Tese Eduardo Possidonio
Tese Eduardo Possidonio
Tese Eduardo Possidonio
TESE
Eduardo Possidonio
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
EDUARDO POSSIDONIO
Seropédica, RJ
junho de 2020
Em memória de
Agradecer… Algo de suma importância quando se chega ao final de uma etapa como
esta, principalmente pela certeza que carrego de que, da tese, solitária somente a
responsabilidade sobre o texto, uma vez que sua elaboração só é possível com a participação
de muitas mãos. Dessa forma, creio que, não por acaso, seja essa a etapa mais difícil de uma
redação, principalmente no doutorado, já que, aumentado pelo cansaço, o risco de esquecer
alguma pessoa ou determinada situação que tenha sido de fundamental importância na
caminhada é muito grande. Assim, começo pedindo perdão pelas inevitáveis ausências, mas
creiam, elas não podem cair na conta da ingratidão jamais… São, sim, resultado de uma
fadiga inevitável de um fim de caminhada, que só não é maior que o alívio e a gratidão que
envolvem o ponto final.
Começo agradecendo a minha esposa e companheira Eneida, que me proporcionou o
apoio necessário ao longo de todo esse demorado período, que não envolve somente o
doutorado, mas toda a trajetória acadêmica. Sem você nem sei como seria. Obrigado, minha
amada. Aos meus pais, incríveis seres humanos que educaram muito bem todos os seus filhos
no caminho da retidão e da boa batalha e que sempre foram os primeiros a me incentivar e
entender as minhas ausências nesse período, e não foram poucas… Dona Ivone e Manoel,
amo vocês. Privilegiado que sou, fui, desde cedo, abraçado por mais uma linda família, meus
paidrinhos, Athos e Sandra. A ligação na hora certa, o bom incentivo, a palavra de carinho e
o respeito à dolorosa ausência… Como sou grato… Amo vocês…
Irmãos tenho muitos, os de sangue e os do coração. Gisele, obrigado pela parceria e
pelo presente lindo que cresceu junto com a tese, Miguelito. Thiago, companheiro de
caminhada e de vida, em meio à tese me presenteou com a Dudinha, linda! Cássio, o presente
que você me deu há oito anos, o livro da professora Linda Heywood, deu frutos, obrigado
pelos meus sobrinhos! Júlio, irmão e amigo de todas as horas, meus sobrinhos são lindos.
Valeska, obrigado pelas boas gargalhadas de nossas conversas, mesmo a distância elas
chegavam na hora certa. Vanessa, minha irmã mais velha, obrigado por todas as boas
vibrações que sei que emanam de você, meu sobrinho é lindo! Vivian, doçura e paciência…
Mesmo não sendo seu forte, o companheirismo é incrível, sim, meu sobrinho é um modelo de
tão lindo!
Amigos são muitos, talvez correndo o maior dos riscos, optei por representar todos
eles pelo olhar da caminhada acadêmica. Moisés Peixoto Soares, companheiro de batalha,
sempre disposto a trocar ideias e a debater hipóteses, além, é claro, da boa conversa jogada
fora, pausa de que todo pesquisador precisa. Estamos juntos nessa batalha! Sou grato por
trabalhar com grandes figuras: como Aline Xavier, Márcia da Gama, Alessandro Araújo,
Luciana Nascimento e Gustavo de Rezende, grandes companheiros do dia a dia e de
compartilhamento de pesquisas. Nesse período, dividimos nossos sonhos e angústias, que
variavam do serviço público à academia, obrigado por tudo! Jonis Freire e Karoline Carula,
vocês continuam incríveis, obrigado por tudo. Aos demais companheiros de batalha que
compartilharam das alegrias e angústias desta caminhada, agradeço, e, de forma muito
especial, agradeço às mulheres incríveis que tive a sorte de ter como diretoras de minhas
escolas: Paula Ferraz, logo no início da caminhada, e, atualmente, Nilce Gama e Fabricia
Azevedo Aragão. Vocês sabem o quanto sou grato pela parceria estabelecida nos últimos
anos. Karen Ferreira, Carlos Artigo, Neide Croner, meus sogros Ana Carvalho e Jefferson
Carvalho, companheiros para todas as horas, agradeço a parceria e a compreensão pelas
ausências… Companheira Claudiane Torres, grande amiga e excelente pesquisadora, com
você descobri o fascinante mundo da pesquisa, é uma cachaça…
Querido Tateto Munene, sua generosidade é impagável, sempre disposto a esclarecer
minhas muitas dúvidas acerca do sagrado afro-brasileiro. Tata Giamba, amigo de longa data,
zeloso companheiro de todas as horas, pronto para atender minhas demandas de leitura,
mesmo vitualmente, grande companheiro da minha estadia em Boston. Tata e Tateto, vocês
são incríveis, não tenho como agradecer por tanto carinho. Ao Grupo de Pesquisa A Cor da
Baixada, é muito gratificante chegar nesta etapa e acompanhar a produção de cada integrante.
Nielson Bezerra, obrigado meu amigo, suas sementes estão frutificando… Marta Ferreira,
Juliana dos Santos Lima, Vitor Hugo Monteiro, Eliana Laurentino, Edyanna Barreto, Daniela
Cavalheiro e Moisés Peixoto, obrigado e sigamos na luta. Aos meus alunos da Pós-
Graduação em História da África e da Diáspora Atlântica, do Instituto de Pesquisa e Memória
Pretos Novos, IPN, para os quais tive a alegria e a sorte de apresentar minhas hipóteses e
amplamente discuti-las, além da importante contribuição deles pelo seu olhar sobre as
religiões afro-brasileiras nos dias atuais com a qual sempre era brindado nas aulas.
Margareth de Almeida Gonçalves, elegância, erudição e, principalmente, o respeito ao
pesquisador marcaram sua orientação. Sou muito grato por ter aceitado me acompanhar nesta
caminha do doutorado, suas constantes observações e apontamentos foram de suma
importância para o desenvolvimento deste trabalho. À querida Mary del Priore, que, logo no
início dessa caminhada, reuniu seus alunos do tempo de mestrado e ouviu de cada um o que
esperava da vida acadêmica, reservando particulares observações especiais, que sigo
rigorosamente. Mariza de Carvalho Soares, quanta generosidade, a você que me recebeu logo
após a defesa de minha dissertação e, de forma incrível, pontuou com diversas observações
que serviram de norte para a redação desta tese, não sei como agradecer. Ressalto que, com
todos que deram essas valiosas contribuições, divido os acertos da redação e assumo por
completo a responsabilidade pelos possíveis equívocos.
Tania Bessone e Monique Gonçalves, obrigado por me receberem no Programa de
Pós-Graduação da UERJ, para a eletiva de Tópicos Especiais em Política e Cultura, em que
discutimos imprensa e a institucionalização de práticas científicas ao longo do Oitocentos.
Aproveito e incluo Tânia Pimenta e Gisele Sanglard, que gentilmente me receberam como
ouvinte no Programa de Pós-Graduação da Fiocruz, em que a arte e o ofício de curar foram
apresentados e discutidos com excelência. Obrigado.
Robert Slenes, Bob, suas contribuições não somente na qualificação, mas em outras
conversas e trocas de e-mail, foram de fundamental importância para a condução deste
trabalho. Hoje entendo quando seus orientandos referem-se às flechas que você lança.
Fabiane Popinigis, obrigado pelas instigantes provocações no momento da qualificação e os
apontamentos apresentados. Aproveito para agradecer aos professores do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, em especial àqueles
com quem tive contato ao longo das disciplinas obrigatórias do doutorado. Fábio Henrique
Lopes, Luciana Mendes Gandelman e Marcello Otávio Basile, obrigado por todos os
apontamentos recebidos ao longo de cada encontro. Roberto Guedes, obrigado pela parceria
nesses últimos anos e especialmente pela disciplina de Senhores forros. Que momento
importante para minha caminhada! Por fim, mas não menos importante, agradeço
especialmente ao secretário do programa, Paulo C. Longarini, por toda presteza e paciência
no decorrer de todo o processo. Você sabe fazer a diferença, obrigado por tudo.
Professor John Thornton e Linda Heywood, obrigado pela acolhida e, principalmente,
pela troca, não somente enquanto estive no doutorado sanduíche na Boston University, mas
desde o primeiro contato, com excelentes sugestões. Agradeço, em especial, a insistência em
me aproximar de Palo Monte e as Reglas afro-cubanas, sim, elas tinham muito a me falar…
Fui muito bem acolhido ao longo de minhas pesquisas em Boston, em especial, na Mugar
Libray, onde mantinha meu espaço de estudo. Agradeço a todos na pessoa de Deirdre B.
James, não tenho palavras para definir o que foi sua atenção ao longo de todo esse processo,
da preparação à permanência em Boston. Ao staff da Mugar Library, em especial aos
companheiros do sexto andar, dedicado aos estudos africanos, Frances Restrick, Beth, quanta
generosidade, obrigado por toda atenção e paciência. Rachel L. Dwyer, digo o mesmo para
você. Gabeyehu Adugna, Gabe, companheiro, obrigado pelas boas conversas de final de
tarde. Vocês são incríveis. Agradeço ao querido companheiro Thomas Johnson, também
integrante do mesmo time, pelas conversas, pelos livros e pelas oportunidades de
apresentação de trabalhos no New England Regional World History Association. Em Boston
tive a alegria de conhecer um seleto grupo de pesquisadores brasileiros, cada qual em sua
área de atuação. Juntos, ao final de cada tarde, formávamos uma boa comunidade, e hoje
somos amigos: Fábio Peixoto, Etyelle Araujo, Bernardo Frossard, Clarissa Veloso, Fabiane
Abaurre, Murilo Arruda e Gabriela Sartori, com vocês dividi meus melhores dias em Boston.
Meus dois gatos: um agradecimento inusitado, que somente o pesquisador que os
possui vai compreender, já que eles dispõem do dom de pressentir o momento certo em que
você precisa de uma pausa, mesmo que esse aviso seja dado da maneira mais temerosa, como
pisando ou deitando sobre o teclado, com o real risco de tudo ser perdido em definitivo…
Fui agraciado com importantes fomentos para desenvolver esta pesquisa, recebidos
em diferentes momentos. Logo no início, a Fundação Biblioteca Nacional, que agradeço na
figura da funcionária de carreira da instituição, Angela Di Sasio, por toda parceria. Da Capes
recebi o financiamento, via Demanda Social, e, em especial, do Programa de Doutorado
Sanduíche no Exterior, que me possibilitou desenvolver minha pesquisa em Boston.
RESUMO
A presente pesquisa tem por objetivo analisar a formação das práticas sagradas afro-brasileiras, ao
longo do Oitocentos, pelo olhar da contribuição dos povos centro-africanos, grupo étnico que
impactou o tráfico transatlântico até o seu término. O trabalho parte da análise dos primeiros
pesquisadores brasileiros e o lugar reservado à compreensão das heranças centro-africanas em suas
pioneiras contribuições. Seguindo para a primeira metade do século XIX, analisando as manifestações
públicas de cultos de aflição-fruição realizadas nos principais logradouros da capital imperial,
confundidas pelo olhar enviesado dos viajantes com festejos dominicais. A segunda metade do
período foi marcada pela transição das celebrações para o interior das casas e sobrados situados nas
freguesias urbanas da corte imperial, momento em que as lideranças religiosas disputavam palmo a
palmo os espaços litúrgicos da urbe. Não por acaso, sacerdotes e sacerdotisas atuavam com
desenvoltura a poucos metros uns dos outros. Com a interrupção do tráfico, a segunda metade da
centúria marcou a necessidade de renovação das lideranças via complexos processos de iniciação
ritualística, que, quando cruzados com fontes produzidas em solo centro-africano, demonstram um
interessante desdobramento de um complexo processo de crioulização iniciado do outro lado do
Atlântico. Tal processo resultou no nascimento de um cristianismo africano, sendo este a base para a
compreensão dos rituais, que, pela desventura das lideranças carismáticas, que se viam envolvidas
com a justiça, obrigadas a responder a demorados inquéritos e processos bem como a se submeter à
exposição constante na imprensa, acabaram descortinando seus atos performáticos e suas escolhas no
campo do sagrado. O cristianismo africano permitiu também lançar luz sobre as escolhas dos
primeiros pesquisadores da questão do negro no Brasil, que optaram, muitas vezes, por silenciar ou,
principalmente, não compreender as práticas sagradas centro-africanas, por acreditarem perdidas para
o catolicismo romano. O trabalho conclui com a análise das primeiras décadas do século XX,
permitindo não somente compreender os desdobramentos do período anterior, como desconstruir
ideias preestabelecidas acerca das religiões afro-brasileiras, que se acreditava serem frutos de uma
tradição.
POSSIDONIO, Eduardo. Paths of the Sacred: Central African rites and the construction of Afro-
Brazilian religiosity in Rio de Janeiro in the 19th century. 2020. 358 f. Thesis (Doctorate in History)
- Postgraduate Program in History. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ,
2020.
This research aims to analyze the formation of Afro-Brazilian sacred practices, throughout the
nineteenth century, through the eyes of the contribution of the Central African peoples, an ethnic
group that impacted the transatlantic trafficking until its end. The work starts from the analysis of the
first Brazilian researchers and the place reserved for the understanding of Central African heritage in
their pioneering contributions. Then, starting in the first half of the 19th century, analyzing the public
manifestations of affliction-fruition cults, held in the main streets of the imperial capital, confused by
the biased look of travelers, as Sunday celebrations. The second half of the period was marked by the
transition of celebrations to the interior of houses and sobrados located in urban parishes of the
imperial court. Moment when religious leaders disputed the liturgical spaces of the city, not by
chance, priests and priestesses acted with ease a few meters from each other. With the end of
trafficking, the second half of the century marked the need for leadership renewal through complex
processes of ritual initiation, which when crossed with sources produced in Central African soil,
demonstrate an interesting unfolding of a complex process of Creolization initiated on the other side
of the Atlantic, which resulted in the birth of an African Christianity, which is the basis for
understanding the rituals, which due to the misfortune of the charismatic leaders who were involved
with justice, obliged to respond to lengthy inquiries and processes, as well as constant exposure in the
press, they ended up unveiling their performance acts and their choices in the field of the sacred.
African Christianity also allowed us to shed light on the choices of the first researchers on the issue of
blacks in Brazil, who often chose to silence or mainly do not understand the sacred Central African
practices, because they believed they were lost to Roman Catholicism. The work concludes with an
analysis of the first decades of the 20th century, allowing not only to analyze the developments of the
previous period, but also to deconstruct pre-established ideas about Afro-Brazilian religions, which
were believed to be the fruit of a tradition.
AN - Arquivo Nacional
BN - Biblioteca Nacional
Imagem 1 - Estalagem de Maria José Cordeiro, na Rua do Lavradio nº 42 (em destaque) .... 20
Imagem 2 - O Reino do Congo e seus vizinhos (Mapa) ......................................................... 41
Imagem 3 - Pai Quintino e seus seguidores ............................................................................ 61
Imagem 4 - Pai Quintino, chefe da macumba da rua Araujo Leitão, no Engenho Novo. ...... 65
Imagem 5 - “Yamanja”, apresentada no trabalho de Magalhães Corrêa para “explicar” o
candomblé no sertão carioca ................................................................................................... 70
Imagem 6 - “Oricha Yemanja, Bahia” .................................................................................... 71
Imagem 7 - “Throno ou bando esculpido do culto de Yêmanjá” ........................................... 72
Imagem 8 - Dança do Tambo ................................................................................................ 112
Imagem 9 - Cidade de São Paulo de Loanda (Luanda) ........................................................ 115
Imagem 10 - Adoração ao bode ............................................................................................ 118
Imagem 11 - Negertanz ......................................................................................................... 123
Imagem 12 - Slave Market at Rio de Janeiro - Augustus Earle ............................................ 131
Imagem 13 - Juca Rosa em trajes ritualísticos ...................................................................... 133
Imagem 14 - Slave shop at Rio a Minas Merchant Barganing ............................................ 134
Imagem 15 - Chifres (Os cornos) em uma loja do Rio ......................................................... 147
Imagem 16 - Rio de Janeiro: Serra dos Orgãos, Cabeça do Fraile ....................................... 148
Imagem 17 - Manipanso - marotte portée ............................................................................ 149
Imagem 18 - Negras novas levadas ao batismo .................................................................... 151
Imagem 19 - O negro feiticeiro ............................................................................................. 157
Imagem 20 - Dia de Reis em Cuba – Días de Reyes ............................................................ 159
Imagem 21 - “Negro Iniciado” – négre costume pour su baptisé ......................................... 164
Imagem 22 - Feiticeiro e seus assistentes ............................................................................. 177
Imagem 23 - Proximidades do Sagrado (Mapa) .................................................................... 189
Imagem 24 - Santo Antônio do nó-de-pinho ........................................................................ 206
Imagem 25 - Figura de Santo Antônio. Reino do Congo, possivelmente do século XVII –
XIX ....................................................................................................................................... 209
Imagem 26 - Imagens de Santo Antônio do Congo .............................................................. 209
Imagem 27 – Yowa: a marca Kongo do cosmos e da continuidade da vida humana ........... 214
Imagem 28 - Saberes da Kalunga – pensando o mundo contemporâneo a partir da
epistemologia bacongo .......................................................................................................... 216
Imagem 29 - Negro fandango scene, Campo St. Anna, Rio de Janeiro ................................ 218
Imagem 30 - Câmara Municipal da Vila de São João de Itaborahy (1920) .......................... 238
Imagem 31 - Nkita Nsumbu aberto ....................................................................................... 271
Imagem 32 - Inquice Nkita Nsumbu ..................................................................................... 272
Imagem 33 - Conteúdo do Nkita Nsumbu ............................................................................. 273
Imagem 34 - Desenhos em forma de cruz em meio às orações ............................................ 276
Imagem 35 - “Nos domínios da bruxaria” ........................................................................... 278
Imagem 36 - Participantes do candomblé do Souza ............................................................. 280
Imagem 37 - Objetos ritualísticos do candomblé do Souza .................................................. 281
Imagem 38 - Beco dos Ferreiros ........................................................................................... 297
Imagem 39 - Capela Imperial ............................................................................................... 299
Imagem 40 - Anúncio dos serviços do Dr. Corrêa Dutra ..................................................... 309
Imagem 41- Proximidades conflitantes ................................................................................ 310
Imagem 42 - Assinatura de Laurentino ................................................................................. 313
Imagem 43 - Anúncio médico ............................................................................................... 318
Imagem 44 - Leilão do espólio de Laurentino ...................................................................... 322
Imagem 45 - Objetos apreendidos na ação policial na casa de Arsênio Vieira Magalhães .. 332
Imagem 46 - O Poder supremo do “Caboclo Cubatão” ........................................................ 333
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 15
CAPÍTULO 1 - JOGANDO LUZ SOBRE O OBJETO: OS PRIMEIROS ESTUDOS AFRO-
BRASILEIROS E O LOCAL DOS CENTRO-AFRICANOS ............................................... 39
1.1 Reino do Congo e o cristianismo africano ........................................................................ 39
1.2 Os centro-africanos pelo olhar dos primeiros pesquisadores: a Escola Nina Rodrigues e o
I Congresso Afro-Brasileiro do Recife. ................................................................................... 45
Treze panelas de barro, uma toalha branca, dois castiçais com velas acesas, um copo
com água e outro com vinho, em outro copo, um ovo quebrado com mais um pouco d’água,
quiabos, pés de galinha, pimenta-da-costa, pólvora, uma porção de carne fresca, manipansos 1
e, no centro da mesa, Santo Antônio, acompanhado de São Cosme e São Damião. Esse foi o
cenário preparado para a cerimônia ritualística na Rua do Lavradio, número 42 (Imagem 1),
no dia 24 de agosto de 1899. O local era a estalagem para moças de “função”, antigo “Hotel
Alliança”, da proprietária Maria José Cordeiro, portuguesa, viúva, de 36 anos, que, passando
por momentos de desventura, não tardou em buscar o auxílio do sagrado afro-brasileiro, na
figura do pardo Leopoldo, da preta Justina e do afamado Rei Mandinga, como, em letras
garrafais, foi chamado pelo jornal O Paiz o preto Antônio Francisco. Com 52 anos de idade,
era dono de um espaço litúrgico na Rua dos Inválidos, 152, logradouro bem próximo da
estalagem da portuguesa que precisava de seus auxílios, praticamente no mesmo quarteirão.2
A história, na verdade, começara meses antes, quando a portuguesa Maria José
Cordeiro viu sua filha mais nova perder a saúde. A dona da “casa de alugar cômodos a
meretrizes” procurou então, no mês de junho de 1899, auxílio dos rituais afro-brasileiros, sob
o comando de uma liderança carismática, para curar sua filha com “banhos de ervas”. A
notícia, veiculada no sábado pelo jornal O Paiz, afirmou que a portuguesa procurou na
ocasião pelos serviços de Antônio Francisco, chamado de Rei Mandinga pela imprensa, 3 mas,
na verdade, segundo depoimento dela prestado no inquérito policial, a primeira ajuda partiu
do pardo Leopoldo, apresentado por uma sua conhecida também de nome Maria, afirmando
que o pardo tinha poderes curativos com o manejo certo das plantas. O curandeiro cobrou
pelo ritual a quantia inicial de cinquenta mil réis e, acreditando na eficácia de seu ato
performativo, combinou que somente receberia a outra parte do combinado, cento e cinquenta
mil réis, após a melhora completa da filha de Maria José Cordeiro. A princípio, a menina
1
Manipansos eram pequenas estatuetas de madeira, de variados tamanhos e formas, sempre presentes nas
cerimônias afro-brasileiras do Oitocentos, tendo sua origem entre os povos centro-africanos, amplamente
traficados e desembarcados no Sudeste brasileiro até 1850. Outros exemplos de estatuetas existiam no Rio de
Janeiro, oriundas de outras regiões africanas, contudo popularizou-se na imprensa do período chamar qualquer
semelhante objeto pelo nome centro-africano. Dessa forma, seu uso e conhecimento foram propagados pela
corte, como demonstrei em: POSSIDONIO, Eduardo. Entre ngangas e manipansos – a religiosidade centro-
africana nas freguesias urbanas do Rio de Janeiro de fins do Oitocentos (1870-1900). Salvador: Sagga, 2018.
2
Relato baseado na matéria do jornal O Paiz, de 26 ago. 1899, seguida do inquérito policial aberto contra os
envolvidos e posterior processo. Notícia veiculada em um sábado, em que o jornal propagandeava em sua capa:
“O Paiz é a folha de maior tiragem e de maior circulação da América do Sul”. Processo de Antônio Francisco.
Art. 157. CT691.C1959/F11. Arquivo Nacional.
3
O Paiz, 26 ago. 1899.
15
apresentou melhoras, para a esperança de todos os envolvidos, contudo, dias depois, teve seu
estado agravado, vindo a óbito.4
O que levava os moradores da capital republicana, e, nesse caso, até há pouco tempo
do Império, a procurar lideranças religiosas para alcançarem a cura de seus males físicos?
Sabe-se que o atestado de óbito da menina Rita foi assinado pelo Dr. Benjamin Baptista,
conhecido “cirurgião do Hospital da Misericórdia”, que, até o ano de 1895, mantinha seu
consultório particular nas proximidades do hospital, na freguesia de São José, 5 situado na rua
de mesmo nome, número 100, próximo à igreja do santo que nomeava a região, ou seja, no
coração administrativo da corte. 6 Contudo, no ano em que foi procurado por Maria José da
Conceição, era seu vizinho de trabalho, atendendo na Rua de São Pedro, número 226, 7 bem
próximo à casa de mulheres de “função”, comandada pela portuguesa. O Dr. Benjamin
Baptista era especialista em tratamento de sífilis, moléstias venéreas e as que atingiam as vias
urinárias, além de fazer “operações em geral”.8 O Morro de Santo Antônio separava a casa da
portuguesa do primeiro consultório do médico-cirurgião, mas com rápido acesso pela Rua da
Carioca. Em 1899, quando precisou atestar o óbito de sua filha, estava ainda mais próxima, a
poucos metros pela Rua do Regente, esquina com o consultório. 9 Todavia, para o tratamento,
ela preferiu o caminho do sagrado. Essa não seria a primeira vez em que os caminhos de
médicos e curandeiros se aproximavam, na esfera geográfica e no espaço de disputa pelo
paciente/fiel. Cabe questionar: como se davam esses embates? As armas eram as mesmas? A
maioria da população tenderia a seguir as escolhas da portuguesa ao longo do Oitocentos,
preferindo curandeiros à medicina oficial?
O que se sabe é que Maria José Cordeiro, mesmo não alcançando a ventura na busca
pela cura física de sua filha, voltou a procurar os serviços de Leopoldo, agora para melhorar a
sua sorte nos negócios da estalagem, tendo em vista que algumas das mulheres que abrigava
na chamada “função”, nome comum para a prostituição no período, não estavam alcançando
sucesso em seus negócios. Dessa vez, a liderança religiosa prometia “armar uns santos” para
que a portuguesa deixasse de ser infeliz. Teria o escrivão compreendido “armar” no lugar de
4
Processo de Antônio Francisco, p. 5-5v. Art. 157. CT691. C1959/F11. Arquivo Nacional.
5
O Rio de Janeiro do Oitocentos era dividido administrativamente pelas paróquias da cidade.
6
Jornal do Commercio, 11 ago. 1895.
7
Jornal do Commercio, 6 jan. 1898.
8
Ver notas 6 e 7.
9
Tal noção de proximidade entre as ruas, casas e locais específicos foi possível graças à análise de plantas da
cidade do Rio de Janeiro para o século XIX, sendo a principal delas, que norteou o referenciamento geográfico
deste trabalho: GOTTO, Edward. Plan of the City of Rio de Janeiro Brazil. London [Londres, Inglaterra]:
Robert J. Cook, 1871. 1 atlas (29 plantas), col., litografia, 65,5 x 98. Disponível em: Biblioteca Nacional Digital
(doravante bndigital, conforme a ferramenta de busca se apresenta):
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart326448/cart326448.pdf Acesso em; 7 jul. 2019.
16
“amarrar”? Novamente, as imagens católicas foram colocadas lado a lado com os manipansos
e, sobre a mesa, os mesmos elementos já descritos, como quiabos, arruda, pés de galinha,
pimentas, pipoca e velas. Toda cerimônia realizava-se em um quarto específico da estalagem,
separado previamente para os rituais. Próximo à mesa, no chão, uma toalha branca forrada
recebia pequenos vasilhames de barro, todos “riscados a giz com diversas cruzes”. Outros
vasilhames com água, arruda e ovos encontravam-se depositados nos cantos dos quartos,
cuidadosamente posicionados por Leopoldo. Somente após essa celebração, foi que Maria
José Cordeiro conheceu Antônio Francisco, que tinha um espaço litúrgico a poucos minutos
da casa da portuguesa, na Rua dos Inválidos, e que deu continuidade ao trabalho iniciado por
Leopoldo. Como não trocou nada dos objetos utilizados nas cerimônias, é possível intuir que
tenha recebido a indicação do primeiro sacerdote ou até mesmo que trabalhassem em
conjunto. 10 Antônio Francisco, por sua vez, cobrou a quantia de cem mil reis para continuar o
mesmo trabalho, como alardeou O Paiz. 11 Os valores cobrados pelos dois líderes religiosos
também se aproximavam, cabendo um questionamento: há possibilidade de se pensar em um
repertório para as celebrações afro-brasileiras ao longo do Oitocentos, dada a semelhança das
cerimônias e seus valores? E quanto aos elementos escolhidos por ambas as lideranças, qual a
base litúrgica e de onde partiam as cerimônias que envolviam, por exemplo, cruzes de giz
riscadas em pontos estratégicos do cenário sagrado? Qual a função das imagens católicas lado
a lado com os manipansos e em que circunstâncias e espaços de correlação o catolicismo e as
religiões tradicionais africanas teriam se encontrado e se fundido?
A cerimônia marcada para o dia 24 de agosto de 1899 por Antônio Francisco não
chegou a ser realizada na estalagem, uma vez que o titular da sétima delegacia de polícia, o
Dr. João C. do Rego Barros, que também era advogado com escritório constituído na capital
federal,12 recebera denúncia de que existia um “antro de feitiçaria” e tratou de averiguar. O
líder religioso não foi encontrado no momento da batida policial, mas, dentro do quarto
reservado para cerimônias, foi encontrada trancada a brasileira, solteira, Justina Maria da
Conceição, de 40 anos, que morava na Travessa de São Diogo. A chave do quarto estava em
poder da dona do antigo “Hotel Alliança”. Justina informou que era lavadeira de ofício e que
tinha ido buscar as trouxas para lavar. Quando questionada pelo delegado acerca do fato de
estar trancada em um quarto e não haver roupas no cômodo, “apenas trapos”, disse que não
10
Processo de Antônio Francisco, p. 6-7. Art. 157. CT691.C1959/F11. Arquivo Nacional.
11
O Paiz, 26 ago. 1899.
12
Almanaque Laemmert - Almanak administrativo, mercantil e industrial do Rio de Janeiro para 1903, p. 439.
17
saberia informar. 13 Estaria a brasileira Justina em algum ritual que exigisse sua reclusão e/ou
recolhimento? Seriam comuns tais rituais de iniciação entre as casas afro-cariocas14 do
Oitocentos?
O que ficou claro em todos os depoimentos, tanto no inquérito policial quanto no
processo, foi que o intuito de Maria José Cordeiro era o de alcançar a boa sorte, como deixou
claro a também moradora da estalagem Luiza Levy, de 24 anos. Antônio Francisco tinha
como objetivo “retirar o caiporismo” da casa da portuguesa, ou seja, a má sorte que se abatera
sobre sua vida e a de suas inquilinas.15 O curioso é que o profissional do jornal O Paiz usou
expressões parecidas com as do inquérito policial: “tudo [cenário e objetos sacros] para
preparar sessão que poria cobro á caipora de Maria Cordeiro”. 16 Em outro ponto, ressaltou
que, além da busca da ventura, “os trabalhos não eram para fazer o mal”, como afirmou, por
exemplo, Euphemia de Jesus. 17 Interessante pensar e questionar a acumulação de poderes e
funções entre os que se dedicavam a comandar a cerimônia afro-carioca. Cabe lembrar que o
pardo Leopoldo, antes de cuidar do restabelecimento do equilíbrio e da sorte, comandou um
ritual para devolver a saúde à filha da portuguesa. Seria comum essa acumulação de funções?
O que esperavam os participantes de uma casa afro-carioca ou brasileira do Oitocentos, além
da saúde e da ventura?
Suspeitei que o uso, pelo escrivão, do termo “armar” uns santos pudesse ser, na
verdade, “amarrar” pelo fato de Rita de Cassia Carmem, brasileira de 25 anos, que também
labutava na “função” e morava na estalagem, ter afirmado que sabia da realização de
“trabalhos” e que o sacerdote fora ao espaço “fazer a armação” (creio ser “amarração”). Rita
era desafeta de Maria José Cordeiro, tanto que viu em sua porta azeite e um pó em forma de
13
Processo de Antônio Francisco, p. 15-15v. Art. 157. CT691. C1959/F11. Arquivo Nacional.
14
Aproprio-me do termo cunhado por Mary C. Karasch em A vida dos escravos no Rio de Janeiro para analisar
a construção de uma cultura africana em terras cariocas, marcada principalmente pelo que a autora destacou ser
a “africanidade central”, ou seja, a bagagem cultural dos povos predominantes no tráfico transatlântico para o
Rio de Janeiro entre os anos de 1808 e 1850, que acabaram por construir a vida e a cultura escrava na cidade.
Ver: KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia das Letras, 2000,
p. 19-66. Acredito que, associado à noção de transculturação e repertório, o termo afro-carioca permita
compreender as relações e evoluções estabelecidas para além da primeira metade do Oitocentos, período
analisado por Karasch. Destaco que essa categoria abre possibilidades de jogar por terra mitos e crenças acerca
da presença negra no que tange a seus mais variados aspectos, que são, sem dúvida, muito caros para os
brasileiros, como o samba, a capoeira, entre tantas outras manifestações, mas principalmente quanto ao objeto
que conduz essa pesquisa, as religiões afro-brasileiras. Pensar em afro-carioca, afro-baiano, afro-pernambucano
permite compreender que não existe na história do Brasil assertivas como “o samba veio da Bahia” ou “o
candomblé é baiano”. Onde houve escravidão africana, existiu o tambor, o canto a dança, o culto à
ancestralidade, portanto cada local e cada região brasileira contribuíram com suas particularidades. Dessa forma,
o termo afro-carioca foi aqui empregado com a intenção de jogar luz sobre a peculiaridade do maior porto de
desembarque de escravizados ao longo da primeira metade do Oitocentos até sua definitiva proibição.
15
Processo de Antônio Francisco, p. 8-8v. Art. 157. CT691. C1959/F11. Arquivo Nacional.
16
O Paiz, 26 ago.1899, grifo do original.
17
Processo de Antônio Francisco, p. 9-9v. Art. 157. CT691. C1959/F11. Arquivo Nacional.
18
cruz, e que observava do seu quarto que sessões de “defumação” passaram a ser feitas
constantemente nos espaços comuns da casa. O atraso de vida, segundo Rita, passou a ser
compreendido como feitiçaria, obra maléfica feita por alguém, com o intuito claro de
prejudicar a portuguesa, e, como desafeta, carregava a culpa pelo caiporismo do espaço. 18
Pairava, portanto, no imaginário dos participantes, que o mal tinha uma origem e intenção, e
que, da mesma forma que atuavam para fazer o bem, os mesmos agentes se incumbiam de
promover a má sorte para os desafetos. Cabe pensar: como isso era compreendido pelos
participantes? E qual gramática fornecia tal entendimento, já que muito diferia do universo
judaico-cristão bem estabelecido entre bem e mal?
18
Processo de Antônio Francisco, p. 10-11. Art. 157. CT691.C1959/F11. Arquivo Nacional.
19
GOTTO, Edward. Plan of the City of Rio de Janeiro Brazil. London [Londres, Inglaterra]: Robert J. Cook,
1871. 1 atlas (29 plantas), col., litografia, 65,5 x 98. Disponível em: http://objdigital.
bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart326448/cart326448.pdf. Acesso em: 7 jul. 2019.
19
Imagem 1 - Estalagem de Maria Jose Cordeiro, na Rua do Lavradio, nº 42 (em destaque)
Rita de Cássia não seria a única a espreitar os rituais praticados dentro da casa de
“função” da Rua do Lavradio. Emília Rosa de Souza, brasileira de 24 anos, além de
corroborar os demais depoimentos acerca dos objetivos das cerimônias, relatou ter
encontrado “umas pipocas” em seu quarto, não sabendo para que elas serviam.19 Já Ana
Vieira, conterrânea de Maria José Cordeiro, com 30 anos na ocasião, afirmou que “via por
várias vezes pelo buraco de sua fechadura” os líderes religiosos, Leopoldo e Antônio
Francisco, “matando galinhas a fim de fazer despachos para tirar o atraso da vida”. Também
19
GOTTO, Eduard. Plan of the City of Rio de Janeiro Brazil. Cartográfico: Brazil, [1866], 1871. Disponível em
bndigital: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart326448/cart326448.pdf Acesso em
07/07/2019.
20
observou, por mais de uma ocasião, a preta Justina dar “banhos de ervas” em Maria José.
Fausta Maria da Conceição, brasileira de 20 anos de idade, mesmo sabendo das frequentes
cerimônias, disse que não conteve o susto ao ser surpreendida com pipocas caindo sobre sua
cama, jogadas pela fresta da janela de seu quarto. 20
É bem provável que os ritos não se desenrolassem apenas no quarto com as imagens
católicas, manipansos, vasilhames e demais artefatos litúrgicos, em que estava trancada e/ou
recolhida Justina, a que “lavava roupas”, mas também sabia ministrar banhos de ervas. 21
Acredito que, para serem observados pelo buraco da fechadura ou pelas frestas das janelas,
alguns atos performáticos desenrolavam-se no quintal da estalagem, que, como é possível
observar na Imagem 1, além de ser uma das maiores construções da Rua do Lavradio, tinha
um grande pátio interno. Caberia pensar em cerimônias públicas e privadas naquele contexto
em que, por necessidade litúrgica, algumas deveriam ser realizadas em espaços fechados e
devidamente preparados, sendo outras realizadas a céu aberto ou na presença de pessoas não
envolvidas com a celebração? A publicidade de tais eventos facilitaria a atuação dos agentes
oficiais, desejosos de um projeto civilizatório de nação?
A defesa de Maria José Cordeiro, apresentada em setembro de 1889, quando já se
desenrolava o processo, com a coordenação do afamado juiz Dr. Francisco Viveiros de
Castro, jogou luz nos reais motivos que levaram os envolvidos à sede da Sétima Delegacia de
Polícia e, posteriormente, a responder criminalmente pelo artigo 157 do Código Penal de
1890. Rita de Cassia Carmem, moradora da estalagem, porém desafeta de Maria José
Cordeiro, era amiga de Alice, amásia do escrivão da delegacia em questão, o Major
Conceição. Dessa maneira, o advogado não poupou críticas a toda a situação, afirmando que
todo processo seria “oriundo de uma polícia cujos destinos” estariam “entregues a escrivães e
inspectores seccionaes”. E, de forma astuciosa, deixou claro que sua cliente era católica
devota, por isso mantinha um oratório; que os elementos presentes no flagrante eram
comestíveis que seriam posteriormente preparados com a simples finalidade de alimentação,
e que, se o delegado encontrara penas pelos espaços do quarto, foi porque sua cliente preferia
comprar galinhas vivas, para ter um alimento fresco e de qualidade.22 Seria essa uma criação
de hábeis advogados visando libertar seus clientes das malhas da justiça e que,
posteriormente, acabaria no imaginário popular como “estratégia” dos participantes para
“enganar” seus senhores?
20
Processo de Antônio Francisco, p. 11-12. Art. 157. CT691. C1959/F11. Arquivo Nacional.
21
Estaria escondida no momento da batida policial, por ser uma liderança religiosa acostumada com os
desmandos oficiais?
22
Processo de Antônio Francisco, p. 49-49v. Art. 157. CT691. C1959/F11. Arquivo Nacional.
21
No momento, não me aterei à estratégia de defesa, já que ficará evidenciado à frente
que ela seria desnecessária, mas sim às revelações de contendas e de relações entre os
participantes e os agentes da lei. Isso explica o fato de o jornal O Paiz ter dedicado um
grande espaço para apresentar não uma denúncia a fim de cessar celebrações futuras, mas
apenas para expor ainda mais os envolvidos. Não por acaso que o título foi escrito em letras
garrafais – O REI MANDINGA 23 – e que, no dia seguinte aos depoimentos prestados na
delegacia, o jornal tenha apresentado, com riqueza de detalhes, as informações que deveriam
ficar contidas entre os envolvidos no desenrolar dos atos oficiais na polícia. Cabe, portanto,
questionar: quais as relações estabelecidas entre os agentes da lei e os que atuavam na
imprensa carioca ao longo do Oitocentos, a ponto de um profissional saber o que havia ficado
contido nos autos do inquérito e na mente dos envolvidos?
O processo acima transcorreu em um momento crucial para as casas afro-cariocas e
consequentemente brasileiras, tendo em vista a possibilidade de tipificação da prática de
curandeirismo e espiritismo como crime pelo novo Código Penal de 1890, além de servir para
lançar luz como um verdadeiro farol sobre dois períodos: o século XIX que findava e que, foi
de primordial importância para a organização e composição das religiões de matrizes
africanas no Brasil, bem como para a compreensão do século que aflorava, já que as religiões
ganhariam novas composições, que passariam, inclusive, a ser compreendidas como
tradições, sem que, para tal, muitas das práticas do Oitocentos fossem analisadas. Demonstrar
a importância desse período constitui um dos objetivos deste trabalho.
A verdade é que a sorte dos envolvidos no processo foi restabelecida, ao menos ao
final de todo o ocorrido, julgados pelo jurista Viveiros de Castro, integrante da Nova Escola
do Direto. Autor de Questão do Direito Penal, em que publicou e comentou diversas
sentenças, em seu segundo capítulo intitulado A liberdade de consciencia perante o Codigo
Penal: Pratica do Espiritismo, colocou na íntegra a sentença proferida no caso de Antônio
Francisco e os demais envolvidos nas celebrações da Rua do Lavradio, número 42. 24 A
defesa construída pelo advogado de Maria José Cordeiro se mostrou desnecessária na
afirmação de que a portuguesa seria católica, já que o jurista achou natural que a dona do
estabelecimento, que vivia dos aluguéis dos cômodos às moças em questão, quando estas não
pagassem em dia, colocasse uma cruz de azeite em suas portas para que fossem embora. Já as
que pagavam em dia recebiam pipocas em seus aposentos para manter a boa ventura em suas
23
O Paiz, 26 ago. 1899.
24
CASTRO, Augusto Olympio Viveiros. Questões do Direito Penal. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos,
1900, p. 103-113.
22
vidas e para que continuassem em dia com seus compromissos. E questionava: “Constituirá
este facto um delicto? Ha ahi um ataque contra a saúde pública que a previdência do
legislador deve reprimir?”.25 Ele destacou:
Não cometiam, portanto, crime algum, segundo o juiz, aqueles que acreditassem em
práticas compreendidas como “fetichistas”, tendo em vista a liberdade religiosa concedida
pela Constituição Republicana de 1891, que anulava, portanto, segundo seu entendimento,
o artigo 157 do Código Penal. Baseou-se também em um importante trabalho de seu tempo,
dedicado a compreender a contribuição dos africanos para a formação da sociedade
brasileira, ao lado dos ameríndios e europeus. Referia-se aos artigos publicados na Revista
Brazileira, por Raymundo Nina Rodrigues, para ressaltar a existência de uma “superstição
fetichista” no país, citando, para tal, o caso de um importante político imperial, que
somente aceitou assumir a presidência de uma província quando se consultou com uma
preta mina, Mãe de Terreiro de sua confiança. Destacou também, pelo olhar do médico
maranhense, as fortes influências que o catolicismo sofria no Brasil, resultante da
“feitiçaria e idolatria do negro”. Ressaltou, inclusive, que, enquanto na Bahia o “notável”
professor de medicina legal já gozava de reputação europeia, justamente dedicando-se aos
estudos do “fetichismo africano”, a capital federal, ao contrário, perseguia quem participasse
de tais cultos. Chegou a questionar se haveria diferença entre acreditar em uma cruz de azeite
ou de giz, para a devoção às relíquias dos santos, aos bentinhos sagrados ou mesmo à água
benta.27
Dessa forma, o juiz julgou improcedente a denúncia apresentada contra Antônio
Francisco, Justina Maria da Conceição, Luiza Levy, Maria José Cordeiro, Ana Vieira de
Carvalho e até Leopoldo de tal, que nunca apareceu para ser ouvido… Cabe, a essa altura,
questionar: como os estudos iniciados por Nina Rodrigues, presentes em um processo
criminal e usados para a absolvição dos envolvidos, influenciariam a compreensão dos cultos
afro-brasileiros, no século que se iniciaria logo após a sentença do Dr. Viveiros de Castro?
Essas e outras questões apresentadas anteriormente nortearam a redação do presente trabalho.
25
Processo de Antônio Francisco, p. 52v.-53. Art. 157. CT691. C1959/F11. Arquivo Nacional.
26
Processo de Antônio Francisco, p. 525v. Art. 157. CT691. C1959/F11. Arquivo Nacional.
27
Processo de Antônio Francisco, p. 58v.-59v. Art. 157. CT691. C1959/F11. Arquivo Nacional.
23
Como objeto central desta pesquisa, tem-se a análise das contribuições dos povos
centro-africanos, no campo do sagrado, em um dos momentos cruciais para a formação das
religiões atualmente compreendidas como de matriz africana. Refiro-me ao século XIX,
momento de maior aporte de africanos desembarcados nos portos americanos, também do fim
do tráfico dos viventes, extinguindo uma constante renovação de almas, e, portanto, de
conhecimentos trocados e ressignificados. Cabe, portanto, a construção e o repasse dos
conhecimentos com a bagagem que existia em solo brasileiro após 1850. Para tal, analisei as
contribuições sagradas centro-africanas, pelo olhar ritualístico de suas manifestações.
Escolhi, para tanto, um recorte que contemplou todo o século XIX e as duas primeiras
décadas do século XX. Dessa forma, trabalhei com um grande escopo de fontes.
Dessas fontes, as principais, que me colocaram em contato com os rituais centro-
africanos em solo brasileiro e seus atos performáticos, não foram, como a maioria das que se
apresentam diante dos historiadores, preparadas para esse fim, tendo, portanto, que ser, na
maioria das vezes, reinterpretadas, respeitando sua historicização. Destaco como exemplo os
relatos de viajantes que sempre fizeram parte da paisagem colonial brasileira, já que se
tratava do Novo Mundo, a ser explorado e divulgado. Entretanto a chegada da corte
portuguesa e a consequente abertura dos portos permitiu também que centenas desses
viajantes registrassem em seus diários de bordo as impressões e descobertas do Império nos
trópicos. Certamente, a quase totalidade desses trabalhos, muitos ainda por serem
(re)descobertos, não deixava escapar duas coisas, as belezas da cidade do Rio de Janeiro, já
promovendo um verdadeiro espetáculo na entrada da Baia de Guanabara, e o sobressalto
deles ao desembarcarem na urbe e se depararem com um dos mais africanizados espaços da
América. Dessa maneira, modos, línguas, feições, comportamentos, trabalho, conhecimentos,
entre tantas outras peculiaridades apresentadas por africanos e crioulos, eram ressaltados nas
escritas, nas aquarelas desses viajantes, entre outras formas de representação que preferissem.
Cada qual com sua visão de mundo, sendo uma considerável parcela abolicionista, esses
observadores carregavam a escrita com o que acreditavam ser uma denúncia. Foram eles que
captaram riquíssimas manifestações religiosas, muitas a céu aberto, diante de grande
multidão, mesmo que não tivessem a noção de que acompanhavam um ritual sagrado e de
suma importância para os envolvidos.
Outro importante escopo de fontes encontra-se nos jornais, revistas e periódicos
produzidos ao longo do Oitocentos. Evidentemente, também lancei mão dessas possibilidades
para o início do século XX, principalmente me valendo do advento da modernidade, que
levou para os jornais brasileiros a fotografia. A “feitiçaria”, as “casas de dar fortuna”, as
24
“mandingas” e “macumbas”, tão expostas nas páginas da imprensa ao longo do século XIX,
que, com riqueza de detalhes, buscava expor tais práticas, acreditando que com isso fosse
possível reforçar a noção de construção de nação civilizada que se formava, ganharam novos
contornos e destaques com a já dita tecnologia do século passado. Como certa vez me
afirmou a historiadora Mary del Priore, “o século XIX era o momento em que todos queriam
falar”. De fato, na tentativa de extirparem a ação de sacerdotes e sacerdotisas afro-brasileiras,
acabaram, mesmo sem saber, produzindo um verdadeiro material etnográfico das casas afro-
cariocas, tomando aqui de empréstimo a analogia que Carlo Ginzburg propôs entre os
inquisidores, os antropólogos e os historiadores, em que os primeiros, na ânsia de conseguir a
confissão, buscavam, ao longo do desequilibrado processo de interrogatório da vítima,
encontrar sua culpa, arrancando ao máximo as características de suas celebrações
compreendidas como heréticas e que, segundo o citado autor, não é “tão diferente do que nós
procuramos”.28
Os mais variados rituais foram expostos na imprensa carioca, desde processos de
iniciação ritualística, até cerimônias festivas ou cotidianas celebrações, revelando, dessa
forma, objetos, costumes, participantes, locais de cerimônias, entre outras importantes
informações, que, cruzadas com outras fontes, como as ligadas à justiça, possibilitaram
ampliar o campo de visão, como no caso já exposto do inquérito policial e posterior processo
que envolveu os participantes dos rituais da Rua do Lavradio, número 42. Por seu turno, os
processos do Oitocentos e do início do século XX apresentam uma característica
extremamente importante para este trabalho. Mesmo diante de uma situação inóspita, que era
a de se encontrar em uma sala de delegacia ou da justiça, depondo diante de autoridades que
visavam a todo instante, na mesma proporção já exposta (inquisidor - antropólogo -
historiador), construir a culpa dos envolvidos, destaco que sim, era possível ouvir as vozes
dos adeptos das tradições que atravessaram o Atlântico e se ressignificaram em solo
americano e brasileiro. Afirmo isso pelo fato de a maioria dos envolvidos não compreender
seus cultos como algo criminoso e, portanto, reprochável. O que eles tentavam, certamente,
era se desvencilhar da ideia de feitiçaria, já que esta ganhava significados contrários ao que
buscavam, mesmo em solo centro-africano, conforme demonstrarei ao longo deste trabalho.
Dessa maneira, não viam problemas em relatar com riqueza de detalhes os caminhos que
haviam escolhido para realizarem seus atos performáticos, como evidenciei na abertura desta
28
GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações. In: GINZBURG,
Carlo, CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1989, p. 206.
25
introdução, com os ritos presididos por Leopoldo, Antônio e Justina. Cabe relembrar que nem
os dois últimos negaram perante as autoridades o que faziam, tentando apenas se livrar da
ideia de maldade, o que os aproximaria da feitiçaria.
Ainda quanto aos documentos produzidos pela justiça, lancei mão dos livros de
matrícula da Casa de Detenção da Corte, posteriormente Casa de Detenção do Distrito
Federal, edificação anexada em um dos raios já construídos da Casa de Correção da Corte,
sendo a primeira para abrigar presos à espera de seus julgamentos ou rápidas prisões, como
foi a maioria aqui analisada. Com profundas modificações em 1950, a antiga Casa de
Correção deu lugar ao Complexo Penitenciário Frei Caneca, posto abaixo em 2006. 29 Entre
os muitos funcionários da detenção nos idos do Império, o responsável pelo fichamento dos
que adentravam os muros do cárcere deixou um importante legado para historiadores
interessados nos mais variados assuntos do período. Ali, nacionalidade, naturalidade,
procedência dos africanos presos, filiação, paternidade, endereços, traços físicos, vestimenta,
motivações para a prisão, entre outros dados, revelaram-se uma importante fonte para ser
cruzada, por exemplo, com as publicações na imprensa. Por exemplo, o Jornal do
Commercio noticiou, na década de 1880, a prisão, na freguesia de São José, de Francisco
Firmo, acusando-o de manter casa de dar fortuna. Ao cruzar essa notícia com a ficha de
matrícula registrada em sua passagem pela detenção, revelou-se um velho africano benguela,
o que, evidentemente, proporcionou novos contornos para o ritual realizado em seu espaço
litúrgico, como se verá no decorrer deste trabalho. No campo das letras, destaco também o
Almanaque Laemmert, principalmente na composição de trajetórias, cargos e funções que de
alguma forma se relacionassem à vida das pessoas anônimas ou não, a seu tempo aqui
estudadas.
Interrompo aqui a descrição das fontes, para cumprir um compromisso assumido com
a historiadora Martha Abreu, ainda na minha defesa do mestrado, que era a de dar
visibilidade ao manuseio das fontes hoje disponíveis na Rede Mundial de Computadores
(World Wide Web). Como parte deste trabalho foi financiado pela Fundação Biblioteca
Nacional, começo destacando seu riquíssimo acervo, já disponibilizado na Biblioteca
Nacional Digital (BN Digital), 30 na qual, ressalto, pode-se encontrar a maioria dos relatos dos
viajantes disponíveis para pesquisa e download. No que tange à imprensa, seria hoje
impensável estruturar os atuais trabalhos historiográficos que lançam mão de jornais, revistas
29
ARAUJO, Carlos Eduardo Moreira de. Da casa de correção da corte ao Complexo Penitenciário da Frei
Caneca: um breve histórico do sistema prisional no Rio de Janeiro, 1834-2006. Revista do Arquivo Geral da
Cidade do Rio de Janeiro, n. 1, 2007.
30
http://bndigital.bn.gov.br/
26
e periódicos, sem pensar no importantíssimo acervo disponibilizado pela Hemeroteca
Digital,31 com suas ferramentas de busca, cabendo ao pesquisador se apropriar de seus
mecanismos tanto de acertos quanto de falhas para ter diante de si uma rica possibilidade de
acompanhar trajetórias, principalmente no século XIX. As fichas de matrícula da Casa de
Detenção tanto da corte quanto da capital federal encontram-se em poder do Arquivo Público
do Estado do Rio de Janeiro (APERJ), situado no bairro de Botafogo. Há pelo menos quatro
anos tal acervo já se encontra digitalizado e disponível para consulta online.32
Outras importantes plataformas que guardam um vasto acervo do Oitocentos
digitalizado e disponível para consulta são as brasilianas, das instituições federais, entre as
quais destaco a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, da Universidade de São Paulo
(USP), 33 que disponibiliza viajantes, almanaques, dicionários, manuscritos, literatura, entre
outros gêneros. A Bibliothèque Nationale de France possui a Gallica,34 com obras raras para
se pensar o Brasil no contexto colonial e imperial. Por fim, destaco a Internet Archive, 35 com
um gigantesco acervo relacionado à África Centro-Ocidental, região aqui estudada, mas
também com outros relevantes materiais.
Encontrei ainda a possibilidade de me defrontar com rituais afro-brasileiros e poder
buscar suas referências centro-africanas na profícua literatura do século XIX, em que
raramente o elemento africano e seus descendentes poderiam ser ocultados. Confrontados
com fontes anteriores, ajudaram a compor o complexo quebra-cabeças da análise dos rituais
no século XIX. Em se tratando de rituais, práticas e manifestações afro-brasileiras, creio que
nada melhor que analisar os primeiros estudiosos brasileiros que se debruçaram nessa
empreitada, mas não somente o resultado de seus trabalhos, e sim como fontes, tendo em
vista que o que produziram foi resultado que tiveram da interação com espaços litúrgicos
afro-brasileiros, com velhos africanos, seus filhos e netos, mas que beberam em suas fontes.
Refiro-me aos trabalhos de Raymundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Édison Carneiro e
seus contemporâneos companheiros de trabalho dos primeiros Congressos Afro-Brasileiros
do Recife e da Bahia, nas primeiras décadas do século XX. 36
31
http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
32
http://aperj.godocs.com.br/
33
https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/1
34
https://gallica.bnf.fr/accueil/fr/content/accueil-fr?mode=desktop
35
https://archive.org/
36
João José Reis foi quem primeiro apresentou tal possibilidade, mesmo que com ressalvas, já que seu objeto de
análise era o calundu do século XVIII. Neste trabalho, em que o século XIX é o recorte principal e a produção
de tais autores acabou de certa forma por silenciar a compreensão centro-africana na esfera do sagrado, mas que,
aqui, caberá adequadamente. Ver: REIS, João José. Magia jeje na Bahia: a invasão do calundu do Pasto da
Cachoeira, 1785. Rev. Bras. de Hist. São Paulo, v. 8, n 16, p. 57-81, mar./ago. 1988, p. 58-59.
27
Visando compreender os espaços da cidade e as dinâmicas que envolviam os
participantes das celebrações afro-cariocas, fiz a leitura da urbe pelo olhar da Plan of the City
of Rio de Janeiro Brazil, de Eduard Gotto, 37 publicado em 1866. Trata-se de uma obra rica
em detalhes no mapeamento da ocupação urbana da corte, além de apresentar cada
logradouro, suas construções com a devida numeração para o período, possibilitando muito
mais do que a noção de localização, por exemplo, a compreensão do espaço destinado ao
sagrado na estalagem de Maria José Cordeiro, mesmo que em 1899. O trabalho de Gotto é
uma referência para leitura da urbe no Oitocentos. Fiz uso também do Guia Plano da Cidade
do Rio de Janeiro, de Robert Leeder, com finalidade parecida com a de Gotto, sendo este
publicado em 1858.38
Para compreender tais manifestações e buscar a gramática cultural centro-africana, ao
longo de toda a redação deste trabalho, confrontei os rituais afro-cariocas com fontes que me
remeteram ao cenário dos povos bacongos, ambundos e ovimbundos dos vários reinos da
África Centro-Ocidental. A região possui um vasto escopo de fontes, já que entrou em
contato com Portugal no final do século XV, no contexto da expansão marítima, quando dois
reinos, inicialmente, o do Congo e do Ndongo, entraram em diferentes, porém complexos,
processos de conversão ao cristianismo europeu. Assim como no Brasil, a região foi
amplamente registrada pelas lentes dos que se colocavam no comércio transatlântico, contudo
o denso material está no campo eclesiástico, tendo em vista a grande empreitada iniciada
após os primeiros contatos entre portugueses e congoleses, e continuando pelos séculos
seguintes. Diários de bordo, cartilhas para novos e jovens missionários, dicionários e
traduções do quicongo, quimbundo e umbundo para as línguas europeias, entre outros
importantes materiais, revelaram costumes, organizações sociais, um complexo cosmograma
que muito bem comportou as contribuições do catolicismo missionário, criando uma nova
religião africana, que desembocaria na América.
Dessa maneira, entre as fontes centro-africanas, destaco a Monumenta Missionária
Africana, que corresponde a uma rica compilação de documentos oficiais e eclesiásticos que
remontam aos primeiros contatos e trocas diplomáticas entre o soberano do Congo e o de
Portugal, estendendo-se até o final do século XVII. Como já exposto, dediquei grande
37
GOTTO, Edward. Plan of the City of Rio de Janeiro Brazil. London [Londres, Inglaterra]: Robert J. Cook,
1871. 1 atlas (29 plantas), col., litografia, 65,5 x 98. Além do original disponível na Biblioteca Nacional,
atualmente é possível consultar o trabalho de Gotto e navegar por ele através da plataforma do CECULT-
UNICAMP: https://www.ifch. unicamp.br/cecult/ mapas/mapasgotto /intro gotto.html. Acesso em: 21 abr. 2020.
38
LEEDER, Roberto. Guia Plano da Cidade do Rio de Janeiro 1858. Biblioteca Nacional. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart309960/cart309960.jpg. Acesso em: 21 jan. 2020.
28
atenção aos trabalhos dos missionários católicos e aos dos protestantes, que, na segunda
metade do século XIX, mesmo tentando propagar suas crenças, acabaram registrando, com
precioso “olhar etnográfico”, a realidade religiosa de cada povo. Quando comparados e
analisados pela perspectiva da longa e densa duração dos fenômenos religiosos, acabaram por
subsidiar e embasar os fenômenos afro-sagrados no Sudeste brasileiro, em especial, no Rio de
Janeiro. Também lanço mão da etnografia do século XX, que em muito se valeu dos
trabalhos anteriores para a compreensão das práticas religiosas de seus objetos de pesquisa.
Entre as fontes com que trabalho, um grande número é composto de imagens
produzidas nos mais variados contextos, passando pelo advento da fotografia, utilizada como
prova em processo do Oitocentos, além de objetos litúrgicos expostos nas páginas dos
jornais, ou por pranchas produzidas por viajantes em suas curtas ou longas passagens pelo
Império do Brasil. Tomei os devidos cuidados com os objetivos e resultados de cada de cada
uma dessas imagens apresentadas. Como bem afirmou William J. T. Mitchell em O que as
imagens realmente querem?, não se deve confundir o desejo do artista com o desejo da
imagem e até mesmo do espectador: “O que as imagens querem não é o mesmo que a
mensagem que elas comunicam ou o efeito que produzem […]”.39 Dessa maneira, como
propõe esse autor, a imagem deve ser ajudada (lembrada) a encontrar seu objetivo, a partir do
diálogo com o outro. Dessa forma procedo ao longo do trabalho, captando detalhes do
sagrado em imagens que, muitas vezes, não foram pensadas para aquele fim, e até mesmo já
ganharam outras interpretações ao longo das produções historiográficas. Exemplo disso é a
imagem de Augustus Earle, Negro fandango scene, Campo St. Anna, Rio de Janeiro, 1822
(Imagem 29), na qual negros cantam e dançam com profunda alegria, que foi, a meu ver,
acertadamente colocada na capa de Memória do Jongo, obra organizada por Silvia Hunold
Lara e Gustavo Pacheco, recuperarem e repercutirem as gravações históricas do Vale do
Paraíba com descendentes de escravos em Vassouras no ano de 1949. 40 Contudo, com base
na construção da análise do capítulo 2, em que não por acaso o cenário é o Campo de
Santana, logradouro público carioca das celebrações a céu aberto de aflição-fruição, a
imagem pode, sim, ganhar uma nova abordagem na esfera do sagrado, já que, depois que o
intento ritualístico fosse alcançado, a festa se estabeleceria.
Portanto as imagens utilizadas ao longo deste trabalho não têm, em hipótese alguma,
uma função ilustrativa, mas sim são tomadas como elementos de composição da escrita,
39
MITCHELL, William John Thomas. O que as imagens realmente querem? In: ALLOA, Emmanuel (org.).
Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012, p. 185.
40
LARA, Silvia Hunold; PACHECO, Gustavo. Memória do jongo: as gravações históricas de Stanley J. Stein.
Vassouras, 1949. Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas: CECULT, 2007.
29
visando a uma melhor compreensão de cada ritual então exposto. Para isso, foram
apresentadas com suas historicidades, desde uma fotografia no jornal, expondo objetos
apreendidos em cerimônias afro-cariocas estrategicamente montadas para ajudar na condução
da negação de tais crenças por parte da opinião pública, até lideranças religiosas que se
permitiram fotografar diante de seus altares, correspondendo a uma representação um pouco
mais próxima do cotidiano sagrado dos que aqui descrevi. Assim também as imagens
produzidas por viajantes, cada qual com uma formação intelectual e religiosa, uma noção
diferente da instituição escravidão. Uns tinham experiência de Brasil, já que aqui
permaneciam por longo período, outros tinham passagens rápidas, comuns em uma cidade
que também se colocava como entreposto comercial. Portanto cada imagem apresentada no
trabalho faz parte da construção e apresentação dos rituais ao longo do Oitocentos até o início
do século XX.
O foco, como exposto, ao longo de toda pesquisa foram os processos ritualísticos,
públicos e privados. Compreendo, portanto, ritual como um evento especial, formalizado e
estereotipado, ocorrendo com um propósito coletivo. Foi o que me possibilitou identificar,
por exemplo, complexos e organizados rituais, pelo olhar dos viajantes que desembarcaram
no início do século XIX no Rio de Janeiro, mesmo que estes em nenhum momento os
compreendessem como tais. Foi, portanto, a partir da noção de estabilidade e diferença,
tomada de empréstimo da antropologia, que os rituais se descortinaram no decorrer do
trabalho, por meio da narrativa denunciativa e depreciativa dos jornais e periódicos, que se
colocavam como vozes dos que pretendiam construir a nação. Desse modo, rituais eram
colocados em relevo, justificando sua cotidianidade.41 Não por acaso, reforcei, ao longo de
toda escrita, que os eventos religiosos afro-brasileiros faziam parte da rotina e,
principalmente, do imaginário de todo o tecido social no Rio de Janeiro.
Trabalho com a perspectiva de rituais como performances, tomada de empréstimo da
teoria defendida por Stanley Tambiah, em que os rituais públicos repetiam suas promessas
em “sequências invariantes e estereotipadas”, sem abrir mão da noção do contexto em que os
agentes se colocavam, o que certamente definiria as demandas de cada momento. 42 A
comunicação simbólica defendida por esse autor, de sequências padronizadas de palavras e
atos, caracterizadas por vários graus de “formalidade (convencionalidade), estereótipo
(rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição)”, derivava do ato performático,
41
PEIRANO, Mariza (org.). O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro: Relume
Dumará: Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ, 2002, p. 8-11.
42
TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Culture, thought, and social action. Cambridge: Harvard University Press,
1985, 124-125.
30
valorizando os enunciados de cada cerimônia, em que a fala, segundo o conceito de John L.
Austin, ganhava a força do fazer, além dos variados meios de comunicação utilizados no
evento, permitindo que os participantes experimentassem a eficácia e a intensidade dele.43
Ao cruzar as informações cerimonialistas encontradas no Rio de Janeiro com as de
outras regiões do Brasil, da América, sendo a maioria de Cuba, com informações obtidas nas
mais variadas regiões centro-africanas, percebi a necessidade de pensar tais atos
performativos como resultados de um repertório. Para tal, tomei de empréstimo o conceito
criado por Charles Tilly ao longo de toda sua carreira, sofrendo, por isso, diversas
transformações e acréscimos em seu entendimento.44 Dessa forma, apropriei-me da noção de
repertório cultural, em que reinvindicações coletivas improvisam scripts compartilhados,
apresentando-os em forma de petição. Se pensado para os cultos afro-brasileiros, cada espaço
constituído como litúrgico tornava-se, por conseguinte, propício a propagação e trocas no
campo do sagrado.45
A maioria das cerimônias analisadas ao longo deste trabalho se aproximava do
conceito de cultos de aflição, criado por Victor Turner, resultado de suas análises ao longo de
três anos de pesquisa de campo entre os Ndembu, na atual Zâmbia, no decorrer da década de
1950. Tais rituais eram resultados dos dramas sociais, fixos e rotineiros, já que os valores da
sociedade eram exagerados nos conflitos. A forma de resolverem tais questões seria por meio
de complexas cerimônias de iniciação ou de aflição, buscando a cura para males físicos e
espirituais, a reparação de conflitos sociais, quase sempre causados por espíritos ancestrais
que acabaram esquecidos pelos vivos em suas homenagens ou invocações, celebradas por um
especialista investido para tal.46 Pautado na noção de bem-estar social, John Janzen,
analisando os rituais terapêuticos na região do Baixo Congo (Zaire), nos quais buscavam a
cura por meios de rituais aflitivos, apropria-se da terminologia indígena ngoma, usada na
maioria das vezes para designar tambores, para pensar uma instituição terapêutica que
transformava pessoas em curandeiras, após passarem pelo complexo processo de cura. 47
43
TAMBIAH, Stanley Jeyaraja. Culture, thought, and social action. Cambridge…, 1985, 128.
44
Para maior compreensão das mudanças no pensar repertório por Charles Tilly, ver: ALONSO, Angela.
Repertório, segundo Charles Tilly: história de um conceito. Sociologia & Antropologia, v. 2, n. 3, p. 21-41,
2012.
45
TILLY, Charles. Repertoires of Contention. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
46
TURNER, Victor. The Drums of Afflicitions: a study of religious processes among the Ndembu of Zambia.
New York: Ithaca, 1981, p. 16.
47
JANZEN, John. Ngoma: Discourses of Healing in Central and Southern Africa. Berkeley: University of
California Press, 1992. JANZEN, John M. Lemba, 1650-1930: A drum of aaffliction in Africa and the New
World. New York and London: Garland Publishing, Inc., 1982.
31
Rijk van Dijk, Ria Reis e Marja Spierenburg, em The quest for fruition, questionaram
a maneira como Janzen interpretou o Ngoma, destacando que o autor privilegiou a noção de
cura alcançada pela aflição, abrindo mão de uma análise mais profunda das questões sociais
que envolviam os participantes do ritual, entre elas, questões políticas. Dessa forma, esses
autores propuseram a noção de cultos de fruição, que, segundo eles, permitiria uma forma
mais abrangente de compreensão dos conflitos e organizações sociais que desembocavam nos
rituais. 48 Por seu turno, Robert Slenes, com diversos trabalhos voltados para a compreensão
das heranças centro-africanas no Sudeste brasileiro, entre elas as manifestações sagradas,
atualmente propõe analisar tais situações pela abordagem do conceito cultos de aflição-
fruição, partindo da necessidade de observar a finalidade de cada culto não somente sua fase
inicial, já que a maioria dos cultos, liturgicamente, começava pela aflição, mas a eliminação
desta poderia, sim, proporcionar uma grande festa e alegria.49 Tal junção, aflição-fruição,
permitiu-me melhor analisar e buscar respostas para os cultos públicos realizados nas
principais praças e logradouros do Rio de Janeiro oitocentista, os quais, na sua totalidade,
foram compreendidos como festa, diversão e algazarra, por aqueles que foram testemunhas
oculares de tais cerimônias, mas sem o conhecimento necessário para pensarem de outra
forma.
Neste trabalho, procurei, sempre que possível, chamar as lideranças religiosas por
seus nomes litúrgicos, propagados e amplamente respeitados entre seus seguidores. A noção
de feitiçaria, como já destaquei, não era a mesma para os participantes das cerimônias afro-
brasileiras, se comparada à dos agentes envolvidos na perseguição da crença, como aqueles
que veiculavam as notícias em jornais e periódicos ou os agentes da lei, responsáveis, nos
momentos de inquéritos e processos, por descreverem depoimentos, quase sempre
conduzindo a narrativa para a construção da culpabilidade dos envolvidos. Para manter a
distinção entre o descrito e o compreendido, usei como um farol voltado para o Oitocentos a
percepção de Evans-Pritchard, ao separar magia e feitiçaria entre os Azande no Sudão da
década de 1920, onde essa última era vista como causadora de males físicos e espirituais, em
nada se assemelhando com a hereditariedade dos bruxos, que tinham suas funções bem
delimitadas na sociedade.50
48
DIJK, Rijk van; REIS, Ria; SPIERENBURG, Marja. The quest for fruition through ngoma: the political
aspects of healing in South Africa. Athens: Ohio University Press, 2000.
49
SLENES, Robert W. Metaphors to Live By in the Diaspora: Conceptual Tropes and Ontological Wordplay
among Central Africans in the Middle Passage and Beyond. In: ALBAUGH, Ericka A.; LUNA, Kathryn M. de
(ed.). Tracing language movement in Africa. Oxford: Oxford University Press, 2018, p. 349.
50
PRITCHARD, Edward. E. Evans. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1978.
32
Optei por apresentar os fatos históricos em solo centro-africano e seus
desdobramentos, cruzando-os com as situações ocorridas em solo brasileiro, principalmente
no Rio de Janeiro, ao longo de toda a redação do trabalho, e não em forma de capítulo
separado. Acredito que tal escolha em muito reforçará a noção de ampla proximidade entre as
duas margens do Atlântico, que, de tão intensas, acabaram acertadamente denominadas por
Alberto da Costa e Silva como “um rio chamado Atlântico”.51 Creio que, dessa forma, pude
melhor observar costumes comuns partilhados nas regiões da África Centro-Ocidental, que
serviram de base para a propagação da gramática cultural no território americano, em que a
noção de ventura e desventura, ou seja, a crença em que a boa e a má sorte eram causadas por
interferência do sobrenatural, e era necessário ter um líder carismático com expertise para
reequilibrar e estabelecer a ordem natural das coisas por meio de complexos rituais de
aflição-fruição. Além de um conjunto básico de símbolos, tais como a proeminência dos
espíritos ancestrais, divindades ligadas à natureza, a noção de que encanto se combatia com
outro encanto, complexos ritos de passagem envolvendo doença e cura, seguida de um
conjunto de oposições binárias no entendimento metafórico e metonímico do sagrado. 52
Trabalho com a proposta de analisar fragmentos biográficos no que tange às escolhas
no campo do sagrado, portanto foram várias as figuras anônimas para seu tempo que
acabaram por se revelar pelos meios oficiais da justiça. Contudo o fio condutor do trabalho é
a figura do preto Laurentino Inocêncio dos Santos, afamado sacerdote afro-carioca,
conhecido nas páginas da imprensa como Curandeiro da Glória, que, por ao menos duas
décadas, manteve seu ofício de líder religioso, e assim o fez passando por dois regimes
políticos, do Império à República, sofrendo e percebendo as transformações legislativas que
se chocavam com seu fazer. E, mesmo não tendo respondido – pelo menos que eu tivesse
encontrado – a nenhum “rico” processo, como Antônio Francisco e tantos outros que foram
desfraldados ao longo deste trabalho, Laurentino também se deixou perceber ao longo de seu
tempo, constituindo grande clientela e fiéis, articulações sociais e políticas. Dessa maneira, as
análises que se seguiram, de casas semelhantes às de Laurentino, prestaram um duplo
serviço: o primeiro, evidentemente, de se mostrarem e darem ao pesquisador a possibilidade
51
SILVA, Alberto da Costa e. Um rio chamado Atlântico: a África e o Brasil na África. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2011.
52
CRAEMER, Willy de; VANSINA, Jan; FOX, Renée C. Religious Movements in Central Africa: a Theoretical
Study. Comparative Studies in and History, v. 18, n. 4, p. 458-475, out. 1976. SLENES, Robert. “Malungo,
ngoma vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n. 12, p. 48-67, dez./jan./fev. 1991-1992.
33
de tirar suas conclusões com as observações; o segundo, a oportunidade de lançar luz sobre o
culto do conhecido como “curandeiro da Glória”.53
Não pretendo, contudo, cair na armadilha sobre a qual, há tempos, alertou Pierre
Bourdieu, em A ilusão biográfica, ao apresentar os riscos de estabelecer o “postulado do
sentido da existência”, ou seja, a preocupação com um “projeto original”. Quando, por
exemplo, no segundo capítulo, volto o olhar para a primeira metade do Oitocentos, tendo em
vista o ano de 1821 como data aproximada do nascimento do curandeiro da Glória, não
pretendi incorrer no “conjunto coerente e orientado”, que desemboca no “desde pequeno” ou
“desde então”, 54 mas utilizei o pretexto de circunscrever seu período de infância, visando
lançar luz nos complexos rituais públicos do contexto, que foram os formadores das casas
conhecidas como de dar fortuna, da segunda metade da centúria. Isso com a constante
observância dos fenômenos descontínuos, justapostos sem alguma razão prévia, como deveria
ser a própria travessia do Atlântico para diversos grupos étnicos da primeira metade daquele
século.
Outro importante ponto a destacar como foco do trabalho são as escolhas no campo
do sagrado centro-africano. Procurei não transformar o objeto em um novo “dar sentido”,
buscando em tudo ou apresentando em todas as manifestações analisadas somente a
possibilidade de contribuição dos bacongos, ambundos e ovimbundos, mas colocando as mais
variadas possibilidades, ou seja, as inconstâncias que marcam os processos. Portanto, neste
trabalho, a constância respeitada foi a apresentada por Bourdieu, do nome próprio, da
identidade biológica, não por acaso, é a signum authenticum, a assinatura que dá
53
Destaco alguns trabalhos que se dedicaram a compreender trajetórias de pessoas comuns nos dois lados do
Atlântico e, pelo olhar da micro-história, foi possível recompor suas trajetórias e escolhas: CASTILHO, Lisa
Earl; PARÉS, Luis Nicolau. Marcelina da Silva: A Nineteenth-Century Candomblé Priestess in Bahia. Slavery
& Abolition, v. 31, n. 1, p. 1-27, 2010; MAMIGONIAN, Beatriz; RACINE, Karen R. The Human Tradition in
the Black Atlantic, 1500-2000. Lanham: Rowman & Littlefield, 2010; MAMIGONIAN, Beatriz. José Majojo e
Francisco Moçambique, marinheiros das rotas atlânticas: notas sobre a reconstituição de trajetórias da Era da
Abolição. Topoi, v. 11, n. 20, p. 75-91, 2010; MAMIGONIAN, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico
de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017; REIS, João José dos. Domingos Sodré, um
sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 2008; REIS, João José dos; GOMES, Flávio dos Santos; CARVALHO, Marcus de. O alufá Rufino:
tráfico, escravidão e liberdade no Atlântico negro (c. 1822 - c. 1853). São Paulo: Companhia das Letras, 2010;
SWEET, James. Domingos Álvares, African Healing, and the Intellectual History of the Atlantic World. Chapel
Hill: University of North Carolina Press, 2010; SWEET, James. Mistaken Identities? Olaudah Equiano,
Domingos Álvares, and the Methodological Challenges of Studying the African Diaspora. American Historical
Review, v. 114, n. 2, p. 279-306, 2009; CANDIDO, Mariana. African Freedom Suits and Portuguese Vassal
Status: Legal Mechanisms for Fighting Enslavement in Benguela, Angola, 1800-1830. Slavery and Abolition, v.
32, n. 3, p. 447-459, 2011; FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World:
Angola and Brazil during the Era of the Slave Trade. Cambridge, Massachusetts: Cambridge Press, 2012.
GONÇALVES, Margareth de Almeida. Império da fé: andarilhas da alma na época barroca. Rio de Janeiro:
Rocco, 2005.
54
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes (org.). Usos
e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 184-185.
34
autenticidade aos documentos oficiais, que fornece as condições jurídicas, 55 como quando
Laurentino Inocêncio dos Santos reconhece, via assinatura, em um período de poucos
letrados, uma confissão de dívidas, abrindo possibilidades de os pesquisadores hoje terem
contatos com as mais variadas perspectivas de análise partindo desse simples documento
oficial. Ou seja, adotei, ao longo de todo trabalho, principalmente para a segunda metade do
século XIX, o método onomástico, proposto por Ginzburg em O nome e o como, em que o
nome funciona como o fio de Ariadne, o que permite ao pesquisador distinguir um indivíduo
do outro, aliado aqui às possibilidades tecnológicas das instituições citadas anteriormente,
assim, a identificação acabou por conduzir os trabalhos. 56
Da mesma forma como Ginzburg desfraldou exemplos de como, nos vastos arquivos
italianos, era possível, partindo de um nome, encontrar outras informações adicionais, tendo
na “bússola preciosa” a possibilidade de circunscrever e compreender o entorno do
investigado, o mesmo método foi utilizado para as fontes do Rio de Janeiro, nas quais uma
notícia jornalística de prisão de um líder religioso me remetia ao inquérito e, muitas vezes, ao
processo. Ali, os agentes envolvidos – por exemplo, um delegado – permitiam-se conhecer,
assim fui encontrando suas funções e atribuições também nas páginas dos jornais ou no
Almanak Laemmert, reservado à apresentação da fina flor da sociedade. Dessa forma, foi
possível, muitas vezes, perceber como os interesses se chocavam, e iam muito além de uma
prisão em noite de ronda policial. Outras tantas vezes, os mesmos nomes apresentados em um
jornal abriam a possibilidade de encontrar seus momentos de infortúnios quando entravam
nos corredores da Casa de Detenção, onde suas fichas apresentavam uma miríade de
alternativas. Assim, corroborando Ginzburg, “pouco a pouco emerge uma biografia, seja
inevitavelmente fragmentária, e a rede das relações que a circunscrevem”. 57 Este trabalho é,
portanto, o estudo das biografias coletivas, vistas de baixo.
No primeiro capítulo desta tese, apresento o início do cristianismo no reino do Congo
e como tal conversão, passando por uma compreensão de mundo centro-africano, acabou por
criar uma nova crença, na qual os fundamentos das religiões tradicionais dialogavam
constantemente com o cristianismo missionário. Foi essa nova religião que desembarcou ao
longo de séculos nos portos americanos, principalmente no Sudeste brasileiro, o que
certamente acabou por influenciar, mesmo que não tivessem o mesmo conhecimento de
55
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica…, 2002, p. 186-187.
56
GINZBURG, Carlo. O nome e o como: troca desigual e mercado historiográfico. In: GINZBURG, Carlo;
CASTELNUOVO, Enrico; PONI, Carlo. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil, 1989, p. 174-175.
57
GINZBURG, Carlo. O nome e o como…, 1989, p. 175-177.
35
África Centro-Ocidental que a historiografia apresenta, os primeiros pesquisadores brasileiros
que se debruçaram sobre a temática negra, principalmente na esfera sagrada. A Escola
formada por Nina Rodrigues acabou por desembocar no I Congresso Afro-Brasileiro do
Recife. Dessa maneira, os primeiros autores dedicados à questão do negro no Brasil, como
Arthur Ramos, que presenciou as macumbas cariocas nas primeiras décadas do século XX,
Édison Carneiro, seu seguidor, entre outros, produziram importantes materiais, que servem de
fonte, tendo em vista que muitos dos informantes conviveram com velhos africanos.
Demonstro, nesse capítulo também, como a Bahia transformou-se em uma espécie de padrão
para as abordagens das religiões afro-brasileiras no Rio de Janeiro.
No segundo capítulo, abordo o século XIX propriamente dito, com foco na primeira
metade da centúria, momento de maior aporte do tráfico transatlântico, portanto o de maior
renovação entre as lideranças recém-desembarcadas e as já estabelecidas na corte. Além de
ser o período em que as celebrações se apresentavam com características diferentes, sendo
públicas, nos principais espaços urbanos do Rio de Janeiro, dessa forma, depara-se com as
principais referências que forjaram as lideranças da segunda metade, principalmente aqueles
nascidos no Brasil. Para compreender tais rituais, lancei mão dos viajantes, que
invariavelmente se encantavam no primeiro momento com as belezas naturais da Baia de
Guanabara, porta de entrada da cidade, seguido pelo espanto ao constatarem ser o Rio uma
cidade africanizada. Trabalho com a noção de olhares enviesados para compreender o que
viram, mas não compreenderam essência de tais manifestações. Para lançar luz a tais rituais,
cruzo as informações do Rio de Janeiro com práticas em solo centro-africano, utilizando
fontes produzidas por missionários católicos e protestantes em diferentes momentos e
atuações, compreendendo, portanto, as cerimônias como cultos de aflição-fruição.
No terceiro capítulo, trabalho com as complexas iniciações ritualísticas, que
formavam membros e principalmente novas lideranças religiosas ao longo do Oitocentos.
Tais cerimônias foram marcadas pela presença do cristianismo africanizado desenvolvido em
solo centro-africano, partindo das reformas empreendidas por Afonso I e suas transformações
até o final do tráfico transatlântico para o Brasil, momento em que todos os elementos para a
construção das religiões afro-brasileiras estavam no tabuleiro. Demonstro nesse capítulo
como importantes rituais faziam parte do cotidiano da corte, como cantos, rezas,
apresentações públicas, amuletos, permitindo que o universo sagrado fosse adaptado ao dia a
dia de todo tecido social do Rio de Janeiro. O processo iniciático envolvia uma série de
padrões performáticos, diferindo apenas quanto a qual grupo étnico liderava e cerimônia.
Fossem centro-africanos ou ocidentais, o ponto de encontro eram os símbolos do catolicismo.
36
Além das fontes já destacadas, trabalho nesse capítulo com as narrativas presentes nos jornais
e periódicos do período, em que rituais afro-cariocas passaram a ser constantemente
questionados por uma imprensa desejosa por formar uma opinião contra tais práticas.
Visando complementar as informações da imprensa, cruzo-as com inquéritos policiais e
processos movidos na justiça do Rio de Janeiro, já que depoimentos, acusações, defesa,
objetos, entre outras práticas, acabavam por revelar preciosos detalhes dos processos
iniciáticos, bem como de todo ritual.
O quarto capítulo dá continuidade aos atos performáticos de forma mais ampla,
cruzando fontes já descritas com outras que me aproximam de rituais em solo centro-
africano, além das importantes observações feitas em trabalhos de campo por antropólogos.
Apresento a visão de mundo dos bacongos, amplamente propagada nos dois lados do
Atlântico e que acabou pautando as cerimônias. A busca pela cura tornou-se um dos
principais motivos para se encontrar uma casa afro-carioca. Uma vez que Laurentino
Inocêncio dos Santos foi conhecido ao longo de toda sua atuação como “curandeiro da
Glória”, busquei reconstruir, por meio da análise de depoimentos, os principais detalhes de
várias cerimônias curativas, que contavam com um princípio básico centro-africano de
receber via transe um parente falecido ou ancestral divinizado, além do preparo das
medicinas sagradas, compreendidas como inquices, visando restabelecer a ordem natural das
coisas. Por meio de complexos rituais, foi possível ficar diante de lideranças que se
apresentavam liturgicamente com seus nomes e funções, o que permitiu lançar luz na
formação de cada sacerdote ou sacerdotisa. Também de fundamental importância foi
compreender quais plantas medicinais faziam parte das cerimônias. Elas foram cruzadas com
importantes manuais médicos do contexto, não somente para atestar sua eficácia, mas para
perceber que os conhecimentos fitoterápicos afro-brasileiros serviam de base para os
mencionados guias. Destaco outros importantes motivos que levavam a frequentar tais
espaço, como amansar senhor, amarrações, fechar os corpos, riscar e cantar pontos, entre
outros caminhos a fim de se buscar a ventura para os frequentadores.
No quinto e último capítulo, apresento as possibilidades de vida e relacionamentos
que se apresentavam aos Pais e Mães de Santo que viviam nas freguesias urbanas do Rio de
Janeiro, quais redes de relacionamentos eram criadas e as reais possibilidades de ganho e de
construção de patrimônio, já que, além de inventário, Laurentino Inocêncio dos Santos
deixou heranças e questões judiciais pendentes, justamente por ter acesso a crédito das mais
variadas formas. Outro importante ponto trabalhado foram os reais incomodados com as
seculares práticas de curandeirismo promovidas por líderes afro-cariocas ao longo do
37
Oitocentos. A chegada da doutrina kardecista no Rio de Janeiro, na década de 1870, abriu
uma ampla possibilidade de diálogo com casas que realizavam cultos pautados na gramática
sagrada centro-africana, permitindo não somente uma ressignificação litúrgica do credo, bem
como a criação de estratégias de sobrevivência diante do novo regime republicano, que, de
forma contraditória ao estado laico constitucional, aumentou sistematicamente as investidas
contra espaços sagrados afro-brasileiros.
38
CAPÍTULO 1
1
THORNTON, John. Com contribuição de WINDMULLER-LUNA, Kristen. The Kingdom of Kongo. In:
LAGAMMA, Alisa (org.). Kongo power and majesty. New Haven and London: The Metropolitan Museum of
Art New York, 2015, p. 88.
2
Diversos autores no campo da antropologia e da história produziram trabalhos em que relatavam tal contato e
seus desdobramentos. Dessa forma, creio que um balaço historiográfico fugiria da intenção deste trabalho,
39
que promoveu a conversão do reino africano ao catolicismo pelas mãos do rei e de parte da
elite da terra.
Diogo Cão enviou emissários ao mani congo, mas, sendo a província do Soyo distante
da capital do reino Mbanza Congo, demoraram os portugueses a regressar. Ele então resolveu
partir para Portugal levando consigo os três congoleses presentes em sua embarcação,
prometendo voltar em três luas.3 Mesmo não conseguindo cumprir o tempo proposto,
estabelecia-se ali uma importante relação diplomática, já que portugueses e congoleses,
levados e deixados como emissários, permaneceram em contato intermitente com a cultura do
outro, enquanto esperavam o retorno da comitiva portuguesa. Além, é claro, da língua, 4 já
que se tornaram importantes tradutores e interlocutores das primeiras significativas trocas,
estabelecidas ainda ao final do século XV. O retorno de Diogo Cão com os três congoleses
batizados, falando português, vestidos à moda europeia e descrevendo o que viram e viveram
no continente europeu provavelmente abriu uma janela de possibilidades para as elites
congolesas, desejosas de ampliação e manutenção de seus poderes. Dentro da cosmogonia
baconga, o mundo dividia-se entre o espaço dos vivos e dos mortos, tendo o grande oceano, a
Calunga, como a linha horizontal que separava o mundo físico do espiritual. A Luvemba, ou
seja, a morte, iniciava a entrada do espírito no universo da Calunga. 5 Os constantes contatos
mediados por sacerdotes dos cultos tradicionais centro-africanos eram feitos através de
incorporações, momento em que os espíritos interfeririam diretamente na realidade dos
viventes.
contudo destaco os que considero como principais autores para tal questão: CARDONA, Giorgio Raimondo.
Africani e Portoghesi: l’altra faccia della scoperta. Quaderni Portoghesi, Pisa, n. 4, 1978. HILTON, Anne. The
Kingdom of Kongo. Oxford: Clarendon Press, 1985. THORNTON, John. The Kingdom of Kongo: Civil Wars
and Transition, 1641-1718. Madison: Wisconsin Press, 1983. THORNTON, John. Com contribuição de
WINDMULLER-LUNA, Kristen. The Kingdom of Kongo. In: LAGAMMA, Alisa (org.). Kongo power and
majesty. New Haven and London: The Metropolitan Museum of Art New York, 2015. SOUZA, Marina de
Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002 (em especial, o segundo capítulo). Para um balanço historiográfico sobre o Congo, ver: SAPEDE.
Thiago Clemente. Muana Congo, Muana Nzambi a Mpungu: poder e catolicismo no reino do Congo pós-
restauração (1769-1795). São Paulo: Alameda, 2014. Cap 1.
3
BRÁSIO, Padre António. Monumenta missionária africana. África Ocidental (1471-1531). Lisboa: Agência
Geral do Ultramar, MCMLLII, p. 33. v. 1.
4
BRÁSIO, Padre António. Monumenta missionária africana. África Ocidental (1471-1531). …., MCMLLII, p.
41. v. 1. Garcia Resende, em um relato muito próximo ao de Rui de Pina para o mesmo momento, informou que
os congoleses já respondiam em português ao desembarcarem na Europa, demonstrando que a viagem foi de
aprendizagem.
5
KIA BUNSEKI, Fu-Kiau. N’Kongo ye nza Yakun’zungidila: Nza-Kôngo. Kinshasa: Office National de la
Recherche et de Développement, 1969. KIA BUNSEKI, Fu-Kiau. African cosmology of the Bântu-Kôngo: tying
the spiritual knot: Principles of life & living. Brooklyn, N.Y.: Athelia Henrietta Press, Pub. in the name of
Orunmila, 2001.
40
Imagem 2 - O Reino do Congo e seus vizinhos
6
VANSINA, Jan. O reino do Congo e seus vizinhos. In: OGOT, Bethwell Allan (ed.). História geral da África,
V: África do século XVI ao XVIII. UNESCO III. Brasil. Ministério da Educação IV. São Paulo: Universidade
Federal de São Carlos, 2010, p. 654.
7
HILTON, Anne. The Kingdom of Kongo. Oxford: Clarendon Press, 1985, p. 50. Outro autor que compartilhou
da mesma interpretação: CARDONA, Giorgio Raimondo. Africani e Portoghesi: l’altra faccia della scoperta.
Quaderni Portoghesi, Pisa, n. 4, p. 145-161, 1978.
8
THORNTON, John. The Kingdom of Kongo: Civil Wars and Transition, 1641-1718. Madison, Wis.:
University of Wisconsin Press, 1983, p. 106-107.
41
momento os portugueses foram compreendidos como divindades retornadas do mundo dos
mortos, os congoleses não tardaram a perceber que aqueles “morriam” com frequência, em
razão das doenças tropicais desconhecidas pelos recém-chegados. Além de não serem tão
alvos como se imaginava na cosmogonia baconga ser a representação dos que viviam no
mundo dos espíritos. 9
Princípios religiosos pautados pela visão de mundo ou compreensão das tecnologias
portuguesas na manutenção da centralização do reino, estabelecimento do catolicismo como
instrumento dessa última possibilidade, entre outros fatores, o certo é que as fontes desses
primeiros contatos revelam que mani Soyo, chefe da porta de entrada do reino, e mani Congo
ansiavam pelo batismo católico, que era interpretado como propagador de distinção entre a
elite do reino. Interessante destacar que, com toda possível e real confusão que esse primeiro
contato proporcionava, e como dito nas primeiras fontes produzidas por variados agentes do
reino lusitano, características culturais e religiosas saltavam dessas informações, por
exemplo, no contato feito em 1491, na província do Soyo, por ocasião do batismo do velho
líder da província, ao qual esteve presente “muita gente com arcos”, flechas e com “atabaques
e trombetas de marfim”, “tudo segundo seu costume”. Como destacou o cronista, os homens
se apresentavam nus da cintura para cima, com os corpos pintados de branco e vermelho,
carregando “penachos na cabeça”, feitos de penas de papagaio e “de outras aves diversas”. 10
Tal descrição é muito próxima das características dos líderes religiosos centro-africanos, com
o típico aparato na cabeça, comum por séculos, nos dois lados do Atlântico, como se
observará no Rio de Janeiro do século XIX, aqui analisado.
O sétimo rei do Congo, segundo a tradição oral, Nzinga a Nkuwu, em contato com os
emissários congoleses retornados de Portugal, enxergou diversas possibilidades no
estreitamento dos laços entre os dois reinos. Relatos de cronistas acerca dos desdobramentos
desse primeiro momento deixam clara a insistência do rei em receber rapidamente o batismo
cristão, antes mesmo de que a solicitada igreja ficasse pronta na capital Mbanza Congo. O
primeiro a receber o batismo, alegando questões de idade avançada, foi o mani Soyo e seu
filho menor. Em homenagem aos monarcas portugueses, o governante do Soyo mudou seu
nome para Dom Manoel, o mesmo do irmão da rainha de Portugal, Dona Leonor.
Surpreendem também os constantes pedidos em cartas pelo pronto envio ao reino do Congo
9
SILVA, Alberto da Costa e. A manilha e o libambo. A África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2002, p. 359-361. Segundo esse autor, os portugueses teriam confundido “as vênias da
hospitalidade com adoração”.
10
BRÁSIO, Padre António. Monumenta missionária africana…, MCMLLII, p. 58-59. v. 1. HILTON, Anne.
The Kingdom of Kongo. Oxford: Clarendon Press, 1985, p. 50-51.
42
de padres para missões, arquitetos, carpinteiros, entre outras estruturas do reino português,
ampliando a rede de relacionamentos entre os reinos. No Congo, com a morte de Dom João I,
chega ao poder seu filho mais novo, Dom Afonso I, responsável pela reforma religiosa e
implementação do catolicismo no reino africano. Nascia o que John Thornton e Wyatt
MacGaffey chamaram de catolicismo africano. 11
Do encontro entre as duas culturas, iniciou-se um processo de crioulização, que
resultou na conversão do reino do Congo ao cristianismo, pautada, segundo John Thornton,
por uma compatibilização entre o catolicismo propagado prioritariamente via ordens
missionárias e o sistema religioso tradicional existente antes da chegada dos europeus. Essa
real conversão ocorreu, segundo Thornton, graças à existência de um complexo sistema de
correvelações, como a visão recebida por Dom Afonso I, quando, por ocasião da crise
sucessória, precisou enfrentar seu irmão pagão, que, apoiado por parte da elite congolesa
insatisfeita com os novos costumes católicos, apresentou-se com um exército em maior
número para combater seu irmão. No alto do céu do reino, Afonso teria avistado a imagem da
Cruz de São Tiago Apóstolo, informando que venceria a batalha. Mandando pintar os
escudos dos soldados com a cruz, sagrou-se vitorioso na batalha.12 Após a conversão, Afonso
I, que já havia recebido educação europeia, passou a encaminhar os filhos da elite congolesa
para Portugal e demais países católicos, promovendo, desde então, profundas transformações
no reino.
Os planos de Afonso de transformar o reino em um Estado cristão foram além da
devoção pessoal, da instrução religiosa e da construção de igrejas e escolas. Uma
verdadeira transformação cultural teve lugar durante o seu longo mandato. No
Congo de Afonso, os membros da elite adotaram títulos como duque, marquês e
conde, e, em pouco tempo, os processos legais portugueses se misturaram aos
anteriores para reger os procedimentos judiciais. Além disso, o calendário religioso
11
O historiador John Thornton e o antropólogo Wyatt MacGaffey formularam a ideia de cristianismo africano,
como resultado do encontro entre culturas europeias e os povos bacongos entre os séculos XVI e XVIII.
Segundo essess autores, ocorreu um “diálogo de surdos”, em que missionários cristãos enxergavam suas práticas
religiosas, e, por seu turno, os povos centro-africanos viam suas formas tradicionais de compreenderem o
sagrado, ou seja, cada parte acreditava se fazer entender. MACGAFFEY, Wyatt. Dialogues of the deaf:
Europeans on the Atlantic coast of Africa. In: SCHWARTZ, Stuart B. (org.). Implicit Understandings:
Observing, Reporting, and Reflecting on the Encounters between Europeans and Other Peoples in the Early
Modern Era. New York: Cambridge University Press, 1994, p. 249-268. Para maior compreensão das práticas
religiosas centro-africanas, a partir das transformações empreendidas por Afonso I e seus reflexos no campo do
sagrado na América, ver: THORNTON, John. The Kingdom of Kongo and Palo Mayombe: Reflections on an
African-American Religion. Slavery & Abolition, v. 37, n. 1, p. 1-22, 2016.
12
THORNTON, John. The Development of an African Catholic Church in the Kingdom of Kongo, 1491-1750.
The Journal of African History, v. 25, n. 2, p. 147-167, 1984. Para a mesma ocasião, Cécile Fromont lançou
mão do conceito de “espaço de correlação”, segundo o qual agentes apresentavam ideias radicalmente diferentes
e após confrontá-las, convertiam-nas em partes, criando uma nova teia de significados, permitindo focar em
estratégias de sintaxe, como ilustrações, discursos, textos etc. Dessa maneira, a autora deixou de lado as
armadilhas como as ideias de empoderamento ou de respostas às opressões. FROMONT, Cécile. Under the sign
of the cross in the kingdom of Kongo: Religious conversion and visual correlation in early modern Central
Africa. Anthropology and Aesthetics, n. 59-60, p. 109-123, Spring/Autumn 2011.
43
da Igreja católica governava a vida do reino, e os filhos de famílias tanto de elite
como comuns aprendiam o catecismo com professores locais, recebiam nomes
cristãos e congoleses e eram batizados. Havia sempre uma escassez de padres no
reino, mas as cruzes eram onipresentes nas aldeias e as visitas dos padres serviam
para lembrar aos moradores sua condição de cristãos. 13
13
HEYWOOD, Linda M. Jinga de Angola: a rainha guerreira da África. São Paulo: Todavia, 2019, p. 10-11.
14
THORNTON, John K.; HEYWOOD, Linda Marinda. Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation
of the Americas, 1585–1660. New York: Cambridge University Press, 2007. THORNTON, John K. Afro-
christian syncretism in the kingdom of Kongo. Journal of African History, v. 54, p. 53-77, 2013, p. 55.
15
REGINALDO, Lucilene. “Uns três congos e alguns angolas” ou os outros africanos da Bahia. História
Unisinos, v. 14, n. 3, p. 257-265, set./dez. 2010. MENDES, Andrea. Vestidos de realeza: fios e nós centro-
africanos no candomblé de Joãozinho da Gomeia. Duque de Caxias: APPH-CLIO, 2014. (Série Recôncavo da
Guanabara, v. 1).
44
1.2 Os centro-africanos pelo olhar dos primeiros pesquisadores: a Escola Nina
Rodrigues e o I Congresso Afro-Brasileiro do Recife
No entanto, por mais avultada que tivesse sido a importação dos Negros da África
austral, do vasto grupo étnico dos Negros de língua tu ou bantu – e o seu número foi
colossal –, a verdade numérica conseguiu levar à dos Negros Sudaneses, aos quais,
16
Manuel Raimundo Querino, escritor, pintor e etnógrafo baiano. Autor de diversos livros em que apresentava o
elemento africano como dotado de civilidade e com grandes contribuições para a formação da sociedade
brasileira, contestando, assim, o discurso eugenista, corrente no século XIX. Para mais informações, ver:
http://www.dicionario.belasartes.ufba.br/wp/verbete/manuel-querino-manoel-raymundo-querino/. Acesso em:
10 ago. 2020.
17
RODRIGUES, Raimundo Nina. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas
Sociais, [1932]/2010.
45
além disso, cabe inconteste a primazia em todos os feitos em que, da parte do
Negro, houve na nossa história uma afirmação da sua ação ou dos seus sentimentos
de raça. 18
18
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas
Sociais, [1932]/2010, p. 26-27.
19
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas
Sociais, [1932]/2010, p. 247. Arthur Ramos também transcreveu na íntegra o mesmo documento, um ano depois
do lançamento da obra de Nina Rodrigues. Ver: RAMOS, Arthur. O negro brasileiro. Rio de Janeiro: Graphia,
[1934]/2001, p. 99-103.
20
EWBANK, Thomas. Vida no Brasil: ou diário de uma visita à terra do cacaueiro e das palmeiras. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, [1856]/1976, p. 78.
21
Robert Slenes, principal propagador das heranças centro-africanas no Sudeste brasileiro, lançou mão de tal
documento para compreender uma revolta escrava na região produtora de café, no ano de 1854, tendo como
organizadores lideranças religiosas que se aproximaram em muitos das práticas realizadas no Espírito Santo em
46
analisada por Dom Nery foi interpretada como “uma seita misteriosa” que parecia ser de
“origem africana”, 22 destacando que, antes da abolição da escravidão, apenas os pretos – e
muito reservadamente – praticavam tal culto, o que vejo como tática do clérigo na tentativa
desqualificar as celebrações em sua prelazia, já que diversas fontes e trabalhos são claros em
demonstrar a ampla participação da sociedade nos cultos liderados por sacerdotes afro-
brasileiros.23
Contudo sua análise referente ao período posterior à abolição da escravatura em muito
permite lançar luz sobre as abordagens ao longo desta tese. Acreditava Dom Nery que, em
sua prelazia, mais de oito mil participantes já tinham sido “iniciados”. 24 A noção de iniciação
foi de grande importância para os mais variados grupos de procedência africana
desembarcados nas Américas, uma vez que a travessia tornava-se um ritual de passagem para
uma nova vida, mesmo indesejada, mas que era a realidade apresentada. Compreender as
iniciações realizadas na cidade do Rio de Janeiro é a possibilidade de percorrer o caminho
que construiu as religiões afro-brasileiras ao longo do Oitocentos, tendo em vista que as
iniciações permitiam a continuidade da crença e, principalmente, a formação de novas
lideranças.
Mesmo sem perceber, Dom Nery apontou caminhos para a compreensão dos cultos de
origem centro-africana e suas complexas interações em solo brasileiro, principalmente ao
relacionar a Cabula com o espiritismo, provavelmente o kardecista, que, ao longo de 1900, já
havia encontrado um forte número de adeptos no país, contando com suas raízes bem
solidificadas. Na Cabula, assim como no espiritismo, um espírito denominado Tatá
apresentava os caminhos para sanar as necessidades temporais e espirituais. Aqueles que
dominassem tal prática recebiam o nome litúrgico de camanás, que representava sua
iniciação na crença e os diferenciava dos caialós (profanos). Para a realização de tal ritual,
era preciso proferir “palavras sagradas”, sendo aqueles reconhecidos por seus gestos e
saudações secretas entre a população. 25
Para profundo espanto do bispo, práticas católicas eram incorporadas ao culto,
causando-lhe enorme revolta e estranheza ou mesmo a crença na perda da ortodoxia, como
1900. Ver: SLENES, Robert. L’arbre nsanda replante: cultes d’affliction Kongo et identité des esclaves de
plantation dans le Brésil du Sud-est (1810-1888). Cahiers du Brésil Contemporain, Paris: EHESS, v. 67/68, p.
242-244, 2007.
22
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil…, [1932]/2010, p. 281.
23
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa: um pai-de-santo na Corte Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2007. Ao longo de todo trabalho, essa autora demonstra o variado público que frequentava a casa de
Rosa.
24
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil…, [1932]/2010, p. 282.
25
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil…, [1932]/2010, p. 282.
47
propagou Nina Rodrigues. Acreditava o clérigo que as incorporações católicas no culto
serviam para atrair fiéis. No Rio de Janeiro do Oitocentos, também foi possível encontrar tal
conclusão por parte das autoridades ao tomarem nota dos testemunhos e declarações nos mais
variados processos sofridos por lideranças afro-brasileiras. 26 As reuniões da Cabula recebiam
o nome de mesas que, por sua vez, ganhavam denominações católicas como Santa Bárbara,
Santa Maria, São Cosme, São Damião, entre outros. Os líderes religiosos ganhavam o nome
de embandas e seus ajudantes o de cambône. 27 Típicos nomes oriundos do quimbundo e do
quicongo, como demonstrou Slenes, em A árvore de nsanda transplantada, ao relacionar os
cultos de Vassouras com os do Espírito Santo. No Rio de Janeiro do Oitocentos, diversas
lideranças afro-brasileiras apresentavam-se dessa mesma forma, homens e mulheres, como se
verá mais adiante, o que possibilita uma análise ampliada de uma gramática de valores
amplamente difundida no Sudeste brasileiro, principalmente nas regiões urbanas da corte.
Outros elementos do culto analisados por Dom Nery e destacados por Nina Rodrigues
estariam ligados aos elementos do cosmograma bacongo, em que se estruturava o credo nos
dois mundos, o dos vivos e dos mortos, e onde se dava a interferência por intermédio do líder
carismático:
26
Cito como exemplo o processo movido contra Sebastião José da Rosa, talvez o mais conhecido líder religioso
do Oitocentos, ao menos pelas páginas da imprensa. Por conta das imagens católicas utilizadas em suas
cerimônias, foi acusado, entre outras coisas, de querer confundir as famílias de bem, com elementos da religião
oficial do Império. SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa…, 2007.
27
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil…, [1932]/2010, p. 282-283.
28
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil…, [1932]/2010, p. 283.
48
Ao longo do ritual, “O cambone traz um copo de vinho e uma raiz. O embanda
mastiga a referida raiz e bebe o vinho”. Na ocasião, todos os iniciados trajavam branco, 29
enquanto o sacerdote fazia uso da enba, compreendida por Slenes como a pemba, ou seja,
argila branca centro-africana, que era passada no corpo dos iniciados e, por vezes, misturada
ao vinho e às raízes, para se produzir a engira. Ressalto que semelhante elemento foi
utilizado tanto por Leopoldo quanto por Antônio Francisco ao realizarem suas cerimônias na
estalagem da portuguesa, ao menos em dois momentos, quando as cruzes eram colocadas nas
portas das inquilinas, e com o mesmo formato, riscadas ao lado dos vasilhames depositados
em específicos cantos da sala. Os dois também foram acusados, ao longo do inquérito, de se
comunicarem com “santos”. Outra forma como a enba era utilizada na Cabula no Espírito
Santo permite compreender um pouco mais de sua função, já que o embanda a atirava para o
ar, e ao som das palmas e tambores, recebia os espíritos, provavelmente dos ancestrais,
responsáveis pela comunicação e interlocução com os vivos. Era o momento em que agiam
os “tata guerreiro, tátá flor de carunga, tátá rompe-serra, tátá rompe-ponte, etc.”.
Sem nem fazer ideia, assim eu creio, Nina Rodrigues transcreveu essa e outras fontes
que atualmente permitem apontar seu equívoco: não eram os centro-africanos dotados de
pobreza mítica. Isso ficará evidente nos quatro capítulos seguintes, entretanto, mais uma vez,
ressalto que não se trata de diminuir o importante e pioneiro trabalho do médico maranhense
radicado em terras baianas, muito menos cair na armadilha de apresentar um trabalho às
avessas.
Por esse motivo, fico com as observações de Arthur Ramos, declarado discípulo de
Nina Rodrigues, que não viu problemas em contrapor as ideias de seu mestre com base em
novas metodologias e fontes disponíveis em seu tempo, capazes de apresentar inexatidões de
trabalhos anteriores, mas ressaltando: “Se a ciência de nossos dias infirma a exatidão de
certos postulados da época em que trabalhou Nina Rodrigues, nem por isso podemos deixar
de reconhecer quão fecundos foram e continuam a ser os resultados de suas investigações”. 30
Dedicado aos estudos das religiões negras, o também médico legista denominou, em seus
estudos, os de “candomblés” na Bahia, “catimbós” em alguns estados do Nordeste e para o
Rio de Janeiro, seriam as “macumbas”, que conheceu e nas quais se aprofundou, visitando
morros cariocas ao integrar o Serviço de Higiene Mental nas Escolas do Distrito Federal, a
convite de Anísio Teixeira entre os anos de 1934-1939.
29
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil…, [1932]/2010, p. 284-285.
30
RAMOS, Arthur. O negro brasileiro…, [1934]/2001, p. 31.
49
Outro ponto importante no trabalho de Arthur Ramos, o etnógrafo e médico legista,
foi que ele dedicou um capítulo de O negro brasileiro aos estudos das contribuições centro-
africanas no campo do sagrado, intitulado Os cultos de procedência banto, com base em suas
experiências na cidade do Rio de Janeiro e Niterói, dentro das chamadas macumbas, e, como
já destacado, à cerimônia da Cabula analisada por Dom Nery no Espírito Santo, com a
diferença de ressaltá-la como uma manifestação banta. Além de comparar com algumas
cerimônias africanas, sendo esse outro destaque de seu trabalho, a tentativa de compreensão
de tais práticas, com suas origens do outro lado do Atlântico, como era feito com os nagôs na
Bahia e, consequentemente, os minas no Rio de Janeiro. Ramos leu a versão em italiano do
padre capuchinho Antonio Cavazzi, Istoria Descrittione de tre regni: Congo, Matumba et
Angola.
Contudo o autor repete as mesmas impressões de Nina Rodrigues ao comparar
“bantos e sudaneses” e, mais uma vez, os primeiros são classificados como detentores de uma
pobreza mítica, que teria sucumbido diante da liturgia “jeje-nago” e do catolicismo, 31 não
levando em consideração a evangelização e conversão do Reino do Congo, que já ia
avançada nos tempos do capuchinho Antonio Cavazzi, e desconhecendo a capacidade hoje
amplamente reconhecida de adaptação dos centro-africanos a novas práticas religiosas, sem
com isso abrirem mão de suas bases religiosas. 32 Não por acaso, destacou os cultos
sobreviventes no Rio de Janeiro e em Niterói, que analisou como “deturpados e
transformados”33. Todavia são de grande importância as observações coletadas no campo de
trabalho do médico etnógrafo.
Arthur Ramos abre os trabalhos dedicados aos centro-africanos com um importante
questionamento no campo da etnografia, diante da “riqueza de contribuições” no campo da
linguística de “origem banto”, contrastando com “nada ou quase nada sobre as religiões e os
cultos bantos”. Talvez até os dias atuais seja este um dos primeiros questionamentos que
movem pesquisadores no Brasil quando decidem seguir os vestígios do objeto aqui estudado:
a forte presença das línguas centro-africanas no vocabulário do país, além consagradas e
celebradas contribuições no campo cultural, mas ainda rechaçada na esfera sagrada. Isso
posto, destaco que os trabalhos etnográficos que impactaram o campo das religiosidades
africanas no Brasil partiram de observações feitas do final do século XIX, por Nina
Rodrigues, e de pesquisas de campo realizadas na primeira metade do século XX, tais como
31
RAMOS, Arthur. O negro brasileiro…, [1934]/2001, p. 98.
32
CRAEMER, Willy de; VANSINA, Jan; FOX, Renée C. Religious Movements in Central Africa: a Theoretical
Study. Comparative Studies in and History, v. 18, n. 4, p. 458-475, out. 1976.
33
RAMOS, Arthur. O negro brasileiro…, [1934]/2001, p. 86.
50
os trabalhos de Arthur Ramos, Édison Carneiro, Roger Bastide, entre outros pesquisadores.
Foi exatamente essa proximidade com o Oitocentos que me fez tomar de empréstimo uma
importante observação de João José Reis, de que esses primeiros escritores conviveram com
velhos africanos, filhos e netos daqueles que implantaram casas religiosas nas mais variadas
regiões do Brasil, aqui, em particular, no Rio de Janeiro. 34 Trata-se, portanto, de uma
importante oportunidade de iluminar o passado, através de suas lentes, por exemplo, quanto
aos elementos ritualísticos presentes na Cabula descrita por Dom Nery e captada pelo médico
maranhense, que em muito complementam as escolhas de Leopoldo e Antônio Francisco na
capital federal.
O contexto desses primeiros observadores era de profundo desprezo pela contribuição
dos centro-africanos no campo do sagrado. Antes mesmo da publicação de O negro
brasileiro, por Arthur Ramos, em 1934, Paulo Barreto, jornalista e cronista da cidade do Rio
de Janeiro, com o pseudônimo de João do Rio, escrevia, durante a Belle Époque carioca,
entre os meses de fevereiro e março de 1904, na Gazeta de Notícias, e em dezembro do
mesmo ano, publicadas em forma de livro, crônicas apresentando as Religiões do Rio. Mesmo
não sendo um cientista, a escrita de João do Rio, como a da maioria dos homens da literatura
e da imprensa, estava marcada pelo cientificismo do Oitocentos e suas permanências no
século XX. Como bem destacou Juliana Barreto Farias, esse autor acreditava ter “um olhar
civilizado”, expressão que figura em Religiões do Rio, ao abordar as mais variadas cenas
negras, além de não se reconhecer como filho de uma mulata. Assim como Nina Rodrigues,
acabou hierarquizando os africanos e suas práticas na cidade do Rio de Janeiro, mesmo não
existindo evidências de que tenha lido os trabalhos do médico maranhense, mesmo este já
tendo lançado, em 1894, As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. 35 Essa
produção, sim, aproximava e muito o personagem Nilo Argolo, criado por Jorge Amado, do
real Nina Rodrigues.
Quero reforçar que as poucas abordagens do cronista com “olhar civilizado”, João do
Rio, buscaram diferenciar os grupos de africanos que ele encontrou na cidade entre mais e
menos civilizados, em diversos aspectos:
O eubá para os africanos é como o inglês para os povos civilizados. Quem fala o
eubá pode atravessar a África e viver entre os pretos do Rio. Só os cambindas
ignoram o eubá, mas esses ignoram até a própria língua, que é muito difícil.
34
REIS, João José. Magia jeje na Bahia: a invasão do calundu do Pasto da Cachoeira, 1785. Rev. Bras. de Hist.,
São Paulo. v. 8, n. 16, p. 57-81, mar./ago. 1988, p. 58-59.
35
FARIAS, Juliana Barreto. João do Rio e os africanos: raça e ciência nas crônicas da Belle Éppoque carioca.
Revista de História, v. 162, p. 243-270, 1º sem. 2010.
51
Quando os cambindas falam, misturam todas as línguas... Agora os orixás e os
alufás só falam o eubá. 36
Esse autor coloca o iorubá na esfera civilizatória como língua mais importante e de
certa forma obrigatória, sem levar em conta idiomas e costumes da África Centro-Ocidental,
preferindo apresentar os cabindas como grupos que, sem nenhuma identidade, misturavam
todas as línguas. Tal depreciação estendeu-se para o campo do sagrado, principalmente
quando descreve uma iniciação ritualística dos minas, a chamada Feitura de iaô ou
simplesmente feitura de santo. O autor simplesmente nega a possibilidade de iniciação
centro-africana 37 ao afirmar que os negros cabindas eram “gente ordinária”, já que, assim
como na língua, copiavam os processos de iniciação ritualística dos grupos de procedência
mina. Analiso adiante complexas cerimônias ritualísticas de iniciação que não somente
cumpriam objetivos litúrgicos como também formavam novas lideranças em solo brasileiro,
discordando, portanto, das observações feitas pelo cronista em suas publicações.
Contudo, nas entrelinhas do preconceito de João do Rio, é possível perceber detalhes
dos rituais entre os cabindas no início do século XX, quando ele compara as divindades, o
que possibilita compreender as conexões estabelecidas, ao que acredito, durante o século
XIX. Divindades comparadas e colocadas ao lado no mesmo panteão descortinam as mais
variadas e complexas conexões entre os grupos de procedência desembarcados na costa
brasileira ao longo do tráfico transatlântico, o que, na visão do cronista carioca e de seu
informante, tratava-se de pobreza ritualística:
36
RIO, João do. As religiões no Rio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976, p. 2. (Coleção Biblioteca Manancial,
n. 47).
37
Em nenhum momento, João do Rio usa os termos mina ou bantos, todavia fica evidente em sua narrativa que
se refere a tais grupos.
38
RIO, João do. As religiões no Rio…, 1976, p. 7.
52
compreensão, ao que tudo indica, não se ateve a apurar as informações que recebia acerca dos
centro-africanos. A aproximação com os santos católicos, destacada pelo cronista, passa pela
realidade do cristianismo africano propagado entre os bacongos e ambundos, iniciada pela
atuação de Afonso I e continuada pelos monarcas que o sucederam. Não acredito que Santo
Antônio, São Cosme e São Damião estivessem por acaso no quarto reservado para cerimônias
na Rua do Lavradio, 42, na estalagem da portuguesa Maria José Cordeiro. O mais provável é
que fizessem parte de uma ampla ressignificação, servindo como modelo as diversas
reinterpretações ocorridas ao longo de um extenso processo de crioulização sucedido nos dois
lados do Atlântico.
Outro ponto apresentado por João do Rio sobre os cabindas foi sua adoração por
pedras, paralelepípedos e outros objetos ligados à abstração e à natureza, o que, logicamente,
foi interpretado por ele como atraso civilizatório, e se a linha de Nina Rodrigues fosse aqui
observada, seria a da pobreza mítica. Como não tinha nenhuma obrigação de analisar o que
observava pelo cruzamento de informações, João do Rio não tinha a menor noção das
sociedades secretas conhecidas como kimpasis ou lembas, que sacralizavam objetos dos
mares e rios, principalmente as pedras, nem que semelhantes práticas já ocorriam no
Oitocentos carioca.39 O que se tem de concreto é que suas análises contribuíram para a
propagação do preconceito contra o sagrado centro-africano, permeando boa parte do século
XX: “Por negro cambinda é que se compreende que africano foi escravo de branco.
Cambinda é burro e sem-vergonha!”,40 bradava Antônio, o africano informante de João do
Rio, exatamente no momento em que lhe apresentava o cotidiano de uma filha de santo
dentro da influência iorubana.
Os escritos de João do Rio, além de não serem contestados por longa data, alcançaram
pesquisas posteriores. Por exemplo, Arthur Ramos, em seu capítulo Os cultos de procedência
banto, ao citar Luciano Gallet, autor de O negro na música brasileira, publicado em 1928,
estava na verdade apresentando na íntegra parte do trabalho do cronista carioca publicado no
ano de 1904, como a ideia simplória de adoração a pedras, paralelepípedos e girassóis, além
da ideia de que “recebiam” como santo “Ganga-Zumba”, entre outros. 41 Entretanto Arthur
Ramos avança na análise, se comparado aos estudos etnográficos de Nina Rodrigues e às
crônicas de João do Rio. Com base nos estudos de Cavazzi, compreende a diferença entre
39
SLENES, Robert W. A grande greve do crânio do tucuxi: espíritos das águas centro-africanas e identidade
escrava no início do século XIX no Rio de Janeiro. In: HEYWOOD, Linda M. Diáspora negra no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2010.
40
RIO, João do. As religiões no Rio…, 1976, p. 8.
41
RAMOS, Arthur. O negro brasileiro…, [1934]/2001, p. 86-87.
53
Nzambiam-pungu ou zambi ampungu, divindade suprema nas regiões do Congo Angola em
que atuou o padre capuchinho, comparado com Nganga Zumbi como título de liderança entre
os sacerdotes centro-africanos. Ramos não comete o mesmo erro do cronista ao associar o
cargo com a divindade. Também reconhece, de certa forma, que houve uma apropriação, por
parte de missionários católicos, ao darem aos objetos sagrados os nomes centro-africanos, o
que contribuiu para o amplo processo de crioulização nos dois lados do Atlântico.
Registrou, no que chamou de macumbas cariocas, cantigas em homenagem a Zambi.
Destaco que suas observações foram feitas na década de 1930, portanto em um contexto
muito próximo dos rituais que analiso ao longo do Oitocentos, principalmente d seu final.
Tendo em vista que o líder religioso Laurentino Inocêncio dos Santos, que serve como fio
condutor para uma análise maior da centúria, exerceu plenamente suas atividades como
sacerdote afro-carioca até o ano de sua morte, em 1895, as cantigas ouvidas e registradas por
Arthur Ramos também ecoavam em sua residência na Ladeira dos Guararapes, na freguesia
da Glória, sendo, provavelmente, palavras como estas que algumas depoentes da casa de
“função” de Maria José Cordeiro também não compreenderam:
54
português literato Ladislau Batalha, que viveu na colônia lusa de Angola na segunda metade
do século XIX. Tais estatuetas fizeram parte do imaginário popular carioca, graças à
propagação de crenças bacongas e ambundas, e na cidade eram chamadas de manipansos,
conforme mencionado na análise do jornal O Paiz, ao receber a priori e sem esforço o
resultado do inquérito contra os envolvidos nas cerimônias da estalagem da portuguesa. Em
solo centro-africano, essas estatuetas receberam, além de manipansos, o nome de inquices,
entre outros. Ramos, por sua vez, destacou o termo itiqui, presente na obra do capuchinho, e
iteque, nos trabalhos de Batalha. Desse último, apresentou importante citação em que
evidenciava como feiticeiro uma liderança religiosa de Luanda, o quimbanda, ou seja, o
mesmo nome cerimonial usado pelo sacerdote do culto realizado no Espírito Santo da
Cabula, ressaltado nas obras de Ramos e Nina Rodrigues como embanda.
Na citação usada por Ramos, o quimbanda lança mão de bebida alcoólica e borrifa na
estatueta iteque, mastiga comida e, da mesma forma, oferece à imagem, passando esta por
numerosas transformações que, nas palavras do português, exalavam “um aroma
nauseabundo”. Talvez isso explique a existência do copo com vinho utilizado por Leopoldo e
Antônio Francisco, cabendo lembrar que todos os testemunhos ressaltaram a existência de
tais objetos, podendo creditar essa observância à importância litúrgica que tinham. Apesar de
dar maior atenção ao tema que autores anteriores, Ramos não avançou no cruzamento de
informações, mesmo tendo possibilidades para isso. Dessa maneira é possível ressaltar que
importantes informações no campo do sagrado encontram-se na Carta Quarta de Ladislau
Batalha. As análises sobre os iteques foram apresentadas por ele quando, em 5 de setembro
de 1877, em Cambambe, interior de Angola, reclamava em carta de percalços com sua saúde
física, já tendo sofrido, inclusive, de “febre biliosa”. Não contando com a presença de
médicos formados nas academias, muito menos de boticas, o tratamento estaria nas mãos dos
“indígenas”. Destaco sua compreensão das causas das doenças: “Como saberás, a doença é
aqui attribuida a feitiçarias, pelo que a adivinhação e o sortilégio constituem o elemento mais
essencial no tratamento de qualquer enfermidade”. 44
Semelhante crença levou Maria José Cordeiro a confiar o tratamento de sua filha a
Leopoldo, embora, por morar na capital federal, estivesse, como destaquei, a poucos metros
do consultório do doutor Benjamin Baptista e, sem dúvida, de muitos outros formados na
medicina oficial. Todavia preferiu, mais de uma vez, buscar auxílio no sagrado, feitiço
combatido com outro encanto. O “caiporismo” lançado sobre a vida de Maria José Cordeiro
44
BATALHA, Ladislau. Costumes angolenses. Lisboa: Companhia Nacional Editora, 1890, p. 29.
55
foi por vezes atribuído a sua desafeta, que ocupava, provavelmente sem pagar em dia, um dos
quartos de sua estalagem. Combater os malefícios de um agente da feitiçaria teria feito parte
das escolhas iniciais da maioria dos moradores da capital federal e, anteriormente, da corte,
assim como fez a portuguesa da Rua do Lavradio e como constatou Ladislau Batalha quanto
ao interior de Angola? Ao observar uma cerimônia de cura, Batalha destacou que amigos e
familiares dos doentes se reuniam em torno do sacerdote em preparação de rituais que
levassem à ventura. 45 Esse autor apresentou ricos detalhes da paramentação de um
quimbanda em busca de seu intento, a cura. Sua descrição lança luz sobre possíveis gestos e
práticas de Leopoldo e Antônio Francisco:
Paramentado, era nessa hora que o quimbanda trazia pendurado ao pescoço a pequena
estatueta feita de amuleto, citada por Ramos. A instigante descrição feita por Ladislau
Batalha pode ser a chave de conexão para se compreender o sagrado afro-carioca do
Oitocentos. Até aqui, elementos fortemente presentes: o sacerdote ricamente paramentado,
levando na cabeça uma espécie de cassungo, sendo ele o responsável pela conexão com os
ancestrais ou demais divindades, pela busca da cura ou pela reversão de um feitiço, as
“madeiras aromáticas” “reduzidas a pó”, que o próprio Batalha descreveu como barro
amarelo, a pemba ou terra dos mortos, presente até aqui nas escolhas de Ladislau, Antônio
Francisco e do embanda da Cabula do Espírito Santo.
Voltando a Arthur Ramos, o médico e etnógrafo apresentou outro importante caminho
para o desdobramento das práticas religiosas no século XX, com a incorporação do
espiritismo kardecista nas práticas compreendidas como oriundas dos bantos. Com base no
trabalho de Augusto Bastos, Traços geraes sobre a ethnographia do districto de Benguella,
Ramos destacou a aproximação das crenças no que chamou de “processo clássico da
evocação dos espíritos”, que seria a busca pelos ancestrais e parentes mortos, presentes nas
religiões tradicionais centro-africanas desembarcadas na América, com o espiritismo
45
BATALHA, Ladislau. Costumes angolenses…, 1890, p. 29.
46
BATALHA, Ladislau. Costumes angolenses…, 1890, p. 30.
56
kardecista desembarcado no Brasil ao longo da década de 1870 e rapidamente integrado às
mais variadas camadas sociais.
Arthur Ramos destacou, ao longo de todo o capítulo Os cultos de procedência banto,
a atuação dos quimbandas em Angola, mas, quando voltou seu olhar para o Rio de Janeiro,
concluiu: “Pouco adianta descrever todos os atos e funções do quimbanda entre os povos
bantos, porque pouca cousa destas cerimônias sobrevivem entre os afro-brasileiros, a não ser
um ou outro nome de significação translata”.47 Acredito ser possível, a esta altura, discordar
do autor. Destino um capítulo para a análise de rituais centro-africanos nas freguesias urbanas
do Rio de Janeiro, onde a presença dos quimbandas, quimbombos, quimbandeiras foi
constante dentro das casas cariocas, e seus atos performáticos acabaram descortinados pelos
depoimentos daqueles que se viram obrigados a enfrentar inquéritos policiais e/ou demorados
processos, indo além do que acredito serem meras significações translatas. E foram esses
sacerdotes e sacerdotisas os responsáveis, ao longo do Oitocentos, pela conexão realizada
entre os vivos e seus parentes falecidos. Essa, por sinal, foi a principal característica
observada por Ramos, e creio que seu olhar estava correto quanto a essa questão. Ao visitar e
estudar o “terreiro” do Honorato, no alto de um morro em Niterói, Ramos ressaltou que:
47
RAMOS, Arthur. O negro brasileiro…, [1934]/2001, p. 97.
48
RAMOS, Arthur. O negro brasileiro…, [1934]/2001, p. 104-105, grifos do autor.
49
RAMOS, Arthur. O negro brasileiro…, [1934]/2001, p. 111.
57
Ressalto que não busco, aqui, “o mito da fundação”, que norteou os debates pós Nina
Rodrigues, principalmente ao longo da primeira metade do século XX, mas procuro encontrar
as bases que possibilitaram formar um alicerce do que ficou conhecido no Brasil como
religiões de matriz africana, como a captada por Ramos no que se refere ao culto aos
ancestrais e aos espíritos familiares de influência centro-africana. Essa foi, de fato, uma das
tantas bases oferecidas por esses grupos na composição das estruturas religiosas no Sudeste
brasileiro. Outro fator de aproximação das casas analisadas por Ramos com a realidade do
Oitocentos foi a disposição litúrgico-espacial do que chamou de terreiro, principalmente o de
Honorato em Niterói: porta de entrada, antessala, existência de dois quartos, um para objetos
do culto, outro com a presença de altares, mesa para consultas chamadas de camarinhas. 50
Cabe lembrar que, mesmo contando com um amplo pátio onde realizava cerimônias
“públicas”, debaixo dos atentos olhares pelos buracos de fechaduras e frestas de janelas,
Maria José Cordeiro mantinha um quarto reservado para cerimônias especiais. Foi nesse
espaço que a polícia encontrou Jacinta, a “lavadeira”. Creio que a composição apresentada
por Ramos conduza outros entendimentos ao longo deste trabalho, cabendo, a meu ver,
questionar: o que viu o autor no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX?
João do Rio não foi o único literato e jornalista a divulgar nas páginas de jornais
costumes e práticas das religiões de matriz africana no Rio de Janeiro. Antônio Eliezer Leal
de Souza, mais conhecido como Leal de Souza, foi um poeta, escritor e jornalista que, a partir
do ano de 1924, portanto anterior à publicação de Arthur Ramos, prontificou-se a visitar,
analisar e descrever o que entendia de suas observações das casas com práticas espíritas e
afro-cariocas, com publicações no jornal A Noite, intituladas No mundo dos espíritos, que, ao
final do mesmo ano, acabou virando livro com o mesmo nome. Esse autor ainda publicaria,
no ano de 1933, o livro O Espiritismo, a magia e as sete linhas de Umbanda. Esse último
trabalho foi pautado em suas muitas visitas ao famoso Centro Espírita Nossa Senhora da
Piedade, do médium Zélio Fernandino de Moraes, tido miticamente até os dias atuais como
fundador da umbanda, no ano de 1908, na cidade de Niterói. Não por acaso, o presente
trabalho contempla como fonte inquéritos e processos movidos contra lideranças religiosas e
participantes de cultos afro-brasileiros não só na corte no século XIX, mas também na
50
RAMOS, Arthur. O negro brasileiro…, [1934]/2001, p. 104.
58
Imperial Cidade de Niterói e na Vila de Itaboraí, na busca por compreender práticas e
manifestações sagradas do que mais tarde ficariam conhecidas como umbanda e candomblé
no século XX.
Voltando a Leal de Souza, esse autor foi um dos primeiros a utilizar o termo umbanda
como prática religiosa, sem dúvida, movido pelas Federações Espíritas, que já existiam, além
do relato de fundação da religião, criada por Zélio Moraes, que teria seguido as instruções do
caboclo das sete encruzilhadas, um típico resultado do encontro entre culturas centro-
africanas, com as ameríndias. Entretanto Leal de Souza, como filho de seu tempo, optou por
priorizar os cultos em que predominava o espiritismo kardecista, em detrimento dos cultos
marcados pela cultura africana. Para comprovar isso, basta consultar suas publicações no
jornal A Noite e perceber nas manchetes de cada matéria e, evidentemente, em seu conteúdo,
a maneira respeitosa como tratava uma doutrina e como descaracterizava a outra. No primeiro
caso, estão “Entre os obreiros da salvação” 51 ou “Sob as tendas dos filhos de São José”, 52 “O
Centro Espirita Beneficente Filhos de Maria de Nazareth”,53 ou até mesmo a manchete
abordando o espaço litúrgico de Zélio de Moraes, “O Centro Nossa Senhora da Piedade A
falange da rua Laura de Araujo - Um louco em uma sessão espírita”.54 Era outro o tratamento
dispensado às casas que visitou no mesmo período, com visíveis manifestações afro-
brasileiras, pois não poupava críticas já na manchete: “O Espiritismo na Macumba – Do
cavallo de S. Jorge à conjura das trevas – Outros aspectos e scenas de feitiçaria”. 55
Contudo, mesmo adotando tal postura, sua narrativa acostumada a ouvir os agentes
envolvidos nas celebrações kardecistas, acabava dando voz aos envolvidos, até mesmo às
entidades presentes nas celebrações afro-cariocas. Dessa forma, analisar algumas das
descrições de Leal de Souza possibilita a aproximação não só com o que era celebrado nas
primeiras décadas do século XX, mas, principalmente, o que Arthur Ramos teve contato no
Rio de Janeiro, as práticas de herança afro-brasileiras, com maior ênfase para as práticas
centro-africanas. Destaco, para comparação, a casa de Pai Quintino, que, no exercício de suas
funções, era chamado de Pai Raphael de Ubanda, situada na Rua Araújo Leitão, no Engenho
Novo, a mesma citada acima em “O Espiritismo na Macumba”, com duas visitas registradas
no ano de 1924, sempre na companhia de Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, diretor, no
mesmo período, do Diário de Notícias, jornal que, ao longo de toda a segunda metade do
51
A Noite, 10 jan. 1924.
52
A Noite, 22 jan. 1924.
53
A Noite, 26 jan. 1924.
54
A Noite, 7 maio 1924.
55
A Noite, 29 jan. 1924.
59
século XIX, emprestou suas páginas para uma constante perseguição às casas afro-cariocas.
O diretor do jornal era um dos muitos pesquisadores da religiosidade de matriz africana do
período. Não por acaso, seu nome figura entre os participantes do I Congresso Afro-
Brasileiro de Recife, em 1934, em que apresentou um trabalho intitulado “Macumba no Rio
de Janeiro”, muito provavelmente com a experiência adquirida dos trabalhos de campo
realizados juntamente com Leal de Souza. Sua participação foi atestada por outros autores e
veículos de comunicação, 56 porém sua apresentação não entrou nos anais do evento,
publicados em dois volumes em 1937.57
A chegada de Leal de Souza à Rua Araújo Leitão deu-se à meia-noite, hora
importante para as manifestações afro-brasileiras, como será exposto adiante. Segundo ele,
“reinava a treva”, o som que chegava aos ouvidos dos visitantes era o de “palmas
acompanhando um sussurro melancólico de vozes”. Chamo a atenção para o altar de Pai
Raphael de Ubanda, 58 que autorizou a entrada dos visitantes:
Ao fundo, numa espécie de altar, forrado de panno branco, com ornatos vermelhos,
imagens diversas, e numerosas, em quadros, e, sobretudo, em estatuetas,
representando santos da egreja e talvez ídolos barbarescos; tijellas cheias de água,
contendo pedras e cruzes de pao; latas, copos, vidros, um cachimbo, velas accesas
em candelabros, um polvarim, garrafas, pacotes de velas, caixas de phosphoros. 59
A instigante disposição da casa de Pai Raphael de Ubanda salta aos olhos pela
mistura de elementos, que, sem um conhecimento prévio do contato e dos desdobramentos do
cristianismo africano presente no Reino do Congo, com Afonso I, e sua propagação pelas
vastas regiões da África Centro-Ocidental, poderiam facilmente ser confundidos com a
“pobreza ritualística” bradada por Nina Rodrigues e que contribuíram para que Arthur Ramos
acompanhasse a mesma conclusão de seu mestre, como já exposto. A observação de Leal de
56
O Correio de São Paulo, 18 out. 1934. Com a manchete O 1º Congresso Afro-Brasileiro instalar-se-á em
Recife em novembro próximo, o jornal destacou o que seria o evento, ressaltando algumas das apresentações:
“A parte scientifica constará de leitura e discussão de trabalhos sobre ethografia, ethinologia, folk-lore, arte,
anthropologia, sociologia e psycologia social, podendo-se desde já annunciar os seguintes: ‘O negro no folk-lore
e na literatura do Brasil’, de Renato Mendonça; ‘Influencia Ethnologica do africano no Brasil’, de Rodrigues de
Carvalho; ‘O negro na história de Alagoas’, de Alfredo Brandão; ‘O negro na arte popular e domestica de
Pernambuco’, de Gilberto Freyre em collaboração de Cicero Dias; ‘Macumba no Rio de Janeiro’, de Nóbrega da
Cunha; ‘O negro na poesia brasileira’, de Odorico Tavares; ‘Potencia Revolucionaria do negro americano’, de
Adherbal Jurema. Apresentarão também memórias: Arthur Ramos, Roquette Pinto, Ruy Coutinho, Ulysses
Pernambuco, Geraldo de Andrade, Mario Marroquim, Edson Carneiro, Samuel Campello, etc. Trabalhos estes
que serão posteriormente publicados […]”.
57
ESTUDOS afro-brasileiros: trabalhos apresentados ao 1º Congresso Afro-Brasileiro, realizado no Recife.
Edição fac-similar. v. VI. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, [1937]/1988. NOVOS estudos afro-
brasileiros: trabalhos apresentados ao 1º Congresso Afro-Brasileiro, realizado no Recife. Edição fac-similar. v.
VII. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, [1937]/1988.
58
A Noite, 29 jan. 1924.
59
A Noite, 29 jan. 1924.
60
Souza, “representando santos da egreja e talvez ídolos barbarescos”, em muito se aproxima
da narrativa do jornal O Paiz acerca do Rei Mandinga: “[…] volveu de novo a igrejinha da
rua dos Inválidos […] manipanços, santos, taes como S. Damião, S. Cosme etc.” 60 Dom Nery
na Cabula do Espírito Santos, em 1900, destacou que os elementos católicos serviam para
iludir os fiéis. Ou seja, salta aos olhos a semelhança da casa de Pai Quintino (Pai Raphael de
Ubanda), descrita por Leal de Souza, com os rituais da Rua do Lavradio, principalmente por
compará-los com altares de igreja e as imagens católicas estarem dispostas ao lado de
elementos antropomórficos de herança africana.
O avanço tecnológico trouxe para o século XX a possibilidade de estampar fotografias
e imagens. Não por acaso, denúncias contra casas afro-cariocas nesse período vinham quase
sempre acompanhadas de imagens dos objetos amontoados nas antessalas das delegacias
cariocas, portanto não representavam a disposição utilizada nos espaços litúrgicos. Contudo o
caso de Pai Quintino não se tratou de uma convencional batida policial, já que ele abrira sua
casa para a entrada de Leal de Souza, Nóbrega da Cunha, entre outros. Dessa forma, a
fotografia estampada na primeira página do jornal A Noite configura um rico e importante
momento de apresentação de uma casa afro-carioca (Imagem 3).
60
O Paiz, 26 ago. 1899, grifo do original.
61
A Noite, 29 jan. 1924. Com a legenda: “Pae Quintino, paramentado e com a sua espada de Ogun, em seu
canzel, em companhia de seu auxiliar e de uma creança”.
61
Pai Quintino permitiu-se fotografar paramentado, ao lado de seu auxiliar de culto e de
uma pequena criança, o que abre importantes possibilidades de se pensar na continuidade da
crença, ao se passarem os conhecimentos para os mais novos. Voltando ao espaço da Rua
Araújo Leitão, é possível perceber o altar forrado de branco. A notícia do A Noite atesta que a
mesa continha adornos em vermelho, as diversas imagens já citadas, em forma de estatuetas e
quadros, e, ao chão, “encruzando as lâminas, uma espada de dois sabres de Comblaim”. As
duas espadas ao lado de Pai Quintino serviam de baioneta do fuzil Comblaim, provavelmente
um modelo de 1870, as três espadas perfuravam uma folha, “cheias de cruzes de giz”, “uma
estrella de metal”, “punhaes de várias dimensões”. 62
Com uma vela acesa e um rosário enrolado em um santo de gesso, Pai Raphael de
Ubanda passava tais objetos em papéis amassados. Diante dos que assistiam seus atos
performáticos, o sacerdote fez um sinal para a preta Guiomar, mandando que ela amarrasse
aqueles papéis na saia, e, batendo palma, entoava o seguinte refrão: “Oia o nó, Guimá!”63 Os
pontos riscados, cantados e as amarrações foram analisados no século XX por Robert Farris
Thompson, em Flash of the spirit, quando tratou dos Quatro momentos do sol, 64
apresentando o cosmograma bacongo. Os objetos dispostos não só estavam em consonância
com a maneira de compreender o universo do sagrado dos povos centro-africanos, como
compunham um repertório litúrgico, aproximando as casas afro-cariocas ao longo do século
XIX. Não por acaso, a incorporação acontecia exatamente quando se riscava o ponto no chão:
Riscou, a giz, um círculo no chão, e, dentro do círculo, uma cruz, sobre o qual
emborcou o Santo. Apanhando um copo, entornou cachaça em quatro pontos
diversos, em torno da imagem emborcada; rabiscou deante de nós e nosso
companheiros umas figuras cabalísticas, que foram cobertas de pólvora. Apagou as
velas que lhe ardiam aos pés e mandou chegar fogo aos desenhos de pólvora, que
deflagravam, ao canto, cadenciado a palmas:
- Quema o maus oio! Quema a má língua! 65
62
A Noite, 29 jan. 1924.
63
A Noite, 29 jan. 1924.
64
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit: arte e filosofia africana e afro-americana. São Paulo: Museu
Afro Brasil, 2011.
65
A Noite, 29 jan. 1924.
62
seguinte explicação: “- A minha língua é a língua de Angola, mas eu me experico p’ra os
meos fio comprehendê”. 66 Evidenciando a importância ritualística que o quimbundo exercia
dentro das casas afro-cariocas, não foram poucos os casos demonstrados neste trabalho,
dentro dos inquéritos e processos movidos contra lideranças afro-religiosas do Oitocentos, em
que surgiram observações como: “rituais em línguas africanas” ou “o uso de língua
gentílica”, deixando claro que palavras de comando e ação eram proferidas seguindo uma
liturgia africana ou ao menos tendo esta por base. Outro elemento presente na cena era a
cachaça, objeto ritualístico presente em todas as celebrações africanas e afro-brasileiras,
como tem se evidenciado até aqui.
Pai Raphael de Ubanda não só comandava a cerimônia, dando conselhos em
particular e no coletivo, como era o responsável por conduzir os médiuns presentes na casa
para a incorporação. Chamo a atenção para a jovem Sebastiana, preta “de lindas faces, pés
descalços e vestido branco”, que, ajoelhando-se diante do sacerdote, bebeu um pouco do
vinho (mesma bebida do ritual no Lavradio, em 1899) servido em uma taça e, batendo
palmas, cantava: “Ogum eh! Ogum eh!”, o que rapidamente fez Nóbrega da Cunha segredar
no ouvido de Leal de Souza e dos demais acompanhantes da comitiva: “Ogum é São Jorge”,
e pediu atenção informando que a médium incorporaria em breve seu espírito. Terminou por
informar a Leal de Souza que os presentes acreditavam que a jovem Sebastiana recebia “São
Jorge”, mas ressaltava Nóbrega da Cunha que se tratava do “cavalo do Santo”. 67 Tal
expressão, “cavalo”, tornou-se comum nas práticas afro-cariocas, principalmente na
umbanda, para designar o médium que incorporava um guia ou entidade espiritual. Segundo
Nei Lopes, a palavra seria uma derivante do termo em quimbundo mukuavalu ou kavalu,
significando cônjuge, aproximando-se, assim, do termo iorubano iaô, iyawo, esposa, sendo o
domínio do corpo do médium comparado à posse do ato sexual.68
A crença na incorporação do próprio santo conecta no tempo e no espaço as
apropriações do catolicismo no Reino do Congo, sem que as tradições bacongos fossem
deixadas de lado. Ao contrário, o diálogo de ambas as culturas que se encontravam
possibilitaram um constante processo de crioulização. Destaco a trajetória da jovem
aristocrata congolesa Beatriz Kimpa Vita, que, no início do século XVIII, em meio às crises
sucessórias no reino provenientes da derrota na batalha de Ambuila, liderou um movimento
conhecido como antonianos, em que todas as sextas-feiras afirmava incorporar o próprio
66
A Noite, 29 jan. 1924.
67
A Noite, 29 jan.1924.
68
LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. 4. ed. São Paulo: Selo Negro, 2011, p. 339.
63
Santo Antônio. 69 Diante de uma religião tradicional, em que os ancestrais eram divinizados,
cultuados e, nas celebrações, incorporados, não é difícil a compreensão dos santos católicos
como tais ancestrais, tendo em vista que, de fato, todos aqueles que foram canonizados
passaram, em algum momento, pelo mundo dos vivos.
Semelhante a Dona Beatriz Kimpa Vita, que, no início do século XVIII, recebia Santo
Antônio para auxiliar os desalentados em meio à crise política e social do Reino do Congo,
Sebastiana, o cavalo de São Jorge, recebia o santo para atender os que buscavam em Pai
Raphael de Ubanda auxílio para as “doenças ou negócios”, 70 ou seja, dava consultas e
apontava para uma imagem do santo, na qual se depositavam as doações oferecidas ao longo
dos atendimentos. Durante os rituais dedicados a Ogum ou São Jorge, diversas cantigas eram
entoadas. As captadas por Leal de Sousa estavam em português, como a que segue, anotada
na festa em homenagem ao dia do santo católico, em que toda comitiva que havia visitado o
espaço de Pai Quintino retornou para acompanhar os festejos dedicados ao santo:
– Viva Ogun!
– Viva o general de Umbanda!
– Viva a espada do nosso general!
– Viva o cavallo do nosso general! 71
69
THORNTON, John K. The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement,
1684-1706. New York: Cambridge University Press, 1998.
70
A Noite, 29 jan. 1924.
71
A Noite, 23 abr. 1924.
64
Imagem 4 - Pai Quintino, chefe da
Macumba da rua Araujo Leitão, no
Engenho Novo
Cumpre-se a profecia de Roquete Pinto, tendo em vista que o naturalista então ligado
ao Museu Nacional dedicou um livro inteiro para estudar o que se entendia à época por
72
A Noite, 23 abr. 1924.
73
Prefácio de O sertão carioca, de: CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca. Rio de Janeiro: Intituto
Histórico e Geographico Brasileiro, 1936, p. 7.
65
sertão, região voltada para “o interior, o coração das terras”, ou o lugar de mato longe da
costa, segundo o Dicionário de Antônio Moraes e Silva.74 Publicado em 1933, O sertão
carioca tinha como objetivo apresentar as terras distantes da Cidade do Rio de Janeiro, as
terras que hoje vão da região de Jacarepaguá até o bairro de Pedra de Guaratiba. Ao abordar a
vida e os costumes da região, Magalhães Corrêa dedicou o nono capítulo à Religião,
abordando o que chamou de candomblé, e o capítulo dezenove foi intitulado A macumba.
O sertão carioca foi publicado originalmente no volume 167 do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB), como exposto, no ano de 1933, com destaque para o capítulo
intitulado Religião, que também ganhou o nome de Assistência. Isso foi feito na tentativa de
apresentar, em forma de denúncia, as dificuldades enfrentadas pelos moradores das áreas
longínquas para terem acesso à medicina oficial. Dessa forma, ele acabou por se aproximar
da realidade das práticas afro-cariocas exercidas ao longo de todo o século XIX, estendendo-
se para as primeiras décadas do período em que escreveu sua obra. A busca por líderes
religiosos, conhecidos à época como “curandeiros”, para tratarem de males nem sempre
espirituais, mas sim de questões físicas de saúde era abordada por ele:
O espiritismo é praticado por typos sem escrúpulos, que dizem não ganhar,
mas recebem dinheiro para fazer o bem a seus protegidos, fórmula para
cohonestar a sua profissão. Fazem toda a sorte de curas, até praticam a
gynecologia em pobres inexperientes, verdadeiros curandeiros, e o povo
quanto mais humilde, mais neles confia. 75
Magalhães Corrêa adotou o termo espiritismo logo no início de seu trabalho de forma
generalizada, para falar não simplesmente da prática de Kardec, mas também de todas as
manifestações afro-brasileiras. A crítica desferida por Corrêa é pertinente ao seu tempo, ao
longo de todo o século XIX e início do XX. Jornais do Oitocentos teciam as mesmas críticas
em relação às cobranças feitas pelos serviços prestados pelas lideranças religiosas, sem contar
que as autoridades imperiais constantemente associavam a liturgia de tais casas, com o crime
de estelionato, previsto no Código Criminal de 1830 em seu art. 264, §4: “Em geral todo, e
qualquer artificio fraudulento, pelo qual se obtenha de outrem toda a sua fortuna, ou parte
della, ou quasquer títulos”.76 Havia raríssimas exceções, como no caso do Rei Mandinga, em
74
SILVA, Antônio Moraes e. Diccionario da Lingua Portugueza. 7. ed. Tomo II. Lisboa: Thypographia de
Joaquim Germano de Sousa Neves, 1878, p. XXX.
75
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca,… 1936, p. 206.
76
BRASIL. Código Criminal do Império do Brazil, Lei de 16 de dezembro de 1830. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm Acesso em: 18 nov. 2019.
66
que o jurista Viveiros de Castro discorre longamente sobre a necessidade de liberdade de
culto e não lhe imputa pena alguma ao final do processo. 77
Magalhães Corrêa, ao falar das religiões presentes no sertão carioca, discorreu em
poucas linhas sobre as igrejas seculares que existiam na região, como a de São Gonçalo do
Amarante, no Camorim, construída em 1625. Passando a seguir para as religiões afro-
cariocas, destacou que, na região estudada, era praticado o jujuismo, “a religião do
fetichismo”. Fetiche, segundo esse autor, seria “um objeto material trabalhado ou não”, no
qual seria depositado “o espírito ancestral, tornando-se espirito protector de um grupo ou
tribu”. 78 A palavra juju vem do francês joujou, significando brincadeira ou joguete. Ao
longo do século XIX, em regiões da África Ocidental, o nome passou a ser associado à
prática espiritual de inserir espíritos em objetos e amuletos. O termo também deu nome aos
envolvidos no processo de encantamento dos objetos sagrados como juju-hause, para a casa
do ídolo; juju-man, para o responsável pela cerimônia; Supre Juju Court, Tribunal Supremo
da Juju. 79 Esse Tribunal provavelmente é o mesmo citado por Magalhães Corrêa quando fala
do juju. Nele, o sacerdote, supostamente no sertão carioca, presidiria os oráculos, e os
suspeitos seriam submetidos “à prova do veneno ordélio”.
Ao explicar o que entendia por jujuismo, Magalhães Corrêa relacionou imediatamente
o jujú à produção de um objeto encantado, o fetiche, na literatura especializada de seu tempo.
Corrêa afirmou ser possuidor de um Gris-gris ou jujús de colocar no pescoço, trazido do
aldeamento dos negros de Dakar. A mesma relação pode ser encontrada na obra do Pe.
Étienne Brazil, outro importante autor do período em questão a se dedicar ao estudo do negro
no Brasil e, consequentemente, a suas práticas religiosas. Em O fetichismo dos negros do
Brazil, publicado também pela revista do IHGB no ano de 1911, visitando por vezes o Museu
Nacional, teve, portanto, acesso a sua coleção de etnografia africana. Brazil, ao abordar o
que, segundo ele, seriam as categorias de fetiche, os preservativos do mal, seguidos dos
comunicativos do bem e do mal, afirma: “Às primeiras espécies pertencem os gris-gris ou
‘ju-jus’ e demais amuletos que soem trazer consigo para afugentar as doenças e malefícios”.80
Voltando a Magalhães Corrêa, o autor segue a regra de todos os estudiosos do assunto
presentes em seu tempo, pautando-se pela observação de um integrante mais velho das
77
CASTRO, Augusto Olympio Viveiros. Questões do Direito Penal. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos,
1900, p. 103-113.
78
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca…, 1936, p. 208.
79
MOCKLER, Augusto Ferryman. Imperial Africa: the rise, progress and future of the Bristish possessions in
Africa. London: The Imperial Press Limited, 1898.
80
BRAZIL, Étienne. O fetichismo dos negros no Brasil. Revista do IHGB, Tomo LXXIV, parte II, p. 193-260,
1911, p. 234-235.
67
práticas religiosas, de preferência um africano. Assim fez Nina Rodrigues em Os africanos
no Brasil com seu informante, bem como Pe. Étienne Brazil, que sabidamente leu o pioneiro
médico maranhense, citando seu trabalho em sua bibliografia. 81 Não por acaso, ao apresentar
suas metodologias, indicou que futuros estudiosos deveriam seguir seus passos, visitando
hospitais para interrogar “velhinhos de mendicidade da Bahia”, e que consultassem os
babalaôs dentro dos terreiros e casebres.
Apesar de Nina Rodrigues ser a grande referência para o período em que Magalhães
Corrêa escreve O sertão carioca, esse autor não cita em sua nota a leitura de nenhum trabalho
do médico maranhense, aliás, no campo da religiosidade, suas leituras foram modestas. Em
uma limitada nota, informa que consultou Histoire générale des religions, de Salamon
Reinack; Festas e tradições, de Mello Moraes Filho; Onomastica geral da geographia
brasileira, de Bernardino José de Souza. Conseguiu ler o trabalho apresentado por Nóbrega
da Cunha no I Congresso Afro-brasileiro de Recife em 1934, além de O fetichismo dos
negros no Brasil, de Pe. Étienne Brazil. 82 Essa última leitura o colocou, de certa forma, em
contato com a produção de Nina Rodrigues, tendo em vista que a base para Brazil falar dos
orixás é o trabalho do médico maranhense, principalmente valendo-se das imagens de
divindades e representações do sagrado lançados por Nina Rodrigues.
Cabe ressaltar a curiosa relação entre esses dois autores. Para escrever nas páginas da
Revista do IHGB a respeito das religiões afro-brasileiras, Pe. Étienne Brazil buscou
informações na importante coleção africana do Museu Nacional. O caminho parece que
também foi percorrido por Magalhães Corrêa, para lançar O sertão carioca, na mesma
Revista do IHGB, na década de 1930, já que era naturalista da instituição e que, segundo
Roquete Pinto, “encontrou-se, [Corrêa] no Museu Nacional, em ambiente de exaltado amor
81
Étienne Brazil cita L’animisme fetichiste des négres de Bahia, publicado em 1900. O material que resultou no
livro de Nina Rodrigues foi publicado anteriormente, em cinco capítulos, entre os anos de 1896 e 1897, nas
páginas da Revista Brazileira. No centenário da morte de Nina Rodrigues, em 2006, a Biblioteca Nacional
publicou o fac-símile dos artigos publicados ao final do século XIX: RODRIGUES, Raimundo Nina. O
animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 2006. Pe. Étienne Brazil
também consultou As religiões do Rio de João do Rio e os trabalhos do afamado chefe de polícia do Rio de
Janeiro em seu tempo de pesquisas nas prisões baianas: LEAL, Aurelino. A religião entre os condenados da
Bahia: estudo de psychologia criminal. Bahia: Amargosa, 1898.
82
A Biblioteca Nacional lançou, em 2017, a segunda edição da obra de Magalhães Corrêa, ocasião em que
apresentou em nota ampliada os detalhes desta citação: REINACH, Salomon. Orpheus: histoire générale des
religions. Paris: Alcide Picard, 1909; MORAIS FILHO, Alexandre José de Mello. Festas e tradições populares
do Brasil. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901; BRAZIL, Étienne Ignace. O fetichismo dos negros no Brasil.
Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, t. 74, v. 124, p. 193-260, 1911; SOUZA, Bernardino José
de; PEIXOTO, Afrânio. Onomástica geral da geografia brasileira. Salvador: Escola de Aprendizes Artífices,
1927; CUNHA, Carlos Alberto Nóbrega da. Macumba no Rio de Janeiro. Trabalho apresentado no I Congresso
Afro-Brasileiro de Recife, em 1934. Ver: CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca. 2. ed. Rio de
Janeiro: Contracapa/Faperj/Fundação Biblioteca Nacional, 2017.
68
ao estudo de nossa Natureza [...]”. 83 Existia, na época, na instituição, a coleção africana de
etnografia, que começou a ser construída no século XIX, ganhando maior reforço na gestão
do seu diretor Ladislau Netto, entre os anos de 1880 e 1887. Os primeiros objetos africanos
são presentes enviados ao Brasil e anteriores a essas datas, como, em 1811, o trono de
Adandozan, rei do Daomé, ao príncipe D. João. Além desses objetos, existiam bandeiras de
guerra, dois alforjes, duas bolsas de tabaco, dois pares de alpercatas, dois abanos, um caxim,
quatro bastões, duas forquilhas, duas esteiras, entre outros.
Contudo, em 1880, Ladislau Netto começa a trocar correspondência com os chefes de
polícia da corte, solicitando que enviassem para o Museu os objetos apreendidos nas batidas
policiais nos espaços litúrgicos compreendidos pelas autoridades como casas de dar fortuna e
que se encontravam armazenados nos arquivos policiais para fins de provas contra os
participantes dessas casas. Seu pedido foi prontamente aceito e, ao longo de sete anos,
objetos foram encaminhados para a coleção de etnografia do Museu, cujo diretor acreditava
que serviriam para profícuos estudos etnográficos. Cabe ressaltar que ele fazia isso com
variados assuntos. Vivia de escrever cartas solicitando que enviassem descobertas
arqueológicas em fazendas de café pelo interior do país, entre outros focos de interesse. Em
uma de suas correspondências, solicitou aos chefes de polícia que priorizassem o envio de
“ídolos”, dada a importância desses objetos. 84
Foram essas peças fotografadas e publicadas por Pe. Étienne e, mais tarde,
reproduzidas por Corrêa. Voltando ao autor de O sertão carioca, acredito que, na parte
voltada à religião, ele se inspirou nas sugestões do referido padre: “Para estudar os bruxedos
e feitiçarias, necessário é observar as usanças do nosso povo, principalmente nos sertões;
analisar as trovas populares e compulsar as memórias dos viajantes – tarefa essa tão árdua
quão longa”. 85 E, mais do que uma simples inspiração, as páginas de Corrêa no tocante aos
orixás é quase uma cópia fiel das páginas de Étienne, incluindo as imagens que ele pinta das
divindades africanas, todas aparecem no trabalho do padre. E este, por sua vez, escreve sob a
83
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca,… 1936, p.7.
84
Para mais informações acerca da Coleção da Polícia do Museu Nacional, ver: CABRAL, Carolina. Da polícia
ao museu: a formação da coleção africana do Museu Nacional na última década da escravidão. Dissertação
(Mestrado em História) - Instituto de História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2017. O trabalho
de Cabral fora inspirado na composição da exposição Kumbukumbu - África, memória e patrimônio, com a
coordenação de Mariza Soares de Carvalho. A apuração dessa relevante pesquisa resultou na exposição
permanente no Museu Nacional. Marcado criminosamente pelo abandono do poder público federal, acabou
vitimado pelo incêndio no início de setembro de 2018. Até a escrita deste trabalho, o exaustivo trabalho de
resgate nos escombros do Museu Nacional tinham encontrado parte da coleção da Polícia da Corte, exposto no
Centro Cultural Banco do Brasil, CCBB.
85
BRAZIL, Étienne. O fetichismo dos negros no Brasil. Revista do IHGB, Tomo LXXIV, parte II, p. 193-260,
1911.
69
influência clara de Raimundo Nina Rodrigues. Brazil cita, em sua bibliografia, a obra em
francês L’animisme fetichiste des nègres da Bahia, publicada em 1900 e dedicada à Société
Médico-Psychologique de Paris, da qual o médico maranhense era membro estrangeiro. Mas,
apesar de Pe. Étienne citar essa primeira edição, cabe destacar que, ao longo do ano de 1896,
Nina Rodrigues publicou na Revista Brazileira O animismo fetichista dos negros baianos, em
quatro capítulos. Em seu trabalho, Pe. Étienne se utiliza não somente das imagens existentes
na coleção do Museu Nacional, mas também das publicadas por Nina Rodrigues,
identificando apenas que eram da Bahia, sem citar a publicação original.
Por sua vez, Magalhães Corrêa, ao descrever o que seria o candomblé no sertão do
Rio de Janeiro, acaba por fazer uma cópia fiel do trabalho de Étienne Brazil. Por exemplo, as
páginas dedicadas ao interior dos Pejis, nas quais é apresentada uma instigante narrativa de
feitura de santo, ou seja, uma iniciação ritualística, são todas retiradas de O fetichismo dos
negros no Brasil, ficando evidente que a Bahia passava não só a ser “referência” na
compreensão do candomblé, mas, principalmente, que alguns autores acreditavam que
bastava a simples repetição de rituais analisados em poucas casas baianas para se
compreender o Rio de Janeiro e demais localidades do Brasil. Uma rápida análise das
Imagens 5, 6 e 7 corroboram minhas hipóteses:
86
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca,… 1936, p. 204. A imagem abre o capítulo: Assistência?
Religião.
70
O risco feito a grafite representando a divindade iorubana é concluído com a
assinatura de Magalhães Corrêa, contudo a mesma representação pode ser encontrada no
trabalho do Pe. Étienne Brazil, publicado vinte e cinco anos antes de O sertão carioca:
87
BRAZIL, Étienne. O fetichismo dos negros no Brasil. Revista do IHGB, Tomo LXXIV, parte II, p. 234-235,
1911, p. 219.
71
Imagem 7 - “Throno ou banco
esculpido do culto de Yêmanjá”
88
Revista Kosmos, ano 1, n. 8, ago. 1904.
89
Revista Kosmos, ano 1, n. 8, ago. 1904.
72
Nas encruzilhadas dos caminhos, estradas e ruas de Jacarepaguá, amanhece de sexta
para sábado esse fetiche: os sabidos aproveitam quando se trata de paraty, dinheiro
ou charuto, o que já foi presenciado mais de uma vez por mim, sem nenhum receio
de malefício, pois dizem que só faz efeito a pessoa designada. 90
90
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca, ... 1936.
91
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca, ... p. 217.
92
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca, ... p. 218.
73
“Pae de Santo” ou “Mãe de Santo”, foi como Magalhães Corrêa afirmou serem chamados os
sacerdotes das macumbas existentes no sertão carioca. Da mesma forma, lideranças religiosas
foram identificadas nos espaços litúrgicos do Rio de Janeiro, ao longo do Oitocentos, com as
mesmas funções de comandarem as divindades e espíritos ancestrais no momento do transe,
além de fazerem e desfazerem “trabalhos”.
Ritual é uma série de invocações aos Orichás e aos Quiumbos entre cânticos,
dansas, magias e musica, incorporando-se aos Ogans e as Gibonas que passam a
comunicar-se com os crentes e atender-lhes os pedidos […].
Do meio do terreiro chama os ogans e gibonas, que ficam em filas, os primeiros de
um lado e os segundos do outro, defrontando-se; quando começa a dansa, como se
fossem uma quadrilha, mas bárbara, isolados, dansam mudando de posição,
segundo o cântico que é a marcação, repete-se a invocação com o acompanhamento
de palmas, e, pouco a pouco, vae se transformando o rythmo numa exaltação
inebriante; o cântico acelera-se, a dansa chega no auge da loucura, as physionomias
transfiguram-se, os olhos esbugalhados e vítreos, approxima-se a descida do Orichá
e o Pae de Santo pede mais enthusiasmo para boa incorporação do deus. 93
Chamo a atenção para tais descrições ritualísticas, pois elas permitem lançar uma luz
para um passado mais distante, como o trabalhado na Introdução, a primeira metade do
século XIX, quando rituais praticados a céu aberto, seguindo semelhantes atos performáticos,
eram confundidos com cantos, danças de descanso semanal aos domingos no Campo de
Santana. É interessante perceber o interesse despertado nos intelectuais brasileiros, que,
pouco mais de cem anos depois das descrições feitas na Introdução desta tese, já
compreendiam em parte o que viam e, certamente, sabiam que estavam diante de um ritual
afro-brasileiro.
Não somente as cerimônias externas que envolviam transe, canto e dança sob o
comando de um líder carismático, também o interior das casas afro-cariocas da primeira
metade do século XX em muito se aproximava de espaços como o de Leopoldo e Antônio
Francisco, por exemplo. No texto de Magalhães Corrêa, ganhou destaque a existência de um
Canzol, espécie de quarto onde eram depositados os encantos representando cada divindade,
ervas, sementes, peles, colares, vidros, sendo também um local secreto, com autorização de
entrada apenas para os iniciados nos rituais. O Pai de Santo saía do Canzol acompanhado
pelo Cambondos, “todo paramentado”, sendo as vestes “uma camisa vermelha e na cabeça
um gorro da mesma cor, tendo lateralmente, e no forro, uma cruz e um friso dourado […]” 94
Os ritos descritos em Magalhães Corrêa também se aproximavam de costumes de cantar e
93
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca, ... p. 218-219.
94
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca, ... p. 218. Ver página XX, do capítulo XX, a fotografia
anexada ao processo de Sebastião José da Rosa, o Juca Rosa, em que o Pai de Santo se apresenta com
vestimentas litúrgicas. A semelhança entre os trajes é enorme, mesmo separados por mais de meio século.
74
riscar dos pontos do Pai Raphael de Ubanda (Pai Quintino), em que o sacerdote invocava a
presença das divindades, em meio aos traços feitos a giz. Os trabalhos de adivinhação
também foram apresentados por Corrêa como “rodelas de casaca de laranja verde ou amarello
de um lado, branco de outro, jogo muito conhecido entre os malandros”. Aqui uma evidente
descrição do Jogo da Casquinha, comum entre os trabalhadores urbanos ao longo do século
XIX, compreendido como jogo de azar, razão de terem sido seus jogadores constantemente
perseguidos pela polícia da corte. 95
Contudo, mesmo diante da instigante descrição da macumba feita no livro de
Magalhães Corrêa, sou tentado a afirmar que as assertivas do autor de O sertão carioca foram
na verdade retiradas do afamado trabalho de Nóbrega da Cunha, apresentado no Congresso
Afro-Brasileiro de Recife em 1934, intitulado “Macumba no Rio de Janeiro”, que, como já
exposto, não foi posteriormente publicado nos anais do evento. Ressalto que, se correta
estiver tal hipótese, aumentam as influências dos trabalhos de Nina Rodrigues e dos
intelectuais que atuaram posteriormente nos congressos afro-brasileiros do Recife e da Bahia
para a construção de uma narrativa das práticas afro-brasileiras no campo do sagrado. A
descrição ritualística, bem como a ideia de religião como resultado do encontro de várias
matrizes sagradas, comprovam as visitas feitas por Nóbrega da Cunha e Leal de Souza às
casas, nos idos de 1924, como a casa de Pai Quintino ou de Pai Raphael de Ubanda, como
era chamado no momento das celebrações em sua casa no Engenho Novo.
Não por acaso, a principal festividade descrita no texto de Magalhães Corrêa foi a
ronda de Ogun, que foi associado com São Jorge, celebrada no dia 23 de abril, nitidamente se
aproxima da festividade narrada por Leal de Souza na casa do Engenho Novo, em que
Nóbrega da Cunha apresentou diversas informações acerca do ritual presenciado no dia do
santo católico. Os cantos e as espadas utilizadas pela divindade no momento da incorporação
são outros elementos que reforçam a aproximação dos ritos e, principalmente, a apropriação
95
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca, ... p. 218-219. Agradeço o despertar para o Jogo da
Casquinha a Ynaê Lopes Santos, que atentou no caráter proibitivo da prática e aventou a possibilidade de existir
alguma ligação dele com as casas afro-cariocas pejorativamente chamadas de casas de dar fortuna. Com
Magalhães Corrêa, vejo que as hipóteses se confirmam. Agradeço também, em particular, ao meu pai Manoel
Luiz, velho pescador aposentado, que, nas suas tantas histórias dos almoços de domingo, contou sobre sua
mocidade no que costuma chamar de “roda da malandragem”, jogando bambá, e prontamente me explicou o
Jogo da Casquinha, feito com rodela de casca de laranja, no qual os apostadores escolhiam na sorte o lado
branco ou com cores das cascas ao serem jogadas no chão. Sobre a perseguição ao jogo, ver: SOARES, Carlos
Eugenio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas:
Editora da Unicamp, 2001, p. 76. Debret já apresentava o jogo na primeira metade do século XIX, na Prancha
59, ao descrever barbeiros ao lado do mercado do peixe, de frente para o palácio: “[…] divertindo-se com um
jogo de azar cujo lucro, retirado da parte do senhor, aproveitará certamente algum vendedor de guloseimas,
caixa habitual dos adversários felizes. Ver: DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil.
São Paulo: Imprensa Oficial, [1839]/2015, p. 207-208.
75
do texto de Nóbrega da Cunha por Magalhães Corrêa. Esse último conclui o texto referente à
macumba agradecendo a um “velho de cor preta” chamado Felippe, que teria lhe apresentado
os conhecimentos descritos, com a seguinte recomendação: “cala a boca mia fio! Que isso é
segredo, oio vê e bocca cala”.96 Se verdade for que, ao contrário do que fez com a primeira
parte do texto dedicado à religião do sertão carioca, na qual boa parte fora retirada do
trabalho de Étienne Brazil, tenha Magalhães Corrêa de fato entrevistado um velho
conhecedor da cultura afro-carioca, isso reforça a noção da existência de repertório litúrgico
pautando as escolhas sagradas nos dois lados no Atlântico.
Mal acabo de escrever este, já penso noutro livro. Estou interessado, agora, em
encontrar traços negros bantus na Bahia. […] E aqui chega a ocasião de lhe
aborrecer. Eu sou um limpo… Para poder cometer um troço sério sobre os negros
bantus, preciso de livros sobre. Os mais descritivos. Você não poderia me emprestar
o que tivesse sobre o Kongo, sobre Angola, sobre Moçambique, principalmente os
de Dias de Carvalho, Ladislau Batalha, etc.? 97 Apenas por um mês no máximo. 98
96
CORRÊA, Armando Magalhães. O sertão carioca, ... p. 223.
97
CARVALHO, Henrique Dias de. Methodo pratico para fallar a língua da Lunda. Lisboa: Imprensa Nacional,
1890. BATALHA, Ladislau. A língua de Angola. Lisboa: Companhia Nacional Editora, 1891. BATALHA,
Ladislau. Costumes angolenses. Lisboa: Companhia Nacional Editora, 1890. BATALHA, Ladislau. As línguas
d’Africa. Lisboa: Companhia Nacional Editora, 1889.
98
OLIVEIRA, Waldir Freitas; LIMA, Vivaldo Costa. Cartas de Edison Carneiro a Artur Ramos: de 4 de
janeiro de 1936 a 6 de dezembro de 1938. São Paulo: Corrupio, 1987, p. 90-91.
76
O pedido não foi atendido, com a queixa de Carneiro de que, em 1936, na Bahia, não
seria “difícil” encontrar tais materiais, mas sim “impossível”.99 Não por acaso, Édison
Carneiro abre o livro Negros bantos com uma nota em que deixa clara a dificuldade de
encontrar material referente à cultura centro-africana, chamada pelo autor de “negro do sul da
África”. Em sua opinião, o pesquisador fica entregue ao seu “possível sexto sentido”, criando
portanto, um “caderno de notas” que, segundo ele, serviriam para futuros trabalhos. Esse
livro, por sua vez, foi resultado de uma vasta pesquisa de campo realizada pelo autor em
terreiros afro-baianos com visíveis influências centro-africanas. João da Pedra Preta,
posteriormente conhecido em todo Brasil como Joaozinho da Gomeia, Manuel Paim, do Alto
do Abacaxi, seguidos do casal Germina e Manuel Lupércio do Espírito Santo, do Forno,
foram os informantes e donos de espaços litúrgicos visitados por Carneiro para compor seu
trabalho.100
Carneiro, mesmo sem acesso a livros que o remetessem à África Centro-Ocidental,
apresentou modestas informações sobre a região do Congo Angola, como a presença do
cristianismo desde os primeiros contatos, iniciados com as Grandes Navegações. Para tal,
usou Camões e suas referências do contato entre portugueses e congoleses. Segundo
Carneiro, apenas Arthur Ramos, ao reabilitar a escola Nina Rodrigues, teria dado o devido
destaque aos bantos, diferentemente do médico maranhense. O fato é que os dois discípulos
de Nina Rodrigues optaram por apresentar o que compreendiam como continuidade das
práticas bantas no Brasil, mas não deixaram de seguir os ensinamentos do mestre,
classificando tais práticas, como inferiores às dos nagôs, que, na visão dos autores, não
somente eram dotados de riqueza litúrgica, mas também os protagonistas do encontro e das
transformações religiosas do universo afro-brasileiro.
O que quero destacar, contudo, é que, mesmo sem perceber, Édison Carneiro criou em
seu trabalho uma cartilha do encontro, apresentando as reais possibilidades de aproximação
e, principalmente, de apropriação dos rituais vindos dos mais variados povos da África
Ocidental, por parte dos grupos centro-africanos em solo americano, principalmente na
Bahia, seu espaço de estudo.101 Um excelente exemplo desse momento é a apresentação do
Ministro da Guerra, a divindade iorubana Ogum, que, segundo esse autor, teria sofrido
influência dos “negros bantos” para adquirir “funções guerreiras”, não transmitidas, de
99
OLIVEIRA, Waldir Freitas; LIMA, Vivaldo Costa. Cartas de Edison Carneiro a Artur Ramos,… 1987, p.
113.
100
CARNEIRO, Édison. Religiões negras – negros bantos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [1937]/1991,
p. 121.
101
CARNEIRO, Édison. Religiões Negras – negros bantos,… [1937]/1991, p. 144.
77
acordo com Carneiro, pelos “jeje-nagôs”. Os pontos entoados em meio às cerimônias
associavam o orixá com a figura dos caboclos, ou seja, os ameríndios presentes na terra, antes
mesmo da chegada dos europeus, sendo, portanto, compreendidos como os donos da terra:
Carneiro compreendia o culto aos caboclos como tendo nascido no Brasil como
resultado de uma confusão gerada pela pobreza mítica dos povos centro-africanos,
destacando um pequeno verso dedicado a tal culto: “cabocos que são d’Angola, caboco
sambangolê…”. 103 Atualmente, são grandes as possibilidades de compreensão da introdução
nos cultos afro-brasileiros das figuras ameríndias, comumente chamadas de caboclos. Em
trabalho intitulado Of Ancestors and Earth Spirits, Kairn Klieman focalizou as migrações
milenares que ocorreram ao longo da ocupação territorial da África Centro-Ocidental, sendo
comum líderes religiosos carismáticos intercederem ritualisticamente pela boa adaptação na
terra daqueles recém-chegados, além de seguirem o princípio da procedência, cultuando
aqueles que foram os primeiros a chegar:
102
CARNEIRO, Édison. Religiões negras – negros bantos,… [1937]/1991, p. 152, grifo do autor.
103
CARNEIRO, Édison. Religiões negras – negros bantos…, [1937]/1991, p. 180.
104
KLIEMAN, Kairn A. Of Ancestors and Earth Spirits: New Approaches to Interpreting Central African
Politics, Religion, and Art. In: LAGAMMA, Alisa (ed.). Eternal Ancestors: The Art of the Central African
Reliquary. New York, N. Y.: Metropolitan Museum of Art, 2007, p. 44. O primeiro a apresentar tais
possibilidades no Brasil foi Robert Slenes em A árvore de nsanda transplantada: SLENES, Robert. L’arbre
nsanda replante: cultes d’affliction Kongo et identité des esclaves de plantation dans le Brésil du Sud-est (1810-
1888). Cahiers du Brésil Contemporain, Paris: EHESS, v. 67/68, p. 242-244, 2007. Ver também a apresentação
do livro de Andréa Mendes: MENDES, Andrea. Vestidos de realeza: fios e nós centro-africanos no candomblé
de Joãozinho da Goméia. Duque de Caxias: APPH-CLIO, 2014, p. 16. (Série Recôncavo da Guanabara, v. 1).
Para um estudo mais aprofundado da apropriação dos “espíritos da terra” feito em solo brasileiro por centro-
africanos, desencadeando no culto aos caboclos e em manifestações nacionais, como a celebração da
Independência na Bahia com a Festa do Dois de Julho do Caboclo, ver: MENDES, Andrea. Sua bandeira na
Aruanda está de pé. Caboclos e espíritos territoriais centro-africanos nos terreiros e comemorações da
78
O respeito pelo princípio da procedência pode ser encontrado em diversas
circunstâncias em território brasileiro.105 Alexandre Marcussi, em Cativeiro e cura, pautado
em fontes do Santo Ofício, apresentou, no ano de 1686, o caso dos escravos de Belquior da
Fonseca Dórea, dono de engenho na região do Rio Real da Praia. Suas escravas apresentavam
“um mal”, dizendo que “um caboclinho que vinha se meter nelas, de que caíam por terra à
maneira de endemoniadas” e, quando possuídas, falavam e respondiam aos questionamentos
“pela língua da terra” e, segundo os depoimentos feitos ao promotor do Santo Ofício, o
espírito do “caboclinho” só se retirava quando a “comadre” das negras, a “índia” Íria e seu
esposo Miguel recolhessem no mato “raízes e folhas” e celebrassem um ritual.106 Marcussi
destacou a possibilidade de aproximação entre a maneira de compreensão da doença e a
busca pela cura com a terapêutica centro-africana dos calundus, com as noções tupinambás de
desordem.
Como se vê, mais caminhos apontam para a compreensão das primeiras observações
feitas por Édison Carneiro, ao associar os candomblés de caboclo dos centro-africanos com
divindades iorubanas e ameríndias em conexão com o catolicismo. E mesmo que o autor
pautasse o protagonismo de tal diálogo a presença dos africanos ocidentais, não por acaso
Ogum não só era apresentado como caboclo, mas também, segundo as observações desse
autor, seria associado a Santo Antônio, para o qual se cantava, ao mesmo tempo invocando os
dois nomes e com missões próximas: “Santo Antônio amarra o nego…”. 107 Relembro que a
mesma divindade africana na casa de Pai Raphael era associada a São Jorge no ano de 1924.
Carneiro apresenta ainda outras aproximações afro-ameríndias, como a denominação
de Ogum do Cariri, que, em seu ponto, teria “Sangue Reá!” e seria “neto d’Aruanda!”, o que
prontamente fora compreendido por Carneiro como a corruptela da palavra Luanda, ou seja, a
São Paulo de Luanda, capital de Angola e maior porto de embarque de escravizados, como se
verá no segundo capítulo, no qual será possível compreender as vestimentas de Ogum
analisadas por Édison Carneiro, “invariavelmente, vestido à moda indígena – tanga, cocar,
etc.”.
Independência (Bahia, 1824-1937). Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2018.
105
Em conversas pessoais com Moisés Soares Peixoto, fui informado que em diversas fontes paroquiais
presentes na Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, RJ, no que tange a documentos referentes às freguesias do
Recôncavo da Guanabara, que não era raro para a região casamento entre centro-africanos e tupinambás, grupo
ameríndio predominante na região.
106
MARCUSSI, Alexandre Almeida. Cativeiro e cura: experiências religiosas da escravidão atlântica nos
calundus de Luiza Pinta, séculos XVII-XVIII. 2015. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 61-62.
107
CARNEIRO, Édison. Religiões negras – negros bantos…, [1937]/1991, p. 153.
79
Outro importante ponto apresentado por Carneiro e que me faz compreender seu
trabalho como uma cartilha do encontro é sua descrição do culto dedicado a Iemanjá, nos
capítulos intitulados Dona Maria e Os orixás das águas, estas facilmente associadas à
morada “no fundo da Calunga”, o espaço sagrado centro-africano, em que o mar era a linha
divisória entre o mundo dos vivos e dos mortos, semelhante à divisão que estabelecia o
espaço de culto da Cabula no Espírito Santo, em 1900. Dessa forma, o então jovem escritor
de Negros bantos não viu dificuldades de aproximação entre os credos dos africanos centrais
e ocidentais passando pela compreensão das águas como condutora do sagrado. Creio, a essa
altura, que estava Carneiro certo de suas interpretações, ainda mais como se sabe atualmente
da existência do culto a seres ligados às águas doces e salgadas, como os bisimbis entre as
sociedades secretas dos kimpasis, o que foi externado anteriormente e mais adiante será
aprofundado. Cabe ainda ressaltar que as grandes celebrações dedicadas a Iemanjá na Bahia,
segundo esse autor, estavam “monopolizadas pelos negros bantos”, sendo que ele colocou na
mesma esfera a lavagem do Bonfim,108 festividades comuns nos dias atuais e ainda marcadas
pela grande mistura de elementos afro-brasileiros com símbolos do catolicismo. Para
Carneiro, a liturgia banta não diferia “muito da jeje-nagô”, sendo, portanto, uma “imitação
servil”, com “certas liberdades maiores”, o que rapidamente foi compreendido como “dose de
rebeldia”, destacando-se a maneira peculiar como João da Pedra Preta e Manuel Lupércio
lidavam com a feitura de santos, dando-lhes características diferentes daquelas das casas
iorubanas do mesmo período.109
Pelo exposto, acredito que os primeiros escritos acerca das heranças afro-brasileiras
no campo do sagrado, ao menos os mais importantes para seus períodos, apresentam-se como
um verdadeiro farol voltado para o século XIX, com profundas possibilidades de
compreender os rituais praticados principalmente na segunda metade do período, dada a sua
proximidade temporal. Contudo o momento de maior aporte de africanos desembarcados no
Sudeste brasileiro foi, a meu ver, importante para se compreender o que existia de bagagem
cultural sendo exercida na cidade, principalmente levando-se em conta o fim do tráfico em
1850, que eliminou o contato com a costa africana no que tange ao abastecimento dos cativos
e seus conhecimentos no campo do sagrado.
108
CARNEIRO, Édison. Religiões negras – negros bantos,… [1937]/1991, p. 158-168.
109
CARNEIRO, Édison. Religiões negras – negros bantos,… [1937]/1991, p. 185-186.
80
CAPÍTULO 2
1
Gazeta de Notícias, 26 mar. 1878.
81
“provocar desordens e injúrias”. 2 No mesmo carro conduzido à Detenção, estavam Antônio
João de Almeida, Anna Maria de Jesus, Rosa da Conceição, Maria Gertrudes, Guilhermina
Rosa da Conceição, Augusta da Conceição, Felicidade da Rosa da Silva, Luiza Maria da
Conceição, Urbana Joaquina da Conceição, Isidro Monteiro e Joaquina Rosalina da
Conceição, por cometerem “infracção”, “sendo encontrados em casa de dar fortuna”. 3 Tal
expressão figurou no imaginário popular, ao longo de todo século XIX, como sinônimo de
local de culto afro-brasileiro, visto de forma pejorativa como local de se buscar a sorte fácil.
A terceira vez em que Laurentino se viu envolvido com a polícia em curto espaço de tempo
foi nos primeiros dias do ano de 1879. Não por acaso, os motivos foram os mesmos de março
de 1878, “prodigalizar fortuna”, na mesma Ladeira dos Guararapes, para mais de vinte fiéis,
diante dos já bastante conhecidos altares com as mais variadas espécies de imagens. Na
cerimônia de janeiro, estavam sendo utilizados “raízes, pós e águas em vasilhame que
embebião grandes favas e búzios, hervas e caramujos”. 4 Cabe destacar a atuação da mesma
diligência policial que, em 1878, era comandada pelo subdelegado Dr. Francisco Corrêa
Dutra.
Na ocasião, Laurentino fora conduzido à Casa de Detenção da Corte, no carro da
instituição, rumo à região do Mangue, e sobre si pesava a acusação de “estelionato”.5 As
fichas de matrícula preenchidas no momento da prisão buscavam detalhar as principais
características físicas do preso, sob a ideia de “condições e signaes”, que, no caso do
curandeiro da Glória, eram as seguintes: “solteiro”, contava com “cinquenta e oito anos de
idade”, sua cor era “preta”, sua altura era a de “cinco pez e ½ polegadas”, o que atualmente
equivaleria a 1,5 metro de altura. Seria uma pessoa de baixa estatura, olhos “pretos”, nariz,
boca e lábios descritos como “regular”, cabelos “carapinha”, “bigode” e semblante “regular”.
Sua ocupação profissional foi descrita como “negociante”.6
A mesma diligência policial encaminhou para a Casa de Detenção, onde a fichou, a
menor de 9 anos Júlia, “liberta”, filha de Laurentino com Maria Luiza. Como o pai, sua cor
era “preta”, o cabelo “carapinha” e foi descrita como “costureira” por ofício. Entretanto não
acabou na prisão por estelionato, mas sim por “ser encontrada em zungú”. 7 Motivos distintos
usados para autuar Laurentino e Julia, pai e filha presos por estarem na mesma casa, ajudam a
lançar luz nas atividades que ocorriam na Ladeira dos Guararapes.
2
Jornal do Commercio, 22 out. 1878.
3
Jornal do Commercio, 22 out. 1878.
4
Gazeta de Notícias, 08 jan. 1879.
5
Livro de Matrícula da Casa de Detenção da Corte [doravante LMCDC], ficha [doravante f.] 71, 07 jan. 1879.
6
LMCDC, f. 71, 07 jan. 1879.
7
LMCDC, f. 87, 07 jan. 1879.
82
Esses pequenos vestígios deixados pelos participantes dos cultos na freguesia da
Glória, ao longo de toda a segunda metade do Oitocentos, compõem um importante ponto de
partida para a compreensão do universo religioso praticado nas freguesias urbanas do Rio de
Janeiro durante toda a centúria. Busco, portanto, circunscrever o entorno de Laurentino, seus
familiares e fiéis, cruzando fontes que me permitiram uma maior aproximação e compreensão
das escolhas no universo sagrado e da liturgia praticada no interior da casa na Ladeira dos
Guararapes. Para tal, foi de fundamental importância a análise de outras lideranças religiosas
de todo esse período, que, de alguma forma, pela repressão das forças policias e pelo braço da
justiça acabaram processados, ou simplesmente foram captados pelas lentes filtradas de
viajantes europeus. Dessa forma, creio ter conseguido me aproximar de respostas aos
seguintes questionamentos: Quais caminhos guiaram os conhecimentos de Laurentino para as
escolhas performáticas de sua liturgia? O que oferecia a cidade do Rio de Janeiro no campo
do sagrado? Quais práticas dialogavam entre si e compunham novas instituições no campo do
sagrado?
Assim, com vários envolvimentos ligados à justiça – não somente os apresentados até
aqui –, Laurentino Inocêncio dos Santos é já uma referência na historiografia.8 Sua trajetória,
ao longo de significativo período do século XIX, pode descortinar as mais variadas
possibilidades no campo do sagrado, dentro das freguesias urbanas do Rio de Janeiro. Sua
mobilidade social, alcançada pelo ofício desenvolvido com seus seguidores na Ladeira dos
Guararapes, faz pensar em quais relacionamentos tecia para que sua casa pudesse funcionar
sem ser incomodado com frequência, a quem seu ofício assombrava9 e, principalmente, que
tipo de culto era praticado em seu espaço litúrgico. Laurentino Inocêncio dos Santos não seria
8
O primeiro trabalho a apresentar o curandeiro da Glória foi: SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Zungú rumor
de muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 1998. Laurentino fora
apresentado em um contexto em que o autor buscava a compreensão das casas de zungú no Rio de Janeiro.
SOUZA, Rafael Pereira de. “Batuque na cozinha, sinhá num quer”. Repressão e resistência cultural dos cultos
afro-brasileiros no Rio de Janeiro (1870-1890). 2010. Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. O trabalho de Souza, apesar de não
ter identificado “Júlia liberta” como filha de Laurentino, merece destaque pela atenção que deu às fontes
repressivas, (policiais) para jogar o feixe de luz nas casas afro-cariocas, apresentando uma gama preciosa de
fontes para os que desejarem futuramente se aventurar por tal caminho, além de dramatizar as situações,
permitindo ao leitor observar a vida pulsante das casas afro-cariocas. Ver também: POSSIDONIO, Eduardo.
Entre ngangas e manipansos – a religiosidade centro-africana nas freguesias urbanas do Rio de Janeiro de fins
do oitocentos (1870-1900). Salvador: Sagga, 2018. Trabalhei nessa obra com a casa de Laurentino buscando
compreender as práticas religiosas existentes nas freguesias urbanas da corte.
9
Ver: SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro
imperial. Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult, IFCH, 2001.
83
um ponto fora da curva, ao contrário, atuou em uma das mais conhecidas esferas da
sociedade ao longo do Oitocentos, a da religiosidade. A população da corte,
predominantemente católica segundo o censo de 1870, fora marcada por uma forte influência
do sobrenatural, dessa forma ficando conhecida por todo tecido social a figura dos
curandeiros, quimbombos, ngangas, pais e mães de santo, reis e rainhas, entre outros que
administravam a crença em espíritos territoriais, na intensa relação com a ancestralidade e o
mundo dos parentes falecidos, segundo a percepção de que o mundo dos mortos interferia
diretamente no cotidiano dos vivos, ajudando a obter a boa ou a má sorte. Ao longo desse
período, quem precisasse de um serviço para o amor, para a cura, para se livrar de
determinado feitiço ou, principalmente, para se iniciar ritualisticamente em uma esfera
sagrada, saberia, sem maiores dificuldades, encontrar uma dessas lideranças religiosas.
Dessa forma, sua trajetória serve de base para a compreensão das mais diversas
práticas afro-brasileiras realizadas em uma cidade cosmopolita como o Rio de Janeiro, que,
principalmente com o advento da mineração ao longo do século XVIII, tornou-se a principal
zona portuária das Américas e local propício para o estabelecimento do que Fernando Ortiz,
analisando na década de 1940 as relações entre europeus, africanos e ameríndios em Cuba,
chamou de transculturação, 10 processo pelo qual sempre acontecem trocas e transformações a
partir dos contatos entre diferentes povos e culturas. O mesmo conceito encontra-se
atualmente atualizado e ampliado por Mary Louise Pratt, que se propõe a pensar o fenômeno
da transculturação ocorrendo em zonas de contatos, locais onde povos geografica e
historicamente separados estabelecem relações contínuas, mesmo onde geralmente ocorre a
coerção com base nas relações assimétricas de poder de ambas as partes. 11 Dessa forma,
ressalto que analisar uma casa religiosa não é, na verdade, a busca por um ponto de partida ou
uma determinada pureza ritualística existente dentro de suas paredes, seguida rigidamente por
seus fiéis, como, ao longo do século XX, o discurso foi amplamente propagado pelo meio
acadêmico e ainda hoje é possível de ser observado dentro de determinadas casas de
candomblé. 12 Cabe, para tal, recorrer à interessante comparação feita sobre esse quesito por
Ferretti, lançando mão das reflexões de Leonardo Boff em Igreja: carisma e poder:
10
ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubana del tabaco y el azucar. Maximo Gomez, 1940.
11
PRATT, Mary Louise. Imperial Eyes: travel writing and transculturation. London and New York: Routledge,
1992.
12
FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo: estudo sobre a Casa das Minas. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo; São Luís: FAPEMA, 1995, p. 71.
84
sincrético como qualquer outra religião [...] o cristianismo puro não existe, nunca
existiu nem pode existir. [...] O sincretismo, portanto, não constitui um mal
necessário nem representa uma patologia da religião pura. É sua normalidade”. 13
13
FERRETTI, Sérgio Figueiredo. Repensando o sincretismo..., 1995, p 75.
14
Código Criminal do Imperio do Brazil. Rio de Janeiro: Typografia Episcopal Antonio Gonçalves Guimaraes
& C., 1860, p. 94.
15
Para maior aprofundamento sobre a atuação de lideranças religiosas e seu complexo relacionamento com a
legislação, ver: COUCEIRO, Luiz Alberto Alves. Magia e feitiçaria no Império do Brasil: o poder da crença no
Sudeste e em Salvador. 2008. Tese (Doutorado em Antropologia) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Antropologia – PPGSA, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.
85
desqualificar as práticas curativas e religiosas dessas casas. Foi o que aconteceu com
Laurentino na primeira prisão de 1878, quando a Gazeta de Notícias e o Jornal do
Commercio utilizaram o termo para justificar a atuação da equipe do Dr. Corrêa Dutra. O
último veículo, inclusive, destacou em negrito o título da reportagem: Casa de dar
fortuna. 16
Por sua vez, os zungús foram, ao longo de todo o século XIX, casas com variadas
funções, sendo uma delas a de servir aos transeuntes alimentos, bebidas, principalmente a
cachaça, o batuque, ligado a festas, marcando desde simples distrações da pesada jornada de
trabalho até a rituais e preceitos religiosos. Ofereciam também o serviço de moradia barata,
direcionada principalmente aos escravos que, em prévio acordo com seus senhores, viviam
por si. Não por acaso essas casas estavam ligadas à ideia de acoitar escravos fugidos, a farras
e batuques, como ficava explícito no Título Quarto do Código de Postura de 1834, em seu
sétimo parágrafo:
Já o termo casas de dar fortuna seria utilizado de forma pejorativa pelos moradores
da Corte no período citado para designar manifestações religiosas que, de alguma maneira,
com objetos, ritos litúrgicos, língua utilizada na cerimônia, entre tantas outras referências,
lembrassem as práticas consideradas como trazidas pelos diversos grupos étnicos de seres
humanos escravizados, traficados de solo africano. E que eram, de fato, práticas afro-
brasileiras, já há séculos ressignificadas pelo processo de transculturação iniciado com a
colonização lusitana nos dois lados do Atlântico.
Dessa forma, as duas atividades se confundiam no jargão policial do Oitocentos,
ficando os zungús fortemente associados a antros de feitiçaria e da busca pela sorte fácil,
como o termo dar fortuna buscava explicitar. Tais espaços geralmente eram frequentados por
livres, libertos e, principalmente, escravos colocados ao ganho, que, depois de cumprirem
suas jornadas estipuladas pelos senhores, utilizavam o tempo restante da maneira que bem
lhes aprouvesse. Foi o que ocorreu com Roza Benguela, preta, natural da Costa, escrava de
Genoveva, presa no dia 25 de setembro de 1879, na freguesia do Espírito Santo, pelo praça
16
Gazeta de Notícias e Jornal do Commercio, 26 mar. 1879.
17
Codigo de Posturas da Illustrissima Camara Municipal. Rio de Janeiro: Emp. Typ. – Dous de Dezembro – de
P. Brito Impressor da Casa Imperial, [1838]/1854.
86
Francisco Barbosa Viana, por ser encontrada em zungú. Sua ocupação era a de vender doces,
e sua dona ficou dois dias sem os serviços de sua africana posta ao ganho, por conta das
diversões dentro do zungú. 18 O local era também propício ao descanso, seguido de música
por vezes acompanhada por tambores ora enfurecidos, ora melancólicos. Cachaça e outras
bebidas não faltavam nessas casas, formando, portanto, um ambiente favorável à criação de
laços de sociabilidades entre seus frequentadores, motivo para preocupação constante das
autoridades, não desejosas de ver agrupamentos de escravos entregues aos vícios e perigos
derivados destes.
É possível aqui pensar em um repertório zungú, dentro da categoria de “repertório
cultural” elaborada por Charles Tilly, em que reinvindicações coletivas improvisam scripts
compartilhados, apresentando-os em forma de petição. Dessa forma, não seria difícil
imaginar zungús como um espaço propício para as trocas no campo do sagrado. 19 Nos
momentos de distração regados a bebidas e músicas, as agruras do dia a dia poderiam ser
trazidas à baila. Nessa hora, valeria a boa fama dos líderes religiosos para que seus nomes
fossem lembrados e suas casas divulgadas. Pensando dessa forma, as possibilidades
aumentavam para Laurentino, pois os primeiros registros nos livros da detenção e nas páginas
dos jornais que acompanhavam as diligências policiais não deixam dúvidas de que existia um
repertório. O endereço da Ladeira dos Guararapes, além de renomado espaço religioso, onde
se preparavam remédios, firmavam-se preceitos diante dos altares que harmonicamente
apresentavam elementos que resultavam da mescla entre diversas culturas promovida pela
transculturação, de forte influência centro-africana, marcada por seu conteúdo secular afro-
lusitano, a ameríndia, somadas a objetos do rito católico, era também procurado por grande
quantidade de pessoas, tendo em vista que existiam na casa espaços voltados para aluguel e
dormitório, ou seja, os zungús. Sobre essa combinação, afirma Luiz Carlos Soares:
18
LMCDC (Livro dos Escravos), f. 1296, 25 set. 1879.
19
TILLY, Charles. Repertoires of Contention. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
20
SOARES, Luiz Carlos. O “Povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro no
século XIX. Rio de Janeiro: Faperj – 7 Letras, 2007, p. 217.
87
A definição de zungú exposta por Soares embasa o que foi apresentado até aqui,
entretanto acredito que, para a esfera do sagrado, seja precipitado pensar em candomblé para
o contexto da primeira metade do século XIX. Sua imputação como candomblé poderia cair
no erro de pensar essa prática como algo já estruturado, como ocorreria no início do século
XX, e não como uma corrente religiosa em visível construção no contexto do século XIX,
sendo resultado dos complexos contatos entre uma estrutura cultural religiosa construída ao
longo dos séculos pelo mais intenso contato entre colonos portugueses, ameríndios e
africanos na cidade do Rio de Janeiro, seguida de um intenso aporte de africanos
escravizados desembarcados aos milhares até o fim definitivo do tráfico transatlântico em
1850. Isso somado ao fato de que a capital colonial – e mais tarde a corte no Império – era
uma cidade cosmopolita, em constante contato com as demais províncias do Brasil e do
mundo.
Focando na prática do uso de zungús, Ynaê Lopes Santos chamou a atenção para a
normalidade do fato de pessoas escravizadas na corte do Rio de Janeiro viverem por si na
primeira metade do Oitocentos, e quase a totalidade dos que se encontravam nessa situação
eram os colocados ao ganho por seus senhores. Acabavam, dessa forma, ganhando autonomia
e maiores possibilidades de negociações. Essa autora, assim como Sidney Chalhoub em Medo
branco de almas negras, 21 trabalha com a ideia de um grande quilombo urbano, onde o
cativo que desejasse conseguiria se esconder de seu senhor ou de suas obrigações em meio à
multidão dos que viviam por si. Tais facilidades de locomoção e escolha permitiam uma
variada gama de possibilidades, e, se o zumgú era o local de encontro, tornava-se, dessa
forma, um centro em ebulição na visão das autoridades. 22 Tais espaços não podem ser
pensados apenas como local de favorecimento para práticas religiosas, como pretendo
demonstrar para a casa de Laurentino Inocêncio dos Santos, mas serviam como facilitadores
das mais diversas práticas negras na cidade. Isso é o que se evidencia em Capoeira escrava,
de Carlos Eugênio Líbano Soares, que chama a atenção para os laços de solidariedade criados
entre os capoeiras nas casas de “angus e zungús”. 23
21
Segundo Chalhoub, o meio urbano escondia cada vez mais a condição social dos pretos, entretanto ressaltou
que a mesma cidade também aumentava seu grau de desconfiança, tornando os indivíduos da cor preta em
potenciais suspeitos. Ver: CHALHOUB, Sidney. Medo branco de almas negras: escravos, libertos e
republicanos na cidade do Rio. Rev. Bras. de Hist., S. Paulo, v. 8, n. 16, p. 83-105, mar./ago. 1988.
22
SANTOS, Ynaê Lopes dos. Além da senzala: arranjos escravos de moradia no Rio de Janeiro (1808 – 1850).
2016. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 38.
23
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Capoeira Escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808
1850). Campinas, Ed. Unicamp, 2002, p. 199-216.
88
O crescimento dessa autonomia escrava incomodava as autoridades regenciais por
diversos motivos, naturalmente ajuntamentos representavam o medo de revoltas. As revoltas
escravas que culminaram na independência do Haiti ainda ecoavam no Brasil quando, em
1833, foi deflagrada a Revolta dos Malês, em Salvador. Somam-se a isso os desdobramentos
do conturbado período regencial, em que as principais revoltas continham escravizados e
libertos, entre africanos e crioulos. Nesse contexto, Ynaê Lopes Santos acredita que tais
movimentos, acompanhados de uma autonomia alcançada por diversos grupos de
escravizados, foi um dos fatores que acabou por impulsionar as ações regressistas da década
de 1840, levando a mudanças consideráveis em relação ao elemento servil, uma vez que na
transição da Postura Municipal de 1830 para a de 1838, a palavra escrava aparece 53 vezes,
acrescido dos momentos em que esse era visto como um sujeito em potencial.24
Fica evidente que não seria a casa de Laurentino um ponto fora da curva, ao contrário,
estaria amplamente inserido no contexto da cidade e nos costumes locais. Ser vizinho de um
espaço religioso, promovedor de cerimônias cercadas de cantos, danças, matanças de animais
e iniciação ritualística fazia parte da rotina de grande parte dos moradores da Corte.
Problemas das mais diversas naturezas encontravam no sobrenatural quando não a resposta,
ao menos um alento para os males – a busca por felicidade, a cura dos males físicos e
espirituais, a melhora de má sorte, a descoberta dos acontecimentos futuros, até mesmo a
busca pelo abrasamento no coração e o encontro da pessoa amada. Essas ideias figuraram no
imaginário do Oitocentos, como destacou o romancista Manuel Antônio de Almeida, em
Memórias de um sargento de milícias, por meio do padrinho de seu personagem principal, o
barbeiro Leonardo Pataca:
Pois ao nosso amigo Leonardo tinha-lhe também dado na cabeça tomar fortuna, e
tinha isso por causa das contrariedades que sofria em uns novos amores que lhe
faziam agora andar a cabeça à roda.
24
SANTOS, Ynaê Lopes dos. Além da senzala..., 2016, p 130.
25
ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Santiago, Chile: Klick Editora, 1997,
p. 24-25.
89
Leonardo, para conquistar o amor da cigana, que fizera a travessia do Atlântico na
mesma embarcação, já se havia entregado a diversos ritos, chamados pelo autor de
“infinidade de provas”, que envolviam desde custos até a realização de obrigações, que se via
obrigado a depositar em determinados lugares da cidade, visando estabelecer contato com as
divindades, recitando, nesse momento, orações ensinadas pelo caboclo. Ele também devia
participar de cerimônias:
26
ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias,... 1997, p. 24.
27
CARNEIRO, Édison. Religiões negras – negros bantos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, [1937]/1991,
p. 152, grifo do autor.
28
CARNEIRO, Édison. Religiões negras – negros bantos,… [1937]/1991, p. 153.
29
A Noite, 29 jan. 1924.
30
KLIEMAN, Kairn A. Of Ancestors and Earth Spirits: New Approaches to Interpreting Central African
Politics, Religion, and Art”. In: LAGAMMA, Alisa. Eternal Ancestors: The Art of the Central African
Reliquary. New York: The Metropolitan Museum of Art, 2007, p. 44.
90
fortuna, entre outros espaços. Esse autor apresenta um Rio do início do século XIX, “no
tempo do rei”, mas sua escrita está centrada na segunda metade do Oitocentos, período de
pleno funcionamento da casa de Laurentino. Entretanto, mesmo tendo encontrado os
primeiros rastros deixados pelo curandeiro da Glória apenas na década de 1870, acredito que
os ritos praticados em sua casa não foram moldados apenas naquele contexto, mas pertenciam
a uma bagagem ancestral, resultado do contato e da formação de redes sociais entre os
colonos, desembocando em laços de amizade, formação de parentescos simbólicos,
casamentos, entre outras possibilidades. Entretanto, para a esfera do sagrado, salta aos olhos
um protagonismo centro-africano no estabelecimento dessas relações. Dessa forma, é de
fundamental importância compreender a dinâmica do tráfico transatlântico para o Rio de
Janeiro na primeira metade do Oitocentos até sua proibição efetiva em 1850.
31
RUGENDAS, Joham M. apud SLENES, Robert W. “Malungo, ngoma vem!”: África coberta e descoberta no
Brasil. Revista USP, n. 12, dez./jan./fev., p. 48-67, 1991-1992, p. 48.
32
MANOLO, Florentino. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro: séculos XVIII e XIX. São Paulo: Cia das Letras, 1997, p. 211, apêndice 63. KARASCH, Mary C. A
vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850),... 2000, p. 50-58. RODRIGUES, Jaime. De costa a costa:
escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo:
Companhia das Letras, 2005. ELTIS, David. The Nineteenth-Century Transatlantic Slave Trade: An Annual
Time Series of Imports intothe Americas Broken down by Region. The Hispanic American Historical Review,
v. 67, n. 1, p. 109-138, Feb. 1987.
33
ELTIS, David; RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New Haven; London: Yale
University, 2010, p. 15 e 87.
91
cosmopolitas, erguidas sob a administração portuguesa pautada pelo olhar de uma sociedade
de corte, Antigo Regime, com base em um catolicismo preso ao sistema de padroado e
propagador das mais variadas irmandades religiosas que possibilitavam a criação de
sociabilidades entre os mais diversos grupos sociais, entre eles, africanos, crioulos, pardos e
todas as demais qualidades do contexto. Essa aproximação teve como fio condutor a intensa
miscigenação provocada por um amplo processo de crioulização, iniciado no final do século
XV, resultante do contato entre portugueses e africanos e, posteriormente, com ameríndios no
Brasil. A tais semelhanças credito a facilidade de adaptação de um escravizado nas regiões do
Congo Angola ao desembarcar na cidade do Rio e começar seu processo de ladinização, o
que não seria dificultoso. 34 Dessa forma, centro-africanos eram facilmente captados pelas
lentes de quem testemunhou o período, mesmo que não tivessem nem a intenção e nem a
possibilidade de contabilizar essa superioridade numérica:
34
Para melhor análise de um processo de ladinização em solo brasileiro, ver: REIS, João José dos. Domingos
Sodré, um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008. Em especial, o capítulo 7: Domingos Sodré, africano ladino e homem de bem.
35
SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedrich Philipp. Viagem pelo Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1938, p. 113. v.1.
36
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino: antologia de textos 1809-
1818. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2013, p. 10.
37
SLENES, Robert W. As provações de um Abraão africano: a nascente nação brasileira na Viagem Alegórica
de Johann Moritz Rugendas. Revista de História da Arte e Arqueologia, São Paulo, CHAA, Unicamp, n. 2,
1995/96, p. 274.
92
Ao explicar a pintura referente ao mercado de escravos, acaba por enxergar apenas aqueles
oriundos das regiões centro-africanas:
38
CHAMBERLAIN, Henry. Vistas e costumes da cidade e arredores do Rio de Janeiro em 1819-1820. Rio de
Janeiro; São Paulo: Livraria Kosmos Editora e Cia., 1943, p. 164.
39
ELTIS, David; RICHARDSON, David. Atlas of the Transatlantic Slave Trade. New Haven; London: Yale
University, 2010, p. 89 e 90.
93
rio Kwango e de Benguela até o trecho sul-norte do rio Kwanza”. 40 Cabe destacar que, nos
agrupamentos embarcados nos portos centro-africanos, houve um crescente aumento no
número de crianças embarcadas entre os anos de 1700 e 1850. A idade das crianças
disponíveis para o tráfico aproximava-se da média dos quinze anos, o que possibilita pensar
em uma maior facilidade dessa faixa etária para assimilações e mudanças, necessárias em um
processo de transculturação como o ocorrido em solo americano.
Os mais recentes levantamentos do Slave Trade Data Base dão conta do aumento de
crianças embarcadas na costa centro-africana entre os anos de 1700 e 1850 e desembarcadas
nos portos do Sudeste. 41 Tal levantamento abre caminho para pensar não em um ser sem
conhecimento, porém mais flexível às assimilações e mudanças comuns em um processo de
transculturação.
Em hipótese alguma pretendo aqui negar a presença de outros tantos grupos de
procedências de africanos desembarcados no Sudeste, principalmente no Rio de Janeiro.
Cabe aqui apenas destacar o que saltava aos olhos de quem testemunhava a realidade
cotidiana da colônia e posteriormente da corte. Mesmo acreditando, atualmente, que a falta de
compreensão de destaque de outros grupos represente uma falha desses viajantes que, muitas
vezes, passavam apressadamente pela urbe, o que cabe destacar é a voz corrente entre os que
chegavam e circulavam por tais ruas. Além de costumes, falantes do quimbundo e quicongo
transpareciam numericamente no mercado, nas ruas, no ganho, não escapando, portanto, da
pena dos que registravam suas viagens. Dessa forma, as escolhas no campo do sagrado para
as freguesias urbanas da cidade passavam necessariamente pela composição imposta pelo
tráfico de escravizados dos mais diversos portos africanos.
Assim, acredito não somente circunscrever o entorno de Laurentino Inocêncio dos
Santos, mas também a possibilidade de compreender o que se passava na cidade do Rio de
Janeiro, na esfera sagrada, em seus primeiros anos de vida, não para adentrar na armadilha do
determinismo biográfico, mas sim para, com a abertura de leque, compreender os caminhos
possíveis. Desse modo, historicizando o período, é possível pensar nas mais diversas etapas
pelas quais passam os indivíduos ao longo de sua trajetória pelo mundo dos viventes, fazendo
escolhas, mudando de opinião, escolhendo lados, sendo controversos para determinadas
questões e pessoas de acordo com o que se esperava dele dentro de seu contexto.
40
SLENES, Robert. Metaphors to Live by in the Diaspora: Conceptual Tropes and Ontological Wordplay
among Central Africans in the Middle Passage and Beyond. In: ALBAUGH, Ericka A.; LUNA, Kathryn M. de
(ed.). Tracing language movement in Africa. Oxford: Oxford University Press, 2018, p. 346.
41
ALMEIDA, Marcos Abreu Leitão de. Ladinos e boçais: o regime de línguas do contrabando de africanos,
(1831-c.1850). 2012. Dissertação (Mestrado em História) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2012.
94
2.3 Costumes afro-litúrgicos do Rio de Janeiro do Oitocentos
42
LMCDC, f. 71, 07 jan. 1879.
43
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia das Letras, 2000, p.
341-396.
95
Acredito que, nessa zona de contato, práticas sagradas centro-africanas apresentavam
um protagonismo no campo das trocas e ressignificações, não somente pela questão numérica
do aporte oriundo do tráfico transatlântico, mas dadas as possibilidades de uma rápida
assimilação dos que caiam no infortúnio da escravidão em zonas de influência afro-lusitanas.
Em recente tentativa de apresentar as características individuais de cada ser humano no
momento de sua escravização, Mariana Cândido não somente rompeu com a visão
quantitativa do tráfico transatlântico, como descortinou um universo em que muitos dos que
desgraçadamente caíram nas malhas do cativeiro e atravessaram o oceano rumo aos portos do
Sudeste, eram súditos da coroa portuguesa ou, quando não, já estariam amplamente
adaptados ao universo afro-lusitano das regiões de Angola e Benguela, essa última sendo o
foco da autora. Dessa forma, não é estranho pensar em uma rápida assimilação dos chamados
boçais nos portos de desembarques ilegais da cidade, após a lei de 1831. Culturalmente,
refiro-me a praças coloniais que se aproximavam cultural e administrativamente,
estabelecendo intensas relações diplomáticas e comerciais ao longo do Oitocentos. 44 Isso
posto, os que desembarcaram ao longo da primeira metade do século XIX na cidade do Rio
de Janeiro e permaneceram nas áreas urbanas da corte, e até mesmo no interior, não
encontraram maiores dificuldades de adaptação, com o processo de crioulização constante
vivenciado pelos moradores da urbe, muito por conta das aproximações estruturais de tais
espaços, com seus antigos mundos em solo africano.
Para a primeira metade do Oitocentos, Mary Karasch, em seu capítulo nove de A
vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850), intitulado Participação dos escravos em
grupos sociais e religiosos, com forte influência de Religious Movements in Central Africa, 45
levanta a hipótese da existência de uma significativa contribuição na vida religiosa na cidade
ter se forjado a partir da composição do tráfico, marcado àquela altura pelo intenso
relacionamento do Brasil com a costa centro-ocidental africana.
Uma das notas dessa autora esclareceu naquela época o caráter inicial de suas
pesquisas para a esfera do sagrado, mas acabou por abrir caminho para recentes pesquisas:
A esta altura de minha pesquisa, creio que a chave para uma eventual reconstrução
das religiões afro-cariocas do século XIX está na umbanda, ainda que conste ter
sido fundada no começo do século XX. Minha hipótese, ainda por ser testada, é que
44
CANDIDO, Mariana. O limite tênue entre liberdade e escravidão em Benguela durante a era do comércio
transatlântico. Afro-Ásia, v. 47, p. 239-268, (2013).
45
CRAEMER, Willy de; VANSINA, Jan; FOX, Renée C. Religious Movements in Central Africa: a Theoretical
Study. Comparative Studies in and History, v. 18, n. 4, p. 458-475, out. 1976.
96
ela foi um novo movimento religioso da África Central que ‘embaralhou’ de novo
os velhos símbolos. 46
46
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850), ..., 2000, p. 352, nota 38.
47
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850), ..., 2000, p. 354.
48
RIO, João. As religiões do Rio. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976. (Coleção Biblioteca Manancial, n. 47).
97
espiritual seria alcançado por meio do canto, da dança e, principalmente, do transe. Mary
Karasch, a meu ver, acerta nas hipóteses de seu capítulo nove, em que cruzou o grande aporte
de centro-africanos desembarcados na cidade, analisando seus costumes ao longo da primeira
metade do século XIX, com as práticas da umbanda da centúria seguinte. Tal acerto evidencia
a força do impacto dos bacongos, ovimbundos e ambundos, entre outros povos, nas mais
diversas esferas da vida no Brasil do Oitocentos, de tal modo que até hoje práticas religiosas
remetem às regiões da África Centro-Ocidental. Essa autora, em mais um de seus insights,
destacou:
Neste estágio da pesquisa, ainda estamos limitados a observações gerais e insights
ocasionais, mas um estudo da complexidade religiosa da África Central pode levar a
uma reconstrução parcial de crenças e rituais dos escravos no Rio de Janeiro do
século XIX e até a uma compreensão melhor da umbanda contemporânea. 49
49
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850), ..., 2000, p. 353.
50
SLENES, Robert W. L’arbre nsanda replante: cultes d’affliction Kongo et identité des esclaves de plantation
dans le Brésil du Sud-est (1810-1888). Cahiers du Brésil Contemporain. Paris: EHESS, v. 67/68, p. 217-313,
2007. Atualmente, no Brasil, Slenes é o pesquisador que mais tem se dedicado a compreender as heranças
culturais centro-africanas como base de escolhas de africanos e crioulos dentro do Sudeste escravista brasileiro:
SLENES, Robert W. “Malungo, ngoma vem!”: África coberta e descoberta no Brasil. Revista USP, n. 12, p. 48-
67, dez./jan./fev. 1991-1992. SLENES, Robert W. Na senzala uma flor – esperanças e recordações na formação
da família escrava: Brasil Sudeste, século XIX. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2011. SLENES, Robert W.
A grande greve do crânio do tucuxi: espíritos das águas centro-africanas e identidade escrava no início do século
XIX no Rio de Janeiro. In: HEYWOOD, Linda M. Diáspora negra no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010.
SLENES, Robert W. “Eu venho de muito longe, eu venho cavando”: jongueiros cumba na senzala centro-
africana. In: LARA, Silvia Hunold; PACHECO, Gustavo (org.). Memória do jongo: as gravações históricas de
Stanley J. Stein. Vassouras, 1949. Rio de Janeiro: Folha Seca; Campinas, SP: CECULT, 2007.
51
SLENES, Robert W. Malungo, ngoma vem!’..., 1991-1992, p. 50-51.
98
Slenes ressaltou tratar-se a língua falada na chegada a Cassange de uma espécie de pidgin,
como uma versão simplificada do quimbundo.
Jan Vansina, no prefácio de Central Africans and Cultural Transformations in the
American Diaspora, destacou que os portos escravistas de Loango a Angola contavam com
três principais povos aqui já destacados, bacongos, ovimbundos e ambundos, que, segundo
esse autor, contavam com uma cultura comum inter-relacionada e que “interagiam
continuamente entre si”. E mesmo que nem todos fossem oriundos desses povos, por
compartilharem da angústia do tráfico, conseguiam se compreender uns aos outros. Para
chegar a Luanda, principal porto da costa africana, caravanas com escravizados levavam em
torno de três meses de viagem por terra, existindo, segundo o autor, três línguas pidgin
baseadas nas principais línguas da Zona Atlântica, quicongo, quimbundo e umbundo. A
versão simplificada do quimbundo, desde o século XVIII, era utilizada pelos portugueses
como “língua geral”.52 Dessa forma, é possível perceber que a aproximação cultural entre os
que viviam o infortúnio da travessia era admissível.
Tais produções evidenciam uma forte presença de práticas centro-africanas no
Sudeste brasileiro. Apesar de grande parte dos trabalhos de Slenes ser voltada para as áreas
rurais do Rio de Janeiro e São Paulo, acredito que os centros urbanos, como já havia captado
Karasch, não ficaram imunes a tais impactos. Este trabalho avança no sentido de se dedicar
aos centros urbanos do Sudeste, principalmente ao cenário da corte imperial e,
posteriormente, à capital republicana, em que analiso as práticas ritualísticas afro-brasileiras,
compreendendo serem elas fruto de uma complexa rede de relações sociais, iniciadas não em
solo americano, mas dentro do contexto da expansão ultramarina ibérica, que colocou em
contato Portugal e o reino do Congo ao final do século XV. É desse contato que se
desenvolve uma troca cultural, política e religiosa. A diplomacia empreendida pelos dois
reinos colocaria na pauta do dia o catolicismo romano pós reforma religiosa, que prezava pela
evangelização de novos povos, “descobertos” por cristãos europeus. O impacto dessa relação
foi sentido em diversas partes do planeta, principalmente no que tange ao comércio de
escravizados para o Novo Mundo.
Como exposto, acredito que a compreensão de qualquer prática religiosa para o
Oitocentos passe obrigatoriamente pelo entendimento de práticas realizadas dentro dos reinos
do Congo, Matamba, Ndongo, da colônia portuguesa de Angola e regiões vizinhas, como os
52
VANSINA, Jan. Foreword. In: HEYWOOD, Linda (ed.). Central Africans and cultural transformation in the
American diaspora. New York: Cambridge University Press, 2002, p. XII-XIII.
99
Jagas Cassanges. Por conta de todo aparato político administrativo iniciado a partir do
estabelecimento da diplomacia entre monarquias europeias e os reinos da África Centro-
Ocidental, existe atualmente um grande aparato de fontes que cobrem a região, dada a vasta
produção missionária ocorrida nesses antigos reinos africanos, deixando quase sempre
escapar a complexidade religiosa desses povos. O mesmo vale para o Rio de Janeiro. Dessa
forma, acredito na viabilidade da reconstrução do cenário e do entorno da infância de
Laurentino Inocêncio dos Santos no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX, e, por
seu turno, dos demais líderes religiosos que atuariam na segunda metade do período,
concomitantemente ao curandeiro da Glória. Essa reconstrução pode ser feita graças aos
relatos deixados por viajantes europeus, dedicados a desvendar o Novo Mundo, recém-aberto
com a chegada da corte portuguesa ao Brasil, comparando com rituais praticados do outro
lado do Atlântico, captado por cronistas e missionários entre os séculos XVI e XIX.
Albert Boime, em The Art of Exclusion, trabalha com as representações dos negros
no século XIX pela pena dos viajantes europeus na América, e compreende esse processo por
três perímetros temáticos, que perpassavam pela questão abolicionista:
A escravidão, predominantemente marcada pela cútis preta, saltava aos olhos dos
viajantes europeus que desembarcaram no Rio de Janeiro. Mesmo com uma escrita marcada
pelo conhecimento de mundo que cada um trazia, além de uma visão eurocêntrica, muitos
eram protestantes e se espantavam não só com o catolicismo, mas com diversas práticas
africanas já ressignificadas pelas lentes da religião romana. Embora com toda cautela ao
analisar esses olhares, fica evidente que ritos africanos eram captados por seus curiosos
olhares, e a nós, historiadores contemporâneos, interessados nas práticas cotidianas sagradas
da Corte e das demais regiões do Brasil, cabe metodologicamente compreendê-los.
Jean Marcel Carvalho França destaca a abertura dos portos como facilitador da
passagem de viajantes apressados pela cidade, integrantes de comboios que encontravam no
Rio de Janeiro um importante local para abastecimento. Para a análise aqui proposta, os
53
BOIME, Albert. The Art of Exclusion: Representing Blacks in the Nineteenth century. Washington:
Smithsonian Institution Press, 1990, p. xiv, apud SLENES, Robert W. As provações de um Abraão africano: a
nascente nação brasileira na Viagem Alegórica de Johann Moritz Rugendas. Revista de História da Arte e
Arqueologia, São Paulo, CHAA, Unicamp, n. 2, 1995/96.
100
relatos apressados e de poucas linhas tornam-se de fundamental importância, já que tais
escritores tendiam a buscar o exótico, principalmente relacionado ao negro, elemento
predominante na escravidão, gerando o grande embate entre portugueses e ingleses, que
compunham a maioria dos autores desses rápidos relatos. Um fator importante observado por
eles foi o tom exaltado e engajado na luta pelo fim da escravidão nas Américas, em especial,
no Brasil. 54 Muitas vezes, seus escritos tendiam a desumanizar as relações, para que
servissem como panfleto abolicionista, mas essas observações deixavam escapar costumes e
atos, muitos deles não compreendidos no ato da análise, mas o cruzamento de fontes e a
compreensão de praxes culturais exercidas ainda do outro lado do Atlântico ajudam hoje na
reconstrução dessas práticas.
Vários desses artistas foram membros de institutos de ciência em seus países de
origem, o que permitia que suas ideias circulassem entre seus pares. Dessa forma, o Rio de
Janeiro era lido e conhecido pelas lentes de viajantes antecessores, que se destacaram na
escrita sobre a cidade. Eneida Sela, em Modos de ser, modos de ver, ressaltou a importância
de compreender a formação intelectual dos europeus que visitavam por longo ou curto
período o Brasil, em especial o Rio de Janeiro, bem como as novidades estéticas que
moldavam os estudos sobre a variedade humana.55
Destaco a naturalidade com que os rituais descritos por esses olhares faziam parte da
rotina da cidade, não causando estranheza a nenhum transeunte, senão ao próprio viajante,
que, na maioria das vezes, era recém-chegado ou estava simplesmente de passagem pelo Rio
de Janeiro. Pensar essa naturalidade permite imaginar as possibilidades de saberes passados
aos mais novos, sem dificuldades ou barreiras. A procura por esses rituais também não se
configurava como algo impossível para aquele contexto. Outra perspectiva, com essa análise,
é perceber que, para a segunda metade do século XIX na corte, o ofício desenvolvido por
Laurentino e demais sacerdotes e sacerdotisas e as possibilidades que tal escolha lhes abria
não seriam estranhas à sociedade. Pessoas pretas, brasileiras ou africanas, livres ou libertas,
atuavam há tempos como importantes lideranças religiosas nas mais diversas freguesias do
Rio de Janeiro, principalmente em uma realidade urbana. Angariavam fiéis, seguidores e
pessoas desejosas de alcançar todos os tipos de favores advindos do sobrenatural. Todavia
cabe ressaltar que a ideia de naturalidade rotineira, não pode se confundir com a ausência de
54
FRANÇA, Jean Marcel Carvalho. Viajantes estrangeiros no Rio de Janeiro joanino: antologia de textos
(1809-1818). Rio de Janeiro: José Olympio, 2013.
55
SELA, Eneida Mercadante. Modos de ser, modos de ver: viajantes europeus e escravos africanos no Rio de
Janeiro (1808-1850). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008.
101
acossamento a tais práticas. Foram tempos complexos, marcados pela ampla procura dos
serviços religiosos relacionados aos mais diversos setores da vida cotidiana, acompanhados
pela intensa perseguição dos meios oficiais às práticas que remetessem a costumes africanos,
como se evidencia no caso da Ladeira dos Guararapes.
A casa de Laurentino, bem como suas práticas religiosas no ano de 1878, ano das
primeiras notícias que nos chegam de seus rituais, não podem ser compreendidas por si só.
Como exposto até aqui, o Rio de Janeiro no início do Oitocentos era uma cidade impactada
por costumes afro-lusitanos, construídos por meio do processo de crioulização estabelecido
nas possessões lusas em solo centro-africano. Dessa maneira, a casa da Ladeira dos
Guararapes permite estabelecer vários pontos de diálogos com diferentes práticas religiosas
que acabaram por resultar na liturgia exercida não somente na casa de Laurentino, mas
também em tantas outras no mesmo período.
Acredito que muito ainda pode ser extraído dos olhares dos viajantes que passaram de
forma rápida ou, principalmente, dos que se estabeleceram por um tempo na corte, no que
tange ao sagrado vivenciado pelos mais distintos setores da sociedade. Geralmente a
percepção de um europeu desembarcado na primeira metade do século XIX na recém-
formada corte brasileira era a de encantamento com as belezas naturais da cidade, a começar
pela Baia de Guanabara, porta de entrada obrigatória aos que se dirigiam a São Sebastião.
Passadas as primeiras impressões, suas escritas eram marcadas por seu local de fala, ou seja,
por um forte etnocentrismo que, ao mesmo tempo em que impulsionava as transcrições do
Novo Mundo, também hierarquizava suas análises. Cabe ressaltar que o catolicismo barroco
exercido diariamente pelos moradores da urbe, de início, causava-lhes um forte espanto, já
que muitos desses viajantes eram protestantes. Outros chegavam ao Império com um olhar
republicano.
Ressalto que, na sua quase totalidade, chegavam avessos à escravidão exercida no país
e faziam de suas penas um meio de denunciar aquilo que entendiam como atrocidade
humana. Dessa forma, o predomínio da cor preta dos que transitavam pelas ruas da cidade
saltava aos olhos estrangeiros, assim como as práticas entendidas por eles como
102
africanizadas. 56 Em sua maioria, tais viajantes eram oriundos do Império Britânico, ingleses,
galeses, escoceses, irlandeses, entre outros, a serviço da Coroa, e faziam do Rio de Janeiro
parada obrigatória no caminho para o Oriente. O registro cartográfico, paisagístico e
etnográfico era incentivado e mesmo financiado por instituições como a Royal Society, a
Royal Geographical Society, a Kew Gardens, entre outras.
Mesmo com ideias preconcebidas sobre o Novo Mundo e o escravismo aqui
praticado, viajantes europeus captaram o cotidiano da corte e, por mais que tivessem suas
próprias visões de mundo, seus registros possibilitam desvendar detalhes ainda não
mencionados do Rio de Janeiro das primeiras décadas da chegada da corte ao Brasil. O
“paradigma indiciário”, tal como proposto por Carlo Guinzburg em Mitos, emblemas, sinais,
em que o historiador italiano foca na atuação de três diferentes médicos, Giovanni Morelli,
Sherlock Holmes, do escritor Arthur Conan Doyle, e Sigmund Freud. O primeiro médico,
sendo crítico de arte, debruça-se sobre os pormenores mais negligenciáveis para descobrir
possíveis falsificações nas obras de arte; Holmes, de Conan Doyle, desvenda crimes
analisando indícios imperceptíveis aos olhos da maioria a sua volta e, por fim, Freud
analisando dos gestos às palavras, aponta caminhos para analisar os indícios, sinais e pistas
deixadas nas escritas de viajantes europeus, quase sempre espantados com uma cidade
africanizada como o Rio de Janeiro aqui estudado. 57
Quem vivesse nas primeiras décadas do século XIX, em qualquer uma de suas
freguesias urbanas, estaria amplamente acostumado a conviver com cenas de rituais
religiosos envolvendo os mais distintos grupos de africanos, cativos ou forros. Não em casas
ou espaços escondidos, como por descuido pode-se imaginar atualmente, mas a céu aberto,
nos mais distintos campos e praças da urbe, ao que tudo indica, sem sofrerem aparentemente
nenhum incômodo por parte das atentas autoridades do período.
Um interessante momento dessa naturalidade do sagrado totalmente inserido no
cotidiano da corte pôde ser captado pelo mercador escocês John Parish Robertson e seu irmão
Willian Parish Robertson, 58 ao se depararem com um domingo de folga e os festejos
preparados por diversos grupos de africanos escravizados e livres. Tais festejos eram
56
SLENES, Robert. SLENES, Robert W. As provações de um Abraão africano: a nascente nação brasileira na
Viagem Alegórica de Johann Moritz Rugendas. Revista de História da Arte e Arqueologia, São Paulo, CHAA,
Unicamp, n. 2, 1995/96.
57
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais. Morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
58
John Parish Robertson acompanhou seu pai em 1806 a Montevideo em missão britânica. Em 1808,
desembarcou no Rio de Janeiro, onde trabalhou por três anos. Trabalhou junto com seu irmão Willian Parish
Robertson na área mercantil na região do Paraguai. Arruinado financeiramente em 1826, lançaria anos mais
tarde o seu livro: ROBERTSON, John Parish. Latters on Paraguay. Dictionary of National Biography. New
York: Macmillan and CO; London: Smith, Elder, & CO., 1896, p. 415. v. XLVIII.
103
marcados por tão intensa alegria, que os irmãos viajantes se viram confundidos entre as
agruras provocadas pelo cativeiro e a felicidade esfuziante demonstrada pelos participantes:
59
ROBERTSON, John Parish; ROBERTSON, Willian Parish. Letters on Paraguay: Comprising an account of a
four yers’ residence in that republic, under the governmant of the dictador Francia. London: John Murray,
Albemarle Street, 1838, p. 164. v. I.
60
Movimento que tomava conta dos viajantes ingleses influenciados pelas disputas diplomáticas entre o Império
do Brasil e Inglaterra na busca pelo fim do tráfico transatlântico de cativos. Para maior detalhe desse aspecto,
ver: SLENES, Robert W. As provações de um Abraão africano: a nascente nação brasileira na Viagem
Alegórica de Johann Moritz Rugendas. Revista de História da Arte e Arqueologia, São Paulo, CHAA, Unicamp,
1995/96.
61
ROBERTSON, John Parish; ROBERTSON, Willian Parish. Letters on Paraguay, ..., 1838, p. 165.
104
Laurentino, por se divertir em um zungú após vender seus doces de tabuleiro, trajava um
“vestido de chita”. 62 Por sua vez, também nesse mesmo ano, quando parou na Casa de
Detenção, o curandeiro da Glória vestia “calça de cajemira preta, paletot e colete, camisa
branca e chapéu de lebre”.63
Interessante é perceber os diversos grupos étnicos que chamavam a atenção dos
viajantes no domingo de diversões no Campo de Sant’Ana: “Em frente avançavam os grupos
das várias nações africanas, para o campo de Sant’Ana, o teatro de destino da festança e
algazarra. Ali estavam os nativos de Moçambique e Quilumana, de Cabinda, Luanda,
Benguela e Angola”.64 As vistas dos irmãos ingleses conseguiram captar escravizados das
regiões da atual África Centro-Ocidental. Àquela altura, mesmo os recém-chegados
conseguiam perceber com facilidade as diferenças existentes entre os mais diversos grupos no
Rio de Janeiro.
Os irmãos Robertson destacaram a presença de água ardente proveniente da cana-de-
açúcar, comum no dia a dia da cidade, principalmente em momentos de festas, bem como em
rituais religiosos. Segundo os viajantes, que não tinham conhecimento de nenhuma prática
litúrgica, a bebida seria o verdadeiro motivo para a esfuziante alegria que permeava o parque.
Vários eram os instrumentos utilizados ao longo do dia, e grandes eram as rodas que se
formavam para a realização dos atos performáticos:
Na sua capacidade de escravos, eles são como uma nação. A música de guerra e a
dança, o tambor de cabaça, o pífaro rude, mas estridente, as palhaças, os gambais e
as gesticulações de artistas selvagens, porém não atrevidos, tem encanto para o
negro, que baniu de sua mente todo o sentimento presente de dificuldade e
degradação. 65
Várias rodas de danças eram formadas, algumas com mais de trezentos negros,
homens e mulheres seguindo os sons estridentes dos tambores, “que só a natureza imperfeita
da pele de um boi poderia resistir”, acompanhados de um “atleta de Angola”, que chegava ao
seu limite de exaustão ao acompanhar os tambores com suas cabaças. Entre oito e dez
pessoas entravam nas rodas simultaneamente e dançavam “de modo a exibir o quadro
humano divino sob todas as formas possíveis de contorção e gesticulação”. 66 A organização
de tais rodas ficava a cargo de um “mestre de cerimônias”, na visão dos irmãos ingleses, que
conseguiram identificá-lo como um curandeiro, não somente pela liderança exercida e pelo
62
LMCDC (Livro dos Escravos), f. 1296, 25 set. 1879.
63
LMCDC, f. 71, 07 jan. 1879.
64
ROBERTSON, John Parish; ROBERTSON, Willian Parish. Letters on Paraguay, ..., 1838, p. 165.
65
ROBERTSON, John Parish; ROBERTSON, Willian Parish. Letters on Paraguay, ..., 1838, p. 167.
66
ROBERTSON, John Parish; ROBERTSON, Willian Parish. Letters on Paraguay, ..., 1838, p. 168.
105
respeito recebido dos participantes, mas pela diferença de suas roupas. Naturalmente estas
destoavam das calças de casimira, dos vestidos de chita com chapéus de lebre, e se
aproximavam do que, além de selvagem, seria exótico para os olhares de recém-chegados da
Europa. A naturalidade com que tais eventos ocorriam ao longo de todo dia santo, seguidos
da dispersão noturna, dá o tom dos corriqueiros costumes centro-africanos na cidade ao longo
da primeira metade do século XIX.
Dessa descrição destaco a certa presença dos tambores, tocados com entusiasmo por
um preto de Angola, seguindo as instruções do “mestre de cerimônias”, que se colocava no
meio da roda e comandava os atos performáticos dos que acompanhavam a cerimônia:
Atualmente dois ou três de pé na multidão pareciam pensar que não havia animação
suficiente; e com grito ou uma música, eles correram e se juntaram à dança. Os
músicos tocaram uma música mais alta e mais discordante; os dançarinos,
reforçados pelos auxiliares mencionados, reuniram animação fresca; os próprios
auxiliares pareciam envolvidos em todo furor dos demônios; Os gritos de aprovação
e aplausos foram redobrados; Todos os espectadores participaram do espírito
sibilino que animava os dançarinos e músicos; O firmamento tocou com o
entusiasmo selvagem dos clãs negros; Até milhares de vozes, acompanhadas de
toda música no campo, fecharem-se numa cena de jubileu que continuara quase
todo o dia, sob raios ardentes de um sol tropical, e que tinha sido apoiado por tais
esforços corporais por vários formadores, banhando seus quadros em uma contínua
torrente de transpiração. 67
67
ROBERTSON, John Parish; ROBERTSON, Willian Parish. Letters on Paraguay, ..., 1838, p. 169.
68
SOARES, Moisés Peixoto. Como se fossem brancos: qualidade, legitimidade e escravidão no Rio de Janeiro
dos séculos XVIII e XIX (Iguassú e Jacutinga). 2019. Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019. Em especial o capítulo 2.
106
Algumas evidências me ajudam a sustentar tal hipótese; uma delas é que não acredito
estar diante de um ato isolado, quem transitasse nos domingos e dias santos pelos espaços
públicos do Rio de Janeiro conseguiria vislumbrar os mesmos ritos presenciados pelos irmãos
Robertson. Assim fora captado por outro britânico nos idos de 1810, em rápida passagem
pela cidade, que acabou por render o trabalho em três volumes intitulado Travels in various
countries of the East, publicado no ano de 1818. Saltam aos olhos as semelhanças do rito,
acompanhadas de maiores detalhes sobre a figura do líder religioso:
Devo dizer, inclusive, que os escravos vistos pelas ruas parecem ser bem-
alimentados e tratados com benevolência; ao menos é isso que se depreende de sua
aparência saudável, viva e ao mesmo tempo bem-humorada. Em alguns feriados,
eles obtêm permissão de se reunirem em bandos de quinze, vinte ou mais, de acordo
com sua proveniência e dialeto. Nessas ocasiões, os chefes dos bandos são ornados
ricamente com colares, penas, botões velhos, pedaços de vidro e outras marcas de
distinção. Entre os membros dos grupos, há geralmente dois ou três músicos, que se
encarregam de tocar as árias de sua nação em diferentes instrumentos, alguns rudes
e simples, outros de formato estranho e complexo. O som parece causar deleite
entre nos escravos, que cantam e dançam com um ar de grande satisfação e de
maneira tão forte e tão natural que, por mais de uma vez, me senti tocado. 69 (Grifos
meus).
107
jaquetas de “chita” e das várias “fitas” coloridas dos inúmeros participantes, seus sacerdotes
ornavam-se com trajes ritualísticos, dos quais Willian Ouseley consegue identificar os
“colares” e “penas”, entendendo os demais objetos como “pedaços de vidro”, “botões velhos”
e, principalmente, “outras marcas de distinção”. É possível indagar os motivos que levaram
os ingleses a compreender o ocorrido como uma simples diversão de domingo, visando
amenizar as agruras do cativeiro. A primeira possibilidade de equívoco na análise está
diretamente ligada aos atos performáticos da cerimônia, que envolviam canto, dança,
gesticulações e bebidas, facilmente confundidas com uma grande confraternização. Ressalto
que, até nos dias atuais, é profundamente marcante para desconhecidos da cultura brasileira
ouvir o som ensurdecedor de enfurecidos tambores de cerimônia ritualísticas de umbanda,
candomblé, tambor de mina, além de apresentações culturais como os Jongos da Serrinha e
do Quilombo São José da Serra,71 existentes no Rio de Janeiro, e tantas outras manifestações
espalhadas pelo país. São atos performáticos sagrados, facilmente confundidos até pelos
naturais da nação com manifestação cultural ou mesmo com simples diversão.
Outro ponto de equívoco na análise dos ingleses é que o domingo era facilmente
compreendido como dia santo, guardado pela Igreja, respeitado por senhores e escravos como
o dia do Senhor, o dia guardado para o descanso, assim como fizera o Criador ao descansar
no sétimo dia, um sábado, modificado para o primeiro dia da semana pela tradição cristã, com
a festa da ressurreição. Tal noção religiosa era propagada não somente entre a maioria
católica do país, como também dos viajantes que professavam o protestantismo cristão como
crença.
Contudo não existia entre eles, e creio, entre a maioria dos que acompanhavam os atos
no Campo de Sant’Ana ou em outras praças do Rio a compreensão de estarem diante de
cerimônias comuns de serem contempladas a céu aberto aquela ocasião, nas regiões do reino
do Congo e do território português de Angola. Antonio Cavazzi, 72 em suas anotações de
71
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE. Labhoi/UFF - Memória e música negra – Acervo UFF
Petrobrás Cultural. Disponível em: http://www.labhoi.uff.br/acervo/jongos. Acesso em: 21 mar. 2018.
72
Emprego aqui o processo de triangulação proposto por John Thornton, segundo o qual materiais produzidos
nos primeiros séculos de contato entre europeus e centro-africanos, geralmente produzidos por missionários
como Cavazzi, sejam constantemente revisados a partir de perspectivas da antropologia moderna. A comparação
desses primeiros escritos com trabalhos feitos por “autoetnógrafos”, ou seja, pessoas que, ao final do século XIX
e início do XX, registraram de forma sistemática as práticas religiosas dos povos da África Centro-Ocidental, no
contexto do neocolonialismo. Ver: THORNTON, John K. Religious and Ceremonial Life in the Kongo and
Mbundu areas, 1500 - 1700. In: HEYWOOD, Linda (ed.). Central Africans and cultural transformation in the
American diaspora. New York: Cambridge University Press, 2002, p. 72-73. Wyatt MacGaffey e Michael
Harris também se utilizam dessa metodologia. Em Astonishment & power: the eyes of unnderstanding: Kongo
Minkisi, esses autores lançam mão de textos de jovens bacongos produzidos nas duas primeiras décadas do
século XX, reunidos pelo etnógrafo Karl Laman. Semelhanças estruturais da vida religiosa baconga lhes
permitiram desenvolver uma metodologia de compreensão do passado pela ótica dessa comunidade no início do
108
viagens no antigo reino do Ndongo, na corte da rainha Jinga, em Matamba e nas regiões de
Angola e Congo, fez preciosas descrições de rituais liderados por xinguilas e ngangas, cada
qual atuando em sua área específica. Existem atualmente dois trabalhos produzidos pelo
capuchinho italiano.
Cavazzi fora enviado a Matamba em 1658 para substituir Antonio da Gaeta e, por
chegar doente à corte da rainha Jinga, foi mandado para Massango por medo de mau
presságio. Recuperado em 1659, caminha junto com o exército português até a corte do rei
Imbangala, na tentativa de convertê-lo, mas acaba não logrando êxito em sua missão. Em
1660, chega novamente a Matamba, na corte da rainha Jinga, que acompanha até a morte
dela, em 1663. Participa também de outras viagens ao interior. Em janeiro de 1667, sucede a
Giovane de Paiva como prefeito da Missão, em setembro deixa Luanda, tendo em mão seus
manuscritos, mais tarde conhecidos como Manuscrito de Araldi. Em 1687, publica Descrição
histórica dos três reinos do Congo, Matamba e Angola. 73 John Thornton, responsável pela
tradução do Manuscrito Araldi, destaca que a obra Descrição histórica fora completada com
descrições do trabalho inicial de Antonio da Gaeta,74 ao passo que o documento de Araldi
contém informações de Cavazzi em quase toda sua totalidade. Um documento pode ser usado
como complementação do outro, aproximando-se ao máximo de um estudo etnográfico
dessas compreensões religiosas de mundo, que, em seu tempo, já se apresentavam mescladas
do catolicismo português, seguidas de costumes centro-africanos.
Especificamente para o reino de Matamba, o capuchinho italiano descreve a função
dos xinguilas, respeitados pelos jagas, aliados da rainha Jinga. Estes estariam na categoria dos
adivinhadores e gozavam de grande respeito da comunidade de fiéis, sendo sempre tratados
com distinção e reverência, inclusive pelos “poderosos povos dessa Etiópia negra [que]
dobram seus joelhos e inclinam suas cabeças e lhes dão obediência rigorosa e são
observadores fiéis dos seus mandamentos”. Cavazzi compara a proeminência exercida pelos
xinguilas de Matamba aos altos cargos da Igreja católica: “[...] um escritório muito honrado e
século XX. Cf.: MACGAFFEY, Waytt; HARRIS, Michael. Astonishment & power: the eyes of unnderstanding:
Kongo Minkisi. Resonance transformation and rhyme: the art of Renée Stout. Washington: Smithsonian
Institution Press, 1993.
73
CAVAZZI, Giovanni Antonio. Missione Evangelica, MSS, Manuscrito Araldi. 1667. Disponível em:
http://www.bu.edu/afam/faculty/john-thornton/cavazzi-missione-evangelica-2/. Acesso em: 29 jan. 2018;
CAVAZZI da MONTECÚCCOLO, João Antônio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e
Angola (1687). Tradução, notas e índices pelo Pe. Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta de Investigação
do Ultramar, 1965.
74
GAETA, Antonio da. La maravigliosa conversione alla santa fede di Cristo dela Regino Singa e
del svo Regno di Matamba nell’Africa Meridionale. Napoli:, G. Passaro, 1669.
109
estimado entre eles e os mais honrados de todos são como bispos [...]”. 75 A atuação pública
dessas lideranças pode lançar luz nos eventos dominicais do Campo de Sant’Ana no Rio de
Janeiro:
Você deve, portanto, saber que Singhilos ou Singhilo é um homem ou mulher negra
em cujo corpo entra o Diabo e para que isso seja feito com grande solenidade e
alegria na presença dele, que deve ser Singhilla, eu digo, ele em cujo corpo o Devil
tem que entrar, ele se acomoda no meio da praça, enquanto todos os músicos fazem
um círculo ao redor dele cada um tocando seu instrumento, acompanhando os
presentes com dança e grito que é ensurdecedor, portanto, atordoado pelo som dos
instrumentos e dos gritos, ele levanta-se como uma fúria e com vários movimentos
dos olhos e gestos do corpo mostra que o espírito maligno está nele, ele começa a
falar chamando-se um dos senhores mortos, seus antepassados, como a Casa Jaga,
Calanda, Colaximbo, que eram jagas e capitães de exércitos. 76
75
CAVAZZI, Giovanni Antonio. Missione Evangelica, MSS, Manuscrito Araldi, 1667, Livro 1, Cap 9.
76
CAVAZZI, Giovanni Antonio. Missione Evangelica, MSS, Manuscrito Araldi..., 1667, Livro 1, Cap 9.
110
habitantes eram poucos zelosos com suas roupas em vida, entretanto “embrulhavam os seus
cadáveres com grossos panos da região”, os ritos de colocação do corpo na cova deveriam ser
respeitados à risca, visando não correr o risco de o morto voltar para cobrar algo dos seus:
“cavada a cova e depositado o cadáver, uma pessoa, respeitada nessa função como pessoa
religiosa, tem o papel de amassar água e terra, de levar esse barro sobre os ombros, tendo o
rosto virado para trás, e de cobrir com ele o cadáver”. 77 Aos parentes caberia cantar e colocar
o barro na sepultura.
Nas mais diversas regiões do Congo, de Angola e de Matamba, era comum a prática
de oferecer sacrifícios e os mais diversos objetos no túmulo dos antepassados. Cavazzi
observou que mercadorias europeias eram bastante valorizadas para essas cerimônias, e, em
algumas cerimônias jagas, era comum a imolação de vítimas para aplacar a ira dos mortos.
Em Matamba, escravos eram sepultados vivos juntos com seus donos, visando servi-los na
outra vida.
Uma complexa cerimônia jaga que acabou por se propagar por outros reinos vizinhos
– Matamba, Ndongo, Congo e a colônia de Angola – lança luz sobre a forte relação dos
povos centro-africanos com os rituais fúnebres conhecidos como entambes, em que familiares
e amigos do morto se envolviam em performances que passavam por cantos, danças,
geralmente conduzidas pelo som dos ngomas, tambores feitos de troncos de árvores ocas,
com um tampo de couro de boi, os mesmos descritos do Campo de Sant’Ana, no Rio de
Janeiro. Tais cerimônias duravam dias e até mesmo semanas, com a presença do defunto, e a
celebração ficava a cargo de um xinguila, que também se responsabilizava pela comunicação,
via incorporação, com o recém-falecido. Cerimônias carregadas de sentidos para os
envolvidos, cada passo do ato performático deveria ser muito bem executado, para o bem dos
familiares e da comunidade, que encontrariam no agora antepassado morto, um responsável
por conduzir a ventura dos que ficavam na terra. O ritual do entambe foi amplamente descrito
nas documentações oficiais da administração portuguesa ao longo dos séculos XVII, XVIII e
XIX.
Cavazzi identificou o ritual que nomeou tambo como cerimônia funerária entre os
Jagas e procurou descrevê-lo com ricos detalhes:
77
CAVAZZI da MONTECÚCCOLO, João Antônio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e
Angola, (1687)...,, 1964, p. 124.
111
soalho coberto de esteiras, e sobre este uma cadeira na qual se coloca o falecido
com a cabeça inclinada para trás. Oito dias fica o cadáver nesta posição para receber
as homenagens de toda a população. Um cavalheiro, constituído director das
danças, da música e dos outros ritos, será digno de grandes louvores se procurar que
nada falte para o bom êxito da cerimônia. Também será muito louvado quem, pelo
espaço de quatro horas seguidas, dançando sem descansar, tenha encorajado os
companheiros a não interromper a dança nem por conta do calor nem por causa do
cansaço. 78
78
CAVAZZI da Montecúccolo, João Antônio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e
Angola..., [1687]/1964, p. 128, n. 268.
79 79
SLENES, Robert W. L’arbre nsanda replante..., 2007. Ao trabalhar as práticas da Cabula para o século
XIX no Sudeste brasileiro, Slenes identifica a prática da ventura e desventura, assim como a crença na morte
natural ser aceita apenas na velhice.
80 80
CAVAZZI da Montecúccolo, João Antônio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e
Angola..., [1687]/1964, p.129, n. 269.
112
Fonte: CAVAZZI, 1964, p. 133. 81
81
CAVAZZI da Montecúccolo, João Antônio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e
Angola..., [1687]/1964, p. 133.
113
ao longo dos séculos XVIII e XIX. 82 Para o caso do entambe, o governante português deixou
a seguinte queixa, seguida de reinvindicação:
Sendo o primeiro fim e mais digno objeto das reais ordens de s majestade, e dos
seus reais e gloriosos predecessores, a propagação e exaltação da nossa fé, a
extirpação dos vícios gentílicos, e a pureza dos costumes. Proíbo nesta capital e na
cidade de Benguela, os entembes na ocasião da morte como um resto de
barbaridade, que os negros praticam, e que os brancos /com ohorros o digo/
aproveitaram sem razão e sem discernimento; cujos entembes eram na verdade o
centro da desordem, da publica dissolução, dos roubos, e superstições mais
escandalosas; quando parece que a mesma própria comodidade, e a experiência que
no abuso da primeira idade tinham adquirido bastariam as determinações dos pais
de famílias aprescrever das suas casas um tao desordenado costume. Como porem
ainda lhe resta outro meio de iludir a sobredita santa e sabia proibição iluaguando-
se[sic] por um modo bem mais criminoso nos vícios do gentilismo que é o de
saírem da capital para fazer o entembe nos Arimos do campo, e mandarem praticá-
lo pelos escravos das ditas fazendas, ordeno que debaixo de penas dobradas, às que
impõem o Bando de 24 de dezembro de 1768 o não possam fazer. E porque toda a
severidade das Leis deve exercitar-se contra as casas /vulgarmente/ chamadas de
uso ou quicumbis nas quais os negros debaixo de invocações diabólicas, e das mais
grosseiras e gentílicas superstições na presença de embusteiros e de ridículos ídolos
vem receber as preparações e encargos da prostituição, e às quais consta que alguns
brancos esquecidos do respeito e fidelidade, que devem a nossa santa religião, do
medo e do horror que devia causar-lhe este bárbaro procedimento em uma capital
cristã, em uma capital conquistada por Deus Nosso Senhor, em uma capital cheia de
templos em que o culto do verdadeiro Deus se exercita quanto permitem as nossas
forças, tem mandado /com espanto e sobressalto refiro/ as suas próprias escravas, e
se tem aproveitado em idades pouco advertidas dos bárbaros despojos daquela cruel
dissolução de depravados costumes. Determino que jamais possam em algum lugar
deste Reino existir as ditas infernais casas, e que todas as pessoas que dela tiver
noticia vá prontamente denunciá-las ao Ministro Eclesiásticos e seculares para
procederem na forma das leis debaixo das penas do que o contrario fizer ou ocultar
ser preso e processado como se houvera cometido as culpas, que naquela infame
casa se cometem, e os capitães mores vigiarão constantemente sobre a execução
destas ordens de que ficam responsáveis assim nos entemabes como nas sobreditas
casas, bem entendido que a casa ou senzala onde o entembe se praticar será logo
presa e remetida às obras públicas desta cidade para trabalhar o tempo que o
primeiro bando declara. 83
A essa altura, não tenho dúvidas de que Dom Francisco Coutinho proibira os rituais
de entambe porque estes fugiam à normalidade católica, mesmo sendo comum para o
contexto a extrema valorização dos ritos fúnebres cristãos, como para quem em pleno século
XXI lê sobre entambes... É provável que ele tenha se horrorizado, não surpreendido, já que
nunca deixou de existir o costume, a ideia de batucar tambores nas alturas, dançar, beber e,
até mesmo, aos olhos leigos, festejar, em um momento em que a tradição cristã pedia pompas
82
HEYWOOD, Linda. Portuguese into African: The Eighteenth-Century central African background to Atlântic
Creole Cultures. In: HEYWOOD, Linda. (ed.). Central Africans and cultural transformation in the American
diaspora. New York: Cambridge University Press, 2002, p. 91-116.
83
Códice 83.202,a8. Agradeço essa fonte ao Grupo de Pesquisa ART (Antigo Regime nos Trópicos), na pessoa
de Roberto Guedes, que gentilmente cedeu suas transcrições desse original.
114
e circunstâncias para uma cerimônia funerária, mas não abria mão do luto, da saudade e não
só de sentir esse luto, mas de demonstrar que se vivia esse estágio da vida. Reclamava,
sobretudo, dos que chamava de brancos, muito provavelmente se referindo aos portugueses e
não à cor em si, de como nascentes de berços católicos se permitiam tais práticas
compreendidas como heréticas. Entretanto a mentalidade de longa duração falava mais alto
na mente dos novos ou até mesmo dos velhos convertidos à fé da Santa Madre Igreja.
É provável que os endurecimentos da administração portuguesa tenham empurrado os
rituais funerários para fora da capital, mas, como se observa, isso não era suficiente para
escapar das malhas oficiais. Ao citar casas de quicumbis, Dom Francisco Coutinho revela o
caráter “festivo” dos rituais fúnebres, que envolviam os já conhecidos tambores, entre outros
instrumentos musicais, e em que, pelo comando do líder religioso, os participantes cantavam
e dançavam buscando uma eficaz comunicação com o falecido. É possível captar na fala do
capitão um ritual amplamente crioulizado, em que o rito centro-africano, o entembe, ganhava
protagonismo no processo de transculturação diante dos costumes católicos, e, no ano de
1769, o que se vê são práticas ressignificadas, que resultaram em uma cultura afro-lusitana. É
notório o incômodo na fala de Dom Francisco Coutinho, no que tange à mescla de rituais
compreendidos por ele como heréticos de acordo com a liturgia católica. O governador,
portanto, bradava pelo aumento da presença física das igrejas, o que, em sua opinião, poderia
ser suficiente para o fim de tais práticas. Mas cabe, a essa altura, destacar novamente as
semelhanças entre Luanda e o Rio de Janeiro quanto às questões arquitetônicas, políticas,
administrativas e, principalmente, culturais. O trabalho de Guilherme de Paes Menezes
(Imagem 9) auxilia na compreensão das queixas de Dom Francisco Coutinho:
84
Vista panorâmica de Luanda no ano de 1755, por Guilherme Paes de Menezes.
115
A legenda dessa imagem apresenta: Vista de parte da cidade de S. Paulo de
Assumpção do Reyno de Angola, terminada entre as igrejas, fortificações e mais partes
seguintes. O primeiro destaque é para a Sé Episcopal próxima à Fortaleza de São Miguel, em
segundo, a Igreja do Corpo Santo, entre outros espaços públicos que carregam, como de
costume, nomes de santos, mostrando a forte presença da Igreja Católica, ligada ao sistema
do padroado, aos interesses portugueses. Seria nesses espaços que, a pleno vapor,
funcionavam as práticas afro-lusitanas do entembe, erguendo, inclusive, altares públicos,
como esbravejou o governador no mesmo Bando, utilizado anteriormente:
E porque na epidemia que seguiu a Guerra dos Maungos houve embusteiros que
tiveram a malignidade de introduzir nos povos que aquela doença era mandá-la por
um defunto que fosse potentado, e morto em uma batalha, e se achava entre os
quilundus ou Deuses, entraram logo a fazer-lhe sacrifícios, fabricando para este
efeito uns terríveis alpendres, a que chamam quibangos nos lugares públicos, e
estradas reais para que os viandantes adorassem o motivo; e porque em semelhantes
gentes é natural que um erro seja logo acompanhado de outros muitos, expuseram à
publica veneração um ídolo com o nome Bumba. Da mesma forma e com uma
crassíssima ignorância deixam o preceito dos dias santos e consagrados a Deus, e
guardam o imediato à Lua nova, anatomizam com mil superstições as negras, que
morrem pejadas, e procuram ressuscitar as penas da upanda, que envolvendo-a em
cremes proibidos pelas leis regias para assim poderem aproveitar-se do bárbaro
proveito, que lhe proibi como pernicioso; todos estes ilícitos atos nos mesmos
sagrados dias em que a Igreja com todos os seus fiéis venera os sacratíssimos
mistérios da nossa redenção. Portanto havendo uma clara e decisiva experiência
mostrado que só o poder de sua majestade pelos seus governos se acha armado da
necessária força para coibir tão dissolutos bárbaros e diabólicos costumes. Ordeno
que os capitães mores e cabos de todas as jurisdições mandem logo queimar os
referidos alpendres ou Quibongos, e todos os ídolos que descobrirem seja do
Bumba, seja de qualquer outra ilusão destes miseráveis, e prendam e remetam para
as obras reais tudo o que usam dos sequelamentos ou invocações do demônio, e
assim mesmo todos os que usarem dos Atavaris dos tambis seja de dia seja de noite,
e do mesmo modo os mutambis em que sacrificam os mortos alguma raiz mal ou
guardarem o dia imediato à lua nova não sendo dia santo pela Igreja. Recomendo
aos capitães mores e cabos debaixo das penas de perdimento de seus postos na
menor omissão a estas justíssimas providencias, e para que elas possam
compreender a todos mandarão os mesmos capitães mores e cabos traduzir na
língua Ambunda este bando, e publicarem todos os meses em todas as partes
públicas, e em que costuma haver ajuntamento de gentes para que não aleguem
ignorância. + Dado na cidade de S. P. de Assuncao a 10 de janeiro de 1769.
+ E será registrado primeiro nos auditórios da capital para ter o seu devido
cumprimento. 85
85
Códice 83.202, a8.
116
depositados em altares públicos, chamados de quibangos, dedicados a divindades territoriais,
no momento do sequelamento, ritual comandado, como observado, pelos ngangas e
xinguilas, em que se invocava o morto, chamado por Dom Francisco Coutinho de diabo,
como de costume nesses casos. A análise desse caso somente reforça a importância da
reverência aos ancestrais prestada pelos bakongos, ambundos e ovimbundos.
Outro caso de entambe ocorrido em solo centro-africano, mais especificamente na
cidade de São Felipe de Benguela, região administrativamente ligada a Angola, no ano de
1722, ajuda a esclarecer os movimentos que ocorriam em solo brasileiro, principalmente os
do Campo de Sant’Ana. Os envolvidos na questão caíram nas malhas do Tribunal do Santo
Ofício, o braço da Inquisição com sede em Lisboa. Eram eles António de Freitas Galvão,
preto, natural de Angola, capitão-mor do presídio de Caconda, e seus dois filhos, António de
Freitas e Mathias de Freitas, acusados de se envolverem em rituais de entambes comandados
por um “negro gentílico” da região do Dombe. 86 António de Freitas Galvão morava dentro do
presídio, na casa destinada à administração, espaço comum dentro de outras fortalezas que
tinham, assim como Caconda, a finalidade de manter aprisionados os condenados, por
diversos motivos, à escravidão transatlântica, especialmente no Brasil. Além da moradia,
existia a igreja, a casa da câmara e a habitação dos soldados. 87
O capitão-mor, que há tempos se encontrava enfermo, procurou ajuda com um líder
religioso, como exposto, da região do Dembo. Este, por sua vez, buscou tratar de sua perna
com ervas e invocações. Vendo que ele não alcançava melhora, o negro ambundo
“aconselhou, que o que poderia [atormentá-lo em sua enfermidade] era zumbi (que quer dizer,
alma de algum defunto) e que a alma de sua mulher defunta era o que fazia padecer”.88 O
único meio de acabar com tamanha interferência em sua saúde e seus negócios seria a
realização pública de uma “festa”, na visão do Bispo de Angola, Dom Manoel de Santa
Catarina, que conduzira o procedimento de coordenação da grande estrutura que acabou por
ouvir onze testemunhas. No processo evidencia-se a rivalidade estabelecida entre o Padre
João Pereira e o capitão do presídio, não somente por suas práticas religiosas, mas por
questões que envolviam o comércio dos viventes na região. Outra evidência era o caráter
público das cerimônias presididas pelo negro ambundo do Dombe visando acalmar o espírito
86
ARQUIVO Nacional da Torre do Tombo [doravante ANTT], Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa,
proc. 13958, 1722.
87
CÂNDIDO, Mariana P. O limite tênue entre liberdade e escravidão em Benguela..., 2013, p. 245.
88
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 13958, 1722, p. 28 verso. A definição de zumbi
encontra-se entre parênteses nos autos do processo, no relatório final do Bispo de Angola, Dom Manoel de
Santa Catarina, o que deixa claros a corriqueira prática de ritos ambundos e o amplo conhecimento dessas
práticas pelas autoridades públicas e eclesiais.
117
da defunta esposa do capitão-mor, presenciadas não somente pelos vários moradores de
Caconda, como pelos da região de Luanda. 89
Dessa forma, todos observaram o sacrifício de um bezerro, acompanhado de cantos e
danças conduzidas por tambores e “outros instrumentos ambundos”. As cerimônias
ocorreram em dois dias, quinta e sexta-feira, ambas ao meio dia, com o sol a pino, e contando
com a participação de “todos os negros e negras desse prezidio”. Uma jovem negra menor de
idade era enfeitada e seria a responsável por “representar”, na palavra dos depoentes, a
defunta. Acredito aqui tratar-se de um transe em que a falecida esposa do capitão apresentaria
suas angústias e desejos para que se acalmasse. Um bode era “adorado” pelos fieis, e comidas
servidas com fartura aos participantes. Aproximadamente 70 anos antes, o capuchinho
Cavazzi de Montecculo presenciou cerimônias em que bodes recebiam tratamentos de
adoração. O religioso apresentou uma dessas imagens em seu trabalho (Imagem 10).
A respeito desse ritual que incluía um bode como ídolo, Cavazzi destacou que seu uso
entre os jagas auxiliava no “culto aos espíritos dos defuntos”, e a narrativa do missionário
89
ANTT. Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, proc. 13958, 1722.
90
CAVAZZI da MONTECÚCCOLO. João Antônio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e
Angola..., [1687]/1964, p. 209.
118
capuchinho quase cem anos antes do acorrido com o capitão mor do presídio de Ambaca
ajudam a compreender o rito investigado pelo Santo Ofício:
Embora existam jagas e seus xinguila também fora do reino de Matamba, por
enquanto falarei só daqueles que vivem nas regiões do Dongo e de Angola.
Estes adoram um ídolo que, afinal, não passa de um bode vivo e grande, com pelo
preto, barba comprida e tão deforme que parece um demônio. Deste bicho cuidam
igualmente o xinguila e sua mulher, os quais, por isso, são ambos chamados
nganga-ia-nzumba, do nome dele. 91
Cavazzi produziu essas observações a respeito do rito nos reinos de Matamba, Dongo
(Ndongo) e Angola. A região do Dembo, no século XVIII, quando da investigação do Santo
Ofício, pertencia à região portuguesa de Angola, ficando evidente a continuidade das práticas
voltadas para acalmar os espíritos dos mortos. Seus ministros recebiam nomes ligados às suas
funções, nesse caso, nganga-ia-nzumba, o chefe responsável por lidar com os zumbis, os
espíritos dos mortos, como figurava no processo de 1722. O bode, segundo os relatos do
capuchinho italiano, era preparado na “lua nova”, e as costas do animal eram emplastadas de
“argila”, dando a impressão de estar todo pintado. Após o preparo, o bode recebia incensos,
adornos e oferendas de sacrifícios. Após tais atos performáticos, estariam os xinguilas
preparados para “predizer o futuro e de curar os doentes por meio dele, naturalmente
acompanhando as cerimónias com invocações e sacrifícios”. 92
Na imagem 10, de Cavazzi, o nganga de gorro e levando nas mãos arco e flecha era
acompanhado por músicos que tocavam cabaças enquanto outro, de joelhos, adorava o bode
colocado sobre uma espécie de altar. Voltando ao ano de 1722, quando o capitão António
Freitas Galvão também participou de cerimônias adorando a figura de um bode, seguidas de
transes e danças visando acalmar o zumbi de sua esposa, ele não obteve a ventura e acabou
falecendo no decorrer do processo, preso em sua própria residência, já que não gozava de boa
saúde, como constava nos autos, para amargar as dependências da fortaleza, como seus dois
filhos. Talvez tenha acabado por encontrar sua falecida cônjuge. Seu caso descortinou o
91
CAVAZZI da MONTECÚCCOLO, João Antônio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e
Angola..., [1687]/1964, p. 209-210.
92
CAVAZZI da MONTECÚCCOLO, João Antônio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e
Angola..., [1687]/1964, p. 210.
119
cuidado destinado aos parentes falecidos e à ancestralidade, por parte dos povos ambundos. O
morto continuava a fazer parte do cotidiano familiar e, dessa forma, precisava ser atendido
em suas demandas. Caso não fosse possível, a comunidade sofreria fortemente as
consequências físicas e espirituais. Os males, em sua maioria, eram creditados aos espíritos –
zumbis – insatisfeitos.
Voltando a essa altura para o Brasil, várias foram as manifestações religiosas
identificadas deste lado do Atlântico que buscavam o contato com o mundo dos espíritos por
meio de cultos marcados por cantos e danças, seguidos de incorporações ao toque do tambor.
Refiro-me aos calundus do período colonial, em especial aos mais bem documentados até
aqui pela historiografia, os da preta angolana Luzia Pinta, que, no ano de 1739, atendia a
quem buscasse por curas físicas, espirituais e por adivinhação na região mineira de Sabará. A
vida da liderança angolana foi devassada pela visitação do Santo Ofício à colônia portuguesa
na América. Sua leitura ainda hoje revela práticas marcadas pela crioulização proporcionada
pela presença do catolicismo em diferentes regiões da África Centro-Ocidental, como o
Reino do Congo e a Angola portuguesa da calunduzeira Luzia Pinta. Quem primeiro se
dedicou a esse fenômeno foi Luiz Mott, em O calundu Angola de Luzia Pinta, 93 identificando
diversas semelhanças dele com os rituais xinguilas de comunicação com os mortos descritos
por Antonio Cavazzi.
O calundu se aproximava do termo do quimbundo quilundu, o genérico para vários
espíritos, identificado por Cavazzi nos cultos dos ancestrais dos jagas xinguilas, os nganga-
ia-zumbi. As cerimônias vistas por missionários e viajantes europeus entre os séculos XVII e
XVIII estariam dentro de um contexto terapêutico de cura, conduzido pelo ngoma, o tambor
que ritmava, como visto até aqui, todas as cerimônias realizadas por africanos e seus filhos
nos dois lados do Atlântico. Era o tambor o responsável por conduzir os rituais de
xinguilmento, o juramento de bulungo, ato identificado por Cavazzi como o responsável por
encontrar um culpado em meio a um tribunal próprio, e conduzia também os quilundus, assim
como as cerimônias da região de Sabará. Em Cativeiro e cura, Alexandre Marcussi foca sua
atenção no calundu de Luzia Pinta, mas, ao longo de seu trabalho, identifica mais de
cinquenta casos na Bahia e em Minas Gerais, que, ao longo do século XVIII, viram-se de
alguma forma nas lentes do Promotor do Santo Ofício. 94
93
MOTT, Luis. O calundu-Angola de Luzia Pinta: Sabará, 1739. Revista do Instituto de Arte e Cultura, Ouro
Preto, v. 10, n. 171, p. 128-130, 1994.
94
MARCUSSI, Alexandre de Almeida. Cativeiro e cura: experiências religiosas da escravidão atlântica nos
calundus de Luzia Pinta, séculos XVII-XVIII. 2015. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Departamento de História, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 15-71.
120
Marcussi, pautado nos trabalhos de Ira Berlim, Linda Heywood e John Thornton,
acredita ter sido o calundu o resultado de uma recriação específica do mundo atlântico e
escravista português, já que foram recriados na América, ganhando novos contornos a partir
do contato com práticas ameríndias e com um catolicismo popular arraigado no tecido social
da colônia brasileira no século XVIII, tendo, entretanto, permanecido a base centro-africana
de culto e cuidado com a ancestralidade. 95 Por esse prisma, a travessia do Calunga ganhava
contornos ainda mais dramáticos para os africanos embarcados na Costa Centro-Ocidental,
não significava apenas as incertezas de uma vida futura como escravo, mas também a ruptura
com o que se considerava mais sagrado nas sociedades centro-africanas. A esse respeito,
afirmou Marcussi:
95
MARCUSSI, Alexandre de Almeida. Cativeiro e cura..., 2015, p. 50.
96
MARCUSSI, Alexandre de Almeida. Cativeiro e cura..., 2015, p. 111.
121
adequado, o doente livrava-se da enfermidade e passava a ter uma ligação especial
com o espírito que antes o possuíra. Com isso, tornando-se um elo de mediação
entre mundo visível e invisível, ele passava a poder mobilizar o poder do espírito
para diversos fins rituais, tornando-se um oficiante dos cultos desse espírito. 97
97
MACGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa: The Bakongo of Lower Zaire. Chicago:
University of Chicago Press, 1986, p. 107- 113.
98
SLENES, Robert W. L’arbre nsanda replante: cultes d’affliction Kongo et identité des esclaves de plantation
dans le Brésil du Sud-est (1810-1888). Cahiers du Brésil Contemporain, Paris: EHESS, v. 67/68, 2007.
POSSIDONIO, Eduardo; BEZERRA, Nielson. Religiosidades africanas em tempos de escravidão: batuques e
candomblés no Recôncavo do Rio de Janeiro, século XIX. Recôncavo: Revista de História da UNIABEU, v. 6,
n. 10, p. 66-85, jan./jun. 2016.
99
WAGENER, Zacharias. Zoobiblion: livro dos animais do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964,
apud TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 57.
122
acabou assessorando os trabalhos de Frans Post e Albert Eckhout. As impressões acima
foram registradas visando explicar a tela 109, à qual chamou de Negertanz, ou seja, dança de
negros. Tudo dentro da normalidade acreditar tratar-se de festividade promovida em dia de
folga ou, principalmente, em dias santos de guarda pela Igreja. A região açucareira contava
com forte presença de cativos adquiridos nos portos africanos visando atender as demandas
da empresa canavieira. Entretanto José Ramos Tinhorão, em As festas no Brasil colonial,
destaca o equivocado olhar europeu ao acreditar estar diante de uma festa. Ele ressalta ser o
momento descrito como a “primeira cena de ritual negro-africano fixada ao vivo no Brasil” e
que, segundo esse autor, passaria posteriormente a ser uma manifestação “negro-brasileira”,
que, mais tarde, seria chamada de “xangô” em Pernambuco, “candomblé” na Bahia e
“macumba” no Rio de Janeiro. 100
Não cabe aqui questionamento quanto à maneira particionada de observar as
manifestações religiosas afro-brasileiras, cada qual para uma determinada região do Brasil, e
com supostas características marcantes e inconfundíveis, que seriam capazes de distinguir por
localidade cada prática religiosa. Mas destaco a visão de Tinhorão ao questionar o olhar
alemão para um ritual africano. Sim, tratava-se de uma cerimônia ritualística, cercada de
elementos litúrgicos obrigatórios para a elaboração do rito, tal como compreendido no
mesmo contexto do século XVII por Cavazzi nas regiões dominadas pela rainha Njinga.
Evidencia-se, na comparação entre os rituais nos dois lados do Atlântico, a forte existência de
um complexo cosmológico, responsável por pautar e estruturar cerimônias, dessa forma se
compreenderiam as intrigantes semelhanças nos atos performativos.
O sacrossanto em questão, responsável por pautar a estrutura cosmológica da crença
praticada nas regiões centro-africanas e transladada para o Brasil, seriam os cultos de aflição-
fruição, dedicados aos mortos e aos ancestrais, executados a céu aberto e diante de quem bem
desejasse acompanhar, por mais que, na maioria das vezes, não compreendessem o que se
colocava diante de seus olhos.
Imagem 11 - Negertanz
100
TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial..., 2000, p. 57.
123
Fonte: WAGENER, 1964.101
124
se dirigiam os rituais. 104A garapa, feita de cana-de-açúcar, ganhou destaque em praticamente
todos os relatos até aqui analisados, sendo responsabilizada pela euforia dos participantes,
entretanto a bebida também tinha funções litúrgicas para o ato performático. Silvia Lara, em
estudo sobre o Quilombo dos Palmares, no mesmo período em que Wagener elaborou seus
trabalhos, chamou a atenção para o uso ritualístico da palmeira entre os centro-africanos
palmarinos, identificando a exigência dessas plantações nas assinaturas dos tratados de
paz. 105 Do século XIX, Robert Slenes, em L’arbre nsanda replante, analisou três movimentos
religiosos caracterizados como cultos de aflição-fruição para o Sudeste brasileiro, cujos
africanos protagonistas eram procedentes das regiões da África Centro-Ocidental. Em um
desses, a Insurreição de São Roque, em São Paulo, o africano José Cabinda, 106 em 1854,
liderou a revolta, que acabou revelado nas páginas do jornal Correio Paulistano, o qual
denunciou que, entre o plano dos revoltosos, existia uma frase-chave que desencadearia o
movimento, “Quando landa malavo”, que, em quicongo, significaria “Filho! Vá buscar vinho
que eu quero beber”. Slenes interpreta a frase como “vá buscar vinho de palmeira [ou bebida
alcoólica]”. 107
A essa altura, voltando ao Rio de Janeiro, cabe relembrar o que Slenes destacava já no
título do ensaio de Malungo, ngoma vem, ao afirmar que a África era coberta e descoberta no
Brasil. Talvez muitos transeuntes moradores da corte compreendessem as apresentações no
Campo de Sant’Ana como uma simples distração dominical, visando ao descanso e à
preparação para as labutas obrigatórias que a segunda-feira traria. Quanto mais para os
irmãos ingleses Robertson, que estavam de passagem pelo Rio de Janeiro, ou para qualquer
outro viajante desavisado, que não conseguiria ver além do som ritmado dos tambores de
ngoma que embalavam o canto e a dança das centenas de pessoas que ocupavam as praças
públicas na primeira metade do Oitocentos, no Rio de Janeiro. Viajantes deixaram outros
indícios que me permitem pensar que não enxergavam o sagrado, mesmo quando este era
evidente. O naturalista alemão Georg Wilhen Freyreiss esteve no Brasil entre os anos de 1814
e 1815 estudando a fauna e a flora do Rio de Janeiro, coletando informações para o Museum
für Naturkunde de Berlim. Ele registrou suas anotações de bordo no livro Viagem ao interior
104
MACGAFFEY, Wyatt. Fetichism revisited: Kongo nkisi in sociological perspective. Africa: Journal of the
International African Institute, v. 47, n. 2, p. 172-184, 1977, p. 177.
105
LARA, Silvia Hunold. Marronnage et pouvoir colonial: Palmares, Cucaú et lês frontières de la liberte au
Pernambouc à la fin du XVIIe siècle. Éditions de L’EHESS. Annales. Histoire, Sciences Sociales, v. 62, n. 3, p.
639-662, june 2007.
106
Se o porto em que embarcou corresponder à sua procedência, seria ele um bacongo.
107
SLENES, Robert W. L’arbre nsanda replante: cultes d’affliction Kongo et identité des esclaves de plantation
dans le Brésil du Sud-est (1810-1888). Cahiers du Brésil Contemporain. Paris: EHESS, v. 67/68, p. 217-313,
2007, p. 274.
125
do Brazil. Como costume entre os seus, não se privou de externar suas opiniões sobre a
escravidão no país. Ao se deparar com os trapiches do Valongo, complexo que abrigava o
porto de desembarque de escravizados, casas de engorda para os africanos recém-chegados e
locais de comercialização propriamente ditos, destacou:
Não há melhor nem mais certo padrão para o conhecimento de um povo do que as
suas festas, os seus divertimentos. Assim uma única tourada nos faz conhecer num
momento o hespanhol muito melhor do que uma estada de mezes naquelle paiz e
uma corrida de cavallos typico do inglez. Por isso, o negro selvagem, com a sua
alegria barulhenta e o comico maneio do seu corpo, indica o verdadeiro gráu em
que se acha na escala social, que, conforme as nossas ideias de belleza, esta muito
baixo, sendo singular que as dansas dos negros seja exatamente o contrário das
nossas, porque ao passo que nós procuramos mostrar o nosso corpo na luz mais
favoravel e os nossos professores de dansa se esforçam por dar aos seus discípulos
uma posição exata e elegante, os negros procuram dar ao seu corpo as mais
extravagantes posições, contrariando do modo mais desnatural possivel o jogo de
todos os seus musculos, e quanto mais elle o consegue maiores são os applausos
que lhe são dispensados. Basta entrar numa das espaçosas salas dos traficantes na
Capital, para ver uma porção de negros recém-chegados divertirem-se á moda de
seu paiz, o que o traficante lhes permite, porque sabe que a falta de movimento e a
nostalgia lhes diminuem o infame lucro. Encontramos ahi alguns centos de negros
nús e rapados, diversos tanto na edade como no sexo, que formavam uma grande
roda, batendo palmas com toda a força, acompanhadas com os pés e com um canto
gritado e de três notas apenas. Da roda saáe de repente um delles, pula para o centro
onde gyra sobre si mesmo, movendo o corpo em todas as direções, parecendo
destoncar todas as articulações, e aponta para outro qualquer, que por sua vez pula
para dentro, fazendo o mesmo que o anterior e assim, sem mudança nenhuma,
continuam até serem vencidos pelo cançaço. Esta dansa ás vezes dura horas, com
grande descontentamento dos vizinhos. 108
108
FREIREYSS, Georg Wilhen. Viagem ao interior do Brazil nos annos de 1814 – 1815. Revista do Instituto
Historico e Geographico de São Paulo. v. XI, 1906. São Paulo: Typographia do Diário Official, 1907, p. 223.
126
quem acabara de desembarcar no porto da maior cidade escravista da América e já do mundo
até então.
Afirmou o viajante que, próximo ao Valongo, estava o cemitério dos que escapavam
“para sempre da escravidão”. Seria o Cemitério dos Pretos Novos destinado ao rápido e nem
tão cerimonioso enterro dos que não resistiam à viagem no Atlântico e de escravos ainda não
adaptados à realidade brasileira, que pertenciam a senhores que não queriam arcar com os
custos de um sepultamento feito pelas irmandades ou pela Santa Casa de Misericórdia. 109 Tal
espaço hoje é conhecido como Instituto Pretos Novos, local de memória, pesquisa e estudo
sobre a diáspora africana na cidade do Rio de Janeiro.110 Ao desembarcar na cidade em 1814,
Freyreiss visitou o espaço que denominou de “triste logar”, onde encontrou um velho padre
lendo um pequeno livro de rezas. O local era cercado por um muro de 50 braças; na parte de
dentro, alguns pretos se ocupavam em cobrir restos mortais dos infelizes defuntos, jogados de
qualquer forma em valas comuns. Além dos expostos por conta da pouca terra utilizada e das
chuvas comuns na cidade, havia sempre uma pilha de corpos esperando por sepultamento,
demonstrando não haver sepultamento todos os dias da semana. Isso, é claro, tornava o local
repugnante, devido ao mau cheiro causado pela decomposição dos corpos empilhados ou pela
queima dos cadáveres semidecompostos visando diminuir a demanda por covas. 111
A junção de todos esses fatores agravava o natural desespero de um recém-
desembarcado. A distância física da terra de seus ancestrais e uma triste certeza, a de morrer
doente nas condições nas quais se encontrava era sinônimo de sepultamento no Pretos Novos,
jogado em covas rasas, sem nenhum cuidado, entrando em decomposição a céu aberto. Dessa
maneira, é possível afirmar que não havia espaço para festejos nesse primeiro momento, pois
ainda não havia ocorrido nenhum tipo de adaptação à nova terra. O que já se estabelecia entre
eles eram laços desenvolvidos no translado do interior africano para os portos de embarque e
na travessia do Calunga. Entretanto é mais plausível, diante das circunstâncias, compreender
o momento como ritualístico, visando, de forma desesperada, restabelecer laços quebrados na
viagem. Na “animação” descrita por Freireyss, os africanos organizavam uma roda e
dançavam dando aos seus corpos “as mais extravagantes posições”. No lugar de tambores, já
109
Para mais informações a respeito da utilização do cemitério, ver: SILVA, Júlio César Medeiros da. À flor da
terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Garamond: IPHAN, 2007 e SOARES,
Carlos Eugênio Líbano. Valongo, cais dos escravos: memória da diáspora e modernização portuária na cidade
do Rio De Janeiro, 1668 – 1911. 2013. 113 f. Relatório de Pós-doutoramento em Arqueologia. Museu Nacional,
Departamento de Antropologia, Programa de Pós-Graduação em Arqueologia, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.
110
Para mais informações sobre o IPN, consultar: http://pretosnovos.com.br/. Acesso em: 01 mar. 2018.
111
FREIREYSS, Georg Wilhen. Viagem ao interior do Brazil nos annos de 1814 – 1815..., 1907, p. 224-225.
127
que é provável que a ocasião não possibilitasse a sua confecção e uso, os africanos batiam na
palma da mão, ritmando o canto. O que se compreendia por contorções seriam as
incorporações ancestrais em busca de comunicação, semelhantes ao entembe, feito
posteriormente. Segundo Wyatt MacGaffey, sem o devido culto e respeito dos vivos, os
mortos não passariam de meros anônimos. 112 E deixar parentes mortos no anonimato era
sinônimo de má sorte e de todo tipo de infortúnio, entre eles a captura, a venda, a travessia e
as incertezas da escravidão. 113 Henny Blokland, em Kings, spirits & brides, destacou que o
tambor de ngoma era um importante elemento na conexão com o mundo dos ancestrais, mas
estaria longe de ser o único condutor, alertando para a existência de outros instrumentos
responsáveis pelo transe, mas o canto e a dança seriam conectivos fundamentais em uma
celebração. Isso abre ainda mais as possibilidades de analisar o caso dos recém-
desembarcados no Valongo e a realização de um complexo culto de aflição-fruição.114
Existem outros indícios que permitem pensar na existência de lideranças religiosas já
na travessia do Atlântico, portanto conduzindo cerimônias dentro dos trapiches de engorda do
complexo do Valongo. Para tal afirmação, cabe voltar novamente o olhar para as diversas
maneiras de escravizar o outro em áreas sob o domínio português. Roquinaldo Ferreira, em
Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World, apresenta as intrincadas relações entre
Angola e Brasil dentro do conceito de “mundo atlântico”, destacando os envolvimentos
culturais estabelecidos ainda em regiões africanas como Luanda. Faz uma análise a respeito
do Tribunal de Mucanos, que, na língua quimbunda, significa litígio entre os ambundos de
Luanda. Tratava-se de um complexo tribunal de última instância dominado, a princípio, pelos
sobas, e posteriormente estruturado pela administração lusa, para julgar casos de escravização
indevida de indivíduos compreendidos como cristãos e vassalos portugueses. 115
Como exposto anteriormente, tornar-se escravo dentro das possessões não passaria
apenas pelo conflito, que fazia prisioneiros de guerra, mas também por imbricadas questões
diárias que envolviam redes complexas de relacionamentos, posições de comando, pretensões
e, por fim, até mesmo os crimes cometidos de fato, os quais recebiam as devidas punições
desses tribunais. Assim, a escravidão em Luanda causava sérias consequências para os
vassalos africanos do rei de Portugal, que, diversas vezes, quando escapavam de acusações
112
MACGAFFEY, Wyatt. Fetichism revisited: Kongo nkisi in sociological perspective. Africa: Journal of the
International African Institute, v. 47, n. 2, p. 172-184, 1977, p. 177.
113
KARASCH, Mary. A vida dos escravos..., p. 350-362.
114
DIJK, Rijk van; REIS, Ria; SPIERENBURG, Marja. The quest for fruition through ngoma: the political
aspects of healing in South Africa. Athens: Ohio University Press, 2000, p. 20-25.
115
FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during
the Era of the Slave Trade. Cambridge: Cambridge University Press, 2012.
128
nos tribunais, corriam o risco de cair nas mãos de sertanejos e tumbeiros. O risco corrido por
vassalos africanos deu-se em muito pelo aumento da demanda de escravos no Brasil. Dessa
forma, aumentaram também as acusações que recaíam sobre pessoas comuns. 116
Fica evidente que nem todos que sucumbiam diante dos julgamentos de tribunais
comandados por sobas ou portugueses, como o de mucano, estariam envolvidos em atos
compreendidos como feitiçarias, mesmo sendo essa uma compreensão não feita pelo
indivíduo, mas sim pelo outro diante de alguma circunstância conflitiva. Entretanto um
complexo de crenças não era abandonado pelo infortúnio da escravidão e posterior travessia
do Atlântico, também não se podem desconsiderar o julgamento, a condenação, a
escravização e, como resultado, o embarque compulsório em um negreiro para o Brasil.
Dessa forma, é possível pensar na presença de ngangas escravizados por feitiçaria dentro dos
trapiches do Valongo e, posteriormente, espalhados pela cidade, ou até mesmo em indivíduos
tomando para si, dentro da nova realidade imposta, as funções de líderes carismáticos de
cultos voltados à ancestralidade.
Quem melhor compreendeu a travessia do Atlântico como uma metáfora cosmológica
para os escravizados oriundos das regiões centro-africanas foi Robert Slenes, em Metaphors
to Live By in the Diaspora, segundo o qual malungos forjariam laços de parentesco fictício
ainda nos porões dos navios negreiros, transformando essas experiências em iniciação
ritualística. Seria possível pensar na criação de laços que levariam a enfrentar as dificuldades
do cativeiro, principalmente por compartilharem entendimentos comuns sobre morte, vida,
ancestralidade e o devido cuidado contra a feitiçaria. Como destacou Slenes, tinham em
comum “metáforas conceituais” que permitiriam compreender a canoa como uma das
principais metáforas da criação de novos laços e, principalmente, representando a
migração. 117
A ideia de parentesco fictício é retirada do trabalho já clássico dos antropólogos
Sidney Mintz e Richard Price, The Birth of American Culture, segundo o qual tal
aproximação causada pelo processo traumático da travessia acabaria por ser fundamental no
processo de crioulização em solo americano. Foi com base nessas análises que Slenes
reinterpretou as observações do capitão europeu John Gabriel Stedman, autor de Narrative of
a five years expedition against the Revolted Trade of Suriname. Este, ao acompanhar o
116
FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World..., 2010, p. 69-70.
117
SLENES, Robert. Metaphors to Live By in the Diaspora: Conceptual Tropes and Ontological Wordplay
among Central Africans in the Middle Passage and Beyond. In: ALBAUGH, Ericka A.; LUNA, Kathryn M. de
(ed.). Tracing language movement in Africa. Oxford: Oxford University Press, 2018.
129
desembarque de africanos de um recém-chegado navio negreiro, destacou que os escravos
eram levados para o convés da embarcação,
A maior parte dos rostos familiares já tinha ido embora. Meu pobre pequeno
Marcello deu-me um olhar de súplica por ser levado embora, mas ele, quem
primeiro me chamou a atenção para sua pele lustrosa e aparência saudável, agora
está entre os doentes. Catula também com sua perna machucada, parecia triste,
aliás, como sempre e quando eu quis animá-lo, lágrimas correram por sua face. Eu
não estava preparado para a sensação geralmente causada pelos negros chegando ao
porto que é de evidente ansiedade e apreensão. Seja por eles pensarem menos nas
dificuldades presente do que em “outras que eles não sabem quais são” ou por
algum pressentimento particular, que eu não soube concluir. 120
118
STEDMAN, John Gabriel. Narrative of a five years expedition against the Revolted Trade of Suriname.
Baltimore; Londres: Johns Hopkins University Press, 1790, p. 214-215. v. 1.
119
HILL, Pascoe Grenfell. Cinquenta dias a bordo de um navio negreiro. Rio de Janeiro: José Olympio,
[1844]/2008.
120
HILL, Pascoe Grenfell. Cinquenta dias a bordo de um navio..., [1844] 2008, p. 105-106.
130
pessoas que compartilhavam de uma língua pidgin resultante de meses de contanto entre
falantes do quimbundo, umbundo e quicongo, além de complexos sagrados próximos. A
angustia do reverendo Hill em acompanhar as incertezas do desembarque me permite afirmar
que tanto a “dança, alucinagem e palmas a bordo do navio” – acompanhadas por Stedman na
chegada em Suriname – quanto as danças dos africanos no mercado de escravos do Valongo
– analisadas pelo alemão Georg Wilhen Freireyss, que, ao confundi-las com alegria festiva,
acabou por achar o momento clássico e compará-las com as touradas espanholas e as brigas
de galos dos ingleses – não passavam na verdade de um momento ritualístico de iniciação
para uma nova vida, tal como a metáfora da canoa defendida por Slenes e o culto de aflição-
fruição realizado ao longo dessa passagem.
Possibilidades de aproximação não faltariam mesmo que se tratasse de uma penosa
viagem de travessia, como o Dr. Thomas Trotter, cirurgião, descreveu o negreiro Brookes em
1783, 121 em que, após a refeição das nove horas, na qual congos e angolas comeram bananas
e mandiocas, acompanhados por uma pequena porção d’água, foram conduzidos para o
convés onde, mesmo acorrentados, dançavam, cantavam e batiam palmas ao som de um
“banjo africano” e um velho tambor. Segundo ele, tal permissão era dada aos escravizados
com fins terapêuticos de se exercitarem.122
Isso posto, acredito que, ao longo da travessia do Atlântico, lideranças religiosas eram
embarcadas como escravas ou até mesmo eram forjadas, ao longo da viagem, com base em
conhecimentos anteriores. A realidade do Valongo não escapava aos olhares estupefatos da
maioria dos europeus que visitavam a cidade e traziam, em seu entendimento de mundo, a
compreensão do atraso causado pela escravidão. Freireyss, portanto, não foi o único a retratar
o que compreendia de tal espaço; a inglesa Maria Graham esteve no Brasil por três ocasiões
na primeira metade do século XIX e, entre seus diversos trabalhos sobre o Novo Mundo,
destaco Journal of a Voyage to Brazil. A primeira edição londrina de 1826 traz em sua
contracapa uma ilustração de Augustus Earle intitulada Slave Market at Rio de Janeiro,
presente do também viajante inglês para a autora.
121
A imagem dessa embarcação figura até os dias atuais em livros acadêmicos e didáticos para demonstrar o
interior de um navio negreiro e como os escravizados eram amontoados em seu porão. A imagem fora
amplamente utilizada ao longo dos séculos XVIII e XIX nas campanhas abolicionistas norte-americanas.
122
MANNIX, Daniel P.; COWLEY, Malcohn. Black cargoes: a history of the atlântic slave trade. New York:
The Viking Press, 1962, p. 114-115.
131
Fonte: GRAHAM, 1824. 123
Augustus Earle viveu no Rio de Janeiro entre os anos de 1820 e 1824, tempo
suficiente para conhecer a rígida hierarquia da cidade e as imbricadas relações existentes no
universo escravista. O artista voltaria anos mais tarde à cidade, em 1832, a bordo do famoso
Beagle, servindo de excelente “guia turístico” para Charles Darwin nos mais diversos campos
da cidade. O Brasil não seria o único destino do artista na América do Sul, tendo ele
conhecido o Chile e o Peru nos anos em que morou no Rio de Janeiro. Tornou-se amigo de
Maria Graham, a quem presenteou com três ilustrações para o Journal of a Voyage to
Brazil. 124 Na ilustração apresentada na Imagem 12, a placa no alto da loja, no canto esquerdo,
indica que se trata da “Rua do Vallongo”, onde crianças e adultos são expostos aos
compradores de seres escravizados. Chama a atenção no trabalho do artista a cabeça raspada
da maioria dos negros, o que remete à descrição feita por John Stedman sobre o Suriname.
Entretanto o que salta aos olhos na imagem, além da expressão de pavor impressa na
face dos seres humanos vendidos, confirmando a complexidade desse momento e, claro, o
olhar de quem denunciava a escravidão nos trópicos, é a provável presença de lideranças
religiosas africanas na cena. Credito essa hipótese não só às informações apresentadas até
aqui, mas à existência de duas figuras com um gorro vermelho na cabeça. Na imagem 10, em
que Cavazzi apresenta um xinguila conduzindo uma cerimônia, este também faz uso
123
GRAHAM, Maria. Journal of a Voyage to Brazil and residence there, during part of the years 1821, 1822,
1823. London: Printed for Longman, Hurst, Rees, Orme, Brown, and Green, 1824. Imagem na contracapa.
124
MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001, p. 150-154.
132
ritualístico de tal gorro. Outros indícios me ajudam a acreditar na propagação desse objeto
ritualístico para o Rio de Janeiro ao longo de todo o Oitocentos: o afamado Pai Quibombo
Juca Rosa, descortinado para a historiografia recentemente por Gabriela Sampaio, mas
conhecido de qualquer transeunte da cidade após 1870, usava em suas cerimônias calça de
veludo azul com franjas douradas, camisa branca e um gorro de veludo vermelho, com bordas
douradas.
133
Imagem 13 - Juca Rosa em trajes ritualísticos
Na fotografia tirada em estúdio por Rosa (Imagem 13), ele aparece acompanhado de
seu ajudante João Maria da Conceição, que carrega uma vara na mão, semelhante à do
africano captado pelo olhar atento de Earle, anos antes, no mercado do Valongo, na freguesia
de Santa Rita. Para Gabriela Sampaio, o objeto nas mãos de João Maria da Conceição seria
uma macumba, instrumento utilizado por ele nas reuniões presididas por Juca Rosa na Rua do
Núncio. 126 Voltando ao mercado de escravos, A. P. D. G., viajante anônimo que visita o Rio
de Janeiro e escreve suas impressões ao tempo de Dom João VI e sua corte, também capta
uma cena dentro de um trapiche, onde africanos expostos são observados por possíveis
compradores, nos traços inconfundíveis do anônimo autor (Imagem 14).
125
Processo de Sebastião da Rosa, p. 23. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
126
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa: um pai-de-santo na corte imperial. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2009, p. 188-189.
134
Imagem 14 - Slave shop at Rio a Minas Merchant Barganing
135
alguns que faria Schlichthorst descrever que todos recebiam o acessório? As imagens
caminham para a ideia de distinção, já que nem todos os internos o usavam. O fato é que a
travessia do Atlântico era sentida pelo olhar de “metáforas conceituais” comuns entre centro-
africanos, ganhando, portanto, atual importância para que o estudo do sagrado e da
contribuição africana possa se aproximar ao máximo do que seria a compreensão
cosmológica dos escravizados que desembarcaram no Rio de Janeiro sobre essa travessia do
Calunga. Slenes destaca a importância do vínculo com o navio, para os mais diversos grupos
de africanos na América:
129
SLENES, Robert W. Metaphors to live by in the Diaspora: conceptual tropes and ontological wordplay
among Central Africans in the middle passage and Beyond. In: ALBAUGH, Ericka A.; LUNA, Kathryn M.
Tracing Language Movement in Africa. Oxford: Oxford University Press, p. 346-347.
130
SLENES, Robert W. Metaphors to live by in the Diaspora…, Oxford: Oxford University Press, p. 359.
136
pensar na multiplicidade de funções desenvolvida por velhos e/ou novas lideranças religiosas
forjadas pela necessidade. Agora não mais divididos cada qual com suas habilidades
específicas como nas regiões da África Centro-Ocidental, mas sim com o acúmulo de
responsabilidades, principalmente pela emergente necessidade de aplacar a ira dos mortos e
ancestrais, mobilizando o divino poder de cura, a manipulação das plantas e de várias
propriedades naturais para se conectar com o sobrenatural, buscando afastar a má sorte
causada por um feitiço mal intencionado, enfim tantas outras funções, aglutinadas em uma
liderança creditada ao poder desagregador do tráfico.
Concluo este capítulo apresentando as impressões de uma parisiense radicada no Rio
de Janeiro com sua família, na virada da primeira para a segunda metade do Oitocentos.
Fugindo dos desdobramentos da Revolução Francesa, Adèle Toussaint-Samsom, marido e
filhos desembarcam em 1849 na corte. Escritora, seu olhar no Brasil atentou na situação da
mulher, livre ou escrava, seus infortúnios causados pelas mazelas da escravidão. Em 1855,
quando toda a família Toussaint se viu acometida da cólera, doença comum para o contexto
da corte e que assolava os recém-chegados à capital do Império, onde rapidamente tinham
que se acostumar com as ruas insalubres do Rio de Janeiro, Adèle recebe como
recomendação médica a busca por bons ares. A caminho da profilaxia, a família rumou para o
interior do Recôncavo do Rio de Janeiro, em direção à fazenda São José, situada algumas
léguas do porto da Piedade, na vila de Magé. 131
Certo dia, já recuperados, a escritora francesa e seu marido são convidados pelo dono
da fazenda para batizarem um de seus filhos. Após a cerimônia católica, Toussaint teria
pedido ao agora seu compadre para que a escravaria pudesse ser liberada de suas tarefas
diárias e participar da confraternização. “O feitor fez então a distribuição da cachaça, dando a
cada um apenas um copinho de cada vez, e o batuco [grifo do original] começou. Gostaria de
poder dar a meus leitores uma ideia daquela estranha cena e daquela dança selvagem...
Tentemos”. 132 [Grifos meus.] A narrativa da autora francesa para o que cria àquela altura ser
um festejo comemorativo pelo batizado de um dos filhos do senhor, seguido de um dia de
folga, é recheada de significados para a conclusão deste capítulo, que buscou apresentar o
enraizamento de cerimônias centro-africanas aflitivas de busca pela cura física e
principalmente espiritual. Destaca-se o fato de sua execução, em 1855, ser marcada pela
131
POSSIDONIO, Eduardo; BEZERRA Nielson. Religiosidades africanas em tempos de escravidão: batuques e
candomblés no Recôncavo do Rio de Janeiro, século XIX. Recôncavo: Revista de História da UNIABEU, v. 6,
n. 10, p. 66-85, jan./jun. 2016.
132
TOUSSAINT-SAMSON, Adèle. Uma parisiense no Brasil. Rio de Janeiro: Capivara, [1883]/2003, p. 130-
131.
137
intrigante semelhança com todos os demais rituais aqui apresentados, de Cavazzi ao longo do
século XVII, em Matamba, às observação de Ladislau Batalha sobre as celebrações de um
quimbanda em Angola do final do Oitocentos, no primeiro capítulo, até as “danças” públicas
dominicais do Campo de Sant’Ana, na primeira metade do Oitocentos. A seguir, o que
entendeu Adèle de uma celebração:
Grandes fogueiras haviam sido acesas no meio do pasto. Um negro de alta estatura,
outrora rei em seu país, logo surgiu, armado de uma comprida vara branca, sinal
aparente, para eles de comando. Sua cabeça estava ornada de plumas de todas as
cores, e guizos prendiam-se em torno de suas pernas. Todos inclinavam-se diante
dele com respeito enquanto passeava com circunspecção, assim paramentado, cheio
de uma suprema majestade. Junto do rei postavam-se os dois músicos que deviam
conduzir o batuque; um tinha uma espécie de enorme cabaça que continha outras
seis ou sete de diferentes tamanhos, sobre os quais estava posta uma tabuinha muito
fina. Com a ajuda de pequenas baquetas, que ele manipulava com grande destreza, o
negro obtinha sons surdos, cuja monotonia parecia antes dever provocar o sono que
outra coisa. O segundo músico, acocorado sobre os calcanhares, tinha diante de si
um pedaço de tronco de árvore escavado, sobre o qual estava estendida ema pele
de carneiro seca. De tempos em tempos ele batia melancolicamente aquele tambor
primitivo para reforçar o canto. Três ou quatro grupos de dançarinos logo foram
pôr-se no meio do círculo formado por seus companheiros; as negras caminhavam
em cadência, abanando-se com seu lenço e entregando-se a um movimento dos
quadris dos quais mais acentuados, enquanto seus cavalheiros negros gritavam em
redor delas, saltando de um pé com as mais grotescas contorções, e o velho músico
ia de um a outro grupo, falando e cantando enquanto agitava suas baquetas com
frenesi; por suas palavras, parecia querer incitá-los à dança e ao amor, enquanto os
assistentes acompanhavam o batuque com palmas que lhe acentuavam o ritmo de
uma maneira estranha e o rei passeava circunspecto, agitando seus guizos. 133
Acredito estar diante da mais intensa descrição de uma cerimônia de cunho afro-
brasileiro no Rio de Janeiro do Oitocentos. A riqueza de detalhes empregada na narrativa da
autora reforça as ideias trabalhadas aqui sobre o ritual, por mais que ela acreditasse narrar
uma festa. O ambiente de uma fazenda sempre era mais restritivo e vigiado, se comparado ao
meio urbano, entretanto, com toda atuação dos agentes da fazenda, não faltaram a água
ardente necessária à liturgia do culto, mesmo que servida em pequenas doses, sob o controle
atento do feitor. Ressalto que, todas as celebrações apresentadas até aqui, iniciadas com a de
Antônio Francisco e Leopoldo em 1899, na Introdução, bem como as demais celebrações em
diferentes períodos e contextos, sempre lançaram mão do vinho ou da cachaça, ou seja, a
bebida alcoólica ritualística. A liderança, presente em todas as análises feitas até aqui, era de
tal modo reconhecida por sua eficácia ritualística, que a reverência prestada pelos fiéis fez
Adèle Toussaint se imaginar diante de um outrora rei africano. Estava, na verdade, diante de
um nganga zumbi, responsável direto por comandar a cerimônia e conduzir, por meio de
133
TOUSSAINT-SAMSON, Adèle. Uma parisiense no Brasil. Rio de Janeiro: Capivara, [1883]/2003, p. 131-
132. grifos meus.
138
pequenos atos performáticos estrategicamente estabelecidos, a comunicação com os espíritos,
que usavam os médiuns, compreendidos quase sempre como dançarinos que se contorciam
freneticamente, após o estabelecimento com o sobrenatural, causado, na ocasião, pelo uso
obrigatório do ngoma, identificado como um tronco de árvore com pele de carneiro, a cabaça
e a macumba, à qual a autora se refere como vareta fina tocada com a ajuda de uma baqueta.
Destaco a forte semelhança desta com as demais fontes expostas até aqui, da
vestimenta ritualística do nganga zumbi, o cocar com penas coloridas, que perpassara o
Atlântico e, tal como destacado por Zacharias Wagener para a Pernambuco do Setecentos,
continuava como paramento obrigatório para o estabelecimento da eficácia da autoridade
perante o grupo, bem como para a comunicação com o sobrenatural. A cabaça presa à perna,
tal como identificado por Cavazzi, estabelecia a atenção do espírito ancestral que fazia, ao
longo da cerimônia, uso do corpo dos integrantes iniciados e habilitados para tal função. Os
que não incorporavam davam ritmo com as obrigatórias palmas e cantos. O Pai Quimbombo
Juca Rosa, na Imagem 13, carrega em sua cintura uma bolsa, onde depositava seus encantos.
Ladislau Batalha, sobre período semelhante em Angola, destacou que o quimbanda
responsável pela cura trazia um pano enrolado em sua cintura e uma espécie de mochila, onde
guardava os elementos necessários para o encanto, tais como o pó (pemba), peles de animais,
chifres, entre outros. 134
Pelo exposto até aqui, acredito que, entre as várias possibilidades de influência na
construção do sagrado praticadas nas cerimônias da Ladeira dos Guararapes, na freguesia da
Glória, que manteve seu funcionamento ao longo de toda a segunda metade do século XIX,
não tenha escapado a Laurentino Inocêncio dos Santos a crença na ancestralidade e o devido
cuidado que esse segmento merecia. Em cada canto da cidade, seria possível presenciar
cerimônias ritualísticas voltadas para aplacar a ira dos espíritos, por mais que desavisados
transeuntes acreditassem que tais performances fossem apenas diversão depois de uma longa
semana de trabalho. Entretanto quem passava por rituais de iniciação, fosse na travessia por
conta do tráfico, nos porões dos navios negreiros ou já dentro da própria cidade do Rio de
Janeiro, conseguiria facilmente fazer a devida leitura de cada rito. A crença na ventura e
desventura já estava amplamente propagada no início do Oitocentos, nos dois lados do
Atlântico, assim como a ideia da maldade praticada por um agente da feitiçaria, que deveria
rapidamente ser combatido por um líder religioso carismático e experiente. Em vários
momentos seriam eles os ngangas, xinguilas e quimbandeiros.
134
BATALHA, Ladislau. Costumes angolenses. Lisboa: Companhia Nacional Editora, 1890, p. 30.
139
A construção cultural até aqui analisada pautou-se pela forte crença na ancestralidade
e na real possibilidade que esta poderia interferir no mundo dos parentes vivos, o que
obrigava a comunidade de escravizados e libertos a realizar rituais que acalmassem seus
mortos e reestabelecesse o contato necessário feito ao longo de toda vida que, no caso do Rio
de Janeiro, foram abruptamente interrompidos com a travessia do Atlântico. Os elementos
aqui apresentados permitem pensar em atos padronizados para se compreender o ritual. Em
todos os casos observados, foi patente a presença dos tambores de fruição, também chamados
de ngomas, um dos elementos responsáveis pela comunicação entre o mundo dos vivos e dos
zumbis, espíritos familiares divinizados, podendo ser omitidos liturgicamente ou por
consequência da ocasião, como na experiência vivida pelos africanos boçais armazenados no
trapiche do Valongo à espera angustiante de serem encaminhados aos seus novos destinos.
Para a ocasião, não seria possível pensar na existência de tambores, contudo a possibilidade
de cantar, dançar e gesticular estabeleciam os elementos necessários para o transe e a
conexão com o mundo dos mortos.
Outro ato padronizado identificado nas fontes foi a presença dos líderes carismáticos
responsáveis por comandar todo ato performático, cuja caracterização saltava aos olhos dos
europeus que analisavam o cotidiano carioca. Pela repetição, é possível afirmar que
consistiam em necessidades litúrgicas tais ornamentações; as penas, responsáveis por adornar
as cabeças, estiveram presentes nos dois lados do Atlântico. MacGaffey, em Fetishism
revisited: Kongo nkisi in sociological perspective, compreende a figura do galo como um
intermediário entre os mundos, sendo esse animal, com suas penas, o representante da
alma.135 Vidros também faziam parte da vestimenta, seriam esses objetos colocados em
pequenas estatuetas os responsáveis pelo diálogo entre o nganga, líder religioso, e os
espíritos zumbis. Dessa forma, não acredito na bebida alcoólica como um lenitivo para as
agruras, mas sim como um elemento ritualístico caro para tais cultos. Como destacado, para o
olhar desavisado, desconhecedor de costumes realizados pela maioria dos africanos ali
envolvidos, a dança regada a cachaça facilmente seria confundida com festividade recreativa.
A ação ritualística apresentada para a primeira metade do século XIX teria colocado
quem vivesse nesse contexto e buscasse por tal formação em contato com cultos de aflição-
fruição, visando ao contato com a ancestralidade e ao pronto restabelecimento da ventura. A
maneira como as fontes revelam permanências dá-se através da intensa semelhança entre os
ritos observados desde Cavazzi, na corte da rainha Jinga, em meados do século XVII, até as
135
MACGAFFEY, Waytt. Fetishism revisited: Kongo nkisi in sociological perspective. Journal of the
International African Institute, v. 47, n. 2, p. 172-184, 1977, p. 175.
140
lentes do pintor Zacharias Wagener, no Nordeste brasileiro sob o domínio holandês, onde se
destaca a dança sendo comandada por uma liderança ornada com penas na cabeça e colares,
assim como os líderes em Matamba. Tais ritos foram, na verdade, contínuos em solo
americano, marcados por formalidade, estereótipo, condensação e fusão, tendo em vista que,
das passagens descritas acima, passando pelas investigações do Santo Ofício nas regiões de
Angola ao longo do século XVIII, revelando a constante prática dos entembes, até as
cerimônias públicas do Campo de Sant’Ana, no Rio de Janeiro da primeira metade do
Oitocentos, posso afirmar que tais rituais marcaram sociedades nos dois lados do Atlântico
impactadas pela constante presença do tráfico de cativos, que desestruturava famílias,
cortando laços com a ancestralidade.
Como exposto, o Rio de Janeiro tornou-se privilegiado palco para a análise de tais
cerimônias, por reunir uma considerável quantidade de seres humanos que compartilhavam
das mesmas angústias com o sobrenatural, de tal modo partilhando de um complexo religioso
em que muito se aproximavam, acabavam por encontrar meios de exercer práticas de aflição-
fruição visando atender e acalmar seus mortos e, de alguma maneira, equilibrar seus mundos
distorcidos pelo cativeiro. E, por mais natural que pudessem parecer, a ponto de serem
confundidas como recreação dominical, tais cerimônias, como demonstrado ao longo deste
capítulo, cercavam-se de profundas formalidades, marcadas pela rigidez litúrgica ao longo de
séculos, seguidas de estereótipos. E o que outrora fora interpretado como alegria, hoje releio
e compreendo como angústia ritualística em busca do restabelecimento de uma normalidade
cotidiana, ou seja, o sagrado, nas ruas cariocas, passava obrigatoriamente por uma gramática
simbólica oriunda dos mais diversos povos centro-africanos provenientes das zonas atlânticas
da África Centro-Ocidental. Contudo os viajantes não estariam de todos equivocados.
Annette Drews, em Gender & ngoma, ao revisitar a obra de Janzen e presenciar rituais de
aflição-fruição, destacou que, se os rituais fossem frutíferos, alcançando o intento para o qual
foram preparados, a cerimônia acabaria em grande festa, contando com bebidas e uma grande
136
refeição para todos. Talvez seja esse um caminho para se compreender o final das
cerimônias festivas de candomblé, nas quais, ao término do ritual, tem início um grande
samba marcado por atos de comensalidade.
136
DIJK, Rijk van; REIS, Ria; SPIERENBURG, Marja. The quest for fruition through ngoma: the political
aspects of healing in South Africa. Athens: Ohio University Press, 2000, p. 46.
141
CAPÍTULO 3
142
proeminentes membros da corte, entre outras formas de distinção entre os viventes. Manuel
Antônio de Almeida, relatando um tempo anterior ao nascimento de Laurentino, mais
precisamente “o tempo do rei”, Dom João, chamou a atenção para as festas que fervilhavam
na cidade:
137
ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Santiago, Chile: Klick Editora, 1997,
p. 61.
138
THORNTON, John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro:
Editora Campus, 2004. THORNTON, John K. Afro-christian syncretism in the kingdom of Kongo. Journal of
African History, v. 54, p. 53-77, 2013. THORNTON, John K. The Kingdom of Kongo and Palo Mayombe:
reflections on an African-American Religion. Slavery & Abolition. A Journal of Slave and Post-Slave Studies, v.
37, n. 1, p. 1-22, 2016.
143
portuguesa, marcada pela forte presença de irmandades, incluindo a de homens pretos e
pardos.
Um bom exemplo é a forte presença da devoção a Nossa Senhora do Rosário entre os
moradores de Angola e sua posterior propagação em Lisboa e, principalmente, nas regiões
coloniais do Brasil. Nos dias atuais, o país ainda é marcado pelo culto à Virgem do Rosário, e
suas bicentenárias igrejas marcam a arquitetura colonial de inúmeras cidades brasileiras.139
Para a realidade aqui estudada, Lucilene Reginaldo destacou que a Irmandade do Rosário dos
Homens Pretos, nas mais variadas cidades brasileiras no contexto escravista, servia de alento
para os que compulsoriamente atravessavam o Atlântico como escravizados. 140
Acredito que esse cristianismo africano, nascido do contato e do intenso processo de
crioulização entre as práticas lusas e as tradicionais religiões centro-africanas, era colocado
na mesa de negociações entre as mais variadas manifestações religiosas da corte. Assim, era
essa reinterpretação da fé católica que acabava por pautar os rituais tradicionais nas ruas do
Rio de Janeiro, ou seja, as escolhas para suas práticas religiosas tradicionais feitas em solo
brasileiro pelos bacongos, ambundos e ovimbundos, que foram os principais povos
desembarcados nos portos do Sudeste na primeira metade do século XIX, passavam pelas
lentes do catolicismo africano, que, à época, já contava com mais de trezentos anos de
propagação pelos reinos centro-africanos. É necessário observar que o período ainda sentia a
forte influência de um catolicismo barroco, do século anterior, marcado, segundo Margareth
de Almeida Gonçalves, pelo “sincretismo de padrões culturais”, possibilitando aos fiéis a
aproximação com outros credos e culturas, dada a existência de “elementos de extrema
plasticidade”. 141
Em A África e os africanos na formação do mundo atlântico, John Thornton, além de
desenvolver a teoria aqui tomada como base, de nascimento de um novo cristianismo africano
como resultado da acomodação da filosofia e do conhecimento africano com o cristianismo
europeu, demonstrou as possibilidades de diálogo contínuo entre ambas as partes, pautado
pela noção de revelação. Esta, segundo Thornton, servia como janela para o outro mundo, e
pessoas especializadas necessitavam constantemente de contato com esse outo lado para
139
Para melhor compreensão das origens do culto à Virgem do Rosário e sua propagação nos dois lados do
Atlântico, pelas mãos de pretos angolas, ver: REGINALDO, Lucilene. Os rosários dos angolas: irmandades de
africanos e crioulos na Bahia setecentista. São Paulo: Alameda, 2011.
140
REGINALDO, Lucilene. Os rosários dos angolas…, 2011, p. 90.
141
GONÇALVES, Margareth de Almeida. Império da fé: andarilhas da alma na época barroca. Rio de Janeiro:
Rocco, 2005, p. 29-31.
144
manterem vivas suas crenças e seus fiéis. 142 O entendimento entre as mais variadas práticas
sagradas acabou estabelecendo pontos de semelhanças, entre os quais se destaca a crença no
outro mundo, de onde emanavam as revelações advindas de seres supremos e/ou de mortos.
A existência de uma divindade suprema era outro ponto de aproximação. Deus, na revelação
cristão dos missionários, foi, ao longo dos séculos, associado a Reboucou, na Senegâmbia;
Vodu, em Aladá,; Zambi Anpungo, em Angola, desde o início da catequização católica e
posteriormente protestante. 143 Por fim, outra importante semelhança entre os complexos
religiosos cristãos e diversos povos africanos era o conhecimento que chegava aos povos pela
revelação.144
O cristianismo, segundo Thornton, passou a ser a aproximação entre os mais diversos
grupos de africanos na diáspora. Contando com um clero forte, estruturado politicamente,
tendo como principal base de revelação a Sagrada Escritura, contrastava, por exemplo, com a
ausência de poder dos sacerdotes centro-africanos, que não contavam com uma fonte de
aceitação uniforme, precisando constantemente provar sua eficácia no contato com o mundo
dos mortos, bem como na resolução dos problemas. Um ponto fundamental a ser destacado
era a ausência de ortodoxia por parte das religiões tradicionais centro-africanas, o que
permitia, além da conversão, a convivência entre as duas tradições, sem que isso significasse
145
contradição para os povos centro-africanos.
Essas religiões compartilhavam costumes comuns na esfera do sagrado, como
demonstrado por Willy de Craemer, Jan Vansina e Renee C. Fox, em Religious Movements in
Central Africa, tendo como base em suas manifestações religiosas o complexo de ventura e
desventura, em que a vida era pautada pela boa e pela má sorte. Esta era causada pela ação
maléfica de feiticeiros, e líderes religiosos carismáticos, reconhecidos pela comunidade à sua
volta, eram responsáveis pelo restabelecimento do equilíbrio e da ventura entre seus fiéis. 146
Não por acaso, as manifestações religiosas existentes nas ruas do Rio de Janeiro, mesmo de
cunho tradicional africano, passavam pelo diálogo com as tradições cristãs e pela sua
releitura. Cabe voltar ao flagrante sofrido por Laurentino Inocêncio dos Santos, em março de
1878, e repetido poucos meses depois pela mesma diligência policial, em janeiro de 1879,
142
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-1800. Rio de Janeiro:
Editor Campu, 2004, p. 312-314.
143
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, …, 2004, p. 344.
144
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, …, 2004, p. 314.
145
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, …, 2004, p. 325.
146
CRAEMER, Willy de; VANSINA, Jan; FOX, Renée C. Religious Movements in Central Africa: a
Theoretical Study. Comparative Studies in and History, v. 18, n. 4, p. 458-475, out. 1976.
145
liderada também pelo Dr. Corrêa Dutra, subdelegado da freguesia da Glória, local de moradia
e atendimento do líder religioso, conhecido como eficaz curandeiro.
Saltou aos olhos dos profissionais da imprensa que cobriram o ocorrido exatamente o
espaço ritualístico de Laurentino, do qual destacaram o luxo dos dois altares, erguidos nas
salas de atendimentos, semelhantes aos de uma Igreja, chegando os jornalistas a elogiar tão
grande requinte empregado no local. Não creio que as imagens de santos católicos,
facilmente reconhecidas pelos jornalistas e comparadas com outros objetos que remetiam a
costumes africanos, estivessem presentes na casa de Laurentino para, de alguma forma,
esconder seu credo, escorando-se na religião oficial do Império. Tratava-se de um homem
livre, proprietário da casa na Ladeira dos Guararapes e de outras propriedades, como se
evidenciará adiante, não estando tutelado por nenhuma autoridade. Sua clientela conhecia
bem seu espaço litúrgico e sabia o que buscava nas consultas oferecidas pelo líder religioso.
Portanto as escolhas do curandeiro da Glória passavam pelas reinterpretações de um
cristianismo africano existente na corte bem antes de seu nascimento, em 1821. Quem o
procurava, de certa maneira, estava também preparado para compreender e assimilar essas
trocas de “padrões culturais”.
Diante desse catolicismo africanizado, a população da corte, ao longo do século XIX,
estava amplamente familiarizada com os costumes dos povos escravizados e forros nas ruas
da cidade. E, dentro desse cabedal de costumes, as práticas sagradas tradicionais eram
também normatizadas. Destaco como interessante exemplo o canto entoado diariamente nas
ruas do Rio por trabalhadores, que, na primeira metade do século XIX, eram de maioria
africana e de procedência das regiões atlânticas da África Centro-Ocidental. Portanto grande
parcela desses cantos era entoada em quicongo ou em quimbundo pelos mais variados grupos
de trabalhadores que cortavam as ruas, ladeiras, becos e morros da cidade. Esses cantos eram
entendidos pelos contemporâneos ouvintes como algo normal, como demonstrou Rafael
Galante, em Da cupópia da cuíca, no qual estudou a diáspora dos tambores centro-africanos e
sua propagação pelo mundo atlântico:
146
Candelária, dão à cidade, segundo a crônica estrangeira da época, um aspecto de
grande feira africana. 147
147
GALANTE, Rafael Benvindo Figueiredo. Da cupópia da cuíca: a diáspora dos tambores centro-africanos de
fricção e a formação das musicalidades do Atlântico Negro (Sécs. XIX e XX). 2015. 146 f. Dissertação
(Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2015, p. 30.
148
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Imprensa Oficial, [1839]/2015,
p. 282.
149
EWBANK, Thomas. Vida no Brasil: ou diário de uma visita à terra do cacaueiro e das palmeiras. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, [1856]/1976, p.78.
147
dificuldades para identificar a origem do idioma usado pelos trabalhadores como “o canto de
Angola”. É interessante perceber a presença de um marcador de compasso, ou seja, uma
espécie de líder, responsável por abrir os caminhos para os demais carregadores. Assim como
os carregadores de Debret, que contavam com um capataz que, além de abrir os caminhos,
cuidava da sorte dos demais trabalhadores, o responsável por essa função na Glória
provavelmente se distinguia pela diferente vestimenta, levando-se em conta que foi o único a
ter as vestimentas descritas pelo viajante inglês.
Tais trabalhadores, responsáveis pela condução do grupo, tinham características que
permitem acreditar que desempenhavam as funções de comando, utilizando-se de elementos
sagrados, comuns nas culturas centro-africanas. Por exemplo, os chifres, que, em outro
momento, foram compreendidos por Thomas Ewbank como elemento de sorte que seria
comum em várias paredes de lojas da cidade (Imagem 15).
150
EWBANK, Thomas. Vida no Brasil…, [1856]/1976, p. 189.
148
Angola trajava calças azuis de veludo, um pano vermelho pela cintura, com uma maraca nas
mãos enfeitada com fitas de pano, levando as cantigas de acordo com o ritmo que desejava
para a caminhada do grupo. A essa altura, alerto para as pinturas do inglês William Gore
Ouseley (Imagem 16), que visitou o Rio de Janeiro e a parte sul do país na primeira metade
do século XIX e que, mais de uma vez, em seu caderno de gravuras, apresentou africanos
exatamente com a mesma vestimenta. Cabe ainda relembrar a fotografia mostrada na Imagem
13, no capítulo anterior, anexada ao processo movido contra Juca Rosa, como prova de
estelionato, em que o líder religioso, em trajes cerimoniais, veste exatamente a mesma roupa
captada pelas lentes de Ouseley e descrita por Ewbank, aproximando-se também dos
carregadores de café mostrados por Debret. Portanto cabe pensar em mais uma tarefa
desenvolvida por quem apresentava características de liderança religiosa pelas ruas da cidade.
149
imagens quase em tempo real, para depois, sim, serem repensadas em um ateliê. Dessa
perspectiva foi que o pintor integrante da Missão Artística Francesa captou um carregador de
café portando o que chamou de marotte portée, “espécie de amuleto usado por um negro
carregador de café”. A imagem mostra um carregador de café que equilibra a grande saca do
produto na cabeça, com o auxílio de uma das mãos, mas que, com a outra, carrega
naturalmente uma pequena estatueta, aparentemente feita de madeira, medindo pouco mais de
dois palmos. Contudo, mesmo com seu diminuto tamanho, Debret fez questão de reproduzi-la
em duas tomadas, uma frontal e outra de perfil, dessa forma sendo possível perceber que,
junto ao corpo da estatueta encontravam-se mais duas em menor tamanho, atadas em sua
perna. A estatueta recebia como acabamento a cabeça de uma ave, com destaque para seu
bico e suas penas despontando para cima. O carregador, apenas vestido com uma tanga, trazia
em seu corpo listras vermelhas pintadas (Imagem 17).
152
DEBRET, Jean-Baptiste. Costumes du Brésil. Dessinateur. Bibliothèque Nationale de France. Gallica, 1820,
p. 7.
150
sem o devido preparo de uma liderança religiosa, geralmente um nganga, responsável pela
colocação do encanto na pequena imagem para que esta fosse o receptáculo do espírito. É
instigante ver a preparação de tal instrumento, contendo elementos retirados de uma ave,
vítima comumente imolada nas cerimônias nos dois lados do Atlântico. John Janzem e Wyatt
MacGaffey, em An anthology of Kongo religion: primary texts from Lower Zaire,
demonstram como o frango, muitas vezes, era utilizado para acalmar os espíritos dos
antepassados, sendo o sangue dessa ave, após sacrifício ritualístico, aspergido em seus
túmulos. 153 O missionário Van Wing, analisando funerais Mpangu, observou que o cortejo
era comandado por músicos que carregam, além de seus instrumentos, um chifre e uma
galinha viva, que tem suas penas arrancadas ao longo do cortejo.154 Wyatt MacGaffey,
conforme mostrado no capítulo anterior, captou a metáfora da pena para os cultos centro-
africanos, já que as palavras em muito se associavam à alma, nsala.155
Torna-se evidente que o cotidiano de africanos e crioulos, ao longo do século XIX,
nas ruas do Rio de Janeiro, não era, em nenhum momento, dissociado de suas experiências
religiosas, e estas pautavam as escolhas e os caminhos a serem percorridos. Não por acaso, a
cidade do Rio de Janeiro, ao longo daquela centúria, tornou-se local propício para cerimônias
de iniciação ritualísticas, necessárias a todos que desejassem maiores aprofundamentos nas
práticas afro-cariocas.
3.2 Iniciações
153
JANZEM, John M.; MACGAFFEY, Wyatt. An anthology of Kongo religion: primary texts from Lower
Zaire. Kansas: University of Kansas, 1974.
154
WING, J. Van. Études Bakongo: sociologie – religion et magie. Brugge: Desclee de Brouwer, 1959, p. 248.
155
MACGAFFEY, Wyatt. Fetichism revisited: Kongo nkisi in sociological perspective. Africa: Journal of the
International African Institute, v. 47, n. 2, p. 172-184, 1977, p. 177.
151
Imagem 18 - Negras novas levadas ao batismo
A cabeça raspada provavelmente pode ter levado o autor a imaginar que a cena
captada por ele era a de recém-desembarcados nos portos negreiros da cidade, já que a
maioria tinha essa característica, como já tratado no capítulo anterior. Entretanto causa
profunda estranheza a vestimenta escolhida para a cerimônia de batismo. Destoava por
completo dos costumes da época, do padrão de roupas para a entrada em uma celebração
católica. Os olhares de outros viajantes captaram diversos momentos em que africanas e
crioulas se dirigiam para as missas e/ou irmandades. Momentos de devoção, marcado
principalmente pelo zelo no vestir. Saltam aos olhos outros fatores da imagem 18, por
exemplo, os ombros estão desnudos, diferentemente da visão captada por Sheila de Castro
Faria, em Sinhás Pretas, damas mercadoras, em que africanas desfilavam com luxo suas
vestimentas e joias nas celebrações litúrgicas católicas em São João del Rei e na cidade do
Rio de Janeiro.157
O importante caderno de registros de Debret, já citado e utilizado aqui, serve de base
para o levantamento de tais hipóteses, pois nele existe um esboço no qual o pintor francês
156
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil…, [1839]/2015, p. 456.
157
FARIA, Sheila Siqueira de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de
Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). 2004. Tese para professor titular em História. Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2004.
152
chama pelo mesmo nome, negra em trajes de batismo, uma mulher de cor preta, que é
apresentada com a mesma indumentária branca, rendada, que a mostrada na Viagem
Pitoresca, entretanto com um vestido mais curto, mas com os mesmos característicos cordões
ritualísticos. Chamo a atenção para a semelhança da vestimenta das negras adultas com as das
duas crianças, não só quanto ao vestido, mas também aos colares, que acredito serem
ritualísticos, o que permite inferir que se tratava de uma vestimenta obrigatória para a
cerimônia.
Cabem alguns questionamentos acerca da prancha criada por Debret. Não duvido da
cena, pois chamaria a atenção de qualquer estrangeiro um grupo de pretos entrando em uma
igreja em trajes diferentes do habitual, principalmente dos de missa. Para a mesma imagem, o
artista francês afirma que a madrinha segue contrita para a cerimônia, sua roupa, portanto,
atende aos padrões litúrgicos de então – coberta por completo buscando o recato que o
ambiente exigia.158
A vida dos escravos no Rio de Janeiro, de Mary Karasch, é uma obra única,
consagrada ao longo de anos pela historiografia, não só como leitura obrigatória para as
pesquisas sobre escravidão urbana no Brasil, mas como apontadora de novos rumos para a
pesquisa. É exatamente nesse caminho que segue minha discordância da interpretação dessa
autora. Para a mesma cena de Debret, Karasch acredita ser de fato uma cena de batismo de
negras recém-desembarcadas na cidade, pois suas cabeças raspadas seriam resultado do
costume empregado por traficantes negreiros, visando, por meio do asseio, evitar doenças e
mortes na travessia do Atlântico. Entretanto alguns indícios demonstrados por Debret na
mesma prancha e em outros trabalhos, cruzados com outras fontes que revelam os costumes
sagrados praticados dentro das freguesias urbanas do Rio de Janeiro do Oitocentos, fazem-me
crer que a cena captada pelo viajante seria comum no dia a dia da urbe, tratando-se, portanto,
de um já ressignificado processo de inicialização nas religiões tradicionais afro-cariocas.
Quanto às cabeças raspadas, assim como ocorrera no navio do capitão John Gabriel
Stedman, no desembarque no Suriname, como abordado no capítulo anterior, cabe relembrar
que a ação fora feita pelos próprios africanos, apresentando símbolos ritualísticos, com cacos
de uma garrafa, sem o auxílio de sabão, seguidos por danças e palmas pelo convés do
navio.159 A imagem de Debret demonstra que rituais não eram feitos apenas em momentos de
grande aflição, como o exemplo do navio ou dos africanos recém-desembarcados no
158
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil…, [1839]/2015, p. 455.
159
STEDMAN, John Gabriel. Narrative of a five years expedition against the revolted trade of Suriname.
Baltimore; Londres: Johns Hopkins University Press, 1790, , p. 214-215. v. 1.
153
Valongo, analisados pelo naturalista alemão Georg Wilhen Freyreiss, colocados em trapiches
de engorda, aguardando pelo incerto futuro na nova realidade imposta pela escravidão. 160
Após o período de ladinização, africanos e seus descendentes passavam por rituais de
inicialização de modo menos traumático do que as primeiras experiências de desembarque.
Assim, como apresentado por Thornton em A África e os africanos na formação do mundo
atlântico, o catolicismo virava o ponto de diálogo entre os mais variados povos que
ocupavam as ruas da urbe ao longo de todo o século XIX. 161 Como já exposto, o contato
entre religiões e o nascimento de novas realidades sagradas iniciaram-se na extensa costa
africana, onde ocorreram contatos com portugueses, principalmente pelos centro-africanos, já
que, desde o século XVI, o reino do Congo, principal da região, voluntariamente, pelas mãos
de Dom João I e posteriormente por seu filho Dom Afonso, convertera-se ao cristianismo,
abrindo caminho para uma reinterpretação da religião romana, pelo olhar cosmológico
centro-africano. O mesmo aconteceu com os reinos vizinhos ao Congo, como o Ndongo, da
rainha Jinga, que, de alguma forma, acabaram por abraçar a fé, formando uma nova religião,
em que o protagonismo das religiões tradicionais, antes do contato com europeus, era visível.
Assim, não seria merecedor de nenhum estranhamento o fato de se compreender um
intenso período de iniciação ritualística, passando pela necessidade litúrgica de visita à igreja
para o acompanhamento de uma missa ou outra cerimônia católica. Talvez análises feitas no
século XX, com base em observações etnográficas e comparações com escritos próximos ao
final do Oitocentos, permitam lançar luz nessas cerimônias. Arno Vogel, Marco Antonio da
Silva Mello e José Flávio Pessoa de Barros, em A galinha d’angola: iniciação e identidade
na cultura afro-brasileira, analisam os aspectos ritualísticos envolvendo uma feitura de
santo, comum iniciação ritualística presente nos dias atuais para as mais variadas casas de
umbanda e candomblé no Brasil. No capítulo dedicado à compreensão da romaria, buscam
explicação dos motivos que levam um iaô ir à missa:
160
FREIREYSS, Georg Wilhen. Viagem ao interior do Brazil nos annos de 1814 – 1815. Revista do Instituto
Historico e Geographico de São Paulo. v. 11, p. 158-228, São Paulo, Typographia do Diário Official, 1907, p.
223.
161
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro:
Campus, 2004.
154
misterioso, que os etnógrafos registraram sem surpresa aparente, e que, no entanto,
nos pareceu um fato espantoso. 162
162
VOGUEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa de. A galinha-d’angola:
iniciação e identidade na cultura afro-brasileira. Rio de Janeiro: Pallas: FLACSO; Niterói: EDUFF, 1993, p.
122. grifos dos autores.
163
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. 4. ed. São Paulo: Selo Negro, 2011, p. 244.
164
VOGUEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa de. A galinha-
d’angola…, 1993, p. 124-125.
155
De tal modo, acredito, que a ida dos iaôs à missa em sua saída de santo, vista pelos
autores como um feito escandaloso tanto na ordem moral quanto na sociológica, não fora
interpretado pelo olhar das relações primevas entre portugueses e os mais diversos povos
africanos, ainda do outro lado do Atlântico, e do nascimento de religiões resultantes desse
contato. Portanto não se tratava de uma simples ilusão de catequese ou até mesmo de
corrupção moral e sociológica; tratava-se de crença, de uma compreensão de mundo que
passava pela leitura e reinterpretação de costumes tradicionais africanos e católicos. Assim, a
missa deveria ser vista também como uma sequência canônica, necessária para o sucesso do
ato performático ritualístico.
Grande prova de sua importância foi a sobrevivência de tais práticas ainda na primeira
metade do século XX, quando começam seus naturais questionamentos, tendo em vista que a
conexão com o continente africano estava cortada desde 1850, com o fim do tráfico. E não
havendo renovação, as práticas ligadas ao cristianismo africano aos poucos perderiam força
dentro da sociedade brasileira. 165 Entretanto fica evidente uma semelhança entre o que viu
Debret, mesmo sem compreender, e os costumes de saída de santo do século XX, descritos
pelos autores de A galinha d’angola, ao demonstrar que os iniciados andavam nas procissões
com a maior economia de gestos, sem nenhuma vontade de chamar a atenção, andavam todos
de cabeças baixas, sem dirigir a palavra a ninguém.166 O viajante francês, por sua vez, ao
descrever a aquarela Negras novas a caminho da igreja para o batismo, na primeira metade
do Oitocentos, fez saber que:
165
SOUZA, Marina de Mello. Santo Antônio de nó-de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro. Tempo, Rio de
Janeiro, v. 6, n. 11, p. 171-188, 2001.
166
VOGUEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa de. A galinha-
d’angola…, 1993, p. 136.
167
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil…, [1839]/2015, p. 455.
156
cabeça descoberta e raspada.168 Os primeiros adereços para o século XX são uma espécie de
colar, gargantilha que o iaô, por obrigação, carregaria em seu pescoço durante o período da
iniciação, permanecendo com eles por mais três meses após o ritual de saída de santo,
demonstrando sua sujeição aos orixás. 169 Tais objetos são feitos com fios de contas,
miçangas, palhas trançadas e búzios. As negras pintadas por Debret carregam colares em seus
pescoços, cabe ressaltar que cada uma delas carrega uma pequena criança, com o mesmo tipo
de vestimenta e semelhantes gargantilhas. A vestimenta se repete para os quatro elementos na
imagem, com os ombros completamente descobertos, o que destoaria dos trajes comuns para
o acompanhamento de uma missa, pois o recato fazia parte da liturgia. A essa altura, cabe
valer-me, uma vez mais, do romancista Joaquim Manuel de Macedo e suas instigantes
preocupações em narrar o cotidiano de uma colônia em constante transformação, bem como
sua preocupação em deixar um recado para a posteridade. Ao escrever sobre o final do século
XVIII e início do XIX, destacou em As mulheres de mantilha o esmero na vestimenta para as
participações religiosas:
Tal seria o recato dessas vestimentas descritas na história em que, de forma curiosa,
Manuel de Macedo narra a saga de dois seminaristas que escapam temporariamente do
Seminário de São José para assistirem as animadas celebrações da Folia de Reis, dedicadas às
grandes comilanças, bebidas e musicalidades depois das apresentações performáticas dos
foliões. Para melhor aproveitarem sem maiores incômodos os dias de alegria, os jovens
usaram mantilhas, complemento comum às mulheres recatadas, nas tão utilizadas vestimentas
de respeito e de missa… O zelo imposto pela liturgia permitiu que se escondessem… Outro
importante ponto na prancha de Debret é a semelhança entre o condutor das negras para a
igreja e que se apresenta diante do padre negro, com célebre vestimenta, acompanhada de um
168
VOGUEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa de. A galinha-
d’angola…, 1993, p. 136-137.
169
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana…, 2011, p. 1066.
170
MACEDO, Joaquim Manuel de. As mulheres de mantilha. Belém: Universidade da Amazônia - Unama, p. 9.
157
bastão, em muito se aproxima da imagem existente atualmente no acervo da Biblioteca
Nacional no Rio de Janeiro, intitulada Negro feiticeiro (Imagem 19), na qual o feiticeiro, com
uma elegante vestimenta, faz uso de seu bastão para riscar um grande círculo no chão.
Acredito haver outras conexões entre o feiticeiro apresentado por Debret e o que
levava as “iniciadas” à igreja. As ligações estariam relacionadas com a figura de central
importância no Reino do Congo, o mani Vunda, no contexto dos primeiros contatos entre a
comitiva de Diogo Cão e a corte do mani Congo, futuro Dom João I. O sacerdote principal
era o Vunda, responsável pela entronização do rei e por mediar as disputas sucessórias
quando necessário. Segundo Wyatt MacGaffey, o poder do “pontífice” Mani Kavunga era
semelhante aos exercidos pelos kitomi, que, assim como o principal sacerdote do reino,
legitimava os poderes das lideranças locais. 172 Marina de Mello e Souza destacou que, para o
171
DEBRET, Jean Baptiste. O negro feiticeiro. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1828. Disponível em:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_iconografia/icon325969/icon325969.jpg. Acesso em: 9 maio 2019.
172
MACGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa: The Bakongo of Lower Zaire. Chicago:
University of Chicago Press, 1986, p. 195.
158
mesmo período em solo centro-africano, o símbolo de distinção dos kitomi era “um bastão de
cerca de 120 centímetros”, 173 semelhante aos dois exemplos apresentados por Debret para o
Rio de Janeiro.
Se de fato existir alguma conexão entre tais líderes, ajudaria a explicar também a
vestimenta de distinção para as duas imagens, já que em solo centro-africano o cargo, o mani
Vunda, além de exercer o poder sobre os espíritos da terra e das águas, era ligado também à
fertilidade, pertencia à nobreza da terra a ponto de ocupar local de destaque nas mudanças
ocorridas no Reino do Congo, com a implementação das transformações pelas mãos dos
monarcas João I e seu filho Afonso I. Não por acaso, a embaixada criada pelo mani Congo,
após o retorno dos “reféns”, contava com a presença do “pontífice” do reino. 174 Não seria de
se espantar que, com a europeização da corte congolesa, os trajes da principal liderança
religiosa se aproximasse da vestimenta da nobreza europeia. Outro importante ponto de
aproximação entre o cargo e a nobreza congolesa pode ser percebido entre os anos de 1604 e
1608, momento complexo na realidade do reino, quando Afonso II viu-se cercado por
portugueses na Batalha de Ambuíla. Visando alcançar apoio de Roma, enviou um
embaixador ao encontro do Papa Paulo V. Seu nome era Antonio Manuel Nsaku ne Funda,
ou seja, um pequeno marquês da região do Soyo. Marcado pela educação europeia e pela
habilidade com a língua portuguesa e o latim, morreu antes de cumprir sua missão, contudo
acabou homenageado com um busto feito por Francesco Caporale, em 1629, colocado junto
aos seus despojos na capela de Santa Maria Maggiore, no Vaticano,.175 abrindo, dessa
maneira, a possibilidade de pensar a apropriação das vestimentas europeias e seus usos no
cotidiano, como forma de distinção diante de uma atividade realizada, fosse em um contexto
social, fosse na esfera do sagrado.
173
SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de Rei Congo.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 65. Cabe ressaltar, que a ideia de entronização do rei do Congo feita
pelo mani Vunda não é consenso na historiografia. Tal interpretação teria partido do trabalho do missionário
belga redentorista Jean Cuvelier, responsável pela publicação de jornais missionários em Quicongo, bem como
pela história de clãs coletadas em seus trabalhos de campo. Publicou, em 1944, a biografia de Afonso I, que
serviu de base para posteriores escritos acerca do antigo Reino do Congo, sendo seguido por Anne Hilton e
outros pesquisadores na interpretação do mani Vunda como o responsável litúrgico pela coroação do monarca.
Ver: CUVELIER, Jean. L’Ancien Royaume du Congo. Desclée de Brouwer. Bruxelles: L’Édition Universelle,
1946. Em conversa particular com John K. Thornton, este alertou-me para o fato de que a confusão estava na
fragmentação política vivida pelo Reino do Congo, cabendo ao mani Vunda desempenhar tal papel no século
XIX, dando, portanto, aos futuros pesquisadores a noção que sempre desempenhara o mesmo ofício.
174
SILVA, Alberto da Costa e. A Manilha e o Libambo. A África e a escravidão, de 1500 a 1700. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p. 359-361. A vestimenta do sacerdote chamava a atenção da comitiva
portuguesa.
175
THORNTON, John K.; HEYWOOD, Linda Marinda. Central Africans, Atlantic Creoles, and the Foundation
of the Americas, 1585-1660. New York: Cambridge University Press, 2007, p. 180-185. Ver também:
FROMONT, Cécile. The art of conversion: Christian visual culture in the Kingdom of Kongo. Williamsburg,
VA: Omohundro Institute of Early American Hist, 2014, p. 183.
159
Imagem 20 - Dia de Reis em Cuba – Día de Reyes
176
MIALHE, Frédéric. "Día de Reyes". "Plate XVI" In: Album pintoresco de la isla de Cuba (Havana[?]: B.
May y Ca., 1851[?]). Slavery Images: A Visual Record of the African Slave Trade and Slave Life in the Early
African Diaspora. Disponível em: http://slaveryimages.org/s/slaveryimages/item/2163?fbclid=IwAR17sRJ-
I2URCXrE3-sP4fNeWVmbGVLV4oM9hJK9Dp0cIgEd6IsNs5YHslc. Acesso em: 6 mar. 2020. Agradeço
imensamente a Rafael Galante pela indicação dessa fonte, além das importantes trocas no campo das
contribuições centro-africanas no Novo Mundo.
177
Ver a Imagem 29 no Capítulo 4: Negro fandango scene, de Augusto Earle, Campo St. Anna, Rio de Janeiro.
160
Analisando a transição do século XIX para o XX, Andréa Mendes analisa a bandeira
branca utilizada em celebrações públicas nas Américas, como em o Enterro do filho de um
rei negro, de Debret, em que, além da presença do nganga ornado com a coroa de penas
comandando o cortejo, bandeiras brancas são empunhadas. Assim também no Suriname do
século XVIII, pelo olhar de Dirk Valkenburg, na pintura chamada Divertimento escravo, em
cuja cena um alvo estandarte também acompanha a celebração. A bandeira branca estava
associada ao culto ao inquice Tempo. Na Imagem 20, ao lado da representação do nganga
com o maior penacho, encontra-se um preto em posição semelhante ao preparo para uma
cambalhota, ou seja, colocar-se de pernas para o ar. Se correto eu estiver, seria mais um ponto
de conexão com a tradição centro-africana, representada na prancha de Debret, nos relatos de
Cavazzi, que observou xinguilas virando de ponta cabeça no momento do transe, e nas
análises de Desch-Obi. Mendes destaca a possibilidade de que a virada de ponta cabeça esteja
ligada à noção de mundo espelhado na linha do horizonte, do qual aquele que realizava o ato
performático extraia os poderes do mundo espiritual. 178 Do lado esquerdo, um homem
observa, levando um gorro mpu, semelhante aos expostos no capítulo anterior, tal qual usava
Juca Rosa no momento de suas celebrações em 1870. Contudo o que quero destacar de fato
da imagem é que, atrás do músico tocando o principal instrumento do evento, está um homem
que, a princípio, destoaria da vestimenta ritualística dos demais, porém, se comparado ao
Feiticeiro de Debret e ao responsável por levar à igreja o que o francês imaginou serem
negras para o batismo, o participante em Havana, vestido à moda da realeza europeia, poderia
ser uma ressignificação do mani Vunda em solo americano, conforme também ocorreria no
Brasil.
Dessa maneira, a figura de tal sacerdote poderia ser invocada em momentos litúrgicos
de maior importância, como a festa do dia de Reis em Cuba ou uma feitura de santo no Rio
de Janeiro, ambas para o mesmo contexto. Voltando aos ritos cariocas, a fase ritualística
conhecida como romaria, comum ao longo do século XIX e fortemente questionada no início
do século XX, corrobora a tese de proximidade entre as crenças e da reinterpretação do
catolicismo pelo olhar dos africanos. O processo iniciático em religiões afro-cariocas tornou-
se algo comum ao longo do Oitocentos, pincipalmente com o aumento das cerimônias em
espaços próprios para o culto, longe dos logradouros públicos. Acredito ter sido esse o
178
MENDES, Andrea. Sua bandeira na Aruanda está de pé. Caboclos e espíritos territoriais centro-africanos
nos terreiros e comemorações da Independência (Bahia, 1824-1937). 2018. Tese (Doutorado em História) -
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2018, p. 132-
165.
161
resultado da repressão conservadora, na virada para a segunda metade da centúria, que
culminou por elaborar, como já exposto, um código de postura municipal mais rígido,
proibindo batuques e ajuntamentos de negros nos espaços públicos. 179
Laurentino Inocêncio dos Santos viveu, portanto, em um Rio de Janeiro marcado
principalmente pela formação de novas lideranças religiosas, com base em uma gramática
africana, e, de modo especial no Rio de Janeiro centro-africano. Ele próprio, nascido no
Brasil em 1821, na capital do Império, 180 tornou-se uma liderança religiosa que, envolto no
controle de práticas curativas, ganhou respeitabilidade e clientela, que lhe permitiram ficar
estabelecido por longo período no mesmo endereço na freguesia da Glória.181 Para exercer
seu ofício, é bem provável que também tenha passado por rituais de iniciação, comuns a
todos que desejassem se aprofundar nas práticas afro-cariocas do período. Sua casa, ao que
tudo indica, era o cenário ideal para se pensar em iniciações ritualísticas de seus fiéis,
entretanto, antes de analisar seu espaço, cabe pensar e refletir nas possibilidades oferecidas
para os neófitos nas religiões tradicionais, no tempo de Laurentino, e não apenas na primeira
metade do século XIX, como apresentado até aqui.
179
Codigo de Posturas da Illustrissima Camara Municipal. Rio de Janeiro: Emp. Typ. – Dous de Dezembro – de
P. Brito Impressor da Casa Imperial [1838]/1854, p. 49.
180
LMCDC, f. 71, 07 jan. 1879.
181
As primeiras notícias que tenho de Laurentino remetem ao no de 1878, quando de sua prisão, aqui já
trabalhada. Já habitava o conjunto de casas na Ladeira dos Guararapes ou Pendura Saia, nos tempos coloniais. O
afamado curandeiro da Glória vai permanecer até sua morte no mesmo endereço, exercendo seu ofício até 1895.
162
com Laurentino na prisão de 1879, associá-las à prática do estelionato. 182 Refiro-me a
Francisco Firmo, africano benguela, contando 70 anos de idade no momento de sua prisão na
freguesia de São José, coração administrativo do Império do Brasil, por “ser encontrado em
casa de dar fortuna”. 183 E Leopoldina Jacomo da Costa, como afirmava ser chamada, ou,
pela investigação policial, Leopoldina Maria da Conceição, mas que, para sua grande
quantidade de fiéis, era Rainha. Esse título de realeza rapidamente foi ridicularizado na
imprensa, acredito que por conhecimento das práticas religiosas por parte de quem escrevia
nos jornais. 184
Cabe iniciar a análise dessas prisões pela de Leopoldina Maria da Conceição, que, ao
ser apresentada às autoridades policiais, intitulou-se ministra mãe dos santos, chefe das
mandingas e rainha. 185 Sua prisão ocorreu no mesmo ano em que Laurentino visitava a Casa
de Detenção da Corte, na terça-feira, 23 de setembro de 1879. Habitava a freguesia de
Santana, na rua Príncipe dos Cajueiros, 236. 186 A condução da diligência policial coube ao
Dr. Possolo, 2o delegado, seguido, acredito que pela complexidade da operação, de dois
delegados, os Srs. Felix da Costa e Bulhões Ribeiro, com o intuito de ajudá-lo na detalhada
busca pelos cômodos do “acanhado prédio de porta e janela”, dividido em “diversos
compartimentos”. No fundo da estalagem, a mãe de santo mantinha recolhidas em um
cômodo cinco jovens. Vale acompanhar o espanto causado por tão instigante situação no
profissional da Gazeta de Notícias:
Esse compartimento, que segundo parece, era destinado para nelle ficarem reclusas
por alguns dias, afim de se purificarem, as neophitas que deviam habilitar-se para
ser admitidas a receber a fortuna, oferecia um aspecto repugnante. 187
182
LMCDC, f. 71, 07 jan. 1879.
183
LMCDC f. 40, 28/08/1884, grifos meus.
184
Gazeta de Notícias, 28 set. 1879.
185
Gazeta de Notícias, 25 set. 1879, grifos do original.
186
Gazeta de Notícias, 25 set. 1879.
187
Gazeta de Notícias, 25 set. 1879, grifos do original.
163
hervas, cabeças de cabritos, busios e grande infinidade de outros esquisitos objetos, cercavam
aquellas raparigas […]”.188 O ritual impactou o profissional da Gazeta de Notícias, que não
fugiu à regra de seus contemporâneos ao lidar com os espaços religiosos afro-cariocas, e logo
tratou de descrever como repugnante o cômodo em que estavam as cinco moças, afirmando
não saber como elas conseguiam, em um pequeno cômodo, respirar com dificuldade um ar
bastante infecto.
Segundo testemunhas, as cinco jovens permaneceram caladas diante das autoridades
policiais, só revelando seus nomes na estação policial. Assim como em relação às práticas do
candomblé analisadas ao longo da primeira metade do século XX, Eva Maria da Conceição,
Etelvina Maria da Purificação, Joanna Maria da Glória, Amancia do Espírito Santo e
Domingas Constança, como eram chamadas, não revelaram nenhuma das práticas ou deram
mais informações sobre seus rituais iniciáticos, por se tratarem de segredos ritualísticos.
Cabe uma comparação entre as cinco neófitas recolhidas no processo de iniciação na
casa da Rainha Mandinga e a célebre imagem das Negras novas a caminho da igreja para o
batismo, de Debret. Todos os elementos envolvidos tinham em comum o fato de suas cabeças
serem raspadas, no caso do pintor francês, incluindo as crianças. Suas roupas como já
destacado, diferiam da realidade da corte para os escravos, forros e livres que transitavam nas
ruas. Debret notou distinção entre as roupas usadas no dia a dia – o que foi, creio, seu
equívoco – e destacou em seu caderno de rascunho instigante material, atualmente em poder
da Bibliothèque Nationale de France, sobre o que seria a roupa apropriada para batismo.
Contudo, diferentemente da prancha apresentada no Viagem Pitoresca, em suas anotações o
esboço é de um homem (Imagem 21).
188
Gazeta de Notícias, 25 set. 1879.
164
Imagem 21- “Negro Iniciado” –
négre costume pour su baptisé
189
DEBRET, Jean-Baptiste. Costumes du Brésil. Dessinateur. Bibliothèque Nationale de France. Gallica, 1820,
p. 19.
190
VOGUEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa de. A galinha-
d’angola…, 1993, p. 136-137.
165
roupas comuns de ida para o batismo, revelam que os rituais de iniciação presentes na corte
eram mais constantes do que se supunha até então. Outra semelhança com as neófitas da Mãe
de Santo Leopoldina Jacomo estava nas vestimentas, que seriam ritualísticas. No caso da Rua
do Príncipe, relatou a Gazeta de Notícias que, no interior da casa, existia “um bahú com
roupas de fantasia […]”. 191 A essa altura, não restam dúvidas de que se tratava de
vestimentas litúrgicas, utilizadas nos mais diversos momentos do culto, e que, por fugirem da
normalidade da corte, foram compreendidas como fantasias.
O ritual realizado na Rua do Príncipe dos Cajueiros revelou-se com fortes conexões
com os reinos da África Ocidental. Leopoldina Jacomo da Costa era “preta fula”, “de nação
Mina Gêgi”, encontrava-se em avançado estado de gravidez, era gorda e tinha
aproximadamente 45 anos. Tudo leva a crer que era fruto do tráfico ilegal pós 1830. Segundo
nova reportagem da Gazeta de Notícias, publicada no dia 28 de setembro de 1879, um dia
após a Rainha e suas neófitas assinarem o termo de bem viver, era a Mãe de Santo “muito
inteligente; desembaraça; argueiosa e bem falante”. 192 A líder religiosa já gozava de muito
tempo em terras brasileiras, ladinizada, falava bem o português, não por acaso, no dia em que
foi levada pelas autoridades policiais, com desenvoltura falou de seus títulos perante sua
comunidade religiosa. Deixou claro que a casa e todos os instrumentos e materiais litúrgicos
encontrados eram seus e que era a “ministra do culto”, “Mãi de santo” e, na língua mina,
“Gunhóde”.
Em Orixás da metrópole, Vagner Gonçalves da Silva, ao analisar a realidade de
Leopoldina Jacomo, destacou as semelhanças dos rituais por ela praticados com os cultos
atuais de candomblé:
Vê-se que a ação repressiva da polícia deu-se no exato momento em que ocorria na
casa da mãe de santo (termo empregado também em nossos dias para os sacerdotes
do culto) Gunhóde, um dos principais rituais do candomblé, a “feitura do santo” que
é a iniciação das novas adeptas. Este ritual implica numa grande variedade de atos
religiosos, começando pela reclusão das iniciadas num quarto isolado […] por um
certo período de tempo no qual ocorre a raspagem da cabeça e a ingestão controlada
de certos alimentos e preparados rituais que propiciam o transe mítico. 193
191
Gazeta de Notícias, 25 set. 1879, grifo meu. Em conversa particular com Bob Slenes acerca dos episódios e
semelhanças, ele ressaltou que tais vestimentas, na primeira metade do século XIX, corresponderiam à noção
litúrgica católica de entrada no mundo cristão.
192
Gazeta de Notícias, 28 set. 1879.
193
SILVA, Vagner Gonçalves. Orixás da metrópole. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 58, apud KOGURAMA, Paulo.
Conflitos do imaginário: a reelaboração das práticas e crenças afro-brasileiras na “metrópole do Café”, 1890-
1920. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001, p. 227.
166
De fato, creio que os rituais da primeira metade do século XX servem para lançar luz
aos eventos ocorridos ao longo do século XIX, bem como para o cruzamento dos eventos
ocorridos com práticas realizadas em solo africano, como vem sendo feito até aqui. Pierre
Verger mergulhou no universo das heranças ocidentais chegadas da África ao longo de
séculos de tráfico transatlântico, buscou, por diversas vezes, compreender as conexões entre
os dois lados do Atlântico em Fluxo e refluxo. Já em Notas sobre o culto aos orixás e voduns,
Verger analisou com riqueza de detalhes cerimônias iniciáticas na Bahia, Abomé e Ouidah,
sendo essas a preparação para que o iniciado pudesse receber o orixá, visto que, por ser ele
imaterial, só poderia manifestar-se pela presença de seres humanos. Durante a preparação, o
neófito, também chamado de adoxu, recebia o oxu, que seria uma bola do tamanho de uma
noz, formada pelos elementos referentes à sua divindade, os orixás ou voduns, que, depois de
preparado, seria colocado sobre o crânio raspado do noviço ou da noviça durante o período
iniciático. Essa seria uma importante etapa para que o iniciado viesse a receber a
divindade.194 Segundo Verger, a iniciação consistiria em criar no noviço ou na noviça uma
segunda personalidade, uma espécie de desdobramento mítico inconsciente, na qual a
divindade do orixá se manifestaria via transe. Existia uma morte simbólica, seguida de um
renascimento; não por acaso, o iniciado ganhava um novo nome. Assim, o corpo do iniciado,
adoxu, tornava-se “receptáculo misticamente preparado de uma força imaterial e de uma
única força […]”.195
Cabe comparação dos relatos dos rituais analisados por Verger com a realidade das
iniciadas da Mãe de Santo da Rua do Príncipe. O responsável pela descrição nas páginas da
Gazeta de Notícias do dia 28 de setembro de 1879 deixava claro que compreendia a cena
como um processo ritualístico de iniciação, assim como a primeira matéria informava sobre a
atuação policial e a prisão:
Com dificuldade pôde-se obter na ocasião algumas respostas das mesmas, por isso
que pareciam entorpecidas, além da influência presumível da superstição. 196
194
VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na
Antiga Costa dos Escravos na África. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1999, p. 81-82.
195
VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns…, 1999, p. XXX.
196
Gazeta de Notícias, 28 set. 1879, grifos meus.
167
Segundo Verger, nos ritos de iniciação, o neófito de fato passaria por um processo de
“morte e ressurreição simbólica”, para que surgisse uma nova pessoa. Ao longo do ritual, o
adoxu passaria por momentos em que perderia a “razão”, um “estado de embotamento”, uma
profunda “atonia mental”, sendo este o momento em que o corpo do iniciado era preparado
para receber as efusões. 197
Ao cruzar as informações da Gazeta de Notícias com as descrições de Verger, não só
as semelhanças saltam aos olhos como ajudam a explicar o ritual da Rua do Príncipe do
Cajueiro, 236, as vasilhas com azeite de coco, sangue, ervas e cabeças de cabritos, que em
muito se aproximam dos relatos de culto aos Vôduns e Orixás descritos em Notas sobre o
culto aos orixás e vôduns. O primeiro dia do ritual de iniciação era dedicado às oferendas à
cabeça, a primeira galinha d’angola era sacrificada, seu sangue corria pela cuia (igba ori), por
três vezes, o noviço lamberia o sangue do pescoço. Uma mistura de azeite, sal e mel era
liturgicamente preparada com cantos e danças, e, além de ser colocada na cabeça, era
depositada na cuia igba ori. 198 Isso ajuda a compreender o espanto do profissional da Gazeta
de Notícias ao mencionar que “esquisitos objetos, cercavam aquellas raparigas, que com
esforço poderiam respirar ar infecto, devido não só á construção do aposento, como ás
exhalações pestiferas d’aquelles objetos”. 199 A matéria do jornal menciona a existência de
uma cabeça de bode cortada, o que muito provavelmente indica que, após o sacrifício
ritualístico e as oferendas necessárias à divindade, o restante da vítima imolada era levado
para cozimento e preparo. Posteriormente, noviços e demais assistentes do culto se
alimentavam do animal imolado.200 Leopoldina Jacomo contava com uma estrutura litúrgica
em que cada tarefa estava muito bem definida mesmo antes do início de cada ritual:
Tinha como ajudantes, nas solemnidades, as pretas de nome Feliciana Rosa de Jesus
e Maria das Virgens, conhecidas pelas matadoras, por isso eram ellas que
immolavam as victimas, que tinham de ser sacrificadas ao deus da fortuna, e que
eram sempre cabritos pretos ou galinhas da mesma cor, cujo sangue depositavam
em vasilhas, onde era conservado mesmo em decomposição. 201
A função das matadoras aproxima ainda mais o processo de iniciação da rua Príncipe
dos Cajueiros das análises de Verger e das atuais casas de candomblé, marcadas pela
197
VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns…, 1999, p. 82-83.
198
VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns…, 1999, p. 94-95.
199
Gazeta de Notícias, 25 set. 1879.
200
VERGER, Pierre. Notas sobre o culto aos orixás e voduns…, 1999, p. 97. A narrativa de sacrifícios e
oferendas, seguidos da alimentação dos iniciados e dos envolvidos na preparação cerimonial, também foi feita
pelo religioso Fernando Costa, em: COSTA, Fernando. A prática do candomblé no Brasil. Rio de Janeiro:
Renes, 1974.
201
Gazeta de Notícias, 25 set. 1879, grifo do original.
168
influência dos africanos ocidentais. Os axoguns ou mão de faca, aproximando-se do termo
matadora, são atualmente os responsáveis pelo sacrifício dos animais e, nos rituais de
iniciação, derramam sobre o ori, a cabeça do iniciado, o sangue da vítima imolada. 202 A cor
das vítimas imoladas pode ajudar no entendimento das divindades cultuadas no momento do
ritual. Descrevendo o candomblé carioca para a segunda metade do século XX, o Babalaô
Fernando Costa relata que as divindades que exigiam galinhas e bodes pretos seriam Exu e
Xapanã (Omulu e Abaluaie). 203
Semelhantes rituais iniciáticos foram amplamente captados por religiosos e
missionários na Costa Ocidental africana, como foi o caso de padre Noel Baudin, que viveu
na África entre os anos de 1869 e 1883, em Porto Novo, com os Gun, em Uidá, com os
Hweda e em Tongo, com os Ewe.204 Em Fetichisme et féticheurs, de 1884, ele descreveu um
ritual de iniciação, sua instigante semelhança demonstrando a base que auxiliou na formação
de novos adeptos religiosos no Brasil:
A cabeça do iniciado também era raspada e as vestes trocadas logo no início do ritual,
destacando a presença das ervas, obtidas pelo contato com a floresta, lugar compreendido
como sagrado por diversas nações africanas que desembarcaram no Brasil. Após as primeiras
obrigações, o neófito, como chamado pelo padre Baudin, era colocado diante do assento
dedicado a uma determinada divindade, que o religioso reconhece como “Oricha”. Assim
como nos casos descritos por Verger, para a primeira metade do século XX no Brasil, o ritual
ficava dividido em várias etapas, passando por, no mínimo, três renovações do ato
performático:
202
COSTA, Fernando. A prática do candomblé no Brasil…, 1974, p. 90-91.
203
COSTA, Fernando. A prática do candomblé no Brasil…, 1974, p. 143-144.
204
VERGER, Pierre. Etnografia religiosa iorubá e probidade científica. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, n.
8, p. 3-10, 1982.
205
BAUDIN, Padre Noel. Fétichisme et fétiches. Lyon: Bureaux des Missions Catholiques, 1884, p. 81.
169
um barulho ensurdecedor. Entre os Negros nada se faz sem música, e quanto mais
infernal é o alarido, mais a festa é solene.
Na terceira invocação, o neófito começa a agitar-se, todo seu corpo treme, seu olhar
torna-se esgazeado e logo ele entra em um estado de tamanha superexcitação que,
muitas vezes, é preciso segurá-lo ou amarrá-lo para impedi-lo de causar mal a si
mesmo ou aos outros.
O uso dos tambores, após cada ação, e a conclusão do religioso de que nenhum ato
performático negro era feito sem o auxílio dos tambores, levam-me a acreditar, a esta altura,
que os instrumentos de percussão foram mais do que os canais de comunicação entre o
mundo dos vivos e da ancestralidade em terras brasileiras, eles teriam servido também, assim
como no catolicismo apresentado por Thornton, como elemento de aproximação e diálogo
entre os mais diversos grupos de procedência africanas, que, em suas terras de origem,
lançavam mão dos instrumentos, usados de forma ritualística. O capítulo anterior demonstra
bem as possibilidades de comunicação promovidas pelos enfurecidos tambores. A cerimônia
da Rainha Mandinga também contava com o uso de tais instrumentos, pois “tambores
africanos” foram citados pela Gazeta de Notícias, entre os instrumentos recolhidos pela
polícia, como prova do delito. 207 Os tambores, como evidenciado, acompanharam os rituais
que, ao longo da primeira metade do século XIX, eram praticados nos espaços públicos da
cidade, no interior das casas e sobrados, tornando qualquer culto afro-carioca impossível de
anonimato.
Outra importante semelhança entre a cerimônia carioca e a africana de origem
ocidental é que os alimentos em solo africano também eram cozidos dentro dos atos
performáticos do ritual após a imolação inicial das vítimas. Padre Baudim descreveu em seus
relatos que, após “um grande festim”, em meio a cânticos e danças, o noviço era levado para
o que chamou de “cabana fetiche”, onde permaneceria recluso por sete dias, proibido de falar
e na presença “do deus de quem é reputado ser o feliz esposo”. Acompanhando as
observações de Verger para a Bahia da primeira metade do século XX, o religioso analisou,
em solo africano, a escolha, após o período de reclusão, de um novo nome, depois de seus
pais colocarem búzios aos pés da divindade, chamada pelo padre de “ídolo do fetiche”,
206
BAUDIN, Padre Noel. Fétichisme et Fétiches. Lyon: Bureaux des Missions Catholiques, 1884, p. 81-82.
207
Gazeta de Notícias, 25 set. 1879.
170
proferindo as seguintes palavras: “compro meu filho”. Após esse momento, o líder religioso
apresentaria o que poderia ou não ser feito pelo iniciado.208
Em A prática do candomblé no Brasil, Fernando Costa, líder religioso, descreve o
momento da mudança de nome, durante a segunda saída do iniciado de seu recolhimento. A
prática do nome é conhecida até os dias atuais como Dijina, “nome pelo qual o Orixá deseja
ser conhecido”. 209 Após a revelação do nome, Padre Baudin descreve: “De repente brilha em
seu olhar uma espécie de ferocidade: ‘O Oricha está nele, o possui, o domina, o agita’”.
Aquilo que o feiticeiro faz naquele momento é atribuído ao Oricha. É o Oricha quem fala, é o
Oricha que se agita nele”. 210 Tal narrativa corrobora, nos dias atuais, a versão dos autores de
A galinha-d’angola, quando o nome do santo é anunciado, “[…] tudo se desata em euforia.
Quem é do santo, vira no santo; todos os outros se regozijam, sob o olhar atento de ogãs e
equédes. Os atabaques saúdam a chegada dos òrìsà”. 211 A expressão descrita pelo padre para
o solo africano, “compro meu filho”, aproxima-se do que Roger Bastide, em O candomblé da
Bahia, descreveu como a terceira parte do panan, em que a família comprava a filha de
santo. 212 O panan também foi chamado de quitanda de iaô por Voguel, Mello e Barros, que
seguiram as interpretação de Édison Carneiro e Roger Bastide, sendo o momento
compreendido como a compra e venda de um escravo.213
Volto ao ano de 1879, mais especificamente à semana em que a Rainha Mandinga e
suas iniciadas foram levadas a prisão. Um importante questionamento cabe a esta altura:
Teria Laurentino tomado conhecimento do ocorrido na casa da rua do Príncipe? Acredito que
sim! Relembro que a interrupção litúrgica e posterior prisão ocorreram dois dias antes da
ampla divulgação do evento nas páginas da Gazeta de Notícias. Aproveito para chamar a
atenção para o destaque dado pelo jornal. Ao longo de todo o século XIX, leitores
acostumaram-se a ler, nas páginas de jornais e periódicos, denúncias contra práticas afro-
cariocas em todas as freguesias urbanas da cidade. Entretanto o espaço destinado a
Leopoldina Jacomo, Rainha Mandinga, fugia ao costumeiro, só não sendo maior do que toda
a cobertura dada ao afamado caso de José Sebastião da Rosa, o Juca Rosa, preso em 1870,
acusado de estelionato, mesmo motivo que levou Laurentino à Detenção, em 1878 e 1879.
208
BAUDIN, Padre Noel. Fétichisme et Fétiches. Lyon: Bureaux des Missions Catholiques, 1884, p. 81-82.
209
COSTA, Fernando. A prática do candomblé no Brasil…, 1974, p. 92-93.
210
BAUDIN, Padre Noel. Fétichisme et Fétiches. Lyon: Bureaux des Missions Catholiques, 1884, p. 82.
211
VOGUEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa de. A galinha-
d’angola…, 1993, p. 129.
212
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1961, p. 56.
213
VOGUEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva; BARROS, José Flávio Pessoa de. A galinha-
d’angola…, 1993, p. XXX.
171
Rosa, além de um demorado processo, contou com uma ampla cobertura da imprensa. 214 O
caso de Leopoldina figurou por três edições na Gazeta de Notícias, e não somente pela
cobertura jornalística. É possível pensar que o ocorrido tenha chegado aos ouvidos de outras
principais lideranças religiosas da corte, principalmente por conta da cerimônia iniciática que
ali ocorria e brutalmente teve seu fim, causando um verdadeiro trauma litúrgico em todos os
envolvidos na cerimônia. Apesar de ser o mesmo ano da segunda prisão de Laurentino, o
curandeiro da Glória já não se encontrava na detenção. O líder religioso fora liberado do
xadrez ainda no mês de janeiro, treze dias depois de sua entrada junto com sua filha, descrita
como Júlia liberta.215
Destaco o número expressivo de adeptos e fiéis que foram à porta da delegacia após a
prisão da Rainha e suas neófitas. Na primeira vez em que escrevi sobre o assunto, ressaltei a
importância da liderança religiosa da mãe de santo para justificar o protesto, entretanto cabe
ampliar as possibilidades que levaram as pessoas a se colocarem em situação de total risco,
perturbando a ordem e questionando o trabalho da violenta polícia da corte. Talvez ali se
reunissem outros tantos participantes das mais variadas casas religiosas afro-cariocas,
assombrados com a interrupção desrespeitosa de um processo de inicialização ritualística e
suas possíveis consequências sagradas para as iniciadas. E, se certa estiver tal hipótese, nem
estariam ali por conta exclusivamente da Rainha Mandinga, mas sim por conta das neófitas,
que necessitariam com urgência retomar seus rituais para completarem o processo de
inicialização ritualística. Não seria difícil imaginar que, em uma cidade acostumada com as
notícias propagadas pelo mais popular boca a boca, pelo disse me disse, pelo ouviu dizer, o
evento ocorrido na casa religiosa da Rua do Príncipe dos Cajueiros chegasse aos ouvidos de
tantas lideranças religiosas. Cabe, a esta altura, expor que Laurentino tinha um frequente
trânsito pela corte, sendo possuidor não somente dos imóveis na Ladeira dos Guararapes, mas
também de um botequim bem localizado na rua da Misericórdia, 40, 216 o que me leva a crer
que dificilmente tal informação, tendo a relevância já sabida para a maioria da população que
praticava cultos afro-cariocas, sendo esses praticantes os principais frequentadores dos bares,
incluindo o próprio dono, não fosse a ordem do dia naquele estabelecimento.
Seis meses depois da interrupção brusca do processo de iniciação religiosa que ocorria
na casa da Rainha Mandinga, a Gazeta de Notícias voltou a denunciar processo semelhante
214
Ver: SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa: um pai de santo na corte imperial. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2009.
215
LMCDC, f. 71, 07 jan. 1879.
216
Jornal do Commercio, 13 out. 1890.
172
na Rua do Príncipe, 217 onde, segundo o jornal, o “chefe da feitiçaria” tinha por companheiro
“um tal Alfa” e “pretos minas” atuando no que fora reconhecido como zungú, contendo
diversos “objetos próprios da feitiçaria” e onde, ainda segundo o jornal, encontravam-se
“filhas” e famílias dentro do espaço litúrgico. A Gazeta de Notícias bradava ao primeiro,
segundo e terceiro delegado de polícia e ao próprio chefe, providências contra aquele que o
jornal considerava ser “o segundo Juca Rosa existente na rua do Príncipe”. Seu nome:
Laurentino. 218 Estaria o afamado curandeiro da Glória atuando na casa da Rainha Mandinga?
Como já exposto, no momento da prisão, Leopoldina Jacomo encontrava-se em avançado
estágio de gravidez. É possível pensar em seu afastamento para tratamento de seu filho
carnal. Outro ponto em comum é que a casa de Laurentino também era conhecida como
zungú, contendo não apenas os dois quartos destinados ao culto, mas servindo de moradia e
abrigo, o que torna fácil pensar na existência de cômodos liturgicamente preparados para o
ritual de iniciação. Outro fator que cabe destacar é que o descrito ritual de iniciação na Rua
do Príncipe e até mesmo o compreendido por Debret como batismo estariam longe de ser os
únicos que ocorriam na cidade. Semelhante situação aconteceria três anos depois do caso de
Leopoldina, com Mãe Benta do Engenho de Dentro, sendo que a semelhança do culto e do
ritual vale a citação completa da Gazeta de Notícias:
A DEUSA MANDINGA
Eram neophitas que se depuravam em rigorosa penitencia, para poder ser admitidas
aos favores da deusa mandinga.
Interrogadas pela auctoridade, declararam que a mãi Benta era quem as collocára
naquele quarto e as obrigava á penitencia, para ssim conseguirem a fortuna de ser
estimadas pelas pessoas de quem gostassem.
A mãi Benta, que era a priora d’aquelle templo, foi com as suas tres adeptas
enviadas para o xadrez da policia.
217
A Rua do Príncipe e Rua Príncipe dos Cajueiros eram o mesmo logradouro. Fora essa rua aberta no início do
século XIX, na antiga chácara dos Cajueiros, em homenagem ao Príncipe Regente D. João. Dessa forma, o
mesmo jornal trataria em situações diferentes a rua por um ou outro nome. Atualmente essa rua corresponde à
Rua Senador Pompeu. Conferir: BERGER, Paulo. Dicionário histórico das ruas do Rio de Janeiro: I e II
Regiões Administrativas (Centro). Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica Editora Ltda., 1974, p. 130.
218
Gazeta de Notícias, 19 mar. 1880.
173
fachas, havendo também grande quantidade de ídolos, chifres enormes e muitas
outras bugigangas, além de dois cabritos.
219
Gazeta de Notícias, 02 abr. 1882, grifos do original.
174
conter vestimentas litúrgicas. O processo de Juca Rosa, com suas inúmeras páginas, deixou
evidente, incluindo como prova uma fotografia distribuída entre os fiéis participantes, que o
Pai Quibombo, como era conhecido no momento das cerimônias, lançava mão de roupas
apropriadas para o rito. Segundo denúncia, “Rosa apresentava-se vestido de calça curta e
larga e com um gorro na cabeça, conforme a fotografia que a esta exposição juntamos”. 220
As penas amplamente citadas por Verger aparecem também na casa do Engenho
Novo, com “cocares” e “penachos”, comuns no momento de iniciação ritualística. Cabe
pensar em uma aproximação cultural entre africanos centrais e ocidentais, já que os primeiros
faziam amplo uso dos penachos nos dois lados do Atlântico, como demonstrado no capítulo
anterior. Os cabritos também se repetiam na cerimônia. Como exposto, seriam vítimas
imoladas nas etapas do ato performático. Chamo a atenção para a “grande quantidade de
ídolos”, ao que tudo indica, pequenas estatuetas confeccionadas pelas lideranças religiosas,
recebendo o encanto necessário para ter seu valor litúrgico. Já afirmei em trabalho anterior
que, ao se depararem com imagens católicas, os investigadores/jornalistas rapidamente as
descreviam em suas páginas, entretanto, quando as imagens fugiam à sua compreensão,
recebiam o rótulo da idolatria ou, como comumente eram chamadas ao longo do Oitocentos
no Rio de Janeiro, manipansos. Diferentemente da maioria dos objetos recolhidos como
provas nas casas afro-cariocas do Rio de Janeiro, os utensílios litúrgicos de Mãe Benta
“foram enviados para o museu publico”. Tratava-se do Museu Nacional que, no final do
século XIX, contava com a direção de Ladislau Netto. Como exposto, ele, desejoso de
organizar uma coleção de etnografia africana, porém sem os recursos necessários para tal,
achou por bem solicitar aos delegados de polícia o envio dos objetos apreendidos com
frequência nas chamadas casas de dar fortuna:
Officio pedindo a remessa para este Museu dos objectos apprehendidos pela Policia
nas denominadas Casas de dar fortuna
220
Processo de Sebastião da Rosa, p. 13 v. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
175
E Exmo. Senhor Desembargador Serafim Moniz Barreto M. Chefe de Polícia da
Corte – O Diretor Geral Ladislau Netto. 221
221
MUSEU NACIONAL, RJ. RA7-D7-1875-1881. Agradeço a esta e às demais fontes ligadas ao Museu
Nacional, à professora Mariza de Carvalho Soares e a Carolina Cabral, que, gentilmente, apontaram os
caminhos para os arquivos do diretor Ladislau Netto.
222
Ver catálogo: SOARES, Mariza de Carvalho; AGOSTINHO, Michele de Barcelos; LIMA, Rachel Correa.
Conhecendo a exposição Kumbukumbu do Museu Nacional. : Rio de Janeiro: Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2016, p. 71-73, 105-149.
223
MUSEU NACIONAL, RJ. Pasta 21, Doc. 61. 0410411BB2. Primeira Delegacia de Polícia da Corte. Ofício
número 909 de 04/04/1882.
176
primeiro na polícia, como prova do que seria compreendido como delito, e acabaram
aumentando a coleção do diretor do Museu Nacional.
A região do Engenho Novo voltaria a figurar nas páginas jornalísticas da Gazeta de
Notícias com mais um ritual de iniciação, dessa vez na República. O ano era o de 1893, e já
vigorava o novo Código Penal de 1891, que tipificava, em seus artigos 156, 157 e 158, a
prática do curandeirismo e espiritismo como crime. Dessa forma, Israel Reis, morador da Rua
Souza Barros, chalé número 1B, foi recolhido à Casa de Detenção com todas as doze
“mulheres de cor”, entre elas, Francisca Maria da Conceição, com sua cabeça raspada, dentro
do que o jornal chamou de “cárcere privado”, 224 sinal claro e evidente de que se realizava em
um dos cômodos do chalé um processo de iniciação ritualística. Os objetos recolhidos
visando à comprovação da violação do art. 157 do Código Penal batem com os de outras
casas analisadas nesse capítulo: “A mesma auctoridade [chefe de polícia e dois inspetores
seccionais] apprehendeu uma grande porção de hervas, rosários, vestimentas, capacetes com
pennas, chifres. Gallinhas mortas e outras bugigangas destinadas á feitiçaria”.225
Os “cocares e penachos” de Mãe Benta e os “capacetes de pennas” de Israel dos Reis
que também estavam presentes em outras casas, em muito se aproximam das indumentárias
descritas no capítulo anterior, em que lideranças religiosas centro-africanas, nos dois lados do
Atlântico, lançavam mão desse instrumento para se colocarem à frente dos rituais públicos na
primeira metade do século XIX, como os que ocorriam no Campo de Santana. Até mesmo o
negro de alta estatura, compreendido por Adèle Toussaint como rei, já que ele exercia
liderança sobre a escravaria da fazenda em que essa autora se encontrava hospedada, tinha a
cabeça de velho africano ornada “com plumas de todas as cores”. 226 A indumentária
ritualística há muito já era utilizada no Brasil, basta recordar Zacharias Wagener com sua
pintura Negertanz, 227 no Pernambuco do Setecentos. Acredito que tais ornamentos tenham
sido mais um instrumento de diálogo entre os mais variados grupos de africanos que
recriaram seus cultos em terras brasileiras. Caberia associar a africana ocidental Leopoldina
Jacomo, a Rainha Mandinga, e os brasileiros Israel dos Reis e Mãe Benta ao que Édison
Carneiro identificou como culto aos caboclos? Os dois últimos sacerdotes não conheciam
provavelmente nenhuma região africana, sendo, portanto, formados com a bagagem de velhos
224
Gazeta de Notícias, 21 abr. 1893.
225
Gazeta de Notícias, 21 abr. 1893.
226
TOUSSAINT-SAMSON, Adèle. Uma parisiense no Brasil. Rio de Janeiro: Capivara, [1883]/2003, p. 131-
132.
227
WAGENER, Zacharias. Zoobiblion: livro dos animais do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1964,
apud TINHORÃO, José Ramos. As festas no Brasil colonial..., 2000, p. 56.
177
africanos, que, assim como Leopoldina, contavam já com grande experiência e vivência de
Brasil, o que naturalmente proporcionaria a ressignificação e ampliação de suas crenças.
228
WEEKS, John H. Among the primitive bakongo. London: Seeley, Service & Co. Limited, 1914, p. 217, com
o título “Witch-Doctor and his Assistants”.
178
cemitério.229 Entretanto o que John Weeks destacou apenas como penas era nitidamente um
cocar, largamente utilizado nos dois lados do Atlântico por lideranças influenciadas por
costumes bacongos e ambundos.
Voltando ao interior das casas afro-cariocas, percebo que não existia uma idade certa
para participar de um ritual iniciático em tais espaços ao longo dos séculos XIX e XX, na
cidade do Rio de Janeiro. As idades variavam bastante entre as neófitas encontradas na casa
de Leopoldina Jacomo, recolhidas no cômodo da Rua do Príncipe. A iniciada mais velha era
Etelvina Maria da Purificação, de 30 anos, crioula natural da Bahia, solteira, que morava na
casa da Rainha Mandinga há dois anos. Durante seu recolhimento na delegacia, demonstrou
convicção na crença que seguia, ajudava na casa, cuidando das outras meninas. Com 28 anos
de idade, Joanna Maria da Conceição era crioula fluminense, solteira, foi identificada pelas
autoridades como bem inteligente, instruída e falante. Tratava-se de uma moradora da corte,
conhecia as dinâmicas da cidade, não que isso não fosse possível a um natural da Bahia,
entretanto era conhecedora dos cantos e meandros da cidade.231 Amância do Espírito Santo,
parda, que vivia em companhia do irmão, regulava de idade com Joanna Maria da Conceição,
com 27 anos. 232
Domingas Constança Insoriana morava na Rua Estreita de São Joaquim, que era a
continuação da Rua Larga de São Joaquim, local em que funcionavam as celebrações de José
Sebastião Rosa, o Juca Rosa, entretanto sua iniciação deu-se na casa da Rua do Príncipe, com
Leopoldina Jacomo. Domingas era uma menina de 16 anos, órfã e virgem. Disse na delegacia
que estava “de visitas no palácio da rainha”, contudo o profissional da Gazeta de Notícias
logo tratou de deixar evidente que a jovem tinha ido à casa de Leopoldina para “iniciar-se na
confraria dos minas gegi”. Por fim, Eva Maria da Conceição, crioula fluminense, era filha de
uma africana, preta mina, assim como Leopoldina Jacomo. Contava também com 16 anos
quando deu início ao seu processo ritualístico e foi descrita como “muito robusta e
229
MACGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa: The Bakongo of Lower Zaire. Chicago:
University of Chicago Press, 1986, p. 139.
230
WEEKS, John H. Among the primitive bakongo. London: Seeley, Service & Co. Limited, 1914, p. 215-216.
231
SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flávio; FARIAS, Juliana Barreto. No labirinto das nações:
africanos e identidades no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
232
Gazeta de Notícias, 28 set. 1879.
179
233
desenvolvida, porém muito estúpida e ignorante, parecendo idiota”. Acredito que o
próprio profissional da imprensa acabou por explicar a condição de Eva Maria e das demais
meninas:
Com difficuldades pôde-se obter aa ocasião algumas respostas das mesmas, por isso
que pareciam entorpecidas, além da influencia presumível da superstição. 234
A não revelação dos meandros da cerimônia talvez possa ser compreendida como
preceito necessário ao participante, isto é, não revelar o que via e ouvia no processo. O
próprio profissional da imprensa reconhece essa condição ao chamá-la de “inffluencia
presumível da superstição”. 235 Reforça-se aqui a ideia de que os que se dedicavam a
denunciar nas páginas de jornais e periódicos as casas afro-cariocas ao longo do Oitocentos
conheciam, de certa forma, o que ocorria dentro desses espaços.
A composição dos demais participantes também era variada. Com 23 anos, Feliciana
Rosa de Jesus fora descrita como “principal acolyta ou ajudante da chefe”. Era natural do Rio
de Janeiro, crioula, demonstrando que a composição das casas afro-cariocas era, a essa altura,
marcada pela presença de africanos e, na maioria, por seus descendentes próximos, ou seja,
uma gama de filhos de africanos, o que significa dizer uma maior proximidade com costumes
que vinham de solo africano, dada a educação recebida de seus pais. Feliciana tinha “aspecto
juvenil, sympathica”, segundo o observador da Gazeta de Notícias. A ideia de simpatia pode
ser pensada pelo aspecto de ser uma ajudante do culto, ou seja, não estava em meio ao seu
próprio ritual de iniciação, chamado no contexto de “fazer a cabeça”,236 marcada pelo que foi
compreendido como “presumível superstição”. Cabe também pensar que o profissional da
imprensa conhecesse o espaço da Rainha Mandinga, talvez como mero investigador, visando
desacreditar os leitores do jornal quanto às práticas afro-cariocas, compreendidas por
considerável parcela desses leitores como espaços de dar fortuna. Mas também cabe pensar
que, pelo seu nível de conhecimento dos termos, cargos e do que ocorria dentro da casa no
momento da ação policial, fosse ele um fiel participante da casa da Rua do Príncipe e que,
233
Gazeta de Notícias, 28 set. 1879.
234
Gazeta de Notícias, 28 set. 1879, grifos meus.
235
Gazeta de Notícias, 28 set. 1879.
236
O termo foi utilizado no inquérito policial movido contra Bernardina do Rosário, no ano de 1902, como
demonstrarei à frente.
180
por algum motivo ou decepção, resolveu expor nas páginas da Gazeta de Notícias o que
conhecia sobre o espaço.
Por exemplo, ele sabia que Feliciana Rosa de Jesus era casada com um pardo,
cocheiro por ocupação, mas que, no momento, estariam separados. Destaca-se também seu
conhecimento do cargo ocupado pela acólita e suas principais obrigações no culto: “É
denominada Vodance, que dizem ser a matadora dos animaes, cozinheira e preparadora dos
ingredientes, e quem faz os convites para as festas solemnes”. 237 Em um primeiro momento,
como já exposto, descreveu o título ocupado pela Rainha Mandinga, que seria “ministra de
culto, denominada – Mãi de santo – e Gunhóde, em língua mina”. 238 Concluo imaginando
que o profissional da imprensa não era nem de longe leigo no assunto que escrevia. Ao
contrário, atentou nos detalhes, muito caros aos participantes de tais cultos, como a presença
de três africanos com idade muito avançada morando com Leopoldina Jacomo, e que, por
conta disso, nem para a delegacia foram levados. Eram os pretos “minas gegi” Josepha e
Maria, ambas com 80 anos, e Joaquim, com 70.
A descrição da Gazeta de Notícias para o ritual iniciático na casa de Mãe Benta, no
Engenho Novo, não especifica a idade, mas deixa claro que se tratava de “raparigas”, ou seja,
três jovens meninas. 239 As ruas do Rio de Janeiro revelariam pessoas mais novas que as
descritas até aqui participando de rituais de iniciação. Curiosamente, também eram mulheres,
entretanto as mais novas de que tenho notícias até agora para uma casa de finais do
Oitocentos e início da nova centúria. Tratava-se da casa de Bernardina Maria do Rosário,
localizada na Rua Senador Pompeu, 178, no ano de 1902, quando esta se viu obrigada a
responder a Inquérito Policial na Delegacia de Polícia da 2a Circunscrição Urbana, com base
na acusação de práticas de feitiçaria dentro de sua residência. Seu inquérito de doze páginas,
anotadas pelo escrivão Bernardo Penna, apresenta, como de costume para a urbe, profundos
rituais iniciáticos. 240
Uma instigante curiosidade: a rua em que atuava Bernardina Maria do Rosário, ou
Mamãe Bernardina, como fora descrita por suas acólitas, era a mesma em que Leopoldina
Jacomo, a Rainha Mandinga, há vinte anos comandava seus rituais, entre os quais um
semelhante de iniciação. A Rua do Príncipe na República passou a ser chamada de Senador
Pompeu pelo decreto 1165, de 31 de outubro de 1917, 241 evidenciando o intenso uso das
237
Gazeta de Notícias, 28 set. 1879.
238
Gazeta de Notícias, 28 set. 1879.
239
Gazeta de Notícias, 02 abr. 1882.
240
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário. 0R.0.IQP.1993. Ano 1902. Arquivo Nacional.
241
BERGER, Paulo. Dicionario Historico das ruas do Rio de Janeiro…, 1974, p. 130.
181
casas, compreendidas hoje naturalmente como moradias ou comércio, no movimentado
Centro do Rio de Janeiro, como as primeiras casas sagradas afro-cariocas, que disputavam
palmo a palmo espaços e fiéis na urbe.
A riqueza do inquérito de Mamãe Bernardina, salvo a violência simbólica sofrida
pelos participantes, consiste no fato de serem as iniciadas todas crianças, e essa, que, a
princípio, seria uma singela condição, de forma importante para o presente trabalho revela-se
uma grande oportunidade de ouvir, pela voz de seus próprios agentes, mesmo que em
situação inóspita de um depoimento, o que acreditavam e entendiam por um ritual que
nitidamente seria de iniciação. O aparato repressivo da República seguia os mesmos moldes
do Império, dessa forma, dentro de uma sala da delegacia da Segunda Circunscrição,
encontravam-se Arthur de Meira Lima, delegado, provocado por carta para abrir inquérito, o
escrivão Bernardo Penna e pequenas meninas, atordoadas não somente pela situação
ritualística de se iniciarem na crença “dos pretos de nação”, como também pela complexa
situação de se verem dentro de um delegacia.242
A denúncia solicitava ao Ilmo. Sr. Arthur Moreira Lima, como dito, delegado da
Segunda Circunscrição Urbana, que este desse “um passeio” pelas ruas de sua
responsabilidade, em especial a Senador Pompeu, 178, onde segundo a denúncia, existia uma
menina menor de idade, moradora da mesma rua, sendo sua casa a de número 184, que
atendia por nome de Herminda, “que esta dicta menina esta abobada, fazendo Santo na
Cabeça e com a cabeça raspada na casa da Sra. Bernardina”.243 E o denunciante acreditava
existirem mais donzelas na dita casa, que obedeceriam as ordens da “mamãe” e “que depois
de raspar as cabeças das infelizes põem em exercício de banalidade (Putaria) com a tal
mamãe Bernardina […]”. 244 O parênteses associando o ritual a práticas imorais é do autor
anônimo da denúncia, que deu base para abertura de inquérito. Cabe destacar, mais uma vez,
que a República aumentou o aparato repressivo, dando base para os agentes da lei
perseguirem lideranças religiosas agora na capital federal. O autor da denúncia, ao longo de
sua carta, fez questão de clamar pelos sentimentos mais profundos do delegado Arthur
Moreira Lima, os de pai, pedindo que se colocasse no lugar dos responsáveis pelas meninas,
que fez questão de chamar de “thesouros” e “donzelas de menores de idade”. 245
Chamo a atenção para o fato de nunca terem existido dúvidas, por parte de quem
denunciava, independentemente do mecanismo utilizado, de que os rituais aqui descritos
242
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário. 0R.0.IQP.1993. Ano 1902. Arquivo Nacional.
243
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário, p. 2. 0R.0.IQP.1993. Ano 1902. Arquivo Nacional.
244
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário, p. 3. 0R.0.IQP.1993. Ano 1902. Arquivo Nacional.
245
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário, p. 2 v. 0R.0.IQP.1993. Ano 1902. Arquivo Nacional.
182
serviam para iniciação ritualística. No caso da denúncia que levou o delegado a abrir
inquérito, evidencia-se uma expressão que sobreviveu ao tempo e chega aos dias atuais,
“fazer o Santo na Cabeça”, o que permite pensar na naturalidade de tais práticas entre os
moradores. Evidentemente não me refiro a uma compreensão profunda do rito, mas sim à
ideia de que ocorre uma iniciação com esses processos. Talvez, de forma semelhante à prática
de ainda hoje, poucas pessoas saberiam compreender e até mesmo explicar cada passo do ato
performático, entretanto, ao saber que cabeças foram raspadas, entendiam naturalmente se
tratar de uma iniciação em uma casa afro-brasileira, e é essa naturalidade que imagino para os
anos do Império e início da República no Rio de Janeiro.
O inquérito movido contra Mamãe Bernardina carece de uma atenção minuciosa,
pois, sem dúvida, é uma rica fonte para se compreenderem tais práticas, já que, por serem
crianças, a maioria das depoentes e também iniciadas acabaram por não cumprir o papel
exigido no rito, que estabelecia sigilo sobre as práticas elaboradas dentro das casas afro-
cariocas do período.
O baiano Antônio Cândido da Silva Pimentel, oficial da marinha, disse em seu
depoimento que soube da casa “por ouvir falar”. De fato, ele não era vizinho de Mamãe
Bernardina, como a maioria dos envolvidos. No Rio de Janeiro, ele morava na Rua do
Pinheiro, 37, na antiga freguesia do Cosme Velho, atual bairro do Flamengo, 246 o que reforça
a ideia da fama das lideranças religiosas na cidade, conseguindo seus fiéis principalmente
pela propagação e sucesso de seus feitos. Mesmo que o oficial mentindo estivesse a respeito
de “ouvir falar”, para não se comprometer com a casa, a distância de um bairro para o outro
permite pensar em propagação dos ritos e da eficácia de Mamãe Bernardina, principalmente
se se levar em consideração que, em seu depoimento, ele afirmou que soube da casa por
“pessoas vizinhas”, que na Rua Senador Pompeu se praticavam “negócios de feitiçaria”. Ou
seja, seus vizinhos da Rua do Pinheiro é que teriam sido os propagadores da fama do local.247
O oficial da marinha afirmou que seu depoimento se dava por “amar o decoro e os
bons costumes”, o que, provavelmente, o fizera associar as práticas da casa à feitiçaria. Ele
também sabia ler e escrever, e, como costume dos inquéritos de então, antes da assinatura,
lia-se o depoimento tomado pelo delegado e escrito de forma apressada pelo escrivão
juramentado, nesse caso, Bernardo Penna. De todas as informações que teriam chegado aos
246
Atualmente essa é a Rua Machado de Assis. O primeiro nome se deu pelo fato de terem sido abertas nas
terras de Manoel Pinheiro Guimarães e de seu sócio, o comendador Soler. Ver: BRASIL, Gerson. Histórias das
ruas do Rio. Rio de Janeiro: Folha Carioca Editora, 1969, p. 365. (Coleção Cidade do Rio de Janeiro, n. 9.)
247
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário. Depoimento de Antônio Cândido Pimentel, p. 3. 0R.0.IQP.1993.
Ano 1902. AN.
183
seus ouvidos, o que mais chamou a atenção do oficial foi a presença de uma “mulata de nome
Cecília”, que estaria sem cabelos, e, assim como ela, na casa de Bernardina existiam outras
meninas, também com as cabeças raspadas. 248 A riqueza de detalhes que se observa em seu
depoimento me faz crer que o oficial da Marinha não relatava apenas de “ouvir falar”. Assim,
destacou que Bernardina era parda e que mantinha Cecília e as cinco menores “trancadas em
um quarto”, o que corrobora todas as narrativas até aqui acerca da reclusão ritualística. Disse
existir também vários “alguedares, búzios, garrafas, bacias, hervas e uma infinidade de
bugingangas que serviam para as reações e huma com aluás e outras beberagens, e que as
menores e Cecília estavam seminuas”. 249
Esse foi o único depoimento colhido pelo inquérito policial que buscou depreciar as
práticas que ocorriam dentro da casa religiosa. A bem da verdade, vários foram os praticantes
de cultos afro-cariocas que, de algum modo, enfrentaram as agruras da lei e não negavam em
momento algum aquilo em que acreditavam. Foi o que ocorreu com Herminia Maria Ferreira,
nascida no Rio de Janeiro ao final do Império, em 1886, contando com 16 anos no momento
de sua iniciação ritualística na casa de Mamãe Bernardina. A jovem morava na mesma rua
em que fez seu “Santo na cabeça”, o que Verger chamou de Orí, cabeça, o primeiro orixá de
um ser humano. Herminia Maria não compreendeu bem os motivos que levaram a mãe de
santo a raspar sua cabeça nem o fato de ficar reclusa no quarto com outras meninas, contudo
afirmou ao delegado Arthur de Meira Lima que em momento algum fora maltratada dentro da
casa e que muito menos passou fome, conforme supôs o denunciante na carta que acabou
incentivando a abertura do inquérito.
Tradicionais festas do calendário católico se misturavam ao calendário litúrgico de
Bernardina. No mês de junho, em que naturalmente se celebravam os dias de São João e, ao
término do mês, São Pedro, foram várias as pessoas que se dirigiram à Rua Senador Pompeu
para participarem de festas e “danças a moda mina” e “da Bahia”. O aluá e outras bebidas
fizeram parte das comemorações dos santos, entretanto às neófitas reclusas não lhes fora
permitido saírem de seus recolhimentos para celebrarem a data. Reitera-se aqui a ideia de
catolicismo como gramática que pauta o diálogo entre africanos e, principalmente, entre seus
descendentes. Na casa, é visível a influência das práticas religiosas minas, pois, apesar de isto
não ter sido nominados no inquérito, ao longo dos depoimentos evidenciou-se que Mamãe
Bernardina “recebia muitas visitas de tais minas e bahianos”, principalmente nas já citadas
248
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário. Depoimento de Antônio Cândido Pimentel, p. 3 – 3v..
0R.0.IQP.1993. Ano 1902. AN.
249
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário. Depoimento de Antônio Cândido Pimentel, p. 3 – 3v..
0R.0.IQP.1993. Ano 1902. AN.
184
festas de São João e São Pedro.250 Os costumes religiosos e festivos várias vezes foram
associados às heranças e influências dos africanos ocidentais, naquela época denominados
“pretos de nação”, diferentemente do semelhante ritual ocorrido em 1879, conduzido pela
“preta fula, gorda, de nação Mina Gêgi, de quarenta e cinco anos presumíveis”,251 Leopoldina
Jacomo, a Rainha Mandinga. A mãe de santo Bernardina, comandante da agora Rua Senador
Pompeu, 178, era brasileira, natural da Bahia, e, assim como a Rainha, contava com 45 anos
no momento em que conduzia os rituais iniciáticos com as cinco menores. O número de
neófitas passando juntas pela iniciação, curiosamente, era o mesmo nas casas das duas
mulheres líderes.
A análise de duas mulheres comandando suas respectivas casas religiosas, na mesma
rua, em momentos diferentes do país – a primeira, em turbulento contexto do Império,
quando se debatiam questões emancipacionistas no parlamento, e a outra no florescer da
República, marcada por conflitos na região do Distrito Federal –, reforça a ideia, apresentada
no capítulo anterior, de que estudar a transição entre a primeira metade do século XIX e a
segunda é, na verdade, debruçar-se em práticas que não seriam mais renovadas pelo tráfico
transatlântico, portanto formariam, com o passar do tempo, casas genuinamente brasileiras,
responsáveis pela retransmissão dos costumes, principalmente via ritual iniciático. E, de
modo especial, a casa de Bernardina contava com diversos grupos de brasileiros, tais como
baianos, pernambucanos e fluminenses. A cidade contava ainda com a presença de velhos
africanos, o Censo de 1906 destaca a presença de centenários moradores da região. A própria
Rua Senador Pompeu, nos tempos da conhecida mãe de santo, contava com velhos vizinhos
vindo da África.252
As menores envolvidas na cerimônia da casa de Mamãe Bernardina foram levadas
por suas respectivas mães e responsáveis, evidentemente, maiores de idade, conhecedoras do
ritual, e que bem compreendiam a importância de suas filhas fazerem a cabeça. Os laços
estabelecidos entre os participantes e a líder e dona da casa passavam não somente por
parentescos espirituais, como também familiares. Por exemplo, a menor Maria da Cruz
Corrêa Carvalho, com 12 anos de idade, era filha de Antônia Cordeiro de Carvalho, que, por
250
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário. Depoimento de Maria da Cruz Corrêa de Carvalho, p. 5v.
0R.0.IQP.1993. Ano 1902. AN.
251
Gazeta de Notícias, 28/09/1879.
252
BRASIL, República dos Estados Unidos do. Recenseamento do Rio de Janeiro. Districto Federal: Officina
de Estatística, 1907, p. 147.
185
sua vez, era casada com um irmão sanguíneo de Bernardina. Não por acaso, em seu
depoimento, Maria da Cruz referiu-se à líder religiosa como “tia”.253
Christina, de 20 anos, filha de Sabina, natural do Rio de Janeiro, foi quem melhor
detalhou a feitura de santo ocorrida na casa, descrevendo como cada menina passou a ser
denominada após o processo de iniciação. Referiu-se a todas como “irmãs”, sendo que,
presumivelmente, pensava em parentesco ritualístico, já que, ao longo do mesmo inquérito,
outras filiações foram demonstradas. Acredito que se tratava de iniciadas no mesmo
momento, passando juntas pelo mesmo processo ritualístico, o que seria chamado atualmente,
nas casas afro-brasileiras, de barco de iaô. Reforço essa ideia pela semelhança observada nas
atuais classificações de chegada de orixás, entre iniciados no mesmo barco, dentro de casas
com a influência fon. Christina contou ao delegado que ela e suas irmãs eram tratadas por
“euphome” e “euphomina”; Maria da Cruz Corrêa Carvalho, de 12 anos, era “douphono”;
Harminda Maria Ferreira, com 16 anos, era a “douphonitina”; e Cecília, que não depôs, mas
fora citada durante todo tempo pelos demais depoentes como ajudante de Mamãe
Bernardina, era a “fomo”. Christina deixou claro que na casa existiam outras meninas,
responsáveis, entre outras funções, por “derramarem sangue de gallinha nas vasilhas, as
quintas-feiras e no sabbado”, fazendo isso com o auxílio de lamparinas. 254
Como exposto, tais termos em muito se aproximam dos utilizados atualmente para
indicar a ordem de incorporação dentro de um mesmo barco de iaôs, como são chamados
hoje a maioria dos rituais de iniciação com mais de um neófito recolhido para feitura de
santo. Voltando aos primórdios do século XX, a “euphome” Christina e sua irmã
“euphomina” tinham suas obrigações, entre as quais a de “lavarem as louças dos Santos”. Ao
ser questionada sobre de que tratava e quais santos seriam, Christina respondeu serem eles
“Osum, Eugum, Emonjá e Omalá”,255 nitidamente divindades ligadas ao panteão dos
africanos minas. Influência essa reforçada pela líder religiosa Bernardina Maria do Rosário,
que, diante do delegado Arthur de Meira Lima, não abjurou suas práticas religiosas, ao
contrário, afirmou que as meninas ali estavam para aprenderem a “dança dos minas”, o que
creio tratar-se das danças referentes aos orixás, chamados pelos depoentes de santos.
Confirmou estar com as cinco meninas na casa, sob sua responsabilidade, e que elas foram
deixadas na casa por seus respectivos pais, corroborando os depoimentos colhidos das
menores. Afirmou ainda serem elas bem tratadas e que aí estavam para, além das danças,
253
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário. Depoimento de Maria da Cruz Corrêa de Carvalho, p. 5v.
0R.0.IQP.1993. Ano 1902. AN.
254
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário. Depoimento de Christina, p. 7. 0R.0.IQP.1993. Ano 1902. AN.
255
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário. Depoimento de Christina, p. 7. 0R.0.IQP.1993. Ano 1902. AN.
186
aprenderem a costurar e a bordar, e que nunca em sua casa nenhuma delas passou fome. 256 A
respeito de sua religião, declarou:
[…] ali em sua casa não se procede actos imundos e a qualquer sorte de feitiçarias;
que a autoridade o promotor em casa da declarante não encontrara nada de sobre
natural nem feitiçaria, que os objectos appreendidos pelo Delegado são objectos de
seu rytho, são offerecidos peilis [pejis] a seus santos em symbolos e da religião dos
pretos minas; que nem a declarante nem pessôa alguma em sua casa faz malefícios,
feitiçarias ou algo semelhante, sendo como já declarou objectos de sua religião; que
quanto a permanência de Cecília em sua casa, ali estava por que estando se enferma,
sem recursos […].257
A líder religiosa demonstra o que entende serem as origens de suas crenças, “os pretos
minas”, o que evidencia a passagem de conhecimentos no campo do sagrado, já que, a todo o
momento, ela faz questão de relacionar sua prática de fé ao que aprendeu. Evidentemente
recebeu de alguma liderança africana ou crioula seu ritual de feitura de cabeça, ainda no
século XIX, na Bahia ou até mesmo já no Rio de Janeiro, entretanto o que importa é perceber
como os conhecimentos do Oitocentos e a maneira como eram praticados nas casas e espaços
litúrgicos foram os que serviram de base para o desenvolvimento dos rituais afro-brasileiros
nas mais diversas regiões brasileiras, aqui em especial, na corte, posteriormente capital do
distrito federal.
Cabe, a essa altura, cruzar as informações até aqui expostas com outros costumeiros
rituais de iniciação presentes na corte ao longo do Oitocentos, principalmente em casas cujos
rituais mais se assemelhariam com os praticados por Laurentino Inocêncio dos Santos.
Utilizo como ponto de diferenciação o uso ou não de imagens católicas dentro dos espaços
sagrados afro-cariocas. Por exemplo, as denúncias movidas pela Gazeta de Notícias contra a
Rainha Mandinga, Mãe Benta e Israel Reis não ressaltaram a presença de santos católicos, e
seus rituais de iniciação evidenciaram-se próximos aos dos pretos minas, como declarado por
diversas vezes no processo de Mamãe Bernardina. Ao contrário, seu inquérito desvendou não
somente semelhanças com os demais casos da Gazeta de Notícias, como descortinou seu
256
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário. Depoimento de Bernardina Maria do Rosário, p. 9-10.
0R.0.IQP.1993. Ano 1902. AN.
257
Inquérito de Bernardina Maria do Rosário. Depoimento de Bernardina Maria do Rosário, p. 9-10.
0R.0.IQP.1993. Ano 1902. AN.
187
panteão de divindades, os orixás, os quais ela fez questão de relacionar com os africanos
procedentes da África Ocidental.
A invasão da casa do crioulo brasileiro Laurentino Inocêncio dos Santos pela força
policial, no início de 1878, contou também com a participação e cobertura de pelo menos
dois grandes veículos de comunicação da época, que àquela altura, já estavam muito
acostumados a denunciar e pedir providências contra o que acreditavam ser as casas de dar
fortuna ou zungús. Tanto o Jornal do Commercio quanto a Gazeta de Notícias destacaram a
presença de dois imponentes locais de devoção, sendo “ricos e alfaiados altares com imagens
de diversas invocações”,258 chegando a contrapor as sacras imagens católicas com os demais
objetos de culto afro-cariocas encontrados dentro da casa: “Não condizem com esse sacro
luxo outros objectos que ahi se encontram”. 259 Retomo a notícia da mesma ocasião, veiculada
no Jornal do Commercio: “Em um quarto interior da referida casa notou a autoridade a
existência de dous altares vistosamente alfaiados, com grande numero de imagens e diversos
ornamentos de igreja; observou-se também a par disto duas cadeiras com grandes cruzes no
encosto […]”.260 Essa era uma grande diferença entre as casas citadas até aqui, exercendo
rituais de iniciação com visível influência mina: o vasto uso de imagens católicas,
amplamente inseridas no culto, como parte primordial do rito. Essas eram nitidamente casas
marcadas por uma intensa influência centro-africana, principalmente pelo já demonstrado
processo de crioulização entre as religiões tradicionais e o catolicismo, abraçado e propagado
por Afonso I.
Casas afro-cariocas de influência centro-africana também eram espaços para
iniciações ritualísticas e tratamentos, vale relembrar que a casa de Laurentino Inocêncio dos
Santos contava com uma grande participação de fiéis, como a denúncia da Gazeta de Notícias
destacava: “O que está sabido é que as pessoas de fora classificadas por hospedes não passam
de incautos, que vão atráz da fortuna distribuída por Innocencio, a qual, entretanto, nunca
aparece”.261 A casa de Laurentino constantemente foi associada a um zungú, como exposto,
local que, entre diversão, comida e bebida, também servia de moradia para escravos que
viviam por si, forros e livres, não os únicos, mas os principais fiéis e seguidores das casas
afro-cariocas. O Jornal do Commercio, descrevendo a mesma prisão de Laurentino no ano de
1878, apresentou maiores detalhes acerca dos participantes da cerimônia, que seriam ao todo
nove pessoas: quatro descritas como parentes e cinco “fâmulos de Laurentino”, ou seja,
258
Gazeta de Notícias, 26 mar. 1878.
259
Gazeta de Notícias, 26 mar. 1878.
260
Jornal do Commercio, 26 mar. 1878, grifos meus.
261
Gazeta de Notícias, 26 mar. 1878.
188
criados também descritos como “agregados”, entre os quais uma seria escrava.262 Acredito
serem de fato agregados da casa, responsáveis pelo cuidado com o recinto sagrado. A palavra
fâmulo, segundo Antonio de Moraes Silva, refere-se aos servos que atuavam nas casas dos
bispos e dos demais clérigos. 263 Usar a palavra “fâmulos” para designar os criados de
Laurentino tratava-se de mecanismo amplamente utilizado por jornais do período para
facilitar o entendimento de seus leitores, sendo que os líderes religiosos ou algum de seus
feitos eram facilmente associados ao clero ou à liturgia católica. Vale lembrar o caso de Mãe
Benta do Engenho Novo, em que a Gazeta de Notícias, para demonstrar sua liderança na casa
e sobre as meninas, afirmou ser ela “a priora d’aquelle templo”. 264 Na subida do Pendura
Saia, como era conhecida até o ano de 1875 a rua em que atuava Laurentino, quando a
Câmara Municipal deu-lhe o nome que perdura até os dias atuais, Ladeira dos Guararapes, as
casas contavam com uma entrada frontal, da casa principal, de onde se tinha acesso a outras
casas menores, uma média de seis a sete casas. 265 Não por acaso, a polícia associou a moradia
do curandeiro com um zungú, ou seja, um propício local para rituais iniciáticos no Rio de
Janeiro.
A iniciação ritualística ocorria em casas afro-cariocas que lançavam mão de
instrumentos católicos no desenvolvimento de seu ritual, ou seja, espaços religiosos
semelhantes aos de Laurentino, que contavam com “dois ricos e alfaiados altares” eram tão
comuns como os demonstrados até aqui relacionados aos pretos minas. José Sebastião da
Rosa, ou simplesmente Juca Rosa, era brasileiro, de cor preta e chamado de crioulo pelos
jornais que o denunciavam à época, assim como os mesmos veículos chamavam Laurentino.
Entre tantas práticas levantadas ao longo de seu vasto processo, Juca Rosa se viu acusado de
misturar objetos da religião oficial do Império com as práticas oriundas das heranças
africanas: “A audácia e perversidade d’estes criminosos chega a ponto de envolver a nossa
Santa Religião em suas práticas infames, conseguindo substitui-la pela mais grosseira e
abjecta superstição. Assim atrevem-se elles a fazer baptizados […] seu monstruoso ritual”. 266
Em outro ponto do processo, Juca Rosa era acusado de “servir-se de imagens e de nomes de
Santos da Igreja Catholica a fim de aproveitar-se da religiosidade e superstição”. Ao longo de
todo o processo, várias mulheres pretas e brancas foram chamadas de “filhas”, ficando claro,
262
Jornal do Commercio, 26 mar. 1878.
263
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Lingua Portugueza recopilado. Tomo Segundo F – Z. Lisboa:
Typographia Lacerdina, 1813, p. 10.
264
Gazeta de Notícias, 02 abr. 1882.
265
CAVALCANTI, J. Cruvellho. Nova numeração dos prédios da cidade do Rio de Janeiro – I. Rio de Janeiro:
Typographia da Gazeta de Notícias, 1878, p, 1075-1076. (Coleção Memória do Rio 6).
266
Processo de Sebastião da Rosa, p. 15 v. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
189
nas palavras da acusação, que tal alcunha só se fazia possível mediante rigoroso processo de
iniciação, comandado pelo próprio Juca Rosa. Segundo a denúncia, “a filiação effectua-se por
meio de certo cerimonial com cantoria forte, e o que mais importa, por um solene juramento
de obediência e fidelidade a Rosa, que desde então fica considerado Pai da filiada […]”. 267
Ao longo de todo seu vasto processo, Juca Rosa fora chamado de Rei e
principalmente de Pai, resultado da criação de uma ampla rede de seguidores, amparados
pela lógica do parentesco ritualístico, proporcionado por complexos rituais de iniciação e que
acabava por desembocar na criação de laços capazes de ampliar o cotidiano de todos os
envolvidos. Por exemplo, várias cerimônias comandadas por Juca Rosa não aconteciam em
sua residência, próxima ao Campo de Santana, mas sim na casa de uma de suas iniciadas,
Henriqueta Maria de Mello, moradora da Rua Larga de São Joaquim, 135. Curiosamente, tal
endereço ficava a poucos metros da residência da Rainha Mandinga, a Rua do Príncipe, onde
arrisco afirmar que, no silêncio das madrugadas cariocas, celebrações que envolvessem o
toque ritualístico dos tambores poderiam ser ouvidas de uma casa para outra, dada a
proximidade delas (Imagem 23). Na casa de Henriqueta, além de celebrações, Rosa também
depositava parte dos objetos destinados aos rituais sagrados que comandava. 268
267
Processo de Sebastião da Rosa, p. 19. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
268
Processo de Sebastião da Rosa, p. 16 v. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
269
GOTTO, Edward. Plan of the City of Rio de Janeiro Brazil. London [Londres, Inglaterra]: Robert J. Cook,
1871. 1 atlas (29 plantas), col., litografia, 65,5 x 98. Disponível em: CECULT-UNICAMP:
https://www.ifch.unicamp.br/cecult/mapas/mapasgotto/introgotto.html Acesso em: 21 abr. 2020.
190
Outra análise de rituais de iniciação tornou-se possível nos nossos dias graças à
famosa coluna Gazetilha do Jornal do Commercio, dedicada às coisas corriqueiras da cidade.
Ela apresentaria, no dia 29 de agosto de 1884, outra importante casa religiosa da corte,
comandada por um velho centro-africano, de nome Francisco Firmo. Apesar de extensa, vale
a citação da íntegra da notícia, já que ela descortina um importante universo de crenças para o
contexto:
Alli residia Francisco Firmo, individuo de côr preta, já velho, que tratava de
raparigas crédulas, de certas moléstias, a que ele dava o nome de feitiços, e exercia
de tal modo sua indústria, que sua casa tornava-se um verdadeiro antro de perdição.
Firmo foi preso e recolhido á casa de detenção, bem como as seguintes mulheres,
encontradas algumas em tratamento naquelle cubículo: Muiquelina Luiza, Fortunata
Maria de Moraes, Justina de Jesus Moraes, Ignacia Maria Euphrasia, Cesarina
Maria da Conceição e Maria Lourença de Moraes. Esta última estava em tão mao
estado de saúde que foi necessário recolhe-la ao hospital da Misericordia.
Uma outra preta, de nome Nicacia Maria da Glória, que também recolhida á casa de
detenção, para lá tinha ido há dias, pedir remédios para calmar seu amo, que era
muito impertinente. 271
270
Ressalto que, nessa mesma rua, no período de Leopoldina Jacomo, atuou um líder religioso chamado de
Novo Juca Rosa, de nome Laurentino.
271
Jornal do Commercio, 29 ago. 1884.
191
indevidas no recinto. A casa contava com três velhos africanos benguelas, o primeiro deles, o
proprietário, nganga Francisco Firmo, de 70 anos, solteiro, de cor preta e cabelo carapinha,
no momento da cerimônia, vestia calça azul e camisa de manga, com paletó e chapéu
preto. 272 A segunda africana era Miquelina Luiza, de 60 anos, solteira, de cor preta, cabelo
carapinha, vestindo saia de chita e xale no momento em que fora presa.273 Seguida de Nicacia
Maria da Glória, a mais nova dos três, contando com 50 anos, preta, também vestindo de
modo semelhante a Miquelina Luiza. 274 A roupa utilizada por Firmo, calça azul e camisa de
manga, curiosamente se aproxima do padrão e até mesmo das cores utilizadas por Juca Rosa
durante suas cerimônias e eternizadas nas fotografias distribuídas a suas filhas e anexadas
como prova em seu processo.
Assim como africanos minas se agrupavam no entorno de Leopoldina Jacomo,
pertencente ao mesmo grupo étnico, nos idos da República os identificados como pretos de
nação se colocavam próximos à brasileira Bernardina Maria do Rosário. Aqui nitidamente a
procedência e o compartilhamento de uma mesma gramática sagrada, seguida da língua e dos
costumes, aproximavam os africanos benguelas. O profissional do Jornal do Commercio
obteve detalhes da casa, principalmente o motivo da permanência das fiéis no espaço sagrado
de Firmo, que seriam “raparigas crédulas, de certas moléstias”, às quais, segundo o jornal, o
nganga dava o nome de feitiço. Ou seja, a moléstia que afligia as participantes tinha sido obra
de algum feiticeiro desejoso de causar danos nas vidas de suas fiéis. Aqui, acredito que, além
de buscarem tratamento espiritual para um mal físico, as mulheres lá presentes iniciavam-se
nas práticas sagradas dos ovimbundos.
Justina de Jesus Moraes, brasileira, preta, de 45 anos, que trabalhava com serviços
domésticos, 275 era a mãe das demais meninas encontradas na casa, incluindo Maria Lourenço
de Moraes, que acabou conduzida para o hospital da Misericórdia, que ficava a poucos
metros da casa de Francisco Firmo. A Travessa de Dom Manoel terminava na Rua da
Misericórdia276 – sugestiva moradia para um curandeiro atuar próximo ao maior hospital do
período. Antes de 1871, a Travessa de Dom Manoel tinha o nome de Travessa ou Beco da
Boa Morte, por conta da existência de um oratório na esquina da Rua Dom Manuel, dedicado
272
LMCDC f. 3943, 28 ago. 1884.
273
LMCDC f. 3944, 28 ago. 1884.
274
LMCDC f. 3945, 28 ago. 1884.
275
LMCDC f. 3947, 28 ago. 1884.
276
GOTTO, Edward. Plan of the City of Rio de Janeiro Brazil. London [Londres, Inglaterra]: Robert J. Cook,
1871. 1 atlas (29 plantas), col., litografia, 65,5 x 98. Disponível em: bndigital:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart326448/cart326448.pdf. Acesso em: 7 jul. 2019.
192
à Nossa Senhora da Boa Morte. 277 Essa é outra sugestiva característica do local, que
propiciava maiores possibilidades de trabalho para os que se dedicavam a salvar as pessoas
da morte, causada, na maioria das vezes, pela ação de maléficos feiticeiros, aproximando a
ideia de boa morte católica com a crença centro-africana de que a partida ideal, que não
continha nenhuma má interferência, era a de idade avançada.
Outra filha de Justina era a brasileira de 29 anos, de cor preta, solteira, também
dedicada aos serviços domésticos, de nome Fortunata Maria de Moraes. 278 Cezarina Maria da
Conceição era menor de idade, estando apenas com 16 anos, solteira, de cor preta, seguia a
profissão de doméstica da mãe, Justina de Jesus Moraes. 279 O pai das ditas meninas, José de
Moraes, que não era mais casado com Justina, não tomara parte na cerimônia presidida por
Firmo. Por fim, a última brasileira presente no recinto não era parente consanguínea das
demais mulheres, mas, ao que tudo indica, compartilhava do parentesco espiritual. Era a
brasileira Inácia Maria Eufrasia, de 20 anos, de cor preta, também dedicada aos serviços
domésticos. 280 Destaco que todas as brasileiras trajavam “saia e paletot de chita”, a mesma
indumentária usada por Miquelina Luiza e Nicácia Maria da Glória, as africanas benguelas
como Firmo. 281
Um importante fator que me leva a crer que as brasileiras participantes, na verdade,
iniciavam-se na religião dos africanos benguelas, é que, além da pouca idade da maioria e o
fato de Maria Lourenço encontrar-se aparentemente enferma, todas alegaram na Detenção
morarem na Travessa de Dom Manoel, 10, ou seja, na casa de Firmo. 282 Cabe destacar que,
segundo o Jornal do Commercio, Nicácia Maria da Glória era escrava e estava “há dias” na
casa de Firmo, buscando meios de acalmar seu amo, “que era muito impertinente”. 283 Ou seja,
tratava-se do período estipulado para o cumprimento dos rituais, necessários para serem
vistas e aceitas como iniciadas na crença comandada pelo velho africano benguela. Cabe, a
essa altura, questionar qual tipo de ritual era praticado no interior da casa no antigo Beco da
Boa Morte. Ao levar o nome de seu porto de embarque, Francisco Firmo seria oriundo dos
povos ovimbundos, onde existia o porto de Benguela, ou mesmo teria sido capturado em
outras regiões da Zona Atlântica. O fato de ser um bacongo ou até mesmo um ambundo
aumentaria as possibilidades de compreensão de seus atos performáticos.
277
BERGER, Paulo. Dicionário histórico das ruas do Rio de Janeiro…, 1974, p. 49.
278
LMCDC f. 3946, 28 ago.1884.
279
LMCDC f. 3949, 28 ago. 1884.
280
LMCDC f. 3948, 28 ago. 1884.
281
Conferir nas Fichas de Matrícula.
282
Conferir nas Fichas de Matrícula.
283
Jornal do Commercio, 29 ago. 1884.
193
Acredito aqui que o melhor caminho para compreender as demandas que levaram ao
processo iniciático, bem como o próprio ritual na casa do africano benguela, seja o de
analisar as sociedades secretas dos kimpasi, cujos cultos são compreendidos na atualidade
como sendo de aflição-fruição, conforme exposto no capítulo anterior, e praticados em solo
centro-africano em momentos de crises sociais, visando ao restabelecimento da ordem. O
reino do Congo foi amplamente impactado pelo comércio de escravos, tendo sua história
marcada por guerras civis envolvendo o controle do tráfico dos viventes. Dessa forma, as
sociedades secretas estiveram presentes e amplamente documentadas na região, entre os
séculos XVII e XX. Não por acaso, a maior incidência de cerimônias secretas de kimpasi
ocorreu, segundo Slenes, em complexos momentos, como na derrota do rei do Congo,
durante as batalhas de Ambuíla, em 1665, voltando tais cerimônias a ser amplamente
documentadas durante as desagregações sociais causadas pelo colonialismo belga, ao final da
segunda metade do século XIX. 284
O missionário jesuíta Joseph Van Wing, que atuou em Kisantu, República
Democrática do Congo, no início do século XX, desenvolveu importante trabalho
etnográfico, captando as cerimônias secretas do kimpasi. Para tal empreitada, contou com três
importantes informantes oriundos do culto, habitantes da tribo bacongo dos Bampangu. São
eles: o capitão Mbemba de Nsonso, ex-sacerdote de inquice, que, segundo Van Wing, foi
“um dos mais sábios bacongos” que encontrou; Lulete de Kisantu, chefe de aldeia e padre de
inquice; e o mais velho chefe da aldeia da região em que trabalhou, K. Van Boko. O primeiro
ponto de destaque é quanto ao número de participantes. O missionário jesuíta coletou
informações de haver vários participantes em um mesmo processo iniciático e que tal número
não era pré-estabelecido, porém quanto maior a quantidade de neófitos, maior seria a
cerimônia. A maioria dos que participavam dos rituais de kimpasi era jovem, entre 12 e 18
anos, o que em muito se aproxima das informações coletadas por Karl Laman referentes ao
litoral Mayombe, em que meninos da aldeia eram os que expressavam sua vontade de
participar dos rituais de iniciação, formando, portanto, a maioria entre os que ingressavam na
sociedade secreta dos bankimas. 285 Cabe relembrar que as brasileiras detidas na casa de
Francisco Firmo também eram de pouca idade. 286
As causas que levavam fiéis dos dois lados do Atlântico a procurar os serviços de
lideranças carismáticas em muito se aproximavam. Entre os bampangus, o ritual tinha início
284
SLENES, Robert W. L’arbre nsanda replante…, 2007, p.
285
LAMAN, Karl. The Kongo. 4 v. Uppsala: Studia Ethnographica Upsaliensia 4, 1962, p. 244. v. III.
286
WING, J. Van. De geheime sekte van’t Kimpasi. Brussel: Goemaere, Drukker des Konings, 1921, p. 8-11.
194
com uma reunião de ngangas, que dependeriam sempre dos acordos e circunstâncias vividas
pelos bacongos, geralmente, como exposto, em momentos de crise. Portanto o nganga
ngombo era o responsável por investigar o grande número de morte dentro da aldeia ou
demais infortúnios que acometiam os moradores, cabendo a tal liderança descobrir se as
enfermidades eram frutos de um ndoki ou da feitiçaria.287 A função do nganga ngombo em
muito se aproxima das escolhas litúrgicas de Francisco Firmo. Este deixa claro para o
profissional do Jornal do Commercio que a enfermidade que acometia sua fiel seguidora era
causada por feitiço. Segundo a crença dos Bampangu, somente os ngangas seriam capazes de
livrar as pessoas dos males físicos e até da morte causados por feitiçaria. Van Wing ouviu de
um velho nganga que o feiticeiro era ruim, e no momento em que colocava a bruxaria dentro
do corpo da vítima, esta tinha seu sangue bebido pelos feiticeiros. 288 Entre os Azande,
Edward E. Evans Pritchard, que desenvolveu suas pesquisas no mesmo período de Van Wing,
na década de 1920, no Sudão, encontrou semelhantes relações entre doença e cura, causas e
consequências.
O feiticeiro não era a mesma coisa que um bruxo, esse último faria parte de um
sistema orgânico e hereditário dos Azande, sendo a bruxaria passada de pai para filho, a
depender das classes sociais dos envolvidos. Ambos os agentes causavam a doença corporal e
espiritual, a diferença estaria nos sintomas, já que o bruxo atacava a saúde de forma lenta,
não grave, sendo também associado aos infortúnios corriqueiros da vida, como a má sorte.
Esse bruxo fazia parte da sociedade, já que todo azande acabava sendo acusado por um
parente ou vizinho de bruxaria. Por sua vez, a feitiçaria era compreendida como algo imoral,
ilícito, uma vez que, por meio de drogas e ritos mágicos, o feiticeiro poderia levar ao
adoecimento abrupto.289 Creio, a essa altura, que Francisco Firmo, no Rio de Janeiro, tinha
bons motivos para creditar a doença da jovem Maria Lourença de Moraes à feitiçaria. Tão
grave estava seu estado de saúde, que ela foi rapidamente conduzida ao hospital da
Misericórdia, a poucos metros da casa do africano benguela. 290
Voltando ao Kimpasi dos nganga ngombos analisados por J. Van Wing, o jesuíta
apresenta a existência de um conselho, em que os representantes da guilda decidiam pela
realização ou não do ritual de iniciação. Caso decidissem pela cerimônia, era recitada a
seguinte invocação: “Os antigos que nos precederam e os espíritos nkita não nos fornecem
287
WING, J. Van. De geheime sekte van’t Kimpasi…, 1921, p. 11.
288
WING, J. Van. De geheime sekte van’t Kimpasi…, 1921, p. 27.
289
PRITCHARD, Edward E. Evans. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1978, p. 37-52.
290
Jornal do Commercio, 29 ago. 1884.
195
mais tesouros humanos, porque sua adoração está falhando, deixe seus jovens deixarem
kimpasi entrar”. 291 Evidencia-se aqui uma intensa conexão entre a ancestralidade e o mundo
dos vivos, principalmente os mais jovens, assim como um importante vínculo com as
atividades apresentadas no capítulo anterior, realizadas a céu aberto nas ruas do Rio de
Janeiro, na primeira metade do Oitocentos, quando os entembes buscavam normatizar, via
cultos de aflição-fruição sob a liderança de um nganga, o contato com uma ancestralidade
insatisfeita com a atenção dispensada por seus parentes vivos. Isso reforça minhas convicções
acerca das transformações sofridas pelas religiões tradicionais africanas em solo brasileiro.
As adaptações do ritual acorriam ainda em solo africano, como destacou o missionário Van
Wing, já que as cerimônias foram encurtadas no século XX, dada a presença colonialista do
europeu. Transformações e acomodações acorreram com muita velocidade ao longo do
século XIX no Rio de Janeiro. Bons exemplos disso são o culto de Francisco Firmo e os das
demais mulheres minas e crioulas apresentados até aqui. É notório que, na corte, os cultos
públicos nas grandes praças, vislumbradas e narradas por vários viajantes, na segunda metade
do Oitocentos, já eram praticados nos interiores das casas e dos sobrados do centro da urbe.
A compreensão dos locais escolhidos por centro-africanos para a realização de
práticas iniciativas permite mapear os ritos praticados por Francisco Firmo e, por
consequência, de outros grupos procedentes da África Centro-Ocidental que protagonizaram
as profundas transformações sofridas pelas religiões afro-brasileiras ao longo do Oitocentos,
originando o que atualmente se compreende por candomblé, umbanda e demais
manifestações. O local escolhido para teste entre os kimpasianos era, com frequência,
florestas, locais reconhecidos como morada dos mortos. Van Wing ouviu de seus informantes
que “os fantasmas nkita vivem perto da florestas e das águas”, cercados de numerosas
palmeiras. 292 Tal descrição aproxima e muito as experiências centro-africanas no campo do
sagrado, descritas por Slenes, com as revoltas escravas em Vassouras, no ano de 1848, onde
um culto de aflição-fruição ocorria no meio da floresta, com elementos semelhantes aos
apresentados até aqui. A aproximação da casa de Francisco Firmo com as margens da Baia de
Guanabara permitem intuir a importância dada pelos participantes da iniciação ritualística
presidida pelo nganga. O mar poderia ser compreendido como a morada das divindades.
Os trabalhos de Robert Slenes para o Sudeste brasileiro permitem compreender a
constante ressignificação na esfera do sagrado empreendida de forma criativa por centro-
291
WING, J. Van. De geheime sekte van’t Kimpasi…, 1921, p. 12.
292
MACGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa: The Bakongo of Lower Zaire. Chicago:
University of Chicago Press, 1986, p. 156-158.
196
africanos na diáspora. Em A greve do crâneo do tucuxi..., analisa e reinterpreta pelo olhar da
literatura etnográfica da África Central as impressões do viajante e naturalista inglês John
Luccock. Este se deparou, no fundo da Baia de Guanabara, com a recusa de quatro africanos
cabindas, que exerciam a profissão de barqueiros, capitaneados por um português, de
continuarem com sua viagem, por ter o naturalista inglês apanhado na beira da praia o crânio
de um golfinho, deixado por eles semanas antes, esperando exatamente que ficasse bom para
o manuseio. Não estariam os africanos se negando a continuar a viagem por imaginarem
tratar-se do crânio de um parente morto, mas a recusa estaria provavelmente ligada à crença
em divindades ligadas à natureza, como a Quianda, uma espécie de nome genérico para os
espíritos das águas, no dialeto mbaka (quimbundo), ou entre os bacongos, falantes do
quicongo, entre os quais também existiam tais divindades, com o nome de Basimbi ou
Bisimbi, como destacado por Karl Laman. 293
A crença nos bisimbis aproxima as demandas até aqui levantadas para centro-
africanos e seus cultos públicos e privados, no Rio de Janeiro de culto aos ancestrais.
Segundo MacGaffey, os bisimbis poderiam ser compreendidos também como uma classe de
humanos que morreram e voltaram a morrer novamente, só que no mundo dos mortos, e, após
esse complexo processo, ressurgiam como bisimbis. 294 Como, geralmente, a morada destes
são as montanhas, pedras e águas, segundo Slenes, o cenário da Baia de Guanabara se
aproximava da realidade dos ambundos e bacongos para as crenças nos bisimbis, dada a sua
formação rochosa, os picos de montanha no entorno de toda baia, as pedras gigantes
emergindo das águas. 295 Essa, entre outras semelhanças, permitem-me intuir que o local de
moradia e, ao mesmo tempo, espaço litúrgico do africano benguela Francisco Firmo era
profundamente significativo para o nganga e demais participantes do culto, principalmente
por sua visível proximidade com a Baia de Guanabara, já que sua rua estava diante da Praia
de Dom Manoel, atualmente aterrada na região central da cidade do Rio de Janeiro. Na época,
sua casa, localizada no número 10 da referida rua, permitia ao líder religioso relacionar
intensamente seus atos performáticos com o mar, assim como os kimpasianos descritos pelo
jesuíta Van Wing necessitavam de água corrente do riacho para se banharem cumprindo as
exigências do rito.296
293
SLENES, Robert W. A grande greve do crânio do tucuxi: espíritos das águas centro-africanas e identidade
escrava no início do século XIX no Rio de Janeiro. In: HEYWOOD, Linda M. Diáspora negra no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2010, p. 198-203.
294
GAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa…, 1986, p. 77.
295
SLENES, Robert W. A grande greve do crânio do tucuxi…, 2010, p. 203.
296
WING, J. Van. De geheime sekte van’t Kimpasi…, 1921, p. 15.
197
Retomo, uma vez mais, o local escolhido pelo africano benguela para moradia no Rio
de Janeiro. Não tenho elementos para afirmar que, sendo livre, Firmo tenha tido condições
financeiras para escolher sua residência, nos idos da década de 1880, contudo é instigante não
somente observar a proximidade com o mar, morada dos espíritos bisimbis, como exposto,
mas pensar no antigo nome da rua, Beco da Boa Morte, e a existência do oratório dedicado a
Nossa Senhora da Boa Morte.297 O culto de aflição-fruição exigia do participante uma morte
ritualística, para um posterior renascimento, já como iniciado. MacGaffey destacou a releitura
dos novos líderes religiosos que se iniciavam nas práticas dos ngangas no Congo, passando
pela leitura do cristianismo, em que a iniciação dos candidatos só ocorreria após a morte
ritualística, iniciada com um longo período de reclusão. 298 A proximidade com a morte física
era um importante motivo para a participação em uma iniciação ritualística. Não por acaso, os
ndokis sugariam o sangue do vivente até que este não existisse mais e, assim, sua alma sairia
de seu corpo. Dessa forma, o doente físico não via, não ouvia e não falava, restando a
necessidade de solicitar um ritual de kimpasi. 299
A morte ritualística é feita com os kimpasianos analisados por Van Wing em uma
cabana. Mais uma vez, o vinho de palma é utilizado para dar início aos atos performáticos
entre bampangus. Os iniciados se deitavam ao centro da cabana, em folhas de bananeiras,
com os braços e pernas esticados, recebiam colares e pulseiras, enquanto o nganga,
responsável pela condução da cerimônia, batia com talos de banana no chão e na cabeça dos
que estavam esticados nas folhas. Os ajudantes que acompanhavam tais atos cantavam para
enaltecer a chamada “morte nkita”, em que os iniciados quando permitidos, anunciavam:
“aqui nós morremos, ó pai”. 300 Os rituais analisados por Laman em muito se aproximam dos
descritos pelo jesuíta: os jovens tinham seus corpos despidos e riscados por giz, logo após
recebiam instrução para relaxarem seus corpos, já que não iriam morrer, aquele seria apenas
um processo ritualístico. A música era responsável por anunciar o momento da morte
ritualística. Tais cantos sugerem que os iniciados aprenderiam sobre a bankimba, ritual
semelhante ao kimpasi, quando renascessem para a realidade. 301
É tentador e quase impossível não pensar nas possibilidades ritualísticas e,
principalmente, metafóricas, tais como as defendidas por Slenes, tendo no quadro de análise
um africano dito benguela, presidindo um ritual de iniciação em uma Sociedade Secreta em
297
BERGER, Paulo. Dicionário histórico das ruas do Rio de Janeiro…, 1974, p. 49.
298
GAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa…, 1986, p. 109-111.
299
WING, J. Van. De geheime sekte van’t Kimpasi…, 1921, p. 49.
300
WING, J. Van. De geheime sekte van’t Kimpasi…, 1921, p. 49-50.
301
LAMAN, Karl. The Kongo,… 1962, p. 245-246. v. III,
198
pleno coração administrativo da corte no Rio de Janeiro. Seria necessário, para a boa
realização do ato performático, que a morte ritualística fosse exercida em um logradouro cujo
nome fora dado em homenagem a Nossa Senhora da Boa Morte, existindo no início de sua
rua, a poucos metros da casa de Francisco Firmo, um oratório dedicado à santa e à sua
descrita devoção. Devotamentos em locais públicos, em forma de pequenos altares erguidos,
foram captados ao longo dos séculos nas regiões da África Centro-Ocidental, como o captado
por Olfert Dapper, na região de Loango. 302 Sobre esse devotamento, o autor, em meados do
século XVII, afirmou serem “dois fetiches”, facilmente assemelhados aos oratórios católicos.
Por seu turno, John M. Janzen, quando se dedicou às pesquisas do culto aflitivo-fruitivo do
Lemba, demonstrou que seu início se deu no século XVII e seus desdobramentos foram até o
século XX. Ele usou a mesma ilustração de Dapper, destacando a existência dos altares
urbanos em Loango.303
Em Religious and cerimonial life in the Kongo and Mbundo areas, John Thornton,
analisando os dois primeiros séculos de contato entre as religiões tradicionais das áreas
ambundas, chamou a atenção para a existência de altares dedicados às divindades territoriais,
chamados de kiteke, que recebiam grande atenção pública por parte da população. Segundo
esse autor, tais altares poderiam ser públicos ou privados, contendo, muitas vezes, imagens,
grandes potes, dispostos em casinhas de madeira ou em cemitérios. Thornton destaca ainda a
fusão das funções dos altares cristãos e kitomis, 304 o que muito contribui para a hipótese aqui
levantada, já que os destacados “fetiches” descritos por Dapper para a região de Loango, no
século XVII, e reinterpretados por Janzen para o século XX poderiam facilmente ser
ressignificados e até mesmo realocados para os oratórios católicos comumente espalhados
pelas ruas da corte do Rio de Janeiro, ao longo do Oitocentos. Thomas Ewbank afirmou que
era impossível andar nas ruas da capital imperial sem expressar devoção às incontáveis
imagens espalhadas pelos logradouros públicos, e que os transeuntes expressavam respeito e,
com velas e preces, deixavam seus pedidos diante de tais oratórios. A veneração devotada
pelos africanos a tais oratórios chamou a atenção do viajante, de modo que ele destacou o
incômodo que isso gerava para os proprietários de escravos destinados ao ganho:
302
DAPPER, Olfert. Description de l'Afrique: contenant les noms, la situation et les confins de toutes ses
parties... ([Reprod.]) / Trad. du Flamand d'O. Dapper; [publ. par l'Institut National des Langues et Civilisations
Orientales]. Amsterdan: Wolfgang, Waesberge, Boom & van Someren, 1686, p. 320-321.
303
JANZEN, John M. Lemba, 1650-1930: A drum of aaffliction in Africa and the New World. New York;
London: Garland Publishing, Inc., 1982.
304
THORNTON, John K. Religious and cerimonial life in the Kongo and Mbundo areas, 1500-1700. In:
HEYWOOD, Linda (ed.). Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora.
Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 76-78.
199
Vale a pena registrar que os escravos contribuíram para privar seus senhores dessas
imagens, o que foi pequena retribuição pelo roubo de seus lares e seus ídolos. Os
negros nada fazem pela metade, exceto o trabalho e em circunstâncias semelhantes
qualquer raça branca os imitaria. Dê-se-lhes qualquer assunto compatível com suas
índoles para tratar que o farão como amadores entusiastas. Os negros juntam-se em
tão grande número ao redor das imagens das ruas e perturbavam tanto os vizinhos
com suas orações que, ao invés de serem uma bênção para a cidade, os pequenos
gênios começaram a tornar-se uma preocupação municipal e foram gradualmente
retirados. 305
305
EWBANK, Thomas. Vida no Brasil…, [1856], 1976, p. 143.
200
importância da cruz no processo de conversão dos bacongos, primeiros povos a abraçarem a
religião europeia e a reinterpretarem-na de acordo com suas gramáticas religiosas. 306
Cécile Fromont desenvolveu o conceito de espaço de correlação para compreender a
propagação do cristianismo bacongo. Esse conceito é diferente da ideia de transculturação
trabalhada no capítulo anterior, segundo a qual ocorre, de alguma forma, a coerção advinda
de uma desigualdade, ocorrendo em uma zona de contato. Diferentemente do que aconteceu
no Congo, pois se tratava de um reino independente e com poderes centralizados em que a
conversão ocorre por vontade de seus governantes. O espaço de correlação se desenvolve
com um conjunto de objetos culturais, com base em narrativas, ilustrações e performances, a
partir dos quais agentes culturais confrontam campos radicalmente diferentes, escolhem
partes inter-relacionadas, criando uma nova teia de significados. 307 Seguindo esse princípio,
essa autora afirma que a cruz foi o elemento que permitiu a interação entre as práticas
religiosas centro-africanas e o cristianismo europeu. Não por acaso, ela associa a cruz
utilizada no kimpasi como resultado de ressignificações entre o símbolo máximo do
cristianismo e o cosmograma bacongo, o que resultou no uso das encruzilhadas pelos
participantes como parte importante do ritual de iniciação.308 A vida e a morte simbólica das
sociedades secretas centro-africanas encontravam na cruz o símbolo da morte e da
ressurreição necessário para pertencerem à nova comunidade.
A idade de Francisco Firmo e sua condução de culto podem ser facilmente associadas
aos casos centro-africanos descritos pelo jesuíta Van Wing, em que o nganga deveria “ser um
todo o velho e com dentes podres e cabelos completamente brancos. Ele deve ser visto como
um verdadeiro Kisimbi-nkita-masa, um espírito da água nkita”. 309 Cabe ao velho e
conhecedor das sociedades secretas cuidar das questões de cura, como também é responsável
pela manutenção da ventura, ou seja, a boa sorte comumente difundida entre os povos centro-
africanos defendida por Craemer, Fox e Vansina. 310
Outro missionário que dedicou parte de sua vida à evangelização em áreas com a
existência de sociedades secretas foi John Weeks, cujos escritos permitem lançar luz sobre os
306
THOMPSON, Robert Ferris. Flash of the Spirit: African and Afro-American art and philosophy. New York:
Vintage Books, 1954; KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850)..., 2000, p. 364;
THORNTON, John K. Religious and cerimonial life in the Kongo and Mbundo areas, 1500-1700…, 2002.
307
FROMONT, Cécile. Under the sign of the cross in the kingdom of Kongo: Religious conversion and visual
correlation in early modern Central Africa. The University of Chicago Press on behalf of the Peabody Museum
of Archaeology and Ethnology. Anthropology and Aesthetics, n. 59-60, p. 111-112, Spring/Autumn 2011.
308
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit: arte e filosofia africana e afro-americana. São Paulo: Museu
Afro Brasil, 2011.
309
WING, J. Van. De geheime sekte van’t Kimpasi…, 1921, p. 15.
310
CRAEMER, Willy de; VANSINA, Jan; FOX, Renée C. Religious Movements in Central Africa: a
Theoretical Study, Comparative Studies in and History, v. 18, n. 4, p. 458-475, out., 1976.
201
feitos do africano benguela na corte do Rio de Janeiro. Nos textos do missionário batista, é
possível perceber que os iniciados nas sociedades secretas dos Kimpasi eram despidos,
iniciavam o ritual em uma floresta próxima e, depois, com a ajuda do nganga, eram
introduzidos em um local reservado, onde suas camas eram, na verdade, folhas de bananeiras.
Após certo tempo, eram retirados pelo mestre kimpasi, nganga, e levados para banhar-se no
rio. Após esse ato, eram pintados com nsadi, 311 ou seja, a terra vermelha, descrita por
MacGaffey como a terra dos mortos, associada à transição.312 Apresenta-se aqui outro
importante ponto passível de diálogo com a liturgia praticada por africanos minas, qual seja,
o recolhimento em local separado, sem o corriqueiro contato com demais pessoas, a busca
pelo contato com o sobrenatural, o qual permitiria a transição, compreendida como iniciação.
As figuras dos ngangas analisadas por Weeks permitem lançar luz nos atos
performáticos de Francisco Firmo. Em solo africano, a palavra nganga, captada pelo
missionário, abrangia, no início do século XX, uma gama de significados, “como
curandeiros, feiticeiros, exorcistas, feiticeiros, padres, adivinhos, etc.”. 313 Contudo o termo,
segundo o missionário, era empregado principalmente para os iniciados nas “sociedades
secretas”. Após o período de iniciação, cada nganga trabalharia por conta própria, semelhante
ao que ocorria nas ruas do Rio de Janeiro do Oitocentos, não só com Francisco Firmo. Os
ngangas analisados pelo missionário batista também exerciam funções de curandeiros entre
seus fiéis: “A maioria dos curandeiros está engajada no que pode ser chamado de ‘arte
branca’ em magia e adivinhação, por exemplo, eles usam sua suposta habilidade na tentativa
de libertar as pessoas da maligna influência de espíritos malignos e para curar várias
doenças”.314
Os enfermos que procuravam pela ajuda eram submetidos a danças e cantos ao seu
entorno, comandados pelo nganga, que exercia a função de curandeiro. Caso o problema se
agravasse, seria necessário um tratamento mais intenso, recolhido na casa ou aldeia de outro
curandeiro por um período que poderia variar de um mês a seis semanas.315 A cura ou até
mesmo a passagem para o recebimento dos poderes de um nganga eram concluídas com um
círculo, em cujo interior existia um encanto relacionado à pessoa iniciada. A cerimônia era
então embalada pelo som do tambor e do chocalho do nganga, e somente nesse momento é
311
WEEKS, John H. Among the primitive bacongo…, 1914, p. 214.
312
MACGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa…, 1986, p. 139.
313
WEEKS, John H. Among the primitive bacongo…, 1914, p. 214.
314
WEEKS, John H. Among the primitive bacongo…, 1914, p. 214.
315
WEEKS, John H. Among the primitive bacongo…, 1914, p. 215.
202
que o líder religioso dizia se o neófito estava apto. Após tais atos performáticos, viria a
incorporação. 316
A composição ritualística e visual do nganga nos mais variados aspectos se aproxima
do que mostra a Imagem 22, retirada de Among the primitive bakongo, do missionário
britânico John Weeks. Tal composição também vai ao encontro do que Evans-Pritchard
analisou entre os Azandes, em que os líderes religiosos usavam “Chapéus emplumados,
carregam grandes sacos de couro contendo peles, chifres, apitos mágicos, cintos, jarrateiras e
braceletes feitos de frutos de sementes silvestres”.317 Pela impressão passada pelo
profissional do Jornal do Commercio, em 1884, no momento da prisão do africano benguela,
é possível afirmar que o ambiente fugia à sua compreensão, motivo que o levou a descrever
os mais variados objetos como “bugigangas”. 318 Talvez o momento da atuação policial não
tenha ocorrido em meio a uma condução cerimonialista que exigisse paramentação ou
simplesmente ele escolheu negligenciar a informação, dando sentido pejorativo, como de
costume, aos detalhes e aspectos religiosos que não compreendia.
Foi ainda na casa do antigo Beco da Boa Morte, a Travessa de Dom Manoel, número
10, que Francisco Firmo associou os males físicos de Maria Lourença de Moraes a cruéis atos
de feitiçaria e afirmou que ele era dotado de poderes para acabar com tais malefícios, uma
visível herança trazida pelo africano de suas terras, onde a boa morte não era a que vinha
antes da velhice. Para essa questão da região do Congo, John Weeks associou os curandeiros
à “arte branca”, white art, os responsáveis por trazer a cura de males físicos e espirituais. Já
os que facilmente seriam associados a feiticeiros e, portanto, à arte da feitiçaria, seriam
compreendidos pelo missionário como de “arte negra”, black art, ampliando as possibilidades
de compreensão do mesmo artifício que mais tarde seria utilizado no Brasil, para designar
práticas religiosas ligadas ao espiritismo kardecista, a magia branca, e as afro-brasileiras,
ligadas à magia negra. 319
Segundo o missionário Weeks, o nganga mais popular e procurado seria o nganga
zumbi. 320 Como já exposto no capítulo anterior, com base nas análises do capuchinho
Cavazzi, ele era o responsável pelo contato com o mundo dos mortos, pelo contato direto
com a ancestralidade. Reforço os argumentos apresentados, o espaço da Travessa Dom
316
WEEKS, John H. Among the primitive bacongo…, 1914, p. 215.
317
PRITCHARD, Edward E. Evans. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande…, 1978, p. 113.
318
Jornal do Commercio, 29 ago. 1884.
319
WEEKS, John H. Among the primitive bacongo…, 1914, p. 215. Para as questões de magia branca ou magia
negra, associadas ao kardecismo e às religiões de matriz afro-brasileiras, ver: MAGGIE, Yvonne. Medo do
feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
320
WEEKS, John H. Among the primitive bacongo…, 1914, p. 220.
203
Manuel, comandada pelo africano benguela Francisco Firmo, demonstra bem a acumulação
de funções de um líder religioso. Tais líderes, em solo africano, eram naturalmente divididos
em categorias. Firmo se colocava diante de um processo de aflição-fruição cujo principal
objetivo seria devolver a saúde agravada pela ação maléfica de um feiticeiro. Estabelecia, por
meio de seus inquices, popularmente conhecidos no Rio como manipansos, um contato com a
ancestralidade, além de, como suponho, comandar, via culto de aflição-fruição, a iniciação
ritualística das mulheres que habitavam sua casa quando o processo fora interrompido
bruscamente pela polícia da corte, o que abre espaço para se pensar na crença do feitiço. Sim,
se existia o mal, este era causado por maléficos feiticeiros! E o Rio de Janeiro tinha seus
feiticeiros. Não feiticeiros pelo olhar pejorativo e costumeiro dos jornais, cujo principal
intento na divulgação do funcionamento dessas casas era sua total desqualificação, mas o mal
acreditado pelos participantes, que os fazia buscar auxílio em lideranças carismáticas da
corte, africanos ou crioulos, que tiveram seu público ao longo do Oitocentos, graças à ação de
pessoas não bem intencionadas na manipulação de seus encantos.
Essas lideranças seriam responsáveis pelo controle dos espíritos maus – em solo
centro-africano chamados de nkwiya 321 – e pela neutralização de quem se mobilizava para o
prejuízo da saúde e da vida alheia. Infelicidade, doença, todo tipo de má sorte e a morte eram
causados pela ação maléfica de um feiticeiro, que geralmente era contratado para produzir tal
malefício na vida de uma pessoa ou de um determinado grupo. Dessa forma, o curandeiro
tornava-se o protagonista por devolver a estabilidade e, assim como visto no capítulo
anterior, as lideranças no Rio de Janeiro e no outro lado do Atlântico tinham a função de
acalmar os mortos e ancestrais para que esses não interferissem na vida dos vivos. E, diante
de uma realidade de agruras, não eram poucas as situações, além do cativeiro, que poderiam
afligir uma vida na capital do Império.
Sobre as práticas utilizadas por Firmo, o Jornal do Commercio traz alguns
importantes vestígios. Ao passar em revista a casa, a autoridade policial “encontrou grande
quantidade de hervas e drogas, variedades de bugigangas, as quaes servião de remédios, e um
Santo Antonio”.322 A figura do famoso santo português na casa do antigo Beco da Boa Morte
acaba por aproximar os rituais iniciáticos com os que eram realizados no outro lado do
Atlântico, em sociedades centro-africanas. Beatriz Kimpa Vita, sem dúvida, é a mais bem
documentada experiência africana de iniciação ritualística no kimpasi, tendo a figura de Santo
Antônio como protagonista. O movimento antoniano tinha à sua frente a filha da nobreza
321
WEEKS, John H. Among the primitive bacongo…, 1914, p. 223.
322
Jornal do Commercio, 29 ago. 1884.
204
congolesa – não por acaso, carregava o título de Dona. Como já destacado, os movimentos de
kimpasi foram mais bem documentados em momentos de crises profundas, e, no ano de 1704,
Dona Beatriz Kimpa Vita entendia-se como uma nganga marina, ou seja, uma categoria de
sacerdotisa responsável pela comunicação com o mundo sobrenatural. Nesse mesmo ano,
Dona Beatriz afirmava ter tido visões de Santo Antônio e que, na verdade, havia morrido e
renascido como o santo, que, a essa altura, não poderia mais ser considerado um santo
português, mas um legítimo congolês. John Thornton identifica nesse ato o processo de morte
e ressureição ritualística do kimpasi.323 Evidencia que o processo de iniciação tinha como
objetivo restaurar a paz no reino do Congo, tendo como base a capital de São Salvador. Se
conectadas as intenções, Francisco Firmo, 176 anos depois, tinha diante de si a
responsabilidade ritualística de devolver a saúde física para as mulheres brasileiras que
procuraram seus conhecimentos. E, nesse ponto, Santo Antônio desempenhava um papel
fundamental em todo o processo performático do culto.
Robert Slenes, em Saint Anthony at the crossroads in Kongo Brazil, encontrou
paralelos entre o movimento antoniano de Beatriz Kimpa Vita, em 1704, e as revoltas
escravas ocorridas no Sudeste brasileiro, tendo Santo Antônio como protagonista, nos anos de
1848 e 1854, sendo todos eles cultos de aflição-fruição. Dessa forma, esse autor lança luz
sobre o papel do santo em tais movimentos. A propagação das ideias de Santo Antônio
conectaram Europa, África Centro-Ocidental e Américas. Slenes encontra eco nos sermões de
Antônio Vieira, que teriam ajudado a propagar a ideia de um santo taumaturgo e milagreiro,
imitador do Deus Trino. Segundo o jesuíta, o santo português era compreendido como um
vice-deus, tal seria sua importância para os católicos. Nos sermões de Vieira, destaca-se ainda
a capacidade do santo em conversar com os peixes e realizar milagres nas águas. Os bisimbis,
como lembrou Slenes, apresentavam-se em forma de peixe. Antônio era ainda capaz de
promover a bilocação, quando seu espírito voa de Pádua até Lisboa e revive um morto para
livrar seu pai de uma condenação injusta. Após realizar esses atos, seu espírito volta voando
pelo mar e entra em seu corpo, que estava em oração no mosteiro. 324
323
THORNTON, John. The Kongolese Saint Anthony: Dona Beatriz Kimpa Vita and the Antonian Movement,
1684–1706. Cambridge: Cambridge University Press, 1998.
324
SLENES, Robert W. Saint Anthony in the Crossroads in Kongo and Brazil: “Creolization” and Identity
Politics in the Black South Atlantic, ca. 1700-1850. In: SANSONE, Livio; SOUMONNI, Elisee; BARRY,
Boubacar (org). Africa, Brazil and the Construction of Trans-Atlantic Black Identities. Trenton, Asmara: Africa
World Press, 2008, p. 216-219. Ver também: SLENES, Robert. Malungo ngoma vem!..., p. 64-65. Em ambos os
casos, a compreensão foi retirada da narrativa do viajante Thomas Ewbank para o Rio de Janeiro no ano de
1846.
205
Por esses milagres expostos a plenos pulmões não somente pela pregação de Vieira,
mas presentes na catequese cotidiana dos primeiros missionários do Reino do Congo, ao que
tudo indica, o santo fora compreendido como um importante Funza, chefe dos inquices e de
todos os bisimbis. 325 Ou seja, o culto ao santo já estaria amplamente propagado entre os
centro-africanos no tempo de Dona Beatriz Kimpa Vita, com mais de duzentos anos de
práticas do catolicismo africano. Dessa forma, é possível destacar que, no ano de 1884,
momento em que Francisco Firmo tivera a infelicidade de acabar atrás das grades, já tinham
se passado mais de quatrocentos anos desde que o principal reino centro-africano abraçara o
cristianismo e Santo Antônio tivera sua crença amplamente difundida nos dois lados do
Atlântico, principalmente nas ruas do Rio de Janeiro, além de ser o próprio Firmo um
importante propagador da fé no santo.
A revolta escrava de 1848, em Vassouras, analisada por Robert Slenes, revela um
grupo de escravos pertencentes a uma sociedade secreta chamada São Miguel, cujos
participantes reuniam-se à noite na clareira da mata, em cerimônias que eram conhecidas
como “mesas”, segundo denúncia dirigidas às autoridades competentes. A liderança ficava a
cargo de “feiticeiros ou curandeiros”, que detinham prestígio de reis e até mesmo de santos
diante dos participantes. Segundo apuração das autoridades, os revoltosos preparavam o
levante para o dia de Santo Antônio ou de São João. O culto acontecia ao redor da imagem de
Santo Antônio, a associação recebia o nome de ubanda.326 O movimento de São Roque, no
ano de 1854, contava com a liderança de José Cabinda, que lançava mão de duas estatuetas
de Santo Antônio, sendo uma decapitada, muito próxima à realidade visual de um inquices.
As imagens carregavam também espelhos localizados em sua barriga, onde eram depositados
os objetos sagrados que, na ocasião, ficaram conhecidos como “mesinhas consagradas”. 327
Robert Slenes destaca que, em solo centro-africano, o santo era conhecido pela contração de
seu nome, Ntoni, seguido pelo que em quicongo seria a boa sorte, Malau. Portanto, a esta
altura, é possível intuir que o culto realizado nas revoltas escravas analisadas pelo autor, bem
como, principalmente, o culto iniciático comandado por Francisco Firmo dava-se em torno de
Ntoni Malau, o Antônio da Boa Ventura, ou simplesmente da Boa Sorte. O Funza era
responsável pelo restabelecimento do equilíbrio e da ordem de acordo com a situação em que
era solicitado colaborar.
325
MACGAFFEY, Wyatt. Religion and Society in Central Africa…, 1986, p. 211.
326
SLENES, Robert. A árvore de Nsanda..., 2006, p. 302-303.
327
SLENES, Robert. A árvore de Nsanda..., 2006, p. 298.
206
Em Malungo Ngoma vem, ainda com o olhar voltado para a mesma revolta em
Vassouras, Slenes identificou, nas regiões do Vale do Paraíba Paulista, o culto às pequenas
estatuetas de madeira, medindo aproximadamente de 15 a 30 centímetros, chamadas de Santo
Antônio do nó-de-pinho. A morfologia das peças cultuadas entre a comunidade de africanos e
crioulos priorizava uma estética da África Centro-Ocidental, tendo como matéria- prima a
parte mais dura do pinheiro (Imagem 24). Algumas também eram feitas de metal ou com
ossos. Slenes destaca a semelhança que as imagens do nó-de-pinho tinham com os inquices
produzidos em solo centro-africano ou por escravizados em terras brasileiras. 328
328
SLENES, Robert. Malungo ngoma vem!..., p. 64-65. Mesmo não usando o termo “transculturação”, Slenes
se aproxima de tal perspectiva, ao apresentar a reinterpretação da figura cristã de Santo Antônio, com grande
projeção no Brasil ao longo do século XIX, a partir de uma gramática religiosa dos povos centro-africanos,
justamente por terem diante de si novos desafios sociopolíticos. Posteriormente, Marina de Mello e Souza
dedicou atenção à existência de tais estatuetas no Vale do Paraíba e também buscou compreendê-las pelo olhar
da gramática centro-africana, como Slenes havia proposto: SOUZA, Marina de Mello e. Santo Antônio de nó-
de-pinho e o catolicismo afro-brasileiro. Tempo, UFF, v. 6, n. 11, p. 171-188, jul. 2001, p. 180-181,.
329
Fonte: Imagens da coleção particular de Eduardo Etzel. Disponível em:
http://blog.joseeduardomartins.com/index.php/2007/08/25/eduardo-etzel-ii-2/. Acesso em: 15 abr. 2015.
207
utilizadas no Baixo Zaire, que, entre outras funções, visavam restabelecer a boa sorte de um
determinado grupo envolvido no ritual. 330
Marina de Mello e Souza, ao interpretar o uso das imagens no Vale do Paraíba
Paulista, segue as hipóteses levantadas por Slenes de que a estatueta era o próprio Santo
Antônio, que detinha poderes para trazer a proteção e a boa sorte, não se tratando de nenhum
artifício para esconder as práticas de culto nos inquices. 331 Acredito que, para todo território,
práticas que envolveram centro-africanos e imagens católicas não passavam pela lógica da
ocultação de uma crença. Cabe lembrar que os escravizados analisados por Slenes realizavam
seus rituais às escondidas, principalmente no clarão da mata, longe de qualquer olhar
repressivo. Francisco Firmo, bem como Laurentino, Leopoldo, Antônio Francisco e tantos
outros líderes da segunda metade do Oitocentos na cidade do Rio de Janeiro, estavam dentro
de suas casas ou sendo recebidos nas casas de fiéis, recebendo e convivendo com pessoas
conhecedoras de seu credo, se não na totalidade, ao menos esperando o que seria
encaminhado como rito. E, pelas análises do capítulo anterior, a maioria das cerimônias não
era feita às escondidas, mas diante do olhar de todos os passantes. Por conseguinte, na
segunda metade do século XIX, a maioria dos pequenos proprietários de escravos no Sudeste
brasileiro eram senhores forros, ou seja, conheciam como ninguém os caminhos do sagrado
percorrido pelos que permaneciam no cativeiro.
Em Santo Antônio do nó-de-pinho, Marina de Mello e Souza destaca que a presença
das estatuetas entre os escravizados do Vale do Paraíba Paulista se dava pela ausência dos
líderes religiosos que comandassem seus respectivos cultos. Já discordei da autora em outro
trabalho em que me debruçava sobre a confecção e culto dos manipansos no Rio de Janeiro,
nome como popularmente ficaram conhecidas as estatuetas mágicas das religiões tradicionais
centro-africanas. 332 Não havia ausência de ngangas, principalmente pelo fato de tais imagens
de inquices ou até mesmo a de Santo Antônio do nó-de-pinho, ao qual credito poderes
semelhantes ao primeiro, serem preparadas por um líder religioso carismático, e, assim como
em solo africano, elas só teriam o reconhecimento sacro passando por tais etapas. Além do
mais, creio que esteja claro que, para a América, vieram escravizados conhecedores das
práticas sagradas e aqui continuaram preparando e mais do que isso, como venho
330
SLENES, Robert. Malungo ngoma vem!..., p. 65. Ver também: SOUZA, Marina de Mello e. Santo Antônio
de nó-de-pinho..., 2001, p. 185.
331
SOUZA, Marina de Mello e. Santo Antônio de nó-de-pinho..., 2001, p. 183.
332
POSSIDONIO, Eduardo. Entre ngangas e manipansos – a religiosidade centro-africana nas freguesias
urbanas do Rio de Janeiro de fins do oitocentos (1870-1900). Salvador: Sagga, 2018, p. 153. Para outras análises
do culto a Santo Antônio nas freguesias urbanas da corte no século XIX, ver p. 172-184.
208
demonstrando, formando o processo de iniciação ritualística de novos membros,
principalmente os mais jovens.
Analisando as apropriações dos símbolos estrangeiros dentro do Congo e a sua
reinterpretação com base em seus hábitos locais, Cécile Fremont, pela ótica dos espaços de
correlação, encontra paralelo entre a vestimenta das elites congolesas e as representações de
pequenas estatuetas do Santo Antônio. As gravuras do capuchinho Bernardino d’Asti, para os
anos de 1740, encontradas hoje na Missione in prattica, tinham como principal objetivo
servir de guia para noviços da ordem, que, assim como ele, serviriam nas missões católicas
do Congo. Em uma de suas aquarelas, o frei capuchinho apresenta o novo governador do
Soyo se reconciliando com missionários católicos. Tais nobres são apresentados com capa
vermelha com a insígnia da Ordem de Cristo, dorso nu e ombros adornados com a rede nkutu
e o gorro mpu, que representava autoridade, semelhante aos líderes religiosos apresentados no
capítulo anterior. De modo instigante, a autora abre novas possibilidades de compreensão de
como Santo Antônio foi ressignificado pela cultura baconga, analisando uma pequena
estatueta de latão, com pouco mais de dez centímetros (Imagem 25), encontrada hoje no The
Metropolitan Museum of Art em Nova Iorque, possivelmente produzida na região do Congo
entre os séculos XVIII e XIX. 333 Em sua mão direita, o santo carrega uma cruz vazada,
semelhante a da gravura reproduzida pelo missionário britânico John Weeks, em Among the
primitive bakongo, ao analisar duas pequenas estatuetas (Imagem 26). Ele chamou de imagem
europeia a que visivelmente mais se aproximava da morfologia católica para composição das
imagens, e de fetiche nativo a uma segunda, a qual supôs ser uma mulher com base na
imitação dos santos da Igreja.334 Voltando à imagem analisada por Fremont, a autora chama a
atenção para a existência de um capuz semelhante ao dos franciscanos, porém destaca a
existência de uma capa que em muito se aproximava das utilizadas pelas autoridades no
Congo, além da pequena estatueta aparentar estar com seu dorso nu, apresentando um
abdômen bem definido, o que evidencia ainda mais a representação do santo de acordo com a
nobreza congolesa, em uma perceptível fluidez dos valores. 335
333
FROMONT, Cécile. Tecido estrangeiro, hábitos locais: indumentária, insígnias Reais e a arte da conversão
no início da Era Moderna do Reino do Congo. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 25, n. 2, p. 33-53,
maio/ago. 2017, p. 46-48.
334
WEEKS, John H. Among the primitive..., 1914, p. 261.
335
FROMONT, Cécile. Tecido estrangeiro, hábitos locais…, 2017, p. 48.
209
Imagem 25 - Figura de Santo Antônio. Reino do
Congo, possivelmente do século XVII-XIX
336
Figura de Santo Antônio. Reino do Congo, possivelmente do século XVIII-XIX. Latão, altura: 10 cm. Museu
Metropolitano de Arte. Presente de Ernst Anspach, 1999, inv. 1999.295.1. Fotografia: © The Metropolitan
Museum of Art, apud FROMONT, Cécile. Tecido estrangeiro, hábitos locais…, 2017, p. 49.
210
A imagem do missionário John Weeks, chamada de fetiche nativo, aproxima-se
morfologicamente das existentes na coleção de Eduardo Etzel, analisadas por Robert Slenes e
Marina de Mello e Souza, principalmente no detalhe das mãos unidas sobre o peito.
Entretanto, se for levada em conta a comparação entre os santos que se assemelhavam à
estética católica, a estatueta captada por Weeks demonstra claramente que o santo veste um
hábito franciscano, amarrado na cintura por um uma corda nodoada. Já a estatueta de metal,
presente no trabalho de Fromont, usa, conforme destacado pela autora, uma calça parecendo
um invólucro nas pernas, 338 deixando evidente que ao lado corria uma capa, o que aproxima
ainda mais a confecção do santo à aparência da nobreza do Congo. Voltando ao ritual do
antigo Beco da Boa Morte, acredito que a imagem recolhida pela polícia na casa de Francisco
Firmo era semelhante à morfologia das estátuas católicas, já que prontamente o profissional
do Jornal do Commercio não a associa ao termo “bugiganga”, como era comum nessas
ocasiões, ou como se tornou comum no Rio de Janeiro, identificar nos jornais, periódicos e
documentos oficiais as estatuetas em casas afro-cariocas como manipansos. Cabe ressaltar
que a casa da Ladeira dos Guararapes, de Laurentino Gomes, tinha objetos que mais pareciam
um altar de igreja, conforme a narrativa da Gazeta de Notícia e do próprio Jornal do
Commercio. Antônio Francisco, mostrado no início deste trabalho realizava suas cerimônias
diante de São Cosme, São Damião e de um Santo Antônio. Tal constatação, para a casa de
um africano benguela e um preto brasileiro visto como crioulo, demonstra como, na segunda
metade do século XIX, os objetos católicos eram ressignificados e adentravam as casas afro-
cariocas.
Nesse ponto, não apenas as imagens católicas aproximavam as casas analisadas, mas
também outros apetrechos, como as ervas dentro de potes. Tratava-se de um curandeiro,
além, é claro, de ter outras funções que ele aglutinava, mas a busca pela cura só era possível
por meio do conhecimento e da manipulação de elementos ligados à natureza. Nem a
narrativa do jornal deixa dúvidas de que se tratava de remédio, portanto, o ofício de Francisco
Firmo ressoava no fazer de Laurentino Inocêncio dos Santos, ambos responsáveis por
restabelecer a saúde por meios sagrados, manipulando ervas, divindades, paixões e crenças.
Acredito que o que foi chamado de “bugigangas” e, dessa forma, ocultado nas linhas da
notícia, estava em consonância com o que havia nas demais casas vistas até aqui,
principalmente pela repulsa causada no profissional da imprensa, ao entrar no espaço
337
WEEKS, John H. Among the primitive..., 1914, p. 261.
338
FROMONT, Cécile. Tecido estrangeiro, hábitos locais…, 2017, p. 48.
211
litúrgico, profanado pelas autoridades: “deu busca em uma casa na travessa de Dom Manoel
número 10, onde se passavam cenas de feitiçaria verdadeiramente repugnantes”. 339
Comparando com práticas de aflição-fruição em solo centro-africano, o uso das aves e
de seu sangue era comum. Um encanto era renovado e reforçado quando o sangue de alguma
vítima era jogado por cima dele.340 Essa seria outra prática capaz de aproximar os mais
distintos grupos étnicos dentro da cidade do Rio de Janeiro, o uso de animais como vítimas
imoladas, capazes de selarem a comunicação com o outro mundo e trazer eficácia à ação
pretendida pelo líder religioso. As filhas de santo e participantes das cerimônias de Juca
Rosa, várias vezes, apresentaram partes do ritual no decorrer de seus depoimentos. O trecho
que segue permite relacioná-lo com as práticas da casa de Francisco Firmo:
Creio que os objetos não descritos pelo Jornal do Commercio incluíssem pequenas
estatuetas de inquices, confeccionadas pelo próprio Francisco Firmo, além da presença de
outros animais imolados para a realização do ritual. Além disso, potes com ervas e objetos
que fugiam à compreensão das autoridades policiais bem como os que a imprensa descrevia
nos jornais como encontrados, podem, agora, com base no cruzamento de informações sobre
os mais variados rituais entre os povos centro-africanos, ser compreendidos também como
inquices, já que estes não eram confeccionados unicamente com aspectos humanos, mas
também em formato de animais, em cestas, como se verá mais adiante.
As informações cruzadas até aqui corroboram as ideias apresentadas no capítulo
anterior, como a de que a formação de um brasileiro como Laurentino Inocêncio dos Santos
respeitava uma intensa gramática africana, entretanto sua formação, ao longo do século XIX,
deu-se dentro de espaços sagrados existentes na cidade do Rio de Janeiro, e, se alcançou
respeito e fama ao longo de tanto tempo, atendendo em um mesmo local, é porque recebeu
importante iniciação ritualística de alguma importante casa afro-carioca. De modo
semelhante aos rituais aqui apresentados e para além da feitura de santo necessária para se
tornar um importante pai de santo ou curandeiro, acredito que as práticas seguiam um
339
Jornal do Commercio, 29 ago. 1884.
340
WEEKS, John H. Among the primitive bacongo…, 1914, p. 222.
341
Processo de Sebastião da Rosa, p. 13 v. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
212
repertório, resultado de uma grande propagação de conhecimentos e trocas dentro dos mais
variados espaços da urbe. Até o momento, não tenho nada que comprove a relação entre
Laurentino Inocêncio dos Santos, preto brasileiro, e Francisco Firmo, africano benguela, que
trabalhava no antigo Beco da Boa Morte. Contudo é difícil imaginar que pelo menos a prisão
e a profunda exposição das iniciadas na casa do nganga não tivessem chegado aos ouvidos do
curandeiro da Glória. Ressalto que o botequim de Laurentino, na Rua da Misericórdia, 40,
ficava exatamente na esquina da Travessa de Dom Manuel, número 10, não sendo necessário
mais que cinco minutos para lá se chegar a pé. 342 Quase impossível pensar que uma batida
policial, feita em uma quinta-feira, por volta das 9 horas da manhã, levando seis pessoas para
a Casa de Detenção da Corte e uma para o Hospital da Misericórdia, poucos metros à frente
da casa, não virasse assunto de botequim…
Assim, se tais hipóteses estiverem corretas, os cultos afro-cariocas se conectavam, nas
semelhanças e agruras, proporcionando, além da exposição, a tomada de conhecimento por
outras lideranças religiosas. Contudo destaco que os conhecimentos adquiridos pelo
curandeiro não se davam pelas informações de jornais, mas sim pela circularidade cultural e
religiosa que a cidade do Rio de Janeiro proporcionava, ao tornar corriqueiras, ao longo de
todo o século XIX, práticas sagradas em seus mais variados espaços urbanos, causando
espanto apenas em quem chegasse, mas que, evidentemente, deixavam adeptos de práticas
tradicionais afro-cariocas à vontade para exercerem suas trocas litúrgicas, que, pela longa
duração, conectaram-se ao longo da centúria. Todavia, pelo exposto até aqui, acredito que,
para liderar uma casa de tamanha importância e fama como a da Ladeira dos Guararapes,
Laurentino tenha passado por um complexo ritual de iniciação, comandado por um experiente
líder carismático. Pelas escolhas litúrgicas dentro de sua casa na freguesia da Glória, acredito
que tenha passado por iniciação semelhante à realizada na casa de Francisco Firmo, no antigo
Beco da Boa Morte.
342
GOTTO, Edward. Plan of the City of Rio de Janeiro Brazil. London [Londres, Inglaterra]: Robert J. Cook,
1871. 1 atlas (29 plantas), col., litografia, 65,5 x 98. Disponível em: bndigital:
http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart326448/cart326448.pdf. Acesso em: 7 jul. 2019.
213
CAPÍTULO 4
RITUAIS AFRO-BRASILEIROS E COSTUMES CENTRO AFRICANOS
O N'Kongo [isto é, o habitante da capital do Kongo] pensa sobre a terra como uma
montanha sobre um corpo de água, que é a terra dos mortos, chamada Mpemba. Em
Mpemba, o Sol se levanta e se põe exatamente como na terra dos vivos [...] a água é
tanto uma passagem quanto uma grande barreira. O mundo, no pensamento Kongo,
é como duas montanhas opostas em suas bases, separadas pelo oceano. Na alvorada
e no pôr do sol, os vivos e os mortos trocam o dia pela noite. O pôr do sol significa
a morte do homem e sua elevação, seu renascimento ou a continuidade de sua vida.
O povo Bakongo acredita, e garante como verdadeiro, que a vida do homem não
tem fim, que ela constitui um ciclo e que a morte é meramente urna transição no
processo de mudança. 1
1
JANZEN, John M.; MACGAFFEY, Wyatt. An Anthology of Kongo Religion: Primary Texts from Lower
Zaire. Lawrence: University of Kansas Press, 1974, p. 34.
214
metaforicamente as quatro etapas da vida (Imagem 27). O início seria relacionado com o
nascer do sol na linha do horizonte, seguido da maturidade, marcada pelo meio-dia, quando o
astro se encontra a pino, representando o auge do conhecimento humano possibilitando-lhe as
melhores escolhas na vida, já que estaria dotado de uma profunda bagagem cultural. Não por
acaso, para os bacongos, essa etapa da vida era a ideal para se conectarem com o sagrado, ou
seja, com o mundo dos mortos. Após essa fase da vida, o ser humano seria preparado para a
morte, já que caminharia para a velhice. Tal período da vida está correlacionado com o pôr do
sol. A quarta etapa do sol, metaforicamente, estaria relacionada com o recomeço, sendo seu
ponto alto à meia-noite, quando, segundo os autores, seria o momento em que o sol brilharia
no mundo dos mortos e se prepararia para a o nascimento, aqui relacionado também com o
renascimento dos mortos para o mundo dos vivos, assim como o sol, que se levantava a cada
manhã.2
Em Flash of the spirit, Robert Farris Thompson apresenta a filosofia e a arte africana
que atravessaram o Atlântico no contexto do tráfico dos viventes e sobreviveram e/ou se
reinventaram nos mais variados espaços americanos. Ao dedicar-se à contribuição centro-
2
JANZEN, John M.; MACGAFFEY, Wyatt. An Anthology of Kongo Religion…, 1974, p. 34.
3
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit: arte e filosofia africana e afro-americana. São Paulo: Museu
Afro Brasil, 2011, p. 113.
215
africana, ele parte da compreensão de mundo pelo olhar do cosmograma bacongo e intitula o
capítulo como A marca dos quatro momentos do Sol, buscando compreender a participação
dos grupos “kongos” na composição religiosa da América. A denominação com k sofreu
alterações ao longo dos séculos de regime escravista, mas, como ressaltou esse autor, servia
principalmente para designar os povos bacongos embarcados para travessia do Atlântico,
sendo, portanto, uma nomenclatura do tráfico. A cruz, como já exposto, serviu como
elemento de aproximação entre europeus e súditos congoleses nos primórdios das relações
diplomáticas entre eles e início da catequização do reino. Entretanto o significado não era
exatamente o mesmo, já que a cruz cristã representava a passagem do Cordeiro Imolado para
a morte e ressurreição e o caminho da salvação para a cristandade, o instrumento pelo qual se
alcançaria a vida eterna. 4 Já a cruz Yowa dos bacongos (Imagem 27) carrega, em sua invisível
representação do cosmos, a demonstração do constante ciclo da vida, que, todos os dias,
assim como os quatro momentos do sol, se renova, promovendo, portanto, o contato
constante entre vivos e mortos e, principalmente, a interferência dos mortos e antepassados e
demais categorias de espíritos no mundo dos vivos.
Associo aqui duas interessantes representações da cruz grega que bem descrevem a
maneira ritualística de como os bacongos compreendem sua relação sobrenatural com o
mundo dos mortos e antepassados. Além da cruz Ywoa apresentada no trabalho de Robert
Farris Thompson, lanço mão de uma excelente representação exposta por Paulo Magalhães
(Imagem 28). A linha horizontal da cruz oval dos bacongos divide as duas montanhas
compreendidas como o mundo dos vivos e dos mortos. Tal linha é chamada de calunga, a
parte inferior compreendida como mundo espiritual. Fica nessa parte o Musoni, a concepção
da vida associada metaforicamente ao nascimento ou renascimento do sol. A entrada dos
seres humanos no plano físico é a representação da seta à direita (Imagem 27) apontada para
cima, no pequeno círculo representando a primeira etapa do sol. A Kala, quando o sol já
desponta no firmamento, marca o nascimento do homem, a representação da entrada nesse
plano é o preto, o ponto alto desse estágio é marcado pela chegada à Tukula, árvore destacada
pela cor vermelha e que, no ciclo solar, representa o ápice, o marco do meio-dia, representado
pela masculinidade.
A Tukula representa para a vida o momento de amadurecimento do ser, a seta
continua para a direita, demonstrando o conhecimento que homens e mulheres encontram ao
4
Para uma reflexão sobre a cruz católica na mentalidade barroca, que, no universo luso, seria compreendida
como símbolo de redenção e reatualização da morte, ver: GONÇALVES, Margareth de Almeida. Império da fé:
andarilhas da alma na época barroca. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. Em especial, o primeiro capítulo: Contra-
reforma e barroco: tensão e paradoxo.
216
alcançar uma determinada idade. É o ponto mais fácil para se estabelecer a conexão entre o
mundo dos vivos e dos mortos. Não por acaso, experientes líderes carismáticos religiosos já
teriam alcançado tal estágio na vida. Recordo que Francisco Firmo contava com 70 anos em
1884, quando teve seu ritual de iniciação kimpasi interrompido e foi levado com os demais
para a Casa de Detenção da Corte.5 A seta começa a apontar para baixo, na direção da linha
horizontal, a calunga, que separa as águas do firmamento quando o sol se põe,
metaforicamente é quando os seres humanos deixam o plano físico e pela morte adentram a
Luvemba, região da morte marcada pela cor branca. O mundo dos mortos, na perspectiva do
cosmos bacongo, é chamado de Mpemba, correspondendo a toda a parte inferior da calunga,
que, como se vê na Imagem 28, é marcada pela presença do oceano. A travessia da calunga
passou a ser compreendida como ritualística pelos escravizados que atravessavam o
Atlântico, conforme mostrado anteriormente.
As conexões com o sagrado apresentadas até aqui passavam, a meu ver, pela crença
de mundo físico e espiritual, representados no cosmograma bacongo. As celebrações
realizadas no Campo de Santana, captadas pelos mais variados viajantes, contavam com a
incorporação do líder religioso localizado ao meio da roda, conduzido pelos toques
ritualísticos do tambor, seguidos dos cantos e das palmas. Vale relembrar que não escapou da
visão dos irmãos Robertsons o fato de que todo entusiasmo “selvagem dos clãs negros” e das
“milhares de vozes” que permeavam a musicalidade do espaço público passava-se ao longo
5
LMCDC f. 40, 28/08/1884.
6
MAGALHÃES, Paulo. Saberes da Kalunga – pensando o mundo contemporâneo a partir da epistemologia
bacongo. 2018. Disponível em: http://www.edgardigital.ufba.br/?p=6464. Acesso em: 21 nov. 2019.
217
de todo o dia, “sob raios ardentes de um sol tropical, e que tinha sido apoiado por tais
esforços corporais por vários formadores, banhando seus quadros em uma contínua torrente
de transpiração”.7 Abre-se aqui espaço para ampliar as observações feitas no segundo
capítulo, já que, por se divertirem ao longo de todo dia, o momento de maior expressividade
do sol era facilmente percebido por seus participantes, o meio-dia, a tukula, o que
provavelmente abria uma maior possibilidade de conexão com o mundo dos mortos que
habitavam a Calunga e que estariam atentos para as súplicas dos que participavam do rito ao
longo do dia.
Cabe retornar a Ladislau Batalha, apresentado na Introdução, ao descrever um ritual
em sua Carta Quarta, em 5 de setembro de 1877, no Cambambe, em Angola, quando,
reclamando de uma febre, buscou aprofundar-se em um ritual de cura via aflição-fruição,
conduzido por um quimbanda, que, liturgicamente paramentado, com pano amarrado à
cintura, tendo parte de seu corpo nu untado com “azeite de palma”, em seu ato performático
em busca da cura, trazia “certas madeiras aromáticas poídas, isto é, reduzidas a pó, taes como
a tacúla e a quicéa). Não falta na mencionada mala uma infinidade mais de objectos, cujo
inventario completo se tornaria difficil: - mavó (certa terra)”.8 Destaco a existência das
madeiras aromáticas moídas, que ele nomeia de “tacula”. Na mesma carta, destaca que o
sacerdote levava um gorro cassungo em sua cabeça e, no pescoço, uma pequena estatueta
feita de amuleto, que em muito se aproxima do marotte portée do carregador de café de
Debret. Além da primeira madeira aromática, Batalha menciona a utilização de um “barro
amarelo”. Desse modo, gostaria de ressaltar que a pemba (terra dos mortos), elemento
indispensável nos rituais centro-africanos e amplamente propagado nas casas afro-cariocas,
estava diretamente conectada com a noção do cosmograma bacongo, em que, provavelmente,
no jogo de palavras ritualísticas, o quimbanda incumbido de curar a febre de Batalha tenha
invocado o pleno amadurecimento via tukula, marcada pela cor vermelha, perfeito momento
para a conexão com os ancestrais, mas tenha garantido o renascimento e/ou a iniciação
curativa, via renascimento, passando pela concepção no musoni, marcado pelo “barro
amarelo”.9
A imagem de Augustus Earle chamada de Negro fandango (Imagem 29) apresenta o
ato performático à luz do dia no já conhecido Campo de Santana, no ano de 1822, período,
7
ROBERTSON, John Parish; ROBERTSON, Willian Parish. Letters on Paraguay: Comprising an account of a
four yers’ residence in that republic, under the governmant of the dictador Francia. London: John Murray,
Albemarle Street, 1838, p. 169. v. I.
8
BATALHA, Ladislau. Costumes angolenses. Lisboa: Companhia Nacional Editora, 1890, p. 30.
9
BATALHA, Ladislau. Costumes angolenses…, 1890, p. 29-30.
218
como já exposto, dos cultos afro-cariocas de inspiração centro-africana. Mesmo seguindo a
linha interpretativa da primeira metade da centúria, descrevendo o ritual como festividade
fandangueira, captou o ar majestático da figura do nganga que comandava o rito e as mesmas
características das narrativas apresentadas no segundo capítulo, em que destaquei a cabeça
ornada com um gorro com uma pluma.
219
correta estiver minha observação, seria mais uma aproximação dos rituais da primeira metade
do Oitocentos com a compreensão de mundo visível e invisível com total conexão entre eles
tomada da perspectiva baconga, em forma de cosmograma, em que a cruz assumia claro
papel de conexão entre líderes religiosos e parentes mortos.
Outro interessante momento que bem conecta a noção de mundo espiritual bacongo
com escolhas feitas na esfera sagrada de rituais e atos performáticos foi o vislumbrado pelo
naturalista alemão Georg Wilhen Freyreiss, que viveu no Brasil entre os anos de 1814 e 1815,
ao se deparar com africanos recém-desembarcados no cais do Valongo e colocados em uma
das tantas casas de engorda existentes na rua Camerindo, onde aguardariam em quarentena
não somente buscando o peso ideal, mas também a cura de determinadas doenças, comuns na
trágica experiência da travessia do Atlântico, ou seja, a ritualística Calunga, compreendida
como a morada dos mortos. Dançar em círculo, firmar o ritmo com a batida das mãos,
promovendo, desse modo, a incorporação, ajudava aos recém-desembarcados a se
conectarem com o mundo espiritual, em uma tentativa de reequilibrar as vidas sacudidas
ainda em solo africano pela escravização, a permanência em um dos vários presídios
existentes nas áreas vendedoras de cativos, até a traumática travessia do Atlântico, na qual
muitos morriam. Assim como os quatro momentos do sol, a vida dos africanos descritos por
Freyreiss passava do musoni para a kala, quando recomeçariam uma nova vida na América. 11
4.1 A cura
Está evidente até aqui que novas lideranças religiosas eram forjadas na cidade do Rio
de Janeiro e em todo o Sudeste por meio de rituais de iniciação, além de novos cargos na
estrutura litúrgica de uma casa afro-brasileira, principalmente após a lei Eusébio de Queiroz,
que, em 1850, colocou um ponto final na entrada de africanos no país, assim como o
constante contato e a renovação de experiências com a costa africana. Reis, Rainhas, Pais e
Mães de Santo, entre outras titularidades, começaram a ser formadas por crioulos, ou seja,
filhos de africanos, com amplo contato com seus pais, parentes e conhecidos mais velhos, e
comandaram os espaços afro-cariocas a partir da segunda metade do século XIX. Momento
em que, como já destacado, deixavam as ruas para realizar as celebrações dentro de espaços
fechados, no quais, além das feituras de cabeça abordadas no capítulo anterior,
cotidianamente outros atos performáticos eram realizados nos mais variados endereços do
11
FREIREYSS, Georg Wilhen. Viagem ao interior do Brazil nos annos de 1814 – 1815. Revista do Instituto
Historico e Geographico de São Paulo., 1906. São Paulo: Typographia do Diário Official, 1907, p. 223. v. XI.
220
Rio. O primeiro ato, o que mais preocupava as autoridades, eram as práticas curativas. Cabe a
esta altura relembrar que Laurentino Inocêncio dos Santos era um renomado curandeiro, ao
longo de toda a segunda metade do século XIX, ganhando destaque nos jornais, no decorrer
da década de 1890, chamando, por várias vezes, a atenção para tal ofício:
Em Pendura Saia, no Cosme Velho, tinha casa de dar fortuna e zungú o curandeiro
Laurentino Innocencio dos Santos, gajo que tira bons proventos de sua medicina
espontânea.
Curandeiro
Roga-se ao Sr. chefe de policia para dar providencias para fim de evitar que certo
curandeiro, nas Larangeiras, de nome Laurentino, cobre 12$ por consulta e para
tratar 300$ ou 400$ e ainda seja atrevido com as famílias que vão ali seduzidas. 13
12
Gazeta de Notícias, 03 mar. 1890, grifos meus.
13
Gazeta de Notícias, 01 jan. 1891, grifos meus. A mesma notícia veiculada no primeiro dia do ano de 1891, em
uma quinta-feira, repetiu-se em sua integridade no dia seguinte, sexta-feira.
221
relacionamento com a ancestralidade estiveram em profunda relação com o restabelecimento
da saúde, fosse espiritual ou principalmente física.
Dessa forma, é de fundamental importância conhecer os espaços internos das casas
religiosas da segunda metade do século XIX, momento em que a maior parte das celebrações
era feita em acomodações semelhantes às moradias da cidade, e, estabelecendo contato com
tais cerimônias, vislumbrar os caminhos escolhidos por líderes afro-brasileiros para amenizar
os males físicos. Isso porque, sabidamente, todas as autoridades apresentadas até aqui, em
algum momento de seus calendários litúrgicos, dedicavam-se ao ofício da cura. Laurentino
Inocêncio dos Santos, como exposto, em todos os anos em que figurou nas páginas de jornais
cujo objetivo era desqualificar seu ofício, sempre era nomeado como “curandeiro”, o que, a
meu ver, demonstra a clarificação e o entendimento de tais atuações na sociedade afro-
carioca, como em todo o Brasil. Vale lembrar que o africano benguela Francisco Firmo,
nganga responsável pelo culto de aflição-fruição na antiga Travessa da Boa Morte, mesmo
focado em restabelecer a cura lançando mão de um ritual kimpasi, teve seu ofício relacionado
a práticas maléficas: “casa de feitiços”, em negrito no Jornal do Commercio. 14
Uma grande oportunidade de compreender o que se passava dentro da casa de
Laurentino Inocêncio dos Santos, bem como na dos demais líderes apresentados até aqui,
brasileiros ou crioulos, é cruzar suas informações com as de outros sacerdotes e sacerdotisas,
que, além de terem suas casas em algum momento invadidas pela polícia e expostas nas
páginas de jornais e periódicos, acabaram por enfrentar inquéritos policiais e processos, de
modo semelhante a Leopoldo e Antônio Francisco, que, mesmo contra suas vontades, viram
seus rituais sagrados desvendados diante de escrivães, delegados, promotores e juízes.
O processo de cura na cidade do Rio de Janeiro passava, na maioria das casas por
mim analisadas, pelos conhecimentos centro-africanos e pela maneira de seus povos
compreenderem o mundo. A arte da cura entre os bacongos sempre esteve relacionada com
práticas sagradas, cabendo aos mesmos líderes carismáticos que cuidavam de iniciações
ritualísticas e do intenso contato com o mundo dos mortos trabalhar por meio de atos
performáticos para restabelecer a saúde física. Assim foi com o nganga Francisco Firmo,
africano benguela, que elaborava seu ritual kimpasi e cuidava da saúde de Maria Lourença de
14
Jornal do Commercio, 29 ago. 1884.
222
Moraes, a qual, após a batida policial na casa da Travessa de Dom Manoel, antiga Boa Morte,
foi rapidamente levada ao hospital da Misericórdia, no final da rua, tão grave deveria ser sua
situação.15 Para exercer tal arte, líderes religiosos preparavam seus encantos, entre eles, o que
Robert Farris Thompson destacou como um complexo sistema de inquices, que, na verdade,
seriam as medicinas sagradas. 16 A esse respeito, esse autor destacou que:
Os recipientes dos minkisi são vários: folhas, conchas, trouxas, sachês, sacos, vasos
de cerâmica, imagens de madeira, estatuetas, rolos de pano, entre outros objetos.
Cada nkisi contém medicinas (bilongo) e uma alma (mooyo), que são combinadas
para lhe conferir vida e poder. As próprias medicinas são de incorporação de
espíritos e de direcionamento de espíritos. 17
223
grande parte por brasileiros filhos e netos de africanos, que, iniciados ritualisticamente em
solo brasileiro, receberam uma bagagem cultural que passava pela compreensão das heranças
africanas.
O primeiro caso é o do líder religioso Evaristo Antônio da Costa, acusado de
curandeirismo e acoitamento de escravos fugidos. 20 O réu era natural da província do Pará,
levado à pia batismal na Igreja de Santo Antônio no Pará. Chegou ao Rio de Janeiro no
conturbado ano de 1831, quando da aprovação da lei que colocaria na clandestinidade a
entrada de africanos escravizados em território brasileiro. 21 O juízo da subdelegacia de
polícia apresentou à justiça, para anexar ao processo, o Sumário Crime, envolvendo as ações
de Evaristo Antônio da Costa. Tal apresentação em um processo tinha como objetivo mostrar,
de forma sucinta, os crimes que recaíam sobre o réu. Descortinam-se práticas religiosas que
conectam os mundos atlânticos e as casas religiosas analisadas até aqui. Evaristo foi
apresentado como “abil curandeiro das differentes enfermidades que acomettem a espécie
humana”, e que, com profundo conhecimento de causa, fazia os que buscavam por seu
auxílio acreditarem que as doenças e males eram “devidas a confecção fabulosa denominada
feitiço, ou malefícios”. 22 Portanto relacionar problemas do cotidiano, principalmente os que
envolviam saúde, não seria novidade nos tempos de Francisco Firmo, Laurentino Inocêncio
dos Santos e Antônio Francisco. Ao contrário, acredito que a propagação e a naturalização de
tais ideias tenham criado na população oitocentista a ideia de procurar sempre de alguma
forma se livrar dos males causados pelo sobrenatural. Talvez seja possível intuir um costume
muito comum para os brasileiros que cresceram ao longo do século XX, em que a ideia de
“mau olhado” pairava na crença de significativa parcela da população, obrigando quem
quisesse se livrar de tais problemas a procurar por uma hábil rezadeira, o que, a esta altura,
compreendo como uma nítida herança das práticas curativas afro-brasileiras do século XIX.
Contudo volto à freguesia de São Sebastião do Itaipu, na Imperial Cidade de Niterói,
onde Evaristo Antônio da Costa, além de associar, como de costume no mundo atlântico, os
males ao feitiço, ainda lançava mão de conhecidos caminhos, já aqui apresentados, para
alcançar a ventura e a cura. Os depoimentos do dia 4 de fevereiro de 1859 aproximaram os
integrantes da justiça dos caminhos escolhidos pelo curandeiro que lhe possibilitavam chegar
à solução do problema de seus fiéis. Francisco Antônio dos Santos, aos quatro dias do mês de
20
Processo de Evaristo Antônio da Costa. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo Nacional.
21
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 75v. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional.
22
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 2. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional, grifos meus.
224
fevereiro, jurou com a mão direita sobre os Santos Evangelhos que sabia do ofício de
curandeiro por ouvir falar e que tamanha era a fama de Evaristo, que resolveu, movido pela
curiosidade, assistir às sessões. Essa era uma estratégia comum em processos semelhantes,
muito provavelmente uma maneira de os depoentes não serem associados às acusações
imputadas aos réus. 23
Acabou por revelar que as cerimônias de cura se davam no centro de um cômodo,
onde Evaristo Antônio da Costa buscava descobrir a enfermidade e quais remédios seriam
necessários. No meio da sala, encontrava-se um pau perpendicular, com dois amarrados de
ervas verdes, entre as quais se destacava o melão-de-são-caetano (Momordica charantia L.),
da família das cucurbitáceas, que inclui a abóbora, o melão, a melancia, o pepino, entre
outros. A planta, até os dias atuais, tem reconhecido o seu valor medicinal no tratamento da
diabetes, regulando o açúcar do sangue. Também auxilia no combate a problemas de pele,
alivia picadas de insetos, prisão de vente, entre outros males. 24 Isso demonstra que os que se
dedicavam a tal ofício conheciam as características medicinais das plantas e sabiam lançar
mão delas quando necessário, entretanto ressalto que o fazer dos curandeiros, ao longo do
século XIX, estava diretamente associado a questões religiosas. Como já exposto, remeteria
facilmente a mente para as rezadeiras, que são cada vez mais escassas no século XXI.
Destaco que os pacientes do curandeiro de Niterói deitavam-se debaixo dessas ervas, em uma
esteira de algodão, e tinham sobre seu corpo uma cruz de cor verde. Os que participavam das
reuniões ajudavam na formação de um círculo, e quem mais estivesse enfermo era integrado
à roda. Todos cantavam, dançavam, conduzindo a cerimônia na palma da mão,
acompanhados de chocalhos, pandeiros, enquanto Evaristo Antônio da Costa conduzia toda a
cerimônia do interior da roda. Nas mãos, o curandeiro carregava um objeto ritualístico
chamado de “gongá (vasilha de madeira em forma redonda)”, e os objetos contidos dentro de
tal recipiente eram balançados de um lado para o outro, ao que tudo indica, conduzidos pelos
cantos e danças. 25
O gongá com seu preparo era aproximado do nariz do doente. Nesse momento do
culto, ocorria um torpor por parte do enfermo, seguido de incorporação, procedimento
comum e corriqueiro nas casas afro-brasileiras e principalmente no Rio de Janeiro, entretanto
23
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 7-7v. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional, grifos meus.
24
Sobre o melão-de-são-caetano, ver: https://www.tuasaude.com/melao-de-sao-caetano/ Acesso em: 20 nov.
2019.
25
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 6v.-8. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional, grifos meus.
225
chamo a atenção para os três primeiros depoimentos no que tange ao momento de possessão
espiritual:
[…] de sonambulismo; e então neste estado lhe faz o réo [curandeiro Evaristo
Antônio da Costa] as perguntas, que julga necessárias, afim de que o enfermo lhe
responde qual a moléstia que soffre, e o remédio que o deve curar; aludindo o réo
que as respostas do enfermo não são próprios deles, e sim professadas pelas almas
dos parentes dos enfermos, as que ele as fazem entrar no corpo do enfermo para
lhe declararem a cauza da moléstia, e o remédio para respectiva cura. 26
O trecho em destaque estabelece um ponto em comum com todos os rituais até aqui
apresentados, além de permitir intuir o que ocorria dentro dos espaços destinados à cura,
comandados por reconhecidas lideranças religiosas, e que, de alguma forma, eram marcados
por influência centro-africana. Conecta-se aqui, no espaço e no tempo, a longa duração da
busca pela ancestralidade, a naturalizada relação com o mundo dos mortos em busca de
soluções para o cotidiano dos vivos. Essa ideia macro da cosmologia baconga e centro-
africana como um todo vai aos poucos se desvendando no micro, não somente aqui, mas em
diversas produções historiográficas, em que, com novas metodologias, antigas fontes
permitiram a compreensão de parte dos rituais e caminhos escolhidos nos espaços urbanos do
Rio de Janeiro.
Destaco ainda o uso das ervas e a necessidade de conhecer suas funções terapêuticas e
as mais variadas possibilidades de utilização no momento da cura. As danças com palmas e
os cantos ritualísticos conectam os curandeiros da segunda metade do século XIX com os
ngangas, quimbandas e demais lideranças religiosas do Rio de Janeiro, que, ao longo da
primeira metade do Oitocentos, realizavam suas cerimônias nas ruas e em grandes espaços
públicos, como descrito no segundo capítulo. Os atos performáticos dos dois períodos
também estabelecem conexões, já que ambos tinham a intenção final de se conectarem com o
mundo dos mortos, preferencialmente com os parentes dos que buscavam tratamento. Tudo
feito na presença de um líder carismático, capaz de conquistar a confiança não somente dos
doentes, mas creio, a esta altura, que também os que buscavam por seus conhecimentos
acabavam, de certa maneira, profundamente participando e compartilhando de suas crenças.
A cura como meta no Brasil do Oitocentos não era uma exclusividade dos que se
dedicavam a princípios religiosos. Não por acaso, acertadamente, diversos trabalhos
historiográficos, como já ressaltado anteriormente, tratam dessas possibilidades com
26
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 8-8v. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional. Depoimento de Francisco Antônio dos Santos, grifos meus.
226
expressões como “arte de curar”, “ofícios de cura”, entre outras. 27 A medicina oficial, como
era chamada a medicina praticada por acadêmicos formados nas faculdades de medicina do
Rio de Janeiro, de Salvador ou da Europa, nem de longe predominava sobre as escolhas
coletivas das mais variadas camadas sociais, ao contrário, disputava palmo a palmo espaço
com aqueles que se dedicavam à busca da cura por vias ritualísticas. Dessa maneira,
religiosos foram naturalmente alcançando aceitação entre as mais variadas camadas
populares, mesmo que não abertamente se declarando como fiéis participantes do culto e das
liturgias afro-cariocas, como fizeram os “súditos” da Rainha Mandinga, o que foi visto no
capítulo anterior. Contudo acredito que até mesmo os que publicamente criticavam e
zombavam das práticas religiosas acabavam buscando por seus conhecimentos quando
necessário. Nesse sentido, o exemplo do fazendeiro que hospedou Adèle em sua casa, o qual,
quando se deparou com um escravo adoentado, picado de cobra, bradou pelo socorro do
“feiticeiro”. Mesmo enxergando pejorativamente seu ofício, sabia de suas possibilidades
curativas e não renunciava a seus conhecimentos. 28
Cabe aqui um instigante exemplo dessa propagação e do respeito alcançado por tais
lideranças, o que ajudou também a propagar as noções de cura na sociedade brasileira.
Refiro-me a Pai Manoel ou “doutor” Manoel, como ficou conhecido um contemporâneo de
Evaristo Antônio da Costa, no Recife, em 1856. O curandeiro centro-africano ganhou
prestígio e respeito em uma região assolada pelo cólera e oferecia sessões curativas, pautadas
em uma gramática afro-brasileira, refrigério para os males da epidemia, que atingia, em maior
escala, os menos favorecidos. Sua fama correu pela cidade sofrida com o cólera, e, devido ao
apelo popular, acabou ganhando autorização para atuar dentro do Hospital da Marinha no
Recife, ao lado da medicina oficial do Império.29 Mesmo ele reclamando que seus
ensinamentos não eram seguidos, e, por isso, o êxito não poderia ser alcançado, vários
pacientes chegavam a óbito, o que em muito ajudou na pressão feita pela classe médica.
Acabou preso e acusado de charlatanismo, de modo semelhante a todos os líderes do
contexto. Entretanto a prisão causou comoção entre a população, que partiu em protesto para
a retirada de Pai Manoel da Casa de Detenção. Cabe aqui mais uma vez relembrar os
27
CHALHOUB, Sidney et al. (org.) Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas:
Editora UNICAMP, 2003.
28
TOUSSAINT-SAMSON, Adèle. Uma parisiense no Brasil. Rio de Janeiro: Capivara, [1883]/2003, p. 134-
137.
29
DINIZ, Ariosvaldo da Silva. As artes de curar nos tempos do cólera: Recife, 1856. In: CHALHOUB, Sidney
et al. (org.) Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas: Editora UNICAMP, 2003,
p. 355-356. Para a mesma situação no Recife e os reflexos da cólera na cidade do Rio de Janeiro, ver:
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras,
1996, p. 135.
227
“súditos” da Rainha Mandinga, que nada mais eram do que fiéis que compartilhavam da
mesma crença e do mesmo conhecimento de mundo, a ponto de não se preocuparem com a
violência policial da corte, que bem conheciam, e bradarem na porta da delegacia por sua
soltura. A mesma compreensão para os dois fenômenos, em que participantes dos cultos afro-
brasileiros buscavam iniciações ritualísticas, curas físicas e espirituais, sem dividirem o
mundo entre o social e o religioso.
Não por acaso, boticários e médicos viraram o alvo da população no Recife, que
interpretou a doença como uma maneira de as elites eliminarem os menos favorecidos, não
somente pela morte física, mas, ao que tudo indica, pela espiritual, já que perdiam acesso aos
líderes carismáticos, quando estes eram presos, e tais ngangas, pais e mães de santo eram os
responsáveis pela conexão entre os vivos e mortos. Ou seja, uma dupla morte afligia os
populares do Recife e, muito provavelmente, de outras regiões do Brasil ao longo do século
XIX – a morte física, aumentando as aflições em tempos de epidemias, e a mais complexa, a
espiritual, que impossibilitava as pessoas de se conectarem com o mundo dos mortos. Não
por acaso, não eram somente os pobres que procuravam os serviços de Pai Manoel. 30 Assim
como no Rio de Janeiro, a busca por serviços religiosos de matriz africana era comum em
todo tecido social.
Os depoimentos de João José dos Santos e Justina José dos Santos, de 47 anos,
naturais do Rio de Janeiro, pouco diferiam dos ritos descritos por Francisco Antônio dos
Santos. Todos apresentaram cenas que afirmaram acompanhar, não escapou do olhar de
nenhum deles o pau perpendicular repleto de ervas, sendo a principal o melão-de-são-
caetano, local escolhido pelo curandeiro para ser o ponto da consulta, onde, com o auxílio dos
demais participantes, cantava e batucava, invocando os espíritos dos antepassados do
doente.31 A diferença estava no destaque dado por Justina, quando afirmou ter buscado os
serviços do curandeiro Evaristo após “ter recorrido à medicina legal e não ter encontrado
resultado algum”. 32 A fama de Evaristo corria aos quatro cantos, mostrando que o curandeiro
de Niterói alcançava visível sucesso em suas práticas de cura, o que levava ao aumento de
seus seguidores/pacientes. Aqui, creio que imperava não somente a crença na eficácia do
curandeiro, mas a ideia dos problemas causados pela medicina oficial. O caso de Recife
30
DINIZ, Ariosvaldo da Silva. As artes de curar nos tempos do cólera: Recife, 1856. In: CHALHOUB, Sidney
et al. (org.) Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas: Editora UNICAMP, 2003,
p. 357.
31
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 10-14v. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional. Depoimentos de João José dos Santos e Justina José dos Santos, grifos meus.
32
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 13v. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional. Depoimento de Justina José dos Santos, grifos meus.
228
permite lançar luz não somente sobre as preferências dos escravos, mas também sobre o
pavor que a medicina oficial causava nos menos favorecidos. Stanley Stein, ao analisar a
região de Vassouras, destacou o medo que as famílias escravas demonstravam da Santa Casa
de Misericórdia, principalmente por acreditarem que os hospitais rompiam os laços
familiares.33
Ressalto que, ao longo de todo o processo de Evaristo, não foram descritas imagens
católicas, semelhantes às existentes na casa de Laurentino Inocêncio dos Santos, Antônio
Francisco e do africano benguela Francisco Firmo, com altares católicos “ricamente
alfaiados”, que mais pareciam altares de uma igreja do período, ou um vistoso Santo Antônio,
que, como exposto no capítulo anterior, fora amplamente propagado em terras centro-
africanas e que no Brasil, recebia uma forma bastante peculiar de ser cultuado e administrado
por grupos étnicos oriundos das regiões da África Centro-Ocidental, principalmente os
bacongos e ambundos, que, por algum infortúnio, acabaram escravizados no Sudeste
brasileiro. Contudo são grandes os motivos para crer que santos cristãos fossem utilizados nas
sessões de cura de Evaristo Antônio da Costa. Ele era católico, batizado, como já exposto, na
igreja de Santo Antônio, na província do Pará, brasileiro, o que obviamente o colocava diante
de costumes e práticas comuns no país, e a religião oficial estava arraigada em todo o tecido
social, mesmo que interpretada, como creio, de maneira diferente pelos mais diversos grupos
que a praticavam.
Outro meio que permite acreditar na existência de imagens católicas na casa do
curandeiro de Niterói é fazer o movimento inverso. Já que ele é utilizado aqui para tentar
compreender a casa de Francisco e Laurentino, estes podem auxiliar lançando luz sobre as
práticas de Evaristo. Sabidamente, Laurentino era um afamado curandeiro na freguesia da
Glória ao longo de pelo menos vinte anos no mesmo endereço. Com desenvoltura, receitava
remédios e rezas a quem o procurasse, haja vista que continuou a fazê-lo, sem maiores
problemas, no advento da República:
Em Pendura Saia, no Cosme Velho, tinha casa de dar fortuna e zungú o curandeiro
Laurentino Innocencio dos Santos, gajo que tirava bons proventos da sua medicina
espantosa.
33
STEIN, Stanley J. Vassouras: A Brazilian Coffee Country, 1850-1900. The Roles of Planter and Slave in a
Plantation Society. New Jersey: Princeton University Press, 1970, 194.
34
Gazeta de Notícias, 03 mar. 1890.
229
A ideia de medicina espantosa vai naturalmente ao encontro de toda narrativa que se
buscou construir ao longo do século XIX quando o assunto eram práticas curativas com
influência de líderes e casas afro-cariocas. O mesmo espanto fora utilizado para as sessões de
Evaristo, que buscava a cura lançando mão de ervas, como o melão-de-são-caetano, para fins
fitoterápicos, acrescidas de rezas e invocações dos espíritos de parentes e ancestrais que há
tempos habitavam o mundo dos mortos. O termo “espantoso” utilizado para Laurentino em
muito pode se aproximar da incorporação vivida na casa e nos espaços comandados por
Evaristo. Outro ponto em comum nas casas e situações até aqui analisadas foi a ampla
utilização de ervas para fins curativos/religiosos. Outra importante possibilidade de
aproximação é lembrar o movimento analisado por Robert Slenes, em que as cerimônias
realizadas na clareira da mata contavam com a utilização de cantos ritualísticos, tambores,
rodas e com a existência dos santos católicos. Os gestos do líder carismático conhecido como
Pai Gavião muito podem acrescer para a compreensão dos demais atos:
O movimento dos “Filhos das hervas do campo encantado” muito acrescenta para a
compreensão dos cultos até aqui analisados. A Guayá-Cayumba seria um instrumento feito de
cabaça com cabo de pau, que facilmente aproximava as duas margens do Atlântico. Para
perceber isso, basta novamente um olhar sobre a Imagem 10, no segundo capítulo, do
capuchinho Cavazzi, em que os chocalhos eram utilizados por africanos em suas cerimônias
de entembes e que pouco diferiam de instrumentos utilizados por povos indígenas no
território brasileiro para suas cerimônias xamânicas. As três testemunhas aqui apresentadas
para o caso Evaristo Antônio da Costa revelaram a presença de um chocalho, que seria
responsável pela invocação dos espíritos dos mortos. A água ardente remete às celebrações
do Campo de Santana aos domingos, vistas pelos viajantes ingleses como festa e farra,
mesmo entendimento tido por Adèle Toussaint na fazenda em que foi buscar, juntamente com
35
Correio Paulistano, 27 jul. 1854.
230
a família, refúgio para os males da cólera. A tigela com raízes evidentemente lembra o que,
na casa de Evaristo Antônio da Costa, era chamado de gongá, e ambas se complementam, já
que a narrativa das cerimônias de Niterói permite compreender que as vasilhas serviam de
“gatilho” para impulsionar o transe, que nos três depoimentos foram descritos pelo escrivão
como resultados de “sonambulismo”. Aqui intuo ter sido tal descrição feita por sua própria
escolha, já que, visivelmente, para os participantes, tratava-se de um contato com o outro
mundo, o dos mortos.
O caso dos “filhos das hervas do campo encantado” de São Paulo comprova
definitivamente que as pequenas estatuetas que tratei como manipansos em outro trabalho,
dada a sua profunda propagação na corte imperial, eram semelhantes às estatuetas centro-
africanas amplamente trabalhadas por diversos autores, principalmente Wyatt MacGaffey, em
Astonishment & Power, em que o autor juntamente com Michael D. Harris buscaram
compreender os mais variados inquices da história do Reino do Congo e posteriormente da
colônia belga. 36 Geralmente tais estatuetas tinham um recipiente em que era depositado o
bilongo, ou seja, o que MacGaffey compreendeu como encanto, aquilo que tornava o inquice
uma divindade sagrada, eficaz, pronta para cumprir seu papel de mediação entre os dois
mundos. A ideia de “obeso como o do cavalo de Troya” e do “umbigo [...] formado por um
pedaço de vidro” não deixa dúvidas de tratar-se de semelhantes objetos encantados centro-
africanos.
O Vungo, que, segundo o Correio Paulistano, seria um chifre com encanto, estava
presente nas mais diversas cerimônias afro-cariocas e afro-brasileiras. A casa do Engenho
Novo, da conhecida Mãe Benta, responsável pela iniciação ritualística (feitura de santo) de
três raparigas, tinha entre os objetos litúrgicos “três grandes chifres”.37 Entre os mais variados
objetos entregues ao diretor do Museu Nacional, Ladislau Netto, oriundos dos locais
compreendidos como casas de dar fortuna, havia tambores e um chifre de boi, 38 Outro líder
carismático que usou um chifre em um ritual iniciático, além de galinhas mortas, foi Ismael
Reis, morador da Rua Souza Barros, no Engenho Novo. 39 Evans-Pritchard, analisando os
Azandes, destaca o uso de chifres na África Centro-Ocidental como um dos apetrechos
ritualísticos dos ngangas. 40
36
MACGAFFEY, Waytt; HARRIS, Michael D. Astonishment & Power: The Eyes of Unnderstanding: Kongo
Minkisi. Washington: Smithsonian Institut, 1994.
37
Gazeta de Notícias, 02 abr. 1882.
38
MUSEU NACIONAL, RJ. Pasta 21, Doc. 61. 0410411BB2. Primeira Delegacia de Polícia da Corte. Ofício
número 909 de 04 abr. 1882.
39
Gazeta de Notícias, 21 abr. 1893.
40
PRITCHARD, Edward. E. Evans. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande…, 1978, p. 113.
231
Evidentemente, salta aos olhos a presença de patuás, que facilmente podem ser
compreendidos como inquices, que fugiam à compreensão dos que analisavam tais imagens e
só eram capazes de descrevê-las com base em comparações com objetos que remetiam a sua
realidade. Como já destacado em capítulo anterior, a presença do Santo Antônio era constante
em rituais que envolviam, de alguma forma, direta ou indiretamente, heranças centro-
africanas, principalmente levando em consideração que, em 1854, o Correio Paulistano já
compreendia as figuras morfológicas do santo católico, como Santo António feito com o nó-
de-pinho. Isso posto, retomo a hipótese anterior de que a casa de Evaristo Antônio da Costa,
em Niterói, seguia os mesmos princípios das casas dos brasileiros crioulos Laurentino e
Antônio Francisco e do africano benguela Francisco, quanto ao uso das imagens católicas em
seus rituais. Para tal, cabe encontrar um meio termo no tempo, já que a casa da Cidade
Imperial foi exposta à justiça entre os anos de 1859 e 1860, os filhos de Pai Gavião
realizavam com tranquilidade seus rituais nos idos de 1854, e o curandeiro da Glória bem
como o morador da antiga Travessa da Boa Morte eram da segunda metade do século XIX,
passando da década de 1880.
O meio termo encontra-se no ano de 1863, na região de Angra dos Reis, onde ocorreu
o fato que, acredito, seja capaz de conectar todos os rituais até aqui expostos e, por isso,
merece ser transcrito em sua íntegra para melhor comparação. O jornal O Paiz, do Maranhão,
intitulado um periódico “Catholico, litterario, comercial e noticioso”, destacou em negrito,
como de costume em outras regiões, o título Feitiçaria, e descreveu:
Lê-se na Lyga Constitucional de Angra dos Reis: - Ha nesta cidade uma associação
de negros que ocupam suas horas vagas em confeccionar malefícios, ha dias,
porém, foram sorprehendidos pela auctoridade policial com a boca na botija.
Achavam-se reunidos em uma casa em S. Bento em torno de uma panella que tinha
a cosinhar diversos ingredientes, e entre estes uma imagem de Santo Antonio!
Quando a auctoridade policial chegou por denuncia que lhe foi dada já haviam-se
escapado a maior parte desses feiticeiros: tendo sido apenas um; tem sido porém
presos outros pelas confissões havidas.
Em poder do sr. delegado acha-se um sacco que foi encontrado com diversas raízes
e hervas venenosas, além de um Crucifixo, uma opa de S. Benedito, etc. 41
41
O Paiz (MA), 28 ago. 1863.
232
autoridades buscavam flagrar cerimônias em andamento, visando recolher provas que
evidenciassem os delitos cometidos. Dessa forma, descortina-se uma cerimônia dentro de um
espaço litúrgico, como os demais analisados até aqui, e que, mais uma vez, era
compreendidos apenas como casa, moradia. O fato de haver no centro do espaço uma panela
com diversos ingredientes conecta-se com os casos vistos, em que uma vasilha contendo
objetos fazia parte do culto, no caso de Evaristo Antônio da Costa, chamado de gongá. A
cena em muito faz lembrar as sessões curativas de Niterói ao longo do ano de 1859. Destaco
novamente a figura de Santo Antônio, que ali estaria provavelmente como Ntoni Malau. A
esta altura, não só é possível afirmar que a casa do curandeiro Evaristo tinha imagens
católicas, como o Santo Antônio, e que eram necessárias para práticas ritualísticas, assim
como a presença da panela, na qual eram depositados todos os tipos de ingredientes utilizados
na cerimônia.
As “panelas”, “gongás”, “potes”, entre outros utensílios, presentes em todas as casas
destacadas até aqui, não serviam como meros recipientes para conduzirem ervas e outros
preparos fitoterápicos, mas elas mesmas eram encantos, ou seja, inquices, verdadeiros
condutores, via nganga ou curandeiro, a estabelecer contato entre vivos e mortos. Karl
Laman destacou, em um capítulo dedicado à compreensão dos objetos mágicos, que estes
tinham diversas possibilidades:
42
LAMAN, Karl. The Kongo, 4 v. Uppsala: Studia Ethnographica Upsaliensia, 4, 1962, p. 67. v. III.
43
LAMAN, Karl. The Kongo, … 1962, p. 68. v. III.
233
No meu país, existe um inquice chamado Na Kongo, um inquice da água com poder
de afligir e curar; outros inquices também têm esse poder. Eles recebem esses
poderes por composição, conjuração e consagração. Eles são compostos de terras,
cinzas, ervas e relíquias dos mortos. Eles são compostos para aliviar e beneficiar as
pessoas e obter lucro. Eles são compostos para visitar consequências sobre ladrões,
bruxas, aqueles que roubam por feitiçaria e aqueles que abrigam poder de bruxaria.
Também para oprimir pessoas. Estas são as propriedades de inquices, causar
doenças em um homem e também removê-las. Destruir, matar, beneficiar. Impor
tabus às coisas e removê-las. Cuidar de seus donos e visitar retribuição sobre eles. O
caminho de todo nkisi é o seguinte: quando você o compôs, observe suas regras
para que não se irrite e o castigue. Não conhece piedade. 44
Kavuna Simon destaca que os inquices exercem poderes tanto para aflição quanto
para a cura, papel analisado aqui. Entretanto, se a doença era causada pela feitiçaria, esta
poderia perfeitamente partir da ação de um habilidoso conhecedor da confecção dos encantos,
e destiná-lo para atacar alguém. Entretanto busco compreender aqui as “panelas” e “gongás”
dos curandeiros, que, segundo testemunhas oculares dos rituais de Evaristo Antônio da Costa,
ao serem aproximadas dos enfermos, estes caíam em estados de “sonambulismo”. Na
verdade, seguia-se a incorporação, momento em que um parente falecido interferia
diretamente na vida do vivo. A composição de um inquice ajuda a esclarecer como estes
seriam agentes condutores que permitiriam a ligação com os dois mundos. Segundo Kavuna,
tais encantos eram preparados com “terras, cinzas, ervas e relíquias dos mortos”. Ervas não
faltaram em nenhuma experiência analisada até aqui, e, no que tange a relíquias dos mortos,
não acredito terem os agentes da lei, tampouco os profissionais da imprensa que se
dedicavam a participar e cobrir tais casas para auxiliarem as autoridades policiais ou
simplesmente cobrarem delas uma ação, conhecimento para identificar algo que remetesse a
uma parte de um finado, como visivelmente presenciado por Cavazzi nos idos do século
XVII. E, como já destacado no capítulo anterior, tanto em solo centro-africano como em
terras brasileiras, os cultos sofriam adaptações ao que acredito ser uma real necessidade de
enquadramento às leis impostas.
Todavia existem fortes indícios para se acreditar que relíquias dos falecidos fossem
utilizadas ou até mesmo práticas abominadas pela legislação colonial e, principalmente,
imperial, marcada pela ampla influência da Igreja Católica. O naturalista alemão Georg
Wilhen Freyreiss, já apresentado, responsável por presenciar e imortalizar os rituais dos
recém-chegados africanos no Valongo, confundindo-os com uma simples diversão e
distração, escreveu tentando mostrar, além de sua visão de mundo que o fazia enxergar
escravizados como orangotangos, uma visão alarmante de segurança para os donos e
44
MACGAFFEY, Waytt; HARRIS, Michael D. Astonishment & Power: The Eyes of Unnderstanding,…, 1994,
p. 21, grifos meus.
234
senhores escravistas ao longo do século XIX. Ele relatou que, no ano de 1813, “na
proximidade do Rio de Janeiro”, vários escravos tinham assassinado seus senhores e
misturado o sangue destes com a tão falada água ardente, e naturalmente bebido. 45 Ou seja,
existiam aqueles que utilizavam instrumentos que em muito poderiam se aproximar das
relíquias dos falecidos, necessárias nas cerimônias de contato com o outro lado do mundo.
Isso posto, acredito que os “potes” e “gongás” utilizados em várias cerimônias afro-
cariocas eram compostos por elementos semelhantes ou próximos aos apresentados por
Kavuna, em suas descrições ao missionário Laman e, dessa forma, seriam canais
comunicativos com a intensa relação desejada entre o mundo dos vivos e dos mortos. Cabe
lembrar que, na cerimônia comandada por Evaristo Antônio da Costa, os espíritos dos
parentes falecidos tomavam o corpo do enfermo após se aproximar do gongá, repleto de
ervas e preparos. Dessa forma, acredito ser o artefato contendo preparo um inquice,
responsável pela conexão entre os dois mundos, já que o fato de se aproximar interligava o
médium e o doente com sua parentela falecida. Os artefatos aqui analisados em muito se
aproximam da forma de contato com o sobrenatural relatada pelo médico alemão George
Tams ao descrever as figuras de inquices em solo centro-africano, que o autor chamou de
manipansos, o que contribuiu para que eu entendesse a nomenclatura do século XIX,
principalmente para a região do Rio de Janeiro. 46
Observando barqueiros cabindas responsáveis por sua locomoção, George Tams,
enquanto fazia suas observações, teve sua atenção voltada para o uso de pequenas estatuetas
que traziam durante o dia, por baixo de suas roupas, e que, diversas vezes, usavam tais
objetos para fazerem seus rituais, destacando que “se colocavam em posição de súplica”
diante dos pequenos manipansos. À tarde, com a diminuição das atividades, os barqueiros
cabindas colocavam-se abaixo do tombadilho e ali, segundo Tams, começavam as cerimônias
de súplicas e adivinhações. 47 A descrição das imagens não me deixam dúvidas de que se
tratava da mesma lógica morfológica e litúrgica na composição das utilizadas nas cerimônias
45
FREIREYSS, Georg Wilhen. Viagem ao interior do Brazil nos annos de 1814 – 1815. Revista do Instituto
Historico e Geographico de São Paulo. 1906. São Paulo, Typographia do Diário Official, 1907, p. 225. v. XI,
46
POSSIDONIO, Eduardo. Entre ngangas e manipansos – a religiosidade centro-africana nas freguesias
urbanas do Rio de Janeiro de fins do oitocentos (1870-1900). Salvador: Sagga, 2018.
47
TAMS, George. Visita às possessões portuguezas na costa occidental d’Africa. Porto: Typographia da
Revista, 1850, p. 196. v. 1. Africanos cabindas no Rio de Janeiro do Oitocentos por diversas vezes lançaram
mão de seus conhecimentos para trabalharem. Um bom exemplo é que vários barqueiros eram dessa
procedência. Ver: BEZERRA, Nielson Rosa. Mosaicos da escravidão: identidades africanas e conexões
atlânticas do Recôncavo da Guanabara (1780-1840). Tese (Doutorado em História) - Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia, Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, UFF, Niterói,
RJ, 2010, p. 106-123.
235
do Sudeste analisadas por Slenes, bem como os diversos exemplos que encontrei relativos a
casas religiosas do Rio de Janeiro da segunda metade do Oitocentos, conhecidas como casas
de dar fortuna. O médico alemão apresentou os manipansos como pequenos bonecos de
forma humana. O boneco era esculpido “em pau miseravelmente, e coberto de sórdidos
farrapos”, 48 o que em muito se aproxima da descrição dos inquices analisados e catalogados
por Laman, com seus corpos cobertos por tecidos. Contudo destaco que a busca pelos
registros do médico alemão está aqui voltada para a compreensão do uso do gongá como um
inquice, receptáculo dos espíritos e canal de comunicação entre os vivos e os mortos, tudo
com a condução de um nganga.
A cerimônia realizada abaixo do tombadilho consistia em pegar um copo de água
ardente, beber alguns goles e, com a boca, borrifar a estatueta. Após esses gestos, os cabindas
aproximavam a boca e os ouvidos na barriga do manipanso, exatamente onde era colocado o
bilongo e protegido com o espelho. Tams não compreendeu as palavras ditas pelos barqueiros
ao dialogarem com as estatuetas, mas compreendeu que buscavam respostas com esses
gestos:
48
TAMS, George. Visita às possessões portuguezas..., 1850, p. 197. v. 1.
49
TAMS, George. Visita às possessões portuguezas..., 1850, p. 197. v. 1.
50
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 16. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional. Depoimento de José Rodrigo Galvão.
236
entidades, a ligada à vida e à respiração, chamada de vuumunu, seguida do mooyo, o corpo
carnal, que necessita de energia, alimento, entre outros elementos, para se manter de pé. Para
a região Norte, destaca-se kivuumunu (respiração ou vida), que é uma derivação do verbo
vuumuna (respirar, viver), usado alternativamente como muvuumununu (espírito ou
respiração). Outras expressões, mwela (respiração), mpeeve (espírito, vento) e nsala (alma,
princípio da vida),51 kivuumunu é responsável pela vida do homem, por ela se está vivo, só
não está presente nos cabelos e nas unhas.
Acredito que a proximidade metafórica entre espírito e respiração, já explorada por
Slenes e MacGaffey, estivesse em uma mesma esfera de compreensão entre aproximar o
nariz de um inquice, respirar e, a partir daí, iniciar a incorporação, ou seja, puxava-se o que
Laman identificou como muvuumununu. E o próprio missionário fornece bons indícios que
reforçam a ideia de que o gongá de Evaristo continha um espírito:
O local da vida está no coração e por todo o corpo, mas o nsala e a sombra pode
morar em qualquer lugar: em uma casa, em uma panela ou cabaça ou com um
nsimbi numa montanha rápida, ou barranco. Esses lugares são escolhidos pelos
mortos para manter seu nsala, porque, quando alguém morre, o nsala desaparece
primeiro e apenas a concha (vuvudi) permanece. 52
Laman destaca que a nsala, ou seja, o espírito pode ocupar qualquer lugar, incluindo
panelas e cabaças, portanto reforço que existiam plenas condições, seguindo a gramática
cultural e religiosa trazida por centro-africanos para o Brasil até o século XIX, para que estes
acreditassem que uma panela de barro contendo os preparos necessários recebesse um
determinado espírito invocado, transformando o pequeno recipiente em um inquice, e como
tal, ele seria o responsável pala conexão entre os dois mundos, buscando seus ancestrais.
A realidade de Evaristo Antônio da Costa, em 1859, em muito se aproxima, até aqui,
das vividas dentro da casa de Laurentino Inocêncio dos Santos e de casas como a de
Francisco Firmo, africano que liderava uma celebração iniciática do kimpasi, além das
celebrações presididas por Antônio Francisco, repletas de vasilhas pelos cantos do quarto
preparado por Maria José Cordeiro. Dessa forma, é possível uma maior aproximação com
uma já referida casa na Vila de São João de Itaboraí, liderada por Claudio Alves Pacheco e
Anna Luiza Bernarda do Nascimento, e não somente por escolhas litúrgicas, mas também por
recorte temporal, já que os referidos líderes religiosos foram surpreendidos pela justiça no
ano de 1881. Assim, estão, de certa forma, conectadas com a casa do antigo Beco da Boa
51
LAMAN, Karl. The Kongo, …1962, p. 1-2. v. III.
52
LAMAN, Karl. The Kongo, …1962, p. 1-2. v. III, grifos meus.
237
Morte, com a Ladeira dos Guararapes, antigo Pendura Saia, na casa de Laurentino Inocêncio
dos Santos, e bem mais próxima das cerimônias realizadas na estalagem da portuguesa Maria
José Cordeiro, na Rua do Lavradio, pelos pretos Leopoldo, Jacinta e Antônio Francisco, no
ano de 1899. Itaboraí era voltada para o cultivo do café e da cana, recebera o título de Vila
graças a tais desenvolvimentos, e, por essas questões, a presença centro-africana era
constante na região. Por isso, influenciou a composição do sagrado não somente no
Oitocentos aqui analisado, mas ao longo de todo o período escravista em constante contato
com a costa africana, em que os portos da África Centro-Ocidental sempre exerceram
proeminência quanto à oferta oferecida aos traficantes brasileiros.
A denúncia contra os líderes religiosos de Itaguaí chegou às mãos das autoridades
respaldada pelo Código de Processo Penal de 1832, em seu art. 74, incisos 1º e 4º, segundo o
qual uma queixa e/ou denúncia competia a qualquer um do povo ou ao promotor público. 53
Nesse caso, foi feito por esse último, utilizando como base o já exposto art. 264, do Capítulo
II do Código Penal do Império de 1830, que, em seu inciso 4º, versava sobre o estelionato.
Os denunciados foram “Anna Luiza do Nascimento, o preto Felippe, Claudio Manoel
Pacheco, e Antônio Luis Manoel”,54 presos na casa da Rua Montevidéu, em flagrante,
segundo entendiam as autoridades que conduziram todo processo. Acusados, como de
costume, por “empregarem atos ilícitos” e pela aplicação do “tráfico de feitiçaria e
sortilégios, applicando beberagens a fins de produzir abortos o outros fins…”55 O inquérito
policial, coordenado pela Subdelegacia de Itaboraí, apresentou o flagrante, presidido pelo
tenente José Frederico de Paula Antunes, o que seria uma situação comum na maioria dos
casos até aqui descritos e nos demais que estão por vir. O conhecimento parcial do culto era
comum por parte de quem o denunciava e até mesmo de quem o interrompia para levar seus
líderes e participantes à cadeia. Não por acaso, resulta daí a riqueza de detalhes que chegam
aos dias atuais no que tange ao objeto de estudo desta tese, que são as influências centro-
africanas na formação do sagrado afro-carioca.
53
Codigo do Processo Criminal de Primeira Instancia, art 74, § 1 e 4. Disponível em:
1832.htmhttp://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM-29-11-1832.htm. Acesso em: 9 nov. 2019.
54
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 2. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano 1882.
Arquivo Nacional.
55
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 40. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano 1882.
Arquivo Nacional.
238
Imagem 30 - Câmara Municipal da Vila de São João de Itaborahy (1920)
A cerimônia litúrgica ocorria intensamente nos primeiros dias do último mês do ano
de 1881, dia 6 de dezembro, para ser preciso, na casa em que residiam Ana Luiza do
Nascimento e sua filha Silvana. No momento da celebração, estavam também “o dito preto
Felippe, e os pardos Claudio e Amancio, além de Antônio José Leal, e Carlos”. Esse último
teve sua cor branca ressaltada nos autos e surpreendentemente fora chamado de “cidadão”.
Essa, sem dúvida, era uma escolha rara feita pelo escrivão em um momento de inquérito,
pois, em quase todas as situações, o rito oficial era constituído para culpabilizar os
envolvidos, sendo a retirada da cidadania uma das estratégias empreendidas para tal.
O Inquérito Policial seguiu-se rapidamente após o flagrante do dia 6, todas as
testemunhas compareceram à Câmara Municipal (Imagem 30) para prestarem seus
esclarecimentos ao subdelegado de polícia da Vila de Itaboraí, o tenente José Frederico de
Paula. Ana Luiza não soube informar sua idade, o que era comum para o contexto, apenas
disse ser muito velha, o que permite intuir acerca de sua bagagem cultural religiosa. Obteve
seus conhecimentos litúrgicos em um momento em que era comum o trânsito de centro-
africanos e outros grupos étnicos em sua região de nascimento, a mesma Vila de Itaboraí.
Creio que, para estar à frente da casa, iniciou-se liturgicamente pelas mãos de experientes
56
CASA DE CULTURA Alberto Torres, apud: COSTA, Gilciano Menezes. A escravidão em Itaboraí…, 2013,
p. 134.
239
líderes carismáticos, conforme trabalhado no capítulo anterior. Só após o processo de
renascimento litúrgico e a obtenção de experiência, colocou-se à frente de um espaço
litúrgico, que, entre outras atividades, destinava-se à arte de curar. Afirmou ser lavradora,
atividade comum para uma região destinada, a seu tempo, para o plantio do café e da cana-
de-açúcar, e, como de costume para tais inquéritos, não negou suas atividades religiosas, uma
vez que claramente trazia em mente a certeza de não realizar nenhuma atividade ilícita e
muito menos a prática de feitiçaria. Por acreditar não ter nada a esconder, proporcionou à
historiografia uma instigante narrativa de seu culto. 57
Ana Luiza do Nascimento afirmou que fazia com frequência em sua casa reuniões
chamadas de “Quibandeiras”. Não viu problemas em afirmar para o subdelegado que
conduzia as questões do inquérito policial que cobrava para realizar seus trabalhos religiosos,
o que acabou por ser determinante, tanto nessa primeira etapa de depoimentos, ainda no calor
dos acontecimentos, quanto na condução do processo, no mesmo espaço da Câmara
Municipal (Imagem 30), para considerarem tal atividade como crime de estelionato, segundo
o inciso 4º do art. 264 do Código Criminal do Império. A cobrança variava de serviço e da
vontade de cada participante, segundo a líder religiosa, “em dinheiro assim como mil réis
cada um, quinhentos réis e até mesmo vinte réis conforme a vontade de cada um”. Voltando
aos rituais, os valores oferecidos a Ana Luiza eram depositados aos pés de um “Santo
Antônio” que ficava em destaque sobre uma mesa forrada com uma toalha branca.58
A sessão interrompida no dia 6 de dezembro, um domingo pela manhã, tinha por
finalidade “abrandar corações máos”, e, para tal, usava diversas ervas, com destaque para
“raízes da guiné e tinguaciba”, juntas com a “tiririca grande”, que, raspadas e misturadas com
pós e colocadas em uma tigela contendo vinho branco, eram servidas aos participantes.
Depondo no mesmo dia e local que a líder religiosa, Luiz Manoel, de 40 anos, natural da Vila
de Itaguaí, solteiro, e, como a maioria dos envolvidos, também lavrador, apresentou mais
detalhes para os procedimentos ritualísticos de Ana Luiza:
Respondeu que frequenta a casa da referida Anna e que tem visto ella dar não só
raízes raspadas de guiné e tinguaciba e socadas da tiririca grande sob a
denominação de = pembas = aos convidados para beberem dizendo-lhes que servem
para curar dores de barriga e etcetera, assim como tem visto oferecer a outras
57
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 6-6v. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano
1882. Arquivo Nacional.
58
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 3-3v. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano
1882. Arquivo Nacional. Depoimento de Ana Luiza do Nascimento.
240
pessoas para levarem para casa os ditos pós e raspas de raízes, dizendo servir para
abrandar corações de brancos […]59
O preparo feito pela líder religiosa, em que misturava pós com determinadas ervas,
era na verdade a pemba centro-africana, amplamente utilizada nas casas afro-brasileiras e em
todas analisadas até aqui. No culto de Itaboraí, ela era oferecida aos participantes após seu
preparo ritualístico com o vinho branco. Tal uso está totalmente conectado com outras
regiões escravistas do mundo atlântico, impactadas pela presença dos bacongos, ambundos e
ovimbundos. Robert Farris Thompson destacou que, nas tradições metafísicas da arte de
“conjurar e curar com ervas” ligadas aos negros norte-americanos, a palavra de súplica usada
nos trabalhos pelos escravizados do Norte era goofer, significando a poeira do túmulo, que se
conectava intensamente com o morto enterrado no túmulo de onde se retiraria a terra. Lá
também tal elemento era utilizado na fabricação de amuletos. Sobre o Reino do Congo,
Thompson destacou que, na confecção dos amuletos, era ritualisticamente preparada uma
mistura da terra de túmulo com uma porção de vinho de palma, com a finalidade de obter boa
sorte.60
De volta a Itaguaí, Ana Luiza do Nascimento não viu problemas em detalhar as
hierarquias litúrgicas existentes dentro de sua casa nem em apresentar as funções de cada um.
Afirmou que era apenas a “Quibandeira”, e que o preto Felipe era o “Quingongá”, que, para
exercer tal cargo, possuía um “balaio” onde eram depositadas farinha de trigo e açúcar, além
de usar o “tambor” para conduzir as danças, sendo também o responsável pela mesa de
atendimento, que, nas sessões de domingo, ficavam cobertas com uma toalha.
Ao analisar o vasto processo movido contra José Sebastião da Rosa, Gabriela
Sampaio destacou a existência do gongá como uma “pequena cesta” contendo diversos
preparos que foram analisados por médicos e peritos visando enquadrar Rosa no crime de
estelionato.61 Essa autora também destaca que o termo estaria longe do que é utilizado hoje
para denominar altar. Tais observações reformaram minha ideia de que as “panelas” e os
“cestos” funcionavam como recipientes dos espíritos, ou seja, os inquices, pelo fato de
estarem com frequência presente dentro dos espaços litúrgicos do Rio de Janeiro, mas,
principalmente, pela informação prestada pela Quibandeira Ana Luiza do Nascimento, de
que o preto Felipe era o Quigongá, já que este possuía o “balaio”. Assim como com Evaristo
Antônio da Costa, o destaque dado ao “cesto” e, principalmente, ao cargo do preto Felipe
59
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 11v.-12. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano
1882. Arquivo Nacional. Depoimento de Luiz Manoel.
60
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit…, 2011, p. 109.
61
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa: um pai-de-santo na Corte imperial. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2009, p. 183. Ver nota 2 deste capítulo.
241
permite perceber que o objeto era a conexão com o mundo espiritual. Retomo as observações
de Robert Ferris Thompson, ao analisar os inquices nos dois lados do Atlântico, destacando
que o espírito invocado pelo nganga poderia ocupar variados recipientes, entre eles, “vasos
de cerâmica”.
Ao analisar a foto anexada ao processo de Juca Rosa, Gabriela dos Reis Sampaio
destaca que a bolsa presa em sua cintura também poderia ser um inquice, inspirada nas
observações de Wyatt MacGaffey.62 Existe a possibilidade também de pensar em uma
habilidade desempenhada por ngangas em solo centro-africano, os quais eram responsáveis
pelo preparo de cintos que carregavam elementos necessários para o ofício dos líderes
religiosos. Em tempos mais distantes que o de Juca Rosa no Brasil, Cavazzi destacava a
existência dos chamados Nganga ya Xili, responsáveis por criar adornos e principalmente
cintos para outro religiosos, compostos da terra branca retirada do meio da floresta, a pemba,
e que, após proclamar diversas palavras ritualísticas, preparava um unguento com raízes e
ervas que podia conter também ossos e partes de animais sacrificados. 63 Semelhante
descrição feita por Ladislau Batalha para o cinto do quimbanda de Angola, que carregava
uma espécie de mochila com seus ingredientes, “um chifre”, poucas “peles” de animais e as
já descritas madeiras e raízes moídas compondo a pemba. 64
De volta à Vila de Itaboraí, não por acaso, o preto Felipe, que não soube informar sua
idade ao depor, destacou que atendia quem o procurasse, estendendo uma toalha branca sobre
uma mesa e que, para iniciar o atendimento, colocava a “vasilha” com pós, raízes de guiné e
vinho, dando por vezes de beber às pessoas que consultava. Junto à mesa, existia uma
imagem de “Nossa Senhora da Penha”, 65 que, creio, exercia ali funções próximas ao do Santo
Antônio na casa de Evaristo Costa, no ano de 1859, ou até mesmo no culto de sua
contemporânea Quibandeira Ana Luiza. Nei Lopes, em sua Enciclopédia brasileira da
diáspora africana, apresenta o gongá como “Altar de umbanda; recinto onde fica esse altar.
No antigo Reino de Ndongo, a palavra ngonga designava uma espécie de sacrário onde se
guardavam as relíquias da pátria”, 66 o que abre possibilidades para entender os caminhos
percorridos pelos gongás do século XIX, pequenos cestos para serem compreendidos como
altares com diversas imagens católicas, semelhantes aos ricos e alfaiados altares da casa de
62
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa…, 2009, p. 189.
63
CAVAZZI, Antonio. Missione Evangelica, MSS, Manuscrito Araldi. 1667. Livro 1, Capítulo 8. Disponível
em: http://www.bu.edu/afam/faculty/john-thornton/cavazzi-missione-evangelica-2/. Acesso em: 29 jan. 2018.
64
BATALHA, Ladislau. Costumes angolenses…, 1890, p. 30.
65
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 5v.-6. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano
1882. Arquivo Nacional. Depoimento do preto Felipe.
66
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. 4. ed. São Paulo: Selo Negro. 2011, p. 580.
242
Laurentino Inocêncio dos Santos, o que permite intuir que as imagens ali colocadas recebiam
tratamento ritualístico para estarem em local de destaque nos quartos citados nos jornais.
Gabriela dos Reis Sampaio destacou que, ao longo de todo o demorado processo
movido contra o famoso Juca Rosa, nenhuma testemunha destacou seu nome ritualístico ao
durante seu depoimento, entretanto, nas páginas dos jornais e periódico que deram ampla
visibilidade ao caso ao longo dos anos de 1870 e 1871, o líder religioso era constantemente
chamado de Pai Quibombo. 67 Amparada por dicionários ritualísticos de cultos afro-
brasileiros, Sampaio associa o nome ao termo quimbanda, que seria um sacerdote de cultos
centro-africanos, além de ver semelhanças fonéticas com o termo do quicongo nganga. 68
Ao se colocar como Quibandeira, Ana Luiza do Nascimento deixa claro que o termo
era compreendido como um cargo, e, de forma instigante, ele se aproxima fonética e
ritualisticamente do termo usado nos jornais para Juca Rosa, Pai Quibombo. Em muito os
rituais realizados nas casas da corte por Rosa e os de Ana Luiza do Nascimento na Vila de
Itaboraí se aproximam. Por exemplo, pela presença do gongá como um objeto encantado,
preparado como um inquice centro-africano para conectar os vivos com o mundo dos
espíritos, que, ao que tudo indica, seriam os parentes próximos dos que o procuravam, tal
como ocorria na casa de Evaristo Antônio da Costa, vizinho do bairro de Montevideo, em
Niterói. As ervas, manipuladas ritualisticamente e adicionadas à pemba, terra sagrada que
conectava o mundo dos mortos e, segundo Laman, necessária em todas as confecções de um
inquice, os tambores, os cantos, as danças e as incorporações conectam, até aqui, semelhantes
cerimônias responsáveis por encontrar lenitivos físicos e espirituais para os participantes. Isso
permite pensar em um estruturado complexo de crenças, sendo continuado por brasileiros
iniciados nos cultos por velhos conhecedores das práticas religiosas e, em muitos casos,
africanos que, até 1850, desembarcavam como escravizados no Sudeste brasileiro.
Contudo, em um período em que já se naturalizava na corte chamar lideranças
carismáticas de Pais e Mães de Santo, como demonstrado nos capítulos anteriores, é
interessante destacar a semelhança não só fonética, mas de cargo e ritos entre Ana e Rosa.
Luiz Mott reuniu uma série de documentos oriundos do Tribunal do Santo Ofício,
encontrados atualmente no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, tratando de feiticeiros em
Angola e no Brasil, desde os primórdios da colonização portuguesa no Novo Mundo até o
século XVIII. Tal trabalho começa apresentando os Quimbandas em Angola e no Brasil, no
que Mott acreditou ser o primeiro registro de práticas religiosas centro-africanas captadas
67
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa..., 2009, p. 184. Ver nota 4.
68
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa…, 2009, p. 198.
243
pela visitação do Santo Ofício na Bahia, em 1591, quando Francisco Manicongo, que era
sapateiro e escravo de Antônio Pires, morava próximo à Misericórdia, em Salvador, e foi
denunciado por um cristão velho português. 69 O promotor descreveu que:
[…] tem fama entre os negros desta cidade que é somítigo e depois de ouvir esta
fama, viu ele com um pano cingido, assim como na sua terra do Congo trazem os
somítigos. Mais disse que ele denunciante sabe que em Angola e Congo, nas quais
terras tem andado muito tempo e tem muita experiência delas, é costume entre os
negros gentios trazerem um pano cingido com as pontas por diante que lhe fica
fazendo uma abertura diante, os negros somítigos que no pecado nefando servem de
mulheres pacientes, aos quais chamam na língua de Angola e Congo quimbanda,
que quer dizer somítigos pacientes. 70
69
MOTT, Luiz. Feiticeiros de Angola e do Brasil na Inquisição portuguesa. Comunicação apresentada no
Seminário Interdisciplinar NZILA KUNA ZAMBI: AS TRADIÇÕES RELIGIOSAS DE ORIGEM BANTU
NA BAHIA, Salvador, Casa de Angola na Bahia, 2-4 mar. 2005. Agradeço a Luiz Mott o envio desses
documentos e de outros trabalhos seus por e-mail, bem como por toda conversa trocada logo no início da
caminhada, ainda no tempo do mestrado. Texto publicado em: MOTT, Luiz. Feiticeiros de Angola e do Brasil
na Inquisição portuguesa. MNEME – Revista de Humanidades, v. 11, n. 29, jan./jul. 2011.
70
Primeira Visitação, Denunciações da Bahia, p. 406-407. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, apud MOTT,
Luiz. Feiticeiros de Angola e do Brasil na Inquisição portuguesa…, 2011, p. 2.
71
CAVAZZI da Montecúccolo, João Antônio. Descrição histórica dos três reinos do Congo, Matamba e
Angola (1687). Livro Segundo. Tradução, notas e índices pelo Pe. Graciano Maria de Leguzzano. Lisboa: Junta
de Investigação do Ultramar, 1965, p. 201.
244
funções curativas do quimbanda, ressaltando que nem todos se dedicavam ao que se
compreendia como práticas nefastas, mas que “alguns eram médicos que curavam as
pessoas”, e que, quando se preparavam para atuação, usavam “vestes como um Pontífice”
compostas por peles de animais, além de trabalharem com pequenos sinos. 72
Creio que o termo quimbanda sofreu poucas alterações nas áreas bacongas e
ambundas até o Oitocentos, e, dessa forma, chegou ao Brasil dos líderes religiosos dedicados
à cura, analisados até aqui. Prova disso é o amparo trazido pelo Dicionário Kimbundu-
Português, de Assis Junior, publicado em Luanda no início do século XX. Ao tratar de tal
liderança religiosa, o autor destacou: Kimbánda. sub. (Ill) Pessoa que trata de doentes.
[Mágico; exorcista; necromante; bruxo] […]. 73 Ou seja, a arte da cura foi e continua a ser
uma das grandes atividades dos quimbandas. Cabe um breve retorno ao século XVII, quando
o capitão Antônio de Oliveira Cadornega, conhecedor dos costumes locais, já que passara
quarenta anos em terras angolanas, também descreveu o ofício dos quimbandas, mas antes de
apresentar com espanto as práticas consideradas sodomíticas, destacou outras funções dos
“feiticeiros e gangas” ambundos, que se aproximam, na longa duração, das escolhas das
casas afro-brasileiras no campo do sagrado e da cura:
[…] consultados por via destes seus privados, suas doenças e afflicções, ao que lhe
dá por tão boas vallias, suas soluções, mostrandolhes ou ensinandolhes paos e
hervas para suas curas; e no que consultão em suas diferenças, lhes diz algumas
couzas, com apparencia de verdade; e com huma madura lhe dá muitas verdes, tudo
afim de os enredar e levar ás suas profundezas. 74
Ou seja, quimbandas do século XVII eram pessoas responsáveis pela busca da cura
para os males físicos, semelhantes às casas do Sudeste brasileiro ao longo do século XIX, que
manipulavam pequenos instrumentos de madeira – e aqui não duvido de que estes eram
encantados, inquices que continham todos os ingredientes necessários para a comunicação
com o outro mundo –, assim como eram os responsáveis pelo sacrifício de animais, tão
presentes nas casas afro-brasileiras, sendo, muitas vezes, utilizados por denunciantes como
um agravante na prática exercida livremente por homens e mulheres no Rio de Janeiro. Além,
é claro, da manipulação das ervas, de modo que misturavam fins ritualísticos com
fitoterápicos, o que muito se aproxima da realidade brasileira. Cabe lembrar que a
72
CAVAZZI, Antonio. Missione Evangelica, MSS, Manuscrito Araldi. 1667. Livro 1, Capítulo 8. Disponível
em: http://www.bu.edu/afam/faculty/john-thornton/cavazzi-missione-evangelica-2/. Acesso em: 29 jan. 2018.
73
ASSIS JÚNIOR, António de. Dicionário Kimbundu-Portugues; linguístico, botânico, histórico e corográfico.
Seguido de um índice alfabético dos nomes próprios. Luanda: Santos [19--], p. 129.
74
CADORNEGA, António de Oliveira. História das guerras angolanas. Tomo III. Lisboa: Agência Geral das
Colônias, [1681]/1940, p. 259.
245
Quibandeira Ana Luiza do Nascimento usava, em suas cerimônias no ano de 1881, folhas
maceradas de tinguaciba (Zanthoxylum tinguaciba) e guiné (Petiveria tetrandra), misturadas
ao pó de pemba, acrescidas de vinho branco, para que seus fiéis participantes bebessem do
lenitivo. Tais plantas não só são utilizadas até hoje em cerimônias ritualísticas de candomblé
e umbanda, como são amplamente anunciadas como chás para os mais variados fins
medicinais na rede mundial de computadores, bastando uma simples pesquisa em sites de
busca atuais para encontrá-los. Ressalto, contudo, que as ervas utilizadas pela Quibandeira já
em seu tempo recebiam amparo na medicina oficial.
Facilmente encontrados em manuais de medicina, comuns no Império, principalmente
na obra do médico polonês Pedro Luiz Napoleão Chernoviz, que desembarcou no Brasil em
1840 e soube se inserir em uma sociedade de corte como o Brasil escravocrata,
compreendendo os códigos de conduta de seu período até mesmo participando como membro
titular da Academia Imperial de Medicina. Escreveu em uma época em que a arte da cura,
como evidenciado até aqui, esteve amplamente dominada por carismáticas figuras religiosas.
Produziu trabalhos voltados para seus pares, como o Formulário e Guia Médico e, para os
leigos em geral, acostumados a buscar lenitivos para seus males, escreveu o Dicionário de
Medicina Popular.75 Na obra dedicada aos leigos, Chernoviz destacou os papéis das ervas
utilizadas pela Quibandeira da Vila de Itaboraí:
75
GUIMARÃES, Maria Regina Cotrim. Civilizando as artes de curar: Chernoviz e os manuais de medicina
popular no Império. 2003. Dissertação (Mestrado em História das Ciências e da Saúde) - Fundação Oswaldo
Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003.
76
CHERNOVIZ, Pedro L. Napoleão. Dicionário de Medicina Popular. 6. ed. Paris: Casa do Autor. 1890, p.
1087. v. 2.
77
CHERNOVIZ, Pedro L. Napoleão. Dicionário de Medicina Popular. 6. ed. Paris: Casa do Autor.1890, p. 750.
v. 2.
246
Interessante perceber que a tinguaciba combatia febres intermitentes,o que é
reconhecido em guias dedicados a oferecer ajuda oficial para a sociedade brasileira. Os
costumes religiosos curativos analisados até aqui, para os dois lados do Atlântico, evidenciam
o profundo conhecimento que lideranças religiosas precisavam apresentar, visando à busca
pela eficácia. É fato que Laurentino Inocêncio dos Santos não atuaria com a mais profunda
desenvoltura, cobrando 300$ para tratamento, ou 12$ para uma simples consulta, por tanto
tempo, sem que oferecesse ao longo de, no mínimo doze anos, o refrigério para quem o
procurasse. 78 Vale lembrar que, aos pés de Santo Antônio, Ana Luiza recebia quantias por
seus serviços que variavam de acordo com a vontade de cada um.79 Ou seja, tinham expertise
no manuseio das ervas e, principalmente, conhecimento de seus efeitos fitoterápicos, cabendo
aqui dois questionamentos: até que ponto contribuíram para a produção de manuais
semelhantes ao Chernoviz? E até que ponto suas atividades incomodavam os meios oficiais?
Um grupo de operários da região de Bangu, à época pertencente à freguesia de Campo
Grande, estiveram, não de forma diferente dos demais, envolvidos com as autoridades
policiais no ano de 1900, final do século XIX. O flagrante policial no dia 27 de outubro
desvendou mais uma casa afro-carioca destinada ao lenitivo dos males espirituais e físicos.
Maria Elídia dos Santos, de 27 anos, conhecida como Dona Mariquinha nos momentos da
cerimônia, seu marido, o português Abílio da Silva, com 28 anos, Manoel Joaquim Faria,
Ana Pereira da Silva e Rita Maria da Conceição foram presos em flagrante, além de outras
testemunhas. Na presença do escrivão e de demais autoridades, descreveram objetos, cenas e
rituais importantes para serem cruzados com as demais situações analisadas até aqui. 80
As celebrações realizadas pelos operários em Bangu destinavam-se principalmente à
cura dos males físicos, como ficou claro com a prisão efetuada em flagrante pelo inspetor
responsável pelo quarteirão, João Onofre de Souza, que conduziu os participantes à presença
do subdelegado, afirmando que, na reunião, os participantes “[…] prescrevião como meio
curativo diversas substâncias empregando raízes e outras cousas estando na ocasião usando,
digo na ocasião da prisão usando de talismans […]”. 81
A casa era liderada por Maria Elídia dos Santos, conhecida entre os participantes
como Dona Mariquinha. Era jovem para os padrões do cargo, tinha 27 anos e era natural do
78
Gazeta de Notícias, 01 jan. 1891.
79
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 3-3v. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano
1882. Arquivo Nacional. Depoimento de Ana Luiza do Nascimento.
80
Processo de Manoel Joaquim Faria. Fundo CT 6ª Vara Criminal, Caixa 1960, Pacote 855, artigo 157. Ano
1900. Arquivo Nacional.
81
Processo de Manoel Joaquim Faria, p. 2v. Fundo CT 6ª Vara Criminal, Caixa 1960, Pacote 855, artigo 157.
Ano 1900. Arquivo Nacional.
247
Pará. Ao seu lado, identificado como corresponsável pela casa e dono dos instrumentos
utilizados no culto, estava Manoel Joaquim de Faria, com 40 anos, natural de Arrozal de São
Sebastião, interior do Rio de Janeiro. Saltaram aos olhos das autoridades envolvidas na
questão, bem como de todas as testemunhas, os objetos existentes dentro da casa e que eram
manipulados para se chegar ao refrigério dos males físicos. Foi encontrada grande quantidade
de raízes com as quais eram preparados os remédios, função que ficava a cargo das mulheres,
segundo depoimento do operário morador de Bangu Manoel Bernardo, de 23 anos. As que se
dedicavam ao ato litúrgico colocavam as mais variadas ervas e raízes em potes de vidros, que
eram preparados sobre uma grande tábua, que recebia traços e riscos de giz em forma de
cruz. 82 Completavam o cenário canecas com pedras e águas em seu interior, “comidas com
areia e penas de galinha”, além de diversas “facas cravadas ao chão”. 83 Os depoentes também
deram destaques à presença de “vários santos”, o que permite lançar luz sobre os copos com
objetos existentes na Rua do Lavradio, em 1899, manipulados por Leopoldo, Jacinta e
Antônio Francisco, e em muito conecta as casas analisadas até este ponto, além de se
conectar à casa da Ladeira dos Guararapes, na Glória.
Os dois quartos existentes na casa de Laurentino permitem compreender a figura dos
santos católicos dentro das demais casas, já que os relatos da Gazeta de Notícias e do Jornal
do Commercio, ambos de 1878, apresentam as disposições em que tais imagens se
encontravam dentro dos espaços afro-cariocas. Os cômodos foram descritos como “vistosos e
ricamente alfaiados altares com imagens de diversas invocações”, 84 o que deixa evidente que
a disposição empregada seria semelhante a de uma igreja católica, mas contendo uma
quantidade maior de objetos, já que a coluna da Gazeta de Notícias destacou que não
condiziam com o “sacro luxo, outros objetos que ahi se encontram”. 85 O Jornal do
Commercio apresentou maiores detalhes acerca dos quartos:
82
Processo de Manoel Joaquim Faria, p. 3-3v. Fundo CT 6ª Vara Criminal, Caixa 1960, Pacote 855, artigo 157.
Ano 1900. Arquivo Nacional.
83
Processo de Manoel Joaquim Faria, p. 2-2v. Fundo CT 6ª Vara Criminal, Caixa 1960, Pacote 855, artigo 157.
Ano 1900. Arquivo Nacional. Todos os depoimentos foram recolhidos no mesmo dia e local, e todos
confirmaram a existência dos mesmos objetos litúrgicos presentes na casa.
84
Gazeta de Notícias, 26 mar. 1878.
85
Gazeta de Notícias, 26 mar. 1878.
86
Jornal do Commercio, 26 mar. 1878.
248
A casa da Glória conecta-se com a da freguesia de Campo Grande, bem como as
demais apresentadas em Niterói. O espaço litúrgico de Laurentino também era repleto de
objetos ligados à fitoterapia, e, assim como nas demais cerimônias, os remédios eram
depositados em vidros e colocados à disposição dos participantes e fiéis. Cruzando com o
modo de preparo conduzido por Dona Mariquinha e demais mulheres comandadas por ela,
vê-se que os potes eram depositados sobre uma madeira e ali recebiam “riscos de giz em
forma de cruz”.
Em entrevista com Fu-Kiau Bunseki, Robert Ferris Thompson comentou sobre os
chamados “pontos riscados” e “pontos cantados” nas religiões afro-americanas, com destaque
para Cuba e Brasil, principalmente na umbanda carioca. Entre os bacongos, a pemba, giz
branco feito com material retirado das florestas ou cemitérios, ou seja, a terra dos mortos, é
usada para conexão com o sagrado, 87 a mesma utilizada pela Quimbandeira Ana Luiza em
Niterói e pelo Pai Quimbombo Juca Rosa, na freguesia do Sacramento, quando serviam pós
raspados de raízes como a tinguaciba e outros ingredientes, misturados com vinho branco e
demais bebidas alcóolicas. O participante da celebração da Quimbandeira, Luiz Manoel, em
seu depoimento na Câmara Municipal, destacou que a substância preparada por Ana Luiza e
servida aos participantes tinha por nome, “pemba”.88 Ou seja, o objeto ritualístico ganhava
diversas funções ao longo da cerimônia.
No que se refere aos pontos riscados e cantados, Farris Thompson destacou que, em
centro-africanos, o ato de cantar e desenhar no chão ou em objetos significava a própria
presença de Deus sobre os objetos. Em El Monte, Lydia Cabrera coletou importantes
depoimentos sobre as regras congas afro-cubanas. Destacam-se as possibilidades de
aproximação e compreensão dos rituais sagrados afro-brasileiros e suas conexões atlânticas.
O inquice Sarabanda, quando invocado por fiéis e líderes religiosos, só se manifestava
mediante os riscos de cruzes no chão feitos com a pemba e palavras proferidas em quicongo,
corroborando os costumes de “riscar e cantar o ponto”:
Abaixar a trouxa era uma operação tediosa e delicada: “[uma sacola] era amarrada
no teto; era enorme e pesava muito”. Juan O'Farril lembra claramente todas as
canções que acompanhavam a descida da trouxa sagrada. Ele, com seu assistente e
sua madrinha, varriam o chão cantando, [ ... ] até que o chão estivesse imaculado e
pronto para receber a trouxa sagrada. O sacerdote pedia pelo giz (mpemba) e
87
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit: arte e filosofia africana e afro-americana. São Paulo: Museu
Afro Brasil, 2011, p. 113-114.
88
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 11v.-12. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano
1882. Arquivo Nacional. Depoimento de Luiz Manoel.
249
traçava a cruz-dentro-do-círculo, a “assinatura” no ponto preciso onde a trouxa
sagrada deveria tocar o chão.89
89
CABRERA, Lydia. El Monte: notas sobre las religiones, la magia, las superticiones y el folklore de los negros
criollos y el Pueblo de Cuba. Miami, Florida: Ediciones Universal, 2000, p. 127, apud RFT p. 114.
90
Processo de Manoel Joaquim Faria, p. 2. Fundo CT 6ª Vara Criminal, Caixa 1960, Pacote 855, artigo 157.
Ano 1900. Arquivo Nacional. Todos os depoimentos foram recolhidos no mesmo dia e local e todos
confirmaram a existência dos mesmos objetos litúrgicos presentes na casa.
91
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit: arte e filosofia africana e afro-americana. São Paulo: Museu
Afro Brasil, 2011, p. XXX.
250
Ogum/São Jorge analisado pelo autor no Museu da Polícia no Rio de Janeiro demonstra que
várias foram as possibilidades de conexão com o sagrado, via representação do contato entre
vivos e mortos pelo traços da cruz. A seda verde lima recebeu em linhas vermelhas um
bordado em forma de encruzilhada.92 Essa constatação da primeira metade do Novecentos
permite lançar ainda mais luz sobre a casa de Evaristo Antônio da Costa, na Imperial Cidade
de Niterói. Já demonstrei que, em seu espaço litúrgico, os fiéis eram atendidos no centro do
salão, onde ervas eram dependuradas, com destaque para o melão-de-são-caetano. Segundo o
lavrador Francisco Antônio dos Santos, uma das testemunhas do processo, existia na casa
uma cruz, também esverdeada, pintada sobre uma esteira, onde os participantes eram
colocados antes de terem o gongá aproximado de suas narinas, seguido da incorporação. 93
Acredito que a disposição da cena conecta-se com a realidade descrita pelo informante de
Lydia Crabrera para Cuba, já que a esteira era cuidadosamente posicionada no centro da sala,
local exato em que Evaristo apresentava a medicina sagrada para seus fiéis e estes recebiam
os espíritos de seus parentes já falecidos. Portanto a conexão com o sagrado dava-se
exatamente sobre o ponto riscado, que representava a conexão entre Deus e o os homens, o
mundo dos vivos interagindo com o dos mortos e sofrendo diretamente suas observações. 94
Laurentino mantinha diante de seus altares duas cadeiras com grandes cruzes em seu
encosto, 95 demonstrando as mais variadas possibilidades de se reinventar a representação do
entendimento de mundo carnal e espiritual. A Gazeta de Notícias oferece maiores detalhes
dos dois acentos existentes na casa quando da batida policial em 1878: “Quanto aos moveis
ha duas cadeiras de grandes dimensões, das costas de uma das quaes se eleva uma cruz e da
outra está bordada a mesma cruz”. 96 A ideia de cruz bordada permite intuir o cuidado
ritualístico necessário para compor sua cenografia, ou seja, riscando e cantando o ponto,
marcando o acento em que provavelmente as consultas eram dadas. Dessa forma, a conexão
com os sagrado era de suma importância, principalmente se levada em consideração sua
necessidade de incorporação, visando apresentar soluções medicinais para seus fiéis.
Além das já descritas ervas, moringas com líquidos, búzios e rosários aproximavam a
casa da Ladeira dos Guararapes das demais analisadas até aqui, com forte influência centro-
africana. É possível afirmar que, em seu espaço litúrgico, a pemba era utilizada ao longo dos
92
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit…, 2011, p. 119-120.
93
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 6-6v. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional, grifos meus.
94
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 8-8v. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional. Depoimento de Francisco Antônio dos Santos, grifos meus.
95
Jornal do Commercio, 26 mar. 1878.
96
Gazeta de Notícias, 26 mar. 1878, grifo meu.
251
rituais de cura e, assim, buscava a conexão com o mundo dos mortos, o local marcado pela
presença da terra branca dos falecidos:
A prisão de Laurentino, ocorrida em 1879, foi feita pela diligência policial chefiada
pelo Dr. Francisco Corrêa Dutra, o mesmo que esteve à frente da atuação no mês de março do
ano anterior. A Gazeta de Notícias destaca praticamente os mesmos objetos da primeira
ocorrência, acrescidos do que chamou de pós, o que, a esta altura, não me deixa dúvida de
que se tratava da pemba centro-africana, há tempos já produzida ritualisticamente em solo
brasileiro e que sempre esteve presente no espaço de Laurentino, apenas ganhado a conotação
de “bugigangas” nas notícias de dez meses anteriores. E se vasilhas existiam com a presença
de pontos riscados, raízes e pemba, é possível afirmar que os remédios oferecidos pelo
curandeiro da Glória eram na verdade inquices, ou seja, medicinas sagradas, em que,
mediante sua expertise, depositava sobre cada substância os espíritos necessários que
permitissem alcançar a cura dos males físicos e o fim das aflições dos que o procuravam.
Quando Laurentino teve seu culto profanado pela polícia e por dois importantes
veículos de comunicação do período em 1878, além de ser acusado de enganar a credulidade
pública por comandar uma casa de dar fortuna, um modo pejorativo de associar as casas
afro-cariocas ao estelionato do Código Penal de 1832, acabou acusado pelo Jornal do
Commercio de estar preparado para resistir à invasão policial ou de qualquer outra autoridade
que questionasse suas atividades religiosas. Isso porque, em razão do recolhimento de vários
objetos por ordem do subdelegado da freguesia da Glória, Dr. Corrêa Dutra, entre todos os
artefatos ritualísticos compreendidos como “bugingangas” destacaram-se as “22 facas-
punhaes, 2 canivetes completamente novos e 2 bainhas de metal para facas de ponta”. 98
Não se tratava de artefatos guardados para resistência a prováveis prisões, mas sim
objetos ritualísticos, que nem de longe indicavam ser exclusivas da casa de Laurentino
Inocêncio dos Santos. Cabe lembrar que, em Bangu, na casa frequentada por operários e
liderada por Dona Mariquinha, a diligência policial encontrou diversas facas cravadas no
97
Gazeta de Notícias, 08 out. 1879.
98
Jornal do Commercio, 26 mar. 1878.
252
chão, 99 que, como já destacado, eram rituais voltados também para a cura, tendo como
princípio uma gramática sagrada que dialogava com variadas matrizes, entre elas a centro-
africana, na qual os objetos cortantes ganhavam semelhante destaque. Contudo nem só da
busca da cura viviam as casas afro-cariocas e brasileiras como um todo. Diversos foram os
motivos que conduziram pessoas das mais variadas camadas populares a um desses espaços,
e vários os processos ou inquéritos sofridos por líderes e participantes dos mais variados
cultos ao longo do Oitocentos. Nas cerimônias presididas por Juca Rosa, o Pai Quimbombo,
seu altar, esteticamente semelhante ao de Laurentino Inocêncio dos Santos, continha
“imagens sagradas” sobre uma “toalha de renda”, “havendo ainda no centro do altar uma raiz
com pequenos punhais n’ella cravados em todos os sentidos […]”. E, segundo uma das filhas
de Rosa, Leopoldina Fernandes Cabral, aprendeu com o próprio líder religioso que o
propósito dos punhais cravados era “render os homens”. 100
99
Processo de Manoel Joaquim Faria, p. 2-2v. Fundo CT 6ª Vara Criminal, Caixa 1960, Pacote 855, artigo 157.
Ano 1900. Arquivo Nacional.
100
Processo de Sebastião da Rosa, p. 49 v. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional, grifos
meus. Entre os objetos entregues ao Museu Nacional na década de 1880, sempre figuraram facas, facões e
ponteiros, conforme os materiais enviados pela Secretaria de Polícia da Corte em 23 de agosto de 1880. Ver:
MUSEU NACIONAL, RJ. Pasta 19-Doc 54-23 ago. 1880.
253
alcançar para uns a fortuna para outros a saúde, e a polícia agora profanou […]”. 101 Já o
Jornal do Commercio chamou a atenção para as nove pessoas recolhidas à detenção por conta
da diligência policial:
101
Gazeta de Notícias, 26 mar. 1878.
102
Jornal do Commercio, 26 mar. 1878.
103
Jornal do Commercio, 29 ago. 1884.
104
LMCDC f. 3943, 28 ago. 1884.
254
registrar os que entravam na detenção, conforme a já apresentada Roza Benguela, em cujo
registro, seguindo ao espaço de seu nome a ficha apresentava: “escravo de…”. 105
Escrava ou não, fato é que a ideia de “amansar” permeava o imaginário da classe
senhorial, provocando medo e receio, visíveis em jornais e literatura do contexto. Se não era
um medo real, era, ao menos, usado nas denúncias, nos inquéritos e nos processos, visando
aumentar as possibilidades de condenação dos envolvidos em estelionato no Império e em
curandeirismo e espiritismo na República. Para semelhante questão no campo do sagrado,
João José Reis, debruçado sobre a biografia do africano mina Domingos Sodré, importante
liderança do candomblé baiano no ano de 1860, dedicou um capítulo à ideia que permeava a
mente da elite e das autoridades policiais e judiciais, “amansar senhor”. Objetos furtados de
senhores baianos eram levados, segundo Reis, para as variadas lideranças afro-baianas, que
acabavam por acoitar os escravos fugidos ou necessitados de alguma rápida guarida por conta
das mais variadas situações advindas do cativeiro, além de requererem substâncias advindas
da expertise dos pais e mães de santo para “amansarem” seus senhores. 106 Cabe ressaltar que
esse autor reconhece que a prática não era nova na Bahia da segunda metade do século XIX e
lança mão de exemplos centro-africanos para séculos anteriores no Recôncavo, destacando
que, no século XVII, outro africano também de nome Domingos e sobrenome Umbata, que
remetia à região Mbata do antigo reino do Congo, receitava banhos e infusões de folhas
visando acalmar os ânimos dos senhores de quem o procurasse. No século XVIII, escravos
angolas eram acusados por jesuítas de prepararem remédios para destinarem aos seus
proprietários. 107
Reis, ao focar seu trabalho nas práticas religiosas dos povos iorubás, não descartou a
possibilidade de estes terem dialogado com seus antecessores centro-africanos no que tangia
à farmacopeia forjada nos primeiros contatos entre africanos e ameríndios. Para tal, lançou
mão de fontes que creio inspiradas na realidade do Rio de Janeiro. Não que isso impossibilite
a utilização de uma realidade, para melhor compreender outra região escravista brasileira, até
este ponto do trabalho lancei mão de tal metodologia, e até o final assim permanecerá. Mas
creio que, quanto mais se compreendem as manifestações religiosas de cada região brasileira,
melhor se apresenta o particular, nesse caso, as freguesias do Sudeste brasileiro. Joaquim
Manuel de Macedo, uma de suas fontes, buscou colaborar com a emancipação dos
105
LMCDC (Livro dos Escravos), f. 1296, 25/09/1879.
106
REIS, João José. Domingos Sodré: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do Século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, p. 145.
107
REIS, João José. Domingos Sodré: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do Século XIX. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008, p. 147-148.
255
escravizados no Brasil apresentando o que entendia serem as mazelas e, dessa forma,
prejudicariam seus senhores, sendo dessa maneira, “vítimas algozes”.
Afirmo que a experiência narrada pelo político, médico, jornalista e romancista do
Império no ano de 1869 era baseada nas vivências de rituais praticados na corte, não somente
pelo fato de o autor, em seu segundo capítulo, intitulado “Pai-Raiol o feiticeiro”, destacar que
o evento imaginado para seu romance se deu em um “município de… na província do Rio de
Janeiro”108 nem por começar a narrativa afirmando: “Na cidade do Rio de Janeiro (e quanto
mais nas outras do império!) ainda há casas de tomar fortuna, e com certeza pretendidos
feiticeiros e curadores de feitiços que espantam pela extravagância, e grosseria de seus
embustes”,109 mas, principalmente, pela semelhança com que os rituais narrados por Macedo
se aproximam do que cotidianamente se praticava na corte imperial brasileira e de tudo que
até aqui foi apresentado.
Portanto, antes de lançar mão do que entendeu Macedo como cabedal de Pai Raiol
para manipular a farmacopeia brasileira, cabe circunscrever o universo do “feiticeiro” criado
pelo autor: “O feitiço tem o seu pagode, seus sacerdotes, seu culto, suas cerimônias, seus
mistérios; tudo porém grotesco, repugnante, e escandaloso”.110 A ideia de pagode está aqui
associada aos templos indianos da colônia portuguesa, destinado ao que, na visão dos
cristãos, seriam ídolos. 111 O líder de tal espaço seria, segundo Macedo, um africano ou seu
descendente, portanto crioulo, nascido no Brasil, aprendiz e iniciado no culto em terras
brasileiras, onde presidia as cerimônias nas horas avançadas da noite, às quais compareciam,
segundo as inspirações de Macedo, “pessoas livres e escravas” buscando “curar-se do feitiço,
de que supõe afetados, outros vão iniciar-se ou procurar encantos para o mal que desejam ou
conseguir o favor a que aspiram”. 112
As duas primeiras necessidades aproximam os líderes aqui trabalhados com a
narrativa construída pelo romancista. O medo do feitiço movimentou a cerimônia do kimpasi
na casa do antigo Beco da Boa Morte, liderada pelo africano benguela Francisco Firmo.
Ressalto que tal destaque ganhou notoriedade nas páginas do Jornal do Commercio: “que
tratava de raparigas crédulas, de certas moléstias, a que ele dava o nome de feitiços”,113
idêntico diagnóstico oferecido por Evaristo Antônio da Costa. Vinte e cinco anos antes do
108
MACEDO, Joaquim Manuel. As vítima- algozes. Rio de Janeiro: BestBolso, [1869]/2012, p. 84.
109
MACEDO, Joaquim Manuel. As vítimas-algozes…, [1869]/2012, p. 77-78.
110
MACEDO, Joaquim Manuel. As vítimas-algozes…, [1869]/2012, p. 79, grifo do original.
111
Ver SILVA, Antônio Moraes e. Diccionario da Lingua Portugueza. 7. ed. Tomo II. Lisboa: Thypographia de
Joaquim Germano de Sousa Neves, 1878, p. 395.
112
MACEDO, Joaquim Manuel. As vítimas-algozes…, [1869]/2012, p. 79-80.
113
Jornal do Commercio, 29 ago. 1884.
256
nganga da freguesia de São José, o curandeiro de Niterói afirmava que os males e as doenças
que afetavam seus fiéis eram “devidas a confecção fabulosa denominada feitiço, ou
malefícios”. 114 Ou seja, a atribuição da culpa ao sobrenatural pelos males e benefícios na vida
dos vivos era algo comum nas freguesias urbanas e rurais do Rio de Janeiro, sendo descrita
com naturalidade nas páginas dos jornais e apresentada logo nas primeiras descrições do
culto pelo romancista Joaquim Manuel de Macedo.
Outro ponto que se destaca no início do romance é a compreensão de que, para
frequentar determinados cultos ou se colocar à frente deles, era necessário um processo de
iniciação ritualística, já estabelecida aqui no terceiro capítulo como um ritual frequente nas
casas afro-cariocas, comandadas por africanos minas, centrais e crioulos. A busca por
“encantos” foi o foco de Macedo, ao trabalhar com as mazelas proporcionadas pela
manipulação da ervas por parte de Pai Raiol, e também é o foco deste tópico. Contudo cabe
observar outras evidências que comprovam que, ao pensar a lógica do “feiticeiro”, Macedo
estava pautado em seus conhecimentos sobre o Rio de Janeiro.
Segundo Joaquim Manuel de Macedo, as cerimônias recordavam “as festas selvagens
do índio no Brasil e do negro d’África”, 115 lembrando provavelmente a presença dos
tambores, instrumento conectivos com o sagrado, como demonstrado em todas as cerimônias
ritualísticas trabalhadas até aqui tanto para os cultos públicos como os de domingo no Campo
de Santana, na primeira metade do século XIX, captados pela pena de August Earle (Imagem
29), como para as celebrações realizadas no interior das casas afro-cariocas. Chamo a atenção
para o modelo de líder religioso apresentado no romance, que, já afirmo, em nada difere dos
ngangas analisados nos dois lados do Atlântico. Os adornos feitos com “talismãs rústicos”,
além do que compreendeu como “símbolos ridículos”, e a percepção de que tais sacerdotes e
sacerdotisas eram ornados com “penachos e adornos emblemáticos e de vivas cores” 116
conectam-se amplamente com os usados pelos líderes religiosos nos dois lados do Atlântico,
como os da Imagem 22. Não por acaso, eram esses sacerdotes ricamente paramentados que
conduziam “em danças frenética, terrível, convulsiva, e muitas vezes, como sibila, se estorce
no chão […]” a incorporação feita e comandada pelos ngangas para estabelecer a
comunicação com os parentes falecidos. Em nada, portanto, a descrição de Macedo diferia
dos líderes centro-africanos e crioulos atuantes nas casas do Sudeste brasileiro.
114
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 2. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional, grifos meus.
115
MACEDO, Joaquim Manuel. As vítimas-algozes…, [1869]/2012, p. 80.
116
MACEDO, Joaquim Manuel. As vítimas-algozes…, [1869]/2012, p. 80.
257
Em sua composição literária, sacerdotes também lançavam mão de “beberagem
desconhecida”, “raízes enjoativas”, fumo e defumadores ao longo das cerimônias, além de
nomes para as divindades que deveriam ser invocadas. Outra realidade ritualística das casas
afro-cariocas também foi descrita por Macedo. Era o momento do culto, e, pela proximidade
com as casas reais da corte, merece ser dita pelo romancista:
117
MACEDO, Joaquim Manuel. As vítimas-algozes…, 2012 [1869], p. 80.
118
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 11v.-12. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080, . Ano
1882. Arquivo Nacional. Depoimento de Luiz Manoel.
119
MACEDO, Joaquim Manuel. As vítimas-algozes…, 2012 [1869], p. 83.
258
Joaquim Manoel de Macedo nasceu no ano de 1820, em Itaboraí, região em que,
como já demonstrado até aqui, não lhe faltaria repertório para conhecer costumes religiosos
afro-brasileiros. Não é de se espantar, portanto, que sua narrativa literária em muito se
aproxime do que descreveram inúmeros viajantes que passaram pelas ruas da cidade, e
mesmo sem os detalhes, de que Macedo não abriu mão, as imagens, como já afirmei, eram
corriqueiras, normais entre os transeuntes da urbe. Outro detalhe que convém ressaltar é que,
mesmo não tendo exercido a medicina, é possível perceber nas suas descrições o olhar de um
ex-membro da academia do Rio de Janeiro: “O feiticeiro não é mais nem menos do que um
propinador de venenos vegetais”,120 e, dessa forma, discorre demonstrando os malefícios
causados pela escravidão, contudo não deixa de destacar a gramática de conhecimentos
adquirida ou por africanos ou por aqueles que aqui foram iniciados nas variadas práticas
sagradas. Essa visão corrobora as análises da francesa Adèle ao se mostrar surpresa com os
dotes do negro feiticeiro, que fora capaz de curar um escravo picado por cobra venenosa
usando rezas e folhas maceradas. A viajante ainda contemplou o pronto restabelecimento de
um cavalo, que se encontrava enfermo com miíase, popularmente chamada de bicheira,
também com a utilização de ervas. 121
Evaristo Antônio da Costa, curandeiro de Niterói, que atuava ao longo do ano de
1859, teve que responder aos questionamentos do Comendador Francisco da Fonseca e
Cunha, subdelegado de polícia da freguesia de São Sebastião do Itaipu, na Imperial Cidade de
Niterói. Nos autos do inquérito, Evaristo e seus seguidores, como já exposto, receberam
acusação de curandeirismo, o que os enquadraria no crime de estelionato. Mas ele também
era acusado de acoitar escravos fugidos, prometendo a eles a liberdade,122 além dos banhos
de folhas de algodão recomendados a Manoel Machado, junto com beberagens de “raízes de
outras ervas”. Em 1881, no processo aqui já apresentado para a Vila de São João de Itaboraí,
vizinha de Niterói, Cláudio Alves Pacheco, ao ser chamado para depor na Câmara Municipal
da Vila, no dia 10 de dezembro, disse ao subdelegado de polícia que fazia parte da sessão “a
qual consistia em danças, comidas e bebidas misturadas com pós de diversas raízes” e que
tais reuniões tinham por fim “abrandar corações duros dos brancos”, sendo que “todos
120
MACEDO, Joaquim Manuel. As vítimas-algozes…, 2012 [1869], p. 83.
121
TOUSSAINT-SAMSON, Adèle. Uma parisiense no Brasil. Rio de Janeiro: Capivara, [1883]/2003, p. 134-
137.
122
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 2-2v. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional, grifos meus.
259
aqueles que se achão presentes a ellas concorrem com qualquer retribuição pecuniária que é
offertada á uma imagem [Santo Antônio] collocada sobre uma mesa”. 123
Ressalto que Claudio Pacheco era uma das lideranças da casa, e é evidente que cabe
questionar o momento de depoimento de todas as lideranças do século XIX que se viram em
difícil situação. Pelo fato de não saberem ler e assinarem a rogo pode-se intuir que nem
sempre seus depoimentos eram registrados de acordo com a realidade e que muito pode ter
sido articulado visando desembocar em uma condenação. Cabe aqui um adendo: Laurentino
sabia ler e escrever, fator que provavelmente possibilitou sua maior articulação social,
conforme se verá no próximo capítulo. Portanto Cláudio Pacheco pode não ter afirmado que
visava abrandar os duros corações de branco, aqui, sem dúvida, associados aos senhores de
escravos, já que qualquer escravizado ou livre, nesse contexto, saberia que isso causaria
problemas. Contudo, verdadeiro ou não, onde há fumaça, há fogo, e as desconfianças de
Joaquim Manuel de Macedo não eram infundadas; existia a possibilidade de acalmar o
coração de um proprietário de escravos conforme descrito pela boca de Pai Raiol, que
Emérida deveria ministrar as doses certas do preparo do sacerdote: “uma raíz só faz dormir:
duas sofrer muito: três hão de matar”. 124 Somente depois do amor conquistado, alforrias
garantidas, o senhor deveria sucumbir.
O jovem médico nascido em Itaboraí, como já se sabe, uma região marcada pela
presença africana e que, como todo Brasil, não se furtou aos rituais sagrados, foi um hábil
político brasileiro. Viveu no Rio de Janeiro, tanto que abre o capítulo falando de Pai Raiol, o
feiticeiro, associando o ofício às casas de dar fortuna, maneira como as casas afro-brasileiras
foram amplamente chamadas no Rio de Janeiro do Oitocentos. É interessante notar que
Macedo não lança mão do termo usado na Bahia, candomblé e quando, foneticamente,
aproxima-se do termo, utiliza candombe, presente em outras fontes para o Rio de Janeiro. 125
A própria semelhança de culto narrado pelo médico e escritor abolicionista se aproxima das
casas aqui apresentadas para o Rio de Janeiro. Dessa forma, destaco, uma vez mais, que o que
se passava no interior das casas e que hoje se descortina em forma de fontes ligadas aos
jornais, processos e inquéritos, era sabido por grande parcela dos moradores da Corte e
123
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 9-9v. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano
1882. Arquivo Nacional, grifos meus.
124
MACEDO, Joaquim Manuel. As vítimas-algozes…, [1869]/2012, p. 144.
125
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850)..., 2000, p. 375-378. A autora
descreve a narrativa de Thomas Ewbank, que adentrou no interior de uma casa de um “mago”. No Recôncavo
da Guanabara, para a primeira metade do Oitocentos, também encontrei a denominação condomblé. Ver:
POSSIDONIO, Eduardo; BEZERRA Nielson. Religiosidades africanas em tempos de escravidão: batuques e
candomblés no Recôncavo do Rio de Janeiro, século XIX. Recôncavo: Revista de História da UNIABEU, v. 6,
n. 10, p. 66-85, jan./jun. 2016.
260
vizinhanças. Por mais que nunca se tivesse frequentado tal espaço, não seria difícil saber
onde encontra-lo. Dessa forma, creio que a circularidade cultural ajudava a propagar, mesmo
que de forma pejorativa, os rituais afro-brasileiros.
Artimanha dos agentes da lei em um momento de depoimento de uma liderança
iletrada ou não, o fato é que africanos e crioulos tinham expertise na manipulação fitoterápica
da flora brasileira. Elementos encontrados dentro dos espaços litúrgicos já foram aqui
cruzados com o pensamento médico do Oitocentos para fins curativos, mas creio que caiba
semelhante comparação pensando na arte de “amansar senhor”. Recorro, para tal, aos
trabalhos do alemão Theodoro Peckolt. Nascido em 1822, teve uma vida dedicada à química
e às plantas, formou-se em farmácia nas Universidades de Rostock e Göttingen, em
Hamburgo, no ano de 1846. Trabalhou no Jardim Botânico, ampliando seus conhecimentos
sobre o poder fitoterápico da flora. No ano de 1847, chegaria ao Império brasileiro,
conduzido pelo navio Independência, e, no Brasil, viveu por sessenta e cinco anos,
trabalhando em farmácias e, principalmente, em expedições pelas províncias do Espírito
Santo, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, acompanhado de informantes locais, entre eles
alguns indígenas, buscando maior aprofundamento nos conhecimentos sobre a flora
tropical. 126
Portanto busquei cruzar a expertise de sacerdotes afro-brasileiros com os estudos de
Peckolt, publicados postumamente entre os anos de 1888 e 1914, sob o título de História das
plantas medicinais e úteis do Brasil. Sua obra reúne conhecimentos não somente dos poderes
fitoterápicos da flora tropical, mas também traz os de quem viveu ao longo de todo o
Segundo Reinado na região Sudeste escravista e que, portanto, também buscou os
conhecimentos afro-brasileiros como fonte de pesquisa para seus escritos. É dessa obra uma
longa observação acerca da famosa “raiz da guiné”:
RAIZ DE GUINÉ
Petiveria alliacea L. (Phytolaccaceae)
Sin. vulg.: Erva de pipi, Pipi, Erva de guiné, Guiné, Raiz de guiné, Erva de alho.
As folhas verdes, de aroma muito fraco, são usadas em cataplasmas quentes nos
casos de reumatismo articular e nos panariços; são ainda consideradas
antiparalíticas e passam por abortivas, quando usadas em injeções pela vagina: sua
raiz é ainda mais enérgica e por isso, mais geralmente usada. Na paralisia aplica-se
em banhos de 500g da raiz contusa para um banho e bem assim a tintura (1:5) em
fricções. Em 1855, usava-se com vantagem a infusão das folhas e da raiz para
combater o cólera. O pó da raiz é considerado abortivo e em alta dose dizem que
provoca a loucura, este pó era antigamente muito usado pelos feiticeiros, servindo-
126
SANTOS, Nadja Paraense; PINTO, Angelo C.; ALENCASTRO, Ricardo Bicca de. Theodoro Peckolt:
naturalista e farmacêutico do Brasil Imperial. Química Nova, v. 21, n. 5, p. 666-670, 1998.
261
lhes de arma de vingança, não só contra os seus parceiros, como contra os seus
senhores.
As linhas destinadas à explicação para o grande público acerca das raízes de guiné são
instigantes, principalmente quando Peckolt reconhece sua importância para banho e infusões,
exatamente como eram receitados nos rituais do Sudeste brasileiro. O especialista reconhece,
principalmente por ter presenciado, que, em 1855, no auge da epidemia de cólera que
assolava o Império, as folhas eram preparadas para servirem de lenitivo para os que
padeciam. Assim confirma as ideias apresentadas por Diniz em relação ao Recife de 1856 –
mesmo período em que atuava Evaristo Emanuel em Niterói – onde recebia autorização pra
atuar dentro do hospital da Marinha Pai Manoel, pejorativamente denominado Dr. Manoel
nas páginas dos jornais e periódicos que criticavam sua abertura nos meios oficiais. A
verdade é que o povo recifense confiava nos poderes do centro-africano, na arte de curar
moléstias em uma determinada região, lançando mão de ervas e infusões, o que reaparece nos
trabalhos deixados por Peckolt. 128
A ideia de que altas doses do remédio preparado com a guiné podem trazer a loucura,
traz à mente as instruções dadas por Pai Raiol à crioula Esméria, na narrativa de Joaquim
Manuel de Macedo, quando a poção preparada teria diversos efeitos, como amolecer o
coração, aproximar, conseguir alforria, levar à loucura, como ocorre com quatro escravos na
narrativa construída por Macedo. O pesquisador alemão faz questão de destacar a
possibilidade da morte lenta, alucinação, insônia, indiferença e, principalmente, da
imbecilidade. Ele demonstra seu conhecimento de sociedade ao relacionar a poção com a
127
PECKOLT, Theodor; PECKOLT, Gustav. História das plantas medicinais e úteis do Brasil. Belo Horizonte,
MG: Fino Traço, 2016, p. 710-711.
128
DINIZ, Ariosvaldo da Silva. As artes de curar nos tempos do cólera: Recife, 1856. In: CHALHOUB, Sidney
et al. (org.) Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora UNICAMP,
2003, p. 355-356.
262
ideia de “remédio de arranjar senhor”, em uma clara e nítida ideia de interferência por parte
dos que se encontravam em situação de cativeiro na vida dos que tinham poder de decidir
entre a prisão e a liberdade, seus senhores.
Ao redigir a extensa apresentação de inquérito policial à justiça, o subdelegado da
freguesia do Sacramento apresentou o que julgava ser mais de uma dezena de crimes
cometidos pelo afamado Juca Rosa no final da década de 1860. Para tal, elencou uma dezena
de testemunhas que facilitariam a vida dos profissionais da justiça, quando o processo fosse
aberto contra o Pai Quimbombo, o que ocorreu no ano de 1870. Apresentou às autoridades,
dessa forma, Henrique de Azurar, negociante e morador da Rua do Riachuelo, 118, que vivia
amancebado com duas “filhas” ritualísticas de Rosa. Insatisfeito com alguma situação com o
sacerdote da Rua do Núncio, proferiu contra ele ameaças, e, segundo soube o subdelegado,
Azurar fora condenado a uma morte “breve”. “Desde então Azurar adoeceu do estômago,
tendo vômitos frequentes e depois sentindo-se affectado dos pulmões. O que é facto é que
pouca vida tem elle e tudo leva a crer que um veneno vegetal encarregou-se de realizar a
praga de Rosa”.129 Realidade e literatura ao longo do Oitocentos se conectavam, não somente
pela possibilidade de atuar sobre a brevidade da vida de alguém, mas, assim como Paulo
Borges, fazendeiro criado por Joaquim Manuel de Macedo, continuou por muito tempo
convivendo com Esméria, que toda noite depositava o preparo de Pai Raiol no café do senhor
e amante, na vida real o subdelegado chamaria a atenção para o fato de que Azurar, mesmo
definhando em vida, continuava vivendo ao lado de Generosa, uma das filhas de Juca Rosa:
“e é bem de ver quão facilmente lhe poderá ella propinar veneno”. 130
Como se evidencia, a busca por casas afro-cariocas dava-se pelos mais variados
motivos, e até mesmo a manipulação das ervas não tinha apenas um objetivo dentro de tais
espaços, mas era usada para os mais variados fins, ganhando a raiz da guiné a possibilidade
de extinguir e até mesmo evitar forças emanadas de energias negativas. Associação
conhecida até os dias atuais no imaginário popular brasileiro, entre outros motivos, por causa
da composição de Laudemir Casemiro, mais conhecido como Beto Sem Braço, justamente
por perder o membro direito em uma queda de cavalo, 131 Ô Irene, e sua conhecida afirmação:
“arruda e guiné pra dispersar o mau olhado…”
129
Processo de Sebastião da Rosa, p. 12. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional, grifos
meus.
130
Processo de Sebastião da Rosa, p. 12. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
131
ALBIN, Ricardo Cravo. In: Dicionário Houaiss Ilustrado. Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro:
Paracatu, 2006, p. 92.
263
4.4 Para além da cura: a busca pelos amores – amarrações que atravessaram o
Atlântico
132
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 7v.-8. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano
1882. Arquivo Nacional.
133
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 8. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano 1882.
Arquivo Nacional.
134
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 8 v.-9. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano
1882. Arquivo Nacional, grifos meus.
264
com eles nas senzalas […]”. 135 Dessa forma, tornaram-se especialistas não somente na arte de
“amansar” os senhores, mas também desenvolveram a expertise ritualística de aproximar
afetivamente as pessoas. No romance de Macedo, o rico fazendeiro Paulo Borges se encanta
pela escrava crioula Esméria, que, por seguir as orientações de Pai Raiol, consegue
envenenar Teresa, a senhora da fazenda, seus filhos, aqueles que se colocavam em seu
caminho, mas, principalmente, consegue, na visão do autor, seduzir Borges, ter com ele
filhos, virar a dona da casa e, seguindo as instruções do “feiticeiro”, consegue as alforrias de
seus filhos e a sua própria. Evidenciando a visão propositalmente preconceituosa do autor, é
possível captar em sua narrativa o que pairava na mente da elite brasileira no que tange às
possibilidades religiosas de seus escravos, o que entendiam como “os punhais invisíveis, tiros
sem estrépito”. 136 Retornando ao processo e à ideia de trabalho no campo do amor, cabe
recorrer ao depoimento do jovem português de 29 anos, lavrador e também residente no
bairro de Montevideo, como os demais envolvidos na questão. Leal destacou que sua amásia,
Maria, recebeu das mãos de Ana Luíza, a sacerdotisa da casa, uma cesta “contendo diversas
raízes”.137 Ao que tudo indica, o material não seria utilizado dentro da casa, mas tinha, sim,
finalidades externas.
O brasileiro de 40 anos, Amâncio Luis Manoel, aqui já citado, também morador de
Montevideo, foi quem possibilitou maiores detalhes sagrados da casa. Cabe lembrar que foi o
único que denominou as raízes raspadas de tinguaciba e demais preparos de pemba. Deixou
claro que, aos domingos, bebia do preparo feito por Ana Luiza, e que este não promovia mal
algum, ao contrário, iria protegê-lo de qualquer tentativa de seus inimigos, caso os tivesse.
Ou seja, os “pós de cor vermelha” [tukula] tinham diversas finalidades. Cabe, a essa altura,
buscar auxílio em outro processo rico em detalhes ritualísticos, dada a proporção que o caso
Juca Rosa ganhou na sociedade carioca a partir do ano de 1870. Em sua casa, também se
realizavam rituais para aproximar pessoas amadas.
Em sua abertura do inquérito, o segundo delegado de polícia da freguesia do
Sacramento, o Dr. Miguel José Tavares, informou que José Sebastião Rosa teria aprendido
seu ofício com os “pretos minas”, 138 contudo as características de seu ritual mais o
aproximavam das casas lideradas por centro-africanos ou brasileiros como ele, influenciados
por uma gramática advinda dos povos oriundos da África Centro-Ocidental. Relembro que as
135
MACEDO, Joaquim Manuel. As vítimas-algozes…, [1869]/2012, p. 83.
136
MACEDO, Joaquim Manuel. As vítimas-algozes…, [1869]/2012, p. 83.
137
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 10-10v. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano
1882. Arquivo Nacional, grifos meus.
138
Processo de Sebastião da Rosa, p. 5. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
265
cerimônias presididas por Juca Rosa eram feitas “a noite, secretamente, a portas fechadas e os
actos principaes começão a meia noite em ponto, para mais impressionar os espíritos das
mizeras victimas”. Não creio que a escolha dos horários se desse pela necessidade de
impressionar aqueles que participavam, mas sim por uma conexão com o cosmograma
bacongo, em que a linha vertical conecta o mundo dos vivos com os mortos, sendo o meio-
dia o ápice da maturidade de um ser vivente, e a meia-noite o momento principal do mundo
dos mortos abaixo da Calunga, o mundo da pemba. De acordo com as crenças que se
propagaram nos dois lados do Atlântico, seria o principal momento para a conexão entre os
dois mundos. Não por acaso, nessa hora, os cantos eram feitos “em línguas africanas”,
seguidos do sacrifício de um “galo preto”, depositado em vasilhas que, em outros momentos
do processo de Rosa, foram denominadas de gonga, como já narrado, ou seja, os inquices.
Tudo isso diante de imagens católicas, semelhantes às das cerimônias realizadas diante dos
altares de Laurentino Inocêncio dos Santos. 139
Outra proximidade entre o Pai Quimbombo da Rua do Núncio e o curandeiro da
Glória, e que me leva a intuir que a casa do segundo seguia as mesmas funções religiosas da
primeira, tais como a aproximação da pessoa amada, é que Juca Rosa recebia reverência de
seus seguidores, que, respeitosamente, beijavam sua mão, enquanto permanecia sentado em
uma suntuosa cadeira, o que também o aproxima da realidade vivida na casa da Ladeira dos
Guararapes, já que Laurentino tinha, diante de seus altares, cadeira com pontos riscados em
forma de cruz, local destacado para atender aqueles que buscavam seu conhecimento. 140
O ritual que Rosa desenvolvia e o que receitava aos que buscavam seu auxílio
ganhavam o nome de “trabalho”, 141 e, nos mais variados depoimentos, o líder religioso da
Rua do Núncio era visto como hábil controlador do sobrenatural, que falava com os espíritos
e estes o obedeciam.142 Em quase todos os depoimentos prestados no inquérito policial bem
como no processo da casa de Rosa, evidenciaram-se os “trabalhos” feitos para aproximar as
pessoas. Contudo cabe dar voz ao próprio Pai Quimbombo, que, no dia 20 de novembro de
1870, já se encontrava no xadrez da Casa de Detenção da Corte, a pedido do subdelegado
Miguel Tavares.
Juca Rosa confirmou que os objetos guardados na Rua Larga de São Joaquim, na casa
de Henriqueta Maria de Mello, eram seus, que pertenciam a sua crença e que os utilizava em
caso “de enfermidade ou de dificuldade no correr da vida”. Não viu problemas em explicar
139
Processo de Sebastião da Rosa, p. 5v. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
140
Jornal do Commercio, 26 mar. 1878.
141
Processo de Sebastião da Rosa, p. 6. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
142
Processo de Sebastião da Rosa, p. 19. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
266
diante das autoridades os significados de seus atos litúrgicos, como o galo que era sacrificado
e seu sangue utilizado para “agradar os espíritos ou as almas”, já que eram estes que o
auxiliavam na cura dos males de quem o procurava. Em momento algum negou que
acreditasse em Cristo, inclusive afirmou ser Seu fiel adorador e que as ofertas que recebia
eram para serem depositadas no altar. O Pai de Santo, Chefe das Macumbas, revelou nomes e
motivos que levavam as pessoas a procurá-lo, como o caso de Rodrigo Militão, que teve a
mãe implorando pelos cuidados de Rosa, “lançando-se” aos seus pés, já que seu filho sofria
com o braço inchado. Depois de tratá-lo com óleos e ervas socadas, Militão encontrou a cura,
contudo o enfermo queria mais, “estava querendo afinal seduzir a uma amasia por nome
Marcolina”. 143 Ou seja, segundo o próprio Juca Rosa, ele era capaz de aproximar as pessoas
com seus “trabalhos”.
Rosa deu outras demonstrações em seu depoimento de que tinha habilidades para lidar
com a cura e com as questões do coração. Remédio para “quebradeira” foi o que Augusto,
escravo do Dr. Duque Estrada Teixeira, juiz de paz da freguesia da Glória e membro do
partido conservador, foi buscar em seu encontro com Juca Rosa. Logo depois, buscou
também meios para seduzir uma amásia que tinha por nome Mariquinha, também moradora
da Glória. 144 Em seu depoimento, Emília Carolina Mascarenhas declarou conhecer Rosa
havia muito tempo e apresentou detalhes do culto realizado pelo Pai Quimbombo. Quero
chamar a atenção para o detalhe de sua foto encontrada pela polícia, na busca e apreensão
feita a pedido do subdelegado Miguel Tavares na casa da portuguesa amasiada com Juca
Rosa, Mariquinhas da Europa. Constrangida, segundo a percepção do escrivão, Emília
Carolina Mascarenhas disse que entregou sua foto em uma cerimônia, “que consultou-o
algumas vezes por que precisava conservar a estima de um homem com quem então vivia, e,
segundo lhe informavam outras suas amigas, Rosa tinha poder para tal […]”. 145 Por tal
confiança, não hesitou em pagar a quantia de mil réis, sendo logo depois convidada por Juca
Rosa para acompanhar sua primeira cerimônia, bem como ter seu primeiro atendimento.
Destacou que toda celebração litúrgica se passou diante de um altar, no qual se
lembrava de haver imagens de “Nosso Senhor do Bonfim, o crucifixo e Nossa Senhora”,
iluminados por velas de cera depositadas aos pés dos santos pelas filhas de Juca Rosa. No
centro do altar, existia uma vasilha com raízes dentro e, diante desses apetrechos, o Pai
143
Processo de Sebastião da Rosa, p. 38-39. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
144
Processo de Sebastião da Rosa, p. 39. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
145
Processo de Sebastião da Rosa, p. 47. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
267
Quimbombo, vestido ritualisticamente, 146 dançava ao som dos tambores e da macumba,
tocados pelos cambonos147 Lúcio José da Silva e Joaquim de Oliveira, sendo nesse momento
que Rosa pulava ao centro, contorcia-se, o que ela descreveu como estar com “o Santo na
Cabeça”, ou seja, a incorporação tão comum nas cerimônias afro-cariocas. Em seu
atendimento particular, buscando aumentar o interesse de seu homem, recebeu uma das raízes
que se encontravam diante do altar, com a recomendação de que levasse de volta “quando
estivesse conversando com a pessoa com quem vivia”. Após essa primeira etapa, deveria
retornar a uma cerimônia de Juca Rosa para conseguir um breve, que manteria o tempo todo
junto de si. Pagou uma nova parcela de mil réis pelo breve.148 Emília ainda entregaria joias
no altar do Pai Quimbombo, visando alcançar a sorte no amor, contudo mostrou
desapontamento em seu depoimento, afirmando que nada se realizou como o esperado.
Foi Generosa Clementina Campos quem deu maiores detalhes do processo de
amarração feito nas cerimônias de Juca Rosa. A princípio, foram suas enfermidades que a
aproximaram do líder religioso, uma grande ferida na canela e posteriormente uma
hemorragia, contudo, no dia 26 de novembro, diante do subdelegado, o que informou foi que,
certa vez, a portuguesa conhecida como Mariquinhas da Europa desejava reconciliar-se com
seu amásio Boaventura Gonçalves Roque, que com ela havia brigado. Para resolver tal
questão, Rosa estava vestido liturgicamente com sua calça de veludo escura, com rendas
prateadas, seu gorro Mpu, semelhante à fotografia anexada ao processo. Os presentes
dançavam e cantavam em “língua africana”. A essa altura, pelas palavras derivadas do
quimbundo e do quicongo que permearam as páginas de seu longo processo, é possível intuir
que os “pontos” eram cantados com base nessas duas línguas centro-africanas. No momento
em que Rosa estava com o “Santo na cabeça”, ou seja, incorporado, deu as seguintes
instruções à portuguesa: “Botar uma pedra sobre uns cordões em que previamente deo muitos
nós e a razão em certas e determinadas horas em sua casa aquelles cordões e pedras que ella
ouvio dizer que Rosa havia casado com Mariquinhas da Europa pelo seu rito especial
[…]”. 149 Em vários depoimentos a portuguesa aparecia como mulher de Rosa, casada diante
de seu gongá, segundo os mesmos rituais em que batizava as crianças.
O depoimento do brasileiro Miguel Augusto, de 30 anos, permite atualmente perceber
que os rituais praticados pelo Pai Quimbombo não somente “amarravam” as pessoas,
conforme o ato performático desenvolvido por Mariquinhas da Europa, mas, se correto
146
Ver imagem 13.
147
Nome atribuído aos ajudantes de Rosa em várias etapas do processo.
148
Processo de Sebastião da Rosa, p. 48. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
149
Processo de Sebastião da Rosa, p. 67v. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
268
estiver a fala de Augusto, Rosa também apresentava a possibilidade de a pessoa não mais se
relacionar com ninguém, como teria ocorrido a pedido de uma das filhas litúrgicas, Leocádia,
que se queixou de ter sido abandonada por Henrique de Azurar, por quem ainda nutria
sentimentos. Obteve então do sacerdote o pedido para acalmar seu coração e espírito, de que
seu amado não conseguiria, a partir dali, relacionar-se com mais nenhuma mulher e, mais do
que isso, que Leocádia se preparasse que, muito em breve, estaria envolvida com outro amor.
Segundo Miguel Augusto, a promessa se cumpriu, Henrique não só passou seus dias solitário,
como também muito doente.150 O pobre Henrique de Azurar também foi intimado a depor e
acabou por confirmar tudo que tinha sido apresentado pelo brasileiro Miguel Augusto ao
subdelegado. Disse que, sem sucesso, pedia a Leocádia que abandonasse as reuniões de Rosa
e que, quando já em estado avançado da doença, ouviu de sua amásia que o que tinha “não
era moléstia e sim trabalho e coisa feita”. 151
Rodrigo Militão da Silva ofereceu maiores possibilidades de compreensão do ato de
“amarrar” a pessoa desejada. Sendo ele vendedor de folha de flandres, natural do Rio de
Janeiro, com 21 anos de idade, conhecia Juca Rosa desde o ano de 1868, quando, indicado
por amigos, foi à procura de ajuda para uma forte dor no braço. Seu relato ao subdelegado de
polícia Miguel José Tavares, no dia 30 de novembro foi o que mais ofereceu detalhes da
celebração litúrgica do Pai Quimbombo, cabendo dessa forma, dar voz a parte de seu
demorado testemunho:
[…] o celebrante Rosa descalço e sem o paletó e tem por fim ou consertar em
afeição a inimizade de um desafeto, o que se faz por um trabalho chamado
amarração, ou aconselhar meio de alguém vencer dificuldades da vida. Que para
Rosa dar consulta é preciso ser tomado de um Santo que na occasião elle chama seu
pai e que isso realiza-se quando no meio da cantoria que se entoa muda elle de voz
e pronuncia aos saltos e é também nessa occasião que todos os assistentes lhe vão
beijar a mão e batem com a cabeça no chão. Em todas estas cerimônias são
celebrados concorrendo cada um com um quantitativo relativos as posses de quem o
dá digo relativo ao que cada um quer dar. Que assistiu também a uma cerimônia a
Rua da Carioca número trinta e seis na casa em que residia uma moça branca,
portuguesa por nome Maria Thereza Ferreira vulgarmente conhecida por
Mariquinhas da Europa, que então tinha em vista esta moça atrair a sua casa cada
vez mais um negociante opulento desta praça que então a frequentava; que ai fez-se
o serviço de amarração que consiste: na colocação e meio de pano branco
estendido no chão sobre este em forma de cruz um pano preto encarnado, pondo-se
sobre tudo um bagre de papo amarello, azeite de dendê, obi, orobô, atá, farinha,
feijão, milho e outras cousas de que se não recorda, tudo em quantidade de uma
mão ou punhado, que feito isto apareceo na sala a consultante que era a referida
Maria Thereza e Rosa depois de passar-lhe um gallo por todas as partes do corpo e
por todas as formas, isto por cima das vestes, cortou o pescoço do gallo e repetidas
150
Processo de Sebastião da Rosa, p. 82-83. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional.
151
Processo de Sebastião da Rosa, p. 83v. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional, grifos
meus.
269
por Maria Thereza diversas palavras que proferia Rosa a meia voz esquartejava a
mesma Maria Thereza esse gallo pondo-se dentro d’elle também dendê, obi, atá e
etecetera com o bagre foi amarrado nos panos de que já fallou e mandou Rosa que
elle testemunha fosse levar aquelle embrulho a porta de uma igreja o que
effectivamente elle testemunha o fez pondo a porta de São Francisco de Paula. 152
O ponto alto de toda cerimônia, segundo Rodrigo Militão da Silva, eram os momentos
em que se invocavam os santos, os espíritos incorporados por Juca Rosa, e, segundo o
depoente, “muitos eram os Santos” presentes em uma mesma sessão. O que afirmava ser
casado com a portuguesa Mariquinhas da Europa seria o Santo Zuza. Também deu detalhes
do espaço litúrgico:
Gabriela dos Reis Sampaio, ao explicar o mesmo ritual descrito por Militão, buscou
amparo em cerimônias do candomblé atual e em fontes voltadas para a Bahia, como Edison
Carneiro, com O candomblé da Bahia. Entretanto acredito que a compreensão das
“amarrações” de Juca Rosa esteja dentro das demais casas, já que se evidencia até aqui um
repertório comum para as casas afro-cariocas, o cruzamento com a visão de mundo centro-
africano com o cosmograma bacongo e com a já descrita realidade afro-cubana apresentada
por Lydia Cabrera em El Monte. O candomblé do século XX pode e deve ser utilizado para a
compreensão do século XIX, contudo ele é mais resultado das várias composições das mais
variadas casas afro-brasileiras de todo o território brasileiro, mas com a base no século
XIX. 154
Em El Monte, Cabrera obtém preciosos detalhes do preparo de um inquice
Sarabanda, por meio do informante Juan O’Farril, no momento aqui já apresentado de “riscar
o ponto” com a utilização da pemba, composta pela terra dos mortos. Assim, conectam-se os
ritos e os preparos, nenhum material ou procedimento apresentado até aqui estava
desconectados do culto, mas sim compunha uma gramática de saberes que se desenvolveram
nas mais variadas regiões do mundo atlântico da diáspora africana. Afirmo, com base no
cruzamento de narrativas, que a “sacola” descrita no culto kongo afro-cubano era considerada
152
Processo de Sebastião da Rosa, p. 89-90. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional, grifos
meus.
153
Processo de Sebastião da Rosa, p. 93-93v. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional,
grifos meus.
154
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Juca Rosa…, 2009, p. 209.
270
sagrada, quando recebia os encantos conduzidos pelo líder religioso, que cantava e riscava os
pontos, conectando, via cosmograma bacongo, o mundo dos vivos e dos mortos. Após todo
preparo, a sacola era amarrada e colocada ao centro do chão, onde o sacerdote havia feito
uma “cruz dentro do círculo” usando a pemba. 155
O momento em que Juca Rosa preparava a amarração, segundo depoimento de
Generosa Clementina Campos e Rodrigo Militão da Silva, era quando estava com o “Santo
na cabeça”, momento em que, naturalmente, os líderes religiosos riscavam o ponto marcando
o contato com o sobrenatural. Vários depoimentos citaram que os cantos eram feitos “em
língua africana” ou “língua de nação”, como afirmou Militão, semelhante ao preparo do
inquice Sarabanda afro-cubano, em que se cantava em quicongo. Farris Thompson destacou
que a ideia de desenhar e cantar um “ponto” era um importante momento de mediação do
ritual Kongo de invocar a Deus e aos ancestrais, portanto os ritos analisados até aqui para as
regiões do Sudeste brasileiro passavam pela compreensão de uma gramática centro-africana.
Nesse sentido, destaco a tradição baconga de recitar e cantar palavras em quicongo (as
línguas africanas dos processos), com a ideia de traçar os riscados. 156
Thompson voltou seu olhar para o século XX americano, visando encontrar a
presença dos pontos cantados e riscados, destacando, dessa forma, Cuba, Trinidad e Rio de
Janeiro, salientando principalmente o que chamou de macumbas cariocas: “O termo afro-
brasileiro para essas invocações visuais do espírito, pontos cantados e pontos riscados,
relembra o costume bacongo de cantar e marcar simultaneamente a centralização do espírito
(iyimbila ye sona)”. 157 Contudo esse autor ressalta as influências iorubana, católica e
kardecista nas práticas analisadas pessoalmente por ele, principalmente por aumentar sua
complexidade com a implementação de elementos dessas culturas, como a assinatura de Exu.
Destaco que os trabalhos de Thompson permitem, atualmente, lançar luz sobre o século XIX,
aqui analisado, e que, de fato, foi o momento em que se constituíram as instituições religiosas
afro-brasileiras que adentraram os séculos XX e XXI. Dessa forma, é possível destacar os
chamados pontos de amarração como pequenos amuletos feitos de pano, que, tendo como
finalidade “prender um espírito ou atrair uma pessoa para seu possuidor”, trazia cordas
entrecruzadas e bem apertadas com três ou seis eixos que representavam, segundo esse autor,
que a pessoa amada e/ou o espírito estavam presos ao encanto, ou seja, ao inquice. 158
155
CRABERA, Lydia. El monte: notas sobre las religiones, la magia, las superticiones y el folklore de los
negros criollos y el pueblo de Cuba. Miami, Florida: Ediciones Universal, 2000, p. 127, apud RFT p. 114.
156
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit…, 2011, p. 113-114.
157
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit…, 2011, p. 117.
158
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit…, 2011, p. 130.
271
Thompson destaca os pontos de amarração nos amuletos do Haiti, os pwe, ou seja,
pontos, análogos aos nkangue afro-cubanos, que tinham a mesma finalidade dos demais,
amarrar a pessoa amada, e a palavra no quicongo significa “o que aprisiona”. Havia, em seu
preparo, os mesmos cuidados por parte do sacerdote, o nganga, que ritualmente cantava,
riscava e amarrava o amuleto. 159 Também nesse ponto, observa-se uma gramática litúrgica
que aproxima os territórios da diáspora, tendo como base as heranças sagradas advindas das
regiões da África Centro-Ocidental. Cabe, portanto, compreender o objeto descrito nos
depoimentos do processo de Juca Rosa, que o aproxima da realidade centro-africana de
amarrar algo ou alguém.
Generosa e, principalmente, Militão dão exemplos detalhados do objeto sagrado
construído pelo Pai Quimbombo e que, como já destaquei, acredito tratar-se de um inquice,
ou seja, uma medicina sagrada. Dois trabalhos podem lançar luz sobre as minuciosas
observações feitas pelos depoentes na presença de José Sebastião da Rosa e Lúcio. 160 O
primeiro, do missionário Karl Laman, em The Kongo II, ao apresentar com detalhes o inquice
Nkita Nsumbu, e o segundo, de Robert Farris Thompson, ao analisar Os quatro momentos do
sol nas influências do cosmograma bacongo na composição religiosa das Américas. Ambos
os autores dão detalhes da mesma medicina sagrada. A Imagem 31 foi retirada do trabalho de
Thompson e apresenta o inquice aberto e toda sua composição. Já no trabalho do missionário
Laman, ele é apresentado fechado (Imagem 32) e, em outro momento de seu trabalho, os
objetos são explicados detalhadamente (Imagem 33).
159
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit…, 2011, p. 133.
160
A maioria dos depoimentos foi feita na presença dos réus Juca Rosa e Lúcio, que, além de ouvirem as
testemunhas, ao final, tinham a possibilidade de ler o material produzido pelo escrivão e assinar.
161
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit…, 2011, p. 123.
272
A amarração feita por Juca Rosa era composta de dois panos, sendo um branco
estendido no chão, e um preto encarnado em forma de cruz, que em muito se aproxima das
observações feitas por Cabrera, em que a trouxa sagrada era depositada no círculo em forma
de cruz feito com a pemba. O inquice Nkita Nsumbu também era em forma de saco, como se
evidencia na Imagem 32. Era coberto por ráfia e recebia a amarração deixando internamente
todos os preparos sagrados, de modo semelhante ao preparo de Rosa, que recebia os
importantes amarrados que finalizavam sua composição. As pedras estiveram presentes em
todas as etapas de sua feitura. Thompson destacou que elas representavam as águas claras do
leito de um rio; Laman, por sua vez, associou as pedras à parte inferior do cosmograma
bacongo, ou seja, o fundo das águas, abaixo da Calunga, terra da pemba. Sobre a casa de Juca
Rosa, Rodrigo Militão destacou que a amarração levava “atá”, o que acredito tratar-se do que
atualmente as casas de umbanda e candomblé no Brasil do século XXI chamam de otá, ou
seja, pedras consagradas que são, na verdade, conhecidas como seixos de rio, tendo por fim a
mesma origem descrita por Laman e Thompson, qual seja, a representação do mundo da
pemba, abaixo da linha da Calunga.
162
LAMAN, Karl. The Kongo. 4 v. Uppsala: Studia Ethnographica Upsaliensia, 1957, p. 133. v. II.
163
Processo de Sebastião da Rosa, p. XXX. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional, grifo
meu.
273
Rodrigo Militão deixou claro que o galo164 tinha o pescoço cortado e que era passado por
todo o corpo de Maria Thereza, mais conhecida como Mariquinhas da Europa, e, logo depois,
recebia todos os preparos, os mesmos depositados dentro dos panos pretos e brancos para
serem amarrados. Na Imagem 33, retirada do trabalho de Laman, pés e garras de aves são
utilizados em forma de amuleto para cativar os espíritos. No preparo de Rosa, foram usados o
orobô e o obi, duas sementes, empregadas até os dias atuais no preparo de encantos voltados
para a cura nas casas de umbanda e candomblé. Trata-se de sementes que também poderiam
ser encontradas no preparo do inquice Nkita Nsumbu. Segundo Thompson, as sementes eram
utilizadas juntamente com um complexo jogo de palavras e metáforas, buscando alcançar
“lenitivos e curas” ocultos nas sílabas em quicongo, lançando mão de feijões, brotos e vários
miolos de sementes165 semelhantes ao “feijão, milho e outras cousas que não se recorda” 166
destacadas por Militão.
164
Laman apresenta um nganga propondo o sacrifício de um galo, visando restabelecer a sorte de um caçador
que não tinha mais eficácia no seu ofício. O ritual foi feito colocando o animal sacrificado sobre as armas do
suplicante. Ver: LAMAN, Karl. The Kongo, 4 v. Uppsala: Studia Ethnographica Upsaliensia, 1953, p. 90. v. I.
165
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit…, 2011, p. 122.
166
Processo de Sebastião da Rosa, p. 89-90. Promotoria. BU.O.RCR.0470. Ano 1871. Arquivo Nacional, grifos
meus.
167
LAMAN, Karl. The Kongo…, 1953, p. 147. v. I.
274
Caminhando para a conclusão deste capítulo, faz-se necessário compreender o que se
“cantava” e proferia para combinar todo o processo litúrgico que culminaria na amarração do
espírito e, principalmente, de quem se desejava. Uma descrição na integra de um ponto de
amarração foi captada ao final do século XIX entre os presos da Bahia por Aurelino Leal,
baiano de nascimento, que se tornou bacharel em direito no ano de 1884, pela Faculdade de
Direito da Bahia. Atuou como jornalista e como deputado estadual por seu estado, eleito em
1899, e recebeu a incumbência de reformar o sistema penitenciário baiano, o que acabou
dando-lhe o cargo de diretor da Penitenciária, momento em que teve a possibilidade de
pesquisar e escrever A religião entre os condenados da Bahia. No Rio de Janeiro, Aurelino
Leal tornou-se famoso chefe de polícia, nomeado em 1914 pelo então presidente Venceslau
Brás, tornando-se conhecido por sambistas e praticantes das religiões afro-cariocas. Sua
perseguição aos chamados jogos de azar teria inspirado Donga e seus parceiros a compor o
samba Pelo telefone. 168
Tentando compreender a relação entre a religião dos presos e seus crimes, Aurelino
Leal teve acesso a importantes materiais que revelam a crença afro-brasileira estabelecida até
o final do século XIX em solo brasileiro, mesmo não tendo essa intenção, já que, a todo
instante de seu trabalho, buscava a comparação dessa crença com a tradição católica e o
descrédito de tudo que compreendia como bárbaro e atrasado. Segue a transcrição do que
disse tratar de uma oração encontrada entre um patuá de determinado detento:
Sexta-feira da pachão entrou pela porta de Adão encontrou mil e tantas pessoas
bravas como Lião. A mesma Santa Biata com suas santas palavras aquebrantou a
todos, amançou Nosso Senhor Jesus Christo, brava serpente, bravo Lião bichos
ferozes do Campo amarrado enconrentado e argemado debaixo de seu santíssimo pé
esquerdo assim eu hei de trazer, tu (fulano) amarrado encorentado e argemado
debaicho de meu pé esquerdo, (fulano) com dous the vejo, com cinco the aprendo, o
coração the parto o sangue the bebo pesso que tu obedeças amim, assim como Jesus
Christo obedeceu a cruz para sempre Amem Jesus Maria José. Deus quer e Deus
póde e Deus faz tudo que assim eu hei de fazer tudo que eu quizer (fulano) hoje
n’este dia ou n’esta noite ou n’hora com os poderes das treis pessoas da Santissima
Trindade para sempre Amem Jesus. 169
275
africanos ressignificados na América, os símbolos e santos católicos ganharam novas
reinterpretações, tendo como base a gramática dos escravizados, já que os santos invocados,
incluindo a própria Santíssima Trindade, estão a serviço de colocar a amante desejada aos pés
de quem buscou pelos serviços, feitos, segundo Leal, por “mandingueiros e curandeiros”. A
combinação de elementos, palavras e olhares e o domínio do outro preso às mãos, o sangue
invocado e a ideia de obediência cega do amarrado, semelhante à submissão de Cristo à cruz,
conectam as orações dos presos na Bahia com as promessas de amores feitas por Rosa,
Evaristo, Ana, Laurentino e tantos outros líderes religiosos do Sudeste brasileiro no
Oitocentos.
A ideia de proteção contra os inimigos ou forças sobrenaturais também encontrava
auxílio dentro das casas afro-brasileiras, e o caminho também eram as amarrações, que
serviam para fechar o corpo. Entre os presos da Bahia, Aurelino Leal destacou a “Oração de
Nosso Senhor Jesus Christo”, e nitidamente a construção da “prece” cruza a vida de Cristo,
marcada pela provação da cruz e sua posterior vitória litúrgica com a ressurreição, com o
livramento de males, além de apontar possíveis castigos aos que desejassem fazer tais
malefícios. Caso uma arma de fogo fosse apontada para o portador do amuleto, o “ponto
riscado” pedia coisas como: água entrando pelo cano, ficar brando como cera. Pau que se
levantasse deveria ficar suspenso no ar, que os inimigos ficassem cegos e mudos, tudo com a
devida anuência das três pessoas da Santíssima Trindade. “Assim eu fulano fazerei tudo
quanto eu quizer com Meus inimigos, resa-se três vezes em cruz”.170 Dessa forma, outro
amuleto era desvendado, e um importante elemento que conecta as amarrações encontradas
na detenção baiana com as casas afro-cariocas era outro componente da cultura baconga
descrito até aqui: a cruz como ponto de conexão com o outro lado (Imagem 34).
170
LEAL, Aurelino. A religião entre os condenados da Bahia…, 1898, p. 9-10.
276
Imagem 34 - Desenhos em forma de cruz em meio às orações
171
LEAL, Aurelino. A religião entre os condenados da Bahia…, 1898, p. 12-14.
277
Week, relacionou o culto ao Pai Velho, chamado por ele de “espírito Kongo”, à crença de que
as estrelas cadentes (nienie) eram espíritos que cortavam os céus. 172
Dona Mariquinha riscava seu ponto em uma tábua, onde depositava seus remédios e
encantos, os mesmos que distribuía aos operários de Bangu. Os depoimentos de tal processo
se encaixam, tendo em vista as observações de cruzes feitas com giz, além de facas e
punhais. 173 Semelhantes aos objetos da casa de Laurentino na freguesia da Glória, Aurelino
Leal, na busca por compreender a mentalidade dos criminosos, interpretou as armas cravadas
na cruz latina do segundo desenho como parte do comportamento criminoso dos presos.
Contudo tratava-se de mais um ponto para proteger José Joaquim da Gama, nome encontrado
no amuleto, e, como os demais, tratava-se de um instrumento para fechar o corpo e deixar os
inimigos sem nenhuma possibilidade de atingi-lo.
172
THOMPSON, Robert Farris. Flash of the spirit…, 2011, p. 118-119. Em especial ver nota 38. Arthur Ramos,
ao escrever com base em suas pesquisas sobre as macumbas cariocas do início do século XX, aqui expostas no
primeiro capítulo, ressaltou que, no terreiro de Honorato, em Niterói, a entidade que há 24 anos trabalhava na
casa era Pai Joaquim, que, segundo esse autor, eram os antepassados e deuses lares dos bantos. Ver: RAMOS,
Arthur. O negro brasileiro. Rio de Janeiro: Graphia, [1934]/2001, p. 104-105.
173
Processo de Manoel Joaquim Faria, p. 2. Fundo CT 6ª Vara Criminal, Caixa 1960, Pacote 855, artigo 157.
Ano 1900. Arquivo Nacional.
174
Gazeta de Notícias, 28 abr. 1919.
278
O ambiente para se alcançar todo esse tipo de sorte era uma sala, tendo ao centro uma
mesa forrada com toalhas brancas, na parte de cima, dentes de bichos, búzios, um pequeno
altar com “algumas imagens”, diversas velas e peles de animais. A notícia era referente a
duas batidas policiais, uma na casa de Alamiro José dos Santos, na Rua Cardoso Quintão,
número 57, na Piedade, e a segunda casa era a do “preto” Manoel Domingos, na Rua Paiva
número 17, em Quintino Bocaiúva. Ambas as cerimônias foram invadidas no momento da
sessão. 175
175
Gazeta de Notícias, 28 abr. 1919.
176
Gazeta de Notícias, 28 abr. 1919.
279
“trabalho” seria para o “bem ou para o mal”; a compreendida “vítima” responderia que não
era para fazer o mal, mas a vida estava atrasada e gostaria de resolver tal infortúnio, para o
qual o sacerdote responderia:
É interessante perceber o cuidado com que o jornal constrói o diálogo. A primeira fala
seria a da figura a ser combatida, o sacerdote do culto. As palavras escolhidas apresentam
exatamente a fonética e a construção comum em um momento de incorporação,
principalmente quando se trata de velhos ancestrais ligados à escravidão e à dificuldade de se
expressar no português com perfeição. “Trabaio”, “mió”, “trapaiada” são alguns desses
exemplos. Quero destacar os elementos necessários para compor o trabalho: a galinha preta,
semelhante à que Juca Rosa não viu problemas em informar ao subdelegado Miguel Tavares,
em 1870, que seu sangue serviria para acalmar os espíritos, o dendê, presente em todas as
casas afro-cariocas que se viram envolvidas com a lei, bem como a mesa e os santos, o nome
de toda a estrutura – “trabalho” – e a conexão com a amarração feita pelo Pai Quimbombo a
Mariquinhas da Europa. Depois de tudo pronto, seria necessário depositar na porta da Igreja
de São Francisco de Paula. No caso da Gazeta de Notícias, o local apresentado para o
despacho seria ou o mar, a Grande Calunga, ou a encruzilhada de rua, ambas conectando as
atividades afro-brasileiras ao cosmograma bacongo. Os objetos recolhidos em ambas as casas
também as conectam com a gramática litúrgica do Rio de Janeiro: 3 alfanges de madeira e
dois punhais, 30 rosários de conta, pratos com sangue de galinhas, toalhas brancas, vidros
com dendê e o que interpretaram como “fantasias”, que eram, na verdade, roupas litúrgicas
do culto. 178
A Imagem 35, retirada da notícia, infelizmente encontra-se deteriorada pelo tempo,
mas percebe-se uma montagem para apresentar os fiéis presos nas casas de Piedade e de
Quintino Bocaiúva. Na parte inferior da ilustração, aparece, sentado à esquerda, o líder
177
Gazeta de Notícias, 28 abr. 1919.
178
Gazeta de Notícias, 28 abr. 1919.
280
religioso Alamiro José dos Santos, de pé atrás dele está a “preta” Sebastiana e à direita, o
“preto” Manoel Domingos. 179 A necessidade de mostrar seus objetos cumpria uma função
desempenhada pela imprensa em todo o Oitocentos, qual seja, a de descrever os objetos como
bárbaros, tentando propagar a descrença pessoal entre os leitores. É possível identificar ao
lado de Alamiro a figura do tambor e abaixo uma imagem que em muito se aproxima do que
se popularizou como manipansos nos jornais. Aparentemente, as lideranças religiosas
vestiam roupas normais no momento da cerimônia.
Concluo o capítulo com outra matéria do século XX, em Botafogo, na Rua da
Passagem, número 63, conhecido entre vizinhos e autoridades como “O candomblé do
Souza”, onde Antônio Souza, além de ver sua sessão interrompida, acabou estampado nas
páginas da Gazeta de Notícias. O líder religioso era chamado de “pai da mesa” e, sentado
nesse objeto, recebia os pedidos de cada um de seus fiéis: Geraldina da Conceição queria
nadar em ouro, e a “crioula” Ursula Lopes, que trabalhava em Botafogo, também pedia
melhorias de vida. As mais jovens, como Flora Gonçalves Pacheco e Celina Barbosa,
“empenhavam-se com o ‘pai da mesa’, a fim de que fizessem os ‘santos’ com que os
respectivos namorados jamais a olvidassem”. 180
179
As nomenclaturas de cor em 1919 demonstram uma clara continuidade do século XIX, quando essa exercia
uma forte influência nas tomadas de decisões da sociedade, principalmente em se tratando de problemas com a
polícia. Para maiores aprofundamentos, ver: SOARES, Moisés Peixoto. “Como se fossem brancos”:
comportamento social e moral religiosa de forros descendentes de escravos (Iguaçu e Jacutinga, Rio de Janeiro,
c. 1790-c.1850). 2019. Tese (Doutorado em História) - Instituto de História, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.
180
Gazeta de Notícias, 10 ago. 1918.
181
Gazeta de Notícias, 10 ago. 1918.
281
Todos os participantes que foram parar na delegacia figuraram nas páginas da Gazeta,
incluindo o Pai da Mesa, que, curiosamente, acabou revelando um importante momento
ritualístico da casa: “Antonio de Souza, o chefe, que, cousa curiosa, tinha ainda na cabeça, no
alto, uma cruz muito branca, feita a giz, e os ‘fiéis’ Albertina do Nascimento, Guiomar de
Souza, Justa Modesto, Zozimo de Faria (um perfeito tabaréo)”. 182 Na Imagem 36, é possível
identificar as três mulheres com um grande traço branco na cabeça, o que provavelmente
seria uma das partes da cruz latina feita com a pemba durante o ritual interrompido pela
polícia. Essa é mais uma função ritualística para um instrumento que atravessou o Atlântico e
que teve suas funções ressignificadas na América, contudo mantendo o protagonismo de sua
gramática centro-africana.
As fotografias captadas na ação conjunta do jornal e da força policial, por sorte,
apresentam maiores possibilidades de análise do que a notícia veiculada em 1919. Sabe-se
que os objetos foram recolhidos pela polícia, dessa forma, creio que a imagem apresentada
pela Gazeta de Notícias seja semelhante à apresentada no mesmo ano, ou seja, os objetos já
recolhidos para servirem de prova, e não como de fato estariam em sua organização
ritualística original (Imagem 37).
182
Gazeta de Notícias, 10 ago. 1918.
183
Gazeta de Notícias, 10 ago. 1918.
282
Contudo os objetos são de grande valia, mesmo fora de sua ordem natural, a começar
pelas duas imagens de Santo Antônio, dispostas lado a lado em meio a duas velas. O santo
utilizado aproxima-se dos encontrados no ano de 1884 na casa de Francisco Firmo, tendo em
vista que ele não foi associado aos manipansos. 184 Era semelhante ao que se encontrava
depositado na mesa de Ana Luiza, na qual ela atendia aos que buscavam por seu auxílio no
ano de 1881. 185 Na imagem também se observa uma estrela ao lado de uma concha do mar,
essa última colocada sobre os já conhecidos punhais que figuravam em todas as casas afro-
cariocas. Colares de contas, chamados muitas vezes de rosários, envolviam um jarro onde
provavelmente se colocavam as bebidas ritualísticas da casa. Havia também espelhos e
utensílios ligados às divindades.
A essa altura, cabe questionar como viviam essas pessoas, o que de fato estava por
trás das perseguições policiais e da imprensa, que acabaram, de certa forma, desvendando
rituais e escolhas no campo do sagrado dos que viveram ao longo do século XIX, momento
de importante ruptura entre o Brasil e os portos escravistas africanos. Para tal, a trajetória de
Laurentino Inocêncio dos Santos pode permitir maiores esclarecimentos das possibilidades
que um líder religioso encontraria em um país em profundas transformações como na
segunda metade do Oitocentos.
184
Jornal do Commercio, 29 ago.1884.
185
Processo de Claudio Alves Pacheco, p. 3-3v. Codes DJE, Fundo 84, Caixa 77, Gal C, Número 1080. Ano
1882. Arquivo Nacional. Depoimento de Ana Luiza do Nascimento.
283
CAPÍTULO 5
A quase totalidade das informações trabalhadas até aqui acerca das casas afro-cariocas
e de seus líderes foi obtida em fontes oriundas da repressão das autoridades competentes
contra donos e participantes de tais espaços litúrgicos. A atuação de Laurentino Inocêncio dos
Santos, seus infortúnios com a polícia e a forma como se relacionava com as instituições
oficiais podem contribuir para se ter a noção de como viviam e se relacionavam com os seus
e, principalmente, a quem interessava aniquilar tais lideranças.
Retomo, desta feita, a vida do curandeiro da Glória que, em um espaço de dez meses,
foi parar três vezes na Casa de Detenção da Corte, ao menos foi o que as fontes revelaram até
o presente momento. Largamente noticiado pela Gazeta de Notícias e pelo Jornal do
Commercio, a prisão feita no dia 23 de março de 1878 mereceu alarde no dia seguinte, 1 e, por
terem os jornais informado que a casa de dar fortuna era em Santa Teresa, a notícia mereceu
uma ampla retificação dos dois veículos de comunicação no dia 26 de março do mesmo ano, 2
com as informações de sua prisão, dos ritos e objetos apreendidos, conforme amplamente
mostrado até aqui. No dia 22 do mês de outubro daquele ano, Laurentino seria levado ao
xadrez por embriaguez e injúrias proferidas contra as autoridades. 3 Em relação à ocasião, já
levantei a hipótese de ter sido um embate movido por ressentimentos da batida policial e
destruição de seu espaço litúrgico sete meses antes. Dez meses depois desse primeiro
episódio, o mesmo comboio policial comandado pelo Dr. Francisco Corrêa Dutra adentrava o
mesmo espaço de cura, amarrações, invocações dos ancestrais, fechamento de corpo, busca
pela pessoa amada, entre tantas outras possibilidades pelas quais os fiéis buscavam
atendimento diante do altar e dos inquices constituídos por Laurentino. Dois dias depois da
festa de Santos Reis, bastante celebrada na cidade do Rio de Janeiro, vinte fiéis participavam
de uma cerimônia na presença de “muitas raízes, pós e águas em vasilhame que embebião
grandes favas e búzios, hervas e caramujos, especialmente em dois quartos onde se achavam
levantados altares com muitas imagens”. 4
1
Gazeta de Notícias, 24 mar. 1878.
2
Gazeta de Notícias e Jornal do Commercio, 26 mar. 1878.
3
Jornal do Commercio, 22 out. 1878.
4
Gazeta de Notícias, 08 jan. 1879.
284
Como já dissertei acerca de tal espaço e de tais objetos, quero apenas destacar a
sacralidade da casa, fato que fez, mesmo diante das possibilidades de profanação do espaço
pelas autoridades competentes, Laurentino se manter no mesmo local e com as mesmas
práticas sagradas ao longo de toda sua vida, no antigo Pendura Saia, no Cosme Velho ou
Ladeira dos Guararapes. No dia 3 de março de 1890, o subdelegado de polícia da Glória fez
apresentar-se Laurentino diante do chefe de polícia Sampaio Ferraz, “por ser dono de uma
casa de dar fortuna e de zungú”. Entre as acusações, continuava pesando o fato de intitular-se
“curandeiro”, por isso acabou tendo seu depoimento encaminhado à Inspetoria Geral de
Higiene para receber posterior multa.5 Criada pelo Decreto 9.554, de 3 de fevereiro de 1886,
contando com 194 artigos, a Inspetoria regulava a saúde pública versando sobre questões de
higiene e salubridade em geral. Estabelecia quem exerceria a medicina e farmácia no país e
quais as situações que permitiam multa e sanções do poder público.6
Quanto à atuação policial de 1890, o pardo Alfredo Luiz Fernades, copeiro de 26
anos, que morava próximo ao espaço sagrado de Laurentino, na Rua das Laranjeiras, no
momento de sua prisão, trajava paletó e colete escuro, uma camisa, calça e chapéu, todos
brancos. 7 Ele foi acompanhado por Emílio de tal, preto, que não teve seu ofício informado na
detenção, tendo declarado apenas ser trabalhador. Contava com 27 anos no momento da
prisão e sua vestimenta em muito se parecia com a de Alfredo, com exceção do chapéu. 8 Por
fim, Raymundo Luciano, um senhor para o contexto, tinha 64 anos, também preto, vestia
calça de cor, sua camisa também era branca, disse ser carpinteiro e seu endereço era o mesmo
de Laurentino, a Ladeira dos Guararapes. Foram soltos dois dias depois e, ao que tudo indica,
visitaram o xadrez por terem desacatado o subdelegado no momento da ação policial. 9
Contudo tal atuação não foi capaz de parar as atividades da casa do antigo Pendura Saia. A
Gazeta de Notícias, como já exposto no capítulo anterior, bradou, no primeiro dia de 1891, e
repetiu o “pedido de socorro” para que a polícia combatesse o “curandeiro” nas Laranjeiras,
que cobrava 12$ por consulta e 300$ ou 400$ para tratar das moléstias, 10 o que, acredito, não
eram apenas trabalhos voltados para saúde física, mas também para amarração da pessoa
amada, combater inimigos, mudar a sorte, entre outras possibilidades. Contudo o que
5
Diário de Notícias, 03 mar. 1890.
6
Dicionário da Administração Pública Brasileira da Primeira República. CABRAL, Dilma. Inspetoria-Geral de
Higiene (1886-1892), Jan 2018. Disponível mm: http://mapa.an.gov.br/index.php/dicionario-primeira-
republica/535-inspetoria-geral-de-higiene-1886-1892. Acesso em: 05 jan. 2020.
7
Livro de Matrícula da Casa de Detenção do Distrito Federal, doravante LMCDDF, ficha 915, doravante f.,
02/03/1890.
8
LMCDDF, f. 916, 02/03/1890.
9
LMCDDF, f. 917, 02/03/1890.
10
Gazeta de Notícias, 01 e 02 jan. 19891.
285
incomodava as autoridades e a imprensa era o fato de o curandeiro exercer a busca pela cura
física, receber boas quantias para tal e ser possuidor de uma vasta e fiel clientela.
A verdade é que Laurentino Inocêncio dos Santos nunca interrompeu suas atividades.
Até o ano de seu falecimento, que se deu em 1895, dividiu seu tempo entre as funções de
sacerdote de um culto afro-carioca e os embates com as instituições competentes. Seu nome
pode ser encontrado no Diário Oficial da República do mesmo ano, nos despachos do dia 14
de março, na seção destinada à “Directoria de Hygiene e Assistencia Publica”, sendo
convocado a prestar esclarecimentos na instituição, 11 o que demonstra que nunca renunciou a
suas atribuições sagradas. Se fosse empregada aqui uma linguagem comum dos séculos XX e
XXI, poder-se-ia afirmar que o seu seria um dos tradicionais terreiros ou barracões do
Oitocentos, com longevidade, respeito e clientela. Caso contrário, não despertaria o
descontentamento contínuo das autoridades…
Analisar os contínuos retornos do curandeiro da Glória ao mesmo palco de atuação
creio que não se faça mais necessário, por conta de toda a descrição já feita do cerimonial
litúrgico realizado dentro desses espaços. Acredito, portanto, que seja, a esta altura, mais
importante compreender a quem incomodava tal ofício. Já demonstrei em outro trabalho, O
bem se relacionar, para sua casa funcionar, que não existia a possibilidade de casas afro-
cariocas atuarem no anonimato, já que suas cerimônias necessitavam de canto, danças,
palmas, incorporações, ou seja, em uma cidade acostumada com o silêncio após o anoitecer e
sem os adventos tecnológicos da modernidade, seria impossível ficar alheio a uma celebração
de tal monta. Nos dias atuais, quem vive em uma região vizinha a um barracão de culto afro-
brasileiro, mesmo com a presença de toda a tecnologia que cerca as famílias, como televisão,
rádio, fones de ouvido, celulares, entre outros equipamentos, não deixa de ouvir o som forte
dos tambores e dos cantos. O que reafirmo é que existiam casas que funcionavam sem
nenhuma intervenção e, como já demonstrado ao longo do trabalho, territorialmente falando,
estavam por toda parte, por vezes, como na Rua do Príncipe, havia mais de uma casa em
pleno funcionamento. 12
Volto às primeiras prisões de que se tem notícia de Laurentino, mas com foco no
responsável por ao menos três dessas detenções, o Dr. Francisco Corrêa Dutra, subdelegado
da freguesia da Glória, morador na Rua do Catete, número 54, na freguesia do Espírito Santo,
11
Diário Oficial da União, quarta-feira, 15 de maio de 1895, p. 7. Disponível em:
https://www.jusbrasil.com.br/diarios/1630852/pg-7-secao-1-diario-oficial-da-uniao-dou-de-15-05-
1895?ref=breadcrumb. Acesso em: 15 set. 2018.
12
POSSIDONIO, Eduardo. Entre ngangas e manipansos – a religiosidade centro-africana nas freguesias
urbanas do Rio de Janeiro de fins do oitocentos (1870-1900). Salvador: Sagga, 2018, p. 103-111.
286
a poucos minutos da Ladeira dos Guararapes, de modo que a fama do curandeiro chegava aos
seus ouvidos, e acredito que muito o incomodava. Francisco Corrêa Dutra, nascido no dia 6
de setembro de 1848, tinha o mesmo nome de seu pai, e sua mãe era Leopoldina C. Batista
Dutra. Graduou-se em medicina pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, a mesma
instituição em que se formaria Nina Rodrigues anos mais tarde. Ao longo de seus estudos,
trabalhou na Santa Casa de Misericórdia, na polícia, atuou como inspetor sanitário até ser
nomeado subdelegado da Glória. 13 Ou seja, Laurentino Inocêncio dos Santos e o Dr.
Francisco Corrêa Dutra eram concorrentes diretos pelos pacientes do Rio de Janeiro, em
especial, pelos moradores das freguesias do Espírito Santo e da Glória. Para sustentar tal
afirmação, cabe conhecer um pouco mais da trajetória do subdelegado, atrapalhado em sua
formação por conta da atuação de curandeiros, principalmente os mais famosos. 14
A mesma plataforma utilizada para desencorajar a sociedade de frequentar casas
propositalmente chamadas de dar fortuna servia também para divulgar o trabalho da
medicina oficial e, da mesma forma, tentar conquistar a preferência dos pacientes. Não foram
raros os casos de desentendimento entre esses profissionais, que, em meio ao século XIX, não
gozavam da plena aceitação de todos. Não existia nesse contexto um consenso acerca de
quais seriam as mais adequadas práticas de tratamento, cirurgias e busca pela cura via
medicina oficial. Sondas esquecidas na bexiga de pacientes foram utilizadas para
descaracterizar o trabalho do outro, o que era respondido com xingamentos, desavenças e
outras atitudes vulgares, como demonstrou Gabriela dos Reis Sampaio, em Nas trincheiras
da cura, quando destacou, entre outras situações, as disputas entre o Dr. Figueiredo
Magalhães, apelidado pelos opositores de Dr. Fura-Uretra, e o Dr. Henrique Monat, o Fura-
Bucho, que fizeram das páginas do jornal O Paiz o palco ideal para suas disputas por
aceitação e reconhecimento.15
Assim, ao longo de todo o Império, médicos lutaram para estruturar e fortalecer o
exercício da medicina oficial em território nacional. Sampaio compreende que é nesse
contexto de formação dos primeiros profissionais, que estes viam a necessidade de combater
13
ABREU, Alzira Alves (coord.). Dicionário histórico-biográfico da Primeira República (1889-1930). Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2015. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/DUTRA,%20 Francisco%20Correia.pdf. Acesso em: 07 jan. 2020.
14
Outro subdelegado teve sua trajetória influenciando em suas decisões contra lideranças afro-cariocas. Refiro-
me a Miguel Tavares, abolicionista responsável por prender Juca Rosa em 1870. Para maior aprofundamento,
ver: SOUZA, Rafael Pereira de. “Batuque na cozinha, sinhá num quer”. Repressão e resistência cultural dos
cultos afro-brasileiros no Rio de Janeiro (1870-1890). Dissertação (Mestrado em História) - Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010, p. 58-60.
15
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult, IFCH, 2001.
287
com maior vigor a prática do curandeirismo, que, como já explicitado, fazia parte, ao menos
em algum momento, de todas as casas afro-brasileiras. Seria nessa esteira a fundação, em
1829, da Sociedade de Medicina da Corte, que, em 1835, tornou-se a Academia Imperial de
Medicina. Não é difícil compreender esse embate, tendo em vista que médicos chegaram ao
Brasil no início do Oitocentos, com o desembarque da família real no Rio de Janeiro. Já a
“arte e o ofício de curar”, com curandeiros, sangradores, barbeiros, benzedeiros, ngangas,
Quibandeiras, entre outros, estavam em território brasileiro desde os primórdios da
colonização, por isso eram tão presentes, respeitados e procurados, no período aqui
analisado.16 As cartas analisadas por Sampaio, publicadas nos jornais, deixam claro que os
médicos eram os últimos a serem procurados pelos doentes. 17
No ano de 1871, em que as atenções da população da corte estavam voltadas para
várias questões importantes, como os debates emancipacionistas que colocariam, anos mais
tarde, fim à escravidão, no campo da cura, o estudante de medicina Francisco Corrêa Dutra
Júnior viu, em poucas linhas do Jornal do Commercio, a informação de que havia participado
com sucesso de uma operação de olhos, comandada pelo Dr. Ataliba de Gomensoro, 18
enquanto o processo do Pai Quimbombo, Juca Rosa, que exercia várias práticas de cura em
suas cerimônias, ganhava ampla divulgação nos jornais e periódicos, com grande interesse
popular. No mesmo ano, o Diário de Notícias dava destaque à prisão do africano mina Felipe
Miguel, preso pelas mãos do Dr. Miguel José Tavares, o mesmo subdelegado que encarcerou
e conduziu o inquérito de Juca Rosa, cujas cerimônias ocorriam no sobrado número 57, na
Rua da Conceição, na freguesa do Sacramento. 19 Creio que, para os médicos, a situação era
dúbia, com pouco espaço para divulgação de suas ações, já que, como de costume, as casas
com certo número de participantes e, portanto, respeito ganhavam mais de um dia de
informações no mesmo jornal.
A casa do africano mina, por exemplo, contava com a participação de várias mulheres
no momento da batida policial. E, não por acaso, voltava ao noticiário sua soltura no dia 28
de abril, depois de pouco mais de dez dias na detenção. 20 É fato que o espaço dedicado às
denúncias tinha a missão de destruir a ação de tais líderes, como um projeto de nação, como
se evidenciou nas informações da primeira prisão do africano mina:
16
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura…, 2001, p. 24-25.
17
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura…, 2001, p. 68.
18
Jornal do Commercio, 25 mar. 1871.
19
Diário de Notícias, 14 abr. 1871.
20
Diário de Notícias, 29 abr, 1871.
288
Conhecemos uma plêiade numerosa dessa espécie de pretos que produzem
feitiçarias e sortilégios; que predispõem dos haveres e dos indivíduos; que á
sombra, e sob o poder da sobrenaturalidade praticam actos que a moralidade pune a
religião condena que passeiam por ahi de cabeça erguida, despendendo grandes
somas de bachanaes; mas a polícia não póde sem tempo, avassalar essas regiões
malditas, onde habita a maldade e se acouta a harpia da superstição e do crime. 21
21
Diário de Notícias, 14 abr. 1871.
22
Diário de Notícias, 24 nov. 1870.
23
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. A imprensa como uma empresa educativa do século XIX.
Caderno de Pesquisa, São Paulo, n. 104, p.145-147, 1998.
24
PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia. A imprensa como uma empresa educativa do século XIX..., 1998,
p.147.
289
Em Opinião Pública, Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves chamou a atenção para o
uso da oralidade em sociedades marcadas pelo Antigo Regime. Não por acaso, denúncias aos
promotores do Santo Ofício eram feitas por vizinhos, parentes, conhecidos, que, na maior
parte dos casos, no momento dos depoimentos, deixava claro: “soube por ouvir dizer”. 25
Ressalto que, em vários momentos dos depoimentos que envolveram autoridades religiosas
trabalhados até aqui, testemunhas buscando não se envolver com os acusados, também
lançavam mão da mesma expressão. Dessa maneira, ao longo do Oitocentos, jornais não
serviam apenas para o pequeno público leitor desse período, mas atendiam a uma grande
parcela da sociedade que se reunia nos cafés, bares, como o de Laurentino, na Rua da
Misericórdia, número 40, que se popularizaram e tornaram-se espaços de discussões e
debates públicos, bem como em espaços mais refinados, como as academias, livrarias,
sociedades secretas, sempre ampliando a possibilidade de retirar os assuntos dos espaços
privados e transportá-los para a vida cotidiana.
A maioria dos assuntos envolvia questões políticas de uma nação que estava em plena
construção, motivo pelo qual as autoridades estavam sempre atentas às aglomerações e aos
espaços de debates. O intendente de polícia no Rio de Janeiro chegou a afirmar que o
“espírito público se corrompia no Rio de Janeiro”.26 Pereira das Neves destacou que livros e
jornais eram lidos em pequenos ou grandes auditórios, como a autora captou a percepção de
Rugendas: “Gente de todas as classes se entrega a conversações políticas [...] essas discussões
em plena rua lembram a vida pública dos antigos, formam a opinião e a exprimem”. 27
Segundo Marcos Morel, a opinião pública, na visão dos agentes escritores do Oitocentos,
deveria seguir os mesmos princípios iluministas de condução da sociedade, não devendo se
prestar ao papel sedicioso de conflitos, tais como os que abalaram as estruturas do Império
durante a Regência. Devia evitar, portanto, os “desacertos populares” e as “efervescências
frenéticas”, cabendo ao intelectual, “[...] dirigir a opinião pública, e levá-la, como pela mão,
ao verdadeiro fim da felicidade social”, esse seria um dever como cidadão.28 Ou seja, aqueles
que se dedicavam a escrever nas páginas de jornais e periódicos deveriam estar
25
NEVES, Lucia M. Bastos Pereira das. Opinião pública. In: FERES JÚNIOR, João (org.). Léxico da história
dos conceitos políticos no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009, p. 181-202.
26
NEVES, Lucia M. Bastos Pereira das. Opinião pública..., 2009, p. 184.
27
RUGENDAS, João Mauricio. Viagem pitoresca através do Brasil. Tradução de Sérgio Milliet. Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, [1835]/1979, p. 223, apud NEVES, Lucia M. Bastos Pereira das. Opinião
pública..., 2009, p. 185.
28
MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos. Imprensa, atores políticos e sociabilidades na
cidade Imperial (1820-1840). São Paulo: Editora Hucitec, 2005, p. 202-203. (Capítulo - Opinião pública.)
290
comprometidos com a agência da opinião pública, mas nunca com a ideia de liberdade de
expressão, vista como perigosa em uma sociedade oficialmente católica como no século XIX.
O termo opinião pública, como bem destacou Morel, foi, ao longo de todo o
Oitocentos, não só polissêmico, mas também polêmico, 29 só podendo ser compreendido,
portanto, como uma concepção historicamente datada, principalmente quando se busca
compreender em conjunto o nascimento de duas instituições, a medicina e a imprensa,
seguido da conexão de ambas para caminharem em uma nação em construção. Os primeiros
jornais a circularem no Brasil, segundo Morel, não foram constituídos como formadores de
opinião, mas apenas eram comunicadores de atos oficiais do governo, como a Gazeta do Rio
de Janeiro, primeiro jornal autorizado a ser impresso e a circular livremente no Brasil após a
chegada da Família Real. Após o movimento de independência é que a imprensa começa a se
transformar em espaço de questionamento. Não por acaso, no período regencial, ocorre a
explosão da palavra público, “Rainha do Mundo”, “Sua majestade Opinião Pública”. 30
Destaco que a conexão construída e estabelecida até aqui entre a imprensa, como a
condutora da opinião pública, os médicos, representando o advento da modernidade para uma
nação recém-independente, e a intensa atuação de homens e mulheres africanos ou
brasileiros, chefes de casas religiosos que se ocupavam dos mais variados assuntos, entre os
quais a busca pela cura, pode ser vista e compreendida quando da oitava edição do
Diccionario da língua portuguesa de Antônio de Moraes e Silva. Essa obra foi publicada em
1890, pela Editora Empreza Litteraria Fluminense, com sede no Rio de Janeiro, na Rua Sete
de Setembro, número 81, 66 anos após a morte de Morais e Silva. Nela, o editor explicitava
que, devido ao “desenvolvimento da sciencia linguística”, o trabalho teria sido
“cuidadosamente” revisado, resultando em “numerosas alterações”: “[…] A muitas palavras
accrescentaram-se novos significados, e augmentou-se o vocabulário com muitos termos
novos, que o progresso em todos os ramos do saber humano tem introduzido na nossa
língua”.31
Foi nesse contexto de mudanças e melhoramentos que a oitava edição do referido
dicionário trouxe, pela primeira vez, a definição da expressão “opinião pública”, deixando
claro que ela estava em constante construção ao longo do Oitocentos: “[...] o que o público
pensa; o que o público diz ou julga em geral a respeito de uma questão social, política,
econômica, patriótica ou de interesse nacional, ou sobre pontos de religião, de moralidade,
29
MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos..., 2005, p. 200.
30
MOREL, Marco. As transformações dos espaços públicos..., 2005, p. 208-211.
31
SILVA, Antônio de Moraes. Diccionario da língua portuguesa. 8. ed. ver. e melhorada. Rio de Janeiro:
Editora Empreza Litteraria Fluminense, 1890. p. 5-6. 1 v.
291
de honra”. 32 Duas situações ficam aqui evidentes, religião e moralidade estavam, sem a
menor dúvida, relacionadas às práticas afro-brasileiras que levavam ao interior das casas
pessoas dos mais variados estratos sociais, que, se questionadas à época, intitular-se-iam
católicos. Mas não creio que essa preocupação existia por conta da necessidade de preservar a
instituição do catolicismo romano, e aí entra a segunda situação: como não existia uma
profissão de jornalista, aqueles que tinham outras atividades laborais dividiam seu tempo
escrevendo para jornais e periódicos, dessa forma, médicos se apropriavam dessas
possibilidades e lançavam mão da imprensa para não somente legitimarem seus ofícios
perante uma sociedade descrente, como destacou Gabriela dos Reis Sampaio, em Nas
trincheiras da cura, mas também caberia a eles a busca pela desconstrução da imagem dos
curandeiros,33 muito mais populares na corte e em todo território brasileiro quando da
instituição da medicina no Brasil.
Negócio, política emancipacionista e ciência formaram a simbiose para o
desenvolvimento da chamada imprensa médica, como destacou Luiz Otávio Ferreira, em
Negócio, política, ciência e vice-versa: uma história institucional do jornalismo médico
brasileiro entre 1827 e 1843, 34 local de defesa dos interesses da classe e uma tentativa de
simplificar o contato com os populares. Médicos e literatos, ao longo da segunda metade do
século XIX, acreditavam na missão de prestarem um serviço ao país, que, recém-
independente, buscava construir um ideal de nação. Nos debates do dia, estavam as leis
emancipacionistas, misturada a isso, a ideia de construir um país sem os “vícios” do elemento
negro. Nessa perspectiva, encontra-se a atuação do médico Carlos Costa, editor do jornal A
Mai de Familia, que se dedicava a ensinar às mulheres de família a arte de bem educar seus
filhos. Entre os vários exemplos de boas maneiras, estava o combate à centenária prática da
ama de leite.35
Portanto, essa era mais uma frente de atuação de acadêmicos, na tentativa de
combaterem seus piores rivais. Creio, contudo, que era nos jornais e periódicos voltados para
o grande público que as ações de maior intensidade aconteciam. Não por acaso, todas as
notícias apresentadas até aqui, referentes aos sacerdotes de cultos afro-brasileiros, visavam
32
SILVA, Antônio de Moraes. Diccionario da língua portuguesa…, 1890. p. 439. 2 v., grifos meus.
33
SAMPAIO, Gabriela dos Reis. Nas trincheiras da cura: as diferentes medicinas no Rio de Janeiro imperial.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, Cecult, IFCH, 2001, p. 25.
34
FERREIRA, Luiz Otávio. Negócio, política, ciência e vice-versa: uma história institucional do jornalismo
médico brasileiro entre 1827 e 1843. História, Ciência, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 11 (suplemento
1), p. 93-107, 2004.
35
CARULA, Karoline. Educação feminina em A Mai de Familia. In: CARULA, Karoline; ENGEL, Magali
Gouveia; CORRÊA, Maria Letícia (org.). Os intelectuais da nação: educação, saúde e a construção de um
Brasil moderno. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2013.
292
desacreditá-los perante a sociedade, apresentá-los principalmente como feiticeiros, o que,
como já demonstrei, atingia em cheio a crença de líderes e participantes. Dessa maneira,
jornais e periódicos, para a sorte dos pesquisadores das culturas religiosas do Oitocentos,
tentavam apresentar o maior número de detalhes possíveis acerca do que compreendiam
como casas de dar fortuna. Por vezes, tais cuidados com as observações eram maiores que o
dos próprios agentes policiais, responsáveis por todo trâmite que envolvia uma batida policial
em uma dessas casas.
Foi o que ocorreu quando da narrativa do caso, em 1885, de João Camilo, africano
mina de 70 anos, pedreiro, morador do Jardim Botânico, 36 e de sua companheira Mariana
Antônia da Conceição, brasileira de 54 anos, cozinheira. 37 Se o pesquisador se limitar às
fichas de matrícula da Casa de Detenção da Corte, descobrirá apenas que a prisão do casal se
deu por um motivo que era o genérico termo bastante usual no contexto: “vagabundo” e
“vagabunda”. Mas, se cruzar as informações da Detenção com a publicação da Gazeta de
Notícias sobre a mesma situação, verá que se descortinam informações de grande relevância:
36
LMCDC, f. 3759, 28/07/1885.
37
LMCDC, f. 3760, 28/07/1885.
38
Gazeta de Notícias, 29 jul. 1885, grifo do original.
293
de 1870, o estudante já se incomodava com aqueles que, sem dúvida, eram os grandes
obstáculos para o exercício da medicina oficial, o que o fez assinar dois folhetins no Diário
de Notícias com o título de: OS FEITICEIROS DA CORTE, nos dias 2 e 12 de outubro do
mesmo ano, prometendo, sem sucesso, a continuidade do folhetim.39
Antes de entrar no universo literário de Francisco Corrêa Dutra Júnior, ressalto que,
de forma instigante, Gabriela dos Reis Sampaio, ao analisar a trajetória de Juca Rosa,
desvendou os conflitos existentes na imprensa da corte ao tratarem do afamado Pai
Quimbombo. Ao abordar a mesma coluna, mesmo sem falar da autoria, Sampaio destaca que
essa veio antes da denúncia anônima que culminou na prisão, no inquérito e no processo
contra o líder religioso. Essa autora destacou a briga entre os jornais, tais como O Mosquito e
O Lobisomem, que acusavam o Diário de Notícias de fomentar o fenômeno Juca Rosa para
impulsionar suas vendas, assim, até mesmo a própria denúncia anônima entregue ao
subdelegado Miguel José Tavares seria do jornal. 40 Acredito na teia de possibilidades
construída pela autora, envolvendo imprensa e denúncia contra sacerdotes afro-cariocas, e
acrescento que, em meio a esse emaranhado, estudantes e médicos tiveram papel fundamental
para denunciar, prender e tentar coibir práticas curativas, misturando a boa abertura que
tinham na imprensa com a ocupação dos principais cargos da administração pública e a
escolha das pautas governamentais.
A família Corrêa Dutra tinha amplo acesso às páginas dos principais jornais da corte,
em que eram anunciados missas, exéquias, negócios, agradecimentos, entre tantas outras
possibilidades, dessa forma, garantindo espaço para escrever um folhetim, por mais
importante que fosse este nos jornais. Creio que analisar as duas publicações do estudante de
medicina, que assinou como Corrêa Júnior, ajude e muito a elucidar as três prisões de
Laurentino em menos de um ano. Em seu primeiro folhetim, Corrêa Júnior, mesmo
escondendo parte de seu nome, quase entregou seu ressentimento ao relacionar, mesmo que
pejorativamente, o ofício do feiticeiro com a medicina oficial: “o feiticeiro não é um médico
simplesmente para as enfermidades do espírito, também cura as do corpo! É mais scientifico
que os próprios scientificos, no dizer delle”.41 Por essa afirmativa, mostrou que não podia
deixar de chamar tal ciência de “indústria”, ressaltando a organização bem como a
propagação das casas comandadas por “feiticeiros”.42 Aqui entrava em cena o “Homem da
39
Diário de Notícias, 02 e 12 out. 1870.
40
SAMPAIO, Gabriela Reis. Juca Rosa: um pai-de-santo na Corte Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
2007, p. 38-53.
41
Diário de Notícias, 02 out. 1870, grifos do original.
42
Diário de Notícias, 02 out. 1870.
294
sciencia”, pois, mesmo que ainda estudante, ele bebia na fonte da famosa Geração de 1870,
cujos membros, como bem disse Lilia Moritz Schwarcz, em O espetáculo das raças,
“tomaram para si a quixotesca tarefa de abrigar uma ciência positiva e determinista, e,
utilizando-se dela, liderar e dar saídas para o destino desta nação”.43
Essa autora destacou os desafios para a implementação da faculdade de medicina na
Bahia e no Rio de Janeiro nos primeiros quarenta anos. Professores desrespeitados, ausência
de estrutura para o desenvolvimento das disciplinas, incoerências nas aplicações das
avaliações, o que só tenderia a mudar na década de 1870, com a guinada na produção
científica, contando com novas publicações, cursos organizados, 44 ou seja, foi o momento
marcado pela geração de intelectuais que acreditavam serem os responsáveis pela construção
da nova nação. 45 Outro fenômeno já constatado pelos estudos sobre a medicina no Brasil, em
que o estudante Francisco Corrêa Dutra Júnior se encaixava perfeitamente, era a ampla
utilização da imprensa para fins de divulgação do ofício. Tratava-se de veículos
especializados, a chamada imprensa médica do país. O jornalismo científico, como destacou
Schwarcz, culminaria no abandono da imprensa cotidiana. 46 Contudo o jovem estudante de
medicina, nos idos de 1870, desejoso de engajar-se na luta contra o que compreendia ser
bárbaro, o atraso da nação e principal empecilho para seu futuro ofício, vislumbrou no
folhetim a forma de atingir o público, já que esse gênero era o mais concorrido e buscado
pelo leitor simples, que, na prática, era cliente dos líderes curandeiros afro-cariocas.
Corrêa Júnior reclamava do fato de vários escritos se dedicarem aos “indivíduos que
vivem sem saber como vivem”, mas, quando se tratava dos “feiticeiros”, segundo o estudante
de medicina, faltava a mesma atenção. Ele tinha duas intenções em seu folhetim. A primeira
era provocar a polícia para que tomasse providências contra os “tantos negros e pardos
entregues a essa indústria”, deixando claro que: “É, mui principalmente para ella que fallo,
que escrevo, para que estirpe o veneno que contamina a sociedade, corroendo-lhe as mais sãs
entranhas”.47 Outra intenção era a de instruir a sociedade a temer os líderes afro-brasileiros e
seus credos, para o que tentou, de todas as formas, animalizar suas práticas: “O feiticeiro não
é um homem, é um monstro, é o carnívoro devorador da paz doméstica, é o alvião que abre
43
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil – 1870-
1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 18.
44
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças…, 1993, p. 197-198.
45
ALONSO, Ângela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil Império. São Paulo: Paz e Terra,
2002.
46
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças…, 1993, p. 198-199.
47
Diário de Notícias, 02 out. 1870.
295
lentamente, ao abrigo das leis, a sepultura da família social”.48 Tais figuras estariam por toda
parte, limpando “a lama dos grossos sapatos nos finos tapetes”, deixando claro que tinham
entrada nos mais finos salões da alta sociedade. Aqui seu texto não deixava de conter a
denúncia de que tais casas eram frequentadas por todas as camadas sociais, inclusive a fina
flor da sociedade, como deixou claro o processo de Juca Rosa e de tantos outros líderes
religiosos. Corrêa Júnior alertava que viscondessas eram tratadas como mulheres de
sapateiros, e, não respeitando as diferenças sociais estabelecidas em uma sociedade de Antigo
Regime, tinham esses “feiticeiros” ares de juízes, como aquele que “julga, condemna e
absolve”.49 Aqui, mesmo tentando a todo custo difamar a atuação de lideranças afro-
brasileiras, não deixava de reconhecer sua autoridade. 50
Pelo folhetim do dia 2 de outubro, fica evidente que Corrêa Júnior conhecia bem os
espaços afro-religiosos e, pelos detalhes que apresentava, é bem provável que frequentasse
tais casas ou que tenha se aprofundado muito bem no assunto, a tal ponto de saber que existia
diferença entre os cultos, de acordo com a procedência de cada líder: “Ha feiticeiros de todas
as côres como os ha em todas as classes, e pertencem a ceitas diversas. Os feiticeiros brancos
tem um oraculo a quem invocam, e os negros outro. O oraculo dos pardos como os dos minas
não é o mesmo que o dos negros da costa”. 51 A semelhança de seu escrito com a trajetória de
Juca Rosa é tamanha, que em um momento afirma que os líderes religiosos atendiam e
realizavam suas cerimônias “de casa em casa”, tal como o Pai Quimbombo, morador na Rua
do Núncio, mas que, além da Rua Larga de São Joaquim, exercia seus ritos nos mais variados
endereços do Rio de Janeiro, conforme as testemunhas deixaram claro em seus depoimentos.
Não custa lembrar que Antônio Francisco era morador da Rua dos Inválidos, mas dobrou seu
quarteirão e foi atender às demandas de Maria José Cordeiro, na Rua do Lavradio, em 1899.
A possibilidade de atrair “com um olhar, com um sorriso, com a melodia da palavra, a
mulher por quem se quer fazer amar”52 ganhou destaque no folhetim do estudante de
medicina, aproximando-o das casas analisadas até aqui, ou seja, as famosas amarrações
estruturadas por meio dos pontos cantados e riscados. O responsável pela conexão entre os
pedidos e quem buscava por algum auxílio era o “santo”, que, segundo o denunciante, tudo
sabia, tudo ouvia e falava, sendo essa uma clara referência à incorporação necessária na
maioria das cerimônias realizadas ao longo do século XIX. Segundo Corrêa Júnior, o santo
48
Diário de Notícias, 02 out. 1870.
49
Diário de Notícias, 02 out. 1870.
50
Trabalhei essa dubiedade em: POSSIDONIO, Eduardo. Nas entrelinhas, o respeito: perseguição, rebeldia e
crença nos periódicos do século XIX. Anais da Biblioteca Nacional, v. 135-136, p. 231-224, 2015/2016.
51
Diário de Notícias, 02 out. 1870.
52
Diário de Notícias, 02 out. 1870.
296
invocado pelo feiticeiro era feito de “um pedaço de páo enfeitado de brancas pennas de
gallinha, e fios de missanga é o santo adivinhador e milagroso a quem invoca no momento
precioso de sua mysteriosa quanto criminosa indústria”. 53 Essa é uma referência clara aos
inquices ou manipansos, como ficaram popularizados no mesmo contexto em todo o Sudeste
brasileiro, entre outros motivos, graças à atuação da imprensa.
O tratamento recebido pelas lideranças afro-cariocas também mereceu atenção do
jovem cientista, que destacou que os participantes eram chamados de “filhos” “e
essencialmente áquelles que tem o máo senso de o acreditar”. Creio tratar-se dos iniciados
nos mais variados credos conforme demonstrei anteriormente. Juca Rosa, por exemplo,
chamava de filhas somente aquelas que passavam por determinado ritual. Mesmo sem a
intenção, Corrêa Júnior capta o respeito com que seus filhos se dirigiam a tais lideranças,
quando lhe pediam a benção ou quando eram tidos por seus seguidores como pai. Esse, por
sua vez, carregava um “samburá” repleto de ervas, alfazema, arruda, pequenos pedaços de
pau, além de outros apetrechos. Após ouvir os que procuravam por seu auxílio, apresentava
“o seu miraculoso pensamento inspirado pelo seu poder sobrenatural”, ocorrendo, depois
dessa etapa, a entrega das “mezinhas”,54 que me parece serem os preparos de amarrações
feitos nas casas de Rosa e dos demais líderes religiosos.
O estudante Francisco Corrêa Dutra demonstrava conhecer bem as casas afro-cariocas
e seus líderes tal a riqueza de detalhes que apresentou no folhetim da edição de número 53 do
Diário de Notícias. Evidentemente demonstrava tal conhecimento da forma mais pejorativa
possível, visando mexer, de alguma maneira, com os brios da polícia. Propagava, portanto, a
ideia de defloramento de donzelas e desrespeito a moças e senhoras de família, além de
propagarem “venenos” por onde passavam. Em sua saga para denunciar o que compreendia
por feiticeiro, bradou: “Elles rastejam por ahi a toda a hora de cabeça alta em seu viver
mysterioso, arrastando comsigo uma cadêa de desgraças. A presença desse home tem o poder
do demônio […]”.55
Dez dias após o primeiro folhetim, o jovem estudante de medicina obteve novo
espaço no Diário de Notícias para dar continuidade ao seu raciocínio. Logo de início, é
preciso concordar com o exposto: “Fitemos á noute a imensa abobada do vasto globo que nos
cerca e vejamos se é possível contar as estrellas. Assim nos é impossível tirar d’entre os
53
Diário de Notícias, 02 out. 1870.
54
Diário de Notícias, 02 out. 1870.
55
Diário de Notícias, 02 out. 1870.
297
indivíduos o numero dos feiticeiros”.56 De fato, um olhar atento e apurado para as fontes do
século XIX revelam um Rio de Janeiro da segunda metade da centúria tomado por casas
religiosas com liturgia afro-brasileira, principalmente nas freguesias urbanas da corte, onde
uma simples rua poderia ser disputada palmo a palmo. Por exemplo, ao lado da casa de
Francisco Firmo, africano benguela, nganga aqui já apresentado, existia em pleno
funcionamento a casa litúrgica de outro africano, o mina Francisco Antônio, de 79 anos,
acusado de ser dono de zungú e de ser “ébrio habitual”. Sua casa era no Beco dos Ferreiros, 57
paralelo ao antigo Beco da Boa Morte. Cabe lembrar que a mesma Rua do Príncipe abrigou a
afamada Rainha Mandinga, Laurentino em 1880 e, em 1902, Mamãe Bernardina iniciava ali
suas meninas com a feitura de santo, com base na tradição dos nagôs. 58
Espaços semelhantes aos sobrados do atual Centro do Rio de Janeiro, marcados pelo
tempo e alguns tristemente pelo abandono, configuraram os espaços litúrgicos do século XIX,
onde ocorriam as mais variadas cerimônias afro-brasileiras, passando pelos rituais de
iniciação e pelas amarrações. A Imagem 38, uma fotografia de Augusto Mota, mesmo
separada pelo espaço de sessenta anos, apresenta uma boa dimensão de tais espaços utilizados
por sacerdotes e sacerdotisas ao longo do Oitocentos. Corrêa Júnior oferece importantes
56
Diário de Notícias, 12 out. 1870.
57
LMCDC, f. 2900, 07/06/1882. Francisco Antônio também visitou a Detenção sete meses antes pelo mesmo
motivo que no ano de 1882. Ver: LMCDC, f. 6223, 22/12/1881.
58
Ver imagem 23.
59
MALTA, Augusto, 1864-1957. Beco dos Ferreiros, 01/04/1941. Centro (Rio de Janeiro, RJ)/Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro.
298
detalhes desses espaços, com ar misterioso e, claro, o tom folhetinesco, maior até que o do
primeiro escrito, chamava a leitora para dentro do universo a ser desvendado. E, se a primeira
tentativa era a de pedir atitudes dos poderes competentes, a edição do dia 12 escolhia como
foco as mulheres presentes em grande número nas casas afro-cariocas e, provavelmente, as
maiores clientes de tais sacerdotes.
Dessa forma, são convidadas a observarem “a porta meio fechada, corredor escuro”,
onde uma segunda porta permitia ver uma escada e uma imensa “borla do cordão” que
prendia a campainha, que, de forma “surda e tétrica”, servia para avisar que pessoas
acabavam de chegar ao espaço. Ao tratar do salão, descreveu o seguinte:
Nada falou sobre imagens e altares, mas chamo a atenção do caminho percorrido para
chegar ao interior das casas, sendo necessário fazê-lo pelo acesso da escada, dando a
compreender que os rituais passavam-se no andar superior das residências. 61 No relato
também aparece o quarto onde reservadamente eram preparadas as substâncias, longe dos
olhares dos demais participantes. Motivos numéricos não faltavam a Francisco Corrêa Dutra
Júnior para temer pelo seu ofício. Creio que seja possível ampliar a análise para além dos
conhecimentos propagados nas faculdades de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, onde a
questão racial pautava os debates sobre qual nação deveria ser pensada e construída. Mais do
que essa influência, estava na mesa a sobrevivência profissional de uma carreira custosa, que
necessitava de uma forte dedicação do aluno e que, mesmo gozando do prestígio de uma
formatura em uma sociedade marcada pela exclusão social, não angariava a confiança de
pacientes e de grande parcela da população, graças, evidentemente, à atuação dos
curandeiros, tachados pelo jovem estudante de medicina de feiticeiros.
No segundo folhetim, Corrêa Júnior tentou associar a imagem dos “feiticeiros” à ideia
de encontrar os amores desejados e não perder a pessoa amada, o que não seria nenhuma
mentira para tais casas. A novidade é que, na tentativa de alertar as senhoras de família, avisa
que os “feiticeiros” não eram tão feios como se pintavam, ao contrário, seriam belos
sedutores. É provável que aqui estivesse se valendo da fama de Juca Rosa ser amante de
60
Diário de Notícias, 12 out. 1870.
61
Cabe voltar aos relatos da casa da Rainha Mandinga, em que a descrição de corredores e salão na parte
superior do imóvel são semelhantes às descritas por Corrêa Júnior.
299
várias mulheres que o seguiam, incluindo pessoas ligadas à alta estirpe da sociedade. Mas não
deixava de ser um alerta. Ao terminar, prometeu o que não pôde cumprir, que as publicações
de Os feiticeiros na corte continuariam.
Em 1874, Francisco Corrêa Júnior cursava seu sexto ano da Faculdade de Medicina
no Rio de Janeiro, e o mês de novembro foi marcado pelos exames escritos e orais, sendo
todos com convocação pública pelo Jornal do Commercio, com divulgação das aprovações
e/ou reprovações dos alunos. 62 Nesse mesmo período, Juca Rosa já estava na detenção
cumprindo pena, mas continuava servindo de referência nos jornais para sempre ilustrar o
combate às casas de dar fortuna da corte. Tornou-se corriqueira a denúncia contra líderes
afro-cariocas nas páginas da imprensa. Relacionado a esse fenômeno credito à constante
atuação dos profissionais da medicina oficial, estudantes ou formados, uma intensa cruzada
contra aqueles que, sem sombra de dúvida, roubavam-lhes a clientela. A propósito, nos dias
10 e 11 de novembro, o mesmo veículo de comunicação que convocava para as avaliações
anuncia com louvor a aprovação em todos os exames de Corrêa Júnior.63 No dia 15 do
mesmo mês e ano, Francisco Corrêa Dutra Júnior e Fernandina Umbelina da Conceição
Fernandes tiveram seus proclamas lidos nas missas da Capela Imperial, situada na Rua da
Direita.
62
Jornal do Commercio, 4 nov. 1874.
63
Jornal do Commercio, 10 e 11 nov. 1874.
64
LEUZINGER, Georges. Rua Direita e Capela Imperial. Centro do Rio de Janeiro, 1865. Acervo Instituto
Moreira Sales. Disponível em: http://acervos.ims.com.br/#/search/capela%20imperial. Acesso em: 14 jan. 2020.
300
A Imagem 39, de George Leuzinguer, mostra as duas construções dedicadas a Nossa
Senhora do Monte Carmelo. A primeira, um pouco menor, era a Capela Imperial, tomada em
1808 dos carmelitas por Dom João ao desembarcar na cidade, desejoso de ter uma mais
próxima do centro administrativo da Sé. A segunda pertencia à Ordem Terceira do Carmo, ou
seja, era dedicada à devoção dos leigos. Mas o que pretendo destacar é a alta inserção que a
família de Francisco Corrêa Júnior tinha na sociedade imperial. É bem verdade que o fato de
cursar medicina já estabelece que não se tratava de alguém de origem simples no Rio de
Janeiro, mas quero ressaltar as possibilidades que socialmente se apresentavam diante
daqueles que se opunham às atividades de curandeiros no Império. Em tal contexto, o Rio de
Janeiro era marcado pela forte presença das irmandades, cada qual com seu grupo social
específico, demonstrando a forte estratificação que marcava uma sociedade de Antigo
Regime. No caso em questão, tratava-se de participar do mesmo espaço que a fina flor da
corte imperial.
Por ter sido aprovado nos exames de novembro, Francisco Corrêa Júnior foi
convocado a comparecer às 10 horas do dia 10 de dezembro na Faculdade de Medicina, a fim
de defender sua tese, como aluno do sexto ano da segunda turma de cirurgia.65 Seu trabalho
versava sobre o melhor método de tratamento dos estreitamentos orgânicos da uretra,
problema que até os dias atuais afeta grande número de homens no país, a chamada estenose
de uretra, que acarreta a interrupção completa do fluxo urinário. No mesmo período de defesa
de sua tese, ocorreu no salão de sessões da Santa Casa de Misericórdia sua colação de grau,
na “augusta presença de S. M. Imperador e perante um numeroso concurso de senhores e
pessoas gradas”, bem como o juramento dos alunos graduados em Farmácia. Formado nessa
última categoria, no mesmo ano de Corrêa Dutra, estava nada mais nada menos que José
Carlos do Patrocínio, escolhido por sua turma para fazer um dos três discursos diante de Dom
Pedro II endereçados aos farmacêuticos.66
Em janeiro do ano seguinte, o mesmo Jornal do Commercio anunciava que a tese do
agora Dr. Corrêa Dutra sobre o tratamento dos estreitamentos orgânicos da uretra e do Dr.
José Gomes do Amaral acerca das operações para obliteração das artérias seriam publicadas
brevemente. O curioso é que, acima de tal informação, na mesma seção denominada
Imprensa, vinha o seguinte anúncio: “Appareceu a primeira caderneta de uma Revista
espirita, publicação mensal de estudos psychologicos, feita sob os auspícios de alguns
65
Jornal do Commercio, 10 dez. 1874.
66
Jornal do Commercio, 20 nov. 1874.
301
espiritas e redigida pelo Sr. A. da Silva Netto”.67 Curiosamente, mais uma vez cruzavam os
caminhos do jovem doutor e de uma doutrina religiosa que acabava de desembarcar na corte,
mas que seria abraçada principalmente pelos que exerciam cultos afro-cariocas influenciados
por uma gramática centro-africana. Sim, como já descrito em outros capítulos, o complexo de
crença dos povos bacongos, ambundos e ovimbundos permitia a incorporação de novos
elementos sem que fossem alteradas as bases litúrgicas de seu credo. Dessa forma, ressalto
que não apenas as práticas curativas das sociedades secretas dos kimpasis ou dos Lembas
construíram um universo de serviços religiosos e sociais, que permitiam aos moradores do
outro lado do Atlântico buscarem refrigério para seus sofrimentos físicos, mas também a
doutrina codificada e propagada pelo francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, mais
conhecido por seu pseudônimo de Allan Kardec, ampliaria as possibilidades das crenças afro-
cariocas, não somente na esfera litúrgica, mas como estratégia para combater as constantes
investidas dos mecanismos oficiais republicanos, principalmente após a promulgação do
Código Penal de 1890, com seus artigos 156, 157 e 158 tipificando como crime as práticas de
espiritismo e curandeirismo. 68
67
Jornal do Commercio, 26 jan. 1875.
68
MAGGIE, Yvonne. Medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992. Em seu importante trabalho, essa autora destacou a crença na magia maléfica e benéfica,
construída com base nas perseguições ocorridas ao longo do Oitocentos, além dos termos magia negra e magia
branca. Tais denominações serviram para demarcar terrenos no século XX do que seriam as práticas afro-
cariocas marcadas predominantemente por elementos africanos, e, portanto, associadas aos malefícios e à magia
negra, além das práticas influenciadas pelo espiritismo kardecista, rapidamente associado à magia branca e ao
benéfico. A suposta “fundação” da umbanda ao longo da primeira década do século XX pelo jovem Zélio
Fernandino de Morais estaria amplamente influenciada por essas perspectivas do contexto. Não por acaso, opta
por estabelecer o que denominou “Umbanda Pura”, livre das influências africanas.
302
precedida do anúncio da revista coordenada por Silva Netto, já que o Grupo Confúcio
abrigava a figura dos “médiuns curadores”, responsáveis por buscarem a cura por meio de
“elementos homeopáticos”.69
Em meio às possibilidades que poderiam constranger um estudante de medicina no
pleno desenvolvimento de seu ofício, descortina-se uma das principais junções ocorridas nas
Américas entre os variados credos que até então tinham sido constituídos por uma gramática
centro-africana. O espiritismo kardecista chegou ao Brasil na segunda metade do século XIX
e foi ganhando cada vez mais espaço nos mais diversos meios da sociedade, além de
apresentar características doutrinárias que muito o aproximavam das crenças centro-africanas
que povoaram as mais variadas regiões escravistas do Império. Dessa forma, creio que, mais
importante do que as obras de Allan Kardec, seja a análise das primeiras revistas espíritas no
Brasil, que representaram, de algum modo, a maneira como a doutrina kardecista chegou e
foi propagada não só entre os adeptos, mas também entre o público leitor em geral, uma vez
que, como já destacado, as matérias dispostas nas páginas de jornais e periódicos ganhavam
as ruas por meio das conversas nos cafés, nos bares, nas associações e nas mais variadas
possibilidades.
Ressalto, entretanto, que não pretendo aqui desenvolver uma análise aprofundada da
doutrina espírita no Brasil do século XIX, o que seria desnecessário, já que esse, de fato, não
é o objeto deste trabalho. O que, na verdade, proponho é observar os primeiros escritos aqui
no Brasil, na década de 1870, momento em que os ecos do kardecismo reverberam no
Império, e demonstrar as mais variadas possibilidades de aproximação entre ele e os rituais
afro-cariocas, o que culminaria, como já de amplo conhecimento, na junção destes,
principalmente na umbanda praticada no Rio de Janeiro, com os princípios destacados nos
trabalhos de Allan Kardec. Começo com o discurso proferido pelo já apresentado presidente
da Sociedade de Estudos Espíritas Grupo Confúcio, o Sr. Antônio da Silva Netto, na sessão
do dia 22 de agosto de 1874, e reproduzido na íntegra pela Revista Espirita.70 Na defesa da
crença, destacou suas convicções nas manifestações dos espíritos desencarnados e a
“convicção profunda das relações que existem entre o mundo visível e o mundo invisível”.
Evidentemente, aqui ficam abertas as possibilidades de conexão e diálogo entre as duas
práticas sagradas. Cabe lembrar que a composição do cosmograma bacongo, amplamente
difundido na América conforme demonstrado no capítulo anterior, deixava evidente a
69
ABREU, Canuto. Subsídios para a história do espiritismo no Brasil até o ano de 1895. Rio de Janeiro:
FEESP, 1930, p. 23-24.
70
REVISTA ESPIRITA. Rio de Janeiro. Primeiro Anno - N. 1, janeiro de 1875, p. 8.
303
comunicação e a interação constante, diária, renovada pelo ciclo da vida, representado pela
metáfora dos quatro momentos do sol, entre o mundo dos vivos e o dos mortos. E seria
exatamente a possibilidade de atuação e contato com esses dois mundos que colocava o
nganga em posição privilegiada perante sua comunidade de fiéis. Não seria diferente na
doutrina espírita propagada no Brasil, em que o médium era o responsável por tal
comunicação e, dessa forma, colocava-se diante da importante tarefa de escutar encarnados
(vivos) e desencarnados (mortos), o que cada qual gostaria de interferir em determinado
momento e circunstância, conforme as possibilidades estabelecidas.
Essa é, a meu ver, a primeira grande possibilidade de aproximação das ideias
kardecistas com os que seguiam uma gramática centro-africana em seus rituais afro-cariocas.
A frequente comunicação entre os espíritos desencarnados e encarnados
[...] é, pois, um élo da immensa cadêa da creação que, aqui ou ali, por esta ou
aquella circunstancia, poderá ser encoberto, mas faze-lo desaparecer não é possível.
A potencia que se revela por meio dos fenômenos que havemos de discutir no
prosseguimento d’este nosso trabalho periódico, qualquer que seja a causa tira a sua
origem e natureza.71
71
REVISTA ESPIRITA. Rio de Janeiro. Primeiro Anno - N. 1, janeiro de 1875, p. 4.
72
Processo de Evaristo Antônio da Costa, p. 8-8v. Codes DJE, Número 151, Maço 44. Ano 1859. Arquivo
Nacional. Depoimento de Francisco Antônio dos Santos, grifos meus.
304
Assim, se não possuissimos outra origens, não poderíamos justificar a antiguidade
das manifestações dos Espiritos fora das observações recentes. Entretanto, a
intervenção dos Espiritos no mundo corporal é atestada por S. Agostinho. S.
Jeronimo, S. Chrysostomo e outros padres da Igreja. Essa verdade constitue a base
de todos os systemas religiosos; bem como foi admitida por Socrates, Platão,
Zoroastro, Confucio, Pythagora, Apollonio e muitos outros philosophos celebres
d’antiguidade. Recapitulando-se a serie dos mysterios e dos oráculos, a crença das
comunicações dos Espiritos é encontrada entre os Gregos, os Egypcios, os Indios,
os Caldeos, os Persas e Chins atravessando todas as vicissitudes d’esses povos e
affrontando todas as revoluções physicas e Moraes da humanidade. Nos tempos da
idade media vê-mol-a surgir dos divinos e feiticeiros Walkiries dos Scandinavos,
dos Elfos, dos Teutones, os Leschios e os Domeschenios Doughi dos Slavos, os
Ouriks e os Brownios dos Bretons, os Cémis dos Carahibas, finalmente em toda
phalange das nymphas, dos bons e máos gênios, das sylphides, das fadas, etc., que
todas as nações têem povoado o espaço. A pratica das evocações existio sempre nos
povos da Siberia, no Kamtchatka, na Islandia, nos índios d’America do Norte, nos
aborígenes do Mexico, do Perú, da Polynesia, entre os selvagens da Nova Holanda,
povos d’Africa e finalmente os Gentios. 73
O artigo recorre aos Doutores da Igreja para justificar a existência e, mais do que isso,
a interferência dos espíritos no mundo dos encarnados, ressaltando que a base de todos os
sistemas religiosos era constituída pela presença dos espíritos, recorrendo, para tal, aos
filósofos da antiguidade. Termina reconhecendo a presença de tal manifestação entre os
povos compreendidos como atrasados pela ciência até então vigente, a mesma da qual os
primeiros adeptos pretendiam fazer parte. É nesse contexto que os “povos d’África” e a
população ameríndia foram retratadas, contudo não deixa de ser instigante perceber que a
proximidade de credo era percebida também entre os primeiros kardecistas. É bem verdade
que a Revista Espirita não tinha a mesma tiragem que os demais jornais que diariamente
circulavam pela corte, contudo, em uma sociedade marcada pela oralidade, não é difícil crer
que tais informações fossem propagadas com facilidade entre os adeptos dos rituais afro-
cariocas, principalmente se colocadas lado a lado as funções que os espíritos, via
incorporação, desenvolveriam nas duas cerimônias.
Creio que a principal dessas funções era a possibilidade de cura, o que provavelmente
colocou em um primeiro momento o espiritismo na mira dos jornais, não raramente assinados
por médicos e/ou estudantes de medicina e farmácia. O segundo número da Revista Espirita,
publicado em fevereiro de 1875, abordou os caminhos da cura via doutrina kardecista: “[…]
se Deus nos permitir o auxilio, de uma vez para sempre havemos de demonstrar nas paginas
d’esta Revista que o Espiritismo cura a loucura que tem por origem certas causas, e para esse
fim começamos desde já o nosso estudo sobre a loucura”.74 Cabe lembrar que tal
enfermidade levava fiéis às casas afro-cariocas, como exemplo, recorro à casa do nganga
73
REVISTA ESPIRITA. Rio de Janeiro. Primeiro Anno-N. 1, janeiro de 1875, p. 6.
74
REVISTA ESPIRITA. Rio de Janeiro. Primeiro Anno-N. 2, fevereiro de 1875, p. 54.
305
Francisco Firmo, no ano de 1884, no antigo Beco da Boa Morte, segundo a matéria do
Jornal do Commercio, entre as mulheres que procuraram os serviços do africano, “Uma outra
ficou ha bem pouco tempo idiota por causa dos feitiços”.75 É possível intuir que, por se tratar
de uma cerimônia de iniciação ritualística semelhante aos kimpasis, ela não tenha ficado
idiota, termo comum para loucura no século XIX, mas sim tenha sido levada em busca da
melhora após submeter-se aos procedimentos necessários para iniciar-se no credo.
No mesmo período de Francisco Firmo, momento em que o espiritismo kardecista já
encontrava um número considerável de adeptos na corte, uma outra revista de cunho espírita,
esta fundada em 1879, tentando explicar a grande aceitação da doutrina no seio da sociedade
carioca, não hesitou em comparar a nova prática com o profissional da medicina:
Os afflictos são em grande numero; não é pois de admirar que tantas pessoas
accolham uma doutrina que consola, de preferencia ás doutrinas que desesperam,
porque é aos desherdados, mais do que aos felizes do mundo, que se dirige o
Spiritismo. O doente vê o medico chegar com mais satisfação do que aquelle que
está de saúde; ora os afflictos são os doentes e o Consolador o medico.76
A referência era aos males espirituais, comuns nos escritos de Kardec, mas também à
busca por sanar angústias físicas. Portanto mais um ponto de profunda semelhança entre o
kardecismo e as crenças influenciadas pela gramática centro-africana, já que a doença, como
exposto, em sociedades secretas dos Kimpasis e Lembas estabelecia a necessidade de uma
cerimônia de iniciação, semelhante à que se passava na casa do africano Francisco Firmo. O
segundo número da Revista Espirita, em fevereiro de 1875, destacava a importância do
pensamento e a influência que este exercia sobre a parte física – a ideia dos bons fluidos
passando entre o médium e aquele que buscava auxílio físico e espiritual. Nas práticas
curativas afro-cariocas, ngangas, Pais e Mães de Santo eram os responsáveis por tal
comunicação e, tomando de empréstimo um termo espírita, pela vibração entre o mundo dos
encarnados e desencarnados, buscando o refrigério. A diferença, a meu ver, é que nitidamente
os primeiros kardecistas no Rio de Janeiro ousaram, por inúmeras vezes, comparar suas
atividades com a medicina oficial, mesmo que buscando apenas uma comparação explicativa:
“[…] Quando se diz que um médico cura seu doente com bôas palavras, se diz uma verdade
absoluta, porque o pensamento benévolo traz comsigo fluidos reparadores que obram sobre o
physico tanto quanto sobre o moral”. 77
75
Jornal do Commercio, 29 ago. 1884.
76
REVISTA SPIRITA DA SOCIEDADE ACADEMICA DEUS CHRISTO E CARIDADE. Rio de Janeiro.
Segundo Anno - N. 1, janeiro de 1882, p. 16-17.
77
REVISTA ESPIRITA. Rio de Janeiro. Primeiro Anno - N. 2, fevereiro de 1875, p. 71.
306
Na edição de março do mesmo ano, A Revista Espirita retomou a ideia de cura por
ação e influência do sobrenatural:
78
REVISTA ESPIRITA. Rio de Janeiro. Primeiro Anno - N. 3, março de 1875, p. 93.
79
CRAEMER, Willy de; VANSINA, Jan; FOX, Renée C. Religious Movements in Central Africa: a Theoretical
Study. Comparative Studies in and History, v. 18, n. 4, p. 458-475, out. 1976.
307
nossas sessões, d’ahi talvez tenha resultado não contarmos em nosso seio maior
numero de sócios com suas faculdades mediúnicas desenvolvidas. 80
Creio que, a essa altura, as religiões afro-cariocas não passavam pelo mesmo
desconforto na formação. Como já demonstrado, o século XIX marcou a iniciação ritualística
ou a feitura de santo, como já era conhecida, o que possibilitava aos participantes a
incorporação e, portanto, a continuidade da crença, da religião propriamente dita.
Cabe, a essa altura, retornar à realidade de Laurentino Inocêncio dos Santos e aos
vários reveses sofridos em sua trajetória. No mesmo ano em Francisco Corrêa Dutra era ainda
estudante de medicina e publicou dois folhetins no Diário de Notícias, no mês de outubro, o
mesmo veículo de comunicação publicaria outro folhetim com o título: Magnetismo,
sonambulismo, spiritismo e cartomancia. 81 Com a mesma intenção dos folhetins de Corrêa
Júnior, qual seja, fazer com o que público leitor desacreditasse por completo das práticas
compreendidas como “charlatanismo”, o autor do folhetim do dia 2 de dezembro, que assina
como J. S., ao tratar do espiritismo, destacou:
80
REVISTA ESPIRITA. Rio de Janeiro. Primeiro Anno - N. 1, janeiro de 1875, p. 16.
81
Diário de Notícias, 02 dez. 1870.
82
Diário de Notícias, 02 dez. 1870.
308
possibilidade de observar como os elementos litúrgicos se encontravam e abriam
possibilidades para novos rearranjos sagrados no Rio de Janeiro em finais do Oitocentos.
Dentro de uma sociedade em que os discursos raciais presentes na formação dos
intelectuais da nação, principalmente nos cursos de direito e medicina, as ideias de uma nova
doutrina que se apresentava como científica seriam fruto de estudos e aprofundamentos,
assim, o espiritismo kardecista foi ganhando cada vez mais adeptos dentro das elites
brasileiras. A mesma imprensa que criticava, abria espaço para demonstrar como cresciam
nos mais variados espaços as novas ideias recém-chegadas à corte:
Tem sido muito procuradas nas livrarias do Sr. Dupont, á rua de Gonçalves Dias, as
diversas obras de espiritismo. Differentes sectários desta sciencia, presididos pelo
Sr. Carlos Torres Homem, pretendem divulgar tão curiosas matérias, entretendo o
espírito e alargando as cogitações sobre as sciencias sobrenaturaes. São
curiosíssimos os volumes que aquella acreditada livraria tem sobre este assumpto. 83
Um ano depois de formado, o jovem doutor Francisco Corrêa Dutra Júnior lança mão
novamente da imprensa, mas para divulgar seu ofício, desenvolvido na Rua da Assembleia,
número 78, destacando-se como médico e operador. Suas consultas eram diárias, das 7 horas
às 8 horas e 30 min, com pausa para o almoço, retornando às 10 horas e estendendo-se até o
83
Diário de Notícias, 13 ago. 1870.
309
meio-dia. Sua especialidade era curar feridas e úlceras, antigas e recentes, sífilis e fazer
curativos, ou seja, um pouco de tudo para um início de carreira (Imagem 40).84
O anúncio repetiu-se por mais duas vezes no período de um mês, demonstrando que
ele precisava angariar clientela, estabelecer uma rede de confiança entre paciente e médico e
mais do que isso, vencer a concorrência daqueles que angariavam grande parte da confiança
no tratamento de qualquer sorte de enfermidade, os curandeiros, que nada mais eram do que
os líderes religiosos afro-cariocas trabalhando na corte. O endereço escolhido para sua
atuação profissional era um grande ponto comercial da corte, divisa das freguesias da
Candelária e São José. A Rua da Assembleia tinha esse nome por levar ao prédio da Câmara
dos Deputados. Bem ao lado ficava o Paço, sede administrativa do Império, próximo ao
hospital da Santa Casa de Misericórdia, ou seja, ele sofreria naturalmente a concorrência de
vários outros consultórios médicos do período. Entretanto um olhar mais atento para as ruas
vizinhas torna possível perceber que, na esquina bem próxima de seu ponto, estava nada mais
nada menos que o bar de Laurentino Inocêncio dos Santos, local que já destaquei,
estrategicamente estabelecido, em uma movimentada rua por onde passavam enfermos e todo
tipo de clientela. Por se tratar da região portuária da cidade, o ponto comercial do curandeiro
da Glória, além de fornecer a seu dono os proventos advindos da atividade, servia também
para divulgar suas atividades curativas e religiosas.
Vale destacar que, na mesma região, vivia o nganga Francisco Firmo, na Travessa de
Dom Manuel, antigo Beco da Boa Morte, e entre sua casa e o bar de Laurentino estava a casa
do africano mina Francisco Antônio, de 69 anos, localizada no Beco dos Ferreiros. Pela
proximidade que se evidencia na Imagem 41, do Guia Plano da Cidade, de Roberto Leeder,
84
Jornal do Commercio, 16 set. 1875.
85
Jornal do Commercio, 10 nov. 1875.
310
fica impossível supor que o jovem Dr. Corrêa Dutra Júnior não ouvisse diariamente falar em
seus “concorrentes” vizinhos.
86
LEEDER, Roberto. Guia Plano da Cidade do Rio de Janeiro 1858. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional.
Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/cart309960/cart309960.jpg. Acesso em: 21
jan. 2020.
87
LMCDC f. 3407, 27/07/1884. O africano mina de 55 anos foi conduzido à Detenção, um mês antes de
Francisco Firmo, por ser “encontrado em prática de feitiçaria”. Ao analisar a prisão de Lourenço mina, os
autores de No labirinto das nações afirmaram para o campo do sagrado: “os minas, não há dúvida, comandam o
espetáculo”. Pelo exposto até aqui sobre o interior das casas afro-cariocas, tendo a discordar de tal ideia de
supremacia, tendo em vista o profundo diálogo e as trocas no campo do sagrado promovidos, ao longo de todo o
período, por bacongos, ambundos e ovimbundos. Pela repetição de elementos e práticas, criando uma noção de
repertório oferecido por esses grupos étnicos, acredito que também exerceram protagonismo no “espetáculo”.
Ver: SOARES, Carlos Eugênio Líbano; GOMES, Flávio; FARIAS, Juliana Barreto. No labirinto das nações:
africanos e identidades no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005, p. 167.
311
Dessa forma, é possível afirmar que o médico em questão já conhecia a fama dos
vários líderes religiosos da corte bem antes de tornar-se subdelegado de polícia na freguesia
da Glória. Existe aqui uma convergência de questões que futuramente colocariam Laurentino
nas lentes da polícia, especificamente na mira do delegado graduado em um curso em que as
ideias circulavam quanto à maneira de se compreender a nação, aliada à vida pública no que
diz respeito ao acesso à política e suas decisões. O que os agentes das transformações da
década de 1870 consideravam como o atraso da nação batia à porta de Francisco Corrêa
Dutra desde seus estudos, mas, principalmente, após a formação e o início da atividade
médica na Rua da Assembleia. No mesmo ano em que o Jornal do Commercio anunciava as
atividades laborais do jovem médico, trazia também, na coluna dedicada aos óbitos, a nota de
falecimento de seu pai, de mesmo nome, estando então com 55 anos. A causa da morte foi
“Lymphatite”, sendo sepultado no dia 21 de outubro. 88 A missa de trigésimo dia de
falecimento ocorreu na Matriz do Santíssimo Sacramento, no dia 22 de novembro, com
convite na imprensa para que amigos e parentes comparecessem para tal homenagem. 89
Demonstra a inserção da família na da elite local a escolha da igreja bem como a ampla
divulgação da cerimônia.
Em 1877, o Dr. Francisco Corrêa Dutra ingressava na Sociedade Médica do Rio de
Janeiro, instituição fundada em 1829, como sócio efetivo, 90 demonstrando seu alinhamento
com o que se produzia e se pensava na esfera médica no Império. Creio que tal alinhamento o
levou a ingressar no corpo administrativo da polícia, principalmente levando-se em conta que
a forte concorrência no entorno de seu consultório o conduziu para outro ofício, que, de
alguma forma, permitiria a ele exercer o que acreditava como verdade, advinda da Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro. Assim, no dia 25 do mês de fevereiro de 1878, prestou
juramento no exercício do cargo para o qual foi nomeado: subdelegado da freguesia da
Glória. 91 Tomou posse no dia seguinte e iniciou sua nova jornada de trabalho: “Subdelegacia
– Acha-se em exercício o Dr. Francisco Corrêa Dutra, o qual dará audiências ás quintas-
feiras, ás 4 horas da tarde, á rua da Lapa n. 96, despachando diariamente em sua casa, á rua
do Cattete n. 56”.92
Não por acaso, ocorre logo em seguida a primeira prisão de Laurentino, aqui já
relatada, no mês de março do mesmo ano em que Corrêa Dutra tomou posse no cargo. No
88
Jornal do Commercio, 23 out. 1875.
89
Jornal do Commercio, 20 nov. 1875.
90
Jornal do Commercio, 14 jan. 1877.
91
Jornal do Commercio, 25 fev. 1878.
92
Jornal do Commercio, 27 fev. 1878.
312
mesmo mês, o subdelegado fez o capoeira Matheus Bispo assinar um termo de bem-viver por
participar de “turbulências” na frente da matriz “por ocasião das eleições”.93 Além de prisões
por brigas e desentendimentos, Laurentino foi levado à detenção um mês depois de o
subdelegado tomar posse, o que reforça minhas crenças de que já nutriam um
desentendimento desde o tempo em que este dava consulta em seu consultório a poucos
metros do bar de Laurentino e de outras casas afro-cariocas.
93
Jornal do Commercio, 03 mar. 1878.
94
Jornal do Commercio, 23 jan. 1884.
95
Jornal do Commercio, 20 jul. 1884.
96
VASCONCELOS, Barão de; VASCONCELOS, Barão Smith de. Archivo Nobiliarchico Brasileiro.
Lausanne, Suisse: Imprimeri La Concorde - MLCCCCXVIII (1918), p. 375-376.
97
Jornal do Commercio, 15 nov. 1884.
98
BR_RJANRIO_5D_0_LNO_0_0382_m0046.tif
313
Uma das casas de Laurentino Inocêncio dos Santos, a de número 3 da Ladeira dos
Guararapes, foi hipotecada como garantia da pecúnia cedida por Antônio Lopes de Andrada e
Silva, em um total de quinhentos e setenta e cinco mil réis. Laurentino se comprometia a
pagar “dentro do prazo de um ano”, iniciando a contagem no dia 15 do mesmo mês, com
juros de 6% pagos por trimestre. A confissão de dívida descortina um homem com pleno
trânsito dentro da corte, mesmo sendo um súdito preto, com pais egressos do cativeiro, filha
liberta após o nascimento, ou seja, sua companheira até uma determinada etapa da vida fora
cativa. Ter acesso a crédito no século XIX significava a necessidade de construção de uma
ampla rede de relacionamentos e sociabilidades, além de descortinar o universo particular dos
envolvidos, por exemplo, a casa em que as celebrações religiosas ocorriam era a de número 5,
já a residência oferecida em hipoteca para aquisição do empréstimo com Antônio Lopes de
Andrada e Silva era a de número 3, na verdade, onde residia com sua família. 99
A residência consistia em um prédio térreo, com uma porta no centro e duas janelas
voltadas para a frente, contando com duas salas, dois quartos, cozinha, “affoalhada e não
forrada”,100 medindo 3 metros de frente e 6 metros de fundo. Vizinhos no mesmo terreno
João Borges ao lado e aos fundos João Corrêa, o foreiro do terreno era a Ilustríssima Câmara
Municipal, arrematado por Laurentino Inocêncio dos Santos em praça pelo Juízo dos Feitos
de Fazenda. 101 Demonstrando além de uma rede de sociabilidade que lhe permitia crédito em
uma sociedade com pouca liquidez de moeda circulante, pois, segundo Fragoso e Florentino,
a primeira metade do século XIX foi marcada por um amplo endividamento das elites
fluminenses bem como das classes menores, fruto, segundo esses autores, de uma precária
liquidez seguida de uma forte concentração de renda.102
99
BR_RJANRIO_5D_0_LNO_0_0382_m0045.tif
100
Segundo o dicionário de Joseph Marques, affoalhar seria o mesmo que guarnecer a casa com madeira por
baixo, ou seja, uma espécie de piso. MARQUES, Joseph. Novo Diccionario das línguas Portuguezas, e
Franceza, com termos latinos. Tomo II. Lisboa: Officina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1764, p. 78.
101
BR_RJANRIO_5D_0_LNO_0_0382_m0045.tif
102
FLORENTINO, Manolo; FRAGOSO, João. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade agrária
e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, 1790-1840. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001, p. 205.
103
BR_RJANRIO_5D_0_LNO_0_0382_m0046.tif
314
A quantia solicitada por Laurentino Inocêncio dos Santos não era baixa para o
período, quinhentos e setenta e cinco mil réis equivaliam a meio conto de réis, ou seja,
metade de mil-mil réis. Não por acaso, precisou hipotecar sua casa para que o negócio fosse
concluído diante do tabelião. Creio que o endividamento constante, seguido das renovações
de créditos apontadas por Fragoso e Florentino, estendia-se para a segunda metade do
Oitocentos, haja vista que o curandeiro da Glória, mesmo antes de completar o primeiro
trimestre de 1884, quando venceria a parcela da dívida feita com Antônio Lopes de Andrada,
teve seu nome protestado na praça no dia 3 de agosto e publicado para conhecimento público
no Jornal do Commercio.
O tabelião J. C. Leite, do cartório situado na Rua do Hospício, número 18, lançou mão
do protesto pela falta de pagamento de “uma letra 354$ aceita por Vicente Julio Soares e
endossada por Laurentino Innocencio dos Santos” (Imagem 42), sendo, na ocasião,
desconhecido o endereço de ambos, chamados, portanto, para o pronto pagamento ou a
explicação da falta dele. 104 É possível intuir que tanto as casas colocadas para o aluguel,
comumente chamadas pelos jornais de zungú, além de seu bar na movimentada Rua da
Misericórdia, tenham aberto portas para que constantemente lançasse mão de pequenos ou
grandes empréstimos sempre que necessário. Dentro dos tribunais e juízos ele também
transitava com desenvoltura, no mês de outubro de 1889 serviu de testemunha ao lado dos
autores de um libelo em que se apresentavam questionamentos acerca da massa falida de
Manuel Rodrigues Duarte. 105 Já em 1891, no mês de março foi ele quem apresentou um
libelo contra Manoel Velloso. A coluna TRIBUNAIS E JUIZOS, do Jornal do Commercio,
não apresentava maiores detalhes das comunicações referentes ao dia a dia dos tribunais
cariocas, contudo é possível perceber que lançava mão de mecanismos legais sempre que
acionava e era acionado pela justiça.
Cabe ressaltar que Laurentino e seus contemporâneos assistiram à queda e ascensão
de um novo regime, e, em seu caso específico, as dificuldades enfrentadas pelas casas afro-
cariocas aumentariam. A República marcaria a vitória dos médicos e acadêmicos, ao menos
no quesito de leis que acabariam por criminalizar religiões e práticas de cura, contudo,
mesmo antes do Código Penal de 1891, Laurentino teve sua tranquilidade litúrgica
interrompida mais uma vez, no dia 2 de março de 1890, com cobertura do Diário de Notícias
e da Gazeta de Notícias. Em ambos, a casa da Ladeira dos Guararapes foi apresentada como
zungú e de dar fortuna. As informações não se encontraram, como geralmente acontecia em
104
Jornal do Commercio, 03 ago. 1884.
105
Jornal do Commercio, 16 out. 1889 e Jornal do Commercio, 06 nov. 1889.
315
semelhantes coberturas nas décadas anteriores, como a do próprio Laurentino.106 Entretanto
mesmo tais contradições permitem, uma vez mais, aproximar de sua realidade:
O foco voltava a ser a medicina, esse era o grande incômodo do Império, que ganhava
mais força com o advento da República. Não por acaso, a casa foi associada não somente ao
curandeirismo, mas à realidade dos zungús, sendo construída a narrativa do atraso, que
remetia aos tempos coloniais, dessa forma, a Gazeta e o Diário de Notícias fizeram questão
de ressaltar o antigo nome do logradouro, “Pendura Saia”.108 Diferentemente do primeiro
jornal, o Diário de Notícias deixa claro que Laurentino não fora preso, mas levado a prestar
esclarecimentos diante de Justiniano Rodrigues, quarto delegado, que, após autuá-lo, tomou
“as necessárias declarações, afim de ser o mesmo obrigado a pagar a multa”, que seria
imposta pela inspetoria de higiene.109 Portanto Laurentino não ficou detido como informou a
Gazeta. Quem na ocasião “visitou” a detenção do Distrito Federal foi Alfredo Luiz
Fernandes, pardo de 26 anos, solteiro, copeiro de profissão, morando na Rua das Laranjeiras,
que vestia no momento da cerimônia calça e camisa brancas, paletó e colete escuros e chapéu
branco. 110
Acompanhou Alfredo, no mesmo carro da detenção, Emilio, 27 anos, de cor preta,
morador na Rua de São Pedro, número 9, que vestia uma camisa branca e uma calça de brim
de angola e paletó. 111 Também foi levado Raymundo Luciano, um senhor de 64 anos, preto,
que morava na Rua Guanabara, número 7, e que, assim como os demais, também vestia
camisa branca, senda a “calça de cor”, fraque e chapéu preto. Todos foram levados à
detenção com a alegação de “estar em casa de dar fortuna e batuque”. 112 O Diário de Notícias
apresentou mais detalhes, a prisão teria ocorrido por terem desacatado o subdelegado no
106
Para maior aprofundamento no que tange ao Código Penal de 1891 e às práticas religiosas, ver: GOMES,
Adriana. Um “crime indígena” ante as normas e o ordenamento jurídico brasileiro: a criminalização do
espiritismo e o saber jurídico na Nova Escola Penal de Francisco José Viveiros de Castro (1880-1900). 2017.
Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
107
Gazeta de Notícias, 03 mar. 1890.
108
Diário de Notícias, 03 mar. 1890.
109
Diário de Notícias, 03 mar. 1890.
110
Livro de Matrícula da Casa de Detenção do Distrito Federal [LMCDDF], f. 915, 02/03/1890.
111
LMCDDF, f. 916, 02/03/1890.
112
LMCDDF, f. 917, 02/03/1890.
316
momento em que “investigava-os de sua procedência”. 113 O fato é que não existe no mesmo
livro de matrícula nenhum registro da entrada de Laurentino. Isso significa que nem levado à
instituição ele foi ou, caso tenha comparecido, tinha, por meio de alguma estratégia,
conseguido se livrar do xadrez. Se for levada em conta a rede de sociabilidades construída
por Laurentino ao longo de uma série de empréstimos, pagamentos, promissórias e,
principalmente, por atuar por anos como respeitado líder religioso, posso deduzir que ele
tenha angariado respeitabilidade entre as elites imperiais e republicanas, o que evitou sua
prisão.
Também não é possível descartar que antigos desafetos tenham voltado o foco para o
curandeiro da Glória no ano de 1890. O fato é que, desde que ocupou a subdelegacia da
Glória no ano de 1878, Francisco Corrêa Dutra não deixaria mais de se fazer presente nos
espaços de poder da nação. Quando efetuou a terceira prisão de Laurentino, no ano de 1879,
passou a ocupar, além do cargo de subdelegado, o de cirurgião adjunto, no Corpo Militar da
Polícia da Corte, no Estado Maior, no quartel da Rua Evaristo da Veiga. 114 O Dr. Corrêa
Dutra permaneceu por longa data no cargo de cirurgião adjunto e ocupava tal cargo quando
da prisão de Laurentino em 1890.115 Pelo longo tempo trabalhando dentro do Estado Maior,
ocupando o mesmo cargo, não é difícil intuir que exercesse alguma influência na caça aos
curandeiros. Naquele momento, Corrêa Dutra, além de doutor, já ocupava o posto de Major
dentro da polícia, Capitão Honorário do Exército, e já tinha sido condecorado com a Ordem
da Rosa, no grau cinco de oficial.116 No ano de 1893, deixaria o cargo de cirurgião adjunto
para ocupar o alto cargo de segundo delegado auxiliar da Polícia da Capital Federal. 117 No
ano seguinte, ocuparia interinamente o posto de Chefe de Polícia do Distrito Federal, maior
posto da polícia no Rio de Janeiro.118
Ao que tudo indica, mesmo ocupando cargos públicos, o Dr. Corrêa Dutra não teria
deixado de clinicar, pois, no ano de 1880, figurou no Almanak Laemmert como “capitalistas e
proprietários”, sendo os seus endereços em destaque o do já conhecido consultório na Rua da
113
Diário de Notícias, 03 mar. 1890.
114
Almanaque Laemmert - Almanak administrativo, mercantil, e industrial do Império do Brazil para 1879, p.
295.
115
Almanaque Laemmert - Almanak administrativo, mercantil, e industrial do Rio de Janeiro para 1891, p. 301.
116
Almanaque Laemmert - Almanak administrativo, mercantil, e industrial do Rio de Janeiro para 1891, p. 301.
117
Almanaque Laemmert - Almanak administrativo, mercantil, e industrial do Rio de Janeiro para 1893, p. 288.
118
ABREU, Alzira Alves (coord). Dicionário histórico-biográfico da Primeira República (1889-1930). Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2015. Disponível em: https://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-
republica/DUTRA,%20Francisco%20Correia.pdf. Acesso em: 07 jan. 2020.
317
Assembleia, número 78, e o da Rua Bela da Princesa, número 15.119 Dessa forma, é possível
imaginar que a existência de curandeiros, principalmente dos mais famosos, continuaria a
trazer transtornos para os que exerciam a medicina oficial. O referido almanaque traz, no ano
de 1891, outro endereço do médico na Rua Bela da Princesa, situada no Catete, mas dessa
vez com o número 29. 120 Se era um novo imóvel ou se foi até mesmo um erro do almanaque,
o fato é que existia um consultório bem próximo à casa de Laurentino, o que provavelmente
aumentaria as tensões entre os dois agentes da cura. É sabido que o Dr. Corrêa Dutra
desempenhou seu ofício na Rua Bela da Princesa, logradouro que ganhou esse adjetivo para
diferenciar-se da Rua da Princesa, paralela à Príncipe dos Cajueiros, onde ocorriam feituras
de santo e onde também atuava um líder por nome de Laurentino. Anos mais tarde, na
República, a rua passaria a ter o nome do Dr. Francisco Corrêa Dutra – Rua Dr. Corrêa Dutra,
simplificada, em 1917, para Rua Corrêa Dutra, nome que permanece até hoje no logradouro
que corta o atual bairro do Flamengo, na Zona Sul da Cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro. A homenagem póstuma deixa claro que não eram fracos os inimigos de Laurentino
Inocêncio dos Santos.
Não surpreende que, no ano de 1891, no dia 1º e 2 de janeiro, novas denúncias contra
o curandeiro da Glória figurassem na Gazeta de Notícias. Dessa vez, a narrativa construída
não foi a da pura desqualificação dos rituais praticados, mas sim a da apresentação dos
valores cobrados para diagnosticar e iniciar um tratamento, por exemplo, cobrar 12$ por uma
consulta, sendo o valor para tratamento de 300$ a 400$. 121 Acredito que os valores fossem
altos para o período, ultrapassando, inclusive, os cobrados pelos médicos, e, se correta estiver
tal hipótese, o anúncio serviria para demonstrar ainda mais como a população perderia,
inclusive financeiramente, frequentando as casas de curandeiros. Ressalto que a tônica dos
anúncios de consultórios de medicina na cidade do Rio de Janeiro seguia o padrão da Imagem
40, referente ao consultório do Dr. Francisco Corrêa Dutra, em que se destacavam em negrito
o endereço, o nome do médico em questão, em letras menores suas especialidades, dia e hora
de atendimento, sem, contudo, indicar valores de consultas. O que ocorria eram situações
semelhantes ao anúncio do Dr. Carlos Bittencourt:
119
Almanaque Laemmert - Almanak administrativo, mercantil, e industrial do Império do Brazil para 1880, p.
619.
120
Almanaque Laemmert - Almanak administrativo, mercantil, e industrial do Rio de Janeiro para 1891, p. 301.
121
Gazeta de Notícias, 1 e 2 jan. 1891.
318
Imagem 43 - Anúncio médico
122
Jornal do Commercio, 04 jan. 1890. O mesmo anúncio se repetiu em dias alternados por todo o mês de
janeiro, sempre com a oferta de gratuidade aos mais pobres.
123
Jornal do Commercio, 26 jan. 1875.
319
caro por suas consultas e tratamentos, mantendo por anos uma considerável clientela,
enquanto médicos precisavam disputar clientela fazendo constante uso dos anúncios nos
jornais.
124
LMCDC, f. 71, 07/01/1879.
125
BR_RJANRIO_5D_0_LNO_0_0382_m0046.tif.
126
Jornal do Commercio, 27 mar. 1897.
127
Jornal do Commercio, 27 mar. 1897.
320
bom estado, avaliada em 1.500$000”. 128 Laurentino constantemente era acusado de ser dono
de zungú, isso significa dizer que, por vezes, alugava quartos e espaços, antes da República,
para escravos que viviam por si, além de livres e libertos. Com o fim da monarquia, as
acusações de ser tal espaço um zungú não arrefeceram, continuando ele, portanto, a alugar
quartos para quem pudesse pagar. Creio que a divisão desses espaços se encontra descrita a
seguir:
Essa seria mais uma fonte de renda de Laurentino que estaria associada diretamente a
sua prática religiosa. Talvez por isso, os profissionais da imprensa, ao longo de todo o século
XIX, associaram zungús às casas de dar fortuna. Os profissionais da Casa de Detenção não
fizeram por menos e, ao longo de todo o Oitocentos, relacionaram as duas funções. Portanto
sempre caminharam juntos zungús, dar fortuna e batuques. Por diversão ou por questões
litúrgicas, uma coisa ajudava a divulgar a outra, assim como o bar na Rua da Misericórdia
servia para angariar adeptos para a sua crença, além de doentes que buscavam a cura de
males físicos no caminho da Santa Casa de Misericórdia.
Existia ainda outra pequena casa no mesmo endereço, “forrada e assoalhada, dividida
em sala e cozinha, medindo 2m, 60 de frente por 5m, 60 de largura, avaliado em 250$”, além
de uma cocheira, “coberta de zinco, chã com 8m, 50 de comprimento, por 3m, 60 de largura,
avaliada em 250$000”, também no mesmo endereço e número. 130 A publicação, feita na
coluna EDITAES, a pedido do Dr. Bernardo Jacinto da Veiga, juiz sub-pretor da Sexta
Pretoria do Distrito Federal, foi repetida no dia 19 de maio do mesmo ano de 1897, a pedido
do Dr. Diego José de Andrada Machado, praticamente com o mesmo conteúdo, tendo a
finalidade de tornar pública a futura realização do leilão, menos a demonstração de surpresa
com a descoberta de outros bens pertencentes ao curandeiro da Glória, estes na freguesia de
Inhaúma.131 As informações se completavam no que se refere ao patrimônio localizado fora
de sua conhecida área de atuação.
Na freguesia de Inhaúma, Laurentino era dono de um terreno na Rua Eliza, “sem
muro”, medindo 11 metros de frente com 11 de fundo, sendo 50 de comprimento, no meio do
128
Jornal do Commercio, 27 mar. 1897.
129
Jornal do Commercio, 27 mar. 1897.
130
Jornal do Commercio, 27 mar. 1897.
131
Jornal do Commercio, 19 abr. 1897.
321
qual existiam duas casas unidas em forma de chalé. As construções eram de tijolos e estuque,
“divididas em sala, quarto e cozinha cada uma, tendo na frente 2 janellas, e uma porta de cada
lado, e com 5 janellas nos lados, forrada e assoalhada”.132 Esses imóveis na Rua Eliza
provavelmente abriram a possibilidade de Laurentino ter sido remunerado com seu aluguel tal
como o era nas casas da Ladeira dos Guararapes, na Glória. Na mesma freguesia, foi também
dono de cinco lotes de terrenos na Estrada de Inhaúma, medindo 114 metros de frente por 78
de fundos, tendo 84 metros de comprimento, avaliados em 1.100$. Na Rua Paraíso, foi dono
de quatro lotes de terrenos, dos números quatro até o sete, todos medindo 11 metros de frente
com a mesma largura de fundos, com 50 metros de comprimento, na mesma rua, sendo no
número um com 12 metros de frente com 50 de comprimento.133 Existia ainda um terreno na
Rua Quinze de Novembro, que se iniciava na Estrada do Engenho da Pedra, finalizando na
Rua da Regeneração. 134 O terreno media 22 metros de frente, “com igual largura nos fundos,
tendo de extensão 66 metros”, avaliado em 500$. Além desse, havia um terreno menor, na
mesma freguesia, medindo 11 metros de frente, “com igual largura nos fundos e com 50
metros de extensão”, localizado na Rua Elisa, avaliado em 250$. 135
Ironicamente, a Sexta Pretoria do Distrito Federal estava situada na Rua do Catete,
número 7, mesmo logradouro em que residia o Major Dr. Francisco Corrêa Dutra. Ali
ocorreria o leilão de seu espólio, a pedido de Júlia Luiza dos Santos. O que é preciso ressaltar
é que, ao longo de sua vida, Laurentino construiu um patrimônio interessante para o contexto,
sendo que algumas atividades se cruzavam, como zungús e casas religiosas, pejorativamente
conhecidas como de dar fortuna, bem como o bar na Misericórdia. É bem provável que os
imóveis da freguesia de Inhaúma também servissem de aluguel como o da Ladeira dos
Guararapes. Contudo os vários empréstimos e hipotecas realizados ao longo da vida de
Laurentino colocaram em risco o patrimônio deixado para Júlia Luiza dos Santos:
132
Jornal do Commercio, 27 mar. 1897.
133
Jornal do Commercio, 27 mar. 1897.
134
Almanaque Laemmert - Almanak administrativo, mercantil, e industrial da Republica dos Estados Unidos do
Brasil, Districto Federal, para 1915, p. 1499. v. 1.
135
Jornal do Commercio, 19 maio 1897.
136
Jornal do Commercio, 27 mar. 1897.
322
O patrimônio de Laurentino não foi leiloado no ano de 1897, como se evidencia no
anúncio de setembro de 1899 (Imagem 44), muito provavelmente por conta de suas dívidas e
hipotecas, que, após sua morte, caíram na responsabilidade de Júlia Luiza dos Santos.
Antes mesmo de o Dr. Diogo José de Andrada Machado tornar pública a intenção de
leiloar os bens de Laurentino, em agosto de 1896 o Sr. Francisco Janeiro recorreria à mesma
Sexta Pretoria do Distrito Federal solicitando que Dona Júlia Luiza dos Santos fosse
notificada acerca de uma dívida de seu finado pai no valor de 874$000 (oitocentos e setenta e
quatro mil reis), tendo como prova os devidos papéis assinados bem como o testemunho de
José Joaquim Rodrigues e José Pereira, apresentando dessa forma. 138 O juiz responsável pela
137
Jornal do Commercio, 05 set. 1899.
138
Fundo Pretoria do Rio de Janeiro - 6ª. Julia Luiza dos Santos/Inocêncio dos Santos/Francisco. Ano 1896,
número 603, maço 1132, p. 2.
323
condução do caso foi o mesmo que, um ano depois, tornaria pública a venda do patrimônio
do finado Laurentino, o Dr. Diogo José de Andrada Machado.
A principal dificuldade do caso foi encontrar Dona Júlia Luiza dos Santos para ser
notificada pelo oficial de juízo Augusto José Barreto, o qual, no dia 22 de agosto de 1896,
informou ao Dr. Diogo José de Andrada Machado que por três vezes tentou localizar a
suplicada na Ladeira dos Guararapes, número 3. 139 Destaco que, no intervalo de dezessete
anos, a filha de Laurentino passou de “Julia liberta” para “Dona Julia Luiza dos Santos”,
ganhando nome, sobrenome nos documentos oficiais, além de ser chamada de dona. É fato
que a República acabou por decreto com todos os títulos e tratamentos nobiliárquicos, mas o
ano era o de 1896, como cidadã do novo regime ela já era reconhecida, mas creio que os
tratamentos ainda faziam parte do imaginário popular e tinham peso no contexto. Credito a
mudança no tratamento ao patrimônio angariado por seu pai ao longo de toda sua vida, o que
a tornava uma egressa do cativeiro que agora administrava os espólios do finado pai.
Em uma quarta tentativa, o oficial de juízo Augusto José Barreto, não obtendo sucesso
com a dona da casa de número 3 da Ladeira dos Guararapes, buscou auxílio na figura da
vizinha Paulina, para que avisasse da intenção de seu retorno no dia seguinte, às 10 horas da
manhã. E, mesmo com essa nova visita, o oficial não obteve êxito em sua missão. 140 Se era
uma estratégia de Dona Júlia Luiza dos Santos, não sei, o fato é que, se era isso, desistiu da
estratégia quando, no dia primeiro de setembro de 1896, apresentou-se diante do Dr. Diogo
José de Andrada Machado, na sede da Sexta Pretoria do Distrito Federal, na Rua do Catete,
número 7. Levou consigo uma procuração feita no cartório de Cantanhede Júnior, na Rua do
Rosário, número 79, dando poderes ao Dr. Anacleto José dos Santos para tratar das questões
referentes ao espólio de seu pai.
Em seu depoimento, Dona Júlia Luiza dos Santos disse conhecer Francisco Janeiro e
que esse era amigo de seu finado pai, mas disse não saber da dívida reclamada pelo credor, o
que creio ter sido uma estratégia previamente combinada com seu advogado, já que não eram
surpresa as dívidas de seu velho pai. Não por acaso, questionou, inclusive, o reconhecimento
da dívida feita a próprio punho por seu finado pai, ainda no ano de 1895, transcrita a pedido
do juiz nas folhas quatro e cinco do processo. Entretanto o credor apresentou testemunhas. O
primeiro depoimento foi de José Joaquim Rodrigo, português de 40 anos, trabalhador do
comércio, que confirmou a amizade existente entre Laurentino Inocêncio dos Santos e que
139
Fundo Pretoria do Rio de Janeiro - 6ª. Julia Luiza dos Santos/Inocêncio dos Santos/Francisco. Ano 1896,
número 603, maço 1132, p. 2v.
140
Fundo Pretoria do Rio de Janeiro - 6ª. Julia Luiza dos Santos/Inocêncio dos Santos/Francisco. Ano 1896,
número 603, maço 1132, p. 5-5v.
324
era conhecedor da dívida de 874$000 (oitocentos e setenta e quatro mil réis). 141 Verdade ou
não, fato é que, além da filha, agora um amigo em comum corroborava os laço de amizade
existentes no passado entre Laurentino e Francisco Janeiro, reforçando a ideia de formação de
fortes laços de sociabilidade ao longo da trajetória de líder religioso afro-brasileiro nas
freguesias urbanas do Rio de Janeiro.
O segundo a prestar testemunho a favor de Francisco Janeiro foi o jovem José Pereira,
brasileiro de 26 anos, solteiro e negociante de bilhetes. O jovem também confirmou que a
quantia reclamada fora tomada por empréstimo de dinheiro e por aquisição de bilhetes de
loteria. Uma das consequências da alta dívida seria a constante compra de bilhetes fiado por
parte do curandeiro. Em tal período, não existia uma centralização de sorteios nem a loteria
era administrada pelo Estado brasileiro. O que havia era uma série de loterias privadas, não
sendo difícil, por isso, um endividamento via compra de bilhetes. Francisco Janeiro ressaltou
que a confissão de dívida tinha sido assinada por Laurentino e, a pedido deste, também por
Dona Júlia Luiza dos Santos. 142 A confissão de dívida assinada em 1884 com Antônio Lopes
de Andrada e Silva foi feita apenas com a assinatura de Laurentino e das testemunhas
necessárias. Se o depoimento de José Pereira estiver no limite da verdade, no ato da
assinatura, em 1895, o curandeiro da Glória não estaria gozando de boa saúde, e a exigência
da firma de sua filha serviria de garantia para quem fornecia um alto valor em empréstimo. E,
se correto estiver o depoimento, confirmam-se as estratégias utilizadas pela filha de negar
conhecimento das dívidas, já que via esvair-se o patrimônio construído ao longo de uma vida
por seu velho pai.
Não satisfeito com o depoimento apresentado por Dona Júlia Luiza dos Santos, no
mesmo dia 1º de setembro, o credor formulou um contra-argumento e apresentou ao Dr.
Diogo José de Andrada Machado. Afirmou que seu pedido era “santo e justo”, apresentou-se
como “cambista de vendas de bilhetes de loteria volante” e que, por isso, constantemente
vendia a crédito tais bilhetes a Laurentino Inocêncio dos Santos “e lhe emprestando dinheiro
todas as vezes que elle precisava”. Essa informação batia com os dois depoimentos prestados
por suas testemunhas. Reforçou ao juiz que tinha fortes laços de amizade com o finado e que,
se este não tivesse falecido, seria padrinho de um de seus filhos. 143 Essa era, sem dúvida, uma
das mais fortes representações de laços de solidariedade e sociabilidade ao longo do
141
Fundo Pretoria do Rio de Janeiro - 6ª. Julia Luiza dos Santos/Inocêncio dos Santos/Francisco. Ano 1896,
número 603, maço 1132, p. 10-11.
142
Fundo Pretoria do Rio de Janeiro - 6ª. Julia Luiza dos Santos/Inocêncio dos Santos/Francisco. Ano 1896,
número 603, maço 1132, p. 11v.-12.
143
Fundo Pretoria do Rio de Janeiro - 6ª. Julia Luiza dos Santos/Inocêncio dos Santos/Francisco. Ano 1896,
número 603, maço 1132, p. 15-15v.
325
Oitocentos, as relações estabelecidas na pia batismal, criando a possibilidade de
estabelecimento do parentesco espiritual. 144
Segundo Francisco Janeiro, Laurentino teria pedido a sua filha que também assinasse
o documento, tendo em vista que sua dívida de 874$000 “era sagrada”. Essa parte do
depoimento apresentado por escrito reforça a ideia de que o curandeiro da Glória estivesse
perto de sua finitude, já que teria usado palavras como: “reconhecia [a dívida] como
verdadeira, e se por acaso viesse a falecer que ella supplicada [Dona Júlia Luiza dos Santos]
pagasse […]”145 O procurador Arminio Vieira também fora apresentado como amigo íntimo
de Laurentino e poderia atestar tudo que dizia Francisco Janeiro.
Sem tardar, o advogado Anacleto José dos Santos apresentou no dia seguinte um
pedido de suspensão do processo, por cometimento de nulidade com base no Decreto 737 de
25 de novembro de 1850, em seus artigos 672 e 673 que versavam sobre as possibilidades de
anulação de um processo. 146 Para tal, destacou que Laurentino Inocêncio dos Santos não
tinha apenas Dona Júlia Luiza dos Santos como herdeira, mas também a menor Rita, de 18
anos, e que a jovem não fora citada no pedido e não tivera a oportunidade de apresentar um
curador para defender seus direitos como parte no processo. 147
Diante de tal revelação, o Dr. Diogo José de Andrada Machado declarou que a ação
continha erros “irreparáveis” e, como a filha do finado Laurentino era menor e não fora citada
na ação, não teve oportunidade de nomear representante para sua defesa. Francisco Joaquim,
além de ter negado seu pedido de pagamento de uma alta quantia para o período, foi ainda
obrigado a arcar com as custas do processo. 148 Por pura habilidade de seu advogado, Dona
Júlia dos Santos e sua irmã Rita saíram vitoriosas da querela e mantiveram a esperança de
controlar o espólio do pai.
O anúncio de venda dos bens de Laurentino tardiamente, no ano de 1899, deu-se
evidentemente pela quantidade de credores e protestos apresentados à Sexta Pretoria. O fato é
144
O parentesco espiritual via sacramento do batismo criava laços de solidariedade e compadrio, possibilitando
pensar em tais estruturas mesmo fora dos muros da Igreja. Ver: FREIRE, Jonis. Família, parentesco espiritual e
estabilidade familiar entre cativos pertencentes a grandes posses de Minas Gerais – século XIX. Afro-Ásia, v.
46, 2012, p. 34; GUEDES, Roberto. Na pia batismal: família e compadrio entre escravos na Freguesia de São
José do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). 2000. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto
de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, 2000. Mimeografado.
145
Fundo Pretoria do Rio de Janeiro - 6ª. Julia Luiza dos Santos/Inocêncio dos Santos/Francisco. Ano 1896,
número 603, maço 1132, p. 15v.
146
BRASIL. Decreto n° 737, de 25 de novembro de 1850. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/historicos/dim/DIM0737.htm Acesso em: 29 jan. 2020.
147
Fundo Pretoria do Rio de Janeiro - 6ª. Julia Luiza dos Santos/Inocêncio dos Santos/Francisco. Ano 1896,
número 603, maço 1132, p. 17.
148
Fundo Pretoria do Rio de Janeiro - 6ª. Julia Luiza dos Santos/Inocêncio dos Santos/Francisco. Ano 1896,
número 603, maço 1132, p. 22-24.
326
que, após sua morte, o curandeiro da Glória continuou figurando nas páginas de jornais por
conta de seu patrimônio, o que, sem dúvida, contribuiu para a demora na resolução da
herança para suas filhas. Em 1897, a família viu-se exposta como de costume, dessa vez por
José Gonçalves de Oliveira, que, em letras garrafais, publicou no Jornal do Commercio:
Fica desta data em diante de nenhum efeito a procuração em causa própria que
passei ao Sr. Manoel Pedro Ferreira Marques, passada pelo tabelião Dario Teixeira
da Cunha, em 20 de Fevereiro de 1896, na qual dava poderes ao dito procurador
para receber do espolio de Laurentino Innocencio dos Santos a quantia de
2.900$000, que me é devida pelo espolio.
Faço esta declaração para prevenir o publico e os meus amigos, visto que desta data
deixa o Sr. Marques de ser meu procurador, por eu cassar, como nesta data o faço, a
dita procuração, e se alguém fizer qualquer transação com o dito Sr. Marques a meu
respeito eu não me responsabilizarei.
Nota-se que as filhas de Laurentino não encontraram sossego, após a morte do pai,
para viverem do fruto do trabalho dele, contudo não pretendo focar nas dificuldades, mas
ressaltar quantas possibilidades se abriam para um líder afro-brasileiro se inserir
politicamente na sociedade, sabendo acionar os meios públicos, quando necessário,
construindo uma rede de proteção para que sua casa funcionasse por tanto tempo, bons
aprendizes e importantes propagadores de conhecimento, não somente pela manutenção dos
ritos, mas pelas proximidades de tais celebrações. Outro ponto a destacar é que os caminhos
escolhidos para apresentar Laurentino demonstraram que líderes religiosos foram muito mais
do que os desventurosos momentos de suas prisões, as exposições desrespeitosas nas páginas
de jornais ou sofridas sessões diante das autoridades, respondendo a inquéritos policiais ou a
processos. Não me refiro apenas a patrimônio; tais lideranças eram também responsáveis por
momentos de alegrias, não sendo diferente com Laurentino, já que, muitas vezes, foi acusado
de ser dono de zungú, e esses espaços eram associados a festa, comida, bebida.
Laurentino trabalhou até bem próximo de sua morte e, como ele, tantos outros filhos e
descendentes dos últimos africanos desembarcados na corte como escravizados. Quando
comparados com as primeiras manifestações do século XX, expostas aqui no primeiro
capítulo, fica evidente que os rituais aqui apresentados foram a base para o que se chamaria
de candomblé e umbanda no início dessa centúria. Portanto não somente a casa de
Laurentino, mas a análise das celebrações ocorridas no Rio de Janeiro ao longo de todo o
149
Jornal do Commercio, 24 mar. 1897.
327
Oitocentos, começando pelos cultos de aflição-fruição públicos do Campo de Santana e
demais praças da cidade, passando para o interior das casas, com complexas cerimônias com
objetivos variados, serviram para não só compreender a composição das religiões afro-
brasileiras em seu momento crucial, mas, principalmente, seus desdobramentos nos anos
seguintes do século XX.
150
Atualmente escreve-se Rua Paissandu.
151
O Paiz, 26 maio 1885.
152
Instrumento centro-africano, também conhecido como xilofone e lamelofone. Ver: GALANTE, Rafael
Benvindo Figueiredo. Da cupópia da cuíca: a diáspora dos tambores centro-africanos de fricção e a formação
das musicalidades do Atlântico Negro (Sécs. XIX e XX). 2015. Dissertação (Mestrado em História) -
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015, p. 40 e 103.
153
O Paiz, 26 maio 1885.
154
SOARES, Carlos Eugênio Líbano Soares. Zungú: rumor de muitas vozes. Rio de Janeiro: APERJ, 1998, p.
103-107.
328
encaminhados para o diretor do Museu Nacional.155 Além do ano, a rua era a mesma da
Rainha Mandinga, Leopoldina Jácomo, responsável pelo ritual iniciático realizado em sua
casa. O encontro do africano com a polícia deu-se vinte e um dias depois da detenção da Mãe
de Santo. Na carta preparada por seu advogado, João Antônio Brazil, Pacheco solicitava a
Sua Majestade o Imperador que ordenasse ao diretor do Museu que devolvesse seus
instrumentos, alegando que: “costumava dar em sua casa reuniões meramente com o fim de
divertir-se com seus patrícios em dansas de sua terra, denominadas Jongos”. 156
Retomo, nessa altura, o segundo capítulo, quando destaquei que não seria estranho os
desavisados viajantes confundirem as celebrações públicas com festa, já que, se obtivesse
sucesso, o culto de aflição-fruição terminaria em um grande festejo. A ideia apresentada em
O Paiz foi a de que “no princípio foi tudo bem; depois o calor, os vapores da aguardente e as
ovações dos assistentes transformaram o languido cateretê em foribunda dansa macabra e as
blandícias e palavras enamoradas dos pares em gestos lascivos e palavrões […]” 157 A ideia
de que tudo corria bem me remete à “normalidade” dos cultos afro-cariocas, tão comuns ao
longo do século XIX. Após a cerimônia, a comemoração, seguida da ideia dos palavrões, que
não creio se encaixarem com o jongo, mas sim com um momento de descontração.
Jongo ou cerimônia religiosa, a questão é que os participantes acabaram presos,
quatorze no total foram levados da freguesia da Glória até a Casa de Detenção da Corte. O
primeiro fichado na prisão foi o africano Tito Guimarães, natural do Congo, contando com
seus 70 anos, tendo a profissão de carregador, vestia calça e camisa branca. 158 Foi
acompanhado por Paulo Francisco, africano cabinda de 50 anos, solteiro, na ocasião vestia
calça “de cor” e camisa branca. 159 Outro africano cabinda, também contando com 50 anos,
foi o preto Daniel, que, assim como Tito, trajava calça e camisa branca. 160 Semelhanças
também na descrição de Francisco Faria, também africano cabinda, contando com 55 anos,
vestindo a mesma roupa que Daniel. A diferença é que seu semblante foi descrito como
“carregado”,161 diferindo da maioria das fichas, que os descrevia como “regular”. Outro que
teve seu semblante descrito como “carregado” foi o africano do Congo Jerônimo da Silva
Araújo, de 60 anos, trajando calça “de cor” e camisa branca.162 Raphael também era cabinda
155
MUSEU NACIONAL, PORMN. Pasta 20-Doc, 139-12/08/1881.
156
MUSEU NACIONAL, RJ. Pasta 20, Doc. 139. 12/0B/BB1. Requerimento de Quintino Pacheco, a Sua
Majestade o Imperador. 12/08/1881.
157
O Paiz, 26 maio 1885, grifos do original.
158
LMCDC, f. 2531, 25/05/1885.
159
LMCDC, f. 2532, 25/05/1885.
160
LMCDC, f. 2533, 25/05/1885.
161
LMCDC, f. 2534, 25/05/1885.
162
LMCDC, f. 2535, 25/05/1885.
329
de 55 anos, “quitandeiro”, vestindo a mesma calça branca e camisa dos demais. 163 O único
africano que diferia dos outros e não tinha embarcado como escravizado na costa centro-
africana foi Felipe, de 55 anos, natural da Costa da Mina, carregador por ocupação, e que se
trajava semelhante aos demais. 164 O carregador Jorge, africano cabinda, contava com 50
anos, era solteiro e seu semblante também foi compreendido como “carregado”, trajava calça
“de cor” e a naturalizada camisa branca. 165 O mais idoso do grupo era o africano Monjolo
Thomé, com 80 anos na ocasião, jardineiro, que estava com seu paletó e camisa branca. 166
Na casa também havia mulheres, Ventura de Souza Neves, africana cabinda de 60
anos, cozinheira, vestia uma camisa branca no momento de sua prisão. 167 Estava
acompanhada da companheira de profissão, Fortunata Maria Rosa, de 60 anos, também
168
cabinda, trajando roupas semelhantes às de Ventura. Martha Maria da Conceição era a
africana mais jovem da reunião, contava com 45 anos, era solteira e ganhava a vida como
lavadeira.169 Mafalda Maria da Conceição vinha do Congo, contava com seus 60 anos e,
assim como as primeiras mulheres, era cozinheira, e foi a única mulher a ter o seu semblante
descrito como “carregado”.170 Eva da Conceição Trindade, assim como a maioria dos
africanos, foi descrita como cabinda, a mais velha entre as mulheres, com 70 anos, solteira e,
assim como Martha, era lavadeira.171 A vestimenta branca, como algo “obrigatório” na
celebração da Rua Paysandu, e os semblantes “carregados”, que podem sugerir a
incorporação ou até mesmo a exaustão do rito, podem ampliar as possibilidades de ter
ocorrido uma celebração litúrgica. Infelizmente, a notícia veiculada pelo O Paiz não esclarece
quem seria o sacerdote ou sacerdotisa, ou simplesmente o responsável pela reunião. Não
creio que o espaço fosse um zungú, conforme aventado por Soares, já que todos os
envolvidos apresentaram endereço diferente daquele da cerimônia. Também não acredito que
a freguesia da Glória fosse menos policiada que as centrais, como ressaltou esse autor,
principalmente tendo em vista os percalços sofridos por Laurentino ao longo de sua vida
religiosa.
Dessa maneira, destaco que o final do século XIX contava ainda com a presença de
velhos africanos, os mesmos que seriam procurados por Nina Rodrigues para colocar em
163
LMCDC, f. 2536, 25/05/1885.
164
LMCDC, f. 2537, 25/05/1885.
165
LMCDC, f. 2539, 25/05/1885.
166
LMCDC, f. 2540, 25/05/1885.
167
LMCDC, f. 2538, 25/05/1885.
168
LMCDC, f. 2541, 25/05/1885.
169
LMCDC, f. 2542, 25/05/1885.
170
LMCDC, f. 2543, 25/05/1885.
171
LMCDC, f. 2544, 25/05/1885.
330
prática seus primeiros estudos, além de Arthur Ramos e Édison Carneiro. Esses dois últimos,
se não conseguiram contato com africanos, sem sombra de dúvida estavam diante de seus
filhos ou de cidadãs semelhantes a Dona Júlia dos Santos, filha de crioulo, que cresceu em
pleno contato com as atividades litúrgicas de seus responsáveis. Ou por jovens iniciados
ritualisticamente por sacerdotes e sacerdotisas no Rio de Janeiro, como as cinco meninas
presentes na casa de Mãe Bernardina, na Rua do Príncipe, a mesma do “régulo de Cabinda”.
Se for levado em consideração o fato de que o “barco” das citadas neófitas deu-se em 1908,
estas contariam com pouco mais de 30 anos quando Ramos fez seus trabalhos de campo na
cidade. Juca Rosa continuou a ser uma referência quando o assunto era alertar sobre um
importante líder religioso, e, se a fama permaneceu, evidentemente que sua ritualística se
manteve na cabeça de seus seguidores, ao menos nas primeiras décadas do século XX, até seu
nome cair no esquecimento e ser resgatado pela luz da historiografia por Gabriela dos Reis
Sampaio. Felipes, Franciscos e Laurentinos ajudaram a construir a base do que seria
conhecido como a macumba carioca e, principalmente, o universo sagrado afro-brasileiro.
Portanto existia vasto material de análise para os primeiros pesquisadores movidos pelo
entusiasmo das pesquisas do médico maranhense, bem como do I Congresso Afro-Brasileiro
no Recife, tanto que os que foram a campo apresentaram suas interessantes observações,
como Nóbrega da Cunha, que, no espaço de trabalho, acompanhou Leal de Souza, o qual,
mesmo marcado pelo entendimento do contexto, que acabava por hierarquizar as práticas, e
elencando o espiritismo kardecista de maneira mais respeitosa que as macumbas cariocas,
não deixou de descrever seus rituais.
Com a adoção das fotografias nos jornais do século XX, como exposto no primeiro
capítulo, o culto aos first-comers (os primeiros a chegar) revelou-se adiantado e ampliado nas
casas cariocas conectadas, de alguma forma, ao paramento dos velhos ngangas em solo
africano,172 propagado amplamente nas celebrações da primeira metade do século XIX nas
Américas, pode ter moldado a maneira como os caboclos passaram a ser representados dentro
dos cultos afro-brasileiros. A presença de um cristianismo africanizado nas ruas do Rio de
Janeiro serviu de ponto de aproximação entre os demais africanos, não sendo, dessa maneira,
a religião apontada para esconder nenhuma prática ritualística. Ficou evidente que nenhum
172
Comparar especialmente com a gravura de Olfer Dapper, Vista de Loango, em um culto ao inquice Bumba,
em que seus seguidores portam coroas de pena, semelhantes às descritas aqui no primeiro capítulo para o Rio de
Janeiro. A referida imagem é apresentada em um momento em que a autora desmistifica a imagem de Debret,
Enterro do filho de um rei negro.Ver: MENDES, Andrea. Sua bandeira na Aruanda está de pé. Caboclos e
espíritos territoriais centro-africanos nos terreiros e comemorações da Independência (Bahia, 1824-1937). 2018.
Tese (Doutorado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, SP, 2018, p. 157.
331
sacerdote ou sacerdotisa dos cultos ao longo do Oitocentos negou suas atividades. Eles
fugiam, sim, da associação com a feitiçaria, outra prática extremamente comum entre os
centro-africanos. Relembro que os espaços de culto, na segunda metade do século, eram as
próprias moradias de tais líderes, como o próprio Laurentino, que atendia e morava no antigo
Pendura Saia, a Ladeira dos Guararapes, ou seja, não tinham a menor necessidade de
esconderem ou disfarçarem seus ritos. Creio ser essa uma ideia não pertencente ao
Oitocentos, mas posteriormente creditada a ele.
Afirmo isso pensando no ano de 1918, no Rio de Janeiro, quando três importantes
veículos de comunicação da capital federal deram destaques ao Caboclo Cubatão, 173
divindade presente na casa liderada por Arsênio Vieira de Magalhães. As celebrações
ocorriam em Inhaúma, na Rua Gaspar, número 33. O jornal A Noite informou, em tom de fina
ironia, que os que visitavam tal casa voltavam surpreendidos “com tanta coisa bonita”,
“vistosa”, que viam diante de seus olhos. 174 O nome candomblé abriu a notícia, informando
que a fama de tal celebração era enorme, mas, logo na linha seguinte, referiu-se ao “sucesso
de sua ‘macumba’”. 175 Muitos foram os objetos recolhidos dentro da casa, principalmente na
“sala da frente” onde ocorriam as sessões: “Eram espadas formidáveis, figas, machadinhas,
tridentes assustadores, flechas do tempo em que Adão era cadete, peixes, colossais chifres de
veado e, como que para mais realçar a ornamentação cuidadosa da sala, toda ella atapetada,
havia tambores por todo canto”. 176
A celebração iniciava-se sempre por volta das 8 horas da noite, quando “iam de todas
as partes chegando os crentes”, dirigindo-se de imediato para a mesa principal, forrada com
espesso pano dourado, onde se encontrava a imagem do Caboclo Cubatão, que era o “santo
protector” da casa. “Os fieis, à medida que chegavam, iam beijando o ‘Caboclo’,
persignando-se respeitosamente, como si estivessem cumprindo um dever sagrado…” 177 A
celebração de Arsênio Vieira de Magalhães se enquadraria facilmente no que Édison
Carneiro chamou de candomblé de caboclo de origem banto na Bahia, para a década de 1930,
173
Para mais informações sobre o Caboclo Cubatão, ver: VALLE, Arthur Gomes. O poder supremo do Caboclo
Cubatão: cultura visual religiosa afro-brasileira e repressão policial no Rio de Janeiro em 1918. 19&20, Rio de
Janeiro, v. 14, n. 1, jan./jun. 2019. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/obras/caboclo_cubatao.htm.
Acesso em: 17 dez. 2019. Além das informações, o trabalho apresenta importante levantamento iconográfico,
pelo olhar da História da Arte, com diversas imagens dos cultos aos caboclos para os primeiros anos do século
XX.
174
A Noite, 04 maio 1918.
175
A Noite, 04 maio 1918, grifos meus.
176
A Noite, 04 maio 1918.
177
A Noite, 04 maio 1918.
332
e, como se percebe, tais celebrações existiam no Rio de Janeiro no período em que Arthur
Ramos foi a campo na cidade carioca e em Niterói.
178
Gazeta de Notícias, 05 maio 1918.
333
peixe, mesmo sendo feito de papelão, 179 remete ao ano de 1871, diretamente às celebrações
do mais afamado líder religioso do contexto, Juca Rosa, em que, segundo o fiel e depoente
Miguel José Tavares, um grande bagre do papo amarelo fora utilizado pelo Pai Quimbombo
para fazer uma “amarração” no amor para Mariquinhas da Europa, em que o peixe e seus
elementos transformavam-se em medicinas sagradas, ou seja, inquices.
A imagem publicada pelo jornal A Noite, por destacar alguns objetos já amontoados
na delegacia, acabou por oferecer com maior nitidez a figura do caboclo, do tridente
anunciado pela imprensa, de uma machadinha, do chifre e, diante do peixe, de uma pequena
estatueta do santo católico São Jerônimo (Imagem 46). A cerimônia era presidida por Arsênio
e sua mulher, Mariquinhas Chucaleira, sendo eles “os chefes da macumba”. 181 O delegado,
Dr. Gualberto de Oliveira Filho, incumbiu o comissário, Dr. Moraes, que interrompesse a
cerimônia, que, às 3 horas da manhã, estava a pleno vapor. Relembro os horários ritualísticos
existentes dentro do cosmograma bacongo. A respeito das celebrações, o Correio da Manhã
informou que: “O som dos atabaques, vibrados com vigor, iam repercutir longe, perdendo-se
na amplidão do espaço, quebrando fragorosamente o silêncio da noite […]”.182 Esse último
179
Correio da Manhã, 5 maio 1918.
180
A Noite, 4 maio 1918.
181
Gazeta de Notícias, 5 maio 1918.
182
Correio da Manhã, 5 maio 1918.
334
jornal seguiu o padrão da imprensa carioca na tentativa de desqualificar os cultos afro-
brasileiros, por isso o altar ganhou o adjetivo de “tosca mesa, à guisa de altar”, e sobre esse,
“um sórdido nicho com esquisitas manipansos”. Arsenio e sua mulher, chamada de Maria
pelo Correio da Manhã, dançavam incorporados no interior do círculo, diante dos
participantes e do “busto de índio, em tamanho natural”.183 Os ritos em muito remetem aos
cultos de aflição-fruição, apresentados no primeiro capítulo, quando o celebrante invocava a
presença dos espíritos, visando restabelecer a ordem natural das coisas.
Arsênio Vieira de Magalhães, assim como a maioria dos sacerdotes e sacerdotisas
estudados até aqui, foi preso em flagrante, sendo obrigado a responder a inquérito policial
seguido de processo movido na 3ª Vara Criminal. O líder religioso era natural de Sergipe,
tinha profissão ligada à atividade marítima, contava com 46 anos no momento de sua prisão,
sabia ler e escrever, assim como Laurentino e Juca Rosa.184 Somados inquérito policial e
processo, o infortúnio do sacerdote de Inhaúma estendeu-se do dia 18 de maio de 1918 até 10
de janeiro de 1919, contudo não precisou aguardar a conclusão do processo recluso, já que,
três meses depois, voltou para casa por força de um habeas corpus. 185 Ainda no inquérito
policial, no auto de sua prisão em flagrante, Arsênio declarou que, no momento da ação
policial, comemorava o aniversário de seu filho e que, por esse motivo, divertia-se com seus
convidados “a moda do norte”, além de reforçar que, em sua casa, não se praticava “bruxaria
alguma” e que tinha “um santo de devoção de nome ‘Dois-Dois’”, e que não era dado a
“mandingas”. 186
A devoção a Dois-Dois provavelmente está conectada aos orixás do candomblé nagô
Ibejis, que, até os dias atuais, são associados aos santos católicos São Cosme e São Damião
ou aos irmãos Crispim e Crispiniano. Relembro que foram as mesmas imagens católicas
encontradas nas celebrações de Antônio Francisco, Leopoldo e Jacinta, na casa de Maria José
Cordeiro, em 1899. Os depoimentos se aproximam dos que aqui foram apresentados, detalhes
do rito, observações sobre o altar, momento de incorporações dos líderes religiosos. Dessa
forma, atenho-me à defesa construída pelo advogado contratado pelos sacerdotes, o Dr.
Carlos da Costa:
183
Correio da Manhã, 5 maio 1918.
184
Processo de Arsenio Vieira Magalhães, p. 17-17v. Processo Criminal – Código Penal de 1890, artigo 157.
BR.RJANRIO.CS.0.PCR.2087. Ano 1918. Arquivo Nacional.
185
Processo de Arsenio Vieira Magalhães, p. 17. Processo Criminal – Código Penal de 1890, artigo 157.
BR.RJANRIO.CS.0.PCR.2087. Ano 1918. Arquivo Nacional.
186
Processo de Arsenio Vieira Magalhães, p. 7-7v. Processo Criminal – Código Penal de 1890, artigo 157.
BR.RJANRIO.CS.0.PCR.2087. Ano 1918. Arquivo Nacional.
335
E para que vossa excelência não veja na existência de um oratório com Santos um
meio de concretizar e aceitar a acusação, seja-nos permitido dizer que Arsenio
Vieira de Magalhães tem, como o seu defensor, um oratório, pois é católico
apostólico romano, como também presume a defesa que vossa excelência tenha e
seja bem católico. 187
No início de janeiro de 1919, o juiz de direito Dr. Casario Alvim absolveu o líder
religioso de Inhaúma. A argumentação de que Arsênio era católico, graças às imagens que
mantinha em sua casa, que corresponde aos “altares vistosamente alfaiados” 188 de Laurentino
Inocêncio dos Santos e de tantos outros líderes religiosos do Oitocentos, diferia
rigorosamente da realidade apresentada até então. Em nenhum caso do século XIX e início do
XX, lideranças religiosas negaram suas práticas e seus rituais. 189 Ocorre que Arsênio Vieira
de Magalhães, um visível praticante de um culto amplamente influenciado pela gramática
sagrada centro-africana, tinha diante de si o Código Penal de 1891, com os artigos 156, 157 e
158. Conforme já demonstrado, esse fato reforça minha hipótese de que a utilização dos
santos católicos para “ocultar” as divindades de origem ameríndia e africana surgiu,
contraditoriamente, no advento da República e no florescer do século XX. Não por acaso, em
1899, o advogado da portuguesa Maria José Cordeiro, dona da casa de “função” na Rua do
Lavradio, lançou mão da mesma estratégia, ao afirmar que sua cliente mantinha seu altar
justamente por ser católica devota e que os alimentos que se encontravam na casa eram para
seu consumo, inclusive as penas de galinha encontradas no quarto foram justificadas pela
compra do animal vivo para posterior preparo. 190
Como exposto, as lideranças do período de Arsênio, momento em que Arthur Ramos
realizou suas pesquisas de campo no Rio de Janeiro, conseguiram sobreviver às perseguições
impostas pela justiça brasileira, e, mesmo que essas primeiras leis republicanas significassem
a vitória dos intelectuais da nação que, na segunda metade do Oitocentos, pensavam o projeto
de país, cultos, ritos e costumes afro-brasileiros popularizaram-se na sociedade brasileira.
Creio que não seria diferente, já que as práticas ritualísticas afro-brasileiras, principalmente
as de origem centro-africanas, estavam espalhadas por todo o tecido social, caso contrário, a
procura por curandeiros não seria tão ampla a ponto de desestabilizar notáveis figuras da fina
flor carioca ou fazer um senhor bradar pelo “feiticeiro” ao ver um de seus escravos picado
187
Processo de Arsenio Vieira Magalhães, p. 37v. Processo Criminal – Código Penal de 1890, artigo 157.
BR.RJANRIO.CS.0.PCR.2087. Ano 1918. Arquivo Nacional, grifos meus.
188
Jornal do Commercio, 26 mar. 1878.
189
A única exceção foi Juca Rosa em seu último depoimento, em uma provável tentativa de se livrar da prisão e
também por orientação de seu advogado, já que, ao longo de todos os depoimentos que deu e ouviu, sempre
confirmou seus atos litúrgicos.
190
Processo de Antônio Francisco, p. 49-49v. Art. 157. CT691.C1959/F11. Arquivo Nacional.
336
por uma cobra, ou mesmo a incansável busca pelo amor e pela felicidade via “amarrações”,
pautadas no intenso diálogo com os mortos e a ancestralidade.
337
CONCLUSÃO
O trabalho que finda foi pautado pela busca de um complexo de crenças que conduzia
e contribuía para a formação no campo do sagrado afro-americano, em particular, afro-
carioca, com base na vida de lideranças e fiéis – anônimos e os que se deixaram conhecer –,
enquanto se entregavam intensamente a atos performáticos públicos e particulares, com ricos
rituais marcados por um repertório compartilhado e ressignificado, deixando, de alguma
maneira, muitas vezes pela desventura, captarem suas escolhas para a posteridade, fosse pela
pena dos muitos viajantes europeus, marcados por suas visões de mundo, fosse pelas lentes
da imprensa combativa, desejosa de uma nação “civilizada”, ou em duros inquéritos e
processos criminais, descortinando, portanto, a importante contribuição dos povos bacongos,
ambundos e ovimbundos que, ao longo de todo o período do tráfico transatlântico dos
viventes, representaram o maior aporte de escravizados desembarcados na América, em
especial no Rio de Janeiro. Isso impactou principalmente o século XIX, já que esses povos
trouxeram, na maioria das vezes, conhecimentos resultantes do diálogo entre as religiões
tradicionais e um cristianismo africanizado forjado a partir dos primeiros contatos entre
bacongos e portugueses.
Entretanto nem sempre os estudos brasileiros apontaram suas lentes para tais
contribuições. Como demonstrei, as produções dos primeiros autores brasileiros acabaram
por pautar e conduzir ao longo de anos a noção do sagrado afro-brasileiro no país,
principalmente por fazerem escolhas comuns em seus tempos, o de hierarquização dos seres
humanos, o que fez com que centro-africanos acabaram preteridos frente aos ocidentais,
mesmo tendo maioria numérica e uma grande bagagem cultural no campo do sagrado.
Contudo, mesmo com suas visões excludentes, esses autores acabaram por presenciar e
registrar importantes rituais, que aqui foram cruzados com fontes referentes às regiões da
África Centro-Ocidental, com isso, lançando luz aos atos performáticos realizados
principalmente na segunda metade do Oitocentos.
Outro importante ponto apresentado foi o constante embate entre a medicina oficial e
as atividades dos líderes afro-brasileiros, principalmente os reconhecidos curandeiros, que
dedicavam grande parte de seus rituais para atenderem as demandas aflitivas dos que
procuravam pela cura física de seus males. Entretanto o embate entre esses dois agentes deu-
se com armas completamente desiguais, já que o primeiro grupo compunha a elite do país,
integrando o escopo dos pensadores da nação. Dessa forma, encontrava espaço de atuação na
imprensa, contribuindo para a formação de uma opinião pública, além de colocar suas teses
338
em prática via cargos públicos, fossem estes na justiça, nas esferas da polícia, entre outros
tantos que desembocariam em ações repressivas contra líderes afro-cariocas, via medidas
estatais nos mais variados meios, como a legislação penal. Por muitas vezes, como ficou
evidente ao longo deste trabalho, mesmo com todo o aparato oficial, a preferência popular
visivelmente tendia para os líderes religiosos afro-brasileiros, mais pelo universo do sagrado
e dos costumes do que por valores inferiores à medicina. Cabe recordar que, por diversas
vezes, os valores cobrados por curandeiros eram bem maiores que os dos médicos, que
chegavam a oferecer atendimento gratuito como estratégia para angariar clientela.
Rituais estruturados como cultos de aflição-fruição, voltados para o restabelecimento
da ordem e da ventura, orientaram, como se evidenciou nos rituais públicos e principalmente
nos privados, as escolhas no campo do sagrado afro-carioca, pautadas pelos cultos aos
ancestrais e a divindades ligadas à natureza, sendo marcados por um complexo sistema de
repertório, que envolvia o canto, a dança, a incorporação, as palmas, o uso dos tambores
ngomas. A ressignificação e a continuidade das casas afro-cariocas foram possíveis graças
aos complexos rituais iniciáticos, que foram capazes de incorporar novos adeptos distribuídos
nas mais variadas hierarquias existentes dentro de cada credo, o que, evidentemente,
resultava na formação de novas lideranças.
Diante disso, evidenciou-se que, a variedade de cargos de lideranças existentes em
solo africano, em especial na África Centro-Ocidental, foi desmantelada pelo tráfico
transatlântico dos viventes, o que permitiu e até mesmo exigiu dos já formados e dos novos
sacerdotes e sacerdotisas que emergiam nas Américas a acumulação de funções, tais como a
arte da cura física e espiritual, a amarração de um inimigo, a conquista de um coração amado,
a homenagem necessária aos parentes mortos, aos ancestrais e aos espíritos territoriais. A
noção do sagrado não se limitava às casas afro-cariocas, ganhando as ruas a crença no feitiço
e de que seu combate só seria possível pelas mãos de poderosos líderes religiosos, bem como
a ideia de que a vida andava para trás dada a influência externa e do sobrenatural,
desembocando em superstições que chegaram ao século XX.
Salientei, ao longo do trabalho, a existência de um repertório litúrgico para as casas
afro-cariocas, tendo em vista as muitas conexões entre esses espaços, de tal forma que os fiéis
não encontrariam profundas diferenças de uma casa para outra ou de um ritual para outro,
chegando, inclusive, ao ponto de sacerdotes darem continuidades aos trabalhos realizados por
outros líderes. Assim como os elementos existentes dentro dos espaços permitiriam o fácil
entendimento dos participantes, como a presença da terra dos mortos, a pemba, o constante
ladeado das imagens católicas, com preferências claras para alguns santos, ao lado de
339
pequenas estatuetas que morfologicamente seguiam uma gramática africana, os inquices,
encantos chamados de amarrações, bem como os pontos cantados e riscados, também se
tornaram comuns nas ruas do Rio de Janeiro, assim como a paramentação ritualística das
lideranças afro-cariocas, com elementos que atravessaram o Atlântico, tais como as penas,
cocares e penachos, possibilitando, juntamente com uma noção de culto aos “primeiros a
chegar”, a aproximação entre elementos dos ameríndios, resultando nos chamados cultos aos
caboclos.
Diante disso, creio que a contribuição do trabalho que se finda foi o descortinar do
interior das casas litúrgicas afro-cariocas, com a possibilidade, por meio do cruzamento de
fontes, de ouvir as vozes dos participantes, fiéis e, principalmente, das lideranças africanas e
brasileiras, sendo possível, a partir daí, a compreensão de parte de seus ricos rituais sagrados
nas mais variadas esferas. Desse modo, findo salvando os que se deixaram registrar: salve
Laurentino Inocêncio dos Santos, o curandeiro da Glória, salve Leopoldina Jacomo, a Rainha
Mandinga, salve Juca Rosa, o Pai Quimbombo, salve Bernardina Maria do Rosário, a Mamãe
Bernardina, salve Pai Quintino, o Pai Raphael de Ubanda, salve o velho nganga da fazenda
em Magé, rapidamente lembrado pelo senhor quando este precisou de cura, salve Ana Luiza,
a Quimbandeira, salve Leopoldo, Silvana e Antônio Francisco, que abriram este trabalho,
salve Evaristo Antônio da Costa, o curandeiro de Niterói, salve Arsênio Vieira de Magalhães,
que recebia o Caboclo Cubatão, salve os anônimos recém-desembarcados, que
ritualisticamente dançavam pedindo aos ancestrais que reequilibrassem suas realidades, a
ponto de o sofrimento passar como uma festa ao olhar desavisado do viajante, salve os
anônimos ngangas, Pais e Mães de Santo, que, aos domingos, celebravam no Campo de
Santana, salve os africanos livres João Camilo e Mariana Antônia da Conceição, salve o
nganga Francisco Firmo, salve todas as sacerdotisas e sacerdotes anônimos. De alguma
forma, a desventura sofrida por cada um desses líderes religiosos acabou por revelar-se como
algo positivo, já que, graças ao sofrimento que enfrentaram, foi possível adentrar as mais
variadas casas afro-cariocas. Deu-se a ventura! Mesmo que tanto tempo depois…
340
FONTES
FONTES MANUSCRITAS
Arquivo Nacional
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