ANGERAMI

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ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto (Org.).

 Atualidades em psicologia da
saúde. São Paulo: Thomson, 2004. 185 p. ISBN 852210428X.
Página 1
Atualidades em Psicologia da Saúde
Página 2
Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)
(câmara brasileira do livro, SP, Brasil)
Atualidades em Psicologia na Saúde / Valdemar augusto angerami – camon, (org.) – são
paulo: pioneira thomson leraning, 2004.
Vários autores
Bibiliografia
ISBN 85-221-0428-X
1. Psicologia clinica 2. psicologia da saúde 3. medicina e psicologia 4. Medicina
psicossomática I. Angerami – camon, valdemar augusto.
04-0535 CDD-155.916
Índice para catálogo sistemático:

1. psicologia da saúde 155.916

Página 3
Atualidades em Psicologia da Saúde
Valdemar Augusto Angerami — Camon (Organizador)

Aidyl M.de Queiroz Pérez-Ramos

Geórgia Sibele Nogueira da Silva

Gildo Angeiotti

Maria Margarida M.J.de Carvalho — Magui

Silvia Martins lvancko

THOMSON
Página 4
Gerente Editorial: Adilson Pereira
Editor de Desenvolvimento: Marcio Coelho
Supervisora de Produção Editorial: Patrícia La Rosa
Produtora Editorial: Danielle Mendes Sales
Copidesque: Ornilo Aives da Costa Júnior
Revisão: Sandra Garcia Cortes e Andréa da Silva Medeiros
Composição: DesignMakers Ltda.
Capa: Evandro Linhares Angerami
Copyright © 2004 de Pioneira Thomson Learning Ltda., uma divisão da Thomson
Learning, mc. Thomson Learning TM é uma marca registrada aqui utilizada sob licença.
Impresso no Brasil.

Printed in Brazil.
1 234 06 05 04
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida sejam
quais forem os meios empregados sem a permissão, por escrito, da Editora. Aos
infratores aplicam-se as sanções previstas nos artigos 102, 104, 106 e 107 da Lei n°
9.610, de 19 de fevereiro de 1998.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Atualidades em psicologia da saúde/Valdemar Augusto Angerami — Camon, (org.) --

São Paulo Pioneira Thomson Learning, 2004.

Vários autores.

Bibliografia.

ISBN 85-221-0428-X
1. Psicologia clínica 2. Psicologia da saúde 3. Medicina e psicologia 4. Medicina
psicossomática
1. Angerami — Camon,

Valdemar Augusto.

04-0535

CDD-1 55.916

Índice para catálogo sistemático:

1. Psicologia da saúde 155.916

Rua Traipu, 114—3° andar Perdizes — CEP 01235-000 São Paulo — SP

Tel.: (11)3665-9900 Fax: (11) 3665-9901 [email protected]


www.thomsonlearning.com.br

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Apresentação
Este livro traz os mais recentes avanços na área da Psicologia da Saúde. O que existe de
mais significativo foi arrolado e os autores exponenciais apresentam aquilo que é a
atualidade na Psicologia da Saúde.
A presente obra soma-se às publicações anteriores que igualmente procuram resgatar a
dignidade do homem contemporâneo com o uso da psicologia. Novo livro. Um alento a
acalentar nossos sonhos. Um novo trabalho que exibimos em forma de livro e que,
certamente, será mais um pouco das nossas crenças rumo a novos horizontes
profissionais.
Página 6 – página em branco
Página 7
Os Autores
Aidyl M. de Queiroz Pérez-Ramos
Professora Titular do Programa de Pós-graduação em Psicologia da USP (Área de
concentração Psicologia Clínica) e Membro Titular da Academia Paulista de Psicologia
e da New York Academy of Science. Tem participado como Perito de Projetos
Nacionais e Internacionais pela ONU, Unicef e Unesco, e também como docente em
cursos de pós-graduação em universidades espanholas.
Geórgia Sibele Nogueira da Silva
Psicóloga com Especialização em Antropologia pela UFRN, Mestre em Psicologia
Clínica pela UFRJ e Docente da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Gildo Angelotti
Psicólogo Clínico, Docente da Universidade São Marcos e da Pós-graduação em
Medicina Comportamental do Depto. de Psicobiologia da
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Unifesp. Diretor Clínico do Instituto de Neurociência e Comportamento de São Paulo.
Maria Margarida M. J. de Carvalho — Magui
Professora Doutora do Instituto de Psicologia da USP e do Instituto Sedes Sapientiae.
Pioneira nas áreas de Arteterapia, Hipnoterapia e Psicooncologia no Brasil. Introdutora
do Programa Simonton em São Paulo. Autora de vários livros, entre eles Resgatando o
Viver, Introdução à Psicooncologia, Dor: um estudo interdisciplinar e A Arte Cura?
Recursos artísticos em Psicoterapia.
Silvia Martins lvancko
Especialista em Gestalt terapia pelo Instituto Sedes Sapientiae. Especialista em
Psicossomática pelo Ibehe. Especialista em Psicossomática Chinesa pela Universidade
de Ortopedia e Acupuntura de Pequim (China). Especialista em Psiconeuroimunologia
pelo IPSPP. Especialista em Estresse pelo IPSPP. Especialista em Psicologia Hospitalar
pelo Hospital das Clínicas da FMUSP. Mestranda em Psicossomática e Psicologia
Hospitalar pela PUC-SP.
Valdemar Augusto Angerami — Camon
Psicoterapeuta Existencial. Professor de Pós-graduação em Psicologia da Saúde na
PUC-SP. Professor do Curso de Psicoterapia Feno menológico-Existencial na PUC-
MG. Coordenador do Centro de Psicoterapia Existencial e Professor de Psicologia da
Saúde da UFRN. Autor com o maior número de livros publicados em Psicologia do
Brasil e também livros adotados nas universidades de Portugal, México e Canadá.
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Sumário
Capítulo 1 - 1
A Psicologia da Saúde no Século XXI — Contribuições, Transformações e
Abrangências

Valdemar Augusto Angerami Camon

Capítulo 2 - 29

Preservação da Saúde Mental do Psicólogo Hospitalar


Aidyl M.de Queiroz Pérez-Ramos
De um aniversário.Trinta e um anos de muita luz - 57
Capítulo 3 - 61

E o Tratamento se Inicia na Sala de Espera...

Silvia Martins lvancko


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Capítulo 4 - 85

A Dor no Estágio Avançado das Doenças

Maria Margarida Mi. de Carvalho— Magui


Capítulo 5 - 103

Tratamento Cognitivo-Comportamental do Alcoolismo

Gildo Angelotti
De um sorriso doce -129
Capítulo 6 -135

A Racionalidade Médica Ocidental e a Negação da Morte, do Riso, do

Demasiadamente Humano
Geórgia Sibele Nogueira da Silva
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Capítulo 1
A Psicologia da Saúde no Século XXI — Contribuições, Transformações e
Abrangências
Valdemar Augusto Angerami — Camon
Introdução
A idéia principal deste trabalho é traçar um breve panorama da psicologia da saúde e
suas perspectivas de desenvolvimento. No momento em que a psicologia trilha por
caminhos cada vez mais alvissareiros e, seguramente, por uma diversidade que sequer
era concebível alguns anos atrás, a reflexão sobre as novas perspectivas da psicologia da
saúde reveste-se de uma peculiaridade bastante promissora. A psicologia da saúde
caminha por atalhos e sendas visando sempre a uma maior compreensão da condição
humana em todas as especificidades e complexidades. Uma psicologia que se descortina
para uma nova compreensão da saúde humana como algo que possa transcender os
parâmetros de doenças vigentes em nossa sociedade.
Ao refletirmos os conceitos vigentes sobre os quesitos de saúde mental e seu
enfeixamento com outros campos da saúde, deparamo-nos com uma necessidade cada
vez maior de redefinirmos a abrangência da psicologia da saúde. Nesse sentido, este
trabalho coloca-se como sendo um ponto de reflexão em que tais aspectos terão um
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fórum privilegiado de discussão. É um trabalho que se soma a outros, escritos
igualmente sobre psicologia da saúde, que procura traçar novas perspectivas de
desdobramentos de atuação nessa área que se descortina como sendo a psicologia do
século XXI.
Breve Reflexão
Em um trabalho anterior’ fizemos um breve histórico da psicologia da saúde e suas
principais áreas de abrangência. É um trabalho, em que pesem divergências de alguns
colegas da área, que acabou se tornando referência a tantos que se debruçam em busca
de material acadêmico e didático sobre psicologia da saúde. E pela dinâmica de sua
estruturação conceitual, a classificação que efetivamos sobre as áreas de abrangência da
psicologia da saúde acabou permitindo um arcabouço teórico de amplitude de
dimensões bastante significativas para que novos enquadres e parâmetros fossem
acoplados em sua explanação inicial. Assim será possível enveredarmos por novos
caminhos e atalhos de reflexão para que aquela conceituação inicial seja ampliada e
possa contemplar as novas exigências teóricas e epistemológicas que se impõem à
psicologia contemporânea. Os desafios que se colocam diante das propostas de
intervenção psicológica, nos mais diferentes e variados contextos, estão a exigir uma
estrutura moderna que possa, assim, contemplar os mais diferentes matizes de
abrangência e, até mesmo, de sedimentação conceitual.
São muitos os aspectos que envolvem a tentativa de conceituação e de delimitação de
intervenção no campo da psicologia da saúde e, dessa forma, iremos apenas caminhar
no sentido de criar espaços reflexivos sem, contudo, impedir que se abram a novas
formas de reflexão e, até mesmo, de conceituação. É uma exigência cada vez maior
aquela que nos impele a expandir o nosso campo conceitual de modo a permitir que ele
possa se abrir às mais diferentes formas
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de intervenção reflexivas. Também é necessário que enfatizemos quantas vezes forem
necessárias que a nossa preocupação conceitual é com a concepção de uma psicologia
eminentemente brasileira e que possa, assim, contemplar as nossas necessidades
socioculturais. Respeitamos as reflexões feitas por colegas de outros países,
principalmente aquelas efetivadas em países latino-americanos, mas queremos, antes de
qualquer outro balizamento, o estabelecimento de parâmetros que sejam inerentes à
nossa realidade. Desse modo, divergências e excludência conceitual serão tidas,
simplesmente, como meras digressões teóricas que se excluem diante de nossa
realidade. O nosso olhar é totalmente direcionado para a realidade do homem brasileiro,
do excluído das teorizações realizadas no Primeiro Mundo. Falamos de um homem
desesperançado, que a cada eleição presidencial perde um pouco de sua esperança de
uma vida digna e sem o aviltamento das elites socioeconômicas. De um homem que
sofre na pele a sina de ser brasileiro, de ser alguém que sofre com os desígnios da
opulência e do arbítrio dos banqueiros. Uma gente que assiste à miséria se espraiando
por todos os cantos sem ter quem a defenda desse estado de coisas.
De um povo que sequer pode pensar em autocrescimento, pois está ainda preso ao
estágio de luta pela pura sobrevivência. De uma população desdentada, desnutrida e que
assiste a presidente após presidente curvar-se aos interesses do mercado financeiro,
enquanto desfia seu corolário de sofrimento, padecendo à míngua sem trégua nem
piedade de quem quer que seja. É fato que a nossa elite cultural simplesmente é
atendida, em termos de intervenção psicológica, por modelos teóricos advindos de
Viena, no final do século XIX, ou seja, em um total distanciamento da nossa realidade
sociocultural.
A nossa conceituação de psicologia da saúde é brasileira, apresenta em seu bojo toda a
nossa condição de desesperança, humilhação, dor, desamparo, submissão cultural,
açoitamento existencial, falta de dignidade humana, colonização, e, principalmente, de
sua falta de perspectivas diante de uma realidade tão turva e tão sem horizontes. E dizer
que as possíveis divergências com as conceituações de colegas de
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outros países nada mais são do que uma conversão que fazemos para o interior da nossa
própria realidade conceitual. E sem demérito a quem quer que seja estamos construindo
uma conceituação teórica sobre a nossa realidade por mais que possa desagradar a um
sem- número de estudiosos que vivem debruçados sobre teorias construídas em outras
realidades que sequer tangenciam a nossa condição sociocultural. Uma conceituação
que possa considerar o ranger de dentes da nossa precariedade existencial, na qual todos
os nossos esforços de construção teórico-filosófica esbarram em nossa própria pobreza
sociocultural, que, embora apresente em alguns segmentos requintes semelhantes
àqueles encontrados nos países de Primeiro Mundo, na maioria dos casos são revestidos
de uma quase total falta de embasamento de condições mínimas necessárias para
reversão desse quadro tão desolador. O que assistimos praticamente sem alternância é o
apego dos nossos profissionais a teorizações que sequer consideram a nossa
especificidade. Desse modo, encontraremos desde concepções teóricas estanques diante
de nossas mudanças estruturais até devaneios que impregnam a tudo e a todos de um
psicologismo simplista. É dizer que a cada dia necessitamos de uma nova reestruturação
de nossos postulados teóricos para não corrermos o risco de ficar à margem de nossa
própria história.
Uma psicologia que se mostre soberana diante de nossos anseios libertários e que
também possa considerar as especificidades de nossa população e contribuir para que
tenhamos no futuro uma população mentalmente sadia. Estamos trabalhando para
construir um nicho de saber e conceituação que possa dimensionar o aprisionamento do
homem contemporâneo diante da cultura do medo a que ele foi exposto e da qual não
tem como conseguir libertar-se. Uma concepção teórica que considere não apenas os
avanços obtidos ao longo dos últimos anos no campo da psicologia, mas também de
outras áreas do saber, e que de alguma forma contribuem para uma compreensão mais
ampla da própria condição humana.
Somos os artífices de uma nova estruturação conceitual que possa abranger uma nova
realidade de mundo, uma nova estruturação emocional
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diante dos desatinos que estão a se sedimentar na nossa realidade atual. E isso é o
desafio que se lança à nossa frente, ao mesmo tempo que nos lançamos na tentativa de
superação de nossas próprias limitações para construir algo que esteja solidamente
sedimentado em níveis teóricos e que possa, assim, ser sustentáculo teórico-prático de
tantos que sobre ele se lancem em busca de uma nova luz de compreensão da própria
realidade humana. Assim, é necessário que estabeleçamos em âmbitos epistemológicos
as bases de sustentação de nossa proposta conceitual, e, a partir disso, construir um
novo modelo de compreensão dessa realidade que se mostra ao nosso campo perceptivo.
Essa é a nossa alternância conceitual e o nosso desafio no sentido de refletir sobre o
enfeixamento de uma base teórica que considere os moldes sobre os quais o século XXI
se apresenta, e o modo particularmente enigmático que se mostra diante de nossos
olhares.
Sempre é bom lembrar que o século XX apresentou, desde sua metade até o final, um
teor de desenvolvimento tecnológico que supera todos os períodos da história. Assim,
qualquer previsão que se faça sobre o novo século que estamos vivendo é, no mínimo,
ingênua, pois a velocidade com que as transformações e avanços tecnológicos se
sucedem superam as mais otimistas das expectativas. E, no campo do conhecimento
envolvendo o comportamento humano, as novas descobertas da fisiologia estão
deixando muitas das teorizações efetivadas na tentativa de compreensão do homem
contemporâneo. E, de maneira estonteante, assistimos, igualmente, a uma sucessão
indescritível de necessidades que são impostas e que de alguma maneira acabam se
transformando em instrumento de pressão gerador de muito estresse emocional. Ou é
possível negar-se o sofrimento gerado pelo consumismo de nossa sociedade em nossos
adolescentes? Ou ainda a necessidade que se estabelece de consumos intermitentes dos
mais diferentes objetos impostos pela tecnologia moderna? Basta se considerar, por
exemplo, o paradoxo existente em nossa sociedade, na qual, ao lado de automóveis e
celulares importados, assistimos a um sem-número de pessoas lançadas na sarjeta sem
teto ou qualquer tipo de proteção. Falamos em uma nova sociedade e convivemos com
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situações medievais; falamos de teorizações libertárias ao mesmo tempo que estamos
submissos à cultura estadunidense; sonhamos com uma realidade decididamente
brasileira ao mesmo tempo que vivemos o american way of life.
Somos uma realidade que se mostra cada vez mais frágil e cada vez mais dependente de
modelos teóricos importados de outros centros acadêmicos. Não temos como construir
uma nova realidade teórica enquanto não voltarmos as nossas preocupações unicamente
para a nossa historicidade e para a peculiaridade de nossa população.
O simples fato de utilizarmos conceituações teóricas que foram construídas diante de
realidades estruturais sem a menor semelhança com a nossa já é indício de que a
reversão desse desvio conceitual implica a necessidade de grandes rupturas para que
possamos construir uma psicologia decididamente nacional. É dizer que não podemos
continuar a utilizar elementos conceituais estanques a nossa realidade, e que tampouco
consideram a nossa especificidade. Assistimos ao avanço de teorizações que tentam
enquadrar a nossa realidade sem, no entanto, sequer considerarmos o caráter absurdo
desses fatos. Exemplo desses abusos é o fato de muitas clínicas escolas, ligadas a cursos
de formação em psicologia, apresentarem em suas estruturações modelos de
atendimento que em nada atendem aos interesses da comunidade que pretendem
atender; ao contrário, os atendimentos visam única e exclusivamente completar suas
grades curriculares. Assim, é frequente assistirmos a tais clínicas oferecendo
atendimentos de ludoterapia, psicomotricidade e outras tantas modalidades, visando
muito mais cumprir com suas normas curriculares do que propriamente com a
estruturação de tipos de atendimento que sejam mais condizentes com a realidade da
comunidade em que tais clínicas se acham inseridas. A psicologia, nesse sentido, segue
o modelo médico no qual os acadêmicos de medicina treinam suas especialidades com a
população economicamente desfavorecida para, depois de se tornarem especialistas,
exercerem suas atividades com uma população que possa pagar por essas
especialidades. Na realidade, o modelo das faculdades de psicologia é ainda mais cruel
na
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medida em que impõe a essas populações um atendimento que, muitas vezes, sequer
tangencia sua real necessidade de atendimento. Ao menos os cursos de medicina focam
suas especializações em cima de necessidades reais das comunidades em que se
encontram inseridas. Também é bastante comum a tentativa de se acoplar às
teorizações, quase sempre construídas em outras realidades sociais, sobre a nossa
população, e isso em que pese sua peculiaridade. Entretanto, é fato que, na atualidade,
assistimos a um movimento muito intenso nos mais diferentes cantos do Brasil, no
sentido de se reverter esse quadro tão desolador.
O crescimento das grades curriculares das diferentes faculdades, espalhadas ao longo do
País, e que contemplam disciplinas como “psicologia comunitária”, “psicologia
hospitalar”, “psicologia judiciária” etc., é indício de que está havendo uma
movimentação, pequena ainda, que se propõe a reverter o atual panorama da realidade
da formação do psicólogo no Brasil. É fato, também, que essa mudança surge muito
mais por uma necessidade mercadológica do que propriamente por ter sido gerada a
partir de uma atitude reflexiva efetivada pelo psicólogo sobre as reais necessidades de
atendimento psicológico de nossa população.
O estrangulamento do mercado de trabalho, associado a um número muito grande de
faculdades oferecendo cursos de psicologia nos mais diferentes cantos do País, fez com
que a busca de novos nichos de atuação se fizesse necessária. Nesse sentido, o psicólogo
voltou-se, então, para diferentes campos de intervenção, e nessa empreitada passou,
inclusive, a perceber necessidades da nossa população, que não se faziam presentes na
estrutura curricular dos cursos de psicologia. Tomemos como ponto de reflexão dessas
afirmações a psicologia hospitalar, e seguramente os pontos que levantaremos servem
perfeitamente para outros modelos de intervenção psicológica.
A psicologia hospitalar tem seu início em uma data que se configura até mesmo como
precedente do próprio reconhecimento da
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psicologia enquanto profissão2. No entanto, ela ganha um dimensionamento de
especialização e mesmo de uma nova configuração da realidade do psicólogo clínico
quando este se vê asfixiado e sem espaço para se desenvolver profissionalmente. É
somente quando o modelo clínico começa a eliminar os excedentes que a busca da
psicologia hospitalar ganha intensidade e adquire formas específicas de especialização
para delimitarem-se modelos de intervenção. É no momento em que o psicólogo clínico
se vê sem condições de exercer sua atividade em seu próprio consultório que o hospital
surge como sendo o local onde todo o seu potencial clínico poderá ganhar consistência e
configuração. E isso sem contarmos com os inúmeros psicólogos que buscam o hospital
como forma de compensar possíveis rejeições nos vestibulares de medicina. Assim, a
psicologia hospitalar será buscada como compensação à frustração do vestibular, sendo,
dessa maneira, nada mais que uma mera forma de reparação emocional de desatinos
trazidos pela sua inoperância acadêmica. Temos então duas maneiras distintas de
encarar o surgimento da psicologia hospitalar como alternativa de trabalho do psicólogo
contemporâneo. A primeira delas nos remete ao total estrangulamento do mercado de
trabalho que o obrigou a procurar por novos espaços de intervenção psicológica, e a
segunda a que nos remete a uma busca que procura compensar a reprovação do
vestibular de medicina. A necessidade de atendimento psicológico do paciente
hospitalizado, que é indiscutível e está acima de qualquer balizamento teórico-filosófico
que se queira fazer, surge como uma pequena variável delineada ao longo do caminho.
As verdadeiras razões da busca e do próprio crescimento da psicologia hospitalar são as
apontadas acima. Tudo o mais que se colocar de acréscimo é mera digressão teórica.
A própria incongruência existente em outras áreas do saber também se faz presente na
psicologia. Assim temos, no Brasil, ao mesmo tempo que os avanços tecnológicos
permitem até mesmo a má formação
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congênita, um número absurdamente grande de mulheres que parem sem o menor
cuidado pré-natal; ao mesmo tempo que milhões de pessoas utilizam Internet para as
mais variadas atividades, incluindo-se aí até mesmo pesquisa bibliográfica e acadêmica,
temos um contingente enorme de analfabetos; ao mesmo tempo que assistimos em
nossas ruas ao desfile dos mais diferentes modelos de automóveis importados,
presenciamos um grande número de pessoas que se amontoam nas
ruas em busca de abrigo para o frio e a chuva; ao mesmo tempo que a mais avançada
tecnologia permite que nos comuniquemos com diversas pessoas simultaneamente, nos
mais diferentes lugares, assistimos igualmente ao espetáculo deprimente de crianças
fazendo malabarismo do mais rudimentar nos semáforos em busca de míseras moedas;
paralelamente à existência de requintadas mansões nos bairros nobres das nossas
principais cidades, existe um amontoado interminável de barracos compondo favelas da
mais triste configuração arquitetônica. E a psicologia também traz em seu bojo o reflexo
dessas contradições, pois ao mesmo tempo que se propõe a ser libertária, apresenta-se
com modelos estanques de compreensão da condição humana.
Nesse sentido, até práticas que se propõem a ser libertárias como a “psicologia
comunitária”, a “psicologia hospitalar” etc. estão, muitas vezes, solidificadas em
embasamentos teóricos distantes de maneira abismosa de nossa realidade social. É dizer
que até mesmo quando buscamos a libertação de nossa condição de estrangulamento
socioemocional vamos ao encontra de um instrumental teórico que perde sua eficácia
diante de nossas peculiaridades. A psicologia, assim, se alinha com outras áreas do
saber que, igualmente, estão sedimentadas em outras realidades sociais e se distancia
das especificidades brasileiras. É cada vez mais importante trazer-se à tona das
discussões sobre a eficácia de abrangência da intervenção psicológica o célebre
pensamento de Maslow, segundo o qual somente após realizar suas necessidades básicas
de sobrevivência é que o homem pode pensar em quesitos como autocrescimento e
autoconhecimento. O que não significa necessariamente afirmar-se que alguém que vive
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em péssimas condições socioeconômicas não tenha necessidades de sustentação
emocional. No entanto, vemos com frequência cada vez maior afirmações que nos
direcionam para ideias simplistas as quais mostram que pessoas expostas a estados
calamitosos de precariedade econômica não podem, igualmente, apresentar problemas
na área emocional. É como se essas pessoas não tivessem o direito de ter conflitos na
esfera emocional pelo simples fato de terem suas vidas estraçalhadas pela miséria
socioeconômica. Esse tipo de afirmação não apenas despreza a própria realidade da
condição humana como também, o que é muito pior, distancia-se de modo abismoso de
uma tentativa mais digna de compreensão do homem contemporâneo.
A psicologia, de outra parte, e na medida em que faz parte do rol das especialidades
incluídas na chamada área da saúde, também apresenta, além das contradições e dos
modelos teóricos de realidades de países de Primeiro Mundo, somo citamos
anteriormente, outro aspecto bastante complicador, que é a diversidade de suas
abordagens teóricas. Assim, se em alguns campos do conhecimento como a matemática,
a física, a engenharia etc. se busca com intensidade cada vez maior um denominador
comum, uma resposta única para os problemas, a psicologia convive com diferentes
tipos de compreensão representada pelas mais diferentes abordagens. E muitas vezes
não encontramos sequer congruência entre as diferentes tentativas de compreensão da
realidade humana com cada abordagem trazendo para si a “verdade” sobre a maneira
mais eficaz de intervenção psicológica. E com uma abrangência cada vez mais disforme
e repleta de controvérsia, a psicologia vai abrindo os mais diferentes espaços nos mais
diferentes campos de atuação. E sempre que se questiona a real importância da atuação
do psicólogo fica evidenciado que muitas dessas atuações são, como dissemos
anteriormente, uma necessidade ditada muito mais pelo estrangulamento de seu
mercado de atuação do que propriamente por uma real necessidade do paciente.
Não se questiona aqui neste espaço os avanços obtidos pelos experimentos e pesquisas
da psicologia nos mais diferentes campos, citando aí conquistas importantíssimas na
área da neurofisiologia,
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psiconeuroimunologia etc. Apenas estamos refletindo sobre a maneira muitas vezes
abrupta e desordenada como são buscadas novas frentes de atuação do psicólogo
contemporâneo. Exemplo dessas citações pode ser uma entrevista de um profissional da
área da psicologia do esporte publicada em uma revista especializada, na qual ele, que
era o psicólogo responsável por uma tradicional
equipe de futebol paulista, trazia para si os méritos da vitória da equipe que estava sob
seus cuidados profissionais. Assim, ele não era um dos coadjuvantes dessa vitória, e sim
o responsável maior, e não se trata aqui de se questionar a abrangência e eficácia de um
profissional da área da psicologia do esporte, mas sim de balizar que são os atletas quem
enfrentam o adversário e, portanto, devem ser considerados os principais responsáveis
pela eventual vitória ou derrota. E em que pese sabermos da importância da condição
emocional na influência de desempenho desses atletas, não é cabível o psicólogo
colocar-se como sendo o único responsável por essa vitória, ainda que de seu trabalho
tenha surgido o sustentáculo emocional dessa equipe. Trata-se apenas de equacionar
que, em um trabalho de equipe, todos têm sua parcela de contribuição. O depoimento do
nosso colega era descabido e sem propósito, parecendo, assim, algo forçado para
mostrar-se mais importante do que na realidade era, e isso a despeito das variáveis
presentes em um trabalho de equipe.
De outra parte, é também notório que, ao adentrarmos nas reflexões sobre a inserção da
psicologia nas mais diferentes áreas do conhecimento, estamos, igualmente, refletindo
sobre as circunstâncias que implicam essa junção do mesmo modo que construímos os
balizamentos teóricos que fundamentam a nossa prática profissional. Vivemos um
momento ímpar no qual a importância da psicologia é cada vez mais clara e ganha
repercussão que transcende toda e qualquer previsão que se fazia anteriormente por
mais otimista que pudesse ser. O que se torna realmente necessário é que a psicologia
consiga atender às solicitações de intervenção que lhe são feitas e que possa, assim, ir
ao encontro das reais necessidades sociais, e não, ao contrário, tentando impor à
comunidade modalidades de intervenção
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que digam respeito apenas ressaltar nesse ponto que não somos contrários aos avanços
obtidos pela psicologia nos mais diferentes segmentos sociais, apenas queremos
enfatizar ser preciso que essas conquistas representem uma nova dinâmica no quesito de
necessidades de intervenção psicológica, e não apenas um mero acoplamento
determinado pelas nossas necessidades mercadológicas. É na psicologia que se
depositam as esperanças de construção de uma sociedade mais saudável do ponto de
vista emocional, derivando daí, inclusive, uma nova configuração da saúde física em
sua totalidade.
A psicologia necessita assim de uma renovação contínua de seus postulados para que
possa acompanhar as demandas sociais e, dessa maneira, tornar-se coadjuvante no
processo de transformação social. Uma psicologia que, ao mesmo tempo que se mostre
libertária, seja também referência de reflexão sobre as vicissitudes humanas e ainda
sustentáculo e acolhimento para o sofrimento emocional contemporâneo. É sobre essa
abrangência que iremos refletir em seguida.
Contribuições, Transformações e Abrangência
No quesito contribuições há o fato de o raio de ação da psicologia na atualidade ser tão
amplo e abrangente que seria praticamente impossível delimitá-la em urna reflexão
isolada de um capítulo. Assim, vamos fazer um delineamento envolvendo apenas o
campo de atuação da psicologia da saúde. Estaremos então reduzindo nosso esboço de
intervenção para aspectos meramente conceituais, abrindo-o, inclusive, para
perspectivas que não tenham sido contempladas nesta reflexão e que, porventura,
possam igualmente fazer parte do delineamento de intervenção da psicologia da saúde.
É no interior das reflexões acerca da abrangência da psicologia na contemporaneidade
que iremos encontrar a tentativa de seu comprometimento com a demanda das
necessidades sociais. Assim, práticas como a psicologia comunitária serão encontradas
no bojo da tentativa
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de se estender o nosso raio de ação, em âmbitos de intervenção psicológica, para
realidades que igualmente se mostram carentes no campo da compreensão emocional.
Outras práticas também seguem nesse mesmo caminho com a busca
cada vez mais delineada da necessidade de um comprometimento da psicologia com as
reais necessidades da população.
Em nossa vivência cotidiana, envolta nos mais diferentes afazeres, a virada do século
XX para o século XXI nada mais significou que apenas uma mudança no calendário. No
entanto, e considerando a passagem de séculos anteriores, quando as referências das
criações teóricas são situadas a partir da intenção da realidade histórica dos séculos nos
quais se achavam inseridas, temos então de modo claro a projeção de que, igualmente
no futuro as nossas produções teórico- acadêmicas serão referendadas a partir do
momento dos séculos em que foram criadas. E no momento em que propomos uma
reflexão da abrangência da psicologia para o século XXI, temos uma tarefa que, além de
árdua, seguramente se mostrará estéril. O avanço vertiginoso da tecnologia na
atualidade, superando todas as expectativas mais otimistas, mostra que até mesmo no
campo da psicologia essas transformações se farão presentes. Ou então seria crivei que
as discussões envolvendo a psicologia dos anos 1990 previsse o surgimento das
psicoterapias por meio da Internet?! Ou ainda os recursos de videoconferências levando
os mais diferentes níveis de conhecimento para cantos onde a própria imaginação sequer
poderia conceber?! A própria realidade acadêmica contemporânea com os mais
diferentes cursos de graduação e pós-graduação com afinco e apuro cada vez mais
sofisticados no quesito das pesquisas científicas está igualmente a mostrar que o
surgimento d novos padrões epistemológicos e até mesmo investigativos exige cada vez
mais novos parâmetros de compreensão e abrangência.
A rapidez com que as informações circulam pela Internet, exigindo que todos aqueles
que minimamente tenham algum compromisso acadêmico estejam continuamente
ligados a essa rede, é indício da necessidade da constante atualização exigida na
realidade contemporânea. Basta se comparar, por exemplo, que apenas há uma década
para se fazer uma pesquisa acadêmica era necessário uma série de visitas
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a várias bibliotecas nos mais diferentes cantos da cidade, algo totalmente distante da
atualidade quando, com a facilidade proporcionada pela Internet, a partir de simples
comandos de botões temos todo o panorama mundial de pesquisas e publicações diante
de nós na tela do computador. E na medida em que esses avanços são incorporados ao
nosso cotidiano simultaneamente aos seus aparecimentos não nos surpreendemos com a
mudança que efetivaram em nossas práticas teórico-acadêmicas. Apenas e tão-somente
quando refletimos para o passado, embora não tão distante, é que vemos escancarado o
abismo que separa a área do conhecimento em apenas algumas décadas. Hoje não é
mais possível se conceber um pesquisador acadêmico que, mamamente, não possua o
seu e-mal e com o qual se relaciona e se mantém infoiimado com todos os avanços da
ciência. Apesar disso tudo, ainda não conseguimos desvincular a psicologia do
pejorativo de que se trata de uma área do conhecimento que tenta se impor enquanto
ciência, mas que, na realidade, apenas comprova com instrumentos ditos científicos
aquilo que a sabedoria popular já constatou livremente. Essas críticas, longe de estarem
distantes do real, ao contrário, mostram de modo contundente a necessidade de um
aprumo que incorpore não apenas as verdadeiras necessidades sociais, como também, e
principalmente, mostrem que o avanço das reflexões e das pesquisas em psicologia
estão à frente desses impropérios que nos são lançados livremente. É fato que uma
simples consulta ao conjunto de teses acadêmicas em psicologia constata nua e
cruamente o grande número de pesquisas efetivadas com animais como se fôssemos
apenas um ramo da zootecnia.
A psicologia caminha a passos céleres para ocupar seu lugar de destaque na construção
de uma ciência que decididamente possa entender a condição humana de modo mais
abrangente e que também esteja livre para abrir-se a novas perspectivas de
desdobramento e desenvolvimento. Não é mais possível conceber-se quaisquer tipos de
atividade que envolvam a condição humana na qual a psicologia não se faça presente de
modo irreversível e absoluto. Quando fazemos uma reflexão a partir do
desenvolvimento da psicologia e seus primeiros acordes ainda no início do século XX,
vamos perceber que de uma ciência que buscava formas e contornos para ser aceita
temos
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hoje, uma plenitude de produção teórica e acadêmica que lhe assegura lugar de destaque
na proeminência das ciências contemporâneas. E, ao contrário de outras áreas nas quais
se buscam o consenso e a uniformidade teórica, temos na psicologia um universo cada
vez mais amplo de ideias e teorizações que, debatidas, geram inúmeras outras
abordagens nesse fascínio e mistério que é a tentativa de compreensão da condição
humana.
A psicologia da saúde, de outra parte, ganha espaços cada vez mais significativos no rol
das teorizações contemporâneas. E seguramente desde as nossas primeiras publicações,
quando tartamudeávamos as nossas primeiras criações teóricas e práticas, certamente os
nossos universos e perspectivas de atuação se expandiram de modo absolutamente
alvissareiro. Um exemplo desse panorama são justamente os encontros e simpósios
realizados na tentativa de discussão das atividades empreitadas nessa área. Desde o
início dos anos 1980 são realizados os Encontros Nacionais de Psicólogos da Área
Hospitalar, aos quais se somaram também os Congressos Brasileiros de Psicologia
Hospitalar. Trata-se de encontros dos quais participam elementos de todas as áreas do
País, não apenas para se atualizarem sobre os avanços ocorridos na área, mas também
para efetivarem presença naqueles que são os mais significativos eventos da área. Em
2001, surge o 1 Congresso Brasileiro de Psicologia da Saúde e Psicossomática, ao qual
se somou também o 1 Simpósio Brasileiro de Psiconeuroimunologia. Esse congresso
marcou o início de uma junção de diferentes áreas que se acoplavam ao escopo da
Psicologia da Saúde. Igualmente, o encontro de muitos colegas dos mais diferentes
cantos do País em busca de diferentes matizes que pudessem embasar suas práticas
clínicas. No Quadro 1 podemos observar os diversos segmentos que se fizeram
presentes nesse congresso. Em 2003, ocorre o II Congresso Brasileiro de Psicologia da
Saúde e Psicossomática e novamente agregando o II Simpósio Brasileiro de
Psiconeuroimunologia. Novamente, colegas de todos os cantos do País comparecem ao
evento, fazendo com que ele passe a fazer parte do calendário dos principais eventos
ocorridos em âmbito nacional. E, o que é mais importante, contemplando os mais
diferentes matizes teóricos em uma perfeita complementaridade. No Quadro 2, podemos
observar o perfil do evento e a sua abrangência conceitual. E,
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na medida em que o primeiro desses eventos ocorre justamente no primeiro ano do novo
século, é como se iniciássemos o novo século dando uma nova formatação à psicologia
da saúde, enfeixando, assim, diferentes segmentos de sua abrangência em eventos
conjugados.

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Um novo tempo da psicologia que se imbrica com o novo século para determinar novas
perspectivas teóricas e também novas abrangências metodológicas. E para que não nos
percamos em nossa exposição é sempre importante ressaltar que a cada evento que
reúne os diferentes profissionais dos mais diferentes cantos, o somatório das discussões
sempre faz com que o enriquecimento estrutural da área seja não apenas promissor, mas
tenha também contornos e especificidades reais. É dizer, sem medo de erro, que
caminhamos muito a cada encontro. E que a perspectiva de novas publicações sempre
traz em seu bojo um pouco do que foi discutido nesses eventos. Em cada novo livro
temos um pouco da fragrância que restou de cada encontro. É importante ainda destacar
que, segundo levantamento dos conselhos regionais, é uma das abrangências da
psicologia da saúde, a psicologia hospitalar, a área que mais cresce em termos de
procura pelos acadêmicos em sua busca de espaços de atuação.
Citamos anteriormente a questão mercadológica como determinante da abertura de
novos espaços de atuação na psicologia, e a área hospitalar igualmente se destaca nesse
quesito. No entanto, infelizmente, assistimos a um quadro desolador na procura dos
acadêmicos em busca da psicologia hospitalar. Pois, se de um lado é fato notório o
crescimento da busca de interessados na temática, de outro constatamos que a inserção
do psicólogo no hospital na quase-totalidade dos casos se efetiva por meio de estágios
sem nenhuma remuneração. Ou seja, o psicólogo foi acolhido no hospital, mas como
estagiário, e temos diante de nós uma situação que apenas se agrava, pois juntamente
com outras áreas que partem em busca do estágio para a especialização profissional,
igualmente a psicologia hospitalar trilha esses caminhos do estágio profissional sem
remuneração. A agravante nesse tipo de situação é que a instituição hospitalar recebe
trabalhos altamente especializados sem ter a necessidade de contratação. Para se ter uma
ideia da gravidade, basta citarmos os principais cursos de São Paulo, que são ligados aos
principais hospitais da cidade. Esses cursos apresentam uma estrutura acadêmica com o
que existe de mais avançado na área e seus alunos estagiam nos hospitais
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que lhes dão chancela. Assim, esses hospitais possuem um trabalho de alto esmero sem
a necessidade de contratação, pois o serviço de psicologia é praticamente desenvolvido
pelos alunos sob a supervisão de alguns poucos profissionais contratados. Frise-se ainda
que alguns hospitais sequer apresentam profissionais contratados, pois a respectiva
coordenação e supervisão são feitos por profissionais pertencentes às instituições
acadêmicas que, no afã de ministrarem cursos de psicologia hospitalar, fazem convênio
com esses hospitais para que seus alunos possam efetivar o respectivo estágio. Ocorre
que dessa maneira temos a efetivação do estágio pelo estágio, pois esses alunos, ao
adquirirem seus certificados de conclusão, não possuem campo efetivo de atuação, na
medida em que a maioria dos hospitais sensíveis à atuação do psicólogo já possui
serviços de psicologia hospitalar estruturados a partir de estágios não remunerados. E é
evidente que a empresa hospitalar não pretende modificar essa estrutura na medida em
que tem um trabalho altamente especializado e totalmente sem ônus. As unidades
hospitalares que geralmente possuem psicólogos contratados são aquelas pertencentes à
rede pública de saúde e também aquelas que fazem parte da estrutura acadêmica de
algumas universidades. Ainda assim, no entanto, vamos encontrar, mesmo nesse
segmento, hospitais que têm sua estrutura de funcionamento de psicologia hospitalar
totalmente estruturada nos cursos de especialização em psicologia hospitalar mantidos
por essas instituições. Entretanto, é necessário que se ressalte ainda que essa estrutura
de estágios que praticamente viabiliza uma mão-de-obra especializada sem nenhuma
remuneração não é “privilégio” apenas da psicologia hospitalar. Vamos encontrar, dessa
maneira, em quase todos os segmentos universitários esse mesmo tipo de exploração
sem que nenhum organismo competente tome alguma providência para inibir esse
abuso.
As universidades, no afã de qualificar seus cursos, assinam convênios com diferentes
empresas para possibilitar que seus alunos possam adquirir experiência prática das
teorizações que estudam nas lides acadêmicas. Ressalte-se que essa nova estruturação
dos
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estágios é contrária ao que ocorria décadas atrás, quando o estágio era uma passagem de
experiência para uma possível efetivação contratual da empresa. Hoje, infelizmente, o
novo panorama solidifica, como vimos anteriormente, o estágio pelo estágio, sem
nenhum compromisso por parte da empresa que não seja apenas abrir seu espaço para
que o acadêmico possa, então, adquirir experiência em um ambiente profissional.
Evidentemente que a mudança desse estado de coisas irá depender de uma ação
conjunta dos acadêmicos e das universidades às quais pertençam.
A psicologia hospitalar apresenta números muito eloquentes da adesão de acadêmicos e
profissionais para a sua área de atuação, basta apenas que não nos deixemos levar pelas
propostas de estágios apresentadas pelos principais cursos de especialização, pois do
contrário teremos um contingente bastante significativo de psicólogos especializados na
área hospitalar e que não possuem espaço de desenvolvimento profissional com a
devida remuneração.
A psicologia da saúde, entretanto, não tem apenas a psicologia hospitalar em sua
abrangência, e outros segmentos apresentam desenvoltura e desempenhos profissionais
bastante significativos e alvissareiros. Basta refletirmos, como exemplo, sobre a
psicossomática que atinge diferentes âmbitos de abrangência penetrando nos mais
diversos segmentos do conhecimento com contribuições significativas para uma
verdadeira compreensão da realidade humana. Temos também a psiconeuroimunologia,
que se apresenta com perspectivas cada vez mais promissoras no esboço de
compreensão de quesitos imunológicos e seu enfeixamento com determinantes
psicológicos. Certamente, esse tipo de reflexão é bastante importante, pois faz com que
a psicologia possa, então, adquirir importância significativa em suas buscas de uma
compreensão mais abrangente da condição humana. É cada vez maior o número das
vertentes da psicologia da saúde que estão intervindo em pacientes que, até bem pouco
tempo, eram alvo de atenção apenas de organismos especializados em saúde pública.
Assim, casos como alcoolismo e mesmo outras formas de drogadicção são, hoje, objeto
de
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intensa reflexão dos instrumentos de intervenção da Psicologia e estão, cada vez mais,
disponíveis e a serviço da população necessitada. É que, concomitante ao aumento do
número de profissionais de houve também uma preocupação qualitativa sobre os
desígnios da psicologia e seu real comprometimento para construção de uma sociedade
libertária na qual os verdadeiros anseios da população sejam considerados em toda a sua
dimensão. E maneira bastante promissora teremos no século XXI, ao menos é que se
descortina nesses momentos iniciais, uma psicologia que esteja preocupada apenas e
tão-somente com as questões que permeiam a realidade de nossa elite socioeconômica.
Uma psicologia que se comprometa com a construção de teorias inerentes à realidade
brasileira e que possa estar, assim, disponível ao alcance de tantos quantos queiram
fundamentar se em seus princípios para um verdadeiro dimensionamento das condições
psicológicas de nossa População. Trata-se, sem dúvida alguma, de um desafio que
estará a exigir que os nossos esforços sejam contínuos desdobrados diante da nova
exigência que se impõe perante nossa realidade conceitual Esse desafio é, seguramente,
uma das maiores barreiras a serem superadas no percurso que implica a construção de
uma psicologia com traços e contornos decididamente brasileiros. Essa revisão de cada
etapa de nosso percurso é condição primeira para que possamos, a partir de reflexões
sistematizadas e contínuas, perceber a necessidade de eventuais mudanças de rumo e,
até mesmo, de horizontes e ‘perspectivas teóricas. Nesse sentido, inclusive as
observações citadas anteriormente, sobre a questão do estágio pelo estágio na prática do
psicólogo hospitalar, nos remetem à necessidade de uma reflexão bastante
pormenorizada sobre o sentido desses atalhos, em que, certamente, não se questiona o
papel da Psicologia em humanizar as relações ocorridas na instituição hospitalar, mas
colocamos em questionamento o sentido da exploração do psicólogo nesse emaranhado
de fatos nos quais sempre encontramos a figura de outros Psicólogos explorando e
tirando proveito desse estado de coisas. E o mais interessante, para não dizer dantesco, é
que a psicologia
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hospitalar surgia na década de 1980 como uma das possibilidades que tirariam a
psicologia da situação autofágica, ou seja, algo que vive de si mesmo, que come a si
próprio. Tentou-se ampliar o leque de possibilidades de intervenção do psicólogo, mas
acabou-se lançando- o nas garras de outros psicólogos que, de maneira ladina, souberam
explorar de modo ardiloso seu afã em busca dessa nova perspectiva de atuação.
Isso tudo mostra de modo bastante claro que a construção de um conjunto de teorias que
contemple a realidade brasileira também precisa contemplar uma reflexão minuciosa
sobre o modo de exploração da mão-de-obra dos profissionais de psicologia pelas
empresas que os recebem como estágio, e o exploram da maneira mais contundente
possível. E a empresa hospitalar não se difere em nada, nesse quesito de exploração, de
outras modalidades empresariais.
E na realidade quando fazemos tais reflexões sobre a psicologia hospitalar não estamos
fazendo referência à sua inviabilidade enquanto área de atuação do psicólogo, ao
contrário, tentamos trazer um pouco de luz para que, principalmente, os mais novos
possam fazer suas escolhas de modo lúcido. Dessa maneira, serão consideradas todas as
variáveis presentes nessa escolha, e não apenas a busca por uma atividade
extremamente prazerosa do ponto de vista de gratificação emocional, mas que se mostra
totalmente árida no tocante a uma remuneração digna. O que não podemos, incluindo-se
aí até mesmo a nossa responsabilidade de autor que possui uma grande quantidade de
títulos publicados sobre a área hospitalar, é nos calar diante desse estado de coisas.
Chegamos, inclusive, ao absurdo de ver cursos que reproduzem o modelo médico de
residência de especialização, e que, no entanto, ainda assim não remuneram esses
psicólogos. Ou seja, esses profissionais ou estão pagando para atuar na medida em que
esses cursos apresentam preços compatíveis com os cursos de graduação, ou
simplesmente depois de se especializarem fazem a chamada residência e atuam sem
nenhuma remuneração. Está em nossas mãos a mudança dessa perspectiva; apenas se
faz
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necessário que tais questionamentos sejam refletidos de modo amplo para que se
estabeleçam, então, novas diretrizes nessa área.
De outra parte, a psicologia da saúde apresenta um dimensionamento bastante
importante para a psicologia, na medida em que, ao caminhar em direção aos anseios da
comunidade, abre-se também para a perspectiva da criação de novos modelos de
intervenção bastante interessantes. Quando refletimos, por exemplo, sobre a psicologia
comunitária, vemos que o seu raio de abrangência contempla pessoas que estavam à
margem da psicologia até bem pouco tempo. Não há como negar a contribuição que
esse segmento está trazendo para a construção de uma sociedade mais justa e libertária
na medida em que, atuando junto aos excluídos, pode dar-lhes voz e guarida no sentido
de fazer com que seus anseios de uma vida mais digna se tornem realidade. Os trabalhos
que são produzidos nessa área já começam a se tornar referência na construção de
concepções teóricas que abarquem a nossa realidade social. E seguramente estarão na
vanguarda quando, efetivamente, adquirirmos a consciência da necessidade da
construção de teorias verdadeiramente brasileiras. Infelizmente, com o grande número
de desempregados que cresce a cada dia no Brasil, e isso sem incluirmos os mais jovens
que sequer conseguem adentrar no mercado de trabalho, temos, então, um panorama
que nos mostra que o contingente de excluídos sociais será cada vez maior sem que
possamos avaliar com precisão as consequências desses dados. A violência que se
espraia por todos os cantos do País, por exemplo, certamente ganhará dimensões ainda
mais desesperadoras, e isso sem dizermos da depauperação da nossa população que, a
cada dia, se vê privada das condições básicas mínimas para uma vida digna. A
sobrevivência passou a ser a única perspectiva de milhões de pessoas que, atiradas às
raias da desesperança e do desespero, não possuem outra perspectiva que não apenas e
tão-somente buscar o mínimo para continuar simplesmente sobrevivendo. E uma
psicologia para ser decididamente libertária não pode simplesmente desconsiderar tais
aspectos, pois eles fazem parte de modo indissolúvel da realidade de nossa população.
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Ao lançar seus raios de ação sobre a população excluída, a psicologia avança
significativamente rumo ao seu desígnio mais nobre, que é, justamente, o de ser um
instrumento colocado ao alcance das pessoas para que elas alcancem sua plenitude de
vida. E também rechaça um antigo preconceito o qual simplesmente afirmava que pelo
fato de essas pessoas estarem em total situação de penúria econômica não apresentam
problemas emocionais. É como se a vida totalmente carente de recursos econômicos
básicos determinasse uma gama tão grande de problemas e sofrimentos que não seria
possível também a existência de problemas emocionais. Mas como é possível, então,
uma vida sem a menor consistência de dignidade não apresentar os mais variados tipos
de sofrimentos emocionais? Esse tipo de questionamento passava ao largo da
psicologia, que não apenas ignorava tal asserção, como igualmente lhe virava as costas
da maneira mais simplista possível. A psicologia comunitária resgata esse modo
distorcido de compreensão da realidade, ao mesmo tempo que se coloca na vanguarda
no sentido de resgatar essa população para novas perspectivas existenciais. Dessa
maneira, o leque de possibilidades de intervenção psicológica atinge todos os segmentos
da população, e não apenas aquelas pessoas que possuem condições econômicas
privilegiadas.
É importante ressaltar, nesse aspecto, que a construção de uma psicologia da saúde
cujas pilastras atinjam todos os segmentos sociais certamente precisa considerar as
necessidades desses diferentes contextos sobre os quais, se deseja sua intervenção.
Citamos anteriormente os avanços da psicossomática e quanto ela contribui na
atualidade para que um novo diagnóstico sobre os sintomas apresentados pelos
pacientes também considere de maneira relevante os aspectos emocionais. E essa
conquista se mostra irreversível na medida em que determinados aspectos de certas
ocorrências meramente orgânicas já são vistos e analisados pela própria medicina como
decorrentes de disfunções emocionais. Assim, por exemplo, as patologias envolvendo o
trato gastrointestinal e mesmo cardiopatias são vistas e analisadas de modo indissolúvel
como comprometimentos orgânicos decorrentes única e
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exclusivamente de situações de estresse emocional que foram impostas ao organismo.
Dessa maneira, temos todos os motivos para acreditar que a psicologia ocupará seu
lugar no século XXI e corresponderá a todos os anseios daqueles que sonham com uma
condição humana mais digna. Uma psicologia que poderá enfeixar-se com outras áreas
do conhecimento e trabalhar para que a fragmentação contemporânea seja algo que
fique apenas como reminiscência de um passado distante, pois urge com cada vez mais
frequência a necessidade de uma compreensão global da condição humana na qual todas
essas áreas sejam contempladas. Uma abordagem psicológica que considere igualmente
os conhecimentos da sociologia, da economia, da antropologia, da medicina etc. Um
esboço teórico que traga em seu corpo as marcas do seu tempo; algo que possa
transcender o reducionismo que encontramos em muitas das teorias que são
apresentadas como modernas, mas que trazem, na realidade, traços de outras épocas,
ponteamentos em que não cabe contemporaneidade. Uma psicologia que traga para os
campos de discussão da realidade humana contribuições significativas para que
possamos avançar nesse detalhamento que é a compreensão humana em seus aspectos
emocionais.
Os avanços obtidos na área da psicologia da saúde estão iluminando os caminhos de
todos que se interessem pela compreensão humana em seus aspectos contemporâneos. E
na medida em que avança rumo a novas perspectivas teóricas, certamente, temos como
real a possibilidade de que está próximo o dia em que ela ocupará lugar de destaque em
todas as formas de discussão que envolvam o homem contemporâneo. E não é só. A
simples perspectiva de desdobramento que a psicologia da saúde apresenta em seu leque
de alternativas de atendimentos já é indício de que não apenas um novo tempo se inicia
na psicologia, mas principalmente que estamos construindo uma psicologia
decididamente brasileira, criada e teorizada sobre a nossa realidade. E esse aspecto é
bastante interessante para mostrar que não existe a necessidade de rejeitarmos teorias
criadas em outras realidades
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sociais, apenas precisamos estudá-las e considerá-las no momento de criarmos as nossas
formas de concepções teórico-práticas. Como dissemos anteriormente, temos de unir
todos os esboços de diferentes áreas do conhecimento, e isso tem de incluir,
naturalmente, outras teorizações psicológicas. Os modelos concebidos em outras
realidades não podem ser simplesmente desprezados em nome de uma possível
xenofobia, mas considerados em suas limitações, que são determinadas pela origem de
suas criações. A nossa realidade de Terceiro Mundo, e aí incluindo-se países das
Américas Latina e Central, se consideramos todo o atraso de nossas sociedades que
determina, inclusive, condições precárias de pesquisas universitárias, mostra-se
surpreendente no quesito de produção acadêmica em psicologia. Frise-se que até mesmo
publicações nossas, criadas e concebidas na realidade brasileira, são referência em
países da Europa, o que, seguramente, traz contornos de que, embora ainda tenhamos
muito para caminhar, certamente também temos muito para contribuir na construção de
novos parâmetros no campo da psicologia da saúde.
É fato que, ao produzirmos nossas publicações, não temos consciência nem mesmo
dimensionamento do alcance que esses escritos atingirão. No entanto, uma vez lançado,
o livro segue caminhos que nos surpreendem e mostram que a nossa contribuição,
embora pequena, soma-se a outras experiências na formação de novos parâmetros na
construção de uma nova psicologia. O nosso primeiro livro de Psicologia da Saúde,
publicado em 2000, já traz contribuições significativas do modo como concebemos
diferentes matizes da compreensão da realidade humana. Esse livro delimitou não
apenas aquelas áreas que julgávamos pertencer ao campo da psicologia da saúde, como
também estabeleceu parâmetros bastante dinâmicos para novas conceituações e
reflexões sobre o nosso campo de intervenção. Ao se tornar referência nacional e
mesmo internacional na psicologia, mais do que simplesmente estabelecermos novos
limites de atuação, ampliamos os horizontes de perspectivas que podem ser abarcados
pela psicologia da saúde. E ao constatarmos o tanto que avançamos nesse quesito, sem
dúvida alguma, espraiamos nossas ideias de modo amplo a ter, na retrospectiva
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teórica que fazemos, novos denominadores sobre possibilidades que se descortinam no
campo da psicologia. Temos um trabalho muito árduo pela frente, principalmente se
considerarmos que os fatos são dinâmicos e estão em constante mudança, de modo a
fazer com que determinados aspectos que prevaleciam em determinado período percam
sua importância em outros momentos. E a psicologia assim terá de, igualmente, ser
dinâmica para acompanhar os fatos e se instrumentalizar, inclusive, para poder alterá-
los. Novos aspectos que se formam em uma nova forma de concepção de valores e nos
quais a psicologia estará presente fazendo-se catalisadora e contribuindo para que os
avanços das diversas áreas do conhecimento direcionem seus avanços para a verdadeira
humanização da condição humana, tão aviltada e acachapada pelo tecnicismo que
assolapa a dignidade do homem contemporâneo de modo tão impiedoso e cruel. E
embora seja fato irreversível que os avanços tecnológicos estão determinando até
mesmo diferentes configurações inclusive nas relações interpessoais, é mister que os
avanços da psicologia caminhem no sentido de fazer com que não percamos ainda mais
a nossa característica humana diante desses avanços. Assim, estaremos de fato
caminhando para a construção de paradigmas teóricos que façam da psicologia um
instrumento eficaz em nossa busca libertária. Outras vertentes da psicologia da saúde
que trazem em seu bojo avanços da medicina, como a neuropsicologia, trazem
diferentes desdobramentos para o verdadeiro alcance do raio de ação da psicologia.
Vertentes como a psiconeuroimunologia, a neuropsicologia e o neurocomportamento,
certamente, estão trazendo à luz das discussões contemporâneas aspectos da condição
humana que, seguramente, a psicologia do século XX não ousava sequer conceber. E de
fato os avanços a que assistimos e que são fruto de diferentes pesquisas nos mais
variados campos de intervenção dão-nos a dimensão de que as mudanças que se
mostram ainda assim não nos permitem imaginar os contornos que terão os esboços
teóricos da psicologia dentro de apenas uma década. Muitas mudanças ocorrem em uma
velocidade incompatível com as nossas mais otimistas previsões. Nesse sentido, mais do
que nunca, é necessário repensar-se o apego que determinados estudiosos apresentam
diante de teorizações concebidas
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das no final do século XIX, pois esse modo de agir é por demais dogmático e está a
exigir uma completa revisão de posturas e atitudes.
Uma psicologia da saúde revigorada e que se atualize a cada nova conquista dos
avanços científicos e que se mostre na vanguarda do pensamento contemporâneo. Isso é
o que estamos construindo com nossas reflexões e digressões teóricas. Algo que seja
parte de sua historicidade, presença do seu tempo nos avanços dos instrumentos
utilizados na tentativa de compreensão da condição humana. Uma psicologia
verdadeiramente humana. Uma psicologia que pulse em nosso peito como o coração,
com vigor e irrigando a todos que sobre ela se debrucem em busca de conhecimento.
Uma psicologia que possamos escrever com a certeza de que ela será um pouco de nós,
é fato, mas também parte de todas as pessoas envolvidas em nosso tecido social.
Referências Bibliográficas

ANGERAMI, V. A. (org.). Psicologia da Saúde. São Paulo: Pioneira Thomson


Learning, 2003.

______________________ O Doente, a Psicologia e o Hospital. São Paulo: Pioneira


Thomson Learning, 2003.
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Capítulo 2
Preservação da Saúde Mental do Psicólogo Hospitalar1
Aidyl M. de Queiroz Pérez-Ramos

Introdução: Importância do Tema

Apenas por uma visão sumária do que se tem escrito sobre os profissionais que
trabalham nas instituições hospitalares, pode-se deduzir que o eixo das atenções à sua
saúde mental vem sendo dirigido aos médicos e ao corpo de enfermeiros, embora
existam nesse contexto psicólogos, assistentes sociais e educadores, entre outros. Temas
de natureza psicológica constituem assuntos frequentemente referidos na bibliografia
especializada, não só em relação à clientela em atendimento, mas também aos
profissionais citados. Com respeito a estes últimos, são priorizados o seu
relacionamento com o usuário e com demais funcionários, os valores éticos em sua
defesa e os cuidados com sua saúde mental, incluindo o desgaste que lhes causa o
trabalho no hospital, em atenção especial o burnout (estado de exaustão), a que estão
sujeitos, entre outros fatores que podem estender-se também aos demais membros da
equipe clínica.
Página 30
Quanto ao psicólogo hospitalar, conotação que o diferencia dos outros na área, pouco se
tem escrito, nem mesmo são realizadas ações pertinentes, em prol de sua saúde mental,
apesar de sua incorporação nas instituições hospitalares, em nosso meio, ter acontecido
há mais de 50 anos. Acrescem-se a este fato o aumento cada vez maior de sua
representação numérica no referido ambiente, como também da abrangência de suas
funções. Esse profissional, entre outras funções importantes, integra-se plenamente na
equipe interprofissional de diagnóstico e tratamento; atua como promotor do
movimento de humanização hospitalar; participa da comissão de bioética; é agente de
mudanças na mentalidade dos funcionários, como também dos familiares do atendido, e
também destes últimos. Ademais, é porta-voz de esclarecimentos e conscientização em
tais mudanças, promovendo o acolhimento e a atenção às necessidades individuais da
clientela, como recurso propulsor na resolução ou minimização de muitos dos
problemas de natureza psicológica que esta apresenta. Ao sentir-se acolhida e
compreendida, a adesão às intervenções se mantém, evitando abandoná-las e de ir ao
encontro de vias alternativas sem base científica, nas quais poderia obter maior
receptividade.
O exposto é suficiente para se afirmar o quanto o psicólogo é profissional indispensável
nos programas de natureza clínica que se desenvolvem no contexto hospitalar. É
óbvio prever que, no exercício de suas funções, em um ambiente de risco, como é o do
hospital, ele esteja exposto continuamente a situações estressantes. O impacto que lhe
causa o contato com doentes portadores de enfermidades das mais diversas, muitas
vezes graves e sem perspectivas de cura, confrontado com as manifestações
angustiantes de sofrimento, dor, aflição, tristeza, desesperança, perante a doença e a
própria morte. Complementa-se a esta problemática o frequente desconhecimento das
reais funções, como psicólogo, por parte dos funcionários, até dos pertencentes à equipe
clínica; as resistências por sua inserção, mesmo na qualidade de estagiário ou de
residente nesse ambiente institucional, considerado equivocadamente de exclusivo
domínio
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médico; e o escasso reconhecimento de seu valor profissional, entre outras dificuldades.
Deve-se considerar, por outro lado, que nem sempre a formação do psicólogo hospitalar
e seu equilíbrio emocional são condizentes com as exigências de seu próprio
desempenho.
Perante este quadro de frustrações e de tensões emocionais, torna-se premente conhecer,
cientificamente, o fenômeno do stress2 a que o psicólogo hospitalar está sujeito,
causando-lhe preocupações, ansiedade e até transtornos psicossomáticos. E, em
complemento, saber quais as estratégias ou coping3 que desenvolve como defesa a essa
situação.
Trata-se de um chamado dirigido ao próprio psicólogo hospitalar para que centralize sua
atenção nessa problemática, a fim de resguardar seu equilíbrio emocional e, por
conseguinte, promover um satisfatório desempenho profissional em favor das pessoas
atendidas nessas instituições, propiciando relações apropriadas entre os membros da
equipe clínica e também com os demais funcionários, enfim, proporcionando um
ambiente harmônico indispensável em todo ambiente hospitalar. Tais iniciativas devem
ser fundamentadas cientificamente, conforme abordagens teóricas e procedimentos
metodológicos resultantes das escassas pesquisas existentes, tanto no âmbito
internacional como no local.
Considerações Teóricas e suas Aplicações
Analisam-se os temas referidos como consequência das aquisições mais atualizadas
sobre os fatores de stress que ocorrem no ambiente hospitalar e também sob o coping
que utiliza a equipe clínica, em especial o psicólogo como membro desta.
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Com base neste posicionamento, adota-se a concepção interacionista do stress, por ser
considerada a mais atual e por integrar-se melhor ao assunto em pauta. Com esse fim,
utiliza-se do Paradigma SOR, S (estímulo), O (organismo) e R (reação), que
compreende a relação entre agentes estressantes que incidem no organismo humano,
extrapolando as reservas adaptativas deste e dando origem a transtornos emocionais
e/ou fisiológicos específicos. O stress assim concebido é resultante do confronto entre
recursos individuais (equilíbrio emocional, capacidade cognitiva e fatores de proteção,
de resiliência, entre outros) e certas variáveis ambientais identificadas como
estressantes, provocando as reações referidas, acompanhadas, no melhor dos casos, de
estratégias de superação (Magnusun, 1986; Marin, 1999 e PérezRamos, 1992).
Interpretando o modelo em referência, considera-se como S (estímulo) o contexto
estressante de ambiente hospitalar, tanto para aqueles que aí trabalham, quanto para os
que usufruem de seus serviços. A própria natureza dessas instituições, o tipo de
atendimento que proporcionam e a condição de saúde física e emocional dos clientes
atendidos provocam a ocorrência de situações estressantes que afetam a estes e a
qualquer funcionário que presta seus serviços nesse contexto. O momento histórico em
que o contexto hospitalar está inserido é também fator condicionante.
Citam-se como exemplo dessas instituições consideradas mais estressantes as
psiquiátricas, as geriátricas, as oncológicas e as destinadas ao tratamento de
dependentes químicos. Destacam-se os serviços de pronto atendimento (PS), terapia
intensiva (UTI) e centros cirúrgicos, cujo clima emocional é expressivamente propício à
existência de intensos agentes estressores. Complementa-se o rol dessas unidades, como
intensamente traumatizante, a denominada Terapia de Dor e Cuidados Paliativos para
atendimento de pacientes com câncer avançado, já existentes em hospitais oncológicos
no Brasil. Kovács et ai. (2002) descrevem o sofrimento da equipe clínica, inclusive do
psicólogo hospitalar, manifestado por sentimentos de impotência,
Página 33
tristeza e angústia perante a luta entre a vida e a morte dos pacientes atendidos nesses
serviços. Situações que, mais uma vez, clamam por um apoio efetivo a esses
profissionais.
Na atualidade, é preocupante o aumento da violência, que ocorre também nas
instituições hospitalares, em diversos países e inclusive em nosso meio, segundo os
estudos realizados por Gbézo (2001), consultor da OIT (Organização Internacional do
Trabalho) sobre a mobilização de recursos humanos no contexto hospitalar. Para este
autor, os atos de violência estão presentes até em unidades mais protegidas, como são as
de medicina geral, pediatria e maternidade, colocando em perigo a vida dos usuários,
dos funcionários e até a segurança desses setores, aumentando, assim, os fatores
estressantes nesses contextos. São exemplos desses atos os ocasionados por grupos de
delinquentes e de dependentes químicos que penetram, pela força, nos serviços
hospitalares atraídos pela possível disponibilidade de drogas, equipamentos e valores.
Além disso, os funcionários dos hospitais vêm enfrentando, com maior freqüência,
hostilidade dos clientes e familiares, assim como assédio sexual, no caso das
enfermeiras, particularmente.
A situação de violência, conforme reitera o autor referido, tem sido mais intensa nos
grandes hospitais, onde é livre a movimentação das pessoas, há grande volume de
população a ser atendida, com extensas filas de espera, frequentemente com insuficiente
dotação de pessoal, entre outras circunstâncias que colocam os funcionários e os
assistidos em estado de tensão e de perigo iminente, aumentando, por conseguinte, a
interferência de outros agentes estressantes.
Baseando-se no exposto sobre a violência nessas instituições, as quais deveriam
caracterizar-se por ser um ambiente de tranquilidade, Gbézo faz um chamado à
implantação de políticas públicas de prevenção e controle dessa situação, com o
compromisso do envolvimento de todas as autoridades e profissionais responsáveis pelo
cumprimento de tais medidas. Condição que resultará em evidente diminuição da
intensidade de fatores estressantes, resultantes dessa situação perigosa.
Página 34
Voltando à análise do paradigma SOR, consideram-se como O (organismo) os
profissionais da equipe clínica, particularmente o psicólogo, e como R (reações), as
manifestações emocionais e/ou fisiológicas resultantes da incidência dos estressores
próprios do ambiente hospitalar. Acrescem-se, como reação, as estratégias defensivas, o
coping, que permitem a esses profissionais poder alcançar um razoável equilíbrio na sua
saúde mental. Tais profissionais estão sujeitos a maiores efeitos de impacto, somente
pelo fato de manterem contato direto e regular com clientes e familiares angustiados.
Situação que poderá ser mais intensa no psicólogo hospitalar, em razão de sua própria
formação profissional, o que ocasiona maior conhecimento e sensibilidade em relação
aos problemas humanos.
Para a integração do psicólogo nessa equipe, é importante que este esteja
convenientemente informado sobre os fatores de stress que, segundo estudos
específicos, mais incidem nos enfermeiros e nos médicos. Com respeito aos primeiros, a
bibliografia analisada informa que, independentemente do setor hospitalar em que
atuam e das funções que desempenham, os principais agentes estressores que aqueles
experimentam encontram-se nas dificuldades que sentem no relacionamento com os
profissionais e na inabilidade que apresentam para a resolução de problemas resultantes
da doença e da morte (Guppy e Gutteridge, 1991). Tratando-se de impactos ainda mais
intensos, tais funcionários os sentem, como se prevê, quando atuam em setores
hospitalares de maior risco (cuidados intensivos — UTI e centros cirúrgicos), como
também nas variações do turno de trabalho. Nessas situações, os fatores de stress de
maior intensidade são os referidos à gravidade da doença e ao risco de morte dos
atendidos, como também à subordinação ao médico, com expressiva falta de autonomia
na tomada de decisões (Bianchi, 1990; Jamal e Baba, 1992). Em relação aos médicos,
constatam-se como principais estressores a pressão do tempo, excessivo número de
clientes, contato direto e regular com doentes e também as dificuldades que apresentam
no relacionamento com outros profissionais (Richardsen e Burke, 1991).
Página 35
Quanto ao stress no psicólogo do ambiente hospitalar, dispõe-se de uma única pesquisa
realizada em nosso meio, referente à atuação daquele em um dos contextos
considerados altamente estressantes, isto é, hospitais psiquiátricos e centros-dia de
atendimento ao psicótico (Rego, 2000). Dos seus resultados se infere que do contato
deste profissional com os portadores de psicose, e seus familiares, derivam os mais
intensos e significativos estressores, seguidos dos relacionados com as dificuldades
inerentes ao relacionamento com os outros membros da equipe clínica; a falta de clareza
no desempenho de suas funções e as limitadas perspectivas de auto-realização; além dos
referentes à instabilidade da estrutura e dinâmica organizacionais. É de se estranhar que
tais fatores mostrem-se mais evidentes nos psicólogos que atuam em centros-dia,
embora seus usuários sejam portadores de quadros psicóticos menos pronunciados e
estejam convivendo na comunidade de onde procedem. Outras razões a serem
investigadas poderão explicar essa situação.
Com respeito ao coping, ainda em referência às instâncias O (organismo) e R (reação)
do modelo escolhido, dispõe-se também de outra pesquisa inovadora (Cunha, 2000)
orientada pela autora do presente artigo, referente ao psicólogo que exerce funções
clínicas em hospitais não psiquiátricos. Para a compreensão dessas reações defensivas
ao stress há necessidade, a princípio, de verificar qual é o conceito sobre esse construto
que a autora adotou no trabalho. Com tal finalidade, valeu-se de dois critérios: a
concepção mais atualizada sobre o tema, a partir de uma análise efetuada sobre sua
evolução, e o instrumento de avaliação do coping que mais se adaptasse à ideia
escolhida. Neste sentido, também estudou vários deles.
Foi nas contribuições mais atualizadas de Lazarus e Folkman (1996) e de Schaefer e
Moss (1993) que a autora encontrou respostas para empregar tais critérios. Quanto ao
coping, este é concebido como um conjunto de tentativas estratégicas, de natureza
cognitiva e comportamentais, utilizadas pelas pessoas para perceber os agentes
estressantes e sua intensidade, como também o impacto emocional
Página 36
que poderão experimentar em consequência. Para alcançar esses objetivos, realizam
avaliação cognitiva do estressor e preveem os seus possíveis efeitos, assim como os
recursos pessoais de que dispõem para tentar superá-los. Tendo uma ideia de ambos,
passam a empregar comportamentos defensivos de confronto ou de evasão (fight or
flight), sobre a causa e a intensidade da ameaça percebida. É importante considerar que
tais processos se desenvolvem tão rapidamente que nem sempre é possível diferenciá-
los.
No entanto, eles existem em forma individualizada e são avaliados por instrumentos
apropriados e caracterizados conforme dimensões de confronto e de evasão. A primeira
é compreendida pelo emprego de estratégias cognitivas de avaliação realística dos
estressores e de seus efeitos, como também dos recursos pessoais para enfrentá-los,
seguidos de decisões dirigidas diretamente à situação estressante. Por outro lado, a
dimensão evasão é concebida por avaliações racionalizadas e evasivas, por aceitação
resignada dos agentes estressantes, seguidas de alternativas depreciativas, de
extravasamento emocional, ou, ainda, de compensações satisfatórias estranhas à
situação. Da análise dessas dimensões, infere-se que a primeira é percebida como uma
estratégia saudável, e a segunda, como problemática.
Os resultados da pesquisa comprovam que, a julgar pela observação do Quadro 1, em
geral, os psicólogos participantes desta apresentam defesas saudáveis, perante o stress
(dimensão de confronto), com diferenças significantes a seu favor, quando comparadas
com aquelas consideradas problemáticas (dimensão de evasão). Observa-se também
neste quadro grande variabilidade nas pontuações, principalmente na primeira, a de
confronto. Neste quadro, quando analisadas as frequências individualmente, denotam—
se resultados atípicos, representados por inversão de valores (dimensão de evasão maior
que a de confronto), no número 13. Percebem- se, igualmente, semelhanças de ambas
estratégias no número 7 e diferenças pouco sensíveis nos números 28, 29 e 30. Quanto à
distribuição
Página 37
da dimensão evasão, encontram-se picos acima da linha média nos indivíduos
identificados com os números 7 e 23.
Quadro 1 – Distribuição Individual das Médias das Respostas dos Sujeitos nas
Dimensões de confronto e de Evasão

Inventario sobre superação de Stress Profissional (ISSP)

Página 38
Com o intuito de compreender o significado de tais variações, Cunha (2000) realizou
cruzamentos entre ambas dimensões de coping e as variáveis sociodemográficas e
situacionais no trabalho, apresentados pelo grupo de psicólogos participantes na
pesquisa. A autora encontrou diferenças significantes apenas no variável estado civil e
na da especialidade hospitalar. Em relação à primeira, os solteiros ou separados se
manifestaram muito mais evasivos do que os casados. Por outro lado, diferentemente do
que se espera, os psicólogos que trabalham em hospitais especializados, incluindo os de
moléstias infectocontagiosas e de oncologia, apresentam mecanismos de confronto
significantemente mais intensos do que aqueles que atuam em instituições hospitalares
de caráter geral. Em síntese, pode-se afirmar que esta pesquisa proporciona informações
e diretrizes para a realização de novos estudos sobre este importante tema.
Questões Metodológicas
Para fins de continuidade a novas pesquisas sobre a saúde mental do psicólogo
hospitalar, apresentam-se subsídios de natureza metodológica relativos às funções deste
profissional, focalizando os temas em referência, stress e coping, bem como a seleção,
adaptação ou elaboração de instrumentos utilizados para a coleta de dados.
Com respeito ao primeiro item, é importante reiterar, como requisito principal, o
cumprimento de normas éticas e, mais especifica- mente, da bioética nos estudos e
pesquisas que se realizam com pessoas humanas e, no caso particular, com os
psicólogos como funcionários dos hospitais. Tais normas se referem, principalmente, à
sua proteção como ser humano, em referência à sua saúde física e psicológica e ao sigilo
profissional, entre outros aspectos de real importância. Também prevê a preservação da
boa imagem da instituição, bem como a confiabilidade dos dados obtidos na pesquisa e
o necessário retorno dos resultados às suas origens. Antecipa-se, outrossim, em termos
de proteção à saúde mental dos funcionários, em especial dos
Página 39
profissionais da equipe clínica, destacada atenção ao stress a que estão sujeitos em um
ambiente de risco, como é a instituição hospitalar. Os códigos de Ética de Psicologia
(Conselho Regional de Psicologia, 1997) e de Medicina (Dailari, 1999) respaldam, em
seus respectivos campos, tais normas.
Percebem-se, em decorrência ou paralelamente a esses esforços, mudanças dos
procedimentos na realização de pesquisas no gênero, bem como na redação e publicação
dos trabalhos resultantes. Para fins de controle destas atividades, estão as comissões de
ética, e mesmo de bioética, que atuam nos hospitais e nas universidades. A elas
competem a supervisão e o controle dos procedimentos que possam garantir a proteção
dos participantes e dos pesquisadores, assim como a qualidade das contribuições que
nesse sentido se realizam e a divulgação pertinente. Esses grupos de trabalho estão no
dever de exigir, de um lado, termos de compromisso por parte do pesquisador e, de
outro, a necessária anuência, bem como a acessibilidade e a facilidade proporcionadas
pela instituição para obter as informações requeridas por aquele.
Em termos de redação e publicação são válidas as sugestões apresentadas por Pérez-
Ramos (2002), quanto aos cuidados no uso de designações e referências que possam
desvalorizar a pessoa humana. Nesse sentido, é aconselhável a substituição de “sujeitos
da pesquisa’ usual em muitos trabalhos, pela de “participantes da pesquisa”. Evita- se
dessa forma denegri-la ao designá-la como “sujeitos”, termo este que vem sendo
vulgarizado com conotação negativa. Acrescenta-se, ainda, a necessidade de esclarecer
devidamente o uso desta substituição para não confundi-la com as de “auxiliares” e
“colaboradores” da investigação, entre outras. Com tal propósito, considera-se como da
maior importância a motivação e o interesse dos participantes de tomar parte na
pesquisa, respeitando sempre a dignidade e o anonimato dos mesmos.
Com respeito aos instrumentos de coleta de dados, vários critérios são utilizados para a
seleção, adaptação e mesmo para sua elaboração, se for necessário. Citam-se os
considerados mais importantes:
Página 40
a disponibilidade em nosso meio; a atenção às normas éticas; a adaptabilidade ao objeto
da pesquisa e a sua fundamentação teórica; as características individuais dos
participantes e, por outro lado, as qualidades de validade, precisão, fidedignidade e,
também, a comprovação de sua pertinência mediante estudo piloto.
Dos instrumentos disponíveis no Brasil, que atendem às principais exigências citadas e
destinados a avaliar o stress e o coping experimentados pelo psicólogo no contexto
hospitalar, apresentam- se dois deles, recentemente elaborados: o Questionário S-1 de
Stress Ocupacional, de Juan Pérez-Ramos (Rego, 2000), e o Inventário sobre Superação
do Stress Profissional (ISSP), do mesmo autor, em uma adaptação do Coping Responser
Inventary — CRI, de Moos, 1993 (Cunha, 2000).
O primeiro instrumento, isto é, o Questionário S-1 de Stress Ocupacional (Anexo 1
deste artigo), tem por finalidade avaliar as situações identificadas como estressantes na
atuação do psicólogo em hospitais e centros-dia de atendimento às pessoas portadoras
de psicose. Constituiu instrumento de coleta de dados da pesquisa citada anteriormente
sobre o tema, realizada por Rego (2000), sob orientação de Juan Pérez-Ramos. Foi
elaborado baseando-se em um levantamento dos principais fatores estressantes que
sentiam os psicólogos, atuando nos contextos citados, bem como dos instrumentos
disponíveis para avaliar tais agentes no ambiente de trabalho. Serviram de exemplos,
neste sentido, o Scope-stress de Vasconceilos (Chaves, 1994) e o Índice de Stress de
Gmelch e colaboradores, adaptado por Juan Pérez-Ramos (Schimidt, 1992). Sua
validação foi assegurada não somente pela realização de um estudo piloto, mas também
pela pesquisa citada, efetuada por Rego (2000). Nesta se comprovou que o instrumento
em referência mostrou-se adequado à população estudada e metodologicamente
consistente.
Este instrumento, como pode ser observado no Anexo 1, consta de duas partes: a
primeira, referente aos dados sociodemográficas que investigam as características
individuais e a situação profissional, de modo a configurar um perfil do psicólogo
participante; a segunda,
Página 41
constituída por 56 afirmações com respostas tipo Likert, subdivididas em sete blocos
relativos às fontes de stress, de acordo com as categorias apresentadas na Tabela 1, com
os itens do questionário a elas referentes.
Tabela 1 - Categorias de estressores e seus respectivos itens

CATEGORIAS ITENS

(1) Desempenho profissional 1a8

(2) Inter-relacionamento com a equipe multiprofissional 9 a 16

(3) Desempenho de papéis 17 a 24

(4) Reconhecimento/compensação profissional 25 a 32

(5) Perspectivas de progresso 33 a 40

(6) Estrutura e dinâmica organizacional 41 a 48

(7) Relacionamento com o cliente e seus familiares 49 a 56

Os resultados de sua aplicação permitem verificar um perfil do psicólogo respondente


quanto a seus dados pessoais (idade, sexo, estado civil e número de filhos) e a
identificação funcional no trabalho (tipo de instituição, área de atendimento, tempo de
serviço, regime de trabalho, situação funcional e nível hierárquico) como também um
perfil das categorias citadas na Tabela 1, a fim de se configurar as situações estressantes
que incidem no psicólogo que atua nos hospitais psiquiátricos e centros-dia para
psicóticos. Os dados obtidos nestas categorias poderão ser analisados de acordo com as
variáveis sociodemográficas e situacionais de trabalho citadas, obtendo assim um
conhecimento relacional das possíveis circunstâncias que podem explicar as diferenças
entre as situações estressantes identificadas.

O segundo instrumento mencionado, isto é, o Inventário sobre Superação do Stress


(ISSP), tem por finalidade avaliar as estratégias de coping utilizadas pelo psicólogo
como membro da equipe de hospitais não psiquiátricos. Foi comprovada sua eficiência
em estudo piloto e na
Página 42
pesquisa realizada por Cunha (2000),já referida. Compõe-se, além das instruções para a
sua aplicação, de dois blocos: um sobre os dados pessoais e profissionais e outro que é
compreendido de 48 afirmações, com respostas tipo Likert, destinadas a avaliar as
tentativas de coping.

Os dados pessoais a serem obtidos pelo primeiro bloco compreendem: sexo, idade,
estado civil e número de filhos, e os de natureza profissional, tipo de hospital, regime de
trabalho, situação funcional, tempo de trabalho, setor de atendimento e nível
hierárquico. Os itens que compõem o segundo bloco destinam-se à avaliação das
dimensões de confronto e de evasão, em suas categorias (Tabela 2). São distribuídos em
forma simulada para evitarem-se respostas influenciadas pela referida classificação.

CONFRONTO

CATEGORIAS ITENS

(1) Raciocínio lógico Tentativas cognitivas para compreender e preparar-se


mentalmente para enfrentar essa situação

(2) Reavaliação positiva
Esforços cognitivas de construir ou reestruturar mentalmente
uma situação estressante aceitando sua realidade
positivamente

(3) Orientação/apoio Ações comportamentais para a busca de informações


orientação ou ajuda.

(4) Tomada de decisão Ações comportamentais para tomar decisões e atuar


diretamente na situações estressante
EVASÃO

(5) Racionalização evasiva Esforços cognitivos para evitar pensamentos realísticos sobre
a situação estressante.

(6) Aceitação resignada Tentativas cognitivas para aceitar, com resignação a situação
estressante.

(7) Alternativas compensatórias Ações comportamentais para criar, em substituição, novas


fontes de satisfação.

(8) Extravasamento emocional


Esforços comportamentais para reduzir a situação estressante
mediante a expressão de emoções intensas e depreciativas.

Página 43

Para avaliação dos resultados obtidos pela prova, relacionam-se os dados obtidos em
ambos os blocos, cuja pertinência foi comprovada na pesquisa de Cunha (2000).
Considerações Gerais
A compreensão integral deste trabalho conduz à inferência básica de que a relevância da
preservação da saúde mental do psicólogo hospitalar é comprovada cientificamente,
além de constatar a possibilidade de desenvolver esta área do conhecimento mediante
estudos e pesquisas, e suas aplicações no exercício clínico desse profissional.
Trata-se de um tema, a inferir pelo conteúdo desta exposição, complexo, abrangente e
de premência na continuidade dos esforços que se realizam sobre o mesmo, não
somente pela sua importância prática e teórica, como também pela escassez de estudos
que permitem fundamentar novos empreendimentos.
Atenta-se para a realização de pesquisas semelhantes em outros contextos hospitalares,
para poder generalizar as observações e inferências desta exposição. Questões mais
específicas e de necessidade prática clamam pela efetivação de trabalhos sobre a
resiliência dos psicólogos hospitalares e/ou sobre os fatores de proteção existentes no
contexto de trabalho, os quais, de alguma forma, possam contrastar a influência
negativa dos agentes estressantes incidentes. São estes exemplos de investigações que
poderão motivar os pesquisadores ou estudantes de pós-graduação na área de psicologia
da saúde, ou mesmo dos cursos de aprimoramento ou de especialização que se realizam
no próprio ambiente hospitalar.
Em termos de prática clínica na instituição hospitalar, há muito o que realizar. Constitui
sugestão importante a realização de treinamentos em serviço para os profissionais
referidos ou, ainda, para residentes ou estagiários em psicologia hospitalar, que
contemplem mecanismos de auto-aprendizagem relacionados com a sensibilidade
Página 44
aos fatores de stress provenientes dos diferentes setores e serviços do hospital e,
particularmente, das condições críticas das pessoas aí internadas. Por outro lado, devem
ser postos à reflexão os recursos pessoais para enfrentar tais agentes negativos, como
são o fortalecimento da autoestima, a avaliação do potencial resiliente, o equilíbrio
emocional e a habilidade cognitiva para avaliar situações estressantes e tomar decisões
realísticas de superação.
Nesses cursos são também propícios temas sobre a análise das condições do ambiente
hospitalar que possam compensar a influência negativa dos agentes estressores
existentes, como seriam a valorização das funções do psicólogo na equipe clínica, o
acolhimento do mesmo nesse contexto, a consideração que possa receber de seus
companheiros de trabalho e a clara identificação do seu rol profissional, entre outros.
Para concluir, segue-se uma mensagem aos psicólogos hospitalares:

Sinta-se orgulhoso de poder, mesmo enfrentando dificuldades, contribuir com sua


pessoa e sua bagagem de conhecimentos para aliviar os momentos de angústia e de dor
dos seres humanos. Fortaleça-se em sua saúde mental, pois ela constitui um pilar
imprescindível para essa importante missão.

Página 45
Anexo 1 — Questionário “5-1 de Stress Ocupacional”
Instruções
O presente questionário tem por finalidade identificar as principais fontes de stress
percebidas por você, na sua atuação, nos hospitais ou centros-dia que atendem
portadores de psicose. Ele consta de duas partes: a primeira se refere aos dados pessoais
e de seu emprego; a segunda compreende 56 itens especificativos de situações de stress
relacionados com o seu trabalho.
Não se trata de uma prova de rendimento ou de um teste de capacidade; por essa razão,
não há respostas certas nem erradas. O importante é que você, além de indicar os dados
referidos na primeira parte, expresse o grau de intensidade ou de freqüência com que
percebe as condições estressantes apresentadas na segunda parte deste instrumento.
Trata-se de um questionário que deve ser preenchido por você mesmo, com a maior
franqueza e naturalidade. Ao realizá-lo, evite, no caso de pesquisa, escrever seu nome
ou qualquer identificação de ordem pessoal, para assim assegurar o anonimato e o
caráter confidencial do conteúdo de suas respostas.
As informações da primeira parte devem ser preenchidas colocando um X nos
parênteses correspondentes de cada item, especificando sua resposta quando solicitada.
Os dados da segunda parte serão marcados por um círculo no número que corresponde
ao grau de freqüência ou intensidade percebido por você, em relação a cada uma das
situações estressantes indicadas.
Por exemplo: “Preocupam-me os comentários negativos em relação a minha profissão”:
Início da imagem

Fim da imagem

Descrição da imagem: sequência de número de 1 a 5. onde o 1 é “nunca. O 2 é


“raramente”. O 3 é às vezes. O 4 é frequentemente. O 5 é sempre. Deve-se circular
número que lhe representa. No exemplo da imagem está circulado o número 4.
Fim da descrição
Nota-se que foi circundado o item 4 (frequentemente), porque a pessoa que respondeu
esse item percebeu que a citada preocupação é sentida frequentemente (4).
Agora que você sabe como proceder, procure responder completamente o questionário,
não deixando nenhum item sem resposta. Reflita sobre o conteúdo de cada um deles,
respondendo com toda liberdade e amplitude de julgamento, como também com a maior
sinceridade possível.
Página 46
Marque com um X, nos parênteses correspondentes, o número indicativo que lhe for
aplicável.
1.1 Idade

1.( )até 20 anos

2.( )de 21 a 25anos

3.( )de 26 a 30 anos

4.( )de 31 a 35 anos

5.( )de 36 a 40 anos

6.( )de 41 a 45 anos

7.( )de 46 a 50 anos

8.( )de 51 a 55 anos

9.( )de 56 a 60 anos

10.( ) mais de 60 anos


1.2 Sexo

1. ( ) masculino

2. ( ) feminino
1.3 Estado civil

1.( )solteiro(a)

2. ( ) casado(a)

3.( )separado(a)

4. ( ) divorciado(a)

5.( )viúvo(a)

1.4 Filhos

0.( )nenhum
1.( )1 filho

2.( )2filhos

3.( )3filhos

4.( )4filhos

5. ( ) 5 filhos ou mais
1.5 Tipo de instituição

1.( )hospital

2.( )centro-dia
1.6 Área de atendimento

1.( ) ambulatório

2.( )internação

3. ( ) laborterapia

4. ( ) outras (indicar)
1.( )de6al0anos

2.( )dellal5anos

3.( )del6a2oanos

4.( )de2la25anos

5.( )de26a3oanos

6.( ) mais de3l anos

1.7 Tempo de serviço (instituição atual)


1.8 Regime de trabalho

1. ( ) tempo parcial

2. ( ) tempo integral
1.9 Nível hierárquico

1. ( ) chefe de setor ou unidade

2. ( ) profissional da equipe

3. ( ) outros (especifique)
2.0 Situação funcional

1.( ) efetivo

2. ( ) contratado
Página 47

Parte 2 — Fontes de Stress


1. Fico tenso (a) no desempenho do meu trabalho pelas constantes interrupções dos
outros.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
2. Minha atuação no trabalho é extenuante por causa do excesso de serviço sob minha
responsabilidade.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
3. O tempo de que disponho para minhas atividades profissionais é realmente
insuficiente.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
4. As atividades profissionais realizadas fora do horário de trabalho prejudicam minhas
responsabilidades pessoais e familiares.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes
4 - frequentemente

5 – sempre
5. Eu me sinto insatisfeito (a) com as mudanças impostas às minhas atividades, sem a
conveniente preparação.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
6. Minhas atividades profissionais ficam prejudicadas pelo número excessivo de
atendimentos que tenho de realizar.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
Página 48
7. Sinto-me aborrecido (a) com o desinteresse dos outros profissionais pelo meu
desempenho,
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
8. Minhas atividades profissionais são prejudicadas pela realização de tarefas
administrativas (relatórios, formulários, reuniões etc.) a mim incumbidas,
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
9. Os recursos materiais e os instrumentos de que disponho no meu trabalho são e
superados.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
10. Minhas atividades profissionais no trabalho são rotineiras e pouco estimuladoras.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
11. Fico confuso (a) no meu trabalho porque verifico que minhas funções estão
insuficientemente definidas.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
12. As atividades paralelas, não específicas de minhas atribuições profissionais, minha
atuação no trabalho.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
13. Sinto-me perdido (a) no meu trabalho por não estar seguro(a) de minha posição na
estrutura da instituição
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes
4 - frequentemente

5 – sempre
Página 49
14. Meu prestígio profissional fica prejudicado com a imagem negativa que os outros
têm da instituição em que atuo.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
15. Eu me sinto frustrado(a) com a desordem que se observa na rotina da minha
instituição.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
16. A ausência de programas de reconhecimento e de mérito no trabalho prejudicado
meu interesse profissional.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
17. A natureza dos serviços que são prestados pela instituição cria-me nervosismo e
desgaste nas minhas atividades profissionais.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
18. A falta de linhas de supervisão bem definidas atrapalha minha rotina de trabalho.
1 – Nunca
2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
19. A insuficiente atualização a estrutura organizacional de meu serviço desestimula
meu desempenho.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
20. As repetidas mudanças de atividades no meu serviço atrapalham minhas realizações.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
Página 50
21. A experiência que estou acumulando no trabalho atual limita minhas aspirações no
progresso profissional.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
22. As atividades repetitivas que realizo bloqueiam minhas aspirações profissionais.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente
5 – sempre
23. A limitação de oportunidades para atualizar-me no meu serviço prejudica minhas
perspectivas profissionais.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
24. Ao perceber que minha categoria profissional vem perdendo prestígio, sinto-me
diminuído (a) nas minhas aspirações.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
25. A falta de apoio no trabalho que exerço, para desenvolver minhas capacidades e
ideias, empobrece minhas perspectivas profissionais.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
26. A insuficiência da remuneração pelo meu trabalho desestimula meu crescimento
profissional.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
27. A falta de programas para o desenvolvimento de pessoal no meu serviço dificulta
minhas tentativas de atualização profissional.
1 – Nunca

2 – raramente
3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre

Página 51

28. Os conflitos e ciúmes entre colegas no meu serviço entorpecem meu progresso
profissional.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
29. A falta de identificação entre as metas da instituição em que trabalho e as do seu
pessoal bloqueia minhas aspirações profissionais.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre

30. Os altos índices de insatisfação observados no meu serviço prejudicam minhas


aspirações de crescimento profissional.

1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
31. Na minha organização há reais situações de conflito entre grupos de funcionários
prejudicando meu desempenho.
1 – Nunca

2 – raramente
3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
32. No meu trabalho há “panelas” ou “grupinhos” de colegas que se esforçam em
dominar o ambiente criando tensão.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
33. Fico nervoso (a) com os conflitos, de relacionamento entre as pessoas que são
atendidas na instituição e os profissionais desta.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
34. A evidente falta de cooperação existente entre meus colegas de trabalho repercute
negativamente em meu estado de ânimo.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
Página 52
35. Sinto-me tenso (a) com o excesso de atendimentos que impedem o bom
relacionamento com os atendidos.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente
5 – sempre
36. Quando me destaco no desempenho de meu trabalho os meus colegas se distanciam
de mim.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
37. Fico preocupado (a) porque certos colegas transgridem os princípios éticos no
trabalho.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
38. A falta de lealdade e cooperação dos meus colegas para comigo incide
negativamente no meu trabalho.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
39. Sinto-me preocupado (a) com a falta do conceito de equipe existente no meu
serviço.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
40. É prejudicial para o meu trabalho o distanciamento que existe entre os superiores e
os profissionais de minha categoria.
1 – Nunca

2 – raramente
3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
41. Sinto-me decepcionado (a) com os resultados da avaliação de meu desempenho
profissional.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
Página 53
42. É frustrante para mim perceber a escassa importância que a instituição dispensa ao
meu desempenho no trabalho.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
43. A insegurança que tenho em conservar meu emprego atual afeta negativamente meu
estado de ânimo.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
44. Fico desanimado (a) ao verificar que as condições de minha instituição não
oferecem melhores possibilidades de crescimento profissional.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente
5 – sempre
45. Vejo-me obrigado (a) a continuar no meu trabalho atual pela falta de outras
oportunidades de emprego.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
46. E conflitante para mim sentir que a estrutura de minha organização não oferece
oportunidades de promoção.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
47. O clima emocional existente nmeu trabalho afeta minha produtividade.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
48. Sinto que não sou considerado (a) nas decisões de importância para meu trabalho.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
Página 54
49.0 que a instituição espera de minha atuação é realmente extenuante.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes
4 - frequentemente

5 – sempre
50. É frustrante o fato de que a instituição em que trabalho não facilite a minha
participação em eventos que visem ao crescimento profissional.
1 – Nunca

2 – raramente

3 – às vezes

4 - frequentemente

5 – sempre
Comentários:
Página 55
Referências Bibliográficas
BIANCHI, E. R. F. Estresse em enfermagem: análise da atuação do enfermeiro em
centro cirúrgico. São Paulo, Tese de doutorado, ll8p., Escola de Enfermagem,
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DALLARI, D. A. Bioética e direitos humanos. In: COSTA, 5. 1. F.;

GARRAFA, V. e OZELKA, C. (orgs.). Iniciação à bioética. Brasília:

Conselho Federal de Medicina, 1998.


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KOVÁCS, M. et ai. Implantação de um serviço de plantão psicológico numa unidade de
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LAZARUS, R. 5. e FOLKMAN, 5. Stress, appraisal and coping. Nova York: Springer


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Página 56
MAGNUSUN, D. Situational determinants of stress: interactional perspective. In:
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MARIN, J. R. Psicología social de la salud. Madri, Sintesis, 1999.
PÉREZ-RAMOS, J. Stress no ambiente organizacional: conceitos e tendências. Boletim
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REGO, D. P. Stress ocupacional no psicólogo em instituições de aten

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RICHARDSEN, A. N. e BURKE, R. J. Occupational stress and job satisfaction among
Canadian physicians. Work & Stress, 5(4), 301- 13, 2000.
Página 57
De um aniversário.

Trinta e um anos de muita luz

Valdemar Augusto Angerami — Camon


Para o palhacinho punk,

a nossa Claudinha

Balzac imortalizou a expressão...

mulher de trinta

é a mais fascinante.., a mais bonita... reúne a

maturidade do desenvolvimento com o esplendor

de suas formas... trinta anos é um marco na vida

das pessoas... uma data que vinca emoções, descobertas

e conquistas... na vida da mulher é o período em que

ela se sente desabrochando para a vida.., para o amor...

Trinta anos e muita dor... choro, lágrima e muito

sofrimento.., um quê de desilusão e a certeza de

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que não haveria outros aniversários.., nem tampouco

a própria ilusão que a vida nos oferece nessas datas...


tudo era turvo e tudo está completamente perdido...

tudo era uma névoa onde não havia lugar para a

esperança e nem para a ilusão...

diagnósticos e mais diagnósticos... e a total

falta de perspectiva de vida como sendo

a nossa única realidade...

Felizmente a vida nos reserva surpresas... e até

o mais seguro dos diagnósticos não consegue

vencer a esperança, a obstinação pela vida...

o azul consegue superar o cinza do desamor...

tudo deixa de ser real diante da perspectiva

que o amor desabrocha em nossos corações...

e o que era lágrima ontem, hoje é sorriso...

e o que era tristeza é apenas reminiscência

de um tempo que passou e que não volta mais..,

tudo é esperança... tudo é amor...

e o ceticismo dos diagnósticos é derrubado

pelo teu sorrir.., pelo teu jeitinho faceiro

de a todos conquistar...
Página 59
Fazer trinta e um anos é mais do que

uma simples comemoração... é saber que

a tua superação é luz.., vida.., azul.., força

capaz de superar as mais intransponíveis barreiras...

é fazer de cada momento a certeza de

que somos privilegiados em partilhar da


tua alegria e da tua superação nas vicissitudes

que a vida colocou em teu caminho...

somos a tua porção de fragilidade.., e nos

fortalecemos com a tua alegria e com a

luz da tua alma, alegre e radiante,a

nos mostrar que

a vida é uma eterna superação...


Página 60 – Em branco
Página 61

Capítulo 3

E o Tratamento se Inicia na Sala de Espera...


SiIvia Martins Ivancko
“Para o paciente que se acha só e confuso, perdido no labirinto da crise, a abordagem
franca e confirmatória de sua existência e o reconhecimento de sua angústia pelo
terapeuta têm a experiência da mão que se estende do alto do abismo para impedir-lhe a
queda definitiva. Nessa fase, o terapeuta não só consegue estabelecer um vínculo
satisfatório com o paciente, como também produzir certo alívio derivado da anulação da
sensação de o paciente achar-se absolutamente só e desamparado.”
Ferreira Santos (1999)
Estamos na sala de espera de uma clínica oncológica.
Podemos observar rostos sombrios, preocupados, tensos, ansiosos, sérios, com medo e
tristes. São estas as expressões dos pacientes que aguardam por uma consulta um
diagnóstico, e muitas vezes a revelação do futuro que o aguarda. No silêncio, olham em
direção à televisão como se estivessem interessados em qualquer coisa que ela pudesse
trazer, qualquer coisa que tirasse de dentro deles as fantasias tristes que os trazem
àquela clínica. Podemos ouvir seus pensamentos:
Será que estou com câncer? Será o fim de tudo?
Página 62
A cirurgia vai dar certo? Será que vou retirar os pontos? E o dreno? Terei que fazer
novos exames? Será que estou curado? E se tiver uma recidiva? Metástase? Por que a
quimioterapia? Terei que fazer radioterapia?

Vou me curar? E se não der certo? Que medo!”

Segurando firme nas mãos os envelopes de exames quase sempre indecifráveis, algumas
vezes acompanhados por pessoas próximos, outras vezes sozinhos por não haver
“pessoa próxima” ou por julgar ser esta uma tarefa solitária.
Os minutos são intermináveis...
A cada nome pronunciado há a expectativa de ouvir o seu.
E a espera continua, alimentando os temores cada vez mais.
Não é para menos, carregamos o estigma da palavra (quase sempre impronunciável) da
doença que assola o nosso século: o câncer.
O diagnóstico de câncer sempre vem associado à morte, perda de órgãos, perda de
cabelos com a quimioterapia, queimaduras na pele na radioterapia, sofrimento, dor,
perda de amigos, companheiros de trabalho, hospital, cirurgias, perda de peso, até o
encontro inevitável da morte indesejável.
É bem verdade que este fato ainda ocorre, com muito menos freqüência do que há
poucos anos, mas no momento em que se ouve o diagnóstico, estes “fantasmas” nos
invadem sem nos pedir licença.
Mas ainda estamos na sala de espera.
Esta cena é muito comum em clínicas e hospitais oncológicos, todos já vimos ou até
mesmo já vivemos cenas como esta.
Quando pensamos em termos psicossomáticos, entendemos que neste momento de
espera, em sala aguardando um “veredicto” existe com certeza um paciente.
Página 63
Independentemente de diagnóstico ou terapêutica, estamos diante do paciente
psicossomático, onde a doença pode ou não existir concretamente (mas é real para o
paciente), porém o quadro emocional já está caracterizado sem dúvida.
Diante da expectativa da consulta, já se concretizou um perfil psicossomático, esses
pacientes estão vivendo sintomas tais como: insônia, distúrbios alimentares, ansiedade,
tristeza, irritabilidade, angústia, depressão, medo, apatia, distúrbios gastrointestinais,
dores locais, enxaquecas, stress etc. É inegável, o paciente doente e sente-se desta
forma. Além disso, um sentimento de vergonha (em razão do estigma) envolve a baixa
autoestima, assim percebemos que os olhares são evitados em uma sala de espera, as
pessoas buscam sentar-se nos locais mais distantes uns dos outros e, em geral, evitam
conversas até para não se tocar no assunto. Às vezes, inquietas, dirigem-se à secretária,
perguntando sobre a demora, ou sobre quantas pessoas há na sua frente; retornando ao
seu lugar. Outras, impacientes, reclamam do atraso do horário e descarregam parte da
ansiedade e irritação nas secretárias, sem que haja possibilidade de se alterar a espera.
O clima fica tenso e constrangedor, mas quem poderia esperar outra coisa diante dessa
situação?
A espera é um dos momentos mais difíceis para o paciente, inclusive para seu
acompanhante e familiares. É o momento de “suspensão” quando não há um caminho
para dar vazão às emoções. Não há direção para se prepara todas as possibilidades são
viáveis e o paciente imagina tudo o que pode acontecer, mas não pode agir.
Depois de muito tempo de espera, às vezes horas, o encontro tão esperado e indesejável
com o médico acontece e então a temida palavra câncer é pronunciada. O mundo do
paciente desaba em questão de segundos!
Morte? Dor? Perda dos cabelos? Perda do emprego? Como fica a família?
Enfim, uma avalanche de imagens, medos, cenas desaba sobre a pessoa.
Página 64
As reações da pós-consulta são as mais diversas. Há pessoas que se entristecem e
tentam controlar o choro; existem aquelas que não conseguem controlar as lágrimas e
deixam a tristeza transparecer; as que negam o diagnóstico, nem chegam a ouvi-lo e
buscam um médico “mais competente”; há também as que deixam a raiva se aflorar,
demostrando a frustração e a decepção por terem sido surpreendidas pelo inimigo.
Reações naturais de quem vive um momento decisivo em sua vida.
Após a consulta, com o veredicto, encontra-se a “porta” de saída das emoções:
comemora-se a vitória de um tratamento, de uma cirurgia, uma biópsia negativa; ou se
iniciam os preparativos para uma cirurgia, quimioterapia, radioterapia; mas enfim a
angústia cessa.
Agora se tem um caminho de alívio ou de vazão das emoções, mas a espera chegou ao
fim!
Normalmente esses pacientes vivem essas emoções de forma solitária, sem apoio,
fragilizados, tentando demonstrar força, naturalidade, disfarçando até para si próprios o
momento que enfrentam, tanto na pré como na pós-consulta.
O câncer, nesse momento, só é percebido nos exames, como um nódulo, ou um sintoma,
muitas vezes não há dor física, mas sempre há uma enorme dor psíquica no nosso
paciente psicossomático. E é essa dor psíquica que deve ser tratada nesse momento.
“E se, de repente

A gente não sentisse

A dor que a gente finge

E sente

Se, de repente

A gente distraísse

O ferro do suplício

Ao som de uma canção

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Então, eu te convidaria Pra uma fantasia

Do meu violão...”

Fantasia

(Chico Buarque de Hoflanda)

Como Tudo Começou...A Primeira Experiência


Durante a minha especialização em Psicologia Hospitalar no Hospital das Clínicas da
FMUSP, com a exigência de uma monografia fui autorizada a frequentar uma Sala de
Espera da 3 Clínica Oncológica Cirúrgica, na qual o psicólogo Niraldo Santos
convidava os pacientes (que aguardavam pela consulta pré ou pós-cirúrgica oncológica)
a se dirigirem a uma sala reservada para conversarem. Alguns pacientes optavam por
essa Sala, onde podiam falar de seus problemas e contavam sobre seu tratamento.
Eu, gestaltista e a psicodramatista Maria Cristina Salto observamos por um mês o
trabalho realizado pelo Niraldo, lacaniano. Depois da nossa observação, começamos a
intervir no grupo, cada um com seu estilo, e percebemos que Peris, Moreno e Lacan
conviveram muito bem!
Comecei então a coleta de dados para a minha monografia. Ao final das sessões, que
duravam em média uma hora e meia, pedíamos autorização aos pacientes para gravar o
discurso de cada um sobre o que era, para eles, a “Sala de Espera” Os 52 pacientes que
autorizaram tiveram seus depoimentos gravados.
O objetivo do trabalho era saber se a Sala de Espera contribui, e de que forma, para o
paciente.
Página 66
A partir desses depoimentos foi feita, por meio de uma metodologia qualitativa proposta
por Fernando Lefêvre (2000), a classificação do “Discurso do Sujeito Coletivo” de
acordo com as seguintes palavras-chave:
Tempo, Catarse, Esclarecimento Comparação, Amizade, Avaliação da Sessão do Dia,
Mudanças de Atitude, Expectativas de Continuidade da Sala de Espera e Equipe de
Atendimento do Hospital, em um total de nove grupos.
Os discursos são analisados individualmente e tudo o que se refere ao mesmo tema é
unido em um Único discurso representativo da coletividade, já que o tema se repete
oriundo de diferentes sujeitos.
Após a divisão dos discursos nas nove categorias, foi feito um único relato de cada
categoria representativa dos pacientes em questão.

Na categoria Tempo, foram colocados os discursos que relacionam a Sala de Espera ao


fato de o tempo passar mais rápido.

“.. Quando a gente conversa passa o tempo rápido; calado, o tempo demora a passar,
aqui as horas passam e você nem vê... para mim sala de espera é aquela lá fora onde o
tempo não passa, essa aqui não; aqui o tempo passa rápido. É melhor do que lá fora
porque aqui o tempo passa e a gente nem num vê, num é verdade? Enquanto esperamos,
é melhor ficar conversando, ajuda a hora passar.”
Na categoria Catarse, os discursos se referem a sentir-se bem ao falar, ao elemento
catártico de que falar leva a um bem-estar.
“A gente expõe o que a gente sente, se está triste ou se está alegre... a gente põe para
fora a tristeza, é bom, falar é bom e poder colocar para fora o sentimento de cada um é
muito bom. Ficar se distraindo, ouvindo as emoções das pessoas, você se sente bem e
ficar calada esperando você junta um problema com o outro e só atordoa a cabeça da
gente. Aqui não enche a cabeça, até esvazia, tira o stress... Se não tivesse isso aqui, a
gente não suportava o problema da gente, porque aqui a gente amadurece, a gente
cresce, com o problema de cada um e a gente suporta carregar a cruz da gente com mais
facilidade. É diferente da
Página 67
outra sala, porque, às vezes, na outra sala alguém te conta um problema e você não
desabafa com ninguém e vai segurando o problema de um, o problema de outro e chega
uma hora que você fica pior do que já estava, e aqui já é um outro modo... dá pra
desabafar, ajuda muito nessa parte de medo, a gente conversa, descarrega um pouco os
problemas... ajuda. Ficar calado assim é neurótico, a gente desabafa, a pessoa desabafa,
eu acho muito importante falar tudo o que está acontecendo..., o desabafo faz bem! Eu
vou pensar em mais alguma coisa e confessar mais algumas outras; por exemplo, que
nem da outra vez que eu vim, tinha umas pessoas que estavam muito impressionadas,
um nervoso, até falando palavrão e no fim ele estava totalmente tranquilo, e se sentiu
bem no final da reunião, as pessoas têm medo e o medo é pior do que a doença...”
Na categoria Esclarecimento, os discursos relacionados são os que relatam algum tipo
de esclarecimento em Sala de Espera.
“Se tiver alguma dúvida, a gente pergunta e lá fora não; a pessoa fala do problema dela
e você do seu e fica na mesma ou até pior, né? Aqui se tem um esclarecimento maior, a
gente fica mais preparada, depois de ter passado aqui pelas reuniões. Eu me senti mais
segura, mais confiante, eu sei o que nós devemos fazer e estamos fazendo. Agora eu
estou mais preparada para enfrentar, não sou mais aquela pessoa nervosa, que ficava
ansiosa. A gente fica ciente de muitas palavras, de muitos conselhos, de muitas
explicações, muitas coisas que falaram, eu não sabia e aprendi hoje... Sobre reclamar, eu
não sabia... é um direito meu!...”
Na categoria Comparação, os relatos selecionados foram aqueles nos quais o paciente
cita comparações entre si e os outros ou entre dois outros pacientes como uma forma de
conforto ou de parâmetros para

Situar:
“Às vezes, a gente fica meio oprimido, achando que está sendo vítima, e conversando
aqui, a gente nota que tem pessoas que estão passando por situação ainda pior do que a
da gente; então é muito reconfortante. Tem gente que não tem nem um real para tomar
condução para vir aqui, então a gente se sente numa condição privilegiada. A gente se
emociona também com a emoção dos outros, você pensa na situação dos outros... a dele
está pior do que a minha ou a minha está pior do que a

Página 68
dele... eu já estive aqui chorando... A gente se sente bem melhor quando conhece o
problema dos outros...”

Na categoria Amizade, as frases selecionadas são as que associam a Sala de Espera com
o fato de se relacionar socialmente e conhecer novas pessoas.

“... Aqui a gente também fica amigo dos outros, conta o seu problema, ouve o problema
dos outros, fica conhecendo muita gente... as pessoas são amigas que ajudam a gente a
segurar a mesma barra... eu converso com o pessoal, é bom ver as pessoas.”
Na categoria Avaliação da Sessão do Dia, foram eleitas as frases relativas a uma
avaliação dos pacientes no que diz respeito à sessão de Sala de Espera do dia em
questão.
“Eu venho nessa reunião e eu gostei, aqui dá pra gente aquela força, aquela liberdade; é
um trabalho maravilhoso, eu acho vir aqui bom à beça... se ainda me for possível vir
aqui da próxima vez... eu acho que vale a pena... foi ótimo hoje... É muito importante o
trabalho que vocês fazem porque descontrai e ajuda muito as pessoas, então eu acho que
esse trabalho que vocês fazem é magnífico, eu gostei muito.”
Na categoria Mudanças de Atitude, foram preservadas as frases em que o discurso
indica mudança de atitude a partir da vivência em Sala de Espera.
“Agora eu estou rindo, mas eu cheguei nos nervos para falar com o médico, que eu
pensei: vou me embora, mas agora eu já mudei de atitude, vou falar mais alegre com o
homem... Eu tô me sentindo melhor agora, eu não tô tão inseguro, né, quanto tava,
realmente ajudou, agora eu tenho confiança, eu me trancava muito e sofria muito, mas
depois que eu passei a vir na sala de espera eu melhorei muito, hoje eu consigo falar,
antes eu não conseguia...”
Na categoria Equipe de Atendimento do Hospital, selecionou-se os discursos dirigidos
aos médicos, enfermeiros e psicólogos da Sala de Espera.
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“Vocês (coordenadores) compreendem a gente no nosso sofrimento e nos ajuda dessa
forma; ter uma comunicação assim de paciente e médico, isso é muito importante, né?
Eu acredito também na ciência, nos médicos, acredito... Os médicos que tratam a gente
com o maior amor e sei que eles fazem o máximo que eles podem, a gente aqui é muito
bem tratado também pelas enfermeiras, é espetacular, não tenho do que reclamar...”
Na categoria Expectativas de Continuidade da Sala de Espera, são narrados os discursos
relativos ao assunto.
“A reunião de vocês é muito boa, espero que vocês continuem porque é muito
importante! Eu espero que vocês levem esse projeto adiante... e que Deus ajude que
vocês possam levar esse trabalho em todas as outras áreas.”

Também foram incluídos trechos de discursos de caráter catártico, nos quais os


pacientes, ao serem inquiridos sobre a avaliação da Sala de Espera, não responderam a
questão, mas aproveitaram o momento para falar de seus medos, insatisfações,
inseguranças e problemas que estavam sendo vividos, muitas vezes ditos pela primeira
vez.

Paciente 1 — “Neste mês, eu contei segundo por segundo para chegar a hora da
consulta porque isso (mostra o local do câncer) está me incomodando muito..., dói... e
me irrita muito a burocracia, faz seis meses que estou tentando curar isso só na espera
de falar com o médico. Porque o pobre é tratado de qualquer jeito, é um problema
político, o brasileiro não sabe reclamar nada’
Paciente 2 — “Estou muito preocupada por ter aparecido este outro tumor, não contei
para ninguém lá em casa (começa a chorar) ...”
Paciente 3 — “Esperei meu filho até as 6 horas da manhã, ele não apareceu e então eu
vim sozinha de ônibus... é difícil para mim, pois tenho muitas dores na perna e às vezes
ela endurece e não consigo andar. Minha vida é muito sofrida, moro sozinha, sou
separada desde muito tempo e tenho só um filho. Durante alguns anos, morei junto com
ele e minha nora, mas ela me tratava tão mal, que precisei ir embora de lá. Vocês
acreditam, que meu prato e os meus talheres ela separava dos outros da casa? Depois
que eu tomava banho, ela entrava no banheiro e ficava desinfetando, como se esta
doença fosse contagiosa.”
Página 70
Paciente 4 — “Faz tempo que eu venho aqui e nada é resolvido, este tumor vaza e faz
uma fedentina horrível, tem dia que chego a trocar quatro vezes de camisa.”
Paciente 5 — “É muito difícil, sou de Pernambuco, deixei lá meu marido, meus filhos e
minha mãe. Moro com meu pai aqui há um ano e meio.”
Paciente 6 — “Pra mim é difícil estar aqui para fazer este tipo de consulta, eu jogava
futebol como amador, e tive que parar o esporte... quando saio na rua, às vezes, minha
perna fica endurecida e os amigos me chamam de saci... estou oprimido, não posso mais
jogar bola, não posso fazer mais nada, enquanto estiver com este tumor, quero que seja
feito aqui o melhor, quero ser operado logo para retirar ele daqui... às vezes, tenho
vontade de rasgar isso com uma faca.., foi bom estar aqui porque pude desabafar a
história do saci, nunca contei isso a ninguém, só para vocês:’
Paciente 7 — “A notícia da doença pega a gente de surpresa, atrapalha nossos planos
futuros..., depois do diagnóstico passamos a pensar diferente..., fiquei muito triste.
Estava para me casar e adiei o casamento porque não sei o que vai acontecer, tenho um
tumor na perna. O câncer destrói os planos da gente e causa uma tristeza muito grande.
É muito bom poder dividir com a família os problemas. É a primeira vez que eu
venho..., eu achei bom, porque dá ânimo na gente, se ficamos sós na sala de espera,
ficamos pensando na doença e suas consequências, a expectativa para entrar no
consultório médico é muito alta.”
Paciente 8 — “Fiz a biópsia, porém não pude ser operado, pois o médico me disse que a
chance de morrer na cirurgia é grande, sinto muita dor, estou mal, não estou gostando
desta situação (da doença), na verdade eu tenho ódio do mundo por estar assim. Sei que
estou na clínica de hematologia, prefiro não saber o que tenho...”
Paciente 9 — “Quando soube do diagnóstico, reuni meus filhos na minha firma e contei
a eles e à minha mulher. Eu disse: ‘Está difícil falar sobre isso, hoje vocês estão me
vendo abatido e abalado, mas sei que vou superar e conto com vocês!’ Tenho ansiedade,
expectativa do resultado de qual o tratamento que terá que seguir daqui pra frente, acho
que talvez tenha que fazer radioterapia.”
Paciente 10 — “... Mas tem o seguinte, comentar aqui é uma coisa, para quem sabe do
nosso problema, fora daqui são poucas as pessoas que sabem que tenho câncer, pois as
pessoas são preconceituosas e temem que esta doença seja contagiosa.”
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Paciente 11 — “Nunca fiquei doente, nunca fui a um hospital, não gosto de falar em
doença e nem de ouvir coisas que de repente nem têm cura..., é ruim. Ninguém quer
ficar doente, todo mundo quer ter saúde. Mas errar o diagnóstico, é demais, deixar
chegar no estado em que chegou para mandar fazer biópsia... é para estar revoltado, eu
nem sei se o meu caso tem cura ou se vou morrer em três meses, mas com essa demora
ficou pior. Acho que não é bom ficar falando, queria voltar para a roça onde moro e
tocar a vida como sempre, esquecer isso.”
Os resultados obtidos a partir da observação dos relatos dos pacientes que frequentaram
a Sala de Espera da 3’ Clínica Cirúrgica do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo nos leva a constatar que o espaço “Sala de
Espera” contribui positivamente para os pacientes.
Este resultado tem concordância com os objetivos de Melio Filho (1998), ao que se
refere a fazer um atendimento de qualidade à grande demanda de clientes que esperam
longo tempo pela consulta. Nesse seu trabalho, também afirma que “é mais fácil falar
das emoções com um igual a partir da relação que se institui no grupo e que a sala de
espera sensibiliza o paciente quanto às dimensões psicológicas da sua situação, trocando
a posição passiva e receptiva do paciente para uma posição ativa e participativa”.
Maldonado (1998) também refere que, em sala de espera, transforma-se o tempo ocioso
em tempo de trabalho e as vivências são compartilhadas, sua expressão incentivada e as
informações solicitadas pelo grupo são dadas de forma prática e informal.
Neste aspecto, Gonçalves (1998) ressalta que os pacientes apresentam um sofrimento
psíquico e que a necessidade de compartilhar com alguém este momento de espera,
tendo pelo menos uma escuta, pode refletir de forma positiva criando um alívio ao
sofrimento emocional.
Segundo Winnicott (1949), este seria o “espaço potencial”, ou seja, a “área onde se dão
as trocas entre o indivíduo e o meio e onde
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ocorre toda a experiência satisfatória mediante a qual o indivíduo pode alcançar
sensações intensas e a consciência de estar vivo’
Santos (1999) conclui em seu trabalho que o atendimento em grupos de sala de espera
atinge um número considerável de pacientes com problemas semelhantes de saúde,
dentro de um enfoque educacional, que permite a aquisição de estratégias eficazes para
enfrentar a doença.
Ferreira Santos (1999) afirma que o apoio vindo do terapeuta produz o alívio da
sensação de o paciente sentir-se absolutamente só e desamparado. Além disso, a
participação ativa do paciente no processo de tomada de decisão em relação ao
tratamento facilita sua cooperação com as intervenções propostas, assim como a adesão
ao tratamento.
“O mundo fere todas as pessoas,

mas depois, muitas se tornam

fortes nos lugares feridos...”

Ernest Hemingway

A Sala de Espera
Concluído o trabalho do Hospital das Clínicas da FMUSP, fui convidada por um
Instituto de Cancerologia a apresentar um projeto de trabalho que se adequasse às reais
necessidades dele.
A sala de espera desse instituto é frequentada por pacientes de diversos planos de saúde,
o corpo médico constituído por médicos oncologistas e cirurgiões das mais diversas
especialidades.
Na minha primeira visita ao instituto, encontrei as mesmas expressões sombrias que
havia visto no Hospital das Clínicas. Apesar do nível socioeconômico diferente, o
sofrimento, a angústia, o medo, a tristeza eram os mesmos.
Página 73
Ao iniciar meu trabalho nessa clínica, notava certa curiosidade por parte dos
funcionários e alguns médicos não estavam bem certos do benefício que a atuação na
sala de espera pudesse trazer, mas aguardaram os resultados.
Comecei como no Hospital das Clínicas... Observando! Neste instituto há também uma
confortável sala para quimioterapia que comporta cinco pacientes em poltronas
reclináveis, com duas enfermeiras e uma TV. Apesar de todo o conforto, muitos
pacientes tinham medo até de olhar em direção àquela porta com a placa: “Sala de
Quimioterapia’
A sala de espera, finamente decorada, divide o ambiente em uma sala grande e outra
pequena com uma TV para cada uma das salas. Frequentemente, podia-se ver os
pacientes mais debilitados, em cadeira de rodas ou que perderam os cabelos na
quimioterapia, envergonhados, buscando a sala menor como refúgio, escondendo-se dos
demais.
Os pacientes chegam a esse instituto indicados pelos seus médicos, ou pelo livreto do
convênio, mas quando saem do elevador deparam-se com o nome do instituto; e a
palavra “CANCEROLOGIA”, fazendo com que os menos avisados sofram o primeiro
impacto do nome câncer. Foi então que me perguntei: o que poderia ser feito para
aliviar a dor emocional desses pacientes?
Voltei às categorias do meu trabalho no Hospital das Clínicas, e pensei muito em cada
uma delas. Decidi experimentar como início a categoria “Esclarecimento” porém, desta
vez, com um caráter intencional e não casual ou decorrente do encontro, como foi no
Hospital das Clínicas.
Cheguei então na sala de espera, apresentei-me a todos como psicóloga e disse que
estava lá para conversar. Quem quisesse participar iria para a sala grande, mas os que
preferissem ver TV, ler, ou não participar poderiam ficar na sala pequena. Senti as
pessoas muito surpresas com a minha “aparição” nunca tinham visto algo parecido.
Uma psicóloga conversando na sala de espera? Para quê? Ela quer me analisar? Será
que ela vai perceber como estou? Alguém para me
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dar atenção, para falar comigo? Que bom! Que medo! Essas foram algumas das frases
que ouvi, tempos depois, de alguns pacientes.
Mas, continuando, após me apresentar, refiro-me ao nome do instituto com a palavra
“Cancerologia” que visa desmistificar o estigma da doença, fazendo com que possamos
pronunciar câncer, assim como pronunciamos diabetes, hipertensão, gastrite,
reumatismo etc. com a mesma naturalidade. Além disso, o Instituto não trata apenas
pacientes de câncer, mas todos que pretendem fazer exames preventivos ou cirurgias de
tumores benignos e malignos. O caráter de esclarecimento alivia alguns medos advindos
do desconhecimento de um assunto, tabu conhecido até pouco tempo como “doença
ruim” e palavra jamais dita na frente de crianças. O medo do desconhecido diminui
quando se tem a informação necessária, portanto, dentre os assuntos de Sala de Espera
surgem temas tais como: por que o médico pede exames complementares, casos
cirúrgicos, anestesia, internação, pontos, drenos, indicação de quimioterapia, possíveis
efeitos colaterais da quimioterapia, tempo de aplicação, a palavra quimioterapia,
radioterapia, o que é mastectomia radical, parcial, de quadrante, cirurgia plástica de
reconstrução, próteses externas, perucas, beleza, estética, vaidade, cura, alta, metástases,
recidiva, avanços da medicina, atualidades em medicina diagnóstica, casos de cura etc.?
Os temas variam sempre de acordo com a demanda de cada Sala de Espera.
É possível se direcionar temas da Sala a partir da agenda médica que assinala se o
paciente vem para primeira consulta, se é retorno para trazer exames, se vai marcar
cirurgia, se vai fazer curativo pós- cirúrgico. Assim, já se tem um panorama de quem é
o paciente que vamos encontrar naquela Sala e os possíveis interesses, dúvidas e
esclarecimentos a serem dados.
A maioria dos pacientes vem acompanhados e, quando há demanda, é discutido o papel
da família no tratamento, os cuidados com o paciente e com o acompanhante. Os
esclarecimentos são dados em um clima descontraído, informal e natural, sem que
pareça uma
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aula, intercalando-se depoimentos espontâneos de pessoas que tenham vivido situações
citadas e que contam suas experiências.
Assim, podemos agrupar o caráter catártico com o de esclarecimento, em que os papéis
se invertem e se alternam, muitas vezes despertando uma compreensão do outro, uma
aproximação, troca de telefones, interesses mútuos, o que nos leva à lembrança da
categoria Amizade, encontrada também no Hospital das Clínicas.
A separação por categorias é meramente didática, pois elas ocorrem concomitantemente
e muitas vezes sem que se dê conta. Como ocorre na já citada categoria Tempo: o que se
observa é que, antes de se começar uma sessão de Sala de Espera, os pacientes estão
frequentemente se levantando e perguntando às secretárias se vai demorar.
Após iniciar a Sala de Espera, poucas pessoas levantam-se para saber sobre tempo de
espera, e ao serem chamadas, às vezes com muito atraso, dizem: “Já sou eu?” Outras
vezes chegam a não escutar seu nome ao serem chamadas, algumas pessoas chegam
mesmo a retornar à Sala de Espera após a consulta para ficar mais um pouco ou para
completar um depoimento com o resultado de sua consulta.
Um fato curioso é que, surpreendentemente, os pacientes que mais sofreram em número
de cirurgias, em mutilações, em perdas, são os que, com mais freqüência, dão apoio aos
pacientes fragilizados com a primeira consulta, ou com a primeira cirurgia. Pode-se
levantar a hipótese de que após o enfrentamento e inevitabilidade das situações por que
passou, não existe mais o medo do imaginário, mas a busca de soluções para-o
problema real. Então englobamos também o aspecto de Comparação entre os casos, que
também foi encontrado na experiência anterior. O paciente, ansioso com uma pequena
cirurgia, fica conformado ao ouvir um depoimento esperançoso de uma mastectomia
radical bilateral, ou quando vê um paciente chegar feliz exibindo o dreno pós-cirúrgico
na expectativa de deixar seu “cachorrinho” (assim chamamos carinhosamente O dreno)
com a enfermeira após o curativo. É inevitável a comparação, e a consequente
constatação de que “existem casos piores do que o meu, que não e tão grave”.
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No instituto, não foram gravados depoimentos, porém o conteúdo que foi ouvido em
Sala de Espera, nos corredores ou mesmo dito para os médicos, em nada difere do
primeiro estudo no Hospital das Clínicas. Informalmente, os depoimentos são ouvidos,
como esse dado a um médico:
“Doutor, o senhor deu o mesmo diagnóstico do outro médico, mas vou fazer a cirurgia
com o senhor, por dois motivos: gostei do senhor e gostei do trabalho na Sala de
Espera” (dito a um médico).
“Eu vim ontem trazer minha mãe para a quimioterapia e fiquei ouvindo o trabalho da
Sala de Espera, hoje trouxe minha mãe novamente para a quimio, mas também trouxe
minha avó e minha tia para participarem da Sala de Espera” (acompanhante de paciente
de quimioterapia na sala de espera).
“Vocês todos são maravilhosos, atenciosos, prestativos, preocupados conosco; mas o
convênio..., é por isso que estou bravo” (marido de paciente que retornou para resolver a
cirurgia de reconstrução de mama de sua esposa que o convênio não autorizou).
“Eu fiz cirurgia com o doutor..., e digo que você pode ficar tranquila porque está em
boas mãos” (paciente na Sala de Espera para outra paciente).
Ao que se refere à equipe médica, à Sala de Espera e ao atendimento, também temos
opiniões semelhantes às do primeiro estudo. Não há avaliação em relação à
continuidade da Sala de Espera, pois não se trata de um projeto experimental, como foi
no anterior; também não há exatamente uma “avaliação da sessão do dia”, pois não é
pedido como anteriormente, mas, mesmo assim, alguns pacientes avaliam como muito
positivo, onde aprenderam algo, e vêem como um diferencial do Instituto: “Não vi esse
trabalho em lugar nenhum! É muito bom!”
As mudanças de atitude são percebidas e assinaladas para os pacientes:

“Você percebeu que a tempos atrás você estava com medo e chorando aqui na Sala e
hoje, após a cirurgia, você está ensinando e encorajando as pessoas?” (feedback dado a
uma paciente na Sala de Espera)

“Ë que naquela época eu estava precisando receber; hoje, eu tenho para dar!” (resposta
da referida paciente)
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“Na primeira vez que eu estive aqui, só chorava... Hoje, estou muito ansiosa, nervosa,
mas não estou chorando! Quem sabe da próxima vez vou estar mais calma!”
Descrever essa experiência a empobrece muito, pois fica praticamente impossível
descrever o tom, o colorido, a emoção, o aroma, o sabor, por meio de palavras. Mas se
foi possível visualizar a cena anterior em uma sala de espera comum, dita normal, vou
ousar expor em palavras um pouco do que vivemos nessa Sala de Espera, digamos,
diferenciada.
No início, como já disse, havia surpresa, dúvida e desconfiança, tanto dos médicos e dos
funcionários como dos pacientes.
Hoje, vemos que apesar das dificuldades enfrentadas, é permitido sorrir, brincar, fazer
piadinhas, falar sério, chorar, compartilhar, estar VIVO apesar do câncer. Com certeza,
essa postura deixou o Instituto muito mais “barulhento” e leve, bem diferente da
conotação anterior da palavra câncer!
Mesmo antes da “sessão” de Sala de Espera, já se pode observar que os “veteranos”
assumiram uma nova postura, conversam com os “novatos”, perderam a vergonha de se
expor, de assumir o tratamento, a careca ou o “cachorrinho” Os pacientes que voltam
para o controle referem-se à “nossa revisão de quilometragem”.
O bom humor, a descontração e a retirada do “pré-conceito” são efeitos visíveis na Sala
de Espera.
Ter um câncer é diferente de Ser um câncer!
E ninguém É um câncer. Se o câncer é um aglomerado de células “malucas” que
perderam a sua função, o Todo, o Eu é maior que isso e pode vencer essas células.
Eu sou mais forte e melhor que essa parte minha que está doente; por que vou deixar
que o menor e mais fraco me vença?
Se eu preciso parar para fazer uma cirurgia e me restabelecer, eu paro, mas depois
continuo vivendo, trabalhando, amando, estudando, comendo, me divertindo, indo ao
cinema, viajando.
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Se eu tiver que fazer quimioterapia, eu vou, quando sair da aplicação vou me dar um
presente, fazer uma coisa bem gostosa. Se eu perder o cabelo, uso boné, peruca, lenço,
turbante, chapéu, assumo a careca como as atrizes; e não vou me envergonhar por estar
lutando pela minha vida; vergonha de quê?
Se enjoar, sei que vai passar, pois é só uma reação, e quando passar, vida normal!
Se eu tiver que fazer radioterapia, vou todos os dias, é rápido; depois tenho o dia todo, e
o fim de semana para viver a vida normalmente.

“Se despertas aquilo que está dentro de ti,

O que despertas te salvará.

Se não despertas o que está dentro de ti,

O que não despertas te destruirá.”

Jesus Cristo

No Que as Emoções Podem Afetar o Tratamento?


A relação mente—corpo também explica muitos efeitos terapêuticos da medicina
convencional e o sucesso das medicinas não-convencionais.
Se a pessoa acredita que vai ser curada por alguma coisa, como cogumelos, xamãs, u
por um placebo, ela realmente pode se autocurar, através da modulação do sistema
imunológico pela mente. Até mesmo o efeito pós-cirúrgico de uma operação complexa
e radical pode ser afetado, em última análise, pelas reações psíquicas do paciente, como
relata Dr. Bernie Siegel (1989).
No caso de uma situação crônica de distúrbio emocional ou psicológico, essa reação se
perpetua, causando numerosas disfunções e até danos orgânicos permanentes.
O médico e pesquisador canadense Hans Selye, em 1950, descobriu que existe uma
enorme ativação do eixo hipófise-adrenal. Estas
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glândulas secretam hormônios, que controlam muitas de nossas funções metabólicas e
fisiológicas internas, que vão desde o ciclo menstrual e a produção de espermatozoides,
até a reação à inflamação e a agentes bacterianos externos.
O sistema imunológico é profundamente alterado por alguns desses hormônios, como os
corticoesteróides.
As emoções negativas, depressão, mau humor e o estresse crônico têm a capacidade de
afetar nossa resistência às doenças, e as pessoas sujeitas a elas podem ficar doentes,
surgindo as enfermidades psicossomáticas, conforme explica Selye.
Um estudo recente sobre a atividade das células natural killer (importantes na
imunidade contra tumores) mostrou que os efeitos de programas que estimulam o bom
humor e o riso resultam no aumento da atividade desses componentes imunológicos e,
em contrapartida, os estados depressivos enfraqueciam esse aspecto da defesa orgânica
(Takahashi, 2001).
Berk e colaboradores (2001) também puderam estudar a modulação neuroimunológica
durante e depois de pacientes terem sido submetidos a programas associados ao bom
humor e ao riso. Puderam concluir que o riso e o bom humor podem ter efeitos
benéficos na saúde, recomendando esse tipo de terapia para melhora do bem-estar e
como coadjuvante ao tratamento médico formal.
Segundo pesquisas de Hassed (2001), o riso tem um importante papel na redução dos
hormônios envolvidos na fisiologia do stress, melhorando a intensidade e realçando a
criatividade das respostas, reduzindo a dor e, sobretudo, melhorando a imunidade e
reduzindo a pressão do sangue. As pessoas que sabem se divertir e rir são, geralmente,
mais saudáveis e mais capazes de sair de situações de stress com mais facilidade.
Atualmente, a psiconeuroimunologia tem estudado a relação entre o sistema
imunológico, que nos protege contra diversas instabilidades
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internas, e os distúrbios psíquicos. Já se sabe que o stress, a ansiedade crônica e a
depressão trazem profundas alterações em nossa capacidade de defesa imunológica e até
mesmo o câncer pode ser favorecido nas pessoas cronicamente deprimidas.

O hipotálamo, parte do cérebro estreitamente ligada ao comportamento emocional,


secreta vários hormônios liberadores, que atuam sobre a hipófise, ativando-a ou
inibindo-a.

Também existem fortes evidências de que o mecanismo genético das células é alterado
pela secreção aumentada do cortisol. A função dos genes é alterada, assim como a
síntese de proteínas, e a permeabilidade da membrana das células, podendo levar à
morte dos neurônios, se eles forem estimulados em excesso (excitotoxicidade).
Essas descobertas nos mostram que existe uma relação estreita entre mente e doença.
Quanto mais saudáveis formos, do ponto de vista emocional e psíquico, melhor será
para nossa saúde orgânica.
Os antigos já diziam que o bom humor afasta as doenças, “Quem canta seus males
espanta”, “Mens sana in corpore sano”, e isso é uma verdade, agora sabem os cientistas.
Se o sistema imunológico estiver saudável, reconhecerá as células defeituosas e as
destruirá, ou pelo menos as manterá encapsuladas, evitando a sua propagação. Se o
sistema não estiver saudável, as células imperfeitas continuarão a crescer.
E neste ponto interpõe-se a questão proposta pelos Simontons (1987):
“...o que impede que o sistema imunológico de uma pessoa, num determinado
momento, reconheça e destrua células anormais, permitindo, assim, que elas cresçam e
se convertam num tumor que ameaça a vida?”
Para respondê-la precisamos considerar os aspectos mentais e emocionais da saúde,
percebendo que a doença é um estado de desequilíbrio ou desarmonia gerado pelo stress
prolongado.
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Numerosos estudos sobre a causa do câncer sugerem que três situações podem provocar
tensões cruciais no ser humano e gerar sentimentos de desespero, desesperança ou
impotência. São eles a ameaça a algum papel da pessoa na sociedade, a ameaça a
alguma relação satisfatória central da sua identidade e uma sucessão de momentos nos
quais aparentemente não há saídas ou meios de superação.
O modelo psicossomático de câncer, estudado pelo casal Simonton e outros
investigadores, demonstra que o stress emocional inibe o sistema imunológico e ao
mesmo tempo acarreta desequilíbrios hormonais, provocando a produção de células
imperfeitas e malignas. E isso começa a ocorrer de 6 a 18 meses antes do diagnóstico do
câncer!
Assim, reconhecendo e compreendendo o contexto mais amplo das tensões, podemos
inverter o processo. De início, identificando as principais tensões que ocorreram em
nossa vida, de 6 a 18 meses atrás, sem sentimentos de culpa ou de recriminações, mas
criando uma base tranquila certa para inversão dos processos psicossomáticos que
levam à doença.
Simultaneamente, devemos desenvolver uma atitude positiva de esperança e
expectativa, sabendo que esses sentimentos influenciam nos processos biológicos
restauradores do equilíbrio e revitalizadores do sistema imunológico. Com esta
abordagem psicológica, a terapia física ou convencional toma outros rumos, fazendo
decrescer notavelmente o número de células cancerosas e fortalecendo o sistema
imunológico, com grandes e surpreendentes possibilidades de cura.
Conclusão
O espaço Sala de Espera não tem o intuito de curar o paciente, substituir a psicoterapia,
nem de se aprofundar em questões individuais, mas é fundamental no sentido de dar um
acolhimento geral, suporte, esclarecimento, amenizar a ansiedade, a depressão, o medo.
E aliviar a espera.
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Por outro lado, desenvolve naturalmente uma atitude positiva de esperança e
expectativa, já que esses sentimentos influenciam nos processos biológicos
restauradores do equilíbrio e revitalizadores do sistema imunológico. Então, podemos
dizer que:
“O tratamento se inicia na Sala de Espera”!
“Tenho a convicção de que, quando a fisiologia

estiver suficientemente desenvolvida,

o poeta, o filósofo e o fisiologista

se entenderão mutuamente.”

Claude Bernard
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Capítulo 4
A Dor no Estágio Avançado das Doenças
Maria Margarida M.J.de Carvalho — Magui
Introdução
Os estágios avançados das doenças frequentemente envolvem muitas dores. Nos casos
de câncer, por exemplo, as pesquisas revelam entre 60% e 90% de pacientes com dor
intensa. Os tratamentos médicos podem minorar ou até mesmo eliminar a maioria das
dores físicas. Mas a medicina pode auxiliar na dor da perda da saúde, da perda da vida,
na dor de morrer?
Nós nos deparamos no contato com os doentes gravemente enfermos, com dores muito
mais complexas e profundas, existenciais, que se referem ao significado da vida e da
morte. Saunders (1991) fala da dor total referindo-se às diversas dimensões da dor:
física, emocional, social, financeira, interpessoal, familiar e espiritual. Nos doentes
terminais é a dor total que encontramos e é da dor total que precisamos cuidar. No
momento do “não há mais nada a fazer para curar”, surge a necessidade de cuidar desses
pacientes, na sua condição humana.
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Esta é uma necessidade crescente na vida atual, em que a evolução dos recursos
médicos possibilita o prolongamento da vida, mesmo sem a possibilidade da remissão
da doença. Esses pacientes podem sobreviver por muito tempo na condição de
terminalidade.
Deve a vida ser prolongada ou encurtada por meio de recursos técnico-científicos? O
paciente pode decidir sobre medidas para o prolongamento ou o encurtamento da vida,
evitando dores e sofrimento? A família tem esse direito? Os médicos? Todas estas e
muitas outras questões relativas ao processo de morrer e as dores do morrer são
atualmente os temas da Bioética, que é o estudo das dimensões morais das ciências da
vida. Segundo Pessini (1997) devemos cuidar para que a vida e a morte aconteçam com
dignidade e que a competência técnico-científica caminhe junto ao humanismo. O
compromisso com a qualidade da morte de cada paciente é hoje a preocupação dos
profissionais de saúde, no atendimento aos pacientes fora de possibilidade de cura.
O cuidar desses pacientes exige uma equipe especializada em dor total, uma equipe
multidisciplinar, envolvendo médicos, enfermagem, psicólogos, assistentes sociais,
amparo espiritual. Esses cuidados são oferecidos dentro do que é hoje denominado
cuidados paliativos. Esta é uma área, segundo Kovács (1999), de
abordagem multidimensional que promove o alívio e controle de sintomas
incapacitantes, relacionados com certas doenças e seus tratamentos e tem como objetivo
a promoção de qualidade de vida. Não existe uma proposta de prolongar a vida a todo
custo e, sim, favorecer todo e qualquer tratamento que promova qualidade de vida e
alívio de sofrimento até o momento da morte (p. 329).
Para que estes objetivos sejam alcançados, o atendimento à dor total vem como
necessidade básica.
Assim, no estágio avançado das doenças ou fase terminal de vida, qualquer dor
presente, seja física, psicológica ou espiritual, pode e
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deve ser controlada e, se possível, abolida, visando a um morrer sem sofrimento, um
morrer tranquilo e em paz.
Segundo Keleman (1997), existem pequenas mortes e a grande morte e o morrer não
precisa ser amedrontador nem doloroso. Vivemos pequenas mortes no dia-a-dia das
nossas vidas, quando terminamos fases e iniciamos outras, quando rompemos
relacionamentos, quando terminamos trabalhos, quando um dia acaba e começa a noite.
E cada pequena morte nos ensina um pouco sobre a grande morte, o final desta vida.
Podemos, portanto, aprender a morrer, podemos não morrer como mártires ou vítimas,
mas como seres humanos conscientes do processo natural do viver e do morrer.
Sobre a Dor
Antes de focalizarmos a dor total, ainda enfocamos apenas a dor física, já encontramos
componentes subjetivos. A dor é pessoal, intransferível e ninguém sabe realmente como
é a dor do outro, quanta dor ele sente/Ao percebermos a própria dor, somos
influenciados por nossas histórias de vida, a forma como as dores foram tratadas na
nossa infância, pelos nossos cuidadores. O grupo sociocultural e étnico a que
pertencemos, o qual tem diferentes padrões de reação à dor, dá forma à nossa dor,
matizando suas nuances. Por exemplo, italianos, segundo pesquisadores, apresentam
uma reação maior à dor do que anglo-saxões; filhos de mães que valorizavam as dores
na infância tendem a dar muita importância à dor, possivelmente aumentando sua
potência pela focalização excessiva (Carvalho, 1999).
Erickson (1992) escreveu:
A dor é um complexo, um constructo, composto de dores lembradas, a experiência da
dor presente e a antecipação da dor no futuro. A dor imediata é aumentada pela dor
passada e pelas possibilidades futuras de dor (p. 96).
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Na própria definição de dor, formulada pela Sociedade Internacional para o Estudo da
Dor (1979), encontramos que a dor é uma experiência sensorial e emocional
desagradável, descrita em termos de lesões teciduais reais ou potenciais. A dor é sempre
subjetiva e cada indivíduo aprende a utilizar este termo por meio de suas experiências
traumáticas.
Em resumo, cada dor é a dor de uma pessoa, com sua história, sua etnia, personalidade
contexto, momento. A mesma dor, em diferentes situações, pode nem ser percebida ou
ser muito forte, em decorrência da distração ou atenção oferecidas a ela. Para tratá-la,
portanto, é necessária a compreensão da complexidade e da realidade de todas as dores
para quem a sente (Carvalho, 1994).
Ainda citando Erickson (1992), a dor pode estar servindo certos objetivos úteis para a
pessoa. Ela é um aviso persistente da necessidade de ajuda. Traz restrições físicas à
atividade, mas frequentemente beneficia o sofredor. Portanto, a dor não é apenas uma
sensação indesejável a ser abolida, mas uma experiência a ser cuidada de forma que o
sofre- dor obtenha benefícios.
Fica evidente no estudo da dor não só a sua complexidade, mas também os possíveis
significados dados a ela, as possíveis necessidades que estão sendo atendidas, os
objetivos subjacentes. Em nossa prática clínica, por exemplo, atendemos uma mulher
que conseguiu atenção e afeto da sua família antes distante, quando apresentou um caso
de dor oncológica. Os médicos receitaram analgésicos potentes, mas ela não os ingeria,
alegando problema no estômago. Na verdade, ela temia perder o aconchego familiar,
recém-adquirido graças à dor. A obtenção do afeto sem a necessidade da dor foi o
objetivo da nossa ajuda. Este é um dos inúmeros casos de dor, em que o sofre- dor é que
precisa de cuidados e não a dor.
Várias linhas teóricas focalizaram a dor, cada uma trazendo contribuições valiosas para
a área: psicanálise terapia comportamental,
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terapia cognitiva, hipnose e hipnoterapia, entre outras. A psicanálise, levantando a
possibilidade de forças inconscientes estarem agindo sobre a dor ou mesmo provocando
a dor, abriu o caminho para a psicologia entrar na equipe que cuida da dor. As linhas
desenvolvidas posteriormente focalizaram outros aspectos e trouxeram novas
abordagens. Segundo inúmeras pesquisas, a hipnoterapia, que é a utilização de estados
hipnóticos dentro de um processo de psicoterapia, é a melhor modalidade de alívio da
dor. Técnicas cognitivas vêm sendo cada vez mais utilizadas a partir da visão da dor
como uma experiência multidimensional, com componentes sensoriais, afetivos,
cognitivos e comportamentais. A urgência do alívio da dor aguda e da atenuação do
sofrimento e depressão na dor crônica tem levado ao desenvolvimento de recursos
psicológicos imediatos e eficazes, programas psicoeducacionais aplicados ao paciente e
à família e psicoterapias breves focadas na dor total.
Uma das maiores dificuldades no cuidar da dor é sua avaliação. Segundo Mattos
Pimenta (1999), esta vai abranger a lesão tecidual, o substrato emocional, cultural e
ambiental das reações da dor, permitindo a compreensão da origem e da magnitude da
dor. Os métodos para a avaliação são basicamente inferenciais, baseados no auto-relato
do paciente, mas também no conhecimento do caso clínico (história da doença, exames
físicos e laboratoriais) e técnicas para a aferição das características da dor e da sua
repercussão nas atividades cotidianas (funcionamento biológico e psicossocial).
Para facilitar a comunicação da dor e a avaliação da sua intensidade, foram criadas
escalas que propiciam, ao paciente e ao profissional de saúde, uma aferição aproximada
da sua grandeza. A escala mais utilizada é a que utiliza números de O a 10, sendo que O
representa ausência de dor, com posições intermediárias, e 10, o máximo de dor. O
paciente faz uma autoavaliação utilizando um número para expressar a sua dor.
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Dor Total
O conceito de dor total foi elaborado por Cicely Saunders, na década de 1960, na
Inglaterra. De formação multiprofissional — enfermeira, médica e assistente social —,
Cicely Saunders dedicou sua vida aos doentes fora de possibilidade de cura. Para ela,
quando não era mais possível curar, era possível cuidar. E com o objetivo de permitir
que o paciente e sua família pudessem viver tão plena e dignamente quanto possível a
doença, a morte e o luto, fundou o Hospice São Cristóvão, santo padroeiro dos
viajantes, em 1967.
A palavra hospice significa abrigo, albergue. Sua origem vem da Idade Média, quando,
nas longas peregrinações aos lugares santos, os viajantes aí encontravam hospedagem,
alívio e apoio para os seus males. Cansados e doentes, os viajantes muitas vezes
morriam nos hospices, terminando sua árdua caminhada nesses albergues.
Inspirada no conceito dos antigos albergues, Saunders criou um hospice que visa cuidar
dos pacientes com uma equipe multiprofissional, composta por médicos, enfermeiros,
psicólogos, assistentes sociais, religiosos, voluntários e outros profissionais quando
necessários. Seus pacientes eram os considerados irrecuperáveis pela medicina, ou seja,
aqueles nos quais a doença era progressiva e nenhum tratamento poderia alterar o seu
curso. Nesse processo de evolução da enfermidade, os cuidados nos hospices visavam
manter o paciente livre de dor e sofrimento; oferecer informações e controle das
decisões ao paciente; ouvi-lo e acolhê-lo como ser humano, com suas dificuldades,
medos, esperanças, crenças, valores; e ter a possibilidade de morrer onde o paciente
escolhesse.
No cuidar da dor, Cicely Saunders percebeu a presença de um estado complexo de
sentimentos dolorosos no paciente terminal, denominando este estado dor total. Seus
componentes são: dor física (sensação de dor associada a lesões reais); dor psíquica
(medos do sofrimento, da morte, do desconhecido, tristeza, raiva, revolta, perdas,
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insegurança, incerteza, desespero, depressão); dor social (isolamento, rejeição,
abandono, mudança de papéis, dependência, inutilidade); dor espiritual (falta de sentido
na vida e na morte, medo do pós- morte, do submeter-se, das culpas perante Deus, busca
de fé, de conforto espiritual).
Posteriormente, Cicely Saunders acrescentou novas dimensões da dor: dor financeira
(perdas, dificuldades); interpessoal (isolamento, estigma); familiar (mudança de papéis,
perda de controle, perda de autonomia, abandono).
Elias e Giglio (2002) propõem uma classificação para a dor do paciente em estado
avançado da doença, a qual denominaram dor simbólica da morte. Esta engloba a dor
psíquica e a dor espiritual. Na dor psíquica estariam o medo do sofrimento e o humor
depressivo representado por tristezas, angústias e culpas ante perdas; na dor espiritual, o
medo da morte e do pós-morte e culpas perante Deus.
Atendimento Domiciliar
O atendimento da dor total nos cuidados paliativos pode ocorrer nos hospitais, nos
hospices e no atendimento paliativo domiciliar. Este é considerado a melhor forma de
atendimento, quando a família tem condições de cuidar do paciente com o auxílio da
equipe especializada do hospital ou do hospice. O doente prefere sua casa, sua cama, a
presença da família, do calor humano e do afeto, em seus últimos momentos de vida. A
presença regular da equipe de cuidados paliativos é fundamental na manutenção da
qualidade de vida do paciente, que deve ser monitorado nas suas dores, no seu conforto,
seu sofrimento.
É importante ressaltar o treinamento específico dessa equipe. Ela é composta por
profissionais capacitados para escutar atentamente o paciente e procurar responder a
todas as suas perguntas; captar e identificar os problemas do paciente e sua família, no
que concerne
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à doença, e oferecer soluções, segurança, apoio, conforto; individualizar as queixas e
reconhecer sinais de emergência; examinar as dores expressas por diferentes formas e
com diversos significados; considerar que as metas de trabalho são curtas e que a
intenção não é prolongar a vida, mas, sim, não prolongar a morte.
Mais especificamente, a equipe especializada de cuidados paliativos vai atender às
seguintes necessidades: efeitos secundários dos remédios (náuseas, vômitos); sintomas
do aparelho digestivo (halitose, estomatite, anorexia, constipação); sintomas
respiratórios (tosse, dispnéia, ronco pré-morte); lesões cutâneas (descamação,
maceração, dermatites); úlcera de decúbito; alterações psíquicas (ansiedade, depressão,
medo); necessidades espirituais; dor total.
A atitude de cada membro da equipe diante do doente é de respeito por um ser humano
que, embora próximo da morte, está vivo e quer ser tratado com dignidade; quer ser
reconhecido na sua personalidade, seus valores, sua visão da vida e da morte, suas
crenças. Cumprimentá-lo chamando-o pelo nome, dar a mão (se possível, nas
circunstâncias específicas), olhá-lo nos olhos, sentar a seu lado, tocá-lo (pedindo
licença) são posturas de compaixão, humanidade e respeito. E sempre na conversa
mantida com o enfermo, preservar a sua esperança.
Entretanto, nos momentos em que a equipe de cuidados paliativos domiciliares ‘não
estiver presente, deverá haver um cuidador na casa, que poderá ser um membro da
família. A tarefa de cuidar de um parente em sua fase terminal de vida é difícil e requer
grande disponibilidade. Pode ser que a pessoa a ser cuidada necessite de cuidados
físicos, como ser banhada, vestida, alimentada. Ou que os aspectos psicológicos é que
necessitem de amparo — os medos, a depressão, o desespero. Ou que todas essas
dificuldades ocorram entrelaçadas. Pode estar presente também uma forte agressividade,
envolvendo a doença, a família, os médicos, Deus. E a revolta e o ódio aumentam
significativamente a dor total.
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O desgaste físico e emocional no cuidado ao doente, acrescido da dor da perda iminente,
pela realidade da morte próxima, sacrificam o cuidador. Este pode chegar a um grave
quadro de estresse. É preciso, portanto, que este cuidador tenha consciência desta
possibilidade e busque auxílio, seja em outros familiares ou amigos, seja uma ajuda
profissional de um médico ou um psicólogo.
Outro fator complicador reside na faixa etária do cuidador. Se este é muito jovem, seus
sentimentos são de desamparo, frustração, tristeza e revolta. Sua vida fica interrompida
— muitas vezes seus estudos, sua vida social e seu lazer precisam ser abandonados. Sua
revolta pode gerar culpa, e o quadro psíquico complicar-se cada vez mais. Se é um
adulto, sua vida profissional frequentemente entra em crise, pela dificuldade de dividir o
tempo entre o cuidado com o doente e as tarefas e o horário do trabalho. Sua vida
pessoal fica também afetada e seus sentimentos são, frequentemente, ambivalentes.
Irritabilidade, preocupação, momentos de raiva e tristeza caracterizam o seu
comportamento. O cuidador idoso tem suas próprias deficiências — suas doenças, suas
limitações físicas, suas próprias dores. Sua tendência é deprimir-se no sentir a realidade
das mortes, do doente e a sua própria, também próxima, nos seus últimos anos de vida.
E todos esses cuidadores, em todas as idades, além das dificuldades objetivas, estão
enfrentando o sentimento de perda do familiar enfermo. Os aspectos subjetivos
presentes — emocionais, morais, espirituais — geram uma vasta gama de sentimentos
difíceis, desgastantes, complexos, doloridos.
A presença da morte traz sempre à tona a certeza da própria morte. Os medos do
paciente podem tornar-se os medos do cuidador. Neste momento, a grande ajuda vem da
espiritualidade. Não necessariamente na religiosidade, mas no sentido de
transcendência, de imortalidade da alma, do espírito que permanece vivo. A morte digna
e consciente é facilitada pela noção de passagem de uma forma de vida à outra.
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Um exemplo muito significativo de permanência de vida, sem religiosidade, foi o de um
paciente de 36 anos, ateu, engenheiro, que estava morrendo de câncer. Conversando
sobre a morte e pós-morte, ele dizia que para ele a morte era o fim da vida e que seu
corpo viraria material de adubo. Sugerimos que os adubos são ótimos fertilizantes e que
sobre o seu túmulo poderia crescer um jardim. Surpreendido e encantado com a ideia,
ele começou a projetar um jardim com suas flores favoritas. E utilizando seus
conhecimentos de paisagismo e botânica, ele passou suas últimas sessões, até morrer,
criando um jardim colorido, estético, planejado, belíssimo. Sua morte foi tranquila e
sem dor — apenas uma chama de vida se apagando. Mas a vida, na sua grandeza,
permanecendo através das flores plantadas por ele, na realidade da sua imaginação.
Segundo Gimenes (2003), para que uma pessoa possa vivenciar e aceitar a morte sem
medo é necessário que haja a manutenção de um vínculo entre a sua alma e o Eu
Superior, no momento da morte do corpo físico. E a crença de que a vida é contínua e
eterna.
O psicólogo da equipe de cuidados paliativos que efetua atendimento domiciliar ao
paciente com dor define uma estratégia de atuação, levando em conta seus pressupostos
teóricos, as condições do paciente e da família. No atendimento domiciliar, o psicólogo
vai atender todas as “dores” daquela casa, muitas vezes encontrando dores maiores na
família do que no próprio paciente. Roth (2002) diferencia, no processo da enfermidade,
o estar doente e o sentir-se doente,
/pois a doença vivida pelo paciente é impregnada pelo significado que ele atribui a ela,
pelas perdas que sofreu em decorrência da doença, pelo impedimento de retornar às
atividades anteriores, pelo futuro interrompido e suspenso, pela autoimagem e
autoestima alteradas (p. 141).
O paciente na fase de cuidados paliativos pode estar no estágio de aceitação do final da
vida e aproximação da morte, estágio este denominado “a entrega” por Gimenes (2001).
Nesta fase, o paciente
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sabe que vai morrer e aceita em paz esta realidade. A família, entretanto, pode estar
ainda revoltada, culpada por possíveis omissões ou erros de conduta, triste,
desamparada, perdedora.
O atendimento domiciliar à dor total, portanto, requer uma atenção à família e um
conhecimento do trabalho com esta. O estar na casa do paciente traz à tona a
necessidade de informações sobre terapia familiar e aspectos específicos de terapia
domiciliar. O terapeuta vai atender necessariamente a várias situações que estarão
ocorrendo naquela casa, de inter-relacionamentos, influências, conflitos. Ele não estará
atendendo apenas a um caso de dor, mas a dor de uma pessoa em seu contexto familiar.
Quem é essa pessoa nessa casa: um filho? Uma mãe? Uma avó velhinha? Qual seu
papel, sua importância na estrutura familiar? E como o psicólogo será recebido nessa
estrutura: um apoio? Um intruso?
O psicólogo está diante de um paciente e uma família interagindo no sofrimento de
estarem tendo perdas — a família perdendo um de seus membros, o paciente perdendo a
vida. O reconhecimento da problemática e das necessidades especiais de cada um é
fundamental na atuação do terapeuta, tanto no auxílio psicológico às dores físicas como
nas dores psíquicas. Nas dores físicas as meditações podem ter falhado, seja porque o
médico subestimou a dor ou falhou na administração dos analgésicos. Ou mesmo
porque o paciente e a família não aderiram ao tratamento medicamentoso por valores,
crenças, medos, desinformação, problemas econômicos. E dentro deste quadro com
tantas possíveis variáveis, o psicólogo vai buscar atender à dor total, visando a uma boa
qualidade de vida ao paciente fora de possibilidades terapêuticas de cura.
O sentimento de perda de todos os implicados leva a um estado de luto antecipatório
(Fonseca, 2001), estado esse que requer também uma atenção especial do terapeuta.
Segundo Bromberg (1998),
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sabe-se que o processo de luto não começa com a morte e sim com as relações
existentes antes da morte, que serão o determinante crucial na qualidade do processo de
luto. As vicissitudes da terminalidade colocam a unidade de cuidados (paciente e
família) diante de decisões, lembranças, revivências, que poderão trazer aspectos
dificultadores ao processo em si, merecendo, portanto, atenção por parte dos
profissionais envolvidos (p. 188).
As dores do luto acabam por se confundir com as dores físicas e todas elas interagem no
processo de sofrimento.
Este quadro acaba muitas vezes levando a um desejo de acabar com a própria vida, com
um suicídio (Carvalho, 1996). O psicólogo que atende ao paciente manifestando este
desejo deve estar preparado para interpretar o seu apelo. Na maioria das vezes, a ideia
de suicídio é um pedido de ajuda, de socorro, de alívio do sofrimento da dor total. E este
pedido pode ser revertido com o atendimento às suas necessidades. Segundo Viorst
(1990), nos “casos terminais há um interesse crescente na ideia de suicídio” O desejo de
não sofrer, de manter o controle, de ser lembrado pelas pessoas que amam como eram
antes, tudo isso motiva algumas pessoas a escolher a hora da própria morte... Mas,
acrescenta a autora,
certamente há pessoas que jamais escolheriam o suicídio, que recebem a morte de
braços abertos, pessoas para quem a morte é a libertação, o alívio’, o resgate, o fim
desejado (p. 323).
E estes aguardam a morte em paz.
Assim, quando atendemos a dor total de um paciente em seus momentos finais de vida,
temos de estar preparados para enfrentar a dor da morte ou a aceitação da morte, mas
sempre enfrentar a dor da perda da vida. Esta vida acaba e este sentimento de finitude
causa grande dor ao homem. Neste momento, o homem espiritualizado atravessa o
portal da morte com uma visão de imortalidade da sua alma, o que proporciona uma
morte com menos dor.
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Cuidando do Cuidador
Todos os cuidadores, profissionais de saúde ou familiares, sofrem um grande desgaste
ao cuidar de pacientes no estágio avançado das doenças. Desgaste físico e emocional,
por estarem acompanhando um processo de doença evolutiva e a triste realidade da
morte estar próxima; pelo sofrimento do enfermo no despedir-se das pessoas queridas e
na despedida da própria vida. E por acompanhar um dia-a-dia, muitas vezes dolorido e
penoso, no caminho da morte.
O cuidador sofre pela sua impotência na impossibilidade de reverter o processo, pela
sua perda no acompanhar alguém que vai embora, pelas culpas por alguma omissão ou
engano no tratamento e tantas outras dificuldades presentes nos cuidados paliativos. É
difícil cuidar sem poder curar!
A medicina moderna possui recursos científicos e tecnológicos de alta precisão, mas os
cuidadores são seres humanos, nas suas falhas e na sua grandeza. Seres humanos com
necessidades e limites, medos e frustrações. E com capacidade de dedicação, amor e
doação. A dor e o luto do cuidador não podem ser negligenciados por ele. Nem os
familiares, nem os profissionais de saúde estão isentos de sofrer no compartilhar o
sofrimento de um paciente na fase final de vida.
Lederberg (1990) escreve sopre o estresse dos profissionais de saúde e da necessidade
do estudo da psicologia do cuidador. Escreve sobre a importância do seu preparo, da sua
formação, nos cuidados paliativos. Ela relata que, frequentemente, os sentimentos
iniciais de tristeza, pena, frustração e impotência podem se tornar irritação, repugnância
e raiva. Esses sentimentos passam a ser desconfortáveis e inoportunos, causando um
grande mal-estar no cuidador, que não sabe o que fazer para não senti-los. A saúde
mental do cuidador corre risco, se ele não cuidar de si, cuidando de seu físico, seu
psíquico e seu espírito. Acompanhar procedimentos médicos penosos, desfiguramentos
físicos
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causados por tumores, queimaduras ou outras enfermidades, lidar com mau cheiro,
excrementos, pus e sangue, lidar com ideações suicidas, enfim, com toda uma gama de
situações objetivas e subjetivas adversas e aversivas são tarefas árduas.
Lederberg (1990), ainda, organiza em três áreas as grandes problemáticas enfrentadas
pelos profissionais de saúde que acompanham a terminalidade: questões sobre a morte e
o morrer, burnout e questões bioéticas. A ansiedade e a angústia despertadas no
profissional de saúde diante da morte podem ser trabalhadas e aliviadas por uma
compreensão pessoal e aceitação da própria morte, por uma filosofia de vida e
espiritualidade, por um preparo específico no enfrentamento da morte. Kubler-Ross
(1981) foi uma das pioneiras no estudo das fases pelas quais o paciente passa no
processo de morrer: revolta, negação, depressão, negociação e aceitação. Essas fases,
que podem ocorrer em sequência ou não, todas elas ou apenas uma, na qual o doente se
fixa, também podem ser sentidas pelo cuidador. O psicólogo da equipe, que tem por
função ser um facilitador da aceitação do processo de morrer e da morte, para que o
doente possa evoluir no sentido de um morrer tranquilo, não está livre da sua dor ante a
dor do paciente.
O burnout, que significa “queimado, destruído, esgotado”, foi o termo criado para
descrever o desgaste físico e psíquico, em especial, dos profissionais de saúde, pela
proximidade com o sofrimento, pelo alto nível de exigências profissionais, fadiga,
esforço, tensão constantes. O resultado de uma situação de burnout é, frequentemente,
uma apatia, um desinteresse pelo trabalho, muitas vezes chegando ao cinismo e à
inflexibilidade, prejudicando seu desempenho profissional e sua vida pessoal.
Problemas psicossomáticos podem ocorrer, gerando maior dificuldade na execução de
suas tarefas. O esgotamento do profissional de saúde o leva, com freqüência, ao
abandono da profissão, caso não haja um auxílio na compreensão e no tratamento do
seu estresse. Um processo psicoterápico, ajudando a encontrar uma melhor forma de
Página 99
enfrentamento e uma melhor qualidade de vida no desempenho de suas funções é,
nesses casos, um suporte valioso.
Bioética é o neologismo derivado das palavras gregas bio (vida) e ethike (ética),
segundo a Enciclopédia de Bioética (1995). É definida como sendo o estudo sistemático
das dimensões morais — incluindo visão, decisão, conduta e normas morais — das
ciências da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias
éticas, em um contexto interdisciplinar. Segundo Pessini (1997/2001), as áreas de
atuação da Bioética são as do relacionamento profissional-paciente, saúde pública,
questões sociopolíticas na saúde, morte e morrer, fertilidade e reprodução humana,
doação e transplante de órgãos, pesquisa biomédica, códigos de ética, eutanásia,
suicídio assistido, distanásia, entre outros tópicos.
As questões biônticas se tornaram de especial relevo ante as situações criadas pelo
desenvolvimento da medicina nas últimas décadas. As possibilidades de manutenção
artificial de vida nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI), as decisões de
prolongamento ou não da vida após a morte encefálica, as decisões de interrupção do
tratamento, a preocupação com a qualidade de vida e com a dignidade na morte, com o
alívio e o controle da dor total são questões de difícil solução e de suma importância
para cada paciente.
Holland (1990) dá ênfase aos problemas de comunicação do diagnóstico e do
prognóstico como fortes fatores de estresse para o profissional de saúde. O médico
dando a informação de que a cura não é mais possível, o psicólogo dando suporte para o
desespero e a desesperança são situações geradoras de angústia e dor. No atendimento
ao paciente no final da vida, essas questões estão necessariamente presentes. Mas
quando bem enfrentadas pelo profissional de saúde, levando o paciente a viver e a
morrer com dignidade e paz, sem sofrimento e dor, são extremamente gratificantes para
o cuidador.
Nós, psicólogos, temos, portanto, como responsabilidade no atendimento à dor total do
paciente, no final da vida: trabalhar com informações,
Página 100
crenças e valores, do paciente, da família e da equipe de saúde que os atende; utilizar e
desenvolver estratégias e técnicas psicológicas de manejo e alívio da dor total; avaliar a
dor, englobando a dor fisica, psíquica, social e espiritual; minorar a ansiedade, o medo,
a depressão, as perdas, a incapacitação, o descontrole e tantos outros fatores presentes;
atender às dores dos entes queridos. E atender às próprias dores.
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integrativa para equipe, pacientes e famílias. In: CARVALHO, M. M. M. J. (org.).
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_____________ Resgatando o viver. São Paulo: Summus Editorial, 1998.
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Vida e morte: laços da existência. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1996.
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VIORST, J. Perdas necessárias. São Paulo: Melhoramentos, 1986.
Página 102 Em branco
Página 103
Capítulo 5

Tratamento Cognitivo-Comportamental do Alcoolismo


Gildo Angelottí
As ideias centrais deste capítulo serão abordadas por meio da conceituação de
alcoolismo, etiologia, epidemiologia, as políticas que envolvem o uso e abuso do álcool,
bem como o tratamento cognitivo-comportamental do alcoolismo. Com base em estudos
cientificamente comprovados pela literatura nacional e internacional especializada, o
leitor poderá desfrutar deste texto mediante dados recentes que abarcam desde a história
natural até as formas de tratamento mais atuais, no que diz respeito à compreensão
biopsicossocial da dependência química.
Conceituação do Alcoolismo
O alcoolismo é classificado pela medicina como um estado patológico, resultante do
abuso do álcool. Já o alcoólatra é considerado uma pessoa adicta em bebidas alcoólicas,
mas que tem como premissa idolatrá-la, enquanto o alcoolista é a pessoa que sofre de
alcoolismo.
Página 104
Pithecantropus erectus há 250 mil anos havia se encantado com o sabor da bebida
alcoólica, com a ingestão de sucos de frutas maduras, que, ao caírem no solo, eram
fermentadas pela exposição ao calor proporcionado pelas luzes solares. Tal reação se
dava pela presença do açúcar da fruta e da água, sendo fermentada pelo calor.
Em registros históricos, as bebidas fermentadas tiveram sua origem na Índia,
coincidindo com o esplendor da cultura asiática, alastrando-se para o Oriente Médio, a
Grécia e o Egito. Difundiu-se por meio da civilização mediterrânea e chegou ao Império
Romano, sendo considerada uma bebida euforística. No início, limitava-se ao uso
doméstico, mas, por exigências comerciais, passou a ser negociada em forma de trocas.
A notícia que se tem da primeira bebida alcoólica produzida pelo homem e em grande
escala foi da cerveja, derivada da cultura do arroz na Índia ou da cevada cultivada no
Egito. Na Babilônia, a cerveja era utilizada seis mil anos a.C. em cerimoniais religiosos
e, posteriormente, como uma das mais importantes indústrias locais.
No Brasil, antes da chegada da expedição portuguesa, a bebida fermentada era utilizada
pelos povos indígenas, extraída da mandioca cozida ou do suco de frutos, como o caju e
o milho, que eram mastigados, misturados e colocados para ferver em vasilhas de
cerâmica e, logo após, enterrados por alguns dias para fermentar. A bebida era
conhecida como cauim. Com a colonização portuguesa, foram instalados os primeiros
engenhos de cana-de-açúcar, para a produção de açúcar e da aguardente, em regiões do
Nordeste, Rio de Janeiro e São Paulo, oferecendo a oportunidade aos índios e escravos
negros de se embriagarem.
O alcoolismo passou a ser considerado como uma doença crônica por Magnus Huss, em
1849, em sua obra Alcoolismo Crônico, descrita em termos da desorganização de
estruturas e funções orgânicas, que não é muito diferente do que se sabe hoje em dia
(Bertolote, 1997).
Página 105
Atualmente, os critérios mais utilizados para caracterizar os indivíduos que ingerem
bebidas alcoólicas e se utilizam dela em razão de uma necessidade física ou mental são
descritos topograficamente no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM-IV, 1994, p. 190), sendo a dependência fisiológica de álcool indicada por
evidências de tolerância ou sintomas de abstinência, caracterizada pelo desenvolvimento
dos seus sintomas, mais ou menos 12 horas após a redução do consumo pesado e
prolongado. Por ser considerada intensa e desagradável, apesar das consequências
adversas, os dependentes se utilizam do álcool para aliviar as crises de abstinência, e
apenas 5% dos dependentes conseguem experimentar complicações severas da
abstinência, tais como delirium ou convulsões. Apesar das evidências de consequências
psicológicas e físicas, como depressão, apagamentos, hepatite ou outras sequelas, é
dedicado um tempo substancial ao (ab)uso de bebidas alcoólicas.
Indivíduos que abusam de álcool apresentam inicialmente um baixo desempenho
escolar e/ou ocupacional, negligenciam os cuidados com os filhos ou afazeres
domésticos, prejudicam os relacionamentos sociais e podem sofrer danos significativos
a sua integridade como cidadão e prejudicar pessoas relacionadas ou não ao seu
ambiente (p. ex.: dirigir embriagado, abuso dos filhos e detenções por comportamento
intoxicado).
Critérios Diagnósticos para Intoxicação com Álcool
A. Ingestão recente de álcool.
B. Alterações comportamentais ou psicológicas clinicamente significativas e mal
adaptativas (p. ex., comportamento sexual ou agressivo inadequado, instabilidade de
humor, prejuízo no julgamento, prejuízo no funcionamento social ou ocupacional)
desenvolvidas durante ou logo após a ingestão de álcool.
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C. Um ou mais dos seguintes sinais, desenvolvendo-se durante ou logo após o uso de
álcool:
(1) fala arrastada

(2) falta de coordenação

(3) marcha instável

(4) nistagmo

(5) prejuízo na atenção ou memória

(6) estupor ou coma

D. Os sintomas não se devem a uma condição médica geral nem são melhor explicados
por outro transtorno mental.
Já os dependentes que experimentam a abstinência de álcool sofrem quando as
concentrações sanguíneas de álcool declinam de forma abrupta (4-12 horas) após a
cessação ou redução. Entretanto, alguns alcoolistas podem desenvolver períodos mais
longos de tempo. Os sintomas de abstinência atingem seu pico, em geral, no segundo
dia e tendem a apresentar melhoras no quarto ou quinto dia, enquanto os sintomas de
abstinência aguda (ansiedade, insônia e disfunção autonômica) persistem por um
período de três a seis meses em níveis inferiores de intensidade.
Critérios Diagnósticos para Intoxicação com Álcool
A. Cessação (ou redução) do uso pesado ou prolongado de álcool.
B. Dois (ou mais) dos seguintes sintomas, desenvolvendo-se dentro de algumas horas a
alguns dias após o Critério A:
(1) hiperatividade autonômica (p. ex., sudorese ou taquicardia)

(2) tremor intensificado


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(3) insônia

(4) náuseas ou vômitos

(5) alucinações ou ilusões visuais, táteis ou auditivas transitórias

(6) agitação psicomotora

(7) ansiedade

(6) convulsões de grande mal

C. Os sintomas no Critério B causam sofrimento ou prejuízo clinicamente significativo


no funcionamento social, ocupacional ou em outras áreas importantes da vida do
indivíduo.
D. Os sintomas não se devem a uma condição médica geral nem são melhor explicados
por outro transtorno mental.
Especificar se:

Com perturbações perceptuais

Existem outros transtornos induzidos por álcool, mas vou apenas citá-los, sem tecer
comentários: delirium por intoxicação com álcool; delirium por abstinência de álcool;
demência persistente induzida por álcool; transtorno amnéstico persistente induzido por
álcool; transtorno psicótico induzido por álcool; transtorno do humor induzido por
álcool; transtorno de ansiedade induzido por álcool; disfunção sexual induzida por
álcool e transtorno do sono induzido por álcool.
Além dos transtornos induzidos por álcool, há também aqueles relacionados e que estão
associados com a dependência ou abuso de substâncias (por exemplo, Cannabis,
cocaína, heroína, anfetaminas e sedativos, hipnóticos e ansiolíticos e, por fim, a
nicotina). A interação entre essas drogas pode levar o dependente a apresentar sintomas
de depressão, ansiedade e insônia, que muitas vezes precedem o
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Aspectos culturais, sociais, bioquímicos e psicológicos, quando unilaterais, deixam de
conceber um marco para o conhecimento e esclarecimento de suas múltiplas facetas,
que, unidas, promovem o desenvolvimento e aprimoramento de ideias. O conhecimento
profundo de uma cultura leva o pesquisador a investigar fatores divergentes entre outras
culturas de uma mesma população em diferentes níveis sociais.

Tradições culturais que envolvem o uso de bebidas alcoólicas em contextos familiares,


religiosos e sociais, principalmente na infância, podem afetar os padrões de uso quanto
à probabilidade de desenvolver problemas relacionados ao álcool. Baixo nível
educacional, desemprego e baixa situação socioeconômica estão associados, embora
haja dificuldade em separar a causa do efeito.
Transtornos de conduta e comportamento antissocial em adolescentes e adultos, com
transtorno de personalidade antissocial em adictos, em geral, estão associados a
dependência ou abuso de substâncias ilícitas (cocaína, anfetaminas e heroína),
provocando danos à população, vítimas de atos criminosos.
De fato, foi demonstrado que qualquer que seja o comportamento desviante escolhido
para estudo, ele geralmente é encontrado em uma ampla variedade de tipos de
personalidade, assim como pessoas que diferem acentuadamente em seus atributos de
personalidade podem aprender a fazer uso excessivo dt tabaco, também, se houver
condições de aprendizagem social adequadas, indivíduos que possuem características de
personalidade diversas podem aprender a tomar bebidas alcoólicas em excesso
(Bandura, 1979).
A cultura pode influenciar o padrão e o contexto, assim como a quantidade do consumo
de álcool, e o padrão desse consumo pode, por sua vez, ser um determinante importante
dos problemas com a bebida. Os franceses consomem vinho habitualmente nas refeições
Página 110
associado a um consumo per capita relativamente alto, e, constantemente, são
predispostos a complicações orgânicas crônicas, tais como cirrose e certos tipos de
câncer.
A classe trabalhadora masculina do Reino Unido e América do Norte possui índices
elevados de intoxicação pelo abuso do álcool acompanhados de consequências sociais
adversas, tais como desarmonia conjugal, violência interpessoal ou infrações por
embriaguez. Já nas sociedades judaicas, o beber, em geral, é socialmente aceitável, mas
com conotações negativas quanto à embriaguez pública, enquanto na Irlanda os
indivíduos são encorajados a beber como parte da ordem social geral (Edwards,
Marshall e Cook, 1999).
O álcool é rapidamente absorvido na circulação, pelo estômago, intestino delgado e pelo
cólon, e sua concentração máxima no sangue gira em torno de 30 a 90 minutos. A
absorção varia de acordo com o volume de álcool ingerido, presença de dióxido de
carbono e bicarbonato em bebidas efervescentes, alimento consumido, temperatura
corpórea, exercícios físicos ou presença de açúcar no sangue reduzem ou aumentam sua
absorção. Por se tratar de uma substância hidrófila, tende a se acumular nos tecidos com
maior teor de água (Agarwal e Goedde, 1990; Hobbs et al., 1996).
De 90% a 98% do álcool ingerido são eliminados do corpo pela oxidação em dióxido de
carbono e água, e a maior parte que escapa da oxidação é excretada, inalterada, no ar
expirado, na urina e no suor, dependendo da quantidade ingerida ou em temperaturas
elevadas, podendo ocorrer um aumento no escape por estas vias corporais.
Em geral, de 90% a 98% do álcool são metabolizados no fígado e o índice médio de
metabolismo em adultos sadios é de 120 mg por quilo por hora, equivalente a 30 ml em
três horas, variando conforme o peso e grau de dependência.
O efeito estimulante-euforizante do álcool, mediado pela liberação aumentada de
dopamina, é menor do que o observado para estimulantes do SNC, como as anfetaminas
e a cocaína. No entanto,
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o reforço positivo associado ao sentimento de euforia ou de recompensa também pode
explicar o desenvolvimento de uma dependência psicológica do álcool.
Foram propostos vários processos fisiológicos que mediram o fenômeno pelo qual
pequenas quantidades de álcool disparariam o processo de ingestão de grandes
quantidades dessa substância. Encontraram alterações no metabolismo celular, inibições
nos centros de controle do cérebro e a ativação de circuitos neurais específicos
localizados no hipotálamo que desencadeiam a compulsão pelo álcool (Formigoní e
Monteiro, 1997).
Quanto a consequências psicológicas, o álcool prejudica sensivelmente muitos aspectos
da função psicomotora e cognitiva. Ocorre o desequilíbrio do controle emocional que
pode resultar em violência contra outras pessoas. Implica significativamente a
autoagressão intencional e suicídio. Outra consequência frequente do consumo pesado e
prolongado do álcool é o comprometimento da memória de curto prazo ou, menos
comumente, um quadro de demência. Comuns no ambiente hospitalar, mas não tão
destacadas em termos populacionais, estão as síndromes como delirium tremens,
alucinação alcoólica ou convulsões pela abstinência. A dependência do álcool é uma
complicação psicobiológica que pode sobrevir do uso maciço, e então perpetuá-lo, com
riscos de muitos problemas relacionados (Edwards, 1998).
A princípio, uma pessoa que começa a beber pesadamente pode ampliar seu repertório e
a variedade de estímulos que a predispõem a beber. Conforme a dependência avança, os
estímulos relacionam-se crescentemente ao alívio ou evitação da abstinência do álcool,
e seu repertório pessoal de beber torna-se cada vez mais restrito. O adicto começa a
beber a mesma quantidade nos dias de trabalho, finais de semana ou mesmo em
feriados; a natureza da companhia ou seu próprio humor não alteram a ordem dos
fatores, ou seja, fazem cada vez menos diferença.
Página 112
Na dependência avançada, a ingestão pode se organizar segundo um horário diário
rígido, para manter um alto nível de dosagem alcoólica no sangue. No entanto, a
síndrome deve ser entendida como sutil e plástica, e não como algo rígido, mas, na
medida em que a dependência avança, os padrões tendem a tornar-se cada vez mais
fixos (Edwards, Marshall e Cook, 1999).
Os adictos em estado de abstinência podem relatar que pensam compulsivamente na
bebida alcoólica e que desenvolveram uma estratégia para bloquear essas ruminações,
procurando pensar em outras coisas. Este sentimento irracional e indesejado, no caso do
dependente, parece ser a experiência particular difícil de transmitir.
O clínico deve estar atento aos significados das palavras que fazem parte do repertório
verbal de cada paciente, mas, de forma geral, refletem a cultura em que aprendeu a
beber e as contingências que mantêm o comportamento de ingestão de álcool. A
possibilidade de compreensão muitas vezes será destruída se termos convencionais
como a compulsão ou a perda de controle forem introduzidos prematuramente.
Epidemiologia do Alcoolismo
O consumo de drogas psicoativas é considerado como um dos mais importantes
problemas de saúde pública no mundo inteiro. Em função do consumo exagerado e dos
riscos produzidos à saúde pelo consumo de álcool, uma grande variedade de pesquisas
tem sido conduzida com o objetivo de compreender melhor os problemas relacionados
ao ab(uso) do álcool.
Os achados epidemiológicos sobre o consumo de álcool em todo o mundo, em
decorrência das diferentes características encontradas nos usuários, reforçam a
necessidade de uma vigilância contingente e ativa, a fim de definir o padrão
epidemiológico populacional e
Página 113
definir estratégias governamentais e não governamentais de ação (Lima, 1997).
Paz Filho et ai. (2001) detectaram em um estudo de prevalência realizado em um
pronto-socorro da cidade de Curitiba, com uma amostra de 374 sujeitos, sendo 46,8%
do sexo masculino e 53,2% do sexo feminino, 35,82% com transtorno decorrente do uso
de álcool. Nos Estados Unidos 85% da população, segundo dados do Nationai Institute
of Alcohol Abuse and Alcoholism (1998), já consumiu bebida alcoólica pelo menos
uma vez na vida.
No Brasil, os estudos de prevalência são transversais, pois proveem informações
imediatas sobre a prevalência e fatores associados ao consumo de álcool com um custo
menor do que o de outras metodologias. Pechansky e Barros (1995) investigaram o
padrão de consumo de bebidas alcoólicas em adolescentes de Porto Alegre e
identificaram que 71% da amostra, sendo a maioria do sexo masculino, com 17 anos ou
mais, já havia apresentado pelo menos uma intoxicação alcoólica.
Conforme Santana e Almeida-Filho (1987), na América Latina, pesquisas sobre o
consumo de álcool descrevem prevalências de alcoolismo variando entre 3% e 23%,
enquanto Almeida e Coutinho (1993) identificaram que, em países como Estados
Unidos, Austrália e Canadá, as taxas de consumo chegam a 90%, e Colômbia e México,
em torno de 50%.
Almeida e Coutinho (1993) entrevistaram 1.459 pessoas na Ilha do Governador, e 51%
consumiam álcool, 4,9% do sexo masculino e 1,7% do feminino. Outro estudo realizado
em Porto Alegre indicou prevalência de 9,3% de dependência do álcool e 15,5%
classificados como bebedores pesados, consumindo mais de 30 gramas de álcool/dia.
Página 114
As co-morbidades psiquiátricas são muito comuns, conforme estudos realizados por
Robins e Regier no Epidemiologic Catchment Área Study (ECA) (1991). Nos Estados
Unidos, das pessoas que procuram tratamento em clínicas especializadas, 19,6%
apresentam diagnóstico psiquiátrico de Personalidade Antissocial; 5,4% de Mania; 5,7%
de Abuso de Drogas; 3,4% de Esquizofrenia; 2,6% de Pânico; 2,0% são Obsessivo-
Compulsivos; 1,7% de Distimia; 1,6% de Depressão Maior; 1,4% de Fobias; 1,1% têm
Déficit Cognitivo e 2,0% apresentaram outros diagnósticos.
O primeiro episódio de intoxicação com álcool tende a ocorrer no período intermediário
da adolescência, com idade de início da dependência de álcool atingindo um pico da
casa dos 20 à metade da casa dos 30 anos. A maioria dos indivíduos que desenvolvem
transtornos relacionados ao álcool o fazem próximo dos 40 anos.
O abuso e a dependência de álcool são mais comuns entre o sexo masculino, com a
razão de homens para mulheres afetadas chegando a 5:1. Entretanto, esta razão varia
substancialmente, dependendo do grupo etário. As mulheres tendem a começar a beber
excessivamente mais tarde do que os homens e podem desenvolver transtornos
relacionados ao álcool mais tarde. Uma vez que o abuso ou a dependência de álcool
desenvolvam-se em mulheres, a condição pode progredir mais rapidamente, de modo
que, na meia-idade, as mulheres podem ter a mesma faixa de problemas de saúde e
consequências sociais, interpessoais e ocupacionais que os homens (DSM-JV, 1994).
Vários estudos, foram conduzidos por pesquisadores brasileiros em diferentes regiões
brasileiras indicando a prevalência de alcoolismo em cada região em períodos distintos,
conforme descrito por Santana e Almeida-Filho (1990) na Tabela 1.
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Tabela 1 — Prevalência de alcoolismo dividida por região

Autor/Ano/local N População Estudada Prevalência de alcoolismo

Azoubel Neto/1 962/ 203 Vila Sta.Terezinha 6,2% —


Ribeirão Preto alcoolismo crônico

13,3% —

bebedores excessivos

Luz Jr./1 974/Porto 514 Vila Vargas 6,2%


Alegre

Coutinho/1976/ 742 Maciel 22,6%


Salvador

Santana/1978/Salvador 1549 Bairro de baixa renda 3,4%—

alcoolismo

14,2%—

consumo diário

Almeida-Filho/1985/ 1047 Área industrial 6,2%


Salvador
alcoolismo

21,2%-

consumo diário

19,1% —

embriaguez semanal

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Por meio dos dados citados na Tabela 1, podemos ter uma noção dos estudos realizados
no Brasil e, em razão da carência de recursos financeiros, torna-se impossível conduzir
pesquisas que envolvam estudos longitudinais, de modo que fica quase impossível
organizar e executar uma política de saúde voltada ao estudo do álcool.
Políticas do Álcool
Por se tratar de uma questão que atinge toda ou grande parte da população mundial,
políticas de saúde desenvolvidas em países desenvolvidos e em desenvolvimento, ao
longo do espaço e tempo históricos e dentro do contexto de sistemas de valores
determinados cultural- mente, de fórmulas administrativas e de crenças quanto à
natureza fundamental das questões-alvo, estes problemas deram origem a uma
diversidade de respostas políticas. Algumas políticas incluem: proibições quanto ao uso;
racionamento e monopólios estatais; impostos cobrados sobre a venda de bebidas
alcoólicas; leis dirigidas ao licenciamento a distribuidores; horários de consumo ou
definição da idade legal para fazer uso do álcool; campanhas de informação, educação
e, para finalizar, as crenças desenvolvidas quanto ao consumo de álcool e
comportamentos em geral, entre outras (Edwards, 1998).
Foram encontrados diferentes índices de mortalidade em diversos países, tendo como
causa a cirrose originária do álcool, entre eles, o campeão em mortalidade, com 54,0%,
a Hungria, sendo 79,7% homens e 32,6% mulheres. O segundo país é o México, com
48,6%, sendo 72,5% homens e 2 1,8% mulheres. Tais dados foram fornecidos pela
Organização Mundial de Saúde (OMS) e adaptados por Edwards (1998).
Nos Estados Unidos, em 1990, os gastos totais do abuso de álcool, relativos a
tratamento, morbidade e mortalidade, giram em torno de US$100 bilhões, e no Brasil,
Reino Unido, Austrália, Canadá e Japão, os dados fornecidos à OMS não foram
computados em razão de
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alguns elementos inclusos nas análises estatísticas não publicadas (Rice, 1993).
Quanto às tendências encontradas em vários países que consomem álcool per capita,
verificou-se que, na década de 1990, a França atingiu o índice de 12,7 litros de etanol,
seguido de Luxemburgo com 12,2 e de Espanha e Suíça, com 10,8, enquanto a Turquia
apresentou apenas 0,6 litro de etanol ( World Drink Trends, 1992).
Os problemas que as políticas do álcool priorizam deveriam ser definidos de modo
amplo. O objetivo da política não deveria ser limitado ao alcoolismo, ao dependente de
álcool ou a uma doença física grave. A definição-alvo que melhor fundamentará o
desenvolvimento das políticas deve tomar conhecimento dos problemas relacionados ao
álcool e da dependência do álcool; ela dará alta prioridade a problemas agudos ou
referentes a acidentes, assim como a patologias crônicas; lidará com problemas sociais e
psicológicos e com problemas físicos. Pesquisas também demonstram que uma política
deve abarcar a totalidade da população que bebe e definir o alcance da ação de saúde
pública.
Tratamento Cognitivo-Comportamental
A abordagem Cognitivo-Comportamental no tratamento do alcoolismo pressupõe que o
beber-problema é o que deve ser tratado. Implícita nesta abordagem está a crença de que
o beber-problema é principalmente um comportamento aprendido, e o tratamento
envolve substituir o padrão desadaptativo do comportamento de beber por um beber
mais apropriado ou pela abstinência. A Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC)
salienta o papel das expectativas em relação ao álcool no desenvolvimento da ingestão e
suas consequências (Edwards, Marshall e Cook, 1999).
Para a maioria das pessoas, a mudança de comportamento(s) indesejado(s) tornou-se
relativamente simples, mas sua
Página 118
manutenção é árdua e bem mais complexa. A dificuldade não está no parar de beber,
mas, sim, em manter-se em abstinência.
A TCC é baseada no modelo teórico de que afeto e comportamento são determinados
pelo modo que o indivíduo organiza e estrutura seu mundo. Tem como produto a
combinação de estratégias cognitivas e comportamentais, que visam à elaboração de
metas no intuito de atingir mudanças cognitivas e comportamentais.

Sua matéria-prima são as chamadas cognições (pensamentos, imagens, conceitos,


ideias, crenças irracionais), que se configuram em uma determinada disposição e arranjo
mental específico e individual, denominado esquema central. Esses esquemas orientam,
organizam, selecionam suas novas interpretações e ajudam a estabelecer critérios de
avaliação de eficácia ou adequação de suas ações no mundo do indivíduo (Rangé,
1995).

Resultado de um aprendizado, o indivíduo pode organizar seus esquemas, mediante


comportamentos mal adaptativos, e reaprender outros mais bem adaptados (Beck et al.,
1997).
A premissa básica da TCC nos comportamentos adictivos está calcada em três
proposições primordiais, segundo Knapp & Bicca (1998):
• a atividade adicta é afetada pelo comportamento;

• a atividade adicta pode ser monitorada e alterada; e

• a mudança de comportamento desejada pode ser afetada pela mudança do pensamento


cognitivo.
Por se tratar de uma abordagem focal, a TCC deve ser ativa, diretiva e estruturada,
caracterizada pela aplicação de procedimentos clínicos como introspecção, insight, teste
de realidade e aprendizagem, visando aperfeiçoar discriminações e corrigir concepções
equivocadas, tais como comportamentos, sentimentos e atitudes perturbadoras. O foco
principal é ajudar o paciente a examinar o modo
Página 119
como constrói e entende seu mundo e auxiliá-lo, de forma colaborativa, a experimentar
novas maneiras, adequadas e/ou gratificantes, demonstrando suas habilidades de
enfrentamento.
Nesta abordagem teórica são enfatizados dois aspectos importantes na prevenção da
recaída: as crenças em relação ao comportamento de beber e a modificação dos
estímulos externos (ambientais) e internos (sentimentos) de alto risco para a recaída. O
objetivo principal da TCC é identificar, examinar e manejar as distorções cognitivas que
o indivíduo atribui a cada estímulo e o conjunto de crenças e atitudes adotadas para lidar
com momentos diferentes de cada estímulo específico.
Na Figura 1 é apresentado o modelo cognitivo nos comportamentos adictivos de recaída
de Beck et al. (1993).
Figura 1 — Modelo Cognitivo de Beck
Início da imagem

Fim da imagem
Descrição da imagem: estímulos ativados (internos ou externos) -> ativação de crenças
-> pensamentos automáticos -> fissura -> crenças facilitadoras -> plano e estratégias de
ação -> lapsos/recaída.
Fim da descrição
Entrevista de Motivação (EM)
A Entrevista de Motivação (EM) desde 1983 é aplicada como uma técnica terapêutica
em adictos, por se tratar de uma abordagem prática e aceitável para os indivíduos
relutantes em mudar e ambivalentes em relação à mudança. Incorpora-se de estratégias
de aconselhamento, da TCC, da teoria dos sistemas e da psicologia social de persuasão
(Miler
Página 120
e Rollníck, 1991). Não faz parte do papel do terapeuta ser autoritário, muito menos
utilizar-se de confrontos com o cliente, mas conduzi-lo à mudança, criando urna base
positiva. A meta a ser estabelecida é aumentar a motivação do paciente, deixando-o com
a responsabilidade de efetuar a própria mudança, visto que a busca pela terapia é metade
do caminho que deverá ser percorrido.
Prochaska e Di Clemente (1982) descreveram cinco estágios de mudança separados, que
podem ser aplicados tanto ao entendimento do comportamento de ingestão quanto ao
trabalho prático do tratamento. Esses estágios são: pré-contemplação, no qual uma
pessoa não reconhece um comportamento como problemático; contemplação, os
indivíduos reconhecem que têm um problema e começam a pensar nas implicações da
mudança; segue-se o estágio de determinação, em que ocorre a pretensão de agir e
tentar a redução do álcool e decidir mudar, passando ao estágio de ação. No último
estágio considerado o de manutenção, o indivíduo tenta manter as mudanças para evitar
a recaída.
Avaliação
Um modelo conceitual que se faz necessário para uma melhor compreensão quanto ao
consumo de bebidas alcoólicas, utilizado para integrar os fatores que sustentam d
consumo individual ou relacionado a circunstâncias ambientais ou relacionamentos
interpessoais, por meio de repetidas combinações com reforço positivo ou negativo ou
mesmo por antecipação de reforço é conhecido como modelo Sorc. Esse modelo Sorc
integra considerações em um modelo específico ao consumo de bebidas alcoólicas. O S
indica os estímulos ambientais previamente à ingestão, evocando reações cognitivas,
afetivas e fisiológicas do — O — organismo. Segue-se a — R — resposta do ato de
ingestão a qual pode ser mantida pelas — C — consequências positivas do consumo.
Página 121
Fatores individuais, familiares e interpessoais, entre outros, podem estar relacionados à
ingestão de bebidas alcoólicas. No âmbito individual, antecedentes ambientais podem
estar associados com situações específicas de consumo, determinados momentos do dia
ou o próprio odor. As variáveis ligadas ao organismo, tais como a fissura, sintomas de
abstinência, afetos negativos, auto avaliações negativas ou mesmo as crenças irracionais
provenientes do (ab)uso do álcool, ou expectativas positivas quanto ao efeito
proporcionado pela bebida em situações particulares, quando reforçados
individualmente, podem diminuir os sintomas de desejo ou abstinência, reduzindo o
afeto negativo ou mesmo aumentos no afeto positivo, diminuindo as auto avaliações
negativas ou a idade de esquecer problemas (McCrady, 1999).
Técnicas Cognitivas e Comportamentais
Nos estágios de ação e manutenção, o treinamento das habilidades sociais e o
treinamento da assertividade são tidos como o primeiro foco dos estágios considerados
tardios. Os pacientes são prejudicados por uma incapacidade subjacente de funcionar
em situações sociais, e o tratamento mediante role-play, dessensibilização sistemática
ou outros métodos comportamentais, tais como a assertividade, que irá ensinar o
paciente a aprender a dizer não à bebida (Holder et al., 1991).
Outra técnica utilizada é o treinamento das habilidades de solução de problemas, que
consiste em ajudar o paciente a desenvolver estratégias alternativas de manejo para usar
em situações de alto risco (Monti et ai., 1989).
O treinamento em relaxamento ajuda os pacientes a aliviarem a ansiedade e a lidar com
o desejo intenso de beber. Muitos adictos apresentam dificuldades em lidar e expressar a
raiva que sentem. A técnica de manejo da raiva em conjunção com o treinamento da
assertividade pode ser benéfica nestes casos.
Página 122
A solução de problemas ajuda o paciente a identificar as situações que possivelmente
estimulam o paciente ao ato de beber e como manejá-las; utilizando-se de estratégias
para lidar com possíveis problemas e com as adicções, por meio do manejo do craving
(fissura).
A base da TCC no tratamento de adictos é a reestruturação cognitiva, que contempla a
identificação de pensamentos automáticos e crenças básicas, ajudando o indivíduo a
substituí-los por pensamentos positivos. Para isso, são usados os Registros Diários de
Pensamentos Disfuncionais (RDPD, na Figura 2), em que são registrados os eventos
situacionais, emocionais e cognitivos relevantes. A detecção desses pensamentos
durante a consulta é crucial para uma demonstração adequada das distorções cognitivas
em ocorrência, pois é por intermédio dessa experiência que o paciente aprende a
detectar seus pensamentos disfuncionais, como um primeiro passo para aprender a
manejá-los (Rangé, 1995).
Uma vez adquirida a compreensão lógica do processo, identificando pensamentos
disfuncionais e fazendo as reestruturações cognitivas de suas cognições, o terapeuta
passa a exercer papel de orientador, e não mais de interventor, apoiando o paciente fora
do contexto terapêutico a generalizar seus pensamentos, sentimentos e comportamentos
diante de situações consideradas de alto risco antes do processo de mudança.
Figura 2 — Registro Diário de Pensamentos Disfuncionais (RDPD — Beck et ai., 1997)
Início da imagem

Fim da imagem

Descrição da imagem
Dia/hora - Situação - Sentimentos Emoção(ões) - Pensamento(s) Automático(s) –
Resposta Racional
Fim da descrição
• assinalar a intensidade do sentimento (0 a 10);

• assinalar o grau de convicção do pensamento (0 a 10).

Página 123
O Plano Semanal de Atividades Diárias (PAD, na Figura 3) irá contribuir com o
emprego de tarefas graduadas, na auto-exposição a situações específicas, na prevenção
de respostas e como técnica auxiliar na prevenção de recaída.
Os indivíduos que aprendem com as emoções e estão atentos, quando as crenças são
ativadas, conseguem reconhecê-las e neutralizá-las, evitando o ato de beber. A aplicação
clínica da TCC consiste na modificação do sistema de crenças do paciente, além de
ensina-lo a enfrentar ou evitar situações de alto risco (Beck et ai., 1993).
No final do tratamento, o paciente deverá apresentar o que aprendeu e concluiu por
meio de sua conduta e o que notou que não estava evoluindo, de modo que o terapeuta
se coloque à disposição para ajudá-lo.
Figura 3 — Piano Semanal de Atividades Diárias (PAD — Beck et ai., 1997)
Início da imagem

Fim da imagem
Descrição da imagem: tabela de compromissos de segunda a domingo com os horários
em uma lista de uma em uma hora, das 7:00 as 8:00 horas até as 23:00 – 24:00
Fim da descrição
Página 124
Conclusão
O amplo conhecimento a respeito da conceituação, etiologia e epidemiologia ajuda-nos
a compreender melhor o (ab)uso do álcool, não só como uma substância psicoativa, mas
todas as consequências devastadoras que ele provoca. Sua etiologia ainda desconhecida,
mas com teorias que buscam sustentação, favorece uma gama de hipóteses, que intrigam
a maestria das maiores autoridades no tratamento de adictos. Por sua vez, ajudam a
esclarecer fatos intimamente ligados à sintomatologia e ao estudo de diversas culturas
relacionadas ao comportamento de beber.
Os números obtidos em pesquisas recentes quanto ao consumo são estarrecedores, o que
fez com que muitos pesquisadores, em diversas regiões do planeta, se dispusessem a
promover campanhas educativas relativas à política do álcool.
Nota-se que, com a mobilização de toda a sociedade, se faz jus, a incansável tarefa de
prevenção de recaída, em razão dos danos causados pela ingestão excessiva dessa
substância, tanto em nível orgânico quanto psicológico, social, familiar etc.
A Terapia Cognitivo-Comportamental, uma das formas de psicoterapia mais eficazes no
tratamento e manejo de problemas relacionados ao abuso do álcool, juntamente com a
integração e utilização de técnicas comprovadamente eficazes na modificação de
comportamentos, auxiliada e calcada na resolução de problemas, acrescenta ao
tratamento farmacológico ganhos para o paciente e para a sociedade de modo geral,
permitindo que outras abordagens teóricas possam se utilizar dos princípios
fundamentais, que vão da educação ao manejo de crenças disfuncionais à readaptação
de pensamentos mais apropriados.
Página 125
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Página 128 – página em branco
Página 129
De um sorriso doce...
Valdemar Augusto Angerami — Camon
Para Cacheadinha...
SERRA DA CANTAREIRA
Eu quero da vida o teu sorriso doce... o mesmo que você exibe quando te estreito em
meus braços... quero passear pelo teu corpo do mesmo modo como caminho pela serra
nas manhãs e madrugadas... sentindo cada detalhe da caminhada com um prazer que
nunca se exaure... e sempre se renova...
Página 130
eu quero da noite o teu sorriso meigo...

aquele que você mostra

quando tomamos vinho diante da

lareira... ver o teu contorno emoldurado

pelo fogo e sentir a emoção de

abraçá-la em cada fragrância

da magia dos nossos momentos...


eu quero da vida a paz do teu sono...

o teu espreguiçar pela manhã e o teu

sorriso de bom dia... de como você

reclama das minhas molecagens

logo cedo... a tua fala que se mistura

com a algazarra dos pássaros no

amanhecer... eu quero a vida com


a serenidade com que você se

debruça sobre os teus livros para

produzir intelectualmente... um olhar

penetrante e abrangente...
Página 131
JOÃO PESSOA
A Lua nasce sob o horizonte e

deixa a água do mar com um prateado

reluzente.., um prateado que toca a alma

de modo único... a Lua vai deixando as

águas e vai subindo em direção ao céu...

e o seu rastro prateado encanta e se espraia

e nos abraça com um suave toque de

magia... eu sinto tua falta... falar ao telefone

não basta... preciso te ver admirando esse

luamento... como de outras vezes aqui em

João Pessoa, em Natal e na Cantareira...


A praia pela manhã me traz tua ausência... caminhar

sozinho pela areia é saber que você está

longe.., noutros cantos... sentir falta dos teus

beijos é como sentir falta da própria seiva

da vida.., de como tudo é incompleto sem você...

o mar que se derrama na areia não tem a mesma

beleza de quando você está ao meu lado...


Página 132
O pôr-do-sol na Praia do Jacaré é espetáculo

insosso.., tudo é um só tédio quando você não

está ao meu lado.., vir a esse espetáculo é


lembrar do teu sorriso diante da magnitude

desse espetáculo.., da tua alegria em registrar

com fotos o sol se escondendo no horizonte...

não há como estarem João Pessoa e não

te encontrarem cada canto.., em cada quina de

esquina.., em cada pedaço de chão, de areia,

de mar... é lembrar, sonhar e constatar:

sua ausência é uma doce reminiscência de

que te viver é sonhar um sonho azul,

é esperar com muita ansiedade o dia de

te reencontrar e poder abraçar e beijar

na sua delicadeza dessa magia que estamos

vivendo, onde cada momento é revestido

de um mistério e um fleuma que torna

tudo inesquecível, indescritível.., uma

ilusão, uma paixão, uma emoção...

tudo isso é você, é João Pessoa,

Página 133
é a Cantareira... é o prazer de te estreitar

em meus braços na madrugada e

sorrir como criança.., de um sorriso

doce que me fascina e que torna as minhas coisas

uma suave fragrância de paz e amor...

é assistir à florada da Sibipiruna na primavera

e saber que em tudo existe um pouquinho de


você.., do teu ser... do teu sorrir...

Serra da Cantareira, numa manhã de primavera


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• Capítulo 6
A Racionalidade Médica Ocidental e a Negação da Morte, do Riso, do Demasiadamente
Humano
Geórgia Sibele Nogueira da Silva
Ao grupo de teatro Clowns de Shakespeare, e aos nossos pequenos pacientes, vivos e
mortos, por me ensinarem muito sobre a beleza e intensidade de um momento, sobre a
vontade de vida.
“Não somos rãs pensantes nem aparelhos de objetivação e máquinas registradoras com
vísceras congeladas — temos constantemente de parir nossos pensamentos de nossa dor
e maternalmente transmitir-lhes tudo o que temos em nós de sangue, coração, fogo,
prazer, paixão, tormento, constantemente tudo o que nos atinge: não podemos fazer de
outro modo.” Nietzsche
Duas imagens de dor, de intenso sofrimento, me obsediaram desde que escolhi dialogar
com o tema da racionalidade médica em um livro que nos convida ao diálogo com a
psicossomática. As imagens invocam a presença da morte. Não falo da morte física, mas
da morte em vida, da morte da sensibilidade, da ausência do contato
Página 136
humano, afeto, respeito à dor do outro, envolvimento, entrega, de um ouvir que não
escuta, da morte ou interdição dos sentimentos.
Falo de imagens fictícias e reais. Ei-las:
Até a água eles custam a me dar. Parece que eu contamino só com a presença. O médico
não acredita que eu possa sair dessa, ele diz isso com seus olhos, com sua desatenção.
Ele pouco vem aqui. Acho que ele tem medo quando eu tento tocá-lo, que a minha
morte o leve também. Ele não aprendeu que a morte é de cada um, ela não é contagiosa,
cada um tem a sua e pior, eu sei que ela não avisa quando vem mesmo que o doutor se
iluda achando que ele sabe o meu tempo... e o dele, será que ele também sabe?
Sabe, é como se eu já tivesse morrido, eu preciso estar provando que estou vivo, por
isso eu às vezes tenho essas “crises de nervoso”. (Portador do HIV/ 1998/ ficção ou
realidade?)
Um jovem soldado, durante a primeira grande guerra mundial, é atingido por uma
bomba, perde seus braços e pernas, seus olhos, nariz e boca, mas permanece vivo, com a
mente funcionando, porém os médicos acreditavam que ele não estivesse lúcido e, por
isso, aceitam sem muito pesar a manutenção de sua vida. Ë prescrito um medicamento
para seus movimentos (abalos musculares) e é também prescrito que nenhum membro
da equipe deve ter “envolvimento emocional” com o paciente. Este é deixado num
quarto isolado onde ninguém pode vê-lo ou saber de sua existência. Duas personagens
transgridem esta prescrição. A primeira, uma enfermeira que se penaliza do rapaz, abre
as janelas e, com o calor do sol em sua pele, Johnny pôde começar a medir o tempo, dia,
noite, dia, semana, semana, mês, outro mês, até que se passa um ano, vários anos (em
seu calendário interno). A segunda, uma outra enfermeira (curioso que sejam
enfermeiras a desempenhar esse papel e não médicos) que, ao ver o paciente pela
primeira vez, chora e acaricia sua testa (e, em sua mente, Johnny grita, ao sentir as
lágrimas caindo em seu corpo: “que bom, você não tem nojo de mim”. Num outro
momento, Johnny tem um sonho erótico, fica excitado (seu pênis fica ereto), a
enfermeira não entende por que ele se debate, procura o motivo retirando as cobertas, o
vê excitado e o masturba. Depois, ainda por resolução dela, aparentemente sem motivo
algum, ou sem lógica alguma, a não ser a lógica de seu sentimento, a enfermeira escreve
com a
Página 137
ponta de um dedo a expressão “Merry Christmas” no peito do paciente. Este
compreende a mensagem, acena com sua cabeça que compreendeu e, em sua mente,
grita de felicidade e agradece comovido à enfermeira.
Perseguindo um modo de se comunicar com “os de fora’ como os denomina, Johnny
descobre que pode usar o código Morse e começa a “telegrafar” mediante movimentos
de sua cabeça. A enfermeira observa, não entende o que está havendo, mas percebe que
ele quer expressar algo e vai em busca de alguém que possa entender do que se trata.
Assim ocorre, vêm os médicos, o capelão, o telegrafista (anos haviam-se passado;
percebemos isto pelo envelhecimento do médico que o operara, o qual, quer o autor
tenha representado casual ou intencionalmente, usa muletas).
Percebem que ele está tentando se comunicar. O telegrafista, entendendo o código,
pergunta-lhe, “telegrafando” em sua testa, o que deseja. Ele responde que quer poder ser
útil, quer poder ganhar sua vida e que o modo de conseguir isto seria sendo exibido em
praça pública, sendo uma espécie de atração circense: o homem sem braços, sem pernas,
sem olhos, sem ouvidos, sem boca, sem nariz, mas que pensa e sente. E isto para que
todos possam ver a tragédia que a guerra pode causar a um ser humano.
A junta de médicos e militares lhe diz que “infelizmente, isso não é possível”. Ele
retruca que, se é assim, se não vão permitir que ele saia, ele prefere que o matem e
repete insistentemente: “matem-me, matem-me”. Eles saem e o de patente superior
determina que o ocorrido não seja divulgado a quem quer que seja.
A enfermeira, novamente a sós com Johnny, resolve atender a seu pedido, e chorando
obstrui o tubo de oxigênio. O referido superior retorna ao quarto, desobstrui o tubo,
expulsa a enfermeira, fecha as janelas, seda o paciente, sai e fecha a porta. Johnny fica
sozinho no quarto, sonolento pela medicação e, no entanto, apesar de todo o seu
desespero, continua “telegrafando” um pedido de ajuda: S.O.S... S.O.S... Assim termina
o filme Johnny vai à guerra, do diretor Dalton Trambo.
Nessas imagens, ficção e realidade se confundem; os sentimentos que elas invocam
estão presentes no meu cotidiano como psicóloga. E no decorrer deste escrito outras
imagens se aliam. São cenas de riso presente nas enfermarias e corredores hospitalares
por onde
Página 138
passam os doutores da UPI! (Unidade de Palhaçada Intensiva). A relação com os
doentes e suas doenças suscita reflexões em minha prática e minha vida, que talvez não
surgissem sem eles. É com dor e paixão que tento parir meus pensamentos e caminho na
busca constante por interlocutores que partilhem o desejo de gerar outra realidade.
Herbert Daniel (sociólogo, militante na luta contra a Aids) nos lembra: “E o mundo
melhor é a parte melhor que criamos dentro dos nossos peitos, fazendo nossos braços de
raízes”
Escolher o tema da Racionalidade Médica para dialogar e lançar para o diálogo esse
pensamento — a Racionalidade médica e a negação da morte, do riso, do
demasiadamente humano — é o resultado de uma aflição interna em busca de
expressão. O ato de escrever foi a maneira encontrada para exorcizar esse desassossego
que é existencial, mas também epistemológico.
Dialogo com vários autores, na tentativa de aliviar minha solidão. Insinuo assertivas,
encontro alguns abrigos em teóricos e praticantes de uma “nova” medicina e Psicologia.
Parto do meu caminho e arrisco-me ao dividir os primeiros frutos nascidos de algumas
sementes, plantadas em direção a uma prática hospitalar capaz de acolher o riso e a dor
e, quem sabe, imaginar pistas para uma racionalidade mais tolerante, acolhedora,
saudável e de fato humana.
Em alguns momentos sinto que Foucault tem razão: a palavra é a morte da coisa. Em
outros, como diria Samira Chalhub, a escrita caminha como um corpo falante. Minhas
idéias, ainda em gestação, estão expostas, e o desassossego continua...
Razão e Paixão na Medicina Ocidental
“A porta da verdade estava aberta mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.
Assim, não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só
trazia o perfil da meia-verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio
perfil. E os meios perfis
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não coincidiam. Arrebentaram aporta. Derrubaram aporta. Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em duas metades diferentes uma da
outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente
bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.”
Carlos Drummond de Andrade
Por capricho, ilusão ou miopia, o mundo ocidental moderno fez a opção de isolar a
razão dos afetos na produção do conhecimento. Tal separação é resultado da crença de
que a verdade está além do sujeito que a produz. Luz (1988) afirma que a racionalidade
científica moderna postula a razão e o método científico como norma fundamental para
obtenção do conhecimento ou, de modo mais geral, como o modo de produção da
verdade, nos quatro séculos de sua construção. “Uma razão instrumentada pela
observação repetida, tecnificada.” É essa razão que institui a Natureza como
objetividade e como exterioridade ao homem, como materialidade a ser apreendida e
explicada, que se constrói com o renascimento científico, que se explicitava no século
XVII como “revolução científica”.
A essa revolução deve-se a grande ruptura epistemológica Natureza—Homem, Natureza
—Cultura. Temos as rupturas dualistas da racionalidade moderna: sujeito/objeto,
corpo/alma, razão/sentido, quantidade/qualidade, bom/mau, masculino/feminino,
normal/patológico; por que não dizer, saúde/doença, tristeza/alegria. Dentro de tal
racionalidade, não é possível enxergar pontos de convergência, de interseção. Tudo o
que se coloca no centro dessa dualidade é considerado situação marginal, desordem,
caos — portanto, um ruído para a ciência que precisa ser eliminado. Tudo o que causa
dúvida, insegurança, que simbolize o perigo, é afastado. Portanto, a doença, ao
encontrar-se no centro da dualidade vida-morte, também é sinal de anomia, de perigo.
Ruptura que não é apenas epistemológica, mas social e psicológica, na medida em que
institui instâncias socialmente exclusivas
Página 140
para o exercício de cada um desses compartimentos: a produção de verdades para a
razão (ciência); as paixões para a política e para a moral (ética); os sentimentos e os
sentidos para as artes (estéticas). Temos nessa fragmentação a marca do avanço da
Racionalidade Científica na modernidade.
Racionalidade esta bastante eficaz na expulsão dos sentimentos, da subjetividade, na
ruptura do próprio sujeito, em sua compartimentação. O início da expropriação da
subjetividade é herança da obsessão em direção ao mundo-verdade inaugurado pelo
platonismo, filho do dualismo socrático. Então a verdade não pode estar atrelada aos
descaminhos da subjetividade, da experiência sensível, das aparências.
Giacoia (2000) comentando Nietzsche afirma, em O nascimento da tragédia, que ele
recorre ao espírito trágico dos gregos para mostrar como o homem socrático — cuja
racionalidade é a matriz do cientificismo moderno — se refugiou no otimismo
metafísico como forma reativa de se furtar ao ciclo de trevas e luz, de construção e
destruição, que constitui a vida e torna a existência incompreensível e absurda aos olhos
míopes e covardes do olhar logocêntrico. Com Sócrates, o único caminho à verdade se
dá pela via lógico-racional.
Assim, vamos ter a máxima da pureza da razão e, a partir de Descartes, sob a égide da
máquina, o mundo natural e humano passa a ser expiado. A ciência é a teologia da
época; o relógio é a grande metáfora do Universo; o Positivismo, o guia necessário. A
expulsão da subjetividade é a base dessa conquista. No entanto, desde o início do século
XX, as dúvidas quanto à exequibilidade desse dualismo exacerbado vêm crescendo.
O saldo do progresso civilizatório dos últimos séculos foi desastroso. Quanto mais nos
afastamos e dominamos a natureza, em nome da tecnologia, do avanço, mais
contribuímos para a degradação da qualidade de vida. Nosso progresso foi uma questão
predominantemente racional e intelectual. Essa evolução unilateral atingiu
Página 141
um estágio alarmante que beira a insanidade. Hoje fica cada vez mais evidente que o
paradigma cartesiano encontra-se obsoleto.
Almeida (1992) ressalta que hoje emerge a desconfiança e a tomada de consciência de
que o modelo cartesiano de pensar começa a esgotar as estratégias que moldaram, nos
últimos séculos, um homem dolorosamente fraturado. A produção de conhecimento,
como resultado exclusivo da razão, a busca pelo ideal ascético e a negação da influência
dos sentimentos, das emoções, nas construções que fazemos da realidade exigem
revisão. Não é mais possível não escutar as profecias de Zaratustra.
Cabe a pergunta: e na medicina, qual foi o lugar encontrado para a razão e a paixão?
Luz (1988) nos responde apontando que a medicina apenas exprime e ilustra, com
radicalidade, um processo de racionalidade amplo que atingiu o Ocidente, desde o
classicismo grego, mais crescentemente com o capitalismo moderno.
A separação entre ciência e arte, com o predomínio da primeira, a expulsão do Deus
Dionísio (paixão) do nosso cosmos e o enaltecimento do Deus Apolo (razão)
contaminam a medicina de forma hegemônica no Ocidente, sendo responsável por um
tipo de racionalidade que desloca o objeto do saber sobre o doente para o saber sobre a
doença.
Ao utilizar a categoria Racionalidade Médica, estou acolhendo a definição de Luz (s.d.),
que advoga tratar-se de um construto lógico e empiricamente estruturado em presença
de cinco dimensões fundamentais (morfologia, dinâmica vital, doutrina médica, sistema
de diagnose e sistema de intervenção terapêutica). Tende a constituir-se em proposições
“verdadeiras’ ou seja, verificáveis de acordo com procedimentos racionais sistemáticos
(preferencialmente os de racionalidade científica), e de intervenções eficazes em face do
adoecimento humano.
Como apontei anteriormente, houve um deslocamento epistemológico e clínico da
medicina moderna. A milenar arte de curar doentes é substituída pela ciência das
patologias. A história da civilização
Página 142
ocidental, em sua obsessão pelo saber científico, promove a hegemonia da diagnose
sobre a terapêutica, ambas subjugadas à episteme.
Seduzidos pelo imaginário médico amparado na razão e na cosmologia mecanicista, que
torna o corpo humano uma máquina digna de reparos e exige instrumentos eficazes,
além de um bom técnico, assistimos à configuração de uma medicina tecnológica
especializada. Uma tecnologia que não admite o erro, o medo, a morte. Ou mesmo o
riso. Toda expressão de emoção torna-se ruído dentro dessa lógica.
O itinerário percorrido pela medicina para gerar em suas entranhas essa racionalidade
teve início, portanto, quando a medicina descritiva hipocrática — que integrava
Natureza e Homem, advogava uma visão monista, unicista do ser e consequentemente
tinha como objeto a pessoa humana em sua totalidade — se aproximou da
experimentação, da observação e classificação de atos e sintomas. Cedeu lugar a
perspectivas da Escola de Galeno, em que a doença é vista como algo autônomo, terreno
fecundo para o desenvolvimento de uma medicina mecanicista.
O segundo momento dessa viagem, marcado pela expansão do capitalismo, define o
projeto epistemológico da promoção de uma ciência das patologias, fortalecida nas
primeiras décadas do século XIX com o surgimento de uma nova forma de pensar e agir
médicos — o nascimento da clínica. Aqui ocorre a passagem do homem para o
organismo patológico. A vida passa a ser vista por intermédio da anatomia e da morte
(necropsia). As doenças são classificadas e catalogadas em sintomas. As descobertas da
microbiologia e o aparato tecnológico crescente se aliam, transformando a doença em
uma entidade. Não estamos mais diante de um doente, mas da doença. Não lutamos a
favor da vida, mas combatendo a morte. Nesse percurso, o agir terapêutico tem sua mais
irracional perda — a relação terapeuta/paciente é implodida. Aqui, nossas intenções
diante do adoecimento perdem a dimensão do humano.
Página 143
Camargo Jr. (1992) acentua que, para o médico, o sofrimento é irrelevante e o paciente
sofre de distorções. Sua relação é com a doença, e o paciente é um mero canal de acesso
a ela. Um canal “ruim”, por sinal, já que introduz ruídos em níveis insuportáveis. Isso
limita as possibilidades de atuação médica ao biológico, o que impõe sérias restrições,
do ponto de vista da eficácia, a esta prática. Por paradoxal que isso possa parecer,
abandonando a busca da quimera científica, talvez possamos ser científicos como nunca
fomos. Ter certeza como a clínica supõe ter é fatal às dúvidas, matriz da investigação
científica. Morin esbraveja que um paradigma que não incorpore o ruído é mortificador
e Kierkegaard poeticamente nos convida a pensar quando diz: “a verdade não deve ser
buscada senão na paixão”
No entanto, em nome do mito da razão, da cientificidade, expulsamos a subjetividade, o
contato humano — o riso, a dor, o ruído, a morte, a própria vida. Talvez por miopia,
construímos uma medicina sem paixão e acreditamos na ilusão de que sem a morte
subiremos ao Olimpo.
O Início do Ritual de Iniciação da Racionalidade Médica Ocidental: Exorcizar a Morte e
Abraçar o Olimpo
“Eu quero das mortes a mais traiçoeira. Diferente da que, sincera, se anuncia. Não quero
aquela que vai-se chegando com as rugas, atrasando os movimentos, dificultando o
gozo. Não quero a morte perversa, que toma o braço do senil e fica ao lado do
entrevado. Não quero a morte sincera, nem respeito mais a morte que avisa que já vem
vindo, morte catatônica. Morte que não me deixa esquecê-la. E, quando for chegando a
hora, que venha ainda em silêncio, sem avisar a ameaça. De manso, durante um bom
sono, tome-me. Morte, boa morte, é a que nem se deixa perceber, depois de uma vida
muda, cega e tetraplégica, ressurge uma vez só e toma de assalto e vence. Uma bala.
Um golpe pelas costas. Quero para mim da morte a mais traiçoeira.”
Anna Verônica Mautner
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“Eu só queria que tivesse alguém para segurar minha mão, talvez fosse menos difícil
morrer.”
Estudante de Enfermagem, em fase “terminal’
As falas acima revelam, no primeiro momento, a desejada morte repentina, atitude
familiar na modernidade e, no segundo, o desejo do acolhimento de alguém que
vivencia os últimos momentos de sua existência. Fala do apelo a uma nova forma de
relação com a morte, de um vínculo possível entre médico/paciente, por que não dizer,
da procura por uma nova racionalidade médica.
Camus (1989) nos colocou que uma forma cômoda de travar conhecimentos sobre uma
cidade é procurar saber como se ama e como se morre. Como lidamos com o morrer,
como se porta o homem diante da morte, nos desvenda quem é esse homem, como é a
sociedade que ele criou, em que valores ela se assenta. Podemos dizer que a concepção
de morte revela a concepção de vida. Uma sociedade que nega a morte, para a qual a
morte não tem sentido, é também uma sociedade, como dizia Weber, que perdeu o
sentido da vida.
A grande dádiva da negação é permitir que se instaure o interdito definitivo sobre a
morte. No século XX a morte foi escondida, expulsa pela cultura ocidental. Há uma
interdição até do direito de chorar os mortos, que dirá do direito de gerenciar a própria
morte. O local da morte é transferido do lar para o hospital, com a justificativa dos
cuidados especializados e intensivos que o avanço da medicina proporcionou. No
entanto, o paciente que não tem mais como sobreviver encontra sua última morada na
frieza de uma UTI. Ali a família perde o paciente antes da morte. A maioria das pessoas
não vê os parentes morrerem. Nossos mortos morrem sozinhos em hospitais, cercados
por aparelhos e tubos. Transformamos um dos momentos mais importantes de nossa
existência em um ato impessoal, mecânico e desumano, mais solitário ainda, portanto
digno de repulsa e temor. Trata-se de uma morte limpa, higiênica, técnica, solitária e, às
vezes, desumana.
Página 145
De acordo com Martins (1985), não sabemos lidar com a morte porque transformamos a
doença e a morte em um problema técnico, e para isso criamos as empresas, os técnicos
mais qualificados, os equipamentos mais sofisticados, capazes de prolongar a agonia de
um homem durante meses, anos, mas incapazes de devolver-lhe a vida, a vida
verdadeira, a vida com sentido.
Esse exorcismo da morte em nossa cultura é um elemento estrutural da civilização
contemporânea que atende aos desejos da racionalidade médica ocidental. Essa
insinuação que proponho encontra amparo na seguinte assertiva de Luz (s.d.): “Toda
racionalidade (mesmo a racionalidade científica) conserva suas bases em valores,
interesses e investimentos de desejo, que permeiam o conjunto de representações,
concepções e teorizações que a definem como racionalidade”. Portanto, vivemos em um
mundo que cultua corpos sãos, ativos, produtivos, reprodutivos, dentro de um sistema
cujo objetivo é a eficiência, a rentabilidade e o consumo. Tolerar a existência da morte é
no mínimo dificílimo — torna-se imprescindível exorcizá-la em nome da manutenção
do nosso modo de vida consumista, voltado para noções instituídas de juventude e
progresso.
Martins (1985) explica que a expropriação da morte de sua dimensão simbólica,
cultural, sua desumanização, reforça a concepção médica da dimensão meramente
biológica do existir, haurida na sua formação, e alimenta suas fantasias de poder. Não é
à toa que temos esse aforismo: “Quando o aluno entra na faculdade de medicina, pensa
que é Deus; quando sai, não tem a menor dúvida”.
O início dessa fantasia tem sua marca nas aulas de Anatomia, mediante o estudo de um
sem-número de cadáveres, destituídos de subjetividade. A dissecação é fruto do
Renascimento, tempo em que a separação corpo/alma tornou o corpo e a morte objetos
de estudo.
Nessa mesma direção, Zaidhaft (1990) nos convida à reflexão, dizendo: Por seu
desamparo e passividade, o cadáver permite aos alunos experimentar a sensação de
poder absoluto. A relação mantida com o
Página 146
cadáver é registrada e se torna a relação ideal, que será buscada anos depois no encontro
com os pacientes (p. 143).
Cabe salientar que esse fato talvez possa ser considerado a coroação do ritual de
iniciação na racionalidade médica, sendo o seu processo permeado por um constante
aprendizado de negação da morte, da dor, da capacidade de envolver-se, de vincular-se;
emoções incompatíveis com a racionalidade tecnológica.
“Não se envolva com o paciente”; “é preciso ter sangue frio”; “para aprender é assim
mesmo”; “são apenas corpos”; “se você ficar sofrendo a cada morte de paciente, você
não aguenta e larga a medicina”
Estes são alguns dos elementos introjetados para se atravessar o batismo de fogo, um
verdadeiro ritual de iniciação na medicina, responsável, no futuro, por relações mortas
entre paciente e terapeuta, na qual infelizmente o cadáver é o doente ideal buscado em
cada novo paciente.
Inevitavelmente, as imagens que me obsediaram no início do texto retornam agora e
ilustram esta reflexão, mostrando a presença do papel do médico como o senhor da vida
e da morte, na situação do personagem Johnny. Revela ainda a fragilidade do médico
em lidar com um paciente que lembra a sua própria finitude, a sua humanidade, tão
evidente na fala do paciente portador do HIV que atendi como psicóloga, cuja dor
partilhei, que se tornou parte do móvel dessa reflexão e da constatação de que somos
atingidos pela iminência da morte de nossos pacientes. Ele nos convida a pensar a nossa
morte, ou melhor, a nossa vida, nossos planos, sonhos. A morte, no contexto hospitalar,
simboliza o fracasso, rompe o poder, retira os profissionais do Olimpo.
É comum o relato de profissionais que afirmam se sentirem impotentes diante do
paciente incurável: “não tenho nada a fazer” Diante disso, a negação, o distanciamento,
é muitas vezes a resposta para não lidar com o sentimento de fragilidade, com a reflexão
sobre a própria finitude. Os pacientes à morte são uma ameaça ao poder
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médico. Portanto, a morte é silenciada também nos hospitais. A linguagem nessa
instituição denuncia este fato. Não se morre no hospital, vai-se a óbito, perde-se na
mesa, tem-se alta celestial.
Penso que se nosso referencial não for a cura, salvar a qualquer preço, mas um retorno à
arte terapêutica, o cuidar daquele que sofre, poderemos ter re-significado nossa ação e o
nosso papel de cuidadores.
É conhecido o fato de que, costumeiramente, em nossas formações acadêmicas apenas
frieza, objetividade, tecnicismo são valorizados. Quaisquer aspectos que envolvam uma
relação pessoal são desencorajados. É prescrito o não-envolvimento emocional, é parte
do ritual de iniciação.
Na realidade, com o desenvolvimento da ciência, houve um adiantamento do momento
da morte sem uma conseqüente preocupação com a qualidade de vida do sobrevivente,
com o tempo de vida antes da morte, sem um preparo do profissional, que cada vez mais
lida com o doente que presentifica a morte.
Embora se fale hoje que a equipe de saúde deve estar atenta aos aspectos emocionais do
paciente, nem sempre reconhecemos com a mesma ênfase que o emocional da equipe é
parte fundamental nessa relação. Pouco é dito sobre o cuidado com o cuidador, que é
atingido pelo sofrimento do seu paciente. É imprescindível cuidar do cuidador. Estamos
falando em formação acadêmica, em medidas profiláticas, se quisermos caminhar em
direção a um atendimento mais humanitário, de maior qualidade; se quisermos caminhar
para uma racionalidade que priorize o agir terapêutico, que resgate o papel da relação
médico (profissional de saúde) /paciente; em que o paciente possa ser reconhecido como
sujeito em toda sua subjetividade, que valorize a arte de curar e, principalmente, a tarefa
maior da humanidade que, segundo Kierkegaard, é o cuidado. Uma medicina que
promova o encontro entre as pessoas.
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Sabemos que outras racionalidades médicas integram essas dimensões e por isso mesmo
são buscadas pelos pacientes, como, por exemplo, a homeopatia e a medicina oriental.
Penso que há momentos na vida de uma profissão que para ser fiel a si mesma e a seus
princípios éticos é preciso mudar. Mudar talvez menos do lugar teórico, mas muito mais
do lugar da prática. Não é possível lidar com a vida humana sem paixão, a não ser
eliminando a vida em nós mesmos. Não é possível mais pensar, desejar uma ordem que
não cura, mortifica. Mas desejar que, em vez de promover o caos, possa ser responsável
pela reorganização, possa retirar o mundo do desencantamento com o próprio homem.
O mito da razão precisa ser revisto, precisamos de outras imagens mitológicas capazes
de agregar o poder restaurador que o padecimento do olhar pode promover para aliviar a
dor do outro. A qualidade de nossa presença se exprime pelo olhar; pelo toque nos
momentos de comunicação silenciosa (verdadeiro abraço na alma), em que os suspiros
são aceitos, e o espaço do encontro parece ser infinito. É disso que nos fala a estudante
de enfermagem citada no início deste texto. Ajudamos verdadeiramente alguém quando
somos capazes de acolher o seu sofrimento. Cabe lembrar as palavras de Heidegger,
quando nos presenteou:
“A morte ilumina a vida”. Ela pode nos iluminar para um novo ethos. Não podemos
negar o fato de que a morte define a vida como um campo limitado, nos lembra que
temos um tempo marcado (como nos alertou “aquele” paciente HIV positivo). A
questão é, se exorcizamos a morte, negando-a, ou insistimos em percebê-la como uma
conselheira invisível, que nossa jornada alerta para que não esperemos pelo amanhã,
incita a fazer o que pudermos, queremos e sonhamos para re-significar nossa vida
pessoal e profissional. O carpe diem é a reconciliação da vida com a morte.
Tudo isso para dizer que estou convencida de que pensar o lugar da morte nas
instituições de saúde pode contribuir para melhorar a
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qualidade de vida e de morte presente na prática médica e de toda a equipe de saúde.
Lançar o olhar para o exorcismo realizado com a morte pode levar ao reconhecimento
do ritual de iniciação da racionalidade médica ocidental e possibilitar a visão das
sequelas dessa história macabra, na qual muitas vezes o paciente é morto em vida, para
não lembrar a nossa própria finitude.
Mas uma pergunta me desassossega: como alguém não consegue se envolver com a
morte? Talvez seja preciso não se envolver com a vida! Busco auxílio nas observações
de Zaidhaft (1990):
Na tentativa de negar a realidade inexorável da morte, o estudante (acrescento o
médico) primeiramente tenta negar a própria finitude, posteriormente nega a morte do
outro e finalmente mata o que tem de vida em si, ou seja, sua capacidade de se envolver,
de se comprometer com o outro e consigo mesmo (...) quem não morre são os deuses,
ou quem já morreu (p. 89).
Medicina Psicossomática e a Racionalidade da Metáfora Atrevida — A Verdade
Nietzscheana
“Há muito mais verdades entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia.”
Hamlet
Shakespeare, por meio das palavras de Hamlet, já profetizara sobre as muitas verdades
desconhecidas e o nosso vão esforço em reduzi-las, mas o ritual de iniciação da
racionalidade médica ocidental é obsessivo, ao expulsar a possibilidade da presença dos
sentimentos, julgando trilhar o itinerário para o verdadeiro mundo. O mundo do
dualismo socrático, tão bem operacionalizado por Platão.

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Percurso este, que, ao realizar a fratura razão/emoção, negou sua própria paternidade: a
medicina hipocrática. Riechelmann (2000) declara:
A medicina ocidental moderna nasceu das mãos de um filósofo, no país onde nasceu a
filosofia. E mais: a medicina também já nasceu psicossomaticamente. Uma leitura
atenta aos Aforismos de Hipócrates (século VI a.C.) faz ver facilmente que o pai da
medicina nunca deixou de considerar as relações entre a lesão corporal, os estados
psíquicos (chamados “da alma’ na época) e os fatores ambientais (p. 171).

Para o referido autor, compreender sobre o que nos fala a medicina psicossomática é
empreender um retorno, um resgate ao berço hipocrático. O avanço tecnológico é
imprescindível nesse caminho aliado ao cuidado. Razão, emoção, técnica e cuidado
sinalizam pistas para outra racionalidade, ampliam a visão reducionista da medicina
tradicional, por isso Riechelmann fala em elos perdidos. Penso que inverter a lógica da
verdade estabelecida pela ciência clássica, como nos convida Nietzsche, pode promover
a criação de caminhos os quais, em vez de separar, possibilitem rejuntar os elos
perdidos, evitando que continuemos portadores de “negligência unilateral”

Analisando os relatos dos brilhantes estudos de Oliver Sacks, fui convidada a pensar
que muitas vezes atuamos como os pacientes portadores de “negligência unilateral’ ou
seja, só percebemos parte do que ocorre nas diversas situações.
Sacks anuncia a incompletude de nosso olhar científico, de nossas verdades. Dentre
tantos exemplos, o estudo da Sra. S., no livro O homem que confundiu sua mulher com
um chapéu, no capítulo 8, me remeteu à nossa cisão. Trata-se de uma sexagenária que,
depois de um derrame, teve afetada parte de seu hemisfério cerebral direito. Com sua
inteligência perfeitamente preservada, ela teve uma alteração curiosa em sua percepção
visual. Às vezes reclamava que as enfermeiras não punham a sobremesa ou o café em
sua bandeja. Quando elas replicavam: “Mas, Sra. S., está bem aqui, à esquerda” Ela
parecia não entender e não olhava para a esquerda. E sua cabeça
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era delicadamente virada, de modo que a sobremesa ficasse à vista, na metade
preservada do seu campo visual. Ela dizia: “Ah, está aqui — não estava antes”. Ela
havia perdido por completo a noção de esquerda com relação ao mundo e a seu próprio
corpo. Às vezes, ela se queixava de que as porções que lhe eram servidas eram
pequenas demais, mas isso acontecia porque ela só comia o que estava na metade direita
do prato — não lhe ocorria que também havia a metade esquerda. Ela sabia disso
intelectualmente, achava graça, mas, para ela, era impossível sabê-lo diretamente.
A nossa recusa em girarmos nossas cabeças para o outro lado da bandeja faz sentido
dentro do percurso realizado pela medicina e por todos nós, profissionais de saúde.
Engolimos verdades absolutas e irrefutáveis, cobrimos a nossa própria visão e
continuamos famintos.
Des-cobrir o que o pensar metafisico ocidental escondeu, estigmatizou, é o intuito de
Nietzsche, quando pretendeu “colocar a verdade de cabeça para baixo”, inverter seu
sentido, transformá-la em seu avesso. É disso que nos fala sua metáfora atrevida. O
argumento pavimentado por ele é a metáfora da verdade como mulher. O significado da
metáfora que identifica verdade e feminilidade não por acaso vai estar no prefácio do
livro Para além do bem e do mal, em que ele realiza a desconstrução fiel da condição
metafísica e o início da sua exposição sobre vontade de poder-perspectivismo.
Giacoia (2000), comentando sobre a inversão da verdade nietzscheana, nos diz:

Se a verdade for posta de “cabeça para baixo’ então o acesso da verdade platônica
consistirá precisamente na valorização positiva da aparência, dos véus, do disfarce, da
sedução, das paixões, do corpo e do desejo — isto é, de tudo aquilo que, ao longo da
tradição metafísica ocidental, esteve associado com o feminino, com o perigoso, com a
carne, as paixões, o mundo sensível (p. 49).

A operação de inversão, móvel da metáfora atrevida, inaugura a noção de


perspectivismo, denunciando que não é possível um
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conhecimento desvinculado de condicionamentos subjetivos, O condicionamento
racional puro manteve-se dissimulando o perspectivismo. Este des-cobriu a
imparcialidade de um conhecimento desinteressado, a inexorabilidade das
determinações históricas, sociais, culturais, psicofisiológicas e linguísticas que
condicionam o conhecer, o julgar e o agir humanos.
Não se trata de positivar as dimensões da corporalidade, dos sentimentos, do não
facilmente revelado, de retirar a estigmatização de outrora, mas sim de transformar todo
conhecer em um interpretar, vedando qualquer acesso possível a fatos brutos, que
seriam como textos a serem interpretados. É preciso ver, compreender não apenas com
os olhos, mas com o olhar.
Nietzsche e Sacks parecem seguir a profecia de Hamlet, quanto à impossibilidade de um
conhecimento bruto e transparente. Denunciam a impossibilidade de uma interpretação
da realidade sem que o próprio intérprete se veja implicado e obrigado a escarafunchar
as intenções e motivações subterrâneas, seja de que ordem for. A subjetividade, em vez
de ser expulsa, precisa de um canal de reconhecimento para poder ser bem utilizada.
Negar não elimina seus efeitos, talvez os torne iatrogênicos. Vejamos a reflexão de
Blank (1985), ao abordar essa questão, dialogando diretamente com a medicina:
O médico, antes de procurar sempre colocar-se no polo objetivo do confronto
subjetividade versus objetividade, não está imune, ele mesmo, às contradições da
subjetividade, uma vez que seu raciocínio está sujeito ao crivo de re-situação do
conhecimento objetivo na sua práxis (p. 34).
O autor afirma que a própria forma de interrogar o paciente pode induzir o sintoma. Por
mais objetivos que sejam os dados do exame, sua utilização está sempre sujeita à
subjetividade.
Seguindo a trilha das reflexões que questionam a produção de conhecimentos como
resultado exclusivo da razão, encontramos abrigo nos estudos realizados por Damasio
(1996) e outros neurologistas,
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ao demonstrarem que o córtex cerebral deixa de ter como único morador a razão.
Afirmam que o pensamento racional é influenciado pela emoção, argumentando que
profundas interconexões biológicas demonstram que a ausência de emoção impossibilita
a ação do raciocínio.
Tais pensamentos nos instigam a considerar que o fundamental canal de acesso à dor do
paciente, ao seu diagnóstico e, consequentemente, à terapêutica, passa necessariamente
pelo resgate da principal perda decorrente do nosso olhar logocêntrico. Falo da
implosão da relação terapeuta/paciente, do resgate para olhar em direção ao doente,
portanto ele, sua doença, sua história, seu existir. Compreender o paciente o mais
globalmente possível é na realidade ampliar e fortalecer o instrumental diagnóstico e
terapêutico, é girar a cabeça para o outro lado da bandeja.
Cabe a esta altura do percurso trilhado arriscar a assertiva de que a psicossomática se
move olhando para todos os lados da bandeja, talvez por acreditar que a verdade
também seja feminina. Ela não inverte o sentido, mas acata a metáfora de Nietzsche, a
incorporação atrevida da emoção que qualifica e permite compreender com mais
propriedade o sintoma, e intervir aliando a arte da técnica à arte de cuidar. E reconhecer
o que nos ensina Sebastiani (1997):
Possuímos, ainda que não tenhamos nos dado conta, uma profunda relação de
intimidade com nossos órgãos e sistemas e, a despeito de toda cisão a que fomos
expostos como indivíduos/objeto nestes últimos tempos, ainda assim mantivemos uma
relação muito estreita entre nossas emoções e seus correspondentes biológicos (p. 29).
Júlio de Melo (1992), por sua vez, conceituando a psicossomática, assinala:
É uma ideologia sobre a saúde, o adoecer, e sobre as práticas de saúde, é um campo de
pesquisas sobre estes fatos e, ao mesmo tempo, uma prática, a prática de uma medicina
integral (p. 19).
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Vale ressaltar que a psiconeuroimunologia e a psicooncologia trilham o caminho da
psicossomática; são companheiras na arte de guiar nossas cabeças em direção à
sobremesa, ou seja, a reedição de uma medicina integral.
Sem dúvida, trata-se do retorno à medicina hipocrática, em que o médico, como
terapeuta, é um servidor, fiel à origem do termo grego therapeuren, que significa servir,
prestar assistência, ou, ainda, cuidar, ser solícito. Não temos a presença, nessa
perspectiva, do médico senhor da vida e da morte, que salva a qualquer custo, mas a de
um cuidador.
É oportuno lembrar que a arte terapêutica da Escola de Cós (hipocrática) possuía duas
faces que integravam interno e externo, doença e cura, representadas pelas figuras
mitológicas de Higéia e Panacéia. Sayd (1995) explica:
Higéia é a saúde e a força intrínsecas à natureza, presente em todos os seres vivos e a
Panacéia é o poder curativo presente nas ervas, em sua multiplicidade e variedade (p. 5).
Em outras palavras, temos em Higéia a personificação das dimensões internas do
paciente, seu potencial para recuperação e cura, bem como para o adoecimento,
enquanto Panacéia representa os recursos externos medicamentosos ou tecnológicos.
Diante do exposto, o caminho da medicina psicossomática promove o encontro dessas
dimensões. Sua concepção de doença e prática médica não admite a divisão entre mente
e corpo, nem reconhece a apreensão do conhecimento a partir da ruptura sujeito/objeto.
Riechelmann (2001) é enfático ao alertar que as tentações do reducionismo, biologismo,
dualismo e psicologismo podem nos afastar do grande objetivo da Medicina
Psicossomática. Em suas palavras: “compreender e intervir de forma global e integrada
na relação com nossos pacientes” (p. 182). E continua explicando:
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A abordagem psicossomática hoje se baseia na visão de pessoa como um verdadeiro
monobloco psicossomático reagindo a relações, ou, dito de outro modo, a unidade
dinâmica corpo-mente-ambiente. É preciso ressaltar o adjetivo dinâmica, que enfatiza a
permanente modificação das proporções entre os fatores biológicos, psicológicos e
sociais que compõem o quadro atual da pessoa doente (idem, p. 182).
O mesmo autor explica que tal abordagem tem implicações importantes para o
diagnóstico. Este pressupõe necessariamente uma anamnese biológica, que significa
estabelecer um diálogo não diretivo, interrogatório; dirigir a atenção para perceber a
demanda por trás da queixa (verdade feminina); e o terceiro elemento, do qual depende
o sucesso dos outros dois — a postura profissional que favoreça a formação do vínculo
interpessoal. Ele afirma:
Trata-se de uma relação de confiança, sinceridade, cumplicidade, respeito, afeto e,
principalmente, interesse no que o outro tem a dizer. A principal habilidade do médico
para uma abordagem psicossomática correta é estar disponível e atento para ouvir bem
(idem, p. 47).
Tudo isso para dizer que, rejuntando os elos perdidos, recuperamos a arte da
terapêutica; ampliando nosso olhar e nossa intervenção, re-significamos o lugar do
paciente, do terapeuta, e a importância do vínculo interpessoal.
Esdras Vasconcelos (2000) brilhantemente sintetiza meu desassossego e a minha aposta,
quando diz:
Não podemos falar de emoções, sem considerar o sistema cognitivo; de fenômenos
físicos, sem reações químicas; de processos políticos, sem influências econômicas; de
fé, sem um corpo que a abrigue; de melodia de um instrumento, sem o ar que a difunde;
de flores, sem estação; de cultura, sem expressão; de sociedade, sem inconsciente
coletivo; de medo, sem instinto de sobrevivência; de razão, sem paixão, de revolução,
sem amor (p. 40).
Acrescento da doença sem vontade de saúde; da dor sem o riso; de continuar esse
exorcismo de idéias e sentimentos sem a UPI!.
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Ainda assim, as muitas verdades entre o céu e a terra continuarão a existir. Este foi um
dos grandes ensinamentos de Shakespeare, cuja função parece ter sido dar vida à nossa
mente, permitindo que nos tornemos conscientes do que jamais descobrimos sem ele.
A UPI!: Um Encontro Entre o Riso, a Solenidade da Doença e a Vontade de Potência
Conta-nos a lenda:
Deméter, deusa da fertilidade, tem uma filha que se chama Perséfone, a quem ama
muito. Hades, deus do reino dos infernos, rapta sua filha. A deusa sai à procura da filha,
mas não consegue encontrá-la, fecha-se em sua própria dor e para de rir. Em razão da
dor da deusa da fertilidade, interrompe-se na Terra o crescimento das ervas e dos
cereais. A serva Jamba faz um gesto obsceno e a deusa ri. Com o riso da deusa a
natureza volta a viver e sobre a Terra retorna a primavera.
Trazer para o diálogo com a racionalidade médica ocidental o trabalho realizado pela
Unidade de Palhaçada Intensiva (UPI!) traduz a tentativa de acrescentar, às imagens
reais e fictícias do início do texto, imagens de vida presente na dor e no riso dos
pequenos pacientes atendidos pelos doutores da UPI! Imagens que nos dizem muito
sobre como acolher o convite em direção a uma racionalidade que nos devolva o lugar
de humanos. Cada pensamento arriscado, cada história contada, cada argumento gerado
espelha essa intenção.
Apenas um ano de existência tem a UPI! Pouco tempo... (estou consciente de que o
parto talvez esteja sendo prematuro, mas parte das dores das parturientes se deve à
incerteza de como o mundo acolherá seu rebento) Um tempo repleto de histórias, de
dores, de cores, de vidas que, olhando para a dor, continuam celebrando o prazer.
Um tempo capaz de iluminar o que ocorre quando o riso se faz presente diante da
solenidade da doença; a transgressão que ele pode representar na nossa racionalidade
científica, mas também de
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como ele pode fertilizar novas relações no contexto da doença, novos caminhos na
ciência, restaurando a vontade de potência, de saúde, vontade de parir outra realidade.
O riso da deusa restaura a vida em si e fertiliza a vida à sua volta, O riso dos nossos
pacientes, o riso presente nos corredores e enfermarias dos hospitais fertiliza a dimensão
da vida neles e em todos nós. É o motivo de existência da UPI!, mais do que
entretenimento, mudança.
Caros leitores, com vocês a UPI!
Direção de Atores:
Fernando Yamamoto

Coordenador do Projeto:

Gustavo Wanderley

Psicológica:

Geórgia Sibele Nogueira da Silva

Assessoria Médica:

Diana Dantas
Atores:
Gustavo Wanderley: Doutor Cem

Henrique Fontes: Doutor Labrô

Maria de Jesus: Doutora Da Luz

Renata Kaiser: Doutora Biela

Marco França: Doutor Amado

Fernando Yamamoto: Doutor Sushi

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A UPI! nasceu como um projeto do grupo de teatro Clowns de Shakespeare, em
parceria com a Unimed. Esta garante o apoio financeiro, o suporte humano e logístico
para sua realização. Os doutores são atores profissionais, treinados no teatro Clown, e
submetidos a um trabalho semanal de assessoria técnica e psicológica, realizado por esta
autora (professora do departamento de psicologia da UFRN).
O trabalho consiste de: estudos para a construção teórica, filosófica e técnica da UPI!,
supervisão dos atendimentos/visitas hospitalares, com estudo e discussões das
intervenções, e suporte emocional aos doutores da UPI!, por meio de um espaço de
reflexão e expressão das emoções vivenciadas no trabalho.
A assessoria psicológica treina, assiste e cuida dos cuidadores — os doutores da UPI! Já
a assessoria médica serve de apoio aos procedimentos médicos e ao conhecimento das
doenças e de suas terapêuticas.
A UPI! atua em dois hospitais públicos da cidade de Natal — Hosped (Hospital de
Pediatria da UFRN — Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e no Hospital
Infantil Varela Santiago, em sua Unidade de Oncologia. As visitas acontecem uma vez
por semana, por uma dupla de doutores acompanhada por um membro da equipe “à
paisana” (que registra toda a visita para o estudo em grupo). Os pacientes da UPI! são,
em sua maioria, crianças portadoras de câncer.
Objetivo
• Utilizar o riso como recurso terapêutico na recuperação, no cuidar das crianças
hospitalizadas.

• Colocar os recursos dos clowns ao dispor das crianças, restituindo a dimensão da


alegria em suas vidas.

• Devolver à criança um pouco de controle sobre o corpo e sua vida.


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* Favorecer uma atitude positiva e ativa em relação à enfermidade e ao tratamento.

• Favorecer a alteração do clima hospitalar, possibilitando inaugurar outra


racionalidade.

O riso, como recurso terapêutico, vem sendo discutido nas duas últimas décadas.
Doutores “palhaços” surgem no mundo todo e inspiram os doutores da UPI!. Não
estamos inventando a roda, mas temos um objetivo claro de como girar a roda, ou como
girar a cabeça para o outro lado da bandeja — o desejo de contaminar a racionalidade
médica ocidental com os ensinamentos dos doutores clowns. Os efeitos do riso nos
falam de um benefício físico e emocional dos pacientes. E nos falam também de outra
maneira de enxergar e praticar medicina — possibilitam a receita para uma autêntica
medicina psicossomática.
A esta altura é impossível não fazer a pergunta: como é possível? Antes de falar em
procedimentos e resultados, é oportuno indagar: o riso é terapêutico? Qual a relação
entre a técnica do clown ou a racionalidade dos doutores da UPI! e a racionalidade
médica ocidental? Em outras palavras, como entendemos o processo saúde-doença,
como percebemos a apreensão da realidade, que tipo de verdade perseguimos, nos
remete às crenças que guiam nossas ações.
O Riso como Recurso terapêutico
A medicina vem tentando esclarecer os efeitos do riso para a saúde. Somente mediante
comprovações científicas o riso poderá ser receitado como panacéia. Esquecemos que,
na realidade, ele é um recurso interno a ser despertado, faz parte da dimensão da Higéia,
e a comprovação de seus benefícios apenas reforça a importância de reunirmos essas
duas faces.
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Dar ciência ao riso é por si só engraçado, mas pode significar a possibilidade de um
novo conceito de ciência, que mais uma vez, insisto, pode ser um resgate ao berço
hipocrático.
Neste sentido, é interessante observar que Asclepius, pai de Higéia e de Panacéia,
possuía um santuário na cidade grega de Atenas, onde os doentes assistiam a
espetáculos musicais e comédias. Deliciar-se com piadas era a prescrição. Ler e ouvir
histórias engraçadas eram receitas da época. O argumento utilizado era a convicção de
que o riso e a alegria aqueciam o organismo, assim como a tristeza contrariava e
esfriava o corpo.
A psicossomática moderna cresce comprovando a interferência da tristeza, do
sofrimento emocional causado por grandes perdas, no aparecimento de doenças como o
câncer e no acometimento de problemas cardíacos. Da mesma forma, a
psiconeuroimunologia comprova a dependência do sistema imunológico aos fatores
emocionais.
O caminho inverso começa a ser vislumbrado também pela ciência médica, mesmo que
timidamente. O resultado de várias pesquisas, entre elas a de William Fry, vem
demonstrar que um dos maiores efeitos do riso é reduzir a liberação dos hormônios
associados ao estresse — o cortisol e a adrenalina. Com menos hormônios desse tipo
circulando no organismo, o sistema imunológico se fortalece. Produzidas nos gânglios
linfáticos e na medula óssea, as células de defesa do organismo não só aumentam em
quantidade como também se tornam mais ativas, com destaque sobretudo para os
linfócitos B, responsáveis pela produção de anticorpos, e os T, que detectam vírus ou
bactérias (Veja, 2001).
Muitos estudiosos já aceitam que o riso fortalece o sistema imunológico, estimula as
funções cardiovasculares e libera endorfinas que combatem a dor. Quem mais
contribuiu para divulgar as propriedades curativas do riso foi Norman Cousin. Nos anos
1960, esse
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jornalista americano curou-se de uma doença grave por meio do riso. Escreveu sua
história anos depois, lançando, em 1979, Anatomia de uma doença, tornou-se símbolo
da terapia do riso e inspirou pesquisas nessa direção.
Falar em cura pelo riso pode ser ainda uma interrogação, mas estou convencida de que
esta discussão pode contribuir para reafirmar a impossibilidade da separação entre
mente e corpo. A tentativa de entender e intervir no processo saúde-doença,
demonstrando que a alegria pode suscitar a vontade de potência ou de saúde, como diria
Nietzsche, pode aliar-se ao tratamento, devolvendo a dimensão humana da alegria,
apesar do momento de dor.
Se sorrimos é porque nos deixamos envolver. Resgatar essa experiência corporal e
emocional em um momento de dor, em situações de constrangimento e medo, é por
algum instante vivenciar outra dimensão das emoções da vida, vivenciar o prazer.
Masseti (1998) nos ajuda a entender a recuperação física de nossos pacientes, ao
pontuar aspectos psicológicos do sorriso. A referida autora afirma que o sorriso pode ser
um lugar de ação. Explica que um aspecto importante na recuperação física do paciente
está relacionado à energia despendida para lidar emocionalmente com a doença e com a
hospitalização. Em tais situações, é demandado um alto grau de elaboração, em razão da
ansiedade e dos medos, constantemente vivenciados no hospital. O humor aparece como
um recurso importante, permitindo que a criança explore fatos que, por obstáculos
pessoais, não se poderia revelar de forma aberta e consciente. A energia investida no
problema pode ser modificada, propiciando um bem-estar que levará a um melhor
enfrentamento da situação. A alegria libera a energia represada e, dependendo dos
procedimentos, mais do que liberar, permite transformar a experiência traumática.
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O riso funciona como um objeto transicional, representando para a criança a transição
da angústia à alegria. Os doutores da UPI! estão à disposição das crianças para
exercerem essa função. A teoria de Winnicott (1993) sobre espaço funcional e objetos
transicionais fortalece nosso pensamento. Ele diz que o espaço funcional é a área em
que o fenômeno lúdico opera, diz respeito à existência de uma região de potencialidade
— universo simbólico — capaz de promover o estabelecimento das relações do sujeito
com a realidade. Diz ainda que “o objeto transicional constitui uma defesa contra a
ansiedade, especialmente a ansiedade do tipo depressivo” (p. 392).
Fica claro que a criança, em sua brincadeira, seja com sua boneca particular, seja em
uma interação de ludoterapia ou na interação com os doutores da UPI!, está atuando
com objetos transicionais, fazendo uma catarse de seus problemas e equilibrando suas
emoções.
Melaine Klein (1993), estudando o brincar, também concluiu que as crianças sentem um
prazer muito intenso em suas brincadeiras, não apenas pelo prazer, “mas também
porque aí encontram um meio de dominar sua angústia” (p. 86).
Rir movimenta as nossas emoções positivas. Poder trazer essa experiência corporal e
emocional no momento da doença é tocar na centelha de vida que pode ficar embotada
na estrutura hospitalar. E, como gritou Nietzsche: “Sempre que encontrei vida, encontrei
vontade de poder’ Por que não dizer, vontade de saúde. Para a criança ou adolescente,
rir, mais do que efeito de um entretenimento, é fazer circular vitalidade e, para a
instituição, essa vida em ação pode suscitar mudanças. O riso devolve a vontade de
poder, no sentido nietzscheano, que significa uma vontade de crescer, de vir a ser, de
criar. Remete a criança à vida que ela tem em si.
E Wuo (2000), por sua vez, especifica:
Página 163
O ato de sorrir movimenta dimensões positivas, e a isso chamamos o riso de suscitador
da vida, O riso nasce naturalmente fazendo parte de um ciclo. Nasce abalando as
estruturas, movimenta o nosso lado errante (...) quando sentimos o movimento do riso
em nosso corpo, aliviamos uma porção de constrangimento, de contrações, e esse mover
uma estrutura corpórea pode mover uma estrutura social debaixo de uma lona de circo,
em teatro ou hospital (p. 67).
“Racionalidade” do Clown Versus Racionalidade Médica Ocidental
O riso permite demonstrar o quanto nossas emoções podem mudar de lugar — da dor ao
prazer, da tristeza à alegria; o quanto a seriedade pode dar lugar à descontração, o
quanto é possível mudar, inverter. Ele movimenta o corpo físico sim, mas também o
social. É exatamente porque ele ilumina vulnerabilidades, mediante sua lógica
subversiva, e aponta outras possibilidades, que foi proibido na Idade Média.
Humberto Eco (1983), em O Nome da Rosa, retrata a problemática do riso e do cômico.
O riso foi condenado na Idade Média pelo Clero; era considerado coisa do demônio,
heresia, como também era proibido na literatura. Enfim, conhecer o mundo por outra
lógica não era permitido. A Inquisição não permitia nada que contrariasse as regras
divinas. A risada 4enota senso crítico, fantasia, distanciamento do fanatismo, e, assim, a
possibilidade de quebrar regras. Denota um tipo de poder que o poder constituído vai
temer e, consequentemente, reprimir.
Portanto, dar passagem ao riso no hospital é dar passagem também a alguns ruídos.
Vamos entrar um pouco na lógica do clown para podermos apreender seus
ensinamentos e entendermos como os nossos doutores da UPI! se utilizam da lógica
clown para exercerem sua função terapêutica enquanto médicos; exatamente porque
suas
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palhaçadas ultrapassam a função do entretenimento, do humor e, desta forma, podem
gerar ruídos e até mudanças.
Clown se traduz por “palhaço” Apesar de palavras de origem diferente, as duas
confluem em essências cômicas. Ele tem suas raízes fincadas na ingenuidade e pureza,
sendo, portanto, puramente humano. Conhece a sua própria fragilidade, mas acredita
que pode enfrentar e mudar o mundo para melhor.
O doutor Clown sente que tem empatia pela dor de seu paciente, mas sabe que sempre
pode fazer algo, pode cuidar do sofrimento dele; ele se coloca à disposição dele para
lidar com sua dor e resgatar sua alegria. Ele enxerga sempre a essência de uma criança
que é a sua alegria e não a doença, o seu prognóstico. Já em seu diagnóstico, está
preocupado em como tocar nessa dimensão da criança. Como acender sua Higéia, seu
potencial interno de saúde, vida, prazer.
Tem em comum a lógica do raciocínio não-linear. Ele se relaciona com a realidade de
uma forma bastante complexa, inventando sempre novas saídas. Ele quebra com a
lógica do previsível ao propor soluções novas, como, por exemplo, receitar rizoel para
uma enfermeira, dar um adesivo calmante para um pai nervoso, transformar uma meia
em anestésico, estimular a fantasia das crianças receitando o uso do adesivo da fome.
Em outras palavras, a realidade das crianças hospitalizadas passa a incorporar novos
elementos para seu enfrentamento. Pela espontaneidade, ele espelha o que está vendo,
permitindo percebermos os fatos a partir de novos enfoques, ampliando nossa
percepção.
Masseti (1998) pontua:
Uma das características da atuação dos clowns doutores é transformar qualquer
acontecimento em um recurso para o seu trabalho: um enganchar de porta, um tropeço,
um “não”, tudo é incorporado como oportunidade e é canalizado para a linguagem
humorística. Essa capacidade carrega em si uma metáfora importante, em se tratando de
doença e hospitalização: a de que é possível transformar a dor e o sofrimento (p. 56).
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Colorir de sorrisos os hospitais é uma forma de transformar o sofrimento, de introduzir
elementos de humanidade nas relações entre equipe de saúde, pacientes e familiares. É a
quebra da solenidade da doença, é a troca da dor pelo sorriso. É a permissividade para
as emoções, mas como timidamente comentou uma enfermeira: “Se ela continuar, vai
contaminar tudo”, Ela se referia à colega continuar cantando um funk enquanto aplicava
injeção e a conseqüente contaminação de alegria por toda a enfermaria. O funk foi
criado pela enfermeira M., quando auxiliava o doutor Amado e o doutor Sushi em uma
visita e foi batizado como “Funk da enfermeira”
O episódio demonstrou o quanto, no hospital, principalmente nos que tratam de doenças
graves, existe uma solenidade em torno da doença, permeada por seriedade e tristeza.
Nietzsche dizia que “o ensinamento da arte é encontrar prazer na existência” (p. 61). Os
nossos doutores da UPI! buscam inserir e reintroduzir esse elemento na vida de todos
que circulam no hospital. Trata-se de um recurso a mais, mas que sem dúvida contamina
a todos.
Ele nos diz ainda sobre o caminho que impregnou a racionalidade científica ocidental:
A ciência repousa sobre o mesmo chão que o ideal ascético: um certo empobrecimento
da vida é aqui como lá o pressuposto das emoções tornadas frias, o tempo tornado lento,
a seriedade impressa nos rostos e gestos (p. 101).
Fragmentos da U P1!: Alguns Procedimentos e Resultados
Os doutores da UPI! utilizam-se de vários recursos artísticos, entre eles a música, a
mímica, a técnica clown à disposição dos pacientes, equipe e familiares. Eles acessam a
imaginação e a fantasia das crianças, possibilitando a catarse e a elaboração de
momentos difíceis, por meio da criatividade, do improviso, mas também de
Página 166
procedimentos estudados para servirem como objetos transicionais capazes de amenizar
tensões, medos e ansiedades pré-cirúrgicas, por exemplo. Neste sentido, são realizadas
cirurgias imaginárias, nas quais as crianças manipulam a parte doente (massa de
modelar retirada de seu corpo) e são levadas a acreditar que o outro “doutor” vai apenas
fechar a operação já realizada.
As clássicas cirurgias do nariz para trazer felicidade contam sempre com outros
pacientes como assistentes; a prescrição do uso do nariz vermelho, que se usado três
vezes ao dia traz felicidade; a fita métrica para medir a pressão e a meia de chulé
anestésico fazem parte de rotinas desses médicos. Bem como o pato purific, que purifica
a região que vai ser cirurgiada, gorila que suga a dor, o adesivo que dá fome de leão, o
adesivo calmante para pais irritados, brincadeiras de assistente de médico e prescrições
diversas.
Cada qual se dá conforme a demanda individual do paciente consultado, da enfermaria
como um todo ou de um membro da equipe ou familiar, sendo acompanhadas muitas
vezes de músicas criadas por um dos nossos doutores — doutor Amado — inspirado na
realidade vivenciada pelas crianças e em nossos procedimentos. Nos casos em que o
silêncio se faz necessário, a mímica é um grande aliado. O que interessa é que para eles
todos estão dentro de possibilidades terapêuticas.
O MUNDO VERMELHO
Vamos começara transformação

É muito divertido, não tenha medo não

Em cima da sua boca, em baixo dos oião

Colocando cor repetindo esta canção

O mundo na ponta do nariz


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Todo mundo é vermelho

Vermelho pra quem é feliz

E eu quero te ver feliz

Com o mundo na ponta do nariz

Surge da maleta a voar voar voar

O pato de borracha que vem purificar

A nossa anestesia é uma meia com chulé

Que o doutor Palhaço tirou do pé

Refrão
É chegada a hora da consulta terminar

E um nariz vermelho eu vou colocar

De frente pra um espelho você vai olhar


Três vezes por dia a tristeza passará

UPI!
Outro aspecto importante dos procedimentos é buscarem resgatar a autonomia, a
atividade e a possibilidade de escolha (até o não participar de uma brincadeira) em um
espaço onde eles têm de permanecer passivos.
Cabe destacar que os doutores da UPI! são solicitados por enfermeiros e médicos, para
ajudarem em procedimentos de outros médicos. Familiares remarcam exames nos dias
que os doutores da UPI! trabalham, para também terem seus filhos consultados por eles.
A equipe solicita que os doutores da UPI! trabalhem mais dias. Por tudo isso, podemos
também sorrir e falar em resultados para o paciente, familiares e para a instituição
hospitalar.
Assim como embaixo da lona do circo todos são envolvidos pelo riso, no hospital, os
cuidadores (equipe e família) também têm seus
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ganhos quando o riso cobre o dia-a-dia. Apesar de esta reflexão sobre a UPI! enfatizar
em primeiro plano os pacientes, são inegáveis os ruídos, e aprendizados da equipe, bem
como o contágio prazeroso das mães ou pais, ao verem o sorriso de seus filhos ou eles
próprios experimentarem tal dimensão da vida.
Ranier (2001) pontua:
As mães precisam da esperança para conseguirem viver o cotidiano de ter um filho com
câncer. É a esperança que lhes dá a condição de realizarem as tarefas físicas e
emocionais que sua vida pessoal e familiar requisita nesses tempos difíceis (p. 60).

Em meio a tanto sofrimento, expectativa, mobilização de esforços, incertezas que


permeiam o cotidiano das famílias que têm um filho com câncer, os doutores da UPI!
levam o sorriso, a esperança e o cuidado.

Chiattone (1996) também nos convida a continuar seguindo essa direção quando revela:
É de fundamental importância não só para a criança, mas também para a sua família,
que receba da equipe de saúde o apoio necessário para enfrentar todo o processo de
doença e morte, pois o manejo de crianças terminais inclui a adaptação fisiológica e
médica e a adaptação psicológica e existencial à situação traumática em si. E é nessa
adaptação psicológica e existencial que entram em jogo sistemas intrapsíquicos
complexos constituídos pelos subsistemas dos pacientes, familiares e também equipe de
saúde (p. 135).
Vamos a alguns fragmentos de nossos resultados:
MELHOR ACEITAÇÃO DOS PROCEDIMENTOS DE ROTINA E EXAME
MELHOR COLABORAÇÃO COM A EQUIPE
O clima antes era de apreensão. Com a UPI! elas [as crianças ficam mais receptivas aos
procedimentos. “Os médicos da alegria” não só
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aliviam o sofrimento, como facilitam o nosso trabalho. (Ana Maria Guimarâes —
psicóloga do Hospital Varela Santiago.)
F., o Medo e a Cirurgia
“F. nos chamou [doutor Sushi e eu, doutor Labrô] e disse que estava com medo da
biópsia que tinha de fazer no outro dia. Então, com a ajuda de P. [outro paciente],
fizemos a cirurgia um dia antes, tirando um pedaço da massa de modelar [que seria a
parte da biópsia], de manipular, brincar e depois deixamos um adesivo no local para o
médico substituir pelo ponto. Ficou bem tranquilo e soubemos pelas enfermeiras na
outra visita que ele foi bastante calmo e confiante para a biópsia.”

O relato de doutor Labrô ressalta que intervenções dessa natureza amenizam a


ansiedade e o estresse do paciente, e favorecem o bom andamento do exame. Além do
fato de que toda caricatura cômica feita para a realização da “tal cirurgia” rende muitos
sorrisos.

INAUGURA EXPECTATIVAS POSITI VAS, ALEGRES NA ROTINA DO


HOSPITAL
As crianças hoje já amanheceram animadas dizendo que os doutores palhaços vinham.
Elas cooperam mais. (Enfermeira do Hosped)
Doutor S., eu vim agradecer e elogiar o trabalho de vocês, pois o paciente J. só deixou
eu fazer o exame quando eu disse que vocês iam chegar e queriam ver o resultado.
(Médica residente)
DIMINUIÇÃO DO ESTRESSE DAS CRIANÇAS E DOS CUIDADORES
(PAIS/EQUIPE)
É muito bom saber que hoje vocês trabalham. (Mãe)
O clima fica muito descontraído, a gente pode sorrir. (Funcionário)
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POSSIBILIDADE DE AUTONOMIA E ATIVIDADE NO COMPORTAMENTO DOS
PACIENTES
É indiscutível também o efeito terapêutico da catarse realizada, bem como a vivência
ativa dos pacientes.
Os Zés, os Médicos e os Ruídos
“(...) O fato de termos três ‘Zés’ na enfermaria nos fez batizar a ‘enfermaria dos Zés’.
Começamos, já que eram crianças um pouco mais velhas, a conversar sobre o cotidiano
do hospital, e por acaso acabou surgindo a questão do comportamento dos médicos.
Começamos a interagir com elas, simulando como um médico deveria ou não cuidar de
seus pacientes, desde a entrada nas salas, o cumprimento, a abordagem às crianças,
enfim, elas iam nos dizendo como fazer, e nós íamos reproduzindo. Algumas vezes elas
faziam, e acabavam fazendo como os médicos fazem ao falar com elas. Muitas vezes
chegando sem cumprimentar e já perguntando: E aí? Fez cocô hoje? Fez xixi? E nós, ao
perguntarmos se elas [as crianças] não cumprimentavam os médicos, muitos deles
disseram que sim e elas nem respondem. Foi muito boa a intervenção, todas se
divertiram muito e se expressaram à vontade — uma completava a outra ou tomava a
vez. Disseram uma série de sensações e desejos que têm, de como gostariam que
fossem, como gostariam de ser tratadas... Exageramos as falas, levamos as atitudes dos
médicos ao extremo e encenamos com elas bem alto (tipo:o médico chega e não
cumprimenta, as crianças, sob nossa orientação diziam:’ Bom-dia, doutor!’, ele não
respondia se virava e perguntava: ‘E aí? Cagou hoje? Mijou?’), e as crianças se
deleitavam com isso! Em alguns momentos, as crianças devolviam a pergunta: ‘E o
senhor cagou? ’O deleite era maior, maior. Haja catarse!”
Nesse relato fica evidente que a presença dos doutores da UPI! também espelha ruídos,
que podem servir de luz para outros caminhos, para outras formas de relação terapeuta-
paciente, se puderem ser comunicados.
Página 171
É indiscutível também o efeito terapêutico da catarse realizada, bem como a vivência
ativa dos pacientes.
O Pequeno Jornalista
Frente:
Verso:
O repórter em questão é paciente do doutor Labrô. Recebeu a prescrição para relatar os
acontecimentos após a consulta, pois o mesmo gosta muito de escrever e como estava
com “tristite”, animou-se com tal prescrição.
O garoto de forma prazerosa torna-se ativo no contexto do seu tratamento e denuncia
sua percepção em torno da interação a sua volta. Mais uma vez, temos a possibilidade
de refletir sobre nossas atitudes enquanto profissionais de saúde.
RESSIGNIFICAÇÃO DE ALGUMAS PRÁTICAS HOSPITALARES NO
APRENDIZADO COM OS DOUTORES DA UPI!
M., o Vidro e o Cartão Travesseiro
Chegando na oncologia, qual foi a minha surpresa, mesmo tendo tido uma “meia
informação” a respeito de M., ao ver que a mãe — e o pai, que eu nunca tinha visto
antes — estava na antessala, lavando as mãos, antes de
Página 172
entrar no espaço em si. Ela estava no isolamento, junto ao P., outra criança muito
especial para mim, cujo tumor se desenvolve na área de um dos olhos, e que não
reconheci de cara, por estar deitado para o outro lado. Enfim, voltando a M., pude ver
uma emoção muito grande nos olhos da mãe, também velha conhecida, e do pai, com
quem nunca havia encontrado (mas esse brilho denunciou que ele já havia ouvido falar
do doutor Labrô e do doutor Cem), uma alegria em nos ver por lá. Foi muito forte!
Ao ver M. pela janela, numa enfermaria cujo acesso nos foi naquele momento negado,
me surpreendeu o seu estado debilitado, muito magra, mais frágil ainda do que o
normal, mas o seu sorriso — revelado depois pelos pais que não acontecia há um certo
tempo — e o esforço descomunal para levantar seu braço e nos dar tchau, foi algo muito
especial, confirmou uma relação muito forte, apesar de ter sido construída devagar, com
dificuldades. Como não podíamos entrar, eu fazia mímica, tentava comunicar com o
olhar, então resolvemos mandar um cartão com uma dedicatória muito carinhosa,
verdadeira e do fundo do coração para ela. Avisamos que voltaríamos à janela mais
tarde, após passarmos pelas outras enfermarias, quando o fizemos, já no final da visita,
pude ver a cena maravilhosa de M., dormindo ao lado do cartão, quase que um
travesseiro, me pareceu ter sido muito especial
para ela. Pra mim com certeza foi... Poderia ser a última vez que a estaria vendo assim
de longe, sem poder tocá-la, trocar uma palavra com ela.

Doutor Sushi

No relato desse ator ao descrever a visita do doutor da UPI! vemos uma pessoa humana
por trás do doutor, vivenciando os sentimentos provocados pela iminência da morte do
outro, enfrentando esse sentimento com atitudes de carinho, afeto, possibilidades
terapêuticas pouco usadas, mas eficientes no cuidar daquele que sofre. No silêncio e na
distância, a presença humana de nossos doutores Sushi e Amado.
Página 173
A Enfermeira do Funk e a Solenidade Hospitalar
Um episódio foi especial. Com E., quando ele estava com medo de tomar a injeção.
Pedimos que ele nos dissesse uma música que gostava, e ele atacou de funk. A
enfermeira, que acredito é a legítima enfermeira do funk, nos acompanhou, cantou,
dançou. Fizemos uma coreografia que virou hit no hospital, e o melhor — enquanto M.
aplicava o remédio, o pequeno E. dava gargalhadas, sem nem sentir a picada ou o
líquido.
A versão criada pela enfermeira começava assim: “Só uma injeçãozinha não dói, uma
injeçãozinha não dói”. Todos os pacientes só querem receber injeção acompanhada por
música e show coreografado.

Doutor Labrô

Apesar dos insistentes pedidos das crianças e dos doutores da UPI!, a enfermeira do
funk não cantou e dançou mais como “naquele dia”. Em outra ocasião em que a UPI!
pedia, ela timidamente cantava, mas com o cuidado para não contaminar o ambiente.
Como já relatou outra enfermeira (fato já descrito anteriormente): “Não pode, se não
contamina o ambiente”. Retratando o culto à tristeza e a solenidade da doença na
instituição hospitalar e a consequente não permissividade ao riso.
Inspirado pelos constantes sofrimentos de nossos pequenos pacientes, diante da
dificuldade da equipe de enfermagem “pegar” suas veias, doutor Amado cria a música
Veia Bailarina.
Veia Bailarina
Corre, salta, pula, pega a veia bailarina

Levada menina querendo brincar

Pega, tica, esconde, cara de careta

Veia bailarina você vai dançar

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Venha, me ajuda, leva no corpo um pouco da vida

Que falta pra esse amiguinho brincar

Você hoje tá sapeca e voa como uma peteca

Mas onde você for menina eu vou

Refrão
Vamos fazer diferente quem se esconder agora perde

o bobo, quem aparecer é o rei

Nessa brincadeira ganha quem gosta de ser companheiro

E dar as mãos na roda pra dançar

Marco França / Cleudo


F., Dentro ou Fora de Possibilidades Terapêuticas
Estávamos no final do plantão, eu e doutora Biela Baleia, quando pedimos permissão
para entrar no quarto de E., que estava, com a ajuda da mãe, terminando de comer seu
jantar. Havíamos sido avisados deste paciente quando entramos no hospital no começo
do plantão, ele estava em estado terminal e teve de ser colocado no isolamento para
evitar o sofrimento de outras crianças (estranho, eu pensei, e o quanto isso não afetaria
ele nesse finzinho de sua breve vida?), mas não lembramos desse detalhe quando
entramos na enfermaria.
F. não conseguia controlar muito bem os movimentos dos braços, nem tinha forças
físicas para ficar em pé ou sentado, mas sua vontade de viver saltava pelos seus olhos e
dançava pelo quarto inteiro. Doutora Biela notou que ele gostava de ler histórias em
quadrinhos e conseguiu um canal de comunicação pelos heróis das histórias, eu
aproveitei para conversar com a mãe que, acabei descobrindo, era do mesmo interior
que eu havia visitado recentemente e conhecia o mesmo senhor cuja casa eu havia me
hospedado. Pronto, depois de cinco minutos éramos velhos conhecidos e já
Página 175
combinávamos um café da tarde, quando doutora Biela chamou minha atenção para o
suco que havia sido deixado intacto na bandeja. F. logo disse que não gostava de suco
de acerola, mas que havia gostado muito do peixe servido no jantar, era uma pena não
haver mais. Na mesma hora nos olhamos e tomamos uma decisão que não sabíamos
quais as consequências, mas decidimos assumir os riscos. Iríamos buscar mais peixe e
trocar o suco de F. Saímos da enfermaria e falamos com as enfermeiras e nutricionistas,
perguntando como e se poderíamos levar o jantar, que já havia se transformado no prato
francês para o sr. F. Depois da resposta positiva, fomos à cozinha e eu fiz questão de
repassar a homenagem ao cozinheiro que ficou muito feliz por seu peixe ter sido bem
aceito. Conseguimos trocar o suco de acerola por um de goiaba e colocamos junto ao
peixe em uma bandeja coberta, formando o prato especial levado pelos doutores —
garçons franceses. Quando chegamos na enfermaria preparamos um ambiente digno do
jantar francês do sr. F. e, quando a bandeja foi descoberta, os olhos do nosso senhor de
12 anos ficaram mais azuis e no meio de um sorriso ainda inédito na visita, ele disse:
“Agora vai ficar bom’. E sua mãe reforçou: “meu filho, come, você logo vai ficar bom”.

Doutor Labrô

Ele não ficou bom, mas alimentou-se na véspera de sua morte com um apetite e
felicidade como nos tempos de saúde. Houve intervenção terapêutica, porque os
doutores da UPI! acreditam que sempre é possível cuidar.
Naquele instante ele foi feliz, o tum-tum do tambor da vida bateu mais forte, e mais uma
vez inspirou doutor Amado a criar mais uma música para nossa UPI!.
Tambor da Vida
Hoje em silêncio eu ouvi um tum-tum

Que surpresa tão boa amigo

É o som vivo do meu coração


Página 176
O tum-tum do tambor da vida
Em nosso peito ele mora
Bater é sua missão

Ponha a mão no peito e sinta

A festa do coração

Tum-tum-tum-tum faz o meu coração

Bate feliz todo dia

É o tambor forte da canção

Canção da minha alegria

Dentro de nós ele toca

A vida com alegria

Vamos entrar meu amigo

Na festa do coração

Marco França / Cleudo


K. e a Superação do Doutor
K. me assusta de primeiro, não consigo ver, não consigo me aproximar, me dirijo a
outros. Insisto. Olhá-lo me dói. Me dirijo a outros. Decidi vê-lo, chegar mais perto.
Lembrei dele nos tempos mais agitados. Era ele que não deixava a minha maleta quieta.
Adora os meus sons (lógico, não podia ver com os olhos). Eram sons e tatos.
Peguei na maleta, me aproximei, mas ele não respondia, estava encolhido, parado, frágil
como nunca o tinha visto. A mãe o segurava carinhosamente, proteção. “Ëta, que
menino lindo, olha meu filho o doutor palhaço, lembra como você gostava de mexer na
mala dele?” Não respondia, peguei a
Página 177
(Clown), a essência da criança é a possibilidade do brincar e sua função é resgatar essa
energia.
Por trás dos Clowns está um ator que é tocado pela dor de seu paciente, por sua
aparência forte (ele não possuía os dois glóbulos oculares), mas esse doutor é trabalhado
para esse enfrentamento em sua supervisão, ele também é cuidado.
O fragmento a seguir mais uma vez revela a busca pela condição de enfrentamento de
realidades dolorosas por esses doutores, mediante o trabalho de supervisão. Cabe
lembrar da ausência de trabalho nessa direção para os nossos médicos não clowns.
Trabalhos que remetam ao fato de sermos tocados pela dor de nossos pacientes.
Doutor Clown, a Dor e a Supervisão
O tumor realmente tinha um aspecto muito assustador, era uma deformidade. Sequer
chegou a aparecer para os olhos do doutor Sushi! Sequer consegui enxergar outra coisa
que não fosse uma criança expressando sua alegria, sua vontade de brincar. Sai dali
realizado, não acreditando como a deformidade estava, mas não estava ali. Como só
conseguia ver a criança que estava feliz com os doutores da UPI! Naquele momento vi
que a teoria e as técnicas que trabalhamos transformaram-se em prática no hospital.
Doutor Sushi
Ambos os relatos enfocam a necessidade de cuidarmos dos cuidadores e reafirmam que
é possível aprender com a UPI! que as nossas dores, ou como os pacientes nos tocam,
encontrará sempre uma forma de expressão, que pode não ser o distanciamento.
“Não me venha com conclusão

A única conclusão é morrer.”

Fernando Pessoa
Página 179
“Vamos começar a transformação. É muito divertido, não tenha medo não.”
É o que diz a canção primeira da UPI! É o convite lançado por seus doutores, diante de
uma sociedade marcada pela negação da morte, que não reconhece o prazer como fonte
de saúde, que vive sob o signo da poderosa medicina tecnológica, na qual qualquer
ruído é atacado de forma que a ordem seja estabelecida.
É em meio à solenidade da doença, à seriedade e à tristeza inculcadas no ambiente
hospitalar, a busca pela imortalidade e a expulsão dos afetos, elementos vitais para a
sobrevida da racionalidade médica ocidental, que os doutores da UPI! aliam-se ao
tratamento, espelham nossas práticas, nos apontam uma medicina psicossomática, nos
seduzem à assertiva de que, somente reinserindo a dimensão da morte (dor) e do riso,
podemos reinventar a realidade hospitalar e descobrir o que a racionalidade tradicional
teima em ocultar.
Para isso, precisamos de cientistas contrabandistas de saberes, capazes, como diria
Morin (1996), de promover uma reforma do pensamento. É preciso fazer dialogar as
áreas e disciplinas fragmentadas pela ciência e pelo pensamento simplificador/disjuntor.
É preciso religar homem e mundo, sujeito e objeto, natureza e cultura, mito e logos,
objetividade e subjetividade, ciência e arte (destaque meu).
Neste momento, gostaria de me despedir do texto buscando mais uma vez oxigênio para
meu desassossego. As metáforas realizam esse feito.
Abrem o caminho Guatarri e Deleuze (1993), os quais propõem a imagem do Homem,
sob um guarda-sol, no qual pintou o firmamento. E, ao olhar para cima, confunde o
firmamento com a pintura no guarda-sol. Ele faz isso porque, quando olha para o
Universo, depara-se com a sua limitação de compreender o que vê. Mas é justamente
nesse momento que os referidos autores propõem que filosofia, ciência e arte rasguem o
guarda-sol, e o homem se aventure a olhar sem tal proteção, para fazer passar um pouco
de caos livre e tempestuoso.
Página 180
Eles nos ensinam que o caos existente no interior de nossos sentimentos, que o
enfrentamento da morte, da dor e do delírio prazeroso, além de não nos destruir, é a
trilha possível para perceber a realidade. Um conhecer que junta as três filhas do caos
— arte, filosofia e ciência.
Penso que esse caminho só pode ser trilhado se o nosso pensamento praticar o abraço,
como nos seduz Almeida (1998). Saber praticar o abraço é promover a dialógica entre a
universalidade e a singularidade, é exercitar uma estrutura mental aberta ao acolhimento
e à hospitalidade, mas também às ruínas e à desordem.
O abraço é a aptidão para empreender a partilha, o consolo, a sou o afeto. Abraçar é
prover, pela relação dos corpos, a dialógica dos espíritos (p. 6).
Será que podemos pensar em uma medicina com paixão, capaz de acolher, como a um
pássaro, o sofrimento do doente? Esta pergunta me desassossega. Aquele paciente de
HIV positivo faleceu grávido de um abraço de seu médico; enquanto o personagem
Johnny sentiu sua alma abraçada nos gestos silenciosos da enfermeira.
E as cenas reais vivenciadas pelos pequenos pacientes dos doutores da UPI! nos
ensinam a reencontrar o que há de mais humano em nós. Primeiro passo para rasgar o
guarda-sol e inventarmos outras verdades, inventarmos uma racionalidade humana,
demasiadamente humana.
“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer
sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.”

Clarice Lispector

Página 181
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THOMSON
Outras Obras Sobre o Tema
PSICOLOGIA DA SAÚDE
VALDEMAR A. ANGERAMI — CAMON (ORG.)
Dirigido a estudantes dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia Clínica e
aos profissionais da área, o livro reúne seis textos que buscam sistematizar uma nova
forma de compreensão da prática clínica na área da Saúde. Os autores são profissionais
do setor de Psicologia da Saúde que, por meio de seus textos, tentam criar uma
configuração teórica em relação à maneira de abordar a doença e o doente hoje.
Novos RUMOS NA PSICOLOGIA DA SAÚDE
VALDEMAR A. ANGERAMI — CAMON (ORG.)
A Psicologia da Saúde é o novo caminho de todos os que buscam instrumentalizar sua
prática profissional na área da saúde mental. Esse livro traz novos rumos no campo da
Psicologia da Saúde, apresentando o que existe da vanguarda na área. Profissionais de
todas as áreas da saúde terão nessa obra um instrumento seguro de consulta para
nortearem sua prática nesse campo. Obra indispensável a todos os que, de alguma
maneira, se interessam pelos avanços e conquistas efetivados pela nova força da saúde
mental: a Psicologia da Saúde.
PSICOSSOMÁTICA E A PSICOLOGIA DA DOR

VALDEMAR A. ANGERAMI — CAMON (ORG.)

O diagnóstico de uma doença traz consigo a mudança da condição de sadio para a


condição de doente. Nessa situação, o paciente passa a lidar com o risco eminente de
adoecer, sofrer e morrer. Isso faz com que ele viva constantemente ameaçado por essa
situação, que representa um ataque não somente ao seu corpo, mas também ao seu
psiquismo. O aspecto da somatização está analisado de modo ímpar nesse livro e,
certamente, será de grande valia aos médicos, psicólogos, enfermeiros, assistentes
sociais e demais profissionais, professores e estudantes da área de saúde.
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A ÉTICA NA SAÚDE
VALDEMAR A. ANGERAMI — CAMON (ORG.)
Textos de Ana Maria L. C. de Feijoo, Viviane R. Soldati, Nelson Cruz dos Santos,
Marcia M. B. Bartilotti, Wilson Luiz Sanvito, Leo Pessuii, Heloisa B. de C. Chiattonc e
Ricardo \V Sebastiani. Tratar do tema “Etica” é sempre uma missão tão importante
quanto polêmica. Importante por ser componente fundamental de uma sociedade
organizada, que tenciona buscar e aprimorar o comportamento humano, aperfeiçoando o
relacionamento entre as pessoas e criando parâmetros de conduta. Polêmica por estar
ancorada no juízo pessoal, em códigos de conduta próprios ou mesmo cm códigos
impressos, mas que por muitas vezes dependem de interpretações pessoais. Está
dividido cm 9 capítulos, com diversas abordagens sobre o tema.
DEPRESSÃO E PSICOSSOMÁTICA

VALDEMAR A. ANGERAMI — CAMON (ORG.)

Calcula-se que 1 bilhão de pessoas, cerca de 240 o da população mundial, vêm sofrendo
de algum tipo de desordem neuropsiquiátrica e um terço delas pode estar comprometida
por mais de um tipo de doença. A cada ano, uma em cada 20 pessoas desenvolve
depressão. Um número expressivo de pessoas busca diariamente ajuda especializada
como resposta às suas angústias. Esse livro é,
assim, um grande avanço nos estudos que visam a uma melhor compreensão do
fenômeno da depressão. Trata-se de mais um lançamento da Editora Pioneira Thomson
Learnmg que se coloca, outra vez, na vanguarda das discussões contemporâneas
envolvendo temáticas tão presentes na condição humana. Essa obra certamente é
indispensável a todos que se debruçam para um melhor entendimento da depressão e de
suas sequelas na vida humana.
A Psicologia NO HOSPITAL — 2 EDIÇÃO
VALDEMARA. ANGERAMI — CAMON (ORG.)
Este livro mostra a Psicologia no hospital com todas as suas dificuldades, avanços e
conquistas. Abordando a realidade brasileira, a obra traça a trajetória dos autores na
conquista do espaço hospitalar pelo psicólogo e propõe-se a despertar inúmeras
reflexões acadêmicas sobre a questão da saúde no País. A Psicologia no Hospital
apresenta a riqueza dos trabalhos dos autores em uma performance artesanal e é um
verdadeiro marco na história da Psicologia no Brasil.

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