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DANÇA E DIÁSPORA

NEGRA
POÉTICAS POLÍTICAS, MODOS DE SABER E
EPISTEMES OUTRAS

AMÉLIA VITÓRIA DE SOUZA CONRADO


CELINA NUNES DE ALCÂNTARA
FERNANDO MARQUES CAMARGO FERRAZ
MARIA DE LURDES BARROS DA PAIXÃO
ANDA Editora.
1.ª Edição - Copyright© 2020 dos organizadores.
Direitos dessa Edição Reservados à ANDA Editora.

C754d Conrado, Amélia Vitória de Souza

Dança e diáspora negra: poéticas políticas, modos de saber e epistemes


outras/ Amélia Vitória de Souza Conrado; Celina Nunes de Alcântara;
Fernando Marques Camargo Ferraz; Maria de Lurdes Barros da Paixão,
organizadores. – Salvador /; ANDA, 2020. – 674. : il. – (Coleção Quais
danças estão por vir? Trânsitos, poéticas e políticas do corpo, 6).

ISBN 978-65-87431 02 4

ISBN Coleção 978 658 743 112 3

1 Dança 2 Dança Negra 3 Políticas Título II Série III Alcântara, Celina Nunes
de IV Ferraz, Fernando Marques Camargo V Paixão, Maria de Lurdes Barros
da

CDD 371

Patrícia de Borba Pereira – Bibliotecária - CRB10/1487

Processos / organização Cesar Valmor Rombaldi,; Flavio Fernando Demarco; Marcos


Britto Correa; Maximiliano Sérgio Cenci; Rafael Vetromille Castro; Vicente
Gomes Wieth; Vinícius Farias Campos. – Pelotas : Universidade Federal de
Pelotas : Pró – Reitoria de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação, 2020. –
15p. – e-book

ISBN 978-65-86440-27-0 

1, Pesquisa Científica 2. Pró-Reitoria de Pesquisa,Pós-Graduação


e Inovação 3. Universidade Federal de Pelotas I. Rombaldi, Cesar Valmor II.
Nenhuma Demarco,
parte desta
Flavioobra poderá
Fernando ser utilizada
III. Correa, indevidamente,
Marcos Britto sem estar de acordo com a Lei
IV. Cenci, Maximiliano
nº 9.610/98. Se V.incorreções
Sérgio Wieth, Vicenteforem
Gomesencontradas, serãoFarias
VI. Campos, Vinícius de exclusiva responsabilidade de seus
organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis
nº 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010. CDD 370.1

ANDA Editora
Av. Adhemar de Barros s/n
Ondina – Salvador, Bahia.
CEP 40170-110
AMÉLIA VITÓRIA DE SOUZA CONRADO
CELINA NUNES DE ALCÂNTARA
FERNANDO MARQUES CAMARGO FERRAZ
MARIA DE LURDES BARROS DA PAIXÃO

DANÇA E DIÁSPORA NEGRA:


POÉTICAS POLÍTICAS, MODOS DE SABER E EPISTEMES OUTRAS

ANDA EDITORA, 2020


ANDA | Associação Nacional de Pesquisadores em Dança

DIRETORIA

Prof.ª Dr.ª Lígia Losada Tourinho (UFRJ)


Prof. Dr. Lucas Valentim Rocha (UFBA)
Prof. Dr. Thiago Silva de Amorim Jesus (UFPEL)
Prof. Me. Vanilto Alves de Freitas (UFU)

CONSELHO DELIBERATIVO CIENTÍFICO E FISCAL

Prof.ª Dr.ª Dulce Tamara da Rocha Lamego da Silva (UFBA)


Prof.ª Dr.ª Eleonora Campos da Motta Santos (UFPEL)
Prof. Dr. Marcilio de Souza Vieira (UFRN)
Prof. Dr. Marco Aurélio da Cruz Souza (FURB)
Prof.ª Dr.ª Marina Fernanda Elias Volpe (UFRJ)

FICHA TÉCNICA – ANDA EDITORA

EDITORIAL
Dr. Lucas Valentim Rocha (UFBA)
Dr. Marco Aurélio da Cruz Souza (FURB)
Me. Vanilto Alves de Freitas (UFU)

COMITÊ EDITORIAL
Dr.ª Dulce Tamara da Rocha Lamego da Silva (UFBA)
Dr.ª Eleonora Campos da Motta Santos (UFPEL)
Dr. Marcílio de Souza Vieira (UFRN)
Dr.ª Marina Fernanda Elias Volpe (UFRJ)

PRODUÇÃO EDITORIAL
Dr. Thiago Silva de Amorim Jesus (UFPEL)
Dr.ª Lígia Losada Tourinho (UFRJ)

REVISÃO
Os autores

CAPA, DIAGRAMAÇÃO E PROJETO GRÁFICO


William Gomes
CORREALIZAÇÃO

Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA (PPGDANCA)


Programa de Pós-Graduação Profissional em Dança da UFBA (PRODAN)
Programa de Pós-Graduação em Dança da UFRJ (PPGDan)
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFPEL (PPGAVI)
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN (PPGArC)
_______________________________________________________________

CONSELHO CIENTÍFICO

Prof.ª Dr.ª Amanda da Silva Pinto (UEA)


Prof.ª Dr.ª Amélia Vitória de Souza Conrado (UFBA)
Prof. Dr. Amílcar Martins (Universidade Aberta de Lisboa – Portugal)
Prof.ª Dr.ª Ana Macara (INET – md/pólo FMH, ULisboa – Portugal)
Prof.ª Dr.ª Dulce Tamara da Rocha Lamego da Silva (UFBA)
Prof.ª Dr.ª Elisabete Monteiro (INET – md/pólo FMH, ULisboa – Portugal)
Prof.ª Dr.ª Eleonora Campos da Motta Santos (UFPEL)
Prof. Dr. Fernando Marques Camargo Ferraz (UFBA)
Prof.ª Dr.ª Helena Bastos (USP)
Prof. Dr. Marcilio de Souza Vieira (UFRN)
Prof. Dr. Marco Aurélio da Cruz Souza (FURB)
Prof.ª Dr.ª Marina Fernanda Elias Volpe (UFRJ)
Prof.ª Dr.ª Neila Baldi (UFSM)
Prof.ª Dr.ª Pegge Vissicaro (Northern Arizona University – EUA)
Prof. Dr. Rafael Guarato (UFG)
Prof. Dr. Sebastian G-Lozano (Universidade Católica San Antonio de Murcia –
España)
Prof. Dr. Sergio Ferreira do Amaral (UNICAMP)
Prof. Dr. Thiago Silva de Amorim Jesus (UFPEL)
_______________________________________________________________
Esta obra foi aprovada pelo conselho científico e comitê editorial.
ORGANIZADORES

AMÉLIA VITÓRIA DE SOUZA CONRADO é Doutora e Mestre em Educação pela


Universidade Federal da Bahia. Especialista em Coreografia pela Escola de Dança da UFBA. É
Professora Associada da Escola de Dança da UFBA. Membro do Programa de Pesquisa e
Pós-Graduação em Dança (PPGDança), do Programa de Mestrado Profissional em Dança
(PRODAN). Líder do GIRA - Grupo de Pesquisa em culturas indígenas, repertórios afro-
brasileiros e populares (CNPQ).
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7491-488X

CELINA NUNES DE ALCÂNTARA é atriz e professora adjunta da Universidade


Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, no Departamento de Arte Dramática e no
Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGAC). Integra o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros,
Africanos e Indígenas (Neab/Ufrgs), coordena o Grupo Interseccional de pesquisas em
Negritude, Gênero e Artes (GINGA) e é editora Associada da Revista Brasileira de Estudos da
Presença. Como atriz é membra fundadora do grupo Usina do Trabalho do Ator (UTA/RS) e,
desde 2018, integra o coletivo do espetáculo A mulher arrastada.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-6546-2765

FERNANDO M C FERRAZ é Professor da Escola de Dança da UFBA. Doutor e Mestre


em Artes pelo IA/Unesp, Bacharel Licenciado em História pela FFLCH-USP. Professor do
Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA e do Mestrado Profissional em Dança
PRODAN-UFBA, membro do Grupo GIRA: Grupo de Pesquisa em Culturas Indígenas,
repertórios Afrobrasileiros e Populares.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8149-1793

MARIA DE LURDES BARROS DA PAIXÃO é Líder e Pesquisadora do Grupo de


Pesquisa Linguagens da Cena: Imagem Cultura e Representação /LINC/CNPQ/UFRN.
Professora Associada II do Departamento de Artes da UFRN, Curso de Licenciatura em Dança.
Docente Colaboradora do Programa de Pós-graduação em Dança da UFBA.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7196-4590
SUMÁRIO

PREFÁCIO ■ Luciane Ramos Silva 13


APRESENTAÇÃO ■ Amélia Vitória de Souza Conrado e Fernando Marques
Camargo Ferraz 19

1ª PARTE ABRINDO OS CAMINHOS: EXU 24

SENHORAS DAS ENCRUZILHADAS: POÉTICAS DO CORPO EM PERFORMANCES


DE POMBAGIRAS ■ Tulani Pereira da Silva 25

EXU: UM CORPO E UM FAZER EM DANÇA, POSSÍVEL PELA DIÁSPORA ■ João


Paulo Petronílio 41

PADE: BARAFUTURISMO ■ Alexandre Carvalho dos Santos e Tatiana Maria


Damasceno 53

2ª PARTE ABORDAGENS EDUCACIONAIS 65

(RE)VISÃO CRÍTICA E APONTAMENTOS SOBRE ABORDAGENS HISTÓRICAS DO


ENSINO DA DANÇA/ARTE NO CURRÍCULO ESCOLAR ■ Leonardo das Chagas
Silva 66

CIA DE DANÇA ROBSON CORREIA: UMA FORMAÇÃO PARA O CORPO NEGRO


NA CENA DA DANÇA EM SALVADOR ■ Robson Correia Santos 84

O COLETIVO ENEGRESER E A PRESENÇA DE EPISTEMOLOGIAS AFRO-


ORIENTADAS NA FORMAÇÃO DOCENTE EM DANÇA ■ Anne Caroline Ferreira
Vaz 101

ERÉ EKO: JOGOS EDUCATIVOS ■ Lorena Conceição Moreira de Oliveira 117

A ESCOLA, O PAGODE E A RUA: OS JOVENS E SUAS INTERSEÇÕES NESSES


CONTEXTOS ■ Everton Bispo dos Santos e Amélia Vitória de Souza Conrado
130
DONA CICI, A MENSAGEIRA DOS CONHECIMENTOS ANCESTRAIS: AS ARTES
INTEGRADAS AFRODIASPÓRICAS DE ORIGEM IORUBÁ DO BRASIL E DE CUBA
COMO POSSIBILIDADE PARA O ENSINO DA DANÇA ■ Beatriz Gonzalez Lagos
146

PRETA SINHÁ, PRETO SINHÔ: PROCESSO E APRENDIZADOS SOBRE


IDENTIDADE E ANCESTRALIDADE AFRICANA ATRAVÉS DA DANÇA ■ Sheila
Karine e Maria de Lurdes Barros Paixão 162

CORPOREIDADES AFROANCESTRAIS NA CENA CONTEMPORÂNEA:


EXPERIMENTO, ENSINO E CRIAÇÃO ■ Gerson Carlos de Sousa 175

3ª PARTE INTERSECCIONALIDADES 194

"JOGANDO COM A INSTABILIDADE": MULHERES NEGRAS RE-IMAGINANDO


EQUILÍBRIO NA DANÇA ■ Agatha Silvia Nogueira e Oliveira 195

CORPAS DA TERRA, CORPAS INTUITIVAS: NOTAS SOBRE FAZERES EM DANÇA


JUNTO A MULHERES QUILOMBOLAS ■ Candai Calmon 212

MOVIMENTO QUADRIL: DOS RICOCHETES DA BUNDA FEMININA PRETA À


CONSTRUÇÃO DE SUBJETIVIDADE EM CONTEXTOS AFROCENTRADOS ■ Ana
Carolina De Toledo 226

O CORPO DA MULHER NEGRA NAS ARTES CÊNICAS ■ Gabriela Souza da Rosa


e Celina Nunes de Alcântara 243

AFETOS DISSIDENTES, CORPOS VIGENTES: REFLEXÕES SOBRE A


HOMOAFETIVIDADE NEGRA NA DANÇA CONTEMPORÂNEA ■ Bruno Novais
Dias 258

CORPO-NANÃ: EXPERIÊNCIA PERFORMÁTICA NO MANGUEZAL ■ Cleyce Silva


Colins 274

A DANÇA DE OXUM NA CONSTRUÇÃO DO CORPO CAVALO ■ Joelma Ferreira e


Ana Maria de José 288
4ª PARTE MANIFESTAÇÕES AFRO-DIASPÓRICAS 304

AFRO MANDINGA: MATRIZES DO MOVIMENTO ■ Aurionelia Reis Baldez e Joice


Faria 305

CAPOEIRA E EMANCIPAÇÃO NA FORMAÇÃO EM DANÇA: ANÁLISE DE


ASPECTOS DIDÁTICOS E METODOLÓGICOS ■ Marcos Cezar Santos Gomes
322

GÊNERO, "RAÇA" E CLASSE SE ENCONTRAM NA FESTA: OS SABERES DO


MOVIMENTO HIP HOP E DAS DANÇAS URBANAS ■ Luciana Monnerat, Luisa
Marinho Mesquita Martins e Sérgio Pereira Andrade 339

EU PRETO NA SOCIEDADE BAIANA FAZENDO CABRIOLE ■ Lindete Souza de


Jesus 356

O CORPO NEGRO NO BALÉ CLÁSSICO: DANCE THEATRE OF HARLEM E SUAS


PRÁTICAS INSURGENTES ■ Gleidison Oliveira da Anunciação 372

SWING AFRO BAIANO: UMA DANÇA AFRO-BRASILEIRA ■ Eric Barbosa Araujo


384

ARROMBA CHÃO QUE ANIMA O SALÃO, QUADRILHA DE SÃO JOÃO!


MEMÓRIAS, DANÇAS E TRANSFORMAÇÕES DAS QUADRILHAS JUNINAS EM
SALVADOR ■ Soiane Gomes 400

IMASK KAPI’I ■ Denise Zenicola 414

5ª PARTE EPISTEMES AFRO-REFERENCIADAS 433

OXÊ, UMA REVOLUÇÃO JUSTA: EPA! ENCONTRO PERIFÉRICO DE ARTES COMO


UMA AÇÃO OXÊTICA! ■ Bruno de Jesus da Silva 434

FRICCIONANDO A IDEIA DE UNIVERSAL: O PENSAMENTO DE GERMAINE


ACOGNY EM CAMPOS EXPANDIDOS ■ Luciane Ramos Silva 450
DECOLONIZAR: DANÇANDO COM SANKOFA Erick Santos Silva 462

PRIMEIRAS REFLEXÕES SOBRE DECOLONIALIDADE EM PROCESSOS


CURATORIAIS ■ eduardo alves guimaraes 475

O PRETAGONISMO NEGRO NA DANÇA EM PORTO ALEGRE ■ Ana Paula Silva


dos Reis 494

ARA-PAMOSI JÓ: CORPO-ARQUIVO, DIÁSPORA E AS POLÍTICAS DA


ANCESTRALIDADE NA DANÇA ■ Fernando Ferraz 508

A FLOR BRANCA DO BAOBÁ ■ Roberta Ferreira Roldão Macauley 525

DANÇAS NA AFRODIÁSPORA BRASIL E CUBA: CORPOS EM CONFINAMENTO E


(RE)VELAÇÕES DE REALIDADES EM TEMPOS DE PANDEMIA MUNDIAL ■
Amélia Vitória de Souza Conrado Conrado e Raissa C. Biriba 538

6ª PARTE POÉTICAS E PROCESSOS ARTÍSTICOS 552

PERSPECTIVAS DO SAMBA DE CABOCLO POR UMA COSMOVISÃO AFRICANA ■


Inah Irenam Oliveira da Silva 553

ENCRUZILHADAS POÉTICAS: ENTRE A REPRESENTAÇÃO E A METONÍMIA ■


Franciane Kanzelumuka Salgado de Paula 569

CORPO NARRADO, CORPO DANÇADO: PENSANDO AS POÉTICAS NEGRXS NA


DANÇA ■ Kleber R. Lourenço Silva 587

DESOBEDIÊNCIAS POÉTICAS: A TRAMA DAS NARRATIVAS CORPORAIS E O


LUGAR DO DEVIR ■ Fernanda Silva dos Santos 600

SERESTAR CATIRINA: ATRAVESSAMENTOS NO CORPO DO ATOR-BRINCANTE ■


Sebastião de Sales Silva 618

PRETOS VELHOS E PRETOS NOVOS: MEMÓRIAS DE PRÁTICAS DE DANÇAS


AFROREFERENCIADAS E CRIAÇÕES CÊNICAS ■ Tatiana Maria Damasceno
631
CORPOREIDADES PRETAS EM TRÂNSITO:EXPANDINDO E FIRMANDO
TERRITÓRIOS ■ Katya Souza Gualter, Samira Lima da Costa, Marilia Rameh
Reis de Braga, Renato Mendonça Barreto da Silva, Raphael Luiz Barbosa da
Silva 646

ÍNDICE REMISSIVO 663


AUTORES & AUTORAS 666
PREFÁCIO
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

IMAGINAÇÕES DIASPÓRICAS
Luciane Ramos-Silva (Acervo África)

Caminhávamos no Largo do Arouche, tradicional e emblemática praça no centro de


São Paulo. Ela emanava sua comum simpatia que se intensificava com o colorido de
suas roupas e acessórios. Entre histórias e lembranças, curiosidades e alertas, ela
parou alguns segundos e disse com um meio sorriso: "E se o negro ocupar a
Universidade, o que vai ser?".

Inicio esta conversa com uma memória. Nossa mestra Nadir Nóbrega,
então Profa. Dra. do curso de licenciatura em dança da Universidade Federal
de Alagoas, hoje aposentada, em entrevista para a revista O Menelick2Ato há
aproximadamente oito anos. Discutíamos a presença/ausência das pessoas
negras nas universidades públicas, suas reverberações nas ordens
hegemônicas e mais especificamente nos currículos dos departamentos de
dança. A memória ganha tom de crônica da vida cotidiana quando lembro que
um vírus no HD danificou o arquivo, de modo que perdemos o registro, mas
aquela pergunta, que vinha com certo tom de profecia, só atiçava nossos
planos de conjura para a construção de uma outra história da dança no Brasil e
soava também como um chamado, cujo eco remonta há décadas, nas escritas
de intelectuais do campo das danças afro diaspóricas, bem como nas
reivindicações de docentes, discentes e artistas negras/os.

O tempo não suspendeu seu vôo e as transformações que vivemos nos


últimos anos, entre desmontes e emergências no campo das epistemologias
negras, parecem apontar para um cenário que não passa desapercebido.

Entendendo essas emergências como elementos que brotam mas


também o que se anuncia como urgência, cabe percebê-las à luz de um
cenário mais abrangente no contexto social brasileiro, de uma longa história de
reivindicação por espaços de equilíbrios para a população negra, de uma
discussão crítica sobre o lugar das escritas negras na formação sócio cultural
do Brasil e de conquistas evidentes dos movimentos, intelectuais, artísticos e
políticos negros. No campo da dança especificamente algumas políticas
públicas, hoje em queda vertiginosa, foram apropriadas por populações
14
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

periféricas e negras possibilitando uma pequena expansão de dignidades,


dando a ver os atos criativos, pedagógicos e políticos de grupos, assim como
alguns movimentos nas Universidades Públicas olhando para as
epistemologias não hegemônicas e criando arejamentos tanto de maneira mais
robusta na oficialização de áreas de conhecimento ligadas aos saberes
indígenas e afro brasileiros, quanto vagas docentes para tais áreas, além de
seminários, congressos, cursos de extensão, presença formal nos currículos e
investimento em linhas de pesquisa. Trata-se de um cenário de mudança que
aponta para uma grande janela aberta para outros ares, outras formas de
conhecer e entender.

É oportuno verificar que tais ampliações de campos de percepção


tornam-se ainda mais urgentes neste ano emblemático de incertezas e
questionamentos sobre as autonomias dos corpos diante de sistemas,
estruturas políticas, (contra) reformas, além de vírus destrutivos. A atual
conjuntura nos convoca a entender a responsabilidade de nossas escolhas
enquanto pessoas, instituições e sociedade. É latente que a organização de
mundo como vemos hoje aprisiona sentidos, impede o bem viver e gera
desequilíbrios tão profundos que nos forçam a um exame de nós mesmas/os e
a ter coragem para imaginar outras possibilidades, outras éticas. As danças
que estão por vir, já estão aqui e adensam um continuum de produção poética
e política que vem de longe - em tempo e espaço. A diáspora negra como
território de memórias de futuro, parece anunciar cenários onde atrizes/atores
sociais forjam modos para produzir vida.

O movimento do Comitê Temático "Dança e Diáspora Negra: poéticas


políticas, modos de saber e epistemes outras”, abriu caminhos para operadores
conceituais, dramaturgias, partituras corporais, tradições e
contemporaneidades, escritas de si e de mundos a partir das perspectivas
afrodiaspóricas, assentando presenças e disposições para o debate. É como
um convite para chegar ao pé do berimbau e depois do cumprimento seguir em
jogo. Jogo nada literal ou retilíneo. Jogo espiralado, cabreiro e atento. O
território onde pisamos jamais foi tranquilo, sabemos disso. Assim, não faltaram
giros de tronco com pés aterrados, braços em defesa e vislumbres pelo canto
dos olhos.

15
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

A fartura de propostas apresentadas durante os 3 dias de Comitê,


revelaram múltiplos olhares, abordagens diversas, relações e
transbordamentos. Considerando que o campo das danças negras não é novo,
neste momento vemos abrirem-se frestas mais profundas nas estruturas e nas
conjunturas trazendo maior visibilidade e chamando para a roda diversos
agentes. Há amadurecimento na discussão das temáticas, como o olhar crítico
para ideias essencializadas sobre a experiência negra, ou o que costumo
chamar de louvação entusiástica e acrítica das africanidades; Há uma profusão
de linguagens para a cena ou para o treinamento técnico, dramaturgias,
pedagogias estruturadas, procedimentos educacionais, epistemologias
nascentes, revisionismos históricos, aportes filosóficos anti-coloniais
constituídos a partir de experiências diversas nas culturas e práticas do ensino
formal e informal, das danças urbanas e suas múltiplas abordagens (voguing,
pagode, swing afro baiano, hip hop), nos modelos de tradição bantu, em
companhias de dança e coletivos artísticos, nas vivência de mestras da cultura
popular, em comunidades quilombolas, nas mobilizações de estudantes
universitários, nos blocos afro; A pluralidade também se apresenta nas
mediações artísticas com simbologias de tradição yoruba, nas corporeidades
marciais afrodiaspóricas (capoeiras, maculelê, Machete y Bordon), no
atravessamento do corpo negro com as estéticas eurocentradas, no corpo
entrelaçado com religiosidades afro-indígenas, nas quadrilhas juninas e em
muitos outros âmbitos. Trata-se de uma série de propostas que revelam o
caldo fervente de fazeres, que contra hegemônicos na na contemporaneidade.

Há que se destacar a assunção de intelectuais negras e negros que ao


investigarem o campo amplo em questão também reforçam a disputa de um
espaço, muitas vezes ocupado por investigadoras/es brancas/os. De objeto de
pesquisa a pessoa negra torna-se sujeito e agente, limpando rastros de um
legado colonial ainda evidente em discursos paternalistas e em resistências
para o novo. Percebemos também um esforço inicial de análise crítica da
branquitude, a partir de pesquisadoras/es brancas/os, na produção acadêmica
e artística em dança, que podem se consolidar em contribuições importantes
nesse tema tão pouco enfrentado pela academia hegemônica da dança.

16
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Enquanto encontro de produção crítica, o Comitê abre espaço e


possibilita o amadurecimento de pesquisas que por vezes se limitam à
reivindicação por ideias como as de representatividade e empoderamento,
frequentemente capturadas pelo mercado, e que podem ser canalizadas para
uma escrita mais aprofundada através de conversas e suportes bibliográficos
adequados. Ademais, as pesquisas apresentadas tanto retomaram produções
fundantes das práticas afro diaspóricas, valorizando biografias e genealogias,
como arriscaram criações de epistemes a partir de práticas incorporadas.

Os trabalhos apresentados também trouxeram em seu escopo a


abordagem das relações raciais evidenciando que a racialidade opera em
todos os níveis, implícita ou explicitamente, sendo suporte para o
funcionamento das engrenagens sociais e institucionais, gerando reflexões
qualitativas e plurais que ampliam sensibilidades e mostram dimensões que
escapam às perspectivas euro-orientadas, constantemente produtoras de
novas fantasias coloniais.

O formato online que experimentamos neste VI Congresso da ANDA,


trouxe gestos que reverberaram a partir de múltiplos suportes. Peles de
atabaques desafiaram a disciplina milimétrica de pequenas caixas
organizadoras em telas da plataforma Zoom. Paisagens sonoras de cânticos
geraram pulsações e movimentos muito bem vindos nesses tempos em que
precisamos expandir os sensos.

Ficam ainda perguntas a serem respondidas com a continuidade desta


grande rede que se fortalece: como construir esses espaços de danças que
atravessam diferentes águas, das furiosas às tranquilas, das turvas as
cristalinas? Como potencializar esse espaço de troca , mas também entendê-lo
como um encontro que se consolida em coletividade, ou seja, espaço de
partilha, acolhida e de reciprocidade que reconhecemos como possibilidade
criativa e dialógica, não como fronteiras intransponíveis ou visões que devem
ser subalternizadas a partir de um discurso autorizado e competente.

2020 tem sido uma travessia desafiadora. Entretanto, essas outras


histórias mostram-nos que temos mais abundância do que falta. Mais fartura do
que miserabilidade. Mais pulso de vida do que de morte. A Universidade

17
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

pública e outras instituições voltadas para o ensino de dança, quando


ocupadas por pensamentos plurais podem se transformar potentes propulsoras
de novos mundos.

18
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

APRESENTAÇÃO

19
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

COMITÊ DANÇAS E DIÁSPORA NEGRA:


UMA REDE DE AFETOS E SABERES

Amélia Vitória de Souza Conrado (UFBA)


Fernando Marques Camargo Ferraz (UFBA)

Nesse VI Congresso Científico Nacional de Pesquisadores em Dança o


Comitê "Dança e Diáspora Negra: poéticas políticas, modos de saber e
epistemes outras” realiza sua segunda edição. Por conta do cenário
pandêmico o evento foi realizado virtualmente solicitando da organização toda
uma nova logística e aprendizado. O Comitê Temático nesse ano não teria sido
possível sem a parceria competente e entusiasmada das pesquisadoras
professoras doutoras Celina Nunes de Alcântara, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS) e Maria de Lurdes Barros da Paixão da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que compartilharam
conosco a Coordenação do comitê e Organização desse E-book. Contamos
também com o auxílio de duas monitoras Nannyrose Harnett e Neila Andrade e
a colaboração de todos os envolvidos no processo, desde a direção, apoio
técnico e participantes.

O Comitê contou com 52 Comunicações Orais aprovadas. Durante o


evento elas foram organizadas em cinco sessões, sendo algumas simultâneas,
distribuídas em temas geradores como: abordagens educacionais,
interseccionalidades, epistemes afro-referenciadas, manifestações diaspóricas,
poéticas e seus processos. Ao final de cada rodada de apresentações das
comunicações evidenciou-se uma ética de cuidado e escuta entre os
participantes, numa atmosfera colaborativa e de acolhimento, sem deixar de
estimular o debate construtivo de ideias e suas diferenças. Vale ressaltar que
mesmo na condição virtual, as apresentações dos trabalhos, na medida em
que os(as) autores(as), faziam suas apresentações, também, emanavam
toques de atabaques com agdavis, berimbaus, cantos das tradições culturais
negras, danças que falam. Essas diversas formas de se expressar,

20
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

transcendem e subvertem modelos que se impõem como hegemônicos e


monoculturais. Tal ambiência, emociona e afirma um modo de saber,
reforçando conceitos epistemológicos da cultura em questão, ao passo que
subverte modelos academicistas.

Após o período de escrita dos textos para confecção do E-book foram


selecionados um total de 41 contribuições entre seus participantes.

Contamos com a participação de pesquisadores locais, residentes em


Salvador, do recôncavo baiano e interior do estado da Bahia e de outros
estados (Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Distrito Federal, Sergipe,
Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Sul). Apesar do contexto sócio político
enfrentado em 2020, com os desafios sanitários e econômicos instaurados pela
pandemia a realização do Congresso em formato virtual possibilitou uma
intensa participação, favorecendo o fortalecimento de uma rede de
pesquisadores no país. O Comitê gerou novamente um ambiente acolhedor de
trocas, estímulos de pesquisadores em diferentes momentos de sua formação,
colaborando para o adensamento e avanço das reflexões, métodos de análise
e abordagens teóricas.

Chamou-se atenção novamente o esforço na constituição e


reconhecimento de epistemologias afro-referenciadas, alguns paradigmas já
em bem como a elaboração de neologismos cujas nomenclaturas revelam o
esforço em construir referenciais afro orientados, constituído a partir da prática
de suas comunidades de conhecimento. Muitos deles estarão evidenciados no
índice remissivo deste livro. São conceitos que dialogam com culturas de
tradição Bantos, Yorubas e outras afrodiaspóricas, cruzando saberes
ancestrais com suas reelaborações atualizadas na contemporaneidade.

A partir do vislumbre dos textos completos o Comitê Organizador


organizou este E-book em seis partes:

Como metáfora dos saberes ancestrais, iniciamos as contribuições com


a presença dos textos que tematizaram ocorrências poéticas e epistêmicas a
partir de Exu, personificação do princípio dinâmico, ser múltiplo e cambiante
para abrir nossos caminhos de saberes e trocas. Sua imagem e potência

21
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

evocam o corpo em toda sua potencialidade transformacional, senhor das


redes de comunicação no tempo e no espaço.

A segunda parte traz abordagens educacionais sobre os fazeres afro


referenciados. Os textos tecem reflexões sobre os modos de aprender, tanto
nos espaços formais, do ensino fundamental à formação dos currículos no
ensino superior, garantia das condições de aplicação da lei 10.639-03, quanto
também de experiências em espaços não formais, como coletivos e grupos
artísticos. As contribuições priorizam os processos de transmissão dos
saberes, não como conhecimentos acabados, mas como modos de saber em
transformação e tensionamento, relacionando questões éticas no trato das
diferenças e na revisão de currículos etnocêntricos a partir de um olhar
educacional anti-racista, dialógico e atualizado.

A terceira parte prioriza enfoques interseccionais propostos em


aproximação e diálogo com teorizações sobre o gênero e sexualidade e as
importantes contribuições do pensamento feminista negro. Esses trabalhos
apresentam a necessidade de uma reflexão atravessada pelas complexidades
dos inúmeros condicionantes das experiências humanas. Aqui as relações de
poder, as vivências inscritas pelo e no corpo podem ser melhor apreendidas
como decorrência de uma trama compostas por imbricamentos de raça,
gênero, classe e sexualidade e muitas outras implicações que atuam
juntamente e se interinfluenciam.

A quarta parte compõe um panorama de experiências diaspóricas


distintas, considerando o local diverso da diáspora, as contribuições nos
estimulam a conceber um diálogo entre múltiplas experiências afro-
referenciadas. São contextos múltiplos conectados pela experiência africano
descendente no mundo, cuja pluralidade de abordagens conecta diferentes
tradições com a contemporaneidade. Essas manifestações convidam para o
exercício de compreensão da alteridade, capaz de fazer emergir o sentimento e
ação voltada ao respeito e direito à diferença. Aqui agregam-se em co-
presença similaridades e diferenciações justapostas e tramadas na experiência
do atlântico negro compreendida em sua complexidade.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

A quinta parte ressalta as epistemes afroreferenciadas. São pesquisas


cujo objetivo central é destacar a produção de uma teoria da dança diaspórica,
bem como, perceber suas demandas, tensionamentos, contradições e
desafios. As reflexões propostas, no entanto, apresentam um saber teorizado a
partir do corpo e suas vivências, reformulando as vozes monocórdias e
distanciadas do colonialismo.
A sexta parte traz contribuições centradas nas poéticas e reflexões a
partir de processos artísticos. São os procedimentos em construção, aqui
apresentados, que guiam os pesquisadores em suas descobertas e apontam
para um fazer-saber relacional e instigante.

É oportuno salientar que as divisões aqui propostas são também um


esforço didático de estabelecer aproximações possíveis entre abordagens com
diálogos mais evidentes, entretanto, não ensejam tecer fronteiras absolutas
entre as pesquisas que, não raro, tangenciam mais de uma dessas temáticas.

O Comitê favoreceu o aprofundamento de questões étnico-raciais no


campo das artes e a reflexão afirmativa e contemporânea sobre as formas de
pertencimento e diferença dialogada, compreendendo processos de
transmissão, comunicação e tradução, seus embricamentos interseccionais,
pedagógicos e poéticos, contribuindo no reconhecimento e adensamento da
produção de conhecimento em dança.

A partir do desejo em valorizar e reavaliar as contribuições dos saberes


da diáspora africana no campo da dança, o comitê Dança e Diáspora Negra
apresenta uma potente contribuição sobre os processos de disseminação e
transformação da cultura negra na contemporaneidade. Seus pesquisadores
tem aos poucos sedimentado uma rede atuante na compreensão da presença
africana no campo da dança pela reconstrução de saberes e fazeres, muitas
vezes não ditos, capazes de visibilizar afirmativamente as complexidades e
potências de seus legados no mundo.

O E-book aqui apresentado é resultado desse trabalho coletivo, cujo


intento é colaborar na compreensão do caráter formador e civilizacional das
artes afro-diaspóricas no país, implicando suas poéticas políticas, epistêmicas
e educacionais posicionadas na produção do conhecimento em dança.
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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

1ª PARTE

ABRINDO OS CAMINHOS: EXU

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SENHORAS DAS ENCRUZILHADAS:


POÉTICAS DO CORPO EM PERFORMANCES DE POMBAGIRAS

Tulani Pereira Da Silva (UERJ)

Chegando na encruzilhada...

Ser mulher é sempre desafiador. A sociedade está repleta de sinais que


comunicam, nos mais subjetivos detalhes, que mulheres não podem ser/fazer
tudo o que quiserem. Anibal Quijano (2005) já destacara em seus escritos que
estamos inseridos em diversas relações políticas permeadas por colonialidades
de poder. E como se não bastasse ser mulher, tudo se torna bem mais
desafiador quando se é preto e/ou pobre num país historicamente explorado
por séculos, tendo sido um dos últimos a abolir a escravização de milhões de
africanos e afrodescendentes. O que dizer sobre tantas heranças coloniais que
perpetuam as violências cotidianas as quais estamos diariamente expostos?

A arte sempre foi um caminho potente para reverter processos de


opressão, bem como propor ao corpo autoconhecimento e o exercício do senso
crítico. Mais especificamente, saudamos o corpo e a dança, por defendermos a
ideia de que o ato de sentir/refletir sobre o mundo acontece no corpo.

Pensamos com esse mesmo corpo desde a ponta dos cabelos até a
ponta dos pés, aceitando que nossas ancestralidades se manifestam
em/através do nosso mover, contando nossa história e trazendo nosso legado
de continuidade e resistência. Pois bem, cá estamos diante de uma sociedade
que se ergueu nas costas de pretos e indígenas e que defende o discurso de
que somos todos iguais, quando na verdade, sabemos bem que quando o
assunto em questão é igualdade de direitos e oportunidades, existe um abismo.

É em nome do sangue, suor e lágrimas derramados e enaltecimento das


vozes de nossos ancestrais que produzimos este artigo. É em reverência à
irreverência de Exu que louvamos os bons caminhos que nos trouxeram até
aqui. É em nome das senhoras das encruzilhadas, as Pombagiras, que
multiplicamos este axé de matripotência para nos reconhecermos e
libertarmos. Saravá!

25
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Introdução

Observando os processos de dominação sobre os modos de vida afro-


diaspóricos articulados às violências e tensões sobrepostas em corpos de
mulheres (principalmente mulheres negras), nossa pesquisa urge por amplificar
vozes silenciadas pelo patriarcado – branco, machista, ocidental e cristão.
Valemo-nos aqui da palavra ioruba ẹgbẹ (comunidade), visando um discurso
acolhedor das diversas narrativas e lugares de fala – importantes na
compreensão das práticas artísticas constituídas pelo povo afro-diaspórico – e,
portanto, na defesa de uma luta coletiva/antirracista. Nesse sentido, nossos
estudos seguem esse senso. Além disso, concordamos que o protagonismo
feminino é significativo e determinante quando a questão versa sobre os
espaços e práticas permeados pela memória, ancestralidade do povo preto e
seu legado de continuidade. Dessa maneira, enaltecemos a perpetuação de
nossa cultura por meio das mãos de grandes matriarcas e suas maneiras
plurais de (re)existência.

Nosso debate se debruça sobre performances de Pombagiras e as


representações de feminino que se presentificam através do movimento e
consequentemente da dança (SILVA, 2017). Não pretendemos essencializar a
Pombagira, entretanto, nossa gira evoca as Pombagiras com a hipótese de que
tais entidades nos propõem elaborações de um feminino representante do
poder feminino, de um corpo emancipador. Trabalhamos com a noção de uma
performance advinda de heranças afro-diaspóricas retratadas através de
mulheres caracterizadas pela força, coragem e liberdade – em outras palavras
que sugerem uma confrontação dos princípios do patriarcado.

Para nossa construção, nos apoiamos metodologicamente na


abordagem qualitativa, onde encontramos caminhos abertos por viés da
pesquisa etnográfica. Para tal, adotamos a observação participante para
compreensão dos contextos que compõem os saberes ancestrais, o
reconhecimento das experiências práticas e narrativas dos sujeitos. Sendo
assim, a pesquisa teve continuidade através da observação participante de

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

uma comunidade de terreiro de Umbanda, localizada em Bangu na cidade do


Rio de Janeiro, onde nos atentamos aos rituais realizados em cultos de
Pombagiras e as práticas que ali decorrem. Nossa principal questão é a
encruzilhada: lugar de reverência para os povos de axé, dos acontecimentos e
(des)encontros. Interessa-nos o corpo como um todo e seu profundo diálogo
com o espaço ritual e também o extra cotidiano.

Nossa leitura se volta aos olhares, aromas, gestos, cantos, objetos,


narrativas, contações, rezas, encantamentos, texturas, enfeites, roupas,
batuques, transes, formas, cores e toda poética que conecta todos esses
elementos à dança – gerando um alargamento de significados. Levamos em
conta também o levantamento bibliográfico sobre os seguintes temas: relações
étnico-raciais, corpo/dança, ancestralidade afro-diaspórica e etnografia.
Dirigimo-nos à análise dos dados através de registros feitos em caderno de
campo, considerando corpo e dança dando relevância à qualidade dos gestos,
imagens corporais, frases coreográficas e padrões de movimentos realizados
pelas entidades incorporadas em médiuns durante as práticas rito-litúrgicas.

Nosso referencial teórico é assentado nas elucidações sobre a


construção sócio-histórica dos cultos afro-brasileiros em Ortiz (1978), a
chegança e imagens das Pombagiras em Meyer (1993), Augras (2000) e
Mourão (2012). Nos debates sobre os estudos da performance e performance
afro-brasileira, atentamo-nos à escrita de Schechner (2003; 2012), Ligiéro
(2011; 2013) e Taylor (2013). E por fim, no que tange às questões sobre
Pombagiras, suas representações e a pesquisa etnográfica, bem como as
reflexões sobre corpo e movimento, contamos com as considerações de Motta
(2006), Barros (2015) e Ferretti (2013).

Como se trata de uma etnografia ainda em curso, apresentamos


algumas considerações iniciais da pesquisa a partir da observação de uma
cerimônia realizada em junho de 2019, porém levando em conta que a casa é
acompanhada pela pesquisadora como visitante desde 2016.

27
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Quem são as Pombagiras?

“A minha casa não tem porta, nem janela


O que é bom, o vento traz, o que é ruim, o vento leva
Ôh ô, Ôh ô, a dona da casa chegou.”
(Ponto cantado de Pombagira. Domínio popular)

Diversos autores se dedicaram a discutir sobre as Pombagiras,


definindo-as como as entidades femininas presentes em cultos afro-brasileiros,
especialmente a Umbanda, e que atuam como mensageiras entre o mundo dos
Orixás e a terra (MOURÃO, 2015; LIGIÉRO; DANDARA, 2013; SILVA, 2015).
Há um destaque importante nesse debate, pois muito comumente as
Pombagiras são comparadas a uma polaridade feminina de Exu. Apesar de
possuírem características semelhantes, Exu para o nosso contexto diaspórico,
se apresenta diferente de Ésù. O primeiro refere-se às entidades masculinas
da Umbanda, que junto às Pombagiras, habitam nas encruzilhadas, estradas e
caminhos e trabalham como intermediários entre os humanos e os Orixás. Já o
segundo, trata-se da divindade do panteão iorubano, considerado o Orixá do
movimento, da comunicação e também senhor dos caminhos e encruzilhadas,
reverenciado em África e em diversos cultos afro-brasileiros, principalmente
nos candomblés de origem nagô.

Trazendo para nós um pouco da contextualização sobre as senhoras


das encruzilhadas, destacamos inicialmente que o termo Pombagira nos
mostra relações com a cultura congo-angola. Encontramos em Mpambu Njila
ou Pambu Njila (divindade Bantu do fogo e das encruzilhadas) essa
aproximação, e que através das corruptelas e modificações linguísticas, mais
tarde emprestam nome e fama às Pombagiras. Não somente esta divindade,
mas também outras do panteão Bantu como Aluvaiá, Vangira, Bombogira (e
suas variantes Bombojira, Bombongira e Bambojira) e Nzila, se encontram
ligados à questão da fertilidade, sexualidade, comunicação, segurança,
caminhos, estradas e encruzilhadas.

Alguns pesquisadores já apontam (LIGIÉRO; DANDARA, 2013; SILVA,


2015;) para a convergência dessas características dos deuses Bantus com o
culto a outras divindades das encruzilhadas, como Ésù (Orixá iorubano)
anteriormente citado, e Legba/Elegbara (Vodun daomeano), por exemplo,

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

ambos sendo cultuados em solo brasileiro por similaridade de características.


Observamos nesta interação de divindades oriundas de diferentes nações um
mecanismo de sobrevivência às violências promovidas pela
colonização/escravidão. Para além da terminologia, Pombagiras remetem
sempre a um tema socialmente problemático por se tratar de figuras polêmicas
do nosso cenário brasileiro colonizado, culturalmente machista e racista. Para
início de conversa, nos valemos aqui do entendimento de que as Pombagiras
são espíritos de mulheres que já tiveram suas trajetórias no mundo dos
viventes e hoje, consideradas entidades, são grandes conselheiras, protetoras
dos marginalizados e, sobretudo das mulheres, de quem cuidam dos caminhos
e ajudam a driblar das armadilhas da vida (BARROS, 2015).

Alguns apontamentos sobre a Umbanda com referência no espiritismo


kardecista afirmam que as Pombagiras fazem parte do grupo seleto de
espíritos que tiveram uma vida repleta de atitudes morais consideradas
inadequadas. Tal desajuste se deu pelo uso inconsequente de álcool, drogas,
fumo, sexo, entre outras condutas desaprovadas pelo plano astral superior
como roubar, matar, prostituir-se, etc. Os prazeres do corpo, mais uma vez,
são evidenciados como condutas excessivas, imorais e não aceitas. Tais
entendimentos derivam ainda de uma visão eurocêntrica de corpo, de
comportamento e de crescimento espiritual individual e/ou coletivo,
hierarquizando os espíritos atuantes na Umbanda.

Acontece que existe, de forma implícita, a tomada da meritocracia como


caminho para o alcance da evolução. Ou seja, trata-se do fazer por onde para
merecer o crescimento espiritual, visto que a evolução é uma perspectiva
dominante no espiritismo. Para além das influências do espiritismo na
construção do culto de Umbanda (ORTIZ, 1978), destacamos que é nessa
condição de espírito errante que está disposto a evoluir que se assenta o
discurso sobre as Pombagiras (MOURÃO, 2012), trazendo como referência a
leitura de que são mulheres mundanas na busca por sua “redenção” através da
caridade aos necessitados (espíritos encarnados).

A propagação desse discurso de almas devedoras retrata os


desdobramentos da colonização, perpetuando construções ideológicas

29
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

amparadas na bipartição do mundo em bem e mal. Se corpos negros até hoje


não são livres por uma estrutura social racista os oprime, o que dizer a respeito
das nossas práticas artísticas, culturais e religiosas negras? Apontam o
comportamento das Pombagiras (e de Exus também) como sendo
contrastantes com o das entidades de outras linhas da Umbanda como os
caboclos e pretos velhos, por exemplo, que caracterizam a linha da direita, e
sublinham os “catiços”1 – os impuros, donos dos excessos – sendo o menos
evoluídos de todos, na linha da esquerda. Essa divisão tênue entre linha da
direita e da esquerda, resultado da herança judaico-cristã fundamentada em
dicotomias, revela as Pombagiras ligadas também ao culto da Quimbanda,
correspondendo às baixas vibrações. A Quimbanda assim seria comparada à
prática da magia associada ao mal, segundo os rótulos empreendidos à
racionalização do mundo dos espíritos e da teoria da evolução. “A quimbanda
se apresenta, portanto, como a dimensão oposta da umbanda, ela é sua
imagem invertida; tudo que se passa no reino das luzes tem seu equivalente
negativo no reino das trevas” (ORTIZ, 1978, p. 81).

Muito facilmente, a leitura do mundo negro a partir de olhos brancos vem


cada vez mais sendo naturalizada e no que tange à questão do nosso debate,
as ancestralidades africanas e afro-diaspóricas se encontram em condição
historicamente atravessadas pela perseguição e violência. Se o mundo
ocidental branco e cristão defende uma moralidade castradora do corpo, onde
sexo e prazer são um tabu, logo as Pombagiras são o próprio demônio de
saias. Apesar do Diabo não fazer parte da família, ainda assim diversos pontos
cantados exaltam as Pombagiras e descrevem de forma irreverente essa
faceta “diabólica” que as premissas cristãs enxergam nelas: “Santo Antônio
pequenino, amansador de burro brabo. Quem mexer com Pombagira, tá
mexendo com o Diabo.” (Ponto cantado de Exus e Pombagiras. Domínio
público). Quando exaltamos o empoderamento feminino através das
Pombagiras, em outras palavras, estamos falando da imagem de uma mulher
independente e corajosa, sexualmente livre e bem resolvida, e que acima de
1
Apelido correspondente a Exus e Pombagiras na Umbanda, enfatizando que são entidades e
não divindades. Utiliza-se esse nome para se diferir de Orixás, Inquices e Voduns, divindades
africanas. Em algumas casas, utiliza-se também o termo “povo de rua” e em alguns casos,
adeptos de cultos afro-brasileiros se negam a aderir ao uso do termo catiço, por conotação
pejorativa em relação a essas entidades.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

tudo, é detentora das próprias escolhas, evidenciando a ameaça que elas


representam ao sistema misógino que reprime e controla as mulheres.

Algumas considerações sobre o conceito de performance

Nossa perspectiva de análise se pauta na observação participante, pois


entendemos a necessidade do convívio com as performances de Pombagiras
no espaço ritual. Portanto, por performance, nos vale o conceito de Richard
Shechner (2003; 2012) que denota o comportamento duplamente exercido,
considerando as mais diversas atividades cotidianas realizadas através do
preparo e repetição como performance.

Performances afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e


adornam corpos, contam histórias. Performances artísticas, rituais ou
cotidianas – são todas feitas de comportamentos duplamente
exercidos, comportamentos restaurados, ações performadas que as
pessoas treinam para desempenhar, que têm que repetir e ensaiar.
(SCHECHNER, 2003, p. 27)

Muito mais do que um conceito, o autor propõe uma episteme capaz de


observar o corpo e suas potências expressivas e comunicantes. Dessa forma,
ele complementa ressaltando a importância dos rituais, compondo um cenário
rico de sentidos e um ponto de conexão com a performance.

Rituais são uma forma de as pessoas se lembrarem. Rituais são


memórias em ação, codificadas em ações. Rituais ajudam pessoas (e
animais) a lidar com transições difíceis, relações ambivalentes,
hierarquias e desejos que problematizam, excedem ou violam as
normas da vida diária. (SCHECHNER, 2012, p. 49-50).

Nos múltiplos contextos sociais e culturais, toda ação do corpo está


inserida de acordo com sua conjuntura, assim como toda produção humana se
desenvolve a partir das possibilidades do corpo e de sua interação com o meio.
O homem aprende a manipular recursos, desenvolve técnicas e produz
conhecimentos. É neste sentido que a performance vem aplicar estudo a essas
práticas. Mais a frente, destacamos e concordamos com a autora Diana Taylor
quando ela dá um caráter mais político ao tema (que até então têm se
observado tal questão sendo responsavelmente aprofundada por diferentes

31
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

pesquisadores), debatendo sobre a potência da memória como caminho para a


permanência das culturas.

Os debates sobre o caráter efêmero da performance são,


evidentemente, profundamente políticos. De quem são as memórias,
tradições, reivindicações à história que desaparecem se falta às
práticas performáticas o poder de permanência para transmitir
conhecimento vital? (TAYLOR, 2013, p. 30)

Essa colocação que a autora traz não só acrescenta uma nova


perspectiva, como também coloca a performance em evidência como solo fértil
para a manutenção de práticas e usos de grupos sociais e apontando-os como
protagonistas desses mecanismos de resistência. Mais uma vez, o corpo
ganha lugar de destaque nas nossas conversas, sobretudo tratando-se da
performance de Pombagiras , onde a vivência se dá no corpo e a experiência
se constrói de forma coletiva, espontânea e significativa, resgatando memórias
ancestrais femininas e possibilitando continuidades.

A performance afro-brasileira

É necessário, sobretudo, reconhecer o protagonismo dos fazeres


oriundos de corpos negros para superar o sufocamento da opressão branca,
dando lugar a novos olhares e pensamentos sobre este próprio corpo. Neste
sentido, aderimos também às contribuições do filósofo Renato Noguera que
afirma:

A filosofia afroperspectivista define o pensamento como movimento


de ideias corporificadas, porque só é possível pensar através do
corpo. Este, por sua vez, usa drible e coreografias como elementos
que produzem conceitos e argumentam. (NOGUERA, 2014, p. 174)

Denotamos que apesar das notáveis reflexões realizadas pelos


autores citados sobre o campo da performance, nos é de grande notoriedade
analisar o tema em questão a partir de uma perspectiva afro-referenciada. Nas
comunidades de terreiro, é através deste corpo que o legado de saberes será
transmitido através da oralidade, do canto, da dança. Obviamente, a
performance afro-brasileira se valerá, entre tantos aspectos, dessa dimensão
de corpo. Por que as práticas performativas afro-brasileiras se valem de tanta
riqueza artística expressada no corpo, que mistura sagrado e profano, num

32
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

curto tempo-espaço? Para aprofundarmos um pouco mais essa questão,


trataremos do conceito de motrizes culturais para compreender esta
complexidade.
O conceito de motrizes culturais será empregado para definir um
conjunto de dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para
recuperar comportamentos ancestrais africanos. A este conjunto
chamamos de práticas performativas, e se refere à combinação de
elementos como dança, o canto, a música, o figurino, o espaço, entre
outros, agrupados em celebrações religiosas em distintas
manifestações no mundo afro-brasileiro. (LIGIÉRO, 2011, p. 107)

Aderindo à perspectiva de Ligiéro através do conceito de motrizes


culturais, podemos notar, nas mais diversas práticas performativas afro-
brasileiras, que o performer corporifica sua história, memória e ancestralidade.
Em se tratando de performance, a autora Sandra Haydée Petit (2015), enfatiza
a dança como canal de comunicação desse protagonismo do corpo no
mergulho à ancestralidade afro-diaspórica. “Dançar, na perspectiva
afroancestral aqui tratada, remete a uma visão circular do mundo, na qual início
e fim se encontram em eterna renovação” (PETIT, 2015, p. 72). Há de se
ressaltar que a questão das performances afro-brasileiras, assim como em
tantas outras performances negras, possui a incrível característica de agregar a
brincadeira e o ritual em suas práticas, de forma que atuem conjugadas. Entre
as questões discutidas sobre as práticas performativas afro-brasileiras,
propomos um grande relevo ao emprego dos elementos canto, dança e
música. Em se tratando destes três aspectos, Ligiéro (2011) informa que esta
tríade (cantar-dançar-batucar), expressão originalmente criada pelo filósofo e
pesquisador congolês Fu-Kiau2, contempla as características da performance
afro-brasileira.

Ao considerar a junção das artes corporais às musicais e, sobretudo,


acrescido do uso do canto como algo simultâneo e percebido como
uma unidade dentro da performance africana, Fu-Kiau destaca, um
dispositivo que, sem dúvida, continua sendo característico das
performances da diáspora africana nas Américas – não é possível
existir performance negra africana sem este poderoso trio, e o mesmo
é aplicável às performances afro-brasileiras. (LIGIÉRO, 2011, p. 108-
109)

Ao refletir sobre o argumento de Ligiéro, entendemos que este trio


funciona como uma unidade indissociável, que atua de maneira conjunta e/ou

2
Ver FU-KIAU in THOMPSON, Robert Farris. Face of Gods (1993) e Kongo gesture (2003).
Indicações coletadas na obra de Ligiéro (2011).

33
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

transversal, onde a dança, a música e o canto se interligam, se misturam, se


aglutinam. A seguir, discutiremos um pouco mais sobre como esses elementos
e principalmente a dança se conectam, construindo sentidos.

O corpo Pombagiresco e as representações de um corpo-mulher

Trazendo à tona a fala da pesquisadora Inaicyra Falcão (2015),


destacamos a importância e necessidade que cada vez mais pesquisas no
âmbito acadêmico tratem da ancestralidade negra a partir do prisma do corpo,
e não só estejam limitadas às abordagens de cunho antropológico, mas que
também se estendam à arte e a dança.

Dispomo-nos aqui a relatar algumas imagens de movimentos realizados


por Pombagiras em suas danças quando incorporadas em seus médiuns, e
que foram observados durante um ritual de Exus e Pombagiras na comunidade
de terreiro Tenda Espírita São Miguel Arcanjo, localizada no bairro Bangu, zona
oeste do Rio de Janeiro. Nosso destaque se dá através da análise das
qualidades de movimento e da composição dos gestos, que constroem
sentidos diversos para elucidações outras de mulher a partir das performances
de Pombagiras.

Tratando-se de uma pesquisa ainda em andamento, nos atentamos a


descrever esses movimentos, elaborando junto aos teóricos que nos apoiam à
construção de hipóteses sobre possíveis representações desses corpos que
narram histórias e dançam memória ancestral. Também valorizamos as
narrativas dos membros da casa de Umbanda pesquisada, tendo grande peso
para com a fala dos mais velhos, pois em uma religião de transmissão oral,
devemos considerar que o contar histórias é extremamente singular para
compreensão dos contextos. O ritual observado, popularmente chamado de
gira foi realizado em junho de 2019 em festividade a Exus e Pombagiras. Junho
é um mês muito simbólico para os umbandistas, pois no dia 13 de junho, dia de
Santo Antônio, também é condecorado em reverência ao “povo de rua” por
conta do sincretismo religioso.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Sérgio Ferretti (2013) destaca que o sincretismo pode se agregar a


múltiplos sentidos em relação aos aspectos de cultos diversos e está
comumente associado à confluência, cruzamento, hibridação e equivalência.
Repensando a questão do sincretismo, propomos uma reflexão necessária a
ser feita no sentido de desconstruir a visão romantizada de sincretismo
enquanto equivalência harmônica entre santos católicos e Orixás e/ou
entidades, visto que os cultos de matriz africana são demarcados pela
perseguição e violência. Durante a gira, percebemos que o ambiente estava
decorado com predominância nas cores vermelha e preta, reconfigurando o
espaço-tempo do aqui e agora em cenário de um passado mítico. O bar dos
malandros e a mesa das grandes cortesãs de cabaré foi reconstruído, repleto
de bebidas, fumo e petiscos para apreciação das entidades e seus convidados.

Os tambores, compostos num conjunto de três atabaques e diversos


ogans3 que se revezavam para cantar e tocar ficam dispostos próximo ao altar
que chamam de congá. À medida que os toques iniciam, as entidades
começam a se manifestar nos médiuns. As Pombagiras não fazem distinção
entre homens ou mulheres, podendo “baixar” 4 em qualquer um deles.
Destacamos cinco principais ações que englobam dois movimentos5 ou mais, e
que são recorrentemente realizados por Pombagiras, descritos a seguir:

Chegada: chamamos assim porque percebemos que acontece no


momento em que elas anunciam sua chegada no terreiro. Elas se lançam ao
chão na base de joelho, e em conjunto, gestualmente gargalham e/ou
combinam com requebros de quadril/ombros, que descreveremos a seguir;

Requebros de ombros e/ou quadris: é literalmente mover os quadris e/ou


ombros de forma sincopada e contínua. Movimentar os quadris, na cultura afro-
diaspórica, é sobretudo, dinamizar energia sexual. Tendo em vista a repressão
cultural a respeito do baixo corporal (ROCHA, 2012), este processo de

3
Ogan ou ogã é o sacerdote masculino que não entra em transe e que recebe a função de
convocar as entidades/divindades a se manifestarem nos médiuns de incorporação. Isto, na
Umbanda, é feito através dos toques e do canto.
4
Expressão muito comum das comunidades de terreiro usada como sinônimo de entrar em
transe. Também se utiliza as expressões “virar no santo”, “rodar”, “incorporar”.
5
Os movimentos e gestos das Pombagiras descritos neste trabalho estão referenciados no
Sistema Universal da Dança (SUD), criado pela professora Helenita Sá Earp. Para saber mais
sobre a SUD, ver Motta (2006).

35
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

demonização dos quadris, traz uma conotação hipersexualizada ao corpo


feminino como algo obsceno e impuro. E é justamente por isso que as
Pombagiras insistem nessa movimentação, por pura desobediência.

Cumprimento: as Pombagiras geralmente curvam o tronco para frente,


com os joelhos levemente flexionados e apoiam as mãos nas pernas.
Observamos que muitas Pombagiras realizavam isso em frente aos atabaques
e ao congá como forma de saudação e reverência. Em outros momentos,
fazem isso antes de cumprimentarem alguma outra entidade ou consulente,
seguido de uma gargalhada e/ou abraço na pessoa a quem se dirigem.

Afronto: nomeamos desta forma por se tratar de quando inclinam a


cabeça e coluna para trás, realizando um cambré6, encarando com ousadia a
quem a observa na direção oposta. A Pombagira da mãe de santo do terreiro
sempre repetia esta ação lançando os cabelos para os atabaques, seguido de
requebros de quadril.

Giros: realizam voltas contínuas em torno do seu próprio eixo, exibindo


suas saias longas, cigarros, taças de bebida. Os giros são os movimentos mais
evidentes das Pombagiras. Girar, para nosso olhar atento, a princípio evidencia
a própria satisfação das Pombagiras em dançar e seduzir, resgatando um
passado mítico de prazer.

Neste artigo não pretendemos aprofundar os significados desses


movimentos, pois ainda necessitamos investigar mais detalhadamente as
conexões que este repertório apresenta. Ainda na proposta de contribuir um
pouco mais na questão da análise da performance das Pombagiras,
destacamos um importante gesto que se destaca e perpassa por todas as
outras ações descritas anteriormente: as mãos na cintura. Este gesto aparece
em todas as outras ações (antes, durante ou depois).

6
Terminologia do balé clássico, escrito na língua francesa. Representa a curvatura que se
realiza com a coluna para trás.

36
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Figura 1 – Escultura de Pombagira


Fonte: http://imagensprofeta.com.br/imagens.php?product_id=166.

Comparando este gestual das Pombagiras com iconografia afro-


referenciada, observamos a mesma disposição corporal em uma escultura
Bantu de origem do Congo, conhecida como Nkondi, cuja postura em que se
apresenta é conhecida por Pakalala. Este termo é usado para designar uma
postura que traduz o estado alerta, pronto para atacar ou defender, o que em
outras palavras nos leva a constatar que as mesmas características são
percebidas na performance das Pombagiras.

Pakalala, o estado de alerta.


Fonte:
https://www.philamuseum.org/doc_downloads/education/ex_resources/AfricanArtAfricanVoices.
pdf.

37
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Mãos posicionadas sobre as ancas, corpo firme, rosto e olhar


imponentes denunciam a prontidão para qualquer acontecimento. Comparar
estas duas iconografias nos permite concluir que as Pombagiras, não estão
apenas brincando de seduzir. Elas de fato são a livre expressão da potência da
mulher que sabe o que quer, aonde quer chegar, e principalmente, o que
precisa fazer para conseguir.

Considerações finais

Analisar a totalidade dos modos de fazer ou investigar os processos da


performance afro-brasileira. Ainda que nos voltássemos a um incansável
registro, seria o corpo e somente o corpo, aquele capaz de integrar a
complexidade dos significados inerentes às corporalidades das Pombagiras.

Está posto e convencido para nós de que a escrita não alcança a


experiência estética do aqui e agora, como nas vivências que o ritual
proporciona. A análise dos dados se desdobra na leitura da Pombagira
caracterizada pela desobediência dos entendimentos dicotômicos e na
desconstrução de estereótipos, visto que suas danças estão ligadas a gestos
para além do lugar da sedução, da sexualização e da marginalidade, mas que
também representam estado de alerta, ataque ou defesa. Outrora, confrontam
elaborações de feminino preconizadas pelos valores patriarcais, apresentando
atributos como irreverência, coragem, liberdade e ousadia.

Portanto, conclui-se que a Pombagira é aquela que está disposta a


contestar seu entorno, tanto e de tal forma, que pode até mesmo provocar
contradições entre nossas próprias convicções. Dotada de um caráter
polivalente, se torna a representante de um corpo potencialmente questionador
e político, capaz de produzir saberes e epistemologias próprias.

38
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Referências

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39
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

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69092007000100012> Acesso em: 27 abr. 2020.

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EXU:
UM CORPO E UM FAZER EM DANÇA, POSSÍVEL PELA DIÁSPORA
João Paulo Petronílio (UFBA)

Introdução.

O caminho desta escrita move-se pelas questões concernentes ao fazer


em dança assentado no acontecimento e elaboração poética, sígnica e
simbólica de Exu. Desse modo, o objetivo central da investigação em questão,
dar-se em compreender a partir do acontecimento da contemporaneidade, a
organização corporal presente na performance-ritual de exu em suas urgências
estéticas e sociopolíticas. Para efetivação do objetivo citado, buscou-se
entrelaçar aos múltiplos discursos nele contidos, à uma reflexão cruzada em
Exu-dança-diáspora.

Neste sentido, atravesso os saberes dos notáveis “atores da oralidade”


aos quais estabeleci uma relação sensível ao longo de minha vivência
investigativa - denominados aqui de “guardiões das memórias”, com os quais
venho estreitando laços ao longo de cinco anos de pesquisa. Guardiões que
promovem uma relação íntima e um diálogo privilegiado com as instituições
ritualísticas (candomblé e umbanda) onde se produz o tripé de saberes da
cosmovisão afro-brasileira: axé-saber-oralidade. Nesse tripé, focalizo Exu,
essencial em minha abordagem, são eles: Pai Rodrigo de Oxum (MG), Tia
Lídia de Ogum (MG), Ogã ToTô (BA), Dona Cicí (BA), Mãe Marisa de Omulu
(MG).

Exu é constituído primeiro nos contextos das instituições ritualísticas


africanas recriadas no Brasil: Candomblé, Umbanda, Juremas, entre outras. No
entanto, enquanto potência simbólica, não está restrito somente aos saberes
construídos nas territorialidades em questão. A partir da interpretação
transatlântica. Digo, o trânsito diaspórico África X Brasil, que estabeleceu
relações complexas de contato e conflito, entre as práticas culturais produzidas
pelos povos originários: catolicismo, catolicismo popular e as próprias práticas

41
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

africanas e suas continuidades. Exu se evidencia como uma potência sígnica e


simbólica7 viva e imersa no imaginário social, evidenciada para além das
intuições ritualísticas. O que proponho dizer dar-se pela seguinte reflexão:
Enquanto símbolo cultural da cosmovisão africana recriada no Brasil, Exu deixa
de ser uma paisagem estática e se movimenta continuamente anunciando o
acontecimento transformacional da diáspora negra. Por isso, para além do
espaço que o constitui primeiro, Exu é um acontecimento das ruas, dos bares,
feiras, sambas e mercados. Em sua complexidade de nomes e funções, ele é
um fenômeno que se dá principalmente no território efêmero e contínuo do
corpo. Nesse caminho, esse estudo também é resultado da experiência de
mover-se em dança a partir da ressignificação dos mitos, rituais, conceituações
e práticas de criação, que são e foram dinamizadas pelo discurso em Exu.

Exu: enquanto acontecimento contínuo da diáspora.

Exu é anunciado pela cosmovisão Nagô, como o dinamizador do


princípio da existência individualizada e linguista do sistema sociocultural
africano recriado no Brasil. Exu é o “.... princípio dinâmico e de expansão de
tudo que existe, e sem ele todos do sistema e seu devir ficariam
imobilizados, a vida não se desenvolveria.” (SANTOS, 2012, p.41). O
processo diaspórico de assentamento ritualístico, simbólico e cultural de Exu
em território brasileiro, é caracterizado por relações de cruzas
profundidades que percorrem um histórico caminho de “[...] trocas, diálogos,
negociações, imposições e resistência” (SILVA 2015, p.18). Aqui, eu sugiro
também, associações e interpretações.

Em sua obra Agadá, Luz (2017) se apoia nos estudos de Santos (1976)
para apresentar Exu em uma multiplicidade de nomes, diretamente ligados às

7
A fim de distinguir semanticamente a compreensão de sígnico e símbolo, remeto à Sodré
(2017) que nos fornece uma orientação acerca de sua perspectiva conceitual. Para este autor,
o signo enquanto campo semântico tem significante comum à interpretação, o que torna
diferente do símbolo, que não significa, não remete a nada além dele mesmo. Portanto, sua
funcionalidade é de inicialmente organizar os elementos “[...] pondo-os em interação tanto
opositiva quanto combinatória.” (SODRÉ 2017, p.117).

42
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suas respectivas funções míticas anunciadas dentro de uma primeira


perspectiva transatlântica. Começa com Yangi, o ser inaugural, início de tudo,
primeira matéria do universo; segue-se Bara, o dono do corpo, aquele que
estabelece movimento e dinâmica no corpo físico. Enugbajiro: o senhor da
boca, fala e digestão. Nomeado que implica a transformação daquilo que foi
introjetado, ingerido e digerido, visceralmente ligado às funcionalidades orais e
comunicadoras.Tem-se ainda Ojixé-ebó, o emissário, mensageiro das
oferendas. Elebó, o senhor das oferendas, responsável pela ligação cruzada
entre os seres humanos e os orixás. Exu Onã, o sentinela, guardião dos
caminhos, com o poder de abrir e fechá-los e cujo lugar de excelência é a
encruzilhada; Exu Obé, o manipulador da faca, que secciona e separa
no nascimento e oportuniza a morte; Osetuwea, que dinamiza a posição dos
símbolos que configuram os Odu, orquestradores do destino. Exu,
multifacetado, polivalente.

“Exus brasileiros” e sua recriação simbólica.

Nesse caminho, a interpretação e recriação transatlântica de Exu é


reelaborada no Brasil sendo contextualizado na Umbanda8 como um texto de
transmutação que é escrito simbolicamente pelas implicações de um país “pós-
escravista” que nega e marginaliza o que é produzido de VIDA em seu
território. Os Exus umbanda ou como sugere Silva (2015) os “Exus brasileiros”,
assumem semanticamente os atravessamentos do corpo negro em sua
condição de escravizado. Desse modo, eles são interpretados no contexto
inicial da umbanda, através do julgo da colonialidade9 como aquilo que é
marginal, desprezível, porém, necessário para o trabalho pesado.

8
Religião entendida como originalmente brasileira criada nas primeiras décadas do séc XX-
logo após a suposta abolição da escravidão e o advento da República. Antes de tudo é preciso
afirmar que não desejo aqui aprofundar nos dados históricos e religiosos da umbanda no
Brasil. Entendo que já há um número considerável de estudos que fornecem essas
informações. Procurei seguir, na construção da problematização do pensar/fazer Exu através
de sua elaboração cultural, sígnica e simbólica, uma perspectiva territorial brasileira
atravessada pelas fricções, tensões, contatos e conflitos evidenciados no contexto de sua
formação.
9
Sistema político, social e ideológico que se caracterizou pelo domínio de outros territórios ou
países, tornando-os como colônias dos países dominadores. Transformados em colônias,
tornaram-se territórios de produção exclusiva movidos primacialmente pelo objetivo de

43
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Não iremos nos aprofundar sobre os dados historiográficos da umbanda


no Brasil. Porém, para compreendermos como Exu foi elaborado
simbolicamente no território brasileiro, é preciso revisitar algumas informações
acerca de sua formação. Sua construção deu-se, a partir de relações cruzas10
entre a influência cristã Kardecista Francesa, o catolicismo popular brasileiro,
práticas culturais indígenas e as religiões de práticas africanas, recriadas no
Brasil. Enquanto missão operacional, o fazer filosófico da umbanda dá-se
principalmente por meio do transe mediúnico que ocorre nas giras, em prol do
desenvolvimento/ evolução/ progresso espiritual “[...] dos vivos (os médiuns e o
público consulente) e dos mortos (espíritos desencarnados).” (SILVA, 2015,
p.58). Nomeio de “relações cruzas”11 por compreender que, enquanto
cosmopolítica cultural, a umbanda reúna esses diferentes saberes/fazeres
ontológicos. No entanto, os mesmos não foram organizados simbolicamente
com equidade.

Sigamos nossa reflexão: Para Silva (2015) a influência teológica


kardecista conduziu Exu a um local de organicidade que se compõem em
grupos e “linhas” que são subjugadas a hierarquias evolutivas. Desse modo,
Exu é posicionado em degrau evolutivo mais baixo, em relação aos santos
católicos, Orixás, caboclos, preto-velhos - esses últimos são estabelecidos em
tal contexto como uma memória sígnica cultural do processo de escravização e
genocídio das populações africanas e indígenas. O autor afirma que, dentro de
tal perspectiva de hierárquicas, Exu, faz parte dos “[...] espíritos condenados ao
reino das trevas e das sombras porque na terra tiveram uma vida desregrada.
São os bêbados, viciados, bandidos, malandros, contraventores, prostitutas,
criminosos etc.” (SILVA, 2015, p.56). Nesse contexto, o culto a esses espíritos
promove a evolução. Por exemplo, Exu pode passar de “pagão” para “Exu
batizado.”

enriquecimento e manutenção econômica dos colonizadores. Nesse sentido, o sistema colonial


se alimentava de processos altamente lucrativos e violentos como: genocídio e escravidão dos
povos nativos, usurpação de matérias primas, sequestro de povos de outros continentes para
trabalho escravo, entre outras práticas.
10
Grifo meu.
11
Grifo meu.

44
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O pensamento moderno evolucionista aplicado ao processo simbólico de


Exu.

É importante destacar que a ideia de evolução kardecista está


diretamente ligada ao pensamento científico modernista-positivista que
fomentou todas as práticas separatistas e hierárquicas, alimentando o poder
econômico da colonialidade, dividindo o mundo entre povos evoluídos,
civilizados (colonizadores) e primitivos (colonizados).

Segundo Almeida (2019), nesse mesmo período a ciência moderna


alcançava um modelo de racionalidade centrado no homem, especificamente
no homem branco-europeu, estabelecido como o exemplo do que seria uma
existência universal. Desse modo, criou-se o pensamento científico positivista
surgido no século XIX, tornando-se possível que os questionamentos sobre
diferenciações humanas fossem elaborados através do conhecimento
científico. O homem passa ser compreendido, explicado e categorizado por
interpretações biológicas e físicas, determinando posteriormente sua atuação
cultural e social.

Nesse contexto, o autor afirma que determinações biológicas como


condições climáticas e determinismo territorial/geográfico, justificariam e
explicariam as diferenças morais, psicológicas e intelectuais da existência
humana, bem como, os mesmos aspectos categorizariam e classificariam em
perspectiva hierárquica as diferenças entre as raças. Ou seja, o homem
branco cristão como proponente dessa perspectiva, tornou-se a referência do
indivíduo hegemônico, antropocêntrico. Tal perspectiva, submeteu e condenou
ao lugar de inferioridade, desorganização política e subdesenvolvimento
cultural toda e quaisquer existências que não se organizassem no mundo a
partir do pensamento moderno. Enquanto características biológicas: a
identidade racial; traços físicos; cor da pele. Enquanto características
socioculturais: origem geográfica, práticas religiosas, língua, entre outros
costumes que, ao se desviar do fazer civilizado do mundo eurocêntrico, foram
relegados à uma experiência humana primitiva.

45
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Segundo Almeida (2019), o pensamento positivista se estabeleceu sobre


afirmação de que a pele não branca e o clima tropical, condicionava a
experiência humana às práticas comportamentais imorais, lascivas e violentas,
bem como a ausência de intelecto. Essa ideia foi também fomentada pelo
“Darwinismo Social” onde pensadores sociais aplicaram os estudos darwinistas
(1849) na compreensão da evolução de espécies e aos fenômenos
socioculturais

Bom, e o que Exu tem a ver com isso?12 O que proponho elaborar,
perpassando por todo esse caminho de reflexão, é questionar como a
simbologia de Exu no contexto brasileiro é atravessada e posicionada
hierarquicamente. Na umbanda, em seu momento inicial, pelo pensamento
eugenista e evolucionista, que derivam num pensamento racista, sutilmente
presente em toda formação do Kardecismo desde sua origem francesa até seu
assento em solo brasileiro, onde deu-se em continuidades.

As perspectivas de bem e mal, a ideia de demônio, profano e pagão,


também se aplicou à simbologia de Exu, e dessa vez deu-se pela interpretação
do catolicismo, que leu a relação de Exu com o corpo e a sexualidade, a partir
de uma perspectiva racista e moralista que moveu todas as violentas ações do
catolicismo do período da modernidade, leitura e interpretação que faz parte
das relações cruzas que formaram a umbanda - em seu contexto inicial. Logo,
a simbologia de Exu nesse mesmo contexto. É importante compreendermos
que tal narrativa não é produzida exclusivamente em uma perspectiva negra,
enquanto existência política-sociocultural. Por isso, há no pensamento
contemporâneo, o desejo movido por algumas lideranças religiosas e
estudiosos da cultura negra de repensar e avançar na cosmologia simbólica
partir de um processo de “reafricanização” e/ou “descatolicização” das
práticas culturais negras em seu atravessamentos identitários no Brasil.
Entende-se que tal caminho proponha alcançar maior autonomia simbólica de
tais saberes. Assim, deseja-se produzir uma narrativa do negro, que seja
centrada e versada pelo próprio, considerando suas complexidades e

12
Grifo meu.

46
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dissimetrias causadas por intepretações reducionistas, fetichistas e racistas em


que se basearam as violências coloniais.

Os Exus brasileiros nomeados também de: “Exu castiços”, “escravos”,


“Compadres”, “povo da rua”, pelos seus adeptos, quando distanciados das
narrativas colonialistas, dão-se, eu sugiro, como a continuidade e recriação de
Exu em sua condição Transatlântica: Èsù Orixá Nagô. O dinamismo vivo,
visceralmente comunicador se relaciona compulsoriamente com tudo que é
vivo e diante dessa perspectiva, ele é o mediador responsável pelo trânsito e
desenvolvimento das matérias de origem do orun para o aiyê.

Enquanto acontecimento estético, performático e semântico, os Exus


brasileiros têm sua dramaturgia assentada em lugares ou estados de trânsito
cruzado entre os dois mundos - mundo dos vivos e dos mortos - que vão
transmutando aos estados entre as matérias sólidas e líquidas: lodo e lama;
Aos trânsitos e passagem de luz; sombra, madrugada; Aos seres
antropofágicos; meio humanos, meio animais; Ao que é complementar ou
possivelmente duplo, porém não polar; duas cabeças, capa preta de um lado,
capa vermelha de outro. Às dinâmicas dos períodos do tempo, as mudanças:
meia noite, alvorada. Seus nomes referenciam e mencionam tais territórios à
medida que se elaboram da seguinte maneira: Exu Tranca-Ruas, Exu Caveira,
Exu Cemitério, Exu Meia-Noite, Exu Lorde da Morte, Exu Destranca-Ruas, Exu
Matança, Exu do Lodo, entre outros. Os dias e horários de culto a esses Exus
também compõe a dramaturgia performática e simbólica de sua constituição.

Seja no contexto transatlântico primeiro, ou em uma perspectiva


brasileira, Exu é um discurso dinâmico que nos possibilita romper com a ideia
da narrativa única. Desse modo, também anuncia as complexidades e
implicações sociopolíticas e culturais resultantes das tensões e encontros do
movimento contínuo da diáspora negra africana recriada no Brasil. Diante
dessa recriação, denuncia as disparidades e assimetrias culturais que o
produzem. Enquanto dono do corpo, ele é o fenômeno possível pela diáspora
que se atualiza na contemporaneidade evidenciada no acontecimento da
carne; do corpo.

47
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

A dança como diáspora em locus tempo-espacial do corpo em Exu.

Sendo corpo, ele é atualizado pela dimensão cruza dos tempos:


passado-presente-futuro. É corpo, porque é anterioridade. É corpo, porque é a
materialização fisiológica do agora. É corpo, porque é a anunciação física
existencial do futuro! Exu-bara o dono do corpo.

Em dança com os pés enraizados13 (paralelos, na mesma direção das


cristas ilíacas) joelhos semiflexionados e não tensionados, quadris encaixados
organicamente sobre articulações coxofemorais, os ísquios projetados,
formando uma leve diagonal posterior. Conecta-se com o pulso/ energia que é
resultado do enraizamento dos pés, passando pelos joelhos, circulando pelos
quadris, através de uma respiração natural, porém consciente. O pulso chega
em espirais pelas fibras musculares dos adutores da coxa (parte interna da
coxa), e trazendo para o nível da presença consciente a percepção de nossas
virilhas; sexo; intestino; fígado; estômago; externo; as costelas, os espaços
entre as costelas; o plexo solar/ peitoral. Concomitantemente, em espirais que
trazem para o presente, as mãos, cada falange, cada espaço e possibilidade
de movimento neles, as palmas das mãos, os punhos, os braços, os cotovelos
e os ombros. Somado à isso, e ao mesmo tempo, o pulso presente na
garganta, na boca, na testa, nuca, olhos, orelhas, nos sete buracos da cabeça.

O pulsar é a soma do enraizar, pressionar, friccionar os pés no chão


como se o empurrasse, movimento que transborda dos pés a cabeça, da
cabeça ao cóccix. Assim, o pulsar segue o tempo da frequência cardíaca, que
aumenta gradativamente, circulando sangue/vida pelas células, músculos,
órgãos e pele. Ao mesmo tempo, o diafragma que está irrigado de vida, emite
sons como resposta do corpo, que só é corpo mediado à incorporação do
corpo-próprio. Desse modo, redescubro meu corpo-próprio, comendo o
mundo e meu próprio corpo a partir de uma narrativa estética e performática
assentada na força das ruas, das encruzas, um corpo produzido em equilíbrio

13
Como Santos (2006) nos direciona ao compartilhar em seus estudos de Corpo e
ancestralidade o que ela nomeia de exercícios técnicos. (Grifo meu)

48
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

assimétrico, sincopado, que anuncia uma cosmovisão que compreende a morte


como território da continuidade e não o fim.

Enquanto performance, Exu é um acontecimento que se move em


equilíbrio assimétrico, sincopado, vai-mas-não-vai. A corporeidade de Exu nos
apresenta um mundo que acontece na dimensão do fazer corporal.

O acontecer de Exu em suas giras e sambadas, inaugura no tempo-


espaço do agora um corpo transformado pela autonomia e emancipação. Ele
brinca, zomba, gargalha, empodera os corpos de seus médiuns e todos ali
presentes. Em qualquer condição de nome e função que Exu se manifeste na
fisicalidade de seus médiuns, ele se apresenta como pai, amigo, próximo.
Difere muito da relação estritamente vertical do “Deus Pai” cristão, aquele
chamado de “Deus pai todo poderoso, criador do céu e da terra...”. Esse que já
foi cultuado em construções góticas que expressavam o poder divino
alcançando os mais altos céus com suas torres pontiagudas e ornamentadas,
que propunham um religar, re-ligação, religare o homem a um Deus
europeizado.

As falanges de Exu chegam em espirais nos terreiros, nos corpos.


Corpos transmutados pelo saber do terreiro, caem de joelhos, mas não de
maneira servil, cedidos pela gravidade da culpa ou do pecado. Cedem-se pela
força viva do mito. No chão eles gargalham, inclinando o tronco para trás como
quem é sabedor de todos os desejos secretos dos homens, cada
falange/entidade a sua maneira, como conta seu corpo-mito. Gargalha e diz:
“Boa noite, boa noite! Cês fica à vontade aí, viu? Aqui é “Seu Tranca Rua”.
“Aqui é Caveira” - escolho estes, pois foram as entidades com que mais me
relacionei nas giras.

“Êh caveira vem firmar seu ponto, na folha bananeira Exu


caveira.” (ponto cantado)

Assim, de braços abertos ele acolhe o público presente, na maioria


pessoas comuns, pedreiros, mecânicos, cozinheiras, domésticas, corpos

49
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

marcados pela sobrevivência e luta. Herdeiros do jugo, exclusão social e da


colonialidade. Os exus brasileiros bebem, fumam, riscam o ponto 14 no chão
parecendo desvelar os mistérios da vida em linhas que encruzam,
entrecruzam, setas que abrigam a semântica da filosofia negra brasileira. Não
importa o gênero, a incorporação transborda o corpo, brincando com fluidez e
liminaridade do homem e mulher. Assim, os corpos-exus são potências não-
binárias, interseccionalidades vivas: cantando, dançando o mundo pelo anseio
da liberdade assentada na raça-gênero-classe.

É através da transformação da matéria na cumbuca: pólvora que


explode em fogo, que anuncia o novo tempo-espaço na ritualidade do corpo.
Pretos e pardos, e pardos de tão pretos, exusiam-se, experimentando de
maneira efêmera a liberdade, que para Castiel Brasileiro15 (2020) a liberdade
dá-se no acontecimento espaço-temporal, sendo assim geográfica e
existencial.

Se a liberdade, mesmo que efêmera, é existencial, então ela é corpo; e


sendo corpo, é movimento. Assim, em sua insurgência o corpo exusíaco,
move-se para todas direções, brincando com os limites dos planos e eixos, que
servem de limites ao corpo na perspectiva da cinesiologia clássica ocidental.
Mas Exu transgride esses limites, e revela-se atômico, energia pulsante que
pode estar em qualquer lugar, qualquer tempo, em todas as dimensões.
Exusiando-se nos entre-lugares das articulações a poética de corpo-volume,
corpo-tensões, corpo-relaxamentos, corpo-poroso e corpo-carne impulsionando
e pulsando de maneira contínua de joelhos semifletidos, as memórias dos
meus mortos, meus anteriores. Anunciando pelos sete buracos da cabeça a
transformação do amanhã, assentando de pés enraizados a existência no
agora sob o fio condutor dos tempos: a incorporação do corpo próprio.

14
Riscar o ponto: termo utilizado no vocabulário da Umbanda que é inaugurado pela ação de
riscar o chão com a pemba (espécie de giz sagrado que se risca o chão) desenhando símbolos
e signos contextuais. Segundo alguns praticantes o ponto riscado é a assinatura da entidade
que se caracteriza também por desenho de cruzes, setas, círculos entre outros.
15
Castiel Vitorino Brasileiro (1996). Artista visual, macumbeira e psicóloga mestranda no
programa de Psicologia Clínica da PUC-SP sob orientação de Suely Rolnik. Desenvolve
estéticas macumbeiras de sua Espiritualidade e Ancestralidade Travesti.

50
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Considerações Finais

Jamais devemos negligenciar ou subestimar a importância do


ato de redescobrir criativamente [...] as “histórias ocultas” têm
tido um papel crucial na emergência de muitos dos importantes
movimentos sociais da nossa época- feminismo,
anticolonialismo e antirracismo. (HALL,2018, p.89)

Recriando em dança a organização corporal que se dá Exu em suas


complexidades de nomes e funções, redescubro meu corpo próprio, o corpo
dos meus e toda cosmovisão negra brasileira que nos constitui. Destituindo
cada vez mais das narrativas que nos reduziram como o outro; o diferente; o
primitivo; o irracional. Olhando para os corpos que se dão em performance de
Exu que vibram, giram, espiralam, caem, voltam e subvertem o tempo-espaço,
percebo-vivo, um outro modo de ser, estar. Tal que, mesmo de maneira
efêmera, incorpora formas e conteúdo que revelam os mistérios daquilo que
nos foi ocultado, do não dito. E desse modo, me posiciono daqui, da margem,
e produzo força no contra fluxo daquilo que nos impôs a colonialidade, que
centralizou a razão da existência no que é branco, patriarcal, monoteísta e
cristão.

Dançando Exu, eu acesso as tecnologias construídas pelos meus


ancestrais, que submetidos à experiência da escravidão, construíram estudos
sistemáticos que reformularam a sua própria existência cultural para garantir
sua sobrevivência em seu “novo mundo.” Neste sentido, os corpos negros re-
existiam e seguem resistindo às violências e opressões à medida que criaram
métodos, meios, processos de instrumentalização que os garantem a
existência.

É urgente voltar-se para corpo e conscientizarmos dos pés à


cabeça, da cabeça ao cóccix, na urgência contínua de recriar o espaço da
ruptura do lugar basilar da existência dos nossos ancestrais. Não há como
“retornar para o começo”, portanto, é preciso direcionarmos para a
continuidade, impulsionados pelo “começo simbólico,” (Hall, 2018,
p.97), este lugar que é constituído de “desejo, memória, busca e descoberta.”

Assim, essa pesquisa se desenvolve através da experiência de dançar


Exu sob o olhar da diáspora africana ressignificada no acontecimento da

51
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

contemporaneidade. Neste caminho, busco desviar dos estereótipos e


representações que reforçam o lugar de uma cultura servil, construída pelo viés
do atavismo. Através de ações como giros, desequilíbrios, quedas,
recuperações, corpo-voz, corpo-turvo, corpo-bêbado, corpo cruzo e exusiáco.
Busco um fazer artístico em dança que se elabora na encruzilhada das tensões
e encontros, que concebem uma produção renovável e inacabada
de conhecimento, que constrói o corpo da cultura Africana, ampliada
e ressignificada no Brasil.

Referência Bibliográficas

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro;
Pólen 2019.

HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. In: PEDROSA, CARNEIRO,


MESQUITA (Orgs). Histórias Afro-Atlânticas: [Vol.2] Antologia. São Paulo:
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brasileira.4ª ed-Salvador: EDUFBA,2017.
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SODRÉ, Muniz. Pensar Nagô- Petrópolis, RJ:Vozes, 2017

52
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

PADE:
BARAFUTURISMO

Alexandre Carvalho dos Santos (UFRJ)


Tatiana Maria Damasceno (UFRJ)

O presente artigo discorre sobre a trajetória de 10 anos de lutas e


conquistas do Projeto em Africanidade na Dança Educação – PADE da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, que tem como objetivo principal criar e
promover encontros que possibilitem aos graduandos em Dança da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, futuros professores, pesquisadores e
coreógrafos, expandirem a capacidade de dialogar com a diversidade cultural
afro-brasileira, a partir dos saberes da dança de terreiro de Candomblé.
O projeto propõe a troca de saberes entre as comunidades acadêmica e
de terreiro, gestando outras possibilidades, ampliando as potências do corpo
em dança. Na terminologia iorubá segundo Lima (2010) a palavra Padê ou
Ìpàdé significa o ato do encontro, celebração e, também um ritual afro-religioso
ofertado ao Orixá Exu/ Bara, o Senhor do corpo, do movimento e do gesto.
O projeto nasceu há 10 (dez) anos de um sonho, um sonho de olhos
abertos, buscando um horizonte menos turvo e por um olhar conceitual
Afrofuturistas, que segundo Freitas (2015) é a possibilidade de vislumbrar
mudanças positivas por meio da ficção científica e no realismo fantástico,
abordando as condições sociais de produção da população afrodescendente.
É no cruzamento dos espaços da educação, arte, religiosidade como
manifestação cultural e ainda, no debate sobre intolerância religiosa, racismo
religioso e preconceito que o PADE caminha. Produzido na ficção como um
sonho e no exercício de alinhamento metodológico e filosófico com o
Afrocentrismo, que para Junior (2010) promove uma ideia revolucionária
porque estuda conceitos, eventos, personalidades e processos políticos e
econômicos de um ponto de vista do povo negro como sujeito não como objeto.
Encruzilhando o Afrofuturismo com o Baraperspectivismo, onde Santos
(2014) pensa o corpo a partir do Orixá Exu/Bara, o Senhor do corpo, dono dos
caminhos e das encruzilhada que o PADE na fresta, no jogo de corpo e na
ginga, dialoga com as epistemes dos Terreiros de Candomblé dentro da

53
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Universidade como ato de resistência e re-existência às demandas de um


sistema eurocêntrico e monológico, que pauta o conhecimento em um único
modelo de saber.
Para romper essa lógica única, na busca de outros saberes ancestrais,
recorro aos povos originários na produção de novos encontros estabelecendo
paralelos com leituras que possibilitam conexões com outras vivências e
saberes ancestralizados.
Desta forma convido para dançar comigo em sonho e palavras o Xamã
Kopenawa (2015) e sua narrativa sobre os xapiris, espíritos da floresta que o
visitam em sonho. Os xapiris são forças ancestrais que dão orientações a
Kopenawa. Esse chamado é um encontro para ensinamento, preparação e
compreensão das dimensões em que o Xamã terá que atuar em favor de sua
comunidade. Os xapiris convidam o Xamã para dançar.
E se em sonho os espíritos da floresta convidam o Xamã, no meu sonho,
vejo e a voz que ouço é a de Exu/Bara. Ele é quem me convida para dançar as
ancestralidades africanas que me constituem em diáspora, apontando para as
Comunidades de Terreiro de Candomblé como uma enorme floresta de
saberes ancestrais. Um chamado para ser realizado no futuro, na perspectiva
do Afrofuturismo de Freitas (2015) na construção de novas realidades no devir.

O Projeto em Africanidade na Dança Educação: sonho e realidade

“Eu tive um sonho”, parafraseando Martin Luther King. Sonhei a


construção de um projeto que pudesse apresentar a cultura das Comunidades
de Terreiro de Candomblé de Ketu16 afirmando sua importância e desfazendo o
olhar de estranhamento, preconceito e intolerância religiosa em nossa
sociedade. Como se essa manifestação cultural religiosa afro-brasileira não
compusesse nossos corpos afros e brasileiros e, como se 54% da população
brasileira não fosse preta e não tivéssemos uma ancestralidade africana.
O meu sonho começa em 2009 ao observar diálogos informais com um
grupo de professores da Escola Municipal Praia do Siqueira, em Cabo Frio,
região dos Lagos no Rio de Janeiro. Como parte do corpo docente, percebi que
16
Culto oriundo da Nigéria, África.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

os professores da escola tinham dúvidas e desconhecimento sobre a cultura do


Candomblé, suas práticas e sua forte influência na cultura brasileira. Propus
aos colegas pequenos encontros para conversar sobre o tema, com base na lei
estadual, 5.506/09 que reconhece o Candomblé como Patrimônio Imaterial do
Estado do Rio de Janeiro e amparado na lei 10.639/03, atual 11.645/0817.
Foram muitos encontros, debates e conversas que estimulavam cada
vez mais o interesse, até o momento que as questões extrapolaram o campo
da teoria e especular como seria um terreiro, já não dava conta das aspirações
do grupo. Foi necessário criar outra estratégia.
Organizei com os docentes uma visita buscando o primeiro “encontro”
entre uma Comunidade de Terreiro de Candomblé e a escola, quando fui
aprovado e tomei posse como professor do Departamento de Arte Corporal, da
Escola de Educação Física e Desporto da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Com a mudança de planos tive que adiar a visita.
Já na Universidade recomecei a estruturar um outro grupo de pesquisa,
com discentes do curso de graduação em Dança, professores e funcionários
que demostravam interesse no tema, então o primeiro encontro aconteceu.
O terreiro Asé Ylê Aiyê Ojú Odé Igbô localizado no bairro de Realengo,
zona oeste do Rio de Janeiro, é dirigido pela Ìyálórixás Nara de Oxóssi. Na
nossa primeira conversa tive a oportunidade de falar da relevância da lei
5.506/09, que ela desconhecia, para o fortalecimento das comunidades de
terreiro. Após uma longa e agradável conversa, Mãe Nara convidou o grupo
para a Festa do Orixá Oxóssi18 e frisou que o conhecimento sobre a dança de
terreiro poderia auxiliar no combate à intolerância religiosa e o preconceito.
Na ocasião os professores da escola de Cabo Frio e o grupo da UFRJ
puderam participar do encontro, onde fomos recebidos de forma muito
hospitaleira, demonstrando a aceitação da Comunidade à presença dos
pesquisadores.
Foi como mergulhar e ir até a casa dos ancestrais. Como a mulher
yawarioma fez com Kopenawa (2015, p.106) “conduzindo-o pela mão e

17 o o
Altera a Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei n 10.639, de 9 de
janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena”.
18
Orixá da caça, o deus dos caçadores (VERGER, 2002, p.112).

55
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

correndo por muito tempo na floresta para compreender seu lugar”. E


compreendendo com as devidas proporções e dimensões espirituais,
epistêmicas e culturais apresentada pelo Xamã Kopenawa, encruzilho a
potência ancestral de Exu/Bara, que figurativamente me pega pelo braço, e me
apresenta outras perspectivas dos saberes terreirizados, novas leituras, e
pesquisas de campo.

Um sonho do alto

Danço com espíritos, com outro espírito de corpo, onde Bara gesta a
episteme, o caminho e a visão para a sensibilização de diversos outros corpos
dentro e fora da Universidade. Observando os caminhos e atalhos que o sonho
tomava, pude ver mais adiante, do alto do tronco da árvore sagrada como diz
Kopenawa:

Outras vezes, sonhava que trepava numa grande árvore a rapa hi de


flores amarelas. Subia com cuidado, me agarrando no tronco.
Passava além dos seus galhos principais e ia até o topo. De lá podia
avistar a floresta em todas as direções. (KOPENOWA, 2015, p.92).

Bara me conduziu até a grande árvore para olhar em múltiplas direções.


Para o povo iorubá, a grande gameleira branca é a manifestação do Orixá
Irôko, o Tempo. Foi quando conheci a Comunidade de Terreiro, Ásé Oloroke
Pantanal, dirigido pela Ìyálórixás Mãe Maria de Xangô. Localizado na baixada
fluminense, é a casa matriz da nação Efon, que anualmente realiza uma
grande festa para Irokô.
Em 2015, na Festa de 60 anos de iniciação de Mãe Maria de Xangô, o
PADE apresentou a performance, Irôko terreiro de Mundo, como um retorno
das pesquisas realizadas na comunidade.

“Fincou no chão/ Sua raiz forte Nanã acolheu/ Subiu no ar/ Seu
tronco devida/ Que o tempo ornou/ Brilhou no céu/ Sua folha de Asé
/Aos olhos de Olorum/ Obatalá, fez um Opaxôro/ Do tronco que tirou/
Irokô dança com seu corpo inteiro/ O terreiro do Mundo/ Ele é
memória de um tempo/ Que o homem não pode alcançar/ Em seu

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

espaço e tempo/ Ele vive a força de tudo/Erô, erô/ É a forma de Irôko


19
saudar.”

A partir do conhecimento adquirido no terreiro, as performances são


realizadas no intuito de afirmar a importância desses saberes, de expandir a
capacidade de diálogo entre a universidade e o terreiro e de desfazer o olhar
de estranhamento e preconceito.
Quando partimos do pressuposto de que algo precisa ser afirmado,
pondera-se que sobre esse ser, esse algo, age uma força oposta que o nega
enquanto existência, validade, legitimidade, entre outras questões. Assim as
ações afirmativas são criadas, no intuído de ampliar vozes oprimidas e
silenciadas em suas expressões do desejo e do direito de ser ou ter, mediante
questões sociais que envolvem classe, raça, gênero, religião ou condição física
e mental.
Quanto à relação educacional nas questões étnico-racial, é incontestável
a contribuição do Estado para os processos discriminatórios e excludentes aos
quais africanos e afrodescendentes foram submetidos na formação da
sociedade brasileira. Conduta esta que tem seu efeito nocivo à população preta
e sua produção de conhecimento até os dias de hoje.

O Brasil, Colônia, Império e República, tiveram historicamente, no


aspecto legal, uma postura ativa e permissiva diante da discriminação
e do racismo que atinge a população afrodescendente brasileira até
hoje. O Decreto nº1.331, de 17 de fevereiro de 1854, estabelecia que
nas escolas públicas do país não seriam admitidos escravos e a
previsão de instrução para adultos negros dependia da
disponibilidade de professores. O Decreto nº 7.031-A, de 6 de
setembro de 1878, estabelecia que os negros só podiam estudar no
período noturno e diversas estratégias foram montadas no sentido de
impedir o acesso pleno dessa população aos bancos escolares.
(MEC, 2004, p.5).

No que se refere ao sistema educacional, observa-se que durante o


processo de formação da população e da nação brasileira, uma grande parcela
foi alijada do direito a uma educação de qualidade e que contemplasse toda a
diversidade que constitui essa nação. Somente após 100 anos da dita
“Abolição da escravidão”, com a Constituição de 1988, o Brasil inicia um

19
Música: Iroko Terreiro do Mundo (autor. Xandy Carvalho, 2015).

57
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

processo de democratização de direitos com foco na dignidade e no direito a


cidadania da pessoa humana. Com uma realidade marcada por posturas
preconceituosas, racistas e discriminatórias da população africana e seus
descendentes, desde as primeiras legislações.
Sem medo de ser redundante, a arte-educação é uma poderosa
ferramenta para combater toda e qualquer discriminação, preconceito e
racismo. Nesse sentido, o Ministério da Educação (MEC) reconhece que:

O Brasil, ao longo de sua história, estabeleceu um modelo de


desenvolvimento excludente, impedindo que milhões de brasileiros
tivessem acesso à escola ou nela permanecessem. Com a criação da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
(Secad), o Ministério da Educação dá um grande passo para
enfrentar a injustiça nos sistemas educacionais do país. Garantir o
exercício desse direito e forjar um novo modo de desenvolvimento
com inclusão é um desafio que impõe ao campo da educação
decisões inovadoras. Na reestruturação do MEC, o fortalecimento de
políticas e a criação de instrumentos de gestão para a afirmação
cidadã tornaram-se prioridades, valorizando a riqueza de nossa
diversidade étnico-racial e cultural. (SEPPIR, 2004, p.7).

O reconhecimento, como dito anteriormente, de todo processo de


exclusão que milhões de pessoas foram submetidas é um grande passo na
construção de um processo de inclusão, disposto a corrigir as injustiças sociais
e as diversas formas de violência que o povo preto foi submetido, para seguir
como um país onde todos seus cidadãos gozem de direitos iguais, para além
do postulado nas teorias da Constituição.
Assim as ações afirmativas se apresentam como um conjunto de
medidas que buscam promover essa igualdade e equidade de direitos à
parcela da população que há muito tempo tem seus direitos básicos
surrupiados e, é para assegurar aos menos favorecidos o direito mínimo à
cidadania com objetivo de eliminar o racismo, preconceito e quaisquer tipos de
discriminação.
É importante frisar que diferente do que pensa o senso comum, as
ações afirmativas não buscam apenas tratar dos diretos dos afro-brasileiros.
Ela deve atuar para amparar todo cidadão que em algum momento de sua
vida, tenham sido cerceado dos seus direitos mínimos, seja por motivo de cor,
raça, credo, gênero, condição física ou intelectual.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

A Lei 10.639/03 atual 11.645/08, busca afirmar o direito à diversidade


cultural na escola, ao que tange as relações étnico-raciais, visando transgredir
com as dinâmicas eurocêntricas impostas por nosso sistema educacional. A lei
obriga que essa temática seja trabalhada nas disciplinas Educação Artística,
Literatura e História do Brasil, porém é notório que a cultura e história africana
e afro-brasileira, por sua grande capacidade e multiplicidade na produção de
conhecimentos multidisciplinares, podem ser abordadas por todas as
disciplinas.
Contudo, não é novidade que as lideranças políticas lutem
veementemente para desqualificar e negar as produções culturais, intelectuais
advinda dos povos de África e seus descendentes. Mbembe (2018) afirma que
aquele que foi suprimida a faculdade de falar por si mesmo é sempre forçado a
se considerar intruso ou alguém que aparece no campo social unicamente sob
a forma de um problema.
Acredito que a ausência de um olhar mais sensível e criterioso para a
diversidade cultural no âmbito escolar e universitário, somada as políticas
voltadas ao embranquecimento da sociedade, foi fundamental na construção
dessa lacuna entre sociedade desejada e sociedade real, ou seja, a educação
brasileira é programada para atender uma sociedade que foi, e é idealizada,
não dando conta das verdadeiras demandas e tensões da realidade da escola
e da universidade brasileira.
É importante salientar que os avanços na luta por uma equidade de
direitos nas relações étnico-raciais, resultam de inúmeras reivindicações e
propostas do Movimento Negro no Brasil. É nesse cruzo que o PADE tem a
possibilidade de falar do corpo preto e da produção de conhecimento das
Comunidades de Terreiro de Candomblé.
No Departamento de Arte Corporal, da Escola de Educação Física e
Desportos da UFRJ o projeto estabeleceu parcerias importantes com a
Companhia Folclórica do Rio-UFRJ, coordenada pela Professora Doutora
Eleonora Gabriela que pesquisa há mais de trinta anos os saberes tradicionais
da Cultura Popular, o Núcleo de Pesquisa em Dança Afro-Brasileira –
NUDAFRO, coordenado pela Professora Doutora Tatiana Damasceno que
pesquisa as performances afro-brasileiras, o Pesquisa em Cinema e Dança –
PECDAN, coordenado pela Professora Doutora Katya Gualter que desenvolve

59
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

a produção de ensaios audiovisuais, onde a dança e o audiovisual dividem


entre si o espaço da criação artística e da produção de conhecimento e, mais
recentemente, o PADE integra o Grupo Ancestralidades em Rede - GrupAR,
composto de 14 coletivos acadêmicos e não acadêmicos que pesquisam e se
debruçam no esforço de reunir saberes tradicionais, ancestrais e seu valores
como conhecimento dentro da Universidade e outras intituições de educação e
arte.
O PADE como sonho se torna realidade no desejo transformador de um
futuro possível, contribuindo para o debate e fortalecimento dos saberes da
cultura de terreiro de Candomblé. Esse futuro possível se dá através da
resistência, da luta por direito à cidadania.
Neste sentido é de extrema relevância manter o olhar Afrofuturista e
Barapespectivista como caminho conceitual de produção de conhecimento
através dos saberes terreirizados e pelo corpo preto dentro e fora da
universidade. Trazendo para o centro da discussão histórias, memórias e
saberes que não pertenciam ao universo acadêmico há bem pouco tempo com
protagonismo, como se esse conhecimento não fosse parte da cultura
brasileira, e sim algo extraterreste como afirma Freitas:

As populações negras do continente africano são os descendentes


diretos de alienígenas sequestrados, levados a uma cultura para
outra. Seus antepassados, separados dos seus territórios originais,
forma abduzidos como escravos para o Novo Mundo. (FREITAS,
2015, p.5).

Os saberes ancestrais mantidos vivos dentro dos terreiros, não podem


ser visto como saberes alienígenas, não pertencente a nossa cultura. Mas é
importante destacar que, falar da cultura preta ainda é um esforço gigantesco
para mostrar, ou melhor, comprovar sua existência, sua tecnologia, suas
epistemologias. Manter um projeto que evoca Bara/Exu, o Senhor do corpo, e o
elege como conceito na investigação em dança, gesto e movimento, não
escapa dos processos de preconceito e racismo. Recebe o mesmo olhar de
estranhamento e desqualificação em seu percurso, com muitas críticas veladas
e abertas durante estes 10 anos de sua viagem no espaço universitário.
Metaforicamente, arriar um PADE na escola pública ou na Universidade,
é uma forma de produzir outros encontros com os sabres das Áfricas que nos

60
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

compõem como corpo histórico, cultural e social. Por este motivo é


fundamental a leitura do texto Que Diabo é Exu, do livro As quartas feiras de
Xangô de Fabio Lima para todos os que desejam entrar no projeto no intuito de
desconstruir o imaginário de que Exu seja ou tenha qualquer relação com o
diabo judaico cristão.
Não por acaso uma das primeiras performances criadas pelo PADE foi
exatamente Elegbara20 que em seus desdobramentos da pesquisa em dança
deu origem ao trabalho de conclusão de curso de Bacharelado em Dança AXÉi
o EiXU de Genilson Leite. O primeiro memorial baseado em Bara como
conceito, apresentado na Escola de Educação Física e Desportos em 2013.
Posteriormente, o palco vai se iluminando com luzes avermelhadas das
Pombagiras21 em Rosa Vermelha, de Tulani Pereira e Pedacinho de Molambo,
de Mayara de Assis e Genilson Leite. Despertam as Lembranças Memoráveis,
no Memorial em Dança de Luana Domingos, sopra a performance Ao Vento, de
Simonne Alves e Andreza Jorge, são potencias, forças iorubás, no Memorial
em Dança Aráyê de Ivy Brum. E incorporado dos conhecimentos do audiovisual
nos vídeos Comunidade de Terreiro e Extensão: Experiência dialógicas no
Campo, de Victor Hugo Garcia, e Recepção do Ooni de Ifé, no Ilê Ogun Aaeji
Igbele Ni Oman – Asé Pantanal, de Nathalia Leite, e vista na exposição
fotográfica Através dos Olhos, de Julius Mack e Wagner Cria.
Essas são algumas das produções artístico-acadêmicas do PADE ao
longo de 10 (dez) anos realizadas dentro do Departamento de Arte Corporal da
Escola de Educação Física e Desporto da UFRJ. Processos artísticos
movimentados e guiados por Bara, que convida a todos para refletir a cultura
do terreiro de Orixás, Inkises22 e Voduns23 na Universidade, nas escolas, em
projetos sociais. Sonho ou realidade? Ficção futurista ou o futuro é aqui e hoje?
Assim o PADE dança e faz dançar sendo revigorado para não esquecer
quem sou/somos. Esse é o início de processo de descolonização do
pensamento para seguir crescendo, como nas visões de Kopenawa:

20
Nome de Exu. (VERGER, Pierre, 1981).
21
Exu feminino. (CACCIATORE, 1988, p.213).
22
Divindades do Candomblé Congo-Angola.(CACCIATORE, 1988, p.148).
23
Divindades do Candomblé Jêjê Nagô. (CACCIATORE, 188, p. 154).

61
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Não tema! Você vai crescer e fazer dançar os espíritos. Protegerás


seus filhos e as pessoas de sua casa contra os seres maléficos e
saberá curá-las quando adoecerem [...] conforme tiravam doenças de
meu corpo, os Xamãs mais velhos de nossa casa iam também
colocando em mim, aos poucos, as imagens de enfeite preciosos dos
Xapiris. (KOPENAWA, 2015, p.94-96).

O processo de dançar com os espíritos é parte das vivências em


oficinas, laboratórios, ensaios de espetáculos que se inspiram nos saberes
afro-brasileiros dos terreiros, nesse importante afroterreiro que é o corpo. Se
para Kopenawa, os Xamãs mais velhos são uma referência de sabedoria, no
PADE, busco os Bàbálórìsà24 e Ìyálórixás25 com parcerias que se
estabeleceram ao longo do tempo com Nara de Oxóssi, do Asé Ylê Aiyê Ojú
Odé Igbô (Realengo – RJ), Nani de Oxum, do Ilê Axé Omi Opará Odé (Duque
de Caxias – RJ), Marlene de Oxalufã, do Ilê Axé Omin Otá Odará (Cachoeira
de Macacu – RJ), Tania de Jagun, do Ilê Axé Jagun Loyá (Bangu – RJ), Mãe
Maria de Xangô do Ásé Oloroke Pantanal (Duque de Caxias –RJ), Lilico de
Oxum, do Asé Ilé Ayê Oxum Dewi (Sobradinho – DF).
São eles que nos permitem compreender nossa corporalidade como um
presente, enfeites preciosos que os Orixás nos revelam através de histórias
narradas no corpo pela dança, onde nossas memórias e ancestralidades
roubadas vão aos poucos se reconstruindo nos fragmentos da diáspora.
Produzir dança através dos saberes do terreiro aponta o projeto como
uma possibilidade de construção do conhecimento pelo e para o corpo.
Acredito que a ausência da perspectiva do corpo preto, e do corpo preto em si,
no espaço acadêmico também tenha sido uma das motivações ao pensar o
PADE como um sonho. Cabe ressaltar que, hoje os corpos pretos são um
pouco menos alienígenas nos espaços territoriais da universidade, resultado
das ações afirmativas implantadas na educação a partir do ano de 2003.
Durante esses 10 (dez) anos, muitas dificuldades e obstáculos tiveram
que ser transpostos, mas também muitas conquistas foram alcançadas. O
projeto que surgiu de um pequeno sonho ficcional nos anos de 2009, aparece
nesse artigo como uma realidade na Escola Educação Física e Desportos, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fruto de ações de deslocar,
descentralizar e descolonizar as referências nas áreas da Educação e da Arte,
24
Sacerdotisa dirigente de um terreiro de candomblé.(CACCIATORE, 1988, 139).
25
O chefe mascolino do terreiro (CACCIOTORE, 1988, p. 59).

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

ao deslocar o eixo, como Exu ensina, ao subverter a ordem social pré-


estabelecida.
O PADE trilha o caminho para desmistificar a ideia de que o pensamento
afrocentrado tem por objetivo substituir tudo que foi produzido pela Europa. No
exercício de colocar e devolver ao africano e afro-brasileiro a capacidade de
contar suas próprias histórias com seus próprios heróis, sendo ele agente, e
não objeto de suas próprias produções como declarado por Nogueira:

O método afrocêntrico considera que nenhum fenômeno pode ser


apreendido adequadamente sem ser localizado primeiro. Um
fenômeno deve ser estudado e analisado a partir das relações de
tempo e espaço psicológicos. Ele deve sempre ser localizado. Ou
seja, este é o único modo para investigar as complexas interrelações
entre ciência e arte, projeto e execução, criação e manutenção,
geração e tradição e tantas outras áreas atravessadas pela teoria [...]
o afrocentrismo considera o fenômeno múltiplo, dinâmico e em
movimento e, portanto, ele é imprescindível para uma pessoa anotar
cuidadosamente e registrar de modo preciso a localização do
fenômeno em meio às flutuações. O que significa que o (a)
investigador(a) deve saber onde ele ou ela se encontra no processo.
(NOGUEIRA, 2017, p.2).

Neste processo me pauto nos conceitos do Afrofuturismo,


Baraperspectivismo e Afrocentrismo, pois são olhares sobre um local
epistêmico de localização da voz, do corpo, da ancestralidade e do futuro do
povo preto. A junção destes conceitos fortalecem o PADE como lugar de fala e
de produção de conhecimento e reconhecimento das histórias e memórias
afrodiaspóricas, elencando o Candomblé como tema, guiado por Exu/Bara para
todas as direções, em todos os sentidos do corpo que dança. Laroyê!!!!!

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64
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

2ª PARTE

ABORDAGENS EDUCACIONAIS

65
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

(RE)VISÃO CRÍTICA E APONTAMENTOS SOBRE


ABORDAGENS HISTÓRICAS DO ENSINO DA DANÇA/ARTE NO
CURRÍCULO ESCOLAR BRASILEIRO

Leonardo das Chagas Silva (UFBA)

Agô: licença para dar os primeiros passos

Ao olhar algumas bibliografias contemporâneas que abordam o histórico


do ensino da Arte26 no currículo, mas exatamente a história do ensinamento da
Dança na escola, em primeiro plano, caberia perguntar: Afinal, de qual arte
fala-se no currículo? Ou melhor, sobre qual ensino de Arte ou fenômeno
artístico discorre-se no currículo escolar brasileiro? Pois sabe-se que o campo
da Arte é academicamente vasto, dividindo-se, inclusive, em Dança, Teatro,
Música e Artes Plásticas. Contudo, quando se trata do ensinamento da Arte na
escola, constato, historicamente, que parte significativa da sua trajetória no
ensino escolar, costura-se recorrentemente pelo campo das chamadas Artes
Plásticas/Visuais. Por que isso, afinal?

Subjacentemente, indago, principalmente, de que modo o contexto ou


histórico do ensino da Dança/Arte na escola tem sido abordado em algumas
produções bibliográficas, na contemporaneidade? Como contextualizar/revisar
historicamente o ensino da Dança/Arte na escola, sem estar centrado somente
em retrospectivas e reiterações das contribuições de coreógrafos/as e
bailarinos/as estrangeiros/as europeus? Indago, também, como incluir um olhar
para as denominadas manifestações culturais brasileiras, que, muitas vezes, se
configuram à luz do ato de dançar, batucar e cantar, a exemplo do bumba-meu-
boi, do jongo, dos maracatus, do maculelê, caboclinhos, kuarup, ou então, do
maxixe, lundu, coco e samba? Certamente, todas essas indagações apontem

26
Chamo a atenção para os sentidos das grafias Dança, dança, arte ou Arte no decorrer deste
texto, pois quando tais palavras estiverem escritas com letras iniciais maiúsculas, estarei me
referindo à elas enquanto campo epistemológico e/ou área de conhecimento, um substantivo,
portanto. Por outro lado, quando forem escritas com letras iniciais em minúsculas, estarei
compreendendo-as como fenômeno artístico e/ou expressões/formas artísticas (linguagens do
teatro, da música, dança e artes plásticas/visuais).

66
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

para o nível de complexidade da problemática que envolve o ensinamento da


Dança/Arte nas escolas, apesar de alguns avanços, na atualidade.

Assim, diante dessa conjuntura, apresento, aqui, uma revisão crítica e


apontamentos sobre recentes produções bibliográficas cujas abordagens
históricas do ensino da Dança/Arte baseiam-se significativamente em livros,
documentos oficiais prescritivos, bem como empenham-se em visibilizar,
regularmente, bailarinos/as e coreógrafos/as europeus como personalidades
contribuintes para pensar-fazer a Dança na escola brasileira, historicamente.
Aponto como pressuposto a interpretação que algumas produções
bibliográficas na contemporaneidade, sobre a introdução da Dança na escola
brasileira, e, especificamente, aquelas que se aproximam dos aspectos
históricos do seu ensino, apenas reiteram episódios e informações históricas,
recorrendo sobretudo aos documentos legais e aos contextos do ensino da
Arte no Brasil, em geral.

Para tanto, entreteço críticas e apontamentos propositivos a essas


abordagens, partindo, pois, da investigação bibliográfica, no tocante à análise,
reflexão e interpretação de tais produções. Além disso, ao analisar tais
produções bibliográficas do campo da Dança, aproximo-me, pois, das
perspectivas crítica e pós-crítica dos estudos do Currículo, principalmente à luz
dos trabalhos de Lopes e Macedo (2011), Silva (2005), Goodson (1995, 1997)
e da Pedagogia das Encruzilhadas de Rufino (2019), bem como dos Estudos
das performances de Ligiéro (2011). A pertinência deste estudo consiste,
supostamente, em novos apontamentos para abordagem da história do ensino
da Dança no Brasil, pensando para além dos documentos oficiais e dos
cânones europeus.

Portanto, como exercício e desafio, ao longo das próximas linhas deste


texto, explano algumas das noções acerca do currículo, conforme os
referenciais já descrito, e, paralelamente, discorro sobre o processo de
organização, análise, interpretação e/ou revisão das produções bibliográficas
em questão, entretecendo críticas e apontamentos acerca de suas abordagens
históricas, relativas ao ensino da Dança no contexto das escolas brasileiras.
Assim, parto também da compreensão que “[...] a atividade historiadora tem
maior proximidade com a paciente e meticulosa atividade manual exercida por
67
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

tecelões, bordadeiras, rendeiras, tricoteiras, chuliadeiras”. (ALBUQUERQUE


JÚNIOR, 2009, p. 2).

Breves notas sobre currículo/Currículo

Inicialmente, presumo que falar do currículo não deve ser uma tarefa
fácil, ainda mais quando aliamos suas discussões ao o universo do ensino da
Dança/Arte no recinto escolar. Por outro lado, considero que o
currículo/Currículo27 desponta tanto como um conceito polissêmico, quanto
como um campo epistemológico de pesquisa, composto por histórias, teorias e
abordagens sociológicas. (FORQUIN, 1996). Aliás, “[...] o termo ‘currículo’ pode
designar não mais aquilo que é formalmente prescrito, oficialmente ‘inscrito no
programa’, mas aquilo que é realmente ensinado nas salas de aula e que está,
às vezes, muito distante daquilo que é oficialmente prescrito”. (FORQUIN,
1996, pg. 188).

Por outro viés, até mesmo é possível dizer que alguns dos aspectos
comuns às discussões acerca do currículo correspondem ao fato de pensá-lo
como sendo um organizador de experiências e situações de aprendizagens a
fim de promover, consolidar e/ou configurar um processo educativo, conforme
Alice Casimiro Lopes e Elizabeth Macedo (2011). Pois, de acordo com as
autoras, “Há, certamente, um aspecto comum a tudo isso que tem sido
chamado de currículo: a ideia de organização, prévia ou não, de
experiências/situações de aprendizagem realizada por docentes/redes de
ensino de forma a levar a cabo um processo educativo”. (LOPES & MACEDO,
2011, p. 19). Assim, considerando a complexidade do processo
educativo/formativo, assinalo que o sentido do currículo está para além da sua
etimologia, que “[...] significa caminho, trajetória, percurso a seguir e encerrar
[...]” (MACEDO, 2017, p. 22).

27
Diferencio a grafia Currículo de currículo, pois, quando a palavra for escrita em minúscula,
estou a compreendê-la enquanto forma de organização das atividades escolares. Já quando
grafá-la em maiúsculo, autorizo-me a destacá-la e reconhecê-la como um conceito e campo de
estudo construído/constituído social e historicamente, um substantivo, portanto.

68
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Ainda de acordo com Tomaz Tadeu da Silva (2005), pode-se inclusive


resumir os estudos do Currículo em três perspectivas28: as chamadas teorias
tradicionais, teorias críticas e teorias pós-críticas. Quanto às denominadas
teorias pós-críticas de Currículo, cuja fundamentação ata-se à intitulada
perspectiva pós-colonial e pós-estruturalista, essas situam-se na Pós-
Modernidade (SILVA, 2005). Assim, segundo a teoria pós-crítica, que é
atravessada pela visão pós-colonial, as propostas curriculares e o ato
educativo devem comprometer-se relevantemente com o ato de transgredir
processos coloniais de submissão cultural, subalternidade e de pretensa
aniquilação da alteridade, que estão fundamentados sob a égide da ótica
cultural europeia e/ou nos interesses imperialistas dos Estados Unidos
(MACEDO, 2017).

Posto isso, ao pensar o currículo/Currículo também como campo de


possibilidades formativas e instituidor do conhecimento formativo, dotado,
portanto, de princípios heurísticos e propositivos (MACEDO, 2017), vislumbro o
mesmo como cruzo, pois “[...] é na encruzilhada que se praticam as
transformações”. (RUFINO, 2019, p. 21). Assim, perspectivando a noção pós-
colonial de Currículo, inspiro-me na obra Pedagogia das encruzilhadas, de Luiz
Rufino (2019), para sublinhar que a noção e dimensão de currículo/Currículo,
com suas respectivas teorias, está sendo lida e perspectivada, aqui, como uma
espécie de terreiro e cruzo, sobre o qual os processos socioeducativos e/ou
formativos são amarrados/organizados por nós entrecruzados e entretecidos
pelo jogo de embates, pela legitimidade do conhecimento. Inclusive para
pensar a história do ensino da Dança/Arte na escola para além da perspectiva

28
A partir dessa obra, pode-se resumir as três perspectivas da seguinte forma: baseada
em Bobbit e Tyler, as teorias tradicionais se voltam para a instrumentalização, o utilitarismo e o
tecnicismo, a fim de tornar o currículo simplesmente funcional, como instrumento eficiente e
eficaz, corroborando com a manutenção e aceitação das desigualdades e injustiças sociais;
assentada no marxismo e neomarxismo, de Michael Young, Michael Apple, Henry Giroux, a
teoria crítica está mais preocupada em compreender as dinâmicas e implicações políticas,
sociais e ideológicas do currículo, problematizando a forma como o conhecimento é inserido na
escola, na esperança e na empreitada de transformá-la; já a perspectiva pós-crítica de
currículo inspirava-se na dimensão pós-estruturalista da linguagem cujas categorizações
modernas, a exemplo de “sujeito” e “identidade”, são tomadas como alvo de especulação e
postas em dúvida, expandindo-se para discussões referentes à identidade, alteridade,
diferença, subjetividade, gênero, raça, etnia, sexualidade e multiculturalismo, representação,
cultura, saber-poder e discurso.

69
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

europeia. Fundamentado, pois, nos saberes-fazeres das performances29 afro-


ameríndias (LIGIÉRO, 2011). Dessa maneira, tomo o sentido de terreiro para
ler/pensar curriculum na escola brasileira como sendo:

[...] todo o “campo inventivo”, seja ele material ou não, emergente da


criatividade e da necessidade de reinvenção e encantamento do
tempo/espaço. Nessa perspectiva, a compreensão da noção de
terreiro se pluraliza, excede a compreensão física para abranger os
sentidos inscritos pelas atividades poéticas e políticas da vida em sua
pluralidade. (RUFINO, 2019, p. 101).

Aliás, tomar o currículo/Currículo como sentido de terreiro e cruzo é


reconhecer, inclusive, que toda e qualquer forma de arranjos e/ou
configurações curriculares “[...] provocam os efeitos mobilizadores para a
emergência de processos educativos comprometidos com a diversidade de
conhecimentos”. (RUFINO, 2019, p. 80). Pois, assim como nos cruzamentos,
no Currículo, e suas discussões teóricas-epistemológicas, “[...] marcam-se
zonas de conflito, as zonas fronteiriças, zonas propícias às relações dialógicas,
de inteligibilidade e coexistência”. (RUFINO, 2019, p. 80). Julga-se ainda que o
conhecimento é a tônica central e mola propulsora da história e abordagem do
Currículo, podendo o conhecimento ser concebido a partir da perspectiva
acadêmica, instrumental, progressivista e crítica, todavia, não se limitando a
estas, uma vez que tais abordagens ora se entrecruzam, ora se apartam, tendo
como principal foco discutir os fins educacionais e os nuances de legitimidade
do conhecimento em cada uma delas. (LOPES & MACEDO, 2011).

Assim, paralelamente, pontuo que pensar e discorrer sobre o processo


histórico do ensino da Arte/Dança na escola é transcorrer pelos meandros do
currículo escolar ou plano de estudo, chamado por Goodson (1997) de
“currículo escrito”. Segundo esse autor, o currículo escrito deve ser
considerado/pensado/encarado como sendo uma construção social. Goodson

29
Segundo Ligiéro (2011), a performance surge em contraponto à tradição do teatro greco-
romano, e baseia-se num modo de pensar/fazer teatro incluindo diversas artes, cujo sentido
corresponde, estética e antropologicamente, ao comportamento expressivo das festas e dos
rituais.

70
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

(1995) ainda adverte que o “currículo escrito” se trata, portanto, de uma


“tradição inventada” cujo processo compreende a produção e reprodução de
fenômenos sociais, na escola. Ou seja, para esse autor o currículo passa a ser
tomado também como uma invenção histórico-cultural, configurada socialmente
por um conjunto de práticas culturais conduzidas implícita ou/e explicitamente,
sejam elas de natureza ritual ou simbólica, sobre a qual circulam valores,
normas e comportamentos; que, por conseguinte, se repetem ao longo da
história, em um permanente diálogo com o passado e conforme interesses
sociopolíticos de sua respectiva situação histórica.

Reflexões críticas e apontamentos sobre abordagens do ensino da


Dança/Arte no currículo escolar: Por entre contextos e perspectivas
outras

Adjacentemente, pensando no que foi dito na seção anterior, é possível


assinalar que, historicamente, numa dimensão do currículo escrito
(GOODSON, 1995, 1997) e/ou prescrito oficialmente (FORQUIN,1996),
configurado pelas prescrições normativas dos documentos legais, o ensino da
Arte na escola brasileira, relativo aos seus métodos e conteúdos, ficou durante
muito tempo restrito ao Desenho Geométrico ou Linear, desde o final do século
XIX. Por isso, é possível inferir que esse ensino desponta no currículo escolar
como uma espécie de tradição inventada (GOODSON, 1995, 1997), alçada à
condição de prática cultural, quando constatamos que “[...] as artes visuais têm
sido uma das mais privilegiadas, como nos esclarece Figueiredo (2011, p.11)
ao dizer que, por diversas razões, elas ‘tornaram-se predominantemente nos
sistemas educacionais e, até hoje, para muitas pessoas, aula de Arte é
sinônimo de aula de artes plásticas’. (MARTINEZ & PEDERIVA, 2018, p. 122)”.

Pois, destaco que, inicialmente, assentada numa ótica eurocêntrica,


conjugada com as ideias neoclássicas da Missão Artística Francesa, difundidas
pela Academia Imperial de Belas Artes, e, posteriormente, via industrialização,
no período do Brasil República, a cultura do Desenho se ergue enquanto
proposta de ensino nas Reformas Educacionais e/ou normativas legais da
Educação brasileira. Emergindo, assim, nas políticas educacionais e nos

71
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

currículos como uma espécie de dispositivo/imperativo para fazer-pensar-criar-


ensinar-aprender Arte na escola. Ademais, com a implantação e efetividade do
ensino do Desenho no currículo, articulado às ideias republicanas, acreditava-
se, pois, que se podia “[...] abrir à população, em geral, ampla, fácil e eficaz
iniciação profissional” (BARBOSA, 2012, p. 43). Ou seja, seu ensino objetivava
preparar uma mão de obra técnica e eficiente com vistas a atender e garantir o
processo de industrialização do País que estava se desenvolvendo,
principalmente sob influência do liberalismo estrangeiro e da Reforma
Educacional de Rui Barbosa (BARBOSA, 2012).

Tal objetivo fulgura, portanto, o caráter utilitarista e técnico-científico da


Arte na escola, alinhando-se perfeitamente com a visão de um currículo
eficiente, eficaz e econômico, baseado no eficientismo (LOPES & MACEDO,
211), e, consecutivamente, na teoria tradicional de currículo (SILVA, 2005).
Além do mais, é possível constatar que, historicamente, o ensino da Arte no
currículo esteve fundamentado numa ótica eurocêntrica e norte-americana, se
intensificadas durante muitos anos no sistema educacional do Brasil,
atravessando aproximadamente mais de 100 anos. (BARBOSA, 2012).

E com isso, influenciando/marcando, consideravelmente, parte


significativa da formação/educação em Arte no Brasil, sua organização no
currículo, bem como a prática docente e a maneira pedagógica de ensinar-
aprender Arte, deixando inclusive resquícios, até hoje, quando da abordagem
dos estudos de Ana Mae Barbosa (2007, 2012), e tantos outros estudos.
Portanto, em virtude disso, muitas instituições ainda limitam o ensino-
aprendizado do componente curricular Arte, em seus currículos escolares, às
aulas de Artes Plásticas/Visuais, preterindo as outras linguagens artísticas,
como o Teatro, a Dança e a Música, por exemplo. Não obstante, desde já
ressalto que tais instituições devem estar em observância ao que diz a lei
13.278/201630, com relação a inserção das linguagens artísticas no currículo,

30
Trata-se de uma Lei ordinária/normativa que fora instituída/legislada em 02 de maio de 2016,
ainda no governo presidencial da senhora presidenta Dilma Rousseff. Assim, a Lei 13.278 de
2016 altera, historicamente/significativamente/pedagogicamente/politicamente, o 6º parágrafo
do Artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, mais conhecida como Lei Nº
9.394/1996 (BRASIL, 1996), que regulamenta o sistema da Educação Básica brasileira,
inclusive o ensino de Arte nas escolas. Ainda segundo a Lei 13. 278/2016, as instituições de
Educação Básica têm a obrigatoriedade de incluir o ensino da Dança, do Teatro, da Música e

72
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

atualmente.

Sublinho ainda, que não é uma tarefa fácil tratar da introdução do ensino
da Dança no currículo escolar brasileiro, mais especificamente revisando e
apontando, criticamente, algumas abordagens do seu ensino na Educação
Básica, sem recorrer aos passos/processos pretéritos sobre o ensino da Arte
no Brasil. Ou seja, é quase que inevitável falar sobre o ensino da Dança/Arte
na escola sem partir de uma trajetória histórica comum sobre a qual tantos
trabalhos já partiram. De todo modo, como forma de exercício, saliento que
este texto busca se esquivar de qualquer perspectiva única para contar essa
história. Além disto, compartilho compreensivamente da noção de que fazer
história é comprometer-se sobretudo com narrativas que são silenciadas e/ou
invisibilizadas, pois, “O historiador, assim como as rendeiras, deve saber
conectar os fios, amarrar os nós, respeitando os vazios e silêncios que também
constituem o desenho do passado, o entramado dos tempos”.
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2009, p. 8-9).

Porquanto, ao refletir sobre alguns dos passos históricos da Dança/Arte


na escola brasileira, busco ajustar-me ao alerta de Chimamanda Adichie,
quanto aos perigos em se contar uma única narrativa e/ou versão da história.
Pois sabe-se que essa escritora nigeriana abriu os caminhos tanto para
problematizar as questões ligadas a construção cultural, no tocante aos
estereótipos e distorção das identidades, sobretudo dos povos africanos,
quanto a construção de pessoas e/ou lugares, uma vez que isto incide na
vulnerabilidade e armadilha de acreditar “[...] em uma única fonte de influência,
de uma única forma de se contar histórias, de se considerar como verdadeira a
primeira e única informação sobre algum aspecto”. (ADICHIE, 2009, apud
ALVEZ & ALVES, 2012, p. 01).

Portanto, inspirado nisso, de igual modo, aproximo-me também desse


alerta e dessa perspectiva quando da análise das produções acadêmicas
contemporâneos que abordam a história do ensino da Dança/Arte no currículo

Artes plásticas/visuais como linguagens artísticas integrantes do componente curricular Arte,


nas propostas curriculares da Educação Infantil, do Ensino Fundamental e Médio, no prazo de
cinco anos, a contar a partir da data de implementação dessa Lei.

73
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

escolar, ou então do seu ensino na escola, mesmo quando tais abordagens


não se fulguram como o principal objetivo dessas produções.

Assim, para a elaboração deste trabalho, organizei e analisei as


seguintes produções bibliográficas: Dissertações de mestrado, tais como A
dança: uma estratégia para revelação e reelaboração do corpo no ensino
fundamental (CHAVES, 2002), Dança na escola (ASSUMPÇÃO, 2005),
Passos, compassos e descompassos do ensino da dança na escola
(MORANDI, 2005), Corpos que dançam aprendem: análise do espaço da
dança na rede pública estadual de Salvador-BA (CAZÉ, 2008), (Im)pertinências
curriculares nas licenciaturas em dança no Brasil (MOLINA, 2008), Dança
como área de conhecimento (PINTO, 2011), Dança na escola e a construção
do co(rpo)letivo (CORRÊA, 2012), A (in)visibilidade da dança nas escolas de
ensino médio da rede pública estadual de Salvador (CURVELO, 2013), A
dança-educação/nos passos da memória (2013, SÁ), Dança Salvador:
mapeando o ensino da dança na rede municipal de ensino de Salvador-BA
(OLIVEIRA CAZÉ, 2014), Dança narrativa (ALMEIDA, 2016), Perfil de atuação
do egresso da licenciatura em dança da Universidade Federal de Alagoas
(SANTOS, 2016), Dança no ambiente escolar (GONÇALVES, 2017); o artigo
acadêmico A história do ensino da dança no Brasil e a Educação Básica
(BEZERRA & RIBEIRO, 2020); e por fim, o livro História das ideias do ensino
da dança na educação brasileira (VIEIRA, 2019).

Por conseguinte, durante o processo de análise desses trabalhos


levantei a respectiva problemática: De que modo o contexto ou histórico do
ensino da Dança/Arte na escola tem sido abordado nessas produções
bibliográficas contemporâneas? Então, após a análise das produções já
descritas acima, foi possível verificar que todas bibliografias tendem a
transcrever e/ou reiterar episódios e informações históricas acerca do ensino
da Dança na escola. Isto acontece recorrendo, por vezes, às explanações das
tendências pedagógicas do ensino da Arte no Brasil, através dos estudos de
Ferraz e Fusari (1993). Mas, de maneira mais intensa e exclusiva, todas
produções recorrem aos documentos oficiais/legais prescritivos, como a Lei de
Diretrizes e Bases de nº 5.692/71 e nº 9394/96, e os Parâmetros Curriculares
Nacionais (1997) - PCNs -, bem como revisitam os contextos históricos do

74
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

ensino da Arte no Brasil, partindo principalmente dos estudos de Ana Mae


Barbosa (2007, 2012), de modo geral.

Da mesma forma, notei também que parte razoável daquelas produções


bibliográficas, reiteradamente, indicam alguns dos trabalhos de Isabel Marques
(1999, 2007), Márcia Strazzacappa (2001), Carla Morandi (2005) e Lúcia Matos
(1999), que tratam do ensino da Dança no campo da Educação brasileira. Além
do mais, existe em algumas daquelas produções, frequentemente, forte
referência à contribuição histórica de artistas europeus da dança moderna,
dentro e fora do espaço institucional, para pontuar e se aproximar da história
do ensino da Dança no Brasil. Destacando, principalmente, nomes como
Rudolf Laban e Maria Duschenes.

Adjunto a isso, constatei ainda, no artigo A história do ensino da dança


no Brasil e a Educação Básica, de Dagmar Dnalva da Silva Bezerra e Luciana
Gomes Ribeiro (2002), e no livro História das ideias do ensino da Dança na
educação brasileira, de Marcilio de Souza Vieira (2019), perspectivas
atravessadas, intensamente, tanto pelos documentos oficiais prescritivos,
quanto por referências europeias, no que tange a abordagem histórica do
ensino da Dança no Brasil, que, sob algum aspecto, se alinham, em parte, com
algumas das produções bibliográficas apresentadas, anteriormente. Vejamos:

A história do ensino e das escolas de dança no Brasil está ligada ao


surgimento das escolas de ensino do balé. O país experimentou a
primeira proposta de balé no Rio de Janeiro, em 1813, no então Real
Theatro de São João, hoje Teatro João Caetano, com uma
apresentação pública. Entretanto, somente no início do século XX é
que sua difusão foi impulsionada com as visitas de renomadas
companhias, por exemplo, 1913 e 1917 com Vaslav Nijinski (1889-
1950, bailarino e coreógrafo russo, que se destacou por suas
performances e excepcional virtuose técnica) e 1918 e 1919 com
Anna Pavlova Matjeweja (1881-1931, bailarina russa, que dançou
grandes balés solo, tendo em seu repertório os clássicos e dançou
personagens próprios e coreografado por ela), se apresentando no
Teatro Municipal do Rio de Janeiro (PEREIRA, 2002; SAMPAIO,
2013, apud BEZERRA & RIBEIRO, 2020, p. 2-3).

Essa, citação, por exemplo, foi extraída do artigo supracitado de Bezerra


e Ribeiro (2002), cujo trata da criação das escolas de dança e a introdução da
dança no espaço escolar da Educação Básica brasileira, contextualizando e

75
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

analisando historicamente o processo de ensino da dança no Brasil. Nesse


trecho é possível perceber, nitidamente, na sua primeira sentença, a forte
referência dada ao estilo do balé, quando as autoras tratam da história do
ensino de dança no País, bem como a forte alusão às companhias
estrangeiras, ao bailarino e a bailarina da Europa, como se o ensino de Dança
em território brasileiro começasse a partir desse marco histórico, e com
aqueles/aquelas artistas. Talvez, isso fizesse sentido se as autoras tivessem
como principal intenção em seu artigo contar somente a história do ensino do
balé em terras brasileiras.

Além disso, a meu ver, trazer orações independentes numa só sentença,


tudo junto, “A história das escolas de dança no Brasil” e “A história do ensino
de dança no Brasil”, como se tais orações tivessem os mesmos pesos, qual
seja: ligadas ao surgimento das escolas de ensino do balé, é incorrer em
perigo, embaralhando histórias diferentes, reduzindo e/ou generalizando
contextos e versões históricas a um só jeito de contá-las. Inclusive, considero
essa visão das autoras restritamente colonialista, assentada numa forma
bastante euroreferenciada, para pautar a história do ensino da Dança no Brasil.
Contudo, pergunto: e a história do ensino da dança do Maxixe (EFEGÊ, 1974)
e do Frevo (VICENTE, 2009), por exemplo, como ficam?

Assim, tomo também como exemplo, a pesquisa documental de Melo e


Santos (2018), para sublinhar que, em São Paulo, entre os anos de 1830-1860,
já havia “[...] referências a bailados de escravos..., ao miudinho…, ao fado, ao
batuque, ao catirité, à umbigada..., a outras manifestações diversas e
genéricas [...]”. (p.1046), embora isso fosse eventual. Sabe-se ainda, que,
durante esse período, a regulamentação da “A Lei Provincial n. 43, de 1867, no
artigo 130, determinou: ‘[…] fica proibido aos escravos a dança e jogos de
qualquer qualidade que sejam, tanto nas ruas, como nos subúrbios de
povoação’ [...]”. (MELO & SANTOS, 2018, p. 1046). Evidencia-se até mesmo
que “A preocupação de um setor das elites, portanto, era garantir o
aprendizado considerado adequado da dança, se afastando dessas
manifestações populares”. (MELO & SANTOS, 2018, p.1047).

Ademais,

76
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Lembremos que o lundu existia desde o século XVIII e em meados do


século XIX se tornou bem difundido, inclusive nos bailes das elites, na
esteira do crescimento de um mercado de entretenimentos. Percebia-
se um diálogo entre diferentes tradições culturais, no âmbito tanto da
música (LEME, 2006) como da dança. Essas ocorrências são
exemplos de como, a despeito de tornar-se progressivamente
explícita a influência europeia no Rio de Janeiro do século XIX, houve
sim movimentos de reelaboração que acabaram por constituir uma
peculiaridade cultural. (MELO, 2016a, p.502).

Ainda ao falar sobre a contribuição histórica da Escola de Dança da


Universidade Federal da Bahia - UFBA, em seu artigo, Bezerra e Ribeiro (2002)
referendam apenas Rolf Geleweski como principal estrangeiro europeu que
contribui para o ensino da Dança no País, sem referendar o artista/dançarino
Clyde Morgan, também professor desta Escola nos anos de 1970, considerado
como uma das principais personas estrangeiras que contribui histórica e
relevantemente para o ensino da Dança no Brasil, pensando sobretudo nas
manifestações culturais locais.

Aliás, as autoras olvidaram, inclusive, da contribuição histórica de


Mestre King, Nadir Nóbrega e Inaicyra Falcão, na Bahia; do Balé Popular do
Recife e mestre Nascimento do Passo, em Pernambuco; bem como da
contribuição das grandes bailarinas cariocas Eros Volúsia e Mercedes Baptista.
Pensando nesses nomes e personalidades artísticas como alguns dos
exemplos, para (re)pensar a maneira de fazer dança e discutir a história do
ensino da Dança no Brasil, de maneira pós-colonial, sobretudo através da
perspectiva conceitual das danças negras (FERRAZ, 2017).

Outra versão histórica do ensino da Dança na educação brasileira, que


interpreto como fundamentada também na perspectiva colonialista, está
presente no livro de Marcílio de Souza Vieira (2019) - obra acima citada-,
embora ele diga estar baseado no campo da Nova História. O livro desse autor
está dividido em três capítulos (intitulados como atos), cujo objetivo é
compreender como a Dança foi se constituindo na Educação Brasileira, no
tocante à Educação Básica e ao Ensino Superior, partindo especificamente da
análise de documentos oficiais (leis, resoluções, diretrizes e parâmetros
curriculares, etc.), bem como explanando o pensamento pedagógico brasileiro
do ensino de Dança.

77
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Assim, inicialmente, no primeiro subcapítulo de sua obra, intitulado Cena


1: Pedagogia brasílica da Arte/Dança, esse autor enuncia que “Pode-se dizer
que o ensino da Dança na educação brasileira deu-se com a chegada dos
jesuítas para a catequese dos indígenas. A missão deles, conferida pelo rei de
Portugal, era converter o gentio à fé católica”. (VIEIRA, 2019, p. 25). Desse
modo, pontuo que tal enunciação decorre, possivelmente, numa visão
tradicionalmente colonialista, baseada nos paradigmas jesuíticos como
referência primeva, para se pensar e contar a história do ensino da Dança no
Brasil. Embora, contraditoriamente, o próprio autor, no final desse mesmo
subcapítulo, ressalte que o processo de colonização dos jesuítas não
considerou a cultura indígena.

Nessa mesma ginga de análise, além de criticar a abordagem de Vieira


(2019), quando ele ratifica que o ensino da Dança na educação brasileira deu-
se com a chegada dos jesuítas, sublinho ainda que o autor lança mão de uma
prática comum utilizada para contar a história do teatro no Brasil, partindo dos
autos jesuíticos de Anchieta, para também pensar o ensino de Dança, nos
tempos do Brasil-Colônia. Problematizando isso, por outro viés, lanço mão do
ponto de vista de Zeca Ligiéro (2011), em Corpo a Corpo, quando critica que:

Nossos historiadores brasileiros, muitos deles seguindo as trilhas dos


estudiosos do Velho Mundo, concluíram que o teatro brasileiro teve
início quando o Padre José de Anchieta encenou seus primeiros
autos para os índios brasileiros, não percebendo as performances
existentes no Brasil, seja a nativa ou a trazida pelos milhões de
africanos logo nos primeiros ´séculos de colonização da costa
brasileira ou mesmo antes disto [...]. (LIGIÉRO, 2011, 70).

Ainda no subcapítulo Cenas 2: As coexistências conflitantes e as


reformas educacionais, do livro de Vieira (2019), constatei certa fragilidade ao
ele afirmar, pensando na fundação da Academia Imperial de Belas Artes
(1826), em decorrência da Missão Artística Francesa, que:

Com a criação dessa Academia, institui-se o ensino de Arte no Brasil,


o qual se concentrava no Desenho e na Pintura. Mais uma vez nota-
se a ausência da Dança no ensino brasileiro que ficou impresso
apenas nas pinturas dos artistas dessa missão, a exemplo da

78
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

temática da dança nas obras de Debret e Du Viert e Mariette [...]


(VIEIRA, 2019, p.36, grifo nosso).

Pois, apesar dessa afirmativa do autor, por outro lado, ao aproximar-me


do artigo de Melo (2016b), que trata do ensino da Dança nas escolas do Rio de
Janeiro, entre os anos 1820-1860, evidencio o seguinte:

O Brasil sequer existia como ente independente quando Madame


Mallek,“[...] diretora do Colégio de Educação de Meninas” (Diário do
Rio de Janeiro, 1822a , p. 41), apresentou seu estabelecimento para
pensionistas, situado na rua do Sabão. Como conteúdos principais,
ofertava ‘Francês, História, Geografia, Escrita’ e, como atividades
extras, ‘todos os trabalhos de agulha, o Desenho, a Música, e Dança’.
(MELO, 2016a, p. 327).

Tal exposto não se trata de um caso isolado, posto que a oferta do


ensino de dança como atividade educacional já despontava na cidade carioca
desde 1813 (MELO, 2016b), considerando, inclusive, que o termo escola e sua
configuração como espaço educativo não tem o mesmo sentido que atribuímos
atualmente. Além do que “Nas décadas de 1840 e 1850, aumentou a presença
da dança nas escolas fluminenses”. (MELO, 2016b, p. 336).

Ainda no mesmo subcapítulo supracitado, Vieira (2019), ao citar a


Reforma Couto Ferraz, de 1854, que contribuiu, sobremaneira, para o ensino
da Educação Física no currículo escolar, chega a afirmar que “Nessa reforma,
a Dança aparece por meio da ginástica, muito mais como uma atividade física
exercida pelas mulheres do que como estética e artística”. (p.40). Embora isso
tivesse acontecido, em contrapartida, constato que desde 1838, o Colégio
Pedro II, que fora fundado como sendo a instituição de referência para o Brasil,
já apresentava a dança como atividade educativa, pois “A prática foi prevista já
em seu primeiro regulamento: ‘As lições de Dança serão dadas nos dias de
feriados aos alunos, cujos pais houverem determinado que a aprendam’.
(Brasil, 1838, apud MELO, 2016b, p 335)”. Ademais, demonstra-se que a
prática da ginástica se implementou nos recintos educativos a partir dos anos
de 1841, segundo Melo (2016b).

Portanto, todos os apontamentos descritos no percurso deste texto,


segue na tentativa de tensionar a pedagogia brasílica, cujo sentido

79
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

compreende a forma pedagógica que os jesuítas Manoel da Nóbrega e José de


Anchieta encontraram para catequizar os indígenas. Nesse sentido, referendo,
como desafio, a pedagogia das encruzilhadas (RUFINO, 2019) como
possibilidades para se pensar e narrar outras abordagens históricas do ensino
da Dança no Brasil, assentada principalmente na perspectiva afro-indígena.
Contando, principalmente com narrativas que pautem as
performances/manifestações culturais populares, cujas configurações
fundamentam-se, na maioria das vezes, nos saberes-fazeres corporais do
cantar-dançar-batucar (FU-KIAU, 1969, apud LIGIÉRO, 2011).

Atado a essa expectativa, consecutivamente, nessa roda de discussão,


destaquei os artigos As danças nas escolas do Rio de Janeiro de Melo (2016) e
Escolas de virtudes de Melo e Santos (2018), que apresentam o ensino da
dança, já tão presente nas ruas de São Paulo e escolas do Rio de Janeiro,
entre o final do Brasil Colônia e parte do Brasil Império, conforme explicitados
ao longo deste trabalho. Por fim, enquanto possibilidade de outras narrativas,
também indico a tese de doutorado Capoeira angola e dança afro:
contribuições para uma política de educação multicultural na Bahia, de Amélia
Vitória de Souza Conrado (2006), propondo-a como mais um desafio, como
outras possibilidades de produções bibliográficas, para se (re)pensar e/ou
(re)contar a história do ensino da Dança no Brasil.

Considerações

Vimos no decorrer deste texto, que o currículo/Currículo se conjuga com


a história política/social de processos socioeducacionais, da mesma forma com
as finalidades e situações contextuais escolares, sendo usado, por sua vez,
como uma espécie de dispositivo produtor/promotor de culturas, cujo principal
objetivo é eleger o conhecimento formativo. Nesse sentido, acredito que este
trabalho pauta questões relevantes quanto à compreensão do ensino da Dança
na escola no Brasil, em sua complexidade.

Portanto, a observação que faço, quanto às abordagens


daquelas/dessas produções bibliográficas, está no fato de salientar que todas
partem, recorrentemente, somente de reiterações históricas e transcrições

80
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

quanto as observâncias legais, ou seja, abordam aquilo que já está


historicamente situado e prescrito normativamente. Ademais, tais produções
não apresentam qualquer referência às questões ligadas ao campo do
Currículo e suas respectivas teorias, em articulação ao ensino da Dança/Arte
na escola, bem como não apresentam narrativas/dados históricas que tratem
do ensino da Dança fora dos documentos oficiais prescritivos. Porquanto,
repetidamente, tendem a fazer uma história única sobre o ensino da Dança na
escola brasileira, sem revisar ou despontar outras maneiras de dizer-fazer essa
história, um modo no qual tal história possa ser contada antes mesmo de ser
pensadas e efetivadas as reformas e/ou políticas educacionais para seu ensino
ou o ensino da Arte no Brasil, em âmbito geral.

Além disso, diante de todo o exposto, considero ainda, que as


abordagens a respeito do histórico do ensino Dança na escola, precisamente
nas propostas curriculares brasileiras, talvez, estejam situadas em contextos de
uma história recente, e, cada vez mais, estejam à espreita de uma história por
se fazer; outrossim, é necessário e desafiante, portanto, lançar mão de
abordagens históricas desse ensino, ocupando-se também de incluir
contribuições de sujeitos sociais-históricos ainda invisibilizados no percurso do
ensinamento da Dança na escola. Apostando inclusive, na possibilidade de
pautar abordagens histórica de educação em Dança, que visibilize, inclusive,
todos os contributos advindos dos povos indígenas, bem como dos povos
africanos e afrodiasporícos, em terras brasileiras.

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83
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

CIA DE DANÇA ROBSON CORREIA:


UMA FORMAÇÃO PARA O CORPO NEGRO NA CENA DA DANÇA EM
SALVADOR
Robson Correia Santos (UFBA)

Este estudo é parte da pesquisa que vem sendo desenvolvido no


programa de Pós-graduação em Dança em nível de Curso de Mestrado da
Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, vinculada à linha de
Mediações culturais e educacionais em dança e orientada pela Professora
Doutora Amélia Vitória de Souza Conrado. A pesquisa que traz como tema “A
Cia de Dança Robson Correia como espaço não formal de ensino-
aprendizagem, na qualificação inicial e contínua de Jovens Negros que atuam
na Cena da Dança em Salvador”.

Aqui nesse artigo trago um recorte que propõem uma reflexão na


contextualização do processo de organização do ensino da Dança na Bahia31,
favorecendo assim a leitora e ao leitor compreensão do procedimento de
implantação dos espaços formais de ensino em dança na Bahia, aspecto
relevante para o entendimento da exclusão de outros saberes e fazeres nos
seus currículos, ficando para os espaços não formais de ensino tratar essas
outras epsistemologias não reconhceidas no período iniciático dessas
instituições. A pesquisa surge, portanto, para o enfrentamento de um dos
problemas identificados no processo de organização do ensino da Dança na
Bahia: o pouco tratamento dado aos dos saberes e fazeres da cultura
afrodiaspórica na formação em dança em Salvador.

Em Salvador existem muitos espaços formais que trabalham com a


Dança; alguns públicos, outros privados. Entre as Instituições Públicas destaco
a Escola de Dança da UFBA, a Escola de Dança da Fundação Cultural do
Estado da Bahia ,EDUFUNCEB, as Escolas Estaduais e as Escolas da Rede
Municipal.

31
Para um panorama atualizado dos contextos de formação em Dança na cidade de Salvador,
ver MATOS, Lúcia; NUSSBAUMER, Gisele (Coord). Mapeamento da Dança: diagnóstico da
Dança em oito capitais de cinco regiões do Brasil. Salvador: UFBA, 2016. Disponível em:
http://www.mapeamentonacionaldadanca.com.br/wp-content/uploads/2016/08/Relatorio-
Mapeamento-Resultado.pdf. Acesso em 17/03/2020

84
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Os espaços não formais de educação que citarei são: os Terreiros 32de


33
Candomblé ,os Blocos de Carnaval, os Grupos Culturais, as Companhias de
Dança e os Projetos Sociais.

A escolha da abordagem do tema foi feita por acreditar que a arte é uma
potencialidade de transformações sociais, muitos jovens que além de
mostrarem seu talento e vocação para alguma linguagem da arte, por meio das
iniciativas de formação artística proposta também pelos espaços não formais
de educação, conseguiram um posicionamento crítico e de empoderamento
enquanto sujeitos pertencentes a uma classe menos favorecida, e assim
conquistarem espaços que sempre lhes foram negados socialmente.

A pesquisa tem um caráter qualitativo, desenvolvida sob a forma de uma


pesquisa-ação. Para Thiollent (2011). A pesquisa-ação tem como característica
essencial trazer questões de um determinado grupo que tem interesse na
resolução delas, provocando transformação no contexto em que se encontra.

No processo metodológico dessa pesquisa, se faz necessário à


participação dos interlocutores que são: os intérpretes, os assistentes de
coreografia, os técnicos, alunos, estagiários e os espectadores. Valemo-nos de
algumas técnicas e procedimentos para registros no campo de pesquisa, como
fotografias, vídeos, questionários e entrevistas em campo cujas informações,
narrativas e experiências são dados que se somam aos subsídios
epistemológicos, para se refletir o tratado dos conhecimentos afrodiaspóricos
nos espaços formais de ensino da dança e a formação do corpo Negro no
cenário artístico de uma companhia de Dança.

Nessa direção, trago conceitos fundamentais ao entendimento do objeto


de estudo, dialogando com pesquisadoras e pesquisadores que estão
ancorados em abordagens sob diferentes perspectivas. Para consubstanciar o
trabalho, recorremos a: Corpo e Ancestralidade (FALCÃO, 2019); O que é lugar
de Fala? (RIBEIRO, 2017), Empoderamento ( BERTH, 2019), Racismo
Estrutural (ALMEIDA, 2019).O Movimento Negro educador: Saberes

32
Onde vive uma comunidade da religião de matriz africana onde acontecem as cerimônias
religiosas
33
Como é Popularmente conhecida a religião de matriz africana no Brasil

85
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

construídos nas lutas por emancipação (GOMES,2017), Decolonialidade e


Pensamento Afrodiaspórico (COSTA, TORRES, GROSFOGUEL, 2019), Dança
como Tecnologia Educacional (RANGEL, 2014). Abrindo Caminhos: jovens
mulheres nos trânsitos entre aprender e ensinar dança, (ORNELAS, 2019),
além de entrevistas com pessoas que contribuíram para a constituição dos
espaços do ensino da dança em Salvador. Procuro organizar esse artigo
trazendo os contextos dos espaços de ensino da dança, um breve relato da
concepção e produção artística/formativa Cia de Dança Robson Correia, as
considerações do estudo e as referências ancoradas.

Contextos dos Espaços de Educação em Dança.

O caminho escolhido para abordar a educação para as artes foi, em


especial na Dança, no âmbito de nível acadêmico, por se tratar de um espaço
que sistemicamente detêm o controle economia, política na sociedade,
aspectos característicos do processo sistêmico perverso do colonizador. Como
traz o autor a seguir, um processo centralizado nos ideais de uma elite:

A condição de criação mesma das nossas universidades foi


centralizadora. Nossa elite branca trouxe uma elite acadêmica
europeia branca para fundar uma universidade estreitamente nos
moldes das universidades ocidentais modernas. O modelo
institucional foi o humboldtiano, com separação entre as faculdades e
os institutos de pesquisa, obedecendo à mesma divisão de saberes
de matriz europeia e inscrevendo nossa academia como uma variante
da camada civilização ocidental. ( CARVALHO, 2018.p.84)

Formação do ensino superior se dá com a universidade do continente


europeu sendo imposta ao Brasil com todo seu rigor, plantando nas
universidades brasileiras uma mentalidade colonizadora de origem, não
reconhecendo outros saberes que contextualizam a história de outros povos,
deixando a construção epistemológica eurocêntrica sempre tida como
conhecimento única e verdadeira.

86
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

O livro de Fausto Castilho a cima mencionado inclui um fac-simile da


edição original do texto Humboldt sobre a reorganização da
universidade de Berlim, acompanhada pela respectiva tradução. A
reprodução do original da proposta Humboldt é emblemática do
desejo explícito da nossa elite acadêmica de se filiar a genealogia
universitária europeia. Campina é uma região com uma enorme
tradição escravista, porém a Unicamp não estabeleceu nenhuma
relação com os saberes de origem africana. Na mesma região foi
fundada antes a Universidade de São Paulo, porém nem os guaranis
nem as comunidades negras quem viviam (e ainda vivem) na região
foram chamados para discutir o modelo de universidade concebida
para “ desenvolver” o estado ( CARVALHO, 2018. P.84,85)

Percebemos que a universidade se configurou em um contexto político,


entre a elite do século XIX, a qual disputava e disputa o controle do poder.
Essa elite, por sua vez, liderada por pessoas brancas que conduziram e
conduzem as instituições, fazendo com que o processo do ensino acadêmico
tenha um caráter epistemológico eurocêntrico, machista e centralizador,
gerando dessa maneira, um sistema discriminatório e racista.

O racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é


tratado como resultado do funcionamento das instituições, que
passam a atuar em uma dinâmica que confere, ainda que
indiretamente, desvantagens e privilégios a partir de raça. É no
interior das regras institucionais que os indivíduos tornam-se sujeitos,
visto que suas ações e seus comportamentos são inseridos em um
conjuntos de significados previamente estabelecidos pela estrutura
social. Assim, as instituições moldam o comportamento humano,
tanto do ponto de vista das decisões e do calculo racional, como dos
sentimentos e preferências. Assim, detém o poder os grupos que
exercem o domínio sobre a organização política e econômica da
sociedade. “Entretanto, a manutenção deste poder adquirido depende
da capacidade do grupo dominante de institucionalizar seus
interesses, impondo a toda sociedade regras, padrões de condutas e
modos de racionalidade que tornam “normal” e “ natural” o seu
domínio (ALMEIDA,2018,p.29,30 e 31).

Espaços Formais de Educação em Dança

A Escola de Dança da UFBA e Escola de Dança da FUNCEB são as


instituições formais de ensino que vou me debruçar para trazer contribuições
ao conhecimento no campo da Dança. Escolhi esses dois espaços pelo papel
histórico que ambos desenvolveram e vem construindo no entendimento para a
educação em Dança tanto no ensino superior quanto no ensino médio.

87
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Escola de Dança da UFBA

A Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, situada no


campus do bairro de Ondina, na Avenida Ademar de Barros, foi pioneira no
Ensino Superior de Dança no Brasil, fundada em 1956, juntamente com as
escolas de Teatro e Música. Para dirigirem as referidas escolas, foram
convidados grandes artistas oriundos de diversos países, na tentativa de
estimular a formação em Artes no Estado, em sintonia com as vanguardas
artísticas no mundo. Com esse processo político de fundação estrutural da
instituição aponta-se que o sistêmico eurocêntrico se instala com estruturas de
controle de acordo com Almeida.

A viabilidade da reprodução sistêmica de práticas racistas está na


organização política, econômica e jurídica da sociedade. O racismo
se expressa concretamente como desigualdade política, econômica e
jurídica. Porém o uso do termo estrutura não significa dizer que o
racismo seja uma condição incontornável e que as ações políticas
institucionais antirracistas sejam inúteis; ou, ainda, que indivíduos
que cometem atos discriminatórios não devam ser pessoalmente
responsabilizados. Dizer isso seria negar os aspectos sociais,
histórico e político do racismo. (ALMEIDA, 2018, p.39).

Na Escola de Dança, Yanka Rudzka34, sua primeira diretora, tinha como


referência o expressionismo35 construído no pós-guerra, trazendo um caráter
experimental à instituição, desde o seu surgimento.

Já sentia o preconceito vindo da minha professora Yanka contra o


balé, na escola tinha professora de Balé, mas não davam força,
professora Margarida ela era sozinha... discriminada! Não
adiantava... Tinha carga horária pequena, enfim... A disciplina de
Dança de Caráter que deveria ser com a maior dança popular da
terra, a Dança Africana não tinha espaço, se dançava era as
dancinhas que se ensinavam pra as óperas europeias, como se a
gente tivesse alguma formação para dançar em ópera, nenhuma! era
furadíssima essa disciplina, e não tinha dança afro, não tinha
capoeira... Eu quando era professora assim que cheguei à Bahia,
com Yanka, eu chamava os capoeiristas para irem dar aula lá, eu
chamei Olga do Alaketu uma mãe de santo pra ir dar aula de orixá

34
Dançarina e coreógrafa polonesa, foi à primeira diretora da Escola de Dança da UFBA e uma
das personagens mais importante da Dança brasileira contemporânea. Nasceu em 1916 e
faleceu em 2008.
35
Movimento artístico e cultural de vanguarda surgido na Alemanha no ínício do século XX,
disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Expressionismo, acessado dia: 30/04/2020.

88
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

pra gente. Eu era menina e já tinha essa noção da força da cultura de


herança africana, mas na Escola de Dança da UFBA não se
valorizava. (ROBATTO, 2020. Informação verbal).

36
Segundo a professora Lia Robatto responsável pelas Bolsas Artes e
idealizadora da Escola de Dança da FUNCEB, a segunda maior instituição
pública de ensino da Dança do Norte Nordeste do Brasil, o que levou sua saída
do corpo docente da Escola de Dança da UFBA, foi a incompatibilidade das
suas produções artísticas com os protocolos acadêmicos vigente da época, a
especificidade da técnica corporal, e a falta de diálogo do currículo na Escola
de Dança da UFBA com a cultura da cidade de Salvador, que no seu ponto de
vista é uma cultura riquíssima e não era evidenciada.
Há 30 anos, só entrava na Escola de Dança apesar dela ser grátis,
quem já tinha um nível social mais alto, porque tinha uma boa base
escolar. Não adianta a universidade finge que não é, mas ela é
elitista. Aí eu pensei... (Eu quero fazer uma escola que atenda
meninas e meninos sem poder aquisitivos, para frequentar uma
academia particular de dança e ao mesmo tempo aproveitar o
manancial cultural dessa terra, que a Escola de Dança da UFBA era
refrataria...). (ROBATTO, 2020. Informação verbal).

Essas inquietações a levaram a pensar na criação, em 1984, de uma


escola que tivesse como objetivo inicial ocupar um espaço e assumir uma
função de formação profissional em Dança, até então restrita ao Curso
Superior das Universidades Públicas e Entidades Privadas.

Escola de Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia

A Escola já nasceu com componentes curriculares que na Escola de


Dança da UFBA não tinha ou não era valorizadas como a capoeira, Dança
Moderna, Balé Clássico e Dança Afro.
E eu pensava assim... A dança como educação para as crianças
desenvolver as competências básicas, saber ser, saber viver, saber
sentir, A arte é educação em si, educa pela natureza do processo
artístico, a arte é educação. Desde quando você não coíba, não
tiranize, porque a dança é um perigo! A dança tanto pode educar
como pode ser uma tirana autoritária que prende e limita o aluno.
(ROBATTO, 2020. Informação verbal).

36
A professora foi ate Brasília e articulou a instituição de bolsas artes no Brasil e para seus
Bailarinos /Estudantes, que ganhavam um valor para manter suas atividades artísticas e
estudantis. ( relato da professora em entrevista para essa pesquisa em 2020)

89
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

A Escola de Dança atua na Iniciação, Formação Técnica e Qualificação


em Dança, com aulas em sua própria sede, no Pelourinho, e nos Núcleos em
outras comunidades da cidade de Salvador. A professora Beth Rangel foi
diretora da instituição no período de 2007 a 2014, teve forte contribuição para a
construção educacional, artística e social da Escola, hoje a instituição mantém
suas atividades alinhadas às políticas do Ministério da Educação e Cultura,
(MEC) reconhecendo as Artes e a Cultura em geral como medidas
fundamentais e enriquecedoras para a vida social e para a educação. A
Instituição atende uma média anual de 1.800 alunos, entre crianças, jovens e
adultos de bairros populares e de baixa renda.

Eu, enquanto Escola de Dança, fui representante do Fórum de


Educação Profissional da Bahia, cheguei a ir para Brasília por que
estava sendo discutidas as políticas públicas da educação
profissional, foi o momento que mudou o conceito de Curso Técnico
Profissionalizante para Curso de Educação profissional, então a
Escola de Dança poderia estar no canto dela continuando formando
artistas para entrar no mercado... Eu acho que a gente dar um salto e
passa a continuar formar artista, mas também forma sujeitos críticos,
potentes, que refletem, que vê seu lugar no mundo, na sociedade,
quer dizer ele não passa a ser só um técnico, tecnicista, ele além da
técnica ganhado todos os prêmios e continuando trabalhando em
grupos, ele passa a ser um propositor. Eu acho que isso foi um
alargamento das competências, uma visão mais alargada do que a
ideia tecnicista, profissional nenhum formar tecnicamente apenas, eu
acho que já não resolve pra essa sociedade. (RANGEL, 2020.
Informação Verbal)

Os Cursos são organizados a partir de dois eixos norteadores: o eixo


“Formação Inicial” voltado para o público Infanto-Juvenil e também para
Adultos, com foco na formação preliminar para pessoas com pouca ou
nenhuma experiência em dança; é composto pelo Curso Preparatório, para a
formação da criança e do adolescente, durante toda a sua vida escolar; e os
Cursos Livres, para adultos que querem praticar a dança. Já o eixo “Educação
Profissional” atende um público de jovens e adultos que possuem experiência
profissional em dança, mas que desejam formalizar, qualificar ou aprofundar
seus conhecimentos. Nele, são oferecidos o Curso de Educação Profissional
Técnico de Nível Médio em Dança37, para formação de dançarinos

37
Desde 2009, quando o Projeto Político Pedagógico foi reelaborado, o curso foi incluído no
Censo Escolar do INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

profissionais; e os Cursos de Formação Continuada em Dança – Qualificação


Profissional, para profissionais da Dança.

Espaços Não formais de Educação em Dança

Os espaços não formais de educação em Salvador são muitos. Não


tenho a pretensão, aqui, de mencionar todos, mas acredito na importância e
singularidade que cada um tem na sua atuação, perante as comunidades, são
iniciativas ou ações da sociedade civil que contribuem com as políticas
públicas. São liderados também por pessoas de classe menos favorecidas e
ativistas que promovem atividades artístico-cultural-educacionais. Pessoas
que, às vezes, não possuem grandes poderes aquisitivos e de estrutura física
para compartilhar seus conhecimentos, saberes e fazeres, mas contribuem
efetivamente para a formação de pessoas.

É a partir da experiência como educadora em espaços educativos


não formais, em ONGs, participando de fóruns sociais, conferências
de cultura, em contato com associações de moradores, terreiros de
candomblé, centros de cultura e outras organizações sociais, que
observo o desenvolvimento de projetos e programas sociais e
culturais ao longo destes anos, que produzem um efeito
transformador nestas realidades em contextos locais e globais. São
programas que estão voltados para questões étnicas, identitárias,
valorizam a diversidade e potencializam as ações sociais
comunitárias. Este é um movimento que vem emergindo desde a
década de 80 e que no novo milênio ganha novos contornos, como
veremos posteriormente.( ORNELLAS,2019,p.108)

Nesses espaços, em sua maioria, estão pessoas Negras, sendo


crianças, jovens, adultos e idosos, moradores de comunidades menos
assistidas pelos governantes, faltando-lhes infraestrutura adequada como
saúde digna e segurança, trazendo assim uma vida longe das condições
básicas, digna e cidadã, aspectos que resultam de um processo sistêmico
histórico do Brasil. Aos longos dos tempos, esses espaços com suas lideranças
enfrentam resistências e vem existindo e resistindo às dificuldades em uma
sociedade em que as questões raciais sempre foram escamoteadas.

Teixeira e reconhecido pela Secretaria Estadual de Educação. A habilitação profissional foi


alterada para “Artista da Dança”, com competências e habilidades para atuação como
coreógrafo, interprete-criador e multiplicador em dança.

91
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Este sentido percebe-se uma predominância das formações em


danças afro-brasileiras como um grande movimento da dança na
cidade. Os terreiros de candomblé, blocos afros e afoxés tem
preponderância neste contexto, dispondo de oficinas e cursos durante
todo o ano e com maior concentração nos meses do verão que
precedem o carnaval. Do mesmo modo, percebe-se nas ONGs e
projetos sociais comunitários o desenvolvimento de atividades de
valorização da cultura negra, a exemplo do Centro Projeto Axé e da
Instituição Iaô Ilê Augusto Omolú, o Bloco Afro Carnavalesco Malê de
Balê ( ORNELLAS,2019,p.99).

Os terreiros de candomblé

Enquanto a epistemologia do povo afro-brasileiro é renegada pelos


grupos dominantes, nós Negros fazemos nossos quilombos, espaços de
preservação e resistência. Os terreiros de Candomblé são verdadeiras
universidades das tradições de matrizes africanas na Bahia e no Brasil,
trazendo através das Danças dos seus Orixás 38, de suas Cantigas, de seus
ritmos produzidos pelos Atabaques39, de sua culinária, vestes e outros
aspectos, além da sua metodologia milenar da tradição oral, velhos
ensinamentos dos fazeres e saberes.

Alcoff reflete sobre a necessidade de se pensar outros saberes.


Pensando num contexto brasileiro o saber das mulheres de
terreiro,das Ialorixás, e Babalorixás, das mulheres do movimento por
luta por creches, lideranças comunitárias irmandades negras,
movimentos sociais, outra cosmogonia a partir de referencias
provenientes de religiões de matriz africana, outras geografias de
razão e saberes.(RIBEIRO.2017.P.29)

40
O Ilê Axé Iyá Nassô Oká, popularmente conhecida como Casa
41
Branca, O Ilê Axé Iyá Omin Iyamassê – Terreiro do Gantois, O Ilê Axé Opô

38
Divindades de matriz africana no Brasil
39
Instrumentos percussivos da cerimônia religiosa do candomblé
40
No dialeto Yorubá africano, nome de uma das sacerdotisas que trouxe a religião de matriz
africana para o Brasil e também nome de uma comunidade religiosa do candomblé em
Salvador, fundado em 1830, no bairro do Engenho Velho da Federação.
41
Nome de uma das comunidades religiosa de matriz africana o candomblé em Salvador,
fundado em 1849 no bairro da Federação, terreiro muito conhecido pelo prestígio da sua quarta
liderança religiosa Maria Escolástica da Conceição Nazaré, conhecida como Mãe Menininha do
Gantois

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42
Afonjá , são alguns das comunidades entre outras tantas que existem em
salvador, que vem aos longos dos tempos mantendo atividades educativas e
formando crianças, jovens e adultos, em especial, com aspectos da cultura
afrodiaspórica, tornando possível através dessas ações formativas a
permanência e manutenção da cultura dos ancestrais.
Assim, com orgulho, podemos afirmar que as comunidades-terreiros
ensinaram os blocos afro-baianos e estes, como entidades que
compõem o movimento negro, ensinaram a sociedade brasileira a
praticar ações afirmativas, visando à igualdade racial e social
(NOBREGA, 2012, p.113)

As Associações Carnavalescas

Conhecidas popularmente como blocos Afros e Afoxés constituem uma


das mais importantes expressões da cultura afro-brasileira na Bahia, e, ao
longo dos tempos, vêm, através das suas ações educativas e ativistas sociais,
formando e educando a população afrodiasórica, fazendo com que pessoas
passem a reconhecer e assumir sua identidade, enquanto Negras. Cito aqui os
blocos Ilê Ayê43, do bairro da Liberdade, e o Malê Debalê44, do bairro de Itapuã,
em Salvador, ambos fundados na década de 70, além do Bankoma 45 de
Portão/ Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador, fundado nos anos
2000.
Finalmente, existem questões profundas nesses blocos, relativas a
transmissões e heranças culturais, de relações complexas, de
origens negro-africanas, construídas pela diáspora africana através
de seus projetos socioeducativos. Mas acredito que estes repertórios
ainda são válidos para que ocorra, de maneira efetiva, a igualdade
social e racial ( NOBREGA,2012,p. 112,113 )

Não posso deixar de falar das Companhias de Dança Independentes


que se reúnem em espaços alternativos para desenvolver suas atividades

42
Nome de uma das comunidades de candomblé e de uma divindade de matriz africana em
Salvador, fundado em 1910 por Eugenia Anna dos Santos, conhecida como Mãe Aninha, no
bairro de São Gonçalo do Retiro.
43
Dialeto Yoruba que significa O mundo ou A Terra da Vida ou ainda Festa do ano-novo,
disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Ilê_Aiyê, acessado no dia 01/05/2020.
44
Criado com inspiração na população descendente dos Malês povo de origem africana e
religião muçulmana, que lutaram na Revolta dos Malês contra o sistema
escravocrata brasileiro. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Malê_Debalê, acessado 01-
05-2020.
45
de origem banto que significa reunião de pessoas, Disponível em:
http://www.blococultural.com.br/bankoma_32.html, acessado dia 01-05-2020

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

como Áttomos Cia de Dança, fundada em 1999, Experimentadonus Cia de


Dança, fundada em 2008, Balé Jovem de Salvador, fundada em 2007, e a
Tradições Cia de Dança, fundada em 2009, coletivos que vêm atuando com a
Dança em Salvador, fazendo, difundindo e fomentando a informação e
formação artística, cultural e social de jovens dançarinos, mantendo suas aulas
através de metodologias diferenciadas dos padrões institucionais de ensino em
Dança.

Recentemente a dissertação de mestrado “ Espetáculos de dança


soteropolitanos: uma análise da cena contemporânea de obras
coreográficas em Salvador/BA” defendida por Raissa Biriba (2019),
que problematiza as possíveis hegemonias que se estabelecem na
cena contemporânea de obras coreográficas soteropolitanos, a autora
chega a conclusão que “na medida em que se constata uma
discrepância entre os indivíduos da dança – em sua maioria
afrodescendentes – e a pouca aprovação de propostas de
espetáculos dedicadas às danças oriundas da cultura negra em
editais públicos, percebemos que há uma cena encoberta e um
racismo estrutural que antecede este cenário mas permanece
impedindo a emergência e potencialização de um mercado
profissional da dança na cidade’”(BIRIBA, 2019, p. 107).

Em resposta à exclusão social que se reproduz também nas relações de


poder na dança, como é de se perceber que temos muitos espaços que atuam
na educação e formação artística, em especial com a Dança, e não poderia
deixar de retratar os projetos sociais, que são iniciativas propostas pela
sociedade civil e que através das Organizações Não Governamentais que
existiram e ainda existem como: O Centro Projeto Axé, Liceu de Artes e Ofício,
Anjos do Arenoso e o Avançar, que tanto colaboram para a construção
identitárias de jovens e comunidades.

CONCEPÇÃO E PRODUÇÃO ARTÍSTICA /FORMATIVA

Nos últimos anos, a Companhia Robson Correia vem buscando


aprofundar a reflexão sobre os procedimentos provenientes das suas ações
artísticas e formativas. Essa reflexão vem colaborando para investigações
sobre abordagens metodológicas das Danças, sob diversos aspectos: histórico,
técnico, estético, coreográfico e político. Debruçamo-nos sobre as mudanças
nos processos de criação e nos meios em que nos valemos para formar

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

elencos e outros que participam deste espaço artístico, educativo e político da


Dança. Assim, pretendemos ressaltar uma corpografia46 afrodescendente que
emana da experiência prática de seus participantes. Como traz a autora:
Ainda neste contexto de espaços não formais de formação em dança,
tem chamado à atenção a atuação de grupos e coletivos que se
organizam em espaços alternativos, com arranjos fora dos padrões já
reconhecidos e mencionados. Espaços diversos e inusitados estão se
transformando em locais onde acontecem aulas oficinas e cursos de
dança: pode ser no quintal, na sala, garagem de casa, na praia, na
residência universitária, na igreja, na praça, na rua, na sala de uma
escola. São nestes espaços que as jovens mulheres educadoras têm
iniciado seus experimentos artísticos educativos em dança. Priorizam
como público de suas iniciativas, moradores de suas comunidades,
de diversos perfis que vão desde crianças, adolescentes, jovens,
adultos, terceira idade. .( ORNELLAS, 2019, p.99)

Os resultados preliminares da análise apontam para a existência,


manutenção e formas de ensino que valorizem o ser Negro, tornando-se
"quebra de fronteiras” diante do contexto e realidade sociais, ainda marcadas
pelo racismo e presentes nos espaços oficiais de poder que impõem ao Negro
barreiras difíceis de serem transpostas, mas que estão sendo evidenciadas
cada vez mais, através das lutas e questionamentos dos movimentos sociais,
como trata GOMES:
Esse movimento social trouxe as discussões sobre racismo,
discriminação racial, desigualdade racial, critica a democracia racial,
gênero, juventude, ações afirmativas, igualdade racial, africanidades,
saúde da população negra, educação das relações etino-racial,
intolerância religiosa, contra as religiões afro-brasileira, violência,
questões quilombolas e antirracismo para o cerne das discussões e
epistemológicas das ciências humanas, sociais, jurídicas, e da saúde,
indagando, inclusive , as produções das teorias raciais no século xix
disseminadas na teoria e no imaginário social e pedagógico( GOMES,
2017,P.17)

Os processos de criação, as produções, o trabalho de pesquisa e


inúmeros aspectos que envolvem as atividades, como escolha de temáticas
definidas sugerem e provocam sempre questões estéticas, políticas e raciais,
através da percepção de corpos Negros na cena, trazendo sua
história/ancestralidade para as obras e suas ações. Questões que remetem a
pessoas e comunidades, à margem do poder na sociedade, traduzida no corpo.
Já se encontra entre os estudos sobre epistemologias afro-diaspóricas no
campo da dança, importantes contribuições que subsidiam os processos pelos
46
Aqui essa palavra foi utilizada na mostra coreografia dos Cursos Livres da Escola de Dança
da FUNCEB, em 2015, trazendo como conceito o corpo que escreve sua própria história.

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

quais a Cia de Dança Robson Correia se pauta para explicitar suas estratégias
didático-metodológicas para criação de repertórios, coreografias, temáticas,
seja em nível profissional, seja para as ações educativas na comunidade, e
para colaborar no desenvolvimento desse estudo busco referencias pautadas
nas potencialidades afrodiaspórica, como o conceito mito como fundamentação
para as criações artísticas e pedagógicas, como traz SANTOS:
Meu objeto de investigação tem sido a tradição cultural e a
criatividade, porém devidamente compreendidas como expressão da
diversidade corporal dos povos que vivem no Brasil e que tem
colaborado para esse tecido social complexo, colorido, belo e tão mal
compreendido. A homogeneidade de expressão é destruidora, sendo,
por isso, indispensável compreender a pluralidade cultural brasileira (
SANTOS,2019,P.36)

Seguindo esse fluxo de reforçar os processos criativos em dança,


pensando em um corpo negro e ancestral também com a cultura afro-brasileira
diálogo nas minhas investigações artísticas/pedagógicas a partir dos arquétipos
e mitos dos deuses africanos, uma fonte inesgotável de inspiração para os
processos de criação fora do âmbito religioso e em uma perspectiva
contemporânea, uma possibilidade apontada por OLIVEIRA:

Argumento que ajo também por tradução quando me autorizo


deslocar o orixá do espaço dedicado ao culto da religião do
candomblé, apontando uma forma de entendê-lo ao tempo que
promovo interpretações/traduções de suas características para a
ação artístico-pedagógica. Ao longo do trabalho busco uma visão
crítica, enquanto não reprodutiva ou mesmo mecanicista, dos
estereótipos de movimentos que reconhecemos como “dança de
orixá”. Por esse viés de pesquisa a tentativa de reconhecer,
questionar, reconfigurar padrões já estabelecidos e codificados pela
dança afro em espaços de ensino de Salvador. (SILVA.2016,p. 67)

Os aportes conceituais acerca do que é Danças afrodiaspóricas,


também concebidas como Danças Afro e Danças Negras, referem-se, portanto,
a mesma base epistemológica de conhecimentos, mas com perspectivas que
diversos teóricos argumentam a partir de suas pesquisas. Nadir Nóbrega nos
estudos das africanidades nos blocos carnavalescos, Amélia Conrado com os
estudos da Capoeira Angola e Dança Afro: Contribuições para uma Política de
Educação Multicultural na Bahia. Estes alguns nomes e no caminhar dessa
dissertação, outras abordagens aparecerão.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

A Companhia foi fundada em uma época em que as políticas públicas de


fomento e os instrumentos de apoios eram bem restritos, contudo, atualmente
em seu percurso de uma década e meia, construiu um panorama de atividades
que resultou em 09 espetáculos: Nac- Horuc,2006, Triscou, Pegou,2007,
Ninfas,2008, Almejo,2009, Sete Mulheres e Um Pecado,2010, Homens de
Ogum,2011, Bordel, 2012 e O Leque de Oxum, 2016 e 04 projetos: Mata
Borrão,2004, Corpo em Movimento,2007 , Circuito da Dança, 2010 e Passos
da Cia, 2011. Além dessas produções, a Companhia tem no seu currículo as
coreografias: Xirê Ori,2011, Entre Nós Outras2013, Geração Cabeça Baixa,
2015 e o Festival Beirú das Artes Negras, 2019. Nesse período realizou
temporadas, diversas apresentações, cursos formativos, além de viagens
nacionais e internacionais. A equipe é sempre composta por artistas de
diversas áreas artísticas e realiza trabalhos com inúmeros técnicos da área
cultural de Salvador. Mais de 75 dançarinos e 300 alunos já passaram pela
companhia e hoje a grande maioria encontra-se atuando na área das artes, o
que potencializa a companhia como um espaço de formação, como traz
Oliveira:

A formação em Dança neste contexto sofre alterações significativas


por considerar, para além dos objetivos técnicos ligados ao
treinamento corporal de um determinado estilo de Dança, os
princípios de cidadania trazidos pelo Projeto. Tal alteração
proporciona a apreciação do conhecimento prévio oriundo dos
educandos em prol da reconfiguração de procedimentos educativos já
existentes nas práticas de Dança. A consideração dos sujeitos é
assumida então como o ponto de partida para a elaboração de planos
de aula, acompanhamento pedagógico e avaliações. ( Luiz Junior.
2018 P.19)

A concepção das produções artísticas e formativas da Cia de Dança


Robson Correia procura sempre evidenciar o entendimento da cultura
afrodiaspórica, entendendo que todas as atividades inerentes à Arte, por mais
específicas que sejam, trazem atitudes proativas às questões sociais,
pretendendo, através delas, abarcar um maior número de participantes
possível, transformando o aspecto cultural das produções em meio de
conhecimento, informação e formação para o público, além da formação,
fomentação e difusão da cultura.

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Quando assumimos que estamos dando poder, em verdade, estamos


falando na condição articulada de indivíduos e grupos por diversos
estágios de autoafirmação, autovalorização, autorreconhecimento e
autoconhecimento de si mesmo e de suas mais variadas habilidades
humanas,de sua história, principalmente,um entendimento sobre a
sua condição social e política e, por sua vez,um estado psicológico
perceptivo do que se passa ao seu redor.(BERTH.2018.p.14)

Vale salientar ainda que a Companhia, na sua trajetória, vem se


constituindo um dínamo de desenvolvimento na área artística e de pesquisa,
agregando profissionais em seu entorno. O sucesso das iniciativas vem
contribuindo para um número maior de profissionais em atividade na sua área
de atuação, uma vez que são difíceis incentivos financeiros para o mercado
cultural.

Consideração

Refletindo sobre processo de desenvolvimento, no contexto em que a


pesquisa ainda se encontra, aponto aqui alguns caminhos que estão servindo
como base para a busca de resultados do estudo e propondo parcialmente
alguns resultados que servem como estímulo para se pensar a problemática
evidenciada na formação do artista negro dentro dos espaços formais de
educação em dança.

O panorama apresentado pode fazer uma breve leitura do


desenvolvimento da educação em Dança em Salvador. Percebemos que as
universidades historicamente se configuraram em um contexto político, no qual
pessoas brancas que conduziram o processo do ensino acadêmico, tendo um
caráter epistemológico eurocêntrico, machista e centralizador e sem a
presença de pessoas negras no corpo docente, gerou, dessa maneira, um
sistema discriminatório e racista, impossibilitando o trato da epistemologia
etnicorracial em seu currículo, em um país cuja população de negros é de
55%, e em Salvador em que contingente populacional alcança 90% de
pessoas descendentes africanos.

Os espaços não formais de educação são geralmente ações realizadas


por lideranças comunitárias, militantes de movimentos sociais e representantes

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

afro-religiosos, que buscam na ideologia de suas atividades, a possibilidade de


construir uma identidade social, cidadã e educacional para crianças, jovens,
adultos e idosos, mostrando que os saberes e fazeres desses ambientes são
passíveis de articulações com os outros conhecimentos, sem sobrepor entre
eles nenhum tipo de julgamento de mérito, potencializando a formação na área,
uma vez que a Dança propicia o desenvolvimento de uma série de habilidades
e atitudes que fomentam uma nova consciência política das pessoas em que
se respeitem as contribuições da arte e culturas afrodiaspóricas.

Sendo assim, com base nos processos de investigação dos dados


coletados e apontados preliminarmente, percebemos na Cia de Dança Robson
Correia cujas atividades artísticas, educacionais e sociais que tem a
epistemologia negra como base, uma potencia na formação do corpo negro,
que faz sempre uma crítica--reflexiva de si mesma e das suas competências
cognitivas, operacionais e relacionais.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Sílvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte(MG):


Letramento, 2018.

BERTH, Joice. O que é Empoderamento? Belo Horizonte(MG): Letramento:


Justificando, 2018.

BIRIBA, Raissa Conrado. Espetáculos de dança soteropolitanos: uma


análise da cena contemporânea de obras coreográficas em Salvador/BA.
Dissertação (Mestrado - Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em
Cultura e Sociedade) Universidade Federal da Bahia, Instituto de
Humanidades, Artes e Ciências Prof Milton Santos - IHAC, Salvador. 2019

CARVALHO, José Jorge de. Encontro de saberes e Descolonizaçao: para uma


refundição ética, racial e epistêmica das universidades brasileiras. IN: COSTA,
TORRES, GROSFOGUEL (Org.) Decolonialidade e Pensamento
Afrodiaspórico- Encontros de Saberes e descolonização. Belo Horizonte:
autentica Editora, 2019. (p. 79-106)

99
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos


nas lutas por emancipação. Rio de Janeiro: Vozes, 2017.(p.17)

LUZ JUNIOR, Matias Santiago Oliveira. Balé Jovem de Salvador: uma


companhia de formação em Dança. Dissertação (Mestrado) – Universidade
Federal da Bahia, Escola de Dança, Salvador, Bahia, 2018.

ORNELLAS, Ana Claudia Andrade. Abrindo Caminhos: Jovens Mulheres no


Trânsitos entre Aprender e Ensinar Dança.Dissertação (Mestrado -
Programa de Pós-graduação em Dança) - Escola de Dança da Universidade,
Salvador(BA). 2019.

RIBEIRO, D. O que é lugar de fala?. Belo Horizonte(MG): Letramento, 2017.

OLIVEIRA, Nadir Nóbrega. Africanidades espetaculares dos blocos afros:


Ilê Aiyê, Olodum, Malê Debalê e Bankoma para a cena contemporânea
numa cidade transatlântica IN: revista REPERTÓRIO : Teatro&Dança. Escola
de Teatro. Escola de Dança. Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas.
Ano 15, n.19 (2012.2). Salvador: UFBA/PPGAC (p. 103-113)

SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e Ancestralidade: uma proposta


pluricultural de dança-arte-educação./ Inaicyra Falcão Santos. 4° Edição-São
Paulo: Terceira Margem, 2019

SILVA, Marilza Oliveira. Ossain como poética para uma dança afro-brasileira.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança,
Salvador, Bahia, 2016.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da Pesquisa-Ação. 18a ed. Cortez Editora,


São Paulo, 2011.

Entrevistas

ENTREVISTA com Lia Robatto.Entrevistador: Robson Correia Santos.13 de


Março de 2020. Meio: digital ( 1h17 min.), Salvador ( BA).

ENTREVISTA com Beth Rangel.Entrevistador: Robson Correia Santos.12 de


Março de 2020. Meio: digital ( 37 min.), Salvador ( BA).

100
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

O COLETIVO ENEGRESER E A PRESENÇA DE


EPISTEMOLOGIAS AFRO-ORIENTADAS
NA FORMAÇÃO DOCENTE EM DANÇA

Anne Caroline Ferreira Vaz (UFBA)

Introdução

Todo movimento tem um porquê. Ele diz de uma vivência em contextos


tecidos com muitas histórias costuradas entre afetos e desafetos que são
capturados simbolicamente em grafias da tridimensionalidade do corpo. A cor
grita em poéticas envolvidas na corporeidade negra de tradições ancestrais
que persistem em nos lembrar que existem diferenças e que elas devem ser
aludidas, não iludidas. A pluralidade de corpos e fazeres se apresenta cada vez
mais diversa solicitando de nós um olhar atento, crítico e reflexivo acerca da
constituição de ideias universais presentes sobre as epistemes hegemônicas.
Nesse sentido, o estudo da dança aliado ao contexto contemporâneo
diaspórico apresenta potencialidades que estão sendo manifestadas através
das experiências dos membros de organizações discentes que anunciam a
necessidade de mudança em relação à maneira como os conhecimentos estão
sendo apresentados dentro da academia.

O Coletivo EnegreSer emerge num ímpeto de representatividade dos


discentes negros do Curso de Graduação em Dança da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG). A união das demandas de cada um relacionados às
diferentes aproximações e relações com as temáticas raciais, geram o desejo
de estudar durante a formação artística/docente, referências artísticas e
educacionais em Dança que dissessem mais das experiências corporais,
sociais e afetivas e que, consequentemente, subsidiassem as demandas de
uma educação que incorpore e considere a pluralidade, sendo seus objetivos
vinculados a uma construção a partir e com a diversidade.

Ao estimular o rompimento da construção de ambientes nos quais as


correntes hegemônicas condicionem o reconhecimento de outros saberes e
acabe estabelecendo o silenciamento das corporeidades negras são
constituídas as ações do Coletivo, visando a ideia de afro-orientação seguida

101
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

pela perspectiva de SILVA (2017), na qual “consolida-se como um projeto


crítico” que estrutura e aprofunda conhecimentos das poéticas e técnicas
africanizadas, organizadas como referenciais simbólicos da construção das
identidades corporais e expressivas incentivadas sobre formas descolonizadas
de escritas de si, que compõem o corpo brasileiro.

Deste modo, cabe mencionar que a realidade na qual o Coletivo


EnegreSer atua se concebe a partir de reivindicações de um reconhecimento
não somente da presença de pessoas negras no espaço acadêmico, mas
também na existência e utilização de seus conhecimentos.

A Universidade se firma sobre uma estrutura racista que à instala em


uma posição hierárquica superior, na qual sua dinâmica é refletida em diversos
setores da sociedade, especialmente os educativos. As relações de poder
imbricadas na organização e nas escolhas das teorias e conceitos presentes
no processo de ensino e aprendizado revelam como os conhecimentos estão
sendo acomodados nos currículos e consequentemente abordados dentro das
salas de aula.

A artista, pesquisadora da dança e antropóloga Luciane Ramos Silva


(2017) relata em seu trabalho “Corpo em Diáspora: colonialidade,
pedagogia de dança e técnica Germaine Acogny” suas inquietações acerca
da presença ou ausência na estruturação de referenciais pedagógicos que
contemplem a produção de conhecimentos afro-orientados no campo da
Dança. SILVA (2017) ressalta a necessidade de pensar e usar epistemologias
que induzem o rompimento da colonialidade e apontem para ações
pedagógicas que considerem as narrativas presentes no contexto diaspórico. A
autora pronúncia:

Parece-nos importante abordar os traços coloniais que se inscrevem


na produção acadêmica de conhecimento, colocar em reflexão sua
genealogia de poderes para então percebê-los como fatores que, por
estarem introjetados nos saberes hegemônicos, impedem nos de
vislumbrar epistemologias que se relacionem com as realidades
brasileiras. Abordar a colonialidade significa também refletir sobre
como a diversidade de pensamentos tem sido acomodada nas
esferas da educação, especificamente nos cursos de graduação e
licenciatura em dança, e limitadas por formas de saber e ser que

102
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

impedem a criação de pedagogias propositoras de realidades


epistemológicas distintas das hegemônicas. (SILVA, 2017, p. 26)

O cenário que se apresenta sobre a academia indica que será


necessário um esforço em atos de alta intensidade voltados para a
desconstrução de correntes eurocêntricas, que possam causar rupturas nesse
sistema educacional, que é resistente à mudanças que apontem em direção
inversa ao embalo convencional da máquina hegemônica dos saberes.

Nesse sentido, considerando a necessidade de romper com o racismo


que se instala nas estruturas educativas que acabam por incidir sobre as
epistemes consideradas primordiais, Nilma Lino Gomes (2011) explana sobre
a reivindicação de visibilidade dos saberes que a presença de estudantes
negros e suas organizações têm trazido para a academia. Ela enfatiza como
essa ocupação carregada por uma presença consciente da negritude tem se
47
somado às ações afirmativas no sentido de trazer a demanda da presença
de outros conhecimentos, colaborando no processo de reeducação da
universidade, que pode acolher essa missão. Ela diz que:

a copresença desse sujeito e sua corporeidade, em patamar de


igualdade, em setores e espaços sociais por ele antes não ocupados
exige convivência, respeito e ética no trato com a diferença. Tudo isso
acaba por trazer uma nova leitura, outra presença e uma nova visão
do corpo negro. É também motivo de tensões e aprendizados.
Aprendizados de outras formas de ser e ver o mundo. Aprendizado
de outros saberes. Saberes que o movimento negro e os negros em
movimento trouxeram à cena pública. (GOMES, 2011, p. 49)

O Coletivo EnegreSer se apresenta como um parâmetro, a fim de


construir uma base alusiva de um público específico, preto-periférico, que
obteve acesso ao ensino superior e que através de um grupo organizado
estabeleceu o posicionamento de romper com o silenciamento ao falar da

47
Partindo de uma interpretação de GOMES (2011) se compreende as ações afirmativas como
políticas públicas e privadas que visam a correção das desigualdades históricas que atingem
especificamente alguns coletivos sociais racializados em determinada sociedade.

103
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

necessidade de descolonizar os saberes e estabelecer uma relação de


coexistência em equidade junto às demais epistemes na área da Dança.

As ações do Coletivo se voltam para uma estrutura que mescla as


vivências corporais racializadas desse grupo de estudantes à epistemes afro-
orientadas que ressaltam, especialmente, a estética negra na dança, no
sentido de sensibilizar artisticamente através de momentos formativos que
estimulem a elaboração de práticas pedagógicas de ensino e criação em
dança, bem como comuniquem a importância desses saberes, a fim de
evidenciar mudanças positivas no sentido de descolonizar processos
formativos.

A teórica feminista, professora e ativista social Bell Hooks (2013), diz


que “a sala de aula continua sendo o espaço que oferece as possibilidades
mais radicais na academia”. É diante desse cenário que é apresentado nesta
narrativa uma perspectiva sobre as ações do Coletivo EnegreSer,
reconhecendo os sentidos de alteridade e autonomia empregadas pelos seus
membros de modo relevante, ao ponto de se estabelecerem como uma
referência em potencial para a pesquisa voltada para a concepção de didáticas
afro-orientadas de dança.

O Coletivo EnegreSer e o uso de epistemologias afro-orientadas na dança

O trato com o corpo negro dificilmente é ligado às práticas de cuidado e


sensibilidade, e quando o consideramos no âmbito da ação artística não é
diferente. Aspectos da presença e apreciação estética do corpo negro não são
apresentadas ou estimuladas em sua prática, a inexistência da apresentação
de aspectos ligados a plasticidade artística relacionada a corporeidade negra,
acaba por pairar nos ares onde se respira arte em dança.

Motivado pelas ausências sentidas durante a Graduação em Dança de


referenciais, justamente, sobre a estética negra na dança colocadas de forma

104
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

descolonizada, o Coletivo EnegreSer48 é o agrupamento de discentes negros


organizados sob uma perspectiva de autoconhecimento em cuidado sobre o
prisma das ressignificações da negritude na diáspora.

Baseando no intuito de mostrar a existência de corpos negros no espaço


acadêmico, de instigar questionamentos acerca das práticas pedagógicas
presentes no ensino e na criação em dança e de colaborar na busca de
materiais que pudessem fomentar a desconstrução das correntes
hegemônicas, ao mesmo tempo, em que ocorra a estruturação da
descolonização dos saberes voltadas, especialmente, para o campo da Dança,
o Coletivo desenvolve desde o ano 2016 ações artísticas-pedagógicas dentro e
fora da UFMG com o objetivo de apresentar modos não-hegemônicos de
produção de conhecimentos estéticos-expressivos no campo das Artes-Dança
e Educação.

Dentre os seus propósitos a organização propõe pensar os reflexos da


colonialidade sobre as didáticas de dança presentes na formação realizando a
denúncia e superação dos apagamentos, invisibilidades e epistemicídios.
Direcionando o seu fazer seguindo uma perspectiva que vem de encontro com
a visão de SILVA (2017) que traça um caminho que questiona e apresenta os
motivos de ações padronizadas na fruição em dança, se referindo também, da
legitimação de outras perspectivas de práticas que apresentem referências
afro-orientadas. A autora aponta a necessidade de que haja percepções do
cenário social que possam suscitar novos fazeres, como trata a passagem:

existem contextos sociais ligados à história do país que reverberam


na realidade das estruturas de instituições e no imaginário social.
Assim as ideologias são praticadas e incorporadas em currículos, em
espetáculos, em workshops e não correspondem apenas a formas
abstratas de consciência. As estruturas de fruição estão
profundamente influenciadas por essas percepções. Em um país
como o Brasil, onde elogia-se a diferença mas evita-se discuti-la
criticamente, apresentar essas relações conflituosas nos possibilita
quebrar o silenciamento dos corpos, provocando um debate que
mobilize os agentes de pensamento contemporâneo em dança. Trata-
se de recontextualizar formas de educar o corpo comprometidas com

48
O Coletivo EnegreSer, atualmente, é configurado por André Sousa, Anne Caroline Vaz e Eli
Nunes e Julia Martins. Em sua gênese contou também com as contribuições de Maira
Rodrigues e Nayara Almeida.

105
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

perspectivas que reconheçam as histórias, trajetórias e culturas


corporais ao mesmo tempo em que interroguem as estruturas
pedagógicas de dança. (SILVA, 2017, p. 76)

Os mecanismos hierárquicos, presentes no cenário que estrutura o


processo educacional em nosso país, conduzem a pessoa negra a rejeitar o
próprio corpo. Esse artifício faz parte dos processos educativos presentes nas
instituições da seara educacional que articula o compartilhamento de saberes a
partir de gênero e raça, estabelecendo uma dinâmica que contribui para a
manutenção da hegemonia normativa que trabalha a partir de estratégias que
estabelecem processos de regulamentação dos corpos.

Essa atitude revela uma paisagem na qual a cor da pele se estabelece


como critério seletivo do que é considerado relevante ou não. Desse modo, a
abordagem no discurso enfatizando o contexto no qual ocorre a formação
docente em dança no ensino superior e que revela a necessidade da
descolonização das práticas pedagógicas, visa mostrar a urgência em se tratar
temáticas que destaquem saberes fora das correntes hegemônicas e utilizem
autores cujos trabalhos abordam Epistemologias do Sul49, conforme propõe
SANTOS (2010).

O curso de Graduação em Dança da UFMG teve seu início no ano de


2010 com a entrada da primeira turma. Se estabelecendo como um curso
Reuni50 essa graduação tem como princípio o acolhimento de pessoas diversas
com o intuito de desenvolver capacidades artístico-docentes na área da Dança,

49
Entende-se que Epistemologias do Sul é uma teoria epistêmica apresentada por Boaventura
de Sousa Santos (2010) que denuncia o sistema que sustentou a hierarquização epistêmica
moderna. Um sistema que se desenvolveu com a exclusão e o ocultamento de conhecimentos
dos povos e culturas, que ao longo da história foram dominados pelo capitalismo e pelo
colonialismo. A finalidade das Epistemologias do Sul passa, primeiramente, por um
reconhecimento das epistemes desses povos marginalizados, seguida pela propositiva que
exista um diálogo entre os conhecimentos procurando ressaltar saberes calados.
50
Reuni é o programa de apoio à Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
instituído pelo Decreto no 6.096, de 24 de abril de 2007 e tem o objetivo de criar condições de
expansão física, acadêmica e pedagógica do ensino superior. Cabe falar que o Reuni é uma
das ações que integram o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) e hoje se configura
como um dos responsáveis pelo aumento substancial do número de vagas nos cursos de
graduação, bem como a ampliação da oferta de cursos noturnos, a promoção de inovações
pedagógicas e o combate à evasão. Esses itens que também se constituem como metas do
programa têm o propósito de diminuir as desigualdades sociais no país.

106
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

de modo que, seus estudantes, futuros educadores, possam ocupar o papel de


professores na educação básica. Assim, considerando tal premissa é possível
declarar que a Licenciatura em Dança da UFMG tem em sua natureza o âmago
do acolhimento das diversidades, porém ocorre a existência de um impasse
provocado pela recepção de toda abundância de histórias trazidas pelos corpos
dançantes, que ocupam como discentes o espaço da sala de aula.

No currículo da graduação estão presentes uma série de disciplinas


teórico/práticas que acabam por nortear a construção e fixação dos
conhecimentos da Dança pelos estudantes. No entanto, a ausência de
epistemologias afro-orientadas na prática pedagógica é exposta a partir do
momento em que é percebido o desconhecimento da existência de tais teorias
do conhecimento por parte do corpo discente, ao ponto, dessa característica
ser um fator motivacional para o surgimento do Coletivo EnegreSer.

Entende-se por afro-orientada a perspectiva que critica a universalização


de teorias concebidas pela modernidade europeia/ocidental, através de “um
pensamento que teoriza a presença negra na criação de formas, valores,
histórias e símbolos” (SILVA, 2017), reconhecendo os aspectos oriundos da
experiência africana no mundo sem estabelecer um pensamento exclusivista e
essencialista das civilizações africanas. Isto é, propõe-se refletir e reconhecer a
diáspora africana no mundo em seu processo de existência, transformação,
interação e atuação no trânsito com outras culturas, mas que se mantêm,
primordialmente, orientada por formas, valores, histórias e símbolos africanos.

Pensando em uma perspectiva de pedagogia de dança a afro-orientação


não denota uma assunção a qualquer resgate obrigatório de genealogias
concernentes a determinados corpos. Trata-se de abrir possibilidades para que
estudantes se reconheçam em diversas estéticas. Portanto, a abordagem de
epistemes afro-orientadas na constituição de didáticas, objetiva refletir sobre as
relações, dinâmicas e intersecções culturais, bem como as experiências
coletivas orientadas, organizadas e concebidas na experiência africana na
diáspora.

107
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Dessa forma, espera-se que a ação pedagógica na dança considere,


atentando-se para uma perspectiva afro-orientada, que à medida que se
trabalha com elementos ligados a corporeidade negra e a sua valorização, seja
favorável em trabalhos conduzidos que estimulem o educando a tomar
consciência do seu ser no mundo e para o mundo, evidenciando a
compreensão de uma singularidade histórica que torna possível consolidar
vivências de suas memórias gestuais, promovendo, ao mesmo tempo, de
forma fluida uma abertura que facilite a interlocução com outras técnicas e
tradições de maneira sensível e respeitosa. Essa intenção dentro do
planejamento das didáticas pedagógicas é referida por Inaicyra Falcão dos
Santos na seguinte passagem:

É importante mostrar que, embora trilhemos um contexto social com


valores culturais, é crucial, desde o início, a definição, na medida do
possível, dos territórios, das diferenças históricas do ser humano, na
sala de aula e consequentemente no mundo. A minha aspiração, com
essa visão, é de conscientizar, vivenciar e respeitar a diversidade
plural da qual fazemos parte. É desmistificar estereótipos, ampliando
horizontes, apontando assim, pacientemente, para um novo espaço.
(SANTOS, 2002, p. 48)

Dentre os muitos desejos, o Coletivo EnegreSer se manteve focado em


um fazer inscrito sobre uma ótica construída através de um trabalho iniciado
pela pesquisa em Dança. Essa ação reverberou apresentando oportunidades
que possuem a força educativa de demonstrar que a racialidade é uma
possibilidade real na constituição de saberes e fazeres no espaço acadêmico,
sendo essa premissa direcionada para uma perspectiva específica de luta
comprometida com mudanças estruturais.

O ensino superior, assim como os demais níveis de ensino, tende a ter


uma perspectiva tradicionalista, valendo-se da centralização da figura do
professor enquanto guia mestre que concentra as escolhas epistemológicas
que direciona sua prática pedagógica e conduz os processos de ensino-
aprendizagem.

Essa premissa revela uma hierarquia das relações na qual é possível


evidenciar que os estudantes têm pouco ou quase nenhum espaço de

108
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

proposição e protagonismo estudantil, quando se refere na participação de


escolhas das abordagens epistêmicas, que aplicadas ao ensino da dança
podem atingir a experimentação, a criação e a fruição em arte. Porém há
propostas que demonstram interesse de implementar e viabilizar uma outra
configuração nas experiências educacionais formativas, que apresenta uma
perspectiva no qual as relações deixem de ser hierarquizadas verticalmente, e
apresentem uma inclinação, tornando-se mais democráticas à medida em que
se aproximam de uma horizontalidade e se tornem mais democráticas.

O caráter formativo docente do curso de dança da UFMG permite ao


discente realizar uma busca identitária autônoma do fazer artístico. Essa
abertura para os integrantes do EnegreSer canalizou a ação em insurgente
destreza de se movimentar por entre as frestas trazendo para o debate a
necessidade e importância dessa investigação aplicada através de uma
perspectiva descolonizada sobre a estética e corporeidade negra,
demonstrando o desenvolvimento de uma consciência pedagógica discente
cuja construção da prática se apresenta de modo amplo e atento, no sentido de
desenvolver propostas de empoderamento emancipatório. SILVA (2017) apud
FREIRE (1980) que fala:

Educar significa empoderar para promover a mudança, de modo que


a conscientização leva a uma consciência crítica que reverbera em
posição epistemológica. (SILVA, 2017, p. 93)

A proposta do Coletivo EnegreSer se firma em adentrar e se movimentar


nas fissuras, no sentido de realizar ações organizadas sob conceitos-chave a
fim de mostrar não somente a existência de conhecimentos contra-
hegemônicos na academia, mas também sua articulação com o campo da
Dança para iniciar um processo de sensibilização e compreensão de estudos
em arte com uma proposição afirmativa.

Os estudos e propostas do Coletivo estão compenetrados em


perspectivas negras, afro-brasileiras, africanas e diaspóricas, ou seja,
experiências não eurocêntricas que contribuam na sistematização e elaboração
de outras epistemologias sobre o corpo, a arte e a dança; e que

109
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

consequentemente debata, de maneira sóbria, propositiva e reflexiva o


racismo, o colonialismo e as formas de apagamentos e invisibilizações dos
conhecimentos produzidos no continente africano e em suas diásporas.

As propostas desenvolvidas pretendem oferecer, a partir de uma


perspectiva afro-orientada, formação inicial e continuada a professores,
estudantes, artistas e público em geral que tenha interesse em Arte através de
propostas fundamentadas em duas abordagens da arte-educação, são elas:
Professor-Artista-Pesquisador e Abordagem Triangular.

O professor, em nossa concepção, não se restringe a apenas lecionar


sobre o tema artes. Acreditamos em um profissional que congrega multifaces
artísticas, neste caso, o lecionar, o criar e o investigar, por isso designamos
“Professor-Artista-Pesquisador” de acordo com Lúcia Pimentel (2011):

O artista tem como uma de suas prerrogativas ser errante de ideias e


processos. O ensino tem por norma ser uma forma sistematizada, sob
o controle de um professor. O pesquisador tem por obrigação ir a
fundo nas questões que investiga. Ser artista-professor-pesquisador
exige investimento constante em cada uma dessas ações. Tendo
como premissa que para ser professor de Arte é necessário ter uma
prática artística e atividade de pesquisa, o trabalho de formação
desse professor reveste-se de complexidade e importância
redobradas. (PIMENTEL, 2011, p.765)

Portanto, ao propormos nossas ações não perdemos de vista a


unicidade de ser Professor-Artista-Pesquisador, nem a complexidade que isso
envolve em um processo formativo. Sendo assim, privilegiamos espaços e
situações que despertem este Professor-Artista-Pesquisador, sensibilizando-o
para questões pedagógicas, estéticas, apreciativas e possíveis funcionalidades
e aplicabilidades em uma perspectiva diaspórica negra.

Na Abordagem Triangular de Ana Mae Barbosa (1995), temos um aporte


teórico-metodológico de onde emana a nossa proposição metodológica. A
Abordagem Triangular consiste na interdepende de três fases que a autora
destaca para o ensino-aprendizagem de Artes: Fazer, Contextualizar e
Apreciar. Por meio das reflexões de Isabel Marques (2010), educadora de

110
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

dança, observamos cada uma das três fases da Abordagem Triangular,


pensando-as a partir e aplicada a Dança.

A partir dessas fases o Coletivo EnegreSer desenvolveu três eixos


formativos: o eixo Formação estética-expressiva; o eixo Formação inicial e
continuada docente; e o eixo Formação de público. Por meio deles o público
interessado poderá Fazer, Contextualizar e Apreciar de modo a experienciar e
ampliar seus conhecimentos estéticos, de mundo e da humanidade em contato
com a Arte Negra.

A Formação estética-expressiva, almeja compartilhar conhecimentos da


“Corporeidade Negra” (Gomes, 2017) para além dos estereótipos e
folclorizações das culturas, saberes e conhecimentos produzidos e acumulados
pelas comunidades negras, para isso oferecemos workshop e oficinas de
dança elaboradas e sistematizadas tendo como princípio as culturas negras.

A Formação docente inicial e continuada, busca satisfazer a carência da


formação pedagógica e docente dos cursos de licenciatura, em especial o de
Dança, que ainda não implementaram de maneira sistemática e regular a
abordagem de epistemologias afro-orientadas em sua didática, portanto,
compartilha-se estudos, pesquisas teórico-práticas relacionados a concepções
conceituais concebidas sobre a negritude por meio de palestras, seminários,
rodas de conversa, etc.

E por fim a Formação de público, dedica-se a apresentar trabalhos


artísticos concebidos sob a perspectiva afro-orientada com o intuito de criar
uma rede de consumo e apreciação da Arte Negra, enfatizando a sua
configuração e potencialidade como Arte/Dança alastrando os perfis de público
para essa estética, viabilizando o acesso das produções.

A estrutura na qual se organiza as ações do EnegreSer, enfatiza que


tocar no tema da colonialidade impõe-nos a reflexão sobre como a diversidade
de pensamentos tem sido acomodada nas esferas da educação em dança. Ao
trazer a perspectiva afro-orientada para o trabalho desenvolvido pelo Coletivo
EnegreSer, pretende-se oferecer uma proposta reflexiva de educação do corpo
em relação à potência estética e poética presente nas diversas tradições e

111
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

contemporaneidades pautadas pelas formas africanizadas de escritas de si,


que valorizam didáticas elaboradas além e nas frestas dos cânones que
monopolizaram por séculos as noções epistemológicas nas diversas áreas do
conhecimento.

Considerações Finais

A corporeidade negra é moldada a partir da confluência de várias


características estéticas e culturais que acabam por constituir o sujeito. Dentro
dessa perspectiva, é pertinente ressaltar que o corpo negro que dança possui
especificidades que podem passar, em um primeiro momento, por uma
afirmação de cor, que, por conseguinte, é movido à ação da insurgência frente
às mazelas colocadas pelo racismo, de modo, que o sujeito se coloque de
forma (re)existente perante a sociedade, sendo esta uma condição que se dá
independente do grau de negrura da pessoa negra.

Considerando esses aspectos, cabe dizer a perspectiva de GOMES


(2011), que coloca a corporeidade negra enquanto processo emancipatório e
local de construção de conhecimentos, na medida em que as relações
identitárias são atravessadas de maneira tensa e dialética pela luta contra o
racismo. A autora diz, que:

o corpo negro pode ser entendido como existência material e


simbólica do negro em nossa sociedade e também como corpo
político. É esse entendimento sobre o corpo que nos possibilita dizer
que a relação do negro com a sua corporeidade produz
saberes/conhecimentos. (GOMES, 2011, p. 52)

A professora doutora da Escola de Dança da Universidade Federal da


Bahia – UFBA, Amélia Vitoria de Souza Conrado avalia que a presença de
epistemes arquitetadas por uma intelectualidade negra tem sua presença
reivindicada por estudantes no espaço acadêmico, ao mesmo tempo, em que,
a relevância dos conhecimentos negros tem sido duramente argumentada em
favor de seu uso e reconhecimento nesse espaço científico.

112
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

A presença de estudantes negros em todas as áreas de


conhecimento no cotidiano das universidades brasileiras, sobretudo
após a conquista do acesso pela política de cotas, tem obrigado os
campos de formação a dialogar com referências que possam
responder às questões colocadas por seus protagonistas nesses
ambientes. (CONRADO, 2017, p. 68-85)

A compreensão do sentido de coletividade embutida nos fazeres entre


os estudantes membros do coletivo estudantil se fizeram presentes na
Universidade estabelecendo com o convívio um espaço de cuidado,
acolhimento e diálogo. A corporeidade negra se fez presente com os eventos
organizados pelo EnegreSer colocando de forma respeitosa dentro da
Graduação em dança da UFMG o emprego da necessidade de uma discussão
sobre as ausências e diferenças necessárias para um entendimento da
colonialidade que age sobre as práticas educativas e que atingem diretamente
o corpo negro dentro das instituições educacionais.

Nessa direção que aponta as conexões entre identidade negra, espaços


sociais e diálogos descolonizadores, Sueli Carneiro (2005) aponta que a junção
entre negras e negros vem como fruto de um cuidado que passamos a ter após
a tomada de consciência de nossa negritude que se amplia refletindo nos
demais:

No processo de sua construção dessa visão do cuidado de si, o


sentido de pertencimento a uma causa, decorre, nos relatos das
testemunhas, do papel dos pares na construção da consciência racial
como instrumento de luta política voltada para a emancipação
coletiva. (CARNEIRO, 2005, p.303)

O lugar de marginalidade que ocupa os conhecimentos afro-orientados


pode e deve ser superado na sociedade. O uso criativo do fazer pedagógico
direcionado a desenvolver práticas das teorias e pensamentos que reflitam os
diferentes espaços e perspectivas podem fomentar propostas que atendam à
pluralidade dos corpos na dança. RIBEIRO (2017) fala que “ao ter como
objetivo a diversidade de experiências há a consequente quebra de uma visão
universal”.

113
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Em seu trabalho SILVA (2017) relata sobre a concepção de fazeres


únicos que corroboram para uma ação composta por “artimanhas” do corpo
negro visando o sentido de visibilidade e aceitação, e coloca a necessidade da
desconstrução da ação pedagógica de forma questionadora, apontando
traçados que podem ser estruturantes de uma nova prática.

Agir tendo em vista a colonialidade do gesto relacionada à prática


pedagógica exige desconstruir pensamentos e práticas questionando
os lugares comuns instituídos como normalidade e profetizados como
únicos, dentro de epistemologias legitimadas por saberes euro-
orientados. [...] a colonialidade é uma ordem complexa entranhada
nas estruturas educacionais. Fissurar as engrenagens que a
disseminam parece ser um caminho eficiente para o enfrentamento
das matrizes coloniais. Essa desconstrução só é possível se
entendemos pedagogia de maneira plural, como prática que
questiona os conceitos estabelecidos, como método que conecta
solidariedades e se vincula às nossas realidades. (SILVA, 2017, p.
93)

O curso de dança da UFMG optou por iniciar a partir de uma ruptura


com intuito de ampliar acessos, visões e experiências, mas ainda se faz
necessário incluir na ação pedagógica a desconstrução de aspectos pautados
sob a lógica colonial e refazer amarrações nas encruzas onde o antigo e o
novo se conectam na ação de fruir em dança de acordo com a totalidade da
noção de corpo na contemporaneidade.

Com a proposta do Coletivo EnegreSer foram percebidos no curso de


Dança da UFMG os sentidos de alteridade e autonomia que um discente pode
aplicar a sua trajetória formativa, congregando estímulos presentes entre seus
iguais para fomentar ações de interesse público. Nesse sentido, GOMES
(2011) afirma que:

esse tipo de movimento produz discursos, reordena enunciados,


nomeia aspirações difusas ou as articula, possibilitando aos
indivíduos que dele fazem parte reconhecerem-se nesses novos
significados. Abre-se espaço para interpretações antagônicas,
nomeação de conflitos, mudança no sentido das palavras e das
práticas, instaurando novos significados e novas ações. (GOMES,
2011, p.44)

114
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

O posicionamento sugerido pelo Coletivo EnegreSer dentro do curso de


Dança da UFMG de romper com o silenciamento, ao falar da necessidade de
descolonizar os saberes e estabelecer uma relação de coexistência, no qual,
seja concedido um patamar de equidade aos saberes afro-orientados na área
da Dança, vem como um incentivo para estabelecer ações cujo protagonismo
estudantil seja uma via de estímulo e influência que aponta para o rompimento
das práticas enraizadas sobre epistemes hegemônicas presentes na
universidade. Trata-se de considerar, dentro do amplo território de conceitos e
métodos legitimados pelo campo da pesquisa e formação em dança,
pedagogias alternativas constituídas em torno de determinadas leituras sobre a
experiência africana na diáspora, sendo estas, colocadas de forma horizontal
junto das terminologias eurocêntricas.

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116
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

ERÉ EKO:
JOGOS EDUCATIVOS

Lorena Conceição Moreira de Oliveira (UFBA)

O racismo nosso de cada dia

Se faz urgente falar sobre questões étnico-raciais no ambiente escolar.


Durante anos a cultura africana e afro-brasileira foi invisibilizada e/ou
marginalizada em nossa sociedade, como resquícios da escravidão no Brasil, a
que foram submetidos os(as) nossos(as) ancestrais africanos(as).

As escolas enquanto espaços de construção e difusão do conhecimento,


tem a obrigação de desconstruir o racismo que exclui, deturpa, rejeita, violenta
e destrói a história e cultura de um povo, introjetando em suas mentes a
inferiorização, a desvalorização e o complexo por não pertencer ao padrão
hegemônico imposto pelo eurocentrismo.

A partir da lei 10.639/03 que trata sobre a obrigatoriedade do ensino da


história e cultura africana e afro-brasileira na Educação Básica, avançamos
parcialmente em relação à estas questões, mas a aplicabilidade da referida lei
ainda é insuficiente, e necessita com urgência de ações realmente efetivas, de
modo que a educação antirracista seja uma realidade nas escolas brasileiras.

O racismo é extremamente perverso e violento, e no ambiente escolar é


facilmente percebido, desde as “brincadeiras” discriminatórias por parte dos(as)
próprios estudantes, até a ignorância, despreparo e omissão por parte de
alguns profissionais que ali atuam.

De acordo com Almeida (2019):

O racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça


como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas
conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou
privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual
pertençam. (ALMEIDA, 2019, p.22)

Crianças e adolescentes que sofrem racismo na escola tendem a


desenvolver baixa autoestima, dificuldades na aprendizagem e inabilidade no

117
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

convívio social, pois se sentem desvalorizados(as), menosprezados(as) e


excluídos(as), neste espaço que deveria ser de aprendizagem, união, respeito
e difusão de conhecimento.

É a partir dessa grande lacuna sobre tudo o que diz respeito às questões
que envolvem a negritude no ambiente escolar, que desenvolvo a minha
pesquisa em busca de ações que favoreçam um empoderamento infantojuvenil
a partir das diversas estéticas dos corpos negros.

A importância dos jogos na educação

Dentre as ações elaboradas está Eré Eko (livre tradução para jogos
educativos em yorubá), um combo com dois jogos afro-educativos que eu
desenvolvi conjuntamente com os(as) estudantes da comunidade escolar onde
leciono.

É sabido que os jogos sempre tiveram um papel pedagógico relevante


nos processos de ensino-aprendizagem, pois através deles a criança pode
assimilar e compreender melhor a realidade e interagir com o mundo ao seu
redor.

Segundo a professora Gisela França (1995), através do jogo as crianças


“podem exercitar seu autocontrole, ao serem obrigados, durante a ação do
jogo, a adaptar suas próprias ações às do companheiro e ao tema do jogo.”

De acordo com Huizinga (2000), em sua obra Homo Ludens o jogo é:

[...] uma atividade livre, conscientemente tomada como “não-séria e


exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o
jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo
e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer
lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios,
segundo uma certa ordem e certas regras” (HUIZINGA, 2000,p. 13).

O jogo (de cartas, de desenhos, de danças, de pedras, e etc) é um


recurso pedagógico que utilizo bastante em minhas aulas de dança, em
atividades dinâmicas que trabalham o aquecimento corporal, a coordenação
motora e o ritmo; e desenvolvem a criatividade, o raciocínio e o
autoconhecimento, a partir da representatividade.

118
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

E falando em representatividade, destacarei mais um trecho que


considero importante da obra de Huizinga (2000), que fala sobre
representação, e que está diretamente ligada à representatividade no sentido
de complementaridade, como por exemplo, na execução de ações afirmativas
de reparação étnico-racial. Segundo ele, a função do jogo:

Pode de maneira geral ser definida pelos dois aspectos fundamentais


que nele encontramos: uma luta por alguma coisa ou a representação
de alguma coisa. Estas duas funções podem também por vezes
confundir-se, de tal modo que o jogo passe a “representar” uma luta,
ou, então, se torne uma luta para melhor representação de alguma
coisa. (HUIZINGA, 2000, p.14)

Eré Eko é um kit composto por dois jogos afro-educativos: Ere Iranti
(Jogo da Memória), e Ere Domino (Jogo de Dominó). Para a construção do Ere
Iranti, fiz um apanhado de figuras importantes da cultura baiana, atuantes na
sociedade, apresentei em slide para as alunas e alunos do 3° e 4° anos,
imprimi as imagens e coletivamente recortamos e colamos em pedaços de
papelão as personalidades negras escolhidas. Assim construímos o nosso
jogo. Eré Eko foi uma das possibilidades que encontrei para abordar a questão
da representatividade negra com os(as) estudantes.

Representatividade, afrocentricidade e empoderamento

Falar sobre representatividade negra é também falar sobre memória. E


memória é parte fundamental na cultura africana, a exemplo dos(as) griôs, e
das religiões de matrizes africanas. Através de ambos, a valorização e o
respeito à memória, é peça chave para a manutenção e atualização do
conhecimento e tradições africanas na África e na diáspora.

Com o Ere Iranti, as crianças de forma lúdica tiveram a oportunidade


através das imagens dos negros e negras presentes no jogo, de se
reconhecerem, se divertirem, e principalmente de constatarem que apesar de
todo o racismo existente, é possível sim, pessoas negras ocuparem posições
de destaque na sociedade. Sobre representatividade negra, a professora
Vanda Machado nos diz que:

119
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

[...] as crianças negras carecem de um olhar diferenciado. Um olhar


que contemple a sua beleza do jeito como ela é. As crianças negras
crescem tomando tapas na alma. Não fomos rainha do milho. Não
fomos rainha da primavera. Votávamos em rainhas que não nos
representavam: rainha do milho, rainha da primavera, rainha do
grêmio. (MACHADO, 2017, p.34).

O Eré Eko contribui de forma lúdica para uma educação antirracista, que
está diretamente ligada à uma educação afrocentrada.

Sobre o termo afrocentricidade, os principais autores que norteiam a


minha pesquisa são os professores e filósofos Molefi Kete Asante, Renato
Noguera e a socióloga Elisa Larkin. Segundo o criador do termo
afrocentricidade, o professor Asante:

A Afrocentricidade é um tipo de pensamento, prática e perspectiva que


percebe os africanos como sujeitos e agentes de fenômeno atuando
sobre a sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios
interesses humanos (ASANTE, 2009, p. 93).

Quando Asante fala em africanos, significa negros e negras em África e


na diáspora. É a noção de pertencimento enquanto povo preto. É ser e se
identificar como negro(a), é ter orgulho de sua história e cultura ancestral.

Tanto Asante, quanto Noguera e Larkin, afirmam a afrocentricidade como


a percepção dos africanos como sujeitos e agentes de sua própria imagem
cultural, de acordo com as suas próprias perspectivas. Segundo Noguera:

Afrocentricidade consiste num paradigma, numa proposta epistêmica


e também num método que procura encarar quaisquer fenômenos
através de uma devida localização, promovendo a agência dos povos
africanos em prol da liberdade humana. (NOGUERA, 2010, p.2)

Elisa Larkin afirma que:

Longe de sustentar-se em conceitos biológicos de raça, a


afrocentricidade parte da afirmação de que a compreensão dos
fenômenos se articula e ganha contornos especiais de acordo com a
identidade do sujeito, o seu centro (LARKIN, 2009, p.181)

Este kit de jogos afro-educativos que eu desenvolvi, foi pensado com o


objetivo de visibilizar a cultura negra e favorecer um empoderamento por parte
dos(as) estudantes negros(as), sobre suas próprias negritudes, a partir da
identificação étnico-racial com as referências negras apresentadas, ou seja,
criar mecanismos emancipatórios para os(as) estudantes no re(conhecimento)

120
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

de suas ancestralidades afro-brasileiras. Além disso, o Eré Eko incentiva a


prática de valores humanos como o respeito à diversidade étnica, por parte
dos(as) estudantes não negros(as), contribuindo efetivamente para uma
educação antirracista.

Sobre o termo empoderamento, palavra bastante utilizada na atualidade


para exprimir o ato de dar poder a alguém, citarei a escritora Joice Berth em
seu livro Empoderamento, da coleção Feminismos Plurais. Nele, a autora
afirma que:

No Cambridge Dictionary, dicionário da britânica Universidade de


Cambridge, a palavra empowerment, termo cunhado pelo sociólogo
estadunidense Julian Rappaport em 1977, tem o seguinte significado:
“o processo de ganhar liberdade e poder para fazer o que você quer
ou controlar o que acontece com você”. Da mesma forma, a palavra
“empoderamento”, ao pé da letra, significa dar poder ou capacitar.
Para o sociólogo, era preciso instrumentalizar certos grupos
oprimidos para que pudessem ter autonomia (BERTH, 2019, p.23).

E completa dizendo que:

Empoderar, dentro das premissas sugeridas, é, antes de tudo,


pensar em caminhos de reconstrução das bases sociopolíticas,
rompendo concomitantemente com o que está posto, entendendo ser
esta a formação de todas as vertentes opressoras que temos visto ao
longo da História (BERTH, 2019, p.19).

Neste sentido, o Eré Eko contribui para uma educação afrocentrada, ou


seja, uma educação que traz o(a) estudante negro(a) para dentro da sua
própria história, para ser o centro da sua história, (re)conhecendo suas
referências culturais sob uma perspectiva própria, vista por ele(a) mesmo(a), e
não contada por terceiros(as). Uma educação que favorece o empoderamento
infantojuvenil em relação às diversas estéticas do corpo negro.

Estéticas negras na escola

Falar das estéticas do corpo negro é falar da cultura, ancestralidade e


identidade negras que foram marginalizadas ao longo da história, pelo
eurocentrismo. Resgatar os padrões de beleza do corpo negro é reeducar o
olhar através de uma educação estética orientada para o respeito à diversidade
étnico-racial.

121
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Sobre isso, Nilma Lino Gomes afirma que:

O racismo, com sua ênfase na superioridade racial, ajuda a construir


no imaginário social a crença de que é possível hierarquizar os
sujeitos e seu corpo. Nessa perspectiva, o negro é visto como
pertencente a uma escala inferior. Produz-se, nesse contexto, um tipo
de violência que impregna a vida de suas próprias vítimas, a ponto de
se constituir em representações negativas do negro sobre si mesmo e
seu grupo étnico/racial. (GOMES, 2019, p.146)

É imprescindível que se desenvolva no ambiente escolar um trabalho


que valorize as características físicas e culturais afro-brasileiras, como por
exemplo o fenótipo (cor da pele, textura dos cabelos, formato do nariz e lábios);
a religiosidade de matriz africana (candomblé, umbanda); e as indumentárias
tradicionais (batas, turbantes, saias e vestidos coloridos com padrões gráficos
africanos); a fim de que tais padrões estéticos sejam igualitariamente
respeitados na sociedade brasileira.

A escola como local de construção e difusão do conhecimento, tem o


dever dentre outras coisas, de orientar o seu corpo discente para o respeito à
diversidade cultural e étnica, e valorizar e visibilizar os grupos étnico- raciais
que até pouco tempo tinham as suas trajetórias e os seus legados
marginalizados por uma sociedade pautada no eurocentrismo.

Jogos afro-educativos como o Ere Iranti e o Ere Domino, auxiliam os (as)


estudantes de forma lúdica, a compreenderem e sentirem orgulho da sua
ancestralidade afro-brasileira; bem como proporcionam uma melhora na
autoestima a partir da representatividade e noção de pertencimento que
aquelas personalidades negras apresentadas nos jogos lhes despertaram.

Na minha comunidade escolar, onde a maioria das crianças é pobre e


preta, ver negros e negras em destaque na sociedade, é de suma importância
para desenvolver nestas crianças a autoconfiança que elas necessitam para
acreditarem que podem e devem algum dia ocupar esse mesmo lugar de
destaque, tanto quanto qualquer outra pessoa não negra.

Na construção do Ere Iranti, a escolha das personalidades negras


ocorreu de maneira espontânea, ou seja, os (as) estudantes escolheram os

122
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

negros e negras que se identificavam, independentemente do seu engajamento


político acerca de questões étnico-raciais.

Foi importante deixá-los (as) livres para fazer estas escolhas, mas, a
partir do desenvolvimento da atividade, percebi que, uma personalidade negra
sem envolvimento com as questões relacionadas à negritude, apesar de ser
importante no que diz respeito à representatividade e à posição de destaque
social na qual se encontra, é insuficiente para efetivar um trabalho de
consciência e valorização da cultura afro-brasileira.

Baseada neste fato, para a construção do Ere Domino, escolhi


personalidades negras brasileiras e estrangeiras com atuações relevantes em
relação a tudo o que diz respeito à história e cultura do povo negro.

Em ambos os jogos haverá um manual de instrução orientando não só o


modo de se jogar, como também explicando de maneira efetiva e de fácil
entendimento, quem são as personalidades negras presentes no jogo, e quais
as suas contribuições socioculturais no combate ao racismo. Dessa forma, ao
mesmo tempo que o (a) estudante se diverte; aprende um pouco mais sobre a
cultura negra, tão marginalizada e invisibilizada pela mídia eurocêntrica.

Com o Ere Iranti, percebi a felicidade por parte dos meus alunos e
minhas alunas dos anos iniciais do ensino fundamental, tanto pela criação
coletiva das turmas na confecção do jogo, quanto pelas figuras que ali se
apresentavam, escolhidas por eles, representando cada um (a) que participou
do processo. Inicialmente feito de papelão e papel ofício, Ere Iranti será
reconstruído posteriormente em MDF (placas de madeira, sigla de medium
density fiberboard) ou EVA (espuma sintética, sigla de acetato-vinilo de
etileno).

Ere Domino não chegou a ser construído e executado por conta da


pandemia do Novo Corona Vírus. Este jogo também será confeccionado
posteriormente em formato de pedras de dominó de MDF, mas haverá uma
versão impressa de ambos os jogos, que será encaminhada às famílias dos
(as) estudantes da escola onde leciono, para que o combo educativo Eré Eko

123
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

seja construído em casa com os materiais que os (as) alunos (as) tenham
disponíveis.

Essa construção dos jogos em casa, foi a maneira que encontrei de dar
continuidade ao trabalho desenvolvido presencialmente ao longo de todo o ano
de 2019 e início de 2020, além de contribuir como atividade pedagógica
remota, solicitada pela Secretaria Municipal da Educação de Salvador (SMED).

O mesmo será feito com o Ere Domino. O jogo também fará parte das
atividades pedagógicas que são encaminhadas semanalmente às famílias
dos(as) estudantes; mas ao invés de ser recortado e colado em papelão como
sugerido no Ere Iranti, as personalidades negras deverão ser localizadas em
um caça- palavras.

Essas atividades remotas além de contribuírem para a continuidade da


abordagem étnico-racial agora em ambiente familiar, me darão um retorno
sobre como esse assunto foi tratado por cada família, pois as atividades são
devolvidas semanalmente à escola pela maioria dos responsáveis.

Considerações Finais

Trazer para a sala de aula a discussão étnico-racial, vai além da


obrigatoriedade da lei 10.639/03; é uma discussão imprescindível para a
construção de uma educação antirracista. Através da ludicidade presente nos
jogos educativos, professores (as), sejam eles (as) arte educadores (as) ou
não, podem abordar este assunto que é tão importante para a formação de
crianças e adolescentes que possivelmente reeducarão os seus olhares a partir
de uma educação estética.

Com as minhas turmas dos anos iniciais do ensino fundamental,


desenvolvi como preparação ao trabalho efetuado pelos jogos, algumas ações
educativas que julguei importantes e assertivas para discutir negritude, racismo
e estética com crianças pequenas ainda em formação.

Apresentei para apreciação um material audiovisual com bailarinas e


bailarinos negros nas diversas modalidades de dança: dança afro, balé

124
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

clássico, dança contemporânea, street dance, etc. Foi extremamente


importante iniciar com esse material no que diz respeito à representatividade
negra.

Trabalhei com literatura negra infantojuvenil, em especial com o livro “O


cabelo de Lelê”, de Valéria Belém; e em seguida debatemos a história
apresentada, o que foi muito produtivo pois as crianças puderam desabafar a
sua insatisfação ou satisfação com os seus cabelos crespos e refletir sobre a
beleza dos mesmos.

Criei coreografia com a música “Cabeleira” de Arnaldo Antunes e Jorge


Benjor, como forma de mais uma vez valorizar uma das características físicas
da estética negra que é o cabelo crespo, o que elevou a autoestima de muitas
crianças que cheios(as) de orgulho, soltaram e balançaram a cabeleira na
coreografia.

Realizei um desfile da beleza negra, que contou também com uma


oficina de turbantes, ministrada por uma aluna do 3° ano do ensino
fundamental.

Para saber como as crianças se enxergavam, trabalhei com o


autorretrato, pedindo às crianças que se desenhassem. O resultado foi
bastante positivo pois crianças negras que tinham inicialmente se desenhado
brancas, com os cabelos lisos e olhos claros, em um segundo momento, após
o desenvolvimento de algumas ações, se desenharam negras como realmente
são.

E após a apreciação de um documentário do you tube sobre


personalidades negras brasileiras, criamos e confeccionamos um calendário
afrocentrado com imagens dos(as) estudantes no mês de seu aniversário,
seguido das personalidades negras que eles(as) admiravam.

Por último, construímos coletivamente o Ere Iranti, o qual foi jogado por
todos (as) os (as) alunos (as) do 2° ao 5° ano do ensino fundamental da escola
aonde trabalho. Foram momentos de muita diversão, bagunça e aprendizado.

125
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Todas as ações foram extremamente importantes, mas considero o


combo de jogos afro- educativos Eré Eko, uma das melhores e mais efetivas
propostas desenvolvidas para o tratamento de questões étnico-raciais no
ambiente escolar.

Através dos jogos, as crianças tem a oportunidade de conhecerem de


maneira lúdica, pessoas negras brasileiras ou não, que além do destaque na
mídia, utilizam a sua projeção social para visibilizar a cultura negra, em uma
afirmação positiva da negritude, de valorização e respeito à etnia afro-brasileira
e da diáspora.

Reconhecer a existência de uma beleza negra remete à percepção


da alteridade, à construção das identidades, aos conflitos entre os
diferentes padrões estéticos oriundos dos povos da diáspora africana
e o padrão ocidental. Não se trata apenas da percepção vinda do
pólo dos grupos étnico-raciais que, historicamente, se encontram no
poder. Trata-se, também, de uma percepção construída pelos
integrantes do outro pólo, de uma ressignificação de um padrão
estético do ponto de vista do negro, como agente político. (GOMES,
2019, p.300)

Todas essas ações foram pensadas e desenvolvidas com o intuito de


promover a partir da dança, ferramentas que favoreçam um empoderamento
infantojuvenil dos (as) estudantes sobre a negritude e suas diversas estéticas;
sobre representatividade negra; sobre autoestima; sobre pertencimento e
reconhecimento da ancestralidade africana e afro-brasileira; sobre uma
educação e um posicionamento antirracista.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Figura 1 – Personalidades do Ere Iranti.

MÃE STELLA
RITA BATISTA MARGARETH
DE OXÓSSI
MENEZES

MÃE STELLA
MARGARETH
DE OXÓSSI RITA BATISTA
MENEZES

Fonte – Imagens da internet.

Figura 2 – Personalidades do Ere Domino.

NELSON JAIME
BOB MARLEY MANDELA SODRÉ

JORGE
EMICIDA MILTON SANTOS PORTUGAL

Fonte – Imagens da internet.

127
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

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129
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

A ESCOLA, O PAGODE E A RUA:


OS JOVENS E SUAS INTERSEÇÕES NESSES CONTEXTOS
Autor Everton Bispo dos Santos (UFBA)
Co-autora Amélia Vitória de Souza Conrado (UFBA)

Esta pesquisa encontra-se em desenvolvimento no nível de mestrado


junto ao Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da
Bahia. Busca potencializar o entendimento do pagode baiano enquanto mote
gerador de discussões e abordagens artístico-educativas numa perspectiva
sociopolítica e étnico-racial. Os cenários investigativos se concentram entre a
escola pública e as festas de rua na cidade de Salvador, por perceber esses
espaços como principais ambientes de socialização entre os sujeitos
protagonistas que são os jovens e adolescentes, sendo estes também, da faixa
etária mais atraída por esse ritmo.

Essa investigação surge a partir da nossa realidade de indivíduos,


pretos, pobres, periféricos e baianos, que desde a infância sempre tiveram
contato com o pagode baiano, junto com a conexão dos estudos da formação
no curso de licenciatura em dança, com seus avanços e também com as
lacunas identificadas no mesmo.

Ao nos reunirmos com amigos e primas em frente às nossas casas,


sempre dançavamos coreografias que aprendíamos ou criávamos, com o
passar dos anos começamos a perceber que dentro dos bairros periféricos, os
quais frequentavamos e ainda frequentamos, o pagode baiano era, e ainda é, o
gênero musical que prevalece nas festas e comemorações em geral, tendo
grande adesão, principalmente, entre os jovens. Consideramos que tal fato
aconteça por este ser um ritmo que pulsa, contagia, convida para dançar e
ainda dialoga fortemente com a realidade e a cultura das pessoas que residem
em tais bairros.

Antes do ingresso na universidade, nunca havíamos feito nenhuma aula


de dança, somente na mesma pudemos nos atentar para pensar o ensino da
dança nas escolas, o que nos motivou a conceber e estruturar uma proposta de
pesquisa em que agora passa a se efetivar. Esse pensamento parte,

130
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

especificamente, das aulas de um professor que trabalhava, nos componentes


curriculares, com uma metodologia do ensino das danças urbanas/de rua numa
perspectiva de estímulo da consciência corporal, estudo do corpo em sua
integralidade e a relação dessa dança atrelada a discussões atuais. A partir
disso, junto ao processo de nos identificarmos com aquela dança, passamos a
refletir sobre como tratar do ensino da dança do pagode baiano, que sempre
nos acompanhou e com o público que é atravessado por ele.

As escolas que nos dispomos a dialogar são públicas de ensino médio,


localizadas em bairros periféricos, que são nutridas, majoritariamente, de
corpos negros e diversos. Instituições essas, que são atravessadas, muitas
vezes, pela falta de material didático, estrutura física degradada, percalços
como falta de água, merenda escolar e às vezes até falta de professores. Não
é difícil encontrar notícias em que a suspensão de aulas em escolas públicas
aconteceu por algum motivo peculiar como: falta de água, muita chuva, falta de
energia, ou greves. Em alguns bairros periféricos ainda tem o agravante da
presença do tráfico de drogas que gera um aumento no índice da violência,
principalmente, com a entrada de policiais nesses bairros. Essas são
demandas que provocam alterações no cotidiano das escolas e infelizmente,
faz-se desses acontecimentos a realidade da maioria das escolas públicas, o
que demonstra que não há uma devida importância para educação brasileira,
por parte dos responsáveis em administrar e assegurar esses espaços.

Junto a isso, nos colocamos em dialogicidade com jovens e


adolescentes moradores também de bairros periféricos, por entender que
esses compõem o público mais próximo do pagode e da escola ao mesmo
tempo. E ainda, por entender a escola como principal espaço de formação, e
muitas vezes a única. Por isso desenvolvemos essa pesquisa no intuito de
fortalecer esse lugar que é tão sensível e potente.

Entendemos aqui a festa de rua como um viés das Culturas Populares,


que são definidas por Ortiz (2016), como plural, por dizer respeito à variedade
de grupos identitários, portadores de memórias diversas. Compreendendo
assim, o pagode baiano enquanto um ritmo popular, negro, e periférico, torna-
se relevante fomentar a sua visibilidade negada por vários anos. Nesse

131
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

sentido, o seu estudo, sobretudo no contexto soteropolitano, se faz necessário


por ser uma importante ação que cumpre com a Lei 10.639/03, que visa o
ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, e corrobora com uma
formação escolar significativa, sobretudo de jovens e adolescentes, dado que
essa forma de expressão cultural, como apresentado por Mattos (2013),
representa um movimento de interação e de contato entre os grupos sociais
desfavorecidos na cidade de Salvador, em fase de escolarização.

Temos historicamente o não reconhecimento, nos materiais didáticos,


dessa parcela da sociedade que não é representada e visibilizada de maneira
valorativa, que omite e falsifica o processo hitórico-social da sociedade, sendo
a população negra marcada pela estereotipia e caricaturas como aponta Ana
Célia Silva (2005) e reafirmado por Ivanilde Mattos:

Ao se referir aos negros, esse espaço denominado “escola”,


reconhecido pela sociedade como espaço privilegiado de “formação”
dos indivíduos, discriminou e excluiu a população negra, ora através
do trato ao subjugá-los como inferiores e incapazes, de forma
desumana, ora através dos conteúdos destacados pela superioridade
da cultura branca. (MATTOS, 2013, p.23)

Têm-se ainda no Brasil uma educação escolar e currículos que


predominam uma formação baseada em conteúdos eurocêntricos, ou seja, não
dialogam com a realidade dos alunos(as), sobretudo de escolas públicas, que
em sua maioria são negros(as) e que desde a tenra idade são obrigados a lidar
com um sistema educacional que estigmatiza, inferioriza e invisibiliza sua
cultura e sua história. Essas disciplinas e conteúdos escolares são reflexos de
um ensino superior com cursos de licenciatura que, em sua maioria não tratam,
em seus componentes curriculares a educação e as relações étnico-raciais. Na
Universidade Federal da Bahia, por exemplo, nem um terço dos cursos
oferecidos possui a inclusão da temática étnico-racial e do ensino de história e
cultura afro-brasileira, africana e indígena em seus currículos como
apresentado na matéria por Josemara Veloso:

[...] Prevista na na[sic] Lei de Diretrizes e Bases da Educação


Nacional e impulsionada pela Universidade nos últimos anos, a
inclusão da temática étnico-racial e do ensino de história e cultura
afro-brasileira, africana e indígena já alcança os currículos de 28 dos

132
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

88 cursos de graduação presencial e de 4 cursos cursos de


graduação a distância (EAD) da Universidade. Ao todo, 71
componentes curriculares com essas temáticas são oferecidos na
UFBA. (VELOSO, 2019, s/p)

Veloso ainda apresenta os componentes curriculares de cada curso que


dialogam com a referida temática, onde é possível perceber apenas um
componente no curso de dança e que nunca foi ofertado. Sendo assim, é válido
ressaltar a importância do efetivo cumprimento das propostas para que haja um
diálogo e um trabalho mais contextualizado à realidade e saberes que estão na
vida das comunidades e suas formas de organização.

Com isso, objetiva-se aqui investigar as possibilidades pedagógicas do


trato das expressões da dança do pagode baiano enquanto cultura negra e
periférica, numa perspectiva de fomentar proposições que articulem às
questões étnico-raciais e políticas, engendradas pelo fazer educativo, formativo
e artístico. Analisar a relação dos jovens com essa dança e o trânsito desta
última por meio de suas corporalidades no contexto escola-rua e vice-versa;
apontar o conhecimento presente nessa manifestação periférica, no intuito de
desconstruir estereótipos preconceituosos acerca da mesma e do que é
produzido enquanto cultura nas favelas; Contribuir com aproximações para
abordagens artístico-educativas de inclusão da história e cultura afro-brasileira
no componente de dança, a partir do pagode baiano, pensando a Lei 10.639/03
de forma ativa e interdisciplinar dialogando com a realidade dos(as) estudantes
de escola pública.

Nascimento (2012) nos diz que é impossível tratar da construção e


difusão dessa forma de expressão negra sem se voltar a primeira banda, o
grupo “Gera samba”, que segundo o autor tem seu surgimento no final da
década de 90. É de suma importância pensar o contexto onde ele se origina,
de efervescência da música baiana e grande popularização do axé music,
estilo musical de grande inspiração para o pagode baiano junto ao samba do
recôncavo da Bahia.

Não se tem dados concretos de como nasce o pagode baiano, porém


pesquisadores desse ritmo afirmam que foi entre o final da década de 80 e

133
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

ínicio da década de 90, sob fortes influências de ritmos africanos como o lundu,
o maxixe e também o samba, como nos mostra Ari Lima:

São muitas as canções de pagode em que se ouve a ordem


reverberada: “Queeebra!” “Queeebra ordinária!”. A propósito, José
Ramos Tinhorão (1991) e Carlos Sandroni (2001) observam que há
muito o verbo “quebrar” aparece associado a danças populares e
negro-africanas, como o maxixe e o lundu. (LIMA, 2016, p.33)

O samba, é um dos ritmos musicais com influência africana que


segundo Muniz Sodré (1998), nasce como instrumento de luta para afirmação
da etnia negra no que se refere à vida urbana e vem para o Brasil com a
expressão corporal integrada, presente em danças como: O Sorongo, o
congo, o maracatu, maxixe, batuque e outros. A partir dessas referências
trazidas da África é criado o gênero musical chamado “Pagode”, que apresenta
grande diversidade rítmica e por isso varia de lugar para lugar. Aqui na Bahia o
pagode baiano ou, como é conhecido popularmente, o "pagodão", se destaca
pela singularidade das expressões contidas no ritmo, nas letras e na dança,
que é caracterizado por Nascimento (2012, p.32) como uma possível leitura
pelo viés da multidimensionalidade: “A música de pagode, por sua natureza
multidimensional, se situa entre o discurso verbal, o discurso musical e o
discurso do corpo que performatiza a dança”.

Para Mattos (2010), O pagode baiano se distingue dos demais pagodes,


como o do Rio de Janeiro e o de São Paulo, principalmente pelas letras
carregadas de refrões fáceis, o uso das partes do corpo em suas músicas e da
forma evidente de expressão de protesto. Características essas que inspiram e
compõem as coreografias dos dançarinos das bandas e as movimentações
realizadas pelos que o consomem.

Relacionando dança e corpo, especificamente a dança do pagode


baiano e o corpo negro, é possível refletir sobre várias questões históricas de
(des)classificação de tudo que é relacionado a essa prática, por meio de uma
hierarquia cultural que é eurocêntrica e hegemônica. Sobre essas
interpretações, Nascimento (2012) nos diz que a maioria dessas leituras é fruto
de análises equivocadas orientadas pelo viés estético que a classifica enquanto
música indecente, pornográfica, apelativa e “culturalmente degradada”. Em
relação com o corpo negro, é possível perceber uma visão distorcida e

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

simplista de hipersexualização e erotização nessa dança que tem a


mobilização de quadris como uma de suas características que advém de uma
herança ancestral dos ritmos que ela deriva. Vincular e reduzir essa expressão
cultural a avaliações é também uma violência que tenta esvaziar e invisibilizar
significados e memórias de um povo, pois a relação do sujeito com o pagode
se inicia e se finda no/pelo/com o corpo.

Uma das problemáticas do pagode, principalmente no ambiente escolar,


se dá pelas letras de suas músicas, que se configura a nosso ver em 4 perfis: o
do duplo sentido, o da obscenidade, o da brincadeira, e o que contesta as
questões sociais relativas ao(a) negro(a), a mulher e aos(as) LGBTQIA+51.
Diferente dos perfis que são mais publicizados, que mostram uma perspectiva
do pagode depreciativa, ligada ao sexual e ao erótico.

O pagode é composto também por músicas com palavras de baixo


calão, com a desvalorização da mulher e a devassidão, mas não só e ele não
se resume a isso. E resumir essa manifestação cultural a algo tão
desagradável é tentar suprimir toda ancestralidade, resistência e potencialidade
que o constitui. Por isso, apontamos aqui um entendimento que apresente
significado positivo para quem com ele se relaciona, que denuncie a violência e
as desigualdades sociais, que retrate o empoderamento, enalteça a
autoestima, valorize o ser negro e que potencialize a autoafirmação identitária.
Como poeticamente colocado na música Pagodão:

Minha Aldeia, minha tribo, minha cultura minha raiz (bis)


Cultura de um povo baiano, herança do povo africano
o balançê tem sutaque do negão, samba duro e pagodão
tá na pele tá no sangue, tá correndo pelas veias
no tabuleiro da baiana, tá na pedra do pelô
ritmo da gente pagodão que balança Salvador

51
Cada letra da sigla LGBTQIA+ compõe um grupo de pessoas que se reconhece por uma
orientação sexual ou uma identidade de gênero diversa daquelas que a sociedade
convencionou como únicas (orientação heterossexual; gêneros masculino e feminino). “L” de
lésbicas, “G” de gays, B”” de bissexuais, “T” de transexuais, transgêneros e travestis, “Q” de
queer, “I” de intersexo, “A” de assexuais e o “+” abriga outras possibilidades de orientação
sexual e identidade de gênero que existam.

135
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

bota, bota, bota, bota pagodão que ela gosta


bota, bota, bota, bota pagodão que ela gosta
bota, bota, bota, bota pagodão que ela gosta
deixa de lado esse preconceito veja como é lindo esse
ritmo negro, pagode é samba, samba é sêmba
bota pagodão que ela vai gosta
[...]tome, tome, tome pagodão que é bom
receba, receba, receba o pagodão que é bom
O hip hop tá na moda, mais pagodão é foda
52
o rap tá na moda, mais pagodão é foda[...]

É importante pontuar que existe um projeto racista histórico que abrange


todas as dimensões sociais que estruturam a sociedade, entre elas a política,
econômica, a ideológica e o setor cultural, como frisada por Silvio de Almeida
(2017), no livro Racismo Estrutural. Um dos aspectos desse racismo no
âmbito cultural é a marginalização, estigmas e apagamento dos agentes
criadores de determinada cultura, fato que acontece também com o pagode
baiano. Um esforço de se ter a cultura negra, mas sem os corpos negros.
Sobre isso Rodney William (2019) nos diz:

Nem todos percebem que por trás das produções culturais do povo
negro no Brasil existe um sistema perfeitamente estruturado. É isso
que não permite a diluição de suas criações. Há, no entanto, uma
dificuldade em admitir que a cultura brasileira é profundamente
marcada por esses saberes. A tentativa de apagar essas marcas
consiste em um traço muito evidente do racismo e reitera as
estratégias de luta do povo negro que persistem desde o período da
escravidão. (WILLIAM, 2019, p.36, grifo nosso)

Sobre o trecho destacado, em relação a negação de saberes, Sueli


Carneiro (2005) chama atenção para a concepção do epistemicídio, onde não é
possível desqualificar as formas de conhecimento do povo dominado, sem
desqualifica-los também individual, e coletivamente como sujeitos

52
Música de banda Parangolé, composta em 2008 pelo artista Nenel. Letra retirada da
página do Youtube da própria banda. Disponível em:<
https://www.youtube.com/watch?v=u3gX38kFVcs&list=OLAK5uy_nIbhyvbyFP_aKc34gpW9VNt
U47pTfDYcI&index=5>. Acesso em: 05 set. 2020.

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cognoscentes. E acrescenta que “o epistemicídio é, para além da anulação


e desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo
persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso a
educação, sobretudo de qualidade.” Fator que se apresenta como um
mecanismo de desligitimação do negro enquanto ser e enquanto portador e
produtor de conhecimento.

Entendemos a escola como primeiro palco institucional de interação das


diferenças e é nele que também começamos a lidar com a perspectiva da
inferiorização e da rejeição do ser negro em relação ao que não é negro. Com
essa perspectiva nos perseguindo desde sempre, e tendo o(a) professor(a)
como agentes que reforçam e sustentam as desigualdades e a exclusão de
negros na sala de aula, buscamos ao longo do tempo, consciente ou
inconscientemente, nos distanciar de tudo relacionado ao negro, por estar
sempre ligado a algo ruim. Muitas vezes se autodenominando “cor de jambo”,
“moreno”, e até “mulato”; algumas vezes tentando esconder/disfarçar os traços
fenótipos, outras vezes repudiando a história e a cultura negra.

É relevante sinalizar ainda, que o projeto de extermínio negro não fica


apenas (como se fosse pouca coisa) na questão epistemológica. O verdadeiro
objetivo é o aniquilamento dos corpos negros, o que tem dado certo, pois
segundo dados do Atlas da Violência 201953, disponibilizado pelo Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, cerca de 75,5% das vítimas de
homicídios no Brasil em 2017 eram negras.

Pensando a rua como espaço de aprendizagens, nos centramos nas


festas que ocorrem nela para refletir sobre a efervescência de conhecimentos e
questões contidas nesses ambientes. O pagode baiano tem sua manifestação
com maior potência nos chamados paredões, festas de rua (ou festas de largo)
e em shows populares. Paredão é entendido aqui enquanto um evento festivo
que acontece, em sua maioria, em bairros periféricos, onde é utilizada uma

53
Disponível em:
<https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=34784>.
Acesso em: 26 set. 2020.

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

estrutura de som automotivo potente em formato de parede; As festas de rua


seriam as festas gratuitas que acontecem em espaço aberto, como o carnaval
e a festa de Yemanjá (2 de feveireiro); e os shows populares, os que
acontecem em espaços privados, mas com um custo acessível a camada
popular.

É possível perceber nesses espaços, um público majoritariamente de


jovens negros(as), que se juntam com o intuito de se divertir, sociabilizar e
dançar. Mas que muitas vezes são surpreendidos por ações policiais que, em
maior parte, são truculentas, arbitrárias e sem explicação. Esse tipo de
violência acontece com maior prevalência nos paredões dos bairros periféricos
e é geralmente noticiada nas mídias, com desfecho de jovens negros presos ou
mortos, sendo acusados de envolvimento com tráfico de drogas ou em posse
de arma de fogo. Essas atuações policiais são reflexo de um Estado que dita
quem pode viver e quem deve morrer, como o conceito de Necropolítica,
defendida por Achille Mbembe (2018). Vale pontuar que as vítimas mais
atingidas por esse projeto político de Estado são as populações marginalizadas
e subalternizadas historicamente.

A rua se caracteriza por um espaço mais livre, de trânsito constante e


movimentações contínuas, tornando-se um grande atrativo de socialização,
entretenimento e permissividade, principalmente para adolescentes que se
sentem mais restritos nos espaços da escola e da própria casa. Os
adolescentes, segundo Solange da Silva (2005), relatam o seguinte:

Os adolescentes pesquisados concebem a rua como espaço de


maior “liberdade”, no sentido de poder ir e voltar a qualquer hora, a
qualquer lugar, e também como espaço onde se estabelecem
relações de aprendizagem que podem possibilitar saberes
específicos necessários a sua sobrevivência, diferentes formas de se
relacionar com as coisas, com as pessoas, com o mundo. (SILVA,
2005, p.71)

Aqui nos colocamos no lugar de pensar os saberes das ruas, das


periferias, dos silenciados. Na busca da descolonização do conhecimento,
procuramos desestruturar a epistemologia dominante como a única e legitima.

138
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Queremos fazer ecoar as vozes que por anos são invisibilizadas para lhes
devolver o direito de existir, como colocado por Djamila Ribeiro (2017):

[...] A historia tem nos mostrado que a invisibilidade mata, o que


Foucault chama de “deixar viver ou deixar morrer”. A reflexão
fundamental a ser feita é perceber que, quando pessoas negras
estão reivindicando o direito a ter voz, elas estão reivindicando o
direito à propria vida. (RIBEIRO, 2017, p.43, grifo nosso).

Sendo Salvador a capital mais negra fora do continente africano, de


acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua
(PNAD Contínua, 2017), em Salvador, os negros (pretos e pardos) somavam
2,425 milhões, ou seja, 82,1% da população total. Considerando isso, é de
suma relevância pensar um modelo de educação que dialogue com esse
contexto e esses sujeitos, valorizando o passado histórico de negros(as),
colaborando com o aumento da autoestima dos mesmos e que se contraponha
a todos os tipos de manifestações racistas e preconceituosas que ainda
existem. Nessa perspectiva caminhamos junto ao pensamento de Amélia
Conrado (2006):

Na medida em que participa de uma situação de aprendizagem, é


valorizado como pessoa, como sujeito potencial, o aluno enfrenta o
mundo como mais valorizado como pessoa, como sujeito potencial, o
aluno enfrenta o mundo com mais segurança em condições mais
favoráveis, e a escola contribui para o desenvolvimento da auto-
estima e da autoconfiança no enfrentamento do seu próprio contexto.
(CONRADO, 2006, p.42)

Temos com isso, realizado o levantamento de temáticas possíveis para


abordagem interdisciplinares e interseccionais, como discussões sobre raça,
gênero e sexualidade a partir do pagode baiano, que dialogam diretamente
com o cotidiano e o contexto dos jovens de escola pública, pensando essa
expressão como um material artístico-pedagógico que é atravessado por
questões como o racismo, as violências, comunidade, autoestima,
musicalidade, dança e identidade que podem e devem ser problematizadas
dentro das escolas. Sendo assim, comungamos da ideia de Ivani Fazenda
(2002), pensando a interdisciplinaridade enquanto diálogo não apenas das
disciplinas, mas também como ligações e relações de histórias e contextos
diversos que constitui individualidades e coletividades.

139
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Temos também realizado o levantamento de aportes teóricos, e


apontamos como resultados iniciais o mapeamento de escritas acadêmicas
sobre o estudo do pagode baiano, e também registros acerca da relação entre
ele, a educação e a dança. Com isso, pôde ser observado, a partir de
pesquisas no site da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações
(BDTD), no repositório da Universidade Federal da Bahia, e no repositório da
Universidade Federal do Rio de Janeiro54 – que são as duas únicas
universidades com pós-graduação stricto sensu, mestrado e doutorado, em
dança do Brasil – que não há nenhuma produção registrada, nos cursos de
pós-graduação em dança que tratam do pagode baiano como foco da
pesquisa.

Estamos realizando ainda o levantamento das músicas de pagode


baiano que dialogam com as temáticas aqui propostas e destacamos, até
então, o cantor Edcity junto a banda Fantasmão enquanto os agentes que mais
retratam em suas canções as questões de desigualdade social, autoafirmação
racial e confrontação de preconceitos relacionados a negros(as) e
moradores(as) da periferia.

Esperamos ainda como resultado principal dessa investigação a


elaboração de uma sistematização do ensino da dança do pagode baiano,
sobretudo em escolas públicas periféricas. Que pretendemos fazer com
seleção de músicas que se associem a questões do cotidiano social e escolar
dos(as) estudantes; indicação de escritas sobre o pagode e outras temáticas;
mapeamento das bandas e cantores(as) de pagode; levantamento de artistas
da dança que trabalham com o pagodão no âmbito artístico e educacional ;
apresentar os princípios da dança do pagode baiano e possíveis abordagens
para investigação desses movimentos.

54
Pesquisa realizada entre os dias 9 e 10 de setembro de 2020 nos seguintes site:
https://bdtd.ibict.br/vufind/Search/Results?lookfor=PAGODE+BAIANO&type=AllFields&limit=20
&sort=relevance;
https://repositorio.ufba.br/ri/simplesearch?location=ri%2F7239&query=pagode+baiano&rpp=10
&sort_by=score&order=desc;
https://pantheon.ufrj.br/simple-
search?location=11422%2F1&query=pagode+baiano&rpp=10&sort_by=score&order=desc&filte
r_field_1=subject&filter_type_1=equals&filter_value_1=pagode+baiano

140
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

O trato com essa manifestação cultural, tipicamente soteropolitana, visa


difundir discussões e abordagens artístico-educativas, tais como questões
interseccionais e interdisciplinares que atravessam o referido tema, em diálogo
com a Lei 10639/03, a fim de visibilizar positivamente e desconstruir estigmas
que estão incutidos na maior parte das leituras que a sociedade faz deste
ritmo.

Para isso, prezamos por uma educação dialógica, apoiados em Paulo


Freire (2019), acreditamos no processo de ensino-aprendizagem enquanto um
momento de trocas, compartilhamentos e dialogo em todas as instâncias, mas,
sobretudo, entre professor(a) e educando(a) e valorizando os conhecimentos já
adquiridos pelos educandos(as), como nos aponta o autor:

A educação autêntica, repitamos, não se faz de A para B ou de A


sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo mundo. Mundo que
impressiona e desafia a uns e a uns e a outros e a outros, originando
visões ou ponto de vistas sobre ele. Visões impregnadas de anseios,
de dúvidas, de esperanças ou desesperanças que implicitam temas
significativos, à base dos quais se constituirá o conteúdo
programático da educação. (FREIRE, 2019, p.116, itálico do autor)

O pagode baiano é, sobretudo, questionamento, experiência coletiva e


memória corporal ancestral, que pauta a representatividade negra nos
espaços, o empoderamento e a difusão de conhecimento e cultura negra por
meio da música e da dança. E se tratando dessa última, compartilhamos do
pensamento de Isabel Marques (1997), no que diz respeito ao trato da dança
enquanto componente escolar na sociedade brasileira, para abordar seus
aspectos epistemológicos, sociológicos, educacionais e artísticos. Trabalhando
em favor de um ensino de dança crítico e transformador que trace relações
multifacetadas entre corpo, escola, indivíduo, arte e sociedade contemporânea.

Em uma perspectiva de metodologia etnográfica, essa pesquisa tem


analisado o comportamento, o sistema social e a cultura das pessoas que tem
contato com o pagode baiano, a fim de conhecer e entender uma visão geral
das coletas e análises de dados, compreendendo o processo de investigação,
primeiramente, de tudo o que compõe a organização social e que pode estar
registrado documentalmente ao que compete aos contextos e sujeitos
imbricados nesse estudo, na perspectiva, de como já dissemos, ressignificar o

141
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

entendimento sobre o pagode baiano, e para isso concordamos com Maria


Hassen (2003):

[...] Hoje a etnografia não pretende apresentar (ou tornar familiar o


exótico) uma população cuja exoticidade intrigava e atraía, o que ela
ambiciona é fazer o leitor pensar: "eu já vi isso, eu conheço isso, mas
eu nunca tinha pensado que significasse isso ou que desse margem
a essa interpretação. (HASSEN, 2003, s/p)

Pautamo-nos no estudo de um conhecimento periférico que está fora da


academia, mas que compreendemos como necessário o diálogo entre
comunidade e universidade. Visto que esse último é tido como um lugar
privilegiado e negado historicamente aos agentes protagonistas do pagode
baiano, sua presença se faz fundamental nesse momento como forma de
existencia, resistência e reexistência. Vale salientar a importância dessa
pesquisa para o campo da produção de conhecimento em dança e, sobretudo
em nível de pós-graduação, pois como já apresentado aqui, não dispomos de
produções nessa área, que trate do pagode baiano e das suas potencialidades
educativas, contribuindo também para o campo da educação por configurar um
material de ensino que pode auxiliar, principalmente professores de dança da
cidade de Salvador. Em virtude também do novo cenário de mudanças que
estamos vivendo, que exige não só a presença, mas o reconhecimento da
diversidade de sujeitos que compõe a escola e tem o direito de se ver
representado de maneira valorativa, sendo eles(as), negros(as), quilombolas,
LGBTs, transexuais, deficientes, entre outros, sendo imprescindível se tratar
das questões implicadas com eles e com a sociedade.

Junto a isso, percebe-se que esta expressão no campo das danças


negras vem sendo pouco estudada e refletida de forma crítica e que pode a
partir desta pesquisa, auxiliar em estratégias de ensino e conteúdos que
dialoguem com a realidade e referencias que os alunos trazem de seus bairros
e comunidades, ressignificando-os com o trabalho pedagógico do(a)
professor(a) de dança na escola.

Com isso, reforçamos nosso entendimento do pagode baiano enquanto


gerador de abordagens artístico-educativas numa perspectiva sociopolitica e

142
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

étnico-racial, por compreender que o mesmo faz parte de um contexto


atravessado por discriminações e estereótipos, porém rico cultural e
epistemologicamente. Por isso, entendemos também tal ritmo e essa pesquisa,
como um posicionamento político de contraposição às estruturas excludentes,
eurocêntricas e racistas vigentes.

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SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad,


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VELOSO, Josemara. Ações Afirmativas, 15 anos: UFBA avança na oferta de


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WILLIAM, Rodney. Apropriação cultural. São Paulo: Polén, 2019.

145
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

DONA CICI, A MENSAGEIRA DOS CONHECIMENTOS


ANCESTRAIS:
AS ARTES INTEGRADAS AFRODIASPÓRICAS DE ORIGEM YORUBÁ DO
BRASIL E DE CUBA COMO POSSIBILIDADE PARA O ENSINO DA DANÇA

Beatriz Gonzalez Lagos (UFBA)

Agô!55

Agô, Agô! Agô, Agô!

Agô ilê Agô.

Figura 1- Eji Ogbè

Fonte: < https://www.orisaifa.blogspot.com.orisaifa.org/2018/05/eji-ogbe.html>

Eji Ogbè56 – Leste

É a manifestação da pura luz. É a expansão da luz proveniente de uma


fonte

externa. É movimento sem oposição, um caminho aberto.

Eji Ogbè – Leste. Oyekún Méjì57 - Oeste. Ìwòrì Méjì58 – Sul. Òdí Méjì59 –
Norte.

55
Canto yorubá para pedir licença.
56
Textos da filosofia de Ifá.
57
Textos da filosofia de Ifá.

146
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Nesta escrita é o leste quem nos guia. Sendo a manifestação da pura


luz, é esta luz a que vem iluminar antigas sabedorias que transcendem no
tempo. No leste é onde nasce o sol, Olódùmarè.

De acordo com o mito da criação yorubana, sob as ordens de


60 61
Olódùmarè , Odùduwà teria descido à terra por meio de uma
62
cadeia de ferro, daí o seu apelido de Atêwõnrõ , levando consigo
uma concha de caracol que continha um punhado de areia. Conforme
relata esse mito, Odùduwà levava também nessa viagem de
exploração terrestre uma galinha de cinco dedos. Ao chegar no
mundo, Odùduwà teria encontrado a face da terra toda coberta de
água sobre a qual ele teria despejado a areia que levava na concha.
Depois, ele teria soltado a galinha para que essa o ajudasse a
espalhar a areia sobre a superfície das águas. Em seguida, ele teria
regressado ao ‘Õrun’ (o habitat celestial) mediante a mesma corrente
pela qual viera. Passado sete dias, Odùduwà teria voltado à terra para
inspecionar o trabalho feito pela galinha. Ele teria descoberto, ao
chegar à terra que uma grande parcela da superfície já havia se
transformado em terra firme. Ao olhar esse resultado de seu lavor,
63
Odùduwà teria exclamado: “Ah ç wo ilê tó fê!” . Daí nasceu Ile-Ifê a
primeira cidade do universo yorubano, também conhecido como “Ifê
64
oòdáyé – nibi ojúmö ti í mö-ön wá” (OMIDIRE, 2005, p.36)

58
Textos da filosofia de Ifá.
59
Textos da filosofia de Ifá.
60
Deus Criador no mito da criação yorubana.
61
Personagem místico por excelência que foi um dos ‘ìránsë Olódùmarè’, uma espécie de
colegiado de conselheiros e ministros do Deus Criador que o assessoravam tanto na criação
do mundo como na sua gestão.
62
Atêwõnrõ literalmente significa “aquele que desce mediante uma cadeia”.
63
Tradução: Olhem a terra tão vasta que surgiu!
64
Trad.: Cidade da criação do mundo, de onde sai o alvorecer. Este último apelido de Ile-Ifê
aponta para o fato de que os yorubanos consideram Ile-Ifê, não somente como a origem da sua
nação, mas também, como a origem de toda a humanidade. No entanto, havia historiadores
que não hesitavam em interpretar esse apelido como uma referência que apóia a vertente
histórica que atribui aos yorubanos uma origem localizada no oriente. Ou seja, que seus
ancestrais teriam migrado desde o leste, desde a região da “nascença do sol”. Em
contrapartida, é preciso mencionar ainda aqui, que um outro apelido de Ile- Ifê, referido em
outra versão do mito como Ifê oòyé lagbò (cidade dos sobreviventes), costuma ser
apresentado, não somente como prova da antiguidade de Ile-Ifê, mas também como prova de
sua qualidade de cidade pós-diluviano.

147
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Figura 2-Odùduwà

Fonte:https://pages.stolaf.edu/bandel1/b1-my-hometown-as-a-famous-place/

Um dos relatos da origem do povo yorubano diz que Odùduwà teve


somente um filho, chamado Õkànbí, ele teve sete descendentes, sete
príncipes que mais tarde se tornariam os reis-fundadores dos principais
Estado-nações dos yorubanos.

Foi graças a estes reis-fundadores que,

…o reino Yorùbá se expandiu ocupando a extensa região que


abrange hoje vários países da África Ocidental, indo de Ilé-Ifè, na
atual República da Nigéria, a Grand Popo, na atual República de
Togo, de Õyö-Alààfin, no centro-oeste da Nigéria a Ketu na atual
República do Benin (antigo Daomé). (OMIDIRE, 2005, p.48)

Ao se falar da cultura yorubá, estamos falando de uma cultura muito


antiga, de muitos reinos, de grandes desenvolvimentos políticos, históricos e
culturais. Apesar de não haver precisão da sua data de origem, o professor
Omidire (2005,p.38) relata que a única prova científica possível, se encontra

148
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

nas evidências materiais descobertas pela arqueologia a partir de peças da


antiguidade yorubana que começaram a ser escavadas em diversos pontos
da cidade de Ilê-Ifê, cidade histórica do povo yorubá, localizada na atual
Nigéria. Estas peças foram encontradas no início do século passado, entre
1910 e 1913, comprovando o florescimento em época remota, de uma
civilização cuja fundação remonta, no mínimo, aos primeiros séculos da era
cristã.

Ao se falar do povo yorubá afrodiaspórico, especificamente, no Brasil e


em Cuba, é importante termos presente que, como descreve Jagum (2015,
p.127), a maioria dos yorubás trazidos para o Brasil como escravos eram
originários de Òyó, mas também em grande número vindos de outros
estados (em ordem decrescente), como Ìlésà, Abéòkúta, Lagos, Kétu e
Ìbàdàn.

O ciclo da Costa da Mina, hoje chamado Ciclo de Benim e Daomé, traficou


yorubás, jejes, minas, hauçás, tapas e bornus, começou no século XVIII e durou até
1815; “e o ciclo da ilegalidade de 1816 a 1851” (JAGUN, 2015, p.128). Em
Cuba o tráfico dos yorubás começou no ano 1774 (RODRIGUEZ, 1997,
p.23). Ao longo dos 300 anos do tráfico negreiro, cerca de 4,8 milhões de
africanos foram trazidos, forçadamente, para o Brasil, o que significa que foi o
país que mais recebeu africanos para serem escravizados ao longo de três
séculos em todo o continente americano.

Em Cuba, a entrada de africanos foi pouco controlada, por causas


políticas e interesses econômicos que causaram erros e omissões
estadísticas, devido também ao auge do tráfico clandestino. O autor Juan
Pérez de la Riva (RIVA aput RODRÌGUEZ,1997,p.23), que considerou as
omissões estadísticas, diz que se estima um total 1.247.900 africanos
escravizados.

O Atlântico é uma gigantesca encruzilhada. Por ela


atravessaram sabedorias de outras terras que vieram
imantadas nos corpos, suportes de memórias e de

149
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

experiências múltiplas aqui lançadas na via do não retorno, da


desterritorialização e do despedaçamento cognitivo identitário,
reconstruíram-se no próprio curso, no transe, reinventando a
si e ao mundo. (RUFINO, SIMAS, 2018, p.11)

Em respeito a cultura yorubá e comungando com os argumentos do


professor Omidire, que defende essa forma de escrita, se utiliza a grafia da
palavra “yorubá” e seus substantivos derivados com a letra “y” por ser forma
universal da sua escrita. O professor Omidire apartir de determinado
momento resolveu voltar para a grafia universal do yorubá com “y”, por ser
assim que se escreve não só na África, na Nigéria, no Benin, no Togo e na
Costa do Marfim, mas também em outros países, inclusive em Cuba. Por
esse motivo ele resolveu voltar para essa escrita, para respeitar, para
uniformizar, universalizar a escrita, a grafia do yorubá, dentro do projeto
linguístico universal. Estes foram os seus aportes dentro do projeto de
reaproximação, do que ele chama, dos diversos portos atlânticos da tradição
yorubana, África, América Latina, América do Norte e Europa, para que se
tenha uma certa uniformidade na grafia e no pensamento.65

Este artigo faz parte do texto da dissertação que está em andamento


no PPG Dança da UFBA, sob a orientação da Profa. Dra. Amélia Vitória de
Souza Conrado, e se desenvolve a partir dos conhecimentos ancestrais
afrodiaspóricos de Dona Cici, Nancy de Souza e Silva, mulher negra,
brasileira, carioca, de 80 anos, Egbomi do Terreiro Ilê Axé Opô Aganjú 66
iniciada para Oxalá em 1972, Apetebi Ifá, mulher sábia, mestra, que conhece
a magia dos cantos que despertam as propriedades das folhas; herbolária,
grande conhecedora das propriedades medicinais das plantas; contadora de
histórias dos Orixás e histórias da Bahia. Ela foi assistente de Pierre Verger
durante três anos, trabalhou com ele legendando mais de onze mil
fotografias. Ela trabalha no Espaço Cultural Pierre Verger com
pesquisadores e como contadora de histórias dos Orixás, na Oficina
“Cozinhando Histórias”, junto a mestra de culinária baiana Marlene da Costa.

65
Texto elaborado a partir da conversa com o prof. Dr. Félix Ayoh´Omidire.
66
Terreiro de Candomblé situado na rua Sakete 32, Alto da Vila Praiana, fundado em Lauro de
Freitas, BA, no ano de 1966.Tombado pelo Instituto Patrimônio Artístico e Cultural IPAC
Decreto 9495/05. É dirigido pelo babalorixá Balbino de Xangô, Obarayin.

150
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Dona Cici traz o legado, de contar fatos históricos da sua terra e de


contar as estórias dos Orixás. Chamada por algumas pessoas de Griô, ela
prefere que a chamem de Dona Cici a contadora de historias.

Tendo como foco central os conhecimentos ancestrais de Dona Cici, na


pesquisa se analisa a relação das artes integradas da cultura yorubá na Nigéria
e destas manifestações artísticas na cultura afrodiaspórica no continente
americano, tão viva e presente na mémoria e nas vidas das pessoas dos
Candomblés da Bahia, no Brasil e da Regla de Ocha/Santeria67 de La Habana,
em Cuba.

Pensar no estudo das danças afrodiaspóricas a partir das artes


integradas, é entender que, esta aparece vinculada a integração entre as
diferentes expressões artísticas. O entendimento das artes dentro da cultura de
origem yorubá, não é fragmentada, na literatura os contos dos Orixás (Itáns)
tem fundamentos filosoficos da cosmovisão yorubá; nas estórias se faz
presente a música dos toques do gã e dos atabaques, os ritmos Vasi, Agueré,
Daró, Alujá, Opanijé, entre tantos outros; os cantos se encaixam com precisão
na clave marcada pelo gã e pelos golpes precisos do Rum; o teatro se une com
uma dança interpretativa carregada de simbolos em movimento, e as artes
visuais se fazem presente nos objetos de arte de cada Orixá e nas cores e
formas das suas ventimentas. O estudo da dança se potencializa a partir do momento que
entendemos a sua integração com as todas as manifestações das artes afro diaspóricas.

Os autores escolhidos para fundamentar os conceitos chaves são Nancy


de Souza, Marlene Costa e Josmara Fregoneze (2016), Felix Ayoh’Omidire
(2005), Márcio de Jagun (2015), Pierre Verger (2018), Fernando Ortiz (1995),
Lydia Cabrera (1996), Natália Bolivar (1995), Deoscóredes Maximiliano dos
Santos-Mestre Didi (1961), Luiz Rufino e Luiz Antonio Simas (2018), Síkírú
Sàlamí e Ronilda Iyakemi Ribeiro (2015), Eduardo Oliveira (2012) e Wande
Abimbola (1981), autores e autoras que abordam as histórias dos Orixás e
Orishas, as tradições culturais do povo yorubá na Nigéria e na afrodiáspora do
Brasil e de Cuba. Inaicyra Falcão dos Santos (2006), Marilza Silva (2016),
Amélia Conrado (2006), Nadir Nobrega (2008), Fernanda Júlia Barbosa (2016)

67
Nome dado em Cuba à religião de origem yorubá.

151
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

e Julio Moracen (2004) autor e autoras que trazem a ancestralidade


afrodescendente na dança, no teatro e em novas abordagens da cultura dos
Orixás para as artes cênicas integradas.

Pensando nos quatro pontos cardiais, se buscou um diálogo


poético, onde cada ponto cardial se relaciona com a sabedoria de cada um dos
quatro primeiros Odús de Ifá68, dividindo a dissertação em Leste, Oeste, Sul e
Norte.

Consciente do meu lugar como mulher branca e dançarina com


formação em técnicas de origem euro-ocidentais, venho com muito respeito,
aos meus mais velhos e aos meus mais novos, realizar esta pesquisa, onde
tudo o que foi escrito passou pela aprovação de Dona Cici e das pessoas que
compartilharam seus conhecimentos. Nesta pesquisa, não trabalho as danças
os cantos e os toques de matriz africana da forma em que são realizados nos
rituais religiosos, sendo estes de um caráter essencialmente artístico-
pedagógico.

Dona Cici, oralidade e memória afrodiaspórica

Figura 3 – Oyekún

Fonte: https://www.orisaifa.blogspot.com.orisaifa.org/2018/05/eji-ogbe.html

68
Conjunto de conhecimentos filosóficos que fazem parte do oráculo de Ifá da cultura yorubá.

152
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Oyekún Meji - Oeste

Oyekún cria e termina um ciclo. Em Ifá o fim de vida na terra marca o


começo de vida no reino dos Ancestrais (Orun).

Na cosmologia yorubá existe uma cadeia ancestral que nos conecta com
todos os nossos antepassados, com nossa ancestralidade. Nós somos a
expressão da nossa ancestralidade, como ensina a filosofia de Ifá. A filosofia
yorubá de Ifá, é uma filosofia de vida, uma forma de ser e ver o mundo.

Na era digital e tecnológica em que vivemos estamos borbadeados de


informações, a internet nos abre um universo de possibilidades e acessos aos
mais diversos saberes. Mas há conhecimentos que requerem tempo, tempo
para parar, ouvir e vivenciar. Tempo para os conhecimentos que são
transmitidos através da oralidade, onde a palavra ao ser enunciada evoca
multiplas sabedorias e encantamentos que se presentificam em signos e
símbolos. A sabedoria da natureza volta a mostrar os laços inseparáveis que a
conectam às sabedorias humanas. Eis a importancia do tempo na transmissão
dos conhecimentos de Dona Cici.

Dona Cici, Nancy de Souza e Silva

“Tudo é o Odú da gente. A gente não foje dele.”

Dona Cici

153
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

“Venho falar da sabedoria dos mais velhos, praticantes versados nos


segredos e encantamentos da palavra e das magias que compreendem o rito.
“Poeta feiticeiro” e “poeta encantador da palavra”. (RUFINO, 2014, p.5)

Na cidade de Salvador vive Dona Cici, uma memória viva da cultura


yorubá, detentora de epistemes de múltiplas e complexas gramáticas que estão
vinculadas a uma das maiores tecnologias, a memória humana. Tal tecnologia
está viva em Nancy de Sousa Silva, mulher que conhece os encantamentos
utilizando as palavras, os cantos, as simbologias que se plasmam nos
movimentos do seu corpo, simbolos que dançam em uma relação de claves 69,
golpes precisos do Rum70, e compreensão da letra do canto em lingua yorubá
que vai sendo cantada em uma simultaneidade tão própria das artes presentes
nas culturas da nossa América afrodiaspórica.

Uma contadora de histórias, detentora de conhecimentos ancestrais


afrodiaspóricos, Nancy de Sousa Silva, também é chamada carinhosamente de
Vovó Cici, Vó Cici, Dona Cici, Cici, Griô Cici, mas ela gosta de ser chamada de
Dona Cici, a contadora de histórias.

Nancy de Souza e Silva, nasceu em 1940 no Rio de Janeiro. Desde


criança escutou histórias e estórias brasileiras e indígenas, que eram contadas
pela senhora que trabalhava na casa de sua avó. Desde cedo ela tomou amor
pelas histórias e estórias, que falavam de bichos e seres míticos.

Um dia em um sebo, no Rio de Janeiro, quando procurava livros sobre


antropologia, ela encontrou o livro Dieux D’afrique, Culte des Orishas el
Vodouns à lánciennne Cotê des Esclaves en Afrique et à Bahia de tous le Saint
au Brésil (Verger, 1954). Ela nem imaginava que anos mais tarde viria a
conhecer Pierre Verger e tornar-se sua assistênte, amiga e sua filha do
coração.

Na sua juventude, Dona Cici teve problemas sérios de saúde e ficou


bem doente, como tinha parentes que eram do candomblé, estes disseram que
sua doença era espiritual, por esse motivo foi iniciada no candomblé.

69
Célula ritmica curta que se repete ciclicamente.
70
Tambor de afinação grave utilizado nos candomblés.

154
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Em 1970, por questões religiosas ela vai morar em Salvador para fazer a
sua iniciação no candomblé. Primeiro ela faz iniciações no Tum Tum em
Itaparica e logo ela vai para o Ilê Asé Opo Aganjú.

No terreiro conheceu outras histórias, que a fizeram voltar as suas


origens. Ela seguiu aprendendo os ensinamentos das casas de candomblé,
onde as pessoas sempre confiavam à ela coisas que não confiavam à outros.

No Ilê Asé Opo Aganjú ela conheceu Pierre Verger, onde se iniciou um
forte laço de amizade, o que a levaria a ser, anos depois, a sua assistênte. Ela
trabalhou durante três anos legendando fotografias junto a Verger, ao total
foram mais de onze mil fotografias. Com seu “Pai Fatumbi” (forma carinhosa
que ela o chamava) Dona Cici adquiriu grandes conhecimentos. Ela ouvia as
histórias que Pierre Verger contava sobre o Benin, a Nigéria e Cuba.

Ela fez parte da Ação Griô, trabalhando com várias escolas do bairro em
conjunto com outros mestres e vários aprendizes, acompanhando a contação
com música e dança. Como contadora de histórias algumas das suas histórias
viraram livros infantis. Cada história contada tem um ensinamento, momento de
reflexão, uma moral, e também um momento de virar cantiga, som e
movimento. Dona Cici tem muitos conhecimentos do candomblé, da cultura
afrobrasileira, mitologia, culinária tradicional, dança e saberes, que ela ensina,
como a grande Mestra que é.

Importantes profissionais das artes e companhias de dança convidam


Dona Cici para desenvolver pesquisa e trabalhos artísticos. Entre essas
companhias destaca-se o "Viver Brasil Company” de Los Angeles USA, onde
realiza trabalhos desde 2012. No Brasil trabalha com as professoras de dança
Rosangela Silvestre, Vera Passos e o professor Negrizú. Participou do
espetáculo de teatro “Bença” do Bando de Teatro Olodum, do espetáculo
“Contando Histórias” junto ao grupo de teatro Griô em Flor, gravou uma faixa
do disco “Obatalá” Homenagem à Mãe Carmem, Iyalorixá do Terreiro do
Gantois entre outros trabalhos artísticos.

Ela acompanhou a exposição de livros de Pierre Verger na Casa de Las


Américas, em Habana, Cuba em 2011 e esteve presente no lançamento do

155
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Livro de Pierre Verger na Guiana Francesa em 2012. Ela participou de diversas


exposições entre elas “As aventuras de Pierre Verger, 2015 no MAM SSA.

Foi convidada ao Carurú dos Sete Poetas, na FLICA 2016 e participou


no Museu Afro-Brasil (São Paulo) do projeto Baobá de contação de histórias.
Viajou ao Recife para mais contação de histórias, lançou o projeto Áfricas na
Gente, em Salvador.

Em 2018 viajou para o Benin, junto a pesquisadora Beatriz Gonzalez


Lagos, para realizar atividades de difusão da cultura afro baiana. Em 2019
participou do lançamento da re-edição do livro Lendas dos Orixás de Pierre
Verger, em Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo.

Atualmente, Dona Cici trabalha no Espaço Cultural Pierre Verger onde


dialoga com pesquisadores e conta histórias para todo o público,
principalmente o infantil, com o qual ela tem um amor especial. Devido aos
seus profundos conhecimentos sobre a cultura afro diaspórica, Dona Cici há
recebido muitos convites para diversos encontros culturais e acadêmicos,
realizar palestras, eventos e contar histórias no Brasil e no exterior.

Dona Cici é Egbomi71 no Ilê Asé Opo Aganjú, Apetebí ni Orunmila, a


guardiã desses saberes, por isso a respeitamos como grande mestra e grande
matriarca.

Ela é um arquivo vivo das histórias mitológicas dos orixás e de toda


cosmogonia de origem yorubá. Ela é a representante viva dessa memória
ancestral da tradição oral. Esta experiência com Dona Cici demonstra o valor
da existência dessa representante da cultura oral em nosso país, muitas vezes
ignorada pelas academias e pelos intelectuais.

Nesta pesquisa a Oralidade, é o principal fundamento dos conhecimentos que estão


sendo abordados. Para Dona Cici, “A tradição oral, não se sabe a idade, não se sabe
o tempo, só se sabe que ela passa de geração em geração, ela é trazida pelos
mais velhos, a gente aprende, e faz o juramento de passar essas histórias
adiante.”

71
A palavra significa Irmã menor.

156
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Os relatos de Dona Cici, permitem entender e recuperar por meio da


oralidade o desenvolvimento das danças de matriz africana como uma prática
artística interdisciplinar, profundizando no estudo dos movimentos como
representações simbólicas, na diversidade de ritmos e suas múltiplas
possibilidades polirritmias para a criação em dança, no entendimento filosófico
dos Oriki (poemas) e dos Itan (contos) como fundamentos para processos de
criação.

Dentro do universo das artes integradas a pesquisa se fundamenta


em um importante alicerce, a Oralidade.

A oralidade é transmitida mediante as palavras. A palavra é dotada


de encantabilidades, pois é capaz de envolver os elementos em
energia, ou até de fazer transformar ou transbordar a energia que os
mesmos detêm. Junto com a palavra é emitido o hálito, elemento
sagrado para os iorubás. Portanto, a ela agrega-se uma parcela
cósmica. (JAGUN, 2015, p.26)

Dona Cici, como contadora de histórias conhece o poder das palavras


contidas no Èmí (sopro da alma), no Ofó (encantamento) e no Àse (energia
vital). Como diz Dona Cici:

O Èmí na realidade é isso que você tem dentro de você, geralmente


ele é para ser bom, é o seu espírito, é aquilo que você tem, que tá
aqui dentro. O Ofó é aquilo que você vai falar, pode ser bom ou ruim,
vai depender da sua índole. O Àse é a força do que você fala, o Àse é
aquele que abençoa ou amaldiçoa.

“A palavra Èmí na língua yorubá significa o sopro da alma, do espírito.


Ofó, é o encantamento, o hálito antes que venha ser palavra fora da boca; Asé,
que é a materialização da energia da palavra dita para se expandir pelo
universo”. (JAGUM, 2015, p.26)

Quando Cici conta as suas histórias sobre os Orixás as energias do Èmí,


do Ofó, e do Áse se manifestam. Ela conta, toca o gã, canta, interpreta a
história e dança, trazendo um entendimento da integralidade das artes, tão
própria da cultura yorubá presente na Nigéria, Benin e Togo, assim como no
Brasil e em Cuba.

A perspectiva do encantamento é elemento e prática indispensável nas


produções de conhecimentos. É a partir do encante que os saberes se
dinamizam e pegam carona nas asas do vento, entrecruzando

157
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

caminhos, atando versos, desenhando gestos, soprando sons,


assentando chãos e encarnando corpos. Na miudeza da vida comum
os saberes se encantam e são reinventados os sentidos do mundo.
(RUFINO, SIMAS, 2018, p.12)

Na cultura yorubana a palavra falada tem tanto poder que se alguém


não cumpre com o diz é desmoralizado, é deshonrado, e inclusive pode ser
condenado por tal descumprimento.

Por mais que conheçamos a frase “palavra de honra” que é dita quando
alguém jura cumprir algo que promete verbalmente, a história das invasões
coloniais comprovam que dentro da cultura dos povos colonizadores europeus
eles não respeitaram a força da palavra, o seu carater sagrado, por esse
motivo o desprezo da palavra oral e a valorização da palavra escrita.

Dona Cici quando conta as suas histórias, ela proporciona um momento


de entretenção, a mente se acalma e desacelera para por atenção nas suas
palavras, nas expressões do seu rosto, na movimentação do seu corpo, na
melodia cantada, no ritmo que ela toca no gã72, e na dança que executa, as
vezes sentada na sua cadeira, as vezes de pé, Os contos, as histórias
contadas são um texto oral, onde no seu conteúdo há ensinamentos, principios,
tradições, valores, formação, transmissão de conhecimentos e conselhos para
a vida.

Os contos, as narrativas curtas, sempre tiveram um papel


importante na formação de jovens e na constituição das
histórias das sociedades- ágrafas ou não”…”o texto oral exercia
a função de hoje, nas sociedades globalizadas, é exercida
pelos meios de comunicação de massa e pelos livros. (SOUZA,
aput OMIDIRE, 2006, p. 11)

Nas culturas africanas de origem yorubá, no Brasil e em Cuba, existem


registros de que muitos africanos e africanas contaram e cantaram seus contos
em vários momentos de suas vidas, expressando alegria, dor, sofrimento,

72
Instrumento musical, campana de ferro que se percute com uma pequena barra de ferro, e
que tem a função de marcar o tempo, a pulsação.

158
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

adoração e os trabalho que realizavam. A professora Florentina Souza (aput


OMIDIRE. p. 12, 2006), diz que alguns destes contos, foram registrados na
memória dos seus descendentes, mas que devido, aos modos preconceituosos
como as culturas de origem africana eram tratadas nos vários circulos culturais
no Brasil, muitas memórias esqueceram dos contos e a cadeia de transmissão
fragilizou-se quando não se interrompeu.

A pesar do rompimento dessa cadeia de transmissão oral dos


conhecimentos afrodispóricos, Dona Cici conserva na sua memória um enorme
arcabouço de fatos históricos, de estórias, canções, ritmos musicais e danças
do povo negro do Brasil, de Cuba e da Nigéria.

Esta pesquisa além de abordar os conhecimentos ancestrais


afrodiaspóricos de Nancy de Souza e Silva, também propõe uma possivel
sistematização como fundamentos de ensino e criação em dança a partir dos
conhecimentos ancestrais da cultura afrodiaspórica relatados por Dona Cici,
sendo possível observar e vivenciar que na cultura africana e da afro-diáspora
as danças, os cantos (orín), os toques, os mitos, os contos do corpo oracular
de Ifá (ìtan, caminhos de odu, patakin), as poesias musicalizadas (ewì) e os
poemas e loas usadas para os orixás (oríkí), não devem ser entendidos,
praticados ou ensinados de forma isolada, assim como, estabelecer estratégias
de transmissão de conhecimento, processos pedagógicos, para o ensino da
dança fundamentados na inter-relação: oralidade e corpo.

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161
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

PRETA SINHÁ, PRETO SINHÔ:


PROCESSOS E APRENDIZADOS SOBRE IDENTIDADE E
ANCESTRALIDADE AFRICANA ATRAVÉS DA DANÇA

Sheila Karine Melo Lima (UFBA)


Dra. Maria de Lurdes Barros da Paixão (UFRN)

Introdução

Conhecer nossas heranças é assumir as múltiplas influências de


tradições, razões de existência e resistência que nos fortalecem enquanto
identidade individual, nos ajudando a compreender melhor as nossas culturas,
as identidades coletivas que nos atravessam individualmente e valorizar a
diversidade,pois este trabalho não apenas analisa um objeto, justifica o
interesse e constrói um compilado de saberes acadêmicos, ele fala das minhas
heranças, identidades e razões de existência e resistência.

O trabalho a ser apresentado é fruto da investigação e estudo criativo


vivenciado em etapas durante a graduação em Dança: (I) primeiro na disciplina
Africanidade e Dança; depois na disciplina (II) Extensão em Dança, somados à
vários processos no (III) Projeto de Extensão Aldeia Mangue. Sendo as três
etapas centrais, citada parte significativas da minha passagem pelo curso de
licenciatura em Dança da Universidade Federal de Sergipe, as quais uso como
fonte metodológica para a alimentação poética e discursiva na criação cênica.

Preta sinhá, Preto sinhô é um processo de criação coreográfica


realizado a partir das experiências vivenciadas junto às danças afrodiaspóricas
herdadas da cultura ancestral africana. Trata-se de uma pesquisa de
movimento de caráter identitário e singular que possibilita revisitar as práticas
coletivas de produção cultural, social e simbólica do povo negro constituídas de
memórias do passado e do presente. Deste modo, Preta sinhá e Preto sinhô é
uma criação em dança que atravessa o corpo e o movimento da intérprete-
criadora, ressignificando as Pretas sinhás e os Pretos sinhôs na dança negra
contemporânea.

Compreendendo a Dança, campo de estudo, linguagem artística, como

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

linguagem do sensível, que possibilita uma vivência rica em conteúdos que


guiam o processo criativo, compreendendo nossas memórias, histórias de uma
herança cultural diante de um processo de criação, de identidade e
ancestralidade, ou seja, penso e abordo a Dança como forma de linguagem e
expressão do ser, compreendendo e abordando nossas tradições e memórias
de uma herança étnico-racial, revelando um corpo expressivo e agente do
conhecimento.

Tenho o objetivo expor a trajetória de criação e processo coreográfico,


buscando caminhos para compreender e investigar como este meu corpo
dançante exigiu a procura, o despertar de identidades e ancestralidade.

De acordo com propostas de Inaicyra Falcão dos Santos (2015), o


movimento corporal está presente na história dos povos reescrevendo
tradições e lidando com uma proposta pluricultural e ressignificação da dança
na contemporaneidade. E é por isso que utilizo seus estudos, além de Lara
Machado (2017), que contribui para uma nova visão de corpo a partir do século
XX, nos seus estudos fenomenológicos, onde o corpo é uno, e o intérprete é
criador.

Justifico o olhar lançado sobre os aprendizados sobre identidade e


ancestralidade, ponderando que o sujeito é social ele é produto do meio em
que vive, de suas vivências e concepções internas e externas, como crenças,
origem, suas práticas entre outros;

E, este sujeito social que é corpo toma forma, des-forma, modela,


adapta-se e depois se remodela de acordo com dinâmicas do espaço-tempo o
que provoca vários tipos de percepção que podem se dar no fazer artístico.

A professora e pesquisadora Jussara Setenta (2008) atua principalmente


nos temas dança performance, performatividade, políticas de criação em
dança, ensino da dança e coreografia, escreve vários artigos sobre o processo
criativo, o movimento entendido, o corpo na dança e a subjetividade desse
corpo que dança, e me auxilia nesta justificativa que centraliza o processo
criativo na Dança como potência para diversos aprendizados.

163
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Noto e revelarei nas próximas páginas que fui imensamente atravessada


por inúmeras referências e me disponho e pontuo como método a partilha
dessas contaminações que chamei de inspirações

.Diante dos estudos da disciplina Africanidade e Dança, a priori, me


deparei no processo de constante descoberta sobre ancestralidade, identidade,
identidade negra, sobre a mulher negra e sobre os principais questionamentos
que eu poderia fazer com/através/a partir da Dança, lembrando de vários
processos criativos que vim participando e, como esses processos criativos me
ajudaram a descobrir e construir o meu objeto de estudo, minha composição.

Africanidade e Dança, disciplina cuja ementa, do Projeto Político


Pedagógico do Curso de Licenciatura em Dança da UFS, afirma que a mesma
deve discutir sobre conceitos de africanidades, cultura, diversidade, identidade
e etnia. Assim como,introduzir os estudos teórico-práticos dos princípios
básicos das danças de matrizes africanas, com abordagem nas simbologias e
arquétipos dos Orixás.

Nesse processo de descobertas sobre ancestralidade e no decorrer dos


textos apresentados na disciplina sobre identidade negra, mulher negra,
diáspora, além de uma série chamada “The Book of Negroes” (2015), tive
vontade de explorar tudo o que conseguisse absorver sobre todo aquele leque
de informações e fiquei me perguntando: “Como poderia retratar aquilo com a
minha dança? Como poderia o fazer, protestando, me posicionando
politicamente, socialmente e artisticamente, me reconhecendo como Negra e,
qual a importância que aquilo teria para mim como pesquisadora, artista e
professora no mundo acadêmico e fora dele?”. Tais questionamentos se
transformaram nas perguntas orientadoras do projeto de TCC e deste projeto.

Comecei então a pensar em como os processos metodológicos


desenvolvidos no Projeto de Extensão Aldeia Mangue, na disciplina Extensão
em Dança, no processo criativo “Os Caçuás” no período de 2015.2, além da
disciplina Africanidade e Dança 2016.1, tinham ajudado na questão do liberar a
memória corporal e da descoberta de uma dança interna, que é individual, mas
também pode ser coletiva e, como esses processos de construção da

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

individualidade corporal, da memória, da performance e como esse jogo


criativo, fez com que eu descobrisse a minha própria identidade.

Com isso me pareceu importante que o meu projeto tivesse como


método a descrição, partilha de memórias, de inspirações seguidas por
problematizações e análises feitas a partir de pesquisas bibliográficas sobre os
temas levantados.

E por se tratar de diversos momentos de des-pertar que ocorreram


dentro de espaços-tempo de educação formal e informal me perguntei: “E
agora? Como transpor essa ideia de educação étnico-racial, social, cultural e
identitária através do movimento, através da construção poética, dessa dança e
dessas possibilidades de movimento individualizado?” Meus questionamentos
só aumentavam.

Referencial teórico

Entendendo que a política de identidade social que é um elemento que


facilita o reconhecimento de uma pessoa na sociedade e que pode ser
construída de forma individual e/ou coletiva; se faz quando grupos como o
meu: de mulher, negra, de país periférico, pertencem como outros a um grupo
oprimido, o marginalizado que precisa de voz e se torna um fator de
mobilização política que envolve uma valorização e uma celebração da
singularidade cultural e não somente a identidade advinda da memória, do
passado, da história, mas sim pelo significado de toda essa memória e essa
história.

O corpo como construção cultural é portador de emoções,


sensibilidades, sentido ético, estético, resultante das relações históricas,
sociais e raciais. Corpos marcados pelo passado, pelo seu jeito de andar e
dançar, o movimento da vida e dos fatos mostram o corpo na história, e a partir
da memória ele se reconhece e às suas culturas, com suas semelhanças e
diferenças.

A memória é, a um só tempo, produtora de conhecimentos e produto da

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

relação estabelecida entre as diversas linguagens e conhecimentos


reproduzidos e recriados por pessoas e coletividades. (SANTOS 2017, p.116).

Começo então contextualizando historicamente a diáspora negra, pois


antes de falar de identidade, ancestralidade, processo criativo e educação das
relações étnico-racial é preciso falar sobre diáspora africana, aqui também
chamada de diáspora negra. Marco histórico que tem forte impacto na minha
constituição racial e, época em que se passa a série “The Book of de Negroes”,
e por sua vez, contexto do “O Livro dos Negros”; sobre essa inspiração falo
com maior profundidade em outro momento, por agora, vamos falar sobre a
diáspora negra, a identidade e os processos de criação e recriação cênica.

Então o que é diáspora, é um fenômeno histórico e global, onde há um


deslocamento de pessoas, no caso da diáspora africana, foi o deslocamento
que constituiu o regime escravista, em que pessoas eram levadas para outros
continentes e serviam de mão-de-obra escrava. O escravo era considerado
coisa necessária, para que os empreendimentos coloniais tivessem êxito,
colocados na mesma condição que os animas e os demais insumos, como
sustenta Vainfas (1986).

Existem três diásporas segundo Goli Guerreiro (2010); a primeira


diáspora ocorre pela via da escravização pelo oceano atlântico, a segunda se
dá de forma voluntária com retorno dos que foram escravizados para a África e
a massa de povos negros para vários outros países da Europa e Américas, a
terceira foi o deslocamento de signos, texto, sons, imagens, provocados pelo
circuito de comunicação da diáspora Negra e reforçada pela globalização.

Então é na diáspora que encontramos os fluxos e contradições, onde as


identidades se acumulam e se reorganizam, fruto próprio do movimento das
populações africanas escravizadas nas Américas cuja presença foi crucial para
a edificação da modernidade. Não apenas na engrenagem econômica
mobilizada pelo lucrativo tráfico de escravos, mas sobretudo na geração da
modernidade, constituindo-se também em combustível maior da engrenagem
mercantilista e seus desdobramentos contemporâneos. (SILVA, 2017, p.113)

O espetáculo coreográfico Preta sinhá, Preto sinhô mostra a princípio o

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

retrato dessas diásporas no corpo e na movimentação, cujo signo referente é


a dança do orixá Iansã do culto afro-brasileiro denominado candomblé. Os
movimentos realizados na coreografia se inspiram na travessia do atlântico
negro feita pelos povos africanos em diáspora. Assim, os rodopios realizados
fazem referência ao vento e deste modo, possibilita o despertar da memória
adormecida de um passado histórico significativo. São essas memórias que se
corporificam no espetáculo e se traduzem no reconhecimento saudoso da
ancestralidade africana.

Identidades negras: construções e descobertas

O Brasil contemporâneo é o país com maior registro de referências ao


continente africano, fora da África. É inegável a forte presença de aspectos
culturais afrodescendentes na cultura brasileira e a dança é um desses
elementos que torna visível essa influência. Nesse sentido, Ferraz (2012)
afirma que a dança é um elemento cultural motor no continente africano, assim
como no Brasil. Portanto, conhecer a história da presença de povos africanos
em território brasileiro e as significativas heranças é uma forma de começar a
compreender a ideia de cultura brasileira. O que implica verificar com maior
atenção as diversas influências de nações africanas em nosso país e as razões
de existência e resistência que nos fazem pensar sobre nossa identidade.

[…] a identidade marca o encontro de nosso passado com as relações


sociais, culturais e econômicas nas quais vivemos agora […] a identidade e a
interseção de nossas vidas cotidianas com as relações econômicas e políticas
de subordinação e dominação (RUTHERFORD, 1990, p. 19-20). Segundo a
Dra. Luciane Ramos Silva, ― a identidade é uma realidade ou modelo em
fluxo, caracterizada por um dinamismo e que está interconectada à discussão
sobre cultura. (SILVA,2017,p.104).

Em uma espécie de rede de significados, a diáspora torna-se um


processo de múltiplas dimensões onde os povos de descendência africana,
enraizados nas modernidades e contemporaneidades, definem suas vidas num
processo de ir e vir, recolher e semear. (SILVA,2017, p.115).

167
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O aprendizado corporal é internalizado e partilhado socialmente, a


pluralidade de experiências do negro é diversa, inclusive nas abordagens em
relação a esse mundo negro que também é plural, no campo específico da
produção de conhecimento em/sobre/ a partir/da Dança, pensamos diáspora
como experiência. Elucidada pela ideia da pesquisadora Luciane Silva (2017)
que fala sobre ressignificar e aproximar as africanidades, situando-as na
contemporaneidade, bem como redimensioná-las o quanto pudermos e
estarmos próximos enquanto descendentes dos contextos africanos e
distantes, enquanto sujeitos da realidade diaspórica.

Consideramos que rever conteúdos, currículos e estruturas de cursos,de


instituições de ensino demanda repensar também as estruturas dos corpos
docentes. A porcentagem de professores especializados nas estéticas afro-
orientadas locados nos espaços de educação hegemônicos é ínfima em
relação à outras linguagens, permanecendo o normativo paradigma de ensino
e aprendizagem ocidentais. (SILVA, 2017, p.124).

A presença das danças da diáspora africana nos currículos abre


espaços para reimaginar e desestabilizar as posições centrais das abordagens
ocidentais. Isso vale para as práticas e abordagens da diáspora negra bem
como para outras propostas estéticas marginalizadas que contribuíram em
grande medida para ampliar as possibilidades de formação através de
pesquisa de movimento, coreográfica, abordagem histórico-cultural e crítica.
(SILVA, 2017, p.123).

Na tradição africano-brasileira um dos sentidos primordiais de força está


na existência do corpo. Sua ancestralidade e a relação de tempo e lugar, onde
este corpo se manifesta social e historicamente, bem como a subjetividade que
também o compõe, são as suas crenças e ritos de viver em todos os momentos
das existências. (OLIVEIRA, 2017, p.44).

O corpo é a primazia da materialização destas construções de


identidade e é com ele que o tripé da arte se estabelece nesta África
idealizada. (OLIVEIRA, 2017, p.46). É diante desse olhar e partindo do mesmo
que começo a construir a performance, performance que quer mostrar no corpo

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

como eu vejo, um olhar e um reconhecimento à minha identidade política,


cultural, social e racial. Para dar voz a minha identidade étnica de forma
artística.

A minha ideia, conceito e percepção sobre este esforço performático


criativo é abordar o que tenho apreendido e entendido sobre estes
assuntos.Acreditando, entendendo que a Arte pode atingir a todos e deve
permitir a cada um, a partir de seu próprio olhar e reflexão, expor o que lê-frui-
aprecia.

Assim, a Dança Afrodiaspórica vem possibilitar uma vivência que conduz


o processo criativo compreendendo a tradição e as memórias de uma herança
cultural, explorando de forma a ressignificar essa herança através do
movimento numa proposta criativa que comunica, voltando-se para as
memórias ancestrais e a identidade.

Santos reforça a importância do conhecimento de si através da busca da


ancestralidade de cada pessoa, que se liga a movimentos arquetípicos que, se
por um lado são inerentes à experiência humana, por outro fazem parte de
repertórios desenvolvidos a partir de uma memória corporal ligada à
experiência sociocultural individual. Aqui, a consciência si torna-se vetor para o
processo criativo. (SANTOS, 1996, p.93, apud, SILVA, 2017).Atenta a memória
corporal pois: O corpo é um portal que simultaneamente, inscreve e interpreta,
significa e é significado, sendo projetado como continente e conteúdo, local,
ambiente e veículo da memória. (MARTINS, 2002, p.89, apud, SANTOS, 2006,
p.).

O nosso corpo é somático segundo Silvia Soter (1999), ele tem uma
consciência cultural local, cognitiva e social, por isso o corpo acaba absorvendo
uma reação diante daquilo que experimenta e diante destas experiências ele
tem uma reação conformadora ou acaba se libertando dos padrões impostos.
por isso escolho ressignificar a linguagem corporal e assim com e através da
Dança há uma descolonização desses corpos reconhecendo todos os saberes,
tanto os estereotipados adotados pela sociedade, como os populares e talvez
mais orgânicos.

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Corpo em Diáspora não é uma discussão sobre uma dança para


negros‘, mas uma linguagem múltipla, alicerçada por epistemologias e
cosmologias negras. Nela não há fronteiras rígidas de pertencimentos, pois
primamos por uma mobilidade do lugar de enunciação (SILVA, 2017a, p.102).
Assim, com base neste ponto de vista reafirmo que esse corpo afrodiaspórico é
feito de poéticas, estéticas, e técnicas de formas africanizadas, que
escrevemos em nós, e que compõem a multiplicidade brasileira. (SILVA,
2017b).

Como -me (re) descobri negra:

A história desse trabalho de conclusão de curso começa em 2003,


quando passei no vestibular para Educação Física, na Universidade Federal de
Sergipe, nessa época, notei que dentre os muitos estudantes, numa turma de
50 discentes somente quatro eram negros, dentre estes somente uma mulher
Negra, eu.durante o curso procurei coisas com as quais eu me identificasse
como pessoa e por muitas vezes não encontrei, no ano de 2005, na finalização
da disciplina Dança para Educação Física fui convidada para fazer uma
seleção no grupo mais antigo de Dança Afro de Sergipe, a Companhia
Dançar´t Na semana seguinte fiz o teste e passei na seleção. Nunca tinha feito
aula de dança em lugar nenhum.

Começava ali meus aprendizados sobre Dança Afro com a professora e


diretora da Dançar’t, Cleanis Maria. Daí começa minha jornada de
conhecimento e descobertas na Dança, tudo era novo, autores, valorização,
conhecer os orixás, movimentações e a educação através da dança, social e
culturalmente, vivenciando o dançar, o fazer dança e o educar através da
Dança, foi lá que comecei como educadora de Dança em projetos sociais.Estes
foram os passos que me fizeram chegar à universidade, com referências e
experiências, que fizeram e fazem a minha história.

Descobertas de um passado ancestral que me conecta e onde me


redescubro a cada dia, modificando, transformando, o que sou hoje, mostrando
essa junção de descobertas de um passado ancestral, somado a uma

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

ancestralidade do presente, descoberta a cada dia, em nível pessoal e familiar,


vinculado a um passado histórico racial coletivo.

Daí por diante passei 8 anos no grupo Cia Dançart’ de Sergipe o grupo
mais velho de Sergipe e me afastei do grupo em 2013, exatamente no ano em
que passei em dança pela Universidade Federal de Sergipe. A filosofia de
trabalho com a Dança Afro da Cia Dançar´t de Sergipe era, atentamente, não
dançar a nossa religiosidade, porque Cleanis Maria, coreógrafa do grupo, que é
do Axé, falava que: “como não se coloca Nossa Senhora para dançar no palco,
também não colocamos o nosso Sagrado no palco”. A Cia Dançar’t fazia
releituras das danças dos Orixás, dessa ancestralidade, dessas histórias
ancestrais do nosso Sagrado,outro aspecto que a profa. Cleanis Maria ressalta
em entrevista dada em 26 de agosto de 2018 é que a Dança Afro: [...] é
história, é ancestralidade, é história viva,por isso temos muito a contar.

Junto da Cia comecei a participar do Movimento Negro de Sergipe e,


através das palestras que foram oferecidas nos eventos de grupos negros de
militância, através de pesquisas, movimentações políticas, sociais e artísticas e
curiosidades, chegamos ao III Fórum Internacional de Performance Negra,
sediado em Salvador/BA.

No entanto, julgo necessário afirmar que foi principalmente nas aulas da


profa. Ms. Edeise Gomes, onde realmente comecei a me encontrar como
pessoa e me reconhecer academicamente como atuante das Artes Negra, ao
não apenas reproduzir e absorver significados passados mas a refletir sobre o
que tudo aquilo realmente tinha em relação a minha casa, com a minha vida
fora da universidade e as minhas experiências.Foi o momento de entendimento
mais amplo, de não mais reproduzir a dança/coreografia e sim criá-la e
ressignificá-la em meu corpo a partir do que eu via do que eu vivia e, como
aquilo podia ter valor de movimento para a Dança. Todo esse questionamento
foi trabalhado e experienciado no espetáculo “Terra Viva”, criado com/para o
GDP no ano de 2016 sob direção de Edeise Gomes.

“Terra Viva” é um espetáculo que fala sobre Nanã, sobre ancestralidade,


sobre minha terra natal, Aracaju/SE, e sobre o mangue que a rodeia. Participar

171
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

deste espetáculo me fez ver o quão diversificada e forte pode ser a expressão
da ancestralidade e da cultura e como é bom reconhecer-se nesse espaço e
valorizar o seu próprio espaço, território, sabendo que este chão tem muito o
que contar.

O processo criativo denominado “Os Caçuás” representa mais um


momento de intenso reconhecimento de quem eu sou. A ida ao mangue e as
investigações criativas, coreográficas, sensoriais realizadas nele, o seu
reconhecimento enquanto ambiente, assim como a ida à Ilha de “Pomonga” e o
encontro com o pescador seu Gidinho e, por fim, a travessia no rio Sergipe e a
consolidação do espetáculo com sua apresentação no mangue da Barra dos
Coqueiros, município próximo a Aracaju, foram a culminância de um processo
criativo e de reconhecimento identitário.

Do impactante resultado e processo vivido na disciplina Extensão em


Dança I,”Os Caçuás”, se originou o Projeto de Extensão Aldeia Mangue
formado com os (as) discentes da disciplina após seu término e outros (as)
estudantes e docentes que vieram somar.

Os encontros nas aulas e laboratórios criativos do projeto foram


conduzidos com o intuito da construção de sensos de pertencimento,
percepção das subjetividades e a coletividade, numa construção processual de
pessoa, do indivíduo, o que vem fortalecer as identidades a partir das
corporeidades. Dançando e exteriorizando nossas interioridades na perspectiva
de um enraizamento profundo nas tradições de cada pessoa.

O simbólico e o ritual estão presentes no conceito formas africanizadas


de escrita de si, que agrega os valores civilizatórios da presença africana no
Brasil, orientados para que cada dançante busque e compreenda sua própria
memória e ancestralidade. "[…] havendo a abertura para a compreensão de
que cada pessoa deve lidar com sua própria ancestralidade". (SILVA, 2017,
p.135).

Incentivada a desconstrução de esquemas normatizados de percepção


de si e a valorização das camadas de história próprias, nos espaços de aulas
do Projeto de extensão Aldeia Mangue, começamos a fazer vários mergulhos

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

em universos de entendimento para o conhecimento e ampliação de histórias


corporais próprias, nos laboratórios ampliando a nossa capacidade de dançar e
mobilizar nosso corpo em proveito próprio.

A partir da orientação, condução e desconstrução, impulsionar a pessoa


que dança a mover desde dentro e descobrir sua multiplicidade conectando as
esferas afetiva, cognitiva e motora, valorizando a ideia de que o corpo não se
separa da experiência e que, nos contextos das aulas, sentir desde dentro
significa também sentir junto com o grupo, numa ideia profunda de coletividade
onde abandonamos a noção eurocêntrica do indivíduo e nos entendemos
enquanto pessoa. (SILVA, 2017, p.130).

Em diálogo com o Stuart Hall, nossas identidades adquirem sentido


diante de linguagens e sistemas simbólicos pelos quais elas são
representadas, essas representações identificam o mundo e nossas relações e
particularidades através da descoberta do passado. A construção da nossa
identidade é tanto simbólica quanto social e cultural caracterizada pelas nossas
contestações e mudanças constantes, o que pode vir a fortalecer e reafirmar
nossas posições de identidade.

Considerações finais

Foi a partir desses ensinamentos, desconstruções e construções que se


deu o processo criativo do espetácilo Preta sinhá, Preto sinhô em uma
pespectiva de valorizar o corpo negro que dança a cultura de sua cidade,
articulando aspectos socias e coletivos das corporeidades negras em sua
dimensão histórica, ancestral, social e familiar no contexto social da cultura
brasileira contemporânea

O trabalho de pesquisa ora proposto, se justifica por se tratar de


temática referente à identidade étnica e os saberes ancestrais herdados dos
povos de origem africana. Os saberes acumulados historicamente por esses
povos são a razão da existência e de resistência da comunidade
afrodescendente no Brasil.

173
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Nessa perspectiva, a dança se constitui numa vivência rica em


conteúdos que guiam o processo criativo. Este abarca as memórias e as
histórias de um povo. Assim os processos de criação em dança podem
estabelecer vínculos entre o artista, sua identidade e sua ancestralidade. Deste
modo, os estudos propostos investigam a herança étnico-racial do povo negro
e suas consequências na criação artística em dança.

A metodologia utilizada na pesquisa se orienta pelo método descritivo,


partilhando memórias e inspirações constituídas de problematizações e
análises críticas a partir dos referenciais epistemológicos da área. A pesquisa
argui sobre a aplicação da educação étnico-racial, social, cultural e identitária
na dança, em seus aspectos artísticos, criativos e coreográficos.

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técnica Germaine Acogny. Tese (doutorado), Programa de Pós-Graduação em
Artes da Cena do Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas.
(Orientadora: Dra. Inaicyra Falcão dos Santos): Campinas, 2017.

VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão: os letrados e a sociedade


escravista no Brasil colonial. Petrópolis: Vozes, 1986.

174
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

CORPOREIDADES AFROANCESTRAIS NA CENA


CONTEMPORÂNEA:
EXPERIMENTO, ENSINO E CRIAÇÃO

Gerson Moreno

INTRODUÇÃO

Emerge uma necessidade planetária de retorno ao berço ancestral do


corpo. Instala-se gradativamente um desejo de reconexão com os nascedouros
vitais que antecedem as sociedades humanas, com os ninhos geradores de
vida, com os grãos-sementes plantados na terra, com as nascentes dos rios, os
olhos d’água, os ventres femininos, com os embriões e raízes fincadas na
história que por sua vez originaram tudo o que vem sendo possível construir
enquanto humanos em interação com a natureza. Paira no ar um anseio de
reconhecimento e talvez de reapropriação dos lugares de origem.
O corpo contemporâneo se encontra ameaçado nas suas potencias
afetivas, subjetivas e criadoras, atravessado por ideologias e posturas racistas,
fascistas e neoliberais estruturadas no cerne social desde às colonizações das
américas, e tendem a imobilizar, castrar, persuadir as capacidades inventivas e
expressivas que os corpos na sua diversidade podem desenvolver.
A dança nasce, expande-se e reinventa-se no/s corpo/s desde os
primórdios das civilizações, como anseio de ritual comunitário (de diálogo e
conexão com as divindades sagradas), e expressão estética (arte que se faz
celebração da vida, interação, integração e compartilha). Os contextos que
constituem os corpos em cada época com suas ambiências e culturas diversas
definem os códigos, símbolos, signos, passos, coreografias, performatividades
próprias que compõem/geram danças em específicos espaços humanos não-
humanos.
Abordo nessa pesquisa a importância pedagógica do corpo/dança
afroancestral numa perspectiva educacional/artística/comunitária, tendo a
educação formal e não formal como territórios férteis de vivência, recriação e
fruição das ancestralidades africanas brasileiras pelo/com/para o corpo
contemporâneo.

175
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Ao longo do curso de extensão: “Corporeidades afroancestrais na cena


contemporânea” realizado de abril a dezembro de 2017 nos espaços Cena 15 e
SESC Iracema, Fortaleza CE, procurei catalogar, experimentar e codificar
proposições pedagógicas em danças afroancestrais diaspóricas visando
desenvolver processos de reconexão do/a “educador/a dançante” com suas
dimensões sensoriais, afetivas, criativas, expressivas, espirituais e ancestrais,
almejando gerar experiências de autonomia e empoderamento do/pelo/com o
corpo singular. Nesse percurso, aprofundei as interlocuções pedagógicas
existentes entre as metodologias de ensino de danças desenvolvidas no Ponto
de Cultura Galpão da Cena de Itapipoca, em confluência com a “Pretagogia”,
construindo e aplicando exercícios corporais alicerçados nas suas
fundamentações e valências. Possibilitei que os/as educadores/as e artistas
participantes do curso de extensão pudessem ser co-pesquisadores nessa
proposta de investigação, colaborando com os processos de experimentação
corporal e criação de jogos pedagógicos. As descobertas individuais e coletivas
contribuíram para a organização de um repertório de exercícios que puderam
ser compartilhados pelos próprios participantes do curso junto aos públicos que
acompanham nos seus ambientes de trabalho. Algumas dessas experiências
de compartilha são relatadas nessa pesquisa por artistas docentes atuantes em
espaços formais e não formais de ensino.
A observação, a prática da escuta e a análise dos corpos foram se
desenvolvendo enquanto propunha e conduzia exercícios corporais a serem
vivenciados por todos/as, de forma individual e grupal. Os roteiros de
exercícios eram preparados anteriormente baseados em práticas que já havia
codificado na Cia Balé Baião e nos demais espaço de formação e pesquisa que
venho habitando enquanto artista/educador/pesquisador. No decorrer das
vivências eu acabava sempre fazendo modificações nos planos, seja retirando
elementos que não correspondiam às necessidades do grupo, inserindo
proposições inéditas que não haviam sido planejadas antes e até mesmo
proporcionando experimentações que nos levaram a lugares desconhecidos, a
resultados inesperados, sobretudo nos momentos de improvisação corporal
onde as pessoas podiam criar, recriar, reinventar a partir de suas memórias
físicas, de suas histórias de vida, anseios espirituais e militâncias politicas.
Construir propostas de exercícios dançantes e detectar seus impactos

176
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

pedagógicos nos corpos plurais dos/as participantes do curso, foi um trabalho


desafiante que exigiu atenção, acolhimento e sobretudo cuidado para com os
corpos dos/das educadores/as presentes no curso, corpos que em sua maioria
se encontram fragilizados, golpeados e desrespeitados por sistemas
educacionais bancários e opacos que castram a possibilidade desses seres
humanos potencializarem suas capacidades expressivas, afetivas e subjetivas.
O cansaço físico, as estafas e frustrações trazidas nos corpos, impregnadas ao
longo do expediente diário, não foram mais fortes do que o desejo de encontrar
as pessoas, compartilhar afetos e gerar danças.
A prática continuada da experimentação corporal, da construção de
experiências e aprendências individuais/coletivas, em diálogo com os conceitos
de Kabengele Munanga (2005), Paulo Freire (2000), Sandra Haydée Petit
(2015), Muniz Sodré (1988), Sobunfu Somé (2005), Clyde W. Ford (1999),
Sotigui Kouyaté (2013), Graziela Rodrigues (1997), Renato Nogueira (2014),
Eduardo Oliveira (2006), Isabel Marques (2012), e de tantos outros/as
posteriormente citados/as, possibilitou que pudéssemos gerar e fundamentar
proposições de ensino/aprendizagem/criação em danças afroancestrais
subdivididas em: exercícios codificados e exercícios para improvisação do
corpo plural; bem como conceber e produzir o espetáculo de dança: “Cabeças
Sagradas”, obra ritualística inspirada livremente nos ritos circulares afro-
indígenas e nas mitologias dos orixás brasileiros, que contou com a
participação efetiva de todos/as os cursistas em cena.
Espero que esses achados, experiências e construções coletivas,
possam contribuir de alguma maneira com os processos educacionais/criativos
desenvolvidos por educadores/as e artistas que atuam principalmente nas
bases da comunidade, na periferia, interiores, assentamentos, quilombolas e
aldeias, nos territórios de resistência e reinvenção que tanto me inspiram a
seguir aprendendo/dançando. Para vocês que assumem bravamente as lutas
de todos os dias nas escolas, nos coletivos artísticos e movimentos sociais,
oferto esse texto com alegria e vibração!

177
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

DANÇA AFROANCESTRAL - TERRITÓRIOS AFETIVOS DE EDUCAÇÃO,


RESISTÊNCIA E REINVENÇÃO DO CORPO CONTEMPORÂNEO

Discutir sobre educação na contemporaneidade, investigar processos de


construção de conhecimento humano, exige estudo, análise de conceitos,
abertura para diálogos possíveis onde convergências e divergências de ideias
estarão em trânsito, mas sobretudo, exige um olhar sensível às experiências de
educação construídas no/pelo corpo, na concretude de sua ação e interferência
no mundo, na complexidade de ser e fazer-se individuo/coletivo. Discute-se
muito sobre conceitos dados e pré-estabelecidos que se cristalizam no campo
da teoria, e pouco se valorizam as experiências cognitivas, intuitivas e
inventivas do corpo enquanto práticas concretas de conhecimentos, e por que
não dizer, enquanto saberes científicos.
Falar do potencial dinâmico do corpo dançante ainda é um dilema e
quase sempre polêmica dentro dos espaços educacionais. Esse contexto pede
de nós “artistas docentes” uma postura dissidente e até mesmo uma militância
educacional cotidiana, na tentativa incessante de gerar diálogos sobre o
assunto, mesmo quando negligenciado pelos alunos, colegas de trabalho e até
mesmo pela coordenação da escola. Predomina o conceito dicotômico
ocidental que separa “corpo” e “mente”, associando intelectualidade à cabeça,
lugar onde habita o espírito, e ociosidade improdutiva ao corpo, lugar da
materialidade e perversão. Esse pensamento acaba eliminando do espaço
escolar/artístico/cênico a possibilidade do cultivo de experiências educacionais
que proporcionem o desenvolvimento integral do humano, limitando-o a focar
em treinamentos voltados exclusivamente para o mercado de trabalho
(educação bancária), nisso priorizando atividades e conteúdos que garantam a
capacitação técnica/intelectual do educando, eliminando qualquer possibilidade
de investimento e valorização dos saberes sensitivos, expressivos e ancestrais
que emanam dos corpos plurais.
Para Isabel Marques, o corpo lê, interpreta e edifica sentidos à
proporção que se conecta com o mundo, podendo se tornar agente
transformador quando é motivado a experimentar sua singularidade no coletivo.
Corpo-sujeito-coletivo que impregna sentidos de co-existência à proporção que
dança a sua própria dança, pela corporeidade única que desvela assumindo

178
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

suas possibilidades e limitações, suas potências e fragilidades, suas


ancestralidades, memórias, trajetos históricos e anseios que ganham corpo na
atualidade:

As vivencias humanas, os objetos, as situações sociais já são


impregnadas de múltiplos sentidos atribuídos a eles cultural e
socialmente, em tempos e espaços flutuantes, por contextos diversos
e diversificados... A impregnação de sentidos de nossos atos
cotidianos se dá na relação crítica e dialógica com o mundo, ela se dá
entre, no entrelaçamento entre as instâncias políticas, culturais e
sociais, e as vivências espaço/temporais que em nós transitam... A
dança como linguagem artística é passível de leitura e também uma
das formas possíveis de ler o mundo. A dança como linguagem faz-
se caminho para compreender, sentir, interpretar, elaborar – portanto
para ler – o mundo. (MARQUES, 2010, p. 28)

Ler mundos implica em perceber-se no mundo, em situar-se num


específico lugar, espaço, território geográfico, geoafetivo, cultural. Perceber-se
parte de uma fusão de singularidades, em uma comunidade viva que se
alicerça em valores, fundamentos, éticas e estéticas, tradições, conflitos,
contradições, divergências e convergências, diversidades, identidades em
constante transmutação. À proporção que me compreendo integrante ou
partícipe de determinado território comunitário, empodero-me de quem sou, do
que trago, do que desejo, e assumo o compromisso de colaborar efetivamente
com os processos de emancipação desse território. E o que cabe nesse
mundo/território/espaço? O que se encontra ou deixa-se encontrar dentro dele?
Para Muniz Sodré o limite que o espaço apresenta é responsável por gerar os
seres nas suas especificidades, subjetividades e complexidades: “Sendo o
limite aquilo que possibilita as coisas serem, o espaço define-se como o que
faz caber num limite. E essa regulação dá-se por constituição de lugares
através das coisas, por localizações”. (SODRÉ, 1988, p. 21)
O grande desafio que se lança para a educação ocidental parte da
reflexão em torno de processos educacionais que podem ser construídos pela
territorialização do corpo, assumindo as corporeidades singulares/comunitárias
como espaços-limites portadores e reveladores de novos paradigmas. Na
cosmovisão africana o corpo é território de conhecimento em dinâmica de
transformação, para tanto cultiva seus ritos de iniciação, como bem coloca
Sodré na seguinte citação:

179
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Traço peculiar desse ‘homem africano’ é que uma certa ‘conquista


de espaço’ acompanha toda operação sua de acesso ao
conhecimento. Por meio da iniciação, o corpo do indivíduo torna-
se lugar do invisível. Deslocar-se pela casa ou por seus espaços
naturais de habitação é, a partir daí, ampliar o território físico-
interacional próprio às mais elevadas dimensões cósmicas. (p. 62)

Esse corpo iniciado no rito, que se movimenta nos espaços mais


próximos de sua casa para enxergar, perceber e reconhecer os seus lugares
de habitação, é um corpo local, proximal, integrado a uma parte do mundo que
se conecta com o cosmos, portanto tem proporção cosmológica. Dentro de
preceitos africanos, especificamente entre os Bantos do Sudeste Africano,
valorizar seu lugar de origem e afirmar seu pertencimento não se limita a
cultivar uma visão fragmentada de existência em determinada parte do mundo,
mas de compor e conectar-se com o cosmos, partindo desse território de
existências singulares. Em África, falar de localidade, de casa, de lugares de
habitação, é trazer à tona algo maior em que todos os seres vivos e não vivos
estão imbricados. Do menor ao maior lugar que se habite tudo se conecta aos
cosmos:

Na realidade, o espaço – objeto de organização e de ação simbólica


– confunde-se, na concepção do negro, com o ‘mundo’, isto é, com o
cosmos, com o próprio universo. Território (casa, aldeia, região) e
Cosmos interpenetram-se, complementam-se. (p. 62)

Quando esse corpo dança imbricado no seu território de vida,


incorporando no movimento os mitos, signos, simbologias próprias de seu
contexto sócio-econômico-cultural-religioso, ele torna-se corpo cosmológico,
amplo, vasto, canalizador de pluriuniversos, conectado desde seu lugar com
diversos universos que pulsam na imensidão do cosmos.

PROPOSIÇÕES PARA VIVÊNCIAS DE DANÇAS AFROANCESTRAIS

Anterior ao estudo acadêmico da dança e às minhas práticas


pedagógicas, venho edificando ao longo de 30 anos de atuação no Ceará,
processos de construção estética empíricos/experimentais, sempre buscando
interagir e trabalhar em parceria com coletivos, entidades comunitárias, escolas
públicas, artistas, educador@s e pesquisadores afins. Venho da experiência

180
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

artística intuitiva, da vivência de coletivos culturais nascidos e inseridos nos


movimento e pastorais sociais de Itapipoca CE, especificamente das
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), do Movimento de Adolescentes e
Crianças (MAC), do Movimento de Artistas da Caminhada (MARCA), da
Pastoral Operário (PO) e Pastoral Urbana (PU), que por sua vez me
proporcionaram as primeiras práticas artísticas, à vivências da dança não como
montagem de espetáculos egocêntricos almejando aplausos e reconhecimento
profissional, mas como busca de autoconhecimento do corpo, manifesto e
repúdio contra as injustiças sociais, expressão de luta e grito de libertação do
proletariado, do corpo oprimido.
Trago bem antes das referências teóricas uma incessante vivência
dançante por meio do experimentalismo comunitário, da tentativa e da
descoberta grupal, de processos coletivos de criação permeados de anseios
militantes populares. Essas experiências de “feitura pelo corpo” aliadas às
técnicas de danças cênicas contemporâneas que tive acesso ao longo de três
décadas, em fusão com minha trajetória de docente (professor de artes)
atuando em projetos socioculturais e mais adiante na escola pública formal,
bem como a pesquisa que venho desenvolvendo em danças afro brasileiras
junto com a Cia Balé Baião no Ponto de Cultura Galpão da Cena de Itapipoca
CE, me instigam a pensar no corpo do/a educador/a como potência pedagógica
a se empoderar de suas capacidades expressivas dançantes. Meus trajetos de
ontem fundamentam as inquietudes e buscas que traço hoje no universo
acadêmico em consonância com a “Pretagogia”, conceito metodológico que
fundamenta essa investigação.
O curso de formação em dança: “Corporeidades afroancestrais na cena
contemporânea” contemplou educadores do ensino formal e não formal,
artistas das áreas de dança, teatro e música, e acadêmicos diversos atuantes
em Fortaleza e interior do Ceará. Esses “educadores dançantes” e “artistas
educadores” interagiram e colaboraram com experimentações inéditas em
danças afroancestrais propostas por mim, tendo como base as narrativas,
gestualidades e simbologias dos orixás brasileiros, exercícios de/para
consciência corporal e composição coreográfica desenvolvidos pela Cia Balé
Baião em Itapipoca CE, os marcadores de pertencimento africano propostos
pela Pretagogia, o estudo compartilhado de teóricos da educação e do ensino

181
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

das artes que aprofundam a cosmovisão africana, e finalmente, a roda de


diálogo acerca das experiências desenvolvidas em cada encontro de dança
para relatos de descobertas, desafios, sensações, inspirações pedagógicas,
insatisfações e sugestões.
Desde o início do curso, a pretensão era proporcionar que cada
participante assumisse a postura de co-pesquisador do processo contribuindo
com a construção de proposições pedagógicas a serem compartilhadas
posteriormente em espaços diversos de educação, seja na escola formal, no
projeto social pertencente a associações culturais, no grupo/companhia/coletivo
artístico e nos movimentos sociais. Fomos fieis a esse propósito até o final da
formação.
As experimentações desenvolvidas ao longo do curso priorizaram o
movimento corporal como matéria viva de investigação agregando outras
linguagens artísticas que compõem as oralidades africanas: o canto, a
interpretação, a poesia, e suas implicações afetivas, ancestrais e criativas. De
acordo com Norval Cruz, o corpo é o vetor investigativo que nos tira de um
suposto conforto racional para lidar com o desconhecido, com o palpável e o
imprevisível, elementos indispensáveis dentro de um processo que almeja
suscitar mergulhos profundos, re-descopertas e fortalecer as
afroancestralidades por meio do sensorial-afetivo. Para tanto, é preciso ousar,
não temer fundir e transversalizar as estratégias metodológicas, agregar outras
linguagens expressivas nessa perspectiva de busca, experimentação,
descoberta e reinvenção corporal negra:

O que orienta a escolha da técnica ou vivência pelo/a facilitador(a), é


principalmente a busca de diferentes linguagens, não
necessariamente discursivas, que recorram a mais de um sentido
corporal e que produzam estranhamento, gerando potencialmente
dados não previsíveis, que permitam tocar a afetividade e o
inconsciente envolvidos no pensamento. (CRUZ, 2009, p.35)

Assumir essa formação como campo de pesquisa foi crucial para que
minha investigação ganhasse novas proporções reflexivas e propositivas. Por
meio de rituais de integração, exercícios de dança e jogos de criação pré-
elaborados, me inseri na roda das vivências para estar junto, descobrindo,
refletindo e recriando em interação com cada educador dançante, sem a

182
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

pretensão de induzir ou forjar resultados. Estar junto com o “outro-diferente”


em campo, é um exercício pedagógico de habitação e diálogo com lugares de
mistério, inquietação, questionamento, problematização e re-descoberta, onde
se faz necessário inserir-se nos territórios de risco que se apresentam à nossa
frente, romper com os conceitos estabelecidos, eliminar expectativas e
proteções para entrar em zona desconhecida e abrir-se para novos/velhos
conhecimentos.
Graziela Rodrigues fala sobre a necessidade emergente de
investigações processuais no campo das experiências corporais,
especificamente nos territórios dançantes brasileiros:

As pesquisas de campo situam-se como fontes, onde corpo retrata


a sua história, entrelaçando festividade e cotidiano, numa
integridade de ser de cada um. O coabitar com a destituição de
máscaras, as relações de identidade do corpo tornam-se
inevitáveis. (GRAZIELA, 1997, p. 24)

Ela enfatiza que a dança pode e deve ser uma experiência de


construção coletiva, que por sua vez gera conhecimentos de uma outra ordem
científica, a ordem da integração entre diversos, a ordem do sensível e do
relacional: “Situamos a dança como atividade em que vários corpos se
integram para gerar conhecimentos no âmbito do sensível, do perceptivo e das
relações humanas a partir de um contato direto com a realidade circundante”.
(1997, p. 23)

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Procurei adotar estratégias metodológicas favoráveis ao


desenvolvimento de processos interativos/colaborativos a serem aplicados nos
cronogramas de vivência, desde os momentos de experimentação dos códigos
de dança até suas análises. Essas estratégias foram alicerçadas nas
experiências de ensino construídas pela Cia Balé Baião73 no Ponto de Cultura

73
Companhia de dança atuante na cidade de Itapipoca CE fundada por mim em 1994. Suas
bases de investigação corporal/cênica/poética nascem de questões relacionadas ao corpo afro-
indígena ancestral contemporâneo. Ao longo de 25 anos, vem desenvolvendo metodologias de

183
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Galpão da Cena de Itapipoca CE, especificamente em sua escola livre, e nos


princípios da Pretagogia74, que sugere o “fazer coletivo” como condição
indispensável para se edificar percursos compartilhados de investigação,
assumindo o corpo como principal via de prática-estudo-construção de
conhecimento.
A formação trazia como meta principal integrar jovens e adultos com ou
sem experiência técnica em dança, atuantes em campos diversos de trabalho,
especificamente educadores do ensino formal e não formal, artistas de dança,
teatro e música, lideranças comunitárias, militantes de movimentos sociais e
acadêmicos, para edificar processos de compartilha, experimentação,
aprofundamento e criação em danças afroancestrais, assumindo a “cena
contemporânea” como lugar de ocupação e empoderamento do corpo negro
dançante, que incessantemente se reinventa e reelabora-se.
O curso se dividiu em duas etapas distintas: de abril a agosto de 2017 o
foco da formação foi possibilitar o aprofundamento e análise de experimentos
em danças afroancestrais tendo como conteúdos as corporeidades e narrativas
dos orixás brasileiros. De setembro a dezembro de 2017 o foco foi mapear e
selecionar proposições, ritos, exercícios e jogos para ensino e criação em
danças afroancestrais, resultando na montagem coletiva de uma obra artística
chamada: “Cabeças sagradas”.
Os principais conteúdos previamente planejados para a primeira etapa
do curso foram:
- Códigos de movimento corporal baseados nas danças ritualísticas presentes
no candomblé e umbanda: orixás, entidades e guias;

ensino e criação fundamentadas nos princípios de Paulo Freire: valorização do corpo


singular/plural enquanto potência inacabada, em processo contínuo de construção e
reinvenção. Os termos: “baião”, vem da ideia de mistura de ingredientes, fusão de
possibilidades dançantes, multicorporeidades.
74
É um referencial teórico-metodológico que aborda o pertencimento negro, o corpo-dança
afroancestral e a tradição oral africana nos contextos de formação de professoras e
professores. Propõe-se contribuir com a edificação de experiências educacionais balisadas
pela Lei 10.639/03 (PETIT, 2015, p. 153)

184
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

- Códigos de movimento corporal baseados nas expressões de dança afro-


indígena cearense: maracatu e torém tremembé75;
- Improvisação corporal a partir de repertórios de movimentos afroancestrais,
de códigos gestuais, signos e narrativas que compõem as expressões
dançantes afro diaspóricas.
As vivências desses conteúdos se deram por meio do seguinte conjunto
de ritos:
Formação de círculo para evocar integração e unidade entre todos/as
os/as presentes. Desenhar a roda experimentando formatos diversos;
Acolhimento e reverência ao sagrado que cada corpo traz-revela, por
meio de rituais de saudação, afeto e benção, proporcionando o exercício do
encontro de olhares, respiração compartilhada, abraços acolhedores, benção e
canalização de axé;
Mitos pessoais: Compartilha e escuta das histórias e mitos pessoais
onde cada pessoa deverá contar de si, dos seus trajetos de vida, rememorando
lugares, pessoas, acontecimentos importantes, medos, superações, desejos,
evocando primeiramente os seus ancestrais próximos: pais, avós, parentes
vivos ou desencarnados;
Edificando corpos plurais/conscientes: Localização e percepção
sensorial de todas as partes do corpo dançante, desde os pés (raiz ancestral,
ponto de partida, gerador de caminhos) até a cabeça (orí, lugar do orixá
pessoal, singularidade) vislumbrando ativar as potências de cada uma delas na
perspectiva de compor um corpo integral dançante, onde não existe um só
centro gerador de energia, mas centros diversos localizados em todo o corpo
que trabalham em rede de comunicação e colaboração.

75
Os Tremembé mantêm a dança do torém como sua expressão cultural mais singular. É uma
dança de roda, acompanhada por canções que misturam palavras em português com palavras
de origem indígena na forma de quadras. No centro do círculo, fica um ou dois dançarinos, os
toremzeiros, que dançam por meio de passos compassados e alguns razoavelmente
estilizados. Os dançarinos são acompanhados pelo som do maracá. Ao longo da dança, os
dançarinos consomem uma bebida fermentada de caju, conhecida como mocororó.

185
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

EXERCÍCIOS PARA CRIAÇÃO E COMPOSIÇÃO EM DANÇA CÊNICA

Ao longo do curso, cataloguei exercícios direcionados à preparação


corporal para a dança por meio de itinerários ou percursos rituais que iniciam
pelos pés, percorrem pernas e joelhos, seguem para os quadris, abdômen,
tronco, peito, ombros, braços e mãos, pescoço, rosto, cabeça, e finalmente
integram todas as partes do corpo ao mesmo tempo, propondo experimentar e
reinventar passos, movimentos e gestos de vocabulários afrorreferenciados ao
som de ritmos, cantos e músicas percurssivas. São exercícios que almejam
contribuir com o estudo, aprofundamento, conscientização e emancipação do/s
corpo/s enquanto estrutura espiral (infinitas possibilidades de ser e estar no
mundo) e policêntrica (não possui um único centro, mas diversos centros
geradores de energia que se localizam em todo o corpo).
Destaco nessa busca dois itinerários de vivencias:
- Itinerário 01: Exercícios codificados, visando fornecer treinos corporais
afrorreferenciados pela prática de códigos de movimentos e gestos;
- Itinerário 02: Exercícios de improvisação, práticas de criatividade, autonomia
e liberdade visando gerar/compartilhar movimentos dançantes
afrorreferenciados, agregando estímulos técnicos e intuitivos do corpo singular.
Todos os exercícios buscam valorizar a individualidade e pluralidade dos
corpos, proporcionando dois momentos específicos nas suas séries:
- Práticas individuais: percepção e consciência de si mesmo;
- Práticas coletivas: conexão com o outro/diferente;
Em todas as séries de exercícios o desenho da roda (Gira espiral) se
fará presente como ação ritualística/metodológica, proporcionando que os
treinos e experimentações corporais se desenvolvam de maneira circular,
agregadora e integrativa. Sendo assim, mesmo os exercícios voltados a
práticas individuais de dança, terão características e formatos coletivos nas
suas execuções e vice-versa.

186
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

PRÁTICAS DANÇANTES – RITOS DE DANÇAR

Entre tantos dizeres potentes sobre as poéticas do corpo, Eduardo


Oliveira (2007) nos diz que: “o corpo é diverso, integral e ancestral”. Ele é
diverso, pois é composto por múltiplas memórias, atravessamentos e
aprendizados que extrapolam o conceito de fisicalidade. É para além da pele,
ossos e músculos. Cada parte do corpo é um signo que revela sentimentos,
emoções, desejos, buscas, achados, inquietudes, uma complexidade de
mundos. Com as mãos posso falar de doação e compaixão, com os pés posso
falar sobre trajetos de vida, legados, avanços e recuos, com a bacia posso falar
de fertilidade e vida. Dentro de uma cosmovisão africana somos feitos de
anatomias simbólicas, onde em tudo e em todos se encontra significados
sagrados: “O corpo é revestimento do sagrado. Sendo simbólico, é o sagrado
revestido” (OLIVEIRA, 2007, p. 04).
Esse corpo é integral, por que agrega, conecta e funde todas as suas
partes em uma totalidade. Nenhum membro integrante age sozinho. O corpo
sozinho é em si uma estrutura conjunta: “o corpo é a máxima realidade de um
ser” (2007, p. 11).
Nessa perspectiva, seguem exercícios de dança, ritos de dançar, que se
propõem gerar experiências de integração das partes do corpo na ação
dançante, vislumbrando edificar uma consciência corporal ampla, capaz de
localizar, ativar e potencializar as pequenas e grandes partes do corpo em um
todo. Sua meta principal é romper com o conceito clássico de centro e periferia
do corpo para conceber um pensamento de multi-centros ou multi-localizações
de pontos geradores de movimento corporal.
- Pontos, batidas e raspadas em duplas:
1ª etapa - Pontuações
As pessoas serão convidadas para ficar em duplas e ocupar um local no
espaço. Um dos pares terá a função de tocar (oferecer) e o outro de ser tocado
(acolher). A pessoa que será tocada deverá escolher uma posição para ficar:
sentada, deitada, de pé, etc., enquanto que o/a parceiro estará pontuando com
as mãos partes de seu corpo. Nesse momento a música ambiente poderá ser
um reggae, um xote ou um baião, ritmos que evocam para dança a dois. Quem
está sendo tocado poderá mudar de posição corporal conforme a necessidade,

187
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

exemplo: da posição sentada passar para a posição deitada; experimentando


possibilidades de ficar parado recebendo os toques e ao mesmo tempo de se
movimentar motivado por eles. As pontuações acontecerão com as mãos
abertas e terão pausas para que se componham imagens resultantes dos
toques e locomoções. Os toques/pontuações deverão ganhar velocidade e
ritmo, consequentemente a pessoa tocada deverá acelerar suas mudanças de
posição corporal e construir um suingue que envolva todas as partes do corpo;

2ª etapa – Batidas
As pontuações com toques de mão deverão ser transformadas aos
poucos em batidas, como quem toca um pandeiro ou tambor. O corpo da
pessoa tocada se tornará um instrumento percussivo de onde se tira som,
ritmo, movimento e alegria. As batidas poderão ganhar velocidades e
dinâmicas diversas no corpo/tambor, que estará livre para ajudar a compor a
música batendo em si mesmo e liberando sons com a própria boca. Nessa
confluência musical dançante não há regras determinantes ou limitações de
comandos. Os pares podem gerar outras possibilidades de contato, locomoção
e movimentação conforme as necessidades que irão surgir ao longo do
experimento.

3ª etapa - Raspadas
As batidas de tambor deverão aos poucos se transformar em gestos de raspar,
deslizando as mãos para baixo, cima, lados, em linhas retas como quem risca
e corta a pele do outro, como quem limpa, purifica e retira impurezas. As
raspagens poderão ganhar velocidades, ritmos e dinâmicas diversas à
proporção que os corpos interagem entre si e constroem locomoções no
espaço;

4ª etapa – Mixagem das três ações


Nessa última etapa a proposta é que todas as qualidades de movimento
anteriores sejam experimentadas ao mesmo tempo. O par responsável pelos
toques de mãos terá autonomia para escolher os momentos de pontuar, bater e
raspar no corpo do/a parceiro/a, se ajustando às suas mudanças de postura,
movimentação e locomoção. Que tudo seja desenvolvido em clima de

188
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

descontração, prazer e alegria, e ao mesmo tempo em atenção, respeito e


cumplicidade, pois se trata de um exercício de transmissão, recebimento e
construção enérgica do começo ao fim. Concluída essa etapa, as duplas
deverão trocar de papéis: quem assumia a função de tocar passará a ser
tocado e vice-versa;

- Pontos, batidas e raspadas em solos:


Cada pessoa deverá procurar um local no espaço para ficar e uma
postura corporal a seu critério. Ao som de um rap, samba ou funck, as
qualidades de movimentação que derivam das ações: pontuar o corpo, bater
tambor e raspar a pele, serão desenvolvidas de forma individual, em solo,
seguindo o roteiro anterior:

1° - Pontuar-se com as próprias mãos enquanto se experimenta


posturas e movimentações diversas no espaço;
2° - Transformar as pontuações em batidas no corpo, buscando gerar
sons, ritmos e dinâmicas de locomoção;
3° - Transformar as batidas de tambor no gesto de raspar a própria pele,
riscando traços em linhas retas da cabeça aos pés e dos pés à cabeça;
4° - Experimentar todas as qualidades de movimentação ao mesmo
tempo enquanto gera toques, batidas e raspadas no próprio corpo, com
liberdade e alegria;

CABEÇAS SAGRADAS

As práticas do curso: “Corporeidades afroancestrais na cena


contemporânea” tiveram como principais referências os arquétipos dos orixás
brasileiros, seus mitos, e narrativas/oralidades. Ao longo do ano,
experimentaram-se exercícios de preparação corporal e composição
coreográfica que foram fundamentais para a produção do espetáculo:
“Cabeças Sagradas”, uma obra ritualística que celebrou os encontros,
compartilhas, aprendizados, inquietações, buscas e achados em coletivo. O
processo de concepção, montagem e ensaios da obra realizou-se no período

189
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

de setembro a dezembro de 2017 e contou com a participação efetiva de todos


os participantes do curso.
Em cena dançaram empoderados/as e integrados/as 31 pessoas, 31
afetos... Alguns pela primeira vez, outros já tinham experiência, no entanto
todos/as estrearam uma experiência cênica inédita de dança afroancestral,
onde o foco não era mostrar um trabalho espetaculoso e distante do público,
mas um rito cênico construído em tempo real, se aproximando, interagindo e
dialogando com as pessoas, subvertendo os conceitos eurocêntricos de palco
e caixa cênica para propor uma atmosfera de acolhimento, afeto, emanação de
axé, alegria e esperança. Um acontecimento espiritual dançante.
O “Cabeças Sagradas” estreou dia 15 de dezembro de 20 as 19hs no
espaço: “Tempo Livre Espaço de Consciência Corporal” de Norval Cruz situado
no Cocó, Fortaleza – CE, e contou com a participação de um público querido
formado por familiares dos participantes do curso, amigos, colaboradores,
artistas, educadores, estudantes e pesquisadores. Uma noite de
empoderamento e afirmação das africanidades cearenses que por certo
marcou a história da dança no estado. A obra na íntegra encontra-se no canal
de Gerson Moreno (Youtube), bem como documentários dos processos
desenvolvidos ao longo do curso.

RELEASE DA OBRA

No fluxo de travessias, entre marés e terra firme, adentra em cena


Iemanjá, a mãe de todas as cabeças, e seu filho Omolu, o orixá da cura. Desse
encontro-abraço um novo mito ganha corpo e explode em movimento a criação
do cosmos. Materializam-se de todos os tamanhos, tempos e pesos uma
diversidade infinita de seres, sons, cheiros, cores, sabores, lugares, extintos,
desejos, divindades... Dançam Oguns, Oxóssis, Oxuns, Nanãs e Oxalás
incorporados no tempo presente do aqui e agora. Nisso, instauram-se sete
assentamentos, sete pontos de partida, passagens e chegadas, sete territórios
de habitação, interferência e transformação, sete vezes espirais e a Roda
Sagrada se faz. Laroyê Exú puxa cordões, algazarras e traquinagens, convida
o mundo para assumir as suas contradições e conflitos, impulsiona a roda para

190
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

que ela ganhe outras dimensões, estados e texturas, conduz os seres para a
encruzilhada... E retorna-se ao berço ancestral, e devolve-se a terra-mãe tudo
o que dela é desde sempre. Iemanjá reaparece entre ondas de gente. Guarda
e cuida de todas as Cabeças Sagradas até que elas precisem retornar ao
mundo dos movimentos e seguir com suas missões.

GIRAS QUE SEGUEM GIRANDO E CONFLUINDO

As experiências de luta e resistência que compõem os cotidianos vividos


pelos participantes do curso, tornaram-se disparos inspiradores e/ou narrativas
motivadoras para que as danças de cada um ganhassem significados políticos
contextualizados, exemplo: a mão que levanta a espada de Ogum para
combater o inimigo é a mesma mão do professor atual que levanta o punho
para reivindicar salário justo no protesto de rua. Os dois gestos trazem a
mesma conotação estética e tensão física que se associam aos sentidos de
empoderamento, força e enfrentamento estético-ético. Os participantes do
curso poderiam trazer presentes e/ou materializar nas suas danças esses
contextos concretos, visando elucidar a manifestação cotidiana dos orixás, para
além dos rituais e espaços religiosos estabelecidos. Nessa experiência
dançante, a vida, com seus conflitos e paradigmas complexos, passa a ser
assumida como sagrada, território de manifestação divina, terreiro de
incorporação dos orixás.
Ao longo dos meses, foi se tornando perceptível que os corpos
dançavam com mais propriedade de si mesmos, deixando fluir gestos,
movimentos, olhares abertos e atentos, sorrisos contagiantes, malemolências
surpreendentes, de maneira tranquila, prazerosa e livre, mantendo presentes
os vocabulários das corporeidades dos orixás, mas sem o peso da cobrança
mecânica de um código fechado e resolvido. Compreendi que o acesso e
adesão aos vocabulários dançantes afrorreferenciados, permitiram que as
pessoas empoderassem seus corpos com movimentos expressivos codificados
de cunho espirituais e festivos, para em seguida ampliarem seus repertórios,
construírem suas próprias danças e manifestá-las de maneira plena, com
autoestima, satisfação, prazer, felicidade expandida dos pés à cabeça e da
cabeça aos pés, em comunhão com as demais pessoas do grupo, que no

191
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

decorrer do processo deixaram de serem apenas colegas de curso para


tornarem-se membros de uma comunidade de vida, um quilombo reinventado
pelos afetos construídos e pelo desejo comum de reativar no corpo dançante
uma África possível, uma África próxima. Áfricas do aqui e agora!
Gerar práticas de retomada dos códigos de movimento afroancestral foi
crucial para se despertar potências adormecidas dos corpos, suas capacidades
dançantes negras que em muitos dos cursistas encontravam-se reprimidas,
negadas e esquecidas:

Empréstimos dessas possibilidades físicas ampliam-se para outras


formas e expressões gestuais, trazendo às danças das festas e,
consequentemente, às danças religiosas ou aquelas classificadas
como de roda, momentos de liberdade, de recuperação de repertórios
do próprio corpo, para então viver um corpo feliz – Ara Layó -, pleno
de identidade na pertença a uma tradição, a uma civilização.
(SABINO, LODY, 2011, p.81)

Mais do que “empréstimo”, os/as participantes do curso se


reapropriaram dos fundamentos, símbolos e signos corporais afroancestrais
que deles vem sendo negados desde a escravização africana até os dias
atuais, e que, no entanto, esses valores pertencem mitologicamente à natureza
do corpo sagrado, residem e habitam o mais profundo inconsciente dos corpos
afrodiaspóricos de todos os tons negros. Segundo a cosmologia dos dogons de
Mali e Burquina Faso, no interior da África ocidental, reativar as potências
sagradas do corpo dançante é retomar os sentidos do corpo como instrumento
primeiro de participação espiritual em toda a organização da criação do mundo,
do universo e do cosmos. Na fala de Ogotemmêli, informante do antropólogo
francês Marcel Griaule, o corpo é tido na mitologia dogon e em outras
mitologias africanas como morada divina, casa sagrada onde habita o criador e
as fontes de criação:

Em cada caso – da planta de uma aldeia, de um celeiro ou de uma


casa à construção de tambores, ao plano do cosmo, ao ato sexual, à
gestão do comércio, à execução da dança, à viagem da alma após a
morte -, Ogotemmêli identificou o corpo humano como principal
oráculo divino. Ele revela os mistérios da vida e do cosmo, representa
a organização da sociedade, reforça a relação entre a vida humana e
a terra e lembra à humanidade sua ligação constante com a
divindade. (FORD, 1999, p. 258)

192
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Portanto, reavivar o corpo dançante numa perspectiva ancestral é


reassumir o compromisso sagrado de co-criador, de partícipe do ato de criação
e recriação da vida na terra. Para o cumprimento dessa missão é necessário
que sejam resgatados e redimensionados os sentidos da natureza divina, que
fazem da humanidade não somente matéria física, mas um composto espiritual
em dinâmica incessante de reinvenção. Acordemos nossos orixás para a
guerrilha!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMANTINO, Marcia. Priori, Mary Del. História do corpo no Brasil/ Mary Deli
Priori, Marcia Amantino (orgs.). – São Paulo: Editora Unesp, 2011.

SABINO, Jorge, LODY, Raul. Danças de Matriz Africanas: antropologia do


movimento/ Jorge Sabino e Raul Lody. – Rio de Janeiro: Pallas, 2011.

PETIT, Sandra Haydée. Pretagogia: Corpo-Dança Afroancestral e Tradição


Oral Contribuições do Legado Africano para a implementação da Lei n°
10.639/03 / - Sandra Haydée Petit. Fortaleza: EdUECE, 2015.

MARQUES, Isabel A. Linguagem da dança; arte e ensino/ Isabel A. Marques.


– 1. Ed. – São Paulo: Digitexto, 2010.

SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade, a força social negro-brasileira./ Muniz


Sodré. – Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda, 1988.

FORD, Clyde W. O herói com rosto africano: mitos da África/ Clyde W. Ford:
(tradução: Carlos Mendes Rosa). – São Paulo: Summus, 1999.

RODRIGUES, Graziela Estela Fonseca. Bailarino – pesquisador – intérprete:


processo de formação / Graziela Rodrigues. – Rio de Janeiro: Funarte, 1997.

CRUZ, Norval Batista. Consciência corporal e ancestralidade africana


(manuscrito): conceitos sociopoéticos produzidos por pessoas de santo. Norval
Batista Cruz. – 2009. 200f. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Educação, programa de pós-
graduação em educação, Fortaleza CE.

193
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

3ª PARTE

INTERSECCIONALIDADES

194
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

“JOGANDO COM A INSTABILIDADE”:


MULHERES NEGRAS RE-IMAGINANDO EQUILÍBRIO NA DANÇA

Agatha Silvia Nogueira e Oliveira (UFBA)

Introdução

Este artigo deriva de pesquisa teórico-prática desenvolvida durante


doutorado em Performance com Prática Pública no Departamento de Teatro e
Dança da Universidade do Texas em Austin (2014 – 2019) e tem como objeto
de análise a proposta metodológica de investigação corporal “Jogando com a
Instabilidade”, que busca, a partir do corpo e da dança, pensar modos de vida
de mulheres negras na diáspora africana. A experiência de opressão
sistemática vivida por mulheres negras numa dimensão transnacional tem
exigido das mesmas ao longo da história, a criação de estratégias de
sobrevivência e ação em diferentes contextos (COLLINS, 1998; ALEXANDER,
2006; BAIRROS, 1995; EVARISTO, 2016). A proposta metodológica
apresentada aqui, nasce do desejo de pensar quais danças e corporalidades
podem emergir de práticas que se inspiram nessas experiências.

Apesar desta proposta metodológica ter sido sistematizada durante


doutorado, as inspirações e curiosidades sobre o jogo corporal com o equilíbrio
são anteriores ao doutoramento e nascem das minhas vivências como mulher
negra, dançarina, professora, pesquisadora, candomblecista, e preparadora
corporal, principalmente no universo do terreiro de Candomblé e no contato
com as danças de Boiadeiros, Caboclos e Marujos, bem como das reflexões
sobre a existência negra na diáspora africana. “Jogando com a Instabilidade”
culmina, então, da combinação de informações levantadas através de: revisão
bibliográfica nas áreas de Dança, Estudos de Gênero e da Mulher e Estudos da
África e da Diáspora Africana; etnografia crítica que incluiu participação
observante76, entrevistas e experiências práticas com as dançarinas-
coreógrafas-educadoras negras de Salvador, Edileusa Santos e Rosangela

76
O termo participação observante tem sido aplicado nos Estados Unidos e Brasil para referir-
se à um dos métodos de pesquisa utilizados em etnografias críticas, quando a/o/e
pesquisador/a/e se identifica como parte do grupo ou comunidade investigada (Madison, 2012).

195
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Silvestre, e com artistas envolvidas/os/es com seus trabalhos, e; inspirações e


curiosidades advindas das minhas vivências.

Elaboro inicialmente o conceito de eixos alternativos de ação partindo da


experiência corporal e da premissa de que existe um eixo central vertical no
qual alinhamento e equilíbrio corporal estão, convencionalmente, associados.
Marcos Duarte et al. (2010), intelectuais da área da biomecânica que estudam
equilíbrio e sistema de controle postural, por exemplo, argumentam que na
postura ereta vertical o corpo humano conta com a atuação de respostas
neuromusculares que favorecem a projeção da gravidade do corpo na base de
suporte, descrita como sendo “o polígono delimitado pelas bordas laterais dos
pés”, dando, assim, estabilidade ao corpo (2010, p. 184). No entanto, o
entendimento da postura ereta no eixo vertical como uma posição de
estabilidade é problematizado pelo conceito de “corpo universo”, elaborado por
Silvestre (2016), que percebe o corpo enquanto uma estrutura instável, a partir
de suas memórias corporais e heranças negras e negro-indígenas brasileiras, e
das suas experiências com o ensino formal da dança.77

Em 1982, Silvestre inicia seus processos de desenvolvimento e


estruturação de uma técnica de dança, descrita por ela inicialmente como
“dança de memória” ou “dança de essência” e, atualmente, sistematizada como
Técnica Silvestre. Como base de todo o trabalho técnico-corporal que Silvestre
desenvolve, está o conceito de “corpo universo” que considera o corpo como
constituído por três triângulos organizados verticalmente e conectados com os
quatro elementos da natureza (terra, água, ar e fogo) enquanto manifestações
das energias e forças dos Orixás e com os sete chakras principais da tradição
Hindu. De cima para baixo, o primeiro, Triângulo da Percepção, tem a sua base
nos ombros e vértice apontando para o topo da cabeça. O segundo, Triângulo
da Expressão, tem sua base nos ombros e vértice na direção do umbigo. O
terceiro, Triângulo do Equilíbrio, tem sua base no quadril e o vértice tocando o
centro entre os pés, pensando nos pés juntos e paralelos. Com base em
77
Ao falar de sua experiência com a dança, durante entrevista, Silvestre enfatiza as vivências e
aprendizados que teve com seu bisavô e bisavó (Caboclos) que cantavam e dançavam em
suas práticas cotidianas, e com sua mãe, Iyalorixá, dentro do universo do terreiro de
Candomblé. Além disso, Silvestre destaca sua experiência com Mestre King e o Odundê
(UFBA), como momentos importantes de reencontro e retomada da relação com suas
memórias ancestrais dentro do ensino formal da dança.

196
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

estudos da geometria sagrada, Silvestre observa que “todo triângulo que


aponta para baixo está ligado à realidade e as inseguranças” e está ligado ao
que precisa de atenção para ser alcançado (SILVESTRE, 2016). O Triângulo
do Equilíbrio é apresentado por Silvestre, então, não como uma base de
estabilidade, mas como um espaço de negociação e busca constante do
Equilíbrio.

Observando a posição do Triângulo do Equilíbrio, que tem o vértice


como o primeiro ponto de contato e apoio na superfície (plana), entendemos
que esta é uma base bastante instável, prevista para bambear. José A. Gaiarsa
(2002), que, numa perspectiva semelhante à de Silvestre, considera o corpo
como constituído por três pirâmides – todas com os vértices para baixo –
afirma que “esta forma geométrica, inerentemente instável, a todo momento
‘está pronta’ para cair em várias direções e de diversos modos!” (2002, p. 59).
Refletindo sobre essa tendência de queda em várias direções e tomando como
referência o gráfico elaborado por Silvestre, visualizo linhas oblíquas à linha
que representa o eixo vertical central; são linhas que seguem as inclinações
das arestas laterais do triângulo e que chamo de eixos alternativos de ação.

Figura 1 - Gráfico elaborado por Silvestre que simboliza o corpo universo com os três triângulos
e os elementos da natureza e Orixás que atravessam estes triângulos.

Imagem cedida por Rosangela Silvestre do seu arquivo pessoal (2016).

197
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Nessa perspectiva, quando o corpo em movimento sai da vertical e se


alinha com os eixos alternativos de ação (mantendo-se ereto) ele encontra-se
na iminência de queda. No entanto, o que argumento é que o movimento
contínuo entre eixos alternativos e o eixo vertical central, ou seja, o bambear,
possibilita o encontro de um equilíbrio em movimento. O movimento contínuo
entre os eixos é o que chamo de jogo com a instabilidade e se diferencia da
noção de desequilíbrio. Este entendimento, articulado a partir de uma
observação feita por Santos (2016), durante uma das primeiras experiências de
condução prática da proposta “Jogando com a Instabilidade” com intérpretes-
criadoras do espetáculo Mulheres do Àse: performance ritual, concebido e
dirigido por Santos, serviu como chave disparadora de toda a teorização acerca
dos eixos alternativos de ação e do jogo com a instabilidade. Naquela ocasião,
após a prática, num momento de compartilhamento de impressões, Santos
mencionou que percebia o corpo na iminência da queda mas que “não sentia
que estava em desequilíbrio” (SANTOS, 2016). Aquela observação, que agora
parece muito evidente, naquele momento transformou meu olhar sobre a
experiência e orientou minhas reflexões no sentido do entendimento de que
nos eixos alternativos o corpo, de fato, não está em equilíbrio estável, porque
não consegue parar naquelas posições, mas também não está,
necessariamente, em desequilíbrio porque não chega a cair. Então, nessa
experiência, o corpo está num lugar “entre” e encontra equilíbrio porque se
mantém em movimento, jogando com os eixos. Encontra, assim, um equilíbrio
dinâmico.

“Jogando com a Instabilidade” é uma prática que envolve exercícios de


percepção e improvisação dirigida propondo saída proposital do eixo vertical
para o desenvolvimento de habilidades físico-expressivas e criação de uma
dança que joga com a não-estabilidade. Tal proposta metodológica de
investigação corporal é uma prática que busca desafiar e expandir noções de
eixo de equilíbrio e limites de movimento, facilitando a investigação acerca de
uma corporalidade alternativa em relação à corporalidade que emerge da
exploração do movimento que toma o eixo vertical como principal referência de
equilíbrio e locomoção. Entendendo corporalidade como o “tratamento

198
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

oferecido ao corpo como um conjunto de elementos simbólicos estruturados


para um determinado fim” (MARTINS, 2008, p. 81), nesse artigo, argumento
que a experiência corporal do jogar com a instabilidade aponta para a
possibilidade do encontro de um tratamento corporal diferenciado que emerge
de tal experiência podendo desvelar novos modos de ser e estar na dança.

A percepção desse movimento de constante negociação do corpo entre


os eixos espaciais para o encontro de um equilíbrio em movimento, que exige
constantes negociações e reinvenções, é, então, associado a um aspecto da
condição de vida de mulheres negras na diáspora africana que é o de ter que
negociar constantemente com sistemas de opressão e desenvolver habilidades
para se reinventar, existir e resistir nesses espaços. Os “nós de instabilidade”,
descritos pela feminista afro-caribenha M. Jacqui Alexander (2005) como
práticas do Estado que produzem e são produtos de desigualdades, dominação
e hierarquização, afetam mulheres negras de forma contundente e tem negado
à maioria delas a possibilidade de permanência num eixo de estabilidade
social, politica, econômica e cultural. Paradoxalmente, estes nós tem
impulsionado ao longo da história muitas mulheres negras para a ação e
desenvolvimento de estratégias de sobrevivência e criação de eixos
alternativos através dos quais atuam com autonomia.

Repensando a linha central de alinhamento do corpo e jogando com a


instabilidade

O princípio da transferência do corpo entre eixo vertical e eixos


alternativos descrito nesse artigo, está ancorado na ideia de explorar o
movimento além do padrão de verticalidade, descobrindo – a partir da
transferência do peso e saída do eixo vertical - novos eixos de movimento,
numa fase inicial, na posição "em pé". Nessa experiência, os pés são a
primeira parte do corpo a experimentar as transferências diagonais frontal,
traseira e lateral, sem deixar de lado a atenção prestada ao corpo como um
todo. Dos pés ao topo da cabeça, a região abdominal do corpo é enfatizada
como um elo de conexão e comunicação fundamental entre a energia que
emerge da terra (Ayê) e a energia que deixa o corpo através do topo da cabeça

199
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

(na direção do Orum). A parte principal desse trabalho consiste no desafio à


verticalidade, momento em que são feitas as negociações musculares para
manter o controle do corpo entre posições oblíquas ou na iminência da queda -
controle que não deixa o corpo cair ou alterar sua principal superfície de
contato com o solo. O eixo vertical central torna-se um ponto de passagem e
não um ponto de permanência ou estabilidade.

Em uma progressão leve, começo a conduzir os corpos através da


experiência de transferir o peso para os dedos dos pés, empurrar os
calcanhares contra o chão e mover a parte superior da cabeça para frente, sem
perder o alinhamento: calcanhares, quadril, ombros e cabeça. Os músculos
anteriores e o centro de força funcionam resistindo à gravidade e permitindo
que o corpo se sustente nesse eixo diagonal frontal. O exercício não propõe
uma parada nessa diagonal, mas uma exploração de chegada a diagonal
frontal e retorno à posição inicial, testando os limites de cada fisicalidade. À
medida em que a experimentação avança, os praticantes são incentivados a
assumir riscos em relação a esse limite de controle, ampliando ligeiramente os
ângulos dos eixos alternativos. Nesse momento, o uso de uma das pernas
avançando em flexão, extensão ou abdução para impedir que o corpo caia
torna-se necessário. O exercício permite que o corpo de cada indivíduo exceda
seu ponto de controle como parte da investigação desses limites pessoais. O
último exercício proposto sugere deslocamento espacial como consequência
da transferência do centro de peso do corpo sem um retorno ao eixo vertical.
Os corpos transitam de um eixo alternativo (oblíquo) para outro eixo alternativo
(oblíquo) e usam a musculatura para apoiar o corpo na diagonal ou para usar
esse limite como um momento de suspensão e inversão de movimento. A
repetição e improvisações com esse jogo com o bambear provocam no corpo o
acionamento de estruturas musculares e sensações que vão contribuindo para
desvelar um estado de corpo que se distingue daquele estado observado em
um corpo que se move entre eixos verticais.

Essa exploração fora do eixo vertical também se relaciona com a


percepção da verticalidade como um padrão de alinhamento corporal europeu.
O texto de Brenda Dixon Gottschild (1998) em Digging the Presence Africanist
in American Performance: Dance and Other Contexts e o processo criativo de

200
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Jawole Willa Jo Zollar no espetáculo de dança Batty Moves (1994) reificam


essa percepção e apresentam respostas diferentes a esse padrão europeu e
colonial. Como Gottschild explica, a “coluna vertebral ereta é o primeiro
princípio da dança européia” (1998; 8) que, segundo a autora, reflete uma visão
de mundo colonialista pós-renascentista. Nessa perspectiva, a Europa seria
posicionada como o centro de controle (vertical), enquanto todos os outros
continentes funcionariam como braços e pernas, como na técnica de balé,
sendo assim controlados, com movimentos comandados pelo centro. Gottschild
usa os conceitos de policentrismo e a polirritmia africanistas78 para destacar
diferentes perspectivas e cosmologias. Em termos da abordagem distinta do
corpo, a autora aponta para as “posturas flexíveis de pernas dobradas como
forma de reafirmar o contato com a terra” (GOTTSCHILD, 1998, p. 8) nas
danças africanistas. Esse contraste entre padrões corporais nas danças
tradicionais europeias e nas danças de matriz africana também são observados
por Santos em seu artigo “Dança de Expressão Negra: Um novo olhar sobre o
tambor” (2015).

Enquanto Gottschild dedica atenção à flexibilidade em termos da


proximidade do corpo com a terra e às múltiplas direções e ritmos diferentes
que as partes do corpo são capazes de tomar simultaneamente numa
perspectiva africanista, a descrição de Zollar de seu processo criativo em Batty
Moves chama a atenção para a herança africanista nos corpos
contemporâneos femininos negros estadunidenses em termos de sua
tendência e opção de se mover delineando linhas sinuosas ou desenhando
curvas - com quadril, torsos e ombros - que tocam eixos paralelos à vertical.
Ananya Chatterjea (2003) afirma que nesta peça, Zollar “toma movimentos
tradicionais do vocabulário da dança moderna e os transforma sutilmente,
substituindo a coluna ereta e a pelve alinhada por linhas mais curvas das
costas” (2003, p. 454). Para combinar as três estéticas contrastantes, que ela
experimentou nas aulas de dança – balé clássico, danças modernas e danças
do Oeste africano - a coreógrafa concentra-se não apenas nas técnicas, mas
principalmente nos movimentos do quadril presentes nos modos cotidianos de

78
O termo africanista é usado por Gottschild para referir-se a conceitos, práticas, atitudes ou
formas de matriz africana e afro-diaspóricas. (GOTTSCHIL, 1998; tradução nossa).

201
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

caminhar e se mover das mulheres negras estadunidenses. Ao observar as


mulheres negras nos supermercados e nas ruas, Zollar explora as ondulações
alternativas adotadas por elas.

A proposta corporal “Jogando com a Instabilidade10.639” difere das


formas de Gottschild e Zollar de questionar a verticalidade européia e euro-
americana. Inspirada pela imagem do “Triângulo do Equilíbrio” presente no
conceito de “corpo universo” proposto por Silvestre a flexibilidade é observada
em termos de movimento do eixo do corpo do centro para as linhas oblíquas,
principalmente nos infinitos eixos entre as arestas do triângulo e o eixo central.
Represento graficamente essas três maneiras de re-imaginar as possibilidades
de mover e "ficar em pé" da seguinte forma:

Figura 2 - A figura representa o corpo na relação com o eixo vertical e os eixos que surgem
numa proposta estética africanista, como sugerido por Gottschild.

OLIVEIRA, 2019.

202
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Figura 3 - A figura representa o corpo na relação com o eixo vertical e os eixos curvos que
surgem no mover do quadril observado em movimentos de mulheres negras estadunidenses,
como sugerido por Zolla.

OLIVEIRA, 2019.

Figura 4 - A figura representa o corpo na relação com o eixo vertical e os eixos oblíquos que
surgem na proposta dos eixos alternativos de ação.

OLIVEIRA, 2019.

203
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O movimento contínuo como princípio existencial e o jogo com a


instabilidade no universo do terreiro de Candomblé

Movo minhas mãos enquanto falo para mostrar a Exú que estou viva.
(Iyá Nla Beata de Iyemonjá (1931-2017), em entrevista no programa RJ TV)

O princípio do corpo em movimento como sinal de existência é


fundamental para as cosmologias de matriz africana. Dentro do Candomblé,
embora Exú seja o Orixá que melhor representa essa ideia, por ser o Orixá da
encruzilhada, aquele que facilita a comunicação e dá vida à dinâmica dialética,
essa premissa é uma característica que permeia as crenças e os hábitos das
comunidades em geral. O movimento, ou o corpo em movimento, é a principal
manifestação da vida e, para quem segue essa filosofia, é fundamental mostrá-
lo em diferentes situações e maneiras, dentro de suas práticas espirituais e no
cotidiano.79 Nesse contexto, a premissa do movimento pode ser observada no
corpo dos praticantes do Candomblé no seu corpo-cotidiano e no corpo-em-
transe. A fala de Iyá Nla Beata de Iyemonjá (in memoriam) durante uma
entrevista concedida ao telejornal da Rede Globo de Televisão, chamado RJ -
TV, em 2010, na epígrafe acima, não é uma tradução simples de seus notáveis
gestos de mãos com os dedos abertos que vibravam enquanto ela falava.
Contudo, o fato dela estar executando tais gestos durante sua fala tem um
significado para ela e para comunidades que seguem uma filosofia (nagô-
ioruba) que contrasta, claramente, com o pensamento cartesiano que se tornou
a diretriz da teoria humanista em todo o continente ocidental durante o
Iluminismo: "Penso, logo existo" e que influenciou muitos pensadores por
décadas no ocidente. Nesse sentido, o pensamento cartesiano - juntamente
com o pensamento racionalista proposto por Sócrates, Platão e Aristóteles, que
associaram a existência humana à "mente" e não ao corpo é desafiada pela
versão: “Movo, logo existo”, que tem muito mais significado para as
comunidades nagô-iorubas e, consequentemente, para os grupos influenciados
por essas culturas.

79
Tal afirmação é baseada em experiência vivida como abiã num terreiro de Candomblé (Ilê
Omiojuaro – RJ) desde 2009 até os dias atuais.

204
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Na proposta “Jogando com a Instabilidade,” encontrar o equilíbrio só


torna-se possível pelo movimento contínuo entre os eixos alternativos de ação
e o eixo central e, como mencionado anteriormente, minha inspiração e
curiosidade pelo jogo corporal com equilíbrio nasce dentro desse universo
nagô-iorubá, em 2009, enquanto eu participava, pela primeira vez, de uma
Festa de Boiadeiro, Caboclo e Marujo. Naquela ocasião, apesar de ser
candomblecista e frequentar o Ilê Omiajuarô como abiã80 há cerca de um ano,
cheguei à “Festa de Boiadeiro” com um olhar diferente; o olhar de dançarina-
pesquisadora que investigava junto com outras integrantes da companhia de
dança Arquitetura do Movimento as matrizes de movimento relacionadas às
diferentes vertentes do samba, nesse caso o samba de Caboclo. Nos terreiros
baianos, essa festividade específica, conhecida como “Candomblé de Caboclo”
ou “Festa de Boiadeiro”, homenageia essas entidades, tipicamente brasileiras –
os Caboclos, indígenas que viveram em um tempo mítico, antes da chegada
dos colonizadores no Brasil; os Boiadeiros, vaqueiros do nordeste brasileiro e;
os Marujos, marinheiros - e diferem completamente dos rituais e celebrações
públicas dos Orixás (NUNES e MOURA, 2015, p. 41).

Os elementos que me impressionaram e me encantaram naquela ocasião


estavam ligados à dança e aos corpos em movimento que pareciam desafiar e
ampliar noções de postura corporal, equilíbrio e formas de deslocamento. O
momento da incorporação provocava, na maioria dos corpos dos filhos ou filhas
de santo, flexões e extensões repentinas e de grande amplitude da coluna
vertebral, além de deslocamentos provocados por movimentos bruscos e com
mudanças de direção. Por outro lado, quando a entidade finalmente chegava,
ela demonstrava, em um jogo corporal, uma habilidade e controle inexplicável
na iminência da queda. Os movimentos da coluna vertebral e as mudanças de
direção não eram muito diferentes do primeiro momento em termos de alcance
e trajetória, mas eram executados com uma qualidade mais condensada. O
corpo nunca parava de se mover e a sensação de instabilidade se mantinha
presente para quem os observava andar, ficar no lugar ou dançar.

80
“aspirante, pessoa que vai nascer (bi=nascer); aquela que se submeteu apenas à primeira
etapa dos ritos de integração ao culto, isto é, à lavagem do colar.” (Lépine, 2011, p. 67)

205
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

De modo geral, o peso era transferido de forma que todo o corpo se


movia do centro ou de uma linha vertical para outras direções. Um caminhar na
direção meio-para-frente e meio-para-o-lado, deslocando-se em diagonal
enquanto o quadril permanecia voltado para a frente, por exemplo,
caracterizava uma espécie de caminhada cruzada, na qual os joelhos eram
elevados e a sensação era de flutuar ou pisar no vazio, um movimento visto
nas suas danças. O peso também era incomumente transferido durante as
danças ou os sambas, uma vez que cada Caboclo, Boiadeiro ou Marujo tinha
sua própria maneira de se mover e dançar. Enquanto pesquisadora e
candomblecista, assistindo as danças dessas entidades, parecia que os corpos
brincavam passando de uma posição de (des) equilíbrio para outra. E nessas
transições entre posições de instabilidade, aqueles corpos dançavam, se
moviam e recriavam seu próprio equilíbrio. A linha vertical era apenas uma
passagem que raramente se tornava um ponto de estabilidade onde aqueles
corpos permaneciam por longos períodos de tempo.

Inspiração e curiosidade apareciam na apreciação daquele jogo com a


instabilidade que me parecia de alguma forma familiar. Familiar pois já os tinha
visto no espaço secular, como na capoeira e no samba de roda do Recôncavo,
por exemplo, e porque, de alguma forma, me remetiam à experiência negra na
diáspora africana. Na capoeira, relaciono este jogo com o que Evani Tavares
Lima (2010) descreve como equilíbrio e equilíbrio precário. A autora afirma que
“em seu jogo de equilíbrio, a capoeira angola não renuncia a nenhuma solução
possível” e que “permanecer no equilíbrio precário, para o capoeirista, não é,
portanto, algo extraordinário, integra sua práxis, de maneira prodigiosa” (2010,
p. 51-52). Em relação a experiência negra vivida na diáspora, foi durante
discussões e reflexões junto a um grupo de artistas negras/os/es na montagem
e experimentações dos espetáculos Orirê – A saga de um herói que confrontou
a morte (2010) e O Barco, com direção de Gustavo Melo Cerqueira, no Rio de
Janeiro, que a instabilidade apareceu como condição de vida que nos acomete
desde a travessia do Atlântico até os dias atuais. Ali nasceu, então, o desejo
de, a partir daquelas experiências corporais buscar entendimento e aprofundar
reflexões sobre a experiência vivida de mulheres negras na diáspora africana.

206
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Da dança aos modos de vida de mulheres negras na diáspora africana

No campo da dança, diversas mulheres negras vêm, ao longo da


história, criando eixos alternativos e estratégias de atuação que tem permitido a
construção de espaços de autonomia e alimentado outras práticas. Silvestre e
Santos são exemplos de mulheres que tem trazido grandes contribuições neste
campo na contemporaneidade. Apesar das contribuições marcantes destas
artistas enquanto dançarinas e coreógrafas, com trabalhos apresentados
nacional e internacionalmente, destaco aqui suas propostas metodológicas,
mencionadas anteriormente, a Técnica Silvestre e a Dança de Expressão
Negra, como alternativas que tem inspirado outras ações no contexto afro-
diaspórico. A Técnica Silvestre, que tem sido ensinada em diferentes lugares
do mundo e tem facilitado a disseminação de um conhecimento advindo da
experiência e memórias corporais negras e negro-indígenas brasileiras em
cruzamento com elementos de técnicas de dança moderna (Horton, Graham,
Dunham) tem contribuído para a formação de dançarinas e dançarinos que
vem se profissionalizando e se tornando multiplicadoras/es dessa Técnica. A
estratégia, ou escolha de um modo de vida em trânsito, ou, como Silvestre
descreve, “meio borboleta”, sem se fixar num único lugar, tem facilitado
também a expansão de uma comunidade de dança transnacional.

A Dança de Expressão Negra, desenvolvida por Santos há mais de


quinze anos, busca um novo olhar sobre o tambor nas aulas de dança negra.
Tal prática propõe através de exercícios de improvisação orientados por Santos
a retomada de uma relação entre corpo, tambor e o músico percussionista, que
estimula investigações acerca do desenvolvimento de identidades corporais e
vocabulário de movimentos próprios, informadas por memórias ancestrais que
são ativadas na relação corpo/tambor tambor/corpo. Santos tem atuado no
ambiente acadêmico desde os anos 1980 e suas ações junto ao Odundê
(grupo de pesquisa da escola de dança da UFBA), na criação do NEAB
(Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros) e no ensino da Dança de Expressão
Negra para turmas da graduação durante dez anos, fazem parte do seu
ativismo dentro daquele espaço. Suas ações tem inspirado artistas em
diferentes contextos e direções.

207
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Dentre os múltiplos exemplos no contexto social e político que podem


ser vistos como parte dos jogos com a instabilidade, destaco o exemplo de
Lélia Gonzalez em suas campanhas políticas nos anos 1980. Como descreve
Bairros, em muitos de seus comícios, ao invés de proclamar discursos, muitas
vezes, Gonzalez apenas cantava sambas, pois acreditava que “os
compositores negros melhor interpretavam os sentimentos e as expectativas do
crioléu, como ela costumava dizer.” (BAIRROS, 2009, p. 8). Com isso,
Gonzalez conduzia sua candidatura por vias distintas e alternativas àquelas já
normativizadas. Como exemplo de contribuição para a construção dessas
alternativas destaco aqui também a abordagem do termo quilombo por Beatriz
Nascimento que, numa direção distinta das abordagens do termo em narrativas
historiográficas hegemônicas, propôs pensar quilombos na relação com um
“significado amplo de resistência negra em diversos espaços (não somente
físicos).” (RATTS, 2006, p. 54). Do mesmo modo, na literatura, os conceitos de
“escrevivências” (EVARISTO, 2009) e “intertices” (SPILLERS, 2003) abrem
espaço e criam alternativas para as escritas de mulheres negras que incluem
suas vivências e o que as mesmas expressam “nas entrelinhas.”

A intelectual e feminista afro-caribenha Alexander (2006) engaja com o


termo "nós de instabilidade", mencionado anteriormente, como uma alternativa
para referir-se à várias crises e práticas de dominação que produzem a
hegemonia de certos sujeitos e a criminalização, marginalização e
subordinação de outros, afirmando que todas as práticas e ideologias do
Estado são simultaneamente produtos e produtores de dominação e hierarquia.
Nessa perspectiva, os “nós de instabilidade” trabalham para tornar invisíveis,
silenciar, policiar, controlar e excluir grupos não dominantes dos principais
espaços de ação cultural e sócio-política. Com o conceito de eixos alternativos
de ação e do jogo com a instabilidade propõe-se aqui reconhecer também um
outro lado dos “nós de instabilidade”; o que provoca a recriação e a reinvenção
daquelas/es que são mais afetadas/os/es por seus efeitos perturbadores. Em
outras palavras, afirmo que, à luz das condições desfavoráveis impostas pelas
forças hegemônicas, as mulheres negras - em vez de recuarem e se
adaptarem aos eixos alternativos e à iminência da queda como lugar onde elas
devam se fixar, através do jogo com a instabilidade elas tem encontrado novas

208
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

maneiras de operar individualmente e em coletivos com autonomia,


perpassando tanto os espaços não-hegemônicos quanto os hegemônicos. Ao
afirmar isso, não pretendo construir ou interpretar a opressão como necessária
ou como uma “vantagem.” Contudo, pretendo destacar a capacidade criativa e
prática dessas mulheres de reverter situações e significados em diferentes
espaços e contextos.

Considerações Finais

A proposta de pensar os modos de vida de mulheres negras na diáspora


africana a partir da experiência corporal sugere o desvelar de novas
corporalidades e novos modos de ser e estar na dança. Ao pensar o corpo
enquanto uma estrutura inerentemente instável, percepção que fundamenta o
conceito de “corpo universo” (SILVESTRE, 2016), e ao entender que jogar com
a instabilidade não significa “estar em desequilíbrio” (SANTOS, 2016),
“Jogando com a Instabilidade” busca a expansão dos entendimentos sobre
equilíbrio corporal e desafia a noção de eixo vertical como padrão para
movimento e deslocamento corporal. Partindo do argumento de que em
movimento contínuo entre os eixos alternativos de ação e o eixo vertical o
corpo desenvolve habilidades para encontrar um equilíbrio dinâmico, constrói-
se uma base prático-teórica para reflexões acerca de experiências vividas de
mulheres negras na diáspora africana. No campo da dança, as ações de
mulheres negras têm criado alternativas e impulsionado o desenvolvimento de
novas práticas metodológicas, criações artísticas e de novos modos de estar
na dança; modos de estar fundamentados em heranças e referências negras e
negro-indígenas e nas experiências vividas numa diáspora em contínuo
processo de formação e transformação.

Referências

ALEXANDER, M. Jacqui. Pedagogies of Crossing: meditations on feminism,


sexual politics, memory, and the sacred. Dunham: Duke University Press, 2005.

209
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

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DUARTE, Marcos; FREITAS, Sandra M. S. F. Revisão sobre posturografia


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EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-


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Caboclos em Terreiros de Candomblé Congo-Angola. Revista FSA, Teresina,
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RATTS, Alex. Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz


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210
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

SANTOS, Edileusa. Dança de Expressão Negra: um novo olhar sobre o


tambor. Repertório, n. 24, p 47 -55, 2015.1.

SANTOS, Edileusa. Entrevista. 2016

SILVESTRE, Rosangela. Entrevista. 2016

SPILLERS, Hortense J. Black, White and in Color: essays on American


literature and culture. Chicago: The University of Chicago Press, 2003.

211
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

CORPAS DA TERRA, CORPAS INTUITIVAS:


NOTAS SOBRE FAZERES EM DANÇA JUNTO ÀS MULHERES
QUILOMBOLAS

Candai Calmon (UFBA)

INTRODUÇÃO

Este artigo pretende refletir sobre os fazeres educacionais em Dança, a


partir do Projeto CorpoTerritório, sujeito das minhas experiências e objeto da
pesquisa desenvolvida no Mestrado Profissional em Dança/PRODAN-UFBA
em curso. Neste momento peço agô à minha ancestralidade por construir este
espaço de escrita e sentido, dentro das responsabilidades que são cabidas à
mim neste espaço de difusão e construção de conhecimento. Peço agô a Yá
Oyá, dona do meu Orí (cabeça) para que cada palavra dita aqui flua e germine
desde o meu Okàn (coração).

As abordagens de dança e criação que são compartilhadas neste projeto


ancora-se na ideia do corpoterritório como um ponto de partida para criação e
sentido, no que se implica e convoca os saberes populares e ancestrais para a
integração da dança, do corpo movente, do movimento. CorpoTerritório pode-
se ser entendido aqui como um chamado para integração dos saberes do
corpo e dos saberes locais, no fluxo da memória e do conhecimento
experiencial que permeia cada localidade, cada terra, cada lugar. É um dançar
as nossas memórias, intuir o nosso próprio corpo e beber da fonte inesgotável
dos conhecimentos comunitários.

Convém explicar, que Projeto de dança CorpoTerritório 81 desenvolve-se


desde 2018 em comunidades tradicionais rurais e urbanas na Bahia e dedica-
se à construção de sentidos na dança a partir dos saberes locais das
comunidades tradicionais, sobretudo aqueles saberes que se vinculam à

81
O Projeto CorpoTerritório circulou, entre os anos 2018 e 2019 por quatro quilombos rurais:
Lages dos Negros, Alagadiço, Bebedouro, Patos (Campo Formoso - Bahia); e um quilombo
urbano: Cajazeiras V (Salvador - Bahia). Além de passar por territórios quilombolas e
remanescentes, o projeto foi convidado por duas vezes no ano de 2019 a construir suas
oficinas junto com as mulheres negras, cidade de Chicago/EUA no programa de intercâmbio
Close To There.

212
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

cultura popular e ao autoconhecimento feminino, como um potencial de cura


ancestral entre as mulheres e suas comunidades.

Os modos, as feituras, o saber-fazer que tem construído este projeto


estão profundamente vinculados ao corpo, a memória e ao autoconhecimento
como desdobramentos do que tenho entendido sobre a dança, sobre a
ancestralidade e sobre a diáspora. Construir estes saberes em territórios
quilombolas junto às mulheres negras tem sido um desafio prazeroso e um
campo fértil de reconstrução de conhecimentos sobre o corpo e as nossas
relações. Afinal a Dança, a ancestralidade e a memória, e a diáspora são
dimensões possuídos de ideias e sentidos que se traduzem desde a
diversidade em cada lugar, comunidade, em cada grupo, em cada bio-sujeito e
em cada corpo. Viver, portanto, estas dimensões em territórios rurais,
trouxeram-me diferentes percepções dentro das práticas de Dança dentro dos
territórios urbanos que transito.

Estas percepções estão sendo experienciadas a cada caminho e


encruzilhada do projeto ao longo destes 3 anos, entre idas e vindas aos
quilombos, e o trabalho realizado junto às corpas82 de mulheres negras e suas
experiências.

Como práticas metodológicas ou procedimentos como os tenho


chamado, o Projeto CorpoTerritório ancora-se em cinco verbos-ações: São
eles: Limpar, Sentir, Tocar, Mover e Escrever.

Limpar, Sentir, Tocar, Mover e Escrever são apresentados


propositalmente neste sentido, porque penso que o Limpar, Sentir e o Tocar
são práticas-rituais, práticas de abertura para o Mover que é própria dança
integrada e manifestada à partir destes rituais.

82
Utilizarei muito este termo ao longo do texto. “Corpas” indica uma re-feminilização do termo
corpo, na tentativa de dar enfâse à autonomia e saber do corpo feminino. Termo que também
indica o entendimento do “feminino” para além da biologia e das determinações de gênero
impostas na nossas relações no social.

213
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Oficina CorpoTerritório em Cajazeiras V, 2019. Foto Rebeca Thaís.

Arquivo Pessoal de Candai Calmon

Ritualizar para dançar tem sido um dos caminhos que escolhi vivenciar
junto ao projeto CorpoTerritório. Os procedimentos são estes rituais que
preparam o nosso território corporal/coletivo para a experiência desde o fluir, a
intuição e o sentir. Portanto, estes procedimentos que compõem o Projeto
CorpoTerritório são práticas que objetivam sensibilizar o corpo, mergulhá-lo
nos seus próprios sentidos. E é justamente na busca pelo sensorial que temos
possibilitado uma prática de dança, de movência mais integradas e conectadas
com o corpo: corpo individual e corpo coletivo.

Estas escolhas favorecem a diversidade de caminhos trilhados pelo


CorpoTerritório e tem o objetivo de promover e multiplicar práticas artísticas de
dança para o mantimento do autocuidado e da busca corporal entre mulheres,
como também fortalecer os saberes locais, e sobretudo viabilizar os
protagonismos de mulheres negras neste percurso. Fortalecendo assim, estas
corpas-saberes, corpas-da-terra constantemente invisibilizadas em uma
sociedade excludente na qual vivemos.

214
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Reflexões e Compreensões desde Experiência: Corpo-Quilombo

Os pontos de partidas para estas reflexões, o que inclui também esta


escrevivência83, são as minhas experiências como artivista e educadora, das
quais são tecidas ao longo dos últimos anos no campo das minhas anDanças e
militâncias. Experiências guiadas por muitas questões. Quais danças
alimentam as minhas trajetórias? Quais territórios alimentam as minhas
danças? Quais narrativas políticas tenho elegido como mulher negra, no fluxo
dos meus caminhos artísticos/educacionais em diáspora? Como construir
práticas de movimentos em contextos territoriais quilombolas junto a mulheres
negras? Quais epistemes do corpo são eleitas neste percurso? A quem
interessa estas buscas?

Assim, a indagação dá lugar, então, a proposição e ao convite de pensar


de modo ampliado e com o outro. Afinal, o projeto de dança em curso é
atravessado (e modificado) por experiências comunitárias, específicas de cada
contexto quilombola. Nesta experiência as reflexões não partem somente da
dança e para dança, mas se estabelece junto a um conjunto social, político,
cultural dos territórios em que ela se manifesta.

Portanto, para refletir sobre as danças construídas e manifestadas


desde o Projeto CorpoTerritório nos quilombos, tal como os desdobramentos
de experiências com mulheres negras quilombolas, se faz preciso afinar a
escuta e o olhar para as histórias de luta e para as múltiplas ressignificações
de sentido que envolve estes territórios.

Para tanto, o quilombola, intelectual e líder comunitário Nêgo Bispo


(2007), nos chama atenção sobre a incessante luta dos territórios quilombolas,
especificamente do norte e nordeste brasileiro, frente a continuada colonização
em que as comunidades quilombolas estão submetidas. Para Bispo a
colonização territorial e simbólica não terminou, e esta guerra requer

83
Escrevivência é um termo cunhado pela escritora e intelectual negra, Conceição Evaristo.
Como forma de aproximar as nossas experiências do cotidiano com as nossas escritas, a
Escrevivência é também vista hoje por muitas/os intelectuais negras/os como método de
investigação nas Ciências Sociais e Humanas e Psicologia Social (SOARES; MACHADO,
2017). Atrevo-me a dizer que também no campo da Dança temos construído escrevivências
corpadas nas nossas produções, pesquisas, investigações.

215
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

estratégia, movimento de luta e defesa por parte dos povos “contra


colonizadores” (p.47).

Os povos originários e os povos dos quilombos são os/as contra


coloniais que resistem primordialmente desde suas culturas e seus modos de
significação da Vida, em um mundo permanentemente colonial:

Vamos compreender por colonização todos os processos


etnocêntricos de invasão, expropriação, etnocídio, subjugação e até
de substituição de cultura pela outra, independentemente do território
físico geográfico em que essa cultura se encontra. E vamos
compreender por contra colonização todos os processos de
resistência e de luta em defesa dos territórios dos povos contra
colonizadores, os símbolos, as significações e os modos de vida
praticados nesses territórios. (BISPO, 2007, p.47)

Portanto, residir em um território quilombola é em si mesmo um ato


histórico de resistência e contracolonização. E este poderá inspirar a nós
artistas nos nossos modos de produção nas cidades, nas narrativas artísticas e
nas nossas linguagens que construímos desde e para os nossos corpos,
nossas culturas, nossos agrupamentos.

Porque, se pensamos os modos de vida em um remanescente


quilombola como um modo de resistência e liberdade84 que poderá inspirar os
nossos modos de viver outros em uma sociedade - e espelhá-los, por exemplo,
às nossas danças construídas e difundidas nas zonas urbanas, o que
encontraremos? Quais acionamentos a luta histórica dos povos quilombolas no
Brasil, tem a despertar em nós artistas? Quais modos de relacionar-se destes

84
Para está ideia acalento-me e referencio-me nas proposições da historiadora negra Beatriz
Nascimento, que nos restituiu a ideia de quilombo como território de liberdade (NASCIMENTO
1982 apud ALCÂNTARA 2017, p.9) deslocando através do seu extenso trabalho os
pensamentos científicos e institucionais sobre os sentidos dos quilombos reduzido somente a
espaço de fuga e resistência nos contextos coloniais vividos aqui no território brasileiro. A partir
deste território de liberdade, penso que os quilombos podem se retraduzir (e re-atualizar) em
nosso próprio corpo, em cada camada que nos compõem, como possibilidade de investigarmos
dentro de nós mesmas os reais sentidos que compõem a nossa vida. E assim, entrar em
contato com o sentido de liberdade corpado e que se potencializa no mover-se em Dança.
Afinal, quais os acionamentos de liberdade a dança proporciona e conecta com as experiências
restituídas no aquilombamento de agora?

216
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

povos inspira-nos a estabelecer uma vida de respeito, amor e amadurecimento


aos nossos territórios ancestrais, físicos/corporais, narrativos,85 etc.?

Neste sentido, creio que vale também refletirmos sobre a nossa relação
com a Natureza e portanto com, nosso corpo, dentro de uma perspectiva
negra, comunitária e quilombola.

Para pensar a nossa relação com a Natureza em uma perspectiva contra


colonial e quilombola Nêgo Bispo no decorrer do seu trabalho, nos presenteia
com a ideia de “biointeração” (2007, p.81). Ao contrário de compreender a
Natureza como algo fora de nós, fragmentada, dissociada e passível de ser
explorada, comumente vista nos discursos coloniais ocidentais que adentraram
nossos corpos, saberes e sentidos86 - a relação com a Natureza à partir da
biointeração em Bispo é a compreensão que somos co-criadoras/es das
realidades e estamos conjuntamente nos relacionando e interagindo. Esta
ideia, segundo Bispo está primordialmente inserida nos saberes comunitários
dos povos originários e dos povos quilombolas, como valores e princípios
ancestrais.

Estar, portanto, em biointeração é compreender e sentir que tudo na


natureza é resultado de uma inteligência, de uma organicidade e que nem
sempre as nossas racionalidades - sobretudo àquelas treinadas e forjadas na
compreensão ocidental/colonial dos sentidos - poderão compreender (2007).

85
Sobre esta reflexão de como os quilombos podem inspirar as nossas práticas artísticas tenho
pensando sobre isto, desde 2016 no curso das minhas andanças pelos quilombos. Junto com
a Dança tenho adentrado as comunidades quilombolas para compartilhar e trocar saberes
desde o corpo, o movimento e conhecimentos artísticos. Em 2017, através do projeto e
residência artísticas “Dendêar”, dirigido pela artista baiana Ariana Andrade e artistas
colaboradores pudemos adentrar os territórios quilombolas do recôncavo baiano e baixo sul.
Foram eles: Quilombo do Dendê (Cachoeira), Quilombo Jatimane (Nilo Peçanha), Quilombo
Mulungu (Boninal) e também no bairro de Periperi (Salvador). Além destas andanças junto ao
projeto Dendêar, tive a oportunidade de conhecer o Quilombo do Cambury (Ubatuba, São
Paulo) e conhecer um pouco das resistências negras e originárias que residem naqueles
territórios. Estas experiências impulsionaram a criação e gestão do Projeto CorpoTerritório e
seus desdobramentos, como a pesquisa no Mestrado Profissional em Dança da UFBA e deste
presente artigo.
86
Para compreender mais esta questão da colonização nos nossos corpo-sentidos, penso que
a feminista Franchesca Gargallo (2013) traz uma excelente contribuição desde as perceptivas
das organizações de mulheres chicanas e seus territórios nas fronteiras do México. Os saberes
comunitários ancorados nas ancestralidades dos povos originários, indicam caminhos de
descolonização dos sentidos na construção de diversos entendimento sobre o nosso corpo, a
natureza, as nossas relações.

217
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Para mim, é preciso corpo, é preciso movência em dança para construir um


fluxo desta organicidade e integração.

Isto nos leva ao resgate dos modos comunitários das relações dos
povos quilombolas, indígenas ou dos povos rurais do sertão, do cerrado e
beira-rio como espelho de um entendimento, que compreendo como ancestral,
para ver a nós mesmos, as outras/os e a Natureza como uma unidade
interativa. Viver da terra e honrá-la através do canto, da música, da dança, do
alimento, dos movimentos comunitários são modos de resistências contra
coloniais, que podem inspirar nossas construções artísticas, por exemplo, nas
cidades.

Construir danças nos quilombos ou refletirmos sobre as nossas práticas


artísticas em territórios-outros é primordialmente, compreender estas relações
que estão presentes nos modos de organização do povo preto, ou nos diversos
aquilombamentos que re-existem desde o início da colonização até agora. Seja
territorial ou simbólico, nas áreas rurais, urbanas ou suburbanas, quilombo é
símbolo de resistência e renascimento. E neste sentido, o professor Flávio dos
Santos Gomes (2015) nos alerta em não pensarmos/sentirmos os quilombos
territoriais (e aqui, corporais) como “um passado imóvel, como aquilo que
sobrou (posto nunca transformado) de um passado remoto” (2015, p.7). Mas
ressiginificá-los a partir do fluxo contínuo do nosso próprio corpo negro em
diáspora, das nossas ancestralidades e trajetórias.

E pensar quilombos e suas sujeitas mulheres no contexto da dança,


talvez seja necessário restituir as ideias que ancestralmente compõem estes
territórios, como a biointeração, os valores comunitários e a própria ideia dos
quilombos como territórios de liberdade e inspiração.

E assim compreendo, desde a experiência, que para adentrar estes


territórios é preciso tomar em consideração estas lutas e vê-las, senti-las como
memória de um corpo comunitário, corpo de uma ancestralidade possuída de
história, significações e valores. Compreendo a força histórica presente nos
remanescentes quilombolas e vivencio desde aí a dança nestas localidades.
Este é o meu agô! Este é meu pedido de licença.

218
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Corpas da Terra: Intuição, Mover e Memória

Como já foi dito anteriormente, as criações em dança do Projeto foram


constituídas a partir dos 5 procedimentos metodológicos: Limpar, Sentir, Tocar,
Mover e Escrever87. Mas aqui, gostaria de refletir sobre o procedimento Mover,
nas experiências com mulheres quilombolas, especificamente do Quilombo
Alagadiço (Bahia), trazendo primeiramente acerca deste procedimento e logo
as nossas vivências e experiência em Dança.

Neste sentido, o procedimento Mover é uma proposição de criação


contínua e coletiva.

Trata-se do penúltimo ritual da oficina CorpoTerritório e sua prática


estimula a energia, o movimento. O seu elemento simbólico é o fogo e é um
convite à Dança depois de passar pelos rituais de sensibilização (Limpar,
Tocar, Sentir). Cada movimento que surge está profundamente conectado a
cada mulher no círculo. É diálogo de movimento, um movimento como
pergunta e resposta. Aqui é a própria Dança em sua manifestação. Olhos
atentos, coração aberto e escuta na totalidade de um corpo que se relaciona.

Para esta prática, nos dividimos entre três mulheres. Nos posicionamos
e caminhamos em círculo, e deixamos que a Dança flua nesta circularidade.
Nos movemos no fluxo deste encontro, a partir do toque, do olhar e da
presença. Cada movimento que surge se transforma em uma criação contínua
entre as três. Dançamos em movimento circular, criamos uma sinergia entre
nossos movimentos. Deixamos que a própria dança nos guie, nos leve e nos
abrace.

87
Importantíssimo destacar que estes procedimentos metodológicos são práticas para
o Dançar, práticas para o mover e intuir com todo corpo. Longe de separá-los como
práticas independentes uma das outras, ou até mesmo de negar a potência dançante
que existe no interior de cada um deles - os mesmos foram concebidas para ser uma
preparação, um ritual de início para o corpo em movimento.

219
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Oficina CorpoTerritório no bairro de Cajazeiras V, Salvador, 2019.


Foto Rebeca Thaís. Arquivo Pessoal de Candai Calmon

Esta prática é um momento precioso para dançar e criar juntas. Permite


que as corpas se abram, se expressem e dialoguem com beleza e magia. No
Quilombo Alagadiço dançamos em conexão no entrelaçamento dos sentidos
para uma criação conjunta. E para chegar até aqui, foi preciso caminhar e
sensibilizar-se. Foi preciso os olhos fechados, o toque, o despir, desnudar-se, o
tocar e o deixar ser tocada. Chegamos aqui depois de profundos e divertidos
mergulhos.

Aqui a Dança se manifesta a partir dos sentidos primordiais da


improvisação do movimento. Improvisação como um processo contínuo de
comunicação e troca entre os corpos e os movimentos (MARTINS, 2002). A
complexidade de um corpo que improvisa em movimento, e que portanto,
complexifica os sentidos das presenças, constrói conhecimento e “elabora
informações, age e conhece” (MARTINS, p.11).

Assim como nos três quilombos mencionados, esta prática foi feita no
Quilombo Alagadiço em novembro de 2018. Contei com a presença de dez
mulheres, das quais convidei-as para as práticas de Dança CorpoTerritório por

220
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intermédio da Organização Filhos do Mundo88 em parceria com o Projeto Ater


Quilombola (Assistência Técnica e Extensão Rural). Estiveram jovens e
mulheres com idades entre 17 e 68 anos, negras e em sua maioria nascidas e
criadas neste território. Fizemos as práticas ao ar livre, pois não havia um lugar
disponível para as nossas práticas. A oficina que durou entre 1h e 1:20h, teve
além de mim, a mediação da artista e pesquisadora Ariana Andrade.

A nossa busca em compartilhar este projeto era de inicialmente trazer


práticas de autocuidado para o dançar, como: a automassagem, para
minimizar os principais pontos de tensões em nosso corpo (rosto, pescoço,
ombros, braços, lombar, panturrilha e pés); trazer as práticas de respirações
profundas para sensibilizar a escuta e o estado presença como caminhos de
conexão e integração com a dança.

O que era e continua sendo importante pra mim é perceber quais


significados estas mulheres dão em cada prática que compartilhamos, e como
elas experienciam a partir de seus próprios termos, de suas memórias e
conhecimento local.

A experiência com estas mulheres ao ar livre foi uma explosão de alegria


e sentimento múltiplos. Muitas delas relataram nunca ter feito práticas de dança
e que ali, sendo a primeira vez tudo era estranho, engraçado, diferente. Demos
muitas risadas enquanto dançávamos e tocávamos uma as outras. Algumas
sentiam vergonha, outra riam tanto que não conseguiam entrar na prática.
Todas as sensações que viam, eram bem vindas e acolhidas.

Vivemos sentimos profundos. Em cada círculo e práticas dos


procedimentos tínhamos um mundo novo a ser mergulhado. O tocar-se, o
massagear-se, o olhar nos olhos, o fechar os olhos, o mover em dupla, trios…
tudo era intenso e forte para cada uma de nós. Para mulheres, que nunca

88
A Organização Filhos do Mundo (FEME) é uma entidade pública que atua na implantação de
políticas públicas e sociais, voltadas para a Economia Solidária e para o comércio justo,
fomentando e fortalecendo a agricultura familiar, o artesanato e as produções comunitárias.
Através do apoio financeiro da FEME puder adentrar os quilombos e realizar o Projeto
CorpoTerritório no período de duas semanas, em novembro de 2018 e agosto de 2019. Para
saber mais sobre esta organização acesse: http://feme.org.br/

221
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

tiveram experiência com estas práticas, se tornou um desafio prazeroso


experimentá-lo e disponibilizar o seu corpo/espírito para esta vivência.

Oficina CorpoTerritório, Quilombo Alagadiço. 2018.


Arquivo Pessoal de Candai Calmon

222
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Se Dançamos com nossos corpos-memórias, dançamos também as


nossas ancestralidades e linhagens, os legados das/dos que vieram antes e
abriram nossos caminhos para estarmos justamente aqui, dançando.
Dançamos, portanto, nosso quilombo/corpo/território movemos suas terras e
seus segredos através do calor e da união dos nossos corpos. Dançamos para
estarmos vivas, dançamos livremente um ritual de passado-presente-futuro
materializado no agora. Dançamos nossas dores na dimensão da cura, nossos
medos na dimensão da alegria, coragem e da ressignificação.

Palavras nos faltam para expressar uma vivência com os corpos/saberes


de mulheres quilombolas. Cada corpo presente é uma continuação de uma
história viva, de um saber em biointeração com a força ancestral que compõe
cada território. Somos corpas da terra, corpas que intuem e constroem as
nossas trajetórias desde a memória ancestral que nos envolve.

A ancestralidade aqui portanto, toma um lugar importantíssimo, onde


costura cada fazer, cada sentido-objetivo e cada materialidade destas
experiências. Penso esta ancestralidade como um espiral visível-invisível de
saberes possuídos de vida e inteligência, um acasalamento dançante entre o
passado, presente e futuro. A ancestralidade como “um sentido para o sentir”
(ALDIBÂNIA 2014, p.134), que nos envolve em um manto experiencial, e
convoca as nossas existências à busca incessante de quem somos, de onde
viemos e para onde vamos.

Considerações Finais

Esta escrita pretendeu pensar os procedimentos metodológicos de


dança, desenvolvidos com mulheres negras a partir do projeto CorpoTerritório.
Vimos algumas das implicações específicas dos contextos dos quilombos e
refletimos a dança, o corpo e o mover dentro destas experiências.

Nas dimensões da Dança, intuição e memória pudemos refletir sobre as


construções de saberes artísticos femininos, cujo conhecimentos tem sido
negados (e demonizados) por cosmovisões coloniais ao longo das histórias.

223
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Para nós mulheres negras em diáspora, estes saberes nos impulsionam e nos
movimentam em direção a busca dos nossos próprios corpos-danças, corpos-
sentido como produtores legítimos de conhecimento, resgatando as nossas
biointerações nas nossas trajetórias vivas, cujo os saberes foram
comprometidos e invisibilizados. Corpamos portanto desde a memória e desde
intuição, outros circuitos de afeto e resgate distintos das políticas de
apagamento do biopoder, para que os nossos corpos ocupem a centralidade
dos saberes e fazeres, nos mantendo vivas, acessíveis, visíveis.

As reflexões aqui tecidas pretendem convocar artistas/artivistas,


educadoras/es, pesquisadoras/es etc. preocupadas/os em processos
experienciais de dança em territórios não urbanos como resgate das memórias
e saberes ancestrais, no qual atuam-se as corporalidades femininas
decoloniais e suas tentativas de ressignificações em todos os aspectos
possíveis da vida.

Esta escrevivência também é um convite para refletirmos enquanto


mulheres negras e da diáspora, sobre as nossas tomadas de decisões
artísticas dentro das nossas comunidades e para além delas, como nos
ambientes acadêmicos e a importância de produzirmos nossos próprios
termos, partindo da potência que são as nossas experiências no mundo. Tanto
as práticas da vida como as do Projeto CorpoTerritório, e esta escrevivência,
para que sejam visíveis e fluentes, no campo da dança e da educação,
construindo, cada vez mais, novos olhares e saberes diaspóricos.

Por fim, pretendo profundamente que esta escrita seja mais um caminho
de acendimento de sol, como sugere a pesquisadora Aza Njeri (2020, p.1), no
exercício de despertar as potencialidades femininas no interior dos corações de
mulheres negras, viventes em territórios urbanos e rurais. Neste acender os
nossos Sols para a construção de uma qualidade de futuro também me
reconstruo, me refaço como educadora que reverencia as experiências
conjuntas, quilombistas, ancoradas na memória e no legado dos e das nossas
ancestrais.

Àṣẹ!

224
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Referenciais Bibliográficos

ALCÂNTARA, Débora Menezes. A categoria política quilombola na


encruzilhada: um olhar Possível do Encontro das Vertentes Epistêmicas
Decolonial e das Autoras Amefricanas Beatriz do Nascimento e Lélia Gonzalez.
ARTIGO PARA XVI CONGRESSO INTERNACIONAL FOMERCO. UFBA,
2017.

GARGALLO, Francesca. Feminismos desde Abya Yala: I d e a s y


proposiciones de las mujeres de 607 pueblos en nuestra América. Cidade
do México: Editorial Corte y Confección, 2014. p.270

-MACHADO, Adilbênia Freire. Ancestralidade e Encantamento como


Inspirações Formativas: Filosofia Africana mediando a História e Cultura
Africana e Afro-brasileira. Tese de Doutorado. Salvador. UFBA, 2014

MARTINS,Cleide. Improvisação Dança Cognição: Os processos de


comunicação no corpo. Tese de Doutorado. São Paulo. PUC, 2002.

NJERI, Aza. A Escola acende o Sol da humanidade? Blog G. Rio de Janeiro,


14 de Júlio de 2020 - Disponivel em: https://www.gabyhaviaras.com/blog-ponto-
posts/https/wwwgabyhaviarascom-/-blog-page-url-/-2018/2/23-/-new-post-titlea-
escola-acende-o-sol-da-humanidade

SANTOS, Antônio Bispo. Quilombos, Modos e Significados. Editora


COMEPI, Teresina/PI, 2007.

SOARES, Lissandra Vieira e MACHADO, Paula Sandrine. "Escrevivências"


como ferramenta metodológica na produção de conhecimento em Psicologia
Social. Revista psicologia política [online]. 2017, vol.17, n.39, pp. 203-219.

225
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

MOVIMENTO QUADRIL:
DOS RICOCHETES DA BUNDA FEMININA PRETA À CONSTRUÇÃO DE
SUBJETIVIDADE EM CONTEXTOS AFROCENTRADOS

Ana Carolina Alves de Toledo (IA UNESP)

O presente trabalho tem como objetivo estudar a potência daquilo que


denomino “danças de quadril” como construção de subjetividade feminina
negra em contextos de prática afrocentrados.

Considero, em definição por mim criada para este estudo, danças de


quadril as danças de matriz cultural africana onde há isolamento ou ênfase da
movimentação da região pélvica, com clara acentuação do quadril em
movimentos de báscula, deslocamentos laterais, chacoalhos e movimentos
sinuosos e circulares (tal qual o “rebolado”), em diferentes níveis e
intensidades.

Estética de dança valorizada e praticada há séculos em comunidades


africanas e afro-diaspóricas (GOTTSCHILD, 2003), são muitas as danças que
têm sua narrativa pontuada pelas movimentações de quadril. No Brasil, o funk
é sua grande expressão atual, mas podemos citar também o pagode baiano e
o samba dançado em contextos urbanos. Elizabeth Pérez (2016), em seu
trabalho sobre a ontologia do twerk (dança de quadril afro-americana), pontua
outras danças caracterizadas por esta estética como a rumba (Cuba),
dancehall (Jamaica), sabar (Senegal), makossa (Camarões), kuduro (Angola) e
kwassa kwassa (Congo).

A minha intenção com esta definição não é reduzir estas danças, estas
manifestações culturais, e suas origens africanas a um único aspecto, mas sim
reconhecê-las como parte de um movimento cultural que se hibridiza entre
suas diferentes vertentes e constantemente se reinventa, mantendo suas
singularidades mas mantendo, também, domínios comuns. A prática destas
danças em ambientes comuns a partir de suas similaridades e sob uma
perspectiva de identidade afrocentrada vem se multiplicando em territórios
diversos como festas, aulas e encontros informais, e a estes ambientes, que só
fazem crescer, chamo Movimento Quadril. E que por suas potencialidades

226
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

contemporâneas como corpo-oralidade, identidade negra performada e


afirmativa de autonomia corporal feminina, merecem ser pensados
criticamente.

Neste sentido, esta pesquisa gira em torno de duas dimensões:

A primeira dimensão que este trabalho se propõe a pensar é a


representatividade destas danças enquanto estética de matriz africana, em
choque com valores epistemológicos eurocentrados que tendem a ressignificá-
las pejorativamente. Movimentar os quadris enfaticamente em uma dança pode
ser considerado “sujo”, “provocativo”, o “tipo de coisa da qual deveria-se ter
vergonha” sob uma ótica ocidentalizada, enquanto que sob um ponto de vista
africano, “é uma forma de mover energia sexual, de incorporar a própria
sexualidade e também de desbloquear energias sexuais reprimidas”, sem que
haja nada de errado nisso (SOMÉ, 2009, p. 103). Gottschild (2003, p. 147-148),
ao falar de dança negra, destaca que “as nádegas simbolizam a dicotomia
histórica entre os princípios estéticos africano e europeu” e segue explicitando
que “do ponto de vista africano, uma postura verticalmente alinhada e uma
presença estática indicam inflexibilidade e esterilidade”, enquanto que “pelos
padrões europeus, o corpo dançante africano - articulando o tronco, o qual
abriga características sexuais primárias e secundárias - é vulgar, lascivo”.
Neste sentido, ela destaca ainda que “a presunção da promiscuidade leva aos
estereótipos sexualmente estigmatizantes atribuídos aos corpos negros
dançantes” e que por serem considerados “sexy demais”, “as nádegas
femininas negras suportavam o peso dessa crítica”.

Estas presunções nos levam à segunda dimensão a ser focada neste


trabalho. A despeito de não serem exclusivamente femininas, as danças de
quadril são destacavelmente dançadas por mulheres negras, principalmente se
pensarmos na prática destas danças em contextos comunitários, e, num
contexto “normativo heterossexual branco específico de gênero”, passaram a
ser associadas a “imagens de controle” (COLLINS, 2019) construídas em torno
destas mulheres. Estas imagens de controle, utilizando aqui a definição de
Winnie Bueno (2019), seriam uma representação específica de gênero para
pessoas negras que se articula a partir de padrões estabelecidos no interior da

227
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

cultura ocidental branca eurocêntrica”. Ou seja, assim como aprendemos a


performar o “ser mulher”, aprendemos também a performar o “ser mulher
negra”, e somos coercitivamente constrangidas a aceitar alguns papéis pela
própria possibilidade de aceitação e por possibilidades de ascensão social, as
quais nos faltam. E até que sejam questionadas, estas imagens seguem de
algum modo objetificando e mantendo mulheres negras subordinadas a uma
ideia de sexualidade feminina desviante, afetando seus processos de
subjetivação (Collins, 2019, p. 140).

Compartilho, portanto, neste artigo, parte de minha pesquisa de


Mestrado em andamento no Instituto de Artes da UNESP. Neste trecho,
discuto, especificamente, a construção e atuação de algumas imagens de
controle relacionadas às danças de quadril e suas implicações na constituição
de subjetividade feminina negra.

Descobrindo os quadris da “mulata”: um breve recorte

Pensar a construção e discussão das imagens de controle no contexto


brasileiro nos aproxima de termos muito familiares.

No contexto brasileiro existem também imagens de controle históricas


que se organizam a partir de estereótipos que tem por objetivo
desumanizar e coisificar mulheres negras, como é o caso do
estereótipo da mulata” (BUENO, 2019).

“Mulata”: termo relativo à mestiçagem típica do racismo brasileiro89, mas


que entendemos bem que se referem a mulheres negras. Sendo brasileira(o),
sabemos também a que construção estas palavras servem.

Longe de ser a única, a imagem da mulata é marcante na construção


objetificante da mulher negra brasileira. Não temos nenhuma dificuldade em
identificar quais os valores impregnados nestas imagens, massificada e
transmutada através dos tempos em torno de nossas corpas.

89
Racismo brasileiro, como em outras sociedades de origem latina é o racismo disfarçado ou,
conforme classificado por Lélia Gonzalez (2018), racismo por negação, onde “prevalecem as
‘teorias’ da miscigenação, da assimilação e da ‘democracia racial’” (p. 324).

228
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Em seus escritos, Lélia Gonzalez (2018) fala com primazia sobre as


“investidas” de exploração sexual em torno de corpas negras através dos
tempos. Faz questão de nos lembrar que imagens da “doméstica” e da “mulata”
“são atribuições de um mesmo sujeito. A nomeação vai depender da situação
em que somos vistas” (p. 196).

A mulata, então, seria a transfiguração da empregada doméstica para


um “produto tipo exportação”, onde os “atributos” da mulher negra brasileira
estariam destacados, assim como foram expostas outrora nossas ancestrais
escravizadas nuas em leilões, para fruição e consumo de seus idealizadores
racistas e sexistas:

A profissão de “mulata” é uma das mais recentes criações do sistema


hegemônico no sentido de um tipo especial de “mercado de trabalho”.
Atualmente, o significante mulata não nos remete apenas ao
significado tradicionalmente aceito (filha de mestiça de preto/a com
branca/o), mas a um outro, mais moderno: “produto de exportação”. A
profissão de mulata é exercida por jovens negras que, num processo
extremo de alienação imposto pelo sistema, submetem-se à
exposição de seus corpos (com o mínimo de roupas possíveis),
através do “rebolado”, para o deleite do voyeurismo dos turistas e dos
representantes da burguesia nacional. Sem se aperceberem, elas são
manipuladas, não só como objetivos sexuais, mas como provas
concretas da “democracia racial” brasileira; afinal, são tão bonitas e
tão admiradas! Não se apercebem que constituem uma nova
interpretação do velho ditado racista: “preta pra cozinhar/ mulata pra
fornicar/ e branca pra casar”. Em outros termos, são sutilmente
cooptadas pelo sistema sem se aperceberem do alto preço a pagar: o
da própria dignidade (GONZALEZ, 2018, p. 46).

Lélia (2018) nos traz aspectos importantes para pensarmos a imagem da


mulata. Estando ainda num lugar social ausente de privilégios, onde as
opressões de raça, classe, gênero e sexualidade não nos favorecem, a mulata
é, entretanto, louvada como possuídora de muitas qualidades admiráveis.
Todas estas qualidades são, porém, reflexos de um olhar pornográfico
heterossexista masculino (o qual iremos aprofundar adiante). Não há
favorecimentos, sob este ponto de vista, para a figura da mulata, há, sim,
abusos transvestidos de agrados, o que nos leva ao segundo aspecto a
observar.

A “alienação” imposta pelo sistema nos faz acreditar sermos especiais


por causar esta admiração e, educadas numa lógica de mercado, passamos a
desejar este lugar. Num contexto social onde as possibilidades dadas a uma

229
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

jovem negra de classe baixa são limitadas (o serviço doméstico ou serviços


operacionais similares de baixa qualificação e baixos salários) e no qual ela é
responsabilizada individualmente por sua própria ascensão social, sentir-se
admirada e acessar lugares sociais de destaque a partir de sua própria beleza
corporal pode nos parecer uma opção bem melhor. A “alienação” se dá,
entretando, no entendimento parcial desta opção. Sem a compreensão
sistêmica da situação na qual somos colocadas, permanecemos em uma
posição servil, já que manter-se neste destaque social denota alguma
disponibilidade sexual, segundo o pensamento machista racista coisificante
utilitarista. A falta de entendimento tem ligação direta com acesso à
informação, a qual também tende a ser controlada por veículos midiáticos e/ou
disciplinadores que reiteram esta opressão. Importante dizer aqui que (nós)
estas mulheres negras não estamos sendo colocadas como seres inertes,
meramente levadas a agir a partir de fora. Há, dentro do contexto colocado,
uma escolha feita e, portanto, ação, ou seja, há agenciamento dentro de suas
próprias vidas por estas mulheres. O que não há neste contexto descrito,
especificamente, é um discurso de resistência à forma como a ideologia
dominante opera, uma vez que, à sua maneira, estas mulheres estão também
tirando algum proveito disso90.

Pelo exposto talvez se conclua que a mulher negra desempenha um


papel altamente negativo na sociedade brasileira dos dias de hoje,
dado o tipo de imagem que lhe é atribuído ou das formas de
superexploração e alienação a que está submetida. Mas há que se
colocar, dialeticamente, as estratégias de que se utiliza para
sobreviver e resistir numa formação social capitalista e racista como a
nossa (GONZALEZ, 2018, p. 49).

Terceiro, esta imagem da mulata carrega algo que é, posso dizer,


inerente a ela neste contexto brasileiro: o rebolado. Seus corpos expostos e
fragmentados junto à pretensa disponibilidade sexual opressiva, são reforçados
pelo atrativo de sua dança. E não se trata de qualquer dança. A dança aqui é
aquela dança protagonizada justamente por seu atributo “admirado” há
séculos: seu quadril. Ou como diria Lélia (2018), sua bunda mesmo!

90
“Segundo Butler, enquanto a agência está ligada à capacidade de ação de um sujeito (não
transcendental) nos discursos, a resistência está relacionada não só com a ação desse sujeito,
mas também com a possibilidade de que essa ação resulte, de alguma maneira, em uma
ressignificação radical dos discursos (BUTLER, 1997 apud LOPES, 2011, p. 169).

230
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

As “mulatas”, enquanto profissionais, são dançarinas ímpares. O


rebolado qual Lélia Gonzalez (2018) se refere aqui é o movimento do quadril
inerente ao samba moderno, aquele dançado na avenida, uma manifestação
de matriz africana, cuja dança possui modalidades onde o movimento do
quadril se destaca. Associar os passos marcados pelo pé à síncopa rítmica do
quadril e à comunicabilidade polirrítmica que trazem ombros, braços, mãos e
olhares não é uma tarefa simples. Podemos concluir isto ao observar qualquer
estrangeiro se aventurando em passos de samba. Trata-se de uma dança
complexa e, como qualquer outra dança desta magnitude, exige técnica. E esta
técnica corporal negra vem sendo imortalizada através da corpo-oralidade.
Estas mulheres negras crescem em seus contextos comunitários aprendendo e
aperfeiçoando suas formas de dançar como uma grande brincadeira, com a
ludicidade que caracteriza a transmissão destas manifestações populares. E,
após uma vida de prática, exibem com maestria sua dança, seu samba
rebolado, representações das mais significativas da cultura afro-brasileira.
Sendo assim, sou contemplada pelo questionamento de Lélia (2018) ao
perguntar

Por que essas jovens negras não são consideradas como


profissionais de dança? A gente saca, então, que elas constituem
uma “espécie diferente”, que não pode fazer parte de uma categoria
profissional já existente, justamente pelo fato de serem negras. De
repente, a mulata é o outro lado da mucama: o objeto sexual (p. 111).

Chegamos no ponto onde esta questão problematiza, ao mesmo tempo,


as duas dimensões desta pesquisa: as razões pelas quais as danças negras
com grande enfoque do quadril são desqualificadas enquanto dança negra e as
razões pelas quais suas dançarinas são desqualificadas enquanto dançarinas.
E estas razões são duas faces de uma mesma moeda: objetificação por um
sistema funcionalista, apropriação91 por um sucateamento de sentido. Um olhar
que invadiu uma cultura e as manifestações que expressas por suas corpas e

91
O termo refere-se à apropriação cultural: “o poder que uma sociedade, que se colocou no
posto de dominante, no caso pela colonização, tem para definir que as demais culturas e,
consequentemente, os integrantes dessa cultura, são inferiores em relação a ela, MAS, a partir
do momento que essas culturas ou seus elementos são apropriados pela estrutura dominante,
esses elementos perdem a inferioridade e ganham o status de exótico e/ou se tornam
lucrativos. Portanto, apropriação cultural é um fenômeno estrutural e sistêmico” (Ribeiro, S.
Afinal, o que é apropriação cultural? Portal Geledés. Disponível em:
<https://www.geledes.org.br/stephanie-ribeiro-afinal-o-que-e-apropriacao-cultural/>. 2017).

231
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

as ressignificou a seu dispor. E no que tange especificamente a figura da


mulata, entendemos que

A origem de tal “profissão” encontra-se no processo de


comercialização e distorção (para fins não apenas ideológicos) de
uma das mais belas expressões populares da cultura negra brasileira:
as escolas de samba. Sua invasão, de início, por representantes dos
setores ditos progressistas e, em seguida, pelas classes média e alta
que introduziram uma série de valores diretamente oriundos do
sistema hegemônico culminou com esse tipo de
manipulação/exploração sexual, social e econômica de muitas jovens
negras de origem humilde (GONZALEZ, 2018, p. 46).

Este sofisticado procedimento de apropriação cultural atua no sentido de


fazer a cultura popular negra servir ao propósito de manter seus interlocutores
em segmentos subordinados, uma vez que manifestações negras permeadas
com os valores hegemônicos, ou “higienizadas”, tornam-se produtos
mercadológicos da indústria da cultura, explorados social e economicamente. A
cultura popular produzida e consumida em comunidades negras, é considerada
pelos mesmos olhos que se apropriam dela como “baixa cultura”. Para tal
operacionalização, estas ideias e imagens, construídas pelas ideologias
dominantes e expressas em máximas de controle, precisam ser absorvidas em
todas as camadas sociais, uma vez que justificam a estruturação e ações do
sistema. Neste sentido, os meios de comunicação, principalmente os massivos,
constituem-se esferas fundamentais de reprodução e difusão de ideários
hegemônicos.

Este processo não se limita, de toda maneira, ao samba. Estas imagens,


que permanentemente se reinventam, se adaptando aos seus diferentes
contextos e expressando valores do pensar ocidental, agora são ainda mais
detalhadamente e massivamente trabalhadas já que, se antes eram
mercadorias em leilões de escravas, evoluíram junto ao capitalismo e
ganharam contornos de indústria, a cultural, o que também multiplica seus
lucros. Portanto, seguindo ainda a ótica da objetificação e fragmentação
corporal, antes mesmo de serem desmascaradas e terem suas significações
escancaradas, estas imagens tomam novas formas sutis de ludibriar, uma vez
que sobrevivem explorando símbolos já existentes ou criando novos
(COLLINS, 2019).

232
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

No contexto brasileiro, a imagem da mulata enquanto passista, apesar


de muito discutida criticamente no momento atual, ainda persevera,
principalmente nos momentos de reinação do samba, como no carnaval.
Entendendo, entretanto, que a eficiência de uma imagem de controle tem
relação direta com o número de mulheres relacionadas culturalmente com ela,
e também que estas imagens atualizam-se respondendo não somente a
contextos geográficos, mas também geracionais, não é difícil de concluirmos
que a grande manifestação do momento é o funk brasileiro. E dentro desta
manifestação popular negra, destacamos suas dançarinas, ou “funkeiras”.
Luciane Soares, pesquisadora negra sobre o universo funk, afirma sobre esta
imagem:

Eu não acredito que se possa afirmar que por elas usarem o corpo,
elas são aquilo que elas apresentam, apenas. Eu gosto demais de
pensar em performance. Eu acho que há uma performance dessas
mulheres. Aquelas que trabalham nisso entenderam que esse nicho
de mercado é um nicho onde o corpo é o elemento mais importante
para geração de renda. [...] o espetáculo se sobrepõe à letra e ao
protesto, esse é um ponto que eu acho que tanto para mulheres
quanto para homens. Para a mulher ainda mais, porque essa imagem
atualiza o estereótipo da mulata sensual, a mulher brasileira sensual.
[...] esse lugar dessa mulher é muito narcotizante; as pessoas –
homens e mulheres – vêm nessa forma de usar a roupa, essa forma
de dançar e mexer o bumbum, uma ideia de descolamento e hiper
sensualidade. E eu acho que essa é uma ideia muito construída,
muito performática – de fato nem todas essas mulheres são esse
boom de sexualidade, mas é um produto que gera renda, renda para
elas inclusive (apud FORNACIARI, 2011, p. 69).

Sabemos as origens e ideologias que permeiam estas construções.


Atualizando a mulata construída como “produto de exportação” (ressalto aqui
paralelos na construção destas duas imagens), as funkeiras, em processo
similar, rendem. Porém, trata-se de uma imagem ainda mais elaborada quando
comparada à imagem da mulata, uma vez que apresenta-se dividida em
categorias, conforme nos conta Lopes (2011), destacando e se aprofundando
em duas, especificamente, popularizadas no meio comunitário desta
manifestação e reproduzidas nas letras de suas músicas: a “novinha” e as
“cachorras”:

A novinha é outra personagem feminina típica encenada nos atos de


fala da cena funk. Trata-se de uma “amante” que é significada pela
sua pouca idade. Essa também é cantada nas músicas de funk como

233
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

um objeto de desejo ou como aquela que dá prazer ao homem [...] (p.


173).

[...] ao incorporar, principalmente, a performance de “cachorra” e seus


inúmeros desdobramentos (“piranha”, “puta” “boa”, “solteira”, “mulher
fruta”, “cicciolina”, “cachorra” etc.) é que a maioria das mulheres
tomou conta da cena funk (p. 177).

Ainda que nas descrições feitas pela autora prevaleçam as construções


enquanto marcação de gênero e ainda que estas não sejam, na pesquisa
referenciada, articuladas enquanto imagens de controle, sabemos que, por ser
o funk uma manifestação cultural diaspórica negra e periférica, estas imagens
são também racializadas.

Destaco, na construção destas imagens, as escancaradas declarações


de coisificação (“mulher fruta”) e animalização (“cachorras”, “piranhas”) que
acompanha historicamente o processo de objetificação e hiperssexualização da
mulher negra. Essas imagens, fixadas no imaginário social, perpetuam a ideia
de “um corpo superexplorado, sexualmente falando.

“Mulatas”... “novinhas”. Entre os processos de massificação de uma e de


outra tivemos ainda as dançarinas de pagode baiano, popularizado na década
de 90 como “axé music”.

[...] a juventude que hoje canta e dança o funk era a criança que
assistia ao Faustão apresentar, em seu programa dominical, os
concursos de loira e morena do Tchan!, e aprendeu a “ralar na
boquinha da garrafa” (FORNACIARI, 2011, p. 70).

Estas imagens hiperssexualizadas vendem. Sem novidades. Vendiam


escravas expostas com seus corpos nus em leilões. Vendiam “mulatas tipo
exportação” junto ao samba como produto nacional. Venderam inúmeras
coreografias febris protagonizadas por “morenas” ralando “na boquinha da
garrafa”. E agora vendem “liberdade sexual” ao beat do tamborzão92. Longe de
julgar ou classificar ainda mais as mulheres que protagonizam estes
movimentos e lembrando, sobretudo, que eu sou uma delas, é importante que
compreendamos, entretanto, que à parte da afetividade cultural que nos faz

92
Beat de funk criado, no final dos anos 90, a partir da cadência de batidas de atabaque
reproduzidas eletronicamente, difundida e agregada a outros elementos musicais. Esse ritmo
disseminou-se nacional e internacionalmente como grande “ritmo do funk carioca para o
mundo” (A historia do tamborzao griado (sic) por DJ Luciano DJ Cabide ano 1999. Disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=z1ZKRUAkUgs&feature=youtu.be>.)

234
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

dançar com satisfação e pertencimento cada uma destas manifestações, há


uma indústria nos vendendo. E esta venda não parte de nossas motivações
viscerais, pois nossas motivações denotam nossa subjetividade e nossa
subjetividade, pelos motivos já expostos, coloca todo este sistema opressor em
choque. O que vendeu e continua vendendo é a leitura de nossos corpos
dançantes meramente como produto pornográfico.

[...] parece-me que o funk é incorporado pela indústria pornográfica,


pois é o sexo que vende e, consequentemente, a própria funkeira
incorpora a pornografia [...] pois só assim ela pode conseguir espaço
no funk e chamar a atenção da mídia corporativa (LOPES, 2011, p.
169).

Importante que entendamos, neste contexto, que estas imagens de


controle não estão sendo absorvidas pela indústria da pornografia, mas são,
elas mesmas, parte das fundações daquilo que chamamos, hoje, de
pornografia. Fundamental entender também que o pensamento que a constitui
remonta há séculos, desde o tratamento brutal dado ao corpo das mulheres
negras escravizadas:

O tratamento que se dava, no século XIX, ao corpo das mulheres


negras na Europa e nos Estados Unidos pode ser o fundamento
sobre o qual se assenta a pornografia contemporânea como
representação da objetificação, da dominação e do controle das
mulheres (COLLINS, 2019, p. 236).

Esta objetificação, esta ideologia racista e sexista da dominação, criou


imagens iconográficas, representações a partir do corpo das mulheres negras
que orientam os espectadores para determinadas “qualidades” da indivídua
retratada, desconsiderando o conjunto de subjetividades que a humaniza. A
pornografia é, portanto, um “hábito de pensamento que reproduz relações de
dominação e submissão” (p.243), que permite usar a imaginação “para se
entregar à auto sensação que oblitera a subjetividade do observado” (p. 245),
segundo Collins (2019). Sendo este “hábito de pensamento” inerente aos
processos da escravidão das mulheres negras, sinto também contemplados
pelo raciocínio desta pensadora os processos sofridos pelas mulheres negras
brasileiras (dado sua similitude histórica de agressões sexuais) ao retomar que

As experiências das afro-americanas sugerem que as mulheres


negras não foram inseridas em uma pornografia preexistente, mas
que a pornografia deve ser reconceituada como uma transição da

235
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

objetificação do corpo das mulheres negras que visava dominá-las e


explorá-las para uma objetificação das representações midiáticas de
todas as mulheres que cumprem o mesmo propósito (p. 238).

Esta condição à qual nós as mulheres negras nos deparamos na


pornografia contemporânea, reforçada também nas imagens de controle
vendidas pela indústria cultural, nos mantém sob o foco do já retratado
sortimento de agressões sexuais históricas que busca nos regular.

Desta maneira, o sexo pornográfico, que conforme vimos sempre nos


forjou como uma mercadoria altamente vendável, agora toma contornos
midiáticos e se utiliza da apropriação e esvaziamento ontológico de nossas
manifestações culturais (onde nossas corpas dançantes e mal interpretadas
pela ideologia dominante reinam), para consumirmos sua lógica da dominação
e esta lógica nos consumir. Conforme já apresentado, este “hábito de
pensamento” comercializou nossas corpas no samba, no pagode baiano, e
agora se reinventa forjando novidades na cena funk:

[...] é preciso entender que é nesse contexto ultramodernizante, no


qual o sexo passa a ser uma mercadoria altamente vendável, que
essas personagens da cena funk atual têm lugar. Poderíamos dizer
que essas personagens refletem tal contexto, ao mesmo tempo em
que colaboram para a sua construção. Na cena funk, a sexualidade é
produzida socialmente e compartilhada publicamente, sendo também
um produto altamente comercializado (LOPES, 2011, p. 161).

Digo forjando novidades, pois a embalagem pode até ser outra, mas o
conteúdo ainda é o mesmo:

Os meios simbólicos de dominação são particularmente importantes


na mediação de contradições em economias políticas em
transformação. A exibição de Sarah Bartmann e de mulheres negras
em leilões não era um exercício intelectual inofensivo – essas
práticas defendiam interesses materiais e políticos reais. As
transformações pelas quais o capitalismo internacional está passando
hoje exigem justificativas ideológicas semelhantes. A pornografia
contemporânea acompanha as transformações globais do pós-
colonialismo do fim do século XX, de maneira muito semelhante às
mudanças globais associadas ao colonialismo do século XIX
(COLLINS, 2019, p. 241).

A indústria dos corpos objetificados segue atenta às nossas atuações,


aguardando a próxima oportunidade de nos vender aos pedaços, nos
fragmentando enquanto comunidade e enquanto indivíduo. Quando nossas
batidas musicais e corporais repetem-se com potência, quando nossas vozes

236
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

soam alto e auto-definidas, se afastando e ameaçando ideários hegemônicos,


são rapidamente absorvidas ou, segundo Butler (2003, p. 198), “são
domesticadas e redefinidas como instrumento da hegemonia cultural”. Assim,

[...] uma performance com potencial subversivo – que acredito ser o


caso das mulheres no funk –, através de sua contínua repetição,
sempre corre o risco de se tornar um clichê, principalmente, no
contexto da indústria cultural em que a subversão tem um valor de
mercado (LOPES, 2011, p. 200).

Entender nossos contextos econômico-político-sociais nos abre


caminhos para compreender por que nossas potências são ameaçadoras e
quais os esforços externos aplicados para que nos tornemos somente “mulas”,
“mulatas”, “morenas”, “novinhas” ou “cachorras”, e isto é fundamental para não
perdermos de vista quem somos e aquilo que tentam nos ludibriar a ser para
que não nos tornemos “perigosas”. A tentativa externa de nos esvaziar de
sentido não pode nos esvaziar de sentido. Concordo com Souza (2019) ao
afirmar que

A tentativa de cristalização do funk como reduto musical da


pornografia pela classe dominante evidencia a lógica de
esvaziamento dos símbolos positivos do gênero, e o apagamento
sobre as potencialidades dos sujeitos negros e periféricos partícipes
da engrenagem desse segmento. As manifestações de poder das
mulheres funkeiras expressam as entranhas da ressignificação desde
o lugar de subalternização. O processo de tornar o funk como rota
musical extremamente pornográfica, no tocante à presença feminina,
suprime o teor do poder erótico dessas mulheres (p. 150).

E o reconhecimento do poder erótico, assim definido pela pensadora


negra Audre Lorde (2019), pode ser uma chave possível para engrenar esta
mudança de perspectiva a partir de nós e recuperação de nossos sentidos
próprios em contextos comunitários.

O erótico é um recurso intrínseco a cada uma de nós, localizado em


um plano profundamente feminino e espiritual, e que tem firmes
raízes no poder de nossos sentimentos reprimidos e
desconsiderados. Para se perpetuar, toda opressão precisa
corromper ou deturpar as várias fontes de poder na cultura do
oprimido que podem fornecer a energia necessária à mudança. No
caso das mulheres, isso significou a supressão do erótico como fonte
considerável de poder e de informação ao longo de nossas vidas (p.
67).

237
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Se considerarmos o quadril feminino negra dançante do samba, pagode


baiano e funk sob um contexto afrocentrado, podemos considerar que estas
danças trabalham com e favor da força da sexualidade. As imagens de controle
sob o olhar patriarcal branco hetero-normativo, entretanto, tornou estas danças,
assim como suas protagonistas, objetificadas, pornográficas e “plastificadas”,
como segue Lorde (2019):

O erótico é frequentemente deturpado pelos homens e usado contra


as mulheres. Foi transformado em uma sensação confusa, trivial,
psicótica, plastificada. Por essa razão, é comum nos recusarmos a
explorar o erótico e a considerá-lo como uma fonte de poder e
informação, confundindo-o com o seu oposto, o pornográfico. Mas a
pornografia é uma negação direta do poder do erótico, pois
representa a supressão do verdadeiro sentimento. A pornografia
enfatiza sensações sem sentimento (p. 68).

A pornografia suprime sentimentos e nos sujeita, não nos constrói


sujeitas de nossas próprias histórias. A pornografia nos oblitera. O erótico,
entretanto, nos conecta com nossas corpas e às possibilidades de auto-fruição.
Portanto, enquanto a indústria pornográfica de “mulatas” nos oferece uma
“dança das cadeiras” onde para ganhar o importante é “sentar”, o poder do
erótico nos possibilita outra dança, auto-consciente.

[...] todos os sistemas de opressão tiram proveito do poder do erótico.


Em contraste, a sexualidade das mulheres negras pode se tornar um
importante lugar de resistência quando é autodefinida por nós
mesmas. Assim, do mesmo modo que aproveitar o poder do erótico é
importante para a dominação, reivindicar e autodefinir esse erotismo
pode se mostrar um caminho para o empoderamento das mulheres
negras (COLLINS, 2019, p. 225).

As danças de quadril, sob a ótica da autodefinição e reapropriação de


nossas corpas, ameaçam um ideário hegemônico quando ameaçam o próprio
“ideal” de ser mulher, e ameaçar o “ideal” de mulher é ameaçar todo sistema
patriarcal capitalista que se constrói sobre ele.

Sendo assim, creio que abrir mão da dança que objetifica não resolverá
a questão da objetificação. Porque a objetificação jogada sobre a dança é ela
mesma um sintoma, não a razão. Não creio que abandonar algumas de
nossas expressões corporais mais potentes, como as danças de quadril,
resolverá o problema de nossas opressões. Enquanto o ideal que objetifica for
o parâmetro, não vejo soluções em definitivo, “pois as ferramentas do senhor

238
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

nunca derrubarão a casa-grande. Elas podem nos permitir vencê-lo durante


certo tempo em seu próprio jogo, mas nunca nos deixarão provocar uma
mudança autêntica” (LORDE, 2019, p. 137).

Busquemos, então, pontos de vista independentes dos hegemônicos,


que partam de referenciais que nos contemplem enquanto sujeitas.
Vislumbremos os parâmetros ideológicos, sociais e filosóficos que se adequam
à expressividade que constrói nossa dança, nossa identidade.

As danças de quadril, conforme contextualizadas neste trabalho, são


expressões culturais negras e, sob a ótica afrocentrada, podem favorecer a
autodefinição das mulheres negras a partir da reivindicação de seu próprio
erotismo. A diferença entre ser uma manisfestação criativa e de resistência ou
ser a manutenção de imagens de controle é a ação materializada no corpo
imposta nesta (re)criação: auto-definição, subjetividade. Ser e não servir.
Assim, “quando falo do erótico, então, falo dele como uma afirmação da força
vital das mulheres; daquela energia criativa fortalecida, cujo conhecimento e
cuja aplicação agora reivindicamos em nossa linguagem, nossa história, nossa
dança, [...] nossas vidas” (LORDE, 2019, p. 70).

Dançar enquanto auto-definida, aqui, sugere que estou partindo de


pressupostos que fazem sentido pessoalmente para mim, que me valorizam
enquanto ser humano integral e, sobretudo, que tenho plena consciência de
todo contexto que me cerca. Muitas são as lentes oferecidas sobre nossa
própria leitura, uma leitura que nos desqualifica, mas somos capazes de
enxergar-nos sem elas. E quando nos enxergamos, estas imagens são
confrontadas.

Reconheço as imagens de controle e não me vejo nelas. Não sou


representada por uma dança que me vende como exótica, mas sou
representada, entretando, pela ideia de uma dança negra que carrega valores
os quais me conectam com meu passado histórico, atualiza em mim um
movimento ancestral e é capaz de criar redes identitárias com outras
comunidades negras. Não sou representada por uma dança que me fragmenta
para me objetificar, mas sou representada por uma dança que favorece minha

239
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

conexão com meu corpo, com minha sexualidade, e ter consciência de todas
as partes do meu corpo, inclusive daquelas negadas por prerrogativas
machistas ocidentais, é o ideal para mim.

Sigamos, agora, para este reconhecimento deste poder do erótico


enquanto formação de subjetividade pois

Reconhecer o poder do erótico nas nossas vidas pode nos dar a


energia necessária para lutarmos por mudanças genuínas em nosso
mundo , em vez de apenas nos conformarmos com trocas de
personagens no mesmo drama batido.

Pois não apenas entramos em contato com as fontes da nossa mais


intensa criatividade, como também com o que é feminino e
autoafirmativo diante de uma sociedade racista, patriarcal e
antierótica (LORDE, 2019, p. 74).

Considerações Finais

Para questionar estas imagens de controle, estes modos de


representação, é necessário, primeiro, destacá-los do âmbito de sua
normalidade. Penso que este é o campo de atuação do Movimento Quadril e
foco deste estudo: destacar a hiperssexualização da mulher negra a partir de si
mesmas, como sujeitas de sua própria história, porém reconhecendo-se nesta
atuação enquanto grupo, já que estas imagens afetam a todo um grupo social e
levam o corpo da esfera privada para a pública. (Nós) Mulheres negras
dançantes, ao colocar-se como corpo político, “retrabalham ou mesmo rompem
com as condições estabelecidas de aparecimento, rompendo com as normas
existentes ou importando normas de legados culturais imprevistos” (Butler,
2019, p. 46). Estes legados, neste caso, são as danças de quadril de matriz
africana.

O caminho deste trabalho está sendo, portanto, o de entender e


confrontar cânones das teorias da sujeição, epistemologicamente ocidentais, à
praxis negra-brasileira do dançar, e seus entendimentos a partir de tradições,
fundamentados em epistemes negras, escarificados pela necessidade e proeza
da negociação constante por territórios, os nossos locais seguros, sendo o
primeiro deles, o corporal. Essas questões ganham ainda outro teor quando se
trata de corpas femininas.

240
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

A partir dos Movimentos da bunda feminina preta, esta pesquisa visa


ostentar aquela energia erótica que não é somente sedução, mas sim uma
declaração poderosa da subjetividade da mulher negra em ação (HOOKS,
2019).

Finalizo, por hora, parafraseando Lélia Gonzalez (1984), que com ironia crítica
já ressaltava a “bunda” (termo que provém do tronco linguístico bantu) como
língua, linguagem, sentido e coisa: “neste trabalho assumimos nossa própria
fala”. Ou seja, agora a raba vai bater, e numa boa.

Referencial Teórico

BUENO, Winnie. A Lacradora : Como imagens de controle interferem na


presença de mulheres negras na esfera pública. Blogueiras Negras.
Disponível em: <http://blogueirasnegras.org/a-lacradora-como-imagens-de-
controle-interferem-na-presenca-de-mulheres-negras-na-esfera-publica/>.
Publicado em: 15 de Abril de 2019. Acessado em: 27 de Julho de 2020.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

______. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria
performativa de assembleia. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento,


consciência e a política do empoderamento. 1. Ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

FORNACIARI, Christina. Funk da gema: de apropriação a invenção, por uma


estética popular brasileira. 1 Ed. Belo Horizonte, 2011.

GONZALES, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências


Sociais Hoje. ANPOCS, 1984, p. 223-244.

______. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira


pessoa. 1. Ed. Diáspora Africana: Editora Filhos de África, 2018.

241
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

GOTTSCHILD, Brenda Dixon. Butt. In: The black dancing body: a geography
from coon to cool. New York: Palgrave Macmillan, 2003. p. 144-187.

HOOKS, bell. Olhares Negros: raça e representação. São Paulo (SP):


Elefante, 2019.

LOPES, Adriana Carvalho. Funk-se quem quiser: no batidão negro da cidade


carioca. 1.ed. Rio de Janeiro : Bom Texto : FAPERJ, 2011.

LORDE, Audre. Irmã Outsider. 1. Ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

PÉREZ, Elizabeth. The ontology of twerk: from ‘sexy’ black movement style to
afro-diasporic sacred dance. African and black diaspora: an international
journal. vol. 9, n. 1, p. 16-31, 2016. Special issue: “Sounds of Freedom Across
the Black Atlantic.”

SOMÈ, Sobonfu. O espírito da intimidade: ensinamentos ancestrais africanos


sobre maneiras de se relacionar. São Paulo: Odysseus, 2007.

SOUZA, Miguel Alves de. “Sou feia, mas tô na moda”: o funk como canal de
transmissão da voz feminina negra periférica. Revista Humanidades e
Inovação. v.6, n.16, 2019, p. 146-155.

242
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

O CORPO DA MULHER NEGRA NAS ARTES CÊNICAS

Gabriela Souza da Rosa (Rita Rosa)


Dra. Celina Nunes de Alcântara

Neste texto lançamos o olhar para saberes e fazeres corpóreos poéticos


de mulheres negras das artes cênicas contemporânea brasileira,
especificamente sobre a cidade de Porto Alegre (Rio Grande do Sul), território
no qual foi desenvolvida a pesquisa de mestrado intitulada Representações do
Feminino Negro na Cena Contemporânea Porto Alegrense no séc. XXI, sob a
orientação da prof.ª Celina Alcântara. Mediante a entrevista realizada com seis
mulheres negras das artes cênicas da cidade, bem como em consequência do
trânsito das autoras desta discussão, na condição de artistas, por alguns
núcleos das artes cênicas porto-alegrense, percebeu-se o quanto esses
espaços eram e ainda são racistas, eurocêntricos, elitistas, classistas,
alijadores, excludentes, para ficar em alguns aspectos. Nesse sentido, a
discussão aqui levantada será a partir de percepções sobre os modos de
exposição e representação do corpo da mulher negra que permeiam os
saberes e fazeres nas artes cênicas gaúchas de dança. Foi também nesse
espaço social e artístico – já devidamente localizado – que vivenciamos as
reproduções evidentes do racismo, classismo e sexismo. Assim, foi gotejando
as percepções sociais, apontadas por mulheres negras artistas, e a prática
artística na performance cênica Peça, que tecemos pensamentos e análises
sobre as práticas performáticas de mulheres negras como condutas de
resistência ao racismo estrutural em experiências artísticas alternativas ao
status quo em Dança.
A questão delineada como mote para a discussão desse tema foi, a
princípio, assim formulada: como desenvolver e legitimar uma produção
contemporânea em dança e/ou performance proposta e protagonizada por
mulheres negras? Tomamos como horizontes teóricos os conceitos de Corpo
em Diáspora de Luciane Silva (2018), o conceito de Encruzilhada de Leda
Maria Martins (1996) e do diálogo conceitual que trama a temática de
Representações da Mulher Negra, analisada a partir de bell hooks em seu livro

243
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Olhares Negros Raça e Representação (2019), além da noção de outridade


proposta por Grada Kilomba (2019), entre outros teóricos.
Entendemos que a maneira como o corpo da muher negra vem sendo
representado nos trabalhos, inclusive os autorais, das próprias mulheres
negras, em grupos, coletivos e trabalhos solo, tanto em dança como nas
experiências em performance art, instituem um modo de representação que
figura e reduz o fazer artístico de mulheres negras apenas às chamadas
“danças afro”93, manifestações folclóricas e populares, ou que recaem em
discursos estéticos que caducam narrativas do período escravocrata94, que
redundam sobre a dor e um período dilacerante.
Sabemos que a urgência em compor estéticas e discursos que versem
sobre o genocídio da população jovem-negra-periférica e sobre os altos índices
de feminicídio dos corpos de mulheres negras é uma demanda
importantíssima. Afinal, a ideia é a de fugir da lógica escravocrata, violenta,
estigmatizante e desumana que perpassa a histórica agenda da necropolítica
ao epistemicídio à brasileira. Nesse sentido, busca-se, a partir desta análise,
dialogar, apresentar e discorrer sobre a maneira como a sexualidade e a arte
se tornam visíveis e recorrentes nas obras de mulheres negras das artes da
cena. Como aponta bell hooks (2019), na introdução de seu livro Olhares
Negros: Raça e Representação:

Sem uma forma de nomear a nossa dor, nós também não temos
palavras para articular nosso prazer. De fato, uma tarefa fundamental
dos pensadores negros críticos tem sido a luta para romper com os
modelos hegemônicos de ver, pensar e ser que bloqueiam nossa
capacidade de nos vermos em outra perspectiva, nos imaginarmos,
nos descrevermos e nos inventarmos de modos que sejam
libertadores. Sem isso, como poderemos desafiar e convidar os
aliados não negros e os amigos a ousar olhar para nós de jeitos
diferentes, a ousar quebrar sua perspectiva colonizadora? (hooks,
2019, p.33)

Neste trabalho propomos a possibilidade de reverberar sussurros sobre


o que e como lançar mão do que somos, ou seja, sujeitas/sujeitos de nossas

93
Não estamos aqui buscando reduzir a potência de saberes corpóreos e históricos no que
consiste às linguagens das danças afro-brasileiras ou de matriz afro. Consideramos tais
fazeres de extrema relevância no que concerne a uma linguagem em dança tão importante
para compor o nosso o patrimônio imaterial do corpo cultural dos Brasileiros.
94
Este período histórico é de extrema relevância para a tecitura de narrativas para a dança e
discursos para a performance, porém, a pesquisa das proponentes questiona isso.

244
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

existências e não o Outro da branquitude. Fanon, em Pele Negra Máscaras


Brancas (2008), traz a questão do Outro do Outro na visão do sujeito branco ou
não negro. O autor martiniquense nos faz pensar num modo de relação no qual
o sujeito negro é negado de si mesmo, é impedido de se reconhecer, e este
reconhecer-se somente se dá por meio da visão do olhar de um outro. Este
outro é o sujeito branco, que lança um olhar segundo uma perspectiva
colonizadora, como aponta a autora Bell Hooks na citação anterior.
Trabalhando desde a mesma referência, a pensadora e performer negra
portuguesa, de origem angolana, Grada Kilomba (2019), propõe que se pense
a partir de uma relação com uma “outridade”, que configura o racismo cotidiano
como:

[...] todo um vocabulário, discursos, imagens, gestos, ações e olhares


que colocam o sujeito negros e as Pessoas de cor não só como
“Outra/o” – a diferença contra qual o sujeito branco é medido – mas
também como Outridade, isto é, como a personificação dos aspectos
reprimidos na sociedade branca (KILOMBA, 2019, p. 78).

Para ela, referindo-se a si mesma – embora a possamos tomar como


referência para a experiência de negras e negros num sentido amplo –, sempre
que as/os sujeitas/os negras/os são colocadas/os no lugar de outras/os, sejam
como: intrusas/os, perigosas/os, violentas/os, passionais, sujas/os,
excitadas/os, selvagens, naturais, desejáveis, exóticas/os, para citar alguns;
toda vez que isso ocorre, sujeitas/os negras/os são forçadas/os a vivenciar o
racismo na medida em que são obrigados a personificar aquilo que o sujeito
branco se nega a ser ou a reconhecer em si (2019, p.78).
Aqui, faz-se importante discutir desde essa dimensão de “outridade”
pensada por Kilomba, que marca a especificidade da vivência das mulheres
negras numa sociedade racista “[..] que por não serem nem brancas nem
homens, passam a ocupar uma posição muito difícil dentro de uma sociedade
patriarcal de supremacia branca” (2019, p.190). Neste aspecto, tomando as
palavras de Grada Kilomba, “[...] representamos um tipo de ausência dupla,
uma Outridade dupla pois somos a antítese tanto da branquitude quanto da
masculinidade” (Idem).

245
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Desse modo, a mulher negra, pensada nesta discussão, terá o resultado


do seu processo criativo questionado ao expor-se ao olhar estigmatizador do
outro em cena, sendo esse outro negro ou branco. A base desta discussão
está alicerçada nos relatos de seis mulheres negras entrevistadas, que estão
localizadas nas artes da cena de Porto Alegre. As entrevistadas relataram
estigmas que aparecem de forma recorrente em suas respostas: sobre resistir
contra o racismo velado sendo a única negra nos núcleos em que circulavam,
da maneira como eram incluídas nos coletivos e contraditoriamente
silenciadas, abordaram também sobre os tipos de trabalho que surgiam quando
eram “convidadas” a compor determinado coletivo, grupo e etc. Conforme os
relatos, os trabalhos para os quais essas artistas eram requisitadas
enfatizavam a redução de suas capacidades artísticas cunhadas à
marginalização, animalização e à sexualização. Em outras palavras, eram
vistas e valoradas pelo exotismo e a banalização de seus corpos, e não pela
percepção e legitimação do seu trabalho.
Assim, mesmo quando havia a possibilidade de expor trabalhos
“autorais”, acabavam caindo na “armadilha” de abordarem temáticas sobre a
Negritude95, isto é, sobre “o que pode um negro” muito diferente das
capacidades, das potências de um corpo que é também negro. Distanciavam-
nas, assim, da sua humanidade e, por vezes, seus trabalhos eram reduzidos a
algo pobre, folclórico, violento e sexual. Circunstância que se reproduzia não
por falta de consistência dramatúrgica, política, técnica ou performativa das
artistas, mas de fato seus trabalhos somente eram aceitos e legitimados se
revelassem algo que as aproximasse de sua negritude, ou que performasse o
que é ser negro ou o estado do negro na sociedade. Conforme relato das
próprias artistas, em vários momentos, por receio de perderem as
oportunidades que surgiam, caíam nessa cilada e aceitavam os “papéis” que
previamente lhes estavam estabelecidos. Os relatos dão conta de que essas
mulheres, em diversos momentos, teriam preferido, escolhido abordar outras
temáticas, que não estivessem somente associadas ao tom da sua pele ou ao
seu sexo selvagem. Importante lembrar o que aponta Inaicyra Falcão dos

95
Qualidade ou condição de negro. Sentimento de orgulho racial e conscientização do valor e
da riqueza cultural dos negros.

246
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Santos (2014), com base na proposta, temática e conceito de pluriculturalidade


(SANTOS, 2014, p. 35). A autora traz como exemplo, para pensar o conceito
de pluriculturalidade, a maneira como as pessoas negras são vistas quando
estão em cena. Essa reflexão da autora, sobre a visão do corpo negro em
cena, surge inspirada em conversa/entrevista com o coreógrafo negro norte
americano Rod Rogers, que expõe o seguinte:

‘(não me diga quem eu sou)’ A minha negritude é parte da minha


identidade como ser humano, e minha expressão e desenvolvimento
na dança é o resultado da minha experiência total como homem. É
simplesmente uma questão do que precede o nó criativo: se é a
minha total experiência como ser vivente ou se aquelas experiências
as quais eu considero relevantes para a minha negritude. (ROGERS
APUD SANTOS, 2014, p. 32)

Compreendemos e corroboramos essa dimensão apontada por Inaicyra


a partir da fala de Rogers, em suma, trata-se de que uma pessoa negra em
cena jamais terá sua cor, sua forma, seus traços, logo, sua imagem apagada, a
pessoa negra no espaço cênico revela algo que vem antes, algo que grita e
pulsa na cara daquele que lhe assiste, contempla, critica e investiga. A primeira
informação de uma pessoa negra em cena é a sua cor, a sua informação
histórica, está jogada ali na cena, para além da posterior análise de suas
qualidades técnicas como artista.
As entrevistas com as artistas negras foram determinantes para
percebermos e localizarmos maneiras pelas quais se dá a inclusão de pessoas
negras nos espaços embranquecidos, bem como constatação da presença
perversa do racismo, do machismo e do sexismo dentro dos núcleos e espaços
artísticos da cidade de Porto Alegre.
Grada Kilomba, em Memórias da Plantação (2019), revela-nos sobre a
inclusão tokenista96 de pessoas negras nos espaços hegemonicamente
brancos, em que essas pessoas têm que representar de maneira obrigatória a
sua negritude para serem de fato aceitas pela branquitude (SOVIK, 2019). A
autora nos fala da “responsabilidade em ser a raça [...]” e ainda complementa
que “ser incluída/o sempre significa representar as/os excluídas/os. E é por

96
Tokenismo: é a prática de fazer apenas um esforço superficial ou simbólico para ser inclusivo
com membros de minorias, especialmente recrutando um pequeno número de pessoas de
grupos sub-representados para dar a aparência de igualdade racial ou sexual dentro de uma
força de trabalho. Aqui especificamente dentro dos núcleos artísticos porto-alegrenses.

247
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

isso que geralmente, nos é forçado o papel de representantes da ‘raça’. O que


ocorre é que cada negra e negro acaba representando todos os outros”
(KILOMBA, 2019, p. 173).
Sim, o racismo nos faz ser esse outro do outro. O racismo é violento
quando exclui, quando joga a responsabilidade para o sujeito negro de ser e
saber ser negro. O racismo não oportuniza a humanidade para a pessoa negra,
ele simplesmente reduz e apaga a humanidade dessas pessoas a algo que
caiba na visão colonial eurocêntrica e embranquecida. Não se trata somente do
que circunda a nossa humanidade, pois já a possuímos, uma vez que o
racismo entre outras violências nos forma e nos confronta diariamente desde o
modo como somos vistos, ou seja, nós possuímos em nossa humanidade
diversas lentes, conseguindo enxergar o outro para além de nós mesmos.
Queremos algo que vá para além de uma mera empatia, pois enquanto formos
lançadas/os como o “outro do outro”, segundo Fanon (2008), estaremos
sempre jogadas/os à margem da visão única e reducionista que nos aproxima
e nos limita, que é a própria empatia. A empatia é o lodo viscoso da
branquitude que aproxima as pessoas negras de uma determinada
humanidade, ao mesmo tempo que nos dilacera e distancia do outro (sujeito
branco). A empatia é a lente artificial da inclusão, relativa às oportunidades em
que nos lança, é a possibilidade de iludir as chamadas minorias com efêmeros
privilégios emocionais. Permanecemos ainda à margem, sujeitos/as a sermos
objetos de estudo para ensaios de empatia inclusiva no núcleo artístico branco-
hétero-burguês e eurocentrado. Núcleo que, para quem o sadismo em saber
como nos sentimos, não impele a nos oportunizar ou privilegiar em relação às
nossas reivindicações, uma empatia que tortura as pessoas minorizadas, que
utiliza essa dor como combustível para fortalecer o alicerce resistente de uma
cultura estruturada pelo racismo. Como aponta Audre Lorde (2019), “[...] o
tokenismo que às vezes nos é oferecido não é um convite para compartilhar o
poder; nossa ‘diversidade’ racial é uma realidade visível que deixa isso bem
claro” (LORDE, 2019, p. 243).
Pensar a cultura artística local de maneira crítica é reconhecer, para
além da potência das perfomances cênicas, algo que seja presente em seus
discursos. É reconhecer que estamos inseridas dentro de um estado
influenciado por diversas culturas, onde todos, sem exceção, transitam e

248
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

saboreiam uma diversidade de influências que se distanciam e muito do que


possa ser dito como original, mas ainda sim guardam suas conexões,
sobretudo em relação à desvalorização. O que estamos dizendo é que estamos
jogadas nas margens pluriculturais, como traz Inaicyra Santos (2014), no
sentido de compreender a diversidade corporal dos povos que vivem aqui no
Brasil e que têm colaborado para esse tecido social complexo, colorido, belo e
tão mal compreendido (SANTOS, 2014). A complexidade está em reconhecer
que existe aqui uma diáspora negra, assim como existe uma pluriculturalidade
que passa ou é atavicamente transmitida para a memória celular dos indivíduos
negros de maneira histórica. E que revela com isso nosso cerne cultural, o
modo como nós, pessoas negras, fomos constituídass a partir de um histórico
periodo escravocrata, pois, se somos negros/as, temos que reproduzir algo
africano.
Luciane Ramos da Silva, com o conceito Corpo em Diáspora (2018), em
que investiga e lança de maneira intelectual e crítica a percepção do que pode
o negro nas artes cênicas da cultura brasileira, com base nas perspectivas
cênicas e das danças e expressões negras brasileiras, elucida bem essa
questão. Ela aponta para uma abordagem sobre a colonialidade e
decolonialidade que consiste em atentar para as expressões artístico-cênicas
negras e suas fugas dos paradigmas que impõem o que e como uma pessoa
negra tem que vestir e investir em cena. A autora propõe a interculturalidade
como conceito que busca debater expressões culturais subalternizadas em pé
de igualdade com as expressões ditas hegemônicas, para além das diferenças
simplórias e populistas (RAMOS, 2018). Em suma, ela reconhece a
necessidade de uma investigação crítica e horizontal sobre colonialidade na
qual sejam priorizadas estratégias de negociação sobre os conteúdos diversos,
para a convivência coabitada no intercâmbio no sentido de reconhecer-se as
diferenças e as reciprocidades (SILVA, 2018) dentro dos espaços artístico-
culturais. A autora aborda ainda o desafio na inclusão de um aglomerado de
alternativas estéticas, por reconhecer os conflitos nas relações existentes no
espaço cultural heterogêneo. Para ela, a dificuldade maior está em lidar
constantemente com os dilemas e desafios numa tentativa permanente de
comunicação passível de tensões, já que a combinação cultural tranquila e sem
conflitos talvez seja um desafio ingênuo (SILVA, 2018).

249
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

A multiplicidade que habita os corpos negros, especificamente os das


mulheres negras brasileiras, não parece se comunicar e nem transitar no
mercado artístico cultural brasileiro como outros referenciais de corpos
artísticos. Se pensamos notadamente em mulheres negras artistas criadoras e
intérpretes, a visão que recai é algo pautado num senso comum cultural,
incapaz de perceber ou valorar as potências criativas dessas mulheres.
Pensar a partir das mídias hegemônicas de massa como fatores de
impacto, e notar a intensidade e as tensões provocadas pelo capitalismo, é
sinalizar também o estado de regulação (GOMES, 2011) e dominação
(BARBOSA, 2006) que legitimam e delimitam o corpo e a liberdade das
pessoas. Elementos que manipulam e forjam um sentido ideal de consumo,
jogando com isso, produzindo indícios que programam arquivos e impressões
do que e de como localizar, a partir de perfis determinados e específicos, o que
deve e o que pode ser consumido a partir de uma determinada lógica e da
experiência do prazer. Essa lógica do consumo, que pauta as relações num
social consumista e neoliberal, acaba também por constituir o mercado artístico
cultural.
Para pensar sobre o mercado artístico cultural com base nos corpos de
mulheres negras brasileiras, trazemos para esta reflexão a autora bell hooks, a
partir do capítulo Vendendo uma Boceta Quente: Representações da
Sexualidade da Mulher Negra no Mercado Artístico Cultural, do seu livro
Olhares negros: raça e representação (2019). A autora evidencia o modo como
o grande mercado cultural desenvolve e vende um estereótipo da figura da
mulher negra centrado na sexualidade. Para hooks, a erotização e
sexualização dos corpos de mulheres negras colocam-se como questões
centrais de negociação assertiva de sucesso no mercado cultural, uma vez que
a não exposição sexual e desviante desses corpos provoca uma instabilidade
que distancia e exclui qualquer alternativa de gerar outras concepções acerca
do que é arte, do que é corpo e do que é possibilidade. Nas palavras de hooks,

A cultura popular oferece exemplos incontáveis de mulheres negras


se apropriando de e explorando ‘estereótipos negativos’ para garantir
o controle sobre a representação ou, no mínimo colher seus lucros.
Uma vez que a sexualidade da mulher negra tem sido representada
pela iconografia machista e racista como mais livre e liberada, muitas
cantoras negras, independente da qualidade de suas vozes, cultivam

250
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

uma imagem que sugere disponibilidade sexual e licenciosidade. [...]


o corpo da mulher negra só recebe atenção quando é sinônimo de
acessibilidade, disponibilidade, quando é sexualmente desviante.
(hooks, 2019, p. 136)

Refletir sobre a inclusão e oportunidades conquistadas pelas mulheres


negras, dentro da lógica de opressão do sistema hegemônico cultural, é ainda
localizar a corporalidade da mulher negra como algo que se insere no campo
do experimental, como mostra Preciado (2018), pensando sobre as lógicas
farmacopornográficas que induzem o prazer a partir de determinados grupos,
para se pensar o poder, com isso:

O poder não se localiza apenas no corpo (‘feminino’, ‘infantil’, ou ‘não


branco’) enquanto espaço tradicionalmente imaginado como pré-
discursivo e natural, mas também em um conjunto de representações
que transformam em sexual e desejável. Trata-se, em todo caso, de
um corpo sempre farmacopornográfico, um sistema técnovivo que é
efeito de um mecanismo de representação e produção cultural muito
difundido. (PRECIADO, 2019, p. 51)

Assim, desde a perspectiva de uma criação artística elaborada e


apresentada a partir da vivência/experiência cênica de uma artista negra, foi
criada em 2019 a performance para a cena “PEÇA” (ROSA, 2019); cuja
estrutura criativa e expositiva da montagem de Rita Rosa Lende foi elaborada
mediante o conceito de Decolonialidade (GALLAS, 2013). Tal montagem foi
construída com o intuito de dar, literalmente, um norte conceitual e investigativo
para pensar a proposição e disponibilidade de uma corpa negra em cena.
Visando dialogar sobre estética, corpo e técnica de dança, pensamos
em algo que não recaia na visão recorrente do corpo da mulher negra em cena.
Pretendemos, por intermédio de uma linguagem em dança que não é comum,
logo, não traduz o que a mídia hegemônica, principalmente, exige como
legenda corpóreo e estética, burlar a lógica do corpo negro como um
entretenimento débil, frágil, erótico e submisso. Afinal, “[...] o corpo negro
ainda vive situações que exigem a superação da visão exótica e erótica que
sobre ele recai, oriunda da violência escravista, alimentada pelo machismo e
disseminada pelo sexismo” (GOMES, 2011, p.48), gerando com isso, de

251
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

maneira destacada, um processo tenso e ambíguo no corpo e na corporeidade


do sujeito negro (GOMES, 2011).
A performance P E Ç A é uma proposta cênica que dialoga com a Dança
Contemporânea e técnicas de Afro Butoh, da linhagem de Benjamin Abras
(ABRAS, 2019). A montagem remete de maneira sutil ao período escravocrata
da venda dos corpos de pessoas negras no mercado de escravos. Evidencia a
maneira como estes corpos eram expostos e de como eram aceitos para
compra final como peças alienáveis.
A obra performativa P E Ç A procura discorrer de forma abstrata sobre
o corpo da mulher negra na sociedade e pensar sobre este corpo nas artes
cênicas. A obra pretende ainda incidir sutilmente sobre a imanência do corpo
da mulher negra através da dança e em dança. A busca foi por uma certa
naturalização na percepção da humanidade do corpo que dança, que se
expressa, pulsa e vive a cor, as curvas, a textura do cabelo da pele e do corpo,
os pés calçados sobre as teias dos paradigmas sociais que marginalizam tal
corpo.
P E Ç A é uma performance cênica que busca traduzir o que bell
hooks,em seu livro Olhares Negros Raça e Representação (2019) aborda de
maneira pontual sobre a legitimação e a representação do corpo da mulher
negra nas grandes mídias, âmbito no qual tal corpo é representado de maneira
hipersexualizada, como já dito, o que constrói e institui a visão sobre o corpo
da mulher negra dentro da produção cultural do mercado artístico.
O Brasil, lugar em que a maioria da população é mestiça e negra, mas
também onde essa mesma maioria é a mais pobre e a que mais morre por
conta dos altos índices de genocídio da população negra, é, apesar de sua
opressora realidade, reconhecido por suas tradições culturais que remontam a
uma matriz africana. O exemplo mais emblemático é a música popular
brasileira (MPB). É cada vez mais óbvia e evidente a estratégia do Estado
brasileiro, estruturalmente racista, de eliminar da sociedade brasileira as
pessoas pobres/negras e manter a dominação das elites consideradas
brancas. Ao mesmo tempo, é parte desse procedimento opressor e violento
estabelecer culturalmente como esses corpos regulados devem assistir,
consumir e se perceber como uma matriz cultural. Os corpos de pessoas
negras no Brasil são hipersexualizados, principalmente o das mulheres, sobre

252
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

os quais a mídia de massa investe em uma produção que objetifica e reduz a


figura da mulher negra, limitando a sua produção artística ao carnaval, ao
samba e às manifestações ditas folclóricas.
Assim, as produções de mulheres negras no Brasil que buscam desviar-
se dessa lógica são excluídas e boicotadas do mercado artístico cultural como
não apetecíveis dentro dos sistemas de arte. Além disso, não são reconhecidas
como artistas e, quando são, seus trabalhos ficam limitados por discursos que
ainda se ocupam em tentar desconstruir ou reafirmar o que a sociedade e a
cultura impõem.
A performance P E Ç A consiste em ações fixadas em corridas pelo
espaço, imagens do corpo em perfis distintos e duas sobreposições de
imagens onde Rita Rosa, artista negra sul-brasileira, propõe ao público uma
maneira abstrata de entendimento sem tradução posterior ao que se percebe
em cena.
P E Ç A é sobre o corpo com cor, o corpo humano e a/na arte
contemporânea. Performance que questiona a expectativa cultural lançada
sobre o corpo da mulher negra em estado de artístico poético.
P E Ç A divide o corpo em pedaços, como um corpo mutilado
socialmente pela estrutura do racismo, do machismo e da misoginia.
P E Ç A traz uma corpa divido em partes, reitera a possibilidade única
de uma marginalização e de um discurso de dor, P E Ç A evoca a subjetividade
e a liberdade do corpo de uma mulher negra, que só quer ser/viver sua cor e
sua liberdade de ser o que quiser ser de maneira literal. P E Ç A questiona:
será que essa possibilidade existe?
Ao fim e ao cabo, trata-se de abordar a diferença de representatividade
nesses discursos de diferenciação que tendem a elaborar representações
sobre a autenticidade da cultura negra e que se tornam facilmente produtos de
mercantilização e homogeneização, reificando estereótipos que a própria
militância negra contesta (FERRAZ, 2012). Luciane Silva, por sua vez, faz-nos
pensar sobre a questão da visão hegemônica, que recai sobre a exposição
artístico negra, a partir da lente de uma crítica hegemônica:

Frequentemente o expertise da dança hegemônica, incapaz de fazer


uma leitura de espetáculos enquanto arte, pura e simplesmente, ao
se depararem com produções de dança negra, e diante de sua

253
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

limitação para apreciar aspectos dramatúrgicos, coreográficos e


técnicos de expressões de danças afro-orientadas, revelam
perspectivas que tanto estigmatizam quanto reificam o olhar
exotizador: ‘Uau que forte’, ‘Que bonito, mas eu não entendo, não sou
especialista’, ‘Que fantástico...que figura’. Percebemos que para
esses especialistas, dentre os quais citamos críticos de dança,
artistas, pedagogos, os traços ligados às estéticas negras são
elementos exóticos e distantes do que se convenciona utilizar como
critério para apreciação. (SILVA, 2018, p.56)

Por perceber a pluralidade existente nas experiências e saberes


corpóreos de dançarinas, performers e criadoras negras brasileiras, notamos a
importância em discorrer, inverter e desconstruir os modos de representação e
representatividade da mulher negra e seu lugar no universo das artes da cena
contemporânea. Buscando, desse modo, nortear o aprendizado a partir de
outros fazeres e saberes em dança e perfomance, capazes de inaugurar
discursos e narrativas sobre si de maneira a não esbarrar no discurso usual.
Acreditamos que o olhar sobre a corporeidade negra poderá nos auxiliar
a encontrar outros elementos para a compreensão de novas dimensões
políticas e educativas referentes à questão racial (GOMES, 2011) e o fazer
artístico, lançando mão do que é e o que poderá ser diante do critério da lente
hegemônica de pensar, ser, fazer e saber. Sentidos esses para compreender e
lançar questões relacionadas ao viver o corpo no mundo e não negar que o
corpo sente dor, produz, faz escolhas, age, move, contesta, vibra, goza, sonha,
reage, diverte-se e luta. Trata-se de pensar sobre a sua liberdade em tecer e
narrar a própria vida, no intuito de utilizar o corpo como um fator que cliva a
poesia e a abstração da realidade vivida em sua dinâmica através do que pode
o corpo no modo criativo.
Perceber a dinâmica do corpo e sua movimentação como um fator
autônomo de percepção. Leda Maria Martins enfatiza o entendimento a partir
de uma variável dinâmica dos processos de trânsito sígnicos abordados no
conceito de Encruzilhada (1996). O que implica perceber a noção de escolhas,
desvios, interações, intersecções, atravessamentos, possibilidades que o corpo
social e político vive, se pensarmos que,

[...] a noção de encruzilhada como um operador conceitual, oferece-


nos a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e
epistêmico que emergem dos processos inter e transculturais, nos

254
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

quais confrontam e se entrecruzam, nem sempre amistosamente,


práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios
filosóficos e metafísicos, saberes diversos enfim (MARTINS, 1996,
p.69)

Enfatiza-se dessa maneira a noção central de que o corpo é o centro


potente de reinvenção da noção de si mesmo, receptáculo de criatividade
diante de sua humanidade e percepção do outro. Entendemos que, para
chegarmos à legitimação do corpo da mulher negra em cena, é preciso dar-se
conta de que o corpo em cena também narra sobre a sociedade e o que
vivemos, sobre os fatores que nos atravessam cultural e historicamente, como,
por exemplo, a estrutura racista brasileira. Só então talvez poderemos
compreender as percepções narradas desde perspectivas pluriculturais, no
sentido de aquiescer ao fato de que vivemos em uma sociedade atravessada
por diversos fatores culturais que inequivocamente constituem o que somos.
Para finalizar, gostaríamos de evidenciar que não estamos aqui tentando
derrubar uma cultura já instaurada, a partir das relações com diferentes ícones
das culturas femininas negras do carnaval, por exemplo, tais como: passistas,
rainhas de bateria, dançarinas de dança afro, portas-bandeiras, etc., estamos
aqui clamando por uma “[...] ânsia instaurada que nasce da urgência e do grito
(há muito abafado) pelas abertura e incorporação de novos papeis e espaços
para mulheres negras no meio artístico brasileiro” (RIBEIRO, 2018, p.144). Por
fim, à guisa de conclusão, gostaríamos de pensar que, a partir destas lentes,
de dentro de um sistema cultural, talvez desde esse núcleo artístico local da
cidade de Porto Alegre, possam emergir formas de ruptura com as barreiras
que limitam, coisificam, restringem e boicotam corpas artistas mulheres negras,
seja em trabalhos solos, grupos e/ou coletivos. Quiçá possamos criar práticas
que dilacerem o racismo entranhado nos espaços artísticos deste território e
que sistematicamente invalidam e impedem o avanço das obras e percursos
artísticos dessas mulheres. Nosso intento é o de implodir, através de micro
ações performativas e dialógicas, os espaços artísticos hegemônicos, onde, em
um restaurado núcleo, pluricultural, além do mero discurso retórico, possa haver
disponibilidade para diálogos e a construção de relações com características
antirracistas, antimachistas, derrubando as lógicas do tokenismo, para
pensarmos, de fato, em novas bases, finalmente, decoloniais.

255
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Referências

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entre as poéticas do gesto no Butoh e as expressões Negras. Marrocos, p.
2 – 21, 2019.
FANON, Franz. Pele Negra Máscaras Brancas; tradução de Renato da
Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
FERRAZ, Fernando MC. Rede Terreiro: pluralidades na dança negra
contemporânea. Antropolitica Revista Contemporânea de Antropologia, n.
33, 2013.
GOMES, Nilma Lino. Movimento negro, saberes e a tensão regulação-
emancipação do corpo e da corporeidade negra. Revista Semestral do
Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
UFSCar, v. 1, n. 2, p. 37, 2011.
HOOKS, Bell. Olhares Negros Raça e Representação. São Paulo Elefante,
2019.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação- Episódios de racismo cotidiano.
Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
LORDE, Audre. Idade, raça, classe e gênero: mulheres redefinindo a
diferença. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro:
Bazar do Tempo, p. 239-249, 2019.
MARTINS, Leda Maria. Performances da oralitura: corpo, lugar da
memória. Letras, n. 26, p. 63-81, 2003.
PRECIADO, Paul. B.. Texto Junkie. Sexo, drogas e biopolítica na era
farmacopornográfica. n-1 edições, 2018.
ROSA, Gabriela Souza. PEÇA: PERCEPÇÕES e DESVIOS. Universidade
Estadual do Rio Grande do Sul, UERGS, Montenegro, Rio Grande do Sul,
Brasil, 2019.
SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e Ancestralidade: uma proposta
pluricultural de dança-arte-educação. 2º Edição. São Paulo: Terceira
Margem, 2006.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

SILVA, Luciane Ramos. Corpo em diáspora: colonialidade, pedagogia de


dança e técnica Germany Acogny. Universidade Federal de Campinas,
UNICAMP, São Paulo, Brasil, 2018.
SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio Janeiro: Aeroplano, 2009.
____________. Branquidade e Racialização: qual é o lugar da educação?.
Portal Geledés, 2019. https://www.geledes.org.br/branquidade-e-racializacao-qual-e-
o-lugar-da-educacao/ acesso em 24/09/2020.

257
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

AFETOS DISSIDENTES, CORPOS VIGENTES:


REFLEXÕES SOBRE A HOMOAFETIVIDADE NEGRA NA DANÇA
CONTEMPORÂNEA
Bruno Novais Dias (UFBA)

Antes de começar esse texto gostaria de propor uma rápida


experimentação. Responda à pergunta a seguir, para si mesmo, com a primeira
palavra que vem a sua mente: “— O que você está sentindo nesse momento? ”
Talvez sua resposta seja alegria, sono, fome, desânimo, curiosidade, entre
tantas outras respostas possíveis que você, instantaneamente, tentou resumir
a pedido desse autor. Você já parou para pensar quantas vezes faz esse
exercício por dia? Provavelmente muito pouco ou se quer essa ação é
realizada, pois socialmente não possuímos uma atenção para refletir sobre o
que nos afeta, principalmente sob esse sistema capitalista que nos obriga a
estar ocupado a todo momento com foco em produzir massivamente.

Essas questões começaram a surgir em 2017, na Escola de Dança da


UFBA, quando na busca de um tema à criação de uma nova obra juntamente
com o artista/pesquisador Eduardo Guimarães, começamos a divagar sobre
nossas questões afetivas. Naquele momento, havíamos acabado de sair de
relações amorosas perturbadas, interferindo em nossos estudos, vida social e
principalmente em nossa autoestima. Naquele instante percebemos que já
tínhamos um caminho pelo qual percorrer. Foi extremamente potente trabalhar
com os nossos afetos em processos criativos em dança, e para além da arte,
como é necessário refletirmos sobre aquilo que nos atravessa emocionalmente.
Depois desse dia, não parei mais de pesquisar sobre afetividade, sempre
atravessando as questões de raça97, gênero e sexualidade. No entanto,
comecei a me perguntar recentemente, o que de fato significa “afeto”? Como
determinamos se fomos afetados por algo ou alguém? Afeto e sentimento
possuem o mesmo significado?

97
Mantemos aqui o uso da palavra raça para referir-se a etnicidade das pessoas negras, pois
consideramos que esse termo ainda é um operador sociológico de peso na reprodução dos
estigmas racializantes em nosso país.

258
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

O autor António Damásio em seu livro A estranha ordem das coisas


(2018), possui um capítulo destinado a refletir sobre os afetos a partir da
neurociência. O autor argumenta que:

O afeto, portanto, é uma tenda bem ampla sob a qual deposito não só
todos os sentimentos possíveis, mas também as situações e
mecanismos responsáveis por produzi-los, ou seja, por produzir as
ações cujas experiências tornam-se sentimentos. (DAMASIO, 2018,
p.96).

Partindo da visão do autor, os nossos sentimentos são a base do nosso


processo afetivo, assim como as situações e as formas que os produzem. Nas
palavras do autor os sentimentos “são experiências mentais e, por definição,
conscientes” (DAMÁSIO, 2018, p.98). Ele afirma que temos consciência dos
sentimentos, justamente, porque conseguimos identificá-los e classificá-los
como positivos ou negativos. Esse processo se chama valência que é: “[...] a
qualidade inerente da experiência, que apreendemos como agradável,
desagradável ou algo entre esses dois extremos” (DAMÁSIO, 2018, p.101).

Contudo, esse processo de construção sentimental não parte apenas do


nosso interior, eles são formados em diálogo com nossas referências exteriores
(sociais, culturais e históricas). Damásio aponta em seu texto a importância do
fenômeno sentimento em nossa sociedade:

Sentimentos acompanham a trajetória da vida em nosso organismo,


tudo o que percebemos, aprendemos, lembramos, imaginamos,
raciocinamos, julgamos, decidimos, planejamos ou criamos
mentalmente. Conceber os sentimentos como visitantes ocasionais da
mente ou como sendo causados apenas pelas emoções típicas não faz
jus à ubiquidade e à importância funcional do fenômeno. (DAMASIO,
2018, p.96).

As emoções por outro lado, não atuam em nosso campo consciente,


sendo provocadas em resposta às situações que alterem o nosso equilíbrio
homeostático98. O desencadeamento das emoções acontece quando uma
situação é identificada por sistemas cerebrais específicos, ocorrendo uma
alteração em nosso estado fisiológico, podendo gerar liberação de moléculas
químicas, mudanças viscerais, movimentos da face, membros ou até do corpo
inteiro, resultando em uma resposta emotiva (DAMÁSIO, 2018).

98
Capacidade do organismo de se manter constante, para que suas funções e reações
químicas essenciais não sejam influenciadas e permaneçam dentro dos limites aceitáveis à
manutenção da vida. (HOMEOSTASE, 2020).

259
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Com isso o autor aponta para uma diferenciação das emoções e dos
sentimentos, sendo que o primeiro acontece por meio de um processo orgânico
e inconsciente, o segundo de maneira totalmente consciente, a partir da
localização, perspectiva e construção social de cada indivíduo.

A antropóloga Jeanne Favret-Saada em seu texto Ser afetado (2005),


reflete sobre o processo afetivo a partir de uma experiência no Bocage francês
em um ritual de feitiçaria. A autora na época buscava contrapor pesquisadores
que defendiam a importância de não se relacionar com os seus “objetos” de
pesquisa, na tentativa de protocolar um distanciamento entre pesquisador e
seu interlocutor, pressupondo uma neutralidade nas relações de pesquisa. A
autora participou do ritual no intuito de descrever como era esse processo
estando dentro da manifestação e a importância do pesquisador estar imerso
em sua proposta para poder colher dados mais detalhados. Favret-Saada, no
final do processo, compartilha que foi enfeitiçada, relatando que muitas vezes
não conseguia registrar o que havia acontecido em seu diário, pois
simplesmente lhe faltava palavras para tentar decifrar sua experiência.

A partir de sua vivência a autora entende os afetos como “[...]


intensidades específicas que geralmente não são significáveis” (FAVRET-
SAADA, 2005, p. 159). Em seu texto refletindo sobre o processo da feitiçaria,
ela aponta que quando não vamos no caminho de querer entender tudo em um
processo de racionalização da vivência, é possível conhecermos uma outra
dimensão da experiência humana, é possível sermos afetados (FAVRET-
SAADA, 2005).

Com base nessas partilhas, podemos relacionar o ponto de vista da


autora com Damásio e refletirmos que ambos indicam diferentes possibilidades
para se pensar sobre afeto. Damásio demonstra uma dimensão mais orgânica
e racionalizada em um estudo neurológico e cultural sobre essas construções
afetivas e Favret-Saada, com base na antropologia, parte de uma prática
ritualística, apresentando uma dimensão mais subjetiva de uma presença, na
qual ser afetado é ser transformado pela experiência da vivência.

260
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Alicerçado pelos dois autores, sugiro que podemos entender que a


afetividade humana se constitui entre as experiências conscientes e subjetivas
que nos permitem (ou não) identificar e mensurar uma experiência vivida.

Os afetos e suas intersecções

Se ponderarmos sobre essas questões pensando nos corpos negros e


os atravessamentos do racismo, podemos refletir na importância de se pensar
sobre afetividade negra, visto que existe uma estrutura social que modifica a
experiência afetiva desses corpos. O autor Silvio Almeida relata em seu livro
Racismo Estrutural (2019), a constituição e a dinâmica do racismo que
perpassa as esferas econômicas, culturais, históricas e sociais, salientando a
reverberação do mesmo na construção da subjetividade desses corpos:

[...] o racismo, enquanto processo político e histórico, é também um


processo de constituição de subjetividades, de indivíduos cuja
consciência e afetos estão de algum modo conectados com as práticas
sociais. (ALMEIDA, 2019, p. 63)

O autor relata que a elaboração da autoconsciência e as experiências


subjetivas do sujeito negro irremediavelmente serão afetadas pelo racismo,
interferindo totalmente em todas as suas relações pessoais e interpessoais
(ALMEIDA, 2019). A autora bell hooks no texto Living to love, contribui nessa
perspectiva afirmando como o período escravocrata influencia até hoje nas
relações afetivas dos negros:

A escravidão socializou as pessoas negras para conter e reprimir uma


série de emoções - testemunhando uns aos outros sendo diariamente
sujeitos a todos os tipos de abusos físicos, a dor do trabalho brutal
excessivo, a dor das punições, a dor de quase morrer de fome –
pessoas negras escravizadas raramente poderiam mostrar simpatia e
solidariedade uns com os outros. [...] Era apenas em espaços
cuidadosamente cultivados de resistência social que escravos podiam
dar vazão aos sentimentos reprimidos. Assim, eles aprenderam a
controlar o impulso de cuidar quando era mais necessário e
aprenderam a aguardar por um momento “seguro”, quando os
sentimentos poderiam ser expressados. (hooks, 1993, p. 232,
TRADUÇÃO NOSSA.)

A autora enfatiza como o processo escravocrata forçou os negros a


buscarem uma forma de dividirem “razão e emoção” como estratégia de
sobrevivência. Até hoje é muito comum associarmos a emoção como uma
fraqueza, principalmente os homens negros, que além de possuírem o

261
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

patriarcado reforçando uma figura do homem desprovido de sentimentos, ainda


possuem um legado histórico da escravidão como herança, acreditando que a
brutalidade e severidade são características que imprimem força e virilidade.

Nesta perspectiva, refletir sobre afetividade negra é uma estratégia


política de sobrevivência e (re)existência, pois só conseguiremos transformar
nossas estruturas sociais se antes voltarmos nossas atenções para os nossos
sentimentos e subjetividades. E se formos mais a fundo pensando para além
da raça, refletindo sobre as intersecções de gênero e sexualidade, esse
processo torna-se ainda mais necessário.

A partir da minha experiência de vida sendo uma bixa preta 99 e com


base em relatos de amigos próximos, começo a perceber que além da cor da
pele preta o fator sexualidade é um agente que também influencia nossas
experiências afetivas, pois estando dentro de uma sociedade heteronormativa
supremacista branca, nossas relações, desejos e vivências são totalmente
atravessados por esses padrões impostos. Em vista disso, começo a me
debruçar reflexivamente como pesquisador e artista sobre o termo
homoafetividade negra, levando em conta essas intersecções como
influenciadoras na construção desses sujeitos negros e homossexuais.

Na busca de teóricos que indiquem uma possível definição do termo


homoafetividade, percebo que é muito recorrente a utilização da expressão
sem nenhuma conceitualização. A única definição que encontrei até o presente
momento foi da autora Maria Berenice Dias que no seu livro União
homoafetiva: O preconceito e a Justiça, utiliza o termo no intuito de resguardar
o direito do afeto entre pessoas do mesmo sexo, não associando
especificamente a prática sexual como alicerce constitutivo dessas relações
(DIAS, 2009), ou seja, em sua perspectiva o termo pode ser utilizado para
retratar o afeto entre dois homens ou duas mulheres héteros, por exemplo.

A contribuição da autora é de extrema relevância se pensarmos que os


processos afetivos estão para além das relações conjugais e sexuais,
considerando que as trocas de afetos acontecem em relações parentais,

99
Termo utilizado com “x” pelos ativistas homossexuais negros como transgressão da
linguagem formal e ação política que intersecciona raça e sexualidade.

262
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

amizades ou até mesmo com animais de estimação por exemplo. Entretanto,


nesta pesquisa utilizo esse termo para retratar as experiências afetivas dos
homossexuais negros a partir da dança, pensando nele como um dispositivo
dramatúrgico potencializador na vida destes sujeitos, constituindo um
posicionamento político que protagoniza tais corpos.

É imprescindível ressaltar que dentro deste artigo e em minha atual


pesquisa, utilizo esse termo com base na minha experiência de vida enquanto
uma bixa preta cisgênero, que reconhece que cada identidade de gênero, pode
se relacionar com esse termo de diferentes formas. Esta pesquisa não visa
desconsiderar ou ignorar todas as produções que contribuem para a
desconstrução dessas normativas de identidades de gênero e sexualidade,
mas sim, de problematizar esse lugar a partir da minha relação com essas
esferas, entendendo a insurgência de questionar esses processos afetivos
atravessados por essas intersecções. E quem sabe, corroborar para outras
pesquisas que reflitam sobre afetividade a partir dessas outras identidades de
gênero. A busca por uma representatividade política pode nos apresentar
dilemas importantes, como reconhecer as diferenças e descobrir estratégias
que não desistam de estabelecer diálogos e reconhecimentos possíveis

Portanto, o intuito aqui não é trazer respostas concretas ou alocar


determinados sujeitos em caixas categorizadoras, e sim, problematizar e
buscar uma atenção para esses afetos dissidentes que possuem uma
interferência direta em suas edificações em consequência da estrutura racista e
homofóbica que vivemos atualmente. E escolho fazer um recorte para falar das
bixas pretas, primeiramente, por me reconhecer enquanto uma e por acreditar
na importância de gerar discussões e reflexões específicas acerca de cada
grupo que se identifica a partir das mesmas perspectivas de identidade de
gênero e sexualidade. Este objetivo não anula a individualidade e subjetividade
de cada pessoa, pelo contrário, almeja fortalecer uma resistência desse
movimento e apontar a similaridades em alguns processos nas construções
afetivas desses sujeitos.

263
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Homoafetividade Negra - Dançando os nossos afetos como estratégia de


(re)existência

Desde 2017, quando inicio o meu primeiro trabalho artístico investigando


os afetos como disparadores em processos criativos, percebo o quão
prazeroso e doloroso pode ser explorar essas percepções. Essa ambiguidade é
compreensível, pois os afetos abarcam os sentimentos tidos como positivos,
negativos e os seus entres, sendo necessários para o nosso equilíbrio. A
potencialidade de trabalhá-los em um processo artístico está nas infinitas
possibilidades de investigação de sentimentos, lembranças e estados
corpóreos.

Porém, para as bixas pretas – assim como para outros corpos


dissidentes – essas investigações muitas vezes perpassam por lugares de
sofrimentos, principalmente àquelas que experienciam uma segunda diáspora,
quando ao performar suas sexualidades são expulsas de seus ambientes
familiares ou ciclos de amizades (VEIGA, 2019). Essas alterações de relações
são um ponto de extrema relevância quando pensamos em interferências em
nossas construções afetivas “[...] uma vez que a família ocupa lugar especial
de pertencimento e de segurança para a bixa preta” (VEIGA, 2019, p. 84). Além
dessas possíveis quebras de vínculos, as bixas pretas correm o risco de
ficarem expostas a hipersexualização de seus corpos, dificuldades de se
relacionar amorosamente – por insegurança e baixa autoestima –, falta de
representatividade midiática e escassez de trabalho. Essas questões se
intensificam quando as mesmas externam uma feminilidade mais aparente.

Por esses e outros motivos entendo a relevância de refletir


artisticamente sobre homoafetividade negra em meus trabalhos, pois antes de
enfrentarmos o mundo para performar nossas verdades, necessitamos
mergulhar em nossos processos subjetivos e refletir sobre as nossas
construções sentimentais. Lucas Veiga pontua que “O trabalho sobre si, o
autocuidado, tão fundamental para que a bixa preta siga viva num mundo que
quer exterminá-la, é ferramenta de fortalecimento para o confronto permanente
com a realidade social do racismo” (VEIGA, 2019, p. 90).

264
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Ao propor em 2019 um projeto intitulado POC – Pretas, Ousadas e


Contemporâneas para o PIBEXA-UFBA100, meu intuito era justamente utilizar
essas experiências homoafetivas como material propulsor à criação de um
espetáculo em dança que além de mostrar as fragilidades e dores que uma
bixa preta afeminada vivência, consistia, também, em realçar a força, beleza e
determinação desses sujeitos.

Convidei para atuarem como interpretes três alunos da graduação e um


do mestrado da Escola de Dança da UFBA101, que se enquadravam dentro
deste perfil, o qual almejava para essa obra: Bixas pretas afeminadas e
periféricas. O processo se iniciou com a utilização de uma metodologia que
estou desenvolvendo desde 2018, intitulada como mapeamento dos afetos102
que consiste em um procedimento de reflexão e escrita pelo corpo utilizado
como disparador para processos criativos. A proposta parte da seleção de um
sentimento no qual o artista/mediador pretende aprofundar – sozinho ou em
grupo - para que durante o processo este mapeamento aponte as intersecções
e possibilidades de criação em dança a partir dessa constelação de afetos que
vivenciamos diariamente em nossa construção social e subjetiva.

Com isso, divido este processo metodológico em três partes:


Identificação, reflexão e transformação. Identificação – o mediador solicita que
o artista/convidado identifique uma história afetiva dentro de critérios pessoais
do mesmo; Reflexão - o artista/convidado cria um apanhado de semelhanças e
diferenças entre as histórias – Caso seja um processo solo, o
artista/criador/mediador pode colher histórias de pessoas que possuam o
mesmo perfil identitário (ou não) do mesmo, depende de sua proposta – e inicia
uma investigação improvisacional a partir da dança escrevendo-a pelo corpo;
Transformação – com base nestas etapas em destaque, o artista/convidado
que utilizar o mapa começa a desenvolver ações artísticas (coreografadas ou

100
Programa Institucional de Experimentação Artística da Pró-reitoria de Extensão da
Universidade Federal da Bahia (PROEXT)
101
Os interpretes são: Daniel Dias, Eduardo Almeida, Patrick C. de Jesus e Wiliam Gomes. E
no início do ano 2020, o aluno Allan Fradique também foi convidado para integrar o elenco.
102
Anteriormente era intitulada como “Mapa de afetividade”. Assim como a própria
metodologia, o nome está em desenvolvimento. Essa mudança ocorreu por uma busca poética
para o título por tratar-se de um processo em dança.

265
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

semiestruturadas) que gerem possibilidades de transformação cênica dos


temas que surgiram no decorrer do processo.

A possibilidade de uma escrita pelo corpo surge a partir do conceito de


Performance da Oralitura de Leda Martins. Ela explana:

[...]. Que o corpo em performance, é, não apenas expressão ou


representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um
sentido, mas principalmente local de inscrição de conhecimento,
conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na
coreografia, nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços
que performativamente o recobrem. (MARTINS, 2013, p. 66).

Desde quando comecei a refletir sobre a criação desta metodologia,


venho explorando em meus processos o amor como ponto de partida, e com
POC não foi diferente. A escolha se sucede com base no que bell hooks
aponta como o seu entendimento de amor, que diferente do que é vendido nas
produções midiáticas ocidentais, para a autora o amor consiste em uma ação e
intenção (hooks,1993), ou seja, o amor é construído, ele é autônomo, é
possível para todos aqueles que queiram vivenciar e experienciar esse
sentimento. Por esse motivo, me debruço atualmente nesse sentimento,
entendendo sua importância para processos de reconstrução da autoestima
desses sujeitos dissidentes e como fortalecimento na construção de laços entre
pessoas negras e/ou LGBTQIA+.103

Após colher as histórias de amor dos integrantes de POC, iniciamos


várias experimentações em nossos encontros que expressassem, através do
corpo, os sentimentos, reflexões e atravessamentos que essas vivências
relatadas nas histórias geraram para cada um. Antes dessas investigações, eu
sempre mediava um momento que intitulei como orgasmo coletivo criativo, que
consistia em uma chegada harmoniosa, que poderia perpassar por situações
de massagens em grupo, exercícios de alongamento que ao mesmo tempo
provocava cenas sensuais e debochadas ou uma sessão de partilha de beijos
dançantes entre nós, por exemplo. O intuito era preparar esses corpos para
uma imersão afetiva durante o processo, desconectando suas preocupações
com o mundo exterior e concebendo um espaço seguro de compartilhamento
de seus sentimentos e emoções.

103
Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, queers, intersex, agêneros,
assexuados e mais).

266
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

A improvisação foi uma técnica muito utilizada durante o processo todo,


pois ela se constituiu como uma ferramenta fundamental dentro da proposta do
mapeamento dos afetos, em razão de ser um dispositivo muito utilizado na
cultura das bixas pretas, sendo que manifestações como a Ball Culture104,
abriga até hoje momentos de improvisação através da dança Vogue105 por
exemplo. Se pensarmos em todos os atravessamentos que esses corpos
vivenciam, a improvisação é uma ferramenta constante para a nossa
sobrevivência em um mundo tão violento que elimina diariamente nossos
corpos. O objetivo também era que os mesmos acessassem lugares mais
inconscientes através da dança, buscando os registros das vivências em seus
corpos.

O espetáculo foi construído com base em todas as experimentações que


tivemos no decorrer do processo, sendo que algumas partes foram
coreografadas e outras utilizaram cenas semiestruturadas, que permitiam que
os intérpretes improvisassem em alguns momentos de acordo com a interação
do público e/ou os seus estados emocionais naquele dia.

A repercussão diversa do público, os depoimentos posteriores sobre o


processo e espetáculo que vieram do elenco, me fizeram pensar na variedade
de caminhos que a homoafetividade negra pode apontar quando utilizada na
construção de processos e obras artísticas em dança. Foco nesta linguagem,
pois além de ser no que venho me debruçando enquanto artista e pesquisador
atualmente, acredito que a dança contemporânea possui uma maneira muito
única de explorar os afetos, por poder investigar o corpo em sua totalidade
como comunicador de sua arte e ideias.

Pensando em uma metodologia de pesquisa para este artigo,


atravessando uma pandemia da Covid-19, a qual ocasionou o distanciamento
físico social, realizei as entrevistas com o elenco via plataforma StramYard106,

104
Movimento iniciado na década de 80 nos Estados Unidos por bixas pretas em clubes gays,
que mesclava concursos com desfile de moda com várias categorias e batalhas de danças
Vogue, inspirados nas estrelas das revistas, cinema, publicidade e televisão. (BERTE, 2014)
105
Dança criada na Ball Culture, tendo como inspiração as poses das modelos da revista
VOGUE. A dança funde movimentos do Break Dance, ginastica artística e desfiles de moda,
encadeando linhas corporais sinuosas e retilíneas e posições refinadas. (PARIS IS BURNING,
1990)
106
Plataforma virtual para reuniões em vídeo

267
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

na qual realizei cinco perguntas fixas para todos os interpretes, depois houve
um momento de improvisação e a partir das respostas eu formulava novas
perguntas durante a entrevista. Posteriormente, criei um mapeamento de
afetos com base nas entrevistas, criando uma tabela de post-it virtuais, ligando
temas, questões, atravessamentos e diálogos que ocorreram durante o
processo de criação e apresentação do espetáculo. Dessa forma, o próprio
processo de pesquisa é atravessado pela metodologia em desenvolvimento,
alicerçando a curadoria dos depoimentos com base na mesma.

As perguntas fixas realizadas foram: 1) O que te fez querer participar


desse processo? 2) Como foi participar de um processo artístico que partiu de
histórias de amor? 3) Quais são suas lembranças mais significativas do
processo? E por quê? 4) Tem interesse de elaborar ou participar de um outro
processo artístico que tenha como base um estudo voltado para os afetos? 5)
Depois dessa experiência, o que significa ser uma POC para você? As
respostas perpassaram por temas como: problematizações de masculinidades
negras, o deboche como uma armadura e resistência, as vivências como
processo de autodescobrimento, debates sobre colorismo107 e apontamentos
de reverberações posteriores.

Amor e afeto foram dois temas bastantes explorados. A maioria dos


comentários dialogaram muito com a perspectiva apontada por hooks sobre o
amor, como um sentimento autônomo, diverso, particular e coletivo ao mesmo
tempo. Outros apontaram a importância de falar sobre afetos negros à nossa
resistência. Eduardo acrescentou a relevância de compartilhar sobre esses
assuntos com as crianças, principalmente trabalhando o auto afeto.
Depoimento de Daniel como “Quando eu me vi rebolando, caiu a ficha que eu
sou gostosa.”, nos mostra como explorar o nosso próprio corpo e nossas
subjetividades podem modificar a maneira como nos relacionamos com nós
mesmos.

Assim, o comentário de Daniel, juntamente com outros depoimentos de


alguns integrantes como o do Eduardo que disse “As vivências de corpo

107
Um tipo de discriminação baseado na cor da pele onde, quanto mais escura a tonalidade da
pele de uma pessoa, maior as suas chances de sofrer exclusão em sociedade. (SILVA, 2017,
p. 03)

268
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

permitiram que eu me conhecesse melhor”, ou Patrick que acentuou que


“Depois que o processo acabou, eu consegui perceber muito mais coisas no
meu corpo”, indicam como a soma de utilizar a improvisação na dança com
uma mediação mais sensível que priorize a escuta do outro e a escolha por
utilizar histórias homoafetivas como disparador criativo, podem alterar a nossa
percepção sobre nós mesmos e promover uma conexão maior com o seu
próprio corpo e autoestima. Embora estando em um cenário caótico, no qual os
corpos das bixas pretas sofrem violências diárias, esses processos criativos
contribuem para um fortalecimento desses sujeitos que reverberam em
representatividades possíveis para outros corpos.

Além disso, como dito anteriormente, o objetivo de utilizar o


mapeamento dos afetos como um disparador, é entendendo que falar sobre
afetos envolve uma gama de possíveis outros assuntos e questões que irão
surgir a partir de cada sujeito e contexto. Um exemplo disso, é quando Willian e
Daniel apontam a questão do colorismo em suas falas, sendo que ambos são
sujeitos negros de pele clara. Quando divulgamos os encartes da obra,
algumas pessoas não os identificaram enquanto bixas pretas, recaindo até em
algumas críticas sobre essa escolha. Entretanto, o fato de gerar esse debate
em rodas de conversas, diálogos informais e escritas acadêmicas,
automaticamente nos mostra a importância de discutir sobre este assunto.
Willian afirma que o processo foi “Um divisor de águas identitárias” e que ele
sentiu que se conectou mais com sua ancestralidade.

Por fim, terminei a entrevista perguntando o que cada um entendia por


homoafetividade negra e a grande maioria associou a relações amorosas
homoafetivas instantaneamente. Allan e Patrick por estarem atualmente
namorando, falaram muito da questão de parceria, de estar com alguém que
lhe entenda e lhe proteja. Daniel, disse que “Quando penso em
homoafetividade, penso em um grande leque de pessoas se amando, homens
e mulheres”, e ainda fez uma provocação no sentido de que os homens héteros
exercem muito essas trocas homoafetivas, mas não assumem esse lugar. Já,
William me devolve a pergunta com outras duas, enunciando: “Por que falar
sobre homoafetividade, se podemos falar sobre afetividades? E como a ideia
de homoafetividade fica para os corpos trans? ”.

269
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Essas questões não possuem uma resposta única, até porque a


complexidade de relacionar afetos com identidade de gênero, sexualidade e
raça é extrema se pensarmos na variedade de sujeitos, perspectivas e
realidades. Porém, nesse artigo, assumo que a ideia de homoafetividade negra
na dança não contempla todos os sujeitos, pelo contrário, ela é delimitada para
um grupo que possui vivências e experiências afetivas até certo ponto em
comum, respeitando sempre suas individualidades. Entretanto, acredito na
importância de problematizar essas especificidades afetivas dissidentes para
justamente falar sobre diversos afetos, sendo que a nossa estrutura social,
econômica, política e cultural, impregnada pelo racismo, homofobia, machismo
entre outras violências, acabam criando vários segmentos que nos distanciam
dos nossos e de nós mesmos. Espero que essa pesquisa, assim como outras
que se aventuram a refletir sobre processos afetivos, busquem cada vez mais
falar de outras possíveis afetividades.

Quilombo de Afetos

Para a fexação108 desse artigo, acredito que todas essas reflexões e


apontamentos podem resultar em um possível conceito, o qual venho
desenvolvendo na minha pesquisa de mestrado intitulado até o momento de
Quilombo de afetos, que consiste na construção de uma rede afetiva que
priorize experiências de pessoas negras, no intuito de desenvolver um espaço
seguro de troca e conhecimento pessoal, permitindo o fortalecimento do
movimento negro e possibilitando que outros grupos sociais possam priorizar
suas vivências afetivas como estratégia de resistência e (re)existência.

Esse possível conceito nasce como extensão do conceito de


Quilombismo de Abdias Nascimento, que em suas palavras:

O Quilombismo propõe, em síntese, um socialismo democrático e


descentralizado, com ênfase na propriedade coletiva da terra, nas
realidades pluriculturais e multiétnicas das sociedades americanas, e
nas necessidades de respeito à pessoa dos descendentes de africanos
e dos povos indígenas, bem como de reconstrução das histórias e dos

108
É uma expressão cultural, que denota uma deslumbrante aparição, uma ação esplendorosa.
Quando utilizada reflete as gírias das pessoas LGBTQIA+, em contextos múltiplos e em
situações variadas. (SANTOS, 2019, p.89). Neste contexto me inspiro em Leonardo Santos ao
utilizar o termo como sinônimo de “conclusão” em sua dissertação de mestrado.

270
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

valores culturais não europeus. [...] Trata-se de uma forma de


administração e organização nacional que leva em conta as
necessidades de populações especificas num contexto multirracial.
(NASCIMENTO, 2019, p. 330)

Como a proposta de Nascimento, abrange uma vasta dimensão política,


cultural, econômica e histórica, a concepção de Quilombos de afetos, surge
como um galho diante dessa árvore imensa de possibilidades que Abdias
planta em nossa história. Palavras fundamentais utilizadas pelo autor como
respeito, reconstrução e justiça, nesse caso são direcionadas para uma
atenção para os nossos afetos como potencializadores revolucionários para o
enfrentamento dessa supremacia branca.

Quando começamos a direcionar a nossa atenção para as nossas


dimensões afetivas, estamos lutando contra um sistema que nos trata como
seres inferiores, que nos apontam como não dignos de possuir subjetividades
complexas. Além disso, quando passamos a nos cuidar e entender a
importância de direcionar um olhar mais atento para as nossas questões
afetivas, nos fortalecemos como indivíduo e coletivo, e desenvolvemos um
quilombo com um poder de luta e resistência. Beatriz Nascimento fala um
pouco sobre essa questão de poder em seu livro Quilombola e intelectual –
Possibilidade nos dias da destruição (2018):

A investigação sobre o quilombo se baseia e parte da questão do


poder. Por mais que um sistema social domine é possível que se crie
aí dentro de um sistema diferencial e é isso que é o quilombo é. Só
que não é um estado de poder no sentido que a gente entende, poder
político, poder de dominação. Porque ele não tem essa perspectiva,
cada indivíduo é o poder, cada indivíduo é o quilombo.
(NASCIMENTO, 2018, p334.)

O intuito de não associar esse possível conceito como exclusivo para os


corpos dissidentes, é justamente de abraçar essa ideia mais ampla e coletiva
de Abdias e Beatriz, entendendo que independente da identidade de gênero e
orientação sexual, enquanto negros, possuímos o racismo estrutural
(ALMEIDA, 2019) como um elemento comum e constituinte na composição de
nossos afetos, entendendo que as camadas de interseccionalidades
(AKOTIRENE, 2019) atuam no apontamento de outros atravessamentos devido
a diversas violências estruturais.

Com isso, a dança contemporânea negra que utiliza os afetos como


potencializador de suas criações, aparece como uma possível linha que

271
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

costura essa rede afetiva, permitindo uma reverberação de subjetividades, uma


movimentação de saberes sensíveis e um dispositivo dramatúrgico que narra
outros corpos. Entendo que esse Quilombo de afetos pode ser construído de
diferentes formas, por várias linguagens artísticas, acadêmicas, sociais e
humanas, porém, acredito que o foco dessa proposta é evidenciar o quão é
importante falar de afetos, para falarmos de vida.

E agora, como você está se sentindo? O que te afeta nesse momento?


Você se sentiu afetado por esse texto? Acredito que a melhor forma de
terminar essa escrita é indagando possíveis reflexões, pois pensar sobre as
nossas vivências afetivas, não é luxo, e sim, uma necessidade.

Referências Bibliográficas

AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Ed02. São Paulo: Pólen, 2019

ALMEIDA, Silva. Racismo Estrutural. Ed02. São Paulo: Pólen, 2019

BERTE, Odailson. VOGUE: dança a partir de relações corpo-imagem. Dança.


Salvador: Universidade Federal da Bahia, v.3, n.2, 2014, p. 69-80

DAMÁSIO, António. A estranha ordem das coisas: As origens biológicas dos


sentimentos e da cultura. Trad. Laura Motta. Ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 2018

DIAS Maria Berenice. União Homoafetiva: o Preconceito e a Justiça. Ed.4.


São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009

FAVRET-SAADA, Jeanne. Ser afetado. Trad. P. Siqueira. Cadernos de


campo. São Paulo: Edusp, v.13, n.13, 2005, p. 155-161

HOMEOSTASE. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus,


2020. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/homeostase/>. Acesso em:
23/07/2020.

hooks, bell. Living to Love: Women’s Health. Emmaus: Rodale, vol. 05, 1993,
p. 231-236

272
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

MARTINS, Leda. Performances da Oralidade: Corpo, lugar da memória.


Letras. Santa Maria: Universidade Federal Santa Maria, vol. 26, 2003, p.63-81

NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: Documento de uma militância Pan-


Africanista. Ed03. São Paulo: Perspectiva, 2019.

NASCIMENTO, Beatriz. Quilombola e intelectual: Possibilidade nos dias da


destruição. Ed. São Paulo: Filhos da África, 2018.

PARIS is burning. Produção e direção de Jennie Livingston. New York, USA:


Academy Entertainment Off White Productions. Miramax Films Distribuidora,
1990. 1 DVD (76 min.): DVD, NTSC, color.

SANTOS, Leonardo. Gênero e sexualidades nas licenciaturas em Dança da


UFBA: por e para uma pedagogia queer. Dissertação de mestrado em Dança,
Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, 2019.

SILVA, Tainan. O colorismo e suas bases históricas discriminatórias. Direito


UNIFACS – Debate Virtual. Salvador: UNIFACS, n. 201, 2017, p.01-19

VEIGA, Lucas. Além de preto é gay: diáspora da bixa preta. In: RESTIER,
Henrique; SOUZA, Rolf (org). Diálogos contemporâneos sobre homens
negros e masculinidades. Ed. São Paulo: Ciclo Contínuo, 2019, p. 77-93

273
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

CORPO-NANÃ:
EXPERIÊNCIA PERFORMÁTICA NO MANGUEZAL

Cleyce Silva Colins (UFRGS)

Esta investigação faz parte da pesquisa de mestrado: “Performar o


Encante: Camadas para a criação em dança desde os saberes do terreiro”,
orientado pela professora Dra Celina Nunes de Alcântara109. A dissertação em
questão busca pensar a experiência religiosa da umbanda a partir da dimensão
da encruzilhada, noção que aparece nessa investigação pautada no autor Luiz
Rufino (2017; 2016) e Leda Maria Martins (1997). Também trabalho com o
entendimento de encantamento do autor Eduardo Oliveira (2005) e conceito de
performance da oralitura, Martins (1997; 2003), tais formulações no
desenvolvimento da pesquisa foram percebidas como alinhados a experiência
ritual da umbanda. Dentro do desenvolvimento da pesquisa esses conceitos
bem como a experiência religiosa, foram disparadores para realização de
experimentos práticos, assim como meios pelos quais realizei a análise da
performance.

A escrita da dissertação, assim como este texto estão pautados no


entendimento de escrevivência110 da autora Conceição Evaristo (2009). Com
base na perspectiva desta autora penso em uma escrita que se forja desde um
si, compreendendo esse si como aquilo que está inscrito por força da minha
vivência. O meu corpo, mulher, afrodescendente, umbandista, pesquisadora,
bailarina.

Neste texto em questão, trago o experimento performático Corpo-Nanã,


realizado no desenvolvimento da pesquisa de mestrado, com o intuito de
pensar a criação em dança pautada pela performance da oralitura, Martins

109
CELINA NUNES DE ALCÂNTARA - [email protected] - Professora adjunta no
curso de Teatro, no Departamento de Arte Dramática e Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas, do Instituto de Artes, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
110
Está noção é marcada por uma subjetividade própria de um corpo-mulher-negra, que
segundo Evaristo (2009), inventa e cria o ponto de vista do texto desde a experiência de sua
existência. Em outras palavras, é uma escrita que se dá colada a vivência do corpo
afrodescendente.

274
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

(1997; 2003) e encantamento, Oliveira (2005). Para além, este experimento ao


qual me proponho relatar aqui, irrompeu do desejo de olhar para os saberes de
meus ancestrais111 com o intuito de reconhecer os conhecimentos negro-
africanos em meu corpo e no de minha família consanguínea. Está que é parte
de um projeto brasileiro de embranquecimento112 da população negra.

A ideologia do embranquecimento forjou meu corpo enquanto um corpo


que não é suficientemente branco para ser intitulado branco, que não é negro e
nem indígena. Criou um corpo do entre, um corpo que resulta da
desterritorialização e violência contra os povos originários e da diáspora negra.

O embranquecimento pariu um corpo para não ser, um corpo que tem


que forjar sua existência a partir da condição da vivência de um entre lugar,
que considero como uma fratura, um rompimento. “O Brasil é assim. O
candomblé é assim. A macumba é assim. A feijoada é assim. […] Assim, é a
cultura afrodescendente. Ela é um entre lugar não um sem lugar” (OLIVEIRA,
2007, p. 105). Essa condição que estreita a possibilidade de um
reconhecimento de uma ancestralidade, também esgarça e me mostra o quão
cruel é um projeto que visa a homogeneização dos corpos e o apagamento das
diferenças.

Umbanda como encruzilhada

Para o autor José Carlos dos Anjos (2008), esse aspecto de


homogeneização das diferenças não encontra seu lugar dentro das filosofias
religiosas afro-brasileiras, onde o encontro com as diferenças, não é da ordem

111
O entendimento de ancestral nesta pesquisa extrapola a noção de ancestralidade genética,
indo em direção aos ancestrais que compõem a umbanda, como os pretos-velhos, boiadeiros,
malandros, caboclas, ciganas, baianas, etc.
112
A ideologia do branqueamento é parte de um projeto do estado brasileiro para a
transformação da população não branca em branca, essa ideologia impõe aos corpos não
brancos uma assimilação do comportamento branco. O embranquecimento é uma das formas
de manutenção do racismo por parte do colonialismo, esse artifício é um modo de destruição
dos valores africanos. Para a autora, Machado (2016, p. 2169) “A dimensão ideológica do
embranquecimento consiste na assimilação do comportamento do branco e na negação da
cultura africana.”

275
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

do fundir aspectos díspares tornando-os unidade, não é uma espécie de


cruzamento onde se tem uma síntese, mas antes uma condição de
encruzilhada onde os diferentes caminhos não se fundem e seguem como
pluralidades. Seguindo este pensamento o autor nos apresenta a noção de
que,

A religiosidade afro-brasileira apresenta um outro patrimônio que não


é a dissolução das raças numa mestiçagem em que, o negro como
um “reagente químico” – para retomar uma expressão cara a Sodré –
“funciona como uma espécie de tempero para o prato único da cultura
nacional” e em que as “diferenças são homogeneizadas por uma
solução de compromisso idealizada” (Sodré, 1999:192). Em primeiro
lugar, a lógica rizomática da religiosidade afro-brasileira em lugar de
dissolver as diferenças conecta o diferente ao diferente deixando as
diferenças subsistirem enquanto tal. (DOS ANJOS, 2008, p. 82)

A partir desse reconhecimento, penso, intuo a umbanda113 nesta


pesquisa como uma das encruzilhadas114 de Exu115 no Brasil que promove o
encontro de caminhos distintos, subsiste com as diferenças, é ambivalente e se
cruza com o efeito de fazer baixar saberes negro-africanos. Meu intuito com

113
A umbanda é um fenômeno plural que congrega diferentes práticas litúrgicas, podendo ser
elas africanistas, cristãs, indígenas e orientais. Tais práticas se cruzam em maior ou menor
grau podendo até não aparecerem em determinadas agremiações. O encontro dessas práticas
múltiplas, gera uma dificuldade em pensar a umbanda como uma unidade, dessa maneira
pondero esse aspecto e ressalto que o modo como essa religião é aqui pensada diz respeito a
minha experiência dentro do cultivo religioso.
114
Para o autor Rufino (2016) a encruzilhada fratura a pureza dos cursos únicos, uma vez que
é o espaço-tempo onde as fronteiras aparecem como zonas interseccionais, em outras
palavras as diferenças e os múltiplos saberes coexistem e se pluralizam, enquanto
esculhambam às verdades únicas.
115
Exu dentro das religiões afro-brasileiras é o orixá da transformação, da comunicação, é o
senhor das encruzilhadas, bem como potência diante da multiplicidade de caminhos. Para
Martins (1997, p. 26) ele é “[...] princípio dinâmico que medeia todos os atos de criação e
interpretação do conhecimento. Como mediador, Exu é o canal de comunicação que interpreta
a vontade dos deuses e que a eles leva os desejos humanos.” Para a autora ele “simboliza um
princípio estrutural significante da cultura negra, um operador semântico da alteridade africana
na interseção cultural nos Novos Mundos. Senhor das encruzilhadas e, principalmente, da
encruzilhada dos sentidos e dos discursos, ele é trickster, uma instância de mediação e
ressignificação através da qual a mitologia iorubá desliza pela religião cristã, mantendo uma
enunciação diferenciada e descentralizadora.” (MARTINS, 1995, p.56). Exu no Brasil também é
lido como entidade e não orixá, essa é uma das transformações dessa divindade no Brasil. A
qual é apresentada pelo autor Nogueira (2014), como parte do processo de ressignificação
desse orixá no “Novo Mundo”, vale ressaltar que esses processos de hibridização que as
religiões africanas passaram em terras brasileiras, são meios de reexistência a um longo
período de opressão europeia aos valores africanos, o qual segundo o autor transfigurou Exu
de divindade iorubá para um espírito ancestral (entidade) nas umbandas.

276
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

esta percepção não é a de abrandar o processo de opressão e


embranquecimento que esta religião sofre em sua constituição, mas sim
ampliar sua leitura a partir de saberes negros.

Para além, penso que esta dimensão de encruzilhada me auxilia a trazer


a umbanda como uma filosofia que concede outras lógicas para pensar o corpo
na criação em dança. Olhando a umbanda a partir dessa perspectiva, entendo-
a como um campo de possibilidades “[…] onde todas as opções se
atravessam, dialogam, se entroncam e se contaminam. (RUFINO, 2016, p. 3).
Esse aspecto me auxilia a pensar em uma filosofia da diferença dentro do fazer
da dança, filosofia demasiadamente urgente quando entendemos que o
aparato colonial que busca dizimar corpos negros e indígenas está também
presente em nossas práticas artísticas.

Nesse sentido é que este corpo reivindica na contemplação de sua


experiência religiosa dentro de uma das religiões afro-brasileiras, a umbanda, a
correlação com um itã de Nanã em uma história de sua família, no intuito ainda
que frágil de firmar o reconhecimento de uma oralitura e de um passado mítico
e histórico inscrito em seu corpo.

Escritas do Corpo

O conceito de performance da oralitura é neste relato usado com base


na autora Leda Maria Martins (1997; 2003), que nos apresenta uma análise dos
Congados mineiros para firmar a hipótese de que no domínio dos rituais afro-
brasileiros as epistemologias negro-africanas estão inscritas na performance do
corpo. Performances, que segundo a autora nos apontam para um
conhecimento que está inscrito no gesto, no canto e na dança, que em fusão
são o lugar da memória, recriação da memória e da continuidade dos saberes
negros nas Américas.

O termo oralitura do modo como a autora se propõe a usar, refere-se a


“presença de um traço cultural estilístico, mnemônico, significante e
constitutivo, inscrito na grafia do corpo em movimento e na vocalidade”

277
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

(MARTINS, 2006, p. 84). O uso do conceito por Martins (2003) institui a noção
de corpo como escrita, para ela

[...] o corpo em performance é, não apenas, expressão ou


representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um
sentido, mas principalmente local de inscrição de conhecimento,
conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na
coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços
que performativamente o recobrem. Nesse sentido, o que no corpo se
repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e
procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da
memória do conhecimento, seja este estético, filosófico, metafísico,
científico, tecnológico, etc. (MARTINS, 2003, p. 66)

Alicerçada nesta compreensão me utilizo do conceito de performance da


oralitura, com o intuito de vislumbrar rastros dos saberes da performance ritual
da umbanda e das histórias de minha própria família dentro do experimento
performático Corpo-Nanã. Entendo a partir de minha vivência na umbanda que
os saberes não são apenas dimensionados pela escrita, mas pela fala, pelo
hálito, pela dança, pelo som de nossos atabaques, pela relação com a
natureza, etc. Compreendo que além de uma escrita firmada no corpo, os
saberes do terreiro inscrevem-se nos pontos116 vocalizados, riscados, na
mitologia dos orixás, no rufar dos atabaques, bem como no transe 117. Entendo
esse conjunto como o lugar da memória, conhecimento, encantamento, assim
como da ética de um terreiro de umbanda.

Uma leitura sobre encantamento

A noção de encantamento é aqui utilizada com base na noção de


“Semiótica do encantamento” do autor Eduardo Oliveira (2005; 2012), ou seja,
como lente “para enxergar este mundo” (OLIVEIRA, 2005, p. 38). Para o autor
o encantamento não se configura como um estado emocional, mas antes uma

116
Os pontos, são cantos ritualísticos acompanhados de atabaques, danças e palmas.
117
Dentro da religião de Umbanda, o transe é o momento onde os ancestrais e Orixás se
manifestam nos corpos dos adeptos, para festejar, curar e encantar a vida.

278
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

experiência cognitiva, pacífica ao aprender, ao educar e ao conhecer. Para ele,


o encantamento é resultado de uma sensibilização do olhar, esse que recria o
mundo e detém uma matriz de diversidade de mundos. O olhar encantado para
Oliveira (2005) está firmado no território da ancestralidade e revela o corpo,
visível, enquanto “o sinal do invisível no corpo” (OLIVEIRA, 2005, p.128).

O encantamento é para o autor uma atitude frente à vida, da qual nasce


a filosofia africana. Para Oliveira (2005) é uma metodologia para ler
experiências assentes no solo do mistério e da ancestralidade, diante desta
perspectiva faço uso desta noção como metodologia e lente para olhar o
mundo. Ancestralidade com base no autor Oliveira (2005; 2012) é o espaço-
tempo da experiência negra afrodiaspórica, um movimento que exerce um elo
entre diferentes tempos-espaços. A ancestralidade é entendida por Oliveira
como “[...] um tempo difuso e um espaço diluído. Evanescente, contém dobras,
labirintos se desdobram no seu interior e os corredores se abrem para o grande
vão da memória” (2007, p. 245).

Para além da visão desse autor trago a perspectiva da professora,


artista e pesquisadora Inaicyra Falcão Santos (2002). Esta autora compreende
a ancestralidade não apenas como genética, mas como passado que se
inscreve no corpo a partir da oralitura. A partir dessas noções de
ancestralidade entendo meu corpo como continuidade não apenas dos saberes
de meus antepassados, mas também o lugar onde se inscreve os saberes do
encantamento, o corpo como um elo, um cordão umbilical como um tempo-
espaço difuso e diluído. Essa percepção me amplia a leitura sobre a
ancestralidade me permitindo acessar o encantamento e elaborar
conhecimentos a partir de outras bases, por exemplo, pelo sensível 118 e pela
performance da oralitura.

118
Me utilizo do termo sensível com base no autor Sodré (2017), onde o sensível é
configurado como uma condição da corporeidade iorubá, para o autor “O sentir é a
comunicação original com o mundo, é o ser no mundo como corpo vivo. O sentir é o modo de
presença na totalidade simultânea das coisas e dos seres. O sentir é o corpo humano
enquanto compreensão primordial do mundo. O homem não é si mesmo por derivação ou,
progressivamente, por etapas. Ele é de vez ele mesmo, estando nele mesmo junto a coisas e a
outros, na atualidade do mundo. O sentir é a correspondência a essa presença [...]. Pelo sentir
do corpo, o homem não está somente no mundo, mas este está nele. Ele é o mundo” (SODRÉ
apud BOULAGA, 2017 p.124

279
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Com base nesse entendimento proponho pensar que o corpo vivenciado


no experimento performático se assume como cordão umbilical, lugar do olhar
encantado e local de reelaboração da história e saberes afro-ameríndios, que
despontam inscritos em meu corpo.

Corpo-Nanã119

Por esta pesquisa tratar-se de uma investigação que acontece


atravessada pela umbanda, o Ifá, divindade da sabedoria, foi consultado, assim
como meu pai de santo. Deles pude receber autorização para o
desenvolvimento da pesquisa e entender os meus limites enquanto adepta
para o desenvolvimento deste trabalho.

Com base no que me foi apontado pelo meu pai de santo, os saberes e
a ética do terreiro que perspectivam a investigação Corpo-Nanã, não trazem os
segredos e mistérios próprios desta religiosidade, os quais são preservados
nesta pesquisa. Os saberes que trago em meu trabalho a respeito do chão do
terreiro são conhecimentos e públicos e não se referem aos ritos de iniciação.
Essa delimitação, busco estabelecer pela necessidade de definir o uso da
experiência religiosa dentro das artes cênicas.

Corpo-Nanã foi realizado em janeiro de 2020, em uma praia de mangue


na cidade de Alcântara - Maranhão. O mangue é um aspecto importante ao se
pensar está orixá. Pois, conforme o mito que aduz ao rito, foi Nanã que deu a
porção de lama para a criação do corpo humano, sendo ela responsável por
nos receber em seu seio, nos levando novamente para à terra. Ela é uma
divindade que tem origem na República do Benin (Daomé), sendo um vodum
jeje que teve seu culto ressignificado pelos nagôs, onde passou a ser
considerada uma orixá. Pela cosmovisão nagô, Nanã é considerada um dos
mais antigos orixás, seus atributos associam-se a figura da Mãe Velha, aquela
que carrega passos lentos, possui a coluna curvada e têm em seu corpo toda a

119
Link com material áudio visual produzido durante o experimento:
https://youtu.be/5FfvDwrM6zg

280
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

experiência de uma vida. Ela está associada a chuva, a fertilidade, a


agricultura, a morte, as águas contidas na terra, pântanos e mangues, por
exemplo. Tendo nesses lugares seus símbolos naturais.

Com base nessas noções de Nanã acima citadas e na performance da


oralitura vivenciada, contemplei a convergência de um dos itãs, histórias e
mitos iorubas, da orixá Nanã com histórias de minha família, por isso escolhi
esta orixá como norteadora deste experimento. Entendo vivência da oralitura
dessa orixá, como as experiências ritualísticas de culto a essa divindade, na
qual estão presentes mitos, cantos, danças, toques, comida, transe, etc. Foi
desde essa contemplação que optei por escolher o mangue como local para
criação, ressalto que tal escolha esteve pautada diretamente na relação de
uma performance da oralitura pulsante no corpo em relação a esta orixalidade.

Figuras 1 e 2 – Experimento Corpo-Nanã. Fonte: Arquivo pessoal da autora. Foto: Larissa


Micenas.

281
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Tomando o experimento “Corpo-Nanã” como ponto de análise, entendo


que o movimento corporal experimentado em relação ao mangue, teve base
tanto na performance da oralitura no terreiro quanto no próprio habitat do
mangue. Os crustáceos, pássaros, as árvores dos manguezais, a textura e a
cor da lama, tornaram-se estímulos, fazendo emergir outras qualidades de
movimentos, uma dessas foi a criação de movimentos com base na alteração
da gravidade pela densidade da lama, que alterou o peso do corpo e o modo
de realização da caminhada.

Durante a realização do experimento pude caminhar cerca de 5 km por


meio do manguezal e pude perceber outra organização corporal, meus pés
pisavam de forma plana e havia toda um jogo de acionamento das
musculaturas do abdômen para sustentar o meu tronco. Percebo que essa
organização corporal só foi possível pelo contato do corpo com o mangue, o
qual influenciou diretamente meus movimentos. Senti meu corpo mais pesado,
mais denso. Peso este que me direcionava, puxava, impelia ao solo. Tal
vivência me permitiu vislumbrar outra relação com o corpo de Nanã
apresentado em suas mitologias. Pois, fiquei pensando que a figura de corpo
desta orixá, como um corpo curvo e de caminhada lenta, se deve a relação
dela mesma ser um desdobramento do mangue, em outras palavras ela é o
próprio mangue.

O mangue é todo ele é um organismo vivo, um espaço de multiplicação


de várias espécies, o qual possui uma grande quantidade de matéria-prima,
que é sedimentada, apodrecida e transformada em alimento para os muitos
seres que vivem ali. A lama do mangue que resulta do apodrecimento desses
sedimentos em contato constante com a água, é um rico ambiente de encontro
entre a vida e a morte, o espaço onde esses aspectos convivem para fecundar
novas vidas. Essa característica de encontro entre a vida e a morte está
presente na orixá Nanã e pude contemplar isto, em certa medida, lá no próprio
mangue. Esse aspecto me proporcionou o encontro com a qualidade de meu
corpo como um corpo que nomeei como berçário, um local que toma os muitos
sedimentos e fragmentos de uma ancestralidade para fazer viver outra
qualidade de corpo, que vislumbro diferente da experiência de corpo dentro do
espaço litúrgico da umbanda, mas que ainda acontece conectado a ele.

282
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

O mangue, é lido nesse experimento como um dos locais que evoca


a ancestralidade do corpo do terreiro, mas também evoca a performance da
oralitura por meio da experiência presente do contato com o ambiente de Nanã,
que mais que uma simbologia é um local vivo de sua sabedoria. Local este que
no experimento é uma força ativadora de dança.

Neste ponto vejo convergência com o que o autor Muniz Sodré (2019)
nos apresenta em relação à dança que tem como base a filosofia africana, a
qual é uma expressão de um saber que não se reduz a um símbolo de uma
língua, sendo ela um saber “colocado a experiência de um corpo próprio”
(SODRÉ, 2019, p. 127), onde

[...]os movimentos e os gestos dos dançarinos não são descritivos de


uma referência ou simplesmente miméticos de um significado. São,
sim, projetivos, no sentido de que se lançam para além do conceito,
induzindo a experiências ou vivências possíveis. A dança não é, ai,
mera composição, mas impulso de união com um todo - é impulsão.
(SODRÉ, 2019, p. 127)

Percebo com base em Sodré (2019) que os movimentos criados no


experimento Corpo-Nanã não são apenas miméticos ou geradores de símbolos
no meu corpo. Antes disso eles me parecem ser resultados de um saber
incomunicável, que tem sua base em uma conexão com o que este autor
relaciona como Arkhé. Conforme Sodré, uma energia capaz de gerar espaços,
trazer a herança cultural africana, prover a continuidade de tais saberes e ser
um polo irradiador de energia vital. Entendo que as experiências de Arkhé
estão diretamente relacionadas a noção de encantamento de Oliveira (2005),
pois em ambas as noções se encontram no aspecto de um princípio criador de
mundos que apresenta o corpo como a condição da experiência. Intuo que o
Arkhé gesta o encantamento, que, por sua vez, me possibilita na situação do
experimento de Corpo-Nanã ver a vida e a morte gestadas em uma mesma
encruzilhada.

283
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Figuras 3 – Raízes de Mangue. Fonte: Arquivo pessoal da autora.

O corpo vivenciado dentro do experimento o intuo como uma árvore de


mangue, tem suas raízes suspensas e justamente por essa condição consegue
sua sustentação em ambientes lodosos. Tal analogia objetiva ilustrar que
mesmo o meu corpo resultado de um projeto civilizatório que visa a
homogeneização e, que por isso tem suas raízes suspensas, pode ainda fincar-
se na lama para reflexionar sua ancestralidade. Não com o intuito de um
retorno a África, mas com o objetivo de olhar diretamente para a fratura que a
diáspora criou para meu corpo.

Para além, a ancestralidade que emerge da performance da oralitura


dentro do experimento, é entendida como um meio de retomada dos valores
civilizatórios africanos em minha vida. Os quais me recordam sobre a
interconexão que tenho com o ambiente. Entendimento iorubá vivenciado na
umbanda e que é apresentado por Ribeiro e Sàlámì (2008), como parte da
cosmovisão africana, onde somos todos parte de uma grande teia, a qual
quando tocamos em um ponto estamos tocando no todo. Trago essa visão de
uma forma um tanto reduzida aqui, mas conjecturo que essa experiência de
fazemos parte de uma grande teia, da qual não estamos separados das
árvores, do mar, da terra, dos minerais e toda a infinidade de outros seres, para
além de retomarem a performance da oralitura e o encantamento, nos lembram
que a crueldade aos reinos, vegetal, mineral e tantos outros não passam de
uma agressão a nós mesmos. Ainda nesse contexto gostaria de ressaltar que
Martins (2003, p. 78) afirma que a concepção africana

284
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

[...] inclui, no mesmo circuito fenomenológico, as divindades, a


natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos físicos, os mortos,
os vivos e os que ainda vão nascer, concebidos como anelos de uma
complementaridade necessária, em contínuo processo de formação e
de devir. (MARTINS, 2003, p. 78)

Com base nessas acepções entendo que a cosmovisão da umbanda


associa o corpo e a dança aos elementos da natureza, estando ambos
imbricados. Nessa experiência “Corpo-Nanã” a orixalidade me remete a esse
aspecto, tornando-se não exclusivamente meu objeto de fé, mas potência para
refletir sobre a dimensão do corpo que dança, canta e encanta como um
possível lugar de criação de um pensamento ecológico e de um meio de se
caminhar no mundo.

Considerações

Fico pensando que as noções de encantamento e performance da


oralitura atreladas a uma vivência encarnada, corporificada desses
entendimentos, podem ser uma possibilidade para aduzir um fazer ético dentro
das artes da cena.

Intuo que a criação de potências para o fazer artístico em dança com


base em tais percepções é algo bastante complexo, demorado e, ao mesmo
tempo, imponderável, sobretudo quando o intuito é o de tomar a experiência
como potência de experimentação e pensamento. Nesse ponto vejo ainda o
trabalho como um esforço para entender os processos de colonização que se
inscrevem em minhas práticas artísticas, ao mesmo tempo, em que um esforço
para ir desenhado outros modos de dançar, criar e ensinar.

Considero que tenho muito a aprender sobre transgressão a colonização


com os saberes negro-africanos instaurados no solo do terreiro. E já percebo
que tais sapiências vêm me abrindo as portas para suplantar os vazios, a
precarização, a vigilância e o embranquecimento que o colonialismo edificou
nas bandas de cá. Entendo o corpo do experimento, como insurgente, um
corpo que dança com as tensões, rupturas, por isso incorpora os imensos de

285
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

nossa história. Este corpo me mostra um caminho ético para a criação, onde as
diferenças e a multiplicidade de sentidos se encontram em um respeito
profundo a vida. Penso que o experimento vai em direção a uma produção de
mudança por meio do reconhecimento da ancestralidade e da noção de que
não somos a única espécie viva.

Em suma, conjecturo que as performances que emergem desde a


filosofia dos terreiros, são danças que versam estratégias de sobrevivência
para os valores civilizatórios africanos, por essa lógica tais danças podem ser
vistas como uma espécie de útero que gesta e nutre em diferentes níveis um
processo de reelaboração de nossas memórias negro-africanas.

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SCHNEIDER, Liane; MACHADO, Charliton (Orgs.). Mulheres no Brasil:
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287
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

A DANÇA DE OXUM NA CONSTRUÇÃO DO CORPO CAVALO

Joelma Ferreira da Silva (PPGCULT- UFS)


Ana Maria de São José (PPGCULT- UFS)

O presente artigo tem como objetivo tratar das escritas de movimento a


partir do meu relacionamento com a ancestralidade africana e o orixá Oxum 120,
bem como das reverberações do corpo durante o processo de composição da
dança criada para o filme Cavalo (2020), dos diretores Rafhael Barbosa e
Werner Salles.

Como ressignificar a dança de Oxum em um corpo que não conhece os


códigos pré-estabelecidos desta dança? Essa questão surge a partir de uma
experiência, palavra usada aqui tendo como base a percepção de Jorge
Larrosa Bondía (2002, p. 21): “A experiência é o que nos passa, o que nos
acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que
me toca”. E, desse modo, busco aproximar o leitor das sensações e
percepções vividas no desenvolvimento do que irei aqui chamar de “dança de
Oxum”.

Para compreender possíveis respostas à pergunta, faz-se necessário


traçar um breve panorama da minha trajetória com a dança em Maceió.
Quando criança, estudei na Escola Municipal Almeida Leite, no bairro da Ponta
Grossa. Nesta escola as danças populares foram-me apresentadas: primeiro o
coco, depois a taiêra121. Ainda nessa época, teve início a minha aproximação
com a dança, e assim também passei a gostar da rotina de ensaios e
apresentações. Recordo-me que sentia prazer em dançar, embora não me
sentisse representada, enquanto criança negra, pelos personagens negros que
compõem tais danças. Compreendo o ambiente escolar, como apontam os
estudos de Fanon (2008), como um espaço propício ao desenvolvimento de
traumas relacionados à questão racial, conduzindo a criança negra a
reproduzir, desde cedo, a negação de tudo que está ligado ao universo do povo

120
Segundo Prandi (2001, p. 22), “Oxum preside o amor e a fertilidade, é dona do ouro e da
vaidade e senhora das águas doces.”.
121
Danças populares de matrizes africanas.

288
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

negro escravizado, da mesma forma como ocorre fora dos muros da escola,
numa sociedade racista.

Durante a adolescência e início da fase adulta, eu continuava alheia às


questões raciais e, ao adentrar a Universidade Federal de Alagoas para cursar
licenciatura em dança, deparei-me com colegas de turma refletindo sobre
questões raciais e as subjetividades relacionadas ao fato de ser um corpo
negro alagoano, nordestino e brasileiro, o que despertou minha atenção para
essas discussões.

Ainda no curso de licenciatura, desenvolvi um solo de dança


contemporânea, termo aqui entendido com base na perspectiva adotada por
José (2011, p. 2):

Partimos da hipótese de que existe uma variedade de significados e


concepções conceituais para o termo dança contemporânea, pois
identificamos como um campo de conhecimento, amplo, aberto, vivo,
pleno de infinitas possibilidades de criação artística e de processos
em constante construção e transformação.

O solo foi criado a partir da minha experiência como brincante de


quadrilha junina, atividade que desenvolvi por mais de 10 anos. Para esta
criação utilizei o método organizado por Graziela Rodrigues, o BPI122. Este foi o
primeiro momento em que meu trabalho artístico se aproximou da religiosidade
africana do candomblé de forma mais clara para mim, num sincretismo com as
simbologias católicas dos santos juninos. Nessa época ingressei na
Companhia dos Pés123, e iniciei as pesquisas em dança contemporânea a partir
dos estudos das danças populares do Nordeste, como o coco, guerreiro,
cavalo-marinho, tambor de crioula, entre outras, que são decorrentes ou
dialogam com as matrizes africanas. É nesse contexto, quando efetivamente as
questões raciais começam a me atravessar, que eu passo a me reconhecer
enquanto mulher negra e a refletir sobre como as relações étnico-raciais se
entrelaçam à minha vida em todos os âmbitos, pessoal, social, profissional,
artístico, político e emocional.

122
Bailarino Pesquisador Intérprete, difundido em Alagoas por sua aluna, a professora e
diretora do solo, Paula Caruso.
123
Companhia de dança dirigida por Telma César, atuante em Alagoas desde os anos 2000,
realizando pesquisa com as danças populares do Nordeste e criações de espetáculos em
dança contemporânea.

289
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

É importante para este trabalho situar historicamente o território onde o


filme Cavalo foi gravado: Alagoas. É neste estado onde está localizado o maior
quilombo do Brasil, símbolo de luta e resistência negra: a Serra da Barriga. É
também Alagoas o estado que carrega na sua história o episódio conhecido
como o “Quebra de Xangô” de 1912.

Segundo Rafael (2012), no dia 1º de fevereiro de 1912, uma semana


antes do carnaval, ocorreram as homenagens a Oxum nas casas de xangô no
bairro da Levada, em Maceió. Pelas redondezas, concentravam-se várias
agremiações carnavalescas que finalizavam seus ensaios, atrações que
movimentavam o bairro. O tradicional bloco carnavalesco Clube dos Morcegos
foi o ponto de encontro da Liga dos Republicanos Combatentes, que era
formada por ex-militares que deixaram seus cargos, revoltados pelo baixo
salário, e por pessoas da sociedade civil, que estavam indignadas com a
administração política da época. É fato que esse encontro teve como intuito
pressionar e forçar a saída do líder do governo do estado, Euclides Malta, o
qual diziam frequentar com assiduidade (mesmo não havendo comprovação
concreta) a religião do candomblé na busca por sua manutenção no cargo
público. Naquele dia, o grupo estava decidido a invadir e quebrar os terreiros
de umbanda e candomblé que encontrassem pela cidade, como forma de
exterminar o que, para muitas pessoas, deixava de ser religião para tornar-se
“feitiçaria barata” com patrocínio do governador, o qual, uma vez ausente,
estava representado pela religião.

O racismo religioso marcou a história de Alagoas, pois, no decorrer


daqueles dias, mais de 30 terreiros foram destruídos na capital e em cidades
vizinhas, tendo seus objetos e artefatos jogados em fogueiras na rua e outros
levados para a sede da Liga dos Republicanos Combatentes, sendo deixados
em exposição. Sobre essa ação, Rafael (2012) afirma que, na medida em que
os terreiros iam deixando de ser atacados, as decisões de expor publicamente
imagens e objetos ritualísticos iam se consolidando como um desdobramento
da violência sofrida por aquelas casas. Alguns religiosos conseguiram escapar,
mudando-se para estados circunvizinhos, outros foram agredidos gravemente e
até morreram, como foi o caso de uma das mais antigas ialorixás de Alagoas,
Tia Marcelina. A partir daquele período, a prática religiosa no estado de
290
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Alagoas passou então a ser silenciada e, ao longo do tempo, praticada pelos


remanescentes em casas humildes, de modo discreto. No entanto, essa prática
de racismo religioso não evitou que o conhecimento africano se perpetuasse
através da oralidade, resistindo ao tempo, até a atualidade.

É nesse lugar histórico-político-geográfico que surge a proposta dos


diretores Rafhael Barbosa e Werner Salles para o primeiro longa-metragem
financiado por um edital público em Alagoas. Em Cavalo, buscou-se investigar
a ancestralidade do corpo, posicionando-o como o signo mais relevante do
filme. No processo de criação em coautoria, os protagonistas foram provocados
a construir performances inspiradas pelo protótipo do cavalo124, suas múltiplas
simbologias e os conhecimentos relacionados às religiões de matrizes
africanas. De acordo com Oliveira (2009, p. 3-4), ancestralidade é:

(…) o princípio que organiza o candomblé e arregimenta todos os


princípios e valores caros ao povo-de-santo na dinâmica civilizatória
africana. (…) torna-se o signo da resistência afrodescendente.
Protagoniza a construção histórico-cultural do negro no Brasil e gesta,
ademais, um novo projeto sócio-político fundamentado nos princípios
da inclusão social, no respeito às diferenças, na convivência
sustentável do Homem com o Meio-Ambiente, no respeito à
experiência dos mais velhos, na complementação dos gêneros, na
diversidade, na resolução dos conflitos, na vida comunitária entre
outros.

Para vivenciar essa experiência, passei por um teste de elenco. Como


eu ainda não havia participado de nenhum outro teste, seja para filme, teatro
ou espetáculo de dança, todo o processo de construção do filme Cavalo me
apresentava experiências únicas até aquele momento. No teste foi realizada
uma entrevista seguida de uma improvisação em dança acompanhada por um
músico a tocar pandeiro. Durante o teste nos foram colocadas algumas
questões: “Fala para gente da sua história com a dança? Como a sua
personalidade interfere na sua dança? Dança um pouco para gente ver?”. Eu
estava despretensiosa, mas buscava seriedade e transparência nas respostas.
Fui aprovada e, junto comigo, os artistas alagoanos Alexandrea Constantino,
Evez Roc, Leide Serafim (Olodum), Leonardo Doullennerr (Lulinha) e Sara
Oliveira, compondo, assim, um elenco formado por sete artistas negros, rapper,

124
Termo utilizado para referir-se aos médiuns na umbanda e no candomblé.

291
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

b-boys e b-girl, dançarinas e dançarinos de diferentes estilos. Cabe aqui


ressaltar que três deles são médiuns na religião do candomblé e umbanda.

No filme, o corpo Cavalo é composto por todos nós, sete caminhos que
constroem uma unidade potencializada pelas diversidades corporais, as quais
advêm das danças, personalidades, crenças, lutas, orientações sexuais, do
modo como cada pessoa se relaciona com o ambiente onde vive, seja este um
bairro de Maceió ou uma outra cidade do estado de Alagoas. Assim, são
retratadas histórias de vida distintas, mas que se unem através da força criativa
da dança, do corpo e da ancestralidade. Desse modo, identifico a harmonia do
trabalho em grupo, desde o início até a finalização da trajetória de cada um no
decorrer do filme, como um rastro pujante da singularidade completa em si e
decomposta no que forma o robusto corpo Cavalo, signo maior do filme.
Observo as relações pessoais e a construção artística no filme e traço uma
analogia com os parâmetros educacionais de sociedade presentes na cultura
do povo africano Dogon.

A definição de signo Dogon é resultado dos princípios cunhados no


processo civilizatório africano. Nesse caso falamos do Princípio de
Integração onde cada parte está ligada ao todo e o todo é o conjunto
de cada parte (mas a soma de cada parte com as outras não é o
todo) ao mesmo tempo em que cada parte é um todo em si mesmo
na totalidade da singularidade (OLIVEIRA, 2009, p. 5).

Ressalto que há momentos na construção do filme em que as cenas


foram desenvolvidas em grupo, com os sete protagonistas, e outras em duos e
solos. Aqui, restrinjo a escrita à minha participação.

Glauber Xavier e Flávio Rabelo foram os preparadores de elenco, e já no


primeiro encontro lançaram para o grupo as seguintes questões: “O que move
o meu corpo? Para quem eu danço? Por que eu danço? O que paralisa o meu
corpo? O que gera desvios no meu corpo? Para além do filme, o que me faz
acordar e levantar da cama de manhã? E o que me faz ter interesse em estar
aqui?”.

Como resposta, afirmei que a dança e o meu comprometimento com ela


me fizeram acordar e levantar da cama de manhã. Saber que estou
despertando para ir dançar me faz feliz, motiva-me a viver, trazendo

292
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

perspectivas e vontade de interferir na vida dos outros, para quem eu danço,


através da minha arte e dos conhecimentos que dela surgem. Tenho desejo
pelo novo, por desafios e experiências que me modifiquem. Interesso-me por
aquilo que me atravessa, provoca reflexões, sensações e me desestabiliza;
pelas oportunidades de conhecer, a cada exercício, uma nova movimentação.
Olhar, perceber, ter consciência do meu corpo são entendimentos que agem
como dispositivos para movê-lo ou paralisá-lo. Em vista disso, há sempre
curiosidade em movimentar alguma parte do meu corpo que, no cotidiano, não
tenha organicamente mobilidade. O espaço da cidade, a arquitetura de um
ambiente, um som também são dispositivos para me mover ou me paralisar.

Os exercícios propostos pelos preparadores de elenco tinham a intenção


de criar qualidade de vínculo entre os intérpretes criadores, fazendo-nos passar
por desafios até chegarmos à sensação do limite psicofísico, trabalhando em
coletividade, e criando, dessa maneira, um corpo que está a todo momento em
relação, ou seja, um corpo relacional, para que, individualmente, cada um
pudesse se libertar um pouco das suas amarras construídas no corpo pelo
cotidiano. Em entrevista125, Rabelo aponta como se pensou o caminho à
ancestralidade:

O acesso pela ancestralidade vinha exatamente pela criação dessa


porosidade, dessa qualidade de vínculo entre vocês e desse corpo
relacional. Precisava-se criar uma egrégora ali, potente, criativa, de
acesso a forças mais inconscientes, onde está a nossa
ancestralidade. É nesse campo da invisibilidade que a ancestralidade
atua.

Atividades como as aulas das danças dos orixás também fizeram parte
da preparação corporal do elenco, de maneira a nos aproximar da
ancestralidade do corpo através do movimento. Essas aulas foram guiadas
pelos candomblecistas Lulinha (babalorixá) e pela Leide Serafim Olodum (iaô).
Olodum126 nos apresentou os aspectos sobre a dança dos orixás:

Orixá é aqui, é pé no chão. É o mínimo que a gente tira. A gente tem


mania porque a gente já tem essa questão do corpo, da dança, e não
sei o quê, aí a gente tira. Mas quando se trata mesmo da dança do
orixá, é mais pé no chão também. É bem mais forte. É muito terra. É
muito raiz mesmo. É muito essa árvore mesmo. Essa força, a gente
tira da nossa raiz, né? Da nossa mina, na verdade, né? Porque existe

125
Entrevista concedida a Joelma Ferreira no dia 31/7/2020.
126
A fala de Olodum foi extraída do filme Cavalo.

293
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

a mina, existem vários outros detalhes dentro de uma casa de santo,


né? Então é isso que a gente faz, é essa energia que emana. É essa
energia que emana na gente. Ela vem daqui mesmo, esse poder vem
daqui, vem da terra.

Sobre os orixás, nos esclarece Prandi (2001, p. 20):

Para os iorubás tradicionais e seguidores de sua religião nas


Américas, os orixás são deuses que receberam de Olodumare ou
Olorum, também chamado Olofim em Cuba, o Ser Supremo, a
incumbência de criar e governar o mundo, ficando cada um deles
responsável por um aspecto da natureza e certas dimensões da vida
em sociedade e da condição humana.

Os elementos da natureza – terra, fogo, ar, água e éter127– foram


escolhidos como referência de qualidade de movimentação coreográfica dos
respectivos orixás: Omolu, Xangô, Oyá, Oxum e Oxalá. Essa dinâmica facilitou
a compreensão da construção dos movimentos no estudo da improvisação em
sala de ensaio, bem como para a dança feita em tempo real através da
improvisação para a filmagem.

Assim, durante as aulas práticas, comecei a perceber como a


musicalidade reverberava no meu corpo, sentindo como o som dos tambores,
em diálogo com a intensidade da terra, atravessavam meus pés e percorriam
todo o corpo, encontrando a vibração, energizando e reorganizando o corpo em
movimento numa comunicação forte e pulsante que interiorizava a minha
atenção para camadas mais profundas, fazendo-me compreender o meu corpo
como uma unidade vibracional estimulada pela música percussiva dos
atabaques. Senti a música e as suas variações rítmicas como um caminho de
acesso ao êxtase.

De acordo com Barbara (2002), esteticamente, a música africana é


entendida como impulso que gera movimento, enquanto a percussão, na
religião do candomblé, é responsável por louvar os orixás, evocá-los e trazer a
memória ancestral.

Durante a preparação para o filme Cavalo, a dança se construía em um


discurso direto com a música e a partir dela. Tanto nos momentos de pesquisa

127
Elemento da natureza proposto pelo preparador de elenco Glauber Xavier, considerado
quase uma não-matéria, ligado à cultura indiana ayurveda, com a qual Glauber trabalha.
Dentro da dinâmica do filme, esse elemento foi associado ao orixá Oxalá.

294
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

de movimento em sala de ensaio quanto durante as gravações, eu sentia o


cansaço físico acionando camadas mais profundas de resistência, levando a
minha atenção cada vez mais para dentro do corpo, com a finalidade de
encontrar soluções criativas no próprio mover-se, realizando a dança daquele
momento. Ao longo desse processo de preparação, alguns de nós foram
convidados para propor atividades de exercícios coletivos. A minha
participação e contribuição para as práticas em grupo foram nos momentos de
alongamento e aquecimento. Todas as aulas culminavam com um tempo
reservado para o estudo da improvisação como pesquisa de movimento. Os
ensaios individuais aconteciam na medida em que as gravações dos solos se
aproximavam.

Fez parte do meu estudo a pesquisa acerca dos mitos dos orixás e seus
arquétipos. Segundo Rodney William128 (2020), Oxum é vista como
emancipadora das mulheres, empoderando-as, deseja que todas elas vejam os
seus próprios potenciais através de seu espelho, não só a vaidade. Com o
mesmo objeto, ela ilumina seus filhos, mas também o transforma em arma,
repelindo o inimigo com o reflexo espelhado do sol. É popular, diplomata, sabe
influenciar politicamente e tem como símbolo o rio. Age sorrateiramente,
conquistando o que deseja e divide-se em 16 qualidades.

Complementa William (2020) que, mesmo jovem, Oxum é esperta e


está ligada aos peixes e às aves. É maternal, sendo o ovo o símbolo de
fertilidade, tendo no corpo o ventre como região de cuidado à saúde e ao feto.
Não faz juízo de valor ao aborto, mas protege a gravidez. É água calma e água
em fúria, é chuva mansa que na terra brota vida, é água que alaga e
desmorona tudo. Ela existe para que o outro possa refletir sobre si mesmo e,
diante da transformação, possa transformar os demais.

Logo, observo que o corpo malemolente, dançante, em que o quadril e a


coluna dominam o movimento, e o suor, água que transborda a pele, deixam
transparecer a sedução e a sensualidade, mais duas qualidades atribuídas a

128
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AAMU4wfop 7c&t=2s . Acesso em: 4 jun.
2020.

295
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Oxum que alafia129 a mim tal parentesco, anunciado na cena do jogo dos
búzios130.

Eu estava pela primeira vez diante do Ifá (ou Orunmilá), que é, de


acordo com Prandi (2001, p. 23), “o conhecedor do destino dos homens, o que
detém o saber do oráculo, o que ensina como resolver toda sorte de problema
e aflição”. Eu estava curiosa à espera de informações sobre mim e, por não ter
conhecimento prévio, encontrava-me em dúvida sobre o que poderia ser dito
através do jogo. Permaneci silenciosa para não dar informações, mas esperava
ansiosamente ouvi-las. A partir do que era dito sobre minha vida pessoal, a
conversa alcançava profundidade na memória afetiva, fazendo emergir
sentimentos mais delicados. Ouvi as características dos filhos de Oxum e me
identifiquei com cada uma delas, descobrindo, ali, que eu era filha daquele
orixá.

Tais conjuntos de significados e conhecimentos sobre Oxum


permearam a construção e gravação do meu solo. Houve um ébo131 de limpeza
antes da preparação corporal, feita com alongamento e massagem. Iniciei a
minha dança seguindo os princípios de movimentação das danças dos orixás e
dos movimentos relacionados aos elementos terra, fogo, água, ar e éter.

A pesquisadora Barbara (2002, p. 137-159) observa e relata que, no


candomblé, “cada orixá tem um padrão que é aprendido antes da iniciação e no
roncó132, mas existe claramente uma liberdade para expressar a própria
criatividade e a ‘qualidade’ do orixá’”. Com base nos principais fatores de
movimento de Laban, Barbara estabeleceu algumas diretrizes para a
movimentação da dança de Oxum, as quais utilizei para a criação do meu solo
no filme: Peso: leve. Tempo: percussão. Espaço: roda sobre no próprio
eixo e fora dele; direção: sentido circular anti-horário. Uso de círculos e
caminhadas em círculo. Fluência: no tempo – rápida e lenta; no espaço –
caminhos em andamento circular com círculos.

129
No jogo dos búzios significa positivo ou confirmação.
130
A orientação para o jogo acontecer foi para que eu não tivesse ingerido bebida alcoólica
nem ter tido relação sexual por, no mínimo, três dias, além de realizar uma limpeza corporal,
tomando banho de ervas e vestir roupas brancas antes de ir à mesa.
131
Oferenda feita com alimentos, relacionada à saúde e oferecida aos meus ancestrais.
132
Espaço sagrado onde ficam recolhidos os iniciados no candomblé.

296
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Na minha pesquisa de movimento, os fatores que mais variaram


ritmicamente foram o tempo, o espaço e a fluência. Visto que a performance foi
realizada sem uma música pré-estabelecida, ou seja, em silêncio, meu corpo
dançava no espaço estimulado pelo tempo musical que advinha do barulho da
água, da respiração e dos sons emitidos pelo meu corpo em movimento.

Existiu no meu estado de presença cênica uma atenção, uma escuta do


movimento interno do corpo conduzindo a dança a acontecer naquele exato
momento. Situei-me espacialmente, conhecendo vagarosamente os elementos
compositivos da cena não experimentados anteriormente: a escuridão, dois
focos de luz branca na minha direção, que formavam uma diagonal, água nos
pés até a altura dos maléolos, numa estrutura como uma piscina ampla,
moldando um quadrado. No desenvolver da dança, encontro o tremor, o vibrar,
vindo dos pés, percorrendo novamente o corpo, pulsando e exalando vida.
Sobre a vibração na cultura do povo Dogon, Oliveira (2009, p. 5-6) descreve:

(...) os Dogon entendem que o que anima a existência é uma


vibração. Já os Bantos – cf. Pe. Altuna – concebem a Força Vital
como a energia que anima o mundo. Se isto é uma verdade no Sul da
África, o é também na África Setentrional (por exemplo, entre os
Dogon). Pensa-se a existência a partir de uma vibração, da energia e
da emanação. A fonte dessa metafísica que é mais uma infra-física.

Considerando todos esses aspectos de estado do corpo na cena, no


filme, o encontro com o corpo Cavalo pediu a minha nudez. Senti a
necessidade de me despir como quem se depara — espelhada na água — com
a sua própria história, nobreza de quem cavou a si mesma e caminhou por
terras até então desconhecidas, ou melhor, desviadas da minha história,
atentando-se aos artifícios de apagamento da memória dos povos africanos
pelos colonizadores europeus e seus descendentes, que seguiram
perpetuando a opressão até os dias atuais.

O corpo Cavalo pulsa vida no meu ventre, a energia vital é dissipada


pela coluna, inebriando todo o corpo, alterando o meu estado de presença,
vibrando na pele a delicadeza da água, sendo desafiada e dominada por ela,
encontrando um paradoxo em perceber o inconsciente na liderança por uma
busca pelo prazer da criação. Esta água sou eu, este espaço sou eu. Uma
pausa dilatada para o gozo, seguido do grito ensurdecedor rasgando o silêncio

297
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

e a escuridão que também fazem parte de mim. Houve um choro compulsivo


como alguém que acabara de nascer.

Acredito que estar imbuída das características do orixá Oxum foi parte
fundamental no processo de ressignificação da dança criada. Cabe aqui
ressaltar que não faço parte do candomblé ou da umbanda, não vivi a
incorporação que acontece no momento do transe religioso, portanto, não
consigo traduzir essa experiência em palavras que possam alcançar tal força e
potência vinda da ancestralidade africana. Ao fim da minha dança, estava
instaurado um clima de suspensão estendido no extenso silêncio de todo
espaço do set, configurando-se para mim um tempo outro, um momento
atemporal.

A experiência de transe no ritual dançado do candomblé se aproxima da


minha vivência no filme. Assim, comungo do pensamento de Barbara (2002)
quando ela afirma que, através da arte, a comunicação não verbal que
acontece na religião expressa informações difíceis de serem traduzidas em
palavras, sendo o transe uma experiência igualmente difícil de explicar, por ser
uma transformação interna.

De acordo com Rabelo133, o corpo Cavalo não está atuando, buscando


mostrar algo, mas mediando forças. É um corpo treinado na sua
micropercepção para deixar que as coisas se expressem, levando em
consideração a ancestralidade.

No filme, percebo que os mitos de Oxum não foram usados para serem
interpretados como um roteiro de criação para minha dança, mas como porta
de acesso aos saberes africanos e, por não conhecer as dinâmicas de
compreensão sobre os mitos, deparava-me com certa dificuldade em traduzi-
los para além da literalidade. Nas palavras de Oliveira (2009, p. 5): “Talvez,
também, porque o mito mantenha seu poder de segredo e encantamento, pois
ao mesmo tempo em que revela, esconde e, ao mesmo tempo em que oculta,
manifesta”. Para Prandi (2001, p. 18), os mitos “são histórias primordiais que
relatam fatos do passado que se repetem a cada dia na vida dos homens e

133
Entrevista concedida a Joelma Ferreira no dia 31/7/2020.

298
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

mulheres. Para os iorubás antigos, nada é novidade, tudo o que acontece já


teria acontecido antes”.

Durante os processos criativos dos movimentos para gravação fílmica, a


sensação era de estar vivendo algo novo e forte, que não estava exigindo de
mim o desenvolvimento de uma personagem estruturada com leitura de texto e
história dirigida com início, meio e fim. As imagens revelam a minha pessoa,
como artista, tendo a minha vida pessoal provocada, atravessada, pela minha
aproximação com a religiosidade africana. Sendo assim, a mitologia do orixá
Oxum não foi utilizada por mim como uma rota a ser seguida ou reproduzida,
mas alimentou meu imaginário com os arquétipos referenciados a esse orixá, e
tais simbologias foram os princípios criativos para o movimento.

Com relação à percepção do povo Dogon acerca do mito, Oliveira (2009,


p. 5) salienta que:

O mito está aquém da significação, o que equivale a dizer que ele


está aquém da representação. Ele ocupa o lugar da fonte. Território
que ainda não sofre a ação imperiosa da razão monolítica. A fonte é o
grau zero da representação. É a desterritorialização que possibilita a
formação de qualquer território posto que é o mais abstrato onde se
possa chegar. Por isso lá está o corpo. Por isso lá está o conceito.
Por isso é lá que se aloja a forma cultural. Dali tudo flui: as regras, os
princípios, os valores, os sistemas. É claro que sistemas são
representações, mas sua fonte - o mito - não é representação do
mundo, mas apresentação da physis.

Passados alguns dias após o processo de criação, e refletindo acerca


das reverberações que permaneceram intensas sobre essa experiência no
âmbito da vida pessoal, fui tomada pelo sentimento de surpresa, ao me dar
conta que, de fato, vivenciei um dos mitos de Oxum. Passei a olhar para o meu
lugar e para as minhas relações sociais atribuindo novas interpretações sobre o
mundo que me cerca.

Retomando a discussão sobre as práticas de racismo religioso, as


violências ocorridas nas comunidades de terreiros e os corpos enterrados na
historicidade do território alagoano citados anteriormente, faz-se necessário
ressaltar a ligação deste espaço/desta terra com a dança de Oxum criada para
o filme Cavalo, observando os diálogos entre o Quebra de Xangô e a ideia de

299
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

um plano de composição ligado à política do chão, conforme definido por


Lepecki (2010, p. 15):

Uma dança aberta para uma política do chão é uma dança aberta
para aceitar e experimentar com efeitos cinéticos das matérias
fantasmas que interrompem a ilusão de uma dupla neutralidade, a do
espaço e a do nosso movimento nele.

Assim, uma dança que leva em consideração a política do chão propõe-


se a uma reflexão sobre o chão histórico onde a dança acontece, olhando-a do
ponto de vista que nos é particular, no meu caso, mulher negra, artista
periférica do estado de Alagoas, conectando-me à minha ancestralidade,
construindo uma dança atravessada por ela e pelas políticas públicas sociais
que circundam um corpo negro neste território geográfico, histórico e cultural.

Portanto, percebo que o filme Cavalo lança uma abordagem diferente


para o território geográfico “Sol e Mar” alagoano propagado massivamente pelo
Estado. Maceió, Coqueiro Seco e União dos Palmares foram cidades
escolhidas como locações, espaços onde cada artista desenvolveu suas
performances individuais.

O mercado de Maceió foi um dos sets de gravação escolhidos para as


minhas cenas. Para mim, lugar de afeto do qual me sinto íntima. Recordo-me
que desde a infância sempre passava por aquelas ruas em momentos graduais
da minha vida, seja fazendo compras, trabalhando lá ou apenas atravessando
esse caminho para ir à universidade. Inicialmente, transitava entre os espaços
de venda de objetos da umbanda e do candomblé com distanciamento, mas
também com curiosidade em relação às imagens de gesso dos orixás, tão
representativas que o olhar procurava evitar. Não sentia medo, porém, havia
tensão ao caminhar entre os becos estreitos e suas encruzilhadas, apreensiva
do que poderia encontrar enquanto passava por ali, com o caminhar acelerado
dos passos para não demorar naquele ambiente. Já na gravação do filme,
senti-me solta e segura, com coragem no olhar e vontade de saber os
significados de cada imagem de gesso, o que elas representavam e quais
histórias existiam sobre elas. Estar nesse ambiente no contexto do filme
modificou meu comportamento corporal em relação àquele lugar, despertando
interesse em voltar lá e conhecê-lo melhor.

300
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Geralmente transito a pé entre esses espaços. Sinto que, desse modo,


construo uma relação de afeto com a cidade. Sensação aguçada no retorno ao
cotidiano, confirmando, para mim, o meu lugar como suporte potencializador na
construção da minha dança enquanto artista e reconhecimento pessoal de
pertencimento territorial e cultural de Alagoas.

Depois dessa experiência, ficou ainda mais visível que as religiões de


matrizes africanas e as comunidades de terreiro estão historicamente
colocadas em um lugar menor e vistas com preconceito pela grande massa da
sociedade alagoana. Preconceito esse que acaba sendo estendido para outras
esferas da cultura negra e periférica, como ocorre com o hip hop, o vogue, o
rap e as danças populares, linguagens estas vivenciadas profissionalmente
pelos protagonistas do filme Cavalo, que têm seus conhecimentos
sistematizados na informalidade da rua, e não em escolas tradicionais de arte.

Essa encruzilhada de saberes também se encontra na dança


apresentada por cada um. Cada pessoa do elenco é afetada pelos processos
identitários e pelo “sentimento de pertencimento”. Assim, no momento em que
se apossam de seus territórios geográficos (lagoas, mangue, centro da cidade,
praia, a cidade de União dos Palmares), nutrem o imaginário criativo, algo que
é propiciado pelo sentir das suas ancestralidades e que potencializa a dança
individual e a coletiva, as quais contribuíram para a composição do corpo
Cavalo para filme.

Considerações finais

Diante do exposto, compreendo que o fato da dança dos orixás não


fazer parte do repertório de movimentos do meu corpo fez com que a
codificação da dança de Oxum, investigada durante a preparação de elenco,
pudesse ser diluída na movimentação criada para o filme, ampliando suas
possibilidades de tradução e leitura/releitura de movimentos. E, apesar de não
se tratar da dança de Oxum realizada no terreiro, o trabalho corporal presente
no filme não foi menos potente, uma vez que fora composto a partir dos
princípios de movimento desse orixá.

301
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Entendo a ancestralidade como algo inerente ao ser humano. Em


Cavalo, a ancestralidade africana e os seus fios condutores — como a música
percussiva, a dança e a mitologia dos orixás, assim como as características da
personalidade dos filhos de Oxum — foram os fundamentos propositores para
a pesquisa de movimento, conduzindo a dramaturgia da dança por camadas
estéticas complexas e subjetivas.

Por fim, considero a experiência de participação no filme Cavalo como


um reencontro visceral com a cultura popular alagoana de matriz africana, o
qual se deu sob um novo ponto de vista, uma vez que, agora, diferente do que
ocorria em minha infância e adolescência, reconheço-me enquanto mulher
negra que se identifica com as manifestações culturais de matrizes africanas
não somente pelo prazer em dançar, mas, sobretudo, por encontrar
significados que me preenchem de sentidos para estar em movimento, em
criação artística, em cena.

Referências

BARBARA, Rosamaria Susanna. A dança das Aiabás. Tese de doutorado,


Departamento de Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo, 2002.

BONDIA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência.


Revista Brasileira de Educação. Rio de Janeiro: ANPEd, 2002, n. 19, p. 20-
28. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbedu/n19/n19a02.pdf. Acesso em:
1 jun. 2020.

CAVALO. Direção: Rafhael Barbosa e Werner Salles. Maceió: A La Ursa


cinematográfica; Núcleo Zero, 2018. 1 filme (84 min.)

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da


Silveira. Salvador: ADUFBA, 2008.

JOSÉ, Ana Maria de São. Dança Contemporânea: um conceito possível?. In:


COLÓQUIO INTERNACIONAL EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE, 5,
2011. São Cristóvão-SE. Anais. São Cristóvão-SE: 2011, p. 1-12.

LEPECKI, André. Planos de composição. In: GREINER, Cristine; ESPÍRITO


SANTO, Cristina; SOBRAL, Sonia (org.). Cartografia Rumos Itaú Cultural
Dança: criações e conexões. São Paulo: Itaú Cultural, 2010. p. 13-21.

302
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

OLIVEIRA, Eduardo. Epistemologia da Ancestralidade. Entrelugares: Revista


de Sociopoética e Abordagens Afins. Fortaleza: UFC, v.1, n. 2, 2009, 10 p.
Disponível em: http://www.entrelugares.ufc.br/phocadownload/eduardo-
artigo.pdf. Acesso em: 24 out. 2016.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.

RAFAEL, Ulisses Neves. Xângo rezado baixo: religião e política na primeira


república. São Cristóvão: Editora UFS; Maceió: Edufal, 2012.

303
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

4ª PARTE

MANIFESTAÇÕES
AFRO-DIASPÓRICAS

304
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

AFRO MANDINGA:
MATRIZES DO MOVIMENTO

Aurionelia Reis Baldez (Dandara Baldez) (UFBA)


Joice Faria

O kuanza me contava que o pai tinha dado a ele nome de rio, e


que por causa disso sempre se sentiu como um rio, pois todos
os rios correm para o mar, e o mar leva as pessoas a todos os
lugares que existem, podendo então levá-lo de volta à terra de
onde o pai tinha saído (GONÇALVES, 2019)

A perspectiva afromandinga como matrizes do movimento, visa alicerçar


uma visão teórico metodológica junto a práticas africanas e indígenas de uma
cosmovisão de mundo. Feitas essas considerações iniciais, se faz necessário a
partir de uma escrevivência de Conceição Evaristo, redesenhar uma mátria
cartográfica líquida apoiada nas entidades religiosas que representam as omin
(águas), orixá da fertilidade e maternidade Oxum enquanto odô, (rio) que
alimentam, estabelece uma ligação entre as fronteiras, permite travessias e
descobertas pelo mundo. Dentro desse mesmo pensamento temos Iemanjá,
que para os iorubanos é a mãe no qual seu filhos são peixes que representa o
okun, (mar) das águas salgadas. Para os bakongo o mar pode ser entendido
como Kalunga, aquilo que é equilibrado, lugar dos mortos, infindável, justeza
ontológica do ser.

Debruçar-se a luz do sol no panorama Bantu Congo em interação entre


o mundo dos vivos e dos mortos, na medida em que até o sol trilha o caminho
das águas, possibilita entender o que Evaristo cartógrafa sobre a linha materna
da gestualidade em ensinamento:

Talvez o primeiro sinal gráfico, que me foi apresentado como


escrita, tenha vindo de um gesto antigo de minha mãe. Ancestral,
quem sabe? Pois de quem ela teria herdado aquele ensinamento,
a não ser dos seus, os mais antigos ainda? Ainda me lembro, o
lápis era um graveto, quase sempre em forma de uma forquilha, e
o papel era a terra lamacenta, rente as suas pernas abertas. Mãe
se abaixava, mas antes cuidadosamente ajuntava e enrolava a
saia, para prendê-la entre as coxas e o ventre. E de cócoras, com

305
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

parte do corpo quase alisando a umidade do chão, ela desenhava


134
um grande sol, cheio de infinitas pernas. (EVARISTO, 2005)

Nesse relato a ancestralidade presentificada enquanto continuidade e


memória ancestral, consolida toda uma (ori)entação oracular, tanto na saia
como gira, como no sol que viaja entre os mundos. Assim a saia que
representa o feminino também está em paralelo com a forma de comunicar.

Caminhando sobre a encruzilhada a fim de estabelecer acordos com


nossos antepassados, pedindo licença a divindade Exu que é o pai da
comunicação, lanço mão do termo africano Malinke e substantivo feminino
mandinga como horizonte de equilíbrio sobre o mar da Kalunga, equilíbrio esse
que não se dá de forma estática, porém, é proposto como ginga na composição
de corpos plurais inspirado pelo feminismo negro.

Mandinga em alguns aspectos está ligado a feitiçaria, ato que também


acontece na forma de segredo. Segundo Amadou Hampâté-Bâ (2013), que
também é Malinke, “tudo que é segredo está ligado ao feminino”, nesse sentido
mandinga e o feminino estão correlacionadas. Para compor essa ideia,
observemos a Kalunga nos festejos dos maracatus em comemoração aos reis
e rainha do Congo que representa uma rainha ou entidade já morta
estabelecendo uma ligação com o mundo dos mortos e proteção dos
brincantes nas ruas. A boneca passa o ano inteiro guardada em local
reservado e só sai após ritual de purificação, o segredo e o sagrado
acompanham o festejo nas ruas de forma enigmática.

Ainda de forma misteriosa a própria conquista das mulheres negras por


um espaço na sociedade e não diferente capoeira, acontece de forma
silenciosa, já que antes de conquistar esse espaço, se faz necessário vencer
outras demandas sociais interseccionalizadas e sem sombra de dúvidas, bebe
em algumas fontes e fluxos transatlânticos de identidades políticas na busca
por igualdade de gênero, raça e classe.

A capoeira assim como os esportes e as lutas de maneira geral,


historicamente está associada ao universo feminino as qualidades
físicas não eram os únicos motivos pelos quais se justificava a
ausência de mulheres nas práticas corporais esportivas, mas

134
http://nossaescrevivencia.blogspot.com/2012/08/da-grafia-desenho-de-minha-mae-um-
dos.html

306
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

também os valores culturais impostos pelo estado capitalistas,


socialmente aceitos referenciados nos aparatos ideológicos e
reforçados pelos aparatos repressores (MIRANDA; MURICY,
2016, p. 42)

O fato é que as mulheres da elite tinham acesso à educação


recebiam orientação de comportamento moral e sexual
normatizadas reproduzindo os valores da família, da escola, da
igreja e das demais instituições ideológicas de hegemonia
burguesa, enquanto as mulheres trabalhadoras que ganhavam a
vida nas ruas trabalhando para garantir o sustento das famílias,
tendo seus comportamentos ditados pela necessidade de
sobrevivência, eram criticadas e perseguidas pela sociedade
(apud MIRANDA; MURICY, 2016, p. 42)

Nessa escala social, o corpo da mulher negra luta pela sobrevivência,


marcada pela vida e morte, por um lado a estrutura do racismo que limita suas
condições de humanidade e conquistas na sociedade. Ao mesmo tempo
representa um corpo que possibilita vida, alimentando os seus e de outras
através do leite materno. Esta estrutura reflete no contexto cultural da capoeira,
hora, se a capoeira é tudo que a boca come, como afirmou o Mestre Pastinha,
proponho repensá-la incluindo Exu como centro - se Exu é tudo que a boca
come - uma vez que Exu estando ligado às funções da boca, cavidades do
útero e vinculado à ipori, (placenta) estes órgãos estão sobre proteção do
sagrado ventre feminino.

A mandinga ou feitiçaria também exerce proteção do corpo através do


líquido, banhos de folhas, tendo em conta que sem folhas não há orixá, sem
água não há vida. A mandinga na capoeira é uma estratégia, segredo corporal
que vai sendo construído com o passar do tempo, esse alimento em forma de
conhecimento possibilita uma visão mais ampliada sobre a encruzilhada na
qual somos posto. Sendo assim, podemos pensar na mandinga como uma
forma de proteção ao corpo como reza da oralidade dançante. E no corpo da
mulher negra, pode ser vista através de uma fragilidade imposta, porém, sua
resistência sobreveio de forma humilde e transformadora.

O Mestre Mbanji chamou isso de mandinga, coisa que o branco


não entende, que não nasce com ele, só com o preto. Porque a
mandinga também é humildade, é fazer-se de fraco quando não é,
é lutar até deixar o outro tão cansado a ponto de errar a resposta
ou de não conseguir fazer mais perguntas. (GONÇALVES, 2019.p,
666-667)

307
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Ainda que na prática as mulheres negras sejam minoria ocupando


postos como mestras ou até mesmo iniciantes da capoeira, a contribuição
dessas mulheres vai além desse espaço físico, é nisso que queremos reforçar
de como a capoeira é influência por outras matrizes. A proteção dos
candomblés, os cantos corridos do samba de roda, o barravento, o frevo, o
bumba boi, são identidades vivenciadas pelo corpo que dança e luta capoeira.
O próprio nome capuera que vem tupi guarani, reforça a diversidade na
manifestação que faz com que ela seja continuidade, sendo impossível
conviver sem se retroalimentar do espaço em que vive.

Diante dos métodos de colonização, a forma com que mulheres negras


agenciaram suas sobrevivências e conquistas dos seus espaços decorreu não
apenas da capoeira, mas também do silêncio como estratégia de escuta para
formular os primeiros processos de libertação. Antes mesmo de ser entendida
como mulher no Brasil colônia, as pretas exerciam diversas funções, não
existia nenhuma distinção entre homem e mulher escravo, porém, elas
exerciam maior número de atividades no trabalho escravo

No ganho, as mulheres negras eram obrigadas pelos senhores a realizar


atividade económica e tudo que produziam pertenciam aos senhores de
engenho, só após a lei do ventre livre em 28 setembro 1871 a mulher negra
pode gerar seus primeiros filhos livres, mesmo ainda sendo escrava. Quero
chamar a atenção mais uma vez para a luta de mulheres que puderam libertar
seus ventres, sendo matriarcas no processo de libertação do seu povo, antes
mesmo dessa libertação, a única forma de proteção que os escravos pequenos
puderam experienciar, era através do ventre e proteção de suas mães no
periodo puerperio. Já que com essa falsa libertação os proprietários das
escravas continuava a usufruir dos corpos dessas crianças.

A sinhá Ana Felipa me esperava na sala, com o Banjokô no colo, e


informou que eu tinha sido alugada. (Gonçalves,2019, p.212)

A sinhá Ana Felipa me colocou na rua, como escrava de ganho, a


quase um mil e setecentos réis por semana, dinheiro que eu tinha
que pagar a ela aos domingos. Como escrava de ganho, eu
poderia sobreviver do que quisesse, poder escolher meu trabalho,
e ficaria com o dinheiro que ganhasse acima da quantia pedida
por ela. Muitos escravos viviam do dinheiro que eles levavam para
casa. Principalmente senhoras viúvas, que não sabiam tocar a
atividade deixada pelo falecido e se desfaziam dos negócios mas

308
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

conservavam os escravos, que colocavam na rua, a ganho.


Outras, mesmo muito ricas, colocavam mucama para vender
doces, salgados, disputando entre si quem tinha o quitute mais
gostoso. Isso no caso das senhoras mais pudicas, porque outras
obrigavam as escravas a fazerem a vida no meretrício. Tinham
sorte quando elas não pegavam doença e morriam logo. Muitas
sinhás ganhavam um bom dinheiro com isso, com o serviço de
pretas novas e bonitas, que eram logo trocadas por outras quando
deixavam de render o esperado. (GONÇALVES, 2019,p.241)

A subalternização do corpo da mulher negra enraizada na sociedade até


os dias de hoje, mostra o quanto essa sobreposição tirou possibilidade de
escolha, vistas como mercadoria, os donos de escravos recebiam indenização
para entregarem seus filhos ao Estado aos 8 anos ou continuarem com eles
em trabalhos forçados até aos 21 anos de idade. Todavia a contribuição das
mulheres negras têm desempenho atuante na formação e geração de
identidades para os primeiros passos organizativos de gerações que lutam
para mudar um contexto ainda atuante de descriminação de racial.

Imersos em um olhar global, a mulher historicamente é mais violentada


que o homem e neste sentido Spivak afirma:

O subalterno não pode falar. Não há valor algum atribuído à


“mulher” como um item respeitoso nas listas de prioridades
globais. A representação não definhou. A mulher intelectual como
uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve
rejeitar com floreio ( SPIVAK, 2014,p.165)

O que na verdade incômoda é a colocação do sujeito como subalterno,


enquanto na verdade não o seja, no Brasil não fomos subalternizados, fomos
colocados historicamente e consecutivamente como não humanos, os espaços
sempre negaram a nossa existência e conhecimento, negaram nossas
estratégias de sobrevivência com intuito de nos desumanizar e matar
simbolicamente. Não à toa as aulas de história pouco falam sobre a
participação do negro e sobretudo da mulher negra na sociedade e na
economia brasileira. Hoje com os estudos culturais, vemos cada vez mais estas
participações e propondo pequenas revoluções nos espaços.

Contrariando o que está posto, as matrizes do movimento negros e


indigenas, tem como formação a luta de mulheres que foram silenciadas e
trabalha para superar esteriotipos de genero e privilegios de classe articuladas

309
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

atraves das danças, capoeira entre outras manifestaçoes de resistencia que


falam atraves de sua gestualidade. O samba de roda, candomblé, batuque,
coco de roda, jongo dentre outras manifestações, compõem a influência
identitária dos povos bantus saudando a caboclagem indigena. Quando mestre
pastinha lança mão de um pensamento exuniano para se referir a capoeira,
mostra o quanto nossa cultura é composta por matrizes e negar essas matrizes
é negar a importância das mulheres.

A dança enquanto reza, tem o corpo como lugar sagrado de sua morada
presente no fazer dos povos da terra enquanto narrativas. Foi dançando que
nossos povos desenvolveram durante séculos as suas culturas e suas
tradições como uma experiência dançante. Assim, a dança enquanto memória
do corpo propõe uma descoberta de si e do outro, sugere uma vivência estética
do que acontece. Tiganá Santana (2020) em Live135, onde discutia sobre
tradução, ritmo e força vital. Dança sobre o pé do baobá, aproxima de nós o
sentido do cosmograma bakongo enquanto pergaminho, todavia, o que nos
conduz a complementar que a roda traduz um modo de pensar em fluxos
coletivos cultivando determinados signos presentificando as manifestações e
matrizes de forma divinatória.

Por fim uma breve reflexão sobre as formas de uso das práticas
holísticas e somática dentro do que estamos construindo. Pensar
afromandingas a partir de corpos de mulheres negras, nos leva diretamente a
questionar os espaços que não validam os conhecimentos produzidos por
estas. Assim Gilroy, fortalece ao afirmar que alguma prática podem levar ao
apagamento da tradição:

É interessante que neste entendimeto da posição dos negros no


mundo moderno, ocidental, a porta para a tradição permaneça
fixamente aberta não pela memória da escravidão racial moderna,
mas a despeito dela. A escravião é a sede da vitimação negra e,
portanto, do pretendido apagamento da tradição (GILROY,
2001,p.354)

Correlacionar as matrizes com às práticas holística e somáticas


acontece de forma alimentar, um ebó posto na encruzilhada da comunicação
consultando as linhas verticais como uma forma de erguer-se ao horizonte de

135
Cosmologia Banto: interações tradução ritmo e força vital. Visto em < 18/09/2020>

310
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

silenciamento e aceitação que é diferente do horizonte proposto na linha da


Kalunga que se põe sobre equilíbrio do mar e pensa uma justeza sobre o que
emerge.

A influência maléfica do quebranto que nos foi jogado aos pés do


colonialismo é responsável pelos desafios intelectuais dentro das
epistemologias dançantes cruzadas por pontos de vistas que obstruem os
conhecimentos de matrizes africanas e indígenas, ignorando as experiências
marcadas por uma imposição acadêmica ocidentalizada, nada devemos às
visões holísticas e somáticas, vistas que os princípios destas práticas também
se encontram em nosso fazer, embora a própria academia justaponha esses
conhecimentos ocidentalizados e eurocêntricos de forma detentora.

II.

Era um ritual de uma escrita composta de múltiplos gestos,


em que todo corpo dela se movimentava e não só os dedos.
E os nossos corpos também, que se deslocavam no espaço
acompanhando os passos de mãe em direção à página-
chão em que o sol seria escrito. Aquele gesto de
movimento-grafia era uma simpatia para chamar o sol.
Fazia-se a estrela no chão. (EVARISTO, 2005)

Na segunda parte deste estudo a literatura será o caminho para o


estudo da afromandinga. A partir do romance “Um defeito de Cor” de Ana Maria
Machado (2019). Que narra a história de Kerinde, uma menina de Savalu –
Reino de Daomé em África- que fora sequestrada e trazida a força para o
Brasil, sendo forçada pelas violências do racismo a reconstruir sua
subjetividade junto a outros escravizados, conduzida pelas suas heranças
ancestrais e pela corrente de afeto que se fortalece primeiramente na Bahia
(Itaparica/Salvador) e depois em outros estados brasileiros.

A escolha deste romance nasce através daquilo que nos tornam


comuns. Somos quatro mulheres negras que chegaram na Bahia em contextos
distintos da diáspora. Savalu- Itaparica, Minas Gerais - Itaparica ,Maranhão -
Salvador e São Paulo-Salvador. E aqui as nossas histórias se conectam, não

311
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

apenas por sermos mulheres, mas por carregamos em nossos corpos a


experiência da dança. Seja ela pela oralidade, escrita ou a capoeira, todas nós
carregamos em nossos corpos a afromandinga que nos atravessa enquanto
mulheres negras que usam seus corpos e conhecimentos para agenciar a vida
de outros sujeitos negros e recorrem a escrita /oralidade como forma de
diálogo com o outro a fim de fazer resistência.

É preciso assumir que esta é uma tarefa difícil, porque a literatura ou o


que fazem dela a partir das teorias iluministas, separando as áreas de
conhecimento sistematizando a dança como algo que pertence ao corpo e a
literatura ao intelecto, como se fossem coisas separadas, tornando difícil
articular processos que propõem metodologias giram/circulares, que entende o
corpo como as atravessam o mesmo rio. Este é um dos nossos desafios.

A epígrafe usada é um relato feito por Conceição Evaristo, sobre a


gestualidade da mãe, que a autora identifica como uma dança ou movimento-
grafia. Parto do olhar sensível de Evaristo para pensar as nossas escritas , ou
seja, as escritas de mulheres negras como movimentos de dança e que
reescrevem uma nossa sociedade onde o negro é humanizado e cercado de
afeto e resistência.

Assim, é preciso que você leitor observe a escrita literária como uma
coreografia onde as pontuações representam o ritmo e a história são como
movimentos e expressões. Se ainda assim ficar difícil, podemos recorrer a
capoeira, esta brincadeira existe a partir do corpo que dança, mas há também
uma narrativa. Cada movimento está compassado com o outro corpo num jogo
de pergunta e resposta e por trás destes movimentos existe uma narrativa
marcada pela música, pelo som dos instrumentos, pela chamada no pé do
berimbau. Enquanto ginga o corpo compõem um poema.

A capoeira, o candomblé e tantas outras brincadeiras dançantes


escrevem oralmente sobre o nós, pessoas negras, nos ajudando a compor uma
parte da história que nos foi negada. Junto, nessa tentativa de reescrever a
história da população negra, mulheres negras emergem escrevendo sobre um
Brasil que historiadores brancos negaram, apagaram e marginalizaram, nos

312
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

colocando como subalternos e submissos quando na verdade nossas danças,


mandingas e rezas foram sempre usados para a nossa sobrevivência e voz,
falamos através destes conhecimentos. As histórias escritas por estas
mulheres nos representam e contribuem para que sujeito negro tenha outras
experiências e histórias sobre si.

Escritoras como Maria Firmina, Carolina Maria de Jesus, Conceição


Evaristo, Ana Maria Gonçalves, e tantas outras mulheres negras, não apenas
corrigem o cânone literário como reescrevem histórias onde o negro mesmo
que socialmente excluído, ainda é humano e este lugar de humanidade permite
que sua voz seja ouvida. Dentro do que pretendemos construir sobre mulheres
negras e suas mandingas, as escritoras negras representam o fio condutor de
um realinhamento social.

Assim o romance “Um defeito de Cor” narrado por Kerinde é atualmente


uma romance de fundição da literatura Brasileira, que foi capaz de narrar
movimentos de extrema opressão ao mesmo tempo que descreve
gestualidades de afeto, trocas entre outras mulheres, situações onde mulheres
negras se ajudam para construir autonomia financeira na busca de libertar
outros escravizados. Não é apenas um romance, e talvez nunca saberemos se
Kerinde existiu ou não, o fato é que descreve episódios como a revolta dos
malês, ou a formação de instituições como a Irmandade da Boa Morte, que
para além da sua relação religiosa revela que mulheres negras livres
compravam escravizados para poder dar a eles a carta de alforria. Isto é
gestualidade de afeto, cuidado para que o outro sobreviva, política, capoeira.

O trecho abaixo, fala sobre a ação do Mucurumins de comprar


escravizados, mas era muito comum a prática entre as irmandades sejam elas
formadas por mulheres ou homens:

Todo dinheiro que os muçurumins ganhavam enrolando charutos


era usado na organização da revolta, e naquele momento eles
estavam em comprar cartas de alforria de alguns escravos que
teriam o papel importante (GONÇALVES, 2019, p.496)

As irmandades financiavam os pretos, através do dinheiro de outros


pretos que depositavam uma quantia de dinheiro na instituição, funcionava
como uma espécie de banco, em algumas instituições existiam juros.
313
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Ela dizia confraria, mas também podia ser chamada de


cooperativa, junta, irmandade ou sociedade. Qualquer pessoa
podia se inscrever, mas estavam dando preferência às mulheres,
já que tinham algumas confrarias eram formadas por muitos
homens, e as mulheres tinham algumas ideias diferentes,
preocupações bastante próprias, como o cuidado com o futuro dos
filhos [...] O que tinha que fazer, era pagar cinco mil réis para mim
e cinco mil réis para Benjokô e continuar com o pagamento
mensal de pelo menos quinhentos réis, mais o que eu
conseguisse conseguir. Quanto mais pagasse, mais depressa
poderia acumular a quantia de que precisava para comprar as
cartas. (GONÇALVES, 2019, p. 297)

Além destas situações, existiam outros movimentos em que as mulheres


negras contribuiram. As informaçõe, sobre o que estava acontecendo na
politica do Brasil, a situação dos negros nascidos, negros vindos de África, os
portugueses e tantas outras situações politicas sociais. As movimentações
eram feitas muitas vezes de boca em boca ou por escrito entre os poucos
negros que tinham acesso as letras. Nas batucadas, nos poucos encontros
religiosos, em reuniões ou durante o trabalho os movimentos de reinvindicação,
de informações sobre o que estava acontecendo no Rio de Janeiro ou
Cachoeira, eram fornecidas aos outros negros.

A oralidade, e por isso falo sobre Kerinde e não Ana Maria Gonçalves,
pois ela (re)escreveu algo que foi escrito por alguém que ouvia Kerinde, e
neste sentido está é, primeiramente uma história oral, e reflete na nossa
sociedade atual. Somos nós pessoas negras produtos da oralidade, as nossas
tradições e produções culturais negras, são frutos da oralidade. “Esta herança
ainda não se perdeu e reside na memória das últimas gerações de grandes
depositários, de quem se pode dizer são as memórias vivas da África”.
(HAMPATE BÂ, 2010, p.167). O tradicionalista Bandiagara, mesmo falando da
suas experiências e da sua comunidade, aspectos que atravessam esta
herança se mantêm vivas, haja vista, as nossas movimentações culturais e
como os ensinamentos são passados nos grupos de capoeira, tambor de
crioula, samba de roda , nos terreiros de candomblé e outros.

O que se encontra por detrás do testemunho, portanto, é o próprio valor


do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmissão da qual ele
faz parte, a fidedignidade das memórias individual e coletiva e o valor atribuído

314
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

à verdade em uma determinada sociedade. Em suma: a ligação entre o homem


e a palavra.

E, pois, nas sociedades orais que não apenas a função da


memória é mais desenvolvida, mas também a ligação entre o
homem e a Palavra é mais forte. Lá onde não existe a escrita, o
homem está ligado a palavra que profere. Está comprometido por
ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo
que ele é. A própria coesão da sociedade repousa no valor e no
respeito pela palavra. Em compensação, ao mesmo tempo que se
difunde, vemos que a escrita pouca a pouco vai substituindo a
palavra falada, tornando-se a única prova e o único recurso;
vemos a assinatura tornar-se o único compromisso reconhecido,
enquanto, o laça sagrado e profundo que unia o homem à palavra
desaparece progressivamente para dar lugar a títulos universais
convencionais (HAMPATE -BÂ. 2010, p.168)

Cabe recorrer a um tradicionalista para explicar algo que estamos


buscando construir na contemporaneidade, pois estas tradições pertencem às
nossas existências e contribuem para justificar a contribuição das mulheres
negras na sociedade como intelectuais e agentes das suas sobrevivências e do
seu entorno. Ao que cabe ao romance, kerinde explica o porquê a oralidade é
importante para os tradicionalistas.

A Mãe Rosa ouvia tudo com muita atenção e quase me ofereci


para tomar nota do que falavam, mas me lembrei de que nem
sempre as irmandades gostam de ter suas tradições por escrito,
preferindo que sejam passadas de irmã para irmã. Assim também
acontecia com os cultos que, à exceção dos feitos pelos
muçurumins, eram ensinados apenas oralmente, para evitar que a
parte sagrada caia nas mãos erradas. Acho que também eram um
jeito de se proteger das autoridades, que não permitiam outro
culto a não ser os brancos católicos. (GONÇALVES, 2019, p. 610)

A partir deste trecho podemos repensar a forma com que as culturas


tradicionais são vistas pelo homem ocidental, que sempre diminuiu a oralidade
como uma espécie de incapacidade. No entanto, não apenas no relato de
Kerinde, mas em outras situações inclusive em contextos reais como os
terreiros de candomblé ou em outros contextos onde a cultura negra vive, o
segredo é algo que se matem, pois ele muitas vezes garante a sobrevivência.
A intelectual Leda Maria Martins (2001), apresenta o conceito de oralitura,
segundo ela:

315
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O termo oralitura, da forma como apresento, não nos remete


univocamente ao repertório de formas e procedimentos culturais
da tradição linguística, mas especificamente ao que em sua
performance indica a presença de um traço cultural estilístico,
mnemônico, significante e constitutivo, inscrito na grafia do corpo
em movimento e na velocidade. (MARTINS, 2001, p. 84)

A afirmação de Leda contribui com a nossa tentativa de compreender a


escrita de pessoas negras como uma dança, que aqui percebemos através do
corpo da mulher negra. É importante ressaltar que existem tradicionalistas que
optaram pela escrita, pois entenderam que no contexto em que estão suas
memórias poderiam ficar no tempo e a escrita muitas vezes permite a
continuidade.

Quando kerinde escolhe escrever esta carta, talvez ela não tenha tido a
dimensão da sua escrita e o que ela significaria nos dias de hoje. Este livro
traduz uma sociedade que violentou e marginalizou a população negra, mas
que diante desta opressão não se rendeu. Pelo contrário, é possível identificar
que as pessoas negras escravizadas conseguiram diante deste processo
construir estratégias e reorganizar suas vidas e ajudar o outro.

Observei que assim elas acabavam formando uma grande família,


já que as iniciadas tinham que conhecer a apresentante. Isso
explicava por que entre aquelas mulheres só havia eves, nagôs e
ketus, que, além de irmãs no santo e parentes, também se
tornaram irmãs na devoção, e foi só algum tempo depois, em
África, que entendi como estas relações eram importantes, não só
no Brasil, mas também lá, entre os que retornaram (GONÇALVES,
2019, p.610)

O que hoje é considerado cânone literário brasileiro, nada mais é do que


o pensamento da aristocracia intelectual brasileira, composta por homens lidos
como socialmente brancos. Ao longo da história a literatura cânone foi
responsável pela construção da nacionalidade brasileira, denunciando ou
ditando os comportamentos sociais, interferindo na construção do sujeito seja
ele a ideia do “primeiro” brasileiro ou de um estereótipo exportado da Europa e,
portanto, imaginário do que seria um ideal de “brasilidade”. Assim tudo aquilo
que não corresponde a uma lógica absurda de limpeza ou claridade, não seria
bom para o Brasil.

316
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

As histórias contadas por estas escritoras tentam falar de um Brasil que


não corresponde integralmente ao que ele é! Mas como isso? Diria que a
literatura é uma mídia e a partir dela a sociedade foi moldada. Existe uma
negação social das pessoas negras, estas literaturas foram as primeiras a
colocar o negro como subalterno, aumentando as distâncias sociais.

O processo de escravidão no Brasil, intelectuais negros de diferentes


áreas do conhecimento buscam corrigir as narrativas contadas por pessoas
brancas, que sempre submeteram corpos negros como escravizados.
Atualmente existem vários indícios de que os negros escravizados foram
agentes negociando constantemente forma de sobreviver diante da opressão
do branco colonizador. Hoje com o passar dos anos descobrimos a existência
de produções literárias, artistas plásticos, músicos, danças e manifestações
religiosas que sempre foram discriminadas por uma elite branca que buscou
constantemente mediar formas de invisibilidade destas produções que para nós
revelam que sujeito negro escravizado nem sempre foi subalterno.

Ao longo da leitura inúmeras situações são descritas revelando a


participação de negros escravizados como intelectuais e portadores de
conhecimentos ancestrais que cuidavam das suas vidas e da vida de outros,
incluindo os brancos.

Eu não tinha coragem de olhar para o rosto de Verenciana, então


me sentei bem atrás, então me sentei bem atrás da Esméria e
achei que era melhor apenas rezar. De onde eu estava ainda dava
para ver a quantidade de sangue perdido nos inúmeros panos
tingidos de vermelho. Os panos eram colocados sobre os olhos
dela e trocados de tempos em tempos, muito menos amiúde
depois que Rosa Mina apareceu com uma infusão de ervas para
colocar sobre as feridas. [...] O Valério Moçambique não tinha
parado um só minuto rezando, cantando e esfregando as mãos
nas sementes para depois passá-las por todo corpo de
Verenciana (GONÇALVES, 2019, p.108)

Neste trecho kerrinde descreve uma situação de apoio e cuidado com


uma das escravizadas que teve seus olhos retirados como castigo. Esta cena
denúncia de maneira brilhante o cuidado, afeto e conhecimento da população
negra no trato com o outro que compartilham as violências cometidas pelos
senhores brancos. Existem neste romance inúmeros relatos de experiências de
afeto e cumplicidade entre pessoas negras.

317
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Caso o romance não seja um recurso aceito como exemplo de nossa


humanidade, acredito que as inúmeras revoltas provocadas pelos negros
possam ser consideráveis para revelar como resistimos. A revolta dos malês
descrita no romance e em alguns outros livros de história, descrevem um
movimento que levou anos para de fato acontecer, houve muitas reuniões entre
os negros muçurumins, negros africanos e alguns negros nascidos no Brasil
que acreditavam no movimento.

No romance Kerinde descreve que alguns ingleses apoiaram e


permitiam reuniões em suas casas, mas nada era dito integralmente, as
pessoas tinham pedaços de informações. Para informar os negros que
moravam em Cachoeira, muitas mensagens eram enviadas dentro dos
charutos. Tudo foi feito com tempo e estrategicamente pensado, pois eles não
queriam correr o risco de algumas informações caíram em ouvidos errados e
atrapalhasse os planos da revolta.

Quando soube a data, voltei a me interessar e a participar das


reuniões permitidas, também me oferecendo para fazer o que
fosse necessário. Minha primeira tarefa foi convencer o Tico e
Hilário a levar algumas informações aos muçurumins do
Recôncavo. [...] O primeiro recado foi sobre a data escolhida, que
Tico e Hilário preferiram levar por escrito, pois não queriam nem
saber do que se tratava para não caírem na tentação de contar,
caso fossem pegos. Eles também achavam que se protegiam
daquele jeito porque, não conhecendo o recado, não poderiam ser
acusados de traidores se alguma informação chegasse aos
ouvidos das autoridades. O Fatumbi concordou, pois quanto
menos pessoas soubessem, melhor, e o lugar escolhido para
carregar os bilhetes foi dentro dos próprios charutos
(GONÇALVES, 2017, p.496)

Uma das coisas que estamos tentando dizer é que tanto a dança quanto
a escrita ou a oralidade são testemunhos da consciência do corpo,
proporcionando um entrelaçamento entre as pessoas negras. Dentro do que a
Afro Mandinga abarca, se a mulher negra através da dança experiência o
agenciamento da sua vida e do seu entorno, dentro da literatura acontece o
mesmo, através da produção de outras narrativas, construindo referências e
remendando os buracos das nossas narrativas, nos tornando mais humanos
para o mundo a partir de correções na literatura universal.

Milhões de mulheres estão hoje preocupadas com empregos,


condições de trabalho, salários mais altos e violências racistas.
Elas estão preocupadas com o fechamento de fábricas, com a

318
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

falta de moradia e com a legislação migratória repressiva. Estão


preocupadas com a homofobia, o idadismo e a discriminação
contra pessoas com deficiência física. Estamos preocupadas com
a Nicarágua e a África do Sul. E compartilhamos com nossas
crianças o sonho de que o mundo de amanhã esteja livre da
ameaça de um onicídio nuclear. Essas são algumas das questões
que devem ser incluídas na luta geral pelo direito das mulheres,
caso exista um compromisso sério com o empoderamento
daquelas mulheres que tem sido historicamente submetida à
invisibilidade (DAVIS,2017, p.17)

No momento em que a sociedade identificar a importância da mulher


negra dentro da sociedade compreendendo que o seu papel é econômico e
social, e que o seu corpo gerencia vidas que são as mais diversas indo do
ancião a criança. Davis faz reflexões a cerca do feminismo negro Afro-
americano, que pode se estender a realidade das mulheres negras no Brasil
quando assumimos que estas mulheres em sua maior parte são as que regem
sozinhas a economia de casa e dentro de um contexto onde sua participação
na comunidade é fundamental, na educação dos filhos, dos seus e de
outras(os).

Conclusão

Ao longo do percurso o diálogo entre as linguagens dança e literatura


contribuiu para o entendimento e extensão do que para nós enquanto mulheres
negras significa afromandinga, neste sentido identificamos que ela possui um
significado maior do que projetamos ao iniciar as primeiras reflexões sobre este
“operador teórico”, em uma dimensão extensa do que é o sagrado para as
matrizes indígenas e afrobrasileiras. A ginga como composição de corpos
plurais desestabiliza a pirâmide social reorganizando a partir do corpo de
mulheres negras e indígenas que lutam pelos seus direitos numa sociedade
legislada pelo cisheteropatriarcado. Tanto a capoeira quanto a literatura são
espaços já conquistados por essas mulheres, porém ainda se faz necessário
gingar para desviar dos processos que impedem a visibilidade e acesso dessas
narrativas. O corpo quando faz uso da dança ou literatura, escreve de forma
silenciosa a liberdade que podemos alcançar.

319
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Referências bibliográficas

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320
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

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Salvador, Edufba, 2016.

SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte, Editora:UFMG,


1942.

321
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

CAPOEIRA E EMANCIPAÇÃO NA FORMAÇÃO EM DANÇA:


ANÁLISE DE ASPECTOS DIDÁTICOS E METODOLÓGICOS
Marcos Cezar Santos Gomes (UFBA)

INTRODUÇÃO

Embora, ainda, hostilizada por uma parcela da sociedade brasileira, a


capoeira afirma-se no mundo a cada dia. Para alguns pesquisadores e também
africanistas as primeiras práticas surgem já na primeira metade do século XVII
aqui no Brasil. É pertinente considerar que ao longo de sua existência, seja
aqui ou no exterior, a capoeira tem dado uma imensa contribuição para
formação em suas especificidades, principalmente em artes. Baseado em um
determinado recorte da escravidão, Rego (1968) afirma que, enquanto se
divertiam, os escravos colonizados planejavam suas fugas.

Nesse dado momento da história do Brasil colônia, a capoeira era vista


como uma luta que dançava e uma dança que lutava. A este período Areias
(1983) refere-se ao clímax das invasões, momento de tensão e guerras por
posse da terra, ocorridas entre holandeses e portugueses de 1624 a 1630.
Momento este que oportunizou lutas e possíveis fugas dos africanos cativos
aqui no país. Na impossibilidade do uso da arma de qualquer espécie, acredita-
se ter sido o corpo o protagonista no jogo e/ou dança de fuga em busca da
emancipação. Desse modo, a capoeira foi proibida do início do governo
republicano até o final dos anos 1930, da década de XX. Atualmente, busca
caminhos que possam evidenciá-la como uma legítima arte na linguagem da
dança e relevante meio de educação.

A didática entre a capoeira e a dança, a partir da relação dos aspectos


procedimentais metodológicos, no processo de formação de dançarinos na
academia, configura – se como tema desse trabalho. Ao pensar nessa
mestiçagem, emerge o problema de pesquisa: as metodologias tradicionais
utilizadas para o ensino de capoeira, poderão auxiliar na formação acadêmica
em dança? A partir da atuação in loco, mediante dezessete anos
compartilhando o conhecimento da capoeira para dançarinos, pôde-se

322
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

perceber que os métodos tradicionais não dão conta da subjetividade inerente


a linguagem da dança.

Do ponto de vista emergente, para a aprendizagem inicial da capoeira


no campo acadêmico, o ensino tradicional deverá abrir espaço para o
movimento criativo e autônomo. É a partir dos códigos da própria tradição, que
os mesmos deverão ser alterados, mediante a ressignificação gestual,
vislumbrando, portanto, novos horizontes. Essa afirmativa emerge com base na
Capoeira Emancipatória, em desenvolvimento, investigação do mestre Zambi
(BA); Hidrocapoeira, mestre Odilon Goes (BA), Capoterapia, mestre Gilvan
(DF) e Capoeira Orgânica, mestre Itapoã Beiramar (RJ). Nessas pesquisas se
aborda também, que em sua especificidade e espacialidade, a capoeira não
esteve e nem está historicamente imbricada aos conhecimentos científicos,
(NENEL, 2018).

Contudo, as novas tendências para o ensino superior na


contemporaneidade, apontam para a necessidade de novos modos de saber.
Nesse sentido, a concomitância entre capoeira, dança e as pesquisas
acadêmicas mais recentes, correlatas com as ciências cognitivas, certamente,
otimizará alguns aspectos, a exemplo do psico-sócio-afetivo-cultural, destarte a
contribuição da Filosofia também, para além do biológico, descritos e
desenvolvidas no corpo do trabalho. Esse recorte multifacetado nos conduz
aos pressupostos da pesquisa de movimento em Rudolf Laban, por meio da
cinesfera do corpo, da corêutica e da eukinética, que se consolidam em ações
corponectivas, ou seja, ações que efetivam corpomente como não
fragmentados (RENGEL, 2007).

Foucault (2015) traz um debate contundente, ao tratar do direito negado


no controle do nepotismo, conceito seu. Ao longo dos anos confirmou-se o
protagonismo elitista, em detrimento as classes à margem, nos colocando, por
repetidas vezes, na condição de coadjuvantes. Nesse fluxo, o cosmopolitismo
em (APPIAH, 2017) influencia a investigação na perspectiva da subversão
metodológica, compreendendo ser necessário fazer-se mundo, argumentar as
inovações e assumir pertencimento. Em meio a subversão, Bruno de Jesus,
dançarino e docente da Universidade Federal da Bahia – UFBA, entende que o

323
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

corpo é questionador e tudo é por meio dele e reflete nele, logo “O corpo é
ciência. O corpo é um campo de produção de saberes, de epistemologias
desse corpo que é físico, químico, biológico, cultural que se dá a história, que
faz história, que se constrói no universo, que é filosófico (SILVA,2020, p. 25).

Ao considerar a capacidade de improvisação e atitudes criativas


inerentes à capoeira e/ou aos seus fazeres procedimentais, atitudinais e
conceituais, entende-se que a técnica não é isolada do contexto da tradição e
nem dos conceitos e desejos. Ela é imprescindível para o controle corporal,
entendido corpo como uma totalidade, independente da configuração
apresentada no ambiente cênico. A capoeira tem possibilidades que tangem o
potencial coreográfico Nenel (2018), ainda obscuro nas instituições de nível
superior que lidam com a formação em dança.

O objetivo é de analisar procedimentos metodológicos pertinentes ao


processo de aprendizagem da capoeira na formação de dançarinos, no âmbito
acadêmico, ampliando, portanto, a preocupação com um campo maior, a
didática. Nenel (2018) aponta que a história da capoeira se coloca subjacente à
história do Brasil. Para Gomes (2013, p. 11) tal saber de tão longa
consolidação contemplará significativos benefícios na formação dos
dançarinos. Enquanto expressão dinâmica, atentamente observado na enação
em Varela (1993), o movimento deve ser representado pela captação da forma
com que o dançarino se percebe, dinamizando a autonomia no qual fluía, fato
confirmado na evolução etnográfica em que se ver e vive o método.

Constata-se ainda, que há lacuna de material publicado com o tema,


confirmação realizada a partir de pesquisas no estado da arte na Bahia, nos
repositórios em dança. Portanto, colaborar com as produções bibliográficas em
mediações educacionais da capoeira na formação acadêmica em dança,
compartilhar experiências vivenciadas por mim em uma companhia e duas
escolas de dança de Salvador, descrever formas particulares de realização do
cruzamento entre ambas as linguagens e apresentar estratégias metodológicas
emancipatórias procedentes ao processo formativo dos dançarinos, se
constituem como objetivos específicos.

324
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Com relação à estrutura metodológica da pesquisa, Gil (2017) orienta


sobre a necessidade de aprimorar as ideias extraídas e intuídas, mediante o
material colhido. Essa recomendação não rompe com a relação mútua entre
pesquisador e pesquisa. Em função do interesse em pesquisar a própria prática
e suas implicações, a etnografia se fez presente na medida em que o
pesquisador se envolveu, cotidianamente, no processo de formação dos
sujeitos, in loco, possibilitando os constantes diálogos entre professor e
estudantes.

Além do registro etnográfico, os procedimentos técnicos presentes em


uma pesquisa, transitaram pela metodologia qualitativa bibliográfica (GIL,
2017), efetivada pelo acúmulo de informações extraídas de livros e artigos de
periódicos, já publicados e disponíveis em diversas plataformas. Para se
pensar outras teias que colaborem com as metodologias existentes no
processo de aprendizagem em ambientes de ensino superior, apresentamos
(SANTOS, 2007), (FREIRE, 2004), (APPIAH, 2017). Esses são alguns dos
pesquisadores sociais que se debruçaram, a fim de contribuir para a
construção de uma sociedade onde a ética transite, possibilitando equidade
entre as pessoas.

A capoeira vista como dança, para uma efetiva presença e intervenção


no mundo, parte, aqui, do olhar de (SANTANA, 2009, p. 19), que se posiciona
questionando a ausência de métodos de ensino que estimulem a criação e
resultados gerados para implicações políticas, estimuladas pelo cruzamento.
(SILVA, 2008) foca o corpo na capoeira e o diálogo intenso com a dança
contemporânea, para construção de novos trânsitos e corpos, também,
poeticamente politizados. Já (MARQUES, 2011), emerge em torno do objeto de
estudo ao trazer as reflexões didáticas metodológicas relacionadas ao ensino
para dançarinos. O trajeto da escrita evolui em capítulos, com base nos
objetivos. Vivências metodológicas in loco, compartilhamento das experiências
em uma companhia e em duas escolas de dança e um olhar do mestre,
configuram os próximos argumentos dançantes.

325
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Narrativas metodológicas da capoeira em dança

Após contextualizar e selecionar o aporte teórico, se faz necessário


compartilhar os conhecimentos com os alunos de dança. Trata-se de ações
mais pontuais as quais refletem o cotidiano metodológico aplicado com
dançarinos de três instituições. Enquanto arte em processo de aprendizagem, a
dança e a capoeira devem articular compromissos responsáveis e prazerosos.
É coerente pensar que esse prazer perpassa uma forma de pedir sugestivo e
não ordenada, é o enunciado em detrimento ao comando.

Paulo Freire (2012) nos diz que “Não há utopia verdadeira fora da
tensão entre a denúncia de um presente tornando-se cada vez mais intolerável
e o anúncio de um futuro a ser criado, construído, política, estética e
eticamente, por nós, mulheres e homens”. Esse lugar de fala do professor,
sustenta que a não linearidade provém de um professor flexível, maleável, que
entende o mundo das relações pedagógicas como mutáveis e recíprocas,
adotando a cumplicidade como elemento fundamental na construção do
conhecimento.

Essa pretenciosa insinuação que vemos acima, encerra em Freire,


educador perspicaz que foi, o conceito de emancipação, refletido em inúmeras
laudas desse trabalho. Por emancipar, entende-se em reconhecer que no
processo emancipatório há uma intencionalidade política declarada e que se
assume enquanto transformação das condições desfavoráveis. Ao afirmarem
que a capoeira já é emancipada, pedimos prudência, pois, percebe-se que ela
é resistente, por conta das lutas seculares. O que não impede que estejamos
emancipando através e por meio dela e não a ela, levando em conta que “Só
emancipa quem é emancipado” (RACIÈRE, 2014).

Em uma aula mais técnica no ensino da capoeira, fica explícito o fazer


procedimental, ainda assim se valoriza mais o aluno e menos o método:
pensamento em Freud, ao criar no século XIX a psicanálise educacional. Já
“Comênio, de forma pioneira apresentou um sistema articulado de ensino
(CONRADO, 2006, p, 84). Ao saber, o pai da didática, no método Comênio
necessário se faz conduzir o ensino pela dimensão técnica, mas também

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

humana e sócio política, caminho que transito, por ter especialização em


Psicopedagogia. Mesmo em uma aula codificada é preciso inquietá-los, e,
assim, romper com as diretrizes conduzidas apenas pelo professor. É a troca,
simbolizada por iniciativas dos alunos.

Foi dito várias vezes que concepção construtivista não é, em sentido


estrito, uma teoria, mas um referencial explicativo que, partindo da
consideração social e socializadora da educação escolar, integra
contribuições diversas cujo denominador comum é constituído por um
acordo em torno dos princípios construtivistas (COLL, 2009, p.10).

A participação do aluno em sala simboliza uma ação socializadora entre


professor-aluno (s), aluno (s), aluno (s) e deve ser pensada enquanto
possibilidade pré-estabelecida. Os combinados, por exemplo, funcionam como
estratégias pedagógicas capazes de promover uma atmosfera de respeito
mútuo. Atuamos com essa proposta pela realidade ideológica e caráter
disseminador que se pretende alcançar. Em Coll (2009) podemos refletir que “A
aprendizagem é uma construção pessoal que o aluno realiza com ajuda que
recebe de todos os canais de informação”.

O perfil da proposição enquanto caminho para provocar a participação


na aula deve ser um dos estímulos. Por não adotarmos a hierarquia como
exclusividade do professor, embora não se negue quem possui “uma bagagem
maior”, quando propomos uma problematização politicamente ideológica, surge
nos corpos respostas surpreendentes, elevando a possibilidade de criação de
outras danças, de outros fluxos, partido dos movimentos da capoeira.

Ao refletir em ressignificação da proposta inicial, compreende-se como


resultado uma cosmovisão. Ou seja, todos sentem o prazer em estar, fazer
parte da produção do conhecimento, com direito a voz e voto. Assim, cai a
concepção de que um único é quem pensa e sabe o que está sendo abordado
naquele instante da aprendizagem, entendida por alguns profissionais como
momento exclusivo para passar conteúdo. É possível permitir que os
dançarinos conduzam a aula junto com o professor, mesmo que o plano de
aula esteja pronto.

É importante lembrar que falar em intervenção pedagógica requer uma


conexão com posturas contemporâneas, além de aceitar a própria verdade não

327
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

como única, mas que, a partir de sua reformulação, conforma-se com os


diferentes pontos de vista. Em (FREIRE, 2012), se o aluno não participa na
progressão da aula, otimiza-se a cultura perversa do silêncio, do depósito
bancário. Enquanto que para Santos (2009) deve-se “Opor à crença de que se
é pequeno, diante da enormidade do processo globalitário, a certeza de que
podemos produzir as ideias que permitem mudar o mundo”. (SANTOS, 2009).

Ao conduzirmos a aula, se faz necessário está ciente do processo


formativo! Observar, atentamente, os alunos individualmente é uma demanda
específica que precisamos adotar quando entendemos que os tempos de
aprendizagem são diferentes. Com essa postura, estaremos percebendo as
dificuldades, quando poderemos intervir, orientar e corrigir os movimentos.
Sugerir que façam de outras formas desejadas, permite “borrar”, ao tratar de
problematização na metodologia.

Muitas vezes, percebe-se que o entendimento básico é absorvido melhor


quando iniciado pelo conhecimento prévio do aluno, trazido de outras épocas,
em alguns casos, de longas datas. Mostrar caminhos para a pesquisa de
movimento em Laban (1978) apud Rengel (2003), por exemplo, é prudente,
antes mesmo da compreensão técnica e criação de novas possibilidades.
Fundamentar os conteúdos conceitualmente e permitir o fazer procedimental,
direciona para a dimensão atitudinal. Dimensionado em atitudes éticas,
absorvidas no convívio coletivo, dificilmente o aluno com dificuldade cognitiva
mensura sua capacidade pela dos seus colegas, tenta, se auto avalia. Assim,
afastamos a turma da crença tradicionalista de que o aluno deve, apenas,
escutar e assim aprender o que o professor sabe, em seguida, complementa-
se com as sugestões da turma.

Ainda que condicionados à educação tradicional é possível estimular


para emergir ideias próprias. É preciso analisar a possibilidade de interfaces
com qualquer outra técnica e pedir opiniões sobre o que gostariam de
aprender. Esse momento de fala mútua deve gerar um clima de confiança
configurado em um espaço emancipado, para trocas de um trabalho
compartilhado! Postula-se ser extremamente importante questioná-los,
antecipadamente, a respeito do planejamento e sua aplicação. Também é

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

possível que alguns dos tantos conteúdos abordados, tenham origem na aula
anterior, é o que podemos chamar de AÇÃO- REFLEXÃO- AÇÃO
metodológica.

Identificado o sentido amplo que envolve o conceito de metodologia:


caminho percorrido para o alcance dos objetivos (MARQUES, 2011), define-se
o como será encaminhado o trabalho a ser realizado. Normalmente, está
atrelado ao contexto geral do público alvo. Como se tem reforçado, todo o
processo de aprendizagem é fundamentado no diálogo permanente para
emancipação de todos, todas e todxs, envolvidos no processo, assim como
para construção de novos conhecimentos! A dimensão progressista -
Vasconcelos (2009) parafraseando Freire, emite que é uma “Prática docente,
especificamente humana, é profundamente formadora, por isso ética”. Com
base nela, os alunos são também parceiros pedagógicos e, no início de cada
ciclo, devemos convidá-los para estabelecer relação de compreensão e
cooperação entre professor e aluno, o que simboliza “retirá-los” da zona de
conforto.

Essa iniciativa, que não é muito comum por parte dos professores mais
conservadores, suscita confiança e responsabilidade, ambiência e bem-estar
para as pessoas. Essas ocorrências relatadas acima, foram experimentadas
em diversas turmas de crianças, adolescentes e adultos, alunos da Escola de
Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia - FUNCEB e do Balé
Folclórico da Bahia – BFB, além dos estudantes do primeiro semestre do curso
de Licenciatura em Dança, da Escola de Dança da Universidade Federal da
Bahia – UFBA, quando foi realizado o Tirocínio docente como ação obrigatória
do componente curricular, no ano de 2011. Ao conduzir as aulas com esses
procedimentos metodológicos menos rígidos, obtive êxitos duradores e
consequentes homenagens nessas Instituições de Ensino. Faz-se, necessário
informar que todo o processo relatado se deu entre 2003 a 2016.

329
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Capoeira emancipatória no balé folclórico da Bahia

Fundado em 1988 por Walson Botelho e Ninho Reis, em Salvador, a


referida companhia emplacou a década de 1980 com alguns prêmios
nacionais. Esse fato promoveu extensivas turnês internacionais. A partir de
outubro de 2003, por consenso dos responsáveis, a instituição decidiu adotar
aulas de capoeira para o elenco, quando fui convidado e permaneci por quatro
anos!

No início, foi pensado como objetivo trazer mais treino e novas


informações técnicas para os dançarinos. Pois, era transparente o déficit de
condicionamento físico, embora a turma tivesse horas de preparação
diariamente. Interessante é que aquela experiência de ensinar capoeira
preparando-os para apresentações cênicas parecia engessar o potencial que a
relação dialógica, através da metodologia emancipatória instiga, ao
compartilharmos conhecimento.

Na companhia em discussão, diante das suas demandas e espetáculos,


por várias vezes concluía-se que mais valia um bom artista no palco do que
uma pessoa consciente de seus direitos, pois, os deveres eram explícitos.
Desmembrar-se da realidade hegemônica não era tão fácil. Historicamente,
fomos preparados para responder como máquinas controladas, nunca pensar e
sempre repetir.

Assim, em um dado momento, gerou um sentimento satisfatório, no que


tangia a uma educação artística, ainda que de alto rendimento, mas que podia
valorizar uma prática progressista e emancipada, que fosse além dos grandes
palcos, para os palcos do cotidiano, a vida. Tratamos, aqui nesse subcapítulo,
de capoeira e aprendizagem libertária, com base na experiência profissional.
Na possibilidade de amenizar o suposto preconceito da mente em detrimento
ao corpo, sustentado pelo dualismo cartesiano, houve continuidade ideológica
e não hegemônica, da parte de quem conduzia a capoeira para os dançarinos,
Mestre Zambi.

Essas experiências de mundo, via sensório-motor, portanto, criam o


nível mais básico do que se chama de conceitos, o que modifica
completamente o entendimento habitual de que conceitos são

330
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

mentais, e não corporais. São ambos. (LAKOFF & JOHNSON, 1999,


apud QUEIROZ, 2009, p.52).

Nosso foco era dançar nos espetáculos, mas que preparasse o


dançarino e a dançarina para atuarem com mais consciência de si mesmos e
que promovessem, além de “emoção” e “satisfação” para a plateia, suas
próprias realizações vitais. Estava em ação a metodologia da problematização,
propondo tese, antítese e síntese, durante as aulas, diante do processo
formativo, via enunciados, evitando os comandos autoritaristas, “Como
compromisso sócio-político, pois não existe educação neutra” (FREIRE, 2012).
O trabalho de capoeira realizado nessa companhia era exclusivamente para
adultos, dançarinos profissionais.

Capoeira emancipatória na escola de dança da FUNCEB

Em meados de 2003, houve a implantação da capoeira na Escola de


Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia (FUNCEB). A proposta inicial
foi atuar como disciplina extracurricular optativa para os estudantes adultos do
4º semestre, concluintes do curso técnico de dois anos. As ações pedagógicas
eram direcionadas, continuadamente, para os conteúdos contidos em cada
plano de aula, os quais eram discutidos previamente. Assim, os métodos de
cópia e reprodução, de modo acentuado, foram cedendo espaço cada vez mais
ao enunciado que possibilitava emergir um aluno intérprete/criador.

O mais importante naquele momento era a maneira de semear o novo,


tendo em vista a expectativa em torno da novidade que assolava na escola,
aulas de capoeira durante a formação em dança. Iniciar a história da capoeira
daquele lugar, naquele momento histórico foi complexo e prazeroso. No
percurso de 2003 a 2016 que compõe três gestões administrativas, a capoeira
tanto foi hostilizada pelo próprio desconhecimento da sua importância
histórica/artístico/pedagógica/cultural, como também foi exaltada, por se inserir
rapidamente no processo de ensino do sistema local. Em escala maior, quase
sempre evidenciamos que as tentativas de implantação dos projetos com a
capoeira costumam obter êxito; na FUNCEB não foi diferente.

331
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Hoje, após dezessete anos da implantação como técnica alternativa,


pensada para dar um suporte físico, ainda não é muito confortável a aceitação,
mas, nota-se que avançou no campo cênico. Como produção artística em
dança já é um fato e tornou-se elemento de apoio para as aulas e espetáculos
do universo das crianças, adolescentes e adultos a cada semestre, além do
curso, aberto e livre, pela noite.

Outra conquista notável é a participação dos estudos em capoeira, não


só como aulas complementares, mas, como componente na grade curricular do
Curso Profissionalizante de Nível Médio da Escola de Dança da FUNCEB.
Também é plausível informar que a atual ementa da disciplina Estudos em
Capoeira I e II, arquivada na pasta da escola, foi elaborada pelo Mestre Zambi,
quando atuava como funcionário REDA. Com a inserção dos conteúdos nas
três esferas pedagógicas, conceitual, procedimental e atitudinal,
semanalmente, conseguíamos oferecer aulas coerentes com a realidade dos
alunos. Para Freire (2004) “Não há docência sem discência”, concordamos
com o autor e atribuímos o vice-versa.

Assim, é pertinente pensar que a educação em dança precisa de


princípios dialógicos, visando contemplar a realidade do estudante; é o que se
acredita, ao colocar em prática a pedagogia freireana. “De nada adianta o
discurso competente se a ação pedagógica é impermeável a mudanças”
(FREIRE, 2012). As vivências anteriormente realizadas na escola de dança da
FUNCEB, oportunizam a visibilidade que a capoeira ganha, como dança/luta de
um povo que age como um camaleão, permitindo-se mudar conforme cada
situação vivida.

Capoeira emancipatória na escola de dança da UFBA

Registra-se, aqui, uma experiência ocorrida durante o segundo semestre


do curso de mestrado na atividade de tirocínio docente. Embora vivenciando
trabalhos artístico-pedagógicos com dançarinos há quase duas décadas, foi a
primeira oportunidade de estar numa turma de graduandos de nível superior

332
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

em dança. A coordenação foi da própria orientadora, professora Dra. Lenira


Peral Rengel.

O título e a intenção compartilhariam com as metas da proposta do


tirocínio docente para o semestre (2011.2). Em diálogo inicial, assim como em
texto, a professora responsável pelo componente discutiu com exclusividade o
foco da docência enquanto percurso de mediação que “envolve: 1. O objeto
mediado; 2. A (s) pessoa (s) e suas representações, crenças e conhecimentos
envolvidos nesse processo e acesso à aprendizagem ou sensibilização
intelectual num grau de expertise em um dado fenômeno; e 3. O contexto
cultural, social e/ou artístico de referência” (DARRAS, 2009 apud RENGEL,
2012).136

Ao pensar juntos, conseguimos fazer da mediação não um caminho ou


um meio de intercâmbio entre o conhecimento que era (uma dança, uma
técnica, um texto escrito, uma proposta de improvisação, etc.), mas um eixo
corponectado e interdependente. Tivemos um trato afinado com os estudantes
da graduação, pois, em momento algum estivemos apartados da relação entre
pessoas, assim, o respeito reverberou e o vínculo artístico despertou o desejo
de alçar vôos.

Compartilhar valores como respeito e afetividade está no plano do


privilégio das ações emergências. E esta perspectiva esteve demarcada no
trajeto, nos mostrando a importância de construir juntos, “lado a lado” com
aqueles que estão na condição de aprender, ao nosso olhar, ambas as partes,
professor e estudante. A proposição foi apresentar aos estudantes a
possibilidade de experimentar uma capoeira independente do domínio da
técnica. A capoeira dita emancipatória consegue cumprir com seus objetivos,
especialmente, com praticantes iniciantes.

Centrado nas lutas contra colonos e ideias excludentes, Santos


complementa que “a ecologia dos saberes recomenda um diálogo do saber
científico com o saber popular e laico” (2007, p.9). E, foi com essa delimitação
que enfrentamos o desafio em dialogar com formas e saberes distintos. Ficou

136
Portal da ANDA. Acesso em: 02 jul. 2012.

333
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

claro que o procedimento metodológico deveria fazer diferença e mudaria todo


processo preconceituoso que ainda hostilizava a capoeira nos espaços de
dança. A atitude das pessoas preconceituosas pode ser baseada ou não em
comportamentos hostis e ocorrências de praticantes brigões,
descompromissados com a capoeira, enquanto Patrimônio Cultural da
humanidade, através da roda.

De acordo com a proposta, estava em jogo a tríade composta por


estudante, conhecimento e tirocinante. Diante do fato, consideramos que o
mediar deveria envolver o fazer, o elaborar, o provocar, o contextualizar e o
compartilhar, desconsiderando ser ações separadas. Era a tentativa de
conectar relações educacionais, demandas que não se conectam por
comandos superiores autoritários e hegemônicos. Portanto, mediação deveria
prevalecer por enunciados tendo em vista uma educação significativa e
prazerosa. A intervenção tirocinante esteve centrada nessas perspectivas.

Iêêêê, menino quem foi seu mestre?

Os coordenadores da coleção “Educação: Experiência e Sentido, ”Jorge


Larrosa e Walter Koban, pensam que “Também a experiência, e não a verdade
é o que dá sentido à educação. Educamos para transformar o que sabemos,
não para transmitir o já sabido”. De ambos, ainda “Se alguma coisa nos anima
a educar é a possibilidade de que esse ato de educação, essa experiência em
gestos, nos permita liberar-nos de certas verdades. De modo a deixarmos de
ser o que somos para ser outra coisa para além do que vimos sendo”. Essa
experiência que se constrói e reconstrói constantemente tem sido foco de
discussão por parte de vários estudiosos, teóricos engajados na desconstrução
de ideais dominadores.

Na atualidade, alguns teóricos da área já redimensionam a capoeira


como a nobre arte de educar, legitimada pela possibilidade expressiva de
explorar o canto, o toque, o jogo, a dança, a luta, a teatralidade, o cinema, o
artesanato, a poesia, dentre outras. Essas, aparentes dicotomias, suscitam
uma aprendizagem inventiva, porque a capoeira é uma arte inventada no

334
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Brasil, pelos africanos que aqui chegaram. Kastrup (2014) postula que “A
aprendizagem, é sobretudo, invenção de problemas, é experiência de
problematização”. Se tentarmos estabelecer relação entre a ideia da autora e o
“mundo visível” da capoeira, veremos o quanto elas se entrecruzam.

Sabe-se que a capoeira é instintivamente criativa, o que, em parte,


emerge do conhecimento, experiência e provocação feita pelo mestre, pessoa
que deve ser dotada de saber ancestral. “Mas, sobretudo, aquele que é
reconhecido pela sua comunidade como alguém que tem sabedoria de exercer
essa função” (ABIB, 2015). Para nós é procedente afirmar que a mestria em
capoeira é exercida por aquele que tem responsabilidade para compartilhar o
que aprendeu e humildade para aprender o novo; pois, ninguém é
autossuficiente.

Nos referimos a uma espécie de sui generis, que evolui a partir de uma
educação em arte, “Integral, aberta, dinâmica, construtiva, sem esquecer as
dimensões de segurança, firmeza, autoridade sem autoritarismo e imensa
inquietude para criar, pensando e agindo prospectivamente” (D`AMORIM,
2007). Após as extensivas reflexões dissertadas nesse artigo, essas são
algumas das características do profissional que desejamos ver na
universidade. Salve os nossos mestres, salve os nossos alunos. Que
possamos desenhar as danças do por-vir.

Considerações

Na intensa busca para contemplar o entendimento, ou ao menos


encontrar no aporte consultado um indício da resposta ao problema, nós
apresentamos os resultados. Conferimos que a concepção dialógica
fundamentada pelo professor Paulo Freire é dispositivo central para o
encaminhamento metodológico do ensino da capoeira para dançarinos, em
formação acadêmica. Evidência que confirma nossa hipótese.

A capoeira dita emancipatória, que usa o diálogo como estrutura basilar,


consegue cumprir com seus objetivos, especialmente, com praticantes

335
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

iniciantes, tento em vista o seu desenvolvimento técnico nas bases da


sinesfera proposta por Rudolf Laban. Ficou claro que o procedimento
metodológico não tradicional de ensinar, faz toda diferença e altera o processo
preconceituoso que hostilizava a capoeira, construído nos espaços de dança
de ensino superior.

Ao mapear a sua trajetória, essa pesquisa pensou nas contribuições que


a capoeira poderia dar aos dançarinos contemporâneos a partir dos cursos de
formação. Enquanto meio e ação, os teóricos afirmam que a improvisação e a
movimentação criativa da capoeira são coerentes ao corpo que dança.
Enquanto ao conceito de emancipação, constata-se que a educação em toda e
qualquer dimensão deve funcionar como prática de liberdade, pois, pessoas
não são coisas e comandos mecânicos não são os únicos caminhos
procedentes no processo de aprendizagem.

Confirmou-se, também, que as pessoas respondem positivamente aos


altos níveis de desafios artísticos corporais propostos na metodologia em foco.
Os demais princípios emancipatórios sugeridos nesse trabalho dialogaram com
as implicações em dança. Afirma-se que a concepção dialógica é nuclear, ao
aplicar metodologias de ensino da capoeira para dançarinos. Ressalta-se, que
esse estudo, ainda em processo e com lacunas, pretende nortear uma análise
mais profunda do tema, tendo em vista uma futura tese de doutoramento.
Portanto, a discussão não se esgota aqui, deseja-se que tantos outros
trabalhos sejam escritos e disponibilizados para as pesquisas na área.

Referências

ABIB, Pedro. Conversas de Capoeira. Salvador: EDUFBA, 2015.

APPIAH, Kwame Anthony. Cosmopolitismos. Nova York: NYU Press, 2017.

CONRADO, Amélia. Capoeira angola e dança afro: contribuições para uma


política de educação multicultural na Bahia. (Tese de doutorado). Salvador:
UFBA, 2006.
COLL, César. O construtivismo na sala de aula. São Paulo: Ática, 2009.

336
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

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______. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa.


São Paulo: Paz e Terra, 2004.

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2015.

GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 6.ed. São Paulo:
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KASTRUP, V. Aprendizagem, Arte e Invenção. Psicologia em Estudo.
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______. Laban e o espaço biocultural. In: ENCONTRO LABAN, 2008, Rio de


Janeiro. Anais… Rio de Janeiro, 2008.
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______. Dicionário Laban. São Paulo: Annablume, 2005.

REGO, Waldeloir. Capoeira angola. Salvador: Itapuã, 1968

337
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: a ciência, o


direito e a política na transição paradigmática. São Paulo: Cortez, 2011.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a


emancipação social. São Paulo: Boitempo, 2007.

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Salvador: EDUFBA, 2009.

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SILVA, Eusébio Lôbo. O corpo na capoeira: introdução ao estudo do corpo na


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em Paulo Freire: glossário. 3.ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Mack
Pesquisa – Fundo Mackenzie de Pesquisa, 2009.

338
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

GÊNERO, "RAÇA" E CLASSE SE ENCONTRAM NA FESTA:


OS SABERES DO MOVIMENTO HIP HOP E DAS DANÇAS URBANAS

Luciana Monnerat (UFRJ)


Luisa Marinho (NYU)
Sérgio Pereira Andrade (orientador/ UFRJ)

Introdução

A Groove Party é uma festa, um multiverso de linguagens e expressões


para onde direcionamos nossos olhares nesta pesquisa. Desde novembro de
2009, a Groove acontece quase sempre em bairros do centro da cidade do Rio
de Janeiro: uma região de fácil acesso via transporte público e, por isso, um
ponto de encontro entre as Zonas Sul, Norte e Oeste e, também, os municípios
vizinhos. Os encontros, realizados ao menos em quatro edições anuais, são
oportunidades potentes de interlocução e socialização de praticantes das mais
diversas expressões e movimentos culturais atravessados pelo universo macro
da Cultura Hip Hop.

A concepção, produção e realização da Groove Party é responsabilidade


de uma equipe liderada por Luciana Monnerat. A festa é pensada e vivida há
mais de 10 anos fora da academia e há 1 ano e meio dentro dela, como parte
do projeto da dissertação de mestrado de Luciana no Programa de Pós-
Graduação em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro, orientada
pelo Professor Sérgio Andrade. Desde meados de 2019, Luisa Marinho –
também artista e doutoranda pela New York University – é co-autora em
algumas comunicações que refletem sobre o papel político da festa na
socialização de populações historicamente oprimidas. Falamos – a partir daqui
no plural – sobre dança, festa, racialidade, questões de classe e de gênero,
observando atravessamentos desses temas com a vivência do ambiente da
festa, seja como público frequentador, como equipe de produção ou
pesquisadoras dos campos da performance e da dança.

A festa surgiu a partir de uma demanda de Luciana Monnerat, enquanto


artista da dança, e de muites outres dançarines de danças urbanas da cena

339
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

carioca naquele momento: a necessidade de ter um espaço de segurança para


troca entre amigos e colegas para praticar as diversas modalidades e técnicas
que estávamos aprendendo. Ali, seríamos verdadeiros protagonistas,
performando livremente nossas subjetividades, nossos estilos de andar, falar,
vestir – nossa corporeidade.

Como neste momento, nossa aspiração é refletir sobre como se dá a


transmissão e o agenciamento de memórias e políticas incorporadas da cultura
Hip Hop – e de outras danças e movimentos culturais que são atravessados
por esta linguagem híbrida – no ambiente da Groove Party, vamos apresentar
um breve histórico deste movimento. Ed Piskor, quadrinista, amante e
pesquisador da Cultura Hip Hop, conta a história de maneira precisa e poética
em seu livro Hip Hop Genealogia (2016). A narrativa de Piskor dá
continuidade às histórias contadas pelos velhos do movimento, os OGs ou
Original Generation (Geração Original). Com alguns deles ainda vivos, tivemos
oportunidades de escutar e aprender algumas dessas histórias pessoalmente,
as quais dividiremos aqui.

Originado em Nova Iorque, cidade onde populações imigrantes se


encontravam em uma intensa troca cultural, o Hip Hop nasce no começo da
década de 1970, no olho do furacão com a cultura das gangues assolando as
periferias da cidade (PISKOR, 2016) e debates sobre o período da escravidão
ressurgindo com vigor nos Estados Unidos137. Era um momento político
delicado para a população local, porém (e também por isso) fértil
artisticamente. Na música, essa potência do momento artístico era sentida na
febre das pistas de dança, no auge da Disco Music, que começava a alcançar
as grandes mídias da época e arrastavam multidões. Nesse contexto de
efervescência e vanguarda, a Cultura Hip Hop se desenhou. A partir da
experiência da sociabilidade, quatro elementos independentes e
interconectados se estabeleceram como os principais modos de expressão do
Hip Hop.

137
Em Mulheres, Raça e Classe (2016), Angela Davis faz um estudo mais aprofundado sobre a
ausência de publicações que tratasse da questão das mulheres escravizadas, e apresenta
algumas das mais importantes obras da época que discorreram sobre período da escravidão
na América do Norte. Cf. DAVIS, 2016.

340
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

O primeiro deles é o grafite, a arte gráfica que consiste na pintura de


fachadas urbanas e equipamentos públicos, que começou como assinatura e
demarcação de territórios de grupos e gangues. Hoje, essas pinturas e
desenhos ocupam espaço no sistema institucional e comercial das artes
visuais, produzindo interferências determinantes na história da arte, como é o
caso de Jean-Michel Basquiat (Nova York, 1960 – Nova York, 1988), atraindo,
assim, mercados e atenções tradicionalmente voltados para formas e
conteúdos normativos e aburguesados.

O segundo elemento, é a expressão vocal do MC ou Mestre de


Cerimônia. Inicialmente, este ocupava um lugar próximo ao de animador de
festa ou apresentador das atrações, mantendo o público enérgico e
participativo nas festas que deram origem à cultura (PISKOR, 2016). Com o
desenvolvimento da atividade, um número cada vez maior de MCs articulam a
poesia falada e o canto com as bases instrumentais; é o nascimento do Rap,
Rhythm and Poetry ou Ritmo e Poesia. Diversos/as/es MCs hoje constroem
espaço para narrar as mazelas sociais se valendo de construção sofisticada
de modos poéticos, como é o exemplo do rapper e compositor Mano Brown
(São Paulo, 1970). Brown é, hoje em dia, uma importante voz ativa no campo
progressista do pensamento de esquerda.138

O terceiro elemento que compõe o Hip Hop, é o DJ ou Disco Jockey, a


grande estrela do movimento. Ele é o responsável pela criação da trilha sonora
e muitas vezes pela liderança das crews (grupos) que realizavam as festas ou
eram atrações nos clubes noturnos. Executando praticamente um papel de
direção de cena nas pistas de dança, o DJ conduz a movimentação e as
danças produzidas pelos corpos ao arranhar discos, selecionar, mixar e
produzir as músicas que se tornaram a principal linguagem da Cultura.

O quarto elemento é a dança, mais especificamente o breaking, que


ganha esse nome por acontecer no breakdown da música, momento de looping
da batida mais marcada (PISKOR, 2016). O breaking possui fortes influências

138
Nordeste, Diário do. “Em comício no Rio, Mano Brown critica PT e é defendido por Chico e
Caetano.” 2018. (5m27s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ojQ0QuYDT9Q>.
Acesso em: 27 set. 2020.

341
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

de artes marciais como kung fu e capoeira, além de outras danças sociais da


era Funk Soul da música. Entram na composição da dança, os power moves
(movimentações de força e impacto no chão e acrobacias aéreas), os
footworks (trabalhos de perna mesclados com movimentações rápidas no
chão) e as danças “em pé”, os top rocks e up rocks, com gestual que remete a
brigas e lutas.

Historicamente, as expressões artísticas das diferentes linguagens que


compõem a Cultura Hip Hop, principalmente os elementos música e dança, se
desenvolvem essencialmente em ambientes de festa (PISKOR, 2016).
Transpassando limites geográficos, alcançando populações periféricas em
vários países e a grande mídia, o Hip Hop movimenta diversas linguagens
artísticas em aliança, unidas através da música. A festa é um lugar para a livre
expressão e para a formação de alianças de pessoas que, em sua maioria
racializadas e periféricas, encontram possibilidades de praticar suas
investigações no campo das danças urbanas139 em um ambiente de lazer e
sociabilidade. Um espaço, portanto, onde socializamos, estudamos nossas
técnicas de dança, além de absorver e transmitir estes conhecimentos.

Os movimentos e práticas que compõem a festa honram suas origens


afro-diaspóricas, urbanas e dissidentes, entendendo a festa como espaço de
pensamento incorporado e de fazer sócio-político. A força cultural que a festa
produz em nós, negras e negros, latinas e latinos, fortalece a autoestima e a
(re)construção das nossas subjetividades a partir de um pensamento de
descolonização. Pensamento este que, segundo Grada Kilomba, se refere a
“desfazer do colonialismo. Politicamente, o termo descreve a conquista da
autonomia por parte daquelas/es que foram colonizadas/os e, portanto, envolve
a realização da independência e da autonomia.” (KILOMBA, 2019, p.224). A
autora ainda explica que:

A ideia de descolonização pode ser facilmente aplicada no contexto


do racismo, porque o racismo cotidiano estabelece uma dinâmica
semelhante ao próprio colonialismo: uma pessoa é olhada, lhe é
dirigida a palavra, ela é agredida, ferida e finalmente encarcerada em
fantasias brancas do que ela deveria ser. Para traduzir esses cinco

139
Dedicamos alguns parágrafos mais à frente no texto para uma breve reflexão sobre a nossa
escolha no uso deste termo.

342
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

momentos em linguagem colonialista militarista: a pessoa é


descoberta, invadida, atacada, subjugada e ocupada (idem).

Assim, em espaços de celebração e protagonismo negros como o da


Groove Party, a população negra desenvolve mecanismos de aliança, refúgio,
de escape e de resiliência conquistando sua autonomia. O Hip Hop assume
papel de destaque nessa conquista, como um dos principais movimentos
culturais afro-diaspóricos do mundo. Tais ações são imprescindíveis frente à
persistência da máquina necropolítica, conceito criado por Mbembe (2018) que
se refere ao político que exerce, por meio da guerra, o direito de matar sobre a
sociedade. Essa chaga colonial estrutura as sociedades contemporâneas e
são, como ensina Cedric Robinson (2000), fundamentadas por um capitalismo
que está sendo constantemente orientado pela força material das “direções
raciais".

Na Groove Party, recebemos o Hip Hop como nossa herança – uma


ferramenta para nos mantermos vivas/es/os – entendendo que as ações
estético políticas que performam o protagonismo da negritude transpassam as
fronteiras nacionais e sua potência aumenta quando atravessada pela
realidade social brasileira. Na reunião de múltiplos estilos de danças como o
Breaking, Hip Hop, House, Popping, Voguing, Waacking, Dancehall etc.,
populações subalternizadas performam comunalidade.

Em sua pesquisa de mestrado em dança, Luciana Monnerat tem


investigado a performance comunal da Groove Party utilizando ferramentas
críticas transdisciplinares para fortalecer esse movimento que resiste há dez
anos com a dança e a festa. A pesquisa em andamento se alinha àquilo que
Grada Kilomba (2019) nos diz sobre a tarefa da pesquisadora descolonial de
dar um enterro apropriado aos fantasmas dos traumas da violência gerada pelo
racismo: “(...) uma associação fascinante: nossa história nos assombra porque
foi enterrada indevidamente. Escrever é, nesse sentido, uma maneira de
ressuscitar uma experiência coletiva traumática e enterrá-la adequadamente”.
(KILOMBA, 2019, p. 223-224). Entretanto, desde a vivência na Groove,
identificamos que esses traumas não foram gerados apenas pelo racismo, mas
também por machismo e lgbtqfobia. São violências que assombram as

343
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

populações em precariedade, “situação politicamente induzida na qual


determinadas populações sofrem as consequências da deterioração de redes
de apoio sociais e econômicas mais do que outras, e ficam diferencialmente
expostas ao dano, à violência e à morte” (BUTLER, 2018, p. 40).

Na festa, reconhecemo-nos e reconstruímos nossa autoestima como


sujeitos racializados e estereotipados. É um processo de empoderamento que
se dá de maneira coletiva, como explicado por Berth:

Quando assumimos que estamos dando poder, em verdade, estamos


falando na condução articulada de indivíduos e grupos por diversos
estágios de autoafirmação, autovalorização, autorreconhecimento e
autoconhecimento de si mesmo e de suas mais variadas habilidades
humanas, de sua história, principalmente, um entendimento sobre a
sua condição social e política e, por sua vez, um estado psicológico
perceptivo do que se passa ao seu redor. (BERTH, 2018, p.14)

A Groove Party uma festa com protagonismos diversos, o que cria uma
sensação de conforto e segurança para desejos de libertação, subjetividades e
performances. Entendemos que é essencial olhar para a produção de encontro
como um recurso indispensável às lutas das existências subalternizadas e
precarizadas. Como observa Butler:

Podemos encarar essas manifestações de massa como uma rejeição


coletiva da precariedade induzida social e economicamente. Mais do
que isso, entretanto, o que vemos quando os corpos se reúnem em
assembleias nas ruas, praças ou em outros locais públicos é o
exercício – que se pode chamar de performativo – do direito de
aparecer, uma demanda corporal por um conjunto de vidas mais
vivíveis. (BUTLER, 2018, p.31).

Nesta passagem, a autora refere-se a atos políticos em forma de


manifestações de massa em espaços públicos. Entretanto, se pensarmos na
festa como uma assembleia que une esses corpos subalternizados no seu
cotidiano em uma celebração de suas vidas, a Groove também pode se tornar
um exercício performativo do direito de aparecer em assembléia, dando
visibilidade às questões políticas e sociais que assombram essas populações.
Promovemos a socialização de corpos dissidentes, a troca de informação
horizontalizada e a performance de liberação dos modos de subjetivação que
reverberam lógicas de brutalidade do colonialismo.

Experienciamos a dança na festa como um acontecimento político que


abre frestas nas estruturas de poder. Aprendemos que é em movimento que os

344
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

ensinamentos de nossos ancestrais permanecem vivos. Nesse sentido, teorizar


sobre a Groove Party nos lança para questões como: como performar dentro
do ambiente acadêmico um olhar atento aos experimentos coletivos que
ensaiamos na festa? E, a partir da experiência de estarmos juntas(es) em
movimento negro e em festa, como contribuir no debate crítico sobre raça,
classe e gênero?

Como observado por Denise Ferreira da Silva (2007), precisamos


apontar aqui que arquivos foram construídos pelas mãos opressoras, são
registros da configuração ideológica do poder que sempre operou o
apagamento de subjetividades consideradas para fora ou, para além do
humano. Os eixos de dominação que persistem na sociedade contemporânea,
nos fazem entender que existe a demanda para a criação de um contra-arquivo
que faça uma tessitura da memória da Groove Party como um processo de
aquilombamento. Saidiya Hartman (2008), na sua aproximação com os
arquivos da escravidão, nos oferece ferramentas metodológicas potentes para
uma fabulação crítica que aponta a uma elaboração discursiva contra-histórica.
Estas pensadoras usam o potencial sensível para se aproximarem desses
materiais traumáticos, fabulando passados para pessoas oprimidas pela
brutalidade colonial. Se olhar para o passado é trabalhar com os fragmentos
criados pelos instrumentos de poder, registrar cuidadosamente a Groove Party,
teorizar sobre ela, é uma prática de estarmos juntas no agora e deixarmos
gravada a nossa celebração no presente, desejando que a imagem, as
palavras, os movimentos, a sonoridade de pessoas negras, vivas, sejam
sementes para a especulação de futuros. Essa proposição nos leva a inferir
que a dança na festa pode ser compreendida como uma episteme, que dita o
ritmo da escrita e exercita, afetivamente, o ato de dividir com quem lê nosso
trabalho.

Atentas à produção crítica interdisciplinar, nosso estudo analisa o


espaço da festa e como a realização deste evento possibilita a articulação de
performatividades revolucionárias. Quando imaginamos maneiras de sermos
felizes e de valorizarmos as tradições que habitam os movimentos performados
por corpos historicamente violentados, o que estamos formulando são
processos de fuga e a construção de novos modos de fazer mundo. Nosso

345
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

estudo parte do viver a Groove. Portanto, buscamos entender quais as


potências que os saberes do corpo em movimento na festa oferecem ao
imaginário político em diálogo com os circuitos de debates teóricos.
Construímos o diálogo com a teoria a partir de memórias gravadas ou
produzidos em dez anos de realização de Groove Party, sob uma ótica
autoetnográfica (SANTOS e BIANCALANA, 2017) para ressaltar a importância
da festa na construção da sensação de segurança provida pelo fortalecimento
dos laços coletivos entre essas populações das quais o público da festa faz
parte.

Considerando as possibilidades da conversa se energizar quando


trazida ao campo teórico e para um estudo sistemático e atento das nossas
especificidades, acreditamos que será necessária uma breve apresentação do
debate sobre o termo danças urbanas. É um termo que pode se referir a uma
infinidade de práticas de dança, e aqui nós o utilizamos como termo guarda-
chuva para nos referirmos a determinadas danças, citadas anteriormente, que
possuem atravessamentos com a cultura Hip Hop. Portanto, desenvolvemos a
seguir, uma breve explicação de discussões acerca do termo.

Danças urbanas, teorias tecendo ensaios

Na sua origem, as festas de Hip Hop aconteciam na porosidade entre a


pista de dança e a rua, com produções como alguns eventos do DJ Kool Herc
em espaços fechados e outros do DJ Grandmaster Flash nas ruas (PISKOR,
2016). A presença no espaço público e a formação de uma linguagem de
movimento que responda ao molde urbano, tem um potencial político,
sobretudo quando associamos a ideia de dançar na rua com a prática de
protestos em espaços públicos, tal como pensado por Judith Butler:

(...) quando corpos se unem como o fazem para expressar sua


indignação e para representar sua existência plural no espaço
público, eles também estão fazendo exigências mais abrangentes:
estão reivindicando reconhecimento e valorização, estão exercitando
o direito de aparecer, de exercitar a liberdade, e estão reivindicando
uma vida que possa ser vivida (BUTLER, 2018, p.33).

346
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Mais especificamente, o caso do termo “danças urbanas” explicita o que


acontece com os conceitos quando manipulados por pessoas que os
experienciam no seu cotidiano. Inicialmente essas danças eram chamadas de
“dança de rua”, uma tradução literal do termo Street Dance, muito utilizado
pelos OGs dessas danças. A partir de meados da década de 2000, o termo
danças urbanas começou a ganhar força e a ser incorporado no Brasil,
pelas/os/es praticantes de diversos estilos de danças de origem negra e, em
sua maioria, estadunidenses. Frank Ejara (2011), um dos precursores
brasileiros das Funk Styles – danças com origem na era Funk Soul da música –
explicou um pouco sobre como a comunidade da dança incorporou o termo:

Eu sempre achei, e por experiência própria, que o termo “dança de


rua” era pejorativo. A tradução literal de "Street Dance" nunca foi bem
vinda pra quem não faz parte dela. Eu como diretor de uma Cia.
profissional de dança, sei bem o que já ouvi de produtores e
programadores sobre o termo “dança de rua” para definir as danças
que fazemos. Muitos acham de imediato que somos mendigos,
crianças abandonadas, sem teto e todo tipo de preconceito embutido
que vem de brinde com a palavra “rua”, pois é cultural e é assim que
140
o povo encara a palavra(EJARA, 2011).

O termo guarda-chuva – que acolhe práticas como Hip Hop, House,


Popping, Waacking, Voguing, Dancehall e outros - foi a força política que
faltava para essa comunidade se firmar no mercado de trabalho da dança,
mantendo uma proximidade com a tradução do termo original street dance.

Em 2020 houve uma segunda onda de manifestações do movimento


#BlackLivesMatter, provocada pela viralização da filmagem do assassinato de
George Floyd, um homem negro de 46 anos, por um policial branco. 141 Com
isso, uma discussão antiga em torno de rótulos da indústria fonográfica ganhou
novamente visibilidade na internet com a #MTVRacista, contextando categorias
de premiações onde apenas artistas negros concorrem, como R&B e Urban

140
EJARA, Frank. O novo termo “danças urbanas”. Blogspot, 25/10/2011. Disponível em:
<https://frankejara.blogspot.com/2011/10/o-novo-termo-dancas-urbanas.html> Acesso
em 20 set. 2020
141
MILARÉ, Gabriel. Caso George Floyd: o estopim do #BlackLivesMatter. R7, Blog do QG,
08/06/2020. Disponível em:<https://blog.enem.com.br/caso-george-floyd-o-estopim-do-
blacklivesmatter/> Acesso em 27 set. 2020.

347
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Music, de modo em que apenas artistas brancos concorrecem nas principais


categorias.142

Este debate trouxe novamente a atenção ao histórico do uso do termo


urban e todas as implicações racistas que estão associadas à expressão no
contexto dos Estados Unidos. Naturalmente, as discussões alcançaram a
comunidade das danças urbanas pois, como dito anteriormente, é um termo
guarda-chuva que se refere a danças de origem negra e estadunidense.143
Entretanto, após refletir sobre origem do termo no contexto do Brasil, sua
incorporação pelas/os/es próprias/os/es fazedores da Cultura, inclusive com
motivações políticas para o ganho de visibilidade que permitiu a entrada
desses corpos dissidentes no mercado de trabalho, neste artigo, decidimos,
como política de afirmação, manter o uso do termo. É importante ressaltar
também que a autora Luciana Monnerat, que desenvolve esta investigação no
Mestrado em Dança da UFRJ, além de mulher negra, vivencia no seu cotidiano
as práticas das danças urbanas como parte integrante da comunidade de
dançarinos/as/es de Hip Hop do Rio de Janeiro.

Atentas à linguagem e suas implicações políticas, uma importante


questão deste estudo é qual seria o modo de trazer as estratégias anticoloniais
que tramamos na festa para a escrita crítica. Como multiplicar nossa vida a
partir da tessitura das memórias? Aprendendo com Conceição Evaristo, nossa
pesquisa em arte embola a escrita com o movimento dos corpos para
chegarmos, não a um entendimento, mas a uma abertura. A escritora, uma das
mais importantes do Brasil vivas hoje, ao explicar seu método de escrita
salienta possibilidades criativas para aquelas que estão fazendo o trabalho de
tecer memórias em um contexto de perseguição e apagamento. Evaristo
sugere o exercício da escrevivência, escrita que embola a vida e a narrativa

142
REDAÇÃO. Após VMA, redes sociais passam a acusar MTV de racista; saiba por quê.
Catraca Livre, Entretenimento, 31/08/2020. Disponível em:
<https://catracalivre.com.br/entretenimento/apos-vma-redes-sociais-passam-a-acusar-mtv-de-
racista-saiba-por-que/ > Acesso em 27 set. 2020.
143
MILLAN, Camilla. Como categorias ‘urbanas’ criam barreiras para músicas e danças negras
e perpetuam o racismo. Rolling Stone, 29/06/2020. Disponível em:
<https://rollingstone.uol.com.br/noticia/como-categorias-urbanas-criam-barreiras-para-as-
musicas-e-dancas-negras-e-perpetuam-o-racismo/>. Acesso em 20 set. 2020.

348
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ficcional, uma coleção de fragmentos que se aglutinam fundamentalmente ao


redor das experiências compartilhadas da coletividade subjugada pela
brutalidade dos sistemas de poder.

Para expandir a nossa prática em produzir constantemente registros


imagéticos e audiovisuais dos eventos, assim como na filmagem de uma série
de pílulas em vídeo que remetem conceitualmente com o tema de alguma
edição da festa, entramos no campo da discussão crítica sobre a festa.
Procuramos um método de escrita que seja uma continuação em palavras do
trabalho que é desenvolvido na Groove Party. Há, na escrevivência um poder
fazedor de mundo, e nos interessa pensar a possibilidade de escrever sobre a
experiência do evento para chegar a este modo performativo da escrita,
seguindo a definição de Butler em seu pensamento sobre Austin, que aponta
que “a performatividade caracteriza primeiro, e acima de tudo, aquela
característica dos enunciados linguísticos que, no momento da enunciação, faz
alguma coisa acontecer ou traz algum fenômeno à existência” (BUTLER, 2018,
p.35).

Quando imaginamos maneiras de sermos felizes e de valorizarmos as


tradições que habitam os movimentos performados por corpos historicamente
violentados, o que estamos formulando são processos de fuga e a construção
de novos modos de imaginar futuros. Se “a performatividade é um modo de
nomear um poder que a linguagem tem de produzir uma nova situação ou de
acionar um conjunto de efeitos” (BUTLER, 2018, p.35), em festa, vivemos a
nossa incansável e dinâmica revolução, que também acontece no campo da
escrita. A seção seguinte deste texto se dedica a um experimento autoficcional,
um ensaio. Um engajamento sensorial, no contato entre memória, dança e
escrita, a partir da coleção de memórias sensíveis acumuladas em todos esses
anos de prática. O conceito de ensaio que aponta caminhos para esta escrita é
a de Stephano Harney e Fred Moten, no seu Undercommons:

A noção de ensaio – que pode ser estar em uma espécie de oficina,


tocar em uma banda ou em uma jam session, ou velhos sentados em
uma varanda, ou pessoas trabalhando juntas em uma fábrica -
existem esses vários modos de atividade...Fazer essas coisas é estar
envolvido em uma espécie de prática intelectual comum. O que é
importante é reconhecer é este o caso - porque esse reconhecimento

349
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

permite que você acesse um todo, variados e alternativos modos de


construir uma história do pensamento (HARNEY e MOTEN, 2013).

A festa

Em uma pequena boate na Lapa, centro da boemia da cidade do Rio


de Janeiro, a dançarina recebe um abraço de boas vindas. Ela sobe dois
lances de escada, alcança a pista de dança e sua visão embaça, enquanto
seus olhos se acostumam à luz baixa e colorida. O som é tão alto que, quando
se aproxima das caixas de som, ela sente o vento produzido pelos graves que
arrepiam os pelos de seu braço. No palco, único lugar onde a visibilidade é
melhor pois é para onde os refletores se voltam, DJ e MC performam gestos
rápidos e harmoniosos entre si.

Na pista, o público desenha enérgica e virtuosamente a música pelo


espaço em forma de dança. É novembro de 2019, e a edição comemora dez
anos de existência da Groove Party. Com Hip Hop, Rap, Funksoul, House,
Dancehall, Reggae e diversos outros gêneros musicais negros, entre artistas
nacionais e internacionais, os e as DJs que mais marcaram essa história criam
a trilha sonora da noite. Num olhar mais atento, é possível perceber que existe
uma conversa entre DJ e público. O segundo oferece sua demonstração de
agrado mais sincera, através da intensidade com que os corpos se
movimentam e se organizam em rodas. Quem ocupa o centro da roda com
seus giros em eixos deslocados que dão a sensação de um tombo eminente,
saltos acrobáticos em espaços minúsculos, poses construídas com
movimentos explosivos, torções e contorções que desequilibram e deslizam
sobre o chão, arranca gritos e ovações pela criatividade, imprevisibilidade e até
mesmo dificuldade. Em uma mixagem perfeita, o DJ no comando dos toca-
discos faz a transição para a música seguinte, quase imperceptível a ouvidos
mais distraídos, e vários olhos se fecham e braços se levantam num gesto de
reconhecimento e agradecimento pela música que ainda nem começou direito.
Num outro canto da pista, é possível encontrar pequenos grupos que dançam
em uma sincronia espontânea, alternando as lideranças de quem vai puxar o
próximo passinho. Esses, são repetidos aproximadamente durante quatro

350
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oitavas da música por quem segue o grupo, com a tranquilidade de quem já


conhece a movimentação ou aprende instantaneamente só por observar.

A dançarina se coloca pelas beiradas de uma roda, e um sorriso


se abre sem que ela nem perceba. A DJ acaba de colocar pra tocar a música
Vital (2019) do rapper Emicida e um dançarino, negro com uns vinte e poucos
anos e dread locks no cabelo, ocupa o espaço central do círculo de pessoas.

Xô falar

A gente é uma família agora

Do nosso jeito, 'tá ligado?

Quem define é o cuidado

Tenho tanto irmão de outras mãe que tão junto nessa trilha

O sangue é pro corpo o que o amor é para uma família

Emicida, Vital, 2019.

A energia de sua dança extravasa seu corpo. Enquanto ele dança e


parece cantar a música com o corpo, a DJ corta o áudio em pequenos pedaços
do refrão, ecoando as vozes de irmãs e irmãos que cantam juntamente com
aquela dança e aquela música, como se o próprio Emicida estivesse ali no
centro da roda.

Ela foi chamada de sistah. O termo que o jovem usou indica uma/um
ancestral comum: a irmã compartilha a mesma ascendência que o
irmão que a aborda como tal. Ambos têm a mesma mãe e/ou pai, são
parentes e membras/os da mesma unidade famílias. Essa
terminologia, comum entre africanas/os e africanas/os da diáspora,
recorda a existência de uma família imaginária, uma família onde
todas/os as/os integrantes são irmãs e irmãos, crianças do mesmo
continente-mãe – a África (KILOMBA, 2019, p. 210).

Na convivência social do Hip Hop e do Rap é assim. Nos chamamos de


“irmã”/”mana”, “irmão”/”mano” ou “mona” (nas categorias não binárias de
gênero). E Kilomba ainda nos lembra que “(...) a língua, por mais poética que
possa ser, tem também uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar
relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar
de uma identidade.” (ibidem, p. 14). A autora, nessa passagem, se refere às
questões problemáticas que emergiram com a tradução do seu livro Memórias

351
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

da Plantação para a língua portuguesa que , “revelam uma profunda falta de


reflexão e teorização da história e herança coloniais e patriarcais, tão presentes
na língua portuguesa” (idem). Já no Hip Hop, um movimento que nasce da
desobediência ao sistema de opressão racial e que tema palavra tão presente
no Rap, a força política que criamos ao nos chamarmos de “irmãos” e “irmãs”,
constrói outras relações que ainda que identitárias não são de poder, de
maneira a subverter o significado de “família” dentro da sociedade branca e
hegemônica. Essa subversão, é apenas uma das ações que podemos observar
na socialização da festa, que une esses corpos em comunalidade a partir de
uma marcação física que racializa e exclui: a cor da pele.

Para nós, só é possível falar da raça (ou do racismo) numa linguagem


fatalmente imperfeita, dúbia, diria até inadequada. Por ora, bastará
dizer que é uma forma de representação primária. Incapaz de
distinguir entre o externo e o interno, os invólucros e os conteúdos,
ela remete, em primeira instância, aos simulacros de superfície. Vista
em profundidade, a raça é ademais um complexo perverso, gerador
de temores e tormentos, de perturbações do pensamento e de terror,
mas sobretudo de infinitos sofrimentos e, eventualmente, de
catástrofes. Em sua dimensão fantasmagórica, é uma figura da
neurose fóbica, obsessiva e, por vezes, histérica. De resto, consiste
naquilo que se consola odiando, manejando o terror, praticando o
alterocídio, isto é, constituindo o outro não como semelhante a si
mesmo, mas como objeto propriamente ameaçador, do qual é preciso
se proteger, desfazer, ou ao qual caberia simplesmente destruir, na
impossibilidade de assegurar seu controle total (BALDWIN apud
MBEMBE, 2018 p. 27).

Essa representação primária criada pela racialização, geradora de tantas


violências sociais, da qual o Baldwin se refere, é deixada de fora do ambiente
de sociabilidade de uma festa Hip Hop. Na Groove, há um protagonismo negro
criado pela prática das danças urbanas que celebram as estéticas da negritude
na festa, inclusive com suas estereotipias.

Considerando que os negros sempre foram fixados e estereotipados


pela visão racializada, talvez tenha sido tentador recusar as emoções
complexas associadas ao “olhar”. No entanto, essa estratégia joga
com o “olhar” e tenta torná-lo “estranho” por meio de sua própria
atenção - isto é, tenta desfamiliarizá-lo e, então, tornar explícito o que
normalmente está escondido, suas dimensões eróticas (HALL, 2016,
p.219).

Hall fala dessa estratégia utilizada de apropriar-se das estereotipias


subvertendo o fetichismo por trás destas: “(...) em vez de recusar o poder
deslocado e o perigo do “fetichismo”, esta estratégia tenta usar os desejos e as
ambivalências despertados, inevitavelmente, pelos tropos do fetichismo.”

352
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

(idem). As roupas, os movimentos dos quadris, as danças em casais


(normativos ou não) que erotizam abertamente, são as realidades vividas na
festa que melhor representam a estratégia explicada pelo autor.

(...)

Continuando a caminhar pela pista de dança, com um copo de bebida


na mão, a dançarina encontra uma amiga, mulher preta e transsexual um
pouco mais nova que ela, que ao vê-la abre os braços e o sorriso gritando:
“MADRINHA!”. Elas dançam juntas antes de se abraçarem. Junto com sua
“afilhada” estavam es componentes de sua House de Vogue. Dentro da Cultura
Ballroom – criada por mulheres transexuais e travestis negras das periferias da
cidade de Nova Iorque – as Houses são como verdadeiras famílias, que
dançam e performam juntes, se cuidam e participam de festas (as Ballrooms)
com competições de desfiles e da dança vogue.

Es dançarines de vogue são a comunidade que reúne o maior número


de pessoas LGBTQIA+ dentro do cosmo das danças urbanas, sendo assim, a
grande representação da subversão às normas de gênero da sociedade branca
hegemônica. Naquela mesma roda, na Groove, onde dançava a família de sua
afilhada, um grupo de bboys (break boys, dançarinos de breaking) dividia o
espaço tão disputado do centro do círculo apertado de pessoas. Alternavam as
entradas entre desfiles e top rocks, spins seguidos de deeps (movimentações
típicas do voguing) e power moves de breaking. Eram gestos com as mãos
próximas ao rosto para mostrar elegância e beleza nos corpos que dançavam
vogue, versus mãos que seguravam pélvis e desenrolavam falos imaginários e
gigantescos para demonstrar a virilidade dos bboys. Ambas as danças se
apropriam de estereotipias em seu gestual para composição dos passos: o
vogue de uma representação exagerada de tudo que seria feminino e o
breaking, da mesma forma, de tudo que seria viril e masculino. Esse encontro,
de danças e subjetividades tão diferentes e opostas, nos faz pensar como a
pista de dança produz alianças entre os corpos, tal como Butler aponta em sua
teoria da performatividade de assembléias, da construção de alianças entre

(...) várias minorias ou populações consideradas descartáveis; mais


especificamente, estou preocupada com a maneira pela qual a
precariedade – este termo médio e, de algumas formas, esse termo

353
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

mediador – pode operar, ou está operando, como um lugar de aliança


entre grupos de pessoas que de outro modo não teriam muito em
comum e entre os quais algumas vezes existe até mesmo
desconfiança e antagonismo (BUTLER, 2018, p.34).

E depois de toda a roda, todo o ensaio, quando os primeiros raios de sol


começaram a alaranjar o céu da Lapa, o bboy e a dançarina de vogue
encontram seu caminho pelas ruas. Desviando-se de bêbados, das filas de táxi
e dos cascos de cerveja jogados na calçada, caminham lado a lado em direção
ao ponto de ônibus da Central do Brasil. Corpo dormente. Peito aberto. Sorriso
no rosto. Mãos dadas.

Referências

BERTH, Joice. O que é Empoderamento? Belo Horizonte: Editora


Letramento, 2018.
BUTLER, Judith. Corpos em Aliança e a Política das Ruas: notas para uma
teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Trad. por Heci Regina Candiani.
São Paulo: Boitempo, 2016. Tradução de: Women, Race & Class.
HALL, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro: Apicuri; PUC Rio,
2016. p. 139-182.
HARNEY, Stefano e MOTEN, Fred. Undercommons: Fugitive Planning &
Black Study. Creative Commons, Creativecommons.com, 2013.
HARTMAN, Saidiya. Venus in Two Acts. Small Axe, Number 26 (Volume 12,
Number 2), June 2008, pp. 1-14 (Article)
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios e racismo cotidiano.
Trad. por Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 248p.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.
______. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2018.
MOTEN, Fred. In the Break: The aesthetics of Black Radical Tradition.
Mineápolis: University of Minnesota Press, 2003.
PISKOR, Ed. Hip Hop Genealogia, Trad. por Mateus Potumati. São Paulo:
Veneta, 2016, 128p. Trad. de Hip Hop Family Tree.
SANTOS, Camila M. dos, BIANCALANA, Gisela Reis. Autoetnografia: um
caminho metodológico para a pesquisa em artes performativas. Metodologias
de Pesquisa no Acompanhamento de Processos Cênicos. São Paulo, USP, v.
7,n. 2, 2017. p. 53-63.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

SILVA, Denise Ferreira da. Towards a Global Idea of Race. University of


Minnesota Press, Mineápolis, 2007.

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

EU PRETO NA SOCIEDADE BAIANA FAZENDO CABRIOLE


Lindete Souza de Jesus (UFBA)

Quando se toma conhecimento de uma história da vida real, onde um


jovem negro, nordestino, soteropolitano, cabelo crespo, baixa renda e de
sobrenome Jesus, que escolhe ser bailarino clássico e como resposta a seu
sonho, ouve da diretora de uma escola de ballet renomada da sua cidade que
pessoas como ele não podem fazer ballet clássico (pois ele não é “de família”,
tem aparência de vendedor de limão na feira. É para a feira que ele tem que ir,
e não se misturar com “meninas de família”), aí então se tem a certeza de que
precisamos aprofundar sobre o lugar do corpo negro e sua representação
política dentro de uma sociedade racista, com uma pesquisa que leve à
denúncia e reflexão sobre o racismo estrutural.

Ser negro/negra e tentar entrar e fazer parte de um ambiente de


dominação branca é uma grande ousadia e pode ser um passaporte para a
frustração dos seus sonhos. A depender dos contextos encontrados, os
sujeitos se deparam com a negação das escolhas, o questionamento de seu
direito de existir, revivendo o período escravocrata de outrora.

Neste contexto, a autora discorre sobre esse momento de negação do


corpo negro de um bailarino soteropolitano, problematizando as questões
raciais, analisando a estruturação do racismo através de teóricos do tema que
ela convoca para lhe ajudar a pensar, tais como: Carneiro (2011), Grada
(2019), Adesky (2006) e Almeida (2019).

Ao ouvir de quem não sofre e de quem acha que é exagero falar que
tudo trata-se de racismo, surge a pergunta: O que é racismo? Sueli Carneiro
(2011) responde assim:

A ciência vem revelando a falácia do conceito de raça do ponto de


vista biológico. Esta constatação cientifica é utilizada para minar as
reivindicações de políticas especificas para grupos discriminados com
base na raça ou na cor da pele. As novas pesquisas destroem as
bases do racialismo do século XIX, que consagrou a superioridade
racial dos brancos em relação a outros grupos humanos, justificando
opressões e privilégios, mas elas ainda não tiveram impacto sobre as
diversas manifestações de racismo em ascensão no mundo inteiro e
sobre a persistente reprodução de desigualdades que ele gera, o que

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

reafirma o caráter político do conceito de raça, a sua permanência e


atualidade, a despeito de ser insustentável do ponto de vista
biológico. (Sueli carneiro, 2011;69)

Quando o aspirante a bailarino é impedido de seguir para a sua aula


diária de ballet, pelo tom autoritário da diretora da escola, que barra a sua
entrada com ofensas ao seu fenótipo, ali se encontra instaurado/instalado um
sentimento não de antipatia imediata por alguém, mas o sentimento racista
aliado ao poder sobre o outro.

Outro quem?

Não interessava naquele momento, nome, sobrenome, aquela carne


negra era barata demais para estar ali, e mesmo assim, a raça negra, o rapaz
negro disse presente com todas as letras e sua aparência: cabelo crespo,
lábios carnudos, bunda empinada, vestes simples e o desejo claro e dito
firmemente: eu vou ser bailarino clássico.

Fora!

Negado o direito de existir.

Dona Francisca Silva, D. Chica, minha sábia avó, dizia que fazer ouvido
de mercador144 era a melhor saída para quem não quer dar ouvidos ao
outro/outra. E foi essa a melhor saída do ator em questão: não ouvir, seguir em
frente com suas lágrimas nos olhos, mas seguir fazendo suas aulas de ballet.

Quem autoriza essa senhora a proferir frases tão discriminatórias? Por


que ela se sente tão confortável em menosprezar a capacidade intelectual e
física de uma pessoa? Quem autoriza?

A história da escravidão e suas consequências é o start para as


desigualdades que vivemos até hoje com a discriminação da pessoa do negro,
que determinam as relações sociais e econômicas, não nos permitindo
adentrar os espaços de poder. Repetitivo? Não. Necessário falar. O importante
é ser multiplicador dessa pauta, uma vez que já avançamos, mas parece que
não avançaremos mais.

144
Aquele que não dá importância ao que escutou.

357
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Escrevo a partir de um fato de discriminação racial nos anos 70, mais


precisamente em 1976. E o que mudou?

Hoje, seguranças de um shopping center da cidade do Rio de Janeiro


abordaram com violência, agredindo fisicamente, psicologicamente e
injustamente um rapaz negro que foi ao shopping trocar o relógio que tinha
comprado com seu primeiro salário para presentear o pai. O rapaz era um
cliente, estava em posse da nota fiscal da compra e era semana do dia dos
pais. Estou em agosto de 2020, e o que mudou?

Lembro Conceição Evaristo145, quando diz: Eles combinaram de nos


matar, mas nós combinamos de não morrer. Quando você lê uma frase como
essa, você pensa o quanto se precisa lutar sem descanso, o quanto não
podemos parar de ser muitos e muitas em todas as partes. Já conhecemos a
dor da violência, a dor do luto e a dor dos vários “nãos”; então, precisamos ter
o sim.

Nesses dois casos, do rapaz que queria ser bailarino e do outro que
entrou no shopping para trocar o presente do dia dos pais, essa frase tão forte
e verdadeira de Conceição Evaristo se faz presente.

Luiz Antônio de Jesus amargurou aquelas palavras com toda a


crueldade que só os racistas conhecem e tem capacidade de reunir em um
único parágrafo, sem a mínima culpa, e seguiu em frente sem olhar para trás,
sem denunciar, sem contar para os pais que naquele dia tinha descoberto que
não tinha família e precisava saber exatamente o que significava o pai, a mãe e
as irmãs, que via na mesma casa desde quando nasceu e tinham o mesmo
sobrenome. Como chamaria aquele núcleo de pessoas daquele dia em diante?
Foi dito a ele que ele não tinha família.

O sobrenome de Luiz era tipicamente pobre, sem status


socioeconômico, portanto, aos olhos da diretora da escola, que mal perguntou
o nome dele e muito menos o sobrenome, ela estava diante de um
afrodescendente, pessoa sem herança cultural familiar, fora do seu lugar de

145
Maria da Conceição Evaristo de Brito, escritora, nascida na cidade de Minas Gerais no dia
29 de novembro de 1946. Romancista, contista e poeta. Recebeu o seu Doutorado pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). Suas obras abordam temas sobre raça, gênero e
classe.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

origem. Um rapaz pobre e que, para ela, não tinha família. Scottini (2011),
explica sobre os sobrenomes e diz o seguinte:

O escravo africano e os seus descendentes não tinham sobrenomes


de família. Ou usavam o do grupo étnico do qual eram originários,
como por exemplo, Manoel Mina ou Pedro Angola, ou usavam o
sobrenome do seu senhor, por aquiescência deste. Atribui-se essa
falta à brutalidade com que os africanos eram apresados pelos
captores e traficantes, desfazendo completamente os grupos
familiares. Assim, o escravo negro era um ser sem ancestralidade e
não conseguia situar-se em termos de linhagem. (SCOTTINI, Lucas
Costa, 2011. Pg.6)

Pois bem, o rapaz Luiz fez valer seu distinto e bíblico sobrenome, Jesus,
e a desvalorização e o apagamento pretendidos pela diretora não deram frutos,
pelo contrário, fizeram crescer nele a vontade e a luta diária para ser o melhor.
Reação contraria a de muitas pessoas negras, que adoecem por se sentirem
oprimidos, segregados, humilhados, violentados, estuprados nos seus direitos.

Não foi fácil - o muro era muito alto para a escalada e ultrapassagem. O
ballet na sua estrutura nasceu com os brancos e com eles continuava, e nos
anos 70 eram pouquíssimos homens na dança clássica, e os poucos que
havia, eram brancos. O ballet também era feminino e aí entra a questão de
gênero. Homem e negro. O muro estava cada vez mais alto.

O Brasil foi o último país a abolir a escravidão em 13 de maio de 1888, e


lá se vão mais de cem anos de história, triste história, que quer nos marcar até
hoje. Só que não é mais possível culpar as mentes racistas de hoje com o que
os nossos passaram com a escravidão. Será?

No mesmo instante que escrevo que o passado não pode justificar mais
atitudes de hoje, uma juíza do Paraná diz em sentença que um homem negro
de 42 anos, acusado de furto é criminoso em razão da sua raça. Justifica a
condenação de 14 anos de prisão assim: seguramente integrante de grupo
criminoso, em razão da sua raça. (Jornal Correio da Bahia, 2020).

As pessoas continuam dizendo que exageramos quando apontamos que


isso ou aquilo é racismo, reclamam que tudo agora não pode ser dito ou
praticado, e afirmam se tratar de “mimimi”. Repetem que tudo agora é racismo.

359
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Diante de um fato como esse da sentença da juíza do Paraná, é racismo ou


não? Claro que é.

E a pergunta continua: o que é racismo? Segundo Silvio Almeida, é:

Uma forma sistemática de discriminação, que tem a raça como


fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou
inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para
indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam. (ALMEIDA,
Silvio. 2019. Pg.22)

O olhar inconsciente carrega de qualquer forma uma programação no


cérebro, culturalmente treinada para atitudes e práticas racistas, que a pessoa
não admite que seja, e surge com aquela habitual resposta: “eu até tenho um
parente negro”. Que seja, que tenha, mas intuitivamente o cérebro canaliza
ações diárias de discriminação e preconceito. O inconsciente / consciente faz
uma juíza escrever uma sentença, apoiando-se em um conceito eugenista.
Velha e falsa ciência. Um pensamento incrustado, internalizado, naturalizado
na mente de tantos e tantas.

No caso do rapaz negro que estava indo trocar o presente do dia dos
pais e foi abordado injustamente, por exemplo, ali temos a máquina racista
acionada que identifica: preto no shopping center é suspeito. Mas para a
decepção dos agentes de segurança racistas, aquele corpo negro que
adentrava o estabelecimento comercial também trabalhava no mesmo, porém
sem a farda da empresa para a qual prestava serviço, naquele dia, ele era um
cliente comum e, como tal, aos olhos dos seguranças, era quem deveriam
abordar por suas características.

A leitura que fazem dos nossos corpos é sempre a do faxineiro, do


vendedor de produtos, do porteiro ou segurança de loja. E o rapaz do relógio,
em entrevista a uma tv local, diz que entra e sai do mesmo shopping
diariamente, e nunca o abordaram. A diferença é que é aceitável aos olhos de
quem discrimina o negro trabalhar em algumas profissões, como na construção
e no comercio informal, mas uma vez que aquele mesmo corpo negro volta, e é
cliente, tudo muda. A mente habitualmente racista diz: Não pode ser cliente,
não é possível, só pode ser ladrão. Atingindo dolorosamente o sujeito na sua
psique.

360
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

A psiquiatra Neusa Santos reflete dizendo o seguinte:

A violência racista subtrai do sujeito a possibilidade de explorar e


extrair do pensamento todo o infinito potencial de criatividade, beleza
e prazer que ele é capaz de produzir. O pensamento do sujeito negro
é um pensamento que se auto restringe. Que delimita fronteiras
mesquinhas a sua área de expansão e abrangência, em virtude do
bloqueio pela dor de refletir sobre a própria identidade. (SOUSA,
1983. Pg. 10)

Marcados e marcadas pela cor, os caminhos são dificultados para não


conseguimos estar nos espaços de poder e não conseguirmos mudar as peças
desse jogo cruel. As algemas do racismo que a sociedade brasileira colocou
nas nossas mãos impediam o nosso caminhar, mas espertos que somos,
continuamos para a frente já sabendo qual é o modus operandi, no manter as
hierarquias sociais e raciais. Qual seria a solução ou o começo dela? A
resposta é educação. O caminho a seguir é o da educação. Só vamos vencê-
los, no sentido de igualdade de direitos, pelo víeis da educação. A educação é
um ato político.

Os movimentos sociais começaram uma luta incansável para conseguir


a aprovação das cotas étnico-raciais, e obtiveram resultados. A aprovação foi
unanime no Supremo Tribunal Federal, e no dia 29 de agosto de 2011 foi
sancionada a Lei. 12.711/2011, que reserva vagas em vestibulares, provas e
concursos públicos, destinadas a pessoas de origem indígena, parda ou negra,
e posteriormente, em 2016, a Lei.13.409 altera a anterior para oferecer vagas
também as pessoas com deficiência física.

Negros e negras começam a mudar a cor das universidades, estudantes


em todas as classes e posteriormente, professores, professoras, mestres,
mestras e doutores/doutoras, a aposta na diversidade é assertiva. Somos
muitos, e os números de pretos e pretas e as contribuições na produção de
conhecimento só aumentam em reconhecimento com os títulos acadêmicos e
com a aprovação em concursos. Mesmo assim, as dificuldades ainda são
muitas, pois o mundo acadêmico é um ambiente de brancos e para girar essa
chave e nos admitir, o eurocentrismo base da cultura ocidental moderna se
opõe.

Aqui, lembro o fato acontecido na Universidade Federal do Recôncavo


da Bahia (UFRB), em dezembro de 2019, quando durante a aplicação de uma

361
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

prova na instituição de ensino, na cidade de Cachoeira um aluno branco


negou-se a receber a prova das mãos da professora negra, Isabel Cristina
Ferreira dos Reis, que respondeu à ação dele dizendo não ter nenhuma
doença contagiosa, portanto que ele pegasse a prova. A professora por duas
vezes tentou entregar a prova e o estudante se negou a receber das mãos
dela. Tudo devidamente gravado por celular dos alunos ali presentes, que
afirmaram na ocasião ter presenciado manifestações de preconceito racial
desse mesmo aluno universitário em outros momentos também. O aluno
acusado pelos colegas de racismo respondeu que não pegou a prova das
mãos da professora por questão de energia, e assim preferia pegar da mesa. O
fato foi parar na delegacia, com boletim de ocorrência das duas partes. Mais
tarde, com os dois depoimentos, o delegado concluiu que tudo foi um “mal-
entendido”. (g1.globo.com/ba, 2019).

Ora, tudo leva a crer em crime de racismo por parte do aluno, então por
que o delegado não o condena como tal? Por que essa agressão contra a
professora negra foi resumida em um mal-entendido e pronto?

É necessário haver o descortinamento dessa pauta, para que


consigamos levar adiante essa discussão, lutando, combatendo ferozmente e
vencendo o inimigo número 1 da democracia racial, o racismo. Ampliar a
participação política, elegendo negros e negras comprometidos na luta racial, é
outro caminho inteligente, com armas efetivamente certeiras, caso contrário a
ausência de representantes negros/negras acaba por se naturalizar, nesse
espaço de poder e em outros também, como opina Sueli Carneiro, que diz:

A branquitude como sistema de poder fundado no contrato racial, do


qual todos os brancos são beneficiários, embora nem todos sejam
signatários , pode ser descrita no Brasil por formulações complexas
ou pelas evidências empíricas, como no fato de que há absoluta
prevalência da brancura em todas as instâncias de poder da
sociedade: nos meios de comunicação, nas diretorias, gerências e
chefias das empresas, nos poderes Legislativo, Executivo e
Judiciário, nas hierarquias eclesiásticas, no corpo docente das
universidades públicas ou privadas e etc. (CARNEIRO, Sueli. 2011,
pg.91)

A mudança da prevalência da brancura, como citou Sueli Carneiro, se dá


a partir de políticas educacionais, onde se mostre em programas escolares,
começando na primeira infância mesmo, a importância de estarmos em todos

362
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os lugares. É fazendo com que a criança negra, que aprende um lado da


história, que favorece a discriminação, conheça o outro lado também, o qual
importa na construção da sua identidade, que possa valorizar suas
características étnicas para que assim essa criança se sinta
representado/representada, e ao olhar para o futuro, pleiteie, ambicione
profissões das mais variadas. Só assim acredito em uma ocupação em massa
de pretos e pretas.

Um exemplo de educação para negros e negras, não na primeira


infância, mas na adolescência, cuja preparação fortalece o orgulho de ser
negro e negra, é o Instituto Cultural Steve Biko, primeiro pré-vestibular para
negros do país. Fundado em 31 de julho de 1992, em Salvador, por iniciativa
pioneira de professores negros, com o objetivo de um curso gratuito para a sua
inserção nas universidades, tendo como foco a ascensão social e combate à
discriminação racial. Este curso é um exemplo, por fazer com que seus alunos
conheçam sua própria origem, através de seus ancestrais que formam a
história desse país por suas contribuições cultural, social e política. O instituto
existe há 28 anos, colocando um número expressivo de jovens nas
universidades.

Vale ressaltar que no programa de ensino do Instituto há uma disciplina


obrigatória, intitulada Cidadania e Consciência Negra (CCN), que no seu
programa consiste em falar em sala de aula da autoestima e as lutas do povo
negro no combate ao racismo. É um diferencial em relação as outras
disciplinas, é um divisor de águas para o negro/negra, que chega ao instituto e
passa a entender como funciona a máquina do racismo e logo entende que
precisa ganhar força para valorizar-se. O Instituto busca influenciar o
pensamento dos jovens negros e negras que ali se matriculam, não tem quem
não saia imbuído de orgulho de ser negro/negra depois de ter passado por
essa instituição que carrega o nome de um líder, um ativista antiapartheid,
Steve Biko.

Outros institutos com igual objetivo precisam ser fundados, para abrir
mais espaço para negros e negras na preparação intelectual, no intuito de
enfrentar o universo acadêmico sem vergonha da própria história, com
alteridade, resgatando a cultura afro-brasileira como fonte inesgotável de
363
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

saberes e fazeres, sem abrir mão de serem negros de cabelos crespos, que
crescem para cima, e sem aversão a um nariz mais largo e a lábios carnudos.
Sem dar importância para a cor dos olhos; se são azuis, verdes, castanhos ou
pretos, o que importa mesmo é enxergar, vislumbrar que juntos/juntas somos
mais fortes. E acreditar nessa força. É dizer: povo preto unido, povo preto forte,
que não teme a luta e que não teme a morte. Grito de guerra que escuto nas
passeatas de protesto de negros e negras. Somos assim, não devemos
abominar o que herdamos, essa é uma herança ancestral, ricamente escrita
nos nossos corpos. Nessa abordagem, Sueli Carneiro afirma que:

O que devemos abominar é um processo histórico que transformou


seres humanos em mercadorias e instrumentos de trabalho. E, depois
de explorá-los por séculos, destinou-os a marginalização social.
(CARNEIRO, Sueli. 2011, pg.102)

E seguimos sendo mercadorias, quando o mundo ouviu e viu a morte do


americano George Floyde em uma abordagem policial nos estados unidos, no
dia 25 de maio, na cidade de Minneapolis e a frase que ele pronunciou “I can´t
Breathe” (em português, “eu não posso respirar”) e termina morrendo, com o
pé do policial branco na sua garganta, tem o mesmo significado dos episódios
de racismo (KILOMBA, 2019) escritos anteriormente nesse artigo, com outros
nomes e sobrenomes. Os Estados Unidos viveram com essa morte injusta,
com esse assassinato, a maior e mais grave onda de manifestações desde
1968, após o assassinato do líder de direitos civis, Marthin Luther King Jr.
(g1.globo.com/2020).

Nessas manifestações, o mundo apoiou gritando: “Vidas Negras


Importam”. Estavam todos pedindo mudanças reais e urgentes nos
departamentos de polícia, na maneira que policiais brancos abordam pessoas
negras.

Que pé é esse?

O pé do policial que agrediu e assassinou George Floyde é o mesmo pé


que impede um rapaz negro de ser bailarino clássico, que aborda um cliente,
rapaz negro, no shopping center do Rio de Janeiro; é também o mesmo pé na
mente do aluno branco da universidade na Bahia que rejeita pegar a prova das
mãos de uma professora concursada negra. É o pé da colonização.

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E no momento da escrita deste artigo, surge na contramão desses fatos,


contra a colonização e protestando da sua maneira, uma artista americana
negra com a resposta ricamente pesquisada, produzida e executada no seu
terceiro álbum visual com o título de “Black is King”. Beyoncé, cantora de fama
mundial, responde ao racismo dizendo que antes da colonização, a nossa
história não começa na escravidão ou nas senzalas. O povo preto também
vivia na África, com títulos de nobreza e riquezas. Um presente esse vídeo,
reforçando e enaltecendo a cultura negra a partir da recriação da história do
clássico filme “O Rei leão”. Criticado? Sim. Mas também empoderado, e
principalmente necessário nesse momento.

A cultura negra e africana foi contemplada grandiosamente com o álbum


visual de Beyoncé, sem a dor que nos é imposta diariamente, pois naqueles
minutos do vídeo ela desaparece, não existe. É contar uma história a partir de
nós, por nós. É também mostrar o poder da arte. Em um momento no Brasil,
onde a cultura é sucateada, desrespeitada e afundada no esquecimento na
falta de apoio, na falência mental de uma parte do povo brasileiro, constatamos
o que já sabemos - o poder da arte, que ensina, sobrevive e transforma.

Entre elogios e críticas da mídia brasileira e mundial, o álbum visual é


um sucesso afro-americano mundial.

Outro sucesso afro é a história de vida do bailarino Luiz Bokanha, em


resposta ao racismo que sofreu nos anos 70 - vide seu currículo, com
passagens por companhias de ballet clássico, como o Teatro Municipal de São
Paulo, o Grand Theathe de Geneve, na Suiça, e na Bélgica foi contratado pela
Companhia De Maurice Bejart, entre as principais companhias as quais fez
parte no mundo, contratado como bailarino clássico. Luiz realizou seu sonho,
fazendo ouvido de mercador para aquelas e aqueles que pretendiam sufocar
seu ideal de vida, por ser um homem negro, pobre, com sobrenome Jesus, e
morador de um bairro simples de Salvador. Esse fato não pode ficar reduzido a
esfera pessoal, como o próprio Luiz guardou para si, somente revelando em
2016 em uma roda de conversa idealizada pelas dançarinas Edileusa Santos e
Sueli Ramos, a qual a autora deste artigo estava presente, na Universidade
Federal da Bahia (UFBA), Escola de Dança.

365
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Questões de racismo são questões sociais, políticas e precisam ser


faladas, para serem registradas e resolvidas. É importante evidenciar essas
relações, para perceber e saber responder a essa estrutura da sociedade
dominante que se arrasta há séculos, mostrando a resistência com que o povo
negro inteligentemente com garra vem respondendo. Outrora, com as armas de
guerra que possuíam, como lanças, paus, pedras, salve Zumbi dos
Palmares146, e hoje, com as armas do intelecto, livros, canetas, palestras,
artigos, dissertações, teses, poesia preta, música, teatro negro, salve Abdias
do Nascimento147, e ainda sem deixar para trás, também, a dança, seja ela
clássica, moderna, jazz ou afro, salve Mestre King148, entre tantas ações e
pessoas que poderia citar, nesses discursos de resistência. Michel Foucault me
ajuda a pensar sobre, dizendo que:

Certamente se nos situamos no nível de uma proposição, no interior


de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso não é nem
arbitraria, nem modificável, nem institucional, nem violenta. Mas se
nos situamos em outra escala , se levantamos a questão de saber
qual foi, qual é constantemente, através de nossos discursos, essa
vontade de verdade, que atravessou tantos séculos de nossa história
, ou qual é, em sua forma muito geral, o tipo de separação que rege
nossa vontade de saber, então é talvez algo como um sistema de
exclusão (sistema histórico, institucionalmente constrangedor) que
vemos desenhar-se. (FOUCAULT, Michel. 1996, pg.14)

Enquanto o bailarino, Luiz Bokanha conseguiu realizar seu sonho de ser


bailarino clássico, outros e outras em diferentes épocas e direcionamentos
profissionais, se recolheram na culpa da cor. Sentindo-se culpados por serem
negros, somando caminhos de humilhações e desistindo da sua própria vida,
por culpa desse sistema de exclusão, o qual ainda convivemos.

Luiz formou família, é aposentado pela dança, tornando-se uma exceção


à regra, sem trazer para sua vida dramas psicológicos e revoltas, quando
poderia ter desenvolvido depressão, mas não aconteceu. Aconteceu a dança,
muita dança, e Luiz tornou-se referência na sua cidade Salvador, como

146
Líder quilombola, nascido em 1655 e morto em 20 de novembro de 1695.
147
Nascido em São Paulo em 14 de março de 1914, foi ator, poeta, escritor, dramaturgo,
artista plástico, professor universitário e ativista dos direitos humanos. Falecido em 23 de maio
de 2011.
148
Raimundo Bispo dos Santos, Dançarino, Professor de dança baiano, especialista em dança
afro, nascido na cidade de Santa Cruz em 12 de outubro 1943 e falecido em 13 de janeiro de
2018, aos 74 anos.

366
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

bailarino e professor de dança, além de diretor artístico e coreografo de


companhias e casas internacionais, como a Casa de Show Maracanã na
cidade de Firenze, região da Toscana, na Itália, onde por 15 anos, criou
espetáculos levando a cultura brasileira para cerca de 200 pessoas que a casa
recebia diariamente de terça a domingo. Nesta casa de show internacional,
sem nunca ter esquecido suas raízes, Luiz construiu o show com base na
cultura popular, e assim anualmente, a cada novo espetáculo por 15 anos,
italianos e não só, que passaram por essa casa conheceram o Brasil a partir
das inspiradas coreografias de Luiz.

Esse homem negro virou tema de artigo e de mestrado, é meu tema de


mestrado na discussão do racismo na dança clássica e continua suas
atividades de professor de dança, dando aulas particulares de tonificação
muscular e alongamento para vários profissionais, principalmente para a
terceira idade, sua maior satisfação no momento, faixa etária que ele conquista
com a sua metodologia de ensino, incentivando seu grupo em sala de aula a
acreditarem que podem ir além do que o corpo pede. Em entrevista da autora
com esse grupo de alunos e alunas, os depoimentos eram de grande
satisfação pelo progresso que cada um tinha feito individualmente com as
aulas de dança de Luiz. Todos sentiam gratidão pelo professor. Para citar
alguns desses exemplos de melhora física: a pressão arterial que baixou; a
agilidade em se sentar e se levantar; para os/as que estavam com quadro de
depressão, se sentiam mais vivos, vivas; com dinamismo e vontade de viver,
entre outros depoimentos registrados por mim.

Luiz segue por todos esses anos, no amor a sua arte da dança, nessa
roda, trazendo positividade para o seu caminho. Bell Hooks diz que:

Eu sempre me surpreendo que a jornada para o lar, aquele lugar na


cabeça e no coração onde nos recuperamos no amor, está
constantemente ao nosso alcance, dentro de nós, e, no entanto,
muitas pessoas negras nunca encontram o caminho. Atolados na
negatividade e na negação, somos como sonâmbulos. (HOOKS,
1992, pg.62)

Luiz não agiu como sonâmbulo. Lutou com as armas do estudo e


dedicação contra as violências diárias, mesmo sem se ver representado onde
queria e almejou estar, mas seguiu sua intuição e desejo profissional, nada e

367
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

nem ninguém o deteve. Já outros e outras em diferentes épocas e


direcionamentos profissionais não conseguiram ter a mesma força. Presos nos
estereótipos negativos da própria imagem, se recolheram na culpa da cor. Os
discursos racistas exercem sobre as pessoas atingidas uma função de
negação de si mesmas, como se não existissem, fossem invisíveis; mesmo
com todo o potencial que temos, passamos. Somente passamos.

É nesse caminho de tantas dores que entra a religião, no alívio da dor,


para acalmar o orí149, pedir calma para conseguir seguir sem enlouquecer. O
fortalecimento da cabeça é o caminho para as melhores e mais sabias
decisões. São muitos os caminhos religiosos a seguir, procurando apoio
espiritual para garantir que o psiquê não se perca no meio de tanta rejeição.

No caso do bailarino Luiz Bokanha, filho de Ogã 150, ele conviveu com a
religião de matriz africana contada em casa, nas poucas vezes que seu pai, Sr,
Bernadino, parava para falar um pouco sobre os segredos do candomblé.
Assim, nesse período de tantos “nãos”, foi como canta a música “alegria da
cidade”, de Lazzo Matumbi151: “apesar de tanto não, tanta dor que nos invade,
somos nós a alegria da cidade”. Luiz Bokanha se aproxima da espiritualidade
como processo terapêutico, onde encontra forças para seguir, derrubando
muros e construindo pontes, como bem foi dito no filme Pantera negra.

Nesse encontro com a religião de matriz africana, Luiz recebeu muitas


informações a partir do sagrado, orixá-terra-orixá. Reforçou a força material a
partir da espiritual, que vinha fortificando com a prática da religiosidade, e não
queria desistir, a força que vinha dentro dele era o desejo de se tornar um
artista da dança, mas lidar com o racismo não era e não é fácil, então, a busca
pela religião e a escolha pelo candomblé, resultaram em uma experiência de
múltiplos ensinamentos.

A religião dá um sentido aos caminhos desse ator social, e mesmo não


se tornando uma pratica diária, para ele, a religião ali estava, em sua alma,

149
Palavra em iorubá que significa cabeça, receptáculo da personalidade e do destino da
pessoa.
150
Para o candomblé, religião afro-brasileira, trata-se de um cargo masculino com diversas
funções.
151
Cantor baiano, com mais de 40 anos de carreira e ativista pelos direitos humanos, começou
sua carreira em 1981, como atração do bloco de carnaval Ilê Aiyê.

368
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

fazendo parte de sua vida, do seu dia a dia, na interseccionalidade da própria


religião, a fé e o sentido de vida, paralelo a multiplicidade dos sistemas de
opressão. Saber que ele tinha uma religião não o deixava submergir, pois
sentia a energia circular, e nesse banho de folha de proteção, se sentia mais
forte e seguia.

Espiritualidade, força e magia no candomblé, para a limpeza espiritual,


para alimentar quem ou qual energia tomava conta da cabeça de Luiz e assim
pedir força. Um homem de fé, de muita fé no novo caminho que seus
ancestrais estavam lhe mostrando.

Um orí bem alimentado, é um orí fortificado, tem poder de cura. E assim


Luiz começou o seu tratamento espiritual. Descobriu com o jogo de búzios que
no seu orí, quem manda é Ogum Xoroquê152. Um Ogum que mais se aproxima
de Exu153. Pessoas desse orixá são guerreiras, obstinadas e teimosas. São
características muito próximas dele.

É normal nas pessoas que cultivam orixá, encontrar características do


orixá em si mesmas, e com Luiz não foi diferente. Começando a entender
espiritualmente sua tenacidade em busca de seu ideal de vida e entendendo
que estava guerreando com Ogum do seu lado e Exu, paralelamente, Luiz se
sentiu mais forte, sentiu que alimentar o sagrado lhe fazia muito bem. Cuidar
do orí é vida, é salvar vidas, e acima de tudo ele estava salvando sua própria
vida.

Ogum Xoroquê / Exu abre os caminhos desse rapaz, e nas


encruzilhadas da vida que ele atravessa e que o atravessam, ele é pergunta e
é resposta. Tem resposta na fé do que o move para o seu futuro traçado lá
atrás nos anos 70. A fé, que comunica com o divino e recebe força na
caminhada. E vence.

A vida passa a ter um sentido maior quando os caminhos, mesmo


sofridos, são vividos ao lado do sagrado, que alimenta, mata a sede, comunica
e direciona caminhos. Quando se entende essa comunicação, o combate diário

152
Orixá ligado ao ferro, à tecnologia e à guerra, que tem características de dois orixás em um
só: ogum e exu.
153
Orixá da comunicação e da linguagem; é o mensageiro.

369
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

fica fortalecido e olhamos para nós, sendo apresentados às nossas forças.


Sim, temos forças sobrenaturais, que nos mantém em pé, para os saltos na
segunda posição, para quando descermos, plantarmos bem firmes nossos pés
em terra e saltarmos de novo e se cairmos, cairmos no rolamento e assim
levantarmos e saltarmos mais uma vez, e quando decidimos fazer cabriole,
lançamos nossas pernas pretas na meia ponta, para toda a sociedade aplaudir.

Padê de Exu Libertador (um trecho do poema)

Ofereço-te Exu, o ebó das minhas palavras

Neste padê que te consagra, não eu

Porém os meus e teus irmãos e irmãs

Em Olorum, nosso pai, que está no orum.

Laroiê! Abdias do Nascimento (1981)

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Daudt, 2006.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo, desigualdade no Brasil. São Paulo:
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1996.Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio
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Etnobiografia: subjetivação e etnografia. Rio de Janeiro: Editora Viveiros de
Castro Ltda, 2012.
GUIMARÃES, Antônio Sergio Alfredo. Racismo e Antirracismo no Brasil. São
Paulo Editora 34, 1999.
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Popular Revisitada. São Paulo. Ed. Contexto, 2001- (Caminhos da História)

370
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

SCOTTINI, Lucas Costa. O que o nome nos ensina? Padrões Sociais e Raciais
de nomes e sobrenomes e performance escolar em São Paulo. São Paulo,
2011
SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se Negro; as vicissitudes da identidade do
negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1983. Coleção
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Sites Consultados:
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diz-ministra-luiza-bairros-no-bom-dia-ministro/?
https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/juiza-diz-em-sentenca-que-
homem-negro-e-criminoso-em-razao-da-sua-raca/
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professora-negra-por-energia
https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2019/12/10/professora-da-urfb-denuncia-
racismo-de-aluno-que-recusou-receber-prova-em-sala-de-aula-video.ghtml
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/02/morte-de-george-floyd-4-
fatores-que-explicam-por-que-o-caso-gerou-uma-onda-tao-grande-de-
protestos-nos-eua.ghtml

371
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O CORPO NEGRO NO BALÉ CLÁSSICO:


DANCE THEATRE OF HARLEM E SUAS PRÁTICAS INSURGENTES
Gleidison Oliveira da Anunciação (Guego Anunciação) (UFBA)

Sabe-se que, no universo do balé clássico, existe uma tendência em


eleger, fundamentalmente, bailarino.as com porte longilíneo, branco.as e que
atendam ao estereótipo europeu. Uma política de corpo que prioriza
determinado perfil corporal em detrimento de outro. Assim, este pequeno texto
está implicado em uma análise crítica do tratamento de corpo acerca das
questões históricas desta cultura excludente do balé a fim de refletir sobre a
presença do corpo negro neste contexto.

Considerando o número restrito de bibliografia dedicada a tal assunto -


corpo negro no balé clássico -, principalmente no Brasil, a realização desta
escrita se justifica por colaborar criticamente acerca desta lacuna e possibilitar
novas reflexões a partir do tema, pois considero questões relevantes para a
Dança e que estão em pauta na geopolítica do Brasil e no mundo. Racismo,
invisibilidade e silenciamento, por um lado, e protagonismo e
representatividade negra, por outro, são temáticas presentes neste texto. Este
texto também é fruto da minha dissertação de mestrado realizada no Programa
de Pós Graduação em Dança na Universidade Federal da Bahia.

1.1 O corpo negro

No dicionário Aurélio (HOLANDA,1975), a palavra negro é definida como


algo de cor negra, roupa muito escura, preto, trigueiro, fúnebre, infeliz, aflito,
tétrico. Na física, o corpo negro é definido como um objeto hipotético, onde
nenhuma luz o atravessa, tão pouco é refletida. Na verdade, o substantivo
negro é o nome que se dá ao ‘produto’ que surgiu a partir da exploração das
pessoas de origem africana para viverem como marginais, farrapos, objetos e
moeda. Ou seja, o negro foi produzido para se tornar o inútil que só tinha valor
por conta de seus serviços braçais, ou seja, o sujeito racial.

372
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O negro e a raça sempre foram duas figuras centrais da fala euro-


americana sobre o homem e essas duas palavras sempre estiveram
interligadas, pois a característica delas era existencial. O termo negro
representava uma ameaça, seres animalescos, seres que precisavam ser
domados e viver sob o jugo de alguém, obviamente, de um indivíduo branco.

Diante disso, é possível afirmar que o negro é criação dos brancos e,


consequentemente, o racismo também. Desde o período escravagista, o negro
é colocado como estranho e, a partir disso, ocorre a própria desapropriação do
negro; o negro vendo-se como estranho, como aberração, como diferente na
cognição, como objeto de impiedade e sempre associado à forma negativa.
Sujeito de exploração e de presença que incomoda.

Para o pensamento ocidental, o negro era incapaz de se autoproduzir e,


durante vários séculos, o conceito de raça serviu para nomear pessoas não
européias. Como um ser estranho poderia viver coisas que pessoas brancas
faziam? Como pessoas negras poderiam ser pessoas que conseguiriam
desenvolver habilidades artísticas que os brancos faziam? O pensamento
europeu retirou, oprimiu, excluiu e colocou o corpo negro sob uma concepção
de inutilidade, obtendo o controle desse corpo e ditando o que ele deveria fazer
e o que não poderia executar.

Mbembe (2016) diz que a raça é algo inventado que surgiu para
estabelecer e concretizar o poder e que não está, unicamente, na esfera
sensorial. Para que a raça venha atuar como afeto, ela deve se transformar em
imagem, figura, forma e principalmente estrutura que se imagina. Sendo assim,
a raça é um local de realidade, aparência, mas também é um lugar de quebra e
movimentação.

Aliás, é típico da raça ou do racismo sempre suscitar ou engendrar


um duplo, um substituto, um equivalente, uma mascara, um
simulacro. Um rosto humano autêntico é convocado a aparecer. O
trabalho do racismo consiste em relegá-lo ao segundo plano ou cobri-
lo com um véu. No lugar desse rosto, faz-se emergir das profundezas
da imaginação um rosto de fantasia, um simulacro de rosto e um
rosto humano. O racismo consiste, pois, em substituir aquilo que é
por algo diferente, uma realidade diferente. Além de uma força de
deturpação do real e de um fixador de afetos, é também uma forma

373
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

de distúrbio psíquico, e é por isso que o conteúdo recalcado volta


brutalmente á superfície. (MBEMBE, 2018, p. 69)

A questão do racismo estava intrínseca na dúvida sobre a capacidade


dos corpos negros de se organizarem, de governarem ou de terem habilidades
para se desenvolverem ou produzirem coisas que os brancos podiam fazer.
Sendo assim, práticas racistas, ainda hoje, estão associadas à ideia de
incapacidade do negro e que culmina no controle desses corpos, encaixotando-
os e ditando quais lugares eles podem e devem ocupar, sempre a partir de um
olhar totalmente preconceituoso.

Kilomba (2019) diz que o racismo é a legitimação de estruturas violentas


de exclusão racial. Cria-se a ideia que a pessoa negra quer obter algo que é da
pessoa branca e que, por isso, precisa ser controlada, silenciada e domada.
“Enquanto o sujeito negro se transforma em inimigo intrusivo, o branco torna-se
vítima compassiva, ou seja, o opressor torna-se o oprimido e o oprimido, o
tirano.” (KILOMBA, 2019, p.34).

Os índices de renda e riqueza vão confirmando que negro.as ainda são


maioria entre os mais pobres e fora do contexto educacional. A desigualdade
que existe em determinadas sociedades se estabelece por conta de uma
política que não reconhece, efetivamente, que a cidadania seja um princípio
para todo.as. Negro.as foram o.as primeiro.as a serem colocado.as nas ruas,
assim como o.as primeiro.as mendigo.as, não conseguem completar o ensino
médio, continuam sendo a maioria em serviços braçais e mal remunerados. O
Brasil e os Estados Unidos foram construídos por mãos negras, mãos que
tinham de sustentar o peso da escravidão e de alguém controlando as suas
vidas.

1.2 Pequeno panorama do balé clássico

Criado a partir das danças de corte e com interferências, ao longo do


tempo, de danças populares, o balé clássico possui um dicionário de
movimentos próprios. No século XV, durante as festividades do casamento do
Duque de Milão com Isabel de Aragão, foi apresentado pela primeira vez um

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balé com as características que o conhecemos hoje, segundo SAMPAIO


(2013).
A moda da época eram roupas pesadas, como os vestidos de ancas,
sapatos altos e perucas. Com esse traje e com os passos complicados, os
acidentes eram frequentes na entrada e saída dos bailarinos na cena. Em
1530, o italiano Cesare Negri escreveu “Nuova inventioni di balli” onde
aconselhava que, para que a dança fosse realizada com mais elegância
deveria, sempre que possível, manter os joelhos esticados e os pés virados
para fora.
No século XIX, o Romantismo transformou todas as artes, inclusive o
balé, inaugurando assim um novo estilo, no qual aparecem figuras exóticas e
etéreas se contrapondo aos heróis e heroínas, personagens reais
apresentados nos balés anteriores.
O primeiro balé, como espetáculo, ocorreu em Paris, no ano de 1581,
sendo que em 1661, foi fundada a Academia Real de Balé e Academia Real de
Música, pelo rei Luís XIV. Em 1820, Carlo Blasis lança o seu “Traité
elementaire theorique et pratique de l’art de danse”, onde expõe os preceitos
de um método de ensino caracterizados pela harmonia e coordenação dos
braços, o paralelismo dos exercícios e seus aspectos perpendicular e vertical, o
equilíbrio, arabesques e poses onde o rosto deve manter a vivacidade e a
expressividade, do plié às piruetas, do adágio ao allegro. Em 1828, ele
introduziu a barra como elemento auxiliar nos exercícios preliminares da aula.
O primeiro grande balé romântico foi “La Sylphide”, que iniciou o trabalho
nas sapatilhas de ponta. Ainda neste século, o coreógrafo russo Marius Petipa
marca a relevância do ballet na Rússia, trabalhando com Tchaikovsky que criou
três dos mais importantes balés do mundo: “A Bela Adormecida”, o “Quebra-
Nozes” e “O Lago dos Cisnes”.
Logo após, o russo Diaghilev, editor de uma revista de artes, promoveu
em Paris, os músicos russos, a ópera russa e o ballet russo, inaugurando uma
nova ordem no âmbito da dança como Arte, que passou a apresentar estilos
renovados como nas demais expressões artísticas que se transformaram a
partir do romantismo. Dessa forma, o balé clássico se espalhou pelos cinco
continentes, tornando-se uma das técnicas de dança mais conhecidas no
mundo todo.

375
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Nos Estados Unidos, o balé clássico começou a se consolidar a partir de


1933, quando George Balanchine154 se mudou para os EUA com objetivo de
criar uma companhia de balé clássico e fundar a primeira escola americana de
balé. Balanchine criou um tipo de método que reúne elementos das escolas
francesa, russa e italiana. Sua chegada nos EUA se dá a partir do convite de
Lincoln Kirstein155 que desejava implantar o balé clássico na América do Norte.
Em 1934 fundaram a School of American Ballet e 14 anos depois criam a
companhia de balé dos EUA, o New York City Ballet.

Balanchine é um dos grandes nomes do balé clássico nos Estados


Unidos ; foi um importante professor e coreógrafo que formou diversos outros
artistas, tais como: William Dollar, Agnes de Mille, Alvin Ailey, John Neumeier,
Robert Joffrey, Harold Lang, Arthur Mitchell, William Forsythe.

1.3 O corpo negro no balé clássico, ou das histórias que não nos
contam.

A história do balé clássico é formada por nomes de grandes bailarino.as


que se tornaram ícones e espelhos para outro.as bailarino.as que sonham em
galgar caminhos profissionais construindo uma carreira sólida em companhias
de dança. Porém, a problemática que trarei a partir das próximas linhas vêm
com as seguintes perguntas: Existem bailarino.as negro.as que também são
ícones desta linguagem de dança? Sendo o balé uma dança criada para um
perfil branco, pessoas negras conseguem ter acesso a essa técnica?
Negros.as conseguem se inserir nas companhias de dança com estética
clássica? Pessoas negras querem fazer técnica de balé clássico ?
Refletir sobre a inserção de corpos negros no balé clássico, é tratar
sobre questões da técnica/estética da dança clássica e enfrentar o porque,
ainda em 2020, são tão pouco.as negro.as que conseguem se inserir em

154
Nasceu em San Peterburgo, na Rússia, e estudou composição musical e piano no
Conservatório de Leningrado. Começou seus estudos de dança na Escola Imperial em 1914, e
em 1923 estreou como coreógrafo. Em 1924 foi convidadado para ingressar na companhia
Ballets Russes, e criou coreografias importantes. Durante sua vida de coreógrafo, criou mais
de 400 trabalhos, incluindo coreografias para filmes, óperas e musicais.
155
Nascido em Nova York, e criado numa familia rica, foi um escritor americano, empresário,
conhecedor de arte e especialista em muitas áreas. Estou na Haward, e concentrou suas
atividades para entender a carreira de George Balanchine após assistir a peça “Apollo”
coreografada por Balanchine, e realizada pelo Ballets Russes.

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companhias de dança que apresentam estéticas clássicas e o motivo pelo qual


figuras negras que conseguiram adentrar em alguns espaços são ainda
invisibilizadas, apagadas e soterradas.

Como disse anteriormente, o corpo do negro foi colocado como moeda,


como farrapo, como sub humano. Dessa forma, se entende que este mesmo
corpo traficado é o corpo que não deveria estar em um ambiente de alta corte,
como é o caso do balé clássico.

O racismo no balé clássico pode ser de diversas formas, seja pela não
escolha racista de um.a bailarino.a negro.a com grau técnico elevado em
relação a um.a bailarino.a branco.a, ou seja pela idéia de que negro.as não
ocupam lugares de solistas por conta do imaginário que o repertório pede. O
balé é uma dança originária nas cortes européias e codificada a partir de
corpos brancos, que significava nobreza dominante. Princesas e príncipes são
ocidentais e historicamente branco.as, a mesma classe que seqüestrou
milhares de africanos e os levou para diversas partes do mundo, explorando-
os, retirando de seus legítimos processos identitários e os tratando como seres
inferiores.

Dessa forma, entende-se que o balé clássico está fundado num


pensamento abissal, tornando invisível tudo e todos que não estão encaixados
em suas diretrizes. Os corpos negros, por exemplo, são memórias gravadas de
gerações que vivem na marginalização sociopolítica ao qual foram sujeitados.
Tratados como animais, os corpos negros nunca foram corpos considerados
aptos para a técnica clássica, pois enquanto o balé clássico era tido como a
dança de etiqueta para damas e cavalheiros, os corpos negros eram colocados
como selvagens e incapazes.

Com tudo, por que negro.as deveriam amar o balé clássico, sendo que o
balé clássico nasce dentro de uma estrutura colonizadora que o exclui? Como
pessoas negras se inserem no contexto do balé clássico sem sofrer traumas?
É possível ou é um tiro no escuro?

377
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

1.4 Artur Mitchell e seu legado

Para falar sobre ações insurgentes, emancipadoras e transformadoras


no contexto do balé clássico é importante iniciar falando sobre Artur Mitchell e
seu grande legado. Micthell foi um homem negro que revolucionou e criou
fissuras no universo da dança clássica nos Estados Unidos, tornando-se
referência mundial por conta de suas conquistas e iniciativas de revolução.

Artur Mitchell, falecido em 2018, nasceu e cresceu no Harlem,


considerado um bairro predominante negro na cidade de Nova York, onde foi
um dos quatro irmãos filho de um superintendente de construção. Na sua
infância e adolescência, Mitchell realizou diversos trabalhos informais para
ajudar financeiramente a sua família, e em 1950, após ter feito uma graduação
em Superior de Artes Cênicas, ele ganhou um prêmio de dança e bolsa de
estudos para estudar na School of American Ballet, uma escola afiliada ao New
York City Ballet.

Após isso, Mitchell foi contratado como bailarino no New York City Ballet,
onde em 1955 fez sua estréia como o primeiro afroamericano a atuar na
companhia. Um ano após sua estreia, Mitchell foi para o posto de primeiro
bailarino, onde se apresentou em todas as grandes produções da cia,
dançando famosos balés de repertório.

Com o estrondoso talento de Artur Mitchell, George Balanchine criou o


Pas de Deux de Agon, peça criada para ele e a bailarina Diana Adams. Essa
parceria gerou diversos incômodos, pelo fato de ser uma obra especialmente
dançada com uma mulher branca, porém, apesar das criticas, Balanchine
manteve o dueto.

1.5 Dance Theatre of Harlem e suas práticas insurgentes

Criada em 1969, a Dance Theatre of Harlem é uma companhia de balé


clássico criada especialmente para abarcar bailarino.as negro.as , tornando-se

378
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referência mundial como a primeira companhia de balé clássico formada por


pessoas negras.

Há 50 anos, Dance Theatre of Harlem faz do balé uma expressão


cultural acessível a todo.as. Disposto a criar impactos positivos após o
assassinato de Marthin Luther King, Artur Mitchell fundou uma escola com seu
antigo professor, Karel Shool, onde a idéia era oferecer as crianças do Harlem
uma oportunidade de mudar seus futuros, desafiando-se diante da arte
clássica.

Patrimônio internacional das artes, o Dance Theatre of Harlem se


compõe de uma companhia de dança, uma escola de balé (as crianças e
jovens fazem aulas não só de clássico, mas também de outras linguagens de
dança) e um programa de educação artística e engajamento comunitário – o
Dancing Trough Barriers. É importante dizer que em 1971, apenas dois anos
de criação da fundação do Dance Theatre of Harlem, o jornal New York Times
classificou a instituição como um dos empreendimentos mais interessantes de
balé.

É interessante trazer a idéia de que Dance Theatre of Harlem é


conhecida como ícone da dança norte americana, contando com um legado
extraordinário de apresentações e excelência artística, enfatizando as questões
negras e revolucionando o universo do balé clássico a partir de uma
perspectiva não européia.

Ferraz (2017) em seu artigo Danças Negras: entre apagamentos e


afirmação no cenário político das artes, apresenta reflexões sobre o fazer
artístico de artistas negros, concebendo o termo danças negras muito mais
como conceito do que como estética de dança. Para o autor, as danças negras
integram diversas linguagens de dança, como o jazz, o balé, a dança moderna,
o frevo, o samba. As danças negras podem e devem ser consideradas parte de
uma área de conhecimento em Dança que conecta diversas expressões
corporais com as lutas históricas, políticas e sociais do povo negro,
evidenciando-os como protagonistas. São práticas de afirmação do/para o povo
negro, sendo danças criadas e/ou dançadas por pessoas negras.

379
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Dessa forma, o Dance Theatre of Harlem se configura como uma


companhia que é, faz e produz dança negra. O autor argumenta, em seu artigo,
que as danças negras podem ser práticas que também tenham sido criadas por
pessoas brancas, mas que no momento presente é realizada por pessoas
negras.

Parto do pressuposto que os elementos pertencentes a esse conceito


constituem uma memória de dança a ser acionada, seja pela
identificação de artistas por suas corporalidades afro-orientadas
particulares, cujos aspectos formais e rítmicos são tão relevantes
como qualquer outro, seja como citação de seus temas politicamente
contundentes. (FERRAZ, 2017, p. 116)

Como mais um exemplo dessas práticas insurgentes do Dance Theatre


Of Harlem e em consonância com a idéia de danças negras apresentada por
Ferraz, trago uma das produções mais emblemáticas da companhia, a Criole
Giselle.

Creole Giselle foi o primeiro grande balé de repertório criado e dançado


pelo Dance Theatre of Harlem , onde Artur Mitchell remontou, readaptou e
recoreografou a tradicional Giselle européia para a sua companhia. Para
alguns, esta releitura na época foi vista como inadequada e inferior as
tradicionais montagens, mas para outros, o ato foi bastante inovador.

É importante informar que Criole Giselle é uma versão onde a história ao


invés de acontecer na Alemanha, é transportada para os igarapés da Louisiana
entre uma comunidade de negros livres. Houve pesquisas substanciais sobre a
criação da Giselle crioula, e cada membro do elenco recebeu o nome de uma
pessoa real do período.

Frederick Franklin, consultor artístico do DTH para a fama do Ballets


Russes, encenou o balé, recriando a coreografia original de Jean Coralli / Jules
Perrot, com a partitura original de Adolphe Adam. Estreada no Coliseu de
Londres em 1984, a Creole Giselle ganhou o prêmio Laurence Olivier (o
equivalente londrino do Tony da Broadway) de "Melhor Nova Produção de
Dança".

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Três anos depois de sua estréia, Creole Giselle foi filmada na Dinamarca
para uma transmissão de tv. A inovação e a garra de remontar uma obra
conhecida mundialmente pelos amantes do balé clássico com um elenco
completo de pessoas negras foi extremamente importante quando falamos de
representatividade, superação e fissuras no sistema. Mitchell foi um
revolucionário, foi um insurgente.

É importante também dizer que Virginia Johnson, primeira bailarina da


companhia, foi a solista do Criole Giselle, e esse trabalho foi o ponto alto da
sua carreira. Após a morte de Mitchell, Virginia Johnson se tornou a nova
diretora artística do Dance Theatre of Harlem, onde uma segunda geração da
história da companhia tem assumido a condução do grupo e continuado com o
legado de Mitchell.

Saliento que em 1996, o Dance Theatre of Harlem veio ao Brasil e se


apresentou em São Paulo, e junto com este elenco, estavam as brasileiras
Simone Cardoso e Bethânia Gomes, ambas bailarinas brasileiras formadas
pela Escola de Dança do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que tiveram
suas carreiras apagadas e conseguiram se inserir nesta idéia de quilombo, que
é o Dance Theatre of Harlem.

Em 2019, comemorando 50 anos da companhia e homenageando o


legado de Artur Mitchell, a companhia voltou ao Brasil com uma temporada em
São Paulo e em Trancoso, na Bahia. É importante relatar que ambas as vindas
da companhia ao Brasil foram através do Mozarteum Brasileiro, que é um
programa reconhecido por sua programação de música clássica, além de trazer
para os palcos brasileiros algumas das principais companhias de balé do
mundo.

Em São Paulo ocorreram duas apresentações e uma matinê gratuita


para as crianças, no Teatro Alfa, e em Trancoso a programação foi um pouco
mais extensa, onde a companhia realizou dois espetáculos no Teatro
L’Occitante e quatro dias de aulas para bailarinos e estudantes brasileiros.

É interessante saber também que ambas as vindas ao Brasil a


companhia tinha bailarino.as brasileiro.as em seu elenco. Desta ultima vez
tivemos a presença de Ingrid Silva, primeira bailarina da companhia, oriunda do

381
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

projeto social dançando para não dançar, que conheceu a companhia através
de Bethânia Gomes (a bailarina que dançou na tour de 1996). Outro bailarino
brasileiro que atua na companhia do Harlem é o Dylan Santos, baiano que teve
toda uma formação de balé clássico em São Paulo e atua como um dos
solistas da companhia, estrelando a turnê ao Brasil junto com Ingrid Silva.

Não entrarei em maiores detalhes acerca desses bailarinos citados e de


suas histórias, mas finalizo este texto profanando a tamanha importância do
Dance Theatre of Harlem como esse símbolo de resistência negra, de quebra
de barreiras, de quilombo, de ressignificações e de insurgência no ambiente
racista e excludente que o balé clássico está enraizado.

REFERÊNCIAS

ANUNCIACAO, Gleidison Oliveira da. A inserção do corpo negro em


companhias de balé clássico no Brasil e Estados Unidos. ANAIS DO VI
ENCONTRO CIENTIFICO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE
PESQUISADORES EM DANÇA – ANDA. Salvador: ANDA, 2019. p.2084-2094.

FERRAZ, Fernando. Danças Negras: entre apagamentos e afirmação no


cenário político das artes. Revista Eixo, 2017.

GONZALES, Lélia. Lugar de Negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo


Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil,
2003.

MOURA, Gilsamara. Emílio, Douglas (Orgs). Ágora : Modos de Ser em Dança


– Volume 2. São Paulo : Editora jogo de Palavras, 2019.

MUNANGA, Kabengele. Negritude usos e sentidos.São Paulo: Editora Ática,


1986.

PEREIRA, Roberto. A formação do Balé Brasileiro: nacionalismo e


estilização. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2003.

382
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SCHWARCZ, L. M. e QUEIROZ, R. da S. (orgs.). Raça e Diversidade. São


Paulo: EDUSP, 1996.

SAMPAIO, Flávio. Ballet Passo a Passo. Expressão gráfica. 2013


SANTOS, Boaventura. Para além do pensamento abissal. Cebrap. 2007.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Ed.Melusina, Espanha, 2011.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. N-1 edições, 2018

383
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

SWING AFRO BAIANO:


UMA DANÇA AFRO-BRASILEIRA

Eric Barbosa Araújo (UFBA)

A história do Swing Afro Baiano se inicia em Salvador, primeira capital


do Brasil. Esta certamente é uma das cidades mais plurais do mundo, por toda
uma questão histórica. Sob colonização de Portugal, em menos de 35 anos,
Salvador já possuía uma população estimada em 14 mil Africanos escravizados
provenientes de diversas localidades do continente Africano. Segundo
Laranjeira (2010):
O tráfico a partir de Uidá chegou a atingir cerca de dez mil escravos
por ano até a década de 1690, estimativa próxima daquela realizada
por Bosman no final da década de 1690, de mil escravos por mês.
Entre 1700 e 1713, o tráfico no local alcançou o seu maior número,
aproximadamente quinze mil escravos eram exportados anualmente
do porto de Uidá. De acordo com Robin Law, “neste período
Uidá pode ter sido responsável por cerca da metade de todas
as exportações transatlânticas de escravos africanos.
(LARANJEIRA, 2010, p.41)

Em um contexto histórico tão peculiar se faz necessário entender o


Brasil quanto diáspora e perceber os processos de hibridização presentes na
sua cultura popular. Partindo destes entendimentos será mais fácil o
entendimento desta Dança aqui estudada quanto uma perspectiva de dança
afro-brasileira.

Com 300 anos de escravidão lastreados na mão de obra africana é


notório afirmar que a diáspora africana é a de maior representatividade em solo
brasileiro. Historicamente, uma classe branca, burguesa e minoritária tem
domínio político do Brasil. Desta forma, há uma valorização de uma cultura
erudita eurocêntrica gerando apagamento cultural das classes menos
abastadas. Como o conceito de diáspora não é remetido apenas a povos
africanos é possível afirmar que no processo de construção do Brasil existem
presenças de outras diásporas a exemplo da italiana, alemã e japonesa. No
entanto neste artigo o conceito de diáspora se dirige diretamente a africana.
Segundo Hall (1996), diáspora não esta em uma perspectiva de retomar
as origens a uma África primitiva, mas sim de se reinventar em um novo mundo

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se apropriando de uma formação humana e cultural proveniente da


ancestralidade africana presente. Neste conceito o autor traz a perspectiva de
que, a construção de identidade ocorre em processos de constantes
transformações. Para Hall (1996) no seu artigo – Identidade Cultural e Diáspora
– existem duas perspectivas de identidade cultural. A primeira retrata o
conceito de familiaridade e continuidade onde a percepção de origem e os
signos culturais se encontram em comum acordo, que dão a uma população
enquadramentos estáveis, imutáveis e contínuos de referência a sua origem. O
segundo conceito de identidade cultural é baseado no vetor da diferença e da
ruptura, onde existem alguns pontos similares entre as culturas, porém, as
diferenças são significativas e as rupturas e descontinuidades são realizadas
comumente por uma cultura dominadora e opressora. O Brasil possui um
pouco desses dois vetores. O primeiro vetor da familiaridade e continuidade,
porque existe empatia e entre populações e o reconhecimento das suas
origens individuais e coletivas. Mas, por outro lado, a história permeada pela
escravidão e pelo branqueamento que traz uma profunda descontinuidade
onde as culturas afro-brasileiras são historicamente perseguidas e
invisibilizadas.

Lao-Montes (2007) afirma que as diásporas africanas possuem como


característica a bilateralidade. De um lado os sujeitos provenientes de uma
localização geográfica com conceitos, culturas, crenças e movimentos sociais.
Do outro lado a força e opressão colonial com suas políticas e epistemologias.
Segundo Souza (2008, p.140) “[...] depois do fim da escravatura as elites
brasileiras buscaram eliminar nossos laços com as culturas africanas e os
sinais de afro-descendência entre nós, sonhando com o branqueamento da
população”. Então, entende-se que historicamente a cultura afro-brasileira foi, e
é perseguida, se fazendo necessário escritas como esta, a fim de documentar
movimentos que lutam contra a invisibilidade cultural. Este exercício de escrita
enaltece a ideia de Hall (1989) onde parafraseando afirmo que, debater a arte e
cultura popular de uma população castigada pela colonização é uma forma de
reestabelecimento de sua ancestralidade mantendo viva as suas origens.

O carnaval soteropolitano foi o evento popular já devidamente


reconhecido onde ocorreu o surgimento do Swing Afro Baiano. A literatura

385
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

ainda diverge no debate sobre origem e tradução da palavra carnaval. Segundo


(Camargo e Barbosa, 2012):
O carnaval é um dos eventos que mais permitem a comunicação
lúdica por sua forte mensagem emocional, associada ao caráter
excepcional e transitório de milenar comemoração. Sua proposta
sempre foi celebrar a vida e a alegria, subverter o cotidiano e inverter
totalmente os valores pré-estabelecidos. (CAMARGO e BARBOSA,
2012, p.6)
Segundo os mesmos autores a palavra Carnaval é derivada de
carnevele do Latim, que é traduzida como “adeus a carne”. Os autores acima
neste trabalho estudam o carnaval em um formato oriundo do período pós
Renascentista, a partir da Europa Moderna.

O carnaval é uma celebração oriunda do Cristianismo Ocidental; a


festividade não tem data fixa no calendário; são contados 47 dias antes da
quaresma a partir da data da Páscoa, sempre ocorrendo próximo a lua nova.
Seguindo os preceitos católicos, no período carnavalesco é permitido o uso de
todos os insumos proscritos na quaresma; é uma espécie de despedida dos
excessos e libertinagens.

Por influência portuguesa/católica o carnaval é trazido a colônia - Brasil.


Como todo processo cultural veio sofrendo transformações no decorrer do
tempo. Para Hall (1996), cultura deve ser entendida como bem comum de um
coletivo, ou seja, através de significados e gestos partilhados por uma
determinada sociedade se entende a sua cultura. O autor considera que os
processos culturais estão em constantes movimentos de encaixe. Não se pode
entender cultura como algo estático.

Segundo a Revista Super Interessante (2009), o carnaval de Salvador foi


registrado no Guinness Book como o “maior carnaval de rua” do mundo, as
marcas ultrapassaram os 2 milhões de pessoas nas ruas, e 1 milhão de turistas
na cidade.

Ao pensar uma palavra para definição do carnaval de Salvador me vem


a palavra “encontro”. Encontro de pessoas, encontro de interesses, encontro de
culturas, encontro de ritmos, dentre outras inúmeras possibilidades de
encontros. Mas, o que ocorreu antes destes “encontros”? Muitos processos
ocorreram no mesmo período de tempo em localidades diferentes, dentro da

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mesma cidade. Com isto, chama-se atenção que este artigo não terá um
caráter cronológico regular, pois muitas ações descritas ocorreram de forma
simultânea em localidades diferentes, e depois tiveram seus “encontros”. Sobre
essa cronologia Risério (1981) cita:
Como bem disse Caetano, a coisa não anda linearmente: da
capoeira ao sintetizador, do sintetizador ao ijexá. Interessante, ainda,
notar que o Afoxé Filhos de Gandhi e o Trio Elétrico Dodô & Osmar
nasceram, ambos, no mesmo ano – 1949. Durante 30 anos, portanto,
eles se cruzaram pelas ruas de Salvador, nos dias de carnaval, mas
percorrendo caminhos paralelos[...] Foi só em 1979, a partir de
“Assim pintou Moçambique”, que o encontro se deu.( RISÉRIO,
1981,p.116)

O carnaval Soteropolitano teve inúmeras fases, na década de 30


enquanto a base da pirâmide social curtia sambas e batucadas pelos bairros a
alta sociedade curtia em clubes privados bailes à fantasia, era uma cópia
genuína dos grandes bailes europeus. Entre as décadas de 40 e 50 surge o
primeiro Afoxé da cidade, o Filhos de Gandhy, também ocorre o surgimento da
primeira escola de Samba da cidade. Inspirada no carnaval, a Ritmistas do
Samba. Ainda em 50 o primeiro protótipo do trio elétrico vai às ruas. Em 60
surgem por influência da mídia televisiva os blocos de índios, em sua maioria,
negros fantasiados de índios norte americanos curtindo o carnaval ao som de
sambas locais. Em 1974 surge o Ilê Aiyê, primeiro bloco afro do carnaval.
Todos esses coexistiram em diferentes locais, por diferentes públicos e
diferentes objetivos. O carnaval se tornou o ponto de encontro e a fusão entre
eles deram o formato da atual festa além de gestar novas possibilidades,
dentre elas, o Swing Afro Baiano.

Começando pelo surgimento do trio elétrico, segundo Risério (1981),


tudo começou em 1950 com a criação da Fobica156. Fobica foi a “matriz” do trio
elétrico, montado a bordo de um Ford com uma caixa amplificadora capaz de
emitir o som das guitarras elétricas dos “Irmãos Macêdo157”. A inspiração veio
do estado de Pernambuco quando seus criadores fizeram uma visita ao

156
criada em 1950, é a restauração de um Ford 1929, equipada com alto falantes e pintada
com vários círculos coloridos, o carro serviu como um palco itinerante, sendo o protótipo do trio
elétrico.
157
formado por Armandinho, Betinho, Aroldo e André Macêdo filhos do “Seu Osmar” criador da
Fobica, são músicos e lideram esse projeto de “frevo baiano”.

387
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

clube/bloco Vassourinhas. A ideia era montar um palco itinerante que pudesse


ultrapassar as paredes dos clubes em buscas das avenidas soteropolitanas. Os
criadores deste projeto foram Dodô, Osmar e Temístocles Aragão158, que
colocaram o mesmo em prática ainda ano vigente. Inspirado em um bloco
pernambucano, logicamente a trilha sonora iria seguir a mesma linha, o Frevo!
Este ganha espaço no carnaval baiano, porém; os “Irmãos Macêdo” resolveram
incrementar e dar uma nova roupagem a música, acompanhada do “pau
elétrico” (tipo de guitarra mais tarde chamada de guitarra baiana), aceleraram o
frevo e lançaram, assim, o que chamaram de Frevo Baiano. Segundo os
irmãos, para cativar as pessoas a estarem em constante movimento seguindo
o trio elétrico, se fazia necessário uma música mais frenética, mais acelerada.

Em entrevista ao Diário Popular (1981) relatou Osmar:


Foi tudo no mesmo ano, o Vassourinhas saiu na quarta-feira e no
domingo a gente já estava na rua. Aí o povo começou a pular, agente
tocando devagarinho subindo a ladeira. Formou-se um verdadeiro
rolo compressor humano de gente enlouquecida, subindo em direção
à Rua Chile. Nessa altura já uns 200 metros de gente pulando na
frente e ao lado e uns 200 metros de gente pulando atrás. Nessa
época as baianas também ficavam em plena Rua Chile, com seus
fogareiros fumegantes, fritando os acarajés. Eu e Dodô não sabíamos
mais por onde despejar tanta alegria. E daqui a pouco vem de lá o
famoso Fantoches da Euterpe, com seus arautos, tocando aquelas
cornetas, anunciando a passagem do grupo. Mais um pouco estou
vendo os cavaleiros se empinarem, caindo com corneta e tudo. Foi
uma confusão, fiquei com medo e disse para o motorista, o velho
Olegário – ‘Vamos parar se não a gente sai daqui preso’. E ele disse
– ‘ Não posso, a Fóbica já quebrou desde lá de baixo, quem está
empurrando é o povo. (RISÉRIO, 1981 apud GUERREIRO, 2000 p.
121)

A adesão do trio elétrico ao carnaval foi um sucesso, se tornou item


obrigatório da folia e logicamente ao passar dos anos a engenhoca vinha se
aprimorando cada vez mais, através dos erros vinham os acertos até que em
1969 a história começa a escrever um novo capítulo. Caetano Veloso compõe
uma canção chamada “Atrás do trio elétrico”, que impulsionou o Frevo Baiano
em todo território nacional.

A partir de 1970, os incrementos do Trio Tapajós criado pelo engenheiro


Orlando Tapajós deu “voz” ao trio elétrico. Com um som mais potente e com a

158
Adolfo Antônio do Nascimento e Osmar Álvares Macedo, ambos estudantes de música e
eletrônica desenvolveram projetos como o “pau elétrico, concedida como guitarra baiana, e
junto a Temístocles Aragão desenvolveram a Fobica.

388
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

possibilidade de equalização sonora, o trio passa a ter condições técnicas de


reproduzir o som de vozes e instrumentos simultaneamente.

O sucesso do carnaval baiano realmente ultrapassou todas as fronteiras


dos estados brasileiros, a mídia televisiva e escrita começam a dar atenção
aquele movimento; a festa passou a ser objeto de desejo. Em escrita de Luís
Carlos Maciel à Revista Veja (apud GUERREIRO 2012, p. 124): “Não há mais
nada a fazer. O verão está maravilhoso, o carnaval baiano vai ser fantástico,
com todas as pessoas em Salvador.” Matérias assim na véspera do festejo era
um marketing direto.

Segundo Risério (1981), o carnaval baiano teve uma projeção nacional


pela sua característica de festa popular de rua. Enquanto Salvador derrubava
os “muros” e portões dos clubes tornando a festa pública, o Rio de Janeiro se
converteu a um espetáculo privado a uma plateia restrita e pagante. Desta
forma, o autor acredita que o carnaval baiano foi potencializado.

Final da década de 80, mais precisamente em 1989 novamente o


carnaval ganha novas configurações, surge à ideia de “privatização” das ruas.
Sim! O carnaval que ganhou notoriedade por ser uma festa aberta a todos,
começa a andar na contramão.

Naquele ano, surgem os blocos privados, cuja ferramenta separatista


eram as cordas4 que literalmente apartavam o público nas ruas, no interior das
mesmas, os associados pagantes, no exterior, a massa, conhecida como
pipoca.

Estes blocos em sua grande maioria possuíam um viés capitalista sem


nenhuma perspectiva cultural ou política, diferentemente dos blocos afro que
irão ser apresentados.

Utilizada pela primeira vez em 1987 a expressão “Axé Music” batizou


este movimento musical que surgia nos carnavais junto aos blocos de trio. No
documentário “Axé o Canto de um Povo159” (2017), o jornalista Hagamenom
Brito160 afirma que quando utilizou esta expressão, a mesma tinha um sentido
pejorativo, mesmo assim, toda a mídia começou a replicar. Logo a expressão

159
Documentário: “Axé Canto de um povo de um lugar(2017)”, dirigido por Chico Kertész
160
Repórter e critico musical , foi o responsável por nomear o “Axé Music”

389
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

começou a se popularizar passando a definir a música baiana carnavalesca.


Antes disso existiam diversas nomenclaturas como: Samba Reggae, Afoxé,
Música de trio, dentre outras que foram sintetizadas através da expressão “Axé
Music”.

Como já dito o carnaval é feito de encontros, muitos movimentos


aconteciam simultaneamente em diversos pontos da cidade, porém, sem
contato uns com os outros. Paralelo a este contexto comercial que o carnaval
vinha tomando através do desenvolvimento dos trios elétricos aconteciam nos
bairros às formações dos blocos afro e os afoxés. Estes certamente são
responsáveis por processos de emancipação cultural do povo negro.

Muitas pessoas não conseguem ao certo diferenciar blocos de Afoxé e


blocos Afro. Afoxés saem tendo como principal objetivo o compromisso
histórico com candomblé e seus instrumentos são considerados sagrados. Os
blocos afro não possuem obrigações religiosas, com exceção do Ilê Aiyê, que
realizam padês. Padês são rituais do candomblé neste caso, com o intuito de
pedir “agô”, licença em Iorubá, para que todos os associados e pessoas que
circundam os blocos possam ter um desfile de paz. O principal objetivo dos
blocos afro envolvem um resgate politico e estético da diáspora. Em entrevista
a Martins (2017), Eduardo Santana relata:

Manoel Quirino que vai desenhar pra você essa história dessas
organizações carnavalescas negras desde o século XIX. Desde os
Pândegos da África, Embaixada Africana. Isso dá um outro desenho.
Porque os blocos, quer dizer eles eram afro porque traziam uma
temática afro, mas na verdade eles eram afoxés. A Embaixada
Africana era um afoxezão, inclusive com os instrumentos mesmo do
candomblé, como são os afoxés hoje. Não sei se você já viu alguma
coisa sobre a história da Embaixada, que eles foram pro carnaval de
1898 pra reivindicar a indenização das famílias da Revolta dos Malês.
Foi o tema do carnaval deles. Eles inclusive fizerem panfletos,
fizeram tema. Olha como são as coisas. E o tema era essa não sei o
que lá do Reino da Suazilândia. Eles diziam que se o governo no
Brasil não indenizasse as famílias dos Malês, que sofreram a
perseguição na revolta em 35, que o Reino da Suazilândia na África
ia invadir Salvador. Pensa ai o que é isso. Quer dizer, fizeram mesmo
o tema. Mandaram pro jornal da época. Não sei se era Álamo ou
Alabama. Um jornal daquele da época. Foram pra rua com carro
alegórico, fizeram um elefante. É um bloco afro no século XIX.
Manoel Quirino traz isso no livro dele. Nina Rodrigues fala muito
rapidamente naquele “Os africanos no Brasil”. Você vai buscando aí
esses caras. Então vale contextualizar essa história dessas entidades
carnavalescas negras desde o século XIX. E obviamente

390
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

caracterizando onde entra o afoxé, como é que entra o bloco afro,


quando é que eles se separam. (Eduardo Santana, entrevista
realizada em abril de 2014, apud MARTINS, 2017, p. 228)

Dentre outros pontos que diferenciam os Afoxés dos demais blocos é a


questão estética. As indumentárias são referentes aos Orixás homenageados
por cada bloco, além disso, a rítmica e as danças são todas provindas do
terreiro.

Os Afoxés abrem no carnaval o espaço de existência e resistência da


população afro-brasileira, onde dividia os espaços públicos com a elite branca
da cidade. Ali esta população ressaltava a importância dos mitos e ritos
provindos da religiosidade africana, estabelecendo a preservação da cultura
diaspórica. Sengundo Martins (2017, p 231):

Por essa lógica pode-se considerar que a transposição do


Candomblé para as ruas durante o carnaval, significou um
posicionamento político diante de uma sociedade excludente que via
nas manifestações africanas um símbolo do atraso cultural.
(MARTINS, 2017, p 231)

Segundo Humberto Café (apud GUERREIRO, 2000, p.73), um dos


diretores do Gandhy afirma que o nome do bloco veio como alerta: primeiro
pela questão da perseguição a religião do candomblé e segundo pela
necessidade de demonstrar a ideia de desfilar pacificamente, daí usar o nome
de Gandhi que era precursor da paz no mundo.

A existência dos blocos afro é um posicionamento político-cultural que


garante a desconstrução de mitos e estórias contadas por trás de uma
colonização de políticas sangrentas e opressoras.

É muito importante que os órgãos públicos e a população entendam que


a permanência dos blocos afro ultrapassa uma proposta carnavalesca, na
medida em que os mesmos se constituem como organizações sócio-culturais
que primam a valorização da cultura negra.

O primeiro bloco afro surge na década de 70, segundo Antônio Risério


(1981) o Ilê Aiyê é o primeiro responsável pelos novos rumos. Com o
surgimento de blocos como o Ilê é decretado o enfraquecimento dos blocos de

391
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

índio que em sua grande maioria era composto por negros que agora tinham
uma proposta de bloco que lhes cause mais empatia. O bloco trás a avenida a
identidade negra através da música, da dança, da vestimenta, e acima de tudo
do orgulho em ser negro. O bloco também vem marcar a presença do negro
nas ruas, é uma apresentação de um universo “exclusivamente” negro.

Após o Ilê surgem outros grandes blocos afro como: Ara Ketu, Malê
Debalê, Olodum, Muzenza, dentre outros não menos importantes. Seguindo a
configuração de movimentos da Cultura Negra proposto por Ligiero (2011), a
tríplice do Cantar, Dançar e Batucar, se faz presente nos Blocos Afro, dando
espaço para uma dança especificamente negra nas ruas de Salvador. É
importante salientar que todos os blocos afro promovem ações e movimentos
sociais no decorrer do ano em seus bairros. São oficinas, cursos, creches,
dentre outras atividades que promovem a construção de um cidadão melhor.

Proveniente do bairro de Itapuã, o Malê Debalê foi o primeiro bloco a


possuir uma ala específica de dança no seu desfile. Em trecho do Livro: A
Trama dos Tambores, de Goli Guerreiro (2000): “Fomos nós que percebemos a
força da dança que nasceu nas quadras dos ensaios dos blocos. Foi o Malê
Debalê o primeiro a trazer para a avenida sua ala de dança organizada”(pg 39
e 40), esta afirmação foi de Josélio de Araújo, presidente do Malê Debalê.

Também nas quadras do Olodum se viam grupos de dança ainda em


formação surgindo. Dançarinos como: Antônio Cozido, Nonga, Roberto
Mesquita, Capitão América, Glaubert, Cristiano dentre outros frequentavam os
ensaios e por conta própria abrilhantavam o evento com danças que buscavam
interação das pessoas que ali estavam. É valido ressaltar que esses nomes
citados foram formadores dos primeiros grupos de dança voltados ao Swing
Afro Baiano: Troupe Dance, Grupo Farol e Suingue Raça.

Os blocos afro fortaleceram a ideia da dança no carnaval e foram


responsáveis pela construção de inúmeros dançarinos. Grande parte das
movimentações aplicadas nas bandas de Axé são provenientes de danças
aprendidas e inspiradas nestes blocos, assim como diversas musicas destes
foram gravadas por diversos artistas do “pop” baiano, a exemplo de Daniela
Mercury e Margareth Menezes.

392
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Antônio Cozido é peça fundamental para o estudo do Swing Afro Baiano,


o mesmo não se declara criador, mas foi responsável por entender e nomear
um movimento que ali vinha ganhando forma. Em entrevista para o autor deste
artigo Cozido relata:
“... Observando no carnaval quando chegávamos para dançar, eu
comecei a ter uma observação mais clínica, o olho mais clínico de ver
como as pessoas se comportavam sem ser bailarinos, sem ser com
técnicas, sem ser com braço, sem ser nada disso. Existia um
movimento que estava surgindo que era imperceptível, porque era
muita gente se movimentando, mas não tinha ninguém fazendo
pesquisa, a não ser meu olho que estava lá...” (COZIDO, 2020)

“[...] o movimento como “aquele” fez. E isso ia gerando uma


informação, efeito dominó de telefone sem fio do movimento. Onde
cada um ia tentando reproduzir uma coisa que não dava certo e que
achava engraçada e ia. E ai eu fui observando que tava ali surgindo.”
(COZIDO, 2020)

Mas quem foi Cozido?! Sua primeira formação foi com Mestre King no
Sesc, com a perspectiva da Dança dos Orixás, depois formou-se em Dança
pela Universidade Federal da Bahia onde também se especializou em
Coreografia. Além destas formações acadêmicas o artista dançou Balé, Jazz.
Moderno, Contemporâneo além de danças populares onde desenvolveu seu
contato com os Blocos Afro. Cozido colecionou experiências no carnaval,
dançou por alguns anos no Muzenza e no Ara Ketu, bloco onde posteriormente
se tornara coreografo, além de ser frequentador assíduo dos ensaios do
Olodum e se tornar o primeiro dançarino de banda de Axé, com a cantora
Daniela Mercury. Antes dançarinos não ficavam no alto do trio elétrico, o
trabalho dos mesmos era feito no solo, até que a cantora faz o convite a
Cozido.
[...] Mas aqui em Salvador eu posso te dizer categórico: não existia
nada! O que existia em cima do trio não era dança. Era aeróbico, a
gente começou... quando Daniela começou a querer colocar
dançarino que era eu e o Erivaldo, Eri. Nós dois entramos no primeiro
CD de Daniela chamado Swing da Cor. Ela tinha dois dançarinos, foi
ali que nós começamos a abrir as portas dos palcos para bailarinos, e
eu na época falava assim! Olhe só! Eu estou falando da rua para o
palco. A primeira cantora a botar dançarino, quiçá no Brasil, foi
161
Daniela Mercury. Depois entrou com a gente Sueli que era minha
ex esposa e Estelinha, depois logo em seguida que elas entraram
Daniela optou pela formação com três mulheres. Ela e mais duas
back vocals, e ai entrou Sueli como bailarina e Estelinha, as duas

161
Sueli Machado Ramos: Mestre em Dança pela Universidade Federal da Bahia, primeira
dançarina de banda de axé – Daniela Mercury

393
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

back vocals e dançarinas. Então ficaram as duas e nós dois saímos.


Quando nós saímos eu fui a partir dali, opa! Vou pegar esse rumo, e
ai virei coreógrafo de algumas outras bandas: Cheiro de Amor,
Bandabá, comecei com essas experiência que eu tive com Daniela,
comecei a fazer o trabalho de norteamento de palco e criação de
coreografia para algumas bandas, como o meu nome era um nome
que era muito falado na época, década de 90, então eu fui chamado
para várias bandas, nisso eu já era professor de Saulo, Claudia Leite,
Tomate, Andre Lelys, Adriana Ribeiro, Joca, Jorge Zarath, Margareth,
Tatau, Kátia Guima. Então a vida é muito boa com a gente, então se
você faz a coisa certa você vai ter o retorno.”(COZIDO, 2020)

Com toda bagagem adquirida entre os blocos afro e as bandas de axé, o


artista percebe que a pessoas perdem a timidez, com isso se sentem a vontade
em cair na dança. Naquele momento as danças ultrapassavam os padrões do
samba, das danças dos blocos afro e das danças de batucadas. Os
movimentos simplesmente surgiam e outros copiavam, cada um da sua forma.
No entanto o dançarino notava que não existiam espaços destinados a prática
destas danças; daí surge a ideia de nomear este movimento e levar para o
ambiente das academias de ginástica. No primeiro momento a aula seria um
teste, um ensaio para o carnaval daquele ano. A academia Paulo Fraga era
situada em um bairro nobre da cidade, Pituba, e o resultado foi de tamanho
sucesso que estes “ensaios de carnaval” jamais deixaram de existir, e Cozido
construiu um legado. Em entrevista ao Programa Nomes, no ano de 2015,
Cozido relata:

[...] houve a necessidade de se mostrar o porquê e como se dança


essa música, e as pessoas não sabiam como eu já estava ali na
minha ferramenta de trabalho que era a dança eu comecei a tomar
posse disso! Alguém precisa levar isso para as academias. Como eu
já começava a dar aula de lambada, e nas aulas de lambada eu
colocava Dança da Galinha, Deboche, Fricote, Tititi, pra soltar o
quadril das pessoas que já gostavam desse tipo de dança [...] Lembra
da dança do tortinho? Dança do tortinho! Final dos anos 80! [...]
Naquela época você tinha a dança do carnaval, de lá pra cá
passaram-se alguns anos, continuaram os passos, a gente
continuava só em bloco afro, que você via coreografia, que eram
aquelas alas de dança que você via no Ara Ketu, quando o Ara Ketu
ainda era só percussivo. Quando as bandas começaram a perceber
que o que era cantado em cima o povo sozinho fazia em baixo, eles
começaram do meio da década de 90 pra cá a inserir na letra o
comando da coreografia.(COZIDO, 2015)
A partir deste projeto nas academias Cozido precisou dar um nome
aquela aula, foi então que surgiu a ideia do Swing Afro Baiano.
[...] porque que surgiu o Swing Baiano? Por essa necessidade de ao
invés de ficar fazendo passinho, ter uma dança para as pessoas
aprenderem, eu descobri que tinha a necessidade! Então quando eu

394
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

criei o Swing Baiano, que não era Swing Afro Baiano, era Afro de
Rua, coloquei o primeiro nome e não gostei, Afro Carnavalesco,
também não gostei, porque a minha história começou no Afro, depois
que eu fui para Universidade fiz faculdade e fiz pós graduação em
162
Dança ! Mas, antes disso a minha história começou na dança afro
com Mestre King, então eu depois comecei com esses nomes não
gostei, então peraê! Swing quer dizer ginga, molejo, mistura, tá aí um
nome, Swing Afro Baiano, o Swing Afro da Bahia, que é o que a
gente vê hoje na música, na dança, porque hoje todas essas bandas
que chegaram ou copiaram o Tchan, ou copiaram Daniela ou
copiaram Netinho, porque Ivete chegou depois que Daniela estava
fazendo coreografia[...] (COZIDO, 2020)

O nome foi pensado a partir de palavras que pudessem descrever parte


da riqueza ali contida. Swing vem de movimento, dança, mistura, Afro remete a
origem dessa dança, proveniente dos ensinamentos adquiridos com Mestre
King, e Baiano para afirmar ao mundo qual ponto geográfico surgiu esse
movimento.

O Swing Afro Baiano ganha dimensões absurdas, a dança era item


obrigatório nas musicas baianas, o “É o Tchan” mostrou ao mundo a força da
dança, seus bailarinos ainda hoje lembrados eram mais reconhecidos que os
próprios cantores, enquanto isso o Swing Baiano se espalha pelo Brasil, os
nomes mudam de acordo com a região: lambaeróbica, swingueira, ritmos, free
dance, dentre outros, porém todos com a mesma essência.

Contrário ao que se imagina a relação do Swing Afro Baiano com o


Fitness não se dá apenas pelo local aonde suas aulas foram iniciadas. Entre a
década de 80 e 90 as academias vivam o boom das aulas coletivas; os
ambientes deixaram de ser exclusivamente masculinos e os halteres passam a
dividir espaço com novas possibilidades de trabalho corporal. Aulas de
ginástica conduzidas com o apoio musical e sequências de movimentos
programados era febre. Todos os anos programas de aulas eram lançados e as
feiras fitness estavam sedentas por lançarem novos produtos. “Programas de
aulas” são pacotes de aulas com “metodologias próprias” desenvolvidos por
empresas. Profissionais fazem seus cursos e pagam mensalidades para o
direito de uso de marca do programa, assim recebendo periodicamente novos
conteúdos de aulas propostos pela central da empresa. Este é um formato
questionado visando que as aulas são preparadas com foco no atendimento de
massa assim não tendo conhecimento de necessidades individuais de cada
162
Curso de Especialização em coreografia na Universidade Federal da Bahia

395
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

turma ou aluno. No Brasil no inicio da década de 90 o grupo Neozelândes


LesMills inaugura seu escritório em São Paulo se tornando o maior franqueador
de “programas de aula” através do Sistema Body Sistem com suas diversas
modalidades de aula.

Nesse contexto, Cozido começa a ser assediado pelas feiras,


congressos e convenções do fitness. Dentre os principais está o ENAF
(Encontro Nacional de Atividade Física), este um dos maiores da época.

[...] Eu levei 10 anos dando aula no ENAF, ou seja, ali você tem
turmas de 400 pessoas. Eram três dias, quatro horas, você tinha 12
horas só comigo. Fora os outros cursos, e além disso eu tinha um ou
dois Master Class de uma hora ou duas no palco[...] (COZIDO, 2020)

As aulas do ENAF aconteciam para um público bastante diverso, as


convenções eram frequentadas por pessoas do Brasil e da América Latina
inteira. Estes eventos buscavam trazer as novidades do mercado, e com esta
perspectiva mercadológica o ENAF aposta no Swing Afro Baiano quanto
perspectiva de modalidade de Dança.

Neste contexto, a indústria fitness entende a dança como uma


possibilidade lúdica de alto consumo energético através da repetição de
movimentos padronizados. Cozido por sua vez, sempre acreditou na Dança
quanto agente de transformação com perspectiva artística e cultural. Por
muitas vezes essas diferenças geravam confronto de ideais e interesses entre
o mesmo e os eventos. Mesmo assim, o artista buscava formas de driblar os
padrões estabelecidos pela indústria e tentava multiplicar o seu conceito de
Dança.

Se tem uma coisa que eu não gosto de fazer é o Master Class.


Porque é tipo Workout, porque era coisa rápida, e meu trabalho era
de dança, compreensão, entendimento, do movimento. Ele não dá
para ser rápido. Porque se eu subo no palco e começo a dançar eu
virei artista. Eu não virei professor! Minha bronca com o pessoal é
essa, “- não copiem meu movimento, experimentem meu movimento!
Experimentem, se utilizem, podem fazer o que quiserem com ele,
faça uso, mas faça o bom uso desse movimento! Tentem descobrir,
tentei me descobrir, tem perceber, tentem se perceber, fazendo o
movimento, esse movimento ele nasce comigo mas ele não é meu!
Ele não é meu! Ele nasceu aqui comigo para passar para vocês. Mas

396
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

ele não é meu! Eu copiei de alguém, só que quando ele cai no meu
corpo ele se transforma! Que ele tem a minha energia, eu quero que
vocês entendam isso, pois quando esse movimento cair no corpo de
vocês, eu quero que vocês assumam a energia de vocês! A energia
do Pará, a energia de Sergipe, a energia de Alagoas, a energia de
Pernambuco, a energia do Rio de Janeiro! Cada estado desse, cada
região do país, tem.... eu defendia muito a do Ceara, naquela época,
nos eventos de Fortaleza no Especial Lazer, eu to trazendo para
vocês o Swing Afro Baiano, mas vocês um ritmo aqui muito forte que
é o forró, usem a aula de forró como aula de aeróbica, eu dizia isso
naquela época para as pessoas. E eu trazia de vez em quando umas
aulas que eu preparava, uns movimentos. Eu digo, ó, faz o seguinte:
eu tenho uma coisa comigo chamada sabatina, que é um evento que
eu faço dentro da minha aula, onde eu coloco uma música de
qualquer ritmo e todas as pessoas que estão na minha aula vão ter
que primeiro colar nos meus quatro movimentos e depois que colar
nos meus movimentos, cada um vai ter que criar mais quatro
movimentos e assim vai virando uma sequência que cada um vai
parindo em cima do que foi feito. Sem sair do tema, sem sair da
proposta, sem sair do ritmo.(COZIDO, 2020)

Nota-se que Cozido nunca teve uma pretensão em direcionar a sua


Dança ao fitness ou a Educação Física. A relação do Swing Afro Baiano com
essa área começou a se dar pela boa aceitação das academias de
musculação, e com isso a indústria fitness percebe a dança como um produto.
Esta aceitação acabou direcionando Cozido as feiras fitness, o que fortaleceu a
ideia desta dança ser reduzida a uma modalidade de ginástica. Hoje existem
vários tensionamentos envolvendo o Swing Baiano, o principal deles esta na
luta pelo Conselho Federal de Educação Física em tentar juridicamente
reconhecer esta dança como algo exclusivo dos profissionais de educação
física. Outros debate necessário é sobre programas de dança como a Fitdance
que se apropria de métodos e praticas do Swing Baiano, extinguindo
propositalmente o nome Swing Baiano das academias, assim gerando seu
monopólio de mercado e contribuindo cada vez mais com o apagamento
histórico e cultural de mais uma dança afro-brasileira, o Swing Afro Baiano,
também conhecido como dança de rua da Bahia.

Pesquisar, estudar e escrever sobre esse movimento vai além de falar


do carnaval, movimento popular ou folclore, é entender: diáspora, africanidade
e legados em construção. Segundo Hall (2003), estudar a cultura popular, é
entender os hábitos e costumes dos menos favorecidos na pirâmide social,
tendo muitas vezes histórias desconexas da cultura das classes dominantes.
Com isto, escritas sobre sua história acabam se tornando um conteúdo muitas
vezes escasso.
397
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

As identidades nacionais não subordinam todas as outras formas de


diferenças e não são livres do jogo de poder, de divisões e
contradições internas, de lealdades e de diferenças sobrepostas.
(Hall, 1987, p 65)

É necessário incentivar a ampliação de estudos que tratem desta


temática para que pessoas deixem de ter um olhar mais raso sobre esta
Dança. É necessária uma luta política e educacional para que o legado do
Swing Afro Baiano possa continuar perpetuando e representando as raízes do
povo baiano, da base da pirâmide, dos pretos e dos guetos dessa cidade e
desse carnaval.

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO

CAMARGO,O.L; BARBOSA, F.M; O Carnaval Ancestral como contraponto do


cotidiano e sua banalização nas sociedades modernas, Revista IARA, Volume
5, São Paulo.

GUERREIRO, Goli. A trama dos tambores – a música afro-pop de


Salvador. São Paulo, editora 34, 2000.

HALL, S. Identidade Cultural e Diáspora. Revista do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional. nº 24, 1996.
LAO-MONTES, A. (2007). Avanços descoloniais: “Translocalizando” os
espaços da diáspora africana. Tabula Rasa, Bogotá, Colombia, 1(7), 47-79.

LIGIERO, Zeca, O conceito de “motrizes culturais” aplicado às praticas


performativas afro-brasileiras, Revista Pós Ci. Soc. V8, n16, 2011

MARTINS, D.G.M, Minha carne não é só de carnaval: por outra abordagem


teórica sobre a atuação dos blocos afro de Salvador, UNICAMP, Trabalho
de doutoramento, SP, 2017.

RISÉRIO, Antônio. 1981. Carnaval Ijexá: notas sobre afoxés e blocos do


novo carnaval afrobaiano. Salvador: Corrupio.

398
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

SOUZA, Mariana de Mello e. África e Brasil africano.2.ed.São Paulo: Ática,


2008.

ENTREVISTAS

COZIDO, A.C.L. Depoimento [Julho. 2020]. Entrevistador. Eric Barbosa Araújo,


Bahia, Universidade Federal da Bahia, 2020, Entrevista eletrônica por vídeo
chamada. Link 1:
https://www.instagram.com/tv/CCrPZwUnCdXhBgZnBFQyfyImaWatFurK_JIeTY
0/?igshid=1i3f33ztc12ms link 2:
https://www.instagram.com/tv/CCrT2vNHmWNyiX2UMcrTxTKrU5Fmkk6PIhISq
Q0/?igshid=9ve5qfbsxwfv

Programa Nomes - Cozido (2015):


http://www.programanomes.com.br/videos/programa-nomes---entrevista-com-
antonio-cozido---bloco-ii-53.aspx (acessado em 20 de julho de 2020 as 12:19)

Programa Sem Edição Cozido (2017):


https://www.youtube.com/watch?v=7bbAambWkCc&t=1107s ( acessado em 26
de julho de 2020 as 14:05

LINKS:

Guiness book – salvador maior festa de rua do mundo

Revista Super Interessante – acessado em 17 de maio de 2020 as 14:35

https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-carnaval-que-bomba-mais-e-o-de-
salvador-ou-o-do-rio/

399
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

ARROMBA CHÃO QUE ANIMA O SALÃO,


QUADRILHA DE SÃO JOÃO!:
MEMÓRIAS, DANÇAS E TRANSFORMAÇÕES DAS
QUADRILHAS JUNINAS EM SALVADOR
Soiane Gomes (PPGDANCA/UFBA)

A pesquisa “Arromba Chão Que Anima o Salão,Quadrilha de São João!”


Memórias, Danças e Transformações das Quadrilhas Juninas Em Salvador,
está concentrada na linha temática 3 - Mediações Culturais e Educacionais em
Dança, do Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Dança da
Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. Tem como objetivo
principal, compreender as transformações que vem se dando nas Quadrilhas
Juninas da Região Metropolitana de Salvador (RMS), quanto à maneira como
vêm produzindo seus espetáculos juninos, a partir de suas participações nos
Concursos de Quadrilhas surgidos na década de 1970.

De acordo com as pesquisas de Lúcia Aquino de Queiroz (2002, apud


CASTRO, 2012, p. 22) “na cidade de Salvador já se faziam menções à
racionalização temporal de algumas festas a partir de uma proposição de um
calendário festivo na década de 1960”.

Além disso, este estudo busca tecer uma discussão sobre as danças
populares brasileiras, os repertórios tradicionais e os processos de
(re)significações motivados e/ou impostos pela transmutação cultural, os
impactos das relações econômicas de consumo e as políticas públicas e de
salvaguarda para memória e autosustentabilidade desses grupos.

Entendendo que as danças brasileiras, as quais chamamos de


“populares”, são frutos de um processo de “interações entre os dois tipos de
cultura” (MONTEIRO, 2011, p. 26), definidas como “a cultura erudita ou letrada,
voltada para a tradição clássica [...] demarca-se da tradição oral, que passa a
ser definida negativamente” (IDEM, p. 25). O convívio entre as duas tradições
culturais se intensificou, ao longo do período colonial até os dias de hoje, “em
razão da evangelização e da difusão da Bíblia” (IDEM, p. 26).

400
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

A importância deste estudo para um Programa de Pós-Graduação em


Dança no contexto em que se situa, se dá no fato de que as quadrilhas juninas
da Bahia até o momento não tinham sido temática de pesquisa neste
programa, sendo esta a primeira à nível de mestrado e também, na área
específica de dança.

A contribuição social também deve ser levada em consideração pois os


referidos grupos de quadrilha atuam em bairros periféricos, tem caráter coletivo
e desenvolvem habilidades profissionais em dança, teatro, musica, costura,
cenografia, produção, os quais, geram economia e renda, produzem
conhecimento e incluem crianças e jovens em torno do fazer artístico.

Como uma postura política de pôr em exercício a decolonialidade na


escrita acadêmica, as expressões que fazem parte do repertório cultural e
portanto, conceitual das quadrilhas juninas, estão presentes no discurso seja a
partir de trechos de músicas nordestinas, largamente utilizada nas festas
juninas, seja pelo emprego de expressões êmicas ao longo do texto.

Os grupos de quadrilhas juninas de Salvador são oriundas de bairros


populares como Uruguai, Pau Miúdo, Liberdade, São Caetano, Cabula,
Subúrbio Ferroviário, dentre outros; na sua maioria se configuram como grupos
culturais sem personalidade jurídica163, reunindo cerca de 150 pessoas, direta
e indiretamente, entre crianças, jovens e adultos nas funções artísticas,
técnicas, e/ou administrativas.

Na sua maioria são sujeitos que geralmente não tem condições


privilegiadas, que exercem as mais variadas atividades profissionais, como
professores de diversas áreas, estudantes, vendedores, motoristas, atendentes
de telemarketing, músicos, dançarinos, administradores, dentre outros. São
predominantemente pessoas negras, adeptos dos cultos religiosos de matrizes
africanas, são, também, participantes/atuantes do ciclo carnavalesco através
de Blocos Afros e Afoxés, além de participarem de Bandas Marciais, Fanfarras
escolares e grupos de Valsa.

163
Não estão inscritas no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) o que dificulta a
participação em editais e a captação de recursos públicos.

401
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O ator, diretor, coreógrafo e marcador Paulo Ornellas nascido na cidade


baixa, na região dos Alagados, bairro do Uruguai, fala um pouco do contexto
social e geográfico em que os grupos de quadrilha surgem:

Quando a gente se envolve com a quadrilha junina é algo diferente. É


inerente ao local que você vive, está ligada à comunidade pobre, à
essa ideia do comunitário. E a gente era daquele meio ali, era
Alagados, Jardim Cruzeiro, se você observar as quadrilhas sempre
nascem nesses pontos. Era um envolvimento que acaba trazendo a
socialização, as novas amizades, as paixões, enfim. Isso acabou
criando a raiz das quadrilhas juninas nos bairros.(Paulo Ornellas, em
entrevista 24/05/2019).

Origens e transformações das quadrilhas juninas

Olha pro céu amor, vê como ele está lindo!


Olha pr’aquele balão multicor, que lá no céu vai sumindo!
Foi numa noite, igual à essa, que tu me deste o seu coração.
O céu estava, assim em festa, pois era noite de São João.
Havia balões no ar, xote, baião no salão!
E no terreiro o teu olhar, que incendiou meu coração!
(José Fernandes/Luiz Gonzaga, 1951)

Enquanto brasileiros e nordestinos temos bastante aproximação com as


festas juninas, uma festa complexa que abarca múltiplas expressões e
símbolos culturais, históricos, sociais e religiosos. Relacionamo-nos com estes
símbolos de maneira espontânea, sem ao menos compreender suas
particularidades e interrelações. É necessário lançar um breve olhar sobre
alguns pontos importantes que colabora no entendimento da presença das
quadrilhas, como parte de nossas expressões culturais, nas festas juninas
brasileiras.

Começo com uma pequena definição deste objeto de estudo, aqui


pontuado pela pesquisadora e antropóloga Luciana Chianca:

Originária de uma contradança de mesmo nome trazida ao Brasil pela


corte imperial portuguesa, ela teve suas figuras e passos modificados
ao longo do tempo e dos lugares em que foi sendo executada. A
princípio eram quatro ou oito casais que se organizavam em duas filas,
uma em frente à outra, com as quatro extremidades formando um

402
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

quadrado – daí seu nome francês, quadrilles (em espanhol, cuadrilhas;


em italiano, quadriglia).(CHIANCA, 2007, p. 50)

Encontra-se referência sobre danças de pares na história dos


povos chamados pagãos, em rituais ligados à mudança de estação, solstícios
de verão europeu, e na relação com a agricultura, colheita e uso da fogueira.
Sobre este aspecto diz-no o pesquisador Osvaldo Meira Trigueiro (1995) que:

Os povos antigos, antes da cristianização, festejavam a passagem dos


quatro tempos do mundo com rituais em que o profano se misturava
com o sagrado. As práticas de culto ao fogo, as supertições, crenças e
tantas outras manifestações ligadas ao calendário agrário tinham no
solstício (23 de junho) e no equinócio (23 de setembro) datas
importantes para a compreensão do mundo e suas relações com as
divindades protetoras da fertilidade da terra e dos homens
(TRIGUEIRO, 1995, p.155).

O domínio dos povos europeus que aqui se instalaram, como espanhóis,


portugueses, franceses, holandeses, italianos, alemães e seu projeto de
colonização, explica os motivos da existência entre nós, de suas línguas,
costumes, organização social, religião, modelo de educação que foi imposta
aos povos colonizados que viviam em liberdade, como os povos indígenas e
posteriormente, os povos africanos, ambos sofreram a escravização imposta
pelo colonizador.

No século XIX, com a chegada da Família Real Portuguesa em 1808,


teriam sido estes os responsáveis por trazerem os costumes da " Dança de
Corte" que posteriormente, se configurou enquanto “quadrilha”.

A etnomusicóloga Rosa Maria Zamith desenvolveu um estudo histórico,


coreográfico e musical da quadrilha na cidade do Rio de Janeiro, centrando a
pesquisa no século 19, e diz em seu artigo “A Dança Da Quadrilha Na Cidade
Do Rio De Janeiro: sua importância na sociedade oitocentista” (2007), a
respeito da quadrilha:

A quadrilha é uma dança de longa existência, havendo dela registros


perpassando séculos com variações em tempo e espaço. Resultado da
união de elementos de danças européias que se amalgamaram no
decorrer do tempo – especialmente modalidades de contradanças que
se uniram pouco a pouco e não pararam de se transformar –, ela chega
ao Brasil possivelmente no segundo quartel do século 19, como uma
das marcas das tradições francesas na cultura brasileira, e tem grande
destaque no repertório dos bailes da sociedade fluminense (ZAMITH, P.
114, 2007 )

403
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

A referida pesquisa de Zamith realizou o levantamento das partituras de


quadrilhas em acervos públicos localizados na capital fluminense e as
informações obtidas apontaram para o período que começa no Segundo
Reinado e se estende até ao início da República como aquele de expansão do
gênero no meio musical e social. A autora inicia trazendo uma importante
informação:

Como baliza inicial, a quadrilha A Coroação de S. M. I. D. Pedro 2o ;


Collecção de Quatro Quadrilhas; três de contredanças e huma de
valsas, dedicadas [a] Família Imperial e compostas por L. F. Milliet,
Chef d’Orchestra dos Bailes da Corte e arranjadas para Forte Piano
pelo professor Cos Neytz. As quatro quadrilhas da coleção foram
nomeadas Don Pedro 2 o , Dona Januária , Dona Francisca e Maria
Amélia. Esse conjunto de danças, cujo título geral aponta a vinculação
da composição com a festa na qual Pedro de Alcântara é sagrado e
coroado Imperador do Brasil, em 18 de julho de 1841, com o nome de
D. Pedro II (ZAMITH, p. 115, 2007)

Considerando o processo histórico, as conjunturas, seus valores e


normas, acredita-se que a depender desses fatores, o movimento da sociedade
da época se transformava, nesse sentido, as mudanças ocorridas no século
XIX, tendo como marco, a Proclamação da República, os hábitos da Corte
foram evitados pelos citadinos e absorvido pelos povos do campo, a exemplo
da Dança da Quadrilha.

Já no século XX, marcado pelas migrações do campo para cidade,


ocasiona a presença e cultura de aspectos rurais, cuja repercussão
que diferia de “modelo” oficial, imposto pelas normas do estado e
igreja, é gerado por veículos de comunicação e difusão, tais como a
literatura, a televisão e o cinema, o Jeca Tatu, um estereótipo para
designar o ‘Caipira’ (CHIANCA, 2007, p. 55).

Pode-se constatar ao olhar o personagem Jeca Tatu, criado pelo escritor


paulista Monteiro Lobato, reforçado pelo ator paulista Mazzaropi, também o
personagem Chico Bento, criado pelo cartunista paulista Maurício de Sousa e
outros como a do cowboy norte-americano e às vezes o gaúcho argentino.
Ressaltam uma estética “rural universal”, que se tornou sinônimo de festa
junina no Brasil, conforme chama atenção os estudos de CHIANCA (2007).

Transição de elementos culturais

Pesquisas anteriores demonstraram as origens históricas e trajetórias


socioculturais da quadrilha antes e depois de chegar ao Brasil, as sucessivas

404
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

assimilações, alterações e adaptações que foram sofrendo a cada lugar, época


e contexto geopolítico foram mencionados nos trabalhos de Chianca (2004) e
Leal (2004).

O texto de Leal (2004, p. 25), avança no sentido de explicar como as


danças camponesas, em países europeus, chegaram até os palácios. A autora
diz que os nobres, ávidos por novidades, recebiam o Jogral para ensinar as
danças apreendidas nas províncias e vilas por onde passava. Após o
aprendizado dessas danças ao jogral era solicitado fazer mudanças nos
passos para ganhar um tratamento mais refinado. O jogral, segundo
CAMINADA (1999) era uma figura de múltiplas habilidades artísticas, que se
tornou um difusor das danças populares nas cortes europeias, além de
dançarino, o jogral poderia ser cantor, poeta, músico, ator e prestidigitador164
(CAMINADA, 1999, apud LEAL 2004, p. 26).

Encontrei concordância sobre esse aspecto, da danças camponesas


servirem de lastro para as danças da corte, no livro Dança Popular: espetáculo
e devoção (2011), da pesquisadora Marianna Monteiro, que diz:

...as danças camponesas sempre forneceram o material para a


renovação das danças de corte. Na corte, nunca se inventou dança
alguma. A dança da corte sempre foi o resultado da apropriação e
adaptação de inúmeras danças populares. (MONTEIRO, 2011, p. 29).

Esse processo de apropriação, adaptação e refinamento continuou a


ocorrer nas colônias americanas e sobre isso a pesquisadora Monteiro segue
dizendo que:

A dança praticada nos salões coloniais, ao longo dos séculos XIX,


perpetuou tais intercâmbios verticais ao refinar, no ambiente elitizado,
lundus, maxixes, práticas de dança muito antigas entre negros, brancos
e mestiços pobres (MONTEIRO, 2011, p. 29).

Vejo semelhanças com a atualidade em relação às pessoas que dão


aulas nas academias de ginástica, estilizando ainda mais as danças populares,
como o pagode e o samba, sendo uma versão "contemporânea" do jogral. O
que entendo por estilizar as danças seria a produção e apreensão de

164
Prestidigitador: (adjetivo substantivo masculino) 1. que ou aquele que desenvolveu a técnica
da prestidigitação, que tem agilidade com as mãos para iludir os demais; prestímano,
manipresto. 2. que ou aquele que faz números de mágica; ilusionista, mágico, pelotiqueiro.
https://www.google.com/search?q=prestidigitador+significado&oq=prestidigitador+&aqs=chrom
e.1.69i57j0l7.11485j1j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8 Acesso em 25/11/2019.

405
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

movimentos, passos, sequências coreográficas nas suas comunidades, e


depois estas novas expressões coreográficas são difundidas nos mais variados
ambientes, inclusive festas da classe média, por exemplo.

LEAL (2004, p. 25) diz que “essa prática de ‘refinar’ a coreografia


popular tomou maior impulso na Itália pré-renascentista numa época de
transição ao capitalismo industrial e de novo fomento do setor da política”.

A partir deste ponto o texto de Leal demonstra como os aristocratas


estimularam a produção artística:

Os burgueses buscavam ascensão social, as artes foram florescendo


no meio dos aristocratas e dos burgueses, contrataram professores
para aprimorar sua educação, entre eles existiram os mestres
designados para o ensino das danças sociais, das aulas de etiqueta,
então todas as cortes incorporaram o hábito da dança (Leal, 2004, p.
26).

A partir de então, outros tratados surgiram com as descrições das


danças de corte, os passos foram ganhando códigos, técnicas, as danças
sociais com novas elaborações, foram se transformando e perdendo os
vestígios das danças populares, ou seja aquelas que eram transmitidas por
famílias e grupos que mantinham as tradições e repertórios.

Entendo como possibilidade de dança popular o que aponta a


pesquisadora Marianna Monteiro em seu livro “Danças Populares:espetáculo e
devoção” (2011):

As matrizes da dança popular são criadas a partir de questões


estéticas, éticas, polítcas, dentro dos inúmeros recortes a que tal objeto
se presta. À matriz cabe articular essas instancias tão diversas a partir
de determinadas hipóteses básicas (Monteiro, 2011, p. 52)

A quadrilha que conhecemos nos dias atuais é uma dança derivada de


outras danças, dentre as principais a country dance inglesa, que originou a
contredanse e, posteriormente, o cotillon, ambos franceses. A primeira se
caracteriza por ser uma dança de casais “dançada em fila dupla com os pares
se deslocando em linha reta, um de frente pro outro” (LEAL, 2004, p. 29). As
duas seguintes tinham um número variado de desenhos espaciais “chegando a
um alto grau de complexidade e de estilização, a qual passou a ser
denominado de cotillon” (Leal, 2004, p. 32).

406
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Posteriormente, da velha cotillon se ramificou outra dança a quadrille.


“As semelhanças de sua procedência estão em cinco desenhos espaciais que
foram compor a quadrilha” (Leal, p. 34) as quais eram denominadas: Le
Pantalon, L’Eté, La Poule, La Pastorelle, Le Finale. Surge então, no século
XVIII, a Quadrilha. Dançava-se quadrilha nas festas aristocráticas europeias
em qualquer época do ano.

A quadrilha chegou ao Brasil juntamente com a Corte Real Portuguesa


em 1808 e se estabeleceu no Rio de Janeiro. Esta dança coletiva, praticada
nos bailes da Corte pelos nobres e burgueses, também em bailes públicos, foi
rapidamente absorvida pelas camadas populares. Como nos conta Chianca:

Ao longo dos anos, a quadrilha democratizou-se até se tornar uma


dança praticada pelos menos abastados. Essa história pode ser
compreendida quando sabemos que uma vez chegadas à corte do Rio
de Janeiro as quadrilhas disseminaram-se, entrando nos ricos salões
de Salvador, Recife e São Paulo em suas várias versões:
“quadrilha de Julien”, “quadrilha de Munsard”, francesa, diplomática ,
napolitana, de lanceiros e quadrilha scottish (CHIANCA, 2007, p. 50).

As descrições dos viajantes à época do Brasil colonial apresentam as


quadrilhas como danças praticadas nos salões ricos da corte, tanto na cidade
quanto no campo, e claro, transformou-se nesse processo.

Sobre a apropriação desta dança pelas camadas populares, quando


mestiços, indígenas e negros, podem ter introduzido seus modos de tocar e
dançar, Chianca diz que:

O que explica esse deslocamento simbólico é o fato político e as


implicações culturais da mudança de poder do Brasil republicano,
quando os costumes do período colonial e imperial foram desprezados
pelas camadas burguesas urbanas e citadinas. Provavelmente nesse
momento a quadrilha teria sido abolida das festas dos citadinos ricos,
continuando a ser dançada pela população mais distante dos grandes
centros urbanos, os interioranos – geograficamente e simbolicamente
defasados com suas danças já “fora de moda” (CHIANCA, 2007, p. 50).

Percebe-se que, aqui no Brasil, a musicalidade da quadrilha francesa


não perdurou até os dias atuais, sofrendo adaptações rítmicas a partir da
presença de elementos culturais indígenas e africanos. Ao longo de 200 anos
as valsas e minuetos foram substituídas por ritmos predominantemente
nordestinos brasileiros, de motrizes culturais afro-ameríndias como côco, baião,
xaxado, e suas variantes.

407
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Tinhorão diz que a partir do século XVIII “os próprios senhores de


escravos, ao lado da igreja católica, quem muito contribuiu para o
aproveitamento musical dos africanos trazidos ao Brasil” (TINHORÃO, 1972, p.
71). Segue explicando que nas cidades “a formação de músicos populares não
era novidade no Recife de 1745”, antes mesmo da chegada das quadrilhas. O
autor aponta que “a abolição do regime escravo certamente deve ter
contribuído para a dispersão de muitos músicos negros do meio rural” e “só
isso pode explicar que [...] uma música de escola tivesse chegado até às
cidades”.

Sobre o efeito da suposta abolição, elucida que músicos ex-escravos


liberados da obrigação de residir nos limites da propriedade que servia:

...aderiu às bandas de irmandades, aos grupos de músicos


zabumbeiros de festas folclóricas, como as Folias e Congos, ou foram
engrossar o contigente de músicos urbanos das bandas militares dos
conjuntos de choro e serenatas do fim do século XIX, ou, finalmente,
dos cordões carnavalescos do início do século XX (TINHORÃO, 1972,
p. 89).

Esse fluxo musical entre zonas rurais e urbanas parece ter ocorrido de
forma semelhante em diferentes partes do Brasil. Trazendo para os meados do
século XX e ainda dando ênfase ao aspecto musical, gostaria de fazer relação
com as composições de marchinhas juninas, ritmo largamente reproduzido em
toda a importante obra do artista pernambucano Luiz Gonzaga do Nascimento
(1912-1989).

Gostaria de destacar os LP’s Quadrilhas e Marchinhas Juninas, volumes


1 e 2, lançados em 1965 e 1979, respectivamente. Por muitos anos, e até os
dias atuais, as composições destes albuns são utilizadas para embalar festas
juninas em toda parte do Brasil, ajudando a fixar assim que a quadrilha junina
tradicional deve dançar marcha, xote, xaxado e baião. Sua presença no
imaginário nacional até os dias de hoje, especialmente no período das festas
juninas, ainda é muito marcante, tendo visibilidade também em âmbito mundial
(VASCONCELOS, 2019, p. 03).

Buscando caminhos para compreender como os aspectos musicais das


quadrilhas francesas se transformaram e como os ritmos, e outras simbologias,
nordestinas brasileiras se tornaram sinônimo de tradição e autenticidade das

408
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

quadrilhas, vejo a obra de Luiz Gonzaga, e principalmente os álbuns citados,


como um caminho de fortalecimento destas referencias.

Na contracapa do LP Quadrilhas e Marchinhas Juninas, lançado em


1965, há um texto, onde não se identifica o autor, exaltando a importância do
repertório musical ali apresentado para a continuação da tradição da música
junina em todo o Brasil, a seguir:

...lembrando - e revivendo mesmo – o velho esplendor do São João de


antigamente, artistas realmente genuínos como Luiz Gonzaga são os
principais responsáveis pela continuação, através dos anos, desta tão
grata tradição, espalhando por este imenso território, gravações de
música junina para serem dançadas tanto nos clubes grã-finos das
metrópoles como nos modestos – mas animadíssimos – salões do
mais recôndito sertão.

Este não se pretende ser objeto de investigação neste artigo, aponto


como desdobramento, mas o que se está levando em consideração aqui é a
predominância deste artista e de suas composições musicais nas festas,
grupos e espetáculos juninos pelo Brasil afora.

Bate o pé, arromba o chão

Quando observamos as danças indígenas, a exemplo do Toré, com forte


marcação dos pés, em sintonia com o toque dos maracás e cantigas rituais,
marcando o tempo forte do ritmo, vemos semelhança com a movimentação do
côco de roda165, que se aplica ao modo de dançar a marcha e o xaxado166,
tendo forte relação com o instrumento zabumba.

Segundo José Nhenety (GERLIC & SOUSA, 2005)167, guardião da


memória da etnia Kariri-Xocó (do município Porto Real do Colégio – AL) “o
termo Toré provém do tupi, instrumento de sopro usado no canto” e, fazendo
referencia à dança circular, diz que sua forma “acompanha os movimentos dos
fenomenos, a estrutura arredondada da terra, sol e lua” e descrevendo um
pouco a respeito da execução desta dança Nhenety continua: “ as mãos dadas

165
Dança presente em alguns estados da região Nordeste do Brasil.
166
Dança de origem pernambucana que teve sua divulgação e afirmação através do movimento
do Cangaço e o bando de Virgulino Ferreira, o Lampião.
167
A cartilha Cantando as Culturas Indígenas foi produzido pela ONG Thydêwá, em conjunto com
professores indígenas de sete etnias do Nordeste brasileiro. Não são numeradas as páginas.

409
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

no Toré é a união grupal pela tradição, pisando no solo sagrado com pingos de
suor no esforço coletivo de afirmação étnica” (GERLIC & SOUSA, 2005).

Ainda sobre o toré, a professora indígena Wilman Pataxó Hâhãhãe168


(municipio de Pau Brasil, sul da Bahia), que compõem cantigas e as utiliza
como recurso importante em processos de ensino aprendizagem com crianças

e jovens da comunidade, faz perceber a movimentação característica desta


dança, de pisar os pés no chão com bastante força, através das seguintes
composições (GERLIC & SOUSA, 2005):
Com o rosto pintado, maracá na mão,
Com o rosto pintado, maracá na mão.
Nós vai a nossa luta com Tupã no coração,
Nós vai a nossa luta com Tupã no coração.
Nós pisa aqui, pisa ali, pisa acolá,
Nós pisa aqui, pisa ali, pisa acolá.
Nós chegou foi com Tupã, com tupã nós chega lá,
Nós chegou foi com Tupã, com tupã nós chega lá.
...
Meu papagaio seu canto é bonito, que veio tão lindo do lado de lá,
Meu papagaio seu canto é bonito, que veio tão lindo do lado de lá.
Pisa, pisa, quero ver pisar. Terreiro dos índios de Ororubá!
Pisa, pisa, quero ver pisar. Terreiro dos índios de Ororubá!

O verso ‘pisa, pisa, quero ver pisar’ demonstra literalmente o movimento


que se executa nesta dança. O ato de pisar o chão, visto no toré, também se
vê no côco, na marcha, no xaxado, dentre outras danças. Gesto carregado de
significados existenciais e simbólicos, a exemplo da relação com o centro da
terra. As assimilações com a cultura indígena se deram não apenas no aspecto
artístico musical ou coreográfico, mas também no aspecto do sentido ou motivo
da festividade.

Ou seja, a quadrilha europeia passou a ser dançada aqui no Brasil pelos


povos mestiços, incorporando algumas movimentações e gestos indígenas, e

168
Atua no Ensino Fundamental I na Escola Estadual Indígena Caramuru (Pau Brasil-BA)

410
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

também numa época do ano em que ocorriam as colheitas, grande motivo de


celebração por parte dos indígenas, inclusive com a presença da fogueira.

Sendo assim Nhenety afirma que:

Para haver um toré é necessário ter um motivo de alegria. Na


agricultura, por exemplo, os agricultores aprenderam essa atividade
com outras pessoas da tribo, mas eles só serão reconhecidos pelo
grupo quando plantarem, cuidarem da lavoura, pedirem as bençãos do
Deus Criador para ter uma boa colheita e apresentarem no Toré, o
milho bonito e saudável. O canto atesta o sucesso de qualquer
atividade cultural [...] (GERLIC & SOUSA, 2005).

A dança indígena foi a base para movimentação dos ritmos nordestinos


mencionados, caracterizando parte do modo de dançar quadrilha no Nordeste
brasileiro e colaborando para o formato “Arromba Chão”, utilizado na década
de 1980 entre as quadrilhas de Salvador e Região. Também chamado de
‘passo marcado’, o estilo “arromba chão” se configurava em bater os pés
fortemente contra o chão, marcando o tempo forte do ritmo reproduzido pelo
instrumento percussivo zabumba, de modo a promover sonoridade através dos
tablados de madeira que serviam de palco nos concursos de quadrilhas.

De acordo com a pesquisa do etnomusicólogo e instrumentista


paraibano Gledson Dantas, sobre a zabumba ele diz:

Classifica-se como um instrumento membranofone, um tambor cujo


som é obtido quando se percute uma membrana (ou mais de uma). É
um tambor cilindrico oco, que tem suas extremidades cobertas por
duas membranas, uma em cada lado, onde uma produz um som grave
e a outra um som mais agudo (DANTAS, 2014, p. 62-63).

Considerações finais

A quadrilha junina traz em si os movimentos de bate-pés e o tempo


(pulsação ritmica musical) binário do ameríndio; a configuração dos dançarinos
em pares e a espacialidade em filas, fileiras, blocos e círculos mantida da base
europeia; a contribuição africana se personifica no zabumba, o principal, e um
dos, instrumentos musicais percussivo utilizados para marcar os ritmos
nordestinos; a quadrilha tem uma movimentação corporal tridimensional, com
giros, flexões de tronco, braços e pernas com grande variedade de direções e
os deslocamentos espaciais de todo o grupo.

411
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

A dança da quadrilha tem como característica marcante as sucessivas


transformações e adaptações ritmicas e coreográficas que ocorreram desde a
sua origem na Europa, quando da country dance inglesa se tornou contredanse
francesa e posteriormente absorveu figuras espaciais da cotillon. E com o
advento da colonização quadrilha junina, em cada lugar do Brasil se
reconfigurou de maneiras diferentes, entrelaçando aspectos corporais
indígenas e músicos populares negros, permitindo novas maneiras de fazer e
expressar esta dança.

É importante perceber que o toré indígena deu lastro para a dança do


côco, da marcha, do baião e esse elemento confere uma expressividade
corporal genuinamente brasileira no modo de fazer quadrilha. Perceber a
particularidade dos movimentos e reconhecer nisso a origem do estilo “arromba
chão”, desenvolvido em bairros populares soteropolitanos, entre as décadas de
1980-90 no município de Salvador, é preservar expressões culturais que são
insistentemente marginalizadas e empurradas ao esquecimento. Tal
preservação se faz necessária para a afirmação da dança popular baiana, para
a valorização das comunidades negras periféricas, para os artistas populares e
para salvaguardar a produção cultural e a memória desses artistas e
comunidades.

Referências

CASTRO, Janio Roque Barros de. Da casa à praça pública: a


espetacularização das festas juninas no espaço urbano / Salvador:
EDUFBA, 2012. 340 p. :il.
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identidade e festa. Sociedade E Cultura, 10 (1).
https://doi.org/10.5216/sec.v10i1.1722 https://www.revistas.ufg.br/fchf/article/view/1722
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Gravadora RCA Victor. 1965. 1 disco (__ min.) Estéreo. BBL – 1342
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modernidade no espetáculo da quadrilha junina em Belém do Pará.

412
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

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MONTEIRO, Marianna F. Martins. Dança popular: espetáculo e devoção.
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ZAMITH, Rosa Maria. A dança da quadrilha: da partitura aos espaços
festivos: música, dança e sociabilidade no Rio de Janeiro oitocentista. Rio
de Janeiro: E-papers, 2011. 136p. : il.

413
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

IMASK KAPI’I:
DANÇAGOGIA AFRO DIASPÓRICA169

Dra. Postdoc. Denise Mancebo Zenicola (UFF)

Quem dança não e quem levanta poeira


Quem dança é quem reinventa o chão

Mia Couto

O neologismo e título desse artigo IMASK KAPI’I, no estudo aqui tratado,


foi criado como mais um recurso e tentativa formal, para estabelecer maior
aproximação cultural, entre povos de origem afro diaspórica e ameríndios. De
forma provisória pretendo apresentar e relacionar danças em usos de
máscaras. Entendo ser necessário questionar e desestabilizar categorias
canônicas de dança. Por isso refletir, a partir dos estudos de máscaras, em
encontros afro diaspóricos e ameríndios, para adensar a eterna busca de
pesquisa da dança na cena. Teorizo a dança em princípios antropológicos,
educacionais, históricos, filosóficos não exclusivamente. Esses campos
estarão presentes como alças de suporte em pluralismo epistemológico, falo
assim da tentativa transdisciplinar para dar mais um passo na contribuição de

169
IMASK KAPI’I é a expressão formada pela união de duas palavras: Imask, quer dizer
máscara em língua xhosa, xossa, ou cosa que é uma língua bantu nguni, um dos idiomas
oficiais da África do Sul e Zimbábue, como também na língua Zulu o sentido de máscara tem a
mesma pronúncia. Estas duas línguas Xhosa e Zulu, que nomeiam Máscara da mesma forma
abrangem as regiões de Cabo Oriental, Cabo Ocidental, KwaZulu-Natal, Cabo
Setentrional, Estado Livre e pertencem a família linguística formada por Línguas
bantas, Línguas nigero -congolesas, Línguas benue-congolesas, Línguas bantoides; KAPI’I
quer dizer palha em Guarani. Esse conjunto de povos com a mesma origem, falam um mesmo
idioma e haviam desenvolvido um modo de ser que mantinha viva a memória de antigas
tradições, praticando uma agricultura produtiva, a qual gerava amplos excedentes que
motivavam festas e a distribuição dos produtos, conforme determinava a economia de
reciprocidade. Do território tradicional, ocupado pelos Guarani, que se estende por parte da
Argentina, Paraguai, Bolívia e Brasil, os Guarani ocupam hoje apenas pequenas ilhas. Seu
território, é um tekoha, o lugar físico, o espaço geográfico onde os Guarani são o que são,
onde se movem e onde existem. No território brasileiro vivem os Mbya, Kaiowá e Guarani (ou
Nhandeva). Os Guarani e Kaiowá estão em Mato Grosso do Sul.
Imaski Disponível em
<https://www.google.com/search?q=xhosa&oq=xhosa&aqs=chrome..69i59l2j69i57j0l5.8526j0j8
&sourceid=chrome&ie=UTF-8>=Acesso em: 25 set. 2020.
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Povo guarani Disponível em <http://www.funai.gov.br/index.php/ascom/1947-historia-e-cultura-
guarani>=Acesso em: 24 set. 2020.

414
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

uma teoria em Dança Brasileira na cena; uma dança brasileira falando de si


própria, uma ‘Dançagogia afro diáspora’. A partir dessa pesquisa inicio um
estudo sobre dança que pretende estabelecer um relacionamento entre
pesquisa, ensino e pratica dançada para a aplicabilidade de princípios de ação
dialógica, pautada pela disposição e síntese cultural na dança. Uma construção
de pedagogia que parte da prática do labor da cena. “Uma das falhas, dentre
outras que a liderança comete é de não levar em conta a visão do mundo que o
povo tem. Já, para a liderança revolucionária, o conhecimento desta lhe é
indispensável para sua ação, como síntese cultural” (FREIRE, 1981, p. 23).
Trato aqui a performance dançada em construção, citando Kealiinohomoku
(1967), “uma análise da dança é uma ferramenta preciosa para a pesquisa
antropológica” e acrescento mais ainda, a dança além de ser uma ferramenta
preciosa é uma potência educacional do povo para o desenvolvimento da sua
identidade e pertença; educação advinda de práticas dançadas em espaços
diversos, grupos de danças, escolas, coletivos podem realmente transformar o
praticante (apud GUILHON, 2018, p.27).

Refuto criar meta-narrativas da dança, histórias totalizantes a respeito da


dança ou mesmo um propósito ou destino final ou único, mas investigo uma
reflexão local sobre certas estruturas, amalgamentos, formas de dançar para
essa Dançagogia afro diaspórica. Essa proposta, portanto, é mais uma tentativa
que procura estabelecer em tratamento aberto por mais de um filtro de campo
teórico para o estudo do corpo que dança na cena, em transversalidade de
pesquisa, ensino e prática, retroalimentada pela potência educacional do
próprio povo que a pratica.

Princípios e Questões em Danças de Celebração e Rituais

Estabeleci um campo de encontro de princípios cosmogônicos que, sem


ser generalista, aponta similaridades da performance afro ameríndia. A
perspectiva da diferença colonial requer um olhar sobre enfoques
epistemológicos e sobre nossas subjetividades subalternizadas que se unem
também por semelhanças culturais. O que aproxima-se do pensamento que
“entende a necessidade de uma descolonização do conhecimento, dos modos

415
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

de ser e estar no mundo”, reconhecendo ai o quanto podem máscara e dança


ao influenciar a divulgação de identidades (MIGNOLO, 2007, p. 129). O
surgimento dos conceitos de fluxo e refluxo em um Atlântico Negro, parece
desafiar a razão tradicional hegemônica do ato dançado e refere-se ao
surgimento de, além de uma consciência atlântica negra, a crença em outras
identidades. Essas, mais livres de concepções tradicionais e que olham de
outros princípios e lugares, aos temas e povos sul americanos. Para efeito de
estudo destacamos desta perspectiva sul-sul, seis princípios afro ameríndios
brasileiros que se aproximam e tocam. Apresento esses fundamentos para
ressaltar suas similaridades conceituais filosóficas como índices que facilitaram
as trocas culturais ocorridas no Brasil colônia.

União vital: A participação em coletivo para estabelecer


aprendizados, compreensão e desenvolvimento dos costumes. A vida
princípio e o ato criado se desenvolvem dentro da comunidade. Os
indivíduos tem graus diferentes de participação mas todos tem
participação no coletivo. Assim há a necessidade de harmonia comunal
como uma corrente vital, como um bem a ser alcançado.

Senioridade: No entendimento que envelhecer é percebido


como um atributo sábio. O que tem percepções mais aprofundados pelo
tempo vivido e conhecimentos aplicáveis está nos níveis decisórios do
coletivo. Os ancestrais podem ser divinizados e cultuados e o mais velho
do grupo mantém em si o registro do tempo e conhecimentos.
Envelhecer é um atributo de respeito.

Temporalidade: A relação performada em tempo


sincrônico, no aqui, o tempo real e no mundo dos ancestrais. A
possibilidade de transitar em dupla dimensão geográfico-espacial
que se realiza ao mesmo tempo e ou no mesmo período, através de
passagens ritualizadas como também no cotidiano. As performances
acontecem paralelamente no mundo ancestral e no dos indivíduos. O
duplo.

416
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Ancestralidade: A noção configura-se em carregar consigo


seus ancestrais, tanto de descendência biológica, sua própria genética,
como também de pessoas de valor espiritual. Ancestrais mortos e ou
pessoas de prestígio podem virar deuses e ou animais como “no
universo Gêge que reverenciam mais a natureza e estão mais perto dos
índios nesse sentido” (LIGIÉRO, 2020). A morte não afasta, só põe em
outra dimensão. Ela não separa nem acaba, ela une e se perpetua. A
ancestralidade, nesse estudo, apresenta-se como um locus de marcas
no corpo de gerações, bem como, de mensagens estéticas.

Oralidade: A oralidade como uma cultura própria que


abarca todos os aspectos da vida. Na oralidade a sociedade se explica a
si mesma. A palavra é assumida como condutora de energia que tem
força. As rezas, encantamentos e invocações são atos de oralidade.
Transmissoras de mitos, crenças histórias, emoção, a oralidade tem
força realizadora. A palavra com o sentido mágico. A palavra dos
encantados ameríndios e os encantamentos em geral, a visão comum
está na força realizadora da palavra.

Respiração: O hálito como elemento sagrado, agrega-se à


parcela cósmica. À palavra é adicionado o princípio da verdade, o hálito
aciona o som da palavra. Segundo Gisele Cossard, “não tem axé sem
sangue, saliva e hálito” (COSSARD, 2013). Diversos encantamentos são
feitos pelo sopro.

Aportes teóricos

O quadro teórico que sustenta conceitualmente esta pesquisa:

Dança Decolonial tem uma bibliografia o mais brasileira, latino


americana e africana possível, a partir do aprender ensinar de Paulo Freire, e
aprender a se colocar par o mundo em Walter Mignolo. Um processo individual
e integral transmitido e integrado na ginga e jogo de equilíbrio e desequilíbrio
da capoeira Angola;

417
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Dança de Afro Diáspora abro a presença africana de Germaine Acgony


e Faustin Linyekula, Grada Kilomba (portuguesa), os americanos do norte
como Alvin Ailey, seu mestre Lester Horton e Katherine Dunham pelas
influências no Brasil; do Brasil trabalho dentro das tradições práticas
aprendidas com meu mestre Gilberto de Assis, que me levou a sua mestra
Mercedes Batista, Walter Ribeiro, Vera Lopes, Zeca Ligiéro e Gisele Cossard;

Danças Ameríndias aprendo com Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Vilinta


Kaiamalo e Lux Vidal, há ainda um primeiro contato com os Kariri-Xocó, e
atualmente ligação na pesquisa associada com Carol Potiguara;

Danças em Fricções, das camadas e reconhecimento de outras


histórias, dança de inclusão, trabalho com Giselle Guilhon, Ciane Fernandes,
Victor Turner e como autora Denise Zenicola. Danças de cicatrizes e
ocultamentos de Imask Kapi’i que podem revelar sentidos comuns de
corporalidades coloniais dançadas em Claudio Zeiger, Stuart Schwartz,
Philippe Dellanne; Marcia Amantino.

Contato com o Afro Ameríndio

No Brasil do período colonial, negros e índios tinham muito em comum,


por vezes convivendo e casando entre si, como também, um grupo caçando o
outro, como fugitivos e ou inimigos. Desses dois grupos, seja em embate ou
parceria, sabemos pouco, porque a história reflete e é consequência do olhar e
filtro do sistema colonial. Especificamente, o que pretos e ameríndios
pensaram, uns sobre os outros, é difícil de se descobrir, já que praticamente
“toda a documentação sobre as relações recíprocas é pouca e bastante
atravessada pelo olhar do conquistador” (SCHWARTZ, 1988, p. 25). Há
registros de enfrentamentos e oposições incentivadas desde o período inicial
da ocupação portuguesa uma vez que existiram sempre bons motivos para
insuflar a oposição entre africanos e ameríndios.

418
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

A presença de quilombos170, também chamados de cumbes, mainels, no


Brasil alcançavam níveis razoáveis de influência mútua entre escravizados,
ameríndios, forros e homens livres. O intercâmbio e relação entre grupos
ameríndios, africanos e afro descendentes é um aspecto ainda pouco
analisado e compreendido da história do Brasil. No entanto sabe-se que, o fato
de terem serviços e afazeres semelhantes criava certas circunstâncias de
maior relação e auxílio mútuo dentro do regime colonial, no qual se
encontravam. Circuitos de sociabilidade permitiam a aquisição de víveres,
armas, dinheiro e contatos que auxiliavam na sobrevivência, nas estratégias
para lidar com as dificuldades das configurações que esses relacionamentos
também podiam adquirir.

Percebe-se que a relação, seja de boa vontade e ou beligerância entre


africanizados e ameríndios, na relação com o regime colonial, apresentava
contornos e ironias que configuram o complicado relacionamento. Pretos e
índios foram cativos, sofreram com a implantação da colônia portuguesa,
protagonizaram disputas de terras e regimes de exportação agrícola. As ações
da Coroa portuguesa e dos colonizadores, com certa constância, nutriam
oposições entre os grupos, acendendo constante competitividades entre eles.
A utilização dos povos indígenas como militares, chamados ‘soldados étnicos’,
era corriqueira, assim como, usar os indígenas para o trabalho escravo ou
pago e ainda como cordão de proteção defensiva nas aldeias, contra possíveis
ataques de quilombolas; “uma prática usada em outros impérios no Novo
Mundo, transformando alguns grupos em forças militares para patrulhar o
território e as fronteiras sociais da colônia” (WHITEHEAD apud SSHWARTZ,

170
Quilombo é o nome dado no Brasil aos locais de refúgio de escravos fugidos de engenhos
e fazendas durante o período colonial e imperial. Os quilombos no Brasil também eram
conhecidos como mocambos. Na América espanhola, essas comunidades ficaram conhecidas
como palenques; na América francesa, o nome era maronage; e na América inglesa eram
nomeados como marroon communities. Locais de refúgio, mas também de resistência dos
escravizados. A população dos quilombos era formada tanto por africanos e ou afro
descendentes escravizados quanto por indígenas e homens livres, mestiços ou brancos
pobres. Parte da produção do quilombo era para subsistência e parte utilizada para
comercialização com comunidades vizinhas. Ao estabelecerem contatos com outros setores da
sociedade colonial e imperial criavam laços com a população livre, fortalecendo os quilombos e
enfraquecendo a sociedade escravista. Disponível em <https://clikak.com.br/e-um-
quilombo/index.php?pagina1>=Acesso em: 24 set. 2020.

419
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

1996, p.51). Uma política iniciada por volta de 1520 e intensificado de variadas
formas a partir da chegada dos Jesuítas em 1549.

As fontes revelam o pagamento de pequenas somas, assim como de


camisas, aguardente, facas e quinquilharias, pagas aos índios por
diversas tarefas, incluindo a captura e resgate de escravos fugidos. O
uso das tropas indígenas como guias, auxiliares e soldados
representou uma potente força antiquilombolas, transformando-se
numa prática corrente no Brasil. Frei Vicente do Salvador escreveu
que as depredações e fugas de escravos não eram piores pelo medo
dos ditos índios que com um capitão português os buscam e os
trazem presos a seus senhores. (SCHWARTZ, 1988, p. 39)

Por outro lado, a convivência dos grupos seja nos engenhos, aldeias,
como também em quilombos, favorecia os contatos de parceria. Muitas vezes,
os escravizados fugiam e iam viver nas redes de parentais ameríndias. Outro
bom exemplo era o insuficiente número de mulheres no tráfico de escravizados
que facilitava com que homens africanos, por vezes, se casassem com
indígenas. Nesse contexto, o contato entre pretos e indígenas causou
significativo número de filhos mestiços, chamados de cafuzos, curibocas e
caborés e, essas novas categorias, tornaram mais intricado o princípio dos
grupos sociais na colônia.

No quilombo de Palmares, pesquisas recentes aferem que tenha vivido


por volta de trinta mil pessoas. Os relatos das campanhas expedicionárias
contra Palmares apontam a presença de indígenas na comunidade quilombola.
Cerâmica indígena tem sido encontrada também no coração de Palmares, a
serra da Barriga, sugerindo que ali a mescla cultural devia ser igualmente
intensa.

Observadores contemporâneos sempre notaram a presença de


indígenas nos assentamentos quilombolas. Palmares deve seu
crescimento, sobrevivência e destruição ao papel que teve no
comércio entre a costa e o interior, pois os interesses mercantis e
Palmares se opunham àqueles da nobreza e dos latifundiários, que
triunfaram, ao fim, devido à força dos grupos nobiliárquicos, em
Portugal e na colónia. (FUNARI, 2001, p. 2-6)

Apesar situação colonial, as trocas culturais advindas desses encontros


tinham diversas configurações e locus sociais. As relações mudavam segundo
o cerceamento social desses povos. A reunião de índios em aldeias geralmente
próximas a povoações coloniais, para incentivar o contato e organizada seguindo
padrões “mestiços”, híbridos e quilombos afro-brasileiros, podiam ser coligados

420
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

por estruturas de parentesco, adoção de cativos, campo simbólico de mitos e


crenças.

Conforme revelaram os prisioneiros de Roelof Baro em 1644,


africanos estavam integrados a aldeias indígenas e índios
assimilados aos quilombos, o que produzia, eventualmente, uma
população mestiça. Tais exemplos apontam para a possibilidade de
que cimarrones e indígenas pudessem unir-se a ponto de criar
comunidades mestiças, perfil efetivamente detectado em outras
regiões antilhanas, na Amazônia, na Bahia, no Equador e em
algumas áreas da Flórida colonial. (SCHWARTZ, 1996, p. 43)

Os indígenas da Amazônia no século XVI, apresentavam xamãs que


performavam dinâmicas com traços comparáveis a concepções também
milenares africanas. Todas essas práticas de relação passam também pelos
fenômenos culturais e eram utilizadas para incorporar aliados, dependentes ou
escravos como membros nas comunidades fronteiriças ao sistema, os
aldeamentos.

Estavam em jogo procedimentos em fusão de distintas doutrinas; o


sincretismo. No recorte afro-indígena das relações de comunicação em grupos
sociais heterogêneos, sincretismo equivalia à religião. Nas numerosas religiões
afro-brasileiras,

espalhadas do Amazonas e Maranhão até Pernambuco, Bahia e Rio


de Janeiro, os espíritos dos índios ou caboclos aparecem junto com
entidades tradicionais da África Ocidental. Até hoje, o caboclo é
171
venerado contíguo com os orixás . No culto de Umbanda, uma
importante divindade é o caboclo, representa o indígena como
representante da liberdade, que vive na mata, em aproximação a
Oxossi, um orixá Iorubano, assim como da caça e da defesa do
terreiro, o que alimenta e cuida. Aqui se constata a probabilidade de
conexão dos espíritos indígenas na religião afro-brasileira, que
acabou derivando na concepção do “candomblé de caboclo” e a
“festa de caboclo” no Candomblé, uma recriação afro-brasileira
religiosa. Desta forma, os devotos harmonizaram os deuses iorubas,
vodouns, bantu, com os espíritos dos donos originais da terra em que
viviam. (AMANTINO, 2008, p.18)

171
Orixás (yoruba Òrìṣà) originários do sudoeste da atual Nigéria, e também de Benin e do
Norte do Togo, foram ancestrais africanos que foram divinizados, pois durante sua vida,
supostamente adquiriram determinados controle sobre a natureza, como: raios, chuvas,
árvores, minérios e controle de ofícios e das condições humanas, como: agricultura, pesca,
metalurgia, guerra, maternidade, saúde, entre outros. Disponível em
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Orix%C3%A1>=Acesso em: 25 set. 2020.

421
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Nessa perspectiva de mais zonas de contato entre culturas ameríndias,


de africanos e afro descendentes escravizados, cito como índice na tradição
oral, o nascimento da dança Maculelê. Conta-se que Maculelê era um
escravizado fugitivo que tinha doença de pele. Aqui podemos associar
Maculelê à Obaluaiyê, Obaluwaye, Omolu ou Xapanã, orixá africano da varíola
e das doenças contagiosas. Senhor das doenças, especialmente as
epidêmicas como a varíola e de suas respectivas curas. Segundo a lenda,
Maculelê foi acolhido por uma tribo indígena, mas ainda assim não podia
realizar todas as atividades com o grupo, por não ser um índio. Certa vez
Maculelê foi deixado sozinho na aldeia, quando toda a tribo saiu para caçar ou
guerrear (depende da versão). Uma tribo rival aparece para dominar o local.
Maculelê, usando dois bastões, lutou sozinho contra o grupo rival e venceu a
disputa.

Enquanto estamos vivos,


não podemos escapar de máscaras
em corpos. Somos inseparáveis
de nossas ficções, nossas feições.
Octavio Paz

Contato com Máscaras e Sentidos

Na proximidade entre deuses africanos e pajelanças, seja no trabalho


como nas demais rotinas do cotidiano há um elemento estético, ritual e ou
recreativo que presente nos chama a atenção. Esse elemento é o objeto deste
artigo: a máscara em seus usos e sentidos.

A máscara corporal de palha de Obaluaiyê, cobre todo o corpo e guarda


grande semelhança com a ameríndia “máscara dos Javaé, Karajá-Javaé, na
representação dos espíritos Ijasò, aldeia de Boto Velho em Canoanã“, na
imagem abaixo a entidade Letani figura no ritual Hetohokÿ (“casa grande”),
realizado pelos Javaé172 no Tocantis (VIDAL, 1992, p.201). O ritual Hetohokÿ
marca a entrada dos jovens para o mundo da casa dos homens e foi retomado
em 1990.

172
https://indigenasbrasileiros.blogspot.com/2016/02/javae.html

422
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Figura 1 - máscara Javé, Karajá-Javaé na ilha do Bananal.

Ainda dentro desse grupo das chamadas máscaras corporais que


cobrem todo o corpo em palhas, há outras em grande semelhança, como as
Máscaras Bakairi173 dos Kurâ Bakairi, um grupo indígena que habita o centro
do estado brasileiro de Mato Grosso, principalmente nas Terras
Indígenas Santana (Iemârire) e Bakairi da também da Etnia Karajá.

173
https://pt.wikipedia.org/wiki/Bacairis

423
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Figura 2 - Etnia Karajá próxima ao rio Araguaia nos estados de Goiás, Tocantins e Mato
Grosso. Figura 3 - Dança de Obaluaiê, com Débora Campos do Coletivo Muanes; Figura 4 -
Dança ritual Etnia Bakairi.

Cito ainda a semelhança entre máscaras cerimoniais sagradas africanas


da região de Baule Goli174 da Costa do Marfim, frequentes na região de Lacs.
Estas são utilizadas durante danças cerimoniaia, na Région des Lacs,
Bomizanbo. A máscara vermelha é usada por mulheres e a preta por homens.
Nessa cerimonia ao som de música, o jovem mascarado brinca de perseguir as
moças ao redor do vilarejo. Ele usa uma pele de cabra sobre as costas e uma
saia de ráfia. Essa “máscara representa a idade de transição entre a
adolescência e a maturidade” (ZEIGER, 2011). Já as máscaras Bakairi, etnia
do Brasil, formam um conjunto de vinte e duas máscaras sagradas chamadas
Yakuigade, de complexa mitologia, cada uma tem uma personalidade diferente
e se apresentam dançando, cantando e ao mesmo tempo marcando o ritmo ao
som do chocalho, apresentando-se em dupla. Durante o ritual “há um tempo
para as máscaras dormirem, momento em que são renovadas as pinturas e
vestimentas” (KUILARE, 1989, p.15)

174
OMIZANBO, COSTA DO MARFIM - MAIO 08: c 8 de maio de 2019 em Bomizanbo, Costa
do Marfim. (Foto de Eric Lafforgue / Art in All of Us / Corbis via Getty Images). Disponível em
<https://www.alamy.es/goli-mascaras-sagradas-en-la-baule-tribu-durante-una-ceremonia-
region-des-lacs-bomizanbo-costa-de-marfil-image247266228.html>=Acesso em: 24 set. 2020.

424
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Figura 5 - Festa Bakairi Figura 6 - Máscaras sagradas africanas Baule Goli

Além das máscaras de corpo inteiro em palha podemos ressaltar as


máscaras de madeira, palha trançada e couro que cobrem o rosto inteiro ou
parte do rosto. Consideramos as pinturas corporais no rosto e corpo como
fontes de grande significado identitário, como etnia Karo175 na Etiópia, que
pratica a pintura cotidianamente como afirmação de vida, uma marca de ser e
estar no mundo. A pintura corporal ou como aqui prefiro chamar máscara
corporal ou facial está presente na etnia Karajá176, aqui em exemplo, como em
quase todas as culturas de índios brasileiros.

175
Etnia Karo, que habita a margem esquerda do rio Omo. O corpo pintado dos homens e o
corte de cabelo específico das mulheres são marcas próprias dessa tribo que conta com uma
população total de apenas 1.600 indivíduos. Disponível em <https://epoca.globo.com/colunas-
e-blogs/viajologia/noticia/2015/06/isolados-no-sul-da-etiopia-os-karo-ainda-pintam-e-enfeitam-
o-corpo.html>=Acesso em: 24 set. 2020.
176
Antigos moradores das margens do rio Araguaia, nos Estados de Goiás, Tocantins e Mato
Grosso, formam um grupo de 3198 pessoas. Falam uma língua que pertence ao tronco
linguístico Macro-Jê.

425
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

177
Figura 7 - Etnia Karajá, Brasil. Figura 8 - Etiópia, projeto Rapport

Outro ponto de confluência em Máscara são os alargadores em geral,


com objetos de madeira que servem como alargadores dos lábios ou botoques,
que cito aqui e embora não serão usados em nossa pesquisa prática. Estes
são objetos de prestígio mais usados em grupos sociais na África por mulheres
e no Brasil mais por homens, como a grande liderança Caiapó Cacique Raoni.
O espaço de corporificação cultural destas performances representam projeção
simbólica de manifestação cultural, ao ampliar sua pele com pinturas e danças.

177
Imagem: Brasília, BRASIL Disponível em <[email protected]>=Acesso em: 24
set. 2020.

426
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Figura 9 – Liderança Caiapó, Cacique Raoni Figura 10 – Mulher Etnia Mursi

Sabemos que uma máscara não pode simplesmente nascer, ser criada
como objeto decorativo. Entendemos ser a máscara um objeto exato;
instrumento de comunicação. De cada linha emana um sentido que responde à
imperativa pergunta da sua utilidade. Isto é, para que serve e o que quer dizer,
que significado tem.
As correlações de máscaras nesses grupos sociais, trazem interesse
especial por permitir aprofundar qual significado tem a máscara para esses
povos. Se suas linhas determinam um caráter, uma idade, uma emoção, uma
cultura, tornam-se linguagem e também poética.

Nossa proposta é criar máscaras para a cena a partir dessas estéticas


pesquisadas. Produzir máscaras que tenham profunda relação com a cena
apresentada, não só em sua aparência estética mas que tenham e alimentem o
sentido da dança, o sentido de quem dança usando uma máscara. Produzir
máscaras que em performance estabeleçam uma ‘unidade estrutural’ na
relação corpo, coreografia, máscara física e simbólica (TURNER, 1986, p.40).
427
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Assim interessa-nos como usá-la na dança, quais gestualidades e materiais


devem assumir à realização na cena dançada? Pretendemos criar uma
máscara nova, a partir de estudos da Dança, de suas possibilidades com o uso
de máscara para assim buscar as que possam ser utilizadas na dança de
estética afro ameríndia contemporânea. Estudar e perceber que códigos
estéticos estarão presentes no corpo a partir do uso desta nova máscara, na
cena. Finalmente desenvolver saberes que despertem no indivíduo o
conhecimento; a Dançagogia de processos de ensino-aprendizagem a partir de
diferentes saberes não escolarizados.

Para tal, pretendemos averiguar princípios de danças mascaradas em


termos poéticos e artísticos, frutos desses encontros culturais em
aquilombamentos. Basear esse estudo em pesquisa de análise de processos
comparativos e de correlação para fundamentar as afirmativas, na tentativa de
construir teias de criações simbólicas entre máscaras e danças. Mais uma via
do corpo que se constrói e se remete a um código, lugar de múltiplos
argumentos corporificados em dança.

428
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Figura11 - Pintura corporal do sudeste da Etiópia Figura 12 - Atriz Catia Costa

Figura 11 - Disponível em <https://pt.slideshare.net/pratesclaudio/continete-africano>=Acesso


em: 24 set. 2020. Figura 12 - Atriz Cátia Costa espetáculo Mamiwata do Coletivo Muanes, foto
Renata Giannattasio, em 2015.

Logo, explicar esses fenômenos que direcionam a investigação em suas


categorias sociais e artísticas, que devem surgir dos dados aplicáveis. Se
significantes, relevantes e são capazes de elucidar a dança em estudo. Como e
o que podemos conhecer através da dança mascarada, como registro de
pensamento historicamente particular.

Considerações Finais

Assim, pretendemos pesquisar e realizar um denso trabalho


coreográfico, para estabelecer as possíveis relações de máscaras com as
culturas que interagiram, em trânsito real e simbólico, na nossa formação de

429
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

nação e utilizar uma síntese artística dessa pesquisa como ferramenta de


ensino e apresentação pública.

Máscaras de vaga aparência antropomorfa, à partir de tradições


africanas iorubas, vodouns, bantu e ameríndias guaranis, xavantes, potiguar,
para fazer com que o bailarino se expresse com o uso do corpo, materiais etno-
antropolíticos relativos a culturas da máscara tribal, ritual e religiosa. Comparar
plumas, sementes coloridas, cores contrastantes, guizos, vigores da dança
direcionado as pernas e pés, enfim o corpo que dança, desenhos coreográficos
em filas, desenhos corporais, máscaras em pinturas corporais, palhas e peles,
enfim, reflexões sobre a produção de dança no corpo, nos territórios da
diáspora.

Figura 13 - Bailarina Ivana D’Rosevita e atriz Cátia Costa em O Rio de Muane, 2009. Foto do
acervo

A história dos povos é atravessada pela viagem, como realidade ou


metáfora, acionando e fazendo existir patrimônios expressivos nos campos das
práticas da dança, da máscara, do desenho corporal e de muitos outros meios.
Estabelecem vínculos no amplo e diverso mundo de memória e de sabedoria
ancestral. Este corpo construído o remete a um código, lugar de múltiplos
argumentos corporificados, danças que friccionam culturas; um rosto mais de
Brasil na alma do dançarino.

430
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Referências

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Minas Gerais-século XVIII. São Paulo: Annablume, 2008.

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<https://www.pensador.com/mia_couto_frases/2/>=Acesso em: 24 set. 2020.

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santé, l'aconomie et la culture. In Les Carnets Fatom. Cotonou: Editions Sepia,
2011.

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GUILHON, Giselle (org.). Antropologia da Dança I. 2ª ed., Belém: PPGArtes,
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más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores;
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Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007.

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(Usos y Símbolos). Obras Completas. 2a edición. México, Fondo de Cultura
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SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos. Engenhos e escravos na
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1814 in João José Reis e Flávio Santos Gomes (orgs.) Liberdade por um fio:
história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
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http://claudiozeiger.blogspot.com.br/search?q=gba-gba > Acesso em:18
setembro de 2013.

431
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

ZENICOLA, Denise. Entrevista. COSSARD, Gisele. [Abril 2013]


Entrevistadora: Denise Mancebo Zenicola. Rio de Janeiro, 2013. 3 arquivos
.mp4 (124 min)

_______________Entrevista. LIGIÉRO, Zeca. [Setembro 2020]


Entrevistadora: Denise Mancebo Zenicola. Rio de Janeiro, 2020. 1 arquivos
.mp3 (24 min)

432
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5ª PARTE

EPISTEMES
AFRO-REFERENCIADAS

433
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

OXÊ, UMA REVOLUÇÃO JUSTA:


EPA! ENCONTRO PERIFERICO DE ARTES COMO UMA AÇÃO OXÊTICA

Bruno de Jesus da Silva (UFBA)

Oxê
Xangô é o orixá da Justiça e rei da cidade de Òyó, que foi um império
iorubá que durou os anos de 1400 e 1835, na África Ocidental, atualmente a
Nigéria e situava geograficamente ao norte do planalto iorubano, com baobás
gigantes e com superfícies rochosas de granitos – baobá é considerada uma
árvore da vida importante para cultura africana e acreditam que o espírito do
baobá ajuda nas decisões importantes.
Xangô usa uma insígnia importantíssima chamada de Oxê, um
machado duplo de dois gumes. Segundo Luz (2017), diz que "o Oxê de Xangô
equivale ao edun-ara, as pedras de raio" (p. 54). O Oxê é uma tradução da
justiça de Xangô, proteção de seus filhos e fortalecimento de seu reino. Uma
das narrativas sobre Xangô diz que certo dia no alto de uma pedreira, ele
estava elaborando planos para derrotar os inimigos e refletindo sobre a
situação em que seus opositores tinha recebido ordem de destruir seu exército
e seu reino. Ao sentir a tristeza e dor do seu povo, foi tomado pela ira que o fez
bater seu machado, o oxê, em uma pedra que estava próxima. Esta ação gerou
faíscas tão fortes que ela parecia catastrófica, quanto mais força batia, mais
faíscas foram produzidas e atingiu os seus inimigos. Bateu incessantemente o
oxê na pedra que produziu fogo e raios os derrotaram. Libertou alguns
soldados que apenas tinham recebido ordens para destruí-lo, pois analisou a
situação para não ser injusto. Após esse feito foi considerado o rei e guardião
da justiça por salvar seu povo, o rei da cidade de Òyó.

O professor e pesquisador Marco Aurélio Luz (2017) nos diz que uma
das principais características de Xangô é garantir e expandir as suas linhagens
e seu reino. Um dos orixás mais importantes do panteão dos orixás da cultura
iorubá, é rei, dominador das chamas, da coragem, protetor, traz a sabedoria,
inteligência, liderança e guardião da justiça.
Dentre muitos elementos no contexto de Xangô, o oxê é o elemento abordado
neste artigo como pressuposto de ordem filosófica, de valores, saberes e
434
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

símbolos da cultura iorubá, transportados pelo Atlântico, vindo com negros


escravizados para o Brasil com uma extensa gama de conhecimentos. O Oxê é
um modo de pensar o senso de justiça. Estão implicadas nesta abordagem as
danças negras, no contexto de uma sociedade que as denegam, impedindo-as
fortemente de serem produzidas, desenvolvidas em vários âmbitos. O
pressuposto iorubano postula um pensamento/ação/sentido acerca do
elemento oxê na afrodiáspora, para criação de mecanismo de combate e
superação de injustiça social, cultural e econômica. Um mecanismo que
denomino de ação oxêtica, termo referente ao Oxê. Partindo da filosofia
iorubana, traçar aspectos filosóficos de Xangô, amplia a perspectiva de
produção de conhecimento e sentido epistemológico a partir da ressignificação
e configuração do Oxê, como modo de pensar na afrodiáspora, enquanto
desenvolvimento de mecanismos de ações efetivas em combate ao
epistemicídio e às injustiças que perpassam o contexto do racismo estrutural
no Brasil.

Quando as estatísticas provam que os negros e negras dificilmente


ocupam posições de gestão em empresas, instituições e até cargo com
funções como coreógrafos e diretores artísticos, recebem salários menores em
relação aos funcionários brancos e são as maiores vítimas do encarceramento
e mortes no Brasil, trata-se de uma configuração do racismo estrutural, como
afirma Silvio de Almeida (2018). Produzir e reproduzir fatores determinantes na
formação das relações sociais, políticas e econômicas, a discriminação
baseada em critérios raciais, historicamente produz condições de muita
desigualdade. Quando postulada a complexidade do racismo estrutural, a
indagação é: como desenvolver ações e perspectivas para que a luta contra o
racismo seja efetiva atualmente? É inegável que o panorama social e político
brasileiro atual impacta violentamente nossa maneira de estar no mundo. Ao
artista da dança parece imprescindível estar atento e sensível ao contexto em
que se vive. A importância da manifestação de diferentes modos de sentir e
viver e na capacidade intelectual de produção epistêmica afrodiaspórica se
torna necessário para superar estas questões.

435
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O artista, pesquisador e catimbozeiro cearense Zé Viana Junior (2019)


traz à tona a ideia de retomada. Ele apresenta retomada como modo de agir
politicamente em combate aos processos de apagamentos simbólicos,
filosóficos e dos saberes ancestrais. Quando apresenta a retomada como um
modo antirracista, implica um combate direto ao epistemicídio em busca de
salvaguardar os saberes ancestrais pautados em produção de conhecimento
de danças negras e suas dramaturgias em corpos negros em diáspora. Em
consonância com o filósofo e jurista Silvio de Almeida (2018) contribui
afirmando que a mudança na sociedade não terá efeito somente com
denúncias, ou seja, não basta apenas denunciar, ou repudiar moralmente o
racismo, é preciso antes de tudo a tomada de posturas e de adoções de
práticas antirracistas.
Nesse movimento da dança como ação no mundo, a ação oxêtica é
defendida como uma ação política, de enfrentamento efetivo em ações que
sejam transformadoras em contextos onde as produções de danças são
realizadas, sejam elas nas universidades, centros culturais, nas igrejas, na tv,
filmes, em eventos distintos, esses espaços, onde as danças negras plurais
são denegadas socialmente. A ação oxêtica é uma proposição que possibilita a
reunião das danças negras e seus respectivos protagonistas a realizarem suas
produções, exigindo direitos negados pelo sistema racista. Uma ação que não
basta apenas reunir artistas negros e negras, mas construir um tecido social
onde haja reunião propositiva, sobretudo quando os organizadores e gestores
sejam protagonistas negros e negras, e suas ações sejam combativas contra
essas injustiças.
Os autores Zé Viana Junior (2019) e Silvio de Almeida (2018)
apresentam modos conscientes de invocações epistemológicas que sustentam
emancipações políticas e respectivamente artística. A ação oxêtica se
apresenta como um mecanismo organizacional de corpos negros que
produzem artes do corpo a reivindicar não somente o modo de produção
artística, mas como gerenciar economicamente a inserção no mercado, este
como indústria cultural e como agente de redes de produção cultural de suas
obras na sociedade.
A ação oxêtica precisa localizar tensões sociais em relação às
construções histórico-culturais para serem propositivas em sua realização. A

436
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

proposição desta não é um modelo que resolve as questões do racismo


estrutural, nem necessariamente todos os eixos que criam uma plataforma de
que respondem pelos agenciamentos do estado e leis que a regem. A ação
oxêtica invoca contextos de artistas negros a criar plataformas e faz convite à
sociedade para visibilizar, qualificar, apresentar suas produções, fortalecer
diálogos para confrontar aspectos estruturantes localizado em determinado
contexto. O jurista Silvio Almeida (2018) nos explica que no decorrer da história
os oprimidos e explorados construíram modos e estratégias de sobrevivência e
resistência com ferramentas do direito. As políticas de ações afirmativas são
um exemplo que visam reparar minorizados178, historicamente discriminados.
Essas políticas podem ser desenvolvidas em inúmeras áreas e modalidades,
como as cotas raciais – as cotas raciais são as reservas de vagas em
instituições públicas ou privadas para grupos específicos classificados por
etnias, na maioria das vezes, negros e indígenas.
As políticas de ações afirmativas encontram ampla fundamentação,
em nosso ordenamento jurídico, como também em preceitos de
justiça que foram incorporados pelo constitucionalismo
contemporâneo, tais como as ideias de justiça corretiva e justiça
distributiva. Esses conceitos de justiças atuam como parâmetros para
interpretação de normas que estabelecem a erradicação da
marginalização social como um objeto constitucional. (ALMEIDA,
2018, p. 113).

A história nos mostra como as experiências políticas e intelectuais dos


movimentos negros serviram para originar proposições pedagógicas e políticas
de afronte aos processos de racismo. Essas experiencias, ações nos afetam
enquanto sujeitos em uma sociedade racista pois são um modo cognitivo da
construção opressora e de anulação dos fazeres artísticos. A ação oxêtica
parte dessa estratégia de justiça, de enfrentamento direto e de direito, pois o
senso de direito se dá no corpo, ele é sentido.

Esta proposição não é uma receita ou um único modelo, nem pode ser
analisada como a recriação da roda, mas um modo a partir de ações realizadas
que geraram e possam vir gerar efeito na sociedade. Não é um pensamento

178
Termo referente a minorias sociais e raciais. Termo apresentado como força política
enquanto posicionamento em tensionamento ao termo minoria, que é maioria, ou seja, em
combate ao racismo e supremacia branca e hegemônica, entende-se que não somo minorias,
somos minorizados pelas instâncias de poder e dominação colonial e estrutural.

437
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

isolado, a ação é conjunta e relacional. Ela age em comunidade, busca o


território como trânsito, não como uma demarcação estática, até porque negros
e negras podem e devem ocupar, transitar e produzir onde lhe interessar pois é
de direito como cidadão nesta sociedade, sobretudo esse entendimento de
território é na perspectiva de territórios no plural, advertindo que somos de
vários lugares.
Saber de onde vem e como se configura o projeto colonial vigente que
gera a manipulação e agenciamento do capitalismo que produz o racismo
estrutural é indispensável para qualificar e potencializar a ação oxêtica. As
danças negras fazem parte dessa estrutura, nossas artes dizimadas são
resultantes desse estado de corpo que nos constitui e o Estado que tem o
poder na sociedade. Olhar do ponto mais alto, assim como Xangô, configura o
contexto de percepção da estrutura social, para que possamos agir e reagir.
A noção de ação oxêtica é postulada por experiências significativas, em
perspectivas de processos estruturantes. Processos que partiram como
labaredas para queimar estruturas sociais que negaram e negam passagens,
participações, fazeres, ocupação de nós artistas negros e negras em variados
contextos sociais e de atuação profissional. O professor e jurista Adilson
Moreira (2019) afirma que aos que são penalizados pelas desvantagens
históricas, nós negros, seria conveniente produzirmos uma perspectiva que
precisa de escuta, pois os atuais parâmetros não dão conta de elementos de
transformação do status cultural e do status material a nós, minorizados raciais.
Defendo a ação oxêtica como uma perspectiva de enfrentamento a contribuir
com transformações dos status cultural e material. A postulação de ideias é
uma prática de transformação que afeta o campo social. São contribuições
históricas. Produzem epistemes que qualificam nossos enfrentamentos no
campo das injustiças artísticas e culturais.
Moreira (2019) diz que nós minorizados, povo negro, fornecemos
contribuições significativas com propriedade, quando se fala em justiça social.
Ele completa dizendo que a importância da experiência social na formação
cognitiva dos sujeitos, na noção de compreensão do humano é amplamente
formada com a experiência intersubjetiva, ou seja, capacidade do sujeito se
relacionar com o outro sujeito, implicação de negociação com o outro. A
mesma sociedade que constrói no corpo a opressão, este mesmo corpo

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

conforma esta concepção social, mas também o senso de justiça, pois ele se
dá no corpo como enfrentamento.

Uma revolução justa


Como potência e ação efetiva enquanto agente do fazer em dança,
implicado nas questões e reivindicação dos substratos negros, inspirada a
partir do conceito do Quilombismo (1980) e com a noção do conceito de
Racismo Estrutural (2018), trago a denominação de ação oxêtica como
proposições para impulsionar engajamentos, tensões e ações atualizadas no
contexto da Dança em Salvador.
Salvador, a primeira capital do Brasil, é a cidade com a população mais
negra fora da África, é um polo efervescente das culturas negras. A pluralidade
religiosa de matriz africana, danças, músicas, culinárias, línguas, entre outros,
concebe muitas maneiras de existir do povo soteropolitano. Desde o século
XVI, a chegada à Bahia de muitos africanos escravizados de Luanda, Cabinda,
Benin, Congo e de outras regiões da África trouxe consigo suas construções
culturais africanas elaborados durante séculos. Parecem bem comuns esses
dados, mas eles afetaram e afetam nossos comportamentos e nossos hábitos.
O legado dos povos africanos, copartícipe da construção da afrodiáspora
Brasil, interferiu e interfere em nossos modos de vida, mas não podemos
perder de vista a camuflagem do racismo em diversas camadas que faz parte
da estrutura que compõe a cidade.
O pagode baiano, assim como tantas outras danças oriundas das
periferias, é um dos principais alvos do racismo, pois o contexto no qual é
implicada a manifestação dança pagode é campo de marginalização. Um grupo
de pagode que reunia música dança, corpos dançantes e cantantes tinha como
um dos integrantes, Edson Cardoso, conhecido como o famoso Jacaré, ou
Jacaré do Tchan, interferiu significativamente na imagem do homem e negro
que dançava na televisão brasileira nos anos 1990. Ele foi um divisor de águas
necessário para repensar modos e comportamentos do homem dançarino e
negro que dançava pagode na época, e inspirou muitos meninos/homens
negros como artista dançarino.
Ao longo dos processos históricos e culturais no Brasil, as religiões de
matrizes africanas e nossas danças negras e periféricas foram, e são,

439
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

perseguidas e tratadas com violências. Nas primeiras décadas do século XX, o


samba foi duramente perseguido e marginalizado, principalmente por ser de
estética negra e ser modo de vida e manifestação cultural ascendente e
descendente de africanos, como foi demonstrado pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional IPHAN no Dossiê Matrizes do samba no Rio de
Janeiro, em 2014, assim como a capoeira era considerada vadiagem e
perseguida igualmente pelas autoridades. Atualmente, a história se repete. Os
bailes funk do Rio de Janeiro e São Paulo, e as festas de pagode baiano em
Salvador, são alvos do extermínio da população negra e periférica, o que
Abdias do Nascimento (2019) chama de Genocídio.
Para Nascimento (2019) no período de escravidão as populações
negras sofriam um genocídio sistemático, institucionalizado e silencioso.
Segundo o autor completa que a discriminação racial se apresentou mais
superficialmente aos olhos do brasileiro. De acordo com o autor, depois do
período da escravização a população negra não tinham condições e meios de
adquirir moradias em áreas de melhor habitação. Assim, revela que a falta de
dinheiro, a falta de emprego resultado da discriminação, conduziu à dificuldade
de preparo técnico e de instrução adequada. No tecido social, o negro em
diáspora é limitado de todas as formas e de todos os lados, em uma negativa
no panorama social e econômico. Nesse contexto estão as comunidades
periféricas e os sujeitos negros e negras que os compõem. O genocídio se
estruturou e continua vigente. Os terreiros de candomblé foram e são
apedrejados, incendiados e derrubados. Junto às constatações e informações
registradas na literatura, podemos acessar dados em matérias de importantes
e renomados jornais e reportagens no país como Correio da Bahia, Jornal A
Tarde, Tribuna da Bahia, Estadão, Folha de São Paulo e entre outras tantas
fontes sobre o assunto.
O criador do Teatro Experimental do Negro (TEN), Abdias do
Nascimento nos anos de 1980, anunciou práticas artísticas engajadas
politicamente com ousadia que deu respostas estéticas e poéticas negras ao
teatro produzido no seu tempo. Ao conceituar o quilombismo, uma proposta
teórica e criativa como resposta ao racismo, inspirada nos quilombos como
modelos de organização econômica, política e cultural, aponta que os
quilombos poderiam constituir uma ferramenta para pensar o Brasil com seus

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

plurais povos, saberes e culturas. Assim, o quilombismo como uma proposta de


ressignificação e recriação do mundo africano brasileiro.
Para Abdias do Nascimento, o Quilombismo é um conjunto do
complexo de organização afro-brasileira, uma proposta sociopolítica na qual as
questões relativas à formação e consciência das comunidades negras possam
alterar o sistema de representação da cultura Brasileira do ponto de vista da
população do negro em diáspora. Quilombismo vem de quilombo, que foi o
principal instrumento de resistência dos descendentes de africanos no Brasil. É
um conceito científico capaz de impulsionar enfrentamentos aos nossos
problemas a partir da nossa própria realidade. Abdias do Nascimento afirma
ainda que a questão racial é uma questão nacional no que diz ao respeito e
garantias no sexo, na sociedade, na religião, na política, na justiça, na
educação, na cultura, condição racial, na econômica nas questões da vida na
sociedade, assim como ensino da história da África, das culturas, civilizações e
artes africanas nas escolas como a dança.
Nós, negros em diáspora, precisamos construir nossos instrumentos
para pensar nossas questões e necessidades. Princípios nossos, valorizar
civilizações africana e afro-brasileiras. A ação oxêtica se fundamenta na
perspectiva postulada por Abdias do Nascimento como elemento de
potencialidades no contexto das danças negras, afro-brasileiras e/ou
afrodiaspóricas, principalmente aquelas produzidas em periferias. Demarcar
princípios de construções como protagonistas dos nossos fazeres e produções
e ser respeitado na sociedade pelas nossas histórias e diferenças.

EPA! Encontro Periférico de Artes como uma ação oxêtica.


No ano de 2017, a artista, produtora e pesquisadora em dança Inah
Irenam e eu, junto à ExperimentandoNUS Companhia de Dança, a qual fundei
em 2008, criamos o EPA! Encontro Periférico de Artes em Salvador. O EPA! é
uma vitrine cultural composta de artistas, grupos e pesquisadores negros das
artes negras, cultura urbana e periférica. Um importante instrumento para
valorização de manifestações populares, impulsionando a formação de um
mercado local e fomentando a inserção de artistas negros da cidade nos
circuitos culturais, tecendo rede com outros estados brasileiros. Suas ações
articulam, provocam reflexões e promovem a democratização do acesso ao

441
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

bem cultural pelos diversos campos de ação e atuação. A arte como ação
política em seus modos de se relacionar com a cultura local e global. O EPA!
contesta a hegemonia de poder das artes na Bahia. As artes negras que têm
sido usurpadas e organizadas por artistas, gestores e produtores brancos e
economicamente privilegiados. O EPA! é um espaço criativo, fundamental da
negritude periférica de Salvador, para colocar em voga suas poéticas e seus
pensamentos artísticos. Envolve uma base da sociedade, sobretudo mulheres
negras, LGBTQI+, jovens e crianças. O Encontro Periférico de Artes produz
uma programação com ações que articulam as pesquisas sobre
ancestralidades e manifestações populares em dança com a atuação e
produção dos artistas idealizadores jovens negros baianos, assumindo um
olhar crítico às tensões e paradoxos de nosso povo negro, oferecendo ao
público experiências emancipadoras. O EPA! realiza encontros, oficinas,
workshops com artistas e distintos profissionais para destacar a produção de
arte negra periférica baiana, para fomentar o mercado das artes na Bahia.
Realiza a batalha de pagode baiano para discutir políticas públicas para as
danças negras periféricas a incentivar o olhar para importância da manutenção
e financiamento de grupos independentes e artistas emergentes. Ao entrarmos
no campo de uma dança marginalizada, historicamente, a condição de
movimento cultural periférico em relação à dança como ação emancipadora,
convoca a ação de desconstruir o lugar da hegemonia e supremacia branca
enquanto único saber técnico, poético, crítico e centro exclusivo de produção
de sentido.
Pensa a manutenção de redes de articulação cênica, para
desenvolvimento, fortalecimento aos meios de fomento das linguagens
artísticas e difundir a dança como mobilizador social, propondo uma reflexão
sobre problemáticas cotidianas que são importantes na formação do cidadão e
em sua relação com a cultura na sociedade.
Assim como o Quilombismo, cunhado por Abdias do Nascimento,
segundo uma proposta atemporal, diz-nos ser uma forma de reagir, porque
vivemos em uma sociedade racista e eurocêntrica e precisamos de outras
maneiras de nos organizar enquanto sociedade para enfrentar o racismo e
seus produtos, na camada artística cultural em Salvador, no que tange às
danças negras, o EPA! gera uma ação como forma de reação ao sistema,

442
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

como postulado por Nascimento, que ainda afirma na definição do seu conceito
construir suas próprias instituições de poder e dialogar em pé de igualdade
com outras culturas. Nessa pesquisa, referencio a relevância do Encontro
Periférico de Artes que realizou três edições, em 2017, 2018 e 2019,
respectivamente, realizando uma programação com ações artísticas com
profissionais da Bahia, Rio de Janeiro, Ceará, São Paulo, Minas Gerais,
Assunção - Paraguai, destacando a produção de arte negra periférica baiana
em interconexões com outras periferias no âmbito nacional, internacional
fomentando o mercado das artes na Bahia em rede.
O EPA! como uma ação oxêtica situa na perspectiva de uma das
premissas do Quilombismo, quando em suas ações aquilomba os negros e
negras artistas para que toda a sociedade entenda e se apodere por
pertencimento e protagonismo do processo cultural e artístico, que por ser
histórico propõe ser preciso para que nós negros em diáspora construamos
nossas próprias posições para sermos ouvidos e respeitados nessa sociedade.
Ao invocar posições geradas pelo EPA! configura-se um encontro que
protagoniza seus agentes e suas artes que são marginalizadas e denegadas,
considerando a originalidade de uma programação por reunir linguagens como
literaturas negras, danças negras, teatros negros, performances, exibição de
filmes, lançamentos de livros, oficinas diversas, palestras, bate-papo, shows,
intervenções urbanas produzidas e protagonizadas por artistas, técnicos
negros e negras com uma parte da programação em espaços culturais,
transportes públicos, praças, estações rodoviárias e teatros no centro da
cidade de Salvador.
O Encontro Periférico de Artes uma ação oxêtica desloca não somente
as artes produzidas pelos artistas periféricos e negros, mas o público a
conhecer que podemos ocupar e transitar por toda cidade limitada pelo racismo
e suas violências resultantes.
A complexidade denota um novo hábito cognitivo, outra forma de fazer
conhecer e pertencer espaços que constroem memórias e geram outras
relações sociais, ao tempo que oportuniza artistas das muitas comunidades
periféricas, ter suas produções acessadas por/em outros espaços e
configurações, são modos de permitir que configuração cênica marginalizadas,
como os espetáculos de pagode baiano, sejam respeitados enquanto produção

443
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

de conhecimento, produção em dança, memória, história e pertencimento na


sociedade que resiste na história do povo negro.
O professor e jurista mineiro Adilson Moreira, em seu livro Pensando
como negro (2019), aborda a justiça social como tema central, situando o
protagonismo e empoderamento negro. O autor diz que o protagonismo negro
é uma ação que beneficia a sociedade como um todo, pois muitas pessoas não
estão com interesse em pesquisas com abordagem de homens brancos e
heterossexuais, grupo de pessoas que dominam as instituições de ensino
superior. À medida que o povo negro começa a se ver representado, a
emancipação desdobra seus canais de voz, podendo falar de si e de seu povo,
apresentando seus modos de se relacionar. Os negros e negras em locais de
poder criam espelhamentos para seus povos e suas culturas na afrodiáspora,
incentivando uns aos outros e se fortalecendo, enquanto pertencente a uma
sociedade.
Nesta proporção em que as lideranças negras, como neste caso em
questão, eu como diretor artístico do Encontro Periférico de Artes, e Inah
Irenam, como produtora, assim como a equipe que realiza a ação, podemos vir
a estimular nossos pares e os mais jovens a internalizar que nós negros
podemos ocupar esses espaços, uma vez que os mecanismos do racismo que
fazem a população negra corporificar estereótipos que desprivilegia e os
colocam em subalternização à supremacia branca.

O conceito de empoderamento implica uma série de transformações


que ocorrem no plano individual e coletivo que permite que o agente
tenha um papel ativo na construção de sua própria subjetividade.
(MOREIRA, 2019, p. 224)

Nesse posicionamento, Moreira afirma que pessoas negras precisam ter


seus meios necessários de divulgação dos seus estudos o que beneficia a
sociedade de forma ampla. Nesta perspectiva, o EPA! como ação oxêtica
destaca seus gestores e realizadores negros e negras, promovendo o
protagonismo de seus fazeres, instaurando-o como mecanismo empoderador
e/ou emancipatório. Moreira ainda nos diz sobre a importância da nossa
experiência de subordinação quando estamos produzindo, pois, estamos
promovendo o protagonismo em suas ações e por vezes ignoradas por
pessoas brancas. O autor, ao tratar a relação de protagonismo pelo viés do

444
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

direito com sua experiência implicada em sua produção jurídica, permite-nos


pensar o quão importante para sociedade o Encontro Periférico de Artes é e
como combate reagente às injustiças sociais, sendo abordada como uma ação
significativa para muitos artistas negros e negras.
Ser protagonista na produção de trabalhos que permitem a discussão
de temas caros as minorias raciais significam estar criando
possibilidade de distribuir poder, o que deve ser visto como um
processo coletivo que procura permitir o reconhecimento pessoal e
social de grupos minoritários capaz de atua dentro e fora da esfera
pública. (MOREIRA, 2019, p. 224)

A nossa intelectualidade estabelece relações e deriva de matrizes


africano-brasileiras, dando aos nossos movimentos elementos fundamentais e
importantes para que a sociedade tenha espaço e respeite nosso jeito de falar,
de dançar, de cantar, de escrever, de gerir nossas artes, de performar, de
exibir nossos filmes, de falar de nossas histórias, de ensinar e aprender a
conhecer nossa cultura na afrodiáspora com nosso hábito cognitivo. Tanto o
pressuposto quilombista de Abdias do Nascimento quanto à postulação do
professor Adilson Moreira dão base à afirmação do EPA! como ação oxêtica,
vislumbrando como mecanismo com resultados expressivos. Moreira
complementa:

Isso acontece na medida em que as pessoas têm acesso aos meios


necessários para que elas possam se afirmar como sujeitos
humanos, como sujeitos políticos. (MOREIRA, 2019, p. 224)

A potência que o Encontro Periférico de Artes gerou na cidade de


Salvador, pela necessidade de se reinventar, de se reunir, de se encontrar, fez-
me como diretor artístico e idealizador, intentar que a ação não se faz sozinho,
falamos e produzimos em coletivo, em comunidade assim como um quilombo.
Muitos corpos insurgentes na construção da revolução.
O pensamento Quilombista vai gerando protagonismos negro de
profissionais de relevância social em sua atuação no mercado, reconhecendo o
Encontro Periférico de Artes como ação transformadora no mercado cultural
local e na população. O produtor de imagem, músico, iluminador e coordenador
técnico do Teatro Gregório de Matos em Salvador contribui com seu olhar
experiente de acordo a sua atuação na cidade:

445
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O EPA! Encontro Periférico de Artes é sem dúvida um do ponto de


vista artístico e social, um dos projetos de maior relevância. O que eu
tenho sabido ultimamente, porque ele carrega essa característica já
forte desde a primeira edição, de trazer uma população, um tipo de
público, para frequentar os espaços culturais do centro da cidade que
normalmente não visitam.

Poder fornecer elementos efetivos de construções de relevância social,


para ampliar a discussão sobre questões de justiça. É necessário, a partir de
Xangô, o guardião da justiça, pensar/agir contra aos aglomerados de injustiças
que vão desvelando as separações e a manutenção do poder do estado que
age sobre os corpos desencorajando as pessoas e mantendo a desigualdade e
a ideia de marginalização de nós negros e negras. Moreira contribui (2019) na
afirmação da importância do reconhecimento da pluralidade interna presente
na comunidade negra, pois não é possível afirmar a existência de uma única
voz.
Como falamos uns com os outros e um dos outros, não podemos perder
de vista que quem compõe e realiza uma ação oxêtica precisa compreender a
noção de que possuímos várias identidades negras, pois somos sujeitos na
afrodiáspora Brasil. E um dos resultados do encontro é justamente ampliar a
rede e se interconectar para cada vez mais fortalecer. Especificamente com o
EPA! ele se dá quando artistas negros de várias cidades e estados do Brasil
integram a programação não apenas por representar uma conexão geográfica,
sobretudo, uma complexidade que nos aproxima pelas diferenças nos modos
de vida e concepção de configurações estéticas nas produções artísticas.
Nessa perspectiva, o artista, curador e dramaturgo mineiro Anderson Feliciano,
integrou a programação da segunda edição do Encontro periférico de Artes
com uma intervenção numa estação de metrô em Salvador e contribui dizendo
que "a gente se fortalecer, a gente se encontrar é gerar esses espaços é me
parece significativo".

Conclusão
Silvio de Almeida (2018), no capítulo intitulado Racismo e Economia, do
livro Racismo Estrutural, diz que teorias neoclássicas que pautam a
discriminação consideram quase irrelevante o impacto da discriminação racial e
economia. Afirma ainda que, mesmo que timidamente, o crescimento de
negros e negras nas universidades apresenta impactos ideológicos e

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

econômicos, interferindo na política salarial e divisão social do trabalho. Neste


contexto, o EPA! é uma busca de financiamento que gera renda desde a
ambulantes na frente dos teatros que são realizadas a programação, ao
pagamento de técnicos, produtores e artistas. A ação oxética gera economia
criativa e capital simbólico da população negra. Contribui na circulação de
renda, impulsionando o conjunto de negócios baseados no capital intelectual e
cultural e na criatividade que gera valor econômico.
O Encontro Periférico de Artes busca o contexto estrutural e histórico
para compreender e elaborar estratégias de enfrentamento e superação
qualificados entre seus pares, neste caso, os participantes da Batalha de
pagode baiano, atividade que compõe a programação do EPA! que faz parte de
uma ação combativa, ação oxêtica. Há muitos jovens artistas negros que têm a
certeza de que não vão chegar a profissões que desejam, que sonham. Sonhar
faz parte do constructo do sujeito, uma ação cognitiva que possibilita, talvez,
realizar por via de caminhos possíveis. Aprende-se com a cultura, com a
história, com economia, a ter sonhos. É importante para nós jovens negros ter
a oportunidade em uma sociedade que cerceia e impede de ser humano,
enquanto negro. A ação oxêtica é como coreografar estratégias de
enfrentamentos e combates em sequência de ações, este em movimento
gerando insurgência.

Referencia
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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

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448
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

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449
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

FRICCIONANDO A IDEIA DE UNIVERSAL:


O PENSAMENTO DE GERMAINE ACOGNY EM CAMPOS EXPANDIDOS

Luciane Ramos-Silva (Acervo África)

Introdução

Ampliando nossas perspectivas práticas e teóricas no campo de


produção de conhecimento em dança e colaborando para o campo vívido das
epistemologias afro-orientadas, apresento neste artigo algumas reflexões sobre
a técnica Germaine Acogny em uma leitura que situa brevemente seu
surgimento, elucida o campo político e histórico que traz como substrato e
provoca-nos a pensar a ideia de universalidade apresentada pela coreógrafa.

Ao revisitarmos proposições epistemológicas, podemos entender a


dança como um terreno fértil para indagar e reconstruir o modo como nos
relacionamos com os contextos, com as teorias criadas dentro do campo
expandido das artes e, em grande medida, reler como compreendemos
nossos próprios corpos produtores de conhecimento na história.

Há um movimento muito pertinente de aproximação de artistas e


pesquisadoras ao trabalho de Germaine Acogny, de sua escola e bons ventos
para uma relação de parceria com o continente africano. São deslocamentos,
mudanças de eixos que parecem apontar para possibilidades de encontrarmos
referências dentro dos contextos negros e pluralizarmos redes de criação e
ação. Esses movimentos, já abordados em algumas pesquisas acadêmicas
relacionadas às questões do corpo, ancestralidade e legados das
matrizes/motrizes africanas, anunciam mudanças no foco daquilo que
consideramos formação em dança, conhecimento técnico, poético e linguagem.

Mesmo assim, as transformações seguem em passos lentos, vide os


currículos dos cursos de graduação em dança do país – predominantemente
euro-orientados e em descompasso com a pluralidade de linguagens que
alimentam o corpo brasileiro. Estes e outros questionamentos estão inseridos
em uma reflexão mais ampla que tem sido absorvida pelo campo de pesquisa

450
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

em dança no Brasil, cujo substrato epistemológico foi historicamente composto


por referenciais euro-orientados e ignorou os trabalhos fundamentados em
epistemologias afrodiaspóricas. Para além de uma discussão em torno de
representatividades, trata-se de um olhar crítico sobre a composição do campo
da dança e seu evidente compromisso com a manutenção das epistemologias
hegemônicas que, não apenas no território das artes, mas nas ciências
humanas igualmente, definem narrativas únicas sobre as coisas do mundo,
ignorando o fato de que há diversas e singulares perspectivas teóricas e
sensíveis oferecidas pelas perspectivas não hegemônicas.

O pensamento concretizado em dança da coreógrafa e artista Germaine


Acogny, tem sido iluminado com mais intensidade no Brasil nos últimos anos. A
artista, que nasceu no Benin e passou grande parte de sua vida no Senegal e
na França, através de sua proposta pedagógica intercultural apresenta-nos um
conjunto de ideias que, inseridas no contexto brasileiro de ampliação dos
referenciais epistemológicos para a dança, são instigantes e adensadores de
reflexões críticas. Para além da louvação entusiástica de uma africanidade
imaginada, este trabalho propõe olharmos as enunciações de Germaine, situá-
la em seu contexto, situarmos sua passagem pelo Brasil e atentarmos para as
dimensões filosóficas da sua obra – refletidas em uma pedagogia, em uma
escola de formação e em diversas criações artísticas.

Há uma pergunta geradora que orienta estas linhas: Como uma


proposta oriunda de um contexto não hegemônico pode friccionar com o ideal
de universalidade gestado pelo pensamento branco, supremacista, imperialista,
capitalista e patriarcal europeu, ao mesmo tempo em que amplia
simbolicamente o terreno do pensamento em dança e nos possibilita
movimentos críticos sul-sul?

As breves reflexões que teço, na medida que tocam nas noções de


universalidade, trazem a inevitável referência de Frantz Fanon (1963; 2008)
que ao discutir os impactos do colonialismo afirma que a desumanização dos
colonizados foi um projeto identitário que localizava o homem branco e a
Europa no lugar de um humano-genérico-universal. Esse genérico universal
paira nos imaginários da dança quando, por exemplo, discutimos técnica e
treinamento.
451
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Foto 1 - Germaine Acogny em frente ao escritório da Escola de Areias.

Fonte: Arquivo pessoal Luciane Ramos-Silva

Pensamento de areias

Podemos referenciar algumas marcas centrais na trajetória de Germaine


Acogny: sua participação como diretora artística do Mudra África, uma política
pública para as artes proposta por Leopold Sedar Senghor, primeiro presidente
do Senegal após a quebra colonial, e que teve a direção do coreógrafo francês
Maurice Béjart, criador do Mudra, Centro de dança criado nos anos 70 em
Bruxelas que trazia perspectivas inovadoras em concepções filosóficas e
estéticas. Cito também sua concepção da Escola de Areias (École des
Sables), Centro Internacional em danças tradicionais e contemporâneas de
África, e também sua atuação como coreógrafa convidada no Balé da Cidade
452
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

de São Paulo em 1995, na gestão de Ivonice Satie em comemoração ao


tricentenário de morte de Zumbi dos Palmares. Todas essas passagens de vida
são referências privilegiadas para termos não apenas seu pensamento estético
e pedagógico como um manancial para os estudos de dança, mas também
como uma oportunidade de construir relações sul-sul mirando filosofias
incorporadas e práticas que revelam também negritudes globais.

Enquanto propositora de uma pedagogia que tem em seu cerne a


percepção da pessoa em seu contexto, sobretudo a pessoa em relação com o
cosmos, Germaine coloca-nos em contato com uma maneira de pensar dança
que agrega valor à uma dimensão fundamental da experiência humana e que
no Brasil, é frequentemente colocada em xeque no que se refere à experiência
de pessoas negras – a autonomia e a consciência de si para o fortalecimento
de um corpo digno. Essa dignidade diz respeito à percepção do valor próprio e
das camadas de história que compõem a pessoa. Numa leitura mais
expandida esse reforço da dignidade, que encontramos em outras pedagogias
de dança afro orientadas em territórios brasileiros, são contra-discursos à
desumanização perpetrada pelo pensamento moderno e que se mantém na
atualidade como marca da colonialidade.

Eu penso que temos que ser orgulhosas do que somos. E digo que
nós negros sabemos nos portar, nos colocar. Há muitos discursos na
história, mas nós somos esquecidos o tempo todo – enquanto
negros, enquanto mulheres também. Mas não devemos ficar em
guetos e sim ocupar nossos lugares. É por isso que não é justo estar
em baixo. Devemos ser orgulhosas de nossos corpos. (Germaine
Acogny, depoimento pessoal, julho/2015)

Em seu livro, Germaine (1980) formaliza um repertório de movimentos


base, decompondo, selecionando e construindo um sistema organizado . Em
entrevista à rádio RFI quando questionada sobre a tendência do senso comum
em acreditar que a dança africana é inata, Germaine afirma:

Bem, certamente não, a dança não é inata. Eu sou do Benin, cheguei


no Senegal aos cinco anos, e levou tempo para eu aprender o sabar
[uma forma de dança senegalesa]. Agora, adquiri esses gestos, mas
estava longe de ser inato, e os ritmos também não eram! Nossa
dança patrimonial e tradicional são extremamente complexas, por
isso requerem aprendizado. Peguei a essência das danças
tradicionais da África Ocidental e as danças que aprendi na Europa e

453
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

criei minha própria técnica, onde os movimentos são iniciados pela


179
coluna vertebral .

O Mudra Afrique

Eram tempos de transformação em diversos contextos do continente


africano e em muitos deles nascia um pensamento novo sobre autonomia
cultural e estado nação. O então primeiro presidente eleito após a derrubada
do colonialismo francês, Leopold Sedar Senghor, propôs uma política de
Estado privilegiadora da arte enquanto instância fundamental do
desenvolvimento nacional. Esse pensamento perpassou de maneira
semelhante muitos governantes de outras nações africanas na criação de
trupes e balés nacionais em uma assunção ao patrimônio nacional180. A
atuação de Senghor como presidente, que além de estadista era poeta, teve
contornos específicos quando o comparamos com outros chefes de Estado,
pois agregou ao seu pensamento político pespectivas sobre arte, estética e
poética, introduzindo traçados importantes para a presença das artes na vida
senegalesa. Não por acaso, durante um período de seu governo a dança era
disciplina obrigatória nos curriculuns de educação básica. Esse espirito
fomentou igualmente o movimento da negritude, cujo conteúdo anunciador
mobilizou a intelectualidade negra das Áfricas e diásporas num projeto de
conexão de sentidos para a reflexão sobre as histórias comuns dos povos
negros.

Senghor almejava uma espécie de ascensão do Senegal enquanto


nação na história do mundo dando à arte papel de protagonismo e instituindo-a
como elemento catalizador de desenvolvimento e modernidade. Tais
informações são importantes para compreender o contexto onde Germaine
Acogny gestou seu pensamento concretizado em dança e como ele

179
Entrevista disponível em <http://www.rfi.fr/afrique/20131205-germaine-acogny-danse-vie-
mudra- afrique-ecole-sables-theatre-ville-paris>. Acesso em 23 mai. 2015. Transcrição e
tradução nossas.
180
Para maiores informações sobre os balés nacionais ler Silva (2012).
http://www.omenelick2ato.com/artes-da-cena/danca-e-performance/conacry-em-movimento-
historia-social-horoya-e-arte-na-africa-do-oeste

454
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

reverberou na trajetória da coreógrafa bem como na proposta do Mudra


Afrique, escola pan-africana de dança onde Germaine atuou como diretora
artística.

Intelectual fluente nas estruturas de poder francesas, Senghor trouxe


para sua política de Estado um plano de extroversão ímpar para a época, que
almejava erigir as civilizações africanas ao patamar da história universal (
àquele tempo entendida como a história narrada pela Europa). Em sua leitura
da experiência africana, Senghor trazia a narrativa controversa de que os
povos africanos tinham a expressão artística como fundamento e os europeus
tinham a ciência - uma perspectiva que polarizava africanos e europeus como
seres de “razão intuitiva”e “seres de razão lógica”. Homem de seu tempo,
Senghor tentava valorizar a diferença que solicitava a ideia do "nós e dos
outros" , Senghor acabou reforçando exotismos . Mesmo com todas
contradições em sua trajetória ( que provocaram inclusive severas críticas do
movimento da negritude, do qual foi um dos fundadores), é fundamental a
contribuição de Senghor para a história das artes negras, seja como estadista,
intelectual ou artista.

Ao decidir criar o Mudra Afrique, essa escola pan-africana de dança sob


a liderança de Maurice Béjart, Senghor almejava inserir as artes enquanto
parte importante dos planos de política cultural e no empreendimento de uma
ideia de unidade política atrelada à consciência das identidades culturais das
civilizações negras, fazendo da arte e da cultura, prioridades nacionais. Em
uma perspectiva mais ampla relacionada aos processos de independência
africana, assistimos à participação efetiva do campo da dança nos caminhos de
modernização dos jovens Estados africanos.

Existe uma proposta de encontro cultural na técnica Germaine Acogny,


que ela denomina intercultural. Após experiências de campo acompanhando
aulas e entrevistas diretamente com Germaine no Brasil e no Senegal, bem
como experiências práticas e entrevistas com suas principais discípulas,
compreendo que a coreógrafa elabora um discurso que gradualmente torna-se
intercultural enquanto projeto político e epistêmico, tal qual teorizado por Walsh
(2010), desafiando os modelos eurocêntricos de educação. De maneira geral, o
trabalho na técnica Acogny está mobilizado por alguns temas-chave: a marcha,
455
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

a compreensão da importância da coluna vertebral, a abordagem do solo


enquanto percepção da gravidade, o fundamento da energia e do ritmo. Esses
temas são abordados ao longo do treinamento tecido por uma trama
pedagógica holística.

As perspectivas de Germaine Acogny propõem o enlace das culturas


africanas com as europeias, no intuito de um sobrevôo para uma ideia de
universalidade que, conforme mostraremos mais adiante, explode com a
narrativa narcisista europeia do universal como espelho de si. Germaine, em
uma dança autodeterminada, coloca-se no jogo como agente de um outro
universalismo.

O universal e a perspectiva de Leopold Sedar Senghor

Dois elementos mostram-se fundamentais de serem mobilizados na


avaliação da política através das artes empreendidas por Senghor: a categoria
Estado e a categoria Universal. Ambas são entidades que nascem justamente
na modernidade pautada pela colonialidade do poder. O Estado Nacional
construído pelos chefes de Estado africanos tinha o grande desafio de se
adequar a um modelo organizativo político que, frequentemente, chocava com
as formas africanas de escritas de si. Os Estados patrimonialistas, as chefias
locais, as lógicas de consumo/troca/dádiva, entre outros aspectos, dificultaram
essa combinação por vezes bizarra, do modelo europeu com a experiência
africana. Assim, a tentativa de Senghor foi louvável naquilo que trazia como
percepção da arte enquanto experiência da vida cotidiana, sendo, portanto,
motor e motriz da cidadania, mas por outro lado, ao definir essa relação com a
arte como uma espécie de “ethos” africano, sucumbia justamente na polaridade
Nós/Outros, já que a percepção de uma civilização negro-africana, plena de
direitos e dignidades, inexistia a partir do ponto de vista europeu. Ao pensar em
uma complementariedade entre o europeu e o africano, ampliando a noção de
humanidade e empreendendo um duplo movimento de enraizamento e
abertura, tal qual dizia, seu projeto, valoroso e impar àquele momento, não
resistiria às forças imperialistas e tampouco a crítica interna que crescia. O
segundo aspecto, refere-se à clara ambiguidade de que o Universal aspirado

456
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

ligava-se à intelectualidade francesa. Assim, o etnocentrismo europeu definia,


em grande medida, aquele sentido de universalidade.

Imaginário em movimento

A técnica Acogny está profundamente relacionada com o imaginário e


com a capacidade de dar concretude aos símbolos e relacionar o corpo com o
cosmos.

Na sistematização técnica, Germaine não usa o termo passo mas sim


mas sim “movimento” e este corresponde a uma concatenação de informações
motoras, sensoriais simbólicas. Aprendemos o movimento do baobá, da
palmeira da costa, da estrela do mar, do fromager, da boneca ashanti, do
condutor, do tigre bravo, do cervo dançante, do passageiro, da pintada, entre
outros. Tais mobilizações propõem uma relação e entendimento do movimento
a partir do imaginário, suplantando a perspectiva abstrata e oferecendo a
possibilidade à pessoa que dança não apenas imaginar seu gesto, mas re-
imaginá-lo na medida em que acessará seu cognitivo para concretizar o
símbolo proposto. Assim, embora o movimento do baobá, por exemplo, seja
construído a partir de motivações sistematizadas e claras de braços, pernas,
percepção rítmica entre outros aspectos bem determinados, o baobá de uma
pessoa nunca será igual ao baobá da outra, a imaginação faz com que os
sensos de construção do movimento não sejam apenas captados desde fora,
mas desde dentro. Prevalece a importância de se perceber enquanto árvore na
perspectiva de um enraizamento profundo nas tradições próprias de cada
pessoa e uma expansão motivada por alcançar distâncias, o que é
simbolicamente a relação com os entornos.

Essa proposta que privilegia a sensação e o imaginário leva a pessoa a


acessar estados que a dança compreendida apenas como forma, não é capaz
de oferecer. Trata-se de imaginar- se sendo um tigre bravo e acionar todas as
qualidades e estados de escuta necessários. Trata- se de habitar o corpo
enquanto tigre imaginando-o profundamente. Imaginar-se como um fromager,

457
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

em sua grandeza , implica em manter os pés profundamente enraizados, se


relacionando com o centro de gravidade e ao mesmo tempo ter galhos
extensos, se relacionando com a exterioridade ampla do mundo. Nele há um
engajamento da coluna e dos rotadores da área coxo femural. Há uma
ondulação contínua e minimalista da coluna, num trabalho preciso e interior de
percepção do movimento. Tal qual uma árvore antiga, que se move com
experiência e que é marcada por uma noção de tempo que não significa
necessariamente velhice, mas maturidade. Manter essa relação equilibrada
expandindo os espaços internos e crescendo ao infinito é um grande desafio
não apenas para a manutenção do equilíbrio físico, como também em nosso
dilema cotidiano em lidar com os desafios que nos atravessam enquanto
pessoas no mundo.

Foto 2 - Movimento do Cervo em dupla.

Fonte: Danse africaine (1994. p.72 )

458
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

O Universal proposto por Germaine Acogny

Empreendo aqui um exercício de reflexão sobre a ideia de universal,


deslocando-me no tempo e tentando entender seu significado no discurso de
Germaine cruzado com seu contexto histórico singular. Não se trata portanto,
de apresentar "formas universais", mas absorver um certo índice de
contradição, algumas delas já mencionadas anteriormente, para perceber o
percurso da coreógrafa ao incluir uma narrativa não hegemônica de dança em
espaços legitimados de poder (Germaine leciona e se apresenta em diversos
espaços notórios) sendo essa narrativa um contra-discurso ao que se chamava
de universal.

Germaine forja sua técnica colocando em relação a dança moderna,


sobretudo a partir da técnica Martha Graham com o balé clássico europeu e
danças da região do Sahel africano.

A coreógrafa associa conteúdos técnicos a partir das linguagens que


mobilizaram sua experiência artístico-pedagógica, como as já citadas técnicas
criadas em contextos europeus, fundamentando essa conexão nas
perspectivas africanas. Ressaltamos que ao operar a comunicação entre as
danças da África do Oeste, o balé clássico e a técnica Graham, a coreógrafa
não determina uma hierarquia de valores, indicando uma superioridade ou
capacidade desta ou daquela linguagem ser mais profunda em determinados
aspectos – o que Maurice Bejart fez, na experiência do Mudra Afrique, ao
afirmar, por exemplo, que o balé daria as bases mais profundas aos corpos
africanos181. Neste caso, questionamos: qual modelo de compreensão de corpo
é acionado quando se considera que o balé clássico ou linguagens
eurocentradas proporcionam bases mais profundas? Essa profundidade estaria
ligada a uma compreensão racional de perspectivas técnicas a partir de um
conhecimento sistematizado? Ou essa profundidade pode ser auferida a partir
de uma relação com uma consciência corporal que se dá em bases físicas e
holísticas. A análise da técnica Acogny me fez crer que Germaine responde a

181
Para referência da fala de Béjart, ver SILVA, 2018.

459
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

esses questionamentos a partir da ação intercultural proposta em sua


pedagogia. Não pretendo discutir aqui os fundamentos técnicos e poéticos
desse enlace, o que exigiria um novo artigo, mas cabe ressaltar como, no
percurso de gestação da técnica, Germaine encontrou o ponto de equilíbrio
para garantir um protagonismo para as danças africanas nessa relação, o que
dá o tom para o que defende - universal é uma dança que possibilita qualquer
corpo existir nela. Assim é a técnica Acogny. Há disciplina mas não há uma
ideia de eficiência de gesto supressora fazendo com que cada pessoa absorva
os movimentos da técnica sem desconsiderar suas camadas de história . Vejo
que trata-se de uma pedagogia que abre espaços para que a pessoa que
dança interpele e se relacione com as informações que recebe, cruzando-as
com seus mundos próprios. Trata-se de permitir agência ao corpo na medida
que a pessoa é incentivada a construir imagens sobre si e não se encaixar em
uma forma prescrita. Assim, Germaine afirma que sua dança é tanto africana
quanto universal.

Como alternativa a ideia de universal forjada pelo colonialismo europeu,


afirmo que Germaine propõe um universal pluralista expandindo
pertencimentos e encontrando elementos comuns nas danças da África do
Oeste que comunicam e constroem pontes para diversas formas de existir.

O percurso de Acogny nos ensina que a consciência de si e as


reinvenções das africanidades no mundo contemporâneo passam pela leitura
crítica do colonial. Lembro vividamente de sua leitura do Discurso ao
colonialismo, de Aimé Cesaire , em seu solo Soongook Yankar ( Confrontando
a Esperança) , durante a Bienal Sesc de Dança em 2012. As propostas de
Germaine possibilitam reflexões sobre a unidade do humano e a pluralidade
das linguagens e formas de apreender os contextos. Sua pedagogia e obra
artística acumulam ideias e convicções muito caras aos nossos dias,
abordando princípios para a consciência do corpo e dos nossos mundos.

460
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Referências

ACOGNY, Germaine. Danse africaine. Weingarten Kunstverlag, 1994, 4ª. Ed.


ISBN 10: 3881840389 ISBN 13: 9783881840385

BORO. Seydou. La Danseuse D'Ébène (França 2002). Documentário em


cores/52’.

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre el colonialismo. Madrid: Ediciones Akal,


2006.

FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008.

_________. The wretched of the earth. New York: Grove, 1963.

NASCIMENTO, Beatriz. Kilombo e memória comunitária: um estudo de caso.


Estudos AfroAsiáticos, Rio de Janeiro, v. 6-7, CEAA/UCAM, p. 259-265,
1982.

SILVA, Luciane da. Conacry em movimento. História social, horoya e arte na


África do Oeste. O Menelick2Ato, São Paulo, n.9, 2012. Disponível em:
http://omenelick2ato.com/danca/conacry-em-movimento/

SILVA, Luciane da. CORPO EM DIÁSPORA: Colonialidade, pedagogia de


dança e técnica Germaine Acogny. Tese de doutorado apresentada ao
Programa de Artes da Cena do IA UNICAMP, 2018.

WALSH, Catherine. Interculturalidad, conocimientos y decolonialidad. Revista

Javeriana, Bogotá, v. 24, n. 46, pp. 45-70, 2005.

__________. Introducción: lo pedagógico y lo decolonial: entretejiendo


caminos. In: _______ (org.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes
de resistir, (re)existir y (re)vivir. Quito, 2013. Disponível em:
<http://www.reduii.org/cii/sites/default/files/field/doc/Catherine%20Walsh%20-
%20Pedagog%C3%ADas%20Decoloniales.pdf>. Acesso em 20 set. 2020.

461
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

DECOLONIZAR: DANÇANDO COM SANKOFA


Erick Santos Silva (UFBA)

Antes de entrarmos nos caminhos emaranhados deste artigo é preciso


uma contextualização e relembranças dos caminhos deste corpo que vos
escreve. Falaremos de AutoEscavo. Este material foi lapidado na conclusão de
curso em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Londrina, que tinha e
tem, quando performado, o objetivo do mergulho interior nas memórias
presente neste corpo, para no encontro com sua linha ancestral se nutrir da
Matripotência182 encontrada nas memórias e nas filosofias Yorùbá, trazendo
para este caminho as epistemologias outras fora do âmbito acadêmico, como
por exemplo, as vivências em terreiros de Candomblé, nas rodas de samba,
as rodas de capoeira (...) e as riquezas culturais diaspóricas Africanas
encontradas aqui. Alimento-me e procuro transdisciplinar nas discussões e nas
criações artísticas, pois, estou no caminho de tomar para si aquilo que foi
roubado e/ou velado para este corpo.

Pois bem¸ AutoEscavo foi e é, quando performado, a busca de um


menino pelas suas memórias ancestrais e uma desestabilização do tempo
cotidiano para o tempo extracotidiano como se fosse em um ritual183. Onde a
presença do ser que age com seu corpo - corpo enquanto voz, corpo enquanto
respiração, corpo sem a catalogação ocidental – culmina nas vivências e
experimentações nas tensões provocadas, atritos e modificações (alteração da
respiração e da voz, como exemplos), fazem as qualidade corporais alterarem,
elevando a presença do ser que age ou do Performer184. Foi um mergulho
nesse corpo, um abraço nas raízes e nas memórias pretas encontradas nas
experimentações da dança para os Orixás185, nos ensaios em lugares aberto,
nas vivências com artistas e coreógrafas que trabalham com o tema,
adquirindo mais material corporal juntamente com as filosofias, o respeito, a fé
e a criação inspirada pelos movimentos para Elas e Eles. Em AutoEscavo

182
Oyèrónkẹ́, Oyěwùmí, 2016.
183
Schener. 2011.
184
Grotowski, 2015.
185
Opto por utilizar a maneira que escrevemos no cotidiano, mas para informação a grafia
Yorùbá é Òrìṣà.

462
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

também existe uma experimentação de um lobo, em uma mimetização de


como anda, rosna e uiva, em uma tentativa de completude ao instinto
animalesco presente em nossos corpos: Nixe (esse lobo, bicho-homem) que se
corporifica em cena para rasgar e morder a pele do Performer, para uma
metáfora do (re)nascimento. Nixe é um ser fronteiriço que vem para jogar-me e
empurrar para fora da linha cotidiana na busca de um encantamento186. Em
cena também há um choro de um bebê, que grita sua mãe, faço um desenrolar
espiralado junto a respiração e começo a dançar para os Orixás. Para caçar e
trilhar este caminho abracei e pesquiso as memórias afros e afro-ameríndias,
ouvi histórias da minha família contada pelo meu antecedente vivo, meu avô, e
minha ancestral, minha mãe. Em AutoEscavo brinco com a voz, com a dança,
com as qualidades corporais e as modulações da respiração, consigo
apresentar em algumas cidades recolhendo visões de espectadores de fora
das artes e de dentro delas. Citamo-nos algumas.

Londrina/PR onde tem suas primeiras recepções pelos artistas


populares e aqueles inseridos na academia. É interessante destacar que
durante o processo consegui apresentar em um colégio descentralizado da
cidade (cito também que foi pela inserção da lei 10.639/2003, visto que a
professora de Educação Física gostaria que as alunas e alunos tivessem um
contato vivo com os conhecimento Afros), lá vivenciei aberturas de relatos de
transição capilar e o racismo religioso impregnado tão cedo e inconsciente nos
jovens. Em Londrina também, consigo recolher parte do que chega até o
espectador, em uma temporada de apresentação na Usina Cultural, espaço e
vila artística da qual fui residente na cidade, onde experienciei quais as
emoções despertavam no público e qual choro engasgado poderia ser jorrado
e foram.

Rio das Ostras/RJ (ago./2019), lá foi visível a parte da população que


abraçou a cena como um todo e outra parte que não se interessou, saio do
festival com um prémio de melhores esquetes definido pela jurada e jurado. Em
Salvador/BA, consigo performar no Congresso de Filosofia Africana e Filosofia
da Libertação (out./2019), ouvindo incentivos e pedidos de continuação de não

186
Oliveira, 2005.

463
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

parar o meu ofício, também foi ali que ouvi “Você deveria tentar o mestrado em
dança também!”. Em Jabaquara/SP (Dez/2019), sendo abraçado pelo Centro
de Culturas Negras Mãe Sylvia de Oxalá, ouvindo relatos pessoais das
identificações com o tema, com o processo desestabilizador e rico que é ao
abraçar nossas raízes (origens), fazendo uma resenha ao fim, ouvindo o que
chegava ao público com suas dúvidas e abrindo o processo de criação.

Esse foi um breve histórico por onde passei com AutoEscavo, hoje,
encontro-me Mestrando no Programa de Pós-graduação em Dança na UFBA,
investigando justamente o processo da decolonização ao encontrar, resgatar
as danças afrodiaspóricas, as memórias ancestrais em um juntó187 com as
filosofias africanas.

Feito esse memorial, retornamos a pergunta: Então é possível o corpo


carregar essas memórias? Começamos academicamente com Grotowski,
acerca da busca do corpo ancestral indo à caça e ao encontro da sua
nomenclatura Corpo-memória e logo Corpo-Vida, afirmando que as memórias:
São inscritas sobre a pele e sob a pele, da infância até a idade
presente e talvez também antes da infância, mas talvez também
antes do nascimento da nossa geração. O corpo-vida é algo de
tangível. (GROTOWSKI in: FLASZEN; POLLASTRELLI (orgs.), 2010,
p. 205).

Conheço esse material em 2015 e percebo que poderia fazer algo com
as portas de prática e reflexões despertadas. O objetivo era descobrir as
memórias, a ligação ancestral carregada neste corpo. Esse desejo aprofunda
e estabiliza devido ao apagamento histórico, as perdas de identidade, o
racismo estruturado e o racismo religioso em nosso país, que fazem e
impedem que jovens descendentes dessas linhagens encontrem relatos: de
quem veio antes, de onde e por quê? Para esse corpo de dançante-
pesquisador a vontade era e é, em se (re)conectar com os que passaram, pois,
é lá que está a força, o respiro para continuar, o sal e o bálsamo que sustenta,
desbravando caminhos passados, presente e para quem vai chegar...

187
Que está junto, não existe sem a outra ou outro.

464
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Então Grotowski abre essas portas de investigação dentro do curso de


Artes Cênicas, através das nomenclaturas citadas, corpo-memória e corpo-
Vida, ele defende que o aprendiz a Performer precisa descobrir uma antiga
corporalidade ligada à sua linha ancestral, é como se chegasse lá atrás e
lembrasse do Performer primário (Grotowski, 2015). Nas experimentações que
ocorreram, fui a busca deste corpo carregado de memórias. Fiz, um mergulho
acerca das histórias familiares, dos passados carregados, das alegrias e a
celebração da vida nas memórias vivas presentes. À medida que o trabalho foi
se alastrando em mim, percebi que o material era muito rico, era como se
escorresse do meu ego e mergulhasse nas raízes e tinha que ser
compartilhado para a comunidade e expurgado para a sociedade. Ressalto
aqui, que esses conhecimentos e sabedorias de que os nossos corpos
carregam memórias, histórias, medos e ancestralidade, o nosso povo preto e
indígena anda dizendo há um bom tempo!

Para nós diaspóricos de povos africanos e afro-ameríndios, encontramos


inúmeras barreiras para descobrir e reconectar com nossas raízes,
mencionados à cima, o racismo refinado fez sucumbir resultando em perdas de
identidades e a inversão de valores e sabedorias negras por conhecimentos
colonizadores e brancos fazendo um apagamento cruel dessas. Quando
descubro essa porta de criação inicialmente, percebo a oportunidade de tomar
de volta e concomitantemente fazer um empoderamento de ter orgulho de ser
quem a gente é, de conhecer nossa cultura através dos nossos olhos, das
nossas vivências, para efetivar a volta e apanhar aquilo que ficou para trás e
reconstruir: o Sankofa188. Compreender de onde viemos, tomar para si as
histórias e as memórias das nossas avós e avôs, nossas bisavós e bisavôs...,
mergulhar no arcabouço contido que é corpo.

No presente, depois dessas comportas serem abertas, tenho como


objetivo vivenciar e presentificar cada vez mais o batucar-cantar-dançar189 para
descortinar ainda mais parte das memórias incontidas neste corpo, para um
possível processo de decolonização transversal. Memórias, imagens e histórias
188
Adinkra (para nós ocidentais quase símbolos) dos povos Akan, localizado boa parte no Benin
e em Gana. “Cada ideograma, ou adinkra, tem um significado complexo, representado através
de ditames ou fábulas que expressem conceitos filosóficos.” (Larkin Nascimento, 1996)
189
Termo por Bunseki Fu-kiau, conhecido pelos estudos de Zeca Ligiéro (2019).

465
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

que aconteceram ou poderiam ter acontecido, mas vivas, pois, estão


intrínsecas a este corpo:
Difícil é saber o que foi vivido e o que a gente se lembra ou se o que
a gente imagina foi de fato que viveu. De qualquer forma, história é o
que a gente consegue articular, em discurso, do que viveu, do que
imaginou e o que somos capazes de interpretar com nossas palavras,
nosso corpo, nosso repertório de imagens e de associações.
(LIGIÉRO, 2011, p. 89).

Com esse objetivo é que a pesquisa de mestrado está sendo


empreendida. Em uma investigação artística-corpórea-filosófica,
presentificando e traduzindo via corpo essa tríade de Fu-Kiau que se torna
bússola pra estes caminhos emaranhados, citamos:
Fu-Kiau afirma que a dança é apenas um dos elementos da
performance africana e não deve ser estudada separadamente. Ele
propõe, em vez disso, o estudo de um só objeto composto
(“amarrado”), o “batucar-cantar-dançar” que seria, então, um
continuum. (LIGIÉRO, 2019, p. 200).

Alumiamos: estou nesse processo de religação, aprender e honrar os


que antes vieram, executando uma atualização do presente, respirar
conhecimentos e epistemologias outras fora do âmbito acadêmico e
referenciando-as com respeito e valores. Alimentando-me, transformando,
descobrindo esse arcabouço que é o corpo, que segundo Santana (2020) a
metodologia do artista consiste em conhecer, absorver e transformar esses
conhecimentos e insights via corpo. Pretendo concretizar em uma dança-
performance, expandindo para as pares, os pares e quem estará presente. E
nesse processo de recolhimento de vivências, cantos, danças, vozes e
respiração farão desaguar e confeccionar a escrita da dissertação.

Traço um caminho de realizar uma atualização do presente com o


conhecimento vindo de trás. Logo, Sankofa: o pássaro que anda para frente,
mas só consegue se movimentar à medida que resgata o conhecimento vindo
do seu passado, dos ancestrais, dos encantados, dos Orixás e Voduns. Pois,
“se wo were fi na wosan kofa a yenki”190; se você esquecer, não é proibido
voltar atrás e reconstruir. Citamos Sandra Petit:
Ao executarmos danças de matriz africana, conectamo-nos com os
ancestrais, desde os mais remotos tempos de uma civilização
milenar, que noz traz as vivências das rodas, debaixo de árvores
frondosas, nos terreiros, quintais e praças. (PETIT, 2019, p. 70).

190
Provérbio em ganês.

466
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Descortina para mim as jorradas de memórias junto com as emoções e


as potências na dança para os Orixás. Uma dança para Elas e Eles, importante
frisarmos que a dança é para eles e não a utilização da nomenclatura dança
dos Orixás, pois, para Inaicyra Falcão dos Santos (2008), Maria Lurdes da
Paixão, a minha orientadora atual no PPGDança-UFBA e para este que vos
escreve, a dança dos Orixás só em encontrada em Ilês (casa de Axé) e
terreiros.
O argumento que instalo é que para se pensar na tradição africana
brasileira, não é só pensar a reprodução das formas sagradas
encontradas nas comunidades-terreiro, mas como este sagrado pode
inspirar o artista, o discernir formas, valores da cultura em questão,
buscando o seu conhecimento e o respeito. (Santos, 2008, p. 2).

Dito isto, correlacionamos esse desvelamento da ancestralidade com o


adinkra dos povos Akan, Sankofa: Nesse caminhar estou andando para frente,
projetando para o futuro, atualizando o presente com essas memórias
ancestrais e presentificadas pelo corpo e pelo estudo, nessa (re)conexão e
mergulho nas vivências e epistemologias afro-referenciadas que não estão
inseridas com o devido valor em nossas universidades e escolas. Este adinkra
ideograma carrega uma filosofia, é usado nos tecidos da despedida de seus
falecidos (LARKIN, 1996) com isto, trago como potência artísticas a roupagem
que irá embora à medida que a pesquisa aprofunda.

Sankofa, a imagem de um pássaro que projeta seu pescoço para trás,


aprende com o passado, com as mais velhas e os mais velhos, absorve,
caminha e reconecta-se com seus pares. Citamos Sandra Petit:
Tornamo-nos sankofa, um pássaro que se movimenta para frente, ao
passo que mantém sua cabeça voltada para trás, num elo
inquebrantável com a nossa história, a um só tempo comunitária e
cósmica. (PETIT, 2019. p. 70).

Logo, para este corpo que escreve e dança na procura do auto escavo,
no mergulho e no desvelamento daquilo que foi roubado, camuflado,
dilacerado, embranquecido e endemoniado, torna-se fundamental uma
reconexão ancestral, uma alimentação e abertura para desenvolvimentos que
essa pesquisa colheu e colherá, pelas sementes plantadas, os crescimento de
suas raízes, fazendo estourar o limite que tentaram moldar-me. Pois, as
manifestações de diáspora e africanas sempre tiveram um cunho espiritual-
cultural-medicinal, onde as artes que aqui tentamos coloca-las em “caixinhas”,

467
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

se encontram e atravessam-se, resultando no descortinar do desconhecido


(SANTANA, 2020).
Para as negras e negros desterrados brutalmente da África para as
América e cujos algozes procuraram por todos os meios destituir de
humanidade, a dança foi um elo indispensável à sobrevivência física
e espiritual. Assim para nós, descendentes desses povos, a dança
significa mais do que filosofia e cosmovisão, significa existir. (PETIT,
2019, p. 72).

Torna-se fundamental que mais negras, negros e negres em nossa


sociedade mergulhem em sim, apropriando-se daquilo que nos foi negado para
fortificação das raízes e descobrir que os conhecimentos e sabedorias já
existiam antes da categorização da palavra. Esse recorte da pesquisa
consegue estourar o vaso da limitação impingida pela sociedade e agora suas
raízes, minhas raízes que estouraram esse limite começa a cavar fundo e
alimentar-se do encantamento vindo de lá e encontrado aqui em diáspora, pois
é nesse trilhar que o conhecimento vale a pena, vemos:
O significado de caminhar para a cultura africana e afro-brasileira é
muito mais que chegar a algum lugar, atingir um objetivo. É a
constatação da aprendizagem no percurso, ou seja, caminhar é o
mesmo que aprender e apreender o percurso. Em muitas
circunstâncias, caminhar vale muito mais que o objetivo final; talvez
nem se chegue a atingir uma meta almejada, mas na hora do
entendimento o que conta é o que o percurso trouxe, o seu legado.
(BARBOSA, 2016, p. 30)

Emaranhado

Descobri no tecer da Conclusão de Curso, que as transdisciplinaridades


da performance com a antropologia são extremamente ricas. Possibilitaram um
mergulho interno e expurgação via performance, AutoEscavo,
consequentemente no teórico costurado e intitulado: AutoEscavo: A busca pelo
Eu Corpo Neófito (2018), com autores que pesquisam tais temas. Descobri
também que a performance quando bem executada pode resultar em uma
transportação e uma transformação, citamos:

Denomino performances os eventos em que os performers são


“transformações” modificadas e àqueles em que os performers são
levados de volta aos seus lugares de origem, “transportes”-
“transporte” – porque durante a performance os performers são
“levados a algum lugar”, mas ao final, geralmente ajudados por
outros, eles são “desaquecidos” e reentram na vida cotidiana no
mesmo ponto em que saíram. (SCHECHNER, 2011, p. 162-163).

468
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Pois em toda manifestação de performance uma linha cotidiana é


atravessada e torna-se extracotidiana. Atualmente, no tecer da pesquisa e
dissertação de mestrado em dança, esse corpo reconhece que tais áreas
artísticas na verdade nunca estiveram separadas, mas o ocidente que tem
mania de separar e catalogar as coisas para tornar “fraco” e deslegitimar as
potências pretas, afro-ameríndias, diaspóricas e o que venta do continente
Africano.

Com as afro-referências, afroperspectivas e afroepistemologias, estou


modificando meu enredo e trazendo para dentro das referências acadêmicas.
Que com todas as barreiras impingidas, as resistências de cada preta, preto,
prete, quilombola, indígena que entram nas academias e conseguem manter-
se lá dentro (Políticas de Ações Afirmativas) fazem a casa grande tremer, pois,
subverte as/os que já foram proibides de estudar. E fazem a conclusão do seu
curso, referencia seus próprios caminhos na busca da sua protagonização e
abrem portas para outres.

No dissertar, já estou encontrando mais caminhos de diálogos e


filosofias Africanas e de vida (exemplos, Ifá e o Candomblé), afros-termos que
desestabilizam este corpo e consequentemente irão desestabilizar, destruir,
renomear e afro-referenciar termos europeus e colonizadores. Alimento-me
dessas referências afrocentradas, plantando, colhendo, modificando esta
subjetividade que foi tão atravessada e colonizada pelo trilhar desses passos lá
na infância. Logo, na fusão dos elementos que irei trazer para a pesquisa de
mestrado, pretendo detalhar como as danças para os Orixás, de possíveis
vivências em danças em diáspora africana, em um juntó com as filosofias
africanas, irão decolonizar este corpo vias afrocentricidades.

Procurando partir da prática e das vivências, escrevendo diários de


bordo, relatando pela autoetnografia, e colocando-me nos caminhos de
pesquisa das que antes já fizeram e ainda fazem em um diálogo, sendo
ensinadas por elas/elus/eles. Como diz Vanda Machado (2013), “en-sinar (...) é
colocar o outro em seu Odú, dentro da sua própria sina, do seu caminho, do
seu jeito de ser no mundo do jeito como ele é.”

469
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Com isto, coloco-me no caminho das referências que trouxe aqui neste
artigo e de tantas outras que irão atravessar-me, na bússola decolonial nesta
trilha, nas disciplinas aqui neste artigo citadas, pensando-dançando junto a
elas. Pois, uma área de conhecimento pode instigar e alimentar outra, como
dito por Luciane Ramos Silva, a dança e a antropologia, com suas perspectivas
sobre o corpo, a cultura e as práticas pedagógicas, jogam luz na
ressignificação e (re)territorialização dos atores sociais, fortalecendo reflexões
e evidenciando que uma área pode alumiar/escurecer a outra (SILVA, 2017, p.
70). Logo, veremos o que esse caminho emaranhado, de encruzilhadas e
transdisciplinaridades irá plantar, crescer e coletar.

Tempos de Caos

Nesses últimos tempos de pandemia e isolamento social, consigo


vislumbrar uma interferência significativa que os acontecimentos modificaram
esta pesquisa, esta que está sendo desenvolvida e aprofundada nesse caos
pandêmico e o desgoverno político fascista em nosso país. Esse estado gera
desafios significativos, culmina em emoções como a angústia, a ansiedade, o
acúmulo de energias que poderiam até se esvair com mais experimentações
práticas, um estado de inércia e ao mesmo tempo de resiliência e planejamento
para contra-atacar.

Com isso os problemas para este dançante-performer-pesquisador


aparecem: os espaços para os ensaios, a falta de um laboratório (de uma sala
fechada) para expurgar as criações primeiramente, recolher material, para abrir
para os olhares de fora, críticas e sugestões. Hoje, adapto-me no vivenciar as
danças no cômodo de minha casa e algumas outras na laje emprestada pela
locadora nesses meses de caos. A barreira de não poder ensaiar em lugares
abertos e envolvidos pela natureza, pelas matas e árvores, aos poucos com a
liberação da Prefeitura poderei ir dançar na beira do mar, usando máscara e
atraindo olhares curiosos, e nas matas pelas cidades. O problema central para
este é a limitação do Encontro: como a pesquisa parte do corpo, da práxis, a
prática que resulta o teórico, o que mais tem me carecido é a presença de
outras corpas e corpos para jogo, para improviso, das provocações, das

470
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

reflexões encontradas juntes, dos olhares de fora que instiga o material


levantado e leva para outras percepções, que sozinho é impossível.

Barreira e Inconclusão

Uma dificuldade é de encontrar as palavras que manifestam toda essa


carga ancestral que trago para o trabalho e pesquisa, seja durante a confecção
deste artigo, na escrita da dissertação e também no ato da performance. Se
não estou fazendo um resgate da minha cultura, estou fazendo o que?

Por tempos em minha família e para mim as filosofias de vida africanas


foram negadas e veladas. O que venho cavando, buscando e trilhando é esse
apanhar aquilo que ficou atrás (Sankofa), desvelar essas histórias e memórias
que foram colonizadas. Por hora ainda uso e entendo como resgate ancestral,
ainda não encontrei uma palavra que contempla-me, bailo com: (re)conexão;
linha ancestral; desvelar e presentificar (em cena); retornar as raízes para
refazer-me; decolonizar; transcender (ir além) dos limites postos e impingidos;
honrar as ancestrais e os ancestrais, as/os antecedentes, para que eu
descendente recupere o primas, o feitiço do verbo construção, o bálsamo e a
cura!

Logo projeto para que ao fim da dissertação, no Programa de Pós


Graduação em Dança, possa descobrir esse termo, compartilhar os resultados
corporais e teóricos, criar tais palavras que partam das minhas vivências, da
afrocentricidade e afroperspectivas, de onde eu vim e dos passos de longe que
estou percorrendo. Tentando protagonizar este e ao mesmo tempo ampliar
para as pares e os pares no processo de aquilombar, mas quilombo na
perspectiva de Beatriz Nascimento contida no documentário ÔRÌ (1989)
direção de Raquel Gerber: “É importante ver que hoje o quilombo traz pra
gente não mais o território geográfico, mas o território a nível de uma
simbologia."

A leitora e o/ou leitor que chegaram até aqui pode estar se perguntando,
“tá, mas e a dança?”

471
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

A dança cara leitora e leitore está na ação de livrar-me das amarras que
a sociedade tentou colocar-me, está dentro desse corpo que dança aqui em
meio as palavras, que dança para expurgar a tirania, que dança e performa
para afetar, incomodar, encantar, resgatar as sabedorias antigas e destruir
padronizações ocidentais, pois, nos pequenos passos dados por essa
pesquisa, inconcluso aqui, que a dança não está separada do cantar, do
batucar, do teatro, da performance, das artes visuais... e que todas essas
manifestações interligadas, transdisciplinadas, resulta, na abertura do
desconhecido e na sacralização (não-ocidental) do presente. Estou nessa caça
e nas viravoltas desse arcabouço vivo que é o corpo, na busca das memórias e
ancestralidade, pois:
A memória são conteúdo de um continente, da sua vida, de sua
história, do seu passado. Como se o corpo fosse o documento. Não é
à toa que a dança para o negro é um momento de libertação. O
homem negro não pode estar liberto enquanto ele não esquecer o
cativeiro, não esquecer no gesto que ele não é mais um cativo. A
linguagem do transe é a linguagem da memória. (NASCIMENTO,
1989).

Finalizo aqui, dizendo que a pesquisa está em aprofundamento e


construção nesta etapa de dissertar. Procuro sempre levar o pouco dos
conhecimentos acumulado, da pequena semente que conseguiu subverter os
limites, as barreiras, os afrosurtos (sem jargão algum!) dessas raízes e da
ancestralidade, parafraseando Vanda Machado (2013) elas que escolheram-
me. Aberto para as recepções, críticas, que fazem a pesquisa andar por outros
caminhos inimaginados. E no ato da performance mostrar as celebrações, as
dores e as riquezas do meu povo.

Nessas encruzilhadas passadas e nos caminhos a serem trilhados na


construção da dissertação, consigo deixar de ser objeto de pesquisa, para na
arte, ser o pesquisador, e através dela, rebelar-me!

Referências Bibliográficas

BARBOSA, Fernanda Júlia. Ancestralidade Em Cena: Candomblé e teatro na


formação de uma encenadora. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) –

472
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474
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

PRIMEIRAS REFLEXÕES SOBRE DECOLONIALIDADE EM


PROCESSOS CURATORIAIS

Eduardo Alves Guimarães (UFBA)

Enunciação – conceitos fundamentais

Meu discurso narrativo parte de alguns lugares de fala191 (RIBEIRO,


2017). Trago reflexões sobre nossos processos de produções artísticas
engajados em um referencial teórico majoritariamente brasileiro, negro latino-
americano e feminino. Nós, que somos, principalmente, artistas da dança na
cidade de São Paulo e Salvador.

Muitos de nós empreendemos projetos curatoriais a partir de um pensar-


fazer que envolve muitas estratégias de produção. Assim sendo, por que há
uma necessidade de pensar sobre perspectivas decoloniais192 na dança?
Quais são os valores e conceitos éticos encontrados em nossos projetos
autorais?

A Associação Nacional de Pesquisadores em Dança (ANDA) propõe o


VI Congresso Científico 2020 #ediçãovirtual, nos convidando a pensar-agir:
Quais danças estão por vir? A partir desse questionamento, problematizo:
Quais danças sempre estiveram aqui e não estão sendo vistas?

A curadoria na arte é um campo de pesquisa e criação complexo e cheio


de fruições. O curador193, situado e contextualizado nos grandes festivais,
ocupa um lugar de poder que determina a visibilidade de produções em meio
às outras diversas funções (LIMA, 2018). Sendo assim, quais modelos
curatoriais estão por vir, ou quais modelos sempre estiveram aqui e não estão
sendo vistos?

191
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.
192
Perspectivas decoloniais estão relacionadas a uma visão engajada no conceito da
decolonialidade, desenvolvido por feministas negras, intelectuais, ativistas, antirracistas e
negros(as), cujos estudos partem da premissa que o conhecimento está ligado ao poder para
se discutir o sistema-mundo moderno/colonial (BERNARDINO-TORRES, MALDONADO-
TORRES e GROSFOGUEL, 2018)
193
Curador é o profissional que atua na área da curadoria como principal oficio que media
processos e projetos curatoriais (ALVES, 2010).

475
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Partindo da dança como área atravessada por outras linguagens


artísticas e áreas de conhecimento, proponho reflexões introdutórias sobre
processos curatoriais em uma perspectiva decolonial (LIMA, 2018). A partir da
metáfora do aquilombar-se (NASCIMENTO, 2018), entendo nossas produções
como estratégias de aquilombamento. A fim de obter discussões críticas de
como essa produção contribui com redes de fortalecimentos e uma potente
produção epistemológica.

Dança como territórios curatoriais em perspectiva decolonial

O continente americano é uma invenção a partir de uma lógica


colonialista de expansão territorial (MOURA, 1981). Fomos constituídos a partir
de deflorações, saques e silenciamentos (NASCIMENTO, 2019). O processo
de desumanização do corpo sujeito como o outro não ser é entendido como
epistemicídio (CARNEIRO, 2005).

A decolonialidade refere-se a luta contra a lógica do colonial de


objetificação dos corpos e seus efeitos mentais, epistêmicos e simbólicos
(MALDONADO-TORRES, 2019). Nego Bispo194 (2015) define o movimento
como “contra-colonial”, desta maneira, refere-se a todos os processos de
resistência e de luta em defesa dos símbolos e significações dos territórios
enquanto “contra-colonizadores”.

Ailton Krenak195 e Jaider Esbell196 (2019), em uma conversa sobre os


desafios para a decolonialidade na UnBTV197, afirmam que as guerras de poder
também são por narrativas como resultado do colonialismo. No artigo sobre
perspectiva decolonial no estudo da arte publicado pela revista acadêmica
Concinnitas em uma edição de 2019, Carlini198 (2019) ressalta que:

194
É um intelectual líder quilombola, poeta, escritor.
195
Líder indígena da etnia crenaque, escritor e ambientalista.
196
Artista multimídia, produtor, escritor da etnia indígena makuxi.
197
A UnB TV é uma emissora de televisão brasileira universitária instalada na cidade de
Brasília e vinculada ao Centro de Produção Cultural e Educativa da Universidade de Brasília.
198
Mestra em Artes pelo PPGA – UFES

476
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

A violência com a qual certas narrativas privilegiam a cultura dos


povos colonizadores – instaurando como legítima a forma de
transmissão de seus valores e abafando a diversidade dos outros –
estaria presente de maneira notável também no discurso acadêmico.
Não porque não haja outras perspectivas e narrativas, mas talvez
porque a força dessa dominação produza um silenciamento das
vozes que, se não são escutadas, teriam seu alcance e impacto
reduzidos. (CARLINI, 2019, p.264)

É neste cenário que o curador pode fomentar o epistemicídio (LIMA,


2017), pois, se o racismo se manifesta como uma estrutura de opressão
(SILVA, 2019) a partir da linguagem enraizada de maneira cultural nas
sociedades colonizadas (FANON, 2008) – se tratando de processos de
produção artística – estamos falando de uma linguagem pautada em valores
éticos culturais colonialistas.

Proponho territórios curatoriais porque abarcam interlocuções entre


diferentes partes sociais, culturais, políticas, econômicas, com possibilidades
de atuação e mediações entre diferentes áreas de conhecimento. Este ofício
tem sido desempenhado e aprimorado principalmente por artistas e outros
profissionais especializados neste nicho de trabalho. No livro Sobre o ofício
do curador - A curadoria como historicidade viva, Cauê Alves (2010)
escreveu que:

Trata-se de um campo interdisciplinar que envolve noções


conceituais, reflexão, tomada de partido, arquitetura, produção,
montagem de exposição, design de interiores e gráfico, contabilidade,
iluminação, conservação, setor educativo, editoração e publicação.
(ALVES, 2010, p.44)

Estas produções são fruto de um trabalho que envolve redes


colaborativas em um caráter de valorização, cuidado, zelo e preservação de
bens patrimoniais e imateriais públicos. Envolve também vínculos e
negociações institucionais entre patrocinadores, produtores, artistas e
comunidades com interesses diversos.

Na relação de disputa de narrativas dentro do mercado, a curadoria


passa ser um solo fértil também para a competição. Sabemos que o mercado é
importante para esse cenário na perspectiva de profissionalização (ALVES,

477
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

2010), mas esses interesses muitas vezes são incoerentes com conceitos
éticos do fazer curatorial.

Diane Lima199 (2018) define curadoria como atividade que


mobiliza diversas narrativas sensíveis para montar uma totalidade de discurso.
A pesquisadora entende este campo de atuações como uma possibilidade de
performance discursiva dentro das estruturas institucionais. Se a curadoria é
esse entendimento sobre mediações entres diferentes territórios, temos
grandes desafios quando criticamos as estruturas que envolvem as relações de
poder entre nós (LORDE, 2019). Para Lima (2018), uma prática curatorial em
perspectiva decolonial pode ser:

Assim, a prática em perspectiva traz como desafio combater a


desvalorização, a negação e o ocultamento das contribuições de
outros saberes e epistemologias ao mesmo tempo em que fomenta a
produção de conhecimento artístico e cultural fundamentais para
assegurar a dignidade humana. Dessa forma, tenta garantir a
visibilidade, o direito à diferença e a liberdade de expressão e
experimentação de artistas, pensadoras/es, ativistas, educadoras/es
e curadoras/es que também trabalham em perspectiva
interseccionando questões políticas contemporâneas urgentes como
as pautas de gênero, classe, raça, entre outras [...] (LIMA, 2018,
p.247)

Josie Berezin200 (2019) publicou o artigo Semanas de Dança: a Prática de


uma Curadoria Descolonial. A comunicação traz reflexões sobre pensamento
colonial na dança a partir da perspectiva do balé clássico como estereótipo de
modelo único de composição de dança:

[...] quero mencionar a Mostra Semanas de Dança do CCSP (edições


de 2015 e 2016) como uma iniciativa pós-colonial, onde nenhum tipo
de dança é visto de forma subalterna, super ou subvalorizada, e cuja
proposta de pluralidade mostra que independente das origens,
trajetórias, contextos sociais ou culturais dos grupos e artistas, todos
merecem o mesmo respeito neste campo das artes. É de suma
importância compreender e reconhecer que todos os tipos de dança
têm a sua própria história e relevância, e que não podem ser
apagados ou minimizados em detrimento da imagem clássica e
soberba construída em torno do balé. (BEREZIN, 2019, p.04)

199
Diretora criativa e curadora, mestra em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
200
Pesquisadora de dança, produtora, arte-educadora, mestranda orientada por Cássia Navas
do Programa de Pós-Graduação em Artes da UNICAMP.

478
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

O balé é entendido pelo olhar antropológico como uma dança étnica –


uma dança embasada nas identidades de seus grupos valores culturais
(KEALIINOHOMOKU, 1970). Porém, em uma perspectiva contemporânea, a
pesquisa de Guego Anunciação201 por exemplo, ressignifica o modo operante
do balé clássico, criando novas abordagens pedagógicas a partir do corpo
negro (ANUNCIAÇÃO, 2019).

Existem algumas contradições e equívocos de entendimentos nos


conceitos do pensamento decolonial. Aponto isso nas discussões levantadas
pelo artigo de Berezin (2019), não sobre a importância dos impactos atingidos
com as mostras, mas sim, sobre esse olhar que classifica e define categorias.
Pois, se tratando de perspectivas contras-coloniais em dança, reivindicamos
uma noção minimamente crítica e com profundidade das relações de poder
operante nas estruturas institucionais (SILVA, 2019). Mercedes Baptista 202, por
exemplo, tem um legado de estruturação e consolidação de um método de
dança moderna brasileira (MONTEIRO, 2007), no entanto, não teve o devido
reconhecimento que Katherine Dunham203 como referencial de pensamento
estético moderno de dança no Brasil.

Ignora-se nossa produção por diretrizes hegemônicas de legitimidade


ética e estética. Afinal, o que justifica ainda hoje certas noções de definição, de
categorização, de demarcação e de significações do corpo enquanto “o outro”?
(LIMA, 2018) Pois, quando situamos e contextualizamos o que, para quem e
onde estão sendo curadas determinadas produções, encontramos
dissonâncias entre teoria e prática. Ao reivindicar um lugar de
decolonialidade/contra-colonialidade na curadoria, reivindicamos a necessidade
de performar uma atitude política do discurso (LIMA, 2018).

Luciane Ramos (2017), artista da dança e antropóloga, nos elucida


algumas questões sobre colonialidade a partir do corpo que dança e suas

201
Diretor e coreógrafo, mestrando pelo programa de Pós-graduação em Dança da UFBA.
202
Dançarina, diretora e coreógrafa brasileira, primeira mulher negra a integrar o corpo de baile
do Theatro Municipal do Rio de Janeiro em 1948 (MONTEIRO, 2007).
203
Dançarina afro-americana, coreógrafa, autora, educadora, antropóloga e ativista social.

479
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

complexidades. Ela nos aponta que esse movimento de descolonizar, para


além de um movimento de dentro pra fora, se trata também de políticas
pedagógicas de reinvenção e revisão crítica dos espaços produtores de saber
(SILVA, 2017). Para ela, a problemática está na falta de legitimidade que esta
produção recebe nos espaços hegemônicos acadêmicos diante da relevância
do tema para uma discussão profunda sobre as bases socioculturais brasileiras
(SILVA, 2017). Abordar estas questões de colonialidade é apontar com senso
crítico os currículos das graduações e licenciaturas no Brasil, por exemplo:

Parece-nos importante abordar os traços coloniais que se inscrevem


na produção acadêmica de conhecimento, colocar em reflexão sua
genealogia de poderes para então percebê-los como fatores que, por
estarem introjetados nos saberes hegemônicos, impedem-nos de
vislumbrar epistemologias que se relacionem com as realidades
brasileiras. (SILVA, 2017, p.25)

Quando criticamos a lógica da colonialidade nas instituições de


formação, não estamos reivindicando apenas as políticas afirmativas de cotas
para discentes e docentes, nossos referenciais teóricos, as disciplinas, os
cursos de extensão ou os eventos acadêmicos com seus comitês temáticos,
reivindicamos também reformas curriculares que reestruture políticas
pedagógicas que de fato sejam ações efetivas no cotidiano da sala de aula.

Se olharmos para curadoria não apenas como territórios de disputa de


narrativas, mas como possibilidades de intervenções nas estruturas
institucionais, temos uma poderosa ferramenta que pode nos orientar por
perspectivas decoloniais. A partir deste entendimento dos territórios curatoriais
como interferências sociopolítica-cultural e pedagógica, utilizamos a metáfora
do verbo aquilombar como estratégias de produção e melhores qualidades de
atuação (NASCIMENTO, 2018).

Tendo a dança como este possível território de conhecimentos múltiplos


em conexão com outras áreas e campos de pesquisa, seguimos embasados
pela ética da valorização a partir do corpo como patrimônio histórico material e
imaterial. A partir desse entendimento, podemos pensar nesses processos
como exercício político criativo de emancipação e geração de novos afetos em
processos de cura (HOOKS, 2019) atrelada a um lugar de enunciação do corpo

480
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

para os caminhos da auto cura e também na autorização de si mesmo como


curador (LIMA, 2017).

O quilombo urbano e a sevirologia da quebrada

As cosmovisões quilombolas têm sua formação no berço da luta por


direitos e reconhecimento de suas culturas, experiências e modos de produção
vinculadas intimamente ao território (SANTOS, 2015). Evocar o verbo
aquilombar é assumir a metáfora do corpo enquanto um território em
perspectiva de melhores condições de vida (NASCIMENTO, 2018). A ideia do
quilombo é fundamentada por valores éticos da fraternidade, solidariedade,
convivência e comunhão. (NASCIMENTO, 2019).

Clovis Moura204 (1989) define quilombo como formas de organizações


sóciopolíticas e processos de territorialização de relações étnicas a partir do
conceito de resistência. Nego Bispo (2015) aponta que ainda passamos por um
etinicidio histórico de autores negros e indígenas nos espaços acadêmicos,
apesar da grande relevância de suas produções.

Autores como Beatriz Nascimento205 (2018) e Nego Bispo (2015) são


fundamentais como referencial científico. Nossas comunidades e grupos
encontram fortes inspirações e ressonâncias de atuação política nos territórios
com estratégias de articulação em rede a partir do legado desses escritores. E
em prol dos sentidos e significações do quilombo enquanto um território
curatorial em perspectiva decolonial, chamo de aquilombamento nossas
estratégias de produção. Falo a partir deste lugar que desde 2014 atuo como
mediador cultural e artista colaborador na Comunidade Cultural
206
Quilombaque .

Cleiton Ferreira (2020) – gestor e cofundador da comunidade, artista


visual e cientista social – escreveu em seu trabalho de conclusão de curso em
Gestão Cultural pelo Centro de Pesquisa e Formação (SESC) que a iniciativa

204
Intelectual, pesquisador e historiador brasileiro.
205
Maria Beatriz Nascimento foi uma historiadora, roteirista, poeta e professora influente nos
estudos raciais no Brasil mesmo após seu assassinato em 28 de janeiro de 1995.
206
Espaço de gestão coletiva e independente engajado no desenvolvimento educacional e
social de São Paulo desde 2005 no bairro de Perus, periferia da zona noroeste da capital
paulista (SOUZA, 2020).

481
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

da comunidade nasceu primeiramente como um núcleo de pesquisa artística


musical. Por isso o ritmo do tambor como pulso traz mais vida a imagem da
comunidade em meio ao Território de Interesse a Cultura e Paisagem
Jaraguá/Perus207.

A Quilombaque é o quilo de “quilombo” e o baque de “batida”, na qual


ecoa de nossos corpos dançantes o pulso que dá sentido ao território de
criação artístico cultural, e, para falar sobre essa construção, evoco a presença
do Mestre José Queiroz-Soró208. Minha formação ética enquanto artista gestor
é a partir da sevirologia da quebrada – conceito desenvolvido por Soró – a arte
de se virar do sujeito periférico, o jeito criativo de intervenção frente às
estruturas políticas e a precariedade de recursos. Sobre a sevirologia, Souza
(2010) escreveu:

A partir das dificuldades de sobrevivência, que são tantas, foi possível


identificar uma nova arte produzida que resiste e (re)formula
tecnologias, inovações e culturas a partir de uma linguagem de
resistência, a SEVIROLOGIA. [...] O termo Sevirologia, apesar do seu
tempo de existência e prática, nos dias atuais, está sendo difundido
como uma nova linguagem de resistência e um modo de
sobrevivência frente ao sistema econômico estrutural imposto a
juventude preta, indígena e pobre dentro dos territórios periféricos.
(SOUZA, 2020, p.81)

Soró foi um grande líder periférico para nós da cidade de São Paulo,
uma figura importantíssima para a construção do projeto de gestão-
colaborativa no território. Bem como, um sensível educador na formação de
agentes socioculturais. Foi, sem dúvidas, um dos maiores responsáveis pela
estruturação do modo de pensar-fazer metodológico embasado em uma lógica
de empreendedorismo e cidadania e da pedagogia da autonomia crítica
(FREIRE, 2004). Se hoje, a Quilombaque é este legado de articulação política
sociocultural, educacional, econômica e ambiental é devido a atuação dele:

207
Projeto aprovado pela lei 16.050/14 na última versão do Plano Diretor Estratégico da Cidade
de São Paulo em 2014. (SOUZA, 2020, p.50).
208
Foi um dos Coordenadores da Quilombaque, ativista e educador social que em vida atuou
nos campos de pesquisa de designer de ambientes pedagógicos, supervisão de análise de
projetos, planejamento estratégico, gestão e desenvolvimento institucional.

482
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Quando em 2005 nasce a Comunidade Cultural Quilombaque, já


eram visíveis e notáveis a falência das leis e estruturas elaboradas e
destinadas a afirmação e construção do Estado Democrático de
Direitos. O que víamos na margem de cá eram apenas mais entulhos
confusos. Estruturas e proposições democráticas a serviço da
afirmação do velho assistencialismo [...]. (SORÓ, 2017, p.07)

Dentre algumas das articulações da comunidade com o território,


destaco a Educação Cursinho Quilombaque, que possui parceria com a rede
de cursinhos comunitários Uneafro Brasil209, mantendo um núcleo preparatório
pré-vestibular na comunidade coordenado pela Thais Santos210; a formação em
Direitos Humanos com Carlos Alberto Pazzini211 – responsável por engajar
ativistas, militantes, agentes multiplicadores das diversas áreas de
conhecimentos –; o Movimento Cultural das Periferias – MCP212, que
articulados com as Jornadas de Lutas Periféricas de todas as regiões,
organizaram-se em grupos de trabalhos com três frentes de atuação, dentre
uma delas está a implementação da Lei de Fomento a Periferia (SOUZA,
2020).

Não tem como falar destes territórios sem falar dos corpos sujeitos que,
na perspectiva da sevirologia, criam as estratégias de aquilombamento. Somos
pesquisadores, músicos, artistas visuais, atores, dançarinos, palhaços,
diretores de arte, jornalistas, produtores culturais, educadores sociais,
arquitetos e escritores. Porém, diante a tantos sujeitos, quero destacar alguns
nomes que tenho como referências pra mim na Quilombaque: Janice
Albuquerque213, Priscila Rezende214, Almir Moreira215, Valmir Santanna216 e
Clébio Ferreira217.

Somos muitos, somos este plano estratégico de quilombismo que Abdias


do Nascimento218 (1980) propagou em uma esfera de implementação de

209
Ver em SOUZA, 2020, p.25.
210
Integrante da Comunidade Cultural Quilombaque, educadora social e doutoranda em
Bioenergia pela Universidade estadual de São Paulo (UNESP).
211
Ver em SOUZA, 2020, p.35.
212
Ver em SOUZA, 2020, p.28.
213
Educadora social, produtora e gestora de projetos.
214
Chefe de cozinha e produtora.
215
Geografo, educador social e agente cultural.
216
Palhaço, iluminador, cenógrafo, diretor artístico e cofundador da Quilombaque.
217
Palhaço, ator, poeta, dramaturgo, escritor e diretor teatral.
218
Personalidade política, dramaturgo, escritor e autor brasileiro.

483
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

políticas públicas afirmativas de reparações históricas, tendo seu marco pela


Lei 11.645/2008 que altera a Lei 9.394/1996, modificada pela Lei 10.639/2003,
a qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade das histórias e culturas
afro-brasileiras e indígenas.

Mas, por que a necessidade de falar em aquilombamento na dança?


Para nós da Quilombaque, a dança parte de uma perspectiva de corpos que
dançam a partir de suas complexidades e intercâmbios culturais (SILVA, 2017).
As rodas do projeto Jongo do Coreto219, por exemplo, são iniciativas de
interlocuções culturais a partir das conexões entre a Quilombaque, entre o
jongo tradicional de Guaratinguetá - SP e o coletivo jongueiro Preta Bandeira
de Santo André - SP.

Então, por que a necessidade de falar de aquilombamento nos territórios


da curadoria? Essa necessidade atravessa a mesma lógica de conceitos
fundamentais de valorização, cuidado e zelo a partir de concepções éticas e
estéticas que dão sentidos e significações de nossas próprias perspectivas de
criação mundo (LIMA, 2017). Nossos modos de produção curatoriais a partir de
uma lógica da sevirologia pôde ser notado no projeto Sarau D' Quilo, projeto no
qual estive como artista colaborador nos processos de curadoria durante os
anos de 2014 a 2016, que nos engajou em uma lógica de interlocução artística
entre diferentes artista da cidade de São Paulo e relações com instituições de
arte e cultura.

A festa Jambaque – o corpo em todas as suas vibrações – teve origem a


partir do olhar da artista da dança, Ana Beatriz Almeida220 na Quilombaque.
Jam de investigações de lugares de performances poéticas do corpo
conectados ao pulso do Baque, a batida que dá sentido à celebração das
diversidades de corpos do quilombo. Nossa erudição é encontrada em nossas
proposições e projetos artísticos trazendo bases fortalecidas para o
enfrentamento diante das opressões.

219
Projeto de pesquisa coordenado por Valmir Santana sobre as rodas de jongo, manifestação
afro brasileira do sudeste brasileiro.
220
Artista da dança, performer independente, pesquisadora e curadora.

484
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Porém, mesmo nesses espaços importantíssimos como a Quilombaque,


o pulso rítmico pode ecoar também de um lugar opressivo. Afinal, mesmo
sendo corpos a margem da pirâmide do poder (LORDE, 2019), somos parte
das estruturas que performam as violências de gênero (BUTLER, 2019).

A dança da indignação como estratégia de aquilombamento

A Cia Sansacroma221 tem 18 anos de histórias com um rico acervo de


memórias coreográficas a partir de uma coletânea de obras de dança e
projetos curatoriais. Falar desta companhia é falar de muitos territórios, mas,
principalmente, da região sul da cidade de São Paulo, do bairro periférico do
Capão Redondo. Falar do pássaro Sansacroma é falar de estratégias de
aquilombamento na dança a partir de corpos indignados com as estruturas de
opressão. No livro de 15 anos da cia, Luciane Ramos (2017) escreveu:

As escritas criadas na Sansacroma se nutrem de conceitos e práxis,


em diálogos com autonomias e liberdades, que circulam nas ruas da
zona sul de São Paulo e, para além destas ruas, se expandem.
Discutem questões-chave para entendermos o que compõe a dança
na contemporaneidade [...] quando vozes historicamente submetidas
reivindicam espaços até então destinados à hegemonia cultural de
poder. (SANSACROMA, 2017, p. 69)

Gal Martins, diretora, coreógrafa e curadora, tem uma trajetória marcada


por um pulso frequente de construções de narrativas políticas de emancipação
nos territórios de São Paulo. O mais interessante de analisar nessa cronologia
de voos alçados pela cia é perceber como essa trajetória se constituiu
primeiramente a partir da dança, constituindo poderosos vínculos de produção
de arte contemporânea. As pontes atravessadas durante todos esses anos
entre centros e periferias são constituídas de verdadeiras alianças de
pertencimentos do corpo periférico a partir da lógica da sevirologia, Gal escreve
no livro que:

Com novos caminhos traçados, este é o ponto que seus anseios se


materializam em ancestralidade, diásporas e reconhecimento de sua
negritude. A DANÇA SE CONCRETIZA de forma espiritual, preta,
educacional, artística, política e profissional. [...] Mais uma vez teve

221
Cia. Sansacroma, grupo de dança paulistano que tem como ponto de partida de criação as
poéticas e políticas do corpo negro.

485
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

que demarcar espaços e enfrentar olhares de estranhamento e


exotismo diante de sua presença. É deste modo que se faz e se
movimenta por fissuras que crescem e conquistam novas
possibilidades. (SANSACROMA, 2017, p19)

Para falar da cena contemporânea de dança preciso colocar o dedo em


muitas feridas coloniais, mesmo com avanços de políticas públicas com a
implementação da lei de fomento à dança222 da cidade de São Paulo em 2005.
De lá pra cá, pouca coisa mudou no sentido de distribuição de recurso e de
políticas de categorização do pensamento contemporâneo de dança. Em uma
perspectiva territorial das políticas públicas de incentivo a dança no Brasil
estamos falando de um cenário extremamente hegemônico e de guerras por
narrativas, centralizados no eixo Rio-São Paulo.

A Cia Sansacroma foi descobrindo potencialidades criativas de


enfrentamento das estruturas a partir de poéticas artísticas como políticas
educacionais. Yaskara Manzini (2017) escreveu no livro da cia que o
julgamento de inferioridade sustentado pela hegemonia da dança de São Paulo
acontece devido a uma lógica estética que não encontra fruição entre o pensar-
fazer artístico.

Em contraposição a postura de subalternização do outro como inferior, a


Cia Sansacroma é embasada na pedagogia libertadora de Paulo Freire (1921-
1997) – educador e intelectual brasileiro. As escolhas de estratégias de
produção encontraram vazão no conceito da indignação como força
transgressora de criação poética. Como metodologia de investigação, os
conceitos de resistência, decolonialidade do corpo negro e da convivência
oferecem os princípios fundantes das práticas de procedimentos e laboratórios
cênicos.

A indignação passa ser a afetação pulsante da ação política de


enfrentamento da Cia, que conquistou um espaço nos circuitos das instituições
de arte e cultura devido a sua postura autônoma. Dentro dessa perspectiva de
estratégias de aquilombamentos destaco o projeto AproximAção223, acredito

222
Em 18 de outubro de 2005 foi implementada a lei Fomento à Dança para a cidade de São
Paulo. Fruto de uma mobilização intensa dos artistas.
223
Projeto de formação de público da cia.

486
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

que os impactos atingidos com a proposta resultam principalmente dos valores


éticos atrelados ao ativismo da ação.

O circuito vozes do corpo224 firma laços com a rede SESC, aí vemos as


noções certeiras de estratégias de ascensão de mercado. O aquilombamento
começa a se efetivar de fato quando a dança da periferia começa cada vez
mais ganhar espaços numa perspectiva de melhores condições de produção.
Estas ações se revelaram em um potente modo de produção criativo
interdisciplinar que constrói vínculos efetivos com a rede pública de ensino,
instituições, movimentos culturais, comunidades locais e, principalmente, com o
público, invertendo a lógica hegemônica em um fluxo de ocupação e
ressignificação dos espaços públicos.

Como um desenho de território curatorial muito bem definido pela Cia,


os valores do cuidado e zelo ganham sensibilidades e fruições a partir do
projeto Programa Retratos225, que pautou se na visibilidade e
valoração histórica do território, não apenas enquanto espaço físico material,
mas também no sentido de valoração da pessoa como bens matérias e
imateriais do patrimônio.

Diante dessa análise, podemos encontrar fortes conexões com as


estratégias de produção entres os diferentes territórios. A epistemologia do
corpo periférico na contemporaneidade costura com profundidade os valores
de solidariedade e de convívio. Abrindo caminhos e trajetos de investigação
ampliada para o campo artístico em uma perspectiva de interdisciplinaridade de
atuação.

O desafio agora é garantir cada vez mais uma equidade de distribuição


de recursos, pois, quando questionamos quem são as pessoas que fazem as
seleções nos editais e quem são os pares destes curadores, encontramos
muitas incoerências nos processos de seleção de editais. Entretanto, esse
movimento de enunciação de nossas intelectualidades nas artes como políticas
educacionais de reparação e revisão desses espaços públicos e privados,

224
O circuito vozes do corpo é um evento curado pela cia Sansacroma e é composto de várias
ações, mostras de espetáculos e processos em Dança principalmente na zona sul de São
Paulo.
225
Projeto documentário a partir da história de dez mulheres moradoras do bairro do Capão.

487
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

impulsiona a tomada de consciência crítica de nossos corpos dançantes em


meio às estruturas.

Negras utopias – poéticas artísticas como políticas educacionais

O projeto Negras Utopias nasceu em 2017 a partir da iniciativa de Bruno


Novais226 e eu, juntamente com outros estudantes da graduação em dança da
Universidade Federal da Bahia - UFBA. O experimento artístico teve apoio do
Programa Pibexa de experimentação artística da pró-reitoria de Extensão da
UFBA. O trabalho inicialmente tinha a homoafetividade como ignição de
experimentos de dança performance a partir de procedimentos de
improvisação. Logo no primeiro experimento, a performance teve impactos
relevantes nas escolas de arte da UFBA, sendo até material de pauta para a
revista do Barril - Crítica em Artes. O que era pra ser apenas um circuito de
apresentação dentro da universidade ganhou expansão e ocupou outros
espaços independentes e institucionais de arte e cultura na cidade de Salvador.

As articulações do experimento ganharam proporções políticas em


paralelo com movimentos estudantis da escola de Dança e de Teatro da UFBA,
que estavam em um forte enfrentamento por reformas curriculares. Com a
origem do FNAC - Fórum Negro de Artes Cênica, essas ebulições foram muito
importantes para a construção de um engajamento político que consolidou no
Fórum Negro de Arte e Cultura.

A noção de vínculos em estratégias de aquilombamento mais uma vez


nos colocou em pontes, muros e barreiras dentre as hierarquias de opressão
(LORDE, 2019). Se por um lado vínhamos de contextos marginalizados fora
dos circuitos centrais do estado de São Paulo, em Salvador começamos a
ocupar instituições de grande renome internacional como o Goethe Institut -
Centro de formação em cultura alemã.

A partir dessas noções de lugares de pertencimento e de expansão no


território, vimos a necessidade de propor interlocuções com diferentes
protagonismos da dança na cidade de Salvador, pois tínhamos mais acessos a
226
Artista da dança ,diretor e coreografo, é mestrando pelo Programa de Pós Graduação em
Dança pela UFBA.

488
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

determinados espaços que outros grupos e artistas das periferias da cidade.


Estas reflexões nos fizeram pensar em uma lógica de produção de dança que
firmasse diálogos com produções que estavam fora do espaço acadêmico.

A partir daí, no congresso UFBA de 2017, realizamos o 1º Seminário


Performático Negras Utopias. O evento acabou articulando a interlocução entre
diferentes linguagens artísticas e estéticas da comunidade LGBTQI+ na Escola
de Dança. A atividade foi realizada em alguns formatos propondo um
compartilhamento artístico extremamente potente entre as escolas de arte.
Dentre as ações que propomos, promovemos uma mesa de debate com
artistas convidados para um debate sobre políticas artísticas como políticas
educacionais.

A partir desta prática curatorial nos engajamos em uma perspectiva de


formação de vínculos e expansão de território apresentando em 2018 no
ENEARTE - Encontro nacional de estudante no Belém-PA e no V congresso
ANDA – Associação de pesquisadores em dança em Manaus - AM. Neste
último, apresentamos uma comunicação de relato de experiência e dos
impactos atingidos mais relevantes, tivemos o registro potente com o artigos do
artista da dança pesquisador Prof. Dr. Fernando Ferraz – que estava como
orientador do projeto Negras Utopias na ocasião.

A comunicação em um congresso científico de dança foi muito


importante para começarmos a problematizar até onde a autonomia e
protagonismo discente no campo de pesquisa era legitimada. Afinal, vivemos a
lógica hierárquica de produção acadêmica, na qual se ignora as capacidades
de produção dos corpos discentes que não são autorizados como autores nos
artigos científicos. Com base nessas questões, contrariando a lógica
hierárquica entre professor/aluno, o Prof. Dr. Fernando Ferraz e eu propomos
em 2019, na III edição do FNAC, uma mesa chamada Entre afetos e afrontes –
gênero e sexualidade nas danças negras, que além de promover uma aula
beneficente em prol da arrecadação de alimento para comunidades
LGBTQIA+, produziu um relevante debate acerca das interseccionalidades de
gênero e sexualidade nas danças negras entre diferentes protagonismos.

489
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O projeto Negras Utopias também teve uma entrevista apêndice de


Bruno Novais na dissertação do pesquisador Leonardo dos Santos Silva (2019)
– diretor e coreógrafo. A pesquisa do artista e educador aborda as questões de
gênero e sexualidade nas licenciaturas de Dança da UFBA e nos provoca
pensar em revisões e reformas curriculares. O olhar interseccionado como filtro
crítico às estruturas de poder (COLINS, 2019) é primordial para entendermos a
lógica de políticas opressivas que nos afetam também enquanto opressor do
mesmo sistema (LORDE, 2019).

A dança como esses territórios de processos de cura (HOOKS, 2018)


nos possibilita horizontes possíveis de aprofundamentos de pesquisa com
diferentes caminhos de atuação. As noções éticas das estratégias de
aquilombamentos se localizam em múltiplas possibilidades de agenciamentos e
acordos entre diferentes perspectivas de criação de mundo (LIMA, 2017).
Afinal, somos corpos sujeitos co-responsáveis pelas políticas discursivas que
projetamos nos espaços.

Por fim, depois dessa análise crítica, convido a pensar-agir sobre como
podemos construir melhores condições de convívio social, respeito e
solidariedade. Mirando um horizonte de acessibilidade, valorização, revisão
crítica e ressignificação a partir de nossos corpos, evoco esse movimento de
dentro pra fora (SILVA, 2017), para que dê conta de uma ação política efetiva
em prol do corpo enquanto patrimônio histórico de bens materiais e imateriais
nos processos curatoriais em dança.

Corpo com-vida processos de cura – Ressonâncias

(...) Quais danças estão por vir ou quais sempre estiveram aqui e não
estão sendo vistas? Quais modelos curatoriais de dança estão por vir ou quais
modelos sempre estiveram aqui e não estão sendo vistos? Que noções de
democratização na dança estão por vir ou quais noções já estão aí? Como
estamos entendendo políticas de acessibilidade em nossos processos
curatoriais e que referências de dança e acessibilidade já existem e não estão
sendo vistos? O que nos impede de enxergar os privilégios de nossos corpos

490
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

nas estruturas e relações de poder que privam o acesso de nossos pares


dissidentes de nós? (...)

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

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492
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

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493
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O PRETAGONISMO NEGRO NA DANÇA EM PORTO ALEGRE

Ana Paula Silva dos Reis (PPGAC – UFRGS)

Este texto tem o intuito de analisar alguns aspectos das poéticas de


artistas negros para conhecer e compreender as peculiaridades que o corpo
negro pretagoniza na produção cênica em Porto Alegre (RS). Além disso,
propõem-se a observar como o universo em que esses corpos estão inseridos
são abordados em cena. O conceito de pretagonismo é desenvolvido a partir
de um entrelaçamento com breves análises e relatos das obras e das figuras
do bailarino e coreógrafo Rui Moreira, Coletivo Corpo Negra e Grupo Pretagô.

Seguindo o raciocínio, apresento como entendo a operação do conceito


de pretagonismo. Creio, contudo, ser importante reforçar que esta palavra não
está aqui no intuito de trazer algo novo ou original, no uso desse termo, mas
sim, como um conceito operatório nas investigações que embasam esta
pesquisa. O termo pretagonismo na pesquisa vêm do Grupo Pretagô, cujo meu
entendimento inicial era a ideia que o grupo propunha no nome. Todavia,
Pretagô é a junção de “preta” e “agô” – saudação em Yorubá -, mas segundo
os próprios integrantes também faz referência a protagonismo.

Sendo assim, de maneira geral, o pretagonismo é um termo que procura


dar ênfase ao destaque de pessoas pretas na cena. Considerando que a
palavra protagonismo geralmente está associada a corpos não negros como
protagonistas, proponho então pensar o pretagonismo como um processo que
inverte essa lógica. E, dessa forma, tomando a dimensão verbal articulada com
as questões raciais para projetar a atuação e os discursos poéticos dos artistas
negros, neste caso num contexto local na cidade de Porto Alegre.

Antes, porém, de tecer o pretagonismo a partir desses artistas e dessas


obras, entendo ser necessário situar o leitor sobre quem se propõem a abordar
esse conceito e de onde parte o olhar para essas produções. Apresento-me:
sou uma mulher negra que atua como professora de dança, produtora cultural
e bailarina. O tempo que me dedico a essas funções não estão

494
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

respectivamente na mesma ordem em que citei, pois mesmo hoje atuando


mais como professora e produtora, os meus olhares enquanto artista são
permeados por todas essas atuações. Serei breve ao passar por todas essas
funções, considerando que a ideia é contextualizar a identificação e percepção
dos bens simbólicos vinculados à ancestralidade durante minha trajetória.

A maior parte das memórias da minha infância estão relacionadas à


dança, sendo assim é difícil dizer há quanto tempo de fato eu danço.
Compreendendo que a dança vai muito além de espaços de formação
consolidados, como escolas, graduações e cursos técnicos, as minhas
vivências iniciais como bailarina são em territórios negros da capital. Ou seja,
lugares de produção de conhecimento constituídos por pessoas negras e com
distintas finalidades voltadas para a população preta. Um destes territórios são
as Escolas de Samba da capital que, além de serem um dos principais agentes
pela preservação e investimento no carnaval da cidade, também desenvolvem
trabalhos sociais para as suas comunidades.

O carnaval de Porto Alegre tem cor e esse fator está diretamente


associado ao descaso e ao desmantelamento causado pelas autoridades há
muitos anos. São muitas as lutas pela manutenção dessa manifestação cultural
que é símbolo de resistência na cidade e conheço parte delas por conta do
envolvimento que a minha família paterna tinha com o carnaval. Meu tio foi
presidente da Academia de Samba Praiana, o meu pai era coordenador de ala
da União da Vila do IAPI e tia, primas e demais pessoas da família acabavam
se envolvendo e os acompanhando. As memórias que cito ter desde muito
cedo são relacionadas a este território e o meu entendimento de dança, de
poder me expressar corporalmente aprendendo com os meus, nasceu neste
lugar.

Outros territórios também fomentaram esta construção de ser dançante,


como a Sociedade Floresta Aurora227, onde o meu avô era Presidente e eu
frequentava quase que diariamente para acompanhá-lo. Foi na Sociedade que

227
A Sociedade Beneficente Cultural Floresta Aurora é o clube negro mais antigo do Brasil,
sendo fundado em 1872 por negros forros. Ainda em atuação, consolidou-se como uma das
principais sociedades negras do país, desenvolvendo trabalhos voltados para a área social,
cultural, esportiva, educacional e no movimento político a partir da década de 1980.

495
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

eu participei de uma oficina de dança e ao final me apresentei pela primeira


vez. Era uma oficina do Grupo de Música e Dança Afro Sul 228 e a aula era
ministrada pela professora Iara Deodoro. Daí em diante, fui seguindo o
caminho da dança adentrando por espaços de inserção, ou seja, lugares onde
o saber não era elaborado considerando as pessoas negras que o constituíam,
cujos professores não eram negros, assim como a maior parte dos colegas de
turma. Assim, a minha formação também compreende estes espaços que nos
últimos anos tem, felizmente, apresentado algumas mudanças nas suas
estruturas, por conta da política de cotas raciais229.

Sou licenciada em Dança pela ULBRA Canoas desde 2012 e já no início


do curso eu me envolvi com produção cultural. No segundo semestre eu
comecei a estagiar no Centro Municipal de Dança da Secretaria de Cultura de
Porto Alegre. O estágio compreendia fazer o atendimento ao público e auxiliar
nos projetos desenvolvidos pelo setor. No entanto, eu era bastante curiosa e
me interessava em aprender sobre outras atribuições, então além das funções
administrativas que eu auxiliava, fazer a assistência dos projetos era a parte
que eu mais gostava de me dedicar. Durante os dois anos de estágio, eu
vivenciei boa parte das responsabilidades de uma produtora, desde a pré-
produção até a pós-produção.

Dali em diante eu continuei trabalhando com produção, nos eventos da


faculdade, tocando projetos independentes, sendo convidada para produções
nacionais e internacionais que eram realizadas em Porto Alegre. A maior parte
do que eu produzo há mais de dez anos é dança e assim como entendo que
parte disso é por conta da minha formação, por outro lado também observo
uma produção intensa e bem articulada de dança na cidade. Falando
especificamente desta função de produção, eu percebo um entendimento
organizativo para a realização de uma produção cênica ser melhor estruturado
nos grupos e companhias de dança do que nas outras áreas das artes cênicas.

228
Na sequência do texto trarei mais informações sobre o grupo Afro-Sul.
229
As cotas raciais são ações afirmativas que garantem a reserva de vagas em instituições
públicas ou privadas para negros e indígenas, a fim de combater a desigualdade e a
discriminação racial. A Lei Nº 12.711 foi sancionada em 29 de agosto de 2012.

496
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Dois anos após finalizar a graduação fui nomeada como professora de


Educação Artística – Linguagem Dança, no concurso público do Magistério
Estadual do RS. Ser professora não estava entre os planos da produtora, no
entanto essa atuação trouxe algumas perspectivas distintas das que eu vinha
tendo na caminhada de artista. A principal delas é a percepção do olhar do
outro, além da reação ao que era comunicado e compartilhado em aula.

A troca com os alunos, como gosto de nomear a nossa convivência, é


marcada pelos olhares deles em relação ao lugar que ocupo enquanto única
professora negra na escola. Pois ainda que as propostas de criação partam
das narrativas de cada um, percebo o quanto eles tomam como referência o
meu posicionamento e discurso embasado pelo estudo de elementos da cultura
negra que praticamos nas aulas. É interessante ver os pensamentos se
transformarem em condutas e ouvir, principalmente dos alunos negros, que
esse reconhecimento se dá por conta da função que eu ocupo na escola e pela
forma que eu a desempenho.

Olhando para trás e analisando as minhas memórias corporais, percebo


que todos esses territórios pelos quais passei, hoje me constituem e não estou
aqui falando especificamente de práticas corporais. Sobre isso, Gonçalves
(1994), aborda como um corpo inserido em um grupo cultural caracteriza não
somente as suas particularidades, mas a de todo o grupo

O corpo de cada indivíduo de um grupo cultural revela, assim


não somente a sua singularidade pessoal, mas também tudo
aquilo que caracteriza esse grupo como uma unidade. Cada
corpo expressa a história acumulada de uma sociedade que
nele marca seus valores, suas leis, suas crenças e seus
sentimentos que estão na base da vida social. (GONÇALVES,
1994, p.13)

Em conformidade às palavras da autora, estou me referindo também aos


discursos, posicionamentos e ao resgate a ancestralidade no desejo de
direcionar a minha trajetória para as referências negras, independente do
campo de atuação. Aquilo que cito como o olhar dos alunos, na verdade é o
reflexo de um desejo de que mais olhares se voltem às memórias, aos corpos,

497
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

às histórias e aos valores que os artistas pretos de Porto Alegre carregam


consigo.

Embora sejam muitas as vivências corporais ao longo desses anos,


poucas são as lembranças de me enxergar em outros corpos na fase adulta e
visualizar a cultura negra com expressão significativa na cena de dança da
cidade de Porto Alegre, quando já estava trilhando um caminho profissional.
Em relação ao apagamento da cultura negra, Maria de Lourdes Barros Paixão
lembra que

A herança escravagista, além da colonização europeia,


contribuiu sobremaneira para o não reconhecimento da cultura
afro-brasileira como parte constitutiva, representativa e legítima
da cultura brasileira. Estes fatos ainda hoje repercutem de
forma negativa, funcionando como um elemento de reforço a
assimilação e reprodução de valores culturais estrangeiros que
contribuem para que o povo brasileiro se distancie da sua
referência sócio-histórico-cultural que inclui as tradições de
origem africana. (PAIXÃO, 2012, p. 136)

Em consonância com o pensamento de Paixão, observo que a maioria


das companhias que eu já produzi é de dança contemporânea e por muito
tempo as temporadas dos teatros públicos e os editais de financiamento da
cidade contemplavam apenas os artistas que seguem esse estilo. Mérito dos
profissionais de dança contemporânea? Talvez. A verdade, porém, é que
muitas vezes eu me perguntei onde estavam as pessoas negras na então
considerada cena de dança profissional230 da capital.

Muitos dos trabalhos de algumas dessas Cias de dança contemporânea


que eu produzi tinham um ou no máximo dois bailarinos negros para um grupo
de no total dez bailarinos ou mais. As ocasiões nas quais eu mais pude
presenciar a representatividade negra na dança eram em eventos de danças
urbanas que geralmente não são realizados em espaços cênicos, dada a

230
A palavra profissional aqui questiona e problematiza o fato de ser comumente utilizada em
Porto Alegre apenas para se referir aos artistas da dança contemplados por editais, com
temporadas em teatros públicos e principalmente que possuem formação clássica. Ou seja,
bailarinos que desenvolvem trabalhos em outros contextos que se diferem destes citados,
mesmo que sendo remunerados por seu trabalho, não são reconhecidos como profissionais.

498
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

característica desse segmento. Sendo assim, apesar das muitas oportunidades


nas quais pude trabalhar com pessoas pretas na dança, muitas também foram
as vezes que eu mal podia percebê-las em cena. Não por falta de virtuosismo,
técnica ou algo do tipo, mas por parecer que existia uma barreira que tentava
torná-los invisíveis no palco. E, infelizmente, pude constatar que havia!

Em Racismo e Sexismo na cultura brasileira, Lélia Gonzalez (1984)


estabelece uma análise entre consciência e memória que caracteriza como um
discurso dominante (a consciência) oculta aquilo que a memória tenta
evidenciar por meio da história, como se pode ler no trecho a seguir:

Como consciência a gente entende o lugar do


desconhecimento, do encobrimento, da alienação, do
esquecimento e até do saber. É por aí que o discurso
ideológico se faz presente. Já a memória, a gente considera
como o não-saber que conhece, esse lugar de inscrições que
restituem uma história que não foi escrita, o lugar da
emergência da verdade, dessa verdade que se estrutura como
ficção. Consciência exclui o que memória inclui. Daí, na medida
em que é o lugar da rejeição, consciência se expressa como
discurso dominante (ou efeitos desse discurso) numa dada
cultura, ocultando memória, mediante a imposição do que ela,
consciência, afirma como a verdade. Mas a memória tem suas
astúcias, seu jogo de cintura: por isso, ela fala através das
mancadas do discurso da consciência. O que a gente vai tentar
é sacar esse jogo aí, das duas, também chamado de dialética.
E, no que se refere à gente, à crioulada, a gente saca que a
consciência faz tudo para nossa história ser esquecida, tirada
de cena. (GONZALEZ, 1984, p. 226)

Estabelecendo um cruzamento entre a análise de Gonzalez (1984) e o


não protagonismo de artistas negros em cena, compreendo a consciência
como as organizações e os espaços institucionais de produção e de saber
artístico que encobrem a produção de conhecimento negro e seus agentes,
estimulando um apagamento da nossa história. Quanto à memória, percebo os
artistas negros revisitando a sua história, as suas inscrições, organizando-se
entre e para os seus. Assim, racham as estruturas da verdade que a
consciência impõem.

Eu recordo a primeira vez que eu vi uma bailarina negra como


protagonista de um espetáculo de uma companhia de dança contemporânea
499
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

de Porto Alegre. Isso foi em 2008, no espetáculo Re-sintos, da Muovere Cia


de Dança231 e a bailarina era a Joana Amaral. A interpretação da Joana na
obra faz uma crítica à sociedade patriarcal racista que marginaliza o corpo da
mulher negra negando a sua identidade e as inscrições corporais destas
mulheres como representações fluídas nas camadas da história. Bell Hooks
(2019) intervém dizendo que a questão da raça e representação:

É também uma questão de transformar as imagens, criar


alternativas, questionar quais tipos de imagens subverter,
apresentar alternativas e transformar nossas visões de mundo
e nos afastar de pensamentos dualistas acerca do bom e do
mau. Abrir espaço para imagens transgressoras, para a visão
rebelde fora da lei, é essencial em qualquer esforço para criar
um contexto para a transformação. E, se houve pouco
progresso, é porque nós transformamos as imagens sem
alterar os paradigmas, sem mudar perspectivas e modos de
ver. (HOOKS, 2019, p. 37)

O meu ingresso no mestrado pelo PPGAC232 - UFRGS foi motivado pelo


desejo de trazer para o ambiente acadêmico os nomes de artistas negros como
referência, fazer com que as suas obras sejam discutidas, que os seus
trabalhos também possam ser temas de dissertações e de teses, ou seja,
exaltar a representatividade negra em um espaço ainda majoritariamente
branco e que, de certa forma, sustenta essa perpetuação. Compreendendo tal
pensamento, a proposta da pesquisa que estou desenvolvendo é observar e
analisar a representatividade negra na produção cênica contemporânea porto-
alegrense.

Ao utilizar a palavra contemporânea no título da pesquisa estou me


referindo ao tempo e não ao gênero de dança. Ressalto isso, pois intenciono
apresentar nomes que desenvolvem seus trabalhos a partir das linguagens das
danças afro-gaúchas e das danças urbanas, por exemplo. Enfatizo que esses
profissionais que compõem esses gêneros de dança mencionados também
compõem e representam a história e o segmento da dança da cidade, tanto
quanto os que se dedicam a linguagem clássica. Além disso, a variedade das
231
A Muovere Cia de Dança é umas principais cias de dança da cena independente de Porto
Alegre com trajetória de 30 anos, sob a direção de Jussara Miranda. Desde 2017 sou produtora
da Cia e, consequentemente, colega da Joana Amaral.
232
Programa de Pós Graduação em Artes Cênicas.

500
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

poéticas que veremos a seguir comprovam a pluralidade de linguagens


desenvolvidas pelos artistas negros e que integram a cultura negra.

Rui Moreira é bailarino, coreógrafo e investigador de culturas com


trajetória profissional com mais de trinta anos. Nascido em São Paulo, Rui
atualmente reside em Porto Alegre onde desenvolve o seu trabalho artístico.
Em sua trajetória, atuou pelas companhias: Cisne Negro, Balé da Cidade de
São Paulo, Cia. SeráQuê? (BH), Cia. Azanie (França) e no Grupo Corpo (MG).
Sua formação artística mescla danças modernas, balé clássico, danças
populares brasileiras e danças negras.

Rui em suas criações valoriza a ancestralidade negra através da união


das matrizes de cultura brasileira e africana promovendo um olhar às heranças
artísticas e culturais. Apesar dos seus trabalhos geralmente não terem um teor
de crítica política ou social direta relacionada ao racismo, como nos casos da
obra Fronteiras (2018), que foi criada pela vontade e estímulo lúdico de
transpor limites dos territórios corporais, de que forma não pensar na
importante representação de um bailarino negro como protagonista no Grupo
Corpo (MG), companhia de dança contemporânea brasileira de renome
internacional?

Além de interpretar seus trabalhos independentes como bailarino e


coreógrafo, Rui mesmo como um “estrangeiro” da dança em Porto Alegre
(como o próprio se autodenomina) é também pretagonista como integrante de
comissões avaliadoras de edital e como representante do segmento da dança
em organizações de políticas culturais, lacunas que frequentemente são
ocupadas apenas por artistas brancos na capital gaúcha. Dessa forma, a sua
presença mobiliza os demais artistas negros a se envolverem e lutarem pela
garantia de direitos neste campo.

Outro grupo que observo é o Coletivo Corpo Negra, projeto de extensão


do Curso de Licenciatura em Dança da UFRGS, criado em 2016 por artistas
acadêmicas negras. A ideia de criar o Coletivo surgiu após algumas estudantes
perceberem um maior número de acadêmicas negras na Graduação em Dança
da UFRGS em comparação com os anos anteriores. Reunidas sob a proposta

501
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

de promover espaços para discussão, reflexão e criação artística a partir das


questões que envolvem o cotidiano da mulher negra, o Corpo Negra vem
desenvolvendo ações artísticas, educacionais e formativas dentro e fora da
universidade.

A coreografia Deus é mulher (2018) do Coletivo Corpo Negra, mistura


as linguagens das danças de salão, dança contemporânea e de matriz africana
para denunciar as opressões que o corpo feminino negro no Brasil está
exposto e como isso também está diretamente refletido em dados que
evidenciam o baixo índice de artistas negras indicadas e vencedoras de
prêmios da dança, bailarinas protagonistas em companhias profissionais ou
ocupando cargos de professora em cursos de graduação de artes cênicas na
cidade. Essas, aliás, são questões levantadas pelas artistas ao final da
coreografia, propondo que o público repense a não representatividade feminina
negra nestes espaços.

Entretanto, as composições coreográficas do Corpo Negra não se


resumem apenas a evidenciar as opressões lançadas a mulher negra, mas
também são criadas a partir da perspectiva da afrocircularidade, revisitando
elementos como o feminino sagrado e a ancestralidade, conforme apresentam
na coreografia Deusa das águas, que foi criada em homenagem às mulheres
das famílias das integrantes e é embalada pela composição Ponto de Nanã, de
Mariene de Castro. Nesse contexto atual, no qual avançam as discussões
sobre feminismo negro após anos de um feminismo com uma visão
eurocêntrica e universal sobre todas as mulheres, creio ser relevante um
Coletivo que, ao mesmo tempo em que exalta a potência da figura feminina
negra no desenvolvimento da sociedade, também propõem ressaltar as
circunstâncias que ignoram veementemente a posição da mesma. No que se
refere a isso, Djamila Ribeiro (2018) nos lembra que “o silêncio em relação à
realidade das mulheres negras não as coloca como sujeitos políticos.”
(RIBEIRO, 2018, p. 125).

Apesar do pouco tempo de existência, o Coletivo Corpo Negra vem se


destacando em reportagens na mídia, em indicação como destaque em dança
contemporânea no principal prêmio da cidade e em eventos voltados para

502
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

estética negra, como é o caso do Cenas Diversas - Cena Negra233. Como disse
anteriormente além das apresentações de coreografias em eventos e mostras
de dança, o Coletivo também desenvolve um projeto de ensino da história e
cultura afro-brasileira com alunos de escolas da rede municipal de Porto Alegre
e da região metropolitana oferecendo aulas de dança afro e contação de
histórias com personagens negros.

Por falar em cena negra, a pesquisa que estou desenvolvendo


atualmente no terceiro semestre do mestrado no PPGAC234 têm um olhar
dirigido à produção cênica, analisando poéticas negras da dança e do teatro.
Esta, por sinal, é uma característica do perfil deste programa em agregar
pessoas tanto da dança quanto do teatro e organizar as aulas, a fim de
abranger conhecimentos de ambas as áreas. Sendo assim, entendo ser
relevante apresentar minhas observações em relação à produção do Grupo
Pretagô que, além da trajetória artística que vêm desenvolvendo na cidade,
também é um dos interlocutores do estudo da pesquisa.

Assim como o Coletivo Corpo Negra, o Pretagô também foi formado por
artistas universitários que eram colegas, porém neste caso, no Departamento
de Artes Dramáticas da UFRGS. De acordo com o próprio grupo, o Pretagô é
um “quilombo de artistas que pesquisa e promove a representatividade e o
protagonismo negro nas artes da cena.”235 De lá para cá, o grupo já produziu
três espetáculos e dois projetos que mesclam atuação, música, dança e
performance borrando assim as fronteiras entre as linguagens cênicas.

Também assim como os artistas anteriormente referenciados, a poética


das produções do grupo também gira em torno das narrativas que envolvem a
experiência negra. As obras ao mesmo tempo em que denunciam o racismo e
questionam as desigualdades raciais no Brasil, também celebram a afirmação
negra através da pesquisa da identidade e legitimidade do negro na sociedade.
Outra característica do grupo é o uso do humor e da ironia na construção

233
Cenas Diversas - Cena Negra é um projeto promovido pela Casa de Cultura Mario Quintana
e que consiste em uma programação com oficinas, bate-papos e espetáculos locais e
nacionais de diversos temas sobre a diversidade e estética afro-brasileira.
234
Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas.
235
Descrição retirada da rede social do Grupo, que no meu entendimento resume quem são e
de onde partem as suas propostas.

503
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

discursiva do roteiro que rompe o imaginário de subalternidade, violência e


sexualização que são atribuídos aos atuadores negros. Em relação à
ressignificação de discursos, ARAÚJO (2018) cita que:

O reconhecimento de que discursos determinam, significam,


ressignificam e em última instancia delimitam formas de ser e
existir, direcionou-nos à adoção da investigação dialógica das
relações estabelecidas entre discurso e imagem; entre ator e
personagem para compreensão do processo de construção
identitária negra através dos personagens atribuídos aos
artistas. (ARAÚJO, 2018, p. 119)

O primeiro espetáculo do Pretagô, Qual a diferença entre o charme e o


funk? (2014), por exemplo, representa de forma muito significativa esse
processo de construção identitária negra que a autora cita. A obra é inspirada
na narrativa dos intérpretes-criadores que buscou na identidade de cada um
discutir questões sociais como o preconceito, a cultura e a memória. As
narrações contextualizadas nos sons e nos movimentos apresentam ainda uma
reflexão sobre a juventude negra brasileira, utilizando o funk como trilha sonora
– um estilo que representa a cultura periférica que também está incluída no
cenário cultural, apesar de em alguns momentos ser ignorada por conta da sua
origem, assim como aconteceu com outros estilos como o samba, por exemplo.

Como exemplo de espetáculo que apresenta a representatividade negra


cito o Reminiscências: memórias do nosso carnaval (2018) do Grupo de
Música e Dança Afro-Sul. A obra, dirigida por Iara Deodoro, é uma releitura das
participações da ala Afro-Sul em desfiles realizados pelas escolas de samba de
Porto Alegre e traz à cena as memórias da trajetória desta manifestação
popular que é símbolo de resistência na cidade.

Como já tinha levantado no texto, o carnaval gaúcho carrega em sua


constituição a potência da comunidade negra, que representa a maior parte
das pessoas envolvidas com as Escolas de Samba. Segundo Paixão (2012, p.
142) “na análise dos espetáculos, além de examinar, observar e descrever os
caminhos percorridos pelo coreógrafo, é necessário analisar o conjunto de

504
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

signos presentes na concepção”. De acordo com a afirmação da autora, por


essa e outras questões, ainda que não seja a sua ideia principal, a obra
também é uma forma de ‘abrir a cortina’ para mostrar quem são os
personagens que colocam o carnaval na avenida.

Inicialmente formado por instrumentistas e logo depois com a inserção


de bailarinos, o Afro-Sul é uma instituição cultural que funciona como
movimento de valorização da cultura negra e que há 45 anos tem o propósito
de lutar contra o racismo por meio dos seus espetáculos que retratam a cultura
afro-gaúcha. Inspiração para muitos jovens artistas negros, a diretora,
coreógrafa e professora Iara Deodoro é uma figura importante na história da
dança da cidade e vale destacar a sua entrada como porta-bandeira no final do
espetáculo como homenagem aos seus mestres-salas. A memória viva da sua
imagem em cena remete à ideia da ancestralidade não só como a herança,
mas também como presente e futuro.

Já em consonância com as questões de raça e sexualidade, o


espetáculo Bixas Pretas: da rejeição ao fetiche que estreou em agosto de
2018, evidencia a problemática da objetificação da corporeidade negra
LBTQIA+. A cultura negra norte-americana é base da dramaturgia das cenas,
sendo representada a partir de signos como a cultura ballroom, a cena drag, o
voguing e as danças urbanas. Importante pensar então na revisitação destas
linguagens, considerando a mundialização das danças, ao ser representada
por corpos negros que são seus idealizadores e fomentadores originalmente.
Se por um lado, o espetáculo investe na cultura negra norte-americana, por
outro traz coreografias e trilhas de funk e artistas negros do pop e rap nacional
para articular as cenas.

As performances e os diálogos da obra criticam os olhares de desprezo


e de preconceito lançados a esses corpos que são colocados à margem da
sociedade. Os textos e os casos representados em cena são situações que
foram vivenciadas pelos integrantes do Coletivo Bixas Pretas com o propósito
de demonstrar, além da LGBTIfobia, principalmente a discriminação racial
sofrida. Ou seja, o acúmulo de vivências distintas, porém ambas opressoras.
Em relação à luta por diferentes opressões, Lorde diz que

505
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Eu não posso me dar ao luxo de lutar por uma forma de


opressão apenas. Não posso me permitir acreditar que ser livre
de intolerância é um direito de um grupo particular. E eu não
posso tomar a liberdade de escolher entre as frontes nas quais
devo batalhar contra essas forças de discriminação, onde quer
que elas apareçam para me destruir. (LORDE 1983)

Como podemos analisar na poética desses espetáculos e também nos


artistas em suas diferentes produções são lançados distintos discursos: raça e
sexualidade, dança afro-brasileira, legitimidade negra, memória, corpo negro
feminino, ancestralidade etc., porém em todos os casos há o protagonismo
dessas figuras alinhado à proposta de discursar sobre as questões que
envolvem a sua corporeidade. Não quero dizer com isso que nós artista negros
devemos ter como regra sempre nos pautar por uma temática negra em nossas
criações, mas acredito que devemos sempre buscar as nossas referências
para permear os nossos movimentos. Se o corpo é também história, então
precisamos contar a nossa através dos nossos corpos.

Creio ser importante analisarmos que há um grande número de artistas


negros em Porto Alegre, assim como as produções de dança com temática
negra que vem sendo produzidas, contudo este dado não corresponde
diretamente ao protagonismo direcionado a essas pessoas. A partir desta
perspectiva, é fundamental pensar que nós artistas negros também precisamos
nos enxergarmos, nos reconhecermos, nos referendarmos, nos escutarmos e
para que isso aconteça é necessário que mais de nós estejamos nestes
lugares onde por bastante tempo não éramos sequer lembrados.

É preciso que estejamos no palco, mas também como referência teórica


nas aulas dos cursos de dança em universidades e que não nos seja dado este
lugar nos colocando sempre na condição de coadjuvante, afinal para gerarmos
representatividade aos nossos semelhantes também é preciso sermos
pretagonistas do que estamos colaborando para construir. Muitos corpos
negros já compuseram o cenário da dança da cidade em diferentes épocas,
segmentos e espaços, porém a interrogativa que coloco é: quantos (as) destes
(as) de fato foram protagonistas nesse cenário?

506
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Com esses aspectos que tenho observado, concluo até este momento
que é importante que mais olhares se voltem aos artistas e às produções
negras que compõem a cena local. Em igual proporção, que a arte, através do
seu viés político, também possa ser uma ferramenta de luta contra a
invisibilidade do nosso legado e dos nossos corpos.

Referências

DE ARAUJO, Luana. Pretagonismo: uma análise discursivo-fílmica na


construção de identidades negras em publicidade televisiva. Tese de
Doutorado. Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da
Fonseca, 2018.

GONÇALVES, Maria Augusta Salin. Sentir, pensar, agir: corporeidade e


educação. Papirus Editora, 1994.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista


Ciências Sociais Hoje–Anuário de Antropologia, Política e Sociologia. 1984.

HOOKS, Bell. Olhares negros: raça e representação / tradução de Stephanie


Borges. São Paulo: Elefante, 2019.

LORDE, Audre. Não existe hierarquia de opressão. Tradução e comentários


de Renata. Disponível em:< http://www. Geledes. org. br/nao-existe-hierarquia-
de-opressao/>. Acesso em, v. 24, 2016.

PAIXÃO, Maria de Lurdes Barros. Dança negra brasileira na


contemporaneidade: análise das reelaborações nas criações performáticas do
Balé Folclórico da Bahia sob um ponto de vista etno-ético-estético-coreográfico.
In: CÔRTES, Gustavo; SANTOS, Inaicyra Falcão dos; ANDRAUS, Mariana
Baruco Machado. Rituais e linguagens da cena: trajetórias e pesquisas
sobre Corpo e Ancestralidade. Curitiba, PR: CRV, 2012.

RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro?. Editora


Companhia das Letras, 2018.

507
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

ARA-PAMOSI JÓ:
CORPO-ARQUIVO, DIÁSPORA E AS POLÍTICAS DA ANCESTRALIDADE
NA DANÇA

Fernando Marques Camargo Ferraz (UFBA)

Esse texto traz uma reflexão a partir de uma série de entrevistas


captadas na fase preliminar da produção de um documentário que resulta de
uma parceria com o coreógrafo soteropolitano Augusto Soledade, professor da
Universidade da Flórida. Esse trabalho decorre de nosso desejo em realizar
uma reflexão sobre os diversos fazeres e abordagens em relação à dança
negra realizada nos territórios da diáspora, mais especificamente entre o Brasil
e os Estados Unidos, tema que tem alimentado nossas pesquisas.

Considero importante ressaltar que esse trânsito cultural e artístico que


se retroalimenta entre os espaços da diáspora negra nas américas possui uma
longa e extensa história, seus precursores mais conhecidos são nomes como
Mercedes Baptista, Jelon Vieira, Eusébio Lobo, Isaura Oliveira, Augusto
Soledade, para citar alguns brasileiros, e do lado estadunidense Katherine
Dunham, Clyde Morgan, Alvin Ailey, Linda Yudin e Amara Tabor-Smith entre
tantos outros. Essa dinâmica mútua de trocas de conhecimentos e saberes
entre os dois países (embora o espaço de fruição diaspórica não se limite a
eles) continua a operar mais forte do que nunca e permanecerá renovando-se
enquanto os dois territórios mantiverem seus polos de manutenção, produção,
circulação e irradiação das culturas negras vivas e pulsantes.

Nosso intuito inicial era investigar as estéticas diaspóricas nas artes, em


especial as conexões entre a dança afro-brasileira e a dança negra
estadunidense, verificando sobre as presenças desses fazeres no currículo das
universidades dos EUA e do Brasil. Entretanto, para além da formalização de
um saber acadêmico, essas práticas também engendram um modo de
conhecer e atuar no mundo pelo corpo que dança, acionando políticas da
ancestralidade (LUZ, 2020) a partir de suas poéticas em diversos espaços e
modos de operação.

508
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

A partir dos encontros gerados com os colaboradores brasileiros do


projeto notou-se um complexo panorama de trajetórias formativas, atuações
educacionais, profissionais e artísticas singulares tecendo uma intrincada rede,
cujos meandros circulam discussões sobre identidades étnico-raciais na
contemporaneidade, a luta anti-racista no campo das artes, os fundamentos
poéticos políticos da dança negra, e as estratégias de produção e ensino no
campo da dança.

Uma das fontes utilizadas para a estruturação do documentário foi a


captação de entrevistas entre os profissionais da dança residentes em
Salvador. Aqui apresentamos reflexões derivadas de uma primeira análise
sobre o material inicialmente coletado entre os artistas brasileiros atuantes em
Salvador. Como mote mobilizador da entrevista destacamos preliminarmente
três questões:

Como você, enquanto artista afro-brasileiro se reconhece e se identifica


no campo da dança e como nomeia a dança que faz?

Como define a dança afro-brasileira contemporânea e como ela surgiu


no Brasil?

Qual o papel de formas afro-brasileiras conhecidas como capoeira,


candomblé, dança de rua e outras manifestações culturais de tradição negra na
definição da dança afro-brasileira contemporânea?

Foram inicialmente entrevistados Edileuza Santos, Amélia Conrado,


Mathias Santiago, Bruno de Jesus, Jorge Silva, Agnaldo Fonseca, João
Petronílio, Leonardo Luz e Inaicyra Falcão dos Santos, todos artistas
residentes em Salvador naquele momento. Essa amostragem ainda é ínfima
comparado com a quantidade e relevância de artistas conectados com a
produção da dança negra na cidade e objetivou ser apenas um start na
produção de material documental sobre o tema. Desejamos englobar nessa
primeira triagem de interlocutores uma amostragem intencionalmente diversa,
tanto no que tange a experiência e percurso formativo dos artistas, quanto no
que se refere às suas escolhas poéticas de produção e atuação artística.

509
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O que tentaremos desenvolver brevemente aqui será um olhar sobre


três desdobramentos analíticos gerados por esses encontros: o tema das
danças de tradição negra e a questão autenticidade e da autoria que delas se
derivam, o tema do índice de contemporaneidade das danças negras e o tema
da ancestralidade como produtoras de políticas e memórias atualizadas.

Autenticidade e autoria

Aos serem questionados sobre suas identificações com as


manifestações culturais de tradição negra no território Baiano, alguns dos
artistas, embora produzindo em Salvador, referenciaram outras manifestações
culturais e corporeidades (SODRÉ, 2017) compartilhadas como influências em
seu trabalho, experienciadas a partir das dinâmicas de similaridade e
diferenciação das estéticas diaspóricas (GILROY, 2007) no território brasileiro.

Nesse sentido, faz-se necessário um cuidado em evitar generalizações


sobre os fazeres de dança entendidos como tradicionalmente negros, pois a
depender da situacionalidade dos interlocutores, sua história de vida e conexão
com territorialidades e regionalidades no país o termo “dança de rua”, por
exemplo, dá margem a uma série de significados. Também devemos evitar o
uso de expressões “danças populares” ou “folclóricas” pelas lógicas de captura
do discurso nacionalista, historicamente conivente com as estratégias de
invizibilização das contribuições negras, além do que, supor haver uma
homogeneidade nas expressões que compõem o espectro das danças de
tradições negras, bem como, o livre acesso à elas demonstrou-se igualmente
falso.

Houve também uma ponderação entre os propositores do projeto sobre


a noção de espontaneidade atribuída às manifestações culturais de tradição
negra. Essa pré-concepção ainda se verifica em muitas falas entre os
interlocutores. Sua reprodução nos convida a discutir sobre os processos de
racialização da cultura de referência africana e nas dinâmicas de legitimação e
apropriação dessas manifestações artístico-culturais. Esse debate alimenta

510
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

também discussões sobre a temática dos direitos autorais nas artes, cuja
contribuição de autores como Carlos Sandroni (2007) e Anthea Kraut (2016)
nos auxiliam.

Nossa ressalva incide sobre a prática comum de referir-se a esses


repertórios artístico-culturais afro-derivados como espontâneos, uma vez que
tal adjetivação pode conotar uma ideia de “inatismo” das formas culturais
negras, desqualificando a historicidade das experiências, sua dinâmica
intrincada e constante de transformação e manutenção, naturalizando os
processos gestados nas experiências sociais ao reproduzir noções de um
determinismo cultural racializante, conferindo um caráter biológico à cultura.

Outro fator é que a ideia de espontaneidade e inatismo das formas


culturais negras muitas vezes legitimam relações de apropriação dessas
manifestações expressas oralmente, vistas como de “domínio popular”. Esse
debate nos obriga a pensar sobre o reconhecimento da autoria desses
conhecimentos gestados e compartilhados coletivamente e a ressalva sobre de
que maneira essas expressões do corpo diaspórico devam ser consideradas
não como materiais meramente manipuláveis e exploráveis, mas como cultura
imaterial viva, imersa em dinâmicas de recriação e transformação das tradições
no interior mesmo de suas comunidades de produção. Não se trata de advogar
um processo controlado de patrimonialização desse arsenal de códigos
culturais, mas de se discutir sob que éticas e políticas eles são acionados e
manipulados. Claro que processos de síntese, citação e cópia parcial de
fazeres artísticos, que relativizam a autoria do criador existem em todos os
setores da produção artística. No entanto, é necessário que as intervenções
criadoras não se preocupem em fornecer os créditos apenas aos saberes
embranquecidos e prestigiados. Trata-se de questionar as distinções,
frequentemente racializadas, entre reprodutores e criadores quando se trata do
contexto artístico legitimado.

Esse debate também alimenta a discussão sobre a noção de técnica na


dança associando-a aos entraves do reconhecimento dos fazeres
performáticos negros. Duvidar da naturalidade dessas manifestações, implica
em reconhecer seu caráter histórico de resistência e transformação ao passo

511
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

que disputa legitimidade sobre as concepções de treinamento em dança, que


frequentemente hierarquizam práticas consolidadas por padrões eurocêntricos
e conotam sentidos deterministas e essencialistas nas práticas negras. Essa
noção espontaneista associa as expressões sociais e culturais ao campo da
biologia, reproduzindo determinismos raciológicos provenientes dos
imperialismos coloniais e suas ciências antropológicas datadas.

Embora a noção de técnica em dança possua até os dias de hoje


valorações e expectativas próprias que estabelecem legitimidade nos fazeres
do corpo enquanto conhecimento estruturado e acumulado, vale ressaltar que
essa noção deve abranger diferentes regimes de treinamento e práticas,
considerando sua autonomia diante de padrões hegemônicos, concebendo sua
eficácia diante dos projetos corporais e seus contextos específicos.

É importante salientar que se historicamente as danças performadas


pelos afrodescendentes constituem um fator de resistência aos inúmeros
processos de domesticação do corpo, elas também se abrem às dinâmicas de
hibridização na diáspora.

A diáspora é um meio apropriado para se reavaliar a ideia de uma


identidade essencial e absoluta precisamente porque ela é
incompatível com este tipo de pensamento nacionalista e raciológico.
Esta palavra está intimamente associada à ideia de semente para
disseminar. Esta herança etimológica é um legado incerto e uma
benção imprecisa. Ela nos pede para que tentemos avaliar a
importância do processo de dispersão em posição à suposta
uniformidade daquilo que tem se dispersado. A diáspora impõe
tenções importantes entre o aqui e o agora, o antes e o depois, entre
a semente dentro do saco, do pacote, do bolso e a semente se
espalhou no chão, no fruto ou no corpo. Ao chamar a atenção tanto
para a similaridade no interior da diferenciação, quanto para a
diferenciação no interior da similaridade, a diáspora causa transtornos
à sugestão que a identidade cultural e política possa ser entendida
através da analogia das ervilhas indistinguíveis alojados nas vagens
protetoras do parentesco próximo e do ser de uma subespécie. É
possível imaginar que um sentido mais complexo e ecologicamente
sofisticado de interação entre organismos e meio-ambientes pode se
tornar um recurso para se pensar criticamente sobre a identidade?
(...) A diáspora fornece pistas e indícios valiosos para elaboração de
uma ecologia social de identidade e identificação cultural que nos
leva para muito além do dualismo inflexível da genealogia e da
geografia (GILROY, 2007, p.154)

512
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Esse processo elaborado dela disseminação das experiências africanas


nas américas contribuiu sobremaneira para a multiplicidade e complexidade de
suas manifestações e não se equivale a formação de manifestações
homogeneizadas. O reconhecimento das diferenças no interior das similitudes,
bem como o desenvolvimento de suas formas culturais hibridas resultantes
continuam em processo, seu funcionamento implica uma poética política
diaspórica que atua constantemente sobre as tradições aqui reinventadas.
Longe de conformar-se a uma essência invariável esses fazeres do corpo
implicam tradição, ancestralidade, resistência, inventividade e mudança.

Índices de Contemporaneidade nas danças negras

No decorrer das entrevistas aos artistas colaboradores do projeto


verificamos algumas dúvidas de caráter teórico metodológico na escolha das
perguntas geradoras, como, por exemplo, a suposição apressada que o termo
“dança afro-brasileira contemporânea” era um denominador comum capaz de
descrever e representar os trabalhos dos artistas interlocutores.

O filósofo Boyan Manchev (2013) ao refletir sobre a dança


contemporânea como campo de luta estética e espaço no qual se tensionam
disputas em torno da experiência da liberdade, afirma que esse fazer estético,
apesar de constituir um espaço para a experimentação de novas formas de
vida apresenta-se sob risco constante de cooptação aos modos capitalísticos
de produção de subjetividade e mercantilização.

Manchev (2013) nos indaga sobre como enfrentar os dispositivos de


representação e as tecnologias de (re)produção do sujeito em nossa atualidade
constantemente pressionada a responder as demandas biocapitalistas que
transformam as formas de vida em mercadorias padronizadas. Que circuitos e
formas de produção se apresentam como alternativa possível?

O autor aponta que até o potencial para a transformação inerente aos


seres humanos tem sido controlado, bem como os modelos alternativos de
experiência desenvolvidas pelas práticas artísticas sofrem processos de

513
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

apropriação e universalização. Nesse contexto em que a mobilidade, a


flexibilidade, a fluidez, a capacidade de desenvolver conexões e redes, a
experimentação, o ócio criativo, o diverso e múltiplo tem sido cooptado pelo
discurso e performance capitalista – “o risco da arte não é apenas ver seu
potencial crítico enfraquecendo, mas também achar-se na posição de modelo
reificado” (MANCHEV, 2013, p.175)

Até que ponto a retórica sobre autonomia nos campos do político e do


estético são uma ilusão construídas pela modernidade, se nossa produção
poética permanece atada aos condicionantes sociais e históricos, geralmente
reféns das pressões do capitalismo global e seu contexto sempre renovado de
cooptação e padronização das formas de vida e subjetivação?

As forças do capitalismo global estão absorvendo todo potencial de


transformação a fim de submetê-lo ao imperativo de crescimento
econômico(...). A transformação dessa transformação é nossa tarefa
artística, filosófica e política. (...) Na era do culto neoliberal da
performance que reduz a matéria sensível a recursos exploráveis
para a produção, produção de formas de vida como mercadoria - a
performance e a dança só poderiam ter importância como um contra-
ato afirmativo, reabrindo o potencial da matéria sensível,
desorganizando os corpos Commodified, transformando os modos
padronizados de produção da subjetividade, inventando novas
ferramentas emancipatórias, novas técnicas e formas de vida, dando
novas emoções: raiva, verdadeiro prazer ou alegria irredutível. Seu
único propósito deve ser o irredutível impulso pela liberdade.
(MANCHEV, 2003, p. 176 tradução nossa)

Sobre esse pano de fundo percebemos que muitas das experiências de


dança relatadas pelos coreógrafos soteropolitanos demonstram uma formação
de uma estética diaspórica que se organiza como crítica fundamental aos
modelos rígidos de padronização do corpo e de sua organização social
dessolidarizada, inscrevendo saberes cheios de resiliência, coletividade e
inventividade.

Ao revisitar as diversas falas dos coreógrafos soteropolitanos sobre suas


práticas evidenciaram-se uma diversidade de temas, demandas e devires que
expõem modos de fazer prenhes de complexidade, audácia e elegância. Suas
estéticas apresentam-nos éticas de superação da colonialidade

514
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

(MALDONADO-TORRES, 2018) e modos inventivos de lidar com os processos


de captura e desencantamento da vida.

Esse posicionamento restaura a demanda apontada por Manchev (2003)


de (re)politizar a estética. Criar um debate aguerrido e incorporado em torno da
experiência sensível e sua força política. Os fazeres de dança diaspóricos
esforçam-se em transformar o campo da experiência sensível, reafirmando seu
potencial de transformação enquanto subverte as convenções do sistema de
arte. Aqui (con)fundem-se expectativas profissionais e dança social, arte e
militância, comunidade e cura, arte e religião, resiliência e prazer,
reconhecimento e provocação. Seus sujeitos reinscrevem em suas práticas
diárias uma mobilização constante que integra senso de comunidade,
alacridade (SODRÉ, 2017), provocação e dinamismo, não para reproduzir as
expectativas de um mercado sempre ávido em consumir novidades reificadas,
mas para lutar por uma criação livre e digna.

Pediremos licença para contextualizar essa discussão parafraseando um


dos artistas entrevistados pelo projeto. Jorge Silva, artista independente, diretor
e coreógrafo de espetáculos, afirma que os artistas da dança se equivocam ao
distanciar-se das questões sociais. Para ele há uma urgência em dar
visibilidade e atenção aos questionamentos políticos de seu tempo. Ao ser
questionado como nomeia sua dança, faz questão de delimitá-lo simplesmente
como Dança, sem prefixos, sufixos ou adjetivações. Acredita que se a dança
contemporânea tem como papel fundamental visibilizar, a partir de abordagens
diversas, as inquietudes do ser humano seus produtores ainda reproduzem
uma visão de mundo burguesa, apequenando-se ao preferir disputar espaço
dentro dos sistemas de reconhecimento e legitimação do que criar diálogos
com a sociedade.

Para o artista há uma demanda social que deve ser abarcada pela
produção de dança, uma abordagem que ultrapassa aos padrões de referência
dados pela academia, pelos críticos ou pelo mercado. Para Jorge as produções
que se reconhecem no âmbito da dança afro-contemporânea, embora
apresentem-se com múltiplas abordagens, correm o risco de enfraquecer-se
seja por aproximar-se de uma linguagem academicista, de uma dança
apreciada apenas por uma plateia de especialistas, descartando a necessidade
515
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

de diálogo e proximidade com o grande público, ou seja por assumir um


discurso assistencialista “acho um grande erro quando você pensa a dança
como ajuda simplesmente, ao menino ou menina que está naquele lugar, de
risco e precisa fazer dança”, ou até mesmo ao reproduzir modismos
exotizantes, limitando-se a reproduzir seus clichês mais previsíveis, seu
consumo superficial.

Para o artista é necessário valorizar seus saberes mais profundos


entender seus fundamentos, sua conexão com as liturgias e saberes
tradicionais desde dentro das comunidades terreiro e, ao mesmo tempo, não
rotular ou circunscrever apenas uma forma ou maneira de desenvolver suas
poéticas, evitando reproduzir seus estigmas. Assumir uma complexidade entre
os saberes tradicionais e sua abertura para as solicitações do tempo presente
e suas demandas políticas.

Para Jorge estudar é fundamental e não se conformar em reproduzir


lugares dados sobre esse fazer de dança e construir entendimentos que
conectem passado, presente e futuro, abraçando as diversas possibilidades,
sem selecionar ou elencar modelos padronizados. As falas de Jorge advertem
sobre a necessidade de constituir um pensamento político na dança sobre o
povo, sua cultura e sua arte. No campo das danças negras isso implica em
respeitar e entender os processos de transformação das danças, reconhecer o
local do Candomblé, das danças tradicionais, expressões percebidas como “de
raiz”. Esses saberes são espaços de estudo e reconhecimento, não para
constituir relações de reprodução ou distanciamento, mas garantir que se
conheça os meandros dessas manifestações para que se apreenda a respeitá-
las e evitar apreensões superficiais, supérfluas e de consumo folclórico.

Há uma necessidade de aprendizado contínuo, o artista deve preocupar-


se em mostrar-se acessível ao mesmo tempo que reverbera e multiplica novas
pesquisas, abordagens e desafios. Jorge chama a atenção às formas de
renovação e atualização do tradicional, da mesma forma que as danças negras
contemporâneas se conectam com saberes, códigos e presenças já
anteriormente encenadas na tradição. A atualidade dessas manifestações
artísticas, bem como seu índice de contemporaneidade, se constrói ao exceder
os limites das academias e as salas dos teatros, para encontrar-se com as
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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

comunidades e engajar-se criticamente sobre as formas de organização


política, com a qual se conectam com as demandas em torno da diversidade e
justiça social.

Assim se a transformação é o centro da condição contemporânea


(MANCHEV, 2013) acreditamos que a arte diaspórica pode apresentar-se
como alternativa às formas de produção capitalística ao abrigar em seus
modos de operação correlações entre corpo, memória, história, poéticas e
políticas de vida, modos de existência cientes do valor excepcional da
liberdade e da comunidade.

Memória, arquivo e políticas da ancestralidade.

A análise das entrevistas coletadas, bem como a percepção de suas


narrativas em diálogo nos leva a vislumbrar a complexidade desses fazeres
corporais afro-brasileiros e nos fazem compreender as potências desse corpo e
as dinâmicas de atualização de seus repertórios. As contribuições dos artistas
nos apresentam panoramas de produção artística contemporânea e nos
convocam a estabelecer correlações entre corpo, memória, história, poéticas e
políticas de vida, seus modos de existência.

Como artista, professor e pesquisador das danças negras tenho


acumulado nos últimos 20 anos uma série de registros sobre esse campo. São
entrevistas, documentos, livros, vídeos e anotações, seja das minhas atuações
seja dos meus mestres, colegas e alunos. Como historiador de formação
também me questiono sobre o destino desse material reunido, como dinamizá-
lo e engajá-lo em ações de multiplicação e projetos que nos ajudem a fortalecer
crítica e poeticamente esse legado acumulado e em movimento. Esses
registros compõem uma memória que precisa ser difundida e mobilizada para
que se fortaleça um entendimento mais pluriversal sobre os fazeres de dança
no país e que visões mais hegemônicas não submetam suas contribuições ao
esquecimento.

Combater o esquecimento é uma das principais armas contra o


desencante do mundo. O não esquecimento é substancial para a

517
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

invenção de novos seres, livres e combatentes de qualquer


espreitamento do poder colonial. É nesse sentido que firmo meu
verso: o não esquecimento, a invocação, a incorporação, o
alargamento do presente, o confiar a continuidade e do inacabamento
passado de mão em mão compartilhado em uma canjira espiralada é
o que entendemos enquanto ancestralidade, que emerge no contexto
de nossas histórias como política anticolonial (RUFINO, 2019, p.16).

Esse chamado ao não esquecimento, a mobilização renovada dessas


contribuições nos faz pensar sobre as políticas em torno da memória e da
ancestralidade que compõem esse acervo de experiências e registros. Jacques
Derrida (2001) ao analisar os sentidos do arquivo destaca seu senso instituinte
e regulador. Para o filósofo sua função seria conferir um local a partir do qual
reúnem-se e organizam-se documentos oficiais. Nessa localização anunciam-
se conhecimentos autorizados e legítimos. Há, portanto, um papel instituinte
privilegiado, que não apenas abriga saberes considerados legítimos, mas
também os constitui, identifica, organiza e interpreta. Dessa forma, tanto as
políticas que se constroem em torno do arquivo, quanto suas violências,
mobilizam ações instituidoras e conservadoras a um só tempo, bem como,
aquilo que deve ser considerado legítimo e as formas de seu acesso,
constituição e interpretação. No entanto, ao considerarmos o corpo um arquivo
que políticas e afetos são agenciados? Ainda mais ao considerarmos as
lógicas de racialização existentes num país como o nosso, um laboratório
necropolítico na periferia colonial e escravista do sistema capitalista.

Se autores como Franz Anton Cramer (2012), Isabelle Launay (2012) e


Eleonora Fabião (2012) nos ajudam a pensar nas dialogias entre corpo, arquivo
e afetos na perspectiva da dança contemporânea, no sentido que seu
repertório de obras não se limite apenas ao registro de seus marcos canônicos
mas produza materiais que permitam novos arranjos e abordagens poéticas
derivadas, essas relações são adensadas no campo das danças
afrodiaspóricas pela apreensão da noção de oralitura (MARTINS, 2002) e das
potencialidades dos saberes contidos no pensamento de rastros/resíduos
(GLISSANT, 2013) deste corpo, o qual adiciona uma dimensão fugidia e em
permanente experiência de atualização, recomposição, reinvenção e produção
dos devires negros.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Leda Maria Martins afirma que nas práticas performáticas negras “o


corpo é um local de inscrição de um conhecimento que se grafa no gesto, no
movimento, na coreografia, na superfície da pele, assim como nos ritmos e
timbres da vocalidade (2002, p.72)”, portanto uma episteme que é também
performativa ao instituir e instaurar seus saberes no tempo espaço. Ao fazê-lo
não se limita a reprodução de representações e códigos simbólicos, mas
sobretudo elabora uma atualização renovada dos mesmos. Essa compreensão
reformula as suposições sobre a imutabilidade dos fazeres de dança na
diáspora.

Fabião (2012) ao investigar as correlações entre performance e história


propõe suplantar a noção do arquivo como fonte estática, mas como
experimentação historiográfica, “o arquivo não é uma mera coleção de dados
mas um produtor de efeitos e afetos (2012, p.56)”, nesse sentido instaura-se
uma dramaturgia dos fragmentos, cuja energia e força epistemológica guia a
performance na medida que:

um fragmento não evoca uma suposta totalidade a qual pertencia


originalmente mas, ao contrário, é um deflagrador de configurações
abertas, provisórias, inacabadas, ou ainda, inacabáveis. Um
fragmento não está melancolicamente buscando sua inteireza
perdida, mas vividamente reforçando sua precariedade, isto é, sua
relatividade e relacionalidade. Não há totalidade possível a ser
atingida a partir de fragmentos; o quebra-cabeça final será
necessariamente incompleto. O fragmento recusa a noção de
completude mas também, e significativamente, a noção de
linearidade. (FABIÃO, 2012, p.56)

Essa noção inacabada do fragmento sintoniza-se com a ideia de rastro e


resíduo analisada pelo filósofo martinicano Edouard Glissant ao estudar as
dinâmicas culturais da diáspora negra nas américas. Seu livro Introdução a
uma poética da diversidade é um convite vigoroso à crítica das visões
essencializadas e aos pensamentos totalizantes de sistema. Para ele o
pensamento do rastro/resíduo contrapõe-se aos pensamentos acabados e
pressupõe um ambiente de recomposição dos elementos culturais postos em
presença. Essa dinâmica relacional implica em conceber a identidade inserida
num contexto cujo principal questionamento é “como ser si mesmo sem fechar-
se ao outro, e como abrir-se ao outro sem perder-se a si mesmo? (GLISSANT,

519
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

2005, p. 25)”. Esse arranjo se faz quebrando imagens absolutas e suas


suposições de totalidade.

Para o autor “o pensamento do rastro/resíduo promete a aliança longe


dos sistemas, refuta a possessão, desemboca nestes tempos difratados que as
humanidades de hoje multiplicam entre si, em choques e maravilhas
(GLISSANT, 2005, p. 72)”. Esse encontro com a multireferencialidade do
pensamento de rastro/resíduo associa-se com o que o autor reclama ser o
“direito à opacidade” no qual “ não necessito mais “compreender” o outro, ou
seja, reduzi-lo ao modelo de minha própria transparência, para viver com esse
outro ou construir com ele (GLISSANT, 2005, p.73)” Numa linguagem poética e
crítica o autor nos enreda numa análise sobre o papel da diferença e da
diversidade como forças libertadoras. Para Glissant o território das culturas da
diáspora negra institui um pensamento e concepção do ser enquanto sendo,
formado por impermanências, constituído pelo acumulo de relações diversas,
entrelaçadas e imprevisíveis.

A arte da diáspora ao compor seus repertórios entre processos


complexos de (des)territorialização e encruzilhadas, mesmo que sobre
constante risco de simplificação, ocultação, expropriação ou cooptação é
também produtora de contra narrativas e deve afirmar-se na contracorrente do
pensamento binário colonial, sempre pronto a essencializar os sujeitos
objetificados em “Outros”. Seus conteúdos expressos pelo corpo disseminam
as africanidades aqui recriadas como cultura popular negra. Nos dizeres de
Stuart Hall,

na cultura popular negra, estritamente falando, em termos


etnográficos, não existem formas puras. Todas essas formas são
sempre o produto de sincronizações parciais, de engajamentos que
atravessam fronteiras culturais, de confluências de mais de uma
tradição cultural, de negociações entre posições dominantes e
subalternas, de estratégias subterrâneas de recodificação e
transcodificação, de significação crítica e do ato de significar a partir
de materiais pré-existentes. Essas formas são sempre impuras, até
certo ponto hibridizadas a partir de uma base vernácula (HALL, 2009,
p. 325).

520
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Nesse sentido, a própria diáspora, enquanto processo histórico, estético


e político de dispersão implica na impossibilidade de uma identidade
completamente localizada, determinada e acabada. Não possui pretensões
universalizantes, seu fazer ao conjugar mutuamente diferenciação e
similaridade no processo constantemente atualizado de disseminação
(GILROY, 2007) solicita que encontremos gramáticas para além das categorias
políticas ontológicas absolutas. Produtora de diferenças a arte da diáspora
africana cria diálogos entre diferentes práticas, fazendo-se encruzilhada.

A noção de arquivo na sociedade colonial, entretanto, contradiz a lógica


relacional imbricada pela diáspora. Pensar o corpo negro como arquivo na
contemporaneidade faz necessário que imaginemos uma ruptura com as
lógicas coloniais, seja na naturalização da suposta neutralidade e
universalidade do corpo branco, seja na superação das marcas e lógicas de
violência impostas aos corpos racializados. O regime documental e ontológico
na colonialidade promove uma forma de captura da identidade, reificando
práticas representacionais, reproduzindo ficções e violência.

Nesse contexto o significante negro insere-se no dispositivo


interpretativo da identidade em torno da qual estigmas e alteridades são
tensionados, evidenciando subjetivações e seus efeitos a depender de quem o
mobiliza. A diáspora como ecologia social de identificação (GILROY, 2007) ao
ser agenciada pelos descendentes de africanos deve questionar os sentidos
reificados pela colonialidade e reprogramá-los conforme seus interesses e
visões de mundo. Nessa urgência tecem-se as epistemologias afro-
referenciadas, sua noção de pessoa, comunidade e ancestralidade. Muniz
Sodré explica que o senso de ancestralidade articula passado, presente futuro
em uma “vigência ética do discurso de fundação do grupo, em que se enlaçam
origem e fim”. (SODRÉ, 2017, p.109). A vigência desse princípio fundador, no
entanto, difere muito da ideia conservadora de uma tradição imutável, pois:

o que a tradição viva dá e transmite é a “traição” a igualdade das


repetições: só conteúdos, dados, resultados e técnicas de fazer é que
se podem repetir e, pela e na repetição, acionar os poderes de
diferenciação da ancestralidade. Esta última, para instaurar história,
instiga os poderes do “não” das diferenças no “sim” da compulsão de
repetir. Não se confina, portanto, “a mera repetição “tradicional” de
conteúdos (o tradicionalismo), pois é propriamente uma forma de
regras e hierarquias destinada a atualizar a origem aqui e agora na

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

mutação acelerada da história. Fora do tradicionalismo e , portanto,


longe das ilusões de se encontrar uma aura de autenticidade no
passado, a tradição inscrita na ancestralidade representa um
momento de autonomia grupal enquanto memória continuada e
vigilante de um conjunto de regras e de personagens historicamente
afinados com uma maneira particular de ordenamento do real.
(SODRÉ, 2017, p.110)

Se a tradição na diáspora implica uma ética de comunicação


intergeracional na qual as formas culturais são permanentemente
reprocessadas, cabe ao corpo uma responsabilidade primordial nesse elo. Nele
inscrevem-se as representações assim como a possibilidade de transformá-las.
Repositório de signos faz-se também potência e devir. Levando em
consideração as políticas em torno do corpo e da ancestralidade, arriscamos a
expressão Ara-pamosi jó, uma livre tradução do yoruba, para provisoriamente
conceber um corpo-arquivo em movimento e dança. Local de possibilidade o
corpo é, por excelência, um território relacional e arquivo de memórias
ancestrais. Nesse aspecto finalizamos com as palavras da coreógrafa e
cineasta carioca Carmen Luz e seu apelo a constituição de uma política da
ancestralidade a partir de sua socio-ética conectiva entre os saberes
incorporados, suas possibilidades intangíveis, seus anseios por justiça e seus
desejos de liberdade.

Há, portanto, uma ética pela qual e com a qual se dança ou se deve
dançar, uma ética da memória incorporada naquele e naquela que
dança no instante em que se dança. Uma ética corporal que evoca,
repassa, celebra e expõe o que não pode ser esquecido, que atualiza
os antepassados, dá a ver a herança recebida, fortalece as
possibilidades de se manter e, ao mesmo tempo, de se ir adiante.
Desse modo, não se pode esquecer e deve-se lembrar da força
comunitária e de tudo o que lhe dá fundamento. (...) Dança-se com a
comunidade, para a comunidade e pela manutenção de sua
existência. Dança-se para celebrar, propiciar e ser propiciado por
encontros amplos, para estabelecer e manter laços intergeracionais,
interpessoais, de afeto, para ativar, enfim, espaços de convivência
sensível. Dança-se pela consciência de ser filho ou filha, neta, neto,
bisneto, bisneta… e pela certeza de se vir antes daqueles que
seguem: o coletivo é o centro da experiência, a comunidade, um
corpo único e o relacionamento entre os vivos e os mortos, sua
imanência. Os indivíduos existem porque a relação dinâmica com o
grupo no espaço e no tempo os constitui e os fortalece. Dança-se,
então, por fazer parte e porque dançar integra o jogo de retribuições e
o equilíbrio comunitário. (...) São muitos os enigmas, as
perversidades coloniais e encruzilhadas pós-coloniais a transitarem
na dança de um corpo negro, desde sua criação à sua recepção. As
estratégias negras de resistência, de ataque às invisibilidades,

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

formuladoras de críticas “de fronteira” e tudo o que subsidia os


desejos de libertação, o autoconhecimento, a construção e a
reconstrução das pessoas negras passam pela noção de
ancestralidade.(...) Deve-se assim, e para além, não esquecer e
lembrar a necessidade e o desejo de encontrar (-se), operação
indissociável da vida plena no presente, da construção de futuros, de
equidade e justiça. As políticas da ancestralidade, o relacionamento
dinâmico e amplo com diferentes dimensões de ancestralidades
diversas, evidenciam a ideologia comum que orienta a conduta e a
multifacetada produção contemporânea de artistas negras e negros
de dança (LUZ, 2020).

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

A FLOR BRANCA DO BAOBÁ

Roberta Ferreira Roldão Macauley (UFBA)

“Muitos procuram suas raízes, eu sou a raíz” Germaine Acogny

O presente artigo apresenta a metáfora do Corpo-Baobá utilizada para


ilustrar a tese de doutoramento, cuja metodologia utilizada é a pesquisa
participante (Vários autores, 1999), que foi organizada por Carlos Rodrigues
Brandão, Rosiska Darcy de Oliveira, Miguel Darcy de Oliveira, Paulo Freyre,
Orlando Fals Borda, Ivandro da Costa Sales e trabalhadores e lavradores de
Goiás, Nova Iguaçu, recife e Olinda, sendo várias pessoas e grupos autores da
prática política de compromisso popular, pautada na ideia de conhecimento
coletivo do mundo.

Os textos de Pesquisa Participante são o que foi possível reunir até


agora, de tudo o que já se fez e escreveu sobre uma modalidade
nova de conhecimento coletivo do Mundo e das condições de vida de
pessoas, grupos e classes populares. Conhecimento coletivo, a partir
de um trabalho, que recria, de dentro para fora, formas concretas
dessas gentes, grupos e classes participarem do direito e do poder de
pensarem, produzirem e dirigirem os usos de seu saber a respeito de
si próprias (BRANDÃO, 1999, p.9 e10).

Além da pesquisa participante, tenho a estética do oprimido (a qual


deveria se chamar estética das oprimidas, retirando da linguagem o vício da
dominação masculina na produção do conhecimento) como referência e
inspiração, através da árvore do teatro do oprimido, cuja existência motivou a
continuação do trabalho de pesquisadora, mesmo mediante situação de
extrema violência doméstica e perseguição contumaz. Quantas vezes me
perguntaram: “Por que você não desiste?” ; “Por que não volta para perto da
sua família?”.

O que me motivou a seguir adiante foi a Rede Internacional de Teatro


das Oprimidas e a força das palavras de Bárbara Santos. Com quem tive
contato nos eventos e jornadas do Teatro do Oprimido realizadas na Escola de
Teatro da UFBA.

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Inspirada na trajetória não acadêmica de Bárbara Santos resisti ao


processo de revitimização que eu sofria por parte da sociedade, do meio
acadêmico e jurídico, construí o desenho da minha tese, O Corpo-Baobá,
fazendo florescer a flor branca do Baobá para refletir sobre branquitude,
privilégio branco e formas de criar e potencializar o sofrimento de uma violência
continuada a meu favor.

Seria possível falar de educação sem pensar em criação? Seria possível


falar em criação sem pensar no atual contexto político? Qual o
comprometimento da arte com as lutas antifascistas? A obra da Professora
Inaicyra nos mostra como os estudos de danças e música de matrizes
africanas sempre sofreram perseguições epistemológicas e policiais:

Na trilha do mito da senhora Ayántoke, mulher estéril que Xangô


fertiliza depois de ouvi-la fazer soar o batá, encontra-se a concepção
dos músicos profissionais tocadores de tambores e a proteção as
suas famílias. Enlaçando o mito do alto e trazendo-o ao solo
brasileiro, Inaicyra permite compreender uma peculiaridade do tempo
em que havia perseguição policial aos que seguiam o culto dos
Orixás: os tambores eram destruídos antes dos iniciados serem
presos. (SANTOS, 2019, p.20)

Estar viva é um ato de coragem, sempre repito que a maior vingança da


vítima de violência é sobreviver, da mesma forma que a ancestralidade resistiu
a anos de genocídio assistido e epistemicídio, resistiu até mesmo ao
assassinato de corpos e etnias inteiras. A ancestralidade ilumina o caminho,
são as vozes ancestrais intuindo a criação. É a seiva!

Essa seiva habita o corpo de todos os seres, mesmo aqueles que não
acessam e não acreditam, possuem sua ancestralidade percorrendo ser corpo,
pois são vários mundos num universo desigual ou plural que apresenta a
mesma heterogeneidade do continente africano. O seu tamanho, também
remete a imensidão da sabedoria corporal e das ancestralidades africanas
(usarei o plural, por acreditar na luta antirracista e na pluralidade como
resistência a homogeneização colonizadora).

A árvore que é original de Madagascar carrega uma lenda muito


interessante, contada pelos malgaxes: “Deus criou o Baobá como
uma obra prima para finalizar o seu trabalho com as plantas. No
entanto, por ser tão bonita e grandiosa, o Baobá se tornou soberbo e
Deus, para ensinar a árvore a ter humildade, a enterrou de cabeça
para baixo. Por isso a sua aparência, que parece ter o tronco e as

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

raízes para fora. Para outros povos, ainda há lendas como a de que,
se alguém tiver o seu corpo velado e enterrado dentro do seu tronco,
o seu espírito permanecerá lá enquanto a árvore estiver viva. Dá para
perceber como a árvore é importante, não é? É um símbolo de
resistência do continente africano e de devoção do seu povo” (trechos
de https://www.thebodyshop.com.br/beleza-do-mundo/baoba-no-
brasil-conheca-historia-da-arvore-inspiracao-para-o-pequeno-
principe/, acessado em 26/11/2019, às 08:09).

O Baobá foi o símbolo escolhido para representar a tese, sua estrutura


pedagógica, princípios afrodiaspóricos (SILVA, 2018), especificidade estética e
vontade política de criar ramificações interdependentes e coerentes com o
pensar e a poética das africanidades em dança e teatro.

O solo onde enraizo a pesquisa é a École des Sables (Escola de Areia),


adubado pelas duas experiências que tive, uma em 2011 e outra em 2018, nas
vivências coletivas “Cruzando Caminhos” e “As quatro damas da dança
africana”, através do intercâmbio de saberes e experiências que alicerçam as
criações.

A ancestralidade é a seiva que alimenta o Baobá, desde as raízes


passando pelo tronco multirreferenciado, atravessando ramos, galos, folhas e a
flor branca do Baobá.

A metodologia que me motiva a busca por justiça social é aquela


oferecida pelo Teatro das Oprimidas, apresentado por Bárbara Santos, onde
ética e solidariedade são fundamentos e guias.

Bárbara Santos (Rio de Janeiro, Brasil). É uma das idealizadoras e


principal difusora do Teatro das Oprimidas. A autora é fundadora e
referente artístico-metodológico da Rede Ma(g)dalena Internacional,
composta por grupos feministas da América Latina, Europa, África e
Ásia. No Brasil, atua como consultora do Centro de Teatro do
Oprimido, editora da revista METAXIS e como diretora artística do
grupo Cor do Brasil e do Coletivo Madalena-Anastácia. Bárbara tem
29 anos de experiência ininterrupta com o Teatro do Oprimido, em
mais de 40 países. Vive na Alemanha desde 2009, onde é diretora
artística de KURINGA – espaço para o Teatro do Oprimido em Berlim
e do grupo Madalena-Berlim. Idealizadora e coordenadora do
Programa KURINGA de Qualificação em Teatro do Oprimido, que
teve avaliação externa da Universidade de Bologna, integra a ITI
Alemanha, o Instituto Internacional de Teatro da UNESCO.
Como autora e diretora, tem se destacado por produções artísticas
que abordam temas contextuais (capitalismo, racismo, machismo,
migração, etc.) e pela pesquisa de formatos coletivos para a
intervenção da plateia no Teatro Fórum. Como atriz, fez Filomena, no
filme A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Karim Ainouz,
ganhador do Grand Prix de Melhor Filme, da mostra Un Certain
Regard, do Festival de Cannes de 2019. Como performer, em

527
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Travessia, investiga a conversão do corpo cênico em corpo político


(Fonte: https://revistaphilos.com/2019/06/30/teatro-das-oprimidas-por-
barbara-santos, acessado em 25/11/2019, às 08:11).

Todo o trabalho que brota é influenciado por mulheres, desde a


orientação amorosa de Daniela, o olhar aguçado de Amélia Conrado (membro
da Banca), como na raiz que existe no protagonismo de Mamah Germaine
Acogny (Fundadora da Escola de Areia no Senegal), assim como na seiva que
percorre o Corpo-Baobá, fluindo nas palavras de Inaicyra Falcão. Essa
multiplicação criativa representa uma estratégia de resiliência ao
patriarcalismo, sexismo, misoginia e machismo que faz perpetuar a dominação
masculina nos meios acadêmicos e políticos.

O Baobá está em constante movimento e diálogo, metáfora de como a


prática deve dialogar com a cultura, a história e o contexto social de onde se
enraíza, assim como a árvore comunica com o solo, o ar, o sol, o vento, os
pássaros e até mesmo com o lenhador. O Baobá não nega sua sombra nem
mesmo ao opressor.

É símbolo de pertencimento para diferentes povos africanos, testemunha


ativa de vidas comunitárias, palco de cerimônias sagradas de morte e
renascimento, ele localiza a comunidade, possui uma força que vai terra
adentro, criando possibilidades de avançar no espaço externo.

Expande-se para baixo e cresce para cima, em constante movimento


“assim como está em cima, está embaixo”. Aparentemente, acreditamos que
está fixo em um lugar, porém busca e armazena água, produz frutos, gera
sementes que são levadas por pássaros e fertiliza diferentes lugares, indo
sempre em direção ao céu, buscando luz, fotossíntese e ar.

Na experiência de compartilhar “O Movimento dos Baobás” recebo


críticas, sugestões, elogios e depoimentos que me fazem estar em pé, como o
depoimento de Georgiana (Mestre em Dança pela Escola de Dança da UFBA):

Um grão de areia da África e a farinha do baobá na boca

Roberta, os fios são muitos e nosso fio também tem a sua


importância. Sinto que sua presença, assim como sua dança, já vinha
ecoando por entre meus caminhos e, depois do suor que se escorreu
no Teatro do Movimento, tudo ecoa no vai e vem das ondas. Antes da

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

sua aula, você me presenteou na defesa. E, naquele dia que fomos


ao mercado São Joaquim, após um almoço de conversa, me senti
próxima a você. Nós no ponto de ônibus e o macho que desrespeitou
a moça passante e nós duas revidamos, ele ficou inconformado e
revoltadíssimo, e nós mais ainda!
Meses depois da sua vivência, eu visitei seus sonhos e compreendi
que sua prática de dança foi energia vital para o corpo e equilíbrio do
campo áurico. Essa semana, Roberta, assisti a um vídeo da Ècole de
Sables e tudo se renovou novamente. Senti ainda um desejo de ir
para o Senegal e dançar na areia, um desejo inquietante que se
assemelhou a minha querência de estudar da Escola de Dança de
UFBA há alguns anos, e, querência quando vem assim, se
materializa.
Na sua vivência de dança, em conjunto com toda a programação da
III Jornada de Estudos do Grupo Umbigada, acessei um estado de
reconhecimento de mim mesma. Foi um mergulho Baobá de sábia
compreensão das potências em dançar em conjunto. A presença do
tambor com as fortes e rítmicas batidas, sinto que acolhem e elevam
nossa vontade de dança. Desbloqueio com ajuda e permissão do
tambor. A permissão pessoal para a dança. Eu permito a mim
mesma a permitir minha dança com o tambor. Ele abre meus
caminhos para o desconhecido. Ele abre um canal. Tarefa difícil ser
permissiva. Processo de desconstrução. Músculos duros. Cabeça
zonza. Trata-se também do amaciar do inconsciente euro-racional
com o pé no tambor, meu pé e minha pele branca na Bahia. Minha
tarefa mais difícil.
A história do Baobá, a onda sagrada que vem da batida; também me
reconheci como árvore e foi de um folhear que me ajudou no desfrute
da dança. O desfrute da própria dança é como saber cozinhar.
Dessa maneira, sinto que a materialização de tantos processos de
pesquisa na forma de conhecimento em movimento, é afetuoso.
Primeiro porque não tratamos nossas pesquisas como um
conhecimento chapado, restrito ao escrito chapado: nossa matéria-
conhecimento tem volume, tem velocidade e textura, assim como cor
e contexto. E nós, mulheres, que sabemos das terras em que
pisamos, dançamos, e pra mim, mais que tudo, isso é princípio
profundo de autoconhecimento.

O Corpo-Baobá me mostra como me adaptar às condições objetivas,


sem deixar de ser quem eu sou, a flor branca do Baobá, uma mulher branca,
que reconhece o lugar de privilégio e os feminismos plurais. Me relacionando
com o meio, permito minha transformação, ratifico, dialogo com a chuva, a
seca, a enchente, o fogo no mato, o sol, a neve, confirmando a identidade,
respeitando a existência de outras árvores, outras vidas, outros lugares.

O solo da Escola de Areia me fala de instabilidade, é adubado pela


história de Germaine Acogny, pelo cordão umbilical do filho que carreguei no
ventre, pelo conjunto de saberes acumulados pelos diversos pés que se
enraizaram na sala Aloopho, essa conivência que a dança permite de forma
generosa, nem sempre pacífica, mas grandiosa em articular heterogeneidades.

529
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O Baobá possui diversos ramos, representados pelos que vieram antes


de nós, como Mestre Didi, a avó de Germaine Acogny, a mãe de Lau e cada
pessoa que influenciou e sustentou os frutos e flores da árvore da vida.

Germaine por sua vez, integrou-se a cultura senegalesa e especifico


aqui que sua avó (IYA TUNDE) foi a sacerdotisa de um culto animista, onde
tudo que existe tem alma. O mesmo culto que na América, originou o
nascimento do Vodu. Germaine Acogny percorreu um caminho supostamente
inverso de muitos bailarinos, que primeiro mergulham nas tradições europeias.
Ela partiu da dança negro-africana, dos passos negro-africanos, para assim
integra-los ao movimento do balé europeu.

Em 2011, Germaine nos conduziu a uma imersão na floresta dos


Baobás. Acordamos pela madrugada, tomamos banho e ainda em jejum nos
reunimos na escultura que há no centro da escola de areia, representando a
primeira bailarina de dança africana da região. Com as coordenadas de que
era fundamental manter o silêncio e “ouvir os Baobás”, iniciamos a caminhada
pelo vilarejo até chegarmos ao bosque dos Baobás, cuja imagem ilustra este
artigo.

Ainda em silêncio, fomos estimulados a tocar, massagear, abraçar e


dançar o movimento dos Baobás. Neste dia eu pisei em um espinho que
atravessou meu pé, sangrando e sentindo dor, compreendi que estava
distraída e por isso me machuquei. Aprendi a força da atenção, da presença,
da vontade e a importância que a dor possui para aprendermos com nossos
próprios passos e erros.

DORORIDADE (PIEDADE, 2017) é uma expressão apresentada por


Vilma Piedade para falar da sororidade que existe entre as mulheres negras,
que na maioria das vezes não são contempladas pelo feminismo branco.
Munidas de uma ancestralidade que move o mundo, o feminismo negro possui
potencial agregador. Germaine Acogny moveu o meu mundo.

Em 2018, no meio da aula de Acogny, sentia-me exausta, prestes a


desistir, senti a sua presença ao meu lado. Ela sussurrou em meus ouvidos:
“Não desista nunca, você pode mais, muito mais!”. A voz de Germaine ainda

530
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

ecoa em meu corpo e sempre que sinto estar no limiar ativo esse lugar que ela
atribuiu a mim, lugar de resiliência e força, perante as dificuldades da vida e
memórias dos episódios de violência que vivi.

Observando os movimentos da Técnica de Germaine Acogny e


experimentando-os, como fiz nas duas imersões na École des Sables, é
contorcer, retorcer e espiralar as linhas e retilíneas dos padrões do balé
europeu é desengessar o torso e mover a coluna vertebral, ondulando-a em
forma ritmada, como uma serpente, sem perder a soltura do quadril e
enraizamento dos pés.

Mamah Germaine Acogny partiu de uma concepção negro-africana da


dança, e reitero que não foi excluída da África do Norte, sendo inclusive
referenciada pelos povos Berberes, sempre presentes, naquilo que veio a unir-
se, em simbiose, aos movimentos da cultura árabe.

Assim como as duas vivências na escola de areia me proporcionaram


experienciar epistemologias afrocentradas, o corpo do mato reposicionou tais
conhecimentos, mediando o caminhar das árvores, na experiência Ara Okô,
que possibilitou a relação com o ambiente externo, com a música orgânica e
com os diferentes membros que participam das aulas.

IMAGEM I: Ara Okô

Experiências com Ara Okô – corpo do mato, 2019


Fotos de : Guiovan Clementino de Oliveira

531
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Diálogos dinâmicos com as diferentes autobiografias gerou o registro


acima, demonstrando a beleza e potência de cada corpo como expressão
individual em um coletivo. Estar com pessoas diferentes permite o exercício da
alteridade, a prática do respeito e o exercício de escuta criativa, que se difere
de passividade e comodidade.

Eu observo o outro, percebo, sinto, porém não me anulo, não aniquilo a


potência que há em minha memória, nas “encruzilhadas epistêmicas”
(SANTOS, 2018) de encontros e desencontros transatlânticos. As experiências
corporais nos deslocam da ideia de monopólio do conhecimento, rompendo
com a ideia capitalista de propriedade, partindo para a partilha e oferenda do
que há de melhor em cada ser, gerando observações que vão além de
comparações e discursos de ódio inflamados pelo dualismo cartesiano.

Aquilombando o conhecimento, como fizeram os povos em diáspora em


parceria com os povos ameríndios que conheciam o território e as opressões
da colonização. Aprendizado que acessei sendo tutora no Edital
PROPCI/UFBA 01/2015-PIBIC e PIBIC/AF, que me propiciou a convivência
com a comunidade quilombola de Santiago do Iguape (Distrito de
Cachoeira/Recôncavo Baiano), onde residi por um ano. Entre rodas de samba
do miudinho e banhos de maré, compreendi que as danças populares
brasileiras e as danças de matrizes africanas resistem ao etnocídio, sem
perderem a beleza do encontro das águas.

Luana Lordelo e Thaise Reis (alunas contempladas pela bolsa do edital)


me ensinaram sobre processos criativos, mostrando a mim que é possível
pesquisar sem competir, andar de mãos dadas sem hierarquia imposta por
títulos acadêmicos, através da escolha de caminhos metodológicos do
aprender fazendo.

A importância desse trabalho de campo na Rota da Liberdade, a Rota


das fazedoras de dendê no pilão confirma a “trança de pessoas” (SANTOS,
2019) que compõem o Corpo-Baobá. Para estar em pé, como o “povo-em-pé”
(as árvores) eu busco a força da floresta, que simboliza o coletivo. Aprendi com

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

as graduandas, com o povo quilombola, com milhares de pessoas que nunca


frequentaram o meio universitário. Nunca aprendi nada sozinha.

A concepção de que o corpo negro e/ou indígena é um gerador de


conhecimentos ancestrais no ato da produção de presença deve ser
compreendida como uma ação afirmativa contra o colonialismo e
suas políticas epistemicidas, difundidas por uma hegemonia
pedagógica eurocentrada que durante séculos dita os paradigmas
para se pensar e produzir presença no campo das artes da cena na
América Latina (SANTOS, 2018).

Como mulher latino-americana, colonizada, também sangro as feridas


da colonização, também almejo a saúde física e mental para seguir adiante. Os
povos que foram colonizados já lutam há milhares de anos, muitos não
admitem o argumento da Europa de superioridade.

Os europeus mataram, saquearam, estupraram e se apropriaram com a


justificativa de uma missão de “civilização” de povos ditos primitivos. Como eles
conceberam essa missão? Como executaram? Eles segregaram, incentivaram
o ódio entre povos, separaram mães de filhos, objetificaram a mulher e se
autodefiniram detentores do conhecimento.

O apartheid e todos as questões que englobam também a África do Sul,


fez com que a mesma somente fosse admitida na Organização da Unidade
africana em 1994, depois de ter sido excluída por mais de 30 anos, exatamente
porque sua minoria europeia negava constitucionalmente os direitos a “plena
cidadania” dos povos negros, ou seja, a maioria dos povos ditos “primitivos”.

O grande erro é descrever a África, geograficamente, como um grande


planalto, ignorando seus relevos e oscilações. Reconhecer o chão “irregular”,
movediço, não estável e conhecer a Geografia do Continente africano
reverberou muito em minhas ideias e concepções de dança, as quais se
enraizam no “chão em que pisamos”, na areia, no solo onde cresce o Baobá.

Baobás também possuem incríveis benefícios para a saúde, fazendo


parte das árvores que curam, produzem frutos, chamados de Mukua,
que carregam sementes em seu interior. Da extração deles, é
possível adquirir componentes importantíssimos, tanto para a saúde
do organismo quanto para a pele. Das sementes vem um óleo rico
em vitamina A, F, ômega 3, 6 e 9. A polpa possui um leite tão
importante para os africanos que, diz a lenda, muitas mulheres
costumavam alimentar seus filhos com o leite extraído do fruto para
que eles crescessem fortes e se tornassem guerreiros. Isso por ser

533
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

um líquido rico em vitamina C, cálcio e com propriedades


antioxidantes (https://www.thebodyshop.com.br/beleza-do-
mundo/baoba-no-brasil-conheca-historia-da-arvore-inspiracao-para-o-
pequeno-principe/, 26/11/2019)
.
Um Baobá resiste, assim como Germaine Acogny nos fala de como
superou dificuldades com a dança. Através da minha vivência e experiência
criei uma sequência de movimentos chamada “O Movimento dos Baobás”, que
comecei a experienciar no grupo de pesquisa Umbigada, coordenado por
Daniela Maria Amoroso, sendo que tal prática foi realizada em diferentes
localidades e com diferentes indivíduos.

Tal prática foi fundamental para a composição do Corpo-Baobá e para a


compreensão da estrutura de minha tese de doutoramento em andamento. O
Grupo Umbigada é a base para meu enraizamento, assim como a disciplina de
“Dança e Africanidades” fundamentou a poética da areia e a poética do “estar-
juntos” para a composição coreográfica que está em andamento.

IMAGEM II: Baobá

Baobá, Toubab Dialaw, 2011


Foto: da autora.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Através das aulas práticas criei uma célula de movimentos (meus e dos
demais participantes), na disciplina “Dança e Africanidades: perspectivas
educacionais, poéticas e políticas”, que compõe o processo de criação em
dança “Oea: a flor branca do Baobá” que é a dança que é tecida e destecida
em meu corpo, concomitantemente com a tecedura da tese e da “oralitura”
(MARTINS, 1995) para a defesa após qualificação, buscando a poética do
Baobá, da Ancestralidade (Inaicyra) e da Caboclagem (Amélia Conrado), em
coletivo com os colegas (Beatriz Gonzalez, Carolina Luisa, Cleonildes Maria,
João Paulo, Renata Celina, Robson Correia, João Vitor, Francis, Zé, Soiane,
Luzia) que também dialogam, discordam e dão corda para a primeira disciplina
a tratar africanidades no espaço acadêmico da pós graduação em dança.

IMAGEM III: Corpo-Baobá

535
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Eu, persona do teatro, doutoranda em artes cênicas, sinto o quão


importante é a consolidação desta disciplina em pleno Golpe político, enquanto
um verdadeiro desmonte na educação força a Universidade a fechar as portas
por motivos de segurança. No meio ao sucateamento descobri a força
ancestral da resiliência coletiva.

Por que é tão importante uma disciplina específica sobre dança e


africanidades? Porque somos obrigados a fazer várias disciplinas que abordam
o modelo hegemônico de conhecimento europeu, o que acaba legitimando o
mesmo como modelo único de conhecimento, colaborando para a perpetuação
do racismo epistemológico.

É preciso que as disciplinas sobre africanidades também sejam


obrigatórias, como forma de reparação histórica e decolonização do
conhecimento (escolho o uso do termo decolonização e não descolonização,
pois acredito que o processo de colonização seja contínuo e operante e que
não é possível “voltar atrás”, mas é possível seguir adiante descobrindo formas
de fissurar as estruturas da colonização).

Inaugurar, mesmo que inicialmente como disciplina optativa, o


componente curricular “Dança e Africanidades: perspectivas educacionais,
poéticas e políticas”, na escola de Dança, que tem sua base de constituição
europeia, sem dúvidas é um ato de decolonização do conhecimento.

Ter a possibilidade de aprender com docentes qualificados (Inaicyra


Santos, Lau Santos e Amélia Conrado) e dispostos a mergulhar com os alunos
em busca de contribuições da diáspora negra no campo das artes e suas
mediações aos processos educacionais, estéticos, históricos e políticos é um
ato revolucionário. Concretiza-se o estudo de teorias críticas que reposicionam
os fazeres e saberes africanos na produção do conhecimento, contribuindo
para desfazer estereótipos sobre o continente africano, analisando
epistemologias que discutem processos criativos e artísticos com foco em
experiências africano-brasileiras.

536
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONRADO, Amélia. Artes Cênicas Negras no Brasil: das memórias aos


desafios na formação acadêmica. Revista repertório e Dança do PPGAC da
UFBA, numero 29, ano 2017.
MARTINS, Leda Maria. Afrografias da Memória. Editora Perspectiva, 1995.
Pesquisa participante / Carlos Rodrigues Brandão (org.). – São Paulo:
Brasiliense, 1999.
PIEDADE, Vilma. Dororidade. Editora: Nós, 2017.
SANTOS, Bárbara. Teatro do Oprimido: Raízes e asas – uma teoria da
práxis – 1 ed. – Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2016.
SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e Ancestralidade: uma proposta
pluricultural da dança-arte-educação./Inaicyra Falcão dos Santos. 4ª
Edição.-São Paulo: Terceira Margem, 2019.
SANTOS, Lau. Èmí, Ofò, Asé: A Presença Cênicas e a Sutileza
Performativa da Dança das Mulheres do Asé. Natal: In ABRACE, 2018.
SILVA, Luciane da. Corpo em Diáspora. Colonialidade, pedagogia da dança
e técnica Germaine Acogny. Campinas, 2018.
TOWA, Marcien. A ideia de uma Filosofia Negro-Africana. NEAB: UFPR,
2015.
SITES ACESSADOS:
https://www.thebodyshop.com.br/beleza-do-mundo/baoba-no-brasil-conheca-
historia-da-arvore-inspiracao-para-o-pequeno-principe/, 26/11/2019;
https://revistaphilos.com/2019/06/30/teatro-das-oprimidas-por-barbara-santos,
acessado em 25/11/2019;

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

DANÇAS NA AFRODIÁSPORA BRASIL E CUBA:


CORPOS EM CONFINAMENTO E (RE)VELAÇÕES DE REALIDADES EM
TEMPOS DE PANDEMIA MUNDIAL

Amélia Vitória de Souza Conrado (UFBA)


Raissa Conrado Biriba (UFBA)

Abordar as "Danças na afrodiáspora Brasil e Cuba", em uma atual


condição de confinamento ocasionada pela pandemia mundial da COVID-19236,
nos coloca em posição de refletir e relacionar o estado de isolamento social em
que se encontram cerca de 187 países do planeta com a proposta temática da
VI edição do Congresso Nacional de Pesquisadores em Dança (ANDA 2020):
“Que danças estão por-vir? trânsitos, poéticas e políticas do corpo”.

Essa condição inusitada que explode na segunda década do século XXI,


nos provoca questionamentos sobre a atual compreensão de corpo em
diáspora, em que o fechamento do comércio e das fronteiras entre diversos
países nos obrigam a pensar no porquê o estado de confinamento e como isso
interfere nas relações entre os corpos dançantes, moventes, espetaculares?
Com a suspensão das aulas em escolas, universidades, academias de dança,
se torna imprescindível registrar na história da dança local e mundial as
possíveis (re)invenções nos seus modos de fazer e existir, quando se trata de
corpos "aprisionados".

Tal realidade, pode ser relacionada aos processos de escravização de


corpos negros na história de dois países como Brasil e Cuba, o que nos
convida a refletir sobre os modos de reinvenção da população negra para a
manutenção de suas culturas identitárias, seja por meio dos quilombos, dos
sincretismos religiosos e outros movimentos socioculturais e políticos
remanescentes da diáspora africana, (re)velados nas violências e tensões
entre raça, racismo e questões identitárias que perseguem os tempos pós-
colonizatórios e contemporâneos.

236
Doença provocada pelo "coronavírus” (Sars-CoV-2), em que um quadro agravante de
infecções respiratórias pode levar os indivíduos que o contraem à morte.

538
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Além disso, falar em dança e diáspora africana é reconhecer também,


que existem outros entendimentos, outras epistemologias e outras concepções
sobre arte, cultura, corpo e pensamento latino-americano, as quais nos
permitem compreender e enxergar que essa expressão da arte está arraigada
aos fenômenos históricos, políticos, culturais e contemporâneos,
constantemente silenciados nos discursos, nas universidades, e nos espaços
de poder que compõem a estrutura das sociedades capitalistas mundiais.

Neste sentido, a perspectiva deste trabalho se volta para o contexto de


ambos territórios, e propõe dar conta de um olhar contemporâneo de dança e
corpo na afrodiáspora por meio de diálogos entrecruzados entre as formas de
pensar e fazer dança no Brasil e em Cuba. Nosso referencial teórico-
metodológico traz autores como Mbembe (2019), abordando diáspora e
reterritorialização cultural; Santos (2019), nas concepções sobre dança, corpo
e diáspora negra. Buscamos também, a perspectiva Díaz (2016), Montalvo
(2011); Ribeiro (2017), nas discussões sobre a colonização dos saberes em
contexto latino-americano. Esses e outros autores estão imbricados à nossa
experiência como docentes, pesquisadoras e artistas da dança, que dão base e
suporte às (re)velações que discutiremos aqui, em tempos de pandemia
mundial.

corpos "aprisionados" e (re)invenções nos seus modos de fazer e existir

Os dados alarmantes de 32.586.171 milhões de infectados e 989.380


mil mortes no mundo237, sendo 4.689.613 milhões de infectados e 140.570
mil mortes no Brasil238 pela COVID-19, compõe um cenário de catástrofes
vivenciadas nas primeiras décadas do século XXI. No caso do Brasil, é
importante ressaltar que estamos diante de um país que naturaliza essas
mortes e as tragédias ambientais, nas quais “ninguém foi responsabilizado

237
Dados oficiais da Organização Mundial da saúde – OMS (World Health Organization -
WHO), cujas informações se referem ao número de infecções e óbitos da COVID-19 em
26/09/2020. A atualização diária dessas informações está disponível no site oficial da OMS
(WHO): <https://www.who.int>.
238
Dados oficiais do Ministério da Saúde no Brasil, cujas informações se referem ao número de
infecções e óbitos da COVID-19 contabilizados até 24/09/2020. A atualização diária dessas
informações está disponível no site oficial do Ministério: <https://www.gov.br/saude/pt-br>.

539
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

criminalmente”239 - conforme aponta notícia no site da BBC News: “É o que


ocorre em casos como o rompimento da Barragem de Brumadinho, em janeiro,
e a tragédia em Mariana, em 2015; e nos incêndios do Centro de Treinamento
do Flamengo, em fevereiro, e o incêndio do Museu Nacional, em 2018” (MORI,
2019). Já em um artigo publicado na edição especial “Pandemia e Filosofia” da
Voluntas: Revista Internacional de Filosofia da UFSM, Maurício Pitta (2020,
p.2) afirma que: “Dentro e fora da filosofia, tem-se indagado quais
possibilidades temos para lidar com esta crise, no momento em que nem o
mercado, nem o Estado conseguem garantir as condições de sobrevivência de
seus povos”.

É por isso que nos perguntamos, o que significa esse “aprisionamento”,


quando se constata que a pandemia da COVID-19 nos (re)vela um primeiro
colapso do consumo e da produção capitalista? Para citar alguns exemplos, a
situação de desigualdade social no Brasil é alarmante nesse cenário de
crise sanitária “que promete ser causa da maior crise do capitalismo desde
1927” (PITTA, 2020, p.1), cuja maioria da população brasileira, impedida de
exercer suas atividades de ganho comercial, está à mercê da falência dos
sistemas de saúde, do descaso do atual governo aos desastres ecológicos,
do genocídio indígena, do feminicídio negro, das violências policiais contra a
população LGBTQIA+ e afrodescendentes, dentre tantos outros estados de
calamidade social vigentes no território brasileiro.

Mas o que isso tem a ver com a ideia de aprisionamento que tratamos
neste artigo? É importante fazermos referência à aula magna240 de abertura do
semestre suplementar da UFBA, em que Ailton Krenak e Lilia Schwarcz
afirmaram que com a pandemia, as desigualdades sociais e os ataques e
violências racistas e discriminatórias contra pessoas negras, crianças,
mulheres e comunidade LGBTQIA+241 aumentaram. Por um lado, tal realidade

239
Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47206026>.
240
Aula Magna de Abertura do Semestre Suplementar da UFBA 2020.1, realizada pelos
programas de pós-graduação da UFBA com Lilia Schwarz (Palestra: “Intolerância – a outra (e a
mesma) face da cordialidade”) e Ailton Krenak (Palestra: “De mal a pior”) no dia 15/09/2020.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=6S8vsE3_0xE>
241
Sigla referente à diversidade sexual e de gênero, constituída por: Lésbicas, gays,
bissexuais, transgêneros, transsexuais e travestis, Queer, intersexual, assexuais, e o +
simbolizando as outras possibilidades que venham a existir.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

representa um caminho que se vem traçando nas sociedades pós-modernas,


em que o desmatamento e esgotamento dos recursos naturais chega a atingir
proporções comparáveis a “oito vezes o município de São Paulo” 242 (CicloVivo,
2020), o que corresponde à perda de 1,2 milhão de hectares de vegetação
nativa, segundo o primeiro relatório Anual do Desmatamento no Brasil,
publicado de forma inédita em maio de 2019 através do MapBiomas Alerta243.

É certo que os avanços tecnológicos e inovadores possuem


instrumentos para traduzir tanto os dados da destruição, como as formas para
se equilibrar o planeta que está doente, poluído, intoxicado. Aproveitar esse
momento de "parada obrigatória" gerado pela COVID-19 enquanto uma
experiência única para se verificar de que forma cada país, cada sociedade
vem se comportando no mundo, nos dá a oportunidade de analisar as escutas,
os comportamentos e disciplinas quanto aos protocolos de proteção que a
situação sanitária exige, as negligências, as violências que a situação fez
acentuar, os gestos de solidariedade que se manifestam. E por outro lado,
como o conhecimento de dança está situado nesse caos, nos meios e nos
lugares em que se manifesta.

O que acontece quando não precisamos ser mais vistos socialmente?


Não precisamos nos preocupar em comprar roupas, sapatos, ir a shoppings
centers, ir à escola, deixar o carro em casa? Quando os ônibus e metrôs param
de circular? No mínimo, a poluição diminui. Em tempos de pandemia mundial,
os corpos passaram a se perceber isolados, solitários, dançando em lages, no
seu quarto, nos seus studios particulares, nos playgrounds dos apartamentos e
também no conflito das ideias e sentimentos. No nosso ponto de vista,
simbolicamente, a pandemia da COVID-19, dada a velocidade de seu
contágio, é o primeiro alerta em termos de um grito de socorro pelo meio
ambiente, biodiversidade e equilíbrio do planeta. Do nosso corponatureza.

A floresta está viva. Só vai morrer se os brancos insistirem em


destruí-la. Se conseguirem, os rios vão desaparecer debaixo da terra,
o chão vai se desfazer, as árvores vão murchar e as pedras vão

242
<https://ciclovivo.com.br/planeta/meio-ambiente/mapbiomas-desmatamento-brasil-2019/>
243
O MapBiomas é uma iniciativa do Observatório do Clima, por meio de uma rede de co-
criadores formada por ONGs, universidades e empresas de tecnologia. Site oficial:
<http://mapbiomas.org>

541
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

rachar no calor. A terra ressecada ficará vazia e silenciosa.


(KOPENAWA, Davi. Prefácio do livro “A queda do céu”, 2015)

um olhar contemporâneo de dança e corpo na afrodiáspora

A concepção de diáspora tratada por Achille Mbembe (2019) na obra


"Sair da grande noite" considera que o passado histórico do continente
africano não pode estar fora do nosso campo visual, pois o mesmo permanece
na forma de uma imagem mental. Essa imagem mental tratada por Mbembe
(Ibdem, p.229) nos dá suporte para compreender o que aqui tomamos como
corpo em diáspora, sobretudo porque nos (re)vela as realidades sociais e
ideologias racistas que permanecem sustentando as sociedades
contemporâneas e o campo da arte. Para o autor, a África não é mais um
centro em si mesma, mas proporciona a insurgência de polos de passagem e a
construção de novas formas do real.

Se relacionarmos tais reflexões com a concepção de Inaicyra Falcão dos


Santos (2019, p.106) sobre criação em dança, quando considera que corpo e
ancestralidade se conectam para “marcar espaços e a possibilidade de
construir outras configurações estéticas, implementadas a partir de
experiências e vivências que são importantes quando falamos de pluralidade
cultural na dança no Brasil”, estabelecemos um entrecruzamento com as
abordagens tratadas em cerca de 50 pesquisas que constituíram o recente
Comitê Temático da ANDA "Dança e Diáspora Negra: poéticas políticas, modos
de saber e epistemes outras”, neste ano de 2020.

As referidas pesquisas defendem enfoques epistemológicos das danças


negras na relação educacional, em que se avaliam criticamente os currículos
no ensino das artes nas escolas formais; a dimensão educativa dos coletivos e
das companhias de danças negras enquanto instituições não oficiais que
trazem como discussão as questões identitárias, políticas e criativas;
proposições de materiais didático-pedagógicos que ofereçam referências das
artes e cultura negra na educação das crianças em fase escolar; dentre outras
temáticas que, em outra dimensão, aprofundam o reconhecimento da
ancestralidade como fundamento de uma cosmovisão africana. Neste sentido,
a dança e sua diversidade de existências promovem o empoderamento do

542
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

corpo negro e suas interações com outros conhecimentos e segmentos da


sociedade.

Nessa gira de saberes – que aqui a compreendemos como espaço


ritualístico, onde o corpo dança, se manifesta e se comunica entre o aiyê e
orum244 no âmbito dessa cultura - observamos também, o protagonismo das
mulheres em sua diversidade existencial, bem como a sua importância na
construção dos conhecimentos de dança na atualidade. Uma dança insurgente
e em trânsito, que se posiciona de forma contra-colonial pois possui
capacidade de absorver o que lhe é imposto, transpor e se reinventar conforme
a base que sustenta seus conhecimentos ancestrais.

É por esse motivo que o aprofundamento nos princípios do orixá Exú


vem tomando lugar nas diversas pesquisas sobre a relação dança, corpo e
pensamento contemporâneo. Por ser um dos orixás fundamentais e de maior
complexidade, a sua função de mensageiro universal o faz indispensável a
cada passo, pois ele está no centro de tudo. Exú é o encarregado de distribuir
o axé aos demais e aos seres humanos. Sua concepção está em relação com
os conceitos de espaço, tempo e movimento. Exú é o fim e o início de todos os
caminhos:

Exú dormiu em casa,


mas a casa era muito pequena para ele.
Exú dormiu na galeria,
mas a galeria era muito pequena para ele.
Exú dormiu em uma noz.
Por fim, foi capaz de esticar-se!
(FURÉ, Rogério Martínez Apud Martínez & Potts, 2016,
245
p.89, tradução nossa)

Dentro dos mistérios do seu ambiente de trânsito está a encruzilhada,


que ao tempo em que abre o caminho das possibilidades, pode gerar
turbulências sobre qual direção tomar, qual destino escolher, e quais escolhas
se deve fazer para tomar ou retomar um caminho. É neste momento que a
casa se torna pequena para Exú. Porém, enquanto mensageiro universal e

244
Aiyê e Orun significa o mundo e o além. (SANTOS, 1998, p.42).
245
A citação acima é retirada da obra "El Ashé está en Cuba”, de Martínez & Potts (2016) e
está presente no capítulo “Eleguá da el ashé”, cuja tradução significa "Eleguá é quem dá o
axé”. Eleguá é chamado Exú na Nigéria, assim como o chamamos de Exú no Brasil.

543
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

símbolo da expansão dilatada do seu Bara246, suas buscas se resolvem no


conhecimento ancestral, cujo princípio da sua filosofia é representado pelas
suas origens.

Firmados nesse entendimento, os princípios de Exú e suas diversas


qualidades emergem nessa gira de saberes e inspirações que emanam dos
terreiros de candomblés, das umbandas, das encantarias. Estas, abrem
perspectivas ao campo artístico-científico-existencial-espiritual e oferecem
possíveis capacidades de enfrentamento que se contrapõem às estruturas
hegemônicas da dança e constroem novos rumos e oportunidades no presente
e futuro. Por isso, os espaços e os alicerces que inspiram os conhecimentos
afrodiaspóricos são construídos da experiência de seus artistas e
pesquisadores: nos lugares de convivência e consciência da diáspora africana.

afrodiáspora Brasil e Cuba: novas epistemes para se pensar a


Latinoamerica

A importância das culturas identitárias como forma de afirmação, de


empoderamento negro e das populações que foram subalternizadas, pode ser
percebida na história de países como Cuba e Brasil. Se nos atentarmos para
as perseguições às suas culturas ancestrais, ao seu patrimônio simbólico e
imaterial, é possível verificar as tentativas de apagamento e processos de
deculturação em ambos territórios, como instrumento de poder e de dominação
impostos a essas sociedades.

Tanto em Cuba como no Brasil, esse processo de deculturação - que


indica a desapropriação da cultura precedente de um povo - permaneceu como
um fator de enfrentamento e divisão social entre classes dominantes e
dominadas. A exemplo disso, a conservação e adoção de padrões e valores
eurocêntricos como universais nas suas constituições históricas são formas de
coesão do grupo dominante e mecanismo de poder. (FRAGINALS, 2017, p.46).

Essa discussão nos dá indícios para enxergar as ideologias racistas e


discriminatórias como estruturantes das sociedades capitalistas globais. De
246
Em sua etmologia, Bara é junção de Oba + ara, que significa “o rei do corpo” (SANTOS,
1998, p.181)

544
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

outro modo, quando se constata a (re)insurgência da cultura afrodiaspórica e


étnica nos variados discursos contemporâneos da arte no século XXI, seja por
meio de um resgate ou reinvenção de saberes oriundos de povos que foram
violentados, sequestrados, mortos, explorados, é importante considerar aquilo
que a filósofa Djamila Ribeiro (2017) retrata em sua atual obra “Lugar de fala”.

Segundo a autora, essa ideia tem causado incoerências quanto ao seu


entendimento e, por vezes um esvaziamento do seu sentido no senso comum,
no meio acadêmico e nas redes sociais. Isso porque, o lugar de fala do qual se
refere Ribeiro: “Não se trataria de afirmar as experiências individuais, mas de
entender como o lugar social que certos grupos ocupam restringem
oportunidades” (RIBEIRO, 2017, p.35). Ou seja, a demarcação de um lugar de
fala – que é coletivo, e entendido pela autora como lugar social que compartilha
das mesmas desigualdades – se torna importante para “entendermos
realidades que foram consideradas implícitas dentro da normatização
hegemônica.” (Ibidem, p.34)

É necessário perceber que, quando os grupos que sempre ocuparam o


poder passam a se incomodar com o empoderamento dos discursos que
emergem das chamadas “minorias”, é sinal de que os valores que suportam
essa pirâmide da desigualdade já não correspondem ao imaginário
democrático que permeia na esfera civil. E como não falar no mito da
democracia racial?

Na perspectiva de Marco Aurélio Luz (2017, p.454), a chamada


"democracia racial” revela uma complexa estratégia de exclusão em ordem
socioideológica que se utiliza do sistema de ensino e outros aparelhos para
selecionar aqueles que ocuparão lugares na estrutura de poder. Além disso, na
obra “Cultura Negra e Ideologia do Recalque”, o autor ressalta que a
concepção desses discursos dominatórios se pautam no entendimento da
diferença ancorada à “necessidade de uma medida de absoluta desvalorização
do outro” (LUZ, 1994, p.20). Por meio de classificações impostas socialmente,
a ideia da diferença passa a caracterizar o “outro” como inferior, e a demarcar
lugares aprisionados a uma falsa ideologia de valorização da diversidade.

545
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Paralelamente, essa mesma discussão é tratada por Djamila Ribeiro


(2017), quando explica que é necessário entender “as categorias de raça,
gênero, classe e sexualidade como elementos da estrutura social que
emergem como dispositivos fundamentais que favorecem as desigualdades e
criam grupos em vez de pensar essas categorias como descritivas da
identidade aplicada ao indivíduo” (RIBEIRO, 2017, p.35).

Diante disso, pensar a Latinoamerica em entrecruzo com a diáspora


africana significa recuperar a sua história crítica, implicada em refletir sobre os
processos de dominação colonial, imperialista, capitalista que impuseram e
impõem condições de precariedade aos expropriados. É reconhecer que
nossas mentalidades são governadas por posturas de dominação, opressão,
discriminação, individualismos e patriarcalismos e suas mazelas. Estas, não
sobreviverão, pois há sempre ações de movimento contrário, que eclodem e
constroem uma nova mentalidade, um novo posicionamento, um outro projeto
de sociedade.

Tais reflexões nos levam a questionar, o que a trajetória histórica de


Cuba pode oferecer ao pensamento latinoamericano? E o que o Brasil tem a
colocar diante dessa convocatória?
Ressaltamos a importância desses países na história da América Latina,
tanto no âmbito das lutas políticas e perspectivas na área da educação e
cultura, como nos enfrentamentos aos processos de colonização, que possuem
reflexos na atualidade. Guanche (1883) afirma que os pesquisadores precisam
ter consciência da importância dos bens etnológicos das sociedades, posto que
permitem a transmutação das ideologias predominantes, dos apagamentos e
exclusões – fato que contribuiu, por exemplo, para a consolidação das ideias
socialistas em Cuba.

Cuba é o maior exemplo de resistência do socialismo no mundo. Os


boicotes econômicos diante da sua potência educacional, cultural, esportiva, na
área da saúde (re)velam o “perigo” de uma revolução nos saberes e nas
estruturas vigentes de exploração, de consumo desenfreado, da vida urbana
artificial, das mentalidades manipuladas pela ditadura de um corpo ideal. Ao
abordar sobre a constituição do Ethos em sociedades capitalistas e socialistas,
Guanche (1883, p.28, tradução nossa) nos ajuda a perceber que:
546
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Se no socialismo a consciência internacionalista une em ordem


política e ideológica as diferentes nações do sistema, no capitalismo,
as nações burguesas (divididas em desenvolvidas e
subdesenvolvidas) fazem que convivam diversas nacionalidades e
tribos cada vez mais oprimidas e atrasadas, com o objetivo de
neutralizar a luta de classes para conservar o domínio da minoria
247
sobre as grandes maiorias.

Nessa direção, Díaz (2016, p.20-28) se refere à importância de uma


institucionalização da cultura nacional nos países, sobretudo no âmbito da
educação, por meio do ensino da história cultural atrelado à constituição do
território. No caso de Cuba, um exemplo disso foi a criação da Direção de
Cultura dentro da Secretaria de Educação em 1930, o que contribuiu para a
superação da ideia de cultura atrelada ao âmbito das belas artes e
consequentemente, para a ampliação de outras esferas – tão ou mais
importantes – para o seu desenvolvimento social.

Um aspecto interessante tratado por Acosta (2016, p.161, tradução


nossa) pode ser observado na seguinte afirmação: “dizia-se que os cubanos
podiam conduzir essa República porque possuíam uma tradição cultural” 248. Tal
posicionamento é ainda explicado por Fornet (2011, p.21), quando considera a
importância que os bens culturais possuem em proporcionar um sentido de
pertencimento à uma nação ou uma cultura, na medida em que vivemos em um
mundo cada vez mais uniformizado pelos processos da globalização.

Mas “Como impulsionar uma educação desalienante e crítica que


consiga se liberar do saber alienante que instrumenta o poder burguês, através
da escola e universidades burguesas?” (MONTALVO, 2011, p.117). A
abordagem de Montalvo (2011), em sua obra “Identidade versus
Globalização: dois paradigmas encontrados”, aponta os nossos olhares
para o momento atual, o qual exige se pensar em uma nova ordem de
sociedade a partir da sociedade civil. Por conseguinte, o autor acredita na
necessidade de reconstrução do tecido social e dos vínculos de sociabilidade.
Talvez isso fosse possível com a união da América Latina em um esforço

247
Do original: Si en el socialismo la conciencia internacionalista une en el orden político e
ideológico a las diferentes naciones del sistema, en el capitalismo, las naciones burguesas
(divididas en desarrolladas y subdesarrolladas) hacen que convivan diversas nacionalidades y
tribos cada vez más oprimidas y atrasadas, con el objetivo de neutralizar la lucha de clases
para conservar el domínio de la minoria sobre las grandes mayorías.
248
Do original: se decía que los cubanos podían conducir esa República porque poseían uma
tradición cultural.

547
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

conjunto de transformação política, pautado em uma educação


transdisciplinária - como pode ser vista em Cuba, através das Escolas de Arte
e do incentivo à valorização da cultura como principal aliada da educação e dos
elos comunitários. Este modo de pensar Latinoamerica justifica os bloqueios à
nação cubana, que oferece novas alternativas para se pensar as sociedades
contemporâneas:

Os intelectuais do imperialismo são os principais desenhadores deste


bloqueio, porque sabem que a força humana e cultural que
representa Cuba, se expandiria para o espaço planetário da
sociedade mundial para debulhar a ditadura mundial que mantém o
capitalismo sobre a humanidade. Em essência, é esse o pavor que
tem o império, medo que a Revolução Cubana o rebaixe, não pelo
poder das armas, mas pelo poder da cultura. (MONTALVO, 2011,
p.24)

Alguns exemplos em que o corpo é arma de revolução, podem ser vistos


em saberes culturais afrodiaspóricos. Trazemos a Capoeira como manifestação
dessa complexidade e também capacidade de transformação de pensamentos
e ações, na medida em que nasce do interior do próprio fazer: concepções,
relações e maneiras de ensinar. O que é o princípio da mandinga na
capoeiragem, se não uma sábia maneira de desestabilizar a regra? Ou as
batalhas do hip hop, funk, suingueira, quebradeira que se (re)inventam neste
trânsito de inúmeras expressões, afirmando o seu poder de adentrar espaços
negados?

E como não falar da importância do balé cubano como contra-dispositivo


à um modelo de Instituição de tradição europeia, em que por muitos séculos os
corpos negros foram impedidos de integrar o espaço internacional ocupado por
esta técnica de dança?

Considerações finais

Finalmente, nossa abordagem valoriza uma educação transdisciplinária,


intercultural, crítica e comprometida com uma epistemologia decolonial por
meio do fomento às artes, especificamente a Dança, e suas formas de re-
existência nas sociedades. Sobretudo porque, os eventos contemporâneos
remanescentes da afrodiáspora apresentam a necessidade e a urgência de

548
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

novas formas de (re)invenção, (re)existência da dança e sua produção


material, espiritual, simbólica em distintas localidades do planeta.

O debate sobre corpos em confinamento tratado neste trabalho é


inspirado no momento de crise vivido, em que o apelo ao respeito e à
humanização se dá na busca de uma política pública que salvaguarde o direito
à cidadania, sobretudo daqueles que sofrem violências, opressões,
discriminações. A nossa voz constitui esse protesto, que historicamente vem
sendo pautado e exigido pelas organizações do Movimento Indígena,
Movimento Negro, do Movimento de Mulheres, Movimento LGBTQIA+,
Movimento das pessoas com deficiência, e outros que se interseccionam à vida
dos sujeitos e se expressam em corpos revolucionários. Estes são os que
trazem uma nova perspectiva epistemológica, em busca de uma ética
planetária.

É nesse trânsito fronteiriço que compartilhamos de forma poética, o


resultado de um exercício249 que surge das autoras que vos falam, em que uma
se encontrava em Cuba no processo de formação da técnica do balé cubano e
a outra no Brasil, experimentando a capoeira na ambiência do mar. Confinadas
pela Pandemia, compartilhamos as inspirações que a dimensão artística nos
convoca.

Rindo pra não chorar e chorando para morrer de rir,


nasci por um canto de quarto, Chorrindo
Um choro alegre que mergulhei-me a brincar
Em duras sapatilhas de ponta, um balé a gingar
Equilíbrios, desequilíbrios, improvisos
e uma dificuldade a me libertar desse confinamento interior
Agonia que me faz lembrar
a imensidão de meu país
Cordão que chora numa mãe, numa filha
em um atlântico de tantas marés
vidas, mortes, travessia
quem é que vai voltar?
nuvens carregadas de entardecer
me transportam em coloridas embarcações
Corpos negros que vão e voltam,
cheios de beleza do meu corponatureza
horizonte azul é manto de sereia
chorrindo, chorando,

249
CONRADO, Amélia. Capoeira Angola: Ginga, Corpo e Musicalidade. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=31u4g2phVi4>
BIRIBA, Raissa. "Chorrindo" - uma proposta de música e movimento para Lucinda Childs.
Disponível em: <https://youtu.be/A5Yh398g2MM>

549
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

cantando Capoeira
Aiyê,
me chamo tempestade
na ginga da minha pele preta
O leque do meu protesto
resolveu navegar na correnteza
um balanço salgado me espera
Ao som do silêncio
quebramar
Pedras em nossos caminhos, ah!
o mar há de levar...
(“um mar de Raissa para Amélia, De Amélia para Raissa”, 2020)

Referências

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(Coord). Cuba: iniciativas, proyectos y políticas de cultura (1899-1958) - La
Habana: Editorial Caminos, 2016.
CICLOVIVO. Área desmatada no Brasil em 2019 equivale a 8 cidades de São
Paulo. São Paulo, 27/05/2020. Disponível em:
<https://ciclovivo.com.br/planeta/meio-ambiente/mapbiomas-desmatamento-
brasil-2019/> Acessado em 26/09/20.
DÍAZ, Ana Suárez. Itinerario de la cultura republicana: sujetos, acciones,
processos y contextos em la primera mitad del siglo XX. In: DÍAZ, Ana Suárez
(Coord). Cuba: iniciativas, proyectos y políticas de cultura (1899-1958) - La
Habana: Editorial Caminos, 2016.
FORNET, Ambrosio. Narrar la Nación – La Habana: Editorial Letras Cubanas,
2011.
FRAGINALS, Manuel Moreno. "Aportes culturales e deculturación" in PÉREZ,
Esther; LUEIRO, Marce (org). Raza y Racismo: antología de caminos - La
Habana: Editorial Caminos, 2017, p.22-47.
GUANCHE, Jesús. Procesos etnoculturales de Cuba. - La Habana: Editorial
Letras Cubanas, 1983.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã
Yanomami. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015.
LUZ, Marco Aurélio de Oliveira. Cultura Negra e Ideologia do Recalque.
2ªed. Salvador: Edições SECNEB, 1994.
LUZ, Marco Aurélio de Oliveira. Agadá: dinâmica da civilização africano-
brasileira. 4 ed. Salvador: EDUFBA, 2017

550
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

MARTÍNEZ, Mirta Fernández; POTTS, Valentina Porras. El Ashé está em


Cuba – La Habana: Aurelia Internacional S.A; Ediciones Cubanas, ARTEX,
2016.
MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África
descolonizada. Tradução de Fábio Ribeiro - Petrópolis, RJ: Editora Vozes,
2019.
MONTALVO, Romero Salvador. Identidad vs Globalización: Dos
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MORI, Letícia. Impunidade: 5 grandes tragédias brasileiras em que ninguém foi
responsabilizado criminalmente. BBC News Brasil, São Paulo, 18/02/2019.
Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47206026. Acessado
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PITTA, M. Corona e communis: imunidade, comunidade e o COVID-
19. Voluntas: Revista Internacional de Filosofia, Santa Maria: UFSM, v.11,
e32, 2020, p. 1-13. Disponível em:
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RIBEIRO, Djamila. O que é: lugar de fala? - Belo Horizonte (MG): Letramento:
Justificando, 2017.
SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e Ancestralidade: uma proposta
pluricultural de dança-arte-educação. 4ª ed – São Paulo: Terceira Margem,
2019.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nagô e a morte: Pàde, Àsèsè e o Culto
Égun na Bahia; traduzido pela Universidade Federal da Bahia. 9ª ed.
Petrópolis: Editora Vozes, 1998.

551
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

6ª PARTE

POÉTICAS E
PROCESSOS ARTÍSTICOS

552
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

PERSPECTIVAS DO SAMBA DE CABOCLO POR UMA


COSMOVISÃO AFRICANA

Inah Irenam Oliveira da Silva (UFBA)

Introdução
Ao leitor, peço agô para uma correção conceitual antes do
desaguar sambático. No redemoinho das águas doces que acalmam e
orientam orí, lavo o abebé e miro sobre a manutenção do privilégio do sentido
da visão ocular ocidentalizada, ao trazer a cosmovisão africana para uma
discussão em que a cosmopercepção é a rede que lança e pesca outros
sentidos de mundo neste trabalho. Com a impossibilidade de alteração titular
pelas regras da publicação, jorro água para reconduzir o fluxo da sabedoria.
Considerações refrescadas, nadaremos para uma proposta caboclada de
contribuição para a experiência em processos artísticos e educacionais em
dança.

O extermínio físico e simbólico de corpos africanos sequestrados e


torturados, atravessados forçosamente pelo atlântico por mais de três séculos,
de forma dolorosa e sangrenta, construiu diversos arranjos, reconstruções e
resistência sociocultural dos quais sobreviveram e se mantiveram vivas e vivos,
crianças, mulheres e homens na passagem pela grande kalunga 250. Do projeto
colonial de captura, separações e misturas étnicas na tentativa de evitar
insurgências, aconteceram as interações de sobrevivência das práticas e
crenças entre os ancestrais. Uma das heranças construídas como legado
diaspórico brasileiro dessas trocas no aspecto espiritual e religioso são os
candomblés, uma reconfiguração dos sistemas religiosos de matrizes africanas
dos povos bantus, jeje, fon, ketu, ijexá, nagô, entre outros, transformado em um
complexo espaço social, cultural e espiritual de origem africana no Brasil. As
características pluriétnicas se desenharam em tradições nas mais conhecidas
nações Congo, Angola, Jejê, Nago, Ketu, Ijexá. A estética dos candomblés é

250
Local sagrado para os povos bantus. Um rio que os homens poderiam passar para entrar
em contato com os seus ancestrais e suas forças. Pelas palavras do Tata Anselmo Gomes
refere-se também a tudo que é imenso, a exemplo do mar, do cemitério.

553
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

composta de elementos que envolvem danças, cantos, rezas, vestuários,


alimentos, filosofias, saberes e aprendizados, que são vivenciados
cotidianamente em diversos ritos e preceitos dentro dos terreiros de candomblé
e fora dos terreiros de candomblé.

Embora haja locais dedicados a esses cultos, as vivências das


relações com essas divindades é experienciada no cotidiano dos/as
praticantes, que incluem preceitos e modos de se alimentar, de se
vestir, de se portar, de falar, valores etc., que acompanham toda a
sucessão de seus dias (NASCIMENTO, 2016, p.158 apud AMARAL,
2002)

Neste artigo viro olhos e mergulho no Samba de Caboclo, um dos


formatos festivos de celebração pública dos candomblés, navegando pelas
corporeidades, gestualidades e filosofias desse mar de vida ancestral para
propor epistemes para as experiências artísticas e educacionais em danças
negras, afro-brasileiras, contemporâneas, pagode baiano, funk carioca, entre
outras corporaturas afro-brasileiras. A presente água tem se renovado no
Programa de Mestrado Profissional em Dança - PRODAN/UFBA com uma mar-
ressaca de romper as barragens das escritas e ensinamentos que asfixiaram
os saberes e conhecimentos plurirraciais e pluriétnicos africanos,
transbordando a falácia e o perigo de uma história única (ADICHIE, 2019)
eurobrancoetnocêntrica. Para refrescar os processos de difusão das práticas
dos corpos oríentados pela estética e vigorosidade das manifestações
gestadas em terreiros de candomblés, aqui focalizando os sambas de caboclo
através das coreografias, indumentárias e funções sociais (LODY, 1977)
realizadas nos corpos dos filhos de santo das divindades. Em estado de maré
poetizo os caboclos, os donos da terra (SANTOS, 1995), inspirada na poética
dos orixás (OLIVEIRA, 2016) para pororocar as questões culturais que
encruzilham as entidades no processo de ideologia do branqueamento tendo
como resultante o processo de mestiçagem brasileira (MUNANGA, 2019) o
qual os caboclos tornaram-se símbolo ideário. Ao processo de imersão em
águas profundas para consciência das aprendizagens e trazer uma das
inúmeras possibilidades de organização das gestualidades corporais, a

554
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

cosmopercepção (OYĚWÙMÍ, 2002) é uma das bases para prezar o


protagonismo de outros sentidos, além da visão ocular, dentro de uma cultura
que tem a oralidade (e em consequência a audição) como fundamento na
produção e transmissão de conhecimentos. Ou seja, não puramente um ato de
apenas enxergar, e sim, sentir, ouvir, paladar, tatear, e essas experiências aos
cultos e sambas de caboclo ressignificada fora dos terreiros de candomblés
denomino de sambografias cabocla pela corporificação dos pilares da
cosmologia africana e filosofia banto: integração, diversidade e ancestralidade.
Maré cheia a refletir a relação dos ancestrais da nação Angola, chamados de
nkices com os indígenas e o culto as divindades caboclos. A maré vazante da
inferiorização, discriminação e poucos estudos sobre os povos bantus que
contribuíram de forma sistemática para a formação de identidades afro-
brasileira (NUNES, 2017). A matripotência (OYĚWÙMÍ, 2016), para refrigerar
os caminhos e posições brancoeurocêntricas estratificadas socialmente para a
negra mulher revertendo a lógica colonial de subalternidade. Os sambas de
caboclo ressignificado pela estética do: Marujo e a relação com as águas, a
topada, o bêbado; Caboclo de Pena e a relação com o ar e as matas, a caça;
Caboclo de Couro, o fogo, a terra, o sertão, o vaqueiro. Essas águas enchem
as quartinhas da Lei 10.639/2003251 e Lei 11.645/08252, para nutrirem a
obrigatoriedade do Ensino da História e cultura Afro-Brasileira e Indígena nos
currículos oficiais da rede de ensino, bem como para lavar a memória das
culturas africanas, sobretudo a cultura e filosofia banto, na reconstrução das
identidades e pluriversos.

A Pirâmide Vital dos povos bantos privilegia os antepassados. O culto


aos ancestrais, como estamos insistindo, é a base da cosmovisão de
mundo africana. Os bantos encontram em sua estrutura social, tanto
produtiva quanto cultural, a presença marcante dos antepassados e
do culto aos ancestrais. (OLIVEIRA, 2003, p.73)

251
Lei que torna obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira em
componentes curriculares de ensino no Brasil e a data de 20 de novembro no calendário
escolar como Dia da Consciência Negra.
252
Alteração da Lei anterior, com a inclusão do estudo da história e cultura indígena nos
currículos escolares.

555
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Foi nesse passo que eu sai de minha aldeia

A família linguística banto que é composta por populações da África


subsaariana, que está localizada abaixo da linha do Equador, que compreende
atualmente as regiões dos países Congo, Angola, Benguela, Cabinda,
Moçambique, entre outros territórios africanos são descritos como as primeiras
etnias desembarcadas em cárcere escravocrata do Brasil, sendo mais de dois
milhões de pessoas nesse translado atlântico, que foram dispersos por todo o
território da diáspora brasileira. É imaginável os possíveis compartilhamentos,
conflitos, negociações e cisões feitos como estratégia de sobrevivência na
estrangeira terra. Entre a complexa rede de relações, as práticas e saberes
foram repensados, reorganizados para uma construção de espaços.

Nesse cenário, o que chamamos de culto seria uma rotina de


manutenção das múltiplas interações com a natureza, com a
comunidade e com as diversas relações com a ancestralidade. Os
orixás, voduns e inquices são membros da comunidade e não
divindades separadas. Por isso, dependem da comunidade como
todas as outras componentes e, como todos/as, têm funções a
desempenhar. Os mortos também são parte da comunidade e assim
como os orixás, voduns e inquices, têm funções na mesma, comem e
festejam com ela. Este aspecto está ligado com a cosmologia que
não pensa a pluralidade de mundos. Há um mundo só e todos estão
presentes, de modos diferentes, nesse mesmo mundo. E o mundo é
repleto de comunidades familiares distintas, mas relacionadas
(NASCIMENTO, 2016, p.158)

Dançar para gerar vidas. Sambar para gestar insurgências. O samba


como o útero mítico da nossa providência ancestral. O samba é tecnologia
ancestral. Momento/Estado sambático. Sambar para mover a robótica colonial.
Caboclar pensamentos. Encruzilhar desejos. Encantar pisadas. Sambar rotas
de fugas para sambografar futuros ancestrais. Sambologias de vida.
Samboclotec. As tecnologias do samba de caboclo como dispositivo contra
colonial de ideário de branquitude. Daqui pra frente, só pra trás. Dança é reza.
Samba é reza. Danço-Sambo-Rezo. Dança é passado, presente e futuro.
Samba é passado, presente e futuro. A dança reescreve futuros. Evoco água,
fogo, terra e ar. Samba é pé no chão caboclando corpo inteiro. Sambocaboclo

556
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

no corpo da sociedade. No corpo do racismo. No corpo do sexismo. Eu, negra


mulher. Matripotencializo meu lugar no mundo. Samba de Caboclo e a
Matripotência da negra mulher, artista, educadora. Samba é energia. Caboclo,
Chão, Terreiro. Samba é força vital. Samba é N’guzo, é Axé. Samba é terreiro,
partido alto, enredo. Samba é gira, xiré, roda. O samba é a experiência da
criação única. O samba é ato. É aqui e agora. Samba é vibração. Síncope.
Meneios múltiplos. Agilidade. Ritmo. Equilíbrio. Mistério. Giro em torno de si e
do outro. Requebro. Gramática ancestral desenhada com o corpo.
Espontaneidade. Narrativa. Coreografia. Sambologias como modos de estar e
ser no mundo. Sambografias. Emanação de energia. Vibração energética. O
samba é matriarcal. Samba é ancestralidade. Samba é sabedoria. Experiência.
Samba é pai e filha. Morte, memória, corpo. O equilíbrio é desafiado nos
contratempos, a elegância é confirmada nos breques, a malemolência é solta
na síncope (IPHAN, 2014, p.82). Composto por características específicas nas
suas apresentações, o samba em suas pluriversas coreografias corporais,
como o de roda, de umbigada, pagode, batucada, de terreiro, de quadra, duro,
junino, enredo, de caboclo, entre outras, se singularizam através das músicas,
instrumentos percutidos, como faca e prato, latinhas, tambores, violas,
indumentárias e formas, reunindo um inúmero sem fim de variações que
definem e marcam suas estéticas.

O Dossiê de Matrizes do Samba no Rio de Janeiro, elaborado pelo


Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2014 lança
algumas pistas sobre a origem do samba, gestados na matriz banto dos
terreiros de candomblé, suas cadências, características e estéticas e a
contribuição direta e sem dúvidas que, a meu ver, tornam as danças de rodas
oriundas do complexo banto o útero mítico das danças e manifestações
culturais do Brasil, como os sambas, gestados nos terreiros de candomblé:

Muito antes de o gênero ganhar o alto estatuto de música popular


brasileira por excelência e componente fundamental da identidade
nacional, o termo ‘samba’, na acepção de música e dança praticada
em roda e ao ritmo de tambores, palmas, etc., já circulava em várias
regiões do país. [...]. No Brasil, a tradição de danças em roda e
caracterizadas pela umbigada provém certamente do extrato banto
formador de boa parte da cultura afro-brasileira, sendo observada por

557
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

viajantes no interior de Angola no século XIX. [...] na língua tchokwe,


de Angola, segundo Adriano Barbosa, o vocábulo ‘sámba’ (grafado
com acento agudo) é também, entre outros usos e significados, verbo
usado na acepção de ‘cabriolar, brincar, divertir-se (como cabrito)’. E
o quimbundo registra o verbo ‘semba’, agradar, encantar. Na Angola
contemporânea, ‘semba’ ou ‘varina’, em todas as suas infinitas
variações, é a dança mais popular da capital, Luanda, notadamente
na faixa marítima (Ilha de Luanda, Samba Grande e Pequena, Ilha do
Musulu, Barra do Cuanza, Cacuaco, etc.). A dança se executa por um
sapateado de cadência rítmica ligeiramente acentuada, ao som de
tambores (bumbos) e caixas de madeira ou latinhas metálicas. A
coreografia fundamental caracteriza-se por uma roda no centro da
qual os dançarinos gravitam, remexendo o corpo e balançando as
ancas e, ocasionalmente, movimentando-se para frente, dobrando o
corpo e executando o sapateado. A tradição dos povos bantos deu,
no Brasil, origem a toda uma família de danças aparentadas, que vai
do carimbó paraense e do tambor-de-crioula do Maranhão - passando
pelo coco do litoral nordestino e pelos sambas do Recôncavo e do
médio São Francisco, na Bahia - até o jongo ou caxambu no Sudeste
brasileiro, notadamente no Vale do Paraíba. Onde houve negro
banto, lá estão as danças de roda, com ou sem umbigada. [...]. O
samba é, pois, fruto de ricas tradições africanas e afro-brasileiras. E
sua proteção, como bem imaterial do patrimônio cultural nacional,
além de ser um imperativo constitucional, é um dever de consciência.
(IPHAN, 2014, p. 21-23)

O caboclo é. Assertivo e por tanto ser, complexa seja sua definição.


Talvez não se tenha. Se é. Energia. Espírito. Encantado. Deuses brasileiros.
Vento. Vivos. Entidade. Divindade. Ação. Firmeza. Movimento. Caminho.
Cuidado. Força. Pesado. Bravo. Guerreiro. Impetuoso. Enfrenta qualquer
parada. Levanta raiz. De demanda. Folhas. Altivez. Liberdade. Orgulho. O que
se é. Linhagem. Família. Tribos. Personificado a valia da mestiçagem do
branco e indígena, tornou-se o símbolo da ideologia do branqueamento social e
o herói mítico, mas, arromba o chão e se firma como ancestre dono da terra
(SANTOS, 1995, p. 56). A inferiorização. Índio mestiço, homem do sertão,
caipira, roceiro, pele queimada do sol. Bode expiatório do projeto colonial de
aniquilação dos índios e negros do Brasil. Aniquilação das matrizes ameríndias
e africanas. A mestiçagem como ideologia. Xetruá! Xêtu na Vizala! Xêtu
Marromba Xêtu!

O samba de caboclo está diretamente ligado ao culto e preceitos dos


candomblés brasileiros de origem Congo e Angola. É de muita e difícil
complexidade a separação entre samba, culto, festa, ritual dos caboclos. Nessa
pesquisa abordaremos uma dimensão de corporeidades apresentadas na ação

558
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do sambar dos caboclos e seus atravessamentos e composições com os


elementos musicais e gestuais para uma abordagem coreográfica, denominada
sambografias cabocla. Sendo assim, compreendemos que é no e pelo samba,
em maior profundidade, que os Caboclos imortalizam seus feitos, valores éticos
e morais, suas cantigas, seus vocabulários, suas danças, seus modos de
participação no complexo ancestral, sua força vital de existência, suas práticas,
ensinamentos e saberes. O samba é sempre único. Experiência singular e
momentual. Existência alterada. Um samba em diáspora. Não se repete o
estado sambático, emoção, energia vibrante. É uma dança ágil, pulsante, com
giros, pulos, contratempos e forte.

Os sambas de caboclo se configuram como uma das organizações


festivo-religiosas da complexa estrutura dos terreiros de candomblés, onde as
entidades ou encantados indígenas, vaqueiros, capangueiros, pescadores,
marinheiros, entre outros antepassados são cultuados e celebrados e que tem
os sambas como o elemento principal da festa, ou seja, é através das
corporeidades dos sambas dançado por essas entidades autonominada como
caboclos, que temos acesso e nomeamos aquele contexto de samba de
caboclo. Os sambas de caboclo são tocados em tambores, tradicionalmente
utilizando-se as mãos, nos ritmos ou toques denominados de Cabula ou Cabila,
que são de origem do grupo étnico banto, que aqui no Brasil é a base do
candomblé de nação Angola, o ventre de todas as outras variantes do samba
brasileiro:

o ritmo cabula [...] se apresenta em cantigas que produzem um


sentido mais festivo, alegre e [...] apresenta uma proximidade estética
ao samba, em termos rítmicos e também quanto ao sentido festivo,
de alegria, festa, vadiação que ele carrega (NIGRI, 2014 p.103)

A partir de algumas gestualidades e movimentações dançadas nos


sambas de caboclo, como o miudinho253 barravento254, cabriola, volteios,

253
“Feito, sobretudo, da cintura para baixo, consiste num quase imperceptível sapatear para
frente e para trás dos pés quase colados ao chão, com a movimentação correspondente dos
quadris” (IPHAN, 2005, p.23).

559
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

variantes de planos, transito energético, tônus musculares, respiração a


pesquisa propõe práticas para experiências corporais e processos artísticos e
educacionais em dança ajuntadas a cosmopercepção da água, ar, fogo e terra,
construtivos dos corpos e personalidades, a transitoriedade, complexidades
artísticas, memória imagética, de cada corpo memória sendo acionada para
sambografias caboclas.

Quem quiser sabê meu nome

Pelas características de origens e os elementos da natureza que estão


ligados, os caboclos são agrupados ao que conhecemos como linhagens,
divididos entre Marujos, Caboclos de Pena e Caboclos de Couro, ancestrais
ligados ao mar, as matas e sertão, respectivamente. No conjunto de Marujos
temos as figuras sociais dos pescadores, marinheiros; o conjunto dos Caboclos
de Pena compreende os indígenas e os Caboclos de Couro são os vaqueiros,
boiadeiros, sertanejos, Capangueiros. Assim como suas funções sociais, as
indumentárias (chapéus de couro, capangas, cocares, penas) e
ferramentas/insígnias (arcos, flechas, lanças, chicotes, selas, fivelas)
diferenciam e compõem as gestualidades, movimentos, danças e coreografias
das entidades. Segundo Lody (1977, p.3) “o samba de caboclo tem na alegria
das cantigas e na eloquente movimentação coreográfica os principais aspectos
que chamam a atenção”. Os Caboclos que participam da festa cantam seus
feitos heroicos, bravura e desafiam a gravidade com as movimentações
complexas, ágeis e desequilibrantes.

Nas sambografias propostas por essa pesquisa, as cosmopercepções e


memórias imagéticas entre os elementos criam poéticas caboclas para
processos artísticos e educacionais em dança.

A questão é tão complexa que se formos observar o culto aos


caboclos na sua essência, ele nos revela basicamente elementos dos
candomblés de origem bantu e uma quase ausência de elementos
dos candomblés nagôs. Os atabaques são tocados com as mãos,

254
Uma quebra de linearidade da dança.

560
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

bem como nas músicas cantadas em português aparecem termos


das línguas bantus (kicongo e quimbundo), e os nomes dos inkices
(divindades dos candomblés congo-angola) é uma constante. Outros
elementos bantus sobressaem. A forma do caboclo fumar o charuto,
com a ponta acesa dentro da boca, comum entre as mulheres do
Zaire, é lembrada por descendentes dos povos bantus em vários
estados brasileiros, como MG, SP, e RJ (v.Lopes, 1988: 193s). O
samba de caboclo que acontece no final das festas, e que é uma
resultante do samba de roda, que por sua vez descende das antigas
danças de roda de Angola e Congo, tem como contraponto à
umbigada das rodas de samba a inclinação das pernas do caboclo
em direção à pessoa escolhida para ir ao centro do terreiro substituí-
lo. Uma outra influencia bantu, a capoeira, é observada no samba de
caboclo através de movimentos corporais da dança do caboclo. Em
contrapartida, tanto no samba de roda tradicional, quanto na capoeira
angola aparecerem cânticos de caboclos presentes nos candomblés
denotando uma interpenetração de influências de origem bantu
(SANTOS, 1995, p.89)

Marujos

A presença da entidade Marujo é controversa em muitos aspectos.


Santos (1995) define como um somatório de entidades como Exu, Caboclo e
espírito ancestral. Esse último, por vezes, entendido como egun, espirito de
marinheiro, pescador que morreu nas águas e voltou para alguma missão. As
correlações são aproximadas pelo fato do diálogo que eles tecem com as
pessoas presentes nas festas e consultas. O afastamento acontece pela
expressão verbal de xingamentos realizadas por eles, o que para muitos
candomblecistas e pesquisadores fogem a regra de comportamento dos
caboclos.

Como essa pesquisa debruça-se sobre as gestualidades desses


ancestrais e sendo a água ancestralidade, os saúdo nessa prática
sambográfica. Os Marujos representam as águas fluídas, movimentadas,
calmas, lentas, agitadíssimas, profundas, turvas, frias e quentes, marés, liquido
da vida, aminiótico, ventre de peixes corpos que mergulham nas suas
profundezas, águas de se beberem e se banharem, águas de cura, águas de
morte, rompantes de ondas e ressacas, ciclo contínuo. Renascimento. O
atlântico negro que inicia, finaliza e reinicia os processos de colonização do
Brasil é trabalhado na primeira parte da experiência sambográfica.

561
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O participante é convidado a experimentar e pesquisar em seu corpo o


movimento barravento, equilíbrio e desequilibrio inspirado no balanço das
águas, ou na metáfora do bêbado, ou da topada. Através da imagética do
corpo água, estado de água e na intencionalidade proposta pelo desejo da
experienciadora e do experienciador, os movimentos vão sendo grafados no
espaço, com o intuito também de relaxamento muscular, equilíbrio na
inspiração e expiração, desaceleração dos batimentos cardiorrespiratórios e
movença das costas.

Contextualizo (costas contextualizada) trocas entre diversas étnias,


acolhimento, e novas articulações que surgiram e compuseram as novas
configurações politicas, sociais e culturais dos que, a muita sorte, chegavam
vivos em terra firme. E em diáspora, somos também os resultados dessas
experiências.

As costas que receberam diversos castigos pelas insubmissões, que


carregaram a construção de nações, cidades e estados a sangue, as costas
que de tão cansadas, curvam-se para a frente; costas que dançam o ijexá das
águas; costas que fazem o jincá255 dos orixás; costas que guardam as
memórias ancestrais; costas que dançam as danças de guerra, de fartura, de
luta e de deleite; as costas que balançam ao som do tambor; costas que
dançam os carnavais e a dança dos blocos afro baianos; costas que dançam
ao som do pagodão baiano; costas que sambam o samba dos cadeirantes;
costas que são diariamente atingidas por tiros e balas de revolver da polícia
armada; costas que são atingidas pelo racismo cotidiano e de tão estrutural se
curvam de e do ódio e desigualdade; costas que prospectam futuros leves e
caudalosos de esperanças.

O elemento água a que o Marujo está associado nos mostra que há


um deslocamento deste elemento enquanto símbolo de fertilidade,
feminilidade e purificação. Ao nível da simbologia religiosa, nota-se,
portanto, uma inversão deste elemento, pois a entidade é identificada
com um marinheiro destemido e cachaceiro. Desse modo, opera-se
uma ruptura entre entidades diversas a partir de um elemento em
comum - a água. (SANTOS, 1995, p. 131)

255
Termo jeje que significa ombro, ou movimentar os ombros; e o toque ritual da orixá Yemoja

562
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Caboclos de Pena

Com os Caboclos de Pena são direcionadas as imagens das matas e a


densidade da terra úmida. Assertividade. A mata que alimenta através da caça.
Folhas que nutrem corpos. As folhas que banham e limpam. A sinuosidade das
folhas. A robustez dos troncos. A celulose das folhas. O pulmão. O ar límpido e
puro. As trocas gasosas. O enraizamento. Os alimentos que brotam da
profundeza das terras. As qualidades dos elementos ar e terra são acionados
para a reinterpretação de seres caçadores ou caçadas para “repensar o meio
ambiente como espaço de interação, cuidado e compreensão na promoção da
sustentabilidade do planeta e das relações humanas” (OLIVEIRA, 2016, p. 24).
Utilizando as indumentárias dos índios e suas insígnias de caça, como o arco,
flecha, lanças, capangas, técnicas de pesca, são propostas movimentações
que reconectem os experimentadores a terra, em busca de tônus muscular,
reflexos, níveis espaciais e delimitação geográfica.

Caboclos de Couro

A terra e o fogo conduzem os experimentadores a agilidade, pulos,


rodopios e saltos presentes na vigorosa dança dos Caboclos de Couro,
Capangueiros, Vaqueiros, ou Sertanejos, entidades que veem do quente e
árido sertão, com indumentária pesada para a proteção do sol e espinhos da
lida com o gado “como se estivessem tangendo suas boiadas e, inclusive,
soltam alguns aboios e utilizam termos próprios dos vaqueiros, quando tratam
dos bois” (LODY, 1977. p. 4). Nessas movimentações a indumentária e função
social tem fortes presenças e função magna. O chapéu de couro para saudar e
cumprimentar; a corda para laçar o boi; a espora e montaria nos bovinos; o
chicote para dominar a boiada; hábitos e atitudes da lida diária. Nesse
momento, o cardiorrespiratório acelera-se em uma crescente ofegante, o tônus
muscular é exigido com maior potencia e é observada a liberação e aumento
de energia, com desprendimento e vibrante.

563
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Baseando-se nessas características, vêm aos terreiros os Caboclos


boiadeiros e Capangueiros que mantêm elos comuns. Geralmente
esses Caboclos são conhecidos por sua valentia e adestramento em
conduzir as boiadas, girando, obrigatoriamente, em torno deles, um
folclore típico das zonas de pastoreio: vocabulário próprio, lendas,
alimentos, músicas e danças. (LODY, 1977. p. 8)

Nas cantigas, a função social, as origens, as indumentárias e as


insígnias dos caboclos estarão presentes e determinarão as qualidades das
ações no processo da experiência em dança. Como nas cantigas
apresentadas:

Boa noite

quem é de boa noite

Bom dia

quem é de bom dia

Abença, meu papai, a bença,

Sou o Caboclo

Sou rei lá da Hungria

Um lugar muito entoado pelos Caboclos é a Aruanda, a terra distante habitada


pelos Encantados:

Pedrinha miudinha

na Aruanda auê

Lajeiro tão grande, tão grande

na Aruanda auê

Para a construção são compartilhadas proposições de dança, com a


inserção de elementos da memória imagética de simbologias para acionar as
gestualidades e movimentações autônomas e emancipatórias contra uma
proposta colonial de pasteurização de corpos e monodanças estratificada,
copiada e altamente influenciada pelas mídias a partir do momento da

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

industrialização do entretenimento e tendo o samba como centro desse


processo.

Aprofundando a perspectiva e os conceitos da pesquisa, que


possibilitam o desenvolvimento e suporte para as discussões afrocentradas da
atualidade, das danças de matrizes africanas, propulsoras de empoderamento,
matripotencialização de artistas e educadoras negras mulheres, visto o samba
ser uma manifestação coreográfica muito dançada pelas mulheres e
reconhecimento étnico.

Considerações Finais

Nessa pesquisa navego por algumas questões delicadas como o


desconhecimento e visibilidade sombreada da cultura banto e suas fundantes
contribuições e “relações de força entre as supostas ‘pureza’ dos Candomblés
Nagôs e ‘fraqueza’ dos Candomblés Angola e/ ou Congo-Angola” (NUNES,
2017, p.120), a organização comunitária das mulheres de candomblé, a
dicotomia sagrado-profano para pensar as danças de orixás e dos caboclos,
entre outras elucubrações que estão somando para criar camadas de
pensamentos e práticas críticas intelectual e profissional. O samba é uma
tecnologia ancestral de resistência e portanto, capaz de configurar em diversos
corpos seus modos de existência e elaboração de gestualidades na
contemporaneidade.

Segue o estudo afirmando que um dos oitos sentidos estéticos da


dança africana é o ‘sentido curvilíneo’ e que este é ‘representado com
a forma, figura ou estrutura curva nos produtos artísticos e na posição
dos corpos, é diretamente relacionado com os conceitos-guia das
sociedades africanas de continuidade e fertilidade.’. Ou seja, a dança,
na cosmovisão africana, sendo ela sagrada ou não, acaba
representando um dos fundamentos que geram a vida. (SANTOS
JUNIOR, 2018, p.73)

Este artigo buscou contribuir na produção bibliográfica da dança,


reafirmando seu lugar enquanto produção de conhecimento ao propor uma

565
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

pesquisa aprofundada sobre o samba de caboclo por uma artista de dança.


Essa abertura das matas, e não queimadas, parece interessante visto que as
referencias bibliográficas até o momento partirem apenas de historiadores e
antropólogos, colaborando na preservação da memória afro brasileira. Esse
artigo suscita perspectivas outras para pensarmos os sambas aplicados a Lei
10.639/2003 e 11.645/2008 que versam sobre a obrigatoriedade do ensino de
história e cultura Afro-Brasileira e Indígena nas escolas e espaços não
hegemônicos de dança, procurando tapar algumas das inúmeras lacunas das
narrativas negras silenciadas pelo racismo.

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ancestral-que-vem-dos-pes-juliana-dos-santos/. Acesso em 29 de jun. 2019.

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ENCRUZILHADAS POÉTICAS:
ENTRE A REPRESENTAÇÃO E A METONÍMIA

Franciane Kanzelumuka Salgado de Paula (PPGArtes-UNESP)

Diante de todo o panorama da dança contemporânea paulistana e das


ausências negras nele, as presenças das companhias E² Cia de Teatro e
Dança e Nave Gris Cia Cênica, entre outras que têm se inserido neste cenário
nos últimos anos, são fissuras que tem implodido os espaços oficiais de dança
e criado outras possibilidades e estados cênicos. Independemente de cada
companhia se autodenominar ou se identificar com uma produção exclusiva em
arte negra, dança negra contemporânea ou levar abertamente para a cena um
discurso dentro do campo tradicional do que se entende por militância artística,
por terem artistas negras em seus núcleos, elas acabam sendo relacionadas à
uma representatividade negra na dança paulistana. O fato também é que seus
corpos e a densidade das gestualidades que levam para o palco evocam
nossas heranças de origem africana, aspectos de uma filosofia negro-africana
que se reconfigurou no Brasil e que foi se estabelecendo no seio de
comunidades e famílias negras.

O sentido atribuído ao fazer que cada companhia dá para si foi sendo


revelado para este estudo por meio da pesquisa de campo e da revisão de
seus projetos de pesquisas artísticas para a obtenção de aporte financeiro
público. Além destes materiais, o convívio com os grupos em salas de ensaios
e a apreciação de seus espetáculos, tanto ao longo dos dois anos de
realização da presente pesquisa256 (2015 a 2017) como anteriormente,
formaram o mosaico que compuseram as reflexões sobre as obras de cada
grupo. Deste modo, procuramos responder às seguintes indagações: por que
se referir às obras da E² ou da Nave Gris como sendo contemporâneas negras
e não afro ou somente contemporâneas? Há diferenças nos modos de

256
A comunicação que deu origem a este artigo é um fragmento da dissertação de mestrado
intitulada Evocações e presenças negras na dança contemporânea paulistana (2000-
2015), cuja pesquisa foi desenvolvida no PPGArtes-Unesp e sob a orientação da Profa. Dra.
Marianna F. M. Monteiro.

569
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

produção entre estes estilos? Como se dão as relações entre criadoras,


interpretes-criadores, artistas da dança nesses contextos? As relações
tradicionais entre mestre(a) e bailarino(a) - herança de uma dança teatral
moderna e também da transposição das tradições negro-africanas para o
possível estabelecimento de um traço estético-cultural - seria fundamental
numa tradição do novo desta dança contemporânea negra?

A encruzilhada como instância simbólica e metonímica (MARTINS,


1997) nos permitiu compreender os espaços que têm sido construídos por
essas companhias, que vivem processos artísticos “inter e transculturais” que
coadunam com as “noções de sujeito híbrido, mestiço e limiar em decorrência
dos efeitos de processos e cruzamentos discursivos diversos e intertextuais”
(MARTINS, 1997, p. 28) da experiência negro-diaspórica e o mundo branco
ocidental nas artes. Partimos também da definição abarcada pelo dicionário
(AULETE, 2011) do que é representação e metonímia para que pudéssemos
acessar e apreender os meandros poéticos das obras da E² e da Nave Gris,
pois não pretendíamos expandir para a linguagem do Teatro as relações de
Dança que aqui se apresentariam. Assim, nosso pressuposto foi o de que a
representação é a cópia mais ou menos aproximada do que se tem em mente
ou do que se vê, o processo por meio do qual a mente presentifica a imagem,
ideia ou conceito de um objeto apreendido pelos sentidos, imaginação,
memória, ou concebido pelo pensamento. E de que a metonímia é a figura de
linguagem baseada no uso de um nome no lugar de outro, pelo emprego da
parte pelo todo, do efeito pela causa, do autor pela obra, do continente pelo
conteúdo, para compreender os recônditos das culturas negras nos trabalhos
da E² Cia de Teatro e Dança e da Nave Gris Cia. Cênica.

Cosmograma mítico para um ritual cênico

Das duas companhias deste estudo, a Nave Gris Cia. Cênica é a mais
jovem, com apenas cinco anos de caminhada até a data da pesquisa realizada.
Uma companhia ainda no processo de construção e entendimento de sua
metodologia de trabalho. Ela foi criada oficialmente em julho de 2012 por

570
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artistas257 com formação universitária em artes – dentre eles(as) a artista


pesquisadora Kanzelumuka -, trajetórias e pesquisas muito distintas, mas que
tinham em comum o interesse pela pesquisa e desenvolvimento da cena como
campo de pluralidade, espaço expandido e limiar entre dança, teatro,
performance e as narrativas da memória. Cada um dos criadores da
companhia se encontrava no fazer artístico a partir de suas diferenças e
afinidades estéticas e técnicas, construindo trabalhos onde divergências e
convergências tornaram-se presentes nos procedimentos de criação e matéria
poética da Nave Gris. Suas primeiras investigações foram instigadas por uma
experiência em comum a todos que se deu no Núcleo de pesquisa do corpo:
Butoh, da Cia. Teatro Balagan, dando origem a performance Poéticas do
desacontecer (2012), inspirada em um poema de Manoel de Barros. Ao longo
de seus cinco anos de existência, outros dois trabalhos e duas ações foram
desenvolvidas pela companhia: Dikanga Calunga (2014) e Minha Cabeça me
Salva ou me Perde (2014), inspirados pela apreensão ancestral feminina
ligada aos mitos das divindades de origem Congo-Angola e iorubá Kayaia e
Iemanjá, e o I Encontro Mulheres Negras na Dança (2015) e a
VISIVEL+NAVE Encruzilhada Ocupação Cênica (2016), em parceria com o
Visível Núcleo de Criação. Hoje, com oito anos de caminhada, a Nave já conta
em seu repertório com mais três espetáculos – Corredeira (2017), A-VÓS
(2018) e Mu Ntûnda (2020) – e com a realização do II Encontro Mulheres
Negras na Dança (2017).

Em abril de 2013 a Nave Gris deu início a um projeto proposto por


Kanzelumuka, que traz em sua trajetória como artista da dança a conexão com
as expressões tradicionais ligadas às reminiscências banto no Brasil, sobretudo
o Candomblé Angola. Assim, surgiu o processo de criação de Dikanga
Calunga, trabalho solo de dança em que puderam reelaborar algumas
inquietações latentes na artista pesquisadora desde sua passagem pela
universidade258 e que dissesse respeito a uma perspectiva feminina da

257
Para conhecer a trajetória em detalhes da Nave Gris Cia Cênica, acesse
http://navegris.com.br/ .
258
Em minha graduação em Dança na UNICAMP, realizei o projeto Em águas abundantes:
um estudo sobre as diferentes escrituras do corpo cênico a partir das matrizes corporais
das danças de Kayaia, entre os anos de 2006-2007 no Departamento de Artes Corporais

571
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

diáspora negra e às possibilidades poéticas oriundas da corporeidade e


mitologia encontradas na relação com os arquétipos femininos do Candomblé
Angola. Naquele momento, a companhia identificou este espetáculo como
sendo de dança negra contemporânea, pois a interessava (e ainda interessa) a
aproximação com os princípios presentes nas culturas tradicionais afro-
brasileiras, que agregam o diferente instaurando processos de alteridade.

Em sua prática artística, desde as primeiras discussões para a fundação


da Nave Gris, seus artistas foram inspirados pela noção de encruzilhada
proposta por Leda Maria Martins (1997, 2002). Com as investigações para
Dikanga Calunga e dos trabalhos que se seguiram, o termo motrizes culturais,
referenciado por Zeca Ligiéro (2011), também tem sido incorporado pela Nave,
possibilitando a ela a compreensão de um corpo-encruzilhada: sujeito/ser como
“lugar radial de centramento e descentramento, interseções e desvios, texto e
traduções, confluências e alterações, influências e divergências, fusões e
rupturas, multiplicidade e convergência, unidade e pluralidade” (MARTINS,
1997, p.28). Corpo este também que é texto (LIGIÉRO, 2011), local de um
saber em contínuo movimento, pois dançar é performar, inscrever e uma das
maneiras em que a memória dos saberes disseminam-se (MARTINS, 2002).
Para Ligiéro (2011, p. 107 e 108) as motrizes culturais ajudam a conceituar a
complexidade das dinâmicas das performances culturais afro-brasileiras e
definir as dinâmicas culturais utilizadas na diáspora africana para recuperar
comportamentos africanos, onde há a combinação da dança, do canto e da
música (cantar-dança-batucar como nos conta Bunseki Fu-Kiau); a
simultaneidade do jogo e do ritual na mesma celebração; o culto aos
ancestrais; a presença de um mestre, zelador dos saberes tradicionais e o uso
do espaço em roda (Cf. MANZINI, 2016 e TAVARES, 2012). Ao preferir o termo
‘motrizes’ em relação a ‘matrizes’, o autor evidencia que ‘motrizes’ é a força
que provoca ação, a qualidade implícita do que se move e de quem se move
(LIGIÉRO, 2011, p. 111).

(DACO) da como bolsista CNPq e orientação da Profa. Dra. Livre Docente Inaicyra Falcão dos
Santos.

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Dikanga Calunga em quimbundo significa mar distante. Calunga é mar,


mas também céu e cemitério. Em suas múltiplas acepções remete sempre a
algo grandioso que permeia todo o ciclo da vida, transitando entre a criação, o
terreno e o divino. Sob a perspectiva do feminino, tendo a água do mar como
elemento transformador, que conecta o homem ao que lhe é ancestral e
sagrado, Dikanga Calunga remete a um espaço de fluxo entre ancestralidade,
tradição e contemporaneidade, recriação de uma terra mítica marcada pelas
tensões entre o conhecido e o porvir, as transformações do eu que se apropria
de tudo que atravessa seu corpo e se põe em constante trânsito. Foi a esse EU
múltiplo que a companhia chamou de corpo-encruzilhada. Seu olhar para a
diáspora negra foi, portanto, o olhar sobre o corpo em deslocamento, em busca
de uma terra possível, que não está mais no passado, nem no futuro, mas que
é preciso ser construída a cada instante no presente. Não negar o passado
nem o devir é o que puderam apreender de uma concepção de tempo cíclico,
em oposição ao entendimento evolucionista de um mundo que progride através
do esmagamento e apagamento de sua história e mitos.

Tendo o Candomblé Angola como uma de suas fontes de pesquisa que


reconta os mitos através de suas danças rituais, no espetáculo a Nave buscou
instaurar o ritual através de uma perspectiva estética, artística, que
representasse por seus próprios meios os mitos e ritos a partir de suas
percepções e afetos na relação com eles. Isto exigiu que encontrassem um
princípio estruturador, dramatúrgico, que levasse em conta a percepção
espaço-temporal presente nas culturas tradicionais negras, da memória
curvilínea e do tempo espiralar (MARTINS, 1997 e 2002). Deste modo, a Nave
Gris encontrou a base dramatúrgica no Cosmograma Bacongo - sistema
filosófico bantu-kongo, de pensamento-mundo apresentado ao ocidente por
Bunseki Fukiau. Um sistema circular e tridimensional de mundo, em que há o
mundo dos mortos (ancestrais) e o mundo dos vivos (homens); em que a vida
é simbolizada pelo dia e a morte pela noite; o pôr do sol significa a morte do
homem e o nascer, seu renascimento ou a continuidade de sua vida. O que
liga o dia a noite, o pôr do sol ao seu nascer é a água, kalunga, constituindo
um movimento circular. No espetáculo, o cosmograma foi traduzido na
elaboração do espaço cênico e nas relações estabelecidas nele. Ao longo do

573
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

espetáculo procuraram construir os jogos de corpo em função de sua


localização no espaço cênico desenhando inúmeros caminhos. Caminhos que
se refletem no pensamento e construção do corpo-encruzilhada e da criação
coreográfica que foram elaborados a partir do universo simbólico e mítico
presente, como já citado, no Candomblé Angola, mais precisamente em três
arquétipos e motrizes das danças dos minkisi259 femininos: Kayaia, divindade
da fecundidade, das águas dos mares e do equilíbrio emocional; Nzumba, a
que fornece o barro para a criação do homem; e Matamba, aquela que venta,
que rasga, em diálogo com as danças já inscritas no corpo de Kanzelumuka
(técnicas contemporâneas e somáticas, jazz dance etc). Este amálgama gerou
uma escrita singular e plural, em que há reverberações da tradição e do fluxo
de (in)formações vividas tanto pela bailarina criadora-interprete, como pelos
demais artistas envolvidos na criação do espetáculo.

Como Dikanga Calunga é um espetáculo de dança cênica, de dança


teatral, elaborado dentro das regras do cânone artístico e não só
exclusivamente com os elementos culturais negros, situando-se na
encruzilhada intertextual, propomos um exercício de transposição das motrizes
culturais para a cena da dança para pensarmos e olharmos para esta produção
de dança negra contemporânea, já que durante seu processo de criação foi
utilizado como procedimento:

- o cantar-dançar-batucar (combinação da dança, do canto e da música):


poemas, mitos, jogos de dança com música ao vivo articulados aos elementos
coreográficos relacionados à nossa pesquisa sobre as danças religiosas da
tradição Congo-Angola;

- a simultaneidade do jogo e do ritual na mesma celebração: num jogo de soma


e atravessamentos, os diversos estímulos foram formando um repertório que,
no decorrer do processo, foi retomado por Kanzelumuka na elaboração de uma
dança de caráter pessoal, uma vez que permite grande liberdade de

259
Na cultura e pensamento bantu-kongo elucidado Bunseki Fu-Kiau apud Santana (2019, p.
35), n’kisi, de onde se origina a palavra nkisi (singular) e minkisi (plural), que nomeia as
divindades do Candomblé Congo-Angola, é o elemento mais importante e central neste mundo,
da vida do homem, é força-elemento que cuida dos seres humanos em todos os aspectos de
vida no mundo (cuida, trata, guia, zela).

574
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associação entre os estímulos sugeridos e sua própria experiência anterior com


o movimento; e também coletiva, já que comungavam o espaço e repertório
comum à companhia (direção e músicos convidados);

- o culto aos ancestrais: tendo como exemplo o trabalho de Inaicyra F. Santos


(2002, 2005) sobre corpo e ancestralidade, na feitura do espetáculo
procuraram as inter-relações entre as histórias dos criadores-intérpretes
(bailarina e músicos) com os aspectos de suas heranças ancestrais em diálogo
com seus saberes nas artes;

- a presença do mestre: esta presença foi estabelecida pelo fato da


aprendizagem cultural (dança e música) de parte da companhia ocorrer em
suas vivências em comunidades-terreiros, como o Inzo Musambu Hongolo
Menha – caso de Kanzelumuka e Murilo De Paula (direção da Nave Gris) – e o
Terreiro de Umbanda e Candomblé Tenda de Umbanda Caboclo Vira-Mundo e
Caboclo Treme-Terra – caso de Leandro Perez (músico convidado);

- o espaço em roda: configurou-se na concepção dramatúrgica do espetáculo e


em no o desenvolvimento de todas as cenas.

Muniz Sodré (2002) considera que a dança é um jogo de


descentramento, uma reelaboração simbólica do espaço e um complexo
rítmico em que o indivíduo incorpora a força cósmica, com suas possibilidades
de realização, mudança e catarse (SODRÉ, 2002, p. 135). Para isto, o corpo
configura-se como território próprio do ritmo, pois o rito só existe pelo corpo,
pois “ritmo é rito (por sua vez, a expressão corporal e emocional do mito) de
Arkhé, engendrador ou realimentador da força” (SODRÉ, 2002, p. 135).
Cientes de que a instauração de um ritual cênico depende de sua prática
cotidiana, a Nave Gris tem buscado também criar rituais em seus ensaios
cotidianos:

- preparação do espaço de trabalho: limpeza energética com incensos e/ou


limpeza do ar com leques orientais;

575
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

- criação de dramaturgia sonora: para cada ensaio é preparada uma trilha


sonora para o trabalho proposto e o silêncio como mantenedor da energia que
vai se instaurando no trabalho;

- o trabalho corporal, técnico-criativo, entendendo que o potencial criador não


deve ser dissociado do trabalho técnico, é dividido em dois momentos:
aquecimentos individuais, para que cada criador cuide de aspectos
necessários em seu corpo e trabalho coletivo, para instaurar unidade entre
cada artista a partir da aproximação dos diferenciais estéticos.

Apesar de denominarem este primeiro espetáculo da companhia como


dança negra contemporânea e, de terem idealizado e realizado ações com o
protagonismo de artistas negras(os) com trabalhos independentes em danças
contemporâneas, voltados para a investigação cênica a partir das motrizes
presentes nas culturas populares e tradicionais afro-brasileiras260, a Nave Gris
não se autodenomina como uma companhia de dança negra contemporânea,
já que também é movida por outras perspectivas de fazeres artísticos e
linguagens. Porém, reconhecem que tais nomeações são fundamentais, pois
afirmam um posicionamento político e um contexto poético de criação
artística. A dança negra contemporânea ou dança contemporânea negra,
como propomos neste artigo, coaduna com o que Nilma Gomes (2009), o
coreografo, bailarino e professor franco-senegalês Patrick Acogny e tantos
outros artistas e intelectuais negros(as)(es) dizem ser fundamental: a
produção de conhecimento feita pelo negro e não sobre o negro ou para o
negro como tem sido, também, na tradição das danças cênicas. Entretanto, é
preciso estarmos em alerta com tais nomeações, que podem, ainda, limitar a
atuação de artistas negras(es)(os) aos olhos do Outro, que tende a nos
homogeneizar, nos negando o direito à diferença.

260
Como os I e II Encontro Mulheres Negras na Dança (2015 e 2017) e a VISIVEL+NAVE
Encruzilhada Ocupação Cênica (2016).

576
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Sujeitos anônimos emparedados

A história da E² Cia. de Teatro e Dança pode ser confundida com a


história de atuação artística de sua diretora, Eliana de Santana, que até 2017 já
atuava na cena paulistana há trinta e três anos como atriz e artista da dança.
Entretanto, como núcleo artístico, corpo instável de dança, como Eliana se
refere ao modo como a companhia tem se estabelecido261, a E² nasceu
oficialmente com a estreia do espetáculo Tragédia brasileira (1997) e
completou vinte anos em 2017, tendo, até então, treze espetáculos em seu
repertório262. Tragédia brasileira anunciaria a trajetória de construção poética
da E²: ter como inspiração e referência obras de diversos artistas do campo da
literatura (Manuel Bandeira, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Júnia Ferreira
Furtado, Carneiro Vilela) e das artes visuais (Arthur Omar, Heitor dos Prazeres,
Chris Ofili) e ter o protagonismo para a corporeidade sujeitos anônimos que
vivem à margem de nossa sociedade. Nas palavras da E², esses diálogos
fazem com que o núcleo artístico desvende uma poética particular,
aprofundando um fazer em dança que lhe seja único, ou seja, fomentam o
grupo na investigação de parâmetros técnicos corporais próprios.

A E² é uma companhia conhecida pela crítica especializada e pelo


pequeno público que acompanha a agenda de dança dos circuitos centrais e
oficiais da cidade de São Paulo. Mas a inserção do trabalho do núcleo nestes
espaços ainda é árdua, segundo sua direção. Tendo iniciado sua carreira num
momento de nossa história em que não havia programas públicos gratuitos de
formação artística, nem projetos oficiais nos bairros periféricos, Eliana de

261
O núcleo se constrói em torno de Eliana, do light design Hernandes de Oliveira, e de artistas
convidados a cada projeto. Conforme a entrevista que consta no capítulo I desta dissertação,
Eliana de Santana busca trabalhar com artistas negros (as), porém desde que estes dialoguem
com sua poética. Com exceção dos trabalhos solos, em que somente Eliana de Santana atua,
nos últimos quatro anos (2011 a 2016) a E² elaborou espetáculos com um elenco de
intérpretes-criadores negros(as) e não negro(s). Destaco a participação do artista da dança
(negro) Leandro de Souza, que atuou durante cinco anos na companhia e soube incorporar os
estados de dança da E².
262
Tragédia Brasileira (1997), Das Faces do Corpo (2001), Francisca da Silva de Oliveira
Chica da Silva - Um Esboço (2006), ...e das outras doçuras de deus (2008/2009), Onde os
Começos? (2010), Afro Margin (2011), Dos Prazeres (2011/2012), Das Faces do Corpo-
versão II (2012), Das Faces do Corpo-versão III (2013), Lost in Spaceshit (2014), Baleia
(2015), A Emparedada da Rua Nova (2015) e BLUE (2016).

577
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Santana foi levada a desbravar a selva de pedra e, como ela diz, romper, criar
frestas para a realização de sua formação e seu trabalho. Uma vez dentro
desses espaços hegemônicos, podemos identificar que foi se instaurando a
negociação entre o lugar de fala da artista-mulher-negra:

Estamos constantemente em negociação, não com um único conjunto


de oposições que nos situe sempre na mesma relação com os outros,
mas com uma série de posições diferentes. Cada uma delas tem para
nós o seu ponto de profunda identificação subjetiva. Essa questão é a
questão mais difícil da proliferação no campo das identidades e
antagonismos: elas frequentemente se deslocam entre si. (HALL,
2013, p. 385)

E as convenções artísticas contemporâneas, pois para Soter (2001) o


que caracteriza um criador intérprete na dança contemporânea é que seu corpo
é seu ateliê, é o espaço geográfico de seus desejos e limitações, massa
produtora de imagens e pensamento (SOTER, 2001, p. 80). Afirmação esta
que vai ao encontro de um dos pressupostos elencados por Silva (2005) de
que estas danças contemporâneas são o agenciamento dos estados da alma e
reflexões de seu criador-intérprete. Quanto ao fazer uma dança negra
contemporânea, Eliana diz:

Eu fico pensando por exemplo, “será que eu tenho cor?” Eu não acho
que eu tenho mais cor, mas é claro que eu tenho cor. Então quando
eu vou dançar (...) sou eu fazendo. Então o público vai ver, e já está:
é uma mulher negra fazendo. Eu já não tenho entre aspas, “esse
pensamento da ação política”, porque já é! Já ESTÁ! Já SOU!

(...)

Então, o que eu procuro na dança são as lacunas, as frestinhas


para a gente conseguir passar, porque é através desses lugares
estreitos que a gente tem que conseguir as passagens para poder ir
ampliando; criando forças para ir abrindo e abrindo e abrindo e
poder tomar conta da rua, tomar conta dos teatros distritais, não
preciso estar só na periferia, a periferia tem que estar junto. É uma
coisa maior, meio utópica, até! (Fala de Eliana de Santana na roda
de conversa do I Encontro Mulheres Negras na Dança, realizado em
junho de 2015)

Quando Eliana conta que procura passar pelas frestas para ocupar
locais que lhe são negados e assim ir ampliando seu espaço de atuação,
rememoramos uma observação feita por Muniz Sodré (2002, p. 138) com
relação às danças nagô, sobre seus gestos de penetração e sedução, numa

578
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

dança em que o “cosmos não é ferido porque não cortam o espaço, ao


contrário, integram-no”, pois “não se trata de atacar à força uma região física e
simbolicamente obstruída, mas de trabalhar nos interstícios para preenchê-los
com alternativas, com vistas à continuidade da etnia”. (SODRÉ, 2002, p. 138).
No caso da E², para a continuidade do fazer artístico.

Para o público de espectadores negros(as)(es), a E² se tornou referência


com o espetáculo Francisca da Silva de Oliveira – Chica da Silva - Um Esboço
(2006), em que apresentou uma Chica da Silva desmistificada a partir da obra
literária da historiadora Júnia Ferreira Furtado. Um espetáculo que circulou
durante dois anos e que tratava declaradamente dos aspectos culturais negro-
brasileiros, conforme consta nos arquivos sobre o projeto: “corpo físico como
representação simbólica de uma rede ancestral, mesmo não focando
explicitamente discussões num âmbito político, o racismo, a escravização, a
situação do negro e da mulher na sociedade contemporânea saltam para os
espectadores neste espetáculo”. Ao traçarmos um pouco mais as tramas das
negruras nas obras da E², somos levadas à trilogia Chris Ofili: Afro Margin
(2011), Lost in Spaceshit (2014) e BLUE (2016). Ofili é um artista afro-britânico
provocativo, contestador, que traz em sua obra referências da cultura pop com
a ancestralidade afrodiaspórica, evidenciando a diversidade da experiência
negra, direção para qual devemos estar atentos, segundo Stuart Hall (2013).
Quanto ao trabalho de investigação dramatúrgica corporal e cênica, a E² tem
como procedimento:

- o sujeito anônimo, como já mencionado: que por sua singularidade fornece


elementos que se traduzem em força poética e revelam a complexidade
humana, segundo a companhia;

- o acaso na criação, segundo Eliana, sob a perspectiva apresentada pela


artista Faiga Ostrower, o que neste presente estudo associamos ao improviso
da arkhé negra (SODRÉ, 2005, 2002): nas palavras da companhia, “neste
modo de trabalhar, os envolvidos trazem aos ensaios seus depoimentos sobre
o objeto da pesquisa, pistas que ajudam e estimulam na descoberta do
universo abordado e pretendido. Esse material que pode ser tanto em nível
corporal quanto de ideias é organizado durante o processo para resultar na

579
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

composição corpo/cena. Após a estreia do trabalho essas estruturas continuam


flexíveis e podem apontar para diferentes caminhos compositivos”;

- a busca do estado cênico de cada obra: o que permite ao público, como no


espetáculo A Emparedada da Rua Nova263, em que Eliana dança a perspectiva
da jovem morta emparedada e coloca o espectador numa outra perspectiva, ao
deixar que ele veja sua dança somente pelas frestas da parede do cenário.

Desta forma, num jogo de ambiguidades - porque nos trabalhos da E² há


um discurso não dito sobre as tensões das experiências negras -, estabelecido
por fragmentos e expressões metonímicas (gestos, imagens ou sons), os
espetáculos citados, e mais fortemente em Afro Margin e BLUE, nos levam ao
encontro da nervura negra presente em nossa cultura contemporânea. Em Afro
Margin, a artista joga com uma linha branca a frente do palco (criada com a
iluminação), com isso concretiza cenicamente o corpo marginal, que some na
escuridão do palco, num limiar em ser e não ser visto. Apesar dos trânsitos
espaciais, a dança acontece na periferia do espaço. Com relação aos
procedimentos para a criação de BLUE, trabalho do qual a artista pesquisadora
Kanzelumuka também fez parte, compartilhamos abaixo um pouco da
experiência vivida por ela:

No processo cotidiano de trabalho da companhia, os aquecimentos


individuais, os estudos cênicos e improvisos – individuais num
primeiro momento e depois propostos numa dinâmica coletiva - foram
cernes para a descoberta e elaboração da criação artística. As
primeiras observações de Eliana nos levaram a pensar no lugar e no
espaço de ensaio como um todo, buscando uma relação com ele; a
pensar na matemática do movimento para que houvesse a repetição
do gesto; a pegar as células de movimentação do outro para nos
contagiar com as qualidades gestuais alheia, e a ‘desaparecer’ no
espaço, jogando com ele. Outras pistas dadas para a criação foram a
‘desistência’ como uma atitude para a qualidade gestual e o uso do
silencio nos gestos em complemento aos sons do espaço. Por meio
de estudos corporais e vocais fomos descobrindo quais seriam as
possibilidades desta dança. Não havia certo e errado, era preciso que
arriscássemos, ousássemos nas propostas e, como muitas vezes
Eliana nos dizia, ‘radicalizar’, deixar o físico nos conduzir e ludibriar o
corpo: duvidar mais do gesto, não completar todas as movimentações
para não gerar sentido explicito, ser um corpo mais informal,

263
O espetáculo foi inspirado no romance A emparedada da rua Nova, de Carneiro Vilela, que
relata o caso de uma jovem burguesa, engravidada pelo namorado e que foi emparedada viva
em seu próprio quarto, a mando de seu pai.

580
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lembrando do corpo anônimo, ser menos impositiva, pois o anônimo


não impõe muita coisa. Para a elaboração de BLUE, além dos
procedimentos práticos para a criação cênica, foi preciso o
desenvolvimento de uma pesquisa de materiais teóricos para o
entendimento do blue (azul) tanto a partir de seu simbolismo como na
sua relação musical, atrelando as obras de Ofili ao universo musical
do sul dos Estados Unidos. Tendo uma produção crítica,
identificamos que em um de seus quadros, o Iscariot Blues, por
exemplo, Chris Ofili faz uma alusão aos enforcamentos de sujeitos
negros e negras no início do século XX no sul dos Estados Unidos.
Estas linhas de força também foram pontos instigantes para a criação
do espetáculo. Além da fisicalidade, do material corporal, que é
fundamental no trabalho da E², nos foi dado a orientação para que
levássemos para os ensaios os textos e músicas que também
pudessem nos inspirar e que dialogassem com o universo blue de
Ofili. Com isso, iniciei um levantamento sonoro sobre o blues, tendo
como referência vozes femininas. A cada nova proposta e
experimentação – desdobramento em dupla ou trio ou em coletivo – a
direção artística do trabalho nos dava pistas e direcionamentos dos
caminhos que podíamos tomar para compreendermos o estado da
obra e sua construção da dança por vir.

Seguindo com suas pesquisas e leituras pessoais para compartilhar nos


ensaios, Kanzelumuka foi encontrando outras referências para o processo de
criação de BLUE, como um fragmento textual de Muggiati (1995, p. 12-13)
apud Pereira (2013 p.12), em que diz que “a célula básica do blues é a
chamada blue note – a nota blue [...]. Alguns chamaram as blue notes –
chocantes para ouvidos não-iniciados – de notas ‘rebeldes’. Muitas vezes, no
jargão dos músicos, elas eram dirty notes, ‘notas sujas’.” Sodré ( 2002, p. 143)
fala tanto sobre as blue notes e diz que “em termos mais simples, trata-se de
uma entonação especial, feita de notas alteradas, gritos e lamentos”, como do
sentido da repetição e do improviso que são bases para o blues, para o jazz e
que a artista pesquisadora relacionou com todo o processo para a criação de
BLUE: “repetir é provocar a manifestação da força realizante”.

Um dado fundamental que surgiu ao longo da pesquisa com a E² Cia de


Teatro e Dança nos foi revelado enquanto Kanzelumuka via Eliana dançando
na cena final de BLUE. Com isto, pudemos fazer algumas associações que
aproximam a pesquisa de campo numa comunidade-terreiro com a pesquisa de
campo numa companhia de dança quando a(o)(e) pesquisadora(o)(e) é uma
insider deste locus. O primeiro ponto que nos foi alumiado é o da ordem do
segredo.

581
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

O segredo é um dos princípios fundamentais das religiões iniciáticas


africano-brasileiras, como os candomblés de origem banto e nagô, e como nos
explica Sodré (2005, p. 103), ele designa “aquilo que se deve subtrair à
determinação imediata e separar-se, guardar-se, para as sutilezas do processo
iniciático”. Na dança cênica ou teatral, associamos o processo de criação
artística como sendo um processo iniciático, pois quando uma artista jovem
passa a integrar um grupo com 20 anos de existência, que foi fundado por uma
artista criadora com uma trajetória cênica de 33 anos - o equivalente a idade
desta jovem criadora -, esta jovem é como uma ndumbe264 que inicia seu
processo em uma comunidade-terreiro. Sendo assim, o segredo do grupo não
lhe será revelado, ele aparecerá em situações cotidianas do processo de
criação. E mais uma vez, recorrendo a Sodré (2005), a revelação se dará
através da enunciação pura e simples, através da hierarquia manifesta de um
parceiro da iniciação ou de alguma regra, pois entrar no segredo de alguém é
entrar na regra (de um jogo). Neste caso, se permitir jogar o processo artístico
já instaurado por aquele grupo.

O(s) segredo(s) do artista é(são) ponto(s) nunca revelado(s) para quem


está fora deste processo, para quem não vive aquele cotidiano, o seu rito
cênico. Como a artista pesquisadora Kanzelumuka estava dentro, mas também
atuando fora, como pesquisadora no âmbito acadêmico, precisou ir jogando,
negociando o tempo todo com o que poderia/deveria ser revelado. Uma vez
iniciada nesse processo artístico, ela teve conhecimento das regras e
consciência ética de como precisaria atuar para a manutenção deste espaço
(artístico), porque conhecer a regra não implica em acabar com o segredo,
como também explica Sodré (2005). Assim, pudemos entender que o segredo
também é o responsável pelo ngunzo, a energia vital, o encantamento da obra,
que neste caso, foi engendrado pelo artista em cena, emanando-o no
acontecimento do espetáculo de dança. Nesse interim, a energia aumenta e é
redistribuída num jogo de troca com o espectador.

264
Ndumbe é o nome dado para o mona-nkisi (adepto do Candomblé Congo-Angola) não
iniciado ainda nos mistérios e segredos da religião.

582
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Considerações finais: entre a representação e a metonímia

O intuito deste estudo não foi analisar indivualmente cada obra destas
companhias e, sim, olhar para todo o conjunto de ações que cada companhia
desenvolveu desde seu período de fundação até o ano de 2017, buscando
correlacioná-las com aspectos de uma filosofia negro-africana em fricção com a
cena da dança teatral contemporânea. Apesar disso, foi relevante destacarmos
alguns espetáculos. Espetáculos estes onde identificamos o jogo da
representação e metonímia, em que as narrativas plurais da experiência do ser
negra(o)(e) foram articuladas de formas diversas e complexas para o
estabelecimento de danças cênicas, danças teatrais com o protagonismo
negro-diaspórico.

Ao nos encontrar com as trajetórias de cada uma das companhias deste


estudo, fomos compreendendo que a formação artística e de vida das artistas
que compõem esses núcleos artísticos vazam para além das simples
nomeações e restrições à determinados estilos de danças. A partir das
encruzilhadas que cada companhia habita, pudemos entender que transitam
pela compreensão do que sejam danças negras contemporâneas, danças afros
ou danças contemporâneas negras, uma vez que cada uma possui um modo
singular de realização de seu trabalho, podendo ou não estabelecer relações
tradicionais de mestre(a) e bailarino(a). Quanto as relações entre criadoras(es),
intérpretes-criadores(as) e artistas da dança, o que possuem em comum é a
prerrogativa de que cada pessoa responsável pela feitura da obra de dança é
uma artista criadora, o que podemos chamar de criadora-intérprete.

Por fim, companhias como a E² Cia de Teatro e Dança e a Nave Gris Cia
Cênica, com artistas criadoras negras, protagonistas de ações poéticas com
visibilidade em espaços onde sujeitos negros(as)(es) não estão presentes ou
que quando estão ocupam os postos subalternizados – como profissionais da
limpeza e segurança -, fazem com que as gerações que estão porvir
vislumbrem o trabalho artístico e a continuidade de uma produção cultural-
artística a partir das experiências e saberes negro-diaspóricas.

583
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Referências bibliográficas

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

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586
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

CORPO NARRADO, CORPO DANÇADO:


PENSANDO AS POÉTICAS NEGRAS NA DANÇA

Kleber Rodrigo Lourenço Silva (UERJ)

Corpas que se encontram.

Fotografia 1 - Fotografia 1 – Os artistas Jow Cordeiro, André Paulino, Kissy Luan, Rafaela
Araújo, Bruno Costa, Fernando Vitor, Ana Musidora e Jessica Maria em cena na residência
artística Corpo narrado, corpo dançado.

Fonte: Clau Magalhães

Somos artistas-criadores negres e realizamos pesquisas artísticas que


buscam falar sobre questões identitárias. Para o antropólogo Nestor García
Canclini (2005) a identidade é uma construção móvel que não se mostra única,
ela é política, é representação e ação.

Nesta dimensão, muitas das reflexões sobre as identidades negras


apresentam perspectivas plurais que desconstroem a ideia de identidade
nacional evidenciada num sistema de representação unificado e que nega os
aspectos de diferenciação cultural. Em prol da pluralidade são reivindicadas

587
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

camadas culturais interseccionais que apontam para a diversidade dos corpos


e suas subjetividades.

A história dos negres nas Américas está atrelada aos processos


migratórios onde as relações com o sagrado foram reinventadas como
símbolos de (re) existência cultural, sobrevivência e construção de linguagem.
No entanto, estes processos violentos de colonização não apagaram do corpo
negre seus signos culturais e a sua dimensão simbólica de alteridade.

Na ação contínua de reparação e reinvenção percebo que o olhar para


as identidades negras têm sido uma temática muito explorada no exercício de
poéticas artísticas. Estas, por sua vez são compostas de simbologias e signos
da tradição afrodiaspóricas, como aponta a pesquisadora Leda Maria Martins
afirmando que, as culturas negras diásporicas se constituíram como lugares de
encruzilhadas compondo uma complexa trama de significados e significantes
traduzidos na textualidade oral, no que ela chama de oralitura da memória.

E é pela via dessas encruzilhadas que também se tece a identidade


afro-brasileira, num processo vital móvel, identidade esta que pode
ser pensada como um tecido e uma textura, nos quais as falas e
gestos mnemônicos dos arquivos orais africanos, no processo
dinâmico de interação com o outro, transformam-se e ritualizam-se,
continuamente, em novos e diferenciados rituais de linguagem e de
expressão, coreografando a singularidade e alteridades negras.
(Martins, 1997, p.26).

Foi buscando circunscrever uma experiência artística com corpos negres


diversos onde a memória e a noção de sujeito estivessem pautadas numa
perspectiva social, política e subjetiva (KILOMBA, 2019), que em janeiro de
2019, na cidade de São Paulo, eu e a dançarina pesquisadora Kanzelumuka
ministramos uma residência em dança para artistas negres, a convite do
projeto Geopoéticas do sul – Encontro Latino-americano de Criação e Gestão
em Dança.265

265
O objetivo de Geopoéticas do Sul – Encontro Latino-americano de Criação e Gestão em
Dança foi o de fortalecer os laços de cooperação no contexto latino-americano, discutir temas
relacionados à criação em dança e apontar caminhos colaborativos que contribuam para
consolidar a rede existente e para o desenvolvimento de novas potencialidades. Aconteceu no
Centro de Referência da Dança de São Paulo entre 28/01 e 16/02/2019 com curadoria e
coordenação dos artistas Marcos Moraes, Uxa Xavier e Marcus Moreno.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Fotografia 2 – Os artistas Jow Cordeiro, André Paulino, Kissy Luan, Rafaela Araújo, Bruno
Costa, Fernando Vitor, Ana Musidora e Jessica Maria em cena na residência artística Corpo
narrado, corpo dançado.

Fonte: Clau Magalhães

O objetivo desse texto é relatar aspectos desta experiência prática,


dialogando com referenciais teóricos sobre estética negra e pedagogia
decolonial. Quem são as corpas negres que dançam? Que danças habitam
suas histórias? O que propõe uma poética de dança negra? A dança negra
contemporânea é dançada por corpas não-negres? Estas e outras perguntas
que surgiram durante o processo, foram alguns dos dispositivos lançados para
refletir o exercício de criação em dança negra na contemporaneidade.

Um primeiro aspecto a destacar é que a residência foi oferecida para


artistas que se autodeclarassem negres. Este, também, como um dispositivo
de provocação para pensarmos juntes as experiências de quem vive na pele as
noções de negritude, evitando assim, que as narrativas negres fossem tratadas
como códigos fixos a serem representados por qualquer corpo, e nesse caso, o
branco, que já ocupa um lugar hegemônico onde lhe é autorizado vivenciar e
manipular as experiências de outras corpas, povos e culturas.

589
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Esta abordagem racial como critério de seleção e provocação artística


foi uma das maneiras de perceber quais especificidades surgem desse
encontro e, que podem potencializar, por exemplo, discussão acerca do uso do
termo dança negra contemporânea e as implicações políticas desse tipo de
ação. Para o pesquisador em danças negras Fernando Ferraz:

No ato de nomear também negociamos e constituímos relações de


poder, além de disputarmos o significado, o uso, o controle, a
imposição, a desativação ou o silenciamento da palavra. Afirmar ser
um pesquisador de dança negra aponta e reconhece um caminho
construído por escolhas e envolvimentos, parcerias que convergem
lugares de militância política, poéticas artísticas, estudo da cultura e
simbologia afrodescendente e o anseio por colaborar com um
entendimento plural e ético do que seja arte negra no Brasil. (Ferraz,
2017, p.94).

Foram selecionades dezoito artistas negres com diferentes experiências


em dança para pensarmos os seguintes aspectos dos processos criativos: a
autonomia na criação, as dinâmicas colaborativas, as relações entre coreógrafa
(o) e intérpretes, os repertórios pessoais no processo criativo e coreográfico.

Os encontros duraram dez dias com quatro horas de trabalho diárias.


Dos dezoito selecionades, treze compareceram e nove finalizaram a
residência: Yã Mostachio, Jow Cordeiro, André Paulino, Kissy Luan, Rafaela
Araújo, Bruno Costa, Fernando Vitor, Ana Musidora e Jessica Maria, artistas
negres com identidades de gênero e orientação sexual plurais, residentes em
diferentes regiões do território paulistano.

590
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Narrativas dançadas e compartilhadas.

Fotografia 3 – Os artistas Jow Cordeiro, André Paulino, Kissy Luan, Rafaela Araújo, Bruno
Costa, Ana Musidora e Jessica Maria em cena na residência artística Corpo narrado, corpo
dançado.

Fonte: Clau Magalhâes

A cada dia os encontros começavam com uma roda de chegança, para


compartilhamento das impressões e sensações do corpo naquele dia. O estar
em roda juntes foi pra nós um dispositivo de gira de memórias. Nela, podíamos
ver uns aos outres, ouvir-nes, tocar-nes e preparar o terreno da corpa para as
atividades físicas daquele dia. Era também um dispositivo que conectava as
memórias do passado e do presente.

Diariamente, nessas rodas, compartilhávamos histórias pessoais, como


numa espécie de mapeamento de narrativas pela oralidade. Mapear o corpo
pela oralidade como um caminho de ligação entre os intérpretes foi um dos
nossos procedimentos de criação. Ele foi pensado a partir de estudos sobre o
conceito de oralitura da memória (MARTINS, 1997) e também, dos
pensamentos sobre as corporeidades negras defendidos por Beatriz
Nascimento, que dizia que “o corpo negro se constitui e se redefine na

591
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

experiência da diáspora e na transmigração.” (RATTS, 2006, p.65). Ela falava


sobre um corpo negre histórico e pessoal.

Após a roda, seguíamos para outro trabalho corporal muitas vezes


realizado no contato com as motrizes de danças populares, tais como, a
capoeira, o coco de roda, o maracatu, o jongo, a ciranda e a congada. Com
estas vivências buscávamos despertar as corpas para princípios técnicos de
enraizamentos do pés no chão, organização do eixo corporal, peso e irradiação
da energia no espaço. A consciência destes princípios era despertada como
treinamento físico que levava ao movimento dançado.

Para nós, a roda, os pés que organizam o eixo das corpas, as danças do
imaginário popular negre, a vocalidade emitida no cantar, eram princípios
norteadores para a noção de memória e oralidade que iriam construir uma
dramaturgia cênica. Estes materiais faziam parte dos exercícios diários de
trabalho.

Os procedimentos estimulavam a percepção de uma memória já vivida


pelo corpo e colocavam as (os) intérpretes em conexão com o seu repertório
pessoal. Também realizamos treinamentos corporais que partiam de exercícios
técnicos da dança moderna, que inevitavelmente aparecem na nossa formação
de dançarinos no ocidente e que, hoje, buscamos entender e ressignificar em
práticas como essa.

Fizemos laboratórios de improvisação partindo de temas como: a


assunção do próprio nome, as vivências pessoais de negritude e a noção de
aquilombamento. Todos os procedimentos apontavam para a construção de
narrativas pessoais dançadas individualmente e coletivamente, numa ação de
contaminação da história do outro.

Estarmos ali juntes, foi pra nós um exercício dançado de


aquilombamento, trazido pela definição da historiadora Beatriz Nascimento:

A investigação sobre quilombo se baseia e parte da questão do


poder. Por mais que um sistema social domine é possível que se crie
aí dentro um sistema diferencial e é isso que o quilombo é. Só que
não é um estado de poder no sentido que a gente entende, poder
político, poder de dominação. Porque ele não tem essa perspectiva,

592
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

cada indivíduo é o poder, cada indivíduo é o quilombo. (Nascimento,


2018, p.334).

Esse encontro foi para nós um exercício de poder. Demonstra uma


atuação com esfera subjetiva e política na produção em dança contemporânea.

Também como aspectos metodológicos, utilizamos procedimentos


criativos inspirados no conceito de Artetnografia. Este conceito foi elaborado
pela artista e pesquisadora Luciana Lyra inspirado nos estudos da antropologia
da performance e aponta que:

Por ter o corpo dos artetnógrafos como palco da experiência, a


artetnografia busca estimular processos criativos autorais, partindo de
camadas pessoais para criação, em que individuar-se é galgar um
caminho ao outro, em que a atuação performática desvela-se como
método de instauração de índices de corporalidade na relação com o
outro, desvelando o artetnógrafo como um ator de f(r)icção, uma
espécie de cartógrafo que vai traçando paisagens na relação com a
alteridade. (Lyra, 2013, p. 407).

Para nós era importante que os residentes pensassem como um artista


de f(r)icção que constrói diálogos entre eus e outres. E realizamos também,
vivências a partir de obras das artistas Juçara Marçal, Rosana Paulino e uma
interlocução criada com o filme documentário Ôrí, dirigido por Raquel Gerber e
com roteiro, texto e narração de Beatriz Nascimento.

Ôrí, esse processo de fazer a cabeça, fazer o Bôrí, Então, toda a


dinâmica deste nome mítico, religioso, oculto que é o Ôrí, se projeta a
partir das diferenças, dos rompimentos numa outra unidade, na
unidade primordial que é a cabeça, que é o núcleo, o quilombo é o
núcleo. (Nascimento, 2018, p.334).

No final da residência, apresentamos ao público um exercício cênico


com a organização dramatúrgica de todas as vivências realizadas e das
narrativas produzidas pelos artistas-criadores. Esta etapa de compartilhamento
celebrou o encontro e dividiu a experiência como ato de comunhão.

Complementando as reflexões sobre a definição de dança negra que


traz no seu conceito o reconhecimento de matrizes das danças africanas e
afrodiaspóricas, propusemos pensar a existência da pessoa negra que dança
como corporeidade fundamental nos processos criativos cênicos. Sujeites
negres que a partir da sua relação em comunidade e seus diferentes contextos,
suas identidades e subjetividades, reelaboram e transformam tais matrizes em

593
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

narrativas pessoais, potencializando um novo complexo epistêmico dentro do


panorama de descolonização nas artes.

Por fim, trago para este texto os recentes depoimentos de dois artistas
participantes, Jessica Maria e Fernando Vítor, que generosamente
compartilharam comigo reverberações da residência em suas vidas:

Jessica Maria – 28 anos

Fotografia 4 – Jessica Maria, Bruno Costa e Kissy Luan em cena.

Fonte: Clau Magalhâes

Olhando agora, percebo que foi uma experiência transformadora em


vários aspectos. Desde o momento da inscrição, quando uma das questões
era: "você se considera uma individua negra, por quê?", já comecei precisando
elaborar algo que até então ainda verbalizava pouco, por vários processos de
enbranquecimento e redescobertas no caminho. Daquele momento em diante,
passei a me entender mais segura e convicta enquanto mulher parda periférica,
ainda que o "parda" continue me soando meio atravessado.

Todos os trabalhos de técnica de repertórios e improvisos me trouxeram


novos apontamentos e desafios, mesmo alguns códigos que eu já reconhecia

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

tiveram uma abordagem nova e enriquecedora, nada me foi trivial. Os


exercícios de postura pra cena, olhar, presença, atenção, conexão com o
coletivo, etc contribuíram imensamente pro meu fazer artístico, inclusive pro
meu TCC em dança, uma vez que o palco, a cena e me colocar em evidência
de maneira geral, sempre eram motivo de pavor pra mim.

Dois pontos ficaram bastante fortes na minha memória:

1. Quando começamos a estruturar as propostas individuais, minhas


falas eram muito subjetivas e "rococó", uma tentativa de parecer confiante e
profunda, dentro do que eu tinha como ideal de artista contemporânea. Lembro
de Kleber e Kanzelu falando "tá, agora menos, o que vc realmente quer", e isso
é um aprendizado que eu carrego pra vida, a materialidade, o palpável, o que
eu efetivamente quero e consigo no momento, o contemporâneo que deve
estar no fazer e não no clichê.

2. Foi num dos experimentos, quando tínhamos que falar nosso nome
em meio a uma movimentação de "queda e recuperação", que eu me descobri
"Maria", o nome Jéssica me soava estranho naquele contexto por mais que eu
tentasse, e Maria de repente era o que fazia sentido. Quando criança odiava
ser Jéssica Maria, era motivo de chacota, achava "feio, nome de pobre" (como
se eu fosse rycah rs). Todas as mulheres da minha família tem esse Maria
como segundo nome, e durante a residência eu de fato des-cobri a narrativa,
ou pelo menos uma das, que o meu corpo tem pra contar. Hoje sou Jéssica
Maria, grata e orgulhosa de todas as Marias que carrego e me carregaram até
aqui.

595
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Fernando Vítor – 22 anos.

Fotografia 5 – O artista Fernando Vítor em cena.

Fonte: Clau Magalhães

O que vejo de mais rico na minha experiência dentro da residência foi a


de me reconhecer enquanto caminho, processo e soma de tudo o que eu já
vivi, e tudo que herdo de quem esteve ligado a mim. Digo isso no sentido de

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

que, eu sou um homem, preto e gay de 22 anos com alguma bagagem em


dança, e teatro, não me vejo um super bailarino, mas tenho um caminho
trilhado já. É claro, esse caminho foi trilhado com professores brancos, em
técnicas "brancas", mas dançar ali não foi em momento nenhum jogar isso fora
para descobrir o Fernando que dança uma dança "negra", mas fui eu dançar,
dançar como me senti estimulado e livre pra fazer, usando o que está em mim
e o que eu sou, sejam todas as aulas de ballet e Graham, sejam o que você e a
Kanzelu me provocaram. Ver-me como esse todo é o que me fez daí em
diante, pisar nas minhas aulas "brancas" diferente, mais eu. Não sei se as
propostas de vocês entram nas minúcias do que gostariam de nós, mas para
mim, descobrir que sou soma e não subtração, que todas essas coisas,
professores e experiências não anulam o que sinto, o racismo, os conflitos
diversos, mas somam, me faz me sentir mais completo. E desse jeito, também
estive mais solto, esses dias na residência foram justamente quebrando
barreiras, abrindo espaços para me sentir dançando algo meu, aquela cena era
minha. Digo isso porque essa forma também é a forma de eu me manifestar
perante as minhas narrativas pessoais, porque existem várias dores, mas
perceber o quão forte eu posso ser para lidar com elas me faz olhar para isso,
pra essa força que eu quero usar ao máximo na minha dança.

Considerações finais.

Cada corpo carrega uma história. E ainda que não pareça cada negre é
um negre. A dança negra é plural, pois, os corpos não são iguais, assim como,
os tons da pele e os contextos de vivência destes corpos. Isto determina
diferenças no mover-se, no estar junto, no existir e no criar em dança. Porém,
em vários lugares essas diferenças convergem formando um todo para uma
ação de resistência, que evidencia uma dimensão política. Resistência na vida
e na arte também, porque buscamos romper um espaço de criação que é
hegemônico e quer padronizar corpos mantendo-os como subalternos.

Essas dramaturgias negrxs são plurais, relacionais e políticas, pois,


partem das individualidades destes sujeites ocupando espaços coletivos de
criação. Para pensar as danças negras faz-se necessário considerar estas

597
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

narrativas pessoais e os seus contextos que são cheios de singularidades, ou


seja, considerar as experiências das pessoas que dançam como motrizes para
a criação.

Colocamos em foco a criadore negre que não anula a sua corporeidade


em detrimento de uma técnica de dança ou formas estabelecidas do que é
considerado ‘legítimo’ na dança contemporânea. Fica claro, ou melhor, escuro,
que estas subjetividades, que antes de tudo ganham potência política,
expressam outros imaginários e discursos do corpo. A dança “contemporânea”
precisa se abrir para novas leituras e modos de existir, construindo ações de
reparação histórica.

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Tradução: Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

LYRA, Luciana de Fátima Rocha Pereira de. Da artetnografia à mitodologia em


artes cênicas: a máscara-mangue em duas experiências performáticas. In:
DAWSEY, John et al. (org). Antropologia e Performance: ensaios Napedra.
São Paulo: Terceiro Nome, 2013. p. 391-410.

MARTINS, Leda Maria. Afrografias da memória: o Reinado do Rosário do


Jatobá. São Paulo: Perspectiva; Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
(Coleção Perspectiva).

598
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

NASCIMENTO, Beatriz. Quilombola e Intelectual. Possibilidades nos dias


da destruição. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018. 488 p. 1ª
edição.

RATTS, Alex. Eu sou Atlântica. Sobre a trajetória de vida de Beatriz


Nascimento. São Paulo: Instituto Kuanza, 2006.

599
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

DESOBEDIÊNCIAS POÉTICAS:
AS TRAMAS DAS NARRATIVAS CORPORAIS E SEU LUGAR DO DEVIR

Fernanda Silva dos Santos (UFBA)

O objetivo desse texto é projetar os estudos da Dança Criativa


fundamentada e organizada para o sujeito social coletivo (mulheres), aplicada
como práticas artísticas na (re)construção de espaços terapêuticos.
Considerando ser uma ação artístico-pedagógica, pretendo aprofundar ao
longo da pesquisa, os conceitos de ARTivismo Feminista como um
potencializador político aludindo a noção de corpo como máquina de guerra de
enfrentamentos e emancipação; e a dança como lugar de investigação e
descobertas dentro do universo das práticas artísticas no corpo, recorrendo aos
estudos interdisciplinares na Política, Psicologia e Sociedade.

Os estudos são pautados na hipótese que os Encontros na prática da


dança criacional e seu compartilhamento de narrativas corporais, dentro de
uma Perspectiva Artivista Feminista, como sendo, balsâmica, didática e
terapêutica. “Quais são as narrativas que não são contadas?” É um texto que
convoca a refletir os atravessamentos ao se manifestarem na ação de dançar,
para mim, escritas de si moventes e potentes enquanto percepção real e
entendimento da política de cada corpo, um corpo-território (GAGO, 2020).

Byung-Chul Han em Sociedade do Cansaço (2015, p.7), escreveu que:


“Apesar do medo imenso que temos hoje de uma pandemia gripal, não
vivemos numa época viral. [...] Visto a partir da perspectiva patológica, o
começo do século XXI não é definido como bacteriológico nem viral, mas
neuronal”. Lei do engano, Byung Han! Os exatos seis meses de uma Pandemia
por COVID-19, somados a doenças neuronais como, Transtorno de Déficit de
Atenção com Síndrome de Hiperatividade (Tdah), Transtorno de Personalidade
Limítrofe (TPL) ou a Síndrome de Burnout (SB), além de infecções, infartos e
depressões determinam o cenário patológico do começo do século XXI.

600
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E nessa gira, olhamos para o corpo, para funções em que se manifestam


a vida e para as percepções dos atos interiores, dentro de uma Ecopanodemia
onde somos redemoinhos. Quais danças estão por-vir?

Desobediências poéticas: as tramas das narrativas corporais e seu lugar


do devir é um texto que apresenta para a comunidade pesquisadora uma
proposta alternativa de movimento da dança, enquanto ferramenta
arteterapêutica. Escritura que integra uma pesquisa de Doutorado, ainda nos
seus principados, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Dança da
UFBA, orientada pela Drª. Amélia de Souza Conrado. Contextualiza o conceito
de Arte Ativista quanto a sua origem e implicação no Brasil e aponta uma
estrutura basilar teórico-metodológica de uma potencial construção feminista
no campo - Artivismo em Dança.

Essa manifestação de corpo emergente e insurgente está instaurada na


sociedade do cansaço, ameaçada por uma infestação virológica e um sistema
econômico colapsado, incompreendida por uma sociedade que nos leva a mais
ou menos de nós. Tamanho é o nosso entendimento em sermos tão positivos e
ativos a todo o tempo, exigente de si e do outro, nos reduzimos em produtos de
desempenho e alta performance. Desse modo, na sociedade que construímos
e que, do mesmo modo nos constrói capitalista neoliberal, autodesempenho e
eficiência são os excessos de positividade que acumulam cansaço e
esgotamentos, irrompendo em doenças neuronais. Estados psíquicos
provocados pelo empobrecimento em negatividade (ter tempo sobrando pra o
ócio) e o excesso de positividade (elevação do desempenho), criam corpos em
adoecimento.

Mesmo em arranjos sociais de cansaço em sítio epidemiológico,


reabrindo e recuando por entre procedimentos e protocolos, ausente na política
do cuidado, o corpo em vida sendo invadido por intrusos ou possíveis
hospedeiros, ameaças empilhadas no confinamento de lares, um cansaço
solitário que atua individualizando e isolando, ainda que, em estados de crises
haverá no entre, uma potência de vida.

A segunda década do século XXI é marcada por uma profunda crise do


capitalismo global, omissão de políticas efetivas de controle de uma crise

601
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

ambiental sem precedentes (aquecimento global, queimadas, contaminação,


devastação da vegetação, excesso da queima de fontes de energia não
renováveis e consequente elevação de gases nocivos poluentes, etc.), retrato
inédito do desgaste das formas de democracia representativa, além de menor
investimento nas políticas públicas para as Artes e o corte financeiro em
bilhões para a Educação.

É neste panorama político e econômico do país que questões e tensões


em descompassos sociais acirram desigualdades já antes instauradas. E para
tal condição, Gago (2020, p.12), nos desperta para um pensar situado que é
também um pensar feminista, assim como parcial, mais ainda no sentido de
perspectiva específica adimensional que singulariza uma experiência. “Porque
se algo nos ensinou a história das rebeldias, de suas conquistas e fracassos, é
que a potência do pensamento sempre tem corpo. E nesse corpo se
congregam experiências, expectativas, recursos, trajetórias e memórias”.

Este contexto, que mostra as feministas tomadas pela urgência de


enfrentamentos do retrocesso político representado pela ascensão de uma
direita conservadora, traz ainda a surpresa com as novas linguagens políticas
marcadas pelo ativismo midiático, mais afeitas à lógica insurgente do que
revolucionária, que explodem em 2013. Tudo leva a pensar suas práticas,
sejam elas políticas ou teóricas. Esse novo sujeito social desponta hoje na luta
por direitos fundamentais desvinculados de partidos ou ideologias. As
mudanças são muitas, as interpelações a antigos paradigmas crescem,
desestabilizando práticas e valores políticos.

E não sou uma mulher ?

Pensando que nem toda mulher é apresentada aos gatilhos de


transformação social e sendo essa uma escritura em dança destinada a
TODAS as mulheres (im) possíveis, o ativismo tem como ponto estratégico
unificar o pessoal e o coletivo. E é se reconhecendo como sujeitos sociais que
solicitam por direitos de seus corpos pleiteando igualdade social, serviços,
direitos humanos. Desliga-se da ideia de universal abstrato para o universal

602
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concreto. Assim o é ainda a linguagem política da chamada quarta onda do


feminismo.

De um olhar colonizador para nossos corpos, produções e saberes, além


de contrapor esse olhar, é preciso que partamos de outros pontos, explica
Djamila Ribeiro (2019). Para tanto, os estudos feministas de Verónica Gago
(2020), nos desloca para a noção do corpo como campo de batalha sendo o
corpo das mulheres como território de conquistas. A autora apresenta dois
pontos de vista, quando: a ideia-força de corpo-território como exploração dos
territórios de modo neoextrativistas reconfigurando a exploração do trabalho
hoje e cartografando a espoliação dos bens comuns, expande o modo de “ver”
corpos experimentados como territórios vividos, revelando batalhas,
sinalizando um campo de forças, tornando-o sensível e nítido a partir da
conflituosidade. Em que, segundo ela:

Corpo-território é um conceito político que evidencia como a


exploração dos territórios comuns e comunitários (urbanos,
suburbanos, camponeses e indígenas) implica violentar o corpo de
cada um e o corpo coletivo por meio da espoliação. [...] Corpo-
território como única palavra desliberaliza a noção do corpo como
propriedade individual e específica uma continuidade política,
produtiva e epistêmica do corpo enquanto território. (GAGO, 2020,
p.106-107)

De que maneira, como orientadora de uma prática arte pedagógica,


acesso camadas sociais, desobedecendo à naturalização da violência contra
os corpos femininos e/ou feminilizados? Gago (2020, p.105), recorre a Maria
Mies, Veronika Bennholdt – Thomsen e Claudia Von Werlhof (1988), ao
‘refletirem sobre as mulheres como “colônias”, territórios de saqueio dos quais
se extrai riqueza por meio da violência’. A relação entre corpo feminino e
colônia vincula o que o ‘capital explora como “recurso grátis” no trabalho
doméstico, no trabalho camponês e no trabalho de quem mora nas periferias
das cidades’, uma exploração que se configura, ao mesmo tempo, colonial e
heteropatriarcal.

Deste modo, deslocando saberes, o que é Artivismo? Como entendo


Artivismo feminista? Quais parâmetros situam Artivismos em Dança? Essas
são algumas questões a serem analisadas ao longo da pesquisa.
603
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

ARTvismo Feminista

O termo Artevismo surge nos EUA, a partir da primeira década do


século XXI, em pequenos círculos de estudantes de meios artísticos e
acadêmicos. Compreende artistas e coletivos que possuem propostas políticas
mais explicitas, se utilizam de diversas linguagens artísticas, valorizando o
corpo, estimulando os potenciais da arte enquanto ato de resistência e
subversão para problematizar as normas de gênero e sexualidade, em nosso
país nos últimos 10 a 15 anos.

Nos estudos sobre dissidentes na cena do Teatro, desvelados por Trói


(2019, p.45), no Brasil, a relação entre gênero, sexualidade, arte e ativismo
passou a ser um grande campo de pesquisa e o núcleo de pesquisa e
extensão em culturas, gêneros e sexualidades (NuCuS)266 é um dos pioneiros
dessas investigações. Ainda mais, corrobora com os estudos sobre o Artivismo
não ser um termo consensual e da convicção de que o queer nasce do lugar da
ofensa, estranheza, da marginalidade e invisibilidade das narrativas de
travestis. Contextualiza historicamente como os caminhos entre a arte e
ativismo se transpassaram:

As relações entre a arte e ativismo remontaram ao século XIX,


principalmente ligadas às produções do romantismo e do realismo,
passando pelo movimento dos direitos civis da segunda metade do
século XX, ao evento mundial de Maio de 1968 e, mais recentemente,
ao novo ativismo, como as marchas antiglobalização do final dos
anos 1990 e, já no século XXI, com ocupações, como a Primavera
Árabe e Occupy Wall Street, nos quais a presença do corpo torna-se
premissa fundamental para desafiar o poder. (TRÓI, 2019, p.44)

266
O grupo de pesquisa em Cultura e Sexualidade (CuS) foi criado em 207 e, em 2018, se
transformou em Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gênero e Sexualidades (NuCus),
com cinco linhas de pesquisas específicas – artes; educação;lesbianidades estudos trans,
travestis e intersexo; e processo de subjetivação e raça.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

O termo igualmente foi identificado nos Estudos Interdisciplinares sobre


Mulher, Gênero e Feminismo das pesquisadoras da UFBA, Carolinne Barreto e
Laila Rosa. Reflexão representativa de uma corrente acadêmica baiana,
partindo de perspectivas teóricas feministas decoloniais e combinadas a
inovações metodológicas que trazem a arte como crítica e subversão 267.

Entretanto, há de se ter cautela quanto ao termo, conceitos e aparições


no cenário ativista, pois se valendo de estudos mais aprofundados,
principalmente na área da dança, não compreendemos sobre seus potenciais e
limites, nem mesmo de suas estratégias poéticas e performativas, por exemplo.

Como diferentes grupos focais, a partir de abordagens específicas dos


processos criativos em dança, amparadas pela Psicologia social, Estudos
Feministas, metodologias no ensino-aprendizagem, entendem, congregam,
solucionam situações-problema no/do corpo? Em que medida ações políticas
que dançam, promove socialização, reabilitação de mulheres com experiências
traumáticas, através de uma dança remanescente e afrorreferenciada que
acionam e (re) constroem os sujeitos sociais? Nesse momento, mais do que
pretender respostas, as inquietações reviram o corpo desta pesquisa, levanta a
poeira para no futuro incerto seguir a investigação com a prática no campo.

ARTISTA EM SITUAÇÃO PEDAGÓGICA

Para Neves e Nogueira (2003), a complexidade da investigação feminista


faz com que este processo reflexivo seja aplicado a vários aspectos da sua
realização, desde a condução da investigação, o lugar da investigadora na
investigação, a relação da investigadora com as outras da investigação, sua
posição filosófica e a natureza do conhecimento, assim como da elaboração
dos documentos de trabalho, até o impacto da investigação nas investigadas.

Conciliar em busca de um equilíbrio de potência uma produção criativa


contemporânea que se aponta inovador é um meio de me inserir e ser
267
GROSSI, Miriam Pillar; BONETTI, Alinne de Lima. (Org.). Caminhos Feministas no Brasil. Teorias e
movimentos sociais. 1º edição. Tubarão (SC): Copiart: Florianópolis (SC): Tribo da Ilha, 2018.

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

representada na dança como área de conhecimento ao saber de sua potência


cognitiva e criativa. Que questões me afetam e como sou afetada, me
compondo e atravessando sobre política, processos artístico-educacionais,
como artista em situação pedagógica? Sobre como o conceito de corpo-
território dialoga com os atos externos, Verónica Gago nos diz:

O corpo se revela, assim, composição de afetos, recursos e


possibilidades que não são “individuas”, mas se singularizam, porque
passam pelo corpo de cada um na medida em que cada corpo nunca
é só “um”, mas o é sempre com outros, e com outras forças também
não humanas. (GAGO, 2020, p.107).

Proposição implicada politicamente no corpo, na educação, no


movimento social e cultural da cidade, cartografo o próprio percurso e
complexidade da pesquisa, por vezes, operando essa máquina de guerra.
Aponta-se como lugar de eterna aprendências, sendo muitas e representando
todas, integrando a professora, a ativista e a arteterapeuta em dança.
Assumindo um lugar de desafios e consequências, rebelde que sou.
Revolucionárias que somos. O que retrataria se esse movimento artivista
feminista pudesse produzir suas próprias máquinas de justiça?

T.A.P.A Arterapia

É um movimento contemporâneo de dança em cruzamento com a


Psicologia Feminista, compreendendo a Dança Criativa como proposta
alternativa Arterapêutica, desde 2019. Corresponde ao movimento de Terapia
Artivista da Potência dos Afetos destinada a práticas artísticas terapêuticas
com/na dança.

É um estudo investigativo a partir da intervenção em grupos focais, com


o interesse de aplicar e desenvolver uma proposta de dança antes de tudo
insubmisso, pois pretende um bando em movimento opondo-se a um
comportamento aludido pela égide do colonizador; Artivista, desestabilizando a

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

política da ordem posta enquanto sociedade, vindo a ser um lugar de


problematização da arte, enquanto ação política do/no/ com o corpo, e,
sobretudo, configura-se pelo estado de ser feminista, movimento social,
filosófico e político empenhado a contemplar mulheres negras, indígenas,
quilombolas, LGBTs, gordas, deficientes, autistas, entre outras.

Proposta dançaterapêutica onde o corpo ensaia repetidamente um


comportamento de reconhecer suas potencialidades pessoais e aprimorar seus
relacionamentos interpessoais e que, por isso também, considerada exercício
pedagógico e psicoterapêutico. A seguir, essa é uma estrutura basilar teórico-
metodológica da minha pesquisa-ação-vida em que evidencia as
especificidades dos campos de conhecimentos do movimento T.A.P.A
Arteterapia. Consiste em um mecanismo de engrenagem epistemológico que
considera uma atuação ativista na dança aplicado em ambientes terapêuticos.

Gráfico 1 – Organograma das bases fundantes sobre a produção de Artivismo em Dança,


projetado pelo interior do movimento T.A.P.A Arteterapia

Organograma idealizado pela autora desta pesquisa, 2020.

607
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Dança política do corpo, Psicologia Feminista e Educação Libertária

Há uma guerra no e contra o corpo das mulheres e a política emergente


em que a Dança Criativa manifesta-se como uma dança política do corpo
projetada como lugar de implicações e reverberações, centrada em
problemáticas que ferem a nossa existência e questões que afetam um corpo
em estado de vulnerabilidade. As aplicações dos Encontros tornam-se
oportunidades corporais de devolutivas de nossos territórios saqueados e o
que dele foi extraviado violentamente, além de, se converter em possibilidades
de relações de afeto individual/coletivo enquanto espaço de colaboração e
dissenso.

A criatividade é encorajada quando direcionada a aprender algo novo,


desconhecido anteriormente. Em que, para os estudos do movimento da
Capoeira e da influência de Danças Afroindígenasbrasileiras - manifestações
culturais enraizadas na sociedade baiana/brasileira-, aqui encorpando uma
articulação de saberes artísticos e saberes pedagógicos, induzida em
processos de investigação e improvisação em dança. Utilizando sua
capacidade de percepção real, para tal, um corpo disposto de maneira atenta,
inventiva, alerta, consciente e sensível.

Assim como, no capítulo II, do livro de Verónica Gago em que a autora


fala em um estado de guerra ao analisar a escalada de morte de mulheres,
lésbicas, trans e travestis268 na sociedade patriarcalista, nos salienta sobre um
ponto inovador de uma redefinição das violências, e ao compreender assim,
damos aos questionamentos uma ancoragem, material, próxima, corpórea:

as violências contra o corpo das mulheres e os corpos feminilizados


são lidas a partir de uma situação singular – o corpo de cada uma -,
para então produzirem uma compreensão da violência como
fenômeno total. O corpo de cada uma, como trajetória e experiência,
só torna assim via de acesso, um modo concreto de localização, a
partir do qual se produz um ponto de vista específico: como se
expressa a violência, com a reconhecemos, como a combatemos,
como ela se singulariza no corpo de cada uma? (GAGO, 2020, p.73)

268
80% delas nas mãos de amantes, namorados, maridos, ex ou atuais.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Ao deslocar o olhar para as experiências individuais podemos mapear


as violências a partir de sua conexão orgânica, sem perder de vista as
singularidades de como se produz o elo entre cada uma, permitindo produzir
uma linguagem que vai além de catalogar as mulheres como vítimas. E para,
além disso, como será produzir formas de autodefesa ou o que será
característico dos resultados da ação dessa dança em grupos de mulheres
vítimas de violências na cidade de Salvador?

A Psicologia é uma ciência que estuda os atos internos, seu


desenvolvimento, suas origens, sua produção, sua natureza e suas leis. Ela
pode ser perceptiva, analítica ou descritiva e compreende em sua essência
tanto os atos externos como internos. Para tanto, NOGUEIRA (2017, p.103),
nos diz que o conhecimento é aquilo que concordamos ser uma verdade, em
que, gênero não é um fenômeno que existe dentro dos indivíduos, pelo
contrário, é um acordo que constrói arranjos sociais: é precisamente aquilo que
concordamos que seja. Assumindo para si próprios e internalizando traços,
comportamentos e papéis normativos para as pessoas do seu sexo, na sua
cultura, modelando e disciplinando a nossa imaginação. As mulheres
internalizam também a sua desvalorização e subordinação.

As terapias feministas que surgem na segunda onda dos movimentos


feministas nascem da possibilidade de discussão das suas histórias de vida e
das suas vivências sociais, resultado de uma conscientização coletiva de que
as expectativas sobre os papéis de gênero atribuídos a homens e mulheres
geravam discriminações, injustiças e assimetrias várias para as mulheres,
reafirmando a ideia de que o ‘’Pessoal é Político’’.

Fez necessário pensar uma psicologia que atendesse a uma demanda


feminista rompendo assim com a parcialidade, avaliando as violências contra
as mulheres na intimidade, e planear desse modo, a (re) construção de
espaços terapêuticos. Interesse esse que progressivamente se torna extensivo
a Psicologia e as suas áreas de investigação e de intervenção, assim como a
Dança, como relevante ferramenta arteterapêutica.

Atrelado a esse movimento feminista na Psicologia, se pensarmos que a


pedagogia estuda a faculdade do espírito humano em relação com a educação,

609
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

quanto mais desenvolvermos um pensamento crítico através de uma


pedagogia engajada, a educação será uma prática libertadora, horizontalizada
e consequentemente transgressora .Assim como em acordo com os princípio
de hooks (2020, p.267), em que numa “sociedade fundamentalmente anti-
intelectual, o pensamento crítico não é encorajado, seu compromisso com a
pedagogia engajada é uma expressão de ativismo político.

Como artista docente em dança, numa tentativa de articular os saberes


artísticos pergunto o quanto a Arte pode aprender com a educação. Revezo
esses lugares como professora, artista, pesquisadora, entre leituras de si e do
mundo. Em conchavos, de modos de sobrevivência para compor grupalidades
e territórios de si, em que o ensinar e criar se comunicam e a criação afirma-se
uma prática indissociável de uma precarização, refletida em processos de
cognição do corpo em passo de dança. E mesmo Gago (2020) nos fala sobre
análise e condições de cada corpo tornando o feminismo e do mesmo modo, o
movimento T.A.P.A Arteterapia, diferente de outras políticas que se consideram
de esquerda, pois ele:

Não despoja os corpos de sua indeterminação, de seu não saber, de


seu sonhar encarnado, de sua Potência obscura. Por isso, trabalha
no plano plástico, frágil e, ao mesmo tempo, mobilizador da
espiritualidade. [...] a espiritualidade é uma forma de sublevação, é a
única racionalidade que nos liberta – e que nos liberta sem nos tornar
sujeitos puros, heroicos ou bons. (GAGO, 2020, p.261)

Pergunto que questões podem ser suscitadas em termos de


aprendizagens inventivas e possíveis significados, uma arte comprometida em
problematizar questões políticas do corpo emergentes para a ascensão de
políticas do cuidado. É o corpo lugar de rever paradigmas em que, nesta
pesquisa transpassa a ideia de indivíduo, materializando, constituindo-se e
representando corpos institucionais, espaços políticos, uma massa coletiva,
uma expansão ideológica. Os espaços terapêuticos alternativos existindo como
lugar de vivenciar corpo em suas experiências políticas e cognitivas, de
construção de saberes e modos de subjetivação do sujeito.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Distingue-se por ser ambiente criador de uma educação transgressora,


portando libertária. Espaço também de formação, troca e constrói
conhecimento enxergando o outro como legítimo, proporcionando uma
educação que estimule o desenvolvimento de sujeitos críticos, inventivos em
uma emancipação coletiva. Abaixo, Leiro descreve o poder transformador de
uma experiência e suas consequentes decisões na vida de uma mulher:

“As experiências da mulher tanto no que diz respeito a sua


sexualidade quanto a trabalho profissional, só se tornaram possíveis
porque algumas ousaram des-ligar-se de um modelo que limitava
seus espaços de ação. Algumas delas continuaram enredadas em
vozes que se multiplicaram vigilantes e punitivas enquanto outras
transgrediram e experimentaram os desafios e as consequências”.
(LEIRO, 2000, p. 196)

O pensamento da autora me desloca novamente a potência feminista de


ser essa Dança Criativa uma possibilidade de transformação emancipatória.
Sobre um lugar do devir que é o corpo, um espírito político não dissociado da
própria matéria, uma potência do vir a ser. Um corpo que é afetado pelo mundo
(crise, vulnerabilidade, violências, dúvidas) em que afirma a Vida como
Potência.

Corpo-território, Decolonialidade e Pensamento Afro-Diaspórico

Tomar de assalto a violência e opressão dos processos colonizadores


que agitaram e agigantaram um campo de reflexão com o qual o feminismo
passa a conversar. Heloísa Buarque fala de um, feminismo eurocentrado e
civilizacional que começa a ser visto como um “modo de opressão alinhado ao
que rejeita, uma branquitude patriarcal e informado na autoridade e na
colonialidade de poderes e saberes”. (HOLLANDA, 2020, p.12). O feminismo
decolonial nasce de uma emergência histórica, em que se constata à
colonialidade do saber e aponta caminhos de avanço político no eixo latino-
americano. Propõe-se a revisar radicalmente epistemologias das teorias
feministas eurocentradas, pondo fim a divisão entre teoria e ativismo, traço de
nossos feminismos desde o início.

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Estudos feministas, decolonialidade e pensamento afrodiaspórico são


perspectivas estruturantes, pois, esse corpo manifesto artivista, convoca
realidades pessoais e sociais, além de questões derivadas das configurações
em dança contemporânea, na qualidade de corpos políticos. Esse corpo
evidencia a expressividade no teor discursivo feminista do se fazer-dizer que
perpassa gênero na sociedade e a Interseccionalidade (Akotirene, 2019) com
outros sistemas de classificação como a “raça” (Ribeiro, 2019), a classe social
e a orientação sexual.

O feminismo atravessa e age em toda a pesquisa como um gatilho. É


com base no princípio de igualdade entre os sexos que as metodologias
feministas pretendem, acima de tudo, a criação de um compromisso científico,
social, cultural e político que legitima e valoriza, numa perspectiva de equidade,
as experiências dos homens e das mulheres, bem como os significados que
homens e mulheres, constroem acerca das suas realidades sociais.

Vem à tona para serem desfiados conceitos da filosofia como o Devir,


movimento permanente e progressivo pelo qual as coisas se transformam, em
que para os estudos de Deleuze e Guattari, relaciona-se a criação contínua do
que não existe ainda. Outro importante conceito é o do Corpo-território e suas
definições provisórias que territorializam, desteritorializam para reterritorializar
um novo espaço, no caso a noção de corpo e de território.

Além disso, como a noção dos Afetos sendo a consciência da


sensibilidade e, neste caso compreendendo ainda os sentimentos, em que
segundo por eles, a força do organismo aumenta ou diminui. E por último, a
concepção de Potência, como ressalta Verónica (2020), “uma discussão em
termos de teoria política a partir de certa leitura de Spinoza. Pode-se dizer que
a potência é uma capacidade de fazer, instituir, afetar e criar que se diferencia
do PODER – este, um grau mínimo de potência”. (GAGO, 2020, p.292).

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Lugar do devir, atravessamentos do corpo e a potência feminista

Sabemos que em quase todas as áreas é possível ver alguma forma de


criatividade onde se valida na percepção sensível do que é novo e diferente do
que é inferido por conhecimento prévio. Vivenciando o instante com os olhos
do agora, fundamental o exercício permanente da percepção real no instante
da experiência para diferenciar entre o fato real e ideias preconcebidas. Sem
essa percepção real, uma pessoa é incapaz de compreender, em qualquer
situação nova, o que é um fato e o que não. No campo de conhecimento da
dança, os aspectos da criatividade se somam a capacidade que a dança tem
em (re) construir ações cognitivas acionando memória afetiva do corpo, em
exercício de (re) ver os atos internos e assim, materializá-los, encarnado em
um corpo que dança (encorpar).

Sendo assim tornando corpo todos os preconceitos, crenças, ideias pré-


estabelecidas, bloqueios, traumas emocionais, etc. Elas corroboram para a
possibilidade de uma atividade criativa e original, que no caso, adentra pela via
encantada do fazer artístico implicado politicamente em estudos de
movimentos de corpos. A Dança vinda a ser realidade transformada pela
percepção sensível é um fenômeno em que as vozes de múltiplos
prolongamentos feministas interseccionais e amplas configurações identitárias,
ávidos, demandam por seu lugar de fala.

O feminismo constrói um movimento transnacional e plurinacional em que


mira atenção na disputa pela soberania de corpos feminilizados, ou seja, de
corpos tutelados. E como coloca Gago (2020, p. 261), “trabalha a partir dos
afetos e das paixões. Abre esse campo espinhoso do desejo, das relações
amorosas, das tramas eróticas, do ritual e da festa, e dos desejos, para além
de seus limiares permitidos”.

Sobre uma perspectiva de vir a ser uma potência feminista, essa escrita
corporificada é fruto de uma manifestação interna sob a constante influência
externa, enquanto desejo de ser. Rejeitando a ideia de minoria e revelando que
o sujeito é uma construção cultural e do discurso, em que, “no jogo da

613
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

presença e da ausência, as lógicas binárias e o “natural” – não passam de


regimes de verdades construídos historicamente”. (TRÓI, 2019, P.45). Numa
reinvenção de si e criação de mundos onde seja possível fazer nossas próprias
políticas sendo manifestada na materialização da dança de um corpo
insubmisso.

Potência feminista é capacidade desejante. Para Gago (2020, p.10)


esse pensamento situado, em que o desejo possui um potencial cognitivo, o
método de trabalho e escrita em consignas estabelecem um deslocamento de
massa situado em uma sequência de lutas, de festas de rua, de vibrações
experienciais e de ressonâncias do grito #NiUnaAMenos [NemUmaaMenos].
Isso implica que o desejo não é o contrário do possível, mas a força que
impulsiona o que é percebido coletivamente e em cada corpo como possível
(GAGO, 2020, p11). E mais, que a potência como a própria noção que vai de
Spinoza a Marx,

nunca existe desapegada de seu lugar de enraizamento , do corpo


que a contém. Por isso, potência feminista é potência do corpo como
corpo sempre individual e coletivo, e em variação; isto é,
singularizado. Mas, além disso, a potência feminista expande o corpo
graças aos modos como é reinventado pelas lutas de mulheres, pelas
lutas feministas e pelas lutas das dissidências sexuais que uma e
outra vez, atualizam essa noção de potência, reescrevendo Spinoza e
Marx (GAGO, 2020, p.11).

Dessa potência indeterminada que se revela no desejo de transformar


tudo, que o Feminismo é rogatório de mundos possíveis. E que, para Márcia
Tiburi (2018), construção conjunta capaz de pensar em um comum que
emancipará a todos. “O feminismo é o campo teórico e prático que pode
realizar uma política com outros referenciais: a natureza, o corpo, o cuidado, a
presença, a vida digna” (2018, p.124).

Preocupada com a sub-representação de grupos sociais que essa


dança contemporânea é pensada para todas as mulheres (im) possíveis. Uma
micropolítica alargando esse movimento democrático e plural e avançando em
contra-poder, sugere a participação, quando pela educação emancipatória,

614
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habitação, justiça ambiental, saúde ou pelo fim do racismo estrutural. Que para
militantes como Cinzia Arruzza, Nancy Fraser e Tithi Bhattacharya é promover
um “outro” feminismo em associação aos ativismos antirracistas,
ambientalistas, trabalhistas e em defesa dos imigrantes. Um feminismo que:

Traz uma definição diferente de termos como “questão feminista”,


uma orientação de classe diferente, um novo ethos radical e
transformador. [...] Com quais mulheres os feminismos dialogam?
Que mulheres cheguem marginalizadas dos feminismos? O
feminismo é realmente popular? (HOLLANDA, 2020, p13)

Um dança política que revele ser um lugar para performar subjetividades,


na gira desobediente, subvertendo em passo anti-colonialista, desorganizando
mecanismos de controle do poder. Constituem experimentos sobre
sujeito/coletividade, colaboração, alteridade, traçando novos diálogos, na
partilha de narrativas corpoéticas269, acionando memórias e compondo novas
relações afetivas.

Esses Encontros pretendem com isso o fortalecimento de umas às


outras ao dispor em movimentos de dança a ação de compreender e refletir
sobre sua própria escrita de corpo. Sendo a própria Co-cria-Ação, em sua
estética incompleta e transgressora, reinventando mundos pelo o religar do
corpo contemporâneo ao corpo ancestral. Rebelde que sou. Revolucionárias
que somos. Sejamos nosso próprio lugar do Devir. Propagando o Asè.

Referências bibliográficas

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Carneiro; Pólen, 2019.
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– SC: Ed Copiart; Tribo da Ilha, 2018. p.19-32.

269
Corpoéticas é uma terminologia que une em significado de que maneira se manifestae
compreende essas narrativas, esses lugares, que e sua importância na escritura de corpo
quando se deve levar em consideração o corpo, em sua licença poética e em diálogo com o
senso de ética na construção d euma sociedade. Termo cunhado pela autora desse artigo.

615
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

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pedagógica: o ensinar na prática de Lia Rodrigues. Conceição|Concept,
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617
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

SERESTAR CATIRINA:
ATRAVESSAMENTOS NO CORPO DO ATOR-BRINCANTE
Sebastião de Sales Silva (UFBA)

Chegança

Durante a minha infância, minha experiência com a brincadeira se deu


quando escutava a minha mãe falar sobre as marujadas que saíam da
comunidade do Sítio de Santa Cruz, Vera Cruz/RN para as cidades vizinhas.
Lembro-me que uma das noites em que se aproximava o dia do Natal e havia
festa de reis na minha comunidade, eu corri para rua, para ver o Boi de Reis
brincar. O que me mais encantava na brincadeira era a figura do Mateus,
figurado e encorpado na pessoa de “Zé de Moura”270, um brincante e curador
de almas. Cresci e decidi fincar o estandarte de brincante em meio peito, me
vestir de brincadeira e lançar minhas fitas para os terreiros do brincar de
serestar corpo-manifesto, brincante.

Vestir-se da brincadeira é uma construção que tem se dado no meu dia


a dia enquanto pesquisador, intérprete e artista da cena. Sempre estive dentro
desse fazer brincante e a figura da minha mãe atravessa toda essa minha
construção. Não sei se vocês sabem, mas quando um circo chega em uma
cidade do Interior os meninos e meninas correm atrás do velho carro do
palhaço, na tentativa de conseguir um ingresso para a entrar no espetáculo da
noite – puxando pela memória, recordo que eu sempre fui um desses meninos,
corria e corria muito atrás da fantasia e da possibilidade de ser outros, de
brincar de imitar as outras pessoas, foi a partir desse desejo que resolvi montar
no terreiro da minha família um circo.

A alegria, a festa, a fantasia, a imitação, o medo são palavras que


marcam a construção desse corpo-brincante. O circo chegou, fez sua estadia,
trouxe alegria para aquela pequena comunidade do Agreste Potiguar, mas

270
José de Moura Sales, foi agricultor durante toda a sua vida e dedicou-se a brincadeira do Boi
de Reis desde adolescente, viajou pelo Rio Grande do Norte apresentando a sua brincadeira e
fez do folguedo do Boi um meio de aproximar o povo da cultura popular. Ele morou na
comunidade do Sítio de Santa Cruz, Vera Cruz/RN, levando a sua alegria para o povo daquele
lugar. Teve câncer na garganta, morreu e a sua voz, sua dança e suas memórias ficaram
suspensas no ar.

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precisou tirar a bandeira do céu, desfazer as lonas, desmontar as


arquibancadas e tirar o nariz do palhaço – a mística da fantasia se desfazia
perante os meus olhos grandes; via no corpo dos meus colegas a tristeza de
não termos mais o circo. Aquela festa teria um fim e não iríamos nos encontrar
todas as noites em frente a bilheteria com cheiro de pipoca e de algodão doce;
o sorriso largo do palhaço não nos faria mais medo e também não iríamos mais
imitá-lo; foi então que resolvi montar um circo dentro do terreiro da minha
família para poder brincar de outros.

No descortinar das minhas memórias de fitas, a minha mãe sempre foi a


figura que nos apresentou o mundo das brincadeiras. Eu e meus irmãos
(Michele, Allan, Marlon, Marcos e Wander) cada um viveu o seu tempo, a sua
meninice, suas infâncias. Allan virou um anjo, encantou-se. Os demais como
dizemos no interior, cresceram e viraram gente grande; cada um com o
caminho que decidiu construir. Lembro-me de quando resolvi montar o circo
com sacos velhos das casas de farinha, minha família me apoiou em toda essa
construção. Um ajudou a decidir o espaço, o outro na venda dos bilhetes, o
outro a sorrir, a puxar as palmas depois de cada apresentação e minha mãe na
produção das pipocas que vendíamos durante uma cena e outra, o meu pai um
homem sereno, na dele, mas que sempre me ensinou a falar com o corpo;
recebi dele a herança da brincadeira, pois ele já foi brincante de Boi de Reis, fui
o filho escolhido para continuar girando, dançado nas capoeiras a sina do
serestar brincante.

Tudo se constitui a uma construção de pertencimento, de entender que


as cenas que transcorreram a minha infância implicaram na minha formação
enquanto cidadão, artista, pesquisador das artes da cena. Um homem negro
que demorou para se reconhecer como tal, pois tinha medo de sofrer todos os
preconceitos que o meu pai passou e que ainda passa, mas com ele e com a
minha mãe, aprendi a transformar tudo isso! O meu pai foi o cicerone da minha
pesquisa em nível de mestrado e a minha mãe, a minha mestra no doutorado,
acredito e se faz necessário contextualizar como foi atravessado e como a
brincadeira do Boi de Reis costurou as nossas histórias.

619
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Entre Mateus e Catirina

O lugar do entre é um espaço de revelações, de atravessamentos e de


possibilidades para descobertas, magias e encantamentos. Durante a minha
pesquisa de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), dissertei sobre a figura
do Mateus na brincadeira do Boi de Reis, na minha dissertação intitulada como
“SAUDADES Z(É): METAFORIZANDO A CONSTRUÇÃO DO CORPO
BRINCANTE”271, escrevo sobre minhas memórias enquanto ator-pesquisador,
acerca da brincadeira do Boi de Reis da comunidade do Sítio de Santa Cruz,
da Cidade de Vera Cruz/RN. Lanço o olhar sobre a metáfora da construção do
corpo cênico como uma poética, um exercício de arte e que a partir desta
perspectiva se dá a metáfora da construção do corpo do brincante de “Zé de
Moura” enquanto uma pedagogia da cena.

Optamos por um recorte sobre o corpo desse brincante que assumiu


durante muitos anos o personagem do Mateus na brincadeira do Boi de Reis. A
pesquisa atravessou as memórias de um povo, dos brincantes do Boi de Reis e
atravessou o meu corpo me contaminando com a magia da brincadeira.
Durante a pesquisa ancorei as minhas fitas de brincante no processo ritual
(TURNER, 1974), a partir dos conceitos de tempo liminar, estrutura e
antiestrutura e dancei com o texto narrativo da memória como recriação do
vivido (LEONARDELLI, 2008).

E foi no entre de um domingo à tarde, na calçada da casa dos meus pais


sentando na cadeira de balanço com uma xícara de café na mão que o meu pai
começou a perguntar sobre “as coisas da universidade” como ele diz. Comecei
a falar e estava na última etapa da pesquisa, falava sobre o espetáculo
“Saudades Z(é)”, falava de “Zé de Moura” como uma figura importante e que
estava encantado de poder ressignificar, brincar e de serestar o Mateus.

Entre um gole e outro do café, a palavra Zé não saia da minha boca; foi
então que o meu pai fitou os olhos sobre mim e falou: “eu também fui brincante
de Boi de Reis, comecei como galante na fita e com o tempo passei a fazer o

271
Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/123456789/22628?mode=full. Acesso
26 de setembro de 2020.

620
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Mateu, isso faz muito tempo, brinquei pouco, mas brinquei e sabia brincar” –
fiquei entrecortado pela revelação que o meu estava fazendo, abri um sorriso,
arregalei os olhos demonstrando espanto e tudo girou no meu corpo de
menino, continuamos a prosa e outras revelações aconteceram, mas preferi
deixá-las guardadas.

Quando voltei para os laboratórios de criação, a revelação do meu pai


gritava e fazia o meu corpo tremer, ia e voltava com muita facilidade naquele
espaço-tempo da calçada da nossa casa. Meu corpo acessava outros lugares e
passei a entender a revelação como um pulso que precisava ser dançado. Os
atravessamentos se ressignificavam e partir dessa experiência como o meu
pai, compreendi que as marcas que temos em comum fazem parte de um
mapeamento além do código genético, somos muito parecidos fisicamente,
mas a relação de afeto assumiu outro espaço, passei a vê-lo como outro, não
éramos apenas pai e filho – olhava para o meu corpo alto, negro e retilíneo, e
entedia sou a imagem e semelhança! Mas, olhava para a sua história e
compreendia a transgressão e subversão de querer e de pertencer a uma
família de brincantes.

De um lado, fui atravessado pela figura de “Zé de Moura”, do outro pela


figura do meu pai que passou a ser o meu pedagogo da cena, da vida e que se
tornou o meu produtor cultural. O cuidado dele comigo assumiu outro lugar na
cena da vida, ele passou a ser o cuidador das minhas fitas, das minhas
memórias e dos couros de um boi que ainda estava aprendendo a caminhar.
Recomeçamos a construir uma história que não é só nossa, ela se pluraliza, se
ressignifica nas tramas de outras famílias de brincantes.

Nesse sentido, tudo isso atravessa uma questão cultural muito forte,
essa revelação fortalece o nosso vínculo de pai-filho, de brincantes, e registra a
questão da herança cultural das danças e tradições populares que são
passadas de geração em geração. Nessa trama, do sujeito atravessado e
formado por outro, do ceio cultural, comungo com o que a pesquisadora,
professora e intérprete Inaicyra Falcão dos Santos escreve sobre a troca de
experiência como uma pedagogia do sujeito.

O reconhecimento do educador e do educando a partir de suas


experiências e mundos seria uma das formas sadias do trabalho

621
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

educativo criativo, fazendo com que essa realidade possa levar o


educando cônscio a criar o seu próprio caminho de autodescoberta.
(SANTOS, 2002, p.27).

Pois bem, o meu pai me ajudou nessa autodescoberta. Considero que ele
tenha me dado uma das maiores heranças, passou o bastão da brincadeira
para o meu corpo-memória e tudo já estava ali, pulsando, dançando nas
nossas idas aos forrós (que aprendi a dançar com ele – Chico Boi, meu pai. Ele
por sua vez aprendeu a dançar com o meu avô, Sebastião Boi) e que hoje
tenho na minha história essa ancestralidade marcada, dançada e atravessada
de dizer: prazer eu também sou brincante de Boi de Reis, eu também sou Zé,
eu sou Tião do Boi.

No entre de uma história e outra os nossos corpos foram se encontrando


através da dança, sempre saímos juntos para os forrós e ficamos ali por horas
girando pelo espaço, entre um dois pra cá e dois para lá, quem me vê
dançando diz: “é mesmo que está vendo seu Sebastião Boi dançar, é coisa de
família, pois Negão também dança muito bem”. Negão é como o meu pai
Francisco é conhecido na comunidade do Sítio de Santa Cruz. Ele sempre
acreditou nas minhas an(danças) e no dia da minha defesa do mestrado,
chegou para mim e me disse: “filho, eu estou bonito? Hoje eu serei o seu
galante de fita, vamos dança”!?. Ao rememorar esse dia, o meu corpo chora e
recrio a memória do espaço-tempo de serestar filho da cultura, da brincadeira
de Boi de Reis.

Figura 1 – De pai pra filho. Luara Florência Schamó (2017).

622
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Terminei o mestrado e fiquei com essa imagem guardada no meu corpo.


Durante a apresentação do espetáculo “Saudades Z(é)” – fruto da dissertação,
andei marujando por algumas cidades do Rio Grande e andei por algumas
capitais do nordeste. O espetáculo narra, rememora, datilografa, recria o tempo
da brincadeira e a partir dele questões e implicações sobre o meu fazer
artístico, sobre o meu corpo negro na cena foram emergindo, querendo gritar.
A seguir apresento o release do espetáculo que foi de minha criação e
concepção, da minha janela, abro as memórias do tempo e aboio:

Num porta retrato estampado no terreiro do interior, sai um menino


com chocalhos anunciando o Tempo de uma brincadeira chamada de
Boi de Reis. Saudades Z(é), narra a história de um menino brincante
que alumiou o seu corpo com uma lamparina e se projetou nas
memórias atravessadas do Tempo do brincar. Um espetáculo, uma
brincadeira de rua que conta, que revela paisagens do interior: como
o forró de sanfona, a sandália de couro, as fitas bordadas, o Boi, o
menino, os mascarados, o Mestre, o Mateus, a Catirina – a mulher
(trans)vestida de vida e morte. Saudades Z(é) revela as memórias de
um ator-brincante, de um palhaço de nariz e cara preta, que entra e
sai do picadeiro-terreiro e se manifesta na autorrelação do serestar,
em atravessamentos de Saudades Z(é). (Autoria própria).

Na brincadeira do Boi de Reis, a figura do Boi é o elemento central, é o


momento mais esperado por todos que brincam, assistem e conhecem essa
manifestação cultural. No entanto, nas minhas apresentações do espetáculo
Saudades Z(é), a figura da Catirina rouba a cena. Quando ela aparece, ela
provoca manifestações de risos, medos, olhares e desejos no público. Ela
brinca com a plateia, chamando um e outro para o centro da roda, falando do
seu desejo de mulher grávida – que é o de comer a língua de um Boi. Catirina,
brinca com os homens da plateia projetando neles a ideia de que eles podem
ser esse Boi, que brinca, dança, morre e ressuscita. Ela é a mulher que
provoca a morte e a vida na brincadeira.

Nesse sentido, adentro no entre/ventre dessa figura para entender que


questões e implicações são estas que ela irá revelar sobre o meu corpo que
brinca, dança, deseja, queima, mergulha, pulsa e atravessa a história, a
fantasia, a celebração do corpo desse menino que se lança na trama da
brincadeira e faz dela a sua pedagogia para compreender as nuances, as
questões políticas, sociais e culturais de uma brincadeira popular dançada

623
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

tradicionalmente por homens, mas que acessam a energia feminina para


brincar de serestar Catirina.

No entre de uma apresentação e outra do “Saudades Z(é)”, Catirina foi


aparecendo de forma muito transgressora, reverberando no corpo uma
pulsação libidinosa e subversiva – ela deseja comer a língua do boi e eu brinco
e desejo comer a língua do público, sou contagiado e vivo os

pela energia, pelos desejos e pelo corpo da Catirina. Vivo tudo o que o público
me oferece, coloco eles dentro da cena e escuto da plateia “essa Catirina é
danada, e quer logo a língua”. Isso mesmo, ela deseja a língua do Boi mais
bonito da fazenda. Ela está grávida e pede a Mateus que corte a língua para
que o seu filho não nasça com cara de Boi.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Figura – A morte do boi. João Vítor Venâncio (2020).

O desejo da Catirina é uma ação política, ela subverte a ordem da


sociedade patriarcal que manda e desmanda. Ela é quem faz a casa grande
surtar, ela transgredi com o que está posto, ela deseja e o desejo mata a dita
ordem do patrão de Mateus, ela subverte o próprio Mateus e o convida a ser a
antiestrutura chicoteando, cortando, brincando com o bem mais precioso do
seu patrão, o Boi que é uma herança dos senhores passada de pai para filho.
Catirina implica sobre o meu corpo outras questões, vou desejando comer
algumas delas, me ponho a dançar e recrio memórias de um corpo que tem
marcas e tessituras femininas, um corpo ancestral criado pelas minhas avós
(Marina e Maria), pela minha mãe (Janilda), pela minha irmã (Michele) e pela
minha sombrinha (Maria Angelina) – mulheres que povoam o meu imaginário,
que educaram e que ainda educam o meu corpo, que atravessam a minha
história de vida.

A partir desse contexto o artigo Serestar Catirina: atravessamentos no


corpo do ator-brincante apresenta a continuação da minha pesquisa, só que
neste momento em nível de doutoramento em fase inicial, estamos dando os
nossos primeiros passos de um corpo que tenta rememorar as narrativas com
o universo da brincadeira, especificamente com a brincadeira do Boi de Reis.

A intenção de realizar essa pesquisa vislumbra a necessidade de


reconhecer a brincadeira do Boi de Reis da Cidade de Vera Cruz/RN como
uma representação cultural de um povo, do meu povo e como está pesquisa se
encontra e se pluraliza com tantos outros artistas da cena cultural e das

625
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

tradições populares. Tais estudos intencionam também a criação de uma


pedagogia, um campo de pesquisa para os artistas, professores e fazedores da
arte, com o olhar voltado para os intérpretes/brincantes das danças populares.

Muito especialmente, faço um recorte no todo da brincadeira no corpo da


Catirina, pois é onde eu ancoro os meus olhares para compreender com
profundidade que motrizes e pedagogias dela advêm e a partir daí
compreender como construir saberes culturais e educacionais no contexto da
dança, do teatro, da arte da cena que se poetizem e se materializem em uma
pesquisa investigativa a partir das minhas memórias de ator-brincante.

Nas investigações do corpo que brinca me contaminei pela


espetacularidade do brincante o Mateus de “Zé de Moura”, uma figura que
trocava de forma rápida os pés, passando um pelo outro em um pulsar que
ficava difícil de acompanhar, era lindo ver aquele homem alto, negro e magro
dando o seu “boa noite” com um corpo que respirava e se fazia em pulsos,
giros e pulsações, em danças. Mas, o estudo sobre essa figura do Mateus se
deu na minha pesquisa de mestrado; hoje são outras as questões que me
fazem escrever essa pesquisa.

A intenção de estar realizando a pesquisa Serestar Catirina em Dança


vislumbra a necessidade de reconhecer como esse corpo-brincante masculino
acessa e cria a única figura feminina dessa brincadeira, a partir da Catirina,
interessa-me entender que questões políticas, sociais e culturais atravessam
esse corpo que brinca essa manifestação cultural tradicionalmente brincado por
homens e que tem a necessidade de mobilizar a energia do corpo feminino em
seu corpo masculinizado – este é enfoque principal; a partir dele pretendo
colocar em debate algumas proposições acerca do universo da brincadeira,
entendo-a como uma representação cultural de um povo.

Nesse sentido, as hipóteses que me inquietam e me fazem atravessar


esse estágio de ator-brincante, intérprete-pesquisador são: Como se dá a
construção poética da figura da Catirina no corpo do ator-brincante? Como se
dão as relações entre a memória e a construção poética do feminino? Quais os
procedimentos utilizados na construção da figura da Catirina num corpo

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

masculino? Quais as relações nas construções do feminino e do masculino na


brincadeira do Boi de Reis?

A proposição de pesquisa torna-se um atravessamento, um mergulho no


avesso do avesso do meu corpo enquanto intérprete criador que se implica no
contexto sociocultural da brincadeira do Boi de Reis. Um corpo que se
metamorfoseia, um ator-brincante que dança as memórias do seu povo, que
faz de sua dança um grito manifesto, que se revela na cena e que se
questiona, como pode um ator construir poeticamente a figura feminina da
Catirina?

Como já foi dito a Catirina é a mulher do Mateus (figura que cuida dos
Bois da fazenda. Ela está grávida e deseja comer a língua do Boi mais bonito),
sabemos do seu desejo, ela grita, subverte e transgredi a sociedade dizendo:
“Mateuuus, EU QUERO COMER A LÍNGUA DO BOI”!

O desejo de Catirina anuncia a chegada da morte na brincadeira, pois o


desejo de uma mulher grávida deve ser atendido, mas este ato não se justifica
pelo fato dela estar grávida, mas sim pelo ciclo da vida/morte. É neste
momento em que o Boi mais bonito da fazenda, o “filho” do dono das terras, do
patrão, do Mestre será́ sacrificado, crucificado, expiado, ofertado em salvação
dos pecados de Mateus, para atender o desejo de sua esposa que não pode
deixar o seu filho nascer com a cara de Boi. Nesse momento, é preciso matar
para dar vida à outra vida.

Tudo isso se configura e se aproxima do momento histórico da morte e


ressurreição de Cristo – a brincadeira do Boi de Reis é um festejo e uma
representação desse ciclo de morte e vida. É preciso entregar o filho em
sacrifício para a humanidade. Nesse jogo de morte e vida, Mateus se
transforma em Boi, ora é a morte do homem que está acontecendo, ora é a do
bicho, ou ainda a fusão dos dois. É preciso matar e nascer. Aquele que mata,
dá vida – dessa forma, acontece a recriação do vivido e da própria vida.

A história se reinventa através de Catirina que além de desejar comer a


língua do Boi, faz ele renascer, ela pede ao Mateus que pegue uns ramos no
mato e ao rezar sobre o corpo daquele bicho morto evoca, rememora e
encorpa a figura da benzedeira – traz à tona a mística e sabedoria das

627
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

mulheres populares. Minhas avós também rezavam quando estávamos


doentes, com o corpo bichado, com olhado, tenho a lembrança os olhares da
minha avó Maria me fitando de longe e as mãos da minha avó Marina rezando
baixando pelos seus em frente ao seu oratório. Elas reinventam o mundo ao
seu redor e brincam com as possibilidades de ser o criador, ou melhor, as
criadoras que dão vida e corpus que pulsam nas minhas memórias de um
menino-boi que acredita e que vive os saberes e as tradições populares.

O que apresento são implicações políticas e educacionais que se


apagam e se revelam nesse processo de criação, nessa dramaturgia que
dança a recriação do imaginário popular; são questões de ordem pessoal e que
se universalizam; quantas vezes morremos perante a sociedade? Quantos
corpos estão engendrados por padrões estéticos e discursos do tipo “o corpo
da mulher é isso, o do homem é aquilo”; pois bem, atravesso-me
simbolicamente na figura de Catirina e me pergunto: quantas vezes será
preciso pedir o “corpo-língua” deste Boi que aqui escreve para justificar esse
corpo masculino que tem traços, marcas e tessituras femininas?

Essa pesquisa é um desvelar de mim mesmo e coloco a lamparina na


mão de Catirina pedindo-a que ela me alumie e me revele nesse corpo que
brinca, que dança e que me coloca em atravessamentos, em trânsitos de
serestar Catirina.

Nessa pesquisa, os marcos teóricos que irão ciceronear as minhas


memórias são os estudos da construção poética da figura da Catirina no corpo
do ator-brincante; e terei como costura metodológica os princípios da proposta
do Jogo da construção poética que através dos seus estudos compreende-se:

A proposta metodológica do Jogo da construção poética com esforço


ordenador, a fim de que seja possível conhecê-la em seu panorama e
vislumbrá-la em sua integridade. Nessa proposta, a prática corporal
se dá a partir do improviso, das criações e descobertas de
movimentos que surgem em processos de diálogos corporais na
relação entre os intérpretes, de modo que o jogo entre os corpos é o
próprio jogo da construção poética. (MACHADO, 2017, p. 66).

Uma proposta que irá nos lançar a práticas corporais, pesquisa de


campos e laboratório de interpretação, no qual, acredito que o meu corpo
brincante irá se revelar tanto na vida quanto cena, uma proposta que fará com
que Catirina ganhe outras dinâmicas e que juntos iremos pulsar e dançar as

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

nossas histórias de nossos povos, das mulheres da minha vida, dos brincantes
do Boi de Reis e assim, nos projetarmos enquanto representação simbólica de
umas das tradições populares mais brincadas pela região do nordeste
brasileiro.

Costurando o corpo-língua desse menino que resolveu dançar as suas


memórias e encontrando com os saberes do Corpo e ancestralidade (SANTOS,
2002), a ideia é seguir com os encontros e atravessamentos, dançando,
jogando e brincando nas encruzilhadas de um brincar que revela e reafirma os
saberes populares, o conhecimento ancorados na ancestralidade da minha
própria poética, por lado, foi durante a pesquisa do mestrado com o meu
Mateu, meu pai; por outro a relação direta com a feiticeira, a dona das minhas
revelações, minha mãe; saberes outros que se encontram na trama da vida e
da cena, saberes que dinamizando-se na ancestralidade, de um corpo em
estado de trânsitos, de transformações a partir da brincadeira do Boi de Reis, a
partir do contexto e do corpo da Catirina e de todas as implicações impostas
neste corpo.

Com isso, desejamos realizar uma celebração do corpo que brinca. Os


atravessamentos que Catirina já provocou e os que ela ainda irá provocar será
uma possibilidade de olhar para o meu terreiro-brincadeira, entendendo todas
as dinâmicas desse corpo que pulsa, brinca e recria uma pedagogia cultural
que fala e versa sobre o meu povo, sobre o povo do nordeste brasileiro. Uma
pesquisa ainda em andamento, mas que pretende alcançar pensamentos
críticos em sua escrita e realizações artísticas ancoradas em um ato político,
cultural, social e celebrativo das poéticas, da cena e das manifestações
populares.

No todo, a pesquisa se constitui como um momento simbólico, de


investigação do que é sagrado no campo das memórias de um povo, e que
estas se elaboram e se reconstroem na tradição cultural de um lugar; de um
lugar que parte de minhas memórias enquanto ator-brincante; que se cria e
recria quando se põe a dançar.

629
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

REFERÊNCIAS

LEONARDELLI, Patrícia. A memória como recriação do vivido: Um estudo da


história do conceito de memória aplicado às artes performativas na perspectiva
do depoimento pessoal. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) da Universidade
de São Paulo. Orientação: Prof.º Dr.º Luiz Fernando Ramos. São Paulo, 2008.

MACHADO, Lara Rodrigues. Danças no jogo da construção poética. Org.


Sara Maria de Andrade – Natal: Jovens Escribas, 2017.

SANTOS, Inaicyra Falcão dos. Corpo e ancestralidade: Uma proposta


pluricultural de dança-arte-educação. Salvador: EDUFBA, 2002.

SILVA, Sebastião de Sales. Saudades Z(é): metaforizando a construção do


corpo brincante. 2017. 100f. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) do
Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Orientação: Prof.º Dr.º Robson Carlos Haderchpek. Natal/RN,
2017.

TURNER, Victor W. O Processo Ritual: estrutura e anti-estrutura. Trad. Nancy


Campi de Castro. Petrópolis: Vozes, 1974.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

PRETOS VELHOS E PRETOS NOVOS:


MEMÓRIAS DE PRÁTICAS DE DANÇAS AFROREFERENCIADAS E
CRIAÇÕES CÊNICAS

Tatiana Maria Damasceno (UFRJ)

Pedindo licença...

A ji qui Barabô é mo jubá auá cô xê...


272
Nós acordamos e cumprimentamos Barabô

Venho pensando continuamente....... Insistentemente....... e cada vez


mais..... no poema Ponto Histórico273 do grande poeta, escritor e ativista Elé
Segmor:

Não é que eu
Seja racista...
Mas existem certas
Coisas
Que só os NEGROS
Entendem.
Existe um tipo de amor
Que só os NEGROS
Possuem,
Existe uma marca no
Peito
Que só nos NEGROS
Se vê,
Existe um sol
Cansativo
Que só os NEGROS
Resistem.
Não é que eu
Seja racista...
Mas existe uma
História
Que só os NEGROS
Sabem contar
... Que poucos podem
Entender.

272
OLIVEIRA, Altair B. (T’Ògún). Cantando para os orixás. Rio de Janeiro: Pallas, 1997.
273
Disponível em http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/11-textos-dos-autores/732-ele-
semog-ponto-historico

631
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Como falei, venho pensando continuamente sobre o tempo de


construção de minha história e do saber encarnado e atualizado no meu
universo de atuação, como mulher negra, candomblecista, professora e artista.
Refletir sobre processos de dança que venho desenvolvendo na Universidade
Federal do Rio de Janeiro a mais de 20 anos não é uma tarefa fácil, mas
reconheço que é um privilégio poder olhar um tempo que passou e que está
passando. Tenho algo a contar! É preciso rememorar o caminho trilhado,
confirmando e afirmando escolhas de pensamentos, pesquisas artísticas e
práticas pedagógicas. Processos que mobilizam conceitos e saberes afro-
urbano-ancestral ancorados na cosmovisão africana, afrobrasileira e
afroameríndia, entendidos aqui como ações performáticas contra hegemônica.

Na encruzilhada de múltiplos saberes, investigo as práticas e


performances do corpo a partir das abordagens e cruzamentos das artes
cênicas, estudos culturais, filosofia africana, antropologia da dança e dos
sentidos e do exercício em sala de aula, como coreógrafa e intérprete de dança
e de formação no terreiro de candomblé.

Figura 1 – Espetáculo Limiar / 2005, 2006 e 2007 CCORJ

Fotografia – Marco Fernandes

Penso nas dramaturgias corporais potencializadas no lugar da


experiência fronteiriça – espaço de diálogo e aprendizagem - onde o corpo
arquivo (TAVARES, 2013) produz, acessa e articula conteúdos diversos
provenientes de vivências em campos distintos, provocadores de pensamentos

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

expressos nas ações físicas e emotivas, nos domínios do corpo e da linguagem


corporal: movimento, criação, tradição, interpretação, performance, cena, ritual,
mito, ancestralidade, oralidade, urbanidade, entre outros. Esses campos, que
comunicam, equilibram e desequilibram a corporeidade num processo
contínuo, possibilitam o corpo preservar, condensar e atualizar sabedorias
pelos movimentos verbais e não verbais, pelos ritmos, dinâmicas, formas e
estados do movimento (potencial e liberado).

Figura 2 – Espetáculo Limiar / 2005, 2006 e 2007

Fotografia – Gil Santos

No dizer de Júlio Tavares (2020), o saber corporal engloba uma série de


atitudes, posturas, gestos e movimentos que se performam na prática do dia a
dia, como uma estratégia, onde o corpo do performer edifica espaços e
preserva a sua identidade sociocultural. Nesse sentido, o corpo assume um
papel imediato: “realiza a ação direta da produção da presença” (TAVARES,
2012, p. 81). A produção da presença numa coletividade, pode ser
compreendida como um movimento social e político em que os sujeitos
organizam práticas, expressam vontades e valores, afirmam identidades,
articulam discursos abrindo espaço para novos significados e uma maior
interação dos indivíduos. Utilizo o conceito produção da presença para localizar
e fortalecer ações acadêmicas e artísticas que venho operando. Entendo o
conceito produção da presença, como um contorno de atuação consciente da
pessoa (ASANTE, 2009), um agente que forma e expõe o corpo político, social,

633
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

poético e ancestral, onde os saberes se articulam e produzem epistemes


afrodiaspóricas.

Figura 3 – Espetáculo Ìyá Omi / 2013, 2014 e 2015

Fotografia – Julius Mack

Sendo assim, é preciso dizer que, o que foi experiência e se configurou


como saber corporal ou memória corporal, é revivida e sentida novamente no
espaço do acontecer, do agora, onde o sujeito da experiência (eu, aqui e
agora), como bem ressalta Jorge Larrosa Bondía (2002), é tomado de paixão,
de receptividade, de paciência, de disponibilidade e de abertura essencial. O
filósofo africano Jean-Godefroy Bidima afirma que:

Não podemos entrar na filosofia, assim como na vida, senão


misturados a uma história que nos precede e enredados em histórias
que se tecem entorno e sobre nós. Histórias nas quais se sondam
nossas próprias constituições e situações; histórias nas quais se
separam narrativas intrincadas que nos levam e transportam em
direção a um outro lugar; histórias que nós antecipamos por nossa
audácia e que nos capturam; histórias, finalmente, que se conjugam
no condicional de tanto que suas armadilhas conduzem a língua às
nossas categorizações arriscadas. (2002, p. 7)

Meu nome é Tatiana Maria Damasceno. Nasci e fui criada num


subúrbio carioca. Professora de dança numa universidade pública
brasileira. Mulher artista, negra, candomblecista. (parte do texto da
performance Fé no Corpo apresentada em diversos lugares no Brasil
e no exterior).

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Figura 4 - Performance Fé no Corpo 2011 até os dias atuais

Fotografia: Bira Soares / 2017

Minhas histórias e experiências vejo como vestígios de recordações num


corpo passante. Num corpo em transição, em deslocamento, que segundo
Bidima (2002), revela o que ele se tornou ou o que ele é agora, originário de
pensamentos de mediações, afirmando assim, a incompletude da minha
própria história corpo-oral.

Figura 5 – Performance Fé no Corpo ou Corpo em Fé? 2019

11º Encuentro do Instituto Hemisférico. UNAM, Cidade do México

Atuo como professora no Programa de Ensino e Criação em Dança


(formado pelos cursos de Bacharelado, Licenciatura e Teoria em Dança) do
Departamento de Arte Corporal que prevê a formação de intérpretes,

635
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

performers, coreógrafos, professores, críticos e pesquisadores nas artes


corporais com conhecimentos e habilidades que permitem o desenvolvimento
de processos de produção artística, a partir de suportes diferentes, como sendo
o resultado da integração da dança com outras áreas do conhecimento, tais
como, filosofia, literatura, música, artes plásticas, teatro, cenografia,
indumentária, produção cultural, etc. No departamento, oriento projetos
formados por docentes, técnicos-administrativos e discentes dos cursos de
dança e de outras graduações da Universidade. Atualmente, coordeno o
Núcleo de Pesquisa em Dança e Cultura Afro-Brasileira – Cia. de Dança
Contemporânea da UFRJ. O NUDAFRO como é conhecido, originou-se do
Projeto Memória Corporal da Cultura Afro-Brasileira ativo de 2003 a 2007.

Figura 6 – Espetáculo Corpos Urbanos / 2009 e 2010

Fotografia – Álvaro Noto

O NUDAFRO se concretiza como um espaço próprio de pesquisa que


sempre deu uma valorosa contribuição aos cursos de dança do departamento
de arte corporal, tanto do ponto de vista das práticas corporais de criação
quanto do ponto de vista da reflexão teórica acerca dessas práticas e suas
interferências no senso comum, nos diversos conjuntos de espectadores. Sua
atuação sempre esteve empenhada com a descoberta de processos
metodológicos no ensino da dança, onde os alunos têm a oportunidade de
construir e vivenciar uma proposta pedagógica comprometida com um
procedimento educativo crítico e transformador.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Neste universo de múltiplos sujeitos, com ações, formações e


pensamentos diferenciados formei um quilombo de produção artística e de
sobrevivência. A minha maneira! Como eu sabia ser eu mesma, falando de
coisas que vivia, que sentia e que acreditava. Era, e ainda é, tão natural, falar
dessas práticas, poéticas e estéticas afroreferenciadas. Quilombo símbolo de
resistência étnica, política e cultural do povo negro, de comportamento do
africano e dos seus descendentes e esperança para uma sociedade melhor
como relata Maria Beatriz Nascimento (1985). Caminho de muita luta e
perseverança, que fez lembrar da linda poesia Onilé que o professor, artista,
poeta, brincante, cantor, compositor e candomblecista Xandy Carvalho criou,
com alguns acréscimos meus, para o espetáculo AGÔ do NUDAFRO,
apresentado em 2018 e 2019:

Terra, grão, pó

O sopro da poeira que anima os montes.

Uma forma

Um movimento

Um lugar

E outro lugar.

Longe no tempo, perto da lida.

Trabalho, trabalho, trabalho feito em mão Divina,

Divina é a transformação que produz em si e em mim.

O barro é a cor da pele negra em seu, e meu existir.

E de Nanã eua eua eua eee, Salubábababa

De seu útero emana vida, eeeeeh mana, cuidas dos seus e devemos
nos cuidar.

E por nossos pés em ti, para nos conhecer e te reconhecer a cada


manifestação de sua força.

Deitados em ti, os meus antigos, tornam-se ancestrais e conselheiros.


Narrativas de lutas na terra
Jogo de guerreiros no caminho
Tem palha, tem negro, tem branco e feridas
Você não vê?
Está tudo pendurado no caminho,

637
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Cabeças, pés, mãos, braços, vivos e mortos.


Na luta do dia a dia, esfera viva, na contradição do nome e imagem.
Tu a grande mãe, Ilê, Aiyê, casa, meu chão sagrado, templo de
presentificacão das vozes e lembranças de tempos imemoriais.
Chão de oferendas
Meu ontem, meu hoje e o devir
Onilé.
OOOOnilé
Guerra, chão, terra, ilê.

No começo....

Exu fazia bem o seu trabalho e Oxalá decidiu recompensá-lo (trecho


do mito Exu ganha o poder sobre as encruzilhadas) (PRANDI, 2001,
p. 40).

Ainda adolescente, eu e minha irmã mais velha passávamos os meses


de janeiro e fevereiro com nossa mãe que residia em Salvador. Na época, por
volta de 1977, antes do dia dois de fevereiro, soubemos de uma festa no bairro
do Rio Vermelho. Minha mãe explicou que neste dia comemora-se a festa de
Iemanjá, a rainha do mar, orixá cultuado nos candomblés do Brasil. Ela
esclareceu que, se fôssemos à festa, deveríamos vestir roupas claras e, se
desejássemos, poderíamos levar à Iemanjá algum presente, colocá-lo à beira
do mar e fazer um pedido ou simplesmente conversar com a grande mãe.
Fazer um pedido nunca é demais!

638
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Figura 7 – Espetáculo InCORPO / 2017 e 2018

Fotografia – Julius Mack

Destaco aqui a forma que nossa mãe utilizou para transmitir o


conhecimento sobre Iemanjá. Os atos sugeridos e ensinados por ela através da
oralidade – o de vestir roupas de uma determinada cor, ofertar algo ao mar e
fazer um pedido – são práticas presentes no dia a dia do candomblé. Naquela
época, ela já participava dos rituais de candomblé na Bahia. No candomblé o
conhecimento é veiculado através de complexa trama simbólica em que o oral
constitui um dos elementos fundamentais. A transmissão oral orienta e
organiza as práticas da religião em determinados contextos.

Acho que esse dia, há mais de quarenta anos, marcou minha relação
com Iemanjá e, um pouco mais tarde, com a religião que abracei, o
Candomblé, a carreira de professora pesquisadora e artista da cena. Fiquei
impressionada com o tamanho da festa na praia de Paciência em Salvador,
festa que, aos meus olhos, revelou-se como uma imagem sedutora, uma
performance espetacular274 num terreiro aberto onde todos pareciam ser bem-
vindos.

274
Espetacular do francês spectaculaire, “tudo o que chama a atenção, atrai e prende o olhar”
(CUNHA, 2010, p.265). Do verbo latino spectare, olhar, contemplar e, ainda, apreciar ou julgar
[...] “o espetáculo no sentido de acontecimento cultural é uma representação visual ritualizada
ou previamente concebida, uma imitação ou demonstração de arte, no sentido geral de
habilidade, dirigida aos sentidos visuais e/ou auditivos, intentando causar admiração de um
público, de uma assistência ou comunidade (fiéis) – espectadores.” (CUNHA, 2003, p.255-256).

639
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Essas lembranças passaram a nortear os meus caminhos futuros que,


com o tempo, foram se avolumando e se conectando às minhas experiências
pessoais nos rituais do candomblé e, de certa forma, às experiências e
questionamentos realizados como intérprete, coreógrafa e professora de dança
do Departamento de Arte Corporal da UFRJ. Como coreógrafa, a criação
cênica a partir do estudo dos mitos, rituais e danças dos orixás tornou-se
constante. Assim, no mestrado em Ciências da Arte na Universidade Federal
Fluminense (2003) desenhei a possibilidade de um caminho a ser trilhado
como pesquisadora de dança contemporânea afrobrasileira.

Figura 8 – Espetáculo AGÔ / 2018 e 2019

Fotografia – Julius Mack

Nessa perspectiva, foi preciso pensar no corpo cênico, como um corpo


instigado especificamente para a cena, que desenvolve uma gestualidade e
interpretação para o contexto da cena, sem perder de vista, na elaboração de
frases e movimentos corporais, princípios técnicos observados nas práticas
performativas no Candomblé. Como o enraizar dos pés; afrouxamento das
articulações dos joelhos; quebra do corpo desencadeada pela entrada de força
e mudança de atitude nas articulações; mudança constante do eixo vertical e
do centro de gravidade; variação da dinâmica. Na linguagem da dança, a
constituição do corpo cênico requer atenção e estudo sobre diferentes
maneiras de mobilizar o corpo.

640
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

É nesse contexto de iniciação na religião e de pesquisadora do


movimento corporal, que meu olhar fixou-se com bastante curiosidade nas
festividades e nos rituais do candomblé. Observava elementos como a dança,
o canto, a música, o figurino, o espaço, entre outros e, principalmente, a
atuação fundamental do adepto, ao relacionar e interagir um conjunto de
dinâmicas culturais que, segundo o professor Zeca Ligiéro, são denominadas
de práticas performativas ou performances culturais (2011). O adepto atua
como um elemento que reatualiza a tradição através das suas ações: gestos,
falas, movimentos, posturas, sentimentos e percepções particulares.

Figura 9 – Espetáculo AGÔ / 2018 e 2019

Fotografia – Julius Mack

Nessa trajetória percebo claramente o desenvolvimento de reflexões


práticas e teóricas ao abordar temas oriundos de saberes tradicionais,
populares, preto-referenciados disparadores de conhecimentos que muitas
vezes confrontam o pensamento hegemônico eurocêntrico, na medida em que,
são tidos como conhecimentos de menor importância. Não operando um
diálogo de saberes, já que, eles coexistem numa relação de submissão e
iniquidade. Procuro, a luz do pensamento de Boaventura Santos (2010),
promover a coexistência de saberes ainda divididos por uma “linha de

641
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

pensamento abissal” para a construção de uma “ecologia de saberes”. Na


encruzilhada de nossas escolhas, o desafio do caminho é a procura por uma
não hierarquização entre saberes acadêmicos e tradicionais, buscando sempre
um diálogo horizontal.

Figura 10 – Espetáculo Girakandombe

Fotografia - Lelo Schietti

No decorrer dos anos e ainda hoje, procuro revigorar os pensamentos e


as ações do projeto, ao ritualizar práticas com personalidades de comunidades
tradicionais, por meio de oficinas, trabalhos de campo, palestras, encontros e
fóruns. Propondo assim, aos participantes das ações, experiências corporais
criativas baseadas em outras epistemologias e possibilidades de atuação do
corpo no mundo. Valorizando o aprender e o fazer por meio da oralidade;
contação e performatização de mitos e histórias; do cantar, do batucar e do
dançar as danças negras (Salve FU-KIAU KIA BUSENKI-LUMANISA!) da
produção de artefatos e de uma estética negroreferenciada; da reflexão sobre o

642
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

corpo negro na atualidade; da ancestralidade e do encantamento como uma


atitude que constrói mundos na coletividade.

A partir dos estudos e da afirmação de Cheikh Anta Diop (2014), sobre a


continuidade cultural partilhada entre os povos africanos que era mais
importante do que o desenvolvimento variado dos grupos étnicos, levanto as
seguintes questões: até que ponto epistemologias afrocentradas,
pretoreferenciadas ou afroreferenciadas são percebidas e lidas em produções
cênicas afrodiaspóricas? De que forma são lidas? Que pontos e conceitos são
destacados? Qual o lugar comum de tais produções? Quem lê e fala dessas
produções?

As Histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram


usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para
empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um
povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada.
(ADICHIE, 2019, p. 32).

Finalizando...

Nunca é tarde para lembrar ou repetir que as tradições afrobrasileiras


englobam performances como a música, a dança, e diversas outras práticas
intermediadas pelo corpo-oral, em seus rituais privados e públicos. Neste
sentido, o corpo-oral é o principal canal de expressão e de comunicação com o
sagrado. As tradições afrobrasileiras revelam e afirmam uma cultura do corpo-
oral, um corpo que funcionou para os negros como lócus de alteridade. As
práticas por eles organizadas encontraram na linguagem dos gestos, dos
movimentos, das palavras e dos sons seu principal veículo de expressão
(DAMASCENO, 2015).

Segundo Júlio Tavares (2020, p. 22) “os ritos ocupam lugar ímpar como
territórios e ambientes de memória, já que, recriam e transmitem, pelos
repertórios orais e corporais, gestos, hábitos, formas e técnicas de criação e de
transmissão”. Assim, podemos pensar no corpo como local da inscrita de textos
de movimentos que guardam a memória de um grupo e coletivos no processo
643
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

de travessia. Os textos que transportam sentidos são recordados pelas


performances corporais em translações, acionadas em diferentes momentos
nos rituais, nas festas, no cotidiano e, em produções artísticas e poéticas.

Referências

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma História Única. Tradução


julia Romeu. 1ª. ed. São Paulo: COMPANHIA DAS Letras, 2019.
ASANTE, Molefi Kete. Afrocentricidade: notas sobre uma posição disciplinar. In
NASCIMENTO, E. L. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica
inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009.
BIDIMA, Jean-Godefroy. De la traversée: raconter des expériences,
partager le sens. Rue Descartes, 2002/2, n.36, p. 7-17.
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de
experiência. Revista Brasileira de Educação. São Paulo, n. 19, 2002.
BUSENKI-LUMANISA, FU-Kiau Kia. Le Mukongo et le Monde qui
L´Éntrourait:Cosmogonie-Kôngo. Kinshasa: Recherches ei Synthèses No.1.
Office National de la Recherche et de Développement, 1969.
DAMASCENO, Tatiana Maria. Nas Águas de Iemanjá: um estudo das práticas
performativas no candomblé e na festa à beira-mar. Tese de Doutorado em
Artes Cênicas. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro, 2015.
DAMASCENO, Tatiana Maria; AZEVEDO, Renata Borges de. InCORPO e Fé
no Corpo: recordações em movimentos e falas poéticas. V CONGRESSO
NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA. Manaus: ANDA, 2018. p. 288-
299. www.portalanda.
NASCIMENTO, Maria Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural
negra. In Afrodiáspora: Revista do Mundo Negro, No. 6 – 7: Ipeafro, 1985.

OLIVEIRA, Altair B. (T’Ògún). Cantando para os orixás. Rio de Janeiro:


Pallas, 1997.

PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixás. São Paulo: Companhias das


Letras, 2001.

SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula [orgs].


Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.
TAVARES, Júlio César de. (org). Gramáticas das Corporeidades
Afrodiaspóricas:perspectivas etnográficas. Curitiba: Editora Appris, 2020.

644
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

TAVARES, Júlio César de. Dança da Guerra: arquivo e arma: elementos para
uma teoria da capoeiragem e da comunicação corporal afro-brasileira. Belo
Horizonte: Nandyala, 2012.
Zeca Ligiéro. Corpo a corpo: estudos das performances brasileiras. Rio de
Janeiro: Garamond, 2011.

645
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

CORPOREIDADES PRETAS EM TRÂNSITO:


EXPANDINDO E FIRMANDO TERRITÓRIOS

Gualter, Katya Souza. (DAC/EEFD-UFRJ)


Costa, Samira Lima da. (DTO/FM-UFRJ)
Braga, Marilia Rameh Reis de. (DRR/AI-CIA AF/PE)
Barreto da Silva, Renato Mendonça. (DAC/EEFD-UFRJ)
Silva, Raphael Luiz Barbosa da. (IFCS-UFRJ; FAV)

O presente trabalho propõe investigar o Corpo Preto como protagonista


na formação do artistapesquisador em Dança, através das ações do Grupo de
Estudos Ancestralidades em Rede (GrupAR). O Grupo integra quatorze
instituições de ensino, arte e cultura, públicas e privadas, formais e não formais
entre os estados do Rio de Janeiro, Goiás, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco,
o que confirma o seu caráter interinstitucional e interestadual, sendo a Escola
de Educação Física e Desportos (EEFD)/UFRJ a interlocutora.. Mais adiante,
discorreremos sobre as instigações, perfil e propostas do GrupAR. As
iniciativas do GrupAR fomentam a ampliação dos espaços de discussão acerca
das tensões, assimetrias e silenciamentos étnico-raciais. Sob uma perspectiva
étnico-racial, o GrupAR busca identificar narrativas subalternizadas e
invisibilizadas ao longo da história, propondo trazer à tona concepções e óticas
em uma abordagem decolonial do pensamento e da prática pedagógica.

As ações realizadas ao longo de 2019 nos convocaram a criar uma


trama de encontros pactuados entre Corporeidades Pretas em torno,
principalmente, das questões nevrálgicas do preconceito racial e das técnicas
corporais das danças do Mestre-sala, da Porta-bandeira e Porta-estandarte. A
trama incitou provocações sobre a dimensão do Racismo na sociedade em que
vivemos e, ao mesmo tempo também, sobre a quebra das práticas corporais
discriminatórias hegemônicas nesse âmbito. Assim contextualizados,
realizamos dois acontecimentos interconectados, a saber, os Projetos
Interinstitucionais de caráter público, aberto e gratuito “Escola de Mestre-sala,
Porta-bandeira e Porta-estandarte Manoel Dionísio” e “Corporeidades Pretas
em trânsito”.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

O racismo na comunidade universitária – uma breve abordagem

A discussão sobre a valorização dos saberes dos Corpos Pretos na


formação do artistapesquisador em dança no Brasil constitui uma demanda
urgente que vai ao encontro da realidade instalada nas Universidades, as quais
foram criadas e consolidadas sobre uma das bases da cultura ocidental
moderna: o eurocentrismo, influência política, econômica, social e cultural
exercida pelas sociedades europeias sobre os demais povos do Mundo. Na
mentalidade eurocêntrica, a presença de europeus era a condição primordial
para a criação de instituições de ensino nos povos do Sul Global, pois as
sociedades europeias eram as únicas capazes de imprimir a dotação de
conhecimento ou cultura a esses povos. Foi com esse pensamento que países
europeus trabalharam a expansão de seus modos de pensar e agir por todo o
Mundo, subjugando as demais culturas, especialmente, na América, África,
Ásia e Oceania. Felizmente, a prevalência dessa visão de mundo e de ciência
essencialmente europeia é fortemente contestada, porque gera uma
desigualdade que constitui a ignorância aos conhecimentos e às tradições dos
povos que foram alvos da exploração colonial. Tal ignorância institui uma das
facetas do racismo estrutural e do racismo epistêmico, ao ser desconsiderado o
conhecimento produzido pelos Corpos Pretos e ao ser limitado o acesso de
negras e negros nas universidades. (PRAXEDES, 2010).

Criado e expandido nesse contexto, o Ensino Superior no Brasil foi


historicamente desenhado para uma elite branca, apesar de estudos
comprovarem que pretos e pardos compõem mais da metade da população
brasileira. A constatação de que não existem docentes negros e negras ou que
eles e elas não ocupam os espaços acadêmicos na mesma proporção do que
docentes brancos e brancas é uma das várias formas com que o racismo se
manifesta na nossa sociedade. (MATEUS, 2019).

Com o objetivo de reduzir esse abismo histórico entre brancos e negros,


foi aprovada em 2012 a Lei 12.711, que prevê a implementação de cotas
raciais e sociais para o ingresso em universidades e instituições de ensino

647
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

médio e técnico federais – as chamadas Ações afirmativas. Estas vieram para


reduzir desigualdades, como sendo políticas desenhadas para situações
concretas, com a perspectiva da promoção de igualdade de oportunidades. A
experiência brasileira das políticas de ação afirmativa no ensino superior teve
avanços na ampliação do acesso e na legitimidade das políticas. Por outro
lado, desafios se impõem, tais como as políticas de permanência na educação
superior, a ampliação de expectativas de estudantes do ensino médio sobre a
continuidade dos seus estudos e a presença de mais alunos negros e
indígenas no ensino superior. Para além dos desafios, a experiência brasileira
das políticas de ação afirmativa no ensino superior encontra-se ainda diante de
novas fronteiras a serem transpostas, quais sejam: a Pós-graduação e o
Mercado de trabalho profissional. (HERINGER, 2019).

Podemos então observar que as ações afirmativas convergem


incisivamente para a reparação em virtude de uma larga defasagem histórica
de modo que a Universidade Brasileira constitua, de fato, espaços acadêmicos
ocupados por docentes e estudantes negrEs275, de modo a se “libertarem” da
faixa da minoria nesses espaços. Entendemos que a valorização dos saberes
dos Corpos Pretos, incluídas as práticas corporais como produção de
conhecimento, anda de mãos dadas com a discussão sobre Racismo. Essa
conjunção precisa ser difundida e expandida nas Universidades e demais
instituições de ensino e criação formais e não formais, potencializando as
mobilizações antirracistas e abrindo canais para a sedimentação dos saberes
acadêmicos e não acadêmicos. Apostamos na ampliação de redes com
diferentes áreas do conhecimento, diferentes maneiras de produzir
conhecimento, diferentes ancestralidades, diferentes acúmulos de
experiências, de lutas e trajetórias voltadas para a valorização desses saberes.
Acreditamos no respeito e no elogio à diversidade como sendo um caminho
garantido para tão necessária e dignificante tessitura.

Nessa direção de entendimento, desfrutamos nas Corporeidades Pretas


em trânsito, das provocações de Carmen Luz (mulher preta Cineasta e Artista

275
Ao empregarmos a palavra negrEs nos referimos as pessoas negras do gênero masculino e
gênero feminino (binário) e as pessoas negras que se consideram de um outro gênero que não
o masculino nem o feminino (não binário). (GUALTER, SANTOS, DAMASCENO, SILVA, 2020).

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

da dança, Professora da Faculdade Angel Viana e da Escola de Cinema Darcy


Ribeiro), a partir da exibição do filme “Um filme de dança” e de Raíne Machado
(Mulher preta, Bacharel em Humanidades pela Universidade de Integração
Internacional da Lusofonia Afro-brasileira/UNILAB), na Performance Ritual
“Você parece seu avô rodando saia no terreiro de terecô” - um trabalho de
buscas por raízes profundas feitas nos interiores do Maranhão onde perdas e
encontros circulam aos sons dos tambores e constroem escrevivências de
resistência através da corporeidade.

Compondo a dinâmica de interlocução, os espectadores discentes e


docentes das Graduações em Dança, Educação Física e Mestrado em Dança
da UFRJ saborearam também práticas corporais da técnica do Mestre-sala,
Porta-bandeira e Porta-estandarte com Manoel Dionísio (homem preto, Artista
da dança, Mestre popular), além das rodas de conversa sobre Decolonialidade
de Saberes com Valéria Monã (mulher preta, Artista da dança, Mestra popular),
Racismo Estrutural e Racismo e desigualdade sócio-espacial, respectivamente,
com Rita de Cássia Oliveira e Silva (mulher preta, Professora da Faculdade de
Educação da UFRJ) e Carlos Henrique Martins (homem branco, Professor do
Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca-
CEFET/Programa de Pós-graduação em Relações Étnico-raciais).

O que pode o corpo preto?

Tendo como lócus de experiência as Corporeidades Pretas em trânsito,


nos percebemos reflexivEs na Mesa de exibição do filme da pesquisadora
Carmen Luz intitulado “Um filme de dança”. O filme é uma obra em
homenagem ao corpo negro dono da sua própria dança, partindo da seguinte
questão: onde estão os negros na dança cênica brasileira? Na introdução à
exibição do filme, a autora discursou sobre a obra apresentando-a como “um
gesto de amor” aos espectadores, mestres, mestras e reivindicou “uma outra
história da dança brasileira”. Neste dia, a plateia integrou, além dos estudantes
e professores da UFRJ, os alunos do I Curso de Extensão em Danças Negras
(uma parceria entre a EEFD-UFRJ e o Coletivo NegraAção). O filme nos

649
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

dirige o olhar para um mapeamento das referências da dança no Brasil, “velhos


e jovens, homens e mulheres”, como mestres categorizados, “seres
encantados”, e os homenageia ainda em vida como um mukulu (antepassado).
Esta condição de honraria a ancestralidades próximas reforça o não
esquecimento de histórias de valorização de saberes, a solidificação da
existência de corpos ancestrais, um exercício de sempre olhar para trás sem
ser pretérito e sem uma postura saudosista, mas com o vigor dos fazeres que
se movem, com a lembrança, no presente e no futuro.

Há na contemporaneidade, em particular nos fazeres da universidade,


um pensar verticalizado sobre a produção do conhecimento, que além de criar
condições unilaterais de transmissão de conteúdo, condiciona o estudante a
traçar uma trajetória que visa a conquista no futuro pela lógica meritocrata. O
constante diálogo com modelos civilizatórios indígenas, quilombolas, caiçaras,
ou seja, produtores de saberes deslocados do centro hegemônico, nos ensina
que as conquistas referentes a produção do conhecimento não se alicerçam
por merecimento técnico individual, justamente pelo fato de que a habilidade
técnica individual é aplicada em prol da comunidade. Estamos falando de um
saber coletivo, mas que é regido, com escuta, por mestras e mestres.
Pensamos que as biografias (ancestrais) devem, sempre que necessárias, ser
rememoradas com o intuito de traçar formas de relação no trato pedagógico.
Nesse sentido, as biografias dos Mestres populares Manoel dos Anjos Dionísio
e Valéria Monã assumem papéis relevantes quando pleiteamos a
desnaturalização do racismo em espaços acadêmicos, além da já conhecida
capacidade artística e de gestão de projetos sociais dessas duas grandes
referências da produção e pesquisa em dança no Brasil.

Mulher preta, Valéria Monã é bailarina, atriz, coreógrafa e professora de


dança. Filha de uma mulher preta ativista, Valéria herdou da mãe, uma marca
revolucionária. Vivendo da, para e pela arte da dança afro, nas turmas que
leciona, ela não separa os alunos iniciantes dos avançados, porque considera
a não separação uma forma de acolhimento, entre outras benesses cruciais na
formação em dança e na vida. Preconizando a valorização da estética e o
domínio do corpo negro na cena, Valéria destaca:

650
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

...Crescemos tantos porque saímos do individualismo, por isso que


hoje a gente amedronta tanto. Quero um futuro em que eu não
precise me preocupar a ensinar meu filho a se defender; que eu não
precise provar que sou uma atriz e bailarina e quantos mais dos meus
estiverem nesses espaços, menos eu vou precisar explicar. (MONÃ
apud Freire, 2018).

Transitando pelas “Corporeidades Pretas”, Valéria Monã provocou, no


público, deslocamentos retirando-os da passividade de ouvintes para a
atividade de dinamizadores nas práticas corporais interativas das danças que
constroem narrativas e emanam “Axé” - uma força carregada de presenças,
memórias que ganham mobilidade contínua, transformando e enaltecendo
saberes/fazeres dos Corpos Pretos, a partir de olhares para “trás”, para “o aqui
e agora” e para “o por vir”.

Mestre Dionísio nos apresenta uma constituição fortemente mediada


pela transição territorial (processo migratório) conduzida por mulheres. A
coragem e força de Joana incentivaram a matriarca Dona Angélica a migrar
com outra parte da família, a qual incluía o ainda criança Manoel Dionísio. Foi
na já marginalizada Praia do Pinto localizada na Zona Sul do Rio de Janeiro
que Manoel Dionísio e a mãe foram acolhidos na pensão da Dona Nair, onde
Manoel vendia quentinha. (GRAMÁTICO, 2011).

Dona Angélica e família circularam por outros lugares da Zona Sul.


Dionísio foi entregador de mercado, açougueiro, jogador de futebol e prestou
serviço militar, mas foi exatamente no ano de 1955 que Dionísio foi até a casa
de eventos Tabuleiro da Baiana e teve o prazer de presenciar o show do balé
folclórico de Mercedes Batista276. Com a benção da sua mãe, Dionísio iniciou o
seu grande desejo de partilhar os palcos com Mercedes. Em 1959, chegaram
juntos ao morro do Salgueiro, lugar onde Manoel Dionísio consolidou a sua
admiração pela escola da localidade fortalecendo a sua relação com o mundo
do Samba. Junto a Mercedes Batista e a Companhia de Dança, Dionísio viajou

276
Pioneira na associação do balé com a dança afro-brasileira. Com formação na escola de
Katharine Dunham, protagonizou a influência da dança negra na historicidade brasileira e em
toda América. Foi colaboradora e coreógrafa no TEN (Teatro Experimental do Negro) fundado
por Abdias do Nascimento.

651
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

para o exterior atuando como bailarino e conhecendo novos lugares ao lado da


coreógrafa.

Não pretendemos com o presente artigo esgotar a larga trajetória do


Mestre Dionísio. Nossa intenção com este estratégico recorte é possibilitar a
formulação de outros valores, através dos exemplos de luta de mais uma
família negra migrante para as periferias do Rio de Janeiro. Desde os calangos
cantados por sua mãe e sua irmã até a presença e postura de palco
apreendido com Mercedes, essas mulheres negras são protagonistas e
compositoras na vida de Manoel Dionísio. O princípio da circularidade
norteador da vida de Manoel Dionísio se fez eminente, no início da década de
80, quando ele retornou ao Brasil e com a sua vasta experiência em dança, foi
o preparador corporal de Rita Therezinha277 no próprio Acadêmicos do
Salgueiro. Essa passagem foi o sucesso que impulsionou a idealização do
projeto que desde 2001 é reconhecido como a primeira escola de mestre-sala,
porta-bandeira e porta-estandarte Mestre Dionísio278, a qual integra o GrupAr,
desde março de 2019. O valor da circularidade é algo central no instante da
performance do mestre-sala e da porta-bandeira. O trânsito entre as ações de
cortejar e proteger educa pela perspectiva do afeto e da sedução, nos
ensinando assim, que o alcance de um objetivo (defender o pavilhão) é
construído em uma interação respeitosa, como afirma Manoel Dionísio, citado
por Gonçalves (2010, p. 228):

O pavilhão está acima de todos os componentes que estão ali. O


mestre-sala é para defender o pavilhão da escola, é para fazer o
cortejo à porta-bandeira. Então, o mestre-sala e a porta-bandeira são
um casal de namorados que tenta seduzir a paixão de cada um. Se
ela não tenta, ele tenta. Tem que haver isso em prol da dança. O
cacarejar da galinha com os seus pintinhos e o cecear do beija-flor é
o que faz o casal de mestre-sala, é o que torna a grande dupla de
amor e de união.

277
Porta bandeira do Salgueiro até 1986, retornando à agremiação em 2006.
278
Hoje o projeto de Mestre Dionísio tem inspirado diferentes escolas similares no Brasil e
recentemente uma escola no Uruguai.

652
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Este breve passeio sobre a vida e fala do Mestre Dionísio é de suma


relevância, justamente porque acreditamos e atuamos por princípios dialógicos,
nos quais os fazeres artísticos, pedagógicos e de gestão institucional mediados
pela linguagem acadêmica se oxigenam a partir de outras referências, que
pluriversam nossos fazeres institucionais.

Assim provocados, fomos instigados pelas seguintes questões: Quais


são as inclinações, as existências, as resistências e as (re)existências da
universidade, hoje? Que acadêmicos formamos com os nossos corpos no
corpo-instituição? Que marcas promovemos, em subversão atenta e
intencionada, na direção de uma Universidade pluriepistêmica?

A Universidade se vê diante da necessidade e da possibilidade de


elaborar novas perguntas, novos caminhos, novos referenciais. A Universidade,
assim como outras tantas instituições colonizadas e coloniais, tem sua história
monocromática, monofônica e mono-referenciada narrada oficialmente com
grande e preconceituosa parcialidade. Entretanto, como nos chama à reflexão
Chimamanda Adicchie (2019), há sempre um grande perigo, na história única.
Daí a importância de trazermos outras narrativas, aqui, desta mesma
Universidade, explicitando que não há cena pronta, nos encontros entre corpos
acadêmicos. Ao contrário, esses encontros são sempre espaços de forças e
delicadezas, arenas de narrativas em disputa. Destarte, sabemos, de qual
Universidade queremos falar.

Lembrando Costa e Alves (2015), a desconstrução deste imaginário


colonial e da colonialidade do poder que ainda habitam silenciosamente as
escolas e universidades brasileiras, só pode ser iniciada se lançarmos mão do
espírito investigativo que questiona os processos históricos que consolidaram
nossas práticas acadêmicas por ora ainda engessadas numa epistemologia
excludente que não dialoga com outras formas de fazer-saber, fazer-conhecer
e fazer-descobrir. Esse é um movimento que sustenta a produção de
conhecimento a partir de diálogos interepistêmicos e da dessubalternização,
como reação a realidade assinalada por Costa e Alves (2018, p. 527):

653
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Os marcos e as marcas disciplinares da exclusão de tantos saberes


em nossa academia ganham eco em nosso curso de formação,
ressoam pelos corredores e se repetem em nossos corpos como um
sussurro quase imperceptível: a academia se acostumou com o
silenciamento epistêmico.

Interessa-nos então olhar para dentro, ver e pensar a universidade que


temos, identificando e reconhecendo suas estruturas duras, fundadas em
culturas hegemônicas e saberes eurocentrados. Acreditamos, desta forma, na
construção de uma Universidade que, em movimentos de resistência e re-
existência, gesta grupos e forças, fomenta encontros e invenções, realiza
continuamente revisão de si mesma, produz e carrega em seu ventre o próprio
germe de sua transformação, jamais para substituir velhas hegemonias
acadêmicas por novas, mas para salvaguardar e assegurar o processo contra-
hegemônico em curso permanente, em contínuas circularidades em
consonância com as confluências de seus coabitantes e passageiros. (Santos,
2015).

Sendo assim, os lugares de reinvenção na universidade, onde se


produzem esses novos possíveis de uma universidade pluriepistêmica, são
brechas e furos por onde vazamos em forças múltiplas, em composição de
corpos, processos de mortes e nascimento; não são corredores amplos e
confortáveis. Conforme mencionamos anteriormente, a universidade brasileira,
nascida no período do Brasil Império, espelhada no modelo europeu e
estruturada a partir da lógica eurocêntrica moderna de produção do
conhecimento, mostra-se limitada, conforme consta no documento do Instituto
de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI)/ Universidade de
Brasília (UnB)/CNPq (2015, p. 09):

Essa universidade europeia da qual somos herdeiros, fundada sobre


a égide da excelência científica e pautada na perspectiva de restrição
do campo de interesse, constituiu com eficiência uma rede
interminável de ramificações especialistas, em busca do horizonte
intocável: a pureza, a verdade e a certeza. Nesta trajetória, foi preciso
eliminar impurezas, erros, dúvidas. Foi preciso eliminar a essência da
própria produção do conhecimento: o desconhecido. Na sua trajetória
elitista, a universidade cumpriu o papel de enraizamento do
imaginário colonial, excluindo de seus bancos e de suas produções
povos e saberes tradicionais.

654
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Como podemos respirar e produzir outros horizontes, em nossas


universidades ainda tão eurocêntricas? Onde ficam os saberes e as narrativas
de tantos povos, tantas línguas, tantas culturas que compõem nosso povo –
sua oralidade, sua espiritualidade, sua integralidade – quando falamos de
produção de conhecimento, em um país tão diverso de riquezas quanto
violento com as suas diferenças?

Ao longo da vida, colonizamos e adestramos corpos, domesticamos


emoções, passamos a assumir papéis sociais que produzem distância entre o
eu e o saber de si. Temos então um padrão a seguir: existe um modo e um
tempo para andar, falar, agir. “Sentir sensações corporais, demorar-se nelas,
perceber que eu tenho um corpo e que o contato com o outro me vivifica, não
pode”. (MILLER apud Loureiro e Costa, 2003, p. 175). O estreito lugar que
reservamos ao corpo enquanto veículo físico tem suas origens nas bases do
pensamento ocidental. Ao buscarem estas raízes, Loureiro e Costa (2003, p.
183) assinalam que na história da Grécia antiga:

no século IV a.c., vivia um sistema escravagista. Esse sistema tinha


como consequência uma supervalorização da atividade intelectual,
em sua maioria dissociada da prática, à qual se dedicavam aqueles
que não precisavam se preocupar com o dia-a-dia e podiam alçar o
espírito em altos vôos, em detrimento do trabalho manual,
desempenhado pelos servos. Essa dicotomia entre pensar e fazer
estava presente também na relação corpo-espírito, de onde deriva
um dualismo estreitamente arraigado no pensamento ocidental do
qual somos herdeiros.

Eles ressaltam ainda que o corpo é a primeira referência que nós temos
do mundo e que o processo de tomada de consciência do corpo é um processo
que nos acompanha desde a primeira infância. O corpo é nosso existir em
expressão e emoção, no mundo. No entanto, segundo os referidos autores:

Começamos desde muito cedo a nos afastar de nosso próprio corpo.


Aprendemos a competir, procurando superar nossos limites e a ser
superior aos outros, mas não a identificar e a respeitar esses mesmos
limites, nossos e os daqueles com quem nos relacionamos Ao
compreendermos o processo de produção do conhecimento como um

655
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

fazer significativo dentro da instituição tradicional que é a


universidade, não devemos ignorar as bases culturais, históricas e
epistêmicas que regem este fazer. As armadilhas institucionais
impostas pela colonialidade do saber - enquanto lugar de enunciação
do poder eurocentrado - nos faz levar em consideração que o
conhecimento deve ser sempre historicamente situado e solidamente
questionado nas suas bases regenciais, observando-se, ao mesmo
tempo, o maestro que rege a orquestra, e a partitura da canção.
(LOUREIRO, COSTA, 2003, p. 181).

A ordenação do espiritual pelo racional, da experiência pelo


pensamento, do pensamento pela palavra falada, da oralidade pela letra
escrita, da grafia à estruturação do pensamento monofocado, ao mesmo tempo
em que parece sistematizar e universalizar códigos e conhecimentos, também
“elimina do rol desses mesmos conhecimentos qualquer coisa que esteja fora
do contorno estrito do campo científico, do desenho da letra greco-romana, do
ideário retilíneo da frase, da margem restrita da página (o pagus)” (COSTA,
ALVES, 2018, p. 528). É nesse sentido que Antônio Bispo dos Santos (2015),
liderança quilombola do Piauí, nos convoca a identificar nossas confluências e
circularidades.

Como afirmam Carvalho e Águas (2015, p. 1918), inovar a produção de


conhecimento na América Latina significa questionar uma atitude cronicamente
eurocêntrica que “privilegia os saberes da ciência ocidental moderna e exclui
inteiramente os saberes criados e reproduzidos no interior de milhares de
comunidades e grupos étnicos do nosso continente”. Em outras palavras,
inovar na universidade brasileira significa trazer e sustentar o lugar dos velhos;
dos mais velhos, como dito nos terreiros; os xeramõi, como dizem os guaranis;
os de sabedoria, como diriam nossas avós. Reconhecemos que não é uma
escolha fácil trazer os saberes ancestrais, historicamente excluídos e
atravessados por uma epistemologia eurocentrada, para dentro da
universidade. Deixar de fazê-lo, por outro lado, é impraticável.

656
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

GrupAR: por uma interinstitucionalidade dotada de sentidos -


comunidade, coletividade, resistência e (re)existência

Atendendo a convocação de Antônio Bispo dos Santos (2015) para


identificarmos nossas circularidades, para além do contorno estrito do campo
científico e do ideário retilíneo das suas produções, o GrupAR trabalha na
confluência de esforços para a efetivação de espaços de interação dialógica
onde os pesquisadores acadêmicos e os produtores de conhecimento não
acadêmicos interatuam em equivalente grau de importância e reconhecimento.
A seguir, as quatorze instituições integrantes: Associação Afro brasileira Casa
do Tesouro - Egbe Ile Omidewa Ase Igbolayo/MG, Centro Coreográfico da
Cidade do Rio de Janeiro (CCO)/RJ, Cia Étnica de Dança/RJ, Centro Federal
de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET)/RJ, Casa do
Jongo/RJ, Coletivo NegraAção/RJ, Cia Rubens Barbot Teatro de Dança/RJ,
Encontro de Saberes do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Inclusão
no Ensino Superior (INCTI)/UnB-GO, Núcleo de Estudos Contemporâneos do
Corpo Negro (NECCN)/Faculdade Angel Vianna (FAV)/RJ, Performar
Memórias na Dança/RJ, Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia
(UFBA)//BA, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)/RJ,
Universidade Federal Fluminense (UFF)/RJ, Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ)/RJ, Companhia Artefolia/PE.

Aqui, a interinstitucionalidade privilegia fluxos contínuos para além dos


limites das fronteiras geográficas e regionais, considerando todos os territórios
físicos e simbólicos, bem como as práticas culturais peculiares a cada um
deles, ou seja, os seus múltiplos saberes/fazeres. Nesse contexto, as ações
efetivadas em outubro/2018 (Exibição do documentário Clyde Alafiju Morgan na
Bahia entre a América e a África seguida de diálogos na Sala Baden
Powell/RJ) e em março/2019 (Residência Artística Partilhas de Saberes com os
Mestres Manoel Dionísio e Clyde Morgan na UFRJ, UNIRIO, Terreiro
Contemporâneo e Centro Coreográfico/CCO) nos aguçaram a tessitura,
idealização e execução dos Projetos “Escola de Mestre-sala, Porta-bandeira e
Porta-estandarte Manoel Dionísio” e a trama entre “Corporeidades Pretas em
Itinerância”. Esses projetos convergem para a adesão das instituições
657
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

interatuantes do GrupAR ao Programa Nacional Encontro de Saberes. O


Programa é uma iniciativa do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de
Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa (INCTI) e propõe a inclusão de
saberes tradicionais na formação universitária. Sediado na Universidade de
Brasília (UnB) e com ações em diversas universidades brasileiras, chegou em
2019 à UFRJ. A expectativa é que sejam criados espaços de interação
dialógica do ambiente acadêmico com os ambientes dos saberes tradicionais
dos povos originários do Brasil, buscando condições de formação inovadoras,
com parâmetros éticos, saudáveis e sustentáveis.

O Projeto interinstitucional Escola de Mestre-sala, Porta-bandeira e


Porta-estandarte Manoel Dionísio visa a criação e sedimentação de múltiplos
polos em Instituições Universitárias e de Ensino Médio na Cidade do Rio de
Janeiro. O polo inicial foi na Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da
UFRJ e as atividades foram desenvolvidas de setembro a novembro de 2019.
O processo de implementação da referida Escola foi conciliado com a trama de
encontros nas Corporeidades Pretas em trânsito, compondo um ciclo de
atividades desenvolvidas em Rodas de Conversa e Práticas corporais,
conforme já mencionamos anteriormente. A cada ciclo concluído
semestralmente, a instituição acolhedora dá continuidade a Escola naquele
polo através da oferta de componentes curriculares e um novo ciclo é iniciado
com vistas a sedimentação de mais um polo da Escola em uma outra
instituição. É nessa intencionalidade contracolonizadora e interepistêmica que
as experiências do GrupAR vêm semeando e produzindo corpos, espaços,
encontros, arte e resistência. O grupo surge como elemento de força e
delicadeza, constituindo espaço-tempo de ser em comunidade, em acordo com
Costa e Castro-Silva (2015, p. 286):

Nos interstícios da sociedade os microespaços comunitários - virtuais


ou não - tornam-se refúgios propiciadores da constituição de
identidades sociais mais fortes, produzindo formas de interação entre
as pessoas que facilitam a construção, no espaço público, de
alternativas mais solidárias e tolerantes de convivência social.

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ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Não falamos aqui de uma perspectiva romântica da solidariedade, na


qual esta se configura enquanto elemento despolitizado; a solidariedade à qual
nos referimos se manifesta como posicionamento e opção política, inaugura e
sustenta o próprio movimento. A esse respeito, Costa e Castro e Silva (2015, p.
286) destacam: “...não fosse a perspectiva da mobilização de afetos, escuta de
memórias e produção de pertencimento, não fosse a tolerância e a
solidariedade, os movimentos ganhariam menos, ou perderiam mais, em seus
campos reivindicatórios”. Segundo Costa e Maciel (2009), do mesmo modo que
propomos uma leitura política do gesto solidário na constituição dos sentidos
de comunidade, insistimos na desromantização da própria comunidade em si.
O conceito de comunidade precisa transbordar as concepções que a
restringem a um coletivo difuso e harmônico, ampliando para concepções que
compreendam os grupos de forma complexa, comportando dilemas e
paradoxos. Identificamos que as dificuldades inerentes aos movimentos de
aglutinação e luta a partir da experiência da dor contribuíram a compreender os
dilemas vividos pelos integrantes do GrupAR. Por outro lado, não foram apenas
as dores, mas as artes que permitiram tal aglutinação comunitária, tanto as
artes do corpo e das expressões, quanto as muitas artes da vida, em contínua
re-existência.

Considerações Finais - Certos lugares de memória

De que lugar parte o olhar para o Corpo Preto na formação do


artistapesquisador em dança? Localizar o olhar é localizar o pensamento que
atravessa o corpo preto nos espaços de produção de conhecimento, sejam
eles institucionais ou não, mediados pelos gestos cênicos, cotidianos, textuais,
imagéticos ou sensórios, no fazer-se tanto artista quanto pesquisador,
informado pela sua própria localização enquanto sujeito no sistema mundo.
Neste sentido, para localizar a corporeidade preta na formação do
artistapesquisador em dança, é necessário antes refletir criticamente sobre os
procedimentos de inserção de elementos e propostas estéticas que apontam

659
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

para a presença de estereótipos que correspondam a expectativas e demandas


artístico-acadêmicas esperadas por esse Corpo Preto.

Certos lugares de memória se repetem nas análises e anseios em torno


do Corpo Preto, alguns elementos ou qualidades de movimentos surgem
repetidamente enquanto instrumentos para interpretar esse corpo. O primeiro
lugar a ser destacado é constituído em torno do elemento força, muitas vezes
traduzido na palavra resistência, evocando o lugar do corpo, outrora
escravizado, onde a força física para o trabalho significava o seu principal
requisito e valor social. A memória do escravizado insiste nas representações
sobre quem olha para esse Corpo Preto na cena, no texto, na vida. O segundo
lugar de memória que reaparece com frequência é o lugar do sobrenatural, do
além corpo, da possessão, do fetiche, palavra repetidamente utilizada nos
últimos séculos por antropólogos europeus para descrever a presença do
invisível no Corpo Preto. O terceiro lugar se relaciona em certa medida com o
primeiro: o lugar exótico. No limiar entre um olhar da hipersexualidade e uma
dúvida sobre como se define o Corpo Preto, feminino ou masculino, que se
anuncia na cena. O encontro dos dois últimos lugares escamoteia um quarto
lugar, o que, na verdade, é a raiz de todos eles: o lugar da dúvida se o excesso
de força física não está mais próximo da animalidade do que da humanidade
desse Corpo Preto. Essa dúvida persiste e se traduz em diversas modalidades
de discurso no que se espera, percebe, fascina e categoriza sobre a
expressividade dos Corpos Pretos.

Os espaços formais do artistapesquisador em dança estruturam-se


historicamente a partir de uma política da exclusão de certos saberes
marginalizados e da hipervalorização de outros saberes, comumente
localizados enquanto saberes universais e não específicos. A neutralidade de
saberes universais não localizados geopoliticamente no mundo incide
diretamente na naturalização desses certos lugares de memórias, informados
por estereótipos racistas que rondam o Corpo Preto onde quer que ele esteja
localizado no tecido social. Tal neutralidade entende aquilo que não é idêntico
a si através da ideia do outro. Na hierarquização de saberes dentro das
instituições de ensino ocidentalizadas esse outro se traduz sistematicamente
na invisibilização ou redução do valor epistemológico de saberes de povos não

660
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

brancos. É urgente a efetivação de estratégias de contágio a fim de amplificar


as partilhas geradoras da expansão e consolidação de políticas de
empoderamento das Corporeidades Pretas no cenário nacional, mobilizando,
primordialmente, as Universidades para a “demolição” dos modos perversos de
exclusão dessas corporeidades no âmbito acadêmico. Assim contextualizados,
seguimos em processo, em movimentos de aglutinação e ampliação de
tessituras.

Referências Bibliográficas

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Rei, julho/dezembro 2015. P. 283-291.

COSTA, Samira Lima; MACIEL, Tania Maria de Freitas Barros. (2009). Os


sentidos da comunidade: a memória de bairro e suas construções
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que sou atriz e bailarina’. Jornal Notícia Preta. Disponível em:
https://noticiapreta.com.br/valeria-mona-quero-um-futuro-em-que-nao-precise-
provar-que-sou-atriz-e-bailarina/. Acesso em 23/09/2020.

661
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Gualter, Katya Souza; Santos, Alexandre Carvalho dos; Damasceno, Tatiana


Maria; Silva, Raphael Luiz Barbosa da. Residência Especial Criadores Negros
na Dança: a prática tensionando e partilhando saberes. In: Revista Passos nº
2/Centro Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro. P 56 – 66. Disponível em:
https://centrocoreografico.wordpress.com/2020/08/09/revista-passos-2/. Acesso
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GONÇALVES, Renata Sá. A dança nobre o carnaval. Rio de Janeiro:


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GRAMÁTICO, Sérgio Junior. Delegado e Dionísio: Vidas em passos de arte.


Rio de Janeiro: Hama Editora, 2011.

HERINGER, Rosana. Democratização da educação superior no Brasil: das


metas de inclusão ao sucesso acadêmico. In: Revista Brasileira de
Orientação Profissional jan.-jun. 2018, Vol. 19, No. 1, 7-17 DOI:
http://dx.doi.org/1026707/1984-7270/2019v19n1p7.

INCTI/UnB/CNPq. Instituto de Inclusão no ensino Superior e na Pesquisa;


Universidade de Brasília/CNPq. Encontro de Saberes: bases para um
diálogo interepistêmico. Documento Institucional. Brasília: CNPq, 2015.

LOUREIRO, Carlos Frederico Bernardo; COSTA, Samira Lima da. Educação


ambiental, corpo e sociedade: tecendo relações. Educação em Revista, Belo
Horizonte, n. 38, dez. 2003. p. 173-192.

MATEUS, Felipe. Racismo no mundo acadêmico: um tema para se discutir na


Universidade. Jornal da UNICAMP. Disponível em:
https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2019/11/19/racismo-no-mundo-
academico-um-tema-para-se-discutir-na-universidade. Acesso em 20/09/2020.

PRAXEDES, Walter. Eurocentrismo e racismo nos clássicos da filosofia e


das ciências sociais. Disponível em:
http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/2010/artigos_teses/FILO
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SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos: modos e


significações. INCTI/CNPq: Brasília, 2015. 150p.

662
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

ÍNDICE REMISSIVO

663
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

EnegreSer, 101, 103


A EPA!, 441, 442, 444, 446, 447
epistemicídio, 136, 476, 477, 526
ação oxêtica, 435 Epistemologias do Sul, 106
afrocentricidade, 120 Eré Eko, 118, 119
afromandinga, 305 Ere Iranti, 119
afroperspectiva, 469, 471 escrevivência, 215, 274, 305, 348, 349
aquilombamento, 218, 476, 481, 485, 487, 592 Escrevivência, 215
Arkhé, 283 ExperimentandoNUS, 441
Arterapêutica, 606 exusíaco, 50
Artetnografia, 593
ARTivismo, 600
ator-brincante, 625 G

Germaine Acogny, 450, 451, 452, 528


B GrupAR, 646, 657

Balé Baião, 176


balé clássico, 372, 374 H
BARAFUTURISMO, 53
Baraperspectivismo, 53 hipersexualização, 135, 264
Boi de Reis, 618 homoafetividade negra, 262, 269

C J

capoeira, 206, 307, 322, 325, 326, 330, 331, 334 Jogando com a Instabilidade, 195, 198, 202
Capoeira, 548
catiços, 30 L
Cavalo, 288, 291
Cia de Dança Robson Correia, 84 lei 10.639/2003, 463
colonialidade, 43, 102, 249, 479, 521 Lei 10.639/2003, 484, 555
Corpas da Terra, 219
corpo-arquivo, 522
Corpo-Baobá, 525, 529 M
Corpo-Nanã, 274, 280
corpoterritório, 212 Matripotência, 462, 557
Cosmograma Bacongo, 573 Mercedes Baptista, 77, 479, 508
cosmovisão africana, 179, 187, 284 Mestre King, 77, 366, 393, 395
COVID, 538 Mudra Afrique, 455, 459
curadoria, 475, 478, 480
currículo, 66, 68, 107, 168, 450, 542 N
Currículo, 67
Nave Gris, 569, 570
necropolítica, 244, 343
D
Necropolítica, 138
dança afroancestral, 175, 190
dança de Oxum, 288, 296 O
Dance Theatre of Harlem, 378, 381
Dona Cici, 150, 151, 154, 156 Odundê, 207
oralitura, 274, 277, 284, 315, 535, 588
Oralitura, 266
E
orixalidade, 281, 285
École des Sables, 452, 527, 531
empoderamento, 30, 118, 121, 176, 191, 344, 444,
545, 565
Empoderamento, 85

664
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Quilombo de afetos, 270, 272


P

pagode, 130, 131, 133, 135, 137, 226, 234, 405, 439, R
442, 447
performance afro ameríndia, 415 Robson Correia, Cia de Dança, 94
policentrismo, 201
polirritmia, 157, 201
políticas da ancestralidade, 508, 523
S
Pombagiras, 26, 28, 30, 35
samba de caboclo, 556, 558, 560
pretagonismo, 494
Samba de Caboclo, 554
Sankofa, 465, 466, 467
Q Sansacroma, 485
sevirologia, 482, 484
quadrilhas juninas, 401 Silvestre, 155, 196, 197, 202, 207
Quadrilhas Juninas, 400 Swing Afro Baiano, 384, 385, 393

665
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

AUTORES
& AUTORAS

666
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Agatha Silvia Nogueira e Oliveira é Professora Substituta na Escola de Dança da


Universidade Federal da Bahia (UFBA). Doutora em Performance como Prática Pública pelo
Departamento de Teatro e Dança da Universidade do Texas em Austin (2019), com
especialização em Estudos de Gênero e da Mulher e Estudos Africanos e da Diáspora
Africana, onde completou, também, mestrado em Artes pelo Departamento de Estudos
Africanos e da Diáspora Africana. Mestra em Ciência da Arte (UFF-RJ).
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6336-4600

Alexandre Carvalho dos Santos é Intérprete, Coreógrafo e docente de Folclore Brasileiro, do


Departamento de Arte Corporal da Escola de Educação Física e Desportos da Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Dança –
PPGDan/UFRJ. Integrante da Companhia Folclórica do Rio – UFRJ. Idealizador e coordenador
do Projeto em Africanidade na Dança Educação - PADE/UFRJ.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8426-9466

Amélia Vitória de Souza Conrado é Doutora e Mestre em Educação pela Universidade


Federal da Bahia. Especialista em Coreografia pela Escola de Dança da UFBA. É Professora
Associada da Escola de Dança da UFBa. Membro do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação
em Dança (PPGDança), do Programa de Mestrado Profissional em Dança(PRODAN). Líder do
GIRA - Grupo de Pesquisa em culturas indígenas, repertórios afro-brasileiros e
populares(CNPQ).
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7491-488X

Ana Carolina Alves de Toledo é Mestranda em Artes pela UNESP. Especialista em 'Corpo:
dança, teatro e performance' pelo Célia Helena, SP (2016). Bacharel em Esporte (2006) e
Marketing (2011) pela USP. Artista-educadora-pesquisadora das intersecções entre danças
negras, pedagogias e feminismos. Pesquisadora no Grupo Terreiro de Investigações Cênicas
(Instituto de Artes, UNESP). Educadora de Atividades Físicas no SESC SP.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8467-4739

Ana Maria de São José é Artista. Professora Adjunta do Curso de Licenciatura em Dança da
Universidade Federal de Sergipe (UFS) e Professora do Mestrado Interdisciplinar em Culturas
Populares da Universidade Federal de Sergipe (PPGCULT-UFS). Doutora em Estudos
Culturais pela Universidade do Minho – Portugal. Mestra em Artes Cênicas pela Universidade
Federal da Bahia. Especialização em Coreografia pela Universidade Federal da Bahia.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7594-3407

Ana Paula Silva dos Reis é professora de dança da rede estadual de ensino, produtora
cultural e bailarina. Atualmente mestranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
da UFRGS, é graduada e especialista em Dança.
Anne Caroline Vaz é artista-professora-pesquisadora da Dança. Natural de Belo Horizonte é
graduada em Dança pela UFMG e mestranda em Dança pela UFBA. É integrante e
idealizadora do Coletivo EnegreSer e atua na Secretaria de Educação do Estado de Minas
Gerais.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5812-0537

Anne Caroline Vaz é artista-professora-pesquisadora da Dança. Natural de Belo Horizonte é


graduada em Dança pela UFMG e mestranda em Dança pela UFBA. É integrante e
idealizadora do Coletivo EnegreSer e atua na Secretaria de Educação do Estado de Minas
Gerais.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-1937-194X

667
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Aurionelia Reis Baldez (Dandara Baldez) é Mestra em Dança pelo Programa de Pós-
Graduação em Dança pela Universidade Federal da bahia (UFBA) Licenciatura em Dança e
Bacharel em Dança (UFBA). Pesquisadora no Grupo Interinstitucional de Pesquisa Corpo e
Ancestralidade. Mestra do grupo de Capoeira Preta Kalunga Capoeira Angola - BA, Produtora
Cultural do Grupo de Tambor de Crioula Baiei na Bahia. Professora substituta da Escola de
Dança da UFBA.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6166-903X

Beatriz Gonzalez Lagos é Licenciada em Dança pela UFBA, tem Especialização em Educação
Musical Escolar pela Universidad de Chile. É mestranda no PPGDança da UFBA e Bacharelanda
em Dança, UFBA. Membro do Grupo de Pesquisa em Culturas Indígenas, Repertórios Afro-
brasileiros e Populares na Escola de Dança da UFBA. É diretora e professora da Escola Aberta
de Dança do Candeal e do Projeto Social “Ballet da Luz”.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-3649-2839

Bruno de Jesus da Silva é Bailarino, coreógrafo, diretor artístico e pesquisador em dança.


Docente temporário na Escola de Dança UFBA. Mestre em dança pelo PPGDança UFBA.
Idealizador do EPA! Encontro Periférico de Artes e da Mostra CORPOCIRCUITO. Diretor do
filme documentário RAIMUNDOS: Mestre King e as figuras masculinas da dança na Bahia.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-6159-9016

Bruno Novais Dias é Mestrando em Dança e Especialista em Estudos Contemporâneos em


Dança pelo programa de pós-Graduação em dança da Universidade Federal da Bahia.
Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela
Faculdade de Atibaia. Interessado em pesquisar a afetividade negra enquanto instrumento
propulsor em processos criativos.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0370-4321

Candai Calmon, artista, pesquisadora. Bacharel em Estudos de Gênero e Diversidade


(BEGD/NEIM-UFBA); Mestranda em Dança (PRODAM-UFBA).
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0985-6337

Celina Nunes de Alcântara é atriz e professora adjunta da Universidade Federal do Rio


Grande do Sul, Instituto de Artes, no Departamento de Arte Dramática e no Programa de Pós-
Graduação em Artes (PPGAC). Integra o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Africanos e
Indígenas (Neab/Ufrgs), coordena o Grupo Interseccional de pesquisas em Negritude, Gênero
e Artes (GINGA) e é editora Associada da Revista Brasileira de Estudos da Presença. Como
atriz é membra fundadora do grupo Usina do Trabalho do Ator (UTA/RS) e, desde 2018, integra
o coletivo do espetáculo A mulher arrastada.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-6546-2765

Cleyce Silva Colins é Mestranda em Artes Cênicas na UFRGS, integrante do GETEPE-Grupo


de Estudos em Educação, Teatro e Performance. Pesquisadora no projeto: A Formação Teatral
como Criação de Si Mesmo. Graduada em Dança pela UFPEL.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8460-7920

Denise Mancebo Zenicola é diretora, coreógrafa, bailarina e Artivista. DRT. 5.303. Doutorado
e Mestrado no PPGAC - UNIRIO. Psd. em Danças Negras /Capes, no ISCTE em Lisboa.
Docente UFF/IACS. Pesquisadora junto ao NEPAA, professora no Programa de Pós
Graduação em Artes Cênicas - UNIRIO. Formação em Dança Clássica, Contemporânea e
Danças Pretas, esta última com Gilberto de Assis. Trabalha com Danças Contemporâneas e
Afro Diaspóricas na cena. Atua em dança, teatro, arte preta, videodança. Diretora do Coletivo

668
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Muanes Dançateatro. Coordenadora na ABRACE. Projetos: Laboratório Coletivo Muanes


Dançateatro (UFF), Ciranda-Circulo Antropológico da Dança (UFPA) e Núcleo de Estudos das
Performances Afro Ameríndias (UNIRIO).
E-mail: [email protected]
Orcid:https://orcid.org/0000-0001-9284-8751 site:https://denisezenicola.com.br/

Eduardo Alves Guimarães é artista autônomo, mestrando em Dança pela Universidade


Federal da Bahia. Co-autor do Projeto Negras Utopias (2017) Integrante do grupo Gira - Grupo
de pesquisa em culturas Indígenas, repertórios Afro-Brasileiros e Populares (2017 - CNPq). Na
televisão, realizou trabalho como apresentador do Campus em Ação da Tv Cultura - Fundação
Padre José de Anchieta (2019).
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9360-7642

Eric Barbosa Araújo é formado em Administração de Empresas, ano 2008, Unifacs, Educação
Física, ano 2017, Faculdade Social da Bahia, Pós Graduado em Gestão de Pessoas, ano
2010, Unifacs, Mestrando Escola de Dança Universidade Federal da Bahia, ano 2019/2020,
Professor de Swing Afro Baiano.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0399-6002

Erick Santos Silva, Performer-dançante; Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade


Estadual de Londrina (UEL) onde atuou em pesquisa na transdisciplinaridade da performance
com a antropologia. Mestrando pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) no PPGDança,
onde busca a transdisciplinaridade sob o seu tema, Decolonizar: Dançando com Sankofa.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9212-0354

Everton Bispo dos Santos é Mestrando e cursa Especialização em dança na Universidade


Federal da Bahia. Licenciado e Bacharel em dança pela Universidade Federal da Bahia.
Técnico em Dança pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. Idealizador e coordenador do
Núcleo de Dança Coisas de Pretxs, residente na Escola de dança da UFBA. Interprete-criador
da Cia de Dança O dito.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-3462-3359

Fernanda Silva dos Santos é Mãe, Feminista, Capoeirista, Profª. de Dança Criativa como
caminho Dançaterapêutico. Mestra em Dança pelo PPGDANÇA/UFBA. Doutoranda em Dança
PPGDANÇA/UFBA, sob a orientação da Profª. Drª. Amélia Vitória de S. Conrado. É membro do
Grupo Gira de Pesquisa em culturas Indígenas, Repertórios Afro-Brasileiros e Populares do
Departamento de Dança da UFBA. Campos de Pesquisa: Artivismo Feminista; Prática da
Capoeira em Processos criativos.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-9073-008X

Fernando M C Ferraz é Professor da Escola de Dança da UFBA. Doutor e Mestre em Artes


pelo IA/Unesp, Bacharel Licenciado em História pela FFLCH-USP. Professor do Programa de
Pós-Graduação em Dança da UFBA e do Mestrado Profissional em Dança PRODAN-UFBA,
membro do Grupo GIRA: Grupo de Pesquisa em Culturas Indígenas, repertórios Afrobrasileiros
e Populares.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8149-1793

Franciane Kanzelumuka Salgado de Paula é artista, pesquisadora e professora de dança.


Bacharela em Dança pela UNICAMP, mestra e doutoranda em Artes pelo PPGArtes-UNESP.
Cofundadora e integrante da Nave Gris Cia Cênica. Faz parte do Grupo de Pesquisa Terreiro
de Investigações Cênicas. Atuou como docente na licenciatura em Dança da Faculdade
Paulista de Artes e na Escola Livre de Dança Santo André. Fez parte da SeráQuê? Cia. de
Dança, da Cia. TeatroDança Ivaldo Bertazzo e da E² Cia de Teatro e Dança.
E-mail: [email protected]

669
DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0901-3636

Gabriela Souza da Rosa (Rita Rosa Lende) é artista, mestranda em Artes Cênicas no
Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAC/UFRGS)
e graduada em Dança pela da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, membro
pesquisador do Grupo Interseccional de pesquisas em Negritude, Gênero e Artes (GINGA),
coordenado pela Dra. Celina Nunes de Alcântara e do Grupo de Estudos em Teatro, Educação
e Performance (GETEPE), coordenado por Gilberto Icle. Organizadora e idealizadora do
Seminário de Danças Negras do RS desde 2016 ao lado de Manoel Luthiery (UFPEL).
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0744-9030

Gerson Moreno é Artista de dança, diretor-fundador da Cia Balé Baião de Itapipoca CE, artista
audiovisual, coordenador pedagógico da Escola livre Balé Baião (Ponto de Cultura Galpão da
Cena de Itapipoca CE – Escola da Cultura CE), curador do Festival Internacional de Dança do
Litoral Oeste CE, pedagogo formado pela Universidade Estadual do Ceará (UECE),
especialista em Educação Biocêntrica e mestre em Educação pela Universidade Federal do
Ceará (UFC).
E-mail: [email protected]

Gleidison Oliveira da Anunciação (Guego Anunciação) é bacharel em artes, licenciado,


especialista e mestrando em dança pela Universidade Federal da Bahia. Formação em balé
clássico Método da Royal Academy Of Dance, é bailarino, coreógrafo e diretor fundador da
Reforma Cia de Dança. É professor do curso técnico e preparatório em dança da Escola de
Dança da Fundação Cultural do estado da Bahia, lecionando os estudos sobre o balé clássico.
Site: guegoanunciacao.com.br
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-0099-9523

Inah Irenam Oliveira da Silva é bailarina, produtora e gestora cultural, pesquisadora de


danças e manifestações culturais populares, graduada em Bacharelado Interdisciplinar de
Artes na UFBA. Idealizadora do EPA! Encontro Periférico de Artes e da Batalha do Pagode
Baiano. Orientadora: Daniela Maria Amoroso.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-8938-667X

João Paulo Petronílio é Bacharel e Licenciado em dança pela Universidade Federal de


Viçosa, Mestrando no Programa de Pós-graduação em Dança, da Universidade Federal da
Bahia. Integrante do Grupo de pesquisa em culturas indígenas repertórios afro-brasileiros e
populares da Escola de Dança/ UFBA com coordenação dos Doutores Amélia Conrado e
Fernando Ferraz.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-1345-1209

Joelma Ferreira da Silva é Artista da Dança e Arte-educadora pela SEDUC/AL. Mestranda no


curso Interdisciplinar em Culturas Populares (PPGCULT-UFS). Especialista em Arte, Educação
e Sociedade (CESMAC) e graduada em Licenciatura em Dança pela Universidade Federal de
Alagoas.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-9598-1651

Joice Faria é Pesquisadora em Literatura Brasileira e Literatura Infantil/infanto-juvenil.


Desenvolve atualmente dissertação de Mestrado pelo Programa de Pós-graduação em
Literatura e cultura na linha de pesquisa documentos da memória cultural da Universidade
Federal da Bahia (UFBA), Investiga a produção contemporânea de autoras e autores negros e
suas dinâmicas de circulação e reconhecimento, especialmente em eventos e feiras literárias.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5037-5984

670
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Katya Souza Gualter/Nome artístico: Katya Gualter. Mulher preta. Doutora em Artes da Cena
pela UNICAMP. Diretora da Escola de Educação Física e Desportos da UFRJ. Artista docente
e pesquisadora da Dança/UFRJ. Coordenadora do Laboratório PECDAN (Pesquisa em Cinema
e Dança)/UFRJ - Projeto Poéticas no cotidiano sob olhares de Exu e Pombagira. Integrante do
GrupAR.
E-mail: [email protected]

Kleber Rodrigo Lourenço Silva é doutorando em Artes pela UERJ e Mestre em Artes pela
UNESP. Artista da Dança e do Teatro. Integra como pesquisador o grupo Motim – Mito, Ritos e
Cartografias Femininas na Arte CNPQ/UERJ. Diretor do Visível Núcleo de Criação e encenador
na Capulanas Cia de Arte Negra.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/000-0002-6774-0834

Leonardo das Chagas Silva é Licenciado em Dança e especialista em Arte-Educação, ambos


pela UFBA. Atua como professor de Arte/Dança no Instituto Federal da Bahia - IFBA. É bolsista
FAPESB e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Dança (PPG-Dança), da Escola de
Dança da Universidade Federal da Bahia, no qual participa do Grupo de Pesquisa em Culturas
Indígenas Afro-Brasileiros e Populares – GIRA. Orientador: Prof. Dr. Fernando Marques
Camargo Ferraz.
E-mail: [email protected].
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7132-887X

Lindete Souza de Jesus é Mestranda Escola de Dança UFBA - 2019-2020. Formada em


Comunicação Social –Jornalismo ano 2014, F2J, Atriz Ufba 2015 – Poetisa, poemas em várias
antologias, Dançarina Afro Performer, Canto coral – contralto no coral do Mosteiro de São
Bento.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-8866-0780

Lorena Conceição Moreira de Oliveira é Mestranda em Dança no Programa de Pós-


Graduação Profissional em Dança - PRODAN da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Especialista em Arte Educação - Instituto Superior de Educação de Afonso Cláudio (ISEAC).
Licenciada e bacharel em Dança - Escola de Dança da UFBA. Vice-diretora e professora de
Dança - E. M. Comunitária da Histarte.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4369-0182

Luciana Monnerat é Mestranda em Dança (PPGDAN/UFRJ), intérprete-criadora da


Companhia Híbrida, professora de Hip Hop nos Projetos Arte é o Melhor Remédio (Companhia
Híbrida) e Uzina Artes Cênicas (Espaço Cultural da Escola SESC de Ensino Médio), produtora
e idealizadora da Groove Party <https://www.instagram.com/grooveparty/>.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-6790-1343

Luciane Ramos Silva é artista da dança, antropóloga e mediadora cultural. É doutora em


Artes da Cena e mestre em Antropologia pela Unicamp. É co-diretora da revista O
Menelick2Ato. É gestora de projetos do Acervo África e compõe a Anykaya Dance Theater,
companhia sediada em Boston.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1723-719X

Luisa Marinho é artista e pesquisadora. Doutoranda no Departamento de Espanhol e


Portuguê da New York University, é mestre em Performance Studies pela NYU (Emerging
Scholar Award 2019) e mestre em Artes da Cena pelo PPGAC/UFRJ (FAPERJ/SEC Prêmio
Experimentações Artísticas 2016). Seu trabalho, cruzamento entre performance e escrita, pode
ser visto em www.luisamarinho.com.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-4736-3805

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

Marcos Cezar Santos Gomes é Docente da Unijorge. Mestre em Dança pela - UFBA. Aluno
Especial do Doutorado no programa de Difusão do Conhecimento - FACED, 2017.
Psicopedagogo, especialista em Estudos Contemporâneos em Dança - UFBA e em
Metodologia da Educação do Ensino Superior. Licenciatura e Pós-Graduação Docente em
Educação Física. Mestre de Capoeira. Integrante do Grupo de Pesquisas Corponectivos em
Danças - UFBA.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-3863-5856

Maria de Lurdes Barros da Paixão é Líder e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Linguagens


da Cena: Imagem Cultura e Representação /LINC/CNPQ/UFRN. Professora Associada II do
Departamento de Artes da UFRN, Curso de Licenciatura em Dança. Docente Colaboradora do
Programa de Pós-graduação em Dança da UFBA.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7196-4590

Marilia Rameh Reis de Braga. Nome artístico: Marília Rameh. Mulher branca. Fundadora e
integrante da Cia de Dança Artefolia, artista da dança, pesquisadora com experiência na área
de criação artística em dança, gestão e produção cultural, atuando também na análise e
emissão de pareceres de projetos culturais. Tem experiência na gestão pública, em
organizações da sociedade civil. É especialista em Políticas Culturais de Base Comunitária
FLACSO - Argentina. Integrante do GrupAR.

Raissa Conrado Biriba é Mestra pelo Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura


e Sociedade da Universidade Federal da Bahia e licencianda em Dança pela Escola de Dança
da UFBA na modalidade de Ensino à Distância (EAD). Bailarina e professora do método
cubano de balé clássico. Pesquisadora do GIRA - grupo de pesquisa em culturas indígenas,
repertórios afro-brasileiros e populares.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-2046-1085

Raphael Luiz Barbosa da Silva/Nome artístico: Raphael Arah. Homem preto. Artista docente
e pesquisador da dança. Professor do curso técnico em bailarino contemporâneo da Escola
Angel Vianna. Coordenador do Núcleo de Estudos Contemporâneos do Corpo Negro da
Faculdade Angel Vianna. Mestrando em Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
UFRJ. Integrante do GrupAR.

Renato Mendonça Barreto da Silva/Nome artístico: Renato Mendonça. Homem preto. Doutor
em Artes Visuais pela UFRJ. Professor Ajunto do Departamento de Arte corporal da Escola de
Educação Física e Desportos da UFRJ. Bailarino Intérprete do Grupo Cultural Jongo da
Serrinha (2008). Integrante do GrupAR.

Roberta Roldão é bacharel em Direito, especialista em Recursos Hídricos e Direito Ambiental;


Mestre em Artes pela UFU, Doutoranda pela UFBA/PPGAC (Conceito Capes 6), com duas
formações na École des Sables (2011/2018), membro do Grupo Umbigada. Tem formação em
Dramaturgia Negra: A palavra viva, pela EAD e alguns trabalhos audiovisuais relacionados a
dança africana.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7962-6273

Robson Correia Santos é Licenciado e Bacharel em Dança pela UFBA, Ex-produtor, professor
e Coordenador na Escola de Dança da FUNCEB, Ex- produtor do Projeto “Arte no Currículo"
parceria entre UFBA e Prefeitura de Salvador, coreografo da Cia Baiana de Patifaria, Diretor,
Coreógrafo e produtor da Cia de Dança Robson Correia, Professor da Santa Casa da Bahia,
membro do grupo de Pesquisa Gira da UFBA.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5648-4356

Samira Lima da Costa/Nome artístico: Bia Samira. Mulher branca. Mãe, contadora de
histórias, professora de graduação no Departamento de Terapia Ocupacional da Faculdade de

672
ANDA | ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM DANÇA

Medicina da UFRJ e no Programa de Pós-graduação em Paicoaaociologia de Comunidades do


Instituto de Psicologia da UFRJ. Coordenadora do Laboratório de memórias territórios e
ocupações - rastros sensíveis/ CNPq. Integrante do GrupAR.

Sebastião de Sales Silva (Tião Silva) é ator-brincante, professor-pesquisador das artes da


cena. Intérprete-criador do espetáculo “Saudades Z(é)”. Participou do espetáculo “Revoada” do
Arkhétypos Grupo de Teatro (UFRN). Tião Silva tem em sua formação uma proposta
multidisciplinar; é pedagogo, literato em culturas do RN. É doutorando em Dança pela UFBA e
integra o Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Extensão em Contemporaneidade, Imaginário e
Teatralidade (GIPE/UFBA).
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7070-3364

Sérgio Andrade é artista e professor do DAC e do PPGDan/ UFRJ. Doutor e mestre em


Filosofia (PUC-Rio), mestre em Artes Cênicas e licenciado em Dança (UFBA). Coordenador do
Laboratório de Crítica/ UFRJ.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-1334-9394

Sheila Karine Melo Lima é Mestranda do Programa de Pós Gradução em Dança da


Universidade Federal da Bhaia (UFBA). Membro do projeto de pesquisa em dança Aldeia
Mangue da Universidade Federal de Sergipe (UFS).Especialista em Psicomotricidade pela
Universidade Pio Décimo.
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-1041-0727

Soiane Gomes de Paula é Mestranda em Dança no Programa de Pós-Graduação em Dança


da Universidade Federal da Bahia(UFBA). Artista popular da linguagem de Quadrilha Junina
desde 1994, Possui graduação em Licenciatura em Dança pela Universidade Federal da Bahia
(2006). É Integrante do Grupo de Pesquisa GIRA/CNPQ onde desenvolveu e realizou o 1º
Fórum de Quadrilhas Juninas de Salvador (2019). Foi Conselheira Municipal de Politicas
Culturais do Salvador (2015-2017). Atuou como professora de Danças Brasileiras na Escola de
Dança da Fundação Cultural do Estado da Bahia – FUNCEB (2010 a 2014).
E-mail: [email protected]
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-6725-1117

Tatiana Maria Damasceno é Coreógrafa, Intérprete e docente no Programa de Dança


(Licenciatura, Bacharelado e Teoria) e do Curso de Pós-Graduação em Dança do
Departamento de Arte Corporal da Escola de Educação Física e Desportos da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Coordenadora de Graduação do Curso de Bacharelado em Dança.
Membro do Núcleo Docente Estruturante (NDE) dos cursos de graduação em dança. Doutora
em Artes Cênicas pela Universidade.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4941-6077

Tulani Pereira da Silva é Doutoranda em Artes (UERJ), mestra em Relações Étnico-Raciais


(CEFET-RJ), especialista em Linguagens Artísticas, Cultura e Educação (IFRJ) e licenciada em
Dança (UFRJ). Atua como artista, educadora e pesquisadora nas áreas de Performance,
Relações Étnico-Raciais, Gênero, Cultura Popular, Religiões Afro-Brasileiras.
E-mail: [email protected]
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6287-6399

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DANÇA E DIÁSPORA NEGRA

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