Casa Grande
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31/03/2009
O Racismo de Casa Grande e Senzala em Quadrinhos
O texto abaixo é uma importante iniciativa do Observatório Negro do Recife que reune
um grupo de ativistas contra o racismo.
CASA GRANDE E SENZALA EM QUADRINHOS: REPRODUZINDO E
NATURALIZANDO A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E RAÇA NAS SALAS DE
AULA
No ano de 2005, foi republicada, pela Fundação Gilberto Freyre e Global Editora, a
obra intitulada “Casa Grande & Senzala em Quadrinhos”. Trata-se de uma versão
juvenil e facilitada, através de desenhos em quadrinhos, do conhecido livro de
Gilberto Freyre, tornado célebre por ufanar a identidade nacional como fruto da
mestiçagem entre brancos, negros e índios. O livro vem sendo distribuído nas escolas
públicas municipais do Recife, desde 2001, mediante convênio estabelecido entre a
Prefeitura do Recife e a Fundação Gilberto Freyre, e será ainda distribuído nas
escolas públicas estaduais, conforme anúncio do Governo de Pernambuco, que
investira R$ 100.000,00 na produção de 40 mil exemplares. A obra conta ainda com
o apoio do Ministério da Cultura, que em 2006 destinou R$ 300.000,00 à Fundação
Gilberto Freyre (Convênio SIAFI n° 588641).
Ao contrário da obra clássica, que pelo seu caráter acadêmico, presta-se à refutação,
o livro em quadrinhos se propõe a reproduzir uma visão distorcida e discriminatória
da História do Brasil, perpetuando uma interpretação centrada no olhar da Casa
Grande e invisibilizando a participação política, intelectual e econômica da
população negra e indígena pela própria versão desses sujeitos.
As imagens e frases reproduzem, de forma simplória e equivocada, o mito da
democracia racial, que, por meio de um processo de revisionismo, desconsidera a
opressão, tortura e exploração ocorridas na escravidão colonial, escamoteia e
naturaliza os processos de violência física e simbólica sobre crianças, mulheres e
homens negros e indígenas. Chegam ao extremo de dar explicações inacreditáveis às
práticas de tortura contra escravizados/as:
Alguns escravos tinha o ‘vício’ de comer terra. Para combater esse mal, usavam-se
máscaras de flandres. Ou, então, era o paciente suspenso do solo e preso a
um panacum de cipó. O isolamento durava vários dias, durante os quais o negro
ficava sujeito a um regime especial de alimentação (pág. 51).
a) Naturalização da opressão e violência contra as mulheres negras e indígenas.
Na obra contestada, o recurso à imagem potencializa exponencialmente os
efeitos danosos da argumentação que, em si mesma, pode ser considerada um libelo
racista e sexista: são imagens plasticamente perfeitas, atrativas, que corporificam
visualmente as idéias que o texto apenas sugere. Ora, a carga simbólica que trazem
os desenhos de mulheres negras e indígenas nuas ao lado de homens e mulheres
brancas vestidos, e que mostram crianças negras “montadas” por crianças brancas, e
outras imagens de igual teor, vem ao encontro de um imaginário nacional em que
mulheres negras e indígenas são desconsideradas em sua dignidade humana,
reforçando o caráter de objeto sexual e de despersonalização com que o processo de
formação nacional as tratou, justificando este imaginário.
A imagem da mulher negra e indígena vem sendo veiculada, ao longo destes 506
anos de história, com base em um paradigma, que é o da inferioridade e
desconstituição de sua humanidade. Como desdobramento desse paradigma,
podemos elencar inúmeros prejuízos. A discriminação resultante da utilização destes
estereótipos está não somente na violência simbólica contra a mulher; há ainda que
se considerar os efeitos deste paradigma no que se refere à violência física e
psicológica, concretizada nos números do tráfico de seres humanos, da violência
sexual, doméstica e infra-familiar contra meninas e mulheres. Tais formas de
violência traduzem o sentido de dominação sobre o corpo feminino, um sentido que
surge cinicamente na publicidade em geral e nas novelas e se concretiza na crença da
superioridade masculina que resulta nos espancamentos, assédios e abusos sexuais,
representando o poder que se busca impor através da satisfação dos interesses,
desejos ou dos conflitos doentios dos algozes, sejam eles sexuais ou emocionais, mas
também dos cidadãos e cidadãs comuns que constroem suas identidades,
expectativas e desejos num dos únicos espaços em que têm acesso a outras
linguagens e expressões culturais além daquelas da sua comunidade, que é através da
mídia de massa. Repetidamente expostos a essas idéias, têm um potencial maior para
repetirem esses mesmos valores.
Da mesma forma, esse paradigma confirma a naturalização das desigualdades de
gênero que, articuladas às desigualdades raciais, se apresentam nas assimetrias
quanto aos direitos sociais, econômicos e culturais, das quais o segmento mais
vulnerabilizado pela fragilidade das instituições garantidoras do acesso à justiça é,
sem sombra de dúvidas, o segmento de mulheres negras.
b) Da Discriminação Racial, de Gênero e da Violação aos Direitos da Criança e
do Adolescente.
Com base na normativa internacional de direitos humanos, denunciamos a obra
em questão como uma VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS DA
POPULAÇÃO NEGRA E INDÍGENA, por ser discriminatória racialmente.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra
a Mulher - "Convenção de Belém do Pará" (1994) – determina que se deve “entender
por violência contra a mulher qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que
cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no
âmbito público como no privado” (art. 1º); segue este entendimento a Lei nº
11.340/2006, a Lei Maria da Penha, que ainda dispõe:
(...)
Art. 2o. Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual,
renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades
para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento
moral, intelectual e social.
Art. 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos
direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia,
ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à
dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
§ 1o O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos
das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de
resguardá-las de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.
(...) (LEI MARIA DA PENHA).
Art. 8o A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a
mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados,
do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não-governamentais, tendo por
diretrizes:
(...)
III - o respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e sociais da
pessoa e da família, de forma a coibir os papéis estereotipados que legitimem ou
exacerbem a violência doméstica e familiar, de acordo com o estabelecido no inciso
III do art. 1o, no inciso IV do art. 3o e no inciso IV do art. 221 da Constituição
Federal;
O dano e a violência a que nos referimos, portanto, estão consumados quando
da publicação e veiculação da obra em que se manifestam estereótipos
discriminatórios sobre a mulher negra e indígena, inclusive porque:
(...)
O direito de toda mulher a uma vida livre de violência inclui, entre outros: 1. o
direito da mulher de ser livre de toda forma de discriminação, e 2. o direito da
mulher ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e
práticas sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade de subordinação
(Art. 6º, CONVENÇÃO DE BELÉM DO PARÁ).
Tal violência vem sendo naturalizada e potencializada pela ação da Prefeitura da
Cidade do Recife e do Governo do Estado de Pernambuco, de adotar referida
publicação nas escolas públicas municipais e estaduais, em programas especialmente
dirigidos às crianças e adolescentes, perpetuando tais padrões e práticas sociais e
culturais de inferioridade e subordinação. Por esse comprometimento, é inaceitável
permitir-se que um livro com tal conteúdo discriminatório permaneça sendo
distribuído em escolas públicas, além de amplamente comercializado em livrarias.
Além do conteúdo discriminatório, vemos que as imagens de abuso e assédio sexual
às mulheres negras contidas no livro em quadrinhos – imagens travestidas de
relações sexuais consensuais –, apresenta-se como material impróprio às crianças e
adolescentes, violando o Estatuto da Criança e do Adolescente quanto às medidas de
Prevenção Especial:
Art. 78. As revistas e publicações contendo material impróprio ou inadequado a
crianças e adolescentes deverão ser comercializadas em embalagem lacrada, com a
advertência de seu conteúdo (ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE).
Sua veiculação, insistimos, é um desrespeito à História da população negra e
indígena, conseqüentemente, à História do Brasil, e resulta em danos morais
coletivos e difusos. Assim, conclamamos as mulheres de