu apresentar seu estudo,
procurando sensibilizar os países vizinhos, e o seu próprio, para a adoção da datiloscopia.
Representantes do Brasil, Chile, Uruguai, Colômbia e Venezuela ouviram Vucetich
explicar como a polícia de La Plata tinha obtido um completo sucesso na identificação de
“pessoas nocivas à ordem pública”. O palestrante insistia que o continente só estaria seguro

59
Simon A. Cole, op.cit., p.85-89; Jürgen Thorwald, op.cit., p.81-83; Colin Beavan. Fingerprints: The origins of crime detection and the
murder case that launched forensic science. New York: Hyperion, 2001, p.136-146 e p.185.
60
Julia Rodriguez. "South Atlantic Crossings: Fingerprints, Science, and the State in Turn-of-the-Century Argentina". In: The American
Historical Review, vol.109, nº2, April 2004; Id. Civilizing Argentina: Science, Medicine, and the Modern State. Chapel Hill:
University of North Carolina Press, 2006, p.48.
61
Jürgen Thorwald, op.cit., p.51-54.
62
Kristin Ruggiero. “Fingerprinting and the Argentine Plan for Universal Identification in the Late Nineteenth and Early Twentieth
Centuries”. In: Jane Caplan and John Torpey (Ed.), op.cit., p.184-196.

177
se todos os seus países adotassem arquivos datiloscópicos e trocassem informações,
controlando o ingresso de estrangeiros e identificando criminosos foragidos. José Félix
Alves Pacheco (1879-1935), um jovem representante do Brasil, conhecido mais por suas
pretensões poéticas e por ser sobrinho de um senador do que por ocupar a chefia do
Gabinete de Identificação e Estatística do Rio de Janeiro, saiu da conferência
impressionado, recomendando ao presidente Rodrigues Alves a implantação do sistema
argentino na capital da República.63
Em 1903, o médico Evaristo da Veiga, responsável pela cadeia pública de São
Paulo, defendeu através de artigos de jornal a adoção da datiloscopia. Ele argumentava que
a coleta de impressões digitais era mais prática e barata, enquanto que a bertillonnage
dependia de milímetros e exigia dos seus operadores um culto ao detalhe. Evaristo da Veiga
contou ter ficado decepcionado com o método francês quando foi a Paris visitar Bertillon.
Mesmo lá, disse o médico, os funcionários pareciam desatentos ao serviço, instalado no
sótão de um edifício antigo e mofado, às margens do Sena. Encerrando o artigo, Evaristo da
Veiga elogiou o trabalho do argentino Juan Vucetich e lembrou que São Paulo abrigava
mais de um milhão de estrangeiros. Diante desse desafio, o médico apontou a datiloscopia
como sendo o melhor procedimento para identificar essa massa humana.64
Em agosto de 1905, autoridades cariocas convidaram as polícias de La Plata,
Buenos Aires, Montevidéu e Santiago do Chile para estabelecer procedimentos comuns,
visando a adoção da datiloscopia. No encontro, brasileiros e argentinos revelaram sua
preocupação com o ingresso de anarquistas e socialistas nos seus territórios.65 O Brasil não
podia continuar servindo de asilo para "o rebotalho das populações criminosas e
degeneradas das demais nações", declarou um delegado carioca, citando a prisão no Rio de
Janeiro de um anarquista acusado de participação no atentado contra a vida do rei da
Espanha. Segundo a polícia do Rio de Janeiro, todos os movimentos grevistas ocorridos na
cidade tinham sido instigados por elemento "nocivo e estrangeiro, perverso e alheio aos
nossos hábitos de trabalho e paz".66 Terminado os debates, os participantes do encontro

63
Testemunho do Desembargador Goulart de Oliveira nos Anais do Congresso Nacional de Identificação. In: Arquivos de Medicina
Legal e Identificação, ano IV, nº10. Rio de Janeiro: agosto de 1934, p.103-104; Leonídio Ribeiro. Polícia Scientifica. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara, 1934, p.39-42.
64
Correio Paulistano, 5 de janeiro de 1903.
65
A Polícia Argentina e a Polícia Brazileira no Terceiro Congresso Scientifico Latino Americano, reunido no Rio de Janeiro de 6 a
16 de agosto de 1905. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1905, p.87.
66
Idem, p.91-93.

178
reconheceram o método argentino como um meio seguro e eficaz de identificar uma
população que se deslocava com facilidade pelas fronteiras. Em outubro, os membros do
encontro ratificaram em Buenos Aires um acordo de cooperação para a troca de prontuários
pelo método de Vucetich.67

A identificação do trabalhador
Após a greve que paralisou as ferrovias em 1906, a bancada paulista propôs no
Congresso medidas duras contra os imigrantes. Em janeiro de 1907, o Congresso Nacional
aprovou uma lei permitindo expulsar do território nacional todo estrangeiro indesejável
residente no país por menos de dois anos. O projeto era de autoria do deputado Adolfo da
Silva Gordo (1858-1929), cunhado de Prudente de Moraes e ligado por casamento à família
de Campos Salles.68 A lei estabelecia uma linha divisória entre indivíduos bons, ordeiros e
úteis para o "engrandecimento do país"; e os maus, nocivos e perigosos para a coletividade.
Estes últimos englobavam todos aqueles que atentassem contra a tranquilidade pública,
fossem eles grevistas, mendigos, ladrões ou cáftens. A lei não fazia distinção entre crime
político e de natureza comum.69
Em outubro de 1907, após uma nova onda de greves reivindicando a redução da
jornada de trabalho para oito horas diárias, o secretário da segurança Washington Luís
dirigiu-se ao Rio de Janeiro para firmar um convênio com a polícia do Distrito Federal,
visando a "completa execução da lei de expulsão de estrangeiros".70 A intenção do
secretário era identificar os "agitadores" e expulsá-los do território nacional. Decidido a
equipar a polícia paulista com o sistema Vucetich, Washington Luís seguiu para o Rio de
Janeiro acompanhado pelo delegado João Batista de Souza. O diretor do Gabinete de
Identificação da polícia carioca, Elysio de Carvalho (1880-1925), recebeu-os pessoalmente.
Carvalho era descrito como um apaixonado pelo trabalho policial. Casado com uma rica
herdeira, ele possuía na sua mansão uma das melhores bibliotecas particulares do Rio de
Janeiro, deixando para trás os tempos de estudante, quando fora um poeta boêmio

67
Mercedes Garcia Ferrari. Ladrones conecidos/Sospechosos reservados: Identificación policial en Buenos Aires, 1880-1905. Buenos
Aires: Prometeo, 2010, p.178-185.
68
Alice Beatriz da Silva Gordo Lang. Adolpho Gordo, Senador da Primeira República. Brasília: Senado Federal, 1989, p.47.
69
Lená Medeiros de Menezes. Os Indesejáveis: protesto, crime e expulsão na Capital Federal (1890-1930). Rio de Janeiro: EdUERJ,
1996, p.204-211.
70
Boletim Policial, ano I, nº6, outubro de 1907, p.12-13.

179
simpático à causa anarquista.71 Agora, Elysio de Carvalho era o respeitado editor do
Boletim Policial, revista que fazia publicar trazendo artigos de criminalistas europeus
famosos com os quais mantinha correspondência.
De volta a São Paulo, Washington Luís implantou a datiloscopia, mandando
identificar todos os indivíduos recolhidos nas cadeias e os presos em flagrante. O secretário
elaborou também um projeto regulamentando a identificação judiciária civil. Dessa forma,
ao longo do tempo a polícia teria um arquivo com as impressões digitais de todos os
cidadãos, possibilitando a identificação em massa de trabalhadores, criminosos e
anarquistas.72 Em julho de 1908, a polícia comemorou a primeira identificação de um
reincidente por meio das impressões digitais: tratava-se de uma vítima fatal de um bonde.
Chamava-se Bernardino Tavares da Silva, um indigente de origem portuguesa fichado por
vadiagem.73 Washington Luís parecia seguir os conselhos da polícia argentina, que dizia: “o
criminoso que tem prontuário está sempre preso na polícia”.74 O chefe da Comisaría de
Investigaciones da polícia de Buenos Aires, Don José Rossi, ensinava:

“A polícia, para poder bem desempenhar com êxito sua alta


missão social, necessita conhecer todas as pessoas do meio em que há
de executar sua ação, para observá-las e impedir seus atentados ou
erros. O prontuário destina-se antes de tudo a estabelecer a existência
das pessoas, todas as generalidades (sic) que lhe são próprias e que
permitem sua distinção, em suas peculiaridades de caráter físico,
psíquico, social, etc.” 75

Para tornar esse processo ágil, Washington Luís criou em fevereiro de 1909 o
Gabinete de Investigações. A missão da nova repartição era organizar os prontuários
segundo o sistema Vucetich e confeccionar uma lista de criminosos.76 A ideia deste tipo de
Gabinete tomou forma depois de uma visita do delegado Ascânio Cerqueira a Buenos

71
Jeffrey D.Needell, Belle Époque Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.244.
72
Justiniano Lisboa, op.cit., p.16.
73
Ofício do Gabinete de Identificações datado de 2 de julho de 1908 (APESP), citado por Marco Antônio Cabral dos Santos, op.cit.,
p.287.
74
Annaes do Primeiro Convênio Policial Brasileiro, op.cit., p.57.
75
Idem.
76
Cantinho Filho, Gabinete de Investigações (esboço histórico), 1909-1927. São Paulo: Casa Garraux, 1927, p.4.

180
Aires, onde ele pode observar o funcionamento de uma repartição policial com as mesmas
funções.77 A Argentina havia montado um aparato de vigilância impressionante para
controlar e disciplinar uma força de trabalho de seis milhões de imigrantes, atraídos das
regiões mais pobres da Europa para trabalhar em estâncias, fábricas e matadouros. A
polícia de Buenos Aires possuía técnicas modernas de identificação, classificação e
custódia de presos. A Comisaría de Investigaciones portenha conseguiu aumentar seu
número de prontuários, de 3.500 em 1902, para 292.500 em 1909. Durante esse mesmo
período, o orçamento anual da polícia cresceu de 113.900 para 5.500.000 de pesos.78 A
experiência argentina impressionava os delegados paulistas que viam nela um modelo a ser
seguido.79
O Gabinete de Investigações foi instalado num espaço do prédio da Repartição
Central de Polícia. Logo o local revelou-se insuficiente para a quantidade de prontuários e o
Gabinete foi removido para um prédio vizinho à Central. O número de criminosos
capturados em 1909, data em que
foi inaugurado, foi de 136. Nos dois Oficina para tomada de impressões digitais. Buenos Aires, 1916.
Álbum de fotos do Gabinete de Investigações. (ACADEPOL)
anos seguintes o número atingiu
1.274 capturas. O secretário
comemorou a cifra em seu
relatório.80 Outro a comemorar foi o
chefe do Gabinete de Identificação,
Manuel Viotti, que recebeu
telegramas de congratulações de
diversos especialistas estrangeiros,
entre eles Galton, Lacassagne, Locard e Vucetich, em resposta ao envio de um livreto
comunicando os progressos da polícia paulista.81 A datiloscopia tornou-se o núcleo do

77
"Dr. Ascânio Cerqueira". In: APCSP, volume XII, 2º semestre, 1946, p.481.
78
Laura Kalmanowiecki. "Police, Politics, and Repression in Modern Argentina". In: Carlos A. Aguirre and Robert Buffington (Ed.).
Reconstructing Criminality in Latin America. Wilmington, Delaware: Scholary Resources Books, 2000, p.195-218; Julia Rodriguez,
op.cit.; Ricardo D. Salvatore. "Positivist Criminology and State Formation in Modern Argentina, 1890-1940". In: Peter Becker and
Richard F. Wetzell (Ed.). Criminals and Theirs Scientists: The History of Criminology in International Perspective. New York:
Cambridge University Press, 2006, p.253-279.
79
No Relatório de 1920, op.cit., p.75, o delegado geral escreveu: "Criamos Gabinetes para especialização e maior desenvolvimento dos
serviços de investigação, pois, é esse sistema que, notadamente na República Argentina, tem produzido resultados que a estatística
apontam e com freqüência admiramos".
80
Relatório de 1911, op.cit., p.106.
81
Manuel Viotti. Dactyloscopia e Filiação Morphologica (o systema Vucetich). São Paulo: 1909. Exemplar da biblioteca de Washington
Luís. (APESP)

181
aparelho de vigilância montado por Washington Luís, instituído para todos os cidadãos e
não só os criminosos, pois todos deveriam ter uma identidade, uma individualidade
definitivamente fixada; todos deveriam ter uma profissão, um patrão e gerar ganho a
alguém; todos deveriam, enfim, estar situados dentro de uma hierarquia. Dali em diante, as
pessoas seriam classificadas em prontuários, convertendo-se naquilo que seus prontuários
diziam.
Para completar este esforço, Washington Luís organizou o Primeiro Convênio
Policial Brasileiro. O objetivo do encontro era acertar medidas que permitissem a troca de
prontuários entre todos os estados do Brasil. O intercâmbio asseguraria que aqueles
expulsos do país por atentados contra a ordem não retornassem, instalando-se em outras
regiões. A reunião teve início no dia 7 de abril de 1912 no prédio do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo, do qual Washington Luís era membro. Logo na abertura dos
trabalhos ele explicou que a principal missão da polícia de São Paulo era a "defesa
coletiva", garantido a "tranqüilidade e o trabalho de todos". Em seguida, o secretário
enumerou os avanços da polícia paulista e brindou a todos por estarem ali em “prol do bem
comum”. Terminada a sua exposição, o Dr. Manuel Viotti, discursou para os convidados:

“Seja-me lícito repetir e ninguém ignora que estamos hoje sob


o domínio de condições de existência bem diversas daquelas que nos
animavam anteriormente: há, por assim dizer, um sopro benéfico e
vivificante que anima todas as nobres e elevadas aspirações para o bem;
a ânsia de progresso e de engrandecimento agita o organismo nacional,
e esta reunião, estou certo, há de construir o elo de uma cadeia de
frutuosos benefícios em prol da instituição policial que representais;
quando nada, representará o primeiro passo para o necessário e
indispensável estreitamento de laços fraternos entre os estados, na obra
social de defesa coletiva.” 82

Depois dos aplausos, Elysio de Carvalho, representando o Rio de Janeiro, propôs


aos colegas que telegrafassem às polícias de La Plata, Montevidéu, Buenos Aires e

82
Annaes do Primeiro Convênio Policial Brasileiro, op.cit., p.8.

182
Santiago do Chile comunicando a instalação do Convênio Policial Brasileiro. Foram cinco
dias de reuniões e almoços. No final dos trabalhos, Elysio de Carvalho fez um discurso
emocionado:

“Nesse momento da raça e da civilização latina, modificada


sob o céu da América, há mister em que saibamos proteger a sociedade
contra os elementos perturbadores de sua marcha natural para a
finalidade prevista pelos legisladores e filósofos, organizando a defesa
social sob bases mais sólidas e amplas, e estas não tem terreno mais
seguro nem mais eficaz que a ação comum da polícia continental no
combate contra as múltiplas formas de criminalidade. (…) Não há
missão mais necessária e mais nobre que a de evitar o crime.” 83

O Primeiro Convênio Policial Brasileiro difundiu as vantagens dos arquivos


datiloscópicos. Em pouco tempo, as polícias paulista e carioca estavam trocando fichas com
as polícias da Bahia, Minas e Paraná. Em 1914, o Gabinete de Investigações paulista
registrou a permuta de 652 fichas datiloscópicas com Niterói, Belo Horizonte, Paraná,
Bahia e Rio Grande do Sul, tendo recebido 303 fichas provenientes de Montevidéu,
Assunção e Buenos Aires. Em contrapartida, o serviço de identificação paulista recebeu
ofícios de Madri, Buenos Aires, Rosário e Santiago do Chile solicitando fichas
datiloscópicas de indivíduos suspeitos.84
Em 1914, a datiloscopia estava estabelecida mundialmente como um método
seguro de identificação. Com o falecimento de Bertillon, a França adotou o sistema criado
por Vucetich, coroando um processo de âmbito global. Criada no periferia do sistema por
indianos e um croata radicado na América do Sul, a datiloscopia foi incorporada pelas
polícias européias para dali ser divulgada às demais capitais do mundo, da América do
Norte à China, num círculo característico dos fluxos transnacionais. Às vésperas da
Primeira Guerra Mundial, policiais orgulhosos do seu expertise organizaram em Monte
Carlo o Premier Congrès de Police Judiciaire Internationale para discutir procedimentos

83
Idem, p.42.
84
Relatório apresentado ao Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves, presidente do Estado, pelo secretário da justiça e segurança pública
Eloy de Miranda Chaves. Anno de 1914. São Paulo: Typ. Brasil de Rothschild & Cia., 1915, p.87.

183
de identificação, debater propostas de trabalho conjunto e afirmar acordos entre polícias de
diversos países.85
O Congresso acolheu representantes de 24 países, entre eles França, Itália,
Alemanha, Rússia, Pérsia, Cuba e México. Um dos secretários do encontro foi o delegado
Virgílio do Nascimento, do gabinete de Investigações paulista. Entre as pautas estava a
implementação de um sistema datiloscópico universal, além de formas de comunicação
direta entre as polícias por meio de telégrafo e linhas telefônicas. O diretor do Bureau de
Identificação de Copenhague, Hakon Jørgesen, anunciou a criação de um sistema que
transformava as digitais em um código que podia ser telegrafado para qualquer parte do
mundo. Os presentes aplaudiram a criação dinamarquesa.86
A difusão de práticas policiais refletiu uma aproximação das formas de viver em
sociedade ocorridas a partir da segunda metade do século XIX. A complexidade da
economia industrial, a expansão territorial da população e a governamentalização das
atividades do Estado obrigaram as instituições policiais a promover formas compartilhadas
de trabalho, incentivando a troca de informações e o estabelecimento de padrões técnicos
para a atividade policial.87 Portanto, o processo de modernização da polícia paulista ocorreu
em sintonia com um movimento maior que buscava controlar e vigiar uma população
flutuante de milhões de pessoas organizadas em comunidades próprias que ameaçavam os
discursos nacionais e não respeitavam as fronteiras políticas.
O maior desafio para esta polícia eminentemente moderna veio com a eclosão da
guerra na Europa, em agosto de 1914. Mais uma vez, a polícia foi convocada para controlar
a circulação de pessoas. O medo de sabotadores e espiões levou à elaboração de listas de
suspeitos, à investigação de estranhos e ao reforço da vigilância dos estrangeiros. Na
Inglaterra, tornou-se obrigatório o porte de carteira de identidade com foto. Setenta e cinco
mil indivíduos foram fichados simplesmente por viajarem constantemente ou manterem
correspondência com outros países. Na França, mais de 1.207.000 estrangeiros foram
investigados. Os suspeitos tiveram seus nomes anexados em um carnet B, uma ficha que os
colocava na lista de pessoas perigosas à segurança nacional. O maior trabalho das polícias,
no entanto, recaiu no controle dos distúrbios causados pelas longas filas de abastecimento

85
Mathieu Deflem, op.cit., p.102-103.
86
Simon A. Cole, op.cit., p.225.
87
Mathieu Deflem, op.cit., p.91.

184
provocadas pelo racionamento de alimentos e pela falta de produtos de consumo básicos
como pão, manteiga, farinha e óleo.88 Todos os Estados, tanto os beligerantes como aqueles
que sofriam com os graves efeitos da guerra, se empenharam no controle de sua população
como nunca antes. A guerra e os problemas decorrentes dela obrigaram as polícias a
redobrar seus esforços para garantir a ordem e evitar o caos.

A Guerra e a grande greve


A Primeira Guerra Mundial trouxe consequências desastrosas para o cenário
mundial, mesmo naqueles locais distantes da carnificina. O conflito armado entre as
grandes potências provocou um colapso nos mercados, empurrando a América Latina para
uma grave crise. Bancos fecharam as portas, a libra esterlina desapareceu, o crédito secou e
o preço dos alimentos subiu às alturas. A piora das condições de vida gerou protestos e
enfrentamentos por todo o continente, especialmente nos centros urbanos, onde a carestia
provocava os maiores estragos. Cidades como Buenos Aires, Rosário, Santa Fé, Santiago,
Lima e Callao foram tomadas por greves. Eventos semelhantes atingiram Colômbia,
Equador, Bolívia, Uruguai e Cuba.89 No Brasil, as greves acenderam o debate sobre a
"questão social", expressão da época que designava o conflito entre classes e o risco de um
desmoronamento da ordem.
Na manhã do dia 10 de junho de 1917, os operários da tecelagem Crespi, na
Mooca, entraram em greve pedindo um aumento de 20% e o pagamento dos turnos extras.
Era a segunda vez, desde maio daquele ano, que os trabalhadores cruzavam os braços. O
jornal O Estado de São Paulo já havia alertado para o problema do aumento do custo de
vida. Os aluguéis haviam subido e os alimentos sumido por causa da guerra. O jornal
acusava os açambarcadores de aproveitarem a alta dos preços para vender tudo que fosse
possível às nações em guerra, provocando inflação e escassez de alimentos. Para piorar a
situação dos operários, havia o rebaixamento dos salários provocado pela contratação de
mulheres e crianças no lugar de adultos.90

88
Christopher Andrew. Defend the Realm: The authorized history of MI5. New York: Vintage, 2009, p.79; Hsi-Huey Liang, op.cit.,
p.203; Christopher Capozzola. Uncle Sam Wants You: World War I and the Making of the Modern American Citizen. New York:
Oxford University Press, 2010; David Englander. "Police and Public Order in Britain 1914-1918". In: Clive Emsley and Barbara
Weinberger, op.cit., p.90-138.
89
Bill Albert. South America and the First World War: the impact of the war on Brazil, Argentina, Peru and Chile. New York:
Cambridge University Press, 2002.
90
O Estado de São Paulo, 10 de maio de 1917.

185
Ao ser informado da paralisação, o comendador Rodolfo Crespi (1874-1939)
recusou-se a negociar com os grevistas alegando quebra de disciplina. Os funcionários que
aderiram à paralisação foram demitidos e fábricas fechadas para pressionar os grevistas.
Porém, os trabalhadores estavam resolutos e a polícia teve que intervir. No dia 13 de junho,
o delegado do Brás, Everardo Toledo Bandeira de Mello, intimou os líderes da paralisação
a comparecerem na delegacia. O delegado chamou-os de "malfeitores, desordeiros e
incendiários", acusando-os de derramar notas falsas para financiar a greve. A autoridade
policial não reconhecia a greve como uma forma de luta dos trabalhadores nem a situação
de carestia dos operários, atribuindo o movimento a intenções criminosas.91
No dia 19, um grupo de quinhentos operários dirigiu-se à Repartição Central de
Polícia para pedir a libertação dos companheiros presos na delegacia do Brás. O delegado
geral Thyrso Martins ouviu-os e mandou soltar os detidos para serenar os ânimos. O
delegado Thyrso Queirolo Martins de Souza (1882-1941) era natural do Rio de Janeiro e,
segundo sua biografia, descendente de uma "estirpe honrada". Antes de ingressar na
polícia, ele teve uma breve carreira política no seu estado, mas abandonou-a, transferindo-
se para São Paulo onde tornou-se delegado em 1911. Cinco anos depois já era delegado
regional em Jaú. Amigo pessoal do secretário da segurança Eloy Chaves, Thyrso Martins
92
foi convidado para ser delegado geral em 1917.
A paralisação iniciada pelos trabalhadores da tecelagem Crespi ganhou a adesão
de outras categorias e o movimento agigantou-se. O governo do estado, perplexo com o
rumo dos acontecimentos, convocou a Força Pública para proteger as fábricas. O clima
tornou-se tenso e o confronto, inevitável. Não demorou, os protestos tomaram conta das
ruas. No dia 9 de julho, policiais e grevistas enfrentaram-se diante da fábrica de bebidas
Antarctica, na Mooca. Em seguida, os manifestantes se deslocaram para o Brás, em direção
à fábrica de tecidos Mariângela, que aderiu à paralisação. Uma tropa de reforço, comandada
pelo subdelegado Pamphilo Marmo, foi repelida pela multidão. Os policiais informaram o
delegado geral, solicitando reforços. Thyrso Martins foi recebido com vaias e pedradas. Os
soldados abriram fogo atingindo mortalmente um sapateiro.
Na manhã seguinte, um cortejo fúnebre se formou em frente à residência do
sapateiro morto. Edgard Leuenroth, diretor do jornal A Plebe, descreveu a cena como um
91
Christina Roquette Lopreato, O Espírito da Revolta: a greve geral anarquista de 1917. São Paulo: Annablume, 2000, p.113-120.
92
Prontuário RG. 185.88; "Dr. Thyrso Martins". In: APCSP, vol.I, 1ºsemestre, 1941, p.351-353; Hermes Pio Vieira, op.cit.,1978, p.320.

186
"mar de gente".93 Sob um silêncio impressionante, uma massa de operários, mulheres e
crianças tomou as ruas da Cidade para acompanhar o enterro. Fileiras de soldados da Força
Pública bloquearam o acesso da multidão ao Largo do Palácio. Porém, no desvio da rua
Quinze de Novembro, a multidão parou e aos gritos pediu a libertação do anarquista
Antônio Nalepinski, preso durante os confrontos. O delegado Thyrso Martins procurou
acalmar a multidão, prometendo soltá-lo após o enterro.
No dia 12 de julho de 1917, o comércio da Cidade fechou, os bondes foram
impedidos de circular, faltou gás e comida. Padeiros, leiteiros e funcionários das
concessionárias de transporte aderiram à paralisação. A Cidade ficou refém da greve.
Houve depredações e saques em armazéns. O delegado geral fez apelos aos trabalhadores
no sentido deles manterem a ordem e não cederem aos "agitadores", oferecendo-se como
intermediário na negociação com os patrões. Dado o impasse, o secretário da segurança
Eloy Chaves reuniu-se com os industriais para convencê-los a atender algumas das
reivindicações dos grevistas.94
No dia seguinte, São Paulo amanheceu ocupada por sete mil soldados postados na
frente das lojas e dos prédios públicos. Em um boletim dirigido à população, o delegado
geral aconselhou as "pessoas ordeiras" a não sair às ruas porque a polícia agiria com toda
energia contra os "anarquistas que vinham alimentando a desordem na Cidade". Pelo menos
duas pessoas foram mortas pelos soldados e relatados vários incidentes.95 O secretário da
segurança interferiu na negociação entre patrões e empregados e, no dia 16 de julho, uma
segunda feira, os trabalhadores saíram às ruas para deliberar sobre o acordo. Uma multidão
reunida na Praça da Sé, e outra em frente ao Teatro Colombo, no Brás, decidiram suspender
a greve. Ficou acertado que os empregados receberiam 20% de aumento. Promessas como a
redução da jornada de trabalho para oito horas, o fim do trabalho infantil, a diminuição dos
aluguéis e o tabelamento dos alimentos não foram cumpridas. Os jornais comemoraram o
fim da greve. Entretanto, a ação repressiva não tardou.

93
John W.F.Dulles, op.cit., p.51.
94
Christina Roquette Lopreato, op.cit., p.38-46.
95
Idem, p.53.

187
O "perigo anarquista"
Na madrugada do dia 13 de setembro, um carro lotado de policiais parou em
frente à casa nº 296 na rua da Mooca. Os secretas pularam do carro e escalaram os muros,
enquanto o subdelegado batia na porta. Cercado, o português Antônio Candeias Duarte,
figura popular nos comícios, entregou-se. Ao fundo, seus filhos choravam e sua mulher
perguntava para onde o levariam. Como ele, foram presas mais vinte pessoas que haviam se
destacado durante a greve. Todos acusados de "planejar um ataque ao palácio do
governador". A esposa de Duarte percorreu várias delegacias sem conseguir notícias do
marido. Desesperada, ela pediu ajuda ao cônsul de Portugal. O cônsul intermediou a
libertação de Duarte, após descobrir que os presos haviam sido levados para o porto de
Santos. Duarte conseguiu ser solto enquanto seus companheiros eram deportados. 96 O
delegado geral Thyrso Martins declarou que a ação da polícia pretendia pôr um "fim
definitivo ao clima de inquietação que reinava em São Paulo".97 A deportação era uma
forma rápida de o governo livra-se dos indesejáveis, dispensando os julgamentos e a
necessidade de recolher um conjunto robusto de provas.
A repressão também se voltou contra a imprensa. O jornalista Paolo Mazzoldi, do
Il Piccolo, foi preso acusado de "conspirar contra o governo". O advogado Vicente Rao
retrucou que a polícia pretendia deportar o seu cliente baseado apenas no depoimento de
um secreta que já fora acusado de falsificação de moeda.98 O Combate, Fanfulla, Avanti!,
Diário Popular e O Estado de São Paulo foram igualmente acusados de incentivar
"maquinações subversivas". Para o Fanfulla, a polícia simplesmente inventou um complô,
um "fantasma anárquico", para "golpear uma dúzia de indivíduos que tinham discurso
socialista e organizavam ligas de resistência contra os capitalistas". 99 Entre estes, estava
Edgard Leuenroth (1881-1968), redator do jornal operário A Plebe, cercado por policiais
enquanto caminhava para o trabalho e levado para a delegacia do Brás.
Leuenroth era filho de um imigrante alemão. Órfão de pai, ele cresceu no Brás
vendo de perto miséria e passando dificuldade. Leuenroth começou a trabalhar ainda
criança, fora menino de recados num escritório de corretagem e depois caixeiro numa loja
de tecidos na rua São João. Com quatorze anos, se tornou tipógrafo e ajudou a formar a
96
O Estado de São Paulo, 24 e 25 de setembro de 1917.
97
Correio Paulistano, 27 de setembro de 1917.
98
O Estado de São Paulo, 5 de outubro de 1917.
99
Fanfulla, 23 de setembro de 1917.

188
União dos Trabalhadores Gráficos, onde abraçou o credo anarquista e se dedicou a tornar
os operários conscientes da exploração que sofriam. Ele escrevia em um jornal anticlerical
até a véspera da grande greve, quando lançou A Plebe, que seria o periódico de maior
expressão do movimento de luta sindicalista em São Paulo.100
Ao chegar à delegacia, Leuenroth descobriu
que havia contra ele um inquérito que o acusava de
incitar um assalto ao depósito de farinha do Moinho
Santista durante a greve. Por trás da acusação,
acreditavam seus companheiros, estava o fato dele ser
brasileiro, o que impedia a sua deportação. O
promotor Roberto Moreira, futuro chefe de polícia,
acatou a denúncia contra o diretor de A Plebe.
Leuenroth permaneceu na prisão seis meses até ir a
júri. Defendido por Evaristo de Moraes (1871-1939),
um advogado negro do Rio de Janeiro, filho de
lavadeira e defensor dos operários, Leuenroth
professou sua fé nos princípios libertários e negou ter
Ficha de Edgard Leuenroth (IIRGD)
praticado ou incitado qualquer crime. Sua atuação era
puramente de ideias, afirmou. Sem precisar deliberar por horas, o júri decidiu pela
inocência do réu. O juiz declarou ao final que não ficara provada a participação do
jornalista nos saques.101
As prisões e perseguições arrefeceram por algum tempo o movimento operário,
porém, lembra o jornalista Paulo Duarte, falava-se muito em "infiltração anarquista".102 O
anarquismo era apontado como culpado pelos conflitos entre patrões e empregados em São
Paulo. A grande imprensa não fazia distinção entre libertários, socialistas e sindicalistas.
Eram todos simplesmente "anarquistas", palavra que denotava "ódio contra a sociedade".
No entanto, havia diferenças profundas de postura e objetivo mesmo entre aqueles que se
proclamavam anarquistas. Havia os libertários, que eram contrários aos sindicatos e aqueles

100
Yara Maria Aun Khoury. Edgard Leuenroth: uma voz libertaria. Imprensa, memória e militância anarco-sindicalista. São Paulo, 1988.
Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Sociologia da USP, p.10-11 e 230-231.
101
Sobre Evaristo de Moraes, ver Evaristo de Moraes. Reminiscências de um Criminalista. Rio de Janeiro: Briguiet, 1989; Joseli Maria
Nunes Mendonça. Evaristo de Moraes: tribuno da República. Campinas: Unicamp, 2009.
102
Paulo Duarte, op.cit., vol.5, 1977, p.327.

189
que achavam o sindicato fundamental para a construção de uma sociedade igualitária.
Edilene Toledo esclarece que o movimento operário em São Paulo no início do século XX
foi muito mais sindicalista revolucionário do que anarquista, e mais sindicalista que
revolucionário.103 Alheio a estes detalhes, o governador Altino Arantes (1876-1965)
escreveu em seu diário pessoal que o anarquismo era um "incômodo tumor que nos anda
molestando há tempos e que precisa desaparecer."104
Com a Revolução Russa e a tentativa de levantes operários na Alemanha e na
Hungria, as autoridades brasileiras passaram a enxergar nos movimentos grevistas algo bem
mais sinistro. A deflagração de uma greve geral no Rio de Janeiro, logo após o fim do
conflito na Europa, alimentou os temores das autoridades. No dia 18 de novembro de 1918,
a capital da República ouviu explosões em pontos diferentes da cidade. O chefe de polícia
do Distrito Federal imediatamente atribuiu o atentado a grupos anarquistas insuflados pelo
movimento bolchevique na Rússia. Dezenas de anarquistas foram presos e deportados: os
estrangeiros para o exterior e os nacionais para a ilha de Fernando de Noronha. A imprensa
diária divulgou que a greve e os atentados eram produto de "maquinações estrangeiras",
obra de "criminosos e inimigos do Brasil".105
Durante o ano de 1919, o clima político radicalizou-se no mundo inteiro. Notícias
vindas dos Estados Unidos e da Europa alimentavam a ideia de que uma revolução mundial
estava em curso.106 Na Argentina, grevistas e policiais se enfrentaram na chamada semana
trágica, que culminou em dezenas de mortes e na perseguição dos judeus estabelecidos em
Buenos Aires. A imprensa conservadora falava em "complô soviético", enquanto o cônsul
argentino em Haia advertia para o embarque de russos com destino à América do Sul. Nos
Estados Unidos, 2.500 pessoas foram presas depois da explosão de nove bombas em oito
cidades. Uma onda de histerismo tomou conta do país, levando o Congresso a aprovar a
deportação de mais de 500 imigrantes radicais, incluindo a anarquista Emma Goldman
(1869-1940), embarcada à força num navio apelidado pela imprensa de "arca soviética".107
O senador Adolfo Gordo, alertando para o "perigo" que ameaçava todo o continente, leu em

103
Edilene Toledo, op.cit., p.27.
104
Diário Íntimo de Altino Arantes, 12 de setembro de 1917. (APESP)
105
Sheldon Leslie Maram. Anarquistas, Imigrantes e Movimento Operário Brasileiro (1890-1920). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979;
Carlos Augusto Addor. A Insurreição Anarquista no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Dois Pontos, 1986.
106
"Bolchevismo na França", O Estado de São Paulo, 25 de setembro de 1919; "Os socialistas provocam desordem em Roma dando
vivas a Lênin", Idem, 30 de setembro de 1919; "As greves e o Bolchevismo nos Estados Unidos", Idem, 16 de outubro de 1919.
107
David Rock, op.cit., p.157-179; Ann Hagedorn. Savage Peace: Hope and Fear in America, 1919. New York: Simon & Schuster, 2007,
p.422.

190
plenário uma lei argentina de repressão ao anarquismo e sugeriu que alguns dos seus
dispositivos também fossem adotados no Brasil.108
A repressão ao movimento operário intensificou-se. No dia 17 de outubro de
1919, numa ação conjunta com a polícia carioca, agentes do Gabinete de Investigações
invadiram as oficinas do A Plebe para recolher "propaganda subversiva". Dois dias depois,
uma explosão levou pelos ares uma casa no Brás. Sob os escombros foram encontrados três
corpos mutilados. Uma quarta pessoa foi socorrida com ferimentos graves, morrendo na
Santa Casa. Uma mulher e duas crianças, moradores da casa, ficaram com ferimentos leves.
Os vizinhos assustados reconheceram um dos mortos como sendo Belarmino Fernandes,
um anarquista fichado pela polícia. O delegado geral Thyrso Martins compareceu ao local
acompanhado dos delegados do Gabinete de Investigações. Tudo foi fotografado e
apreendido, inclusive um grande número de panfletos. A polícia declarou aos jornais que as
vítimas, fugindo das batidas policiais, estavam
escondendo explosivos que seriam usados na
fabricação de "máquinas infernais", ou seja,
bombas.109
Com ajuda das impressões digitais, a
polícia conseguiu identificar as vítimas da
explosão e iniciou uma onda de prisões. Dezenas
de anarquistas foram presos, entre eles o jornalista
Everardo Dias, espanhol naturalizado brasileiro.
Mesmo assim, ele teve sua deportação pedida pelo
delegado Virgílio do Nascimento, que ligou-o a
uma das vítimas da explosão no Brás. Segundo o
delegado, Everardo e Belarmino Fernandes eram
conhecidos e já haviam viajado juntos para o Rio Ficha de Everardo Dias (IIRGD)

de Janeiro. Dias também conhecia Raphael Esteves, outro anarquista preso na Argentina
por atentado à bomba em 1909. Costurando informações guardadas nos arquivos e
solicitando prontuários de países vizinhos, o Gabinete de Investigações montou um
volumoso inquérito contra os detidos. No seu relatório, o delegado Virgilio do Nascimento
108
Correio Paulistano, 19 de outubro de 1919.
109
O Estado de São Paulo, 21 de outubro de 1919.

191
acusou Everardo Dias de não se acanhar em defender a utilização de meios violentos para
transformar a sociedade, "destruindo à dinamite" qualquer empecilho à sua causa.110 Com
base no inquérito policial, o jornalista foi removido para o porto de Santos junto com outros
presos. Ali, denunciou O Parafuso, eles foram chicoteados e ficaram quatro dias despidos e
sem alimentação, enquanto aguardavam um navio para leva-los até o Rio de Janeiro.111
Na Capital Federal, Everardo Dias foi embarcado doente em outro navio,
acompanhado por um alfaiate estrangeiro detido com panfletos anarquistas; um espanhol
preso por protestar contra um filme dentro do cinema; um marceneiro que se dizia
perseguido por um delegado; e dois outros imigrantes que se declaravam anarquistas.112
Todos deixavam esposa e filhos no Brasil. O advogado Evaristo de Moraes representou
contra a expulsão alegando sua inconstitucionalidade, porém o Superior Tribunal Federal
decidiu que todo estrangeiro que violasse as leis e pregasse uma guerra declarada contra o
Estado, mesmo radicado no Brasil, não merecia o abrigo da lei.113 Em sentença favorável à
expulsão, os juizes do STF acusavam os militantes anarquistas de casarem com brasileiras
"na suposição que de que assim ficam a coberto da providência administrativa da
expulsão". Os juizes alegavam que "a defesa da organização social é, presentemente, o
maior dos deveres do Estado", o que justificava a expulsão de "hospedes nocivos" que
perturbavam os "naturais sentimentos de ordem e subordinação à lei" dos operários
brasileiros.114
Os dias seguintes à explosão no Brás foram dias de pânico em São Paulo. Todo
indivíduo suspeito era detido e jogado em celas lotadas. As cadeias estavam abarrotadas,
denunciava o jornal O Estado de São Paulo. Enquanto isso, uma onda de incêndios
iluminou os céus da Cidade. Armazéns lotados ardiam sob o olhar da população que
assistia amedrontada àquele espetáculo. A polícia periciou os locais e chegou à conclusão
de que alguns empresários, aproveitando o clima de pânico, incendiaram suas empresas
para fraudar as companhias de seguro.115 No início de novembro, os jornais anunciam a
descoberta de outra casa repleta de explosivos. A polícia foi alertada por um morador que

110
Guido Fonseca. "DOPS: um pouco de sua história". In: Revista ADPESP, p.51.
111
Depoimento de José Righetti ao Parafuso, nº177, 31 de dezembro de 1919.
112
Lená Medeiros de Menezes, op.cit., p.23-25.
113
John W.F. Dulles, op.cit., p.104.
114
Kátia Cristina Kenez e Tatiana da Silva Calsavara. "O anarquista como inimigo social". In: Nilo Odalia e João Ricardo de Castro
Caldeira, op.cit., p.146-147.
115
O Estado de São Paulo, 16 de novembro e 14 de dezembro de 1919.

192
se assustara ao ver objetos que lembravam bombas. Os cômodos da casa estavam
desocupados, porém o dono reconheceu os inquilinos por fotografia. Eram as vítimas da
explosão no Brás.116
Anos mais tarde, o anarquista italiano Luiggi Damiani (1876-1953), expulso do
Brasil em 1919, diria ao seu biógrafo que a explosão do Brás foi um verdadeiro desastre. A
explosão teria acidentalmente frustrado os planos do seu grupo e provocado uma
perseguição de proporções nunca antes vista.117 Ao jornalista Paulo Duarte, o governador
Altino Arantes teria revelado que o grupo anarquista pretendia explodir o palanque das
autoridades durante o desfile de 15 de novembro. O governador soubera do atentado através
de um padre, alertado no confessionário pela esposa de um dos anarquistas. O padre
procurou o bispo que o aconselhou a avisar o governador, mas sem revelar o nome da
mulher. Para Altino Arantes, a explosão no Brás fora um verdadeiro milagre que evitou
males maiores.118
O governo agiu de forma rápida, tachando toda organização operária de
extremista. Everardo Dias narra em suas memórias que a polícia "recrutou espécimes do
bas-found social formando uma teia tenebrosa de espionagem".119 Segundo um jornal
operário, as portas de fábrica ficaram apinhadas de secretas. Um deles, conhecido como
Schmidt, escoltava os caminhões da Companhia Antarctica "acompanhado por vagabundos,
ladrões e desordeiros que se dizem secretas e que talvez o sejam para dar caça ao operário
grevista ou como tal considerado".120 O jornal A Voz do Povo noticiava o sumiço de pais de
família, como o carpinteiro Firmino Duarte e o pedreiro João Lopes, que desapareceram
durante as batidas policiais.121 Não há um número exato de pessoas deportadas durante a
histeria anarquista. Os documentos disponíveis indicam apenas que bastava o depoimento
de um secreta, na maioria das vezes escalado para vigiar o suspeito, para a pessoa ser
deportada.
Durante os anos seguintes, a polícia continuou atuando contra os chamados
"semeadores do mal". No relatório de 1921, o delegado geral celebrou:

116
O Estado de São Paulo, 7 e 8 de novembro de 1919.
117
John W.F.Dulles, op.cit., p.98.
118
Paulo Duarte, op.cit., vol.5, p.328-329.
119
Everardo Dias, op.cit., p.93-94.
120
Germinal, 21 de junho de 1919, citado in: Kátia Cristina Kenez, Movimento operário em 1919: repressão e controle social.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História da USP, 2001, p.116.
121
A Voz do Povo, 15 de agosto de 1920, citado in Lená Medeiros de Menezes, op.cit., p.228.

193
"Não tivemos a registrar, felizmente, perturbações de maior
volume na ordem pública. (…) A atividade anarquista sofreu constante
vigilância da polícia e esse desempenho de perseguição aos semeadores
do mal, teve manifestação positiva na belíssima diligência levada a
êxito no dia 29 de abril corrente, no bairro de Pirituba, pelo diretor do
Gabinete de Investigações, que conseguiu apreender um grande material
ali escondido. (…) nada menos de 76 cartuchos de dinamite (…) e 4
bombas preparadas." 122

Em 1924, durante a rebelião militar que ocupou a Cidade, o presidente da


Associação Comercial de São Paulo alertou o chefe dos revoltosos, o general Isidoro Dias
Lopes, sobre o "perigo anarquista":

"Não faltam na Cidade perigosíssimos elementos anarquistas –


italianos, espanhóis, russos e de outras nacionalidades, esperando só o
momento oportuno para subverter a ordem pública e a ordem social.
Representante das classes conservadoras, venho apelar para V.Exa.,
afim de que seja prestado ao sr. Dr. Franklin Piza, diretor da
Penitenciária, todo o auxílio material e moral afim de que ele possa
continuar a manter num campo neutro garantidor da ordem social, os
sentenciados que se acham sob responsabilidade daquele ilustre
paulista."123

A despeito do pânico disseminado pelos meios de comunicação, o "perigo


anarquista" nunca foi uma ameaça real, muito menos um grupo organizado atuando de
forma coordenada e conjunta em São Paulo ou no resto do mundo. O movimento anarquista
refletiu, em muitos momentos, uma revolta latente contra a injustiça, porém seus
simpatizantes eram libertários reunidos em diversas correntes, a maioria delas associativas
122
Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Washington Luís Pereira de Souza, presidente do Estado, pelo Secretário da Justiça e
Segurança Pública Francisco Cardoso Ribeiro. Anno 1921. São Paulo: Typ. Casa Garraux, 1922, p.85.
123
"Carta endereçada pelo Dr. José Carlos de Macedo Soares ao Chefe dos Revoltosos", 21 de julho de 1924. Arquivo Macedo Soares,
caixa 153, pacote 03. (APESP)

194
e contrárias à violência. No entanto, a imagem do anarquista furioso, construída pelas
autoridades e divulgada pela grande imprensa, servia para alarmar a sociedade e incentivar
a montagem de um aparelho de vigilância que reprimisse a todo custo o movimento
operário. O pânico relacionado ao anarquismo impulsionou o aparelhamento da polícia
paulista e a criação de um departamento especializado no controle de explosivos e na
vigilância do meio operário.

A Delegacia de Ordem Política e Social


Em 1921, Washington Luís assumiu o governo do estado prometendo uma
administração arrojada. Em seus discursos, ele prometia renovação, mas na prática
permaneceu ligado às famílias de Tibiriçá e Bernardino de Campos, fazendo política como
seus antecessores. O jornalista e poeta Amadeu Amaral acusou o ex-secretário da segurança
de representar o atraso porque enxergava a questão social como “caso de polícia".124
Embora Washington Luís nunca tenha usado tal expressão, era notório que o ex-secretário
da segurança considerava a "agitação operária" uma questão de "ordem pública", portanto,
problema da polícia.125
Washington Luís, em seus discursos de candidato, elogiava a polícia de carreira
"que tão bons serviços tem prestado à ordem pública" e a Força Pública que deveria
continuar "disciplinada para render toda a eficiência de que é capaz". 126 O candidato
reafirmava assim a máxima de Campos Salles: "uma boa polícia é condição de um bom
governo". Preocupado em manter a polícia civil fiel e atuante, o governador eleito indicou o
delegado João Batista de Souza (1875-1949), um antigo colaborador seu, para ocupar o
cargo de delegado geral. Souza estava entre os mais antigos delegados da polícia paulista.
Natural de Itu, formou-se advogado sonhando montar um escritório, mas suas amizades o
levaram a assumir um posto de juiz de paz e depois o de subdelegado na delegacia da Barra
Funda, em 1902. Ali, atuou como auxiliar do delegado Ascânio Cerqueira, tornando-se
mais tarde assistente do chefe de polícia Antônio de Godoy, em nome do qual estreitou
laços com a polícia argentina.127

124
O Estado de São Paulo, 22 de abril de 1922.
125
Célio Debes, op.cit., p.299.
126
Eugenio Egas, op.cit., vol.3, p.33-34.
127
Agnelo Rodrigues de Melo. "Antônio de Godoi Moreira e Costa e os Fundamentos da Atual Polícia de São Paulo". In: APCSP,
vol.XII, 2ºsemestre, 1946, p.230

195
Depois do falecimento precoce de Antônio de Godoy, Souza ascendeu ao cargo de
titular da 1ª Delegacia, onde relatou inquéritos famosos que ganharam as manchetes dos
jornais, entre eles o crime da mala, o crime da Galeria Cristal e o assassinato do coronel
Negrel. Em 1906, Washington Luís o encarregou das questões operárias e, em pouco
tempo, ele era apontado como braço direito do enérgico secretário da segurança. 128 João
Batista de Souza mantinha laços estreitos com antigos colegas dos bancos da Faculdade,
como o genealogista Frederico de Barros Brotero, cujo filho casou-se com uma neta de
Tibiriçá, e o banqueiro José Maria Whitaker, de quem chegou a ser sócio. Ao ser nomeado
delegado geral, Souza trabalhou pela indicação de outro amigo das Arcadas, o juiz
Francisco Cardoso Ribeiro, para ocupar a Secretaria da Segurança.129
Como delegado geral, ele defendeu reformas urgentes na polícia. São Paulo ainda
era policiada como em 1910, escreveu em seu relatório de 1920.130 Seguindo a tendência
dos países industrializados, o delegado geral propôs uma profunda reforma no antigo
Gabinete de Investigações, criando departamentos especializados para a investigação de
crimes de naturezas diversas. Escreveu o delegado no seu relatório:

"Um breve relancear de olhos pelo vasto campo de operações


ininterruptas (da polícia) põe logo em evidência claríssima o relevante
papel do serviço de investigações nas modernas organizações policiais.
Serviço extremamente difícil, visceralmente delicado e cheio de lances
inesperados, o seu modelar aparelhamento é cousa de vantagens
indiscutíveis. Nos grandes centros a polícia de investigações mantém-se
em atividade permanente e incalculáveis são os proveitos que se tiram
dessa vigilância." 131

128
"Dr. João Batista de Souza, o criador das delegacias especializadas de São Paulo". In: APCSP, vol.XII, 2º semestre de 1946,
p.485-486.
129
Frederico de Barros Brotero, op.cit., 1947, p.117-119.
130
Relatório apresentado ao Dr. Francisco Cardoso Ribeiro, Secretário da Justiça e Segurança Pública, pelo Delegado Geral Dr. João
Batista de Souza referente ao ano de 1920, p.79.
131
Relatório apresentado ao Dr. Francisco Cardoso Ribeiro em "Dr. João Batista de Souza, o criador das delegacias especializadas de São
Paulo", op.cit., p.489.

196
Repartição Central de Polícia, 1920

Sentado ao centro, o delegado João Batista de Souza, acompanhado dos seus delegados distritais. Em pé, ao fundo,
jovens delegados que se tornariam importantes diretores da polícia nas décadas de 1930 e 1940. Do segundo da esq. para
a dir: Gustavo Galvão, Bráulio de Mendonça Filho, Juvenal Piza e Afonso Celso de Paula Lima. (coleção particular)

O Gabinete de Investigações passaria a comportar sete delegacias especializadas:


a Delegacia de Segurança Pessoal; de Furto e Roubos; de Vigilância e Capturas; de Jogos e
Costumes; de Falsificações; de Técnica Policial; e de Ordem Política e Social. O projeto de
reforma ficou pronto em 1922 e foi posto em execução logo após o movimento militar de
1924. Uma das novas delegacias especializadas que mais recebeu recursos foi a Delegacia
de Ordem Política e Social, encarregada da prevenção e repressão dos delitos de ordem
política, assim como da fiscalização do fabrico de armas e explosivos. O DOPS, como
ficou conhecido, recebeu um fichário próprio, além de uma verba especial. Tão logo a
delegacia entrou em atividade, foram-lhe fornecidos pelas fábricas mais de cem mil cartões
com os dados dos seus operários.132 Somado a isto, o DOPS promoveu um censo industrial
que pretendia fichar todos os trabalhadores do estado. O delegado Cantinho Filho, chefe do
Gabinete de Investigações recomendou que a medida fosse estendida também para o
comércio e seus empregados.133

132
Cantinho Filho, op.cit., p.20.
133
O Gabinete de Investigações (Annaes de 1926) apresentado ao exmo. Sr. Dr. Roberto Moreira, DD. Chefe de Polícia do estado pelo
Dr. Raphael Cantinho Filho, Chefe do Gabinete de Investigações. São Paulo: Diário Oficial, 1927, p.8-11.

197
Em 1927, o Gabinete de Investigações contava com um arquivo de mais de 200
mil prontuários, acumulados desde 1910.134 No ano seguinte, o chefe do Gabinete, fazendo
um balanço do seu trabalho, destacou a atuação do DOPS:

"Uma perfeita estatística do operariado vem sendo feita com


êxito, de molde a permitir um perfeito conhecimento dessas massas de
obreiros que fazem o progresso material de S. Paulo. Por essa estatística
desmente-se a afirmação de que a maior parte dos nossos operários se
constitui de estrangeiros, porque a verdade é que ela se compõe de
brasileiros. O engano vem do fato de muitos brasileiros, especialmente
em São Paulo, terem os nomes de origem estrangeira"135

Com isso, o delegado deixava claro que a tática de expulsão estava superada,
restando ao Estado pensar em outras estratégias para vigiar e controlar um setor da
sociedade fundamental para o progresso de São Paulo. O delegado relatava que o trabalho
do DOPS "requer mil cautelas e cuidados e uma constante vigilância, no sentido de ser
evitada a perturbação da ordem". Assim, justificava-se a infiltração do meio operário nos
moldes do já era feito com a marginalidade. Contudo, a identificação permaneceu sendo a
principal arma para combater os "perturbadores da ordem", por isso o chefe do Gabinete
pedia recursos para ampliar o mapeamento do meio operário, dizendo que "seria de grande
vantagem que se tornasse obrigatória a identificação dos operários, da mesma forma por
que já se exige hoje a identificação dos condutores de veículos, vendedores ambulantes,
carregadores e empregados domésticos."136
O trabalho do DOPS era exaustivo e minucioso. A delegacia contava com
informações sobre 203.736 trabalhadores, com endereço, salário e informações cruzadas
sobre associações, hábitos e redes sociais dos fichados. Destes, 2.800 apareciam
classificados como "agitadores", estrangeiros a maioria. A delegacia planejava recensear os
empregados domésticos e do comércio em geral, além de mapear os trabalhadores de outras

134
Relatório de 1926, op.cit., p.6; Cantinho Filho, op.cit., p.15.
135
Otávio Ferreira Alves, "Polícia de S. Paulo", op.cit., p.74.
136
Idem.

198
cidades.137 O relatório de 1929 inicia assegurando que o DOPS continuava sua ação
"ininterrupta" de "vigilância dos elementos perniciosos à segurança interna da República e
da ordem social: agitadores profissionais e demais adeptos de ideias subversivas". Com
esse objetivo, prosseguiam os esforços de realizar "um escrupuloso recenseamento
proletário". Trabalhando nesse sentido, a delegacia procedeu a identificação de 698
garçonettes.138 Segundo um cronista, "essas louras criaturas” que servem nos cafés de São
Paulo eram, na sua grande maioria, de origem estrangeira, principalmente dos países da
Europa Central. Moravam em “cortiços no Brás ou em porões no Bexiga" e, para escapar
da fome, muitas aceitavam trabalhar em bares frequentados por homens em troca de altas
gorjetas.139
A atividade das garçonettes não passou despercebida pelo DOPS no seu esforço
de mapear uma sociedade que se transformava continuamente. Nenhuma atividade que
gerasse renda e mobilizasse um número expressivo de pessoas parecia escapar à vigilância
policial. Controlar todas as formas de trabalho era uma forma de controlar a população,
fosse o trabalho licito ou não, como no caso do jogo e da prostituição que serviam de fonte
de renda para alguns e de lazer para outros.

A ilegalidade tolerada
O jogo e a prostituição eram formas de trabalho não reconhecidas formalmente,
acompanhadas de perto pela polícia. Condenadas pela moral e postas na ilegalidade, ambas
atividades serviam de fonte de renda para muita gente. Pessoas inválidas, ex-sentenciados e
excluídos do mercado de trabalho encontravam no jogo do bicho uma forma de sustento,
enquanto moças necessitadas, muitas delas nascidas em lares pobres na Europa, viviam da
prostituição para fugir da miséria.140 A prostituição, embora moralmente reprovada, era
bem-vinda na sociedade paulista, pois segundo alguns juristas, ela preservava a
“moralidade dos lares, a pureza dos costumes no seio das famílias” e permitia aos moços
arrefecer seus impulsos numa fase em que a sexualidade se mostrava muito intensa.141

137
Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo, em 14 de julho de 1927, pelo Dr. Antônio Dino da Costa Bueno, presidente do
Estado de São Paulo, p.75.
138
Relatório de 1929, op.cit., p.112.
139
O Malho, 13 de setembro de 1930.
140
Beatriz Kushnir. Baile de Mascaras: mulheres judias e prostituição. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
141
Nelson Hungria. Comentários ao Código Penal (1940). Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.271.

199
Ambas atividades eram condenadas publicamente, mas sem efeitos práticos. De tempos em
tempos, a polícia lançava campanhas moralistas que não duravam mais de dois meses.
Ambas atividades também traduziam as mudanças operadas na Cidade. O jogo do
bicho surgiu no Rio de Janeiro quase simultaneamente à República. O sorteio de números
premiados de forma clandestina existia na Itália, em Cuba e nos Estados Unidos, onde era
muito popular entre os negros e os latinos.142 Introduzido no Brasil por estrangeiros e
explorado por filhos de imigrantes, o sorteio de números relacionados com animais caiu no
gosto popular, tornando-se uma atividade barata, fácil e lúdica. O escritor João Ribeiro
(1860-1934) dizia que "o jogo do bicho é o único que permite arriscar um vintém ou um
tostão com todo o aparato imaginativo do sonho e do palpite".143 Num ambiente regido pelo
trabalho duro e mal remunerado, o jogo do bicho oferecia uma possibilidade de
enriquecimento para aqueles que apostavam em seus animais, mas principalmente para os
que bancavam o jogo.144
O jornal O Estado de São Paulo denunciava, no início de 1900, que o jogo já
havia se expandido pelo interior do estado, chegando até Batatais. 145 Segundo o Correio
Paulistano, o Brás era o bairro onde mais se jogava, não havendo um armazém, quiosque
ou quitanda que não aceitasse uma "fezinha".146 A Cidade oferecia jogos de toda espécie:
roleta, dados, carteado. Em 1896, num momento em que a República era ameaçada por
revoltas e crises internas, os jornais reclamavam que São Paulo estava infestada de casas de
jogos. Atendendo ao "clamor público", o chefe de polícia promoveu uma campanha
"saneadora" contra o jogo. Clubes com nomes sugestivos, tais como Sportmann Club,
Clube dos Girondinos e Círculo Paulista, foram fechados e todo o material de jogo
apreendido e levado para a frente da Repartição Central de Polícia. Ali, na vista do público,
o chefe de polícia ordenou a queima de roletas, mesas, baralhos e todo o material
confiscado nas casas de jogos.147 A campanha moralizadora alcançou também o jogo do

142
Joseph Bonanno. A Man of Honour: The autobiography of a godfather. London: Unwin Paperbacks, 1984, p.20; Ann Fabian. Card
Sharps and Bucket Shops: Gambling in Nineteenth Century America. New York: Routledge, 1999, p.108-152; Shane White et al..
Playing the Numbers: Gambling in Harlem between the wars. Cambridge: Harvard University Press, 2010.
143
O Estado de São Paulo, 20 de fevereiro de 1930. Citado in: Renato José Costa Pacheco. Antologia do Jogo do Bicho. Rio de Janeiro:
Simões Editora, 1957, p.54.
144
Micael Herschmann e Kátia Lerner. Lance de Sorte: o Futebol e o Jogo do Bicho na Belle Époque Carioca. Rio de Janeiro: Diadorim,
1993; Simone Simões Ferreira Soares. O Jogo do Bicho: a saga de um fato social brasileiro. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993; Roberto
DaMatta e Elena Soárez. Águias, Burros e Borboletas: um estudo antropológico do jogo do bicho. Rio de Janeiro : Rocco, 1999,
p.93-99.
145
O Estado de São Paulo, 19 de abril de 1900.
146
Idem, 29 de julho de 1896 e 16 de fevereiro de 1902.
147
Correio Paulistano, 29 e 31 de maio, 2, 3 e 6 de junho de 1896.

200
bicho. No dia 31 de julho, a imprensa informava que o português Manuel Vicente Ribeiro,
dono de uma quitanda no Largo do Rosário e tido como o maior bicheiro de São Paulo, teve
seu estabelecimento fechado. Porém seus apontadores continuavam espalhados pela
Cidade.148
Há no Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo um processo contra o bicheiro
Francisco La Regina, autuado em 18 novembro de 1908. La Regina explorava o jogo do
seu chalé, localizado na rua Quinze de Novembro, à vista de todos. O inquérito policial
apresenta como indício contra o bicheiro mais de trinta páginas cheias de bilhetes de aposta
preenchidos a mão, além de registros contábeis e da propaganda encontrada no chalé. Seu
defensor, um advogado de prestígio em São Paulo, argumentava em folhas timbradas e
datilografadas que o processo era nulo porque a polícia se baseava no depoimento de
secretas "incumbidos de espionar" o seu cliente. Além disso, o estabelecimento e a
atividade comercial do acusado eram legais perante a prefeitura, pagando ele regiamente
todas as taxas de funcionamento. Em sua sentença, o juiz Luís Ayres de Almeida Freitas
considerou improcedente a acusação contra La Regina.149
Em 1915, o senador do Distrito Federal, Érico Coelho, propôs a legalização do
jogo do bicho, alegando que a atividade havia se tornado um negócio extremamente
rendoso e difícil de combater. A proposta do senador foi derrotada e o jogo do bicho
continuou uma contravenção, um caso de polícia.150 A relação do Estado com o jogo era, no
mínimo, ambígua. Jogos populares, como o jogo do bicho e as brigas de galo, eram
perseguidos, enquanto as autoridades, tão zelosas da moral e dos bons costumes, permitiam
as corridas de cavalo, frequentadas por cavalheiros e damas num ambiente marcado pela
elegância e o requinte. Um dos órgãos de imprensa que mais denunciava a hipocrisia das
autoridades era O Parafuso:

"Não se passa um dia sem que se abra em S. Paulo mais um


antro de vício em que o jogo do bicho é bancado às escancaras. O
Triangulo está infestado por todos os lados. As ruas adjacentes contam

148
Idem, 31 de julho de 1896.
149
Sentença do processo contra Francisco La Regina, datado de 2 de dezembro de 1908. (ATJSP)
150
Micael Herschmann e Kátia Lerner, op.cit., p.67.

201
uma casa em cada quarteirão. Os arrabaldes ostentam bancas em
rebuços. Até os bairros longínquos foram invadidos pela praga.
Que faz a polícia? Depois de um ou outro cerco esporádico,
cruza os braços e deixa correr o marfim. (…) Ao nosso ver é aqui que
está a explicação da atitude da polícia. Não convêm, de modo nenhum,
exterminar o bicho porque seria suprimir uma gorda fonte de renda."151

Fazendo questão de atingir pessoas poderosas, O Parafuso informava os seus


leitores que "o pessoal graúdo do Automóvel Club, quando perde no baccarat, sai em busca
de uma fezinha na roleta da Rótisserie Sportsman", onde se jogava desbragadamente e, se o
secretário da segurança ignorava, é porque "lhe convinha".152 Determinado a desmascarar
as autoridades, Benedito de Andrade (1889-1921), dono do Parafuso, publicou as
declarações de um ex-delegado de polícia que acusava os seus superiores de proteger e
lucrar com a jogatina. O delegado Paulo Lacerda havia sido transferido da cidade de
Batatais devido à investigação de um assassinato por encomenda. Segundo o delegado, o
mandante parecia ser "conterrâneo, amigo ou talvez parente do Sr. Altino Arantes", motivo
pelo qual o transferiram para São Manuel. Em sua nova comarca, o delegado moveu uma
perseguição ao jogo, entrando em conflito com o subdelegado local, "cria dos Rodrigues
Alves". Lacerda acabou removido novamente, dessa vez para Mogi-Mirim. Ali, os donos
de terra eram também empresários do jogo e logo o delegado entrou em choque com eles.
Chamado a São Paulo, Lacerda ouviu do delegado geral que "o chefe político de Mogi-
Mirim se queixava de que o estavam prejudicando econômica e politicamente, (…) pois os
bicheiros eram eleitores e, assim, a sua perseguição às vésperas de um pleito eleitoral
influiria no resultado das urnas." O Dr. Thyrso Martins aconselhou-o a desistir da
campanha, dizendo que o secretário da segurança, Herculano de Freitas, em sua sabedoria,
se referia ao jogo como "uma das bases da fortuna pública". Diante disso, o delegado
deixou a reunião e pediu exoneração.153
Paulo Lacerda era filho de um juiz austero do município de Vassouras, no Rio de
Janeiro; um magistrado que no passado lutara pela Abolição e pela República, fora ministro

151
O Parafuso, nº20, 6 de novembro de 1915.
152
Idem, nº137, 25 de março de 1919.
153
Idem.

202
de Prudente de Morais e exercia um cargo no Supremo Tribunal Federal. O juiz colocou o
filho na polícia de São Paulo esperando que ele "criasse juízo". Contudo, a carreira do filho
foi curta. Depois do desentendimento com seus superiores por causa do jogo, Lacerda
voltou para o Rio de Janeiro. Lá, abriu um escritório de advocacia, defendeu um operário e,
para desespero da sua esposa, filiou-se ao partido comunista. Sua esposa, filha de uma
família rica, exigiu que ele escolhesse entre a "camarilha do PCB" e ela. Paulo Lacerda
optou pelo comunismo, tornando-se um dos líderes do partido nos anos 1930.154
Benedito de Andrade chamava o jogo de "cancro social", mas ele próprio era um
jogador inveterado que terminou perdendo muito dinheiro e devendo para agiotas. O
escritor Oswald de Andrade (1890-1954) revela em suas memórias que o dono do Parafuso
era "um bastardo da família Souza Queiroz, filho da cozinheira com o patrão". 155 Mulato,
forte e briguento, Babi, como ele gostava de ser chamado, usava sua revista para incomodar
uma sociedade cujas portas estavam cerradas para ele. Ofereceram-lhe a colocação de
telegrafista e soldado, mas ele nunca se contentou em viver numa posição subalterna,
brigando para ocupar um espaço de relevo numa sociedade sabidamente preconceituosa e
que o lembrava de sua origem a todo instante. Depois de trabalhar em revistas de cultura e
variedades, Babi fundou O Parafuso em 1915. Usando e abusando do escárnio e do
escândalo, ele enfrentou a fúria do deputado Antônio Moraes de Barros em plena rua,
trocou ofensas com Júlio de Mesquita e foi condenado a quatro meses de cadeia por acusar
o secretário da segurança Eloy Chaves de falcatruas.156 Segundo o jornalista Paulo Duarte,
Babi de Andrade usava seu semanário para arrancar quantias imensas de pessoas que
pagavam para não ver seus nomes metidos em escândalos. Falido e na iminência de perder
a revista, preferiu dar um tiro na cabeça a se ver na miséria e tornar-se motivo de chacota
dos seus inimigos.157
Apesar de ser uma contravenção, o jogo se espalhava. Quando Washington Luís
assumiu o governo do estado em 1921, São Paulo assistiu a uma nova campanha contra o
jogo.158 O Estado de São Paulo elogiou a ação: "Nunca na nossa civilizada capital se jogou

154
John W.F.Dulles. Carlos Lacerda: a vida de um lutador, vol. I. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p.5-13; Id, op.cit., 1977, p.208.
155
Oswald de Andrade. Um Homem sem Profissão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, p.53.
156
O Parafuso, nº4, 20 de março 1915; nº5, 27 de março de 1915; nº6, 3 de abril de 1915 e nº31, 22 de janeiro de 1916.
157
Paulo Duarte, op.cit., vol.8, 1978, p.215-218; Laudo de suicídio de Benedito de Andrade datado de 20 de dezembro de 1921. In:
Corpos de Delicto, Livro nº7920 (APESP).
158
Washington Luís, quando foi secretário da segurança, fez publicar um manual, Instruções Policiais para a Repressão dos Jogos
(S.Paulo: Typ. Brazil de Rothschild & Cia, 1909), com instruções para combater o jogo. Na sua introdução, o secretário adverte os
delegados: "Dentro da lei encontrarei os meios para perseguição do terrível vício do jogo, e só com a lei deveis agir". A despeito de

203
tanto como agora. Era uma vergonha se tal anomalia continuasse. A polícia não podia ficar
impassível ante as contínuas reclamações que se faziam nesse sentido."159 Assim pensava a
Liga Nacionalista, que empreendia através dos jornais uma campanha incansável contra o
jogo. A Liga declarava que "o jogo tira o hábito do trabalho, conduz à ociosidade, inutiliza
o cidadão para as carreiras produtivas, rouba o sustento e infelicita muitas famílias". "São
Paulo", dizia o artigo, "deve ser a capital do trabalho, da indústria e do comércio", não do
vício.160 O delegado geral João Batista de Souza era de opinião que a repressão ao jogo
dava à polícia conforto moral e um apoio valioso.
Porém a repressão policial teve pouco fôlego. O delegado geral alegava que o
maior entrave para fechar os cassinos espalhados pela Cidade era um decreto de 1920,
concedendo aos clubes e cassinos, localizados em estações balneárias, permissão legal para
explorar jogos de azar. Era corrente que a lei fora feita de encomenda para a família dos
donos do luxuoso Hotel Copacabana, onde havia um cassino frequentado por políticos e
pessoas da alta sociedade. Os Guinles eram empresários respeitadíssimos que, além do
cassino, controlavam as docas de Santos e do Rio de Janeiro.161 O delegado geral lamentava
que funcionários da Fazenda concedessem licenças para cassinos funcionarem em São
Paulo como se aqui fosse uma estação balneária. Empresários muito bem relacionados
aproveitavam a lei para abrir estabelecimentos como o Club Appollo, o Sport Club (que
funcionava numa casa de tolerância), o Recreativo Sport Club (que ficava na tradicional
Rótisserie Sportsman) e o Palácio Club na rua Quinze de Novembro.
Ilustrando os males do jogo, o delegado enumerou algumas tragédias em seu
relatório, tais como o suicídio de uma francesa arruinada em uma mesa de apostas; o
suicídio de um funcionário da Estrada de Ferro Araraquarense que desviou uma quantia
elevada da companhia para jogar, além de outros empresários que deram cabo das suas
vidas depois de desfalcarem os negócios e suas famílias.162 Dali em diante, a atuação

desaprovar abertamente o jogo, sua administração não promoveu um combate efetivo contra a jogatina, provavelmente para não
desagradar seus aliados políticos.
159
Relatório de 1920, op.cit., p.84-85.
160
O Estado de São Paulo, 2 de setembro de 1919.
161
Marcos Luiz Bretas, op.cit., p.74.
162
Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Washington Luís Pereira de Souza presidente do Estado pelo secretário da justiça e da
segurança pública Francisco Cardoso Ribeiro. Anno de 1921. São Paulo: Casa Garraux, 1922, p.86-96; Relatório da polícia do
Distrito Federal apresentado ao Exmo. Sr. Dr. Augusto de Vianna do Castello ministro da justiça e negócios interiores pelo Dr.
Coriolano de Araújo Góes Filho chefe de polícia do Distrito Federal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1929, p.18.

204
policial se restringiu a multar os estabelecimentos de jogo e comemorar quando o valor das
multas arrecadadas aumentava.163
O crescimento demográfico da Cidade estimulou mudanças culturais profundas.
Nesse momento de intenso incremento comercial e de expansão do consumo, a vida boêmia
passou a exercer um enorme fascínio como lugar de evasão da vida cotidiana regrada. Daí a
proliferação de novas formas de diversão inspiradas em hábitos europeus, como cinemas,
teatros, restaurantes, cafés, assim como bordéis luxuosos e salões de jogos modernos.
Walter Benjamin comparava o salão de jogos ao bordel, dizendo que os dois ofereciam o
mesmo deleite: "enfrentar o destino no prazer".164 Concentrados nas áreas centrais da
Cidade, próximos aos bares, teatros e cinemas, os cassinos e bordéis atraíam toda sorte de
pessoas: de políticos a marginais. O mais famoso e elegante bordel da Cidade era o Hotel
dos Estrangeiros, um cenário suntuoso, com espelhos, bailarinas e muitas mundanas
estrangeiras em busca de comissários de café e endinheirados da elite paulista.165 A
prostituição era vista como um mal necessário que deveria ser tolerado, porém
rigorosamente controlado.
A primeira tentativa de regulamentar a prostituição na Cidade de São Paulo
ocorreu em 1896, durante a chefia de Xavier de Toledo. O 2º delegado auxiliar Cândido
Motta, obedecendo a um pedido do chefe de polícia, baixou um regulamento defendendo os
"bons costumes". O regulamento procurava evitar escândalos e cenas imorais no espaço
público. Pela primeira vez, se produziu uma lista das meretrizes, com nomes, idades e
endereços. Eram quase todas estrangeiras, assim como aqueles que as exploravam. Em sua
maioria, os homens que as traziam de vilas pobres perdidas nos confins da Europa Oriental
eram de origem judaica, dizendo-se negociantes, mas vivendo da prostituição. O 2º
delegado auxiliar relatou que quando eles não estavam fiscalizando suas rameiras podiam
ser vistos jogando em clubes nas ruas Senador Feijó, Quintino Bocaiúva e Glória.166
A imprensa sensacionalista denunciava o tráfico internacional de mulheres usando
muita liberdade imaginativa para descrever a perdição das "jovens ingênuas exploradas por
rufiões desalmados". Essas histórias inspiraram uma leva de películas que causavam

163
Mensagem apresentada ao Congresso Legislativo na seção da 14ª legislatura, em 14 de julho de 1929, pelo Dr. Júlio Prestes de
Albuquerque, Presidente do Estado de São Paulo. São Paulo: Typographia do Diário Official, 1929, p.183.
164
Walter Benjamin, op.cit., p.531.
165
Margareth Rago. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo: Paz e
Terra, 1991, p.80 e 89.
166
Guido Fonseca. História da Prostituição em São Paulo. São Paulo: Resenha Universitária, 1982, p.145.

205
indignação no público.167 O tráfico de "escravas brancas" foi um dos muitos fantasmas que
assustaram a sociedade no fin-de-siècle. Associações filantrópicas, como a Associação
Judia para a Proteção de Mulheres e Meninas (JAPGW), se mobilizaram para denunciar o
tráfico e a exploração de mulheres. Patrocinada pela herdeira de uma família de banqueiros,
a associação organizava conferências pelo mundo alertando contra o comércio imoral de
mulheres brancas, recrutadas dos lugares mais pobres da Europa. A repercussão das
denúncias levou à realização de congressos internacionais na Inglaterra, Holanda, França e
Alemanha, com a finalidade de reprimir o comércio de "escravas brancas" e dotar os países
de uma legislação mais apropriada para enfrentar o problema.168
A historiadora Margareth Rago pondera que a grita em torno do tráfico acabou
sendo maior que ele próprio, construindo um "minotauro moderno" através do qual se
enrijeceram os padrões femininos de moralidade. A anarquista Emma Golman insistia que
o debate sobre o problema da prostituição estava sendo desviado das condições
socioeconômicas que levavam à exploração da mulher, para um discurso criminalizante do
cáften.169 Discurso este que fortalecia a vigilância e a suspeição sobre os estrangeiros. Em
1912, o secretário da segurança Raphael Sampaio Vidal informava que a polícia estava
atenta para evitar a entrada de cáftens e anarquistas pelo porto de Santos. No ano seguinte,
o relatório da secretaria comemorava a expulsão de 39 "exploradores do lenocínio". Todos
estrangeiros.170 Dessa forma, o combate ao tráfico de "escravas brancas" auxiliava a polícia
a reforçar seu controle sobre os milhares de imigrantes que aqui aportavam.
Com a criação das delegacias especializadas, a vigilância sobre a prostituição
ficou a cargo da Delegacia de Costumes. No relatório de 1927, Cantinho Filho informava
que a delegacia tinha 12.642 prostitutas fichadas. Destas, 993 tinham prontuário desde
1915. Aproximadamente metade delas eram estrangeiras. Os prontuários das prostitutas
continham fotos, impressões digitais, dados pessoais, endereço, prisões e todas as
ocorrências que pudessem ser anotadas.171 As prostitutas eram na maior parte jovens pobres
que se enveredavam pelas redes construídas pelos cáftens e donas de bordel, de quem

167
Margareth Rago, op.cit., p.255-256.
168
Paul Knepper, op.cit., p.98-127.
169
Margareth Rago, op.cit., p.256.
170
Relatório apresentado ao Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves, presidente do estado, pelo secretário da justiça e da segurança
pública Raphael A. Sampaio Vidal. São Paulo: Typ. Rothschild & Cia., 1912, p.3; Relatório apresentado ao Dr. Carlos Augusto
Pereira Guimarães, vice-presidente do estado em exercício, pelo secretário da justiça e da segurança pública de S. Paulo, Eloy de
Miranda Chaves, anno 1913. São Paulo: Typ. Rothschild & Cia., p.194.
171
Cantinho Filho, op.cit., 1927, p.35.

206
acabavam dependendo para viver em todos os sentidos. Para escapar dessa rede, as mais
bonitas e espertas procuravam protetores entre as classes privilegiadas, como fez a famosa
cortesã Nenê Romano (1897-1923). Nascida na pobreza, mas decidida a desfrutar do
conforto reservado à alta sociedade paulista, Nenê, natural de Turim na Itália, veio para o
Brasil com dois anos de idade. Seu nome verdadeiro era Romilda Marchiaverni.172 Segundo
testemunhas arroladas no inquérito policial que apurou sua morte, Nenê era de família
muito pobre e trabalhou em fábricas desde pequena. Sua beleza chamava a atenção dos
capatazes, tornando-a alvo constante de assédio. Aos 17 anos já ganhava a vida em bordéis
famosos e, em pouco tempo, estava bem alojada numa casa na rua dos Timbiras, sustentada
por um poderoso político. Moacir de Toledo Piza insinuava que o protetor de Nenê
Romano – cujo nome foi encoberto no inquérito policial – seria o senador Rodolfo Miranda
(1862-1943), um fazendeiro rico e boêmio, dono de indústria e casas comerciais no interior
paulista e em Santos.173
Em 1918, Nenê foi anavalhada. O corte deixou uma cicatriz na altura do pescoço,
que ela cobria com o cabelo. Decidida a processar a mandante da agressão, ela contratou os
serviços do escritório de Vicente Rao, um respeitado professor da Faculdade de Direito que
advogava para italianos. Lá ela conheceu o jovem advogado Moacir de Toledo Piza. Os
dois iniciaram um tórrido romance. Moacir jantava e dormia na casa dela, porém as cenas
de ciúmes por parte dele tornaram o relacionamento impossível. Testemunhas relatam que
ele era possuído por um ciúme doentio que o levava a bater nela e ameaçar acabar com a
vida dos dois.174 Para piorar, Moacir se dedicava de corpo e alma à política, ou melhor, a
combater a política, ridicularizando os mais poderosos líderes das fileiras do Partido
Republicano Paulista.
Moacir de Toledo Piza fazia parte de uma geração de jovens inconformados com
os rumos da República, jovens talentosos que escreviam em jornais e desafiavam aqueles
que estavam encastelados no poder. Ele possuía um sobrenome ilustre, era primo do
delegado Frankilin Toledo Piza, mas não tinha fortuna. Órfão de pai, ele e seu irmão
precisaram trabalhar para se sustentar. Seu irmão era médico da Assistência Policial, e
Moacir fora nomeado delegado de polícia assim que se formou em 1917. Indignado com as

172
Prontuário nº 80.624. (IIRGD)
173
sobre o senador, ver Joseph Love, op.cit., p.236-237.
174
Inquérito policial datado de 29 de outubro de 1923, p.43-44. 1ª vara criminal. Réu: Moacyr de Toledo Piza. (ATJSP)

207
fraudes e a política praticada pelo PRP, ele escreveu uma carta malcriada ao secretário da
segurança pedindo a sua exoneração. Em seguida, candidatou-se a vereador e deputado
estadual. Perdeu nas duas vezes. O jornalista Paulo Duarte escreveu que "a sua bravura
romântica me fazia inveja, mas a violência das suas paixões me atemorizava."175
Em 1923, Moacir lançou um livro avacalhando as maiores figuras políticas do
estado. O livro, com o título sugestivo de Roupa Suja, se concentra nas festas do centenário
da Independência realizadas no ano anterior, em especial no jantar oferecido pelo
governador Washington Luís, descrito como "eleito pela Providência para a egrégia função
de rodoviar a terra paulista". Comparecendo à festa sem ser convidado, Moacir zomba dos
convidados ilustres:

"Ah! O governo negou-me uma cadeira no Congresso do


estado, mas deu-me canja e peru com farofa! Posso afirmar, com
conhecimento de causa, que, no pleito ali travado para a satisfação das
minhas aspirações de gourmand, houve a mais ampla liberdade de
pensamento e ação. O presidente foi de uma imparcialidade única. Não
tolerou a fraude, nem com ela fez transações; tanto que, não obstante os
empenhos da Comissão Diretora junto do maitre d'hotel, eu, vencido
nas pugnas eleitorais do oitavo distrito, fui servido antes do Sr. Narciso
Gomes, e empanturrei-me. A regeneração eleitoral é um fato…"176

Fazendo galhofa e provocando as autoridades presentes, Moacir, tomado de


ciúmes, escandalizou a opinião pública ao revelar que, na festa da República, ao lado do
presidente do estado, estavam várias prostitutas. Entre elas, Nenê Romano:

" (…) ao lado do presidente, bela, quase divina, a distribuir


sorrisos, como uma fonte de alegria. A pessoa que a mandou lá foi um
deputado, tido e havido como cavalheiro da maior circunspeção. (…)
passada a festa, vem conhecer-se a verdade. A verdade é um escândalo

175
O Estado de São Paulo, "Há 40 anos falecia Moacyr Piza", 25 de outubro de 1963; prontuário nº 1.957. (IIRGD)
176
Moacyr Piza, op.cit., p.65-66.

208
para a burguesia, que (…) não pode perdoar ter estado, numa festa
oficial, pública, de par com o presidente, uma senhora alegre…"177

Depois da publicação do livro, Nenê rompe com Moacir. Ela se queixa para sua
cozinheira que, por causa dele, seus clientes se afastaram e seus rendimentos caíram. Nenê
conta que passou a ser chamada na rua de "mulher do roupa suja". Ela diz a familiares que
Moacir era pobre e não poderia dar-lhe uma boa vida como estava acostumada.178
Inconformado com o fim do relacionamento, Moacir envia para Nenê um faqueiro de prata
como presente no dia em que ela completava 26 anos. Ela recusou o presente, mas cedeu
em falar com Moacir. Os dois se encontraram e partiram num táxi no meio da noite. O
motorista ouviu o casal discutir enquanto o táxi percorria a avenida Angélica. Nenê
permanecia irredutível. Moacir, transtornado, lhe dá três tiros à queima roupa. O motorista
parou o táxi assustado e assistiu o momento em que o escritor desfechou um tiro contra o
próprio peito.179 Os grandes jornais fizeram silêncio sobre o crime em respeito ao
sobrenome do envolvido, mas outros veículos da imprensa narraram o crime com detalhes.
O jornal O Combate, de propriedade de um amigo de Moacir, escreveu para os seus
leitores:

"Matou-se Moacir Piza, o brilhante, o audaz, o valoroso


escritor que toda São Paulo admirava. Matou-se depois de ter matado
Nenê Romano, a mulher fatal, que tinha um rosto de anjo e uma alma
perversa. (…) Nenê Romano, flor da rua e da lama, mulher do povo e
contra o povo, que possuía o sorriso que ascendia os mais perigosos
fogos de paixão torturante e louca; o mais completo símbolo da
leviandade e da perversidade feminina conseguiu, com a sugestão da
mulher que faz sofrer e ri, armar o braço de Moacir Piza…"180

Para o jornal, Nenê viveu e morreu como uma devoradora de homens. Moacir,
proveniente de uma família respeitável, foi cortejado como vítima de uma “fatídica e

177
Idem, p.60-61.
178
Inquérito policial datado de 28 de outubro de 1923, p.25. (ATJSP)
179
Relatório do Dr. Terceiro delegado de polícia nos autos do inquérito, datado de 22 de maio de 1924. (ATJSP)
180
O Combate, “Paixão Fatal”, 26 de outubro de 1923.

209
formosa mundana” e enterrado cercado de amigos e homenagens. Mais de duzentos carros
seguiram o cortejo fúnebre até o cemitério da Consolação, enquanto Nenê era enterrada no
Araçá, sem a presença de um padre e rodeada de amigas consternadas que os jornalistas
insinuavam serem também prostitutas.181

Fotos do prontuário de Nenê Romano,


mostrando sua cicatriz e sua beleza. (IIRGD)

Foto do bacharel Moacir Piza em 1917. O paraninfo da turma é


Rui Barbosa. (coleção particular)

Considerações finais
Fragmentos da vida de Moacir Piza, Nenê Romano, Babi de Andrade, Edgard
Leuenroth, Everardo Dias e outros mais ficaram retidos nos arquivos policiais. Esses
retalhos são indícios preciosos, impregnados de silêncios, mas também de identidades
sociais que exprimem formas de representação de si e dos outros em uma sociedade onde a
policia se tornava mais intrusiva e vigilante. Estes fragmentos têm ainda o poder de

181
Idem, “O Enterro de Nenê Romano”, 28 de outubro de 1923.

210
iluminar o desenvolvimento do policiar, da relação tensa entre a polícia e o público, abrindo
uma janela para os medos e aspirações, tanto daqueles que buscavam governar, quanto
daqueles que protestavam ou procuravam simplesmente seguir com suas vidas.
A polícia, como pudemos acompanhar, se esforçava para controlar o crescimento
da classe operária e o ingresso de milhões de imigrantes no estado de São Paulo. A
expansão do mercado de trabalho contratual gerou conflitos e lutas que comprometiam o
projeto modernizador das elites paulistas. As constantes ameaças à ordem exigiam o
reaparelhamento contínuo da polícia, especialmente nos anos posteriores à Primeira Guerra
Mundial, quando agravaram-se os conflitos entre patrões e empregados e desgastaram-se as
bases políticas da República. Foi nesse contexto que criou-se uma delegacia especializada
na repressão dos movimentos políticos e sociais, refletindo um medo real por parte das
classes conservadoras diante de um cenário de revoluções e transformações que pareciam
fugir do seu controle.
O tratamento dispensado às prostitutas, bicheiros e anarquistas revela que o
universo ideológico construído pelas classes dominantes paulistas era claramente dividido
em dois mundos que se definiam por sua oposição mútua: de um lado havia o mundo do
trabalho e da ordem; de outro, o mundo do crime e da desordem. A polícia não via
diferença entre criminosos comuns e trabalhadores que desafiavam seus patrões. Reprimir o
movimento operário equivalia a combater a criminalidade. O delegado do Brás, Bandeira
de Mello, chamou os grevistas da tecelagem Crespi de "desordeiros e falsificadores de
moeda". Washington Luis considerava os líderes ferroviários "especuladores de baixa
espécie que vivem de greves e exploram no elemento estrangeiro o desejo de desforra". Na
definição do delegado João Batista de Souza, eram todos "semeadores do mal" que
manifestavam um ódio doentio contra a sociedade.
Neste universo ideológico, a sociedade vivia em guerra permanente contra os
transgressores das normas impostas. Os transgressores eram acusados de subverter a ordem,
produzir a infelicidade e atrapalhar a marcha do progresso. Os cáftens eram responsáveis
por trazer prostitutas da Europa, explorá-las e perverter-lhes o caráter; as prostitutas
destruíam lares, transmitiam doenças e induziam os moços aos vícios e desatinos; os
anarquistas provocavam greves e incutiam um sentimento de revolta nos trabalhadores; os
vadios desprezavam o trabalho e não tinham respeito pelo esforço alheio; enquanto os

211
gatunos ameaçavam a propriedade de todos. Essa guerra diária justificava a vigilância e a
repressão, pois a garantia do bem-estar público era caso de polícia. Fica evidente então que
os transgressores eram parte fundamental de um sistema que precisava deles para reafirmar
as bases da sua ideologia de trabalho, ordem e progresso.

212
5. Polícia e criminalidade

"A humanidade progride. Mas tanto progride para o lado


do bem, quanto para o lado do mal. (…) Os antigos processos
policiais de há cinquenta anos não tem êxito hoje; é preciso
combater o criminoso com armas iguais, supera-los, se for possível,
em argúcia, o que somente se alcançará com a introdução de
método científico nas buscas judiciárias. Esta aplicação de métodos
científicos nas buscas judiciárias é de data recente. Deve-se a
esforços de eminentes criminalistas e cientistas como Bertillon,
Gross, os irmãos Minovici, Lacassagne, Galton, Henry etc. E
tornou-se um ramo científico conhecido pelo nome de polícia
científica."
Rodolphe A. Reiss 1

Em um dos seus primeiros ensaios para o Boletim Policial, publicado em 1907,


Elysio de Carvalho introduziu o assunto da transformação das práticas policiais utilizando
uma aula inaugural do professor suíço Rodolphe Archibald Reiss (1875-1929). Carvalho
defendia que uma polícia moderna deveria possuir um corpo treinado, detentor de um
conhecimento específico que auxiliasse na produção de provas incontestáveis e
processualmente válidas. Carvalho sabia, assim como muitos outros criminalistas com os
quais ele se correspondia, que para legitimar seu papel social e ocupar um lugar respeitável
no imaginário do público a polícia precisava adotar técnicas modernas de investigação, pois
a ciência havia tomado o cotidiano das pessoas de assalto, inspirando novelas, contos de
detetive e invadindo a imaginação de jurados e magistrados. Os policiais necessitavam
aprender urgentemente a linguagem do conhecimento científico se pretendiam conquistar
apoio e prestígio.

1
Boletim Policial, ano I, nº1, maio de 1907, p.16. Sobre a aula inaugural de Reiss, debates e repercussões, ver Nicolas Quinche. Crime,
Science et Identité: Anthologie des textes fondateurs de la criminalistique européenne (1860-1930). Geneve: Éditions Slatkine, 2006.

213
Esta nova polícia, denominada polícia científica, se reinventou adotando a
fotografia, a antropometria e a análise de vestígios, pretendendo assim se colocar na
posição de uma instituição moderna, habilitada para prevenir e reprimir a criminalidade. Os
dois países onde a polícia científica mais recebeu incentivo foram justamente a França e a
Itália, duas nações que enfrentavam problemas sociais sérios agravados pela depressão
mundial, que se faziam sentir nas mobilizações populares, greves e atentados.2 França e
Itália eram também países onde a criminologia tinha alcançado maior relevo, prometendo
extirpar os criminosos da sociedade. Como dizia o professor italiano Alfredo Niceforo
(1876-1960), o escopo da criminologia era estudar o homem delinquente, e o da polícia
científica o de apontar os criminosos com provas irrefutáveis.3
Mas para o historiador Jean-Marc Berlière, a polícia científica nunca passou de
uma ilusão, um mito criado e nutrido pelos seus próprios integrantes para ganhar respeito,
admiração e poder, criando a sensação de que tinha meios seguros para garantir a punição
dos transgressores. Berlière argumenta que não se trata de minimizar o papel
desempenhado pela datiloscopia, a química e a fotografia na investigação policial, mas de
reconhecer que a polícia nunca esteve perto de ser uma ciência. E, lembrando um antigo
chefe de polícia francês, Berlière rebate que o verdadeiro poder da polícia não está no que
ela realmente é capaz de produzir, mas no que a população acredita que ela seja capaz.4
A polícia científica era apresentada como uma resposta ao progresso da sociedade,
inclusive dos criminosos. Em termos gerais, tudo tendia a evoluir e a polícia precisava
acompanhar o deslanchar dos novos tempos. Como prova da evolução dos crimes, os
jornais destacavam ocorrências sensacionais – delitos praticados com a utilização de meios
modernos e conhecimento técnico. A sociedade do final do século XIX testemunhou o
aparecimento de novas modalidades criminais, tais como roubos de caixas fortes, atentados
a bomba, tráfico de mulheres, crimes misteriosos e cadáveres sem identificação. Para
acalmar a sociedade e dar um senso de ordem às transformações globais, a polícia precisou
se especializar na investigação de delitos que ganhavam as manchetes dos jornais e se
multiplicavam pelos grandes centros urbanos. O crime havia, pelo menos na imaginação

2
Ilsen About. "La police scientifique en quête de modeles: institutions et controverses en France et en Italie (1900-1930)”. In: Jean-
ClaudeFracy et al. (Dir.). L'enquête judiciarie en Europe au XIX siècle. Paris: Creaphis, 2007, p.257-269.
3
Alfredo Niceforo. La Police et L'enquête Judiciaire Scientifiques. Paris: Librairie Universalle, 1907, p.411-424.
4
Jean-Marc Berlière. "The Profissionalisation of the Police under the Third Republic in France, 1875-1914". In: Clive Emsley and
Barbara Weinberger (Ed.), op.cit., p.49.

214
dos criminalistas, se internacionalizado, seguindo os cabos telegráficos, as linhas de ferro e
as rotas marítimas.

Crimes sensacionais
No dia 5 de setembro de 1908, os jornais estamparam a notícia do mais
sensacional crime acontecido até então na Cidade de São Paulo: o crime da mala. Em uma
nota surpreendente, o Correio Paulistano comemorou o acontecimento como uma mostra
do progresso paulista:

"Há quem afirme que os grandes crimes sensacionais são


expoentes marcando o grau de civilização do meio onde esses requintes
de crueldade ocorrem com frequência. Se não é um paradoxo, a
afirmação que lembramos, pode-se dizer, sem exagero, que São Paulo
dia a dia se civiliza, competindo com os grandes centros."5

O assassinato e a ocultação do corpo de um comerciante dentro de uma mala,


preparada exclusivamente para o crime, depois conduzida de trem até o porto de Santos e
de lá embarcada num transatlântico, de onde deveria ser finalmente lançada ao mar, não foi
vista pelos redatores do jornal como mais uma tragédia ou um ato bárbaro, mas como um
crime espetacular, comparado àqueles ocorridos nas principais cidades da Europa. Um
crime diferenciado dos demais porque envolvia planejamento, premeditação e inteligência.
Um crime planejado e executado com a utilização de meios modernos. Todos estes
ingredientes formavam aquilo que, aos olhos dos redatores do Correio Paulistano,
representava um sinal de progresso.
Na madrugada do dia 2 de setembro, o contador libanês Michel Trad, de 23 anos,
foi surpreendido a bordo do navio francês Cordillére no momento em que tentava jogar
uma mala em alto-mar. Na mala foi encontrado um cadáver em adiantado estado de
decomposição. O navio aportou no Rio de Janeiro e o libanês foi entregue às autoridades
locais. Antes, porém, o capitão do navio enviou um telegrama para a polícia de São Paulo
informando o ocorrido. Trad havia embarcado com sua mala no porto de Santos com

5
Correio Paulistano, 5 de setembro de 1908.

215
destino a Bourdeaux, na França, por isso o capitão achou acertado informar as autoridades
paulistas. Ao receber o telegrama, o delegado João Batista de Souza suspeitou que o
cadáver seria do comerciante libanês Elias Fahrat, patrão de Trad e desaparecido desde o
dia primeiro daquele mês.
Trad havia estado na Repartição Central de Polícia no dia anterior, acompanhado
dos irmãos da vítima preocupados com o desaparecimento de Fahrat. Imediatamente após
receber o telegrama, o delegado e seus auxiliares partiram para a residência de Trad, na rua
Boa Vista nº39, em busca de indícios do crime. No
sobrado foram encontrados pedaços de corda e
outros materiais que poderiam ter sido usados para
acomodar o corpo dentro da mala. Em seguida, o
delegado decidiu ir até a casa da viúva, Carolina
Fahrat, onde apreendeu algumas cartas e
telegramas. A polícia dispunha então de amplos
poderes para decretar buscas sem ordem judicial.
Com a viúva, foram encontradas correspondências
comprometedoras, escritas em francês, e um Ficha de Michel Trad (IIRGD)
telegrama enviado de Santos pouco antes de Trad
embarcar no Cordillére. O telegrama era assinado
por um Sr. Dart que, como supôs o delegado,
Ficha de Michel Trad (IIRGD)
poderia significar Trad escrito de trás para frente.6
A notícia do crime repercutiu em São Paulo e em todo o país. O secretário da
segurança Washington Luís demonstrou ter consciência do que poderia representar um
crime como aquele para a imagem da polícia que ele estava construindo. Provavelmente,
ele se recordava das críticas sobre a atuação policial no caso do suicídio do negociante de
café ocorrido há um ano. Em março de 1907, o rico comerciante de café João Adolfo
Ferreira suicidou-se em casa, na elegante rua Maranhão. Sozinho, em sua sala de visitas, ele
pegou um revólver e deu um tiro na cabeça. Familiares e amigos confirmaram que há
tempos ele vinha exibindo um comportamento desequilibrado, chorando sem parar e
falando em tirar a própria vida. Ao saber da morte do marido, sua esposa pediu que os
6
Idem, 6, 7, 8 e 12 de setembro de 1908; Adalberto Garcia. No Plenário do Crime. São Paulo: Albino Gonçalves & Comp., 1913, p.99-
106.

216
empregados avisassem a polícia. Antes, porém, ajeitou a cabeça do esposo numa almofada
e arrumou a casa para receber as autoridades. Quando o delegado chegou com seus
auxiliares, ela mandou servir-lhes um café. Até aí tudo não passava de um incidente
infeliz.7
Dias depois, quando começou a disputa em torno da herança, a viúva foi acusada
de ter premeditado a morte do marido. A arrumação da casa e sua atitude diante do cadáver
foram apontados como indícios da sua culpa. Os jornais se encheram de opiniões sobre o
caso. Versões as mais desencontradas surgiam todos os dias. Testemunhas alegavam ter
visto uma pessoa sair correndo da casa depois do disparo; outras diziam ter ouvido gritos
ou presenciado a viúva contente livrando-se de roupas sujas de sangue no quintal. O
delegado que atendeu a ocorrência, o Dr. Rudge Ramos, foi chamado a depor. Em São
Paulo, como no restante do país, os autos do corpo de delito ainda eram descritivos, feitos à
mão pelo delegado e seu escrivão. O relato do delegado entrou em conflito com a descrição
do local de crime feita por testemunhas perante o juiz. Surgiram dúvidas e essa falta de
concordância alimentou os boatos atirados na imprensa. Não havia sequer certeza se a arma
apreendida pela polícia era realmente a arma do crime. O perito nomeado pela polícia, um
dono de lojas de armas, dizia que sim; o perito dos irmãos da vítima, outro armeiro, dizia
que não. Depois de tantas insinuações, a viúva foi impronunciada pelo juiz. A acusação
contra ela foi declarada sem nenhuma base e a atuação da polícia foi considerada
desastrada, expondo o seu método ultrapassado de investigação.8
Washington Luís, provavelmente decidido a não permitir que um vexame igual
voltasse a se repetir, se interessou em conhecer os aparelhos importados por Elysio de
Carvalho para fotografar locais de crime, quando foi ao Rio de Janeiro avaliar o sistema
Vucetich e aprimorar as técnicas de identificação da polícia paulista.9 Nessa ocasião, ele
teve a oportunidade de conhecer uma prática inovadora no campo da investigação criminal,
desenvolvida por Bertillon para registrar e preservar os vestígios dos crimes. Desde 1891,
Bertillon ia pessoalmente aos locais onde ocorreram assassinatos, roubos e acidentes com
uma câmera montada num tripé altíssimo, de mais de dois metros. Dessa forma, era
possível se obter um registro amplo do cena do crime, como o olhar de Deus, notou um

7
Adalberto Garcia, op.cit., p.220-298.
8
O Estado de São Paulo, 3, 6, 7, 8, 9, 23 e 26 de março de 1907.
9
Boletim Policial, Ano I, nº6, outubro de 1907, p.307-318.

217
observador.10 De volta a São Paulo, Washington Luís recomendou que se fotografassem as
cenas de crime, procurando dessa forma aperfeiçoar o exame de corpo de delito.
Ao ser notificado da prisão de Trad, o secretário da segurança determinou que
nenhum esforço fosse poupado na solução do crime. O primeiro despacho do inquérito
policial foi uma portaria sua, ordenando ao delegado João Batista de Souza que tomasse
todas as providências para o esclarecimento do caso.11 Washington Luís acompanhou de
perto o desenrolar das investigações, interrogando testemunhas, ouvindo suspeitos,
chegando até a ir ao Rio de Janeiro coletar indícios. A tal ponto que o réu, Michel Trad,
reclamou para a imprensa que o secretário estava pessoalmente empenhado na sua
condenação.12
Trad foi escoltado de volta a São Paulo, junto com a mala, laudos e fotos do
cadáver. Ele negava ter planejado o crime, atribuindo-o a dois italianos que o obrigaram a
sumir com o corpo. O delegado confrontou o contador com a informação de que ele teria
encomendado a mala na Ladeira Porto Geral, no dia 19 de agosto. O fabricante havia
procurado a polícia, revelando que Trad encomendara uma mala com medidas especiais,
toda revestida de zinco para não deixar escapar o odor dos "perfumes" que ele pretendia
transportar nela. O delegado declarou à imprensa que Trad permaneceu sereno ao ouvir as
declarações do fabricante, mas quando mostraram-lhe as cartas apreendidas em poder da
viúva, ele mudou de atitude.13
O delegado João Batista de Souza deixou claro que não acreditava no libanês e
iria indiciar o casal pelo assassinato de Elias Fahrat. Trad negou ter um romance com a
viúva, mas propôs um acordo. Ele se dizia disposto a revelar detalhes do crime se o
delegado lhe permitisse um encontro reservado com a viúva. O delegado aceitou. A viúva,
no entanto, resistiu, cedendo somente após convencerem-na de que assim ela estaria
colaborando no esclarecimento da morte do seu marido. Como combinado, Trad e Carolina
ficaram a sós no gabinete do delegado, apenas com um policial que não compreendia
francês vigiando-os. Os dois se falaram brevemente. A viúva mostrava-se visivelmente

10
R.A. Reiss. La Photographie Judiciaire. Paris: Charles Mendel Éditeur, 1903, p.28-31; Eugenia Parry. Crime Album Stories: Paris,
1886-1902. Berlin: Scalo, 2000, p.53; Luc Sante. Evidence. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1999, p.99.
11
Portaria do secretário da justiça e segurança pública Washington Luís Pereira de Souza datada de 4 de setembro de 1908 (ATJSP).
12
Correio Paulistano, 19 de março de 1909.
13
Idem, 7 de setembro de 1908.

218
constrangida. Ao final, Trad confessou o assassinato, isentando a viúva de qualquer
participação. O motivo do crime, porém, ele jamais revelaria.14
O delegado anexou a confissão de Trad ao inquérito e indiciou a viúva como co-
autora do assassinato. Carolina era uma bonita moça italiana de 24 anos, funcionária da
fábrica de calçados de Fahrat, na rua Vinte e Cinco de Março. Ela conta, no seu
depoimento, ter casado com o patrão por insistência da família. Nessa ocasião, ela tinha
quinze anos de idade. Nas páginas do inquérito policial, ficamos sabendo que Elias, bem
mais velho, era rude e de pouca instrução; vivia para os negócios e carecia das qualidades
que Carolina parecia apreciar em Trad. O casal nunca teve filhos. A família de Fahrat
implicava com ela, tratando-a como uma estranha, "uma italiana", o que a fazia sofrer
bastante. Seu marido conhecera Trad pouco depois que este chegou de Beirute, oferecendo-
lhe o emprego de guarda-livros. Não demorou, Trad conquistou a amizade de Fahrat e seus
irmãos, além das atenções de Carolina. Seu conhecimento de línguas permitia-lhe viajar
pela Europa e Egito, comprando as mercadorias que Fahrat repassava para os mascates.
No dia primeiro de Setembro de 1908, Fahrat e Trad saíram juntos da fábrica,
depois do que Fahrat nunca mais foi visto. Trad confessou ter levado o patrão até o seu
apartamento, onde o estrangulou pelas costas. Trad colocou o corpo dentro da mala, mas
não notou que a tampa de zinco, feita especialmente para vedá-la, estava no seu fundo. Sem
conseguir remover o corpo para pegar a tampa, Trad desistiu e embarcou a mala assim
mesmo para o porto de Santos, temendo perder o navio.15
A viúva foi presa, mas obteve um habeas corpus e respondeu as acusações em
liberdade. Para o promotor do caso não restavam dúvidas que Carolina prestou "concurso
moral" para a execução do crime. Mas seu advogado, o eminente jurista Alfredo Pujol, que
se ofereceu para defendê-la gratuitamente, rebateu a acusação dizendo que uma mulher
como a sua cliente não podia ser julgada da mesma forma que uma "moça culta",
pertencente às melhores camadas da sociedade. Alegando a origem dela, "filha de operários
e operária ela também", o advogado convenceu o tribunal que Carolina não tinha condições
de perceber as intenções de Trad, um homem "instruído e sofisticado". Pujol ainda
censurou a polícia pela violação de correspondência da ré, e assim Carolina Fahrat foi

14
Idem, 9 de setembro de 1908.
15
Relatório do inquérito policial datado de 16 de setembro de 1908 (ATJSP).

219
inocentada.16 A sentença parece ter agradado ao público, que deu vivas enquanto ela
deixava o tribunal. Um jornalista do Rio de Janeiro escreveu: "jamais, estampada em face
mais linda, a inocência falou à justiça dos homens".17
O julgamento do crime da mala se transformou em um espetáculo e os seus
participantes, em personagens de um drama novelesco. Trad permaneceu preso até o dia do
julgamento, em 19 de março de 1909. Os debates foram acalorados e prolongaram-se noite
adentro. Aqueles que não conseguiram lugar para acompanhar o julgamento ficaram na rua
esperando notícias. A polícia precisou deslocar reforços para controlar a multidão nas
cercanias do tribunal, localizado na rua Riachuelo. Trad saiu do tribunal condenado a 25
anos e seis meses de prisão. O resultado foi comemorado em São Paulo, o promotor
Adalberto Garcia foi aplaudido de pé e a polícia paulista festejada.18
O crime da mala provocou uma cobertura nunca vista antes na imprensa nacional.
Jornais do país inteiro acompanharam diariamente o caso por meio de telegramas. Livros
contando o crime apareceram aos montes. Dois deles, O Crime da Mala – Sensacional
Romance Ilustrado e O Crime da Mala ou um Criminoso Inocente, foram escritos no calor
dos acontecimentos para aproveitar a curiosidade do público. No ano seguinte, apareceram
mais livros. Além disso, três filmes, dois cariocas e um paulista, foram realizados às
pressas. O primeiro deles, chamado de "A Mala Sinistra", filmado por Marc Ferrez, estreou
no Rio de Janeiro em outubro, um mês após o crime. Na rua do Ouvidor, onde ficava o
Cine Palace, filas se acotovelavam para assistir a reconstituição do crime nas telas.19
Crimes sensacionais envolvendo despojos de cadáveres provocavam frisson na
Belle Époque.20 Paixões proibidas, assassinatos frios, traições e confissões dramáticas

16
Correio Paulistano, 15 de setembro de 1908.
17
A Careta, 19 de setembro de 1908.
18
Correio Paulistano, 20 de março de 1909; O Estado de São Paulo, 20 de março de 1909.
19
Guido Fonseca, op.cit., 1988, p.132; Vicente de Paula Araújo. A Bela Época do Cinema Brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 1976,
p.268-270.
20
Em 1894, um cadáver mutilado foi encontrado espalhado por diferentes logradouros de Buenos Aires. A polícia argentina conseguiu
identificar a vítima usando técnicas sofisticadas de antropometria. O autor do crime, Raúl Tremblié, fugiu para a França, onde foi preso
e condenado. O tribunal francês elogiou a investigação da polícia portenha. Em 1896, outro cadáver foi encontrado em uma
mala abandonada na Avenue Versailles. Um novelista viciado em morfina foi condenado pelo crime. Em 1897, partes de um cadáver
foram encontrados por crianças em Nova York. O caso teve enorme repercussão nos jornais. Em abril de 1899, os jornais parisienses
estamparam a notícia de mais um cadáver encontrado numa mala jogada no rio Sena, próximo à Pont de Sèvres, o crime nunca foi
esclarecido. Em 1904, foi a vez de Berlim parar para acompanhar a investigação da morte de uma menina de nove anos, encontrada
próxima a uma mala manchada de sangue. O próprio chefe de polícia conduziu as diligências que levaram à prisão de uma prostituta e
seu amante, vizinhos da vítima. Em 1910, a Inglaterra assistiu eletrizada a caçada ao médico Hawley Crippen, acusado de matar e
ocultar o corpo de sua esposa. A investigação e a fuga do médico mobilizaram toda imprensa que acompanhou sua prisão em um
transatlântico rumo ao Canadá. Diego Galeano. Escritores, detectives y archivistas: La cultura policial en Buenos Aires, 1821-1910.
Buenos Aires: Teseo, 2009, p.129-141; Eugenia Parry. Crime Album Stories: Paris, 1886-1902. Berlin: Scalo, 2000; Paul Collins. The
Murder of the Century: The Gilded Age Crime that Scandalized a City & Sparked the Tabloid Wars. New York: Crown, 2011; Peter
Fritzsche. "Talk of the Town: The Murder of Lucie Berlin and the Production of Local Knowledge". In: Peter Becker and Richard F.

220
fariam dos crimes um produto lucrativo para os jornais que se estabeleciam como empresas
capitalistas. Uma multidão de leitores buscava histórias que provocassem calafrios e os
libertasse da apatia e do cotidiano. O jornalista James Gordon Bennet (1795-1872), de
Nova York, que fundou seu próprio jornal explorando dramas sanguinolentos, ensinava que
o importante era dar ao público emoções. Assim sendo, se os detalhes de um crime não o
satisfaziam, ele os modificava ao seu gosto sem nenhum constrangimento.21 Na França, o
apetite por crimes chegou a lotar os necrotérios nos finais de semana. O escritor Emile Zola
(1840-1902) comparou o necrotério de Paris a um teatro cheio de surpresas. O Musée
Grevin, procurando aumentar o seu público, reconstruiu cenas de crimes famosos em cera.
Foi um sucesso.22 Essa febre alimentou o aparecimento de publicações especializadas em
crimes. Foi o caso da Gazette des Tribunaux e do Le Petit Parisien, com uma tiragem que
chegava a 690 mil exemplares, trazendo grandes ilustrações de capa para atrair o público.23
Washington Luís possuía em sua biblioteca particular uma coleção encadernada do Le Petit
Parisien, recheada de crimes.24
A atuação da imprensa, cobrindo crimes que arrebatavam a imaginação popular,
ajudou a polícia a conquistar um papel central numa sociedade que havia transformado seu
cotidiano em espetáculo. Neste enredo, a polícia deixava de ser um amontoado de rotinas
cansativas para tornar-se um personagem identificado com o desejo do público em
desvendar mistérios e ver punidos os criminosos. Havia um público ávido por acompanhar
investigações policiais, deleitando-se com os mais intrincados crimes e a polícia só tinha a
ganhar com isso. Essa polícia, ao mesmo tempo personagem e autor de uma narrativa,
acabou por se misturar com os romances policiais. Foi o que se viu no primeiro crime da
mala a arrebatar o público francês.
O Affair de la Malle Sanglante, como foi chamado pela imprensa, foi noticiado
com estardalhaço na França. A história teve início com a descoberta de um cadáver
irreconhecível dentro de uma mala nos arredores de Lion, no dia 27 de julho de 1889. O
crime arrebatou o público por meses, vendeu milhões de jornais e fez brilhar o nome da
Wetzell (Ed.), op.cit., p.377-398; Jürgen Thorwald, op.cit.; Alan Moss & Keith Skinner. The Scotland Yard Files: Milestones in Crime
Detection. Surrey: The National Archive, 2006, p.121-132.
21
Paul Starr. The Creation of Media. New York: Basic Books, 2004, p.130-134.
22
Vanessa R. Schwartz. "Cinematic Spectatorship before the Apparatus: The Public Taste for Reality in Fin-de-Siècle Paris". In: Leo
Charney and Vanessa R. Schwartz. Cinema and the Invention of Modern Life. Berkeley: University of California Press, 1995,
p.297-316.
23
Thomas Cragin. Murder in Parisian Streets: Manufacturing Crime and Justice in the Popular Press, 1880-1900. Lewisburg: Bucknell
University Press, 2006, p.33.
24
Parte da biblioteca de Washington Luís encontra-se no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

221
polícia parisiense e do comissário Marie-François Goron (1847-1933). Os chamados crimes
da mala eram fenômenos estritamente urbanos. Em sua maioria, eram o meio pelo qual o
assassino procurava fazer desaparecer o corpo da vítima. Algo bem difícil de ser executado
devido à proximidade dos vizinhos e a dificuldade de se transportar um cadáver cheio de
fluidos e mau cheiro sem chamar a atenção. A investigação do comissário Goron foi repleta
de novidades. Pela primeira vez, foram utilizadas técnicas de medição dos ossos e fios de
cabelo ampliados microscopicamente para assegurar a identidade da vítima. A ação da
polícia foi coordenada de Paris, usando-se um telefone, e todos os detalhes da investigação,
cercada de traições, paixões e vilania, foram descritos pela imprensa que contribuiu para
dar ao caso um formato de suspense bem ao estilo das novelas.25

Jornais e malas de crimes que causaram frisson nos


leitores da Belle Époque.
No alto, uma foto de Elias e Carolina Fahrat.
(Correio Paulistano)

25
Jürgen Thorwald, op.cit., p.117-137; Pierre Darmon, op.cit., p.233-236; Colin Evans. The Casebook of Forensic Detection. New York:
John Wiley & Sons, 1996, p.124-126; Jean-Batiste Bourrat e Sophie de Sivry (Dir.). Dans les Secrets de la Police: Quatre siècle
d'Historie, de crimes et lê faits divers dans lês archives de lá Préfecture de Police. Paris: L'Iconoclaste, 2008, p.136-137.

222
Por fim, o próprio comissário escreveu sobre o crime, recontando o caso para o Le
Journal. Suas memórias foram depois publicadas pela editora Flamarion em forma de
romance, repleto de descrições e imagens de efeito bem ao estilo da literatura popular que
fazia sucesso nas ruas.26 O livro de Goron era mais um de uma série de memórias de ex-
policiais que se misturavam com os romances de detetive. Não se pode esquecer que os
romances de detetive tinham um público fiel e que o mais famoso detetive da literatura
surgiu nessa época. Sherlock Holmes, invenção do escritor inglês Arthur Conan Doyle
(1859-1930), apareceu em 1887 e logo atraiu inúmeros leitores. O detetive inglês era um
personagem que cultivava um método investigativo totalmente científico. Suas aventuras
alimentavam a crença de que todos os problemas, até mesmo os mais difíceis enigmas,
poderiam ser resolvidos através do raciocínio lógico e do conhecimento científico.27
Mesmo assim, realidade e ficção se confundiam nas suas páginas. Sherlock Holmes
elogiava Bertillon como se o conhecesse, enquanto Bertillon era retratado por aqueles que
registravam sua atividade como uma pessoa dotada do mesmo brilhantismo do detetive
ficcional.28 Em última análise, o detetive – tanto o real quanto o ficcional – prometia uma
resposta aos problemas da sociedade moderna, ameaçadora e complexa.
Elysio de Carvalho recomendava a todos que desempenhavam "as difíceis funções
da investigação criminal" uma leitura atenta das aventuras de Sherlock Holmes.29 Para
incentivar essa leitura, ele traduziu e publicou no Boletim Policial contos do detetive, como
A Estrela de Prata, A Luneta de Aros de Ouro e A Abadia de Orange, além do clássico O
Assassinato da Rua Morgue, de Edgar Allan Poe. Para Elysio de Carvalho, a figura do
detetive funcionava como um paradigma de investigação, fundamentado na observação
criteriosa dos vestígios do crime e na formulação de hipóteses. Carvalho era um dos
maiores defensores da chamada polícia científica, anunciando que "já se foram os tempos
de uma polícia empírica, arbitrária e obsoleta", superada por uma "fase absolutamente
científica".30 Crente disso, ele acompanhava o trabalho dos mais famosos criminalistas
europeus, divulgando-os incansavelmente. Dentre estes, Carvalho tinha fascinação por
Rodolphe Reiss, a quem reputava como o “mais completo investigador criminal que se tem

26
Marie-François Goron. L'Amour Criminel: mémories du chef de la Sûreté à la Belle Époque. Bruxelles: André Versaille Éditeur, 2010.
27
Ronald R. Thomas. Detective Fiction and the Rise of Forensic Science. New York: Cambridge University Press, 1999.
28
Dorothy & Thomas Hoobler, op.cit., p.162-163.
29
Boletim Policial, ano II, nº4, agosto de 1908, p.174.
30
Idem, ano VIII, nº2, fevereiro de 1914.

223
notícia”. "Reiss é um tipo de detetive lógico, completo, perfeito, porque possui a profissão,
a ciência e a arte de polícia". Reiss era um "Sherlock Holmes autêntico, em carne e osso”,
declarou Carvalho.31

Reiss em São Paulo


No começo de 1913, o governo paulista iniciou negociações para trazer Reiss a
São Paulo. A contratação do renomado criminologista suíço coroaria a modernização de
sua polícia e serviria de propaganda do progresso paulista. São Paulo não poupava esforços
para exibir seu progresso material e cultural, atestando assim a capacidade dos seus
dirigentes. Rodrigues Alves acabava de assumir o governo estadual e já se falava na
sucessão presidencial. Mais uma vez, os nomes de Campos Salles e Rodrigues Alves foram
lembrados como possíveis sucessores. Nesse meio tempo, o governo paulista contratou o
famoso especialista suíço pela quantia de 50 mil francos para lecionar um curso de três
meses. Uma quantia extremamente alta, mesmo para os padrões europeus.32 O jornal O
Estado de São Paulo aplaudiu a contratação do “Dr. Reiss”,
declarando que "uma boa polícia é uma prova de cultura, e S. Paulo
impõe-se por esforçar-se para se mostrar digno do nome de um
Estado Culto".33
A trajetória de Reiss se confundia com os enredos de
mistério dos livros de detetive. Sua fama parece ter se espalhado
depois de um crime no porto de Le Havre, que ele teria ajudado a
solucionar examinando um fio de bigode e os restos de parafina de
uma vela.34 Em parte, a história era verdadeira. Nascido na
Alemanha, sabia-se que ele contava com uma fortuna razoável à sua
disposição. A origem do dinheiro ele fazia questão de não
esclarecer. Rumores diziam que ele era filho bastardo de um
príncipe, que instalara sua mãe na Suíça com uma boa mesada.35
Rodolphe Reiss

31
O Estado de São Paulo, 12 de julho de 1913.
32
O biógrafo de Reiss, o professor Mathyer, ficou impressionado com a quantia. Jacques Mathyer. Rodolphe A. Reiss: Pionnier de la
Criminalistique. Lausanne: Payot, 2000, p.98.
33
Idem, 13 de julho de 1913.
34
Colin Wilson & Damon Wilson. Written in Blood: A History of Forensic Detection. New York: Carroll & Graf, 2003, p.382-385.
35
Harry Söderman. Policeman's Lot. New York: Funk & Wagnalls, 1956, p.336.

224
Pura lenda. Reiss, de fato, era neto de um banqueiro de Frankfurt, mas por sofrer problemas
cardíacos foi morar na Suíça muito jovem, onde estudou química e fundou uma escola de
polícia científica na Universidade de Lausanne com o seu próprio dinheiro. Apaixonado por
fotografia, ficara fascinado pelas imagens de locais de crime, decidindo, a partir dali,
dedicar-se àquela nova arte. Reiss não se importava com os rumores; na realidade, ele
gostava de cultivar uma aura de mistério em torno de si.36
Reiss trabalhou com Bertillon em Paris, onde conquistou uma reputação de
exímio fotógrafo. Suas fotos eram capazes de registrar os mais insignificantes detalhes de
forma precisa e magistral. Nenhum detalhe escapava à sua lente. Em 1906, ele inaugurou
em Lausanne um curso de fotografia forense, depois ampliado para polícia científica. Reiss
treinou policiais franceses, poloneses e húngaros. Deu cursos em Bucareste, Luxemburgo,
Belgrado e São Petersburgo.37 Escreveu livros considerados bíblias da moderna técnica
policial: La Photographie Judiciaire (1903), Manuel de Portrait Parlé (1905) e Manuel de
Police Scientifique (1911). Este último traz um prefácio escrito por Louis Lépine, o famoso
chefe de polícia de Paris. Em comum com Sherlock Holmes, Reiss tinha apenas o hábito de
carregar uma potente lupa e ser um fumante inveterado de charutos, cigarrilhas e
cachimbos.
Para o suíço, viajar era parte do ofício de divulgar a moderna prática policial.
Reiss pregava que o crime havia se internacionalizado, rompido fronteiras e o seu combate
havia se tornado uma missão conjunta dos povos civilizados.38 O técnico suíço chegou ao
porto de Santos no dia 26 de junho de 1913, acompanhado de seus dois assistentes, Marc
Bischoff e Parker Tuck, um suíço e um norte-americano. À sua espera estava o delegado
Carlos Américo de Sampaio Vianna (1883-1939), do Gabinete de Investigações. Vianna era
neto de barão e filho de um dos diretores da Cia. Paulista de Estradas de Ferro, falava
fluentemente francês e tinha ordens de acompanhar e servir o professor suíço durante sua
estadia em São Paulo.39 Reiss trouxe uma bagagem colossal, com toda sua parafernália para
ilustrar as aulas que daria em São Paulo. A comitiva desembarcou na Estação da Luz, onde
foi recebida pelo secretário da segurança, o diretor da Faculdade de Direito, o cônsul da

36
Jacques Mathyer, op.cit., p.7-32.
37
R. Ryckere. "L'ensignement de la Police Judiaire: Paris, Lausanne, Rome". In: Archives D'antropologie Criminalle de Medicine
Lêgale, Tomo 28. Paris: 1913, p.574-580.
38
Nicolas Quinche. “L’ascension du criminaliste Rodolphe Arquibald Reiss”. In: Le Théâtre du Crime: Rodolphe A. Reiss,1875-1929.
Lausanne: Presses polytechniques et universitaires romandes, 2009, p.231-250.
39
Frederico Barros Brotero, op.cit., p.292.

225
Suíça e diversas autoridades. O secretário da segurança era então o bacharel Rafael de
Abreu Sampaio Vidal (1870-1941), um rico plantador de café e pessoa íntima da família
Rodrigues Alves.40
Reiss e seus assistentes ficaram hospedados no Grand Hotel Rotisserie Sportsman,
em frente ao parque do Anhangabaú e do Teatro Municipal. Suas aulas seriam diárias, das
oito da manhã até o meio da tarde. Seriam assistidas por todos os delegados da Capital e o
maior número possível do interior. As aulas foram ministradas em francês, no prédio da
Repartição Central de Polícia. A língua não constituía um obstáculo, pois o francês era
considerado um idioma universal e não era estranho para boa parte dos bacharéis. À noite,
Reiss faria palestras para magistrados, professores da Faculdade de Direito, advogados e
jornalistas. Essas conferências seriam nos salões das escolas modelo da Cidade.41
Em sua tão aguardada primeira aula, o professor suíço fez uma síntese do estudo
do crime, analisando suas duas principais escolas: a francesa de Bertillon e a italiana do
médico Cesare Lombroso (1835-1909); a prática e a teórica, como ele as definia. A escola
prática, que ele seguia, era aquela que se preocupava em identificar o criminoso e
esclarecer o delito mediante laudos técnicos e perícias que reconstituíam a ação criminosa.
Todo o outro discurso, que partia da procura de estigmas no corpo do criminoso para
produzir provas, como Lombroso fazia, era para Reiss algo pouco recomendável. A polícia
científica, dizia ele, consistia em "saber encontrar um traço, um sinal, um vestígio que
oriente a justiça na sua ação". Dito isso, ele assegurou que suas aulas pretendiam
desenvolver métodos práticos, reconhecidos como úteis para auxiliar a ação policial e
judiciária. Criticando os seguidores da escola italiana, também chamada de antropologia
criminal, Reiss pontuou:

"Os antropólogos querem fazer da polícia científica uma


ciência puramente abstrata, que permaneça nas grandes elevações da
especulação abstrata e não desça às realidades da vida. Ao contrário, a
escola francesa prática, e eu falo como aluno de Bertillon, diz: não
somos filósofos; não queremos senão obter resultados práticos,

40
"Dr. Rafael de Abreu Sampaio Vidal". In: APCSP, vol.II, 2ºsemestre, 1941, p.443-444.
41
Guido Fonseca. "Rudolph Archibald Reiss: o Introdutor do Ensino Policial Científico em São Paulo". In: Arquivos da Polícia Civil,
vol.42, 1984, p.117.

226
estudando tão somente os dados reais que nos fornecem a técnica e a
prática de todos os dias. É preciso procurar o motivo do crime e
estabelecer a identidade do criminoso."42

Em suas aulas iniciais, Reiss falou do valor das provas e do cuidado com elas. A
noção de prova havia sido ampliada muito nos últimos anos. Um botão, um pelo ou um
dedo engordurado constituíam provas valiosíssimas, na medida em que podiam associar
cientificamente uma pessoa ao local do crime. Reiss se estendeu em aulas só sobre locais de
crime: como protegê-los, inspecioná-los e fotografá-los.
Não há crime, dizia ele, em que o criminoso não deixe a
sua marca. Por isso, além de uma observação rigorosa, o
local deveria ser fotografado para que ficassem
registrados todos os seus pormenores, evitando que eles
se perdessem no tempo. As aulas sobre fotografia eram
acompanhadas de projeções luminosas e exercícios
práticos. A fotografia, ensinava Reiss, é o melhor
instrumento que o perito tem para detectar falsificações.
Por meio da ampliação fotográfica e outras
técnicas era possível expor a ação dos
fraudadores. A fotografia também
permitia reproduzir impressões digitais
praticamente invisíveis a olho nu.
Lentamente, o professor suíço ia revelando
uma quantidade de informações que excitava
seus ouvintes e transformava o mundo dos
delegados paulistas. A reconstituição de um crime,
através dos seus vestígios, constituía para a prática “O olhar de Deus”: a reprodução fotográfica
dos locais de crime. (La Photographie
policial a "grande arte". Os vestígios de um crime não Judiciaire e Le Théâtre du Crime)

mentem, ensinava Reiss, mas precisavam ser decifrados e

42
As aulas de Reiss em francês estão datilografadas e encadernadas em cinco volumes, depositados na biblioteca da Academia de Polícia
"Dr. Coriolano Nogueira Cobra". A. R. Reiss: Polícia Scientifica, vol.I, p.6 (ACADEPOL).

227
nada requeria mais de um policial do que isso.
Reiss passou dias discorrendo sobre os tipos de vestígios mais importantes para a
investigação. Eram eles: a arma do crime, as manchas de sangue, as pegadas, as impressões
digitais e os hábitos do criminoso. Um exame minucioso do local de crime sempre revelaria
algum deles. Para o detetive suíço, o local de crime era como um livro escrito com tinta
invisível, o qual poderia ser lido através da perícia e do preparo do policial. Nesse ponto,
Reiss insistia no ensino da prática policial. Se um médico precisava estudar pelo menos
cinco anos para poder tratar de um braço quebrado, como se pode entregar a investigação
de um crime a um policial sem nenhum preparo?, perguntava ele.
Reiss não se limitava a dar aulas. Por diversas vezes, ele realizou diligências e
procedeu perícias com os técnicos paulistas. Numa ocasião, o médico da polícia, Xavier de
Barros, trouxe o chapéu e as vestes de uma vítima de assalto para o professor examinar. A
vítima, um gerente de uma firma de café, contou em depoimento que fora roubado de
madrugada, perto do Jardim da Luz. Disse ter lutado contra os agressores, mas acabou
dominado e roubado. Um ladrão o segurou enquanto o outro arrancava-lhe o dinheiro
guardado dentro do colete, rasgando-o com uma faca. O gerente conseguiu se soltar, mas
deram-lhe um tiro na cabeça que, por sorte, furou apenas o seu chapéu.43 Reiss examinou as
roupas e o chapéu do gerente. Depois de uma análise minuciosa ele demonstrou a
impossibilidade dos golpes terem acontecido da forma como a vítima havia narrado. O
colete fora cortado provavelmente por uma tesoura e não por um punhal, como a vítima
afirmara. O chapéu, com o furo de bala, tinha marcas de pólvora, o que indicava que o tiro
fora dado de muito próximo. Uns trinta centímetros, calculou o professor. E o mais
estranho: de cima para baixo. Portanto, para dar aquele tiro, o assaltante teria que ter mais
de três metros de altura, a não ser que o chapéu estivesse no chão, o que contrariava a
história contada pela vítima.
O delegado Franklin de Toledo Piza foi até o local onde o gerente disse ter sido
atacado. Ele notou que a uns vinte metros do local ficava o Quartel da Luz. As sentinelas de
serviço na noite do assalto disseram não ter ouvido tiros. Outra testemunha, uma senhora
que morava de frente ao local do assalto e acordava toda noite para amamentar o filho
pequeno, também disse não ter escutado nenhum estampido vindo da rua naquela noite. O

43
O Estado de São Paulo, 15 de julho de 1913.

228
delegado passou então a suspeitar do gerente, principalmente quando ficou esclarecido que
o dinheiro roubado, 47 contos de reis, não era seu, mas da firma para a qual ele trabalhava.
Confrontado com as conclusões do exame e das testemunhas arroladas pelo delegado, a
vítima tentou retirar a queixa de assalto, mas terminou indiciada por furto e falsa
notificação de crime.44
Em outro caso, Reiss interrompeu sua aula para examinar um cadáver. Um jovem
italiano de 25 anos fora encontrado morto em sua cama, pela mãe. O rapaz, Benedito
Adami, tinha sinais de enforcamento, mas não havia sinais de uma corda no local. O
delegado do Brás, que atendeu a ocorrência, mandou chamar imediatamente o professor.
Reiss chegou acompanhado de seus alunos e do fotógrafo. Ele iniciou realizando um
cuidadoso exame do local. Havia marcas de corda bem visíveis na garganta do rapaz, como
se o cadáver tivesse ficado suspenso por um tempo, porém o rapaz estava deitado na cama.
A família parecia nervosa.45 A mãe do rapaz foi levada para a delegacia e tudo ficou
esclarecido. Mais calma, ela contou que encontrara o filho enforcado na latrina da casa. O
rapaz tinha se suicidado. O vizinho acudiu aos seus gritos, pegando uma faca na cozinha e
cortando a corda usada no enforcamento. Depois, temendo problemas com a polícia, se
livraram da corda e da faca, e esconderam o ocorrido das autoridades.46
As aulas de Reiss eram bem movimentadas. Ele ia constantemente a locais de
arrombamento, acidente, incêndio e homicídio, levando seus alunos. Nesses momentos,
Reiss tinha a oportunidade de colocar em prática seus conhecimentos e instruir os policiais
paulistas. Nos momentos de descanso, ele caçava borboletas nos arredores da Cidade. Certo
dia, repousando no hotel, Reiss recebeu uma carta de uma cafetina cobrando-o pelos seus
gastos no estabelecimento dela. O professor alegou que nunca havia colocado os pés na
casa da cafetina e mostrou a carta para o delegado Sampaio Vianna. Rindo, disse que
alguém certamente havia aplicado um golpe naquela madame. O Gabinete de Investigações
apurou o caso e prendeu o estelionatário Evaristo Gurgel, que havia gastado a rodo no
bordel, passando-se pelo criminalista suíço. Depois da farra, o espertalhão deu a ela um
cartão falso e pediu para enviar a conta para o hotel, contou um jornalista.47

44
Idem, 24 de julho de 1913.
45
Idem, 19 de agosto de 1913.
46
Idem, 21 de agosto de 1913.
47
Idem, 29 de agosto de 1913.

229
Na manhã do dia 26 de setembro, outro crime interrompeu uma das suas últimas
aulas em São Paulo. Logo cedo, a polícia foi informada do assassinato de uma prostituta
dentro do próprio domicílio. A vítima chamava-se Emma Bellini, uma meretriz obesa vinda
de Buenos Aires, que morava sozinha num casebre no Largo do Paissandu, de fundo para
uma pequena quitanda. Seus vizinhos, também italianos, sabiam que ela atendia os clientes
em casa, mas estranharam ao ver a lamparina ainda acesa na manhã seguinte. Espiando por
uma fresta da janela, a esposa do quitandeiro viu-a caída no chão e chamou a polícia.
Emma Bellini foi encontrada morta por um guarda cívico, que avisou a Repartição Central
de Polícia usando a caixa de alarme. Seu rosto apresentava sinais típicos de
estrangulamento. No pescoço notava-se uma equimose alongada. Caído no chão, os
policiais encontraram um trancelim de chapéu, provavelmente usado para estrangular a
vítima.48
O quarto estava completamente revirado. Emma Bellini apresentava sinais de ter
sido facilmente subjugada. Perto do cadáver via-se um pequeno cofre vazio; em cima de
uma mesinha improvisada, garrafas de cerveja vazias; ao lado da cama, um gramofone
ligado e um papagaio na gaiola. O Dr. Archer de Castilho fez um exame demorado no
cadáver e os peritos procuraram por impressões digitais, sem sucesso. Na opinião de Reiss,
o motivo do crime teria sido roubo. Os delegados Franklin de Toledo Piza e Cantinho
Filho, que estavam assistindo sua aula e o acompanharam até a casa da prostituta,
concordaram. Enquanto isso, a população, atraída pela chegada da ambulância e dos
automóveis da polícia, se aglomerou em frente à porta da casa onde se encontrava o corpo.
Policiais fardados, com ordens de vedar a entrada de pessoas estranhas no local, afastavam
os curiosos. Os jornais abriram as manchetes no dia seguinte, anunciando que depois de
“um período sem crimes chocantes, de reportagens sobre agressões e desavenças sem
interesse”, a Cidade amanhecia "alarmada com a notícia de um assassinato misterioso,
cometido nas mais repugnantes circunstâncias".49

48
Correio Paulistano, 27 de setembro de 1913.
49
Idem.

230
O caso Emma Bellini
O inquérito sobre o assassinato de Emma Bellini mobilizou a polícia, tornando-se
um espécie de teste
para os delegados
que, há quase três Multidão aglomerada em frente a casa
de Emma Bellini. (Correio Paulistano)
meses, aprendiam
técnicas modernas
de investigação. O
caso, no entanto,
revelou as dificulda-
des reais de se
esclarecer um crime
ocorrido entre qua-
tro paredes. As
primeiras suspeitas da polícia recaíram no quitandeiro que, segundo a imprensa, tinha
"péssimos precedentes e um filho ladrão", fichado no Gabinete de Investigações. O
quitandeiro e sua esposa ficaram presos enquanto a polícia interrogava antigos clientes da
vítima. Foram detidos e interrogados três italianos e dois sírios. As suspeitas voltaram-se
então contra o ex-companheiro da vítima, André Brovi, que a trouxera da Itália e era
apontado pela penteadeira da prostituta como seu possível assassino. Enquanto isso, os
jornais traçavam uma biografia da prostituta morta. Emma Bellini fugira de casa, em
Veneza, aos dezessete anos de idade, indo morar com um homem mais velho. Na Itália, ela
conhecera Brovi, um camareiro de navio, que a levou para a Argentina. De lá, vieram para
São Paulo. Os jornais diziam que Brovi era um "proxeneta despudorado", o que ele negava,
dizendo à polícia que havia cortado seus vínculos com a vítima desde que se casara com a
filha do dono de um botequim. Para o delegado Cantinho Filho, o casamento servia
somente para mascarar a verdadeira atividade de Brovi, que era "extorquir decaídas".50
A polícia não encontrou nenhum indicio contra os presos, mesmo assim Brovi
continuou trancado nas celas da delegacia. Atraídos pela repercussão do crime, dois
moradores de Osasco procuraram a polícia com "pistas do assassino". Ao delegado, eles

50
O Estado de São Paulo, 28 de setembro de 1913.

231
contaram terem presenciado na madrugada do crime o embarque na estação ferroviária de
uma pessoa suspeita, escondendo o rosto. Ela estava acompanhada de um cocheiro
conhecido na região como "olho de vidro". A polícia prendeu o cocheiro, mas chegou a
conclusão que a tal pessoa suspeita nada tinha a ver com a morte de Emma Bellini. 51 Nesse
ínterim, chegou aos ouvidos do delegado Cantinho Filho, titular do distrito onde ocorreu o
crime, o nome de uma prostituta que conheceria os assassinos. Ela chamava-se Dolores da
Silva e trabalhava num prostíbulo da rua São João, descrito pelos jornais como "um ponto
de gatunos". Interrogada pelo delegado, ela confirmou que ouvira dois clientes dizerem que
iriam à casa de Emma Bellini na noite do crime. Eram eles Julio Manetti e Elia Del Sole,
residentes em Santos. O Dr. Cantinho Filho passou a informação para o Dr. Franklin Piza,
do Gabinete de Investigações que, por sua vez, telefonou para o delegado de Santos. Os
dois suspeitos estavam hospedados na pensão Bosque da Meia Noite, na praia do José
Menino. A polícia não teve dificuldade em prendê-los, juntamente com suas
acompanhantes. Todos foram trazidos escoltados para São Paulo, onde a imprensa os
aguardava ansiosamente.52
Oriundos de Florença, na Itália, os dois juraram sequer conhecer a vítima. Eles
não tinham emprego, mas negavam ser criminosos. Alegaram à polícia que vendiam tecidos
e roupas. O Estado de São Paulo, no entanto, descreveu Elia como um "verdadeiro tipo
criminoso", com tatuagens pelo corpo e aspecto de apache, se referindo aos delinquentes
franceses que cresciam nas ruas, se reuniam em bando e viviam de crimes.53 As digitais de
ambos foram enviadas para a Argentina e Itália. A polícia relatou ter encontrado dinheiro
falso e um chapéu-coco sem o trancelim, na bagagem dos presos. Para o delegado Cantinho
Filho, estas "coincidências comprometedoras" confirmavam as suspeitas iniciais da polícia:
o estrangulamento seria obra de "profissionais do crime", "eternos infratores da lei, em
constante conflito com a ordem social".54 O delegado foi até a pensão onde os dois
disseram ter dormido na noite do crime. O porteiro declarou que eles haviam chegado
depois das duas da manhã, desmentindo o depoimento dos suspeitos e confirmando o
parecer do médico-legista, que dava o horário da morte de Bellini entre as dez da noite e
uma da manhã.

51
O Commercio de São Paulo, 28 de setembro de 1913.
52
Correio Paulistano, 4 de outubro de 1913.
53
Sobre os apaches, recomendo a leitura de Michelle Perrot. Os Excluídos da História. São Paulo: Paz e Terra, 2001, p.315-322.
54
Correio Paulistano, 16 de outubro de 1913.

232
No dia seguinte à prisão dos dois italianos, um empregado do Teatro Municipal
pediu insistentemente para falar com o delegado Piza. Eugênio Manfredo afirmava ter
reconhecido os dois italianos, pelas fotos de jornal, como sendo os mesmos que ele vira
contando dinheiro no Café Guarany, na manhã seguinte ao crime. Mais duas testemunhas
procuraram a polícia. Uma delas, o português Jacob Soares, revelou ter ido à casa de Emma
Bellini na madrugada do dia do crime e presenciado os dois suspeitos sufocando a
prostituta. Assustado, ele teria fugido do local. Outra testemunha, o italiano Fernando
Renzo, contou que havia perdido o bonde e por isso resolveu dormir na casa da prostituta,
mas lá chegando encontrou duas pessoas com ela. Um deles abraçado a ela, na beirada da
cama, e outro de chapéu-coco sentado numa cadeira. Renzo ficou na rua esperando
pacientemente que eles fossem embora. Algum tempo depois, ele os viu saírem apressados
com um embrulho debaixo do braço. O italiano chamou por Bellini, mas como ela não
respondeu, ele foi embora frustrado.55
A investigação tinha, na realidade, pouco de científico, permanecendo um
conjunto de indícios contra os suspeitos. O delegado Cantinho Filho juntou os depoimentos
um tanto desencontrados ao inquérito e denunciou os dois italianos pelo assassinato. No
relatório, o delegado deu destaque para os laudos científicos, o horário aproximado da
morte, a marca de estrangulamento e o chapéu encontrado com os suspeitos.56
Aproveitando o rumor provocado pelo crime, o Gabinete de Investigações anunciou aos
jornais que a polícia havia desbaratado uma perigosa quadrilha, da qual faziam parte os
dois suspeitos pela morte de Emma Bellini. Os jornais divulgaram as fotos de doze presos,
qualificando-os de gatunos, cáftens e arrombadores. A polícia pediu a deportação de todos
eles.57
O julgamento do assassinato de Emma Bellini foi ainda mais tumultuado do que
as investigações, graças ao advogado dos réus, o Dr. Antônio Covello, que cultivava uma
barba pontuda igual à do jurista italiano Enrico Ferri (1856-1929). Grande admirador do
famoso do jurista italiano, a sua barba pontuda garantiu-lhe o apelido de "Mefistófeles" nos
fóruns paulistas. Covello era conhecido no tribunal do júri por sua atuação exagerada e até
dramática. Contava-se que ele, com seus olhos penetrantes, costumava se aproximar dos

55
Idem, 5 de outubro de 1913.
56
Relatório do inquérito policial datado de 16 de outubro de 1913. 1ª vara criminal. Réus: Elia Del Sole e Júlio Manetti (ATJSP).
57
O Estado de São Paulo, 5 de outubro de 1913; Correio Paulistano, 14 de janeiro de 1914.

233
jurados e dizer, apontando para o réu, que se Deus descesse à Terra, infinita seria a sua
tolerância para com os que erraram.58 O advogado, que perseguia casos de grande
repercussão e colecionava inúmeras vitórias, se apaixonou pela causa dos acusados.
Tão logo o juiz começou o interrogatório das testemunhas, Covello tentou
interferir no que dizia uma delas e foi chamado à atenção pelo juiz Gastão de Mesquita. De
pronto, o advogado respondeu ao magistrado que ali não era a fazenda dele, onde ele
mandava como bem entendia. O juiz mandou prendê-lo na hora, iniciando um tumulto no
qual um dos réus aproveitou para atirar um tinteiro na testemunha. O advogado acabou
suspenso e processado por desacato.59 Durante o julgamento, os jornais noticiaram que
Fernando Renzo, a única testemunha italiana contra os réus, procurou o delegado Piza
pedindo proteção. Renzo contava ter sido ameaçado por amigos dos réus, queixando-se
também que ele e sua esposa estavam sofrendo maus-tratos na rua. Um italiano não podia
prejudicar outro italiano, diziam seus vizinhos. O jornal Estado de São Paulo não perdeu a
oportunidade de chamar a vizinhança de “camorra”.60
Mesmo suspenso, o advogado dos réus conseguiu adiar o julgamento com pedidos
de novas perícias, até poder retornar ao tribunal. A polícia, enquanto isso, remexia no
passado delituoso dos réus. O delegado Franklin Piza revelou à imprensa que os
prontuários de Júlio Manetti e Elias Del Sole, em Florença e Buenos Aires, continham
passagens por furto, assalto e jogatina.61 A estratégia de transformá-los em criminosos
profissionais aumentava as chances de condenação, pois era senso comum que criminosos
reincidentes cometiam toda sorte de crime; portanto, os dois poderiam, dado o seu passado,
ter matado friamente Emma Bellini. Contudo, a estratégia não funcionou. O advogado dos
réus desqualificou as testemunhas e lançou dúvidas sobre as provas colhidas pela polícia.
Depois de uma votação apertada, o júri inocentou os dois italianos por um voto de
diferença. A promotoria recorreu alegando que as provas haviam sido "estrabicamente
compreendidas e julgadas". Os réus permaneceram presos até a decisão final do Tribunal de
62
Justiça, confirmando a sentença. O resultado do julgamento não foi aquele que a polícia

58
Pedro Paulo Filho. Grandes Advogados, Grandes Julgamentos. Campinas: Milleninium, 2003, p.148; A.A.Covello. "Homenagem a
Enrico Ferri". In: Revista de Criminologia e Medicina Legal, vol.VI, dezembro de 1929, p.149-154.
59
O Estado de São Paulo, 11 de novembro de 1913.
60
Idem, 16 de novembro de 1913.
61
Idem, 25 de novembro de 1913.
62
O Commercio de São Paulo, 11 de dezembro de 1916.

234
esperava, mas serviu, mesmo assim, para reforçar a ideia de que a sociedade paulista estava
sitiada por uma classe criminosa voraz.
Reiss proferiu sua última conferência no dia 27 de setembro.63 Antes de retornar à
Europa, porém, ele visitou o Rio de Janeiro a convite de Elysio de Carvalho e do chefe de
polícia do Distrito Federal. No Rio, ele deu um curso breve para os policiais cariocas,
resumindo suas aulas para o espaço de uma semana. Terminado o curso, Carvalho pediu ao
professor que avaliasse a polícia da capital da República. O balanço que ele fez foi bem
desfavorável:

"(…) tive ocasião de conhecer uma polícia que, devo dizê-lo


com franqueza, é essencialmente influenciada pela política. Aí entram,
como delegados, indivíduos que não possuem a menor preparação
técnica e não podem, por conseguinte, cumprir a missão com o
equilíbrio devido ao cargo que lhes foi confiado. Um caixa de banco,
um jornalista, um empregado do comércio (contanto que seja bacharel
em direito) é de um dia para o outro elevado à categoria de delegado de
polícia. E aqueles que porventura são portadores de alguma
competência, podem igualmente, de uma hora para outra, serem
demitidos dos seus postos. Sob este ponto de vista, para que negá-lo? A
polícia do Rio deixa muito a desejar, pois a proteção política dá mais
fácil acesso aos postos policiais do que o preparo técnico. Um meio
único há a estabelecer, e do qual São Paulo deu no Brasil um soberbo
exemplo: a polícia de carreira. Por essa maneira, a polícia emancipar-se-
á da influência nefasta dos empenhos e considerações políticas, que a
tornam refúgio de quantos protegidos pretendem colocar-se pelo favor
de padrinhos."64

63
O Estado de São Paulo, 28 de setembro de 1913.
64
Boletim Policial, ano VIII, nº1, janeiro de 1914, p.45.

235
As críticas não traziam novidade, pois os jornais cariocas as estampavam
diariamente. Rui Barbosa chegou a liderar uma verdadeira campanha contra a polícia do
Rio de Janeiro. "Não há, no mundo civilizado, polícia pior, pior polícia não há no Brasil",
sentenciou.65 O motivo era a brutalidade, a corrupção
e o apadrinhamento descarado. A avaliação de Reiss
tocava em pontos já conhecidos, mas representava um
ganho para a polícia paulista, que se afirmava como
modelo para as demais polícias do país. Reiss
retornou a Lausanne, mudando-se para a Sérvia
durante a guerra. Amigo pessoal do rei Alexandre I e
responsável por instruir a polícia de Belgrado, o
famoso criminalista adotou a Sérvia como pátria.
Durante o conflito, ele denunciou as atrocidades
cometidas pela Áustria e doou parte de sua fortuna
para a reconstrução do país. Reiss faleceu em 1929,
vítima de um infarto, recebendo um funeral com
honras militares.66
Reiss em São Paulo, 1913. Da esq. para a dir: Reiss,
Bischhoff, Tuck, Sampaio Vianna, Cantinho Filho e seu
pai. (Jacques Mathyer)
O Gabinete de Investigações
"A polícia de investigações é o centro dentro do qual gira o aparelho policial; em
todas as polícias modernas, a tendência vencedora é para a ampliação do serviço de
investigações, por assim dizer, a alma da polícia preventiva."67 Com estas palavras, o
Gabinete de Investigações ganhava destaque no relatório de 1913. O secretário da
segurança comemorava o número de prisões efetuadas pelo Gabinete e o extraordinário
número de prontuários arquivados: 13.254. No ano seguinte, o serviço de identificação teria
em seu poder 60 mil fichas datiloscópicas.68 O Gabinete passou a ser a mais importante
repartição do aparelho policial paulista, embora fosse ainda um corpo diminuto, formado

65
Rui Barbosa. Obras Completas. Vol.XXV, tomo II. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, 1947, p.66.
66
Jacques Mathyer, op.cit., pp.149-153.
67
Relatório apresentado ao Dr. Carlos Augusto Pereira Guimarães, vice-presidente do estado em exercício, pelo Secretário da Justiça e
Segurança Pública Eloy de Miranda Chaves. Anno de 1913. São Paulo: Rothschild & Cia, 1914, p.187.
68
Relatório apresentado ao Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves, presidente do estado, pelo Secretário de Justiça e Segurança
Pública Eloy de Miranda Chaves. Anno de 1914. São Paulo: Typ. Brasil de Rothschild & Cia., 1915, p.76.

236
por 3 delegados, 23 inspetores e 43 aprendizes. Mesmo assim, ele conquistou rapidamente
espaço como principal órgão na luta contra a criminalidade em São Paulo.
Com a chancela de Reiss, a polícia paulista se colocou no rol das polícias que
haviam aderido às práticas modernas de investigação. Graças a esse passo, a polícia
paulista figurou no livro do criminalista francês Edmond Locard (1877-1966), onde ele
estabelece as bases do trabalho pericial moderno, como um modelo digno de ser seguido.
Locard considerava que São Paulo havia realizado uma reforma audaciosa, conquistando
conhecimento, pessoal e recursos para organizar um laboratório de investigação nos moldes
de Paris, Lion e de outros gabinetes respeitáveis.69 O Gabinete de Investigações passou a
contar com um corpo especializado para fazer perícias e investigar crimes de autoria
desconhecida, seguindo as diretrizes de Reiss. O delegado Sampaio Vianna tornou-se
responsável pelos exames de local de crime contra a pessoa, enquanto o perito Moisés
Marx (1883-1949) ficou encarregado dos acidentes e incêndios. Marx foi engenheiro do
Corpo de Bombeiros e responsável pela instalação das caixas telegráficas Gamewell na
Capital. Conta-se que ele fez um trabalho brilhante, ficando “emprestado” à polícia civil
por determinação do secretário da segurança.70
Logo, o Gabinete aparecia nos jornais efetuando prisões como a do degolador de
prostitutas Bernadino Barceló y Gomilla. Em 1914, a polícia prendeu um espanhol que
havia tentado matar uma prostituta. Através do exame das suas impressões digitais, os
técnicos do Gabinete descobriram ser ele o autor do assassinato da meretriz Lili das Jóias,
no Rio de Janeiro. Rosa Schwatz, conhecida como Lili das Jóias, foi encontrada degolada
em seu quarto, na rua das Marrecas. Ao lado do corpo a polícia carioca encontrou uma
navalha com uma impressão manchada de sangue. A digital pertencia a Gomilla. 71 Em
1915, o Gabinete esclareceu o assalto à Casa Hanau, famosa joalheria localizada na rua São
Bento. Os ladrões haviam penetrado na loja escavando a parede de um apartamento vizinho
ao estabelecimento. Depois, arrombaram o cofre com uma engenhoca especial, levando
uma fortuna em jóias.72 O delegado Franklin Piza interrogou o proprietário do apartamento
usado para penetrar na joalheria. O proprietário forneceu a descrição do inquilino e o

69
Edmond Locard. La Police: ce qu'ele est ce qu'elle devrait être. Paris: Payot & C., 1919, p.120.
70
"In memoriam de Moyses Marx", op.cit., p.470.
71
O Estado de São Paulo, 5 de novembro de 1914; O Commercio de São Paulo, 6 de novembro de 1914; O Imparcial, 14 de outubro de
1914.
72
O Estado de São Paulo, 11 de abril de 1915.

237
contrato de aluguel. Baseada nestas informações, o Gabinete separou cerca de setenta
prontuários de ladrões conhecidos entre quatro mil. Analisando cuidadosamente a
assinatura dos prontuários com a do contrato, os peritos do Gabinete chegaram a um
suspeito: Mário Ricardini, ladrão que segundo informantes morava no Bom Retiro. A
prisão de Ricardini levou os policiais até Frederico Gobbi, o chefe da quadrilha. Com ele
foram encontrados os instrumentos usados no assalto e parte das jóias. O feito mereceu
manchetes com fotos dos delegados do Gabinete de Investigações – Franklin Piza, Virgilio
do Nascimento e Sampaio Vianna – ao lado do governador Rodrigues Alves.73
A revista A Cigarra não se acanhou em declarar que: "Se houvesse ainda um
cético que descresse da competência técnica da nossa organização policial, o seu
pessimismo teria desaparecido diante da captura dos autores do sensacional roubo da Casa
Hanau & Cia."74 O roubo nada ficava "a dever pela originalidade de processos, educação
profissional e intelectual à criminalidade das capitais mais adiantadas da Europa e
América." O fato de a quadrilha operar no exterior só fez crescer o valor da captura. Afinal,
a polícia paulista se mostrava à altura de prender ladrões internacionais. O prestígio do
Gabinete de Investigações crescia, atraindo aqueles que queriam subir na carreira e ver seu
nome estampado nos jornais.
Em 1916, o chefe do Gabinete de Investigações foi nomeado delegado geral. Com
a indicação de Piza, a chefia do Gabinete foi entregue ao delegado Virgilio do Nascimento,
o que contribuiu para aumentar a popularidade daquela repartição. A fama de pupilo de
Reiss acompanhava Virgilio do Nascimento desde que ele fora escolhido para aperfeiçoar
seus conhecimentos em Lausanne. No jantar de despedida, Reiss fizera um convite no
sentido de levar consigo um delegado para continuar seus estudos e ter a oportunidade de
conhecer como operavam outras polícias. Nascimento foi o escolhido, passando sete meses
na Europa.
Virgilio do Nascimento (1884-1927) iniciou a carreira como suplente de
delegado, e depois subdelegado, na movimentada delegacia da Consolação. Seu biógrafo
escreveu que ele tinha um interesse profundo pelo trabalho policial desde a infância. Das
aulas na Faculdade de Direto ele ia direto para a delegacia. Em 1910, com o diploma na
mão, foi nomeado delegado em Xiririca. Três anos depois, estava de volta à Capital como
73
Idem, 15 de abril de 1915; Guido Fonseca, op.cit., 1988, p.156-170.
74
A Cigarra, nºXX, 21 de abril de 1915.

238
encarregado da seção de Vigilância e Capturas do Gabinete de Investigações. Chamava a
atenção sua dedicação ao trabalho, destacando-se pela habilidade em colher impressões
digitais. Nascimento, enquanto esteve na Europa, aproveitou para conhecer outras polícias
levando cartas de apresentação de Reiss, e participou do Primeiro Congresso Internacional
de Polícia em Monte Carlo, às vésperas da Grande Guerra de 1914.75
O delegado se vestia com esmero, fumava cachimbos exóticos e costumava
trabalhar com um cachorro de estimação aos seus pés. Sem desperdiçar uma chance de
impressionar seus interlocutores, ele exibia seu conhecimento descrevendo com detalhes os
arquivos de São Petersburgo ou a escola de polícia em Roma.76 Delegados que o viram
trabalhar contavam histórias a respeito do seu “faro policial”. Um destes, o descreveu da
seguinte forma:

"(Era) um apaixonado pela profissão a que, de corpo e alma,


se dedicou. Deleite se constituía ouvir o que dizia ou presenciar o que
fazia dentro da esfera das suas atribuições. Um tanto teatral diante dos
criminosos, era simples, bem simples, no trato íntimo. Em ação, no
desenvolvimento do seu trabalho investigativo, tudo nele era calculado
e artificial. Não desprezava o menor detalhe. A sua postura, o modo de
olhar, a modulação da voz, as palavras, os gestos, a disposição dos
móveis na sala e a colocação do interrogado, para os efeitos de luz,
tinham a sua finalidade e obedeciam a determinado plano. Senhor de
longa prática, fino psicólogo, raros foram os delinquentes que resistiram
ao seu cerrado "baratino".77

Virgilio do Nascimento fazia da investigação um ritual e não foi por menos que
disseram que nele "tudo era calculado". Em um de seus livros, guardado na biblioteca da
Academia de Polícia, podemos ler anotações suas ao pé da página:

"É necessário não esquecer estas regras:

75
Prontuário nº1425 ; Afonso Celso de Paula e Lima. "Virgilio do Nascimento". In: APCSP, vol.I, 1ºsemestre, 1941, p.321-323.
76
Artur Leite de Barros. "E por falar em polícia...". In: APCSP, vol.XII, 2º semestre,1946, p.326-327.
77
Id, "O Antigo Gabinete de Investigações". In: Investigações, nº25, 1951, p.58-59.

239
I- Não desviar o olhar dos olhos do interrogado;
II- Não perguntar o que se quiser saber;
III- Não deixar que o interrogado perceba até onde vai a nossa ignorância a
respeito do assunto; ele deve crer sempre que o nosso conhecimento é
mais extenso e mais profundo do que o real;
IV- Reduzir a importância do caso aos termos de um ato comum,
justificável, que qualquer um de nós em seu lugar praticaria;
V- Não se impacientar nem se zangar ante as respostas absurdas ou
indelicadas. É preferível fazer crer que não entendemos."78

O jornalista Paulo Duarte lembraria dele em suas memórias: "Havia um delegado


em São Paulo, conhecido por sua probidade e pelo seu tino criminal, do qual eu era amigo.
Costumava mesmo visitá-lo no Gabinete de Investigações, à rua 7 de Abril, quando saia do
trabalho antes da meia-noite. Chamava-se Virgilio Nascimento."79 Durante sua gestão, seus
colegas declararam que “não ficou nas trevas um único homicídio misterioso na Cidade”,
sendo que ele ainda colaborou no esclarecimento de um grande roubo ocorrido na
Argentina. Caso que lhe valeu uma medalha no país vizinho.80 O delegado também teve
uma participação importante na repressão ao anarquismo. Everardo Dias conta como ficou
horas no Gabinete de Investigações esperando para ser interrogado pelo delegado Virgilio
do Nascimento, "o delegado mais arguto, mais Sherlock que São Paulo possui. É o turuna
da polícia, o suco das autoridades", escreveu.81
O prestígio acumulado pelo delegado, contudo, não foi suficiente para mantê-lo
na chefia do Gabinete de Investigações. Ele terminou a carreira rebaixado. Depois de uma
discussão com o delegado geral em 1920, Nascimento foi transferido para a Delegacia de
Falsificações. O delegado Afonso Celso, seu admirador e biógrafo, escreveu: "Virgilio do
Nascimento, como quase todos os da polícia, teve dias amargos e tristes. Passou, a cabo de
20 anos de dedicados serviços, de delegado auxiliar, que era, a delegado especializado.
Rebaixaram-no porque fora intrépido até o fim." Ainda segundo Afonso Celso, ele passou
mal uma manhã. Fraco do coração, pediu para ser levado imediatamente para casa, pois não
78
Don Emilio Casal de Nis. La Policía y sus Misterios. Valencia: Mirabet, 1922, p.76-77.
79
Paulo Duarte, op.cit., vol.VIII, p.153.
80
Cantinho Filho, op.cit., p.51.
81
Guido Fonseca, "DOPS: um pouco de sua história", op.cit., p.51.

240
queria morrer sem ver suas filhas. O delegado conta que ele expirou pouco depois de
transpor a porta da sua casa, na cama, ao lado da esposa. Virgilio do Nascimento estava
com 43 anos de idade.82 O delegado Cantinho Filho, escrevendo uma nota de falecimento
sobre o amigo, fez questão de destacar que ele não gozou um dia sequer de férias ou
licença, com o intuito de ressaltar o quão extenuante era o exercício da carreira policial.83

Delegados do Gabinete de Investigações, 1925. Sentados, da esq. para a dir.: Armando Ferreira
Rosa, Otávio Ferreira Alves, Carlos A. Sampaio Vianna, Andrelino de Assis, Cantinho Filho (então chefe
do Gabinete), Virgílio do Nascimento, Aquiles Guimarães, Bastos Cruz e Artur Leite de Barros. Em pé,
da esq. para a dir., os comissários Martinho Chaves, Rego Freitas, Assumpção Filho, Adolpho
Normanha, Ignácio da Costa Ferreira, Waldemar Doria e Ricardo Gumbleton Daunt. (coleção particular)

Polícia e imprensa
Em 1920, o Gabinete de Investigações recebeu a visita do cônsul americano,
Charles Hoover. O cônsul declarou ter ficado impressionado com o funcionamento daquela
repartição, especialmente da sua seção de identificação. Tendo visitado departamentos
idênticos em Nova York, Chicago, Madri, Viena e Berlim, podia afirmar que a polícia de
São Paulo nada ficava a dever às outras. Na presença de jornalistas, o cônsul afirmou que
São Paulo tinha um dos melhores serviços de segurança pública que já vira. "São Paulo

82
Afonso Celso de Paula Lima. "Virgilio Nascimento". In: APCSP, vol.I, 1º semestre, 1941, p.326. Virgilio do Nascimento faleceu em 7
de janeiro de 1927.
83
Cantinho Filho, op.cit., p.52.

241
deve orgulhar-se da polícia que possui, e isso muito contribuirá para a imigração de bons
elementos, bem como para a segurança do emprego do capital estrangeiro", declarou.84
O Gabinete de Investigações construiu a imagem de departamento especializado
com ajuda da imprensa. Polícia e imprensa têm um relacionamento de dependência mútua e
não há como evitar essa situação. A polícia é a principal fonte de informações sobre a
criminalidade; por outro lado, os policiais sabem que a imprensa é capaz de construir
imagens e destruir carreiras, facilitar ou dificultar o trabalho policial. As relações entre
policiais e jornalistas costumam ser cultivadas e negociadas.85 Nas primeiras décadas do
século XX, ambas instituições, a imprensa e a polícia, consideravam-se "guardiões da
moral" e "defensores da sociedade"; ambas lutavam para se estabelecer profissionalmente;
ambas eram fortemente ligadas à elite paulista e dirigidas por bacharéis que tomaram para
si a tarefa de pensar os rumos da sociedade paulista. As duas instituições se esbarravam,
mas pareciam caminhar em um mesmo sentido: defender a ordem constituída.
Durante as grandes transformações econômicas do final do século XIX, a
imprensa paulista passou a ocupar um espaço privilegiado na sociedade. A Cidade
intrometia-se na imprensa e a imprensa, na Cidade, observou Heloisa de Faria Cruz. 86 Os
jornais divulgavam assuntos de interesse da coletividade, traziam novidades, lançavam
moda e, especialmente, se firmavam como "representantes do interesse público". A
imprensa tomava para si a responsabilidade não apenas de informar o público, mas também
de cobrar das autoridades respostas aos anseios dos seus leitores, atendendo as necessidades
dos diferentes segmentos étnicos, profissionais e de classe. Os dois maiores jornais diários
paulistas, O Estado de São Paulo e o Correio Paulistano, eram umbilicalmente ligados a
famílias poderosas que gravitavam em torno dos grandes negócios e das disputas do mundo
político, o mesmo acontecendo com dezenas de outras publicações menores. Em uma
sociedade calcada por uma relação intima de dependência entre o Estado, os capitalistas e o
PRP, a imprensa era financiada em grande parte pelo dinheiro de interesses entrelaçados.87
De um modo geral, os discursos da imprensa paulista enalteciam padrões
considerados civilizados de comportamento e convívio social valorizados pela elite

84
Carneiro Leão. São Paulo em 1920. São Paulo: 1921, p.118-120.
85
Ver depoimentos de jornalistas colhidos em Silvia Ramos e Anabela Paiva. Mídia e Violência. Rio de Janeiro: IUPERJ, 2007.
86
Heloisa de Faria Cruz. "A imprensa paulistana: do primeiro jornal aos anos 50". In: Paula Porta, op.cit., vol.2, p.351-382.
87
Janes Jorge. "A Imprensa Pulistana: entre as demandas do povo e os interesses oligárquicos (!890-1920)". In: Revista Histórica, nº7,
junho/julho/agosto de 2002, p.16.

242
dominante, exigindo sempre mais polícia, mais policiamento e a punição dos criminosos.
As críticas, e haviam muitas, eram sempre dirigidas a "maus policiais", nunca contra a
instituição, cujo papel era "resguardar a tranquilidade de todos".88 Durante as primeiras
décadas da República, a imprensa teve um papel crucial na construção da imagem dos
criminosos e dos agentes da lei. Jornais sisudos, sérios, como O Estado de São Paulo e o
Correio Paulistano, começaram a dar destaque para matérias policiais, publicando fotos
dos criminosos a partir de 1910. Percebe-se que as fotos eram as mesmas tiradas pela
polícia, onde os detidos apareciam sinistros e desarrumados, de frente e perfilado, feios e
sujos, contrastando com as fotos das autoridades policiais tiradas em estúdio, com retoques
e capricho.89 Os jornais usavam os crimes para reforçar valores e normas, assim como para

As fotos das autoridades policiais publicadas nos


jornais contrastavam com a dos infratores, como
se percebe nos recortes guardados no Diário do
delegado Cantinho Filho. As fotos do delegado
eram fotos de estúdio, carregadas de capricho,
enquanto as fotos dos detidos eram as mesmas
tiradas pela polícia, onde eles aparecem
invariavelmente sujos e mal arrumados.
(coleção particular)

88
Mesmo o Parafuso, que atacava duramente vários delegados, costumava lembrar aos leitores que na época do secretário
Washington Luís ela era “uma instituição invejada”, de ótimos serviços. O Parafuso, 3 de abril de 1915.
89
Sobre as fotos policiais, ver o interessante trabalho de Fernanda Torres Magalhães. O Suspeito Através das Lentes. Dissertação de
Mestrado apresentado ao Departamento de História da USP, 2001.

243
delimitar claramente os papéis sociais, inclusive de raça, classe e gênero. No crime da mala,
por exemplo, o Correio Paulistano relatava incessantemente que a viúva, Carolina Fahrat,
estaria arrependida. Mas arrependida do quê? Embora não existisse nenhuma prova da sua
infidelidade ou participação no crime, o fato dela ter sido alvo dos galanteios de Trad a
colocava como o pivô da tragédia. Cobrava-se dela resignação para com as dificuldades do
casamento. Imaginar que uma esposa, ainda que infeliz, pudesse se permitir outra coisa era
abrir uma porta para a tragédia, deixavam explícito os redatores do jornal.90
As mulheres tinham um papel a desempenhar na sociedade. A Folha da Manhã
culpava a esposa do coronel Afro Marcondes de Rezende por levá-lo "à loucura",
"martirizando-o e martirizando-o", "como uma demente". Os jornais a descreveram como
uma "senhora voluntariosa", que não respeitava o lar e o marido, incentivando os encontros
amorosos da filha, o que teria levado o coronel a descarregar sua arma contra ela.
"Chocado" com a tragédia e alegando "privação dos sentidos", o coronel recebeu dezenas
de visitas de solidariedade no quartel onde ficou temporariamente detido.91 A violência
"justificada" contra a mulher parece refletir uma sociedade que se sentia ameaçada por
qualquer transgressão à sua estrutura hierárquica, dentro ou fora do lar. Fica evidente que o
tratamento dispensado pelos jornais para certos crimes dependia muito da posição social
dos seus personagens. Quando o senador Peixoto Gomide matou sua filha e se suicidou em
seguida, a grande imprensa se calou. O senador atirou na sua filha dentro do lar para
impedir que ela se casasse com alguém considerado por ele inferior à sua condição social.
Os jornais apenas lamentaram a "tragédia", esquivando-se de usar a palavra "crime" e
limitando-se a divulgar uma lista de pessoas enlutadas.92
Por outro lado, os crimes entre imigrantes ou pessoas pobres eram fartamente
ilustrados, alimentando os estereótipos. Os crimes eram descritos como "pavorosas cenas
de sangue" e os italianos eram chamados de "camorra", indivíduos que agiam com
"desfaçatez", "perversidade" e que se "compraziam em farras". "Turco é doido para matar
turco, num café", dizia o cronista do Correio Paulistano.93 Todo individuo pobre preso era
imediatamente tratado como gatuno, vadio, passador de conto ou mundana. Os locais que
essa gente frequentava eram sempre "casas suspeitas", que mereciam descrições detalhadas,

90
Correio Paulistano, 12 de setembro de 1908.
91
Folha da Manhã, 17 de novembro de 1926; A Gazeta, 18 de novembro de 1926.
92
Correio Paulistano, 21 de janeiro de 1906.
93
Idem, 8 de junho de 1922.

244
para não dizer imaginosas. A hospedaria onde os suspeitos do estrangulamento de Emma
Bellini foram presos foi classificada de "espelunca", conhecida "pelas ignóbeis patifarias
que ali se praticam à sombra da madrugada".94 Essas histórias, contadas e recontadas
inúmeras vezes, reforçavam e tornavam aceitável a presença da polícia no cotidiano da
população, contribuindo para cimentar a ideia que a sociedade estava sitiada por uma classe
criminosa.

Progresso e criminalidade
Apesar do investimento maciço na modernização da polícia, os números
indicavam um crescimento dos delitos na Cidade, especialmente contra a propriedade. As
causas eram discutidas em jornais, mas o fato é que eles já estavam em ascendência desde o
início da década de vinte.95 O delegado Cantinho Filho buscava explicações no progresso
de São Paulo, que nada ficava "a dever às capitais mais adiantadas da Europa e América". 96
O progresso atraia criminosos. Os delitos estavam crescendo no mundo inteiro, alegava o
delegado, ao explicar que São Paulo, por sua riqueza e ambiente cosmopolita, atraia
"criminosos de todos os matizes":

"(…) desde o elegante e audacioso scroc de maneiras


requintadas e de aspecto simpático e insinuante até o arrombador
temível, mas esperto, que não se esquece de nenhuma das precauções
que possam desorientar a polícia mais bem aparelhada. (…) Ao lado
desses, que pertencem à vasta e temível categoria dos delinquentes
internacionais, existe em S. Paulo uma classe não pequena de
criminosos, reincidentes contumazes, contra os quais embora existam
indícios veementes de culpabilidade, difícil se torna fazer uma prova
judiciária capaz de lhes acarretar uma pena que, segregando-os por um
tempo mais ou menos longo do meio social, possa servir para regenera-
los. (…) É contra essa criminalidade latente, sem contudo esquecer os
criminosos de ocasião, que muitas vezes são protagonistas de fatos de

94
Idem, 3 de outubro de 1913.
95
A Gazeta, 20 de janeiro de 1927; Diário da Noite, 11 de outubro de 1926.
96
Cantinho Filho, op.cit., p.12.

245
acentuada perversidade, produzindo as ações verdadeiro alarma na
sociedade, que mais particularmente se tem voltado a atenção do
Gabinete."97

As causas apontadas com mais frequência para o crescimento dos delitos eram o
encarecimento do custo de vida, a perturbação social decorrente da Primeira Guerra
Mundial e a imigração de estrangeiros "arruinados, desgostosos, feridos pelas arestas duras
da pobreza", que vinham para São Paulo seduzidos pela esperança de fazer fortuna.98 As
autoridades responsabilizavam o elemento estrangeiro pelo avanço da criminalidade, das
greves e da decadência moral em São Paulo. O chefe do Gabinete de Investigações
afirmava que era justamente entre os estrangeiros que "se encontram os piores
agitadores".99 Mais incisivo, o delegado Amando Soares Caiuby afirmava:

"Necessitando de imigração, (o Brasil) recebe estrangeiros de


ínfima qualidade dos pontos mais exóticos da Terra. E as teorias
extremistas, as taras degenerativas, as índoles desses povos, a perversão,
os vícios e a audácia, aqui vem explodir nos mais refinados crimes. E
não contentes com o excesso de liberdade, conspiram contra as nossas
instituições, organizam-se contra a ordem pública, subverte a segurança
e ameaçam nossa propriedade e vidas. Somente a polícia consegue
refrear essa horda perigosa que, conforme o verniz de cultura, se infiltra
até ao âmago da sociedade brasileira."100

Na década de 1920, nomes de outra origem invadiram a crônica policial,


refletindo uma nova onda imigratória. Um austríaco, um alemão e um polonês foram
associados a crimes chocantes. Franz Glognitza, de 23 anos, apareceu na imprensa acusado
da morte de um menino no Alto da Mooca. A vítima, também austríaca, vivia pelas ruas
engraxando sapatos e teria resistido ao assédio sexual de Glognitza. O delegado Juvenal

97
Idem, p.13.
98
Relatório do chefe do Gabinete de Investigações, delegado Otávio Ferreira Alves, publicado na Revista de Criminologia e Medicina
Legal, anno I, nº1, julho de 1928, p.68-71.
99
Cantinho Filho, op.cit., p.19. Sobre o avanço da criminalidade: O Estado de São Paulo, 10 de janeiro de 1925; Diário da Noite,
19 de outubro de 1926.
100
Archivos de Polícia e Identificação, vol.I, 1936-1937, p.183.

246
Piza, do Gabinete de Investigações, escreveu em seu relatório que Glognitza era "um desses
muitos homens vindos da Europa, acossados pela fome para estas plagas, com o desejo de
fazer fortuna de qualquer maneira".101 Outro assassino que mobilizou a imprensa foi
Werner Otto Kyrath, que matou um engenheiro nos terrenos do Parque da Mooca. Além de
assassino e ladrão, a polícia o acusava de ter participado da Rebelião de 1924, integrando
os temidos "batalhões estrangeiros".102 Outro autor de um crime bárbaro foi Francisco
Wolnicki, um operário polonês que, "desesperado por se ver na miséria", matou a esposa e
os três filhos num piquenique no Horto Florestal. Considerado "louco epilético", ele foi
internado no Hospital Juquerí.103 Os três faziam parte de uma nova onda imigratória,
residiam no país há pouco tempo e não tinham vínculo empregatício. Para a polícia, estas
características faziam de diferentes indivíduos um mesmo tipo de criminoso: o degenerado
improdutivo destituído de freios morais.
Em 1927, o delegado encarregado da Delegacia de Roubos queixava-se que
aconteciam diariamente seis, sete, até onze casos de arrombamento numa noite: "Dada esta
situação esta delegacia começou a agir com energia, mandando prender sistematicamente
ladrões, deter suspeitos, proceder rondas e, finalmente, em companhia do comissário ficava
até duas, três e quatro horas da madrugada nas ruas rondando". O delegado tinha a
impressão que todos os ladrões perigosos encontravam-se soltos.104 O aumento dos crimes
contra propriedade obrigou o Gabinete de Investigações a desmembrar a Delegacia de
Furtos e Roubos. Essa medida foi tomada depois que os assaltos aos palacetes da elite
paulista tomaram proporções alarmantes. No início de 1926, a mansão do deputado
Francisco Junqueira, na alameda Santos, foi saqueada. O ladrão levou jóias. Naquela
mesma rua, dias depois, a residência do industrial Eduardo Matarazzo também foi invadida,
assim como a do ex-secretário da segurança Sampaio Vidal, na avenida Angélica. 105 O
delegado de roubos, Artur Leite de Barros, escreveu em seu relatório:

101
Relatório do delegado de Segurança Pessoal Juvenal Piza, datado de 2 de fevereiro de 1927. 4ª vara criminal. Réu: Franz Glognitza
(ATJSP); Diário da Noite, 19 de janeiro de 1927; A Gazeta, 19 de janeiro de 1927; O Estado de São Paulo, 24 de janeiro de 1927;
Folha da Manhã, 25 de janeiro de 1927.
102
Processo 731. 1ª vara criminal. Réu: Werner Otto Hermann Kirath; O Estado de São Paulo, 18 de fevereiro e 4 de março de 1925
(ATJSP).
103
A Platéia e Correio Paulistano, 4 de fevereiro de 1926.
104
Despacho do delegado Francisco de Assis Carvalho Franco para o chefe do Gabinete de Investigações, datado de 8 de setembro de
1927. (DGP)
105
Célia de Bernardi. O Lendário Meneghetti. São Paulo: Annablume Editora, 2000, p.79.

247
"De meio ano para cá, os assaltos às casas de habitação, nesta
capital, tomaram um desenvolvimento extraordinário. Os assaltos se
realizavam entre 18 e 24 horas, isto é, durante a ausência dos
moradores, quando estes se achavam em passeios, diversões ou visitas a
parentes ou amigos. As vivendas, escolhidas para tais roubos,
confinavam, de ordinário, com um terreno baldio. O mecanismo de
efração variava, ora se empregava uma talhadeira ou pé de cabra, ora
eram serradas as tabuinhas ligadas aos caixilhos das persianas. Aqui, os
meliantes só levavam dinheiro, jóias, armas; acolá, vestes, enxovais e
até perfumes. Algumas vezes operavam com certo método, conservando
a casa em relativa ordem; outras vezes, tudo revolviam e danificavam,
denunciando propósitos ferozes e vandálicos".106

Não se sabia se os assaltos partiam de um único ladrão, uma quadrilha, ou se


havia mais de um grupo operando. O que se notou é que o arrombador não deixava
impressões digitais; era experiente, portanto, pois aprendera a roubar sem deixar vestígios.
A estratégia do delegado foi prender todos os escrunchantes de São Paulo. Todos os
receptadores e arrombadores conhecidos foram interrogados até surgir o nome de um certo
Menotti Minguetti, ladrão desconhecido da polícia, que morava com a mulher e dois filhos
no Bexiga. Os inspetores vigiaram a casa do suspeito e o surpreenderam dormindo. Ainda
aturdido, ele pediu para se vestir e numa fração de segundos saltou pela janela, escalou o
muro e sumiu com uma agilidade impressionante.107 Os investigadores prenderam a esposa
do fugitivo. No interrogatório ela revelou a verdadeira identidade do seu companheiro: era
Amleto Meneghetti (1888-1976), conhecido como Gino, um arrombador procurado por
inúmeros roubos em São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre e Rio de Janeiro, foragido do
antigo presídio da rua Tiradentes desde 1915.
Nascido perto de Piza, na Itália, Meneghetti desembarcou no Brasil em 1913.
Pobre e filho de pai alcoólatra, passou boa parte da infância em reformatórios, cumprindo
pena por furto.108 Meneghetti veio para São Paulo sonhando fazer fortuna, mas do seu

106
Relatório datado de 24 de maio de 1926, p.227. 1ª vara da Capital, processo. nº 758 (ATJSP).
107
Correio Paulistano, 4 de abril de 1926.
108
Prontuário nº 1630 (IIRGD).

248
jeito: roubando. A um jornalista ele teria declarado: "O roubo para mim é um processo
natural, um processo de vida tão justo como qualquer outro."109 Em 1914, um ajudante de
barbeiro foi a Casa Sarli, na rua São João, comprar munição para o patrão. O atendente
reparou que a arma que ele trazia fazia parte de um lote roubado da loja em fevereiro,
quando ladrões arrombaram o estabelecimento e levaram uma parte do estoque. O roubo foi
avaliado em mais de um conto de reis. A polícia foi chamada e o barbeiro explicou que
tinha comprado a arma de um patrício, um eletricista que morava em Santana. O eletricista
foi ouvido, declarando ao subdelegado Lincoln de Albuquerque que havia comprado o
revólver de outro italiano, que apareceu no seu bairro vendendo armas. O vendedor
justificava o baixo preço dizendo que as armas eram contrabandeadas.
O subdelegado continuou sua diligência até
encontrar o vendedor. Ele chamava-se Gino Meneghetti, 26
anos, morador do Cambuci. Sua casa foi vigiada até o
subdelegado certificar-se que o suspeito não tinha parceiros,
então o prendeu. Com ele foi encontrado um lote de armas
pertencentes à Casa Sarli. Meneghetti negou a autoria do
roubo veementemente e, apontando para a sua companheira
Concetta Tovani, grávida, falou que não iria desgraçar a vida
praticando um roubo. Ao subdelegado, Meneghetti disse que
comprou as armas de outro italiano, pensando se tratar de
contrabando. Ele deu o nome do italiano e se dispôs a ajudar
Foto de Meneghetti anexada no
a polícia a encontrá-lo. Perguntado se tinha emprego, livro de procurados da delegacia de
Santa Ifigênia, 1919. (DGP)
respondeu que no momento estava desempregado, mas
enumerou uma lista de lugares onde já trabalhara, descreveu suas habilidades e jurou ser
um homem honesto. Mas as explicações não surtiram efeito porque o tio de sua
companheira contou à polícia que nunca o viu trabalhar. Dono da pensão onde Meneghetti
morava, ele contou que o marido de sua sobrinha parecia estar sempre com dinheiro,
embora dormisse o dia todo e passasse as noites fora.110
O subdelegado mandou tirar as impressões digitais de Meneghetti e, para surpresa
do italiano, elas conferiram com as impressões encontradas na Casa Sarli. Preso, ele foi
109
Correio Paulistano, 5 de junho de 1926.
110
O Estado de São Paulo, 31 de março de 1914.

249
condenado a oito anos de cadeia. Meses depois, Meneghetti escalou os muros do presídio e
fugiu.111 O jornal O Combate, simpático à colônia italiana e crítico da administração do
secretário da segurança Eloy Chaves, publicou uma carta atribuída a Meneghetti, onde o
ladrão zombava da polícia: "os Reiss de meia tigela jamais me encontrarão!"112 Longe de
São Paulo, Meneghetti continuou praticando roubos. Nas vezes em que foi preso, fingiu
estar louco e foi internado em manicômios de onde se evadia com facilidade. Sempre que
apanhado, o italiano dava um nome falso, mas as fichas com suas digitais acabavam sendo
enviadas para São Paulo, o que possibilitou ao Gabinete de Investigações elaborar um
extenso histórico do ladrão foragido, acusado de 92 roubos. Em 1924, depois de passar um
tempo na Argentina, Meneghetti retornou a São Paulo com documentos falsos.113
O delegado Leite de Barros foi até a casa de Meneghetti comandar as buscas.
Uma quantidade gigantesca de objetos roubados foi encontrada escondida no porão da casa.
Malas abarrotadas de jóias, relógios, armas e notas promissórias estavam enterradas
debaixo do piso.114 Meneghetti era um homem rico, poderia ter parado de roubar e até
mesmo aberto um negócio, mas ele não conseguia ou não queria parar. Roubar lhe dava
prazer e extravasava o seu ódio pelos ricos. Antigos policiais contam que ele tinha costume
de defecar nas casas que roubava, fato omitido do inquérito para não constranger ainda
mais as vítimas. Desmascarado, Meneghetti viu o Gabinete de Investigações em peso sair
no seu encalço. Os jornais imprimiram à caçada um clima de suspense, alimentando o duelo
entre o ladrão e a polícia. O Estado de São Paulo denunciou que a "imprensa vinha
mantendo em torno de Gino Meneghetti uma aréola de quase heroísmo (…), publicando-lhe
cartas atrevidas e narrando coisas passadas em outras terras, talvez mesmo inventando e
ampliando gestos".115
Pelo menos nove apartamentos usados pelo ladrão para se esconder foram
descobertos e vigiados. Os dois filhos de Meneghetti, batizados de Spartaco e Lenine, em
homenagem aos seus heróis, ficaram com uma tia, enquanto sua companheira permaneceu
presa. A polícia sabia do seu apego aos filhos e armou uma cilada. A casa da tia, na rua dos
Gusmões, foi vigiada dia e noite. Inspetores ficavam num apartamento em frente à casa,

111
Idem, 14 de julho de 1915.
112
O Combate, 20 de julho de 1915, citado em Célia de Bernardi, op.cit., p.238.
113
Prontuário nº1630. (IIRGD)
114
Relatório do delegado Artur Leite de Barros datado de 24 de maio de 1926 (DGP).
115
O Estado de São Paulo, 5 de junho de 1926.

250
com um telefone para avisar o Gabinete no caso do ladrão tentar ver os filhos. Dois meses
se passaram até que, na madrugada do dia 4 de junho de 1926, os agentes policiais viram
um táxi parar na porta da residência. Observaram um homem entrar, aparentemente depois
de forçar a fechadura. Avisadas, as autoridades de plantão no Gabinete correram para o
local. O motorista foi detido ainda na esquina. Dentro do táxi havia um bêbado que
acompanhou o ladrão sem saber quem ele era. Meneghetti, que também tinha bebido além
da conta, foi surpreendido ao tentar rever os
filhos. O comissário Waldemar Doria invadiu
a casa de arma na mão, seguido pelos
inspetores. No momento em que ele acendeu
as luzes da sala, disparos o atingiram no
ventre. De um corredor escuro, Meneghetti
atirou em direção aos policiais e correu para a
Lenine e Spartaco, filhos de Meneghetti
janela do banheiro. Os policiais revidaram os fotografados no Gabinete de Investigações.
(IIRGD)
tiros, mas o ladrão conseguiu escalar a parede
e desaparecer. O comissário foi levado para o
hospital em estado grave.
Ainda no meio da madrugada, o chefe de polícia Roberto Moreira se deslocou
para a região e comandou um cerco no quarteirão. Soldados da Força Pública e do Corpo de
Bombeiros foram convocados para auxiliarem nas buscas. As ruas ficaram isoladas. Os
delegados do Gabinete coordenaram as buscas, vasculhando as casas uma a uma, enquanto
os jornalistas assistiam a operação. Os prédios foram destelhados e as moradias, reviradas.
Uma multidão acompanhou atentamente a caçada. Em alguns momentos, os policiais
pensavam ver o ladrão e iniciavam uma fuzilaria. "A polícia dava tiros a esmo… Foi
necessário que o Dr. Pereira Lima, 1º delegado auxiliar, bradasse energicamente para cessar
o fogo", contou o repórter do Estado.116 Às onze da manhã, Meneghetti foi desalojado do
forro de uma casa. O ladrão saltou pelos telhados, mas um deles cedeu fazendo-o despencar
no meio de uma sala. A prisão do ladrão mereceu a primeira página dos jornais. Uma
multidão de curiosos cercou o Gabinete de Investigações, ávida por ver o famoso bandido.
A Cidade não tinha outro assunto que não fosse a prisão de Meneghetti.

116
Idem, 5 de junho de 1926.

251
Enquanto Meneghetti era conduzido à prisão, falecia o comissário Waldemar
Mondim da Costa Doria em decorrência dos ferimentos. Sua morte comoveu a polícia.
Waldemar Doria tinha 34 anos, era formado pela Faculdade de Direito do Largo São
Francisco e tinha três filhos pequenos. Ele atuava como comissário do Gabinete de
Investigações, isto é, auxiliar dos delegados especializados. O Gabinete de Investigações,
por ser considerado um departamento técnico, não admitia subdelegados ou autoridades
leigas no seu quadro, de modo que o cargo de comissário foi instituído para suprir o
Gabinete com bacharéis.117 O funeral do comissário se transformou em um ato público,
com a presença das principais autoridades do Estado. Na Assembléia Legislativa,
organizou-se uma homenagem ao policial morto. O jornalista e poeta Menotti del Picchia
discursou em nome do governo:

"Doria, como um preclaro exemplo, soube mostrar, fazendo do


seu corpo uma barreira ao crime, que as autoridades paulistas, vigilantes
sobre a ordem do estado e as garantias de todos os cidadãos, não
hesitam em sacrificar a sua própria vida no sacrossanto cumprimento do
seu dever. Foi assim que ele caiu: encarnando o princípio assegurador
da tranquilidade social, com um heroísmo sereno, sem gestos
espetaculosos, como uma vítima imolada para que o sossego paire sobre
os lares paulistas."118

Doria foi elevado à condição de “vítima imolada” e Meneghetti, à de inimigo


público. O Estado de São Paulo e o Correio Paulistano rotularam-no de celerado, besta-
fera, delinquente-nato, anormal, sanguinário e facínora. A Platéia comparou-o a Bonnot, o
assaltante francês que se declarava anarquista e morreu em um confronto violento com a
polícia.119 Para os redatores do Estado de São Paulo, Meneghetti não passava de um
"degenerado revoltado contra tudo e contra todos", "um cérebro eivado de ideias
anarquista", o que explicava seu "comportamento amoral".120 Assim, ligavam-se ideias

117
Cantinho Filho, op.cit., p.53-54; Dr. João Lucio de Bittencourt Filho. Consolidação das leis policiais em vigor no Estado de São
Paulo. São Paulo: Livraria Zenith, 1931, p.207-208.
118
Anais da Câmara dos Deputados de São Paulo, 6ª sessão ordinária, 22 de julho de 1926, citado em Célia de Bernardi, op.cit., p.202.
119
A Platéia, O São Paulo – Jornal, Correio Paulistano, 5 de junho de 1926; sobre Jules Bonnot (1876-1913) ver Jean-Baptiste Bourrat e
Sophie de Sivry, op.cit., p.172-187.
120
O Estado de São Paulo, 6 de junho de 1926.

252
políticas com criminalidade e degeneração. Meneghetti representava uma “classe
criminosa” que ameaçava a vida de todos na Cidade. Ele era estrangeiro e um elemento
indesejável, portanto uma pessoa que poderia ser facilmente extraditada como tantos
outros. Contudo, as autoridades preferiram fazer dele um exemplo, condenando-o a mais de
42 anos de prisão. O arrombador italiano, arrogante e desafiador, passou quase 18 anos
numa solitária por, entre outras coisas, cuspir fezes no rosto de autoridades. Visitantes da
Penitenciaria contavam que o ladrão gritava do fundo da cela: "Io sono un uomo!"121

Meneghetti sendo levado para fazer exames médicos.


Abaixo, a multidão se acotovela para ver o célebre
ladrão. (Correio Paulistano)

A contenção das "classes criminosas"


A construção da Penitenciária do Estado representou uma das maiores realizações
do governo paulista. Tal era a pretensão do projeto, que a Penitenciária tornou-se parada
obrigatória das visitas que passavam pela Cidade. Fernando Salla apontou um número
espantoso de autoridades, personalidades e visitantes que passavam quase que diariamente

121
Paulo Duarte, op.cit., vol.4, p.88-89.

253
pela Penitenciária, deixando suas expressões de admiração registradas no livro de visitas.122
A Penitenciária do Estado, projetada por Ramos de Azevedo, foi saudada entusiasticamente
como um marco na evolução das prisões no Brasil. Construída para abrigar 1.200 presos,
ela oferecia o que havia de mais moderno em matéria de isolar e recuperar o infrator,
através do trabalho e da disciplina.123 Quando a obra ficou pronta, em 1920, o governo do
estado comemorou festivamente. Quem via seus muros altos, claros, com seus pavilhões
encarreirados e chaminés, pensaria estar diante de uma fábrica ao invés de um presídio. O
jornalista Paulo Duarte, presente no evento, lembraria:

"A inauguração da Penitenciária, no dia 21 de abril, foi um


acontecimento. Estavam lá o presidente Altino Arantes, acompanhado
do José Rubião, chefe da Casa Civil e do major Herculano de Carvalho,
um dos seus ajudantes de ordens e mais do Paulo, oficial de gabinete; lá
estava Herculano de Freitas, também, com todo o seu Estado Maior,
estava também Cândido Motta, secretário da Agricultura e professor de
Direito Penal. O diretor da Faculdade de Direito era, se não me engano,
Amâncio de Carvalho, professor de Medicina Legal. Lá estava, magro e
longo, Franco da Rocha, diretor do Hospital Juqueri, quase todas as
autoridades civis e militares, uma multidão enorme. Fomos todos
conduzidos ao auditório grande, novinho em folha, todo decorado de
flores. Os condenados já haviam sido transferidos da velha penitenciaria
da avenida Tiradentes, estavam todos alinhados numa ala do auditório.
Houve discursos vários, inclusive um muito bom do Altino Arantes, que
era bom orador. Mas o discurso que mais impressionou a todos foi
aquele que veio vestido com a eloquência de Herculano de Freitas que
discorreu com todo o brilho sobre a criminologia moderna, que
dignificava e redimia o condenado."124

122
Fernando Salla. As Prisões de São Paulo, 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999, p.193-195.
123
O Estado de São Paulo, 13 de maio de 1911; Relatório de 1911, op.cit., p.30-39.
124
Paulo Duarte, op.cit., vol.6, p.304.

254
Herculano de Freitas, secretário da segurança, chamou os condenados de "meus
irmãos". Disse que eles ali estavam como numa casa de saúde, para se recuperar e voltar ao
seio da sociedade. O caricaturista Voltolino aproveitou as palavras do secretário para
publicar uma caricatura dele, rodeado de caras sinistras vestidas de uniforme-zebra, com a
legenda: "Meus queridos irmãos!"125 O delegado Franklin Toledo Piza foi indicado para
dirigir a nova Penitenciária. Ninguém melhor do que um delegado especializado,
conhecedor profundo da
criminalidade, para dirigir aquele Penitenciaria do Estado, década de vinte.

empreendimento. A escolha
parecia lógica.
Piza tinha claro para si
que a prisão constituía o
instrumento adequado para fazer
do "homem doente e transviado",
um "elemento útil à sociedade e à
sua família". Num artigo
publicado em 1928, o delegado
defendeu os rigores da prisão, que obrigavam o sentenciado a "uma ginástica contínua de
suas faculdades morais". Diariamente, durante semanas, meses e anos, o condenado tinha
que aprender a disciplinar-se, e assim "aprender a viver com modéstia, tolerância e respeito,
no regime da ordem e do trabalho". Tudo isso trazia grandes sofrimentos, reconhecia o
delegado, mas era preciso compreender que "só no sofrimento aprendemos a ser pacientes,
resignados, tolerantes e bons". Concluindo seu artigo, o delegado Piza ressaltou:

"A tendência natural da humanidade é para o constante


aperfeiçoamento moral, lento e imperceptível, com fases de retrocesso
algumas vezes, mas seguro e positivo. A evolução é uma lei natural,
indestrutível e exata como a própria verdade. Encanecido na lide com
criminosos, eu trabalho com fé, porque creio firmemente na melhoria
moral da humanidade e na correção dos que erram e violam as leis

125
Idem, p.305.

255
garantidoras dos direitos individuais e sociais. Não há regra sem
exceção. Os desenganos e reveses com alguns são compensados pelos
triunfos que nos estimulam a continuar, sem desfalecimento, nesta
tarefa, que é obra de caridade, cultura e de civilização."126

“Uma obra de civilização”, assim o delegado Piza qualificava o seu trabalho. Para
o delegado, os presos regenerados, aqueles que obtinham direito ao livramento condicional,
estimulavam o árduo trabalho de corrigir os sentenciados. Entre os poucos beneficiados,
estava José Rodrigues de Mello, um ex-sargento da Força Pública que baleou dois oficiais
da Missão Francesa, entre eles o coronel Negrel, em 1906. O prontuário do sargento Mello
atesta que ele foi punido repetidas vezes por embriaguez, embora sua folha de serviço "em
defesa das instituições republicanas" estivesse também recheada de elogios. O sargento
alegou ter atirado no oficial francês porque tinha sido punido injustamente, levando uma
chicotada por não prestar continência ao superior com o seu ombro ferido. A França pediu a
pena de morte para o sargento. Como não havia esta pena no Brasil, a justiça respondeu
condenando-o à pena máxima: 30 anos de prisão. Em 1928, o sentenciado pediu livramento
condicional em virtude do seu comportamento exemplar na prisão. A seu favor, havia
testemunhos de que o ex-sargento ajudava a manter a disciplina entre os presos, inclusive
durante a rebelião militar de 1924, quando a Penitenciária ficou praticamente
desguarnecida. Em face dos depoimentos, o conselho penitenciário, presidido pelo
professor Cândido Motta (1873-1941), lhe concedeu um parecer favorável.127
José de Mello teve uma vida pacata até sofrer um infarto na rua, em 1944. Mas ele
não pode ser considerado uma pessoa igual aos demais presos. O ex-sargento nunca se
identificou com os sentenciados, permanecendo a todo momento ao lado das autoridades do
presídio. Outro preso agraciado com livramento condicional foi Michel Trad, considerado
regenerado em 1924. Trad viveu uma vida obscura até o Gabinete de Investigações receber
informações de que ele vendia entorpecentes. O libanês, celebrizado como protagonista do
crime da mala, foi preso e expulso do país. No dia 17 de setembro de 1927, Trad foi atraído
para um encontro na rua Brigadeiro Luís Antônio por um investigador se passando por
comprador de cocaína. Trad foi preso em flagrante dentro de um carro, com algumas
126
Franklin Piza. "Penitenciaria de S. Paulo". In: Revista de Criminologia e Medicina Legal, anno I, nº2, agosto de 1928, p.272-278.
127
Parecer nº1 do Conselho Penitenciário de São Paulo. In: Idem, anno I, nº1, julho de 1928, p.79-83.

256
gramas de entorpecente. O relatório do delegado Juvenal Piza informa que foram
encontrados na casa do libanês mais de 54 gramas de cocaína, 2 vidros de morfina, várias
seringas e agulhas. O relatório acusa Trad de dedicar-se ao "comércio de tóxico, espalhando
morte entre os moços" por puro "ódio à sociedade que o condenara". Mais adiante, o
delegado reforça o perfil criminoso de Trad dizendo que ele praticava "atos repugnantes de
imoralidade" com sua noiva, fotografando-a nua para satisfazer seus "instintos bestiais de
sátiro". Para o delegado, as fotos encontradas pelos investigadores confirmavam "a baixeza
do caráter de Michel Trad".128
A repercussão do caso levou o bacharel Cândido Motta Filho (1897-1977), filho
do conhecido professor de direito penal, a escrever um artigo alertando para a inexistência
de uma terapia capaz de curar os delinquentes.129 O secretário da segurança era da mesma
opinião, declarando que: "O crime é uma perigosa moléstia social, que nenhuma profilaxia
ainda pode eliminar". Diante deste fato incontestável, restava à sociedade reprimir, porque
"reprimir é também prevenir, (…) é evitar a contaminação da delinquência, do mesmo
modo que pelo isolamento dos doentes se impede a propagação das infecções
contagiosas".130 Utilizando argumentos racionais e analogias, a policia ia se tornando mais
preventiva, intrusiva e intervencionista. Não apenas em São Paulo, mas em vários países
essa tendência parecia servir de resposta às crises sociais que se acentuaram no pós-
guerra.131
Essa estratégia aumentava a proteção de alguns, colocando outros em situação de
risco. A polícia reprimia com vigor a vadiagem, a desordem, as greves, os atentados à
moral e à propriedade. Entretanto, dava pouca atenção para a prevaricação, o abuso de
autoridade, a exploração do trabalho infantil, a violência contra a mulher e as fraudes
eleitorais. A criminalidade podia estar presente em todas as camadas sociais, porém a ação
da polícia incidia com maior peso sobre as classes subalternas, como mostra o relatório da
delegacia de costumes de 1927:

128
Relatório datado de 4 de outubro de 1927, anexado no prontuário de Michel Trad - nº1051 (IIRGD).
129
Cândido Motta Filho. "Um novo aspecto do combate à delinquência". In: Revista de Criminologia e Medicina Legal, anno I, nº3 e 4,
setembro e outubro de 1928, p.46-55.
130
A.C. Salles Júnior. "A crise do direito penal". In: Idem, anno I, nº1, julho de 1928, p.45.
131
Gunter Lewy. The Nazi Persecution of the Gypsies. New York: Oxford Univesrsity Press, 2000, p.1-62; Jonathan Dunnage. "Social
Control in Facist Italy: The Role of Police". In: Clive Emsley, Eric Johnson and Peter Spierenburg (Ed.), op.cit., p.261-280; Clifford
Rosenberg. Policing Paris: The origins of modern immigration control between the wars. Ithaca: Cornell University Press, 2006;
Clive Esmeley, op.cit., 2007, p.246-266.

257
"Na campanha saneadora dos costumes e da moral pública,
atentou-se particularmente para os chamados bailes públicos –
verdadeiros focos de corrupção e de exploradores. Foram fechados
cerca de duzentas sociedades dançantes, frequentadas quase
exclusivamente por menores inexperientes, que nesses antros de
prostituição encontravam a desonra e perdição.
Não foram esquecidos também os falsos espíritas, os intrujões,
os curandeiros, os charlatães, os cáftens, os cartomantes e os
pederastas."132

Justificando a ação policial contra as crenças populares, o relatório de 1929


alegava que "o espiritismo, quando cultivado por pessoas de alcance intelectual, poderá
produzir frutos proveitosos, mas é fora de dúvida que aos fracos e impressionáveis a sua
ação é deletéria, levando seus adeptos à loucura e às vezes à prática de crimes." 133 A
criminalização dos pobres foi a forma da elite paulista lidar com transformações sobre as
quais ela não tinha controle. O medo das elites advinha do fato que cada vez mais se
tornava patente a disposição das camadas populares de lutar para ampliar seus direitos. O
resultado foi, nas palavras da professora Ana Montoia, uma "Cidade entrincheirada (…)
contra um sempre desconhecido inimigo".134 Através do olhar do delegado Braz di
Francesco (1885-1968) podemos perceber uma sociedade cindida entre cidadãos bons e
criminosos incorrigíveis:

"Dez anos de escrupulosos serviços prestados à função


policial, nos convenceram que os elementos daninhos que infestam a
sociedade, não merecem ser cultivados com o mesmo acatado desvelo
dos indivíduos úteis e bons, para o sossego público e eficiência da
própria polícia."135

132
Cantinho Filho, op.cit., p.35.
133
Relatório de 1929, op.cit., p.118.
134
Ana Montoia. "O ideal de cidade: a reforma dos costumes e a gênese do cidadão em sao no século XIX". In: Paula Porta (Org.),
op.cit., vol.2, p.185.
135
Braz di Francesco. Pela Cultura Policial. São Paulo: Casa Duprat, 1931, p.72.

258
O delegado afirmava que o contato com "o cinismo, as artimanhas e a malvadeza"
dos criminosos fazia cair por terra todo "humanitarismo exagerado" por esta outra "classe
de indivíduos", para os quais a "cadeia nada vale e a justiça não causa temor". "São
numerosos os punguistas e vigaristas que a polícia tem prendido, mas são mais numerosos
os que andam às soltas", destacava o Diário da Noite, ressaltando que a sociedade estava
acossada pela criminalidade.136 Este resíduo social formava o que muitos chamavam de
"classes criminosas". As classes criminosas foram um tema muito explorado por jornalistas
e romancistas do século XIX.137 O termo foi criado para descrever um grupo nebuloso de
indivíduos que se alimentava do crime: homens, mulheres e crianças que haviam se
desvencilhado do mundo do trabalho, vivendo à margem da sociedade. O jornalista inglês
Henry Mayhew (1812-87) os descrevia como "nossas
As “classes criminosoas”:
tribos de criminosos".138 Observadores diziam que eles meninos vivendo na pobreza
em Londres. Década de 1870.
possuíam seu próprio argot (gíria), locais de encontro, (Peter Ackroyd)

rituais, costumes e eram dados a toda forma de vício.


Convém ressaltar que, para esses observadores, a
criminalidade não era um produto da sociedade, mas o seu
inimigo. Para estes, a explicação para o crime estava
dentro do indivíduo, na sua natureza deformada, não nas
relações sociais que produziam pobreza, conflito e
violência. Essa classe perigosa, que parecia se multiplicar
pelas ruas e becos das cidades industriais, causava um
medo que se sobrepunha a qualquer outro. Contra ela, a
Inglaterra criou o Habitual Criminals Act de 1869 e o Prevention of Crime Act de 1871,
enquanto a França instituiu a Lei Waldeck-Rousseau de 1885, para expurgar os
"incorrigíveis" antes que eles contaminassem o corpo social como uma "gangrena".139

136
Diário da Noite, 10 de agosto de 1926.
137
Louis Chevalier. Laboring Classes & Dangerous Classes in Paris During the First Half of Nineteenth Century. New York: Howard
Fertig, 2000.
138
Henry Mayhew and John Binny. The Criminal Prisions of London and Scenes of Prision Life (1856), citado in: Martin J. Wiener.
Reconstructing the Criminal: Culture, Law, and Policy in England, 1830-1914. New York: Cambridge University Press, 1994, p.24.
139
Clive Emsley. Crime and Society in England, 1750-1900. London: Pearson, 2005, p.173-182; Robert A. Nye, op.cit., p.82-91.

259
Fotos de prisioneiros da Penitenciaria de
Wormwood Scrubs, na Inglaterra, 1894.
Para intentifica-los, fotografava-se com um
espelho mostrando o perfil do preso e as
mãos precisavam ficar visíveis. Era assim
que se procurava conhecer os criminosos
reincidentes. (Peter Hamilton and Roger
Hargreaves)

As tatuagens eram úteis para se conhecer as classes


criminosas. Abaixo, um estudo de Reiss publicado no
seu manual de criminalística. ( Le Théâtre du Crime)

É esse "delinquente natural",


fruto da imaginação de jornalistas e
romancistas, que a criminologia vai
estudar. A criminologia fez do
criminoso um ser inadaptável,
dominado por uma natureza própria.
Os italianos classificavam-nos por
tipos: criminosos natos, ocasionais,
habituais etc; os franceses, por
especialidade: ladrões, arrombadores, estelionatários, batedores de carteira etc.140 Reiss
dedicou grande parte do seu tempo ao estudo das classes criminosas. Com sua máquina

140
Cesare Lombroso. L'uomo delinquente. Torino: Fratelli Bocca Editori, 1889; Edmond Locard. Le Crime et les Criminels. Paris:
Renaissance du Livre, 1925.

260
fotográfica, ele registrou crianças nos cortiços de Marselha, meninos maltrapilhos vivendo
pelas ruas, ciganos lendo a sorte, apaches ao lado de prostitutas e recidivistas com os
corpos cobertos de tatuagens.141 Reiss dizia que o policial, para bem exercer sua atividade,
deveria conhecer o criminoso, seus hábitos e compulsões. Para tal, ele propôs uma espécie
de "história natural da delinquência", um estudo minucioso do delito e dos delinquentes.142
Reiss agrupava os delinquentes em voleurs, caroublears, pickpockets, escrocs,
roulottiers, endormeurs, nourrisseurs, apaches, homicides passionnels, homicides sexuelles
etc; cada um especializado em um tipo de delito. Se a marcha do progresso conduzia o ser
humano para a especialização em todas as áreas, com a delinquência não seria diferente. A
classificação do professor suíço inspirou os policiais paulistas a dividir os delinquentes em:
punguistas, achacadores, escamoteadores, descuidistas, ratos de hotel, escruchantes,
gravateiros, micheiros, ventanistas e penoseiros. Estabeleceu-se uma hierarquia entre eles
de acordo com o tipo de crime, pois tudo na sociedade seguia uma ordem. Os ratos de hotel,
conhecidos pela elegância e cultura, eram colocados no topo da lista. Alguns ratos de hotel
tinham viajado o mundo, frequentavam lugares finos, falavam várias línguas e se portavam
como pessoas educadas. Outras categorias, como os escruchantes, tornaram-se respeitadas
na medida em que foram se aprimorando. O subdelegado Lincoln de Albuquerque escreveu
a respeito:

"Obdecendo a lei geral do mundo, em que tudo evolui, o


escruchante também tem evoluído. Com o aparecimento de mecanismos
verdadeiramente engenhosos, inteligentemente construídos por hábeis
profissionais mecânicos, o físico e o moral do arrombador tem se
modificado e por que não dizê-lo? para melhor. Por isso já o
encontramos colocados em um plano superior ao dos seus antigos
colegas, que, homens incultos, da mais baixa camada social, só
empregavam o pé de cabra como instrumento da sua profissão, porque
outra condição não exige senão a força bruta."143

141
Le Théâtre du crime, op.cit., p.314-315.
142
R.A. Reiss. Manuel de Police Scientifique. Paris: Félix Alcan, 1911, p.11.
143
Lincoln de Albuquerque, op.cit., p.48.

261
No patamar mais baixo da criminalidade estava o penoseiro, o ladrão de galinha,
que no livro do subdelegado é ilustrado com a foto de um negro. Na legenda, o policial
conta que o penoseiro durante o dia tocava violão pelas ruas e imitava pássaros, furtando
galinhas à noite. O ladrão de galinha, explicava o subdelegado, "é um tipo sem aspiração
nem ideal, vivendo maltrapilho", frequentemente visto "embriagado pelos botequins".144
Comparando sua foto com a dos escruchantes estrangeiros elegantemente trajados,
percebemos que a classificação policial reproduzia os valores da elite paulista. A
criminalidade, como demonstra o livro do subdelegado, corresponde a uma construção
social, que congrega crenças, ideias e valores conforme a época e o lugar.145 A noção de
criminalidade transcendia o ato delituoso, interagindo com questões de gênero, etnia e
classe. As classes criminosas não existiam de fato, não da forma como ela era apresentada
nos compêndios de criminologia. A grande maioria dos delitos eram cometidos por pessoas
pobres em busca de ganhos para sobreviver ou se inserir no mundo do consumo. Os
prontuários criminais das Casas de Correção revelam que a massa dos delinquentes não era
diferente das camadas pobres da população.146 Ela tinha a mesma bagagem cultural e social
dos cidadãos honestos, portanto não constituía um grupo de pessoas apartadas da sociedade,
vivendo somente para o crime.
Michelle Perrot, ao estudar a delinquência na França do século XIX, concluiu que
não existem "fatos criminais" ou um "delinquente natural", como queria a literatura
criminológica, apenas um processo decisório que institui o que é crime, designando seus
atos e atores; um discurso criminal que traduz as obsessões de uma sociedade.147 Em outras
palavras, a elite paulista criou um sentido para a criminalidade, construindo um discurso
que agregava valores tradicionais e ideias progressistas. Essa representação da realidade
servia de guia e referência para a atividade cotidiana num contexto de tensão social,
instabilidade econômica e crise política, ordenando o mundo conflituoso que caracterizava
a São Paulo das primeiras décadas republicanas.

144
Idem, p.50-51.
145
ver Clive Emsley. "Historical Perspectives on Crime". In: Mike Maguire et al. (Ed.). The Oxford Handbook of Criminology. New
York: Oxford University Press, 2007, p.122-138.
146
Fernando Salla, op.cit.; Sandra Jatahy Pesavento. Visões do Cárcere. Porto Alegre: Zouk, 2009; Myrian Sepúlveda dos Santos.
Os Porões da República: a barbárie nas prisões da Ilha Grande, 1894-1945. Rio de Janeiro: Garamond, 2009.
147
Michelle Perrot, op.cit., p.244.

262
Pagina do Livro de Procurados da delegacia
de Santa Ifigênia, 1919. (DGP)

Considerações finais
Chegando próximo do final do nosso estudo, podemos avaliar que a modernização
da polícia não aboliu a violência nem diminuiu a ocorrência de crimes em São Paulo. A
introdução de práticas modernas de identificação e investigação não conteve a incidência de
assaltos, roubos e assassinatos, nem refreou a violência policial. O delegado Franklin Piza,
chefe do Gabinete de Investigações, diria anos mais tarde: "Fui, por vezes, acusado de
práticas de violências e de ações ilegais e arbitrárias, mas a verdade é que nenhum homem
de bem jamais se queixou de ter sofrido qualquer violência de mim ou, pelo menos, por
minha ordem."148 Os interrogatórios com uso de palmatórias e canos de borracha

148
"Posse do novo diretor da Escola de Polícia de São Paulo". In: APCSP, vol.XIII, 1ºsemestre, 1947, p.528.

263
persistiram ao lado do aprimoramento das técnicas de produção de provas. Justificando o
uso de tais métodos, o delegado Braz di Francesco escreveu:

"A prática nos tem ensinado que os criminosos profissionais


somente confessam seus crimes em circunstâncias especiais e que nunca
o fazem quando são acusados pelos indícios: então nada consegue os
interrogatórios, pois está no próprio instinto de conservação do
indivíduo, a negativa do crime, o que, para os criminosos constitui um
instituto que os franceses consolidaram no seguinte brocado: sour-tout,
n'avouez jamais. Usa a polícia de mil truques para conseguir confissões,
desde as maneiras melífluas (doces), até as subreptícias (ilícitas); desde
a intimidação até a solitária ou a abstinência, ao suplício de Tântalo
(sede), depois de uma alimentação salgada (…)."149

Suspeitos eram tirados de suas casas no meio da noite e levados para distritos
policiais onde eram ameaçados e surrados sistematicamente. Pessoas pobres, sujas e
maltrajadas, eram detidas para averiguação e trancadas em celas lotadas por tempo
indeterminado. A greve era reprimida com extrema violência. Seus líderes eram
identificados, sequestrados e extraditados sem julgamento. A violência era um instrumento
para manter as estruturas de poder vigentes, mas ela não constituía uma prática corrente
apenas em São Paulo ou no Brasil. A polícia de Paris não deixou de empregar métodos
brutais nos porões da Sûreté por conta dos avanços das técnicas de investigação policial.
Goron e Cochefert eram impiedosos nos interrogatórios de suspeitos. Os jornais diziam que
o comissário Armand Cochefert (1850-1911) conseguia fazer falar até mesmo uma girafa.
Cansado de assistir esse tipo ação, Locard escreveu: "Umas vezes, o suspeito é esbofeteado
cada vez que se recusa a reconhecer-se culpado, outras vezes é moído de pancadas e até
espezinhado, como conheço vários exemplos (…). Costumes desta ordem são a vergonha
das polícias européias".150 Espancar suspeitos para arrancar confissões era também rotina

149
Braz di Francesco, op.cit., p.124-125.
150
Edmond Locard. A Investigação Criminal e os Métodos Científicos. São Paulo: Saraiva & C., 1939 (1920), p.15-16.

264
nas polícias das metrópoles norte-americanas.151 Ainda assim ninguém duvidava que essas
polícias eram modernas.
A modernização das polícias no período da Belle Époque se concentrou na
profissionalização, na adoção de padrões reconhecidos de policiamento, na divisão e
especialização das suas atividades e sobretudo no aprimoramento de práticas cientificas de
identificação e investigação. No entanto, cabe reconhecer que a polícia tinha como
prioridade, não a descoberta de criminosos ou a eliminação dos ilegalismos, mas a
manutenção da ordem exigida pela sociedade industrial. À polícia cumpria o papel de
estabilizar as relações entre grupos sociais conflitantes e estabelecer padrões de ordem,
coesão e proteção social.152 Para atingir estes objetivos, a polícia desempenhava uma vasta
gama de serviços. Um deles era colher dados sobre os crimes, produzindo números que
davam visibilidade às diferente formas de ilegalidades que deveriam ser reprimidas para
imprimir uma noção de ordem na sociedade.153
As delegacias de São Paulo transformavam as prisões realizadas no seu distrito
em mapas detalhados, preenchidos a mão mensalmente para serem enviados à Repartição
Central de Polícia. Os relatórios de 1893, 1894 e 1895, por exemplo, apresentam uma
descrição detalhada dos presos de origem estrangeira detidos por vadiagem, desordem,
embriaguez, gatunagem, agressão etc, separados por nacionalidade: italianos, portugueses,
espanhóis, russos, franceses, turcos etc. No relatório de 1915, o Gabinete de Investigações
informava ter prendido 1.063 estrangeiros, entres os quais 373 tinham antecedentes
criminais.154 O delegado Cantinho Filho assegurava: "A estatística representa para as
administrações o mesmo papel que os olhos para os indivíduos".155 A coleta e apresentação
de dados numéricos produziam indicadores que ajudavam a fixar verdades e determinar os
rumos da atuação policial; consequentemente, não se pode desprezar o papel da polícia na
construção das representações feitas sobre os criminosos. A historiadora Célia de Bernardi
acredita que a classificação das prisões quanto à nacionalidade, com uma maior
porcentagem de italianos, demonstra que esse grupo estava mais sujeito ao controle

151
Marilynn S. Johnsonn. Street Justice: A History of Police Violence in New York City. Boston: Beacon Press, 2003, p.114-148.
152
Robert Reiner, op.cit., 2004, p.54-65; Peter Spierenburg. A History of Murder: Personal Violence in Europe from Middle Ages to the
Present. Cambridge, UK: Polity, 2008, p.169-174.
153
Barry S. Godfrey, Paul Lawrence & Chris A. Williams. "The History of Criminal Statistics." In: Id. History & Police. London: Sage,
2008, p.26-49.
154
Relatório de 1915, op.cit., p.77.
155
O Gabinete de Investigações (Annaes de 1926) apresentado ao exmo. Sr. Dr. Roberto Moreira, DD. Chefe de Polícia do estado pelo
Dr. Raphael Cantinho Filho, Chefe do Gabinete de Investigações. São Paulo: Diário Oficial, 1927, p.33.

265
policial.156 A vigilância de certos segmentos sociais era uma das formas de disciplinar e
enquadrar grupos que ainda não estavam ligados às estruturas de apadrinhamento que
sustentavam o sistema político, e excluir aqueles que não tinham função específica, como
os negros, mulheres pobres, vadios e loucos.
Os relatórios indicam que à medida que a polícia crescia mais funcionários eram
destacados para confeccionar mapas, números e estatísticas. Em 1933, o trabalho estatístico
do Gabinete de Investigações foi reagrupado em uma repartição exclusivamente dedicada a
produzir informações, coletando notícias de jornal, inquéritos, mapas de prisões e o
movimento de estrangeiros.157 Essas informações confirmavam aquilo que as autoridades
estavam prontas a aceitar, tornando evidente a escalada da criminalidade e as ameaças à
ordem pública. Para Foucault, a polícia não teria sido aceita e tolerada se não fosse a
"construção do delinquente". O teatro polícia-delinquência passou a ocupar um lugar amplo
na sociedade, permitindo à lei impor coações sobre todos os cidadãos em nome da
segurança coletiva, exigindo documentos, tributos e respeito à autoridade. Para que esse
controle fosse aceito era preciso que houvesse dentro das fronteiras do próprio sistema uma
delinquência "numerosa e perigosa", ampliada pela imprensa, pela literatura e pelo
cinema.158 A historiadora Marie-Christine Leps concorda com o filósofo francês, mas foi
mais além pontuando que, de modo geral, a criminalidade serviu também como um
instrumento de integração social, em um momento histórico no qual os países construíam
suas identidades nacionais. Tanto para a antropologia quanto para a psicologia, a identidade
é uma construção relacional, isto é, para existir ela depende de algo fora dela, de uma outra
identidade. Assim se construiu o cidadão em oposição ao criminoso, integrando sob um
Estado nacional uma massa populacional heterogênea e conflituosa, dividida por diferenças
étnicas, culturais e econômicas.159
O sociólogo Émile Durkheim, que estudou a sociedade francesa do fin-de-siècle,
era de opinião que o crime e a pena tinham uma função social específica. A pena aplicada
ao criminoso não tinha o objetivo de corrigir o culpado ou intimidar seus possíveis

156
Célia de Bernardi, op.cit., p.40.
157
F. de A. Carvalho Franco. Gabinete de Investigações: Relatório de 1934. São Paulo: Typographia do Gabinete de Investigações, 1935,
p.21.
158
Michel Foucault, op.cit., 1991, p.250-255; Id. Estratégia, Poder-Saber. Manoel Barros da Motta (Org.). Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2003, p.168.
159
Marie-Christine Leps. Apprehending the Criminal: The Production of Deviance in Nineteenth-Century Discourse. Durham: Duke
University Press, 1992, p.221-223.

266
imitadores, mas manter intacta a coesão social, reparando o mal que o crime faz aos
membros sensíveis da sociedade, fortalecendo a harmonia social.160 Outro observador
arguto, o sociólogo norte-americano George H. Mead (1863-1931), percebeu que o
criminoso não ameaçava seriamente a estrutura da sociedade com suas atividades
destrutivas, de outro lado, ele era responsável por um sentido de solidariedade despertado
entre aqueles cuja atenção, em outras circunstâncias, se concentraria em interesses muito
divergentes.161 Do mesmo modo que um inimigo externo, que ameaça ou que se acredita
ameaçar o que os membros de um grupo têm em comum, a ideia de um inimigo interno,
representado pelas classes criminosas, provocava reações conservadoras e impunha uma
certa visão do mundo social.
O repúdio da população ao crime reiterava os laços sociais e fortalecia as
instituições encarregadas de cuidar da segurança pública, criando um senso de coletividade
entre pessoas de diferentes classes e origem. Toda a população, até mesmo as crianças,
sabiam que por trás dos muros dos presídios havia "criminosos perigosíssimos". O
jornalista Sylvio Floreal comentava que de nada servia visitar a moderna Penitenciária do
Estado se não fosse para ver seus "célebres sentenciados", assassinos e ladrões que ficaram
conhecidos do público através dos jornais.162 A criminalidade fazia-se assim visível e
temível para todos. Dessa forma, contrariando o senso comum, a República não criou
cidadãos plenos de direitos, mas criminosos, pessoas encaradas como ameaçadoras,
perturbadoras e indesejáveis, mantendo desse modo uma dominação cultural, social e
política.

160
Émile Durkheim. Da Divisão do Trabalho Social. São Paulo: Martins Fontes, 2008 (1895), p.81-83.
161
George H. Mead. "The Psychology of Punitive Justice". In: Lewis A. Coser and Bernard Rosemberg (Org.). Sociological Theory.
New York: Macmillan, 1964, p.596.
162
Sylvio Floreal. Ronda da Meia Noite. São Paulo: 1925, p.83.

267
6. Epílogo e conclusão

"Aquilo que herdaste dos seus pais, conquista-o para fazê-lo seu."
Goethe

A quebra das Bolsas, em 29 de outubro de 1929, revelou a fragilidade da ordem


na qual a América Latina buscara se inserir de modo tão intenso. A economia mundial,
formada em torno dos centros financeiros de Londres e Nova York, da divisão internacional
de trabalho, do padrão-ouro e de tantas idéias incontestáveis, ruíra completamente. O
sistema econômico internacional, construído no decorrer de uma "Era de progresso
incessante", saiu da Primeira Guerra Mundial arrasado. Sem crédito e endividados, países
que haviam mobilizado todos os seus esforços numa guerra sem precedentes se fecharam à
importação e a crise foi se espraiando para outros mercados até atingir os Estados Unidos, a
maior economia do mundo. A quebra da Bolsa de valores de Nova York equivaleu a um
colapso da economia mundial.1
Mesmo antes da quebra, os cafeicultores paulistas estavam desesperados. A
supersafra de 1929 havia provocado uma baixa alarmante no preço do café.2 Incapaz de
auxiliar os agricultores sem comprometer a estabilidade cambial e o programa de reforma
monetária, o governo federal preferiu manter o ajuste fiscal na esperança de atrair
investimentos estrangeiros e assim equilibrar suas contas. A economia brasileira continuava
dramaticamente dependente dos fluxos de capital da economia mundial para resgatar sua
enorme dívida pública e movimentar o setor doméstico. Esta dependência alimentou
sucessivas crises que acabariam por esgarçar o tecido social além da sua capacidade de
resistência, minando as bases das alianças políticas e os limites do projeto de modernização
imaginado para o país.3

1
Harold James. The End of Globalization: Lessons from the Great Depression. Cambridge: Harvard University Press, 2003; Dietmar
Rothermund. The Global Impact of Great Depression, 1929-1939. New York: Routledge, 2006.
2
James P. Woodard, op.cit., p.192-195.
3
Winston Fritsch. "Apogeu e Crise na Primeira República, 1900-1930". In : Marcelo de Paiva Abreu (Org.), op.cit., p.31-72.

268
Diante de uma recessão profunda e dos ressentimentos regionais, Washington
Luís apostou todas suas fichas na eleição de Júlio Prestes para sucedê-lo na presidência da
República. Contra a imposição de mais um paulista, formou-se uma aliança de forças
erguendo a bandeira da "regeneração dos costumes políticos". A eleição ocorreu em março
de 1930, dando a vitória a Júlio Prestes. Apesar das denúncias de fraude, a situação parecia
se acalmar quando o candidato dissidente, João Pessoa (1878-1930), foi assassinado na
Paraíba. Embora fosse um caso de crime passional, o assassinato serviu para despertar a
opinião pública e impulsionar uma revolta contra o "governo oligárquico de Washington
Luís". Articulados com um grupo de militares descontentes, as forças derrotadas nas
eleições marcharam contra o Rio de Janeiro.
O movimento de 1930 foi chamado de "Revolução" por jornalistas e escritores
aliados aos insurgentes, ainda que tenha sido, no entendimento de muitos historiadores, um
desdobramento dos golpes tramados durante a década de 1920. De qualquer forma, o
movimento de 1930 pôs fim de modo imprevisto e trágico ao projeto de poder da elite
política paulista.4

Revolução e ordem
A chamada Revolução de 30, em seus primeiros dias, proporcionou à população
de São Paulo meios para que "desabafasse seus desvarios", escreveu Cândido Motta Filho.5
"O povo paulistano, preocupado com seu trabalho, quase que indiferente aos
acontecimentos políticos, tornou-se uma fera de mil cabeças à procura dos vencidos!",
lembrou o escritor que era também diretor do São Paulo Jornal, de propriedade do
deputado Sílvio de Campos. Conhecida a deposição do presidente Washington Luís, na
tarde do dia 24 de outubro de 1930, começaram as depredações. Jornais governistas foram
empastelados; lojas de armas, saqueadas e o escritório de políticos proeminentes do PRP,
destruídos. Uma multidão invadiu o escritório do deputado Cyrillo Júnior (1886-1965) no
edifício Martinelli, atirando os móveis pela janela para serem queimados na rua. Os
tumultos e depredações se espalharam pelo estado.6 A delegacia do Cambuci, apelidada de

4
Vavy Pacheco Borges. "Anos Trinta e Política: História e Historiografia". In: Marcos Cezar Freitas (Org.). Historiografia Brasileira em
Perspectiva. São Paulo: Contexto, 2003, p.159-182.
5
Cândido Motta Filho. Contagem Regressiva. Rio de Janeiro: José Olympio,1972, p.149.
6
Diário da Noite, 24 de outubro de 1930; James P. Woodard, op.cit., p.209-212.

269
"Bastilha", foi arrombada e depredada. Suas celas, estreitas e úmidas, foram fotografadas
para serem exibidas como prova do "abuso de poder praticado pelos que tinham sob sua
direção a manutenção da ordem pública".7 Até a casa do delegado Laudelino de Abreu, do
DOPS, foi saqueada e incendiada. Ele perdeu tudo: a casa e o emprego.

Multidão depredando a delegacia do Cambuci, 1930. (Diário de São Paulo)

O general Hastinfilo de Moura, representando a junta militar do Rio de Janeiro,


assumiu o governo do estado e ordenou às suas tropas que impedissem a depredação dos
prédios públicos. Em entendimento com a Força Pública, o general distribuiu uma nota
conclamando a população a se afastar das ruas e evitar desordens.8 O chefe de polícia, o
delegado Mário Bastos Cruz, entregou o cargo a um capitão do exército, deixando a polícia
sem comando.9 A população precisava ser contida. Às três da madrugada, um carro buscou
o professor Vicente Rao (1892-1978) na sua residência, para uma reunião com o general.

7
Idem, 25 de outubro de 1930.
8
Diário de São Paulo, 25 de outubro de 1930.
9
Diário da Noite, 25 de outubro de 1930; Leven Vampré. São Paulo, Terra Ocupada. São Paulo: Sociedade Impressora Paulista, 1932,
p.51.

270
Rao era membro da comissão executiva do Partido Democrático, presidente do Instituto dos
Advogados e professor da Faculdade de Direito.

Foto das celas da delegacia do Cambuci. Laudo do Laboratório de


Polícia Técnica, 27 de novembro de 1930. (ACADEPOL)

Filho de imigrantes, o professor tinha um irmão padre, uma irmã freira e uma
conhecida postura conservadora.10 Pessoas influentes ligadas ao golpe haviam sugerido seu
nome para ocupar a chefia de polícia. Rao convenceu o general que não seria conveniente
empregar soldados para por ordem na Cidade, comprometendo-se a conclamar os
estudantes a saírem nas ruas pedindo à população que se abstivesse de qualquer tumulto ou
violência.11 Vicente Rao demitiu os delegados auxiliares, nomeando membros do seu
partido para os cargos. Um deles, Aureliano Leite, acabava de sair da Cadeia Pública
quando recebeu o recado para apresentar-se ao novo chefe de polícia.12 Os delegados recém
empossados nomearam correligionários e afilhados políticos para preencher as vagas dos
afastados. Em toda polícia, nomearam-se inspetores e subdelegados aos montes.
Um deles foi Mário Gonçalves, nomeado inspetor em 1931. Rememorando
aqueles dias, contou que tinha que passar diariamente por uma lousa, na entrada da
delegacia, para ver se o seu nome estava lá. Os funcionários eram admitidos e exonerados
na ponta do giz. Com dezoito anos incompletos, Gonçalves foi nomeado inspetor de 2ª

10
Joseph Love, op.cit., p.240.
11
Leven Vampré, op.cit., p.55.
12
Aureliano Leite, op.cit., 1955, p.53.

271
classe a pedido do seu pai, um chefe político do Cambuci. O pai, vítima de um derrame,
empregou os filhos para eles terem como se sustentar. Gonçalves ficou chocado com o que
viu na polícia. "O senhor sabe o que é sair de uma escola de padres, onde eu passei toda a
vida, para cair num lugar daqueles?" perguntou, relatando ter visto inspetores ébrios e
viciados em jogo, em meio a outros que não tinham vergonha de se dizerem
mancomunados com quadrilhas. Todos nomeados por algum padrinho.13
Longe das delegacias, os delegados exonerados viviam dias de apreensão. Alguns
respondiam a processo, enquanto outros se escondiam na casa de pessoas influentes. Uns
poucos foram presos, como o delegado Laudelino de Abreu (1894-1962).14 Laudelino era
pobre, filho de um modesto capataz de fazenda em Jaú, que gostava de lembrar dos seus
antepassados ilustres, como Luís Fernandes de Abreu, um companheiro do bandeirante
Jorge Velho. Precisando ajudar no sustento da família, Laudelino aceitou a nomeação de
delegado de polícia assim que se bacharelou. Ele iniciou a carreira em 1920. Cinco anos
depois era delegado regional em Ribeirão Preto. Biógrafos contam que seu “desempenho
enérgico e sua coragem” chamaram a atenção dos seus superiores, além do que ele tinha um
respeito profundo pela hierarquia e nutria uma verdadeira veneração por Washington
Luís.15
O que os biógrafos não dizem é que sua desavença com políticos influentes da
região o trouxe rapidamente para a Capital. Depois de um tempo no comando do 1º distrito,
recebeu a chefia do DOPS "para garantir a ordem em São Paulo".16 Em 1930, ele prendeu
vários líderes exaltados da Aliança Liberal, apreendendo explosivos e material de
propaganda.17 Semanas depois, reprimiu uma marcha estudantil em homenagem a João
Pessoa no Largo São Francisco. A polícia proibiu a manifestação, mas os estudantes não se
intimidaram. Houve luta, depredações e tiros.18 Os alunos da Faculdade de Direito
arrancaram a sua foto do quadro de alunos e a queimaram em público. Meses depois, são os
seus móveis que ardem em chamas. Sua casa é saqueada e os seus pertences, roupas e
livros, incendiados no meio da rua.19

13
Entrevista com o Dr. Mário Gonçalves e 19 de setembro de 1999. Apesar do inicio traumatizante, o entrvistado fez carreira na polícia,
tornando-se um investigador bastante respeitado pelos colegas.
14
A Gazeta, 30 de janeiro de 1931.
15
Prontuário nº504 (IIRGD); entrevista com o Dr. José Ari Bauer, delegado aposentado, em 5 de janeiro de 2003.
16
John W.F. Dulles, op.cit., p.356.
17
Hélio Silva. 1930: A Revolução Traída. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p.28.
18
Jornal do Commércio, 10 de agosto de 1930.
19
Benedito Nunes Dias. Laudelino de Abreu (uma vida exemplar). São Paulo: Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São

272
Laudelino foi preso acusado de usufruir da verba especial do DOPS. Para aqueles
que o conheciam, a acusação era absurda, pois o delegado era católico praticante e rigoroso
em questões morais. Aberto o cofre da polícia e contabilizados os valores, verificou-se a
correção das contas. Sem emprego, Laudelino mudou-se para Ribeirão Preto a convite do
sogro, um médico ilustre da cidade.20 Enquanto isso, os delegados menos visados
encontravam-se todos os dias na casa do delegado Cisalpino de Souza (1892-1940), do
Gabinete de Investigações. Cisalpino morava numa casa grande, na Alameda Nothman,
cercado de filhos. Delegados lembram que as conversas eram interrompidas pelas
brincadeiras das crianças. Um dia, ao chegarem, encontraram Cisalpino aprendendo a
dirigir. Em tom de piada, o delegado diz que se o comunismo tomasse conta do país, ele
poderia se virar como motorista de praça.21 As reuniões na casa do delegado tinham o
propósito de unir a classe e trocar informações sobre o rumo dos acontecimentos. O
objetivo de todos ali era ser reintegrado na polícia. Muitos não tinham outro meio de vida;
outros não admitiam abrir da mão da carreira.
Um dos poucos funcionários graduados a permanecer no Gabinete de
Investigações foi o engenheiro Moisés Marx. Perito em incêndio, eletricidade, mecânica e
fotografia, o engenheiro recebeu a incumbência de dirigir aquela repartição. Anos mais
tarde, diria que buscou fazer com que o "princípio da autoridade" voltasse a reinar num
ambiente "tumultuado por aventureiros de toda espécie".22 Exausto, o perito pediu sua
substituição no dia 3 de dezembro de 1931. Para o seu lugar, o secretário da segurança,
general Miguel Costa (1885-1959), nomeou Antonio Bráulio de Mendonça Filho (1887-
1959), um delegado exonerado arbitrariamente pelo governador Carlos de Campos em
1924. Menos de uma semana depois, Vicente Rao foi afastado da chefia de polícia acusado
de proteger amigos e correligionários.23 Começou então o período dos oficiais do exército
no comando da polícia, sobre os quais também recaíram acusações de desvio de verbas e
emprego de protegidos.24

Paulo, 1987, p.28-30.


20
Idem, p.33.
21
Augusto de Gonzaga. "Cisalpino". In: APCSP, vol.I, 1ºsemestre de 1941, p.348-349.
22
Guido Fonseca. "Contribuição à História do Departamento Estadual de Investigações Criminais-DEIC". In: Arquivos da Polícia Civil,
vol.XXXIX, 2ºsemestre de 1982, p.67; "In memoriam de Moysés Marx". In: Revista de Criminologia, ano I, nº1, 1954, p.201.
23
Edgar Carone. A República Nova (1930-1937). São Paulo: Difel, 1982, p.292.
24
Leven Vampré, op.cit., p.184.

273
Mendonça Filho era primo de José Carlos de Macedo Soares, presidente da
Associação Comercial de São Paulo e uma das lideranças do PD. Entrou para a polícia em
1911. Foi subdelegado por quatro anos até ser nomeado delegado em 1915. Desde 1924,
estava afastado da polícia, recorrendo na justiça, quando foi chamado para reorganizar o
Gabinete de Investigações.25 O delegado iniciou anunciando aos jornais o fim das
violências no Gabinete e desativação das suas celas escuras e geladas. Alguns órgãos de
imprensa comemoram o fato, cumprimentando-o por tirar a polícia da paralisia; outros
acusaram-no de servir a um "grupo de politiqueiros ambiciosos".26 Mendonça Filho
intercedeu pelo reingresso dos antigos delegados, enquanto, em segredo, socorria colegas
em situação econômica difícil.27 Em seu prontuário podemos encontrar alguns desses
pedidos, um dos quais em forma de poesia bem humorada:

"Amigo Bráulio, bom dia,


Saúde e felicidade.
De há muito que eu já sabia
Da tua excelsa bondade,
Atendendo, sem tardança,
As agruras de um colega,
Que chora como criança
A falta de uma pelega
Para comprar os feijões…
Ora, assim sendo, confesso,
Miquiado, sem dez tostões,
Por meio desta, a ti peço
Enviar-me, os meus quinhentões
Com os quais devo comprar
Esturricados feijões
Para a prole alimentar."28

25
Prontuário nº104 (IIRGD).
26
Diário de São Paulo, 10 de outubro de 1931; O Tempo, 19 de setembro de 1931.
27
Entrevista com a Sra. Josefina Scaramuzza em 25 de maio de 2005.
28
Carta datada de 14 de abril de 1932, escrita em papel timbrado da 1ª delegacia auxiliar. Anexada no prontuário nº104 (IIRGD).

274
Provavelmente denunciado por algum desafeto, o delegado foi chamado a
responder pelos gastos com a verba de diligências. Num ofício para o secretário da justiça,
ele explicou:

"V.Excia. sabe que a ação policial investigadora, que é a do


Gabinete, se desenvolve na penumbra e no sigilo, sendo mesmo alguns
dos seus passos dados sob a mais absoluta reserva (…). Em se tratando,
então, das questões de ordem política, em que as investigações se
desenrolam num ambiente de grandes responsabilidades e jogando com
interesses que afetam a estabilidade dos poderes da nação, V.Excia.,
bem compreenderá a soma de precauções que devem ser tomadas para
que não sejam divulgados nomes, máxime daqueles que, por abnegação
ou interesse, vem em auxílio da polícia, fornecendo-lhe as informações
de que necessita para conhecer, prevenir e reprimir os choques que se
tramam."29

E assim o delegado Mendonça Filho justificou seus gastos “extras”, além


daqueles com material, gasolina, peças para os automóveis e gratificações. Muito
habilidoso, o delegado construiu um bom relacionamento com o novo chefe de polícia, o
major Osvaldo Cordeiro de Farias (1901-81), a quem convidou para conhecer as
dependências do Gabinete de Investigações. O clima de incerteza reinante em São Paulo e a
desconfiança em relação à Força Pública aproximaram os líderes revolucionários da polícia
civil, que se colocou desde o primeiro dia a serviço da manutenção da ordem. No início de
1931, circulou rumores da preparação de uma revolta armada nas fileiras da Força Pública.
Oficias são afastados e outros detidos. O comandante da Região Militar é transferido e os
batalhões do exército, colocados de prontidão. Um ex-oficial escreveria que: alijada do
poder e incomodada em servir àqueles a quem combatia antes do golpe de 1930, a Força
Pública era um poço de ressentimento e frustração.30

29
Ofício do chefe do Gabinete de Investigações ao sr. Dr. Abrahão Ribeiro, secretário da justiça e da segurança pública, datado de 16
de outubro de 1931, e anexado no prontuário nº104 (IIRGD).
30
Heliodoro Tenório e Odilon Aquino de Oliveira. São Paulo contra a Ditadura. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1934, p.65-108.

275
O chefe do Gabinete de Investigações convenceu o major Cordeiro de Farias que,
para a polícia voltar a funcionar exemplarmente teria que haver mais do que uma limpeza
nos seus quadros, era preciso fazer uma reforma ampla de salários, cargos e legislação para
tornar todos os funcionários da polícia estáveis. Desde a derrubada do regime em 1930, os
inspetores de polícia se mobilizavam, pleiteando as mesmas garantias de trabalho dos
delegados. O inspetor Pedro Cápua, figura popular entre os colegas e dono de uma
academia de boxe na rua dos Gusmões, fundou uma agremiação chamada de Centro de
Cultura Física Policial para unir sua classe.31 Cápua reclamou a alguns jornalistas que sua
classe vivia uma "dolorosa desunião" que a agremiação pretendia reverter. O inspetor
declarou que "os da velha guarda", como ele, "devem mostrar aos nossos gratuitos
detratores que o agente de polícia, o inspetor de segurança da polícia de São Paulo, não é
um passivo, um cansado intelectual que sobejou na sociedade e se fez tira."32 Cápua
convidou Mendonça Filho e outros delegados para conheceram a agremiação.

Sentados, os delegados Carvalho Franco, Afonso Celso, Bráulio de Mendonça Filho e João Climaco
Pereira (do terceiro da esq. para a dir.). Em pé, no centro, o inspetor Pedro Cápua. (coleção particular)

A ânsia por reformas levou o chefe do Gabinete de Investigações a anunciar a


criação de uma Caixa Beneficente para garantir o sustento dos inspetores e das suas

31
Juvenal de Queiroz. No Mundo do Boxe. São Paulo: 1989, p.148.
32
A Razão, 17 de setembro de 1931.

276
famílias em caso de invalidez. O delegado, em reunião aberta com os inspetores, pediu
também a compreensão em relação aos atrasos de salário e prometeu que, tão logo a
situação financeira do estado permitisse, os vencimentos seriam melhorados.33 Com o apoio
do chefe de polícia, iniciou-se uma depuração nos quadros de funcionários. Muitos são
exonerados, outros, rebaixados. As reclamações enchiam os jornais.34 O delegado Carvalho
Franco participou ativamente das correições no Gabinete de Investigações. De 1931 a 1933,
encontramos inúmeros despachos seus exonerando ou mantendo no cargo inspetores e
escrivães de polícia. Desde 1931, ele vinha auxiliando o delegado Mendonça Filho na
reestruturação do Gabinete. Muitas das sindicâncias levam a sua assinatura, como a do
aspirante a inspetor Luiz Fernandes, denunciado por extorquir bicheiros. Carvalho Franco
faz questão de destacar que Fernandes entrou para a polícia logo após a "Revolução". Além
da denúncia que pesava contra o aspirante, o delegado escreveu que o mesmo era
"indivíduo sem moral e desrespeitador do lar alheio" e que, nessas condições, "não deve
continuar a desempenhar o cargo que ocupa".35 Como esta, há outras sindicâncias onde
Carvalho Franco pede a exoneração de funcionários envolvidos em furto, bebedeira,
sumiço de fichas datiloscópicas, abandono de trabalho e brigas.
Quando a acusação recaía em um funcionário antigo, o delegado mudava de
postura, fazendo uma clara defesa dos acusados, como no caso do inspetor Theophilo
Tavares Paes. Neste caso, Carvalho Franco escreve que o acusado "tem sido há quinze anos
um dedicado e honesto cooperador do renome que atingiu nesse estado a polícia de
carreira." Antigo servidor de "reconhecida lealdade aos superiores com quem serviu", Paes
foi acusado de desonestidade por inspetores exonerados. Carvalho Franco toma a defesa do
policial, relatando que não há provas contra ele e indicia seus detratores por calúnia.
Curioso é que os acusadores chamavam Paes de "carcomido", termo usado para se referir
aos filiados do PRP.36 Carvalho Franco toma a mesma atitude diante de outro antigo
inspetor, Paschoal de Lucca, acusado pelas filhas da dona de uma mercearia de contrair
dívidas em seu estabelecimento e ainda ameaçá-las. Carvalho Franco defende o policial,

33
A Platéia, 14 de setembro de 1931.
34
O Dia, 22 de junho de 1932; A Gazeta, 25 de junho de 1932.
35
Relatório de sindicância do Gabinete de Investigações, datado de 11 de abril de 1931 (DGP).
36
Idem, datado de 12 de agosto de 1933 (DGP).

277
descrevendo-o como um funcionário de "comportamento exemplar" e afirma nos autos que
as reclamantes eram “geniosas”, causando o bate-boca com o inspetor.37
Restabelecida a hierarquia, os inspetores de polícia são finalmente transformados
em servidores públicos, com direito a férias, aposentadoria e demais regalias.38 Tudo dentro
do espírito do novo governo, que desde seus primeiros dias prometeu direitos a todos os
trabalhadores. Entre as entidades que faziam apelos nesse sentido, estava a Frente Negra
Brasileira, formada por filhos e netos de escravos que exigiam o direito de seus membros
serem aceitos na Guarda Civil. Desde que a corporação fora criada em 1926, representantes
da comunidade negra protestavam contra o decreto do governo paulista proibindo o
ingresso de negros na Guarda Civil.39 Em 1932, eles conseguem uma audiência com
Getúlio Vargas para reclamar o direito de ingressarem no serviço público. Seus membros
contam que o presidente intercedeu por eles, ordenando que a Guarda Civil aceitasse
duzentos negros em suas fileiras. Para muitos, este foi o primeiro emprego fixo a
proporcionar renda para educar e alimentar a família.40
Todas as delegacias auxiliares sofrem correição, com demissões e remoção de
funcionários. Em 1931, o major Cordeiro de Farias nomeia o delegado José Ferreira da
Costa Neto (1894-1939) para ocupar a 3ª delegacia auxiliar, por indicação de Mendonça
Filho, seu amigo. Costa Neto assumiu o posto preocupado em aumentar o efetivo da
Guarda Civil e em mostrar que a polícia estava mais atuante do que nunca para garantir a
ordem na Capital.41 Com zelo exagerado, Costa Neto se pôs a "limpar" as ruas da Cidade,
prendendo prostitutas, curandeiros, cartomantes e vadios. O delegado Mendonça Filho
conta que os jornais o acusavam de intransigente na aplicação da lei, ao que ele respondia
dizendo que "estava pondo ordem onde só havia confusão". Fregueses de bares e cafés do
Centro reclamavam da maneira espalhafatosa como eram revistados pela polícia, como se
fossem "desordeiros prontuariados no Gabinete de Investigações".42 Costa Neto declara a
um jornalista que no momento a sua ação não estava sendo bem compreendida, mas depois

37
Idem, datado de 6 de março de 1931 (DGP).
38
Decreto nº6.053 de 19 de agosto de 1933.
39
Flávio Gomes. Negros e Política (1888-1937). Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p.46.
40
Frente Negra Brasileira: depoimentos/ entrevistas e textos; Márcio Barbosa. São Paulo: Quilombhoje, 1998, p.55 e p.86-89.
41
"Costa Neto". In: APCSP, volume I, 1ºsemestre de 1941, p.337-343.
42
A Platéia, 11 de setembro de 1931.

278
todos o aplaudiriam. A um repórter que o criticava, Costa Neto teria retrucado: "Gosto de
ser atacado pelos jornais. É um reclame gratuito para minha ascensão".43
Costa Neto era filho de comerciantes, estudou em Guaratinguetá e Santos, onde se
preparou para entrar na Faculdade de Direito. Em 1920 inicia a carreira policial, chegando a
delegado regional. Em outubro de 1930, foi exonerado junto dos seus pares, mas voltou
pronto a exercer aquilo que se esperava das forças mantenedoras da ordem. Outro delegado
que voltou a ocupar seu antigo posto foi Durval Vilalva (1895-1942), nomeado pelo major
Cordeiro de Farias 1ª delegado auxiliar em maio de 1932. Titular da 1ª delegacia auxiliar
desde 1927, até ser afastado pelo governo provisório em 1930, Vilalva era filho de um alto
funcionário do Tribunal de Justiça.44 Nomeado delegado em 1920 pelo Dr. Herculano de
Freitas, amigo de seu pai, ele viu sua carreira deslanchar em 1924, quando foi incumbido de
organizar o abastecimento das tropas legalistas durante o cerco à Cidade. Terminado o
conflito, ele foi promovido delegado de 1ª classe, logo depois ocupando a vaga de 2º
delegado auxiliar. Nesse posto e, mais tarde, no de 1º delegado auxiliar, Vilalva construiu
sua imagem de administrador eficiente, habilidoso para tratar com as pessoas e resolver
situações difíceis.45 O delegado Augusto Gonzaga, seu admirador, assim o descreveu
ocupando o cargo de 1º delegado auxiliar:

"Vestia sempre pelos últimos figurinos: perfumes, novidades,


gravatas finas, jóias de preço, padrões modernos da melhor casimira
inglesa, eram, para ele, artigos de uso obrigatório. Sendo um elegante,
um gentilhomem, não desdenhava a companhia dos mais modestos,
fazia para eles um camarada simples e acessível. Sua natural bonomia
permitia-lhe essa dupla feição. Agora vemo-lo pisando com
desembaraço as alfombras palacianas; logo depois, ei-lo em camisa, à
mesa de uma cantina do Brás…"46

Tudo indica que o major Cordeiro de Farias não viu problemas em reconduzir
Vilalva para o seu antigo cargo de diretor dos distritos da Capital. Já para a 2ª delegacia

43
"Costa Neto", op.cit., p.340.
44
"Durval Vilalva". In: APCSP, vol.IX, 1º semestre de 1945, p.636.
45
Prontuário nº101 (IIRGD).
46
"Durval Vilalva", op.cit., p.636.

279
auxiliar foi chamado de volta o delegado João Clímaco Pereira (1894-1943), que assumiu
provisoriamente o comando das delegacias do interior do estado, mas se afastou em
decorrência de problemas de saúde. Sabe-se que, originário do Rio de Janeiro, ele tinha
parentes no exército e era cunhado do ex-chefe de polícia Thyrso Martins.47 Para o seu
lugar, o major Cordeiro Farias escolheu o delegado Afonso Celso de Paula Lima (1889-
1951), um antigo quadro da polícia. Considerado pessoa de extrema educação pelos
colegas, o delegado era neto do Visconde de Ouro Preto, que ele dizia ser o seu guia e
modelo na vida pública e particular. Criado em Itu, Afonso Celso estudou nos melhores
colégios, entrando para a polícia em 1914. Dizia publicamente que a polícia era uma das
profissões mais importantes do mundo, cuja missão era "orientar as habilidades dos
cidadãos". Sem ela não haveria civilização ou progresso, explicava. 48 Estes foram os
delegados chamados para ocupar os mais altos postos da polícia paulista depois da
derrubada de Washington Luís. Todos delegados de carreira, experientes e ligados à velha
ordem, o que poderia levar um observador a imaginar que a chamada Revolução de 30 mais
se assemelha a uma contra-revolução.
Em 1930, a Cidade de São Paulo tinha quase um milhão de habitantes, dos quais
67% eram estrangeiros ou filhos de estrangeiros.49 A agitação política brotava da falência
do projeto de modernização e progresso idealizado pela elite paulista, desgastado pelas
sucessivas crises econômicas. Da mesma forma que os policiais se movimentavam para
reassumir seus postos, os trabalhadores se organizavam para reclamar as promessas da
"Revolução". Nas portas de fábrica, comunistas, trotskistas e anarquistas incitavam os
trabalhadores a se mobilizarem contra a redução dos salários e a carestia.50 Diante desse
quadro, os setores das classes dominantes que mais temiam as reivindicações populares
optaram por convocar os velhos policiais para manter a ordem nas ruas e nas fábricas.
Como escreveu Paulo Sérgio Pinheiro: "Na visão dos revolucionários, a massa sempre
encontrava-se à beira do descontrole, e não faltava realismo a esta avaliação porque,
enquanto dura, a multidão mostra um largo grau de autonomia."51

47
"Dr. João Climaco Pereira". In: APCSP, vol.VI, 2ºsemestre de 1943, p.353-356; prontuário nº1000 (IIRGD).
48
"Dr. Afonso Celso de Paula Lima". In: APCSP, volume XII, 2ºsemestre,1946, p.592; prontuário nº102 (IIRGD).
49
Michael Hall. "Imigrantes na Cidade de São Paulo". In: Paula Porta (Org.), op.cit., p.121.
50
John W.F.Dulles, op.cit., p.366-403.
51
Paulo Sérgio Pinheiro. Estratégias da Ilusão: A Revolução Mundial e o Brasil (1922-35). São Paulo: Companhia das Letras, 1991,
p.264.

280
Militante comunista por longos anos, Astrojildo Pereira (1890-1965) garantiu que
"em tempo nenhum, no Brasil, foi o movimento operário sujeito a tamanha violência como
depois de 24 de outubro de 1930".52 Os centros operários foram desmontados, tipografias
fechadas, residências vasculhadas, livros e jornais destruídos. Em setembro, os órgãos da
imprensa anunciaram a prisão de vários comunistas na Mooca, em uma diligência
comandada pelo delegado Ignácio da Costa Ferreira (1892-1958).53 Conhecido como
Ferrignac, Costa Ferreira fora um artista de talento, ilustrando capas das revistas A Cigarra,
O Pirralho e Vida Moderna. Fez parte do grupo de amigos íntimos do escritor Oswald de
Andrade, frequentando sua garçonnière na rua Líbero Badaró e participando da "Semana
de Arte Moderna de 1922". Cosmopolita, culto e amante das artes, ingressou na polícia
como comissário em 1925. Foi delegado do Gabinete de Investigações até ser exonerado
com os colegas. Retornou como delegado titular do DOPS.54
Diariamente os jornais noticiavam crimes e ameaças à vida dos moradores da
Cidade. Os comunistas eram descritos como "estrangeiros a serviço de Moscou"; os cáftens
como "abutres do tráfico de carne branca que não descansam"; a Penha como "o paraíso
dos ladrões"; o Belenzinho como bairro "completamente despoliciado". Segundo o
noticiário, os ladrões agiam impunemente, enquanto assassinos "bárbaros e sanguinários"
continuavam a solta.55 Enfim, o crime continuava assombrando a vida da Cidade e o
Gabinete de Investigações, principal órgão de combate à criminalidade, era assunto de uma
série de matérias jornalísticas na Folha da Noite, mostrando sua ação incansável contra
gatunos, ladrões, cáftens, traficantes, viciados, desordeiros, golpistas, vadios, assassinos e
degenerados de toda espécie.56 Essa guerra diária justificava o reforço do policiamento,
pois se acreditava e se repetia que a segurança e o bem estar público estavam nas mãos da
polícia.

52
Marcos Tarcísio Florindo. O serviço reservado da Delegacia de Ordem Política e Social de São Paulo na Era Vargas. São Paulo:
Unesp, 2006, p.48.
53
A Platéia, 5 de setembro de 1931.
54
Márcia Camargos. 13 a 18 de fevereiro de 1922. A Semana de 22: Revolução Estética? São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2007,
p.10-11; prontuário nº427 (IIRGD).
55
A Platéia, 4, 5, 8, 16, 17 de setembro e 2 de outubro de 1931; A Gazeta, 10, 12 e 15 de setembro de 1931; Diário da Noite, 3, 9 e 16 de
setembro de 1931; Diário de São Paulo, 5 de setembro de 1931.
56
Folha da Noite, 8, 10, 11, 12 de outubro de 1931. Interessante notar que as matérias foram assinadas por um repórter que era
também inspetor de polícia.

281
Despedida
Em junho de 1932, antes de partir para o Rio de Janeiro, o major Cordeiro de
Farias agradeceu publicamente os delegados pela colaboração durante a sua gestão. À noite,
jantou na casa do delegado Bráulio de Mendonça Filho em companhia da família do chefe
do Gabinete de Investigações.57 Começava ali um relacionamento duradouro entre os
delegados paulistas e os novos defensores da ordem e da segurança nacional.
Em 1933, após São Paulo pegar em armas contra o governo federal, Armando
Sales de Oliveira (1887-1945) assumiu provisoriamente o governo do estado. Uma das suas
primeiras preocupações foi reconstruir a máquina estatal. Por decreto, a maioria dos
delegados destituídos foram reincorporados. O ex-delegado Laudelino de Abreu voltou
prestigiado, assumindo o recém criado cargo de Corregedor Geral de Polícia. Os cargos de
delegado de polícia ficam assegurados por lei.58 Os delegados auxiliares, entronados em
seus postos, passam a ser chamados de "cardeais" pelos subalternos. Deles emanavam as
decisões administrativas, as promoções e punições. Efetivamente, a polícia civil respondia a
eles e eles ao secretário da segurança e ao governador. Defendendo a posição conquistada,
os delegados auxiliares fundamentavam seu poder argumentando que eram "todos antigos
policiais que adquiriram madura experiência da vida e do serviço, estando assim habilitados
a discernir o defeito e a virtude do procedimento da cada um". Havendo "atingido o
pináculo da carreira", estariam mais preparados e "a coberto de fraquezas ou sentimentos de
rivalidade".59 No dia 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas, com apoio do exército,
fecha o Congresso Nacional alegando a iminência de um golpe comunista. Logo após o
anúncio do presidente, o major Dúlcidio do Espírito Santo Cardoso (1896-1978) se
apresenta em São Paulo para assumir a Secretaria da Segurança Pública. Cardoso fora chefe
interino da polícia carioca e conhecia a maior parte da cúpula policial paulista. Ele traz uma
mensagem do presidente explicando que o país precisava união e ordem. O novo secretário
faz questão de prestigiar a polícia paulista, que respondeu cerrando fileiras com o novo
regime.60

57
Diário de São Paulo, 8 de junho de 1932.
58
"A Polícia de Carreira e o Anti-Projeto de Constituição do Estado - Memorial apresentado pelo Dr. Amando Soares Caiuby à
Assembléia Constituinte". In: Archivos de Polícia e Identificação, vol.I, 1936-1937, p.181-188.
59
"Representação dos Delegados Auxiliares da Polícia do Estado ao Sr. Secretário da Segurança Pública". In: APCSP, vol.XI, 1ºsemestre
de 1946, p.461.
60
"Cem anos de Polícia". In: APCSP, vol. V, 1ºsemestre de 1943, p.88-89; Isabel Beloch e Alzira Alves de Abreu (Coord.), op.cit, vol.1,
p.625-626; Getúlio Vargas. Diário. Vol.II, 1937-1942. São Paulo: Siciliano/FGV, 1995, p.521.

282
O delegado auxiliar Afonso Celso, professor da Escola de Polícia, bem que dizia:
"O mundo segue uma evolução vertiginosa, as idéias avançam e as doutrinas se modificam
e o policial deve ser o fiel da balança; deve controlar, dirigir, aplainar, moldar, consertar e
às vezes até destruir."61

Dezembro de 1937. Delegados reunidos no Palácio dos Campos Elisios. Na primeira fila, da esq.
para a dir., o delegado Durval Vilalva, ao seu lado o interventor Joaquim Cardoso de Melo Neto e
o secretário da segurança, major Dulcídio do Espírito Santo Cardoso. Atrás do secretário, o
delegado Laudelino de Abreu. Ao fundo os delegados das delegacias especializadas e dos
distritos da Capital. (coleção particular)

61
Afonso Celso de Paula Lima. "O Policial". In: Arquivos de Medicina Legal e Identificação, ano IV, nº10. Rio de Janeiro: 1934, p.192.
Palestra proferida no Congresso Nacional de Polícia realizado no Rio de Janeiro em 18 de junho de 1934.

283
Conclusão
Em 1871, o chefe de polícia, Sebastião José Pereira, lamentava que era impossível
prevenir e reprimir os crimes "sem meios pecuniários e sem pessoal suficiente". Talvez um
dia, quando o "progresso e a civilização" trouxessem a "reforma dos homens e dos
costumes", o Estado pudesse "prescindir de agentes armados", discorria o chefe de
polícia.62 São Paulo era então uma província muito pouco policiada, com soldados
indisciplinados, precariamente equipados e delegados provisórios. Seis décadas depois, em
1936, São Paulo orgulhava-se de possuir uma polícia robusta e equipada, com um serviço
de Rádio Patrulha, três mil Guardas Civis fardados patrulhando as ruas, delegacias
especializadas, laboratórios de criminalística, delegados estáveis, bem remunerados e 6.214
soldados de prontidão nos quartéis da Força Pública.63 Acima deste aparato estava um
delegado de carreira, respondendo pela secretaria da segurança pública. O delegado Artur
Leite de Barros Júnior (1892-1962), antigo membro do Gabinete de Investigações e
discípulo declarado de Virgilio do Nascimento, foi o primeiro delegado a ocupar a
secretaria, denotando o prestígio alcançado pela sua classe. A presença intrusiva da polícia
na vida social era justificada, no relatório de 1936, como uma "garantia real do direito dos
indivíduos insolitamente ameaçados" por "elementos que tentam quebrar o equilíbrio
social". Graças a polícia, a sociedade podia desfrutar "tranqüila o seu direito ao progresso e
à cultura ascendente", afiançava o relatório.64
Entre estas duas falas, ocorreram mudanças profundas na sociedade paulista. De
regime escravista, regido por formas paternalistas de deferência e controle social, São Paulo
passou a uma sociedade de massas, regulada e disciplinada para atender as demandas do
capitalismo industrial. Em um espaço relativamente curto de tempo, a sociedade paulista
tornou-se policiada e acostumada com policiais na soleira de sua porta. É possível dizer que
esse processo foi parte de um projeto civilizador pautado pela imposição de normas de
conduta e padrões de comportamento que a aproximava do modelo de ordem europeu. Esse
projeto, que pode muito bem ser chamado de “civilização do delegado” para usar uma
expressão da época, produziu tensões, conflitos e formas de resistência, ainda assim foi

62
Relatório de 1871, op.cit., p.2 e 8.
63
Diário de São Paulo, 5 de julho de 1936; José César Pestana. Manual de Organização Policial do Estado de São Paulo. São Paulo:
Escola de Polícia, 1959, p.211.
64
Relatório do Gabinete de Investigações do ano de 1936. São Paulo: Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo, 1936,
p.231.

284
parte importante das transformações impostas por uma série histórica de eventos que
impulsionaram a formação de uma rede complexa de interdependências que dava
consistência ao mundo moderno. Norbert Elias propõe que a constituição do homem
civilizado ocorreu lado a lado com a necessidade dos seres humanos sintonizarem sua
conduta com a de outros, contendo os impulsos agressivos e criando instituições coercitivas
a fim de que cada ação individual desempenhasse uma função social.65
A polícia, no entanto, não foi fruto de um desenvolvimento natural a reboque do
processo civilizador. Pelo contrário, ela foi fruto de uma história política, social e cultural.
A reforma e modernização da polícia paulista foi conduzida e imposta por uma elite
formada pelos indivíduos mais ricos e poderosos de São Paulo, que haviam acumulado
fortunas com a agricultura e o comércio e procuravam proteger seus investimentos e
patrimônio se apoderando da administração pública. Porém, como bem frisou Revel, as
instituições não são simples instrumentos da classe dominante, mas parte da configuração
do jogo social, traduzindo formas de dependência recíprocas que são permanentemente
atualizadas.66 Entre suas múltiplas funções, a polícia atendia queixas, prestava socorro e
arbitrava conflitos; aplicava novas normas e obedecia práticas antigas; materializava os
medos da classe dominante atemorizada com o crescimento da classe operária e do
recrudescimento dos movimentos sociais, enquanto servia de guardiã dos medos da ampla
maioria dos moradores de São Paulo, apavorados com o aumento da criminalidade e da
multidão anônima. Através dela, pessoas oriundas dos setores mais desassistidos da
sociedade, com pouca instrução, conseguiram construir uma identidade no terreno social
como policiais; e bacharéis pertencentes aos setores privilegiados obtiveram prestígio e
reconhecimento social como delegados. A polícia oferecia aos seus integrantes a
possibilidade de um emprego regular atrelado à máquina estatal, mas também
reconhecimento dentro de uma escala de poder como representantes da própria essência do
Estado moderno. Nesse sentido, a polícia representou uma oportunidade de inserção em um
mundo onde tudo parecia mudar num ritmo acelerado.
As microhistórias que povoam o texto refletem justamente esse mundo, no qual
indivíduos de origem e trajetórias diversas procuravam se inserir no campo social, em um
cenário onde as relações humanas eram dissolvidas e reinventadas. São Paulo viu
65
Norbert Elias, op.cit., 1993, p.195.
66
Jacques Revel, op.cit., p.137.

285
fazendeiros converterem-se em industriais e banqueiros; políticos em sócios de empresas
multinacionais; cocheiros, pintores e serventes em agentes de polícia; bacharéis, escritores
e artistas em delegados de carreira; operárias em cortesãs; imigrantes pobres em cabos
eleitorais; crianças em gatunos; assassinos em celebridades; um negro em dono de revista;
trabalhadores desenraizados em anarquistas; operários explorados em classe social. Essas
trajetórias espelham um aspecto que marcou a modernidade: a desarticulação de
identidades e a abertura de novas articulações. Identidades que no passado tinham
fornecido sólidas localizações para os indivíduos precisaram se readequar para se inserirem
no interior das estruturas sustentadoras da sociedade moderna.67 A modernidade foi em
grande parte uma construção de identidades novas, argumenta o historiador Colin
Heywood. Para o historiador da Universidade de Nottingham, o século XIX assistiu a
formação de várias comunidades imaginadas formadas pelo fluxo intenso de pessoas e
mudanças nas condições materiais de vida. Pessoas se deslocavam do campo para a cidade,
de cidade em cidade ou mesmo de países. Ofícios inovadores, vivências, dificuldades,
desilusões e convicções moldaram identidades individuais e coletivas, forjando novas redes
sociais. Essas comunidades, grandes ou pequenas, do tamanho de países, classes sociais ou
clubes recreativos proporcionaram fontes de significado para os seus próprios atores.68
Foi no decorrer desse processo que os Estados nacionais se afirmaram no
imaginário coletivo, fornecendo uma identidade oficial para os seus cidadãos, assegurando-
lhes direitos, mas também inserindo-os numa nova ordem como contribuintes, conscritos e
eleitores. Nesse mundo interligado através da circulação de capital, bens e idéias, as
polícias precisaram ser reformadas para controlar o fluxo monumental de indivíduos que
cruzavam fronteiras e oceanos. A migração de milhões de trabalhadores para atender as
exigências do mercado trouxe instabilidade às formas tradicionais de dominação, obrigando
os Estados a se recompor institucionalmente. Para lidar com populações flutuantes,
ameaçadoras e potencialmente revolucionárias, os Estados precisaram desenvolver novos
padrões de policiamento, punição e identificação. A modernização das polícias pelo mundo,
em um mesmo momento histórico, foi uma resposta às transformações de grande escala que
revolucionavam o mundo.

67
Stuart Hall and Bram Gieben (Ed.). Formations of Modernity. Cambridge, UK: Polity, 2010; Stuart Hall. A Identidade Cultural na Pós-
Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
68
Colin Heywood. "Society". In: T.C.W. Blanning, op.cit., p.47-77.

286
A partir de meados do século XIX, na esteira do rescaldo revolucionário de 1848
e de um crescimento econômico pungente, as polícias começaram a se profissionalizar,
estabelecendo intercâmbios, uniformes vistosos, equipamentos padrão e procedimentos de
trabalho. Segundo o sociólogo Mathieu Deflem, o controle de multidões anônimas levou ao
surgimento de uma polícia mais burocratizada, autônoma em relação às mudanças de
governo e orgulhosa do seu expertise. Essa burocratização envolveu a adoção de princípios
de eficiência e profissionalismo cultivados por policiais em busca de aprovação social.
Deflem observa que o reconhecimento profissional da polícia passou pelo reconhecimento
mútuo, promovido em congressos e feiras internacionais. De forma geral, os policiais já
vinham entrando em acordo quanto aos procedimentos a serem tomados contra criminosos
e indivíduos subversivos, firmando convênios que seriam depois referendados pelos seus
governos.69
A necessidade de identificar e controlar um grande contingente humano atraiu a
inventividade de pessoas como Bertillon, Vucetich, Henry e Reiss, lhes conferindo um
lugar de destaque no mundo social e no imaginário coletivo. Essa onda criativa sem um
centro particular, fundada na circulação de idéias, por isso transnacional, permitiu assentar
as bases de uma nova polícia, possuidora de um corpo treinado e detentora de um
conhecimento específico. Despertando para essa realidade, o criminalista francês Edmond
Locard se lançou na tarefa de compor uma enciclopédia em vários volumes para reunir o
conhecimento e as experiências acumulados por todo o mundo no campo da investigação
policial. A luta contra o crime era, para ele e muitos outros, universal e quanto mais
divulgadas suas formas de ação, mais a humanidade avançaria.70
Essa polícia essencialmente moderna, inspirada em novelas, carregada de
prestígio social e chamada por alguns de polícia científica, serviu de modelo para muitas
instituições, entre elas a polícia de São Paulo. O expertise desse novo tipo de polícia,
reconhecido e valorizado em todo o mundo, foi fundamental para os delegados paulistas
atingirem um status profissional que lhes permitiu ocupar um lugar privilegiado no jogo
social. A partir da construção de uma identidade própria e uma carreira estável, os
delegados puderam se inserir nos quadros da administração pública, mostrando-se

69
Mathieu Deflem, op.cit., p.219-225.
70
Michel Mazévet, op.cit., p.141-142. O Traité de Criminalistique de Locard foi redigido entre 1931 e 1940 e se tornou o livro base da
investigação policial.

287
suficientemente articulados para resistir aos terremotos políticos do anos 1930 e levar a
reboque a manutenção do aparato policial construído, em parte, por eles mesmos.
Com essa abordagem, pretendemos demonstrar que a modernização da polícia
paulista está associada a um fenômeno transnacional, alimentado por múltiplas redes que
ligavam pessoas e instituições além das fronteiras geográficas. Essa visão panorâmica
possibilita perceber que a história se dá também na circulação, no movimento e encontro de
ideias e não apenas no cenário local, registrado em fragmentos que revelam um passado
carregado de incerteza, insegurança e violência, assim como o nosso presente.

288
Fontes e Bibliografia

1. Arquivos e bibliotecas

Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira Cobra (ACADEPOL)


Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP)
Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo (ATJSP)
Associação dos Delegados de Polícia do Estado de São Paulo (ADPESP)
Biblioteca da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Biblioteca “Laudelino de Abreu” da Delegacia Geral de Polícia (DGP)
Biblioteca “Mário de Andrade”
Biblioteca “Prefeito Prestes Maia”
Biblioteca “Virgilio do Nascimento” da Academia de Polícia Dr. Coriolano Nogueira
Cobra (ACADEPOL)
Delegacia Geral de Polícia (DGP)
Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD)
Museu do Crime de São Paulo (ACADEPOL)
Sindicato dos Investigadores de Polícia do Estado de São Paulo – Coleção “Milton
Berdnaski” (SIPESP)

2. Relatórios oficiais e outras fontes documentais


Relatórios dos Chefes de Polícia de São Paulo. (DGP) (APESP)
Relatórios do Gabinete de Investigações. (DGP)
Relatórios de chefes de polícia e governadores de outros estados. (APESP)
Mensagens do Presidente do Estado de São Paulo ao Congresso Legislativo. (APESP)
Prontuários de delegados e pessoas fichadas. (IIRGD)
Livro de inquéritos policiais. (DGP)
Livro de ocorrências, mensagens, correspondência e descarga, 1922-34. (DGP)
Livro de ofícios do Gabinete de Investigações: Ordem do Dia,1926-27 (DGP)
Boletim Policial, 1907-14. (DGP)
Almanaque da Polícia Civil de São Paulo, 1941. (DGP)
Arquivos da Polícia Civil do Estado de São Paulo (APCSP), 1941-54. (DGP)
Arquivos da Polícia Civil: Revista técnico-policial. (ADPESP)
Arquivos de Polícia e Identificação, 1934-40. (DGP)
Arquivos de Medicina Legal e Identificação, 1934-36. (DGP)
Arquivos da Polícia do Distrito Federal, 1934. (DGP)
Arquivos de Medicina Legal, 1924-41. (ACADEPOL)
Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, 1902-30. (ACADEPOL)
Diários do delegado Cantinho Filho. 2 volumes, 1907-18. (coleção particular)
Processos criminais. (ATJSP)

289
3. Jornais e revistas
Correio Paulistano, O Estado de São Paulo, Diário da Noite, Diário de São Paulo, A
Gazeta, A Platéia, Folha da Noite, O Commércio de São Paulo, O Combate, O Parafuso, A
Careta, A Cigarra, O Malho.

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