Oriki Orix Å

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ORIKI

ORI~4
:-,,g, os 19
ANTONIO RIIÉRIO

ORIKI
ORI~4

Ilustrações de Carybé

Coleção Signos Dirigida por Augusto de Campos


Supervisão editorial J. Guinsburg
Capa e projeto grdfico Adriana Garcia
Ilustrações Carybé
Produção Ricardo W. Neves
Sergio Kon
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do livro, SP, Brasil )

Risério. Antonio. 1953-

Oriki Orixá I Antonio Risério ; supervisão editorial). Guinsburg c Haroldo


ele Campos; ilust rações Carybé. - São Paulo: Perspectiv,t. 201 2.
- (Signos ; 19)

J• reimpr. da I ed. de 1996


ISBN 978-85-273-0080-3

I. Cultura - África 2. Poesia iorubá I. Guinsburg. Jacó. 192 1- 11. Caryhé,


JUMÁRIO
1911 - 111. Tftulo. IV. Série.

96-1781 CDD- 869.333 1

fndices para catálogo sistemático:


I. Poesia: Literatura iorubá 869.333 1

9 ARRE-CAM!NHO

15 NOTA DO AUTOR

21 TOQUES PARA UMA POÉTICA NAGÔ


I' edição - I' reimpressão
[PPD] 55 O TRANSE HU MANO DOS DEUSES
Direitos reservados à
79 TRANSCRIANDO ORIKIS
EDITORA PERSPECTIVA LTDA.
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 109 FLORES DA FALA
01401-000 São Paulo SP
Telefax: (0-11) 3885-8388 163 ORIKI AGORA
www.editoraperspectiva.com.br
2019 185 ALGUMA RIRLIOGRAFIA
ABRE -CAMINHO
a mais de vinte anos acompan ho a trajetória de Antonio
Risério, que conheci pessoalmente na Bahia em 1973. Poeta
e crítico, um dos grandes animadores da lendária revista
CODIGO, de Erthos Albino de Souza, me habituei a vê-lo,
desde logo, como um companheiro mais jovem, um
combatente aguerrido das refregas de vanguarda, e a não me
espantar com as surpresas do seu talento incomu m. Suas
primeiras incursões críticas, Kilkerry, Pagu, Leminski, já traziam a marca
de uma inteligência vibrante e ag ressiva. O poeta eme rgiu e ntre os
melhores dentre os jovens que se manifesta ram nas revistas de vanguarda
dos anos 70, Poesia em Greve, Artéria, Qorpo Estranho, Muda.

De uns tempos pa ra ca, devolvido pela metrópole do sul ao recesso


do recôncavo, Risério vem desenvolvendo uma reflexão profunda em torno
da cultura afro-baiana (v. Carnaval lj exá, Gilberto Gil Expresso 2222,
Caymmi: Uma Utopia de Lugar). O coroamento dessa reflexão foi o livro
Textos e Tribos, suma e soma de um pensamento singular a partir de uma
reivindicação fundamental, a da incorporação da poesia oral das culturas
indígenas e afro-b rasileiras ao "corpus" das nossas poéticas !iterarias. As
propostas instigantes e provocativas de Risério, especialmente no domínio
da tradução desses textos, encontram agora no presente livro não apenas
sua continuidade mas a exposição de sua pratica exemplar, no que
concerne à poesia de fonte iorubá, um dos pilares da construção riseriana.
Eis que ele nos oferece algumas dezenas de o rikis magnificamente
traduzidos, segundo os preceitos da tradução criativa, transcriação ou
tradução-a rte. Não conhecendo a língua nem sendo um especialista da

li
ORI KI ORIXÁ Al\R&CAM INHO

cultura iorubá, não possuindo nem registros vocais nem transcrição fõnica proporciona o território sem amarras para deslanchar as suas recriações.
dos originais , faltam-me, po r certo, relevantes instrumentos para aferir o O que Risério nos oferece, afin al, é uma belíssima coletânea de poemas,
valor do trabalho, em todas as suas instâncias. Guio-me, neste caso, em o nde os achados se acumulam nu ma sucessão irresistível. E esse é o teste
primeiro lugar pelos resultados, que apontam para a construção d e dos testes d a tradução de poesia. Tradução que n ão parece tradução.
apreciáveis poemas em português. Em um estudo de Textos e Tribos, o Poesia que é poesia.
próprio Risério alinha as dificuldades d a tradução d a poesia o ral, ainda
mais no caso do iorubá, que, como o chinês, é uma língua tonal. Mas o
Augusto de Ca mpos
desconhecimento do chinês não nos impede de apreciar as admiráveis
traduções que Ezra Pound fez de Li T'ai Po, a partir das versões japonesas
de Fenollosa. E assim como Eliot disse de Pound ser ele o inventor da
poesia chinesa para o nosso tempo, podemos afirmar, guardadas as
proporções, que Risério está inventando a poesia iorubá para nós.

O iorubá, "língua tonal, saturada de metáforas", segundo S. A.


Babalola, um de seus estudiosos, é também, na sua poesia, uma linguagem
saturada de aliterações , paronomásias e onomatopéias . Desde cedo
fo rmado na antitradição do experimental, Risério evidentemente não
i'ncide no mais comum dos erros das traduções da espécie, que é o de
converter a textura lingüística original aos padrões convencionais da
linguagem codificada. A estrutura dominantemente paratática, com ênfase
nos extratos substantivos, os jogos verbais e as onomatopéias de incidência
incomum, tudo indica que Risério buscou preservar ao máximo a força
poética original.

~ ~ epa, Oiá õ.
Grande mãe.
lá õ.
Beleza preta
No vemre do vento.

Para tanto, como seu predecessor no resgate de poéticas ditas


"primitivas", Jerome Rothenberg, o criador da "etnopoesia", Risério não
hesita em fazer uso dos recursos da poesia de vanguarda, que, pela sua
natureza contestadora em relação ao suposto "gênio da língua", lhe

12 13
NOTA DO
AUTOR
ara mim, este livro se for ma de três d imensões d istintas. A
primeira - reunindo as seções "Toques Para U ma Poética
Nagô", "O T ra n se H uma no Dos Deuses" e "Transcriando
Orikis" - não traz exatamente nenhuma novidade. Compõe-
se de textos que são, no máxi mo, escritos de haute
vulgarisation, dirigidos ao público de língua portuguesa. Mas
não defe ndem qualq uer tese in éd ita, su bve rsiva ou
revolucio nária, no es paço da literatu ra internacio nal existente sobre as
culturas e poéticas africanas em ge ral, o u io ruban as em particular. Não
q uero, com isso, dizer q ue não aprese ntem (na mi nh a o pinião, é claro)
algumas observações i nte ressa ntes - mas ape nas colocá-l os em seu
devido luga r.
U m a segund a dimensão é dada pela antologia de orikis, sob o título
" Flo res da Fala ". Aqu i, a co nve rsa é out ra. Trata-se da primeira tentativa
feita, en tre nós, de recriação poética de o rikis, a partir dos textos
io rubanos originais. O rikis fo ram vertidos antes para o po rtuguês, m as po r
outros caminhos. Que eu saiba, o crítico de música Silvio Lamenha foi o
primeiro a traduzi-los, em inícios da década de 60. Mas, de uma parte,
não acredito q ue estivesse em busca de recriações estéticas (Lame nha,
afinal, era só um leito r de poesia - embo ra não fosse um jo rn alista
palpiteiro incapaz de d iferençar Do nne de Mallarmé, po r exemplo); e, de
o utra, traduziu traduções. N ão partiu do texto iorubá. M ais recentemente,
Pierre Verge r e Síkíru Sàlám i trad uziram o rikis o u fragmentos de o rikis
para a nossa língua. Ao co ntrário de Lamenha, ve rteram diretamente do
iorubá. Mas sem qualquer propósito de empreender uma recriação textual
nucleada nu m a co m preensão da n arureza da linguagem poética. Su as
traduções são prosaicas, explicativas, fl ácid as. Valiosas, sem dúvida, para
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ORIKI ORIXÂ NOTA DO AUTOR

o estudioso da cultura nagõ-iorubá. Mas, ao desprezar o texto em função interrogação kenneriana me acompanhou obsessivamente ao longo da
do contexto, sem maior interesse para a vida da poesia. Diversamente, a red ação deste livro.
anto logia que aqui apresento tenta atar as pontas do jogo: uma recriação Mas é claro que não é só isso. Oriki Orixá é fruto de um tripé de
brasileira da poesia iorubá, com base nos textos originais. interesses e preocupações. Numa ponta, a atenção histórica, antropológica
O escrito "Oriki Agora", po r sua vez, pertence à categoria dos textos e estética para a cultura iorubá em si mesma. Numa ou tra, minha
que procuram desbravar temas. É um texto pioneiro, proposta para futuros pa rticipação no processo polí tico-cultural de desrecalque e afi rmação das
m_a peamentos e interpretações, que assinala a presença do o riki nagô· vertentes dominadas que fo ram fundamentais para a fo rmação biocultu ral
iorubá - através da prática autoco n sciente o u graças ao imp revisível brasileira. E, nu ma terceira di reção, a preocupação propriamente poética
movimento de signos no campo semiótico de nossa intervocalidade - na com a "crise" da poesia contemporânea, num mo mento de multi plicação
produção textual de língua espanhola e portuguesa nas Américas. Do de técnicas, códigos e linguage ns. Nesse último caso, vejo o oriki em
romance à poesia da música popular, o o riki está vivo em nosso ambiente termos inspiradores - ou seja, como um a poética capaz de alimentar de
simbólico - veiculado cotidianamente pelos mecanismos de tran smissão algum modo a produção contemporânea, e não como relíquia salva de um
signica do candomblé, ou sobrevivendo com o uma espécie de poética naufrágio. Assim , se há uma i nstânc ia em qu e procuro penetrar num
subterrânea. É po r isso que podemos encontrar, em nosso caminho, textos mundo tradicional, há também uma outra q ue bem poderia exibir, como
que não hesito em colocar sob a rubrica neo-oriki. divisa , a explosão do três vezes apátrida Gus tav Mahler: "Traditio n ist
Mudando de assunto, este Oriki Orixá é um desdobramento lógico e Schlamperei" . Tradição é desordem.
natural de meu livro anterio r, Textos e Tribos. A relação entre ambos me Ciente, sem falsa modéstia, de meus limites e de minha ignorância,
faz lembrar, aliás, uma observação de Henri Meschonic: "les livres d'un info rmo ainda que está entre as m inhas expectativas a evenrualidade de que
'écrivain sont des vases communicants, ouverts et fermés l'un sur l'autre". alguém, com conhecimentos mais sólidos que os meus, venha a corrigir
No caso , o nexo Textos e Tribos - Oriki Orixá é ostensivo. O último nasce erros que eu tenha cometido nas páginas seguintes. Falo de erros - e não,
diretamente, como uma espécie de versão ampliada e em alguns pontos simplesmente, de equívocos. Além disso, este livro é certamente lacunar.
retificada, de um dos textos incluídos no primeiro - o ensaio De Orikis. Semipleno. E nem poderia ser diferente, a menos que eu trapaceasse no
Se é que a informação tem algum interesse, aviso que, desde o jogo, conferindo-lhe uma máscara de plenitude. Num dos Cantares de Ezra
primeiro momento em que resolvi escrever sobre o oriki nagõ-iorubá, duas Pound - este im perador de interesting mistakes - , Confúcio (Kung) recorda:
passagens - uma de Bertolt Brecht, outra de Hugh Kenner - não saíram
mais de minha cabeça. Quando perguntavam ao sr. Keuner, personagem And even [ can remember
de Brecht, sobre o que ele andava fazendo, a resposta vinha pronta da A day when the historians left blanks in rheir wrirings,
ponta da língua: "estou preparando meu próximo equivoco" . Que seja, se I mean for rhings rhey didn'r know,
Bur rhar time seems to be passing.
assim for. Mas seja, ao menos, engano colorido, como no verso barroco
de Juana lnés de la Cruz, a esplêndida trobairitz da cultura seiscentista no
México. Quanto a Kenner, trata-se de uma indagação ao mesmo tempo Recolho e aceito a advertência confuciana. Embora não seja trabalho
singela e profunda: "ls the life of mind a history of interesting mistakes?". de historiador, este é um livro com blanks, inteirado de seus vazios.
É possível que sim; que a vida da mente não passe de uma história de Por fim, quero agradecer a todos aqueles que, de uma forma ou de
equívocos interessantes. De qualquer modo, e sem receber resposta, a outra, me fizeram compor este livro. Em especial, a Arnaldo Antunes,

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ORIKI OR!xA

Augusto de Campos, Jorge Amado, Luis Turiba, Haroldo de Campos,


Olabiyi Babalola Yai, Stella de Oxóssi e Waly Salomão.

Cidade da Bahia - maio 1995

Antonio RiJério

PS . Quanto aos acen tos iorub anos que o leitor vai encontrar nas
próximas páginas, eis:
( · ) - tom baixo TOQUE/ PARA
( · ) - tom alto
~· 9 - vogal aberta UMA POÉTICA
s - ch
NAGÔ

20
Vulgart Grtucrae dictum,
Semper A[rrcam aliqu id n0<1i afiem.
PLINIO o VELHO (A.D. 23-79).

essiênin dizia que nem todos sabem cantar. Mas falando em


termos individuais, é claro. Nem todos os russos, achantes,
brasileiros, ingleses, tupinambás, astecas, etc. sabe m ou
souberam cantar. Mas ninguém pode dizer que a Rússia não

Xr
sabe cantar - c disso o poeta sabia muito bem. O cantar,
tomando aqui o vocábulo em sua acepção mais dilatada, não
é privilégio de nenhum povo , época, raça, cultura ou
sociedade. Neste sentido, todos sabem cantar.

lessiênin certamente ficaria fascinado com os suiás do Brasil. Seeger


lembra que os estudos antropológicos costu mam distinguir grupos
recorrendo a tópicos de subsistência e tecnologia. Contrariando a tribo
dos antropólogos, os suiás escolheram, para efeitos de comparação
intergrupal, os ornamentos e o canto. Os discos coloridos usados nas
orelhas e nos lábios apontam para a relevância que esses índios dão ao
ouvir e ao fa lar, como faculdades sociais po r excelência. O ouvido recebe
e retém os códigos tribais. E, para além do silêncio, também socialmente
im portante, há duas espécies de fala: o sermo quotidianus e a oratória,
plata speech, que é o discurso masculino na praça da aldeia, com seu ritmo
especial, seu estilo recitativo, seu conjunto de fórmulas. Um dos modos
desta forma superior de oralização é privativo de chefes e sacerdotes,
realizando-se ao amanhecer e ao anoitecer, quando os homens se reúnem.
Mas o ponto culminante da oralidade suiá, individual e coletivamente, está
no canto. Na palavra-canto. E que se frise o fato de que a música suiá
não envolve in strumentos musicais. É exclusivamente vocal. A palavra
desenha plena o seu espaço so noro . Palavra pairando solitária na
23
ORIKI ORi xA
TOQUES PARA UMA l'OETICA NAGÓ

antemanhã, ou estridulando na cacofonia das canções que atravessam a Podemos até mesmo nos referir à antiga criação letrada no continente,
noite. Mas há mais. Se Seeger está certo, os suiás não têm deuses nem composta sobretudo sob influência árabe, graças à expansão do islamismo,
mito de criação - e ignoram seus ancestrais (fabricam uma fascinante que levava em seu bojo a tecnologia da escrita. É uma produção
espécie de história espacial, onde as peripécias tribais são marcadas pelos considerável, sem dúvida. Vastas áreas do "continente negro" conheceram
lugares em que ocorreram e não pelos heróis que delas participaram). Não séculos de e rudição corãnica. De especialistas em escrita árabe, que
tenho noticia de nada igual em qualquer outra parte do mundo. E assim produziram, entre outras coisas, tratados religiosos, crônicas históricas,
somos conduzidos à estranha e inesperada conclusão de que pode haver poemas. Mesmo algu mas línguas <~fricanas experiment:lr<~m a form<~ escrira,
um povo sem deuses, mas não um povo sem poesia. utilizando caracteres arábicos. Fo rj ou-se assim uma tradição letrada entre,
por exemplo , suailis e haussás. Adoção de modelos árabes, paráfrases ,
traduções e mesmo tradições locais vieram à luz, nessas regiões, sob fo rm a
A riqueza da criação textual na África é um fato indisputável. A menos escrita. Além da onda árabe, outros veios letrados pintaram, como entre
que uma intenção ideológica explícita tente rasurar programaticamente a os bérberes e os tuaregues. "Nos últimos duzentos anos, os africanos
existência milenar do texto criativo naquele continente, como na época em també m comecaram a escreve r em suas pró prias línguas , usand o
q ue fa ntasias racistas de calibre variado se esforçaram para expurga r o primeiramente o alfabeto árabe (. ..) e mais tarde o latino. M as também
n egr o da esfe ra da espécie humana. Aliás, aqueles q u e um dia existem mate riais histó ricos (e outros) em escrita genuinamente africana",
pretenderam expulsar o negro do círculo da h uman idade, ou qu ando lembra I. Hrbek.
n ada confin á-lo a um compartimen to subterrâneo desta, tipo de rn ier Em meio aos tuaregues, a fo rm a gráfica provocou não só o su rgimento
échelon d a espécie, tive ram d iante de si, como obstáculo intranspon ível, de um pequeno estrato letrado, m as também o intercâmbio entre as
'a fo rça e a finu ra das produções estéticas africanas. O caso de Gobineau trad ições o ral e escrita. Sinalize-se, de passagem, um paralelo entre o uso
- q ue esteve no Brasil en tre 1869-70, enca ntan do-se com o traje estético da escrita na sociedade tuaregue e na sociedade japonesa. A
" to talmente clássico" das negras baianas e defini ndo o pais como um maio ria dos textos tua regues foi escrita po r mulheres, que se dedicavam
"dese rto povoado de maland ros " - é exe mplar. Ainda em âmbito à poesia panegirica e amorosa, ao tempo em que os homens viajavam. De
cientifico, o texto criativo african o pôde se r encarado em termos apenas modo algo parecido, a literatura japonesa é, so bretudo, criação femi nina.
embrio nários, sementes ou promessas incipientes, balbucios do q ue um Durante muitos e muitos anos, os homens japoneses escreve ram em
dia viria a ser a poesia em sua plenitude - como se pensou na ó rbita dos chinês. A escrita nipõnica era coisa de mulheres: Quando os homens se
evolucio nis mos setecentista e oitocentista. É possível, além de tudo, que voltaram para o seu próprio idioma, encontraram já modelos poéticos e
uma o u o utra cegueira ideológica qualquer venha a ofuscar o observado r, li terários estabelecidos, dese nh ados pelas mulheres. É por isso que, na
impelindo-o a ver tabula rasa o nde reluz a tabula piena, o u impedindo-o origem da lite ratu ra japonesa , n ão e nco ntramos um xog um o u um
de fazer distinções até mesmo entre um leo pardo e um baobá. Excluídas samu rai, mas a elegante Murasaki Shikibu, autora do es plê nd ido Genji
tais situações - histo ricamente corriqueiras , po r sinal -, as artes africanas Monogatari. Mas esq ueçamos, ao menos mo mentaneamente, os calígrafos
da palavra estão ai, sempre estiveram ai, para q uem tem olhos de ver e bérbe res, suailis, haussás, tua regues e etíopes. Os reflexos gráficos da
o uvidos de o uvir. A África não é de modo algum uma exceção planetária. expansão islâmica. Ou o du radou ro influxo do cristian ismo na Etiópia.
Pelo co ntrário, é um continente fu nda e profundamente poético. Poético- A poesia de que vou me ocu par centralmente aq ui - coração e veias da
m usical, intersemiótico, multimíd ia. textu alidade criativa io ru bá - desco nheceu po r completo a caligrafia.
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ORIKI ORIXÁ TOQUES PARA UMA I'OÉTICA NAGÓ

Pertence ao universo das criações orais da espécie, que madrugou nos luminosi, cristalizações sígnicas diferenciadas em meio ao conjunto total
tempos paleolíticos da primeira humanidade e desde então não pára de das condutas verbais. E assim podemos nos aproximar do - e talvez
se expandir, estendendo-se, num arco de milênios, a estes nossos dias flagrar o - momento em que a palavra poética brota da palavra prática ,
cibernéticos. Vamos ficar portanto com uma determinada África. A África desenhando um torneio digno de nota pelo arranjo dos elementos que
dos zulus e dos nagós, dos bambaras e dos ndembos, dos !kungs e dos o constituem. Desse ponto de vista, se a fala é o melhor espetáculo
tangas, dos acãs e dos acambas. Em suma: com aquela África cuja encenado pelo ser humano, ela às vezes apresenta um espetáculo dentro
imaginação verbal veio marginando longamente - por ignorância, do espetáculo: a poesia. Mas não se pode, por outro lado, reduzir o
desconfiança, falta de empenho ou isolamento florestal, entre muitos poético ao poema. O poético pode se encarnar num poema tanto quanto
outros prováveis motivos - a magia da escrita. E números falam. Não sei fora dele, em grafites, em trocadilhos de mesa de bar, num estádio de
exatamente o que os primeiros caçadores e coletores europeus de futebol, em tiradas que ressoam nas ruas, no paleio mais inconseqüente.
informações sobre a África encontraram pela frente no século XIX. Ou seja: há um espetáculo dentro do espetáculo, mas que não coincide
Mas, em termos quantitativos, no terreno que aqui prende a nossa necessariamente com os limites do objeto "poema". Ele pode repontar
atenção, a realidade não deveria ser muito diversa daquela que se em qualquer comportamento lingüístico, embora seja a marca registrada
conhecerá uma centúria mais tarde. Ruth Finnegan adverte que mesmo das artes da palavra.
hoje não se sabe o número preciso das línguas existentes na África. Em suma, esses jogos verbais - e poesia é isto, para desespero dos
Adianta apenas que a cifra citada com mais freqüência - oitocentas "conteudistas": jogo verbal - permeiam a nossa vida. Mas há também
línguas - é provavelmente uma estimativa algo avarenta. Po r sua vez, o quem defenda a tese de que eles estão ainda mais vívidos e intensamente
teólogo John S. Mbiti assevera que existem cerca de mil religiões no presentes no dia-a-dia das chamadas sociedades tradicionais. Edmund
' continente africano. E as flores da fala, vale dizer, as formas assumidas Leach, por exemplo. Para Leach, enquanto nós somos treinados para
pelo texto criativo, gênero e subgêneros, que soma atingiriam? Não sei pensar em termos científicos , muitos povos "primitivos" são treinados
responder. Mas podemos tranqüilamente imaginar a extensão e a para pensar poeticamente (o que pode ser definido como uma versão
variedade desse espectro textual. E é no interior desse largo conjunto de light da famosa tese viquiana acerca da fala poética da primeira
signos que vamos encontrar o subconjunto textual iorubano, com suas humanidade). Pelo fato de sermos letrados, tendemos a valorizar palavras
árvores e seus arbustos viçosos, com todos os seus galhos e esgalhas, sua com significados exatos - dictionary meanings. "Toda a nossa educação
profusão de folhas , ramagens e parasitas, seus frutos numerosos como as se destina a fazer da linguagem um instrumento científico preciso.
estrelas do verão. Espera-se que a fala ordinária de um homem educado correspo nda aos
cãnones da prosa mais do que aos da poesia ; a ambigüidade da
declaração é deplorada. Mas num a sociedade primitiva, o inverso pode
Whorf dizia que a fala é o melhor espetáculo encenado pelo ser ser o caso; a faculdade para fazer e entender sentenças ambíguas pode
humano. Não se trata de concordar ou discordar, mas de fazer um mesmo ser cultivada", acredita o antropólogo. Não sei dizer se esta sua
balizamento. É que a fala - mediando, entremeando e trespassando crença - formulada, de resto, em termos condicionais - possui validade
todas as nossas atividades cotidianas, inclusive os delírios oníricos - un iversa l. Mas parece que se sustenta diante da realidade lingüística
aqui e ali se configura de modo distinto, notável, superando a visada africana e, o que mais me importa no momento, vale tranqüilamente para
meramente pragmática da comunicação técnica imediata. São punti os iorubás. É o que afirma com clareza Ruth Finnegan. Aqui, Jakobson
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ORIKI ORixA TOQUES rARA UMA I'OITICA NAGÓ

teria exemplos e mais exemplos para reforçar a tese de que o poético não Como não há quem ignore, essas mensagens africanas veiculadas por
se acha atado ao poema, espraiando-se antes pelos mais diversos tambores ganharam espaço em representações artísticas ocidentais, das
movimentos da fala. Ruth Finnegan é categórica a esse respeito. Diz que estórias em quadrinhos ao cinema. Mas elas comparecem ai sob uma
é um problema tentar distinguir, no conjunto da comunicação oral espessa nuvem de mistério, semeando pânico entre brancos que não
africana, o que contar ou não como "literário". Finnegan tem em mente sabem decifrá-las, a menos que su rja um decodificador chamado Tarzan .
coisas tão distintas quanto trocadilhos cotidianos, canções formulares de Os estudiosos do assunto já foram bem além dessa famasia. E o que se
caçadores, preces improvisadas, provérbios, palavras formais de boas desdobra diante de nós, a partir do quadro traçado pelos levantamentos
vindas, etc. E é taxativa: "Não há nenhum ponto pelo qual eu poderia e leituras realizados, é uma técnica de tradução midiática, um campo
traça r uma linha divisória definitiva". Mas se é difícil, ou mesmo intersemiótico, onde o simbolismo verbal é recriado no encontro da mão
impossível, riscar uma separatriz entre o poético e o não-poético, é fácil, e do cou ro do tambo r.
fora das flutuações dessa zona fronteiriça, reconhecer organismos ou Vejamos. Finnegan faz uma distinção inicial entre dois tipos de
con struções verbais que se impõem a nós, ostensivamente, como textos comunicação através de tambores. De um lado, uma convenção simples.
criativos. E é aqui que vamos dar de cara com a fascinante variedade da Um código em que sinais sonoros pré-fixados representam, em globo,
criação textual africana. Não importa a direção para a qual decidamos a mensagem. Não existe uma base diretamente lingüística para o ato
voltar o nosso olhar. Em qualquer uma das quatro partes do "continente comunicativo. Trata-se de algo como, por exemplo, um sistema de luzes
negro", brota e viceja, há milênios, o fazer poético. São canções de guerra, que sinalize o nível da água num reservatório, por meio de um número
cantos funerais, cantigas de ninar, hinos militares, preces, encantações, previamente estabelecido de combi nações . De outro, temos a
cânticos religiosos, loas imperiais, poemas didáticos, work songs e tantas "represen tação direta da própria língua falada, simulando os tons e os
outras formas assumidas pelo texto criativo, numa esfuziante proliferação ritmos da fala real". Aqui, os tambores falam. Passamos do horizonte dos
de pérolas verbais, produzidas por um elenco de designers da linguagem sinais para o universo dos símbolos verbais, ou do drum-signalling para o
que vai, digamos, dos cantadores achantes aos cultores profissionais da drum-talking, plano da comunicação lingüística, com os tambores tentando
poesia dinástica de Ruanda. Em meio a tais criações poéticas, encontramos, imitar a voz humana. No entender de Finnega n, esta "expressão de
aliás, algo de radicalmente estranho à tradição estética ocidental: o texto palavras através de instrumentos" é possível porque as línguas aí utilizadas
percussivo ou poesia dos tambores, drum poetry executada pelos assim são tonais . "Os padrões tonais das palavras é que são diretamente
chamados talking drums, os tambores falantes. transmitidos e os tambores ou outros instrumentos envolvidos são
construídos para produzir pelo menos dois tons", esclarece a estudiosa,
observando que a inteligibilidade da mensagem cresce com a recriação
Ezra Pound se referiu a esses tambores africanos em seus Cantares, direta, na geração do som, da estruturação rítmica da fala. A essa altura,
tematizando uma aventura vivida por Leo Frobenius, em cuja obra foi Finnegan faz uma segunda distinção. De uma parte, as mensagens
colher o conceito de paideuma: utilitárias. De outra, as mensagens poéticas. Mas esta divisão não se
sustenta no âmbito do texto instrumental, seja ele nagô ou achan te.
The white man who made the tempest in Baluba
Der im Baluba das Gewitter gemacht hac... Melhor fazer uma distinção entre mensagens intencionalmente pragmáticas
they spell words wich a drum beat... e mensagens intencionalmente poéticas, já que a bipartição está ancorada
(Canto XXXVIII) na postura do emissor. Deixando de lado a intenção do sujeito, mensagens
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OR!Kl ORlxA TOQUES PARA UMA l'OET!CA NAGÓ

pretensamente utilitárias se revelam estéticas. A razão disto se encontra As coisas não se passam de modo diferente na África. T ambém aí
no próprio processo de tradução across·media. O suporte do texto, e o va mos nos deparar com reflexões sobre a linguagem e o artesanato
meio físico em que este se projeta, às vezes atravessando milhas de lingüístico. Tome-se, por exemplo, o caso dos bambaras, povo que vive
floresta fechada, fazem as su as exigências. E os procedimentos na região de savana ao sul do Saara. O que encontramos entre eles é uma
construtivos sistematicamente acionados nesta es pécie de representação teo ri a da o rigem divina da linguagem: "a Palav ra, Kuma , é uma força
da lí ngua - um jogo de sintagmas fixos, contrastes tonais e reiterações - fundamental que emana do próprio Ser Supremo, Maa Ngala, criador de
acabam engendrando o texto na esfera do poético. Bem vistas as coisas, todas as coisas" , escreve Hampaté Bâ. No gêncsis bambara, como no Bere'
a própria eficácia d a comunicação pragmática repousa, em última análise, Shith, a "cena da origem" da Bíblia hebraica, a palavra é o instrumento
na poetização. da criação: o que Maa Ngala diz, vem à existência. É um fiat verbal. Cada
ser que surge é uma palavra materializada. Uma cristalização da fala. Mas
o interessante é que no mito da criação do unive rso e do ho mem, segu ndo
A fim de contemplar a Wortkunst negra, basta poder saber olhar para a tradição bambara do Komo (grande escola iniciática do M ali), Maa
ela. É múltiplo e diverso o elenco de o bjetos signicos made in Africa nos Ngala, depois de criar os seres fabulosos qu e povoaram o que antes era
quais a linguagem se apresenta so b a regência da "função" poética, "um Vazio vivo", viu que nenhuma dessas criaturas estava em condição
submetida àquela espécie de trabalho que recorta criativamente a língua de ser o interlocutor, kuma-n:yon, que ele tanto desejara. Foi então que o
e faz da fala uma obra que a eleva à segunda potência, projetando-a na deus retirou uma parcela de cada uma das criatu ras já postas no mundo,
dimensão estética das construções verbais. Os africanos nunca duvidaram misturando-as e insuflando na mistura uma centelha do seu hálito ígneo,
disso. Jamais colocaram em dúvida o esplendor e a abundância de suas para assim cri ar o homem, a quem deu parte do seu próprio nome, Maa.
' criações textuais. Na verdade, não há noticia de povo algum que não tenha O homem é portanto , simultaneamente, a soma do que existe na terra
dedicado parte de suas energias mentais à meditação acerca da natureza (reinos mineral , vegetal e animal) e participe da natureza divina. "Síntese
da linguagem, de suas diversas instâncias e de seus plúrimos empregos. de tudo o que existe, receptáculo por excelência da Fo rça suprema e
Prova disso são as inúmeras e engenhosas classificações que os mais confluência de todas as forças existentes, Maa, o Homem, recebeu de
variados povos elaboram para designar diferentes modos de ser ou de he rança uma parte do poder criador divin o, o d o m da Mente e da
aparecer da palavra, na tentativa de dar conta da pluralidade dos seus Palav ra", escreve ainda Hampaté Bâ. E é po r isso que a linguagem, ao
arranjos e configurações, sem se esquecer de articular textos e contextos. m esmo tempo construtiva e destrutiva, pode colocar em movimento -
Parece, de resto, que toda criação verbal implica, não importa exatamente animar - as coisas do mundo.
em que grau, reflexão sobre esta mesma criação verbal - da metalinguagem
celebratória, exaltando os poderes desta ou daquela linguagem, à
metalin guagem que talvez possamos designar como "crítica", ou No caso io rubano, é importante observar certas relações entretecidas
embrionariamente critica, no sentido em que procura iluminar as fontes entre os deuses e a linguagem. Parte (ao menos) do grande pode r de
ou a natureza do texto criativo, como no caso da teoria grega da inspiração Orumilá-lfá, o o ráculo nagõ, vem do fato dele ser, segundo a crença, um
ou da visão guarani da "linguagem enfeitada", iíe 'e pord. Assim, é provável deus onilingüe. Não se trata meramente de multi, mas, rigorosamente, de
que nenhuma poesia deixe de trazer consigo, ainda que da forma mais panlingüismo. Bolaji Idowu lembra que os iorubanos dizem que Orumilá
obscura e enigmática, a sua própria metapoesia. é um lingüista, capaz de compreender cada língua falada n a terra.
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ORIKI ORIXÁ TOQUES PARA UMA POÊTICA NAGÓ

Afede[~y~, diz seu oriki, que me foi passado pessoalmente por Olabiyi Yai modificado" (Oxford Dictionary). R. C. Abraha m registra, de resto, a forma
- montagem verbal desmembrável em a + f? (falar) + edê (língua) + f~ + enan o u eni>n no iorubá moderno ("inve rtendo as palavras de uma frase
~Y~ (língua iorubá). É assim que ele pode entender todos e a todos de modo que o falante use um código entend ido apenas po r quem está
aconselhar. Se Orumilá conhece o destino (ori) dos seres humanos porque fam iliarizado com ele, enquanto os demais presentes ignora m seu
estava presente no orum (o mundo invisível; o além) no momento mesmo significado"). Code·language, em síntese. Mas n ão adianta ensaiar tal
em que cada um de nós escolheu a sua fortuna, antes de desembarcar no procedimento de camuflagem semântica diante de Xangô. O que significa
mundo concreto (aiê), ele só pode ouvir nossas consultas e acolher as · que Xangô pode entender/ate nder qualquer men sagem, ve nha ela
n ossas súplicas porque é o senhor dos idiomas, dialetos e idioletos. Ao veiculada em fala plana o u de modo cifrado, críptico. Indo um pouco
abarcar e decifrar a totalidade dos signos verbais existentes na superfície além, podemos d izer que o verso/ linha citado indica que o orixá qu e se
terrestre, é naturalmente universal. E o mundo humano torna-se então acende na chuva é capaz de capta r o inte ligível tanto qu a nto o
uma entidade transparente, decodificável em todas as direções, dócil e aparentemente inínteligivel. Ele desemaranha o código. Mas há uma
rastreável por seus incontáveis rumos e atalhos - "livro aberto", fácil para diferença funda mental, que deve ser sublinhada. Orumilá se sentaria e se
a leitura arguta e antecipatória do sábio que Olodumarê (o deus supremo sentiria à vo ntade diante da torre de Babel, entendendo perfeitamente
iorubano) enviou para acompanhar Orixalá em sua missão de fabricar e todas aquelas falas. Babel não se ri a para ele um amontoado de sons
ornamentar a terra sólida. E aqui podemos aproximar Orumilá - a quem dispares, uma cacofonia gigantesca, mas algo tranqüilamente inteligível.
Olodumarê deu uma sabedoria especial e o dom da antevisão - e Xangõ, Afinal, Orumil:i entende roda e cada linguagem . O caso de Xangô, orixá
deus irascível e erótico, senhor do trovão, o "marido magnífico" de Oiá- da eloqüência, é diverso. Ele entende o iorubá atual, o iorubá arcaico, o
lansã, Oxum e Obá. A dimensão semiótica, extraverbal, é fortemente iorubá encoberto - mas, sempre, o iorubá . Não há nenhuma indicacão
' '
' acentuada em Xangô. Em termos vestuais, a roupa rubra pontilhada de que eu saiba, de que tenha se asse nhoreado de todos os sistemas ou
búzios brancos. E gestuais: Xangô é o orixá que fala com o corpo todo. códigos lingüísticos existentes. Esta amplitude é prerrogativa de Orumilá,
E isto sem mencionar a crença de que ele despede chamas pela boca, qual o Grande Decodificador, soberano dos signos do mundo.
dragão negro e divino das terras africanas. Mas Xangõ é também o orixá
da palavra e do discurso, dobrando a retórica a seus pés. É o senhor do
axé na palavra - e, quando ele fala, todos se calam, inibidos tanto pelo Os iorubanos possuem suas cla ssificações e suas técnicas de leitura da
receio de provocar a fúria de um deus temperamental e imprevisível produção textual. Talvez pela razão das formas da poesia iorubá brotarem
quanto pela sua potência discursiva. Esta oratória contundente está de um repertório comum de nom es atributivos, provérbios, etc.
assentada num conhecimento intimo das estruturas lingüísticas e dos jogos empregando o s mesmos padrões de construção poemática, num
de linguagem. É o que nos ensinam os seus orikis. Por exemplo: extraordinário intercruzamento de temas e formulações lingüísticas, o fato
é que os iorubanos classificam seus textos a partir de critérios extratextuais.
~ngó g~ ede g~ ~nà Ulli Beier já dizia que a poesia iorubana é classificada não por seus
desenhos temáticos ou por suas configurações estruturais, mas pelo grupo
Numa versão palavra-por-palavra, temos: "gb9" = ouvir, escutar, ao qual o performer pertence e pelas técnicas de oralização que ele
atender; "ede" = língua; "~nà" = "uma inversão na ordem das letras, emprega. Ruth Finnegan vai na mesma batida, observando que tal tipo
sílabas, palavras ou sentenças, sob a qual o sentido é escondido ou de classificação indica que a performance é tão significante, para o "critico
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ORIKI ORIXÁ TOQUES PARA UMA POÉTICA NAGÓ

nativo", quanto a estrutura do texto. E a verdade é que os estudiosos uma interpretação. Existe, portanto, uma arraigada e generalizad a
contemporâneos adotaram a classificação primeva, mapeando e hermen~utica do oriki e de outros gêneros tradicionais. E esta
esquadrinhando os referidos critérios extratexruais: o grupo de pessoas de hermenêutica nada tem de desorganizada, de "ingênua" ou de anárquica.
que faz parte o poeta/cantor; a técnica de oralização; os st:y!istic devices No dizer de Karin Barber, não apenas os textos poéticos foram feitos para
acionados nos recitais; o modo como cada gênero soa na ação ser decifrados - eles vêm acompanhados por métodos e técnicas de
per formática. É assim que Oludare Olajubu diz que o iwi egúngún interpretação solidamente desenvolvidos. De aco rdo com a estudiosa, a
(executado unicamente pelos membros do culto dos ancestrais) é um decodificação do oriki, como de outros textos o rais io rubanos, envolve
gênero específico , no conjunto da textualidade iorubana, pelos "métodos coisas como a etimologia, a etiologia e a memória pessoal. Ou seja: antes
especiais de composição", a "técnica especial da performance" e o "tom que no reino do puram ente aleató rio, nos encontramos aq ui no campo
peculiar de voz empregado no ato de cantar". da análise interpretativa.
Mas os iorubanos não apenas distribuem ou dispõem por classes as
formas textuais que produziram. Além desse ordenamento, encontra-se ai
o cultivo tradicional da idéia de que um texto vem ao mundo para ser O oriki nasce no interior da rica malha de jogos verbais, de ludi
interpretado. Quando o texto criativo desponta o u irrompe como ponto linguae, que se enrama no cotidiano iorubá. Concordo com o ponto de
luminoso em meio aos muitos jogos de linguagem que compõem o vista de Bólánlé Awé sobre o assunto. O historiador acredita que o oriki-
universo discursivo iorubano, surge como um agrupamento signico que poema é uma extensão ou um desdobramento do o ri ki-nome (oríki-sóki,
está ali para ser comentado, debatido, explicado. A exegese textual é uma oriki-palavra), ou nome atributivo, espécie de apelido poético, digamos
prática rotineira. Aguarda-se naturalmente que a atualização de um texto assim, que é um dos três no mes que o recém-nascido iorubano pode
' criativo gere sempre o metatexto explo ratório, que deslinde ou desencave receber. A expa nsão de uma célula verbal é fenômeno comum no mundo
seus múltiplos sentidos. Mas é claro que, quando falo que o oriki existe dos textos. Jolles fala de provérbios que se expandem até se co nverterem
para ser interpretado, não estou querendo dizer que ai esteja a experiência em longos poemas proverbiais. Coisa semelhan te se passaria entre o oriki-
primária desta espécie de texto. O gesto reflexivo-interpretativo é sempre nome c o oriki-poema, com o nome atributivo se expandindo verbalmente
secundário. Apelando para a "distinção fenomenológica" e ntre em direção ideal à constituição de um corpo signico claramente percebido
compreensão e discernimento enquanto modos recepcionais distintos, e defin ido como "poético". Na verdade, a expressão "oriki" designa
Hans R. Jauss escreve que a experiência estética n ão se inicia pela nomes, epítetos, poemas. Cobre po rtanto de uma ponta à outra o espectro
interpretação do significado da obra, nem pela reconstrução da intenção da criação oral em plano poético. Mas, afinal, o que quer dizer "oriki"?
do auto r. "A experiência primária de uma obra de arte realiza-se n a
sintonia com (Einstellung auf} seu efeito estético, i. e., na compreensão
fruidora e na fruição compreensiva." Pensar que o texto foi composto não A escolha do nome de uma pessoa tem para nós mu ito de
para o receptor, mas para o hermeneuta, não passa, ainda segundo Jauss, insignificante. Depende quase sempre de uma eleição estética ou assume
de uma presunção filológica. O que quero acentuar, no caso do oriki, é o caráter de homenagem a figuras reais ou míticas que tenham marcado
uma outra coisa. Enquanto no Ocidente a recepção concreta de um poema a vida dos pais. Além disso, os ocidentais costumam batizar seus filhos
pode não passar de um processo atual de "compreensão fruido ra" ou com nomes cujo significado preciso desconhecem. São nomes de o rigem
"fruição compreensiva", a atualização de um o riki é sempre seguida de latina, hebraica, saxã, grega, distribuídos pelos mais variados países e
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ORIKI ORixA TOQUES PARA UMA I'OETICA NAGÓ

culturas, sem uma conexão qualquer, concreta ou mística, entre o nome ser chamada por seu "nome de flor", já que recebe o nome de uma planta
e o nominado. A eufonia prevalece sobre a semântica. E o resultado é uma ou árvore que estiver flo rida no tempo cerimonial. E ela vai portar esse
onomástica vazia, cujos referenciais se perderam na poeira. Enfim , o que "nome de flor" até que dê um fru to, isto é, tenha um filho. Diz Radcliffe·
en contramos por aí n ão ultrapassa o laço frouxo que vislumbramos Brown que é poss ível recon hece r, n as flo restas andama n esas, uma
ocasion almente num encontro de xa rás - o que reforça ao extremo o sucessão disti nta de aromas du rante parte considerável do ano . A partir
contraste com a importância do nome n as sociedades tradicionais: entre dessas seqüências odoríferas, os ilhéus dividem o ano em períodos flo rais.
o povo !kun g (o sin al "!" indica um estalido labial antes d o "k"), Compõem um calendário de perfumes, que funciona como repertório de
pejorativamen te chamado "bosquíma no", pessoas que partilh am no mes nomes para as adolescentes que ingressam no ciclo das menstruações.
estão seriamente vinculadas po r obrigações es peciais recíprocas. Sim: nas Gen eralizando para toda a população andamanesa, Radcliffe-B rown
ch am adas sociedades tradicionais, a questão do nome é de fato u ma acha que o nome-de-nascimento é suspen so sempre que alguém se vê
questão. impedido de ocupar seu luga r "normal" na vida da sociedade. Nome e
Já Tylor abordava o tema, embora diluindo-o numa visão abrangente "personal idade social" ficam igualmen te à ma rgem. É assim que o "nome
dos rituais de purificação através da água e do fogo. Em sua cabeça, o que de flo r" vigora entre a primeira menstruação e o primeiro parto, quando
hoje chamamos rito-de-nominação deveria ser incluído entre as cerimônias a mulher, tornando-se mãe, assume a sua "personalidade social completa".
lustrais dos povos selvagens e bárbaros, que estão na origem de costumes Po r fim, Va n Gennep, cl assificando a n ominação entre os "ritos de
civilizados e semicivilizados, a exemplo do batismo cristão. São ritos de passagem", vai vê-la como individualização do recém-nascido e rito de
limpeza simbólica, removendo impurezas originárias do mundo invisível, agregação social. Acho que está certo. Mas, mesmo que estivesse errado,
especialmente por meio da imersão na água salgada, ou pelo simples ato restaria a questão do nome nas sociedade s trad icionais - en tre os
' de chuviscar o sujeito suspeito de estar magicamente maculado. Passa-se andamaneses como en tre os ianomamis.
aqui do plano prático da limpeza física ao formalismo do plano simbólico.
Tylor acha ainda que a idéia do saneamento simbólico não é monopólio
de algum povo ou cultura, mas patrimônio da humanidade. E é no âmbito No mundo africano tradicional, e no que dele ainda hoje persiste, a
desses ritos lustrais de extensão universal que ele vai inscrever as nominação é freqüentemente ocasião para festas e cerimônias. O nome
cerimônias de purificação da criança recém-nascida e de sua mãe, embora da criança faz sentid o, sej a como registro das circunstâncias d o
não distinga qualquer conexão necessária entre limpamento e nominação: nascimento , seja como tentativa de descrição ou expectativa carac-
lavar e nominar o bebê são atos que se conjugaram casualmente, terológicas, seja como he rança de antepassados. E a pessoa pode
transmudando-se em práticas rituais entre povos tão diversos quanto os pros seguir adquirindo nomes pela vida afora, em função de sua per-
índios brasileiros, os hotentotes e os neo zelandeses. Radcliffe-Brown, por sonalidade, por exemplo, ou de eventos de que tenha participado. Veja-
seu turno, incluiu a matéria na categoria dos costumes cerimoniais, em se a propósito a festa do recém-nascido uolofe, logo banhado em água
seu estudo sobre os ilhéus andamaneses. Vejamos o caso na trajetória medicinal e co nduzido para perto de um vaso de barro, cheio de nozes
existencial feminina. Ainda antes de nascer, a menina andamanesa é de kola, as vermelhas simbolizando vida longa e as brancas, boa sorte.
premiada com um nome. Pode, logo em seguida, ganhar um apelido. Mas Uma pessoa mais velha esfrega as mãos na cabeça da criança; cospe em
ambos, nome e apelido, caem em desuso por um bom tempo. É que, à seus ouvidos para que o nome se plante lá dentro; e, quando o no me é
época da primeira menstruação, a moça ganha um nome novo. Passa a anunciado publicamente, orações se elevam . Festa e júbilo marcam

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ORIKI ORIXA TOQUES PARA UMA I'OÉTICA NAGÓ

também a nominação entre os acambas. O pai coloca um colar de ferro nascimento ocorre no Ano Novo ou em algu m festival anual ou dia
n o pescoço da criança, que assim passa a ser vista como um ser sagrado; etc. Há ainda nomes ge néricos para crianças que nascem logo
tOtalmente humano, perdendo o contatO com o mundo dos espíritos. após o fa lecimento de um dos avós, para aquelas cujas mães morrem no
Segue-se então o desempenho noturno do casal agraciado com o novo parto ou durante o puerpério c para as que chegam mortas. Em todos esses
rebenta: um intercurso sexual ritualistico, cujo objetivo é selar a casos, as crianças já vêm batizadas. Mais que um no me pró prio, temos aí
separação do infante do mundo dos espíritos e sua agregação definitiva uma classe, um selo verbal. rómlo gravado no o rum.
ao espaço dos seres e das coisas humanas. Do mesmo modo, como já
nos mostrava o velho Samuel Johnson, dar nome a uma criança é um
acontecimento impo rtante para os iorubanos, evento que não transcorre Do nome ao poema. Quando este percurso se cumpre concretamente,
sem festividades e celebrações. A época elo batizado varia: a fêmea recebe o oriki-nome pode ser visto, de uma mirada retros pectiva, co mo uma
seu nome no sétimo dia após o parto; o macho, no nono . O caso dos un idade tem ática mínima - e, d igamos, pré-constelacio nal. Isto é: uma
gêmeos é especial - e, como eles representam a anclroginía, a nominação unidade que vai se expandindo, se desdobrando e agregando o utras
é feita no oitavo dia. Na o rdem prevista, a criança e sua mãe são levadas unidades que a ela se vinculam po r laços de parentesco lingüístico, ou po r
à sala da casa - numa ação que se chama justamente ko omo jade (trazer afinidades semióticas. Do nome ao poema: semiose, signos em rotação.
a criança para fora) - e aí tem in icio a cerimônia. Mas não exatamente seguindo o script pro posto pel as fascinantes leituras
Conforme a descrição de John son, os principais amigos e parentes se anagramáticas de Saussure, ali onde o lingüista genebri no subverteu a sua
reúnem de manhã na casa. A criança e sua mãe deixam o quarto e a água própria teoria da linearidade do signo. Saussu re estava preocupado com
de um jarro é atirada em direção ao telhado, de modo que também o bebê a substância fonética da palavra e com simetrias fõ nicas dispostas no
• seja atingido pela dispersão aérea das gotas. A criança é então nominada campo textual. Acreditava que um poema pudesse ser encarado como a
pelos parentes e pelos membros mais velhos da família e, com entrega de amp liação de uma palavra-tema, ou "hipograma", foneticamente
presentes, a festa continua. Em alguns casos, além de se fazer oferendas pulverizada. Starobinski, editando os cahiers do mestre, escreveu: "o poeta
e sacrifícios, con sulta-se o oráculo da casa acerca da criança. Como já foi atual iza na composição do verso o material fônico fo rnecido por uma
dito, o recém-nascido pode receber até três nomes: àmút~runwá (nome que palavra-tema"; ass im, "a produção do texto passa necessariamente por um
já vem do orum); àbís? (nome dado no nascimento); oríki - cognome, vocábu lo isolado .. . via de acesso e reserva de fo nemas privilegiados sobre
alcunha, nome atributivo. Mas nem todas as crianças precisam dos - ou os quais se apoiará o discurso poético acabado". Mais precisamente, um
podem ter os - três. A que "nasce com um nome" (àmút~runwá, ''trazida verso, um grupo de versos ou mesmo o texto poético completo pode se
do orum"), por exemplo, tem sua particularidade. Isto ocorre, segundo constru ir pela imitação fõn ica (anag ramatização) de um a palavra, o
Jo hnson , quando "a circunstância peculiar de seu nascimento pode ser hipograma, geralmente o nome de um deus o u de um herói: do nome ao
expressa por um nome que é aplicável a todas as crianças nascidas nas poe ma, portanto, m as em escala fonológica. Ainda Starobinski: "O
mesmas circunstâncias". São os casos dos gêmeos, cercados de uma aura 'discu rso' poético não será, pois, senão a segunda maneira de ser de um
de mistério na cultura iorubana; da criança concebida fora do período nome: uma variação desenvolvida que deixa ria perceber, por um leito r
menstrual; da que vem à luz com o cordão umbilical envolto no pescoço; perspicaz, a presença evidente (mas dispersa) dos fo nemas conduto res".
da que n asce com um número maior de dedos; com os cabelos Caberia ao receptor-analista reconhecer e reunir esses fo nemas, "como Ísis
encaracolados; quando a mãe está viajando ou fora de casa; quando o reunia o co rpo despedaçado de O siris". É certo que os poetas iorubanos
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ORIKI ORIXÁ TOQUES PARA UMA POÉTICA NAGÓ

jogam textualmente com nomes de orixás, do anagrama ao trocadilho. as canções populares são efêmeras, o oriki é largamente conhecido e
É certo, ainda, que o o riki-nome pode funcionar como matriz do texto profundamente apreciado", escreve Karin Barber, para resumir tudo numa
poético. Ele mesmo pode ser visto, de resto, como uma espécie de poema- simples frase: "People grow up hearing oriki every day". Sim . O rikis são
minuto. Mas não situo a passagem do oriki-nome ao o riki-poema em emitidos para ninar crianças, receber visitas, celebra r deuses; ressoam,
termos saussurianos. Não só porque a tese saussuriana parece conduzir a também, em batizados, noivados e funerais; comparecem, ainda, em
um blind alley (dado o reduzido número de fonemas, praticamente cumprimentos palacianos, batalhas e festivais; "and are also constantly in
qualquer texto pode ser reconstruído de uma perspectiva anagramatizante), the a ir as greetings, congratulations and jokes".
como porque não vejo o oriki-nome constituindo objetivamente uma Em suma, são objetos de linguagem que pontuam todos os momentos
espécie de subtexto ou paratexto configurado a partir de sua pulverização e movimentos da existência social na Iorubalãndia . Dai que constituam
fonética enquanto hipograma. Diferentemente do anagrama saussuriano, um território discursivo privilegiado para o exame e a compreen são da
o oriki-nome se expande principalmente através da justaposição ou ao trama da vida nagô-iorubá, fornecendo eleme ntos e chaves pa ra os mais
menos da aproximação de blocos sintáticos estruturados d e form a diversos tipos de análise e de postura analítica. Para dar alguns exemplos ,
paralelistica, e não em plano microestético, fonológico, pela d is persão Pierre Verger vai examiná-los em fun ção d a cultura reli giosa; Awé, como
textual de sílabas ou fonemas. O oriki-nome é um epíteto. O oriki-poema guia e fon te de dados para a pesquisa historiográfica; Barber, a fim de
é, basicamente, um conjunto de epítetos . Ou seja: a ampliação se dá não empreender leituras socioantropológicas.
por meio de uma disseminação estratégica de fonemas , mas pelo
agrupamento de frases atributivas, epitéticas.
Existem diversos tipos de oriki. Ou antes , os iorubanos classificam
seus orikis de acordo com o o bjeto que o texto recria. Forma-se, por essa
"Oriki can be about anything under the sun", escreveu certa vez o via, uma tipologia nativa dos espécimes dessa es pécie poética.
historiador Bólánlé Awé. Sob o sol do aiê e sob o sol do orum, podemos Temos assim, por exemplo, a classe dos orikis de linhagem, oríki oríl~,
acrescentar. Tudo o que existe, aqui ou no outro mundo, pode ser a dos o rikis de pessoas ilustres, oríkl b?r?kínní, a dos orikis de cidade, oríki
premiado com a composição de um oriki. Em princípio, ao menos, nada ilú , etc. Karin Barber fala até mesmo da existência do antio riki, chamado
conseguiria escapar à sua rede de signos. Seres e símbolos do além; e aqui, àkljà ("provocative epithets"), que, ao invés de celebrar a riqueza ou a
em campo terrestre, o que quer que pertença a qualquer um dos nossos bravura características de uma pessoa ou linh agem, concentra-se
reinos, vegetal, mineral ou animal - para não falar de criações específicas justamente no que é vergonhoso e ridículo, fri sando acidentes e incidentes
da vida sociocultural, como guerras, impérios, famílias, cidades. O oriki cômicos e/ ou embaraçosos de suas trajetórias ... Pois bem: em meio a esses
é onirepresentacional. Além disso, não tem somente uma existência diversos tipos de oriki, destacam-se, sem dúvida, os orikis de orixá, oríki
autônoma. Orikis aparecem engastados no corpo de outras formas ôrl~à, que são figurações concentradas (e não raro enigmáticas) dos deuses
poéticas, como no texto ijalá, nos cantos das moças nubentes ou na do panteão nagõ-iorubá. Para usar livremente expressões do velho
poemúsica dos ancestrais. Como se não bastasse, é onipresente na vida Giambattista Vico, os orikis de orixá podem ser vistos como um elenco
iorubana, peça indispensável dos ritos sociais. Em meio aos modos de ideogramas que os "poetas teólogos" da lorubalãndia compuseram para
textuais criativos encontráveis no mundo nagô-iorubá, nada é tão presente os caratteri poetici de seu universo cultural. E é bom enfatizar que ninguém
e tão popular quanto o oriki. "Enquanto os versos de Ifá são esotéricos e emite um oriki de orixá em vão. Recitar ou cantar um oriki de Oxóssi não
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OR!Kl ORIXÁ
TOQUES PARA UMA POITICA NAGÔ

é o mes mo que recitar um poema de Blake o u ca ntar um blues d o blo cos lingüísticos, o u unidades temáticas, não possuem u ma o rdenação
repertó rio de Billie H oliday. As palavras têm, no o riki, uma carga especial. rigo rosa, pode nd o inclus ive ser subtra íd o s numa ou nout ra perfo rm ance.
Uma certa den sidade energética. E coisas podem aco ntecer a partir de sua O latu nde O. O latunji insiste nesse aspecto. Ele co mpa rou u m mesmo
simples emissão. Quando recito um o riki de O iá-Iansã, sei que ela está o riki em t rês pe rfo r ma nces dife ren tes , cons tatando a exis tê n cia d e
me o uvindo - e q ue, a de pender do meu gesto e d a minha fidelidad e var iacões
textual, pode me abençoar. U m o riki de o rixá não é um texto q ualquer.
. no ordenamento das unidades temáticas e subtracões '
de lin has
(11 5 , 122 e 129 linhas). Assim, orgânica e infixa, a forma do o riki nasce,
E não só na África, mas tam bém no Brasil. Certa vez, quando comecei a ao menos idealmen te, d as necessidades sugeridas pela própria definiçrio do
recitar um o riki de Oxóssi, uma filha-de-santo d o o rixá se retiro u da sala objeto que o poeta reso lveu focalizar/ recria r. Al iás, segund o Karin Barber,
o nde estávamos, com um misto (declarado) de respeito e receio. a exp ressão "oriki" é usada, na esc rita acadêmica ioru ba na, para tradu zir a
palavra inglesa "dcfinitio n" - "for oriki :~ rc felt to enc:~psul ate the esse n tial
q ualities o f en ti ties" .
À simples menção da expressão "soneto" , o sujeito criado na tradição
literária ocidental geralmente agu arda, de modo quase que auto mático, a
aparição de um organismo poético apresentando quatro blocos verbais O romântico Novalis, que so nhou com uma fu são de poesia e filosofia
com 4-4-3-3 ve rsos cada. É que o soneto é um a forma fixa, assim como a numa es pécie su perio r de sabe r, já assinalava, aind a que de um po nto de
sextina prove nçal. Não é este o caso do o riki. Sem medida métrica, vista "evolucio n is ta" qu e sabemos insustentável (se já n ão é possível fa la r
armação estrófica ou número de "verso s" previamente estabelecidos, o d e "evo lução" no te rreno d a fil oso fia, estaremos defin itiva mente
oriki é uma "forma o rgânica", tipicamente orgânica . Podemos encontrar condenados ao d ispa rate sempre q ue o ass unto aflo rar em esfera estética),
' tanto um oriki sintético, co ncentrado, quase uma cápsula poética, quanto o ca ráter fragmentário e não-linea r d a criação poética nas socied ades
um oriki quilométrico, transbordante, longo recitativo que parece que trad icion ais. "O poe ma dos selvagens é um a na.rração sem começo, meio
nunca vai chegar a um ponto final. Do mesmo modo, enquanto um c fim ", dizia ele - vendo nessa produ ção d o es pírito embrionário o u
soneto em decassílabos progride com uma regularidade impecável, rasteiro (" o poem a épico é o poema primitivo nobilitado") apenas uma
matemática, o oriki não traz qualquer padrão de controle da extensão/ es pécie de "vivificação meramente dinâmica d a faculdade de representação" - ,
duração de linhas. Um mesmo oriki pode exibir linhas de extensão muito para acrescentar qu e o prazer se ntido pelo ser humano "p rimitivo" ,
variável. Regra geral, uma peça desse gênero poético é um conjunto de di ante dessas o bras carentes de um a estruturação linear, era "meramente
linhas longas, médias e curtas, agrupadas não em obediência a um patológico". Mas o fato é que, deixando de parte - e bem d e parte - o
esquema gené rico rígido - e dado ~e antemão -, mas em função da julgamento etnocentrista , Novalis faz uma o bservação tecnicamente correta,
definição do objeto tematizado. Repetindo, o oriki é uma forma orgânica. quando aplicad a a dive rsas poéticas extra-ocidentais. Em relação ao oriki,
É o avesso mesmo da forma cristalizada, do molde ou esqueleto riscado por exemplo, é perfeita. A última coisa que devemos es perar encontrar,
com antecedência e de uma vez por todas, que o poeta devesse ir nos orikis de orixá, é o desenvolvimento lógico-linear de uma idéia ou
preenchendo através de suas escolhas verbais. Ao contrário: aqui, cada um enredo. Inexiste aqui qualquer preocupação em tecer uma estória ou
texto gera o seu próprio design. Mas há mais . Para além do meramente recontar uma histó ria. Orikis não são textos narrativos, seq uer no sentido
"orgânico", o oriki é uma fo'TT_Tia infixa. Construído com base numa sintaxe da narrativa fragmentária . Essa ausência de linearidade chega inclusive a
de montagem, o o riki aparece como uma espécie de colagem verbal, cujos comprometê-los, até certo po nto , en q uanto fonte documenta l para a
" 42
43
ORIKI ORIXA TOQUES PARA UMA ('()ÉTICA NAGÓ

pesquisa hiswriográfica. Referindo-se especificamente a orikis de produzidos no âmbito das vanguardas estettcas do século XX ... E
personagens notáveis, Bólánlé Awé lamenta: "Diferentemente de outras Rothenberg está certo: a não-linearidade e a sintaxe de montage m estão
tradições orais, o oriki não conta uma estória; apenas delineia um retrato entre os traços mais salientes da produção poética de nossa época.
que é freqüentemente incompleto; tal retrato somente ilumina aqueles
aspectos que os contemporâneos julgaram dignos de nota na vida de um
individuo, e faz isso, algumas vezes, numa linguagem tão sucinta, altamente Quem se aproxima do oriki, impressiona-se de cara com o tecido
figurativa e comprimida que a tradução, com freqüência, apresenta-se como sono ro do texto e com a sua linguagem hiperbólica. O gosto pelo
um problema". Escrevendo sobre o assunto, em meu livro Textos e Tribos, grandioso é uma trade mark do gêne ro . Em outras palavras, o modo de
cheguei a comentar: "Mas o que pode deixar a desejar, de uma perspectiva defin ição do objeto, que encontramos no oriki, funda-se na maximização
h istoriográfica, é certamente uma virtude, do ponto de vista poético. Poesia dos traços daqu ilo que é representado. É a visão enfática, superenfática,
não é relatório, arrazoado cronicista ou registro tabeliônico, mas síntese, de person agens, coisas, fenôme nos e processos. A hyperbolê, figura do
' essências e medulas', manifestação formalizada da linguagem ou linguagem excesso. Mas não, é cla ro, no sentido de uma amplificação lingüís tica,
' não-casual', como disse um lingüista". Nada tenho a acrescentar. Antes que soma ou enxame de vocábulos, tal como ocorre no texto barroco - e sim
desenvolver linearmente um discurso, o oriki opera pela justaposição de no sen tido do excesso semântico. O que caracte riza o hiperbólico é o
blocos verbais, como já disse. Toda a questão se resume nisso: o princípio enquadramento ampliado, o realce extremo, o esforço em promover a
con strutivo do or iki é a parataxe. Nos níveis lexical e sintático. Sim - grandeza do objeto focalizado. E o que vemos no oriki é justamente isso:
paratática é a estruturação do texto segundo um princípio de montagem, o giro hiperbólico da palavra - vale dizer, uma retórica do exagero no
"ideogrâmico", onde as proposições vão se sucedendo como numa colagem plano referencial do discurso.
de unidades, sem que se providenciem nexos discursivos para un i-las num A esses traços francamente espetaculosos, extraordinários, somam-se os
encadeamento lógico e/ou cronológico. Em termos lexicais, uma palavra rasgos imagéticos. O galope das imagens, como costumo dizer. São imagens
composta, fusão verbal ou palavra portmanteau é uma construção paratática. amplas, coruscantes e contundentes. Imagens-pedras de raio. Antes que pelo
No nível sintático, paratática é a colocação de palavras uma após a outra, controle ou pela prudência, a imagérie do oriki se pauta pelo insólito, o
sem ligaduras ou "conjuntores", vale dize r, livres de um princípio grandioso, o extravagante. Dai à metáfora, tantas vezes surpreendente (como,
hierarquizante. A construção por coordenação e não por subordinação. O aqui e ali, a adjetivação: "buceta inteligente" , por exemplo, num oriki de
acoplamento de unidades frásicas . O estilo hipotático, ao contrário, é O iá) para o leitor educado na texrualidade literária de extração greco-latina.
dominado pela construção subordinativa, feita sob medida para a armação E à chamada "metáfora direta", abolindo a partícula ve rbal com parativa, o
de desenvolvimentos lógicos e seqüências temporais. No caso do oriki, "como" detestado pelos futuristas italianos: "Ekun ti njé ewé ata", abertura de
temos a junção da parataxe lexical e da sintaxe paratática, ou paralelismo oriki de Oiá-Iansã: leopardo que come pimenta crua. Da imagem à metáfora, o
sintático. É por isso que falo em assemblage e ideograma. A essência do oriki. aparece então como uma prática poética classificável, em termos
método ideogrâmico de compor, tal como formulado por Pound, está na poundianos, como fanopéia- "a casting of images upon the visual imagination".
justaposição. O curioso é que, enquanto Novalis vê a não-linearidade como
algo característico, ou mesmo distintivo, de uma poética "selvagem", o poeta
norte-americano Jerome Rothenberg vai vê-la justamente como um "Rimas: do is homens vestidos iguais, parecendo o mesmo, dois a
elemento que a proxima milenares textos extra-ocidentais de textos dois." A definição é de Joyce -e de um humor tipicamente joyceano . De
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ORII<J ORixA TOQUES PARA UMA POETICA NAGÓ

um mod o geral, podemos nos referir à rima co mo a uma reiteração d e o riki te m, com o um a d e suas peças p ri ncipais , o p rocedim ento d a
células fõ n icas a intervalos regulares. E se assim é, não encontramos nos no minação. Este proced imento se destaca, po r sua al tíssima incidência,
o rikis o que se possa chamar, com pro priedade, esquemas rimicos. A rima no co njunto d as d emais equival ências si ntáticas q ue estruturam
é um evento sono ro localizad o e o criado r d e orikis parece mais voltado ritm ica mente o gênero em qu estão. Mas n ão só. No caso es pecífico d o
para a o rqu estração geral do estrato fõni co do texto do que para a o riki, a no minação é impo rtante não apenas para a estruturação rítmica,
ocorrência intermitente de encontros pontuais. Não é que a rima inexista m as tam bém como refo rço do caráte r hipe rbó lico d o texto . Isto é: a
- e sim que é qu ase que totalmente ausente , surgindo mais com a no minação, encadeando sucessivamente atribu tos diversos, respo nsa biliza-
aparência de um acidente do que com a de um recurso co nstrutivo. O que se pela compo sição de um rol de hipérbo les , d e um a sé rie d e sintagmas
há mesmo é uma preocupação com a arquitetura sonora em seu conjunto. que, dispostos em seqüên cia ou justapos tos , atualizam um paradigma d o
Um artesanato dirigido à massa fõnica em sua totalidade. E o trabalho exces so - c é assim que se co nfi gura, na dimensão d o exagero, a
com o material fonético é de tal ordem que os orikis costumam exibir uma fi sio no mia d o o bjeto que o poeta recri;L
textura paronomásica realmente digna de nota. Ouçam esse trecho que
colho ao acaso, anáfora + onomatopéia + paronomásia: "Aféfé nlá-nlá tí
nwó ilé/ Af~f~ nlá-nlá ti nwó igi/Má f~ lú wà 6/ Heépà, Qya Órirí ará Irá" Metro c ritmo. Além d e não apresentar esquemas rimicos , o o riki
- ícone da ventania varrendo árvores (af~f~ nlá-nlá ... ), quebra d o tam bém n ão no s mostra um padrã o métrico d efin id o. Sou levado a
paralelismo para a súplica (má f~ ... ), fluência do jogo fonético, vibrante + co nco rdar, nesse particular, com o olh01wido arm:tdo, se nsível c minucioso
vogais abertas, no elogio da deusa ("óriri ará Irá") ... e no entanto essas d e Olasope O. Oyelaran. No seu rastro , po d e mo s di zer que não é
linhas, em termos de música de palavras encontrável nos orikis, nada têm admissivel falar de métrica a pro pós ito d o o riki , ou mesmo a propó sito
' de excepcional. Não são linhas incomuns. Um pouco antes, nesse mesmo do co njunto glo bal da poesia tradicio nal nagõ-iorubá. Metrificação alguma
oriki, podemos ter outra delícia verbimelódica: "Obinrin biribiri aya parece vigo rar no es paço da arte nagõ da palavra - seja ela acentuai, tonal,
~àngó/Qya o rírí a bá ni jà má nàgà" - visão da ativa e altiva Oiá, amor duracio nal ou silábica. Já escrevi longamente sobre o assunto, no ensaio
de Xangõ, bela na guerta. E há, ainda, o jogo de tons. A configuração "De Orikis", publicado originalmente na revista d o Centro de Estudos
tonal do texto, com suas o ndulações, seus matizes e contrastes, seu Afro-Orientais da universidade baiana e posteriormente incluído em Texcos
movimento ascendente e suas descaídas, seus glidings. Oriki, música c Tribos, de modo que vou me resumir aqui. O metro, todos sabem, é uma
verbal. Melopéia. ca racterística de textos em que o material fõnico está submetido a um
padrão numérico. Costumamos d istinguir entre dois sistemas métricos
principais: o silábico e o silábico-prosódico. No silábico, temos a simples
Paralelismo. Tocamos já no assunto. À repetição de partes de frase contagem de sílabas por linha; no silábico-prosódico, o metro duracional
ou de frases inteiras - igualmente ordenadas - chama-se "paralelismo". (unidades longas e breves) e o acentuai (sílabas acentuadas e não
Ou, nas palavras de Sapir, o paralelismo existe quando estamos às voltas acentuadas). Fala-se ainda em ve rsificação tonemática ou metro tonal, que
com " uma mes ma sentença fundamental" . Seu caso mais intenso, por Jakobson assimila o ra ao metro duracional, ora ao acentuai. Para ele, a
assim dizer, está na anáfora, re iteração de vocábulo em posição de chamada versificação tonemática acaba se baseando na oposição longura/
dominância sintática. No oriki, encontramos a construção paralelística e brevidade ou oposição acento/não-acento. Ou seja: sistemas métricos estão
sua intensificação, o paralelismo anafórico. A construção paralelística do montados na oposição de picos sil ábicos, no nível relativo dos picos ou
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ORJKI ORIXÁ TOQUES PARA UMA POETICA NAGÓ

em sua longura igualmente relativa. Assim definidas as coisas, não há Oya n'ilé, Oya l'óko
métrica n a poesia io rubá. Para Oyelaran , a procura de uma regularid ade Obinri n wb, bi ojo rb
qualq uer, como princípio defin ido r de u m sistema métrico d a poesia
·h;
O binrin kàt:ikiti i ;i
A ji fà 'ji
io rubana tradicion al, é uma busca in útil. Veja-se o exem plo do o riki. O A ji rin l'ójo
que impera é a a-metricalidade. Os orikis não só não apresentam o mesmo Béni o, Oya nlá.
número de linhas-versos, como estas n ão apresentam o mesmo número Hé pil ripà• Ç)ya o, hé-hé-hé
de sílabas. E se o número de sílabas não se repete, falta a recorrência que Aja1,>ajigi eégún inú aféfê
AjaJ,>ajigi eégún ini iná •
d efine a métrica. Os to ns também n ão se regulam por um pad rão Ajagajígi eégun inú ' ji
numé rico. Sua altern ância não é periódica, o que significa dizer que Ajagajígi Msil
inexiste um pattern tonemático. Beier e Gbàdàmósí, aliás, já avisavam: a Ti nb~ ni jà· l~i y'(~W0
estru tura tonal d a poesia io ru ban a n ão é um equivalente do metro Ajagajígi oó~:i ...
euro peu. Em suma, n ão h á, n a poes ia ioru ban a, esque mas métricos
abstratos ou independentes que determinem previamente o número de Ou:
sílabas, sua duração, o jogo de acentos ou o desenho tonal.
Oi:l na cidade, Oiá na aldeia
Mulher suave como sol que se vai
O ritmo do texto oral iorubano não nasce, portanto, do metro. Mas Mulher revolta como vendaval
o ritmo poético não é necessariamente um produto ou um efeito da Levanta e chama o vendaval
Levanta c anda na chuva
' regulamentação métrica do material fonológico. Pode-se defini-lo , em
Assim é a grande Oiá
termos mais amplos, como uma reiteração regular de certas unidades Eparip:i Oi:i ó, hê-he-hê
estruturais. E se a formação rítmica pode resultar de fatores diversos, de Firme no meio do vento
seqüências métricas a relações entre grupos sintáticos, Oyelaran postula Firme no meio do fogo
Firme no meio do vendaval
que, embora esses fatores possam estar presentes na poesia de todas as
Firme orixá
línguas, uma língua particular não está impedida de selecionar um deles Bate sem mover as mãos
como fator central. Ê assim que ele defende a tese de que, no caso da Firme orix;i ...
poesia nagô-iorubá, são as estruturas sintáticas que surgem como o fator
fundamental da determinação rítmica. E aqui voltamos ao paralelismo.
Mais exatamente, ao tema do lugar da organização sintática na construção Que eu saiba, Olabiyi Yai foi o primeiro a falar em " intertextualidade"
do ritmo. Escreve Oyelaran: " ... o ritmo distintivo da poesia iorubá se a pro pósito da poesia oral io rubá (odu ifá, ijalá, rará, ekum iaô, ofó, iwi
realiza predominantemente através do uso do paralelismo sintático, que egungum, oriki, etc.). Ele chegou aí através da meditação sobre algu ns
condicionao uso de outros dispositivos poéticos empregados para alcançar fenômen os lingüísticos encontráveis nessa poesia, como, po r exemplo, o
esse mesmo fim".· E essa poesia pode ser polirrítmica justamente em "efeito d e descen tramento" provocado pela introdução re pentina de
conseqüência da justaposição de blocos de seqüências paralelisticas que vocábulos ou versos em língua estrangei ra (fo n); o em prego da digressão
diferem estruturalmente entre si. Exemplo (registro de Sàlámi) : como desvio/ alargame nto temático; ou a perméabilité des genres, detectada
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ORIKI ORIXÁ TOQUES PARA UMA POÉTICA NAGÓ

pela presença dos mesmos versos em "gêneros" poéticos diferentes, como Se o oriki não escapa à fatalidade do dialogismo, à definição geral do
o trecho de um oriki num texto ijalá (ou vice-versa?). A partir dessas texto como um lugar de co nvergência de códigos e mensagens, ele é
verificações, Yai convocou Derrida-Kristeva para suas análises. E ele ainda, como o barroco, um espaço onde se cultivam sistematicamente os
estava certo. A presença de palavras da língua fon no oriki iorubano fora jogos inrertextuais. Deixando de lado seu relacionamento com textos de
assin alada já por Verger. Volta e meia, um poema iorubá navega outras séries (míticos, históricos) , para nos concentrar em sua articulação
digressivamente. E a mélange de gêneros é um fato indiscutível. Veja-se o dialogal com textos poéticos, podemos falar, a seu respeito, de uma inter·
caso do oriki. Já falamos da organização sintática do oriki em termos de textualidade intramuros (nexos entre oriki c oriki) e de uma intertex-
justaposição de blocos verbais. Esses blocos ou unidades possuem a sua tualidade extramuros (nexos entre oriki e outros gêneros) .
coerência interna e uma relativa autOnomia para acoplamentos, coisa que
vai se refletir n o desempenho performático. O fato delas serem
independentes, variavelmente acopláveis, desobriga o performer da lntertextualidade intramuros. Comparando-se orikis de um mesmo
submissão a uma ordem "x". Temos assim uma estrutura poética que, pelo orixá, vemos que atributos, emblemas e performances do deus passam de
próprio princípio de sua construção, permite o deslocamento ou o um texto a outro, mantendo a fisionomia lingüística. A cadeia sintagmática
rearranjo de suas peças no ato concreto da performance. É por isso que se desloca levando seus componentes. Mas, a cada novo engate textual,
unidades ou blocos de orikis podem ser submetidos a operações de engate pode ocupar um luga r distinto. O que significa que não há uma ordem
(colocação em ordens diversas) e engaste (colocação em outros gêneros). invariável na montagem dos blocos ou unidades (na verdade, um mesmo
oriki pode não apresentar, em duas atualizacões performáticas a mesma
' I

ordem - ou até o mesmo ele nco de blocos). Ocorrem, portanto,


O co nceito de "intertextualidade", em moda no ambiente pós· deslizamentos e subtrações. Um conjunto de orikis sugere, assim, uma
estruturalista, refere-se na verdade a um fenõmeno conhecido, sinalizado espécie de jogo de armar. Tudo se passa num jogo d e câmbios e
por diversos críticos: um texto se faz pela assimilação/transformação de intercâmbios. Como se houvesse, por assim dizer, um proto-oriki jamais
outros textos. O que os "pós-estruturalistas" fizeram foi explicitar e pronunciado, que funcionasse como uma matriz permutacional geradora dos
radicalizar a percepção dessa realidade. Eles dizem que o texto poético é orikis rea lmente existentes. Dessa matriz abstrata, posso inclusive extrair,
um espaço cruzado incessantemente por outros textos (poéticos, míticos, seguindo estritamente as regras do jogo, um pseudo-oriki.
históricos, etc.), construindo-se a si mesmo como um "mosaico de
citações" (Kristeva) . Nega-se assim o isolamento, a unidade e a auto·
suficiência do texto. Ou seja: um texto remete indefinidamente a outros lntertextualidade extramuros. Reproduze o que escrevi em Textos e
textos e é justamente aí, nessa malha intertextual, que o seu significado Tribos: "Um oriki, ou unidade de oriki, ou epíteto isolado, é engastado
pode ser apreendido. Mas se o conceito diz respeito· à produção textual em textos pertencentes a outros gê neros ... Mas aqui há uma outra
em seu conjunto, também é verdade que alguns campos dessa produção observação a ser feita, de caráter mais geral, so bre a intertextualidade na
cultivam e/ou discutem a intertextualidade em plano programático ou poesia tradicional dos nagõ·iorubá. É que todos esses textos apresentam
paraprogramático, como acontece na esfera da poética barroca. Aqui, a 'similaridades óbvia s', movendo-se numa cerrada rede de conexões
intertextualidade não é apenas inevitável, mas procurada. O barroco é intertextuais. E isto a ponto de parecer quase impossível tentar estabelecer
acintosamente intertextual. Assim como, embora de modo diverso, o oriki. uma classificação estrutural dos gêneros. O ensaio tipológico parece, ao
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ORIKI ORJXA TOQUES PARA UMA POETICA NAGÓ

menos à primeira vista, fadado ao fracasso (os semioticistas terão um bom tradicional iorubana; nem se acha ai uma figura autoral como a de
campo de trabalho nessa flo resta de sonâncias e disson âncias). Karin Petrarca, passando para a Renascença o repertório clássico da poesia
Barber chega a se perguntar se o oriki é um gênero ou um material greco-lati n a e da lírica medieval. O texto barroco partia de um outro
incorporado a gê neros diversos. Sua resposta: ambos [em texto mais texto, mas este trazia uma assinatura. O oriki, ao contrário, não costuma
recente, Karin se refere ao oriki como master discoursel. 'A literatura oral apa rece r como produto de um único fabbro. Regra gera l, é criação
iorubá em ge ral aparece como um vasto estoque de materiais verbais - coletiva. T em vários "autores". Pode-se dizer o mesmo da Odisséia, mas
temas, fórmulas, estórias, idiomas poéticos - que podem passar através das o fato é que os gregos nomearam uma personagem par:-1 :.1ssiná-la. Não
permeáveis fronteiras de todos os gêneros e serem incorporadas a eles para encontramos, entre os iorubanos, sequer esse recurso à ficção auto ral.
pree ncher diferentes funções'. Oludare 9lajubu advertiu que ai se Assim é que, em campo ocidental, não se pensa em operação intertexrual
encontrava o maio r obstáculo para o estudante da poesia oral iorubana: sem se pensa r no expediente da citação. Um texto, devidamente
a dificuldade em distinguir textualmente um gênero de outro. Temas identificado, implanta as suas marcas em outro. Tudo bem. Mas o que
comuns, fontes comuns, emprego dos mesmos padrões criativos, etc., dizer do oriki? Sem texto fundador ou firma auto ral, quem cita quem?
fazem com que os gêne ros se a presentem com um alto grau de Não há centro aqui. Não se pode fa lar, com propriedade, de citação. O
indiferenciação [se é que realmente é cabível falar de "gêneros" em tal que ocorre, em âmbito io rubá tradicional, é uma rotatividade de unidades
contextura textual!. Passando em revista os trabalhos de Ulli Beier e verbais numa textualidade descentrada.
Adeboye Babalola (' ... Yoruba tradicional poetry in general is best classified
not so much by. the themes as by the stylistic devices employed in recitais'),
Olajubu viu que os critérios para a distinção entre gêneros , aí propostos, Com tantos procedimentos rei terativos - da estruturação rítmica ao
' diziam res peito a coisas como a propriedade do canto por parte de um incessante deslizamento intertextual -, o oriki não seria uma comarca da
determinado grupo (caçadores, devotos do culto dos ancestrais, etc.), a indiferenciação en trópica? Não. Reiteração implica redundância, mas não
técnica de recitação, a atualização performática, etc. São, como se pode ver, indiferenciação ou ausência de inovação. Podemos fazer aqui, como já fiz
critérios extratextuais. (... ...... ). Chamo a atenção para o fato somente antes , uma comparação do oriki com a lírica occitãni ca. A poesia
para que o leitor tenha uma idéia aproximada do quanto são estreitas e trovadoresca está cheia de elementos cristalizados. Mas essa codificação
intrincadas as relações intertextuais que caracterizam o espaço poético não abole sua riqueza. A inve nção ocorre no âmbito de um conjunto de
iorubano". regras . É um exercício criativo nos limites de um código. Na lírica
trovadoresca, d iz Pau l Zumtho r, "a va ri ação individual se situa no
agenciamento de elementos expressivos herdados". É por isso que Pierre
Mas vamos sublinhar uma diferença fundamental entre a Bec pôde afirmar que a originalidade de um troubadour era um dado
intertextualidade barroca e a intertextualidade iorubana. Em relação à objetivo. Pode-se medi-la pela novidade com que o sujeito acio n a um
literatura ocidental, é possível falar de "textos fundadores". São textos que conjunto de tópicos e fórmulas preexiste ntes ao seu desempenho. Foi
. assumiram uma função matricial nos jogos intertextuais do Ocidente, examinando essa estilística medieval de sintagmas fixos que Bec chegou
como o texto petrarquiano, quase que onipresente no espaço do a definir o trovadorismo como uma d ialética entre os pólos da fixité e da
dialogismo quinhentista-seiscentista. Mas não há referência a um texto varieté. Advirto que não há uma analogia rigorosa entre o caso nagõ-iorubá
primordial, a "textos fundadores" de uma discursividade, na poesia e o caso occitãnico. Sirvo-me da comparação ape nas para acentuar que,

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ORIKI ORixA

como disse Bec, fixidez e variedade não são realidades mutuamente


excludentes. Há uma dialética entre tais pólos na canção trovadoresca -
assim como no oriki dos nagõs. E para a delicia de nosso paladar.

Oriki: ideograma, objeto sígnico construído via sintaxe de montagem,


assemblage verbal fundada no princípio da parataxe.

Oriki: fanomelopéia intertextual. O TRAN.fE


HUMANO
DO.f DEU.fE.f

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provável que uma pessoa sen sível, encontrando por acaso
um o riki, fiq ue h ip notizada. Seduzida pelo brilho, o encanto
ou o mistério do texto iorubano. Mas é também possível
que essa mesma pessoa, a depender do oriki que lhe caia
em mãos, ache-se perdida, desnorteada, sem ter noção do

tY rumo para o qual aquelas mensagens verbais apontam. E


que então se afaste, vencida pela carência de indicadores
capazes de aclarar a fisionomia do mundo ali sugerido, como se aquele
texto não passasse de um amo ntoado de signos desquitados, de frases e
ditos dispa res, que se aglutinaram po r força de algum principio obscuro,
indecifrável. São extremos perfeitamente criveis.
Costuma-se dizer que, para que o ato comunicativo se realize em sua
completude , é necessário que o rece ptor da men sagem te nha
con hecime nto do código em qu e ela foi produzida. Dai que a
compreen são do campo poético dos orikis passe po r um conhecimento,
ainda qu e fragmentário e superficial, d a cultura iorubana. M elhor
dizendo , do sistema religioso que atravessa e semantiza toda a criação
io rubá. Principalmente se, como é o nosso caso, o que há para ver são
textos que tematizam deuses . Orikis de o rixá . Me n sagen s signicas
articuladas para compor " ideogramas" de divindades da lo rubalãndia.
Po rqu e esse pensamento religioso con s titui , sem tirar nem pôr, a
dimensão simbólica da vida iorubana, presente no mínimo ges to e em
cada passo do ser humano qu e nasceu n o interio r desse conjunto
geocultural. O assunto é complexo, sem dúvida, mesmo que a preten são
aqui seja leve, limitando-se ao fo rn ecim ento de coo rd enadas de um
quadro bastante esquemático da maté ria, sem o usar ultrapassar os limites
d a generalidade. Referindo-se aos iorubanos, Ba sil Oavidson escreveu

57
OR!Kl OR!XA O TRANSE HUMANO OOS DEUSES

que "poucos povos têm uma cosmogonia tão elaborada" . E ele não está se deixar limitar, no seu sentido mais amplo e verdadeiro, por definições
só nesse julgamento. do tipo "é o espaço da relação do humano com a transcendência", por
Esta não é, em todo caso, a única dificuldade. Há muitas outras. Em exemplo. Daí que a já citada Dominique Zahan considere que o co nceito
primeiro lugar, a realidade indiscutível de nossa própria ignorância. São de religião, quando aplicado à África, seja algo confuso e enganador.
praticamente incontáveis os estudos hoje existentes sobre a vida nos Davidson não é de outro parecer: teme que a mentalidade ocidental
trópicos africanos. Estudos o rientados pelos mais variados ângulos promova ciru rgias pouco adeq uad as, isolando fenômenos que se
descritivos ou interpretativos - e abordando os mais diversos aspectos das encontram entrelaçados, e assim mutile o rga nismos culturais complexos.
múltiplas culturas continentais. Mas Dominique Zahan está certa quando Para início de conversa, aliás, há o que Mareei Mauss chamou "silêncio
afirma que, apesar de tudo, é preciso dizer que não há um só grupo inquietante da linguagem", ao verificar a ausência de um termo equivalente
étnico, em toda a África, acerca do qual possamos nos orgulhar de a "oração" nas línguas australianas. John S. Mbiti também se embatucou
conhecer a totalidade dos produtos (artefatos e mentefatos) de sua cultura. nesse ponto. Diz ele que, em muita s línguas africanas, inexiste um
Além disso, desses atos técnicos ou expressivos que ainda não foram vocábulo para a religião como tal, muito embora a "religião" acompanhe
alcançados pelos focos de luz da investigação, partam eles da arqueologia tradicionalmente, em todos os momentos, a mulher c o homem africanos
ou do mapeamento socioantropológico, há também aquelas coisas que - na verdade, desde antes do seu nascimento até depois de sua m o rte.
conhecemos mas não compreendemos em toda a extensão dos seus A dificuldade para circunscreve r o fenômeno religioso, em tai s
significados. E coisas sobre as quais dispomos apenas de um elenco de ci rcunstâncias, é facilmente explicável. A religião, aqui, não é um
hipóteses e de intuições mais - ou menos - brilhantes; mais - ou menos departamento da vida. Não tem função ou vigência meramente setorial.
- verossímeis. Podemos pensar, por exemplo, que o sangue fascina os Ao contrário, permeia todos os instantes e todas as instâncias da existência
bambaras por ser um signo da força vital. Mas essa é uma interpretação individual e coletiva. Graças a esse seu caráter invasivo (e pervasivo), torna-
psicológica - e nada nos garante que a teia de significados tecida em torno se praticamente impossível traçar um círculo demarcatório, capaz de a
do sangue comece e termine aí. Não creio que os io rubanos devam ser confinar ou isolar na contextura da existência comunitária. O universo é
excluídos desse rol de povos africanos a respeito dos quais o saber religioso. E o fato do ser humano se achar imerso numa ambiência
antropológico é incompleto. Apesar do respeitável e volumoso conjunto sagrada dilui as linhas divisórias entre o reino da matéria e o domínio
de trabalhos centrados em campo iorubá, na África e na diáspora, o mapa do espírito, tal como o Ocidente se habituou a concebê-los. "Onde o
dessa cultura apresenta espaços lacunares, zonas de informação semiplena, africano está, aí está sua religião", escreveu Mbiti. Para um africano, como
leituras que se contradizem. Mesmo porque o sagrado e o segredo para a comunidade da qual ele é parte, "viver é ser colhido num drama
costumam andar juntos. rel igioso". Dai que o estudo dos sistemas religiosos africanos seja, em
Um outro problema é que é pelo menos complicado falar de religião última análise, o estudo dos povos que cultivam e praticam tais sistemas.
iorubá. A primeira tentação que nos vem é enfeitar o substantivo com A existência é, em globo, um fenômeno religioso. Ou, ainda nas palavras
aspas: "religião" iorubá. Afinal, o que é mesmo "religião"? Qualquer q ue do teólogo Mbiti, o africano "é um ser profundamente religioso vivendo
seja a resposta dada a essa pergunta, o problema permanece, em se num universo religioso" . Uma decorrência disso é a inexistência de gente
tratando de sociedades onde a esfera do religioso não adquiriu uma irreligiosa na velh a África. E aqui prossigo acompanhando a explanação
autonomia nítida em relação aos demais momentos e campos da vida de Mbiti. Na antiga África, ou na África pré-colonial, ser humano era, por
soeial. Em sociedades tradicionais, o que chamamos "religião" pode não definição, pertencer a uma comunidade, o que implicava o engajamento
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em crenças e ritos comunitários. Afastar-se da religião grupal significaria, quase infindas variações de superfície. Para Zahan, por exemplo, as flexões
para o individuo, cortar laços com seus afins e com a totalidade do grupo. e inflexões religiosas dizem menos respeito a um solo conceitual comum
Ou seja - com tudo o que conferia concretude, realidade, à existência do que aos modos dissimilares através dos quais elas se expressam. A
individual. Afastar-se da religião era, portanto, situar-se fora do mundo. variação está vinculada não às idéias basilares, mas às ocupações , ao
Desse modo, um iorubano não falaria de sua "religião" - mas da vida trabalho comunitário e ao meio ambiente em que cada grupo vive, na
io rubana. E logo nos defrontaríamos com os orixás. Pois, como bem diz medida em que parte daq uelas idéias ganha expressão concreta por meio
Bolaji Idowu, a tônica, "rhe real keynote", da vida iorubana não está na de elementos presentes nesse ou naquele ecossistema. De fato, numa visão
nobreza ancestral, nem nos feitos passados dos heróis. "The keynote of de conjunto das diversas configurações religiosas africanas, é realmente
their life is their religion . In all th ings, they are religious". A religião é possível destacar alguns aspectos básicos partilhados gene ricamen te: a
assim o fu ndamento e a argamassa da vida grupal. Não é por acaso - relação com o meio ambiente; o vínculo religião-comunidade; a ausência de
observa Jack Goody - que ao nos referirmos a uma religião africana, corpos doutrinários sistemáticos; a coexistência de monoteísmo e politeísmo;
tentamos não só esboçar as suas características distin tivas, mas sobretudo o antropocentrismo; o caráter pragmático da fé. Pode ser que esses traços
a d efin imos co mo crenças e práticas de um gru po es pecífico , não sejam comu ns a todas as religiões africanas, mas certamente estão
te rrito rialmente circunscrito. É assi m que n os reportamos à religião presentes no campo nagô·ioru bá, que é o que nos interessa.
achante, à religião bambara, à religião nagõ-io rubá, etc. São formas étnicas O vinculo religião-natureza, ou antes, a sacralização am biental, gera
de rotular, n o dizer de Goody. As religiões alfabéticas, ao co ntrário, uma série de traços típicos das re ligiões africanas. Move ndo-se num
possuem fronteiras au tôno mas. Alterando a fórmula de Mbiti, ela está unive rso religioso, os africa nos possuem mú ltiplos te m plos e uma
onde o Livro está. Goody completa: só depois da entrada em cena do conduta religiosa multifária. O próprio iniciado na esfera do sagrado é,
proselitismo católico (e ka tholikós significa "universal") ou islâmico é que ele mes mo , um templo vivo do divino. Como são tem plos coisas como
começou a ganhar forma a idéia de uma religião nagõ-io rubá (ou ach ante, fo ntes, lagos, riachos, montanhas , árvores, bosques, colinas , grutas, rios.
etc.) distinta do "conceito inclusivo" de modo de vida iorubano. Tudo no am biente - biótico ou abiótico - é passível de sacralização. A
É eviden te que, ao fal ar de religiões africanas de um modo geral , natureza não é vazia. Seus objetos e fen ômen os estão carregados de
estamos pressupondo uma unidade subj acente a essa vasta gama de significâncía religiosa. De vibrações es peciais. "O homem dá vida mesmo
manifestações e sistemas religiosos. Uma unidade na diversidade, quando objetos e fenômenos naturais não têm vida biológica. (. .. ). O
obviamente, como se aí existisse uma espécie qualquer de infra-estrutura m und o invis ível é simbo lizad o ou manifestad o por esses visíveis e
ideoemocional. Essa é a opinião de alguns especialistas no assunto. Há concretos fenômenos ou objetos d a n atu reza" , escreve Mbiti, trazendo-
quem afirme, claramente, que elementos comuns de crença tornam nos à lembrança o milesiano T ales ("tudo está cheio de deuses ") e as
possível discutir os conceitos africanos de Deus "como uma unidade e "hierofanias" do homo rel igiosus de Mircea Eliade. Se Tales divisava
numa escala continental" (Mbiti). Parrinder, aliás, já sublinhava a unidade alm as n o âmbar e no ímã, Eliade va i ver a história das religiões
do s conceitos espirituais africanos - embora tenha sido criticado por co n stituind~·se por uma acumulação de "hierofanias" (manifestações do
assimilá-los a uma visão cristã. E autores mais recentes consideram que a sagrado - do grego, hierós, sagrado, e phanerós , visível, manifesto, ou
extrema dive rsidade dos grupos étnicos não deve se converter numa phanós , claro, lum inoso). "Trata-se sempre do mesmo ato misterioso: a
espécie de mosaico plurifaiscante que ofusque o observador, impedindo· manifestação de algo ' completamente diferente', de uma realidad e que
o de vislumbrar a un idade fundamental que se encontra po r trás dessas não pertence ao nosso mundo, em objetos que formam parte integrante
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de nosso m undo 'natu ral', 'profano'. (.. .). A pedra sagrada, a árvore Em contrapartida, esse complexo móvel a que chamamos religião
sagrada não são ado radas enquanto tais; mas precisamente pelo fato de nagõ-iorubá apresenta uma abertura maior - no senndo da flexibi lidade,
serem hierofanias, pelo fato de mostra r algo que já n ão é ped ra nem da capacidade de absorção de práticas, idéias e deuses - do que as
árvore, sim o sagrado, o ganz andere" (Eiiade). É cu rioso, em todo caso, religiões alfabéticas ou "de conversão", regidas pela imutabilidade da
sentir que não h á luga r aqu i para se falar em pantelsmo. Pelo menos escrita. Oito de outro modo, as religiões africanas tradicionais podem ser
em âmbito nagõ-ioru bá. A sacralização iorubana da n atureza não parece extáticas, mas não são estáticas. Jack Goody viu bem: "A flexibilidade é,
trazer con sigo , como desdobramento lógico, a crença de que Deus é tudo pois , uma caracte rística d as crenças e práticas re ligiosas africanas ,
e de que tudo é Deus. to rn ando-as abe rtas a muda nças internas bem como a im portações
Já o nexo religião-comunidade, religião-grupo étnico, encerrando a extern as". Dive rsamente, "n as ig rejas letradas, o dogma e o serviço são
religião em sua ambiên cia étnica, exclui do horizo nte das socied ades rígidos .. . , o credo é recitado palav ra por palavra , as T ábuas do Se nhor
tradicion ais, ao menos teo ricamente, os problemas d a conversão e do apre nd idas de cor, o ritua l repetido textualme nte. Se tem luga r uma
proselitismo. Não faria sentido algum, nesse contexto, um bam bara se mudança, ela to ma com freqüência a fo rma de um movimento de cisão
converter ao sistema religioso iorubano, ou um ioru bá se conve rte r ao (. ..); o processo é deli beradamente reformista, revolucio nário mesmo, ao
sistema achante. Para usar a distinção de Goody, estamos tratando com contrário do processo de incorporação que tende a marcar a situação
religiões "de origem" e não com religiões "de conversão". O fenômeno oral" . Radicalizando a argumentação, é o Livro Sagrado que instaura a
da co nversão seria inconcebível, n a med id a em que exigi ria um religião tal como a conhecemos , destacável desse ou daquele território ou
rompimento rad ical com o grupo. Antes que se co nverter em alguma modo de vida. A idéia moderna de que o texto é mutável não passa de
coisa, o indivíduo se transformaria num pária, produto esdrúxulo de uma uma inve rsão. As leitu ras é que são variáveis. In terpretações oscilam em
ruptura cósmica. Quem nasce nuer, mo rre nuer - não "vira" io rubá. Dai suas ênfases e em seus matizes. O texto, não: cada signo gráfico é um
também a inexistência de proselitismo. Do ponto de vista das sociedades pequeno sol imóvel, paralisado no dese rto claro da página. A ausência
tradicionais, não há sequer espaço mental para que se conceba tal projeto. de um corpo doutrinário sistemático, de um credo fixado definitivamente
Pensar em conquistar uma cidade para obter escravos ou cobrar tributos, pela escrita, é fund amental. Mbiti insis te nesse po nto . Nota que as
sim. Mas pensar em preparar pregadores para dilatar o raio de alcance crenças african as não se ~cham formal izad as em conjuntos sistemáticos
de uma fé equivaleria a pensar na propagação de um modo de vida, cujas de dogmas , que as pessoas devessem acei ta r, a fim de obter o
raízes e configurações possuem implicações ancestrais e divinas. Uma reconhecimento de seus estatutos de credenti. As pessoas simplesmente
"catequese" iorubá teria que começar no orum, no outro mundo. É po r vão assimilando idéias e práticas religiosas observadas no círculo familiar
isso que as fo rmas religiosas africanas não são "de conversão", como o ou no circuito comunitário. E há uma certa marge m de va riação nesses
catolicismo e o islamismo, que desconhecem distinções étnicas e fronteiras princípios e práticas. M itos e ritos n ão se reprodu zem de modo
lingüísticas e territoriais. O que pode haver - e há, entre os iorubanos - exatamente igual de uma região a outra. Mas essas variações não são
é a política do mito. Uma região conquistada pode ter os seus mitos vistas co mo an omalias, co mo iniciativas vo luntárias e conscie nte s,
submetidos a processos de reelaboração, ou subvertida a hierarquia de seu direcio n ad as para a constituição d e d issidências. Não re ina aqu i a
panteão, em função dos propósitos do dominador. A ordenação do postura cismática; o sentimento nítido de es ta r contraria ndo uma
sistema religioso iorubano, tal como hoje o conhecemos, é basicamente o rtodoxia . As coisas variam assim como é variável a composição e o
um produto do imperialismo de Oió. cromatismo d e dois espécimes de uma mesma árvore.
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A ausência de escrituras sagradas implica, portanto, a inexistência de de que a formação religiosa nagô-iorubá nada tem de "salvacionista". Não
uniformidade total em torno de todos os aspectos de um mito ou de um se fala que depois da morte poderá haver uma vida melhor. Nada de
rito. As vetustas religiões da África não só não são proprietárias do Livro paraíso, inferno, milênio, expectativa messiânica , apocalipse. Vida futura?
(do grego bíblos, biblíon), como também não possuem, como lem bra "Viver aqui e agora é a mais importante preocupação das atividades e das
Zahan, sumas teológicas. Não são religiões escriturais. A transmissão do crenças religiosas africanas", responde M biti. Africanos antigos nunca
mito, da doutrina e do ritual segue por outras e muitas vias. Para dar um viveram ad majorem Dei gloriam . E aqui podemos ressaltar uma tríade que
exemplo extremo - radicalmente d istinto do emprego da palavra nos parece marcar fundamente o pensamento religioso clássico da África:
credos alfabéticos -, veja-se essa ve rdadeira situação-limite que é a antropocentrismo, geocentrismo, pragmatismo.
transmissão do conhecimento iniciático no sistema nagô-iorubá. A palavra Mbiti fala que, para compreendermos as religiões africanas, é preciso
que leva o saber tem que ser dita por uma pessoa a outra. É rigorosamente compree nde r a ontologia africana - uma ontologia "extremamente
interpessoal. E sua emissão é acompanhada por movimentos corporais. antropocêntrica", onde tudo é visto a partir de suas relações com o se r
A palavra tem que ser proferid a com o corpo, a respiração, o hálito, humano. Deus é a origem e o sustento do homem; espíritos explicam o
a saliva, a temperatura - "é a palavra soprada, vivida, acompanhada das destino do homem; animais, plantas, objetos e fenômenos naturais
modulações, da carga emocional, d a história pessoal e do poder daquele constituem o ambiente no qual o homem vive, do qu al sobrevive e com
que a profere", ensina Juana Elbein. Caso contrário, será apenas palavra, o qual pode estabelecer conexões místicas. O ser humano está numa
signo convencional, incapaz de veicular axé, a força que, ainda no dizer de posição-chave em relação a tudo o mais: "it is as if God exists for the sake
Elbein, "assegura a existência dinâmica", permitindo o acontecer e o devi r. of man". Dominique Zahan não é menos categórica: o ser humano é o
Quanto às relações entre monoteísmo e politeísmo, o complexo nagô· elemento central de um sistema ao qual ele mesmo impõe uma orientação
' iorubá pode tornar a surp reender os desavisados. Temos que deixar de centrípeta. A idéia de uma finalidade exte rior à humanidade é
lado os que vêem no monoteísmo um passo adiante no processo evolutivo completamente estranha a esse pensamento. "O homem não foi feito para
das idéias religiosas - ou os que, inversamente, acham que a multiplicação Deus ou para o universo; ele existe para ele mesmo e carrega dentro de
do s deuses representa um avanço sobre a concepção do deus único . si mesmo a justificativa de sua existência". O africano não só afirma a sua
Monoteísmo e politeísmo não são avaliados, no espaço iorubano, em superioridade frente a todas as coisas que existem - mesmo quando venera
termos antitéticos. Ocorre justamente o contrário, conjunção do um e dos a divindade, "não é para a glória de Deus e sim para o seu próprio
muitos. Na curiosa comparação de Basil Davidson, o deus supremo "podia desenvolvimento pessoal" que atua. A extensão estelar e todas as distâncias
ser o remoto cientista teórico que compreendia e controlava as operações divinas só são pensadas e só adquirem peso na medida em que
totais do universo, mas os deuses menores e os espíritos eram os técnicos representem algo para a humanidade.
do dia-a-dia que mantinham o mundo em movimento". Davidson está se Na verdade, as coisas parecem ser ainda mais radicais. "Ibiti enià ko
referindo às concepções clássicas africanas em geral. Mbiti confirma. Os sí, ~6 si imalf, ensina um antigo dito iorubano, registrado por Idowu:
africanos são, genérica e simultaneamente, monoteístas e politeístas, "onde não há ser humano, não há divindade". Sim: os deuses são, em
embaralhando os graus das hierarquias evolucionárias do pensamento última análise, uma criação humana. Karin Barber abordou diretamente
religioso da humanidade. E a fusão é imediatamente detectável na a questão. "O conceito de que os deuses são criados pelos homens e não
Iorubalândia, de Olodumarê aos orixás. Tudo isso nos leva para longe da os homens pelos deuses é um truismo sociológico. Pertence obviamente
cultura judaico-cristã. E para mais longe ainda, quando assinalamos o fato a uma tradição distanciada e crítica, incompatível com a fé naqueles
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deuses. No entanto, a religião tradicional iorubá apresenta uma concepção humanidade por conta de uma proibição divina desobedecida (como entre
muito semelhante que, longe de indicar ceticismo ou declínio de crença, os bambutis, proibidos de comer o fruto da árvore tahu); em outros, o
parece constituir um impulso vigoroso em direção à devoção", escreve afastamento divino se deu em função da fumaça das fogueiras acesas pelo
Barber. Os iorubanos criam um segredo, investem uma entidade de poder, homem; ou ainda porque uma hiena roeu a corda que atava o céu à terra.
alimentam tal poder e glorificam tal entidade, beneficiando-se então da Em resumo, Deus se retira do convívio humano por diversas causas, que
grandeza que forjaram ... Passam a depender desse poder - mas, em vão do simplesmente acidental à desobediência premeditada. E a sepa ração
contrapartida, esse mesmo poder também depende deles. Ainda Barber: é sempre desvantajosa para nós. Com o distanciamento divino, o ser
" ... no pensamento tradicional iorubá, o poder e o esplendor de um orixá humano perde a placidez eterna, a felicidade original, o dom do
depende de ele ter numerosos devotos atenciosos (e ricos) que glorifiquem rejuvenescimento, a capacidade de ressuscitar. A alimentação escasseia,
seu nome. Um o rixá sem devotos é reduzido à insignificância, no que diz aparecem as doenças, a velhice se impõe. Mas o mais intrigante é que não
respeito a uma comunidade humana". A relação entre o ser humano e seu há mitos que falem de um retorno da golden age nu m futu ro distante. As
deus deve ser vista, portanto, e fundamentalmente, em termos de línguas africanas seq uer possuem, segundo os eruditos, palavras para
reciprocidade. H á um laço pessoal entre ambos. "O envolvimento pessoal designar um futuro distante. A perda é irreversível. Um fait accompli. Mas
e íntimo do devoto com o orixá é mútuo. O orixá possui o devoto, mas que não conduz à elaboração de mensagens redentoras. Ao menos nesse
também o devoto, num sentido diferente, 'possui' o orixá" (Barber). A particular, os africa nos parecem não dar importância ao que aconteceu in
estudiosa frisa, ainda, que a concepção de que os humanos criam illo tempore. Como também não se acham à espera de um mundo-que-virá,
(constróem/alimentam) os deuses não é, na África, monopólio dos reinstaurando a vivência paradisíaca. O que passou, passou .
iorubás. Apresenta-se também em outras culturas. Há um provérbio Num oriki de Oiá-Iansã, aprendemos: "egúngún l'ode 9run, oó~a I' ode
' calabari que é categórico a esse respeito: "são os homens que tornam os àiyé". Aparecem aí os conceitos fundamentais de "orum" e "aiê". E vemos
deuses importantes". que lansã, único orixá capaz de encarar e dominar os mortos, está
Enfim, quando o que está em foco é a África, podemos dizer que, no presente no orum tanto quanto no aiê. Circula no espaço dos deuses e
sistema solar da religião, o ser humano é o sol. Tudo brilha e rebrilha dos ancestrais e no es paço dos humanos, das coisas concretas e perecíveis.
ao seu redor. E o domínio do humano é a Terra. No começo, aliás, os O aiê, na defi nição de Pierre Verger, é "o período de vitla, o mundo, o
deuses viviam entre os homens. Uma conce pção que, de resto, não é aqui, o concreto". Já o orum é o alé m, o infinito, o outro mundo, o
propriedade dos iorubanos. Vamos encontrar essa imagem de uma "idade mundo invisível, o espaço sobrc natllral. "Trata-se de uma concepção
de ouro" entre muitos povos africanos, como os dinkas do sul do Sudão, abstrata de algo imenso, infinito e distante. É uma vastidão ilimitada -
os baniaruandas, os achantes, os acãs de Gana, etc. Fora da África, a ode qrun - habitada pelos ara·qrun ... seres ou entidades sobrenaturais ...
convicção na realidade dessa remota convivência de mortais e imortais O qrun é um mundo paralelo ao mundo real com todos os conteúdos
pode ser descoberta tanto entre os gregos antigos quanto entre os arawetés deste. Cada indivíduo, cada árvo re, cada animal, cada cidade, etc., possui
da Amazônia. É interessante ainda notar como, em muitas culturas, a um duplo espiritual c abstrato no ~run. ( .. .). Ou, ao contrário, tudo o que
mulher é apontada como respon sável pelo fim da âge d'or - como agente, existe no qrun tem sua ou suas representações materiais no àiyé", explica
volu ntária ou involuntária, do divórcio cósmico. Mas é bem verdade que Elbein . Em tempos longínquos, conforme relatam os mitos, tanto os
não carregam a culpa sozinhas. Outras criações mitopoéticas narram orixás habitavam o que hoje é o aiê como os humanos podiam ir ao (e
outros motivos para a disjunção. Em alguns casos, Deus abandonou a voltar do) orum. Mas houve o corte drástico. Entre as narrativas míticas

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construídas para explicá-lo, encontramos, por exemplo, aquela que diz idioma próprio (não se sabe como Homero conseguiu traduzir) e não se
que a separação se deu quando um humano tocou o orum com mãos sujas. alimentam como os gregos. Sua dieta é distinta - e seu sangue, especial
Esse gesto despertou a ira de Olorum, que, com o seu hálito divino, criou (em vez do háima que flu i em veias mortais, o ikhór). Também a mitologia
a atmosfera divisória, o céu, e assim separou a existência em dois planos. io rubana apresenta um conjun to de regras alimentares. Cad a orixá tem
Apesar da separação, orixás continuam intervindo sem cessar no aiê. um regime dietético próprio. Mas os ingredientes da chamada "comida de
São deuses insuperavelmente ativos. Olodumarê à parte, orixás não são santo", como se diz no Brasil, não são estranhos à mesa humana. Não
ociosos. Entre os iorubanos, como entre os gregos, inexistem divindades há uma culinária apartada, comida ou bebida privativa dos deuses. Nem,
desocupadas. Aliás, se quisermos distinguir, como os românticos, entre que eu saiba, dialeto divino. Como se não bastasse, é comum que um
dois tipos principais de mitologia, a "realista" e a "idealista", colocando deus seja visto , na cultura ioruban a, como um ancestral divinizado. São,
em cada extremo a mitologia grega e a indiana, respectivamente, veremos por exemplo, os casos de Ogum, o deus de muitas faces, e de Xangô, a
que a mitologia iorubá, com a sua densidade sensível e os seus vínculos fera faiscante. "Ogum, como personagem histórico , teria sido o filho mais
terrestres, está bem próxima do que se produziu na Grécia e bem distante velho de Odudua, o fundador de Ifé. Era um temível guerreiro que brigava
do que se criou na Índia. É uma espécie mitológica que não se desprende sem cessar com os reinos vizinhos. Guerreou contra a cidade de Ará e a
do corpóreo, do material, do comércio com os mortais. Nada tem de destruiu. Saqueou muitos outros Estados e apossou-se da cidade de Irê,
descarnada ou de radicalmente supra-sensível. Os deuses iorubanos estão matou o rei, ai instalou seu próprio filho no tro no e regressou glorioso,
engajados até a medula na trama da vida humana. Deles podemos dizer usando ele mesmo o titulo de Onílre , Rei de Irê", reconta Verger. O viril
o que já se disse dos deuses gregos: são deuses comprometidos com o e justicei ro Xangô, filho de Oranian e neto de Ogum (tomou, aliás, a
terrestre. E a comparação pode ser detalhada . Também os athana toi mulher do avó), é outro ancestral divinizado. No circuito do desempenho
iorubanos têm o corpo vulnerável a ferimentos, preocupam-se com histórico, diz-se que ele teria sido alafim (rei) de Oió. Reza a lenda que
nonadas, estão sujeitos ao desejo, à cólera, à inveja, ao ciúme, etc., de certo dia, tomado pela mais funda tristeza, depois de ter destruído o seu
modo que é mesmo possível falar de uma vida passional tanto entre os palácio e as suas riquezas, ele bateu os pés no chão com uma violência
habitantes do Olimpo quanto entre os integrantes do panteão nagô-iorubá. nunca vista - e se afundou terra adentro, convertendo-se em orixá. Oiá
E assim como os olímpicos descem de sua morada altíssima para interferir Iansã acompanhou o deus na jorn ada . E duas das suas outras mulheres,
no cotidiano humano, também os orixás se imiscuem com freqüência nos a doce Oxum e a corajosa Obá, transformaram-se em rios.
assuntos terrestres. Co ntrariamente ao que possa parecer, a percepção dessas relações
As relações entre os orixás e o aiê são múltiplas e intensas. A Terra greco-nagôs não constitui novidade alguma . É lugar-comum - e tem até
é um teatro para as proezas dos deuses. E esses deuses temperamentais, seus críticos ideológicos. Tanto estudiosos da cultu ra helênica quanto os
de vida tumultuosa, realizam gestos e operações tipicamente humanos. da cultura iorubá já vêm indicando há tempos afinidades que aproximam
Experimentam sentimentos vivos, jogam com a sorte, vão ao mercado, os jard in s politeístas da Grécia e da África. Harold Cou rlander, por
acasalam-se e se reproduzem, intrometem-se em querelas terrestres, exemplo, considera óbvio o paralelo entre mitos gregos e iorubanos,
contraem dividas, são vaidosos, freqüentam festas, cometem adultério, etc. observando que olímpicos e orixás encontram-se igualmente enfronhados
Negam, enfim, que a paixão e a dor sejam apanágio dos mortais. Penso, em assuntos e negócios humanos. "Eles são receptivos a apelos para
na verdade, que os orixás estão ainda mais próximos dos iorubanos do intervir na vida humana; suas virtudes ou vaidades são atributos humanos
que os olímpicos estiveram dos gregos . Afinal, os olímpicos falam um elevados a uma estatura divina; e eles podem ser falíveis, arbitrários ou
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extravagantes em suas atitudes e ações". De outra parte, Mareei Detienne, volumosos e dos pentelhos crespos de Iemanjá. Da astúcia, do amor pela
ao falar da Grécia como uma sociedade rica em deuses ("politeísmo" vem novidade e do corpo esguio de Oxóssi, o caçador de toda luz. De como o
do grego, polytheos), lembra que isso a torna comparável (entre outras) "às ijebu Erinlê se tran smudou em orixá (e aqui os nagôs se distinguem dos
civilizacões da África negra, ao Mali, ao Senegal, ao Daomé". O paralelo gregos, com suas relativamente corriqueiras transfigurações de homens em
é grifado até mesmo em termos preconceituosos, quando falam aqueles deuses). Da beleza de Oxum, senhora da brisa fria e da água fresca. Da
que julgam que tais parentescos desnudam faces negativas, ou ao menos o relha cortada de Obá, ojówú ori~à, o rixá do ciúme. Dos músculos firmes,
excessivamente primárias, do universo grego. "Todos nós possuímos tal elásticos c reluzentes de Ogum. Do corpo arqueado de Oxalufã, o velho
familiaridade com as figuras da mitologia grega, e temos tanta sábio, apoiando-se no seu cajado de prata. Já cantei c bati palmas para
pred isposição para aceitá-las em nossa consciência poética, que esses deuses em inúmeras festas de candomblé; ouvi c repeti relatos de
normalmente não notamos seu caráte r absolutamente bárbaro", escreveu suas façanhas, ap rendendo a conhecer o dese n ho básico de suas
Johan Huizinga, ajuntando que, graças ao com portamento "desordenado personalidades e mesmo algumas das suas idiossincrasias. O que não quer
e de pravado" das divindades helên icas e édicas, "não há muito a escolher dize r, por outro lado, q ue não existam gra ndes diferenças entre olímpicos
entre Hermes, Tho r e qu alq uer deus da África Cen tral". Nem era por c orixás. En tre a Atica c a África. Ta nto podemos aproxim ar Hefcsto e
outro motivo q ue o anglicano T . S. Eliot achava a Rom a de Virgílio "mais Ogum, ferreiros div inos, ou Hermes c Exu, mensageiros itifálicos, qua nto
civilizada" do q ue a G récia de Hom ero - e Stephen Spender ace rtou em podemos apartá-los.
cheio ao dizer que G récia arcaica e África negra significavam, para Eliot, Nem mesmo o transe, a possessão, era estranho à antiga cultu ra grega.
o horror. Do mesmo modo, E. R. Dodds, referindo-se ao velho sentimento Em Delfos, usando o corpo e os ó rgãos vocais da pítia, Apolo fa lava na
grego de "uma dependência constante e cotidiana do sobrenatural" , tão pr imeira pessoa. Os gregos d iziam então que a pítia to rnara-se entheos, o
' forte na Ilíada e na Odisséia, vai se lembrar de sociedades african as, que significava q ue o d eus da lo ucu ra p ro fética (sa be-se lá porque
perguntando-se ace rca dos mo tivos que fize ram com q ue "um povo tão Nietzsche foi identificá-lo com o "racion al") estava dentro dela. Por sua
civilizado, lúcido e racional" não tivesse eliminado, de seus poemas épicos, vez, a religião ioruban a é uma religião do "entusiasmo " , no sentido
esses vínculos com "um passado primitivo". o rigin al da expressão, en thusias mós - rel igião .da posse d o "elegum"
O s pontos de contato são muitos. Interessante é que, ao tratar de ("cavalo") pelo o rixá. O co rpo do iniciado é aqui um altar para a descida
realçar a singularidade da mitologia grega, Detienne confro nte olímpicos e o domínio do deus. Mas a semelhança q ue mais sobressai, como já
com orixás e voduns, mas apenas para revelar sua ignorância sobre os indiq uei antes, d iz respeito à " humanidade" d as cri ações de am bos os
últimos. Ao contrário do que pensa Detienne, não só os olímpicos, mas sistemas m itológicos . O límpicos e orixás são deuses "ativistas", o avesso
também os orixás, "não são coisas, matéria mais ou menos individualizada mesmo dos deuses im aginados pelo epicurismo. E o q ue Giulia Sissa disse
por manipulações e por sangue morno , alimentado r da materialidade- dos o límpicos, vale também para os o ri xás: "n ada de humano lhes é
deus". Essa é uma visão errônea, presa da fantasia "animista" de Tylor. estrqnho". Não há lugar aqui para a apatia, apátheia, ausência de paixões.
O que temos na realidade é coisa diferente. Orixás são, como olímpicos , Estão todos sujeitos ao turbilho nante impéri o do desejo. O oposto dessa
"deuses muitíssimos individualizados" . Conheço Xangô: seus cantos, seu vida divin a m arcada pelo praze r e pela paixão pode ser achado, em sua
ritmo, suas cores, sua dieta alimentar, suas mulheres, seus olhos de fogo, manifestação mais seca, no calvinismo. Aqui se cristalizou, em sua extrema
seu ethos, sua voracidade sexual, o poder de sua fúria, os cabelo s aridez, uma visão in tegralmente antagônica ao mundo mágico e às culturas
caprichosamente trançados que coroam s ua cabeça. Sei do s seios sen suais. N ad a mais distante da secura puritana d o que os deuses
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homéricos e os orixás da Nigéria e do Daomé. Não foi por acaso que, outro) tudo o que n ão correspondesse a esse ideal restrito. Logo, a
apesar de mais rico e sofisticado que o calvinismo, mesmo o mais remoto represe ntação judaico-cristã não pode dar conta da variedade da vida
puritanismo grego, nascido de uma espécie de divinização do ápeiron de humana, co m todos os seu s vícios e virtudes, suas ambigüidades e
Anaximandro, acabou concluindo, pelo olho enviesado de Xenófanes, que extravagãncias. O divino judaico-cristão conceitua/ refletc apenas uma faixa
o imaginário arcaico dos poetas homéricos tinha que ser atacado e da experiência humana. O resto é depositado na conta do Mal. Surge
destruido. Caso tivesse passado por Oió ou Ketu, o poeta-filósofo de assim uma divisão entre o self verdadeiro (portador de todos os atributos
Cólofon teria disparado suas armas contra os orixás . considcrlldos positivos :los olhos de Deus) e o untrue sei{, "conceitualizado
A essa altura, gostaria de assin alar um contraste fundamental entre o com referência a Satã ou ao alienígena, características más de povos não·
pensamento greco-nagõ (e a palavra composta admitiria várias cristãos". É um paradoxo: um paradigma que se aprese nta ao mesmo
substituições) e o paradigma judaico-cristão que, de acordo com Jacob tempo como pan-humano e maniqueísta; que que r abraça r todo o
Pandian, forneceu a base epistemológica da antropologia moderna. humano, mas abolindo do humano boa parte do humano. Ainda Pandian:
Pandian lembra que os deuses gregos expressavam a existência da "Da rica cafeteria da vida, o Ocidente, principiando com o estabelecimento
diversidade e da contrad ição - "representavam e legitimavam a da cristandade como uma ordem político-religiosa, escolheu uma rígida
complexidade da condição humana". O mesmo pode ser dito da religião dieta de bondade".
nagõ-iorubá, em cujo elenco de deuses vamos encontrar figu rações tão Essa diferença basilar entre o judco-cristianismo e a representação
dessemelhantes entre si quanto Oxalá e Exu. E nem os gregos nem os nagõ-iorubá pode ser sublinhada com nitidez se pensarmos num deus
iorubanos projetavam suas religiões numa dimensão universaL A religião como Ogum, que deve ser apreciado na galeria mítica dos heróis culturais
grega era dos gregos, como a religião iorubá era dos iorubanos. Mas da humanidade. Ogum é deus de uma tecnologia - a tecnologia do ferro.
' embora esses sistemas religiosos fossem particulares, específicos de um Isto significa que a fixação de sua fisionomia definitiva não terá sido
grupo, eles abarcavam, no conjunto representacional formado por suas anterior ao surgimento da metalurgia no continente africano. Sandra T.
divindades, todo um arco de contradições, anomalias e paradoxos passíveis Barnes acredita que a configuração chamada Ogum está enraizada num
de serem encontrados no extenso e multifacetado leque das possibilidades conjunto panafricano de idéias que acompanharam a disseminação da
humanas. tecnologia do fabrico do ferro. Ogum, o Metalúrgico. Barnes agru pa essas
A orientação judaico-cristã introduziu no Ocidente uma outra estrutura idéias sob o título "sacred iron complex": o fer ro é sagrado; os ferreiros
intelectual - "a different structure of meaning", nas palavras de Pandian. são membros excepcionais da sociedade; os locais onde se trabalha o metal
Foi um golpe duplo. De uma parte, o paradigma judaico-cristão, ao são santuários, servindo de refúgios a guerreiros e párias. (São idéias
contrário do caráter regionalizado ou grupo-específico dos sistemas grego difundidas; e, no caso dos párias, devemos lembrar que Ogum, o leão da
e iorubá, colocou-se em termos universais. Pan-humanos. De outra parte, floresta fechada, às vezes assoma como a encarnação da personalidade
ainda contrariando gregos e nagõs, promoveu um expurgo. Em vez da solitária, anti-social, embora outras vezes esteja no centro mesmo da
representação divina incorporar a multiplicidade característica da alta ordem.) A figura de Ogum teria se formado então a partir de uma massa
complexidade da experiência humana, a o rientação judaico-cristã de noções comun s sobre a potência sagrada do ferro e a aura de poder
estabeleceu uma representação "absolutista" (Pandian) do divino, que cercava os fabricantes do metal mágico. Era naturaL Nada mais lógico
definindo o ser supremo como a encarnação da perfeição (racional e que, inaugurando uma nova era na aventura humana, a Idade do Ferro
assexuada) e assim expelindo para o espaço do não-divino (o inferno, o provocasse uma ebulição no imaginário, aquecendo-o ao rubro. Ferreiros
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divinos (v. Eliade) brotaram em muitos pontos do planeta. Daí que seja Henry John Drewal informa, aliás, que Ogum é c'onhecido como Ogún
necessá rio definir mais precisamente em que consiste o complexo onigbcryà - Ogum, o Bravo. Acrescenta o estudioso: "o modo de operação
chamado Ogum. Como outros orixás, Ogum é uma assemblage conceitual de Ogum não implica conotações morais". A ação levada a efeitO é positiva
montada ao longo dos séculos. Digamos, recorrendo à terminologia ou negativa de acordo com a avaliação do seu contexto, não com base
musical, que cada orixá se desenha como um tema. Define-se pela numa definição aprioristica de bem e mal. Em seu desempenho mais
recorrência e pelo desenvolvimento de um determinado grupo de "notas". perigoso, Ogum se precipita em violência, vingança, fúria cega, banho de
Ogum é um "domínio" de idéias associadas. Além disso, os deuses são sangue. A-m?-kúkú qj~ - "the one who is srceped in blood"; o embebido
também históricos. Estão sujeitos a processos de reelaboração, em sangue.
justaposição, subtração e síntese. Oito isso, vejamos como o orixá destoa "Dia de Ogum/dia de desastre na terra." Apesar disso, Ogum
da un ivocidade da rep resentação judaico-cristã do divino. funciona como árbitro das ações humanas. "Em seus melhores momentos
A característica central de Ogum é a ambivalência. A incorporação é firme , rcro c sobretudo honesto. Ele é direto e franco em seus atos e
simultânea dos extremos tensos da criação e da destruição, presentes no exige a mesma conduta de seus seguido res. A veracidade é uma das
próprio ferro. Ogum é aquele que protege e mata. O fundador e o qualidades de Ogum. Mais do que qualquer outra coisa, ele odeia ladrões
destruidor de cidades - deus ao mesmo tempo flamejante e gélido. Não e mentirosos, aqueles que os io ruban os descrevetn como andando em
raro, um extremo se desdobra no outro. E então Ogum é o justiceiro que, ziguezague. Assim é que, nas cortes da Nigéria contem porânea, os
no seu afã de fazer justiça, comete atrocidades. Adeboye Babalola nos adoradores de Orixá fazem seu juramento colocando os lábios numa peça
mostrou como essa natureza do deus se reflete na própria eJtrutura do de metal c invocando o nome de Ogum." Ogum facilita também o
canto ijálá, gênero poético-musical também conhecido como aré Ogún, intercâmbio entre os humanos e as forças sobrenaturais. Está envolvido,
' "divertimento de Ogum". Babalola chama a nossa atenção para a ainda, com a procriação. Conclui Drewal: "A divindade, infame por
alternância de afirmações contrárias que caracteriza a textualidade ijalá. derramamento de sangue, violência e destruição, é ao mesmo tempo
Numa linha, Ogum é o benfeitor. Noutra, é Ogum destruidor, ensopado famosa por doma r a natureza, sustentar a cultura e a ado ração dos deuses,
de sangue. E o importante é que passamos de uma linha a outra sem c por facilitar o próprio ato da criação". Essa é a parelha fundamental-
"degradê". Sentenças contrárias são acopladas sem mediações, como se o criação/ destruição. T ais "qualidades são colocadas juntas como du as partes
caráter do orixá se inscrevesse estruturalmente nos cantos compostos em de uma equação: destruidor= criador, ou o obverso, criador= destruidor",
sua homenagem. Aqui é o deus que abre estrada e ajuda seus filhos; ali, escreve Barnes. Uma tensão infinda é mantida entre esses pólos, faces de
irrompe o degolador que estraçalha o que há pela frente. Sobre esse uma unidade que não deve ser partida em opostos. Para Barnes, Ogum é
aspecto da violência divina veja-se o seguinte trecho de uma peça ijalá, a metáfora de que nós criamos os meios de nossa própri a destruição.
registrada por Babalola, onde traduzi a expressão iorubana "a pàdé Ogún" "Responde pelas tentativas coletivas humanas de governar não o que está
(encontro Ogum) por "acho Ogum", numa alusão sonora a a~õgún (no fo ra de controle na natureza, mas o que está fora de controle na cultura.
Brasil, axogum), o sacerdote da faca, adorador do Senhor do Ferro: Representa não tanto o que é inexplicável, não visto ou desconhecido,
quanto o que é conhecido mas não está sob contro le. Ele é o
acho Ogum na briga reconhecimento simbólico das limitações humanas", diz a antropóloga.
acho Ogum na grita Mas para completar afirmando que Ogum também representa os triunfos
acho Ogum em sangue humanos sobre essas limitações. "Ogum ensinou os homens a usar fogo,

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fazer ferro, construir cidades, centralizar o governo, conquistar vizinhos e difundida - a de que o ser humano um dia possuiu, e depois perdeu, uma
criar impérios. A cada passo do caminho, nesse modelo popular da porção ou centelha do divino. "Mesmo nos poucos mitos que lidam com
mudança social, Ogum é a representação metafórica de uma transformação as chamadas ... entidades sobrenaturais, detecta-se um geocentrismo quase
realizada pelo esforço humano." obsessivo." De fato, embora eu n ão co nte com qualquer amplo
Vamos nos aproximar finalmente de outras duas características que levantamento estatístico da maté ria, não posso evitar a fo rte impressão de
parecem vincar fundamente o pensamento religioso africano clássico, onde que a Terra , a morada do ser humano, é o elemento que domina o corpus
se situa a vertente nagõ-iorubá: o geocentrismo· e o pragmatismo. Recorro, m ito poético tecido e e ntretecido nos quatro cantos da África. Na
mais uma vez, ao teólogo Mbiti. Ele enfatiza as características supracitadas. Iorubalândia, sem dúvida, quase tudo se passa em seu espaço. É aqui que
Afirma que a alma africana não espera por uma redenção espiritual ou Exu incendeia a savana, Iemanjá destrói pontes, Oxum co leciona jóias,
por um contato mais íntimo com Deus no outro mundo. O que está em Oiá dança com seu corpo de fogo, Oxóssi caça, Xangô luta.
primeiríssimo lugar é a vida presente no mundo presente. E os atos de Em resumo, é isso. Podemos definir a religião nagó-iorubá , em termos
adoração aos deuses são sobretudo pragmáticos. "Essa fé é utilitária, não gerais, como um complexo religioso ecológico, antropocêntrico,
puramente espiritual, é prática e não mística. O povo responde a Deus geocentrista e pragmático. Como Roland Hallgren colocou no titulo de seu
em - e por causa de - circunstâncias particulares, especialmente em livro, trata-se de uma cultura religiosa voltada para as "good things in life".
tempos de necessidade. Então eles buscam obter o que Ele dá, seja algo As coisas boas na vida.
material ou espiritual. Eles não O procuram como a recompensa ou a
satisfação final da alma ou do espírito humano. A descrição de Agostinho
ace rca da alma humana incansável, até finalmente encontrar seu repouso
em Deus, é algo desconhecido na vida religiosa tradicional dos africanos."
O que importa é não adoecer; é ter muitos filhos (a esterilidade, entre os
iorubanos, é um estigma pesado); são os bons resultados da caçada; é a
beleza e a riqueza; é que a chuva caia fertilizando os campos; é a vitória.
Ainda nas palavras de Mbiti, o que ressalta é a concentração das religiões
africanas em earthly matters - assuntos mundanos, cotidianos, terrestres -,
com o homem plantado no cerne mesmo de cada complexo religioso.
Mas não é só isso. As religiões africanas, como a iorubá, não estão
somente voltadas para temas terráqueos. É a própria superfície terrestre
que aparece como o palco por excelência para as ações dos deuses. Coisas
fundamentais ocorrem no orum, é claro, mas é na Terra que os deuses
têm o seu dia-a-dia. "The African is above ali a stubborn earth-dweller",
comenta Dominique Zahan. E Paul Radin· completa: raras vezes o homem
terá sido retratado como um ser tão completamente ancorado neste
mundo; tão compulsivamente preso à Terra. Na visão de Radin, a
disposição tradicional do homem africano contraria uma crença bastante
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TRAN.ICRIANDO
ORIKI.f
A rraduçdo muda o cardrer de uma obra
e dwról sua unidade wltural.
IGOR STRAVI NSKI

ara usar um a expressão significativa no contexto da cultura


nagô-io rub á, a recria ção d e o rikis deve se dar num a
encruzilhada, cross-road d o poético c do antro po lógico. O
concurso da an tropologia é indis pen sável. Mas não é
suficie nte, se quiserm os ter uma idéia n ão apena s daquilo
a q ue o o riki se refere, mas também d e como o pró prio
oriki se configura. É um pro blema que di z respeito ao design
d a linguagem , para falar em termos pignatarianos. É ó bvio que o o rigin al
e seu duplo jamais serão iguais. Isso está fo ra de questão. Trata-se de criar
um o riki paralelo, po r assim dizer, ao o riki o rigin al. É neste sentido qu e
falamos em re-criar - ou "transcriar", Haroldo de Campos dixir. Se não
deve mos nublar a informação d ocum ental o u semântica, tampo uco
podemos desfigurar a informação estética, materializada no arranjo dos
signos numa estrutura verbal es pecífica.

Pensar a tradução no campo da antropo logia não é propriamente uma


novidade. É evidente que a tradução é uma operação lingüística e, por
força disso, toda teo ria da tradução pertence automaticamente ao espaço
da reflexão lingüística. Mas como a tradução é uma empreitada complexa,
instaurando uma zona de fronteira n ão só entre línguas, m as entre
culturas, não vejo como deixar de lado a pe rspectiva antropológica - o
ponto de vista daqueles que se dedicam ao estudo dos sistemas culturais.
Aliás, Georges Mounin já dizia que "todo tradutor que, de mil manei ras
empíricas, não se tenha transformado em etnógrafo da comun idade cuja
língua traduz, é um tradutor incompleto". E se isto é válido para exercícios
de tradução n o interior de um mesmo complexo cultural, torna-se
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ORIKI ORIXÁ TRANSCRIANDO ORIKIS

especialmente válido para a tradução que se instala num espaço de superfícies conceituais, podemos continuar a ter problemas. Costumo
intercultural. exemplificar esse outro tipo de dificu ldade onde ela aparece de forma
extremamente óbvia: no terreno do léxico sexual dos povos. Aqui, o que
está em jogo são as relações entre sociedade e sexualidade. Ou antes,
Antropólogos lidam freqüen te mente com problemas de tradu ção. como a sexualidade, ou a sensualidade em geral, é defi nida, encarada e
Estudando a sociedade balinesa, Clifford Geertz se referiu, por exemplo, praticada no âmbito de dete rminada cul tu ra. Afi nal, as culturas lidam de
às "habituais ligações erradas q ue são próprias da tradução intercultural". modos diversos com a dimensão erótica da vida huma na.
Nesse caso particular, Geertz tinha em mente a ex pressão negara. É uma
palavra que vem do sânscrito e é util izada, n as línguas indo nés ias , para
cobrir um a área semântica que abarca os conceitos de cidade, palácio, Veja-se o caso da cultura trad icional havaiana, examinada por Sahlin s.
Estado , capital, reino e mesmo civilização (antiga, clássica). O u seja: o Q uando o capitão Cook alcançou o arq uipélago, no século XVIII , viu-se
vocá bulo "Estado " não tradu z corretamen te o que os balineses designam ime rso num mundo altamen te erotizado. Tudo era sexo. E, em matéria
co m o termo negara. Em terreno mais próximo de nós, temos o exemplo de sexo, valia tudo: ho mo-hetero-pa n sexualismo havaiano, em meio a
da expressão io ru bana ?run. Juana Elbein se viu às voltas com o problema. variados jogos eróticos e a uma didática da sexualidade (como o pisca-pisca
Como se sabe, os io rubanos fazem um a dis tinção entre o aiê (o mundo da xota, que era ensinado às men inas, juntamente com o utras técnicas que
co ncreto em que vivemos) e o orum (es paço sobrenatural abstrato, a- fazia m "a alegria d as coxas", no dize r dos próp rios h avaia nos).
tó pico). No entanto, embora o co nceito de o rum não seja de modo algum C uriosamente, po r sinal, o ve rbo "comer" te m, em toda a Polinésia, o
assimilável ao de céu-paraíso cristão , "quase todos os autores traduzem mesmo d uplo sentido gastronõmico-sexual de que antes eu só tivera no tícia
grun por céu (sky) ou paraíso (heaven), traduções que induzem o leito r a no po rtuguês do Bras il e no tupi dos arawetés am azõnicos. Mas voltemos
erro e tendem a deformar o co nceito em questão", reclama a antropóloga. a Sahlin s. " Fica evidente o mo tivo pelo qu al os havaianos eram tão
De minha parte, no caso, acho que se pode simplesmente abrasileirar as interessados em sexo, o sexo afin al era tudo: posição, poder, riqueza, terras
expressões. Elas já fazem parte do po rtuguês do Brasil, especialmente do e garantia de todas essas coisas. Feliz sociedade, talvez, que podia tornar
bahian portuguese (Megenney), onde "aiê" aparece , inclusive, no nome de tão prazerosa, po r si só, a bu sca po r todas as coisas boas da vida." A
uma das maiores entidades afro-carnavalescas locais. Mas as tais "ligações pró pria estrutura organizacional do reino fundava-se em conexões sexuais.
erradas" de que fala o antropólogo da thick description - como nos casos E é claro que tudo isso se projetava na criação textual havaiana. Ao ponto
. '' negara,, por "Estado " , ou " 9run
de se traduztr , n
por u paratso
• "
- rrormam de Sahlins não sabe r dizer o que é uma canção havaiana de amor, "por
apenas uma parcela do problema. O que temos aqui é uma dificuldade ser quase impossível determinar o que n ão é" ("quase qu alquer coisa
estritamente lexical, na medida em que nos defrontamos com conceitos lembra sexo para os havaianos"). Mesmo quando o texto não é explícito,
verbais que não encontram equivalentes exatos em nossa língua. É uma pode estar sob a regência de um procedimento verbal muito usado , no
questão de recorte lingüístico. Inexistem, em inglês ou português, qual os havaianos são especialistas - o kaona, jogo de sentidos ocultos,
vocábulos que respondam precisamente às áreas semânticas recobertas geralmente sexuais.
pelas palavras "negara" e "orum"; que possuam a mesma extensão ou a Em meio a essa textualidade eró tica, signos sob o signo de Vênus,
mesma delimitação referenciais do termo sânscrito ou do termo iorubano. Sahlins fa la ainda d os cantos genitais da aristocracia . São verdadeiros
Mas mesmo quando o referente é idêntico, quando há uma co-incidência hinos em lo uvo r de genitálias reais. O canto da rainh a Lili'uokalani, po r

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exemplo, celebra seus genitais "alegres e travessos". Já o canto do chefe óbvia. Não acredito que nenhum dos termos citados possa responder com
Kamehameha fal a de seus genitais com sabor de flor. (Será que Caetano exatidão ao sentido visado pelo onginal. Imaginem um poeta-cantor
Veloso sabia dessas coisas quando pediu, numa canção, que o Havaí fosse io rubano , diante da comunidade reunida na praça, iniciando uma canção
aqui?}. E tudo isso cria problemas para a tradução. O próprio Sahlins (na qual saudará os orixás e outras e ntidades so brenaturais) com os
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acaba mantendo, nos textos que traduz, o vocábulo ule, colocando ao lado, seguintes Versos":
entre colchetes, a expressão "pênis". Mas nem é preciso ir ao extremo
hav:liano. Nem isto significa que não existam tabus, regras e repressões Mo júbà okó tó dori kodo ti il rn
na cultura tradicional do H avai. Existem, sim, como o tabu da Mo rib;i ~~~ tó Jori kodo ró ó ~an
comensalidade intersexual, por exemplo , que ingleses e nativas
tran sgrediram, degradando assim o seu comércio erótico. O problema é O ludarc Olajubu traduz para o inglês: "I saiu te thc penis that droops
que temos em nossa história o karma judaico-cristão em relação ao corpo. downward without dripping/1 salutc the vagina that opens downward
É fato que, no Ocidente, as visões do corpo e da sexualidade passaram without flowing" (eu saúdo o pênis que se inclina sem pingar/eu saúdo
por uma transformação revolucioná ria. Mas infelizmente, no que diz a vagina que se abre sem fluir). Ora, uma cena dessa natureza é
respeito à tradução, as lí nguas não mudam sempre que mudam os impensável numa cidade ocidenta l contemporân ea.
costumes . E os cristãos continuam sem ter, no elenco de seus santos, uma
mulher como Afrodite , especialista nas artes do amor, capaz de, com o
doce desejo, glukus himeros, ema ranhar as fronteiras cósmicas. A Nos orikis que venho recriando, o emprego de expressões sexuais
propósito, todos devem estar lembrados do velho poeta-filósofo Xenófanes varia algo subjetivamente, ao sabor de um certo "clima" ou de uma incerta
' investindo contra Homero e Hesíodo, pelo fato destes terem imputado aos "atmosfe ra " sexu al. "Xangô, fal o de elefante/ Que a xota fraca/ Não
deuses tudo quanto nos homens era "vergon hoso e censurável": roubo, suporta", por exemplo. Ou num oriki de Iemanjá: "Pelo espesso na
adultério, mentiras mútuas. Homero povoara o Olimpo com deuses imorais. buceta/ Buceta seca no sono/ Como in hame ressequido". Já num texto para
Ogum, recorri à dup la pênis-vagi na. Tudo depende do contexto
fonossemântico, em princípio. Conta Lydia Cabrera que, em certa s
Também os deuses iorubanos são imor(t)ais: deuses fálicos, deusas circu nstâncias, os sa nteiros cubanos tratam Oxum como afaradí iyá, "que
voluptuosas, ambos imodestos em suas façanhas sexuais, exemplos plenos quie re decir ... Puta Madre". Enfim, cada um joga seu jogo. Mas confesso
de exuberância erótica. E seus cantos celebram franca e enfaticamente est:1 q ue n ão é fácil para mim fazer tais escolhas. Talvez há alguns anos, nos
sensualidade. Um temperamento "xenofãnico" (sic) entraria em polvorosa tempos mais extremos da militância-delírio esquerdista o u contracultura!,
nesse reino em que o sexo, além de existir, nada tem de inexplicito. o contestacion is mo a qualq uer p reço se enca rregasse de resolver o
Aco ntece que traduzir uma expressão genital iorubana po r um palavrão, problema numa fração de segundo, superpovoando os orikis de palavrões.
o u recorrendo a alguma "logotécnica" , não me parece muito adequado, Mas hoje a conve rsa é outra. Se não me dou por satisfeito com o jargão
ao menos em princípio. A tradução pode ficar acanalhada ou, o que é técnico, com a gíria médica, também vejo que o palavrão é uma faca de
pio r, ganhar uma frieza médica . Se l emanj á não é nenhuma fre ira , dois gumes. Durante algum tempo, artistas de vanguarda o u soi-disanc de
tampouco consigo imaginar a fogosa lansã em termos ginecológicos. A vangua rd a, ocidentais e o rientais, viram, no emprego ostensivo do
alternativa entre caralho/buceta e pênis/vagina traz uma · inadequação palavrão, uma atitude des reprim ida e mesmo liberadora. Já naq uela época,

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Herbert Marcuse tocava no centro do problema ao falar da linguagem fonético do o rigin al e sua violência semântica exigem coisa bem mais
obscena padronizada como "dessublimação repressiva: satisfação fácil enérgica. C hocante mesmo. Algo ass im como:
(embora indireta) da agressividade" . Aceito, em tese, a leitura marcusiana.
O palavrão pode se voltar facilmente contra a sexualidade - e, nesta O wo oko oloko rojo rojo
"volta", ele a degrada. "Se um radical diz 'foda-se Nixon', ele associa a Enca ra caralho e cara de caralho
palavra para máxima gratificação genital com o representante máximo das
instituiçoes opressoras, e 'merda' para os produtos do Inimigo sucede à
rejeição bu rguesa do erotismo anal. " Em su ma, h á sempre algo de Q uando m e decidi à ave ntura de recriar o rikis , du as coisas me
repressivo, e não raro de patológico, no palavrão. Além disso, não co nsigo to mavam a cabeça. De uma parte, a inexistência de recriações poéticas de
ac reditar que um compositor de o rikis, um poeta religioso iorubano, se o rikis em português. De o utra , uma advertência do padre-cura num dos
dirigisse aos seus deuses com a disposição de um Aretino dos "sonetos capítulos do Quixote de Cervantes, figurando o repto d a tradução criativa
luxuriosos", o u com o Gregório d e Mattos se dirigia às nossas taras de poesia . No primeiro caso, sabia da exi stência de ve rsões prosaicas,
seiscentistas. Mas é isso mesmo: h á que enfrentar a parada. Traduzir é ex plica tivas, d istantes de qualquer efi cácia estética, embora só lidas c
engenhar. Cito, como exemplo, o caso dos orikis de Ogum. Um estudo valiosas para os estudiosos, como as de Sikírll Sà lámi.
sobre a sexualidade do ferreiro divino teria vasto material com que lidar. Mas o fato é qu e translações lingüísticas dessa espécie, mesclando
Ogum é famoso po r suas proezas sexuais. E aqui traduzo duas passage ns versão literal e elucidação etnográfica, por mais que sejam preciosas,
de orikis do deus da guerra, ambos recolhidos por Pierre Verger, o nde principalmente para analistas e observadores culturais, não respondem ao
me vejo impelido a fazer escolhas no reduzido repertório do léxico genital. problema da tradução de poesia. O miolo da questão está em que o seu
Por exemplo: objetivo se reduz à tentativa de transporte lingüístico de um "conteúdo",
quand o o texto criativo é, por definição, linguagem formalizada. A
Entrou fundo e tocou a mão na base do pêni s. ineficácia poética nasce justamente ai, no mo mento em que o que está em
Estava inativo? tela, da primeira à última instância, é a dimensão contextual o u referencial
Ativo pênis penetrante, inativo era o saco. da linguagem - e não a dimensão estética, que faz da poesia, poesia. Num
O saco se esvaziando. poema, para lembrar o famoso verso de Yeats, não se pode separar o
dan ça rino d a dança. Um poema é um poema porque a língua foi
Já no outro oriki, topamos com um trecho que é uma exposição nítida submetida a um artesanato. E isto não pode ser atirado fo ra. A tradução
da sanha e do poder destrutivos de Ogum, o lutador incansável e poética tem que ser, ela mesma, um artesanato - e um artesanato que tente
implacável, que volta e meia se banha com sangue. O texto vai mais ou responder diagramaticamenre à configuração sígnica do o bjeto o riginal.
menos assim: "Mata o marido no meio do fogo/ Mata a mulher na sala Partindo deste princípio - poesia com poesia se paga -, em campo de
da casa/ Mata a criança que tenta fugir" ... Lá pelas tantas, nos deparamos o rikis tudo estava por ser feito . E aqui aflo rava a advertê ncia do padre·
com a linha "o wo oko oloko rojo rojo". Traduzindo palavra por palavra: cura no Quixote. É simples. Enfrascado na leitura de livros de cavalaria,
o (ele) wo (olha) oko (pênis, caralho) oloko (proprietário do pênis) rojo o fidalgo finalmente enlouqueceu (ao menos aos olhos dessa pobreza
rojo (fixamente, segundo Verger). Margareth Thompson Drewal traduz: chamada "bom senso"), saindo pelo mundo a parodiar as letra s que
"He stares at the penis of men". Não tem graça alguma. O desenho devorara. Para evitar que o mal se agravasse, o padre-cura e seu amigo

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ba rbeiro promoveram um expurgo na biblioteca do extemporâneo Tenho tal arte,


cavaleiro anda n te, condenando à fogueira os volumes cul pados pela Que tenho pão e pouso feito
Por toda a parte.
piraçâo quixotesca. Nesse curioso julgamento, o Amadis de Gaula, embora
matriz da literaru ra cavaleiresca e, portanto, origem de todo o tresvario, é Ora, Augusto vem mantendo - e prossegue sustentando -, por estrofes
absolvido. Por que? - "po r ser ún ico em sua arte", sintetiza o barbeiro, seguidas, a estrutura, a fisionomia e o to m da canção do duque d e
conve ncendo o cu ra. A mesma sorte não tem a versão espanhola do Aquitânia. Quem conhece o o riginal provençal, sabe que esta tradução é
Orlando, assinada po r um certo Jeronimo de Ur rea. A conversa, nesse fiel. Guilhem está p resen te, pu lsando em po n uguês. Está vivo na
passo, é sobre trad ução de poesia. Referindo-se ao "cristão poeta" Ludovico reinven cão. M as há um detalhe. No original, o último verso da estrofe
Ariosto, o cura sentencia: "Este, se po r aqui o apanho a falar-me língua citada t;az um dado sociologicamente significativo. Em função da rima e
que não seja a sua, não lhe hei de guardar res peito algu m; falando porém do ritmo , Augusto trad uziu "en totz mercatz" por "po r toda a parte" . A
no seu pró prio idioma, colocá-lo-ei sobre a cabeça" . A explicação é óbvia importância do mercatz (mercado) está em que, na época de Guilhem,
e, além d isso, o cura generaliza: a tradução es panhola desfigurou o original presen ciou-se o renasci me nto u rbano medieval, sob a infl uê ncia do
italiano - "e o mesmo sucederá a todos quantos quise rem traduzir para comércio. Cidades nasciam, expandiam-se o u se vitalizavam, cada uma
os seus idio m as livros de versos, qu e, po r muito cuid ado que nisso delas constituindo o seu mercatz. Augusto, obsessivamente voltado para
po nham, e por mais habilidade que mostrem , nunca hão de igualar o que a poesia, passou ao largo do fato. Mas valeria a pena ter desfigurado o
eles valem no o riginal". Tem razão o cura (há exceções, é verdade, mas poema para incluir o mercado? Penso que não. E que esta é a escolha.
elas são muito, muito mais que raras). Ocorre que o que está em jogo não Q uem não lê provençal e quer con hecer a poesia de G uilhem, pode
é igualar o o riginal, e sim respo nder ao seu desafio, numa partida de som- degus tar o texto recriado por Augusto. Já quem estiver in te ressado nas
' sentido. Diante do o riginal, é preciso fazer o máximo para empo brecer o cidades da Idade Média, favor procura r Hen ri Pi ren ne. Não se trata,
mínimo. Temos assim que navegar to mando o rumo da estrela ou da repito, de viole n ta r o es paço sem ântico do origin al. M as aq ui, no
constelação chamada "função poética" da linguagem. E aqui a etnografia mo m en to d a reinvenção de u m poem a, a "fu nção" refere n cial da
não ultrapassa a categoria de linha-auxiliar. Ou, mais precisamente, as vias linguagem recua, para que rei ne, em sua ple nitude, a " função" poética -
de acesso poético e antropológico ao texto se apresentam em termos de afi nal, outra coisa não se passou q uando o o rigi nal se fez. E foi esta a
convergência , mas o objetivo precípuo não é a explicitação conteudista, e opção que fiz, nos o rikis q ue recriei. Meu objetivo foi tentar passar algo
sim a texrura/ tessirura do canto. da "materialidade" do texto poético iorubano. Dar uma idéia aproximada
Logicamente que sem promover badernas ou violações no campo de tais jogos de linguagem, ainda q ue aqui e ali correndo o risco de deixar
semântico. Reconheço que, tanto num caso como no outro, algo sempre se
de parte a1gum " me rcatz .. .
perde. Mas nos resta escolher o quê. Dou um exemplo com a recriação de
um Vers de Guilhem de Peitieu por Augusto de Campos. A sexta estrofe:
Fala Ernest Francisco Fenollosa, exam inando a questão da tradução
de poes ia do ch in ês para o in glês: "O sucesso o u in sucesso na
C hamam-me "o mesrre sem defeito":
Toda mulher com quem me deito
apresentação de qualquer poesia estrangeira em inglês fica em grande parte
Quer amanhã rever meu leito; na dependência do trabalho poético aplicado aos meios escolhidos. T alvez
Neste mister sou tão perfeito seja dem ais es perar q ue eruditos idosos, q ue passaram a mocidad e a se

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ORI KI ORIXA TRANSCRIANOO ORIKIS

digladiar com renitentes caracteres chineses, sejam também bem sucedidos (colhido por Ve rger), que, em função d o caráte r do o nxa, rec n e1
como poetas. Até os versos gregos poderiam ter sido mal recebidos se os recorrendo ao linguaja r d a malandragem d os morros do Rio de Janeiro - ,
que deles nos abastecem tivessem compulsoriamente de contentar-se com mas man te ndo me rcado e porrete:
os padrões provi ncianos da versificação inglesa. O s sinólogos deveriam
lembrar-se de que o propósito da tradução poética é a poesia, não as Viva Exu Oda ra
definições literais dos dicionários". Fala Ulli Beier, examinando a questão O bamba que zanza pelo campo
da tradução de poesia do iorubá para o inglês: "Na tradução de poesia O bom de brib'3 que abafa no bafaf~
de uma cultura m uito d iferente o problema freqüente é que temos que Q ue bota uma beca batuca
Pra ser porteiro d e Deus.
sufocar o texto atual n um ema ran hado de notas. (. .. ). Uma tradução
lite rária, cujo principal pro pósito é transmitir o feeling e o mood da poesia Rei n a te rra de Keru
io rubá ao leitor de língua inglesa, terá que extirpar o material de interesse Convida o alinhado e avia uma J c leve.
purame nte etnográfico". Ele vem pra revi rar o Benim.
La roiê chora lágrimas de sangue.
Faz o torto fica r di reito
Faz o direito fica r torto.
Na tradução de poesia, o parâmetro semâ n tico providencia uma
espécie de demarcação do terreno, dentro de cujos limites, entretanto, os Ele tem oitocentos porretes
Cento e sessenta porretes pmretas.
procedimentos poéticos são soberanos. E, já que falei antes em "mercatz",
Bate bate bar:i.
passo aqui um exemplo, por "associação-de-idéias". De acordo com Verger, Baixote q ue chega de noite d o mercado
o mercado tem, entre os ioru banos, uma função social que faz lembrar a Baixore q ue chega junto
d a ágora entre os gregos (não sei de onde ve m , por sin al, a mania Como a beira, da estrada.
bras ileira de escreve r "o ágo ra", quando o substantivo grego é feminino ,
Viva Exu O dara.
hé agorá ) e a d o "fo rum" entre os ro ma nos: po nto de encontro d a
communitas, onde a gente da cidade se reúne para todo tipo de transação
e entretenimento. E é Exu, o ardiloso Exu, ca paz de matar um pássaro
ontem com uma pedra que atirou hoje, quem "supervisiona as atividades Traduzir a expressão ioru bana oríki , em moeda lingüística corrente,
do mercado do rei em cada cid ade". Aqui, em relação a Exu, o mercado pode se r fácil ou difícil. Em nosso caso, é desnecessário. A incerteza
já não é, como em relação a Guilhem, um d ado contextual secundário. etimológica já coloca um pedregulho no sapato do tradutor. E se Sikírll
G ui lhem poderia ter dito que tinha sua cama feita em todo castelo, mas Sàlámi está certo , a expressão é uma palavra portmanreau que não remete
Exu não pode deixar de ser o guardião do mercado - ojà, em iorubá. diretamente à prática estética, como, por exemplo, o sintagma "cantiga de
Traduzindo um oriki de Exu (o rixá que veio ao mu ndo munido de um amigo", do trovadorismo galego-português. Em inglês (Inglaterra, EUA,
porrete especial, capaz de transportá-lo de um lugar a outro , e de atrair N igéria), não se costuma traduzi-la, mas antes classificar os textos do
coisas distantes, feito um poderoso ímã), referências ao mercado - e ao gêne ro sob o rótulo ge ral de praise poem, o que é inadequado. "Praise" é
porrete - devem ser res peitadas. Não podem ser abolidas. Posso brincar "louvo r" - nos sentidos de aplauso , homen agem, elogio -, mas com uma
em dive rsas direções - como na tradução seguinte, oriki de Exu O dara conotação religiosa subjacente, como no dito "praise be to God", louvado-

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ORIKI ORtxA TRANSCRIANDO ORIKIS

seja-Deus. To praise é "glorificar". E existem expressões iorubanas que lem brança isento de intensidade, um memo riali smo inócuo, apaziguado,
traduzem precisamente tais significados: o substantivo iyin e o verbo yin. à luz difusa do abajur lilás. E a recitação de um oriki de Xangô pode
A conotação religiosa, de resto, é prejudicial, inclusive pela variedade estremecer o chão, sugerir paredes rachando e até mesmo atemorizar os
temática do gênero em questão. O Webster dá, para praise, o sentido de mais sensíveis. Não se "evoca" um leopardo flamejante. Atiça-se. O espaço
"to laud the glory o f (God, etc.), as in song" . A idéia de "prece" ronda a não é de beatitude lírica. Nem um rol de delírios sanguinários de Ogum
área semântica. E o oríki não é necessariamente religioso. Àdúrà seria o se ajusta à vontade na esfera semântica do lo uvor.
equivalente iorubano de pray. E assim como existem orfki de Xangõ,
existem também àdúrà de Xangô. São coisas distintas. Àdúrà é reza, prece,
em seu sentido "clássico" de petição dirigida a uma divindade. Tome-se, A questão está desfocada, todavia. O oríki é sobretudo uma espécie
por exemplo, uma o ração a Oxum. Mesmo o observador que n ão tem de montagem de atributos do objeto que tematiza. Uma construção
familiaridade com a cultura iorubana sente que está diante de uma espécie epitético-ideogramática. O que impo rta é isso: montagem de atributos,
qualquer de oração. É o rito oral milenar do fiel que se endereça ao seu colagem de predicados, justaposição de particularidades e emblemas. Mas
deus, pedindo proteção, saúde, dinheiro, paz na família. Ouvido após a esses atributos, considerados essenciais para o desenho ou a configuração
oração, o oríki marca claramente o contraste. Em vez da petição, do do objeto, nem sempre serão vistos como coisas louváveis. Além disso, e
"ofício" explicitando a circunstância e o desejo dos credenti, o que temos co m licença da rima, o lo uvável é historicame nte variável. Jerome
é, so bretudo, uma figuração paratática do orixá. Rothenberg - leitor de Ulli Beier e Pierrc Verger - percebeu de imediato.
E foi ao miolo do problema: "não é uma questão de 'louvor', mas de
delineamento de acordo com um certo método". O método da montagem.
Em nossa tradição literária, praise poem remete a encômio, louvacão Um oríki de Omolu, por exemplo, é uma espécie de ideograma do senhor
' I

loa. Três traduções impróprias para oríki. Encômio era o riginalmente um das pestes. Escolhi, por isso mesmo, ficar com o razoável. O já consagrado
canto que os gregos entoavam ao fim de seus festins, celebrando o anfitrião. pelo uso. O vocábulo oríki, fonicamente aclimatado - isto é: sem os traços
Este sentido primeiro foi se estendendo aos poucos para envolver os cantos tonais distintivos: o riki -, é usado no Brasil em meio ao chamado "povo-
de exaltação a alguém (em virtude de vitória alcançada na guerra ou em jogos de-santo", aos adeptos e estudiosos do candomblé e da cu ltura
olímpicos, aqui sob a variante do epiníkion) e os elogios em geral. Com uma negromestiça em nosso país, mormente nos tet:nplos religiosos de o rigem
restrição: o discurso encomiástico pode enaltecer um mortal, mas nunca nagô-iorubá - o u vinculados ao chamado complexo jeje-nagõ. Assim como
exalçar um deus. É interdito, por exemplo, compor um encômio decantando escrevemos ialorixá, adê, quilombo, Ketu, ibiri, xaxará, ofá, ebó, axexê,
Apolo, o deus da loucura profética. Mas quem é Oxóssi, caçador de toda afoxé, etc., podemos escrever tranqüilamente oriki (e até mesmo "oriqui",
luz, senão um deus do Olimpo nagô-iorubá? Já loa e louvação caem mais caso ai nda perambule por ai algum marioandradino encafifado em busca
o u menos na mesma inconveniência de praise. Loa (do latim, laus) é verso daquela simplória "gramatiquinha", que foi uma das idéias mais insossas
de louvor, designando antigas cantigas populares para santos católicos. É do criador de Macunaíma). Oriki, portanto. E não estou inventando nada.
discurso laudató rio, apologético. E louvação é uma canção popular em- Em seu Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros, O lga Gudolle Cacciatore já
louvor-de. Sikirú Sàlámi deve ter sentido essas inadequações. Prefere registra: "Oriki. Cântico de louvor que conta os atributos e feitos de um
empregar, para oríki, o vocábulo "evocação". Melhor. Mas ainda é uma orixá. F. - ior.: "oríki" - nome atributivo exprimindo o que a criança é
solução insatisfatória. "Evocação" é muito soft. É uma espécie de trazer-à- ou se espera que venha a ser. No homem refere-se geralmente a heroísmo,
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ORIKI ORixA TRANSCRIANDO ORIKIS

na mulher a encantos, etc. É usado por pessoas mais velh as para se beleza dessa língua. O poeta Paulo Le minski costumava dizer que
dirigirem aos mais novos, ou pelo marido à mulher" . mantinha " re lações dip lomáticas" com diversos idiomas, inclusive o
japonês, que estudou para ler Bashõ. T alvez seja esta a melhor manei ra
de definir o meu trato - ou o meu jogo - com o iorubá: relações
É provável que "oriki " seja uma fusão verbal: orí (cabeça, destino) + diplomáticas. Tenho um conhecimento assistemático e superficial da
ki (saudar). Quanto a ki, não há problema. Ori, ao contrário, é complexo. lí ngua. Mas não acho que esta ignorância lingüística seja um obstáculo
Na mitologia io ruban a, Ajalá é o orixá respon sável pela modelagem de intransponível para ensaios de recri ação da poesin n::~gô-iorub :l . Bastn
"cabeças". Elas ficam expostas no o rum - e cada pessoa, antes de nascer pensar - longe de qualquer intenção com parativa (seria bu rrice ou delírio)
no aiê, escolhe a "cabeça" (inner head), o u orí, que terá na Terra. O ori - no caso parad igmático de Ezra Po un d, recriando para nós a beleza da
é, portanto, anterior ao corpo terrestre. E nosso destino pessoal aq ui no poesia chinesa - Cathay. O velho Pound, distante de se r si nó logo, ou de
aiê depende desse o ri que escolhemos no o rum . Escolh a de destino, o poss uir seque r um con hecimento razoável do chinês, soube trazer para o
conceito de ori integra assim a teoria iorubana da predestinação. Que, convívio dos leitores de língua inglesa figu ras como Bunno, Mei Sheng e
aliás, é flutuante. Em primeiro lugar, po rque o sujeito não tem como saber Li T'ai Po. Recri ou do mesmo modo o nó, o tradicional teatro nipônico,
se escolheu um bo m ou um mau ori. Em segundo, po rque o seu ori não baseando-se, como se sa be, em notas c esc ritos de Ernest Francisco
se realiza necessariamente. É preciso não só trabalhar para concretizá-lo, Fe nol losa. E fez um traba lho de ta l esplendor que Eliot n ão resistiu,
como, o que é mais complicado , adequa r a nossa ação terrestre ao o ri conferindo-l he o titulo de inventor da poesia chinesa para a nossa época.
escolhido no orum , q ue não sabemos exatamente qual é. Em outras Pound realizou tal proeza graças à sua disposição radicalmente poética no
palavras, temos q ue trazer para o nosso campo de ação aq uilo que se corpo a corpo com a palavra. Esta é a sua lição. Traduz ir um poema é
' vincula ao que nos está predestinado; caso contrário , n ão teremos êxito re/ produzir um poema.
em nossa empreitada terrestre. Dai a necessidade de consultar lfá-Orumilá:
lfá é quem pode saber o que quer o nosso o ri, encaminhando nossa
conduta terrestre em função de uma adequação a esse ou a aquele destino, No meu caso pessoal, devo d izer que a tradução/ recriação de orikis não
para que ele, afinal, se realize. Mas não é só. Ori é um deus. Um deus foi feita a lu me de palha. Ao co ntrário, executei um verdadeiro trabalho
pessoal. O meu Ori é o meu deus - meu e só meu -, ao contrário dos braçal. Sob a mira do coração-cabeça, tinha sempre à frente o texto em
demais orixás (e cada orixá, incluindo Orumilá, também tem o seu Ori), iorubá, acompanh ado de versão literal para uma o utra língua (po rtuguês,
que são de todo o mundo. Quando uma pessoa vai jogar búzios, consultar inglês ou fra ncês - perdi, infelizmente, um livro, cujo títu lo não me lembro
Ifá, ela está indo saber quais são os desejos do seu Ori. Ifá-Orumilá mais, que traz ia versões de textos sobre Exu pa ra o alemão, onde eu me
aparece, desse modo, como um intermediário entre cada pessoa e o seu divertia lendo sobre o "compadre" em termos de Mitternacht e Kreuzweg).
deus pessoal. E isto significa que, antes de qualquer o rixá, o meu deus é o De um lado, recorria a infor mações histó rico-antropológicas acerca d o
destino que eu escolhi para mim, embora eu não saiba que destino é esse. mundo iorubano e da peripécia do complexo jeje-nagô no Brasil desde os
tempos do escravismo colonial - ou, ainda, às minh as experiências pessoais
na vida e nos ritos do candomblé. De outro, me cerquei de uma série de
Aviso aos navegantes: não falo iorubá. O mais provável é que não gramáticas, dicio nários e livros de consulta, com destaq ue para o Dictionary
venha a falar nunca, incapaz de reproduzir os jogos tonais que fazem a of thc Yoruba Language (Oxford), o Dictionary of Modem Yoruba de R. C.
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TRANSCRIANDO ORIKI S
ORJKI OR!XA

· Abraham, a Grammaire Yoruba de P. Baudin e a Introduction to the Yoruba com nomes de orixá, por sinal, não é coisa rara de se ver. Num oriki de
i.Angtwge de Ida C. Ward. Assim ia conferindo palavra por palavra do texto Oiá-Iansã, encontramos: "iyà san nwsm fun ~ ni idà o ko pa enia", onde
original e praticamente adivinhando elisões, contrações e fusões vocabulares iyà e san remetem ao nome da deusa: "a iá sã não se dá/ e.spada para
dessa língua simultaneamente tonal, monossilábica e aglutinante. Aproveitei matar" ("iá" = "mãe", como ouvimos nos terreiros de candomblé) ... Em
pouquíssimas soluções dos autores-tradutores que li. São exceções - mesmo. outro oriki do mesmo orixá, que foi mulher de Ogum, temos: "Obo mejá/
E raríssimas. Não po r preconceito ou ânsia de originalidade, mas por uma O~ó ó gun", com as duas últimas partículas verbais remetendo ao d~us­
questão de método. Meu objetivo era alcançar, p rogramatica me nte, a ferreiro Ógtín, num trecho talvez traduzível por "buceta certa/longo é o
recriação poética, ou transcriação - ao passo que as versões que me gume do mago" (õbõ mejá, literalmente, é buceta sábia, inteligente - uma
chegaram às mãos eram todas elas explicativas, prosaicas (mesmo quando adjetivaçã? insólita para os padrões ocidentais) , tentativa de responder a
versificadas), mais preocupadas com a realidade extratextual do que com osó Ó GUN rom longo é O GUMe ... Mas, enfim, nada há de
a realidade do próprio texto. São versões legítimas, evidentemente, mas a extrao rdin ário aqui. São obstáculos que pertencem à roti na mesma da
minha meta era outra. Não se trata aqui de criticar trabalhos de Pierre tradução poética, em qualquer língua - c ninguém vai pretender que sejam
Verger, John Pemberton III, Judith Gleason, Síkíru Sàlámi, Ulli Beier e obstáculos insuperáveis, obviamente. Há, no entanto, problemas realmente
outros. São obras ricas e importantes, sem as quais, de resto, este meu sérios. Um deles é a duplicação. O redoublement. Diferentemente do
livro não existiria. O problema é que eu não podia ir no caminho de uma "redobro" da gramática grega, repetição consonantal cncontrável no
espécie de tradução que considera o princípio poético inessencial. Em perfeito, no mais-que-perfeito e no futuro perfeito de rodos os modos
muitas traduções do iorubá para o inglês, o que encontramos, antes que verbais, a duplicação iorubana aparece como um mecanismo mais amplo
• o esforço de re-imaginação do verso, mais sugere a tentativa de elaboração de construção lin güística, provocando alterações de classe nos sintagmas
de uma footnote, uma nota de rodapé. Não se dá muita atenção à lexica is. G raças a esse artifício, ve rbos se tornam substan tivos, por
construção sígnica do original. O mesmo pode ser dito de Sàlámi, que exemplo. Assim, p~ja é "pescar" c p~jap~ja, "pescador" -fé= "amar"; fifé
verte uma linha sintética e sonora como "àmà àwo má rà" (colhe e acolhe = "amor" (nesse caso, como ocorre com freqüência, a vogal da sílaba

segredos) por um extenso "que conhece os s~gredos do ~ulto mas não os redoubléc se converte em "i"). Mas a duplicação verbal pode ge rar também
revela" (a palavra "culto", de resto, nem aparece no original). E ainda de um advé rbio , como no seguinte trecho de um oriki de Oiá-lansã:
Verger, traduzindo "alamo !amo bàtá" por "!e jouer de tambour frappe
Oya, a sú óji> má ró
le tambour bata", quando, de uma visada poética, poderíamos ter o forte
(n~ ni gbogbo ara •
desenho rítmico-aliterativo de bate bate batá. Mas é isso mesmo: ln:i wàrãwãr~
perspectivas textuais dessemelhantes.
Veja-se a última linha: "in á wàràwàrà" . lná = fogo. E wàra ("v.i. to
be in a hurry, to be hasty" - Oxford Dictionary) vai compor, pela via do
A recriação de orikis apresenta dificuldades gerais, comuns à tradução redoublcment, o advérbio wàràwàrà, "velozmen te". Sàlámi traduz:
de toda e qualquer espécie poética, tenha ela nascido nos Andes, na
China, na Grécia Arcaica ou na Oceania. Os poetas nagõs conhecem o Üya, que f.1z o tempo fechar , mas niio deixa a chuva cai r
tear, a trama e a potência da linguagem da poesia. Aqui, esbarramos numa Ela rem fogo no corpo inteiro
seqüência aliterativa, ali num jogo anagramático e assim por diante. Jogar L1baredas de fogo

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ORIKI ORIXÁ
TRANSCRIANDO ORIKIS

E aqui chegamos ao tema do efeito poético da duplicação e ao onde as diferentes palavras se fundem num sintagma de significação nova.
problema de sua tradução. A duplicação diz respeito, principalmente, à Pa ra exemplificar, o esn1dioso cita o exemplo de foribale (adorar), amálgama
melopéia. À música dos signos verbais. Ou, ainda, ao campo expressivo de fi (pôr, colocar), ori (cabeça), ba (encontrar), ile (a terra). Baudin se refere
dos procedimentos rítmicos e fonéticos. E pode adqui rir, é óbvio, um ainda ao fato do iorubá apresentar fenômenos de "reunião de um certo
caráter estritamente "fisionômico", para lembrar a termino logia da fase número de idéias numa só e mesma palav ra". Ass1m, topamos com a
o rtodoxa do concretismo, na medida em que o signo simbólico (a palavra) montagem de iro (pensar), i nu (dentro, interior), pa ... dà (mudar) e iwa
assume ares de signo icônico. É o caso desse iná· wàràwàrà. O a em tom (conduta, comportamento) no sinmgm;J ironupiwada, traduzivel por "pensar
alto de iná faz as vezes de uma língua de fogo, que vai se espalhando em em si mesmo a fim de mudar de condura" . Beier, aliás, se embatucou nesse
menores e rápidas chamas, recriadas na série de aa em tom baixo: problema lingüístico, falando em "monster nouns or r~djectives" como
otamokukunbioyin (aquele que vai picando alguém como uma abelha), para
iná wàràwàrà ... qualificá-los como elementos de frustração do trabalho tradutor. Po r fim, o
iorubá , como o chinês, não é apenas basicamente monossilábico, mas
Na tradução, pode-se força r (mas nem tanto) o português, numa também tonal. Possui três tons - alto, indicado pelo acento ( · ); baixo, pelo
construcão do tipo "veloz-veloz", que bem poderia comparecer num texto acento (' ); médio (.) -, dotados de fun cionalidade sem<intica. Um simples
de Gui~1 arães Rosa, por exemplo. Ao traduzir a linha, fiz uma inversão deslocamento de tom altera o significado da palavra: wá = vir; wa = nós;
"fisionômica", por assim dize r: em vez do fogo se espalhando, o luzir da uit = existir. Mais: àwo = prato; awó = galinha-de-angola; awo = segredo,
chispa antes da chama, via junção vocabular: "riscafaisca - fogo". E o mistério; awó = rede d e pescar. Mais ainda: àgbõn = queixo; àgbon = coco;
trecho assim ficou: agbón = cesto; agbón = vespa; àgbón = ardor da pimenta.
Como se pode ver, o tom é um aspecto fundamental tanto da palavra
Oi~. tempo 4ue fecha sem chuva quanto do encadeamento da fala. É um elemento de distinção semântica.
Fogo no corpo todo E não só entre palavras, como nos exemplos citados, mas também, embora
Riscafaisca - fogo mais raramente, entre construções gramaticais. Ward lembra, a propósito,
o sintagma omi tutu. Normalmente, omi (água) vem em tom médio, mas está
sujeito a variação tonal, implicando variação gramatical. Omí tutü = a água
A duplicação não é, todavia, a dificuldade maior para quem se empenha está fria; omi tútü = água fria. Os tons não se encontram rigidamente fixados,
na recriacão do texto criativo nagô. A barra pesada está no fato de que o portanto. E o intervalo entre eles é relativo. Talvez pudéssemos exemplificar
iorubá é ~ma língua plástica, minimalista e tonal. O padre Noel Baudin, com um texto dito em alternâncias de "quinta", como na o ralização que
escrevendo no século XIX, lembra que mais da metade das palavras Caetano Veloso fez do poema "Pulsar" de Augusto de Campos. Além disso,
iorubanas é de monossílabos. Aqui, o traduto r do iorubá para o português o tom pode deslizar de alto para baixo ou vice-versa no interior de uma
já se acha em algum apuro. Como se não bastasse a profusão de partículas mesma sílaba, como também oco rre em chinês . São os chamados glides ou
monossilábicas, o iorubá é uma língua aglutinante. E de uma plasticidade gliding tones. Em suma, as coisas não são lá muito sim ples. E é claro que
realmente extraordinária. De fato, pode-se dizer do iorubá que é a língua os produtores textuais iorubanos jogam criativamente com essas modulações
dúctil por excelência. Baudin observa corretamente que um grande número fo nossemãnticas. Não apenas em função do desenho sono ro do texto, ou
de palavras compostas nessa língua são verdadeiras frases, véritables phrases, buscando obter lances de efeito, mas também na trama dos sentidos. O

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ORIKI ORIXÁ TRANSCRIANOO ORIKIS

traduto r? Bem, o traduto r que se vi re. Num canto "ijalá" colhido por e seu auditório. Ao mesmo tempo, Ricoeu r acha que as " leis de
Adeboye Babalola, seu autor, Gbàdàmósi, diz que está se referindo a Ügún composição" em que o texto criativo se apóia remetem, em última análise,
(deus do ferro e da guerra) e não a õgim (veneno, "medicinal charm"). É à dicotom ia prática/obra, diante da qual a diferença entre oral e escrito é
uma brincadeira entre a identidade fonética e a d issimilaridade tonal dos secun dária. Aqu i, a linguagem é submetida a um trabalho, a uma espécie
vocábulos em questão. Impossível reprod uzir esse jogo de tonemas - como, de artesanato, e é por isso que se pode falar em produção e em obra.
de um modo ge ral, tod o o movimento textual de " rise and fali of speech Um poema é assim uma "obra de discurso"; seu autor não é um
tones" . A manha lingüística está fo ra de nosso alca nce. falante, mas um maker. Fern ando Pessoa concordari;J: :1 obr;'l de arte é
primeiro obra c só de pois de arte. Transfe rido para o campo da prod ução,
o d iscu rso se transfo rm a em m atéri a a se r moldada. A escrita, insc rição
Khlébnikov, nagôs. Sim, a memó ria brinca na teia de referências. num supo rte materi al, to rnará as ob ras de linguagem "tão au to-suficientes
Poetas vanguardistas russos falavam de "etimo logia poéti ca" . Da como as esculturas". Inscrição e p rodução como que se sobrepõem .
existência de parentesco semântico entre palavras fo nicamente próximas "Texto", para Ricoeur, é d iscurso "inscri to e traba lhado". Rei na então uma
- convergências de vocábu los de sons semelhantes. U lli Beic r, po r sua vez, afi n idad e profund a entre a esc ri ta e os códigos (gên eros) que ge ram as
ficou intrigado co m o método io rubano de interpretar palav ras. C omo se ob ras discu rsivas. " Esta afi n idade é tão í ntima que pode rí am os ser
não ho uvesse palavras básicas, tudo era derivável. Uma es pécie nagô de te ntados a afi rmar q ue até as expressões o rais das composições poéticas
etimologia poética: jogos vocabulares , fissões verb ais, qu ebra-cabeças o u na rrativas se fund am em processos eq uiva lentes à esc rita. A
pseudo-etimo lógico. "O prazer q ue os io rubás enco ntram em interpretar me mo rização dos poem as épicos , de ca nções líricas, de parábo las e
palavras e as de rivações fantásticas que eles constróem têm o efeito de provérbios c a sua recitação ritual tendem a fixa r c até a congelar a fo rma
' manter as palavras vivas e sem pre levemente ambivalentes", escreveu Beier. da obra de um modo tal que a memó ria aparece como um supo rte de uma
Me lembro de H uidobro, Altazor: "Y puesto que deb~mos vivir y no nos in scrição semelhante à que é fo rnecida pelas ma rcas extern as." Mas há
suicidamos/ M ientras vivamos juguemos/El simple sport de los vocablos". q uem radicalize em o utra s d ireções . Para uns, o que conta mesmo é a
Do discurso cotidiano ao jogo poético, es tética da fala. perfo rm ance. O texto emitido num rito social (religioso o u profano) é
indestacável da ce na d e sua atu alização. Inexiste fo ra dela. Trazer o o ral
para os trilhos da escrita seria, tam bém , atitude mutilado ra, falsificado ra,
E aq ui ch egamos a um ponto de licado: a o ralidade e m contexto reificacio nis ta. A diferen ça entre oral e esc rito é osten siva, flagrante,
pe rfo rm ático. Poesia o ral, esc rita, tr adução. U m d iscurso-eve nto é in su perável. Paul Zumtho r é um d os que ace ntua ao extremo a
transcrito num su po rte, reificad o, e posteriormen te traduzido. Nada se dessemelhança entre voix e écriture, buscando com lucid ez e brilho uma
perde, tudo se transfo rma? Eis ai um tema sujeito a chuvas e trovoadas. poétique de I'oralité. O utros praticam o qu e se pode defi nir como uma
A o piniões extremas. Paul Ricoeur é intrigante, a esse respeito. Sabe que etn ografia da perfo rmance. Krupat chega a afirmar que é muito provável
a escrita pro move a plena separação entre o significado e o evento, ou q ue a nossa cu ltura textua l seja incapaz de pro duzir uma poética o ral:
entre o texto e a cena discursiva co ncreta: antes q ue presos à atualidade esc rever so bre poesia o ral seria em p rincipio um gesto sus peito,
do evento, lid am os ago ra com a auto no m ia semântica do texto. Pela "assimilacio nis ta ", ma rcado por uma "violência intrínseca" . O labiyi, por
m ágica d a escr ita, "o fato humano desaparece". Destrói-se a situ ação sua vez, vai falar em "o ralitura", d izend o q ue é preciso pre parar o espaço
d ialógica. O texto inscrito "subtrai-se ao ho rizo nte finito" vivido pelo auto r intelectual para a eme rgência de um a nova poética, qu e recuse incl usive

100 IOI
ORIKI ORixA TRANSCRIAN DO ORIKI S

a falácia reificadora embutida na própria noção de ''texto". E assim por clara no caso das formas religiosas. A presença de um Livro Sagrado
diante. "Quem passa anos na solidão, mesmo que não seja na solidão sobretudo, como oco rre na cultura judaica o u na cultura islâmica,
abstrata de um anacoreta ou monge cristão, mas n uma solidão humana, formali za ri go rosamente o discurso d ivino. A palavra escrita, embora
e só se encontra em correspondência com o mundo através da escrita, sujeita a inúmeras interpretações, é semp re idêntica a si m esma. Daí,
perde o prazer e o dom da palav ra, porque existe uma eno rme diferença ta lvez, que as religiões escriturais tendam mais ao dogmatismo do que as
entre a palavra o ral e a escrita. A oral se relacio na com um público rel igiões ágrafas. A forma o ral é ma is rebelde à definição de um cãnone.
determinado, presente, real; a esc rita, porém, com um público En quanto a esc rita é es tática, n si tunç ão or::~ l é dinâmica, fl exíve l,
indeterminad o, ausente, que existe para o escrito r somente na im aginação; absorvente, integradora. Numa palavra, mutável. Cadn atualização do texto
a palavra tem po r objeto homens, a escrita, espíritos; porque os ho mens oral é, em certo sentido, um a nova ob ra. Mesmo o espectado r desa tento
pa ra os qua is eu escrevo existem para mim somente n o es pírito, na percebe o fato. Como bem lembrou Peter Levi , não só os poetas viajam.
imaginação. Portanto, a escrita carece de todos os encantos, liberdades e, Os poemas também : ' from mo uth to mouth '. Ao menos em principio,
por assim dizer, das virtudes da sociabilidade, que são pró prias da palavra traze r a voz para a letra é impo r, àq uela, um constrangimen to".
o ral" - Ludwig Feuerbach dixit.

Ruth Finnega n destaca três realidades distintivas da textualidade oral:


Ainda que a memória possa funcionar como uma espécie de "suporte" a pe rfo rman ce, o improvi so, a ocas ião. O texto o r al não tem a
para a "inscrição" da fala, na imagem de Ricoeur, o certo é que o discurso independência do escrito: necessita de alguém qu e o atualize, através de
oral e o inscrito não são idênticos. O fato de que um é dito e o outro é certos expedientes, num a ocasião/s ituação concreta , especifica. Nesse
escrito muda tudo. Zumthor já dizia que "a estruturação poética, em particular, está m ais próximo da mú sica (mesmo a partiturada se
regime de oralidade, opera menos com a ajuda de procedimentos de materializa através do intérprete - e podemos lembrar, para dar um só
gramaticalização ... do que através de uma dramatização do discurso" . exemplo, do que Mahler faz ia com as peças que regia) e da dança do que
Enquanto o escrito permanece, existe em repouso, o oral só existe em da literatura. A performance atu aliza o texto conferindo-lhe uma feição
movimento. No plano da instantaneidade. Para ser eficaz, mobilizar o peculiar, única, irrepetivel. Ou seja: o texto oral é emitido numa situação
receptor, depende em alto grau da eloqüência, da riqueza da emissão, da "x" (um casame nto, um funeral, a vés pera de uma batalha, etc.),
sugestividade, das pausas e explosões, da pulsação fonética, do ritmo. impregnada de determinados sentimentos, e emitido de um modo "y" , sob
Enquanto o texto oral flui, ou vibra na pele do ar, o escrito se contém, os efeitos do timbre, da gestualidade, da capacidade expressiva e mesmo
escultura de palavras, preso na página ou na pedra. o que significa que (o que fazia com que Sócrates invejasse o rapsodo Íon) do figurino, das
o texto escrito tem os seus limites nítidos, fixos, e o texto oral é ro upas do performer. Como diz Finnegan, tais elementos não compõem
relativamente instável. Como já escrevi diversas vezes sobre o assunto, uma ornamentística - são parte "integral e flexível" da realização com pleta
repito aqui o que disse alhures (Textos e Tribos): "O texto oral, apesar do do poema. A performance é enfim uma entidade altamente complexa,
condicionamento ideossemiótico, não se caracteriza por uma rigidez envolvendo cenário, palavra, música, dança, figurino. Algumas vezes, a
absoluta. Deixa-se distinguir, ao contrário, por uma certa margem de palavra é apenas um elemento entre outros. E há também o que podemos
flutuação no arranjo dos seus signos. Já o texto escrito possui um caráter classificar como textos cinésicos ou gestuais, onde um movimento corpo ral
constante. Imóvel. Esta intransigência da escrita, digamos assim, é muito pode fazer as vezes de um enunciado, como no teatro nô ou em narrativas
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ORI KI ORJXA TRANSCRIANDO ORIKIS

lambas e caiapós. Finnegan chama a atenção, ainda, para uma o utra coisa: performer. E assim tocamos a terceira característica arrolada pela estud iosa.
em muitas culturas, os gêneros textuais são defin idos não em função da Além d a d ram atização do discurso e do espaço pa ra a expressão da
estrutura ou do propósito da o bra, mas em conseqüência de seu modo cri atividade do performer e para intervenções da platéia, temos obviamen te
performático. É o q ue vemos na cultura textual io rubá, o nde os gêne ros a real impo rtâ ncia da actual occasion, d a circunstância concreta d a
poéticos são classificados com base em fato res como o grupo ao qual o atu alização textual, capaz de afetar diretam ente a estrutura, a fo rm a·
performer pertence e as técnicas de recitação e produção vocal - o ijalá, conteúdo, da peça que se desenro la, do evento que vai se desdobrando a
por exem plo, é cantado po r caçadores n uma high-pitched voice. C o nclu são cada lan ce perfo rm ático. A conexão con creta , imed iata, face to face,
de Finnegan : para o "crítico nativo", o modo performá tico é pelo menos ama rrando intérprete e platéia se dá n uma duração tempo ral e num nicho
tão sign ificativo q uanto a estrutura si ntática ou a dimensão semântica do espacial precisos - e n uma atmosfera singular.
texto, no sen tido semiótico dos termos.

Motz e.l son. Além de separar o oral do escrito, temos ainda que tratar
A qu estão d o improviso - e, claro, d a "versão autêntica", p rinctpto de disti nguir, n a esfera da o ralidade, entre o d ito e o cantado. Entre a
da textologia ociden tal que, aqu i, parece gira r a vácuo ... No un iverso do recitação, de um lado ; e, de outro, o recitativo e o canto . São sem ioses
texto o ral, há casos em que o performer não só introduz alterações no d istintas. A estética da palavra fa lada e a estética da palavra cantada dizem
corpo de um texto antigo, como pode chegar a colocar, no velho supo rte respeito a operações sígnicas peculiares, inco nfu ndíveis. Cada palav ra tem
musical , uma nova estrutura textu al. É certo que essa não é a regra geral. a sua poesia. Joyce, lem brado po r Decio Pigna tari: palav ra cantada é
Longe d isso . O qu e se espera de um performer, endereçando um oriki a palavra voando. Q uando vocábulo e acorde se ap roximam e se fundem ,
um o rixá o u recitando um espécime da poesia histó rica ruandesa, po r ou qu ando linha lingüística e lin ha melódica se acasala m , se m esclam , a
exemplo, é a memorização perfeita, a reprodução irretocada do original. palavra adquire uma outra natureza, uma perso nalidade suplem entar, po r
Em todo caso, a "variabilidade verbal" (Finnegan) é algo que se costuma ass im dizer, em decorrê ncia de sua próp ria presença no es paço musical.
encontrar com relativa facilidade nos campos do texto o ral. O que significa O poeta-compositor sabe disso. Caetano Veloso, po r exemplo: "min ha
que o per[ormer é, numa extensão variável, maker, fabbro. Alguma parte matéri a-prim a é a palavra cantada" . Aq u i, a altura, a inte nsidade , a
de sua criatividade individual é injetada no texto ao longo do processo da modul ação, o timbre imantam o ve rbo, de so rte qu e podemos mes mo
performance. Ao contrário do que ocorre no terreno do texto escrito, não falar, tranqüila e es pecificam ente, de um o utro modo de existência da
há uma linha demarcatória drástica separando a composição da palavra. É po r isso que um a "letra" (como se costuma dizer entre nós) tão
performance. E a perfo rmance pode ser seletiva, enfatizando ou omitindo frágil, tão ban al, tão to la até, pode soar tão densa numa can ção cantada
passagens textuais, em função do contexto da emissão. Por fim, a platéia po r Billie Ho liday.
nem sempre é somente platéia, passividade. Entre os iorubanos, não é
estranho que uma intervenção parta diretamente da platéia, retificando
essa ou aquela informação textual. Ao se referir a esse papel ativo da Fixa r esses texto s o ra is, falados ou cantados, e n cerrand o-os n o
audiência, por sinal, Finnegan exemplifica justamente em âmbito iorubá: desenho nítido, no traçado estático da escrita , é certamente submetê-los a
alguém da platéia interrompe - cantando - uma performance ijalá, para uma cirurgia, aprisioná-los e, poT isso mesmo, enfraqu ecê-los. Mas não é
corrigir uma informação sobre Ogum, recebendo de volta a tréplica do -em todos os casos, ri gorosamente - destruí-los. O texto o ral é in stável ,
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ORIKI ORIXA TRA~SC RIAN DO ORIKIS

sim - mas não tanto, e nem sempre. Não é in stável um poema h istórico cu tenha passado uma pálida idéia, ao menos, do o riki nagô-iorubá ...
de Ru anda. Nem exatamente flutuante um o riki de orixá. Quando me "shadows", como disse Finnegan, "of the fu ll actualization of the poem
refiro à flutuação do texto o ral em ge ral, sei que estou falando de um as an aesthctic experience fo r poet and audience".
fenômeno real, mas também relativo. De um fenômeno que tem os seus
limites. Porque há fo rças que atuam contra a instabilidade textual, no
sentido de manter a coesão d a obra discursiva, preservando sua estrutura Tradução e narcisismo. Meu amigo Olabiyi Yai diz q ue toda tr<Jdução
e fisionomia. Por um lado, existe o condicionamento estético. Por outro, de poesia o ral po r escrito não passa de um exercido narcísico: em vez de
o condicionamento ideológico. Por condicio namento estético, entendo a dar conta do texto original, da poesia da fala ou da palavra-canto, o que
própria determinação da configuração textual: a métrica, o esquema de propicia é a auto-satisfação, o exibicioni smo do traduto r. Concordo. Mas
rimas, a prosódia, os eventuais sintagm as fixos, as injunções do gêne ro, apenas e m parte. T oda tradução - o u, mai s nmplamente, toda
etc. O condicio namento ideológico, por seu turno, remete ao tipo de demonstração d e bi , tri ou polilingüismo - apresen ta um nítido
relacionamento entre ser humano e signo verbal que se encontra no compo nente narcisico. Quando o próprio Olabiyi, num texto em inglês,
conjunto ou em instâncias de uma determinada form ação sociocultural. cita versos em io rubá e uma quadra de Drummond em português, deve
Um texto mágico, para ser eficaz, exige enunciação exata . Fidelidade se congratular co nsigo mesmo, narcisicamcnte gratificado. E o mesmo deve
textual é também o que se espera do emissor de um o riki de orixá. Por nconteccr com Haroldo de Campos, ao ver na Anthology o[ Concrete Poetry
alguns motivos. Acredita-se que um oriki pode realmente mover moinhos, de Emmett Williams, as traduções que ele, brasileiro, fez do japo nês para
atua r concretamente, repercussões efetivas da fala na textura mesma do o inglês ... Mas não é só isso. Como produto r-consu midor de poesia,
mundo. Um oriki emitido corretamente, signo a signo, é capaz de alegrar agrndeço nos céus sempre que algum narcisista incorrigível recria, numa
o rixás e ancestrais, atraindo chuvas de bênçãos sobre o seu emissor ... língua que conheço, jóias da poesia clássicn chinesa, do hinário egípcio
o u do texto cri ativo asteca. Caso as minhas traduções levem alguém a se
ap roxima r nmorosamcnte do oriki, a cumprimentar a beleza da poesin
Apesar de tudo, de todo o empobrecimento, ainda há o que curtir. iorub~. terei realizado ao menos uma parte da minha parte. Do meu ori?
Como já escrevi sobre o tema, e no momento não estou muito disposto
ao au toplágio, remeto o leitor mais interessado ao meu livro Textos e Que n oferenda seja nceita.
Tribos (Rio de Janeiro, !mago, 1993), especialmente ao capitulo "Uma
Viagem Poético-Antropológica". Repetindo o que disse, é possível chegar
ainda a alguma fruição textual, em que pesem as inevitáveis mutilações da
tradução entre línguas e códigos. Os percalços e as aporias da tradução
intersemiótica. Em todo caso, é cada vez maior, no mundo inteiro, o
número de pessoas cujo primeiro contato com o oriki iorubano vem se
dando através da escrita. Muitos de nós conheceram assim os gregos, a
lirica occitãnica, o nô japonês, o sijô coreano. Por que não o oriki, na
medida em que não é lá muito fácil, como costumo dizer, andar com uma
aldeia africana no bolso do blusão? Alimento alguma esperança de que
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FLORE.f
DA FALA
s orikis q ue o leitor vai encontrar, nas próximas páginas,
pertencem a apenas uma das categorias desse gê nero
poético: o oriki de o rixà. Tradicionalmente, costuma-se falar
da existência de 401 o ri xás. Co nh ecemos apenas um
pequeno número deles no Brasi l - os m ais importantes,
socialmente: orixás que, po r assim di ze r, aparecem no
centro de pequenas constelações divinas; e, claro, aqueles
que, na própria lo rubalãndia, não possuem somente um culto localizado,
regio nal , mas atravessam as subdivisões grupais do povo nagó, a exem plo
de lfá-Orumilá e Exu.
Como escreveu Karin Barber, "cada o rixá tem sua própria cidade de
o rigem, sua própria perso nalidade c atributos especiai s, seus tabus e
observâncias, bem como seu próp rio co rpus de orikis". O leitor verà,
portanto, que tra d uzi o rikis referentes a um reduzidí ssim o elenco de
o rixás: Exu, Ogum, Oxóssi, Xangô, O ià-lansã, Oxum , Obá, lemanjá,
Oxumarê, Omolu, Oxalá. A fim de facilitar o acesso ao texto poético, para
aqueles que n ão poss uem maior intimidade com a cultura religiosa nagô·
io rubá, providencio a seguir pequenos "retratos" d os deu ses aqui
representados - à exceção de Xangó e Ogum , sobre os qu ais me demorei
nos dois primei ros capítulos desse livro. Eis:

1. EXU. É o grande trickster d o imagin ário iorubá, para usar a gíria


antropo lógica. Seu lugar é a enc ruzilhada, o ponto de passage m, a
abertura , o umbral. Sua figura é o paradoxo. Exu é jovem e velho, alto e
baixo, alegre e raivoso. Personificação da luxúria, da contradição, do jogo,
da o ralidade in saciáve l. Sabe, como ninguém, semea r a confu são e a
discórdia - assim como é incomparável em sua habilidade para recompor
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ORIKI OR!XA FLORES DA FALA

a harmonia que ele mesmo fraturou. Tem a inocência da criança e a "Do po nto de vista de uma tipo logia d as religiões, Üiá-Iansã es tá
licença do ancião em suas rupturas da norma estabelecida. Induz ao erro mais próxima de Palas Arena, uma das principais deusas do panteão
e à maravilha. Sua representação visual é duplamente fálica: os cabelos grego clássico, do que de Santa Bárbara, a mártir cnstã à qual costuma
arrumados sobre a cabeça como um ícone do pênis; o pau - eno rme e ser associada no Brasil (talvez po r esta ser a pad roeira d a artilharia e dos
duro. Personalidade liminar , o u liminóide, diria Turner. Margem, zona bombeiros, além de proteger os seu s fiéis contra os trovões). São ambas,
de fro nteira, interstícios. E seu movi mento é sempre duplo: mensageiro Oiá c Arena, deu sas gue rreira s. lan sã, senho ra dos ventos e da s
que leva aos mo rtais signos dos deuses e, aos deuses, signos dos mortais. tempestades, aco rda de espada em punh o. Arena, a deu sa dos olhos
Rei da Astúcia, Soberano dos Ardis, Senhor das Armadilhas. Laroiê! verde-ma r, brota da cabeça de Zeus já completamente armada e dando
um gri to de guerra. lansã com anda batalh as. Arena se envolve na G uerra
2. OXÓSSI. É o Grande Caçador, com seu oguê-arô (chifre de búfalo), de Tróia. Antes que alguém proteste co n tr a a ana logia, aviso que estou
seu afá (arco-e-flecha), seu erukerê (uma espécie de espanado r, feito com apontando semelhanças que são reais. O sinc retismo Oiá-Ian sã/ Santa
rabo de touro ou de cavalo, instrumento de controle dos espíritos o u Bárbara me parece, na ve rdade, mais arbi trário do que a compa ração
encantados da floresta). Na África, Oxóssi é um odé, isto é, pertence ao entre o o rixá n igc ria no e a filha de Zcus (em Cuba , de res to, o
grupo de orixás caçadores. No Brasil, é mais visto como o Rei de Ketu, c si ncretismo aproxima Santa Bárbara c Xa ngô, o que já é um exagero).
é um dos deuses mais populares de nossos trópicos. Senhor da mata, Mas sei perfeita mente d as profundas dife rença s exis ten tes e ntre as
dono de uma pontaria infalível, sente-se pleno na solidão dos campos, mitologias grega c io ru bana - e entre Oiá-lansã c Palas Arena. Oiá, ao
descobrindo e dominando caminhos com a sua personalidade arguta e co nmirio de Arena, não é uma pro tetora de heróis. Inútil procurar o seu
sempre aberta ao novo. De um oriki: Aquiles o u o seu Tclêmaco. Mais ainda, Oiá não é deusa das artes o u
do <~rtcsan<lto. Uma o utra g rande dife ren ça diz respeito à vida amo rosa
Odé não chega perto de bicho morto. c scxu<~l. l <~ n sã é ardente, ap:lixo nada, l <~sciv<~. Atcna nun ca se entregou
Ele se assenta em rerras esrranhas. ao incêndio da paixão amo rosa. Cegou T irés ias pcl<1 simples razão d o
Odé me olha e me dá medo. <~ divinh o tê-la visto nua, ban h ando-se ao ar livre . Arena: a vi rgem
res plandecente. l<1nsã: <1 la bareda erótica. Mas nad<1 disso invalida o que
3. OIÁ-IANSÃ. É a Grande Guerreira. Deusa lasciva, voluptuosa, apontei, sublinhando <1 disposição guerreira qu e as aproxima. Da pele
independente, mirando-se no brilho de sua espada. Ela é a guerra, a paixão, de cabra à pele de búfalo.
o sexo, a elegância. Destemida, encara e domina os mortos. Incendeia frente Se qui sermos pen sa r em Oiá-lansã - a mulher voluptuosa que
ao perigo. Passeia no meio da tempestade. Dispara raios. E é bela na briga. vagueia co m <1 elegância de uma nô made ful<1ni c <1 nd<1 com a vitalidade
Fogo na batalha, fogo na cama. Fêmea-leopardo: assim na guerra como do cava lo que trota -, vamos ter que pensar numa mulher poderosa ,
no sexo. Nenhuma submissão diante do mundo masculino. Rompe, fo rte e temida. lansã é se nho ra irascível c sensual, dona d o fogo e do
inclusive, limites impostos por Xangô, adquirindo o poder de lançar fogo co rpo perfei to. Tem a pele brilhante co mo as chamas e, entre os seus
pela boca. Ao mesmo tempo, pode ser a própria encarnação da ternura, objetos, carrega espada e chifres de bllfalo. 'Oiá, não nos fira a tua ira' ,
afagando a face das crianças e rejuvenescendo a dos velhos. Num pequeno pedem os seus adeptos numa o ração. Mas, ao mesmo tempo em que é
estudo de anos atrás ("A Deusa da Fera Faiscante"), que nunca publiquei, o fogo, a força, a gue rra, o ve nd ava l - o o rixá que atravessa o fogo c
escrevi a seguinte passagem sobre iyá mi lansã: corta a copa das árvo res - , lansã é também ca paz de cuidar das crianças
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ORIKI ORixA FLORES DA FALA

e de rejuve nescer os velhos, da ndo-lhes a aparência do dia. Diz ainda Cantiga de Oxum /pondá
um outro o riki que ela se deita dançando e acorda dançando - e as suas
Mmha mde, bom dia.
sace rdotisas , suas iaós, q u ando entram em transe, dançam como se
Mãe lpondá que es t~ s no escuro
estivessem tomadas pelo ven to. Teus cílios luzes para mim.
Um a da nça, aliás, que im pressionou o poeta Haroldo de Campos, Água que vai para o mar
como vemos num fragmento da 'prosa' neobarroca de Galáxias: 'a dança lpondá, bom dia.
Ah , cheia de graça
de iansã que protege das trovoadas e se desnalga e desgaru pa/ ou a santa
Mãe suave, ave leve.
nela minha m ãe coroada de um diadema de brilhos'. Interessa nte é q ue Eu filho de Ipondá
o poeta - depois de se deixar fasci nar pela iaó que ' rodo pia no es panto lpondá que rudo vê.
do sagrado' - diga que então só lhe resta uma frase , que veio dar no seu Ave le11e, cle\•a·me.
texto por acaso: 'e que eu repito como veio sem pensar repito como o om
da mandala refalo remôo repasso colo rless green ideas slee p furio usly O que não sign ifica q ue Oxum não tope combates. Se l pondá é a
dormem incolo res idéias verdes do rmem furiosamente ve rd es do rmem doçura (I pondá q ue levou Oxóssi lbualama para debaixo dágua, do enlace
furiosamente'. A fra se - 'colo rless green ideas sleep fu ri o usly' - fo i enca n tado nascendo Logun edé, o rixá anfi bio c andrógin o), outra
m o ntada pelo lingüista no rte-americano Noam C homsky, o teó rico da "q ualidade" da deusa, Oxum Apará, é jovem e gue rrei ra, q uase se
' gramática gerativa' . C ho msky quis demo nstrar, com o enunciado, qu e aproximando das fulgurações bélicas de Oiá-lansã. Diz um de seus o rikis:
uma con stru ção lingüística gramatical não é necessariamente meaningful.
Distingue-se ai entre gramaticalidade e interpretabilidade: uma estrutura lciê, Apar:\.
sintática normal , mas ininterpretável. O que Haroldo de Campos parece Mulher co m força de macho é Oxum.
querer dize r, introduzindo o sintagma cho ms ki ano n o contexto do Voz afin ada, fa la J e ave.
Mãe senhora da :ígua fresca.
candomblé, é que a frase não só se mostra aceitável, na dimensão dos
arranjos poéticos, como também ele a aceita, ruminando-a, enquanto Apará dansa, vento que não se vê.
enigma semãntico. É su rpreendente essa associação entre lansã e Maga e mestra que os vivos veneram.
Chomsky: há um lugar, na esfera do sagrado, para qualquer estruturação Ela come petequi com Xapa n ~.
Ela encara c acalma os poderosos.
lingüística, por mais enigmática que seja - e ainda que não sejamos
capazes de reco nvertê-la em fala clara."
5. OBÁ. Guerra e C iúme . T odos - sem exceção - temem Obá.
4. OXUM. Deusa do amor, do doce desejo, da beleza, da fertilidade Mulher mais velha de Xangõ, morre de ciúmes de Oxum (se as duas se
e da riqueza. Narcisista, dengosa, sensual, esperta, Oxum é mãe dos encontram num xirê, a briga é certa). Reza a lenda que O bá perguntou
pássaros e dos peixes, senhora da brisa e da água fresca, lo uca por jóias, certa vez a Oxum o que esta fazia para Xangô ficar lo uco por ela. Oxum
mestra em línguas. Em vez de espada, o espelho. Associada à menstruação respo ndeu que, sempre que preparava comida para Xangô, colocava dentro
e à fecundação, inteligência feiticeira, ela aparece sobretudo como deusa um pedacinho de sua orelha. Obá acredito u. Corto u uma de suas o relhas
terna e suave. Para se ter uma idéia , traduzi o seguinte primor de (é po r isso que, nas festas do terreiro, ela dança com a mão cobrindo o
delicadeza: lado do rosto) e colocou no amalá de Xangô. O deus ficou enojado ,

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ORIKI ORixA fLORES DA FALA

furioso. E Obá nunca perdoou Oxum. Guerreira (usa espada, arco e 8. O MO LU. É o Onixegum. O médico nagõ. Melhor: o se nho r dns
flecha), apesar de velha, Obá lutou com todos os orixás, perdendo apenas pestes, conhecedor dos segredos <.In vida c da morte, com sua pele marcadn
para Ogum . Na ve rdade, estava ganhando a briga, quando Ogum jogou pela varíola, seu corpo de cicatrizes . Omolu/Oba luaie - aq uele que cu rn
no chão um prato de quiabo. Obá escorregou, caiu e Ogum se atirou as doenças que ele mesmo espalha . Escreve Agcnor Miranda Rocha: "Seu
sobre ela , possuindo-a com a força de um leão. símbolo maior é o sol. Suas cores são o preto, o vermelho c o branco.
Omolu é o dono dos búzios. Na África, os sncerdotcs do awó erindelogun
6. IEMANJÁ. A Grande Mãe, com suas contas de crista l c seu axé (mis tério do jogo) são ado rad ores de O molu . Está ligado à te rra.
assentado sobre conchas e pedras marinhas. Deusa da águn. Dona do mnr. Geralmente se diz que Obn luniê é o moço c O molu o velho, mas são
Adivinha. Feiticcirn. Mulher fecunda, bela, rica, sábin e poderosa. Mas apen as dois nomes parn umn mesma entidade. Omolu cn rrcga o xaxará
também indomável e até vingativa. Maternal, sim - mas sabe guardar que é o próprio Omolu. Com o xaxnr:i ele limpn ns doc n ~:ns que ele
rancor. Como diz Lydia Cabrera, seus castigos são duros c é terrível a sua mesmo cspalhn pelo mundo. Omolu é o dono dns doenças, espccinlmcntc
cólera justiceira. Difícil manter um relacionamento amoroso com ela. Seus · dns febres, das doenças de pele, da lcprn c de todas as grandes pesrcs.
casamentos desmoro nam, os consortes se ntindo-se humilhados ou Dizem que ele se cobre com ikô (pa lh n da costn) para esconder suns
ameaçndos: Iemanjá sabe demais ... É possível vê-la nas Américas, quando chngns . Nn verdndc, ele se cobre porC]uc desvenda r sua máscara serin 0
ela estende seus cabelos de prata à flor do mar, nadando à noite nas ondas mesmo que Jcsvcnd::tr o mistério da morte. Como ele venceu a mo rte
da velha Havana ou da Cidade da Bahia. tornou-se o médico dos Orixás , chnmtldo onixcgum. Omolu é co nsidcrnd~
o dono da morre c, por conseqüência, tnmbém dn vida".
7. OXUMARE. Oxumarê é um orixá inclusivo, reun1ao de pólos
opostos. Ele é a serpente que morde o próprio rabo. Filho de Nanã (orixá 9. OXALÁ . Obatalá, Orixalá, Obntarixá. Oxnlá é o Grande O rixá
dos pâ ntanos c das águas paradas), Oxumarê é a serpente sagrada que "sai Orisà-Nlá (nlâ = "grande"), a nlvu rn imaculada. Dele se diz C]Ue nasceu cn~
de dentro da terra, vai ao orum c retoma ao aiê, dando uma volta lbõ c foi reinnr em lranjé , rcferêncins encontráveis em seus o rikis.
completa, como o arco-íris que faz o mesmo percurso" (Agenor Miranda Divindade suprema dos iorubanos, depois, é dnro, de Olo rum ou
Rocha). É macho e fêmea. Além de atravessar aiê/orum, de ser macho c O lodumnrê , deus otiosus . É o Orixá d a C riação, dcsignndo por Olorum
fêmea, é Oluô, o G rande Adivinho, que "tudo vê com o seu olho preto" pam fazer o aiê c a humanidade que o habim. Fabbro da humanidade
- como aprendemos com os seus orikis. E como não seria adivin ho aquele portanto. Escultor divino, oleiro de seres humnnos. Ctlprichoso, dcixn cn~
que sabe o que se passa no aiê e no orum - e traz em si desejos de albinos, corcundns c deficientes físicos em gera l a marca visível de sua
homem c desejos de fêmea? Oxumarê faz a chuva cair na terra e da terra prcrrogntivtl de esculpir os hum tl nos co mo bem entende. Ao mesmo
extrai corais e pérolas. Canta-se de/ para ele: tempo, protege aqueles que marcou : coxos, paralíticos, albi nos c corcundas
encontram-se sob o seu manto protetor. Apresenm-sc como Oxalufã, o
velho sábio, Rei do Branco, deus da justiça screnn, apoindo em seu cnjado
Quem apareceu no céu? de prata. Ou como Oxnguiã, o jovem guerreiro, cspndn em riste, nunca
Oxumarê apareceu no céu.
O que apareceu no céu?
hesi tando em mntar. É curioso : os deuses iorubanos não npa rcccm
O sej!redo apareceu no céu. simplesmente como flat charactcrs, parn usn r livremente a terminologia de
Forstcr: nlém de representarem n multiplicidade humana, são eles mesmos
I I6 117
ORIKI ORixA FLORES DA FALA

complexos : Oiá-lansã é a disposição guerreira, mas pode ser a ternura; NVO - Notes sur le Culte des Orisha et Vodoun à Bahra, la Baie ele
Oxum é a ternura, mas pode ir à luta; Exu é o castigo e o prêmio. Mas é Tous les Sarnts au Brésil er à I'Ancrenne Cõre des Esclat,cs, Dakar, IFA N,
que, na ve rdade, um o rixá é feito de vários: um elenco de "qualidades", 1957, de Pierre Vergcr.
de no mes-personalidades que se distinguem entre si por temperamento c PAG - Oya - In Praise o[ an A[rican Goddess, Nova York,
conduta. Oxalá, a sabedoria e a paz, a altíssima harmonia, tem assim, Harpe rCollins, 1992, de Jud ith Gleason.
também o seu lado vicoso e violento. Dai talvez a bela visão poética
' .
iorubana - "dichten = cond ensare" -, traduzida para o inglês por U lli Beier: O l<'ito r notam que, nas tradu çõc.s/recri açõc.~. grafo o vocáb ul o
"d ança" não com "ç", mas com "s". Já se esc reveu assim. A escolha, aqui,
"lmmense granary of the sky. deve ser credi tada na co nta da bailarina Suki Villas Boas. Nu ma conversa,
Old man with the strenght of youth,
Suki me di sse que achava uma contradição escrever "dança" com "ç" c
you rest in thc sky like a swarm of bces."
não com " s" , já que o '' ç" e ra uma letra vis ualmente cape nga,
desengonçada, enquanto o "s", em seu desen ho sinuoso, era uma letra
OU:
danSari na. Achei que ela estava com a ra zão.
Celei ro imenso do céu. Po r fim, qu ero dizer ape nas que tenh o o uvido orikis na Bahia.
Velho com vigor de jovem, Rece ntemente, no dia mundial d o meio ambiente , celebrado na Cidade
Descansa no céu como um enxame Jc abelhas. da Bahia e ntre as pedras, águas c á rvo res sagradas do Parque São
Bartolo meu (Oxumarê), ouvi Stella de Oxóssi, Odé Kayodé, ca n tar um
Pois bem. Os o rikis que apresento a seguir foram traduzidos po r mim, oriki de Ossãnin, o rixá das folhas. D ia seguinte, se ntado na beira da praia,
' à excecão d o "Or iki de Xangô 4 ", para cujo trabalho de recriação contei me lembrava sem parar de u m fragmento do "Sturm" de Hei nrich Heinc:
com a ,colabo racão animad a d o poeta, músico e videomaker Jorge A lfred o, "O Mecr!/ Mutter d er Schõ nh cit. ..". E pensava na travessia atlâ ntica dos
do poeta B. M aianeto, d a bo nita M a ri na M artin ell i e do p ro fesso r o rikis. Sa int·Jo hn Pe r se gi rando na cabeça: um a linguagem poética
Trind ad e-Se rra, a quem falei da necess idade de tr ad u zi r o ri kis para a cru za nd o o A tl ântico , as pistas de luz c t reva do mar ocea no , sob a
língua po rtuguesa e a quem empres tei livros sob re o assunto. O s textos falcoa ria d as nuvens.
o riginais fo ram colhidos em d iversos trabalh os poético-antro po lógicos. Espero q ue o leitor saiba cu mprimentar essa beleza.
Para facilitar a id entificação d as fo ntes, armei as seguintes ab reviaturas:

A O - A frica 's Ogum - O ld World and New, Bloo m in gto n c


lndianapo lis , Ind iana U nive rsity Prcss, 1989, editado por Sand ra T.
Barnes. Especificamente, a refe rê ncia é o texto "The D readful God and
the Divine King" , d e John Pembe rton III .
C OA - Cânticos dos Orixás na África, São Paulo, Edito ra Oduduwa,
1991, d e Sikíru Sàlámi.
MOA - A Mitologia dos Orixás Africanos, São Paulo, Ed itora
O duduwa, 1990, de Síkíru Sàlámi.

11 8 119
ORIKI ORLXA FLORES DA FALA

ORIKI DE EXU 2
ORIKI DE EXU 1

Se Exu entra numa terra Lagunã incita c incendeia a savana.


Ele já entra em pé de guerra. Cega o olho do sogro com uma pedrada.
Cheio dc:: orgul ho e de charme ele marcha.
A chuva que gela um egum
N ão se atreve a cruzu o fogo. Quente qu ente é a morte do delinqüente.
Mo lha o fa ntasma encha rcado.
Exu não admite que o mercado se agite
Antes que anoiteça.
Exu vai com a peneira
Exu não deixa a rainha cobrir o co rpo nu.
Com p rar azeite no mercado.
Exu se faz mes tre das ca rava nas do mercado.
Exu que empurra sem dó
Assoa - c todos acham
Gente que se bate com medo.
Que o barco vai parti r.
Passageiros se prepa ram depressa.
Ele bate no elebó
Exu Mclckê fica na fren te.
Que não faz o bo m ebó.
O desordeiro está de volra.
Grita para que a crise
Se es palhe e a casa caia. Agbõ é forte, firme, maciço
Amarra um a pedra na carga Dá na aiabá com uma clava
De quem fardo leve leva. Su rra de chicote a mulher do rei
Deixa o cho rão chorar
Pai, não prenda ped ras Vê ge nte se batendo e não aparta.
Que façam meu fardo pesar. Assim como ele, há crianças de cabeça alta.
Agbõ - eis aqui minha cabeça.

(NVO, pp. 128·129) Ao tempo que viaja, vigia a plan tação.


Agbõ, dono do açoite que zumba.
Bará que bebe da água que si lva na selva.
Os velhos pentelhos de sua sogra balançam no vento.
Ele se calça e segue dansa ndo a caminho d e Oió.
Agbõ aguou acaçá no azeite.

Bará Melekê tem tufos d e cabelo na cabeça.


Agbô, que outro não ponha a mão em minha cabeça.
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ORIKI ORixA FLORES DA FALA

Agbô vê quando botam pimenta ORIKI DE OGUM


Na buceta de sua sogra.
Silêncio. Cale-se a fala.
Ele é o ba rbudo que mora na barbearia.
Nada na casa em nada bata.
Bará tem os olhos na terra e chora pelo nariz. Inhame novo ninguém vai pilar.
Ele toma no mercado sem pagar. Ninguém vai moer nada.
Ele dorme com um porrete do lado. Não quero ouvir menino vagindo.
Laroiê assiste a enterros com os pais do morto. Cada mãe que amamente o seu filho.
Os pais do morto tremem de temo r. Quando Ogum des pontou
Os pais choram. Vestido de fogo e sangue
Laroiê cho ra lágrimas de sangue. O pênis de muitos queimou
Vagina de muitas queimo u.
Sua mãe o pariu n a volta do mercado .
Senhor do ferro
De longe ele seca a árvore do enxerto.
Que enraivecido se morde
Ele passeia da colina até à casa.
Que fere ferroa e engole
Faz cabeça de cobra assoviar.
Não me morda.
Anda pelos campos, anda entre os cbós.
Atirando uma pedra hoje, Ogum foi a Pongá - Pongá ruiu
Mata um pássaro ontem. Foi a Akõ Ire - Irê ruiu
Chegou ao rio - e as águas dividiu.

Terror que golpeia a vizinhança.


(NVO, pp. 131-134)
Ogum Oboró, comedor de cães, toma teus cães.
Ogum Onirê sorve sangue.
Molamolá fareja farelos.
Dono da lâmina, cabelo come
Senhor da circuncisão, come caracol
Ogum entalh ador, madeira come.
Suminiuá, Ajokeopô.
Não me torture, Ogum terror.
Mão comprida
Que livra teus filhos do abismo
Livra-me.
(AO, pp. 105-106)

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ORIKI ORixA FLORES DA FAIA

ORIKI DE OXÓSSI 1 ORIKI DE OXÓSSI 2 (fragmento)

pressa Orixá, quando fecha, não abre caminho.


para Caçador que come cabeça de bicho
atravessar Caçador que come coco e milho.
a estrada
Mora em casa de barro
400 Mora em casa de folha
búfalos Orixá da pele fresca.
800
aspas Quando entra na mata
O mato se agita.
Ofá - o seu fuzil.
(NVO, p. 2l6)
Uma flecha contra o fogo
E o fogo a pagou.
Uma flecha contra o sol
E o sol sumiu.

(COA, p. 97)

lJl
lJO
ORIKI ORixA FLORES DA FALA.

ORIKI DE XANGÓ 1 ORIKI DE XANGÓ 2

Lasca e racha paredes Xangõ oluaxó fera faiscante olho de orobô


Racha e crava pedras de raio Bochecha de obi.
Encara feroz quem vai comer Fogo pela boca, dono de Kossõ,
Fala com o corpo todo Orixá que assusta.
Faz o poderoso estremecer Disputa com egum a posse de eku
Olho de brasa viva Castiga quem não te respeita
Castiga sem ser castigado Xangô da roupa rubra, dono da casa da riqueza.
Rei que briga e me abriga Boca de fogo, felino na caça
Rompemuros rasgaparedes
Racha e crava pedras de raio.
(MOA, p. 94) Gritam teu nome na terra
G ritam teu nome na guerra.
A rua que se bifurca, orixá do colar,
Volta a se encontrar.
Homem da guerra
Bendito pelos batedores de batá.
Aquele que se acende na chuva
Na chuva, na seca
Não há quem o do no de Kossô não possa matar.
Enrola na terra quem te ofende
Chove não chove
Não há quem o dono de Kossô não possa destroçar.
Bebe chuva como sopa, bebe a enchen te.
Xangô poderoso, não me mate
Não mate nenhum dos meus.
Que eu vença os meus inimigos
Proteja os meus filhos
Não ofenda infantes
Não viole nte os velhos.
Que eu não viole as leis
Não tropece no azar
IJJ
132
ORIKI ORIXÁ FLORES DA FALO.

Nem fale o que ORIKI DE XANGÓ 3 (fragmentos)


Não se deve falar.
Xangô, dono de Kossô, matador sem defesa
Kabiessí ô. Afonjá, chefe de Kossô, a folha já fortalece
Não h á lugar para todas as tuas roupas Aquele que dansa entre crianças
Vida plena, aqui na minha tenda. Faz o fogo vinga r sem que se veja
Enforcado não enforcado E só notamos o talo das folhas estalando
Não nos bata com teu machado.
Que a vida, vida seja - Derruba no barro quem é burro
Dono de Kossõ, Ninguém pode corromper o nosso ori
Me proteja. Senh or do saber, olho brilhante
Ele fende além o alto céu

(MOA, pp. 90-93} Murro no muro d a mentira


Mata varando o olho do mentiroso
Mata selando porta e porto
Mata quem não sabe pensar

Alaganju, destelha casa alheia e atelha a sua


Água ao lado do fogo no seio do céu
Alado escala rápido o alto céu
Faz o fogo cair do meio do céu

(NVO, pp. 340-342}

135
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ORlKl ORlxA FLORES DA FALA

Abalador, amor de Oiá


O RIKI DE XANGÓ 4
Ama nte de dezesseis orixás
T ornou-se de todas elas.
Quando Oiá, mulhe r de meu pai,
Abalador
Inunda o ve ntre dos inimigos
Alafim de O ió
Sobre suas casas o rei relam pêia.
Oluaxó - fera faiscante.
Em cada mão, uma barricada .
Rompemuros
Rei da coroa gloriosa.
Rasgaparedes
O poder de meu pai apavo ra.
Racha e crava pedras de raio.
Tece em rubro toda a tua roupa T cus raios riscam receio.
C hefe, adivinho
Bela de búzios .
Meu pai do povo de Oió, pai de Nupê, Bruxo, bruxa
Homem, mulher
Xangô degolador.
Abalador, dono de Kossõ, dono de minha cabeça. Jovem, adulto
Escravo , criança
Bom co medor de amalá
Do amalá de qualquer quiabo. E os feiticeiro s
Todos receiam o Abalador.
Orobõ é o obi de babá
O orobô de babá cá está. Meu senhor
Xangõ racha-pilão Aquele que te ado ra
Rei meu senhor Trança cabelo e veste vermelho.
Que adorarei. Meu senhor
Leopardo feroz, que adorarei. Desordem na cidade
Dono de Kossõ, não desapareça. Que vivas conosco.
Babá coroado batendo batá Devorador de osso e de espinha
Bate batá para sacrificar Matador sem defesa
Inimigo da mentira
Bate batá para a chuva chegar
Bate batá para ir guerrear. Olho adaga de fogo
Bons olhos - adagas - me vejam.
Meu pai do segredo da cabaça
Que bendigo na boca do dia Marcas de pedra de raio
Rei de Tremenda Majestade
Alegria de minha manhã.
Mistério que meu Xangô me mostrar Enforcado não enforcado
Nem aos meus eu mostrarei. Abalado r
Abalado r
Xangõ de toda a fala
Raio com raio
Língua antiga ou inventada.
137
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ORIKI ORtxA FLORES DA FAV.

Duzentas e uma pedras de raio. Xangõ, não me estranhe.


Quem o rejeita, foge. O feroz furioso com chuva
Espanta o canto da intriga Olho de orobõ
Esfrega na terra a boca inimiga. Bochecha de obi
Abalador, ao som do tambor Dono de elubõ
Da cidade rei e senhor. Dono dos quiabos
Com a cabeça do macho Senhor do jabuti.
Atinge o crânio da fêmea. Xangõ de Oió
Acende o facho sobre casos de vintenas. Acorda e come carneiro
E viva o humor de Xangõ. Acorda e come - um galo inteiro.
Célebre na cidade Te dou jabuti
Marido de dezesseis Te dou quiabo
Tornou-se de todas elas. Xangõ da veste vermelha
Xangõ, amor de Oiá Te adorarei
Epa, Oiá Encantada, ventania que corta as copas Até o fim da minha vida.
Oiá da roupa de fogo. Dono do dinheiro, Abalador
Xangô, amor de Oxum Que cospe fogo
Ah água ijexá, xota d'Oxum Tem piedade de mim.
Cava areia, encova dinheiro Meu dono
Enfeita filho com bronze. Dá-me ouvidos.
Obá saudarei também Xangô dos olhos que rasgam
Obá do ciúme Obakossô que manda no mando
Amor de Xangõ Leopardo feroz que castiga o rebanho
Na carne gravado. Abalador que pune sem punição
Eu saudarei as dezesseis Não lute comigo.
Mulheres de Xangõ, Não acho taxa para o despacho.
A fera dos olhos bonitos. Célebre na cidade, enforcado não enforcado,
Belos pêlos corpo e cabeça Não nos fira a tua ira.
Filho do rei que martela doenças Obakossô que come carneiro e cágado
Filho do rei que martela a morte Pai do mistério de duplo machado.
Corpo que nunca perde força Meu Benfeitor
Enforcado não enforcado Leopardo feroz
Desordem na cidade Olhos adagas de fogo
Não lute comigo O lho de fogo
JJB /39
ORIKI ORIXA FLORES DA FAV.

Boca de fogo. ORIKI DE XANGÔ 5 (versão incompleta)


C huva enxurrada que arrasa inimigo
Que corre solta sobre suas casas
Que eu seja duzentas e quatrocentas vezes Xangõ, falo de elefante
T odas as tuas brasas. Senhor da mata sagrada
Senhor do pavor
Que vale por mil.
(MOA, pp. 95·99) Quando Xangõ chega
O chefe da casa corre
Atrás de carneiro.
Xangõ que trova trovões
Luta como leopardo
Castiga e é aplaudido
Trai a casa do traidor.
Deus que deflagra a guerra
Alafim de Oió
Deus que não aceita desfeita
Marido de Oiá
Kabiessí ô.
Raio que racha pilão
Fera do olho-armadilha
Dansando ao bater do batá.
Raio que rasga o chão.
Leopardo lá no alto
Fuzilando com seu raio.
Filho de Oraniã,
Bruxo do felino preto.
Senhor do axé na palavra
Quando fala, a cidade cala.
Xangô, falo de elefante
Que a xota fraca
Não suporta.
Xangô do machado sagrado
Avança na seca e na chuva
141
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OR!Kl ORixA FLORES DA FAlA

Rei que nunca recua Não me gele teu olhar de fogo.


Meu olho te respeita. Amigo do raio
Alisa rua lâmina quem é louco. Tranqüilo ou intranqüilo
Rei em brasa, corpo de fornalha Orixá veloz como o vento.
Que ouve o elefante barrir - e sorri. Orixá forte e feroz.
Pai dos pais de gêmeos. Árvore que não morre.
Aquele que vê tudo tremer - e sorri.
Aquele que sorri
Sem mover o lábio. (MOA, pp. 104-110)
Aquele que pune mãe e filho
Aquele que ninguém carrega.
Leopardo de Oió
Que se lava em sangue de carneiro
Que come duzentos orobõs por dia
Que descola os dedos da mulher
Que não lhe deu amalá
E que amalá não mais fará.
Todos - com pratos e prantos -
Pedem perdão a Xangô
Pela mulher do amalá.
Kabiessi, não provoquem Xangõ.
O Rei não aceita desculpas.
Abalador, bebe azeite como água
Bebe sangue como vinho
Vai ao orum quando quer.

( . .....I

Leopardo de olhar fixo


Que assusta o caçador.
Dono do labá que nos abala.
Aquele que não dá passagem a Exu.
Rei leopardo.
Quando fala, os conselheiros calam .
143
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ORIKI ORIXA FLORES DA FALA

ORlKI DE OIÁ-IANSÃ 1 O RIKI DE O IÁ-IANSÃ 2

Leopardo que come pimenta crua. C hega Oiá pra carregar chifre de búfalo.
Mulher de vestes vistosas. Oiá dona do marid o magnífico.
Cabaça rara, diante do marido. Mulher da guerra
Eparrei! Mulher da caça
O que Xangô disser O iá encantada, atrevida que vai à mo rte com o marido.
Oiá logo saberá. Que espécie de pessoa é Oiâ?
Ela entende o que Xangô Onde ela está, o fogo aflora.
Nem chegou a falar. Mulher que olha como se quebrasse cabaças.
E o que ele quiser dizer Oíá, teus inimigos te vi ram
Oiá dirá. E espavoridos fugiram.
Ê ê ê-par-rei! Eparrei, Oiá ô
Oiá, árvores desarvora. Temo somente a ti
Adeus, morte. Vento d a morte.
Minha mãe da roupa de fogo. Gue rrei ra que carrega arma de fogo
Nada de mentiras para ti Oiá ô, Oiá totô hmmm.
Nada de mentiras para ti. Ela apanha seus pertences num segu ndo
As marcas na tua pele calam o alabé. Num segundo - rápido - ela se arruma.
Oiá õ Fêmea que flana feito fulani
Mulher neblina no ar. Parte com porte de cavalo no trote
Oiá, leopardo que come pimenta crua. Epa, Oiá dos nove partos, eu te saúdo.

(MOA, p. 158)
(MOA, p. 156)

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ORIKI ORIXÁ FLORES DA FALA

ORIKI DE OIÁ-IANSÃ 3 ORIKI DE OIÁ-IANSÃ 4 (fragmento)

Iansã atrevida morre com o marido Ativa e altiva Oiá


Iansã se levanta com seu talismã No cesto um cento
Luta sem culpa no mar com Olokum De obis para o marido
Arruma rápido os seus haveres
Mulher que olha como se quebrasse cabaças Senhora do templo
lansã que entorna cabaça em Kossõ Senhora do pensar
lansã que pinta o pé com pó vermelho Ativa e altiva Oiá
Acende um fogo no ajerê que carrega Aceite a oferenda
Esfrega na terra a testa do mentiroso Senho ra do templo
Floresta escura escuridão escura É tempo de manjar
Escura escuridão que nos devora
Vento da morte Oiá que faz a folha flutuar
Rompe-cabaça rompe-cerca mulher de Xangõ Ventania que pariu o fogo
Com o dedo tira a tripa do mentiroso Na travessia da montanha
Oiá totó hmmm. Oiá da roupa de fogo
Não devaste o meu lugar

(NVO, pp. 41 5-416) Quem procura Oiá


No vaivém do me rcado
Vai e vê que ela anda
De quitanda em quitanda
Mascando nacos de obi
E vib rando em vermelho

Oiá - brasa do batá


Lança de fogo
No jogo da dansa

(PAG, pp. 6·9)

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ORIKI OIUXA FLORES DA FAIA

ORIKI DE OIÁ-IANSÃ 5 Vendaval e brisa.


Fo rça de o rixá que está no alto.
Oiá que vem à vila envolta em fogo.
E ê ê epa,
Oiá ó . Rara Oiá , rumores de amores com O gum.
Grande mãe. Aquela que dorme na forja.
lá o.
Beleza preta Oiá na cidade, Oiá na aldeia
No ventre do vento. Mulher suave como sol que se vai
Dona do vento que desgrenh a as brenhas Mulher revolta como vendaval
Dona do vento que despenteia os campos Levanta e chama o vendaval
Dona de minha cabeça Levanta e anda na chuva
Amor de Xangô. Assim é a grande Oiá
Duzentas e uma esposas Eparipá, Oiá ô, hê-hê-hê
O seu amado domina. Firme no meio do vento
Oiá é a favorita. Firme no meio do fogo
Um dia de guerra bastou Firme no meio do vendaval
Para a sua glória. Firme orixá
Orixá que abraçou seu amor terra adentro. Que bate sem mover as mãos
Firme orixá
Com o dedo tira a tripa do inimigo. Que tomou o tambor para tocar
Oiá que cuida das crianças E com pouco rasgou o couro
Toma conta de mim. Epa, vocês tragam mais um tambo r
Seu fogo queima como sol. Firme orixá
Ela dorme dansando Epa, ela dansou sob a árvore aiã
Ela desperta dansando. Eparipá, as folhas de aiã caíram todas
Epa, Oiá õ. Orixá que é só axé
Não me queime o sol de sua mão. Castiga sem ser castigada
Ligeira mulher guerreira Dona do vento da vida.
Corre veloz o fogo de Oiá
Oiá veloz faz o que fizer. Aquela que luta nas alturas.
Fêmea forte, com passos de macho Que doma a dor da miséria
Moradora de Irá Que doma a dor do vazio
Grande guerreira Que doma a dor da desonra
Enérgica se ergue à mira do marido. Que doma a dor da tristeza.

148 149
ORIKl ORixA FLORES DA FALA

Mulher ativa, amor de Xangõ ORIKI DE OXUM


Bela na briga, altiva Oiá.
Mãe lúcida.
Fecha o caminho dos inimigos. Oxum, mãe da clareza
Deusa que fecha as veredas do perigo. Graça clara
Mãe da clareza
Egungum de pé no pilão.
O que é isso? Enfeita filho com bronze
Oiá espanta o babalaô, que nem apanha o seu ifá. Fabrica fortuna na água
Oiá, tempo que fecha sem chuva Cria crianças no rio
Fogo no corpo todo
Riscafaísca - fogo. Brinca com seus braceletes
Oíá, corpo todo de pedra. Colhe e acolhe segredos
Com Oiá eu sou. Cava e encova cobres na areia
Com axé de Oiá na cabeça.
Minha cabeça aceitou a sorte. Fêmea força que não se afronta
Esse orixá me carrega no colo. Fêmea de quem macho foge
Na água funda se assenta profunda
Amor de Xangô Na fundura da água que corre
Epa, senhora sem medo
De segredo de egum. Oxum do seio cheio
Ialodê Ora Ieiê, me proteja
Espada na mão És o que tenho -
Bela no batuque Me receba.
Do tantã tambor.
Ventania que varre lares
Ventania que varre árvores (COA, pp. 82-83)
Não nos desarvore.
Epa Oiá, maravilha de Irá.
Quem não sabe que Oiá é mais que o marido?
Oiá é mais que o alarido de Xangô.

(MOA, pp. 164-171)

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ORIKI ORixA FLORES DA FALA

ORIKI DE OBÁ ORIKI DE IEMANJÁ

Obá Obá Obá Iemanjá que se estende na amplidão


Orixá do ciúme Aiabá que vive na água funda
Terceira mulher de Xangõ. Faz a mata virar estrada
O açoite do ciúme Bebe cachaça na cabaça
Gravado na carne. Permanece plena em presença do rei.
Fala da fama do marido lemanjá se revira quando vem a ventania
Gira e rodopia em volta da vila.
Move magos na madrugada
Iemanjá descontente destrói pontes.
Come cabrito de manhã.
Come na casa, come no rio.
Discutindo com Oxum
Não foi a Kossõ com Xangõ. Mãe senhora do seio que chora.
Obá abraça os braços do marido Pêlo espesso na buceta
A parte do seu corpo que a prende Buceta seca no sono
Obá sabe o que é bom. Como inhame resseq uido.
Mar, dono do mundo, que sara qualquer pessoa.
Velha dona do mar.
(MOA, p. 264)
Fêmea-flauta acorda em acordes na casa do rei .
Descansa qualquer um em qualquer te rra.
Cá na terra, cala - à flor d'água, fala.

(NVO, pp. 297-298)

153
152
ORIKI ORixA FLORES DA FAlA

ORIKI DE OXUMARÊ ORIKI DE OMOLU

Oxumarê, braço que o céu atravessa Ele desperta e presto apanha o patuá.
Faz a chuva cair na terra Elefante que fere não conhece ferida.
Extrai corais, extrai pérolas. Nos achamos no mato e puxamos machado.
Com uma palavra prova tudo Esta árvore é odã ou não é?
Brilhante diante do rei. Mete o machado e verás.
Chefe que veneramos Ele vai devagar e d á na cara da criança.
Pai que vem à vila velar a vida Escorpião tem ferrão arqueado
E é tanto quanto o céu. Cobra não conversa com malcriado.
Dono do obi que nos sacia Ente potente.
Chega na savana ciciando feito chuva Ele cai e - feito espinho -·fech a o caminho.
E tudo vê com o seu olho preto. Com a testa de Oluõ ele mói elegbá
Com Ojubonã dilacera Xugudu
Mata um ijebu que tinha axé e voz dentro da boca.
(NVO, pp. 237-238)

(NVO, pp. 261-262)

! 54 !55
ORIKI ORIXÁ FLORES DA FALA

ORIKI DE OXALÁ 1 ORIKI DE OXALÁ 2

Obatalá poderoso obá de Ejibõ Obatalá Obatarixá


Obatalá dono do axé G rande comedor de caracol
Obá de Tapá na corte de Iranjé Faz o vivo vi rar vários
Verso e reverso do universo
Ele d á a quem tem e toma de quem não tem O leiro de crianças
Fala tranqüilo e tranqüilo cala Pedra no fundo da água
Olha de lado sem que se veja
Retira o filho da armadilh a O liuá ió xenxém
Desfaz a mão do malfeitor C uida do ori de quem merece
Quando tem comida, nos dá de comer Faz o estéril fértil
C uida do o ri de quem merece
Obá dos dias de festa
Dono do alá todo alvo
Envolto no branco do bra nco
Obá certo como a sorte de Ifâ
Dorme no branco do branco
Obâ que nada esquece
De dentro do branco rebrilha
Do seu trono fratura e esfrangalha
Ilumina o rumo do rumo
O olho malfeitor
Dono de lemanjá da xota exata
Senhor completo
Ele come rato como Onerém Senhor total
Ele come peixe como Oniguerê Pai
Dono de uma cadeia no orum
Ele sustenta quem não mente
(COA, p. 47)
Obatalá marido de lemanjá
Obatalá mestre dos corcundas
Obatalá mestre dos albinos
Obatalá marido de lemanjá

Vigoroso como um camelo


Amparo soberano do mundo humano
Desata o alá e o dá a uma criança.

(NVO, pp. 467-468)

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ORII<l ORlxA FWRES DA FALA

GLOSSÁRIO aiyê") para rever, saudar e orientar os seus descendentes.


Ejibô - cidade iorubana onde se encontra o templo principal de Oxagu iã ou
Afonjá - nome, tipo ou "qualidade" de Xangõ; dele é o terreiro Axé Opô Oxalaguiã (um Oxalá jovem e guerreiro).
Afonjá, venerado "egbé" da Bahia, hoje sob as graças da ialaxé Stella de Oxóssi. Eku - roupa de cgum.
Agbô - nome ou "qualidade" de Exu. Elebó - quem faz ou leva o "ebó"; há uma curiosa formação lingüística no
Aiã - árvore ligada ao culto de Xangô, na qual ele teria se enforcado-não· português do Brasil: "ebozeiro" (desinência lusa para um vocábulo nagó).
enforcado. Elubõ - espécie de farinha; "polvo de fiame" (L. Cabrcra).
Aiabá - rainha, senhora.
Ajerê - cesto, receptáculo; cerimônia "na qual os iniciados em Xangô devem Fulani - povo africano.
carregar na cabeça uma jarra cheia de furos, dentro da qual queima um fogo
vivo. Eles não se sentem incomodados por esse fardo ardente, demonstrando, Ifá - com inicial maiúscula, o oráculo nagó·iorubá; com minúscula, o colar da
através dessa prova, que o transe não é simulado" (Ori.xâs, Pierre Verger). prática divinatória usado pelo babalaõ.
Ajokeopô - "Suminiuá, Ajokeopô", do Oriki de Ogum, pode ser, segundo Ialodê - senhora, "lady".
Olabiyi Yai, o "oriki" do "performer". Ijcbu - um "subgrupo" iorubá.
Akô·lrê - v. Irê. Irá - a cidade de Oiá-Iansã.
Alá - o pano branco, imaculadamente limpo, alvíssi mo, de Oxalá (Obatalá, Iranjé - a cidade de Oxalá, informa E. Bolaji ldowu (Olodumare - God in Yoraba
Orixalá, Obatarixá). Belief).
Alabé - tatuador profissional; aquele que faz tatuagens. lrê - cidade africana saqueada por Ogum, que matou o rei local c se retirou
Alafim - rei. ostentando o tintlo de Onirê (rei de lrê). Em lrê está o centro do culto de Ogum
Alaganju - ou "Aganju", tipo de Xangô (v. a canção "Babá Alapalá", de Gilberto em terras africanas.
Gil, "hommage" a um "egum" (ancestral morto) filho de Xangó Aganju). ljexá - região de Oxum, na Nigéria, cortada pelo rio do mesmo nome;
Amalá - caruru feito em oferenda a Xangõ. "subgrupo" iorubá.
Axé - o poder de um orixá, a força, a dinâmica, o principio-energia do vir·a·
ser; os terreiros existem para gerar, acumular e transmitir "axé", garantindo Kabiessí, Kabiessí ô - da saudação ao orixá Xangõ, Kawó Kabiyêsi (venham
assim não só a sua sobrevivência, como a continuidade da vida na Terra. ver o Rei), corrente nos terreiros de candomblé do Brasil.
Kossô - "bairro" ou "distrito" que Xangô fez construir em Oió, capital do reino
Babalaô - de "babaláwo"; literalmente, pai-do-segredo ("baba" = pai; "awo" = do mesmo nome.
segredo); é a des ignação do sacerdote do orixá chamado Há, o oráculo iorubano.
Batá - tambor iorubá. Labá- " ... bolsa de couro enfeitada com contas multicoloridas que os sacerdotes
Benin - região da costa ocidental africana; Daomé; cidade daomeana. de Xangó usam para recolher e transportar as 'pedras de raio' . Fica guardada
Bará - Exu; Exu-Bará. acima do assen tamento de Xangõ", explica Sàlámi. E Agenor Miranda Rocha:
"Xangõ usa o labá que é um saco de couro, o nde ele guarda as pedras que são
Ebó - oferenda, "despacho". pedaços do seu próprio corpo".
Egum - "espírito" ancestral que, devidamente "trabalhado", volta à terra ("ilu Lagunã - Exu.

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ORIKI ORIXÁ FLORES DA FALA

Laroiê - Exu; saudação a Exu.


Pedra de Raio - signo do poder de Xangõ, co mo o du plo mac hado (oxê); em
Melekê - tipo ou qualidade de Exu. sua cólera justicei ra, o orixá lança ped ras de raio (ed um ará) sob re as casas
Molamolá - provavelmente, qualidade de O gum. daqueles que merecem ser punidos.
Pongá - (?)
Nupê - povo africano, também chamado tapá.
Suminiuá - ver Ajokeopô.
Obá - "orixá do ciúme"; com "o" maiúsculo, para distingui-la de obá, rei. Em
iorubá, os vocábulos se distinguem tonalmente, com o "a" do orixá em tom Tapá - ve r Nupê.
baixo e o "a" de rei em tom médio.
Obakossô - senhor (obá) de Kossõ. Xugudu - "el dios perverso" , de aco rdo com Lydi a Cabre ra, em Y emayâ y

Obatalá - Rei do Manto Branco, Oxalá. Ochún.


Obatarixá - Oxalá.
Obi - fruto empregado em oferendas e na adivinhação.
Oboró - qualidade de Ogum.
Odã - um /icus ; "a kind of banyan commo nly plan ted in the street to afford
shade", segundo o dicionário Oxford inglês-iorubá/iorubá-inglês.
Ofá - o arco-e-flecha de Oxóssi, Rei de Keru, senhor dos caçadores.
Oió - poderoso reino iorubano.
Ojubonã - (?)
Oliuá ió xenxém - segu ndo Sàlámi, "forma hermética de invocar Oxalá".
Olokum - literalmente, "dono do mar" (em iroubá, mar = ohm); pai de
Iemanjá.
Oluaxó - dono da roupa (axó); dono do manto real.
Oluô - "a title in the Ogboni cult" (Oxford); adivinho.
Onerém - (?)
Oniguerê - (?)
Onirê - Ogum, Rei de lrê.
Ori - cabeça física do ser humano, mas também, e talvez principalmente, uma
espécie de "inner-head" (W . Abimbola); sorte, fortuna, destino. Antonio Olinto
frisa que, na tradição iorubá, cada um tem a cabeça que escolheu. E mais: "tudo
começa na cabeça e nela termina".
Orobô - fruto utilizado em oferendas e na adivinhação.
Orum - o além; o mundo invisível, reino dos ará-orum (habitantes do além).

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ORIKI AGORA

- -
empos atrás, encerrei um ensaio sobre o oriki falando da
perspectiva de extinção do gênero. Havia motivos. Fortes. A
modern ização u rbano-econôm ica de um país como a
Nigé ria, po r exemplo, providenciava po r si mes m a a
liqüidação da "ecologia" do oriki. Além disso, a África
entrara q u ase q ue globa lmente em parafuso, num
catastrófico processo de des m antelamento, inviabi lizando
sua in tegração aos blocos "avançados" do mundo. A situação era a pior
possível. O que, de resto, me levou a dizer que, no fina l do século XX, o
futuro das culturas negro-africanas estava sendo jogado do outro lado do
Atlântico - nas Américas. Para reforçar minha visão "apocalíptica", recorri
então ao historiador Bólánlé Awé. Awé apontava a concorrência de alguns
fato res para atravancar seriam ente e mesmo estanca r em defin itivo a
produção e a transmissão de o rikis na sociedade ioru ban a. Reproduze a
seguir o que escrevi na época:
"De início, uma cadeia n atural foi ro mpida. Os tradicionais
transmissores de o rikis estão mo rrendo - e nada de aparecerem os seus
esperados substitutos. O antigo sistema de mo rad ia - que reun ia, num
mesmo âmbito residencial, as mulheres velhas e as novas de uma família,
permitindo que as primeiras ensinassem às últimas os oriki orile - vai
sendo destruído gradu al mas irrevogavelmente, aca rretando a liq üidação
de um precioso repositó rio textual. Além disso, deslocados pelas estrelas
musicais d a cultura de massa, os canto res e tocado res profi ssio nais de
o rikis viram o seu antigo prestígio se dissolver no ar, a po nto de hoje
serem pura e simplesmente confund idos com os mendigos que circulam
pelas cidades e estradas nigerianas. Aconteceu ainda, prossegue Awé, a
introdução de novos códigos e no rm as de mo ralidade naquele mundo

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ORIKI ORixA ORIKI AGORA

africano. Valores e predicados que em outros tempos eram glo riosamente a marginalização da cultura iorubá no Brasil, o que está certo. É um
celebrados nos o rikis de linhagem já não são socialmente aceitáveis nos protesto adequado e justo, formulado em relação a realidades inegáveis.
dias que correm. Descendentes atuais de personalidades notáveis da velha Mas acontece que, no instante mesmo em que fiz o gesto critico, acabei
vida iorubana se esforçam para suprimir, dos orikis de seus ancestrais, passando ao largo de algo que é fundamental - isto é, do que se produziu
passagens que hoje causam pesado mal-estar. São especialmente visados, de novo em ambos os lugares, trópicos de África e trópicos brasileiros.
nessas inciativas imbecis de expunção ou expurgo textual, aqueles o rikis Não é que eu deva agora simplesmente troca r de posição, invertendo os
que louvam grandes chefes guerreiros que matavam, sem a menor tintura sinais algébricos para adotar uma perspectiva "integrada", como diria
de piedade cristã, os adversários que cruzavam os seus caminhos. Enfim, Umberto Eco. O que é preciso é colocar a discussão em outros termos.
mudou inteiramente o meio ambiente cultural. Tudo, ou quase tudo, Ampliar o foco de leitura. E é justamente isso o que vou tentar fazer nos
converge para o apagamento progressivo do oriki. E não se deve parágrafos seguintes.
menosprezar, nesse curso de abatimento e dissipação dos orikis, o estatuto Antes de mais nada, assinalando uma estranha miopia. Fala-se muito,
hoje conferido, naquelas regiões, ao texto oral, extraliterário, não-europeu. nos meios ilustrados do planeta, em "decadência da cultura oral". Bem vistas
Na África, anota Karin Barber, andam juntos e são vias de projeção social as coisas, esse sintagma cristalizado, circulando largamente em conversas e
o aprendizado da escrita e a adoção da linguagem e da cultura dos antigos escritos intelectuais, não faz sentido algum. Não encontra correspondência
poderes coloniais. O sistema educacional formal orienta a juventude em em fatos. E é em seu contexto que brota, obviamente, o tema da decadência
direção aos padrões vigorantes nas ex-metrópoles, que perpetuam por da poesia oral na sociedade industrial-tecnológica. Mas do que é mesmo que
outros meios sua função metropolitana dominadora. No centro: o texto estão falando? Vivemos hoje imersos num universo cultural que é, entre
escrito. 'Literatura oral' é coisa de épocas ultrapassadas ou de 'primitivos outras coisas, fortemente oral. Presidentes enviam suas mensagens
' contemporâneos'. A situação política do texto oral é, por conseqüência, "pessoalmente" pela televisão, devotos lotam templos para orar e ouvir
a pior possível. O quadro é de completa marginalização . No Brasil, onde prédicas, automóveis passam com seus rádi os ligados, neuró ticos e
o oriki foi desde sempre marginalizado, igno rado pela elite letrada, a neuróticas de todo o mundo abarrotam escritórios de psicologia para tentar
situação não seria melhor. Os orikis vêm mais e mais desaparecendo. a cura pela palavra falada, professores discursam da manhã à noite em suas
E, com o desaparecimento dos falantes fluentes de língua iorubá, entre salas de aula, gente de todo tipo se reú ne em congressos e seminários para
n ós, os o rikis sobreviventes ganharam a dimensão de enigmas falar so bre os temas mais esdrúxulos, conferencistas profissionais proliferam
lingüísticos. Dificilmente são compreendidos nas comunidades em que como insetos zumbidores, gurus repetem sílabas mágicas e por ai vai, que
ainda emitem algum sinal de vida. É provável que num futuro próximo, a lista de exemplos pode não acabar nunca. E por que falar de decadência
tanto na África quanto no Brasil, restem apenas, da admirável massa ou extinção da poesia oral? Não é poesia oral o que fizeram ou fazem Cole
o ral dos orikis, gravações e transcrições. Rastros n a imagem, no som, Porter, Lamartine Babo, )imi Hendrix e Caetano Veloso? Os Beatles e os
na letra. Rastros no espírito." Rolling Stones? Bob Oylan e Chico Buarque? Os cultores do sprechgesang
É claro que a situação não mudou de uma hora para a outra. Não se e do rap? Claro que sim. E durma-se com uma decadência dessas ... Na
trata disso. O problema é que o quadro acima descrito, com toda a sua verdade, confesso que sempre fico algo surpreso quando começo a ouvir,
ênfase "apocalíptican, é apenas parcialmente correto. Não dá conta de numa festa ou num simpósio, alguém falar dessa estranha forma de
outras faces da questão. Protesto ai contra o caráter culturalmente decadência, cujos produtos estão presentes em todos os cantos e recantos
predatório do processo de ocidentalização da lorubalândia e, ainda, contra onde por acaso ou por necessidade dou de me encontrar.

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ORIKI ORIXA ORIKI AGORA

O que se quer mesmo dizer, com o clichê da "decadência do oral", mas também se desprendeu dessa base geográfica, internacionalizando-se.
só pode ser então uma outra coisa. Aponta-se para o desaparecimento ou De uma parte, a Nigéria também não é mais a mesma; modernizou-se, ao
a perspectiva de desaparecimento (ou de transformação/desdobramento) menos parcialmente. De outra, o orixá atravessou o mar oceano para ter
de dete rminadas personagens e espécimes textuais, ambas histórica e adeptos no Brasil, nas Antilhas e, mais recentemente, nos EUA. Podemos
culturalmente delimitáveis. Trata-se então de um processo específico, assim chamar a atenção para duas lin h as básicas de modificação que o
particular, e não de um fenômeno global. Há, portanto, que discriminar. atingiram. Por um lado, modificação provocada pela inserção do orixá
Não é exatamente a oralidade que se apaga aos poucos, agonizando no num a formação histó rico-social específica (a sociedade brasileira, a
meio do cosmo semiótico, mas uma certa manifestação singular sua, que haitian a, etc.). Por outro, modificação resultante de transformações no
habitava o rico e dilatado horizonte da criação oral. Além disso, não instrumental tecnológico da humanidade.
podemos confundir a mudança ou a metamorfose de uma determinada Ogum se modificou, por exemplo, em função da contextu ra histó rico-
forma cultural com o seu desaparecimento. Ou, ao contrário, tecer um social do H aiti, onde é chamado "Ogou". Sigo, neste passo, a leitura de
mito-de-pureza em torno do que nunca fo i puro - e sim que, ao lado das Karen McCarthy Brown . De um ponto de vista geral, o que ela enfatiza,
velhas impurezas de sua formação, ostenta ago ra as impurezas novas do ao falar da continuidade das religiões africanas nas Américas, é que os
presente. É por isso que temos que matizar a leitura, procurar uma "elementos que são retidos como uma herança do passado são submetidos
angulação mais abrangente, se desejamos discutir de modo menos estreito a redefinição e reestruturação sistemática e continua, processo do qual
a presença de orixás e orikis na sociedade de massa. Ou, mais amplamente emergem novas formas culturais" - "the current Haitian Ogou is one such
ainda, na contração elétrica da assim chamada "aldeia global", onde todo form" . Este Ogou haitiano, embora tenha suas raízes no Gu ou Ogum dos
e qualquer código, ou fragmento de código, corre, permanentemente, o povos daomeanos-iorubanos, "não é uma simples reprodução dessas
risco de se planetarizar. divindades africanas". No Haiti, a concepção do ferreiro divino
praticamente desaparece sob a do soldado. E isto, a predominância do
imaginário militar, é uma decorrência, óbvia, da poderosa dimensão
Orixás na sociedade contemporânea, antes de mais nada. Elementos político-militar que, da revolução setecentista de Toussaint L'Ouverrure aos
fundamentais da dimensão simbólica da vida social, os deuses são, ao regimes ditatoriais do século XX, asfixia a vida haitiana. Emblemas dessa
menos para quem se situa fora do campo gravitacional dos credos , dimensão se espalham pelos templos do vodu, sob a forma de objetos ou
criaturas claramente históricas. Achando-se em contexto diverso daquele pinturas: bandeiras, canhões, etc. Enfim, a imagery política e militar
em que nasceu, um deus deve estar sempre pronto para se modificar, em "penetrou até ao coração da linguagem simbólica do vodu sobre Ogou",
resposta às novas realidades com que se defronta. É assim que um deus escreve McCarthy Brown. As canções haitianas para o deus não se cansam
caçador milenar, que ostentava seu arco e sua flecha sagrados, pode de apresentá-lo como soldado - e um soldado que não precisa ser alertado,
despontar um dia empunhando uma espingarda ou um fuzil. De uma pois está sempre em posição de combate, pronto para a guerra. Arriscando
perspectiva histórica, a visão de um deus-guerreiro tribal portando uma uma interpretação mais ampla, a estudiosa observa: "No Novo Mundo,
metralhadora automática, nada teria, em princípio, de escandaloso. Os na escravidão, na revolução e nos tempos caóticos que a seguiram, na
deuses não existem ao abrigo das mutações humanas. Em terreno africano, moderna experiência de opressão política e, para alguns, ... na vida de
nagõ-iorubá, o caso de Ogum é paradigmático. Como outros orixás, Ogum gueto em Nova York, guerra se tornou metáfora da própria vida". Na
é, atualmente, um deus metacultural. Ele ainda existe em sua terra natal, manifestação haitiana de Ogum, portanto , antes que o desempenho
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ORIKI ORI.XA ORIKI AGORA

tecnológico, o que prepondera, como tema central, tecido via imagética a relação entre Ogum e os novos equipamentos tecnológicos surgidos
milita r, é a questão do poder, em seu sentido estrito de relação de fo rça com a sociedade industrial. Numa di reção, ele poderia acompanhar a
baseada fu ndamentalmente na violência. reelaboração de elementos mais estáveis que fo rmam a figura do deus, em
M as, do m esmo modo que se alterou especificamente ao longo da função da realidade atual. Para se ter uma idéia, as auto-estradas são vistas
fo rm ação histórica da sociedade hatiana, Ogum se modificou também hoje na N igér ia como coisas de Ogum, por conta deste orixá ter aberto
num a escala genérica, multi nacio nal, enquanto deus tecnológico - vale picadas na flo resta em tempos remotos. Em outro sentido, pode-se
dizer, incorpo rou , ao tradicio nal arsen al metalúrgico sob sua jurisdição, observar como a rep resentação chamada Ogum vai incorpo rando, à sua
novas tecnologias que vieram e vêm transfo rmando a vida humana. Na configuração, o maquinário estritamente mode rno q ue se produziu a partir
verdade, o pró prio fato de Ogum surgir como senho r da tecnologia do da Revolução Industrial. Sandra T . Barnes foi di reto ao assun to: "Ogum
ferro já o car acteriza co mo uma perturbação d ivina no o rum pré- é popularmente conhecido como deus da caça, do fe rro e da gue rra. Hoje,
metalúrgico. Há uma interessante narrativa a esse respeito. Uma dis puta entretanto, seu domínio se expandiu para incluir muitos novos elementos,
divina em to rno d a necessidade do ferro, envolvendo os o rixás Ogum e da moderna tecnologia à segurança n as auto-estradas - qualquer coisa
Nanã Buruku , a m ais antiga das divindades d a água, senho ra d as águ as envolvendo metal, perigo o u transpo rte". Robert G. Armstro ng, por sua
paradas e dos pântanos. Nessa co ntrovérsia, Nanã Buruku, mulher idosa, vez, constatou: "O culto de Ogum é altamente elabo rado na região io ru bá
discursa em nome do mais remoto tradicionalismo, quando contesta a tese e mostra su rpreendente vitalidade entre pessoas di retamente relacionadas
de qu e o ferro seja indispensável à vida social - divina o u humana. A com a tec nologia modern a". A plasticidade do velho Rei de Onirê é,
narrativa é reproduzida por Pierre Verger, em seu Lendas Africanas dos portanto, um fato inco ntestável. Num dos cantos de ijalá colhidos por
Orixás. Aí se fala de uma roda onde os o rixás se enco ntram reunidos, Adeboye Baba lo la, performance de Ráájí Ógúndiran Àlàó , o artista
'discutindo as suas virtudes e os seus poderes. A certa altura, eles dizem declara: "Àrà l'emi 'n f'Ógún-ún dá". Algo assim como "inovações comigo
que é graças aos instrumentos produzidos na fo rj a de Ogum que podem Ogum cria r". Comentário de Babalola: " ... an assertion that the ljálá
viver. Nanã Buruku, a própria personificação da antigüidade, protesta. artist' s devotion to Ógún led him to giving innovative perfo rmances o f
Afirma que não renderá homenagem alguma a Ogum , o leão da floresta Óg(m' s entertainment" . Numa tradução poética, respo ndendo à trama do
fechada. E que, a partir daquele dia, não utilizará nada que seja fabricado texto o riginal, poderíamos ter: "O novo é meu jogo com Ogum". E se
por Ogum, e, ainda assim, realizará tudo o que quiser e for necessário. É Ogum muda , po r que n ão mudariam os seus o rikis?
por isso que mesmo os animais oferecidos a Nanã são sacrificados com Sim: do mesmo modo que os orixás, os o rikis também experimenta m
uma faca de madeira, não de metal. Seus "filhos", mesmo hoje, recusam mudan ças. Inovações vocabula res, tem áti cas, fo rma is , mas tam bém
o ferro. E o que vemos nessa contenda, em resumo, é um litígio que inovações midiáticas , já que sua transmissão n ão se encerra mais no
simboliza a reação conservadora diante da inovação metalúrgica. âmbito estrito dos antigos meios ou canais de comunicação da sociedade
Ogum é, portanto, a encarnação do novo. A cristalização sígnica de tradicional iorubana. Muda o mundo, mudam os deuses, mudam os textos
um processo de deificação de uma transformação tecnológica. E nada mais que tematizam/condensam as personalidades e peripécias das personagens
natural que ele, em algum tempo convertido em o rixá da tecnologia do extra-humanas, mudam as vias de circulação textual. E não poderia ser de
ferro, continuasse se transformando em função de novas transformações o utra fo rma, o bviamente: o q ue confunde um pouco as coisas é que há
ocorridas no mundo da tecnologia. De fato , não faltaria material para uma tendência estético-intelectual a con sid erar legitim as modificações
reflexão ao antropólogo que se dispusesse a compor um estudo abordando ocorridas no passado e es púrias modificações q ue estão em curso no

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ORIKI ORixA ORIKI AGORA

presente, afetando o aq u i e agora d a criação . Mas é uma postura Podem aparece r impressos em jornais e peças publicitárias - migração
geralmente arbitrária - e, mais que isso, museológica. Em sua forma mais semiótica do o ral pa ra o escrito e a escrita impressa que é da mais alta
extrema , essa atitude celebra a inovação tran sata e tenta estrangular a significãncia, do nosso ponto de vista: o ingresso do praise poem na galáxia
inovação corrente. Não faz sentido. Entre o s io ruban os , n ão só de Gutenberg. E, por fim, são lançados no mercado de di scos, sob a
encontramos a comparação entre signos centenários e objetos recentes - ch ancela de companhias fonográficas comerciais: o ingresso n a global
"Ofà ni mógàfí ibon"/ "Ofá é o seu fuzil" (ibon - rifle, espingarda, fuzil) , village mcluhaniana.
diz um oriki d e O xóssi - , como artefatos novos podem ser inclusive O s ioruba n os não ficaram d e fo ra do processo. Pelo cont rário,
sacralizados, no caso em que, por exemplo , o rifle de um caçador seja mergulharam fundo na maré inovadora. "Mesmo os gêneros iorubanos
encarado, em determin ado momento-conjuntura, como um altar mais autoconscientemente tradicion ais têm sido reproduzidos em massa
temporário de Ogum. Mas não se trata somente de objetos, é claro. Signos e disseminados pelos meios eletrôn icos", escreve C hristopher W aterman
entram no circuito. É assim que o islamismo e o cristianismo hoje em seu estudo da chamada juju music , a canção comercial nigeriana que
participam do espaço intertextual de que nascem os textos criativos foi retrabalhada entre nós por Caetano Veloso, n a composição Two Naira
iorubanos. E são explicitamente referidos , como se pode ver no texto de Fifty Kobo. Foi assim que, para a provável surpresa de muitos, os o rikis
uma cantiga de Xangõ reproduzida por Karin Barber, onde a devota atravessa ram a parafe rn ália tecnológica dos estúdios de gravação e d a
ameaça transferir sua devoção para Oxum ou mesmo se tornar cristã, indústria do disco, irradiando-se massivamente pelas ondas eletro-
segbàgbó, caso não receba as bênçãos do orixá do trovão: "Sàngó bó 6 gbe magnéticas do rádio e tomando conta da tela sempre algo azulada dos
mi n ó lo reé segbàgbó" - "Xangô, se não me abençoares, vou virar cristã". aparelhos de televisão. Comenta Waterman que, quando oríki . groups
Comentando o declínio geral do mecenato de reis e chefes na África, fazem gravações comerciais ou aparece m no rádio (e nunca foi tão
'Ruth Finnegan adverte que isto não se deveu de modo algum a um adequada, como aqui, a metáfora do rádio como tambor tribal) e na
desinteresse crescente pela poesia ou, em especial, pelos (inade- televisão, eles retrabalham os materiais tradicionais, a fim de alcançar,
quadamente) chamados praise poems. Estes continuam a vicejar, só que em encantar e seduzir auditórios mais numerosos e conseqüentemente bem
novo contexto, por outros meios e .sob o patrocínio de novos mecenas - heterogêneos. É natural: vimos coisa parecida, no Brasil, com o samba e
ou patrões. É que as velhas cortes, os clássicos e legendários círculos o baião, este redimensionado em termos urbano-industriais pelo
palacianos, tornaram-se menos e menos atrativos e lucrativos para os sanfoneiro Luiz Gonzaga. Desse modo, a banda que executa orikis, no
poetas profissionais, à medida que foram se esvaziando enquanto centros espaço da cultura de massa, organiza um corpus verbimusical padronizado,
de poder político e econômico. Nesse ritmo, os poetas voltaram seus olhos simplificado para efeitos de desempenho midiático e repercussão massiva.
para novas direções e tocaram a bater o bumbo em outras praças, Em outros termos, partem para uma síntese, uma versão concentrada,
passando a se movimentar na esfera das forças emergentes, incluindo aí daqueles longos recitativos tradicionais acerca de cidades , eventos,
os meios eletrônicos de comunicação de massa. Em vez de praise poems fenômenos, pessoas, deuses ou linhagens.
para reis e chefes do mundo tradicional, loas e louvores se deslocam agora Waterman afirma que não se trata de mera falsificação. "Embora seja
para o espaço africano "moderno", aplicados na celebração de líderes tentador atribuir esta mudança no desempenho unicamente ao impacto
políticos e candidatos partidários, por exemplo. Os praise poems vão se da tecnologia ocidental , a flexibilidade do oriki contemporâneo está
convertendo assim, entre outras coisas, numa espécie africana de jingle de claramente enraizada nas normas e técnicas da performance tradicional",
campanha eleitoral. São ouvidos nas estações de rádio e nos comícios. escreve ele, baseando-se nas teses de Karin Barber que discutimos
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ORlKl ORlxA ORlKl AGORA

anteriormente. Em principio, está correto: a atualização concreta de um Comentando o assunto tempos atrás, em conversa com O labiyi Yai, ouvi
oriki admite variações - incluindo cortes, versões concentradas -, jogando dele q ue o oriki bem pode ser vis to como uma es pécie de poética
sempre em relação às circunstâncias de sua emissão. W aterman não nos subterrânea atuando n o espaço do texto criativo n o Novo Mu ndo.
diz é se, além de orikis genealógicos, os grupos executam orikis de orixá. Acrescentei então que talvez devêsse mos fa lar até mesmo de neo-ori kis,
O que ficamos sabendo, pelos dados que ele fornece, é que também os especialmente em relação à poesia de nossa música popular. E continuo
gê neros ij alá e iwi egúngún (cantos poéticos do culto aos ancestrais pensando assim.
h istóricos) circulam nos mass-media . São mass-reproduced. E isto significa Que se pen se, por exemplo, em nossos orikis ficcionais. No romance
que signos referentes ao o rum transitam co m sucesso pelo a iê. Nas de Jorge Amado, eles despontam com freqüência. Mas, antes, façamos um
palavras de W aterman, aliás, o canto de egum (ou "babá" , como se diz lem b rete. C ham amos "oriki" n ão so mente ao texto co m pleto ,
mais comumente no Brasil, "babá egum") é um "perfeito candidato para ideogramicamente con figurad o. Oriki é também a deno minação
ampla disseminação via reprodução em massa" . O que não deixa de nos corriqueira da frase (ou d as frases) mais marcante(s), mais saliente(s),
fazer lembrar o Gilberto Gil de Babá Alapalá, composição na qual o poeta elaborada(s) para delinear incisivamente esse ou aquele objeto. N esse
se filia simbolicamente a um egúngún iorubano , Alapalá, ainda hoje sentido estrito, e para fazer referência ao campo da produção literária, é
cultuado no Brasil. possível tratar o oriki como uma espécie de equivalente nagô do epíteto
homérico. Assim como no texto grego Palas Atena é a deusa dos olhos
verde-mar, no texto iorubano Oiá-lansã é a deusa que dorme na forja, ou
Mas vamos falar um pouco, também, da peripécia dos orikis na a deusa que possui fogo - e com fogo se cobre. É a esse último sentido,
diáspora atlântica. Em meio àquela Tanzmusik, "musidança", que Heine mais estrito, de construção epitética, que estarei me referindo nessa breve
'imaginou ressoar a bordo do Sklavenschi[f, o "navio negreiro" do excursão literária.
romantismo alemão (anterior, aliás, ao de Castro Alves, composto quase Podemos assim apontar para a presença/ repercussão das fórmulas
vinte anos depois do fim do tráfico escravista), a gente nagõ-iorubá trouxe verbais iorubanas no texto de Jorge Amado. Num romance como O
seus orikis para as Américas. É certo que, com o passar do tempo e o Sumiço da Santa, por exemplo, livro publ icado pelo escritor brasileiro no
esquecimento gradual da língua, também os orikis foram desaparecendo. ano em que seus conterrâneos celebraram a passagem do centenário da
Resistem, a bem da verdade, ali onde a lingua iorubá também resiste: na Abolição da Escravidão. Vou destacar do Sumiço três construções frásicas
esfera do sagrado; na vida cultuai. A praxis litúrgica explica a permanência aparentadas, . construções marcadas pelo paralelismo, que remetem aos
dos orikis de orixá, embora muitas vezes os devotos tenham apenas uma epítetos da textualidade iorubá. É evidente que um rastreamento
noção geral do sentido do texto, retendo do agrupamento sígnico quase semelhante pode ser feito em outros livros de Jorge, desde Mar Morto, por
que somente uma aura semântica, se assim se pode dizer. Seja como tenha exemplo. Mas vou me ater ao Sumiço. Nas primeiras cinqüenta páginas
sido, orikis de orixá ainda são cantados hoje no Brasil - e em iorubá. do liv.ro, encontramos: a) "Oyá, ventania que arranca as árvores e as joga
Recentemente, aliás, passei uma tarde na Casa de Xangô, no Axé Opô longe"; b) "Oyá, doce brisa que afaga a face das crianças e a dos velhos";
Afonjá, conversando sobre o assunto (e sobre a dificuldade de traduzir do c) "Oyá lansã, a iabá que não teme os mortos e cujo grito de guerra
iorubá para o português) com a ialaxé Stella de Oxóssi, Odé Kayodé. E o acende crateras de vulcões no cimo das montanhas". O que temos aí, nos
fato é que os orikis não apenas sobrevivem em nosso meio. Eles também três exemplos citados, são construções epitéticas. É o ónoma epítheton - o
afloram na produção textual dos trópicos americanos, de Cuba ao Brasil. "nome acrescentado" - de que falavam os gregos. Isto é: uma frase
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ORIICI ORIXA ORIKI AGORA

atributiva, que qualifica a divindade. No caso, Oiá lansã, senhora dos Mas voltemos ao romance de Amado. O texto nagõ aflora, irrompe
ventos e dos relâmpagos, vibrando em vermelho no vaivém do mercado. no texto do romancista baiano. E isso a ponto de podermos falar de Jorge,
É possível encontrar, em dicionários de "ane poética", uma definição em alguns momentos, como de um tradutor ou um recriador brasileiro
bastante estreita, que vê o epíteto como um adjetivo que se limita a de epítetos africanos. Alguém pode perguntar se Jorge Amado tem algum
mencionar uma qualidade intrínseca do objeto adjetivado. "Neve branca", conhecimento dos o rikis. A resposta é positiva, claro. Seu amigo Pierre
por exemplo. Mas o que tenho em mente aqui, para efeitos de Vergcr o rganizou, por sinal, a maior antologia de orikis que conheço.
comparação, é o eplteto tal como vamos encontrá-lo nos textos fundadores O rikis são sempre citados por Verger - e Jorge já prefaciou livros desse
da literatura ocidental. O epíteto tanto pode ser um adjetivo quanto uma fotoetnógrafo franco-baiano. Além disso, Jorge é um homem do
frase. Odisseu, o artificioso; Circe de ricas tranças, deusa terrível, de ca ndomblé, filho do orixá Oxóssi. O u seja: nosso romancista joga num
humana linguagem; e assim por diante. Do mesmo modo, no texto espaço textual que conhece muito bem, de livros e de sua longa vivência
iorubano: lemanjá, a deusa que se estende na amplidão; Xangó, o em terreiros. Mas a verdade é que um escritor, plantando-se no campo da
Abalador, a Fera Faiscante, àkàtà yeriyeri, leopardo feroz que castiga o intertextualidade - ou, mais precisamente, da intervocalidade - baiana,
rebanho, etc. E são frases dessa espécie, caracteristicamente epitéticas, as pode enveredar por essa seara poética sem ter consciência disso. Sem que
que recolhemos no romance de Jorge Amado. "Oyá lansã, a iabá que não saiba exatamente o que é um oriki , pode não só ter orikis cruzando a
teme os monos", por exemplo, epíteto referente à relação especial de lansã superfície de seu texto, como compor orga nismos verb ais que remetam à
com os eguns, os espíritos ancestrais (lansã, como se sabe, é o único orixá criação poética iorubana. Dou o exemplo de João Ubaldo Ribeiro. Em
que enfrenta e controla os mortos). lansã é também capaz de cuidar das Viva o Povo Brasileiro, obra-prima da criação textual em nossos trópicos,
crianças pequenas e de rejuvenescer os velhos, como aprendemos com ele recria a Guerra do Paraguai nos termos de uma lliada Negra. Assim
'seus orikis. E o que escreve Jorge no Sumiço? "Oyá, doce brisa que afaga como os deuses gregos participam de lutas e refregas, também os orixás
a face das crianças e a dos velhos." Ora, essa é uma linha da poesia mais acirram disputas e patrocinam batalhas. O que Ubaldo fez foi lancar os
tradicional dos nagôs. E o mesmo se pode dizer da outra frase antes orixás nessa arena. Comentando o envolvimento dos olímpicos na
referida - "Oyá, ventania que arranca as árvores e as joga longe". Diversos Gue rr a de Tróia, Gíulia Sissa sintetizou : "A Guerra de Tróia lhe s
textos africanos falam de Oiá-lansã como o vendaval que corta a copa das pertence". Ubaldo, por sua vez, coloca na boca de Oxóssi as seguintes
árvores. Oiá - e[úfu lelê: a Grande Ventania. Está nesse espaço semântico, palavras: "Não cabe a nós ausentar-nos dessa luta, antes nos metermos
aliás, um dos "versos" mais notáveis da tradicional poesia iorubana: "Oya, nela como se fosse nossa, pois que de fato é". Confesso que não me
àrlgi dági" . Sikiru Sàlámi traduz por "Oya que usa uma árvore para agrada muito esse n acionalismo barroco de "povo eleito", que lembra
derrubar outras" . Mas não dá. O original iorubano é um prodígio de Glauber Rocha e, mais remotamente, Antonio Vieira convocando Deus
concisão. De compressão vocabular e cerrada tessitura fonológica: àrígi dági para enfrentar os holandeses que invadiram a Bahia no século XVII...
- gi, de igi, "árvore"; dági- dá (verbo: arrancar, derrubar) e gi =arrancar Mas esse não é o meu tema aqui. Fiquemos com Ubaldo. Sua referência
árvores. E isso sem falar no jogo tonal. Na modulação dos "aa". Temos de base é o texto homérico (do "efei to de retardamento" da narrativa
aí três palavra~, em cada palavra um "a" e cada "a" em um tom. "Oya" - àq uele gesto olímpico de ab raçar os joelhos, típica postura de súplica,
tom médio; "àrígi" - tom baixo; "dági" - tom alto. É intraduzivel. Pode- Oxóssi abraçando os joelhos de Oxalá). Ubaldo substituiu os olímpicos
mos talvez recorrer ao verbo "desarvorar" - no sentido de abater, derrubar pelos orixás e os epítetos homéricos por fórmulas que reproduzem os (ou
- e arriscar um "Oiá, árvores desarvora" ... vêm diretamente dos) orikis. "Ogum·ê , fe rreiro sem par, senh or da
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OR!Kl ORIXA OR!Kl AGORA

ferramenta, cujo nome é a própria guerra", por exemplo. É Ubaldo e é um Deje sus puertas cerradas
la fúnebre arquitecrura!
oriki. E no entanto Ubaldo não tinha consciência disso. Quando lhe falei
Su paso, que se apresura,
da relação entre o epíteto homérico e o oriki iorubano, ele caiu das nuvens, y el mármol barroco y serio,
entre surpreso e emocionado. O que vem reforçar, de resto, a sugestão de sellarán todo misterio.
Olabiyi Yai, classificando o modo de existência do oriki n a diáspora Guarda, rras nueve colores,
guadaflas, cirios y flores,
africana em termos de "poética substerrãnea".
la duefla dei cementerio.
Enfim, podemos falar tranqüilamente da presença do o riki ancestral
na intertextualidade brasileira contemporânea, passagem do século XX
para o século XXI. É uma presença que se revela nítida ao olhar sensível
e equipado. E uma presença inspiradora - que, no caso dos romances de A presença de orixás e de outros elementos da cultura n agõ-iorubá,
Jorge e Ubaldo, suspende o encadeamento linear da narrativa, na poesia da música popular do Brasil e de Cuba, é certamente fato que
aproximando prosa e poesia. Mas é bom não esquecer que o fenômeno dispensa comprovação. Todos sabem disso, ainda que só "de ouvido".
não se restringe à prosa literária brasileira. Vamos flagrar essa presença Seria algo estran ho, de resto, embo ra perfeitamente possível, que essa
do oriki também em escritores americanos de língua espanhola, a exemplo produção artística popular recebesse o influxo africano apenas no plano
do Alejo Carpentier de Ecué- Yamba-0. Deixo de parte, no caso, os musical - c não, igualmente, no plano poético. Aqui se encontra, aliás,
arrependimentos do autor. Ecué-Yamba-0, escrito em 192 7 no cárcere da uma diferença ostensiva que separa a poesia da música popular norte-
velha Havana macumbeira, é um belo livro, em que pese a peroração do americana da poesia da música popular cubano-brasileira. A presença
vanguardista arrependido formulada a seu respeito por Carpentier, ao se negra na música dos EUA está fundame ntalmente no terreno musical.
~entir culpado, posteriormente, pela sua incursão em terreno experimental, É verdade que ela alcança a dimensão verbal, mas de modo bastante
sob o influxo do futurismo-surrealismo europeu das primeiras décadas do limitado. Restringe-se ao linguaja"r "black", por assim dizer. A um a
século que está findando. Pois bem. Nessa novela inventiva e colorida, espécie de sincretismo idiomático não muito profundo, manifestando-se
onde vemos a crioulada de Cuba fazer despacho e bajar el santo, depois principalmente na erosão ou na deformação de signos lingüísticos
que o dia tropical desmaia "esgotado por catorze horas de orgasmo ingleses. Quando mu ito, o que pode ocorrer é uma formação neológica,
luminoso", topamos com construções epitéticas, afloramentos da "poética mas ainda dentro do sistema lingüístico anglo-saxão. Os casos do Bras il
subterrânea" do oriki, quando surgem orixás: "Y tú, Virgen de la Caridad e de Cuba são diversos. Ultrapassam esse limiar mais superficial do
dei Cobre, suave Ochum, madre de nadie, esposa de Changó" ... Mas é sincretismo idiomático.
claro que o oriki, espécie poética, não pinta apenas no pedaço da prosa. Para ficar nas Antilhas, em águas caribenhas, compare-se a música
Sua presença é igualmente visível na poesia. Entre os muitos exemplos popular cubana com o moderno reggae da Jamaica, por exem plo. O que
disponíveis, cito aqui uma das peças que compõem o conjunto de poemas temos no reggae é uma poesia que gi ra em torno da Bíblia - ainda que
intitulado En El Ambar Del Estio, de Severo Sarduy. É um neo-oriki de de um texto bíblico totalmente reconfigurado, a partir de uma leitura
Oiá-lansã: "escrava" da obra literária fundamental do discurso do senhor branco.
Assim, em vez do nome ou da proeza de um o rixá, topamos ai com Jah
Monte oscuro, noche oscura; (Jeová) e com inte rpretações muito particulares de relatos bíblicos, a
centellas y dos espadas. exemplo do Êxodo, pensado agora em termos de um retorno da população

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ORlKl ORlXÁ ORlKl AGORA

negromestiça da Jamaica à África - mais precisamente, à Etiópia. Ou seja: Arnaldo Xavier fazendo "orikai", mistura de oriki e haikai, como ele
o poeta do reggae é, antes de tudo, um rastaman, um adepto do mesmo diz. Mas apenas aponto pistas, trilhas que podem ser percorridas
"rastafarismo", estran ha espécie de "teologia da libertação" de caráter com mais vagar em pesquisas ou aná lises fururas. Só. Do mesmo modo,
milenarista, que identifica as instiruições do cristianismo com Satã. É essa não vou providenciar, no momento, um mapeamento detalhado da
leitura "rastafari" da Bíblia que, entre outras coisas, sanciona o uso presença africana na estética da música popular que se faz entre nós.
masculino da maconha (vista como vegetal sagrado, planta ritual de Limito-me a algumas observações, suficientes para esclarecer meu ponto
Salomão), recusa a miscigenação (o mulato é filho de Eva, uma negra, com de vista. De saída. lembrando que o sincretismo id iomático, na poesia da
a serpente, um branco - logo, é a própria materialização da "impureza") música brasileira, ocorre em profundidade. Não se trata apenas de um
e discrimina as mulheres, já que foi uma mulher quem sujou o paraíso, "distúrbio" vernacular. Nossos poetas lidam com neologismos, sintagmas
ao se entregar sexualmente a um branco. Em suma, o "rastafarismo" é um traduzidos (pai-de-santo, por exemplo, não é um sintagma português, mas
obscurantismo produzido por uma leírura que se move por inversões do um sin tagma iorubano traduzido: babalorixá), sintagmas híbridos
discurso bíblico veiculado pelo senhor de escravos; pelo colonizador anglo- (macumbeiro, por exemplo : a palavra banto "macumba" com termin ação
saxão. E é justamente nessa discursividade de extração bíblica que se funda lusa), etc., para não fal ar no emprego direto de vocábulos africanos,
a poesia do reggae. Aqui, como na poesia da música popular norte- incorporados ou não ao português do Brasil. Dito de outra forma, se nos
americana, a Bíblia é "the Book", com "b" maiúsculo . Em Cuba, a colocarmos do ponto de vista do discurso ou do dialeto lusitano, há um
conversa é outra. Basta lembrar Mi Cocodri lo Verde, de José Dolores razoável grau de bilingüismo na poesia da música popular brasileira. Além
Quinones, onde o uvi mos : disso, orixás são personagens que fazem parte dessa poemúsica há tempos.
Basta ouvir Promes sa de Pescador (Caymmi), Tatamirô (Toqui nho-Viniciu s
Mi cocodrilo verde de Moraes), Filhos de Gandhi (Gilberto G il), Pensamento lorubá (Moraes-
Carcajada mulata Risério), etc. A lista é imensa, como se sabe. Nessa música mestiça de um
Canción de serenara povo mestiço, nessa estética da mestiçaria, a presença negro-africana se
Embrujo de maraca y bongó deixa encontrar a cada passo, do plano temático à seleção vocabular, do
destino da mensagem ao jogo das rimas, do artesanato paronomásico à
Mi cocodrilo verde
En ru palmar se pierde simplificação sintática, enfim, da estruturação semântica ao estrato sônico.
La clásica leyenda E é exatame nte por esses caminhos que vamos dar com a existência
De Yemayá y Changó... do neo-oriki na poemúsica popular. Uma composição como Umbabaraú.ma
Oorge Benjor), por exemplo, bem pode ser vista como um neo-oriki de
Nesse particular, a poesia da mustca popular cubana se encontra individuo. Com mais propriedade ainda, podemos classificar como neo-
muito próxima da nossa, brasileira. Mas vamos aos poucos. Não pretendo oriki .de pessoa ilustre a Oração de Mãe Menininha, de Dorival Caymmi,
fazer aqui nenhuma leirura exaustiva do assunto, como o leitor já deve ter vinculada ao espaço cultuai nagô-iorubá e exibindo um procedimento de
notado. Ao falar de "orikis ficcion ais" na literarura brasileira, parágrafos nominação disposto em estrurura paralelística (Oxum mais bonita, estrela
atrás, poderia ter me expandido em direção ao terreno da poesia literária, mais linda, mão da doçura, etc.). Neo-oriki de orixá? Também. Para me
partindo do Modernismo de 22, por exemplo, para chegar ao final do referir somente à obra de Gilberto Gil, dois neo-o rikis de orixá me
século, com Paulo Leminski compondo um neo-oriki de Ogum, ou ocorrem de imediato: Axé Babá (para Oxalá) e Logunedé, o filho de Oxóssi

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ORIKI ORIXÁ ORIKI AGORA

e Oxum lpondá. Da dupla Gilberto Gil-Caetano Veloso, temos um Rainha dos raios
exemplo acabado de neo-oriki de orixá - lansd - e o neo-oriki das aiabás, Rainha d os raios
Rainha d os raios
apresentado pelos Doces Bárbaros. De Caetano apenas, o neo-oriki mais
Tempo bom - tempo ruim
arrojado que conheço, ideograma concentrado de seu odu, o orixá
lbualama, uma peça cristalina, oriki de nitidez concretista, tentando
apreender o nexo entre o deus e a água: Gua - justaposição direta de
Enfim, penso que aqui chegamos com uma visão mais abrangente da
substanóvos (áGUA, GUAmá, i .OUApe, i-BUAlama), onde o fonema "i",
situação do oriki no contexto que estamos vivendo. Acredito que não
destacado por sua altura no espaço musical, remete à emissão sonora
temos razão alguma para não lamentar a desfiguração do velho ambiente
reiterada pelo filho de Oxóssi possuído por seu eledá. Mas vamos recordar
sociocul tural do oriki, ou as mutilações que esta espécie discursiva
aqui, por sua natureza exemplar, o neo-oriki lansã:
africana, nagô·iorubá, vem sofrendo. Essas coisas podem nos ferir de
modos diversos - e com intensidade variável. Ao mesmo tempo, também
Senhora das nuvens de chumbo não acho que devamos estacionar aí, paralisados na lamentação de um
Senhora do mundo mundo e de um tempo que se foram . Não temos razão alguma para não
Dentro de mim
celebrar a sobrevivência dessa poética, hoje redimensionada em função das
Rainha dos raios
Rainha dos raios novas realidades socioculturais e de suas tecnologias de comunicação. O
Rainha dos raios fato é que - seja pelo registro documental na fonte, seja pelo caminho da
Tempo bom - tempo ruim recriação consciente, seja pelo curso da existência subterrânea; e até
mesmo por uma projeção/persistência subliminar no espaço da
Senhora das chuvas de junho intertexrualidade contemporânea - a poética do oriki está aqui entre nós,
Senhora de tudo
na aldeia global da modernidade-mundo. Aqui e agora. Para a festa
Dentro de mim
planetária desses signos migratórios que vêm articula ndo, num arco de
milênios, a viagem chamada poesia.
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Rainha dos raios
Tempo bom - tempo ruim

Eu sou o céu
Para as tuas tempestades
O céu partido ao meio
No meio da tarde
Eu sou o céu
Para as tuas tempestades
Deusa pagã dos relâmpagos
Das chuvas de todo o ano
Dentro de mim

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Editora, I 993. COLEÇÃO SIGNOS
Últimos Lançamentos
Avant-Garde na Bahia. São Paulo, Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1995.

Fetiche - poesia. Salvador, Fundação Casa de Jorge Amado (no prelo).


51. Poeta Poente
Alfonso Ávila

52. Lisíslmla e Tesmoforian/es


Trajano Vieira

53. Heine, Hein? Poeta dos Conlrdrios


André Vailias

54. Projilogmmas
Augusto de Campos

55. Os Persas de Esquilo


Trajano Vieira

56. Outro
Augusto de Campos

57. Lírica Grega, Hoje


Trajano Vieira

58. Graal
Haroldo de Campos

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